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O que é isto, audição musical?

Mario Ulloa1
essas conversas sobre os seus intrincados
universos tornam-se agitadas e confusas, devido,
Resumo talvez, à utilização inconsistente, para não dizer
equivocada, de conceitos musicais elementares.
Breve introdução a conceitos básicos para uma audição Daí, situações curiosas serem também comuns,
musical atenta. Partindo de perguntas simples sobre como, por exemplo, quando alguém diz “meu
características elementares do som (timbre, violão está semitonado”, em vez de dizer,
intensidade, altura, duração), bem como sobre alguns desafinado. Certa feita foi-me relatado um
elementos da música ocidental (harmonia, hilariante colóquio: “você semitonou!”; “como
contraponto, forma, afinação, ritmo), o texto responde assim, eu me mitonei?”.
cada uma delas numa espécie de diálogo acessível ao Lembro que, há alguns anos, um jornal
leitor não especializado em música. desta cidade promoveu a publicação de uma
Palavras chave: Audição musical, Características do série de matérias semanais almejando discutir
Som, Elementos Básicos da Música Ocidental. assuntos concernentes à música. Contudo,
aquelas discussões
Abstract centralizavam-se mais nas
letras das músicas – usos e
Brief introduction to basic funções sociais, problemas
concepts for a thoughtful da indústria cultural – do
musical hearing. Starting que nos elementos musicais
with simple questions propriamente ditos. Recen­
about basic characte­ temente, um palestrante
ristics of sound (pitch, tratou alguns argu-mentos
intensity, height, length) musicais schope-nhauerianos
and on some elements of – aqueles do livro terceiro do
Western music (harmony, Mundo como vontade2: tons
counterpoint, form,
mais graves da harmonia,
tuning, rhythm), the text
baixo contínuo, natureza inorgânica, reino vegetal
answered each of them in a sort of dialogue
e animal – enfim, mistura de um vocabulário
accessible to readers not specialized in music.
Keywords: musical hearing, characteristics of técnico-musical com especulações metafísicas.
sound, basics of Western music. Pensei que, se a platéia estivesse mais próxima
do vocabulário musical ali tratado, teria talvez
atiçado aquele insípido debate.
Não existe nada tão sutil e abstruso que, Inicialmente, entendo a audição musical
tendo sido alguma vez tornado simples, como um ato de reconhecimento dos fenômenos
inteligível e comum não possa ser assimilado musicais. Com freqüência escuto: “Mário, adoro
pela mais vagarosa inteligência. teu CD, eu o coloco e durmo que é uma beleza”.
(Francis Bacon, 1609) A música, de fato, tem vários usos e serviços. Ela
pode suscitar sentimentos diversos, transpor-nos
A música tem alguma coisa de onipresente a lugares diferentes, trazer lembranças ou
na nossa existência. Ela está nas rádios, TVs, nos esquecimentos, provocar sonhos – e se for ruim,
bares, cinemas, espetáculos de teatro, de dança, pesadelos também. Contudo, a audição à qual
nas festas religiosas, em eventos de toda índole me refiro pode ser outra coisa. Pode ser um ato
– quase não há acontecimento político,
acadêmico, comemorativo, que não se diga 1
Violonista, Professor Doutor da Escola de Música da
“abrilhantado por uma ´intervenção` musical”. Universidade Federal da Bahia. ulloamar@hotmail.com
Seja lá onde estivermos, ela está. Falar “dela”, 2
Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e como
sobretudo em situações informais, parece ser representação, traduzido por Jair Barbosa, São Paulo: Unesp,
algo prazeroso, cativante. Vez por outra, porém, 2005, pp. 233-350.

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de reflexão, uma ferramenta de conhecimento,
de expansão das nossas capacidades
Utiliza-se o Hertz (Hz)5 como unidade que indica,
ou mede, a quantidade de ondulações – também
perceptivas, de concentração e interação. Há, designadas periodicidades, oscilações, freqüências,
pelo menos, duas perguntas instigadoras que ciclos, vibrações – por segundo. Entendemos um
podem ser grandes companheiras: “o quê ouvir?” conjunto de oscilações, digamos 440 Hz, como um
e “como ouvir?”. tipo de Som. Na música do Ocidente foi criado
Debrucei-me neste texto com a intenção de um sistema que dá a alguns tipos de Som o nome
aproximar o leitor de alguns conceitos musicais genérico de Notas musicais. Portanto, havendo
básicos, visando o aprimoramento da audição
Sons diferentes há Notas musicais diferentes. Um
atenta – adestramento do ouvido musical – e a
fato importante sobre a estrutura do Som foi
consistência nas conversas sobre música. Para
simplificar ao máximo as explicações, utilizei um registrado por Pitágoras (c. 582-500 a.C.) que,
procedimento também básico: a interrogação. utilizando uma corda esticada (Monocórdio),
Elaborei uma seqüência de perguntas que, de um explicou as propriedades e relações matemáticas
lado, terão resposta imediata no texto, e de outro, da vibração sonora. Graças a essa experiência,
poderão servir para despertar curiosidades ad sabemos que uma corda esticada, ao vibrar,
infinitum. Os vocábulos a serem explicados produz não apenas um único Som, mas um
limitam-se à tradição musical do Ocidente, pois conjunto de Sons que vibram concomi-tantemente.
