Você está na página 1de 244

Walter Garcia

" DA DISCUSSÃO É
QUE NASCE A LUZ "
canção, teatro e sociedade
Walter Garcia

,
“Da discussão é que nasce a luz”: canção,

DA DISCUSSÃO É ,
teatro e sociedade
Walter Garcia

QUE NASCE A LUZ


canção, teatro e sociedade
Fino Traço Editora Ltda.
© Walter Garcia
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer
meio sem a autorização da editora.

As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seu autor e não expressam
necessariamente a posição da editora.

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj


G211d
Garcia, Walter
"Da discussão é que nasce a luz": canção, teatro e sociedade / Walter Garcia. - Ebook - Belo
Horizonte [MG]: Fino Traço, 2020.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-89011-30-9
1. Música popular - História e crítica - Brasil. 2. Música - Aspectos sociais - Brasil. 3. Música
popular - Teatro brasileiro. I. Título.

20-67229 CDD: 782.421640981 CDU: 78.038.6(81)

Coleção Estudos Brasileiros | Editora Fino Traço


Coordenadores:
Monica Duarte Dantas
Instituto de Estudos Brasileiros | USP (Brasil)
Marcos Antônio de Moraes
Instituto de Estudos Brasileiros | USP (Brasil)

Conselho Editorial:
Amy Chazkel
Columbia University (EUA)
John Tofik Karam
The Lemann Center for Brazilian Studies, University of Illinois (EUA)
Anthony Pereira
King’s College (Inglaterra)
Peter W. Schulze
Instituto Lusobrasileiro, Universidade de Colônia (Alemanha) 
Diana Gonçalves Vidal
Instituto de Estudos Brasileiros | USP (Brasil)

Fino Traço Editora ltda.


finotracoeditora.com.br
Para Malu,
que me pede uma canção, um beijo,
enquanto escalamos tantos metros todo dia.

E para Dora,
filha alegre, sorridente, que acredita que o pai dela
“precisa aprender a trabalhar um pouco menos”.
Cantando e sambando na lama de sapato branco, glorioso
Um grande artista tem que dar o que tem e o que não tem
Tocando a bola no segundo tempo
Atrás de tempo, sempre tempo vem
Sambando na lama, amigo, e tudo bem

E o tal ditado, como é?


Festa acabada, músicos a pé
Músicos a pé, músicos a pé
Músicos a pé
(Chico Buarque, “Cantando no toró”, 1987)

A nossa existência é maciça, é vida que brota dos poros, é solo que
vira dueto, é duelo com a morte, é roda de escuta que enxuga todo o sangue
derramado por corações rijos.
É sorte ter a espada e a lança.

(Jé Oliveira, Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e


Homens, 2018)
Coleção Estudos Brasileiros

O desafio contemporâneo de refletir criticamente sobre a realidade


brasileira, em perspectiva inter/multi/trans e pós-disciplinar, materializa-
se nos títulos que integram a Coleção Estudos Brasileiros, do Instituto de
Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, na Série Paralelos 22,
publicada pela Editora Fino Traço.
Pensar a América portuguesa e o Brasil a partir de uma aguda e original
perspectiva epistemológica, à luz de expressiva fortuna bibliográfica, pressupõe
a ampliação, o adensamento e a interconexão de diferentes enfoques teóricos
e metodológicos capazes de propiciar a apreensão de experiências coletivas
e individuais, desvelando áreas de investigação fronteiriças ou ainda pouco
exploradas. Supõe, igualmente, a compreensão das múltiplas temporalidades
que constituem o processo histórico, tensionadas entre continuidades e
rupturas. Impõe um olhar, simultaneamente abrangente e verticalizado, sobre
sua complexa configuração social, étnica/racial e de gênero, contemplando
alteridades e diversidades, assim como sobre a sua conformação educacional,
cultural, artística e religiosa, atentando a violências, confrontos, negociações
e acomodamentos.
Os títulos da Coleção flagram imaginários de nação e projetos identitários
que produzem expectativas e representações, assim como consubstanciam
territórios e geografias. Descortinam a presença e as relações do Brasil
no contexto globalizado, colocando em pauta questões sociais, políticas,
econômicas, tecnológicas e ambientais. Discorrem sobre meandros da
Antropologia, Artes Visuais, Economia, Educação, Geografia, História,
História Econômica, Literatura, Museologia, Música, Sociologia, entre outras
áreas do saber, refletindo questionamentos elaborados no âmbito do Programa
de Pós-Graduação em Culturas e Identidades Brasileiras e sinalizando as
potencialidades da documentação primária, sobre a qual o IEB, reconhecida
instituição de guarda e extroversão de acervos, oferece consistentes reflexões.
A Coleção Estudos Brasileiros é um convite a leituras críticas sobre
passado e presente, incitando o leitor a imaginar novas perspectivas de futuro.

Os coordenadores
Sumário

Breve explicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Canção e sociedade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
2007: está mais fácil trabalhar com canção popular-comercial no Brasil?. . . 17
Notas sobre “Cálice” (2010, 1973, 1978, 2011). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
“Clara Crocodilo” e “Nego Dito”: dois perigosos marginais?. . . . . . . . . . . 79
Língua do “p” de pólvora. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
O novo caminho de Edi Rock. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
Nota sobre o disco Encarnado, de Juçara Marçal (2014). . . . . . . . . . . . . . . 125

Livros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
A memória da pedra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
Em diálogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
Histórias dentro da História do Rap em São Paulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
Sobre as ideias sólidas de um livro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153

Canção e teatro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157


Três caminhos de pesquisa musical no Latão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159
Três notas sobre Farinha com Açúcar e Racionais MC’s . . . . . . . . . . . . . . . 169
Tragédia na Vila do Meio-Dia: uma contribuição à crítica de Gota D’Água
{Preta}. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179

Duas crônicas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205


O negócio da crítica musical. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207
Home office em 2008. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213

Sobre os textos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215


Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 218
Fontes sonoras e audiovisuais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237
Breve explicação

Este livro reúne 15 textos redigidos de 2007 a 2019 e publicados em


meios diversos, registrados ao final. Todos, no entanto, foram revisados
e, em alguns casos, apresentam-se com vários acréscimos e alterações. A
divisão em quatro partes se justifica pela maior afinidade. Embora o conjunto
mantenha certo caráter fragmentário – uma das atuais marcas do trabalho
acadêmico –, penso que também sejam nítidos os seus contornos, os quais
decorrem de um objetivo principal: o de empreender a crítica da canção
popular-comercial brasileira a partir do estudo de duas constelações, a da
MPB e a do Rap, e de suas relações com o teatro.
Ainda que de modo breve, diga-se que a crítica tem como chave, neste
trabalho, a noção de forma. Essa diz respeito tanto à análise dos materiais
sonoros e dos modos como eles se organizam, constituindo uma estrutura
que é, afinal, a obra fonográfica, quanto à interpretação dos sentidos de tal
estrutura à luz do processo histórico brasileiro.1 Adota-se, portanto, uma
perspectiva interdisciplinar, que não desconsidera as tensões inerentes a uma
abordagem desse tipo, mas que mobiliza instrumentos da teoria crítica, da
musicologia, dos estudos literários, da comunicação social, da historiografia,
da sociologia da cultura. Já o recorte temporal privilegia produções recentes,
suas condições de realização e seus impasses. Contudo, o próprio material
às vezes exigiu que a atenção se voltasse para décadas anteriores.
É o caso de “2007: está mais fácil trabalhar com canção popular-
comercial no Brasil?”, panorama que abre a primeira parte do livro, “Canção

1. Não é necessário citar os autores em que me baseio, já que os textos os identificam


meticulosamente. Mas é justo dizer que me inspiro, de modo mais direto, na tradição firmada
por Antonio Candido, Roberto Schwarz e José Antonio Pasta Jr. nos estudos literários.
A fim de evitar qualquer mal-entendido, todavia, não custa esclarecer que os materiais
sonoros que analiso e interpreto são, em síntese, melodia e letra expressadas pelo canto
(performance vocal), harmonia e pulsação (acompanhamento rítmico).

13
e sociedade”. Embora muitos aspectos tenham se modificado desde então
– sobretudo pelo avanço do processo de digitalização, pela crise econômica,
pelo declínio das leis de fomento e incentivo à cultura, pelas reviravoltas
na esfera política brasileira –, o recuo até as décadas de 1970 e 1990 ainda
é válido e, com ele, o essencial da crítica endereçada ao presente. A seguir,
“Notas sobre ‘Cálice’ (2010, 1973, 1978, 2011)” toma como ponto de partida
para a pesquisa de uma canção emblemática dos anos de 1973 e de 1978 a
sua recriação pelo rapper Criolo (então adotando o nome artístico Criolo
Doido), em vídeo difundido no YouTube, em 2010. “‘Clara Crocodilo’ e
‘Nego Dito’: dois perigosos marginais?” sintetiza as trajetórias de dois dos
chamados independentes, Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, desde a
Londrina do início dos anos 1970 até a São Paulo dos anos 1970, 1980 e 1990.
Mas o final do ensaio analisa um dos desdobramentos da obra de Itamar,
antecipando uma das linhas de “Nota sobre o disco Encarnado, de Juçara
Marçal (2014)”, que encerra a primeira parte. Antes, dois textos curtos, de
viés jornalístico, fazem o registro de momentos significativos no percurso
artístico de Emicida e de Edi Rock, na década de 2010.
Já as três partes seguintes apresentam internamente maior organicidade.
“Livros” se compõe de estudos que nasceram como prefácio a quatro
publicações feitas à margem do mercado hegemônico. Seus temas
complementam discussões que se leem em outros textos aqui reunidos –
questões de gênero, de raça, dinâmicas da cultura de tradição oral, processos
da cultura Hip Hop, recursos persuasivos da publicidade e da propaganda.
Na terceira parte, análises do trabalho musical na Companhia do Latão
(de 1997 a 2003), da peça-show Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança
de Meninos e Homens (2016) e do espetáculo Gota D’Água {Preta} (2019)
colocam diretamente em diálogo a música brasileira e o teatro. Por fim,
“Duas crônicas” encerra o conjunto abordando com liberdade e humor o
cotidiano de trabalho da crítica.

Este livro é parte do projeto de pesquisa Passagens: por uma revisão crítica
interdisciplinar da MPB (1958-2014), apoiado pelo CNPq (Bolsa Produtividade
em Pesquisa).

14
CANÇÃO E SOCIEDADE
2007: está mais fácil trabalhar com canção
popular-comercial no Brasil?

Quando começou a trabalhar com música, Tom Jobim ouviu que


provavelmente morreria “pobre, tuberculoso e na sarjeta”, extenuado de
correr atrás do aluguel tocando piano em inferninhos. E também que deveria
seguir com Chopin, Rachmaninoff, em vez de perder tempo com sambinhas,
entre bêbados e prostitutas.1 O jovem Chico Buarque, logo após o repentino
e estrondoso sucesso de “A banda”, afirmou que começaria a se “preparar para
o vestibular numa Faculdade de Letras”.2 Até viver com mulher e filha na
Itália, entre 1969 e 1970, tomando distância da repressão da ditadura militar,
acreditava que suas canções não lhe garantiriam uma carreira profissional
duradoura.3 Mas achava divertida a rotina de artista, às vezes enfrentada
sem “rigor profissional nenhum”.4 Mesmo ao voltar do exílio, a sua bagagem
para show de um dia só, em qualquer cidade, era uma sacola plástica; dentro
dela, uma escova de dentes, a pasta e uma camisa.5 Depois é que os shows lhe
causariam mais nervosismo que diversão.6 Já os Mutantes se divertiam em

1. Cf. SOUZA, Tárik de; CEZIMBRA, Márcia; CALLADO, Tessy. Tons sobre Tom. Rio de
Janeiro: Revan, 1995, p. 76. Cf. JOBIM, Tom, “Entrevista: Tom Jobim”. In: JOBIM, T. Songbook
Tom Jobim, volume 2. Produzido por Almir Chediak. 7ª ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 1994,
p. 13 (entrevista concedida a Almir Chediak). Cf. JOBIM, Antonio Carlos. A vida de Tom
Jobim: depoimento. Rio de Janeiro: Editora Rio Cultura/ Faculdades Integradas Estácio
de Sá, s. d., p. 42.
2. Cf. FREIRE, Roberto, “Chico dá samba”. Realidade, ano I, n. 9. São Paulo, Editora Abril,
dez. 1966, p. 72.
3. Cf. BANDEIRA, Julia. Retrato de Chico por suas meninas. São Paulo, COMFIL-PUCSP,
2004. Cf. ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos. Rio de Janeiro: Relume Dumará/
Prefeitura, 1999, p. 104.
4. Cf. ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos, edição citada, p. 52 a 63 (a citação literal
pode ser lida à p. 62).
5. Cf. RIBEIRO, Hamilton, “Chico põe nossa música na linha”. Realidade, ano VI, n. 71.
São Paulo, Editora Abril, fev. 1972, p. 16.
6. Cf. ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos, edição citada, p. 29-39.

17
programas de tevê e estúdios de gravação, na década de 1960, e estrelavam
campanhas publicitárias como se tudo fosse uma brincadeira.7
Qualquer tempo passado foi melhor? Ou se tornou mais fácil para jovens
de classe média, de lá pra cá, trabalhar com canção popular-comercial no
Brasil, ingressar no mercado, afirmar-se e sobreviver, quem sabe, com alguma
boa folga? Cada um dos três Mutantes assinalou um caminho profissional
diverso, enquanto o grupo ia se modificando, até findar. Trata-se de fatos
bem conhecidos, mas não seria desinteressante analisá-los. Deixando de
lado determinações de ordem pessoal, a trajetória de Rita Lee, a de Arnaldo
Baptista, a de Sérgio Dias e a forma como o grupo reapareceu há pouco8
poderiam indicar aspectos constitutivos do mercado da canção, o qual não
está mesmo para brincadeiras, se é que esteve antes.
Chico Buarque viu suas canções e seus romances serem estudados
nas faculdades de letras. Também digno de estudo seria o fato de Carioca,
praticamente só com novas composições, sair em 2006 pela Biscoito Fino,9
enquanto a série de doze DVDs que organiza a nada provisória carreira de
Chico é lançada por uma major, a EMI.10 Leve-se em conta ainda que os
seus shows permanecem lotados, segundo a grande imprensa, apesar (ou por
causa?) do alto preço dos ingressos, objeto de alguma contestação.11 Para o
artista, cabe agora negociar: “O público quer ouvir músicas velhas e eu quero
cantar músicas novas. Então, quando eu faço show, canto metade do show
para satisfação pessoal e a outra metade, para o público. E ficamos quites”.12
Tom Jobim, em 1994, negou a autoria de uma frase a ele atribuída e que
se tornara célebre: a melhor saída para o músico brasileiro é o aeroporto

7. Cf. CALADO, Carlos. A divina comédia dos Mutantes. São Paulo: Editora 34, 1995.
8. Cf. GARCEZ, Bruno, “Cult entre britânicos, Mutantes ‘revivem’ em Londres”. Publicado
em: 22 mai. 2006. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/
story/2006/05/060522_mutantesshowlondresbg. Acesso em: 7 out. 2020. Cf. NEY, Thiago,
“Mutantes retornam ao Brasil depois de quase 30 anos”. Publicado em: 25 jan. 2007. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u67845.shtml. Acesso em: 7 out. 2020.
9. Cf. BUARQUE, Chico. Carioca. Biscoito Fino, BF 646, 2006. Edição com CD e DVD
(documentário Desconstrução, direção de Bruno Natal).
10. Com direção de Roberto de Oliveira, os doze DVDs foram vendidos em quatro caixas
– as duas primeiras, produzidas em 2005, as duas últimas, em 2006.
11. Cf. ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos, edição citada, p. 37.
12. Cf. DEL RÉ, Adriana, “As boas novas de Chico Buarque”. O Estado de S. Paulo, 28/1/2005,
p. D5.

18
do Galeão. “Eu jamais disse isso. E nem acho isso, eu acho que tem grandes
músicos vivendo muito bem aqui no Brasil, cantores, cantoras, fazendo
muito sucesso aqui no Brasil.”13 Todavia, dois anos antes afirmara: “Que
assombro ver uma país musical como o nosso, mas onde os músicos não
podem viver!”.14
Retomemos a pergunta: está mais difícil trabalhar com música popular-
comercial do que já foi? Embora a resposta dependa do lugar que se ocupa
no mercado, como é regra, creio que não vivemos hoje um momento
acentuadamente pessimista. As novas tecnologias de produção, que vêm
barateando os custos, as possibilidades de difusão e de distribuição via
internet, os editais de fomento e incentivo à cultura e até mesmo as restritas
e restritivas verbas de patrocínio sustentam um otimismo claramente não-
hegemônico, nada efusivo, mas ainda assim disseminado.

O mercado ideal
Mas é certo que, há mais ou menos dez anos, o otimismo parecia mais
sólido. Se não estou equivocado, foi durante o período em que se venderam
discos no Brasil como nunca. O patamar de 1 milhão de cópias deixara de
ser ficção para as majors, conforme anunciavam jornalistas, e as vendas
monstruosas eram todas de produtos brasileiros. Uma notícia divulgava quem
eram os vencedores, em 1996, classificando-os como num supermercado
e usando de uma ironia típica da imprensa (forma de aparentemente se
distanciar daquilo que lhe é mais íntimo?): “o sócio de carteirinha, Roberto
Carlos, o sertanejo de Zezé Di Camargo e Luciano, o pop do Skank [com
dois discos], o samba de Martinho da Vila, a trilha de ‘O Rei do Gado’ e o
bumbum do ‘É o Tchan’”.15 Talvez o Mamonas Assassinas merecesse estar
na lista, não sei bem em qual prateleira. Até março daquele ano – quando
houve o acidente com o avião em que viajava –, o grupo vendera 1,8 milhão

13. Cf. JOBIM, Tom, “Tom Jobim, a última entrevista”. Qualis, n. 24. São Paulo, Qualis
Editora, jan. de 1995, p. 22 (entrevista a Walter de Silva).
14. Cf. JOBIM, Tom, “Entrevista à Cleusa Maria”. Jornal do Brasil, 1º/3/1992. Disponível em:
http://www2.uol.com.br/tomjobim/textos_entrevistas. Acesso em: 10 mai. 2005.
15. Cf. RYFF, Luiz Antônio, “Venda favorece artista nacional”. Folha de S.Paulo, 23/12/1996,
p. 4-3.

19
de cópias em oito meses (recorde para um disco de estreia; até onde sei, a
marca não foi superada).16
O segmento MPB, rótulo com maior prestígio no mercado brasileiro,
atingiria o patamar com Prenda minha, de Caetano Veloso, gravado ao vivo
– um formato de sucesso – e lançado em 1998.17 Ao ultrapassar 1 milhão de
cópias, foi o CD de maior vendagem na carreira de Caetano (refiro-me aos
meses de lançamento, de acordo com o que foi noticiado; mesmo porque,
é difícil informar-se sobre as vendas de um disco brasileiro ao longo de
décadas).18 Nele está “Sozinho” (Peninha), incluída em Suave veneno, uma
novela das 8 da Rede Globo. E também regravações e interpretações de
canções alheias, em sua maioria já conhecidas pelo público do show – que
participa aplaudindo não só ao final das execuções, mas também aos primeiros
versos reconhecidos – ou, mais genericamente, pelo consumidor de MPB.
Há ainda uma faixa em que Caetano lê um trecho de seu livro Verdade
tropical, publicado em 1997, no qual se fala de Gilberto Gil, moço, aparecendo
na televisão e sendo saudado por Dona Canô.19 O livro também está em duas
fotos do CD. Caso fosse bem examinado, o produto esclareceria os contornos
do segmento de mercado, apesar do conhecido repúdio de Caetano Veloso à
sigla MPB. No período de lançamento, o que pareceu mais saliente foi o acerto
comercial do disco. Mas, numa tentativa rasa de sistematização e reiterando
o que já se observou, diga-se que o disco se apresenta como o recorte da
carreira bem-sucedida de um trabalhador que atua, desde a tropicália
nos anos 1960, em várias frentes: compositor, cantor e músico, bastante
talentoso e carismático em tudo isso; pensador com grande capacidade
crítica; e personagem da mídia com grande capacidade para se promover,
o que é feito de modo ostensivo. Estando todos esses trabalhos, com seus
fundamentos artísticos, reflexivos ou comerciais, absolutamente misturados,
fica complicado examinar as partes e avaliar o efeito final da mistura.

16. Cf. VEJA, “A morte no auge”. São Paulo, Editora Abril, 13/3/1996, p. 97.
17. Cf. VELOSO, Caetano. Prenda minha. PolyGram, 538 332-2, 1998.
18. Cf. BIN, Marcos Paulo, “Caetano ainda mais próximo da Universal”. Publicado em: 3 out.
2004. Disponível em: http://universomusical.com.br/materia.asp?mt=sim&cod=me&id=409.
Acesso em: 7 out. 2020.
19. Cf. VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

20
Quanto aos pequenos selos, faria história Sobrevivendo no inferno do
Racionais MC’s, lançado em 1997 pelo independente Cosa Nostra e distribuído
pela Zambia, empresa criada para levar o disco ao mercado: em quatro
semanas, 200 mil cópias vendidas; no ano seguinte, meio milhão, sem falar
de premiações na MTV.20 Se fosse para uma prateleira, seria a de rap. De
modo algum isso daria conta, entretanto, do valor do produto.
Dizendo de modo sucinto, trata-se do mais alto nível artístico alcançado
no mercado fonográfico naquele período e de uma das principais realizações
da canção popular-comercial no Brasil. Faz uma síntese aprofundada, na e
pela canção, da experiência de viver nas grandes cidades brasileiras ao final
do século XX. Ou seja, dali em diante o trabalho do Racionais se afirmaria
definitivamente como padrão para quem se sente atraído pela qualidade
artística da canção, inclusive por suas relações com o consumo em grande
quantidade. Sem qualquer exagero, Sobrevivendo no inferno não interessa
somente a nós, que vivemos a História que ali se condensa, de forma crítica
e de modo a atingir a nossa sensibilidade. Enquanto obra de arte que é, o
disco permanecerá interessando ao longo do tempo.21
Parecia assim que o mercado brasileiro se agigantava, entre 1994 e 1998,
de um jeito que nele todo músico acharia espaço, cada qual ocupando um
lugar digno. No mercado paulistano (que acompanho mais de perto), os
shows do Karnak, o primeiro disco do grupo, lançado pelo selo Tinitus em
1995, e o videoclipe de “Comendo uva na chuva” (André Abujamra), veiculado
na MTV, entusiasmavam o chamado público formador de opinião, isto é,
classe média, universitário, ligado à imprensa. Vou simplificar as coisas:
parecia assim que todo músico acabaria se destacando na tevê, e não apenas
durante aqueles 15 minutos famosos. A dúvida, se é que havia, talvez ficasse
por conta da conhecida relação faixa de consumo/grade de programação:
meu target garantiria horário nobre para meu produto – ou seria melhor
mudar de público e de apelo?

20. Cf. RACIONAIS MC’s, Sobrevivendo no inferno, Cosa Nostra/ Zambia, CDRA 001,
1997. KALILI, Sérgio, “Mano Brown é um fenômeno”. Caros Amigos, ano 1, n. 10. São Paulo,
Casa Amarela, jan. de 1998, p. 31; KALILI, Sérgio, “Os mano detonaram...”. Vip Exame. São
Paulo, Abril, set. 1998, p. 55-58.
21. Cf. GARCIA, Walter, “Ouvindo Racionais MC’s”. Teresa: revista de literatura brasileira,
n. 4/5. São Paulo, DLCV-FFLCH-USP/ Editora 34, 2003, p. 166-180. Disponível em: http://
dx.doi.org/10.11606/issn.2447-8997.teresa.2003.116377. Acesso em: 7 out. 2020.

21
Adiante retomarei a dúvida. Por ora, lembre-se que não se tratava de um
crescimento apenas do mercado fonográfico. Em meio à euforia do Plano
Real, uma agência de publicidade descobriu “como é possível vender tanto
televisor, geladeira, celular e outros bens se a renda individual brasileira é
tão baixa” (o censo de 2000 apontou que 51,9% dos trabalhadores recebiam
até dois salários mínimos; mais de dez salários mínimos, apenas 7,7%): “o
Brasil é muito pobre na renda individual e razoavelmente desenvolvido
em nível de renda familiar. As pessoas se juntam e compram apartamento,
televisão, telefone”.22
Não discutirei aspectos que requerem conhecimentos de que não
disponho, pois não sou economista: a expansão do crediário para as classes
D e E no quadro do capitalismo financeiro; o vínculo entre o aumento da
financeirização da economia e as baixas taxas anuais de crescimento do
PIB brasileiro durante a euforia do Real; os efeitos do baixo desempenho
econômico sobre a distribuição e a concentração de renda; a integração
informal e a autônoma ao mercado de trabalho como consequências do
desemprego. Vou-me limitar a números do negócio da canção. Em relação
ao mercado mundial de discos, na virada de 1978 para 1979 o Brasil alcançou
o 5o lugar, melhor posto até hoje.23 Aproximou-se novamente da colocação
naquele feliz 1996 quando, após três anos de aumento no consumo, alcançou
“um faturamento de US$ 891 milhões”, subindo do 13o para “o 6o posto no
ranking dos mercados fonográficos, com um crescimento de 35%” em relação
ao ano anterior.24
É verdade que não durou muito tal proeminência, logo a seguir chamada
de bolha. Já em 2001, o mercado hegemônico brasileiro cairia do 7o para o 12o
lugar,25 com vendas totais na casa de R$ 726 milhões, relativas a 75 milhões

22. Cf. GARRIDO, Juan, “A lógica do crescimento”. Gazeta Mercantil: balanço anual, ano
XXV, n. 25. São Paulo, julho de 2001, p. 196. Para os dados do Censo Demográfico 2000,
consultar www.ibge.gov.br e sua divulgação n’O Estado de S. Paulo em 9/5/2002, p. C1; C7-
C10, e em 30/9/2003, p. A10 a A12.
23. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 58.
24. Cf. RYFF, Luiz Antônio, “Brasil não é mais ‘primo pobre’”. Publicado em: 14 mai. 1997.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/5/14/ilustrada/2.html. Acesso em:
7 out. 2020.
25. Cf. SANCHES, Pedro Alexandre, “Mercado musical nacional cai 25%”. Folha de S.Paulo,
3/5/2002, p. E-4.

22
de unidades vendidas. Depois perderia essa colocação, retomada em 2004
quando, em relação ao ano anterior, “cresceu aproximadamente 17% em termos
de valor” e 18% em unidades vendidas, para o que contribuiu fortemente o
“sucesso dos vídeos musicais em DVD”, que passaram a representar “26%
do mercado total”, “com um incremento de 101% em termos de valor” (note-
se que essa dinâmica também ajuda a entender a divisão recente da obra
de Chico Buarque entre a Biscoito Fino e a EMI). Nesse ano de 2004, as
vendas totais ficaram em R$ 706 milhões, com cerca de 66 milhões de
unidades vendidas.26 Números inferiores, portanto, aos de 2001. Todavia,
não foi apenas o mercado brasileiro que diminuiu no período, o consumo
mundial de produtos da grande indústria da canção se retraíra. Sabe-se que
as majors identificaram “a pirataria comercial e a troca ilegal de arquivos”27
como principais responsáveis pela crise. Mas a luta contra a reprodução
indiscriminada de formatos digitais não se assemelha ao feiticeiro que já
não consegue dominar as potências demoníacas que evocara?
Esqueçamos a pergunta e ampliemos o foco em outra direção. O
censo brasileiro de 2000 apontava, desde 1991, aumento de 86,9% para
93% no número de domicílios com energia elétrica. Domicílios com rádio,
em 2000, eram 87,4%. Com televisão, 87%. A população já passava de 169
milhões de habitantes (169.799.170), nas cidades vivendo 81,1% (cerca de
138 milhões). Não havia informações sobre o número de domicílios com
aparelhos de som. A confiar em uma estimativa jornalística, porém, entre
julho de 1994, início do Plano Real, e os primeiros meses de 1998, “algo como
20 milhões de aparelhos de som (incluindo CD players e rádio-gravadores)
foram vendidos”.28 Creio que o quadro aqui retomado, mesmo que bastante
incompleto, seja suficiente para os objetivos deste artigo. A sua análise,
contudo, requer antes um novo recuo.

26. Cf. ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de Discos). Annual Publication of the
Recording Market 2004. Rio de Janeiro, ABPD, 2005, p. 15 e 20. Disponível em: https://www.
pro-musicabr.org.br/wp-content/uploads/2015/01/Mercado_Brasileiro_de_Musica_2004.
pdf. Acesso em: 8 out. 2020.
27. Ibidem, p. 20.
28. Cf. FRANCO, Célia de Gôuvea, “Barulho das massas”, Folha de S.Paulo, 12/4/1998, p. 5-4.

23
O ideal do mercado
Na década de 1970, o predomínio da música estadunidense nas
programações das rádios e a grande quantidade de discos aqui produzidos
com matrizes estrangeiras estavam no centro dos debates sobre o mercado
brasileiro de canções. Discutia-se a taxação das cópias fabricadas com
matriz importada. Afirmava-se que as empresas multinacionais agiam
apenas segundo o interesse financeiro, o que provocava estranheza e até
mesmo indignação; corretas, no meu modo fora de moda de avaliar. Quer
dizer, vigorava a ideia de que a arte possui uma substância e a cultura de
tradição oral uma dinâmica que não se confundem com a produção em
escala industrial e com a mera prática mercantil, embora todas essas coisas
não sejam incompatíveis. Acontece que o círculo então firmado entre as
grandes gravadoras e os meios de comunicação de massa se consolidava
com base na profissionalização dos negócios.
O que se entendia por isso? De um lado, buscavam-se compositores
e intérpretes brasileiros capazes de “‘administrar suas próprias carreiras’”,
profissionais que pensassem “‘seriamente em gravar e vender amplamente’”. Os
termos entre aspas foram ditos por um alto executivo à imprensa, na época.29
Em outras palavras, se os profissionais da canção também seriam artistas,
se as suas obras desenvolveriam uma relação com o ouvinte para além do
descartável, se palavras cantadas e demais sons comunicariam experiências
que ampliassem a sensibilidade, a imaginação, a crítica, o conhecimento
e, portanto, a própria realidade – as grandes gravadoras não tinham essas
inquietações como as mais relevantes naquele período de crescimento do
mercado. Aliás, seria digno de pesquisa investigar em que medida e sob quais
condições os objetivos artísticos e culturais existiram/existirão dentro da
lógica das majors em qualquer tempo, assunto que não será abordado aqui
com a extensão e a profundidade que merece.

29. Os termos são citados e comentados por MORELLI, Rita L. C. Indústria fonográfica:
um estudo antropológico. Campinas: Editora da Unicamp, 1991, p. 78 e 68, respectivamente.
Sobre o assunto, consultar também JAMBEIRO, Othon. Canção de massa: as condições
da produção. São Paulo: Pioneira, 1975, especialmente p. 25-38; e BUARQUE, Chico et
alii, “A MPB se debate: uma noite com Chico Buarque, Caetano Veloso, Edu Lobo e Aldir
Blanc”. Participações de Sérgio Cabral, Nelson Silva e Fernando Pessoa Ferreira. Homem,
Suplemento especial. São Paulo, Editora Abril, set. 1977.

24
De outro lado, conforme: 1) o estágio tecnológico; 2) a propriedade
dos meios de produção; 3) a distribuição em lojas; de outro lado, repito,
era mais fácil lucrar com um fonograma estrangeiro, cujas vendas no país
de origem e em outros mercados já haviam coberto os custos, do que com
uma nova gravação nacional, a qual implicaria investimento de mais capital
e consequentemente maiores riscos, dentre os quais se incluía a possibilidade
de censura pelo governo militar. O paradoxo é que ter uma canção censurada
também podia conferir a compositor e/ou intérprete boas chances de difusão
e de consumo.
Ainda que um tanto esquematicamente, toda essa situação pode ser
exemplificada se observarmos três estratégias que as gravadoras multinacionais
adotaram após 1973. Foi quando a crise mundial do petróleo e o fim do milagre
econômico brasileiro ameaçaram a expansão do mercado fonográfico, que
vinha se dando de forma contínua. Entre 1965 e 1972, segundo a Associação
Brasileira dos Produtores de Discos, houve “um crescimento de 400% nas
vendas do setor”. Em 1965, tivera início o programa Jovem Guarda, na TV
Record de São Paulo. Um empresário já afirmou que, a partir dali, mais
de 50% da execução pública passou a ser de música brasileira. Ao final
da década de 1970, o crescimento médio do mercado fonográfico seria de
15% ao ano, apesar da inflação e do aumento no preço dos discos. Vejamos
como as multinacionais conseguiram manter a tendência, após uma única
desaceleração, em 1973, atribuída “à falta de matéria-prima em quantidade
suficiente”.30
Em fins de 1977, o então presidente da WEA afirmou à imprensa que o
sucesso nacional, “‘quando ocorria, era sempre muito maior que o sucesso
de qualquer lançamento internacional, dado que o artista brasileiro contava
com uma faixa mais ‘profunda’ de público’”. Na sua avaliação, “‘o mercado

30. As citações entre aspas podem ser lidas em MORELLI, Rita L. C. Indústria fonográfica:
um estudo antropológico, edição citada, p. 67 e 73. Baseio-me ainda em DIAS, Marcia Tosta.
Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura, edição citada,
p. 54, 57 e 58; SANCHES, Pedro Alexandre, “Indústria fonográfica reclama da pirataria e
prevê extinção do mercado” (entrevista com executivos do setor). Publicado em: 25 jul.
2001. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u15826.shtml.
Acesso em: 8 out. 2020; AUTRAN, Margarida, “O Estado e o músico popular: de marginal a
instrumento”. In: NOVAES, Adauto (org.). Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro:
Aeroplano/ Editora Senac Rio, 2005, p. 89.

25
para a música brasileira representava 60% do mercado global de discos’”.
As declarações foram retomadas por Rita Morelli, em seu livro Indústria
fonográfica: um estudo antropológico. Ela observa que a música estadunidense,
nos anos 1970, liderava no segmento de público mais jovem que, recém-
integrado ao mercado e com menor poder aquisitivo, preferencialmente
adquiria compactos simples, consumindo “efêmeros sucessos estrangeiros”.
Esse segmento ainda adquiria, porém, compactos de “brasileiros que não
apenas compunham e interpretavam em inglês, mas também adotavam
pseudônimos estrangeiros”. Em outras palavras, havia uma tal demanda de
canções em inglês no Brasil que compensava investir nesse tipo de produção.31
A título de curiosidade, ficam aqui três exemplos, pinçados mais ou
menos ao acaso em ABZ do rock brasileiro, guia de Marcelo Dolabela. O
primeiro é Morris Albert (Maurício Alberto Kaiserman), autor e primeiro
intérprete de “Feelings”. Recorro agora ao livro A canção no tempo, de Jairo
Severiano e Zuza Homem de Melo. Lançada em 1973, “Feelings” foi tema de
Corrida do ouro, novela da Rede Globo que estreou no ano seguinte. A canção
fez sucesso não só no Brasil como na América Latina (“Sentimientos”, disco
de ouro no México) e nos Estados Unidos, onde vendeu mais de um milhão
de cópias (foi gravada por Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Dionne Warwick
e Ray Coniff, entre outros). Após tamanha repercussão, Morris Albert foi
acusado de plágio. Uma corte estadunidense concedeu coautoria ao francês
Loulou Gasté em 1987, enquanto a revista Time apontou que uma ária de
Verdi bem poderia ser a fonte da melodia, e não a balada “Pour toi”. Não
tendo bases para avaliar nem a sentença nem a opinião da revista, transfiro
a questão para o presente. Como se sabe, não é estranha a semelhança de
uma canção pop nacional com outra, seja pela repetição de fórmulas já
bem consumidas, seja pela cópia de modelos internacionais, basicamente
estadunidenses ou ingleses. Mas vale perguntar: não seria estranho o fato
de o mercado hegemônico parecer cada vez mais acostumado à semelhança,
não seria estranho esse mercado desejar a semelhança cada vez com maior
intensidade, não seria estranho escutar, com frequência, “eu gosto de música

31. Cf. MORELLI, Rita L. C. Indústria fonográfica: um estudo antropológico, edição citada,
capítulo 1.

26
que eu conheço”, “eu gosto de música que toca no rádio” ou – advirta-se que
apenas registro frases que escutei – “muita música inédita enche o saco”?
O segundo exemplo é Michael Sullivan (Ivanilton de Souza Lima), o
qual iniciou sua carreira solo com “My Life”, tema da novela O casarão, da
Rede Globo, em 1976. O terceiro, Mark Davies, pseudônimo utilizado por
Fábio Jr. na gravação de dois compactos simples.32
Portanto, a primeira estratégia para enfrentar um possível declínio na
expansão do mercado fonográfico foi a reprodução de matrizes estrangeiras e
a produção local de canções em inglês. A segunda, como já está anunciado, o
investimento na canção brasileira. A fim de melhor compreender esse ponto,
todavia, é necessário observar o lugar do LP no quadro, em contraposição
ao do compacto, acima referido.
A principal fonte de renda das grandes gravadoras, na década de 1970,
era obtida com o LP. Esse suporte difere de seu substituto, o CD, por uma
série de itens bem conhecidos; entre outros: processo de reprodução do
som; embalagem e correspondente tratamento gráfico; custos de produção.
O último item, junto com fatores adiante comentados, determinou uma
mudança fundamental na configuração do mercado hegemônico a partir dos
anos 1990. Nos 1970, o LP se alinhava, em geral, entre os artigos oferecidos
para as classes mais abastadas, tal como o primeiro ou o segundo automóvel
da família, o televisor em cores, a geladeira nova, algumas marcas de cigarro,
os grandes empreendimentos imobiliários, o aparelho de som 3 em 1 de
última geração.
Como se percebe, outra vez o mercado fonográfico não atuava à margem.
O programa econômico que levou ao chamado milagre pretendia, entre
seus objetivos básicos, “fomentar e dirigir o processo de concentração de
renda (processo este inerente às economias capitalistas subdesenvolvidas em
geral) para beneficiar os consumidores de bens duráveis, isto é, a minoria da
população com padrões de consumo semelhantes aos dos países cêntricos”, na
análise de Celso Furtado. Tal objetivo se vinculava à política governamental
“muito bem-sucedida” que visara “atrair as grandes empresas transnacionais

32. Cf. DOLABELA, Marcelo. ABZ do rock brasileiro. 8ª ed. São Paulo: Estrela do Sul, 1987.
Cf. SEVERIANO, Jairo; MELO, Zuza Homem de. A canção no tempo, v. 2: 1958-1985. São
Paulo: Editora 34, 1998, p. 200-201.

27
e fomentar a expansão das subsidiárias destas já instaladas no país”.33 Daí
uma distribuição de renda concentrada, por assim dizer. Com o aumento da
participação na renda dos 20% mais ricos, e sobretudo dos 5% mais ricos,34
o mercado se fortaleceu apresentando “o perfil de demanda mais atraente
para as referidas empresas”.35
E a verdade é que o crescimento econômico prosseguiu, mantendo igual
orientação, apenas diminuindo seu ritmo: entre 1967 e 1973, a média foi de
11,2% ao ano; entre 1973 e 1980, 7,1%.36 As bases industriais priorizavam a
venda de produtos de maior valor agregado, ou seja, de consumo restrito
às camadas de maior poder aquisitivo. Uma lógica que inspirou a máxima
“primeiro crescer, depois dividir”. Válida, ao que parece, não só para aquele
período, uma vez que o Brasil ficou em segundo lugar entre os países que
mais cresceram no século XX, com “média de 4,5% ao ano, igual à da Coreia
do Sul e só superada pela de Taiwan (5%)”. Aliás, “de 1900 a 1973, o Brasil foi
o país que mais cresceu no mundo – média de 4,9% ao ano”.37
Não é de estranhar, assim, que durante os anos 1970 a chamada MPB
tenha se consolidado no mercado tendo como principal suporte o LP. É certo
que lançava também compactos, mas seu público majoritário podia arcar com
o gasto obviamente superior escolhendo o formato, digamos, mais completo.
De passagem, note-se a contradição entre a resistência à ditadura militar

33. Cf. FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1974, p. 107 e 103, respectivamente.
34. Cf. ALENCAR, Francisco; CAPRI, Lúcia; RIBEIRO, Marcus Venício. História da
sociedade brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1981, p. 312-334.
35. Cf. FURTADO, Celso, O mito do desenvolvimento econômico, edição citada, p. 104.
36. Cf. MELLO João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando A., “Capitalismo tardio e
sociabilidade moderna”. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da vida privada
no Brasil, volume 4 (Contrastes da intimidade contemporânea). 3ª reimpressão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004, p. 620.
37. Cf. GOIS, Antônio; ESCÓSSIA, Fernanda da, “País fica mais rico e mais desigual”.
Publicado em: 30 set. 2003. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/
fj3009200301.htm. Acesso em: 8 out. 2020.
João Manuel Cardoso de Mello e Fernando A. Novais detalharam alguns dados da
concentração de renda no período: em 1960, os 5% mais ricos detinham 28,3% da renda e,
em 1980, 37,9%; tomados os 20% superiores, essa camada detinha 54,8% da renda em 1960
e, em 1980, 66,1%; os 60% mais pobres, em 1960, detinham 24,9% da renda; em 1980, 17,8%;
quanto à classe média baixa, ou seja, os 20% entre superiores e inferiores, em 1960 detinham
20,3% da renda; em 1980, 16,1%. Cf. MELLO João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando
A. “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”, edição citada, p. 633-634.

28
que muitos emepebistas (produtores, mediadores culturais e consumidores)
empreenderam e o fato de pertencerem às classes favorecidas pela política
econômica; é um tema rico, que ainda precisa ser melhor analisado. À parte
essa questão, é necessário não perder de vista a complexidade de alguns
produtos de MPB que saem no período. Há neles investimento artístico no
desenvolvimento de álbuns que merecem atenção renovada. Não falarei da
parte gráfica, completamente secundária ao que procuro identificar. Refiro-
me ao gesto de não enfeixar canções aleatoriamente, de não selecionar hits
(ainda que muitas faixas tenham se tornado; há quem jure que alguns desses
álbuns são coletâneas), de não forçar participações famosas e dispensáveis
mas que atraem consumidores, de não completar de qualquer jeito o tempo
que acompanha a canção de trabalho, de não tratar o Lado B como um banco
de reservas. Acima de tudo, refiro-me à exploração de uma determinada
estética. Um investimento que torna objetivo para o ouvinte, na forma de uma
canção e na relação entre as canções do LP, uma certa realidade emocional,
muitas vezes em paisagem extensa e sempre recriada pela imaginação; e
com potencial grande de crítica, uma vez que a realidade foi transfigurada
e o saldo final é humanizador.
É o caso, por exemplo, de A tábua de esmeralda (Jorge Ben, 1974), Água
viva (Gal Costa, 1978), Amoroso (João Gilberto, 1977), Araçá Azul (Caetano
Veloso, 1973), Cantar (Gal Costa, 1974), Chico Buarque (1978), Clube da
Esquina (Milton Nascimento e Lô Borges, 1972), Clube da Esquina 2 (Milton
Nascimento e muitos convidados, 1978), Elis & Tom (1974), Estudando o samba
(Tom Zé, 1976), João Gilberto (1973), Meus caros amigos (Chico Buarque,
1976), Pássaro proibido (Maria Bethânia, 1976), Refazenda (Gilberto Gil, 1975),
Transa (Caetano Veloso, 1972), Urubu (Tom Jobim, 1975). Não se trata de
uma lista à top music, e sim de alguns exemplos, daí a ordenação e o número
de LPs. Apenas não citei mais de dois álbuns de um mesmo artista, para não
ser cansativo, nem gravações de shows, porque têm características próprias,
e nem citei alguém que não tenha iniciado carreira nas décadas anteriores.
Não se deve confundir estética com moda, e daí o quesito “novidade”
necessitar de cuidado numa avaliação desse tipo. É recorrente, na literatura
da época, a ideia de que esses produtos apresentavam estéticas velhas, pois
somente repetiam ou desdobravam o que a bossa nova, a MPB dos festivais, a

29
tropicália haviam feito. Como se uma década fosse um milênio, já se observou.
Curioso é que a radicalidade de álbuns como Araçá azul e Ou não (Walter
Franco, 1973) não obtiveram espaço confortável no mercado. Observe-se
também que só mediante uma ideia mais ou menos generalizada de diluição
é que as fronteiras antes nítidas entre canção de protesto e tropicalismo,
por exemplo – ou entre sambinhas bossa-nova, peças sinfônicas de Tom
Jobim, canções do Clube da Esquina –, passaram a conviver dentro da
mesma sigla. Influência da estratégia de venda das gravadoras? Seja como
for, e simplificando as coisas, esperava-se um novo movimento musical
que, quando afinal chega, acaba mais ou menos confinado a São Paulo – o
grupo heterogêneo formado por Arrigo Barnabé e Banda Sabor de Veneno
(apesar da imensa consagração inicial), Itamar Assumpção e Banda Isca de
Polícia, Premeditando o Breque ou Premê (apesar de vir a ser produzido
por Lulu Santos dentro de uma major), Rumo, Tetê Espíndola (apesar do
Festival dos Festivais da Rede Globo, do Globo Repórter, do filme Mônica
e a Sereia do rio), entre outros músicos e cancionistas que lançam discos
independentes no começo dos anos 1980, respondendo assim à consolidação
profissional do mercado, e que, mais tarde, serão rotulados com a expressão
“vanguarda paulista”.
O investimento em música brasileira não se resumia aos nomes
consagrados da MPB, na década de 1970, responsáveis por manter o consumo
num bom patamar, de forma contínua. Nessa fase estrearam Ivan Lins,
Gonzaguinha, Djavan, João Bosco, Aldir Blanc, Simone, entre outros que
foram incorporados à sigla, mais cedo ou mais tarde. Também Raul Seixas,
Secos & Molhados – logo Ney Matogrosso seguiria sozinho –, os Novos
Baianos – depois, separadamente, Moraes Moreira, Baby Consuelo, Pepeu
Gomes, Paulinho Boca de Cantor. Em comum, o estabelecimento de relações
entre alguma forma de música brasileira e alguma vertente do rock, o que
não explica muita coisa, mas ajudava a identificá-los no mercado. E Fagner,
Belchior, Alceu Valença, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho...
As reticências são propositais, porque a relação apenas sugere o que ficou
conhecido como boom nordestino. Antes dele, houve o boom do samba e o
boom do choro. Ao final da década, o boom da gafieira. Ou seja, o investimento
maciço em uma determinada moda de canção brasileira, durante um curto

30
período, forçosamente curto pela dinâmica de qualquer moda – exposição
violenta de produtos que assombram o consumidor, impelindo-o à compra,
e que se desgastam rapidamente, seja porque qualquer exposição demasiada
satura o ouvinte, seja porque o interesse despertado é semelhante ao de
um trocadilho, seja porque o interesse está na exposição e não no produto
–, esse investimento maciço foi inventado pela grande indústria de discos
antes dos anos 1980, quando, porém, iria adquirir maior importância para
os negócios – com o boom do rock, o de sertanejo e, já na década seguinte,
o de axé music e o de pagode.
Por outro lado, não é incomum que da quantidade se extraia qualidade,
embora se configure um esforço ingênuo imaginar que isso sempre aconteça.
Depende. Mas de fato a indústria fonográfica, em seu trabalho de transformar
qualquer realidade local em objeto de consumo, isto é, de transformar uma
certa identidade cultural em padrão de comportamento descartável, muitas
vezes faz circular canções interessantes por si mesmas, um golpe de sorte
que decorre da riqueza da tradição oral e musical no Brasil. Naqueles booms
dos anos 1970, artistas e produtos artísticos pegaram carona. Um efeito
colateral, se quisermos. Em que medida o próprio tamanho do mercado na
época ou a incipiência da tal profissionalização contribuíram para isso, seria
útil examinar. Fiquemos com alguns poucos exemplos.
A fim de não repetir nomes e ter de fazer ressalvas, e ainda correndo
o risco de não oferecer uma análise detida, volto-me para o caso do samba.
Ótimos exemplos poderiam ser os dois primeiros discos de Cartola gravados
em estúdio, lançados pela nacional Marcus Pereira Discos (em 1974 e 1976).
Ou o terceiro e o quarto, lançados pela multinacional RCA-Victor (em 1977
e 1979). Ou todos eles, pois o que se tem ali é a experiência de uma vida
inteira depositada cuidadosamente nas canções. Outro exemplo poderia ser
Nervos de aço, álbum de Paulinho da Viola de 1973 – uma verdadeira aula
de samba enquanto tradição móvel, expressão que tomo de empréstimo
de Mário de Andrade. Mas Paulinho está no mercado fonográfico desde
os anos 1960, e o boom do samba se daria a partir de 1974. No registro
de Margarida Autran, escrito ao final daquela década, esse investimento
no gênero mostraria “como a máquina do disco funciona perfeitamente
integrada à máquina estatal”: o governo militar, “em busca de uma imagem

31
mais simpática ao povo”, buscava então contrabalançar o “esvaziamento
da cultura nacional, reflexo de uma política repressiva”, por meio de apoio
ao samba, decretado “linguagem musical nacional”.38 A rima pode ter sido
uma solução, mas a escolha do emblema nacional não foi nada... original,
como se sabe. Voltando a Paulinho da Viola, seu Memórias chorando (1976)
pode ser exemplo de produto artístico lançado em meio a outro boom, o do
choro, gênero também incentivado pelo regime militar a partir de 1974.39
Finalizando o tópico, a terceira estratégia das grandes gravadoras para
evitar a retração do mercado fonográfico brasileiro, nos anos 1970, foi a
quase onipresença da canção na indústria cultural. Deve-se considerar que
estudamos um momento em que “o caráter de mercadoria dos produtos
culturais passa a ser evocado com a maior naturalidade, por todas as partes
envolvidas”. O comentário é de Marcia Tosta Dias, em seu Os donos da voz,
livro do qual me sirvo como um guia para esse breve esquema.40 Além das
trilhas sonoras de novelas da Rede Globo, já citadas em número suficiente,
Dias destaca a notável interação do mercado fonográfico e do publicitário:
“Propagandas mundializadas, como a dos cigarros Marlboro e Hollywood,
como tantas outras, veiculam canções que estarão sempre associadas a
tais produtos”.41 Não é necessário repetir todos os exemplos trazidos pela
socióloga em seu excelente trabalho. Apenas gostaria de acrescentar que,
segundo Fernando Reis, a profissionalização também foi uma marca do meio
publicitário naquele período:

38. Cf. AUTRAN, Margarida, “Samba, artigo de consumo nacional”. In: NOVAES, Adauto
(org.). Anos 70: ainda sob a tempestade, edição citada, p. 71.
39. Cf. Idem, “‘Renascimento’ e descaracterização do choro”. In: NOVAES, Adauto (org.).
Anos 70: ainda sob a tempestade, edição citada, p. 81.
40. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura, edição citada, capítulo 2 (“Trajetória da indústria fonográfica brasileira: anos
70 e 80”); a citação literal pode ser lida à p. 68. Sobre o assunto, consultar também ORTIZ
Renato. A moderna tradição brasileira. 5ª ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2001;
Idem, Mundialização e cultura. 5ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2003.
41. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura, edição citada, p. 66.

32
Se a década de 60, em nossas agências, pode ser caracterizada como a
década da criatividade, com o prestígio maior concedido aos homens
de criação, os anos 70, que trouxeram a valorização da agência como
empresa, levariam à consolidação definitiva do negócio publicitário
entre nós. (...) Passaram nossas agências a saber encarar as crises
com seriedade, através da profissionalização de todos os seus setores
essenciais. (...) Surgiu como grande anunciante o governo, tanto na
administração direta como na indireta, tanto no âmbito federal como
no estadual e no municipal. O governo também se profissionalizou
como anunciante.42

Por que tocar, gravar pra quê?


À luz dos anos 1970, creio que aquele otimismo mais sólido e o quadro
dos 1990 possam ser mais bem avaliados. Talvez eu esteja equivocado, mas
salta à vista, duas décadas adiante, um certo sucesso da orientação profissional
do mercado hegemônico implementada desde o período anterior, sucesso
que produziu a naturalização da empreitada. Em outras palavras, as bases
da profissionalização do setor se tornariam... quase invisíveis. Nesse sentido,
mesmo a queda de consumo e de oferta da música estrangeira no Brasil precisa
ser encarada com reserva. Em parte, isso se deve ainda à força das culturas
de tradição oral que, construídas no processo de afirmação e transformação
das culturas negras, são levadas a contexto diverso ou passam a responder à
dinâmica mercadológica. Vale lembrar, uma configuração que se sente desde
pelo menos a consolidação do samba de carnaval e do samba de meio de
ano nas rádios, durante a década de 1930. E configuração que não é exclusiva
do Brasil, que nisso coincide, em alguma medida, com os EUA (blues, jazz,
soul), com Cuba (rumba, bolero, son, chachachá), com a Argentina (tango),
para ficar em exemplos bem próximos.43

42. Cf. REIS, Fernando, “São Paulo e Rio: a longa caminhada”. In: BRANCO, Renato Castelo;
MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando (coord.). História da propaganda no Brasil.
São Paulo: T. A. Queiroz, 1990, p. 365-366.
43. Cf. SANMIGUEL, Alejandro Ulloa, “La música popular urbana de América Latina
y el Caribe. Sus orígenes sociales”. Boletín Música, nº 14. Havana, Casa de las Américas,
2004, p. 22-28.

33
Em outra parte, tampouco foi privilégio do Brasil que a canção tenha se
tornado mais local. Aqui chegamos a cerca de “80% de música brasileira, não
só em venda como em execução de rádio”, no início dos anos 2000.44 Mas o
lema das grandes corporações capitalistas não passara a ser justamente “Pense
global, aja localmente”?45 E já em meio à crise de 2002, repetindo aquela
estratégia dos anos 1970, o então presidente da Sony Music Internacional,
Rick Dobbis, advertia: “Se você lida apenas com produtos internacionais,
não estará lidando com muitas pessoas – o pessoal da mídia, repórteres,
programadores de rádio e outros – para quem a cena musical [doméstica]
é muito importante”.46
É claro que a digitalização alterou profundamente algumas coordenadas
que vinham se mantendo. Já se disse, o desenvolvimento tecnológico
barateou os custos de produção. Uma das consequências foi que as grandes
gravadoras se desfizeram dos estúdios de gravação. Terceirizaram igualmente
a fabricação e a distribuição. Mas a lógica da forma-mercadoria prosseguiu
como diretriz principal, se não como diretriz única. Aprimorando-a, as majors
passaram a investir, cada vez com maior intensidade, na difusão, isto é,
na espetacularização do produto, isto é: intensificou-se cada vez mais o
investimento não na canção em si, mas na forma como a canção seria vista
– sim, vista, antes de ser ouvida. As majors tornaram-se assim “escritórios
de gerenciamento do produto e elaboração de estratégias de mercado”.47
As brechas que então se abriram podem ser facilmente percebidas. Houve
uma multiplicação das iniciativas independentes e dos pequenos selos, e a
possibilidade de afirmação no mercado pela associação com alguma grande
transnacional. Foi quando, talvez, a dúvida sobre o target a ser atingido, via
tela da tevê, se instalou definitivamente no plano de gravação.
Para o consumidor, o CD se tornou um suporte de preço bem mais
acessível que o LP em tempos anteriores. Some-se a isso a expansão do

44. Cf. SANCHES, Pedro Alexandre, “Indústria fonográfica reclama da pirataria e prevê
extinção do mercado” (entrevista com executivos do setor), edição citada.
45. Cf. ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura, edição citada, p. 181.
46. Cf. GOLDSMITH, Charles; JOHNSON, Keith, “Pirataria emudece artistas locais em
gravadoras”. O Estado de S. Paulo (The Wall Street Journal Americas), 4/6/2002, p. B14.
47. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura, edição citada, p. 21.

34
crédito para compra de televisores e aparelhos de som, com um número
cada vez maior de modelos para todos os bolsos – e mantenha-se à parte
aqueles aspectos econômicos do qual me esquivei, os quais ampliariam
enormemente a discussão.
Considere-se, porém, que os principais compradores da indústria
fonográfica deixaram de ser exclusivamente as lojas especializadas. Nos
anos 2000, grandes magazines e supermercados passaram a ameaçar “essa
hegemonia” e a alterar “o perfil do consumidor”.48 Para esses intermediários,
o CD ideal não ocupa espaço em exposição ou no estoque, ao longo de meses
ou até de anos. Almeja-se a rápida substituição dos discos nas prateleiras,
num prazo curto, e é óbvio que se almejam vendas em boas quantidades. Se
preciso for, as promoções cuidarão de tudo o que ameaça encalhar.
Uma vez que a lógica é a da pura venda, o compromisso com o
funcionamento mercadológico pelos empresários, assumido sem muitos
problemas durante a década de 1970, se torna cada vez mais agudo. E invisível,
de certo modo, também para muitos cancionistas (para a maioria deles, quer
dizer, de nós?). Pensemos no quadro atual. Um dos sintomas do que afirmo
é a crescente dificuldade de colocar em questão a qualidade artística do que
quer que seja. Não digo que todos assinem embaixo da máxima que ouvi do
diretor de uma sociedade arrecadadora: “Disco não é feito pra ouvir, disco
é feito pra vender”. Mas não é curioso que músicos e cantores justifiquem
tantas coisas apenas observando “Ah, mas é bem produzido...”? Afinal, o
que “isso é bem produzido” quer dizer? Que tem potencial de venda? Que
se parece um pouco ou bastante com algo que já vendeu? Que se enquadra
perfeitamente nos moldes de um gênero ou de um estilo conhecidos? Que
tem a capacidade de assombrar o ouvinte, grudando em sua cabeça logo à
primeira audição? Que favorece a imagem da banda?
De resto, um julgamento crítico que sustenta que nem toda canção
popular-comercial é uma forma de arte tem gerado reações que vão do
desprezo à ira, com as exceções que sempre existem. Não é estranho que
ofenda o reconhecimento, que nunca será mesmo consensual, do caráter
artístico de algumas canções, não de todas? Que ofenda a valoração qualitativa

48. Cf. MOURA, Roberto M. Sobre cultura e mídia. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 2001, p. 92.

35
e a discriminação entre arte e comércio (imbricados na prática) que daí
advêm? Ou que ofenda a tentativa de chegar a um resultado sobre a questão,
mais do que o próprio resultado em si?
Canções têm várias serventias, como se sabe. Há canção para toda sorte
de ocasiões, inclusive canções que servem admiravelmente como necessário
pano de fundo. Para uma refeição saudável, por exemplo. Não estou negando
nenhuma das funções. Ao defender a ideia de canção artística, a minha
preocupação é com o totalitarismo, sei que a palavra é forte, da ideia de
canção meramente comercial. Essa última se instalou de tal modo no nosso
dia a dia, que parecemos acostumados a supervalorizar o banal, o repetitivo,
o ensurdecedor, o acessório, o infantil, a canção que atua radicalmente como
jingle de um show visual qualquer; quando não, como jingle da marca de um
cantor, de uma cantora, de um grupo – ou, na forte interação do negócio
fonográfico e dos outros negócios, como jingle de refrigerantes, espelhinhos,
perfumes, não nos intervalos comerciais, mas dentro da programação musical.
Canções no Brasil, desde sempre, serviram também à sobrevivência, e não
apenas para a classe média, é claro. Em vários casos serviram e ainda servem
como tábua de salvação em meio à miséria econômica, pois tanto essa miséria
não foi erradicada como o povo, ou melhor, as classes economicamente baixas
seguem com sua rica cultura, um capital nada desprezível. É complicado
lidar com essa situação, pois se é absurdo justificar a manutenção da miséria
pela cultura... não há por que ignorar o valor humano, em sentido amplo,
que subsiste nos produtos culturais que resultam dessa história.
Um músico e produtor independente aqui de São Paulo costuma brincar,
nas sessões de seu estúdio, dizendo “– Por que gravar? Já tem disco pra
caramba por aí!”. Vamos levar a sério o chiste. O fato de a produção haver se
tornado mais acessível inegavelmente facilita hoje o trabalho com a canção.
Mas o foco de interesse do mercado não migrou para a etapa de difusão?
Como apostar, por exemplo, na internet (número de usuários brasileiros
à parte), quando o nosso interesse permanece preso ao espetáculo e/ou ao
reconhecível?
Sem muita certeza e da perspectiva dos cancionistas, neste momento,
percebo duas alternativas radicais. Uma é abraçar de modo consciente, o
que auxiliará no trabalho, a produção comercial. Quer uma dica? Esqueça

36
majors e trilhas de novelas. Custo x benefício, melhor investir em vinhetas
para televisão. A outra alternativa é pesquisar a criação artística. Nesse caso,
talvez o primeiro desafio seja conseguir, na própria forma do produto, quebrar
a expectativa hegemônica do público e interessá-lo. Não há fórmula mágica
para isso, mas a ideia não é nova e pode ser mais bem explicada. Tentarei: o
desafio é interessar o público, na própria realização da obra, desenvolvendo
uma forma que não satisfaça o (mau) costume do consumidor mimado.
Tão mais mimado quanto mais afeito ao gesto de deletar ou não com um
simples clique – sem pensar, sem nem sentir, como se qualquer canção fosse
a repetição do que já se ouviu ou do que se ouvirá daqui a pouco, wherever.

37
Notas sobre “Cálice” (2010, 1973, 1978, 2011)

Setembro de 2010, YouTube


Criolo Doido está dentro de uma lanchonete, parado em frente ao balcão.
À esquerda, fora de foco, produtos que se aglomeram no caixa (cigarros,
isqueiros, lâminas de barbear descartáveis, chocolates), além do logotipo
do cartão Visa. Atrás, também à esquerda e fora de foco, uma prateleira
vermelha com embalagens de salgadinhos, as cores berrantes em contraste
com a roupa escura do rapper, jaqueta chumbo, com riscos brancos e cinza,
fechada sobre uma camiseta preta. A gravação é feita da perspectiva de
quem se encontra ao lado do caixa, de pé como Criolo, a pouca distância.
Ele entoa versos criados em cima de “Cálice” (Gilberto Gil/Chico Buarque).
Olha para vários pontos. Com um gesto, pede a um funcionário que lhe sirva
e agradece. Ao final, levanta uma tampa de plástico, espia o que parece ser
um bolo em uma bandeja.

Maio de 1973, Jornal do Brasil


“Cálice” foi composta quando Gilberto Gil e Chico Buarque receberam
“a tarefa de compor e cantar uma música em dupla” no Phono 73, evento
promovido pela gravadora de ambos no Palácio de Convenções do Parque
Anhembi, em São Paulo.1 Em 10 de maio de 1973, primeiro dos quatro dias
do Phono 73, o Jornal de Brasil publicou uma notícia com o título “Chico
Buarque e Gilberto Gil cantam juntos pela primeira vez em São Paulo”, na
qual se definia o evento como um “festival-feira”.2

1. Cf. GIL, Gilberto. Gilberto Gil: todas as letras: incluindo letras comentadas pelo compositor.
Org. Carlos Rennó; colaboração Marcelo Fróes. 2ª ed., revista e ampliada. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003, p. 161.
2. Cf. JORNAL DO BRASIL, “Chico Buarque e Gilberto Gil cantam juntos pela primeira
vez em São Paulo”. 1º Caderno, 10/5/1973, p. 10.

39
Não tenho condições de avaliar em que medida a sucursal de São Paulo,
que assina a matéria, utilizou release distribuído pela Philips. Certo é que o
texto se limitava basicamente a divulgar os shows:3 “a Companhia Brasileira de
Discos Phonogram4 reunirá 30 dos mais importantes nomes da música popular
brasileira numa exposição sem caráter competitivo”. Seja como for, “festival-
feira” é uma definição que merece ser analisada, pois aglutina duas palavras
correntes entre produtores, intermediários (jornalistas, apresentadores)
e público desde a movimentação da bossa nova. O termo “festival” ficou

3. A divulgação, todavia, se equivocava ao informar que Gilberto Gil “hoje, às 21 horas, estará,
pela primeira vez, cantando junto num palco com Chico Buarque de Holanda”. Ambos se
apresentariam no dia seguinte, 11 de maio de 1973, sexta-feira. Cf. JORNAL DO BRASIL,
“Chico Buarque e Gilberto Gil cantam juntos pela primeira vez em São Paulo”, edição citada.
4. A Phonogram surgiu em 1945, quando “a filial francesa da Gramophone passou para o
controle da Philips, empresa do setor elétrico”, no quadro de “uma sequência de fusões” que
marcaram, de 1928 a 1945, “a interação da produção dos formatos e de seus reprodutores”.
Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura, edição citada, p. 39-40. Em 1958, a Philips adquiriu a Companhia Brasileira de
Discos, a qual se originara, em 1955, da Sinter – Sociedade Interamericana de Representações
–, empresa fundada em 1945. Cf. UNIVERSAL MUSIC, “Histórico/Perfil”. Disponível em:
http://www.abpd.org.br/sobre_gravadora.asp?g=17. Acesso em: 24 jul. 2014. Na década de
1960, é adquirido o selo Elenco, de Aloysio de Oliveira, “uma d a s ex per iência s ma is
bem-suced id a s d a époc a , em ter mos de qua l id ade d a produç ão e la nç a mento
(...), ma s que nau f ra gou sem rec u rsos f rente à Ph i l ips na s mãos de A r ma ndo
Pit t ig l ia n i ”. Cf. COL ET I VO M PB (José Roberto Zan; Marcos Nobre; Henry Burnett;
Rúrion Soares Melo), “Chega de saudade”. Publicado em: jan. 2006. Disponível em: http://p.
php.uol.com.br/tropico/html/textos/2719,1.shl. Acesso em: 23 fev. 2008. Em 1978, com a fusão
da Phonogram e da Polydor, surge a PolyGram, “braço fonográfico da Philips, (...) empresa
transnacional do setor eletroeletrônico, administrada basicamente por capital holandês e
alemão”. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica e mundialização da
cultura, edição citada, p. 46. Em 1998, “os 75% de participação na Polygram pertencentes à
Philips” foram comprados pelo grupo canadense Seagram, conhecido “como uma companhia
de bebidas” e “dono de marcas como a vodca Absolut e o uísque Chivas”. Cf. FOLHA DE
S.PAULO, “Seagram fecha compra da Polygram”. Caderno Dinheiro, 22/5/1998, p. 2; idem,
“Painel S/A: Alvos definidos”. Caderno Dinheiro, 11/11/1998, p. 2. Ressalte-se que o grupo
Seagram, que havia adquirido a Universal Studios há dois anos, expandia “suas atividades
na indústria do entretenimento”. Cf. FOLHA DE S.PAULO, “Seagram fecha compra da
Polygram”, edição citada. Com a compra da PolyGram, surge a Universal Music. Para
Marcia Tosta Dias, “o movimento revelou a opção da Philips pela produção de hardware
por considerar que, ao produzir gravadores de CDs, estaria trabalhando contra seu próprio
negócio fonográfico. A quebra na interação entre hardware e software expressa a profundidade
das mudanças, pois altera de maneira radical o núcleo que historicamente sustentou o poder
das empresas”. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e
mundialização da cultura, edição citada, p. 184. Em 2000, a Universal Music foi adquirida
pelo grupo francês Vivendi. Cf. FOLHA DE S.PAULO, “Valor das fusões e aquisições tem
queda de quase 40% no trimestre”. Caderno Dinheiro, 1/7/2000, p. B6.

