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e @ @ Poesia depois do verso Na histéria e no programa da poesia concreta, a critica mobilizou todas as suas forgas conceituais com o fim de explicar o encerramento do ciclo histérico € formal do verso. As consideragdes que confluiram nesta critica negativa proce- diam tanto de uma concep¢ao da histéria da poesia do ponto de vista da técnica, como da apropriacao de uma série de conceitos e elementos tomados da critica literdria e dos discursos inovadores que as Bienais de Arte e Arquitetura traziam consigo. Porém, em um nivel mais medular, comprometendo a fundamenta- gao basica da técnica como critério, 0 que os textos programiticos discutiam nao era s6 uma questao de procedimentos, mas sim em que consistia a especi- ficidade do poético e que aparéncia formal era a mais eficaz para apresenté-la. Aqui, passa-se de uma critica negativa do verso a uma consideragao positiva da produgao pottica, e é forjada ou reformulada uma série de termos que — em dife- rentes niveis e nem sempre de um modo rigoroso — da conta dos resultados das experimentagoes: ic6nica” sé os mais usados, mas nao os tinicos. Nesse ponto, a dificuldade para descrever as propostas reside no éxito dessa terminologia e na dificuldade para “ideograma’, “verbivocovisual’, “estrutura dinamica’, “escritura tracar uma denominagio alternativa que nao acrescente mais confuséo ou con- tradicées. Por isso, em vez de propor novos termos, prefiro manter as denomina- ges e trabalhar com 0 que considero as duas operagées basicas que dao conta das inovagdes produzidas pela poesia concreta: 0 espago como agenciamento e 75 osigno como né material de relagées. Nenhuma dessas operagées é alheia A poe- sia de escritura convencional, mas, sem diivida, o concretismo explorou-as de maneira mais sistematica e radical. O verso, tanto com relagao ao metro — que é inerente a sua forma — como em suas rimas ou paronomasias — que propd6em similitudes fonicas —, também opera com 0 espago ¢ as semelhangas materiais. Porém, em meados dos anos 1950, os poetas concretos afirmaram que essas ope- ragdes nem se produziam de acordo com a experiéncia contemporanea, nem conseguiam expressar 0 especificamente poético. Para demonstra-lo, levaram adiante, pela primeira vez, uma critica integral e total do verso’. Histéria (evolutiva) do verso Uma histéria da poesia serviria para mostrar como o elemento estrutural basico, © verso, foi perdendo seu predominio e seu poder significante e distintivo. Em- bora os esquemas métricos tradicionais tenham funcionado, a principio, como regra mneménica, rapidamente tiveram uma justificagao estética e filosdfica e, com 0 romantismo, chegaram a ser um dos exemplos mais contundentes e efica- zes das semelhancas e correspondéncias. A partir da estrutura varidvel dos versos e das relagoes entre estes por meio da rima, do metro e do tipo de composi¢ao, © poema constréi uma linguagem regida pelo ritmo, Porém, além de ser uma uni- dade ritmico-estrutural, o verso também implica um elemento mimético com relagio a uma ordem superior, que é definida de varias maneiras, de acordo com cada poética: pode ser 0 equivalente da natureza, da idéia ou de algum outro tipo de instancia transcendente. O verso — e por essa raziio me refiro a ele como cate- goria ideolégico-formal - nao sé é uma técnica de escritura, como supée algum tipo de vinculagao estrutural e valorativa entre texto e mundo. A modernidade singular e fundacional de Charles Baudelaire consistiu, en- tre outras coisas, no conflito entre a experiéncia da modernidade e as formas herdadas, assim como em todas as decisdes estéticas e ideolégicas que sua re- solucéo comportava. Em As Flores do Mal (1857), esta inclusio dos elementos modernos se produz sob a categoria ideolégico-formal do verso, que entra em 1.A tentativa mais audaz havia sido empreendida por Mallarmé em seus textos sobre a “crise do verso” As vanguardas repudiaram o verso, mas néo fizeram uma critica integral a ele: em todo caso, 0 verso livre néo deixa de ser verso. 