eles são muitas vezes intransferíveis a outras Foi dado a esses Sons resultantes o nome de Sons
tradições, como por exemplo, pré-coloniais, hindus, Harmônicos ou, simplesmente, Harmônicos. As
árabes, que utilizam códigos musicais diferentes. implicações dessa descoberta foram fundamentais
A abordagem musical pode ser efetuada por no decorrer da história da música ocidental;
caminhos multifacetados e interdisciplinares. conceitos como Harmonia, Acordes, Consonância,
Todavia, já que minha intenção, como disse, é Dissonância, bem como questões referentes à
trilhar conceitos básicos, tratarei questões Orquestração, e a um vasto número de eventos da
relativas à “sintaxe” da música, desde que haja, prática musical, estão relacionados àquelas
é claro, a idéia subjacente de música como observações sobre os Harmônicos.
linguagem. O leitor dirá se a compreensão destes Ao Som (Nota musical) que possui 440 Hz
conceitos é simples ou complexa. Se for simples, foi dado o nome de Lá e essa Nota é utilizada
terei alcançado meu objetivo inicial, o da como padrão internacional de referência para
aproximação. Se for complexa, terei realizado
Afinação. Trata-se de uma convenção adotada,
meus objetivos tácitos, destacar que o estudo da
em 1939 – e ratificada em 1953 –, pela
música requer dedicação profunda, minuciosa,
Organização Internacional de Estandardização
e que devemos apoiar aqueles, principalmente
(ISO)6. Todavia, ao longo da história da música
crianças e jovens que, apesar das dificuldades –
ocidental, a referência de Afinação percorreu
econômicas, sociais, culturais –, pretendem se
dedicar com vigor ao estudo dessa arte. diferentes padrões. Na Renascença, por
Seguindo o conselho de Adkins3 que afirma exemplo, Luys Milán escreveu: “afinarás a
ser a pesquisa algo como atirar uma flecha para primeira corda [da vihuela] tão alto quando for
o ar e, depois, pintar o alvo onde quer que ela possível” 7 . Já no período Barroco, foram
caia, tomei, como ponto inicial da anunciada encontrados diferentes diapasões – aparelhos
interrogação musical, o motivo a seguir.
Qual é o elemento básico da música? É o
Som 4 . Faça soar uma corda de violão e 3
H. B. Adkins. In Oxford Dictionary of Scientific Quotations.
pergunte-se: o que é isso? É um Som. O que é Citado por Giannetti em O livro das Citações. Companhia
isso que designamos Som? É um fenômeno das Letras. São Paulo: Schwarcz, 2008, p.117.
acústico que consiste na produção de ondas 4
Para ajudar na compreensão e na memorização, coloquei
sonoras propagando-se em algum meio todos os conceitos tratados neste texto sempre com letra
elástico, como o ar. maiúscula.
5
Heinrich Rudolf Hertz, físico alemão (1857–1894).
Como se produzem essas ondas? 6
International Standardizing Organization.
7
“...subireys la prima [corda] tan alto quanto lo pueda suffrir“
Podem ser produzidas, por exemplo, ao fazer (tradução nossa). Luis Milán, El Maestro opere complete per
vibrar uma corda esticada, ao soprar uma coluna vihuela, 1ª ed. 1535/36, editado por Ruggero Chiesa, Milano:
de ar, ou ao bater na membrana de um tambor. Edizioni Survini Zerboni, 1974.

