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A MÚSICA E O NÓ: UMA ANALOGIA

Cian Barbosa

Foi Rousseau o primeiro a articular com clareza esse potencial expressivo da música
como tal quando afirmou que a música, em vez de apenas imitar as características
afetivas do discurso verbal, deveria ter o direito de “falar por si” ​– ao contrário do
enganoso discurso verbal, na música (parafraseando Lacan) é a própria verdade que
fala. (ŽIŽEK, 2008, p. 508)

Este ensaio é um esforço de articular algumas ideias interdisciplinares, explorando


conceitos como ferramentas para conectar diferentes campos, condições talvez, do
pensamento. Se pretende respeitar os limites convencionais estipulados para os campos dos
respectivos conceitos na medida em que a forma do ensaio permite, em especial para um
ensaio abertamente experimental, mas é de extremo interesse trabalharmos com as definições
elaboradas pelos autores e que são centrais nesses campos. Em primeiro lugar, trazemos uma
analogia diferente para pensarmos o nó borromeano, o RSI como formulado por Lacan1.
Entretanto, este ensaio não se pretende “clínico”, não parte de alguém com uma prática
clínica, e também não se endereça especificamente para psicanalistas. Antes, é um exercício
experimental de tentar pensar com a música, tomar a música como uma forma de
pensamento, junto à teoria lacaniana, e assim engajar também na exposição de elementos
(estruturais, por assim dizer) formulados na psicanálise e que são aqui considerados
relevantes para pensarmos questões caras à crítica e à teoria social.
Procurando estabelecer uma analogia através da música, vale lembrar algumas coisas.
Primeiro, assumimos aqui que a música é necessariamente (mas não só) uma linguagem, uma
forma de pensamento ​– cujas relações com a matemática, por exemplo, os pitagóricos
estudam há mais de dois mil anos. Há alguns comentários sobre Freud que sugerem de sua
parte uma aversão à música, coisa desmentida, ao menos em parte, pelo seu filho Ernest ao
nos dizer que "Freud gostava de Mozart e que cantarolava melodias quando estava só"
(Mannoni, citado por Ribeiro, s/d.)2. Na filosofia moderna ocidental, foi Schopenhauer talvez
a maior referência enquanto o primeiro a tratar a música como central em sua metafísica. Já
na filosofia do século XX por exemplo, foi Susanne Langer, neokantiana especialista em
lógica moderna, quem formulou a hipótese de que o canto e a dança deram origem à
linguagem verbal. Anchyses Jobim Lopes descreve e comenta a hipótese de Langer da
seguinte maneira

As expressões coletivas da sexualidade e a agressividade, originalmente


desagregadoras, tornaram-se instrumentos a serviço da coesão do grupo.
Com os séculos (quantos milênios?) a música foi decomposta em sons, os
sons viraram fonemas e começaram a ser repetidos com a finalidade de
designarem objetos e ações. As ações motoras da dança diminuíram de

1
O RSI se constitui e perpassa por quase toda a obra de Lacan, chegando finalmente a ser nome e tema do
Seminário XXII.
2
Francisco Duarte, ​Freud e a música, 2​ 017.
intensidade e foram transformadas em gesto e mímica. A laringe humana
com sua infinita possibilidade de emitir sons, sofisticação de laringe que
primo primata algum possui sequer vestígio, corresponde à gigantesca área
cortical, que junto com as áreas de controle das mãos e do rosto tornam
grotesco o homúnculo de Penfield, figura que é uma representação gráfica
de nossa humanidade, extensas áreas corticais utilizadas para: o canto, o
gesto e a mímica facial. Logo, a ontogênese apenas recupera a filogênese.
(​LOPES, 2006)

