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Preparação
Ângelo Stepanovits
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Geuid Dib Jardim
Pedro Ribeiro
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(2017]
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pirado, triunfante, esmagador", ao qual se chega em tortuoso percurso polifó-
nico e que se sublima em "hino de querubins", não conteria também uma
"traição da memória" que remonta a essa outra passagem do próprio Fausto
destacada e recriada por Dostoiévski?78
Adorno estranhou e criticou abertamente essa sinfonia, no contexto da
música mahleriana, pela sua grandiloquência e pela sua "positividade".79 Mas
os seus excessos grandiosos sem paródia visível parecem apontar, no termo da
grande história da música, ainda uma vez e in extremis, para aquilo que a to-
nalidade cumpriu desde a sua origem, e que se torna agora impotente para
fazê-lo: dar plenos poderes ao Fausto, e salvá-lo.
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tradicional para se apossar da função - função intelectual e também emotiva
- q11e o pensamento mitológico abandonou mais ou menos nessa época".
Trata-se portanto de uma música específica: aquela que "surgiu na civilização
ocidental, nos primeiros quartéis do século xvn, com Frescobaldi, e nos pri-
meiros anos do século XVIII, com Bach, música que atingiu seu máximo desen-
volvimento com Mozart, Beethoven e Wagner [...]".82
"Foi preciso pois que o mito morresse enquanto tal, para que sua forma
se liberasse dele como a alma deixando o corpo e fosse pedir à música o meio
de t1ma reencarnação."83 Esse meio só foi possível graças ao caráter discursivo
e progressivo de que se investia a música tonal, capaz, agora, de sustentar, com
recurso ao puro som, estruturas de cunho "narrativo".
A música modal estava fortemente articulada, como vimos, a um nniver-
so de correspondências míticas, mas ela mesma é um instrumento sacrificial,
que se realiza mais exatamente como rito do que como mito. Se nos lembrar-
mos do exemplo da pentatônica chinesa, em que a cada nota está atribuída
uma analogia cósmico-social, veremos que a música se liga ao mito do equilí-
brio entre o céu e a terra, do qual ela é atualização. Sua prática não se separa de
contextos cerimoniais, sacrificiais, solenizadores, aos quais ela presta serviço
produzindo, com a sua repetitividade circular e assimétrica, o tempo próprio
do rito. A mutação que está implicada no surgimento do tonalismo, no entan-
to, leva a música a perder as suas antigas funções rituais, remetidas agora ao
âmbito da contemplação estética, no contexto exclusivo da representação (o
teatro de concerto será a câmara de som e silêncio adequada a esse novo estado
de rittialidade em suspensão). É nesse momento que a linguagem musical, sem
ter propriamente uma função ritual (suspensa no teatro da representação) e
sem ser narrada por um mito, se investe internamente de estruturas míticas,
"encarna" o mito na estrutura sonora, e o seu mito é o da crise e da reparação
da ordem questionada e recomposta.
Pensar as relações entre a música e o mito significa, em Lévi-Strauss, pen-
sar as relações entre som e sentido, dentro de uma economia geral do simbóli-
co. A maneira do quadrivium medieval (que unia a aritmética, a geometria, a
música e a astrologia como disciplinas básicas para o conhecimento do nniver-
so), pode-se dizer que existe um quadrivium estrutural em Lévi-Strauss, no
qual se combinam a matemática, a língua natural, a música e o mito. "As enti-
dades matemáticas", diz ele, "são estruturas em estado puro e livres de toda
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encarnação", isentas pois de som e de sentido.84 As estruturas linguísticas são,
ao contrário das matemáticas, duplamente encarnadas, nascendo justamente da
interseção de som e sentido, unidos no entanto numa relação instável, porque
nunca se recobrem completamente (as línguas se traduzem indefinidamente
sem nunca dizerem a palavra final nem a palavra primordial, deixando margem
a formas ou expressões limiares, intermediárias, tangenciais, jamais definitivas
ou exaustivas). Entre as estruturas linguísticas e as matemáticas estão o mito e
a música, operando por contínuas transformações compensatórias o perpetuum
mobile dos sistemas significativos, que não repousa em lugar nenhum, já que o
significante e o significado jamais coincidem completamente. "Menos encarna-
das" que a Língua natural, mas "mais encarnadas" que a matemática, as estrutu-
ras musicais são em princípio constituídas de som (e desprovidas de sentido), e
as narrativas míticas são estruturas de sentido (cuja cerrada ordem interna dis-
pensa o som). Essas duas "metades" são pensáveis, de todo modo, segundo