40
bastante conhecido, sabe-se, durante o processo de consolidação da sigla
MPB, quando cancionistas passaram a disputar o Festival da Música Popular
Brasileira (TV Record, 1965-1969) ou o Festival Internacional da Canção (TV
Globo, 1966-1972) como se encenassem “espetáculos de luta livre”.5 Daí a
notícia do Jornal do Brasil esclarecer que Phono 73 seria uma “exposição sem
caráter competitivo”. Mas já em 22 de setembro de 1959 fora apresentado o 1º
festival de samba-session, no anfiteatro da Faculdade Nacional de Arquitetura,
show com entrada gratuita organizado por estudantes de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Segundo Ruy Castro, “na hora de
dar um nome ao espetáculo”, os universitários “se inspiraram no Festival de
Jazz realizado em junho no Teatro Municipal”.6 Seguiram-se outros shows
para estudantes no Rio, mas o termo “festival” foi retirado dos nomes: em 13
de novembro de 1959, houve o Segundo comando da operação bossa nova na
Escola Naval;7 em 20 de maio de 1960, a Noite do sambalanço, na Pontifícia
Universidade Católica, e também A noite do amor, do sorriso e da flor, na
Faculdade Nacional de Arquitetura; nesse último, todavia, o apresentador

5. O comentário é de Paulinho Machado de Carvalho, que assumiu o cargo de diretor-


executivo da TV Record em 1964, permanecendo à frente da emissora até 1990, quando as
ações foram compradas por Edir Macedo. É certo que esse comentário de “Seu Paulinho”,
como era chamado na Record, deve ser contraposto a outro, feito na mesma entrevista:
“Depois, a bola de neve foi crescendo tanto que ficou maior do que um programa de televisão,
ficou maior do que a própria empresa e quase, posso dizer, do que São Paulo”. Todavia a
contraposição não altera o ponto de vista, tão revelador quanto previsível, de um diretor-
executivo: “além das músicas [com aquela qualidade], haveria o confronto pessoal entre um
segmento que um artista representava e outro segmento representado por outro artista”.
Cf. TERRA, Renato; CALIL, Ricardo (org.). Uma noite em 67. São Paulo: Planeta, 2013, p.
55-56. Para melhor compreensão dos vínculos entre a consolidação do sistema da MPB (seus
cancionistas, suas obras e seus públicos) e os festivais televisivos, devem ser consideradas
observações de Marcos Napolitano sobre “o sentido histórico” do III Festival da Música
Popular Brasileira, produzido e veiculado pela Record em 1967: “A mitologia em torno dos
festivais consagrou a ideia de um público consciente do que queria, mas esta característica
não pode ser generalizada. Fã-clubes, empatias espontâneas, grupos politicamente orientados,
idiossincrasias de toda ordem parecem estar presentes no comportamento do público no
auditório (...). Grosso modo, [nas análises da imprensa e nas declarações dos artistas], nota-
se que o Festival foi supervalorizado na sua dimensão de esfera pública não-oficial, como
se o fato de ser, basicamente, um evento comercial e televisual fosse um mero acidente”.
Cf. NAPOLITANO, M. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural na
MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2001, p. 203-204.
6. Cf. CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p. 221-230.
7. Ibidem, p. 230-231.

41
Ronaldo Bôscoli “anunciou ao microfone” que se tratava do “primeiro festival
de Bossa Nova”.8
Note-se com que senso de oportunidade se divulgaram, nos nomes
desses três shows que garimpavam público entre estudantes na zona sul
carioca, palavras que já circulavam no mercado fonográfico hegemônico:
a) a expressão “bossa nova”, utilizada por Antonio Carlos Jobim e Newton
Mendonça em “Desafinado”, e por Jobim no texto para a contracapa do
primeiro LP de João Gilberto, lançado pela gravadora Odeon em 1959 –
“João Gilberto é um baiano, ‘bossa-nova’ de vinte e sete anos”; b) o termo
“sambalanço”, adotado por Carlos Lyra para designar seu próprio trabalho
após assinar contrato com a Companhia Brasileira de Discos – Philips em
1960;9 c) “O amor, o sorriso e a flor”, título do segundo LP de João Gilberto,
lançado pela Odeon também em 1960. Não por acaso, a Odeon participou
da produção d’ A noite do amor, do sorriso e da flor, e a Philips, da produção
da Noite do sambalanço.10
À semelhança de outros momentos da canção popular, os títulos dos três
shows cifravam a aspiração publicitária. É lógico que não se podia imaginar
o sucesso comercial que algumas das canções apresentadas alcançariam
no Brasil e no exterior. Apostava-se. O mesmo vale para as palavras então
divulgadas, e “sambalanço” não pegou. Fazendo suas apostas, os nomes
dos shows revelavam que a produção voltada para o comércio era uma das
linhas de força das obras, o que não constituía grande novidade: procurar um
comprador é dever da canção popular desde que as classes médias urbanas
passaram a consumir partituras, discos e programas de rádio.
Em outras palavras, se toda e qualquer canção vive enquanto é entoada, e
se um canto lírico – enquanto “expressão de emoções e disposições psíquicas”
ou de “concepções, reflexões e visões” experimentadas pelo sujeito ou por
um grupo – não requer necessariamente a presença física “de ouvintes ou
interlocutores”,11 a atuação da canção popular-comercial depende da existência
de meios tecnológicos de transmissão e também da existência de um conjunto,

8. Ibidem, p. 263-266.
9. Ibidem, p. 262-263.
10. Ibidem, p. 264.
11. Cf. ROSENFELD, Anatol, “A teoria dos gêneros”. In: ROSENFELD, A. O teatro épico.
4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 24.

42
mais restrito ou mais amplo, de receptores que lhe sustentem economicamente.
Mas é preciso lembrar que essa competição pelo consumidor no mercado
anônimo é uma situação que cabe, via de regra, aos artistas na chamada
modernidade.12 E “só porque uma obra de arte é uma mercadoria, ela não é
somente ou imediatamente uma mercadoria”.13 Para a crítica da canção de
mercado, o trabalho é avaliar as consequências que determinada obra, em
particular, retira da natureza comercial de sua produção.
Por ora, e nos limites deste ensaio, atente-se para a diferença significativa
entre dois momentos: o primeiro, quando da divulgação de um tipo de canção
ou de um LP nos nomes de três shows para estudantes em 1959 e 1960; o
segundo, quando da divulgação da própria gravadora no nome Phono 73,
“festival-feira” levado ao Palácio de Convenções do Parque Anhembi. Entre
um momento e o outro, dois títulos comprovam a boa aceitação, na década
de 1960, do termo “festival” ligado a mostras “sem caráter competitivo”: 1º
Festival de Bossa Nova, “realizado no Recife, sob o patrocínio dos Diretórios
de Sociologia e Política do Instituto de Ciências Políticas e Sociais e da Escola
de Serviço Social do Recife”; e Festival Bossa I, “realizado em Campina
Grande, Paraíba”.14
Quanto a “feira”, é evidente que a palavra se vincula às trocas comerciais,
processo que realmente interessava, no fim das contas, à Phonogram. Logo
após o evento, em 15 de maio de 1973, outra matéria da sucursal de São Paulo
do Jornal do Brasil, “Phono 73 o festival sem competição”, divulgava: “Não
tendo sido televisado nem gravado para posterior apresentação em vídeo-

12. Adapto, para fins próprios, formulações de CANDIDO, Antonio. Formação da


literatura brasileira: momentos decisivos. 6ª ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda.,
2000. 2 volumes; Idem. Iniciação à literatura brasileira (Resumo para principiantes). 2ª
ed. São Paulo: Humanitas, 1998; BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no
auge do capitalismo. Trad. J. M. Barbosa; H. A. Baptista. 3ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo:
Brasiliense, 2000; ROSENFELD Anatol, “Beethoven e o Romantismo”. In: ROSENFELD,
A. Texto/Contexto II. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 275-282.
13. Cf. BROWN, Nicholas, “Brecht eu misturo com Caetano: citação, mercado e forma
musical”. Trad. Aparecido Donizete Rossi; Renato Gonçalves Ferreira Filho. Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros, n. 59. São Paulo, IEB-USP, dez. 2014, p. 156. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rieb/n59/0020-3874-rieb-59-00149.pdf. Acesso em: 10 dez. 2014.
14. Cf. BRITTO, Jomard Muniz de. Do modernismo à bossa nova. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1966, p. 131 e 133.

43
tape,15 o Festival resultará no lançamento de um álbum especial de quatro
LPs, a serem colocados no mercado até o final do ano” (os planos seriam
alterados, e três LPs foram lançados sucessivamente). E o parágrafo final
repercutia (no jargão jornalístico) a intenção liberal do empreendimento e
também o seu interesse no mercado dos EUA:
A revista norte-americana Billboard publicará matéria especial sobre a
Phono 73, que os dirigentes da Philips consideram, “se não revolucionário
[sic] quanto às perspectivas abertas para a música brasileira em geral,
pelo menos algo de diferente e de marcante, porque sem preconceitos”.16

Mas “feira” também se tratava de termo corrente no quadro da “relativa


hegemonia cultural da esquerda no país”, para retomar a já célebre formulação
de Roberto Schwarz em “Cultura e política, 1964-1969”.17 Caetano Veloso
publicou o texto “Primeira feira de balanço” em Ângulos, revista dos alunos
da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, em 1965 (não sei
dizer se o título do artigo citava uma mostra organizada pelos estudantes).
E o Teatro de Arena de São Paulo organizou a Primeira Feira Paulista de
Opinião em 1968.18
Voltando à notícia “Chico Buarque e Gilberto Gil cantam juntos pela
primeira vez em São Paulo”, a matéria do Jornal do Brasil iniciava com uma
declaração de Gil: “‘Existem várias formas de fazer música brasileira. Eu
prefiro todas’”. Tratava-se de uma paráfrase da abertura do texto de Torquato

15. Segundo Caio Túlio Costa, “duas rádios paulistanas transmitiram o festival, ao vivo.
A TV Cultura, canal 2, também”. Cf. COSTA, C. T. Cale-se. São Paulo: A Girafa Editora,
2003, p. 165.
16. Cf. JORNAL DO BRASIL, “Phono 73 o festival sem competição”. Caderno B, 15/5/1973, p. 4.
17. Cf. SCHWARZ, Roberto, “Cultura e política, 1964-1969”. In: SCHWARZ, R. O pai de
família e outros estudos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 62.
18. Cf. VELOSO, Caetano, “Primeira feira de balanço”. In: VELOSO, C. O mundo não é
chato. Org. Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 143-153. Sobre a
Primeira Feira Paulista de Opinião, consultar documentos escritos em 1968 por Augusto
Boal e por Cacilda Becker. Cf. BOAL, Augusto. “Que pensa você da arte de esquerda?
Programa da peça I Feira Paulista de Opinião (5 de junho de 1968)”. Publicado em: 24 nov.
2012. Disponível em: http://institutoaugustoboal.files.wordpress.com/2012/11/que-pensa-
vocc3aa-da-arte-de-esquerda-programa-da-feira.pdf. Acesso em: 22 set. 2014. Cf. BECKER,
Cacilda. “Ilmo. Sr. General José Bretas Cupertino MD Chefe do Departamento de Polícia
Federal (1968)”. Publicado em: 20 mar. 2014. Disponível em: http://institutoaugustoboal.
files.wordpress.com/2014/03/carta-de-cacilda.pdf. Acesso em: 22 set. 2014.

44
Neto para a contracapa do primeiro LP de Gil, Louvação, lançado em maio
de 1967: “Há várias maneiras de se cantar e fazer música brasileira: Gilberto
Gil prefere todas”.19 E, como observou Paulo Cesar de Araújo,
O texto [de Torquato] expressa a ideia predominante do que se entendia
por música brasileira e, posteriormente, foi tomado como uma profissão
de fé tropicalista, quando na verdade ainda expressava uma visão da
música popular anterior à eclosão daquele movimento.20

Será interessante cotejar a frase de Torquato Neto, retomada por Gil


em 1973, e o anúncio do Phono 73 que ocupava dois “tijolinhos” na página
de classificados dos cadernos culturais. Nele o evento se torna “O canto de
um povo”. O slogan claramente vinculava o festival-feira à cultura politizada
de esquerda que se adensara no início da década de 1960, tendo como
marco principal, naquele período, a experiência do CPC (Centro Popular de
Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes), fundado em dezembro
de 1961 e extinto com o golpe de 1964.21 De fato, as obras de Chico Buarque,
Gilberto Gil, MPB4, Elis Regina, Caetano Veloso, Gal Costa, Nara Leão,
entre outros contratados da Phonogram e participantes do Phono 73, levaram
adiante aquela cultura a partir de 1964, em parte desdobrando (caso de
Chico Buarque) ou em parte refutando a experiência do CPC (caso dos
tropicalistas). Na linha de Adorno,22 pode-se dizer que o slogan “O canto de
um povo” expressava uma intenção que não era verdadeira à medida que
pretendesse “coincidir com a realidade”, mas que era verdadeira à medida
que anunciasse projetos, mais ou menos diferentes entre si, de dar voz ao
que se chama “povo” ou de estabelecer algum tipo de diálogo entre as classes
médias urbanizadas, lugar social onde se firmavam os pontos de vista das
canções, e as classes baixas.

19. Cf. GIL, GILBERTO. Louvação. PolyGram, 824681-2, 1998 [p1967].


20. Cf. ARAÚJO, Paulo Cesar de. Roberto Carlos em detalhes. São Paulo: Editora Planeta
do Brasil, 2006, p. 170.
21. Sobre o CPC da UNE, ver GARCIA, Miliandre. Do teatro militante à música engajada: a
experiência do CPC da UNE (1958-1964). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
22. Cf. ADORNO, T. W., “Crítica cultural e sociedade”. In: ADORNO, T. W. Prismas: crítica
cultural e sociedade. Trad. A. Wernet; J. M. B. de Almeida. São Paulo: Ática, 1998, p. 23.

45
Nessa perspectiva, tal processo variado de “‘ida ao povo’” tentou
“equacionar os impasses surgidos em torno do nacional-popular”, como
formulou Marcos Napolitano.23 Nos limites deste ensaio, o aspecto principal
é que a variedade de soluções estéticas apresentadas por aqueles cancionistas
geraram contrastes e tensões, não se ignora, nos festivais de caráter competitivo
da TV Record ou da TV Globo em 1967 e, sobretudo, em 1968. Contrastes
e tensões que se evaporavam, se não de fato, ao menos na estratégia da
Phonogram ao promover o “feira-festival” em 1973. Note-se que Renato Ortiz,
observando o segmento de mercado delimitado pela categoria “juventude”
na década de 1960, já afirmou que a tensão entre as “faces contrastantes”
dos programas televisivos O Fino da Bossa e Jovem Guarda “irá desaparecer
na década de 1970”:
Vários fatores contribuíram para isso: a derrota política da esquerda
no Brasil, o fracasso da luta armada na América Latina, o desencanto
em relação à ideia de revolução, a barbárie do regime soviético. Sem
mencionar o declínio do marxismo como teoria de interpretação da
história. Não obstante, creio que no Brasil a relação entre cultura e
política reorganiza-se sobretudo em função da consolidação da indústria
cultural. Desde então, os critérios mercadológicos se sobrepõem ao
engajamento político.24

O próprio Chico Buarque recordou, em 1999, a mudança que percebeu


entre a década de 1960, quando “fazia música e gravava de forma artesanal”,
e a década de 1970, quando “já não há gratuidade em nada”.25 Assim, sem
nenhum exagero, pode-se afirmar que a declaração de Gilberto Gil – “‘Existem
várias formas de fazer música brasileira. Eu prefiro todas’” – sintetizava com

23. Cf. NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria


cultural na MPB (1959-1969), edição citada, p. 12-13.
24. Cf. ORTIZ, Renato, “Revisitando o tempo dos militares”. In: REIS, Daniel Aarão;
RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). A ditadura que mudou o Brasil: 50
anos do golpe de 1964. 1ª reimpressão. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 125.
25. Cf. BUARQUE, Chico, “Eu já quis ser João Gilberto e Guimarães Rosa”. In: NAVES,
Santuza Cambraia; COELHO, Frederico Oliveira; BACAL, Tatiana (org.). A MPB em discussão:
entrevistas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006, p. 178-179.

46
grande acerto a estratégia comercial da Phonogram, de modo que bem
poderia ter sido utilizada no próprio anúncio.26 Adiante retomarei o ponto.
Logo abaixo do slogan “O canto de um povo”, lia-se: “Quatro noites
incríveis reunindo o maior espetáculo de música brasileira de todos os
tempos”. A frase estava bem de acordo com a prática da redação publicitária.
Enfileiravam-se qualidades superlativas, numa retórica que aparentemente
retirava do consumidor qualquer chance de escolha: quem, em sã consciência,
perderia uma só daquelas noites incríveis do maior espetáculo de todos os
tempos? Por outro lado, o tamanho e a linguagem visual do anúncio eram
acanhados. Tratava-se, afinal, de dois tijolinhos em preto e branco, sem
qualquer ilustração, na página de classificados. Apenas o logotipo do Phono
73 se destacava. Uma publicidade bastante modesta se comparada, p. ex., ao
anúncio da coleção de roupas Jovem Guarda, estrelado por Roberto Carlos
e veiculado em cores, em página inteira, na revista Reportagem, ainda em
dezembro de 1966.27 Ou à foto de Chico Buarque (fazendo pose semelhante

26. Ainda que Gilberto Gil parafraseasse Torquato Neto, não deixa de ser interessante notar
certa semelhança entre a declaração e dois slogans que seriam veiculados décadas adiante:
a) “Existem mil maneiras de preparar Neston, invente uma!”, frase que obviamente busca
atribuir ao ato de consumir a mercadoria o valor de um ato criativo (e, por conseguinte, o
valor da liberdade – cujo ápice de utilização para fins comerciais talvez tenha sido alcançado
pelo jingle, de 1976, “Liberdade é uma calça velha/ Azul e desbotada/ Que você pode usar/
Do jeito que quiser/ Não usa quem não quer/ US Top/ Desbota e perde o vinco/ Denim
Índigo Blue/ US Top/ Seu jeito de viver”); b) “Amo muito tudo isso!”, slogan do McDonald’s
que obviamente celebra a mercadoria padronizada enquanto objeto do desejo – embora
de modo muito conciso, um exemplo do atual processo de “imperativo do gozo” e de
apagamento das diferenças subjetivas; cf. KEHL, Maria Rita, “Fetichismo”. In: BUCCI,
Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 74. Diga-se de
passagem, “Amo muito tudo isso!” é uma maneira mais enfática de dizer “Gosto do que
acontece”, frase “do intelectual Rogério Duarte” que, segundo Caetano Veloso, “resume
bem” a sua própria atitude e pode ser vinculada à tropicália: “Os valores críticos que você
desenvolve são muito provisórios e estão desarmados diante do frescor da realidade. Desse
sentimento, nasceu o tropicalismo. Para todo mundo da minha geração, gostar do Roberto
e do Erasmo Carlos era um anátema. Você não podia nem remotamente aprovar o que se
passava na Jovem Guarda. De repente, ao abrir mão do preconceito, nos permitimos ver
o que havia naquele cenário e aquilo nos interessou. Gostávamos do que acontecia – e
ainda gosto”. Cf. VELOSO, Caetano, “A sociedade exige mais coragem de quem é jovem”
(entrevista a Barbara Heckler). Bravo!, ano 13, n. 162. São Paulo, Editora Abril, fev. 2011, p.
33. Para relações entre o trabalho de composição de Gilberto Gil e “ideias do slogan e do
jingle”, segundo o próprio compositor, consultar GIL, Gilberto. Gilberto Gil: todas as letras:
incluindo letras comentadas pelo compositor, edição citada, p. 184-185; 205-206.
27. Cf. COLEÇÃO JOVEM GUARDA. Realidade, ano 1, n. 9. São Paulo, Editora Abril,
dez. 1966, p. 171.

47
à de João Gilberto na capa do LP Chega de saudade), também em cores e
em página inteira, abrindo a matéria “Chico dá samba”, no mesmo número
da revista.28

11 de maio de 1973, Palácio de Convenções do Parque Anhembi


Em 29 de abril e em 7 de maio, na sua coluna social no Caderno B do
Jornal do Brasil, Zózimo Barroso do Amaral publicou notas sobre “Cálice”.
A primeira somente informava que Phono 73 revelaria “algumas parcerias
musicais inéditas, entre elas Chico Buarque-Gilberto Gil e Jorge Ben-Gil”.29
A segunda nota, publicada quatro dias antes do show, indica a arbitrariedade
que marcou a atuação do aparelho repressivo durante a ditadura:
Chico Buarque e Gilberto Gil – parceiros pela primeira vez na
música Cálice – esperam a palavra final da Censura para ensaiarem a
apresentação da nova composição na Phono 73, festival que a Philips
organiza em São Paulo esta semana.30

Segundo a Phonogram, a letra de “Cálice” “foi encaminhada aos seus


escritórios no dia 3” de maio, sendo então levada ao Serviço de Censura, na
Guanabara. Como não foi liberada, a gravadora “enviou a letra ao Serviço
de Censura em São Paulo, tentando uma autorização apenas para ela ser
apresentada na Phono 73”, o que foi negado.31 Deve-se ter em conta que
“a Censura agiu com extremo rigor” nos anos de 1973 e 1974, período em
que também foi registrado o maior “número de pessoas desaparecidas”.32
Conforme Carlos Nelson Coutinho observava em 1979,
A prática sistemática da censura, aliada e um claro terrorismo ideológico,
pode ser considerada como a face aberta da “política cultural” vigente
após 1964 e, em particular, no período posterior a 1968, ou seja, à
decretação do AI-5. Seria simplista reduzir a isso o quadro das relações

28. Cf. FREIRE, Roberto, “Chico dá samba”, edição citada, p. 68.


29. Cf. AMARAL, Zózimo Barroso do, “Vaivém”. Jornal do Brasil, Caderno B, 29/4/1973, p. 3.
30. Idem, “‘Cálice’”. Jornal do Brasil, Caderno B, 7/5/1973, p. 3.
31. Cf. FOLHA DE S.PAULO, “O corte do som: de quem é a culpa?”. Caderno Ilustrada,
18/5/1973, p. 23.
32. Cf. SILVA, Alberto Moby Ribeiro da. Sinal fechado: a música popular brasileira sob
censura (1937-45 / 1969-78). 2ª ed., 1ª reimpressão. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 93.

48
entre a cultura e a sociedade nos últimos anos; mas será ainda mais
perigoso esquecer que tal face condicionou, através certamente de
múltiplas mediações, a totalidade da produção cultural sob a vigência
do regime militar.33

A censura a “Cálice” e a tentativa de apresentação da sua parte musical,


na noite de 11 de maio de 1973, já foram pesquisadas e, para o que aqui se
discute, não é preciso retomar mais do que o essencial.34 No Phono 73, os
dois compositores tocaram violão e cantarolaram a melodia das estrofes
(parte B) utilizando-se de uma espécie de grammelot. Foram registrados
ou editados 3:27 de áudio – não há registro de imagens em igual tempo no
DVD que a Universal Music lançou em 2005.35 A forma musical completa
de “Cálice”, no material reunido nesse DVD, é:
Introdução (solo de Gilberto Gil ao violão);
A (Gil entoa em grammelot; Chico canta a letra de modo um tanto
enrolado);
B, B (Gil entoa em grammelot; Chico pontua as frases de Gil com a
palavra “Cálice”; público aplaude);
A (Chico canta a letra de modo claro e fica sem som por um momento;
Gil entoa em grammelot);
B, B (Chico entoa “arroz à grega, paracundá”; Chico e Gil entoam em
grammelot; Chico grita “Meu som!” antes da repetição da parte B);
A (Chico canta a letra de modo claro; escutam-se palmas);
B, B (ambos entoam em grammelot; Chico pergunta “Tem som?” em 2:45,
e respondem “Não!” da plateia; ouvem-se ruídos nos microfones em 3:04);
A (Chico canta a letra de modo claro; ao final, ruídos nos microfones
e palmas).

33. Cf. COUTINHO, Carlos Nelson, “Cultura e sociedade no Brasil”. In: BRAZ, Marcelo
(org.) Samba, cultura e sociedade: sambistas e trabalhadores entre a “questão social” e a
questão cultural no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p. 54.
34. Consultar SILVA, Alberto Moby Ribeiro da. Sinal fechado: a música popular brasileira
sob censura (1937-45 / 1969-78), edição citada, p. 127-128; COSTA, Caio Túlio. Cale-se, edição
citada, p. 157-170; ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não: música popular
cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 203-206; MENESES, Adélia
Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. 2a ed. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2000, p. 91-92.
35. Cf. VÁRIOS. Phono 73: o canto de um povo. Universal Music, 60249824412, 2005.

49
Na recordação de Aquiles, um dos integrantes do MPB4, grupo que
acompanhou Chico Buarque no Phono 73,
Cantados os primeiros versos [de “Cálice”], os microfones
“misteriosamente” emudeceram. Percebendo a manobra, nós mesmos,
no palco, diante da plateia atônita, começamos a substituir por outros
os microfones emudecidos pelos agentes federais [na cabine de som
do Anhembi]. Foi uma sequência angustiante de “emudecimentos”.
Ao final da batalha, um mar de microfones mudos com os cantores,
os compositores e o público. Essa nós perdemos e choramos de raiva.36

Não há imagens das substituições de microfones no DVD, mas


presumivelmente os ruídos em 3:04 se devem a isso. Com base no áudio,
não é possível conferir o “mar de microfones mudos”. No último refrão,
“Cálice” se interrompe logo após o verso “De vinho tinto de sangue”, e
escutam-se novamente ruídos nos microfones. Mas a questão não é se a
recordação de Aquiles, atravessada de afetos, deve ou não ser tomada ao pé
da letra. Fundamental é o fato de que, frente à Censura e à sua arbitrariedade,
houve certa resistência por parte dos compositores e dos músicos no palco.37
Afinal, segundo afirmaram Chico e Gil em “O CÁLICE da discórdia”, matéria
publicada pelo Jornal do Brasil em 15 de maio de 1973, quatro dias após a
apresentação no Phono 73: “A melodia não foi proibida, ao que nos consta,
e sim, a letra”. Presume-se, a letra das estrofes, uma vez que a letra do refrão,
como se sabe, se apropria dos Evangelhos.38

36. Cf. REIS, Aquiles Rique, “‘(...) Você corta um verso eu escrevo outro’”. In: REIS, A. R.
O gogó de Aquiles: textos. São Paulo: A Girafa Editora, 2004, p. 91.
37. Gilberto Gil chamaria, décadas adiante, a apresentação de “desobediência civil”. Cf.
GIL, G. Gilberto Gil: todas as letras: incluindo letras comentadas pelo compositor, edição
citada, p. 162. Caio Túlio Costa recriou uma conversa de dois alunos, em reunião do CCA
(Conselho de Centros Acadêmicos) da USP, logo após “a atitude contestatória de Gilberto
Gil e Chico Buarque no Phono 73”: “– Tá certo, eles não conseguiram cantar o Cálice, mas
tentaram. – Desafiaram a ordem”. Cf. COSTA, C. T. Cale-se, edição citada, p. 182.
38. Cf. JORNAL DO BRASIL, “O CÁLICE da discórdia”. Caderno B, 15/5/1973, p. 4. Para o
verso “Pai, afasta de mim esse cálice”, ver Mateus 26, 39; Marcos, 14, 36; Lucas, 22, 42. Para
“De vinho tinto de sangue”, ver Lucas, 22, 44. Cf. A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Ed. rev., 4ª
impressão. São Paulo: Paulinas, 1989. A letra integral de “Cálice” foi publicada na coluna
“Música Popular”, de Julio Hungria, no Jornal do Brasil de domingo, 13 de maio de 1973. Cf.
HUNGRIA, J. “Música Popular”. Jornal do Brasil, Caderno B, 13/5/1973, p. 14. Segundo Caio
Túlio Costa, a íntegra da letra também foi publicada pelo Jornal da Tarde em 12 de maio

50
Chico Buarque atribuiu à Phonogram o corte do som e disse que deixaria
a gravadora.39 Manteve-se na Philips, contudo, até 1980, apesar de “sucessivos
entreveros” desde o festival-feira.40 Já a Phonogram enviou uma “carta de
esclarecimentos” à imprensa em 17 de maio de 1973, na qual declarava:
“Pouco antes da apresentação de Chico, dois dos quatro fiscais presentes se
dirigiram às mesas de som. Quando o cantor começou a solfejar a música e
a cantar a palavra Cálice, a Censura passou a agir, cortando o som”.41
Em “O CÁLICE da discórdia”, Gilberto Gil ainda afirmou, com aparente
simplicidade: “Da Phono nada saiu ou sairá de revolucionário, quanto à
pesquisa ou criação. Mas o importante é que quase 30 artistas cantaram
juntos, e é importante que a gente possa e consiga cantar”. Digo “aparente
simplicidade” porque a afirmação condensava diversas tensões acenando
com a possibilidade de harmonia.
Em primeiro lugar – e não há de ter escapado a quem acompanha este
ensaio com atenção –, a julgar por duas matérias publicadas lado a lado no
Jornal do Brasil em 15 de maio de 1973, Gilberto Gil e os dirigentes da Philips se
afinavam na resposta à expectativa de que o festival-feira trouxesse inovações
estéticas: “nada saiu ou sairá de revolucionário” (Gilberto Gil, matéria “O
CÁLICE da discórdia”), todavia a mostra foi “pelo menos algo de diferente
e de marcante, porque sem preconceitos” (“dirigentes da Philips”,42 matéria
“Phono 73 o festival sem competição”). É preciso lembrar que, na época,
entre artistas e intelectuais havia a ideia de que um “vazio cultural” – ou a

de 1973 e, uma semana depois, por A Ponte, jornal mural do CCA da USP. Cf. COSTA, C.
T. Cale-se, edição citada, p. 192, 210 e 318.
39. Cf. FOLHA DE S.PAULO, “A bronca de Chico. O banho de Elis”. Caderno Ilustrada,
16/5/1973, p. 35. O autor da matéria é identificado como “IM”.
40. Cf. WERNECK, Humberto, “Gol de letras”. In: BUARQUE, C. Chico Buarque, letra
e música, v. 1. 2ª ed., 4ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 131-132.
41. Cf. FOLHA DE S.PAULO, “O corte do som: de quem é a culpa?”. Caderno Ilustrada,
18/5/1973, p. 23.
42. A frase é atribuída a “dirigentes da Philips”, conforme se lê na transcrição da matéria
que fiz anteriormente. Ao longo do texto, são citados “Armando Pittigliani, diretor-geral
da Phono 73”, e “os dois produtores de (sic) Feira, os empresários Guilherme Araújo e
Manoel Carlos”. Cf. JORNAL DO BRASIL, “Phono 73 o festival sem competição”. Caderno
B, 15/5/1973, p. 4.

51
ideia de que uma “cultura esvaziada”43 – se instalara no Brasil após a edição
do Ato Institucional n. 5, em 13 de dezembro de 1968,
através de uma implacável ação que se exerceu em dois planos. Com
a censura prévia agindo no interior do campo cultural – cortando,
expurgando ou simplesmente vetando –, pôde exercer-se um rigoroso
trabalho de prevenção; com os outros poderes que transcendem a cultura
– cassação, expulsão, aposentadoria e prisão –, pôde instaurar-se um
inapelável mecanismo de punição.44

E ainda havia o receio de que a criação artística pudesse se transformar,


em razão da censura prévia, em “um deserto sem cultura, por medo de
criar. Seria o reino da autocensura (...), da ordem, do conformismo e da
obediência”; um caminho para a “paz dos cemitérios”.45
Em segundo lugar, a afirmação de Gil aludia à “resistência cultural”
enquanto estratégia de crítica e de oposição à ditadura. Estratégia “percebida
como legítima e como espaço de convergência” por projetos estéticos e
políticos mais ou menos divergentes entre si.46 Nessa chave, ganha outro
sentido a declaração “‘Existem várias formas de fazer música brasileira.
Eu prefiro todas’”, retomada por Gil na matéria “O CÁLICE da discórdia”.
Em terceiro lugar, veja-se que aquela declaração era retomada da seguinte
forma:

43. Cf. COUTINHO, Carlos Nelson, “Cultura e sociedade no Brasil”. In: BRAZ, Marcelo
(org.) Samba, cultura e sociedade: sambistas e trabalhadores entre a “questão social” e a
questão cultural no Brasil, edição citada, p. 54.
44. Cf. VENTURA, Zuenir, “O vazio cultural”. Publicado na revista Visão, julho de 1971.
In: GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloisa Buarque de; VENTURA, Zuenir. Cultura em
trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, p. 43.
45. Idem, “A falta de ar”. Publicado na revista Visão, agosto de 1973. In: GASPARI, E.;
HOLLANDA, H. B. de; VENTURA, Z. Cultura em trânsito: da repressão à abertura, edição
citada, p. 55.
46. Cf. NAPOLITANO, Marcos, “A ‘estranha derrota’: os comunistas e a resistência cultural
ao regime militar (1964-1968)”. In: NAPOLITANO, Marcos; CZAJKA, Rodrigo; MOTTA,
Rodrigo Patto Sá (org.). Comunistas brasileiros: cultura política e produção cultural. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 319. Para um relato jornalístico do “abandono definitivo da
luta armada em favor de uma política pacífica de mobilização das massas” e da “participação
cultural com sentido político” entre estudantes da USP, promovendo-se então montagens
teatrais, espetáculos de dança, ciclos de cinema e shows musicais – com destaque para a
apresentação de Gilberto Gil em 26 de maio de 1973, no Biênio da Poli –, consultar COSTA,
Caio Túlio. Cale-se, edição citada.

52
Os dois compositores-intérpretes participaram, contentes, da Phono
73 – “uma ótima oportunidade de reencontro com toda a patota ou,
pelo menos, parte dela”, diz Chico; e complementa Gil: “A vantagem é
que a gente viu todas as formas de fazer música brasileira e eu já afirmei
que de todas prefiro exatamente todas”.47

Não se deve dar peso demasiado a afirmações publicadas na imprensa,


sujeitas que estão não só ao caráter momentâneo das entrevistas como ao
próprio filtro jornalístico. De todo modo, é notável a substituição de “várias
formas” por “todas as formas de fazer música brasileira”, um evidente exagero
que atribuía ao festival-feira abrangência incrível. Em 1974, André Midani,
então presidente da Phonogram, diria sobre a empresa: “em 1968 havia
170 empregados para 150 artistas, em 1974 serão 500 empregados para 28
artistas”.48 E em 2005, relembrando a sua gestão para entrevista publicada
no encarte da caixa Phono 73, Midani afirmou:
Quando eu entrei na companhia, em abril de 1968, vindo do México, a
empresa tinha algo como 150, 160 artistas contratados. Logo imaginei
que era impossível lidar com esse número a contento, sobretudo o que
chamamos de artista bom. Os que chamamos de não tão bons estavam
disponíveis. Uma quantidade grande passava seu dia na gravadora.
Esses eram evidentemente os menos bons. A primeira coisa que fiz foi
pegar as gravações dos 160 artistas e, em casa, tranquilamente, ouvir...
ouvir... isso demorou umas três semanas.
Daí, se a minha memória é boa, ficamos com uns 50 e poucos, o que
pelos padrões da época eram poucos artistas. Entre esses apareceram
Gil, Caetano, Gal, Elis, que estavam querendo sair da companhia, com
toda razão, porque não estavam recebendo a atenção que mereciam.
Então, fiz essa primeira peneira. E a segunda coisa foi separar o que

47. Cf. JORNAL DO BRASIL, “O CÁLICE da discórdia”. Caderno B, 15/5/1973, p. 4.


48. A declaração de André Midani foi apresentada por Enor Paiano e retomada por Marcia
Tosta Dias. Cf. PAIANO, E. Berimbau e som universal: lutas culturais e indústria fonográfica
nos anos 60. São Paulo, ECA-USP, 1994. Dissertação de mestrado em Comunicação, p. 217;
DIAS, M. T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura,
edição citada, p. 108.

53
posteriormente viria a se chamar de MPB do que seria chamado de
música popular, em dois selos. Philips para um e Polydor para outro.49

As peneiras realizadas pela gravadora, ao firmar contratos com artistas


e, mais tarde, ao definir as apresentações do Phono 73, obviamente não
selecionaram “todas as formas de fazer música brasileira”. O que a declaração
de Gilberto Gil, segundo o texto do Jornal do Brasil, escondia com seu
exagero era a concorrência no mercado capitalista. Mercado cuja ideologia
(no sentido de imagem invertida da realidade) acena com “Calma, minha
gente, há lugar para todos!”, e cujo funcionamento celebra, mesmo em uma
“exposição sem caráter competitivo”, alguns poucos premiados – como as
décadas posteriores à de 1970 nos mostraram, o número de artistas premiados
e o valor dos prêmios, ou seja, o total de capital investido em cada trabalho,
variam conforme a maré econômica.50 Adiante retomarei o ponto, ao abordar
a utopia projetada pela tropicália.
É preciso lembrar outra ideia discutida por artistas e intelectuais, no
início dos anos 1970, no debate sobre o “vazio cultural”:
independentemente do AI-5, a cultura vive uma fase de transição em
que, como superestrutura, tenta adaptar-se às alterações infraestruturais
surgidas no país. (...) Assim, na música popular, a interrupção do rico
processo inventivo começado pela Bossa Nova de João Gilberto e depois
retomado por Caetano e Gil teria como causa a massificação e não uma
crise de criação.51

Zuenir Ventura notava que “o traço mais marcante” da cultura brasileira


era a “falta de tendências coletivas ou movimentos” no enfrentamento do
“dilema do vazio”. Ainda assim, em texto publicado em agosto de 1973,
identificava

49. Cf. VÁRIOS. Phono 73: o canto de um povo, edição citada.


50. Sobre o assunto, ver DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira
e mundialização da cultura, edição citada.
51. Cf. VENTURA, Zuenir, “O vazio cultural”. Publicado na revista Visão, julho de 1971.
In: GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloisa Buarque de; VENTURA, Zuenir. Cultura em
trânsito: da repressão à abertura, edição citada, p. 47 e 49.

54
se não caminhos, pelo menos três direções, que às vezes se confundem
e se sobrepõem, uma adquirindo características da outra:
∙ Uma cultura de massa digestiva, comercial, de simples entretenimento;
∙ Uma contracultura buscando nos subterrâneos do consumo, mas
frequentemente sendo absorvida por este, formas novas de expressão
e de sobrevivência.
∙ Uma cultura explicitamente crítica, tentando olhar para a realidade
política e social imediata.52

Se “Cálice” pode ser enquadrada, a princípio sem grandes discussões,


na terceira direção identificada por Ventura, a articulação entre todas as
características se faria notar no convite de Caetano Veloso a Odair José (cujos
discos saíam pelo selo Polydor) para cantarem juntos no Phono 73. A plateia
do Palácio de Convenções vaiou muito. Dois anos depois, Caetano escreveria:
Para que alguém possa fazer qualquer coisa assim como Jóia é preciso
que as gravadoras tenham Odair e Agnaldo: o universitário que tenta me
entrevistar e salvar a humanidade fica indignado diante do meu absoluto
respeito profissional e interesse estético pelo trabalho de colegas meus
como Odair José e Agnaldo Timóteo. Centenas de novos compositores e
cantores e dezenas de velhos músicos não encontram lugar no mercado.53

É necessário aprofundar o entendimento da tentativa de apresentação de


“Cálice” no festival-feira. Sem dúvida, a canção era “explicitamente crítica”
e olhava “para a realidade política e social imediata”. O que não significa
que atuasse à margem dos “subterrâneos do consumo”, muito embora não
fosse “absorvida por este” justamente pelo teor de crítica e pelo caráter de
resistência que constituíam tanto a sua forma quanto a tentativa de sua
apresentação. Entretanto não custa sublinhar, a composição “sobre a dor,
sobre o tormento, sobre a repressão, sobre a censura”54 atendeu a uma tarefa

52. Idem, “A falta de ar”. Publicado na revista Visão, agosto de 1973. In: GASPARI, E.;
HOLLANDA, H. B. de; VENTURA, Z. Cultura em trânsito: da repressão à abertura, edição
citada, p. 60.
53. Cf. VELOSO, Caetano, “Mil Tons”. In: VELOSO, C. O mundo não é chato, edição
citada, p. 99.
54. Cf. GIL, Gilberto. “Gilberto Gil explica a música ‘Cálice’”. Publicado em: 15 abr. 2013.
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=8CnSiaP-jL4. Acesso em: 19 jun. 2014.

55
da gravadora que concentrava os principais nomes da chamada MPB, a
qual, para a grande indústria, em essência era um segmento de consumo
em articulação com os demais segmentos, sobretudo com o da chamada
música popular cafona.55 Na perspectiva da “engrenagem empresarial” do
pós-1964, liberal e orientada fundamentalmente para o mercado, a Censura
era nociva à medida que prejudicasse os negócios.56
Marcos Napolitano vem pesquisando, com grande acuidade, o papel
complexo e paradoxal da MPB na reorganização do mercado naquele período.
Será útil transcrever uma passagem de seu artigo “A música popular brasileira
(MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural”:
As imagens de “modernidade”, “liberdade”, “justiça social” e as ideologias
socialmente emancipatórias como um todo impregnaram as canções
de MPB sobretudo na fase mais autoritária do regime militar, situada
entre 1969 e 1975. Além dessa perspectiva político-cultural moldada

55. Quem primeiro chamou atenção para a passagem do texto “Mil Tons”, de Caetano
Veloso, foi Paulo César de Araújo, em meio à sua análise da relação, na década de 1970,
entre “dois grupos de cantores/compositores: aqueles considerados de ‘prestígio’ – que dão
status à gravadora e alimentam sua imagem de produtora de objetos culturais – e aqueles
considerados meramente ‘comerciais’ – que dão retorno financeiro grande e imediato”. Cf.
ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura
militar, edição citada, p. 189-195. De modo mais amplo, a “mudança na atuação da indústria
quando, no início dos anos 70, passa a investir em um cast estável, com artistas ligados à
MPB, que produzem discos com venda garantida por vários anos, mesmo que em pequenas
quantidades”, bem como a relação entre esses “artistas de catálogo” (ou “artistas autênticos”
ou “artistas verdadeiros”) e os artistas de marketing foram pesquisadas por Marcia Tosta
Dias: “O artista de marketing é o que é concebido e produzido, ele, o seu produto e todo o
esquema promocional que o envolve, a um custo relativamente baixo, com o objetivo de fazer
sucesso, vender milhares de cópias, mesmo que por um tempo reduzido (...) Dessa forma,
a indústria gera, com velocidade e competência, grande quantidade de produtos que serão
veiculados à exaustão e substituídos de acordo com os índices de vendagem alcançados. (...)
A repetição das mesmas fórmulas (para não dizer da mesma fórmula) cativa o consumidor
pela situação de conforto e familiaridade promovidas pelo reconhecimento, como foi
apontado por alguns autores, e, dessa forma, garante à indústria um lucrativo e imediato
retorno financeiro”. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira
e mundialização da cultura, edição citada, p. 82 e 94. Retomarei este ponto na parte final
do ensaio “‘Clara Crocodilo’ e ‘Nego Dito’: dois perigosos marginais?”, ao sistematizar o
enquadramento histórico daquelas composições de Arrigo Barnabé (em parceria com Mario
Lucio Cortes) e Itamar Assumpção.
56. Cf. ORTIZ, Renato, “Revisitando o tempo dos militares”. In: REIS, Daniel Aarão;
RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). A ditadura que mudou o Brasil: 50
anos do golpe de 1964, edição citada, p. 122.

56
pela audiência, a consolidação da MPB como “instituição” se deu a
partir da relação intrínseca com a reorganização da indústria cultural,
a qual agiu como fator estruturante de grande importância no processo
como um todo e não apenas como um elemento externo ao campo
musical que “cooptou” e “deturpou” a cultura musical do país. O ouvinte
padrão de MPB, o jovem de classe média com acesso ao ensino médio
e superior, projetou no consumo da canção as ambiguidades e valores
de sua classe social. Ao mesmo tempo, a MPB, mais do que reflexo
das estruturas sociais, foi um polo fundamental na configuração do
imaginário sociopolítico da classe média progressista submetida ao
controle do regime militar.57

Sintetizando e mudando o foco: no Phono 73, “Cálice” concentrava


resistência política e oportunidade comercial.
Quanto à frase de Torquato Neto retomada por Gilberto Gil, acabaria
abrindo “Manifesto”, texto publicado na contracapa dos LPs que reuniram
parte das apresentações do festival-feira.58

57. Cf. NAPOLITANO, Marcos, “A música popular brasileira (MPB) dos anos 70: resistência
política e consumo cultural”. Actas del V Congresso Latinoamericano IASPM, 2002, p. 3.
Disponível em:
http://w w w.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/fevereiro2012/historia_
artigos/2napolitano70_artigo.pdf. Acesso em: 10 set. 2009. Uma vez que trabalho com
textos jornalísticos e peças publicitárias, vale a pena lembrar que Marcos Napolitano,
no artigo “MPB: a trilha sonora da abertura política (1975-1982)”, nos deu um excelente
exemplo, por meio da citação de um anúncio, do papel da MPB no mercado hegemônico:
“Na propaganda de aparelho de som da alta tecnologia, publicada na revista IstoÉ, em 23 de
junho de 1977, lia-se a seguinte chamada: ‘Para ouvir canções de protesto contra a sociedade
de consumo, nada melhor do que um Gradiente financiado em 24 vezes’. Essa provocação
publicitária, de certa maneira, expressava a condição paradoxal da música popular brasileira
naquela década marcada pelo autoritarismo: foco da resistência e da identidade cultural de
uma oposição civil ao regime militar, as canções rotuladas como parte da ‘MPB – Música
Popular Brasileira’ eram extremamente valorizadas pela indústria fonográfica brasileira”.
Cf. NAPOLITANO, M., “MPB: a trilha sonora da abertura política (1975/1982)”. Estudos
avançados, v. 24, n. 69. São Paulo, IEA-USP, 2010, p. 389. Disponível em: http://dx.doi.
org/10.1590/S0103-40142010000200024. Acesso em: 24 out. 2020.
58. Não custa repetir que, em 1973, a Phonogram lançou sucessivamente três LPs com parte
do áudio do Phono 73; e que, em 2005, a Universal Music lançou uma caixa com dois CDs,
os quais reeditam o conteúdo daqueles LPS, e com um DVD, que traz imagens da mostra
até então inéditas. Saliente-se que o “Manifesto” também está reproduzido nessa caixa.

57
MANIFESTO
Gilberto Gil disse um dia: Há várias formas de fazer Música Brasileira.
– Eu prefiro todas.
Nós acreditamos e continuamos acreditando cada vez mais.
A torrente criativa na Música Popular Brasileira se processa em vários
níveis.
Escolha o seu e deixe que cada um escolha o que seu ouvido e sua vida
mandar (ou pedir, ou exigir). Chô Chuá, cada Macaco no seu galho/
Chô Chuá, Eu não me canso de falar.
Cada um tem a música que precisa. Ou que merece.
Quem pode ter a pretensão (ou a loucura) de dizer o que o povo DEVE ou
TEM que ouvir? Na Alemanha, numa época, tentaram. Não deu certo...
A Música Brasileira é hoje, na sua totalidade, uma das mais fortes
expressões das angústias, sonhos e emoções coletivas de nosso povo.
A inspiração brasileira: da mais simples moda de viola à mais elaborada
harmonia.
Nós aceitamos todas porque negá-las seria negar comunidades inteiras,
com suas necessidades e suas formas de expressão.
Estamos abertos à música que se faz no Brasil. E se faz muita música
no Brasil.
Porque há muita gente no Brasil querendo ouvir música. Gente das
mais diversas sensibilidades, das mais distantes classes sociais, dos mais
defasados níveis de consciência. E nós queremos que sempre haja uma
música enquanto houver alguém disposto a ouvi-la.
A PHONO 73 é a expressão viva de nossa posição e disposição diante
da música que se faz hoje no Brasil Venha de onde vier, seja feita por
quem for, de que forma for.
Canto aberto. Pra todos que quiserem ouvir. Para um país inteiro.
Canto de Um Povo.

A retórica buscava conjugar política e estética desde o título, mas


escancarava essa busca quando aludia à Alemanha durante o governo nazista
– modo pouco sutil de qualificar o autoritarismo da Censura – ou quando
mencionava a existência, no Brasil, de classes sociais as “mais distantes”.

58
Desse ângulo, o “Manifesto” ainda reverberava aquela “relativa hegemonia
cultural da esquerda no país”, dando continuidade, à sua maneira, ao grande
negócio em que se transformara a “produção de esquerda” a partir de 1950. 59
Abrindo o texto, a força da declaração de Gilberto Gil advinha, em parte, de
uma utopia que a tropicália projetara em seus anos de combate (1967-1968).
Muito sinteticamente, utopia que pode ser mais bem compreendida se vista
em duas etapas: de um lado, a afirmação do Brasil enquanto potência cultural,
superior pela grandeza estética da sua identidade; de outro, a afirmação da
identidade brasileira enquanto harmonia da diversidade cultural. A utopia
da tropicália, dizendo ainda muito sinteticamente, nasceu da distância entre
o ideal do liberalismo e a constituição concreta do mercado capitalista. Por
isso mesmo, sempre houve algum grau de engano quando se acreditou que
essa utopia artística coincidisse com a realidade do mercado. A força da
tropicália se baseia na transformação de contradições em simultaneidades.
O que é poético, mas não é a prática capitalista.60
De outro ângulo, o “Manifesto” dos LPs Phono 73 não deixava de ser
irônico. Em 1976, respondendo por que, além dos estudantes, “a alta burguesia”
era “parte do seu público”, Chico Buarque diria: “Não sei muito bem. Ela
aceita e aplaude até as músicas que de certa forma a agridem, porque não se

59. Cf. SCHWARZ, Roberto, “Cultura e política, 1964-1969”. In: SCHWARZ, R. O pai de
família e outros estudos, edição citada, p. 62-67. Para Iná Camargo Costa, “o fenômeno da
mercantilização da luta política” esteve presente desde o show Opinião e o disco homônimo
resultante. Na sua avaliação, a vendagem do LP “revelou aos atentos executivos a existência
de um grande público (para os padrões vigentes), cujo perfil foi esquematizado a partir da
ideia de ‘universitário padrão’, disposto a consumir o samba ‘de raízes’, até então desprezado,
e a MPB, o novo produto. Foi assim que a história da música brasileira veio a conhecer
tanto Clementina de Jesus como Edu Lobo”. Após citar três espetáculos (O samba pede
passagem, Arena conta Bahia e Liberdade, liberdade) e os festivais televisivos, Iná Camargo
Costa retoma a crítica de Walter Benjamin “à tendência literária alemã chamada ‘nova
objetividade’”, crítica apresentada por Benjamin no ensaio “Melancolia de esquerda. A
propósito do novo livro de poemas de Erich Kästner”. Iná Camargo Costa conclui: “Na esteira
dos seus antepassados alemães dos anos 30, durante a ressaca que se seguiu ao golpe de 1964,
nossos jovens artistas de esquerda renovaram a proeza de transformar a luta (passada) em
mercadoria a ser consumida como seu sucedâneo (no presente)”. Cf. COSTA, I. C. A hora
do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra/ Graal, 1996, p. 111-112.
60. Para uma crítica da relação entre a perspectiva política liberal de Caetano Veloso e as
perspectivas políticas requeridas por sua prática musical, com conclusões diversas das que
aqui apresento, ver BROWN, Nicholas, “Brecht eu misturo com Caetano: citação, mercado
e forma musical”, edição citada.

59
sente ameaçada”.61 Já em entrevista veiculada em 2005, Chico recordou tanto
o “nível cotidiano da repressão”, que instaurava um “clima de terror muito
grande”, quanto o apoio popular do chamado milagre econômico brasileiro e
a “euforia incrível” de uma classe média que, “no tempo do Médici”, viajava
para a Argentina, que “ainda era uma democracia”, onde se fartava nas
churrascarias e cantava “aquelas músicas ufanistas, etc. e tal”. Numa síntese
afiada de Chico, algumas dessas famílias de classe média experimentavam
uma “mistureba muito grande”: “dinheiro no bolso” e um familiar que havia
desaparecido.62
Vê-se que a crítica de “Cálice”, em 1973, estava longe de ser compartilhada
pela sociedade civil e, de modo mais específico, pelas classes médias brasileiras
sem que várias tensões estivessem presentes. Duas observações merecem
ser feitas, desdobrando-se o que se examina. Em primeiro lugar, conforme
ponderou Renato Ortiz acerca da questão da Censura, “os interesses globais
dos empresários da cultura e do Estado [eram] os mesmos, mas topicamente
eles [podiam] diferir”. Assim, é preciso refletir sobre a concordância possível
que houve entre “a ideologia da Segurança Nacional [que era] ‘moralista’ e a
dos empresários, [que era] mercadológica”, tendo-se em conta “que a indústria
cultural opera segundo um padrão de despolitização dos conteúdos”.63
Em segundo lugar, de fato o chamado milagre econômico intensificou
as disparidades da “estrutura complexa” de classes sociais no Brasil: um dos
efeitos do milagre foi tornar as “desigualdades entranhadas” de uma “pirâmide
social cheia de distorções” em desigualdades “extremadas”. Porém, entre o
topo e a base, “havia camadas de amortecimento, e a sua existência conferiu
saúde, estabilidade e vigor àquele corpo”. Daniel Aarão Reis Filho observa que
para a estabilidade da ditadura militar contribuíam, no começo da década
de 1970, consideráveis apoios civis “ativos e conscientes”, “a simpatia não

61. Cf. BUARQUE, Chico, “Entrevista: Chico Buarque”. Revista 365, v. 1, n. 2. São Paulo,
ABZ, [1976], p. 301.
62. Idem. Vai passar. Direção Roberto de Oliveira. RWR Comunicações/ DirectTV/ EMI,
336933 9, 2005.
63. Cf. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural.
5ª ed., 3ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 119.

60
entusiasta, a neutralidade benévola, a indiferença ou, no limite, a sensação
de absoluta impotência”, além de “atitudes ambíguas ou ambivalentes”.64
Na verdade, “Manifesto” era claramente um texto publicitário que vendia
o seu peixe. Em frases como “Nós aceitamos todas [as músicas] porque negá-
las seria negar comunidades inteiras, com suas necessidades e suas formas
de expressão. Estamos abertos à música que se faz no Brasil”, escondiam-se
(novamente) as peneiras da gravadora, voltadas fundamentalmente para o
lucro. E em “Canto aberto. Pra todos que quiserem ouvir”, escamoteava-se
quem seriam “todos”: o público consumidor. Na contracapa dos LPs, “O
canto de um povo” celebrava o encontro entre a Companhia Brasileira de
Discos Phonogram, uma divisão da empresa multinacional Philips, e os
seus compradores.

1978, disco Chico Buarque


“Cálice” permaneceu censurada de 1973 a 1978. Durante esse período, tal
como outras canções proibidas, eventualmente era apresentada “em shows
para estudantes” quando se percebia, segundo Chico Buarque, “que mais ou
menos ’tava liberado (...). Tinha sempre muita gente gravando (...), então
apareciam umas fitas-piratas”.65 Uma dessas fitas alcançou certa notoriedade
entre estudantes da USP: a gravação do show de Gilberto Gil organizado pelo
CCA (Conselho de Centros Acadêmicos) da USP e pelo Grêmio Politécnico
em 26 de maio de 1973, no Biênio da Poli, sem pagamento de cachê ao artista
e com entrada gratuita; no show, “Cálice” foi cantada duas vezes.66

64. Cf. REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à
Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 91-92; 83-84, respectivamente. Não
se deve esquecer que o primeiro choque do petróleo, que contribuiu para a derrocada do
chamado milagre econômico brasileiro, se deu em outubro de 1973, portanto, meses após o
Phono 73. Sobre os efeitos da crise mundial do petróleo no mercado fonográfico brasileiro,
ver DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura, edição citada, p. 58-59.
65. Cf. BUARQUE, Chico. Vai passar, edição citada.
66. Cf. COSTA, Caio Túlio. Cale-se, edição citada. Em 1985, quando ingressei como
estudante na USP, fitas-cassete desse show de Gilberto Gil ainda circulavam na Cidade
Universitária. No momento em que escrevo, o show pode ser ouvido no YouTube. Cf. GIL,
Gilberto. “Gilberto Gil ao vivo na USP 1973”. Gravado em: 26 mai. 1973. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=dIwKGsjRqGQ. Acesso em: 23 ago. 2016. Não é o caso
de desenvolver o ponto, mas vale registrar que, para aprofundar o entendimento da obra

61
Liberada pela Censura em 1978, em meio ao processo de distensão lenta,
gradativa e segura conduzido por Ernesto Geisel (presidente de 15/3/1974
a 15/3/1979), a composição de Gil e Chico foi gravada por Chico e Milton
Nascimento, com participação do MPB4 e arranjo e regência de Magro,
para o disco Chico Buarque – “o disco da samambaia”, como é chamado
informalmente por causa da foto na capa.67 Milton cantou as estrofes que
haviam sido compostas por Gil.68 Entre parênteses, é sintomático que
pesquisadores como Adélia Bezerra de Meneses e Gilberto de Carvalho
tenham atribuído a Chico Buarque algumas passagens da letra que, na
realidade, foram compostas por Gilberto Gil:69 “Cálice” permaneceu, até o
momento, vinculada ou à obra de apenas um de seus compositores ou às
obras de Chico e de Milton (ambos seriam referidos por Criolo em 2010).
Em entrevista veiculada naquele ano de 1978, Chico Buarque advertiu
que a liberação de algumas músicas vendia “a ideia e a imagem de uma
abertura democrática entre aspas”; mas essa publicidade, para ele, nem
deveria despertar gratidão, nem deveria ser recebida sem desconfiança,
fosse porque havia “muita coisa pra ser liberada”, fosse porque não se tinha a

de Gil durante a década de 1970, a relação entre o cancionista e a plateia no Biênio da Poli,
recordada como “um bálsamo de cumplicidade” na reportagem jornalística de Caio Túlio
COSTA (cf. Cale-se, edição citada, p. 262), deve ser cotejada com as tensões de outro show
para estudantes na cidade de São Paulo, realizado no colégio Equipe em 1977. Segundo
entrevista de Gilberto Gil naquela época: “Alguns tentaram abrir uma discussão aberta no
meio do show comigo, uma discussão política a fim de exigir de mim posições em relação
ao movimento estudantil, à repressão do sistema, à ineficácia dos planos econômicos do
governo, um bocado de coisas que eu não estava ali para isso. Coisas que eu não me sentia
na obrigação de responder porque eu tinha ido ali cantar, quer dizer, zelar pelo mito da
arte, do exercício dessa arte. Essa é que era a minha função ali e tentei mostrar isso”. No
dia seguinte ao show no Equipe, ainda segundo Gil, a sua tentativa de “levar o público a
cantar as músicas”, numa reprodução de “atmosfera ritualística” – “o dado religioso que
é exatamente uma coisa que eu persigo, que eu gosto, que eu busco” – foi identificado por
alguns jornalistas “como nazismo”. Cf. BAHIANA, Ana Maria. “A paz doméstica de Gilberto
Gil”. In: BAHIANA, A. M. Nada será como antes: MPB nos anos 70 – 30 anos depois. Ed.
revista. Rio de Janeira: Editora Senac Rio, 2006, p. 90-93.
67. Cf. BUARQUE, Chico; NASCIMENTO, Milton, “Cálice”. Autores: Gilberto Gil; C.
Buarque. In: BUARQUE, C. Chico Buarque. Philips/ PolyGram, 6349 398, 1978.
68. Cf. GIL, Gilberto. Gilberto Gil: todas as letras: incluindo letras comentadas pelo
compositor, edição citada, p. 139.
69. Cf. MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque,
edição citada, p. 91-92. Cf. CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque: análise poético-musical.
2ª ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, p. 56-57.

62
garantia de que as coisas não pudessem retornar ao estado anterior.70 No ano
seguinte, “Cálice”, mesmo tendo “a sua mensagem enfraquecida” por estar
“fora de seu tempo” (ou justamente por estar fora de seu tempo e ter a sua
mensagem enfraquecida?), “bateu recordes de execução em estações de rádio
e emissoras de TV em todo o país”. Fato que exemplifica, na observação de
Marcia Tosta Dias, que, “se a interferência da censura foi drástica do ponto
de vista da criação artística, economicamente, a indústria do disco parece
não ter sentido os seus efeitos”.71 Nessa gravação, a forma musical da canção é:
Introdução vocal, A, A, B, B, A, B, B, A, Parte Instrumental, B, B, A, B, B.
A introdução vocal estiliza um canto litúrgico, preparando o ouvinte
para o célebre refrão (parte A), que será entoado duas vezes. A construção
melódica do refrão se baseia na variação da primeira frase. Cantado três
vezes, o verso “Pai, afasta de mim esse cálice” tem a expressão de súplica e
o efeito de sofrimento intensificados pelo modo como se organizam as três
primeiras frases musicais, ou seja, pelo movimento ascendente que altera
as notas iniciais/finais das frases (Sol#; Lá; Si) e as notas do salto de 8ª (Si –
Si; Dó – Dó; Dó# – Dó#). Já a quarta frase, com a qual se entoa “De vinho
tinto de sangue”, de certa maneira se contrapõe às anteriores: sem deixar
de ser uma nova variação da primeira frase, nela o salto passou a ser de 7ª
menor (Si – Lá) e os graus conjuntos conduzem para o repouso na tônica
(Mi), movimento que soa confortável. Assim, a frase musical sugere um
apaziguamento incompatível com a imagem cantada (sinal de via mística
ou marca de oportunidade comercial?). Entretanto o verso é cantado com
amargura por Chico Buarque e, sobretudo, por Milton Nascimento, e a
performance vocal resolve um problema da composição (nas vezes seguintes,
a emissão dessa frase em coro imprimirá indignação ao verso, além de
amargura).

70. Cf. BUARQUE, Chico. Vai passar, edição citada.


71. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura, edição citada, p. 62.

63
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Figura 1 – Parte A de “Cálice” (Gilberto Gil/ Chico Buarque), com saltos
de 8ª e 7ª menor e com as notas iniciais/finais das frases em destaque.

Com isso, os 57 segundos iniciais do fonograma instalam o sofrimento,


a súplica e a monotonia da prece. Esse caráter atravessará toda a canção. A
monotonia será confirmada pela estrutura da parte B, formada por quatro
frases melódicas bastante semelhantes entre si: a segunda, a terceira e a
quarta são variações da primeira frase72 (como se percebe, o mesmo recurso
de composição utilizado na melodia da parte A).

Figura 2 – Parte B de “Cálice” (Gilberto Gil/ Chico Buarque), com as


quatro frases melódicas em destaque.

72. Não custa ressaltar que a transposição um tom abaixo da primeira frase melódica gera a
terceira frase, havendo, contudo, a adaptação de duas notas (cantam-se Lá e Dó# em lugar
de Si e Ré#, notas que manteriam os mesmos intervalos da primeira frase).

