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Machado de Assis:

por uma poética


da emulação
loão Cezar de Castro Rocha

COLEÇÃO

C O N T E M

P O R A N EA

<2 .
i n ii i/.\(.:Ào
ItIIANII I lliA
Neste volume, João Cezar de Castro Rocha
desenvolve amplamente o que chama de
l>oética da emulação em Machado de Assis,
l endo organizado seis coletâneas de contos
do ficcionista para a editora Record, além
•le publicar diversos artigos sobre o assun-
10 no Brasil e no exterior, o pesquisador se
destaca como um dos mais argutos e origi-
n.lis especialistas machadianos.
A abordagem demonstra, de forma bri­
lhante, como a ficção machadiana, sobre-
11ido na chamada “ segunda fase”, dialoga
i <>m os grandes autores da tradição: Pascal,
Xavier de Maistre, Shalcespeare, a Bíblia,
St endhal, Poe, Baudelaire e José de Alencar,
entre inúmeros outros. A hipótese funda­
mental é que o maior escritor da dita Amé-
i ica Latina no século XIX teria redimensio-
nado a antiquíssima técnica de emulação,
desenvolvida pelos clássicos gregos e lati­
nos e retomada com outras implicações no
renascimento. Emular diz respeito à neces­
sidade de considerar autores prévios como
mestres, elaborando textos que, sem ja­
mais perder de vista o modelo original,
acabam por engendrar uma nova obra.
( iom o advento da figura do autor como
demiurgo no período romântico, a emulatio
passa por uma transformação radical, pois
0 escritor não mais precisa ficar preso a có­
digos e modelos, mas elege livremente suas
referências para interlocução de igual para
itfual, constituindo aquilo que, nos anos
1‘ )(><), será nomeado como intertextualiãade.
Um Machado, as inúmeras alusões cultu-
i ais e artísticas, em vez de denotarem sub­
serviência, tornam-se o instrumento capaz
de 1'roblematizar a relação dissimétrica en-
11 e os centros europeus e as ex-colônias,
<•■.1.is ainda em fase de autoafirmação en-
<11 i.mto nações independentes. Como diz de
forma lapidar João Cezar de Castro Rocha:
“O autor de Páginas recolhidas compreendeu
que, se um autor, oriundo de contextos não
hegemônicos, dificilmente pode ser consi­
derado ‘original’, então, a tradição literária
deve ser apropriada com irreverência. A
combinação de diversos séculos da tradição
e de distintos gêneros literários e, acima de
tudo, o resgate de atos pré-românticos de
leitura e de escrita favorecem a ruptura das
Memórias póstumas.”
Sem abrir mão da leitura da imensa for­
tuna crítica de Machado, João Cezar de Cas­
tro Rocha propõe aqui uma abordagem que
decerto ocupará lugar de destaque nos de­
bates atuais e vindouros. Ao leitor, cabe
apenas desfrutar do prazer proporcionado
por um ensaio que alia a competência teó-
rico-crítica ao refinamento de estilo.

Evando Nascimento

João Cezar de Castro Rocha é professor de


literatura comparada da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e pesquisador do
CNPq. Realizou seus estudos de pós-gradua­
ção no Brasil (Uerj), nos Estados Unidos
(Universidade de Stanford) e na Alemanha
(Alexander von Humboldt-Stiftung/Freie
Universitàt Berlin). Ocupou cátedras hono­
rárias no México e nos Estados Unidos, além
de ter sido pesquisador e professor-visitante
em universidades como Oxford, Cambridge,
Yale, Princeton, Freiburg, entre outras. É
autor de 6 livros e organizador de 22 títulos,
entre eles Critica literária: Em busca do tempo
perdido ?; Literatura e cordialidade ; The A uthor
as Plagiarist: The Case o f Machado de Assis (org.);
À roda de Machado de Assis (org.); Contos de M a ­
chado de Assis (org.) e iCulturas shakespearia-
nas? Teoria mimética y América Latina.
Machado de Assis:
por uma poética da emulação
Este liv ro foi com posto na tip ologia S w ift Lt Std
Regular, em corp o 10/15, e im presso em papel
o ff-w h ite no Sistem a C am eron da D ivisão
G ráfica da D istrib u idora Record.
Outros títulos da coleção Filosofia, Literatura & A rtes já publicados:

A a tu a lid a d e do pen sam en to de W a lte r B en ja m in e T h eo d o r W. A d o rn o ,


de M árcio S eligm a n n -S ilva, 2010
Ficção bra sileira contem porânea, de Karl Erik Schollham m er, 2010
Canção p o p u la r no B rasil, de Santuza Cambraia Naves, 2010
C orpo em evidência, de Francisco Ortega e Rafaela Zorzanelli, 2010
Nietzsche, vida como obra de arte, de Rosa Dias, 2011
C la rice Lispector: Uma literatura pensante, de Evando Nascim ento, 2012
Poesia e filosofia, de A n ton io Cicero, 2012
A tradução lite rá ria , de Paulo Henriques Britto, 2012
João Cezar de Castro Rocha V'

Machado de Assis:
por uma poética da
emulação

O rg a n iza d o r da coleção
Evando Nascim ento

I a edição

CIVILIZAÇÃO B R A SILE IR A

Rio de Janeiro
2013
C opyright © Joào Cezar de Castro Rocha, 2013

PROJETO GRÁFICO DE MIOLO E CAPA


Regina Ferraz

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Rocha, João Cezar de Castro, 1965-


R576m Machado de Assis: por uma poética da emulação /
João Cezar de Castro Rocha. - I a ed. - Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2013.

(Filosofia, literatura e artes)

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-200-1173-7

1. Assis, Machado de, 1839-1908 - Crítica e


nterpretação. 2. Literatura brasileira - História
: crítica.

CDD: 869.909
13-00480 CDU: 821.134.3(81)(091)

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, o


I JÜw 1 arm azenam ento ou a transmissão de partes deste livro,
i, através de quaisquer meios, sem previa autorizaçao por
escrito.
EDITORA AFILIADA

Este te x to fo i revisa d o segu n d o o n o vo A c o rd o


O rtográfico da Língua Portuguesa.

Direitos desta edição adquiridos pela


EDITORA C IVILIZAÇ ÃO BRASILEIRA
Um selo da
EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA
Rua A rgen tin a, 171 - 20921-380 Rio de Janeiro, RJ -
Tel.: 2585-2000

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Impresso no Brasil
2013
Sumário

Agradecimentos

Introdução — O paradoxo do autor-matriz

1. O naufrágio das ilusões

2. No meio do caminho tinha um autor

3. Por uma poética da emulação

4. Os anos decisivos

5. Formas da emulação

Conclusão — Ecos de Paris?

Referências bibliográficas
Agradecimentos

Em primeiro lugar, e sem protocolo algum, agradeço ao edi­


tor da coleção, Evando Nascimento, pela elegância com que
aguardou os manuscritos e, sobretudo, pelo olhar crítico com
que apontou imprecisões e sugeriu aperfeiçoamentos. Não
creio que se possa encontrar combinação tão perfeita de ami­
zade, rigor intelectual e generosidade.
Em segundo lugar, devo um reconhecimento especial aos
inúmeros leitores que comentaram a primeira versão deste
livro. Devo muito à inteligência com que me criticaram. Em
ordem alfabética: Adriana Lunardi, Alexandre Agnolon,
André Carneiro Ramos, Carola Saavedra, David Toscana,
Marcus Vinicius Nogueira Soares, Maria Teresa Atrián Pineda,
Thomaz Am orim Neto, Valdir Prigol, Victoria Saramago,
Victor K. Mendes e Wanderlei Barreiro Lemos.
A bolsa de produtividade de pesquisa do CNPq foi funda
mental para a realização do projeto que deu origem a este
livro. A bolsa de pesquisa “Prociência” da Uerj desempenhou
o mesmo papel.
Completei a primeira versão do segundo capítulo graças
à Cátedra H élio and A m élia Pedroso/Luso-American
Foundation Endowed Chair in Portuguese Studies, concedida
pelo Center fo r Portuguese Studies, da U niversity o f
Massachusetts-Dartmouth. Agradeço a Frank F. Sousa e Victor
K. Mendes pelo diálogo constante ao longo de mais de uma
década.
Apresentei a primeira síntese da “poética da emulação”
no âmbito da Cátedra de Estúdios Latinoamericanos Machado
de Assis — Universidad dei Claustro de Sor Juana/Embajada
de Brasil en México. Agradeço a Valquíria Wey, Sandra
Lorenzano e Paolo Pagliai pela oportunidade de discutir mi­
nhas ideias. E a Alberto Ruy-Sánchez por um diálogo intenso.
No Colégio de México, graças ao convite de Guillermo de
Jesús Palacios Luz e Elena Gutiérrez de Velasco, discuti pela
primeira vez a ampliação do conceito de poética da emulação
para o conjunto da cultura latino-americana.
Graças à confiança de Maria Luisa Armendáriz mantive
uma coluna mensal na revista mexicana Nueva Era, esboçan­
do ideias aqui desenvolvidas.
Introdução
0 paradoxo do autor-matriz

E isto nos coloca no centro da questão da pecu liar grandeza


do grande escritor de “pequenas” culturas. Ciente ele mesm o
de que o seu m eio o condiciona terrivelm en te (o que é ev i­
d entem ente mais sensível lá onde não existam as condições
de um a intensa vida in telectu al e literária, em simultâneas
qualidade, quantidade e con fiante prestígio, mas não menos
se dá em qu alqu er ou tro m eio) ele tenderá a e x ig ir de si
p róprio o que o próprio m eio não e x ig iria em tal escala, e
terá ou buscará ter uma cultura e um a lucidez crítica que,
equivalentem ente, não existem nos seus pares das grandes
culturas.

Jorge de Sena, “Machado de Assis e o seu Quinteto Carioca”

Já é tem po de se com eçar a com preender a obra de M achado


com o um todo coeren tem en te organizado, percebendo que
certas estruturas prim árias e prim eiras se desarticulam e
rea rticu la m sob form as de estruturas diferentes, m ais com ­
plexas e mais sofisticadas, à m edida que seus textos se su­
cedem cronologicam ente.

Silviano Santiago, “A retórica da verossimilhança”

A segunda lição que tir e i da leitura de Casa Velha fo i que,


para se ter um a visão mais abrangente e profunda da obra
de Machado, se faz necessário um exam e de trabalhos (su­
postam ente) m enores, como, por exem plo, os que não foram
reeditados pelo próprio autor.

John Gledson, Por um novo Machado de Assis


M achado ensaiou nas crônicas o assunto de “Um hom em
céleb re”. Ensaiou não só o assunto, mas tam bém o tom, in ­
jetan do m uito da polca da crônica na peça cam erística que
é o conto, ao m odo de um “concerto para violon celo e m a­
ch ete”.

José M igu el W isn ik , “ M achado m a x ix e ”

No meio do caminho

Em um de seus memoráveis cursos, H istoria de nuestra idea dei


m undo, José Gaos, filósofo espanhol radicado no México após
o triunfo do franquismo, esclareceu a oportunidade de uma
boa introdução.1
De um lado, permite ao leitor orientar-se desde o princípio,
acompanhando passo a passo o raciocínio do autor. Gaos,
porém, referia-se aos ouvintes de suas conferências; faço, pois,
a necessária adaptação. De outro, e eis a maior vantagem,
uma boa introdução autoriza o leitor a simplesmente fechar
o livro, a fim de ocupar-se com tarefas mais proveitosas.
Pretendo oferecer uma explicação alternativa a um dos
dilemas centrais da crítica literária brasileira: a “crise dos 40
anos”, vivida por Machado de Assis entre 1878 e 1880, cujo
resultado é a escrita de M em ória s póstum as de Brás Cubas, assim
como a impressionante produção de sua fase madura. No
primeiro capítulo, estudo os romances e os contos machadia-
nos anteriores a 1880, assinalando, por efeito de contraste, a
revolução desencadeada a partir da prosa do defunto autor.
No centro dessa explicação alternativa, situo a repercussão
do sucesso de Eça de Queirós, relendo os duros artigos escri­
tos por Machado sobre 0 p r im o Basílio. O romance foi lançado

1José Gaos, H is to ria de nuestra idea dei m undo, p. 17.

10
i in fevereiro de 1878 e, em abril do mesmo ano, Machado
publica dois longos textos, condenando tanto a opção estética
<l<> português como a estrutura de sua narrativa. A severa
•uwUise é considerada um dos pontos altos de seu exercício
• i ít ico. Pelo contrário, o ponto de vista machadiano era este-
I ii umente tradicional e moralmente conservador. É como se
Machado, autor das M em ó ria s póstum as, somente tivesse se
tornado possível após a superação dos princípios estreitos do
Machadinho,2leitor de 0 p rim o Basílio. Defendo essa releitura
110 segundo capítulo.
Daí, derivo a hipótese-chave deste ensaio: uma conseqüên­
cia imprevista da reação machadiana ao romance de Eça foi
o resgate da noção clássica de aem ulatio, que o levou a desen­
volver a poética da em ulação. No terceiro capítulo apresento
essa ideia, embora ela seja mencionada brevemente no segun­
do. Não penso em oferecer uma contribuição teórica ao exa­
me da aem ulatio, tema mais adequado aos estudos clássicos
do que à fortuna crítica machadiana. A poética da emulação
eqüivale ao resgate moderno de práticas retóricas progressi­
vamente abandonadas depois do advento do romantismo. Por
isso, diferencio a em u la tio — técnica definidora do sistema
literário e artístico pré-romântico — e p oética da em ulação
— esforço deliberadamente anacrônico, marca-d’água da li­
teratura machadiana.
“Anacronismo deliberado” — definido em crônica da série
H is tó ria de 15 dias, saída em I o de janeiro de 1877: “Mas aqui­
lo é uma curiosidade velha, uma notícia morta. Venhamos à
coisa novíssima, posto que velhíssima; ou antes velhíssima,

2 Como esclareço no prim eiro capítulo, assim o autor era chamado, mesmo
já tendo chegado aos 30 anos.

11
posto que novíssima” (III, p. 355).3 Passagens como essa são
comuns, como mostro nos dois últimos capítulos, dedicados
precisamente ao resgate do campo semântico da a em ulatio na
obra machadiana. Com frequência, Machado parece refletir
sobre o estranhamento provocado pela atualização de práticas
literárias pré-românticas num ambiente pós-romântico — e
são surpreendentes as conseqüências desse deslocamento em
termos de política cultural.
Portanto, trato dos efeitos da poética da em ulação na rup­
tura Brás Cubas. O campo semântico associado à aem ulatio
converteu-se num dos pilares da obra machadiana.
Nos dois últimos capítulos, realizo o mapeamento do vo­
cabulário e dos procedimentos da técnica da im ita tio e da
aem ulatio em todos os gêneros literários e nas cinco décadas
em que Machado produziu. Defendo uma leitura cruzada do
conjunto da obra machadiana, identificando seus ritmos e
suas transformações.
Naturalmente, esta introdução não é o espaço apropriado
para discutir o conceito de aem ulatio. Adianto que a prática
da emulação implica uma ideia particular de sistema literário,
privilegiando o ato de leitura como gesto eminentemente
inventivo. Afinal, partindo-se da im ita çã o de um modelo
considerado a u torid a d e num determinado gênero, busca-se
em u lar esse modelo, produzindo uma diferença em relação a
ele. No final do quinto capítulo e na conclusão, trato do po­
tencial político da poética da emulação.
Esclarecida a estrutura do livro, retomo o fio da meada.
O êxito de 0 crim e do padre A m a ro (1875) e de 0 p rim o B asílio
(1878) não teria deixado o brasileiro indiferente, representan-

3 Citarei a obra de Machado de Assis pela edição da Nova Aguilar, em três


volumes. Por isso, indicarei apenas o número do volume e a página da edição.

12
i" 11 m ;icicate poderoso para que o sempre solícito Machadinho
•I*. k Iisse tudo arriscar, metamorfoseando-se no Machado que
.• .uImira em todo o mundo. Não se trata de questão “psico-
luru a", mas de insatisfação do autor com sua obra; dilema
i •i avado pelo aparecimento do jovem romancista português.
() argumento é potencialmente controverso, destacando a
i iv.ilidade literária como fator relevante na transformação
m.M hadiana. Tal aspecto contradiz a imagem dominante do
iiiior de “A causa secreta”: um Machado sempre cordial, a
' |ik*in aborrecia a polêmica. Peço ao leitor que acompanhe os
<.ipítulos que compõem este ensaio como se fossem peças de
11111 quebra-cabeça, cuja montagem depende de sua cooperação.
Em nenhuma circunstância considero o surgimento do
romance queirosiano a causa da metamorfose machadiana.
Nao se trata de fenômeno simples, passível de explicação
unívoca, mas de processo de grande complexidade, razão de
ser do escritor Machado de Assis.
Tal cautela não basta, pois ignora o que de fato importa:
o texto machadiano.

(Todo este ensaio representa um esforço deliberado de


retorn o ao texto, a fim de mapear o sistem a lite rá rio M achado de
Assis.)

Seria ingênuo supor que, no plano do romance, em 1880,


com a publicação de M em ória s póstum as de Brás Cubas, e no
plano do conto, em 1882, com o aparecimento de Papéis avul­
sos, tudo repentinamente se transformasse. O ritmo macha­
diano foi lento. 0 p rim o B asílio teria sido um elemento catali­
sador de potências textuais que Machado já exercitava aqui
e ali, embora de forma isolada e às vezes tímida. Mais do que
novidade absoluta, a escrita das M em ória s póstum as favoreceu

13
a reunião de recursos heteróclitos, experimentados anterior
mente nas crônicas e nos contos.
Por isso, denomino a ltern a tiva a explicação que ofereço
para a crise existencial e artística machadiana. Não reduzo
a dimensão múltipla do problema ao âmbito de minha hipó­
tese, porém almejo descortinar um ângulo novo para sua
compreensão.

Uma hipótese

Uma cena marcante do film e C idadão Kane, de Orson Welles,


apresenta uma das críticas mais contundentes à ideia de in­
terpretação como a arte de desvelar a verdade, seja a definição
de uma personalidade, seja a leitura de um texto. Num sutil
movimento de câmara, que progressivamente se afasta, ex­
pondo a excessiva quantidade de peças colecionadas pelo
milionário, a tela se converte na imagem de inesperado mu­
seu em busca de um curador. A chave do enigma “Charles
Foster Kane” talvez residisse na análise criteriosa dos objetos
de arte, das curiosidades diversas, da miríade de artefatos
reunidos ao longo de sua vida. O acúmulo de informações
possivelmente levaria à decifração do mistério: o sentido da
palavra “Rosebud”, proferida pelo magnata da imprensa na
hora extrema.
Entretanto, num movimento final, a câmara torna-se
cúmplice do espectador, permitindo que ele se aproxime da
lareira, em que objetos sem valor são destruídos. Entre tantas
peças, destaca-se uma lembrança de infância: um simples
trenó, brinquedo aparentemente sem significado, embora
tenha aparecido no início do filme, quando o menino Kane
é afastado dos pais, a fim de receber uma educação condizen-

14
ir com a fortuna recém-adquirida pela mãe. Em meio às
« li.unas que devoram o trenó, um nome pouco a pouco desa-
|mi ece: “Rosebud.” Como a carta roubada do conto de Edgar
All.in l’oe, a resposta do problema encontra-se diante dos
olhos do espectador — ainda que por pouco tempo.
1,'ssa cena desencoraja uma interpretação mecânica. Se o
n poder, responsável pela produção do documentário, tives-
r procurado as “pistas” corretas, o sentido da palavra
Rosebud” seria revelado e, assim, esclarecido o fio condutor
d.i vida de Charles Foster Kane. Exatamente como faz o cri-
lerioso crítico literário na busca da frase oculta, da palavra
secreta, da referência oblíqua capaz de acionar o círculo
hermenêutico, em cujo centro todas as perguntas são respon­
didas, estabelecendo o vínculo perfeito entre texto macha-
diano e contexto histórico. Na última cena, o repórter reco­
nhece a miragem que o movera: vida alguma se explica
inteiramente. Ainda que o repórter tivesse descoberto o sig­
nificado de “Rosebud”, sua reconstrução seria apenas isso:
montagem parcial, cuja totalidade nunca se alcança. Em al­
gum momento, aliás, teria existido essa significação total
para o próprio Kane?
O olhar crítico é sempre anacrônico, surpreendendo preo
cupações atuais nos objetos de qualquer época. Tal inversão
ocorre no conto “Uma visita de Alcibíades”, publicado origi­
nalmente no Jornal das Fa m ílias em 1876, e reunido em Papéis
avulsos (1882). Nele, o narrador, embora padeça de autêntica
“devoção do grego: devoção ou mania” (II, p. 352), diante do
ilustre ateniense, limita-se a defender a moda do seu próprio
tempo. Ao ser apresentado à vestimenta do século XIX, o
célebre orador morre “pela segunda vez” (II, 357), pois tam­
bém não sabe, e tampouco deseja, abandonar seus valores

15
clássicos. Por isso, as palavras do narrador fazem o ático
perder a justa medida:

— M eu caro, disse-lh e, tu p od es c e rta m e n te e x ig ir que o


Júpiter O lím p ic o seja o e m b le m a e te rn o da m ajestade: é o
d o m ín io da a rte ideal, desinteressada, s u p erio r aos tem pos
que passam e aos h om en s qu e os a c om p an h am . Mas a a rte
de v e s tir é ou tra coisa. Isto qu e p a rece absu rdo ou d e sg ra c io ­
so é p e rfe ita m e n te ra c io n a l e b e lo — b e lo à nossa m a n eira,
que não an dam os a o u v ir na rua os rapsodos re c ita n d o os
seus versos, n em os oradores os seus discursos, n em os f i l ó ­
s ofos as suas filo s o fia s . Tu m e s m o , se te a c o s tu m a r e s a
ver-n os, acabarás p o r g o s ta r de nós, porque...
— D esgraçado! bradou e le atiran do-se a m im . (II, 356)

A reflexão do narrador é muito próxima à definição de


“modernidade” em Baudelaire: equilíbrio entre o atemporal
e o efêmero.4 Uma leitura possível desse dilema negaria o
exercício hermenêutico, já que tudo se transforma em pretex­
to para as obsessões do intérprete, como se o crítico recusasse
a possibilidade da literatura no instante em que abrisse o livro.
Afinal, ele somente buscaria confirmar hipóteses previamen­
te formuladas. Nessa alquimia fracassada, porque sempre
exitosa, resta uma alternativa: tornar-se anacrônico em rela­
ção a si próprio, e, como o repórter de Cidadão Kane, denunciar
a ilusão da resposta definitiva. O anacronismo, portanto, não
é uma ruína autocentrada, mas a base das ações humanas:
nenhuma época histórica foi (ou é) contemporânea a si mesma.

4 “A m od ern id ad e é o tran sitório, o fu ga z, o con tingen te, a m etade da arte,


cuja m etade restante é etern a e im utável. Houve uma m odern idade para
cada p in tor an tigo; a m a ior parte dos belos retratos que nos fica ra m dos
tempos anteriores está revestida com trajes de sua época.” Charles Baudelaire,
“ O p in tor da vida m oderna", in Fundadores da m odernidade, p. 109.
O dilema apresentado por Orson Welles escondia uma
Implacável crítica tanto do magnata da imprensa W illiam
Uandolph Hearst, como da estrutura tradicional da narra-
i iv.i holly woodiana, cujo happy e n d in g coincide com a solu-
4,.it) certeira de todos os problemas. Desse modo, qualquer
objeto “casualm ente” aparecido em cena e todas as si-
i iiações apresentadas no enredo encaixam-se feito peças
ck* um quebra-cabeça, cuja solução nunca decepciona o
rspectador.
Ü dilema de Orson Welles talvez interesse particularmen­
te aos estudiosos de autores tão complexos como o criador de
Quincas Borba — o bem-aventurado cão e o malogrado filó ­
sofo. Se adotarmos a forma livre de seu corrosivo humor, não
seria possível associar a emblemática cena do film e com
atitude recorrente na crítica machadiana?
Com a publicação de M em ória s póstum as de Brás Cubas em
1880 e, dois anos depois, de Pape'is avulsos, Machado promoveu
uma renovação sem precedentes na literatura brasileira.
Trata-se de compreender a motivação interna que teria con­
duzido a uma experiência tão radical: como entender a “cri­
se dos 40 anos” e a nova dicção de sua prosa? Tal questão fa­
voreceu o surgimento de hipóteses tanto mais fecundas
quanto muitas vezes opostas.
O eterno retorno da pergunta estimula uma provocação:
em que medida se trata de uma petição de princípio? Na de­
finição aristotélica, esse é um problema lógico que consiste
em situar como ponto de partida o argumento que deveria
ser provado ao término do processo argumentativo. A petição
de princípio seria alimentada pelo próprio motor das inves­
tigações, pois a concentração à roda dos romances alimenta
o eterno retorno. Afinal, entre os quatro primeiros títulos e

17
os cinco últimos descortina-se um horizonte radicalmente
novo — muitas vezes, é bem verdade, constituído pela reunião
eficaz de procedimentos previamente experimentados, des­
tacando-se os diversos tipos de narrador, testados à exaustão
nos contos e nas crônicas.
Contudo, podem-se identificar traços constantes, presentes
desde Ressurreição, primeiro romance do autor, publicado em
1872, e mesmo em contos da década de 1860. Por exemplo,
determinados temas — sobretudo o estudo da condição do
agregado e da patologia do ciúme —; esboços de personagens
— especialmente as femininas —; séries metafóricas — des­
tacando-se a relativa ao campo do olhar —; procedimentos
textuais — particularmente a explicitação do ato de leitura
como gesto autoral de uma escrita dos olhos anterior ao cor­
rer da pena. Ainda assim, não se pode negar que a publicação
das M em ória s póstum as abriu rumos inéditos para Machado.
A própria presença de traços constantes serve como contra-
prova: se há elementos inegavelmente comuns, seu tratamen­
to impõe uma diferença inequívoca.
Tal pressuposto permite estender a ruptura do defunto
autor ao plano dos contos, estabelecendo o paralelismo entre
M em ória s póstum as e Pape'is avulsos. Não se trata de artifício
sem problemas. Alguns dos contos reunidos na coletânea
foram publicados antes de Ia iá G arcia, último romance da
chamada primeira fase, lançado em 1878. “A chinela turca”
é de 1875; “Uma visita de Alcibíades”, de 1876.
Um conto como “Miss Dollar”, de 1870, publicado na pri­
meira coletânea do gênero, C ontos flum inenses, lançada no
mesmo ano, possui uma tematização extremamente rica do
papel do leitor. O texto discute formas variadas de recepção;
daí as constantes e provocadoras adjetivações: “leitor super-

18
I (t ial” (II, 28), e até mesmo o “leitor grave” (II, 32), consagrado
ii.i líit ura nota “Ao leitor” das M em ória s póstum as.
lísse apelo ao leitor também se encontra no poema narra-
livo “ Pálida Elvira”, saído em Falenas, em 1870. Os versos
iniciais anunciam:

Q uando, leito ra a m ig a , n o oc id e n te
Surge a tard e e sm aia d a e p ensativa;
(III, 69, g r ifo m eu )

Na seqüência, aparecem o “meu leitor”, que por ser “ho­


mem sisudo/ Fecha tranquilamente meu romance” (III, p. 71);
o “ leitor amigo” (III, p. 47); a “leitora curiosa” (III, p. 76). Isso
para não mencionar inúmeras exortações que pontuam o
poema, cuja estruturação depende da encenação do ato de
leit ura dos próprios versos:

E ela? Se con h eceste e m tu a vid a,


Leitora, o m a l do am or, d e lír io santo;
(...)
Repara qu e eu não fa lo desse e n le io
De um a n oite de b a ile ou de p alestra;
(III, p. 80)

Movimento similar já se encontra, embora de forma bas­


tante inicial, em “ Confissões de uma viúva moça”, conto
publicado no Jornal das Fam ílias, em 1865, e igualmente reco­
lhido em Contos flum inenses. Eis como a narradora acreditou
armar-se contra um conquistador vulgar: “Este homem (...)
não passa de um mau leitor de romances realistas” (II, p.
107-08). No entanto, como a jovem viúva deixou-se seduzir,
conclui-se que era uma leitora ainda menos competente de
romances românticos. O conto encena a circunstância do ato
de leitura das publicações seriadas: “As minhas cartas irão de
oito em oito dias, de maneira que a narrativa pode fazer-te o
efeito de um folhetim de periódico semanal” (II, p. 100). Uma
leitura renovada deveria explorar tal encenação, valorizando
o diálogo com o leitor, sem deixar de reconhecer o caráter
convencional e “edificante” da trama.
Contudo, o paralelismo entre M em ória s póstum as e Papéis
avulsos dispõe de argumento de peso: seus contos mais célebres
vieram à luz a partir de 1880. É o caso de “O alienista” (1881),
“Teoria do medalhão” (1881), “O espelho” (1882), “A Sereníssima
República” (1882).
Essa questão estimula uma hipótese de trabalho: qual
seria o resultado de uma leitura cruzada dos romances da
chamada segunda fase com os romances, os contos, as crôni­
cas, os poemas, as peças de teatro e as críticas anteriores à
publicação das M em ória s póstum as ? Tal leitura cruzada per­
mitiria imaginar uma explicação alternativa para a crise
existencial e artística do autor de Ressurreição ? Se os elemen­
tos que estruturam a prosa do defunto autor já se encontra­
vam dispersos aqui e ali, o que teria estimulado sua reunião?
Não se trata de uma explicação linear, muito menos mono-
causal, mas de um processo de idas e vindas, cuja inteligência
exige uma nova perspectiva.
Reitero o que disse: o espetacular êxito de 0 p rim o B asílio
pode ter levado o até então cuidadoso autor a tudo arriscar
na fatura das M em ória s póstum as de Brás Cubas.

Cruzamento de leituras e gêneros

Recorde-se o conto “Três tesouros perdidos”, lançado em A


m a rm ota , em 5 de janeiro de 1858, e nunca republicado pelo
uilor. Foi o ano de estreia do contista, ele tinha apenas 18
•mos. O relato é breve e convencional, principia por uma si­
tuação tensa, que disfarça um equívoco logo esclarecido: o
marido enganado, o Sr. F., embora naturalmente seja o último
a saber, deveria ser o primeiro a desconfiar, pois a mulher, a
Dona E., o abandona, fugindo com seu melhor amigo. No
entanto, o Sr. F. supôs que o amante da esposa fosse um tal
de Sr. X. Resoluto, vai a seu encontro, oferecendo-lhe uma
alternativa heróica: deixar a cidade ou morrer. Como o Sr. X.
iia o estava preparado para uma viagem tão súbita, o marido,
o Sr. F., ofereceu valentemente dois contos para custear as
despesas. A tensão dilui-se numa resolução cômica, aproxi­
mando o conto de uma crônica ligeira, quase uma anedota.
Ao voltar para casa, o Sr. F. dá-se conta do engano:

Q uan do deu acord o de si estava louco... lou co v a rrid o !


H oje, qu a n d o a lg u é m o v is ita , d iz ele c o m u m to m lasti-
m oso:
— P e rd i trê s te s o u ro s a u m te m p o : u m a m u lh e r sem
igu al, u m a m ig o a to d a p rova, e u m a lin d a c a rte ira c h eia de
encan tad oras notas... qu e b e m p o d ia in aqu ecer-m e as a lg i­
beiras!...
N este ú ltim o pon to, o d o id o te m razão, e p a rec e ser u m
d oid o c o m ju íz o .
(I, p. 65)5

Estamos diante de um esboço ingênuo. Contudo, desde o


princípio o triângulo foi a figura geométrica propriamente
machadiana; traço que foi explorado em diversos textos, re­
sultando no romance-esfinge D om Casm urro.

Este conto não se encontra reprod u zido na edição da Nova A gu ilar. Por
isso, trab alh o com a edição de John Gledson, Contos/Um a antologia. C itarei
o volu m e e o n úm ero da página.

21
Vejamos um pouco mais a singela estreia machadiana.
justamente num gênero que posteriormente o consagrou.
0 primeiro parágrafo do conto apresenta uma estrutura
que o Machado mais maduro certamente modificaria: “Uma
tarde, eram q u a tro horas, o Sr. X... voltava à sua casa p ara jan tar.
O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolé que
estava parado à sua porta” (I, p. 63, grifos meus). Nessa frase,
o emprego do pronome possessivo estabelece uma relação
“confirmadora”, referindo-se à casa do Sr. X., embora dificil­
mente outra possibilidade ocorresse ao leitor. Uma questão
interessante seria acompanhar o abandono progressivo de
tais recursos reiterativos, a fim de aumentar a ambigüidade
potencial da frase: a marca-d’água do estilo machadiano. As
especificações “eram q u a tro horas” e “p a ra ja n ta r ” desempe­
nham a mesma função “confirmadora”, revelando um autor
em formação, preocupado com a correção do texto, como se
fosse um estudante aplicado. Não é preciso uma imaginação
crítica particularmente inspirada para supor a reescrita ma­
chadiana da sentença: “Uma tarde, o Sr. X... voltava à casa. O
apetite que levava não o fez reparar em um cabriolé que es­
tava parado à porta”.
Em “Folha rota”, por exemplo, conto de 1878, saído no
Jornal das Fam ílias, e nunca republicado pelo autor, o dado não
é mais pura informação, mas lampejo que provoca a imagi­
nação do leitor: “As duas mãos tornaram a encontrar-se e
ficaram presas uma à outra. Correram assim alguns minutos,
três ou q u a tro ” (II, p. 866, grifo meu). Aqui, não se trata de
exatidão cronológica, porém de ênfase na duração psicológi­
ca do episódio, sugerindo o erotismo discreto da cena.
Entretanto, mesmo em “Três tesouros perdidos”, simples
exercício de estreante, observam-se temas que retornarão
com frequência na prosa machadiana
De um lado, a presença do “ louco varrido” que se trans-
loi ma num “doido com juízo” delineia o cruzamento de in­
finidade e lucidez, uma das chaves do olhar machadiano,
■uja obra-prima é “O alienista”. A própria figura caricata do
in.irido enganado que enlouquece ao inteirar-se da infideli-
cl.uk* volta num conto muito mais bem construído, “O ma-
i lute”, publicado n o Jornal das Fam ílias, em 1878, e também
n.io reunido em livro pelo autor.
De outro lado, o tema do ciúme, somente delineado com
tintas ligeiras, retorna nas “dúvidas póstumas” de Félix,
personagem de Ressurreição (I, 195), e finalmente revela sua
.imbivalência máxima na imaginação sem peias de Bento
Santiago, em D o m C asm urro. Não estou dizendo que “Três
tesouros perdidos” seja mais do que um pálido esboço, mas
.ii nda assim é relevante observar que certos temas e procedi­
mentos já estejam presentes.
Tal constatação reforça minha proposta: neste ensaio ra
dii alizo o procedimento metodológico de leitura cruzada da
obra machadiana. A hipótese de uma possível inter-relação
entre os gêneros literários permite reunir perguntas que,
isoladamente, foram propostas por outros pesquisadores. Em
lugar de hipertrofiar os estudos em torno do romance, iden-
ti ficaremos unidades temáticas e textuais presentes nos di­
versos gêneros exercitados pelo autor de Esaú ejacó. 0 cronis-
ta, muito antes dos piparotes de Brás Cubas, havia tornado a
irreverência a forma própria de lidar com o leitor apressado
dos diários. Podemos observar nos contos publicados antes
de 1880 um laboratório de ideias, experimentos narrativos e
procedimentos textuais ressuscitados pelo defunto autor. Na
história da literatura, percursos semelhantes não são raros.
For fim, a atividade crítica abre uma importante via de com­
preensão da prosa de Machado, pois domina todos os gêneros,
constituindo seu modo peculiar de examinar o mundo.
Refiro-me, porém, à possibilidade de reler sua crítica, a fim
de investigar se os critérios de avaliação trazem à superfície
as obsessões que demarcaram seu lugar particular na família
dos autores que se sabem sobretudo leitores. Em sua aprecia­
ção da literatura alheia, qual o papel da valorização do ato de
leitura como gesto inventor? No exercício da atividade crítica
tais critérios já estavam claramente definidos como parte de
uma hermenêutica machadiana, posteriormente incorporada
à ficção?
Tais perguntas permitem forjar um novo perfil literário.
Para tanto, lanço mão da metáfora do autor-operário, propos­
ta por Machado no prefácio à R essurreição. Essa metáfora
circunscreve a obra machadiana ao domínio da técnica e da
disciplina, compreendidas como indispensável respiração
artificial, favorecendo o aperfeiçoamento da vocação.
Reitero minha metodologia: a releitura simultânea dos
contos, crônicas, romances, peças de teatro, poemas e críticas
do autor de M em o ria l de Aires. Não se trata de negar a óbvia
diferença dos textos posteriores às M em ó ria s p óstum as em
relação à “primeira fase” de sua produção; aliás, em mais de
uma ocasião, Machado assim a denominou. Essa diferença é
incontornável e procuro entendê-la a partir do conceito de
poética da emulação.
Em outras palavras, não desejo reinventar a roda! Se for
possível verificar a relevância de procedimentos e temas ca­
racterísticos da segunda fase do autor na produção prévia às
M em ória s póstum as, uma nova pergunta se impõe. Vale dizer:
em lugar de investigar a causa da ruptura, ocorrida em 1880,
podemos especular a razão pela qual os elementos que p ote n ­
cialm ente já coexistiam no texto machadiano dem oraram p ara
.1' iircc ip ita rn o com posto Brás Cubas — um emplasto discursivo
muito bem-sucedido. Se certos elementos haviam sido desen-
\i ilvidos isoladamente em gêneros literários diversos, por que
■omente em 1880 eles foram associados numa única obra?
Im preciso algum impulso externo para que a alquimia ti­
vesse êxito?
Nao desejo reinventar a roda, mas indagar por que ela
ii .io girou inteiramente antes. Isso se a hipótese que propo­
nho encontrar correspondência na leitura efetiva da obra
machadiana.
lissa é a prova dos nove à qual me submeto.

Autor-matriz

Hora de esclarecer meu roteiro de leitura através de uma


reflexão acerca do a u to r-m a triz : conceito que apresento para
0 exame do leitor.
0 autor-matriz é aquele cuja obra, pela própria complexi­
dade, autoriza a pluralidade de leituras críticas, pois elemen-
lo s diversos de seu texto estimulam abordagens teóricas di-
íerentes. Contudo, elem entos opostos, que convivem
criativamente no texto ensaístico, poético ou ficcional, cos-
t umam cavar trincheiras no campo crítico. Pela riqueza de
seus textos, que se traduz na multiplicidade de possibilidades
interpretativas, o autor-matriz favorece o surgimento de
querelas hermenêuticas e metodológicas. Um sistema inte­
lectual necessita desse combustível para se manter ativo. Ao
mesmo tempo, essa é a melhor maneira de preservar a vita­
lidade de uma obra, assegurando o diálogo com as inquieta­
ções do presente. 0 princípio foi exposto pelo próprio Machado.
Recorde-se uma crônica de 15 de janeiro de 1877, da série

25
H is tó ria de 15 dias: “Cada tempo tem a sua ílía d a , as várias
Ilía das formam a epopeia do espírito humano” (III, p. 357).
É decisiva a centralidade da leitura no gesto inaugurado
pelas M em ó ria s póstum as. Por ser um leitor sistemático da
tradição, Machado pôde se transformar no autor-matriz por
excelência da literatura brasileira. O conceito não se confun­
de com o de autor canônico, pois o que define o autor-matriz
é a pluralidade semântica de seu texto, em lugar de sua po­
sição relativa na história literária. Gonçalves de Magalhães é
um autor canônico incontornável na formação da literatura
brasileira; porém, sua escrita se define antes pelo registro
monocórdio, caracterizado pelo empenho nacional. Ora, se
pensarmos na obra machadiana, Iaiá Garcia não é texto típico
de autor-matriz! O conceito se refere a uma potência textual
e não a uma localização hierárquica e absoluta.
A ambigüidade constitutiva do olhar machadiano —
atento às coisas do seu tempo e lugar, mas cuidadosamente
inscrito na tradição literária de muitos outros lugares e
tempos — estimulou polêmicas calorosas, que ainda hoje
animam o dia a dia dos bancos universitários. Nesse hori­
zonte, o autor-matriz costuma ser transformado em pretex­
to para a defesa de posições institucionais. Eis, então, o pa­
radoxo: quanto mais instigante for o autor-matriz, tanto
menos legível sua obra se torna. Pois, em lugar de leituras
efetivas do texto, os debatedores circunscrevem seu interes­
se à periferia das querelas críticas. Para cada parágrafo que
se deixa de analisar, mas que se usa à guisa de “evidência”,
emergem noções da moda. Para cada sutileza que se negli­
gencia, aparecem correntes críticas diametralmente opostas,
que se atacam e, ao mesmo tempo, se ignoram; numa dis­
puta cuja monotonia deixaria preocupado o mais bizantino
dos polemistas.

26
l-sse é o modelo da “leitura-consulta”, cuja finalidade é
• -i11por um arquivo de citações confirmadoras da visão do
leórico. Tal forma de leitura é favorecida pela pluralidade
1ii« rente ao autor-matriz: dada a riqueza de seu texto, é sem­
pre possível encontrar o que se busca...

0 método •

( :<)ino driblar o paradoxo do autor-matriz?


Formulo uma proposta metodológica: a literatura de um
.iiilor-matriz deve ser pensada a partir do método da “descri-
ç;io densa” (“ thick descrip tion ”),6 desenvolvido pelo antropólo­
go Clifford Geertz, inspirado em conceito do filósofo Gilbert
Kyle.
Ryle refletiu sobre a diferença de dois movimentos em
princípio idênticos. Isto é, um movimento involuntário da
pálpebra, um tique ou um cacoete (tw itch ), e o mesmo movi­
mento, porém realizado deliberadamente, uma piscadela
(wink). Uma descrição superficial (thin d escription ) apenas ob­
servaria a mecânica dos dois atos, logo, nenhuma distinção
relevante seria apontada. A descrição densa procuraria com­
preendê-los a partir da imersão num contexto determinado,
reconstruindo uma teia de sentidos capaz de produzir dife­
renças significativas. Desse modo, o movimento mecânico se
transmuda em gesto propriamente interpretável.
Recordo, nesse horizonte, o conto “A chave”, publicado em
A Estação, em duas entregas, entre dezembro de 1879 e feve­

'■ C lifford Geertz, “Thick Description: Toward an Interpretive Theory o f


Culture", in The Interpretation of Cultures: Selected Essays, p. 3-30, especialmen­
te p. 5-10.

27
reiro de 1880. Nele, tudo se resolve na decifração dos diferen­
tes sentidos do ato de “piscar o olho” do major Caldas.
O jovem Luís Bastinhos conta com o apoio do major para
o futuro casamento com sua filha, Marcelina. Como o desen-
lace parecia incerto, o pai se revela um consumado etnógra-
fo amador:

(...) C aldas que con h e c ia a filh a não disse m ais nada. Q uan do
o p re te n d e n te lh e p e rg u n to u , d a í a pouco, se d e via con sid e­
rar-se fe liz , ele usou de u m e x p e d ie n te assaz e n ig m á tic o :
p isco u -lh e o olho. Luís B astinh os fic o u rad iante; ergu eu -se às
nuvens nas asas da fe licid a d e . (II, p. 883, g r if o m eu )

Rapidamente o namorado aterrissou uma vez mais, pois


a reação da filha desmentia as promessas da piscadela do pai.
Teria sido um simples cacoete? No decorrer da noite, Luís
Bastinhos se revela um exímio dançarino, o que desperta a
atenção da relutante Marcelina. O major volta à carga:

— Isso... esse ta le n to que Deus con ced eu a poucos... a b e m


raros... Sim, senhor; p o d e c re r que é o r e i de m in h a festa.
E a p e r t o u - lh e m u it o as m ã o s , p is c a n d o o o lh o . Lu ís
B astinh os tin h a já p e rd id o to d a a fé n a qu ele je it o do m ajor,
receb eu -o com frie za . (II, p. 884, g r if o m eu )

Agora o gesto mudou de sentido: despeitada porque o rapaz


só bailava com sua prima, Marcelina decidiu inverter os pa­
péis, convidando Luís Bastinhos para dançar. Desnecessário
dizer que o par não mais se desfez: do baile ao altar, seguiram
em ritmo de valsa. O etnógrafo improvisado também persis­
tiu em sua hermenêutica particular. Machado assim conclui
o conto:

28
( ,) Luís B astinhos abanou a cabeça sorrin d o; o m ajor, su pon­
do que eles o e lo g ia v a m e m v o z b aixa, p is c o u o olho. (II, p. 885,
^ r ifo m eu)

A tarefa do antropólogo consiste em identificar os códigos


i|iic permitem conferir significado aos gestos que compõem
<i u•( ido cultural, pois nenhuma ação pode ser entendida sem
0 esclarecimento de seu vínculo com outras ações e atores
N ociais.

'Ial metodologia permite valorizar tanto o gesto, conside-


i.ido em si mesmo, quanto o contexto, visto como entorno
que estimula sentidos possíveis. A descrição densa, desse
modo, favorece a superação de falsas dicotomias entre forma
e conteúdo, texto e contexto. Daí a importância da obra de
( ieertz na formulação dos pressupostos do “New Historicism”,
sobretudo nos trabalhos de Stephen Greenblatt. Ele forjou a
expressão “poética da cultura” (Poetics o fC u ltu re ), a fim de
caracterizar a análise do teatro de W illiam Shalcespeare e da
época elisabetana. A fecundidade de suas pesquisas demons-
1ra o potencial da descrição densa para os estudos literários
e culturais.
De minha parte, para dar conta da complexidade de de­
terminados autores, imagino uma experiência diversa de
apropriação do método de Geertz. Nessa perspectiva, a pri­
meira indagação seria: por que não considerar a obra de
Machado um sistema literário próprio, movido por uma
dinâmica interna, cuja lógica necessita ser investigada em
seus termos? Nascido em 1839, ele principiou a publicar
muito jovem, em 1855, e continuou a fazê-lo até o ano de
sua morte, em 1908. São mais de cinco décadas de produção
prolífica, distribuída em diversos gêneros literários. Por que

29
não estudar a presença de temas recorrentes, assim como a
transformação de seu tratamento? Por que não identificar
séries metafóricas que estruturaram sua visão do mundo?
Houve mudanças no em prego desta ou daquela série?
Podem-se encontrar campos semânticos dominantes ao
longo de cinco décadas de escrita, conformando um núcleo
de palavras-chave utilizadas pelo autor de “A metafísica do
estilo”? Os narradores de seus contos e romances permane­
ceram semelhantes, ou há rupturas que devem ser assina­
ladas e compreendidas?
Essas perguntas demandam uma descrição densa da obra
machadiana. Neste ensaio pretendo surpreender a lógica
interna da transformação que conduziu o tímido autor de A
m ão e a luva ao irreverente leitor das M em órias póstum as de Brás
Cubas. Ao mesmo tempo, a imersão no corpus textual macha
diano ilumina aspectos importantes da condição de escritor
brasileiro, oriundo de uma circunstância não hegemônica.
A descrição densa supõe a técnica do close reading. Contudo,
não se limita à leitura cerrada, que em geral se restringe ao
estudo minucioso de um texto determinado. Penso na recons
trução de um sistema literário próprio, formado pelo conjun­
to da obra do autor — isso para não mencionar sua leitura de
tradições diversas. A leitura cruzada de gêneros literários é
o método mais adequado para a descrição densa da literatura
de um autor-matriz; literatura que evoca a imagem do mo­
saico ou do caleidoscópio como princípio compositivo.
Por isso, e sou o primeiro a reconhecê-lo, minha proposta
implica uma desvantagem: eclipsar as relações sutis do texto
machadiano com o contexto histórico. Porém, não desejo
retornar à polêmica sobre cosmopolitismo versus localismo.
Tal discussão não faz mais sentido, pois foi resolvida a con-

30
1•’ nto pelo trabalho de Roberto Schwarz. A contribuição do
.ml or de Um mestre na p erife ria do capitalism o tornou obsoleta
uma tradição crítica que insistia em assinalar o pretenso
.ilv.enteísmo machadiano como marca de sua visão do mundo
•• <le sua literatura. A obra de Schwarz ilumina a presença dos
Impasses da sociedade brasileira nas entrelinhas do texto
machadiano, mesmo em sua estrutura profunda. Em conse­
qüência, e pela própria fecundidade de seu trabalho, busco
r s piorar outra via. Meu método, portanto, tem um limite
( l.iro, pois me concentro à roda da biblioteca.
O sistema lite rá rio M achado de Assis, e esse ponto é decisivo,
n.io pode ser reconstruído exclusivamente com base na sua
obra “visível”. Como no caso do “Pierre Menard, autor dei
(Jiiijole”, de Jorge Luis Borges, também há uma obra “invisível”,
indispensável à inteligência do autor de “0 imortal”. É neces-
s.i rio considerar a leitura e a apropriação da tradição literária
e da literatura contemporânea, até mesmo porque o desen­
volvimento da poética da emulação demanda um ato de lei-
tura específico.
Trata-se, enfim, de compor um novo perfil do autor de
Qiiincas Borba, recorrendo prioritariamente à sua palheta lite­
rária. Neste ensaio, o leitor encontrará uma espécie de texto-co-
lagem da obra machadiana. A única exceção será o terceiro
capítulo, no qual discuto a ideia de emulação recorrendo so­
bretudo a textos de outros autores. Nada é mais apropriado
para apresentar a prática da emulação do que o recurso ao
alheio como primeiro passo na afirmação do próprio.
A obra machadiana ocupará o centro do palco: mesmo ao
t razer outros autores para a discussão, o eixo da análise será
sempre o texto do autor de Casa velha. Referências a teóricos
e a críticos estarão concentradas nas epígrafes que abrem os

31
capítulos. Recomendo vivamente a consulta a seus livros, pois
não seria capaz de compreender a literatura machadiana sem
o auxílio de suas interpretações. Em nenhuma circunstância
afirmo que o texto fa le p o r si só e que a teoria e a crítica sejam
ociosas; no limite, um estorvo. Espero que não me atribuam
tal ingenuidade.
Contudo, arrisco uma experiência diferente: desenhar um
novo retrato de Machado de Assis. Como pincel e tinta, suas
palavras. Se o exercício for malogrado, ao menos restará o
consolo de uma viagem sistemática à roda de sua obra.
0 naufrágio das iluSõesr

A té hoje, m esm o não considerando que boa parte dos textos


de juventu de não era conhecida, ela fora estudada levando
em conta o que M achado de Assis veio a ser. Tomava-se a
h istória de sua vid a às avessas. A o contrário, tentarem os
estudar a juventu de por ela mesma.

Jean-Michel Massa, A juventude de Machado de Assis

A descontinuidade entre as M em órias póstum as de Brás Cubas


e a literatura apagada da p rim eira fase m achadiana é irre ­
cusável, sob pena de d esconhecerm os o fato q u a litativo,
afin a l de contas a razão de ser da crítica. Mas há tam bém
continuidade rigorosa, aliás mais d ifíc il de estabelecer.

Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo


— Machado de Assis

As narrativas maduras de M achado de Assis não apresentam


um a estória conclusa, que pudessem agradar pela intriga,
com o as da p rim eira fase. Não exp licitam tam pouco o p ro ­
blem a que abordam ou a conclusão a que chegam. O sign i­
ficado delas dependerá sem pre da interpretação do leitor.

Ivan Teixeira, Apresentação de Machado de Assis

Há boas razões para supor que o M achado da p rim eira fase


tenha sido am bivalente em relação ao paternalism o, regim e
p rotetor mas hum ilhante, pois requer dos dependentes uma
alta dose de esperteza e hipocrisia. Quanto aos dignos, v iv e ­
rão à m argem ou perecerão.

A lfred o Bosi, “Brás Cubas em três versões”


Se não houve concessão no sentido de condescendência,
violação de convicções pessoais ou barateam ento de ideias,
parece-m e inegável o fato de que Machado de Assis concedeu
ao gosto e expectativa do público leitor que ele im agin ava
e/ou desejava para a sua obra e que essa atenção e sensibili­
dade ao público seja u m dos pilares da grandiosidade dessa
m esm a obra.

Hélio de Seixas Guimarães, Os leitores de Machado de Assis

Um ano como todos os outros?

O ano de 1878 não foi fácil para o escritor Machado de Assis.


No entanto, tudo parecia indicar o contrário.
Em janeiro, principiou a publicar Ia iá G arcia, seu quarto
romance, em 0 C ruzeiro. Lançado como folhetim, o enredo
manteve o público entretido de I o de janeiro a 2 de março,
em entregas praticamente diárias. Ironicamente, a última
frase do romance poderia descrever o dilema que o autor
enfrentava: “Alguma cousa escapa ao naufrágio das ilusões”
(I, p. 509). No caso do romance, o narrador comemorava a
piedade sincera de Esteia, viúva de Luís Garcia, pai de Iaiá
Garcia, personagem que dá título à trama. Para o escritor, o
inesperado se aproximava enquanto ele seguia, passo a passo,
o rumo bem traçado de seu projeto, conhecendo uma consa­
gração crescente, em aparência imune às vicissitudes da vida
literária.
Iaiá G arcia foi o quarto romance de uma seqüência, cujo
ritmo esclarece a disciplina e a determinação do escritor. Em
1872, veio à luz o primeiro da série, Ressurreição. No prefácio,
Machado, solícito, forjou a imagem do autor-operário; ima­
gem, aliás, fundamental para a interpretação que proponho.
Escutemos suas palavras:

34
Nilo sei o que d eva pen sar deste liv ro ; ig n o r o sob retu d o o que
pensará d ele o leitor. A b e n e v o lê n c ia c om que fo i receb id o
um v olu m e de contos e novelas, que há dois anos p u b liqu ei,
nic a n im o u a escrevê-lo. É u m ensaio. V ai d espretensiosa-
i iu‘ nte às m ãos da c rític a e do pú b lico, que o tra ta rã o c o m a
liisi iça que m erecer.
(...)

M in h a id eia ao e s crever este liv r o fo i p ô r e m ação aqu ele


pen sam en to de Shakespeare:

Our ãoubts are traitors,


And make us lose the good we oft might win,
Byfearing to attempt.

Não quis fa z e r ro m a n c e de costum es; te n te i o esboço de

nina situ ação e o c o n tra ste de d ois c a ra cteres; c o m esses

sim ples e le m e n to s b u sq u ei o in te re s s e d o liv r o . A c rític a


d e cid irá se a ob ra c o rresp on d e ao in tu ito , e sob retu d o se o

o p e rá rio te m je it o para ela.

É o que lh e p e ç o c o m o coração nas m ãos. (I, p. 116)

Machado se referia ao volume Contos fluminenses. Ainda em


IH70, ele também publicou um livro de poemas, Falenas, no
<|iinl se encontra “Flor de Mocidade”, cujos versos finais acon­
selhavam:

Q u an do a te r ra é m ais jo v ia l
Todo b e m nos p a rec e e te rn o
C olhe-se antes qu e v e n h a o m a l
C olhe-se antes qu e ch egu e o in v e rn o . (III, p. 41)

O inverno durou quase uma década a chegar: em feverei­


ro de 1878 ele se anunciou para o autor de D om C asm urro. Em
relação ao poema, Machado acrescentou em 1901 uma reve-
ladora nota, na edição por ele mesmo preparada de suas Poesias
com pletas.

Os p oetas clássicos franceses u savam m u ito esta fo r m a a que


c h a m a v a m trio le t. D ep ois de lo n g o desuso, a lg u n s p oetas
deste sécu lo ressu scitaram o trio le t, náo d e sm e re c e n d o dos
an tigos m od elos. N ão m e con sta qu e se haja ten tad o em p re-
gá-la e m p ortu g u ês, n e m ta lv e z seja coisa que m ere ç a tra n s ­
ladação. A fo r m a e n tre ta n to é g racio sa e não e n con tra d i f i ­
cu ld ad e e m nossa lín g u a , c re io eu. (III, p. 181)

Destacam-se dois elementos da leitura que arrisco da obra


machadiana: a menção a Shakespeare e a referência à ressur­
reição de formas clássicas, sem desm erecer dos antigos modelos.
A onipresença do dramaturgo inglês e o resgate de práticas
literárias, depois de longo desuso, são dois lados da mesma mo­
eda, estimulando uma nova inteligência do momento decisi­
vo para o escritor Machado de Assis; momento em que ele se
reinventa ao escrever M e m ó ria s p ós tu m a s de Brás Cubas.
Refiro-me à técnica literária da aem ulatio.
De imediato, devo esclarecê-la; para que o leitor acompa­
nhe o fio da meada. A prática artística, anterior à explosão
romântica, costumava partir da necessária adoção de mode­
los consagrados pela tradição, e mesmo pela imitação delibe­
rada de determinado aspecto de uma obra-prima. Contudo,
sempre se buscava acrescentar ao modelo elementos nele
ausentes. Buscava-se emular a tradição, em lugar de simples­
mente perpetuá-la. Se não vejo mal, Machado termina por
inventar a escrita do defunto autor ao visitar com assiduida­
de esse território discursivo do passado. Porém, uma visita
deliberadamente anacrônica; produzindo diferenças signifi­
cativas em relação ao modelo adotado.

36
Retorno ao projeto do autor-operário.
Mais do que palavras protocolares, redigidas apenas para
• «luzir o público e obter a complacência da crítica, o roman-
• r.i.i estreante levou a sério a metáfora do trabalhador das
lei im s e, numa constância invejável, publicou um novo título
.1 i .ida dois anos. Em 1874, lançou A m ão e a luva ; em 1876,
llcln u r, por fim, em 1878, Iaiá Garcia.
Nao se pense que o operário se limitou ao romance. Ele se
• \ercitou em todos os gêneros: da crítica à crônica, da poesia
.io teatro, do conto ao romance, do comentário político às
11 uluções, do prefácio ao discurso, da crônica rimada à fan-
i.isia, das paráfrases às imitações, do apólogo ao diálogo, da
correspondência aos pareceres de censor teatral do
< <mservatório Dramático.7Em todos os gêneros debutou com
,i modéstia do aprendiz disposto a superar seus limites.
Não é injusto afirmar que, com exceção da crítica literária,
os começos machadianos foram tateantes.
Seus primeiros contos são apenas exercícios interessantes
e, sem dúvida, prometedores, embora muitas vezes tingidos
por um tom moralizante que certamente surpreenderia o
leitor das M em ória s póstum as de Brás Cubas.
Os primeiros livros de poesia não são muito mais do que
um adestramento na técnica literária, a fim de experimentar
lormas diversas de expressão lingüística. Embora, é bem
verdade, tenham sido eles que deram a Machado sua primei­
ra nomeada.

' Um ensaio como este não seria possível sem o trabalho indispensável de
José Galante de Sousa, Bibliografia de Machado de Assis. Recomendo a consul­
ta do “Quadro demonstrativo da obra de Machado de Assis”. José Galante
de Sousa, Bibliografia de Machado de Assis, p. 37-38.

37
As peças de teatro nunca chegaram a empolgar os con­
temporâneos, tampouco os futuros machadianos se sentem
atraídos por seus jogos de cena.
As primeiras crônicas ecoam o tom ligeiro, “ao correr da
pena”, conforme a expressão usada por José de Alencar.
Machadinho assim definiu a escrita dos contos publicados em
H istórias da m eia-noite (1873): “Vão aqui reunidas algumas nar­
rativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que
não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor.”
Um pouco adiante, ele transformou a advertência em página
de agradecimento, referindo-se ao favor obtido pelo autor-ope-
rário: “Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à
crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu
primeiro romance, há tempos dado à luz” (II, p. 160).
Pois é: ele era carinhosamente chamado de Machadinho
mesmo já tendo alcançado os 30 anos.
Porém, desde os primeiros artigos seu olhar crítico se
mostrou promissor, revelando um leitor fino, preocupado em
conhecer a tradição. Isto é, duas faces da moeda que lastreou
a fama póstuma do escritor.
Vejamos o jovem de 19 anos, que publica em duas entregas
em A M a rm ota , no mês de abril de 1858, o ensaio “O passado,
o presente e o futuro da literatura”. O estudo cumpre as for­
malidades da convenção. Machadinho passa em revista a li­
teratura colonial, descobrindo-lhe a falta mais grave: por
seguir à risca o molde europeu, “a literatura escravizava-se,
em vez de criar um estilo seu, de modo a poder mais tarde
in flu ir no equilíbrio literário da Am érica” (III, p. 785).
Equilíbrio que também dependeria do estudo dos clássicos e
não apenas do destaque da cor local:
M.is após o F ia t p o lític o d e via v ir o F ia t lite rá rio , a em ancipa-
',.10 do m u ndo in tele c tu a l, v a c ila n te sob a ação in flu e n te de

uma litera tu ra u ltra m a rin a . Mas com o? É m ais fá c il regen e-


i ar um a nação, que um a literatu ra. P ara esta não há g rito s de
Ipira n ga; as m o d ifica çõ e s operam -se vagaro sam en te; e não se
( liega em um só m om ento a um resultado. (III, p. 787, g rifo s m eus)

( lomo se anunciasse seu próprio ritmo, o jovem analisa o


presente”, que enxerga com reservas — “A sociedade atual
n.io é decerto compassiva, não acolhe o talento como deve fa-
< Io" (ibidem ) - e imagina o futuro, que vislumbra como uma
i.irefa — “Se uma parte do povo está ainda aferrada às antigas
Itleias, cumpre ao talento educá-la” (III, p. 789). Essa oscilação
« iit re critérios convencionais, que garantem a inserção social
«Io Machadinho, e lampejos críticos, que serão desenvolvidos
pelo Machado das M em órias póstumas, por muito tempo cons-
I rangeu a prosa e a visão do mundo do jovem literato — fato
i |ile também reduziu o alcance de seu exercício crítico. Somente
quando se livra da obrigação de corresponder ao que se espe-
rava de um respeitável homem de letras, a vocação crítica se
torna dominante e o defunto autor pode vir à luz.
Afinal, não se chega em um só m om en to a um resultado.
As palavras de Mário de Alencar devem ser lembradas:
Machado teria renunciado à crítica literária pelo risco envol­
vido na tarefa; risco considerável num meio intelectual tím i­
do como o Brasil da corte imperial.8

lim 1910, Mário de Alencar coligiu a crítica literária de Machado. Na ad­


vertência, ponderou: “ Depois de ler este livro, perguntará o leitor natural­
mente por que é que o autor destes excelentes trabalhos de crítica não a fez
com a assiduidade com que cultivou outro gênero de literatura." 0 organi­
zador esclarece o aparente mistério: “A profissão de crítico é por isso entre
nós das mais penosas, das mais ingratas, e das mais arriscadas.” Mário de
Alencar, “Advertência da edição de 1910”, in Crítica Literária, p. 7 e 9.
Provavelmente.
Na resenha que prepara de “Mãe”, peça teatral de José de
Alencar, o próprio autor confirma o receio. O texto foi publi­
cado na Revista D ra m á tica , em 29 de março de 1860:

E screver c rític a e crítica de te a tro não é só um a ta re fa d ifíc il,


é tam bém u m a em presa a rris c a d a .
A ra zã o é sim ples. N o dia e m qu e a pena, fie l ao p re c e ito
da censura, toca u m p on to n e g ro e o lv id a p o r m o m en to s a
e s tro fe laudatória, as in im iza d e s levantam -se de en volta com
as calún ias. (III, p. 837, g r ifo m eu )

No sempre citado “O ideal do crítico”, artigo saído no D iá rio


de R io de Janeiro, em outubro de 1865, o tema retorna numa
dicção mais refinada:

C om tais p rin c íp io s , eu co m preendo que é d ifíc il v iv e r ; m as a


c rític a não é u m a p ro fissã o de rosas, e se o é, é-o som en te no
qu e resp eita à satisfação ín tim a de d iz e r a verd ad e. (III, p
799, g r ifo m eu )

Mário de Alencar tinha razão.


Talvez.
O caminho do jovem escritor não era fácil. Mulato, oriun­
do de extração bastante humilde, agregado na infância e na
adolescência, aos 15 anos trabalhou na Tipografia de Paula
Brito, aos 17 foi aprendiz de tipógrafo da Imprensa Nacional,
ofício exercido por dois anos. Posteriormente, tornou-se fun­
cionário público exemplar tanto na Monarquia quanto na
República. Nas circunstâncias machadianas, as perspectivas
de êxito literário e social no Brasil escravocrata e patriarcal
do século XIX pareciam uma extravagante ficção romântica.
( ,'ontudo, não se exagere o peso da condição humilde, que
• ilente interessa à escrita de panegíricos. Graças ao trabalho
•ir |ean-Michel Massa, A ju v e n tu d e de M a ch a d o de Assis —
l!> W-1870, aprendemos que suas dificuldades não excederam
i ilc* outros mulatos talentosos do Brasil oitocentista, alguns
■Ir cxt ração popular, e que nem por isso deixaram de ascender
*.«»* ia 1mente. Aliás, esse foi o século dos bacharéis e dos mu-
l.iios, como Gilberto Freyre assegura em Sobrados e m ucam bos.9
Reconhecê-lo importa para evitar a repetição pouco refle-
i k I.i de lugares-comuns acerca do périplo existencial de
Machado. Porém, não ajuda muito passar de um extremo a
oi it ro. Ao fim e ao cabo, os impasses, por vezes intransponí­
veis, associados à condição do agregado constituem tema
dominante na obra machadiana, onipresente na escrita dos
romances até Ia iá G arcia. Além disso, a visão do mundo do
111lio de um senador — o caso, por exemplo, de José de Alencar
<■de Joaquim Nabuco — deve ser diferente da perspectiva do
filho de um mulato, pintor de paredes.
Mário de Alencar tinha alguma razão: por que se arriscar
(iluda mais ? De qualquer modo, não custa perguntar: em lugar
de abandonar a crítica, Machado não a canalizou em sua
l icção, especialmente a partir das M em ó ria s p óstu m a s? A o
lüzê-lo, começou a superar seus impasses. Limites óbvios no
conjunto inicial de romances apenas corretos, culminando a
série com o anódino Ia iá Garcia.
0 leitor provavelmente objetará: apesar do que prometi
na introdução, simplesmente afirmei que os princípios ma-

1 "(...) nestas duas grandes forças, novas e triunfantes, às vezes reunidas


numa só: o bacharel e o m ulato” G ilberto Freyre, Sobrados e mucambos,
p. 302.

41
chadianos foram hesitantes, sem ter analisado uma única
linha do autor de Esaú ejacó, com exceção de breves passagens
de sua crítica literária. Compus um autêntico colar de adje­
tivos, mas não me submeti à prova dos nove da atividade
crítica: o exame dos textos do autor.
Acolho a objeção e corrijo o rumo da prosa, realizando um
estudo de certo aspecto formal dos quatro primeiros roman­
ces de Machado, a fim de contrastá-lo com a produção poste­
rior às M em ória s póstum as. Desse modo, se esclarece a força
da transformação da obra machadiana.

A chave do escrito

Os primeiros romances machadianos possuem uma conclusão


de corte tradicional, esclarecedora do fio condutor da trama
e de todas as possíveis dúvidas do leitor. O narrador chega a
oferecer conclusões de caráter edificante, afirmando seu
perfeito acordo com os preceitos do tempo — a moral e os
bons costumes, para dizê-lo sem nenhuma diplomacia. Tanto
do ponto de vista da forma quanto do ponto de vista do con­
teúdo, o que se destaca é o traço excessivamente cuidadoso,
mesmo conservador, do autor-operário em seus primeiros
passos.
É importante que se considere essa hipótese de leitura.
Nada prejudica mais a compreensão da crise existencial e
artística vivida por Machado do que uma hagiografia cômoda,
incapaz de reconhecer os limites óbvios que, pelo menos por
duas décadas, o diligente Machadinho impôs à sua criação.
Já os textos da chamada segunda fase encerram enigmas
que não se resolvem ao término da leitura, originando dis-

42
• 11 sòes constantes, que estimulam cada nova geração de
lt iiores. Ambigüidade formal e visão crítica do mundo se
i quivülem, pois, em ambos os casos, o registro dominante é
oil.i incerteza.
P osso explicitar o que digo através da análise do desfecho
•lo\ quatro primeiros romances, evidenciando economica­
mente a ruptura que ocorre na obra machadiana após o
ino chave de 1878.
No último parágrafo de Ressurreição, o leitor é brindado
i oin a síntese da narrativa, incluindo uma máxima de caráter
moralizante:

D ispondo de todos os m eios qu e o p o d ia m fa z e r ven tu roso ,


segu n do a sociedade, F é lix é es se n cia lm e n te in fe liz . A n a tu ­
reza o pôs nessa classe de h om en s p u s ilâ n im e s e vis io n á rio s,
a q u em cabe a r e fle x ã o d o poeta: “ p e rd e m o b e m p e lo r e c e io
de o b u scar” . N ã o se c on te n ta n d o c o m a fe lic id a d e e x te r io r
qu e o rod eia , q u e r h a ve r essa o u tra das a fe iç õ e s ín tim a s ,
duráveis e consoladoras. N ão a há de alca n ça r nunca, p orqu e
o seu coração, se ressu rgiu p o r a lgu n s dias, esqueceu na se­
pu ltu ra o s e n tim e n to da c o n fia n ç a e a m e m ó r ia das ilusões.