Lévi-Strauss, a partir da linguagem verbal, centro de seu modelo e definidas
como "subprodutos de uma translação de estrutura", operada a partir dela: "a
música, por um lado, e a mitologia, por outro, têm origem na linguagem, mas
[...] ambas as formas se desenvolveram separadamente e em diferentes direções:
a música destaca os aspectos do som já presentes na Linguagem, enquanto a
mitologia sublima o aspecto do sentido, o aspecto do significado, que também
está profundamente presente na linguagem".85 O pressuposto logocêntrico em
Lévi-Strauss é discutível (se pensarmos na música como originada da lingua-
gem verbal), mas não precisa ser tomado literalmente como uma hipótese ge-
nética. Em vez disso, pode ser lido como uma engenhosa geometrização, que
põe em jogo de forma reveladora a linguagem (constituída por fonemas, pala-
vras e frases), a música (que passaria diretamente dos "fonemas" às frases) e o
mito (que constituiria urna estrutura de sentido formada de palavras e frases,
mas onde não importa o som). "Falta" à música e ao mito, respectivamente, um
dos níveis estruturais da linguagem. Essa falta, no entanto, está ali como que
para assinalar, por démarches compensatórias, a falha estrutural da própria lin-
guagem (já que há um ponto de descontinuidade entre natureza e cultura), fa-
lha essa que é, no entanto, responsável pela emergência do sentido e do desejo
(se incluímos oportunamente aqui um conceito psicanalítico).86 Na sua especu-
laridade complementar, o mito é uma narrativa em que a imbricação do suces-
sivo e do simultâneo dá ao sentido uma configuração cristalina e partitura!, e a
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música (tonal) é uma estrutura sonora em que a trama discursiva dos elemen-
tos ganha um direcionamento mítico.
Com efeito, se acompanhamos as análises estruturais de mitos feitas por
Lévi-Strauss, entendemos melhor o porquê da equivalência simétrica com a
música: os mitos não são para ele conteúdos narrativos, simplesmente, mas
cristalizações semânticas feitas de paralelismos contrapontísticos, de ressonân-
cias harmônicas que se oferecem a urna leitura a um tempo linear e simultâ-
nea. Os elementos de uma narrativa mítica não são lidos simplesmente como
um fio "melódico", sucessivo e linear, mas agrupados em acordes e inscritos
em planos contrapontísticos, donde se extraem correspondências e paralelis-
mos. Como na música, o que importa não está apenas na horizontalidade da
sucessão, mas na verticalidade do simultâneo.
Não cabe aqui exemplificar detalhadamente o método (remeto o leitor à
"Estrutura dos mitos", contida na Antropologia estrutural).
Basta dizer que Lévi-Strauss busca manipular o mito, ao lê-lo, como o
faria se um "amador perverso" transcrevesse uma partitura de orquestra, "pau-
ta após pauta, sob forma de uma série melódica contínua" que tivesse que ser
restaurada na sua forma original.87 O seu método de leitura do mito consiste,
assim, em reconstituir o caráter simultâneo de uma sucessão, ou o caráter har-
mônico de uma partitura apresentada como melódica. Graças a isso, torna-se
evidente, por exemplo, na análise do mito de ~dipo, a equivalência ressonante
entre o nome do herói (que supostamente significaria "pé inchado"), o nome
de seu pai, Laio (que significaria "torto"), e o de seu avô, Lábdaco (que signifi-
caria "coxo"). Essa linhagem de afinidades (ligadas ao motivo dificuldade mo-
tora) cruzaria com outras correspondências arpejadas que constituem o mito
{Cadmo mata o dragão - Édipo imola a esfinge; edipo mata seu pai Laio -
Etéocles mata seu irmão Polinice; :Édipo esposa sua mãe Jocasta - Antígona
enterra seu irmão Polinice, violando a interdição). Lévi-Strauss tira conse-
quências interpretativas surpreendentes dessa trama de motivos encadeados e
superpostos, que acabam apontando para o enigma da origem humana, inscri-
to em impasses contraditórios cifrados no mito: nascemos da terra ou da união
de um homem e de uma mulher? Nascemos de um único ou de dois? O mes-
mo nasce do mesmo ou do outro?
Para chegar a essa estrutura de sentido, percebida nos arpejos e polifo-
nias da narrativa, é preciso prestar atenção às grandes e às pequenas oposi-
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ções, às correlações posicionais entre elementos aparentemente díspares e ao
desenho geral que elas formam. É uma leitura comparável, segundo Lévi-
-Strauss, à escuta musical atenta, que pede do ouvinte "uma espécie de re-
construção contínua" do que está sendo ouvido. Esses percursos discursivos
que avançam retomando sob novas formas aquilo que já foi apresentado, de
modo a evidenciar pela própria sintaxe uma espécie de sentido global, são
comuns à música e ao mito.