64
Com base nessa construção melódica, a letra da parte B se organizará
em quadras com versos decassílabos.73 Todavia nem os contornos melódicos
nem o metro fixo determinaram aos compositores apenas uma cadência
(entendendo-se por “cadência” o ritmo do verso que resulta da alternância
de sílabas tônicas e átonas). Nesse sentido, e talvez nem fosse preciso dizer,
a partitura acima segue a regra da escrita da canção popular: resulta de
uma simplificação rítmica da melodia. Na prática, Milton Nascimento e
Chico Buarque entoam as frases melódicas de acordo com a acentuação
que os versos teriam se declamados (exceção feita a alguns poucos casos),
seja porque algumas notas são atacadas com maior intensidade, seja porque
algumas notas aumentam de duração.
Tomando por base o estudo de M. Cavalcanti Proença74 sobre as
possibilidades de segmentação rítmica dos versos decassílabos, temos as
seguintes acentuações na gravação de “Cálice” (os algarismos indicam as
sílabas; nos limites desta análise, não é preciso distinguir entre acentos
principais e secundários, salvo observações pontuais nas notas de rodapé):
[Milton Nascimento]
Como beber dessa bebida amarga (4-8-10)
Tragar a dor, engolir a labuta (4-7-10)75
Mesmo calada a boca, resta o peito (4-6-8-10)
Silêncio na cidade não se escuta (2-4-6-8-10)76

73. Ao comentar “Cálice”, Gilberto Gil disse que as estrofes da letra são quatro, duas
compostas por ele (a primeira e a terceira), duas por Chico Buarque (a segunda e a quarta);
cada estrofe, assim, seria formada por oito versos decassílabos. Cf. GIL, G. Gilberto Gil:
todas as letras: incluindo letras comentadas pelo compositor, edição citada, p. 139. Não é o
que a análise da canção confirma, seja pela estrutura musical da parte B, seja pela disposição
das rimas, seja porque as quadras não apresentam encadeamento linear entre si. Sobre o
último ponto, Gilberto Gil afirma o mesmo sobre as estrofes “em oito decassílabos”. Mas
experimente-se alterar a ordem das quadras (mantendo-se apenas a última quadra que se
canta originalmente no seu lugar; e cuidando-se para que não se perca a sequência “Mesmo
calada a boca, resta o peito”, “Mesmo calado o peito, resta a cuca”) e veja-se como a letra
não sairá prejudicada.
74. Cf. PROENÇA, M. Cavalcanti. Ritmo e poesia, Rio de Janeiro: Organização Simões, 1955.
75. Em “Como beber dessa bebida amarga/ Tragar a dor, engolir a labuta”, Milton Nascimento
prolonga a última vogal dos versos (“amarga” e “labuta”). Não considero, todavia, que o
recurso, utilizado ostensivamente para exprimir sofrimento, prejudique a prosódia. Fato
semelhante ocorrerá em “Outra realidade menos morta”.
76. Se declamado, o verso seria um decassílabo heroico, com cesura na 6ª sílaba: “Silêncio
na cidade não se escuta”. Porém, o canto de Milton Nascimento sugere o decassílabo sáfico
com a divisão 4-8: “Silêncio na cidade não se escuta”. Fato semelhante ocorrerá em “Outra

65
De que me vale ser filho da santa (4-6-7-10)
Melhor seria ser filho da outra (4-6-7-10)77
Outra realidade menos morta (1-4-8-10)
Tanta mentira, tanta força bruta (1-4-6-8-10)78

(Refrão)

[Chico Buarque]
Como é difícil acordar calado (4-8-10)
Se na calada da noite eu me dano (4-7-10)
Quero lançar um grito desumano (4-6-10)
Que é uma maneira de ser escutado (4-7-10)

Esse silêncio todo me atordoa (4-6-10)


Atordoado eu permaneço atento (4-8-10)
Na arquibancada pra a qualquer momento (4-8-10)
Ver emergir o monstro da lagoa (4-6-8-10)

(Refrão; Parte Instrumental)

[Milton Nascimento]
De muito gorda a porca já não anda (4-6-8-10) [Coro] Cale-se!
De muito usada a faca já não corta (4-6-8-10)
Como é difícil, Pai, abrir a porta (4-6-10) [Coro] Pai! Cale-se!
Essa palavra presa na garganta (4-6-10)

realidade menos morta”, cantado por Milton Nascimento com a acentuação “Outra realidade
menos morta” (1-4-8-10). E também em “Ver emergir o monstro da lagoa” (4-6-8-10): Chico
Buarque acentuará da (tornado acento principal) com maior intensidade do que monstro
(tornado acento secundário), sugerindo a divisão 4-8-10, característica do decassílabo sáfico.
77. Nos versos “De que me vale ser filho da santa/ Melhor seria ser filho da outra”, a colisão
de “duas sílabas fortes de vocábulos diferentes” determina que a declamação atenue “a
intensidade da primeira” sílaba, isto é, que a palavra ser tenha “valor de sílaba fraca”. Cf.
PROENÇA, M. Cavalcanti. Ritmo e poesia, edição citada, p. 28. Milton Nascimento, todavia,
canta prolongando a palavra ser. O resultado é que os dois versos são cantados como versos
duros, isto é, como versos em que colidem duas sílabas tônicas. Adiante na canção, os versos
“Quero inventar o meu próprio pecado (4-7-10)”, “Quero morrer do meu próprio veneno
(4-7-10)”, “Quero perder de vez tua cabeça (4-6-8-10)”, todos cantados por Chico Buarque,
também poderiam ser entoados como versos duros, o que não ocorre.
78. A sílaba for(ça) parece soar com maior intensidade do que a sílaba bru(ta), o que contraria
uma regra básica de acentuação dos versos.

66
Esse pileque homérico no mundo (4-6-10)
De que adianta ter boa vontade (4-6-10)
Mesmo calado o peito, resta a cuca (4-6-8-10)
Dos bêbados do centro da cidade (2-6-10)

(Refrão)

[Chico Buarque]
Talvez o mundo não seja pequeno (4-7-10) [Coro] Cale-se!
Nem seja a vida um fato consumado (4-6-10) [Coro] Cale-se, cale-se!
Quero inventar o meu próprio pecado (4-7-10) [Coro] Cale-se, cale-
se, cale-se!
Quero morrer do meu próprio veneno (4-7-10) [Coro] Pai! Cale-se,
cale-se, cale-se!

Quero perder de vez tua cabeça (4-6-8-10) [Coro] Cale-se!


Minha cabeça perder teu juízo (4-8-10)79 [Coro] Cale-se!
Quero cheirar fumaça de óleo diesel (4-6-8-10) [Coro] Cale-se!
Me embriagar até que alguém me esqueça (4-6-8-10) [Coro] Cale-se!

Dizendo de outro modo e ampliando o que se diz: Milton e Chico cantam


declamando os versos e não só respeitam a prosódia como valorizam as
imagens desconcertantes da letra,80 expressando, assim, emoções e críticas
sobre a tortura física e a tortura espiritual aplicadas pelos aparelhos repressivos
do Estado, bem como sobre o castigo espiritual infligido pelo arbítrio da
Censura Federal. Deve-se ter em conta, conforme aponta Daniel Aarão Reis
Filho, a função do “trabalho sujo e degradante da tortura” na sustentação
do regime autoritário:
Nas pesquisas realizadas sobre os aparelhos de repressão, está mais do
que demonstrada a ligação direta – e a simbiose – entre os “órgãos”

79. Se declamado, “Minha cabeça perder teu juízo” seria um verso provençal, com
segmentação “Minha cabeça perder teu juízo” (4-7-10). Já “Quero cheirar fumaça de óleo
diesel (4-6-8-10), se declamado, seria um decassílabo heroico, com cesura na 6ª sílaba. Nos
dois casos, Chico Buarque entoa os versos como decassílabos sáficos.
80. Como está amplamente referido ou estudado em mais de um trabalho, a utilização de
imagens poéticas foi uma das estratégias utilizadas por diversos cancionistas para tentar
driblar a Censura durante a década de 1970.

67
de informação e os ministros de Estado, em contato direto com a
Presidência da República. Carecem de sentido, e de evidências, as
suposições de que os aparelhos de segurança funcionassem de modo
autônomo, sem controle ou respeito pela linha de comando. É nesse
preciso sentido que se pode falar da tortura como “política de Estado”.81

Finalizando a análise, vejamos outros recursos por que “Cálice” exprime


afetos e pensamentos. Ao longo da canção, o andamento desacelerado
contribuirá para o efeito de prece lamentosa e monótona construído não só
pela letra em si mas, sobretudo, pelo modo como a letra é cantada no refrão
(entoado cinco vezes) e na parte B (executada oito vezes). Esses recursos
condensam, de forma mais intensa, a experiência histórica de sofrimento
causado por uma situação de censura e de tortura, situação aparentemente sem
saída cujo limite aponta para a morte – ou para o assassinato – dos sujeitos
da canção. Daí soarem perfeitamente verossímeis, no todo de “Cálice/Cale-
se”,82 a identificação com a paixão de Cristo e a súplica ao Pai, concorde-se
ou não com o apelo à dimensão religiosa.
De outro lado, conforme se argumentou, a variação nas acentuações
dos versos decassílabos condensa a experiência histórica de revolta e de

81. Cf. REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à
Constituição de 1988, edição citada, p. 102.
82. Embora a fórmula “Cálice/Cale-se” decorra da própria composição, que ostensivamente
utiliza a paronomásia, é preciso dizer que, salvo desconhecimento meu, Adélia Bezerra de
MENESES (cf. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque, edição citada, p. 91) foi
quem primeiro sintetizou desse modo o tema de “Cálice” (o trabalho foi apresentado em 1981
como tese de doutoramento em Teoria Literária e Literatura Comparada à FFLCH-USP).
No entanto, para Meneses, essa síntese é o primeiro nível de leitura, “uma decodificação
político-social do poema [que] se impõe, e é cristalina: trata-se do silêncio imposto, da
Censura do governo Médici (o poema é de 1973) que silencia a voz do poeta. Mas não apenas
ela: o arbítrio da repressão silencia – no limite, com o silêncio definitivo da morte – todos
aqueles que ousassem falar” (cf. p. 92). A seguir, notando “algumas imagens desnorteadoras,
que resistem a uma interpretação histórica”, Meneses propõe uma decodificação do “nível
mítico” do texto (cf. p. 93-98). E, no meu entendimento, o seu trabalho se enfraquece
bastante. A princípio, nada tenho contra interpretações de cunho religioso. Mas é estranho
que Meneses não tenha percebido que os versos “cálice/ de vinho tinto de sangue”, “morrer
do próprio veneno”, “inventar o próprio pecado”, “esse pileque homérico no mundo” (cf.
p. 93) apresentam imagens mais ou menos cristalinas de uma situação histórica em que
os torturadores fazem os torturados sangrarem, em que a resistência impõe a criação de
políticas que serão silenciadas, no limite, com o assassinato dos que resistem, e em que boa
parte da sociedade brasileira, como se estivesse embriagada, ou é simpática ou é neutra ou
é indiferente ou é ambígua ou é ambivalente ou se sente impotente para reagir a tudo isso.

68
crítica dos sujeitos da canção. Trata-se de um recurso sutil, coerente com a
resistência política abafada. Junto dele, outros recursos quebrarão a monotonia
e sintetizarão a crítica e a revolta de maneira mais evidente: as imagens da
letra; o encadeamento não linear das estrofes; o esquema de rimas; o canto
dividido por dois intérpretes; a gravação de voz dobrada na última estrofe
(por Chico Buarque); a atuação do coro na parte A (na parte B, salvo um
único “Pai!”, o coro encarnará o arbítrio da repressão); o arranjo instrumental.

2010, Criolo Doido – Cálice


Um improviso em meio a uma situação cotidiana, encenado de forma
simples e eficiente: num dia qualquer, enquanto escolhe o que comer, o
que beber, o que consumir, Criolo entoa a capella (sem acompanhamento
instrumental) versos “explicitando a herança da ditadura na insegurança
das ruas e na manutenção das desigualdades, atualizando uma canção
emblemática do protesto contra o regime militar”.83 Junto da performance
do rapper, outros elementos constroem a verossimilhança. Há o tempo do
vídeo (1:26) e, obviamente, há a locação. Mas também há os movimentos de
câmera, que se limitam a nos aproximar um pouco mais, um pouco menos
do rosto de Criolo, a girar lentamente para a direita ou para a esquerda:
mostrando Criolo Doido do peito para cima (ou seja, em primeiro plano),
o enquadramento nos apresenta a lanchonete por metonímia, reforçando o
caráter circunstancial do lugar e da situação. De fato, o balcão é percebido sem
que seja mostrado. Vê-se mais a aba do boné do que o perfil do funcionário
que serve o rapper, funcionário para quem alguns versos são dirigidos. E
vê-se a aba do boné muito rapidamente, de tal modo que adivinhar a palavra
“Lanchonete”, acima do que parece ser o desenho de um x-salada, é tarefa
para quem pausa o vídeo em 1:03 e afia os olhos.
Ao ignorar o rapper, a atuação desse funcionário também contribui
para a aparência de improviso. É como se assistíssemos a imagens captadas
em um celular. Imagens casuais, afins com versos improvisados, afins com a

83. Cf. VILLAÇA, Túlio. “A melodia do rap – Criolo”. Publicado em: 24 mai. 2014. Disponível
em: http://tuliovillaca.wordpress.com/2014/05/24/a-melodia-do-rap-criolo/. Acesso em: 15
jun. 2014.

69
veiculação no YouTube.84 E os ruídos do trânsito, que escutamos e que sabemos
de onde principalmente vêm, pois enxergamos a porta do estabelecimento
aberta para a rua, os ruídos do trânsito também contribuem para o efeito
de improvisação.
O vídeo Criolo Doido – Cálice, difundido no YouTube a partir de
setembro de 2010, condensa alguns dados da formação poética e musical
do rapper. E parte da força do vídeo decorre dessa condensação, pois se
recriam e se potencializam experiências não só de Kleber Cavalcante Gomes
(Criolo), mas de um grande número de jovens que habitam nas periferias
das grandes cidades brasileiras: a) no âmbito da cultura Hip Hop, as batalhas
de freestyle, eventos em que MCs duelam improvisando versos;85 b) ainda
no âmbito do Hip Hop, a “ideia da veracidade, do seja você mesmo”;86 tal
ideia leva à expressão musicada da dor,87 bem como do pensamento sobre

84. Quem me chamou a atenção para a afinidade entre o vídeo aparentemente improvisado
de Criolo e a aparente casualidade de muitos e muitos vídeos difundidos no YouTube foi
Renato Gonçalves Ferreira Filho.
85. Em 2006, ano em que lançou o seu primeiro CD, Ainda há tempo, Criolo fundou, ao
lado do DJ DanDan, a Rinha dos MC’s. Sobre o assunto, ver RINHA dos MC’s. Disponível
em: http://rinhadosmcs.com.br. Acesso em: 15 jun. 2014. Sobre freestyle, modalidade de
improviso entre rappers, ver TEPERMAN, Ricardo Indig. Tem que ter suingue: batalhas
de freestyle no metrô Santa Cruz. São Paulo, USP/ FFLCH, 2011. Dissertação de mestrado
em Antropologia Social.
86. A observação é de GOG quando, em entrevista, respondeu sobre os vínculos que a poesia
do rap brasileiro mantém com a história pessoal e o comportamento dos rappers. A fim de que
se compreenda melhor a citação, transcrevo outras passagens: “O rap te dá a oportunidade
de falar em primeira pessoa, você se assume ali, é como se você se personificasse, como se
você realmente pudesse ser você, com autoridade de ser você, em cima do palco, com as
pessoas te ouvindo. É nesse momento que você vai exercer o seu direito de falar: olha, é
isso, isso, isso, acredito nisso, não acredito naquilo. E é nesse momento também que você
tem que ter a estrutura para falar, mesmo diante de todo o seu problema, o que realmente
causou aquilo. (...) Embora periferia seja periferia em qualquer lugar, as experiências, por
mais parecidas, não são as mesmas. (...) É isso que o Hip Hop tem como contribuição: essa
primeira pessoa tanto no discurso como no sofrimento, na passagem realmente por aquilo
ali. (...) Não precisa você vestir um personagem, ser ele duas horas do show e passar as outras
22 horas se escondendo daquele personagem”. Cf. GOG (Genival Oliveira Gonçalves), “O
Hip Hop brasileiro assume a paternidade”. Entrevista concedida a Spensy Pimentel. Cultura
e pensamento, n. 3. Salvador, Fapex/ Brasília, Ministério da Cultura, dez. 2007, p. 118-119
e 121. Saliente-se que GOG não afirmou que um rapper não se trata de um personagem,
mas sim que se trata de um personagem que reconta as experiências do sujeito e que reflete
sobre elas. Daí “a ideia da veracidade, do seja você mesmo” (cf. p. 119).
87. Cf. CRIOLO, “Criolo: hora da prova”. Entrevista concedida a Bruno Torturra Nogueira.
Publicado em: 23 set. 2011. Disponível em: http://revistatrip.uol.com.br/revista/203/paginas-
negras/criolo.html. Acesso em: 23 ago. 2016.

70
“a sua realidade em sua cidade”, tendo o rapper vivido, desde cedo, “em um
ambiente extremamente hostil, no extremo sul da Zona Sul de São Paulo”;88
c) a recitação de poemas e de letras de canções nos saraus literários, eventos
que têm como marco inicial os encontros da Cooperifa, desde outubro de
2001, e que, aumentando de número “em todas as regiões de São Paulo” e
publicando coletâneas, se constituem num amplo espaço de desenvolvimento
e de consolidação da Literatura Periférica a partir de 2005;89 d) a MPB que,
desde criança, Kleber ouviu cantarolada por “seus pais e vizinhos”.90
Já se notou que Criolo “canta outra letra, sobre a mesma melodia, sem
respeitar muito a métrica”.91 Vejamos como o rapper trabalha com liberdade
sobre a base de Gil, Chico e Milton. A forma musical da improvisação é:
B, B, B, B, A, A. Entoado a capella, o canto não se orienta pela métrica do
compasso quaternário: as frases musicais se orientam por rítmica discursiva.
E os versos da parte B não possuem todos o mesmo metro, embora se perceba
que a variedade não seja muito ampla: cinco versos são decassílabos; seis
versos têm 11 sílabas; e cinco versos têm entre 12 e 15 sílabas. Esses recursos
indicam que a transposição direta da realidade se dá mais pelo pensamento
do que pela musicalidade. Mas podemos afirmar o contrário, que a recriação
do cotidiano se dá mais pela musicalidade do que pelo pensamento, em
virtude das ostensivas repetições de palavras: ao final dos dois primeiros
versos (epífora); ao início de todos os versos da terceira estrofe (anáfora);
na estrutura dos dois primeiros versos da quarta estrofe (encadeamento). E
a estrutura do refrão é marcada pela reiteração. Em síntese, pensamento e
musicalidade se equilibram na recriação e na crítica da realidade cotidiana.

88. Idem, “O pensar musicado de Criolo”. Entrevista concedida a Marcus Preto. Cult, ano
16, n. 183. São Paulo, Editora Bregantini, set. 2013, p. 10-11.
89. Cf. LEITE, Antonio Eleilson, “Marcos fundamentais da Literatura Periférica em São
Paulo”. Revista de Estudos Culturais, n. 1. São Paulo, EACH-USP, jun. 2014. Sem paginação.
Disponível em: http://www.each.usp.br/revistaec/?q=revista/1/marcos-fundamentais-da-
literatura-perif%C3%A9rica-em-s%C3%A3o-paulo. Acesso em: 23 ago. 2016.
90. Cf. NISHIMURA, Danielle, “Criado no Grajaú, MC Criolo ganha o mundo e arrasta
multidões em seus shows”. CompanySul, n. 59. São Paulo, AESUL (Associação Empresarial
da Região Sul), out. 2013, p. 21.
91. Cf. BRAZIL, Daniel, “O cálice do Criolo Doido”. Publicado em: 21 jul. 2011. Disponível
em: http://www.revistamusicabrasileira.com.br/artigo/o-calice-do-criolo-doido. Acesso
em: 15 jun. 2014.

71
As estrofes de Criolo desembocam no refrão, o que significa dizer que
o relato e a crítica desembocam na prece. No vídeo, o olhar de Criolo se
dirige ao alto quando o refrão é repetido, reforçando o efeito. Mas o refrão
do rapper não só sintetiza o sofrimento como também prolonga o relato e
a crítica de uma situação sócio-histórica – note-se que o refrão de Gilberto
Gil e de Chico Buarque, o qual fundamentalmente estilizava uma prece,
também relatava e criticava a situação de censura (“cale-se”) e de tortura
(“De vinho tinto de sangue”). Na primeira estrofe e no refrão de Criolo,
são empregadas gírias, e assim a crônica se forma com a linguagem oral
dos lugares e dos confrontos narrados: fritar, consumir crack; brisa, efeito
provocado pelo consumo de entorpecentes; biqueira, local onde há comércio
de drogas ilícitas; biate, adaptação do inglês bitch.92
Como ir pro trabalho sem levar um tiro
Voltar pra casa sem levar um tiro
Se às três da matina tem alguém que frita
E é capaz de tudo pra manter sua brisa

Co/mo ir/ pro/ tra/ba/lho/ sem/ le/var/ um/ ti/ro (11 sílabas)
Vol/tar/ pra/ ca/sa/ sem/ le/var/ um/ ti/ro (10 sílabas)

92. Agradeço a Antonio Eleilson Leite e a Guilherme Botelho as conversas informais, por
e-mail, sobre o vídeo Criolo Doido – Cálice. Ambos me auxiliaram no entendimento das
gírias e, portanto, o mérito do acerto é deles, sendo exclusivamente minha a responsabilidade
por qualquer equívoco. Sobre biate, Guilherme Botelho escreveu em 4/6/2014: “Os cantores
de rap estadunidenses já utilizavam biate na gíria do inglês falado pelos niggaz. Dr. Dre,
por exemplo, tem uma música que começa com a palavra, ‘Let me ride’; ver http://www.
youtube.com/watch?v=RgWDzLIF654. Muitos MCs de São Paulo utilizaram o termo, tanto
na forma da gíria americana, como o Criolo, quanto na forma ‘tradicional’, bitch. Em 1992,
saiu uma coletânea chamada Vozes de Rua. Um dos grupos participantes era o Doctors
MC’s, e a música se chamava ‘Garota Sem Vergonha (Bitch)’; ver http://www.youtube.
com/watch?v=Q_F-PfopiSo”. Antonio Eleilson Leite, em 5/6/2014, escreveu-me depois de
conversar com Criolo. Disse-me que Criolo afirmara que o gesto que faz no vídeo, entre
a segunda e a terceira estrofe, não é para pedir nem café, nem cachaça, mas para pedir
“misericórdia”. Eleilson Leite ainda acrescentou: “Lembro-me bem quando esse vídeo foi
gravado; assisti em primeira mão. Criolo gravou no Rio de Janeiro em setembro de 2010.
Ele estava lá integrando a comitiva de artistas periféricos de São Paulo no Encontro da
Diversidade Cultural, promovido pelo MinC. Eu mesmo fui o responsável por organizar
essa comitiva para o ministério e o inclui num grupo de 25 artistas. Alguns dias depois de
seu retorno [a São Paulo], Criolo me chamou aqui no terceiro andar da nossa sede [da Ação
Educativa], onde ficava o Centro de Mídia Juvenil. Ele era usuário dos computadores ali
disponíveis. Mostrou-me entusiasmado a versão que fez para a canção do Chico e do Gil.
Até onde eu sei, não foi uma gravação de celular, não”.

72
Se às/ três/ da/ ma/ti/na/ tem/ al/guém/ que/ fri/ta (11 sílabas)
E é/ ca/paz/ de/ tu/do/ pra/ man/ter/ sua/ bri/sa (11 sílabas)

Os saraus tiveram que invadir os botecos


Pois biblioteca não era lugar de poesia
Biblioteca tinha que ter silêncio
E uma gente que se acha assim muito sabida

Os/ sa/raus/ ti/ve/ram/ que in/va/di’ os/ bo/te/cos (11 sílabas)


Pois/ bi/blio/te/ca/ não/ e/ra/ lu/gar/ de/ po/e/sia (14 sílabas)
Bi/blio/te/ca/ ti/nha/ que/ ter/ si/lên/cio (10 sílabas)
E u/ma/ gen/te/ que/ se/ a/cha a/ssim/ mui/to/ sa/bi/da (13 sílabas)

Há preconceito com o nordestino


Há preconceito com o homem negro
Há preconceito com o analfabeto
Mas não há preconceito se um dos três for rico, Pai

Há/ pre/con/cei/to/ com/ o/ nor/des/ti/no (10 sílabas)


Há/ pre/con/cei/to/ com/ o/ ho/mem/ ne/gro (10 sílabas)
Há/ pre/con/cei/to/ com/ o a/nal/fa/be/to (10 sílabas)
Mas/ não/ há/ pre/con/cei/to/ se um/ dos/ três/ for/ ri/co,/ Pai/ (13 sílabas)

A ditadura segue, meu amigo Milton


A repressão segue, meu amigo Chico
Me chamam Criolo, o meu berço é o rap
Mas não existe fronteira pra minha poesia, Pai

A/ di/ta/du/ra/ se/gue,/ meu/ a/mi/go/ Mil/ton (12 sílabas)


A/ re/pre/ssão/ se/gue,/ meu/ a/mi/go/ Chi/co (11 sílabas)
Me/ cha/mam/ Cri/o/lo,/ o/ meu/ ber/ço é o/ rap/ (11 sílabas)
Mas/ não/ e/xis/te/ fron/tei/ra/ pra/ mi’a/ po/e/si/a/, Pai/ (15 sílabas)

Afasta de mim a biqueira, Pai


Afasta de mim as biate, Pai
Afasta de mim a cocaine, Pai

73
Pois na quebrada escorre sangue, Pai

A/fas/ta/ de/ mim/ a/ bi/quei/ra,/ Pai/ (10 sílabas)


A/fas/ta/ de/ mim/ as/ bi/a/te,/ Pai/ (10 sílabas)
A/fas/ta/ de/ mim/ a/ co/cai/ne,/ Pai/ (10 sílabas)
Pois/ na/ que/bra/da/ es/co/rre/ san/gue,/ Pai/ (11 sílabas)

Pai
Afasta de mim a biqueira, Pai
Afasta de mim as biate, Pai
Afasta de mim a cocaine, Pai
Pois na quebrada escorre sangue

A barbárie da violência retratada na primeira estrofe é contraposta, na


segunda estrofe, ao esforço civilizatório (a expressão é de Maria Rita Kehl,
referindo-se ao trabalho do Racionais MC’s)93 dos saraus literários. Esforço
civilizatório ao qual a cultura e a educação institucionalizadas respondem
com a tentativa de impor o silêncio. Ampliando o quadro de exclusão,
enumeram-se mais três alvos de preconceito e, com ironia, observa-se que
nenhum deles é atingido caso esteja posicionado, por quais meios não se
diz (o que é bastante significativo), no topo da pirâmide econômica. Na
quarta estrofe, quando se dirige a Milton e a Chico, Criolo retoma tanto o
título de outra canção de Chico Buarque, “Meu caro amigo” (em parceria
com Francis Hime), quanto o título do seu LP de 1976, Meus caros amigos.94
Retoma, portanto, outra canção cuja letra aborda a censura e a repressão
na década de 1970.
Criolo não se dirige aos dois artistas da chamada MPB nem com
adulação, nem com menosprezo. Nem há propriamente confronto, mas há
um aviso, quase uma chamada, pois se entende que a obra atual de Milton
e a obra atual de Chico não falam do autoritarismo que prossegue. De fato,
o poder de crítica da chamada MPB se enfraqueceu de tal modo, desde a

93. Cf. KEHL, Maria Rita, “A frátria órfã: o esforço civilizatório do rap na periferia de São
Paulo”. In: KEHL, M. R. (org.). Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000,
p. 209-244.
94. Cf. BUARQUE, Chico, “Meu caro amigo”. Autores: Francis Hime; C. Buarque. In:
BUARQUE, C. Meus caros amigos, edição citada.

74
década de 1980, que hoje parece que a sigla não tem nada a dizer sobre as
várias formas de violência que atravessam a sociedade brasileira.

2011, show de Chico Buarque


Entretanto, Criolo Doido – Cálice não deixa de assinalar um momento em
que o rap legitimou a MPB como matéria-prima das culturas das periferias.
Nessa perspectiva, o vídeo não deixa se ser uma homenagem de Criolo a
Milton e a Chico. Foi a isso que Chico Buarque respondeu com “Rap de
Cálice”, composição que incluiu na sua turnê de 2011 e no DVD que dela
resultou.95
Gosto de ouvir o rap, o rap da rapaziada
Um dia vi uma parada assim no YouTube
E disse: “Que os pariu, parece o ‘Cálice’
Aquela cantiga antiga minha e do Gil”
Era como se o camarada me dissesse:
“Bem-vindo ao clube, Chicão, bem-vindo ao clube”
Valeu, Criolo Doido, evoé, jovem artista
Palmas pro refrão doído do rapper paulista

Pai, afasta de mim a biqueira


Pai, afasta de mim as biate
Afasta de mim a cocaine
Pois na quebrada escorre sangue

Pai, afasta de mim esse cálice


Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Interessante que “o rap da rapaziada” seja referido a um clube, ou seja, a


uma associação que não está aberta a qualquer um. Como se sabe, candidatos

95. Idem, “Rap de Cálice”. Autor: Chico Buarque. In: BUARQUE, C. Na carreira. Biscoito
Fino, BF 173-3, 2012. Mais de uma gravação informal da apresentação de “Rap de Cálice”,
desde 2011, foi veiculada no YouTube. No momento em que escrevo, permanecem disponíveis
para quem tem acesso à internet.

75
a frequentar um clube devem ser aceitos por seus sócios. Trata-se de uma
situação nova para um dos principais artistas da chamada MPB, Música
Popular Brasileira: Chico Buarque reconhece que precisou ser aceito em um
lugar social que não é o dele, um lugar social onde se produz canções com
alta elaboração estética. Por outro lado, jogando no seu próprio campo, Chico
elegantemente retribui a homenagem, cita a sua composição “Paratodos”
96
e legitima Criolo. Assim, a resposta de Chico Buarque constrói uma via
de mão dupla.
É certo que a MPB vem caindo de cotação, o que não significa que tenha
deixado de ser o principal selo de qualidade da canção popular brasileira.
Não custa lembrar que, nos anos 2000, os novos CDs de Chico Buarque e
os DVDs com registros de suas turnês passaram a ser lançados pela Biscoito
Fino, não por uma das gigantes transnacionais (no momento em que escrevo,
Sony Music Entertainment, Universal Music, Warner Music). Tenha sido ou
não uma opção de Chico, de modo geral “as transformações nas condições
técnicas da produção têm favorecido a participação de pequenas gravadoras
e selos independentes (indies), a ponto de atraírem atualmente – como se
verifica no caso brasileiro – artistas que preferem trocar o conforto contratual
das majors pela possibilidade de realizar trabalhos menos comprometidos
com a lógica do mercado”.97 Sobre essa lógica, o mínimo que se pode dizer é
que hoje o mercado fonográfico hegemônico não esconde de ninguém que
os seus objetivos se voltam fundamentalmente para o lucro. Escancaram-se a
repetição sem limites de mais do mesmo98 e o bombardeio de vermes sonoros.
Tal como em outros ramos do negócio do entretenimento, as peneiras de
cantores e cantoras se tornaram espetáculos glamorosos, justificados pela
distribuição de prêmios e de humilhações, levando a outro patamar o velho
show de calouros. E, se as pequenas gravadoras investem no marketing dirigido

96. Cf. BUARQUE, Chico, “Paratodos”. Autor: C. Buarque. In: BUARQUE, C. Paratodos.
BMG Ariola/ RCA, V120.046, 1993.
97. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura, edição citada, p. 185-186.
98. Marcia Tosta Dias anotou esses “títulos sugestivos, se não irônicos”, de duas séries de
coletâneas lançadas por majors: Sem limites (Universal Music) e Mais do mesmo (EMI). Cf.
DIAS, M. T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura,
edição citada, p. 186.

76
e em ações localizadas, as operações de marketing das grandes empresas de
música gravada ainda “envolvem uma rede de parceiros e interesses que
garantem exposição em espaços privilegiados da grande mídia (programas
de rádio e de TV, novelas, publicidade etc.)”.99 Na soma de tudo isso, ainda
vale muito ser aceito no clube da MPB, sobretudo quando se é apresentado
por Chico Buarque.
O que “Rap de Cálice” deixa de lado, porém, é a crônica da ditadura
e da repressão atuais. A isso ou, em outras palavras, ao tema de Criolo
Doido – Cálice, a composição de Chico não responde.100 No show da MPB,

99. Ibidem, p. 186 e 192.


100. Stive Vicente Ferreira e Giovanni Santa Rosa, então estudantes de graduação da USP,
chamaram-me a atenção para essa diferença fundamental entre Criolo Doido – Cálice
e “Rap de Cálice” em trabalhos de aproveitamento produzidos no 2º semestre de 2014:
“Chico nos apresenta a crônica de um cotidiano, o seu cotidiano, em oposição à crônica de
Criolo, que nos fala de um cotidiano coletivo, pois há toda uma comunidade representada
na fala do cantor. No cotidiano de Chico, não há a presença de críticas sociais, pois, mesmo
quando se apropria do refrão modificado por Criolo, há uma diminuição da carga semântica
dos versos, neutralizando a contundência da mensagem” (Stive Vicente Ferreira); “Chico
Buarque apenas faz uma apresentação da homenagem a Criolo, canta a versão do rapper
para o refrão e depois os versos originais; ele não faz outros versos que tratem da violência
abordada por Criolo em sua versão” (Giovanni Santa Rosa). Para duas outras críticas de
impasses da obra recente de Chico Buarque, ver: SILVA, Paulo da Costa e, “Chico e os olhos
do carrasco: de Paratodos a Parapoucos”. Publicado em: 14 jun. 2012. Disponível em: http://
www.blogdoims.com.br/ims/chico-e-os-olhos-do-carrasco-de-paratodos-a-parapoucos-
por-paulo-da-costa-e-silva/. Acesso em: 23 ago. 2016; LEITE, Carlos Augusto Bonifácio,
“Sobre o peso de si e maestrias: uma análise de parte da cena atual da canção popular
brasileira”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 59. São Paulo, IEB-USP, dez. 2014,
p. 213-228. Disponível em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i59p213-228. Acesso
em: 28 jul. 2016. Poderia se considerar que “Rap de Cálice” é mais um capítulo de O fim
da canção. No meu entendimento, contudo, já se gastou mais tempo do que o necessário
nesse debate, o que se comprova por sua transformação em slogan com bom apelo comercial
junto a pessoas educadas (“uma categoria social, mais do que um elogio”, como já disse
Roberto SCHWARZ; cf. “Nacional por subtração”. In: SCHWARZ, R. Que horas são?:
ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 38-39). Exemplo em contrário foi dado
pelo Coletivo MPB que, com bastante lucidez, conduziu a crítica de O fim da canção para
a observação de aspectos fundamentais da cultura no Brasil; vale a pena destacar dois
deles: a) o “caráter político [do] encontro entre a lógica própria da indústria cultural e uma
geração de músicos e compositores comprometida não apenas com a renovação da MPB,
mas também, em boa parte, com a própria transformação do país” na década de 1960;
b) o fato de que “o público militante dos festivais de TV dos anos 1960 foi criado antes
dos festivais, foi criado pelos musicais e shows estudantis”; a observação desses aspectos
deu suporte a uma pergunta essencial: “que forma de organização coletiva poderia hoje
desempenhar um papel semelhante ao que tiveram os musicais estudantis da década de
1960?”. Cf. COLETIVO MPB (José Roberto Zan; Marcos Nobre; Henry Burnett; Rúrion
Soares Melo), “Chega de saudade”, edição citada.

77
os versos de Criolo nem sintetizam sofrimento nem relatam ou criticam o
cotidiano das periferias urbanas: os versos do “refrão doído” (repare-se no
ótimo artesanato de Chico) são as ótimas referências de um “jovem artista”.

78
“Clara Crocodilo” e “Nego Dito”: dois perigosos
marginais?

Nota sobre Arrigo Barnabé


Nascido em Londrina (PR) em 1951, Arrigo Barnabé “iniciou seus
estudos de piano ainda criança, apenas com nove anos de idade”.1 Foram
“oito anos no conservatório”, onde também aprendeu teoria musical.2 Nesse
período, segundo declarou em 2008 para o programa de televisão a cabo O
som do vinil, foram muito importantes Bella Bartok, “por causa da forma
como ele tratava o ritmo”, Arnold Schoenberg, “não a música dele, mas as
ideias dele, porque eu não conhecia suficientemente a música dele na época”,
e Igor Stravinsky.3 Outras referências foram sendo assimiladas ao longo
das décadas de 1970 e 1980, quando Arrigo passou a estudar e a trabalhar
em São Paulo (SP). Entrevistado pela revista Playboy em 1981, o músico
afirmou adorar ouvir Stockhausen, Miles Davis, Assis Valente, Pixinguinha
e Cartola.4 No Jornal do Brasil de 30 de junho de 1982, além de Bartok,
Stravinsky, Schoenberg, Stockhausen e Cartola, Arrigo Barnabé citou Tom
Jobim, Bach, Beethoven, Ravel, Debussy, Webern, Messiaen, Matsudai,
Luciano Berio, Ailton Escobar, Rogério Duprat, Paulinho da Viola.5 Sobre

1. Cf. OLIVEIRA, Laerte Fernandes de. Em um porão de São Paulo: o Lira Paulistana e a
produção alternativa. São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2002, p. 29.
2. Cf. SOUZA, Okky de, “Arrigo Barnabé manda bala no rock antigo”. Playboy, ano 6, n.
69. São Paulo, Editora Abril, 1981, p. 131.
3. Cf. BARNABÉ, Arrigo, “Arrigo Barnabé – O som do vinil 1”. Publicado em 30 dez. 2008.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mp9KgHPxge4. Acesso em: 9 mar. 2015.
4. Cf. SOUZA, Okky de, “Arrigo Barnabé manda bala no rock antigo”, edição citada, p. 130.
5. Cf. SOUZA, Tárik de, “Microfones abertos: com a última palavra, Arrigo Barnabé”.
In: SOUZA, T. de. O som nosso de cada dia. Porto Alegre: L&PM, 1984, p. 196-199. Texto
publicado originalmente no Jornal do Brasil, 30/6/1982.

79
Tom Jobim, Arrigo afirmaria quatro anos depois, em matéria publicada
pela Folha de S.Paulo em 17 de agosto de 1986, que já o achava “o maior
compositor brasileiro” em 1982; não mudara exatamente de opinião, mas
passara a considerá-lo “‘o maior de todos os tempos’”.6 Em outra entrevista,
publicada na Folha de S.Paulo de 18 de maio de 1988, disse não ter o hábito
de escutar rádio: “Ouço coisas definidas, como, por exemplo, ficar três dias
ouvindo Nat King Cole, Tom Jobim ou Pierre Boulez”. E disse também que
continuava ouvindo Orlando Silva, “não tanto como antes, mas continuo.
(...) Eu acho demais ele cantando”.7
Em duas dessas entrevistas,8 Arrigo ainda incluiu, como obra importante
no período de sua formação em Londrina, o “disco branco” de Caetano
Veloso, lançado em 1969: “Aquele jeito que ele cantou ‘Carolina’ como um
cara meio bêbado, depois o ‘Objeto não identificado’, ‘Chuvas de verão’ e
o ‘Acrilírico’: isso aí eu consigo fazer, pensei. Acho que dá pra ser músico.
Porque, tocar eu já tocava, mas tinha muito medo”.9
O processo até tornar-se músico profissional, todavia, demandou
bastante tempo. Em 1970, Arrigo Barnabé foi para São Paulo estudar para
o vestibular de Engenharia Química; acabou desistindo e fez cursinho
para Arquitetura.10 O colega Luiz Gê, mais tarde autor das ilustrações das
capas de seus dois primeiros LPs e seu parceiro em “Tubarões voadores”,
levou-o a uma exposição de histórias em quadrinhos no Museu de Arte
de São Paulo (MASP). A partir daí, Arrigo começou a “curtir história em
quadrinhos”, linguagem decisiva na criação de “Clara Crocodilo” e de outras
composições. Ingressou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da

6. Cf. RANGEL, Renata, “A cidade oculta de Arrigo Barnabé”. Folha de S.Paulo, caderno
Ilustrada, 17/8/1986, p. 128.
7. Cf. CAVERSAN, Luiz, “Apesar do medo, Arrigo quer apenas ‘cantar canções’”. Folha de
S.Paulo, caderno Ilustrada, 18/5/1988, p. A-40.
8. Cf. SOUZA, Tárik de, “Microfones abertos: com a última palavra, Arrigo Barnabé”. In:
SOUZA, T. de. O som nosso de cada dia, edição citada, p. 195-199. Cf. BARNABÉ, Arrigo,
“Arrigo Barnabé – O som do vinil 1”, edição citada.
9. Cf. SOUZA, Tárik de, “Microfones abertos: com a última palavra, Arrigo Barnabé”. In:
SOUZA, T. de. O som nosso de cada dia, edição citada, p. 196-197. Cf. VELOSO, Caetano.
Caetano Veloso. Philips/ PolyGram, 838 556-2, s.d. [p1969].
10. Cf. CASSOLI, Camilo, “Arrigo Barnabé” (entrevista). In: CASSOLI, C. Somsãopaulo:
canções da metrópole. São Paulo, Comfil-PUC-SP, 2001. Trabalho de Conclusão de Curso
em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, p. 110.

80
Universidade de São Paulo (USP), uma faculdade onde conviviam pessoas
que se interessavam por diversas artes – fotografia, cartum, música –, “todo
mundo lá misturado”. Participou, então, de um Festival de Inverno em Ouro
Preto, “muito bem organizado, bem realizado. Eram todas as artes reunidas. Lá
eu conheci o Ernst Widmer, o Smetak. Tive aulas com o Alexandre Paschoal
Neto, que mostrou pra gente música eletroacústica, música eletrônica, coisas
do Stockhausen, música indiana”. Saiu do festival “possuído pela ideia de
fazer música”. Trancou a matrícula na FAU. Voltou para Londrina, onde ficou
“durante meio ano, [no] segundo semestre de 71”. Permaneceu “trabalhando,
lendo”. Nessa época, leu Balanço da bossa, de Augusto de Campos, livro
que serviria de referência para organizar o seu trabalho. E começou a se
encontrar com o amigo Mario Lucio Cortes para compor.11
Então vamos compor em compasso de 7. A gente queria fazer uma coisa
que pudesse ser tocada por instrumentos de rock, por uma banda de
rock, mas que fosse erudita. E aí, vamos escolher um compasso de 7,
porque ninguém usa compasso de 7, só o Dave Brubeck. Já era uma coisa
pensada e um pouco com a ideia de obra aberta, que eu tinha lido o livro
do Umberto Eco, e ele falava das composições que eram composições
com módulos que podiam se encaixar, de várias maneiras, permitindo
várias montagens. E eu tinha trabalhado com isso também no cursinho
de linguagem de arquitetura, fazendo módulos bidimensionais que, se
encaixando, formavam estruturas tridimensionais.12

Até o lançamento do disco Clara Crocodilo em 1980, portanto, foram


nove anos de trabalho.13 Na lembrança de Arrigo Barnabé, “os dois primeiros
módulos” da parte musical de “Clara Crocodilo” foram feitos, em parceria
com Mario Cortes, em dezembro de 1971 e janeiro de 1972, em Londrina.
Depois, em julho deste ano, ele e Mario Cortes fizeram “mais dois módulos”
quando voltaram a Londrina. “Então, era uma coisa muito morosa porque
a gente não conseguia tocar, era complicado a gente tocar, era uma música
difícil. Eu tocava uma mão, Mario, outra, a gente demorava pra conseguir

11. Cf. BARNABÉ, Arrigo, “Arrigo Barnabé – O som do vinil 1”, edição citada.
12. Ibidem.
13. Cf. BARNABÉ, Arrigo. Clara Crocodilo. Thanx God Records, TG 1005, s.d. [p1980].

81
ouvir se ’tava ficando... soando bem ou não, né?”.14 Mas havia outro motivo
para que o processo de composição não fosse rápido:
Eu queria fazer uma música que provocasse também uma revolução
auditiva nas pessoas. Que fizesse com que a pessoa, pra achar aquela
música bonita, pra entender que aquela música era bonita, pra entender
o pensamento estético da música, ela tivesse que ter uma transformação
interior. Ela teria que deixar de pensar na beleza como só um produto da
consonância. Eu fazia uma coisa toda buscando o atonalismo, buscando
não ter um centro e tal, buscando relações de dissonância que ainda não
tivessem sido exploradas suficientemente e tal, mas que eram possíveis
de serem assimiladas pelo público. E quando eu descobri que existia um
sistema chamado sistema dodecafônico, eu comecei a estudar aquilo
que nem um louco.15

A “parte de música” de “Clara Crocodilo” só foi concluída em 1973. A


“parte da dramaturgia” foi sendo criada por Arrigo até 1979.16 Naquele ano
de 1973, ele se transferiu para o curso de Composição e Arranjo na Escola
de Comunicações e Artes (ECA) da USP.17 “Infortúnio” (A. Barnabé) e
“Diversões eletrônicas” (A. Barnabé/ Regina Porto), outras duas faixas do
LP Clara Crocodilo, foram escritas em 1978. “Office-boy” (A. Barnabé) foi
composta em 1979, mesmo ano em que foram reelaboradas a letra e a música
de “Sabor de veneno” (A. Barnabé).18

14. Idem, “Arrigo Barnabé – O som do vinil 1”, edição citada.


15. Ibidem.
16. Cf. BARNABÉ, Arrigo, “Rodrigo Skylab entrevista Arrigo Barnabé”. Publicado em
10 ago. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tCiWCxqqD1Q. Acesso
em: 9 mar. 2015.
17. Cf. CASSOLI, Camilo, “Arrigo Barnabé” (entrevista). In: CASSOLI, C. Somsãopaulo:
canções da metrópole, edição citada, p. 110. Cf. OLIVEIRA, Laerte Fernandes de. Em um
porão de São Paulo: o Lira Paulistana e a produção alternativa, edição citada, p. 29.
18. Cf. BARNABÉ, Arrigo, “Rodrigo Skylab entrevista Arrigo Barnabé”, edição citada. Em
entrevista que realizei com Arrigo Barnabé em 1996, ele explicou que o ritmo da melodia de
“Sabor de veneno” foi composto em cima dos acentos de uma letra provisória, descartada
no processo de reelaboração. Arrigo recordou alguns desses versos: “Porque eu não vou
saber da fumaça/ que deixa seu corpo borbulhante”; “Porque eu não vou saber do pecado/
acontecerá tua morte torturada”; “Juro por Deus, vou esquecer/ teatral sorriso soluçante”.
Como se nota, já se rascunhava certo clima amoroso em chave agressiva, na linha da
“ficção científica das histórias em quadrinhos” – fonte que vale para boa parte da obra de
Arrigo Barnabé; cf. FENERICK, José Adriano. Façanhas às próprias custas: a produção

82
Em 1978, Arrigo Barnabé inscreveu “Diversões eletrônicas” e “Infortúnio”
no I Festival de Música Universitária Brasileira, promovido pela TV Cultura.
“Diversões eletrônicas” ficou em 1º lugar. O impulso inicial para a sua
composição foi dado por “Arranha-céu” (Sílvio Caldas/ Orestes Barbosa),
conforme esclarecia o texto de apresentação lido no festival.19 Em mais de
uma entrevista, Arrigo recordaria a passagem; em 2001, p. ex., quando
falou da audição da “história da música popular” e da observação da vida
em São Paulo, dois processos que fizeram parte de seus estudos e de seu
projeto artístico:
Eu tinha a impressão de que a música tinha se afastado muito do
cotidiano das pessoas – e essa sempre foi uma característica da música
popular. Havia algo como se tivesse sido criado um modelo, e todos
tentavam se ajustar àquele modelo. Já não era mais uma coisa espontânea.
Isso, levando-se em conta o modo com a indústria já estava misturada
nisso. Então você já tinha padrões que foram instituídos, vamos dizer
assim, pelo Chico Buarque, pelos tropicalistas... E nós, eu e o Itamar
[Assumpção], tentávamos fazer algo mais vivo. Para isso, observávamos
bastante a cidade e o comportamento presente e passado da música
popular. Tentávamos observar o que existia na história da música popular

musical da vanguarda paulista (1979-2000). São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2007, p. 121.
A letra definitiva de “Sabor de veneno”, ainda segundo aquela entrevista que realizei com
o músico, valeu-se de referências à bossa nova: “Você já viu aquela menina/ que tem um
balanço diferente?”, referência mais ou menos evidente a “Garota de Ipanema”, de Tom
Jobim e Vinicius de Moraes; “Não sei se ela veio da lua/ ou se veio de Marte me capturar”,
referência a “Astronauta”, de Pingarilho e Marcos Vasconcellos, gravada por João Gilberto
em 1970. Cf. entrevista com Arrigo Barnabé, São Paulo-SP, 1996.
19. No momento em que escrevo, pode-se assistir, na internet, às apresentações de “Infortúnio”
e “Diversões eletrônicas” na final do I Festival de Música Universitária Brasileira da TV
Cultura. No palco, chama atenção o número de músicos (dentre os quais, Itamar Assumpção
tocando baixo elétrico), de cantoras e de cantores que atuavam ao lado de Arrigo Barnabé,
claro sinal de que o seu projeto empolgava vários colegas. Na plateia, chama atenção a
oposição ostensiva entre aplausos, gritos de “Já ganhou!”, e vaias, gritos de “Fora!”. Na
apresentação de “Diversões eletrônicas”, notar a 7:49, no momento mais lírico da composição,
uma bola de papel arremessada contra o rosto da intérprete Neusa Cordoni. Cf. BARNABÉ,
Arrigo, “Arrigo Barnabé no Festival Universitário da MPB (1979)” [“Infortúnio”]. Publicado
em 18 set. 2008. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ve7jlgt59RM. Acesso
em: 29 ago. 2016. Idem, “Arrigo Barnabé no Festival Universitário da MPB – parte 2”
[“Diversões eletrônicas”]. Publicado em: 18 set. 2008. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=WrfL1ZOjNxM. Acesso em: 29 ago. 2016.

83
para, a partir disso, ficar mais claro o que sentíamos falta na música
que estava sendo produzida naquele momento. (...) Quando eu escutei
algumas coisas do Orestes Barbosa, principalmente “Arranha-céu”, vi
que era uma coisa altamente urbana, em que o cara falava dos ‘delírios
nervosos/ Dos anúncios luminosos’. É isso que a gente está vivendo, e
é uma coisa que o cara fez há não sei quanto tempo atrás... Então eu
prestava atenção nisso e achava que tinha espaço para um trabalho
mais rico.20

Retenha-se a percepção de Arrigo Barnabé de que, ao longo da década


de 1970, instituíram-se fórmulas, padrões na MPB, tomando-se por referência
tanto Chico Buarque quanto os tropicalistas, ou seja, Caetano Veloso e
Gilberto Gil. Passando ao largo do adjetivo “espontâneo”, aliás relativizado
na declaração, subtende-se que esses padrões eram sentidos como “algo
meio morto”, contra os quais, Arrigo e Itamar Assumpção buscavam “algo
mais vivo”. Estabelece-se, assim, uma dialética entre, de um lado, as fórmulas
do mercado, que representavam a morte de “uma coisa espontânea”, e, de
outro, a busca de uma arte mais viva pautada por dois procedimentos: a
observação do cotidiano da cidade de São Paulo; a observação da “história
da música popular”. A conclusão ou o horizonte era a crença no “espaço para
um trabalho mais rico”. Sublinhe-se: espaço dentro do mercado hegemônico
de música popular no Brasil. No plano artístico, como veremos, essa síntese
ou essa esperança se traduziu na criação de um mutante, “Clara Crocodilo”:
uma figura que, sendo um morto-vivo, se oferece “como uma síntese que
não supera ou, com licença da expressão, uma síntese negativa, que ao
se produzir nos devolve ao movimento contraditório de base”.21 Adiante
retomarei o ponto.

20. Cf. CASSOLI, Camilo, “Arrigo Barnabé” (entrevista). In: CASSOLI, C. Somsãopaulo:
canções da metrópole, edição citada, p. 111.
21. Entre aspas, me aproprio livremente da crítica de José Antonio Pasta Jr. acerca das páginas
finais de Macunaíma, de Mário de Andrade, quando o herói sobe aos céus e vira a constelação
da Ursa Maior. Cf. PASTA Jr., José Antonio, “Tristes estrelas da Ursa – Macunaíma”. In:
In: PASTA Jr., J. A. Formação supressiva: constantes estruturais do romance brasileiro.
São Paulo, FFLCH-USP, 2011. Tese de livre-docência em Literatura Brasileira, p. 138. Cf.
ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 27a ed. Texto revisto por
Telê Porto Ancona Lopez. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991.

84
Já no plano das relações de trabalho, se do processo de formação de
Arrigo Barnabé e do processo de feitura do seu primeiro disco participaram
a escuta de Tom Jobim, Caetano Veloso, Rogério Duprat, Paulinho da Viola,
Cartola, Dave Brubeck, dentre outros músicos, bem como a leitura de Balanço
da bossa, dentre outros livros, e ainda a intenção de fazer uma banda de
rock tocar composições com recursos originados na música erudita, então,
por um lado, é preciso concordar com Valter Kraushe quando argumenta
que Arrigo Barnabé não atuava de forma marginal “ao sistema fonográfico-
cultural”, mas de forma marginal dentro dele.22 Por outro lado, se esses dois
processos – o de formação do músico e o de feitura do LP Clara Crocodilo
– demandaram tanto tempo, atravessando a década de 1970, então, é preciso
também concordar com Marcia Tosta Dias quando analisa que Arrigo Barnabé
atuava, sim, à margem desse sistema fonográfico-cultural. De modo mais
preciso, à margem do mercado fonográfico hegemônico que se consolidava
ao longo da mesma década de 1970.23 Afinal, tratava-se basicamente da
situação de um estudante universitário.24 Para além dessa evidência factual,
há que se considerar que uma das lógicas da transformação da música e da
canção em mercadoria, no âmbito da indústria cultural, é a da substituição
do tempo exigido pela elaboração artística pelo ritmo do comércio, o qual
determina o “calendário da gravadora”, como ocorreria quando do segundo
LP de Arrigo Barnabé, Tubarões voadores, lançado pela Ariola em 1984.25 O
próprio músico já falou acerca dessa diferença entre uma situação e a outra,
entre uma lógica e a outra:

22. Cf. KRAUSHE, Valter, “A canção já invadiu a sua praia”. Lua Nova, v. 3, n. 1. São Paulo,
jun. 1986. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451986000200005. Acesso em:
9 mar. 2015.
23. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura, edição citada, p. 135-145.
24. Considere-se que o artigo de Valter Krausche traça um panorama do mercado da
canção no Brasil em 1986. Nessa época, após os LPs Clara Crocodilo e, sobretudo, Tubarões
voadores, obviamente Arrigo Barnabé não era mais um estudante universitário. Vale dizer
ainda que, antes de mim, Laerte Fernandes de Oliveira citou o argumento de Krausche,
inserindo-o na discussão que empreendeu acerca da “relação dialética entre inovação e
estandardização”. Cf. OLIVEIRA, Laerte Fernandes de. Em um porão de São Paulo: o Lira
Paulistana e a produção alternativa, edição citada, p. 39-45.
25. Cf. MACHADO, Regina. A voz na canção popular brasileira: um estudo sobre a vanguarda
paulista. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011, p. 50-51. Cf. BARNABÉ, Arrigo. Tubarões voadores.
Barclay/ Ariola, 823 031-1, 1984.

85
Teve tempo pra você fazer, não teve pressão [em Clara Crocodilo].
Teve amadurecimento das coisas. E você ’tá livre, você ’tá assim em
contato com... Você ’tá só compondo, você ’tá só fazendo, você não
’tá na prática, né? Então é diferente. É engraçado isso. Eu ficava muito
espantado com a reação das pessoas quando elas ouviam as coisas.
Mas teve esse negócio, você teve um tempo de amadurecimento. E pro
Tubarões [voadores], por exemplo, eu tinha que fazer, você entra numa
roda-viva, você tem que fazer as coisas. E, ao mesmo tempo, tem um
lado crítico enorme. Você fala: ‘Não, isso aqui não dá, isso aqui não ’tá
bom, isso não ’tá bom. (...) Mas tem isso, sabe, esse tempo de gestação
da obra. E como é... não ’tô trabalhando com gênero. Não ’tô fazendo
samba, ou fazendo choro, ou fazendo não sei o quê. ’Tô inventando
um negócio. ’Tô inventando um gênero. ’Tô inventando um gênero
que não existia. Então, você continuar inventando, quer dizer, você não
tem... demora, demora. É quase como se fosse um transe. Sabe que eu
escutava o Clara, eu falava assim: ‘Nunca mais eu vou fazer um negócio
desse. (...) Como eu consegui fazer? (...) Será que eu fiz mesmo isso,
será que não foi feito por acaso? Será que não foi uma série de acasos
que se sucedeu e aconteceu isso aí, e eu sou uma fraude?’ (...) Por isso
eu me empenhava muito também em fazer melodias. (...) Pra provar,
pra mim mesmo, que eu conseguia fazer coisas líricas, bonitas... com
sentido... é... de beleza convencional, né?26

Em 1981, a Associação Brasileira de Produtores de Discos elegera Arrigo


Barnabé “a personalidade do ano”.27 No mesmo ano, Egberto Gismonti
afirmara: “É genial. Não há ninguém no mundo fazendo o que ele faz”.28 No
entanto, em 1982, Arrigo afirmou que o LP Outras palavras, lançado por
Caetano Veloso em 1981, era “um trabalho melhor que a maior parte das
coisas que foram produzidas no sistema chamado independente”.

26. Cf. BARNABÉ, Arrigo, “Rodrigo Skylab entrevista Arrigo Barnabé”, edição citada.
27. Cf. SOUZA, Tárik de, “Microfones abertos: com a última palavra, Arrigo Barnabé”. In:
SOUZA, T. de. O som nosso de cada dia, edição citada, p. 196.
28. Cf. SOUZA, Okky de, “Arrigo Barnabé manda bala no rock antigo”, edição citada, p. 131.

86
Eu também penso que é uma palhaçada esse negócio de independente,
de movimentos independentes. Não existe uma qualidade estética como
existiu na Tropicália e na Bossa-Nova. O que a Tropicália fez é muito
mais radical do que fazemos agora, é só lembrar os arranjos do Rogério
Duprat, por exemplo.

As gravadoras agora estão mais nas mãos dos imbecis. Talvez nos anos
60 elas não estivessem, porque a gente via muito trabalho de qualidade
aparecendo. Eu também penso que é muito ilusório achar que a gente vai
mudar alguma coisa do sistema, a estrutura de gravadoras, de divulgação,
da Rede Globo. Esse negócio é uma coisa muito grande e é ingenuidade
achar que nós vamos mudar o sistema. A gente vive num País que tem
que sofrer uma mudança maior para acontecer esta transformação que
a gente deseja nas condições de produção da música.29

Já em 1985, José Miguel Wisnik consideraria Arrigo Barnabé “um outro


Tom, o nosso Tom atonal”.30 Dois anos depois, o LP Suspeito foi lançado
pela gravadora 3M: “um disco de mercado”, como o próprio Arrigo Barnabé
definiu na época.31 O trecho final do depoimento acima, em que Arrigo fala
do seu empenho em “também fazer melodias (...), coisas líricas, (...) de beleza
convencional”, se refere às canções de Suspeito. Para divulgar esse LP, ele
participou do programa do Chacrinha e do programa da Xuxa, ambos na
Rede Globo.32 Quando apresentava “Uga Uga” (A. Barnabé), carro-chefe do
disco, bananas eram entregues para o público, para os jurados.33 Recentemente,
Arrigo diria que “era uma tortura ter de apresentá-la em programas como
o do Chacrinha, mas a gravadora pedia”.34 Até o momento, foi o seu único
“disco de mercado”.

29. Cf. BARNABÉ, Arrigo, “Imbecis dirigem as gravadoras”. Folha de S.Paulo, caderno
Ilustrada, 31/1/1982, p. 50. Cf. VELOSO, Caetano. Outras palavras. Philips/ Universal Music,
838 465-2, 1989 [p1981].
30. Cf. WISNIK, José Miguel, “Inovação versus redundância na MPB”. Folha de S.Paulo,
caderno Folhetim, 28/4/1985, p. 4.
31. Cf. CAVERSAN, Luiz, “Apesar do medo, Arrigo quer apenas ‘cantar canções’”, edição
citada.
32. Ibidem. Cf. BARNABÉ, Arrigo. Suspeito. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=JwfwLqOv7s0. Acesso em: 29 jan. 2015. Disco lançado em 1987.
33. Cf. entrevista com Arrigo Barnabé, São Paulo-SP, 1996.
34. Cf. PASCOAL, Carol, “Ícone dos anos 80, Arrigo Barnabé lança DVD”. Veja São Paulo,
11/11/2011. Disponível em: http://vejasp.abril.com.br/materia/icone-nos-anos-80-arrigo-

87
Nota sobre Itamar Assumpção
A trajetória de Itamar Assumpção se aliou à de Arrigo Barnabé ainda
em Londrina. Nascido em Tietê (SP) em 1949, Itamar se mudou com a
família para o norte do Paraná em 1962, indo morar em Paranavaí e, depois,
em Arapongas.35 Cursou “até o segundo ano de Contabilidade Técnica”.
Em 1971, participou com o Grupo Universitário de Teatro de Arapongas
(Gruta) de uma montagem de Arena conta Tiradentes, de Augusto Boal
e Gianfrancesco Guarnieri, apresentada no IV Festival Universitário de
Londrina.36 No mesmo ano, chegou à final do IV Festival Universitário
de Música Popular de Londrina com a composição “Caboclo da mata”.
A apresentação da música por Itamar, seus irmãos Narciso e Denise, “o
percussionista Corina e o bailarino Marquinhos Silva” levou “o júri do
festival a criar o prêmio Melhor Apresentação Total”. No ano seguinte, em
1972, Itamar e seu grupo novamente ganharam esse prêmio no V Festival
Universitário de Música Popular de Londrina.37
Em 1973, Itamar participou do show Boca do Bode com Arrigo Barnabé
e outros nomes que depois estariam envolvidos na produção do disco Clara
Crocodilo. Segundo Arrigo, na época do show chegou-se a pensar em algo
como um “movimento do Paraná”:

barnabe-lanca-dvd/. Acesso em: 9 mar. 2015.


35. Cf. CHAGAS, Luiz; TARANTINO, Mônica, “Linha do tempo”. In: CHAGAS, L.;
TARANTINO, M. (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 2. São Paulo:
Ediouro, 2006, p. 64. Cf. GIORGIO, Fabio H., “Vanguarda paranaense”. In: CHAGAS, Luiz;
TARANTINO, Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 2, edição
citada, p. 21. Acrescente-se que o pai de Itamar Assumpção, Januário de Assumpção, era
“fiscal do Instituto Brasileiro do Café”. Quando se transferiu para o Paraná, em 1958, Itamar
e seu irmão Narciso permaneceram “em Tietê com os avós”. Em 1962, com a morte de sua
avó, Itamar e Narciso foram morar com os pais. Cf. Cf. CHAGAS, Luiz; TARANTINO,
Mônica, “Linha do tempo”. In: CHAGAS, L.; TARANTINO, M. (org.). PretoBrás: Por que
eu não pensei nisso antes?, v. 2, edição citada, p. 64.
36. Quando se trabalha com fontes secundárias, não é incomum se deparar com
inconsistências. Nessa sistematização da trajetória artística de Itamar Assumpção, sempre
que notei diferenças nas informações publicadas por dois ou mais autores, adotei como
critério: a) privilegiar entrevistas concedidas pelo próprio Itamar; b) privilegiar entrevistas
concedidas por pessoas que com ele trabalharam; c) privilegiar informações publicadas
com indicação de fonte primária; d) havendo informações divergentes apresentadas sem
indicação de fonte primária, não citar nenhuma delas.
37. Cf. CHAGAS, Luiz; TARANTINO, Mônica, “Linha do tempo”. In: CHAGAS, L.;
TARANTINO, M. (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 2, edição citada,
p. 65-66.

88
Eu, meu irmão Paulo Barnabé, meu parceiro Mario Lucio Cortes, o
produtor de Clara Crocodilo, Robinson Borba, nos reunimos ao Itamar
Assumpção (...) e fizemos o show Boca do Bode, no Teatro Universitário.
O Itamar cantava “Dos cruces”, gravada pelo Milton Nascimento, em
cima dum poleiro.38 (...) Tínhamos recém-descoberto que o Bella Bartok
não era mulher e escreveu uma música chamada ‘Allegro barbaro’. Daí
veio a ideia do som da gente, esse negócio meio bárbaro, selvagem.39

Itamar se mudou para São Paulo naquele mesmo ano.40 Trabalhou como
“entregador de carnês do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e
assim [conheceu] a cidade”.41 Ao longo da década de 1970, a convivência com
Arrigo Barnabé representou uma etapa importante de aprendizado musical.
Em 1978, no I Festival de Música Universitária Brasileira, tocou baixo elétrico
em “Diversões eletrônicas” e em “Infortúnio”. No mesmo ano, abriu shows
de Jorge Mautner.42 No ano seguinte, participou da apresentação de “Sabor
de veneno” (A. Barnabé) no Festival 79 de Música Popular, promovido pela
Rede Tupi de Televisão.43

38. Em “Prezadíssimos ouvintes” (I. Assumpção/ Domingos Pellegrini), gravada no disco


Sampa Midnight – Isso não vai ficar assim, de 1985, escutam-se os versos: “Já cantei no
galinheiro/ cantei numa procissão/ cantei em ponto de terreiro/ agora eu quero cantar
na televisão”. A composição havia sido inscrita no IV Festival Universitário de Londrina,
em 1973. Cf. CHAGAS, Luiz; TARANTINO, Mônica, “Linha do tempo”. In: CHAGAS, L.;
TARANTINO, M. (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 2, edição citada,
p. 66. Não sei dizer se a letra foi reelaborada entre 1973 e 1985.
39. Cf. SOUZA, Tárik de, “Microfones abertos: com a última palavra, Arrigo Barnabé”. In:
SOUZA, T. de. O som nosso de cada dia, edição citada, p. 197-198.
40. Cf. SANCHES, Pedro Alexandre, “São Paulo é invadida por ‘Bicho de sete cabeças’”.
Jornal do Campus, 2/12/1993. São Paulo, CJE-ECA-USP, p. 6.
41. Cf. CHAGAS, Luiz; TARANTINO, Mônica, “Linha do tempo”. In: CHAGAS, L.;
TARANTINO, M. (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 2, edição citada,
p. 66.
42. Cf. LOPES, Maria Amélia Rocha, “Itamar gosta do Lira. E também da tevê”. Jornal da
Tarde, Caderno de Programas e Leituras, 10/7/1982, p. 7.
43. No documentário Itamar Assumpção: Daquele instante em diante, assiste-se a algumas
partes da apresentação televisionada de “Sabor de veneno” no festival. Presumivelmente
antes de a composição ser tocada, Itamar diz: “‘Sabor de veneno’, o som que estraçalha.
Sabor de quê?”. A plateia responde: “De merda!”. Itamar pergunta novamente: “Sabor de
quê?”. Arrigo grita: “Todo mundo!”. A plateia: “De merda!”. Cf. VELLOSO, ROGÉRIO
(direção). Itamar Assumpção: Daquele instante em diante. São Paulo, Itaú Cultural, 2011.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=be2n1tpJjf0. Acesso em: 15 dez. 2014.
Tal como “Infortúnio” no I Festival de Música Universitária Brasileira, “Sabor de veneno”
chegou à final do Festival 79 de Música Popular mas não obteve classificação – porém,

89
Eu saquei que um crioulo compositor, metido a compositor no Brasil,
teria que entender aquele Arrigo Barnabé (...). Fui lá tocar baixo e fazer
arranjo naquela música, que é atonal. (...)