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que servem como referencial de Afinação – e o Grave, “mais baixa”. Quanto menor o
padrão da Nota Lá era inferior ao atual, comprimento da corda, mais agudo
aproximadamente 415 Hz. Joseph Kerman perceberemos o Som, e vice-versa. Recapi­
afirma que, na época de Bach, “níveis diferentes tulando, ao fazermos referência à “Altura” do
de Altura de Som estavam em uso para órgãos Som, dizemos que ele é, por exemplo, (mais/
que tocavam as cantatas, de modo que certas menos) Grave ou (mais/menos) Agudo.
partes instrumentais deviam, por vezes, ser
recopiadas em tonalidades diferentes a fim de Antes de prosseguir, queria tirar
se ajustarem a um órgão afinado
recentemente” 8 . Hoje, algumas orquestras,
uma dúvida: ouvido absoluto, o
tendem a afinar em 442 Hz. que é isso?
Mas o que é afinação? É um tipo de memória, uma habilidade de
reconhecer a “Altura” dos Sons sem referência
Afinar é ajustar Sons em um determinado externa – sem um afinador, um diapasão ou um
número de oscilações. No violão, por exemplo, instrumento musical. Uma pessoa com ouvido
existe um número de oscilações por segundo absoluto pode identificar, em tese, se uma peça
correspondente a cada uma das seis cordas do musical está numa determinada Tonalidade, ou
instrumento. Dizemos que o violão está afinado, se uma peça está sendo executada numa
quando realizamos o ajuste de cada corda. Tonalidade diferente da original (ouvido
Também se afina um instrumento em relação a absoluto passivo). Ela pode também cantar, sem
outro. Na maioria dos instrumentos musicais a referência externa, alguma canção por ela
Afinação é feita constantemente; por exemplo,
conhecida na Tonalidade em que a escutou
após a execução de uma peça.
(ouvido absoluto ativo). É importante frisar que
o ouvido absoluto não tem relação com algum
E qual é o porquê dessa tipo de “condição superior”, ou seja, não é
necessidade? sinônimo de qualquer vantagem sobre pessoas que
não o têm. É apenas um tipo de memória, como
O material que constitui as cordas, seja a de alguém que decora números, sem ser,
metal ou nylon, é susceptível a mudanças de necessariamente, bom em matemática. A história
temperatura no local da execução – ar tem registros de músicos excepcionais, tanto com
condicionado, luzes –, ou pela ação dos dedos ouvido absoluto, quanto com ouvido relativo. Aliás,
no instrumento, dentre outros fatores. para alguém com ouvido absoluto pode ser um
desprazer escutar uma música por ele conhecida
Quais são as características do que foi transposta para outra Tonalidade ou que
som? está sendo executada com Afinação padrão de
uma outra época, como em certas execuções de
A “Altura”, dentre as diversas música antiga. Para manter o rumo do texto,
características que o Som possui, é uma delas tratarei do conceito da Tonalidade mais adiante.
(não confundir “Altura” do Som com “volume”). Outra característica do Som é a Dinâmica,
Há, contudo, uma ressalva. O termo “Altura” palavra utilizada para designar a organização
– apesar da naturalidade com que se utiliza – é das Intensidades sonoras.
inadequado, pois, como já vimos, as ondas
sonoras são medidas em Hz e não, por Intensidade, o que é isso?
exemplo, em centímetros. Por isso, é curioso
quando se diz que um Som é mais “alto” ou A Intensidade está relacionada à amplitude
mais “baixo” do que outro. Entretanto, já que da vibração da onda sonora, ao volume do Som.
a tradição “fala mais alto”, continuaremos Uma Nota pode soar – agora sim, estou me
assim denominando-o. Aquilo que provoca em referindo ao volume do Som – mais forte ou mais
nós essa idéia de “Altura” é justamente a fraca. Quanto maior a amplitude da onda, maior
velocidade da propagação das ondas. Se as
ondas forem mais rápidas nossa percepção
será de uma Nota mais Aguda, portanto, “mais 8
Joseph Kerman, Musicologia, tradução Álvaro Cabral, São
alta”; se for mais lenta, será a de Nota mais Paulo: Martins Fontes, 1987.p. 60.

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será a sua Intensidade, isto é, nossa percepção
de que o Som tem volume mais forte; a
auxiliar nessa compreensão: os quadros da
Marilyn Monroe feitos por Andy Warhol. Nessas
Intensidade, ou seja, volume do Som, é medida imagens vemos o “mesmo” rosto, porém com
em unidades chamadas Decibéis (dB) 9 . A cores diferentes; da mesma forma podemos
Dinâmica, como disse, é utilizada para organizar escutar um Som semelhante, porém com
as Intensidades dos Sons, gradativos ou Timbres diferentes. Como diz poeticamente o
contrastantes, desde muito fortes até seus musicólogo norte-americano Joseph Kerman: “O
opostos, quase inaudíveis, e pode ser empregada amor tem muitos Timbres” (Kerman, 1987, p.
