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Cian Barbosa
Foi Rousseau o primeiro a articular com clareza esse potencial expressivo da música
como tal quando afirmou que a música, em vez de apenas imitar as características
afetivas do discurso verbal, deveria ter o direito de “falar por si” – ao contrário do
enganoso discurso verbal, na música (parafraseando Lacan) é a própria verdade que
fala. (ŽIŽEK, 2008, p. 508)
1
O RSI se constitui e perpassa por quase toda a obra de Lacan, chegando finalmente a ser nome e tema do
Seminário XXII.
2
Francisco Duarte, Freud e a música, 2 017.
intensidade e foram transformadas em gesto e mímica. A laringe humana
com sua infinita possibilidade de emitir sons, sofisticação de laringe que
primo primata algum possui sequer vestígio, corresponde à gigantesca área
cortical, que junto com as áreas de controle das mãos e do rosto tornam
grotesco o homúnculo de Penfield, figura que é uma representação gráfica
de nossa humanidade, extensas áreas corticais utilizadas para: o canto, o
gesto e a mímica facial. Logo, a ontogênese apenas recupera a filogênese.
(LOPES, 2006)
Essa é uma grande hipótese que por si só possibilita infindas reflexões. Considerar
que instrumentos como flautas que datam por volta de 60.000 anos nos faz ter ao menos uma
fração da dimensão temporal de desdobramentos materiais da música. E a própria
emergências de questões acerca de uma ontogenia e uma filogenia da música evocam
também a possibilidade de ao menos considerar a possibilidade (ou necessidade) de algo
como uma sociogenia.3 Apesar de não ser a proposta desse texto investigar tal hipótese, é
importante dizer que, mesmo sem tomá-la como comprovada, apresenta elementos
considerados aqui relevantes (como a ideia da musicalidade enquanto promotora de coesão de
grupos) para pensarmos a relação entre música e uma representação estrutural dos registros
da realidade, que é o intuito da própria analogia apresentada por Lacan com o nó
borromeano. Em que consiste o RSI? Nos diz Lacan já em 8 de julho de 1953, na conferência
intitulada O simbólico, o imaginário, o real (durante a abertura das atividades da Sociedade
Francesa de Psicanálise) que essa é uma representação onde se encontram os três registros
essenciais da realidade humana.4 Essa estrutura, que tem a forma de um nó chamado
borromeano (ou borromeu), consiste em três círculos enlaçados de forma a não passarem um
por dentro do outro, mas sobrepondo-se uns sobre os outros enquanto se intercalam, de tal
maneira que, se um se ausentar, os outros dois não estariam intrincados.
3
Termo usado por F. Fanon em Pele negra, máscaras brancas. 2008. EDUFBA.
4
CLAVURIER, Vincent. Real, simbólico, imaginário: da referência ao nó. Estud. psicanal., Belo Horizonte, n.
39, p. 125-136, jul. 2013 .
Importante termos em mente que há um nível de analogia operando nos usos que
Lacan fez da topologia, mas aqui em especial essa representação é significativa para
exemplificar como as três partes dessa estrutura se relacionam, como estão envolvidas nessa
relação. Passaremos a conceituá-las em uma analogia com as três categorias da estrutura
musical, a saber, a melodia, a harmonia e o ritmo. Respectivamente, de acordo com a
estrutura lacaniana, teríamos assim o imaginário, o simbólico e o real. O esquema RSI deve
ser, entretanto, compreendido nessa analogia como algo que opera nas três dimensões
(melodia, harmonia e ritmo), “apesar” da linearidade na analogia – ou seja, apesar da relação
linear e respectiva apresentada: sendo o ritmo uma analogia do Real, no próprio ritmo há a
estrutura do RSI (Real, Simbólico e Imaginário), e assim se segue consecutivamente.
A Melodia e o Imaginário
A Harmonia e o Simbólico
6
KILMER, Anne Draffkorn; Civil, Miguel, 1986, "Old Babylonian Musical Instructions Relating to Hymnody".
Journal of Cuneiform Studies.
7
Como nos diz Badiou, “Lacan cria um novo conceito de sujeito, cuja constituição é a divisão original, a
clivagem.” (BADIOU, 2015, p. 10)
8
J. Lacan, O estádio do espelho como formador da função do Eu. Em Um mapa da ideologia. 1996.
Contratempo.
Aqui talvez possamos sugerir uma virada um tanto mais subversiva e considerar que é na
própria linguagem onde também a violência é elaborada. Indo além, talvez seja possível dizer
que há uma violência do próprio simbólico, algo que Hegel mesmo já apontava.9 Existe
também uma violência da música, e ela é particularmente simbólica em seu registro
harmônico.