O samba, eu nasci ouvindo. Agora, o atonalismo eu fui aprender quando


eu cruzei o Arrigo. Sabe, bossa nova, o jazz, isso tudo são coisas que
eu tive que aprender, música concreta. Não são coisas espontâneas
em mim.44

Segundo Maria Betânia Amoroso, “as referências musicais mais antigas”


de Itamar estavam “associadas às lembranças” do seu pai, Januário de
Assumpção, que era pai-de-santo, “peça-chave no comando de um terreiro
de candomblé na cidade de Tietê (...) no qual Itamar tocava atabaque”. Ou
seja, as referências mais antigas estavam associadas às lembranças do pai e ao
“primeiro palco em que Itamar pisou”, o terreiro. Para Amoroso, em síntese,
“a música encantatória, com ritmo forte marcado pelas batidas e capaz de
fazer o corpo despertar para o transe, [era] a sua base musical, e sobre essa
base ele [iria] construir uma obra inteira”.45 Serena e Anelis, filhas de Itamar
Assumpção, recordaram-se do quanto ele ouvia e estudava Bob Marley e
Miles Davis.46 Maria Clara Bastos, contrabaixista que “acompanhou Itamar
Assumpção por mais de dez anos e fez as transcrições das músicas” para o
livro PretoBrás, escreveu que o compositor “sempre falava do quanto escutou
Jimi Hendrix, os batuques da cidade de Tietê, Milton Nascimento e tudo
o que gostasse de ouvir à exaustão”; e que ele agradecia a Jorge Mautner,
Arrigo Barnabé, Rogério Duprat, Hermeto Pascoal, Elis Regina e Paulinho
da Viola.47

Neusa Pinheiro (que adotava o nome artístico “Neusa Cordoni” quando do I Festival de
Música Universitária Brasileira) ganhou o prêmio de Melhor Intérprete e Arrigo Barnabé,
o de Melhor Arranjo; cf. MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. São
Paulo: Editora 34, 2003, p. 472-475.
44. Cf. VELLOSO, Rogério (direção). Itamar Assumpção: Daquele instante em diante,
edição citada.
45. Cf. AMOROSO, Maria Betânia, “De óculos escuros pela cidade”. In: CHAGAS, Luiz;
TARANTINO, Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 1. São Paulo:
Ediouro, 2006, p. 41.
46. Cf. VELLOSO, Rogério (direção). Itamar Assumpção: Daquele instante em diante,
edição citada.
47. Cf. BASTOS, Maria Clara, “Livro de canções”. In: CHAGAS, Luiz; TARANTINO,
Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 1, edição citada, p. 79.

90
Como se percebe, a formação musical de Itamar Assumpção, à
semelhança da formação de Arrigo Barnabé, não se deu exatamente à
revelia do mercado fonográfico hegemônico, e sim à margem dentro dele.
Entretanto, diferentemente de Arrigo, que estudava vários compositores
da vertente erudita, Itamar estudava modalidades da canção de tradição
oral. Kiko Dinucci já comentou, sobre a obra de Itamar Assumpção, que a
horizontalidade do acompanhamento instrumental talvez tenha vindo pelo
aprendizado com Arrigo Barnabé – portanto, pelo estudo prático de um
recurso da música erudita. Ou talvez tenha vindo do batuque de Tietê, uma
vez que podem ser identificadas células do batuque em arranjos de Itamar.
Ou talvez tenha vindo das duas práticas, que se somaram.48
Maria Betânia Amoroso também coloca em relevo, para que se entenda
a base do trabalho de Itamar, o caso que ele “mais gostava de contar”: o da
sua detenção quando carregava um gravador, acusado de haver roubado o
aparelho.49 Itamar havia emprestado o gravador de um amigo, Domingos
Pellegrini, que “praticamente morava no diretório acadêmico de Londrina”
no início da década de 1970.50 A polícia não acreditou no empréstimo e
também não checou a história, e Itamar ficou preso durante alguns dias em
uma delegacia. Antes de ser solto, um companheiro de cela lhe entregou
“um livrinho com letras de músicas”: “Rio de lágrimas, de Tião Carreiro e
Pardinho”. Itamar cantou para o homem, que chorou. De volta à sua casa, seu
pai lhe recomendou que interpretasse o fato. “Dessa experiência serão fixados
dois sentidos: o músico popular ocupa um lugar totalmente particular na
cultura brasileira, e a quem couber esse papel deverá desempenhá-lo como
uma missão”.51 Já Laerte Fernandes de Oliveira afirma que o personagem
Beleléu foi criado a partir da “experiência cotidiana” de violência policial
ou de ameaça de violência policial na cidade de São Paulo:

48. Cf. entrevista com Kiko Dinucci que realizei em 8 jun. 2014.
49. Cf. AMOROSO, Maria Betânia, “De óculos escuros pela cidade”. In: CHAGAS, Luiz;
TARANTINO, Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 1, edição
citada, p. 40.
50. Cf. PELLEGRINI, Domingos. “Esclarecimento”. In: CHAGAS, Luiz; TARANTINO,
Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 2, edição citada, p. 19.
51. Cf. AMOROSO, Maria Betânia, “De óculos escuros pela cidade”. In: CHAGAS, Luiz;
TARANTINO, Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 1, edição
citada, p. 40-41.

91
Itamar havia sido preso duas vezes por ter sido considerado suspeito
pela polícia. Negro, morador da zona leste de São Paulo, numa região
periférica da cidade, o compositor andava com recortes de jornais que
serviam como documentos para que pudesse comprovar que era artista.52

Em 1980, “Nego Dito” (I. Assumpção) foi uma das premiadas no Festival
de Música da Feira de Artes da Vila Madalena. A canção foi incluída no
LP Festival da Vila, lançado, mas “pouquíssimo divulgado”, pela gravadora
Continental. De todo modo, Itamar “começou a se apresentar no Lira
Paulistana”. Com o sucesso de suas apresentações e “a crescente onda de
discos independentes”, o teatro resolveu “administrar a carreira de Itamar”
e fundar uma pequena gravadora, cujo primeiro disco seria Beleléu, Leléu,
Eu.53 A (ameaça de) violência policial também inspiraria “a concepção teatral”
para o espetáculo de lançamento do LP no Lira Paulistana:
Os músicos de sua banda [Isca de Polícia] apresentavam-se todos
vestidos de presidiários e em volta do palco havia cordas que caíam
do teto do teatro, imitando uma cela de cadeia. Esta cenografia e este
figurino se tornaram uma espécie de marca registrada de Itamar e
foram reproduzidos várias vezes ao longo do trabalho de divulgação
do seu primeiro disco.54

Note-se, assim, a intersecção entre a história pessoal de Itamar


Assumpção – no quadro da histórica segregação dos negros e das negras
no Brasil, da sua histórica vigilância e da sua histórica repressão pelo Estado
e também pela sociedade civil – e o arbítrio policial, bem como o clima
policialesco instaurados pelas ditaduras militares, as quais, como se sabe,
se mantiveram no poder, a partir de 1964, com apoio substancial de civis.

52. Cf. OLIVEIRA, Laerte Fernandes de. Em um porão de São Paulo: o Lira Paulistana e a
produção alternativa, edição citada, p. 72. Sobre a relação entre a vida de Itamar Assumpção
e as características de seu personagem Bebeléu, ver comentários de Luiz Tatit, que define
essa relação como “quase simbiótica”, Luiz Chagas e Ricardo Guará no documentário Itamar
Assumpção: Daquele instante em diante, edição citada.
53. Cf. OLIVEIRA, Laerte Fernandes de. Em um porão de São Paulo: o Lira Paulistana e a
produção alternativa, edição citada, p. 71-72.
54. Ibidem, p. 72-74.

92
Nos primeiros anos da década de 1980, Itamar Assumpção já definira a
atitude e o discurso em relação aos meios de comunicação de massa que, com
poucas variações, manteria até o final da vida, em 2003. Isso não significa
que sua atitude e seu discurso fossem simples. Ao contrário. Tome-se como
primeiro exemplo o convite para Itamar Assumpção participar do MPB Shell,
festival organizado pela Rede Globo. Em debate promovido pela Folha de
S.Paulo em 21 de janeiro de 1982, Itamar afirmou:
Eu penso que eu tenho que entrar nas estruturas; eu vou lá na televisão
fazer o trabalho que eu quero fazer, eu não vou lá fazer concessão
nenhuma. Eu preciso resolver o problema de divulgação do trabalho
independente. Existe um despreparo dos independentes com relação
ao seu próprio trabalho. Minha preocupação é a da sobrevivência da
independência e da independência dessa banda de músicos que trabalha
comigo. Se eu paro agora, os meus músicos dançam, se eu parar agora eles
vão dançar mesmo. Eu não entendo o medo que se tem das estruturas.
Agora, eu acho também que é preciso estar preparado para entrar, porque
se não estiver amadurecido vai ser diluído mesmo, é claro.

(...) A minha preocupação é tocar em rádio AM, porque eu sei que a


dificuldade é bem maior. É por isso que eu procuro um jeito de penetrar
nas estruturas, abrir caminhos dentro dela.

(...) Se eu for para uma gravadora, eu vou resolver o meu problema


artístico, mas não dos músicos. Nós temos de mudar a relação com o
sistema, e uma das formas, por exemplo, é modificar a relação com os
músicos. Mas a gente tem que entrar nas estruturas e sair ileso. Eu fiquei
esperando para ir ao Festival da Globo, mas eu só vou da maneira que
eu quero ir. Mas eu tenho que sair ileso.55

Convite aceito, Itamar e a Banda Isca de Polícia apresentaram a canção


“Denúncia dos Santos Silva Beleléu” (I. Assumpção) na 5ª eliminatória, no
Teatro Fênix, no Rio de Janeiro, em 9 de julho de 1982. A canção dramatizava
a própria história do compositor “como músico independente, contada com

55. Cf. ASSUMPÇÃO, Itamar, “Minha preocupação é tocar no rádio”. Folha de S.Paulo,
caderno Ilustrada, 31/1/1982, p. 50.

93
muito humor e ironia”, e comentava “as agruras de uma canção inscrita
em um festival”. A performance culminava “num silêncio de mais de um
minuto”.56 O MPB Shell desclassificou “Denúncia dos Santos Silva Beleléu”
mas, com pelo menos alguns de seus mil olhos no público universitário
do maior mercado consumidor do País, conferiu ao trabalho um prêmio
de consolação, o de Melhor pesquisa.57 “Feliz com os resultados”, Itamar
Assumpção declararia que havia sido “a melhor gravação já feita de seu
trabalho por uma emissora de televisão”.58
Voltando ao debate promovido pela Folha de S.Paulo antes do MPB
Shell, o mote de Itamar “‘a gente tem que entrar nas estruturas e sair ileso’”,59
conscientemente ou não, atenuava o discurso de Caetano Veloso contra a
plateia que o vaiava ruidosamente – e que atirava “tomates, bolas de papel,
ovos, copos de plástico, bananas”, pedaços de madeira no palco – na final
paulista do III Festival Internacional da Canção (FIC), em 15 de setembro de
1968, no Teatro da Universidade Católica de São Paulo (Tuca). Discurso de
Caetano Veloso contra a plateia e também contra o júri, que então classificara
“É proibido proibir” (C. Veloso), apresentada por ele e pelos Mutantes, e
que desclassificara “Questão de ordem” (G. Gil), apresentada por Gil e pelos
Beat Boys.60
Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? (...) Vocês
não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada! (...) Eu
hoje vim dizer aqui que quem teve coragem de assumir a estrutura de
festival, não com o medo que o senhor Chico de Assis pediu, mas com
a coragem, quem teve essa coragem de assumir essa estrutura e fazê-la
explodir foi Gilberto Gil e fui eu! Não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui
eu! (...) Eu quero dizer ao júri: me desclassifique! Eu não tenho nada a

56. Cf. AMOROSO, Maria Betânia, “De óculos escuros pela cidade”. In: CHAGAS, Luiz;
TARANTINO, Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 1, edição
citada, p. 47-49.
57. Cf. MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola, edição citada, p. 482.
58. Cf. AMOROSO, Maria Betânia, “De óculos escuros pela cidade”. In: CHAGAS, Luiz;
TARANTINO, Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 1, edição
citada, p. 49.
59. Antes de mim, Marcia Tosta Dias chamou atenção para essa frase de Itamar Assumpção.
Cf. DIAS, M. T. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura,
edição citada, p. 144.
60. Cf. MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola, edição citada, p. 271-281.

94
ver com isso! Nada a ver com isso! Gilberto Gil! Gilberto Gil está aqui
comigo pra nós acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade
que reina no Brasil! Acabar com isso tudo de uma vez. Nós só entramos
em festival pra isso. Não é, Gil? Não fingimos, não fingimos aqui que
desconhecemos o que seja um festival, não! Ninguém nunca me ouviu
falar assim. Entendeu? Só queria dizer isso, baby. Sabe como que é?
Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair
de todas. E vocês? E vocês? Se vocês... se vocês, em política, forem
como são em estética, estamos feitos. Me desclassifiquem junto com
Gil! Junto com ele, tá entendendo? (...) O júri é muito simpático mas
é incompetente. Deus está solto!61

O fato é que Caetano Veloso e Gilberto Gil participaram, na segunda


metade da década de 1960, da configuração de um mercado que ainda não
estava plenamente racionalizado.62 Duas décadas adiante, quando Itamar
Assumpção pretendia “entrar nas estruturas e sair ileso”, as relações de
trabalho e o funcionamento do mercado hegemônico eram outros. Na
percepção de Arrigo Barnabé, como vimos, havia “padrões que foram
instituídos, vamos dizer assim, pelo Chico Buarque, pelos tropicalistas”. 63
Contudo, ainda segundo Arrigo, no início de 1982, os independentes não
haviam desenvolvido nenhum trabalho com a mesma qualidade estética
da tropicália ou da bossa nova, e nem mesmo haviam sido mais radicais do
que, por exemplo, “os arranjos do Rogério Duprat”. Por fim, seria necessária

61. Cf. VELOSO. Caetano. “É proibido proibir/ Ambiente de festival”. Autor: C. Veloso.
VÁRIOS. Prepare seu coração: uma história dos grandes festivais. Universal Music, 994428-
2, 2002. In: RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração. São Paulo: Geração Editorial, 2002. CD
anexo. Os dois fonogramas foram lançados em 1968.
62. Segundo Zuza Homem de Mello, “A performance de ‘É proibido proibir’ ofuscou de
tal maneira o que aconteceu dali em diante, que seria lançado um disco compacto tendo,
no lado A, a gravação normal de estúdio e, no lado B, sob o título ‘Ambiente de festival’, a
música que não aconteceu”. Cf. MELLO, Z. H. de. A era dos festivais: uma parábola, edição
citada, p. 277. Abordei o papel estrutural e complexo dos tropicalistas e da chamada MPB na
configuração do mercado fonográfico hegemônico, nos anos de 1970, em “Notas sobre ‘Cálice’
(2010, 1973, 1978, 2011)”; para abordagens mais amplas, não apenas da década de 1970 como
da década anterior, consultar NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento
político e indústria cultural na MPB (1959-1969), edição citada; DIAS, Marcia Tosta. Os
donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura, edição citada.
63. Cf. CASSOLI, Camilo, “Arrigo Barnabé” (entrevista). In: CASSOLI, C. Somsãopaulo:
canções da metrópole, edição citada, p. 111.

95
“uma mudança maior para acontecer esta transformação que a gente deseja
nas condições de produção da música”.64 Também em 1982, Geraldo Leite,
integrante do grupo Rumo, observava que um exemplo de “independente
maior” era João Gilberto, “que não só tem uma postura estética com uma
duração extraordinária, como é uma pessoa que sabe medir seu esforço,
que não sacrifica seu projeto pela necessidade de atingir mais pessoas”.65 Já
numa avaliação mais ampla feita por Luiz Tatit, em artigo publicado em 1984:
É claro que o funil de aparecimento de novos valores é tanto mais
estreito quanto maior o grau de autonomia entre artista e gravadora.
Participar da elite musical exige uma longa trajetória ou pelo menos
uma recomendação de peso suficiente para queimar etapas.

Marginalizados por este panorama fortemente cristalizado e rendoso


para os grupos financeiros e, ao mesmo tempo, cômodo para os artistas
já eleitos, alguns novos compositores e músicos, depois de muito tempo
de trabalho (alguns com mais de dez anos) sem a possibilidade de
registro e divulgação, iniciaram um processo de contra-ataque à ação
das gravadoras. Assim, como essas empresas invadiram o domínio
artístico assumindo também suas funções (visando maior controle
do produto), esses artistas, embora em proporção menor, passaram a
acumular em ampla escala a função técnica, território inviolável das
gravadoras. Claro que isso sequer arranhou o poderio das empresas,
porém abriu um precedente significativo que se transformou numa
alternativa natural até para os grupos recém-formados.66

Nesse quadro, outra declaração de Itamar à impressa, publicada pelo


Jornal da Tarde em 10 de julho de 1982, revelava lucidez em relação às questões
de ordem estética – e ingenuidade ou resistência em relação às questões de
ordem mercadológica:

64. Cf. BARNABÉ, Arrigo, “Imbecis dirigem as gravadoras”, edição citada.


65. Cf. LEITE, Geraldo, “Marginal não é critério estético”. Folha de S.Paulo, caderno
Ilustrada, 31/1/1982, p. 50.
66. Cf. TATIT, Luiz, “Antecedentes dos independentes”. In: TATIT, L. Todos entoam: ensaios,
conversas e canções. São Paulo: Publifolha, 2007, p. 122-123. Publicado originalmente em
Arte em Revista, ano 6, n. 8, outubro de 1984. Para outra discussão desse artigo de Tatit,
ver DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura, edição citada, p. 140.

96
Os espaços culturais não criam, apenas divulgam. (...) Eu tenho uma
autocrítica muito grande e só coloquei meu trabalho na rua quando
tive a certeza de estar mexendo com as formas musicais e de linguagem.
A arte é ágil e portanto os espaços culturais (teatro ou televisão) é que
têm de adaptar-se à minha apresentação.67

Na década seguinte, em 1993, Itamar Assumpção afirmaria que sempre


desenvolvera o seu trabalho “longe das pressões de mercado, (...) sem pressa,
com ‘preocupações exclusivamente artísticas”. E, perguntado se “gostaria
de tocar no rádio, de fazer sucesso junto ao grande público”, respondeu:
“Claro que não quero, eu seria massacrado... Atitudes como obrigar o Luiz
Melodia a gravar Cazuza pra tocar na novela não se sustentam. Se eu quiser
acabar com meu trabalho, eu faço isso e pronto, meu trabalho nunca vai ser
reconhecido”. Itamar Assumpção se referia a “Codinome beija-flor” (Cazuza/
Ezequiel Neves/ Reinaldo Arias), cuja gravação feita por Luiz Melodia para a
trilha sonora de O dono do mundo, uma das então chamadas “novela das oito”
da Rede Globo, alcançara enorme sucesso – diga-se de passagem, sucesso
que se estende até hoje. Mas, durante a entrevista, Itamar foi avisado “que
Rita Lee [estava] no rádio cantando”, naquele momento, uma composição
dele e correu para escutá-la: “Claro que eu quero chegar nas pessoas. Que
legal se o Brasil todo ouvisse minha música! (...) A coisa tem que chegar
nisso, se não, estou inventando só na minha cabeça essa coisa de cantor de
música popular”.68
A contradição é só aparente, e o episódio nada tem de incompreensível.
De fato, tanto o trabalho de Itamar Assumpção não poderia se realizar
“fora dos meios que a tecnologia oferecia”69 como não faria sentido se
não fosse consumido por um público mais ou menos amplo. Por outro
lado, é evidente que a ideia de “o Brasil todo” ouvir uma música decorre

67. Cf. LOPES, Maria Amélia Rocha, “Itamar gosta do Lira. E também da tevê”, edição citada.
68. Cf. SANCHES, Pedro Alexandre, “São Paulo é invadida por ‘Bicho de sete cabeças’”,
edição citada. Cf. LUIZ MELODIA, “Codinome beija-flor”. Autores: Cazuza; Ezequiel
Neves; Reinaldo Arias. In: LUIZ MELODIA. Série Bis: Luiz Melodia. EMI, 526497 2, 2005,
CD 2. Fonograma lançado em 1991. Pode-se supor que Rita Lee estivesse cantando “Só vejo
azul”, que ela e Itamar Assumpção compuseram em parceria. Cf. LEE, Rita, “Só vejo azul”.
Autores: Rita Lee; Itamar Assumpção. In: LEE, Rita. Rita Lee. Som Livre, 405.0034, 1993.
69. Cf. AMOROSO, Maria Betânia, “De óculos escuros pela cidade”. In: CHAGAS, Luiz;
TARANTINO, Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 1, edição
citada, p. 49.

97
das armadilhas ideológicas forjadas na prática do mercado fonográfico
hegemônico, sobretudo quando do seu crescimento nos anos de 1970, para
o qual contribuíram significativamente as trilhas sonoras de novelas da Rede
Globo.70 Assim, a contradição real não se dava entre o discurso e a atitude
de Itamar, ao dizer que recusava o sucesso estrondoso e correr para ouvir a
sua composição no rádio, mas sim entre o trabalho de criação artística de
um cancionista popular e a propriedade dos meios tecnológicos de difusão –
propriedade que era (e ainda é) exercida de par com as políticas de concessão
de rádio e de televisão e cujo funcionamento tem por objetivo principal a
venda de espaços publicitários, não a difusão da arte.
Tampouco é incompreensível que, em outra entrevista realizada quatro
anos mais tarde, Itamar Assumpção tenha definido a linha evolutiva da música
popular brasileira à qual procurava dar continuidade citando dois artistas
negros que sobreviveram como trabalhadores braçais: “Clementina de Jesus
foi doméstica 60 anos, Cartola lavou carros 25 anos, eu sou dessa ‘tchurma’.
Mas estou dando um passo à frente deles, insistindo em viver de música”.
Na mesma entrevista, Itamar afirmou que prosseguia trabalhando porque
revolvera “sobreviver do mínimo”; mas também disse que iria embora – já
havia se apresentado na Europa em 1988, 1990 e 1996 – se não quisessem
“dar cultura ao povo”:
Não sou obrigado a aguentar isso. Espero até o fim do ano, se ninguém
se tocar, eu pego minha malinha, meu passaporte e vou embora para
a Europa. (...) Não consigo mais trabalhar aqui. Não quero mais tocar
em bar, Sesc, Centro Cultural. Não dá mais para nós que não temos
mídia. É mais simples investir US$ 1 milhão no Roberto Carlos que
R$ 200 mil no Itamar. Vou pegar meu passaporte. (...) Não tenho por
que estar numa gravadora se não me levarem ao Faustão, se não me
jogarem na roda. Sou um músico popular. (...) Rumo, Arrigo, Premê
tiveram que parar, não tinha mais jeito. (...) Estou falando em nome
da minha geração, não é o Itamar reclamando. Para eu ficar no Brasil

70. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura, edição citada, p. 63-66.

98
é uma coisa mínima, mas não vou continuar aqui trabalhando pela
cultura se ninguém apoia.71

O foco de “Clara Crocodilo”


“Clara Crocodilo” (Arrigo Barnabé/ Mario Lucio Cortes) fecha o lado B
do LP homônimo, lançado por Arrigo em 1980. Sua narrativa é introduzida
por “Office-boy” (A. Barnabé), faixa anterior, a qual relata a transformação
de Durango em monstro mutante. Retomarei de modo sintético esse relato.
Durango era office-boy e “trabalhava que nem um desgraçado a
semana inteira”. “No sábado, porém, ele estava duro” – a gíria que dá nome
ao personagem é apenas o primeiro sinal da influência das histórias em
quadrinhos nessa composição e no disco de Arrigo. Note-se que Durango
estava duro não só porque estava sem dinheiro, mas também porque pensava
“naquela vedete morena que tirava a roupa no Áurea Strip Show”. Ele, então,
liga a tevê (“Primeiro erro”) e presta “atenção na imagem que estava sendo
transmitida” (“Segundo erro”). Horrorizado, vê a transformação de “sua
antiga namoradinha” Perpétua – note-se a ironia do nome – de “caixa num
supermercado” em chacrete, “uma estrela famosa”. Carecendo de dinheiro
para “possuí-la novamente”, Durango se lembra de um anúncio de jornal:
“Procura-se rapaz para testar um novo produto. Paga-se bem!”. Vai sozinho
até o endereço e encontra “uma enfermeira bonita, gostosa”, que lhe dá uma
injeção.
E ele flutua. Transforma-se “num terrível monstro, meio homem, meio
réptil, vítima de um poderoso laboratório multinacional que não hesitou em
arruinar sua vida para conseguir seus maléficos intentos”. Junto da influência
das histórias em quadrinhos, seguidamente reafirmada, note-se o comentário
sobre a modernização econômica – aliás, presente desde a caracterização do
personagem, o qual, não deixando de ser uma caricatura, também esboça
um tipo social.
Como já destacou Luiz Nazario, em ensaio publicado em 1983 (portanto,
no calor da hora), a “mutação radical” em monstro faz de Durango não “uma

71. Cf. SANCHES, Pedro Alexandre, “Os rebeldes”. Matéria jornalística sobre Hyldon e
Itamar Assumpção. Folha de S.Paulo, caderno Ilustrada, 21/7/1997, p. 1.

99
vítima comum, mas uma vítima total”.72 Mas Clara Crocodilo, contrariando
os cálculos dos cientistas, conserva “parte de sua consciência”. É isso, ainda
segundo Nazario, “que faz com que se revolte”, tornando-se não “um
carrasco comum, mas um carrasco total. Sua fúria não tem objeto: é todo
conglomerado que ameaça (...), realizando, de dentro para fora, a destruição
da sociedade”.73 Adiante retomarei o ponto.
Até aqui, limitei-me a sintetizar o relato que se escuta em “Office-boy”.
Convém esclarecer que Arrigo Barnabé não considera que “Office-boy”
ou “Clara Crocodilo” sejam canções.74 Isso porque, segundo argumenta,
o seu modo de compor se liga antes ao trabalho com as formas musicais
(harmonia, melodia, ritmo) do que com a junção de melodia e letra, trabalho
por excelência do cancionista.75 Assim, para Arrigo, “Office-boy” ou “Clara
Crocodilo” são obras carentes de definição, cujas partes cantadas têm menor
importância do que o todo, sendo um equívoco avaliá-las simplesmente a
partir da letra entoada. Levarei em consideração o argumento. Todavia, irei
me fixar na narração que “Clara Crocodilo” nos apresenta. Narração feita
com palavras, é claro, mas também com elementos musicais. Ao final da
interpretação, espero que a minha estratégia se justifique.

72. Cf. NAZARIO, Luiz, “O universo de Clara Crocodilo”. Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros, n. 59. São Paulo, IEB-USP, dez. 2014, p. 415. Disponível em: http://dx.doi.
org/10.11606/issn.2316-901X.v0i59p413-418. Acesso em: 23 mai. 2016. Texto originalmente
publicado em NAZARIO, L. Da natureza dos monstros. São Paulo: Edição do Autor, 1983,
p. 29-34.
73. Ibidem, p. 415-416.
74. Neste ponto, retomo e altero substancialmente alguns tópicos da análise de “Clara
Crocodilo” que apresentei no artigo “Os mutantes de São Paulo” (Cultura Vozes, v. 90, n.
4. Petrópolis/ São Paulo, jul.-ago. 1996, p. 79-96). As opiniões de Arrigo Barnabé foram por
mim anotadas na entrevista que realizei em 1996, quando da elaboração daquele artigo.
Regina Machado, que também entrevistou o compositor, assinala em relação a “Diversões
eletrônicas” (A. Barnabé/ Regina Porto), outra faixa do LP Clara Crocodilo: “Embora a trama
desenvolvida na letra seja o centro da composição, a condução do arranjo e da execução
vocal é claramente orientada pela questão musical, mais do que pela interseção letra/música,
indício básico para sabermos que neste caso específico não estamos tratando com canção,
sendo outra a sintaxe abordada. Diversamente de tudo que analisamos até aqui, agora é
predominantemente a música que conduz as articulações do texto”. Cf. MACHADO, R. A voz
na canção popular brasileira: um estudo sobre a vanguarda paulista, edição citada, p. 97-98.
75. Cf. TATIT, Luiz. O cancionista. São Paulo: Edusp, 1996.

100
“Clara Crocodilo” se abre com a emissão gutural de Arrigo Barnabé,76
locutor que nos conta o que aconteceu com o monstro mutante e o que está
para acontecer após a sua libertação em “São Paulo, 31 de dezembro de 1999”,
data que então parecia longínqua. Arrigo fala sobre: a) uma nuvem ruidosa
de sons sintetizados, de gritos, de frases ao piano; b) uma célula recorrente
de baixo amparada ritmicamente pela bateria a marcar os 7 tempos de cada
compasso; de um lado, a fórmula de compasso 7/4, como se sabe, é pouco
usual na canção popular brasileira, e é a partir dela que a composição se
estrutura – de modo pouco usual, portanto; de outro lado, como André
Cavazotti já observou, a compreensão do ouvinte é facilitada “pelo alto
grau de redundância” do padrão rítmico, redundância que possibilita certa
“previsão dos eventos”.77
Em síntese, à semelhança de outras composições de Arrigo Barnabé,
“Clara Crocodilo” se caracteriza, desde a sua abertura, por “uma densidade
tipo ‘instrumental’ (menos ‘espontânea’ e mais construída que a de
Egberto[Gismonti] e Hermeto [Paschoal]), e, ao mesmo tempo, oral (meio
cantada, meio falada, próxima da história em quadrinhos e das dicções-
distorções do rádio policial)”.78 O locutor relata, com voz falada, que Clara
estivera “aprisionado por mais de 20 anos” em um “velho disco”. Entre
parênteses, a concordância de “Clara” é feita no masculino (silepse de gênero)
ao início da letra e no feminino ao final, o que dá o que pensar acerca dos
efeitos da mutação sobre o desejo e/ou a anatomia de Durango.79 O “ouvinte
incauto” comprou o disco “num sebo” e o colocou na vitrola. Escutando-se

76. Uma interessante análise da emissão de Arrigo Barnabé, bem como das vozes em
“Diversões eletrônicas” (Arrigo Barnabé/ Regina Porto), foi empreendida por Regina
Machado. Cf. MACHADO, R. A voz na canção popular brasileira: um estudo sobre a
vanguarda paulista, edição citada, p. 96-101.
77. Cf. CAVAZOTTI, André, “O serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB: as canções
do LP Clara Crocodilo de Arrigo Barnabé”. Per Musi, v. 1. Belo Horizonte, UFMG, 2000, p.
13. Disponível em: http://www.musica.ufmg.br/permusi/port/numeros/01/num01_cap_01.
pdf. Acesso em: 6 fev. 2015.
78. Cf. WISNIK, José Miguel, “Arrigo: dodecafônico com balanço”. Folha de S.Paulo,
caderno Folhetim, 28/4/1985, p. 5.
79. Para um relato de Arrigo Barnabé acerca do processo de criação do nome “Clara
Crocodilo”, partindo da sonoridade e avançando até as oposições entre feminino e masculino,
entre luz (Clara) e “negócio esquisito” (crocodilo), ver FENERICK, José Adriano. Façanhas às
próprias custas: a produção musical da vanguarda paulista (1979-2000), edição citada, p. 120.

101
o disco, “o perigoso marginal, o delinquente, o facínora, o inimigo público
número 1” desperta. “Clara Crocodilo”, portanto, nos conta a violência do
monstro contra cada um de nós, aqueles que ouvimos o LP. Além do que já
foi apontado, a narração que escutamos se vale:
a) da contracultura;
b) da ideia de que o passo adiante na linha evolutiva da música popular
brasileira, depois da tropicália, seria a mudança na linguagem musical baseada
não só na pesquisa com fórmulas de compasso, mas no serialismo e no
atonalismo;80
c) da linguagem dos anúncios comerciais e de clichês de terror e de
ficção científica, seja porque “‘o universo onírico do surrealismo, com todos

80. Cf. SOUZA, Tárik de, “Microfones abertos: com a última palavra, Arrigo Barnabé”.
In: SOUZA, T. de. O som nosso de cada dia, edição citada, p. 197; CAVAZOTTI, André,
“O serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB: as canções do LP Clara Crocodilo de
Arrigo Barnabé”, edição citada, p. 11-12; VAZ, Gil Nuno. História da música independente.
São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 27-32; OLIVEIRA, Laerte Fernandes de. Em um porão de
São Paulo: o Lira Paulistana e a produção alternativa, edição citada, p. 64; FENERICK, José
Adriano. Façanhas às próprias custas: a produção musical da vanguarda paulista (1979-
2000), edição citada, p. 116- 119. Como se sabe, a ideia de linha evolutiva foi enunciada por
Caetano Veloso em 1966, no debate “Que caminho seguir na música popular brasileira”,
proposto pela Revista Civilização Brasileira; em linhas gerais, Caetano defendeu a retomada
do ensinamento – não do estilo – de João Gilberto enquanto “organicidade para selecionar
e ter um julgamento de criação”. Cf. BARBOSA, Airton Lima (org. e coord.), “Que caminho
seguir na música popular brasileira”. Debate com Flávio Macedo Soares, Caetano Veloso,
Nelson Lins de Barros, José Carlos Capinam, Gustavo Dahl, Nara Leão e Ferreira Gullar.
Revista Civilização Brasileira, ano I, n. 7. São Paulo, mai. 1966, p. 375-385 (a citação pode
ser lida à p. 378). Para que a ideia se tornasse célebre ao longo do tempo, foi decisiva a sua
discussão em Balanço da bossa e outras bossas, livro organizado por Augusto de Campos. Cf.
CAMPOS, Augusto de (org.). Balanço da bossa & outras bossas. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva,
1986. Referida à obra de Arrigo Barnabé, a ideia de linha evolutiva foi criticada por José
Adriano FENERICK; cf. Façanhas às próprias custas: a produção musical da vanguarda
paulista (1979-2000), edição citada, p.116-119. Os demais autores citados que estudaram a
obra de Arrigo não mencionam a linha evolutiva; e, salvo desconhecimento meu, a ideia
tampouco é diretamente enunciada pelo próprio Arrigo Barnabé, cujas entrevistas fazem
referência à tropicália e à história da música erudita europeia (cf. CAVAZOTTI, André,
“O serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB: as canções do LP Clara Crocodilo de
Arrigo Barnabé”, edição citada, p. 12) ou à cultura em geral e em abstrato: “a cultura tem seu
caminho próprio, o que eu fiz ia acabar acontecendo” (cf. SOUZA, Tárik de, “Microfones
abertos: com a última palavra, Arrigo Barnabé”. In: SOUZA, T. de. O som nosso de cada
dia, edição citada, p. 197). Já Pedro Mourão, do grupo Rumo, afirmou em entrevista: “Não
queríamos repetir as fórmulas criativas que estavam vindo. A ideia era evoluir... Era uma
ideia clara de evolução criativa. Estávamos influenciados pela ideia de ‘linha evolutiva da
MPB’”. Cf. OLIVEIRA, Laerte Fernandes de. Em um porão de São Paulo: o Lira Paulistana
e a produção alternativa, edição citada, p. 65.

102
os seus clamorosos elementos sexuais, foi posto a serviço da publicidade
e transferido para os filmes de terror e para não poucos temas de ficção
científica’”,81 seja porque os habitantes das grandes metrópoles, na passagem
da década de 1970 para a de 1980, já ouviam os “barulhos intermitentes da
cidade, permeada por símbolos publicitários”,82 já aspiravam à autopromoção,
marca do mundo das celebridades, e já sentiam que o progresso dera em
violência desmedida. Adiante retomarei o ponto.
“De vítima a carrasco”: este é o movimento básico das personagens de
Arrigo Barnabé, segundo Luiz Nazario. Para o crítico, personagens como
Clara Crocodilo dominam “as forças que subjugam o homem”, forças que
são várias, já que configuram toda a “moderna engrenagem social”, a qual
velozmente “transforma os que se deixam morder e engolir”, produzindo “som
e fúria nas metrópoles” como resultado da brutalidade e da indiferença “de
todos em relação a todos”.83 Dominando essas forças, Clara Crocodilo repudia
o presente, um tempo que apenas lhe oferece a transformação em mutante
pelos interesses e pela falta de escrúpulos de uma empresa multinacional,
à qual se oferecera porque “estava duro”. Não há exagero em afirmar que “a
transformação do homem em objeto do homem, que é uma das maldições
ligadas à falta de liberdade verdadeira, econômica e espiritual”, está no cerne
da experiência social concreta sintetizada na/pela narração.84 E note-se que
Clara se projeta para o futuro, para o apocalíptico, ou talvez próspero, ano
2000 – que já faz parte do nosso passado...! Aprisionada em um disco – por
ironia, ou não, de fato não havia maior prisão para uma obra fonográfica,

81. Cf. FORTINI, Franco, apud NAZARIO, Luiz, “O universo de Clara Crocodilo”, edição
citada, p. 416.
82. A frase entre aspas é de Erico Chiavareto Pezzin, aluno de graduação da USP, em
trabalho de aproveitamento sobre “Acapulco drive-in” (Paulo Barnabé/ Otávio Fialho/ Gi
Gibson/ Arrigo Barnabé), primeira faixa do LP Clara Crocodilo.
83. Cf. NAZARIO, Luiz, “O universo de Clara Crocodilo”, edição citada, p. 415-416.
84. A citação entre aspas é de Antonio Candido e originalmente se refere à obra de Machado
de Assis. Cf. CANDIDO, Antonio, “Esquema de Machado de Assis”. In: CANDIDO, A. Vários
escritos. 3ª ed. rev. e ampliada. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 34. Contudo, o ensaio de
Candido é de 1968, e penso que a sua crítica, se fazia jus ao Brasil de Machado, também se
endereçava ao período que, iniciado em 1964 e passando por diversos momentos, alcançaria
Clara Crocodilo e se estenderia até 1988, quando da promulgação da atual Constituição,
se pensarmos no “entulho autoritário” da Censura; ou se estenderia até nossos dias, se
pensarmos na liberdade econômica que segue produzindo durangos.

103
na década de 1980, do que a sua inclusão em um disco fora do círculo
gravadoras/meios de difusão em massa, por conta das consequentes má
divulgação e péssima veiculação –, Clara Crocodilo guarda ali a sua ira e a
sua violência, frutos da sua consciência em parte preservada.
Enquanto aguarda sem ser ouvida, Clara é uma morta-viva, consciente
mas inútil como pode ser um disco que não é tocado. E, assim que é ouvida,
Clara se vinga, passa a ameaçar quem a libertou, ou seja, passa a ameaçar
cada um de nós que a escutamos. Mas a composição dá uma guinada quando
Clara, que nos atira sua munição musical, não consegue nos matar. Passamos
a perseguir o monstro, que se esgueira em um labirinto musical. Podemos
desejar-lhe a morte, mas temos de seguir Clara nesse labirinto. E ela foge.
O desfecho da história retoma, em outro nível, o seu início. Nem o
monstro consegue nos matar, nem conseguimos matá-lo. Se, entre o ano de
1980 e 31 de dezembro de 1999, Clara mantinha-se uma morta-viva, agora
ela vive escondida. Para Arrigo Barnabé, ela se transformou em labirinto,
ela é o labirinto musical, de onde continua a ameaçar seus perseguidores, ao
mesmo tempo que lhes envia, ou melhor, que nos envia pedidos de ajuda.85
Existe como potência – mas não como ato. Um mutante que está vivo com
semivida, por assim dizer.

Um salto interpretativo
Em entrevista concedida em 1982, Arrigo Barnabé afirmou: “Eu tenho
muito essa de sair por aí [em São Paulo], saio sempre duro, observando o
carinha que me serve na pastelaria, o jogador de fliperama. Vim de cidade
pequena [Londrina] e noto coisas que as pessoas normalmente não veem.
Já me chamaram de humanista radical”.86 Para José Miguel Wisnik, “a voz
de Arrigo encarna (...) o bandido, o delinquente emergente em toda parte,
de fora e de dentro” da metrópole, desse “mundo da concorrência” em que
todos estamos mergulhados.87

85. Cf. entrevista com Arrigo Barnabé, São Paulo-SP, 1996.


86. Cf. SOUZA, Tárik de, “Microfones abertos: com a última palavra, Arrigo Barnabé”. In:
SOUZA, T. de. O som nosso de cada dia, edição citada, p. 199.
87. Cf. WISNIK, José Miguel, “O canto falado e a fala cantada do grupo Rumo”. Folha de
S.Paulo, caderno Ilustrada, 31/5/1987, p. A-53.

104
Já Itamar Assumpção sentiu-se indignado (o sentimento é assim definido
por Anelis Assumpção) quando se mudou para São Paulo. Nas palavras
do compositor: “Eu venho do interior, São Paulo me fala: ‘Aqui é terra de
ninguém’. Eu sou obrigado a aprender a viver numa metrópole. Essa massa
sem cara, né...”.88 Seu depoimento pode ser mais bem compreendido à luz
de um trecho de outra entrevista, concedida por Itamar a Robinson Borba
em 1993:
Foi bem nesse momento, assim que a minha avó morreu [em 1962],
me deu um corte em tudo, e fui pro Paraná morar com os meus pais.
Corte em tudo mesmo, corte, que nem cinema. Fui parar num outro
cenário, fui para Paranavaí de cara, e não tinha asfalto, aquela estradeira...
Aí chegamos lá, rio e casa de madeira, não conhecia isso. Farinha de
mandioca nunca tinha comido, só farinha de milho. Depois meu pai
foi transferido para Arapongas. Foi onde fiquei, formei a base da vida
ali (grifo meu).89

Darei um salto interpretativo. Será útil estabelecer uma comparação


entre Arrigo e Itamar, de um lado, e Racionais MC’s e Facção Central, de
outro. Esclareça-se que tomo por base a noção de sentido histórico formulada
por T. S. Eliot no estudo da tradição literária: “O que acontece quando da
criação de uma obra de arte é algo que acontece simultaneamente a todas as
obras de arte que a precederam”.90 Esclareça-se ainda que não espero provar
por a + b minha interpretação, útil à medida que ajude na compreensão dos
sentidos de “Clara Crocodilo” e de “Nego Dito”.
No rap do Racionais MC’s ou no do Facção Central, as canções traduzem
o bandido, o marginal, talvez o revolucionário. Penso que três exemplos sejam
suficientes: “Tô ouvindo alguém me chamar”, de Mano Brown, gravado pelo
Racionais MC’s em 1997; “O menino do morro”, de Eduardo Taddeo, gravado
pelo Facção Central em 2003; “Mil faces de um homem leal (Marighella)”,

88. Cf. VELLOSO, Rogério (direção). Itamar Assumpção: Daquele instante em diante,
edição citada.
89. Cf. GIORGIO, Fabio H., “Vanguarda paranaense”. In: CHAGAS, Luiz; TARANTINO,
Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 2, edição citada, p. 21.
90. Cf. ELIOT, T. S. “A tradição e o talento individual”. In: ELIOT, T. S. Ensaios de doutrina
crítica. Lisboa: Guimarães, s.d., p. 24.

105
de Mano Brown, clipe do Racionais MC’s, com participação do rapper
Dexter, de 2012.91 No trabalho de Arrigo Barnabé, assim como no de Itamar
Assumpção, o que ocorre é o oposto. O bandido, o delinquente, o carrasco, o
malandro que é quase um marginal são figuras que traduzem, em palavras e,
portanto, em representações sociais, a construção musical ou a cancional e o
lugar das produções de Arrigo Barnabé e de Itamar Assumpção no mercado.
Explicando melhor, o foco de Arrigo é o trabalho musical, assim como
o foco de Itamar é o trabalho cancional. Com essa medida de importância é
que se deve entender uma afirmação de Itamar Assumpção: “Eu acho que a
minha geração, Rumo, Arrigo, é a geração que mais pôde desenvolver uma
linguagem em música no Brasil ultimamente”.92 Já o foco do Racionais MC’s
ou o foco do Facção Central é a realidade violenta que deve ser reelaborada,
são os seus sujeitos, são as relações que esses sujeitos mantêm entre si, são os
fatores políticos, sociais, culturais, econômicos que geram e que constroem
essas relações violentas e, por conseguinte, que geram e que constroem esses
sujeitos violentos.93
Se não estou equivocado, o foco no trabalho musical ou no trabalho
cancional ajuda a esclarecer por que as composições de Arrigo e as de
Itamar, quando cantam o marginal ou quando fazem cantar o marginal,
não possuem a força que se sente nos raps do Racionais e nos raps do
Facção. Na audição das composições de Arrigo e de Itamar, experimentam-se
sobretudo novas linguagens de música e de canção. Na audição dos raps do

91. Cf. RACIONAIS MC’S, “Tô ouvindo alguém me chamar”. Autor: Mano Brown. In:
RACIONAIS MC’S. Sobrevivendo no inferno, edição citada. Cf. FACÇÃO CENTRAL. “O
menino do morro”. Autor: Eduardo Taddeo. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=b28uv0Euuco. Acesso em: 15 dez. 2014. Fonograma lançado em 2003. Devo a
indicação de “O menino do morro” a Alexandre Juliete Rosa. Cf. RACIONAIS MC’S, “Mil
faces de um homem leal (Marighella)”. Autor: Mano Brown. In: FERRAZ, Isa Grinspum
(direção). Marighella. TC Filmes/ Texto & Imagem/ LK TEL Distribuidora de Filmes/ Paris
Filmes, 11192DV, s.d. Extra do DVD. Na internet, cf. RACIONAIS MC’S, “Mil faces de um
homem leal (Marighella)”. Autor: Mano Brown. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=2tN2obABcOI. Acesso em: 15 dez. 2014. Videoclipe lançado em 2012.
92. Cf. VELLOSO, Rogério (direção). Itamar Assumpção: Daquele instante em diante,
edição citada.
93. Cf. BOTELHO, Guilherme; GARCIA, Walter; ROSA, Alexandre, “Três raps de São
Paulo: ‘Política’, Athalyba-Man (1994); ‘O menino do morro’, Facção Central (2003); ‘Mil
faces de um homem leal (Marighella)’, Racionais MC’s (2012)”. In: LACERDA, Marcos
(org.). Música (Ensaios brasileiros contemporâneos). Rio de Janeiro: Funarte, 2016, p. 171-201.

106
Racionais e do Facção, experimenta-se a força de representação, de síntese e
de potencialização de uma realidade que vem pautando as grandes cidades
brasileiras desde a década de 1970.
Novamente se não estou equivocado, essa diferença também ajuda a
esclarecer a menor repercussão que Arrigo e Itamar alcançaram em relação a
Racionais MC’s ou Facção Central, menor repercussão que é uma evidência
factual. É lógico que esse não seria o único fator. De um lado, Arrigo Barnabé
e Itamar Assumpção, no fim das contas, sempre trabalharam à margem
dentro do sistema da chamada MPB, um dos eixos que estrutura o mercado
fonográfico hegemônico no Brasil desde a década de 1960 até hoje, em que
pesem as várias alterações desencadeadas pela tecnologia digital. Daí Itamar
haver se queixado, em 1993, do rótulo “vanguarda paulistana” com que
ele e Arrigo passaram a ser identificados na mídia: “É sempre ‘vanguarda
paulistana’, nunca somos caracterizados como MPB, que é o que somos
realmente. (...) Na Europa é que fui me sentir legitimado como representante
da tradição de compositores da MPB”.94 De outro lado, o Racionais MC’s e o
Facção Central nunca dependeram desse sistema da MPB para a produção,
a difusão e o consumo dos seus trabalhos – ambos dependeram e ainda
dependem fundamentalmente do sistema do rap.95 Ocorre que o sucesso
em um mercado periférico ou no mercado hegemônico ou em um lugar
marginal dentro do mercado hegemônico não é nem simples nem fácil de

94. Cf. SANCHES, Pedro Alexandre, “São Paulo é invadida por ‘Bicho de sete cabeças’”,
edição citada.
95. Retomo exposição já feita na Introdução de Melancolias, mercadorias. A noção de sistema
é adaptada de estudos de Antonio Candido sobre literatura brasileira. Refiro-me, assim,
a um conjunto articulado de: a) produtores (compositores, cantores, músicos, produtores
fonográficos) e obras, havendo o reconhecimento de influências, continuidades e rupturas,
bem como de gêneros e de estilos, “funcionando como exemplo ou justificativa daquilo que se
quer fazer”; cf. CANDIDO, A. Iniciação à Literatura Brasileira (Resumo para principiantes),
edição citada, p. 13; b) receptores, “os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não
vive”; cf. CANDIDO, A., “A literatura como sistema”. In: CANDIDO, A. Formação da
literatura brasileira: momentos decisivos, v. 1, edição citada, p. 23; c) meios técnicos de
gravação e reprodução, aliados a meios de transmissão em massa e a locais de venda (meios
de transmissão e locais de venda que põem em contato obras/produtores e receptores; e
onde atuam diversos intermediários: programadores, apresentadores, repórteres, críticos,
pesquisadores, publicitários, divulgadores, balconistas, etc.); cf. CANDIDO, A. O método
crítico de Sílvio Romero. São Paulo: Edusp, 1988, p. 9. Cf. GARCIA, Walter. Melancolias,
mercadorias: Dorival Caymmi, Chico Buarque, o pregão de rua e a canção popular-comercial
no Brasil. São Paulo: Ateliê Editorial, 2013, p. 15-16.

107
ser explicado. De todo modo, um tipo de narração que, em última análise,
não convence enquanto condensação da realidade concreta pode ter sido
um dos fatores que diminuíram a eficácia daquelas duas obras, a de Arrigo
e a de Itamar.

O ponto de vista de “Nego Dito”


Na avaliação de Laerte Fernandes de Oliveira, “Itamar é o que se
pode chamar de cronista moderno, aquele que articula ficção e realidade,
tematizando os fatos da vida urbana”. Reconheço que “as letras de Itamar
também emergem [do cotidiano das grandes cidades] como tentativas de
colecionar cacos perdidos e de construir uma outra história”.96 Porém, como
espero ter deixado claro, meu entendimento é outro. Para mim, os “cacos
perdidos” do cotidiano traduzem, em palavras e, portanto, em representações
sociais (com perdão pela repetição), o sentido principal da obra de Itamar: a
partir de certa distância, olhar diversas formas cancionais, diversos gêneros
de canção popular; desse ponto de vista distanciado resultam diferentes
comentários sobre essas formas, e assim a sua obra constrói “uma outra
história” da canção – não do cotidiano, mas da canção.97
Tal sentido se mostra de forma mais evidente em “Nega música” (Itamar
Assumpção), do disco Beleléu, Leléu, Eu, de 1981. O tema desse cânon é a
própria canção que, de forma inesperada, “toca/ o fundo do seu coração/
assim como uma mulher”. Esse é o primeiro plano de sentido: um cânon,
ou seja, uma estrutura polifônica de melodia e letra reflete sobre a textura
homofônica (uma melodia acompanhada por acordes encadeados) das
canções populares que hoje ouvimos. Em segundo plano, ao comparar a
canção inesperada à mulher, o cânon também faz uma declaração de amor.
Daí a polissemia do título: “Nega música”, música dedicada à Nega, música
que nega o tipo de canção popular com o qual nos acostumamos.

96. Cf. OLIVEIRA, Laerte Fernandes de. Em um porão de São Paulo: o Lira Paulistana e a
produção alternativa, edição citada, p. 74.
97. Agradeço a David Forell, Marcelo Segreto, Marília Calderón, Vinícius Gueraldo e Yuri
Prado a oportunidade de discutir a obra de Itamar Assumpção no grupo de estudos que
mantivemos em 2011.

108
Mas o sentido de construção de uma outra história da música popular
não se encontra lá muito oculto em “Fico louco” (I. Assumpção), também
de Beleléu, Leléu, Eu.98 O mesmo se nota em pelo menos uma faixa de cada
trabalho posterior:
a) em “Batuque” (I. Assumpção), de Às próprias custas S/A, disco
de1982;99
b) na interpretação que Itamar confere, nesse mesmo disco, a “Vide
verso meu endereço” (Adorinan Barbosa). Segundo notou Gil Nuno Vaz,
trata-se de “um exemplo modelar e até didático do caráter entoativo da
canção popular (...), principalmente na estrofe final, em que o cantor faz
uma condensada gradação de canto para fala”;100
c) no disco Sampa Midnight – Isso não vai ficar assim, de 1985, na própria
“Sampa Midnight” (I. Assumpção);101
d) no disco Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!!!, de 1988,
em “Sutil” (I. Assumpção). Luiz Tatit já observou que a principal sutileza
dessa faixa está na “tensão básica” entre “uma forma musical muito bem
estabilizada” e “o canto ao sabor da força entoativa”;102

98. Cf. ASSUMPÇÃO, Itamar. Beleléu, Leléu, Eu. Atração Fonográfica, ATR 31033, 1998
[p1981].
99. Idem. Às próprias custas S/A. Disco lançado em 1982. Baratos Afins, BACD008, s.d.
[p1982].
100. Cf. VAZ, Gil Nuno. História da música independente, edição citada, p. 36.
101. Cf. ASSUMPÇÃO, Itamar. Sampa Midnight – Isso não vai ficar assim. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=d-vmlifcmVM. Acesso em: 29 jan. 2015. Disco lançado
em 1985.
102. Cf. TATIT, Luiz, “A transmutação do artista”. In: CHAGAS, Luiz; TARANTINO,
Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 1, edição citada, p. 28. O
disco Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!!! quase pode ser definido como “um
disco de mercado”, na linha de Suspeito, de Arrigo Barnabé, lançado um ano antes, em 1987.
Quase pode, ou seja, não pode. Pois embora o tratamento sonoro encaminhasse Itamar para
o mercado, o ponto de vista do disco permanecia distanciado, olhando criticamente para o
mercado hegemônico. Avaliem-se, p. ex., “Maremoto” (I. Assumpção), comentário sobre o
sambão, ou “Mal menor” (I. Assumpção), comentário irônico sobre a balada romântica ou
a música brega tocada em FM. Já “Zé Pelintra” (I. Assumpção/ Wally Salomão) talvez seja
a faixa que melhor se encaixe no clichê jornalístico “candidata a hit”. E, de fato, faz pensar:
por que não alcançou o sucesso de, p. ex., “A banda do Zé Pretinho”, de Jorge Ben Jor? Cf.
ASSUMPÇÃO, Itamar. Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!!!. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=2O7MaznFdo8. Acesso em: 6 fev. 2015. Disco lançado
em 1988. Cf. BEN JOR, Jorge. “Salve simpatia/ A banda do Zé Pretinho”. Autor: Jorge Ben
Jor. In: BEN JOR, J. Jorge Ben Jor. WEA Music, 398422479-2, 1998.

109
e) na trilogia Bicho de 7 cabeças, de 1993, em “Venha até São Paulo” (I.
Assumpção). Ainda segundo Luiz Tatit, um jogo sonoro feito com “regiões
paulistanas de nomes atraentes (Socorro, Liberdade, Bom Retiro etc.)” ou
que fazem “incontáveis homenagens a santos” e santas, mas sobretudo jogo
sonoro feito com “ressonâncias dos sons sibilantes (em s) ou chiantes (em
ch)” que espalham “o refrão ‘Venha até São Paulo ver o que é bom pra tosse’
por toda a canção”;103
f) no disco Pretobrás, de 1998, em “Dor elegante” (I. Assumpção/ Paulo
Leminski). Comparem-se essa gravação, com participação de Zélia Duncan,
e a gravação da mesma composição realizada pela cantora para o mercado
hegemônico: o que era um olhar sobre o reggae e sobre uma dor visceral
torna-se meramente um reggae pop104 que, entre outros aspectos, não alude a
nenhuma dor e pode integrar, sem tensões, a trilha sonora de uma belíssima
novela televisiva, com perdão pelo trocadilho;
g) em “Leonor” (I. Assumpção), de Vasconcelos e Assumpção – Isso
vai dar repercussão, disco gravado em 2001 e lançado em 2004. “Leonor” é
um comentário irônico sobre o samba que, na superfície da junção letra-
melodia, se realiza por meio do canto-falado de um sambista que discorre
sobre a sua condição social – o que soa como síntese da trajetória de Itamar,
marginal dentro do mercado.105

103. Cf. TATIT, Luiz, “A transmutação do artista”. In: CHAGAS, Luiz; TARANTINO,
Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 1, edição citada, p. 29. Cf.
ASSUMPÇÃO, Itamar. Bicho de 7 cabeças – Vol. I. Baratos Afins, BACD054, 2003 [p1993].
104. A expressão desajeitada quer indicar que não se trata mais da estilização do reggae,
gênero de música negra, mas da sua diluição em formato padronizado e bem produzido, capaz
de seduzir como um verme sonoro – ou, segundo a versão que celebra o fenômeno, capaz de
alavancar as vendas com seu efeito chiclete. Cf. ASSUMPÇÃO, Itamar. PretoBrás. Atração,
ATR 31057, 1998. Cf. DUNCAN, Zélia. “Dor elegante”. Autores: Itamar Assumpção; Paulo
Leminski. Disponível em: http://www.radio.uol.com.br/#/letras-e-musicas/zelia-duncan/
dor-elegante/1060132. Acesso em: 29 jan. 2015. Fonograma lançado em 2005. Agradeço a
David Forell a proposta de fazer a crítica de Zélia Duncan. Diga-se de passagem, assistir
a Totatiando, ótimo espetáculo musical de Zélia Duncan a partir da obra de Luiz Tatit,
apresentado em 2012, leva à reflexão sobre uma sociedade que produz e desperdiça talentos
artísticos na linha de montagem do mercado hegemônico.
105. Cf. VASCONCELOS, Naná; ASSUMPÇÃO, Itamar. Isso vai dar repercussão. Elo
Music, ELO 009, 2004. Deixei de mencionar qualquer fonograma do disco Ataulfo Alves
por Itamar Assumpção – Pra sempre agora. Por ora, a minha intuição é que as 20 faixas se
constroem a partir da crítica de Itamar a Ataulfo, mas seria necessário comparar gravações
para refletir sobre o trabalho de modo mais detido. Cf. ASSUMPÇÃO, Itamar. Ataulfo

110
Analisando “Nego Dito” (I. Assumpção), lançada no disco Beleléu, Leléu,
Eu, de 1981, Luiz Tatit observou que sempre prevaleceu “uma certa distância
satírica” entre Itamar Assumpção e seu personagem. E também afirmou que,
nas apresentações ao vivo, “o encaixe engenhoso dos acentos melódicos nas
sílabas de ‘benedito joão dos santos silva...’ levava o público a entoar em
coro o refrão, encarnando de algum modo o ponto de vista de Beleléu”.106
Mas fundamentalmente qual o ponto de vista dessa canção? Num processo
catártico, reagindo ao amedrontamento, o público encarnaria a violência
de um personagem entre a malandragem e a marginalidade?107 Penso que
a análise de Tatit aponta, de modo certeiro, para outra direção: o público
encarnava “o encaixe engenhoso dos acentos melódicos nas sílabas”, encarnava
uma estilização do reggae realizada à margem mas dentro do mercado
hegemônico.108 A personagem entre a malandragem e a marginalidade
dava pele, por assim dizer, à situação concreta de realização da obra, cujo
foco, explicitado na extensa repetição de frases na parte final, era a crítica
da padronização de um gênero de música negra no mercado hegemônico.
Dois comentários merecem ser feitos. O primeiro é que a gravação
de “Nego Dito” por Branca Di Neve, em 1987, daria novo sentido à canção:
afirmação da identidade negra por meio do samba-rock.109 O segundo é que,
salvo melhor avaliação, o público universitário que, consumindo-a na década
de 1980, deu um certo suporte à outra história da música produzida e difundida
por Itamar Assumpção – esse público universitário foi progressivamente
ganhando interesse pela música jovem do mercado hegemônico. Assim, não
apenas Itamar, mas todos os chamados independentes, mais cedo ou mais

Alves por Itamar Assumpção – Pra sempre agora. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=ZwtCIErOcuY. Acesso em: 29 jan. 2015. Disco lançado em 1995.
106. Cf. TATIT, Luiz, “A transmutação do artista”. In: CHAGAS, Luiz; TARANTINO,
Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 1, edição citada, p. 23-24.
107. Procuro dialogar com a análise que Regina Machado empreende de “Nego Dito”. No
meu entendimento, “tudo o que a letra dirá sobre Nego Dito e seu plano de amedrontamento
do ouvinte” é um aspecto secundário dessa canção. Cf. MACHADO, R. A voz na canção
popular brasileira: um estudo sobre a vanguarda paulista, edição citada, p. 91-96 (a frase
entre aspas pode ser lida à p. 94).
108. Espero que esteja claro que concordo com a análise de Luiz Tatit mas extraio conclusões
divergentes.
109. Cf. BRANCA DI NEVE. “Nego Dito”. Autor: Itamar Assumpção. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=JZPaPD5GTWo. Acesso em: 29 jan. 2015. Fonograma
lançado em 1987.

111
tarde, tiveram de se haver com a diminuição da força social que lhes sustentava
em uma fatia alternativa dentro do sistema da MPB. Por conseguinte, tiveram
de se haver com as possibilidades e as dificuldades de inserção no centro
do mercado hegemônico – um lugar que aceita tudo, menos a crítica séria
e consequente sobre o seu funcionamento, uma vez que aceitá-la de modo
sério e consequente colocaria em risco a sua hegemonia (daí o cinismo de
um prêmio como o de Melhor pesquisa, concedido pelo MPB Shell, da Rede
Globo, a Itamar Assumpção e a Banda Isca de Polícia em 1982).

Nota final
Para finalizar, sistematizarei o enquadramento histórico de “Clara
Crocodilo” e “Nego Dito”; e apresentarei um esquema para que se entenda
melhor um dos desdobramentos que a obra de Itamar Assumpção inspira
atualmente – pois se sabe que qualquer obra também vive dos desdobramentos
que inspira.
Pode-se afirmar que os olhares distanciados com que se estruturam
“Nego Dito” e “Clara Crocodilo”, à parte as singularidades de uma e de outra
composição – e à parte as singularidades de uma e de outra gravação –,
movem-se dentro do mesmo enquadramento histórico, formado na interação
de pelo menos cinco processos:
a) a “reorientação econômica” empreendida pelo Estado após 1964,
quando, “paralelamente ao crescimento do parque industrial e do mercado
interno de bens materiais”, fortaleceu-se “o parque industrial de produção
de cultura e o mercado de bens culturais”;110
b) durante a década de 1970, a expansão da indústria fonográfica no
Brasil, o círculo que essa indústria instituiu com os meios de comunicação
de massa, e ainda a consolidação do processo de racionalização das grandes
gravadoras multinacionais, de que fez parte o estabelecimento de dois tipos
de contratados: artistas de catálogo – “ligados à MPB, que [produziam] discos
com venda garantida por vários anos, mesmo que em pequenas quantidades”;
e artistas de marketing – ligados às “ondas de sucesso de determinados

110. Cf. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural,
edição citada, p. 114.

112
estilos ou gêneros musicais”, que produziam e eram promovidos “a um
custo relativamente baixo, com o objetivo de (...) vender milhares de cópias,
mesmo que por um tempo reduzido”;111
c) nos anos 1960 e 1970, a urbanização rápida e, “na base da sociedade
urbana”, o “trabalho subalterno, rotineiro, mecânico”;112
d) no mesmo período, a relativa ascensão social e, “bem ou mal”, a
incorporação de “padrões de consumo” e de “estilos de vida” considerados
modernos por parte dos trabalhadores urbanos;113
e) a violência, “interiorizada e realizada nas relações pessoais, econômicas
e políticas”, um dos resultados da modernização conservadora da política
econômica ditatorial: a violência entendida como “o poder para transformar
sujeito em coisa”.114
Sem pretender esboçar qualquer síntese, diga-se que um dos sentidos
da interação desses cinco processos pode ser apreendido em uma frase de
Renato Ortiz, ao analisar a “nova etapa do debate sobre a modernidade”
que o período das ditaduras militares inaugurou no Brasil: “O progresso
tornou-se presente, com suas promessas e decepções”.115
Pode-se também afirmar que “Nego Dito” e “Clara Crocodilo” se
nutriram de pelo menos quatro fatores em comum:
a) “a ingenuidade de pensar canção como arte, ou a música popular
brasileira como arte”, havendo a compreensão, mais tarde, de que a “música
popular está ligada ao mercado de forma uterina”, conforme Arrigo Barnabé
disse em entrevista realizada em 2000;116

111. Cf. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização
da cultura, edição citada, p. 82-94.
112. Cf. MELLO, João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando A., “Capitalismo tardio e
sociabilidade moderna”. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da vida privada no
Brasil, volume 4 (Contrastes da intimidade contemporânea), edição citada, p. 623.
113. Ibidem, p. 625.
114. Cf. CHAUI, Marilena, “O homem cordial, um mito destruído à força”. In: CHAUI, M.
Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Org. André Rocha. Belo Horizonte:
Autêntica Editora/ São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013, p. 242. Texto
originalmente publicado na Folha de S.Paulo, caderno Folhetim, 21/9/1980.
115. Cf. ORTIZ, Renato, “Revisitando o tempo dos militares”. In: REIS, Daniel Aarão;
RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). A ditadura que mudou o Brasil: 50
anos do golpe de 1964, edição citada, p. 126.
116. Cf. FENERICK, José Adriano. Façanhas às próprias custas: a produção musical da
vanguarda paulista (1979-2000), edição citada, p. 96.