de maneiras diversas, por exemplo, por grupos 33). A variedade timbrística pode ser também
de instrumentos – uns instrumentos tocam com percebida, não só entre instrumentos diferentes,
maior Intensidade enquanto que outros tocam mas também entre instrumentos da mesma
com Intensidade menor; ou por trechos da espécie, por exemplo, violões de fabricantes
música – um trecho se toca forte e outro mais diferentes ou ainda de um mesmo fabricante.
suave. As decisões sobre o uso da Dinâmica Mais do que isso, num único instrumento
dependem de fatores como estilo, época, local musical podem ser produzidos Sons com
da execução – tamanho da sala, características Timbres diferentes. No violão, por exemplo, o
acústicas –, propriedades dos instrumentos tipo de corte de unha – ou o toque sem ela, isto
musicais, dentre outros. A Dinâmica pode ter é, com a polpa do dedo – bem como a região
também funções variadas: suscitar sensações de onde o toque é realizado, determina o Timbre
tensão ou repouso, reforçar algum clímax, pôr do Som produzido. Não admira que um único
em destaque algum trecho de uma peça musical, instrumento executado por instrumentistas
e assim por diante. Trata-se, enfim, de um dos diferentes produza Timbres distintos10.
recursos mais significativos e complexos da práxis De posse dos conceitos até aqui tratados, o
musical. Considero importante sublinhar que, leitor já pode fazer aplicações práticas. Escute
em muitas musicas do dia-a-dia – as um trechinho de qualquer música e pergunte­
“massificadas” –, a Dinâmica (Intensidade) se: Existem mudanças gradativas ou
parece-me não estar devidamente utilizada. Em contrastantes na Intensidade dos Sons? Que tipo
casos extremos, contudo amplamente de Sons prevalecem? Agudos, Graves, ou ambos?
disseminados, tende-se a fazer música, não só E os Sons que estou ouvindo, são curtos, longos?
desprovidas das riquezas da Dinâmica, mas em Há Silêncios ou pausas? Que tipo de Timbres eu
Intensidades muitas vezes superiores às ouço? Que tipo de instrumentos? (se for possível
suportadas pelo ouvido humano. Alguém já identificá-los). E quanto à Dinâmica? Há
disse jocosamente: “música de decibéis”. variáveis na Intensidade sonora? Os Sons
A Duração é outra das características. O aumentam ou diminuem (volume) em algum
Som pode ser mais curto ou mais longo. A momento, ou mantêm-se iguais? Esses exercícios,
Duração de uma Nota pode, como no caso da mesmo que pareçam simples, são fundamentais
Dinâmica, suscitar sensações de tensão ou para iniciar uma audição musical atenta. Feitas
repouso. Pensar na Duração do Som pode nos essas considerações, tratarei, a partir deste
conduzir à idéia do Silêncio. Ainda que essa momento, de alguns dos elementos da música.
definição pareça banal, o silêncio, ou “ausência
de Som” – se é que isso é possível – é como a Quais os elementos básicos que a
outra cara da moeda do Som, um elemento
imprescindível. De alguma maneira, a questão constituem?
do Silêncio está ligada também às observações
que fiz sobre os excessos de volume. Dentre a infinidade de elementos que a
Outra característica é o Timbre. É o que nos constituem, três deles são básicos: Melodia,
permite distinguir se Sons da mesma freqüência Ritmo, e Harmonia. Acredito que a forma mais
(Altura) foram produzidos por fontes sonoras
diferentes. Quando ouvimos uma Nota musical
tocada por um piano na mesma freqüência que 9
Decibel é uma décima parte da unidade de medida Bel,
a produzida por um violino, podemos identificar uma derivação do nome do cientista escocês Alexander
os dois Sons como tendo freqüências idênticas, Graham Bell (1847-1922).
mas com Timbres distintos. A percepção do 10
Visto sob outra perspectiva, em vez de dizer que um único
Timbre é freqüentemente comparada à instrumento possui timbres diferentes, seria possível dizer
“coloração dos Sons”. Eis uma imagem que pode que um único instrumento possui nuances timbrísticas
diferentes.