Trazer a sua dimensão enquanto registro musical requer aprendermos com a
experiência desse saber que tensões e resoluções são fundamentalmente relações entre notas e
seus intervalos e, mais especificamente, a relação estrutural e sua funcionalidade que
derivam, basicamente, da relação entre notas, (entre três notas em um acorde, por exemplo).
Talvez também possamos dizer com isso que a harmonia, na música, revela que não há nada
como uma harmonia universal, mas relações estruturais elementares que produzem harmonias
(ou “desarmonias”), relações de tensão ou resolução, campos que se definem pela estrutura
de intervalo entre determinadas frequências. Tanto as associações possíveis com diferenças
básicas mais conhecidas (entre acordes e harmonias menores ou maiores, por exemplo), e
remontando à convenção da escala temperada (uma clássica convenção historicamente
situada e que estrutura simbolicamente a harmonia de forma ampla no ocidente) que
conhecemos, composta por 12 semitons (dó, ré, mí, fá, sol, lá, si e respectivos intervalos), a
harmonia é onde se estabelece uma relação estrutural com a melodia. É possível estabelecer
diversas, praticamente infindas, harmonias para uma mesma melodia.
A relação entre melodia e harmonia poderia ser metaforizada inclusive com a relação
gestáltica entre figura e fundo, respectivamente. A harmonia estabelece, a partir de
determinadas convenções, uma perspectiva sobre a melodia; que por sua vez também
influencia na percepção do próprio espaço possível da harmonia. A harmonia funcional
oferece, por exemplo, meios de pensar então as tensões, dissonâncias e soluções musicais em
função da melodia. Logo na primeira página de seu escrito Intervenção sobre a transferência,
há uma nota de rodapé onde Lacan associa o efeito Zeigarnik a uma experiência gerada no
registro harmônico da música, nos dizendo que “trata-se de um efeito psicológico que se
produz de uma tarefa inacabada quando ela deixa uma Gestalt em suspenso: a da
necessidade, por exemplo, geralmente sentida, de dar a uma frase musical seu acorde
resolutivo” (LACAN, 1966/1978, p. 87), apresentando assim uma relação entre a harmonia e
os efeitos sentidos quando esta não é “resolvida”. Assim, também a harmonia usa desses
efeitos na música, e a harmonia é por excelência o espaço de tensionamento dos afetos
proporcionados pela experiência musical. Talvez a maior evidência seja ao, quase que
intuitivamente, relacionarmos tristeza ou felicidade com acordes menores ou maiores. Isso
sugere um efeito de significante próprio à harmonia, operando assim fundamentalmente no
registro do simbólico.
9
“Como Hegel já sabia, há algo de violento no próprio ato de simbolização de uma coisa, equivalente à sua
mortificação. É uma violência que opera em múltiplos níveis. A linguagem simplifica a coisa designada,
reduzindo-a a um simples traço. Difere da coisa, destruindo sua unidade orgânica, tratando suas partes e
propriedades como se fossem autônomas. Insere a coisa num campo de significação que lhe é, em última
instância, exterior”. ( ZIZEK, 2008, p. 59)
O Ritmo e o Real
Assim, há quem nos diga, por exemplo, que o real é sempre pleno. Isso faz
efeito, soa com um arzinho que dá crédito à coisa, um arzinho daqui, de um
lacaniano de boa cepa. Quem pode falar do real desse jeito senão eu? O
chato é que eu nunca disse isso. O real fervilha de ocos, pode-se até fazer
dele o vazio. O que digo é totalmente diferente. É que ao real não falta nada.
(LACAN, 1962-63/2005, p. 204)
10
RODNEY, Walter, 1972, How Europe Underdeveloped Africa. London: Bogle-L’Ouverture Publications,
de um ritmo se dá na forma que ele produz, demarcando um padrão sonoro, uma inscrição do
(e no) tempo – isso podemos considerar para o pulso rítmico básico de intervalos
homogêneos até para células rítmicas sincopadas.
Com essas considerações, a intenção aqui é atentar para a possibilidade de pensar o
ritmo como algo que contém o que também encontramos na matemática, ao menos de acordo
com Lacan. Em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, ele menciona a
matemática enquanto algo que “pode simbolizar um outro tempo, notadamente o tempo
intersubjetivo que estrutura a ação humana” (LACAN, 1966/1978, p. 151). Não poderíamos
aferir essa matemática elementar do ritmo – e as derivações propriamente matemáticas acerca
da lógica fracionária dos compassos, por exemplo (¾, ⅞, etc.) – enquanto um princípio
universal da música, mesmo antes de ser propriamente formulado e literalmente escrito, mas
uma inscrição que perpassa toda a fundamentação elementar da música e sua prática,
enquanto fenômeno social/cultural?