113
b) a permanência e o desenvolvimento de atividades culturais dentro
das universidades brasileiras após 1964 e, sobretudo, 1968 – ou seja, em meio
à reorganização dos movimentos políticos estudantis vigiados, perseguidos
e desmantelados pelos aparelhos repressivos do Estado;117
c) os “notáveis progressos” que a “política ditatorial modernizante” trouxe
à universidade brasileira durante os “anos de ouro e de chumbo” da década
de 1970, quando inclusive foram destinadas “vultosas verbas” à pesquisa
por meio de agências específicas – CNPq, Capes, Finep –, constatação que
não deve ser vista como um elogio à ditadura, mas como uma tentativa de
apreensão de seu caráter variado e dos diversos tipos de apoio que recebeu
da sociedade civil;118
d) os vínculos entre teatro e canção, fortalecidos quando Arrigo e
Itamar se encontraram no início dos anos 1970, segundo expressão de Paulo
Leminski, na cidade do teatro: Londrina.119
Quanto aos desdobramentos que as obras dos dois compositores
inspiraram, até o momento em que escrevo, não identifico cancionistas que
trabalharam, senão episodicamente, a partir da obra de Arrigo Barnabé. Em
relação à obra de Itamar Assumpção, em 2014 foi lançado o disco Encarnado,
de Juçara Marçal.120 Os desdobramentos de Itamar que Encarnado realiza não
se restringem à faixa “E o quico?” (I. Assumpção).121 Por outro lado, não se

117. Referi-me ao “abandono definitivo da luta armada em favor de uma política pacífica de
mobilização das massas” e à “participação cultural com sentido político”, entre estudantes
universitários na década de 1970, em “Notas sobre ‘Cálice’ (2010, 1973, 1978, 2011)”. Para um
estudo do tema, ver MOTTA, Rodrigo Patto Sá, “A modernização autoritário-conservadora
nas universidades e a influência da cultura política”. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI,
Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe
de 1964, edição citada, p. 48-65.
118. Cf. REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à
Constituição de 1988, edição citada, p. 88-89.
119. Cf. AMOROSO, Maria Betânia, “De óculos escuros pela cidade”. In: CHAGAS, Luiz;
TARANTINO, Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não pensei nisso antes?, v. 1, edição
citada, p. 39.
120. Cf. MARÇAL, Juçara. Encarnado. Independente, 2014. Disponível em: http://www.
jucaramarcal.com.br/encarnado.html. Acesso em: 10 out. 2020.
121. No âmbito estritamente musical, a relação que Encarnado estabelece com a obra de Itamar
Assumpção confere maior profundidade à pesquisa da horizontalidade no acompanhamento
instrumental empreendida, no disco de Juçara Marçal, por Kiko Dinucci, Rodrigo Campos
e Thomas Rohrer. O assunto será abordado em “Nota sobre o disco Encarnado, de Juçara
Marçal (2014)”. Em relação à “horizontalidade” dos instrumentos musicais em Itamar

114
imagine que esse disco se dedique tão somente a desdobrar a sua obra – não
se trata disso. Como se percebe, o assunto é bastante vasto, e me limitarei a
esboçar um esquema restrito a essa composição, o que será suficiente para
os propósitos deste ensaio.
A gravação de “E o quico?” por Itamar, no disco Sampa Midnight –
Isso não vai ficar assim, de 1985, é formada por diversas vozes do cantor, o
que indica a configuração de um tipo social algo esquizofrênico.122 Note-se
que, embora se trate de um recurso que atravessa o disco, o sentido do
entrelaçamento de vozes muda de faixa para faixa, dependendo do tema
cantado e da forma particular de cada canção.
Em “E o quico?”, essas diversas vozes narram o causo da assombração
e do disco voador com distância irônica e sentimento algo violento, mas
também com acentuado balanço de música negra. É como se escutássemos
um homem que, saindo do interior para a grande metrópole, passasse a
experimentar o sem-sentido da vida na periferia do capitalismo e a vislumbrar
uma chance de sobrevivência na herança cultural que detém.123 Entretanto, a
distância irônica e a violência das vozes que se entrelaçam tornam ambígua
essa aposta na canção, na música, na dança em tempos de mundialização
da cultura (“vou para a França, vou pra Nice/ fazer um curso de dança”).
Já na gravação de “E o quico?” por Juçara Marçal não há ambiguidades
nem quanto à aposta na herança cultural, nem quanto ao insuportável da
vida nas grandes cidades brasileiras. A voz da cantora narra com doçura
irônica “o mal-estar na barbárie” (paráfrase “ao contrário” de Freud que tomo
de empréstimo de Isabel Loureiro, que a empregou em contexto diverso).124
No atrito com a instrumentação áspera, que sustenta a linha do canto, essa

Assumpção, consultar BASTOS, Maria Clara. Processos de composição e expressão na


obra de Itamar Assumpção. São Paulo, ECA-USP, 2012. Dissertação de mestrado em Artes.
122. Cf. ASSUMPÇÃO, Itamar. Sampa Midnight – Isso não vai ficar assim, edição citada.
123. Minha crítica da gravação de “E o quico?”, no disco Sampa Midnight, se alinha com
comentário de Wilson Souto Jr. (Gordo) sobre o personagem Beleléu, “black navalha” que
“tenta se defender da vida como pode” (cf. VELLOSO, Rogério (direção). Itamar Assumpção:
Daquele instante em diante, edição citada); e se baseia na indignação que Itamar Assumpção
experimentou quando se mudou para São Paulo, conforme citei anteriormente.
124. Cf. LOUREIRO, Isabel, “Em busca do futuro perdido: a tarefa política da nova geração”.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 59. São Paulo, IEB-USP, dez. 2014, p. 389-396.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i59p389-396. Acesso em: 29
ago. 2016.

115
doçura irônica intensifica o efeito de uma situação terrível dentro da qual
não se vê nenhuma saída. O que não leva a narradora, contudo, a entregar os
pontos: a sua aposta na herança cultural possui aquela dignidade consistente
e justa das coisas que permanecem distantes das várias embalagens vendidas
pela publicidade – e, por tabela, das várias formas de niilismo conformista.
Vale a pena registrar por escrito uma anedota que a própria Juçara
Marçal me contou informalmente. Nossa conversa girava em torno dos
sentidos de Encarnado. Ela se lembrou de uma cena apocalíptica imagi-
nada pelo compositor Douglas Germano. Uma onda gigantesca de lama
se ergue na cidade, sobre os prédios, avança em direção a uma pessoa, que
está andando sozinha na rua. Ela vê e se detém. Encara aquele tsunami de
lama, coloca as duas mãos na cintura, sorri, gargalha: “Rá, Rá, Rá!”.

116
Língua do “p” de pólvora

Festival Palco Hip Hop, Belo Horizonte, 13 de maio de 2012. Emicida


entra para cantar “Dedo na ferida”. Lançado em março na internet, o clipe
desse rap começa com uma dedicatória: “às vítimas do Moinho, Pinheirinho,
Cracolândia, Rio dos Macacos, Alcântara e todas as quebradas devastadas
pela ganância”. Mas a fala é substituída no festival, como se ouve no registro
em vídeo disponível no site do rapper:
– Antes de mais nada, somos todos Eliana Silva, certo? Levanta o seu
dedo do meio para a polícia que desocupa as famílias mais humildes. Levanta
o seu dedo do meio pros políticos que não respeitam a população, e vem
com nós nessa aqui. Mandando todos eles se f..., certo, BH? A rua é nós.
Terminado o show, policiais militares que estão de serviço no evento
prendem Emicida por desacato. Segundo o boletim de ocorrência, reproduzido
no site do rapper, a fala teria sido outra:
– Eu apoio a invasão do terreno “Eliana Silva”, região do Barreiro, tem
que invadir mesmo, levantem o dedo do meio para cima, direcione aos
policiais, pois todos esses têm que se f...
Não tenho conhecimento para discutir se a conduta de Emicida se
enquadra no crime de desacato. Nem para abordar a diferença entre as duas
versões. Apenas sei que a crítica à violência policial é tema constante no
rap brasileiro pelo menos desde Hip-Hop cultura de rua, lançado em 1988.
Uma das faixas do LP era “Homens da lei”, de Thaíde e DJ Hum: “Oh,
meu Deus, quando vão notar/ Que dar segurança não é apavorar?/ Agora
não posso mais sair na boa/ Porque ela me para e me prende à toa”. E o rap
ia além da queixa. Em outra estrofe, o sujeito da canção ironizava a lição
do desmando: “Se eles são os tais, eu quero ser também/ Ser mal-educado
e não respeitar ninguém/ Bater em qualquer jovem sem motivo nenhum/
Andar em liberdade e sem drama algum”.

117
Mas é fácil perceber que o conselho para os jovens das periferias não era
a valentia desmedida. Para “os seus”, o rapper Thaíde indicava a alternativa
de armar-se do pensamento. E a organização do raciocínio era realçada
pela estrutura sonora dos versos. Sem limitar-se às rimas, a sonoridade
também explorava consoantes, por assim dizer, percussivas (d, t, p, b). Já
para “os outros”, que não se restringiam aos policiais, o rapper indicava a
necessidade de respeito. Ou a necessidade de decidir se a ironia acenava,
ou não, com o revide.
A exploração de consoantes percussivas alcançaria grande virtuosismo
com “Brasil com P”, lançado em 2000 no disco CPI da favela, do rapper Gog:
“Pelos palanques políticos prometem, prometem/ Pura palhaçada/ Proveito
próprio/ Praias, programas, piscinas, palmas!/ Pra periferia?/ Pânico, pólvora,
pá, pá, pá/ Primeira página”. Utilizando o mesmo recurso, Gog ainda compôs
“Próxima parte” e “Ponto phinal”. Ao todo, somou o jornalista Luiz Maklouf
Carvalho, 542 palavras com “p”.1
O rap é uma das formas de canção que faz a crônica das grandes cidades.
E não é a única, como se sabe. Há também o samba. E “O orvalho vem
caindo”, de Noel Rosa e Kid Pepe, gravado por Almirante para o carnaval
de 1934, já cantava: “Meu cortinado é o vasto céu anil/ E o meu despertador
é o guarda-civil/ Que o salário ainda não viu, ih!”.
Em 1997, o Racionais MC’s lançou “Diário de um detento”, de Mano
Brown e Jocenir, no disco Sobrevivendo no inferno. Até o momento, trata-se
do rap brasileiro que maior repercussão alcançou. O mesmo se pode dizer do
CD, que aliás está entre os melhores discos de canção popular do Brasil. Em
meio a versos que descrevem a Casa de Detenção do Carandiru na véspera
do dia 2 de outubro de 1992, “Diário de um detento” adensa a ironia de Noel
Rosa: “Na muralha, em pé/ Mais um cidadão josé/ Servindo o Estado, um
PM bom/ Passa fome metido a Charles Bronson”.
Ao final, narram-se as ações do Choque no Pavilhão Nove. Após entoar
que “Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio”, Mano Brown canta
dois versos que transformam a matéria-prima irracional em uma imagem

1. Cf. CARVALHO, Luiz Maklouf, “Soco, sufoco e fogo no gogó de GOG”. Piauí, ano 4, n.
41. Rio de Janeiro/ São Paulo, Editora Alvinegra, fev. 2010, p. 32.

118
poética perfeita: “O ser humano é descartável no Brasil/ Como modess
usado ou bombril”. A sonoridade é exemplar por mais de um fator. E o jeito
de máxima ajuda a extrair da experiência terrível uma sabedoria. É verdade
que a substância dos versos é quase inimaginável. Mas as linhas principais
do que há para se apreender estão configuradas na imagem.
Produtos baratos de higiene e de limpeza, consumidos por todas as
classes com algum poder de compra. Depois, jogados ao lixo, com sangue,
no primeiro caso. O preconceito atribuiu ao segundo a utilidade de ser
comparado a cabelo de negro. Os nomes das marcas substituem a designação
dos produtos como na linguagem coloquial. Mercadorias reles que, na
circulação simbólica, anunciam a eficácia do capitalismo.2
Para além da coreografia divertida para um público juvenil, “Dedo na
ferida” leva adiante a crítica: “É só um pensamento, bote no orçamento/
Nosso sofrimento, mortes e lamentos”. Quando não houver mais confrontos,
ou será o rap, ou será o Brasil que realmente terá mudado.

2. Cf. GARCIA, Walter, “‘Diário de um detento’: uma interpretação”. In: NESTROVSKI,


Arthur (org). Lendo música. São Paulo: Publifolha, 2007, p. 179-216.

119
O novo caminho de Edi Rock

Sábado à tarde, 19 de outubro de 2013. Pela primeira vez, um dos


integrantes do Racionais MC’s cantará um dos raps do grupo na Rede Globo.
Corcovado, Pão de Açúcar, imagens de cartão postal identificadas pela legenda
“Rio de Janeiro”. Avenida à beira-mar. Interior de um carro, Luciano Huck é
o motorista: “O Caldeirão está de volta. Vai rolar um momento histórico. Eu
esperei por isso durante muitos e muitos anos. No palco do Caldeirão, um
dos integrantes do movimento mais importante das periferias das principais
capitais de São... do Brasil, eu diria, do rap. Quem vai no palco do Caldeirão
agora é Edi Rock”.
Assiste-se a 12 segundos do clipe de “That’s my way” (Edi Rock/ Seu Jorge/
DJ Cuca). Novamente Luciano Huck: “Um dos integrantes dos Racionais
MC, acho que o grupo mais importante da história do rap brasileiro, que eu
tenho profunda admiração. O Edi Rock lançou um disco solo dele (apanha
o CD no banco) que é esse aqui, ó. Esse disco é bom demais, eu tô viciado
nesse disco. Convidei Edi Rock pra vir ao Caldeirão, e ele topou. Então vim
buscar ele na porta do hotel aqui que ele tá no Rio de Janeiro. E olha o carro
maneiro que eu arrumei, heim.”1
Edi Rock entra no carro e é entrevistado no caminho para o estúdio.
Só faltou o tapete vermelho, mas talvez destoasse do tom informal mantido
por Huck, que conduz um típico bate-papo com celebridade: nomes dos
pais, lugar onde cresceu, músicas que ouvia, bailes e shows que frequentava,
início da carreira, encontro com KL Jay, Mano Brown e Ice Blue (os outros
três integrantes do Racionais MC’s).

1. Disponível em: http://tvg.globo.com/programas/caldeirao-do-huck/videos/t/programa/v/


edi-rock-pega-uma-carona-com-luciano-huck/2900537/. Acesso em: 25 out. 2013.

121
Não há deslumbramento na postura do rapper. Nem arrogância. Nem
simulacro de naturalidade. Guardadas as devidas proporções, o seu jeito
lembra o de Zeca Pagodinho. Ambos não parecem dirigir gestos e palavras
para as câmeras, e sim para as pessoas com as quais contracenam. A principal
diferença é que Pagodinho ostenta ficar à vontade, como se a grande mídia
fosse a extensão da sua casa. Já a atitude de Edi Rock é reservada, polida,
embora deixe escapar desconforto. E contrariedade. Ele parece dizer muito
menos do que está pensando ou sentindo, o que não deixa de ser uma
forma de preservar a integridade do pensamento e das emoções em meio
ao espetáculo da mídia que, segundo o rapper, “sempre distorce”, “fala o que
vende”, passa “o que não é”.
Isso se torna mais nítido quando Huck expõe o seu ponto de vista
sobre o Racionais: “um alto-falante importante numa época que a periferia
tinha pouca voz (...). E muitas vezes também uma válvula de descompressão
(...). Acho que a mensagem de vocês e o que vocês fizeram teve um papel
muito importante pra deixar a cidade [de São Paulo] equilibrada em muitos
momentos difíceis e críticos”. Edi Rock permanece inquieto, sério. Pergunta
“Cê acha?”. E ao apresentador que não escuta em silêncio, apenas diz:
“Legal, a gente não tem essa dimensão, a gente pensa como música, música
é mensagem, tá ligado?”.
A tensão existe abafada. Nada indica, porém, que a harmonia irá se
romper. O ponto mais crítico acontece quando Huck pergunta o que mudou
desde o início do Racionais. “A experiência. Continua a mesma fita. (...) Tamo
mais forte que nunca, assim, mentalmente, espiritualmente, e unificado,
tá ligado? E, sei lá, mais, eu posso falar, mais perigoso, talvez.” Huck não
esconde a surpresa, sorri sem graça: “No bom sentido?”. Rock concorda:
“No bom sentido, é isso, é”.
No estúdio, Edi Rock canta “Negro drama” (E. Rock/ Mano Brown).
Trata-se de um dos mais emblemáticos raps do Racionais MC’s. Foi lançado
em Nada como um dia após o outro dia, CD-duplo de 2002. Como outras
faixas desse trabalho, reflete sobre o sucesso do grupo após Sobrevivendo no
inferno, CD de 1997 que continha “Diário de um detento” (Mano Brown/
Jocenir). Em “Negro drama”, Edi Rock canta a sua trajetória, que “Não é
conto nem fábula, lenda ou mito”: “O dinheiro tira um homem da miséria/

122
Mas não pode arrancar de dentro dele a favela”. E Brown, também cantando
a sua experiência, se dirige ao “senhor de engenho”: “Eu sou problema de
montão, de carnaval a carnaval/ Eu vim da selva, sou leão, sou demais pro
seu quintal”. Apresentado em show gravado para 1000 trutas 1000 tretas, DVD
lançado em 2006, “Negro drama” mobiliza de tal forma o público que não é
difícil sentir uma ação coletiva, em potência, que visa à subversão da herança
de desigualdade econômica e de segregação racial: naquela gravação, o rap
expressa o revide às violências brutais atualmente recebidas pelas classes
baixas, com ódio alimentado “da imagem dos antepassados escravizados”. 2
No Caldeirão do Huck, o sentido de “Negro drama” se modifica. Não
faltam integridade e força para o canto de Edi Rock, ainda que ele tenha
suprimido duas palavras, “fodido” e “cuzão” (teria sido só pelo horário?).
Mas, para o auditório, faltam entusiasmo e identificação. Falta, para o rap,
a definição dos destinatários quando se entoa “Essa é pra vocês” (em 1000
trutas 1000 tretas, Brown entoa “Essa é pra você, descendente de escravo
que não teve direito a indenização”). E sobram luzes. Sobram os sorrisos
das Coleguinhas para a câmera, respondendo, por ironia, ao verso “Sente o
negro drama, vai, tenta ser feliz”. Ao ser deslocado da circulação nas periferias
para a difusão na mídia hegemônica, “Negro drama” é apresentado como
um patrimônio de Edi Rock. Patrimônio digno, de grande densidade na sua
intenção de fazer coincidir representação direta da realidade, investimento
poético, embalo musical, manejo das palavras ritmadas como instrumentos
de ação – desenhando-se, assim, uma consciência artística. No entanto, agora
se trata de um sucesso do artista, não mais de um revide compartilhado pelo
artista com seu público.
Terminada a canção, Luciano Huck diz que Ice Blue, que está nos
bastidores, lhe pediu uma coisa justa: abrir o Caldeirão “ao rap da periferia
de São Paulo, aos novos movimentos”; “Vocês me indiquem quem tem que
cantar nesse palco, e vai vim cantar”. Após o intervalo comercial, Huck
novamente apresenta Edi Rock: “Ele é um dos fundadores e integrantes dos
Racionais, pela primeira vez no palco do Caldeirão com muito orgulho por tá

2. Cf. GARCIA, Walter, “Elementos para a crítica da estética do Racionais MC’s (1990-
2006)”. Idéias, v. 4, n. 2. Campinas, IFCH-Unicamp, 2013, p. 81-110. Disponível em: http://
dx.doi.org/10.20396/ideias.v4i2.8649382. Acesso em: 9 out. 2020.

123
validando a nossa mistura, por tá endossando a mistura eclética, democrática
e sem nenhum preconceito da mistura deste programa”. Então é feito um
novo quadro na velha fórmula de Sílvio Santos: humilhação disfarçada de
brincadeira, com prêmio de R$ 10 mil para Dona Marizilda, madrinha do
time de futebol do projeto 9 de julho, auxiliado por Edi Rock na zona norte
de São Paulo. 3 Encerrando a sua participação, o rapper interpreta “That’s
my way”. 4
O novo lugar a ser ocupado pelo Racionais MC’s na cultura brasileira
apenas começou a se delinear. Por ora, é evidente que o disco solo de Edi
Rock dá continuidade a Jorge Ben e Tim Maia, entre outros, e se coloca
ao lado de Seu Jorge e Emicida, entre outros. Música negra no mercado
hegemônico. Nesse sentido, é bom reparar na postura mantida por Criolo
em seus shows. E na voz de Juçara Marçal acompanhada pelos músicos
Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Thomas Rohrer. Cada qual à sua maneira,
são dois trabalhos que expressam uma grande violência prestes a explodir,
mas que nunca explode de vez ou, se explode, logo se detém, represada.
Pacificação em rede nacional pode fascinar. “Mas nem todo mundo é feliz
nessa fé absoluta”. 5

3. Disponível em: http://tvg.globo.com/programas/caldeirao-do-huck/videos/t/programa/v/


marizilda-estaciona-carro-de-primeira-e-leva-r10-mil-no-agora-ou-nunca/2900554/. Acesso
em: 25 out. 2013.
4. Disponível em: http://tvg.globo.com/programas/caldeirao-do-huck/videos/t/programa/v/
edi-rock-canta-thats-my-way/2900543/. Acesso em: 25 out. 2013. Para o fonograma, escutar
ROCK, Edi; SEU JORGE. “That’s my way”. Autores: ROCK, E.; SEU JORGE. Participação de
Leon Mobley. Produção de DJ Cuca. ROCK, E. Contra nós ninguém será. Bagua Records, [2013].
5. Verso de “Duas de cinco” (Criolo). Disponível em: http://www.youtube.com/
watch?v=QnCs2nsZGRk&desktop_uri=%2Fwatch%3Fv%3DQnCs2nsZGRk&app=desktop.
Acesso em: 25 out. 2013. Fonograma posteriormente incluído em CRIOLO. Convoque seu
buda. Oloko Records, 060254709342, 2014.

124
Nota sobre o disco Encarnado, de Juçara Marçal
(2014)

Estudando a sonoridade
Encarnado se estrutura com uma mesma sonoridade desde a primeira
faixa, “Velho amarelo” (Rodrigo Campos), até a penúltima, “Presente de
casamento” (Thiago França/ Romulo Fróes).1 Como não se trata da reprodução
de um clichê de mercado, essa característica não é diretamente explicada
pelos processos de estandardização, ou seja, a sua coerência radical expressa
e pressupõe certa lógica que, em sua originalidade, pede reflexão. Em outras
palavras, a escuta do disco mobiliza a sensibilidade e os afetos, e não há por
que estranhar quando se afirma que o efeito imediato é a tensão que se sente
na pele.2 Mas o disco também convoca a(o) ouvinte, tenha conhecimento
ou não da linguagem musical, a pensar sobre significados que se colocam
concretamente desde a matéria sonora. De resto, não custa lembrar que
“não há sentimentos ‘puros’, sensações ‘puras’ ou ‘puras’ ideias”; e também
que uma das tarefas da crítica é a de avaliar uma obra recente buscando
reconhecer as especificidades e a amplitude do conhecimento artístico que ela
proporciona, isto é, buscando elucidar de que forma a obra (re)cria situações,
ações, discursos e conflitos contemporâneos e nos faz experimentá-los no
plano simbólico.3

1. Cf. MARÇAL, Juçara. Encarnado. Independente, 2014. Disponível em: http://www.


jucaramarcal.com.br/encarnado.html. Acesso em: 10 out. 2020.
2. A percepção foi descrita por Ariel Fagundes, em resenha sobre show de Encarnado. Cf.
FAGUNDES, Ariel, “O furacão Juçara varre Porto Alegre”. Noize, 08/07/2016. Disponível
em: http://noize.com.br/resenha-jucara-marcal-porto-alegre/#1. Acesso em: 27 jul. 2016.
3. Cf. KONDER, Leandro. Os marxistas e a arte: breve estudo histórico-crítico de algumas
tendências da estética marxista. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p. 99, 22-23,
respectivamente. Cf. ENGELS, Friedrich, Carta a Minna Kautsky datada de 26/11/1885. In:

125
Esquematizando, o que sempre implica deixar de lado particularidades
mais ou menos importantes, diga-se que a sonoridade dessas 11 faixas de
Encarnado é composta pela interação de quatro relações. A primeira delas é
a combinação dos timbres da voz de Juçara Marçal, uma gama que inclui do
aveludado ao ríspido, e dos diversos timbres ruidosos das guitarras de Kiko
Dinucci e de Rodrigo Campos – em duas faixas, “Velho amarelo” e “Ciranda
do aborto” (Kiko Dinucci), em vez de guitarra, Rodrigo toca cavaquinho. O
timbre áspero da rabeca de Thomas Rohrer se mistura a partir da quarta faixa,
“Pena mais que perfeita” (Gui Amabis/ Regis Damasceno), permanecendo
até a oitava, “E o quico? (Itamar Assumpção). Túlio Villaça observou, na sua
análise de “Ciranda do aborto”, que uma “delicada costura é feita do arame
farpado de timbres distorcidos”, o que resulta em boa parte dos “efeitos de
pedais e estúdio como o overdrive”, e concluiu com a imagem de que os
instrumentos “são navalhas e bisturis cortando o ouvido”.4 Essa imagem,
brutal e certeira, poderia ser generalizada para as 11 faixas. Acrescento outra:
os instrumentos soam agressivos como pedaços de metais e de tijolos, lascas
de plástico duro, estilhaços de vidro, pedras; mas esses escombros se ajustam
perfeitamente, construindo ambientes nos quais a voz segue fluida, solta, por
vezes se chocando, todavia, com as arestas que ostentam um forte aspecto
ruinoso.
Antes de prosseguir com a análise, registrarei alguns dados do processo
de criação do disco. De acordo com Juçara Marçal, o diálogo das guitarras
de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, entre si e com o canto, chamou-lhe a
atenção no trabalho do Passo Torto, coletivo formado por Kiko, Rodrigo,
Marcelo Cabral e Romulo Fróes.5 E também durante os ensaios para dois
shows: Tradição, e o samba continua..., com repertório de Geraldo Filme,
apresentado em 31 de agosto, 1º e 2 de setembro de 2012, no Sesc Vila Mariana,

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. Trad. José
Paulo Netto; Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 65-67.
4. Cf. VILLAÇA, Túlio, “Ciranda do aborto”. Polivox, mai. 2014. Disponível em: http://
revistapolivox.com/ciranda-do-aborto-2/. Acesso em: 28 jul. 2016. Note-se que a imagem
criada por Túlio Villaça se assemelha à ilustração da capa de Estudando o samba, de Tom
Zé, disco lançado em 1976.
5. Cf. PASSO TORTO. Passo Elétrico. YB Music, 2013. Disponível em:
http://www.passotorto.com.br/site/Downloads.html. Acesso em: 10 out. 2020.

126
em São Paulo; e Plínio Marcos em prosa e samba, apresentado em 27 de março
de 2013, no Sesc Pompeia, também em São Paulo. Em ambos os trabalhos,
antes dos ensaios com todos os músicos, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos
delineavam os arranjos ensaiando com Juçara Marçal.6
O que viria a ser Encarnado teve início efetivo em 5 de abril de 2013. Ainda
segundo Juçara Marçal, os ensaios desse projeto, então chamado “Estudando o
Passo Torto”, passaram a ocorrer “bem esporadicamente”, e a partir dos meses
de junho e julho daquele ano se intensificaram.7 Houve duas apresentações
na Casa de Francisca, em São Paulo, em 10 e 11 de outubro de 2013, já com
a participação de Thomas Rohrer, e com repertório e arranjos definidos.8 E
as gravações do disco foram realizadas em 18, 19 e 20 de novembro de 2013
por Fernando Sanches, no Estúdio El Rocha.9

6. Cf. entrevista que realizei com Juçara Marçal em 2 ago. 2016. Esclareça-se que ela participou
somente da apresentação de Plínio Marcos em prosa e samba. Notar os vínculos afetivo e
artístico implicados no processo; também notar o desperdício de material que decorre da
praxe do Sesc, ao patrocinar projetos musicais e programar tão poucas apresentações; e, por
fim, notar como toda essa dinâmica reproduz, guardadas as devidas proporções, o trabalho
com música popular brasileira nas principais emissoras de rádio nos anos 1940 e 1950 – sobre
o assunto, consultar TINHORÃO, José Ramos. Música popular: do gramofone ao rádio e
tevê. São Paulo: Ática, 1981, p. 64-87; SAROLDI, Luiz Carlos; MOREIRA, Sonia Virgínia.
Rádio Nacional: o Brasil em sintonia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Martins Fontes/ Funarte, 1988,
p. 30-48; PEREIRA, João Baptista Borges. Cor, profissão e mobilidade: o negro e o rádio de
São Paulo. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2001.
7. Cf. entrevista que realizei com Juçara Marçal em 2 ago. 2016.
8. Assisti à apresentação de 10 de outubro de 2013, assim como ao show de lançamento, que
contou com a participação de Thiago França, em 15 de abril de 2014, no Sesc Vila Mariana.
9. Encarnado também foi mixado e masterizado por Fernando Sanches no Estúdio El Rocha,
em São Paulo. Para os(as) cancionistas, informações sobre os instrumentos e os pedais serão
úteis. Kiko Dinucci: “Usei uma guitarra Fender Stratocaster ano 2000, um amplificador
Bassman da Fender. Pedais 70’s da Fulltone (silicone), esse foi o fuzz que eu mais usei. [Pedal]
Fuzz Face. Um outro fuzz bem barulhento da Zvex chamado Fuzz Factory (germanium),
um overdrive chamado Sparkle Drive e um delay chamado Memory Man. Mas a maioria
do disco foi gravado com o 70’s”. Cf. entrevista que realizei com Kiko Dinucci em 29 jul.
2016. Rodrigo Campos tocou uma guitarra Fender Jazzmaster Blacktop mexicana e um
cavaquinho Manoel Andrade de 2006. O cavaquinho foi gravado “por duas vias, direto no
microfone e também mandando pro amplificador, passando por pedais, um Fuzz Fulltone
69, um reverb Space Echo e um chorus, o da Nano da Electro Harmonix. Usei esses pedais
na guitarra também. Além do Memory Boy, um delay com modulação da Electro Harmonix
e uma distorção da Zvex, o Box of Rock”. Cf. entrevista que realizei com Rodrigo Campos
em 3 ago. 2016. Thomas Rohrer gravou “com uma rabeca do Seu Nelson da Rabeca”, sem
pedais, com “captação em dois canais: um microfone condensador mais um amplificador
microfonado”. Cf. entrevista que realizei com Thomas Rohrer em 5 ago. 2016.

127
A segunda das quatro relações que estruturam a sonoridade de Encarnado
é o jogo rítmico entre a voz, as guitarras (ou a guitarra e o cavaquinho) e
a rabeca; além de, em três faixas, atuar ou o sax tenor ou o pocket piano de
Thiago França ou a kalimba (a rigor, único instrumento de percussão) de
Juçara Marçal. O jogo rítmico se estabelece com balanço, ainda que não atinja
o corpo levando-o a dançar. E, de modo geral, dá sustentação à mistura de
timbres: enquanto a voz é envolvida pelos instrumentos que soam como se
quisessem rasgar a audição, a polirritmia vai traçando linhas e, com elas, vai
estabelecendo espaços. As faixas se baseiam em diferentes padrões rítmicos.
Entretanto, uma vez que esses padrões nem estão marcados de forma explícita,
nem são executados por instrumentos que se consagraram na cristalização
dos vários ritmos no mercado hegemônico, a sonoridade desloca a escuta,
impedindo que os gêneros ou que os rótulos comerciais (samba, ciranda,
reggae, frevo, etc.), com seus respectivos conjuntos de valores, significados,
práticas e expectativas,10 se anteponham imediatamente às particularidades
dos fonogramas.
A terceira das quatro relações que estruturam a sonoridade de Encarnado
já está indicada e decorre da escolha dos instrumentos. Ainda que não tenha
sido feita de modo intencional (segundo Juçara Marçal, de fato, não houve essa
intenção),11 a escolha de não incluir instrumentos de percussão, ou mesmo
baixo elétrico, resultou numa tessitura (no plano das alturas, espectro de
notas que abrange da mais aguda à mais grave) bastante adequada ao formato
mp3 (320 kbps). Duas considerações merecem ser feitas. A primeira é que
trabalhar com uma instrumentação indispensável não é, evidentemente, a
única solução para quem, não dispondo de muito dinheiro para produzir
um disco, dispõe de tempo para tocar junto, seja pela afinidade artística e

10. Na formulação, baseio-me em WILLIAMS, Raymond, “Base e superestrutura na teoria


da cultura marxista”. In: WILLIAMS, R. Cultura e materialismo. Trad. André Glaser. São
Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 43-68. Também em FABBRI, Franco. “A theory of musical
genres: two applications”. In: HORN, David; TAGG, Philip (org.). Popular Music Perspectives.
Göteborg/ Exeter: International Association for the Study of Popular Music (IASPM), 1981,
p. 52-81. Versão eletrônica. Disponível em: http://www.tagg.org/others/ffabbri81a.html.
Acesso em: 12 jul. 2016. E ainda em FABBRI, Franco. “Browsing music spaces: categories
and the musical mind”. Disponível em: http://www.tagg.org/others/ffabbri9907.html. Acesso
em: 12 jul. 2016.
11. Cf. entrevista que realizei com Juçara Marçal em 2 ago. 2016.

128
pela confiança na qualidade do trabalho, seja pela camaradagem ou pela
amizade, seja por tudo isso. O que importa ressaltar é que a instrumentação
essencial, que não se guia diretamente por modelos do mercado hegemônico,
responde às condições de produção de Encarnado sem mascará-las. A segunda
consideração é que, embora adequada ao formato mp3 (uma vez que não
há frequências graves que se perderiam na compressão do áudio, sem falar
na reprodução em computadores ou em celulares e na interferência de
fones de ouvido), o fato é que a sonoridade do disco se ajusta às atuais
condições de difusão e de audição mas, espero que já esteja claro, propõe
novos parâmetros de escuta.
A interação do plano das durações, em que há polirritmia, e do plano
das alturas das notas resultou daquele processo de criação registrado acima.
Ampliarei agora o registro. Segundo Rodrigo Campos, “o processo da turma
é sempre desconstruir as harmonias originais. Então, as canções do Passo
Torto, como as do Encarnado, ficam despidas das harmonias em que foram
compostas. As harmonias ficam servindo mais como um guia na feitura
dos arranjos”.12
Abordarei a questão me limitando à análise dos compassos iniciais de
“Ciranda do aborto”. Apresentei a Kiko Dinucci duas hipóteses acerca da
primeira frase da sua guitarra: a) conscientemente ou não, ele havia utilizado
uma escala com as notas mi, fá#, sol, lá#, si, dó, ré (I, II, bIII, #IV, V, bVI,
bVII; o sétimo grau é tocado depois por Rodrigo Campos, sobre essa mesma
frase de Kiko Dinucci); b) conscientemente ou não, ele havia fraseado em
cima do seguinte encadeamento harmônico:

Figura 1 – Frase da guitarra em “Ciranda do aborto”, hipótese de


encadeamento harmônico.

12. Cf. entrevista que realizei com Rodrigo Campos em 3 ago. 2016.

129
Kiko Dinucci respondeu:
Os improvisos partiram de acordes naturais. Muitas vezes não sabíamos
nem qual era a sequência de acordes, nos guiávamos somente pelo
tom. No caso da ‘Ciranda do aborto’, eu passei a sequência de acordes
naturais pro Rodrigo, e criamos riffs em cima de cada um desses acordes.
Os intervalos estranhos vieram para estragar, deslocar o acorde do
lugar-comum, como pequenas dissonâncias pra envenenar o acorde
natural. No disco inteiro, essas escalas estranhas dos riffs surgiram quase
como brincadeira, pra entortar mesmo, tirar o chão. Essa experiência
se radicalizou mais ainda no terceiro disco do Passo Torto, em parceria
com a Ná Ozzetti. Nesse disco, somente o violão do Romulo [Fróes] toca
no mesmo tom da Ná, as guitarras e o baixo fazem os intervalos mais
absurdos. Mas em nenhum momento a gente pensa ou calcula esses
intervalos. A gente vai jogando, sem pensar muito na escala ou no tom,
até as coisas se encaixarem, mesmo que pareça uma trama estranha de
melodias em contraponto. No disco da Elza Soares, [A mulher do fim
do mundo], tem essas tramas de guitarras, mas pegamos mais leve.13

Observemos agora a relação entre a guitarra e a voz no início de “Ciranda


do aborto”. Enquanto Kiko Dinucci toca a nota lá#, Juçara Marçal canta a
nota lá.

Figura 2 – Canto e guitarra no início de “Ciranda do aborto.

13. Cf. entrevista que realizei com Kiko Dinucci em 3 ago. 2016. Cf. PASSO TORTO; OZZETTI,
Ná. Thiago França. YB Music, 2013. Disponível em: http://www.passotorto.com.br/site/
Downloads.html. Acesso em: 10 out. 2020. Cf. SOARES, Elza. A mulher do fim do mundo.
Circus/ Natura Musical, 2015. Disponível em:
http://www.naturamusical.com.br/ouca-mulher-do-fim-do-mundo-novo-disco-da-elza-
soares. Acesso em: 5 ago. 2016.

130
É evidente que o intervalo de meio-tom, entre lá e lá#, entortou o lugar-
comum (lembrar que a guitarra soa uma oitava abaixo). Porém, o choque
não parece forçado. Quando se escuta a dissonância, ela está encaixada, o
que não significa que a análise musical não possa contribuir para elucidar a
percepção. Deixando de lado as duas hipóteses que apresentei, e sem levar
em conta a performance de Juçara Marçal, a qual não acentua o choque,
uma explicação para o encaixe está no fato de que a nota lá#, tocada pela
guitarra nos primeiros compassos, antecipa o final da parte A, quando duas
tensões confluem: a) a última nota cantada é justamente lá# (“Pra ele não
acordar”), bastante tensa porque não se inclui na escala de Mi menor (um
bom exercício é cantar a nota lá e reparar como o efeito de tensão diminui);
b) essa nota lá# é cantada sobre o arpejo de F#7 feito pelo cavaquinho (notas
fá#, lá#, dó#, mi); e o dominante secundário (trítono lá# – mi) não é sucedido
pelo acorde de dominante (não se vai para B7, trítono lá – ré#). Assim, a
dissonância dos primeiros compassos se justifica no todo da audição, o que
a análise musical ajuda a compreender.
Ainda segundo Kiko Dinucci, além de ter sido colocada em prática no
Passo Torto e nos shows Tradição, e o samba continua... e Plínio Marcos em
prosa e samba, essa concepção de arranjo já estava presente desde o primeiro
disco do Metá Metá (trio formado por ele, Thiago França e Juçara Marçal),
gravado em 2010, e havia surgido também de uma necessidade rítmica:
“Como não tinha a percussão, a saída era ficar contrapondo violão e sax”.
Ao mesmo tempo, não deixava de ser o desdobramento da “visão horizontal
do violão” ou da “estrutura melódica da harmonia” em Itamar Assumpção
e em Tom Zé; bem como não deixava de ser o desdobramento do violão de
Kiko Dinucci em “Imitação” (Batatinha), samba gravado por ele e Juçara
Marçal no disco Padê, em 2006.14
A quarta e última relação diz respeito às intensidades (na linguagem
coloquial, ao volume) de voz e instrumentos em Encarnado. Em interação
com as outras três relações, a de timbres, a de durações (polirritmia) e a

14. Cf. entrevista que realizei com Kiko Dinucci em 8 jun. 2014. Cf. METÁ METÁ. Metá
Metá. Desmonta/ Circus, 2011 [ano de lançamento do disco]. Disponível em: http://www.
jucaramarcal.com.br/metameta.html. Acesso em: 10 out. 2020. Cf. MARÇAL, Juçara;
DINUCCI, Kiko. Padê. Cooperativa de Música, 2007 [ano de lançamento do disco].

131
de alturas, a relação das intensidades constrói o efeito de submersão da
voz no ambiente sonoro ruinoso. Isso ocorre, é claro, como resultado da
manipulação do som. Destacarei apenas dois eventos: a) os instrumentos
não foram colocados atrás, e sim, ao lado da voz, ainda que não se perca
nunca a sensação elementar provocada por uma canção popular-comercial
desde que ela seja produzida, veiculada e ouvida de forma eficiente: a de
que escutamos “alguém dizendo alguma coisa de uma certa maneira”;15 b)
o compressor atuou de modo decisivo na matéria da voz; isso se torna mais
perceptível na décima primeira faixa, “Presente de casamento”, a partir de 1:00,
quando as guitarras silenciam e a voz segue, a capella, por mais 17 segundos.

Os sentidos de Encarnado
Quais sentidos podem ser extraídos dessa sonoridade, da qual procurei
apresentar a estrutura geral e alguns traços essenciais? Encarnado mantém
uma grande violência represada e nos faz experimentá-la. O canto de Juçara
Marçal permanece ríspido em “Damião” (Douglas Germano/ Everaldo
Ferreira da Silva) e em todas as execuções da parte A de “Queimando a língua”
(Romulo Fróes/ Alice Coutinho); expressa desespero na parte C de “Ciranda
do aborto”; e se mantém tensionado durante “Presente de casamento”, quando
explora a passagem entre a voz de cabeça e a voz de peito (colocando-se,
portanto, em um registro tradicionalmente evitado).16 Todavia, o canto não
explode, mantendo-se de algum modo controlado. Explode, sim, gritando em
“Não tenha ódio no verão” (Tom Zé). Porém, nessa mesma faixa, logo depois
de gritar, o canto retoma o seu aparente controle, tão mais aparente quanto
irônica é a sua intenção. Ao mesmo tempo, a violência se avoluma e se mantém
represada nos próprios instrumentos, os quais também parecem prontos
para arrebentar a sonoridade que constroem, mas só a arrebentam de vez
no final da “Ciranda do aborto”, um “final caótico, que traduz musicalmente
o horror do assunto tratado na canção”.17

15. Cf. TATIT, Luiz. A canção: eficácia e encanto. São Paulo: Agir, 1986, p. 6.
16. Cf. entrevista que realizei com Juçara Marçal em 2 ago. 2016.
17. Cf. FRÓES, Romulo, “Não diga que estamos morrendo. Hoje não!”. Texto de apresentação
de Encarnado, 2014. Disponível em: http://www.jucaramarcal.com.br/encarnado.html.
Acesso em: 10 out. 2020.

132
O grande tema cantado em Encarnado é o da morte, conforme Romulo
Fróes assinala no texto de apresentação do disco; aparecendo “de muitas
maneiras” no repertório, o tema “parece indicar uma busca por renovação,
renascimento, um desejo por um ‘outro corpo’, uma ‘nova carne’”.18 A síntese
talvez seja a décima faixa, “A velha da capa preta” (Siba Veloso). Estilizando
a cultura de tradição oral, a composição narra que “o povo” hoje está se
matando, tomando o emprego da entidade que imaginariamente sempre
agiu sem vínculos sociais e políticos, apenas conforme as leis da natureza. A
canção fora gravada por Siba em clima carnavalesco – afinal, tratava-se de um
frevo.19 Escutada agora em clima de programa televisivo, em chave agressiva
e irônica, “A velha da capa preta” nos dá um conselho nada festivo, nada
melancólico: “Só a força resolve onde impera a força/ E onde há humanos
só os humanos resolvem”.20
Não há nenhum traço de melancolia em Encarnado. Comparem-se
“Ciranda do aborto” e “Uma canção desnaturada” (Chico Buarque), da Ópera
do malandro. Nesta, escutamos Duran e Vitória amaldiçoarem Teresinha,
“a filha única, a princesinha do lar”, quando ela foge “para se casar com
o estelionatário, muambeiro e inimigo público nº 1, Max Overseas”, no
Rio de Janeiro dos anos 1940.21 Como outras composições da peça, que
estreou em julho de 1978, a primeira camada de sentido é a da “crítica
radical e desesperada dos valores sancionados pela moral burguesa”. De
modo específico, “Uma canção desnaturada” desmitifica o amor materno e
o paterno: “Chega-se a um ponto em que a corrosão da crítica arranca não
apenas a máscara, mas a pele que cobre o rosto social”, nas palavras de Adélia
Bezerra de Meneses.22 A segunda camada da canção, bem como a da peça, é a
da discussão do “perfil da modernização recuperadora/autoritária no Brasil”,

18. Ibidem.
19. Cf. SIBA E A FULORESTA. “A velha da capa preta”. Autor: Siba. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=sFS5CL6LVjE. Acesso em: 26 jul. 2016.
20. Cf. BRECHT, Bertolt. A Santa Joana dos Matadouros. Trad. Roberto Schwarz. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 185.
21. Cf. BUARQUE, Chico. Ópera do malandro. Philips/ PolyGram, 838 516-2, 1993 [p1979],
texto do encarte, p. 3.
22. Cf. MENESES, Adélia Bezerra de. Figuras do feminino na canção de Chico Buarque.
São Paulo: Ateliê Editorial/ Boitempo, 2000, p. 73-74.

133
no que estou de acordo com a análise de Homero Vizeu Araújo.23 Resumindo
ao extremo, nessa discussão o papel de Teresinha é fundamental: ela cria a
Maxtertex S.A., firma que dá início à transformação da velha malandragem
em um conglomerado associado ao capitalismo internacional, sobretudo ao
capitalismo estadunidense. Entoada no início da peça, bem antes do final
apoteótico no qual se celebra essa transformação, “Uma canção desnaturada” é
a alegoria do desejo de retorno ao passado a fim de modificar o presente. Um
desejo que figura melancólico, já que desacreditado pelos próprios “interesses
materiais” que movem as personagens – interesses semelhantes, aliás, aos
“da elite e da classe média adesista” no Brasil da década de 1970.24 De modo
coerente, no disco da Ópera do malandro, a gravação de Chico Buarque
e Marlene, com arranjo de Francis Hime, é ostensivamente melancólica.
Já “Ciranda do aborto” nos faz ouvir o aborto em sentido literal. O
foco é “a dor que uma mulher sente”, o desespero dela na situação extrema
do “limite entre a vida e a morte”.25 Isto é, escutamos a recriação de uma
experiência feminina, particular, ligada sobretudo a questões emocionais e,
é certo, nem por isso a experiência deixa de se vincular à esfera econômica
ou de ter implicações na esfera social.26 A letra começa com foco narrativo
na terceira pessoa. Esse distanciamento é reforçado, logo no primeiro verso,
pelo instrumento utilizado, a navalha, que sugere certa distância temporal.
Entretanto, na parte B da canção (“Vem, despedaçado...”), o foco narrativo
passa para a primeira pessoa. Daí até o final, a voz da canção assume o
papel da personagem, e a performance de Juçara Marçal enfatiza que o
gênero literário predominante não é o Épico, e sim, o Lírico, que se adensa
pelo uso de um recurso dramático27 – a mulher conversa com quem não
está nascendo. Dessa forma, explicita-se o ponto de vista que organiza não
só a letra, mas toda a canção: “Ciranda do aborto” se posiciona dentro da

23. Cf. ARAÚJO, Homero Vizeu, “Um pote até aqui de mágoa: Chico Buarque e Paulo Pontes
retomam os heróis populares de Guarnieri e Dias Gomes”. In: ARAÚJO, H. V. Futuro pifado
na literatura brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2014, p. 82-83.
24. Ibidem, p. 82 e 75, respectivamente. Cf. BUARQUE, Chico. Ópera do malandro. São
Paulo: Livraria Cultura Editora, 1978.
25. Cf. entrevista que realizei com Kiko Dinucci em 8 jun. 2014.
26. Sobre o assunto, ver VILLAÇA, Túlio, “Ciranda do aborto”. Polivox, edição citada.
27. Baseio-me em ROSENFELD, Anatol, “A teoria dos gêneros”. In: ROSENFELD, A. O
teatro épico, edição citada, p. 15-36.

134
situação e se identifica com a personagem, sem julgá-la e sem agir com
condescendência – se agisse, revelaria algum suposto nível de superioridade.
Sem negar essa camada de sentido suficientemente forte e bem-sucedida,
gostaria de acrescentar uma segunda interpretação. Como registrei acima, os
ensaios de Encarnado se intensificaram a partir de junho e julho de 2013. Penso
que, em alguma medida, a violência e a ruína sintetizadas no disco captaram e
passaram a reverberar, no plano artístico, o colapso de um projeto de reforma
econômica e social sustentado por um modelo econômico conservador e
por arranjos políticos de curto alcance. Nessa perspectiva, é quase óbvio
sublinhar que “Damião” é dedicada a Damião Ximenes Lopes e recordar que
ele morreu em 4 de outubro de 1999, após três dias de internação na Casa
de Repouso Guararapes, hospital psiquiátrico privado então conveniado
ao Sistema Único de Saúde (SUS).28 Para além desse engajamento na crítica
social e na batalha pela memória, a canção inspira uma luta sem tréguas,
invocando Damião enquanto entidade espiritual, um encantado que “Bate
até virar a cara da nação”.29 Também é quase óbvio considerar “Não tenha
ódio no verão” como trilha sonora do rebaixamento generalizado da esfera
política, ou seja, como trilha sonora da imbecilização nas redes sociais, da
ferocidade caluniosa, injuriosa ou difamatória na grande imprensa, das
agressões verbais e físicas nas ruas, da quebra das distinções elementares entre
o público e o privado, do elogio cínico a artimanhas jurídicas, da reedição
do Febeapá (Festival de Besteira que Assola o País) que, com frequência,
descambaria para um Febapá (Festival de Baixaria que Assola o País): “Isso

28. Cf. BATISTA e SILVA, Martinho Braga, “O caso Damião Ximenes e a condenação do Brasil
por violação dos direitos humanos”. Entrevista a Márcia Junges. Revista do Instituto Humanitas
Unisinos, ano XII, n. 391. São Leopoldo, IHU, 07/05/2012. Disponível em: http://www.
ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4407&secao=391.
Acesso em: 2 de ago. 2016.
29. Esclareça-se o sentido de encantado: “No Maranhão, o termo encantado é encontrado nos
terreiros de Mina, tanto nos fundados por africanos, quanto nos mais novos e sincréticos, e
nos salões de curadores e pajés. Refere-se a uma categoria de seres espirituais recebidos em
transe mediúnico, que não podem ser observados diretamente ou que se acredita poderem
ser vistos, ouvidos ou sentidos em sonho, ou por pessoas dotadas de vidência, mediunidade
ou de percepção extrassensorial, como alguns preferem denominar. (...) Os encantados
são frequentemente comparados aos ‘anjos da guarda’. (...) Afirma-se, em São Luiz, que
os encantados nunca levam propriamente as pessoas ao mal, embora possam levá-las a
comportamentos desaprovados socialmente (...)”. Cf. FERRETTI, Mundicarmo. Maranhão
encantado: Encantaria maranhense e outras histórias. São Luís: UEMA Editora, 2000, p. 15-16.

135
arrebenta uma nação”. Entre parênteses, não custa lembrar que as relações
de uma obra artística com o processo histórico imediato não a tornam
necessariamente datada.
Se a interpretação não estiver errada, “Ciranda do aborto”, além de
encarnar a dor e o desespero de uma mulher, também é a alegoria de um
presente que “morreu por dentro”. Falta entender o seu ponto de vista em
relação à violência e à ruína. A sonoridade, a mesma que se escuta desde “Velho
amarelo” até “Presente de casamento”, indica que a canção está mergulhada
na agressividade, na degradação, mas que segue construindo, sem melancolia,
alguma coisa cujo fim não se sabe ainda qual será.30 A construção, aliás, vem
figurada no desenho de Kiko Dinucci para a capa do disco: a cantora Juçara
Marçal é uma mulher negra – e não é nada irrelevante a cor da sua pele;
está nua, os seios apontam para cima, mas o seu rosto permanece coberto
por um pano encarnado tumultuoso; as suas unhas, todavia, estão bastante
afiadas, e enquanto a mão esquerda, aberta e distensionada, já parece ter
rasgado o tecido, a mão direita, curva e tensa, parece ameaçá-lo com garras.
Esse ponto de vista se torna mais compreensível com o samba “João
Carranca” (Kiko Dinucci), a 12ª faixa, que encerra Encarnado. A narrativa
é musicalmente bem construída, e a história tem interesse por si mesma.
Relata-se o caso do personagem-título. A protagonista, no entanto, é Guaraci.
Ela é apresentada como uma profissional exemplar: tinha dedicação exclusiva
ao trabalho (“vadiava e só fazia isso”), obteve sucesso no mercado (“Foi
sempre a Rainha da Boca do Lixo”), exercia o empreendedorismo (“Nunca
teve cafetão/ Nem leão-de-chácara/ Apenas uma navalha”); como resultado,
firmara um vínculo afetivo (“Banca e sustenta o meninão/ Que ainda cheira
a leite/ E nem tem pelo na cara”). Porém, o desempenho de Guaraci, como
o de qualquer um(a) de nós, tinha vida útil (“Mas o tempo passou e ela
envelheceu/ Usou e gastou o corpo que Deus lhe deu”). Quando percebeu
que seria descartada (“tudo desandou depois do dia/ Em que ele resolveu

30. Carlos Augusto Bonifácio Leite já havia observado que Juçara Marçal, Siba e Apanhador
Só, cada qual a seu modo, formulam “um prognóstico bastante negativo a respeito do estado
de coisas”, trabalham com “certo tom de ruína”, desenvolvem uma “dicção de arestas” e
buscam “ativamente uma saída razoável sem conseguir vislumbrá-la”. Cf. LEITE, C. A.
B., “Sobre o peso de si e maestrias: uma análise de parte da cena atual da canção popular
brasileira”, edição citada, p. 224-225 e 227.

136
causar suspiro nas mocinha”), Guaraci fez valer a sua navalha (“a velha
enciumada/ Retalhou o rosto do rapaz/ E o que era belo/ Agora espanta/ E
o nome dele hoje é João Carranca”) – repare-se o revide, no plano simbólico,
da exploração e da violência sofridas por outras mulheres, desde Bertoleza
(no romance O cortiço, de Aluísio Azevedo) até Ivete (na novela “Paulinho
Perna Torta”, de João Antônio).31
Juçara Marçal escolheu cantar o samba em “um tom bem no extremo
grave”, e o fonograma “vem em forma de exceção num arranjo só voz e
cavaquinho”.32 Ainda assim, a exceção mantém a lógica de responder às
condições de produção, e a faixa, sendo inegavelmente um samba, não
reproduz modelos da chamada MPB. A narradora canta com olhos realistas,
como alguém que já viveu o suficiente para saber que histórias como a de
Guaraci podem acontecer. Não expressa espanto, não condena, não absolve,
não é condescendente. Fechando um disco que canta para Iemanjá e para
Oxum, a voz que entoa “João Carranca” é a voz de uma filha da orixá Nanã
Buruku, “o arquétipo das pessoas que agem com calma, benevolência,
dignidade e gentileza”, das pessoas que “julgam ter a eternidade à sua frente
para acabar seus afazeres”.33

31. Cf. AZEVEDO, Aluísio, O cortiço. 37ª ed. São Paulo: Ática, 2009. Cf. JOÃO ANTÔNIO,
“Paulinho Perna Torta”. In: JOÃO ANTÔNIO. Leão-de-chácara. São Paulo: Cosac Naify,
2012, p. 93-155.
32. Cf. MARÇAL, Juçara, “Faixa a faixa: Juçara Marçal comenta Encarnado”. Entrevista a
Renata Arruda. O Grito!, 29/05/2015. Disponível em: http://revistaogrito.ne10.uol.com.br/page/
blog/2014/05/29/faixa-a-faixa-jucara-marcal-comenta-encarnado/. Acesso em: 27 jul. 2016.
33. Cf. VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Trad.
Maria Aparecida da Nóbrega. 6ª ed. Salvador: Corrupio, 2002, p. 241.

137
LIVROS
A memória da pedra

A natureza da pedra é estável. As suas partes aderem entre si, então a


matéria da pedra resiste bem às forças que pretendem desagregá-la. O caráter
da pedra determina o seu destino. Casa de pedra, com alicerces fundados
na pedra, suporta os ventos, as chuvas, as enchentes. Pedra é segurança,
solidez, permanência. Pedra dura porque é dura.
Mas a resistência da pedra é maior quando a sua concretude, sem deixar
de ser compacta, sabe se tornar porosa. Arejada, permeável, propensa a ser
maleada. Água mole não fura a carnadura dessa pedra: a água passa e a
pedra fica no lugar, perfumada pelo sal, adensada pelo que reteve da água.
É quando a pedra destila leite. E sangue. Amorosamente enlaçadas, as
duas cores formam um terceiro tom, a que chamamos memória. Espessa,
substância que se coagula e que escorre. Aquecida na experiência cotidiana,
a memória atua de modo prático. Serve para orientar. É conhecimento.

Euclides Talabyan Lissanon e a Casa Fanti-Ashanti


Euclides Menezes Ferreira, Pai Euclides, Euclides Talabyan Lissanon
ou Euclides d’ Oxalá/Lissá, nasceu em 30 de julho de 1937 em São Luís do
Maranhão. É filho de José Maria de Menezes (Caxias) e de Romana da
Anunciação Ferreira. Sua bisavó na linhagem materna, “Orokou-Doshi ou
Cesária Maria (nome que lhe foi colocado no Brasil), veio vendida como
escrava procedente da cidade de Lagos, Nigéria”. Orokou-Doshi “de quando
em vez entrava em transe”. Mas “nunca se envolveu com terreiros de mina, e
o motivo era somente a timidez, pois na época havia opressão e preconceito”,
segundo lhe contou Izaura Amélia da Anunciação Ferreira (Lufan-Lewy),
sua tia e mãe adotiva.

141
Pai Euclides cursou o primário. Para ajudar a família “muito pobre”,
vendeu “peixes, sururu, caranguejos, pastel, pirulitos, pão-cheio e cocadas”,
trabalhou em uma oficina de ferreiro, em uma sapataria, em uma alfaiataria.
Por fim, empregou-se na tipografia, primeiro no Jornal Pequeno, depois na
Gráfica Tribuna do Povo. Essas informações se encontram em Tambor de Mina
em conserva,1 Pajelança2 e Álbum fotográfico: Arquivo de um Babalorixá,3
três dos oito livros que Euclides Talabyan Lissanon publicou até o momento.
Os dados biográficos, ainda que selecionados em número tão reduzido,
indicam o chão sócio-histórico de uma trajetória cuja dignidade material
e espiritual desafia qualquer tipo de preconceito. Contra a ignorância
(pois “preconceito é ignorância”), a vida de Euclides Talabyan Lissanon se
afirma por suas ações. Sem se deter nos livros que publicou, nos discos e
documentários que registraram um pouco do conhecimento que aprendeu
“com pessoas de casas centenárias, com raízes na África”; sem se deter na
obra que realizou em diversos terreiros, como chefe ou como fundador;
na responsabilidade pela educação e pela orientação de “dezenas de pais-
de-santo espalhados por todo o Brasil”; nos seus talentos artísticos; na sua
atuação em seminários; nas suas conferências; na sua atenção para com
“batalhões de pesquisadores” (a expressão é da antropóloga Carmem Cunha);
na sua participação em movimentos negros e de cultura afro-religiosa; nas
condecorações que recebeu do governo do Maranhão e do governo federal
– décadas após haver enfrentado a repressão policial, mais de uma vez,
durante um Brinquedo de Cura... Sem se deter em nenhum desses aspectos,
vale destacar alguns poucos traços da Casa Fanti-Ashanti.
A Tenda São Jorge Jardim de Oeira da Nação Fanti-Ashanti foi fundada
por Pai Euclides “no dia 1º de janeiro de 1958, no sítio Iagapara, às margens
do rio Bacanga, em um lugarejo de São Luís”. Em 1º de janeiro de 1964, a
Casa Fanti-Ashanti transferiu-se para o bairro do Cruzeiro do Anil, em
São Luís, onde está até hoje. Renata Amaral considera a Fanti-Ashanti “um
verdadeiro centro de cultura popular maranhense”, pela “grande quantidade

1. Cf. FERREIRA, Euclides Menezes. Tambor de Mina em conserva. São Luís: Casa Fanti-
Ashanti, 1997.
2. Idem. Pajelança. São Luís: Edição do Autor, 2003.
3. Ibidem. Álbum Fotográfico: Arquivo de um Babalorixá. São Luís: Edição do Autor, 2004.

142
de manifestações” que nela se realizam, durante o ano inteiro, “com capricho
e rigor”.4 Nos termos de Pai Euclides, a confluência de manifestações nada
tem a ver com a confusão de “caboclos com orixás e nobres-gentis com
voduns”. De fato, para quem conhece a casa não é difícil saber que nada
mais distante do “capricho e rigor” dos seus rituais do que a mistura que dá
forma de espetáculo à “comercialização no mundo espiritual”. Como “onde
não tem onça, gato pula e escaramuça”, duas passagens de Tambor de Mina
em conserva assinalam a responsabilidade que se liga aos ritos:
Quando se está no momento exato dos toques, dificilmente os filhos-
de-santo entendem a palavra correta, principalmente os novatos. Para
evitar que uma palavra incorreta seja transmitida de pessoa para pessoa
e, daí, de geração para geração, decidiu-se fazer um tipo de treinamento
(adorosan). Somente assim é possível buscar melhor essa força cósmica,
resgatando a identidade deste culto dos deuses negros, garantindo
melhor satisfação a eles e seus eleguns.5
Para não haver engano prejudicial a um filho de um ou outro orixá,
é preciso que se tenha bastante cuidado na coordenação das práticas
e rituais, agindo sempre com muita segurança. Tudo isso é muito
complicado.6

No entanto o rigor das distinções vem acompanhado da crença de que


entidades se equivalem, de que todas as nações foram batizadas “num só
espírito para formar um só corpo”. O paradoxo é aparente se lembrarmos,
com Walter Benjamin, que o homem “possui a mais elevada capacidade
de produzir semelhanças”; se avaliarmos, nessa linha de pensamento, que
“talvez o homem não possua mesmo nenhuma faculdade superior que não
seja condicionada pela faculdade mimética”. Benjamin analisa os países
europeus do centro do capitalismo, em 1933, e então considera que “a extinta
capacidade de sermos semelhantes estendia-se muito para além do estreito
mundo perceptível, no qual ainda somos capazes de ver semelhanças. Era

4. Cf. AMARAL, Renata, texto para o encarte. CASA FANTI ASHANTI. Tambor de Mina
na virada pra mata. Independente, 2000.
5. Cf. FERREIRA, Euclides Menezes. Tambor de Mina em conserva, edição citada, p. 37.
6. Ibidem, p. 148.

143
com base na semelhança que a posição dos astros, há milhares de anos, atuava
sobre qualquer existência humana, no momento do seu nascimento”.7 A Casa
Fanti-Ashanti nos mostra que, nesta periferia do capitalismo, a capacidade
de compreender a afinidade e a unidade de coisas diversas, de culturas e de
religiões variadas, não só é atual como é do dia a dia. A memória da pedra
é a sua consistência.

Pedra da Memória
Não é aconselhável permanecer desatento caso se queira perceber
a extensão e a profundidade dos processos de construção da identidade,
individual e coletiva, que Pedra da Memória capta.8 Não estamos diante de um
registro feito somente com palavras. Os desenhos de Carybé, as fotografias,
os toques, as canções, as danças, tudo o que se apresenta é necessário por ser
útil ao entendimento. Por outro lado, livro e documentário são plasticamente
bonitos, mas não se trata de ter em mãos apenas um produto de aparência
bonita.
É certo que uma frase como “Minha faculdade mesmo, ou universidade,
é o mundo, é o tempo” é suficiente para nos levar à reflexão. Afirma-se um
saber pela experiência prática e pela busca da ancestralidade, na contramão
daquilo a que se convencionou chamar “modernidade”. Porém outras frases,
que se apresentam, a princípio, de modo bastante simples, têm sua real
importância completada pelas imagens e pelos sons. Tome-se como exemplo
a vasta recordação, feita por Pai Euclides, de nomes e jeitos de pessoas
que “já ’tão com Deus”. As palavras se organizam como fios de uma teia
de aranha, pois articulam a vida de quem fala às vidas de que se recorda.
Longe da informação bruta, que levaria a pensar na frieza de um obituário,
a reminiscência ilumina a sensação de que o mundo “não é só isso que se

7. Cf. BENJAMIN, Walter “Teoria das semelhanças”. In: BENJAMIN, W. Sobre arte, técnica,
linguagem e política. Trad. Maria Luz Moita; Maria Amélia Cruz; Manuel Alberto. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2012, p. 56.
8. Cf. AMARAL, Renata (org.). Pedra da Memória: Euclides Talabyan, minha universidade
é o tempo. São Paulo: Maracá Cultura Brasileira, 2012. Livro acompanhado de DVD. Projeto
e publicação viabilizados pela Lei de Incentivo à Cultura do Governo Federal, Programa
de Ação Cultural (ProAc) da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo 2012, Prêmio
Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura da Funarte.