(I. P- 195)

Não é preciso adicionar muitos comentários. Esse é o efei­


to da passagem: nada resta a acrescentar. A simples frase,
l iiix é essencialmente infeliz ”, supõe um jogo de palavras tão
corriqueiro que dificilmente ocorreria ao Machado maduro,
lí não é tudo: o narrador pacientemente informa a causa do
11ífortúnio de Félix, explicando inclusive o título do romance.
A “ressurreição” dizia respeito à possibilidade de o persona­
gem voltar a amar, o que não ocorre, pois, mesmo na ausên­
cia de confirmação da infidelidade de sua amada, ele sofreria,
já que “o amor do médico teve dúvidas p óstum as ” (id e m , grifo
meu). A expressão é notável, porém se perde em meio à dicção
edificante e trivial do parágrafo.
As dúvidas “póstumas” jamais permitiriam conciliar o
sentimento e as constantes suspeitas — e quanto mais infun­
dadas, mais exatas pareceriam ao infeliz personagem; afinal,
como desmentir quimeras? Eis a relação estrutural entre o
ciúme e certa concepção de literatura, pouco interessada em
oferecer respostas definitivas. Nos dois casos, lidamos com
formas discursivas que aludem à impossibilidade de encontrar
a evidência que nunca se deixa de buscar. Por isso, todo ciu­
mento é um fabulador em potencial, pois, dada a ausência de
“provas”, ele apenas pode recorrer à imaginação. Esse dilema
foi retomado na narrativa de Bento Santiago e em inúmeros
contos. O leitor de D om Casm urro não tem como saber se Capitu
e Escobar foram ou não amantes: em alguma medida, é como
se Machado produzisse um texto no qual a indeterminação
do ciúme contaminasse o ato de leitura.
No romance seguinte, A rnão e a luva, mais uma vez, o fecho
de ouro da narrativa reúne título do romance e ação final,
numa simetria cuja perfeição impõe o sentido último do
texto:

O d e stin o não d e via m e n tir n e m m en tiu à am b içã o de Luís


A lves. G u io m a r acertara; era aqu ele o h o m e m forte. U m m ês
depois de casados, c o m o eles estivessem a con versar do que
co n ve rs a m os recém -casados, que é de si m esm os, e a r e le m ­
b ra r a cu rta c a m p a n h a do n a m o ro , G u io m a r con fessou ao
m a rid o que n a qu ela ocasião lh e co n h e c era to d o o p o d e r da
sua von tad e.
— V i qu e v o c ê era h o m e m resolu to, disse a m o ç a a Luís
A lves, que, assentado, a escutava.
R esolu to e a m b icio so, a m p lio u Luís A lv e s so rrin d o ;
u m ' d eve te r p e rc e b id o que sou u m a e ou tra coisa.
A am b içã o não é d efeito .
P elo c o n trá rio , é v irtu d e ; eu sin to que a ten h o, e que
liei de fazê-la v in g a r. N ão m e fio só na m o c id a d e e na força
m oral; fio -m e ta m b é m em você, que há de ser para m im u m a
força nova.
— Oh! sim ! e x c la m o u G u iom ar.
li com u m m o d o g ra c io so con tin u o u :
Mas qu e m e dá v o c ê e m paga? u m lu g a r na câm ara?
lim a pasta de m in is tro ?
— O lu stre d o m eu n om e, resp on d eu ele.
G uiom ar, qu e estava de pé d e fr o n te d ele, c o m as m ãos
presas nas suas, deixou -se ca ir le n ta m e n te sobre os jo e lh o s
do m arido, e as duas am b içõ es tr o c a r a m o óscu lo fra te rn a l.
Ajustavam -se am bas, c om o se aqu ela lu va tivesse sido fe ita
para aqu ela m ão. (I, p. 270)

O adjetivo “fraternal” torna o beijo muito pouco erótico,


• Hiase uma assinatura em contrato vantajoso para ambos os
s ó c io s . O casamento, contudo, era recente, insinuando que
o enlace de Luís Alves e Guiomar respondeu a cálculos pre-
e is o s e não a transportes sentimentais. A ambição da antiga
agregada encontrou sua medida na firmeza do futuro ho­
mem público. O leitor fecha o livro e pode assim deixá-lo:
como descobrir “dúvidas póstumas” na trama que, ao con­
cluir a narrativa, retoma o próprio título do romance, a fim
cie bem rematá-la? Ora, a ironia, implícita no “ósculo frater­
nal”, encontra-se constrangida pela dicção convencional do
lexto.
De novo, verifica-se a mesma oscilação identificada na
crítica literária: o achado das “dúvidas póstumas” e a derrisão
do “ósculo fraternal” se perdem em meio ao tom dominante
de uma prosa bem-comportada. Eis o óbice desse período, no
qual o talento permanece refém da necessidade de atender
às convenções da época.
Em Helena, o procedimento se modifica um pouco. Exige-se
um pequeno esforço por parte do leitor, mas nada que se
assemelhe às armadilhas que Bentinho lançará durante o
relato de sua desventura, ou à irreverência que Brás Cubas
reserva ao leitor. Recorde-se a última frase do romance:

S o zin h o com Estácio, o cap elão c on te m p lou -o lo n g o tem p o;


depois, alçou os olh os ao retra to do c o n se lh eiro , sorriu m e-
la n co lic a m e n te , voltou-se para o m oço, ergu eu -o e abraçou
com ternu ra.
— Â n im o , m eu filh o ! disse ele.
— P erd i tu do, p ad re-m estre! g em e u Estácio.
A o m esm o tem p o , na casa do R io C om p rid o, a n o iva de
Estácio, con stern a d a c om a m o rte de H elen a, e a tu rd id a com
a lú g u b re c e rim ô n ia , reco lh ia-se tr is te m e n te ao q u a rto de
d o rm ir, e receb ia à p o rta o te r c e ir o b e ijo do pai. (I, p. 389)

O terceiro beijo é um mistério simples, que o leitor, con­


tente com a sua agudeza, soluciona sem dificuldade. Trata-se
de recurso, por exemplo, usado à larga por Charles Dickens:
basta pontilhar a narrativa com enigmas singelos, cuja deci-
fração garantida assegura o êxito do autor junto ao público.
Para a inteligência da última frase de Helena, recorde-se a
passagem do capítulo XIV, relativa à inquietação de Eugênia:

D aqu ele son ho fo i d esp ertad a p e lo pai, que lh e im p r im iu na


testa o seu segu n d o beijo. O p rim e iro , c o m o o le ito r se há de
lem b rar, fo i dad o na n o ite da m o rte do c o n se lh eiro . O te r c e i­
ro seria p ro v a v e lm e n te n o dia em qu e ela casasse. (I, p. 327)

46
I .ugênia realizaria seu propósito sem maiores obstáculos,
11111.11, o narrador deu a perfeita deixa — com o o le ito r se há de
Innhrar. Pode-se concluir a leitura do romance sem preocu-
l'.n,ao alguma com o aparente desespero de Estácio. O casa­
mento com a voluntariosa filha do Dr. Camargo terminará
I" ii superar a tristeza causada pela morte de Helena. Ressalte-se
•11‘leito principal desse tipo de escrita: o término da narrati-
.1 esclarece todas as possíveis dúvidas do leitor — mais ou
menos como as tramas hollywoodianas mencionadas na in-
i rodução. O tom conservador do enredo e o traço tradicional
il.i prosa se confundem, pois dependem do mesmo gesto
<.mteloso.
Por fim, em Iaiá G arcia, o procedimento se repete. Mais
uma vez, consulte-se o fecho da trama:

N o p rim e iro a n ive rs á rio da m o rte de Luís G arcia, Iaiá fo i com


o m a rid o ao c e m ité rio , a f i m de d e p o s ita r na sepu ltu ra do
pai um a coroa de saudades. O utra coroa h a via sido a li posta,
c om u m a fita em qu e se lia m estas palavras: — A m eu m a rid o .
Iaiá b eijou com ard o r a sin gela d ed ica tória , c om o b e ija ria a
m ad rasta se ela lh e aparecesse n a qu ele in stan te. Era sincera
a p iedade da viú va . A lg u m a cousa escapa ao n a u frá g io das

ilusões. (I, p. 509)

Em primeiro lugar, informa-se que a piedade da viúva,


por ser sincera, como o narrador faz questão de ressalvar,
escapou ao naufrágio das ilusões. Desse modo, o leitor é re­
metido a duas passagens do capítulo anterior, que parecem
preparar o eloqüente final. Na primeira passagem, Esteia se
empenha na realização do enlace de Iaiá Garcia com Jorge.
Não sem antes ouvir de Iaiá Garcia palavras duras, mesmo
acusatórias:

47
— N ão d ire i nada; essa p a lavra e x p lic a tudo. Se o am a, c o m o
eu creio, é a sua fe lic id a d e que lh e trago, não d ig o a tr o c o da
m in h a , p o rq u e seria lan ça r-lh e e m rosto o sa c rifíc io , m as a
troco de um a ilu sã o , e n a ã a m ais. N ão p en se qu e lh e q u e ro m al;
não posso qu e re r m a l a qu em m e te m ou teve a lg u m a afeição
e su bstitu iu d ig n a m e n te m in h a m ãe. Se lh e quisesse m a l, é
p ro v á v el que não fize s se o que fiz . (I, p. 501, g r if o m eu )

Esteia precisava virar o jogo rapidamente, a fim de con­


vencer Iaiá Garcia a aceitar a proposta de casamento, em
lugar de insistir numa recusa que mancharia sua reputação,
pois a viúva havia tido certo envolvimento com o pretenden­
te da jovem. Esteia decide-se por um lance arriscado, porém,
certa do triunfo, lança a cartada decisiva. O tema balzaquia-
no das ilusões perdidas retorna discretamente, ainda que com
uma torção reveladora:

— (...) Todas as felicid a d es do casam en to achei-as ao pé de teu


pai. N ão nos casam os p o r am or; fo i escolha da razão, e p o r
isso acertada. Não tín ham os ilu sõ es ; pudem os ser fe lize s sem
desencanto. Teu pai não tin h a os m esm os sen tim en tos que
eu; era m ais tím id o do que orgu lh o so . (I, p. 504, g r ifo m eu)

Mais sóbria do que as personagens de Balzac, as ilusões de


Esteia não naufragaram, pois ela nunca as alimentou. Não é
exatamente uma tarefa difícil atar as pontas de ilusões e
desilusões a fim de concluir pacificamente o romance. O
narrador mantém um controle absoluto sobre a trama, assim
como de suas possibilidades interpretai ivas. Narrador peda­
gógico, decoroso, ele deseja entreter, mas também instruir,
respeitando fielmente o princípio horaciano, como mostro
adiante no estudo do conto “Confissões de uma viúva moça”.
Por isso, se o autor arma um quebra-cabeça modesto, ele

48
• inpre oferece a peça-chave para sua montagem. Ideia expli-
i liada no capítulo XIII, na cena em que Jorge recebe uma
i .iria de Procópio Dias. Leia-se o trecho decisivo:

|orge achou em casa, nessa noite, u m a ca rta de Buenos A ires.


P rocóp io Dias n a rrava-lh e a v ia g e m e os p rim e iro s passos e
d izia ter toda a esperan ça de se d e m o ra r p ou co tem p o . Tudo
isso era a terça p a rte da carta. A s outras duas terças p artes
era m saudades, protestos, exp ressões de sen tim en to , e u m
nom e no fim , u m n o m e único, e qu e era a chave do escrito. (I,
p. 471, g r ifo m eu )

O nome de Iaiá Garcia trazia à superfície do texto o amor


n.io correspondido do comerciante, já avançado em anos, pela
I ilha de Luís Garcia. Nada escapa ao olhar panóptico do nar­
rador dessa primeira fase. Ao leitor resta apenas o direito de
admirar sua onisciência. Daí a ideia da chave do escrito, cuja
decifração depende da capacidade de observação do narrador.
I •in “A parasita azul”, conto publicado em 1872, no Jornal das
Ivm ília s , e reunido no ano seguinte em H istórias da m eia-noite,
a mesma habilidade é louvada, ainda que em tom menos
solene:

Não há m isté rio s para u m au tor qu e sabe in v e s tig a r todos os


recan tos do coração. E nqu anto o p o v o de Santa Luzia fa z m il
c on jectu ras a res p e ito da causa v e rd a d e ira da isenção que
até agora te m m ostrad o a form o sa Isabel, estou h a b ilita d o p a ra
d iz e r ao le ito r im p a cie n te que ela am a. (II, p. 182, g rifo s m eus)

Nos quatro primeiros romances, a estabilidade do ato in-


terpretativo esteve sempre assegurada por um texto muito
bem-comportado. Pode-se encontrar sem maiores dificuldades
a chave do escrito, reunindo título da obra e fecho da narrativa.

49
Desse modo, o leitor tem a sensação de uma conclusão razo­
avelmente unívoca.
A partir de M em ó ria s póstum as de Brás Cubas, pelo contrá­
rio o texto machadiano torna-se progressivamente enigmá­
tico, mais difícil de ser reduzido ã interpretação sugerida
pelo narrador; em casos extremos, o narrador nem mesmo
a sugere. Nesse sentido, a escrita do defunto autor parece
encontrar-se a meio caminho entre a tranqüilidade herme­
nêutica da primeira fase e a indeterminação semântica da
segunda, pois, se o último capítulo é o “das negativas”, o
sentido da ausência é ainda explicado, mesmo que seja iro­
nicamente.

Este ú ltim o cap ítu lo é to d o de negativas. N ão alcan cei a cele­


b rid a d e do em p lasto, não fu i m in is tr o , não fu i c a lifa , não
c o n h e c i o casam en to. V erd ad e é que, ao lad o dessas faltas,
coube-m e a boa fo rtu n a de não com p rar o pão com o suor do
m eu rosto. Mais; não p ad eci a m orte de D. Plácida, n em a se-
m id em ên cia do Quincas Borba. Somadas umas cousas e outras,
qu alqu er pessoa im a gin a rá que não houve m ín g u a nem sobra,
e co n se g u in tem e n te que saí qu ite c om a vida. E im a g in a rá
m al; p orqu e ao ch eg a r a este ou tro lado do m istério, achei-m e
c om u m p e q u e n o saldo, qu e é a d e rra d e ira n e g a tiv a deste
cap ítu lo de negativas: — N ão tiv e filh o s, não tra n s m iti a n e ­
n h u m a cria tu ra o lega do da nossa m iséria. (I, p. 639)

A dicção claramente irônica afasta esse término do padrão


dominante nos primeiros romances. Em todo o caso, o defun­
to autor ainda fornece as coordenadas de leitura. É verdade
que seu cinismo coloca sob suspeita as próprias afirmações;
é igualmente certo que a ironia de todo o texto desestabiliza
o ato interpretativo. Uma comparação com o fecho de Quincas
Borba ajuda a compreender a radicalização do processo com-

50
i ■ tiivo machadiano no tocante ao que se poderia chamar
' i • .1-.inicia à interpretação”, característica definidora de seus
i * nl<»*. a partir do final dos anos 1870. Esse traço favorece uma
11*«..ii* de leitura inovadora, pois agora cabe ao leitor imaginar
nli« i nal ivas, em lugar de esperar a chave do escrito, a ser for-
n*« ida pelo diligente narrador. O breve capítulo final da saga
.li' kubiào é a própria figura da ambigüidade hermenêutica,
iimudando um tipo de literatura que não permite uma in-
i« i pretação cômoda, estável:

Q u e ria d iz e r a q u i o f i m d o Q u in ca s B orba, q u e a d o e c e u
la m b e m , g a n iu in fin ita m e n te , fu g iu d e s v a ira d o e m busca
do dono, e a m a n h e c e u m o r to na rua, três dias d epois. Mas,
ven d o a m o r te d o cão n a rra d a e m c a p ítu lo esp ecia l, é p r o ­
vável qu e m e p e rg u n te s se ele, se o seu d e fu n to h o m ô n im o
é qu e dá o tít u lo ao liv r o , e p o r q u e an tes u m qu e ou tro ,
qu estã o p re n h e de qu estões, qu e nos le v a ria m longe... Eia!
ch o ra os d ois rec e n tes m o rto s , se ten s lá g rim a s . Se só ten s
riso ri-te! É a m e s m a coisa. O C ru z e ir o , qu e a lin d a S o fia
não quis fit a r c o m o lh e p e d ia Rubião, está assaz a lto p a ra
não d is c e r n ir os riso s e as lá g rim a s dos h o m en s. (I, p. 806,
g r if o m eu).

Ambigüidade hermenêutica, duplicidade de sentido, im­


possibilidade conclusiva: o ato interpretativo transforma-se
num quebra-cabeça cuja peça-chave nunca se encontra. O
segredo às avessas do texto machadiano, após a invenção das
M em órias póstum as, é que ela não existe: o oposto do projeto
de Iaiá Garcia. Tal procedimento constitui o autêntico motor
de D om Casm urro. Nesse sentido, a leitura cética da passagem
final de Quincas Borba é razoável, porém, se for compreendida
como vade-mécum, revela-se pouco fecunda. Não se trata de
apostar todas as fichas na equivalência entre riso e lágrimas

51
com base num ceticismo de plantão. “É a mesma coisa” porque
não se dispõem de critérios seguros para discernir o motor
último das ações humanas. Não se trata de aprisionar a resis­
tência à interpretação numa teoria que torna o mundo neces­
saria m ente território da ambigüidade infinita; nesse caso,
paradoxalmente saberíamos pelo menos de uma coisa com
absoluta segurança.
Penso no título de poema inicialmente publicado em 1886,
em A Semana, e posteriormente incluído em Ocidentais (1901):
“Perguntas sem resposta”. A literatura machadiana aprende
a caminhar nessa direção e os versos finais do poema não
deixam de evocar o último capítulo de Quincas Borba:

Vênus, p o ré m , Vênus b rilh a n te e bela,


Que nada ou via, nada resp on d ia,
D e ix a r i r ou c h o ra r n u m a ja n e la
P álid a M a ria (III, p. 159, g r if o m eu).

Outro detalhe deve ser assinalado. A exemplo dos primei­


ros romances, no últim o capítulo da saga malograda de
Rubião, o título do livro é mais uma vez evocado. Porém, a
referência não mais produz o sentido último do relato, antes
transfere ao leitor p ergu n ta s sem resposta, cuja vocação é en­
gendrar novas dúvidas: questão p ren he de questões, que nos le­
v a ria m longe... “Quincas Borba”: o filósofo ou o cão? Ou:
“Quincas Borba”: o cão ou o filósofo? A ordem dos fatores
nada altera, porque nenhum resultado pode ser definido com
exatidão. Cabe ao leitor arriscar-se, produzindo sua própria
interpretação.

52
* **

i inlomática a hermenêutica tranquilizadora das primei-


* i 11 .iiIiições de Machado para o inglês, como se o autor não
0 . dado o salto das M em ória s póstum as.
() i <unance de Brás Cubas foi lançado em 1952, na tradução
ilip William L. Grossman, como E pitaph o f a SmalJ W in n er. O
1ii iiIo alude à conhecida passagem do último capítulo: achei-me
i ■■iii i/m pequeno saldo. Curiosamente, na tradução, título do
i •nn.ince e fecho de ouro da narrativa voltam a se encontrar.
() caso de Quincas Borba é ainda mais revelador.
N,i tradução de Clotilde Wilson, o romance veio à luz nos
I .lados Unidos em 1954 com o título P h ilosop h er o r D og?;
portanto, na capa do livro se estampa a questão p ren h e de
ipicslòes, que nos levariam longe... Mas, pelo menos, o dilema
coiil in u a como uma p erg u n ta sem resposta. Ainda em 1954, a
m esm a tradução foi lançada na Inglaterra com o esclarecedor
i ii ulo de The H erita ge o f Quincas B orbal Ou seja, a herança do
philosopher, para que não haja dúvidas.
Pelo avesso, o legado maior da literatura do defunto autor
resplandece na desorientação de seus primeiros tradutores.

***

Dizia que a resistência à interpretação começa a se radi­


calizar na escrita de Quincas Borba. Um pouco além e encon-
tramos a estrutura intrinsecamente ambígua de D om Casmurro.
A fim de explicitar o ponto, mantenho a mesma economia
expositiva, limitando-me à transcrição do último capítulo do
romance das desventuras de Bentinho. Trata-se de capítulo
particularmente problemático, a começar pelo título — “E

53
bem, e o resto?”. Tal pergunta, em aparência ociosa, configu­
ra um enigma que ainda hoje preocupa os leitores:

A g o r a , p o r que é qu e n e n h u m a dessas caprich osas m e fe z


esqu ecer a p rim e ira am ada d o m eu coração? T a lv e z p o rq u e
n en h u m a tin h a os olhos de ressaca, n em os de cigana ob líqu a
e d issim u lad a. Mas não é este p ro p ria m e n te o resto do liv ro .
O resto é saber se a C apitu da pra ia da G lória já estava d e n tro
da de M atacavalos, ou se fo i m udada n aqu ela p o r e fe ito de
a lg u m caso in cid en te. Jesus, filh o de Sirach, se soubesse dos
m eu s p rim e iro s ciúm es, d ir-m e-ia, c om o no seu cap. IX, vers.
I: “ N ão ten h as ciú m es de tu a m u lh e r para qu e ela não se
m eta a e n g an a r-te c o m a m a líc ia qu e ap ren d er de t i ”. Mas eu
c re io qu e não, e tu con cord arás c o m ig o ; se te lem b ras b e m
da C apitu m en in a , hás de re c o n h e c e r que u m a estava d e n tro
da ou tra, c o m o a fru ta d e n tro da casca.
E b em , q u a lq u e r qu e seja a solução, u m a coisa fica, e é a
sum a das sum as, ou o resto dos restos, a saber, que a m in h a
p rim e ira a m ig a e o m eu m a io r am igo , tã o extre m o s o s am bos
e tão qu erid os ta m b é m , quis o d estin o qu e acabassem ju n ­
tan d o-se e en gan an d o-m e... A te rra lhes seja leve! V am os à
H is tó ria dos S u b ú rb io s. (I, p. 944)

Malicioso, esse é um dos trechos mais traiçoeiros da obra


machadiana. Sua análise tem fascinado gerações de exegetas.
Em primeiro lugar, o narrador procura persuadir o leitor:
“Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo.” Porém,
talvez o leitor se recorde de uma declaração de José Dias;
nesse caso, a divergência seria inevitável. O agregado empre­
gou imagem similar à do narrador, mas chegou a uma con­
clusão oposta: “(...) Cuidei o contrário, outrora; confundi os
modos de criança com expressões de caráter, e não vi que essa
menina travessa e já de olhos pensativos era a flor capricho­
sa de um fruto sadio e doce...” (I, p. 907). Por isso, no momen-
in iik m u o de anunciar a condenação final de Capitu, a hesi-
i t« »o do narrador compromete o que se afirma — “E bem,
“ iL/iicr que seja a solução, uma coisa fica Ora, justamen-
i- ,i solução não pode ser qua lqu er um a; ela deveria expressar
• i rrieza definitiva em relação à “culpa” de Capitu. Caso
•tinlrário, coisa nenhum a fic a , muito menos a certeza do adul-
I' rio Além disso, a última frase remete o leitor ao segundo
• ipiiulo, quando um projeto foi anunciado e, sobretudo,
th mdonado: “ Depois, pensei em fazer uma H is tó ria dos
'■iilnirlnos , (...) era obra modesta, mas exigia documentos e
l.ii.is, como preliminares, tudo árido e longo” (I, p. 810). A
Instabilidade do narrador e o tom errático de suas decisões
com prom etem a conclusão a que acred ita chegar.
Piovavelmente a tal H istória dos subúrbios nunca será escrita,
I» i inanecendo um dos muitos projetos dos tantos gênios sem
o b ra que dominam a vida literária em qualquer latitude.
< ont udo, se for assim, a narrativa de D o m Casm urro pode ser
•ompreendida como uma história que se pretende verídica,
mas à qual faltam justamente docum entos e datas! Nesse caso,
como chegar a um veredicto seguro?
Em outras palavras, o leitor deve armar-se de olhos de
ressaca, a fim de sobreviver ao naufrágio das ilusões de
Bentinho.10
De minha parte, espero que se perceba o mundo que se
abre entre os quatro primeiros romances e o que veio depois
ilas M em órias póstum as.
Retomo a hipótese esboçada na introdução: a ruptura
conheceu um evento-ponte em fevereiro de 1878. Não digo

Como mostro no Capítulo 5, esse dispositivo textual se relaciona intrin-


secamente com a poética da emulação, na forma de uma escrita que estrutu­
ralmente estimula o ato da leitura-colagem.

55
que se trate da causa determ inante, muito menos de fator úni­
co, penso antes num efeito catalisador, que permitiu ao autor
de Iaiá G arcia superar-se, reinventando sua literatura.

Olhares e faróis

Já que tratamos de D om Casm urro, amplio esse breve exercício


interpretativo identificando um campo semântico que, ao
atravessar todos os romances, reforça minha análise. Além
disso, recuperar o vocabulário definidor da obra machadiana
é um dos objetivos deste livro.

(Os campos semânticos são os pigmentos com os quais


esboço o novo retrato do autor.)

Refiro-me ao conjunto de metáforas e de alusões relacio^


nado ao olhar, responsável pela analogia clássica dos olhos
como “janelas da alma”. Formulação prosaica; assim como o
emprego machadiano dominante ainda em Ia iá G arcia. Pelo
contrário, como acabamos de ver, Bentinho condenou-se a si
mesmo diante do enigma do olhar de Capitu: “Agora, por que
é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primei­
ra amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os
olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissim ulada.”
Nos quatro primeiros romances, o olhar era sempre tra-
duzível pelo mais elementar gesto interpretativo.
Vejamos duas ou três passagens.
Começo por um poema, “Livros e flores”, publicado em
Falenas (1870). Nele, a equivalência decisiva se destaca:
li ir. olhos são m eus livro s
UH, liv ro há a í m elh or,
I iii que m e lh o r se leia
A p ágina do a m or? (III, p. 51, g r ifo s m eus)

A s in g e le z a d o s v e r s o s a n t e c ip a o e m p r e g o r e c o r r e n t e n o s

•i>i.m 1 0 p r im e ir o s r o m a n c e s , d o m in a d o p e la a s s o c ia ç ã o e n t r e

■■ .n b s la n t iv o e o v e r b o : os o lh o s e s t ã o s e m p r e le n d o , o u s e n ­

d o lid os. E d e c i f r a m , c o m ê x i t o in v a r iá v e l, s itu a ç õ e s , m e n s a -

i •n s o p esso as.

I m R e s s u rr e iç ã o , M e n e s e s é c o n f o r t a d o p e lo a p a r e n t e m e n -

i. In c o n s o lá v e l F é lix . O c u lt o r d a s “ d ú v id a s p ó s t u m a s ” n ã o

• in o n tr o u r e c u r s o m e lh o r d o q u e s u g e r i r ã o a m ig o : Q u em

. I. i .1 c|iie n ã o ! M a s e u e s to u a l e r n o te u r o s t o q u e a ú n ic a m a -

iM n .i d e c o n s o la r d e s t e n a u f r á g io é d a r - te o u t r o n a v i o ” (I, p.

I t i, g r i f o m e u ). O le it o r é q u e n u n c a n a u fr a g a , p o is os o lh o s ,

I I ro s to , os m e n o r e s g e s to s , v i r t u a l m e n t e to d a s a s in te n ç õ e s s ã o

' le c ilr á v e is p o r u m a le it u r a c u id a d o s a , e x p lic it a d a n o p r i m e i ­

ro c a p ít u lo d e I a iá G a r c ia :

N o m om en to em que com eça esta n arrativa, tin h a Luís Garcia


qu a ren ta e u m anos. Era a lto e m a g ro , u m c o m e ço de calva,
barba rapada, ar c irc u n s p e c to . Suas m a n e ira s e ra m fria s,
m odestas e corteses; a fis io n o m ia u m p ou co triste. Um obser­
va d o r atento p o d ia a d iv in h a r p o r trás d aqu ela im p a ssib ilid a d e
ap aren te ou con tra íd a as ru ín as de u m coração desenganado.
A ssim era; a e x p e riê n cia , que fo i p recoce, p ro d u zira e m Luís
G arcia u m estado de ap atia e c ep ticism o, c o m seus laivos de
desdém . (I, p. 393, g r if o m eu )

“A s s im e r a ” — c o m o n ã o p o d ia d e ix a r d e ser. C o m o c o n te s -

la r a a u t o r id a d e d o n a r r a d o r , q u e d e c if r a o lh a r e s e id e n t if ic a

in te n ç õ e s s u b ja c e n te s a g e s to s e to n s d e v o z ? A f i n a l , a ch a ve d o

e s c rito n u n c a lh e e s ca p a . N es s a p a s s a g e m , a n te s m e s m o d a a ç ã o
p r in c ip ia r , o n a r r a d o r r e v e la o p e r f i l p s ic o ló g ic o c o m p le t o d e

57
Luís Garcia, que se mantém inalterado: durante a leitura, ne
nhuma surpresa modifica o retrato de corpo inteiro do perso­
nagem. A mesma técnica define a apresentação de Esteia:
“Pálida era, mas sem nenhum tom de melancolia ascética.
Tinha os olhos grandes, escuros, com uma impressão de viri­
lidade moral, que dava à beleza física de Esteia o principal
característico” (I, p. 409). Mais uma vez, os olhos revelam o
todo de uma personalidade que permanece idêntica ao longo
do romance. Marmóreos, os personagens do primeiro Machado
são quase sempre unidimensionais. Ou será o narrador que,
procurando manter rigorosamente tudo sob estreita vigilância,
termina por transformar todas as paisagens em monótonas
planícies? Eis o modelo acabado do narrador panóptico, ainda
muito distante do ébrio autor das M em órias póstum as.11
Em Helena, o Dr. Camargo tem a difícil tarefa de revelar
o inesperado testamento do Conselheiro Vale para Estácio e
D. Úrsula. O documento dá a conhecer a existência de uma
filha natural, a heroína que dá título ao livro. No desenrolar
da trama, o leitor descobre que Helena não é realmente filha
do conselheiro, mas, nos capítulos iniciais, ninguém o sabe.
Por isso, embora o filho e a tia disfarcem, o narrador identi­
fica com facilidade o sentimento que os domina antes da
proclamação das últimas deliberações do parente: “A curio­
sidade, porém, era natural, e o médico pôde lê-la nos olhos de
am bos” (I, p. 274, grifo meu).

11 Refiro-me ao capítulo LXXI, “ O senão do livro”, cujo prim eiro parágrafo


admoesta o leitor: “Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me
canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capí­
tulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade.
Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica;
vício grave, e aliás ínfim o, porque o m a io r defeito deste liv ro és tu, leitor. Tu
tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu arnas a narração direi­
ta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo sâo como os
é b rio s , guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram,
gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...” (I, 583, grifos meus)

58
i pediente sem elhante é empregado por Luís Alves,
i •i •<tuagem de A m ão e a luva. A fim de certificar-se do efei-
i |novocado por determinada atitude, recorre à hermenêu-
n. ,ul( iminante dos primeiros romances machadianos: “Luís
\Iws olhou longam ente para Guiomar, como a procurar ver-lhe
ia>iosIo todas as antecedências da resolução da baronesa”
(I, p 244, grifos meus).
Nesses romances, há várias cenas que recordam um jogo
■li \.idrez, no qual olhares são trocados como lances no tabu-
I* no da consciência: longos períodos de observação, enfren-
i .11 los por períodos ainda mais duradouros de dissimulações
<*i iganos. Ainda em A mão e a luva, Guiomar passeia no jardim
<l.i casa da baronesa, caminhando com um livro sintomatica-
nicnte fechado; metáfora sugestiva, preparando a conclusão
do narrador: “Se trazia saudades, não se lhe podiam ler no rosto,
<|ue era quieto e pensativo, sim, mas sem a menor sombra de
pena, ou de tristeza” (I, p. 209, grifo meu). Sem dúvida, um
livro fechado para Estêvão, um romântico fora de lugar, que
nunca chega a compreender os propósitos da heroína. Livro
lechado, m a non troppo, pois o narrador pode abrir suas pági­
nas, encontrando diversas chaves de decifração e, mesmo se
o rosto se concentra em si mesmo, ele vislumbra o que é
preciso saber: sem a m en o r som bra de p en a , ou de tristeza.
Já os narradores e as personagens posteriores à invenção
de Brás Cubas parecem perder progressivamente o controle
da interpretação, antecipando o processo que idealmente deve
ocorrer com o próprio leitor, em virtude da complexidade
crescente dos recursos machadianos. Assim, se ao narrador
panóptico corresponde um ato de leitura pouco acidentado,
ao defunto autor ou ao narrador casmurro correspondem um
ato de leitura imprevisível.

59
Por isso mesmo, Rubião perde-se definitivamente na oca­
sião em que “achou aquele par de olhos viçosos, que pareciam
repetir a exortação do profeta: Todos vós que tendes sede,
vinde às águas” (I, p. 644). O ignaro Rubião não se dá conta
que o olhar de Sofia prepara a ressaca moral de futura per­
sonagem. A sede, nesse caso, era tanto a do professor de
província pelas formas generosas da esposa do Cristiano
Palha, quanto a do marido da sedutora senhora pela fortuna
inesperada de Rubião.
Poucas páginas adiante, o filósofo Quincas Borba tem seu
caráter excêntrico definido de forma reveladora: “Tinha outro
ar agora: olhos metidos para dentro viam pensar o cérebro”
(I, p. 646). Pensamento que nunca se revela ao leitor. Acaso o
n arrador te ria acesso à lógica própria do criador do
Humanitismo? Com tais olhos, as janelas da alma se fecham
permanentemente; aliás, uma das definições da loucura. O
simplório Rubião é sintomaticamente apresentado de forma
oposta: “(...) escutava, com a alma nos olhos, sinceramente de­
sejoso de entender (...)” (I, p. 648, grifo meu). Na guerra de
olhares, Rubião jam ais receberia as batatas, pois a transpa­
rência com que anuncia seus propósitos facilita a tarefa de
bajuladores e adversários. O contraste das atitudes vale por
todo um ensaio, cujo parágrafo decisivo foi escrito com o
auxílio das célebres caracterizações de Capitu. Na definição
in icial de José Dias, em diálogo com o jovem Bentinho:
“Capitu, apesar daqueles olhos que o Diabo lhe deu... Você já
reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissi­
mulada” (I, p. 834). Coube ao narrador casmurro dar a pince­
lada final do retrato:
Retórica dos nam orados, dá-me um a com paração exata e
poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não
me acode im agem capaz de dizer, sem quebra da dignidade
do estilo, o que eles foram e me fizeram . Olhos de ressaca?
Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova.
traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, um a força que
arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia,
nos dias de ressaca. (I, p. 843, grifo meu)

A mesma ressaca que causou a morte do amigo Escobar e


i|iie continuou a assombrar o casmurro narrador, pois ele
d i editou flagrar, nos mesmos olhos misteriosos, enérgicos,
• acrescento, enigmáticos, a chave do escrito, a hermenêutica
Incontestável:

A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns ins-


lantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que
n.u) admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...
As m inhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu
enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que esta­
va na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la;
mas o cadáver parece que a retinha tam bém . Momento houve
nu que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem
o pranto nem palavras desta, m as grandes e abertos, como
.i vaga do m ar lá fora, como se quisesse trag ar tam bém o
nadador da m anhã. (I, p. 927, grifos meus)

Cena em blem ática: o cruzam ento de olhares decide a


"i le tia narrativa. As lágrimas poucas se tornam, sobretudo,
. iihiikis, ou seja, “evidência” de adultério, agora inegável — aos
*ilhos de Bentinho, bem entendido. A dinâmica da cena é
<le. r.iva: Bentinho observa Capitu enquanto ela olha o cadá-
■i de Escobar. Porém, quem observa Bentinho observar
< .ipit u olhando o corpo inerte do amigo? Ou devo dizer: quem
observa Bentinho observar Capitu olhando o corpo inerte do
amante? Amigo ou amante: como sabê-lo? Bem ao contrário
dos quatro primeiros romances, em Dom Casm urro a dúvida
é o legado da narrativa.
Recordo a segunda cena do terceiro ato de Hamlet. A fim
de saber se o espectro é realmente o fantasma de seu pai, o
príncipe da D inam arca im agina um ardil; na verdade,
Shakespeare se apropria de recurso anteriormente emprega­
do por Thomas Kyd, em The Spanish Tragedy.

(Apropriar-se tanto da tradição, isto é, dos clássicos, quan­


to do engenho dos contemporâneos caracteriza o gênio
shakespeariano. Eis uma das principais lições que Machado
deve a Shalcespeare. Aí se encontra a base da poética da emu­
lação, especialmente em seu resgate anacrônico.)

O artifício hamletiano: para certificar-se da veracidade


das acusações do espectro, o príncipe da Dinamarca promove
a encenação de uma peça, A m orte áe Gonzaga. Contudo, acres­
centa uma cena inexistente no texto original, representando
as circunstâncias da morte do pai, envenenado enquanto
dormia. Obcecado pelo desejo de alcançar uma interpretação
exata, imune a qualquer hesitação, Hamlet engendra uma
complexa triangulação de olhares: enquanto Cláudio, seu tio,
agora rei e padrasto, assiste à encenação, Hamlet observa suas
reações à trama que se desenvolve no palco improvisado; por
fim, Horácio, amigo fiel do príncipe, também observa o sem­
blante do rei. Somente assim, Hamlet aceita a versão do as­
sassinato do pai, ao comparar suas impressões com as do
amigo:

62
Meu bom Horário! Aposto mil contra um na palavra do
espectro. Percebestes?
Perfeitamente, príncipe
Na hora do veneno?
Com a m áxim a atenção.12

No caso de Bento Santiago, faltou precisam ente a triangulação


tios olhares. O narrador se satisfez muito rapidamente com sua
própria observação e nem mesmo cogitou consultar um ter-
<riro juízo. A narrativa é o esforço de reconstituir a triangu-
liiçào perdida através da figura do leitor que, como Horácio,
deveria confirm ar as suspeitas: e tu concordarás comigo; se te
lembras bem da Capitu m enina... O casmurro narrador desco­
nhecia a serenidade do Conselheiro Aires:

Aquele silêncio de Fidélia, em contraste com a palestra de


pouco antes, pareceu-m e indicar que ela considerava a obra
em atraso. Também podia ser que o am or da arte a retivesse
agora mais que a princípio, e a convidasse a pintar exclusi
vãm ente. A causa secreta de um ato escapa muita vez a olhos
agudos, e muito mais aos meus que perderam com a idade a
natural agudeza; mas creio que seria uma daquelas, e não há
razão para descrer que fossem ambas sucessivamente. (I, p. 1.167,
grifos meus)

Entretanto, como se fossem um autêntico bumerangue,


os olhos enigmáticos de Capitu retornam no último capítulo
do romance, esclarecendo a fascinação que continuaram a
exercer sobre Bento Santiago. Tudo se passa como se os per­
sonagens machadianos transitassem do “olhar” que tudo

n W illiam Shakespeare. Hamlet. Teatro Completo. Tragédias. Tradução de


Carlos A lberto Nunes. Rio de Jan eiro: Agir, 2 0 0 8 , p. 578. Nas p róxim as
ocorrências, cito apenas o núm ero da página.

63
revela e pode ser decifrado, para o “olhar” embaçado que
escapa ao controle do próprio narrador, tornando o ato de
leitura uma forma peculiar das “dúvidas póstum as” que
atormentaram o Félix de Ressurreição.
Fecho aqui o primeiro círculo da análise formal das pri­
meiras produções machadianas, em contraste com os textos
posteriores às M em órias póstum as.
Antes de dar o próximo passo, anoto o que se cumpriu:
procurei mostrar como os quatro primeiros romances macha­
dianos são vazados numa forma bastante tradicional, como o
estudo do campo semântico do olhar deve ter enfatizado.
Abro, agora, novo círculo, dedicado ao estudo do conteúdo
conservador e mesmo moralizante das primeiras produções
do autor de Contos flum inenses.

0 ciúme e a literatura

Contos flum ineses, lançado em 1870, reuniu uma seleção de


textos anteriormente publicados, e para que o leitor aprecie
sua transformação temática, indico a data da primeira apa
rição do conto. Aliás, todos os textos saíram inicialmente no
f ornai das Famílias: “Frei Simão”, em junho de 1864; “Confissões
de uma viúva moça”, em abril de 1865; “Linha reta e linha
curva”, em várias entregas entre 1865 e 1866; “A mulher de
preto”, em abril e maio de 1868; “O segredo de Augusta”, em
julho e agosto de 1868; “Luís Soares”, em janeiro de 1869.
“Miss Dollar” foi o único conto publicado originalmente no
próprio livro.
Também discuto textos publicados no decorrer das décadas
de 1870 e 1880, para mostrar como o tratamento dos temas
do ciúme, adultério, vaidade e dissimulação conhece uma

64
m. i .miorfose similar à verificada nos procedimentos própria
mm 111c íòrmais, ocorridos no plano do romance. Há, porém,
inii.i diferença importante: as transformações ocorrem antes
. i* I880 — no conto, e também na crônica, a roda efetivamen-
i. ..irou antes da revolução Brás Cubas. Desse modo, se é
ii. * essário sublinhar as transformações internas do sistema
liicnirio M achado de Assis, é igualmente importante acentuar
linhas complexas de continuidade.
li começo pelo tema dominante na obra machadiana: o
»In me.
lim Ressurreição, o protagonista, Félix, abre mão do casa-
nie nto com Lívia, uma bela e jovem viúva, inteiramente de­
vi ii,ida a seus caprichos. Como vimos, o comportamento de
I ' 11x é explicado numa frase lapidar: “O amor do médico teve
duvidas póstumas” (I, p. 195). Uma maliciosa carta anônima,
evidentemente inverídica, bastou para nublar o futuro do
casal. Embora a fidelidade da viúva tivesse sido comprovada,
Di) íédico não pôde afastar do espírito a verossimilhança de uma
eventual traição: “A veracidade da carta que impedira o ca­
samento, com o andar dos anos, não só lhe pareceu possível,
mas até provável” (ibidem ).
A infidelidade, real ou virtual, é o tema da trama, ou seja,
0 fantasma do adultério estrutura o romance. Eis, porém, a
malícia do futuro autor de Dom Casm urro: a pretensa infide-
1idade é o efeito imaginário de um ciúme infundado. Esse é
o tópico que realmente importa, lançando uma sombra in-
contornável sobre o conhecimento: saber ou não saber, eis o
dilema de todo ciumento. O ciúme e o adultério apodera­
ram-se do espírito de Machado desde as primeiras produções,
a exemplo de seu primeiro conto, “Três tesouros perdidos”
(1858). No entanto, é muito importante diferenciar suas ca­

65
racterísticas, já que um autor como Machado também sugere
a existência de uma “literatura do adultério”, além da referi­
da “literatura do ciúme”.
O adultério é parente próximo da investigação bem-suce­
dida, como se fosse um romance policial de fácil resolução,
pois não paira dúvida sobre o “fato”. Afinal, nesse caso, sem­
pre há um corpo disponível; na verdade, pelo menos dois
corpos...
Como o Dicionário Houaiss informa, trata-se da “infideli­
dade estabelecida por relação carnal com outro(a) parceiro(a)
que não o(a) companheiro(a) habitual”. Uma vez que o adul­
tério efetivamente ocorreu, o problema central do escritor
passa a ser o estudo da reação da “vítim a”, assim como a
análise das motivações do “pecador” ou da “pecadora”. Claro,
penso em M aãam e Bovary, de Gustave Flaubert, publicado em
1857, e em sua reescritura radical, 0 p rim o Basílio, de Eça de
Queirós, lançado em 1878 — fev ereiro de 1 8 7 8 . Pesquisar a
reação de Charles ou de Jorge, compreender as razões de
Emma e de Luísa constitui o cerne desses romances.
Já o ciúme, ensina o mesmo dicionário, define-se pelo
“receio de que o ente amado dedique seu afeto a outrem, zelo”,
é o “medo de perder alguma coisa”. O ciúme possui uma di­
mensão muito mais inquietante, que, se o dicionário negli­
gencia, a literatura revela. O cium ento nunca dispõe da
prova definitiva da infidelidade. Ele não pode saber; se sabe,
não é mais ciumento. Isto é, em tese, o ciumento somente
imagina evidências, jam ais comprova a traição. Nesse caso,
vale repetir, se ele dispõe de “prova”, não é mais “ciumento”,
é “traído” — o leitor substituirá o termo elegante pela voz
popular, muito mais expressiva.
O ciumento é um possessivo dotado de poderosa imagina­
ção, um fabulador malogrado, que, em lugar de livros, produz

66
' •iii .r.ias de adultério. Dada a ausência da “prova” definitiva
•i i haição, o ciumento inventa verossimilhanças, criando
<11 •>los favoráveis à tese do adultério. Pode-se inclusive iden-
niliar uma estrutura comum nos textos que lidam com o
•ii uno. No primeiro momento, surge a dúvida — motivada
iinao. Como a comprovação sempre escapa ao ciumento, ele
io•i isa fabricar provas, que, embora inventadas, paradoxal-
Io alimentam a suspeita inicial, valendo por evidência
■ii I mit iva. Daí, o ciúme favorece um discurso autocentrado,
■111a autorreferência é apresentada como comprovação de seus
ii i mós, num círculo vicioso difícil de romper.
Por sua vez, Machado arranhou o tópico em Ressurreição,
i lal>orando-o de forma definitiva em Dom Casmurro. 0 próprio
n.i 11 aclor trouxe à superfície a estrutura profunda do problema:

Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes


lao cioso dela, não continuei a sê-lo apesar do filho e dos
anos. Sim, senhor, continuei. Continuei, a tal ponto que o
menor gesto me afligia, a mais ínfim a palavra, uma insis-
Iência qualquer; m uita vez só a indiferença bastava. Cheguei
n ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa,
qualquer homem, m oço ou maduro, me enchia de terro r ou
desconfiança. (I, p. 918, grifo meu)

Tal sentimento associado a uma fantasia indomável produz


um resultado previsível: a certeza da culpa do outro; convic-
i,ao agravada justamente pela ausência de provas concretas.
Nas palavras de Bento Santiago: “a m inha imaginação era
uma grande égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro,
que saía logo cavalo de Alexandre” (I, p. 852). Resultado pre­
visível, porém paradoxal, pois se trata de formar convicção
na necessária ausência do fato definitivo. A etimologia de
evidência é reveladora: o ciumento não se contenta com indí­
cios circunstanciais; voyeur de sua desventura, ele precisa ver
a prova “irrefutável” da traição. Provavelmente ninguém o
disse com a ênfase de Otelo:

Otelo — Infam e, dá-me a prova de que m inh a m u lh er é


prostituta. Fica certo: quero prova evidente ; ou, pelo m érito
de m inha alm a im ortal, m elhor te fora teres nascido cão que
responderes agora à m inha cólera desperta,
lago — Chegamos a esse ponto?
Otelo — Quero prova visível ou, no m ínim o, um a coisa
que não ten h a nem gancho nem presilha onde a dúvida
possa pendurar-se. Se não, ai de tua vida!
(p. 636, grifos meus)

No original, a ideia é ainda mais forte: “prova evidente” traduz


“ocular p r o o f’; “Quero prova visível”, “Make me to see’t ”. 13 Um
romance como Dom Casmurro também não dispõe de “provas”,
não expõe “evidências”. Por isso, a “literatura do ciúme” é um
discurso que se alimenta da dúvida, da impossibilidade de co­
nhecer a “verdade” última do mundo. Investigar as mudanças
no tratamento do tema do ciúme eqüivale a mapear modifica­
ções fundamentais na concepção machadiana de literatura.
Nesse sentido, Dom Casmurro é um poderoso elogio à força da
ficção, à ideia da literatura como uma máquina de produzir
perguntas sem resposta. Não há como saber se Capitu traiu, em­
bora sem dúvida possa tê-lo feito: nessa lição reside a superio­
ridade da literatura de Machado.14

13 W illia m S h ak esp eare. Othello. N orm an S an d ers (org.). C am brid ge.


Cambridge University Press, 20 0 3 , p. 139.
MNo Capítulo 4, retom o a análise de Dom Casmurro, associando os procedi­
m entos m achadianos aos princípios estruturadores da poética da em ulação.
É im p ortante que o leitor associe os dois m om entos do meu argu m en to, a
fim de m on tar seu próprio quebra-cabeça.
Nos textos que estudo a seguir, com destaque para os
i' unidos em Contos flum inenses, o leitor acompanhará a lenta
11 i nsformação sofrida pelo tema no autêntico laboratório de
i«'i mas e ideias constituído pelos contos. Esse percurso escla-
ir< v o traço definidor da primeira fase machadiana: forma
' "iivencional no romance e conteúdo conservador no conto
c vice-versa, pois, aqui, os termos são perfeitamente inter-
i ambiáveis.

Decoro, acima de tudo

No começo de sua trajetória, Machado cultivou um estilo


bem-comportado, sobretudo no tocante ao tratamento dis­
pensado a tópicos sensíveis para o público oitocentista. Em
"A mulher de preto” (1868), além de ser condenado, o adulté-
i lo simplesmente não ocorre, é antes fruto de mal-entendido.
IJma amiga de Madalena deixou sob seus cuidados um retra­
io e uma carta, com a condição de nunca revelar o nome da
dona dos objetos. O marido, suspeitando de uma traição,
exigiu que a verdade fosse revelada. Dada a recusa da esposa,
•amplesmente abandonou-a. Por isso, ela passou a viver como
se fosse viúva, sempre vestida adequadamente de preto. O
narrador, porém, faz questão de tranqüilizar o leitor: “Todavia
Madalena não era criminosa; o seu crim e era uma aparência;
estava condenada por fidelidade de honra. A carta e o retrato
não lhe pertenciam; eram apenas um depósito imprudente e
fatal” (II, p. 76, grifos meus). A pretensa infidelidade revela;
pelo contrário, um gesto nobre, fruto de caráter exemplar;
ainda que, não se esqueça, o depósito tenha sido im p ru d en te
efata l. Embora fosse apaixonado pela “viúva”, cabe a Estêvão

69
revelar a tram a a Meneses, o marido turrão. Numa retórica
triunfal, o amigo altruísta antecipa o vocabulário da ressur­
reição; nesse caso, da confiança conjugal:

— A m inha intenção não é ressuscitar o passado unicam en­


te; é repará-lo, é restaurá-lo em todo o seu esplendor, com
toda a legitimidade do seu direito; o meu fim é dizer-lhe,
meu caro amigo, que a m ulher condenada é um a m ulher ino­
cente. (II, p. 78, grifos meus).

Repare-se no vocabulário empregado e na seriedade de seu


uso: crim inosa, crim e, m u lh er co n d en a d a , m u lh er inocente. Na
leitura de passagens semelhantes, insistir numa possível
ironia machadiana seria tapar o sol com a peneira. É indis­
pensável observar o traço conservador da forma e do conte­
údo do Machadinho para apreciar a irreverência do futuro
autor das M em órias póstum as.
Em “Confissões de uma viúva moça” (1865), o adultério é
uma ocorrência, por assim dizer, “espiritual”. Aliás, o jovem
Machado demonstra certa aversão às alusões diretas ao corpo
e ao erotismo — como mostro no próximo capítulo, esse é
um dos motivos de sua crítica severa a 0 p rim o Basílio. No
conto, uma mulher casada permite a corte de um sedutor
barato. Ainda assim, a jovem esposa decide resistir. Após
receber uma carta de Emílio, confessando seu amor, age de
maneira irrepreensível. De fato, Machadinho sempre se pre
ocupou com a imagem e a propriedade dos personagens fe­
mininos. A futura viúva toma uma resolução que poderia ter
sido definitiva: “queimei aquela carta que me queimava as
mãos e a cabeça” (II, p. 104). Passo por cima do gosto duvido­
so da frase e me concentro na seqüência da ação. A esposa,

70
•■i iminência da “queda”, busca fortalecer-se. Para tanto,
|.|'in\una-se de seu marido:

I Ivc um movimento espontâneo: atirei-m e em seus braços


lile abraçou-me com certo espanto.
li quando o meu abraço se prolongava senti que ele me
i< pelia com brandura dizendo-me:
Está bom, olha que me afogas!
Recuei.
lintristeceu-me ver aquele homem, que podia e devia sal-
i'<ii me, não compreender, por instinto ao menos, que se eu
II abraçava tão estreitam ente era como se me agarrasse à ideia
ihi dever. (II, p. 104, grifos meus)

A indiferença do marido — atenção, leitores: não descui-


•Irm da lição! — apenas precipita os acontecimentos. E, como
ilrvc ser, a punição vem a galope. Após a morte inesperada
ilt> marido, o galã naturalmente abandona a viúva, pois não
pietendia comprometer-se seriamente com ninguém, mas
i omprometer a seriedade de muitas. A intenção moralizante
ilo conto é óbvia, especialmente em seu final. O narrador é a
própria viúva, moça e desiludida: “Em troca do meu amor,
tio meu primeiro amor, recebia deste modo a ingratidão e o
desprezo. Era justo: aquele am or culpado não podia ter bom
l im; eu fui castigada pelas conseqüências mesmo do meu
i l im e” (II, p. 117, grifos meus). Mais uma vez, o vocabulário
escolhido é sintomático: o adultério era visto como crime que
merecia punição adequada. A simples possibilidade supõe
uma severa condenação: no conto, a traição nem chega a se
consumar. Não há nenhum ato físico concreto, mas a simples
anuência da jovem esposa ao contacto com um desconhecido
é suficiente para estigmatizá-la. Nesse caso, pouco importa

71
se a voz do narrador é feminina, pois ela reproduz em unís­
sono os valores dominantes.
Nesse conto, Machado também problematiza o modelo da
publicação seriada e sua forma específica de recepção, tor­
nando “Confissões de uma viúva moça” um texto relevante
na história de sua experimentação com vozes narrativas e
atos de leitura. Porém, o traço edificante impede o pleno
desenvolvimento dessa potência, pois o narrador pedagógico
se torna dominante. Basta recordar a tradução proposta pela
viúva do princípio horaciano do âocere et delectare “Dou-te a
m inha palavra de que hás de gostar e a p ren d e r” (II, p. 100,
grifos meus). É curioso que a narradora tenha invertido a
ordem dos termos da fórmula horaciana; para a jovem viúva,
o delectare parece ter primazia sobre o docere.15
Uma mudança relevante começa a ocorrer na década de
1870, inicialm ente nos contos e nas crônicas. Nesses dois
gêneros provavelmente pela frequência do exercício, assim
como pela resposta imediata do público. Isso sem mencionar
a extensão reduzida do texto, o que propiciaria experimen­
tações mais ousadas, sobretudo com a voz narrativa.
Em “Ernesto de Tal”, publicado no Jornal das Famílias, em
março e abril de 1873, e reunido no mesmo ano em Histórias
da meia-noite, o tema e o tratamento começam a sofrer uma
modificação decisiva: não somente o adultério é real, como
ainda supõe o “perdão” do traído. Além disso, abre-se espaço
para a interpretação do leitor: finalmente o modelo “chave
do escrito” começa a ser abandonado. O tal do Ernesto encan

15 “A rrebata todos os sufrágios quem m istura o útil e o agradável, deleitan­


do e ao mesm o tem po instruindo o leitor.” Horácio. Arte Poética. Tradução
de Jaim e Bruna. A poética clássica. São Paulo: C u ltrix, 1990, p. 65. Nas próxi­
mas citações, an otarei apenas a página da ocorrência.

72
l ou se por Rosina, moça namoradeira, que costumava se
<mi responder com vários pretendentes ao mesmo tempo.
Numa ocasião, coincidem no carteio Ernesto e outro jovem,
ipresentado como “o rapaz do nariz comprido” (II, p. 207).
Mesmo depois de saber do triângulo formado à sua revelia,
I mesto perdoa Rosina, estabelecendo uma sociedade com o
ml igo rival; sociedade exclusivamente comercial, vale escla­
recer. Ou não. Recorde-se o final do conto:

Não quer isto dizer que a amizade dos dois viesse a esfriar.
Feio contrário, o rival de Ernesto revelou certa m agnanim i­
dade, apertando ainda os laços que o prendiam desde a sin­
gular circunstância que os aproximou. Houve mais; dois anos
depois do casam ento de Ernesto, vemos os dois associados
num arm arinho, reinando entre ambos a mais serena inti­
midade. O rapaz de nariz comprido é padrinho de um filho
de Ernesto.
— Por que não te casas? pergunta Ernesto às vezes ao seu
sócio, amigo e compadre.
— Nada, meu amigo, responde o outro, eu já agora m or­
ro solteiro. (II, p. 220)

Solteiro, mas não necessariamente sozinho, adivinha o


leitor. O tal do Ernesto — espécie de “eterno m arido” à
Dostoiévski — prefere manter os olhos bem fechados. O tex­
to insinua a permanência da infidelidade sob o beneplácito
de um casamento feliz.
Tema trabalhado no livro póstumo de Eça de Queirós,
Alves & Cia., lançado em 1925. O respeitável casal Godofredo
da Conceição Alves e Ludovina tem sua rotina perturbada
pela irrupção de Machado, sócio do Alves e admirador elo­
qüente dos encantos da esposa do amigo. Depois de uma

73
ameaça de retaliação, nunca concretizada, e de uma separa­
ção, tem porária, tudo se acomoda e os dois retomam os ne­
gócios, que não param de prosperar, reforçando a ironia do
título: Alves E rC ia .O desfecho da narrativa tudo sugere. Alves
diz ao sócio:

— E nós, que estivem os para nos bater! A gente em novo é


m uito im prudente... E por causa duma tolice, am igo Machado!
E o o u tro responde, sorrindo tam bém :
—Por cau sa dum a grande tolice, Alves am ig o !16

Machado produziu alguns de seus melhores contos à roda


desse tópico. Em “Noite de alm iran te”, saído na Gazeta de
Notícias em 10 de fevereiro de 1884, e reunido no mesmo ano

em Histórias sem data, a relação do m arinheiro Deolindo com


a jovem e agitada Genoveva vale por um tratado de psicologia.
O convívio do casal principiou através de autêntico amor à
primeira vista. Porém, depois de três meses de idílio, o ma­
rujo precisou partir. A viagem não seria curta:

Eram oito ou dez meses de ausência. Como fiança recíproca,


entenderam dever fazer um juram ento de fidelidade.
— Ju ro por Deus que está no céu. E você?
— Eu tam bém .
— Diz direito.
— Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora
da m orte.
Estava celebrado o contrato. (II, p. 446)

10 Eça de Queirós, Alves & Cia., p. 103.


( i (ebrado o pacto, mas não necessariam ente assinado
i iii .1 mesma convicção pelas duas partes; talvez por isso
i <>1indo tenha exigido a reiteração do voto, numa antecipa-
i, >■' Mil il do desfecho da história. Apesar da promessa de amor
■i' i no, respeitada com rigor incomum para um marinheiro,
' ,■ iioveva rapidamente apaixonou-se e foi viver com o mas-
' .ii( José Diogo. Afinal, marujo e mascate vivem viajando:
' l<\ em terra firme; aquele, em alto-mar. Em meio a tantas
nii iTtezas, por que não apostar em alguma forma de estabi-
IIdade? Questionada sobre o juram ento de amor que fizera,
.i "caboclinha de vinte anos, esperta, olho n egro e atrevido”
(Ibtdem, grifo meu), desarmou o m arinheiro com sua respos-
i .i Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era
verdade” (II, p. 449). Nesse caso, é como se o adultério mere-
<esse o perdão imediato: sob o império do efêmero, como
pivlender fidelidade a valores absolutos? Não se trata mais
i le “crim e”, mas de circunstância ordinária; aconteceu com
(.cnoveva, é certo, mas como assegurar que não ocorrerá
com o leitor?
Nessa diferença reside a progressiva elaboração do tema
do adultério, pois, em lugar da perspectiva do juiz severo,
principia a entrar em cena o observador arguto da instabili­
dade radical das relações humanas.
Em relação ao ciúme, também ocorre uma transformação
significativa.
“O relógio de ouro”, publicado no Jo rn al das Famílias em
abril e maio de 1873, coligido no mesmo ano em Histórias da
meia-noite, apresenta uma singela anedota que apenas anun­
cia a complexidade do futuro tratamento do assunto. Tudo se
passa no âmbito de uma suspeita ingênua, resolvida com
facilidade: o relógio de homem, encontrado pelo zeloso Luís

75
Negreiros, não era prova de infidelidade, mas mero presente
de aniversário da própria esposa. É a mesma estrutura de “A
mulher de preto”. Contudo, Machado já se permite brincar
com o ridículo da situação. Após a recusa da esposa em reve­
lar o dono do malfadado relógio, o fecho do conto certam en­
te leva o leitor a sorrir da ingenuidade da trama:

Uma nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. O infeliz


marido lançou as mãos ao colo da esposa e rugiu:
— Responde, demônio, ou morres!
Clarinha soltou um grito.
— Espera! disse ela.
Luís Negreiros recuou.
— Mata-me, disse ela, mas lê isto prim eiro. Quando esta
c a rta foi ao teu escritório, já te não achou lá: foi o que o
portador me disse.
Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lam parina e
leu estupefato estas linhas:

Meu nhonhô. Sei que am an h ã fazes anos; m an ­


do-te esta lem brança.
Tua Iaiá.

Assim acabou a história do relógio de ouro. (II, p. 240)

Posteriormente, Machado interessou-se pela impossibili­


dade de solucionar a dúvida, em lugar de resolvê-la com
truques fáceis. Ao fazê-lo, reinventou sua literatura.
Em “Uns braços”, saído na Gazeta de N otícias em 5 de
novembro de 1885, e coligido em V árias histórias (1896), a
força do texto reside na incerteza do jovem Inácio em relação
a D. Severina. Recorde-se o entrecho: Inácio, escrevente do
insensível Borges, vive em sua casa, onde também se encontra

76
I > Severina, que habita m aritalm ente com o solicitador.
11 ,inscreva-se a sugestiva descrição do rapaz:

l i nha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas


bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga,
que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto
sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal ves-
l ido. (II, p. 490) ■

Se associarmos o retrato do jovem aos braços que dão tí-


111 Io ao conto, o cenário fica completo:

Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim


nus, con stan tem en te. Usava m angas cu rta s em todos os
vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em dian­
te ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e
cheios, em harm onia com a dona, que era antes grossa que
fina (...) (II, p. 491)

O erotismo da narrativa se baseia na virtual impossibi-


I idade de algo concreto acontecer, dada a presença sempre
rude e infelizmente constante do solicitador. Até que um
dia, enquanto Inácio sonhava com D. Severina, ela se
.iproximou cuidadosamente e “deixou-lhe um beijo na boca”
(II, p. 496). O receio de que o jovem apenas fingisse estar
dormindo, forçou-a a mudar de atitude e, sobretudo, a cobrir
os braços com um im pertinente xale. Pouco depois, Inácio
retornou à casa do pai e passou anos sem saber o que de fato
ocorreu. Para ele, “um sonho! Um simples sonho!” (II, p. 497).
!■is a demonstração do tom dominante do texto m achadia­
no em sua segunda fase: nada se pode saber com certeza
absoluta.
Efeito refinado em “Missa do galo”, publicado em A
S em ana, em 12 de maio de 1894, e coligido em Páginas reco­
lhidas (1899). De novo, a relação de um jovem estudante de
17 anos com uma perfeita balzaquiana, Conceição, perma­
nece sob o m istério e a ambigüidade, marca-d’água da fase
madura na condução dos temas do ciúme e do adultério. Na
meia-luz em que dialogam o futuro narrador e a esposa do
escrivão Meneses — homem célebre por rumorosos casos
extraconjugais —, uma sutil malha de encanto é tecida pela
mulher. A abertura do conto esclarece a força das melhores
páginas de Machado: “Nunca p u d e e n ten d er a conversação que
tive com uma senhora, há muitos anos (...)” (II, p. 605, grifo
meu). O narrador é o envelhecido jovem que provavelmente
começa a entender o diálogo que manteve com Conceição. O
texto é um dos mais eróticos da vasta produção machadiana
Parágrafo a parágrafo, a sedução da experiente mulher ofe
rece mil e uma possibilidades para que o estudante arrisque
sua sorte, mas nada se passa, pois ele pouco entende da situ­
ação. Mesmo quando tudo parece, se não claro, pelo menos
sugerido com alguma ênfase:

Conceição ouvia-m e com a cabeça reclin ad a no espaldar,


enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem
os tira r de m im . De vez em quando passava a língua pelos
beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me
disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a
endireitar a cabeça, cru z a r os dedos e sobre eles pousar o
queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem
desviar de m im os grandes olhos espertos. (II, p. 608)

Para o jovem de 17 anos, a esposa de Meneses havia per­


dido o sono e, na falta de coisa melhor a fazer, conversava
com ele. Porém, o desfecho do conto lança uma luz retrós

78
i •••I iva não sobre o que aconteceu, mas acerca do que poderia
1.1 .icontecido: “(...) o escrivão tinha morrido de apoplexia.
••mivição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem
it « ncontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente
luumentado do marido” (II, p. 611). Pois é: talvez ele tenha
üI»icndido a interpretar de outro modo a insônia da balza-
•|u1.111a. O casal passou a residir no mesmo bairro onde Bento
vmtiago escreveu não a H istória dos su b ú rb io s, mas Dom
( iismurro.

Dissimulação e vaidade

I k* igual modo, Machado principiou condenando sistematl


c;i mente tanto o dissimulado quanto o vaidoso.
Recorde-se o conto “Luís Soares”, publicado no Jornal das
l:amílias, em janeiro de 1869, e reunido no ano seguinte em
Contos flum inenses. Nele, o personagem homônimo, após dis­
sipar sua fortuna levianamente, buscou duas alternativas,
viver à custa de um tio rico ou planejar um casamento salva­
dor. Ou seja, a eterna atualização do expediente do agregado,
passaporte social típico do Brasil oitocentista, analisado à
exaustão na prosa machadiana, numa forma de expiação
autobiográfica, pois Machado conheceu na pele os dilemas
dessa circunstância. A sorte grande, porém, sorriu ao boêmio
e as duas opções apresentaram-se no mesmo lugar e ao mes­
mo tempo: ele desposaria a prima, que já contava com a
proteção do tio. A prima sempre fora apaixonada por ele,
embora o malandro nunca tivesse lhe dado atenção.
Contudo, o comportamento de Luís Soares, inteiramente
dissimulado, levou-o à ruína no exato instante em que pode­
ria triunfar. Numa reviravolta rocambolesca, típica dos pri­

79
meiros contos e romances machadianos, surge um testamen­
to fantástico. Bento, o pai de Adelaide, destinou à filha a
fortuna de 300 contos de réis. Impôs uma única condição: ela
deveria casar com o primo. Tudo pareceria perfeito, se não
fosse a evidente má-fé do rapaz. Tão pronto soube da fortuna
herdada pela prima, apaixonou-se num piscar de olhos! E nem
é preciso lançar mão da descrição densa para diferenciar
twitch (cacoete) de wink (piscadela): Luís Soares pretendia
apoderar-se do dinheiro da prima. O narrador não mediu
palavras para avaliar sua atitude, comentando a decisão da
sobrinha de recusar o casamento, mesmo se arriscando a
perder a herança: “O major ouviu atentamente a moça, pro­
curou desculpar o sobrinho, mas no fundo ele acreditava que
Soares era um mau-caráter” (II, p. 58). Assim: mau-caráter, sem
ironia alguma, juízo moral em consonância com os valores
do tempo. No final do conto, o castigo é completo, e até me
lodram ático: mesmo sem a realização do m atrim ônio,
Adelaide recebe os 300 contos e se prepara para uma luxuosa
viagem à Europa, naturalmente sem a companhia do primo.
Ao que tudo indica, a vingança mais cruel no Brasil oitocen-
tista! Luís Soares abandona a casa do tio; empobrecido e, sem
alternativas, suicida-se. E como se não bastasse, o narrador
acrescenta a punição final: ele é rapidamente esquecido pelos
amigos. De fato, eles preferem:

(...) can tarolar a canção de Barbe-Bleue.


Luís Soares não teve outra oração fúnebre dos seus amigos
mais íntimos. (II, p. 59)

“O segredo de Augusta” é um libelo contra a vaidade. O


conto foi publicado no Jo rn al das Famílias, em julho e agosto

HO
de 1868, e reunido pelo autor em Contos flu m inen ses. Nele,
Augusta, outra bela senhora de 30 anos, atravessa um dilema
em aparência insolúvel. Sua filha, Adelaide, completou 15
anos e, pelo costume do tempo, chegou à idade de casar.
Vasconcelos, seu pai, já havia inclusive escolhido um preten­
dente. No entanto, Augusta rejeitou o matrimônio com tal
obstinação, que o marido desconfiou de seus motivos: teria
alguma relação secreta com o futuro noivo? O singelo misté­
rio resolveu-se quando o marido escutou um diálogo entre a
esposa e uma amiga. Esta não entendia o motivo da decidida
recusa, argumentando incrédula:

— O que eu não compreendo, disse Carlota, é a tua insistên­


cia. Mais tarde ou mais cedo Adelaide há de vir a casar-se.
— Oh! O mais tarde possível, disse Augusta.
Houve um silêncio.
Vasconcelos estava impaciente.
— Ah! continuou Augusta, se soubesses o terror que me
dá a ideia do casam ento de Adelaide.
— Por que, meu Deus?
— Por que, Carlota? Tu pensas em tudo, menos num a
coisa. Eu tenho medo por causa dos filhos dela que serão
meus netos! A ideia de ser avó é horrível, Carlota. (II, p. 98)

O marido sentiu-se aliviado e, através de sua voz, o nar­


rador revelou sem complacência o lado oculto da vaidade:
Ouvi a causa dos teus terrores. Não cuidei nunca que o
amor da própria beleza pudesse levar a tamanho egoísmo.
(...)” (ibidem ). Contudo, é bom esclarecer, antes o egoísmo do
que a traição, pelo menos no juízo de Vasconcelos.
Com o passar dos anos, a concepção de Machado conheceu
uma sensível mudança. O autor passou a ver a dissimulação
e a vaidade com outros olhos.

81
Em “Galeria póstuma”, publicado na Gazeta de Notícias, em
2 de agosto de 1883, e coligido no ano seguinte em Histórias
sem data, o verdadeiro protagonista do conto é o diário de
Joaquim Fidélis, respeitável morador do Engenho Velho, ben-
quisto por todos. A confiar no narrador: “Tão amado que ele
era, com os modos bonitos que tinha, sabendo conversar com
toda a gente, instruído com os instruídos, ignorante com os
ignorantes, rapaz com os rapazes, e até moça com as moças”
(II, p. 396). O amigo ideal, o vizinho que todos desejariam,
um autêntico Zelig avant la lettre.
Porém, uma amarga surpresa aguardava seu sobrinho,
Benjamim. Ele descobriu um diário secreto mantido pelo tio
e, após ler avaliações edificantes sobre homens públicos e
análises certeiras sobre a condução da política nacional, co­
meçou a folhear páginas comprometedoras. O cordial senhor
esboçou o perfil honesto de seus melhores amigos, sem deixar
de lado nem mesmo o sobrinho. Na avaliação do tio: “Discreto,
leal e bom — bom até a credulidade. Tão firm e nas afeições
como versátil nos pareceres. Superficial, amigo de novidades,
amando no direito o vocabulário e as fórmulas” (II, p. 400).
Avaliações ainda mais duras foram reservadas aos velhos
amigos. Um surpreendente Jano do subúrbio, Joaquim Fidélis
aprendeu a dissimular como se o gesto fosse uma espécie de
respiração artificial. Dessa vez, o narrador não condena o
m emorialista, pois a escrita do diário revela a necessária
máscara que usamos no dia a dia; afinal, o convívio com
Joaquim Fidélis seria pouco atraente se ele revelasse a todos
suas verdadeiras impressões.

(Fábula em tom menor, “Galeria póstuma” não recordaria


a própria trajetória do autor? Machadinho, solícito no conví­
vio social ameno; Machado, discreto, porém escrevendo um

H2
miico e multifacetado diário de Joaquim Fidélis, trazendo à
In/, as mazelas da circunstância brasileira e os impasses da
* ondição humana.)