Essa concepção apresentada sobre a música não deve, entretanto, servir para forçar
nenhuma canonização mistificadora e vislumbrada, tendo em vista o que está em jogo aqui: a
capacidade da música em influir sobre nossos afetos é privilegiada de tal modo que é preciso
reconhecer algo de caráter muito ambíguo em seus usos (e maus usos), sendo ela uma forma
de organizar o impossível q ue, por definição, não oferece nenhum critério de certeza
político-ideológica justamente por operar em um nível elementar da (produção da) realidade
humana. Vale relembrar, por exemplo, Walter Rodney alertando para o uso da música negra e
popular estadunidense pelo imperialismo cultural em África como forma de cativar ouvidos e
ouvintes para as transmissões da “Voz da América”, só para ressaltarmos que mesmo as mais
sublimes das músicas podem ter um uso político ideológico. Mas esse fato ainda aponta, mais
precisamente, para um uso da música. É preciso ressaltar ainda a hipótese de que a música é o
espaço por excelência onde a natureza enganosa dos afetos11 se evidencia. Em um
11
O desdobramento lacaniano da tese de Freud sobre a angústia enquanto o único afeto que não mente, sendo
assim uma indicação da proximidade com o Real, tem por consequência que todas as emoções mentem por
princípio.
comentário sobre a Nona Sinfonia de Beethoven12, Žižek argumenta um ponto realmente
intrigante sobre seu quarto movimento (a Ode à Alegria):
Essa abrangência é notável e não se pode deixá-la passar despercebida, quase como se
pudéssemos imaginar todos os inimigos históricos unidos por uma só peça musical, como
provoca Žižek. Mas a sua leitura propõe que poderíamos mudar a perspectiva de análise
dessa música. Após o compasso 331, quando há uma mudança do tom e da cadência, onde a
melodia principal toma o estilo de uma marcha turca, um tom quase carnavalesco, ele propõe
interpretarmos tal mudança como um retorno do recalcado, quase como um choque de
realidade necessário para todos aqueles que pretendem celebrar a “irmandade dos homens
sobre a terra”: a verdade dessa humanidade não pode ignorar o fato de que a categoria do
humano sempre carrega uma sombra de universalização ideológica que foi usada durante a
história para excluir alguns do “reino da humanidade.” A celebração da humanidade não pode
ocorrer sem prestar contas com essa verdade. E muito frequentemente essa humanidade é
evocada quando, silenciosamente, é necessário ocultar aqueles que estão excluídos desta
universalidade humana. A Ode à Alegria, indica Žižek, cumpriria aqui a função de um
verdadeiro significante vazio (tal qual a liberdade13 cumpre, por exemplo, nos discursos
ideológicos). Ele inclusive sugere que Beethoven poderia estar, no nível musical, praticando
algo como uma crítica da ideologia14. Na continuação da citação que abre esta parte final
desse ensaio, Žižek aponta para a passagem da transcendência externa para o excesso da
Noite no próprio coração do sujeito, a dimensão do Não Morto:
12
Slavoj Žižek em Os sons perturbadores da marcha turca,
(https://inthesetimes.com/article/the-disturbing-sounds-of-the-turkish-march)
13
A noção de significante vazio expressa aqui um significante nodal que sutura a totalidade de um discurso e
não possui sentido preestabelecido em si. Não é muito difícil mostrar como o sentido de liberdade é totalmente
vazio e em disputa, mudando radicalmente de acordo com a totalidade discursiva e seu fundo ideológico.
Podemos ver, por exemplo, a mudança de paradigma operada por Marx em sua crítica à economia política e os
limites da compreensão liberal de liberdade.
14
Para esse comentário, ver em O Guia Pervertido da Ideologia (2012), de Sophie Phiennes.
linguística. Essa dimensão numenal é radicalmente diferente da Verdade
divina transcendente pré-kantiana: é o excesso inacessível que forma o
próprio âmago do sujeito.