144
vê, é um pouco mais”. Por sua vez, o documentário justapõe, ao passado
recordado, imagens do presente. Nessa operação, os nomes e os jeitos se
referem tanto a retratos na parede quanto a pessoas vivas.
Outra ampliação de sentido se dá quando do comentário de Pai Euclides
sobre a união de dois lados do mundo, estabelecida no pertencimento comum
a uma determinada divindade. Comentário indissociável da sua maneira
de falar, do seu olhar, de um canto que é entoado, de um “Oriki de Oxalá”
que é declamado. Parafraseando João Antônio, “aqui se gosta da beleza, do
ritmo e do que é corporal, musical e vem de dentro. E até homem de pouca
fé se comove”. Há ainda a justaposição da imagem de um menino a um
desenho de Carybé, o que, além de dar prova do talento do artista, sugere
o enraizamento daquele menino. Os exemplos poderiam ser multiplicados,
mas fiquemos com só mais um.
Pedra da Memória propõe diálogos muito interessantes entre as cidades
brasileiras do Recife e de São Luís e cidades do Benin. Diálogos de mão dupla,
pois envolvem descendentes de escravos nos dois lados do Atlântico, além
de “vidas que se foram, naquela praia, e que não voltaram mais” à Àfrica.
A edição das fotografias é uma das formas de apresentar tais diálogos. Não
fossem as legendas, dificilmente se saberia o que é o Benin, o que é o Brasil.
Um trabalho com fotografia como esse não poderia ser feito com olhar
de turista. Renata Amaral, junto com o grupo A Barca, sempre procurou
dar continuidade às pesquisas de Mário de Andrade. Daí o estudo criativo
das canções de tradição oral por ele anotadas e a leitura inteligente dos seus
livros. Mário de Andrade cunhou a expressão “turista aprendiz”, apropriada
pel’A Barca.9 Sem desconsiderar o acerto da ironia, que traduz a distância
entre o viajante e o lugar que procura conhecer, as pesquisas de tradições
brasileiras realizadas por Renata Amaral desde 1991 já deram um passo à

9. Cf. ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Estabelecimento de texto, introdução e


notas de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: Duas Cidades/ Secretaria da Cultura, Ciência
e Tecnologia, 1976. Cf. A BARCA, Turista aprendiz. CPC/ UMES, CPC 519, 2000. Idem.
Trilha, toada e trupé. Cooperativa de Música/ Maracá Cultura Brasileira, 2006. Caixa com
três CDs e um DVD. Projeto realizado com apoio da Petrobras e do Ministério da Cultura.
Ibidem. Coleção Turista aprendiz. Cooperativa de Música/ Maracá Cultura Brasileira/
Zabumba, 2007. Caixa com sete CDs e um DVD. Projeto realizado com apoio da Petrobras
e do Ministério da Cutura. CASA FANTI ASHANTI; A BARCA. Baião de Princesas. CPC/
UMES, CPC 041, 2002.

145
frente. As fotografias não estariam tão acertadamente aproximadas se a
pesquisadora não conhecesse bem, há longo tempo, pessoas que vivem a
cultura tradicional. De modo mais específico, o projeto não alcançaria um
resultado tão belo sem a convivência de Renata Amaral com Euclides Menezes
Ferreira e a comunidade da Casa Fanti-Ashanti desde 1999.
A memória da pedra resulta da paciente superposição de camadas.
Pedra da Memória é obra esculpida com rara dedicação.

146
Em diálogo

Canções populares-comerciais estão de tal modo presentes no dia a dia


das culturas brasileiras que não é fácil trabalhá-las de forma crítica.
O lado bom da questão, ou um deles, é que todas e todos nos consideramos
especialistas, sinal evidente da importância que as canções têm nos processos
de formação das identidades. Afinal, não causa nenhuma estranheza dizer que
a música popular mobiliza, com certa facilidade, os corpos, os sentimentos,
os sentidos nos vários Brasis.
O lado ruim da questão, ou um deles, é a confusão generalizada entre o
gosto pessoal, as determinações de classe, de gênero, de etnia ou de crença
religiosa, o fascínio da publicidade, o número de vendas... e o exercício
crítico, empenhado em discutir e elucidar concretamente os produtos e as
relações sociais. Pois nunca foi, e é cada vez menos raro que a crítica seja
substituída pela rajada de imagens eufóricas e/ou raivosas, escritas muitas
vezes, é verdade, só para aumentar a audiência da própria rajada. Assim como
nunca foi, e é cada vez menos raro que a valoração da qualidade estética
e a reflexão acerca das implicações sociais de uma canção sejam recebidas
como algo ofensivo, a ser respondido com desprezo, ira ou coisa pior. E,
salvo engano, o hábito de conversar sobre as canções vai regredindo para
o hábito de “Curtir”, “Descurtir”, “Uau”, “Grr”, etc., pelo menos em alguns
segmentos sociais, o que dá o que pensar.
Em meio a tudo isso, o trabalho de Renato Gonçalves ensina e emociona
quem se formou tendo a canção popular-brasileira como fonte de prazer
e de conhecimento.1 Trata-se de um estudo que integra aquela constelação
de livros que, enquanto introduções a temas ditos polêmicos, almejam

1. Cf. GONÇALVES, Renato. Nós duas: as representações LGBT na canção brasileira. São
Paulo: Lápis Roxo, 2016. Pesquisa e publicação viabilizadas pelo Programa de Ação Cultural
(ProAc) da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo.

147
mapear os problemas, apresentar subsídios teóricos, estender e aprofundar
as questões, sem, de modo algum, pretenderem esgotar os diversos assuntos.
Desde o título, Nós duas, a leitora é estimulada ou o leitor é estimulado a
pensar, tanto quanto a escutar as canções analisadas. Ou seja, trata-se de
um estudo que nos coloca em diálogo, gesto que lamentavelmente anda em
baixa hoje em dia.
É com sensibilidade, inteligência e elegância que Renato Gonçalves
trabalha. Veja que não utilizei adjetivos, pois o elogio ao autor deve ficar em
segundo plano: com os substantivos, quero colocar em evidência três dos
recursos que estruturam o seu texto. Bons recursos, não há dúvida, quando
a banalidade, a imbecilização e a baixaria ameaçam configurar o espaço
público no que chamamos Brasil. Em tempo, quem foi exatamente que disse
que “as representações LGBT na canção brasileira” são um tema polêmico?

148
Histórias dentro da História do Rap em São Paulo

Guilherme Botelho era um nome: o do diretor de Nos tempos da São


Bento, documentário lançado pela Posse Suatitude em 2010, com apoio do
Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da Prefeitura
de São Paulo. Aprendi bastante assistindo, mais de uma vez, a esse DVD.1
Artistas, formas estéticas, corpos, práticas, valores e significados culturais,
construções identitárias, consensos, conflitos – uma constelação dentro do
universo do Hip Hop no Brasil, na segunda metade da década de 1980, ganhava
contornos definidos e, dessa forma, reagia ao apagamento da memória. Levei
o documentário para as minhas aulas no Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de São Paulo (IEB-USP) e para a minha bibliografia.
Dois anos depois, conheci Guilherme Botelho quando fomos convidados
por alunos e alunas do curso de História da USP para participar de um debate.
Nele Guilherme refletiu sobre o crescimento do funk nas quebradas e sobre
a perda de interesse pelo rap, por conta de suas orelhadas, sobretudo entre
garotos que estavam na Fundação Casa. Hábito de jornalista, anotei alguns
aforismos com que ele pontuou a argumentação: “Passarinho que fala demais
come minhoca”; “O cara pode falar o que bem entender, contanto que ele
saiba as consequências”; “Periferia não precisa de voz, periferia é a voz”.
Alguns meses mais tarde, Paulo Eduardo Arantes me convidou para
falar no Seminário das Quartas, na FFLCH, também na USP. Eu então
estudava “Mil faces de um homem leal (Marighella)”, de Mano Brown,
“Dedo na ferida”, de Emicida, a versão de Criolo para “Cálice” e o rap em
resposta de Chico Buarque, além de “Sinhá”, de João Bosco e Chico. Ponderei
que não faria muito sentido apresentar os meus estudos em processo sem a

1. Cf. BOTELHO, Guilherme. Nos tempos da São Bento. Suatitude, 2010. Projeto realizado
com apoio do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da Prefeitura
de São Paulo.

149
participação de uma pessoa para quem o Hip Hop, “mais do que estética”, fosse
um “modo de vida” (os termos entre aspas são retirados de Nos tempos da
São Bento). Paulo Arantes concordou que eu convidasse Guilherme Botelho.
E, por sorte (?), Fernanda da Silva Rodrigues Rossi e Denis Machado Rossi,
que trabalhavam comigo no IEB-USP, eram amig@s do “Gui” e tinham o
número do seu celular.
Muita gente da USP fica nervosa ao falar no Seminário das Quartas. Com
tranquilidade e elegância, Guilherme informou o sentido de algumas gírias
cantadas e de outras, não (“Passarinho que fala demais come minhoca”);
explicou o que era flow e chamou atenção para as diferenças entre o que
“flutua na boca” de Mano Brown e na de Emicida; e observou que tanto
Brown quanto Emicida atuam como cronistas porque o Hip Hop, desde os
anos 1990, “tomou para si a pesquisa histórica, tomou para si a educação”
(“Periferia não precisa de voz, periferia é a voz”).
Corte rápido. Quanto vale o show? O Som da Periferia no mercado de
música popular2 reelabora a dissertação de Mestrado defendida por Guilherme
Botelho no Programa de Culturas e Identidades Brasileiras do IEB-USP em
2018. Tive a honra de trabalhar como seu orientador. Para mim, significou
tentar ajudá-lo a ampliar e a aprofundar os conhecimentos que a vivência no
Hip Hop já havia lhe dado, de modo a aumentar o seu “poder de negociação”
(a expressão foi utilizada por Guilherme naquele primeiro debate na USP).
E significou também para mim, é lógico, continuar aprendendo.
Até que se detenha em Athalyba-Man, o livro registra, articula e
interpreta processos fundamentais do rap em São Paulo. O Hip Hop chegara
à cidade, na década de 1980, “como mais uma novidade no processo de
mundialização da cultura-mercadoria”, na forma de “programas populares
de auditório [que] promoviam concursos com [...] o ‘delírio corporal do
momento’”, na forma de revistas vendidas em bancas ou na de discos que
se pretendiam sob medida para “um público abrangente em momento de
febre de uma dança”. Já na segunda metade daquela década, cultivado por
jovens que habitavam periferias paulistanas, o Hip Hop se adensaria na

2. Cf. BOTELHO, Guilherme Machado. Quanto vale o show? O Som da Periferia no mercado
de música popular. São Paulo: Editora Ciclo Contínuo, no prelo.

150
estação São Bento do Metrô, consolidando-se como um movimento que
tanto reunia “traços étnicos, classes sociais e interesses em comum” quanto
mediava tensões. Do “epicentro” da São Bento, e com passagem pela Praça
Roosevelt, o rap seria levado para bailes e gravadoras. E concentraria, na
multiplicidade de artistas e de canções, impasses entre a música como
brincadeira, trilha sonora romântica, entretenimento, e a música como
informação, autoconhecimento, denúncia e diversão, à luz das pautas do
Movimento Negro Unificado (MNU).
Guilherme Botelho analisa as estruturas formais dos primeiros raps
de São Paulo – sonoridades, frequências, células rítmicas musicais, flows,
rimas, cadências e temas das letras cantadas, dinâmicas artísticas, acordos
no mercado. Dizendo de outra maneira, Guilherme examina a criação de
uma nova estética musical que pôde responder à vida daqueles jovens em um
momento de, perdoem a rima!, redemocratização, segregação e hiperinflação;
e que soube responder de modo afirmativo, o que implicou, dentre outros
aspectos, manter-se distante “da proposta de engajamento derivada do
sentimento de impotência dos setores ilustrados da classe média”.
Para entender o mercado hegemônico no período, Guilherme retoma
etapas da indústria fonográfica em décadas anteriores, sintetiza algumas das
linhas de força da chamada MPB, faz a crítica do pop, investiga relações entre
a esfera política e a grande imprensa. Todo esse trabalho busca apreender
um movimento cultural vasto, do qual Athalyba-Man participa e emerge
como “uma das expressões do primeiro momento em que o produto musical
radicado na cultura Hip Hop entra na dinâmica brasileira da indústria
fonográfica hegemônica, tornando-se música popular-comercial”. Melhor
dizendo, Athalyba-Man, DJ Kri e Grandmaster Duda participam de um
movimento cultural vasto, do qual o disco Athalyba e A Firma emergiu via
BMG-Ariola, para logo depois abrigar-se no universo do Hip Hop. Entender
o processo de realização do disco é outra forma de Guilherme Botelho reagir
ao apagamento da memória.
Trata-se enfim de um trabalho científico interdisciplinar – o que é
resultado, em parte, da dimensão da pesquisa, em outra parte, dos interesses
do pesquisador, e em outra parte ainda, de alguns dos caminhos abertos pelo
IEB-USP na USP. Mas, espero que já esteja evidente, também se trata de um

151
trabalho construído a partir de um ponto de vista interno ao Hip Hop e aos
processos de construção identitária de afro-brasileir@s. Guilherme Botelho
conduz a bola com habilidade quando cita e analisa discos, vídeos, revistas,
livros, jornais, publicações acadêmicas, sites, quando faz entrevistas e com
elas trabalha. As fontes e as reflexões colocam o texto muito além daqueles
que se originaram de dedicadas consultas à Folha de S.Paulo – aliás, também
consultada por Guilherme – e da aplicação de teorias sem a comprovação
da experiência concreta. Quanto às opiniões irrefletidas na imprensa ou nas
redes sociais, o livro se coloca tão além delas que, para não subestimar a
distância, mais prudente é não comentá-la. Nesse sentido, Quanto vale o show?
de Guilherme Botelho não só inova, não só contribui para o conhecimento
da sociedade sobre si mesma, como também dá mostras de que o trabalho
intelectual exercido com rigor e liberdade é imprescindível em um país que
se queira democrático, republicano e inteligente.

152
Sobre as ideias sólidas de um livro

Em uma crônica publicada em 1929, Mário de Andrade comentava a


função das estátuas nas ruas e praças públicas. Dizia que, na realidade, elas
não serviam para conservar a memória de um homem de certo valor, mas
sim para três coisas: ou para aumentar a vaidade do “grupo de amigos”
que havia se empenhado na homenagem ao morto; ou para servir como
ponto de referência aos transeuntes; ou para divertir os turistas, que ririam
da feiura do monumento “só pra meter o pau na terra visitada”. E quando
Mário cogitou na função educativa que uma estátua deveria ter, embatucou:
“Neste ponto é que a porca torce o rabo”. Afirmou, então, que só enxergava
um jeito de uma estátua “chamar a atenção de verdade”: sendo grandiosa
e incomodando tanto que chegasse a atrapalhar o caminho das pessoas.
E argumentou que os comerciantes haviam percebido isto muito bem: “É
incontestável que o anúncio erguido à ‘memória’ de tal cigarro ou sabonete,
no Anhangabaú, é monumento que jamais Colombo não teve”.1
Já Tom Jobim, quando foi entrevistado por uma revista do meio
publicitário em 1983, elogiou mensagens concisas que se limitavam a dizer,
por exemplo, “Coca-Cola é isso aí”, frase que não informava se a bebida era
boa ou ruim. E completou: “‘Publicidade é igual a assaltante: fala direto’”.2
Na entrevista, Tom estava obviamente sendo irônico. E se a ironia é um
recurso que nos faz rir, muitas vezes com bastante amargura, de coisas
sérias, a semelhança disparatada entre anúncio e assalto é um assunto que
mereceria ser levado a sério. Existe uma velha definição de “mercado” tão
desmistificadora que os anunciantes e as agências de publicidade confessam

1. Cf. ANDRADE, Mário de, “O culto das estátuas”. In: ANDRADE, M. de. Os filhos da
Candinha. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006, p. 22-24.
2. Cf. CABRAL, Sérgio. Antônio Carlos Jobim: uma biografia. Rio de Janeiro: Lumiar,
1997, p. 363.

153
ter certo pudor de enunciá-la: “Mercado é gente com dinheiro no bolso e
vontade de gastar”. Ao comentá-la em 1990, o profissional de marketing
Francisco Gracioso nem se utilizou da ironia nem deixou dúvidas quanto
ao funcionamento básico do negócio: dinheiro no bolso “é um resultado
da atividade econômica no sentido mais amplo”; às “diversas armas” da
publicidade e da propaganda cabe, sim, “fazer as pessoas tirarem o dinheiro
do bolso”.3
Por sua vez, o publicitário João Anzanello Carrascoza, também sem
ironia nenhuma, escreveu em 2003 que o ápice de uma mensagem comercial
é quando ela se torna “uma figura de autoridade”, quando se transforma em
“uma recordação na casa dos mortos que, a qualquer hora, pode ressuscitar”.4
Trocando em miúdos, a propaganda comercial seria como Freddy Krueger,
ela nos ataca se estamos adormecidos; a diferença é que o ataque de Freddy
Krueger não esconde que faz parte de um pesadelo, enquanto a propaganda
nos convence, com a sua autoridade, que o pesadelo é um paraíso.
E não é fácil acordar. Ou seja, não é fácil despertar do pesadelo quando
ele se apresenta com máscaras ora espalhafatosas, ora concisas e diretas,
mas que nos convencem porque são sempre simpáticas e agradáveis até
mesmo quando confessam cinicamente seus verdadeiros interesses. Em outras
palavras, as máscaras da publicidade são opostas ao rosto sádico e vingativo
de Freddy. Acresce que chamar a atuação das empresas, no campo simbólico,
de A hora do pesadelo pode levar a alguns erros básicos. Devemos lembrar,
com T. W. Adorno, que a propaganda fascina por meio da “manipulação
racional do irracional”, uma estratégia fascista. Mas as disposições subjetivas,
como salienta também Adorno, não explicam inteiramente a propaganda,
a qual responde a uma organização econômica.5

3. Cf. GRACIOSO, Francisco, “Marketing no Brasil: evolução, situação atual, tendências”.


In: BRANCO, Renato Castelo; MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando (coord.).
História da propaganda no Brasil, edição citada, p. 85-97.
4. Cf. CARRASCOZA, João Anzanello. Redação publicitária: estudos sobre a retórica do
consumo. São Paulo: Futura, 2003, p. 56 e 59.
5. Cf. ADORNO, Theodor W. “O que significa elaborar o passado”. In: ADORNO, T. W.
Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. 2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2000, p. 29-49.

154
Em alguma medida, os anúncios comerciais e as próprias mercadorias
possuem propriedades que satisfazem necessidades humanas originadas da
fantasia ou do estômago. A extensão do horror, a concretude do pesadelo
é percebida quando sabemos muito bem quais são as relações sociais que
sustentam a produção, a distribuição e o consumo destas mercadorias, bem
como quando avaliamos, sem rodeios, quão úteis elas são frente àquelas
necessidades.
Se escrevo um texto, até aqui, aparentemente distante do tema do livro
Agronegócio e indústria cultural,6 é porque minhas notas foram motivadas
por sua leitura e releitura. E pela admiração que tenho pelo trabalho.
Ana Manuela Chã traz essas questões, que são em si mesmas fugidias, de
modo consistente, sólido, ao estudar como o setor do agronegócio constrói,
reforça e expande sua hegemonia no campo simbólico do Brasil recente. Um
dos resultados é que ficamos sabemos sem lero-lero e em profundidade o
jogo de imagens difundido por empresas e entidades de classe.
Além disso, no livro não se sente nem o medo de conhecer, nem o medo
de dar a conhecer as estratégicas que recebem a crítica. Com isso, por um
lado, o texto se manteve longe de qualquer tipo de derrotismo ou de adesão.
E, por outro lado, apoiando-se em pesquisa muito bem-feita, Ana Chã registra
a amplitude das iniciativas do setor do agronegócio, que vão de projetos
educacionais à distribuição de patrocínios e prêmios, do investimento em
arte erudita à promoção de shows, feiras e festas, do bom relacionamento
com a mídia hegemônica ao aumento da bancada ruralista no Congresso
Nacional – e essa síntese não enumera todas as formas de atuação estudadas
e, portanto, agora mais visíveis para os movimentos contra-hegemônicos.
Como todo trabalho intelectual bem realizado, o livro de Ana Chã
participa de um esforço coletivo, levado adiante com bastante lucidez. Estudá-
lo é um dos passos para que esse esforço prossiga, em busca de projetos
alternativos que combatam tantos retrocessos no Brasil e no mundo.

6. Cf. CHÃ, Ana Manuela. Agronegócio e indústria cultural: estratégias das empresas para
a construção da hegemonia. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

155
CANÇÃO E TEATRO
Três caminhos de pesquisa musical no Latão

Não pretendo discutir aqui tendências ou consequências do trabalho


musical desenvolvido na Companhia do Latão. Minha intenção é mais simples,
fazer o registro de três caminhos que, não sendo os únicos, participaram
ativamente desse processo desde o seu início. Em alguma medida, aliás, penso
que ainda estejam ativos; mas tampouco pretendo avaliar a importância
que tiveram ou têm. Apenas esclareço que se deve levar em conta, para um
melhor entendimento das partituras aqui fixadas, que elas decorrem de uma
opção vigente até o experimento cênico Valor de Troca (2002) e a peça O
mercado do gozo (2003).
Até então, os atores só cantavam a capella (sem acompanhamento
instrumental) ou com apoio de percussão tocada por eles mesmos. As músicas
também se produziam dessa forma. Naquele experimento, introduziu-se o
piano em cena (com a participação de Luis Felipe Gama), recurso levado
para aquela peça e as seguintes (quando Martin Eikmeier se integrou ao
grupo). A exceção, em trabalhos anteriores, foi o uso restrito do violão, por
Otávio Martins em O nome do sujeito (1998), acompanhando-se enquanto
cantava fora de cena, e por Adriana Mendonça, em A comédia do trabalho
(2000), na abertura cantada por Maria Tendlau (que compôs a canção),
Alessandra Fernandez e pela própria Adriana.
O primeiro caminho seguido que aqui comentarei, decorrente
de tal opção, foi o da pesquisa com ritmos. Seu ponto de partida quase
sempre esteve na cultura brasileira de tradição oral ou na canção popular-
comercial brasileira. Dois bons exemplos são o ritmo de jongo (paulista de
Guaratinguetá) executado em O nome do sujeito, apoiando ali um cânon a
três vozes de Beethoven (“Signor Abate, io sono, io sono, io sono amalato...”),
e a percussão de samba (carioca do Estácio) em A comédia do trabalho. Vale
lembrar que o jongo entrou por ideia de Lincoln Antonio, diretor musical

159
do espetáculo, o qual na época iniciava o trabalho com o grupo A Barca no
mesmo Teatro de Arena Eugênio Kusnet que o Latão ocupava. Uma versão
do arranjo está gravada no disco Canções de Cena (2004) da Companhia.
Nos limites deste artigo, porém, creio que melhor exemplo a considerar
seja a “Bandinha do Latão”, como chamamos informalmente a música tocada
em Ensaio sobre o Latão (1997). Sua forma bastante simples acabou reunindo
uma série de experiências. Compunha-se de apenas três figuras rítmicas,
executadas sucessiva ou simultaneamente, conforme a cena, em um padrão
de seis tempos. A criação foi coletiva. Levei a primeira figura ao ensaio como
uma estilização do samba. Tentei criar um desenho de tamborim em compasso
ternário. Mas foi tocada por um agogô, de que dispúnhamos no momento,
antes de optarmos por uma lata pequena. Fosse pelo som do agogô, sugerindo
um gonguê, fosse pela figura em si, Fernando Rocha, que trabalhava comigo
na direção musical, considerou que o ritmo mais parecia uma adaptação de
maracatu. E compôs a segunda frase, para tambor. A terceira, para chocalho
marcando as cabeças de cada tempo, acabou assinalando de modo claro a
fórmula de compasso 6/4 (subdividida internamente em 4/4 seguido de 2/4).
Esse terceiro desenho foi adotado com o propósito de facilitar a execução
da música, e como estratégia para incluir todos os atores. Com o mesmo
propósito, outra estratégia utilizada foi ensinar as duas primeiras figuras por
meio do canto de versos fáceis: “Vou pra Paris/ Viajar” (primeira frase, tocada
na latinha); “Não vou nada/ Vou ficar” (segunda frase, tocada no tambor).

Figura 1 – “Bandinha do latão”

Outra experiência rítmica do mesmo período acabou sendo aproveitada


na montagem de Santa Joana dos Matadouros (1998). Levei ao ensaio a

160
sugestão de trabalharmos com a fórmula de compasso 11/8. Inspirei-me
em “Follow your heart”, de John McLaughlin, cuja redução rítmica fora-me
ensinada pelo maestro Cláudio Leal Ferreira: compasso misto de 4/4 seguido
de 3/8. Os atores entoavam repetidamente “Ovo, ovo, casca de...”, palavras
sugeridas pela imagem de um exército em frangalhos, conforme era narrado
em Ensaio sobre o Latão. A execução alterou o desenho, transformando o
11/8 em 5/4. E o material foi aproveitado em Santa Joana como vinheta para
o mercado de carnes, com nova letra (“Carne, carne, queremos...”).
Talvez a alteração feita pelos atores se aproxime daquela “tendência
muito forte em nosso povo, pra modificar a rítmica rija de certas frases do
Hino Nacional”, de que falou Mário de Andrade, o qual atribuía a tendência
ao caráter “sossegado e bastante molengo” de uma gente que não é “belicosa”,
não é “marcial”...1 Ou talvez a mera aceleração do andamento, no calor do
ensaio, tenha arredondado o desenho. Seja como for, as palavras passaram
a se acomodar em um novo padrão mais acessível, sem dúvida, para atores
e público:

Figura 2 – “Carne, carne”

O segundo caminho seguido na Companhia do Latão foi o da


improvisação de canções pelos atores. Um ponto de partida bastante utilizado
foi, outra vez, a cultura de tradição oral. Inicialmente, em Ensaio sobre o
Latão, os improvisos modificaram, com extrema liberdade, canções levadas
por nós, diretores musicais. Foi o caso da interpretação melancólica de “Xô,
xô, barata”, criada por Gustavo Bayer a partir de uma proposta que fiz: os
atores deveriam improvisar uma cena qualquer usando vocalmente apenas o

1. Cf. ANDRADE, Mário de, “Crítica do gregoriano”. In: ANDRADE, M. de. Música, doce
música. São Paulo: Martins, 1963, p. 32-33 (nota 1).

161
samba de roda baiano, que assumiria, então, sentidos diversos daqueles que
o nosso costume já cristalizou. Além de desacelerar bastante o andamento
e de explorar silêncios entre palavras e versos, Bayer começou o canto pela
estrofe, não pelo refrão cuja letra, ostensivamente zombeteira, contrapõe
escárnio à gravidade do sofrimento. O resultado possibilitou a Sérgio de
Carvalho e Márcio Marciano fazerem de um samba anotado por Camargo
Guarnieri na Bahia, em 1937, a releitura do mais célebre monólogo de Hamlet.
Eu não sou quem você pensa
Você está mal enganada
Xô, xô, barata
Eu não sou parede, não
Eu não sou casa caída
Nem parede derrubada
Xô, xô, barata
Eu não sou parede, não2

Outro exemplo, na mesma peça, foi a versão em alemão de “Adeus,


meu lindo amor”, interpretada por Maria Tendlau. A canção faz parte da
Chegança de Marujos anotada por Mário de Andrade, no Rio Grande do
Norte, e fora levada ao grupo por Lincoln Antonio.3 O passo adiante nesse
caminho também foi proposto por Lincoln, em O nome do sujeito: os atores
passaram a compor melodias sobre versos da tradição oral anotados, entre
outros, por Leonardo Mota na década de 1920. Assim, p. ex., Gustavo Bayer
musicou estrofe do cantador cearense João Pedro de Andrade, o Bem-te-
vi; e Georgette Fadel, estrofe do cantador cearense Luís Dantas Quesado,
o Luisinho.4
“Canção dos fidalgos”, melodia de Gustavo Bayer para versos de Sérgio
de Carvalho e Márcio Marciano inspirados em Hanns Eisler, exemplifica

2. “Xô, xô, barata”, samba em domínio público anotado por Camargo Guarnieri, apud
ALVARENGA, Oneyda. Música popular brasileira. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1982,
p. 153-154.
3. Cf. ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil, tomo 1. 2ª ed. Belo Horizonte:
Itatiaia/ Brasília: INL, 1982, p. 290.
4. Cf. MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte. 4ª ed. Rio de Janeiro: Cátedra/ Brasília: INL,
1976, p. 11 e 9, respectivamente.

162
uma base diversa da pesquisa. Integrava o experimento cênico João Fausto
(1999), de Eisler. Tratava-se então, como se nota, de propor aos atores que
improvisassem cantos sobre textos não mais retirados da tradição oral, e
sim escritos pelos dramaturgos-diretores.
Talvez o auge desse outro processo tenha se dado em A comédia
do trabalho, peça em que predominaram canções de Maria Tendlau, de
Alessandra Fernandez e de Adriana Mendonça. As parcerias entre as atrizes
não eram fixas, nem a responsabilidade de cada uma por melodia ou por letra.
Os dois dramaturgos-diretores copidescavam as letras. Sérgio de Carvalho
também compôs uma melodia. A direção musical, nesse ponto, se encarregava
das composições mas cuidava, sobretudo, de dar acabamento final às criações,
além de estimular a criatividade, ensinando canções que pudessem ser
úteis. E é importante dizer que o resultado, via de regra, tomou distância
do estímulo inicial. O trabalho que propus a partir de “O trem atrasou”
(Paquito/ Estanislau Silva/ Artur Vilarinho), p. ex., inspirou Alessandra
Fernandez a compor “A sorte da telefonista”, em gênero bem diverso de um
samba de carnaval (de 1941) como aquele: a canção foi composta na forma
de cânon a duas vozes, e o arranjo final de Lincoln Antonio incluiu ainda
uma terceira voz, em contraponto; desse modo, as três vozes se entrelaçavam
semelhando linhas telefônicas cruzadas.
Todos os exemplos que dei até agora estão gravados no CD Canções de
cena.5 Assim, penso que o registro de um exercício que não foi aproveitado
possa sugerir, a quem achar interessante, desdobramentos não empreendidos
pelo grupo. No mínimo, valerá pela curiosidade. Ainda em um ensaio de 1997,
propus que os atores criassem melodias sobre versos de Manuel Bandeira
incluídos em sua crônica “Fragmentos”. O poeta se refere a eles como haicais
de sua coleção de “poesia [que] reponta onde menos se espera”, e diz que
foram encontrados “num livro de fórmulas de toilette para mulheres”. Um
dos haicais foi trabalhado por Nelli Sampaio:

5. Cf. COMPANHIA DO LATÃO. Canções de cena. Cooperativa Paulista de Teatro,


20.0928.001, 2004.

163
Água de rosas
Glicerina
Bórax
Álcool6

Nelli criou a melodia alterando um pouco a letra: adicionou uma sílaba


ao segundo verso (“E glicerina”); pronunciou intuitivamente o x de “Bórax”
em nota destacada, o que talvez desgostasse Bandeira, o qual sublinhou “a
cadência perfeita do verso bórax” – mas há que se reconhecer que a palavra
ficou assim boa de ser cantada e também de ser compreendida; e ainda fez
a repetição do verso final. Apresentado o experimento, compus a outra
melodia e a outra letra, para voz masculina. O sentido original sugerido
pela musicalidade dos versos acabou transformado por completo no dueto:
Água de rosas (Roseira dá)
E glicerina (Glicério dá)
Bórax
Álcool (Pra quem
Álcool puder
Álcool pagar)

Figura 3 – “Água de rosas”

6. Cf. BANDEIRA, Manuel, “Fragmentos”. In: BANDEIRA, M. Literatura Comentada –


Manuel Bandeira. Org. Salete de Almeida Cara. São Paulo: Abril Educação, 1981, p. 26-27.

164
O terceiro e último caminho de que falarei é o da pesquisa de melodias
compostas com escalas que não a diatônica. Darei dois exemplos. O falso
canto gregoriano cantado para exaltar a indústria de carne enlatada, em Santa
Joana dos Matadouros, juntava à esquisitice da letra (criada coletivamente)7
a utilização do modo do VIº grau da escala menor melódica de Mi bemol.
Em outras palavras, o Dó eólio bV, um modo bem esquisito para o chamado
ouvinte médio. Por outro lado, preocupei-me em criar uma melodia cantável,
a fim de que não ameaçar em demasia a qualidade da execução. Daí as
repetições e a predominância de graus conjuntos, com economia de saltos
melódicos (embora se utilize o salto de 5ª diminuta):
Quando a mesa é uma beleza
Quando a mesa é uma beleza

Tem carne de porco


Mortadela, salaminho
Linguiça, presunto
Enlatado de salsicha

Tem carne de porco


Mortadela, salaminho
Linguiça, presunto
Enlatado de salsicha

Quando a mesa é uma beleza

7. A título de curiosidade, transcrevo a letra com que compus essa melodia: “Faz do leite
uma alegria/ Faz do leite uma alegria/ Sabor que alimenta/ Energia que dá gosto/ Sabor que
alimenta/ Faz do leite uma alegria/ Sabor que alimenta/ Energia que dá gosto/ Sabor que
alimenta/ Faz do leite uma alegria/ Faz do leite uma alegria”. A composição, portanto, é
anterior à letra com que se integrou ao espetáculo. Mas já havia a intenção de problematizar,
na forma da canção, a mistura de religião, de propaganda comercial e da dita alta cultura,
no quadro do que vínhamos discutindo acerca de Santa Joana dos Matadouros.

165
Figura 4 – “Quando a mesa é uma beleza”

Já em Auto dos bons tratos (2002), modifiquei a redação de “Há quem


seja pródigo e aumente a sua riqueza, e há quem guarde sem medida e se
empobreça”, conservando a ideia básica retirada do livro dos Provérbios
(11, 24). No âmbito da peça, procurava-se apontar o irracionalismo de um
pensamento desse tipo. Visto de outro ângulo, cantava-se a falta de lógica
entre conduta e recompensa material, sugerindo-se a necessidade de buscar
explicações sobre o andamento econômico da sociedade brasileira apartadas
do conformismo de fundo religioso e/ou do conformismo do senso comum
– “as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos
anos, incrustradas na memória individual e pública”, axiomas “que não
forçam a reflexão, preenchem os vazios, e deixam a gente em paz com Deus
e os homens”.8 Ao mesmo tempo, havia a ideia de desperdício de um lado,
de cansaço de outro, e de nenhum repouso nas duas pontas. Acreditei que
uma melodia construída com a escala de tons inteiros pudesse auxiliar no
trabalho de expressar todas essas intenções:

8. Cito duas passagens de Machado de Assis. A primeira é de “Teoria do medalhão”. A


segunda, de “Evolução”. Cf. MACHADO DE ASSIS, Contos: uma antologia. Org. John
Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 1, p. 332, v. 2, p. 206.

166
Há quem seja pródigo
E aumente a sua riqueza
Há quem seja módico
E se empobreça

Figura 5 – “Há quem seja pródigo”

Após a primeira execução, utilizava-se a forma de cânon, útil, nesse


caso, para representar a confusão disseminada por um tal pensamento.
Com o exemplo, encerra-se a exposição que anunciei de início. Farei
um último registro, no entanto, a fim de aludir às modificações implicadas
quando da introdução do piano nos espetáculos do Latão. Em Valor de
troca, Márcio Marciano entregou-me o mote “Isso é bom, isso é mau”.
Transcrevo apenas a primeira estrofe da canção, antes da entrada do coro e
da abertura das vozes – as quais, na terceira estrofe, serão duas e, na estrofe
final, serão três. É o suficiente para que se ilustre como procurei espelhar a
ambivalência (ou a ambiguidade?) do mote na forma do canto: fazendo uma
passagem brusca da tonalidade Maior para a menor homônima. Deve-se
ter em mente que a melodia era agora sustentada pelo piano, ou seja, que os
empréstimos modais garantiam, no acompanhamento harmônico, conforto
para os intérpretes. De fato, não tenho certeza de que se poderia cantar essa
melodia a capella satisfatoriamente. Por outro lado, é de se lembrar que, em
cada apresentação de Valor de troca (incluindo sua adaptação para a tevê,
em 2007), participaram não só atores mas também cantores – em momentos
diferentes, Marcelo Pretto, Ana Luiza, Juliana Amaral, Juçara Marçal, Ligia
Oliveira, o saudoso Ney Mesquita. O certo é que a melodia não foi criada
para soar difícil, muito embora não persiga um objetivo comum da canção
popular-comercial nos dias que correm: essa melodia não pretende se parecer
com algo que já se ouviu antes.

167
Injustiça existe
Como a chuva e a gastrite
Isso é bom, isso é mau

Figura 6 – “Canção da injustiça”9

9. A letra de “Canção da injustiça” que compus para Valor de troca seria depois modificada
por mim e Marília Calderón, e gravada em 2016. Cf. CALDERÓN, M.; GARCIA, W. na
cachola. Disponível em: https://www.nacachola.com/download. Acesso em: 11 out. 2020.

168
Três notas sobre Farinha com Açúcar e
Racionais MC’s

Peço licença para apresentar três notas sobre as relações entre Farinha
com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens e a obra do Racionais
MC’s. As análises estão em processo. Portanto, devem ser lidas como
comentários de quem, tendo se entusiasmado com o que viu e ouviu, busca
agora compreender esse entusiasmo, certo de que a compreensão intensificará
o que sente.

Dois atos, dois álbuns


A peça-show Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e
Homens se estrutura em dois atos.1 A organização é semelhante à do CD-
duplo Nada como um dia após o outro dia, lançado pelo Racionais MC’s
em 2002. De modo ostensivo, “Primeiro Ato, Morrendo” dialoga com o
tema geral do primeiro CD, “Chora agora”; e “Segundo Ato, Sendo”, com
o tema geral do segundo CD, “Ri depois”. Contudo, uma vivência cantada
em “V. L. (Parte II)”, rap de Mano Brown que integra o CD “Ri depois”, faz
parte do “Primeiro Ato, Morrendo”: o choque entre a vida concreta em um
bairro da periferia urbana e a utopia ou a nostalgia ou a idealização (à qual
não faltam elementos da propaganda comercial) de uma vida ingênua e
tranquila, ditada pelo ritmo agrário.

1. Cf. OLIVEIRA, Jé de. Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens:
obra tributária à obra dos Racionais MC’s. Belo Horizonte: Javali, 2018. Publicação
contemplada pela 29ª edição da Lei de Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo, no
quadro de desenvolvimento do projeto “A concretude material do que somos: espaços, ritos
e humanidades”, proposto pelo Coletivo Negro.

169
[Mano Brown]
Eu durmo pronto pra guerra e eu não era assim
Eu tenho ódio e sei o que é mau pra mim
Fazer o que se é assim, vida loka cabulosa
O cheiro é de pólvora, e eu prefiro rosas
E eu que, e eu que sempre quis um lugar
Gramado e limpo, assim, verde como o mar
Cercas brancas, uma seringueira com balança
Disbicando pipa, cercado de criança
[Ice Blue]
How, how, Brown, acorda, sangue bom
Aqui é Capão Redondo, tru, não, pokemón
Zona Sul é o invés, é stress concentrado
Um coração ferido por metro quadrado
[Mano Brown]
Quanto mais tempo eu vou resistir
Pior que eu já vi meu lado bom na U.T.I.
[...]
Às vezes eu acho que todo preto como eu
Só quer um terreno no mato, só seu
Sem luxo, descalço, nadar num riacho
Sem fome, pegando as frutas no cacho
Aí truta, é o que eu acho, quero também
Mas, em São Paulo, Deus é uma nota de cem
Vida loka2

Em Farinha com Açúcar, essa vivência é retomada a partir do relato de


fundação do Zaíra, no município de Mauá, na Grande São Paulo. À medida
que a favela crescia, “a roça [ficava] vazia de vida de gente”. Mas, tanto no rap
quanto na peça teatral, a “passagem do rural para o urbano, do arcaico para
o moderno” (como se lê no próprio texto de Farinha com Açúcar...), essa

2. Cf. RACIONAIS MC’S, “V. L. (Parte II)”. Autor: Mano Brown. RACIONAIS MC’S. Nada
como um dia após o outro dia. Cosa Nostra/ Zambia, ZA-050-1, 2002.

170
passagem que tem como resultado a perda da ingenuidade e da paz é sentida,
sobretudo, por conta do impacto constante da morte violenta e prematura.
Na nota seguinte, retomarei o ponto. Por ora, estenderei um pouco
a comparação entre Nada como um dia após o outro dia e Farinha com
Açúcar. Penso que a semelhança entre as duas estruturas deve ser pensada,
de fato, como um diálogo. A partir dele, ocorrem aproximações e diferenças.
Dizendo de outro modo, quando o Coletivo Negro aborda alguns dos temas
cantados pelo Racionais, aparecem diferenças substantivas. Para ficar em um
só exemplo de cada disco: Farinha com Açúcar narra a infância em bairros
periféricos e reflete sobre as marcas que a violência lhe imprime, mas não
inclui as causas sociais e as prováveis consequências de maus-tratos recebidos
por um filho na relação com a mãe, como se escuta em “Chora agora” (“12
de outubro”, de Mano Brown); e, quando a peça põe em cena o confronto
com o racismo em meio à descoberta da sexualidade na adolescência, a sua
narrativa se aproxima de “Qual mentira vou acreditar”, rap de Mano Brown
e Edy Rock, faixa do disco Sobrevivendo no inferno, de 1997,3 permanecendo
distante do tema do dinheiro enquanto base e finalidade da relação entre
determinadas mulheres e determinados homens, como se escuta em “Ri
depois”, de Nada como um dia após o outro dia (“Estilo cachorro”, de Edy
Rock).

Primeiro ato, canções


Na peça, identificam-se duas formas de morte, “a morrida e a matada”;
“quando não se mata-morre nos corredores dos hospitais, é na rua, nos bares,
nas vielas ou nos becos que se executa o espetáculo”. Três canções integram
o “Primeiro Ato, Morrendo”: “Hábito onde habito”; “Gira pro sol”; e “Dor
que dura a cana não cura”.
A primeira delas, “Hábito onde habito”, música e letra de Jé Oliveira,
responde a pergunta “O que é a vida?” feita por “Homem”, tal como o narrador
é identificado na peça. A resposta vem na forma de um rap que, em linha
com o trabalho do Racionais MC’s, sintetiza a experiência de sentir, na favela,

3. Idem. Sobrevivendo no inferno. Cosa Nostra/ Zambia, ZA 001, 1997.

171
a morte sempre próxima – seja pela atuação da polícia, seja pelas condições
de moradia em meio ao barro, à chuva e aos barrancos.
[Homem]
Tudo lá amontoado, só polícia de Estado
Sem asfalto, muito barro, pouco sarro, só catarro
Qual é o trato? Onde é que eu paro?
Como é que eu saro?
O sangue escorre pra boca do lobo, olho vermelho
Não tem espelho, meu desespero
Esse é o preço: enterro
Os cemitério tudo cheio com os preto de recheio, dá mó receio, eu não
[anseio, sigo de pé, nóis é esteio
Calma, fia, daqui a pouco estia
Puta que pariu, quem diria: os barraco no barranco, as tia tudo dando
[linha.

No plano sonoro da letra, como se percebe, há muitas semelhanças de


som. Destacarei as principais. Os versos se constroem com uma longa série
de rimas consoantes ou toantes (amontoado/ Estado/ asfalto/ barro/ sarro/
catarro/ trato/ paro/ saro), seguida pela assonância da vogal “o”, aberta e
fechada, a qual se conclui na rima toante das duas últimas palavras (escorre/
boca/ lobo/ olho). Segue-se outra série, ainda mais longa, de rimas consoantes
ou toantes (vermelho/ espelho/ desespero/ preço/ enterro/ cemitério/ cheio/
preto/ recheio/ receio/ anseio/ esteio). Depois, uma terceira série de rimas
toantes e consoantes, menos longa (fia/ daqui a/estia/ diria/ tia/ linha).
Também há paronomásia (barraco/ barranco), recurso já presente no
título (hábito/ habito) e também nas séries de rimas (barro/ sarro/ catarro;
paro/ saro; recheio/ receio). Fazendo o papel de advogado do outro, pode-
se indagar se o uso do recurso não estaria excessivo, chegando a prejudicar
a comunicação da letra. Deixando, por ora, a pergunta de lado, note-se
que o rap utiliza a pronúncia popular “nóis”, que já se tornou uma marca
das culturas das periferias. Além disso, utiliza a sintaxe popular, fazendo
a concordância entre artigo definido no plural e substantivo no singular
(“os cemitério”; “os barraco”); o recurso tanto expressa o lugar social do

172
narrador quanto endereça o seu discurso a esse mesmo lugar social. Por
fim, o endereçamento do discurso é reforçado pelo emprego da gíria “dando
linha”, que significa “correndo, fugindo”. E ainda pelo emprego de “Puta que
o pariu” como interjeição.
A segunda canção é “Gira pro sol”, música de Charles Razl e letra de Jé
Oliveira. Nela se condensa o choque entre a “morte matada”, tão cotidiana que
gera a imagem de um sol pessoal que “não quer mais girar”, e o sentimento
nostálgico, utópico ou idealizado da vida simples e mágica, fundada em
bases rurais (esse sentimento também está presente em “V. L. (parte II)”,
de Mano Brown, conforme destaquei). A letra é cantada duas vezes. Entre
a primeira e a segunda, o narrador sai de cena. Quando retorna, antes de
cantar pela segunda vez, está “vestido de Antiga, ou guardiã do luto, ou
silêncio”, conforme indicação que se lê no texto da peça: “A ideia é criar uma
imagem que auxilie na passagem do tempo rural para a favela. A fartura [de
alimentos] da roça em contraponto à fartura de mortes da cidade”.
[Homem]
Eu tô pisando forte no chão
Eu tô ficando pesado demais pra voar
Dentro de mim, solidão-capim
Minha enxada não vai capinar
E o meu sol não quer mais girar, por que será

[Coro]
E o meu sol não quer mais girar, por que será (duas vezes)

[Homem]
Eu vou fazer nascer no cimento a minha semente
Eu vou fazer da lama o sustento e o meu diamante
E o meu sol voltará a girar, voltará, voltará (duas vezes)

[Coro]
E o meu sol voltará a girar, voltará (duas vezes)

[Homem, falando]
O sol que um dia desejei que entrasse e me girasse e me habitasse, se
pôs logo, pontual, cedo e apressado. Eu fiquei no escuro. A gente ficou

173
no escuro. Eu queria amanhecer leste um dia: portador de sol e de gira.
Quem sabe me norteava assim...

[Coro]
E o meu sol voltará a girar, voltará (duas vezes)

Note-se que a letra, comparada à de “Hábito onde habito”, utiliza com


muito maior parcimônia o recurso das semelhanças de sons. E também que
não faz uso de pronúncia e sintaxe populares. Já o neologismo “solidão-
capim”, formado pela atribuição de função adjetiva ao segundo substantivo,
coloca em evidência outra fonte da dramaturgia: a chamada alta literatura.
O samba entra como material sonoro na última canção do primeiro
ato, “Dor que dura a cana não cura”, música de Gabriel Longhitano e letra
de Jé Oliveira.
[Coro]
Chega de cavar a cova onde se encosta as costas
Quero afrouxar a corda desse meu corpo curvado
Esse será o curativo pro meu coração cansado
Não quero essa dor que dura, cana que não cura
La la iá
Não quero essa dor que dura, cana que não cura

Se eu não como o que cai com o tempo eu que caio


Minha camisa tá sem força, minha vida tá sem caibro
Logo-logo chega a hora de você pagar a conta
Toma! Coma aí sua comida enquanto eu tramo o seu coma
La la iá
Toma! Coma aí sua comida enquanto eu tramo o seu coma

Tô de olho nesse prato, tô suando nesta sombra


Sou o molho desta raça, o recheio desse samba
Tô de olho nesse prato, tô suando nesta sombra
Sou o molho desta raça, o recheio desse samba.

Não seria forçado dizer que “Dor que dura a cana não cura” realiza
uma síntese, no plano sonoro da letra, dos recursos utilizados nas duas
canções anteriores, “Hábito onde habito” e “Gira pro sol”. Sem estender

174
demais o ponto, note-se que, desde a primeira estrofe, a aliteração sugere
certo movimento de quebra pela reiteração das consoantes velares, havendo
ainda sílabas em eco: “Chega de cavar a cova onde se encosta as costas/
Quero afrouxar a corda desse meu corpo curvado/ Esse será o curativo pro
meu coração cansado/ Não quero essa dor que dura, cana que não cura”.
Note-se ainda, nesse trecho, o uso de pleonasmos e da concordância verbal
no registro informal (“cavar a cova onde se encosta as costas”). Ao mesmo
tempo, os versos do samba não tomam por base a pronúncia e a sintaxe
populares. A metonímia “Minha camisa tá sem força” e a metáfora “minha
vida tá sem caibro” evidenciam o trabalho com imagens poéticas. Já o verso
“Toma! Coma aí sua comida enquanto eu tramo o seu coma” se constrói
pela recorrência de “coma”, primeiro como verbo, depois como substantivo,
o que é a utilização de um recurso retórico, a diáfora. E esse verso também
reverbera “Come ananás, mastiga perdiz/ Teu dia está prestes, burguês”,
poema de Vladimir Maiakovski que já foi apropriado no Brasil, dentre
outros, por Rubem Fonseca, no conto “O cobrador”,4 e pela Companhia do
Latão, na peça teatral O mercado do gozo, dramaturgia de Sérgio de Carvalho
e Márcio Marciano.5 Quando perguntei sobre essas referências, Jé Oliveira
afirmou que não se inspirou em nenhuma delas.6 O que não impede que
“Dor que dura a cana não cura” se situe nessa constelação.

Sonoridades negras
Alguns samples de “Fórmula mágica da paz” (Mano Brown), 11ª faixa
do disco Sobrevivendo no inferno (1997), são utilizados em “Dor que dura

4. “Come caviar/ teu dia vai chegar./ Estão me devendo uma garota de vinte e cinco anos,
cheia de dentes e perfume.” Cf. FONSECA, Rubem, “O cobrador”. In: FONSECA, R. Contos
reunidos. Org. Boris Schnaiderman. 4ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1999,
p. 500; sobre o assunto, consultar o posfácio do organizador.
5. Durante o processo de criação da peça, a lembrança dos versos de Vladimir Maiakovski
foi feita por Alessandra Fernandez, gerando versos provisórios, e a música foi trabalhada por
ela e Luis Felipe Gama. Sobre essa base, Sérgio de Carvalho e Márcio Marciano compuseram
os versos cantados no espetáculo: “Restos de carniça fresca/ Sobras de flores azuis/ Cacos
de garrafas velhas/ E patê francês// Sobras de garrafas frescas/ Restos de patês azuis/ Cacos
de carniça velha/ Flores ao burguês”. Cf. CARVALHO, Sérgio de; MARCIANO, Márcio, O
mercado do gozo. In: CARVALHO, S. de; MARCIANO, M. Companhia do Latão 7 peças.
São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 258-259.
6. Cf. entrevista com Jé Oliveira, realizada por WhatsApp, em 20 de setembro de 2017.

175
a cana não cura”: “E o que todas as senhoras tinham em comum:/ A roupa
humilde a pele escura”; “Não se acostume com esse cotidiano violento, que
essa não é a sua vida, essa não é a minha vida, morô, mano?!”; “Assustador
é quando se descobre/ Que tudo deu em nada e que só morre o pobre”. Ou
seja, em “Fórmula mágica da paz”, escutamos “mais um sobrevivente”. Um
sujeito que, quando era “moleque, só pensava em dançar,/ Cabelo black
e tênis All Star/ Na roda da função, mó zoeira/ Tomando vinho seco em
volta da fogueira/ A noite inteira, só contando história/ Sobre o crime,
sobre as treta na escola”. Um sujeito que, já na década seguinte, pergunta
ao “sangue-bom” que o escuta: “Mas se liga, olhe ao seu redor e me diga/ O
que melhorou, da função, quem sobrou?/ Sei lá, muito velório rolou de lá
pra cá/ Qual a próxima mãe que vai chorar?”. E a especificidade de “Fórmula
mágica da paz” se liga ao conselho do rapper: “Rá, demorou, mas hoje eu
posso compreender/ Que malandragem de verdade é viver”.
O ponto de vista da peça teatral Farinha com Açúcar segue a mesma
linha e se estrutura com base em dois processos. O primeiro deles se dá na
vivência de haver presenciado “mortes matadas”, isso é, violentas e prematuras
(primeiro ato). O segundo processo é a construção da vida possível pela
imersão em uma cultura musical negra (segundo ato).
Mas é preciso atentar para um dado importante: a vivência nessa cultura
musical se mistura ao revide violento de quem “cansou de ser ingênuo,
humilde e pacato/ encapuzou, virou bandido e não deixa barato” (escutar
“Otus 500”, de Edy Rock, em “Ri depois”, de Nada como um dia após o outro
dia). Ou, na forma como a peça-show recria essa experiência, utilizando
samples de “Tô ouvindo alguém me chamar” (de Mano Brown, do disco
Sobrevivendo no inferno) e se inspirando em “Flor da idade” (de Chico
Buarque, composta para a peça Gota d’água, escrita por Chico em parceria
com Paulo Pontes):7
Tomando tapa na cara de polícia toda semana, indo visitar seu pai na
cadeia... É assim, mano. Isso dá ódio em você. Te tira a poesia, morô,
mano?! Aí cê quer o quê?! Cê quer mais é que se foda tudo mesmo.

7. Cf. BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1976, p. 61-62.

176
Se é para ser o pior, vou ser o pior logo de uma vez. Ninguém é bobo,
mano. [...] (DJ, scratch, “Eu não podia contar com ninguém”) A primeira
função, o primeiro assalto no primeiro busão. (DJ, scratch, “Fica você
com seu sonho de doutor/ Quando acordar você me avisa, morô”) O
primeiro a ter pressa, o primeiro na preza, o primeiro a ter festa. O
primeiro a pular, o primeiro a roubar, o primeiro a armar. O primeiro
a ser, o primeiro a querer, o primeiro a correr.

Ainda nesse processo, o qual representa a construção da vida possível, a


peça-show trabalha com materiais do mercado de canções à luz da tradição
afro-brasileira. Uma tradição que se inicia na resistência à crueldade covarde
do “senhor de engenho” e no combate ao lugar inferior que negros e negras,
via de regra, ocupam na acumulação de “ouro e prata”, desde a América
Portuguesa (escutar “Negro drama”, de Edy Rock e Mano Brown, em “Chora
agora”, de Nada como um dia após o outro dia).
Não é sem razão, portanto, que o espetáculo do Coletivo Negro termine
em festa ou, mais precisamente, na apresentação de sonoridades exemplares
da música negra, formando uma constelação: James Brown; The Jackson Five;
Earth, Wind & Fire; Parliament Funkadelic; Hildon; Cassiano; Jorge Ben;
Tim Maia; Racionais MC’s. Como a socióloga Marcia Tosta Dias observou,
Farinha com Açúcar é marcada “pela força e pela violência”, integradas e
potencializadas “por uma muito perturbadora delicadeza”.8 Talvez seja
um dos principais recursos que me fizeram sentir, quando tive a sorte de
participar dessa festa (no lado da plateia), que transfigurar a dor em Alegria,
a humilhação em Orgulho não é necessariamente um engodo publicitário
(como tantos que embalam mercadorias sem valor): realizada com verdade,
essa transfiguração nos faz viver.

8. Cf. DIAS, Marcia Tosta. “Rabiscos saídos no calor da hora sobre Farinha com açúcar...”,
mimeo, 2018.

177
Tragédia na Vila do Meio-Dia: uma contribuição à
crítica de Gota D’Água {Preta}

Na recepção imediata de parte significativa da crítica, Gota D’Água


{Preta} é um marco no teatro brasileiro profissional – e, portanto, na cultura,
na sociedade e na política brasileira em 2019. Retomarei cinco textos que
expressaram essa percepção, de ângulos diversos mas sempre de modo
categórico.
Em fevereiro, quando da temporada de estreia no Itaú Cultural, Rosane
Borges afirmou que a reelaboração da peça de Paulo Pontes e Chico Buarque,
idealizada e dirigida por Jé Oliveira, configurava “um levante contra a cegueira
da lógica de representação que silencia, invisibiliza e até destitui corpos
racialmente não hegemônicos”.1 Isso porque o trabalho coletivo de atrizes,
atores e instrumentistas, “na manufatura da montagem” e no “plano das
intenções ideológicas”, materializava personagens “pobres, pretos e favelados”
que, desde a estreia de Gota D’Água, em 1975, permaneceram, via de regra,
na “condição de seres virtuais”:
A cada cena nos defrontamos com um redemoinho de protesto justo
em favor da esquecida dignidade da gente negra. São mananciais de
insubordinação e ternura que brotam do palco e que nos fazem crer
que o mundo (ainda) tem jeito. É tudo o que precisamos nesta quadra
da nossa história.2

Na mesma linha, mas com outro enfoque, Paulo Bio de Toledo observou
que os corpos negros “integram uma estética que amplia o horizonte crítico

1. Cf. BORGES, Rosane, “Em tempos de regressão, quase nada pode ser a Gota d’água
(preta)!”. Carta Capital. São Paulo, 22/2/2019. Disponível em: https://bit.ly/3aY879T. Acesso
em: 20 nov. 2019.
2. Ibidem.

179
da peça”.3 Tendo por antecedente Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de
Meninos e Homens – peça-show do Coletivo Negro escrita e protagonizada
por Jé Oliveira a partir de “12 entrevistas de homens negros de diversas
idades e ocupações” e do diálogo com a obra do Racionais MC’s –,4 essa
estética, segundo Paulo Bio, fez a transposição para o teatro do que “há de
mais avançado no rap brasileiro: a multiplicidade de vozes; a objetividade
cortante da lírica; a expectativa de uma periferia coletiva e insubmissa”.5
Já a temporada seguinte de Gota D’Água {Preta}, em março, na sala
Jardel Filho do Centro Cultural São Paulo (CCSP), possibilitou a Valmir
Santos analisar conjuntamente o espetáculo e (In)justiça, da Companhia
de Teatro de Heliópolis. À luz da “efervescente e qualificada produção” do
teatro negro na década de 2010, Santos identificou a crítica contundente ao
racismo e à desigualdade social, “a inscrição da cultura afrodescendente nas
corporeidades” e “a assunção em cena da natureza ritualística entrelaçada
às práticas religiosas”, por sua vez conciliadas com “questões identitárias,
sociais e políticas”, como traços essenciais de ambos os trabalhos.6
No caso específico do “terreiro cênico” de Gota D’Água {Preta}, para o
qual confluíram “elementos do candomblé e da umbanda”, Valmir Santos
destacou a “cosmovisão do feminino crucial” que se delineava: “na dança
da atriz Aysha Nascimento”; na atuação de Juçara Marçal, “esta artista
pensadora do canto”; na “simbiose corpo e voz entre Aysha e Juçara”; no
“exemplo de sororidade poética” dado pela relação das personagens Corina
(Aysha Nascimento), Nenê (Dani Nega),7 Zaíra (Marina Esteves) e Joana
(Juçara Marçal), bem como na presença, dentre elas, de uma personagem que
sublinhava ser lésbica. Nessa perspectiva, a “‘re-atualização’” de Jé Oliveira,

3. Cf. TOLEDO, Paulo Bio de, “Versão negra ‘Gota d’Água’ faz vibrar peça de Chico Buarque
e Paulo Pontes”. Folha de S.Paulo, 17/2/2019. Disponível em: https://bit.ly/2RINZ40. Acesso
em: 15 nov. 2019.
4. Cf. OLIVEIRA, Jé de. Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens:
obra tributária à obra dos Racionais MC’s, edição citada, p. 19.
5. Cf. TOLEDO, Paulo Bio de, “Versão negra ‘Gota d’Água’ faz vibrar peça de Chico Buarque
e Paulo Pontes”, edição citada.
6. Cf. SANTOS, Valmir, “Raízes e nervos expostos”. Teatrojornal Leituras de Cena. São
Paulo, 31/5/2019. Disponível em: https://bit.ly/2Uh5Lx1. Acesso em: 15 nov. 2019.
7. Martinha Soares representou Nenê nas apresentações do mês de julho e no Sesc Ginástico
do Rio de Janeiro, de 16 a 27 de outubro de 2019.

180
“em legítima retomada do popular e do trágico pela cultura periférica e
pela ancestralidade afro-brasileira”, colocara “em relevo o ponto de vista
da feminilidade negra” e, ao complementar e contrastar “a masculinidade
negra esmiuçada em Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e
Homens”, reafirmara “a ambição pelos procederes investigativo e criativo”.8
Abrirei parênteses. O material de divulgação do espetáculo estimava que
“quase 8 mil pessoas” haviam assistido a Gota D’Água {Preta} desde a estreia,
em 8 de fevereiro, até o mês de maio.9 Nesse período, foram realizadas 24
apresentações em cinco teatros da cidade de São Paulo: sala Itaú Cultural (sete
sessões), sala Jardel Filho do CCSP (nove sessões), Auditório do Ibirapuera
(três sessões) e Galpão do Folias (cinco sessões). Em julho, mais doze
apresentações: duas no Sesc Guarulhos, nove no Sesc Santo André e uma
no Teatro Municipal de São Paulo. De agosto até o início de outubro, houve
uma apresentação no Sesc Jundiaí, duas no Theatro São Pedro, participando
do 26º Festival Internacional de Artes Cênicas “Porto Alegre em Cena”, e uma
no Sesc Santos. A estimativa de público, nessas 40 apresentações, subiu para
“mais de 16 mil pessoas”.10 Não tenho por objetivo aferir releases ou desenhar
a geografia da circulação da montagem. Ao enumerar teatros, cidades, ao
contar as apresentações e citar as estimativas de público, busco chamar
atenção, ainda que de modo precário, para o raio de alcance do espetáculo.
É certo que quantidades não dizem tudo, principalmente quando carecem
de pesquisa e reflexão, o que não farei; mas, se esses números dizem alguma
coisa, apontam para o lugar sociocultural onde as críticas aqui sintetizadas
foram geradas e reverberaram com maior intensidade.
Ainda em outubro, durante duas semanas, a montagem foi levada ao
Teatro Sesc Ginástico do Rio de Janeiro para dez apresentações.11 Retomemos a

8. Cf. SANTOS, Valmir, “Raízes e nervos expostos”, edição citada.


9. Cf. ABC DO ABC, “Gota D’Água {PRETA} abre temporada no Sesc Santo André em
julho”. ABC do ABC. Santo André, 8/7/2019. Disponível em: https://bit.ly/2RIzTQ8. Acesso
em: 30 out. 2019.
10. Cf. SESC RIO, “‘Gota D’Água {Preta}’ estreia no Sesc Ginástico dia 16 de outubro”. Rio
de Janeiro, 4/10/2019. Disponível em:
http://w w w.sescrio.org.br/noticia/04/10/19/%E2%80%98gotad%E2%80%99agua-
preta%E2%80%99-estreia-no-sesc-ginastico-dia-16-deoutubro. Acesso em: 30 out. 2019.
11. Para notícias das apresentações, consultar: ITAÚ CULTURAL, “Gota d’Água {Preta}
leva questões de raça e de classe ao palco”. São Paulo, 29/1/2019. Disponível em: https://bit.

181
crítica do espetáculo. Juliana França então escreveu que “Gota D’Água {Preta}
é um ebó […], é um jorro, um gozo musical”, e identificou “possibilidades
de fortalecimento” entrelaçadas na forma da “encenação-ritual”: a história
“contada, majoritariamente, por mulheres sobre a mulher Joana-Juçara, mas
que poderia ser Catarina, minha mãe”; a construção de um território por
meio da atuação corporal e da vocal; “o atabaque, o afeto e o enfrentamento
coletivo”.12 E Patrick Pessoa, em uma síntese parcial do que procurei retomar,
afirmou que o espectador que assistisse à montagem veria “um acontecimento”:

ly/396Vp7l. Acesso em: 30 out. 2019; CENTRO CULTURAL SÃO PAULO, “Gota D’Água
Preta”. São Paulo, s.d. Disponível em:
http://centrocultural.pagina-oficial.ws/site/eventos/evento/gota-dagua-preta/. Acesso em:
30 out. 2019; G1, “Peça Gota D’Água {Preta} faz reapresentações especiais no Auditório
do Ibirapuera e no Galpão do Folias”. São Paulo, 6/5/2019. Disponível em: https://glo.
bo/37LpHMy. Acesso em: 30 out. 2019; GALPÃO DO FOLIAS, “Após sucesso de público e
crítica, Gota D’Água {PRETA} realiza temporada no Galpão do Folias”. Eventbrite. São Paulo,
s.d. Disponível em: https://www.eventbrite.com.br/e/gota-dagua-preta-tickets-61142770673.
Acesso em: 30 out. 2019; CLICK GUARULHOS, “Sesc Guarulhos recebe o espetáculo Gota
D’Água {Preta}”. Guarulhos, 5/7/2019. Disponível em: https://bit.ly/2teDrjJ. Acesso em: 04
dez. 2019; COMPLEXO THEATRO MUNICIPAL, “Teatro no Municipal: Gota D´Água
{Preta}”. São Paulo, s. d. Disponível em: https://bit.ly/31jEPOQ. Acesso em: 30 out. 2019; ABC
DO ABC, “Gota D’Água {PRETA} abre temporada no Sesc Santo André em julho”, edição
citada; JUNDI AQUI, A tragédia grega de Chico Buarque na perspectiva do negro. Jundiaí,
23/8/2019. Disponível em: https://bit.ly/2UbBsI8. Acesso em: 30 out. 2019; THEATRO SÃO
PEDRO, “Porto Alegre em Cena apresenta: Espetáculo ‘Gota D´água {Preta}’ (SP)”. Porto
Alegre, s.d. Disponível em: http://www.teatrosaopedro.com.br/porto-alegre-em-cena-
apresenta-espetaculo-gota-dagua-preta-sp/. Acesso em: 30 out. 2019; JORNAL DA ORLA,
“Espetáculo baseado na obra de Chico Buarque é apresentado no Sesc Santos”. Santos,
1º/10/2019. Disponível em: https://bit.ly/2vBMHzf. Acesso em: 30 out. 2019; SESC RIO, “‘Gota
D’Água {Preta}’ estreia no Sesc Ginástico dia 16 de outubro”, edição citada. Ao término da
temporada no Teatro Sesc Ginástico, completaram-se 50 apresentações. Em novembro
de 2019, houve mais três: uma no Cine Theatro Brasil Vallourec, em Belo Horizonte, na
10ª edição do Festival de Arte Negra; uma no Sesc Rio Preto, em São José do Rio Preto; e
uma no Sesc Sorocaba. Cf. PEIXOTO, Mariana, “Festival de Arte Negra transforma BH
em quilombo contemporâneo”. Portal Uai E+. Belo Horizonte, 18/11/2019. Disponível em:
https://bit.ly/3aVJKK1. Acesso em: 8 dez. 2019; SESC SÃO PAULO, “Negrura – No mês da
Consciência Negra, o Sesc Rio Preto evidencia ainda mais a negrura nas artes”. São Paulo, s.d.
Disponível em: https://www.sescsp.org.br/programacao/210943_GOTA+DAGUA+PRETA.
Acesso em: 8 dez. 2019; AGENDA SOROCABA, “‘Gota D’Água {Preta}’ Espetáculo”. Sorocaba,
s.d. Disponível em: https://bit.ly/36KvFMi. Acesso em: 8 dez. 2019. Agradeço a Janaína
Grasso, produtora executiva do espetáculo, o auxílio no registro das apresentações.
12. Cf. FRANÇA, Juliana. “Gota d’água preta: Crítica da peça de Chico Buarque e Paulo
Pontes, encenada por Jé Oliveira” (grifo da autora). Questão de Crítica – Revista eletrônica
de críticas e estudos teatrais. Rio de Janeiro, 26/10/2019. Disponível em:
http://www.questaodecritica.com.br/2019/10/gota-dagua-preta/#more-6477. Acesso em:
20 nov. 2019.