No plano do romance, ocorre um sutil deslizamento se-


mántico, que conduz da hipocrisia à dissimulação.
Vejamos dois exemplos.
Em A mão e a luva (1874), no momento crucial da trama,
Guiomar se vê obrigada a escolher seu futuro marido. Em
lese, Guiomar é livre para decidir por Luís Alves ou Jorge,
mas, na verdade, a baronesa espera que ela se decida por seu
sobrinho. Astuta, Guiomar lança mão de pequeno ardil:

- Escolho... o Sr. Jorge, suspirou Guiomar depois de alguns


instantes. A baronesa estrem eceu.
— Falas sério? Não creio; não é esse o sentim ento do teu
coração. (...)
Vê o leitor que a palavra esperada, a palavra que a m oça
sentia vir4he do coração aos lábios e querer rompê-los, não
foi ela quem a proferiu, foi a m adrinha; e se leu atento o que
precede verá que era isso mesmo o que ela desejava. Mas por
que o nome de Jorge lhe roçou os lábios? A m oça não queria
iludir a baronesa, mas traduzir-lhe infielm ente a voz de seu
coração, para que a m adrinha conferisse, por si m esm a, a
tradução com o original. Havia nisto um pouco de meio indireto,
de tática, de afetação, estou quase a dizer de hipocrisia, se não
tomassem à má parte o vocábulo. (I, p. 265, grifos meus)

Cheio de dedos, o narrador do romance hesita e quase abre


mão do vocabulário da hipocrisia, recorrendo a autêntico
périplo lingüístico: Havia nisto um pouco de meio indireto, de
tática, de afetação. No entanto, se a dissimulação é parte in-
contornável do cotidiano, como dizer sem disfarce o que re­
almente se pensa o tempo todo? Como tornar o trânsito social
fluente sem doses diárias e necessárias de mentiras piedosas?
Tal entendimento amplia o horizonte machadiano. No
Memorial de Aires (1908), quando se anuncia a partida de Tristào
para Portugal, D. Carmo procura consolar-se, imaginando que
pelo menos Fidélia permanecerá junto ao casal Aguiar. O
marido também deseja acreditar em sua permanência: ‘Aguiar
sentiria como a mulher, mas o ofício do banqueiro obriga e acos­
tuma a dissim ular. E talvez ainda não falassem entre si do
próximo regresso de Tristào; felicidade rima com eternidade,
e estes eram felizes” (III, p. 1.151, grifo meu). Um pouco depois,
o Conselheiro anota suas impressões sobre Tristào na forma
de uma máxima, como se fosse um La Rochefoucauld do mor­
ro do Livramento: “Talvez ele tenha alguma dissimulação,
além de outros defeitos de sociedade, mas neste m undo a im per­
feição é cousa p recisa” (I, p. 1.165, grifo meu).
Simples assim: sem condenações, lições edificantes, ou
titubeios do narrador. Dissimular é um dos ossos do ofício de
viver em sociedade.
Em “Uma senhora”, publicado na Gazeta de Notícias, em 27
de novembro de 1883, e republicado no ano seguinte em
Histórias sem data, discute-se o mesmo tema de “O segredo de
Augusta” (1868). Os dois contos se espelham, esclarecendo o
sentido da reescritura machadiana da própria obra. O perso­
nagem principal do conto, D. Camila, reproduz o dilema de
Augusta. Na recordação do narrador: “A primeira vez que a
vi, tinha ela trinta e seis anos, posto só parecesse trinta e dois,
e não passasse da casa dos vinte e nove” (II, p. 423).
Naturalmente, D. Camila tentou retardar o mais que pôde o
casamento de sua filha, pelas razões que o leitor conhece das
desventuras de Augusta. Dessa vez, entretanto, o matrimônio
da filha ocorre, e naturalm ente o fruto do consórcio não

84
demorou a vir: nem mais nem menos, D. Camila dormiu mãe
e despertou avó. A resolução do conto, porém, é mais bem-hu­
morada do que a do modelo prévio:

E ra o neto. Ela, porém, ia tão apertadinha, tão cuidadosa da


criança, tão a miúdo, tão sem outra senhora, que antes pa­
recia mãe do que avó; e m uita gente pensava que era mãe.
Que tal fosse a intenção de D. Camila não o ju ro eu (“Não
ju rarás”, Mat., V, 34). Tão somente digo que nenhum a outra
mãe seria m ais desvelada do que D. C am ila com o neto;
atribuírem -lhe um simples filho era a coisa mais verossímil
do mundo. (II, p. 429)

Para parecer mais jovem, a avó passou a tratar o neto como


se fosse seu filho! Destaque-se o ponto importante, que sin­
tetiza o sentido da transformação machadiana: não se conde­
na o gesto, com preende-se sua motivação.
Em “Fulano”, saído na Gazeta de Notícias, em 4 de janeiro
de 1884, e incluído no mesmo ano em Histórias sem data, o
leitor encontra uma curiosa antecipação da cultura da cele­
bridade, cuja base é o desejo de ser reconhecido, escapando
ao anonimato da vida urbana. O próprio nome do personagem
é uma indicação irônica: Fulano Beltrão, o indivíduo sem
importância alguma que, à custa de autopromoção, torna-se
alguém; ou pelo menos assim se considera. Tudo principia
com um artigo elogioso, e sem assinatura, publicado no Jornal
do Comércio. A promessa do reconhecimento altera completa­
mente a rotina do nosso Fulano:

Era até então um casmurro, que não ia às assembleias das com ­


panhias, não votava nas eleições políticas, não freqüentava
teatros, nada, absolutamente nada. Já naquele mês de março,
a vinte e dois ou vinte e três, presenteou a Santa Casa de
Misericórdia com um bilhete da grande loteria de Espanha,
e recebeu um a honrosa ca rta do provedor, agradecendo em
nome dos pobres. Consultou a m ulher e os amigos, se devia
publicar a ca rta ou guardá-la, parecendo-lhe que nào a pu­
blicar era um a desatenção. Com efeito, a ca rta foi dada a
vinte e seis de m arço, em todas as folhas, fazendo um a delas
com entários desenvolvidos acerca da piedade do doador. (II,
p. 437, grifo meu)

Em princípio, não há casmurrice que resista a uma boa pu~


blicidade. Todas as energias do Fulano Beltrão foram gastas em
cálculos singelos, cujo metro era sempre a exposição favorável
de seu nome na imprensa. Ressalte-se, outra vez, o que importa:
a vaidade não é simplesmente condenada, mas compreendida
como elemento incontornável da complexidade do comporta­
mento humano. O Fulano Beltrão, sem dúvida, torna-se uma
caricatura. Contudo, sua tradução particular do cogito cartesia
no — “me exponho, logo existo” — não se encontra enraizada
nos nossos próprios gestos e hábitos cotidianos?
Hora de recapitular o percurso: tanto do ponto de vreta
formal, quanto do ponto de vista do tratam ento de temas
sensíveis, é notável a transformação machadiana, esboçada
em contos da década de 1870 e radicalizada nas M em órias
póstum as de Brás Cubas

0 inverno chegou

A epígrafe shakespeariana que anuncia o projeto de Ressurreição


foi parcialmente traduzida por Machado no final do romance.
Ao que parece, alguns homens “perdem o bem pelo receio de
o buscar”, pois “our doubts are traitors”. Sim, as dúvidas são
traidoras; sobretudo, traidoras da ousadia, desaconselhando

86
i r.( os. Porém, como construir uma obra relevante caminhan-
sempre a favor do vento? Numa advertência da nova edição
■l<» romance, publicada em 1905, o autor maduro assim releu
n esforço do estreante:

liste foi o meu prim eiro rom ance escrito aí vão muitos anos.
Dado em nova edição, não lhe altero a composição nem o
estilo, apenas troco dois ou três vocábulos e faço tais ou quais
correções de ortografia. Como outros que vieram depois, e
alguns contos e novelas de então, pertence a prim eira fase da
minha vida literária. (I, p. 116, grifo meu)

Machado tinha razão em distinguir duas fases em sua


i rajetória. Foi justamente o que verificamos através da leitu-
ta comparada dos romances e dos contos. Na reimpressão de
seus primeiros romances, Machado sintomaticamente insistiu
na mesma tecla. Em 1907, na advertência à nova edição de A
nulo e a luva, reconheceu.

Os trin ta e tantos anos decorridos do aparecim ento desta


novela à reimpressão que ora se faz parece que explicam as
diferenças de composição e de maneira do autor. Se este não lhe
daria agora a m esm a feição, é certo que lha deu outrora, e,
ao cabo, tudo pode servir a definir a m esm a pessoa. (I, p. 198,
grifo meu)

Reveladora também é a advertência que preparou para a


reedição de Helena, saída em 1905:

Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de lin­


guagem e outras, que não alteram a feição do livro. Ele é o
mesmo da data em que o compus e im prim i, diverso do que o
tempo me fez depois, correspondendo assim ao capítulo da
história do meu espírito, naquele ano de 1876.
Não m e culpeis pelo que lhe achardes rom anesco. Dos
que então fiz, este me era p articu larm en te prezado. Agora
mesmo, que há tanto m e fu i a outras e diferentes páginas, ouço
um eco rem oto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua.
É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada;
cada obra pertence ao seu tem po. (I, p. 272, grifos meus)

Em carta a José Veríssimo, enviada em 15 de dezembro de


1898, Machado agradece os comentários do crítico sobre a
reedição de Iaiá Garcia. A justificativa é reveladora:

O que Você ch am a a minha segunda maneira naturalm ente me


é mais aceita e cabal que a anterior, m as é doce ach ar quem se
lembre desta, quem a penetre e desculpe e até chegue a ca ta r
nela algum as raízes dos meus arbustos de hoje. (III, p. 1.044,
grifo meu)

Na publicação de suas Poesms completas, em 1901, Machado


retoma o motivo»

Não direi de uns e de outros versos senão que os fiz com


am or, e dos prim eiros que os reli com saudades. Suprimo
da p rim eira série algu m as páginas; as restantes b astam
para notar a diferença de idade e de composição. (III, p. 16, g ri­
fo meu)

Identificar duas fases na produção machadiana, portanto,


nada tem a ver com desejo escolar de nomeação de estilos de
época ou de identificação de correntes literárias. Não se trata
de impor etiquetas, mas de observar a lógica interna de uma
obra, o que implica assinalar diferenças significativas entre
momentos bem marcados, mas não estanques, de um longo
percurso.
A principal obra do Machadinho não teria sido a literatu-
i i. ninda, ou totalmente, mas sua ascensão social na corte de
■i"in Pedro II. Machado teve de aguardar o momento azado
i •11.1 entrar em cena. Provavelmente não se tratou de cálculo
.1' enxadrista, porém de lance fortuito, cujo móvel, por isso
mesmo, seja menos evidente.
Teria sido necessário um impasse para que o Machadinho
|i« rdesse o receio de arriscar-se?
O óbice, pelo menos um elemento catalisador decisivo,
I malmente surgiu.
lim fevereiro de 1878.
li chegou de navio.

89
No meio do caminho tinha um autor

Só quando desceu ao fu n d o de si m esm o, p ara d esen g an ar-se,


M ach ad o co n se g u iu c r i a r o b ra d ig n a do seu g ên io , ou se
p re fe re m , do seu d em ônio, o daim on, que se ag itav a d e n tro
dele, se m que o soubesse, ain d a em estado fe ta l ou d orm iti-
vo, m as a c o n ta r de c e r to m o m en to , já b ican d o a ca sca do
ovo p a ra sair cá fo ra à luz do dia, que o sol n asce p a ra todos...

Augusto Meyer, “De M achadinho a Brás Cubas”

T in h a q u a re n ta an os o n o v elista de Iaiá G arcia q u an d o se


d esp ren d eu das ú ltim a s cad eias do R o m an tism o . A sua c u l­
t u r a e ra e n tão das m ais sólidas e co m p letas. Em bebido na
se re n a b eleza a n tig a, e n co n tra v a n a a rte h elên ica a p e rfe ita
co n fo rm id a d e co m as te n d ê n cia s de seu esp írito . E ra u m
L u cian o de S am ó sata, n ascid o e criad o em pleno sécu lo XIX ,
n o m o rro do L iv ram en to , no b a irro dos m aru jo s e das qui-
ta n d e ira s, dos ca tra ie iro s e dos p reto s de g an h o ...

Alfredo Pujol, Machado de Assis

U m a das co isas que se d e s ta c a m da in v estig ação é a v oga


im p re s s io n a n te de E ça de Q u eiró s, u m a v e rd a d e ira red e
n a c io n a l de a p re ço , q u e, d ig o eu , esten d eu -se a té m in h a
g e ra çã o e m esm o depois d ela. E ça e ra tão lido e querid o, que
[Gilberto Freyre] ch eg a a incluí-lo e n tre os que c o n trib u íra m
p a ra a u n id ad e in te le c tu a l do Brasil.

A ntonio Cândido, “Eça de Queirós, passado e presen te”

A re c ria ç ã o lite rá ria tem -se dado ao longo dos sécu lo s, a tr a ­


vés da tra d u çã o em v erso ou em p ro sa, p a rá fra se s e a d ap ta­
ções de obras clássicas co m o as de H om ero, D ante, V irgílio.
Não se falan d o nos te m a s bíblicos oü em h istó rias len d árias
c o m o as das Mil e um a noites.

Fernando Sabino, Amor de Capitu


0 primo Basílio é uma imitação de Maáame Bovary? Sem dú­
vida, se retomamos o sentido clássico de imitação, como
adoção de um modelo para, ao conservá-lo, chegar a supe­
rá-lo. Optar por esta visão significa recusar a mentira ro­
mântica da originalidade, persistente através dos séculos.

Christopher D om ínguez Michael, “E çalatría”

0 triunfo e a sombra

A hipótese deste capítulo é controversa, mas não pretendo


enredar-me em polêmicas estéreis. Proponho que, no meio
do caminho de uma trajetória exemplar, ainda que um tanto
monótona, Machado de Assis tropeçou em Eça de Queirós. O
autor de Iaiá Garcia precisou dar conta do impacto de 0 crim e
do p a d re Am aro e, sobretudo, do êxito de 0 p rim o Basílio.
Daí, o inverno machadiano chegou para valer em 1878,
ano de publicação do segundo romance do escritor português.
E chegou de navio.
Assim vinham os jornais, as revistas, os livros, enfim, as
novidades europeias: desembarcavam na alfândega e eram
imediatamente disputadas por um público ávido. O próprio
Machado recorda o fato numa crônica de A Sem ana, saída em
I o de dezembro de 1895:

Naquela quadra cada peça nova de Dumas Filho ou de Augier,


para só falar de dois m estres, vinha logo impressa no prim eiro
paquete, os rapazes corriam a lê-la, traduzi-la, a levá-la ao
teatro, onde os atores a estudavam e representavam ante um
público atento e entusiasta, que a ouvia dez, vinte, trin ta
vezes. (III, p. 687, grifo meu)

Agora, o incomum era que a novidade falava português,


em lugar de reproduzir o modelo usual, sempre em francês

92
•<ii . ii) inglês. Recordem-se, nesse sentido, as sintomáticas
i 1 1,ivra s de abertura da crítica machadiana:

Um dos bons e vivazes talentos da atual geração portuguesa,


11 Sr. Eça de Queirós, acaba de publicar o seu segundo rom an-
iv, 0 Primo Basílio. O prim eiro, 0 Crime do Padre Amaro, não
loi decerto a sua estreia literária. De am bos os lados do
Al lântico, apreciávamos há muito o estilo vigoroso e brilhan­
te do colaborador do Sr. Ramalho Ortigão, naquelas agudas
I tirpas, em que aliás os dois notáveis escritores form aram
n m só. Foi a estreia no rom ance, e tão ruidosa estreia, que a
crítica e o público, de mãos dadas, puseram desde logo o nome
do autor na prim eira galeria dos contemporâneos. Estava obriga­
do a prosseguir na ca rre ira encetada; digamos m elhor, a
colher a palm a do triunfo. Que é, e completo é incontestável.
Mas esse triunfo ésom ente devido ao trabalho real do autor?
(III, p. 903, grifos meus)

Os termos empregados anunciam a surpresa de Machado


<om o sucesso imediato de Eça; afinal, quando 0 p rim o Basílio
e lançado, em fevereiro de 1878, Machado está publicando
In ia Garcia, seu quarto romance, em folhetins quase diários,
respeitando o modelo de uma disciplina férrea. Eu disse:
quarto rom ance, embora sem ter provado o sabor da aclamação
queirosiana: a crítica e o público, de mãos dadas, pavimentavam
o roteiro de consagração de Eça. As palavras não ocultam o
desconforto: tão ruidosa estreia ; o nom e do autor na p rim eira
ga leria dos contem porâneos; colher a palm a do triunfo. Daí, a
pergunta retórica que abre o segundo parágrafo — Mas esse
triunfo éso m en te devido ao trabalho real do autor? — possui a
malícia típica da vida literária, surpreendente no cuidadoso
Machadinho. Tal malícia trai o dissabor do autor-operário,
cujo esforço contínuo não rendeu os frutos aguardados.

93
É lugar-comum considerar os dois artigos sobre 0 prim o
Basílio, publicados em 0 Cruzeiro, n os dias 16 e 30 de abril de
1878, um dos pontos máximos do exercício crítico machadia­
no. Pelo contrário, são suas páginas menos felizes. No entanto,
o tom agressivo de certas passagens, algo inesperado para um
homem que nunca apreciou as polêmicas, talvez tenha sido o
elemento catalisador que permitiu a reinvenção do bem-com­
portado autor de A mão e a luva. E pôde fazê-lo porque no meio
do caminho tinha um autor; na verdade, dois escritores.
De um lado, Eça e seu êxito; de outro, o autor no qual
Machadinho estava prestes a se tornar.
Nos artigos dedicados a 0 p rim o Basílio surge uma ideia
nova, quase um a nova sensação, embora ela fosse antiga como
os clássicos: a ideia de aem ulatio. Defendo, portanto, uma
leitura poético-retórica da transformação machadiana. Ao
mencionar a rivalidade com Eça, não a compreendo como
traço psicológico, porém como elemento catalisador que evi­
denciou a insatisfação de Machado com seus próprios proce­
dimentos.
Eis, se não me iludo, o ponto de inflexão de sua obra.
Assinale-se o aparente paradoxo da crítica machadiana
aos romances do português:

O Sr. Eça de Queirós é um/ieí e aspérrimo discípulo do realismo


propagado pelo autor do Assommoir. Se fora simples copista, o
dever da crítica era deixá-lo, sem defesa, nas mãos do entu­
siasmo cego, que acabaria por matá-lo; mas é homem de talen­
to, transpôs ainda há pouco as portas da oficina literária. (III,
p. 904, grifos meus)

Basta enumerar os termos-chave —fiel e aspe'rrimo discípu­


lo; copista; hom em de talento; oficina literária — para indagar

94
i >bre o horizonte da reflexão de Machado. Em tese, um fiel e
n in rrim o discípulo, possivelmente um copista, nunca seria
<(insiderado hom em de talento. No modelo imposto pela infla-
<,.u> das noções de subjetividade e de autoria, a reunião dos
!• rmos parece um autêntico contrassenso. Contudo, uma
lonna mais interessante de entender a perspectiva adotada
por Machado depende da noção de oficina literária. Trata-se de
metáfora característica do universo de práticas artísticas
pré-românticas, associadas à técnica da imitatio e da aemulatio.
N<>s artigos dedicados a 0 p rim o Basílio, esse universo paula-
i mumente se torna a novidade crítica decisiva, estimuladora
da pena da galhofa e da tinta da melancolia.

Roteiro

A fim de preparar o terreno para a apresentação dessa possi­


bilidade, começo pelo dilema enfrentado por todo romancis-
la de país periférico, ou seja, de cultura não hegemônica:
'.oino lidar com o cânone das tradições inglesa e francesa,
lormadoras do romance moderno nos séculos XVIII e XIX? A
inteligência da reação machadiana a 0 p rim o Basílio pode ser
renovada através de sua inserção nesse debate. 0 triunfo de
liça tornou a equação mais complexa: após 1878, nenhum
autor de língua portuguesa poderia ignorar o impacto de 0
prim o Basílio. Escrever romances em português passou a exi­
gir o enfrentamento de dois títulos queirosianos: 0 crim e do
padre A m aro e 0 prim o Basílio. Nessa época, Machado já havia
publicado quatro romances e nenhum deles seria candidato
ao posto de texto incontornável em tradição alguma, nem
mesmo limitando a referência à literatura brasileira. 0 p rim o
Ikisílio, embora muito diverso na concepção e no estilo, om-

95
breava com V iagens na m inha terra, de Almeida Garrett, publi
cado em livro em 1846. Machado apenas ingressa nesse sele­
to grupo dois anos depois, graças à prosa do defunto autor.
O segundo passo consiste na leitura cuidadosa dos artigos
machadianos, com o propósito de identificar os critérios es­
téticos que perm itiram uma análise tão severa da obra quei-
rosiana. Talvez o leitor se surpreenda: os critérios eram este­
ticamente normativos e moralmente conservadores.
Por fim, após breve estudo de determinados aspectos de
0 p rim o Basílio que o autor brasileiro preferiu ignorar, busco
observar, a p a rtir do texto m achadiano, a emergência da ideia
de emulação como critério decisivo de julgamento; critério
ainda tateante, mas presente e responsável pelos melhores
momentos de sua análise.
Eis o roteiro deste capítulo.
No final do cam inho, a pedra Eça de Queirós talvez se
converta no aguilhão que permitiu ao Machadinho, final­
mente, arriscar-se. Machado deixou d e p e rd e r o bem pelo receio
de o buscar.

Centros e periferias

Num texto pioneiro, publicado no Jornal de Debates, em 23 de


setem bro de 1837, Pereira da Silva dedicou sua coluna,
“Literatura”, ao tema que estimula meu argumento. Como
entender a maneira pela qual culturas e literaturas não he­
gemônicas desenvolvem estratégias para afirmar seus valores
perante as literaturas e culturas hegemônicas?

96
#* *

Mal principio e um desvio se impõe.


N(iste ensaio não me preocupo com essências, mas com
. 11 .11égias; não atribuo um valor unívoco à noção de centro,
-ii do cultura hegemônica, tampouco confundo o conceito
■"iii uma posição geográfica específica. De igual modo, não
nulgastaria o tempo do leitor com lamentos inúteis ou ufa-
ihmnos infundados acerca da condição periférica, não hege­
mônica. Essa não é uma questão de latitude fixa, porém de
o ,( ilação das relações de poder — eis o ponto decisivo. Em
imla cultura hegemônica há bolsões periféricos, assim como
« iii toda circunstância não hegemônica há ilhas de prosperi-
d.ide que nada devem ao mais central dos centros — a redun-
iLinda se impõe. Não atribuo um sentido absoluto a posições
determinadas, mas assinalo o caráter dinâmico das relações
Mssimétricas; ponto fundam ental para reavaliar a reação
machadiana a 0 prim o Basílio.
Penso, por exemplo, na reveladora reflexão de Catherine
Morland, personagem de A a ba d ia de N o rth a n ger, de Jane
Austen. Seu companheiro de dança, num baile em Bath,
desdenha da cidade, ao compará-la com a capital do Império.
A resposta de Catherine vale por um ensaio:

— Bem, cada pessoa deve julgar por si própria, e aquelas que


conhecem Londres podem desdenhar de Bath. Eu, porém,
vivo em um vilarejo isolado no cam po e jam ais poderei en­
contrar, num lugar como este aqui, a monotonia à qual estou
acostum ada; porque em Bath existe uma variedade de diver­
tim entos, um a variedade de coisas para ver e fazer o dia
inteiro, e lá nào há nada que se assem elhe.17

17Jane Austen, A abadiei de Northanger, p. 86.

97
Entre o povoado rural e Londres, Bath ocupa uma posição
bifronte: centro alternativo para os vilarejos; inegável peri­
feria para Londres. No século seguinte, idêntica triangulação
se encontra na base das aspirações de Emma Bovary, dividida
entre a provinciana e fictícia Yonville, o sonho de visitar Paris
e a realidade de Rouen; verdadeira cidade-ponte, como a Bath
de Catherine Morland. Aliás, relações triangulares que aju­
daram a plasmar as culturas latino-americanas no século
XIX, sempre às voltas com o eixo Paris e Londres, embora
mediado pelas metrópoles Lisboa e Madri.

* * *

Ao destacar a tensão entre culturas hegemônicas e não


hegemônicas, refiro-me à existência concreta de literaturas
favorecidas por determinada circunstância histórica que
beneficia esta ou aquela língua na difusão de obras. A “uni­
versalidade” deste ou daquele autor depende mais do idioma
no qual escreve do que da qualidade intrínseca de sua obra.
Assim, se nos séculos XVIII e XIX o francês foi a língua fran­
ca da utópica República das Letras, nos séculos XX e XXI o
inglês assumiu o papel de coiné do universo acadêmico e
digital. Livros produzidos em inglês, ou ainda em francês,
possuem uma capacidade de circulação muito mais ampla do
que os publicados em dinamarquês ou sueco, por exemplo.
Os autores que escrevem naqueles idiomas têm uma proba­
bilidade muito maior de ocupar o centro do cânone, já que
escrevem no idioma de uma cultura que ocupa posição central
nas relações de poder — outra vez, a redundância se impõe.
Em seu estudo sobre Franz Kafka, Gilles Deleuze e Félix
Guattari desenvolveram o conceito de “literatura menor”, a
fim de pensar as condições em que o uso não canônico de

98
...... língua hegemônica pode produzir efeitos desestabiliza-
dores no interior do código que, no entanto, perm anece
'iiuninante. Desse modo, o alemão deliberadamente pouco
•■.ii Iizado do autor de A m etam orfose literalmente se transfor-
in.i 110 idioma reduzido da adm inistração im perial. Suas
11.ises secas e curtas revelam, pelo avesso, a ambivalência do
Inocesso civilizatório, idealizado na noção de B üãung, porém
«i n porificado na mão dura do cotidiano burocrático dos donos
do poder.18
lissa circunstância pode ser ainda mais complexa. Como
pensar a mesma constelação de problemas quando o idioma
i inpregado nunca foi hegemônico, isto é, não o francês da
Ilustração, muito menos o alemão da filosofia, tampouco o
II iglês do mundo contemporâneo, mas o português de Machado
ile Assis e de Eça de Queirós? Como produzir efeitos não ca­
nônicos no interior de um código hegemônico quando a
própria língua na qual se escreve exige um passo prévio, qual
s e ja , a tradução? O dilema pode ser ainda mais agudo: como
produzir nas condições das culturas não hegemônicas sem
.i ntes traduzir o cânone das literaturas consideradas centrais?
Tal dificuldade ocorre em latitudes as mais distantes. Não
se trata de óbice exclusivamente latino-americano ou ibérico.
lVlo contrário, uma análise comparativa favorece uma com­
preensão renovada da crítica machadiana a 0 p rim o Basílio

" “O problem a da exp ressão não é colocado em K afka de u m a m an eira


ubsl rata universal, m as em relação com as literatu ras ditas m enores — por
exem plo, a lite ra tu ra ju d aica em V arsóvia ou em Praga. Um a literatu ra
m enor não é a de u m a língua m enor, m as antes a que u m a m in oria faz
em u m a língua m aior. No en tan to, a p rim eira ca racterística é, de qualquer
modo, que a língua a í é m odificada p or um fo rte coeficiente de d esterri-
lo ria liz a çã o .” Gilles D eleuze e Félix G u attari, K afka. Por uma literatura
menor, p. 25.
Em 26 de novembro de 1887, o crítico dinamarquês Georg
Brandes iniciou uma fascin an te correspondência com
Friedrich Nietzsche. Logo na primeira carta, revelando uma
surpreendente afinidade com preocupação típica dos melho­
res autores latino-americanos, Brandes permitiu-se perguntar:

O senhor já leu algo meu? Escrevo quase sempre em dinamarquês


e procuro resolver problem as os mais diversos. Há tempos não
escrevo em alemão. Creio que meus melhores leitores encon-
tram -se nos países eslavos. Durante dois anos pronunciei, em
fra n c ês , co n ferên cias em Varsóvia e, n este ano, em São
Petersburgo e em Moscou. Assim busco superar as fronteiras
angustiantes da pá tria.19

Angústia inevitável especialm ente quando se escreve


q u a se sem p re em d in a m a rq u ês — ou em sueco, ou em português,
ou em húngaro, ou, em alguma medida, em espanhol. Durante
o curto porém intenso carteio com Nietzsche — que ocorre
de 26 de novembro de 1887 a 4 de janeiro de 1889, data da
postagem da últim a carta enviada pelo alemão — o tema
retorna obsessivamente, revelando o esforço do crítico para
superar a barreira do idioma. Nessa época, Nietzsche também
se sentia isolado, um desterrado em sua terra. Brandes recor­
reu a expedientes diversos: escreveu em alemão, pronunciou
conferências em francês, viajou para Moscou e São Petersburgo;
por fim, lançou um livro em polonês — o que talvez não seja
a forma mais eficaz de driblar o isolamento causado pelo
dinamarquês

i,JGeorg Brandes. Nietzsche. Un ensayo sobre el radicalismo aristocrático. México,


DF: Sexto Piso, 2 0 0 8 , p. 77, grifos meus. Nas próxim as citações, an otarei
apenas a página da ocorrência.

100
Brandes não se cansa de indicar a leitura de títulos impor-
lantes para o projeto filosófico do autor de Ecce Homo. Porém,
d mesmo obstáculo se insinua em todas as ocasiões. Em car-
Ia enviada em 11 de janeiro de 1888, Brandes lamenta: “Existe
ii in pensador escandinavo cujas obras lhe interessariam
muito se pudesse lê-las em algum a tra d ução : penso em Soren
Klerkegaard (...)” (p. 84, grifo meu). O crítico dinamarquês
.i 1 1iculou o que se pode denominar a “angústia da ilegibili­
dade” ou o “imperativo da tradução”. Brandes nunca deixa de
recordar a Nietzsche o quanto ele está perdendo por não ler
polonês, sueco, islandês, dinamarquês — mais um pouco, e
exigiria que o filósofo também conhecesse o espanhol e o
português! Em outras palavras, menos do que arrogância de
.u adêmico pedante, ou provincianismo de intelectual arri-
vista, as reiteradas indicações de leitura esclarecem sua in­
quietação. Brandes se via isolado tanto em seu idioma quan-
lo em seu meio. Leia-se a carta enviada em fevereiro de 1888:
Imagino que o senhor desfruta de uma agradável primavera,
.lo passo que nos últimos dias estamos sepultados debaixo de
neves repugnantes; separados da E uropa” (p. 88, grifo meu).
O sentimento permaneceu atual no século seguinte. Na
confissão do poeta polonês Czeslaw Milosz: “Meu lugar na
I uropa, em virtude de eventos extraordinários e letais que
.iIi ocorreram, comparável apenas a terremotos violentos,
estimula uma perspectiva peculiar.”20 A consciência de per­
tencer à periferia da Europa atravessa suas reflexões. De igual
modo, o autor, que recebeu o prêmio Nobel de Literatura em
l ()80, lamenta diversas vezes que os melhores poetas polone-
\es não estejam traduzidos e, por isso, sejam praticamente
desconhecidos. É como se Brandes e Milosz pertencessem à

1( /eslavv Milosz, The Witness ofPoetry, p. 3-4

101
mesma época e não a séculos distintos. Ora, Machado e Eça,
no ano-chave de 1878, lidavam com os mesmos obstáculos
mencionados pelo crítico dinamarquês.
Neste capítulo, discuto precisamente as estratégias desen­
volvidas no âmbito das culturas e literaturas não hegemôni­
cas para afirm ar seus valores frente às literaturas e culturas
hegemônicas. Aqui, a poética da emulação propicia conseqü­
ências inesperadas no plano da política cultural. O desenvol­
vimento dessa possibilidade exige uma abordagem que não
deve ser reduzida ao espaço lusófono, estimulando um estu­
do comparativo mais amplo.

A centralidade da tradução

Hora de retornar ao texto de Pereira da Silva. No artigo “Os


romances modernos e sua influência”, ele destacou a relevân­
cia do tópico:

Pelos romances, com eçam quase todas as literaturas: a infân­


cia dos povos é sempre embalada no berço das ficções, e dos
jogos da im aginação; e de mais o belo sexo, que desde o com e­
ço das sociedades, rigorosam ente falando, tem dominado o
mundo, e dirigido o gosto, uniu-se mais a esta especialidade
da literatu ra.21

A abertura do artigo anunciava antes um desejo do que


uma constatação. Em 1836, Gonçalves de Magalhães lançou
Suspiros poéticos e saudades, livro de poesia que, junto com a

21 pe re jra d a silva, “Os rom ances m odernos e sua in flu ên cia”, grifos do
autor. Publicado por M arcus Vinicius Nogueira Soares em Matraga, Revista
do P rogram a de Pós-graduação em Letras da Uerj. Ano 10, n° 15. Rio de
Jan eiro: Caetés, 2 0 0 3 , p. 43. A p a rtir de ag o ra, cito apenas a págin a da
o corrência.

102
I•«il»licação de Niterói — Revista brasiliense, inaugurou oficial-
..... . o romantismo no Brasil. Portanto, se, “pelos rom ances,
. "incham quase todas as literaturas”, já não seria hora de o
11 nnnnce brasileiro dar o ar de sua graça? Porém, segundo as
I’ il.ivras de Pereira da Silva, a ausência de romancistas brasi-
h iiiis nào havia impedido a formação de um público fiel de
h iloras. Após destacar a importância de Walter Scott, visto
«01110 “o homem que mudou inteiramente a forma dos ro­
mances”, ele lamentou que as representantes brasileiras do
lu In sexo “(...) nào tenham ainda lido os romances desse Homero
I <ocês, porque ainda não se traduziram na língua p o rtu gu esa ,
.iliás tão cheia de maus romances, e de péssimas novelas”
(|>. 45, grifo meu).
O paradoxo da ausência de romancistas resolve-se facil­
mente: o público leitor no Brasil formou-se através de roman-
•vs, novelas, contos, enfim , narrativas p rio rita ria m en te lidas
i tu tradução, embora uma parcela do público tivesse acesso
. io s textos em francês; mesmo romances escritos em outras
línguas eram geralmente lidos em tradução para o idioma de
Montaigne. Daí o “imperativo da tradução” no caso das lín­
guas não hegemônicas. Foi assim que Nietzsche finalmente
pôde ler um dos autores recomendados por Brandes, como
informou em carta de 20 de novembro de 1888: “Anteontem
li com prazer, como se estivesse em casa, Os casados, do senhor
August Strindberg. Admiro-o sinceramente. E o admiraria
mais se não tivesse a impressão de que, nele, admiro um
pouco a mim mesmo” (p. 115).
Eis o ponto-chave para red im en sron ar o salto do
Machadinho ao Machado, além de propiciar o desdobramen­
to inesperado da poética da emulação em prática de política
cultural. Como tornar produtiva, no plano formal, a prece­
dência da leitura sobre a escrita, a precedência da tradução

103
sobre a obra original ? Como transformar a secundidade em
princípio de invenção? Pode-se considerar essa circunstância
uma característica das literaturas lusófonas, ou, para dizê-lo
de forma mais geral, um elemento definidor das literaturas
não hegemônicas? Sim: circunstância trazida à tona no travo
ressentido da afirmação de Eça na resposta dura, e somente
publicada na íntegra após a sua morte, à crítica igualmente
forte que Machado fez de 0 p rim o Basílio. Recorde-se a reação
acre à acusação de imitação lançada pelo brasileiro:

Dos dois livros, a crítica decerto conheceu prim eiro 0 crime


do pa dre Am aro, e, quando um dia, por acaso, descobriu,
anunciado num jornal francês, ou viu, num a vitrina de li­
vreiros, a Faute de 1’A bbé Mourei, estabeleceu im ediatam ente
um a regra de três, concluindo que a Faute de 1’A bbé Mouret
devia estar para 0 crime do p adre Amaro como a França está
para P ortu gal. Assim achou sem esforço esta in cógn ita:
PLAGIATOF

Eis a aritmética simples, porém brutal, das culturas não


hegemônicas: na verve de Alfonso Reyes, chegamos sempre
tarde ao banquete da civilização. E é preciso apressar-se para
não perder a sobremesa. Em outro século, Oswald de Andrade
confirmou o princípio da regra de três, cujo produto nunca
nos é favorável: “O trabalho da geração futurista foi ciclópico.
Acertar o relógio império da literatura nacional.”23 Como se
sabe, os ponteiros da República das Letras obedecem a meri­
diano muito pouco flexível. Daí, Eça ter destacado os modelos

22 Eça de Queirós. “Idealismo e realism o”. Cartas inéditas de Fradique Mendes


e mais páginas esquecidas. Porto: Leio & Irm ão, 1929, p. 171. A p a rtir de agora,
cito apenas a página da ocorrência.
23 Oswald de Andrade, “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, in A utopia antropo
fágica/Oswald de Andrade — Obras Completas, p. 44

104
h.mcês, inglês e alemão, como oriundos das “três grandes
luçoes pensantes” (p. 174).
A resposta não publicada de Eça procurava responder à
ili ura ao juízo pouco diplomático de Machado (adiante, repe-
I irei essa citação, porém ela se impõe de imediato):

Que o Sr. Eça de Queirós é discípulo do autor do Assommoir,


ninguém há que o não conheça. O próprio 0 Crime do Padre
Amaro é imitação do ro m an ce de Zola, La Faute de L’A bbe'
Mouret. Situação análoga, iguais tendências; diferença do
meio; diferença do desenlace; idêntico estilo; rem iniscências,
como no capítulo da missa, e outras; enfim , o mesmo título.
(111, p. 903-04, grifos meus)

Eis uma questão p ren h e de questões, que nos levariam longe..


A primeira publicação de 0 crim e do p a d re A m aro saiu na
Revista Ocidental, de Lisboa, de 15 de fevereiro a 15 de abril de
IK75. Eça renegou essa edição, para ele apenas um esboço.
I'reparou uma segunda edição, a primeira em livro, que saiu
em 1876. Trata-se praticamente de um novo livro; nas suas
palavras, a edição definitiva. Uma terceira edição, a segunda
em livro, apareceu em 1880. Aversão de 1876, consultada por
Machado na época de sua crítica, revela clara presença de
Zola na reescritura do texto, muito embora não seja correto
caracterizá-la como imitação, porém como exemplo típico da
técnica da aemulatio; mesmo princípio adotado por Eça em
sua apropriação de motivos de M adam e Bovary.
Ressalve-se que, mesmo na resposta publicada no prefácio
da terceira edição,24 saída em 1880, mesmo ano de lançamen­
to das M em órias p óstum as de Brás Cubas, Eça não baixou a

H Cito a passagem na íntegra no Capítulo 4

105
guarda: “Com conhecimento dos dois livros, so um a obtusida-
de córnea ou má-fé cínica”,25 permitiria assemelhar os romances
Machado preferiu não responder.
Sem dúvida, o problema da primogenitura literária não
se lim ita ao século XIX, mas foi vivido agudamente pelos
escritores daquele período, até mesmo pela centralidade do
texto impresso como meio de comunicação de massa. Nesse
contexto, como um autor lusófono poderia deixar de “im itar”
o modelo “superior” das três g ra n d es nações pensantes? A regra
de três queirosiana impõe limites rígidos. O gosto médio do
público português e brasileiro formava-se através da tradução
de romances escritos nos idiomas daquelas nações. Sublinhe-se
o sabor amargo da réplica de Eça, deixando claro o peso que
tal tradição implicava para os autores de língua portuguesa;
peso ainda maior porque faziam parte de um episódio dom és­
tico, uma vez que comandava o favor do público em Portugal
e no Brasil. No sistema literário lusófono, isto é, no sistema
literário não hegemônico, especialmente no tocante ao gêne­
ro romance, a tradução implica um problema teórico de
grande alcance: como refletir sobre as condições de criação
quando a tradução assume o papel de fonte da tradição? Como
escrever romances em língua portuguesa depois das produ­
ções inglesa e francesa dos séculos XVIII e XIX? E veja que
limito a referência aos dois modelos dominantes na criação
do romance moderno, deixando de lado a vertente alemã do
romance de formação, o Bildungsrom an, e a virtual onipresen­

25 Eça de Queirós, 0 crime do Padre Amaro (Cenas da vida devota). Obras de


Eça de Queirós. Volume I. Porto: Lello & Irm ãos, s/d, p. 8, grifo meu. Cito
sem pre a p artir dessa edição os seguintes títulos: 0 crime do padre Amaro, 0
primo Basílio e 0 mandarim: nesses casos, indicarei apenas o volume e a pá­
gin a da ocorrência

106
ça da ficção russa no século XIX; e, via de regra, através de
I raduções francesas. Aliás, traduções libérrimas, que adapta­
vam sem nenhum constrangimento o texto original ao pala­
d ar do público parisiense.
Para dizê-lo sem diplomacia: a severa reação machadiana
ao êxito de 0 p rim o Basílio e a rude resposta de Eça têm como
base uma questão de política cultural ainda hoje mal resol­
vida. A crítica machadiana e a reescritura queirosiana de
Madame Bovary oferecem uma resposta inicial. Nesse horizon­
te mais amplo, os dois artigos de Machado podem adquirir
leição inesperada, cujo ponto final se encontra no resgate
anacrônico da técnica da aem ulatio ; anacronismo que vale por
um xeque-mate em termos de política cultural.
A técnica da emulação supõe partir da imitação conscien­
te de um modelo prévio, com o objetivo de acrescentar-lhe
dados novos. Desse modo, o resgate deliberadamente ana­
crônico da técnica da imitatio e da aem ulatio transform a a
secundidade da condição periférica em fator p otencialm ente
produtivo.
A própria fonte da malícia do defunto autor.

A crítica machadiana

Principio a releitura dos artigos dedicados a 0 p rim o Basílio


por uma questão tão simples quanto incontornável: qual o
Machado que lê e critica de modo tão acre o romance de Eça
de Queirós? A pergunta pode parecer im pertinente, mas
dessa impertinência depende a propriedade do que defendo.
A suposição que subjaz ao questionamento é meridiana: pre­
cisamos reler radicalmente a crítica de Machado, investigan­
do seus pressupostos

107
A leitura machadiana acertou em pontos estratégicos e
pode ter sido relevante na correção de rumos do autor portu­
guês — a começar pelo seu próximo livro, 0 m a n d a rim , tão
distante dos dois primeiros; na obra de Eça, uma novidade
em alguma medida comparável à escrita das M em órias póstu­
m as de Brás Cubas. Por isso mesmo, desejo explicitar os pres­
supostos críticos do argumento machadiano, pois, num pri­
m eiro momento, Eça parece ter assim ilado muito bem o
golpe. Recordem-se os termos amigáveis da carta enviada da
Inglaterra, no dia 29 de junho de 1878:

(...) não quis estar mais tem po sem agradecer a V. S.a o seu
excelente artigo do dia 16. Apesar de m e ser adverso, quase
revesso, e de ser inspirado por um a hostilidade quase p arti­
dária à Escola Realista — esse artigo pela sua elevação e pelo
talento com que está feito honra o m eu livro, quase lhe aumenta
a autoridade.26

Ainda hoje, o juízo machadiano é lido como manifestação


de seu talento crítico. Publicado em fevereiro de 1878, 0 prim o
Basílio teve um êxito consagrador. A primeira edição, de 3 mil
exemplares, se esgotou num piscar de olhos. Uma segunda
edição, revista pelo autor, saiu no mesmo ano. Com uma ra­
pidez sintomática, em 16 de abril, Machado escreve uma re­
senha francamente desfavorável ao romance; trata-se do ar­
tigo mencionado por Eça em sua carta. Duas semanas depois,
mais exatamente em 30 de abril, o autor de Iaiá Garcia volta
à carga, esclarecendo pontos de sua leitura, a fim de replicar

26 A lberto Machado da Rosa. Eça, discípulo de Machado?. 2 a edição revista.


Lisboa: Editorial Presença, 1979, p. 227, grifo meu. Cito sem pre a ca rta de
Eça a p artir dessa edição; nas próxim as o corrências, m enciono apenas o
n úm ero da página citada. No q uarto capítulo, volto à análise da m alograda
relação en tre os dois escritores, retornando à leitura dessa c ir ta .

108
.a»', que discordaram do primeiro artigo. Não foram poucos
. >' que saíram em defesa do autor de 0 crim e do p a d re A m aro;
|unle-se mesmo pensar que o ataque machadiano ajudou a
irlutinar o círculo de admiradores brasileiros de Eça.
A análise machadiana transformou-se em autêntico câno-
iii', seu estudo transformou-se em clichê difícil de questionar.
Ora, não é óbvia a razão do entusiasmo e muito menos o
motivo da unanimidade acerca do juízo machadiano, que
pode ser sintetizado em três pontos.
Em primeiro lugar, Machado condena a adesão incondi-
. lonal ao “realismo de Zola”, pois ela obriga a malabarismos
'|iii' comprometem a verossimilhança do enredo, uma vez
que, na adoção da receita naturalista, nenhum ingrediente
drve ficar de fora. Além disso, Machado aponta falhas estru-
turais na tram a, especialm ente no caráter acidental dos
•pisódios centrais. Por fim, considera insuficiente o desenho
clos personagens, destacando-se o célebre reparo à composição
da lieroína: “a Luísa é um caráter negativo, e no meio da ação
Ideada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral”
(III, p. 905).
Esse lugar-comum precisa ser questionado.
Meu ponto de partida é muito simples: os dois artigos
sobre 0 prim o Basílio não foram escritos com a pena da galho-
la e a tinta da melancolia do defunto autor, cuja certidão de
bat ismo data de 1880. Em outras palavras, o leitor de 0 p rim o
Ihisílio foi o autor de Iaiá Garcia e não o criador das M em órias
Ixístumas de Brás Cubas.
Apenas restauro a cronologia da polêmica, em lugar de
I >rojetar retrospectivamente o Machado das M emórias póstumas
para o conjunto de sua obra. Salvo engano, um equívoco
hermenêutico converteu-se em leitura corrente: o Machado
que criticou 0 prim o Basílio baseou seu juízo em critérios es­
téticos que precisam ente um romance como as M em órias

109
póstum as tornaram ultrapassados e até caricatos! Os critérios
do Machadinho, leitor de 0 prim o Basílio, não são, e nem podem
ser, os mesmos do Machado, autor das M em órias póstum as.
Daí a necessidade de perguntar pelos critérios machadia­
nos na avaliação da obra queirosiana.
Em primeiro lugar, os critérios são surpreendentemente
moralistas — e não no sentido do moralismo francês do sé­
culo XVII, tão próximo ao próprio Machado, mas na acepção
burguesa satirizada por Flaubert, atacada por Eça e exposta
a seco nas M em órias póstum as. Recordo, por exemplo, como
Machadinho descreveu o caso de Luísa e Basílio: “essa ligação
de algumas semanas, que é o fato inicial e essencial da ação,
não passa de um incidente erótico, sem relevo, rep u gn a n te, vul­
g a r ” (III, p. 906, grifo meu).
Por que re p u g n a n te e v u lga r? Simplesmente por ser um
incidente eróticol Machado, assim, não pode senão condenar a
“fatalidade das obras do Sr. Eça de Queirós ou, noutros termos,
do seu realismo sem condescendência: é a sensação física . Os
exemplos acumulam-se de página a página; apontá-los, seria
reuni-los e agravar o que há neles desvendado e cru” (III, p.
908, grifo meu). O Machado de 1878 mostrou-se incomodado
pela sem-cerimônia com que Eça lidou com o corpo e o dese­
jo erótico em sua ficção, chegando a atribuir o sucesso do
livro ao escândalo provocado por tal liberdade:

Não se conhecia no nosso idioma aquela reprodução fotográ­


fica e servil das coisas mínimas e ignóbeis. Pela prim eira vez,
aparecia um livro em que o escuso e o - digamos o próprio
term o, pois tratam os de repelir a doutrina, não o talento, e
menos o homem, - em que o escuso e o torpe eram tratados
com um carinho minucioso e relacionados com um a exação
de inventário. (III, p. 904, grifos meus)
Nào se conhecia no nosso idiom a: lida pelo avesso, a crítica
• pòe o calcanhar de aquiles do autor de Helena. Os quatro
l»i imeiros romances, e a maioria dos contos de Machadinho,
ItIo contrário, foram escritos numa forma que já se conhecia
h muito bem) no nosso idiom a... Talvez a ousadia de Eça tenha
kito o autor de Ressurreição compreender a epígrafe de seu
Imineiro romance numa clave nova: aqueles que temem ar-
i iscar-se, “perdem o bem pelo receio de o buscar” (I, p. 195).
liansposta para a cena literária, a frase passa a exigir nada
menos do que a renovação radical dos procedimentos com-
posit ivos e dos núcleos temáticos.
Machado condenava 0 crim e do p a d re A m aro, mas a ressal­
va também feria 0 p rim o Basílio. Esse crítico era antes o
bem-comportado autor de A mão e a luva, romance publicado
i*iii 1874, cujo narrador, com um zelo que hoje em dia não
deixa de parecer antimachadiano, encarregou-se de explicar
uma ação atrevida da protagonista. Aliás, o gesto da agrega­
da é facilmente compreensível: entre a cruz e a espada, isto
i\ entre um casamento que perpetuaria sua condição depen­
dente e um matrimônio que abriria as portas de uma vida
própria, Guiomar optou pela segunda alternativa. Precisava,
contudo, agir com prontidão, pois seu destino dependia de
uma atitude imediata de Luís Alves, jovem promissor e am­
bicioso. Pressionada pela circunstância, Guiomar redigiu um
bilhete temerário, no qual incitava o pretendente a dar o
passo decisivo. Concisa, a mensagem limitava-se ao essencial:
“O papel continha uma palavra única: — Peça-me — escrita
no centro da folha, com uma letra fina, elegante, fem inina”
(I, p. 259, grifo do autor). A atitude decidida revelava a virili­
dade do perfil da heroína,27 cujos cálculos e artifícios revela­

27 Em Dom Casmurro a ideia é aperfeiçoada e alcança sua expressão definiti­


va na fam osa caracterização : “Capitu era Capitu, isto é, um a criatu ra mui
p articu lar, mais mulher do que eu era hom em ” (I, p. 841, grifo meu).

111
vam sua vocação política; vale dizer, suas afinidades eletivas
com o futuro marido. Eis como se “ju stifica” (o verbo será
empregado pelo narrador!) a atitude de Guiomar:

Desta observação passou Luís Alves a um a reflexão m uito


natural. Aquele bilhete, pouco conveniente em quaisquer outras
circunstâncias, estava justificado pela declaração que ele próprio
fizera à m oça alguns dias antes, quando lhe pediu que o
conhecesse prim eiro, e que no dia em que o julgasse digno
de o tom ar por esposo, ele a ouviria e acom panharia. Mas se
isto era assim em relação ao bilhete, não o era em relação à
hora. Que motivo obrigaria a m oça a deitar-lhe da janela, à
meia-noite, aquele papel decisivo, eloqüente na m esm a so­
briedade com que o escrevera?
Luís Alves concluiu que havia alguma razão urgente, e portan
to, que era preciso acudir à situação com os meios da situação.
(I, p. 270, grifos meus)

Será necessário recordar que já em 1857, através do apei


feiçoamento da técnica do discurso indireto livre, Flaubert
havia explorado a riqueza de um narrador que, tornado “invi­
sível”, forçava o leitor a tirar suas próprias conclusões? Na
passagem que acabo de transcrever, apesar do laborioso esfor­
ço analítico, é como se voltássemos no tempo e reencontrásse­
mos o império absoluto do narrador onisciente, sempre dis­
posto a “julgar” a ação dos personagens em nome do decoro.
Em 1874 a literatura de língua portuguesa se encontrava à
véspera da publicação de 0 crime do padre Amaro, lançado um
ano depois. Um pouco antes da passagem acima citada, o leitor
foi agraciado com a seguinte descrição das inclinações morais
da protagonista: “Guiomar amava deveras. Mas até que ponto
era involuntário aquele sentimento? Era-o até o ponto de lhe
não desbotar à nossa heroína a castidade do coração (...)” (I, p. 252,

112
}',i ifo meu). Os detalhes são significativos: nossa heroína, pois se
l rata de favorecer a identificação do público leitor com a trama
(‘ seus personagens. E uma identificação tranquilizadora; afi­
nal, Guiomar mantinha sob rédeas curtas o império das emo­
ções. Sem dúvida, espontâneas, pois, nesse registro carola, uma
heroína dissimulada seria um paradoxo inaceitável. Porém,
emoções regradas, já que, sem freios, aquele sentimento daria
lugar a transportes comprometedores. O meio-termo exato se
expressa na fórmula bem-comportada: até o ponto.
Machadinho precisava mudar sua visão do mundo, assim
como renovar sua concepção de literatura.
E precisava fazê-lo com urgência.
Especialmente a partir de/èvereiro de 1878.
Mas o câmbio não foi fácil, como se depreende de carta
enviada a José Carlos Rodrigues em 25 de janeiro de 1873
Nela, Machado agradece a resenha favorável que ele havia
publicado de Ressurreição:

Aperto-lhe m ui agrad ecid am en te as m ãos pelo seu artig o


no Novo Mundo a respeito de meu rom an ce. E não só a g ra­
deço as expressões am áveis com que me trato u , m as ta m ­
bém os reparos que me fez. (...) A borreço a literatura de es­
cândalo, e busquei evitar esse escolho. Se algum a cousa me
escap ou , esp ero em en d a r-m e na p ró x im a com posição. (III,
p. 1 .0 3 2 , g rifo s m eus)

José Carlos Rodrigues fundou e dirigiu a revista 0 Novo


Mundo de 1872 a 1879. Em dezembro de 1872 publicou a rese­
nha mencionada por Machado. O romancista estreante cuidou
de agradecer imediatamente e, em março do ano seguinte,
publicou na mesma revista um de seus mais importantes
estudos críticos, “Notícia da atual literatura brasileira

113
Instinto de nacionalidade”. Machadinho sempre soube tecer
redes poderosas e alianças oportunas. O severo juiz recrim i­
nou determinadas passagens de R essurreição com base no
princípio moral que será evocado pelo igualmente rígido
leitor de 0 p rim o Basílio:

O autor infelizmente descreve muito ao vivo certas cenas em


que figuram Cecília, Félix e M oreirinha, e nem vemos cores
bastantes que neutralizem as que ele emprega em pintá-las.
O final da página 47 é imperdoável; a estátua do final da
página 41 bem podia ser omitida, e certos “ímpetos” de Viana
são horríveis.28

Além de permanecer fiel à modéstia do autor-operário,


Machadinho também se preocupa com a adequação do conte­
údo do enredo: um escritor exemplar, sem dúvida. Desse modo,
e é preciso reconhecê-lo sem constrangimento, o seguinte
trecho da celebrada crítica de 1878 é inegavelmente pré-flau-
bertiano — e, após 1880, decididamente antimachadiano. Ao
discutir o comportamento conjugal, digamos, mais criativo
de Luísa, depois do caso com o primo, Machado assim reagiu:

(...) Que nos diz o autor nessa página? Que Luísa se envergo­
nhava um pouco da m an eira “por que am ava o m arido;
sen tia vagam en te que naquela violência am orosa havia
pouca dignidade conjugal. Parecia-lhe que tinha apenas um
capricho ”.
Que horrorl Um capricho po r um marido! (III, p. 911, grifos
meus)

28 José Carlos Rodrigues, “Um rom ance flum inense", in Machado de Assis:
roteiro de consagração (crítica em vida do autor), p. 91.

114
N.i pena do defunto autor, as exclamações teriam um ar
.1- lii lusamente cínico, mesmo erótico, como ocorre no extra-
«ii«liuário capítulo LV, “O velho diálogo de Adão e Eva”. no
•.|ii.il se insinua a cópula dos amantes através de sinais de
...... . uação.29 No julgamento do autor de Iaiá Garcia, os pontos
•Ir exclamação valem quanto pesam. A boa sociedade flumi-
iH iise e os ilustres representantes da corte imperial prova-
<Imente leriam essa condenação sumária da “crim inosa”
11usa — penso no vocabulário relativo ao adultério emprega-
■li >na primeira fase machadiana — meneando a cabeça, numa
muência tácita com os elevados valores morais do autor,
li não é tudo.
O celebrado crítico de 0 p rim o Basílio reproduziu o parecer
«to pai de Eça de Queirós. Claro, sem sabê-lo, o que torna o
i<ordo particularmente significativo. Em carta enviada ao
lilho no calor da hora, em 26 de fevereiro de 1878, depois de
•logiar a composição (“O romance é magnífico, e como obra
Tarte acho-o superior ao Padre A m a ro ”30), permitiu-se uma
ressalva: “Do ponto de vista da escola realista que te domina,
o romance é uma obra d’arte perfeita. Entretanto eu creio,
i|iie, mesmo n’essa escola, há um ponto além do qual não é
permitido” (p. 48, grifo meu). Conhecemos outra fórmula: até
d ponto. A variação é mínima, pois se trata do mesmo princí­
pio m oralizante. Contudo, como respeitar uma fronteira

Eis com o o capítulo se en cerra, sugerindo, na sim etria absoluta da pon-


i uação, o en contro perfeito dos am antes:
Brás Cubas
............... !
Virgília
...................... !
,u Eça de Queirós. 0 prim o Basílio. Episódio dom éstico. 3a edição São Paulo:
Ateliê Editorial, 2 0 0 4 , p. 48 . A p a rtir de agora, citarei apenas a página da
ocorrência.
movente, como costumam ser os limites na literatura? Nu
arbítrio paterno, nada poderia ser mais fácil: “Recomendo i<>
só que em tudo que escreveres evites descrições que senhor; r»
não possam ler sem corar” (p. 49). Critério infalível, seguido
à risca pelo narrador pedagógico de A m ão e a luva. A coim i
dência entre o autor brasileiro e o pai do romancista porlti
guês dificilmente pode ser vista como um elogio à sagacid.i
de crítica de Machado. Essa coincidência sugere a sintonia d<>
leitor de 0 p rim o Basílio com os valores conservadores de seu
tempo.
E ainda não é tudo.
Em 1859, o jovem crítico de 20 anos publica três artigos
em 0 Espelho, discutindo suas “Ideias sobre o teatro”. No dia
25 de dezembro, sai o últim o da série, “O Conservatório
Dramático”. Machado analisa o escopo e a utilidade da insti­
tuição. Entre 1862 e 1864, como censor, isto é, membro do
Conservatório Dramático Brasileiro, ele redige 16 pareceres.
Antes de ingressar na instituição, ele já tinha afirmado sua
relevância:

A literatura dram ática tem , como todo o povo constituído,


um corpo policial, que lhe serve de censura e pena: é o conserva­
tório.
Dois são, ou devem ser, os fins desta instituição: o moral
e o intelectual. Preenche o prim eiro na correção das feições
menos decentes das concepções dram áticas ; atinge ao segundo
analisando e decidindo sobre o m érito literário — dessas
mesm as concepções.
Com esses alvos um conservatório dram ático é mais que
útil, é necessário. A crítica oficial, tribunal sem apelação, garan­
tido pelo governo, sustentado pela opinião pública, é a mais
fecunda das críticas, quando pautada pela razão, e despida
das estratégias surdas. (III, p. 794-95, grifos meus)

116
i l!( se um anacronism o tonto: corpo policial deve ser
ih i|>i< elidido segundo a etimologia: politia, no sentido de
üm . i no, costume, hábito. 0 Conservatório constituiria um
ii «< . imlh ial, isto é, um conjunto de pessoas dedicadas à “po-
11111 <l,i adequação das peças a serem traduzidas e encenadas.
>i i assim não apenas útil, mas necessário, ao garantir a
.........no das feições menos decentes das concepções dram áticas. Tal
K •mi ia era plena porque um parecer negativo impediria a
» • nação do texto. A voz do censor tinha valor de crítica
"li* ml, tribunal sem apelação, garantido pelo governo. Evite-se,
pi.c.. o anacronismo tolo, mas não se incorra em nenhuma
I' 'i ma de hagiografia crítica: as palavras do jovem de 20 anos
■iiam subscritas por todos os medalhões do Segundo Reinado.
I pelo pai de Eça...
Nao se pense que o autor mais amadurecido teria mudado
iadicalmente de opinião. Numa observação aparecida no
•maio “Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de
nacionalidade”, Machado antecipa o rumo das críticas a 0
/>/htio Basílio:

As tendências morais do rom ance brasileiro são geralm ente


boas. Nem todos eles serão de princípio a fim irrepreensíveis ; al­
gum a coisa haverá que uma crítica austera poderia apontar e
corrigir. Mas o tom geral é bom. Os livros de certa escola fra n ce­
sa, ainda que muito lidos entre nós, não contaminaram a lite­
ratura brasileira, nem sinto nela tendências para adotar as
suas doutrinas, o que é já notável mérito. As obras de que
falo, foram aqui bem-vindas e festejadas, como hóspedes,
mas não se aliaram à fam ília nem tomaram o governo da casa.
(III, p. 805, grifos meus)

Machado não deixa de tirar o chapéu para o editor da


revista: a frase algum a coisa haverá que um a crítica austera p o ­

117
deria apontar e co rrig ir parece aludir à crítica de José Carlos
Rodrigues ao romance de estreia do agora colaborador de 0
Novo M undo. Ora, cinco anos depois da escrita desse texto, um
livro inspirado em certa escola fra n cesa ameaçou contam inar a
literatura brasileira: justamente 0 prim o Basílio. Desse modo, a
crítica austera, esgrimida por Machado, já estava anunciada
no artigo de 1873. Peço que o leitor repare no vocabulário,
que recorda a dicção moralista que vimos nos primeiros con­
tos machadianos: tendências m orais; irrepreensíveis; corrigir.
Ainda há mais.
O primeiro artigo de Machado sobre 0 p rim o Basílio provo­
cou os partidários brasileiros de Eça e muitos escreveram
réplicas, contestando o juízo desfavorável do autor de Iaiá
Garcia. Um golpe duro foi desferido por Amenófis Efendi,
pseudônimo de Ataliba Lopes de Gomensoro, que publicou o
artigo “Eleazar e Eça de Queirós: um crítico do Primo Basílio”,
na Gazeta de Notícias, em 24 de abril de 1878. Para provar que
o erotism o contido no rom ance não era despropositado,
Amenófis lançou mão de argumento em tese irrefutável:
transcreveu passagens, digamos, intensas do Cântico dos cân­
ticos, que comparavam os seios femininos a “verdadeiros ca­
chos de uvas”. Recusar uma taça desse vinho? Nem mesmo o
censor de 0 p rim o Basílio, pois, supõe Amenófis, ele “deve
saber que o Cântico dos cânticos faz parte de seu livro sagrado
— a Bíblia”.31
Touchél

31 Cito a p a rtir do trab alh o fundam ental de José Leonardo do Nascimento:


0 Primo Basílio na imprensa brasileira do século XIX, Estética e história. São
Paulo: Editora da Unesp, 2007, p. 221. Nas p róxim as citações de autores da
época, m encionarei apenas a página da oco rrên cia. M achado assinou os
artigos com o pseudônimo de Eleazar; daí o título da réplica.
Machadinho, contudo, não esmoreceu. No segundo artigo
•l.i .crie, enfrentou o desafio. Eis sua reação à possibilidade
•I*- uma leitura nervosa das Sagradas Escrituras: “(...) recebeis
'i livro como deve fa z e r um católico, isto é, em seu sentido mís-
11<o e superior, e em tal caso não podeis chamar-lhe erótico
( )" (III, p. 911, grifo meu). Preciso acrescentar longos comen-
i .i i i o s ? Como se apresentasse ao distinto público um atestado
. Ir bons antecedentes, o crítico defende uma exegese adequa-
tl.i mente pia, excluindo qualquer apropriação paródica da
lllblia. Em apenas dois anos, esse mesmo leitor de 0 p rim o
llusilio transformou-se no autor de um romance cujo parágra-
lo de abertura estabelece um irreverente paralelo com as
mesmas Sagradas Escrituras. Antes, defendidas com unhas e
dentes, agora digeridas e ruminadas na prosa de Brás Cubas:

Algum tem po hesitei se devia abrir estas m em órias pelo


princípio ou pelo fim , isto é, se poria em prim eiro lugar o
meu nascim ento ou a m inha m orte. Suposto o uso vulgar
seja com eçar pelo nascim ento, duas considerações me leva­
ram a adotar diferente método: a prim eira é que eu não sou
propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para
quem a cam pa foi outro berço; a segunda é que o escrito fi­
caria assim mais galante e mais novo. Moisés, que tam bém
contou a sua m orte, não a pôs no introito, m as no cabo: di­
ferença radical entre este livro e o Pentateuco. (I, p. 513)

A produção dessa diferença radical exigiu a superação de


uma estética normativa, que dependia de um narrador onis­
ciente, juiz implacável das ações morais dos personagens, um
perfeito rep resen tan te panóptico dos valores sociais.
Recorde-se, nesse contexto, a base teórica da principal crítica
ao desenvolvimento da trama de 0 p rim o Basílio:

119
Tirai o extravio das cartas, a casa de Jorge passa a ser uma
nesga do paraíso; sem essa circunstância, inteiram ente casual,
acabaria o rom ance. Ora, a substituição do principal pelo
acessório, a ação transplantada dos caracteres e dos senti­
mentos para o incidente, para o fortuito, eis o que me pare­
ceu in con gru ente e co n trário às leis da arte. (III, p. 910,
grifo do autor)

Leis da a rte ? Isso quer dizer que o crítico de 0 p rim o Basílio,


defendia uma concepção normativa para o gênero romance,
justam ente o gênero que se define por seu caráter onívoro
e multifacetado? O romance sequer fazia parte da codifica­
ção dos gêneros na arte retórica. Ademais, o traço paródico
de assim ilação de todo tipo de discurso rem ete à sátira
menipeia, uma das chaves do im inente pulo do gato ma­
chadiano, a dicção que consagrou as fu tu ras M em ó ria s
p óstu m a s. Contudo, na estética p rêt-à -p o rter do leitor de 0
p rim o Basílio, sempre atenta aos bons costumes e à correção
lingüística, qualquer desvio em relação à norma deve ser
condenado. Daí, na seqüência do raciocínio, o critério pre-
ceptístico vem à tona em menção inequívoca: “o acessório
não domina o absoluto; é como a rim a de Boileau: il ne doit
q u ’o b éir” (III, p. 910).
Machado se refere ao autor da A rte poética, poema didá­
tico lançado em 1674, texto fundamental na codificação do
classicismo francês. Não há discussão possível: é necessário
obedecer às regras! Não deixa de ser um anacronismo diver­
tido, e no fundo pouco produtivo, apresentar Boileau como
teórico avant la lettre do romance, pois o gênero só se firmou
definitivamente algumas décadas após a sua morte, ocorri­
da em 1711. Por fim , Machado recorre ao tiro de m isericór­
dia de toda estética normativa, condenando, indignado, “a

120
I ■•■Mi.ijM-ni, alusões, episódios, e outras partes do livro, no-
« 1 | x)i mim, como menos próprias do decoro literário (III,
I* ill, grifo meu)”. É provável que Machado estivesse pen-
i ..lo na célebre cena do capítulo VII, com seu fecho epi-
uiiiinnl ico:

( ) l>t*ijou-lhe respeitosam ente os joelhos; e então fez-lhe um


pedido. Ela corou, sorriu, dizia: não! Não! — E quando saiu
.Io seu delírio tapou o rosto com as mãos, toda escarlate;
11111 rm urou repreensivam ente:
—Oh Basílio!
Ele torcia o bigode m uito satisfeito. Ensinara-lhe um a
scnsação nova: tinha-a na mão! (I, p. 995, grifo meu)

A expressão tom ou conta dos jornais cariocas. Não era


|u ra menos: a sensação nova referia-se à cena de sexo oral,
tuna experiência inédita para Luísa, e, por certo, pelo menos
lilerariam ente, em língua portuguesa, tam bém desconhe-
i ida das leitoras de romances como A mão e a luva e Iaiá Garcia.
Machadinho achou o episódio de profundo m au gosto; afinal,
mesmo apaixonada, Guiomar soube impor-se lim ites claros:
d castidade do coração. E tal como a Pamela, heroína do ro ­
mance hom ônim o de Samuel Richardson, lançado em 1739,
(iitiom ar teve a virtu d e recom pensada pelo m atrim ônio. O
próprio subtítulo do rom ance inglês, um m arco na ascensão
tio novo gênero, vale por um tratado de bons costumes: Virtue
Rewarded. E tal como as senhoras evocadas pelo pai de Eça,
as leitoras tan to de Richardson quanto de M achadinho po­
diam virar as páginas do rom ance sem corar. Na expressão
cruel, porém definitiva, de A ugusto Meyer, “o festejado
a u to r de H elena e Ia iá G arcia, o b ra s-p rim a s do e stilo
não-m e-toques”.32 Tudo o que escrevo nesta seção eqüivale
a um longo com entário a esse achado: o leitor de 0 prim o
Basílio é o cu lto r do estilo não-m e-toques ! Estilo alheio ao
corpo e à sensualidade.
Posso, agora, rem atar m inha hipótese: o M achadinho de
1878, isto é, o leitor de 0 prim o Basílio, certam ente condenaria
o Machado de 1880, ou seja, o autor de Memórias póstum as de
Brás Cubas. Para o crítico m oralista de 1878, as aventuras de
Brás Cubas pareceriam desnecessariam ente eróticas; o móvel
de suas ações pouco definido; sobretudo, o crítico norm ativo
de 1878 rejeitaria a falta de verossim ilhança de um defunto
narrador. Isso para não m encionar a falha fundam ental da
estrutura: ora, como principiar um a história pela conclusão?
Ainda: como deixar de condenar um rom ance em que o aces­
sório parece sempre impor-se ao essencial, através da técnica
da digressão, com inegável sabor sterniano? Sem dúvida,
Machado-Boileau consideraria as Memórias póstum as de Brás
Cubas um rom ance indecoroso e pobrem ente construído.
De igual modo, o leitor de 0 prim o Basílio condenaria o
autor de Quincas Borba por m ostrar um m arido, C ristiano
Palha, que usa sem pejo os dotes físicos de sua esposa, Sofia,
para m elhor estafar o ignaro Rubião: Que horror! Um capricho
por um marido! E o que dizer do autor de contos como “Uns
braços”, “Noite de Alm irante” e “Missa do Galo”, cuja voltagem
erótica não se pode disfarçar?
A perspectiva norm ativa da leitura de 0 prim o Basílio não
deveria provocar nenhum a surpresa; surpreendente para o

32 Augusto Meyer, “De M achadinho a Brás Cubas”. Revista Teresa, 6/7, 2006,
p. 409. A p a rtir de agora, citarei apenas a página da ocorrência. O ensaio
de Augusto Meyer foi publicado originalm ente na Revista do Livro, em 1958.

122
M,u hadinho seria nm exame alheio à “aplicação” das “leis da
n ic", travestidas de regras de moral. Contudo, em 1878, a
• i«i ica defendida nos dois artigos já se encontrava na con-
i i.imào da história. O curioso é que o pulo do gato machadia-
Mi>iornou esse anacronism o produtivo. Mas foi preciso, em
pi imeiro lugar, to rn ar o anacronism o um gesto deliberado e
n.Ki involuntário. Ao fazê-lo, Machado desenvolveu a poética
•l.i emulação.
Evito in co rrer no equívoco com um : ler toda a obra de
M.ichado como se tivesse sido escrita pelo autor das Memórias
i'ir,iiimas de Brás Cubas, dos contos antológicos de Papéis avulsos,
»11 is versos primorosos de Ocidentais, das crônicas impecáveis,
<scritas sobretudo a p a rtir do final da década de 1870.
Tal suposição piedosa pode ser o p o rtu n a para o exercí-
i io de panegíricos, m as não p erm ite entender a lógica in ­
terna que, segundo Augusto Meyer, conduz à “transm uta-
<,.io de Luís Garcia em Brás Cubas, ou de M achadinho em
Machadão” (p. 410). O m ero louvor condena M achado ao
papel tím ido de fundador da Academia Brasileira de Letras,
liincionário exem plar, bom amigo, ainda m elhor m arido,
cidadão im poluto.
E, para o bem ou para o mal, ele foi tudo isso.
No en tan to , ele tam bém foi o autor de rom ances que
ainda hoje nos desafiam . O criador de contos que viram
pelo avesso nossas certezas acerca do Brasil, do m undo e
de nós mesmos. O cro n ista cuja prosa e argúcia seguem
sem paralelo.
Como entender o trânsito de um a outro?
Reitero m inha hipótese: a fim de produzir a revolução Brás
Cubas, o autor Machado precisou despedir-se de Machadinho,
leitor de 0 prim o Basílio. A crítica m achadiana não tem sido

123
capaz de dizê-lo com a clareza necessária porque parte do
pressuposto otim ista de que coincidem o leitor do rom ance
de Eça e o autor das M emórias póstum as.