Chegamos assim ao exemplo da fuga. Há mitos em que contracantam duas
espécies ou grupos de personagens (que podem ser qualificados, simplificadora-
mente, como "bons" e "maus").
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Porque a fuga é o próprio modelo da razão estrutural: ela trabalha sobre opo-
sições defasadas que procedem por variações imitativas sem desenvolvimento.
O sucessivo remete a cada passo ao simultâneo, o diacrônico ao sincrônico.
Como dois (ou mais) grupos (de "personagens") que se perseguem e se esca-
pam, que se alcançam e se distanciam, as vozes se confundem e se diferenciam
continuamente até se encontrarem, "por uma e última vez", no fim do percur-
so. As vozes em fuga, opostas e espelhadas, "encarnam" o movimento desen-
contrado das identidades e das alteridades, que o mito resolve por conjugação
extrema. Na narrativa mítica, essas vozes em movimento fugal são semantiza-
das como forças opostas, sejam elas "o céu e a terra", "o sol e os poderes sub-
terrâneos", ou outra antítese. Mas, feita a abstração dos significados opostos,
que, fora da fuga, são meras oposições estáticas, o que temos é movimento
caleidoscópico em que os contrários ecoam entre si e se espelham até se reve-
larem como reverberações defasadas do mesmo. A configuração dessa identi-
dade, isto é, a entrada das vozes em fase dá por finda a fuga, pois ela vive, diga-
-se mais uma vez, das defasagens. Ela é produzida pelo desencontro estrutural
das vozes e resolvida pela coincidência entre elas. (O seu movimento deixa em
aberto essa flutuação do desejo, em que as forças oscilam entre afastar-se e
encontrar-se, diferenciar-se e reduzir-se.)
No sistema tonal, todo mito busca resolver-se pela conjugação das forças
em tensão, todo processo busca um termo final. Já dissemos que a moral tonal
é finalista, teleológica. Na fuga, no entanto, essa demanda de finalização, esse
investimento erótico resolutivo, e ambiguamente tanático (pois vive de um
anseio continuado pela tensão repousada), é alimentado pelo movimento in-
cessante das vozes. A fuga foge da morte, sabendo que corre para ela. Curiosa-
mente, um dos mais belos conjuntos de mitos analisados por Lévi-Strauss ("A
fuga dos cinco sentidos", em O cru e o cozido), e que seria o modelo privilegia-
do dessa estrutura, consiste em mitos relativos à "vida breve", que têm seu
núcleo nessa dupla questão: é possível prevenir a morte e evitar que os homens
morram mais jovens do que eles desejariam? E, inversamente, é possível,
quando os homens ficam velhos, devolver-lhes a juventude, e, se já morreram,
ressuscitá-los? Para "retardar a morte", ou para "assegurar a ressurreição", os
mitos desenvolvem uma complexa rede de códigos sensoriais cujos termos são
continuamente invertidos, espelhados, como se pudessem responder, com a
sua própria reversibilidade, ao paradoxo do tempo. Assim como, em dado
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momento, a resposta à dupla pergunta aparece como "não ouvir, não cheirar,
não tocar, não ver, não saborear" (para evitar a morte precoce), em outro mo-
mento é dada como "ouvir, cheirar, tocar, ver, saborear" (para resgatar a
vida). 92 É claro que esses termos não aparecem numa ordem linear, mas numa
intrincada cadeia de correlações cruzadas, em múltiplos níveis, que povoam a
superfície do tecido narrativo com o colorido de suas imagens concretas. A
estrutura das significações é, ela mesma, tratada no mito como contraponto e
como pura polifonia.
Pode-se aquilatar a afinidade radical entre a teoria de Lévi-Strauss e a estru-
tura da fuga quando ele diz que a música e a mitologia são, "se assim se pode
dizer, duas irmãs geradas pela linguagem que seguiram caminhos diferentes,
escolhendo cada uma a sua direção - como na rrútologia, em que um persona-
gem vai para o norte, enquanto o outro se dirige ao sul, e nunca mais se encon-
tram".93 O antropólogo, que queria ser músico, vislumbrou nessa imagem, se-
gundo confessa, a possibilidade de compor a polifonia das vozes, não com sons,
mas com significados, não como músico, mas como orquestrador de mitos. A
sua obra é, pois, autoentendida como uma grande fuga, em que a música e o
rrúto contracantam, contemplados pela linguagem. A fuga é a estrutura quase-
-matemática (a exemplo da Arte da fuga bachiana, pura estrutura de alturas sem
timbre, sem instrumentação, música menos o som) dotada ainda assim da di-
mensão sensível, da tangibilidade fugaz, da "ciência do concreto" (que ele viu no
pensamento selvagem), e em cujos bastidores o sentido mitico se inscreveu, pelo
avesso. Ao final dessa alquimia estrutural a música vem a ser, assim entendida,
uma combinação singular de som e sentido, na qual o termo quase dispensado
seria a própria língua.