182
o dia em que o rap e os toques e timbres das religiões de matriz africana
enegreceram o cancioneiro de Chico Buarque; o dia em que o coro de
mulheres negras (as vizinhas de Joana) revelou vocal e corporalmente
todo o alcance da palavra sororidade; o dia, enfim, em que o imperativo
da representatividade deixou de ser uma quimera e um coletivo de
artistas que se avoluma disse “não” ao racismo estrutural da sociedade
brasileira dizendo “sim” à riqueza e à complexidade das estéticas e das
políticas do povo preto.13

“Na Vila do Meio-Dia”


A minha percepção de Gota D’Água {Preta} coincide com a desses
cinco textos.14 Tentarei levar adiante a discussão do valor estético da
montagem. Conforme se depreende das análises, o fato de o elenco ser
predominantemente formado por negras e negros é fundamental para a
qualidade artística alcançada à medida que os corpos atuaram concretizando,
expandindo e aprofundando intenções da peça. Em termos simples, isso
significa que o espetáculo tornou verossímil o drama de uma mulher, Joana
(Juçara Marçal) – mãe de santo com voz encantadora que se vale “de todas
as cosmogonias” para a sua vingança,15 presumivelmente negra, embora não
haja referência direta à sua raça no texto teatral; madura; pobre; criando
um filho e uma filha abandonada por Jasão (Jé Oliveira), seu companheiro
mais jovem, e depois abandonada por suas amigas Nenê e Zaíra e por seus
amigos Cacetão (Ícaro Rodrigues) e Amorim (Mateus Sousa), situação que
a conduz a um beco sem saída –, enquanto alegoria de “uma tragédia da

13. Cf. PESSOA, Patrick, “Crítica: ‘Gota d’água {preta}’”. O Globo. Rio de Janeiro, 25/10/2019.
Disponível em: https://glo.bo/391VRUl. Acesso em: 30 out. 2019.
14. Esclareço que participei do início do projeto, em 2017, dividindo os estudos teóricos
com Jé Oliveira, Juçara Marçal e Salloma Salomão. Em 2018, participei dos ensaios como
violonista até o mês de outubro, antes que a música e a montagem efetivamente ganhassem
corpo. Por fim, assisti a cinco apresentações: na sala Itaú Cultural (duas sessões), na sala
Jardel Filho do CCSP, no Auditório Ibirapuera e no Teatro Municipal de São Paulo.
15. Entre aspas, cito observação de Juçara Marçal em debate no Itaú Cultural, em 31 de março
de 2019. Tanto suas intervenções quanto as de Jé Oliveira e as de Salloma Salomão abordaram
aspectos interessantes das religiões, do “legado ritualístico” e da “solução sobrenatural”
no texto de Paulo Pontes e Chico Buarque e na montagem. Cf. TEATROJORNAL, “‘Gota
d’água’ antirracista e ancestral, ‘por nós mesmos’”. São Paulo, 3/7/2019. Disponível em:
https://bit.ly/38WRbPw. Acesso em: 30 out. 2019.

183
vida brasileira”, dimensão que fez parte das “preocupações fundamentais”
que a peça de Paulo Pontes e Chico Buarque procurou refletir, como se lê
na Apresentação do texto.16 “Vida brasileira” deve ser aqui entendida como
um processo social estruturado:
1) por articulações entre “raça, classe, sexo e poder”,17 a partir das quais
mulheres negras se veem submetidas a “diversos níveis de subordinação e
opressão”18 que recrudescem com o envelhecimento. Nesse quadro, há que
se ressaltar:
a) o papel de “verdadeiro eixo econômico” que, nas famílias das “camadas
mais baixas da população, cabe à mulher negra” quando se une a um homem
negro “despreparado profissionalmente por força de contingências históricas
e raciais” – condição que dificulta ou, no limite, que impede uma relação
“de paridade sexual”, marcada “por um desejo amoroso de repartir afeto,
assim como o material”;19
b) a persistência das opções de trabalho para quem, como Joana, é
vista como aquela que lava privada, cose “pra madame”, tem “braço pra ser
operária” e “peito pra ser marafona”;20

16. Cf. BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água, edição citada, p. xi, xvii. Para uma
pesquisa abrangente e aprofundada do processo de produção do texto de Gota D’Água e de
suas encenações entre 1975 a 1980, consultar HERMETO, Miriam. “Olha a Gota que falta”:
um evento no campo artístico-intelectual brasileiro (1975-1980). Belo Horizonte, FAFICH-
UFMG, 2010. Tese de doutorado em História. Segundo a autora, apesar de a Apresentação do
texto de Gota D’Água vir assinada por Paulo Pontes e Chico Buarque, a autoria é apenas do
primeiro; vale registrar que, durante a redação, ele dialogava com Luiz Werneck Vianna, o
qual morava “‘rigidamente clandestino’” na casa de Bibi Ferreira e Pontes. Cf. HERMETO,
M., “Olha a Gota que falta”: um evento no campo artístico-intelectual brasileiro (1975-1980),
edição citada, p. 142-156 (a citação pode ser lida à p. 143).
17. Cf. GONZALEZ, Lélia, “Por um feminismo Afro-latino-americano”. Caderno de formação
política do Círculo Palmarino n. 1: Batalha de ideias, [s.l.], p. 18.
18. Cf. CARNEIRO, Sueli. “Identidade feminina”. Cadernos Geledés IV: Mulher Negra. São
Paulo, Geledés – Instituto da Mulher Negra, 1993. p. 9. Disponível em: https://www.geledes.
org.br/wp-content/uploads/2015/05/Mulher-Negra.pdf. Acesso em: 30 out. 2019.
19. Cf. NASCIMENTO, Beatriz. “A mulher negra e o amor”. In: RATTS, Alex (org.). Eu sou
atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Instituto Kuanza,
2006, p. 128. Texto originalmente publicado em 1990.
20. Cf. BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água, edição citada, p. 85-86. Para
estudos do assunto produzidos na década de 1970, consultar: NASCIMENTO, Beatriz, “A
mulher negra no mercado de trabalho”. In: RATTS, Alex (org.). Eu sou atlântica: sobre a
trajetória de vida de Beatriz Nascimento, edição citada, p. 102-106. Texto originalmente
publicado em 1976; NASCIMENTO, Abdias, “Escravidão: o mito do senhor benevolente”;

184
2) por padrões patriarcais de dominação, exercidos por um homem
branco, Creonte (Rodrigo Mercadante) – construtor e financiador do conjunto
habitacional da Vila do Meio-Dia; patrocinador de “Gota D’Água”, sucesso do
sambista Jasão; pai de Alma (Marina Esteves), com quem Jasão irá se casar;
benfeitor da escola de samba e do time de futebol do bairro. Em síntese, os
padrões patriarcais de Creonte implicam:
a) capacidade de mando, forma que adota a vontade particular e
comportamentos atravessados pela emoção como bases para o convívio
social;21
b) instrumentos de espoliação econômica garantidos pela Lei e pela
força policial – “juros, dividendo, mais correção, taxa e ziriguidum”,22 “Papel,
documento… Escritura”, além de ações de despejo;23
c) defesa da “‘aceitação’”, da “‘integração’” e da “‘igualdade’”, assumindo
“pontos de vista do dominador”24 com amparo na meritocracia. Tal ideologia,
que alardeia não tratar ninguém com “preconceito ou discriminação”, revela
seu momento de verdade quando Creonte chama Jasão de “Noel Rosa” de
maneira tão insistente que o suposto elogio poderia ser tipificado como
injúria racial;25
d) compra de toda sorte de mimos para a filha, Alma;26
3) por movimentos de resistência comunitária, organizados por Egeu
(Salloma Salomão)27 e Corina (Aysha Nascimento). Ela e ele são donos “de
teto e chão”;28 portanto, não têm “nada a perder”, dizem o que pensam e

“Exploração sexual da mulher africana”. In: NASCIMENTO, A. O genocídio do negro


brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 48-64.
Capítulos redigidos entre 1976 e 1977.
21. Cf. BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água, edição citada, p. 30-40, 93-107,
133-138, 148-151.
22. Ibidem, p. 8.
23. Ibidem, p. 148-151.
24. Cf. NASCIMENTO, Beatriz, “Negro e racismo”. In: RATTS, Alex (org.). Eu sou atlântica:
sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento, edição citada, p. 102. Texto originalmente
publicado em 1974.
25. Cf. BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água, edição citada, p. 30, 33, 36, 40,
107, 167-168.
26. Ibidem, p. 28-40, 93-107.
27. Sérgio Pires representou Egeu nas apresentações do mês de julho de 2019.
28. Cf. BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água, edição citada, p. 13.

185
permanecem com Joana até o fim.29 A resistência comunitária, entretanto,
é combatida e derrotada por Creonte em duas frentes:
a) no caso de Nenê, Zaíra, Cacetão e Amorim, a resistência arrefece
pela necessidade de sobrevivência – as dívidas das prestações são perdoadas
por Creonte, que também promete reformar o conjunto habitacional; Nenê,
justamente aquela que se sente mais vulnerável por ser lésbica, acaba
trabalhando na preparação da festa de casamento de Jasão e Alma; e nessa
festa, à exceção de Corina e Egeu, amigas e amigos de Joana comemoram,
brindando;
b) no caso de Jasão, a resistência comunitária é derrotada pela ascensão
individual do “cara certo” na indústria de diversões30 e pelo seu arrivismo,
exercido com tal consciência que ele se oferece “como pelego”31 – é Jasão quem
expõe a Creonte o plano de perdoar as dívidas e de empreender melhorias
no conjunto habitacional, para que a taxa das prestações seja aumentada
no futuro, depois que moradoras e moradores tiverem ganhado confiança
e alimentem “uma nova esperança”.32
Contudo, afirmar que a atuação do elenco tornou a alegoria verossímil
é também dizer que a presença ostensiva de corpos negros não bastou, por
si só, para que esse resultado fosse alcançado. Em outras palavras, caso o
trabalho não fosse bem realizado, pessoas negras se veriam amplamente
representadas no palco, e o enfrentamento do racismo e dos privilégios da
branquitude em Gota D’Água {Preta} teria um lugar de destaque na história
do teatro, nas esferas cultural, social e política, mas fracassaria como obra
de arte; ao mesmo tempo, a presença majoritária de corpos negros não se
separa do resultado estético do espetáculo, é constitutivo dele e não um
elemento acidental.
Acima sumariei algumas das passagens em que Valmir Santos destacou
a atuação das atrizes. A sua crítica se voltou ainda para o trabalho de Salloma

29. Ibidem, p. 168.


30. Ibidem, p. 59.
31. Cf. ARAÚJO, Homero Vizeu, “Um pote até aqui de mágoa: Chico Buarque e Paulo Pontes
retomam os heróis populares de Guarnieri e Dias Gomes”. In: ARAÚJO, H. V. Futuro pifado
na literatura brasileira, edição citada, p. 78.
32. Cf. BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água, edição citada, p. 104.

186
Salomão, que expressou a conjugação de trabalho manual e pensamento em
Mestre Egeu. Para a construção do “Jasão de Oliveira”, que não aderiu ao
“julgamento moral já implícito na dramaturgia”, mas encarnou “um poço
de contradições”,33 dando concretude ao remorso, à divisão “em dois”, à
“consciência retorcida” de um sujeito que, no fim das contas, desempenha o
papel de vencedor no discurso hegemônico e, portanto, no senso comum.34
E para as intervenções de Rodrigo Mercadante, que esbanjaram carisma,
“artifício de ascensão de boa parte dos ditadores” e que, no entanto, frisaram
“o veio autoritário por trás da falsa máscara de benemérito”.35 Também Juliana
França salientou a interpretação de Rodrigo Mercadante, personificação
“da estrutura racista, fascista, machista e elitista na qual estamos inseridos”,
capaz de fazer a plateia ou sangrar e gritar ou, entre anestesiada e impotente,
silenciar.36
Em resumo, tomando de empréstimo frase de Paulo Bio de Toledo,
em Gota D’Água {Preta} “personagens que normalmente ficam à sombra de
Joana” foram iluminados pelo trabalho artístico da direção e do elenco.37
Daí o drama de uma “mulher negra vulnerabilizada”38 haver configurado a
alegoria de “uma tragédia da vida brasileira” que não se resolveria pela defesa
cínica ou sincera de valores que hoje ressurgem com força, como se deu,
aliás, em 1964: “a célula da nação é a família, o Brasil é altivo, nossas tradições
cristãs”.39 Alternando-se no repúdio e no aplauso a Jasão, posicionando-se
junto à comunidade ou cedendo ao medo de cair na miséria, Ícaro Rodrigues
e Mateus Sousa carregaram uma diversidade de tipos originalmente concebida

33. Cf. SANTOS, Valmir, “Raízes e nervos expostos”, edição citada.


34. Cf. BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água, edição citada, p. 92-93.
35. Cf. SANTOS, Valmir, “Raízes e nervos expostos”, edição citada.
36. Cf. FRANÇA, Juliana. “Gota d’água preta: Crítica da peça de Chico Buarque e Paulo
Pontes, encenada por Jé Oliveira”, edição citada.
37. Cf. TOLEDO, Paulo Bio de, “Versão negra ‘Gota d’Água’ faz vibrar peça de Chico
Buarque e Paulo Pontes”, edição citada.
38. Cf. BORGES, Rosane, “Em tempos de regressão, quase nada pode ser a Gota d’água
(preta)!”, edição citada.
39. Cf. SCHWARZ, Roberto, “Cultura e política, 1964-1969”. In: SCHWARZ, R. O pai de
família e outros estudos, edição citada, p. 71. Não sendo o caso de abordar a questão, que
nos levaria além dos limites deste ensaio, registre-se apenas que Schwarz já avaliou que
“as situações se repetem, mas não são iguais”. Cf. SCHWARZ, Roberto, “Cultura e política
hoje”. In: SCHWARZ, R. Seja como for: entrevistas, retratos e documentos. São Paulo:
Editora 34, 2019, p. 329-331.

187
para quatro personagens (Cacetão, Amorim, Boca Pequena e Xulé). Única
atriz a representar dois papéis, Marina Esteves tanto estabeleceu a distância
que afastava Alma e Zaíra quanto acenou para o fato de que uma e outra
estavam próximas em alguma medida, não só porque eram mais jovens do
que Joana e, sendo negras, tinham a pele mais clara, como também porque
a linguagem agressiva atualmente faz par com a defesa de privilégios no
discurso hegemônico: se Zaíra era uma vizinha desbocada que saía em defesa
de Joana, Alma, espelho de Creonte e perfeita imagem de sucesso, também
era capaz de perder a linha e insultar Jasão com palavrões. Na representação
do ambiente da Vila do Meio-Dia, feita em chave realista, Ícaro Rodrigues,
Mateus Sousa, Dani Nega, Marina Esteves, Aysha Nascimento fizeram rir
nos momentos certos, sem diluir o sofrimento que atravessava as cenas.
Acresce que o fortalecimento de cada intenção e de cada sentimento
não enfraqueceu o núcleo do drama, Joana. Ao contrário. O que o trabalho
coletivo não permitiu foi aquele risco que sempre ronda montagens de
Gota D’Água – com perdão pelo clichê, o risco de ir a Roma e ver somente
o papa. E a “bela sobriedade”, na formulação de Paulo Bio de Toledo,40 da
atuação de Juçara Marçal encontrou o espaço adequado para expressar com
equilíbrio a angústia de uma personagem que não enxergou outra saída senão
assassinar o seu filho e a sua filha e suicidar-se como forma de vingança, o
que deve ser compreendido como a única ação vislumbrada para não ceder
às injustiças e obter reparação.
Note-se que expressar com equilíbrio significa responder com dignidade
às formas de violência. As primeiras palavras de Joana, dirigidas às suas
amigas, já anunciavam a tragédia. Adiante, com apoio sutil do coro, “Bem-
querer” fez ouvir a certeza de que o amor conduz à morte. O embate de
Creonte e Joana, desaguando em “Basta um dia”, revelou o medo dos
poderosos e a astúcia de uma “mulher sozinha”, “de mãos atadas”, que dizia
só pensar nos “dois filhos”. No instante mortal de Joana, enquanto ela cantava
“Gota D’Água” acompanhada pelo violão de Gabriel Longhitano e pela
cuíca de Fernando Alabê, o palco permaneceu no escuro, o que nos levou

40. Cf. TOLEDO, Paulo Bio de, “Versão negra ‘Gota d’Água’ faz vibrar peça de Chico
Buarque e Paulo Pontes”, edição citada.

188
a (não) ver o que desconhecemos e a escutar sem efeitos desnecessários, na
junção da semântica dos versos e do desenho das frases musicais, o que é
essencial: o sentido da vida e da morte da personagem. Pois em todas essas
passagens Juçara Marçal expressou, na justa medida, sofrimento, doçura,
medo, lucidez, ódio, cálculo, desprezo, vaidade, revolta, amor. Não à toa
Jé Oliveira, quando Jasão se mostrava incapaz de melhorar o argumento,
desviava o corpo e o olhar e tornava os gestos pesados, sinal de que sabia da
sua derrota e de que continha a raiva, acenando porém com a possibilidade
de agressão física. A expressão equilibrada permitiu a Joana ser irredutível
em sua dignidade. Para Jasão responder à altura, seria necessário que tivesse
retidão, algo impossível para um “sujeito em seu labirinto”.41

“Hey, senhor de engenho, eu sei bem quem você é”


Na exposição das “preocupações fundamentais” que Gota D’Água
procurou refletir, declarava-se: “É preciso, de todas as maneiras, tentar fazer
voltar o nosso povo ao nosso palco”.42 Adélia Bezerra de Meneses, escrevendo
no início da década de 1980, identificou que essa era a “preocupação fulcral”
do texto. Todavia, ao “examinar a distância que medeia entre intenção e
realização”, concluiu que a peça fez aflorar, “da perspectiva do ‘Nacional-
Popular’”, o problema da projeção de questões típicas da fração da classe “de
seus autores”, ou seja, da fração intelectualizada da classe média, “na matéria
popular”; essas questões seriam: a “escalada de juros e correção monetária
[…] dos planos de financiamento à la BNH”; as dificuldades “de arrecadação
e de direitos autorais, para compositores populares”; os ideais de cooptação
de quem, tendo de escolher entre duas alternativas, ou “‘dançar a valsa’” com
a herdeira de uma fortuna acumulada graças à exploração econômica, ou
“‘pular o Carnaval no purgatório’ com a sua gente, escolherá a primeira”.43
Ainda na tentativa de levar adiante a crítica da estética de Gota D’Água
{Preta}, discutirei o problema da projeção de valores da classe média
intelectualizada “na matéria popular” a partir do ângulo do trabalho musical.

41. Cf. SANTOS, Valmir, “Raízes e nervos expostos”, edição citada.


42. Cf. BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água, edição citada, p. xi, xvii.
43. Cf. MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque,
edição citada, p. 174-177.

189
Retomarei, uma vez mais, a recepção imediata do espetáculo. Como se leu nas
citações que fiz, Patrick Pessoa afirmou que “o rap e os toques e timbres das
religiões de matriz africana enegreceram o cancioneiro de Chico Buarque”.44
Juliana França definiu Gota D’Água {Preta} como “um jorro, um gozo musical”,
e identificou o atabaque como uma das “possibilidades de fortalecimento”
que a encenação oferecia. Mas, acrescento agora, a sua crítica também se
referiu ao rap, ao funk e ao samba.45 Valmir Santos, além de salientar a
importância da dança e dos cantos do candomblé e da umbanda, bem como
a do diálogo com o Racionais MC’s como elementos que estruturaram
a forma do espetáculo, atentou para a “cozinha sonora do hip hop e do
samba” e para a experiência de Juçara Marçal no grupo A Barca e na banda
Metá Metá.46 Já Paulo Bio de Toledo analisou não só o diálogo entre Chico
Buarque e Racionais MC’s no espetáculo, conforme anteriormente resumi,
mas também entre Chico e MC Bin Laden (“Tá tranquilo, tá favorável”). E
observou que “o procedimento com as músicas” espelhava o “pensamento
sobre a trama e o teatro”: o elenco manipulara “samples literários e musicais”
como um MC ou um DJ e demarcara “sua própria resistência”.47 Por fim,
Rosane Borges afirmou que “samba e rap, Chico Buarque e Racionais MC’s”
estiveram “em sintonia fina”.48
Com direção musical de Jé Oliveira e William Guedes, a banda de Gota
D’Água {Preta} foi formada por DJ Tano (pick-ups e bases), Fernando Alabê
(percussão),49 Gabriel Longhitano (guitarra, violão, cavaquinho, percussão)
e Suka Figueiredo (sax tenor, percussão); participaram ainda de alguns
arranjos Jé Oliveira (cavaquinho), Salloma Salomão (flauta transversal), Ícaro
Rodrigues, Mateus Sousa, Dani Nega, Marina Esteves (percussão). Em uma
tentativa de esquematização, pode-se dizer que esse trabalho estabeleceu
relações entre a chamada MPB, onde as composições de Chico Buarque

44. Cf. PESSOA, Patrick, “Crítica: ‘Gota d’água {preta}’”, edição citada.
45. Cf. FRANÇA, Juliana. “Gota d’água preta: Crítica da peça de Chico Buarque e Paulo
Pontes, encenada por Jé Oliveira”, edição citada.
46. Cf. SANTOS, Valmir, “Raízes e nervos expostos”, edição citada.
47. Cf. TOLEDO, Paulo Bio de, “Versão negra ‘Gota d’Água’ faz vibrar peça de Chico
Buarque e Paulo Pontes”, edição citada.
48. Cf. BORGES, Rosane, “Em tempos de regressão, quase nada pode ser a Gota d’água
(preta)!”, edição citada.
49. Tiago Sonho participou das apresentações em Belo Horizonte e São José do Rio Preto.

190
obviamente estão radicadas, e sonoridades da Diáspora Africana na América
Portuguesa e no Brasil, em que se distinguem pelo menos duas constelações:
1) a das religiões afro-brasileiras, presentes em Gota D’Água {Preta} por
meio de cantos de candomblé, de umbanda e, no arranjo de “Flor da idade”,
da base percussiva do jongo – modalidade de cantoria e de dança de roda
acompanhada de tambores, de tradição banta.50 A fim de melhor elucidar
a relação, vejamos o prólogo criado pela montagem e, nele, o tratamento
que o conjunto de práticas e de expectativas vinculadas à MPB de Chico
Buarque recebeu. Quando o público entrava, atrizes, atores e instrumentistas
já estavam sentados em roda, no palco. Uma movimentação coletiva, então,
indicava os lugares que seriam ocupados pelos personagens no drama. Na
sequência, Dani Nega e Marina Esteves tocavam atabaques, e Dani Nega
iniciava um canto saudando Exu Rei, Sete Fronteiras, Sr. Tranca Ruas e
Pombagira. Ela era secundada pelo coro de mulheres, o elenco batia palmas,
e Aysha Nascimento dançava, encenando a incorporação de uma entidade
que acompanharia Joana em outros momentos – daí a “simbiose corpo e
voz entre Aysha e Juçara”, ressaltada por Valmir Santos;51 daí também Juliana
França estimar que “a voz de Joana-Juçara dança e o corpo de Corina-Aysha
canta”.52
Sabe-se que não só as práticas e as expectativas, mas também os
significados e os valores vinculados à sigla MPB sempre implicaram disputas,
além de reagirem a uma série de problemas ao longo das décadas e, portanto,
se modificarem desde os anos 1960. Nesse sentido, é certo que o prólogo de
Gota D’Água {Preta} incidiria de diferentes modos sobre a MPB se dialogasse
com Gilberto Gil, ou com Paulinho da Viola, ou com Milton Nascimento,
ou com Jorge Ben, artistas negros que nunca se deixaram embranquecer,
mas que desenvolveram obras entre si bem distintas. Sem estender demais
o comentário, o mesmo se daria se o diálogo fosse travado com Geraldo

50. Em entrevista para a divulgação da temporada de Gota D’Água {Preta} no Sesc Ginástico,
Juçara Marçal se referiu aos cantos de candomblé, de umbanda e à base percussiva do
jongo. Cf. SESC RIO, “‘Gota D’Água {Preta}’ estreia no Sesc Ginástico dia 16 de outubro”,
edição citada.
51. Cf. SANTOS, Valmir, “Raízes e nervos expostos”, edição citada.
52. Cf. FRANÇA, Juliana. “Gota d’água preta: Crítica da peça de Chico Buarque e Paulo
Pontes, encenada por Jé Oliveira”, edição citada.

191
Vandré, ou com Caetano Veloso, ou com Maria Bethânia, ou com Gal Costa,
ou com Clementina de Jesus.53 No caso que interessa, o canto, o toque e a
dança que abriram o espetáculo contrariaram práticas e expectativas porque
deslocaram a obra de Chico Buarque – a qual configurou a MPB, dentre
outros traços, pela relação com as culturas negras mediada por composições
de Ismael Silva, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi, Cartola, Nelson Cavaquinho
–54 para um “terreiro cênico” de negras e negros, antecipando a festa de “Flor
da idade” e a catarse provocada pelo canto coletivo de “Gota D’Água”, na
última cena da peça. Adiante retomarei o ponto;
2) a constelação da música negra urbana, no quadro das culturas das
periferias,55 presente no espetáculo sobretudo por meio do rap do Racionais
MC’s, mas também por meio do funk e de vertentes do samba.

53. Para ampliação do assunto, consultar a crítica contundente de Beatriz Nascimento à


transformação de uma manifestação religiosa negra em “música na TV” cantada por Vinicius
de Moraes e Toquinho. Cf. NASCIMENTO, Beatriz, “Por uma história do homem negro”.
In: RATTS, Alex (org.). Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento,
edição citada, p. 93-98. Texto originalmente publicado em 1974.
54. Recorde-se que o nome da protagonista da peça, Joana, foi tomado do samba “Notícia
de jornal”, de Luís Reis e Haroldo Barbosa. Em 1961, o samba fora gravado por Elizeth
Cardoso. Em 1975, foi cantado por Chico Buarque no show que dividiu com Maria Bethânia,
no Canecão; no disco que registrou esse show, a faixa antecedeu “Gota D’Água”.
55. Na entrevista realizada por ocasião da temporada no Sesc Ginástico, Fernando Alabê se
referiu à “cultura de periferia”, à “musicalidade de periferia” e à “musicalidade negra” (SESC
RIO 2019). Ultrapassaria bastante os limites deste estudo abordar a relação e a tensão que
há entre as expressões “música negra urbana”, que enfatiza a categoria de raça, e “culturas
das periferias”, que enfatiza a categoria de classe social articulando-a à geografia urbana.
Mas, para evitar mal-entendidos desnecessários, é importante lembrar que a questão está
presente na obra do Racionais MC’s desde o início do disco Raio X Brasil, de 1993: na vinheta
de abertura, Edy Rock declama “– 1993, fudidamente voltando, Racionais, usando e abusando
da nossa liberdade de expressão, um dos poucos direitos que o jovem negro ainda tem nesse
país”; e Mano Brown dedica “Fim de semana no Parque”, primeira faixa do disco, “– A toda
a comunidade pobre da zona sul” (desse rap, Gota D’Água {Preta} extraiu o sample “E a
maioria por aqui se parece comigo” [o grifo é meu], tocado quando Jasão retornou à Vila
do Meio-Dia). O exemplo é didático, mas penso que seja suficiente para indicar que, a partir
de então, o rap do Racionais se voltou para o cotidiano de bairros periféricos registrando,
denunciando e criticando “a violência que estrutura a sociedade brasileira”, suas “origens
econômicas (capitalismo e generalização da forma mercadoria) e sociais (preconceito e
segregação racial)”, assim como “a sua consequência inevitável (a morte)”. Cf. GARCIA,
Walter, “Ouvindo Racionais MC’s”, edição citada, p. 167. Para uma análise da questão no
âmbito mais amplo do rap em São Paulo, consultar MACEDO, Márcio, “Hip-Hop SP:
transformações entre uma cultura de rua, negra e periférica (1983-2013)”. In: KOWARICK,
Lúcio; FRÚGOLI JR., Heitor (org.). Pluralidade urbana em São Paulo: vulnerabilidade,
marginalidade, ativismos sociais. São Paulo, Editora 34/ Fapesp, 2016, p. 23-53.

192
Vou me deter com mais atenção nesse segundo conjunto de relações.
Começarei destacando quatro vertentes do samba urbano que foram
integradas ao espetáculo. A primeira delas foi a do emblemático “Pelo
telefone”, de Donga e Mauro de Almeida, cantado por Cacetão e Mestre
Egeu com sua letra anônima (“O chefe da polícia/ Pelo telefone/ Manda
me avisar/ Que na Carioca/ Tem uma roleta/ Para se jogar”), e não com a
letra gravada pelo cantor Bahiano em 1917 (“O chefe da folia/ Pelo telefone/
Manda me avisar/ Que com alegria/ Não se questione/ Para se brincar”).
Desse modo, ainda que a letra anônima tenha se mantido pela imprensa,
por livros e por discos, meios também utilizados pela MPB para inventar-
se como tradição, a montagem parecia rememorar a vida comunitária no
terreiro da casa da Tia Ciata, situada na “pequena África no Rio de Janeiro”,
onde “Pelo telefone” surgiu como improviso com certo teor de crítica social.56
A segunda vertente foi a do samba de quadra, estilo com que Nenê,
Corina, Zaíra, Cacetão e Amorim cantavam, com apoio da banda, “Gota
D’Água” no espaço público da Vila do Meio-Dia. Como também escutávamos,
no espetáculo, “Gota D’Água” gravado por Bibi Ferreira, para o disco derivado
da primeira montagem da peça, e por Chico Buarque, no show dividido com
Maria Bethânia no Canecão, em 1975, tornou-se ostensiva a distância entre o
samba na rua encenado em Gota D’Água {Preta} e a canção da classe média
intelectualizada, em suas noites de gala.57 Em última análise, a “‘re-atualização’”
do musical atentava para os limites da MPB, constelação que falseia a realidade
caso se acredite que a sua utopia de se tornar “Popular” e de representar o
que seja “Brasileiro” se realizou. Nessa perspectiva é que também se deve
inserir a crítica contundente que o espetáculo fez ao anunciar a entrada

56. Sobre “Pelo telefone”, cuja bibliografia já é numerosa, consultar: MOURA, Roberto.
Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Funarte/ INM/ Divisão de
Música Popular, 1983; LOPES, Nei. Partido-alto: samba de bamba. Rio de Janeiro: Pallas,
2005; SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro
(1917-1933). 2ª ed., ampliada. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
57. Para a análise de como o livro, os espetáculos e o disco de Gota D’Água se inseriram
“na estrutura da indústria cultural e no mercado de bens simbólicos em desenvolvimento”
na década de 1970, consultar HERMETO, Miriam. “Olha a Gota que falta”: um evento no
campo artístico-intelectual brasileiro (1975-1980), edição citada. Para a crítica da produção de
esquerda no Brasil, nas décadas de 1950 e 1960, e de suas relações com o mercado hegemônico,
consultar SCHWARZ, Roberto, “Cultura e política, 1964-1969”. In: SCHWARZ, R. O pai
de família e outros estudos, edição citada, p. 61-92.

193
em cena de Creonte com um sample de “How Insensitive (Insensatez)”, de
Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Norman Gimbel, gravada por Tom e Sting
em 1994: a bossa nova internacionalizada do “maestro soberano” de Chico
Buarque, junto a quadros de Romero Britto comprados para o apartamento
de Alma, era a mais pura ostentação de uma cultura sofisticada que tinha
por finalidade guardar distância em relação aos moradores da Vila do Meio-
Dia e marcar a intenção de extirpar as raízes do sambista Jasão, fincadas na
pobreza e na identidade negra.58
A terceira e a quarta vertentes de samba que o trabalho musical integrou
a Gota D’Água {Preta} contribuíram ainda para a localização geográfica mais
precisa do conjunto habitacional e para a definição da raça de moradoras e
moradores. Quando da visita de Jasão a seus amigos, Cacetão entoava versos
de “E eu não fui convidado”, partido-alto de Zé Luiz e Nei Lopes gravado
pelo Grupo Fundo de Quintal em 1985. E, no início do segundo ato, a banda
tocava um samba-rock.
Pensamento semelhante se aplica à utilização do funk no espetáculo.
Além do sample de “Tá tranquilo, tá favorável”, de MC Bin Laden, o gênero
transformou a parte final de “Flor da idade”, em que Chico Buarque glosou
o poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade. Essa parte era
cantada por atrizes e atores em clima de festa. E no arranjo, como foi dito
acima, também foi utilizada a base percussiva do jongo. Sendo a primeira
composição de Chico cantada na peça, “Flor da idade” acabou funcionando
como um laboratório do enegrecimento da MPB e de sua transposição para
a periferia. E contribuiu para a cumplicidade entre palco e plateia. É claro
que se pode desconfiar do “lado fácil e tautológico” dessa cumplicidade, na

58. Cf. GARCIA, Walter, “Batucada do samba cabia na mão de João Gilberto”. Folha de S.Paulo,
22/7/2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/07/a-bossa-nova-e-
solista-e-dificulta-manifestacoes-coletivas-como-no-samba.shtml. Acesso em: 13 out. 2020.
Será útil a quem se interessar pelo assunto comparar três gravações de “Piano na Mangueira”,
composição de Tom Jobim e Chico Buarque: cantada por Chico e Tom, no disco Paratodos
(cf. BUARQUE, C. Paratodos. BMG Ariola/ RCA, V120.046, 1993); por Tom, no disco Antonio
Brasileiro (cf. JOBIM, T. Antonio Brasileiro. Sony, CDZ-81514 2-476281, 1995 [p1994]); e por
Jamelão e Chico, no morro da Mangueira, para o documentário Chico e as cidades, lançado
em 2001 (cf. BUARQUE, Chico; JAMELÃO. “Piano na Mangueira”. Compositores: Tom
Jobim; Chico Buarque. PIANO da Mangueira Telégrafo) – Chico Buarque. Publicado em: 27
de out. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=y-DQm9oyqGM.
Acesso em: 31 jan. 2020).

194
linha da desconfiança que se tem quando tal relação é alimentada por cacos
que trazem notícias do dia.59 Mas os recursos musicais avivaram a canção de
Chico Buarque configurando o exemplo mais sintético de como o trabalho
musical se diferenciou do folclore e do espetáculo televisivo.60 Por sua vez,
os cacos ajudaram a retirar de uma peça teatral considerada “clássica” a sua
condição de ornamento de classe e de raça, dando ao espetáculo a concretude,
a substância e a originalidade que a Apresentação do texto perseguia.61
Todo esse processo culminou na catarse provocada pelo canto coletivo
de “Gota D’Água”, na última cena, sobre a base musical de “Negro drama”,
de Edi Rock e Mano Brown. Antes de passar à sua análise, entretanto, é
preciso advertir que não se deve subestimar o valor e a eficácia do lirismo
da MPB de Chico Buarque para o espetáculo. Em cenas cruciais de Joana,
quando Juçara Marçal interpretou “Bem-querer”, “Basta um dia” e, solo,
“Gota D’Água”, o canto se filiou à estética emepebista. A essa estética também
se filiou o violão de Gabriel Longhitano, que acompanhou Juçara naquelas
canções (em “Basta um dia”, o arranjo incluiu o sax tenor de Suka Figueiredo;
em “Gota D’Água”, a cuíca de Fernando Alabê).62 Longhitano também solou
com beleza dilacerante, mas de forma enxuta – uma das marcas da linha
bossanovista da MPB –, em contraponto ao diálogo de Joana com Xangô,
quando ela decidiu os assassinatos do filho e da filha e o suicídio. Além
disso, as inserções no espetáculo de “João e Maria”, de Sivuca e Chico, “Jorge
Maravilha”, assinada por Julinho da Adelaide, “Deus lhe Pague” e “Uma
canção desnaturada”, ambas de Chico, demonstraram que o enegrecimento
foi empreendido a partir da intimidade com o repertório do compositor.

59. Inspiro-me em argumento de Roberto Schwarz desenvolvido em contexto diverso. Cf.


SCHWARZ, Roberto, “Cultura e política, 1964-1969”. In: SCHWARZ, R. O pai de família
e outros estudos, edição citada, p. 81-82.
60. Em seu artigo “Por uma história do homem negro”, publicado em 1974, Beatriz Nascimento
formulou algumas questões que vão ao encontro do que procuro discutir a partir do arranjo
de “Flor da idade”: “Que somos nós, pretos, humanamente? Podemos aceitar que nos
estudem como seres primitivos? Como expressão artística da sociedade brasileira?”. Cf.
NASCIMENTO, Beatriz, “Por uma história do homem negro”. In: RATTS, Alex (org.). Eu
sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento, edição citada, p. 94.
61. Cf. BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água, edição citada, p. xvii.
62. O arranjo de sax tenor para “Basta um dia” foi concebido por Thiago França. Para um
ótimo exemplo da cuíca na obra de Chico Buarque, escutar a participação de Mestre Marçal
em “Estação derradeira”, de Chico, gravada para o especial Chico ou o país da delicadeza
perdida, de 1990. Cf. BUARQUE, C. Chico ou o país da delicadeza perdida. Direção Walter
Salles Jr. e Nelson Motta. BMG, 82876538929, 2003 [p1990].

195
Assim, penso que tenham ocorrido dois processos como resultado do
trabalho musical de Gota D’Água {Preta}. Primeiro, houve o deslocamento
das composições cantadas pelo coro, de corte épico, para um bairro habitado
predominantemente por negras e negros. Segundo, à luz dessa representação
da vida na periferia urbana, o trabalho talentoso de Juçara Marçal e da banda,
mantendo-se no campo da MPB, revalorizou a lírica de Chico Buarque, já
de si tão forte na expressão de estados da alma de Joana.
Isso posto, devem ser considerados quatro aspectos do arranjo de “Gota
D’Água” cantada pelo elenco, no encerramento da peça, depois que Egeu e
Corina carregaram os despojos mortais de Joana, seu filho e sua filha (os
corpos representados por trajes) para dentro da festa de casamento de Jasão
e Alma. O primeiro deles é que a obra de Chico Buarque, via de regra, impõe
certo grau de dificuldade por conta de suas “difíceis melodias”, sobretudo
quando se canta em coro.63 Porém, o trabalho de preparação vocal de William
Guedes e, é evidente, a qualidade de atrizes e atores fizeram “Gota D’Água”
parecer fácil de ser cantada, assim como ocorrera com “Flor da idade”.
O segundo aspecto é que esse arranjo de “Gota D’Água” começou pelo
sample de Elza Soares entoando a cappella “A carne mais barata do mercado/É
a carne negra”, versos de “A carne”, de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses
Cappelletti. A semântica, a duração das notas, o salto intervalar ascendente,
a tessitura, o timbre cortante, a história de vida da mulher negra Elza Soares,
todos esses elementos ampliaram o sentido do instante mortal de Joana a
que se acabara de assistir.
O terceiro aspecto foi antecipado acima: a base musical para o canto
do coro foi composta pelo sample de “Negro drama”. Assim, o ritmo da
composição de Chico Buarque passou a ser ditado por um dos mais
emblemáticos raps do Racionais MC’s, no auge do deslocamento da MPB:
do endereçamento incerto ao “nosso povo”, na perspectiva do nacional-
popular, “Gota D’Água” passara à quebrada do “‘rap-político’” – de acentuado

63. Cf. HOTIMSKY, Nina Nussenzweig. O trabalho de encenação em Calabar (1973): o


espetáculo censurado e as reflexões de Fernando Peixoto. São Paulo, ECA-USP, 2019.
Dissertação de mestrado em Teoria e Prática do Teatro, p. 152. Na passagem, Nina Hotimsky
utiliza a expressão “difíceis melodias” no relato do processo de montagem de Calabar, em
1973, a partir de entrevistas que realizou com atrizes e atores do coro e com Dori Caymmi,
diretor musical. Mas penso que a característica pode ser generalizada para toda a obra
cancional de Chico Buarque.

196
teor crítico, com narrativas que sintetizam “os cotidianos caracterizados
pela violência, injustiça social e arbitrariedades múltiplas”, configurando
“lamentos indignados”, dilacerados pela tristeza,64 mas que, ao mesmo tempo,
se afirmam como gestos simbólicos de revide, com agressividade e lucidez.65
O quarto aspecto é que ainda foram utilizados, nesse arranjo de “Gota
D’Água”, samples de Brown cantando “Negro drama” e também “Jesus chorou”,
de sua autoria. Em oposição, escutava-se o sample de um então deputado
federal declarando-se a favor da tortura. Não poderia ter sido mais nítida a
“‘re-atualização’” da “vida brasileira”, assim como nítido era o gesto simbólico
de revide. Não se imagine, no entanto, que a catarse tenha oferecido qualquer
compensação imaginária. Encenou-se com crueza e sem sensacionalismo
o beco sem saída de uma “mulher negra vulnerabilizada”. Na imagem de
Rosane Borges, tratou-se de “um bote salva-vidas num momento em que a
tempestade se aproxima e o vento se intensifica”.66

Caminhos e fronteiras
Como ficou sugerido ao longo deste ensaio, diversas dinâmicas
socioculturais contribuíram para a produção de Gota D’Água {Preta}. A
título de conclusão, tentarei mapear sumariamente oito delas: (1) o teatro
negro; (2) a formação teatral em instituições públicas; (3) o hip hop e o rap
em São Paulo; (4) o teatro de grupo; (5) a cena musical independente em São
Paulo, no século XXI; (6) o conhecimento de religiões de matriz africana;
(7) a pesquisa universitária; (8) o patrocínio e a circulação da montagem.
Em relação à primeira dinâmica, Valmir Santos atentou para a
“efervescente e qualificada produção” do teatro negro, inscrevendo o Coletivo
Negro de Jé Oliveira e Aysha Nascimento, a Companhia de Teatro Heliópolis
e Gota D’Água {Preta} em um processo distendido no tempo e que ocorre
em pelo menos cinco estados brasileiros:

64. Cf. AZEVEDO, Amailton Magno Grillu; SILVA, Salloma Salomão Jovino da, “Os sons
que vêm das ruas: a música como sociabilidade e lazer da juventude negra urbana”. In:
ANDRADE, Elaine Nunes de (org.). Rap e educação, rap é educação. São Paulo: Summus,
1999, p. 80.
65. Cf. GARCIA, Walter, “Elementos para a crítica da estética do Racionais MC’s (1990-
2006)”, edição citada.
66. Cf. BORGES, Rosane, “Em tempos de regressão, quase nada pode ser a Gota d’água
(preta)!”, edição citada.

197
Há uma saudação inequívoca à geração do Teatro Experimental do Negro
(1941-1961), da qual fizeram parte artistas como Abdias Nascimento,
Aguinaldo Camargo, Haroldo Costa, Lea Garcia e Ruth de Souza.
Reminiscências que também podem ser estendidas, em alguma medida,
à Companhia Negra de Revistas (1926-1927) e ao circo-teatro do palhaço
Benjamim de Oliveira (1870-1954), sempre no Rio de Janeiro.

A multiplicidade de coletivos e de ações afins denotam a vitalidade,


caso da segundaPRETA em Belo Horizonte, no Teatro Espanca!, e das
Terças Pretas em Salvador, idealizada pelo Bando de Teatro Olodum
[em atividade desde 1990]. Corroboram o panorama grupos como
a Cia. dos Comuns (RJ), Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (SP),
Capulanas Cia. de Arte Negra (SP), Os Crespos (SP), NATA (Núcleo
Afro-Brasileiro de Teatro de Alagoinhas, BA), Grupo Caixa-Preta (RS)
e Montigente (RS). Além das encenações de João das Neves (1935-2018):
Zumbi, adaptação de Arena conta Zumbi, de Augusto Boal e Guarnieri;
Madame Satã, com Grupo dos Dez e do Oficinão Galpão Cine Horto; e
Besouro, cordão de ouro e Galanga Chico Rei, ambos criados em parceira
com Paulo César Pinheiro.67

Já em relação ao ensino público e gratuito, é bastante significativo que


a formação inicial do Coletivo Negro, criado em São Paulo, em 2008, tenha
contado com cinco profissionais que cursaram a Escola Livre de Teatro (ELT)
de Santo André: Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues, Jé Oliveira, Jefferson
Matias e Thais Dias; e com um, Raphael Garcia, que cursara a Escola de
Arte Dramática (EAD) da USP. No elenco de Gota D’Água {Preta}, Rodrigo
Mercadante também se formou na EAD. Outros quatro nomes estudaram
na ELT: Dani Nega, Ícaro Rodrigues, Marina Esteves e Mateus Sousa. E da
ELT, Jé Oliveira e Rodrigo Mercadante foram professores.
Quanto ao rap radicado no hip hop, registre-se que o músico DJ Tano
é integrante do grupo Z’África Brasil. E para além do que foi analisado da
obra do Racionais MC’s neste ensaio, a fim de avaliar a dinâmica de um
fenômeno que não ocorreu de forma isolada na capital paulista, retomarei

67. Cf. SANTOS, Valmir, “Raízes e nervos expostos”, edição citada.

198
uma síntese proposta por Amailton Magno Azevedo e Salloma Salomão
Jovino da Silva (historiador, músico e ator que representou Mestre Egeu).
Ambos observaram que, “tanto antes, como depois de maio de 1888”, as
“populações negro-mestiças” vieram construindo em São Paulo, por meio da
criação e da recriação de práticas musicais, “novas formas de sociabilidade,
que podem ser entendidas como expressões dinâmicas de pertencimento”.68
Dizendo de outro modo, a música se constituiu como uma das “maneiras de
tornar a vida possível diante das adversidades” geradas “na relação desigual
com as elites econômicas da cidade”.69 Nessa chave, e sem ignorarem as
descontinuidades e as tensões das “culturas inventadas e ressignificadas”,70
os historiadores identificaram uma multiplicidade de sonoridades negras,
na capital paulista, que atravessaram o século XX formando o que se pode
entender como uma constelação: as “práticas culturais e religiosas” das
irmandades de São Benedito, de Santo Elesbão, da Boa Morte, de Nossa
Senhora do Rosário, de Santa Efigênia; a tiririca, a pernada, o samba de
bumbo, o candombe, a umbigada, o samba lenço, o samba de roda, o batuque;
os cordões carnavalescos, os grupos regionais, as escolas de samba; os bailes
organizados por equipes, o Movimento Black, a música soul a partir dos
anos 1970; na década seguinte, a “Cultura de Rua” do movimento hip hop e
as festas “de fundo de quintal”; “os grupos de samba paulista como Cravo e
Canela, Sem Compromisso, Negritude Júnior” e o “‘rap-político’” de Thaíde
e DJ Hum, Racionais MC’s e DMN, nas décadas de 1980 e 1990. 71

68. Cf. AZEVEDO, Amailton Magno Grillu; SILVA, Salloma Salomão Jovino da, “Os sons
que vêm das ruas: a música como sociabilidade e lazer da juventude negra urbana”. In:
ANDRADE, Elaine Nunes de (org.). Rap e educação, rap é educação, edição citada, p. 67-68; 72.
69. Ibidem, p. 69 e 72.
70. Ibidem, p. 66.
71. Ibidem, p. 68-69; 71-73; 75; 80. Para outra pesquisa sobre o assunto, assistir ao
“Documentário” produzido pelo Racionais MC’s que consta dos Extras do DVD 1000
trutas 1000 tretas, lançado em 2006. O vídeo registra criticamente um rico material, desde
“o território negro nas ruas do centro”, na década de 1870, até a “Periferia de São Paulo –
1975”, ao som dos Originais do Samba. Daí, enfocam-se “Rua: 24 de maio/ Grandes Galerias/
1980”, ao som da black music, do soul e do funk estadunidenses e, a seguir, ao som do pop
de Michael Jackson e Quincy Jones. Então, relatam-se os grandes bailes da Chic Show no
Palmeiras, e a chegada desta equipe à rádio FM. Finalmente, “Pq. Santo Antonio Z. S./
Dois mil e...”, ao som do rap. Cf. RACIONAIS MC’S. 1000 trutas 1000 tretas. Cosa Nostra,
CN 007, 2006.

199
Sobre a prática do teatro de grupo, em Gota D’Água {Preta} se encontraram,
já se disse, integrantes do Coletivo Negro. Aysha Nascimento também é
fundadora da Cia. dos Inventivos de Teatro de Rua. Rodrigo Mercadante
e William Guedes trabalham na Cia. do Tijolo. Marina Esteves e, como
diretor, Ícaro Rodrigues, no Coletivo O Bonde. Julio Dojcsar, responsável
pela cenografia, e Eder Lopes, responsável pela assistência de direção e pelos
figurinos, também trabalharam com o Coletivo Negro; e Lopes, para não
estender muito a nota, ainda com o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos,
Nave Gris Cia. Cênica e Coletivo Quizumba.
Na atual cena independente de São Paulo, Juçara Marçal, Dani
Nega, Salloma Salomão, Fernando Alabê e Suka Figueiredo desenvolvem
trabalhos musicais em paralelo, mas que possuem em comum a pesquisa e
a experimentação de sonoridades negras. A canção “Paó”, versos de Paulo
Pontes e Chico Buarque musicados por Juçara Marçal, resultou dessa prática.
E o uso de microfones no espetáculo também. Da cena independente também
participa Gabriel Longhitano, instrumentista e compositor formado em
Educação Musical pela Unesp. Rodrigo Mercadante, além de ator, diretor e
dramaturgo, é músico, cantor e preparador vocal.
Como foi apontado, elementos, práticas e sistemas de significação de
religiões de matriz africana estruturaram a reelaboração de Gota D’Água.
Nas últimas semanas de ensaio, em janeiro de 2019, Fernando Alabê refletiu
acerca dos arquétipos reproduzidos na peça e na montagem. Seu texto ficou
circunscrito ao elenco, em comunicação por rede social. Em dezembro,
solicitei autorização para incluí-lo neste texto. Alabê concordou, após fazer
algumas poucas revisões e uma advertência: “A contribuição foi muito em
cima da forma oral que aprendi. Pode haver elementos que se contradigam.
Mas essa controvérsia está mais do que presente na nossa história, contada
de muitas formas”:
Salve! Pelo texto original, não sei bem os arquétipos que o Chico Buarque
e o Paulo Pontes elencaram. Mas, pelo que levantamos na versão que o Jé
Oliveira dirigiu, se dispõem Oxóssi, em Jasão, e Obá e Xangô, em Joana.

Em sua primeira aparição, Joana clama por justiça. Por isso foi proposto
o Alujá, ritmo dedicado ao Orisà da Justiça, Xangô. No segundo ato,

200
ela segue buscando caminho pelos Orisàs guerreiros, como Jagun, o
guerreiro de branco, que tem caminho com Obáluwaiyê (título de
Omolu, de Rei Dono da Terra) e com Oxaguian (variação “mais jovem”
e guerreira de Oxalá). Já o último a quem ela clama, como pai, é Xangô,
mas cabe um porém, a ser dito mais à frente.

Especificamente nas figuras femininas, na empatia, sororidade até dado


momento da peça, o arquétipo social de Obá se demonstra, pois esta
Aiyabá não é apenas a que perdeu a orelha por uma trama de Osun,
mas sim a fundadora de uma ordem de mulheres, a Obá Elekô. Ela anda
com as feiticeiras ancestrais da noite, as Iyami Oxorongá, guerreia como
Xangô e caça como Odé (título dos caçadores e das caçadoras yoruba).

Ao usar de sincretismos, as coisas se misturam bastante, e então somam-


se mais símbolos. Como quando Joana fala em N’ganga, feiticeiro,
sábio, líder bantu, sendo, dentro de nossa cultura popular, título dos
cantadores de Moçambique e de Candombe mineiro (Salloma Salomão,
que faz o Egeu, dentro de sua pesquisa em africanidades, doutor que é
no assunto, falaria muito melhor sobre este ponto do que eu).

O Egeu tem muito, mas muito mesmo de Oxalá, no uso da palavra.


Eu ia até propor um Igbin, seu ritmo ritualístico, misturado a um trap,
para uma fala dele, mas a urgência do processo não deixou que isso
acontecesse, infelizmente.

Quanto a Esù, Orisà que se desdobra em muitos e inclusive em gênero,


este aparece desde o início, como sempre. É o primeiro a ser reverenciado
na peça, com a sua figura em modo feminino, em uma Pomba Gira.

Essa palavra vem de Pambu N’gila, que é o próprio Inkisse, Senhor


dos Caminhos, símbolo do fogo no culto do Agonde Bantu (seja do
vindo do Congo ou de Angola), para nós, variado para comumente
ser chamado de Candomblé Angola. Há quem diga que a nomeação
Pomba Gira venha como variação de Pambu N’gila, corruptela, como
já sendo a forma feminina de Exu. Mas, de fato, são panteões e formas
distintas de reguladores de energias espirituais ligadas aos caminhos.

201
Na Umbanda, Pomba Gira foi adotada como variante feminina de Exu
e comumente ficou conhecida como Exu Mulher, o que se espalhou
inclusive para o Candomblé, no culto de Catiços, os Exus de caminho,
abaixo de nossos Baras, os Exus mensageiros dos nossos Orisàs.

Mas a Pomba Gira não é a principal entidade presente na peça. Eu


a vejo como todo um espectro sociorreligioso feminino, do qual se
valeram as mulheres, no nosso caso, negras, contra muitas injustiças:
esse poder de conclamar as forças tanto ancestrais como espirituais e
da natureza, que se guardou e se guarda há tempos nas cabaças, que
são representações do feminino, assim como das cabeças, que guardam
os segredos, feitiços, curas e pragas.

Na forma como foi levantada a peça, ainda há a presença da ancestralidade


via Egungun, que também tem, inclusive, a fundação de seu culto em
Xangô, quando este perdeu sua filha pelas mãos das Iyami Oxorongá.
Esse elemento aparece no traje final que representa a Joana. Embora
Egungun seja ancestral masculino, desde que iniciados no mistério,
todos nos transformamos em Eguns quando morremos. Esse traje se
faz como símbolo dos extermínios da população negra e é sabiamente
carregado pelo Mestre Egeu, que se faz então de Ojé, sacerdote ligado
ao culto aos ancestrais yoruba nagô. Ou seja, tem muita coisa, nessa
montagem do texto, que se sobrepõem às demais montagens.

E aqui quando falo em Xangô (Sàngó) para Joana, voltando aos seus
arquétipos, vem logo na sequência uma de suas companheiras, Obá
(Yoba), guerreira, feiticeira, caçadora, fundadora da ordem Obá Elekô.
Eu, se fosse um babalorixá da Joana, a iniciaria em Sàngó e Yoba…
Porém Yoba não aceita ser segundo Orisà na cabeça de ninguém e não
pega cabeça de homem, ao que dizem meus antigos. Então, mesmo
Joana conclamando seu pai Xangô, no início e no final da peça, ela
seria de Yoba e Sàngó… Oba Siré! Kawo Kabiesilé! Dona de mistérios,
magias, guerreira e justiceira, até o fim. Assim como o Rei da Justiça
some na terra, Joana se consome em sua busca por justiça, ainda que
cessando a própria vida.

202
Sobre a contribuição da pesquisa universitária, no início do projeto,
em 2017, a leitura da peça foi acrescida do estudo de dois textos: “‘Olha a
Gota que falta’”: um evento no campo artístico-intelectual brasileiro, tese em
História de Miriam Hermeto, professora da UFMG; e “Um pote até aqui
de mágoa: Chico Buarque e Paulo Pontes retomam os heróis populares de
Guarnieri e Dias Gomes”, ensaio de Homero Vizeu Araújo, professor de
Literatura Brasileira da UFRGS.
Em especial, uma nota crítica de Homero Araújo inspiraria a encenação:
“Em Gota D’Água o cadáver do povo é lançado na festa, ou melhor, no
desfecho da festa conciliatória promovida sob o signo da ascensão social,
do consumo e da propriedade”.72 Sabe-se que não é sempre que um trabalho
acadêmico tem impacto sobre a produção artística, mas a Apresentação
do texto também enumerava, dentre suas “preocupações fundamentais”,
que a peça refletisse o ânimo que Paulo Pontes e Chico Buarque haviam
então obtido com a leitura de livros, ensaios e teses e com “o apetite pelo
debate” deflagrado pelos “ciclos do [Teatro] Casa Grande”.73 E não se deve
ignorar que Gota D’Água {Preta} contou com um elenco intelectualizado.
Além da formação teatral na ELT ou na EAD e da graduação de Gabriel
Longhitano, somaram-se no palco a formação universitária de: Salloma
Salomão (Graduação, Mestrado e Doutorado em História, na PUC-SP),
Juçara Marçal (Graduação em Jornalismo e em Letras na USP, Mestrado em
Literatura Brasileira, também na USP), Aysha Nascimento (Licenciatura e
Bacharelado em Dança, na Universidade Anhembi Morumbi), Jé de Oliveira
(graduando em Ciências Sociais, na USP), Fernando Alabê (atualmente
com o curso de Pedagogia trancado no Instituto Singularidades) e Rodrigo
Mercadante (cursos incompletos de Artes Cênicas na USP e de Filosofia
no Claretiano).
Por fim, a produção e a temporada de estreia de Gota D’Água {Preta}
foram viabilizadas por patrocínio do Instituto Itaú Cultural, que ainda

72. Cf. ARAÚJO, Homero Vizeu, “Um pote até aqui de mágoa: Chico Buarque e Paulo
Pontes retomam os heróis populares de Guarnieri e Dias Gomes”. In: ARAÚJO, H. V. Futuro
pifado na literatura brasileira, edição citada, p. 63.
73. Cf. BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água, edição citada, p. xviii. É
incontornável sublinhar a ironia do final da frase.

203
promoveu um debate sobre o espetáculo. Como observou Juçara Marçal,
“não por acaso, Galiana Brasil, Gestora de Artes Cênicas da instituição, mulher
negra, foi quem abriu caminho para que esse apoio à nossa montagem se
consolidasse”.74 E a circulação em 2019, conforme enumerei páginas acima,
incluiu: sete teatros do Sesc;75 cinco, construídos pelo poder público; e
um particular, de um teatro de grupo paulistano. No momento em que
escrevo, essa dinâmica e as sete anteriores se encontram sujeitas a ventos
e a tempestades. Todavia, como observou Salloma Salomão ao final da
temporada no CCSP, para negras e negros é mais um capítulo de uma história
que ultrapassa 500 anos.

74. Cf. MARÇAL, Juçara. “Encarnando Joana”. Ocas, edição n. 121, mai./ jun./ jul. 2020.
Disponível em: https://www.ocas.org.br/ultima-edicao. Acesso em: 05 jun. 2020.
75. Escaparia aos objetivos deste ensaio examinar a atuação do Sesc, bem como a do Itaú
Cultural, à luz de um espetáculo como Gota D’Água {Preta}. Mas não custa registrar que o
tema daria uma análise no mínimo interessante.

204
DUAS CRÔNICAS
O negócio da crítica musical

(Nota: Recebi de presente um antiquíssimo caderno cultural, descoberto


por uma jovem enquanto desembrulhava a louça de sua avó. A avó faleceu
há alguns dias, mas isso não tem nenhuma importância. O que importa é o
documento jornalístico de sabe-se lá quantas décadas. Infelizmente o estado
lamentável do papel arrasou algumas frases, incluindo o título e a assinatura.
Aliás, não se pode atribuir a autoria a uma só pessoa, talvez a composição tenha
juntado ideias de profissionais da redação e de colaboradores, declarações de
entrevistados e até mesmo – por que não? – cartas de leitores.
O que se salvou é incrível. O texto não resistiu ao mofo e às traças como
talvez tenha resistido às modernizações da imprensa. Trata-se evidentemente
de uma caricatura. Nem se vá levar a sério as suas recomendações, nem se
vá procurar justeza nas suas ideias. Retrato exagerado, simplista, zombeteiro
e cínico, faz lembrar aquele famoso conselho de Paulino Guedes a Oswald de
Andrade: “Não existe uma receita, contudo o negócio é dosar três pês: pau,
plágio e paródia”.)
O foca chegou-se para junto do velho jornalista e disse:
– Quero ser crítico de música.
O velho olhou de lado e esperou.
– Você não sabe quando a gente é criança e de repente uma bexiga
cheia de gás escapa da mão?
O velho se lembrava:
– A gente fica olhando...
O foca prosseguiu com altivez:
– Pois desejo voar acima da obscuridade comum. O que me aconselha?
Tenho-o por chefe e por lúcido, alto, valioso amigo.
– Tão jovem e reconhece o valor de ser amigo deste velho...
– Tenho-o por mestre. Tenho-o por pai.

207
O velho jornalista se ergueu, caminhou até o arquivo, abaixou-se, abriu
a última gaveta. Retirou uma pasta suspensa e dela, um envelope pardo.
Puxou um maço de laudas, algumas novas, outras esfareladas.
– Nenhum ofício me parece mais útil e cabido ao esforço da ambição
que o de crítico de música. Foi o sonho da minha mocidade. Faltaram-me,
porém, as instruções que venho acumulando. Rumina bem o que eu disser.
– Sim, senhor. Creia que lhe agradeço.
– Sei que você não é músico. Não é preciso ser, nem é preciso estudar
música. Considere que a maioria dos músicos nunca aprendeu música.
– E quanto à minoria, não é temível?
– Não; a minoria são exceções que se agrupam em três tipos: 1) não
fazem sucesso, e não se perde tempo com essa gente; 2) têm atitude, você
saca que o som dos caras é legal só de olhar para a capa; 3) são músicos dos
Estados Unidos, do Reino Unido, da Suécia, de lugares onde as suas críticas
nunca serão lidas.
– Creio que assim seja; mas não há críticos que estudam música?
– Entendamo-nos. Não confunda o fenômeno raro com a exceção à
regra. Para compreender a eficácia do sistema, observam-se regras e exceções;
o que é raro se despreza.
– Juque! Afio meus ouvidos, senhor.
– Deposito em você as minhas esperanças. Venhamos ao pau de sebo,
à enorme loteria da vida. É melhor brilhar fixo no campo vasto do céu do
que ser cometa ou ter as asas incandescentes. Pense na constelação. Alguns
críticos arranham um cavaquinho, tiram fotos tocando guitarra, falam de
coisas esotéricas como power chord, contraponto, modo menor; e inventam
uma marca. Não se impressione, quem tem bicicleta não é necessariamente
ciclista.
– Como assim?
– O buraco é mais embaixo. Para se manter na cobertura de música, o
fundamental é inventar uma marca. Aprenda com os publicitários. Sabonetes
são todos iguais, o que muda é a personalidade do produto. Não importa
o que você escreverá, importa como escreverá e o índice de recall da sua
marca, semana a semana, mês a mês. (...) Defina o seu target. (...) Mentalize
que você é um carro (...).

208
(Nota: Suprimi os trechos seguintes, nos quais o texto fica ainda mais
obscuro; ocorre que, afora a ação do tempo, a página está rabiscada; a
matéria jornalística saiu junto de um anúncio de supermercado, mero acaso
do fechamento da edição; várias ofertas foram assinaladas, presumivelmente
pela avó daquela jovem, e a caneta não respeitou os limites da propaganda.)
(...) um tal obstáculo é invencível.
– Não é; há um meio; faça análise musical das letras. Citar versos pega
bem, diminui seu tempo de trabalho e ninguém dirá que você encheu linguiça.
– E se taxarem de superficiais as minhas críticas?
– Não faz mal; tens a valente justificativa do pouco espaço disponível.
As estatísticas mais escrupulosas indicam, em número considerável, que ser
crítico é mostrar-se superior a quem e àquilo que você critica, superior à
crítica que você escreveu e, lógico, superior ao leitor que se meta a criticá-lo.
Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, meu conselho é que
devore biografias, revistas e jornais publicados em inglês. O sábio que disse
“o inglês é o idioma das artes” definiu a verdadeira atitude do crítico. Faça
leitura em diagonal de tudo o que lhe traga conhecimentos sólidos sobre as
influências, as pretensões e os traumas dos músicos.
– Vejo por aí que você condena toda e qualquer análise acadêmica.
– Condeno as argumentações, geralmente feitas para ostentar uma
erudição oca. Louvo as conclusões.
– Percebi. O regime também se aplica a um livro grossão, pesado de
carregar?
– Sim, desde que considerado “clássico”. Aplica-se a um Negative
Aesthetic Theory, a um Kind of Noise, a um Obladi Oblada & Others Beats,
aos tijolões de Luke B. Castle, à trilogia do grande Max Hovelacque (sobre
o qual comentam – “revelou para sempre o segredo daquele estranho fusion
trópico-aleatório que fez dançar Miami”): Signs, Symbols, Sound Bodies; Back
to the Lute; e o definitivo All that Samples. Como estão em evidência hoje,
não basta dizer “não li e não gostei”, porque provavelmente ninguém leu e
todos discutem o conteúdo. Você pode resolver a dificuldade de um modo
simples: leia em diagonal a apresentação, a orelha e uma ou outra resenha.
Amanhã a novidade serão outros livros, e você deverá recomeçar do zero.