Flaubert

Toda a m in h a perspectiva consiste em sugerir que en tre


M achadinho e Machado há um jardim que se bifurcou em
múltiplos cam inhos. Talvez esse jardim ten h a nome próprio.
Melhor dito: talvez seja possível discernir um de seus cam i­
nhos mais im portantes.
Hora de propor um a p e rg u n ta difícil: como é possível
que M achado não te n h a discutido seriam ente a presença
óbvia de F lau b ert na com posição qu eiro sian a? C ríticos
m enos sagazes levantaram a lebre. Um único exemplo: em
artigo publicado na G azeta de N otícias, em 23 de abril de
1878, Luiz de A ndrade identificou o paralelo: “Do prim eiro
plano, os outros tipos, Luísa e Juliana, são de um grande
m erecim en to . O p rim e iro , correto, ju sto e fotográfico,
aparece-nos tão escu ltu ralm en te como o de Mme. Bovary.
Ju lian a está talvez sobrecarregada, m as é de um desenho
esplêndido” (p. 212).
Por que Machado dedicou tanto espaço em seu estudo a
Balzac, e especialm ente a Zola, quando na superfície mesma
de 0 prim o Basílio o texto de Flaubert insinua-se em inúm eras
passagens?
Em inúm eras reciclagens.
Há inclusive um trecho de comovente ingenuidade na
crítica m achadiana. Referindo-se ao m om ento em que se
compara a separação dos prim os com a situação do romance

124
•Ir Balzac, Eugénie Grandet, publicado em 1833, Machado ex-
• lama, em aparência contente com sua argúcia: “O Sr. Eça de
Queirós incumbiu-se de nos dar o fio da sua concepção” (III,
p l)05). Nessa passagem do rom ance,33 Eça apenas procura
•li-spistar o leitor, pois o paralelo m ais significativo evoca
Mudame Bovary. No século seguinte, Jorge Luis Borges não
hesitou em relacionar os dois romances:

O am or da literatu ra francesa nunca o deixaria. Adotou a


estética do parnaso e, em seus romances m uito diferentes, a
de Flaubert. Em 0 primo Basílio se reconheceu a sombra tu ­
telar de Maáame Bovary, porém Émile Zola julgou que era
superior a seu arquétipo indiscutível e acrescentou a seu
juízo estas palavras: ‘Aqui fala um discípulo de Flaubert’.34

Como entender o lapso machadiano?


Reformulo a questão: é possível compreendê-lo a p a rtir de
um ponto de vista propriam ente formal, relacionado à estru-
111 ra da composição tanto de 0 prim o Basílio quanto de Memórias
póstumas de Brás Cubas ?

11 Lis a passagem a que Machado se refere:


" Tu sabes que ele foi nam oro de Luísa? — disse Sebastião, baixo, como
.issustado da gravidade da confidência,
li respondendo logo ao olhar surpreendido de Julião:
Sim. Ninguém o sabe. Nem Jorge. Eu soube-o há pouco, há meses. Foi.
listiveram para casar. Depois o pai faliu, ele foi para o Brasil, e de lá escre­
veu a rom per o casam ento.
Julião sorriu, e encostando a cabeça à parede:
Mas isso é o enredo da Eugênia Grandet, Sebastião! Estás-me a contar o
romance de Balzac! Isso é a Eugênia Grandetl” (I, p. 929).
" Jorge Luis Borges, “Prólogo”, El mandarín, p. 9. Alberto Machado da Rosa
é cético em relação à famosa anedota: “Em vida de Eça apenas o Mandarim
foi traduzido para o francês (mas não foi publicado), e nenhum a das suas
obras foi vertida para o italiano. De que serviriam a Zola todas as obras de
liça em português?”. Eça, discípulo de Machado? Um estudo sobre Eça de
Queirós, p. 68. Ceticismo que evoca o “im perativo da tradução”. A p a rtir de
agora, citarei apenas a página da ocorrência.
Volto a refazer a dúvida: é possível compreender o lapso
m achadiano no âmbito das relações de apropriação desenvol­
vidas por escritores oriundos de culturas não hegemônicas?
N aturalm ente, nào disponho de resposta exata. Se me
propusesse a encontrá-la, seria conduzido à Casa Verde da
crítica literária. Contento-me com um a hipótese, a fim de
ilum inar o ano-encruzilhada de 1878 no universo lusófono.
Os escritores de língua portuguesa, como já sabemos, deveriam
levar em consideração os autores das “três grandes nações
pensantes”, franceses, ingleses e alemães — e, na história de
romance oitocentista, devemos incluir os russos. A crítica de
Machado revelou que, com a irrupção do romance queirosia-
no, tam bém seria preciso incluir um rom ancista da mesma
língua: Eça de Queirós. Machado, vale repetir, somente atinge
o mesmo status a partir das Memórias póstum as, ou seja, a par­
tir de sua leitura visceral de 0 prim o Basílio, e ainda assim sem
a proem inência imediata alcançada pelo português.

Eça, leitor de Madame Bovary

Como Eça se apropriou do texto de Flaubert, entre outros


autores?
De um lado, busco com preender a form a especificamente
queirosiana de reciclagem do rom ance flaubertiano, assina­
lando o emprego sistemático do discurso indireto livre em
português.
De outro lado, pretendo compor um a tipologia de formas
de apropriação engendradas em áreas não hegemônicas em
seu comércio assim étrico com as literaturas e manifestações
artísticas das “grandes nações pensantes” — retomo sempre
a expressão magoada, e por isso reveladora, de Eça.

126
fi possível ir além da análise tem ática, indiscutivelm ente
importante, mas, pelo menos para meus propósitos, limitada?
Pode-se identificar algum procedim ento form al dom inante
n.i recriação de cenas de M adame Bovary em 0 prim o Basílio?
Mãos à obra.
No sexto capítulo da prim eira parte de M adame Bovary, o
leitor encontra o retrato psicológico da protagonista:

(...) D urante seis meses, aos quinze anos, Emma m ergulhou,


pois, as mãos naquele pó dos velhos gabinetes de leitura. Com
W alter Scott, mais tarde, apaixonou-se por coisas históricas,
sonhou com arcas, salas da guarda e m enestréis. Teria dese­
jado viver em algum velho solar como aquelas castelãs de
longos corpetes que, sob o trifólio das ogivas, passavam seus
dias com o cotovelo apoiado na pedra e o queixo na mão a
olhar um cavalheiro de plum a branca, vindo do fundo dos
campos galopando um cavalo negro (...).35

Na seqüência, Flaubert enum era a escocesa Mary Stuart


e uma longa lista de figuras da história francesa que acendiam
.1 imaginação fundam entalm ente nacional da heroína — e o
ponto não é desprovido de conseqüências.
No prim eiro capítulo de 0 prim o Basílio o leitor tam bém é
informado do gosto m uito mais heteróclito de Luísa, que
devorava um best-seller da época:

Era a Dama das Camélias. Lia muitos romances; tin h a um a


assinatura, na Baixa, ao mês. Em solteira, aos dezoito anos,
entusiasm ara-se por W alter Scott e pela Escócia; desejara
então viver num daqueles castelos escoceses, que têm sobre

G ustave Flaubert. Madame Bovary. C ostum es de província. Tradução,


apresentação e notas de Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo: Nova Alexandria,
1993, p. 53-54. A p a rtir de agora, citarei apenas a página da ocorrência.
as ogivas os brasões do clâ, mobiliados com arcas góticas e
troféus de arm as, forrados de largas tapeçarias, onde estão
bordadas legendas heróicas, que o vento do lago agita e faz
viver; e am ara Ervandalo, Morton e Ivanhoé, ternos e graves,
tendo sobre o gorro a pena de águia, presa ao lado pelo car-
do da Escócia de esmeraldas e diam antes. Mas agora era o
moderno que a cativava, Paris, as suas mobílias, as suas sen­
tim entalidades. (I, p. 847-48, grifo do autor)

A associação dessas passagens é lugar-com um na crítica


queirosiana: sei bem que não estou inventando a roda.
Proponho que a forma da reescrita de Eça radicaliza a crítica
social contida no texto de Flaubert. Em M adam e Bovary, as
leituras e a imaginação de Emma perm anecem presas a um
passado idealizado: prim eiro, e m uito brevemente, escocês;
depois, francês, dem asiadam ente francês. Repare-se na lista
de nomes que sucede a menção à rainha escocesa: “Ela teria
tido, naqueles tempos, o culto de Mary Stuart e veneração
entusiasta pelas m ulheres ilustres e infelizes. Joana D’arc,
Heloise, Agnès Sorel, a bela Ferronnière e Clémence Isaure
(...)”. Segue-se um a lista igualm ente francesa de nomes m as­
culinos: “São Luís com seu carvalho, Bayard moribundo, al­
gum as ferocidades de Luís XI, um pouco de São Bartolomeu,
o penacho do bearnês e sempre a lem brança dos pratos pin­
tados nos quais Luís XIV era elogiado” (p. 54).
Não surpreende que Emma nunca chegue a conhecer Paris:
íntim a da cidade de papel, provavelmente se decepcionaria
com a urbe de carne e osso. Já as leituras de Luísa realizam
um curioso efeito de aproximação de tempos históricos dis­
tintos e distantes entre si: surge o passado idealizado da ficção
de Scott, m as tam b ém o passado recente na h ero ín a de
A lexandre Dum as Filho e ainda a referência ao moderno,

128
.'I iliitla por Eça. Na transcriação queirosiana destaca-se a
■•'iicentração de épocas e de culturas históricas. Além disso,
• mu um toque sutil, o autor português revela o caráter ad-
■• ul ido da imaginação de Luísa: somente o alheio lhe inspi-
1.1 sonhos: bem ao contrário de Emma, cujos devaneios pos-
iicm sotaque próprio. Luísa anuncia o hábito do Conselheiro
A« acio, que somente pode dizer o óbvio recorrendo a citações
lora do lugar, ou aquém do tempo, mas, desde que sejam es-
11.1 ngeiras, se encontram justificadas.
A fim de reforçar a ideia de imitação, Machado recordou
um possível paralelo para o célebre personagem: “(...) bastará
cilar o longo ja n ta r do C onselheiro Acácio (transcrição do
personagem de Henri Monier)” (III, p. 908, grifo meu). Machado
pousava em Joseph Prudhom m e, personagem símbolo da
• lasse média parisiense, imortalizado por Henry Monnier nas
Mcmoires de M onsieur Joseph P rudhom m e, em dois volumes,
aparecidos em 1857; aliás, o mesmo ano de M adame Bovary.
Nao seria tam bém inexato vislum brar no Conselheiro Acácio
certos traços do boticário Homais, cujas ações têm grande
importância no romance de Flaubert.
Vejamos outro exemplo.
No nono capítulo da segunda parte - quando Emma está
prestes a sucum bir ã sedução de Rodolphe, mas ainda sem
sequer ter beijado o futuro am ante -, o leitor encontra a se­
guinte passagem: “Era a prim eira vez que Emma ouvia tais
coisas; e seu orgulho, como alguém que descansa num banho
de vapor, espreguiçava-se inteiram ente e com languidez ao
calor daquela linguagem ” (p. 172). Muito em breve o adultério
se concretiza, mas é preciso esperar seis longas páginas até
que se ouça a confissão feliz, sua felix culpa:
Porém, ao perceber sua imagem no espelho, surpreendeu-se
com seu rosto. Nunca tivera os olhos tão grandes, tão negros,
nem de um a tal profundidade. Algo de sutil, dissem inado
em sua pessoa, a transfigurava.
Repetia a si mesma: “Tenho um amante! Um am ante!”
deleitando-se com essa ideia como com a de um a outra pu­
berdade que a tivesse atingido. Portanto ia possuir aquelas
alegrias do amor, aquela febre de felicidade da qual desespe­
rara. Entrava em algo m aravilhoso onde tudo seria paixão,
êxtase, delírio; um a im ensidão azulada a rodeava, os cumes
do sentim ento cintilavam sob seu pensam ento, a existência
com um só aparecia ao longe, lá embaixo, na sombra, entre
os intervalos daquelas alturas, (p. 178)

No sexto capítulo de 0 prim o Basílio, Eça recria essas cenas,


ou, m elhor dito, refunde as duas em apenas um a cena, pro­
piciando um efeito estru tu ra l de concentração que parece
definir sua form a de ler M adame Bovary.
Luísa e Basílio já são am antes, o prim eiro encontro eróti­
co entre ambos ocorreu no capítulo anterior. Eis a reação da
prima:

E Luísa tin h a suspirado, tin h a beijado o papel devotamente!


Era a prim eira vez que lhe escreviam aquelas sentim entali­
dades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía
delas, como um corpo ressequido que se estira num banho
tépido; sentia um acréscimo de estim a por si mesma, e pa­
recia-lhe que entrava enfim num a existência superiorm ente
interessante, onde cada hora tin h a o seu encanto diferente,
cada passo conduzia a um êxtase, e a alm a se cobria dum
luxo radioso de sensações! (I, p. 960)

Destaque-se o sutil deslocamento: se era a prim eira vez que


Emma ouvia tais coisas, n o caso de Luísa, era a prim eira vez que

130
III. escreviam aquelas sentimentalidades. A experiência imedia-
' i da presença física dos am antes se transform a na vivência
mediada pela escrita e pela leitura. Além disso, no romance
•|iii'irosiano, o leitor não precisa aguardar mais do que um
ni)',elo parágrafo para encontrar a mesma confissão de um a
I insa deslumbrada diante da própria imagem, agora adorna­
da por um a beleza de origem nova, como a sensação que
muito em breve Basílio ensinará:

(...) Foi-se ver ao espelho; achou a pele m ais clara, m ais


fresca, e u m en ternecim ento úm ido no olhar; — seria ver­
dade então o que dizia Leopoldina, que “não havia como
um a m aldadezinha para fazer a gente bonita?” Tinha um
am ante, ela.
E imóvel no meio do quarto, os braços cruzados, o olhar
fixo, repetia: Tenho um amante! Recordava a sala na véspe­
ra, a cham a aguçada pelas velas, e certos silêncios extraor­
dinários em que lhe parecia que a vida parara, enquanto os
olhos do retrato da mãe de Jorge, negros na face am arela,
lhe estendiam da parede o seu olhar fixo de pintura. Mas
Juliana entrou com um tabuleiro de roupa passada. Eram
horas de se vestir... (I, p. 961)

Nessa passagem, Eça obtém u m efeito m áxim o de concen-


l ração, pois não apenas funde duas cenas de M adame Bovary
em apenas um a de 0 prim o Basílio, como tam bém anuncia o
desenrolar da tram a na alusão ao marido, através do retrato
de sua mãe, e, sobretudo, na entrada em cena de Juliana. Esse
é o norte da reescrita queirosiana: acumulação de elementos,
dem andando a concentração form al característica de seu
romance; aliás, como discuto no próxim o capítulo, esses são
procedimentos definidores da poética da emulação.
Eça, de igual modo, dom ina a técnica do discurso indire­
to livre. Devemos ler nesse sentido a justaposição de vozes

131
de Em m a e Leopoldina. No terceiro capítulo da segunda
parte, im ediatam ente antes de dar à luz, Emma pensa con­
sigo mesma:

Desejava um filho; ele seria forte e moreno e se cham aria


Georges; e a ideia de ter um filho hom em era como a espe­
rança da compensação de todas as suas impotências passadas.
Um hom em pelo menos é livre, pode percorrer as paixões e
os países, atravessar os obstáculos, agarrar a mais longínqua
felicidade. Mas um a m u lh er é co ntinuam ente im pedida.
Inerte e flexível, ao mesmo tempo, tem contra si a languidez
da carne com as dependências da lei. Sua vontade, como o
véu de seu chapéu preso por um a fita, palpita ao sabor de
todos os ventos, há sempre algum desejo que arrasta, algum a
conveniência que retém . (p. 73)

Na seqüência, n a tu ralm en te nasce um a filha e Emma


desmaia: seu destino parece mesmo selado. No quinto capí­
tulo de 0 primo Basílio, Leopoldina é menos loquaz, mas não
deixa de viver seu m om ento “Madame Bovary, c’est moi” :

— Ah! — exclamou. — Os homens são bem mais felizes que


nós. Eu nasci para homem! O que eu faria!
Levantou-se, foi-se deixar cair muito languidam ente na
voltaire, ao pé da janela. A tarde descia serenam ente; por trás
das casas, para lá dos terrenos vagos, nuvens arredonda-
vam-se, am areladas, orladas de cores sanguíneas ou de tons
m ais alaranjados.
E voltando-lhe a m esma ideia de ação, de independência:
— Um hom em pode fazer tudo! Nada lhe fica mal! Pode
viajar, correr aventuras... Sabes tu, fum ava agora um cigar-
rito...
O pior é que Juliana podia sentir o cheiro. E parecia tão
mal...
— É um convento, isto! — m urm urou Leopoldina. — Não
tens m á prisão, m in h a filha! (I, p. 952)

132
Outra vez, Eça recria um a passagem de M adame Bovary.
<ontudo, em lugar de apenas m encionar Luísa, reúne dois
I" i sonagens num diálogo revelador, além de aludir novamen-
i«• a presença controladora de Juliana. Com um a só pedra,
•lius coelhos: de um lado, concentração de cenas, de outro,
dispersão da voz de Emma em dois personagens. Na continu­
ai, <io, Leopoldina afirm a seu desejo de autonomia: “(...) Uma
mulher com filho está inútil para tudo, está atada de pés e
iliaos! Não há prazer na vida. É estar ali a aturá-los... Credo!
I ii? Que Deus não me castigue, mas se tivesse essa desgraça
parece-me que ia ter com a velha da travessa da Palha!” (I, p.
')!>:*). Solução que não ocorreu à protagonista de Flaubert, mas
que a personagem de Eça saberia colocar em prática. Isso
mesmo: Leopoldina não deixa de ser um a m adam e Bovary
em m iniatura, embora a seu modo seja m uito bem-sucedida.
As cenas queirosianas apresentam um a concentração de
elementos, num a sucessão por vezes vertiginosa, cujo efeito
c a radicalização da crítica social. Leopoldina é razoavelm en­
te exitosa em seu plano de igualdade entre os sexos; a julgar
pelo núm ero de am antes que coleciona e, sobretudo, pelo seu
desfecho. No últim o capítulo, de modo significativo, infor­
ma-se que “Leopoldina dançava num a soirée da C unha” (I, p.
1147). Como Leopoldina nunca teve o hábito de bailar sozinha,
certam ente passou a noite em boa companhia.
Eça reescreve M adam e Bovary através de um a form a da
concentração; desse modo, seu olhar atravessa diversas esferas
sociais, e esse é o ponto decisivo.
A hipocrisia da sociedade lisboeta é satirizada sem clemên­
cia na figura caricata do Conselheiro Acácio; na rua, m oralis­
ta mor, em casa, “amancebado com a criada” (I, p. 863).
A condição lim itada e lim itadora imposta às m ulheres é
denunciada na pluralidade dos tipos fem ininos que compõe

133
o romance, desenhando um panoram a m uito mais rico do
que o esboçado em M adame Bovary. Luísa é mesmo um títere,
m as nesse traço reside a força da crítica à falta de opção de
u m a jovem m u lh e r na p ro v in cian a Lisboa oitocentista.
Machado assinalou o ponto, mas não compreendeu seus des­
dobramentos. Na véspera de sua partida, Jorge o reconhece,
pedindo ao amigo Sebastião que não deixe de visitar a esposa,
ou seja, que não se esqueça de vigiá-la: “Não tem coragem
para nada; começam as mãos a trem er-lhe, a secar-se-lhe a
boca... É m ulher, é m uito mulher!... Não te esqueças, hein,
Sebastião?” (I, p. 870). O astuto Basílio nunca se esqueceu que
a prim a era m uito mulher, mas em sentido bem diferente ao
suposto pelo sossegado marido.
A dependência c u ltu ra l é satirizad a no deslum bre de
Basílio com Paris e do visconde Reinaldo com Londres. O
rom ance conclui quando eles tom am o rum o do único esta­
belecim ento que merecia a sua condescendência: “E foram
tom ar xerez à Taverna Inglesa ” (I, p. 1149, grifo do autor).
Os resíduos da m entalidade ultrarrom ântica são ridicula­
rizados na peça de Ernestinho, cujo título, Honra e paixão,
paródia implacável, deve provocar risos cúmplices por parte
do leitor.
A injustiça social é discutida a sério nas aspirações de
Juliana por condições mais hum anas de trabalho. Sua chan­
tagem expressa um a incipiente luta de classes. Na piedosa
interpretação do pai do rom ancista, embora veja na criada a
verdadeira “protagonista do rom ance”, o retratista carregou
demais nas tintas. O com portam ento de Juliana seria deslo­
cado em Portugal, “onde a brandura dos costum es faz dos
criados um a espécie de m em bros da fam ília” (p. 48). Pelo
contrário, a agudeza da composição queirosiana revela a

134
Htlencia diária que se oculta tanto na condição da emprega-
•l.i doméstica, quanto na circunstância do agregado; tema,
aliás, que não seria alheio ao autor de Iaiá Garcia.
Por fim, através do “brasileiro” Basílio, Eça radiografa a
I'i ópria estrutura do Império português. A fortuna que Basílio
Ir/ no Brasil não é investida em Portugal, mas desperdiçada
no estrangeiro; como ocorreu com os proventos oriundos das
II ilonias. Sua prim a, em diálogo com Sebastião, compreendeu
.eus motivos:

- Está bom, seu primo?


— Bom. Tem estado aqui, bastante. Aborrece-se m uito
em Lisboa, coitado! Ora, quem vive lá fora!
Sebastião repetiu, esfregando devagar os joelhos:
— Está claro, quem vive lá fora! (I, 941, grifo meu)

A repetição nada tem de ingênua, revelando a preocupação


com o cosmopolita parente de Luísa: sabe-se lá o que terá
.i prendido quem vive lá fora. Nesse contexto, o subtítulo do
romance adquire pleno sentido: o “episódio doméstico” forja
n in espaço concentrado que funciona como um a caixa de
ressonância dos impasses e contradições da sociedade p o rtu ­
guesa. A form a da concentração teria encontrado nesse espa­
ço igualm ente restrito um meio propício para o projeto do
autor, tornando a crítica ainda mais corrosiva pela exposição
da esfera privada.
0 prim o Basílio abarca um a gam a de tem as potencialm en­
te mais am pla do que o abordado em M adam e Bovary. Assim,
Machado acerta em cheio ao a firm a r que, no rom ance de
liça, “o adultério é ali um a simples aventura passageira” (III,
p. 910). Em algum a medida, tin h a razão; contudo, ele não viu
nesse fato o eixo da concepção queirosiana, pois a transgres­

135
são de Luísa, m uito mais do que o centro do livro, possui .1
função de autêntica caixa de Pandora, expondo a hipocrisia
e a decadência reinantes. Pelo avesso, a anem ia subjetiva tio
Luísa expõe a alienação im posta às m ulheres.
Talvez pela am plitude da crítica, Zola tenha considerado
o rom ance queirosiano superior ao modelo flaubertiano. Dt*
m in h a parte, não participo desse cam peonato peculiar, em
que autores e obras se enfrentam num improvisado campo
de futebol. Mas tam bém não fico em cim a do muro: 0 prim o
Basílio é um a obra-prim a, que ainda hoje perm anece provo-
cadora. Porém, 0 im pacto de M adam e Bovary é dificilm ente
comparável, pois a sistem atização de determ inados proce­
dim entos técnicos, em especial o emprego do discurso in d i­
reto livre, transform ou a história do rom ance moderno. Para
0 m eu argum ento, contudo, 0 que se destaca na avaliação
de Zola é a ideia de que a apropriação de um modelo pode
ter um resultado surpreendente, e mesm o superior, em re­
lação ao m odelo adotado. Eis 0 universo da im ita tio e da
aem ulatio.

Aemulatio

Devo agora tra ta r de duas questões decisivas para m inha


reflexão.
De um lado, em meio ao tiroteio dos artigos, ocorre a
emergência da ideia de emulação, compreendida positivamente.
De outro, é preciso refletir sobre o tropeço terminológico
de Machado, pois, assim como o pai de Eça, ele se refere ao
realismo e ao naturalism o como se fossem termos sinônimos.
Principio recordando a avaliação do prim eiro romance de
Eça; avaliação duríssim a (diria o crítico literário José Dias):

136
(Jih* o Sr. Eça de Queirós é discípulo do autor do Assommoir,
ninguém há que o não conheça. O próprio 0 Crime do Padre
Amuro é imitação do rom ance de Zola, La Faute de 1’Abbé Mouret.
Sll uação análoga, iguais tendências; diferença do meio; diferen-
iit do desenlace; idêntico estilo; algumas reminiscências, como
iio capítulo da missa, e outras; enfim , o mesmo título. Quem
<n h'ii a ambos, não contestou decerto a originalidade do Sr. Eça de
ijurirós, porque ele tin h a , e tem , e a m an ifesta de modo
afirmativo; creio até que essa mesma originalidade deu mo-
i ivo ao m aior defeito na concepção d ’0 Crime do Padre Amaro.
(III, p. 903, grifos meus)

A originalidade se converte em defeito estético, levando a


uma situação artificial, pois, ao alterar o meio em que ocor-
11 -m as ações, compromete-se a verossim ilhança do enredo.
l;<pare-se no critério tradicional da crítica machadiana, como
'.r o descompasso en tre form a e m eio social não pudesse
ivnder dividendos estéticos. A transform ação desse desloca­
mento em princípio produtivo é a m arca-d’água das Memórias
l>osl im a s de Brás Cubas; a começar, aliás, pela figura do defun-
lo autor. Contudo, assinalo o surgim ento de um a noção em
princípio paradoxal: razão de ser de m eu argum ento.
Apesar de o romance ser um a imitação, ele esclarece, assim
mesmo, e de modo afirm ativo, a originalidade do autor. Eça
imita e, por isso mesmo, possui dicção própria! Os term os
parecem contraditórios, especialm ente a p a rtir da estética
i mposta pelo romantismo, com base na afirm ação do talento
individual em lugar da reciclagem da tradição. Idealmente,
o gênio romântico prescinde de modelos; autêntico demiurgo
de si mesmo, encontra no ensim esm am ento sistemático m a­
terial suficiente para criar seus universos.
Volto a a rm ar a equação: Eça im ita e, por isso mesmo, é
original — extraio a equação do texto machadiano.

137
Como com preender a fórmula?
Antes de oferecer u m a resposta, reto rn o à crítica de
Machado. Ele reconstrói com habilidade o possível diálogo de
Eça com a tradição francesa e não condena a apropriação
queirosiana, mas discorda da ênfase concedida aos princípios
do naturalismo. Na verdade, Machado usa outra denominação,
como a passagem abaixo revela (e essa confusão geral entre
realismo e naturalism o precisa ser discutida):

O Sr. Eça de Queirós é u m fiel e aspérrim o discípulo do rea­


lism o propagado pelo au to r do Assommoir. Se fora simples
copista, o dever da crítica era deixá-lo, sem defesa, nas mãos
do entusiasm o cego, que acabaria por matá-lo; mas é homem
de talento, transpôs ainda há pouco as portas da oficina lite­
rária; e eu, que lhe não nego a m in h a adm iração, tomo a
peito dizer-lhe francam ente o que penso, já da obra em si,
já das d o u trin as e práticas, cujo iniciador é, na pátria de
A lexandre H erculano e no idiom a de Gonçalves Dias. (III,
p. 904, grifos meus)

Essa passagem é m uito rica, sobretudo nas entrelinhas.


Mais um a vez, a fórm ula paradoxal se arm a: Eça é um fiel
e aspérrim o discípulo; vale dizer, sem diplomacia, ele im ita
Zola. No entanto, embora im ite, não é simples copista, porém
homem de talento.
Repito: os term os da equação são extraídos do texto. Não
estou impondo à crítica m achadiana um a concepção alheia
ao autor. Procuro m anter-m e o mais próximo possível de seu
vocabulário, no esforço de identificação dos campos sem ân­
ticos que estru tu ra m sua obra.
A fórmula, agora, possui um a variação: Eça imita, mas não
é simples copista, porém, hom em de talento. E talento reve­
lado através da imitação, mas que não se limita à mera cópia.

138
Para ouvidos educados nos princípios da estética român-
lica, tanto a prim eira equação quanto a segunda fórm ula
parecem paradoxos, pois ameaçam apagar a diferença entre
original e cópia, voz própria e dicção alheia. Contudo, até a
explosão rom ântica, o sistema literário, desde a Antiguidade
( lássica, obedecia a um a dinâm ica diferente, na qual o re­
pertório literário comum, isto é, a tradição, era o ponto de
partida obrigatório de cada “nova” criação. Nesse sistema,
uma relação dinâm ica assegurava o equilíbrio entre talento
individual e tradição — recupero os term os do ensaio de T.
S. Eliot, “Tradition and Individual Talent” (1919). Trata-se da
mesma intuição crítica de Machado, apenas arranhada nos
artigos dedicados a 0 prim o Basílio e, posteriorm ente, refina­
da na escrita das M emórias póstum as de Brás Cubas.
Refiro-me à técnica da im itatio e da aemulatio.
Nesse horizonte, ilum ina-se a diferença decisiva en tre
imitação, como prim eiro passo, e cópia, como resultado final.
A equação m achadiana se torna perfeitam ente razoável, su­
gerindo que ele começava a in tu ir a técnica que estim ulou o
salto qualitativo implicado na escrita das Memórias póstum as.
Desse modo, os dois artigos sobre 0 prim o Basílio podem ser
lidos sob nova luz.
As duas passagens trazem à superfície um m odelo de
análise com base na ideia clássica de im itatio, seguida da ne­
cessária aemulatio; afinal, vale a repetição, o simples copista
apenas im ita, ele nunca se arrisca no m omento indispensável
da emulação. A recuperação m achadiana de práticas literárias
pré-rom ânticas em tem pos pós-rom ânticos eqüivale a um
program a de política cultural, cujos efeitos subversivos da
ordem tradicional aparecem na instigante frase: na pátria de
Alexandre Herculano e no idiom a de Gonçalves Dias.

139
0 poeta da “Canção do exílio” foi inicialm ente consagrado
por um a famosa crítica de Alexandre Herculano. O poeta
brasileiro estreou em livro em 1846, com seus Primeiros cantos,
obra dividida em três seções, “Poesias am ericanas”, “Poesias
diversas” e “Hinos”. O grande nome do rom antism o português
saudou a estreia, porém lam entou que as “poesias am erica­
nas” não ocupassem um espaço m aior no livro. Sua crítica
não deixava de ser um a carta de alforria poética, mas anun­
ciava regras para a emancipação: m anter a im aginação lírica
circunscrita à geografia dos trópicos.
Por sua vez, M achadinho começa a transform ar-se em
Machado ao assum ir o papel de um im aginário Alexandre
Herculano para Eça de Queirós, apontando-lhe os méritos,
porém indicando defeitos e exigindo correções. O gesto era
ousado e provocou reações aqui e lá. Dois anos depois, um
gesto ainda mais tem erário consagrou o brasileiro: a escrita
das M emórias póstum as de Brás Cubas.

Emulação pós-1878

Nos dois últim os capítulos, faremos um a viagem à roda da


obra de Machado, palm ilhando o campo semântico da em u­
lação em todos os gêneros trabalhados pelo autor. De im edia­
to, porém, pode ser útil acrescentar um único exemplo pos­
terior à crítica a 0 prim o Basílio, pois, após a emergência da
ideia de emulação, ela passou a ser um dos elementos decisi­
vos da visão literária de Machado.
Penso na notável análise da contribuição do dram aturgo
A ntônio José, m ais conhecido com o o Judeu. O ensaio
“A ntônio José e M olière” foi publicado o rig in alm en te na
R evista Brasileira, em 15 de ju lh o de 1879, e coligido em

140
i . Ih/iiías de Casa Velha (1906). A questão c e n tral do juízo
iimehadiano repousa no problem a da imitação: o Judeu foi
«.11 -1 nal ou se lim itou a reproduzir modelos prévios? Numa
P« rgunta direta: Antônio José em ulou ou não os m estres que
■ f.iiiu? Machado coloca os term os do problem a de form a
Inequívoca:

0 Anfitrião prova que o nosso poeta algum a cousa imitou e


1ransplantou de Molière, a tal ponto que forçosamente o tin h a
diante de si, ou na banca de trab alh o ou na m em ória; e,
porque esta observação não haja sido feita, cuido que inte­
ressará, quando menos, a título de curiosidade literária. Ao
mesmo tempo, direi o que me parece do escritor e da sua obra.
(II, p. 726, grifos meus)

Não é verdade que se retorna ao vocabulário da crítica aos


romances de Eça? Na avaliação de Machado, se Antônio José
Imitou e transplantou Molière, ainda assim im prim iu elem en­
tos próprios do escritor e da sua obra — registre-se a ocorrência
do verbo tra n sp la n ta r no cam po sem ântico da em ulação.
Antônio José não foi um m ero copista, porém , hom em de
t.i lento — como o leitor se há de lembrar, Machado disse o mes­
mo do rom ancista português. Nessa passagem, ele aprim ora
.i ideia, pois o Judeu teria escrito o seu A nfitrião tendo sob os
olhos o modelo de Molière, como se fosse um aprendiz, re­
produzindo quadros célebres de m estres da pintura. A im a­
gem é forte e pertence toda ao registro clássico da aemulatio:
forçosamente o tinha diante de si, ou na banca de trabalho ou na
memória.
A resposta de Machado sobre a “originalidade” de Antônio
José não poderia ser m ais eloqüente e m erece um a longa
transcrição-colagem:
Cotejando o Anfitrião de Antônio José com os de seus ante­
cessores, vê-se o que ele imitou dos modelos, e o que de sua
casta introduziu.
(...)
A ntônio José não só não seguiu nessa parte os modelos
recentes, mas até carregou a mão sobre o que imitou de Plauto.
(...)
Vamos agora ao que o ju d e u imitou d ire ta m e n te de
Molière.
(...)
Se, neste ponto, já não se trata de um a situação, de um
caráter novo, mas de um a ideia entrelaçada no diálogo, im ­
porta repetir que, ainda imitando ou recordando, o judeu se
conserva fiel à sua fisionomia literária; pode ir buscar a es­
peciaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de
sua fábrica.
(...)

Esta é a últim a conclusão que rigorosamente se pode tirar


do poeta. Ele nào im itou, nào chegaria a im itar Molière,
ainda que repetisse as transcrições que fez no Anfitrião; tin h a
originalidade, em bora a influência das óperas italian as.
Convenham os que era um engenho sem disciplina, nem
gosto, mas característico e pessoal.
(II, p. 729 e 731, grifos meus)

A riqueza do campo semântico fala por si só, perm itindo


reconsiderar determ inados aspectos dos procedimentos lite­
rários m achadianos a p a rtir de um horizonte pré-romântico,
num a opção estética deliberadam ente anacrônica, cuja pro­
dutividade se esclarece na renovação dos vínculos entre autor
e leitor. Afinal, para que se aprecie o resultado da emulação é
indispensável reconhecer o modelo imitado; portanto, a técni­
ca da emulação envolve o dom ínio de um sólido repertório de
leituras por parte do público leitor. No entanto, não se trata
de afirm ar que a obra de Machado se transform a num museu

142
imaginário, relíquia de um a vida consagrada à biblioteca.
I mlo se passa como se Machado recuperasse o sistema pré-ro-
m.intico, com base na relação dinâm ica en tre os term os
iinUiitio e aemulatio, e, desse modo, reinventasse sua condição
ili' escritor periférico, artífice de um a língua não hegemôni-
<.i, aprendendo a ser sim u lta n e am e n te pré-rom ântico e
pós-romântico. As conseqüências políticas dessa decisão es-
trl ica levam longe.

(Reitero que não se trata de identificar um a essência —


algum fluido m isterioso que tornaria o “ser periférico” sin­
gular e sempre idêntico a si mesmo —, porém de aprim orar
uma estratégia necessária, dada a assim etria constitutiva das
l rocas simbólicas. Ao contrário do que muitos supõem, esse
ii ao é um problema tornado obsoleto pelas condições contem ­
porâneas.)

Realismo ou naturalismo?

Machado julgava Eça “um fiel e aspérrim o discípulo do rea­


lismo propagado pelo autor do A ssom m oir”. Émile Zola pro­
vavelmente recusaria o epíteto, afinal, preferiria ser consi­
derado o criador, ou, no m ínim o, o m otor do naturalism o. O
principal texto teórico do movimento, 0 romance experimental,
lòi publicado em 1880, o mesmo ano de M emórias póstum as
de Brás Cubas e de 0 m a n d a rim : autêntica encruzilhada de
estilos e de opções estéticas. Por sua vez, o aspérrim o discí­
pulo acusou o golpe, preparando um a resposta firme, mesmo
m alcriad a, m as que não chegou a p u b licar na ín teg ra.
Algumas passagens menos ásperas foram incluídas no pre­
fácio à segunda edição (em livro) de 0 crime do padre Am aro,

143
tam bém aparecida em 1880. Postum am ente, deu-se a conhe­
cer a carta toda. Nela, com evidente sarcasmo, Eça tripudia
de seu crítico:

Creio que em Portugal e no Brasil se cham a realismo, termo


já velho em 1840, ao m ovim ento artístico que em França e na
Inglaterra é conhecido como por “n a tu ra lism o ” ou “arte
experim en tal”. Aceitemos porém realismo como a alcunha
fam iliar e am iga pela qual o Brasil e Portugal conhecem um a
certa fase na evolução da arte. (p. 176, grifos meus)

Perceba-se a malícia da resposta, que alude ao descompas­


so entre novidade europeia e atraso lusófono, particularm en­
te brasileiro, num a form a pouco sutil de desqualificação de
Machado. A questão é ainda mais complicada e exige recordar
dois ou três fatores para que se compreenda adequadam ente
o emprego m achadiano do conceito de realismo.
Em prim eiro lugar, retorno à carta do pai de Eça. Sua
classificação não deixa m argem a dúvidas: Do ponto de vista
da escola realista que te domina.
Qual a origem do alvoroço terminológico?
O segundo fator ajuda a entender o problema.
No esforço de renovação cultural, levado a cabo pela ge­
ração de Eça, ocupa lugar de destaque a cham ada “Questão
Coim brã”, polêm ica doutrinária, favorável à superação do
rom antism o, representado pelo poeta Antônio Feliciano de
Castilho. A bandeira da nova geração era a defesa estética do
realism o e o desejo de atualização da cultura portuguesa; na
época, duas faces da mesma moeda.
A polêmica explode em 1865, e se desenvolve através das
famosas “Conferências do Cassino Lisbonense”, realizadas
em 1871 e organizadas por Antero de Quental. O propósito

144
■i i. laro: passar a lim po a vida nacional, debatendo os prin-
11• !is assuntos do m om ento. A p a le stra de a b e rtu ra foi
i*M»li*rida pelo organizador, versando sobre as “Causas da
>1.. adcncia dos povos p eninsulares” — o tem a de 0 prim o
11,1 i lio preocupava toda um a geração. A terceira conferência
■"iibi* ao próprio Eça, e ele falou sobre o “Realismo como
. pressão da a rte ”.
Por fim, a resposta de Eça à crítica de Machado tem o re-
■ lador título de “Idealismo e Realismo”. Nesse contexto, a
' milusão term inológica m achadiana adquire outro aspecto,
i J )o se pode reduzi-la ao m ero descompasso entre novidade
•uropeia e atraso tropical, pois ela se refere a determ inado
momento da história intelectual luso-brasileira. Para que se
r.d are ç a o ponto de form a definitiva, escute-se o desabafo
de Eça:

Não — perdoem-me — não há escola realista. Escola é a im i­


tação sistem ática dos processos de um m estre. Pressupõe
uma origem individual, um a retórica ou um a m aneira con­
sagrada. Ora o naturalismo não nasceu da estética p articular
de um artista; é um m ovim ento geral da arte, num certo
momento de sua evolução, (p. 177, grifos meus)

Na prosa queirosiana, os term os realista e naturalista tam ­


bém aparecem como possíveis sinônimos, embora ele reserve
ao método de Zola um lugar proem inente: “O naturalism o é
a forma científica que tom a a arte ” (ibidem ).
Solucionado o m al-entendido, concentro-m e na relação
tem poral particularm ente complexa aludida por Eça. Uma
das principais ressalvas m achadianas referia-se não à falta
de talento do escritor português, mas ao fato de ele subm eter
seu dom às modas literárias. O naturalism o queirosiano não
seria determ inado por um a vocação própria, porém pelo
desejo de m anter-se atualizado com as últim as novidades:
esse o ponto a ser criticado.
Vejamos.
Com preendidos como escolas literárias, o naturalism o
sucedeu ao realism o e a ele se opôs. Apesar da resistência de
Eça, emprego sem pejo o term o, dada a existência de m ani­
festos e program as, assim como de autores que se comprom e­
teram com um a ou outra escola. Por exemplo, no prefácio à
prim eira edição em livro de 0 crime do padre Amaro, Eça reco­
nhece que o texto, embora profundam ente modificado, “con­
serva vestígios consideráveis de certas preocupações de Escola
e de Partido”. Ressalte-se a superposição de tem poralidades
distintas, embora contíguas: esse é o ponto decisivo.
Daí, o com entário irônico de Eça: como se Machado sim ­
plesmente ignorasse a passagem do tem po ou desconhecesse
a transitoriedade das modas, justo o autor do conto “A igreja
do diabo”, tributo inspirado à inconstância da condição hu­
m ana. Ora, não pretendo ocupar o tempo do leitor com ques­
tões relativas a “estilos de época”; desejo antes assinalar a
sutil inversão temporal efetuada por Eça.
Em 1875, ele publicou 0 crime do padre Amaro, inegavelmen­
te influenciado pela estética naturalista, atento às preocupações
de Escola e de Partido. Como diria qualquer mestre-escola: ergo,
trata-se de romance naturalista. O conselheiro Acácio estaria
de acordo — sine dubio.
Passados apenas três anos, o mesmo autor lança 0 prim o
Basílio. No romance, há um diálogo, valioso na proporção em
que não é exato, no qual se associa o passado de Luísa ao
entrecho de Eugénie Grandet, título de Honoré de Balzac, saído
em 1833, durante o auge da estética realista. Contudo, como
não se ignora — embora Machado tenha mordido a isca falsa!

146
, (>dialogo intertextual mais im portante ocorre com Madame
jli ivury, rom ance publicado em 1857.
0 que im porta assinalar é a cronologia às avessas da pro-
,.i de Eça: eis o fator decisivo que ilum ina a confusão term i­
nológica de Machado. O sentido anti-horário da produção
<I»u‘irosiana ainda não foi devidam ente valorizado. 0 prim o
Hasílio não pode ser classificado como um rom ance natura-
I i i a com a mesm a facilidade com que se etiqueta 0 crime do
/nutre Amaro. Machado equivocou-se ao julgar os dois roman-
ccs com a mesma lupa an tinaturalista — antirrealista, em
■.(‘ii vocabulário. A questão exigia um a leitura mais densa.
Porém, seu tropeço esclarece o pulo do gato queirosiano, que
0 narrador ébrio das M emórias póstum as radicalizará ao má-
\ imo. Machado reage visceralmente ao êxito de 0 prim o Basílio
■io intuir um cam inho que m uito em breve ele transform a
cm seu dom ínio particular.
Explico-me.
Em lugar de seguir a últim a moda, Eça deu um im portan-
1íssimo passo atrás — e voltou a fazê-lo em seu próxim o títu ­
lo, 0 m andarim , saído em 1880; texto m uito diferente de 0
primo Basílio e totalm ente distinto de 0 crime do Padre Amaro.
liça escreveu um rom ance m uito superior ao que Machado
foi capaz de ler, pois o brasileiro acreditou que o português
simplesmente procurou m anter-se atualizado com a escola
“realista” de Zola. Porém, com 0 p rim o Basílio, Eça começou
a afastar-se do rígido modelo naturalista. Na m inha análise
do romance, o processo de concentração form al, característico
da reescritura de M adame Bovary, conduziu à concentração de
épocas literárias e de culturas históricas, pois, além da tradição
do romance moderno, Eça dialoga com a literatura portugue­
sa contem porânea.

147
Não é verdade que a escrita das M emórias póstum as de Brris
Cubas tam bém implicou a apropriação sim ultânea de gêneros
e de estilos diversos, por vezes contraditórios? De igual modo,
Machado se revelou um leitor da tradição literária em sua
acepção mais ampla, assim como um agudo revisor da litera­
tu ra brasileira e portuguesa contem porâneas.
Eis a radicalização m achadiana: se Eça deu, por assim
dizer, um passo atrás, o defunto autor, em seu delírio, viajou
“à origem dos séculos” (I, p. 520), apropriando-se do conjunto
da tradição literária, com um a liberdade inovadora e um a
irreverência libertadora. Não obstante a crítica acre a 0 prim o
Basílio, o escritor brasileiro soube aproveitar a lição do rom an­
cista português. Se não me iludo, graças à em ergência da
técnica da emulação como critério de leitura crítica e de es­
crita inventiva.

(Aproveito para adiantar o calcanhar de aquiles de m inha


hipótese: considerar a apropriação irreverente da tradição
apanágio da circunstância não hegemônica é um contrassen-
so, como se procedim entos literários fossem determ inados
por esta ou aquela latitude! Aliás, como a referência ao ensaio
de T. S. Eliot ajuda a esclarecer. Volto a tra tar do tem a no final
do Capítulo 5 e, sobretudo, na conclusão, mas reitero que não
me preocupo com a definição de essências, porém com a
identificação de estratégias.)

Coda

Eça de Queirós faleceu em 16 de agosto de 1900, relativam en


te jovem, com 54 anos. A reação de Machado foi imediata. No
dia 24 de agosto, a Gazeta de Notícias publicou um a carta sua
a Henrique Chaves.

148
Meu caro H. Chaves. — Que hei de dizer que valha esta ca­
lamidade? Para os rom ancistas é como se perdêssem os o
melhor da fam ília, o mais esbelto, o mais valido. E tal fam í­
lia não se compõe só dos que en traram com ele na vida do
espírito, mas tam bém das relíquias da outra geração, e, fi­
nalmente, da flor da nova. Tal que começou pela estranheza e
acabou pela admiração. (III, p. 953, grifo meu)

O elogio m achadiano plasma a imagem consagrada pela


.1 rle da aemulatio: o diálogo contínuo, e imprescindível, entre
.is gerações. A mesma imagem já estava presente no ensaio
"Instinto de nacionalidade”.
A piedade de Machado era sincera.

(Como diria o narrador de Iaiá Garcia .)

149
Por uma poética da em ulação

O texto de Machado é quase sempre baseado na paródia. No


entanto, o narrador, sempre ambíguo, parodia ao mesmo
tempo que negaceia o conflito das duas vozes. Fica, ambiva-
lentemente, entre a paródia e a estilização, sem se pronun­
ciar nem por uma nem por outra.

Dirce Côrtes Riedel, Metáfora, o espelho de Machado de Assis

A semelhança do novo poema é tida como boa imitação


quando resulta da emulação. Emula-se o que se admira e ama:
por outros meios materiais e modos miméticos, o poeta
inventa o poema com forma análoga — mas não idêntica
— à da obra autorizada do costume, competindo com ela em
engenhosidade e arte. A emulação efetua o prazer do desti­
natário culto (...). A emulação é cumulativa: o novo poema
alinha-se com os anteriores do mesmo gênero como autori­
dade a ser imitada em novas emulações.

João Adolfo Hansen, “Notas sobre o gênero épico”

Da tradução à criação da obra original a partir de um mo­


delo grande é o passo, mas desde o início a filiação a texto
ou textos a partir dos quais criarão suas obras os escritores
latinos permanecerá a norma: literatura em segundo grau,
se assim podemos nos expressar, derivada de matéria pree­
xistente. Os Romanos terão um nome para designar esse
processo —imitatio, conceito que de certa forma abarcará a
noção de aemulatio: tentativa de igualar ou superar o original.

Paulo Sérgio de Vasconcellos, Efeitos intertextuais


na Eneida de Virgílio

(...) a fabricação do Antigo. Por tal entende-se que as poéticas


e retóricas notadamente latinas — expressas na tríade inter-
pretatio, imitatio, aemulatio — cam inham ao longo de uma

151
tensão entre imitação de modelos e crítica dessa imitação.
Tensão que constitui um modo basilar de sua pedagogia e
de sua agonística. Inúmeras são as formas pelas quais uma
obra —texto ou pintura — subsiste em outra, fenômeno que
se identifica com a própria natureza reticular da criação
artística.

Luiz Marques, “Apresentação”, Afabricação âo antigo

Encerrada a volta às origens, é preciso abandonar os gregos


da Antiguidade para acompanhar os cariocas do século XIX
e ver como discípulos de Isócrates, Aristóteles e Cícero apli­
cam os ensinamentos recebidos. (...) Se cam inhar pela Rua
do Ouvidor ou pela Praia de Botafogo, o leitor certamente
irá deparar com alguns alunos aplicados.

Dilson Ferreira da Cruz, 0 éthos dos romances


de Machado de Assis

Das negativas

A escrita deste capítulo foi particu larm en te desafiadora e


principio reconhecendo os limites do resgate que proponho
da noção de aemulatio.
Por isso, não posso senão em ular o últim o capítulo das
M emórias póstum as de Brás Cubas, compondo um a abertu ra
“das negativas”.
Não pretendo oferecer um a contribuição teórica ao exame
da aemulatio. Trata-se de tema central nos estudos clássicos,
mas tal ambição foge ao escopo deste ensaio. Meu objetivo é
realizar um a descrição densa do sistema literário Machado de
Assis, sublinhando a relevância da aemulatio na sua arquitetura.
Não apresento um a interpretação inovadora da técnica da
im itatio e da aemulatio, tam pouco sintetizo a história de sua
prática. Restrinjo-me a identificar seus elementos definidores,

152
ilr modo a compreender a im portância do campo semântico
da emulação na obra m achadiana. Não almejo, por fim, redi-
>•ir uma resenha interessada das discussões mais recentes
acerca da centralidade da aem ulatio nas práticas artísticas
.interiores ao rom antism o.
No capítulo “Das negativas”, Brás Cubas inventa um a
aritm ética do precário que favorece m in h a reflexão: “ao
<Ilegar a este outro lado do mistério, achei-me com um peque­
no saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negati­
vas: — Não tive filhos, não transm iti a nenhum a criatura o
legado da nossa m iséria” (I, p. 639, grifo meu).
Pelo avesso, toda essa série de nãos abre cam inho para um
sim constrangido. De igual forma, o que não tenciono, ilum i­
na o que posso alcançar. A ambição deste capítulo reside no
cruzam ento de dois fatores.
De um lado, a reinvenção conscientem ente anacrônica da
aemulatio, em sua reciclagem pós-rom ântica, através da poé­
tica da emulação, provoca efeitos inesperados no plano da
política cultural. O mais im portante teria favorecido a supe­
ração da crise artística de Machado, um a vez que lhe perm i-
l iu com preender de form a inovadora o relacionam ento de
um escritor periférico com o modelo das “grandes nações
pensantes”.

(É sempre bom recordar a expressão m elindrada de Eça,


sintomática da circunstância estru tu ral de desigualdade nas
t rocas simbólicas.)

De outro lado, há um a afinidade eletiva im portantíssim a


entre a técnica da aem ulatio, o jogo de xadrez e a música.
Refiro-me a poderosas m atrizes combinatórias, que, partindo
de um núm ero necessariam ente lim itado de regras e de con­

153
venções, produzem variantes virtualm ente inesgotáveis. A
paixão de Machado pelo jogo de xadrez e pela música pode
ter estim ulado a compreensão do caráter lúdico da aemulatio.
Vale o esclarecim ento: não se tra ta de relação de causa e
efeito, mas de sim ilaridade potencial de procedim entos ar­
tísticos e lógicos.
Por fim, trabalho com o conceito de emulação em dois
níveis, distinguindo aem ulatio - técnica fu n d am en tal no
sistem a literário e artístico pré-rom ântico — e poética da
emulação — esforço deliberadam ente anacrônico, desenvolvi­
do especialmente em circunstâncias não hegemônicas. Aliás,
como a corresp o n d ên cia de Georg Brandes e F riedrich
Nietzsche revela, o problema afeta latitudes as mais distantes,
exigindo um o lh ar comparativo. Não é dilem a brasileiro,
tam pouco lusófono, nem mesmo latino-americano, mas difi­
culdade de ordem geral, que envolve relações assim étricas de
poder simbólico.
O caso Machado de Assis, por isso, é bem local e, ao mesmo
tempo, m arcadam ente universal: exatam ente como sua obra.
Retorno à aemulatio.
Meu interesse em relação ao prim eiro nível da emulação
é modesto. Limito-me a assinalar suas práticas, observando
a ressurreição extem porânea de certas formas no segundo
nível, particularm ente na obra machadiana. Recorde-se a nota
que, em 1901, foi acrescentada ao poema “Flor de Mocidade”,
e que vimos no Capítulo 1:

Os poetas clássicos franceses usavam m uito esta forma a que


cham avam triolet. Depois de longo desuso, alguns poetas
deste século ressuscitaram o triolet, não desmerecendo dos antigos
modelos. (III, p. 181, grifos meus).

154
O vocabulário empregado pertence ao domínio clássico da
imitatio e da aemulatio. Seu caráter agônico era derivado da
Idisào entre dois gestos: reverência à tradição e crítica desse
mesmo legado. Porém, ainda que em ulando a tradição, per-
in.mecia-se em seu âmbito, enriquecendo-a pelo acúm ulo de
novas soluções, em lugar de condená-la ao m useu narcíseo de
uma modernidade autocentrada, definida pelo valor de fetiche
at ribuído à ideia de originalidade.
Na reinvenção anacrônica do horizonte pré-romântico, o
i io v o retrato de Machado começa a ganhar contornos precisos.
Na apropriação sim ultânea de tem poralidades opostas, o
autor de Memórias póstum as de Brás Cubas encontra seu domí­
nio particular.

Aemulatioi técnica artística

No capítulo anterior, vimos como a técnica da emulação in­


formou a crítica a 0 prim o Basílio, assim como o exame do
legado de Antônio José. Em crônica de A semana, publicada
em 7 de julho de 1895, escrevendo a respeito do centenário
da m orte de José Basílio da Gama, Machado retorna ao mesmo
campo semântico:

O meu bom amigo Muzzio, com panheiro de outrora, crítico


de bom gosto, achava detestáveis aqueles dois famosos versos
do Uraguai:

Tropel confuso de cavalaria,


Que combate desordenadam ente.
— Isto nunca será onom atopéia, dizia ele; são dois m aus
versos.

Concordava que não eram melodiosos, m as defendia a inten­


ção do poeta, capaz de os fazer com a tônica usual. Um dia,
achei em Filinto Elísio um a imitação daqueles versos de José
Basílio da Gama, por sinal que ruim , mas o lírico português
confessava a imitação e a origem. (III, p. 660, grifos meus)

A conjunção abre cam inho para um a leitura alternativa:


a imitação foi pouco inspirada, mas, ao explicitar sua fonte,
o poeta neoclássico se inscreveu em registro especial, perfei­
tam ente reconhecido por Machado. Nesse contexto, a imitação
não é julgada falta de inventividade, porém avaliada como
prim eiro passo, elem ento indispensável. O passo seguinte
exige a emulação, gesto essencial e cuja ausência, esta sim,
revelaria a incúria do escritor. O traço dom inante desse sis­
tem a foi definido em artigo sobre Almeida Garrett, publicado
na Gazeta de Notícias, em 4 de fevereiro de 1899. Nesse texto,
retom am -se literalm ente os term os da crítica a Eça e do es­
tudo sobre o Judeu.
Eis como Machado se refere à transplantação do rom an­
tism o em terras lusas:

Mas ele mesmo, que trouxe a planta para Portugal — ou a


vacina, como lhe cham ou algures (...).
G arrett, posto fosse em sua terra o iniciador das novas
formas, não foi copista delas, e tudo que lhe saiu das mãos
trazia um cunho próprio epuramente nacional.
(...) ju n ta em seus livros a alm a da nação com a vida da
hum anidade.
(III, p. 932-33, grifos meus)

156
Se, na fam osa sentença do escritor e ensaísta Ricardo
ri>-1ia, toda crítica é autobiográfica,36 essa seria a confissão
ilr Machado. Afinal, o “certo sentim ento íntim o” (III, p. 804),
mencionado no “Instinto de nacionalidade”, seria exatam en­
te o ponto de fuga da alma da nação com a vida da humanidade,
• i mi pondo a perspectiva típica do autor-m atriz, na oscilação
perm anente entre o mesmo e o forâneo. Uma possível analo-
1.1 formal desse movimento rem ete ao território da aemulatio.
0 sistema literário pré-rom ântico exigia que se partisse do
<ondim ento alheio para confecção de tem pero próprio. A
metáfora é bem m achadiana, utilizada precisam ente na aná-
1r.e da obra de Antônio José: “pode buscar a especiaria alheia,
mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fá b rica” (II, p.
7:U, grifos meus). M etáfora am pliada no gosto pelo verbo
ruminar, hóspede contum az dos textos m achadianos, cuja
expressão m ais saliente talvez se encontre em conhecida
passagem de Esaú e Jacó, publicado em 1904:

Tal foi a conclusão de Aires, segundo se lê no Memorial. Tal


será a do leitor, se gosta de concluir. Note que aqui lhe pou­
pei o trabalho de Aires; não o obriguei a achar por si o que,
de outras vezes, é obrigado a fazer. O leitor atento, verdadei­
ramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles
faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a ver­
dade, que estava, ou parecia estar escondida. (I, p. 1.019,
grifo meu)

16 “Não creio na teoria da catarse. No que se refere à crítica, penso que é


um a das form as m odernas da autobiografia. Alguém escreve sua vida no
mom ento em que acredita escrever suas leituras. Não é o oposto do Quijote?
Crítico é aquele que reconstrói sua vida no interior dos textos que lê. A
crítica é um a form a pós-freudiana da autobiografia.” Ricardo Piglia, “La
lectura de la ficción”, in Crítica yficción, p. 13.
0 ato de ru m in a r supõe o hábito definido em crônica de
A Semana, de 27 de outubro de 1895: “leio, releio e tresleio"
(III, p. 683). Pode-se vislumbrar, na analogia do gesto de ru­
m inação com o ato de leitura, um a possível alusão ao univer­
so da aem ulatio, pois, em ambos os casos, apropriar-se do
outro é o prim eiro passo. Como o repertório disponível per­
tence à comunidade letrada, esse tipo de rum inação eqüivale
a um dado estru tu ral do sistema literário.
Muitas instâncias da obra m achadiana podem ser reava­
liadas à luz do cruzam ento de seus textos com preocupações
extraídas da arte retórica.
Recorde-se o desembaraço com que Luís Tinoco, protago­
nista de “Aurora sem dia”, conto publicado em Histórias cia
meia-noite (1873), transform a-se num a espécie de autor u n i­
versal, especialm ente das obras que não havia examinado:
“Ele respigava nas alheias produções um a coleção de alusões
e nomes literários, com que fazia as despesas de sua erudição,
e não lhe era preciso, por exemplo, ter lido Shakespeare para
falar do to be or not to be, do balcão de Julieta e das torturas
de Otelo” (II, p. 223, grifo meu). Sem dúvida, nessa passagem,
critica-se a erudição de oitiva, típica dos medalhões da vida
literária. No entanto, cham o a atenção para o sutil desloca­
m ento realizado na prosa m achadiana, pois, pelo avesso,
sublinham-se procedimentos progressivam ente negligencia­
dos a partir da revolução romântica.
De igual modo, Brás Cubas lançou mão de idêntico expe­
diente, combinando de m aneira reveladora dois autores fu n ­
damentais no universo latino da aemulatio: “E não tinha outra
filosofia. Nem eu. Não digo que a Universidade não tivesse
me ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o
vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim: embol­
sei três versos de Virgílio, dois de Horácio, um a dúzia de lo-

158
. ii. cn‘s morais e políticas, para as despesas da conversação ” (I,
I' vi:>, grifo meu). As despesas da erudição ou as despesas da
iKiivcrsação: a fórm ula m uda para perm anecer idêntica. No
universo da aemulatio, o outro é sempre o ponto de partida
i • i <<instituição de um saber coletivo, em princípio acessível
ii Iodos os partícipes da cultura letrada.
() estabelecimento de tal equivalência entre rum inação e
iii iiiulatio exige um passo suplementar. Afinal, se a rum inação
pressupõe um ato interpretativo, a técnica da aemulatio ne-
i i ssariamente vai além, propondo um ato inventivo através
i|n incorporação do alheio. Herm enêutica com dentição afia­
da, o resgate anacrônico da aemulatio possui sabor antropo-
lágico.
O ingrediente decisivo desse horizonte aparece num dos
primeiros textos críticos de Machado, “Ideias sobre o teatro”,
publicado em três núm eros de 0 Espelho. Na segunda entrega,
saída em 2 de outubro de 1859, tanto o léxico da emulação
quanto o emprego do verbo transplantar já se encontravam
na ordem do dia do jovem aspirante a hom em de letras, então
com 20 anos.
Leiamos o artigo:

O teatro tornou-se um a escola de aclimatação intelectual para


que se transplantaram as concepções de estranhas atmosferas,
de céus remotos. A missão nacional, renegou-a ele em seu
cam inhar na civilização; não tem cunho, reflete as socieda­
des estranhas, vai ao impulso de revoluções alheias à socie­
dade que representa, presbita da arte que não enxerga o que
se move debaixo das mãos.
Será aridez de inteligência? não o creio. É fecunda de
talentos a sociedade atual. Será falta de ânimo? talvez; mas
será essencialmente falta de emulação. Essa é a causa legítim a
da ausência do poeta dramático; essa não outra.

159
Falta de emulação? Donde vem ela? Das platéias?
Das platéias. Mas é preciso entender: das platéias, porque
elas não têm , como disse, um a sedução real e conseqüente
(III, p. 792, grifos meus)

Vale a pena recordar que, em II Cannochiale Aristotelico,


Emanuele Tesauro emprega o mesmo verbo ao tra tar da em u­
lação: transplantar.37 Machado repete o term o em diversas
ocasiões, embora com modificações reveladoras. Aqui, o jovem
crítico atribui ao verbo um a conotação negativa. Essa passa­
gem, contudo, oferece m uito mais para o leitor rum inante
dos campos semânticos machadianos, dada sua preocupação
com a m usculatura incipiente do teatro brasileiro.
Como explicá-la?
Em prim eiro lugar, porque é um teatro que não tem cunho,
reflete as sociedades estranhas. Desse modo, é alheio à naciona­
lidade que deveria defini-lo: estamos ainda distantes do ad­
vogado do “certo sentim ento íntim o”. No entanto, éfecunda
de talentos a sociedade, o que deveria favorecer o surgim ento
de dram aturgos capazes de reverter aquele quadro.
Eis, porém, o obstáculo em aparência intransponível: es­
sencialmente fa lta de emulação. E por parte das platéias! Por
quê? A resposta não é evidente.
Se Machado considerasse que os poetas dram áticos pouco
se im portavam com a técnica da aem ulatio e, em virtu d e
disso, o teatro nacional perm anecia na corda bamba, então,

37 “R epetindo A ristó teles, E m anuele Tesauro d efin e ‘e m u lação ’ em II


Cannochiale Aristotelico: ‘Chamo pois im itação um a sagacidade com a qual,
quando para ti é proposta um a m etáfora ou outra flor do engenho hum ano,
consideras aten tam en te as suas raízes e, transplantando-a em diferentes
categorias como em solo cultivado e fecundo, propagas outras flores da
m esm a espécie, m as não os m esm os indivíduos’.” João Adolfo H ansen,
“Introdução: notas sobre o gênero épico", in Épicos, p. 20.

160
o jovem de 20 anos seria o pai do autor de 40, ou seja, do in
vcntor de Brás Cubas. A receita seria a mesma: apropriar-se
do conjunto da tradição, através da rum inação de autores
devidamente devorados. Um passo adiante, e Machado teria
servido a entrada do banquete que somente vinte anos depois
pôde preparar, reunindo, na nota “Ao leitor”, das Memórias
l>oslumas de Brás Cubas, Stendhal, Laurence Sterne e Xavier de
Maistre; trio respeitável, ao qual acrescentou, no prefácio à
lerceira edição, o nome de Almeida G arrett — o escritor que
nào fo i copista, embora tenha trazido a Portugal flores origi­
nalmente cultivadas em outros jardins.
Acontece que a falta de em ulação vem das platéias. O
lexto é claro: porque elas não têm um a sedução real e conseqüente.
i; isso ocorre pela ausência de compromisso dos autores com
a missão nacional. Assim, o espectador não é seduzido pelo
leatro porque nele só encontra concepções de estranhas atmos­
feras, de céus remotos. Em terra sem palm eiras, sabiá algum
pode cantar. O mais sério é que, no ritm o binário entre o
alheio e o próprio, entre o cá e o lá, a aemulatio perde vigor,
pois ela se alim enta da oscilação perm anente entre os dois
polos. Afinal, sua prática dem anda a adoção prévia de um
modelo e, ao mesmo tem po, a crítica posterior do modelo
adotado; somente assim a im itatio deixa de ser resultado final
— m era cópia —, convertendo-se em ponto de partida de um
processo de invenção — m eta de todo artista.

(Invenção : palavra-chave.)

O problema do M achadinho foi essencialmente falta de em u­


lação... Carência de aemulatio no sentido clássico da voz, em
lugar da reduzida acepção nacionalista do artigo de 1859.

161
Nos dois últim os capítulos, retorno ao m apeam ento do
campo semântico da emulação no conjunto da obra m acha­
diana. O que aqui vimos não passa de um aperitivo. Desse
modo, no artigo sobre G arrett, Machado definiu Álvares de
Azevedo: “era o nosso aperitivo de Byron e Shakespeare” (III,
p. 931). Mais um a vez, Machado sugere um a afinidade sur­
preendente do modelo clássico com um a fisiologia da leitura,
ensaiada na dedicatória de Brás Cubas: “ao verme que prim ei­
ro roeu as frias carnes do m eu cadáver” (I, p. 511).
Hora de recuar no tempo, a fim de observar a técnica da
emulação em seu contexto próprio, o momento pré-românti-
co, num a perspectiva de longa duração.

Por que ser original?

Recordo um autor fundam ental para a revolução Brás Cubas:


Luciano de Samósata, artífice dos m ais ilustres da sátira
menipeia, gênero im portante para o trânsito do M achadinho
ao Machadão, na eloqüente fórm ula de Augusto Meyer. Autor
de paródias implacáveis, Luciano bem poderia ter sido inclu­
ído na nota “Ao leitor” das M emórias póstum as.
Em exercício retórico valioso para essa discussão, “Zêuxis
ou Antíoco”, Luciano lança mão dos exemplos do lendário
pintor grego e do rei dos selêucidas. Ambos lam entavam ,
respectivam ente, a fam a de sua arte e o elogio pelo triunfo
num a batalha. A questão central dizia respeito ao tipo de
reconhecim ento desejado por um artista ou por um hom em
público. Os adm iradores de Zêuxis concentravam-se no as­
pecto nada convencional do tem a de seus quadros: é como
se somente valessem pelo peso do inesperado. Desse modo,
negligenciavam-se o dom ínio da técnica e a diversidade da

162
I' ilheta do artista. Os súditos de Antíoco louvavam o sobe-
i .mo por um a vitória improvável contra o exército dos gála-
( is. mais num eroso e bem preparado. O im previsto triunfo
.('»loi possível porque as hostes inimigas foram surpreendidas
I «i*lo emprego de 16 elefantes, arm a secreta do rei; atônitos,
os gálatas bateram em retirada. Ora, general algum deseja
•.cr lembrado por um êxito no qual sua coragem ou sua es-
h.itégia pouco contaram . Nem todo aplauso recom pensa:
.r.sinalar corretam ente o m érito é mais im portante do que
Minplesmente aclam ar um criador ou celebrar um general.
C.iso contrário, o louvor se converte em m enosprezo dos
I raços que realm ente distinguem o hom em de talento ou o
cstratego.
Luciano sentiu na pele a am bigüidade de determ inados
ro te iro s de c o n sag ra ç ão ; d ile m a b em c o n h e cid o do
Machadinho. Após proferir um discurso, os ouvintes o cerca­
ram e, cheios de admiração, louvavam “o inusitado de meus
escritos e sua grande originalidade”.38 Luciano aborreceu-se
com a homenagem, pois am esquinhava o valor de seu traba­
lho. Trata-se de sentim ento talvez incompreensível para ou­
vidos acostumados à inflação rom ântica do gênio e da cria-
lividade, cuja base se encontra na imagem do artista como
iudivíduo dotado de subjetividade autônoma, capaz de criar
sem recorrer a convenções retóricas. Já a justificativa irritada
do autor de Uma história verdadeira ilum ina o panoram a cons-
tituído pelo sistem a literário anim ado pela associação de
imitatio e aemulatio:

Luciano de Samósata. “Zêuxis o Antíoco” Obras. Vol. III. Tradução de Juan


Zaragoza Botella. Madri: Editorial Gredos, 2002, p. 293-294. Nas próxim as
citações, anotarei apenas a página da ocorrência.
Agora o resultado é que o único m érito dos meus escritos é
que não são convencionais, tam pouco seguem as pegadas dos
outros. Assim, o vocabulário, belo por si só, composto de acor­
do com as normas tradicionais, ou a agudeza do pensam ento,
ou a boa construção, ou a arte em todo seu conjunto, talvez não
se relacionem com m in h a obra. (p. 294, grifos meus)

Luciano sentiu-se desvalorizado pela referência exclusiv.i


à originalidade do estilo. E tinha toda razão: enfatizá-la sig
nificaria dizer que não seguia as pegadas dos outros, ou seja,
seu engenho não seria composto de acordo com as normas tradi­
cionais, e, ainda mais grave, ele desconheceria a arte em todo
seu conjunto. Sublinhar somente a originalidade eqüivaleria a
julgar o escritor um ingênuo, pouco fam iliarizado com a tra­
dição. A correta apreciação da agudeza de Luciano exige que
o leitor ou o ouvinte saibam reconhecer o modelo imitado, a
fim de m elhor saborear a dicção paródica da emulação. Se o
público desconhece a referência literária, a ironia se perde,
pois ela é um a potência de sentido que demanda o concurso
do ouvinte ou do leitor para se atualizar. Só assim a sátira de
Luciano adquire plena força. Na “Teoria do m edalhão”, conto
publicado na Gazeta de Notícias em 18 de dezembro de 1881, e
reunido no ano seguinte em Papéis avulsos, Machado acerta
em cheio ao definir a ironia: “esse movimento ao canto da
boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da deca­
dência, contraído por Luciano, transm itido a Swift e Voltaire,
feição própria dos cépticos e desabusados” (II, p. 294). A m en­
ção a Luciano, no contexto do meu raciocínio, significa tirar
o passaporte para época muito anterior ao Brasil do Segundo
Reinado. À volta do quarto, flanou Xavier de Maistre; Machado
foi mais ambicioso, e, sem sair do lugar, viajou “à origem dos
séculos” (I, p. 520), rum inando a tradição literária como quem
deseja assenhorear-se da arte em todo seu conjunto.