Essa é uma grande hipótese que por si só possibilita infindas reflexões. Considerar
que instrumentos como flautas que datam por volta de 60.000 anos nos faz ter ao menos uma
fração da dimensão temporal de desdobramentos materiais da música. E a própria
emergências de questões acerca de uma ontogenia e uma filogenia da música evocam
também a possibilidade de ao menos considerar a possibilidade (ou necessidade) de algo
como uma ​sociogenia​.3 Apesar de não ser a proposta desse texto investigar tal hipótese, é
importante dizer que, mesmo sem tomá-la como comprovada, apresenta elementos
considerados aqui relevantes (como a ideia da musicalidade enquanto promotora de coesão de
grupos) para pensarmos a relação entre música e uma representação estrutural dos registros
da realidade, que é o intuito da própria analogia apresentada por Lacan com o nó
borromeano. Em que consiste o RSI? Nos diz Lacan já em 8 de julho de 1953, na conferência
intitulada ​O simbólico, o imaginário, o real (durante a abertura das atividades da Sociedade
Francesa de Psicanálise) que essa é uma representação onde se encontram os três registros
essenciais da realidade humana.4 Essa estrutura, que tem a forma de um nó chamado
borromeano (ou borromeu), consiste em três círculos enlaçados de forma a não passarem um
por dentro do outro, mas sobrepondo-se uns sobre os outros enquanto se intercalam, de tal
maneira que, se um se ausentar, os outros dois não estariam intrincados.

3
Termo usado por F. Fanon em ​Pele negra, máscaras brancas.​ 2008. EDUFBA.
4
CLAVURIER, Vincent. Real, simbólico, imaginário: da referência ao nó.​ Estud. psicanal.​, Belo Horizonte, n.
39, p. 125-136, jul. 2013 .
Importante termos em mente que há um nível de analogia operando nos usos que
Lacan fez da topologia, mas aqui em especial essa representação é significativa para
exemplificar como as três partes dessa estrutura se relacionam, como estão envolvidas nessa
relação. Passaremos a conceituá-las em uma analogia com as três categorias da estrutura
musical, a saber, a melodia, a harmonia e o ritmo. Respectivamente, de acordo com a
estrutura lacaniana, teríamos assim o imaginário, o simbólico e o real. O esquema RSI deve
ser, entretanto, compreendido nessa analogia como algo que opera nas três dimensões
(melodia, harmonia e ritmo), “apesar” da linearidade na analogia ​– ​ou seja, apesar da relação
linear e respectiva apresentada: sendo o ritmo uma analogia do Real, no próprio ritmo há a
estrutura do RSI (Real, Simbólico e Imaginário), e assim se segue consecutivamente.

A Melodia e o Imaginário

Estamos partindo da ideia, com que, tal um bordão, há muito tempo, os


venho atazanando, de que não há meio de apreender o que quer que seja da
dialética analítica se não assentarmos que o eu é uma construção imaginária.
O fato dele ser imaginário, isto não retira nada a este pobre eu ​– diria até que
é o que eel tem de bom.​. (LACAN, 1954-55/1985, p. 306).