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clara de compreender o conceito de Melodia é Harmonia que se ocupa, num processo lento e
imaginando (ouvindo) uma linha de sons árduo, dessas questões. Na linguagem cotidiana,
consecutivos, uma espécie de traço, geralmente a fronteira entre Harmonia e Acorde é tão tênue
sinuoso, desenhado na direção horizontal. Cante que não há uma clara diferença, ambos são
um trecho de uma canção qualquer, uma utilizados indistintamente. Pode-se dizer que a
cantiga de criança, independente de lembrar-se Harmonia de uma peça musical se constitui de
da letra ou não, basta você a cantarolar. Dessa uma série (ou encadeamento) de Acordes. Você
forma, você estará reproduzindo com sua voz pode se surpreender com a Harmonia (geral) de
uma Melodia, também dita Linha Melódica. A uma peça. Você pode se surpreender com um
Melodia é uma seqüência de Notas musicais determinado Acorde (específico) de uma peça.
organizada sobre alguma estrutura rítmica. Tenho observado a existência de um erro
recorrente: certas pessoas, ao falarem de uma
Rítmica? Mas o que é ritmo? determinada posição dos dedos no braço do
violão, denominam-na “Nota”. Corrigindo:
É um conceito complexo, pois ele está nesses casos, o nome correto é “Acorde”. Uma
presente em todas as atividades espaciais e Nota musical, como já disse, refere-se a um Som;
temporais. Podemos pensar no Ritmo das mais de duas Notas simultâneas são
estações do ano, do caminhar, da fala, de denominadas Acorde. Dessa forma, você pode
qualquer coisa que tenha periodicidade. Mas dizer, por exemplo, “tal Nota do Acorde tal está
uma definição aproximada poderia ser: Ritmo desafinada”.
é a subdivisão do tempo em partes mensuráveis,
ou seja, a medição do tempo segundo a Ouvi falar de acorde dissonante.
periodicidade do Som. Bata palmas e você estará O que é dissonância? É algo ruim?
provocando algum tipo de Ritmo. O Ritmo
compreende não apenas o posicionamento ou
Como vimos, a experiência pitagoriana
espaçamento do Som no tempo, mas também
descortinou as superposições sonoras da corda
sua duração. Outros conceitos musicais
esticada, os ditos Harmônicos. À ordenação
relacionados ao Ritmo são a Pulsação – que vem
de pulso, de batida – e o Andamento, que indica desses Harmônicos numa determinada
a velocidade da Pulsação de uma peça musical. seqüência, foi dado o nome de Série Harmônica.
Bata palmas de novo e caminhe Grosso modo, os primeiros Harmônicos de uma
simultaneamente – agora você estará série – os que se encontram mais próximos ao
provocando algum tipo de Ritmo em algum Som fundamental (isto é, o Som resultante do
Andamento. Podemos dizer que uma comprimento total da corda) – são considerados
determinada peça musical está num Andamento Consonâncias 11 , pois, devido ao seu
(mais/menos) lento ou (mais/menos) rápido. Na posicionamento (e a outros fatores como sua
música de concerto – desde a Renascença – o “repetição” dentro daquele espectro sonoro),
Andamento se representa com palavras como provocam uma sensação de estabilidade, “de
Adagio, Allegro e Presto, dentre outras. chão”; Já aqueles Harmônicos que se encontram
Se, de um lado, podemos visualizar a mais afastados são considerados Dissonâncias, e
Melodia horizontalmente, de outro, podemos por estarem mais afastados provocariam uma
imaginar (escutar) a Harmonia como Sons sensação de instabilidade. O que determina se um
produzidos verticalmente. A Harmonia é o Acorde é ou não Dissonante é sua estrutura. Vale
ajustamento, a proporção entre as partes de um ressaltar que as Dissonâncias podem estar
todo sonoro, a combinação de Sons simultâneos. relacionadas tanto à Linha Melódica quanto à
No estudo da música a Harmonia é a disciplina estrutura dos Acordes e isso nos aproxima ao
que se ocupa dos Acordes e suas implicações. ponto em que não mais é possível tratar os eventos
musicais separadamente: Harmonia, Ritmo,
O que é acorde? Linhas Melódicas, tudo se entrelaça, eles se
“afetam” uns aos outros. Há também questões
O Acorde é um grupo de três ou mais Sons, históricas da música que determinam as
às vezes dois, executados simultaneamente. A
explicação de suas estruturas e nomenclaturas 11
Consonância é um conceito abstrato que varia conforme o
requer outros conhecimentos que fogem aos período da história da música, e seria, portanto, impossível
limites deste texto – sendo justamente a fixar-lhe uma definição stricto senso.