164
Ia 1 ambição levou o autor-operário, na advertência de
i . Airreição (1872), a ecoar o modelo de Luciano, recusando o
ipia uso irrefletido:

() que eu peço à crítica vem a ser — intenção benévola, mas


expressão franca e justa. Aplausos, quando os não fundamenta
o mérito, afagam certam ente o espírito, e dão algum verniz
de celebridade; mas quem tem vontade de aprender e quer
lazer algum a cousa, prefere a lição que melhora ao ruído que
lisonjeia. (I, p. 116, grifos meus)

No sistem a literário anterior à revolução rom ântica, o


ilesejo de ser original seria propriam ente indecoroso. Apenas
ii ni ignaro leitor alm ejaria ser idêntico a si mesmo, em lugar
de enriquecer-se com a contribuição m ilionária do acerto dos
demais. Somente o dono de um a biblioteca m agra pode ilu­
di r-se com o ineditismo de seus pequenos achados. O parado­
xo é que, segundo o juízo de Q uintiliano, quanto m enos
preparado, mais loquaz se revela o tribuno (de igual modo,
quanto menos cultivado, mais “criativo” se julga o escritor);

Por conta disso tam bém os oradores sem instrução parecem,


entrem entes, possuir maior abundância verbal, já que dizem
tudo quanto é coisa; no instruído, há não só seletividade, mas
tam bém medida.39

A seleção adequada de modelos dem anda convívio estrei­


to com um conhecim ento coletivo, constituído por lugares-

39 Cito a p a rtir da tradução de Beatriz Avila Vasconcelos. Ciência do dizerbem.


A concepção de retórica em Q uintiliano em Institutio Oratória, II, 11-21. São
Paulo: H um anitas, 2005, p. 107, grifos meus. A passagem citada foi extraída
de Institutio Oratória, II, 12,6. Nas próxim as citações, ano tarei apenas a pá­
gina da ocorrência.

165
comuns, cuja reunião articula um a tópica, acessível a todo
a sp ira n te a hom em de letras. O sentido de proporção se
aprim ora pela necessidade de em pregar critérios seletivos, a
fim de dar conta do repertório a ser inicialm ente im itado e,
então, emulado. A emulação envolve a imitação de modelos a
p a rtir de um a proporção exata: carência de emulação produzi­
ria meras cópias ; excesso de emulação engendraria objetos p ro ­
priam ente incomunicáveis. Esse procedim ento ajuda a entender
as palavras de Luciano: “não pensava em atribuir tão grande
parte à novidade, pois esta, à m aneira de acessório, contribui
ao adorno” (p. 294). O escritor consciente de seu ofício consi­
dera a busca absoluta do novo um falso problem a, pois o
desafio m aior consiste em contribuir para o enriquecim ento
da tradição na qual se insere. Caso contrário, abre o flanco à
ressalva severa de Horácio: “Se não posso nem sei respeitar o
dom ínio e o tom de cada gênero literário, por que saudar em
m im um poeta? por que a falsa m odéstia d e preferir a ignorân­
cia ao estudo?” (p. 57, grifo meu).
Machado com preendeu bem a diferença entre o “a rtista ”
e o “hom em de talento”. “O habilidoso” é o título de um de
seus contos, publicado em 1895, na Gazeta de Notícias, e não
reunido em livro pelo autor. Nele, um jovem promissor, João
Maria, particu larm en te dotado para a pintura, não soube
converter o dom em obras de arte significativas. O motivo é
simples: “Toda arte tem um a técnica; ele aborrecia a técnica,
era avesso à aprendizagem , aos rudim entos das coisas” (II, p.
1.051, grifo meu). O artista som ente se realiza ao triu n fa r
sobre o artesão talentoso; no fundo, o artista não se desen­
volve em virtude de seu talento, mas ao resistir à facilidade
proporcionada pela vocação. Nesse horizonte, recupera-se a
etimologia: o a rtista deve antes de tudo conhecer bem as
regras do ofício, pois dizem o m esm o as palavras técnica

166
|ii'i liné) e arte (ars). Não se trata de afiançar normas imutáveis,
•*nlelididas como “leis da a rte ”, porém de dom inar o modo
■Ir lazer definidor de um a prática específica. No final do
Minio, o habilidoso limita-se a copiar repetidam ente o mesmo
<|u.icl 1*0 , restringindo suas aspirações a um quase nada: “Que
r\te é o últim o e derradeiro horizonte de suas ambições: um
I*«i o e quatro m eninos” (II, p. 1.054). 0 beco sem saída não
m■explica pela circunstância periférica de João Maria, como
.«■fosse um a m etáfora previsível da vida cultural nos tristes
liopicos. De jeito nen h u m : se o habilidoso se cham asse
|ean-Marie, vivesse na Meca das artes no século XIX, e ainda
i'.sim ignorasse que toda arte tem um a técnica, o melancólico
líual seria idêntico.
Em “O anel de Polícrates”, saído na Gazeta de Noticias, em
de julho de 1882, e reunido no mesmo ano em Papéis avulsos,
o motivo reaparece na figura de Xavier, hom em de rara apti-
tl.io verbal, capaz de inventar fórm ulas espirituosas e frases
definitivas com a naturalidade de um a respiração. Porém,
nunca chegou a publicar um livro, um ensaio, um conto, nem
sequer um breve artigo de jornal. A razão da paradoxal este-
n 1idade anuncia, pelo avesso, a singularidade da trajetória
artística e intelectual de Machado. Eis a caracterização do
personagem:

Era um saco de espantos. Quem conversava com ele sentia


vertigens. Imagine uma cachoeira de ideias e imagens, qual mais
original, qual m ais bela, às vezes extravagante, às vezes
sublime. Note que ele tin h a a convicção dos seus mesmos
inventos. (II, p. 329, grifo meu)

Sem o aprendizado laborioso da técnica, como superar os


dois principais obstáculos experim entados por Xavier? São

167
dificuldades sintomáticas: “A prim eira é que era impacicin*,
não sofria a gestação indispensável à obra escrita. A seguiuI.»
é que varria com os olhos um a linha tão vasta de coisas, que*
m al poderia fixar-se em qualquer delas” (II, p. 330). Nesse
panoram a autoindulgente, quanto m aior o talento, menoi .1
capacidade de realização! Melhor dito: talento não aprimora
do pela disciplina e pelo estudo.
Trata-se de perfil sem elhante ao do imprevisível Elisiário,
do conto “Um erradio”, publicado em A Estação, em 1894, e
coligido em Páginas recolhidas (1899). A descrição do persona
gem vale por um tratado sobre a vida literária no universo
dos m edalhões da prosa m achadiana:

Não era form ado em coisa nenhum a, posto estudasse enge­


nharia, m edicina e direito deixando em todas as faculdades
fama de grande talento sem aplicação. Seria bom prosador, se
fosse capaz de escrever vinte m inutos seguidos; era poeta de
improviso, não escrevia os versos, os outros é que os ouviam
e transladavam ao papel, dando-lhe cópias, m uitas das quais
perdia. (II, p. 586, grifo meu)

O desfecho de Elisiário é 0 mesmo do habilidoso João Maria


e do profuso Xavier: “Já raro improvisava, e, como não tin h a
paciência para compor escrevendo, os versos iam escasseando
mais. Já lhe caíam frouxos; 0 poeta repetia-se (II, p. 596, grifo
meu). A habilidade que se satisfaz na contemplação narcísea
de suas próprias capacidades, em lugar de investir na lapida­
ção diária do talento, é criticada e até ridicularizada nos
contos de Machado. C om preender a relevância do tópico
eqüivale a radiografar 0 projeto do autor de “O alienista”.
O divórcio entre 0 artista disciplinado e 0 aspirante dis­
plicente revela a verdadeira poética m achadiana, explicitan-

168
| h eus princípios acerca da tarefa do inventor. Machado
eui'l< Ha o motivo com frequência nos mais diversos gêneros:
fniitn, romance, sem deixar de lado a crônica e a crítica. Não
i inlade que Bento Santiago tam bém se m ostrou sensível à
i-11 Io menor esforço? No segundo capítulo de Dom Casmurro,
li l.-1 •mfessa que desistiu de redigir um a H istória dos subúrbios
imn o ma causa prosaica: “era obra modesta, mas exigia docu-
in. nlos e datas como prelim inares, tudo árido e longo” (I, p.
HO. grifo meu). A antecipação do esforço necessário para
11 .msformar a intuição em obra somente provoca bocejos nos
iiiiimeros habilidosos da ficção m achadiana: eis a origem do
Ir.u/asso que invariavelm ente os acompanha.
líssa circunstância ajuda a deslindar os elementos funda­
dores do sistem a literário Machado de Assis: estudo atento da
11 adição; domínio da técnica; lapidação do talento; disciplina.
A contrapelo do padrão usualm ente celebrado do dom espon-
taneo e prolífico, Machado passou a vida polindo sua arte:
cm lugar do fácil e do imediato, o autor de Quincas Borba levou
a sério a imagem do artista-operário.
O tem a retorna obsessivamente, constituindo motivo de­
term inante, autêntica visão do mundo. M achadinho se tra n s­
forma em Machado ao entender que, sem o domínio da ars,
imitatio nunca se transm uda em aemulatio.

Novidade? Talvez,.,

O escritor consciente de seu ofício precisa ir aos rudimentos


das coisas, realizando a imitação com o objetivo de proporcio­
nar variações no gesto de com binar elementos preexistentes.
Sem dúvida, ele almeja a novidade, mas é preciso com preen­
der bem o sentido atribuído ao termo.

169
Hora de retornar a Luciano, recordando seu texto Como se
deve escrever a história, o único opúsculo sobre o tem a que foi
preservado da Antiguidade Clássica, m uito lido e comentado
no Renascimento. O leitor apenas pode apreciar o ensaio ao
identificar o alvo das críticas: os autores prévios e contem po­
râneos que se dedicaram à escrita do mesmo gênero. Repito,
pois o ponto é decisivo: no sistema literário desenvolvido com
base na relação entre im itatio e aemulatio, os ouvintes ou lei­
tores idealmente dom inavam o mesmo repertório. Tal reper­
tório articulava um conhecimento objetivo, transm itido nas
instituições de ensino, exercitado em ocasiões públicas, au­
têntico cartão de visitas de pertencim ento a determ inado
nível cultural. Os poemas homéricos, em suas passagens mais
famosas, eram ensinados nas escolas rom anas e aprendidos
de cor. Desse modo, tanto a escrita quanto a leitura favoreciam
um exercício lúdico de alusões àquele repertório coletivo,
incluídas no processo as transform ações a que era submetido.
Por exemplo, Virgílio sabia que os seus leitores identificariam
as referências aos poemas homéricos, podendo assim avaliar
o êxito de sua aemulatio. Na composição da Eneida esse fator
já se encontrava integrado à fatu ra do poem a. O caráter
bem -sucedido de sua em ulação tran sfo rm o u V irgílio em
poeta que tam bém deveria ser emulado. Na Idade Média,
muitos de seus textos ganharam notação musical, pois eram
cantados nas escolas — um a técnica comum de memorização.
Em relação à escrita da história, Luciano adota como mo­
delos exemplares, ou seja, autoridades no gênero, Heródoto e
Tucídides. Portanto, para ser considerado autor na escrita da
história era preciso aprender os procedimentos adotados e os
temas discutidos pelos dois. Ignorar a auctoritas dos modelos
significaria a exclusão imediata do sistema literário; exclusão

170
■I-1. .cria levada a cabo pelos receptores, pois eles conheceriam
i*i Histórias e A história da Guerra do Peloponeso, e, por isso, re-
■m,i nain direito de cidadania a um auctor cuja obra revelasse
in. nosprezo pela autoridade do gênero escolhido. Essa autori-
■l-i. Ie não é resultado de juízo individual, mas norma coletiva,
. .1ijet ivamente empregada como um a espécie de língua franca
no universo da emulação.
Talvez o leitor esteja pensando: em tal sistema, altam ente
regrado, como preservar a busca da “novidade”? Como enten-
. li i seu papel no discurso de Luciano, se ela, à maneira de
iii cssório, contribui ao adorno ? Apenas isso?
Mantenho o método da descrição densa: para entender
I uciano, nada m elhor do que recorrer à leitura de Como se
deve escrever a história:

Li se tenho de nom ear um sábio, deixarei seu nome no ano­


nimato, porém falarei de sua m entalidade e de seus escritos
recentes em Corinto, que superaram toda expectativa. (...)
Lira igual que Crepereio, exceto que Crepereio era um a cópia
perfeita de Tucídides, ao passo que este imitava Heródoto
muito bem.
Outro, renom ado por seu poder oratório, era igualmente
parecido a Tucídides ou inclusive um pouco melhor do que ele.
(p. 238-239, grifos meus)

Já conhecemos a fórmula que atencipa a equação m acha­


diana: quem imita é original, desde que seja homem de talen­
to, nunca mero copista. Luciano pinta com satisfação evidente
a caricatura de Calpurniano de Crepereio, pois, como cópia
perfeita de seu modelo, revela incúria na submissão à auctoritas
atribuída a Tucídides, ao passo que seu mestre imitava Heródoto
muito bem, não se esquecendo de emulá-lo. Por isso, o historia­
dor anônimo, parecido, mas inclusive um pouco melhor do que

171
Tucídides, seria propriam ente um auctor, buscando im prim ir
sua diferença no âmbito da necessária repetição inicial.
Eis a resposta à pergunta sobre a novidade: trata-se, por
certo, de buscar o novo, ou a cópia im peraria. Porém, não se
confunde novidade com ruptura traum ática, mas com acu­
mulação de alternativas num a arte combinatória, cujo poten­
cial de variações é na prática infinito. A percepção desse
tem po cultural nada tem a ver com o sentido linear, domi­
nante após o Ilum inism o, que implica a superação de etapas
prévias como pressuposto naturalizado da noção de progres­
so. No dom ínio da emulação, o gesto de escrita e o ato de
leitura dem andam a apreensão sim ultânea de tempos histó­
ricos diversos. Tal sim ultaneidade estim ula apropriações
anacrônicas, tornadas produtivas através do caráter sincrô-
nico dos atos de leitura e de escrita.

(É como se o desenho das Memórias póstum as de Brás Cubas


começasse a ser definido no resgate m achadiano da aemulatio.)

Xadrez, música e ficção

No “Sermão da Sexagésima”, proferido na Capela Real de


Lisboa, em m arço de 1665, Antonio Vieira aludiu à arte com­
binatória do sistem a retórico. Após com parar o pregar e o
semear, observou a diferença decisiva:

Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregado­


res fazem o serm ão em xadrez de palavras. Se de um a parte
há-de estar branco, da outra há-de estar negro; se de um a
parte dizem luz, da outra hão-de dizer sombra; se de um a
parte dizem desceu, da outra hão-de dizer subiu.40

40 Antonio Vieira, “Sermão da Sexagésima”, in Sermões, p. 22, grifos meus.

172
I I<<in isso: o universo da im itatio e da aemulatio recorda
i» i ilmleiro de xadrez: se de um a p arte há-de estar branco, da
i "d Iia ilc estar negro.41 Em suas 64 casas, 32 peças obedecem
• vImentos predeterm inados e a regras preestabelecidas.
! i aberturas e nas defesas mais estudadas, como é o caso
■i i Abert ura Ruy Lopez ou da Defesa Siciliana, os prim eiros
lmi cs devem ser decorados, pois um a autêntica legião de
c ii I idas anteriores foi cuidadosamente exam inada e devida-
ii mnte codificada, criando um repertório comum, a que todo
■n .idrista de certo nível deve recorrer. Um jovem que confie
•Inuais no seu talento dificilm ente derrotará um adversário
ii H-díocre, mas em dia com as últim as contribuições teóricas.
I ,\r habilidoso bem pode ser um m enino que ainda não co-
111 íeça os enxadristas do verbo, ainda não tenha sido apresen-
i.ido a Vieira, Camões ou Machado. Não importa: se ele for
.i| >aixonado pelo jogo, e não pela vitória, sempre há o momen-
i <i em que os cálculos táticos são interrom pidos e a estratégia
c deixada de lado. Nesse instante, impõe-se a pura beleza da
.1 rle combinatória e o jovem talentoso finalm ente com preen­
de1o jogo no qual se encontra — nas casas de cores alternadas
ou na página em branco.
0 futuro autor das Memórias póstum as estaria de acordo. 0
xadrez é um a referência im portante na sua obra. Em Iaiá
Garcia, o nam oro de Jorge com a filha de Luís Garcia é m edia­
do por peões, cavalos, torres, bispos e, claro, reis e damas. A
conclusão do narrador é um xeque-mate: “Das qualidades
necessárias ao xadrez, Iaiá possuía as duas essenciais: olho de

Na seqüência do raciocínio, Vieira advoga outro norte para a a rte de


pregar. Anoto o ponto, mas me concentro na analogia entre o jogo de xadrez
e a aemulatio. Vieira esclarece sua posição: “Basta que não havemos de ver
num sermão duas palavras em paz? Todas hão-de estar sem pre em frontei­
ra com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição, e tam bém
o das palavras. As estrelas são m uito distintas e m uito claras. Assim há-de
ser o estilo da pregação; m uito distinto e m uito claro” (ibidem).
guia e paciência beneditina; qualidades preciosas na vida, que
tam bém é um xadrez, com seus problemas e partidas, umas
ganhas, outras perdidas, outras nulas” (I, p. 464). A analogia
é tentadora, mas tem limites. E por um motivo simples: a vida
não é exatam ente um jogo de xadrez, pois, no dia a dia, nem
sempre as regras são obedecidas, m uito em bora ninguém
possa escapar ao xeque-mate final que a todos vence.
0 Conselheiro Aires talvez discordasse. Ele costum ava
arm ar-se para o convívio social como se antecipasse os lances
do adversário, num complexo jogo de idas e vindas: “Ouvi
todas essas m inúcias e ainda outras com interesse. Sempre
me sucedeu apreciar a m aneira por que os caracteres se ex­
prim em e se compõem, e m uita vez não me desgosta o a rra n ­
jo dos próprios fatos. Gosto de ver e antever, e também de concluir”
(I, p. 1.162, grifo meu). Não im porta; afinal, a contradição é
inerente à disputa: se de um a parte dizem luz, da outra hão-de
dizer sombra.
Machado tam bém compôs problemas de xadrez, geralmen­
te os de tipo mais singelo: As brancas jogam e dão m ate em dois
lances. Porém, um problema composto por poucos elementos
pode ser m uito sofisticado, na economia de recursos caracte­
rística de sua prosa. Não é verdade que um romance como
Dom Casmurro se assem elha a um quebra-cabeça sem solução?
Ou a um a partida de xadrez, cujo xeque-mate fosse precisa­
m ente a impossibilidade de concluí-la?

* * *

Uma digressão-síntese sobre o possível vínculo entre téc­


nica da aemulatio e a arte combinatória enxadrística.

Machado: o enxadrista da ficção?

174
(A forma de lidar com o leitor: lances arriscados num jogo
•Ir xadrez imaginário.)

Ou: o resgate sistemático da aemulatio como movimento


Inspirado num a posição difícil?

(Jogando com as peças pretas, Eça ameaçou xeque-mate


«•iii dois lances: 0 crime do padre Am aro e 0 prim o Basílio.)

Ainda: M emórias póstum as de Brás Cubas: o mais bem-suce­


dido gambito da literatura brasileira?

(Wilhelm Steinitz, criador da m oderna concepção do jogo,


v.ostava de repetir: “o xadrez não é para tím idos”. No vocabu-
liirio deste ensaio: “o xadrez não é para M achadinhos”.)

E não é tudo: o prim eiro torneio de xadrez realizado no


Brasil teve lugar no Rio de Janeiro e contou com seis partici­
pantes; entre eles, Machado de Assis, que obteve um honroso
terceiro lugar. O cam peonato aconteceu em 1880, ano de
publicação das M emórias póstum as de Brás Cubas.
De M achadinho a Machadão: como disse Augusto Meyer.
Acrescento: trân sito decidido como se disputasse um a
imprevisível partida de xadrez consigo mesmo.
Xadrez de palavras. E tam bém de lugares-com uns, e de
tópicas, e de procedim entos codificados, e de v arian tes
m últiplas, e de arm adilhas tex tu ais, e de cálculos de coisas
fu tu ra s.

* * *

175
A técnica da aem ulatio com partilha afinidades estruturais
decisivas com o jogo de xadrez.
E tam bém com a música, outra paixão de Machado. O tema
poderia ensejar um novo livro, tal a onipresença das referên­
cias à m úsica na obra m achadiana.42 Em algum a medida,
Machado define sua poética em textos cujo protagonista é a
música mesma, ou músicos, sempre às voltas com um cruza­
m ento tenso entre música erudita e manifestações populares.
Penso nos contos “O m achete” (1878), “Cantiga de esponsais”
(1883), “Cantiga velha” (1883), “Trio em lá m enor” (1886), “Um
hom em célebre” (1888).
Nesse sentido, é possível surpreender um a confissão do
autor na pena do Conselheiro Aires: “A música foi sempre
um a das m inhas inclinações, e, se não fosse tem er o poético
e acaso o patético, diria que é hoje um a das saudades. Se a
tivesse aprendido, tocaria agora ou comporia, quem sabe?” (I,
p. 1.142). O mesmo conselheiro define o perfil de Flora em
Esaú eJacó (1904): “A música tin h a para ela a vantagem de não
ser presente, passado ou futuro; era um a coisa fora do tem po
e do espaço, um a idealidade pura” (I, p. 1.036). Essa descrição
é um a autêntica fotografia da personagem, cujo caráter etéreo
atravessa a narrativa, desorientando a todos: o conselheiro,
e, por certo, os irreconciliáveis gêmeos, Pedro e Paulo. A
música desem penha função constitutiva no enredo, ajudando
a definir o perfil de Flora. Já no M emorial de Aires (1908), a
nomeação do casal protagonista, Fidélia e Tristão, homenageia
óperas de Beethoven e Wagner. Aliás, Machado foi membro
ativo do Clube Beethoven e, em sua juventude, envolveu-se

42 Trata-se de projeto a ser desenvolvido em breve: um ensaio dedicado ex­


clusivam ente à relevância da música na visão do m undo e na literatu ra de
Machado de Assis. Carlos W ehrs escreveu um livro-chave para o tem a:
Machado de Assis e a magia da música. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.

176
ii.is querelas a favor desta ou daquela soprano; Machado foi
partidário fervoroso de Augusta Candiani.
lisqueço a im pertinência dos fatos e me concentro no as­
pecto estrutural.
A escala musical, com sua seqüência ordenada de tons,
limitada por um núm ero predeterm inado de notas, recorda
um tabuleiro de xadrez, embora, por assim dizer, com quan-
I ulade inferior de casas e de peças. Ainda assim, as variações
possíveis da escala musical são na prática infinitas. O rendi­
mento ficcional dessa noção leva longe.
Recordem-se as palavras cortantes de Hamlet, desaconse­
lhando Guildenstern a seguir as ordens do rei;

— Ora, vede que coisa desprezível fazeis de m im . Pretendíeis


que eu fosse u m in stru m e n to em que poderíeis to car à
vontade, por presum irdes que conhecíeis m inhas chaves.
Tínheis a intenção de p en etrar no coração do m eu segredo,
para experimentar toda a escala dos meus sentimentos, da nota
mais grave à mais aguda. No entanto, apesar de conter este
instru m en to bastante música e de ser dotado de excelente
voz, não conseguis fazê-lo falar. Com a breca! Im aginais,
então, que eu sou m ais fácil de tocar do que esta flauta? (p.
578, grifo meu)

Ora, im aginar que “todas as histórias já foram contadas”,


ou “todos os modos de narrativa já foram explorados”, é um
lugar-comum que a literatura de um autor-enxadrista-músi-
co como Machado ajuda a superar. No universo da arte com-
binatória, sempre se podem encontrar variações que ainda
não foram exploradas. Afinal, nunca se pode experim entar
toda a escala dos (...) sentimentos, da nota mais grave à mais aguda.
Autêntica p a rtitu ra, o texto m achadiano da segunda fase
exige um leitor que seja capaz de acionar sua potência.
Tudo se esclarece: aemulatio, xadrez e música são formas
da arte combinatória, experiências de pensam ento que apren­
demos a denom inar m achadianas.

(Machado descobriu um vínculo im aginário entre música,


xadrez e a técnica da aemulatio, tornando essa possibilidade
um dos móveis de sua ficção.)

Auctoritas

A equivalência entre organização retórica e mecanism o m en­


tal implícito no jogo de xadrez e na música pode ser depre­
endida da ressalva de Quintiliano:

De fato, a retórica seria inteiram ente fácil e de pouca m onta


se fosse formada por um único e breve código de preceitos;
no entanto, muita coisa é modificada conforme a causa, omomen­
to, a ocasião, a necessidade. Assim, o que m ais conta num
orador é o expediente, por perm itir-lhe adaptar-se de modo
diversificado à diversidade da realidade momentânea, (p. 110,
grifos meus)

O orador — e o mesmo raciocínio é válido para o escritor


— dispõe de modelos predeterm inados que devem ser obede­
cidos. No entanto, esses códigos, fixados por um a gram ática
de usos, legitim ada por convenções letradas, vigentes em
determ inado período histórico, não se confundem com um a
camisa de força, cuja função seria assegurar a repetição in­
finita, e infinitam ente tediosa, de idêntico discurso. Se assim
fosse, todas as partidas de xadrez term inariam empatadas,
todas as notas musicais reproduziriam a mesma melodia e
todos os cálculos m atemáticos resultariam num a previsível

178
.... a zero. Uma vez que se adotam certas regras como ponto
•Ir partida necessário, é virtualm ente infinita a capacidade de
ulaptar-se a circunstâncias particulares.
Como nenhum ator bem formado ignora, a espontaneida-
iIr clo improviso exige a exaustão de ensaios interm ináveis.
IJm exemplo se impõe. Talvez dois ou três.
Para o gênero épico, Homero sempre foi auctoritas incon-
lornáveL Na cultura latina, submeter-se às prescrições desse
i-« uero significava, no m ínim o, principiar pela imitação da
lluida e da Odisséia; quem não o fizesse seria julgado inepto e,
como tal, desconsiderado como poeta. Na palavra lhana de
I lorácio: “Homero m ostrou qual o ritm o apropriado à n arra­
ção dos feitos dos reis e capitães nas guerras funestas. (...)
(.'uarde cada gênero o lugar que lhe coube e lhe assenta” (p.
57). O cam inho de Virgílio, portanto, era seguir o passo a
passo da tecnicidade da imitação, um a vez que a im itatio é
um a ars, u m m odo específico de re a liz a r u m a tare fa .
Precisamente o que não se pode dizer do Elisiário ou do Xavier
dos contos machadianos.
A questão da auctoritas foi central num a literatura como
a latina, cuja prim eira m anifestação de peso é a obra de um
tradutor, Lívio Andrônico, conhecido pela tradução da Odisséia.
É como se retornássemos, cronologicamente às avessas, ao “im ­
perativo da tradução”. É como se surpreendêssemos traços de
um a afinidade estrutural entre a circunstância cultural la­
tina e a condição histórica latino-americana; não hegemôni­
ca, em geral. Ou devo dizer circunstância latino-americana?
A relação dos rom anos com o m undo grego conheceu
peculiaridades que devem ser consideradas. A c u ltu ra la­
tin a nunca foi exatam ente não hegem ônica, pois, para os
rom anos, im ita r e em u lar os gregos fazia p arte do direito
de tom ar o espólio dos vencidos. Na época de Virgílio, os

179
rom anos já rivalizavam poeticam ente com os gregos em
igualdade de condições.
Por isso, não busco compor um a narrativa histórica com
base num a continuidade idealizada e de longa duração; aliás,
de longuíssim a duração! Uma diferença inviabiliza o projeto
no nascedouro: a circunstância cultural latina tornou-se não
apenas hegemônica, mas tam bém im perialista, enquanto a
condição latino-am ericana define-se antes pela secundidade
em relação às “grandes nações pensantes”. Do ponto de vista
de política cultural destaca-se a descontinuidade entre as duas
experiências.
Contudo, insisto na ideia da afinidade estrutural, compre­
endida no nível dos procedimentos artísticos e intelectuais.
A história da emulação na obra de Virgílio é sobejamente
conhecida e seus volumes ocupariam lugar proem inente na
biblioteca im aginária de Jorge Luis Borges, pois o M antuano
foi autor de peso na sua concepção de literatura. Eu nada
poderia aduzir à m iríade de passagens escrutinadas pelos
especialistas em busca do Santo Graal da aemulatio virgiliana.

(Em relação ao que não se pode acrescentar, é preciso calar


— diria W ittgenstein, se fosse crítico literário.)

Permito-me apenas sublinhar um dado compositivo, ao


qual Machado parece aludir em Esaú e Jacó.
Os seis prim eiros cantos da Eneida dão conta da fuga de
Eneias, após a derrota de Troia, e de suas viagens rum o à
península itálica. Os seis últim os n a rra m as guerras e os
triunfos que m oldaram o Império Romano. Vale dizer, num
único poema, Virgílio se apropria sim ultaneam ente da Odisséia
e da Ilíada; nessa ordem, das peripécias de Ulisses e do episó­
dio da guerra de Troia. Se a capacidade de concentração de
lòrmas e de tem as fosse a regra de ouro para decidir do êxito
cia aemulatio, Virgílio seria o mais bem-sucedido. Aliás, como
vimos, a fo rm a da concentração foi o método de Eça em sua
i (.‘escrita de Flaubert.
No que se refere a Machado, reitero a proposta de um a
afinidade estru tu ral entre a circunstância latina em relação
à Grécia e a circunstância latino-am ericana oitocentista em
relação à Europa: em ambos os casos, foi preciso p a rtir de um
sentimento de inferioridade cultural.
O êxito da aemulatio virgiliana produz o efeito que inte­
ressa assinalar na leitura da obra m achadiana: adotando o
modelo homérico, o poeta latino se transform ou em auctori-
tas no gênero épico. No Renascimento, Virgílio desfrutou de
grande prestígio, chegando mesmo a ser mais apreciado que
seu mestre. A Eneida, assim, converteu-se em autoridade in­
dispensável. Não surpreende que os prim eiros versos de Os
Lusíadas não busquem em ular a Ilíada ou a Odisséia, mas sim
a Eneida. O próprio título do poem a de Camões o sugere: a
palavra lusíada nem um a só vez aparece no poema. O título
paga tributo a Virgílio e, ao mesmo tempo, o emula: assim
como Eneida celebra os feitos de Eneias, Os Lusíadas cantam
as conquistas do povo português, e não apenas as façanhas
de Vasco da Gama: há um a ampliação de escopo histórico que,
traduzida poeticam ente, estim ula a empresa cam oniana. O
êxito de sua aem ulatio fez com que Camões tam bém se con­
vertesse em auctoritas. Bento Teixeira, por exemplo, ao redigir
a Prosopopeia, impressa em 1601, tom a como objeto de em u­
lação não Homero, tam pouco Virgílio, mas o próprio Camões.
Nada impede que um autor, principiando pela im itatio e,
sendo bem -sucedido no m om ento posterior da aem ulatio,
transform e-se em auctoritas. A atualização deliberadam ente
anacrônica desse procedim ento vale por um a declaração de

181
independência por parte de autores de contextos não hege­
mônicos, pois a condição de secundidade deixa de ser obstá­
culo intransponível, convertendo-se no prim eiro passo, ne­
cessário, do processo artístico. Releia-se, nesse contexto, a
carta de Eça a Machado, na qual se m enciona a prim eira
parte da crítica a 0 prim o Basílio. O leitor terá um a nova m is­
siva sob os olhos: “esse artigo, pela sua elevação e pelo talen­
to com que está feito, honra o meu livro, quase lhe aum enta a
au to rid a d e” (p. 227, grifo meu). O vocabulário escolhido é
perfeito, pois a aemulatio queirosiana do modelo flaubertiano
transform ou o rom ancista português em auctoritas incontor-
nável no universo lusófono.
Machado o entendeu perfeitam ente.
Daí sua reação acre.
Universo lusófono, eu disse. As fronteiras são claras e
devem ser assinaladas. A poética da emulação é um a respos­
ta subjetiva de grande inteligência estética, mas ela não alte­
ra condições objetivas de desequilíbrio estru tu ral nas trocas
simbólicas. Esse ponto é decisivo, caso contrário, seria inevi­
tável incorrer em elogios constrangedoram ente ingênuos da
condição periférica, pois, ao fim e ao cabo, ela estim ula a
inventividade im plícita nos procedim entos da poética da
emulação.
Para tudo na vida há compensação — pensam alguns.
Não é o m eu caso.
Além disso, volto a assinalar o calcanhar de aquiles de
m inha hipótese. No fundo, reajo às perguntas que provavel­
m ente ocorrem ao leitor: sendo um a “resposta”, a poética da
emulação é fruto “exclusivo” da circunstância não hegemô­
nica? A hierarquia da auctoritas tem como base somente a
assim etria político-cultural ou tam bém envolve um a questão
propriam ente “técnica”? O que diferencia a aemulatio, exer-

182
• ula no âmbito de um mesmo contexto político e cultural, da
l 'i tf tíca da emulação que tenha lugar entre um autor brasileiro
uilocentista e um escritor irlandês setecentista?
Machado, como ele mesmo reconhece na “Nota ao leitor”
d.is M em órias póstum as, emula a Laurence Sterne: aqui, minha
lupótese parece exata; afinal, em princípio, não se questiona
I assim etria que os d e fin e no u n iverso da h ierárqu ica
República das Letras.
For sua vez, e muito próximo ao espírito de Luciano, Sterne
emulou, parodicam ente, a tradição nascente do rom ance
inglês, que estava sendo criada pelos livros de Samuel
Kichardson e Henry Fielding, entre outros. Desse modo, The
Life and Opinions ofTristram Shandy — A Gentleman, cujos dois
primeiros volumes saíram em 1759, parodia títulos anteriores,
ia is como Pamela, or Virtue Rewarded, de Samuel Richardson,
lançado em 1739, e, sobretudo, The History o fT o m Jones — A
Ivundling, de Henry Fielding, publicado em 1749. Fielding já
havia mostrado o cam inho em 1742, com o aparecimento de
Joseph A ndrews, uma divertidíssima releitura de Pamela.
No fin al do Capítulo 4, volto a mencionar as diferentes
concepções de rom ance de Sterne e de Fielding, a fim de
mostrar como Machado as discute na mesma “Nota ao leitor”,
embora o faça de form a críptica. De imediato, assinalo que a
ascensão do romance britânico foi fortalecida pela presença
de um sistema interno de emulação, cuja dinâmica assegurou
a vitalidade do próprio gênero.
Sistema interno de emulação; trata-se de exemplo de prá­
ticas de emulação entre autores pertencentes ao mesmo nível
hierárquico, oriundos de idêntico contexto hegemônico. Em
palavras diretas: pode haver poética da emulação sem que
haja necessariamente relações assimétricas externas de poder

183
simbólico. A aem ulatio, compreendida como prática artística
dom inante no am biente pré-rom ântico, não representava
“ inferioridade”, antes significava um estímulo à invenção.
Assim etria interna, porém, sempre estará presente, uma
vez que a aem ulatio supõe a presença de autores cuja auctori-
tas deve ser reconhecida tanto pelos coetâneos quanto pelos
pósteros, nem que seja um reconhecim ento paródico.
Eis a dificuldade m aior à hipótese que proponho: não se
deve confundir a poética da emulação com uma suposta es­
sência periférica. Pelo contrário, trata-se de um conjunto de
procedimentos que favorece uma estética determinada, que
nada tem a ver co m esta ou aquela latitude. No fin a l do
Capítulo 5 e na conclusão, ofereço uma alternativa a esse
impasse.

Machado-Virgílio?

A situação de um poeta como V irg ílio era complexa, desafia­


dora. Ele necessitava em ular a tradição latina que lhe era
im ediatam ente anterior, mas tam bém o legado helenístico,
e, como se não bastasse, a herança grega clássica. Autêntica
m etoním ia do dilem a de origem da cultura latina, ele preci­
sava tornar produtiva sua relação com o legado da civilização
grega.
A situação de um escritor como Machado de Assis era
desafiadora, complexa. E por razões estruturalmente sim ila­
res às enfrentadas por Virgílio. Um escritor brasileiro, lati­
no-americano, precisava d efin ir produtivamente sua relação
com a cultura ocidental, especialmente em relação às “gran­
des nações pensantes”. Ademais, a p artir áe fevereiro de 1878,

184
i it liado não podia deixar de incluir na equação um contem­
porâneo de língua portuguesa.
l im aparência, missão mais improvável do que a de Virgílio.
No caso de Machado, outra dificuldade se impôs. Como

língua im perial, o latim ocupou uma posição hegemônica


(|ue se estendeu até pelo menos o século XVII, e mesmo par­
le do XVIII, embora o francês começasse a assumir o papel
Iit>je ocupado pelo inglês de moeda lingüística universal. Já
o português nunca deixou de ser uma língua secundária,
mesmo no auge do Im pério Português: uma “ literatura m e­
nor” escrita em português é, por assim dizer, duas vezes
menor. Aritm ética perversa, que não deixou Machado indi-
lerente. Em carta enviada a Joaquim Nabuco, em I o de agos-
lo de 1908, após parabenizar o am igo por suas conferências
em universidades norte-americanas, lamenta a circunstância
da secundidade de seu idioma:

Obrigado por todos e particularm ente pelo que trata do lugar


de Camões na literatura. É bom, é indispensável reclam ar
para a nossa língua o lugar que lhe ca b e, e para isso os serviços
políticos internacionais que prestarem não serão menos im portan­
tes que os pu ra m en te literários. R ealm en te é triste, ver-nos
considerados, com o V. nota, em posição subalterna em rela­
ção à língua espanhola. (III, p. 1.092)

Machado sequer menciona o francês ou mesmo o inglês,


pois, nesse caso, a subalternidade seria inquestionável: em
briga de cachorro grande, o português não entra. É o que diz
a crônica de 11 de outubro de 1896, da série A Semana. Nela,
Machado redige uma carta im aginária à czarina russa e, em
m eio ao exercício ficcional, um dado concreto ocupa o centro
da cena:

185
Czarina, se estas linhas chegarem às tuas mãos, não faças
com o V ítor Hugo, que, recebendo um fo lh eto de Lisboa,
respondeu ao autor: “ Não sei português, mas com o auxílio
do latim e do espanhol, vou lendo o vosso liv ro ”... Não, nem
peço que m e respondas. Manda traduzi-las na lín gu a de
Gógol, que dizem ser tão rica e tão sonora, e em seguida lê.
(III, p. 737)

A pequena vingança, aportuguesar o nome de Victor Hugo,


consola, mas não altera aposição subalterna em relação à língua
espanhola. Outra vez, destaca-se o “im perativo da tradução”,
que tam bém ocupou a atenção de Machado.
A associação entre autor latino e escritor latino-americano
Pode parecer arbitrária, como se impuséssemos a Machado
Os fantasmas de nossas querelas, extraindo de seu texto, com
Pinças hermenêuticas, passagens confirm adoras de nossas
Obsessões.
Mantenho-me, contudo, fiel ao método da descrição densa,
Consultando os escritos do autor.
Em carta enviada a José de Alencar, em 29 de fevereiro de
^869, em resposta à apresentação de Castro Alves feita pelo
^Utor de “Benção paterna”, encontra-se um paralelo interes-
^nte: “ Escolhendo-me para V irg ílio do jovem Dante, isto é,
vate que nos vem da terra de Moem a (...)” (III, p. 896).
^ a c h a d o seria II Duca do poeta das Espum as flutuantes. O pa-
r^ le lo tem seu lado noturno: V irgílio, condutor de Dante no
^ f e r n o e no Purgatório, precisa abandoná-lo na hora de in-
^ e s s a r no Paraíso... Ora, quem seria a Beatriz de Castro Alves?
No conto “O esqueleto”, publicado no Jornal das Famílias,
n^ s meses de outubro e novembro de 1875, o narrador recor-
ao poeta latino na descrição do Dr. Belém, dono de com-
P ^ íta m en to extravagante: “Almoçamos alegremente; o doutor

186
. i .iva como me parecia na maior parte das vezes, conversan-

•t<>de cousas sérias ou frívolas, m isturando uma reflexão


111(jsófica com uma pilhéria, uma anedota de rapaz com uma
■ilação de V irg ílio ” (II, p. 817). Eco dessa disposição peregrina

i dorna em “ Um erradio”. Como vimos, o conto faz troça de


l Iisário, autor de visionários projetos, jamais concretizados,
mas isso é só um detalhe para a legião de habilidosos da pro-

*.a machadiana. Um am igo comenta despretensiosamente

.obre a vida no sertão cearense; de imediato, Elisário im agi­

na a conquista do território: “Colheria tudo, plantas, lendas,


cantigas, locuções. Narrou a vida do caipira, falou de Eneias,

citou V irgílio e Camões, com grande espanto dos criados, que

Itaravam boquiabertos” (II, p. 589-90).

Não atribuo a passagens desse tipo muito mais do que o


vaivém tipicamente machadiano entre o popular e o erudito,
o contemporâneo e o clássico, com a desestabilização oriunda
da própria oscilação. Na medida do possível, o exercício crí-
t ico deve estar à altura da complexidade do autor-matriz, em
lugar de reduzi-lo ao monótono jogo de conjecturas e con fir­
mações das próprias hipóteses.
Para a associação que proponho é importante encontrar,
no texto machadiano, referências mais conclusivas ao autor
da Eneida. E, mesmo que existam, não pretendo apresentá-las
como “evidências”. Eis a ingenuidade divertida de críticos que
acreditam surpreender códigos ocultos, mensagens secretas,
alusões a isto e aquilo, a cuja decifração dedicam meritórios
esforços beneditinos. Como se fosse possível encontrar a cha­
ve do escrito do conjunto da obra machadiana! Meu propósito
é bem outro: sem a pretensão de esgotar a complexidade de
seu perfil, desejo esboçar um novo retrato, partindo das cores
de sua palheta.

187
Nesse espírito, destaco o capítulo XX VI das M em órias pós­
tumas. O jovem Cubas é inform ado dos planos de seu pai: ele
deve casar-se e dedicar-se à carreira política. Indiferente, o
fu tu ro defunto autor lança letras num papel, escrevendo
precisamente os versos da Eneida emulados por Camões nos
prim eiros versos dos Lusíadas: “A rm a virum qu e cano” — “As
arm as e os barões assinalados”, na transcriação do português.
Num a associação livre de ideias, rem iniscente de Sterne,
Cubas joga com distintas possibilidades combinatórias, como
se fosse um adepto avant la lettre da poesia concreta:

(...) ia a escrever virumque, — e sai-me Virgílio, então continuei:

V ir V irg ílio
V irg ílio V irg ílio
V irg ílio
V irg ílio

Meu pai, um pouco despeitado com aquela indiferença,


ergueu-se, veio a m im , lançou os olhos ao papel...
— Virgílio! exclamou. És tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se
justam ente V irgília . (I, p. 549, g rifo meu)

Brás Cubas é V irgílio, e, ainda que seja somente em virtu ­


de de um trocadilho, é m uito significativa a coincidência de
papéis, pois, em Esaú e Jacó, a própria estrutura compositiva
da Eneida parece fornecer o m odelo para caracterizar a riva­
lidade de Pedro e Paulo. No capítulo XLV, adequadamente
intitulado “Musa, canta...”, o Conselheiro Aires procura eno­
brecer a eterna disputa dos irmãos recorrendo à literatura
clássica:

188
No fim do alm oço, Aires deu-lhes uma citação de Homero,
aliás duas, um a para cada um, dizendo-lhes que o velh o
poeta os cantara separadamente, Paulo no começo da Ilíada:
—” Musa, canta a cólera de Aquiles, filh o de Peleu, cólera
funesta aos gregos, que precipitou à estância de Plutão tantas
almas válidas de heróis, entregues os corpos às aves e aos
cães...”
Pedro estava no começo da Odisséia:
— “ Musa, canta aquele herói astuto, que errou por tantos
tempos, depois de destruída a santa ílion...”
Era um m odo de d efin ir o caráter de ambos, e nenhum
deles levou a m al a aplicação. Ao contrário, a citação poética
valia por um diploma particular. O fato é que ambos sorriam
de fé, de aceitação, de agradecim ento, sem que achassem
uma palavra ou sílaba com que desmentissem o adequado
dos versos. (I, p. 1.002)

O conselheiro não menciona a Eneida, porém o modelo


adotado é o da composição de V irgílio, numa justaposição
inesperada dos dois poemas homéricos na fotografia da hos­
tilidade crescente dos gêmeos.
Uma crônica de A Semana, publicada em 7 de janeiro de
1894, possui term os ainda mais sugestivos, vazados numa
dicção que posteriormente aprendemos a denominar borgiana:

Às vezes fito um quintal de Roma, de onde algum velho galo


acorda o ilustre V irgílio , e pergunto se não será o mesmo
galo que m e acorda, e se eu não serei o mesmíssimo Virgílio. É o
período da loucura mansa, que em m im sucede no sono. Subo
então pela Via Appia, dobro a rua do Ouvidor, esbarro com
Mecenas, que me convida a cear com Augusto e um rem a­
nescente da Com panhia Geral. (III, p. 597, g rifo meu)

189
Machado pode ser o mesmíssimo Virgílio porque descobre
na emulação a possibilidade de ressuscitar uma técnica esva­
ziada após o romantismo. A mesma técnica empregada por
V irg ílio em seus enfrentamentos com a herança grega clás­
sica. A recuperação deliberadamente anacrônica da aemulatio
perm ite form ular uma alternativa à circunstância das cultu­
ras não hegemônicas, agravada pelo uso de uma língua con­
siderada secundária na hierárquica República das Letras. Ora,
se a aemulatio demanda o passo anterior da imitatio, a secun-
didade deixa de ser vivida como angústia e pode ser experi­
mentada como um campo de possibilidades, cuja lógica in­
terna implica conseqüências decisivas no plano da política
cultural.
Porém, devagar com o andor! Minha reflexão pode con­
duzir a uma falácia: a secundidade acarreta vantagens, já que
a circunstância periférica proporciona inovação. Em conse­
qüência, o sistema literário e o sistema capitalista funciona­
riam às avessas... Tal postura levaria in evitavelm en te ao
constrangedor elogio do atraso, como se ele assegurasse uma
misteriosa vantagem epistemológica, inacessível aos artistas
de países centrais. No caso do contexto não hegem ônico,
penso em gestos estratégicos e não em traços essenciais: se,
isoladamente, os procedimentos artísticos que constituem a
poética da emulação podem ser encontrados em qualquer
latitude, a ocorrência simultânea de todos eles, em geral, carac­
teriza a potência da circunstância não hegemônica.
O desenvolvimento da poética da emulação parte de hori­
zonte perfeitamente caracterizado no desembaraço de Oswald
de Andrade: “Filiação”, a felix culpa do inventor periférico. O
que se segue é a explicitação feliz de suas dívidas:

190
Filiação. 0 contato com o Brasil Caraíba. Oü Villegaignon print
turre. Montaigne. O hom em natural. Rousseau. Da Revolução
Francesa ao R o m a n tism o , ã R evolu çã o B o lch evista , ã
Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling.
Caminhamos.43

Nesse caso, somente se caminha porque se assumem as


/iliações. O artista se descobre mais rico quanto mais sua dí­
vida aumenta, reunindo temporalidades opostas, inauguran­
do uma apreensão simultânea de gêneros, autores e estilos:
o retrato da segunda fase machadiana. Esse método foi reve­
lado numa crônica das Balas de estalo, publicada em 22 de
julho de 1883:

O ato da Câmara, aumentando o subsídio, foi inconstitucio­


nal? Suponham os que sim. Por isso m esm o que o foi, a
Câmara obrigou-se a não repeti-lo, imitando assim de um modo
moderno a palavra daquele general romano, que bradava aos
soldados ao iniciar uma empresa difícil: — é preciso ir até
ali, não é necessário voltar! (III, p. 417, g rifo meu)

No caso da literatura machadiana é preciso ir, mas, sobre­


tudo, voltar, no vaivém ininterru pto entre épocas, marca
principal do delírio inaugurado pelas M em órias póstum as. Tal
poética é deliberadamente anacrônica, im itando assim de um
modo m oderno a técnica clássica da aemulatio. O ponto é deci­
sivo: refiro-m e a um anacronism o às avessas, produtivo pela
inversão da cronologia usual da história literária. Não se
trata de projetar valores atuais à tradição, mas, pelo contrário,
repensar esses mesmos valores com base naquela tradição.

43 Oswald de Andrade, “ Manifesto Antropófago”, in A utopia antropofágica/


Oswald de A n d ra d e — Obras Com pletas, p. 48, grifos meus. Nas próximas
ocorrências, menciono apenas as páginas da citação.

191
Na crônica de A Sem ana, de 7 de jan eiro de 1894, a ideia
foi sintetizada numa fórm ula eloqüente: “(...) já tudo é m a r;
ao m ar já faltam praias, dizia O vídio na boca de Bocage” (III,
p. 598, g rifo do autor). Dito em português, o poeta parece
outro, assim como o latim de O vídio propicia nova cor à
dicção de Bocage. Anacronism o de ponta-cabeça, anacronis­
m o de mão dupla, trânsito interm inável entre o próprio e o
alheio.
A poética da emulação tam bém foi intuída por autores os
mais diversos. É o que mostro a seguir, privilegiando a cena
hispano-americana.

Emulação: poética anacrônica

Uma vez que os procedimentos da técnica clássica da aem u­


latio foram definidos, concentro-me na descrição dos elem en­
tos característicos da poética da emulação, compreendida como
atualização deliberadam ente anacrônica daquela técnica.
Destaco os fenômenos da distinção entre inventio e creatio; da
compressão dos tempos históricos; do anacronismo delibera­
do; da prim azia da leitura sobre a escrita; da centralidade da
tradução. A inter-relação desses elementos compõe o dina­
m ism o subjacente às práticas comuns a escritores e artistas
de contextos não hegemônicos — seja Georg Brandes, Machado
de Assis, Czeslaw Milosz, Eça de Queirós, Dom ingo Faustino
Sarmiento, entre tantos outros.

(Reitero que não se trata de especulação anterior à leitura


de um corpus determinado. O percurso adotado neste ensaio
é o oposto: o estudo comparativo de textos estimulou a for­
mulação da hipótese.)

192
Tudo se passa como se os autores latino-americanos pade­
cessem do “m al de Luciano”: ele mesmo sírio, abraçando e
.1 prendendo uma cultura que, em princípio, não lhe pertencia.
() olhar luciânico é irreverente e distanciado, assim como sua
literatura em inentem ente paródica. Estrangeiro, pois, seu
estilo.
Em 24 de abril de 1950, um jovem jornalista colombiano
publicou em El Heraldo, de Barranquilla, um artigo desafiador.
Seu texto refletia sobre “os problemas do romance”, e com e­
çava com uma provocação:

Ainda não se escreveu na Colôm bia o rom ance que esteja


indubitável e afortunadamente influenciado por Joyce, Faulkner
ou V irgin ia W oolf. E disse “afortunadam ente” porque não
creio que, neste m om ento, os colom bianos possamos ser
exceção ao jogo das influências. (...) Se os colombianos tom ar­
mos a decisão correta, irrem ed ia velm en te farem os parte
dessa corrente. O lam en tável é que isso ainda não tenha
acontecido, tampouco se vejam os mais superficiais sintomas
de que possa v ir a acontecer.44

O jornalista tm ha 22 anos e buscava impor-se através de


declarações fortes, defendendo que, ao fim e ao cabo, o ro­
mance colombiano padecia da mesma debilidade do teatro
brasileiro oitocentista: essencialmente falta de emulação. Já co­
nhecemos o antídoto eficaz. O autor brasileiro se encarregou
de aviar o emplasto: apropriação sistemática e seletiva do
alheio.
Em 1931, um intelectual cubano, um pouco mais expe­
riente, com 27 anos e uma longa permanência na Europa, já

44 Gabriel Garcia Márquez. “«^Problemas de la novela?”. Obra periodística 1.


Textos costenos (1948-1952). México: Editorial Diana, 2010, p. 213, grifos
meus. Nas próximas citações, anotarei apenas a página da ocorrência.
havia exposto idêntico princípio. A sim ilaridade não deve
surpreender, demonstrando a presença marcante de estraté­
gias comuns, empregadas em contextos não hegemônicos
frente às “grandes nações pensantes”.
Consultemos o artigo:

Toda arte necessita de uma tradição de ofício. Na arte, a reali­


zação é tão im portante com o a m atéria-prim a da obra... (...)
Por isso, é indispensável que os jovens na A m érica co­
nheçam profundam ente os valores representativos da arte
e da literatura m oderna na Europa (...) para dom inar as téc­
nicas, através da análise, e assim encontrar métodos constru­
tivos aptos a traduzir com m aior força nossos pensamentos
e nossas sensibilidades de latin o-am erican os.... Quando
Diego Rivera, hom em em quem palpita a alm a de um con­
tinente, nos diz: “Meu mestre, Picasso”, esta frase demonstra
que o pensam ento não está distante das ideias que acabo de
expor.45

Os artistas latino-americanos precisavam dom inar as téc­


nicas inauguradas pelas vanguardas europeias nas primeiras
décadas do século XX. Trata-se de cam inho contrário ao se­
guido pelo “habilidoso” João Maria. Daí o aprendizado labo­
rioso dos procedimentos artísticos im plica o desejo de ser
afortunadam ente influenciado por modelos, aceitos como auto­
ridades, em virtude da superioridade da fatura de suas obras.
Eis o campo semântico da imitatio e da aemulatio, com suas
inúmeras variantes: filiações, de Oswald de Andrade, jo g o das
influências, de Gabriel Garcia Márquez, o afã de dom inar as
técnicas, de Alejo Carpentier.

45 Alejo Carpentier, “América ante la joven literatura europea”, in Lospasos


recobrados. Ensayos de teoria y crítica Uteraria, p. 165.

194
I )epois do artigo programático, Garcia Márquez esperou
por 17 longos anos que alguém respondesse às suas expecta-
t Ivas. Como ningu ém o fez, lançou Cien anos de soledad...
( arpentier tam bém necessitou de 17 anos para publicar El
h ino de este mundo, texto fundam ental na formação da litera-
lura latino-americana moderna. O romance veio à luz em
1949, contudo o fam oso prólogo, no qual se apresentou o
conceito de “real m aravilhoso”, saiu em 8 de abril de 1948,
i*m El Nacional, jornal de Caracas.
A coincidência impressiona: dois aspirantes a homens de
k*t ras, em décadas distintas e em países diferentes, expressam
princípios similares, lançando títulos que alteraram o pano­
rama da literatura latino-americana no século XX.
O encontro pode ser ainda mais intrigante.
Em outro contexto, em século diverso, com preocupações
próprias, Machado defende gesto aparentado, com a largueza
de vistas que assinalou sua segunda fase. Em 1882, no prefá­
cio a Contos seletos das M il e um a noites, livro organizado por
Carlos Jansen, ele pondera:

(...) aconteceu às Mil e uma noites o que se deu com muitas


outras invenções: foram exploradas e saqueadas para a cena.
Era inevitável, com o por outro lado era in evitável que os
compositores pegassem das criações mais pessoais e sublimes
dos poetas para amoldá-las à sua inspiração, que é por certo
fecunda, elevada e sublime, mas não deixa de ser parasita. (III,
p. 918, grifos meus)

Essa passagem é muito rica. Machado amplia o campo


possível da aemulatio, abrangendo o diálogo entre as artes. O
teatro se apodera da literatura, esta se encontra com a músi­
ca ou é por ela apropriada. Aliás, como o músico e compa­

195
nheiro de xadrez, A rtu r Napoleão, fez com Machado: juntos,
assinam a autoria de “ Lua da estiva noite”.
No comércio entre as artes, im porta menos a especifici­
dade desta ou daquela do que o traço subjacente a todas. O
processo artístico não deixa de ser parasita, partindo sempre
de uma obra preexistente: esse é o sentido forte da palavra
inventio.
Por certo, o vocabulário é díspar, como as épocas são dis­
tintas, mas a intuição permanece gêmea: Machado de Assis,
Oswald de Andrade, Alejo Carpentier e Gabriel Garcia Márquez
lançam mão do mesmo campo semântico, compartilhando
estratégias discursivas semelhantes.
Como entender tal sintonia dentro do quadro que venho
traçando?
Recorde-se, à guisa de resposta, o pensamento de Pedro
Henríquez Urena. Numa im portante compilação de ensaios,
La utopia de Am erica, um dos temas dominantes é exatamen­
te o relacionamento do intelectual latino-americano com a
cultura europeia, em geral, e a norte-americana, em particu­
lar. Isto é, a presença constitutiva do outro, tomado como
modelo para a determinação da identidade cultural. Subjacente
à distância “entre im itação e herança”,46 proposta como m e­
todologia correta para refletir acerca do problema, encon­
tra-se o eixo da poética da emulação:

Temos direito — herança não éfu rto — de mover-nos com li­


berdade no âm bito da tradição espanhola, e, sem pre que
possível, de superá-la. Ainda mais: temos direito a todos os be­
nefícios da cultura ocidental.

46 Pedro Henríquez Urena. “ Herencia e im itación”. La utopia de Ame'rica.


Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1989, p. 52. Nas próximas ocorrências, apenas
indicarei o número da página.

196
Portanto, onde começa o m al da imitação?
Qualquer literatura se nutre de influxos estrangeiros, de
imitações e até de roubos: nem por isso será menos original.
(...) Porém, o caso é grave quando a transform ação não se
cumpre, quando a im itação perm anece como imitação.
Nosso pecado, na Am érica, não é a imitação sistemática
— que não prejudica a Catulo nem a V irg ílio , a C orneille
tam pouco a M olière — mas a imitação difusa, (p. 53, grifos
meus)

Por sua explicitação, essa passagem reforça a possibilida­


de de identificar um recurso comum no trato da presença
incontornável do alheio na determinação da própria identi­
dade in telectu al e artística. Machado m enciona saqueios,
Henríquez Urena fala d e furtos, Oswald de Andrade prefere
filiações, Carpentier defende a urgência de dom inar as técnicas
europeias, Garcia Márquez destaca o benefício do jo g o das
influências: como se fossem sinônimos, aludindo a procedi­
mentos estéticos sim ilares. D aí a distância da “ im itação
sistemática” à “im itação difusa”: esta somente exige o gesto
de reproduzir a norma adotada sem questionamento, aquela
supõe o desejo de superar o padrão adotado, sem abdicar do
diálogo constitutivo com ele. Traduzo os termos empregados
na aguda reflexão do crítico dominicano: de um lado, im ita­
ção difusa, ato que se encerra em si mesmo, evoca a imitatio,
lim itada ao papel de mera cópia; de outro, im itação sistemá­
tica, atitude que se abre para desdobramentos críticos, supõe
a aem ulatio, alçada à condição de p rod u zir novidades no
âmbito da tradição.
O projeto de desenvolver uma literatura com base na
“ imitação sistemática” significa recuperar o procedimento,
descartado pelo romantismo, implicado na técnica da aem u­
latio. Tal m odelo tinha com o base os passos descritos por
Henríquez Urena: assimilação, apropriação, transformação

197
do modelo. Portanto, a poética da emulação perm ite reunir
Machado de Assis, Gabriel Garcia Marquéz, Alejo Carpentier,
Jorge Luis Borges e Pedro H enríquez Urena, entre tantos
outros pensadores e inventores.

(Não digo criadores — e tenho boas razões para fazê-lo.)

Emulação e política cultural

A forma mais econômica de esclarecer o alcance político do


resgate anacrônico da emulação consiste em recordar o dilema
vivido por Domingo Faustino Sarmiento em seu exílio no Chile,
nos anos 1840. Como conquistar leitores para El Progreso, jornal
fundado pelo argentino, se os demais periódicos, europeus e
norte-americanos, também se encontravam disponíveis e, na
verdade, chegavam antes a Santiago do Chile? Compreenda-se
o embaraço: Sarmiento compunha boa parte do conteúdo de
El Progreso compilando artigos de veículos estrangeiros. Ora,
como rivalizar com publicações cujas notícias são sempre “mais
atuais” e cujos pontos de vista costumam determinar a opinião
dos leitores? Por que aguardar a seleção de notícias e artigos
de fundo, se o público tinha acesso aos textos na língua origi­
nal, dispensando a tradução? A resposta de Sarmiento é exem­
plar, revelando o elemento estrutural que subjaz aos procedi­
mentos definidores da poética da emulação:

(...) nosso diário supera os mais conhecidos da Europa e da


Am érica, pela razão muito óbvia de que, sendo um dos ú lti­
mos jornais do mundo, temos à disposição, ep a ra escolher da
melhor m aneira, o que os demais diários publicaram .47

47 Domingo Faustino Sarmiento, “Nuestro folletín”, in Obras completas, p. 3,


grifos meus. Devo essa citação a Jens Andermann.

198
Ao ler a réplica espirituosa de Sarmiento, o leitor prova-
<*l mente pensa na obra de Oswald de Andrade. E tem toda a
i i ao, pois se trata de estratégia aparentada à antropofagia.
I )e igual modo, na busca dessas afinidades estruturais,
m encione-se o u tro a rtig o do jo v e m G arcia M á rqu ez,
Possibilidades da antropofagia”. Publicado em 1950 — mes­
mo ano em que Oswald de Andrade concluiu A crise dafiloso-
lm messiânica, ensaio no qual aprofundou as conseqüências
do canibalismo cultural —, o texto de Garcia Márquez cam i­
nha na mesma direção: “A antropofagia daria origem a um
11<>vo conceito da vida. Seria o princípio de uma nova filosofia,
cie um novo e fecundo rum o das artes” (p. 400).
Fiel à monomania que anim a este ensaio, retorno ao autor
de “O alienista”. A crônica de A Semana, de I o de setembro de
1895, é dedicada a supostos casos de canibalismo, ocorridos
na Guiné e no interior de Minas Gerais. A conclusão irônica
de Machado poderia ser assinada por Oswald ou por Garcia
Márquez:

Estribilhos são muletas que a gente forte deve dispensar.


Quando voltar o costume da antropofagia, nào há mais que
trocar o “amai-vos uns aos outros”, do Evangelho, por esta
doutrina: “Comei-vos uns aos outros”. Bem pensado são os
dous estribilhos da civilização. (III, p. 673)

A recorrência do tema ilumina o sentido da poética da emu­


lação: o desenvolvimento de estratégias para lidar com a presen­
ça constitutiva do outro, adotado como modelo e autoridade.
A atitude de Sarmiento sugere que estar sempre à frente
pode ser um lim ite intransponível: quem ocupa tal posição,
nada tem diante dos olhos. Eis o m otivo pelo qual os m ovim en­
tos de vanguarda rapidamente deixam de ser iconoclastas,

199
convertendo-se em guardiães zelosos de sua m em ória, na
proliferação de oximoros institucionais: museus de arte m uün
na e contem porânea. A posição retardatária do editor de H
Progreso assegura uma vantagem inesperada: tudo se encont ra
à disposição, como itens de um cardápio inesgotável, cujo ho
rizonte desenha uma nova form a de entender a arte e o pen
sarnento em circunstâncias não hegem ônicas. Na crônica
acerca do hipotético retorno à antropofagia, Machado admite:
“ (...) nós não fazemos mais do que andar à roda, como dizia o
outro...” (III, p. 672). Sem dúvida, e, sobretudo, como dizia o outro,
na oscilação que define a potência do anacronismo às avessas.
Defunto autor avant la lettre, Sarmiento não precisou es­
p era r pela cam pa para v iv e r o d e lír io de Brás Cubas.
Pressionado por condições objetivas que não podia alterar,
relacionadas à concretude de relações políticas e econômicas
desiguais, ele inventou uma maneira subjetiva de enfrentar o
impasse, a seu m odo retornando à origem dos séculos.
Nas palavras de Sarmiento, no universo da estética e do
pensamento, os últimos, às vezes, podem ser os primeiros,
simplesmente porque selecionam do conjunto da tradição os
elementos que lhe interessam mais diretamente.
Reitere-se, porém, o elemento mais importante: trata-se
de uma potência, que exige um gesto deliberado para sua
atualização.

*■ * *

Uma pergunta se impõe: não será artificial o vínculo que


proponho entre Machado e autores hispano-am ericanos?
Ainda hoje é quase inexistente o diálogo entre cultura brasi­
leira e mundo hispano-americano. Contudo, a associação com
Sarmiento é favorecida por artigo publicado na Gazeta de

200
' -i/i las, em 9 de julho de 1888. Nele Machado rememora seu
iijii.ise) encontro com o argentino.
Vale a pena transcrever suas impressões:

Quando hoje contem plo o rápido progresso da nação argen-


I ina, recordo-m e sem pre da p rim eira e única vez que vi o Dr.
Sarmiento, presidente que sucedeu ao General M itre no g o ­
verno da República.
Foi em 1868. Estávamos alguns amigos no Club Fluminense,
Praça da C onstituição, casa onde é hoje a S ecretaria do
Império. Eram nove horas da noite. Vim os entrar na sala do
chá um hom em que a li se hospedara na véspera. Não era
moço; olhos grandes e inteligentes, barba raspada, um tanto
cheio. Demorou-se pouco tempo; de quando em quando, olhava
para nós, que o examinávamos também, sem saber quem era. Era
justamente o Dr. Sarmiento, vinha dos Estados Unidos, onde
representava a Confederação Argentina, e donde saíra porque
acabava de ser eleito presidente da República. Tinha estado
com o Imperador, e vinha de uma sessão científica. Dois ou
três dias depois, seguiu para Buenos Aires.
A impressão que nos deixara esse homem foi, em verdade, p ro ­
funda. Naquela visão rápida do presidente eleito pode-se dizer
que nos aparecia o fu tu ro da nação argentina. (III, p. 1.013,
grifos meus)

A cena é pura ficção: Machado e seus amigos olham curio­


sos para Sarmiento.
O argentino devolve os olhares, igualm ente intrigado.
No entanto, não chegam a trocar sequer duas palavras.
Ou talvez não. Sem sabê-lo, Machado e Sarmiento dialo­
garam muitas vezes. Em suas obras, inventando uma saída
para tornar produtiva a circunstância política que não podiam
alterar.

* * *

201
No século seguinte, outro argentino reformulou a pergun­
ta de Sarmiento. Nos termos propostos por Ricardo Piglia, em
seu estudo do rom ance de W itold G om browicz, a questão
enfrentada por Machado e Eça tam bém retorna:

O que acontece quando se pertence a uma cultura secundá­


ria? O que acontece quando se escreve numa língua m argi­
nal? (...) Aqui Borges e G om brow icz se aproxim am . Basta
pensar num dos textos fundam entais da poética borgiana:
0 escritor argentino e a tradição. O que quer d izer a tradição?
(...) Como chegar a ser universal neste subúrbio do m undo?18

Essas questões — e não seria d ifícil acrescentar um colar


de citações com perguntas similares — ajudam a defin ir o
alcance político da poética da emulação. Reitere-se que ele
nada tem a ver com um a desatualizada ontologia do periférico, pois
alude a uma situação concreta de desequilíbrio nas trocas
culturais. A poética da emulação reúne um conjunto de pro­
cedimentos empregados por intelectuais, escritores e artistas,
envolvidos em relações assimétricas, e ocupando o lado menos
favorecido dos intercâmbios — sejam culturais, políticos ou
econômicos. Práticas de emulação, contudo, não são exclusi­
vas deste ou daquele contexto.
É sintomática a insistência no mesmo campo semântico
em autores os mais diversos. No conto de M ilton Hatoum,
“Encontros na península”, um jovem escritor brasileiro, em
situação precária, tem a sorte de encontrar uma catalã que
deseja aprender português com alguma urgência. A razão era
peculiar: “ Não quero falar, ela disse com firm eza. Quero ler

4li Ricardo Piglia. “ La novela polaca”. Form as breves. Barcelona: Editorial


Anagrama, 2000, p. 72, grifos meus. Nas próximas ocorrências, apenas
indicarei o número da página.

202
Machado de Assis.”49Tratava-se de vingança tardia, mas nem
por isso menos saborosa. Victoria Soller, a disciplinada aluna,
UTininara o relacionamento com o lisboeta Soares, cuja ob­
sessão era provar a superioridade da literatura de Eça de
Queirós. De form a previsível, a catalã term ina por discordar
do ex-amante. O diálogo com o professor reitera a pergunta
cie Ricardo Piglia:

Já se vê que os narradores de Machado são terríveis, irônicos,


geniais. E o hom em era de fato culto. Cultíssimo, verdadl O
século XIX francês é pródigo de grandes prosadores. Mas como
Machado de Assis pode ter surgido no subúrbio do mundo?
Mistérios de subúrbio, eu disse. Ou, quem sabe, da litera­
tura do subúrbio, (p. 105, grifos meus)

Nesse horizonte, a referência de Carpentier a Rivera é


decisiva e ilum ina o cruzam ento de Piglia e Hatoum: Quando
Diego Rivera, hom em em quem palpita a alma de um continente,
nos diz : “Meu mestre, Picasso.” Muito após o advento da revolu­
ção romântica, a transmissão do ofício nas escolas de pintura
preservou o modelo da imitatio e da aemulatio, pois os aspi­
rantes a pintores deveriam submeter-se a intenso treinam en­
to, cuja base era a diligente reprodução das telas dos mestres.
A trajetória de Picasso é exem plar e perm ite aprofundar
a reflexão. Ele iniciou sua carreira aprendendo pacientemen­
te a técnica de seu ofício através da cópia de obras-primas. E
m esmo em seu período mais iconoclasta, não deixou de
em ular tanto a tradição quanto os artistas que lhe eram
contemporâneos, especialmente Matisse.

49 Milton Hatoum. “ Encontros na península”. A cidade ilhada. Contos. São


Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 104. Nas próximas ocorrências, ape­
nas indicarei o número da página.

203
Exatamente como V irg ílio e Camões.
Precisamente como Machado e Eça.
Não seria o caso de recordar a origem de Picasso? Oriundo
de Málaga, autêntico centro da periferia, viajou a Madri,
centro na Espanha, mas lugar periférico no sistema de artes:
um subúrbio do mundo europeu. E, completando o percurso
existencial característico do inventor periférico, finalm ente
chegou ao centro do mundo das artes, Paris. De qualquer
modo, precisou adaptar-se ao novo ambiente antes de con­
quistá-lo. Uma exposição recente procurou dar conta dessa
dimensão da obra do pintor espanhol. Refiro-m e à exibição
realizada em 2008, Picasso et les m aítres, cujo eixo conceituai
propunha uma nova interpretação da obra e, sobretudo, dos
procedimentos artísticos do pintor.
Em ensaio instigante, “Picasso cannibale. Deconstruc-
tion-reconstruction des m aítres”, a curadora sugeriu: “ Esta
pintura da pintura praticada por Picasso é, como disse, uma
form a de canibalismo.”50 Na sua visão, Picasso somente pôde
transformar-se no ícone da arte no século XX ao apropriar-se
conscientemente da tradição, num processo duplo e intrinse-
camente inter-relacionado de imitatio e aemulatio, constituin­
do o que denomino poética da emulação. Desse modo inter­
preto a observação: “Uma das características deste período é
o recurso à repetição como form a de criação.”51 Ora, repetir
para inovar era o eixo do procedimento clássico. Os inventores
mais instigantes de culturas não hegemônicas, consciente­
mente ou não, desenvolveram uma estratégia de atualização
de procedimentos estéticos anteriores à inflação romântica
dos conceitos de “gênio”, “subjetividade” e “criação”.

