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LUIZ TATIT – ELEMENTOS PARA A História e Criação da Canção

ANÁLISE DE UMA CANÇÃO


A APREENSÃO EMPÍRICA DO OUVINTE
“Comum alguém dizer que ouviu um samba do Tom Jobim, um rock dos Titãs ou mais
uma canção romântica do Roberto Carlos”.
Existem elementos que são reconhecíveis em uma canção, pela apreensão destes
PADRÕES até o ouvinte leigo consegue reconhecer do que se trata a música.
MECANISMOS DE REITERAÇÃO
A estrutura da música auxiliará a passar a mensagem desejada pelo compositor.
Neste sentido, a repetição de ideias é tão importante quanto o envio de mensagens
novas. Uma parte da importância do refrão, por exemplo, além da simplicidade é o
fato de ele ser o elemento mais frequente de uma canção.
TONALIDADE
“A sensação e que a melodia está mais tensa ou menos tensa é um efeito físico que o
ouvinte, antes de compreender, já sente”.
GILBERTO GIL – DOMINGO NO PARQUE (1968)
https://www.youtube.com/watch?v=OztuGomczAo
A ATUAÇÃO DA FALA NA CANÇÃO
“A partir dessas percepções naturais da gramática rítmico-melódica, podemos
constatar também a presença menos explícita, mas não menos importante, da
linguagem oral em toda a canção popular”.
CONSOANTES
Transformam em ataques rítmicos as palavras. Como estudamos, o ritmo conta muito
sobre um gênero. A qualidade rítmica das consoantes vai ajudar a reforçar essa
qualidade.
Ao mesmo tempo, a qualidade rítmica de cada idioma irá contribuir para dar
qualidades únicas para um gênero compartilhado. Por Exemplo: Rock em suas
diferentes “nacionalidades”.
VOGAIS
- Estabilizam a curva melódica numa sonoridade contínua;
- Representam fisicamente as TENSÕES EMOTIVAS
- Constituem a base para as inflexões entoativas da fala.
Além da qualidade musical, há, obviamente, uma qualidade narrativa na fala da
canção. Talvez sua grande qualidade seja a de tecer comentários no nível musical e
literário sem, obrigatoriamente, priorizar nem um dos dois.
Em contrapartida, as inflexões* da fala no contexto de comunicação oral comunica
tanto quanto a palavra escolhida. Na canção a linha melódica ajuda a vestir de
sentimento a palavra.
P.Ex.: Pense na palavra AMOR. Agora pense na palavra AMOR proferida por um
parceiro com raiva por conta da louça suja esquecida na pia.

* desvios, acentuações, entonação.


MELODIA E LETRA
“Tudo fica mais claro e mais completo ao se verificar a interdependência entre a
melodia e a letra da canção. Se a reiteração e as tensões de altura servem para
estruturar a progressão melódica, esses mesmos recursos podem ser transferidos ao
conteúdo, de modo a construir uma significação compatível”.
USOS DA REITERAÇÃO
- A qualificação de personagem (a baiana, a mulata, o folião, o jovem ou o próprio
narrador);
- Um objeto (o samba, a dança, o país);
- A exaltação;
- a enumeração (P.Ex.: Pedro Pedreiro);
- construção de um tema homogêneo (a rotina em Cotidiano – observar como a
repetição da melodia coincide com a temática);
EXEMPLO: FALSA BAIANA
https://www.youtube.com/watch?v=WdN9c1_4yps
- Enumeração de qualidades da personagem.
- como a palavra “boca” e “louca” são acentuadas, reforçando a ideia de êxtase.
- Quando se fala na “falsa baiana” usa rítmica vocal truncada, em oposição à
baiana autêntica com ritmo fluido e a melodia sinuosa.
VOZ E EMOÇÃO (PASSIONALIZAÇÃO)
“A configuração de um estado passional de solidão, esperança, frustração, ciúme,
decepção, indiferença, etc., ou seja, de um ESTADO INTERIOR, afetivo, compatibiliza-
se com as tensões decorrentes da ampliação de frequência e duração”.

“Como se à tensão psíquica correspondesse uma tensão ACÚSTICA e FISIOLÓGICA


de sustentação de uma vogal pelo intérprete”.