Pensar o imaginário enquanto melodia implica a compreensão de que é na melodia


onde encontramos uma primeira ​gestalt d​ a música apresentada enquanto tal. Murmurar uma
sequência de notas não remete a um paralelo com a lalação (o balbuciar de ensaio da fala pelo
qual passa o bebê), uma referência5 também do conceito de ​lalangue​? Como escreveu Quinet
acerca do texto sobre Joyce, onde ”Lacan redefine o sintoma como acontecimento de corpo,
afirmando que este corpo está ligado ao que dessa língua se canta” (QUINET, 2016, p. 248),
podemos considerar o corpo como ligado à melodia mesmo, considerando a relação direta da
dimensão melódica com a voz.
Dessa forma a melodia assume também a intrusividade da voz, e sua dimensão
contagiante, pegajosa até, afinal, a experiência de ter uma melodia presa na cabeça não é
comum? Aqui percebemos como a melodia apresenta uma relação com a dimensão intrusiva
da linguagem. Mas na analogia proposta ela se situa no imaginário justamente porque ​a
melodia desenha uma imagem na/da música​. O próprio fato de que, genericamente, qualquer
linha musical, até mesmo percussiva, pode ser cantada, solfejada ou até mesmo executada
(como é com o beatbox, onde a boca se torna o instrumento percussivo), são exemplos de
como a melodia é via fundamental pela qual a música é imaginada e compartilhada na
dinâmica da oralidade ​– ​e nisso trazemos também a questão do tempo da oralidade e do
tempo da escrita, do cíclico e do linear, aspectos da temporalidade articulados na melodia
mas também no ritmo, ou ainda: na forma como o ritmo se apresenta também melodicamente.
Convencionalmente, o objetivo da harmonia é de acompanhar a melodia: a voz, todo
instrumentista sabe, é quem guia a música. Seu efeito é esse também quando, de um refrão,
remanesce uma “imagem da música”.
5
Como nos diz Quinet: “O “tralá-lá-lá-lá-lá” da música é componente integrante e fundamental do conceito de
lalíngua presente nessa tradução criada pelo poeta.”
Cantarolar aquela impressão musical, mesmo que breve, mas gravada na memória
(podemos pensar aqui desde ​für elise​, eternizada como jingle da entrega de gás de cozinha em
caminhões, passando por hinos nacionais, trilhas sonoras, etc ​– ​quase como imagens
melódicas do cotidiano) são experiências tão frequentes como flagrantes da inscrição da
música, ainda que através da fala (ou do canto), no corpo e na memória. Uma melodia
também é uma estrutura consideravelmente arbitrária: quantas variações de notas seriam
necessárias? Qual seria a ordem necessária para se organizar as notas de forma a considerar
que seja ou não uma melodia? É até tentador dizer aqui que há uma relação com aspectos
levantados por Lacan acerca do ​estádio do espelho,​ onde a melodia seria uma primeira
apresentação, uma ​identificação com a música, ou com um aspecto da música que é crucial, a
saber, o aspecto melódico enquanto “​transformação produzida no sujeito quando ele assume
uma imagem” (LACAN, 1949/1996, p. 98). Essa primeira noção de totalidade de um corpo
que nos é apresentada, se ela é guiada pela voz, é a melodia que apresenta uma primeira
totalidade de um corpo musical.

A Harmonia e o Simbólico

Eu não estava-lhes dizendo que acreditava que a linguagem estivesse na


origem ​– quanto a mim, nada sei das origens. Mas a propósito deste termo
ambíguo, eu queria questionar aquilo com que, durante um momento, vocês
todos concordaram, de que os pequenos 0 e os pequenos 1 definam um
mundo de leis irrefutáveis, isto é, que os números são primeiros desde
sempre.366

Chegando no Simbólico, a dimensão do Outro, da linguagem, do laço social. Escritos


de harmonias tem registros desde, ao menos, 1400 a.c., onde foram encontrados na região que
hoje é o Iraque (antiga Babilônia) tábuas com a representação de instruções para a execução
musical de uma harmonia composta de terças, escrita sobre uma escala diatônica.6 Há uma
ironia já mesmo ao cogitar uma analogia entre o simbólico, no sentido lacaniano, e
“harmonia”, ironia que cabe bem a esse registro já que é onde se encontra a falta, onde se
encontra a clivagem​, ou seja, a emergência do sujeito para Lacan7 implica certa desarmonia.
Disse Lacan que a instância do ​eu “só se unirá assintoticamente ao devir do sujeito, qualquer
que seja o sucesso das sínteses dialéticas pelas quais ele tenha que resolver, na condição de
Eu,​ a discordância com sua própria realidade.”8 Essa discordância consigo, dado que ​isso
pensa,​ algo que está mais em mim que eu mesmo (em última instância, o inconsciente),
impossibilita surgir algo como uma “harmonia” (no sentido de estabilidade, equilíbrio, etc.).
Mesmo assim, é no simbólico que se dá o laço social ​– ​e é na linguagem, na fala, na
conversa, no diálogo, etc, que se depositam esperanças para a solução de conflitos políticos.