5UMarie-Laure Bernadac, “ Picasso cannibale. Deconstruction-reconstruction


des maítres”, in Picasso et les maítres, p. 49.
51 Idem , p. 48.

204
Nesse cenário, um luxo típico dos criadores das culturas
l» rinônicas é a disputa ociosa para saber quem é o mais
'" i i;',inal”, no esforço de reivindicação de uma im possível
pi imogenitura estética. Em culturas não hegemônicas, para
m .irtífices de línguas marginais, a simples postulação se
i* veste de um aspecto involuntariam ente cômico. Então, o
I'iiconceito da originalidade pode ser substituído pelo de-
m nvolvimento da complexidade textual. A leitura se im põe
• i >1110 m atriz de toda invenção, capaz de rom per hierarquias,
im aginando tem poralidades inesperadas e por vezes de
ponta-cabeça.
Afinal, como Machado percebeu com clareza, V irgílio bem
poderia ser considerado um brasileiro na corte de Pedro II,
ou um inglês na Londres vitoriana. Tudo depende da radica-
I idade da leitura. Penso na crônica de A Semana, publicada
cm 11 de novembro de 1894:

A Antiguidade cerca-me po r todos os lados. E não me dou m al


com isso. Há nela um arom a que, ainda aplicado a cousas
modernas, como que lhes toca a natureza. (...)
Gladstone é velho e teima em não envelhecer. É octogenário,
podia contentar-se com a doce carreira de M acróbio e só v ir
à im prensa quando fosse para o cem itério. Nào quer; nem
ele, nem Verdi. Um faz óperas, outro saiu do parlam ento
com uma catarata, operou a catarata e publicou a Eneida em
inglês, para m ostrar aos ingleses com o V irg ílio escreveria
em inglês, se fosse inglês. E não será inglês Virgílio? (III, p. 629,
grifos meus)

0 velho que teima em não envelhecer é a im agem do anacro­


nismo às avessas que perm ite form ular a poética da emulação.
Contudo, trata-se de um anacronismo de mão dupla, num
vaivém entre temporalidades diversas. Na mesma crônica,

205
Machado ressalva: “ Sacudi fora os jornais e cheguei à janela.
A antiguidade é boa, mas épreciso descansar um pouco e respirar
ares m odernos ” (III, p. 630, grifo meu). Tudo se passa como se
os escritores não hegemônicos fossem sempre mais originais
quanto mais imitassem a tradição e, ao mesmo tempo, respon­
dessem às questões de sua época. O paradoxo, como o leitor
já sabe, é apenas aparente.

Um, dois, três

Como vimos, três são os elementos mais proem inentes da


poética da emulação: distinção entre inventio e creatio; com­
pressão dos tempos históricos; anacronismo deliberado. Além
disso, tam bém se destacam a prim azia da leitura sobre a es­
crita e a centralidade da tradução.
Destaque-se a distinção entre dois verbos que atualmente
costumam ser empregados como sinônimos. Criar, do latim
creare, implica produzir o novo no instante mesmo da criação:
a utópica creatio ex nihilo; criar a partir do nada, ou, em voca­
bulário rom ântico, a partir exclusivam ente de si mesmo.
Inventar, pelo contrário, do latim invenire, supõe um ato mais
modesto, pois significa encontrar, descobrir, e, muitas vezes,
fazê-lo casualmente. Portanto, inventar sugere a existência de
elementos prévios, que devem ser combinados em novos ar­
ranjos e relações. É como se a inventio sempre armasse um
novo jogo, tirando partido das peças que já se encontram no
tabuleiro, no retorno do xadrez de palavras característico da
aemulatio. A sutil diferença semântica entre os dois verbos
estimula perfis igualm ente distintos.
De um lado, ao conceber a originalidade como creatio, o
autor segue o m odelo romântico, imaginando-se autêntico

206
demiurgo. De outro, ao conceber a originalidade como inven-
llo, o autor se m etam orfoseia em leitor agudo da tradição,
.il ravés de reciclagens e ruminações, que levam à celebração
das “ filiações”, no espirito oswaldiano, pois elas asseguram
o ingresso no circuito da tradição.
A invenção, assim compreendida, é procedimento funda­
mental da poética da emulação, já que seu corolário perm ite
valorizar a anterioridade da leitura em relação à escrita e, no
caso das culturas não hegemônicas, a centralidade da tradu-
çao no desenvolvimento da própria tradição.
Inventar im plica a form ação de um eixo com plexo de
justaposição de tempos históricos, gêneros literários e inte­
resses conflitantes. A vivência dessa simultaneidade estimu­
la uma percepção que singulariza a fatura literária, favore­
cendo o fenômeno da “compressão dos tempos históricos”.
Aceito o pressuposto da justaposição de tempos históricos
e gêneros literários, a literatura pensada nas condições não
hegemônicas necessariamente inclui diversas tradições si­
multaneamente. Nas palavras de Piglia: “ (...) as literaturas
secundárias e marginais, deslocadas das grandes correntes
europeias, têm a possibilidade de um tratam ento próprio,
‘irreverente’ das grandes tradições” (p. 73).
Tal irreverência é estimulada pela compressão dos tempos
históricos, pois a presença simultânea de tempos históricos
diversos conduz a uma bem-vinda ampliação do repertório,
típica dos inventores de culturas periféricas. Essa ampliação
demanda um esforço de síntese que, potencialm ente, produz
um olhar particularm ente crítico. A agudeza desse olhar,
ademais de traço individual, é um dado estrutural.
A combinação, aparentemente caótica, de séculos da tra­
dição e de gêneros literários distintos — isso para não m en­
cionar o resgate de atos de leitura e de escrita definidores do

207
período pré-romântico —, ajuda a redimensionar, no plano
crítico e teórico, o “anacronismo deliberado” do célebre con
to de Jorge Luis Borges, “Pierre Menard, autor dei Quijote”.
Se a invenção favorece a compressão dos tempos históricos,
esta estimula o esforço de reunir tempos distintos, e às vezes
muito distantes entre si, assim como a iniciativa de mesclar
gêneros diversos, e às vezes contraditórios. Tal procedimento
engendra um efeito discutido na ficção do autor de El haceàor.
Na busca da obra invisível de Pierre Menard, Borges intuiu
uma nova técnica de leitura:

(...) a técnica do anacronism o deliberado e das atribuições


errôneas. Essa técnica de aplicação in fin ita nos insta a p er­
correr a Odisséia com o se fosse posterior à Eneida e o livro Le
jardin du Centaure de M adame H enri Bachelier como se fosse
de Madame Henri Bachelier. Essa técnica povoa de aventuras
os livros mais sossegados. A trib u ir a Louis Ferdinand Céline
ou a James Joyce a Imitação de Cristo não é uma renovação
suficiente dos tênues avisos espirituais?52

O anacronismo deliberado é uma operação de leitura que


consiste na invenção de novas relações no plano da história
literária. Tal m étodo tende a relativizar a hierarquia tradi­
cional dos atos de escrita e de leitura, sugerindo um gesto
que possui clara a fin id a d e eletiva com as inovações de
Machado. Nesse domínio, sua interlocução constante com o
leitor assume outra feição.
É chegada a hora de mostrar, teoricamente, que, se somos
periféricos, não hegemônicos, ao fim e ao cabo, por isso mes­
mo, podemos reler radicalmente o conjunto da tradição: eis
a tarefa da poética da emulação.

52 Jorge Luis Borges, “ Pierre Menard, autor dei Quijote", in Obras completas,
vol. I, p. 450.

208
liis o pulo do gato das M em ória s póstum as de Brás Cubas.
Gesto que tam bém se encontra nos versos de Roberto
Irrnández Retamar. Penso no poem a “^Y Fernández?”, no
i|tial recorda seu pai:

Como un raro, un viejo, un conm ovedor Romeo de provincia


(Pero tam bién Rom eo fue un provinciano).53

Gostaria de concluir aqui este capítulo.


Contudo, reitero que não desejo converter a poética da
emulação num elogio ingênuo da circunstância periférica.
No fundo, esse ufanismo fora de hora inviabiliza a reflexão
mais urgente: se a poética da emulação é tão promissora, por
que as condições objetivas da hegemonia cultural perm ane­
cem indiferentes a ela?
Questão prenhe de questões, que nos levariam longe...

(Bem longe: retorno a essa dificuldade na conclusão.)

53 Roberto Fernández Retamar, “^Y Fernández?”, in Wrsos, p. 182. Poema


originalm ente publicado em Juana y otros poem as personales (1975-1979).
4. Os anos de cisivo s

Machado de Assis teve também o seu “estalo” por volta de


79 (foi o ano em que apareceram na Revista Brasileira as
primeiras Ocidentais). Se o Mestre tivesse desaparecido depois
da publicação de Iaiá Garcia, em 78, teria deixado uma obra
em que a poesia e a prosa se equilibram no mesmo nível de
mediocridade. Mas aos quarenta anos veio o “estalo”. Às
Ocidentais seguiram-se As Memórias Póstumas de Brás Cubas
(81), Papéis Avulsos (82)..

Manuel Bandeira, “O poeta”

Portanto, podemos afirm ar que Machado elaborou uma


combinação original da menipeia corn a perspectiva auto­
biográfica de Sterne e de Maistre, acentuando simultanea­
mente os seus ingredientes filosóficos. Brás Cubas é o caso
de novelística filosófica em tom bufo; um manual de mora­
lista em ritmo foliônico. Quase nenhum sentimento, crença
ou conduta escapam, nesse livro, à chacota corrosiva, ao
ânimo de sátira e de paródia.

José Guilherme Merquior, “Gênero e estilo das M em órias


póstumas de Brás Cubas”

O que prim eiro chama a atenção do crítico na ficção de


Machado de Assis é a despreocupação com as modas domi­
nantes e o aparente arcaísmo da técnica. (...) Curiosamente,
este arcaísmo parece bruscamente moderno, depois das
tendências de vanguarda de nosso século, que também
procuram sugerir o todo pelo fragmento, a estrutura pela
elipse, a emoção pela ironia e a grandeza pela banalidade.

Antonio Cândido, “ Esquema de Machado de Assis”

Gostaria de terminar voltando à imagem da taça e do vinho,


com que Machado de Assis designou ao mesmo tempo o que

211
seu liv ro tin ha de com um com os dos seus m odelos e ,i<|ml.i
em que se diferenciava deles: “ É taça que pode ter lavnu i
de igu al escola, mas leva ou tro v in h o ”. Quanto à taça u<
lavores sem elh an tes d e ix a m c la ro que todos saíram .1 i
mesma oficina. Sua m arca de origem está gravada no cum .11
é um a origem shandiana.

Sérgio Paulo Rouanet, Riso e melam nlia

Há m uita am biçào em um escritor que, na seqüência dm


seus prim eiros livros, tenta praticam ente todos os g ê n m r
que a literatura do seu tem po lhe punha à disposição, ini lii
sive um libreto de ópera que aparentem ente não sobrevivn i

José Luiz Passos, M achado de Assis: o rom ance com pessn<i\

1878: um ano como nenhum outro

O ano de 1878 foi difícil para o escritor Machado de Assis.


Difícil, mas muito prolífico. Ou, talvez, por isso mesmo
Na indispensável Bibliografia de M achado de Assis, compila
da por José Galante de Sousa, o leitor depara-se com 35 entra
das relativas ao ano de lançamento de 0 p rim o Basílio — e isso
sem contar o romance laiá Garcia, que teria sido concluído
em setembro de 1877, embora publicado no início do ano
seguinte. Galante de Sousa não o incluiu na lista dos textos
escritos em 1878.
Há de tudo um pouco na intensa produção machadiana.
De I o de janeiro a 2 de março, ele publica laiá Garcia, em
0 Cruzeiro. O m odelo já era conhecido do fie l público do
Machadinho: ritm o de trabalho beneditino e resultados esté­
ticos franciscanos. Mesmo aceitando a datação de Galante de
Sousa, será possível im aginar que Machado o tenha publica­
do sem ao menos uma últim a revisão, um simples passar de
Itiii na versão fin al do manuscrito? Nesse caso, o ano de
ih m levela-se ainda mais produtivo.
Ao mesmo tempo, trabalhos dispersos apareciam a toda
Im'1 ,1, cm veículos diversos.
h>r exemplo, fantasias — assinadas sob o pseudônimo de
I li .i/ar, tais como “O bote de rapé” e “A sonâmbula”, não
0 unidas em livro pelo autor.
Alguns contos — destacando-se “ O machete” e “ Na arca”,
1• i, upirado este últim o em Papéis avulsos (1882).
Um manancial de crônicas — assinadas por Manassés e,
ohivtudo, Eleazar.
Nao se esqueça do soneto, “Círculo vicioso”, freqüentador
ir.síduo de antologias, datado de 1878, e saído na Revista
Hmsileira no ano seguinte. Seus versos podem ser lidos como
uma reflexão indireta do autor sobre seus impasses:

Bailando no ar, gem ia inquieto vaga-lume:


— “Quem m e dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

— “Pudesse eu copiar o transparente lume,


Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

— “ Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela


Claridade im ortal, que toda a luz resum e!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

—” Pesa-me esta brilhante auréola de nume..


Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”
(III, p. 151)

213
0 círculo vicioso se refere ao afã de copiar o outro tão
perfeitam ente a ponto de com ele confundir-se, im pulso que
não deixa de situar a rivalidade no centro da cena. Sempre
insatisfeito com o que somos, projetamos no outro, tomado
como m odelo insuperável, a im agem da plenitude que nos
falta. O pensador francês René Girard denom inou de “ m e ­
tafísico” este desejo de ser outro, paroxism o do desejo mi
mético. O circuito se fecha no eterno retorno do mesmo:
entre o vaga-lume e o sol, a distinção é de grau, não de na­
tureza.
De igual modo, no universo da aemulatio não se pode fu gir
da obrigação de im itar a auctoritas do gênero escolhido. O
círculo só se torna vicioso se perm anecer lim itado à simples
cópia; ou se for reduzido à pura inveja. Mas não se pense em
termos psicológicos; recordem-se os comentários de Quevedo
à Retórica aristotélica:

A emulação é certa dor que procede da excelência que vemos


em outro igual, e da qual nos julgam os aptos; não causa dor
porque o outro a tem, mas porque nós não a temos tam bém
É dor nobre, assim como a inveja é v il e in fam e.54

Não se almeja ser exatam ente o que o outro é, mas apri­


m orar a própria capacidade. A síntese de Quevedo pode ser
mais bem apreciada se a compararmos com o texto original.
Aristóteles analisa a em ulação no Livro II da Retórica, no
capítulo 11:

54 Luisa López Grigera (org.). Anotações de Quevedo à Retórica de Aristóteles.


Campinas: Editora Unicamp, 2008, p. 182. Nas próximas ocorrências, cito
apenas o número da página.
Assim , se a emulação é uma espécie de dor, tem por causa o
lato de que certos bens excelentes, e q u e ju lg a m o s q u e ta m b é m
nos p u d e m o s o b ter, parecem ser possuídos por a q u eles q u e p o r
n a tu re z a no s são ig u a is : e não por inveja daqueles pelos quais

essas coisas são possuídas mas por nossa causa, pois que nós
próprios tam bém não as obtivemos: c la r a m e n t e res u lta q u e a
e m u la ç ã o é a lg o h o n e sto e a b s o lu ta m e n te p r o b o , não alheio até

m esm o a um engenho dos mais justos. A inveja, pelo contrá­


rio, é coisa perniciosa e perversa e da esfera de hom ens
claram ente ímprobos. (p. 133, grifos meus)

O sentido forte da emulação se esclarece na referência a


Iodos aqueles que p o r natureza nos são iguais, isto é, tam bém nós
pudemos obter o que aqueles possuem porque, em princípio,
n.io se trata unicamente de talento, mas de assenhorear-se
da tradição. A inveja se concentra no outro e nas suas reali­
zações, ao passo que a emulação depende da possibilidade de
aperfeiçoamento de um dispositivo artístico; não se reduz a
l raço psicológico, porém ao propósito de dom inar certos
procedimentos retóricos. Quevedo assimila perfeitam ente a
lição e seu resumo preserva o objetivo de conquistar a exce­
lência que vem os em outro igual, e da qual nos julgam os aptos. O
aspecto psicológico é deslocado pela preocupação técnica; e
Iodos são potencialm ente iguais, uma vez que a aptidão deve
ser desenvolvida através do estudo.
Im itar e em ular são imprescindíveis ao poeta, ao escritor,
ao artífice; caso contrário, não passa de mero copista. Recorde-
se o campo semântico de augeo, em latim, “aum entar”. A u cto r
tam bém é derivado de augeo. Portanto, a dimensão da emu­
lação é contemplada na própria palavra que nomeia o escritor,
já que o autor é, no limite, um “aumentador”, pois, ao emular,
contribui com a tradição, ensejando a possibilidade de outras
emulações.

215
Essa intuição começa a tornar-se mais sistemática para
Machado nos artigos sobre 0 prim o Basflio. Em seu vocabulário,
trata-se da distância que vai do simples copista ao hom em de
talento. Sugiro que o leitor volte ao Capítulo 2, especialmente
na seção “A em ulatio”, em que discuto a emergência sistemá­
tica da ideia de emulação na severa crítica machadiana. Posso
recordá-la através de uma única citação, na qual se ilumina
o campo semântico que reconstruo:

O Sr. Eça de Queirós é um fie l e asp ém m o discípulo do rea­


lism o propagado pelo autor do Assommoir. Se fora simples
copista, o dever da crítica era deixá-lo, sem defesa, nas mãos
do entusiasmo cego, que acabaria por matá-lo; mas é homem
de talento, transpôs ainda há pouco as portas da oficina literá­
ria. (III, p. 904, grifos meus)

Nesse contexto, a reação tranqüila de Eça ao exam e seve­


ro do colega brasileiro adquire outro sentido. Em carta envia­
da da Inglaterra, no dia 29 de junho de 1878, no esforço de
iniciar correspondência com Machado, o autor de 0 p rim o
Basílio lança mão de vocabulário preciso. Seu agradecimento
não deixa de confundir-se com um involuntário autoelogio:

(...) não quis estar mais tem po sem agradecer a V. S.a o seu
excelente artigo do dia 16. Apesar de me ser adverso, quase
revesso, e de ser inspirado por uma hostilidade quase parti­
dária ã Escola Realista — esse artigo pela sua elevação e pelo
talento com que está feito honra o m eu livro, quase lhe aumenta
a autoridade. Quando conhecer os outros artigos de V. S.a
poderei perm itir-m e discutir as suas opiniões sobre este —
não em m inha defesa pessoal (eu nada valho), não em defesa
dos graves defeitos dos meus romances, mas em defesa da
Escola que eles representam e que eu considero com o um
elevado fator do progresso m oral na sociedade moderna, (p.
227, g rifo meu)

216
A publicação de O prim o Basílio transformou Eça na grande
nuctoritas do rom ance em língua portuguesa, posição que
manteve por tempo considerável. A qualificação do prim eiro
artigo de Machado — quase lhe aumenta a autoridade — anuncia
0 desencontro que dominou a relação dos dois escritores, pois
1udo depende da ênfase que se conceda aos termos da frase.
Quase — vale dizer, como Brás Cubas afirm a, a obra em si
mesma é tudo.
Ou: lhe aum enta a autoridade — isto é, a crítica colabora
para o êxito do romance, especialmente pela polêm ica que
engendra.
O jovem Machado empregou idêntico vocabulário em 1863
ao publicar duas peças, 0 caminho da porta e 0 protocolo. Em car­
ta ao amigo Quintino Bocaiúva, encontra-se a palavra-chave:

Vou publicar as m inhas com édias de estreia; e não quero


fazê-lo sem conselho de tua competência.
(...)
Mas o que recebeu na cena o batismo do aplauso pode,
sem inconveniente, ser transladado para o papel? A d iferen ­
ça entre os dois meios de publicação não m odifica o ju ízo,
não altera o valor da obra?
É para a solução destas dúvidas que recorro à tua autori­
dade literária. (III, p. 1.028, grifos meus)

Destaque-se o entendim ento machadiano da importância


do meio de comunicação na transmissão da experiência lite­
rária, assim como a atualidade da pergunta: a diferença entre
os dois meios de publicação não modifica o juízo, não altera o valor
da obra? É como se Machado fosse um precursor possível da
ideia contemporânea de narrativa transmídia!
De imediato, porém, reitero que a publicação de 0 prim o
Basílio transform a Eça em auctoritas no mundo do romance
em língua portuguesa.

217
Em 1893, Valentim Magalhães, então diretor de A Semana,
lançou um concurso com a seguinte pergunta: “ Quais são os
seis m elhores romances escritos em língu a portuguesa?”
A lém das M em órias póstumas, Machado publicara Quincas Borba
dois anos antes; o aparecimento de D om Casm urro ainda teria
de esperar sete anos; portanto, ele se encontrava em posição
relativam ente desfavorável. Eça já havia escrito alguns de
seus títulos fundamentais: 0 crime do padre A m a ro (1875), 0
p rim o Basílio (1878), 0 m andarim (1880), A relíquia (1887), Os
M aias (1888). O método de apuração era o do voto universal;
qualquer pessoa podia enviar seu veredicto para a redação.
Em 23 de setembro, anunciou-se o resultado: Os M aias foi o
grande vencedor, com 94 votos; 0 p rim o Basílio contou com o
apoio de 81 votantes; M em ória s póstum as de Brás Cubas obteve
68 indicações; A rdzquia, 50; A m ão e a luva, 49; por fim , 0 Ateneu
contabilizou 41 leitores fiéis.
Três romances de Eça, dois títulos de Machado e a lem ­
brança do nome de Raul Pompeia. É incontestável a prim azia
concedida ao escritor português. Naturalmente, ele tam bém
desfrutou de prestígio sim ilar em Portugal.
Concurso anterior, realizado em Coimbra, em 1884, buscou
identificar os três maiores escritores de língua portuguesa.
O resultado não deixa de ser surpreendente, esclarecendo as
modificações do gosto literário. O prim eiro lugar coube a Eça,
com 473 votos; a vice-liderança foi concedida a Alexandre
Herculano, com 202 adeptos; o terceiro posto, e eis o inespe­
rado, pertenceu a Aluísio Azevedo, com sólidas 195 indicações;
José Alencar contou com 174 admiradores; a Machado restou
o consolo de um quinto lugar e 164 votos; por fim , Camilo
Castelo Branco recebeu 139 sufrágios.55

55 Informações colhidas em Arnaldo Faro, Eça e o Brasil, p. 205-213

218
Tais resultados nem sempre valem o quanto pesam; seria
um equívoco trivial considerá-los juízos críticos indiscutíveis.
Porém, eles esclarecem a autoridade atribuída pelos contem­
porâneos a Eça. Por isso, ele busca iniciar um debate com
Machado acerca do realismo, com o propósito de pontificar
em terreno espinhoso. Os termos da carta são claros e guar­
dam um leve sabor irônico: “Um total acolhimento da parte
de uma literatura tão original e tão progressiva como a do
Brasil é para m im uma honra inestimável — e para o Realismo,
no fim de tudo, um a confirmação esplêndida de influência e de
vitalidade” (p. 228, grifo meu).
Pelo avesso, a dureza da crítica machadiana demonstra a
força da opção estética queirosiana, pois a veemência do re­
paro ilum ina a im portância do m ovim ento. Machado não
morde a isca e, se cogitou a possibilidade de levar adiante o
diálogo, um passo em falso de Eça tornou a correspondência
improvável.
Ao que tudo indica, passo em falso de seu editor, Ernesto
Chardron. Em 27 de julho, ele envia uma carta de agradeci­
mento ao autor de Helena, adicionando ao gesto de cortesia
uma proposta com ercial no m ín im o imprudente. De olho
comprido no mercado editorial brasileiro, Chardron remete,
junto com a carta, a folha de rosto tanto da nova tiragem de
0 p rim o Basílio quanto da prim eira edição de A ca p ita l No
verso das provas, figurava a seguinte afirmação, impressa
— e sem que Machado tivesse sido consultado:

Declaramos para todos os efeitos da lei, que a propriedade


literária desta obra, no Im pério do Brasil, pertence ao Ex.mu
Sr. J. M. M achado de Assis. — Eça de Queirós — Ernesto
Chardron. (p. 229)

219
Ora, além de engolir em seco o êxito incontestável de Eça,
M achadinho deveria assumir o singelo papel de represen­
tante com ercial de seu colega mais jovem ; o m esm o que
transpôs ainda há pouco as portas da oficina literária. O tópico
é sensível, pois nem sempre se ambiciona o papel tranqüilo
de segundo violino. Mesmo um m elôm ano poderia desapro­
var a sugestão.
Lembre-se como Machado procurou justificar a dureza de
seu exame:

Um dos meus contendores acusa-me de nada achar bom n’0


Primo Basílio. Não advertiu que, além de proclam ar o talen ­
to do autor (seria pu eril negar-lho) e de lhe reconhecer o
dom da observação, notei o esm ero de algumas páginas e a
perfeição de um dos seus caracteres. Não me parece que isto
seja negar tudo a um livro, e a um segundo livro. (III, p. 909,
g rifo meu)

Traduzo a observação machadiana: Eça devia ser visto


como um romancista estreante; ainda não possuía propria­
m ente uma obra, cuja extensão autorizaria a consagração
imediata. Portanto, devagar com o andor, pois o autor portu­
guês (ainda) era de barro e havia apenas publicado um segun­
do livro.
No romance publicado por Machado durante a polêmica,
há um personagem que ajuda a im aginar sua reação ao ler a
nota de Eça e Chardron, e, repita-se, sem que o brasileiro ti­
vesse form alm ente concordado com os termos propostos pelo
astucioso editor. Em laiá Garcia, destaca-se a altivez de uma
agregada que reage, com a ênfase que lhe é possível numa
sociedade patriarcal, aos vexames impostos por sua posição.
Numa passagem decisiva, Esteia tenta explicar ao pai a razão
pfla qual não perm itiu que o filh o de sua protetora tomasse
c e r t a s liberdades. Sua resposta à circunstância restrita em
<|iie se encontrava vale por um programa de vida, isto é, o
exercício da ética possível num meio adverso (projeto caro ao
próprio Machado):

Depois contou-lhe a paixão de Jorge e todo o episódio da


Tijuca, causa originária dos acontecimentos narrados neste
livro; m ostrou-lhe com calor, com eloqüência, que, recusan­
do ceder à paixão de Jorge, sacrificara algumas vantagens
ao seu próprio decoro; sacrifício tanto mais digno de respei­
to, quanto que ela amava naquele tem po o filh o de Valéria.
Que pedia agora ao pai? Pouca e muita cousa; pedia que a
acompanhasse, que cessasse a vida de dependência e servüidade
em que vivera até ali', era um m odo de a respeitar e respeitar-se.
O pai escutava-a atônito. (I, p. 508, grifos meus)

O pacato Sr. Antunes não entende a filha: por que colocar


em risco a segurança da fam ília, recusando a Jorge o que não
deixaria de ser um “d ireito” ? Como entender o capricho,
afinal, ela amava naquele tem po o filho de Valeria.56 A altivez de
listela esclarece os limites impostos por um legítim o senti­
mento de amor-próprio: agregada, mas não propriedade do
filh o da protetora.

56 A seqüência é cortante: Tu chegaste a amá-lo! exclamou ele. Não o


aborrecias? Amaram-se? E só agora sei... Bem digo eu; tu és uma fera. Não
tens, nunca tiveste pena de minha velhice... Ele é tão bom! tão digno! E se
morresse por tua causa? não terias remorsos? não te havia de doer o coração
quando soubesses que um moço tão bem-nascido, que gostava de ti... Sim,
ele gostava muito de ti; e tu também... e só hoje!
Esteia fechou os olhos para não ver o pai. Nem esse amparo lhe ficava na
solidão. Compreendeu que devia contar só consigo, e encarou serenamente
o futuro. Partiu; o pai despediu-se dela com o desespero no coração, — e
desta vez a dor era desinteressada e pura. Jorge consolou-o depressa. Não
houve interrupção na convivência, e o Sr. Antunes continuou a achar ali a
mesma proteção e cordialidade.” (I, p. 508)

221
Machadinho descreve o brio de Esteia com simpatia reve-
ladora. A oferta comercial de Eça e Chardron chega no pior
momento. Machado nunca respondeu; é quase desnecessário
acrescentá-lo.
O escritor português acusa o golpe e, embora não se possa
estabelecer uma relação simples de causa e efeito, é sintomá­
tica a virulência da prim eira réplica à crítica machadiana.
Como vim os no Capítulo 2, sem nenhuma intenção de ser
sutil, Eça sugere agressivamente que Machado não tinha lido
o romance de Zola, a Faute de VAbbé M ouret: “ um dia, por aca­
so, descobriu, anunciado num jorna l francês, ou viu, num a vitri­
na de livreiros” (p. 171, grifos meus).
A réplica sardônica foi publicada na íntegra apenas pos­
tumamente. Contudo, isso não fez muita diferença. Em 1880,
numa nova edição de 0 crime do padre Am aro, Eça não deixou
pedra sobre pedra. O desconforto com a acusação de plágio
seguia forte:

Os críticos inteligentes que acusaram 0 Crime do Padre Amaro


de ser apenas uma imitação da Faute de VAbbé Mouret não tinham
infelizmente lido o romance m aravilhoso do Sr. Zola, foi talvez
a origem de toda a sua glória. A semelhança casual dos dois
títulos induziu-os em erro.
Com con h ecim en to dos dóis livros, só um a obtusidade
córnea ou má-fé cínica poderia assemelhar esta bela alegoria
idílica, a que está m isturado o patético drama duma alm a
mística, a’0 Crime do Padre Amaro que, com o podem ver nes­
te novo trabalho, é apenas, no fundo, uma intriga de clérigos
e de beatas tram ada e m urm urada à sombra duma velha Sé
de província portuguesa.
Aproveito este m om ento para agradecer à Crítica do Brasil
e de Portugal a atenção que ela tem dado aos meus trabalhos.
(I, p. 8, grifos meus)
übtusidade córnea ou m á-fé cínica: o torpedo tinha alvo cer-
lo. O leitor severo de 0 p rim o Basílio precisava encontrar um
novo caminho.

O inverno, então, chegou de vez.


No final do ano; mais precisamente em 27 de dezembro,
Machado, funcionário público exemplar, entra em licença
médica. A doença dos intestinos e a enfermidade dos olhos
Ilassaram a exigir cuidados sérios. Segue, com Carolina, para

Nova Friburgo, retornando apenas em março do ano seguinte.

Volta recuperado. Gordo, até. Em carta enviada a José


Veríssimo em I o de dezem bro de 1897, recorda o período,
talvez com saudade de si mesmo: “ Estimei ler o que me diz
dos bons efeitos de Nova Friburgo. A m im este lugar, para
onde fui cadavérico, há uns dezessete anos, e donde saí gordo,
ce qu’on appelle gordo, hei de sempre lembrar com saudades.”
(III, p. 1.042). O tópico retorna em carta de I o de fevereiro de
1901, para o mesmo amigo: “Nova Friburgo é terra abençoa­
da. Foi aí que, depois de longa moléstia, me refiz das carnes
perdidas e do ânim o abatido.” (III, p. 1.055)
Ele nunca havia ido tão longe. De Nova Friburgo, Machado
retorna bem-disposto. Gordo, inclusive. E, sobretudo, autor
da prim eira versão das M em ória s póstum as de Brás Cubas, em
parte ditada a Carolina, enquanto o incômodo dos olhos não
lhe perm itia escrever.
O ano pode ter sido difícil.
Mas a conclusão não poderia ter sido mais favorável.

1879: véspera

1879 foi um ano ainda mais significativo para a hipótese que


desenvolvo.

223
Em p rim eiro lugar, uma diferen ça decisiva: Machado
lança apenas cinco textos. Como os futuros leitores do defun­
to autor: talvez cinco. Provavelmente, ele consagra boa parte
do tem po à revisão fin al do manuscrito que trouxe de Nova
Friburgo.
E não é tudo.
Nessa exígua produção, destacam-se textos que elaboram
precisam ente o campo sem ântico da emulação, com seus
termos correlatos: plágio, originalidade, imitação, cópia.
Vimos o estudo dedicado à obra de Antônio José, autênti­
co texto-ponte entre a crítica a 0 p rim o Basílio e a revolução
Brás Cubas. Por isso, mais uma vez, peço ao leitor que retorne
rapidamente ao Capítulo 2 e reveja a eloqüência dos termos
empregados no longo artigo dedicado ao Judeu.
Vale a pena, ainda assim, repetir algumas passagens, nas
quais Machado recorre ao horizonte da aemulatio:

Cotejando o Anfitrião de A n tôn io José com os de seus ante­


cessores, vê-se o que ele imitou dos modelos, e o que de sua
casta introduziu.
(...)
Se, neste ponto, já nào se trata de uma situação, de um
caráter novo, mas de uma ideia entrelaçada no diálogo, im ­
porta repetir que, ainda imitando ou recordando, o Judeu se
conserva fie l à sua fisionom ia literária; pode ir buscar a es­
peciaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de
sua fábrica.
(II, p. 729 e 731, grifos meus)

Na véspera de concluir as M em ória s póstum as, Machado


aperfeiçoa o método, insistindo no padrão adotado no exam e
do romancista português. O modelo conheceu pleno desen­
volvimento na nota “Ao leitor”, que abre as M em órias póstumas,
.issim como no prefácio à terceira edição do romance, saída
i*m 1896.
Há mais.
No mesmo ano de 1879, mais precisamente em 15 de ou-
i ubro, na Revista Brasileira, Machado publica fragmentos de
uni texto d ifíc il de comentar. Isso não em virtude de sua
qualidade, mas devido ã surpresa da opção estética. Trata-se
de exercício atípico numa longa carreira. A começar pela
fonte de inspiração: “ O assunto deste poema é rigorosamente
histórico. (...) Tal é o episódio que me propus celebrar e que
os leitores podem ver no Tomo III dos Anais do Rio de Janeiro,
de Baltasar da Silva Lisboa” (III, p. 227).
R efiro-m e ao poem a herói-côm ico, em oito cantos, 0
Alm ada, um poem a narrativo que recorda um episódio pro­
priamente risível que teve lugar em 1659, no Rio de Janeiro.
Compreenda-se que a anedota assim deveria ser para que o
gênero herói-côm ico tivesse lugar, pois ele se alim enta da
desproporção entre dicção épica e trivialidade do assunto.
O episódio já havia sido aproveitado por José de Alencar
em seus Alfarrábios, publicado em 1873 e composto por três
narrativas, “ O Garatuja”, “O Ermitão da Glória” e “A lm a de
Lázaro”. No prim eiro relato, Alencar recria o caso na form a
de uma novela, numa prosa satírica, quase picaresca.
Machado foi o prim eiro autor da literatura brasileira a
m editar sistematicamente sobre a obra de seus contemporâ­
neos, além de abraçar o conjunto da tradição, mantendo-se
razoavelm ente atualizado acerca da ficção estrangeira da
época. Logo, sua retomada da anedota implica um comentá­
rio sutil. Machado parece emendar o gesto literário de Alencar,
insinuando que, dada sua dimensão propriam ente caricata,
o incidente solicitava o recurso a um gênero consagrado pela
tradição: o poema herói-cômico, em lugar de uma crônica
histórica dos tempos coloniais.
O reparo machadiano não deixa de ser irônico. Em 1856,
Alencar se lançou na cena literária do Segundo Reinado atra­
vés de um ataque impiedoso ao poema épico de Gonçalves de
Magalhães, Confederação dos Tamoios. Um dos argum entos
principais de Alencar dizia respeito à inadequação do gênero
épico para moldar a matéria tratada. No ano seguinte, publi­
cou 0 Guarani. Na lógica alencariana, a prosa deslocava a
poesia. No caso de 0 A lm ada, o poema herói-cômico substitui
a crônica histórica.
O episódio que inspira 0 A lm ada pode ser resumido em
duas ou três frases.
Era o tem p o do sacerdote e prelad o a d m in istra tivo ,
Dr. Manoel de Sousa Almada. Numa ocasião, aparentemente
sem motivo, seus fâmulos agrediram um tabelião, que recor­
reu ao ouvidor-geral Pedro de Mustre. Abriu-se uma sindicân­
cia, apesar dos protestos enfáticos do sacerdote. Como o ou­
v id o r - g e r a l não in t e r r o m p e u as in v e s tig a ç õ e s , fo i
sum ariam ente excomungado! Todos se indignaram com a
arbitrariedade do Dr. Almada; a excomunhão foi suspensa e
o processo encaminhado a Lisboa.

(Fecham-se as cortinas.)

O poem a nunca foi reunido em liv ro pelo autor, nem


mesmo publicado na íntegra.

(Ainda bem.)

226
ü poema tampouco parece ju stificar o esforço de com po­
sição — isso para não mencionar a diligência exigida em sua
leitura. Os versos iniciais devem bastar para demonstrá-lo:

Musa, celebra a cólera do Alm ada


Que a flu m inense igreja encheu de assombro.
E se ao douto Boileau, se ao grave Elpino
Os cantos inspiraste, e lhes teceste
Com dóceis mãos as im ortais capelas,
P erd o a se m e a trev o d e a fro n tá -la
Esta e m p r e s a t a m a n h a . (...)
(III, p. 230, grifos meus)

O leitor identifica o espírito de aem ulatio nos versos desta­


cados, já que o modelo a ser seguido é respeitosamente anun­
ciado; contudo, não deixará de considerar os versos apenas
aceitáveis. E o que dizer da conclusão?

Isto dizendo, desaparece o vu lto


(Que era nem mais nem menos a Preguiça).
Então os reverendos assustados
Pela terra se lançam, e batendo
Nove vezes nos peitos, nove vezes
O duro chão, em lágrim as, beijando,
Pedem ao céu que dos eternos livros
Riscado seja o bárbaro decreto.
(III, p. 282)

Esse era o tom esperado de um poema herói-cômico, cujo


efeito deliberadamente caricato era obtido pela desproporção
entre dicção nobre e tema corriqueiro. Ainda assim, como
entender o lugar de 0 A lm ada na véspera das M em órias póstu­
m as? Como im aginar o defunto autor vizin h o dos versos:
“Pedem ao céu que dos eternos livros /Riscado seja o bárbaro
decreto” ?

227
A “Advertência” perm ite esclarecer o enigma:

Observei quanto pude o estatuto do gênero, que é parodiar o


tom, ojeito e as proporções da poesia épica. No canto IV atrevi-me
a imitar uma das mais belas páginas da antiguidade, o epi­
sódio de Heitor e Andrôm aca, na Ilíada.
(...)

Não se lim itou Dinis à única imitação citada. Muitas fez


ele da Ilíada, as quais não vi até hoje apontadas por ninguém,
talvez por se não ter advertido nelas. Indicá-las-ei sumariamente.
(...)

Agora direi que não é sem acanham ento que publico este
livro. Do gênero dele há principalm ente duas composições
célebres que me serviram de modelo, mas que são verdadeira­
mente inimitáveis, o Lutrin e o Hissope. Um pouco de ambição
me levou contudo a m eter mãos à obra e perseverar nela.
Não foi a de competir com Dinis e Boileau; tão presunçoso não
sou eu.
(...)

Dada esta explicação, necessária para uns, ociosa para


outros, deposito o meu livro nas mãos da crítica, pedindo-lhe
que fra n ca m en te m e apon te o que m erece correção. (III,
p. 228-229, g r ifo s meus)

Perceba-se, na ú ltim a passagem, o eco do prefácio de


Ressurreição: “A crítica decidirá se a obra corresponde ao in­
tuito, e sobretudo se o operário tem jeito para ela. É o que lhe
peço com o coração nas mãos” (I, p. 116). Mas tam bém se
observe a mudança de tom na voz autoral. Uma coisa é ofe­
recer o coração nas m ãos ; outra, solicitar uma correção franca
e possivelmente justa. Ademais, a correção somente poderá
ser feita pelo leitor; e esse salto constitui o eixo da prosa
machadiana da segunda fase.
Machado se reescreve inúmeras vezes, até encontrar a
dicção que o consagra.

228
A menção às autoridades define o marco no qual 0 Alm ada
• Irn* ser compreendido: duas composições celebres que me serviram
iIr modelo, mas que são verdadeiram ente inimitáveis, o Lutrin e o
lllssope.
O poema de Boileau, Le Lutrin, composto em seis cantos,
m ire 1674 e 1683, é autoridade incontornável no gênero. Nele,
dois sacerdotes se engajam numa discussão infinita acerca
da melhor posição onde colocar um atril; pretexto divertido
para esclarecer o ju ízo do autor na querela dos antigos e dos
modernos. O poem a de Boileau serviu de modelo a Antônio
I )inis de Cruz e Sousa na composição de 0 Hissope, publicado
postumamente em 1802.0 poema do português, assim como
o do brasileiro, se aproveita de episódio histórico, vazado no
molde herói-cômico.
A advertência de Machado revela pleno conhecim ento da
história do gênero. A lém disso, evidencia um em prego deli­
berado de práticas discursivas pré-românticas, cujo conheci­
mento se revela no vocabulário associado ao campo semân­
tico da emulação: parodiar o tom , o jeito e as proporções da poesia
épica.
N aturalm ente, não proponho conclusões d efin itivas a
partir de passagens como as extraídas da advertência a 0
Alm ada. Contudo, o vocabulário machadiano estimula m inha
hipótese. A referência às imitações realizadas por A ntônio
Dinis que somente não foram identificadas talvez p o r se não
ter advertido nelas im plica o elem ento-chave na técnica da
emulação: um circuito em que os polos da produção e da
recepção com partilham idêntico repertório. A técnica clássi­
ca da aem ulatio é acionada a partir de modelos fixos, embora
múltiplos. A emulação, prática moderna, deliberadam ente
anacrônica, dispõe de maior liberdade, até mesmo devido ao
progressivo esquecimento daquele repertório. Contudo, em
ambos os casos, a citação direta ou a alusão às fontes clássicas
é o procedim ento definid or da arte literária, revelando .1

pertinência à tradição; tradição copiosa em modelos imitáveis,


logo, em objetos passíveis de emulação. E não se descarte a
intenção irônica: quantos leitores contemporâneos se deram
conta do elo entre a prosa de Alencar e 0 poema de Machado? ’7
Tradição copiosa, eu disse.
A palavra cópia possui uma etim ologia hoje praticamente
esquecida. Em latim, copia evoca uma pluralidade de sentidos:
“abundância, poder, riqueza, faculdade, licença, permissão”.
A noção plena de copioso somente se recupera no sistema
literário pré-romântico. A abundância, por si só, concede licen­
ça, permissão para a reprodução da riqueza contida no modelo.
Tal faculdade, contudo, apenas se realiza quando a imitação
acrescenta à fonte aspectos novos. Reduzir o term o cópia à
mera reprodução do mesmo rem ete a um sentido vulgar,
dominante apenas no vocabulário pós-romântico. No hori­
zonte da aemulatio, tal redução semântica seria condenável,
pois assim se perderia a possibilidade de enriquecim ento do
m odelo contida no gesto de emulação.
No prólogo da terceira edição de Quincas Borba, Machado
justifica a decisão de não dedicar um romance inteiro à Sofia
Palha, m óvel im ediato da ruína do ignaro Rubião: “A Sofia
está toda aqui. Continuá-la seria repeti-la, e acaso repetir 0
m esm o seria pecado” (I, p. 642, g rifo meu). Repetição e diferen­
ça: eis o leitm otiv da técnica da aemulatio. Como já se esclare­
ceu, a imitatio não constitui uma finalidade, mas é 0 primei-

57 Recorde-se o esclarecimento de José Galante de Sousa: na publicação de


fragmentos de 0 Almeida, na Revista Brasileira, em outubro de 1879, Machado
acrescentou uma nota, na qual menciona o antecessor: “(...) Sobre esse
mesmo episódio escreveu Alencar um de seus últimos romances, o Garatuja”
(514).
i i passo de uma técnica que se consuma na indispensável
*11 ui.thUio do m od elo-a u ctorita s adotado.
Machado lança mão do sentido clássico do substantivo em
ul - umas ocasiões. No conto “Na arca”, publicado em 0 Cruzeiro
■-•iii 14 de maio de 1878, e reunido em Papéis avulsos (1882): “ E
i ' i a muito custo puderam Noé, Cam e as mulheres de Sem e
|.11c conter os dois combatentes, cujo sangue entrou a jorrar
• iii grande cópia” (II, p. 307, grifo meu).
Em “O segredo do Bonzo”, conto publicado na Gazeta de
Sol teias, em 30 de abril de 1882, e também recolhido em Papéis
avulsos, o emprego retorna duas vezes: “E digo as notícias da
*,emana, porque as ditas folhas são feitas de oito em oito dias,
cm grande cópia” (II, p. 326, g rifo meu). Pouco depois: “A as­
sembléia aclamou a Diogo Meireles; e os doentes começaram
de buscá-lo, em tanta cópia, que ele não tinha mãos a m edir”
(II, p. 328, g rifo meu).
A equivalência entre cópia e afluência é reveladora, sobre-
l udo nos dois contos citados. Seguindo de perto a lição de
Luciano, Machado parodia tanto a linguagem bíblica quanto
o modo quinhentista de Fernão Mendes Pinto.
Retorno ao enxadrismo literário.
Todo jogador de certo nível precisa copiar as estratégias
consagradas, por exem plo, na Defesa Caro-Kann, um dos
sistemas defensivos mais sólidos para quem joga com as peças
negras. Seus prim eiros lances necessariam ente repetirão
incontáveis partidas anteriores. Contudo, e p o r isso m esmo, na
proximidade do meio-jogo, as variantes imagináveis são pro­
priam ente incalculáveis. A dinâm ica do sistema da arte
com binatória oscila entre esses dois polos: de um lado, a
previsibilidade, e, de outro, o improviso.
Mesmo numa nota de ocasião, saída em outubro de 1893,
resgatada em Páginas recolhidas (1899), e dedicada a homena­

231
gear o livreiro Garnier, Machado define seu célebre estabe­
lecimento; era um “ponto de conversação e de encontro” (II,
p. 654). Ao caracterizá-lo, o emprego do substantivo mais uma
vez evoca a etim ologia latina;

Não é m ister lem brar o que era essa livraria tão copiosa e tão
variada, em que havia tudo, desde a teologia à novela, o livro
clássico, a com posição recente, a ciência, a im aginação, a
m oral e a técnica. (II, p. 655, g rifo meu)

A identificação desse vocabulário revela como o projeto


literário machadiano progressivamente mescla temporalida-
des distintas, tanto na justaposição de estilos e de épocas,
quanto na reciclagem bem pensada de termos, cuja gama de
sentidos havia sido reduzida pela revolução rom ântica.
Método, aliás, definido por Machado.
No Capítulo 1, mencionei a ideia de ressuscitar o triolet,
"não desmerecendo dos antigos m odelos" (III, p. 181, grifos meus).
Vejamos a recorrência do princípio no ensaio crítico “A
nova geração”, publicado na Revista Brasileira em I o de dezem ­
bro de 1879; literalm ente na antecâmara da revolução Brás
Cubas. Eis como se menciona a utilização do verso alexandri­
no na poesia brasileira:

A influ ência francesa é ainda visível (...). Não é novo na nos­


sa língua, nem ainda entre nós; desde Bocage algumas ten­
tativas houve para aclimatá-lo; C astilho o trabalhou com
muita perfeição. A objeção que se possa fazer à origem es­
trangeira do alexandrino é frou xa e sem valor; não somente
as teorias literárias cansam, mas tam bém as form as literárias
precisam ser renovadas. Que fizeram nessa parte os românticos
de 1830 e 1840, senão ir buscar e rejuvenescer algumas form as
arcaicas? (III, p. 814, grifos meus)

2S2
Machado vira habilm ente o feitiço contra o feiticeiro.
Apesar da defesa da estética da criação e do elogio do gênio
como dem iurgo de si mesmo, os próprios românticos teriam
recorrido aos mesmos procedimentos que se encontram na
hase da poética da emulação; fator especialmente verdadeiro
no caso da poesia romântica brasileira. Assim, se as form as
literárias precisam ser renovadas, por que não fazê-lo através de
um gesto já conhecido do leitor: buscar e rejuvenescer algumas
formas arcaicas? Torção tipicamente machadiana, o romantis­
mo é visto como inesperada contrafação do sistema literário
que os valores românticos relegaram ao ostracismo.
O uso constante dos verbos transplantar e aclimatar deve
ser entendido no mesmo diapasão. Por isso, a objeção que se
possa fa zer à origem estrangeira do alexandrino é fro u x a e sem
valor.
Claro! O preconceito nacionalista, elevado a critério lite­
rário, tornou-se característico durante o romantismo. Somente
então a história literária pautou-se pela determinação nacio­
nal. No contexto pré-romântico, aclimatar e transplantar são
verbos que designam uma ação exata, tanto necessária como
codificada, pois sempre se parte do repertório alheio para a
elaboração do próprio trabalho.
Ressalve-se, porém, que Machado tam bém em pregou o
verbo numa acepção distinta, ainda presa ao espírito rom ân­
tico; portanto, em direção contrária ao meu argumento. Penso
em seus prim eiros textos críticos.
Em “O passado, o presente e o futuro da literatura”, artigo
longo, publicado em duas entregas em A M a rm ota , nos dias 9
e 23 de abril de 1858, o jovem crítico segue à risca o figu rin o
da época. Ele chega a deplorar o recurso à literatura francesa,
num raciocínio que o ensaio de 1879 vira de ponta-cabeça:
(...) Raros, bem raros, se têm dado ao estudo de uma form a
tão im portante como o romance; apesar mesmo da convivên­
cia perniciosa com os romances franceses, que discute, aplaude
e endeusa a nossa mocidade, tão pouco escrupulosa e m fe rir
as susceptibilidades nacionais. (III, p. 788, grifos meus)

Exatamente como vim os no capítulo anterior, no ensaio


“ Ideias sobre o teatro”, do mesmo período, no qual o verbo
transplantar assumiu um sentido pejorativo, por sugerir
pouco apego às coisas pátrias. Aqui, a reserva ganha tintas
moralistas, pois as susceptibilidades nacionais também incluem
a rejeição do realism o e do naturalismo.
Idêntica acepção do verbo havia sido utilizada no artigo
de 1858, na discussão acerca da virtu al inexistência de um
teatro brasileiro:

Transplantar uma concepção dram ática francesa para a nos,


sa língua, é tarefa de que se incum be qualquer bípede que
entende de letra redonda. O que provém daí? O que se está
vendo. A arte tornou-se uma indústria; e à parte m eia dúzia
de tentativas bem sucedidas, o nosso teatro é uma fábula,
uma utopia. (III, p. 789, grifos meus)

O ato de transplantar uma form a forânea resulta no caráter


utópico do nosso teatro. A precisão do jovem crítico deve ser
assinalada: como aclimatar supõe necessariamente partir do
alheio, através do enxerto de plantas de climas diversos, então,
é como se o lugar p róp rio não pudesse ser constituído; daí, em
virtude do predom ínio da cena francesa, o teatro brasileiro
se transforma na m etoním ia involuntária da utopia.
Duas décadas depois desse ju ízo previsível, o m esm o autor
defende o uso do alexandrino francês na poesia local, pois,
ao fim e ao cabo, a objeção que se possa fazer à origem estrangei-
t'ii do alexandrino é frou xa e sem valor. De fato, todo o meu es-
lbrço pretende ilum inar a distância entre os dois autores.
Dois autores, eu disse.
E não se trata de erro de digitação.
Insistir em identificar a unidade rigorosa de um autor que
atravessa fases diversas, e às vezes opostas, não será antes um
exercício hermenêutico de prestidigitação?
0 crítico deve acompanhar as metamorfoses de um autor,
em lugar de impor-lhe cômodas etiquetas, tautologicamente
justificadas à sombra de um tranquilizador nome próprio.
Ofereço um exemplo definidor do uso desse campo semân­
tico pelo bem-intencionado autor das Crisálidas. Proponho
uma longa citação-colagem de “O folhetinista”, saído em 0
Espelho, em 30 de outubro de 1859.

Uma das plantas europeias que dificilmente se têm aclimatado


entre nós, é o folhetinista.
Se é defeito de suas propriedades orgânicas, ou da incom­
patibilidade do clima, nào o sei eu. Enuncio apenas a verdade.
Entretanto, eu disse — dificilmente — o que supõe algum
caso de aclimatação séria. O que não estiver contido nesta ex­
ceção, vê já o leitor que nasceu enfezado, e mesquinho de
formas.
O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde
vive a seu gosto, como em cama no inverno. De lá espalhou-se
pelo mundo, ou pelo menos por onde maiores proporções
tomava o grande veículo do espírito moderno; falo do jornal.
(...)
Na apreciação do folhetinista pelo lado local temo talvez
cair em desagrado negando a afirmativa. Confesso apenas
exceções. Em geral o folhetinista aqui é todo parisiense;
torce-se a um estilo estranho, e esquece-se, nas suas divaga-
ções sobre o boulevard e café Tortoni, de que está sobre um
mac-adam lamacento e com uma grossa tenda lírica no meio
de um deserto.

235
Alguns vão até Paris estudar a parte fisiológica dos cole­
gas de lá; é inú til d izer que degeneraram no físico com o no
moral.
Força é dizê-lo: a cor nacional, em raríssimas exceções,
tem tom ado o folhetinista entre nós. Escrever folhetim e ficar
brasileiro é na verdade difícil.
Entretanto, como todas as dificuldades se aplanam, ele
podia bem tom ar mais cor local, mais feição americana. Faria
assim menos m al ã independência do espírito nacional, tão
preso a essas imitações, a esses arrem edos, a esse suicídio de
originalidade e iniciativa. (III, p. 958-60, grifos meus)

Trata-se de texto provocador, a ser ruminado passo a passo.


A prim eira parte da citação insiste no vocabulário organi-
cista, cuja base é a oposição entre solo natal e plantas não
apenas adventícias, mas tam bém dificilm ente adaptáveis. O
simples esforço parece ocioso, uma vez que os resultados
costumam produzir um conjunto mesquinho deform as, mais
ou menos como um jardim que irrem ediavelm ente perdesse
o viço. Na compreensão machadiana, o folhetim , oriundo da
França, pode ser visto como um dos prim eiros casos de ex­
portação sistemática de uma moda artística, tornada inter­
nacional com o auxílio de um poderoso meio de comunicação:
o grande veículo do espírito m oderno; falo do jornal.
Não obstante o caráter convencional, mesmo conservador,
das observações do jovem Machado, a associação entre deter­
minado m eio de comunicação, o jornal, e internacionalização
de uma form a estética, o folhetim , m erece destaque, pois a
intuição perm anece atual. Esse é o sentido forte de outro
artigo, tam bém publicado em 1859, “O jornal e o livro ”, saído
no Correio Mercantil, em duas entregas, nos dias 10 e 12 de
janeiro, e dedicado “ao Sr. Dr. Manuel Antônio de Alm eida”.
O autor das M em ória s de um sargento de milícias foi seu protetor

236
«jiundo ele se tornou aprendiz de tipógrafo da Imprensa
ai ional. Por que não lhe prestar uma singela homenagem?
«.< ;io de gratidão que seria aprovado pelo Sr. Antunes...
Cheio de entusiasmo, o jovem Machado não hesita em
i lclender a emergência de um meio de comunicação capaz de
n lipsar os anteriores: “(...) o jornal é mais que um livro, isto
<. está mais nas condições do espírito humano. Nulifica-o
« oino o livro nulificará a página de pedra? Não repugno ad-
inil i-lo” (III, p. 946).
Machado alude, nessa passagem, a célebre título de Victor
111igo. De fato, um personagem de Notre-Dam e de Paris resumiu
mima frase famosa a revolução provocada pela Galáxia de
(iutenberg. 0 arquidiácono Dom Claude comparou o livro
impresso com a Catedral, concluindo com pessimismo:
Infelizmente! — disse —, isto matará aquilo.”580 livro des-
l ruiria o edifício.
A edição definitiva do romance de Victor Hugo é de 1832.
A ação narrativa, porém, tem lugar em 1482, ou seja, poucas
décadas após a invenção da tecnologia dos tipos móveis. 0
próprio narrador justifica a desconfiança do arquidiácono:
“Era a cátedra e o manuscrito, a palavra falada e a palavra
escrita que se alarmavam com a palavra impressa” (p. 216).
A melancolia do religioso ajuda a compreender que mais
importante do que assinalar o óbvio equívoco de sua predição
é observar a abertura de Machado para a hipótese de o livro
não ser um m eio definitivo, encerrado em si mesmo, mas,
pelo contrário, estar sujeito às m odificações da história con­
tem porânea. Essa intuição perm anece atual, em bora não

58 Victor Hugo. Notre-Dame de Paris. 1 4 8 2 . Tradução de Ana de Alencar e


Marcelo Diniz. São Paulo: Estação Liberdade, 2010, p. 215. Nas próximas
ocorrências, citarei apenas o número da página.

237
tenha sido desenvolvida no quadro tradicional dos comeni.i
rios acerca da aclimatação do folhetim .
A segunda parte da citação reitera a condenação a essa\
imitações, a esses arremedos, a esse suicídio de originalidade e inl
ciativa. Pelo avesso, a recusa do estilo afrancesado afirm a um
projeto nacionalista, defendido no mesmo período para o
teatro brasileiro. Por isso, escrever folhetim e ficar brasileiro é nu
verdade difícil.
Contudo, outra vez, em m eio a frases previsíveis, o jovem
crítico ameaça superar-se. Se o folhetinista da corte de Dom
Pedro II parece ter aclimatado com êxito o modo forâneo,
ainda assim, esquece-se, nas suas divagações sobre o boulevard c
café Tortoni, de que está sobre um m ac-adam lamacento. Mesmo
dedicado às belezas da Cidade Luz, traz os sapatos sujos de
barro; à prosa elegante de quem escreve ao correr da pena
reúne-se inesperadamente o descompasso de uma grossa tenda
lírica no meio de um deserto. Há algum a coisa que parece não
se encaixar na nova ordem do folhetim aclimatado, embora
o jovem crítico somente veja no descompasso um tom menor,
quase caricato. Ele identifica o hiato somente para condená-lo,
recorrendo a chavão que atravessa os séculos: considerar os
trópicos um deserto de hom em e de ideias.

(Já a conquista do defunto autor consiste precisamente em


converter a defasagem em princípio compositivo. Se, na es­
crita do folhetim , à sombra de uma grossa tenda lírica no meio
de um deserto, somente com parecem os “ares de Paris”, na
prosa de Brás Cubas, a visão do mundo corrosiva depende da
exploração desse contraste.)

A recuperação dessa faceta do jovem Machado im porta


porque revela que o estudo dos campos semânticos de sua
literatura nem sempre confirm ará m inha hipótese.

238
A literatura de um autor-matriz costuma ser superior à
formulação crítica, já que a pluralidade potencial de seus
t- m idos desautoriza a pretensão de reduzir sua obra a uma
interpretação unívoca.
() esforço crítico, contudo, pode ser igualm ente criativo.
I ira tanto, necessita reconstruir os processos internos à fa­
una ficcional, levando a indagações sobre a própria literatu-
ia que não necessariamente se encontram na superfície da
obra estudada.
I lora de concluir o estudo de 0 Alm ada.
A consulta às notas apensas ao poema permite ler 0 Alm ada
eom outros olhos, favorecendo um entendim ento novo do
exercício em aparência extemporâneo.
Machado reconhece exem plarmente suas filiações, como
diria Oswald. No Canto I, a terceira estrofe recorda o voo das
cegonhas de um continente a outro:

Tal o vate cristão que os heróis m ártires


Cantou piedoso, passeando um dia
Na velha terra grega, aliar-se em bando
As mesmas aves contemplou, que outrora,
Rasgando como então o azul espaço,
Iam do Ilisso às ribas africanas. (III, p. 231)

A nota identifica o figu rino dos dois últimos versos: “ Duas


vezes alude Chateaubriand à em igração das cegonhas da
Grécia para a África. Uma, no Itinerário, parte I (...). [E] nos
Mártires, canto XV (...)” (III, p. 317). O recurso à autoridade do
poeta francês legitim a o em prego do brasileiro, numa repe­
tição emuladora do m odelo adotado. Modelo que será virado
de ponta-cabeça na irreverência de Brás Cubas e suas compa­
rações deliberadamente fora de propósito. Aliás, não sendo a
menor delas a própria prosa do defunto autor, uma atualiza­
ção muito particular das interm ináveis M ém oires d ’outre-tom -
be — isso para não recordar o Diálogo dos m ortos, de Luciano.
Em relação a José de Alencar, Machado observa procedi­
mento semelhante. No calor da hora, ele resenha Iracema, em
artigo publicado no D iário do Rio de Janeiro, em 23 de junho de
1866. O romance tinha saído no ano anterior. Machadinho
compara a lenda de Alencar com célebre título de Chateaubriand;
afinal, episódio muito sim ilar ocorre nos dois relatos. É o
momento em que se anuncia a gravidez de Celuta, a esposa
indígena de René. Em Iracema, M artim igualmente descobre
que será pai. Eis a avaliação do jovem crítico:

Iracema vai dar conta a M artim daquela boa nova; há uma


cena igual nos Natchez; seja-nos lícito compará-la à do poeta
brasileiro.
Quando René, diz o poeta dos Natchez, teve certeza de que
Celuta trazia um filh o no seio, acercou-se com santo respei­
to, e abraçou-a delicadam ente para não machucá-la. “Esposa,
disse ele, o céu abençoou as tuas entranhas”.
A cena é bela decerto: é Chateaubriand quem fala; mas a
cena de Iracema aos nossos olhos é mais feliz. A selvagem cea­
rense aparece aos olhos de M artim , adornada de flores de
m aniva, trava da m ão dele e diz-lhe:
— Teu sangue já vive no seio de Iracema. Ela será mãe de
teu filh o.
— Filho, dizes tu? exclam ou o cristão em júbilo.
A joelhou ali, e cingindo-a com os braços, beijou o ventre
fecundo da esposa.
(III, p. 851, grifos meus)

Seria tolo im aginar que Machado se deixa levar por um


lim itado nacionalismo crítico na determinação da superiori­

240
dade da cena alencariana. De fato, o diálogo entre os cônjuges
é mais sugestivo do que a narração onisciente contida nos
Natchez. E isso para não m encionar o trabalho lingüístico de
Alencar, que introduz no português uma dicção tupi-guarani,
compondo uma linguagem literária de grande vigor, como se
depreende da fala de Iracema, cuja singeleza lírica contrasta
com o tom direto da pergunta de Martim. Ademais, o autor
de 0 guarani sempre reconheceu em Chateaubriand a autori­
dade m áxim a no desenvolvimento de uma “poesia america­
na”. O jovem Machado considera a possibilidade de a imitação
do modelo resultar artisticamente superior, mas ainda não
havia com preendido a dim ensão técnica da aem ulatio. Ele
precisou de alguns anos antes de tornar a intuição princípio
compositivo.
É exatamente o que ocorre no poema 0 A lm ada.
Consulte-se outra nota.
No Canto II, na estrofe VIII, o verso “Para o braço espraiar
do grande Alm ada” (III, p. 235) merece a seguinte ju stificati­
va: “Espraiar o braço é tradução de épanouir la rate, não minha,
mas de Filinto Elísio” (III, p. 319, grifos do autor). Como se
fosse um sampleador poético, ou um precursor da “escrita
não criativa” (uncreative w ritin g), Machado incorpora a seu
poema a tradução alheia, sem nenhuma marca distintiva, e
esse é o ponto decisivo. Mais do que o modo tradicional da
alusão ou da citação, o autor de 0 A lm ada se apodera radical­
mente da palavra do outro. O leitor que ignorar a nota ou não
fo r um e x ím io conhecedor de F ilin to Elísio considerará
Machado o criador do verso “ Para o braço espraiar do grande
Alm ada”. Em proveito de sua invenção poética, Machado ado­
ta o critério com o qual exam inou a obra teatral de Antônio
José: o estrangeiro como condimento do próprio.

241
A simples adoção do gênero herói-cômico ilum ina o cami­
nho que ele radicaliza com as M em órias póstum as de Brás Cubas.
Tal parece ser a form a mais fecunda de compreender o exer­
cício poético sobre uma form a olvidada.
De um lado, o gênero exige o uso de linguagem sublime,
o recurso à estrutura literária semelhante à da épica, o em ­
prego de metáforas ricas e a invenção de conceitos agudos,
porém, o assunto do poema deve ser banal, mesmo farsesco.
A óbvia inadequação entre form a épica e conteúdo trivial
provoca o desequilíbrio cômico, dicção dominante do gênero.
Não é verdade que a força das M em ória s póstum as tam bém se
baseia em desproporções similares? Vim os a comparação,
propriamente risível, entre a narrativa do defunto autor e o
Pentateucol O método se dissemina em todo o livro e se man­
tém marca registrada nos romances da segunda fase, nos
contos e na crônica. 0 A lm ada, assim, readquire seu lugar na
produção machadiana, como se o autor estivesse aquecendo
os músculos para o desafio mais difícil.

Aemulatio e público leitor

De outro lado, o exercício traz para o centro da cena a verda­


deira correia de transm issão constituída no universo da
imitatio e da aemulatio, cuja base é a reciclagem constante da
tradição. Reciclagem irreverente, que provoca um efeito de
dessacralização típico do grande estilo machadiano. Eis o
aspecto mais fecundo do resgate do gênero herói-cômico.
Explico-me.
O esforço heroico do representante de uma literatura
produzida no subúrbio do mundo — nos termos empregados
por Ricardo Piglia e M ilton Hatoum — para abarcar o con-

242
111111o da tradição não deixa de ter ressonâncias cômicas, como
«• houvesse uma assimetria estrutural entre circunstância
■ isi encial e projeto estético. Tema aproveitado por Machado
«'in inúmeros contos, crônicas e mesmo em sua poesia.
I)e fato, especialmente em seus versos, Machado sampleia
com a desenvoltura dos atuais músicos de hip-hop. Atitude
.inundada em suas primeiras produções.
No poema “Minha mãe”, publicado na M arm ota Fluminense,
cm 2 de setem bro de 1856, e não reu nido em liv ro por
Machado, o leitor é adequadamente inform ado de que se
I rata de uma “Imitação de C ow per”. É provável que o jovem
autor aludisse ao conhecido poema de W illia m Cowper, fre ­
qüente nas antologias da época, “ On the Receipt o f m y
Mother’s Picture”. Reminiscente do modelo clássico, pintura
e poesia se associam na fórmula “imitação de...”.
Nas décadas seguintes, o procedimento é aperfeiçoado.
Em Falenas, segundo livro de poemas de Machado, saído
em 1870, encontra-se “Uma ode de Anacreonte”, texto teatral
em verso alexandrino; aliás, já vimos seu ju ízo sobre a origem
francesa do verso. Num determ inado momento, lê-se um
poema de Anacreonte. No final, o leitor é convidado a con­
sultar o revelador esclarecimento:

É do Sr. A ntônio Feliciano de Castilho a tradução desta ode-


zin h a, que deu lu gar à com posição do meu quadro. Foi
im ediatam ente à leitura da Lírica de Anacreonte, do im ortal
autor dos Ciúmes do Bardo, que eu tive a ideia de pôr em ação
a ode do poeta de Teos, tão portuguesm ente saída das mãos
do Sr. C astilh o que mais parece original que tradução. (III,
p. 181, grifos meus)

A relevância da tradução na obra machadiana é bem co­


nhecida; reforçando a centralidade da tarefa do tradutor na
formação do cânone em culturas não hegemônicas. Em alj',u
ma medida, traduzir e aclimatar são ações familiares. Mu n<•.
versos machadianos se originam da apropriação de traduções
Seu prim eiro livro — “esta pequena obrinha”, anunciou ,\
M a rm ota , em junho de 1861 — foi a tradução de uma “sátii.i
em prosa”, Queda que as mulheres têm para os tolos. Veja-se o cas< •
da “ Lira chinesa”, tam bém publicado em Falenas, e que reúne
oito pequenos poemas. Na explicação de Machado:

Os poetas imitados nesta coleção são todos contemporâneos.