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aplicações (e validação dos conceitos) das
Dissonâncias e Consonâncias. Por exemplo, o
UT queant laxis, Resonaris fibris, Mira
gestorum, Famuli tuorum, Solve polluti, Labi
Trítono, nome de um Intervalo Dissonante reatum, Sancte Ionnes.13 Posteriormente, Ut foi
específico, era abominado pela igreja católica da substituído por Dó. Outros signos foram também
Idade Média. Seu uso foi proibido e ganhou o incorporados, dentre eles: o Sustenido que
apelido de diabolus in musica. “eleva” a Altura da Nota, o Bemol que a
“abaixa” e o Bequadro que anula o efeito dos
Intervalo? O que é intervalo? signos anteriores. Por exemplo, se à Nota Lá
(padrão da Afinação) é adicionado um bemol,
Denomina-se Intervalo a relação existente o número de vibrações diminui de 440 Hz para
entre as Notas musicais, tanto horizontais aproximadamente 415 Hz, o que nos daria a
(Melodia) quanto verticais (Harmonia). Mas, sensação de ser um Som mais Grave.
retomando o assunto das Dissonâncias, essas, a Resumindo, o sistema atual tradicional ficou
partir da Renascença, ganharam usos cada vez com doze nomes diferentes para representar
mais ricos e extensos. No período Barroco, as certos Sons. Esses Sons, no sistema atual ao qual
Dissonâncias eram tratadas com extrema cautela, estou me referindo, podem ser representados,
e foram criadas, de fato, complexas leis para reger inicialmente, numa seqüência, isto é, numa
seu uso. Elas não podiam aparecer (serem ouvidas Escala musical e são eles: Dó, Ré, Mi, Fá, Sol,
e escritas) de repente, sem preparação, e também Lá, Si, e cada uma dessas Notas pode ser
não podiam desaparecer de repente, sem uma modificada (alterada) com a utilização dos
resolução. Posteriormente as regras foram sendo Bemóis, e Sustenidos (e os Bequadros).
modificadas e, a partir do século XX, com o
surgimento das idéias schoenberguianas12 sobre Surgiu-me uma dúvida: sobre a
dodecafonismo – e demais correntes
subseqüentes como serialismo, aleatorismo,
canção desafinado, de Tom Jobim.
músicas eletrônicas – a Dissonância, bem como É isso mesmo, desafinado? Ele
uma maciça lista de conceitos musicais, foi quer dizer que está desafinado?
redimensionada. Vistas com um zoom mais
próximo, em autores como Chico Buarque, Tom Neste caso, sob o ponto de vista do sistema
Jobim, Edu Lobo, dentre outros, as Dissonâncias musical ao qual venho me referindo – porque
são ricamente exploradas; já em gêneros como há outros sistemas – a palavra Desafinado seria
Pagode, Axé e Arrocha as Dissonâncias são quase imprecisa, pois a Nota musical que provoca
inexistentes. Essa dualidade tensão/repouso aquele “gostinho” – para alguns estranheza,
(Dissonância/Consonância) é uma das questões para outros uma delícia – em “amor” (“se você
mais exploradas na música do Ocidente. disser que eu desafino, amor”), essa Nota não
está, stricto senso, desafinada. Ela é um tipo de
Existe algum sistema de Dissonância, pois na Bossa Nova “isto é muito
codificação dos sons? natural”. Dizer que ela está desafinada,
tecnicamente falando, seria algo como medir o
Existe sim, a partitura. Guido D‘Arezzo (c. amor em centímetros. Ela poderia estar
995-depois de 1033) desenvolveu um sistema desafinada, se o cantor assim o fizer – afinal,
de ensino da escrita e leitura musical, no qual, “os desafinados também têm coração”.
certos Sons são representados com Notas
musicais localizadas em linhas e espaços. Esse Mas, de que forma essa nota
sistema, por ele denominado Solmização, deu
origem à palavra Solfejo. A leitura desses signos poderia estar desafinada?
(pronunciação e leitura das Notas, entonação,
leitura das representações rítmicas e melódicas) Lembre que, como disse, cada Nota
é denominada Solfejo. Uma pessoa está musical possui uma quantidade
solfejando quando está lendo (normalmente em
voz alta) as Notas musicais representadas no 12
Arnold Schoenberg (1874-1951) foi um importante
Pentagrama – o sistema de cinco linhas e quatro compositor do século XX.
espaços, também designado Pauta. D‘ Arezzo 13
Para que teus servos possam cantar livremente as
tomou a sílaba inicial de cada verso do antigo maravilhas dos teus atos, elimina toda mancha de culpa de
Hino litúrgico a São João Batista, que rezava: seus sujos lábios, oh São João.