6
KILMER, Anne Draffkorn; Civil, Miguel, 1986, "Old Babylonian Musical Instructions Relating to Hymnody".
Journal of Cuneiform Studies​.
7
Como nos diz Badiou, “​Lacan cria um novo conceito de sujeito, cuja constituição é a divisão original, a
clivagem​.” (BADIOU, 2015, p. 10)
8
J. Lacan, ​O estádio do espelho como formador da função do Eu.​ Em ​Um mapa da ideologia.​ 1996.
Contratempo.
Aqui talvez possamos sugerir uma virada um tanto mais subversiva e considerar que é na
própria linguagem onde também a violência é elaborada. Indo além, talvez seja possível dizer
que há uma violência do próprio simbólico, algo que Hegel mesmo já apontava.9 Existe
também uma violência da música, e ela é particularmente simbólica em seu registro
harmônico.
Trazer a sua dimensão enquanto registro musical requer aprendermos com a
experiência desse saber que tensões e resoluções são fundamentalmente relações entre notas e
seus intervalos e, mais especificamente, a relação estrutural e sua funcionalidade que
derivam, basicamente, da relação entre notas, (entre ​três notas em um acorde, por exemplo).
Talvez também possamos dizer com isso que a harmonia, na música, revela que não há nada
como uma harmonia universal, mas relações estruturais elementares que produzem harmonias
(ou “desarmonias”), relações de tensão ou resolução, campos que se definem pela estrutura
de intervalo entre determinadas frequências. Tanto as associações possíveis com diferenças
básicas mais conhecidas (entre acordes e harmonias menores ou maiores, por exemplo), e
remontando à convenção da escala temperada (uma clássica convenção historicamente
situada e que estrutura simbolicamente a harmonia de forma ampla no ocidente) que
conhecemos, composta por 12 semitons (dó, ré, mí, fá, sol, lá, si e respectivos intervalos), a
harmonia é onde se estabelece uma relação estrutural com a melodia. É possível estabelecer
diversas, praticamente infindas, harmonias para uma mesma melodia.
A relação entre melodia e harmonia poderia ser metaforizada inclusive com a relação
gestáltica entre figura e fundo, respectivamente. A harmonia estabelece, a partir de
determinadas convenções, uma perspectiva sobre a melodia; que por sua vez também
influencia na percepção do próprio espaço possível da harmonia. A harmonia funcional
oferece, por exemplo, meios de pensar então as tensões, dissonâncias e soluções musicais ​em
função da melodia.​ Logo na primeira página de seu escrito ​Intervenção sobre a transferência,​
há uma nota de rodapé onde Lacan associa o efeito Zeigarnik a uma experiência gerada no
registro harmônico da música, nos dizendo que “​trata-se de um efeito psicológico que se
produz de uma tarefa inacabada quando ela deixa uma Gestalt em suspenso: a da
necessidade, por exemplo, geralmente sentida, de dar a uma frase musical seu acorde
resolutivo”​ (LACAN, 1966/1978, p. 87), apresentando assim uma relação entre a harmonia e
os efeitos sentidos quando esta não é “resolvida”. Assim, também a harmonia usa desses
efeitos na música, e a harmonia é por excelência o espaço de tensionamento dos afetos
proporcionados pela experiência musical. Talvez a maior evidência seja ao, quase que
intuitivamente, relacionarmos tristeza ou felicidade com acordes menores ou maiores. Isso
sugere um efeito de significante próprio à harmonia, operando assim fundamentalmente no
registro do simbólico.

9
“​Como Hegel já sabia, há algo de violento no próprio ato de simbolização de uma coisa, equivalente à sua
mortificação. É uma violência que opera em múltiplos níveis. A linguagem simplifica a coisa designada,
reduzindo-a a um simples traço. Difere da coisa, destruindo sua unidade orgânica, tratando suas partes e
propriedades como se fossem autônomas. Insere a coisa num campo de significação que lhe é, em última
instância, exterior”. (​ ​ZIZEK, 2008, p. 59)
O Ritmo e o Real