Encontrei-os no livro publicado em 1868 pela Senhora Judith
W alter, distinta viajante que dizem conhecer profundam en­
te a língua chinesa, e que traduziu em simples e corrente prosa.
(III, p. 181, grifos meus)

Ainda no mesmo livro, Machado oferece sua versão de “Os


Deuses da Grécia”, de Friedrich Schiller. O desconhecimento
do original não chega a ser obstáculo intransponível: “Não
sei alemão; traduzi estes versos pela tradução em prosa france­
sa de um dos mais conceituados intérpretes da língua de
Schiller” (III, p. 316, g rifo meu). Os caminhos machadianos
são variados: do original à tradução, que mais parece original,
e da prosa à poesia. Não im porta a procedência, pois o que se
im põe é a sugestão lírica colhida de maneira indistinta pelo
poeta.
Em Am ericanas, livro lançado em 1875, o leitor encontra
“Potira”, poema narrativo que reitera o gesto de samplear a
poesia alheia. Os versos

(...) Cova funda


Da terra, mãe comum, no seio aberta,
Os acolhe e protege (III, p. 102, g rifo meu)

244
demonstram sua habilidade na arte de dar nova roupagem
»io t raje alheio. Numa observação discreta, Machado revela a
fonte:

Veja G. Dias, Ültimos cantos, p. 159:


... Quando o meu corpo
À terra, mãe comum... (III, p. 182, grifo meu)

Nada mais se diz: apenas se apresenta ao leitor a autorida­


de reverenciada na reciclagem da obra. No mesmo livro,
Machado inclui “Cantiga do rosto branco”, esclarecendo:

Não éoriginal esta composição; o original é propriamente indí­


gena. Pertence à tribo dos Mulcogulges, e foi traduzida da
língua deles por Chateaubriand (Voyage áans VAmérique).
Tinham aqueles selvagens fama de poetas e músicos, como
os nossos Tamoios. (...) A ode célebre é a composição que
trasladei, para a nossa língua. O título na tradução em prosa
de Chateaubriand é — Chanson de la chair blanche. (III, p. 316,
grifos meus)

Machado aproveita com assiduidade a tradução emprosa de


um poema, a fim de retraduzi-lo poeticamente, mesmo sem
dominar o idioma original. Trata-se de um método, dada a
constância do uso. Destaque-se o processamento fluente a
que Machado submete seus modelos. Os jovens de hoje se
julgam criadores de um jeito inédito, mixando ritmos, letras
e toda forma de arte em novos arranjos. Machado já dispunha
de um mecanismo propriamente inventivo e inesgotável: o
universo da aemulatio.
Leia-se a mais completa tradução do circuito:
(...) Homero e Virgílio têm servido mais de uma vez aos poetas
herói-cômicos. Não falemos agora de Ariosto e Tassoni. Parodiou
Boileau, no Lutrin, o episódio de Dido e Eneias; Dinis seguiu-lhe
as pisadas no diálogo do escrivão Gonçalves e sua esposa, e
ambos o fizeram em situação análoga ao do episódio em que
imitei a imortal cena de Homero. (III, p. 228, grifos meus)

Estamos de volta ao círculo do vaga-lume e do sol; mas ele


não é mais vicioso.
Homero é a autoridade máxima do gênero épico. Virgílio
o imitou, e com tamanha arte que também se transformou
em auctoritas. Daí, os dois necessariamente têm servido mais
de uma vez aos poetas herói-cômicos. Não poderia ser de outro
modo, pois fornecem o ponto de partida incontornável para
quem deseje parodiar a épica. Por que Machado não imitaria
Boileau, se o próprio Dinis seguiu-lhe as pisadas? Até o vocabu­
lário é uma espécie de ressurreição de formas e termos
pré-românticos. Relembrem-se as palavras de Luciano, estu­
dadas no capítulo anterior: “Agora o resultado é que o único
mérito dos meus escritos é que não são convencionais, tam­
pouco seguem as pegadas dos outros” (p. 294, grifo meu).
É indispensável palm ilhar o caminho trilhado pelos mes­
tres, a fim de apurar a técnica. Entenda-se: indispensável
porque, idealmente, o público leitor conhece as obras exem­
plares e exige que o aprendiz de poeta explicite seu estudo
através de alusões ou mesmo citações diretas.
Nesse contexto, ganha novo sentido a definição do “ins­
tinto de nacionalidade”. Talvez Machado pensasse no elo in­
dissociável entre leitores efetivos e autores potenciais — essa
é a ordem exata. Por isso, atribui aos escritores uma tarefa
particular:

246
Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe
loj^o, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade.
Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento
buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que
semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de
futuro. As tradições de Gonçalves Dias, Porto Alegre e
Magalhães são assim continuadas pela geração já feita e pela
que ainda agora madruga, como aqueles continuaram as de José
Basílio da Gama e Santa Rita Durão. (III, p. 801, grifos meus)

À primeira vista, a passagem parece alinhar-se automati-


cumente com o empenho nacional, definidor da corrente
majoritária da literatura oitocentista. Afinal, não apenas todas
asformas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do
país, como também esse traço é sintoma de vitalidade e abono de
luLuro. Contudo, a sentença seguinte permite outra interpreta-
ç;to, pelo menos introduz uma nuance. Em alguma medida, as
cores do país definem-se pela tonalidade das lombadas de inú­
meros livros e não pela fotografia fiel da paisagem.
O “instinto de nacionalidade” não deixa de ser o impulso
consciente de desenvolvimento de um corpus textual através
da invenção de uma biblioteca imaginária. Trata-se de uma
cadeia particular de leitores, levando adiante uma tradição
comum que se estabelece no momento mesmo em que o cir­
cuito principia a funcionar. Machado vislumbra a promessa
de um universo virtual de autores, a ser criado em torno de
um repertório de leituras. Tal perspectiva autoriza outra
leitura da famosa definição: “O que se deve exigir do escritor
antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem
do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos
remotos no tempo e no espaço” (III, p. 804, grifo meu). O
certo sentimento íntimo, se não forço a nota, também vibra na
memória coletiva construída, pelo menos parcialmente, à
roda da biblioteca. Machado justifica sua posição recorrendo

247
à autoridade que mais respeitava: “(...) e perguntarei mais se
o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma
coisa com a história inglesa nem com o território britânico,
e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio um
versai, um poeta essencialmente inglês” (ibidem).
A página final do ensaio é impressionante, oferecendo
uma síntese primorosa do meu projeto:

Feitas as exceções devidas não se leem muito os clássicos no


Brasil. Entre as exceções poderia eu citar até alguns escrito­
res cuja opinião é diversa da minha neste ponto, mas que
sabem perfeitamente os clássicos. Em geral, porém, não se
leem, o que é um mal. Escrever como Azurara ou Fernão Mendes
seria hoje um anacronismo insuportável. Cada tempo tem o seu
estilo. Mas estudar-lhes as formas mais apuradas da lingua­
gem, desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se
fazem novas, — não me parece que se deva desprezar. Nem
tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os
haveres de uns e outros é que se enriquece o-pecúlio comum. (III,
p. 809, grifos meus)

O texto foi escrito em 1873. No ano anterior, Machado


publicou Ressurreição e preparava-se para lançar A mão e a luva,
no ano seguinte. Lidos isoladamente, os trechos que destaquei
não parecem conclusivos, pois os dois romances estavam
longe de configurar um entendimento inovador da técnica
da aemulatio. Contudo, no contexto que venho desenvolvendo,
adquire especial força a ideia de estudar os clássicos, a fim
de desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas sefazem
novas, pois esse é o procedimento que favorece o pulo do gato
das Memórias póstumas.
Reproduzir literalmente formas do passado engendra um
anacronismo insuportável — sem dúvida. Porém, recuperar, em
tempos pós-românticos, práticas literárias pré-românticas
1'imluz um estranhamento muito rico, cujas conseqüências
■ i d icas assinalam a diferença entre o primeiro e o segundo
M.u liado. Embora os termos da equação já estivessem formu­
lados em 1873, ele ainda não estava preparado para incorpo-
i i los formalmente a sua literatura. O impacto provocado
I •« Io êxito de 0 primo Basílio pode ter sido o elemento catali-
•..ulor que fazia falta para que o sempre adequado autor de
lulií Garcia assumisse o risco de reinventar-se.
Por isso, a emergência sistemática do campo semântico
associado ã emulação ocorre na resposta ao sucesso de Eça.
Ainda mais surpreendente é que, muitos anos antes da
revolução Brás Cubas, o jovem crítico, resenhando o teatro de
|osé de Alencar, já se achava na trilha que mais tarde o consa­
graria. Em longo ensaio, publicado em três entregas no Diário
ilo Rio deJaneiro, em 6,13 e 27 de março de 1866, ele pondera:

Verso e Reverso deveu o bom acolhimento que teve, não só aos


seus merecimentos, senão também à novidade da forma. Até
então a comédia brasileira não procurava os modelos mais esti­
mados; as obras do finado Pena, cheias de talento e boa veia
cômica, prendiam-se intimamente às tradições da farsa por­
tuguesa, o que não é desmerecê-las, mas defini-las; se o autor
d’0 Noviço vivesse, o seu talento, que era dos mais auspiciosos,
teria acompanhado o tempo, e consorciaria osprogressos da arte
moderna às lições da arte clássica. (III, p. 871, grifos meus)

A novidade da forma é o resultado da ampliação do reper


tório: para além de um único núcleo — seja a farsa portugue­
sa, seja o romance naturalista francês —, um autor de talen­
to precisa diversificar suas fontes, ensanchar sua perspectiva.
Quanto mais um autor deve à tradição, quanto mais influên­
cias recebe, quanto mais filiações reconhece, mais livre e in­
ventivo ele se descobre. Pelo avesso, Machado oferece uma
radiografia da opção estética que lhe permite imaginar as
Memórias póstumas. Método similar é seguido em seus c o ii I on
dedicados à música. 0 talento de Martins Pena, embora inr
gável, não pôde se aprimorar porque ele não procurava m
modelos mais estimados, disponíveis nas lições da arte clássica,
Onde mais?
Tais passagens esclarecem que o elogio romântico do gên io
possui um lado muito menos nobre do que o divulgado pelos
defensores da estética da criação. Refiro-me à emergência do
um público urbano de massas incapaz de identificar alusões,
citações e apropriações, simplesmente por desconhecer o
repertório clássico.
O problema não é exclusividade brasileira, porém sintoma
do surgimento da indústria cultural, e isso em qualquer la­
titude. Carlos Monsiváis, um dos mais importantes ensaístas
hispano-americanos do último século, resumiu o dilema num
notável título-manifesto: Las alusionesperdidas.59Alusões per­
didas que aludem ao romance de Honoré de Balzac, Les Illusions
perdues, concluído em 1843. Os leitores do autor mexicano
que não associem imediatamente os dois livros se convertem
em evidência involuntária do seu argumento.
Daí, a crítica velada de Machado aos leitores que não sou­
beram identificar as imitações de Dinis talvez por se não ter
advertido nelas. Repita-se a pergunta: e o que dizer dos leitores
que não relacionaram 0 Almada e 0 garatuja? Nesse horizonte,
o pessimismo do defunto autor também envolve uma consi­
deração de caráter pragmático:

59 “ Oh, Funes, deus das intimidações da memória! Óh mania de catálogo,


deusa da amplidão dos conhecimentos indemonstráveis! Oh as noites em
claro, deixando de ler para preparar listas das leituras fundamentais!... Já
exibida minha árvore genealógica como leitor e escritor, cumprindo um ri­
tual freqüente nos países antes (e ainda hoje) periféricos, dou ciência da
minha formação, a que tenha.” Carlos Monsiváis, Las alusiones perdidas, p. 30.

250
Qiu* Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros
p.ira cem leitores, é coisa que admira e consterna. O que
ii.io admira, nem provavelmente consternará é se este outro
livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta,
nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. (I, p. 513,
grifo meu)

A escassez do público leitor estimula a irreverência com


<11 u* Brás Cubas o trata: quando se navega próximo do muito
pouco, por que não arriscar tudo numa mão promissora?
Quem disse que o blefe não possui potencial estético? Na
passagem sempre citada, o exíguo se transforma em inespe­
rado princípio de liberdade:

A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me


da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e
adeus. (I, p. 513)

Cuidado, porém, com o estabelecimento de vínculos auto­


máticos entre essa circunstância e a precariedade das condições
brasileiras. Elas eram mesmo precárias, especialmente no sécu­
lo XIX; porém, a emergência de um público urbano de massas
alheio à tradição clássica é um fenômeno de caráter geral, defi­
nidor da modernidade cultural em países como França e
Inglaterra.60Transitar sem mediações do ufanismo à autoflage-
lação talvez não seja o modo mais propício de lidar com os fato­
res propriamente locais de uma situação cosmopolita.

600 predomínio do gênero romance relaciona-se intimamente com a dimi­


nuição progressiva da relevância social da arte retórica. Trato do tema no
próximo capítulo.
0 Camões de Machado

Hora de discutir uma faceta pouco estudada da obra maeli.i


diana: seu teatro.
A peça, Tu só, tu, puro amor, cujo título é extraído de um
verso de Os Lusíadas,61 foi escrita no espírito das celebrações
do tricentenário da morte do poeta, e representada no Teat ro
D. Pedro II, em 10 de junho de 1880. O texto foi publicado na
Revista Brasileira, na edição de I ode julho do mesmo ano. Um
trabalho de ocasião, que tem passado despercebido.
Vale a pena, porém, escutar as palavras do autor sobre
seus propósitos:

O desfecho dos amores palacianos de Camões e de D. Catarina


de Ataíde é o objeto da comédia, desfecho que deu lugar à
subsequente aventura de África, e mais tarde à partida para
a índia, donde o poeta devia regressar um dia com a imor­
talidade nas mãos. Não pretendi fazer um quadro da corte
de D. João III, nem sei se o permitiam as proporções mínimas
do escrito e a urgência da ocasião. Busquei, sim, haver-me
de maneira que o poeta fosse contemporâneo de seus amores,
não lhe dandofeições épicas, e, por assim dizer, póstumas. (II,
p. 1.139, grifos meus)

O Camões de Machado não é o autor de Os Lusíadas, mas o


jovem poeta, famoso por suas canções e, sobretudo, por seus

61 Trata-se da estrofe 119 do terceiro canto de Os Lusíadas: “Tu só, tu, puro
Amor, com força crua/Que os corações humanos tanto obriga,/ Deste causa
à molesta morte sua,/ Como se fora pérfida inimiga./ Se dizem, fero Amor,
que a sede tuaI Nem com lágrimas tristes se mitiga,/ É porque queres, ás­
pero e tirano, Tuas aras banhar em sangue humano.” Luís de Camões. Obra
completa em um volume. Antônio Salgado Júnior (organização, introdução,
comentários e anotações). Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1988, p. 86.
Nas próximas ocorrências, cito apenas o número da página.

252
.... . , i‘ aventuras. Apenas isso: sem feições épicas, tampouco
if»t /iimus, sem a cômoda projeção retrospectiva que reduz a
M"N|ilcxidade de um percurso existencial e artístico à cons-
i i«..10 empírica de que Camões escreveu Os Lusíadas, tornan-
ii>■.<
•o poeta maior da língua portuguesa, autoridade incon-
i» Mr no gênero épico —, em qualquer idioma, diga-se de
i i ,.igem. Ora, ele poderia não ter sobrevivido ao naufrágio.
11 mleria não ter se empenhado na consecução da obra-prima:
11 .ibalho árido e longo, diria o narrador casmurro, cujo resul-
i ml<>é sempre incerto. Quantos habilidosos abandonaram a
i.iicfu no meio do caminho, condenando-se à miríade de
iioines secundários e de datas irrelevantes que povoam as
lnsiórias literárias?
0 Camões de Tu só, tu, puro amor é como o autor que ima-
>;inei no segundo capítulo: Machadinho, leitor severo e um
l a nto carola de 0 primo Basílio, e não Machado, autor singular
das Memórias póstumas de Brás Cubas. Ora, ele poderia não ter
escrito o romance, antes seguindo seu destino pálido de autor
de romances no estilo não-me-toques. Machadinho poderia não
ter sobrevivido ao naufrágio das ilusões ou à enfermidade do
final de 1878.
Ou ao inverno que finalmente chegou em fevereiro de
1878.
Todo o meu esforço se encontra sintetizado na perspectiva
com que Machado entende Camões: não lhe dandofeições épicas,
e, por assim dizer, póstumas.
Retorno à peça.
Envolvido em aventuras amorosas e demonstrações de
valentia, o jovem poeta dispersa seu talento. Seu adversário
na trama, Pêro de Andrade Caminha, não lhe perdoa a falta
de seriedade. Na história da literatura portuguesa de extração
romântica, Caminha foi estigmatizado no papel de rival de

253
Camões. Machado parece ter assimilado essa versão sem
questionamentos. Na peça, Caminha se opõe ao autor de Os
Lusíadas, chegando mesmo a declarar:

Caminha (com enfado) — O poeta! o poeta! Não é mais que


engenhar aí uns pecos versos, para ser logo poeta! Desperdiçais
o vosso entusiasmo, senhor D. Manuel. Poeta é o nosso Sá, o
meu grande Sá! Mas, esse arruador, esse brigão de horas
mortas...
Dom Manuel — Parece-vos então?...
Caminha — Que esse moço tem algum engenho, muito
menos do que lhe diz a presunção dele e a cegueira dos ami­
gos; algum engenho não lhe nego eu. Faz sonetos sofríveis. E
canções... digo-vos que li uma ou duas, não de todo mal
alinhavadas. Pois então? Com boa vontade, mais esforço, menos
soberba, gastando as noites, não a folgar pelas locandas de
Lisboa, mas a meditar ospoetas italianos, digo-vos que pode vir
a ser...
Dom Manuel — Acabai.
Caminha — Está acabado: um poeta sofrível.
(II, p. 1.140, grifos meus)

A referência a Francisco Sá de Miranda é um golpe certei­


ro. Poeta que compreendia seu ofício com gravidade e disci­
plina, ele se doutorou em Direito na Universidade de Lisboa.
Viajou à Itália de 1521 a 1526, convivendo com nomes desta­
cados do Renascimento, tais como Ariosto e Pietro Bembo.
Sua obra ficou marcada pela temporada no estrangeiro. De
regresso, divulgou a nova estética, introduzindo na literatu­
ra portuguesa formas como o soneto, a canção, os versos de
dez sílabas, entre outras. A menção enfática — Poeta é o nosso
Sá, o meu grande Sá! — oferece um modelo de autoridade ao
jovem talentoso, porém mais amigo das tavernas do que das
bibliotecas.

254
l m diálogo áspero, Caminha aconselha com severidade:
"Mc à Itália, senhor Camões, ide à Itália” (II, p. 1.148). Nesse
• iso, mais do que um deslocamento espacial, “ir à Itália”
Minere uma viagem no tempo, iluminando a novidade formal
•Ins procedimentos machadianos.
íi curioso que o mesmo símbolo apareça em 0 mandarim,
i novela queirosiana publicada em 1880, e que, do ponto de
vista formal e temático, se distancia consideravelmente de 0
i rime do padre Amaro e de 0 primo Basílio. Depois do equívoco
cometido por uma personagem, que imagina um Goethe
inspirado pelas terras portuguesas, Meriskoff, “doutor alemão
pela universidade de Bonn”, como todo bom acadêmico, não
resiste ã tentação de corrigir o erro:

— Generala, o doce país de Mignon é a Itália: Conheces tu a


terra privilegiada onde a laranjeira dá flor? O divino Goethe
referia-se à Itália, Italia mater... A Itália será o eterno amor
da humanidade sensível! (I, p. 1.444)

Machado praticamente repete os termos de 0 mandarim,


em carta enviada em 20 de abril de 1903 a um amigo dileto.
O autor de 0 abolicionismo se encontrava na Itália; na imagi­
nação de Machado, “pisando a terra amassada de tantos sé­
culos de história do mundo. Eu, meu caro Nabuco, tenho
ainda aquele gesto da mocidade, à qual os poetas românticos
ensinaram a amar a Itália” (III, p. 1.063).

(Os caminhos da literatura sempre se cruzam: os mesmos


versos de Goethe, citados na língua original, compõem a
epígrafe da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias.)

255
Nos dois casos, tanto em Machado como em Eça, “ir .1

Itália” quer dizer: adotar dispositivos literários pré-românl 1


cos, assenhorear-se de outro registro literário. Por isso, o
futuro autor de Os Lusíadas recebe uma dura reprimenda: sc m ii
essa viagem no tempo, ele jamais deixaria de ser um autoi
“sem arte, nem conceito” (II, p. 1.150). O Camões de Machado
corre 0 risco de terminar a vida como o “habilidoso” do con
to homônimo! Somente 0 desterro e 0 abandono das facilida
des da corte permitem ao poeta mudar seu destino. No final
da peça ocorre 0 anúncio do poema épico, na antecipação dos
versos sempre repetidos:

Vede lá, ao longe, na imensidade desses mares, nunca dantes


navegados, uma figura rútila, que se debruça dos balcões da
aurora, coroada de palmas indianas? É a nossa glória (...)
(II, p. 1.155, grifo meu)

Mesmo numa peça de ocasião, Machado se encontra às voltas


com 0 dispositivo da aemulatio, compreendido, em sentido amplo,
como técnica de assimilação e transformação de modelos con­
sagrados como autoridade em seus respectivos gêneros.
Além disso, o dilema do Camões machadiano recorda 0

impasse do próprio Machado.


Pelo avesso, sem dúvida.
É difícil imaginar 0 autor de Helena envolvido em arruaças
boêmias ou disfarçado de valentão. Ele sempre soube com­
portar-se com esmero e cordura.
Um genro ideal: desses que agradam mais aos pais do que
à noiva.
No fundo, a questão é a facilidade a ser evitada por todo
autor de talento que não deseje condenar-se à fortuna do
habilidoso.

256
No caso do Camões machadiano, era preciso manter os
hormônios sob controle, a fim de adquirir o conhecimento e
,i disciplina necessários à produção da obra-prima.
No mesmo dia em que a peça Tu só, tu, puro amor é ence-
n,ida no teatro D. Pedro II, Machado publica um soneto em
<tlição especial do Jornal do Comércio. Ele é todo composto sob
0 signo da emulação bem-sucedida — tanto histórica, com as
viagens portuguesas em relação à Antiguidade, quanto lite-
1.1 ria, com a escrita de Os Lusíadas em comparação com os
modelos consagrados:

Quando, torcendo a chave misteriosa


Que os cancelos fechava do Oriente,
O Gama abriu a nova terra ardente
Aos olhos da companha valorosa,

Talvez uma visão resplandecente


Lhe amostrou no futuro a sonorosa
Tuba, que cantaria a ação famosa
Aos ouvidos da própria e estranha gente

E disse: “ Se já noutra, antiga idade,


Troia bastou aos homens, ora quero
Mostrar que é mais humana a humanidade

Pois não serás herói de um canto fero,


Mas vencerás o tempo e a imensidade
Na voz de outro moderno e brando Homero.”
(III, p. 165)

Esse novo Camões não somente foi à Itália: ele também


visitou a Hélade. Na fala imaginada pelo brasileiro, o poeta
português considera as façanhas de Vasco da Gama superio­
res às conhecidas no mundo clássico. Ora, se o limite, em
aparência intransponível, das míticas Colunas de Hércules
condenava o Mediterrâneo ao papel de mare nostrum, os por
tugueses abriram as portas de oceanos e de novas terras. 1)e
igual modo, o poeta oferece seu épico como diferença decisi
va: se, na antiga idade, Troia bastou aos homens, agora, com as
novas conquistas, é necessário que surja outro moderno c
brando Homero, que reúna e não mais divida.
O Camões da peça e o Camões do soneto iluminam o trân­
sito do Machadinho ao Machadão. Os percursos são diferentes,
mas o ponto de chegada se assemelha no domínio da técnica
da aemulatio.
Machadinho precisava abandonar os esquemas literários
fabricados sob medida para as jovens senhoritas e as respei­
táveis senhoras da corte de D. Pedro II. No artigo “O instinto
de nacionalidade”, por exemplo, ainda se encontra a seguinte
apreciação (vista na íntegra no Capítulo 2):

As tendências morais do romance brasileiro são geralmente


boas. Nem todos eles serão de principio afim irrepreensíveis; al­
guma coisa haverá que uma crítica austera poderia apontar
e corrigir. Mas o tom geral é bom. (III, p. 805, grifo meu)

Pois é.
O caminho não foi curto.
Eis, então, uma forma de entender o pulo do gato macha
diano: enquanto a maior parte dos contemporâneos apurava
a audição para captar o último grito da moda, o autor de “Uma
visita de Alcibíades” viajou à Itália — mas, como o Camões
do soneto, não somente à península. Ele frequentou todas as
épocas, como se elas compartilhassem o mesmo instante
histórico, definido, não pela diacronia do calendário, mas
pela simultaneidade dos momentos de leitura e de escrita. A
twmlação enseja outro tipo de temporalidade, negando a li-
i" .ii idade e recusando superações irreversíveis; não se trata
•!«•promover rupturas traumáticas, mas de contribuir para o
•nritiuecimento do repertório comum, na promessa de sin-
«ronia entre épocas e tradições diversas. Exemplo notável é
o cie Dante, no Canto IV do Inferno, quando ele vê “quatro
r.i andes sombras” se aproximarem. Seu guia, Virgílio, escla­
rece a situação:

“(...)
Ülha o que vem à frente qual decano
dos outros três, segurando uma espada;

ele é Homero, poeta soberano;


o satírico Horácio junto vem,
terceiro é Ovídio e último Lucano.

Desde que cada um deles detém


os mesmos dotes co’ os quais fui saudado,
recebo sua honraria como convém”.62

Virgílio é o quinto poeta do panteão e Dante se apresenta


como o mais jovem integrante da plêiade e, somente reconhe­
cendo a autoridade dos precursores, é possível com eles om-
brear-se. Na longa duração das práticas literárias anteriores
ao período romântico, a alusão, a citação e a apropriação
compunham partes de um conjunto maior definido pelo par
imitatio e aemulatio. O objetivo de todo autor era o de trans­
formar-se em auctoritas de um gênero determinado, encon­
trando, para tanto, à roda da biblioteca, “grandes sombras”
com as quais rivalizar.

62 Dante Alighieri, A Divina Comédia. Inferno, p. 46.


No contexto brasileiro oitocentista, as conseqüências cs
téticas desse resgate anacrônico levam longe.

Emulação e autoria

O passo seguinte exige a explicitação dessa possibilidade,


como vimos nos textos machadianos de 1878 e de 1879: vés
pera da prosa do defunto autor.
Ou, como terminamos de estudar na peça Tu só, tu, puro
amor e no soneto “Camões”: um modo de confirmá-la.
Hora de consultar as Memórias póstumas de Brás Cubas,
lançada inicialmente na Revista Brasileira em 1880, e no ano
seguinte em livro.
Começo recordando os termos da nota “Ao leitor”:

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros


para cem leitores, é coisa que admira e consterna. O que não
admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro
não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem
vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na
verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei
a forma livre de um Sterne e de um Xavier de Maistre, não sei
se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra
de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melan­
colia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio.
(I, p. 513, grifos meus)

Eis a passagem-chave, o rito de passagem de Machado de


Assis. O narrador das Memórias póstumas situa escrita e leitu­
ra no mesmo nível. É como se a “Nota ao leitor” possuísse
sabor autobiográfico: literalmente memorialístico, pois a
escrita se revela a anamnese de leituras prévias. Machado não

260
i| •« iias interpreta os escritores com os quais dialoga, como
i ' 1111)ém propõe o conceito articulador de seus procedimentos:
Inrma livre. Além disso, Machado distorce essa forma livre de
modo particular.
Hle não faz digressões intermináveis, ou viaja ao redor do
quarto, impelido tão só, ou principalmente, por um humor
(•••pirituoso. Como ele mesmo sugere, seu itinerário exige um
( opiloto: para a pena da galhofa adiciona a tinta da melancolia,
<
•essa reunião inesperada de termos contrários singulariza a
lal ura de sua segunda fase. Machado reúne os séculos X V III
c XIX nas figuras de Sterne, Xavier de Maistre e Stendhal,
contaminando o humor com o tom sombrio da melancolia.
Kccordo que a possibilidade de justapor tempos históricos
diversos e de mesclar gêneros literários antecipa a técnica
borgiana do anacronismo deliberado.
O narrador das Memórias póstumas se inscreve em domínio
próprio à técnica da aemulatio, transformando-a através de
sua apropriação moderna. Além de nomear os modelos de sua
escrita, ele também esclarece o propósito de emulá-los. Leia-se
o prólogo da terceira edição, lançada em 1896. Releia-se opró­
logo na perspectiva aqui proposta; ele se torna revelador, indis­
pensável:

O que faz do meu Brás Cubas um autor particular é o que ele


chama “rabugens de pessimismo”. Há na alma deste livro,
por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e ás­
pero, que está longe de vir de seus modelos. É taça que pode ter
lavores de igual escola, mas leva outro vinho. Não digo mais
para não entrar na crítica de um defunto, que se pintou a si
e a outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo. (III,
p. 513, grifos meus)

261
0 vocabulário não poderia ser mais direto e pertence tod( >
ao campo semântico da emulação. A descrição é tão precisa
que dispensa maiores comentários. Melhor dito: o leitor já
identifica o caráter deliberado das alusões do defunto autor à
prática da emulação. Assinale-se a ourivesaria conceituai:
lavores de igual escola, pois o molde é o mesmo para todos;
encontra-se estabelecido pelo repertório comum e consagra­
do pela tradição dos usos retóricos. Porém, a mesma taça
sempre leva outro vinho, já que a aemulatio somente se realiza
ao afirm ar sua diferença.

(A partir de meados da década de 1870, a consciência cres­


cente da técnica da aemulatio principia a definir o estilo que
aprendemos a denominar machadiano.)

Na forma livre, imitada nas Memórias póstumas, introduzi-


ram-se rabugens depessimismo; efeito que está longe de vir de seus
modelos. Se o ponto de partida é, entre tantos outros, Sterne,
Xavier de Maistre, Garrett e Stendhal, o ponto de chegada é
a metamorfose do Machadinho em Machadão; sempre vale a
pena recorrer à agudeza de Augusto Meyer. Logo, se a taça é
do mesmo artesão, o vinho revela um terroir próprio e, como
toda boa safra, exige um longo e paciente cultivo.

* * *

A metáfora machadiana faz pensar no destino da uva


carmenère, desaparecida dos vinhedos europeus por volta de
1860, em virtude da grande praga de filoxera, insetos da fa­
m ília dos filoxerídeos, com destaque precisamente para a
filoxera-da-videira. Por décadas, acreditou-se que se havia
perdido o legado de uma longa tradição.

262
( .'ontudo, começou-se a produzir no Chile um tipo inco-
iniim de vinho, em princípio preparado com base na uva
mri lot cultivada na região. Os especialistas ficaram intrigados
i resolveram estudar a fundo essa variedade.
li is que os enólogos chegaram a uma conclusão surpreen­
de nie: a variedade desconhecida demerlot era fruto das únicas
|*l.i ntações de carmenère que haviam sobrevivido à praga da
liloxera. A descoberta foi feita em 1994, pelo ampelógrafo
11 ,i ncês Jean-Michel Boursiquot. A uva carmenère foi resgatada
porque, transplantada para o Chile, e, sem que se soubesse,
misturada com vinhedos de merlot, se aclimatou à perfeição,
lavorecendo o desenvolvimento de terroir próprio para sua
produção.
Arqueologia dos vinhedos, a pequena história da uva car­
menère talvez inspirasse um poema herói-cômico.
Ou talvez tenha mesmo razão Sarmiento, editor de El
Progreso, jornal publicado no Chile oitocentista. Recupero a
citação mencionada no terceiro capítulo:

(...) nosso diário supera os mais conhecidos da Europa e da


América, pela razão muito óbvia de que, sendo um dos ú lti­
mos jornais do mundo, temos à disposição, epara escolher da
melhor maneira, o que os demais diários publicaram. (II, p. 3)

Há mais: a solução encontrada na Europa para fazer fren­


te a futuros ataques da filoxera foi o enxerto de videiras
americanas, resistentes à praga, nos vinhedos europeus. Ainda
hoje é o método dominante; assim que, em alguma medida,
cada taça de vinho europeu, de fato, leva outro vinho.
Vinho sul-americano.

* * #

263
0 longo caminho percorrido por Machado no entendimen­
to da aemulatio pode ser evidenciado por um contraste.
Regresso à advertência da primeira edição de Ressurreição
(1872). Nela, Machadinho reconhece a necessidade de consi­
derar modelos prévios, mas ainda não possuía uma visão
abrangente da complexa técnica da imitatio, que, como repe­
ti inúmeras vezes, sempre inclui o gesto de aemulatio:

Dá-se então o contrário do que era dantes. Quanto mais versamos


os modelos, penetramos as leis dogosto eda arte, compreendemos
a extensão da responsabilidade, tanto mais se nos acanham as
mãos e o espírito, posto que isso mesmo nos esperte a ambição,
não já presunçosa, senão refletida. Esta não é talvez a lei dos
gênios, a quem a natureza deu o poder quase inconsciente das
supremas audácias; mas é, penso eu, a lei das aptidões médias,
a regra geral das inteligências. (I, p. 116, grifos meus)

A primeira parte da citação cumpre os passos prelimina­


res da técnica da aemulatio, porém sua conclusão permanece
presa à afirmação do criador demiurgo. Desse modo, se as
duas frases iniciais poderiam constar dos protocolos da revo­
lução Brás Cubas, a sentença final implica um recuo cons­
trangedor: um passo atrás e dois para o lado. O autor de A
mão e a luva parece acreditar na lei dos gênios, cujo lema é a
creatio ex nihilo e cuja norma é sempre autotélica, indiferente
à imitação de modelos. Nesse horizonte pós-romântico, a
emulação apenas pode ser resultado de falta de talento, deri­
vada da lei das aptidões médias: a lei geral das inteligências sem
terroir. Daí, o conhecimento sistemático da tradição não inci­
ta o leitor a emulá-la: tanto mais se nos acanham as mãos e o es­
pírito, engendrando uma espécie de modéstia programática;
sem dúvida, merecedora de medalhas de honra ao mérito por
bom comportamento literário.

264
(Uma coleção de medalhas não vale o parágrafo de aber-
I ura das Memórias póstumas.)

A nota “Ao leitor”, ampliada no prólogo da terceira edição,


ressuscita outra ideia de originalidade, não mais limitada à
criação, mas, sobretudo, articulada à memória literária. A
escrita de novos textos, portanto, é associada às leis da inven­
ção. Assim, se Machado assimilou conscientemente a técnica
sterniana da digressão, o fez ao gosto de Montaigne, pois suas
digressões jogam sempre com referências literárias.
Por vezes, referências oblíquas.
Eis o segredo de passagem críptica da nota “Ao leitor”.
Dada a importância do trecho para meu argumento, repito
parte de texto já citado:

(...) Obra de finado. Escrevia-a com a pena da galhofa e a


tinta da melancolia; e não é d ifícil antever o que poderá sair
desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro
umas aparências depuro romance, ao passo que a gente frívo­
la não achará nele o seu romance usual; e ei-lo aí fica privado
da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas
colunas máximas da opinião. (I, p. 513, grifos meus)

Mantemos uma relação sintomática com os títulos dos


romances do século X V III: os longos títulos que ajudaram a
definir a tradição do romance moderno. A melhor maneira
de entendê-lo reside em assinalar o modo ligeiro com o qual
descartamos a minúcia aparentemente desnecessária dos
escritores setecentistas.
Por exemplo, The History ofTomJones, A Foundling, lançado
em 1749, torna-se pura e simplesmente Tom Jones. De igual
modo, The Life and Opinions ofTristram Shandy, A Gentleman,
saído dez anos depois, converte-se em Tristram Shandy. Ora, o
paralelismo dos títulos sugere um debate que movimentou o
século X V III inglês. Resgatar tal debate esclarece a sutik‘/..i
do vocabulário machadiano.
Fielding, consciente de que pretendia criar um novo mo­
delo de narrativa, ressalvava ter “com muita propriedade
capitulado de história esta nossa obra, e não de biografia, nem
de apologia para uma biografia”.63 A opção é sintomática e
revela o propósito de disciplinar o relato através de um eixo
ordenador: o percurso de um personagem no mundo, concen­
trado o foco narrativo em suas peripécias e desventuras. Nus
palavras do autor:

Quando se nos apresentar alguma cena extraordinária (...),


não pouparemos esforços nem papel para referi-la miuda-
mente aos nossos leitores; mas, se anos inteiros derivarem
sem que nada suceda digno de atenção, passaremos, sem
receio das soluções de continuidade, aos assuntos de impor­
tância, e deixaremos despercebidos tais períodos de tempo
(p. 39-40)

Uma década depois, Sterne revelou o que fora encoberto


pela escolha de Fielding. O vocabulário sterniano, paródico
em relação à escrita de TomJones, esclarece a força do sistema
interno de emulação que tem lugar entre dois autores do
mesmo contexto hegemônico. Como disse e redisse, os pro­
cedimentos definidores da poética da emulação independem
de latitude.
Escutemos a dicção luciânica de Sterne:

63 Henry Fielding. A História de TomJones. Um enjeitado. Tradução de Octávio


Mendes Cajado. Porto Alegre: Editora Globo, 1971, p. 39, grifo meu. Nas
próximas ocorrências, cito apenas o número da página.

266
Se o meu hipercrítico for obstinado, insistindo em que dois
minutos e treze segundos não são mais do que dois minutos
e treze segundos, (...) e em que esta alegação, conquanto
possa salvar-me dramaticamente, condenar-me-á biográfi­
ca mente, convertendo o meu livro (...) num ROMANCE con­
fesso (um livro que, antes, era apócrifo).64

Apócrifo porque as digressões que desestruturam a tele-


(>logia narrativa ameaçavam o projeto de reunir novel e history,
j;i que as constantes interrupções do fluxo das ações por co­
mentários os mais variados inviabilizavam qualquer projeto
linear, ordenador. Os dois pares conceituais pressupunham
um momento especial de definição da experiência histórica
européia, corporificada na analogia simples: history estava
para novel, assim como life estava para romance.65
No século X V III inglês, history convocava a disciplina e o
metro regular da ideia de novel; romance convivia com a
imprevisibilidade associada à palavra life. A recepção con­
temporânea das palavras ilum ina a diferença. Romance im­
plicava a afirmação de narrativas fantasiosas, desordenadas,
inverossímeis; romanescas, no sentido negativo que se atribui
à palavra. No entanto, tal censura implicava uma determi­
nada opção. O desfavor do romance sugeria o privilégio da
novel, de uma história contada segundo certos parâmetros,
cujo resultado seria a elaboração de um autêntico panorama,
contendo os lances mais significativos da trajetória de uma
subjetividade.
O defunto autor supera essa dicotomia reunindo os dois
modelos: em vocabulário machadiano, romance, na acepção

64 Laurence Sterne, A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, p. 132.


65Antes mesmo de prosseguir, cumpre esclarecer que, em português, novel
corresponde a romance, enquanto romance eqüivale a história romanesca.

267
de Sterne, se traduz puro romance; novel, no sentido de Fieldini;,
se translada romance usual. Machado combina galhofa e mr
lancolia, associa os séculos X V III e XIX, funde novel e roman
ce — numa mostra eloqüente do fenômeno da compressão
dos tempos históricos.
Há outra passagem muito similar à nota “Ao leitor”. Penso
no capítulo CXII de Quincas Borba. Vale transcrevê-lo na íntegr.i:

Aqui é que eu quisera ter dado a este livro o método de tan­


tos outros, — velhos todos —, em que a matéria do capítulo
era posta no sumário: “De como aconteceu isto assim, e mais
assim”. A í está Bernardim Ribeiro; aí estão outros livros
gloriosos. Das línguas estranhas, sem querer subir a Cervantes
nem a Rabelais, bastavam-me Fielding e Smollet, muitos
capítulos dos quais só pelo sumário estão lidos. Pegai em Tom
Jones, livro IV, cap. I, lede o título: Contendo cinco folhas de
papel. É claro, é simples, não engana a ninguém; são cinco
folhas, mais nada, quem não quer ler não lê, e quem quer lê,
para os últimos é que o autor conclui obsequiosamente: “E
agora, sem mais prefácio, vamos ao seguinte capítulo.” (I,
p. 738, grifos do autor)66

De fato, a justaposição de tempos históricos distantes e de


visões conflitantes de literatura passa a definir o tom de sua
prosa. Machado reúne Cervantes e Rabelais com Fielding e
Smollet, sem esquecer Bernardim Ribeiro. Nessa galeria,
encontram-se precursores e representantes da oposição entre

66 Eis o princípio do capítulo do TomJones: ‘‘Assim como a verdade distingue


os nossos escritos dos ociosos romances repletos de monstros, produções,
não da natureza, mas de cérebros perturbados, e que um crítico eminente
recomendou apenas ao uso do pasteleiro” (p. 85). Naturalmente, dos ociosos
romances é uma tradução inadequada, pois no original se encontra: “As
truth distinguishes our vvritings from those idle romances” (...). Fielding se
refere às histórias romanescas, buscando delas afastar-se.

268
■miiiii c e novel, sugerindo uma sutil percepção da história
i'" i .1 ria. A apropriação machadiana é meditada, o que con-
h i< Ibrça à categoria de puro romance em confronto com a
mi. ;u) de romance usual.
li não é tudo.
Machado associa à forma do romance um modo especifico

Ir recepção. Estruturalmente, escrita e leitura são pensadas
.Io mesmo tempo, são dispositivos gêmeos. Novel demanda a
i \lima dos graves; romance supõe o amor dosfrívolos.
Ainda não é tudo.
Pois essa reflexão seria muito pouco machadiana se me
contentasse com a oposição binária: tal ou qual leitor. Nesse
caso, bastaria decidir o tipo de leitor que se deseja, a fim de
escrever sempre o mesmo livro, reduplicando as soluções
previamente encontradas. 0 defunto autor dá um passo além,
reconhecendo a possibilidade de perder o apoio dessas duas
colunas máximas da opinião, pois a mescla de estilos corre o
risco de desagradar a todos.
0 leitor, grave ou frívolo, não conta mais com a facilidade
de um universo monocromático. Articula-se assim uma nova
ficção de leitura. Machado não somente se configura como
leitor irreverente da tradição, como também convoca o pú­
blico a participar da construção ficcional, através do desen­
volvimento de uma técnica de leitura que possui na colagem
o procedimento definidor. Trata-se da leitura-colagem, pro­
cedimento fundamental para que se aprecie a forma literária
propriamente machadiana.
Formas da em ulação

Com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas e dos


primeiros Cantos ocidentais, nome que a princípio deu às
Ocidentais, atingiu Machado de Assis a culminância de sua
carreira. Daí em diante, vai manter-se no mesmo nível, mas
não subirá mais alto — o que, aliás, seria difícil. Encontrara
o artista a forma perfeita, realizara completamente a sua
inspiração.

Lúcia Miguel Pereira, Machado de Assis

A crítica de Machado ao novo romance de Eça é sólida,


reflexiva, cuidadosa e sem concessões. Quando ataca os
postulados naturalistas de Eça, o faz contra o prestígio do
mais lido escritor em língua portuguesa na época. Machado,
em 1878, não passava de um escritor famoso para seus
compatriotas, porém perdido na periferia do mundo me­
tropolitano.

Valquiria Wey, “Reflexiones sobre una crisis:


1878 en la obra de Machado de Assis”

O destino deste ensaio [“Notícia da atual literatura brasilei­


ra — Instinto de nacionalidade”] é que já se afigura mais
duvidoso dentro dessa hipótese contrafactual; pelo menos,
tendo em conta que Machado efectivamente não morreu em
1878, será sempre preciso decidir se o ensaio se afirma no
meio dessa reputada mediocridade por suas próprias forças,
ou se se destaca às custas do conjunto da obra romanesca
machadiana.

Abel Barros Baptista, Em nome do apelo do nome

O “encontro” dessas “semelhanças”, então, passa a provocar


uma polêmica em níveis mais superficiais, como a preocu-
pação sobre se a “originalidade” suposta de um “artista" s**i lit
compatível com a certeza de que ele “sofreu influÍMH In "
exteriores. “Influência", nesse caso, tomada como eufeiuiMin <
que suaviza os termos mais adequados de emulação e a)|)iii

Guiomar de Grammont, Aleijadinho e o aero/ihnih

Essas referências ajudam à compreensão da maneira conm


Machado lia e como se servia de textos lidos no ato de escivwi
os seus. (...) O leitor ruminante, com quatro estômagos nu
cérebro a que o narrador se refere em Esaú eJacó, era ele nu’s
mo, máquina ativíssima de trituração de discursos alheios,
cujos detritos eram reagenciados em elaborações discursiv.r.
de sentido inverso ou oposto às intenções do texto fonte.

Ivo Barbieri, “O lapso ou uma psicoterapia de humor"

M. de A.

Após a viagem inicial à roda da aemulatio na obra machadia­


na, é hora de discutir seu conceito de autoria, pois o motivo
dominante na crítica a 0 primo Basílio gira em torno das noções
de cópia, plágio e imitação. O resgate do horizonte clássico
representa um questionamento da autoria concebida exclu­
sivamente em termos de subjetividade autônoma. Acompanhar
essa questão nos demais romances da segunda fase permite
aprofundar o estudo da aemulatio na obra machadiana.
Em Quincas Borba, publicado em 1891, amplia-se a reflexão
mediante o questionamento dos atos de leitura e de escrita.
No capítulo CXIII, o leitor encontra-se diante da seguinte si­
tuação: Rubião, o fiel, porém tolo seguidor do filósofo Quincas
Borba, herda a fortuna de seu mestre e começa a gastá-la de
modo imprudente.
* * *

Kubião nunca chega a compreender que o lema, “ao ven-


• dor, as batatas”, não representava um fim, porém simples
ini*io para obtenção de uma estabilidade futura, coisasfuturas,
■ii|<>significado ele não alcança. Na fábula de Quincas Borba,
i \posta no Capítulo VI, a moral é clara:

Supõe tu um campo de batatas e duas tribos fam intas. As


batatas apenas chegam para alim en tar uma das tribos, que
assim adquireforças para transpor a montanha eirà outra verten­
te, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos d ivi­
direm em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se
suficientemente e m orrem de inanição. A paz, nesse caso, é
a destruição; a guerra é a conservação. Um a das tribos exter­
m ina a outra e recolhe os despojos. (...) Ao vencido, ódio ou
compaixão; ao vencedor, as batatas. (I, p. 648-49, grifos meus)

Rubião aceita o prêmio — as batatas, isto é, a herança —,


mas se esquece da responsabilidade que ele acarreta — inicial­
mente, cuidar de Quincas Borba, o cão, e, sobretudo, atravessar
a montanha, ou seja, investir sabiamente o montante recebido,
no mínimo, aproveitá-lo com prudência. Na ética belicosa do
criador do Humanitismo, as primeiras batatas servem apenas
para ganhar forças para transpor a montanha. É apenas na outra
margem que se encontram batatas em abundância.
Pelo contrário, Rubião dispensou toda a sua energia em
malgastar a imprevista riqueza.

* * *

Retorno ao Capítulo CXIII.


Rubião decide financiar um jornal político, cujo proprie­
tário deseja aproveitar-se da ingenuidade do provinciano. Um

273
dia, ele visita a redação do jornal e, por acaso, lê um artigo
de Camacho, o advogado e inescrupuloso jornalista. Rubião
sugere, sem maiores pretensões, mudanças mínimas no tex
to — a inclusão de um adjetivo. Naturalmente, Camacho
adota as emendas de seu mecenas, o que provoca uma reação
inesperada:

Rubião aplaudiu o artigo; achava-o excelente. Talvez pouco


enérgico. Vendilhões, por exemplo, era bem dito; mas ficava
melhor vis vendilhões.
(...)

— Vis vendilhões, vis vendilhões, repetiu Camacho, à


meia voz. Já estou achando melhor. Vis vendilhões. Aceito,
concluiu emendando.
(...)
— Muito bem! disse Rubião, sentindo-se algum tanto autor
do artigo. (I, p. 738, grifos meus)

Por meio de uma bem-humorada associação de ideias,


Rubião decide que é o autor do artiguete. Nas palavras de
Machado, a atitude do personagem fornece motivo para um
novo capítulo: “ Se tal fosse o método deste livro, eis aqui um
título que explicaria tudo: De como Rubião, satisfeito da
emenda feita no artigo, tantas frases compôs e ruminou, que
acabou por escrever todos os livros que lera” (ibidem, grifos meus).
O raciocínio apresenta um problema lógico, qual seja, a tran­
sição excepcionalmente rápida de Rubião, leitor de livros, ao
Rubião, autor dos mesmos. No entanto, o narrador oferece a
solução do aparente impasse:

Há um abismo entre a primeira frase de que Rubião era co-


autor até a autoria de todas as obras lidas por ele; é certo que
o que mais lhe custou foi ir da frase ao primeiro livro; —

274
(leste em diante a carreira fez-se rápida. Não importa; a
análise seria ainda assim longa e fastidiosa. O melhor de
l udo é deixar só isto; durante alguns minutos, Rubião se teve
l>or autor de muitas obras alheias. (1, p. 739, grifos meus)

lissa passagem remete ao espírito dos mais famosos con-


los de Jorge Luis Borges, especialmente os dedicados aos
«onceitos de leitura e de autoria. Machado e Borges tornam
Incertas as fronteiras entre os dois atos; ler é escrever com
os olhos; escrever atualiza a memória póstuma de leituras
prévias. A organização inovadora de elementos preexistentes
revela-se mais produtiva do que a ânsia pela criação de ele­
mentos novos, esclarecendo a centralidade da inventio na
poética da emulação.
O tema do parasitismo como método de composição retor­
na numa crônica de A Semana, publicada em 22 de novembro
de 1896. O texto parte de uma notícia: “um fazendeiro
rio-grandense deu um tiro na cabeça e desapareceu do nú­
mero dos vivos”. Suicídio surpreendente porque, embora
proprietário de vastas terras, “a causa foi a convicção que esse
homem tinha de ser pobre” (III, p. 742). Machado não perde
a oportunidade de luzir uma comparação inusitada entre o
dia a dia brasileiro e a memória clássica, um dos traços defi­
nidores de seu estilo na segunda fase: “O avesso desse caso é
bem conhecido naquele cidadão de Atenas que não tinha nem
possuía uma dracma, um pobre-diabo convencido de que
todos os navios que entravam no Pireu eram dele; não preci­
sou mais para ser feliz” (III, p. 742-43). O corolário desse
universo do como se bem poderia ilustrar o método de escrita
do Rubião.
Nas palavras do cronista:

275
Ao contrário, se o teu copeiro acreditar que escreveu os
Lusíadas, lerá com orgulho (se souber ler) as estâncias cio
poeta; repeti-las-á de cor, interrogará o teu rosto, os teus
gestos, as tuas meias palavras, ficará por horas diante dos
mostradores mirando os exemplares dos poemas expostos.
(III, p. 743)

No próximo romance, Dom Casmurro, publicado em 1901),


a questão da autoria conhece deriva semelhante. Na abertura
da narrativa, Bento Santiago esclarece que o título do livro
surgiu a partir de um incidente. Certo dia, voltando para casa,
conhece um jovem poeta que decide recitar suas obras com­
pletas. Naturalmente, Santiago acaba cochilando, o que en­
fureceu o gênio sem obra. Como vingança, apelidou o vizinho
desatencioso. O narrador, por sua vez, elucida o epíteto: “Não
consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que
eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e
metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos
de fidalgo. Tudo por estar cochilando!” (I, p. 809, grifos do
autor). Tal acepção já tinha sido usada no conto “Fulano”,
lançado em 1884: “Era até então um casmurro, que não ia às
assembleias das companhias, não votava nas eleições políti­
cas, não freqüentava teatros, nada, absolutamente nada” (II,
p. 437). Ou seja, até ser transformado pela leitura de um ar­
tigo de jornal sobre ele. O texto era anônimo, porém encomi-
ástico. A casmurrice do “Fulano” foi curada pela leitura. Bento
Santiago não teve igual sorte: a escrita não o livrou do hábito,
muito menos da pecha.
Na narrativa, casmurro também quer dizer: não ser polido
o bastante para suportar o poeta do comboio por longos mi­
nutos. “Dom” foi adicionado por pilhéria, uma vez que Bento

276
imiago não era aristocrata, antes se encontrava em declínio,
•mbora preservasse com esmero a sombra da elegância pas-
ula. Entretanto, o narrador não se aborrece. Na verdade,
ir.iMsforma o apelido no título de suas memórias, conceden-
ilo ao jovem poeta uma reveladora homenagem:

Também não achei melhor título para a minha narração; se


não tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo. O
meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor,
li com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a
olrra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores;
alguns nem tanto. (I, p. 810, grifo meu)

O procedimento se radicaliza.
Em Memórias póstumas de Brás Cubas, o defunto autor con­
verte seus leitores, ou sua escassez, em princípio de escrita.
Em Quincas Borba, Rubião transita sem cerimônia do papel
de leitor à função de autor.
Em Dom Casmurro, o narrador encena uma impossível si-
multaneidade entre o ato de escrita — se não tiver outro daqui
até ofim do livro, vai este mesmo — e o de leitura, cujo corolário
inclui a transferência parcial da atribuição de sentido ao
leitor. Não me refiro a um plano metafórico, mas à formula­
ção de dispositivos textuais especialmente desenvolvidos para
estimular essa finalidade.
Nos dois últimos romances, Machado leva adiante a explo­
ração desse procedimento através de inesperado xeque-mate:
armemos o tabuleiro.
Em tese, Esaú ejacó, lançado em 1904, e Memorial de Aires,
saído no ano de sua morte, em 1908, são textos selecionados
do diário do Conselheiro Aires: essa é a ficção de leitura pro­
posta por Machado de Assis.

277
Ou seja, por M. de A. — como é assinada a advertência do
Memorial de Aires.
E eis a questão.
O leitor tem acesso às páginas extraídas do Memorial dr
Aires? Ou se trata de uma piscadela ao leitor, dada por Machado
de Assis?
Leiam-se as notas que abrem os volumes: elas esclarecem
a (falsa) charada.
Em Esaú eJacó tudo parece mais ou menos claro. Basta
consultar a advertência: não assinada, ressalve-se.

Quando o conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na se­


cretária sete cadernos manuscritos, rijamente encapados em
papelão. Cada um dos primeiros seis tinha o seu número de
ordem, por algarismos romanos, I, II, III, IV, V, VI, escritos
a tinta encarnada. O sétimo trazia este título: Último.
A razão desta designação especial não se compreendeu então
nem depois. Sim, era o último dos sete cadernos, com a par­
ticularidade de ser o mais grosso, mas não fazia parte do
Memorial, diário de lembranças que o conselheiro escrevia
desde muitos anos e era a matéria dos seis. Não trazia a
mesma ordem de datas, com indicação da hora e do minuto,
como usava neles. Era uma narrativa; e, posto figure aqui o
próprio Aires, com o seu nome e título de conselho, e, por
alusão, algumas aventuras, nem assim deixava de ser a nar­
rativa estranha à matéria dos seis cadernos. Último por quê?
(I, p. 946, grifos do autor)

Trata-se de outra piscadela ao leitor — ou de novo piparo-


te, se ele não sorrir com a alusão ao típico recurso da inter­
venção do “editor”, que “encontra” um manuscrito e o torna
público, depois de depurá-lo de possíveis inadequações de
decoro ou de verossimilhança. Penso, por exemplo, em The

278
i "i i in/rs and Misfortunes ofthe Famous Moll Flanders, de Daniel
i '' Inc. aparecido em 1721.67
No contexto machadiano, o modelo mais sugestivo é Manon
i ■, Ki/t, de Prévost, publicado em 1731, como o sétimo volume
>h . Memórias e aventuras de um homem de qualidade, atribuídas
■ l ictício marquês de Renoncour. Manon Lescaut propõe um
I* k lo ficcional que se tornou célebre: o marquês encontra o
m.i logrado cavaleiro Des Grieux e escuta o relato de seu con-
i mbado relacionamento com a heroína, Manon Lescaut. O
livro, portanto, é a transcrição da narrativa do cavaleiro Des
Grieux.68
O sétimo volume, eu disse.
E que não deixava de ser a narrativa estranha à matéria dos
vis cadernos anteriores do marquês de Renoncour.
Pois é.
Retorno ao romance de Machado.
Em princípio, não há dúvida: quem escreve (mas não assi­
na) a advertência é o leitor dos manuscritos do Conselheiro,

l,v O romance abre com um “prefácio do autor”, no qual se esclarece: “ É


verdade que a história original foi narrada em outros termos, e o estilo da
famosa mulher à qual nos referimos foi modificado. Principalmente, fize­
mo-la utilizar, em sua narrativa, palavras mais discretas; a cópia que ini­
cialmente veio ter às nossas mãos foi escrita numa linguagem muito seme­
lhante à de qualquer prisioneiro de Newsgate e em nada recordava a de uma
humilde arrependida como parece ter sido mais tarde.” Daniel Defoe, Moll
Flanders, p. 13.
6l! Recorde-se o princípio do “Aviso do autor das Memórias de um homem de
qualidade“Embora eu pudesse ter incluído nas minhas memórias as aven­
turas do cavalheiro Des Grieux, pareceu-me que estas, não tendo uma re­
lação necessária com aquelas, que o leitor teria mais satisfação em lê-las
separadamente. Uma narração tão extensa teria interrompido demasiado
o fio da minha própria estória.” Abbé Prévost, Manon Lescaut, p. 7. Adiante,
o narrador esclarece as condições da escrita: “Nesta altura, devo advertir
ao leitor que escrevi esta história logo depois de a ter ouvido, e que o leitor
pode, portanto, estar absolutamente seguro de que nada é mais exato e mais
fiel do que a minha narrativa” (p. 15).

279
responsável pela publicação póstuma não exatamente de sett
diário, mas de uma narrativa, na qual o Conselheiro também
é personagem. A publicação de Esaú ejacó é decidida por um
leitor anônimo, que, no plano ficcional, não se confunde
necessariamente com Machado de Assis. Esse leitor, literal
mente, é o organizador da publicação, o responsável pela
seleção dos escritos do Conselheiro.
A charada é falsa! Nem sempre vale para o crítico a arte
do cronista, tal como definida por Machado em A Semana,
em 11 de outubro de 1897: “Eu gosto de catar o mínimo e o
escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu com
a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto"
(III, p. 772).
Nem sempre, porém, não quer dizer nunca.
A charada pode ser falsa, mas o jogo com as iniciais é
verdadeiro e pode se tornar ainda mais interessante.
Consulte-se o capítulo XII, de Esaú eJacó, “Esse Aires”.
Começo pelo final do capítulo anterior, “Um caso único”,
quando o Conselheiro irrompe na narrativa. Plácido, adepto
zeloso do espiritismo, não economiza esforços para converter
o diplomata ao novo credo. E, bem ao contrário de Bento
Santiago no trem de subúrbio, Aires mantém-se atento, em­
bora permaneça indiferente ao entusiasmo do interlocutor:

— Venha, venha, disse ele, ande ajudar-me a converter o


nosso amigo Aires; há meia hora que procuro incutir-lhe as
verdades eternas, mas ele resiste.
— Não, não, não resisto, acudiu um homem de cerca de qua­
renta anos, estendendo a mão ao recém-chegado. (I, p. 964,
grifos meus)
No princípio do capítulo seguinte, o narrador, isto é, o
narrador extraído dos cadernos manuscritos do Conselheiro
Aires, pinta o retrato de corpo inteiro do personagem que
entra em cena, ou seja, o próprio Conselheiro Aires.
Confuso?
Mudo o ângulo: o leitor encontra uma descrição completa
do autor do manuscrito que é, ao mesmo tempo, o personagem
descrito.

Esse Aires que aí aparece conserva ainda agora algumas das


virtudes daquele tempo, e quase nenhum vício. Não atribuas
tal estado a qualquer propósito. Nem creias que vai nisto um
pouco de homenagem à modéstia da pessoa. Não, senhor, é
verdade pura e natural efeito. Apesar dos quarenta anos, ou
quarenta e dois, e talvez por isso mesmo, era um belo tipo de
homem. Diplomata de carreira, chegara dias antes do Pacífico,
com uma licença de seis meses.
Não me demoro em descrevê-lo. Imagina só que trazia o calo
do ofício, o sorriso aprovador, a fala branda e cautelosa, o ar
da ocasião, a expressão adequada, tudo tão bem distribuído
que era um gosto ouvi-lo e vê-lo. Talvez a pele da cara rapada
estivesse prestes a mostrar os primeiros sinais do tempo.
Ainda assim o bigode, que era moço na cor e no apuro com
que acabava em ponta fina e rija, daria um ar de frescura ao
rosto, quando o meio século chegasse. O mesmo faria o ca­
belo, vagamente grisalho, apartado ao centro. No alto da
cabeça havia um início de calva. Na botoeira uma flor eter­
na. (Ibidem, grifos meus)

A pintura do retrato prossegue nos quatro parágrafos se­


guintes. O narrador é liberal em suas definições, pois ele
havia assegurado: Não me demoro em descrevê-lo. O leitor fica
com a pulga atrás da orelha. Especialmente aquele que segue

281
o método machadiano, definido em crônica de A Semana, ilr
27 de outubro de 1895. Numa deliciosa discussão, motivad.i
pelo fato de alguns adeptos do espiritismo terem sido procvs
sados — o Plácido que se cuide! —, o narrador confessa su.i
desorientação: “Os entendidos terão resposta fácil; eu, simples
leigo, não acho nenhuma. Deixo-me estar entre o Código e a
Constituição, pego de um artigo, pego de outro, leio, releia v
tresleio” (III, p. 683, grifo meu).
Em seu memorial, Aires redige uma narrativa em tercei­
ra pessoa, incluindo-se como personagem, ator coadjuvante
da trama, mas que merece uma minuciosa análise de seu
físico e caráter. Tecnicamente a possibilidade não apresenta
dificuldades intransponíveis. Porém, dada a natureza reser­
vada do Conselheiro, amigo de apagar seus traços, a fim de
se concentrar nos demais, o recurso provoca surpresa.
O curto-circuito se intensifica, pois o autor da advertência
se encarrega de sublinhar a aparente discrepância — Último
por quê? —, porém não oferece resposta. A interrogação acom­
panha a leitura do romance: por que último? Questão pro­
priamente insolúvel: não se compreendeu então nem depois. O
silêncio do leitor-organizador da publicação é mais uma das
perguntas sem resposta da obra machadiana.
Nesse contexto, a advertência do Memorial de Aires merece
ser lida na íntegra:

Quem me leu Esaú eJacó talvez reconheça estas palavras do


prefácio: “ Nos lazeres do ofício escrevia o Memorial, que,
apesar das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez
dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis”.
Referia-me ao Conselheiro Aires. Tratando-se agora de
im prim ir o Memorial, achou-se que a parte relativa a uns

282
dois anos (1888-1889), sefor decotada de algumas circunstân­
cias, anedotas, descrições e reflexões, — pode dar uma narração
seguida, que talvez interesse, apesar da forma de diário
que tem. Não houve pachorra de a redigir à maneira da­
quela outra, — nem pachorra, nem habilidade. Vai como
estava, mas desbastada e estreita, conservando só o que
liga o mesmo assunto. O resto aparecerá um dia, se apa­
recer algum dia.
M. de A. (I, p. 1.096, grifos meus)

Em primeiro lugar, quem leu Esaú e Jacó observa uma


mudança de tempo verbal: no primeiro romance, não se diz
“escrevia o Memorial”, mas “escreveu o Memorial”. Além disso,
0 que era “advertência” se converte agora em “prefácio”.
Miudezas: típicas da busca da pedra filosofal. Não é o meu
caso. Já disse, redisse e, agora, tresdigo: não pretendo reduzir
a complexidade do percurso que leva do Machadinho a
Machado ao diâmetro exclusivo de minha hipótese.
Contudo, um ponto decisivo se configura nesses detalhes.
O curto-circuito anterior — relativo ao Conselheiro, autor
do diário de lembranças, e “esse Aires”, personagem de Esaú e
Jacó — atinge o próprio Machado.
Quero dizer: o M. de A.
Se a advertência dissesse: “Quem leu Esaú eJacó”, teríamos
um caso favorável à hipótese da indistinção deliberada entre
Machado de Assis e Memorial de Aires: a charada levaria longe.
Porém, a inclusão do pronome pessoal faz a balança pender
a favor da hipótese mais trivial: “Quem me leu Esaú eJacó”, ou
seja, quem leu o romance de Machado de Assis.
Reitero: a charada é falsa, e, por isso mesmo, o jogo lite­
rário é autêntico, pois a interrogação, Último por quê?, retorna
na imagem de um acordo duplo e contraditório.

283
Nos dois romances, o leitor dos textos efetivamente publ i
cados não tem acesso ao memorial do Conselheiro; ele apenas
lê excertos previamente selecionados pelos autores das adver­
tências. Em Esaú ejacó, um censor anônimo; no Memorial de
Aires, M. de A. — aliás, ele somente assina a advertência ou
também realiza o trabalho de produzir uma narrativa desbas-
tada e estreita? O texto é ambíguo: “Tratando-se agora de im­
prim ir o Memorial, achou-se que (...)”.
Quem achou?
Além disso, a operação textual realizada pelo leitor M. de
A. consiste em suprimir do Memorial todos os traços do gêne­
ro. Sua premissa — sefor decotada de algumas circunstâncias,
anedotas, descrições e reflexões — transforma as anotações do
Conselheiro em outra coisa, isto é, “uma narração seguida,
que talvez interesse, apesar da forma de diário que tem”. Em
sentido forte, o leitor do Memorial de Aires nunca tem acesso
às notas do diplomata, porém à mediação estabelecida por
um ato prévio de leitura.
Os dois últimos romances de Machado situam o ato de
leitura em posição autoral. Através da seleção dos escritos do
Conselheiro, o leitor anônimo constitui o sentido possível do
texto. Daí, o enigma frustrado das advertências importa não
como pretenso exercício literário de esconde-esconde, mas
como provocação que aciona a potência da leitura.
Nos termos propostos por Machado, o questionamento (ou
a ampliação) do conceito de autoria implica o redimensiona­
mento (ou a ampliação) do papel atribuído ao leitor. A simetria
da formulação é exigida pelo rigoroso paralelismo entre os
atos de leitura e de escrita.
Seria uma tolice associar aquele questionamento e este
redimensionamento exclusivamente à técnica da aemulatio.
i i,io se trata de processo simples, monocausal. Contudo, apos-
h) nas cores novas que a emulação e seus procedimentos
li. i/em para a composição do novo retrato do autor de
Krssurreição.

(Retrato ou fotografia: o leitor decida por si mesmo; afinal,


.1 montagem se torna princípio estrutural da assimilação
machadiana da aemulatio.)

Um pouco antes

Preciso esclarecer o trânsito do questionamento da noção de


autoria à relevância estrutural da montagem, passando pelo
redimensionamento do papel do leitor.
Principio por um contraste, através da leitura de “Frei
Simão”, publicado no Jornal das Famílias, em junho de 1864, e
republicado em Contos fluminenses (1870).
0 conto apresenta elementos que serão marca registrada
da segunda fase, embora se encontrem constrangidos por
uma moldura tradicional. Numa metáfora tomada de em­
préstimo às artes plásticas, trata-se de estudo para a elabo­
ração da obra futura. Tal esboço tem como base uma histó­
ria muito pouco estimulante: Simão, jovem romântico e
idealista, apaixona-se pela prima, órfã, e adotada por sua
fam ília. Helena se chama a bela órfã, exatamente como a
heroína do terceiro romance de Machado, lançado 12 anos
depois. As duas personagens compartilham a mesma situa­
ção social: agregadas, que apenas podem sonhar com a as­
censão social por meio do casamento. Mais sábia foi Guiomar,
personagem de A mão e a luva, que engenhosamente escapa
ao casamento com o sobrinho de sua protetora; caso contrá­
rio, permaneceria no eterno círculo de dependência. Mais
orgulhosa foi Esteia, personagem de laiá Garcia, ao abrir mão
de um amor que poderia ser sincero, e isso pela precarieda­
de de sua situação. O exame dos limites da lógica do favor,
presente nos romances de Machado, já se anunciava desde
os primeiros contos.
Simão é previsivelmente enganado pelos pais, que preten­
dem impedir seu relacionamento com Helena. No conto, a
virtude não é recompensada. Desiludido pela falsa notícia da
morte da prima, o jovem, um jansenista perdido nos trópicos,
abandona o convívio dos homens, ingressando numa ordem
religiosa. Seu comportamento excêntrico e misantropo chama
a atenção de frades e noviços: seria um santo, inteiramente
devotado ao serviço divino, ou simplesmente ocultaria a lou­
cura sob o hábito religioso?
O conto começa a tornar-se mais interessante, isto é, pro­
priamente machadiano.
Em primeiro lugar, surgem dois níveis de narração. E um
deles, a “fonte” do relato, somente pode ser imaginado pelo
leitor. Após seu enterro, descobre-se que frei Simão escreveu
“uns fragmentos de memórias” (II, p. 152). Desejosos de com­
preender a atitude arredia do irmão, os frades decidem ler o
escrito, transformando-o num involuntário autor defunto
— conhecemos o resultado explosivo da inversão do ingênuo
procedimento, na invenção do defunto autor. A curiosidade
nada piedosa dos religiosos aciona a narrativa, evocando o
voyeurismo oblíquo que estimula a leitura de romances. Por
sua vez, o relato oferecido ao leitor é o resultado do exame
do “autor desta narrativa [que] despreza aquela parte das
Memórias que não tiver absolutamente importância” (II, p.
153). Como no Memorial de Aires, o leitor do conto não tem

286
•icesso ao texto do frei Simão, mas à reconstrução mediada
pela leitura do narrador. O leitor deve contentar-se com a
memória que o narrador tem da leitura das “Memórias que há
de escrever frei Simão Águeda, frade beneditino” (ibidem, grifos
do autor). Uma vez que o frade não concluiu o texto, por que
não dar forma póstuma ao escrito, através dos olhos de um
póstero? A figura do autor que se sabe em primeiro lugar um
leitor já se encontra na estruturação desse conto.
Vejamos a natureza das memórias de frei Simão.
Nas palavras do narrador-leitor: “Eram, pela maior parte,
fragmentos incompletos, apontamentos truncados e notas
insuficientes; mas de tudo junto pôde-se colher que realmen­
te frei Simão estivera louco durante certo tempo” (ibidem). E,
se a incompletude e as lacunas conduzem o leitor à prosa das
Memórias póstumas, outra questão surge em novo comentário
sobre o manuscrito.
Na primeira vez que retorna à casa, o nome da prima é
estrategicamente ignorado. Porém, no cumprimento de sua
missão evangelizadora, o frade visita uma vila no interior do
estado. Para sua surpresa, embora o leitor antecipe o desen-
lace com facilidade, no final da pregação, “entrou na igreja
um par, marido e mulher: ele, honrado lavrador, (...) ela, se­
nhora estimada por suas virtudes, mas de uma melancolia
invencível” (II, p. 157). Era Helena. Ao reconhecer o primo,
desmaia no meio do culto. Interrompe-se momentaneamente
o sermão, o frade identifica a recém-chegada, dando-se conta
do engano em que vivera e do ardil empregado pelos pais para
afastá-lo da prima. O narrador prossegue: “No manuscrito do
frade há uma série de reticências dispostas em oito linhas. Ele
próprio não sabe o que passou” (ibidem, grifo meu).
Vale destacar o emprego de recursos tipográficos, consa­
grados nas Memórias póstumas, presentes em texto de 1864,

287
ainda que se encontrem apenas sugeridos para a imaginação
do leitor, sem chegar à superfície da página. Assinale-se tam­
bém a forma do “diagnóstico” da loucura do frei Simão: ela
é diagnosticada verbalmente. O comportamento arredio, cas­
murro, poderia sugerir misantropia, mas não autorizaria o
diagnóstico. Foi o caráter lacunar de suas memórias e o delí­
rio verbal no referido sermão que serviram de base à conclu­
são: frei Simão enlouquecera.
Recorde-se a passagem:

No manuscrito do frade há uma série de reticências dispos­


tas em oito linhas. Ele próprio não sabe o que passou. Mas o
que se passou foi que, mal conhecera Helena, continuou o
frade o discurso. Era outra coisa: era um discurso sem nexo,
sem assunto, um verdadeiro delírio. A consternação foi geral.
(Ibidem)

A evidência da insânia é de natureza lingüística: o frade


se isola dos homens, renunciando progressivamente à lin ­
guagem. Suas memórias e a lembrança do malogrado ser­
mão reforçam o pressuposto: “discurso sem nexo”; “frag­
mentos incompletos” (II, p. 153) — e o pleonasmo importa
como índice do vínculo entre loucura e perda do domínio
da linguagem.
Efeito similar é aperfeiçoado em “O alienista”, publicado
em vários números de A Estação entre outubro de 1881 e
março de 1882, e colhido no mesmo ano em Papéis avulsos. O
narrador dissemina pistas acerca da alienação progressiva de
outro Simão, o Bacamarte. Em geral, o próprio discurso do
médico insinua sua desarmonia crescente. Numa definição,
em aparência irrefutável — “A razão é o perfeito equilíbrio
de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia”
(II, p. 261, grifo meu) —, a própria repetição, obsessiva, es­
clarece o perfeito desequilíbrio que toma conta do alienista.
A inscrição da loucura a partir do caráter lingüístico da
apreensão da realidade já aparece esboçada em “Frei Simão”.
O conto seria mais instigante se terminasse nessa frase:
“Era outra coisa: era um discurso sem nexo, sem assunto, um
verdadeiro delírio. A consternação foi geral.” Machado, en­
tretanto, sentiu-se na obrigação de concluir o relato sem
deixar lacunas — estamos distantes do autor que confia no
ato de leitura para preencher as omissões do relato. Dois
meses depois do inesperado reencontro, “a pobre senhora não
resistiu à comoção” e morreu (II, p. 157). O delírio do frade
levou-o à morte. E como o que aqui se faz aqui se paga, após
a morte da esposa, o pai de Simão ingressou na mesma ordem,
ocupando a cela que pertencera ao filho e, claro, enlouqueceu!
Nas palavras do narrador: “Foi crença que, nos últimos anos
de vida deste velho, que ele não estava menos doido que frei
Simão de Águeda” (ibidem).
Por fim, tanto o pleno desenvolvimento das possibilidades
ficcionais relativas ao jogo do autor-leitor quanto a reciclagem
do modelo do autor-editor adquirem pleno direito de cidada­
nia em Esaú eJacó e no Memorial de Aires. De fato, a experiên­
cia de escrita de Dom Casmurro deve ter sido fundamental para
o domínio da técnica de um tipo especial de leitura: a leitu-
ra-colagem.