“O prolongamento das durações torna a canção necessariamente mais lenta e


adequada à introspecção. Afinal, a valorização das vogais neutraliza parcialmente
os estímulos somáticos produzidos pelos ataques das consoantes”.
A PRESENÇA DA FALA E DO ENUNCIADOR
Interessante como o enunciador da canção acaba sendo confundido com o próprio
personagem. Talvez a canção, por compartilhar muitas características da fala, acabe
sendo interpretada como uma variedade dela.
“Ao ouvirmos vocativos, imperativos, demonstrativos, etc., temos a impressão
acentuada de que a melodia é também uma entoação linguística e que a canção
relata algo cujas circunstâncias são revividas a cada execução”.
AMOSTRA DE ANÁLISE
Gilberto Gil – Amarra teu arado a uma estrela.
https://www.youtube.com/watch?v=6aJ0yLQ__No
PRIMEIRA PARTE
Apesar de os três segmentos iniciais manterem o perfil, somente os dois primeiros são
idênticos. O terceiro já acusa uma transformação no campo de tessitura e no
tratamento instrumental de fundo.
- As reiterações servem para marcar melhor a enumeração que está ocorrendo.
- A desigualdade dos fragmentos que integram cada segmento melódico (pausas,
ritmo irregular da melodia) tolhe a fluência rítmica da sequência, diminuindo a
importância de uma eventual adesão corporal do ouvinte neste fase.
- Assim, embora os acentos obedeçam à marcação periódica, não há ainda
aceleração suficiente para que os ataques consonantais se sobreponham às durações
vocálicas.
- O realce das vogais atenua a função dos ataques das consonantes.
SER E FAZER
A atuação da modalidade do /ser/ sobre o devir melódico, enquanto o processo
inverso de ativação do tempo musical reflete a atuação da modalidade do /fazer/.
A modalização do /ser/, que subjaz à melodia e à letra ao mesmo tempo, camufla
os estímulos corporais próprios da ação, em proveito de um estado psíquico propenso
à paixão.

Na música: verificamos, então, a influência das duas modalidades, com progressiva


dominância do /ser/ sobre o /fazer/.
Se os frutos // produzidos pela terra
Ainda não são tão doces
E polpudos quanto // as peras
Da tua ilusão

Amarra o teu arado a uma estrela


E os tempos darão:
ANÁLISE
Se os frutos // produzidos pela terra (mesmo desenho temático, enumera elementos do
cotidiano do personagem)
Ainda não são tão doces (caracteriza esses elementos de forma “negativa”)
E pontudos quanto // as peras (mesmo desenho temático, enumera elementos do cotidiano
do personagem)
Da tua ilusão (caracteriza esses elementos de forma “negativa”)

“Pré-refrão”: acentua-se a qualidade rítmica e faz uma proposição. O /fazer/ vai se


sobrepondo à reflexão - /ser/)
Amarra o teu arado a uma estrela
E os tempos darão:
REPETIÇÃO DO VERSO: LETRA DIFERENTE, MESMA
ESTRUTURAÇÃO NARRATIVA
Se os campos cultivados neste mundo
São duros demais
E os solos assolados pela guerra
Não produzem a paz

Amarra o teu arado a uma estrela


E aí tu serás
“PRÉ-REFRÃO”
O verso “amarra o teu arado a uma estrela” ocupa o centro nevrálgico da
mensagem figurativa, onde o enunciador emite sua sugestão metafórica como
alternativa para se escapar às coerções deste mundo.
É a solução do autor para os problemas propostos no verso: “a condição
deflagradora é o sentimento de falta determinado pelos traços de esterilidade
(improdutividade) que virtualizam uma possível busca de fecundidade.

Com o aumento da qualidade rítmica da melodia “o enunciador reverte a tendência


[de tensão psíquica] propondo uma transformação típica do /fazer/. Com a ação,
cessa a hegemonia da paixão: o sentimento de falta se converte em projeto de
busca”.
SEGUNDA PARTE
- Os fragmentos são dinamizados com um recorte mais minucioso do tempo rítmico de
cada compasso, acelerando o andamento.
- As subsequências recebem um tratamento bem mais homogêneo que o da primeira
parte. O sentido reiterativo da melodia torna-se mais claro e determinante na
audição.
Safras e safras de sonhos
Quilos e quilos de amor
Noutros planetas risonhos
Outras espécies de dor
Safras e safras de sonhos (qualidades para quem se desprende da “realidade”)
Quilos e quilos de amor
Noutros planetas risonhos
Outras espécies de dor (joga um “porém” ao personagem, lembrando que existirão
problemas, também, nesta nova vida. Este trecho é fundamental para encaminhar a
parte B de volta à parte A)
O lavrador louco dos astros
O camponês solto nos céus
E quanto mais longe da terra
Tanto mais longe de Deus
Apesar de o contexto geral apresentar essa busca da fecundidade interplanetária
como uma solução, há um fundo, digamos, dialético, que identifica essa nova
aquisição com um outro tipo de perda (“outras espécies de dor”). E tal equação vem
formulada nos versos “E quanto mais longe da terra/ tanto mais longe de Deus”.
Uma vez mais, a tensão de frequência representa a tensão de afastamento de um
objeto de valor.

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