Assim, há quem nos diga, por exemplo, que o real é sempre pleno. Isso faz
efeito, soa com um arzinho que dá crédito à coisa, um arzinho daqui, de um
lacaniano de boa cepa. Quem pode falar do real desse jeito senão eu? O
chato é que eu nunca disse isso. O real fervilha de ocos, pode-se até fazer
dele o vazio. O que digo é totalmente diferente. É que ao real não falta nada.
(LACAN, 1962-63/2005, p. 204)

Finalmente, para abordar o ritmo enquanto o real, devemos compreendê-lo primeiro


tanto como um ​suporte como condição d​ a própria música, tanto enquanto algo que inscreve
intervalos no tempo e baseia sua ideia de tempo pelas divisões e subdivisões em intervalos
iguais (convencionalmente em referência às batidas por minuto), e também como elemento
celular, onde uma célula rítmica se define por um padrão agrupado que inscreve em um
espaço uma determinada forma de inscrições de notas que se repetem e definem uma noção
de compasso. Pensar nos compassos musicais possibilita compreendermos a dimensão de
escritura do ritmo que compõe uma experiência de tempo: o “um, dois” no samba e o “um,
dois, três” da valsa são exemplos do Real do ritmo, seu caráter formalizável, sua
característica enquanto ​escritura rítmica. Isso é dizer também que o ritmo é uma condição
para a música no sentido de que não basta imitar um pássaro, mas de aplicar o canto em um
suporte rítmico, por não haver por definição melodia sem ritmo, e talvez seja possível deduzir
disso que o ritmo é efeito do significante.​ A dimensão percussiva já é presente no corpo desde
as palmas com as mãos, indo até sua extrapolação instrumental em percussões elementares
como a estrutura de um tambor ​– ​seria possível dizer que há uma relação muito peculiar entre
corpo e percussão como extensão do próprio ​e no próprio corpo (como dizia o poeta, “o
bumbo é como um soco; a caixa é como um tapa”). A história da percussão nos remete
diretamente à história humana e, assim, ao continente africano, locus de aperfeiçoamento
máximo das técnicas percussivas.10
O ritmo é um padrão, sendo assim está diretamente ligado à ​repetição.​ Pode soar um
tanto óbvio dizer que sem repetição não há ritmo, mas esse é um fato que talvez possa ser
pensado junto ao sentido propriamente psicanalítico de ​repetição​. O intervalo entre
repetições, a frequência de um ​pulso demarcando justamente uma inscrição, uma intervenção
sonora no espaço ​e no tempo – ​ ​vale lembrar que, se tratando de música, o tempo se refere
diretamente ao ritmo, tanto em termos de compasso quanto de batidas por minuto – ​ ​o ritmo
então apresenta também um caráter de formalização possível do tempo (​para citar Igor
Stravinsky, “​a música pressupõe, antes de tudo, certa organização no tempo, uma cronomia, se me
permitem esse neologismo” (STRAVINSKY, 1996 apud LOPEZ, 2006)​. É importante enfatizarmos
aqui a dimensão da inscrição e do corte: um ritmo representa o real tanto quanto comporta
uma inscrição (simbólica) desse real no tempo (tempo esse que, retroativamente, é produzido
pela inscrição rítmica), e não é a toa que o ritmo é base para referência dos gêneros musicais
em sua dimensão mais radical ​– ​células rítmicas definem o maracatu, samba, funk, ijexá,
passando pelas ​talas indianas, o ​nyabinghi ​rastafari, a ​cáscara cubana, etc. A especificidade

10
RODNEY, Walter, 1972, ​How Europe Underdeveloped Africa. London: Bogle-L’Ouverture Publications,
de um ritmo se dá na forma que ele produz, demarcando um padrão sonoro, uma inscrição do
(e no) tempo ​– ​isso podemos considerar para o pulso rítmico básico de intervalos
homogêneos até para células rítmicas sincopadas.
Com essas considerações, a intenção aqui é atentar para a possibilidade de pensar o
ritmo como algo que contém o que também encontramos na matemática, ao menos de acordo
com Lacan. Em ​Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, ele menciona a
matemática enquanto algo que “pode simbolizar um outro tempo, notadamente o tempo
intersubjetivo que estrutura a ação humana” (LACAN, 1966/1978, p. 151). Não poderíamos
aferir essa matemática elementar do ritmo ​– ​e as derivações propriamente matemáticas acerca
da lógica fracionária dos compassos, por exemplo (¾, ⅞, etc.) ​– ​enquanto um princípio
universal da música, mesmo antes de ser propriamente formulado e literalmente escrito, mas
uma inscrição que perpassa toda a fundamentação elementar da música e sua prática,
enquanto fenômeno social/cultural?