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preestabelecida de ondulações por segundo –
e tenha sempre em mente que isso é apenas
uma convenção desse sistema. Eu disse também
que a distância entre as Notas se denomina
Intervalo. Pois bem, nesse sistema, a menor
distância possível entre dois Sons (Intervalo) é
designada Semitom (ou meio Tom). Talvez a
visualização de um piano (afinado) seja a
imagem que mais facilite a compreensão: nesse
instrumento você pode ver teclas brancas e
teclas pretas. Se você tocar cada tecla do piano,
uma a uma, da direita à esquerda, ou vice-versa, Lá Bemol, que é, nesse caso, denominado
você estará tocando Semitons, isto é, as Centro Tonal; seria algo como um sistema solar
distâncias “menores” e, dentro desse sistema, (Centro Tonal), no qual, certos planetas (as
as “menores” possíveis. Todavia, é necessário Notas musicais, qualquer uma das doze acima
frisar que dizer “as distâncias menores mencionadas) giram ao seu redor. Utiliza-se a
possíveis” não exclui a existência de outros sons palavra Modulação para dizer que a peça
intermediários, de distâncias ainda menores do musical mudou de um Centro Tonal a outro,
que os Semitons. Eles de fato existem, mas são por exemplo, “a peça modulou de Lá Bemol
utilizados nesse sistema com outra conotação14. menor para Ré Sustenido maior”. O
Pois bem, é ali, justamente nos Sons que se conhecimento da Melodia, da Harmonia e do
encontram entre as distâncias menores, no Ritmo pode conduzir a outro conceito:
“meio do caminho” que residem nossas Polifonia, isto é, Sons elaborados
percepções – fruto da convenção – de sons contrapontisticamente; que conservam a
“desafinados”, de desafinação. Dito também individualidade das Linhas Melódicas. A
em outras palavras, um pianista que execute música de Johann Sebastian Bach (1685-1750)
aquela melodia num piano “bem afinado”, não é considerada o ápice da Polifonia, do
teria condição de tocar a Nota do “amor” de Contraponto.
Jobim desafinada, porque o piano utiliza Sons
que foram previamente ajustados (Afinados). O que é contraponto?
Já outros instrumentos como os de corda (com
algum dedo da mão esquerda, violonistas e É um termo utilizado, desde o século XIV,
guitarristas podem “empurrar” a corda para para designar a combinação horizontal de
cima ou para abaixo alterando a Afinação do Linhas Melódicas. Seria algo como duas ou mais
instrumento), os de sopro, e a voz humana, são pessoas cantando coisas diferentes
capazes sim, de sair da Afinação padronizada, simultaneamente. Para começar, escute alguma
de tocar ou cantar em micro-distâncias, de das “Invenções a Duas Vozes” de Bach (talvez a
atingir algum ponto fora do alvo prefixado. Nº. 1) – a palavra “Voz” é utilizada em música
Invertendo a idéia de Adkins, imagine a noção para designar qualquer Linha Melódica,
de Nota afinada assim: o alvo (Nota musical) é independentemente do instrumento que a
executa. Nessas peças a Linha superior é
pré-estabelecido pelo sistema, e a flecha (o
executada ao piano (ou cravo) com a mão direita
cantor, ou um instrumentista) deve acertar o
e a inferior com a esquerda, criando uma espécie
alvo; se não o fizer, voilà, ele está desafinado.
de diálogo sonoro – o Contraponto. Escute, pelo
menos, três vezes um trechinho da peça. Na
Ao pensar em Jobim, lembrei de primeira vez, concentre-se numa Voz (ou imagine
perguntar o que é tom, ou
tonalidade? 14
Utilizam-se em outras ações como Vibratos. O piano não
é capaz de produzir Vibratos, pois seus Sons estão sujeitos
Dizer que uma música está num à Afinação fixa do instrumento. Já nos instrumentos de
corda, por exemplo, os dedos da mão esquerda podem fazer
determinado Tom, ou Tonalidade, por
vibrar a corda e com isso provocar alterações na Afinação
exemplo, em Lá Bemol Maior, é dizer que os padrão, mas no caso do Vibrato, nosso ouvido não percebe
Sons que se produzem giram em torno da Nota a Nota como desafinada e sim como “embelecida”.