209
– Upa! que a profissão é difícil!
– E ainda não chegamos ao cabo.
– Vamos a ele.
– O vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o crítico aberto
ao mundo do intelectual encerrado na biblioteca. Ninguém quer saber de
julgamento estético, deixe os hermetismos para os especialistas da academia.
O leitor só quer decidir se vale a pena gastar dinheiro com um disco, um
show ou com coisa melhor. Capriche no número de estrelinhas e acerte na
mosca. Quando sobrar na sua mão o LP de uma banda iniciante, aposte
nas faixas com pinta de hit. Desenvolva seu feeling. Não é preciso ser bom
cozinheiro para saber se a omelete está bem-feita ou não.
– Desse modo serei eu mesmo uma estrela para o grande público?
Serei adorado?
– Não digo que não, porém há coisas em que a observação desmente a
teoria. Há críticos que captam o gosto médio da classe média. São os mais
lidos e os mais amados. Há críticos que irritam e satisfazem, atormentam e
fascinam os leitores. São os mais lidos e os mais odiados. E há críticos que
circulam em guetos culturais, consumindo a moda e descobrindo tendências.
São os mais lidos e os mais amados por um pequeno grupo, o dos formadores
de opinião.
– Devo seguir por qual caminho?
– Você, se não me engano, parece dotado do gênio da provocação,
conveniente ao exercício da crueldade. Entretanto, o melhor é não se decidir
de antemão. Apesar de foca, já deve saber que o combustível do jornalismo
informativo é o furo, e o do jornalismo opinativo, a polêmica. Seu talento
para provocar será bem-vindo em qualquer frente de combate da crítica
musical, embora em cada uma delas o inimigo seja diverso.
– Explique-me, senhor, e farei o melhor que puder.
– Bom expediente é eleger uma banda como a sua queridinha; ou um
baterista, uma cantora, um estilo, um movimento, sei lá, qualquer coisa como
a sua queridinha. Você, crítico, é superior. Espelho da sua luminosidade, a
coisa eleita será tudo. O resto será menos ou será nada, sombra de sombra.
– Poderei vir a mudar de opinião?

210
– De opinião, nunca. Deverá mudar de objeto de consumo, sempre
que os ventos assim determinarem. Entendamo-nos: mais importante do
que a coisa queridinha é a provocação a que ela serve. Coragem para a luta.
– Vamos à luta!
– Comece provocando sem dar nome aos bois. Quando estiver seguro,
provoque escancaradamente alguns colegas. Provocações entre jornalistas são
saudáveis porque todos se promovem diante do leitor. Não perca nenhuma
oportunidade de fazer uma autocitação. Pratique a ironia com seus adversários,
os quais serão diversos conforme você sintonize com o bom gosto da classe
média ou adquira ações de uma nova onda. Vá praticando a ironia, desde o
inofensivo eufemismo até o perigoso sarcasmo. O sarcasmo...! Caso consiga
dominá-lo, estará apto a provocar medalhões do show business e a fisgar pelo
ódio o leitor. Então, muito cuidado. Provocadores incompletos tomam na
cabeça. Ganham processos por calúnia, injúria e difamação. Humilhados,
retornam à obscuridade. Isso é para amadores. Entre profissionais, o que
conta é o jogo de cena e a diversão da plateia. Provocadores completos
aprendem a chocar sem ferir as regras do espetáculo. Suas provocações
são excessivas para a epiderme, não para o fígado. Insultam com a crítica,
jamais criticam com o insulto.
– Digo-lhe que o que você me ensina não é nada fácil.
– Nem eu digo outra coisa. É difícil, e felizes os que triunfam na terra
prometida! Não falei ainda da linguagem.
– Não? Decerto que sim, eu...
– Paciência, paciência! Ouça-me bem, amigo, e preste atenção. Vários
erros podem ser compensados por uma redação inspirada. Anotei seis
princípios: 1) um trocadilho vale ouro; 2) a força de uma palavra está em,
não explicando nada, esclarecer tudo; idem a força de uma sentença, a de
um parágrafo e assim por diante; 3) prefira os adjetivos aos substantivos. O
adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo
é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário; 4) a comparação
é uma imagem com cabresto; experimente transformá-la em metáfora e
veja se o leitor não é arrastado por um redemoinho; 5) gírias, apenas as de
Londres, Paris ou São Francisco; ou gírias do gueto, tão logo cruzem a ponte

211
ou pisem o calçadão; 6) singulares aliterações e sonoras assonâncias suscitam
simpatia e ascendem a sentidos inescrutáveis; bonito, não?
– Não faltaria aí o sétimo princípio? Uma relação com seis parece
incompleta.
– Você há de contar-me o sétimo princípio. Que é isto?
– Meia- noite.
– Meia-noite? Vamos sair, que é tarde. Estude os palpites, meu jovem.
Aplique-os qual pomada, até a absorção, e depois me diga o que acha, quando
se tornar um crítico famoso. Só mais um conselho; ou dois. Na dúvida, não
hesite em copiar o release. E não sofra, aceite a irrelevância da crítica, pois,
goste você ou não, será como o mercado quiser.

212
Home office em 2008

Um jornalista me liga apressado. “Preciso de uma informação sua.


A única vez em que o João Gilberto, o Tom Jobim e o Vinicius de Moraes
fizeram show juntos foi no Bon Gourmet, em 1962?” Respondo que assim
está no Chega de saudade, do Ruy Castro. Mas cito de memória e... Ele me
interrompe: “Posso publicar isso como declaração sua, entre aspas?”. Acho
que às vezes não sou lá muito educado: “Não, o que você pode é abrir o
livro e procurar”.
Volto ao que eu lia, um livro recém-lançado sobre Cuba. Em 1953,
preso após o ataque de Moncada, Fidel Castro organizou aulas e montou
uma biblioteca. Para Fidel e seu irmão Raul, “o período transcorrido atrás
das grades tornou-se o mais longo e mais fértil que tiveram para realizar
leituras e reflexões sérias”. Páginas adiante, leio que Fidel “tinha começado
a ler Lênin na universidade”, mas sua compreensão “aperfeiçoou-se durante
o confinamento na ilha de Pinos e no México, onde ele e Che [Guevara]
estudaram o líder soviético juntos”.
Palavra puxa palavra. Por oposição, lembro um texto de Walter Benjamin:
“Na substituição da antiga forma narrativa pela informação, e da informação
pela sensação reflete-se a crescente atrofia da experiência”.1 O que diria
Benjamin hoje sobre a instantaneidade de produção e consumo da internet?
Retorno ao livro. O autor Brian Latell declara seu fascínio por “Cuba
e pelos irmãos Castro” logo nos Agradecimentos. Ele é um ex-analista da
CIA, especializou-se no assunto desde a década de 1960. É óbvio que está
bem longe de ser favorável à Revolução Cubana. Se uma parte de tal fascínio
se deve ao reconhecimento de que Fidel Castro é “um dos mais complexos,
dinâmicos e ainda assim inexplicáveis líderes do século 20”, outra parte, com

1. Cf. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo, edição


citada, p. 107.

213
toda certeza, se deve à contemplação do especialista de sua própria pesquisa.
E em algumas páginas, sobretudo as finais, ecoa um riso sarcástico de vitória.2
De novo o celular, um colega: “Você me indicou um sebo que eu não
tô achando.” Repito o que lhe dissera, muitos discos da década de 1940, na
rua... “Mas é que eu não tô achando aqui na internet.” Faz sentido... E alguma
coisa existe fora da internet?
Uma aluna passa os olhos pelo trabalho e reclama: “Professor, você
corrigiu errado. A tábua de esmeraldas é do Jorge BenJor e é de 1973”. Respondo
que não, o nome artístico à época era Jorge Ben, e o disco é de 1974. “Mas
eu vi na internet!” Pergunto se ela conferiu as informações no disco. “Não,
eu vi num site.” Lamento, está errado o site. “Ah, então... como é que fica?!”
A verdade é que os erros de nome e data não tiveram peso na nota. Por
outro lado, a forma como a aluna havia obtido esses dados elementares não
deixou de indicar por que faltou análise, argumentação. E sensibilidade, que
anda junto com a contemplação. Sem tempo para desenvolver uma escuta
sensível, como alcançar um raciocínio apurado, que também precisa de
tempo?
Recebo um e-mail que mais parece Copacabana em noite de Ano-Novo.
Uma amiga me avisa: dois quadros, um do Heitor dos Prazeres, outro do
Alfredo Volpi, são leiloados – não poderia ser de outro modo – pela internet.
Os lances estão baixos, o negócio é aproveitar. Detalhe importante: há fotos
dos quadros no site, com destaque para as assinaturas. Leio o e-mail, acesso
o site, vejo as fotos e... Não é possível ver os quadros desse jeito.
Não coloco em dúvida autoria, nem tenho como questionar autoria, é
que simplesmente não sei dizer se gosto ou não dos quadros. O problema é
a baixa definição das fotos? Não consigo avaliar nada para além da compra:
ótima oportunidade, um Volpi e um Heitor dos Prazeres, é só hoje e faltam
poucos minutos! Devo entrar no leilão? Devo disputar centavo a centavo?
Devo lutar para que ninguém me passe a perna, roubando-me o lance final?

2. Cf. LATELL, Brian. Cuba sem Fidel. Trad. Jorge F. Soares. Ribeirão Preto: Novo Conceito,
2008.

214
Sobre os textos

2007: está mais fácil trabalhar com canção popular-comercial no


Brasil?
Versão reelaborada do texto “Está mais fácil trabalhar com canção
popular-comercial no Brasil?”, escrito a convite de Milton Ohata e publicado
em Cultura e pensamento, n. 3. Salvador, dez. 2007, p. 45-61.

Notas sobre “Cálice” (2010, 1973, 1978, 2011)


Segunda versão, revista e ampliada, do texto homônimo publicado na
Música Popular em Revista, ano 2, v. 2. Campinas, IA-Unicamp, jun. 2014, p.
110-150. Redigido para integrar um dossiê sobre Chico Buarque que então
organizei.

“Clara Crocodilo” e “Nego Dito”: dois perigosos marginais?


A primeira versão do trabalho, intitulada “Abertura com censura,
repressão econômica... e dois perigosos marginais: ‘Clara Crocodilo’ e ‘Nego
Dito’”, foi apresentada no I Colóquio Nacional de Estudos do Autoritarismo,
na Universidade Estadual de Londrina (UEL), em 2014, a convite de Manoel
Dourado Bastos e Miliandre Garcia. A segunda versão, com o título que se
lê acima, está publicada na revista Antíteses, v. 8, 2015, p. 10-36. A terceira
versão, aqui incluída, revisa e amplia o texto anterior.

Língua do “p” de pólvora


Publicado em O Estado de S. Paulo, caderno Aliás, 20/5/2012, p. J6.

215
O novo caminho de Edi Rock
Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil, edição 76, nov. 2013, p. 36.

Sobre o disco Encarnado, de Juçara Marçal (2014)


Apresentei “Música e sociedade: reflexões sobre o disco Encarnado, de
Juçara Marçal” no 1º Ciclo de Palestras da Edunila (Editora da Universidade
Federal da Integração Latino-Americana), na cidade de Foz do Iguaçu,
em 2016, a convite de Analía Chernavsky e Gabriel Sampaio Souza Lima
Rezende. O texto resultante dessa palestra foi encaminhado para integrar
dossiê organizado por Ivan Vilela (Revista USP, n. 111. São Paulo, USP, dez.
2016, p. 59-68). Além de modificações pontuais, acrescentei-lhe agora algumas
notas de rodapé.

A memória da pedra
Versão revisada do prefácio a AMARAL, Renata (org.). Pedra da
Memória: Euclides Talabyan, minha universidade é o tempo. São Paulo:
Maracá Cultura Brasileira, 2012.

Em diálogo
Prefácio a GONÇALVES, Renato. Nós duas: as representações LGBT
na canção brasileira. São Paulo: Lápis Roxo, 2016.

Histórias dentro da História do Rap em São Paulo


Prefácio a BOTELHO, Guilherme Machado. Quanto vale o show? O
Som da Periferia no mercado de música popular. São Paulo: Editora Ciclo
Contínuo, no prelo.

Sobre as ideias sólidas de um livro


Versão reelaborada do prefácio a CHÃ, Ana Manuela. Agronegócio e
indústria cultural: estratégias das empresas para a construção da hegemonia.
São Paulo: Expressão Popular, 2018.

216
Três caminhos de pesquisa musical no Latão
Versão revisada do artigo homônimo escrito a convite de Sérgio de
Carvalho e publicado em CARVALHO, S. de (org.). Introdução ao teatro
dialético: experimentos da Companhia do Latão. São Paulo: Expressão
Popular, 2009; e republicado em Sala Preta, v. 9. São Paulo, ECA-USP, 2009,
p. 385-392.

Três notas sobre Farinha com Açúcar e Racionais MC’s


Prefácio a OLIVEIRA, Jé de. Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança
de Meninos e Homens: obra tributária à obra dos Racionais MC’s. Belo
Horizonte: Javali, 2018.

Tragédia na Vila do Meio-Dia: uma contribuição à crítica de


Gota D’Água {Preta}
Publicado em Revista Sala Preta Eletrônica, v. 19, n. 2. São Paulo, ECA-
USP, 2019, p. 222-248. Com acréscimos pontuais, republicado no site Mosaico
Negro Brasileiro a convite de Salomão Jovino da Silva, “Salloma Salomão”,
em junho de 2000. O texto aqui incluído recebeu novos acréscimos pontuais.

O negócio da crítica musical


Versão reelaborada do texto homônimo publicado em Traulito, n. 1.
São Paulo, Companhia do Latão, jun. 2010, p. 11-12.

Home office em 2008


Segunda versão, revista e modificada, do texto “O tempo do estudo,
os ritmos do trabalho e do consumo”, publicado em Revista Sem Terra, ano
XI, n. 46. São Paulo, MST, ago./ set. 2008, p. 44.

217
Bibliografia

1. Canção Brasileira
1.A. Livros
ALVARENGA, Oneyda. Música popular brasileira. 2ª ed. São Paulo: Duas
Cidades, 1982.
AMARAL, Renata (org.). Pedra da Memória: Euclides Talabyan, minha
universidade é o tempo. São Paulo: Maracá Cultura Brasileira, 2012. Livro
acompanhado de DVD.
ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil, 3 tomos. 2ª ed. Belo
Horizonte: Itatiaia/ Brasília: INL, 1982.
ANDRADE, Mário de. Música doce música. São Paulo: Martins, 1963.
ARAÚJO, Paulo Cesar de. Roberto Carlos em detalhes. São Paulo: Editora
Planeta do Brasil, 2006.
ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona
e ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2002.
AZEVEDO, Amailton Magno Grillu; SILVA, Salloma Salomão Jovino da.
“Os sons que vêm das ruas: a música como sociabilidade e lazer da juventude
negra urbana”. In: ANDRADE, Elaine Nunes de (org.). Rap e educação, rap
é educação. São Paulo: Summus, 1999. p. 65-81.
BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes: MPB nos anos 70 – 30 anos
depois. Ed. revista. Rio de Janeira: Editora Senac Rio, 2006.
BOTELHO, Guilherme Machado. Quanto vale o show? O Som da Periferia
no mercado de música popular. São Paulo: Editora Ciclo Contínuo, no prelo.
BOTELHO, Guilherme; GARCIA, Walter; ROSA, Alexandre. “Três raps
de São Paulo: ‘Política’, Athalyba-Man (1994); ‘O menino do morro’, Facção
Central (2003); ‘Mil faces de um homem leal (Marighella)’, Racionais
MC’s (2012)”. In: LACERDA, Marcos (org.). Música (Ensaios brasileiros
contemporâneos). Rio de Janeiro: Funarte, 2016, p. 171-201.
BRAZ, Marcelo (org.) Samba, cultura e sociedade: sambistas e trabalhadores
entre a “questão social” e a questão cultural no Brasil. São Paulo: Expressão
Popular, 2013.

218
BRITTO, Jomard Muniz de. Do modernismo à bossa nova. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1966.
CABRAL, Sérgio. Antônio Carlos Jobim: uma biografia. Rio de Janeiro:
Lumiar, 1997.
CALADO, Carlos. A divina comédia dos Mutantes. São Paulo: Editora 34, 1995.
CAMPOS, Augusto de (org.). Balanço da bossa & outras bossas. 4ª ed. São
Paulo: Perspectiva, 1986.
CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque: análise poético-musical. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Codecri, 1982.
CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CEZIMBRA, Márcia; CALLADO, Tessy; SOUZA, Tárik de (org.). Tons sobre
Tom. Rio de Janeiro: Revan, 1995.
DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e
mundialização da cultura. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2008.
DOLABELA, Marcelo. ABZ do rock brasileiro. 8ª ed. São Paulo: Estrela do
Sul, 1987.
FENERICK, José Adriano. Façanhas às próprias custas: a produção musical
da vanguarda paulista (1979-2000). São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2007.
GARCIA, Miliandre. Do teatro militante à música engajada: a experiência do
CPC da UNE (1958-1964). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
GARCIA, Walter. Melancolias, mercadorias: Dorival Caymmi, Chico Buarque,
o pregão de rua e a canção popular-comercial no Brasil. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2013.
GARCIA, Walter. “‘Diário de um detento’: uma interpretação”. In:
NESTROVSKI, Arthur (org.). Lendo música. São Paulo: Publifolha, 2007.
p. 179-216.
GIL, Gilberto. Gilberto Gil: todas as letras: incluindo letras comentadas pelo
compositor. Org. Carlos Rennó; colaboração Marcelo Fróes. 2ª ed., revista
e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
GONÇALVES, Renato. Nós duas: as representações LGBT na canção
brasileira. São Paulo: Lápis Roxo, 2016.
JAMBEIRO, Othon. Canção de massa: as condições da produção. São Paulo:
Pioneira, 1975.

219
JOBIM, Tom. A vida de Tom Jobim: depoimento. Rio de Janeiro: Editora
Rio Cultura/ Faculdades Integradas Estácio de Sá, 1982.
KEHL, Maria Rita. “A frátria órfã: o esforço civilizatório do rap na periferia de
São Paulo”. In: KEHL, M. R. (org.). Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2000. p. 209-244.
LOPES, Nei. Partido-alto: samba de bamba. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.
MACEDO, Márcio. “Hip-Hop SP: transformações entre uma cultura de rua,
negra e periférica (1983-2013)”. In: KOWARICK, Lúcio; FRÚGOLI JR., Heitor
(org.). Pluralidade urbana em São Paulo: vulnerabilidade, marginalidade,
ativismos sociais. São Paulo, Editora 34/ Fapesp, 2016. p. 23-53.
MACHADO, Regina. A voz na canção popular brasileira: um estudo sobre
a vanguarda paulista. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.
MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo:
Editora 34, 2003.
MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico
Buarque. 2a ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
MENESES, Adélia Bezerra de. Figuras do feminino na canção de Chico
Buarque. São Paulo, Ateliê Editorial/ Boitempo, 2000.
MORELLI, Rita L. C. Indústria fonográfica: um estudo antropológico.
Campinas: Editora da Unicamp, 1991.
MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte. 4ª ed. Rio de Janeiro: Cátedra/ Brasília:
INL, 1976.
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Funarte/ INM/ Divisão de Música Popular, 1983.
MOURA, Roberto M. Sobre cultura e mídia. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale,
2001.
NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e
indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2001.
NAVES, Santuza Cambraia; COELHO, Frederico Oliveira; BACAL, Tatiana
(org.). A MPB em discussão: entrevistas. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
2006.
NOVAES, Adauto (org.). Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro:
Aeroplano/ Editora Senac Rio, 2005.

220
OLIVEIRA, Laerte Fernandes de. Em um porão de São Paulo: o Lira Paulistana
e a produção alternativa. São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2002.
PEREIRA, João Baptista Borges. Cor, profissão e mobilidade: o negro e o
rádio de São Paulo. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2001.
REIS, Aquiles Rique. O gogó de Aquiles: textos. São Paulo: A Girafa Editora,
2004.
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de
Janeiro (1917-1933). 2ª ed., ampliada. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
SAROLDI, Luiz Carlos; MOREIRA, Sonia Virgínia. Rádio Nacional: o Brasil
em sintonia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Martins Fontes/ Funarte, 1988.
SEVERIANO, Jairo; MELO, Zuza Homem de. A canção no tempo, v. 2: 1958-
1985. São Paulo: Editora 34, 1998.
SILVA, Alberto Moby Ribeiro da. Sinal fechado: a música popular brasileira
sob censura (1937-45 / 1969-78). 2ª ed., 1ª reimpressão. Rio de Janeiro: Apicuri,
2008.
SOUZA, Tárik de. O som nosso de cada dia. Porto Alegre: L&PM, 1984.
TATIT, Luiz. Todos entoam: ensaios, conversas e canções. São Paulo:
Publifolha, 2007.
TATIT, Luiz. O cancionista. São Paulo: Edusp, 1996.
TATIT, Luiz. A canção: eficácia e encanto. São Paulo: Agir, 1986.
TERRA, Renato; CALIL, Ricardo (org.). Uma noite em 67. São Paulo: Planeta,
2013.
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: do gramofone ao rádio e tevê.
São Paulo: Ática, 1981.
VAZ, Gil Nuno. História da música independente. São Paulo: Brasiliense, 1988.
VELOSO, Caetano. O mundo não é chato. Org. Eucanaã Ferraz. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1999.

1.B. Livros de partituras


BUARQUE, Chico. Chico Buarque, letra e música. 2ª ed., 4ª reimpressão.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 2 volumes.

221
CHAGAS, Luiz; TARANTINO, Mônica (org.). PretoBrás: Por que eu não
pensei nisso antes? São Paulo: Ediouro, 2006. 2 volumes.
JOBIM, Tom. Songbook Tom Jobim. Org. Almir Chediak. Rio de Janeiro:
Lumiar Editora, 1990. 3 volumes.

1.C. Ensaios, artigos e outros textos publicados em revistas ou


anais de congresso
BARBOSA, Airton Lima (org. e coord.). “Que caminho seguir na música
popular brasileira”. Debate com Flávio Macedo Soares, Caetano Veloso,
Nelson Lins de Barros, José Carlos Capinam, Gustavo Dahl, Nara Leão e
Ferreira Gullar. Revista Civilização Brasileira, ano I, n. 7. São Paulo, mai.
1966. p. 377-379.
BROWN, Nicholas. “Brecht eu misturo com Caetano: citação, mercado e
forma musical”. Trad. Aparecido Donizete Rossi; Renato Gonçalves Ferreira
Filho. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 59. São Paulo, IEB/ USP,
dez. 2014. p. 149-190. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rieb/n59/0020-
3874-rieb-59-00149.pdf. Acesso em: 10 dez. 2014.
CAVAZOTTI, André. “O serialismo e o atonalismo livre aportam na MPB:
as canções do LP Clara Crocodilo de Arrigo Barnabé”. Per Musi, v. 1. Belo
Horizonte, UFMG, 2000. p. 5-15. Disponível em: http://www.musica.ufmg.
br/permusi/port/numeros/01/num01_cap_01.pdf. Acesso em: 6 fev. 2015.
FABBRI, Franco. “Browsing music spaces: categories and the musical mind”.
Disponível em: http://www.tagg.org/others/ffabbri9907.html. Acesso em:
12 jul. 2016.
FABBRI, Franco. “A theory of musical genres: two applications”. In: HORN,
David; TAGG, Philip (org.). Popular Music Perspectives. Göteborg/ Exeter:
IASPM, 1981. p. 52-81. Versão eletrônica. Disponível em: http://www.tagg.
org/others/ffabbri81a.html. Acesso em: 12 jul. 2016.
GARCIA, Walter. “Elementos para a crítica da estética do Racionais MC’s
(1990-2006)”. Idéias, v. 4, n. 2. Campinas, IFCH-Unicamp, 2013. p. 81-110.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.20396/ideias.v4i2.8649382. Acesso em:
9 out. 2020.

222
GARCIA, Walter. “Ouvindo Racionais MC’s”. Teresa: revista de literatura
brasileira, n. 4/5. São Paulo, DLCV-FFLCH-USP/ Editora 34, 2003, p. 166-180.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2447-8997.teresa.2003.116377.
Acesso em: 7 out. 2020.
GOG (Genival Oliveira Gonçalves). “O Hip Hop brasileiro assume a
paternidade”. Entrevista concedida a Spensy Pimentel. Cultura e pensamento,
n. 3. Salvador, Fapex/ Brasília, Ministério da Cultura, dez. 2007. p. 112-124.
KRAUSHE, Valter. “A canção já invadiu a sua praia”. Lua Nova, v. 3, n.
1. São Paulo, jun. 1986. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-
64451986000200005. Acesso em: 9 mar. 2015.
LEITE, Carlos Augusto Bonifácio. “Sobre o peso de si e maestrias: uma análise
de parte da cena atual da canção popular brasileira”. Revista do Instituto
de Estudos Brasileiros, n. 59. São Paulo, USP/ IEB, dez. 2014. p. 213-228.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i59p213-228.
Acesso em: 28 jul. 2016.
NAPOLITANO, Marcos. “MPB: a trilha sonora da abertura política
(1975/1982)”. Estudos avançados, vol. 24, nº 69. São Paulo, USP/ IEA, 2010. p.
389-402. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142010000200024.
Acesso em: 24 out. 2020.
NAPOLITANO, Marcos. “A música popular brasileira (MPB) dos anos 70:
resistência política e consumo cultural”. Actas del V Congresso Latinoamericano
IASPM, 2002. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/
arquivos/File/fevereiro2012/historia_artigos/2napolitano70_artigo.pdf.
Acesso em: 10 set. 2009.
NAZARIO, Luiz. “O universo de Clara Crocodilo”. Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros, n. 59. São Paulo, IEB/ USP, dez. 2014. p. 413-418. Disponível
em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i59p413-418. Acesso em:
23 mai. 2016.
SANMIGUEL, Alejandro Ulloa. “La música popular urbana de América
Latina y el Caribe. Sus orígenes sociales”. Boletín Música, nº 14. Havana,
Casa de las Américas, 2004. p. 22-28.

223
1.D. Dissertações e trabalhos de conclusão de curso
BASTOS, Maria Clara. Processos de composição e expressão na obra de Itamar
Assumpção. São Paulo, ECA-USP, 2012. Dissertação de mestrado em Artes.
CASSOLI, Camilo. Somsãopaulo: canções da metrópole. São Paulo, Comfil-
PUC-SP, 2001. Trabalho de Conclusão de Curso em Comunicação Social
com habilitação em Jornalismo.
PAIANO, Enor. Berimbau e som universal: lutas culturais e indústria
fonográfica nos anos 60. São Paulo, USP/ ECA, 1994. Dissertação de mestrado
em Comunicação.
TEPERMAN, Ricardo Indig. Tem que ter suingue: batalhas de freestyle no
metrô Santa Cruz. São Paulo, USP/ FFLCH, 2011. Dissertação de mestrado
em Antropologia Social.

1.E. Imprensa e internet


ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de Discos). Annual Publication
of the Recording Market 2004. Rio de Janeiro, ABPD, 2005. Disponível em:
https://www.pro-musicabr.org.br/wp-content/uploads/2015/01/Mercado_
Brasileiro_de_Musica_2004.pdf. Acesso em: 8 out. 2020.
AMARAL, Zózimo Barroso do. “Vaivém”. Jornal do Brasil, Caderno B,
29/4/1973. p. 3.
AMARAL, Zózimo Barroso do. “‘Cálice’”. Jornal do Brasil, Caderno B, 7/5/1973.
p. 3.
ASSUMPÇÃO, Itamar. “Minha preocupação é tocar no rádio”. Folha de
S.Paulo, caderno Ilustrada, 31/1/1982. p. 50.
BARNABÉ, Arrigo. “Imbecis dirigem as gravadoras”. Folha de S.Paulo, caderno
Ilustrada, 31/1/1982. p. 50.
BIN, Marcos Paulo. “Caetano ainda mais próximo da Universal”. Publicado
em: 3 out. 2004. Disponível em:
http://universomusical.com.br/materia.asp?mt=sim&cod=me&id=409.
Acesso em: 7 out. 2020.
BUARQUE, Chico. “Entrevista: Chico Buarque”. Revista 365, vol. 1, nº 2. São
Paulo, ABZ, [1976]. p. 297-304.

224
BUARQUE, Chico et alii. “A MPB se debate: uma noite com Chico Buarque,
Caetano Veloso, Edu Lobo e Aldir Blanc”. Participações de Sérgio Cabral,
Nelson Silva e Fernando Pessoa Ferreira. Homem, Suplemento especial. São
Paulo, Editora Abril, set. 1977.
BRAZIL, Daniel. “O cálice do Criolo Doido”. Publicado em 21 jul. 2011.
Disponível em: http://www.revistamusicabrasileira.com.br/artigo/o-calice-
do-criolo-doido. Acesso em: 15 jun. 2014.
CARVALHO, Luiz Maklouf. “Soco, sufoco e fogo no gogó de GOG”. Piauí,
ano 4, n. 41. Rio de Janeiro/ São Paulo, Editora Alvinegra, fev. 2010. p. 30-35.
CAVERSAN, Luiz. “Apesar do medo, Arrigo quer apenas ‘cantar canções’”.
Folha de S.Paulo, caderno Ilustrada, 18/5/1988. p. A-40.
COLEÇÃO JOVEM GUARDA. Realidade, ano 1, nº 9. São Paulo, Editora
Abril, dez. 1966. p. 171.
COLETIVO MPB (José Roberto Zan; Marcos Nobre; Henry Burnett; Rúrion
Soares Melo). “Chega de saudade”. Publicado em: jan. 2006. Disponível
em: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2719,1.shl. Acesso em: 23
fev. 2008.
CRIOLO. “O pensar musicado de Criolo”. Entrevista concedida a Marcus
Preto. Cult, ano 16, n. 183. São Paulo, Editora Bregantini, set. 2013. p. 6-13.
CRIOLO. “Criolo: hora da prova”. Entrevista concedida a Bruno Torturra
Nogueira. Publicado em: 23 set. 2011. Disponível em: http://revistatrip.uol.
com.br/revista/203/paginas-negras/criolo.html. Acesso em: 23 ago. 2016.
DEL RÉ, Adriana, “As boas novas de Chico Buarque”. O Estado de S. Paulo,
28/1/2005. p. D5.
FAGUNDES, Ariel. “O furacão Juçara varre Porto Alegre”. Noize, 08/07/2016.
Disponível em: http://noize.com.br/resenha-jucara-marcal-porto-alegre/#1.
Acesso em: 27 jul. 2016.
FOLHA DE S.PAULO. “Valor das fusões e aquisições tem queda de quase
40% no trimestre”. Caderno Dinheiro, 1/7/2000. p. B6.
FOLHA DE S.PAULO. “Painel S/A: Alvos definidos”. Caderno Dinheiro,
11/11/1998. p. 2.
FOLHA DE S.PAULO. “Seagram fecha compra da Polygram”. Caderno
Dinheiro, 22/5/1998. p. 2.

225
FOLHA DE S.PAULO. “O corte do som: de quem é a culpa?”. Caderno
Ilustrada, 18/5/1973. p. 23.
FOLHA DE S.PAULO. “A bronca de Chico. O banho de Elis”. Caderno
Ilustrada, 16/5/1973. p. 35. O autor da matéria é identificado como “IM”.
FRANCO, Célia de Gôuvea. “Barulho das massas”, Folha de S.Paulo, 12/4/1998.
p. 5-4.
GARCEZ, Bruno. “Cult entre britânicos, Mutantes ‘revivem’ em Londres”.
Publicado em: 22 mai. 2006. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2006/05/060522_
mutantesshowlondresbg. Acesso em: 7 out. 2020.
GARRIDO, Juan. “A lógica do crescimento”. Gazeta Mercantil: balanço anual,
ano XXV, n. 25. São Paulo, julho de 2001.
GOIS, Antônio; ESCÓSSIA, Fernanda da. “País fica mais rico e mais desigual”.
Publicado em: 30 set. 2003. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/
fsp/especial/fj3009200301.htm. Acesso em: 8 out. 2020.
GOLDSMITH, Charles; JOHNSON, Keith. “Pirataria emudece artistas locais
em gravadoras”. O Estado de S. Paulo (The Wall Street Journal Americas),
4/6/2002. p. B14.
FREIRE, Roberto. “Chico dá samba”. Realidade, ano 1, n. 9. São Paulo, Editora
Abril, dez. 1966. p. 68-76.
FRÓES, Romulo. “Não diga que estamos morrendo. Hoje não!”. Texto de
apresentação de Encarnado, 2014. Disponível em: http://www.jucaramarcal.
com.br/encarnado.html. Acesso em: 10 out. 2020.
GARCIA, Walter. “Batucada do samba cabia na mão de João Gilberto”.
Folha de S.Paulo, 22/7/2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/
ilustrada/2019/07/a-bossa-nova-e-solista-e-dificulta-manifestacoes-coletivas-
como-no-samba.shtml. Acesso em: 13 out. 2020.
HUNGRIA, Julio. “Música Popular”. Jornal do Brasil, Caderno B, 13/5/1973.
p. 14.
JOBIM, Tom. “Tom Jobim, a última entrevista”. Entrevista a Walter de Silva.
Qualis, n. 24. São Paulo, Qualis Editora, jan. de 1995.
JOBIM, Tom. “Antonio Carlos Jobim: Entrevista à Cleusa Maria”. Jornal
do Brasil, 1º/3/1992. Disponível em: http://www2.uol.com.br/tomjobim/
textos_entrevistas. Acesso em: 10 mai. 2005.

226
JORNAL DO BRASIL. “Phono 73 o festival sem competição”. Caderno B,
15/5/1973. p. 4.
JORNAL DO BRASIL. “O CÁLICE da discórdia”. Caderno B, 15/5/1973. p. 4.
JORNAL DO BRASIL. “Chico Buarque e Gilberto Gil cantam juntos pela
primeira vez em São Paulo”. 1º Caderno, 10/5/1973. p. 10.
KALILI, Sérgio. “Os mano detonaram...”. Vip Exame. São Paulo, Abril, set.
1998. p. 55-58.
LEITE, Geraldo. “Marginal não é critério estético”. Folha de S.Paulo, caderno
Ilustrada, 31/1/1982. p. 50.
LOPES, Maria Amélia Rocha. “Aqui está surgindo a nova música de São
Paulo”/ “Itamar gosta do Lira. E também da tevê”. Jornal da Tarde, Caderno
de Programas e Leituras, 10/7/1982. p. 7.
MARÇAL, Juçara. “Faixa a faixa: Juçara Marçal comenta Encarnado”.
Entrevista a Renata Arruda. O Grito!, 29/05/2015. Disponível em:
http://revistaogrito.ne10.uol.com.br/page/blog/2014/05/29/faixa-a-faixa-
jucara-marcal-comenta-encarnado/. Acesso em: 27 jul. 2016.
NEY, Thiago. “Mutantes retornam ao Brasil depois de quase 30 anos”.
Publicado em: 25 jan. 2007. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.
br/folha/ilustrada/ult90u67845.shtml. Acesso em: 7 out. 2020.
NISHIMURA, Danielle. “Criado no Grajaú, MC Criolo ganha o mundo e
arrasta multidões em seus shows”. CompanySul, n. 59. São Paulo, AESUL
(Associação Empresarial da Região Sul), out. 2013. p. 21-24.
PASCOAL, Carol. “Ícone dos anos 80, Arrigo Barnabé lança DVD”. Veja
São Paulo, 11/11/2011. Disponível em: http://vejasp.abril.com.br/materia/
icone-nos-anos-80-arrigo-barnabe-lanca-dvd/. Acesso em: 9 mar. 2015.
RANGEL, Renata. “A cidade oculta de Arrigo Barnabé”. Folha de S.Paulo,
caderno Ilustrada, 17/8/1986. p. 128.
RIBEIRO, Hamilton. “Chico põe nossa música na linha”. Realidade, ano VI,
nº 71. São Paulo, Editora Abril, fev. 1972. p. 3, 14-24.
RYFF, Luiz Antônio. “Brasil não é mais ‘primo pobre’”. Publicado em: 14 mai.
1997. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/5/14/ilustrada/2.
html. Acesso em: 7 out. 2020.
RYFF, Luiz Antônio. “Venda favorece artista nacional”. Folha de S.Paulo,
23/12/1996. p. 4-3.

227
RINHA dos MC’s. Disponível em: http://rinhadosmcs.com.br. Acesso em:
15 jun. 2014.
SANCHES, Pedro Alexandre. “Mercado musical nacional cai 25%”. Folha
de S.Paulo, 3/5/2002. p. E-4.
SANCHES, Pedro Alexandre. “Indústria fonográfica reclama da pirataria e
prevê extinção do mercado” (entrevista com executivos do setor). Publicado
em: 25 jul. 2001. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/
ilustrada/ult90u15826.shtml. Acesso em: 8 out. 2020.
SANCHES, Pedro Alexandre. “Os rebeldes”. Matéria jornalística sobre Hyldon
e Itamar Assumpção. Folha de S.Paulo, caderno Ilustrada, 21/7/1997. p. 1.
SANCHES, Pedro Alexandre. “São Paulo é invadida por ‘Bicho de sete
cabeças’”. Jornal do Campus, 2/12/1993. São Paulo, CJE-ECA-USP. p. 6.
SILVA, Paulo da Costa e. “Chico e os olhos do carrasco: de Paratodos a
Parapoucos”. Publicado em 14 jun. 2012. Disponível em: http://www.
blogdoims.com.br/ims/chico-e-os-olhos-do-carrasco-de-paratodos-a-
parapoucos-por-paulo-da-costa-e-silva/. Acesso em: 23 ago. 2016.
SOUZA, Okky de. “Arrigo Barnabé manda bala no rock antigo”. Playboy,
ano 6, n. 69. São Paulo, Editora Abril, 1981. p. 36-37 e 130-131.
UNIVERSAL MUSIC. “Histórico/Perfil”. Disponível em: http://www.abpd.
org.br/sobre_gravadora.asp?g=17. Acesso em: 24 jul. 2014.
VEJA. “A morte no auge”. São Paulo, Editora Abril, 13/3/1996. p. 97.
VELOSO, Caetano. “A sociedade exige mais coragem de quem é jovem”
(entrevista a Barbara Heckler). Bravo!, ano 13, n. 162. São Paulo, Editora
Abril, fev. 2011. p. 30-33.
VILLAÇA, Túlio. “A melodia do rap – Criolo”. Publicado em 24 mai. 2014.
Disponível em: http://tuliovillaca.wordpress.com/2014/05/24/a-melodia-
do-rap-criolo/. Acesso em: 15 jun. 2014.
VILLAÇA, Túlio. “Ciranda do aborto”. Polivox, mai. 2014. Disponível em:
http://revistapolivox.com/ciranda-do-aborto-2/. Acesso em: 28 jul. 2016.
WISNIK, José Miguel. “O canto falado e a fala cantada do grupo Rumo”.
Folha de S.Paulo, caderno Ilustrada, 31/5/1987. p. A-53.
WISNIK, José Miguel. “Inovação versus redundância na MPB”. Folha de
S.Paulo, caderno Folhetim, 28/4/1985. p. 3-4.
WISNIK, José Miguel. “Arrigo: dodecafônico com balanço”. Folha de S.Paulo,
caderno Folhetim, 28/4/1985. p. 5.
228
1.F. Entrevistas realizadas
BARNABÉ, Arrigo. Residência do músico, São Paulo-SP, 1996.
CAMPOS, Rodrigo. Correio eletrônico, 3 ago. 2016.
DINUCCI, Kiko. Correio eletrônico, 29 jul. 2016.
DINUCCI, Kiko. Entrevista realizada por telefone, 8 jun. 2014.
MARÇAL, Juçara. Residência da cancionista, São Paulo-SP, 2 ago. 2016.
OLIVEIRA, Jé. WhatsApp, 20 set. 2017.
ROHRER, Thomas. Correio eletrônico, 5 ago. 2016.

2. Teatro e literatura
2.A. Livros
ANDRADE, Mário de. Os filhos da Candinha. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006.
ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 27a ed.
Texto revisto por Telê Porto Ancona Lopez. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991.
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Estabelecimento de texto,
introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: Duas Cidades/
Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976.
ARAÚJO, Homero Vizeu. Futuro pifado na literatura brasileira. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2014.
AZEVEDO, Aluísio, O cortiço. 37ª ed. São Paulo: Ática, 2009.
BANDEIRA, M. Literatura Comentada – Manuel Bandeira. Org. Salete de
Almeida Cara. São Paulo: Abril Educação, 1981.
BRECHT, Bertolt. A Santa Joana dos Matadouros. Trad. Roberto Schwarz.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
BUARQUE, Chico. Ópera do malandro. São Paulo: Livraria Cultura Editora,
1978.
BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota d’água. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1976.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos.
6ª ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda., 2000. 2 volumes.
CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira (Resumo para
principiantes). 2ª ed. São Paulo: Humanitas, 1998.

229
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3ª ed. rev. e ampliada. São Paulo: Duas
Cidades, 1995.
CANDIDO, Antonio. O método crítico de Sílvio Romero. São Paulo: Edusp,
1988.
CARVALHO, Sérgio de; MARCIANO, Márcio. Companhia do Latão 7 peças.
São Paulo: Cosac Naify, 2008.
COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz
e Terra/ Graal, 1996.
FONSECA, Rubem. Contos reunidos. Org. Boris Schnaiderman. 4ª
reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
JOÃO ANTÔNIO. Leão-de-chácara. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
MACHADO DE ASSIS. Contos: uma antologia. Org. John Gledson. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. 2 volumes.
OLIVEIRA, Jé de. Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e
Homens: obra tributária à obra dos Racionais MC’s. Belo Horizonte: Javali,
2018.
PROENÇA, M. Cavalcanti. Ritmo e poesia. Rio de Janeiro: Organização
Simões, 1955.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.
ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto II. São Paulo: Perspectiva, 2000.
SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1992.
SCHWARZ, Roberto. Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987.
SCHWARZ, Roberto. Seja como for: entrevistas, retratos e documentos. São
Paulo: Editora 34, 2019.

2.B. Imprensa e internet


ABC DO ABC. “Gota D’Água {PRETA} abre temporada no Sesc Santo André
em julho”. ABC do ABC. Santo André, 8/7/2019. Disponível em: https://bit.
ly/2RIzTQ8. Acesso em: 30 out. 2019.
AGENDA SOROCABA. “‘Gota D’Água {Preta}’ Espetáculo”. Sorocaba, s.d.
Disponível em: https://bit.ly/36KvFMi. Acesso em: 8 dez. 2019.

230
BECKER, Cacilda. “Ilmo. Sr. General José Bretas Cupertino MD Chefe
do Departamento de Polícia Federal (1968)”. Publicado em 20 mar. 2014.
Disponível em: http://institutoaugustoboal.files.wordpress.com/2014/03/
carta-de-cacilda.pdf. Acesso em: 22 set. 2014.
BOAL, Augusto. “Que pensa você da arte de esquerda? Programa da peça I
Feira Paulista de Opinião (5 de junho de 1968)”. Publicado em 24 nov. 2012.
Disponível em: http://institutoaugustoboal.files.wordpress.com/2012/11/
que-pensa-vocc3aa-da-arte-de-esquerda-programa-da-feira.pdf. Acesso
em: 22 set. 2014.
BORGES, Rosane. “Em tempos de regressão, quase nada pode ser a Gota
d’água (preta)!”. Carta Capital. São Paulo, 22/2/2019. Disponível em: https://
bit.ly/3aY879T. Acesso em: 20 nov. 2019.
CENTRO CULTURAL SÃO PAULO. “Gota D’Água Preta”. São Paulo, s.d.
Disponível em: http://centrocultural.pagina-oficial.ws/site/eventos/evento/
gota-dagua-preta/. Acesso em: 30 out. 2019.
CLICK GUARULHOS. “Sesc Guarulhos recebe o espetáculo Gota D’Água
{Preta}”. Guarulhos, 5/7/2019. Disponível em: https://bit.ly/2teDrjJ. Acesso
em: 04 dez. 2019.
COMPLEXO THEATRO MUNICIPAL. “Teatro no Municipal: Gota D´Água
{Preta}”. São Paulo, s. d. Disponível em: https://bit.ly/31jEPOQ. Acesso em:
30 out. 2019.
FRANÇA, Juliana. “Gota d’água preta: Crítica da peça de Chico Buarque e
Paulo Pontes, encenada por Jé Oliveira”. Questão de Crítica – Revista eletrônica
de críticas e estudos teatrais. Rio de Janeiro, 26/10/2019. Disponível em:
http://www.questaodecritica.com.br/2019/10/gota-dagua-preta/#more-6477.
Acesso em: 20 nov. 2019.
GALPÃO DO FOLIAS. “Após sucesso de público e crítica, Gota D’Água
{PRETA} realiza temporada no Galpão do Folias”. Eventbrite. São Paulo,
s.d. Disponível em:
https://www.eventbrite.com.br/e/gota-dagua-preta-tickets-61142770673.
Acesso em: 30 out. 2019.
G1. “Peça Gota D’Água {Preta} faz reapresentações especiais no Auditório
do Ibirapuera e no Galpão do Folias”. São Paulo, 6/5/2019. Disponível em:
https://glo.bo/37LpHMy. Acesso em: 30 out. 2019.

231
ITAÚ CULTURAL. “Gota d’Água {Preta} leva questões de raça e de classe ao
palco”. São Paulo, 29/1/2019. Disponível em: https://bit.ly/396Vp7l. Acesso
em: 30 out. 2019.
JORNAL DA ORLA. “Espetáculo baseado na obra de Chico Buarque é
apresentado no Sesc Santos”. Santos, 1º/10/2019. Disponível em: https://bit.
ly/2vBMHzf. Acesso em: 30 out. 2019.
JUNDI AQUI. A tragédia grega de Chico Buarque na perspectiva do negro.
Jundiaí, 23/8/2019. Disponível em: https://bit.ly/2UbBsI8. Acesso em: 30
out. 2019.
MARÇAL, Juçara. “Encarnando Joana”. Ocas, edição nº 121, mai./ jun./ jul.
2020. Disponível em: https://www.ocas.org.br/ultima-edicao. Acesso em:
05 jun. 2020.
PEIXOTO, Mariana. “Festival de Arte Negra transforma BH em quilombo
contemporâneo”. Portal Uai E+. Belo Horizonte, 18/11/2019. Disponível em:
https://bit.ly/3aVJKK1. Acesso em: 8 dez. 2019.
PESSOA, Patrick. “Crítica: ‘Gota d’água {preta}’”. O Globo. Rio de Janeiro,
25/10/2019. Disponível em: https://glo.bo/391VRUl. Acesso em: 30 out. 2019.
SANTOS, Valmir. “Raízes e nervos expostos”. Teatrojornal Leituras de Cena.
São Paulo, 31/5/2019. Disponível em: https://bit.ly/2Uh5Lx1. Acesso em: 15
nov. 2019.
SESC RIO. “‘Gota D’Água {Preta}’ estreia no Sesc Ginástico dia 16 de outubro”.
Rio de Janeiro, 4/10/2019. Disponível em: http://www.sescrio.org.br/notici
a/04/10/19/%E2%80%98gotad%E2%80%99agua-preta%E2%80%99-estreia-
no-sesc-ginastico-dia-16-deoutubro. Acesso em: 30 out. 2019.
SESC SÃO PAULO. “Negrura – No mês da Consciência Negra, o Sesc Rio
Preto evidencia ainda mais a negrura nas artes”. São Paulo, s.d. Disponível em:
https://www.sescsp.org.br/programacao/210943_GOTA+DAGUA+PRETA.
Acesso em: 8 dez. 2019.
TEATROJORNAL. “‘Gota d’água’ antirracista e ancestral, ‘por nós mesmos’”.
São Paulo, 3/7/2019. Disponível em: https://bit.ly/38WRbPw. Acesso em: 30
out. 2019.
THEATRO SÃO PEDRO. “Porto Alegre em Cena apresenta: Espetáculo
‘Gota D´água {Preta}’ (SP)”. Porto Alegre, s.d. Disponível em: http://www.
teatrosaopedro.com.br/porto-alegre-em-cena-apresenta-espetaculo-gota-
dagua-preta-sp/. Acesso em: 30 out. 2019.
232
TOLEDO, Paulo Bio de. “Versão negra ‘Gota d’Água’ faz vibrar peça de
Chico Buarque e Paulo Pontes”. Folha de S.Paulo, 17/2/2019. Disponível em:
https://bit.ly/2RINZ40. Acesso em: 15 nov. 2019.

2.C. Teses e dissertações


HERMETO, Miriam. “Olha a Gota que falta”: um evento no campo artístico-
intelectual brasileiro (1975-1980). Belo Horizonte, FAFICH-UFMG, 2010.
Tese de doutorado em História.
HOTIMSKY, Nina Nussenzweig. O trabalho de encenação em Calabar (1973):
o espetáculo censurado e as reflexões de Fernando Peixoto. São Paulo, ECA-
USP, 2019. Dissertação de mestrado em Teoria e Prática do Teatro.
PASTA Jr., José Antonio. Formação supressiva: constantes estruturais do
romance brasileiro. São Paulo, FFLCH-USP, 2011. Tese de livre-docência
em Literatura Brasileira.

2.D. Outros
DIAS, Marcia Tosta. “Rabiscos saídos no calor da hora sobre Farinha com
açúcar...”, mimeo, 2018.

3. História e sociedade brasileira

3.A. Livros
ALENCAR, Francisco; CAPRI, Lúcia; RIBEIRO, Marcus Venício. História
da sociedade brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1981.
BRANCO, Renato Castelo; MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando
(coord.). História da propaganda no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1990.
CARRASCOZA, João Anzanello. Redação publicitária: estudos sobre a retórica
do consumo. São Paulo: Futura, 2003.
CHÃ, Ana Manuela. Agronegócio e indústria cultural: estratégias das empresas
para a construção da hegemonia. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
CHAUI, Marilena. Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro.
Org. André Rocha. Belo Horizonte: Autêntica Editora/ São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2013.

233
COSTA, Caio Túlio. Cale-se. São Paulo: A Girafa Editora, 2003.
FERREIRA, Euclides Menezes. Tambor de Mina em conserva. São Luís: Casa
Fanti-Ashanti, 1997.
FERREIRA, Euclides Menezes. Pajelança. São Luís: Edição do Autor, 2003.
FERREIRA, Euclides Menezes. Álbum Fotográfico: Arquivo de um Babalorixá.
São Luís: Edição do Autor, 2004.
FERRETTI, Mundicarmo. Maranhão encantado: Encantaria maranhense e
outras histórias. São Luís: UEMA Editora, 2000.
FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1974.
GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloisa Buarque de; VENTURA, Zuenir.
Cultura em trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
MELLO João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando A. “Capitalismo tardio
e sociabilidade moderna”. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da
vida privada no Brasil, volume 4 (Contrastes da intimidade contemporânea).
3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 559-658.
NAPOLITANO, Marcos; CZAJKA, Rodrigo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá
(org.). Comunistas brasileiros: cultura política e produção cultural. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2013.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um
racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. 5ª reimpressão. São Paulo:
Brasiliense, 2003.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria
cultural. 5ª ed., 3ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2001.
RATTS, Alex (org.). Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz
Nascimento. São Paulo: Instituto Kuanza, 2006.
REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.).
A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. 1ª reimpressão.
Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de
1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo
Mundo. Trad. Maria Aparecida da Nóbrega. 6ª ed. Salvador: Corrupio, 2002.

234
3.B. Textos publicados em revistas
BATISTA E SILVA, Martinho Braga. “O caso Damião Ximenes e a condenação
do Brasil por violação dos direitos humanos”. Entrevista a Márcia Junges.
Revista do Instituto Humanitas Unisinos, ano XII, n. 391. São Leopoldo,
mai. 2012. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
php?option=com_content&view=article&id=4407&secao=391. Acesso em:
2 de ago. 2016.
CARNEIRO, Sueli. “Identidade feminina”. Cadernos Geledés IV: Mulher Negra.
São Paulo, Geledés – Instituto da Mulher Negra, 1993. p. 9-12. Disponível
em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2015/05/Mulher-Negra.
pdf. Acesso em: 30 out. 2019.
GONZALEZ, Lélia. “Por um feminismo Afro-latino-americano”. Caderno
de formação política do Círculo Palmarino n. 1: Batalha de ideias, [s.l.], 2011.
p. 12-20.
LOUREIRO, Isabel. “Em busca do futuro perdido: a tarefa política da nova
geração”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n, 59. São Paulo, USP/ IEB,
dez. 2014. p. 389-396. Disponível em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-
901X.v0i59p389-396. Acesso em: 29 ago. 2016.

4. Bibliografia geral
A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Ed. rev., 4ª impressão. São Paulo: Paulinas, 1989.
ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar.
2a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
ADORNO, Theodor W. Prismas: crítica cultural e sociedade. Trad. A. Wernet;
J. M. B. de Almeida. São Paulo: Ática, 1998.
BENJAMIN, Walter. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Trad. Maria
Luz Moita; Maria Amélia Cruz; Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 2012.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Trad.
J. M. Barbosa; H. A. Baptista. 3ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense,
2000.
BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2004.

235
ELIOT, T. S. “A tradição e o talento individual”. In: ELIOT, T. S. Ensaios de
doutrina crítica. Lisboa: Guimarães, s.d. p. 19-35.
KONDER, Leandro. Os marxistas e a arte: breve estudo histórico-crítico
de algumas tendências da estética marxista. 2ª ed. São Paulo: Expressão
Popular, 2013.
LATELL, Brian. Cuba sem Fidel. Trad. Jorge F. Soares. Ribeirão Preto: Novo
Conceito, 2008.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos.
Trad. José Paulo Netto; Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida. São Paulo:
Expressão Popular, 2010.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Trad. André Glaser. São
Paulo: Editora Unesp, 2011.

236
Fontes sonoras e audiovisuais

1. Fontes sonoras

1.A. Discos
A BARCA. Coleção Turista aprendiz. Cooperativa de Música/ Maracá Cultura
Brasileira/ Zabumba, 2007. Caixa com sete CDs e um DVD.
A BARCA. Trilha, toada e trupé. Cooperativa de Música/ Maracá Cultura
Brasileira, 2006. Caixa com três CDs e um DVD.
A BARCA. Turista aprendiz. CPC/ UMES, CPC 519, 2000. 1 CD.
ASSUMPÇÃO, Itamar. Pretobrás. Atração, ATR 31057, 1998. 1 CD.
ASSUMPÇÃO, Itamar. Bicho de 7 cabeças – Vol. I. Baratos Afins, BACD054,
2003 [p1993]. 1 CD.
ASSUMPÇÃO, Itamar. Bicho de 7 cabeças – Vol. II. Baratos Afins, BACD055,
2003 [p1993]. 1 CD.
ASSUMPÇÃO, Itamar. Bicho de 7 cabeças – Vol. III. Baratos Afins, BACD056,
2003 [p1993]. 1 CD.
ASSUMPÇÃO, Itamar. Às próprias custas S/A. Disco lançado em 1982.
Baratos Afins, BACD008, s.d. [p1982]. 1 CD.
ASSUMPÇÃO, Itamar. Beleléu, Leléu, Eu. Atração Fonográfica, ATR 31033,
1998 [p1981]. 1 CD.
BARNABÉ, Arrigo. Tubarões voadores. Barclay/ Ariola, 823 031-1, 1984. 1 LP.
BARNABÉ, Arrigo. Clara Crocodilo. Thanx God Records, TG 1005, s.d.
[p1980]. 1 CD.
BEN JOR, Jorge. Jorge Ben Jor. WEA Music, 398422479-2, 1998. 1 CD.
BUARQUE, Chico. Carioca. Biscoito Fino, BF 646, 2006. 1 CD. 1 DVD.
BUARQUE, Chico. Paratodos. BMG Ariola/ RCA, V120.046, 1993. 1 CD.

237
BUARQUE, Chico. Ópera do malandro. Philips/ PolyGram, 838 516-2,
1993 [p1979].
BUARQUE, Chico. Chico Buarque. Philips/ PolyGram, 6349 398, 1978. 1 LP.
BUARQUE, Chico. Meus caros amigos. Philips/ PolyGram, 842 043-2, 1993
[p1976]. 1 CD.
CASA FANTI ASHANTI. Tambor de Mina na virada pra mata. Independente,
2000. 1 CD.
CASA FANTI ASHANTI; A BARCA. Baião de Princesas. CPC/ UMES,
CPC 041, 2002. 1 CD.
COMPANHIA DO LATÃO. Canções de cena. Cooperativa Paulista de Teatro,
20.0928.001, 2004. 1 CD.
CRIOLO. Convoque seu Buda. Oloko Records, 060254709342, 2014. 1 CD.
CRIOLO DOIDO. Ainda há tempo. SkyBlue Music, SKY 5273, 2006. 1 CD.
EDI ROCK. Contra nós ninguém será. Bagua Records, [2013]. 1 CD.
JOÃO GILBERTO. Ela é carioca. Orfeon, 25CDA 11236, s.d. [p1970]. 1 CD.
JOÃO GILBERTO. O amor, o sorriso e a flor. Odeon, 3151, 1960. 1 LP.
JOÃO GILBERTO. Chega de Saudade. Odeon, 3073, 1959. 1 LP.
JOBIM, Tom. Antonio Brasileiro. Sony, CDZ-81514 2-476281, 1995 [p1994].
1 CD.
LEE, Rita. Rita Lee. Som Livre, 405.0034, 1993. 1 LP.
LUIZ MELODIA. Série Bis: Luiz Melodia. EMI, 526497 2, 2005. 2 CDs.
MARÇAL, Juçara; DINUCCI, Kiko. Padê. Cooperativa de Música, 2007. 1 CD.
RACIONAIS MC’S. Nada como um dia após o outro dia. Cosa Nostra/
Zambia, ZA-050-1, 2002. 2 CDs.
RACIONAIS MC’S. Sobrevivendo no inferno. Cosa Nostra/ Zambia, ZA
001, 1997. 1 CD.
VÁRIOS. Prepare seu coração: uma história dos grandes festivais. Universal
Music, 994428-2, 2002. In: RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração. São Paulo:
Geração Editorial, 2002. CD anexo.
VASCONCELOS, Naná; ASSUMPÇÃO, Itamar. Isso vai dar repercussão.
Elo Music, ELO 009, 2004. 1 CD.
VELOSO, Caetano. Prenda minha. PolyGram, 538 332-2, 1998.
VELOSO, Caetano. Outras palavras. Philips/ Universal Music, 838 465-2,
1989 [p1981]. 1 CD.

238
VELOSO, Caetano. Caetano Veloso. Philips/ PolyGram, 838 556-2, s.d. [p1969].
1 CD.

1.B. Discos e fonogramas – internet


ASSUMPÇÃO, Itamar. Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra sempre
agora. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZwtCIErOcuY.
Acesso em: 29 jan. 2015. Disco lançado em 1995.
ASSUMPÇÃO, Itamar . Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!!!.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2O7MaznFdo8. Acesso
em: 6 fev. 2015. Disco lançado em 1988.
ASSUMPÇÃO, Itamar. Sampa Midnight – Isso não vai ficar assim. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=d-vmlifcmVM. Acesso em: 29 jan.
2015. Disco lançado em 1985.
BARNABÉ, Arrigo. Suspeito. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=JwfwLqOv7s0. Acesso em: 29 jan. 2015. Disco lançado em 1987.
BRANCA DI NEVE. “Nego Dito”. Autor: Itamar Assumpção. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=JZPaPD5GTWo. Acesso em: 29
jan. 2015. Fonograma lançado em 1987.
CALDERÓN, Marília; GARCIA, Walter. na cachola. Disponível em: https://
www.nacachola.com/download. Acesso em: 11 out. 2020. Disco lançado em
2016.
DUNCAN, Zélia. “Dor elegante”. Autores: Itamar Assumpção; Paulo Leminski.
Disponível em: http://www.radio.uol.com.br/#/letras-e-musicas/zelia-
duncan/dor-elegante/1060132. Acesso em: 29 jan. 2015. Fonograma lançado
em 2005.
FACÇÃO CENTRAL. “O menino do morro”. Autor: Eduardo Taddeo.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=b28uv0Euuco. Acesso
em: 15 dez. 2014. Fonograma lançado em 2003.
GIL, Gilberto. “Gilberto Gil ao vivo na USP 1973”. Disponível em: http://
www.youtube.com/watch?v=dIwKGsjRqGQ. Acesso em: 23 ago. 2016. Show
gravado em 26 mai. 1973.
MARÇAL, Juçara. Encarnado. Independente, 2014. Disponível em: http://
www.jucaramarcal.com.br/encarnado.html. Acesso em: 10 out. 2020.

239
METÁ METÁ. Metá Metá. Desmonta/ Circus, 2011. Disponível em: http://
www.jucaramarcal.com.br/metameta.html. Acesso em: 10 out. 2020.
PASSO TORTO. Passo Elétrico. YB Music, 2013. Disponível em: http://www.
passotorto.com.br/site/Downloads.html. Acesso em: 10 out. 2020.
PASSO TORTO; OZZETTI, Ná. Thiago França. YB Music, 2013. Disponível
em: http://www.passotorto.com.br/site/Downloads.html. Acesso em: 10
out. 2020.
SIBA E A FULORESTA. “A velha da capa preta”. Autor: Siba. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=sFS5CL6LVjE. Acesso em: 10 out. 2020.
SOARES, Elza. A mulher do fim do mundo. Circus/ Natura Musical, 2015.
Disponível em: http://www.naturamusical.com.br/ouca-mulher-do-fim-do-
mundo-novo-disco-da-elza-soares. Acesso em: 5 ago. 2016.

2. Fontes audiovisuais
BANDEIRA, Julia. Retrato de Chico por suas meninas. São Paulo, COMFIL-
PUCSP, 2004. 1 DVD.
BARNABÉ, Arrigo. “Rodrigo Skylab entrevista Arrigo Barnabé”.
Publicado em: 10 ago. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=tCiWCxqqD1Q. Acesso em: 9 mar. 2015.
BARNABÉ, Arrigo. “Arrigo Barnabé – O som do vinil 1”. Publicado em: 30 dez.
2008. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mp9KgHPxge4.
Acesso em: 9 mar. 2015.
BARNABÉ, Arrigo. “Arrigo Barnabé no Festival Universitário da MPB (1979)”
[“Infortúnio”]. Publicado em: 18 set. 2008. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=Ve7jlgt59RM. Acesso em: 29 ago. 2016.
BARNABÉ, Arrigo. “Arrigo Barnabé no Festival Universitário da MPB – parte
2” [“Diversões eletrônicas”]. Publicado em: 18 set. 2008. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=WrfL1ZOjNxM. Acesso em: 29 ago. 2016.
BOTELHO, Guilherme. Nos tempos da São Bento. Suatitude, 2010. 1 DVD.
BUARQUE, Chico. Na carreira. Biscoito Fino, BF 173-3, 2012. 1 DVD.
BUARQUE, Chico. Vai passar. Direção Roberto de Oliveira. RWR
Comunicações/ DirectTV/ EMI, 336933 9, 2005. 1 DVD.
BUARQUE, Chico. Chico ou o país da delicadeza perdida. Direção Walter
Salles Jr. e Nelson Motta. BMG, 82876538929, 2003 [p1990]. 1 DVD.

240
BUARQUE, Chico; JAMELÃO. “Piano na Mangueira”. Compositores: Tom
Jobim; Chico Buarque. PIANO da Mangueira Telégrafo) – Chico Buarque.
Publicado em: 27 de out. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?reload=9&v=y-DQm9oyqGM. Acesso em: 31 jan. 2020.
CRIOLO DOIDO. Criolo Doido – Cálice. Publicado em: 9 set. 2010. Disponível
em: http://www.youtube.com/watch?v=akZY0-6Rs0A. Acesso em: 26 mai.
2014.
EMICIDA. “Dedo na ferida”. Autor: Emicida. Publicado em: 7 mar. 2012.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QdvYAjQYdIs. Acesso
em: 6 de fev. 2015.
FERRAZ, Isa Grinspum (direção). Marighella. TC Filmes/ Texto & Imagem/
LK TEL Distribuidora de Filmes/ Paris Filmes, 11192DV, s.d. 1 DVD.
GIL, Gilberto. “Gilberto Gil explica a música ‘Cálice’”. Publicado em: 15
abr. 2013. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=8CnSiaP-jL4.
Acesso em: 19 jun. 2014.
RACIONAIS MC’S. “Mil faces de um homem leal (Marighella)”. Autor: Mano
Brown. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2tN2obABcOI.
Acesso em: 15 dez. 2014. Videoclipe lançado em 2012.
RACIONAIS MC’S. 1000 trutas 1000 tretas. Cosa Nostra, CN 007, 2006. 1
DVD.
VÁRIOS. Phono 73: o canto de um povo. Universal Music, 60249824412,
2005. 2 CDs, 1 DVD.
VELLOSO, ROGÉRIO (direção). Itamar Assumpção: Daquele instante em
diante. São Paulo, Itaú Cultural, 2011. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=be2n1tpJjf0. Acesso em: 15 dez. 2014.

241
Coordenação editorial: Betânia G. Figueiredo
Diagramação e capa: Amanda Paim do Carmo

Formato: 15,5 x 22,5 cm | 242 p.


Tipologias: Minion Pro e Myriad Pro.
papel da capa: Cartão 250g/m2
papel do miolo: Offset 90g/m2
O desafio contemporâneo de refletir criticamente
sobre a realidade brasileira, em perspectiva inter/
multi/ trans e pós-disciplinar, materializa-se nos
títulos que integram a Coleção Estudos Brasileiros,
do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade
de São Paulo, na Série Paralelos 22, publicada pela
Editora Fino Traço.
Pensar a América portuguesa e o Brasil, a partir de
apurada perspectiva epistemológica, pressupõe
a ampliação, o adensamento e a interconexão de
diferentes enfoques teóricos e metodológicos
capazes de propiciar a apreensão de experiências
coletivas e individuais, desvelando áreas de
investigação fronteiriças ou ainda pouco exploradas.
Supõe, igualmente, a compreensão das múltiplas
temporalidades que constituem o processo histórico,
tensionadas entre continuidades e rupturas. Impõe um
olhar, simultaneamente abrangente e verticalizado,
sobre questões econômicas, políticas e geográficas,
e sua configuração social, étnica/racial e de gênero,
contemplando alteridades e diversidades, assim como
sobre sua conformação educacional, cultural, literária,
artística e religiosa, em um mundo globalizado.

Você também pode gostar