176 Poesia concreta brasileira crise, anos depois, com os Pequenos Poemas em Prosa (1864). Tal como afirma 0 préprio Baudelaire em seu prefacio a esse livro, a ruptura se vincula coma ex- periéncia de alienagao da metrépole moderna: Lidée mest venue de tenter quelque chose d’analogue [a Gaspard de la Nuit de Aloysius Bertrand] et d’appliquer & la description de la vie moderne, ou plutot d'une vie moderne et plus abstraite [...] une prose poétique, musicale sans rhytme et sans rime, assez souple et assez heurtée pour s‘adapter aux mouvements lyriques de I'ame, aux on- dulations de la réverie, aux sobresauts de la conscience? Cest surtout de la fréquentation des villes énormes, cest du croisement de leurs in- nombrables rapports que nait cet idéal obsédant?. A harmonia entre poeta, palavra e mundo — da qual o verso seria um agente = entra em uma crise irreverstvel: o lugar social do poeta jA nao é o mesmo, nem tampouco o é a nova paisagem que enfrenta. As reflexes dos poetas fran- ceses da segunda metade do século x1x sobre a persisténcia do verso como forma giram, freqiientemente, em torno desse problema, e varios deles abando- nam 0 verso metrificado pelo verso livre, pelo poema em prosa ou — como no caso de Un Coup de Dés, de Stéphane Mallarmé, em 1897 — por novas formas que quebram e disseminam o verso no espago da pagiria. Jacques Ranciére, a partir do comentario do texto “Solennité’, de Mallarmé, explica com estas palavras a “crise do verso’, que se havia iniciado com os Peque- nos Poemas em Prosa: A crise anedética do veneravel alexandrino remete ao desvanecimento mais sério desse céu das Idéias. Nao existe mais "molde supremo’, “objeto algum que exista’, nem “numerador divino de nossa apoteose’: O poeta nao possui mais modelo, celeste ou hu- mano, para imitar. A partir de agora, pela “exclusiva dialética do verso” ele poderé ani- mar a marca da idéia, agrupando segundo um ritmo essencial "todos os restos do nau- frdgio, dispersos, ignorados e flutuantes”. 2. Petits Poémes en Prose, 1969, pp. 7-8 3. Jacques Ranciére, Mallarmé. La Politique de la Siréne, p. 30. As frases entre aspas pértencem a Mallarmé. Como se pode ver, a idéia de que o verso cumpre seu préprio processo dialético, desin- tegrando-se, jé est4 em Mallarmé. Crise do verso 177 A forma ja nao antecede o poeta, que nao tem onde depositar seu desejo mi- mético. O verso nao pode mais apoiar-se em um modelo idealista e tradicional; resta somente a dialética imanente de um verso novo que possa reconstituir 0 “ritmo essencial’, razio Ultima do trabalho poético. “Ritmo: forma relacional’, como definiu Décio Pignatari, recuperando para ele um espaco da imanéncia*, Para ler ou analisar os poemas das vanguardas, a categoria tradicional do verso ¢ insuficiente, e sua aplicagio relativiza e normaliza as conseqiiéncias que podem originar-se das novas formas experimentais. Em Trilce (1922), de César Vallejo, as violéncias praticadas sobre o verso significam, para a poesia escrita em espanhol, uma passagem semelhante a que se produz, em miisica, da conso- nancia a dissondncia: 999 calortas, Rumbbb... Trrraprrr rach... chaz Serpentinica u del bizcochero Trilee, xxx Mediante essa escritura poética, Vallejo desfaz a articulagao entre harmonia enatureza que caracterizava a poética modernista de Rubén Darfo. Como apon- tou Arnold Schoenberg em seu Tratado de Harmonia, a oposi¢ao entre conso- nAncia e dissonancia nao é uma questdo de esséncia (natural/antinatural), mas de grau, e “depende apenas da capacidade do ouvido para familiarizar-se”*. Essa motivacao distancia Vallejo de outras tentativas de vanguarda voltadas para o verso livre ¢ insere seu livro de poemas em uma tentativa paragramdtica de or- ganizagao do material’. Como conclusao: certos poemas de Trilce nao podem ser lidos a partir da categoria ideolégico-formal do verso. 4."Poesia Concreta: Organizagio’, em Teoria da Poesia Concreta, op. cit. p. 88. 5. Arnold Schénberg, Tratado de Armonia, 1974, p. 16. 6. A analogia com Schoenberg, mtisico que Vallejo néo conhecia, tem como objetivo marcar a substituigdo de um modelo de consonancia e harmonia, por outro, de dissonancia atonalidade. ‘Uma analogia ainda mais surpreendente é a que se pode fazer entre estes versos do poema xxxi de Trilce e as teorias musicais do futurista italiano Luigi Russolo: “1oo km. por hora TRRRRRRRR (Empurrar com pé direito acelerador distancias + 1000 profundidade + 300.000 resisténcias da terra as velocidades esfregantes)” (em Luigi Russolo, El Arte de los Ruidos, 1998, p. 51). Durante a década de 1970, Haroldo de Campos fez varias tradugées de Trilce que, até onde sei, nao foram inclufdas em nenhum de seus livros. 178 Poesia concreta brasileira

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