Entretanto, se olharmos mais de perto, não conseguimos evitar a conclusão
de que a própria música – em sua entrega “apaixonada” e bastante
substancial de emoções, louvada por Schopenhauer – não só também pode
mentir, como mente num modo fundamental quanto ao seu próprio estatuto
formal. (ŽIŽEK, 2008, p. 509)
Este é um ponto importante especialmente nos dias de hoje, para os que consideram
ser uma questão relevante, até um perigo, a celebração cega e compulsiva de uma “entrega
direta da imersão do sujeito no gozo excessivo.” Em tempos onde a música também serve
como meio de imersão e conformidade ideológica, e considerando a analogia aqui construída,
não é absurdo considerar que não só é necessário como é desejável uma crítica da música,
desde que considere-a em sua melodia, harmonia e, fundamentalmente, ritmo – não só no
sentido literal, mas também em sua dimensão real. Ao buscar o real da música é necessário
considerar sua capacidade não só de mentir, mas justamente de produzir realidade. Para
lembrarmos Chico Science, enquanto uma organização do tempo, a música talvez produza
também efeitos de desorganização. O álbum de Chico, referência clássica do manguebeat,
“Da Lama ao Caos” (1994) é uma obra exemplar que revela em sua amarração uma
verdadeira estética da interação entre passado e presente, da contradição, da dessemelhança
até: os tambores de alfaia violentamente sincopados soando junto a guitarras elétricas – com
timbragens que não remetem a tentativas toscas de cópia dos timbres de 1970 – e influências
do hip-hop ao funk estadunidense (que podem ser sintetizados no neologismo “mangroove” );
as máximas que passam por “o homem coletivo sente a necessidade de lutar”, “são demônios
os que destroem o poder bravio da humanidade”, “banditismo por uma questão de classes”;
“a responsabilidade de tocar o seu pandeiro é a responsabilidade de você manter-se inteiro.”
Na música A Cidade, ouvimos um pandeiro marcando, e em seu ritmo entram as
vozes com os versos “Oi minha amada veja o que eu vou lhe contar / Não se preocupe que eu
não vou lhe perturbar / Eu tenho pena de ver o seu sofrer / Aí meu canto e vamos nós
juntinho viver / Eu tenho pena de ver o seu sofrer”, um canto pitoresco, que remete a uma
dimensão interiorana, ao cancioneiro tradicional na música popular. Simultaneamente,
entretanto, o real se apresenta, progressivamente, com a intrusão do grave das alfaias, em
uma síncope do maracatu que atravessa o tempo anterior da canção: e talvez seja possível
dizer que, nessa altura do álbum, a alfaia, referência ao “tradicional”, já soa atual. Mas nada
mudou na alfaia ou na síncope do maracatu, apenas a perspectiva do observador que é
deslocada pelo meio melódico e harmônico eletrificado: como se essa mediação (nos
registros da melodia e harmonia) produzisse um deslocamento, uma paralaxe15. Então,
ouvimos enfim os versos finais dessa voz: “Boa noite pra quem chegou / Boa noite pra quem
tá chegado” e, assim, entram os instrumentos elétricos. As das guitarras, uma quase serra
elétrica, a outra entre o funk e o maracatu, são bases para os versos: “O sol nasce e ilumina as
pedras evoluídas / Que cresceram com a força de pedreiros suicidas / Cavaleiros circulam
vigiando as pessoas / Não importa se são ruins, nem importa se são boas / E a cidade se
apresenta centro das ambições / Para mendigos ou ricos e outras armações / Coletivos,
automóveis, motos e metrôs / Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs / A cidade não para,
a cidade só cresce / O de cima sobe e o de baixo desce” que ecoam ainda como um dos versos
mais emblemáticos na música brasileira (tendo o último verso compartilhado também com o
grupo As Meninas) . Chico é, sem dúvidas, uma referência aqui para pensarmos uma música
que não se reduz ao gozo excessivo da lógica automatizada, investindo em revelar o outro
lado desse excesso, a sua verdade não dita, efeito daquilo mesmo que retroalimenta esse
excesso: a cidade feita não para, mas por pedreiros, por isso mesmo suicídas. Seu gesto não
cultua um passado perdido, mas não abdica dos elementos locais, "tradicionais", etc. Chico
nos traz a dimensão da emancipação dos próprios instrumentos em sua música, emancipação
mesmo dos seus lugares demarcados. Esse efeito que altera o objeto deslocando o sujeito,
muda também o objeto. Talvez seja essa uma das maiores lições estéticas deste álbum,
caminho inescapável para se pensar arte e crítica: a violência emancipatória na música de
Chico Science.
15
BADIOU, Alain. A aventura da filosofia francesa no século XX. 2015. Autêntica.
DUARTE, Francisco A. Freud e a música. Ide (São Paulo), São Paulo , v. 40, n. 64, p.
129-142, dez. 2017 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062017000200011&l
ng=pt&nrm=iso>
LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do Eu. Em: Um mapa da
ideologia. 1996. Contratempo.
LOPES, Anchyses Jobim. Afinal, que quer a música?. Estud. psicanal., Belo Horizonte , n.
29, p. 73-82, set. 2006 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372006000100011&l
ng=pt&nrm=iso>
KILMER, Anne Draffkorn; Civil, Miguel, "Old Babylonian Musical Instructions Relating to
Hymnody" . 1986. Journal of Cuneiform Studies.