A estrutura mítica da sonata, por sua vez, contrasta com a da fuga. A sona-
ta é uma forma que advém do abandono da polifonia e das defasagens. Nela, a
sucessão não está a serviço da simultaneidade (polifônica), mas a simultaneidade
(harmônica) é que está a serviço da sucessão, realizada no esquema habitual em
que um primeiro tema dá lugar a um segundo através de uma ponte modulató-
ria, seguidos de um desenvolvimento integrado que conduz à reexposição do
primeiro tema, volta à tonalidade inicial e reexposição do segundo tema, com
coda (final). A sincronia aqui se expressa necessariamente na diacronia, no des-
tino dos motivos, nas suas transformações evolutivas, na grande frase.
Pode-se dizer que esse mito é o da luta amorosa (o que está indicado no
costume de apontar os dois temas em jogo ora como antagonistas, ora como
complementares, da ordem do masculino e do feminino). Luta que trabalha
com a instalação de uma tensão a partir de um campo harmônico dado, desen-
volvida através do desdobramento dos motivos e das modulações, e reparada
através do "reconhecimento" dos motivos iniciais que retornam ao seu lugar
de partida. Pode-se também pensar essa luta, ou esse amor, em suas afirma-
ções e negações, como um processo interno ao espírito, sua biografia sinfoni-
zada, paralela ao romance mas também à filosofia. Isso é possível porque a
música trabalha, como dizia Hegel, na objetivação sonora em que a subjetivi-
dade se reconhece e se supera, com a concordância, a oposição e a mediação
dos sons (vejam-se aí os passos da dialética), "o quetorna possíveis a progres-
são destes e a passagem recíproca de uns aos outros".94-
Uma outra coisa importante: a sonata, como o tonalismo, trabalha ao
mesmo tempo com a afirmação e com o questionamento de um polo harmô-
nico. O aprofundamento dessa contradição envolve a instabilização do siste-
ma, com a transição permanente e a relativização do centro tonal. Nisso tam-
bém a tonalidade em desenvolvimento na sonata é ocidental: pensamento
evolutivo e negador, progride questionando os seus próprios fundamentos. A
tonalização é profunda, diz Hegel, porque ela vai sem receio ao encontro das
oposições essenciais.95 Esse será também o fundamento do pensamento ador-
niano, que verá no atonalismo de Schoenberg a via mais consequente de con -
tinuidade da tradição tonal. Ocorre que para Hegel, contemporâneo de Beet-
hoven, a contradição (histórica) expressa na dissonância precisa retornar à
conciliação da consonância, e nisso consiste o seu "único movimento verda-
deiro". Para Adorno, contemporâneo de Schoenberg, o único movimento ver-
dadeiro da contradição está justamente em recusar-se à conciliação, como
forma de negar as relações sociais coisificadas.
A obra de Wagner corresponde ao desejo de fazer a música retornar ao
mito, constituir-se em mito, através da melodia infinita pontuada por motivos
condutores (que imitam, no modo como investem a trama sonora de índices
narrativos, a trama mítica descrita por Lévi-Strauss).96 O melodrama wagne-
riano trabalha musical e textualmente com estruturas míticas; ele é o próprio
mito revisitado pela tonalidade hipersaturada e às portas da sua desagregação.
Lévi-Strauss diz que Bach é um músico do código, Beethoven da mensa-
gem, e Wagner do mito. Os músicos do código ''explicitam e comentam em
suas mensagens as regras de um discurso musical"; os músicos da mensagem
"narram", e os do mito "codificam suas mensagens a partir de elementos que
são já da ordem da narrativa".97
Em Bach temos a expressão sincrônica do sistema, no momento em que
se fecha o circuito entre a harmonia e a polifonia. Em Beethoven, a mobiliza-
ção das energias potenciais do sistema que avança questionando o princípio
do progresso, numa negação que guarda intacto o seu fundamento heroico.
Em Wagner, que escreveu algumas das mais impressionantemente belas entre
as músicas, a grandeza e a derrocada de uma arte total concebida como aniqui-
lação onde, como disse dele Adorno, o irnperiaHsta decadente tem o mérito de
sonhar a sua própria catástrofe.98