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a mão que a executa). Na segunda vez,
concentre-se na outra Voz. No início pode ser
Chávez que certa vez dissera: “é tão impossível
traduzir música em palavras como traduzir
necessário repetir a audição para melhor “fixar” Cervantes em equações matemáticas”. As
cada Voz. Quando tiver discernido cada uma abordagens que até aqui fiz só terão completado
delas, atente sua escuta às duas Vozes seu sentido se, e somente se, o leitor treinar o seu
simultaneamente, algo como ouvir em stereo, em ouvido. Ouvir é uma prática que está para o
dois canais. Lembra do Olho Mágico? É mais ou músico, para o amante da música – e para você
menos isso, como “escutar em 3D”. que até aqui chegou, meu “desocupado leitor” –
como a leitura está para o escritor. Muito tempo
Podemos pensar que as peças de transpiração é despendido pelos músicos
têm algum tipo de forma? Que envolvidos, muito mais do que os ínfimos e
efêmeros instantes de inspiração. Há uma espécie
conceito é esse? de cadeia “alimentar”, onde cada um se nutre
com o esforço do outro: o compositor escreve para
Se uma peça tem início e fim, então ela tem o instrumentista executar e o instrumentista toca
uma Forma. A Forma é a estrutura ou plano de para o ouvinte escutar. Cada um faz sua parte.
uma composição musical; é objeto da disciplina (E o ouvinte, qual sua parte?) Ao ouvinte cabe o
chamada Formas musicais que estuda prazer de escutar com atenção. Quem tem
especificamente os elementos de construção ouvidos para ouvir, que ouça! (Parábola do
musical. Sonatas, Rondós, Valsas, Choros, semeador).
Forma binária, Forma cíclica, todos esses termos
estão inseridos no conceito de Forma. O Choro
tradicional, por exemplo, tem Forma cíclica, de
Referências:
Rondó: A-B-A-C-A (as letras maiúsculas são
Caesar, Rodolfo. Círculos ceifados. Rio de Janeiro:
utilizadas convencionalmente para representar
7letras, 2008.
cada seção da peça). Quando Erick Satie (1866­
1925) foi criticado como compositor no Chávez, Carlos. O pensamento musical. México D.F.:
conservatório de Paris, porque suas músicas Fondo de Cultura Econômica, 1964.
“careciam de Forma”, ele revidou compondo Dahlhaus, Carl editor. Brockhaus Riemann Musik
suas irônicas “Três Peças em Forma de Pêra”. Lexicón. 5 vols. Mainz: Serie Musik Piper Shott, 1979.
Certas Formas musicais possuem procedimentos Dourado, Henrique Autran. Dicionário de termos e
básicos, que não são únicos nem necessários. De expressões da música. São Paulo: Editora 34, 2004.
modo geral esses procedimentos poderiam ser: Ferraz, Silvio. Notas Atos Gestos. Rio de Janeiro: 7letras,
exposição do(s) tema(s), às vezes precedido(s) de 2008.
uma introdução; desenvolvimento (ou variações) Giannetti, Eduardo. O livro das citações. Companhia
do(s) tema(s); re-exposição do(s) tema(s) que, por das Letras. São Paulo: Schwarcz, 2008.
sua vez, é passível de variações e mutações. Tudo Grout, Donald Jay. Historia de la música Occidental.
depende da escolha e objetivo do compositor. Traduzido por León Mames. Madrid: Alianza Editorial,
Em certas ocasiões, há também uma Coda. 1980.
Kerman, Joseph. Musicologia. Traduzido por Álvaro
Coda, o que é isso? Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
Milan, Luys. El Maestro opere complete per vihuela. 1ª
Essa palavra indica a seção derradeira de ed. 1535-36. Editado por Ruggero Chiesa. Milano:
uma peça musical, e eu aqui a utilizo para Edizioni Survini Zerboni, 1974.
escrever as palavras finais deste texto. Coda: Sadie, Stanley editor. The New Grove Dictionary of
qualquer um dos conceitos supracitados encontra Music and Musicians. London: McMillian, 1980.
páginas extensas que os tratam sob diversos Schafer, Murray. O ouvido pensante. 1ª ed. 1986.
ângulos – muitas vezes divergentes. Portanto, o Traduzido por Marisa Fonterrada et al. São Paulo:
panorama que fiz nada mais é do que uma Unesp, 1992.
aproximação. Esforcei-me em configurá-los da Schopenhauer, Arthur. O mundo como vontade e como
maneira mais clara que me foi possível; confesso representação. Traduzido por Jair Barbosa. São Paulo:
que jamais imaginei encontrar tantas dificuldades UNESP, 2005.
de simplificar certos termos. De alguma forma, Schoenberg, Arnold. Harmonia. Traduzido por Marden
sofri as palavras do compositor mexicano Carlos Maluf. São Paulo: UNESP, 1999.

60 REPERTÓRIO

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