Música, Afetos, Ideologia

Como explica Schopenhauer, a música encena/exprime diretamente a


Vontade numenal, enquanto a fala fica limitada ao nível da representação
fenomenal. A música é a substância que retrata o verdadeiro âmago do
sujeito, que é o que Hegel chamou de “Noite do Mundo”, o abismo de
negatividade radical: a música torna-se portadora da verdadeira mensagem,
que está além das palavras, com a passagem do sujeito iluminista do Logos
racional para o sujeito romântico da “Noite do Mundo”, isto é, a passagem
da metáfora para o cerne do sujeito do Dia para a Noite. (ŽIŽEK, 2008, p.
508)

Essa concepção apresentada sobre a música não deve, entretanto, servir para forçar
nenhuma canonização mistificadora e vislumbrada, tendo em vista o que está em jogo aqui: a
capacidade da música em influir sobre nossos afetos é privilegiada de tal modo que é preciso
reconhecer algo de caráter muito ambíguo em seus usos (e maus usos), sendo ela uma forma
de organizar o ​impossível q​ ue, por definição, não oferece nenhum critério de certeza
político-ideológica justamente por operar em um nível elementar da (produção da) realidade
humana. Vale relembrar, por exemplo, Walter Rodney alertando para o uso da música negra e
popular estadunidense pelo imperialismo cultural em África como forma de cativar ouvidos e
ouvintes para as transmissões da “​Voz da América​”, só para ressaltarmos que mesmo as mais
sublimes das músicas podem ter um uso político ideológico. Mas esse fato ainda aponta, mais
precisamente, para um uso da música. É preciso ressaltar ainda a hipótese de que a música é o
espaço por excelência onde a ​natureza enganosa dos afetos11 se evidencia. Em um

11
O desdobramento lacaniano da tese de Freud sobre a angústia enquanto o único afeto que não mente, sendo
assim uma indicação da proximidade com o Real, tem por consequência que todas as emoções mentem por
princípio.
comentário ​sobre a Nona Sinfonia de Beethoven12, Žižek argumenta um ponto realmente
intrigante sobre seu quarto movimento (a Ode à Alegria):

Na França, Romain Rolland a elevou enquanto a ode humanista à irmandade


de todos os povos (“a Marselhesa da humanidade”). Em 1938, foi tocada
como o ponto alto do Reichsmusik​tage e, depois, no aniversário de Hitler.
Na China, durante a Revolução Cultural, numa atmosfera de rejeição aos
clássicos Europeus, ela somente foi redimida como uma peça exemplar da
luta de classes progressista. Na década de 1970, durante o tempo em que os
times olímpicos da Alemanha ocidental quanto oriental tiveram que
participar enquanto um só time alemão, foi o tema tocado sempre que a
Alemanha ganhava uma medalha de ouro. O regime supremacista branco
rodesiano de Ian Smith que proclamou independência no fim da década de
1960 para manter o apartheid, também proclamou a mesma música como
hino nacional. Até mesmo Abimael Guzman, o líder do grupo terrorista
maoísta Sendero Luminoso, quando perguntado qual música ele ama,
mencionou o quarto movimento da Nona de Beethoven.

Essa abrangência é notável e não se pode deixá-la passar despercebida, quase como se
pudéssemos imaginar todos os inimigos históricos unidos por uma só peça musical, como
provoca Žižek. Mas a sua leitura propõe que poderíamos mudar a perspectiva de análise
dessa música. Após o compasso 331, quando há uma mudança do tom e da cadência, onde a
melodia principal toma o estilo de uma marcha turca, um tom quase carnavalesco, ele propõe
interpretarmos tal mudança como um ​retorno do recalcado​, quase como um choque de
realidade necessário para todos aqueles que pretendem celebrar a “irmandade dos homens
sobre a terra”: a verdade dessa humanidade não pode ignorar o fato de que a categoria do
humano sempre carrega uma sombra de universalização ideológica que foi usada durante a
história para excluir alguns do “reino da humanidade.” A celebração da humanidade não pode
ocorrer sem prestar contas com essa verdade. E muito frequentemente essa humanidade é
evocada quando, silenciosamente, é necessário ocultar aqueles que estão excluídos desta
universalidade humana. A Ode à Alegria, indica Žižek, cumpriria aqui a função de um
verdadeiro ​significante vazio (tal qual a liberdade13 cumpre, por exemplo, nos discursos
ideológicos). Ele inclusive sugere que Beethoven poderia estar, no nível musical, praticando
algo como uma ​crítica da ideologia14. Na continuação da citação que abre esta parte final
desse ensaio, Žižek aponta para a passagem da transcendência externa para o excesso da
Noite no próprio coração do sujeito, a dimensão do Não Morto:

O que a música exprime não é mais a “semântica da alma”, mas o fluxo


“numenal” subjacente de ​jouissance que está além da expressividade

12
Slavoj ​Žižek ​em ​Os sons perturbadores da marcha turca​,
(​https://inthesetimes.com/article/the-disturbing-sounds-of-the-turkish-march​)

13
A noção de significante vazio expressa aqui um significante nodal que sutura a totalidade de um discurso e
não possui sentido preestabelecido em si. ​Não é muito difícil mostrar como o sentido de liberdade é totalmente
vazio e em disputa, mudando radicalmente de acordo com a totalidade discursiva e seu fundo ideológico.
Podemos ver, por exemplo, a mudança de paradigma operada por Marx em sua crítica à economia política e os
limites da compreensão liberal de liberdade.
14
Para esse comentário, ver em ​O Guia Pervertido da Ideologia​ (2012), de Sophie Phiennes.
linguística. Essa dimensão numenal é radicalmente diferente da Verdade
divina transcendente pré-kantiana: é o excesso inacessível que forma o
próprio âmago do sujeito.
Entretanto, se olharmos mais de perto, não conseguimos evitar a conclusão
de que a própria música – em sua entrega “apaixonada” e bastante
substancial de emoções, louvada por Schopenhauer – não só também pode
mentir, como ​mente num modo fundamental quanto ao seu próprio estatuto
formal​. (ŽIŽEK, 2008, p. 509)

Sobre a celebração da música como “entrega direta da imersão do sujeito no gozo


excessivo”, a crítica de Žižek na sequência de seu texto se dá sobre uma análise de ​Tristão de
Wagner, argumentando que a celebração da música enquanto essa imersão na “Noite do
Mundo”, que atuaria o que palavras só indicam impotentemente, não é a verdade inefável da
obra.

A maneira como o casal apaixonado é arrastado de forma inexorável à


consumação de sua paixão, o “mais alto prazer/​höchste Lust​” de uma
autoaniquilação extasiada – será esta, entretanto, a “verdade” metafísica da
obra, sua verdadeira mensagem inefável? Por que, então, esse escorregar
inexorável para o abismo da aniquilação é tantas vezes interrompido por
invasões (muitas vezes ridículas) de fragmentos da vida cotidiana ordinária?
[...] A “verdade” não está na queda apaixonada na autoaniquilação, afeto
fundamental na ópera, mas nos acidentes/invasões narrativas ridículas que a
interrompem – mais uma vez, o grande afeto metafísico ​mente.​ (​Idem,
Ibidem.​)

Este é um ponto importante especialmente nos dias de hoje, para os que consideram
ser uma questão relevante, até um perigo, a celebração cega e compulsiva de uma “entrega
direta da imersão do sujeito no gozo excessivo.” Em tempos onde a música também serve
como meio de imersão e conformidade ideológica, e considerando a analogia aqui construída,
não é absurdo considerar que não só é necessário como é desejável uma crítica da música,
desde que considere-a em sua melodia, harmonia e, fundamentalmente, ritmo – não só no
sentido literal, mas também em sua dimensão real. Ao buscar o real da música é necessário
considerar sua capacidade não só de mentir, mas justamente de produzir realidade. Para
lembrarmos Chico Science, enquanto uma organização do tempo, a música talvez produza
também efeitos de desorganização. O álbum de Chico, referência clássica do ​manguebeat,​
“​Da Lama ao Caos​” (1994) é uma obra exemplar que revela em sua amarração uma
verdadeira estética da interação entre passado e presente, da contradição, da dessemelhança
até: os tambores de alfaia violentamente sincopados soando junto a guitarras elétricas – com
timbragens que não remetem a tentativas toscas de cópia dos timbres de 1970 – e influências
do hip-hop ao funk estadunidense (que podem ser sintetizados no neologismo “​mangroove”​ );
as máximas que passam por “o homem coletivo sente a necessidade de lutar”, “são demônios
os que destroem o poder bravio da humanidade”, “banditismo por uma questão de classes”;
“a responsabilidade de tocar o seu pandeiro é a responsabilidade de você manter-se inteiro.”
Na música ​A Cidade,​ ouvimos um pandeiro marcando, e ​em seu ritmo entram as
vozes com os versos ​“​Oi minha amada veja o que eu vou lhe contar / Não se preocupe que eu
não vou lhe perturbar / Eu tenho pena de ver o seu sofrer / Aí meu canto e vamos nós
juntinho viver / Eu tenho pena de ver o seu sofrer​”, um canto pitoresco, que remete a uma
dimensão interiorana, ao cancioneiro tradicional na música popular. Simultaneamente,
entretanto, o real se apresenta, progressivamente, com a intrusão do grave das alfaias, em
uma síncope do maracatu que atravessa o tempo anterior da canção: e talvez seja possível
dizer que, nessa altura do álbum, a alfaia, referência ao “tradicional”, já soa atual. Mas nada
mudou na alfaia ou na síncope do maracatu, apenas a perspectiva do observador que é
deslocada pelo meio melódico e harmônico eletrificado: como se essa mediação (nos
registros da melodia e harmonia) produzisse um deslocamento, uma ​paralaxe15. Então,
ouvimos enfim os versos finais dessa voz: “​Boa noite pra quem chegou / Boa noite pra quem
tá chegado​” e, assim, entram os instrumentos elétricos. As das guitarras, uma quase serra
elétrica, a outra entre o funk e o maracatu, são bases para os versos: “O sol nasce e ilumina as
pedras evoluídas / Que cresceram com a força de pedreiros suicidas / Cavaleiros circulam
vigiando as pessoas / Não importa se são ruins, nem importa se são boas / E a cidade se
apresenta centro das ambições / Para mendigos ou ricos e outras armações / Coletivos,
automóveis, motos e metrôs / Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs / A cidade não para,
a cidade só cresce / O de cima sobe e o de baixo desce” que ecoam ainda como um dos versos
mais emblemáticos na música brasileira (tendo o último verso compartilhado também com o
grupo ​As Meninas)​ . Chico é, sem dúvidas, uma referência aqui para pensarmos uma música
que não se reduz ao ​gozo excessivo da lógica automatizada, investindo em revelar o outro
lado desse excesso, a sua verdade não dita, efeito daquilo mesmo que retroalimenta esse
excesso: a cidade feita não para, mas por pedreiros, por isso mesmo suicídas. Seu gesto não
cultua um passado perdido, mas não abdica dos elementos locais, "tradicionais", etc. Chico
nos traz a dimensão da emancipação dos próprios instrumentos em sua música, emancipação
mesmo dos seus lugares demarcados. Esse efeito que altera o objeto deslocando o sujeito,
muda também o objeto. Talvez seja essa uma das maiores lições estéticas deste álbum,
caminho inescapável para se pensar arte e crítica: a violência emancipatória na música de
Chico Science.

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