0 texto e a leitura-colagem

No sistema literário pré-romântico, parte-se do pressuposto


da existência de um repertório comum, que anima o jogo
entre produtores e receptores. Desse modo, alusões e citações

289
devem ser reconhecidas sem dificuldade, intensificando o
caráter lúdico da experiência literária. Sua constituição re­
corda um xadrez mental, pois o deslocamento de uma simples
peça no tabuleiro da tradição propicia variações potencial­
mente infinitas, cuja apreciação depende da capacidade de
avaliar os efeitos deste ou daquele lance. Num poema, cada
palavra escolhida ou imagem empregada ativa uma cadeia
de associações e paralelismos que constitui autêntica obra
invisível, numa miríade de palimpsestos e de possibilidades
latentes a serem materializadas pela recepção. A técnica da
montagem transforma essa latência em ato de leitura parti­
cular, explicitando a radicalidade da forma do romance ma-
chadiano.
No fundo, o advento do romantismo foi favorecido pela
progressiva perda do repertório comum. O caráter lúdico da
técnica da imitatio oculta um dado socialmente nada diverti­
do: o conhecimento da tradição literária envolvia um círculo
muito reduzido da população, a elite letrada. Em alguma
medida, e talvez mal comparando, recorda os jogos de corte
ou os passatempos de salão, admiráveis em sua agudeza, mas
desde que se esqueça a desigualdade estrutural sobre a qual
se apoia.
O advento do romantismo, dizia, colaborou para alterar
profundamente esse panorama.
De um lado, em lugar do domínio de um verdadeiro ar­
quivo de temas e formas, passou-se a privilegiar o conheci­
mento da cultura pátria. A rima não é casual: na escrita da
história literária, romantismo e nacionalismo são manifes­
tações gêmeas. De outro, o papel do leitor foi progressivamen­
te reduzido, cingindo-se à tarefa de compreensão da intenção
autoral; aliás, adequação estratégica, e numa relação de ho-
mologia transferida para o plano da leitura, pois se passa do

290
{ iiiijunto da tradição à individualidade do artista criador. Em
ir da imagem do leitor-enxadrista, implícita na técnica

l,i iicinulatio, pouco a pouco se impôs a figura do leitor-intér-
|*i de, hermeneuta de um horizonte limitado.
Tal processo leva à redução do repertório cultural. No
•iii auto, pelo menos em tese, amplia-se o número de partíci­
pe. da cidade letrada. Daí, o caráter francamente anacrônico
•Io resgate deliberado da técnica da aemulatio em tempos
pós-românticos, sobretudo no Brasil escravocrata do século
XIX. No contexto brasileiro, o recurso à emulação também
eqüivale a um sutil, porém corrosivo, comentário político.
Na Europa e nos Estados Unidos, a alfabetização em mas-
sa criou efetivamente um público novo. Dois caminhos se
destacaram: a via protestante, que ensinava as primeiras letras
para facilitar o contato direto com as Escrituras, e a via na-
poleônica, que considerava a alfabetização indispensável para
fomentar certo ideal de cidadania. Não importa o caminho:
em ambos os casos, o desaparecimento paulatino do univer­
so da imitatio e da aemulatio correspondeu ao surgimento
efetivo de um público leitor urbano. Sem esse fenômeno, o
gênero romance dificilmente teria adquirido a proeminência
que desfrutou.
No caso brasileiro, dada a ausência de campanhas de al­
fabetização, perdeu-se o círculo letrado, dono de sólido reper­
tório clássico, mas não se ganhou um público multiplicado,
ávido consumidor de jornais, folhetins e romances encader­
nados. Em crônica de 15 de agosto de 1876, ao comentar o
recenseamento do Império, Machado enfrenta o problema:

A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes


neste país que podem ler; desses uns 9% não leem letra
de mão. 70% jazem em profunda ignorância. (...) 70% dos
cidadãos votam como respiram: sem saber por que nem o
quê. Votam como vão à festa da Penha, — por divertim en
to. (III, p. 345)

Os cinco leitores potenciais do defunto autor talvez u.m


sejam assim tão poucos.
Tudo depende da conta que se faça.
Eis a força do oblíquo comentário político machadiano,
esclarecida na equivalência entre analfabetismo e exercício
precário da cidadania. Recuperar a técnica da emulação em
tempos pós-românticos pode sugerir que a estrutura política
e econômica preserva traços pré-românticos. No caso macha
diano, opção estética também denuncia permanências colo­
niais. O anacronismo, portanto, corta dos dois lados.
Machado consegue ir além do modelo do leitor-intérprete,
mesclando dois tipos de leitura: pré e pós-romântica. Tudo se
passa como se o texto disseminasse pistas que comprometes
sem a estabilidade semântica do enunciado. Desse modo,
através de recurso tão simples que quase não se percebe, o
leitor-intérprete recebe um piparote definitivo e repentina­
mente se encontra sem função. Assim como o defunto autor,
ele precisa reinventar-se.
No plano do conto, o que se afirma num parágrafo é pos­
to sob suspeição em outros. No plano do romance, os capítu­
los se transformam em armadilhas: este puxa o tapete da­
quele; o capítulo Y desmente o prometido no X, e assim
sucessivamente. Em tal circunstância, o leitor passa a desem­
penhar papel central na constituição do sentido; papel que
ultrapassa o nível puramente metafórico, pois demanda uma
autêntica técnica de montagem das diversas instâncias tex­
tuais. Essa é, por assim dizer, a marca-d’água propriamente
machadiana.
Leitura-colagem e conto

Proponho uma releitura do conto “Teoria do medalhão”,


publicado na Gazeta de Noticias, em 18 de dezembro de 1881,
r no ano seguinte em Papéis avulsos.
Eis a trama: Janjão se encontra na véspera de completar
22 anos. O presente que recebe do pai é a lição de como virar
um medalhão, cuja postura mesurada é útil a todas as pro­
fissões, especialmente se o jovem ingressar na política. O
conto pode ser lido como uma ressonância divertida (e muito
aprofundada) dos conselhos dados pelo bajulador Polônio a
seu filho, Laertes, antes de uma viagem de estudos:

(...) Vai com a minha benção,


e grava na memória estes preceitos:
Não dês língua aos teus próprios pensamentos,
nem corpo aos que não forem convenientes.
Sê lhano, mas evita abastardar-te.
(...)
A todos, teu ouvido; a voz, a poucos;
ouve opiniões, mas forma juízo próprio.
Conforme a bolsa, assim tenha a roupa;
sem fantasia; rica, mas discreta,
que o traje às vezes o homem denuncia.
[Hamlet, Ato I, Cena II, p. 557).

Camareiro-mor do rei, Polônio se caracteriza por um ser­


vilismo tão elaborado que se torna cômico. No entanto, ao
propor um manual realista de sobrevivência na hierárquica
sociedade de corte, ele procura salvar as aparências. Laertes
deve escutar a todos que tenham mais poder e prestígio do que
ele. Pode até forma[i] juízo próprio, mas isso respeitando o coro­
lário da proposição: Não dês língua aos teus próprios pensamentos.

293
A receita brasileira deixa de lado os meios-tons, explii I
tando o verdadeiro propósito do camareiro-mor, que se ad. 11 ■
ta perfeitamente às relações sociais do universo do agregai li -
O pai de Janjâo resume sua filosofia com um direto no qun
xo do filho: “nào transcendas nunca os limites de uma inve
jável vulgaridade” (II, p. 294). O adjetivo invejável revela qur <i
substantivo remete à etimologia: vulgo, no sentido de “o ro
mum das pessoas”. O conselho é um elogio absoluto da ?nr
diocritas. Literalmente estar no meio é a forma mais seguia
de conduzir-se na instabilidade da vida pública, especialmen
te se não há diferença entre liberais e conservadores no
exercício do poder.
A ideia de uma invejável vulgaridade traz à mente do leiloi
de Esaú eJacó o drama vivido pelo pacato Custódio, dono da
Confeitaria do Império. Na véspera da Proclamação da
República, ele decide encomendar uma nova tabuleta para
seu estabelecimento. Ao inteirar-se dos últimos eventos, nào
hesita: “Escreveu às pressas um bilhete e mandou um caixei­
ro ao pintor. O bilhete dizia só isto: ‘Pare no D’. Com efeito,
não era preciso pintar o resto, que seria perdido, nem perder
o princípio, que podia valer” (I, p. 1.027). Se a República se
firmasse no poder, a tabuleta anunciaria, em acordo com os
novos tempos: Confeitaria da República. Se por acaso a Monarquia
retornasse, a tabuleta afirm aria a fidelidade aos eternos
princípios: Confeitaria do Império. Contudo, o bilhete chega
tarde e o dono da Confeitaria tem de arcar com o prejuízo,
afinal, “as revoluções trazem sempre despesas” (I, p. 1.030).
Naturalmente, a serem pagas pelos tantos Custódios da his­
tória brasileira.
Mais precavido do que o malogrado dono da confeitaria,
o pai do aniversariante desenvolveu um método infalível para

294
0 filho atingir sem percalços o nirvana político. Em primeiro
lunar, submeter-se a “um regime debilitante, ler compêndios

Ir retórica, ouvir certos discursos, etc.” (II, p. 290). E isso com
1atenção diplomática do Conselheiro Aires e não com o des-
i aso do casmurro Bento Santiago. De igual modo, Janjão de­
veria tornar o clichê o idioma do dia a dia, seguindo a lição
ile outro Conselheiro, o Acácio, de 0 primo Basílio.
Vejamos o receituário:

(...) podes empregar umas quantas figuras expressivas, a


hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das
Danaides, as asas de ícaro, e outras, que românticos, clássicos
e realistas empregam sem desar, quando precisam delas.
Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos
jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os
discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento.
Caveant cônsules é um excelente fecho de artigo político; o
mesmo direi do Si vis pacem para bellum. (II, p. 291)

Essa passagem é muito importante, pois qualifica a sinté­


tica sentença anterior: ler compêndios de retórica. Nesses trata­
dos, o aspirante a medalhão encontraria a coleção completa
de lugares-comuns, adornos sem conseqüência, dispositivos
oratórios pré-fabricados, prontos para uso em situações pro-
tocolares: Si vis pacem para bellum.
Em alguma medida, tratou-se mesmo de uma guerra dis­
cursiva e os adeptos do romantismo prepararam-se para a paz
esvaziando a complexidade da arte retórica.
Em tempos pós-românticos, esse esvaziamento se evidencia
pelo giro semântico de duas palavras-chave: retórica e lugar-
comum.
Consulte-se o dicionário Houaiss.

295
Retórica: “a arte da eloqüência, a arte de bem argumcm u
arte da palavra”.
Esse é o sentido clássico. Em seu âmbito, a técnica dairnllulhi
supõe o enxadrismo literário discutido no Capítulo 3, fonun cn
do a base da leitura que proponho da obra de Machado de As ,h

(Como o leitor já sabe de cor e salteado, parto do princípio


de uma atualização deliberadamente anacrônica de procei 11
mentos pré-românticos em tempos pós-românticos.)

A acepção dominante após a revolução romântica é mu ii o


distinta: “emprego de procedimentos enfáticos e pomposo-,
para persuadir ou por exibição; discurso bombástico, enfát i
co, ornamentado e vazio”.
Discurso ornamentado e vazio: eis o sentido atual e o prece i
to defendido pelo pai de Janjão. Nesse registro pálido, o me
dalhão se converte em metonímia do político, cujo discurso
naturalmente se reduz à “pura retórica”. Tal metamorfose1
semântica só foi possível pelo enfraquecimento de um recur
so fundamental.
Retorno ao dicionário, principiando pela definição hoje
dominante.
Lugar-comum: “ideia, frase, dito, sem originalidade; bana­
lidade, chavão”.
Simples clichê, o lugar-comum se converte no esperanto
das ideias recebidas, reunindo Bouvard, Pécuchet, o
Conselheiro Acácio, e os inúmeros medalhões da ficção ma­
chadiana. Nesse horizonte, seu oposto é a criatividade do
artista demiurgo, preocupado em ser o primeiro a dizer o que
nunca se disse antes.
Recorde-se, contudo, a acepção clássica, associada à arte
retórica.

296
Lugar-comum: “fonte geral de onde os oradores podem tirar
.ii )',umentos e provas para qualquer assunto”.
ionte geral: o pecúlio comum, no vocabulário machadiano,
• .1udado em “O instinto de nacionalidade”. É a própria tra-
tlição, cujo conhecimento era compartilhado por escritores e
ouvintes ou leitores. Desse acervo deriva o caráter lúdico da
experiência literária.
Essa passagem — aparentemente, ela também, um lu-
nar-comum, ou seja, simples clichê — implica uma ambigüi­
dade inesperada, cujas conseqüências ajudam a esclarecer o
que torna Brás Cubas um autor particular, nos termos do prefá­
cio à terceira edição das Memórias póstumas.
De um lado, se a passagemfor lida do ponto de vista do pai de
Janjão, o filho deve exercitar-se na arte de discursar longa­
mente sem esclarecer o que pensa. Na verdade, não deve se­
quer pensar. Condição ideal para proferir discursos vazios,
porém empolados; afinal, lançar mão de palavras difíceis e
recorrer a latinismos bem escolhidos permite obter o cobiça­
do passaporte para o parque temático dos donos do poder.
De outro lado, se a passagem for lida pelo avesso, ela é um
elogio cifrado à arte retórica, sugerindo um reconhecimento
indireto da técnica da emulação: basta ler os preceitos com
uma hermenêutica de ponta-cabeça. O conto é uma sátira
impiedosa aos hábitos mentais e políticos da elite brasileira,
logo, tal leitura não parece excessiva. Invertendo os termos
da equação, ou, melhor dito, devolvendo aos termos seu sen­
tido original, Machado confidencia ao leitor atento um cami­
nho alternativo para entender sua obra.
Trata-se de apurar a audição.

(Aliás, não faço outra coisa neste ensaio.)

297
Eis o paradoxo que estrutura o texto: a “teoria do meda
lhão”, em seu princípio básico, é abalada pela leitura cl<»
conto “Teoria do medalhão” ! A mera explicitação de seus
pressupostos, enumerados com a seriedade cômica de um
Polônio, inviabiliza sua aplicação. Revelado seu artifício, <
>
mágico deixa de ser um ilusionista bem-sucedido. De igu.il
modo, é difícil conceber um leitor que, ao escutar os conselht >s
dados ao jovem, consiga evitar “esse movimento ao canto da
boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da de­
cadência, contraído por Luciano, transm itido a Sw ift e
Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não. Usa
antes a chalaça” (II, p. 294). O pai de Janjão pinta a ironia com
cores sugestivas, mas recomenda a chalaça, antídoto eficaz,
pois, como o texto adverte, a ironia deve ser evitada ao má­
ximo. O cuidado faz parte da terapêutica: em relação a ideias
próprias, “o melhor será não as ter absolutamente” (II, p. 290).
Afinal, como dissociar ironia e agudeza; agudeza e pensa­
mento próprio? Já a chalaça, pura exterioridade, se coaduna
à perfeição com o exercício da vulgaridade.
Se possível, invejável.
Contudo, se o conto provoca esse movimento ao canto da boca,
a teoria desmorona no exato instante de sua leitura.
Produzir curtos-circuitos interpretativos é o efeito propi­
ciado pelo texto machadiano, e que exige o método da leitura-
colagem.

(A marca-d’água de sua literatura.)

Na exposição de seus truques, o medalhão torna-se a ca­


ricatura de uma sociedade avessa à meritocracia. O pano sobe,
mas a máscara cai. Janjão é levado a sorrir das mazelas de
seu meio, muito embora seu rico passadio delas dependa. A

298
prática do medalhão não resiste ao esclarecimento da própria
teoria: a leitura do conto revela-se o duplo da escrita, seu
avesso potencial.
Esse movimento favorece a dualidade realmente inovado­
ra. De um lado, a escrita como museu vivo, reinvenção da
biblioteca. De outro, a leitura como antecâmara da escrita,
colagem de livros possíveis.
O leitor se revela o duplo do autor, e este o futuro daquele.
O mais importante: em nenhum momento, o narrador
chama atenção para a contradição que estrutura o conto.
Trata-se de sentido latente, cujos elementos se encontram
dispostos no tabuleiro do texto, mas cabe ao leitor armar a
jogada, montando as peças do quebra-cabeça.
Nada impede, porém, que o gesto de montagem somente
ocorra a poucos — talvez cinco. É provável que uma boa parte
do público leitor permaneça na superfície do texto, deixando
de intuir sua afinidade com a ética do medalhão.
O texto se desenvolve numa estrutura em palimpsesto. Na
camada superficial, a sátira impiedosa dos medalhões.
Subjacente, a crítica a toda a sociedade, incluindo o leitor
— sobretudo, o leitor. Machado pode ter aprendido a aperfei­
çoar o método de escrever para públicos diversos com o autor
de Hamlet. Esse é um dos traços mais fascinantes do teatro
shakespeariano e o salto machadiano exercita a mesma ha­
bilidade, associada a um ato de leitura que evoca o princípio
da montagem.

Leitura-colagem e romance

A estratégia discursiva machadiana demanda um leitor


capaz de associar passagens do texto entre si distantes, po­
rém que, quando aproximadas, provocam um cu rtocin nl
to interpretativo. 0 ponto merece destaque: o efeito n.n. ■
derivado de uma contiguidade simples em que, por exeni|*l<1
o Capítulo X II relativiza ou contradiz o afirm ado m>
Capítulos XI, X ou IX. A distância entre os capítulos exir.*
um ato deliberado de montagem por parte do leitor. O ilh
positivo textual que estimula a leitura-colagem é antes <1.
tudo uma latência, que só pode ser ativada através de um
gesto próprio de determinação de sentido; caso contrário, .i
leitura-colagem simplesmente não se atualiza.
Tal técnica atinge seu máximo rendimento no romance
esfinge Dom Casmurro.
Ofereço um exemplo: peço ao leitor que interrompa a
leitura deste ensaio, a fim de consultar com calma os Capítulos
LX X X III e CXXXIX, respectivamente, “O retrato” e “A foto­
grafia”.
Destaque-se a distância razoável entre as duas instâncias:
mais de cinqüenta capítulos separam as duas perspectivas.
Contudo, através da leitura-colagem, aproximemos suas con­
clusões contraditórias.
Começo pelo último capítulo, recordando a passagem
decisiva:

Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia


de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão
dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força
alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno
Ezequiel. (I, p. 938, grifo meu)

A conclusão é ainda mais drástica porque, como se diz na


abertura do capítulo: “Palavra que estive a pique de crer que

300
pi i vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de
rt••I- inado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando:
'Mamãe! mamãe! é hora da missa!’ restituiu-me à consciên-
-11 da realidade.” Bento Santiago esteve prestes a reconci-
liiii so com Capitu, abafando suas suspeitas, reconhecendo
•11k1lhe faltavam evidências irrefutáveis. Esse é o momen-
in cliave do romance, assinalando a ruptura definitiva do
■i wil. O narrador tem como base para sua certeza uma hipó-
irsc*: havia por força alguma fotografia de Escobar, mas, como a
própria frase sugere, tal fotografia simplesmente não existe.
A não ser que se considere o menino Ezequiel uma fotografia
cin movimento do menino Escobar!
Coloque-se essa conclusão em paralelo com a situação
vivida no capítulo “O retrato”. Bentinho vai à casa de
Sancha, que estava doente. Essa era a desculpa: ele fora
atrás de Capitu. Gurgel, pai da enferma, puxa conversa
mostrando um quadro na parede, “onde pendia um retra­
to de moça, perguntou-me se Capitu era parecida com o
retrato” (I, p. 892). Pouco afeito a desacordos, Bentinho
confirma a parecença sem realmente prestar atenção na
tela. Animado pelo acordo, Gurgel continua:

Então ele disse que era o retrato da mulher dele, e que as


pessoas que a conheceram diziam a mesma coisa. Também
achava que as feições eram semelhantes, a testa principal­
mente e os olhos. Quanto ao gênio, era um, pareciam irmãs.
— Finalmente, até a amizade que ela tem a Sanchinha;
a mãe não era mais amiga dela... Na vida há dessas semelhanças
assim esquisitas. (Ibidem, grifos meus)

A similaridade não é apenas física — a testa principalmen­


te e os olhos —, mas sobretudo anímica — Quanto ao gênio, era

301
um, pareciam irmãs. 0 narrador parece aceitar a conclusão ilo
pai de Sancha: Na vida há dessas semelhanças assim esquisita\
Pelo menos, não a contesta, e ao escrever suas memórias
poderia tê-lo feito retrospectivamente.
Recapitulo, pois muito depende da forma dos capítulos dos
romances machadianos da segunda fase: lidos através de uma
técnica de leitura-colagem, um curto-circuito é produzido.
Ora, se vale o que se afirma em “O retrato”, a conclusão a qm*
chega o narrador em “A fotografia” pesa pouco: se são críveis
semelhanças assim esquisitas, a sim ilitude entre Ezequiel e
Escobar não pode ser considerada prova conclusiva da infide­
lidade de Capitu.
Contudo, se a hipótese exposta no Capítulo CXXXIX tem
peso, então o célebre fecho do LXXX1II pouco vale: a seme­
lhança entre Escobar e Ezequiel não pode ser casual. Nesse
caso, a falta de comentário do narrador casmurro apenas
ilustra sua personalidade: “Um dos costumes da minha vida
foi sempre concordar com a opinião provável do meu inter­
locutor, desde que a matéria não me agrava, aborrece ou
impõe. Antes de examinar se efetivamente Capitu era parecida com
o retrato, fui respondendo que sim” (ibidem, grifo meu). Logo, a
conclusão do pai de Sacha — Na vida há dessas semelhanças
assim esquisitas — perde-se no vazio do desinteresse de
Bentinho. A ausência de resposta não significa necessaria­
mente que Gurgel tenha razão.
E agora?
Eis o desafio do texto que estimula a leitura-colagem: o
narrador não oferece pistas, cabe ao leitor reconhecer que se
encontra à deriva. Ele não pode mais se contentar com o
papel de intérprete da “verdade” do texto, já que o próprio
autor desacredita a noção. Essa é a radicalidade da forma

302
machadiana: a organização última do texto é parcialmente
i ransferida para o leitor, propiciando de maneira inesperada
e anacrônica a ressurreição do circuito definidor da aemulatio,
temperada pela forma livre, tanto nos modos de apropriação
quanto na pluralidade dos atos de leitura.
A desorientação semântica não é reconhecida pelo narra­
dor. Bento Santiago não se jacta de sua agudeza metalinguís-
tica, tampouco se encanta com os próprios recursos estilísti­
cos. O narrador parece convencido da traição de Capitu e
Escobar. O colapso potencial do sentido, possibilitado pela
técnica da leitura-colagem, só se atualiza através de um ato
de leitura particular. Para ativá-lo, é preciso que o leitor com­
pare os capítulos e, como no caso das advertências de Esaú e
Jacó e Memorial de Aires, encontre dissonâncias que somente
se tornam visíveis a partir da comparação. Muitos leitores de
Dom Casmurro continuam preocupados com a culpa ou a
inocência de Capitu, preparando laboriosas listas de evidên­
cias a favor desta ou daquela hipótese. Nesse exercício ocioso,
embora tentador, a potência do texto-esfinge se perde; na
verdade, passa despercebida.
A habilidade de escrever para mais de um tipo de público
e a forma sutil de disseminar pistas contraditórias ao longo
do texto permitem a Machado resgatar um ato de escrita
pré-romântico, favorecendo um ato de leitura característico
do mesmo período histórico. Como vimos, autores, leitores e
ouvintes compartilhavam o repertório disponível e, assim,
tanto a produção quanto a recepção acionavam o dispositivo
definidor da arte combinatória, compondo palimpsestos vir­
tuais no exame das variações possíveis. E cada leitor ou ou­
vinte reagia segundo seu repertório e capacidade analítica,
configurando a diversidade do público.

303
Xadrez de palavras: o autor começa o jogo com as peças
brancas, mas o segundo lance cabe sempre ao leitor.
Essa é a contribuição propriamente machadiana à form.i
do romance, tornada possível no âmbito do resgate delibera
damente anacrônico da técnica da imitatio e da aemulatio.

Aemulatio — Emendar

A técnica da leitura-colagem ajuda a esclarecer um dado re­


levante.
Na obra machadiana da segunda fase, destaca-se a presen­
ça constante do verbo “emendar”. Em geral, seu campo se­
mântico concentra-se em torno da ideia de corrigir ideias,
retificar padrões, reformar comportamentos, segundo a
acepção dominante. Porém, o verbo também aparece frequen­
temente com a acepção própria de corrigir e retificar textos
ou partituras musicais: são emendas a serem feitas tanto pelo
narrador, quanto pelo leitor; sobretudo, pelo leitor.
Nesse contexto, adquire força a transformação machadia­
na da máxima de Pascal. Se a ideia do homem como “caniço
pensante” implica um nível mínimo de estabilidade em meio
ao movimento; a noção do homem como “errata pensante”
sugere, de um lado, o movimento como modelo de uma esta­
bilidade dinâmica, e, de outro, supõe, ainda que metaforica­
mente, a possibilidade de inclusão de um novo elemento na
equação: o leitor. Cabe a ele tornar-se um improvisado ope­
rário de imaginária oficina tipográfica, a fim de emendar o
texto impresso por sua conta e risco.
O leitor reconhece a passagem com facilidade. Encontra-se
nas Memórias póstumas, no Capítulo X X V II, “V irg ília ?”, e
principia com um típico piparote:

304
Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos
faz senhores da terra, é esse poder de restaurar opassado, para
tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos
nossos afetos. Deixa lá dizer o Pascal que o homem é um
caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada
estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que
será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor
dá de graça aos vermes. (I, p. 549, grifos meus)

A poética da emulação, e seu anacronismo deliberado, é


esse poder de restaurar o passado, corrigindo, na medida do
possível, assimetrias políticas e culturais, cujo controle esca­
pa ao autor. Já no Capítulo X X X V III, “A quarta edição”, a
metáfora retorna; agora com o emprego do verbo polivalente:

(...) Lembra-vos ainda a minha teoria das edições humanas?


Pois sabei que, naquele tempo, estava eu na quarta edição,
revista e emendada, mas ainda inçada de descuidos e barba-
rismos; defeito que, aliás, achava alguma compensação no
tipo, que era elegante, e 11a encadernação, que era luxuosa.
(I, p. 556-557, grifos meus)

A dicção irônica da pergunta recorda a censura polida aos


que não apontaram as imitações de Dinis talvez por se não ter
advertido nelas. Poucas páginas separam as ocorrências da
mesma metáfora. Contudo, poucas páginas talvez represen­
tem uma eternidade para leitores apressados.
Em Quincas Borba, 0 emprego brinca com variações sobre
tema caro a Machado. Veja-se o Capítulo CLXIX:

E daí quem sabe? repetiu 0 Doutor Falcão na manhã seguin­


te. A noite não apagara a desconfiança do homem. E daí quem
sabe? Sim, não seria só sim patia mórbida. Sem conhecer

305
Shakespeare, ele emendou Hamlet: “Há entre o céu e a terra,
Horácio, muitas coisas mais do que sonha a vossa vã filan­
tropia.” (I, p. 783-84, grifo meu)

De igual modo, Bento Santiago, que “não vira nem lera


nunca” Otelo, nem por isso deixou de imaginar a relação da
peça com seu dilema: “sabia apenas o assunto, e estimei a
coincidência” (I, p. 934). No capítulo seguinte de Quincas Borba,
como se Machado desejasse repisar a ideia, mais uma vez o
verbo se faz presente:

Em verdade, a conclusão não parecia estar nas premissas;


mas era o caso de emendar outra vez Hamlet: “Há entre o
céu e a terra, Horácio, muitas coisas mais do que sonha a
vossa vã dialética.” (1, p. 784, grifo do autor)

O leitor talvez se pergunte sobre a finalidade desse mo­


desto inventário.
A pergunta é justa e pode ser respondida através de intui­
ção de Raimundo Magalhães Júnior. Em ensaio inspirador,
ele principia com uma afirmação provocadora:

Machado de Assis, deturpador de citações... Ninguém até aqui


levantou contra o grande escritor esta acusação. Nenhuma,
porém, seria mais fundamentada. Como isto épecado de muitos,
não é coisa que o amesquinhe. Além disso, Machado citou muito.
Tinha nisso um de seus prazeres especiais. Gostava de fazer
praça de amplos conhecimentos de literatura estrangeira, ci­
tando no original o que podia e cabia nos limites de suas crô­
nicas ou de seus contos. Era esta uma de suas poucas vaidades.69

69Raimundo Magalhães Júnior. “ O deturpador de citações”. Machado de Assis


desconhecido. 3;' edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957, p. 257,
grifos meus. Nas próximas citações, anotarei apenas a página da ocorrência.

306
Vaidade ancestral, ressalve-se; pois como isto épecado de
muitos, caracteriza um procedimento típico da técnica da
Imitatio. Na seqüência, o ensaísta desenvolve um precioso
estudo das deturpações de Machado, especialmente em re­
lação à obra de Molière, esclarecendo com erudição o mé­
todo machadiano; “a fusão de dois elementos diversos, de
duas leituras antigas” (p. 270). A reciclagem de fontes di­
versas na fatura de obras novas é o modelo shakespeariano
por excelência, que tem como base o exercício definidor
da emulação.
Porém, considerando que as onipresentes citações ex­
pressavam um sintoma da vaidade do autor, o ensaísta não
pode fugir a uma conclusão decepcionante: “ Em todo o
caso, a hipótese de uma falha de memória, baseada em
confusas lembranças de leitura, não seria inadmissível ou
absurda” (p. 269).
Talvez não, mas a hipótese é simplesmente anacrônica.
Anacronismo puro e simples.
Anacronismo em estado de dicionário, sem o charme do
anacronismo às avessas, ou a complexidade do anacronismo
de mão dupla.
Aceitemos o juízo de Magalhães Júnior: o autor de
Ressurreição costuma deturpar a fonte citada. Seria melhor
pensar que o método machadiano dessacraliza o texto-ori-
gem, mas fiquemos com o termo de Magalhães Júnior. A
dificuldade maior é que o ensaísta parece não compreender
o móvel da “deturpação”. Ela corresponde a um acordo de
cavalheiros — autêntica piscadela à tradição e também ao
leitor, pois cabe a ele identificar as modificações feitas.
Exatamente como o estudioso não deixou de fazê-lo, reite­
rando, ainda que à sua revelia, o caráter lúdico do xadrez de

307
palavras. Pelo contrário, a referência sempre exata demanda
a consulta permanente de textos, exigência da especializada<>
universitária. As indefectíveis notas de rodapé e as intermi
náveis querelas sobre a fonte mais adequada assinalam <
>
momento histórico no qual a tradição deixa de fazer parle
do cotidiano, transformando-se em exigência acadêmica
Haverá forma mais seca de tratar o que um dia foi repertó­
rio comum? Haverá meio mais eloqüente de medir a distân
cia que se estabelece em relação a textos que um dia forma
ram parte do dia a dia da cidade letrada? A sutileza do
modelo clássico se revela na emenda a que toda auctoritas era
submetida: somente o pedante faz questão de citar palavra
a palavra, ao passo que o verdadeiro homem de letras intro­
duz aqui e ali o molho de suafábrica — como Machado definiu
o teatro de Antônio José. O artesão pode ser o mesmo, mas
a taça leva outro vinho, cujo terroir determina a singularidade
do defunto autor.
Emendar o alheio, a fim de torná-lo próprio, é o modus
operandi da aemulatio. Nesse procedimento desempenha papel
central a memória, e especialmente suas falhas voluntárias.
Machado fez o favor de explicitar sua arte, mas é preciso lê-lo
com olhos bem abertos. Recorde-se o conto “Um dístico”,
publicado em I o de julho de 1886, em A Quinzena, e nunca
reunido em livro pelo autor:

Quando a Memória da gente é boa, pululam as aproximações


históricas ou poéticas, literárias ou políticas. Não é preciso mais
que andar, ver e ouvir. Já uma vez me aconteceu ouvir na
rua um dito vulgar nosso, em tão boa hora que me sugeriu
uma linha do Pentateuco e achei que esta explicava aquele,
e da oração verbal deduzi a intenção íntim a. (II, p. 1.063,
grifo meu)

308
Aproximações que não escaparam ao defunto autor em
m‘ii inusitado paralelo das Memórias póstumas de Brás Cubas
com o mesmo Pentateuco. Tal técnica é descrita na forma de
uma lembrança do defunto autor de suas travessuras de
criança. O menino Cubas, com indisfarçável alegria, denuncia
o beijo que o Dr. Vilaça roubou à D. Eusébia:

Dona Eusébia levou o lenço aos olhos. 0 glosador vasculhava


na memória algum pedaço literário e achou este, que mais tar­
de verifiquei ser de uma das óperas do Judeu:
— Não chores, meu bem; não queiras que o dia amanhe­
ça com duas auroras.
Disse isto; puxou-a para si; ela resistiu um pouco, mas
deixou-se ir; uniram os rostos, e eu ouvi estalar, muito ao de
leve, um beijo, o mais medroso dos beijos. (I, p. 531, grifo meu)

A memória pilha livremente a tradição em busca da pala­


vra, frase ou imagem adequada à circunstância, gesto que
supõe a adaptação da fonte. Não deixa de ser interessante que
o galanteador Dr. Vilaça recorra justamente à obra de Antônio
José, autor que mereceu, no ano anterior à publicação das
Memórias póstumas de Brás Cubas, longo ensaio, escrito com
base na poética da emulação.
Magalhães Júnior errou o alvo, mas apontou o arco na
direção correta — o que não é pouco.
Em Dom Casmurro, Machado torna a noção de emenda um
dado estrutural.
As duas primeiras ocorrências do verbo encontram-se no
célebre Capítulo IX, “A ópera”. No primeiro caso, nas palavras
de Satanás: “Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a,
fazendo-a executar” (I, p. 818). Esclareço o contexto: trata-se
de inusitado diálogo entre Deus, autor de poema sem dúvida
perfeito, e Satanás, compositor de música, por vezes agressiva,

309
provavelmente um pouco longa, como não poderia deixar dr
ser no caso de um Diabo wagneriano. De qualquer modo, ou
por isso mesmo, uma peça de grande vigor. Logo a seguir, o
leitmotiv volta, marcando o compasso do texto:

Os amigos do maestro querem que dificilm ente se possa


achar obra tâo bem acabada. Um ou outro admite certas
rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da ópera é
provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aque­
las desapareçam inteiramente, nào se negando o maestro a
emendar a obra onde achar que não responde de todo ao
pensamento sublime do poeta. (I, p. 818, grifos meus)

Retorno adiante à questão das lacunas, mas aproveito para


assinalar a relação estrutural entre texto lacunar e ato de
emendar: gestos que inauguram uma nova ficção de leitura.
Anoto outra ocorrência do verbo, destacando a inclusão
im plícita do leitor na inversão potencial do enunciado. O
narrador realiza uma comparação irreverente, concluindo
por uma negativa que cabe ao leitor transformar em afirma­
ção. Releia-se o Capítulo X XXII, “Olhos de ressaca”:

Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer


a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os
seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que
terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores
aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao
divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. (I,
p. 843, grifo meu)

Essa emenda somente pode ser feita no ato de leitura,


sugestão implícita do narrador, deixada na página como po­
tência, que convoca a imaginação do leitor. A leitura-colagem
<.i técnica da emenda se associam na criação de um disposi-
i ivo textual que transfere ao ato de leitura parte considerável
da atribuição do sentido.

(Imagine-se o que não faria Machado se vivesse na época


do hipertexto!)

Emendar citações de textos, em geral clássicos, é procedi­


mento característico do projeto machadiano, inscrevendo-se
numa longa tradição, atualizada com irreverência e ironia. 0
autor chega a incorporar o vocabulário em sua correspondên­
cia, demonstrando o alcance do gesto no próprio cotidiano.
Releia-se carta enviada a José Veríssimo em 22 de feverei­
ro de 1906:

(...) Eu aqui indo, como posso, emendando o nosso Camões,


naquela estrofe:
Há pouco que passar até outono..
Vão os anos descendo, e já de estio.
Ponho outono onde é estio, e inverno onde é outono, e isto
mesmo é vaidade, porque o inverno já cá está de todo. (III, p.
1.076, primeiro grifo meu)70

Volto ao casmurro narrador.


Após reconhecer as falhas de sua memória, reconhecimen­
to prenhe de questões para quem pretende reconstruir a vida

70Machado refere-se à nona estrofe do oitavo canto de Os Lusíadas, mas, como


é comum em suas citações, ele “deturpa” a fonte; nesse caso, alterando a
ordem dos versos: “ Vão os anos descendo, e já do Estio/ Há pouco que passar
até o Outono;/ A Fortuna me faz o engenho frio,/ Do qual já não me jacto
nem me abono;/ Os desgostos me vão levando ao rio/ Do negro esquecimen­
to e eterno sono./ Mas tu me dá que cumpra, ó grão Rainha/ Das Musas, co
que quero à nação minha” (p. 234).

311
com base em suas recordações, Bento Santiago encont 1.1 um
surpreendente consolo:

E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emen


da bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos
livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casl.i,
não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, r
cerrar os olhos e evocar todas as coisas que não achei nele
Quantas ideias finas me acodem então! Que de reflexões
profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi n;ts
folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas águas,
as suas árvores, os seus altares, e os generais sacam das
espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam
as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma
alma imprevista.
É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo.
Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preen­
cher as minhas. (I, p. 870-71, grifos meus)

Nos livros confusos nada se emenda bem porque eles piv


tendem conter tudo, especialmente sua explicação. É o caso
dos quatro primeiros romances machadianos na busca cons­
tante da chave do escrito. Os livros omissos, pelo contrário,
convertem as lacunas na própria estrutura. A descrição do
narrador casmurro de sua atitude mental — cerrar os olhos c
evocar todas as coisas que não achei — oferece o modelo para a
recepção da obra machadiana.
O leitor já sabe aonde quero chegar: Machado converte em
forma literária a impossibilidade de controlar o sentido últi­
mo do texto, transferindo a tarefa ao leitor — sem reservas,
nem restrições. É como se Machado se divertisse à custa das
incompreensões que seus textos oblíquos semeiam, embora
na superfície tudo pareça claro, mesmo cristalino. Na ficção

312
propriamente machadiana, a “função autor” desloca-se do
i «ntro da cena, que passa a ser ocupado pela “função leitor”.
I m Esaú eJacó e Memorial de Aires, o organizador final do tex­
to é o leitor primeiro do diário de lembranças do diplomata
literalmente, um Ur-Leser. Machado elabora uma forma
literária na qual o autor abre mão do desejo de controlar a
.uitoria “exclusiva” da significação; seu procedimento sorri
dessa ideia, pois o sentido “último” é o que não há.
Dom Casmurro é a obra-prima da literatura machadiana,
uma vez que a determinação do sentido é definitivamente
transferida ao leitor. E, no entanto, não é possível determiná-lo
de maneira inequívoca. Exercício semelhante pode ser veri­
ficado tanto nas Memórias póstumas de Brás Cubas quanto em
Quincas Borba, mas a radicalidade do experimento atinge seu
ponto máximo na prosa do narrador casmurro. Como um
Górgias na Rua do Ouvidor, Machado torna o impasse, pro­
dutividade; a lacuna, estrutura.
Após desejar a morte de sua mãe, para livrar-se da pro­
messa que ela fizera e que o obrigava a cursar o seminário,
Bentinho solicita o concurso do leitor. Leia-se o Capítulo
LXVII, “Um pecado”: “Se achares neste livro algum caso da
mesma família, avisa-me, leitor, para que o emende na segunda
edição; nada há mais feio que dar pernas longuíssimas a ideias
brevíssimas” (I, p. 880, grifo meu).
Hora, portanto, de concluir esta seção.
A ideia da leitura-colagem e do ato de emendar evocam a
técnica contemporânea do samplear, envolvendo questões
complexas relativas às noções de autoria, cópia, original e
plágio.
Aliás, o plágio pode ser criativo?
0 plágio como criação?

O dispositivo textual que favorece a leitura-colagem e a pr.i


tica da emenda compõem elementos da estrutura formal de
incorporação do leitor na constituição das inúmeras possibi
lidades de sentido.
Machado afirm a progressivamente sua singularidade
mediante o papel de um leitor reflexivo, cujo texto é a me­
mória escrita de sua biblioteca imaginária. Não surpreende
que se encontrem alusões constantes à obra de Shakespeare
nos textos do brasileiro, pois nenhum outro escritor foi tão
importante para o leitor Machado de Assis.
Trata-se de afinidade eletiva que define o trânsito do
Machadinho a Machado.
No Capítulo 3, observamos a relação estrutural entre
Virgílio e Machado.
A importância de Shakespeare já foi assinalada por muitos
estudiosos da obra machadiana.
De minha parte, sublinho o vínculo de Shakespeare com
a técnica da emulação, pois provavelmente aí se encontra a
razão do fascínio de Machado pelo autor de Otelo. No conto
“Tempo de crise”, publicado no Jornal das Famílias, em abril
de 1873, o personagem C. sintetiza ojuízo de Machado: “Dizem
de Shakespeare que, se a humanidade perecesse, ele só pode­
ria compô-la, pois que não deixou intacta uma fibra sequer
do coração humano” (II, p. 784-785).
Difícil imaginar elogio mais completo.
Shakespeare foi o autor canônico da literatura ocidental
que mais se aproveitou da especiaria alheia para a confecção
do molho de sua fábrica. Segundo os eruditos, das 37 peças
reunidas no First Folio, de 1623, nada menos do que 33 resul-

314
f.mi da combinação de fontes diversas, portanto, de invenções,
* nào de enredos originalmente criados pelo dramaturgo.
Somente quatro peças possuem uma história propriamente
imaginada pelo dramaturgo,71 mas, mesmo nesses casos, ele
lançou mão de sugestões diversas para cenas específicas e
laias determinadas.
As fontes shakespearianas eram múltiplas e heteróclitas:
não apenas os clássicos, mas também os contemporâneos.
Shakespeare pilhou com proveito as comédias de Plauto e
Terêncio, as tragédias de Sêneca, os relatos dos historiadores
da Antiguidade Clássica, crônicas medievais, episódios histó­
ricos, lendas. Ao mesmo tempo, estudou o trabalho de seus
pares, tirando partido, sem pudor algum, de suas melhores
ideias e soluções cênicas. De igual modo, Shakespeare aper­
feiçoou a arte de escrever para mais de um público, cifrando
mensagens para poucos ouvidos na audiência.
Talvez cinco?
Ou, pelo contrário, os cem leitores de Stendhal?
Shakespeare escreveu para públicos diversos, como se
depreende do apelo de John Heminge e Henry Condell, ami­
gos do escritor e editores do First Folio: “À GRANDE VARIEDADE
DE LEITORES. Do mais capaz àquele que apenas pode soletrar:
todos estão incluídos.”72

71 São as seguintes peças, na ordem estabelecida de sua cronologia: Love’s


Labour's Lost, A Midsummer Night's Dreum, The Merry Wives ofWindsor e The
Tempest.
72A tradução que apresento é bastante livre. Eis o texto no original: “TO THE
CREAT VARIETY OFREAÜERS. From the most able to him that can but spell: there
you are number’d.” A seqüência é deliciosa: “ We hadyou were weigh'd: especially
when the fate of ali books depends upon your capacities; and not ofyour heads
alone, but ofyour purses. Well, itis now public; andyouwill stand for your privile-
ges, we know — to read and censure. Do so, but buy itfirst." John Heminge e
Henry Condell, “TO THE GREAT VARIETY OF READERS", in The Complete
Works ofWilliam Shakespeare, p. VII.
Machado aprendeu muito com Shakespeare: nem 1.1 in­

ternas ou tramas, porém uma forma de lidar com a trailu,


e o mundo contemporâneo. O brasileiro também intuiu a .11n
de escrever para públicos diversos, imaginando, na super11«U
serena dos textos, possibilidades desestabilizadoras de leil 111 1

Dom Casmurro constitui uma leitura radical de Otelo; em


bora não apenas uma reescrita da tragédia do mouro I
mesmo se limitarmos 0 estudo às peças de Shakespeare, 11.10

seria d ifícil mostrar como Conto de Inverno e Cimbelino s.lo


também relevantes na fatura machadiana das memórias dr
Bento Santiago.

(Por ora, apenas anoto a ideia. Desenvolvê-la exigiria out r<1


livro.)

Helen Caldwell examina o caso em The Brazilian Othello of


Machado de Assis: A Study ofDom Casmurro. A tragédia fornece*
o argumento de 25 contos, peças e artigos.73 Para além da
precisão numérica, interessa observar que a reescrita macha­
diana expõe uma contradição que rende dividendos, aliás,
esclarecedores, sob outro ângulo, do caráter político do res­
gate anacrônico da aemulatio.
Não é verdade que, no desenrolar da intriga, a inseguran­
ça de Otelo, motivada pela posição de estrangeiro no univer­
so das classes dominantes em Veneza, tem importância simi­
lar à m alícia de lago? É a instabilidade dessa situação o
elemento que permite ao alferes desenvolver seus ardis. Sob

73Helen Caldwell. The Brazilian Othello of Machado de Assis: A Study ofDom


Casmurro. Berkeley: University of Califórnia Press, 1960, p. 1. A partir de
agora, cito apenas a página da ocorrência.

316
■ .i o! ica, o drama do mouro é parcialmente reencenado em
i ' iii Casmurro, mas com a supressão de lago, pois o dilema de
"irIo reside menos no ciúme e muito mais na consciência de
ii.i condição. O aguilhão do mouro é de outra natureza:
miti indo da Mauritânia, alçado à posição de poder e prestígio
rin Veneza, centro do mundo, eixo político e econômico do
Mediterrâneo, o mouro nunca ignorou o caráter precário de
.11,1 bem-aventurança.
Antes de aprofundar essa possibilidade, recapitulo sucin-
i .i mente a leitura de Caldwell: o artifício engenhoso de
M.ichado permite retratar a natureza do ciúme como um
<irculo vicioso que, mesmo sem evidência objetiva, alimenta-se
.i si mesmo — o vaga-lume e o sol que brilham a contragosto,
mas não podem deixar de fazê-lo. Bento Santiago tenta con­
vencer o leitor que Capitu e Escobar foram amantes. E, quan-
lo mais apresenta o caso perante o júri, menos parece capaz
de persuadir os leitores. Sem um lago para culpar, como jus­
tificar um ciúme desproporcional, aparentemente gratuito, a
não ser apontando para o próprio ciumento, revelando o ca­
ráter pouco confiável de um narrador tão parcial?
Contudo, e não é indispensável imaginar que as duas in­
terpretações se excluam automaticamente, a leitura interes­
sada que Bento Santiago faz da peça de Shakespeare propõe
um paralelismo que deve ser discutido. 0 mouro e Bento
Santiago são oriundos de latitude semelhante: a periferia.
Otelo, general indispensável à cidade de Veneza em tempos
de guerra, sabe muito bem que, em tempos de paz, volta a ser
um simples mouro, ocupando indevidamente o lugar que
caberia a outros. Especialmente, o cobiçado leito.
0 primeiro ato da tragédia se passa em Veneza, na im i­
nência da guerra com os turcos. Nesse momento, homem
algum vale mais do que o mouro. Nas palavras enfática-..l>•
Doge: “a opinião pública, a mais alta soberana do êxito, vm
distingue com seu voto” (p. 617). Quem mais poderia en 11<•11
tar a ameaça estrangeira? Otelo é perdoado, embora tenha

casado com Desdêmona sem o consentimento do pai, o p<>


<l<
roso senador Brabâncio.
Os quatro atos seguintes têm lugar em Chipre e esse des
locamento espacial é decisivo. Logo na primeira cena do
gundo ato se anuncia a destruição da armada turca por uma
terrível tempestade. A presença de Otelo não é mais decisiva
A cada nova cena, é o que sutilmente a ação sugere. A come
çar pelo atraso da chegada de seu navio: sintomaticamenlr.
o último a chegar à ilha. Por fim, na primeira cena do quai
to ato, Otelo descobre que foi destituído do cargo de governa
dor de Chipre.
E não é tudo.
Além de ser substituído por Miguel Cássio — ironia per
versa, pois o mouro acredita que o lugar-tenente já o substitu i
em outro domínio —, Otelo recebe uma notícia talvez mais
inaceitável do que a suposta traição. A confiar nas palavras
de lago, após a surpresa de Rodrigo:

lago — Senhor, veio uma ordem especial de Veneza, para que


Cássio fique no lugar de Otelo.
Rodrigo — Isso é verdade? Nesse caso, Otelo e Desdêmona
terão de voltar para Veneza.
lago — Oh, não! Ele vai para a Mauritânia e levará con­
sigo a bela Desdêmona, a menos que sua permanência aqui
seja prolongada por algum acidente, não havendo nenhum
mais decisivo do que o afastamento de Cássio (p. 649).

Eis a verdadeira derrota para Otelo.

318
Retornar ao ponto de partida: do centro do mundo ao
centro da periferia, passando pela periferia do centro, a ilha
de Chipre. Outra vez, identificamos as relações triangulares
que se encontram na base da formação das culturas latino-
.nnericanas.
Porém, o paralelo entre Bentinho e o mouro exige cuida­
dos. Não é casual que o marido de Capitu seja leitor de Plutarco.
A comparação exige cautela, pois, ao contrário de Otelo,
Bentinho é filho da elite econômica. Nesse sentido, o perso­
nagem que mais recorda Otelo é a própria Capitu. Recorde-se
a visão cruel do casmurro narrador, contaminando a lem­
brança do jovem Bentinho:

Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos,


alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio des­
botado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as
pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe
pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e
comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a
despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor, não
cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com
água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava
sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns
pontos. (I, p. 822-23, grifos meus)

A própria imagem da posição subalterna da vizinha; mais


ou menos como a prima de Simão, Helena, órfã, e bela, e sem
herança. Machado retorna à estrutura narrativa de níveis
diversos, como experimentado timidamente no conto de 1864,
“Frei Simão”. A prosa do narrador casmurro recorda um
tríptico: no centro, as memórias de Bentinho e seu enamo-
ramento por Capitu; os dois painéis laterais compostos da

319
dicção interessada de Bento Santiago, buscando convencer sr
da traição, e do tom amargurado de Dom Casmurro, cético
em relação a tudo e a todos. 0 menino de 15 anos nunca
desviaria os olhos das formas robustas da Capitu adolescente
para concentrar-se nos signos de inferioridade social: o tecido
barato e os sapatos remendados. Machado mescla as lembran­
ças do jovem apaixonado, e ingênuo, com o ponto de vista do
homem amadurecido, e atormentado.
Portanto, embora em posições estruturalmente opostas,
Otelo e Capitu são personagens aparentados e precisaram
arcar com as conseqüências de sua condição. Em alguma
medida, desterrados, embora tenham conhecido o benefício
de uma ascensão temporária.

(Temporária, não se esqueça, rima com precária: rima


pobre, aliás.)

Contudo, sublinho a esfera cultural, precisamente o uni­


verso implícito no Capítulo CXXXV, “Otelo”. Dublê de escritor,
advogado de fachada, vivendo de rendas, Bento conhecia
apenas o assunto, mas não pensara em ler a obra de
Shakespeare. O conhecimento de oitiva do narrador se com­
pleta no capítulo seguinte, “A xícara de café”, em que, não
podendo seguir o exemplo do nobre suicídio de Catão, afinal,
lhe faltava um livro de Platão, contenta-se com “um tomo
truncado de Plutarco” (I, p. 935, grifo meu).
O paralelo se revela risível, pois até mesmo o Plutarco de
Bento Santiago é contrafeito.
Pelo avesso, é esse riso que compõe a novidade formal da
obra machadiana, pois ele só se encontra sugerido no texto
como uma latência à espera do leitor que deve atar as pontas

320
do raciocínio e sorrir sozinho, com esse movimento ao canto da
boca, cheio de mistérios. Recupero a citação na íntegra, cujo
jogo irônico com a ideia de imitação é notável, incluindo a
defasagem entre modelo e apropriação:

O meu plano foi esperar o café, dissolver nele a droga e in­


geri-la. Até lá, nào tendo esquecido de todo a minha história
romana, lembrou-me que Catão, antes de se matar, leu e
releu um livro de Platão. Não tinha Platão comigo; mas um
tomo truncado de Plutarco, em que era narrada a vida do
célebre romano, bastou-me a ocupar aquele pouco tempo, e
para em tudo imitá-lo, estirei-me no canapé. Nem era só imitá-lo
nisso; tinha necessidade de incutir em mim a coragem dele,
assim como ele precisara dos sentimentos do filósofo, para
intrepidamente morrer. Um dos males da ignorância é não
ter este remédio à última hora. Há muita gente que se mata
sem ele, e nobremente expira, mas estou que muita mais
gente poria termo aos seus dias, se pudesse achar essa espé­
cie de cocaína moral dos bons livros. Entretanto, querendo
fugir a qualquer suspeita de imitação, lembra-me bem que,
para não ser encontrado ao pé de mim o livro de Plutarco,
nem ser dada a notícia nas gazetas com a da cor das calças
que eu então vestia, assentei de pô-lo novamente no seu lugar,
antes de beber o veneno. (I, 935, grifos meus)

A imitação em si não se discute, mas, sim, a preocupação


em mantê-la à sombra. No afã de parecer original, enquanto
devolve o livro à estante, o café esfria e o plano se perde.
Talvez Bento Santiago pudesse se envenenar sem o recurso a
Platão, porém, com café frio, o ato parece mesmo impensável.
E não há como criticá-lo.
Destaque-se a proximidade com o recurso paródico, defi­
nidor dos textos de Luciano, e característico da mescla de es­

321
tilos aperfeiçoada pelo defunto autor. O exemplo nobre de
Catão se transforma no fracasso previsível de Bento Sant iny.i >
,
afinal, começar por um tomo truncado não pode senão asse
gurar um desfecho irrisório. A inadequação entre modelo e
cópia provoca o efeito cômico, resultado da simples despro
porção, pois o embaraço de Bentinho traz à cena a super11
cialidade de sua apropriação cultural. O problema não é .1

adoção do modelo, porém a pouca intensidade da assimilaçat >


No vocabulário de Pedro Henríquez Urena, Bento Santiago
reduz suas ações à “imitação difusa”; a “imitação sistemática"
é privilégio do próprio Machado.
O tópico da defasagem malograda já tinha aparecido em
conto publicado no Jornal das Famílias, nos meses de julho e
agosto de 1864, e desde então se tornou estrutural na obra
machadiana.
Refiro-me a “ Virginius (Narrativa de um advogado)”. C)
texto oferece uma imagem idealizada, porém contraditória,
do problema da escravidão. O velho Pio representava “a jus­
tiça e a caridade fundidas em uma só pessoa” (II, p. 738). Seus
escravos amavam-no como a um pai; ele era conhecido como
Pai de todos. Seu filho, Carlos, após estudar na corte, retornou
à fazenda mudado, tratando os escravos “como se” fossem sua
propriedade. Na utopia do velho Pio, senhores e escravos se­
riam irmãos; a casa-grande e a senzala formariam um só
complexo, harmônico, sem hierarquias, muito menos violên­
cia. Nesse cenário adâmico, o estopim do conflito é Elisa. No
dizer de Julião, seu pai e escravo alforriado, “a mulatinha
mais formosa daquelas dez léguas em redor” (II, p. 740).
O palco do previsível drama está armado.
Carlos tenta violentar a filha de Julião. Em defesa de sua
honra, 0 pai encontra uma solução trágica: assassina Elisa
I' iiu mantê-la longe do vilão. Guardadas as devidas propor-
mics, trata-se do dilema vivido por Esteia em laiá Garcia.
Ü narrador recorre ao paralelo com a história clássica:
Iodos conhecem a lúgubre tragédia de Virginius. Tito Lívio,
I )iodoro de Sicília e outros antigos falam dela circunstancia­
damente” (II, p. 745). A fim de salvar a filha da arbitrarieda­
de de Ápio Cláudio, magistrado disposto a exercer seu poder
para conquistar Virginia, seu pai preferiu matá-la. Machado
conclui o raciocínio:

Pouco depois caíam os decênviros e restabelecia-se o consu


lado.
No caso de Julião não haviam decênviros para abater nem
cônsules para levantar, mas havia a moral ultrajada e a
malvadez triunfante. Infelizmente estão ainda longe, esta
da geral repulsão, aquela do respeito universal. (Ibidem)

O defunto autor lança mão de artifício similar para arti­


cular suas memórias. Contudo, em lugar da reverência e do
tom moralizante do conto de 1864, Brás Cubas transforma o
paralelo pelo avesso, dessacralizando o molde clássico e iro­
nizando a circunstância local.
Machado reescreve Terêncio: nada do que é humano é
alheio à irrisão.
Como vimos, ele precisou de tempo para encontrar esse tom.
Reitere-se o proposto: a variante machadiana de Otelo é
original porque rearranja elementos preexistentes.
Repita-se: os clássicos, em primeiro lugar, mas também a
literatura estrangeira recente e os contemporâneos de língua
portuguesa. Exatamente como Shakespeare e sua desabusada
reescrita dos clássicos e dos pares.

323
Em Dom Casmurro, Machado oferece outra bela homemi>*i ni
a Shakespeare, como sempre problematizando o conceito «U
autoria. No já referido capítulo IX, o narrador recorda a teoiu
de um velho tenor italiano: no princípio dos tempos, o num
do não foi um sonho, tampouco um drama, porém um.i
ópera. Marcolino explica a questão: “Deus é o poeta. A imiM
ca é de Satanás. (...)” (I, p. 817). Após ser expulso do Parais»»,
Satanás roubou o manuscrito do Pai e compôs a partituiM.
que, a princípio, Deus não queria sequer escutar. Vencido pol.i
insistência do Outro, decide representar a peça, criando “um
teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia in
teira” (I, p. 818). Alguns parágrafos adiante, o leitor encont r;i
o corolário da teoria:

O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma


excrescência para imitar as Mulheres patuscas de Windsor.
Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma apa­
rência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem
Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem
Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirm ar que o poe­
ta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera,
com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor
da composição; mas, evidentemente, é um plagiário. (I, p.
818-819, grifos meus)

Tal afirmação parece um elogio duvidoso. Como admitir


que um escritor se supere quando sua obra é uma cópia, por
assim dizer, original? O paradoxo somente é inevitável se
adotarmos ideias românticas de autoria, em que o desejo de
primogenitura estética é tão contagioso e infundado como o
ciúme de Otelo e de Bento Santiago. Porém, se um escritor
considera sua própria situação como precária, a confirmação

324
ck‘ “influências” potencialmente se torna libertadora, porque
o fato de ser “influenciado” abre as portas da tradição literá­
ria. O passado deixa de ser um peso, transformando-se num
mosaico, cuja recombinação é o traço da invenção periférica,
nào hegemônica. O que importa é não ser influenciado apenas
pelas últimas modas, mas sim pelo conjunto da tradição; se
possível, de todas as tradições.
Exatamente como na resposta irônica de M ário de
Andrade, ao ser acusado de copiar Vom Roraima zum Orinoco,
de Theodor Koch-Grünberg. Numa réplica bem-humorada às
aborrecidas acusações de ter plagiado o sábio alemão na
composição de Macunaíma, Mário transformou o problema
em produtividade: “O que me espanta e acho sublime de
bondade, é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto
sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Grünberg, quando
copiei todos.”74Não se trata de afirm ar uma hipotética origi­
nalidade, aliás sempre duvidosa no caso de inventores das
culturas não hegemônicas, mas de postular uma máxima
intensidade na apropriação do alheio. É nessa mesma cir­
cunstância que Oswald de Andrade lança o “ Manifesto
Antropófago”, no mesmo ano de Macunaíma, 1928. Na fórmu­
la definitiva: “Só me interessa o que não é meu. Lei do ho­
mem. Lei do antropófago”(p. 47).75
Em diversas ocasiões, o antropófago-mor da cultura bra­
sileira retoma com olhos livres a noção de plágio.
No “Conto alexandrino”, publicado na Gazeta de Notícias,
em 15 de maio de 1883, e reunido em Histórias sem data (1884),

74 Mário de Andrade, “A Raimundo de Moraes”, in Macunaíma, o herói sem


nenhum caráter, p. 525, grifo meu.
75 Recorde-se a intuição machadiana relativa à antropologia.
o filósofo Stroibus busca convencer seu amigo, Pítias, de tim.i
curiosa hipótese: “que o sangue de rato, dado a beber a um
homem, possa fazer do homem um ratoneiro” (II, p. 711)
Cobaias, eles mesmos, do inovador experimento, triunfam,
e, logo, se perdem. Os dois viram provas vivas da excêntric .1
teoria, convertendo-se em cleptomaníacos incuráveis! Na
avaliação do narrador:

As iáeias alheias, por isso mesmo que não foram compradas


na esquina, trazem um certo ar comum; e é muito natural co­
meçar por elas antes de passar aos livros emprestados, às
galinhas, aos papéis falsos, às províncias, etc. A própria de­
nominação deplágio é um indício de que os homens compre­
endem a dificuldade de confundir esse embrião da ladroeira
com a ladroeira formal. (II, p. 414, grifos meus)

Depois de roubarem manuscritos da Biblioteca de Ptolomeu,


os dois filósofos recebem uma punição exemplar: são disse­
cados vivos, em benefício da ciência.
Já numa crônica de novembro de 1893, resgatada em
Páginas recolhidas (1899), ao menos na arte, 0 ato de pilhar
compensa: “A própria poesia perde com isso; ninguém ignora
que o salteador, na arte, é um caráter generoso e nobre” (II,
p. 647). Ora, como somente se rouba o que possui valor, 0

plágio é a forma mais sincera de elogio. Cumprimento em


geral anônimo, mas ainda assim um tributo.
Retorno à analogia empregada diversas vezes neste ensaio:
é como se Machado associasse a aprendizagem da técnica
lite rá ria ao método comum nas escolas de pintura.
Inicialmente, o aprendiz limita-se a imitar os quadros dos
mestres e, em seguida, dedica-se a emular a mesma tradição
na qual se formou.

326
Em crônica de A Semana, saída em 27 de outubro de 1895,
Machado comenta os contos de Pedro Rabelo. Eis o que diz:

Tem-se notado que o seu estilo é antes imitativo, e cita-se um


autor, cuja maneira o jovem contista procura assimilar. (...)
No verdor dos anos é natural não acertar logo com a feição
própria e definitiva, bem como seguir a ume a outro, conforme
as simpatias intelectuais e a impressão recente. (III, p. 683-84,
grifo meu)

Machado lança mão do método clássico cada vez com mais


consciência tanto na criação quanto na crítica, impondo-lhe
porém mudanças inspiradas na forma livre.
Ninguém realizou esse gesto com mais proveito do que
Shakespeare.
Outro autor comparável seria Luciano.
Ou Virgílio.
Ou Camões.
Ou Laurence Sterne.
Machado escolhe a dedo seus modelos.
Na mentalidade pós-romântica, tal postulado se perdeu,
pois, como mostrei no Capítulo 3, ocorreu uma cisão decisiva
entre os verbos criar e inventar.
A estética machadiana pertence ao registro da invenção,
favorecida pelo resgate da emulação — prática deliberada­
mente anacrônica.
Sob essa luz, vale a pena relembrar o reparo machadiano
à estética da criação, tal como expressa no conto de 1885, “O
Habilidoso”. Nesse conto, o problema é discutido com grande
força e o destino pálido de João Maria se desenha numa re­
cusa infeliz: “Toda arte tem uma técnica; ele aborrecia a técni­
ca, era avesso à aprendizagem, aos rudimentos das coisas”

327
(II, p. 1.051, grifo meu). A caricatura do espontaneísmo n.ii»
deixa de alvejar o conceito-chave da escola romântica ■
>
resto cabia ao gênio do artista, e João Maria supunha 10 I"
(ibidem, grifo meu). Insinua-se, outra vez, a distância com -
respeitoso comentário do Machadinho na advertência •l<
Ressurreição: a lei dos gênios finalmente se revela uma ilusan
no limite, um equívoco. Afinal, sem disciplina, talento algum
se realiza. O habilidoso copiador de modelos nunca chega .1

produzir arte, pois 0 esquecimento da etimologia condena


João Maria a somente imitar, sem jamais emular os modelos
que apenas reproduz.
Machado se reinventa ao descobrir-se um inventor de có
pias originais, ressuscitando 0 sentido próprio que ele mesmo
atribui ao plágio.
O hábito de freqüentar a tradição favorece sua metamor
fose num cardápio vasto e sedutor, cuja lista de opções deve
ser saboreada com deleite. E, para usar uma metáfora cara a
Machado, ruminada inúmeras vezes para uma adequada di­
gestão, isto é, a redação do próximo texto. Daí, enquanto seus
pares buscavam manter-se em dia com as últimas modas,
Machado dedicou-se à releitura do cânone pré-romântico,
vislumbrando uma alternativa ímpar, atual em virtude de
seu anacronismo, resgatando formas vetustas — que à força
de velhas sefazem novas. Então, dificilmente haverá elogio maior
do que definir um escritor como autêntica imagem do plágio:
Shakespeare.
Aliás, não é verdade que o “plagiário” tem de vir após 0
tempo histórico dos seus modelos?
As conseqüências políticas da observação são decisivas.
O plagiário nunca pode aspirar à primogenitura estética. Ele
compartilha a circunstância de Sarmiento, editor de El Progreso.
Por isso, Machado desenvolveu um método singular sobre auto­

328
ria e público leitor: eis o dispositivo que potencialmente estimu­
la .1 atualização inesperada da técnica da aemulatio.
Na reta final deste ensaio, importa reiterar que tal hipó-
irse surgiu a partir da leitura dos textos machadianos.
Perceba-se, ainda, o cuidado com que sempre digo potencial­
mente. Não se trata de condição necessária, mas de decisão
deliberadamente anacrônica, cujos desdobramentos discuto
na conclusão.
Hora de encerrar este capítulo com uma das mais agudas
definições do método machadiano:

Descobri por um feliz acidente o romancista brasileiro da


virada do século, Joaquim Maria Machado de Assis. A leitu­
ra de Machado — ele mesmo muito sob a influência do
Tristram Shandy, de Laurence Sterne — ensinou-me algo que
eu não havia aprendido inteiramente com o Ulisses, de Joyce,
e, provavelmente, não poderia ter aprendido diretamente
de Sterne, se eu já o tivesse lido: como combinar esportivi-
dade formal com sentimento genuíno, além de injetar con­
siderável grau de realismo. Sterne é Pré-Romântico; Joyce é
tardio ou Pós-Romântico; Machado é tanto Romântico quan­
to romântico: brincalhão, melancólico, pessimista, intelec­
tualmente exuberante. Ele era também, como eu, um pro­
vinciano (...).76

Todo provinciano é um plagiário pela própria circunstân­


cia, mas nem todo provinciano é igualmente periférico.
Explico-me.
Imagine-se como seria improvável escutar um autor lati­
no-americano — ou, por exemplo, um poeta polonês, ou um

76John Barth, “Foreword”, in The Floating Opera & The End oftheRoad, p. VI-VII.

329
crítico dinamarquês — afirmando com idêntico donaiiv
Descobri por um feliz acidente os romancistas Mareei Proust ou
Virgínia Woolf.

(Preciso acrescentar comentários?)

O ato de assenhorear-se de outras culturas favorece ;i


distância crítica necessária à pena da galhofa. E a consciência
do próprio lugar na República das Letras remete à tinta da
melancolia. No simples ato de reciclar a tradição de maneira
pouco convencional, novos elementos surgem, criando con­
dições para ousadias formais de grande alcance. Além do
mais, John Barth associa à obra machadiana duas percepções
históricas opostas: o defunto autor tanto poderia ser “Pré”
quanto “Pós”, sem importar que conceito se associe à sua
ficção. A pena da galhofa e a tinta da melancolia ocupam a cena
— ao mesmo tempo.
Periférico, provinciano, não hegemônico: diferentes nomes
para dizer o que Machado realmente é: leitor inventivo, co­
pista original. Se certos escritores publicam mais do que es­
crevem, o plagiário leu muito mais do que jamais poderia ter
publicado. Machado não é apenas um escritor ciente de ser,
em primeiro lugar, um leitor, mas também um autor que
desenvolve recursos formais que tornam o leitor um coautor
potencial da obra.
Jorge Luis Borges imaginou o escritor de uma obra invi­
sível: Pierre Menard. Se o projeto de copiar o Don Quijote co­
nhecesse êxito, Cervantes seria convertido em mais um
plagiário, como o libreto de Satanás foi contaminado pela
obra de Shakespeare. O escritor argentino não teria discor­
dado da pluralidade de nomes que se podem atribuir a Pierre

330
Menard — e sempre anacronicamente; às avessas, multipli­
cando precursores.
Shakespeare, no juízo do velho tenor italiano.
Ou: um obsessivo leitor de Otelo.
Machado inventou um modo de transformar o dilema da
secundidade em princípio formal, cujo alcance no plano da
política cultural leva longe.
Conclusão
Ecos de Paris?

Das línguas do Ocidente, a nossa é a menos conhecida, e se


os países onde é falada pouco representam hoje, em 1900
representavam muito menos no jogo político. Por isso ficam
marginais dois romancistas que nela escrevem e que são
iguais aos maiores que então escreviam: Eça de Queirós, bem
ajustado ao espírito do N aturalism o; Machado de Assis,
enigmático e bifronte, olhando para o passado e para o fu­
turo, escondendo um mundo estranho e o riginal sob a
neutralidade aparente de suas histórias que todos podiam ler.

Antonio Cândido, “ Esquema de Machado de Assis”

Ao criticar o caráter provinciano do estreito nacionalismo


literário pregado pelo romantismo e pelo realismo, Machado
julgava necessário que o escritor brasileiro, sem deixar de
ser brasileiro, estivesse consciente de que sua obra pertencia
a uma tradição universal: a literatura.

Enylton de Sá Rego, 0 calundu eapanaceia

classicismo: na verdade, picasso estava restaurando o gesto


clássico de imitação dos antigos, traindo seu legado com
fidelidade, em novo contexto a emulação era a mesma e
outra, ferida digerida, golpe de gênio. (...) o resultado foram
pinturas com dupla assinatura, uma visível, a outra semia-
pagada. fez isso descaradamente com inúm eros outros:
poussin, velásquez, van gogh, goya, ingres. incumbe a nós
reler essa escrita em palimpsesto.

Evando Nascimento, Retrato desnatural

Por que supor, mesmo tacitamente, que a experiência bra­


sileira tenha interesse apenas local, ao passo que a língua

333
inglesa, Shakespeare, o New Criticism, a tradição oi íd< ui .«I
e tutti quanti, seriam universais? Se a pergunta se clfsi in • (
mascarar os nossos déficits de ex-colônia, não vale .1 i- 1 . 1
comentá-la. Se o propósito é duvidar da universalitl.iil. -U
universal, ou do localismo do local, ela é um bom puniu >l«i
partida.

Roberto Schwarz, Martinha versus Lin n'i li|

Política da emulação?

A poética da emulação estimula uma leitura potencialmenir


política.
Potencialmente, assinalo uma última vez.
Leitura relativa à política cultural, acrescento.
E política cultural pensada inicialmente a partir do uni
verso oitocentista, território de Machado e de Eça. Recordo o
marco temporal para evitar um entendimento equivocado da
reflexão proposta neste ensaio.
Tais ressalvas importam porque, nas relações simbólicas
internacionais e no dia a dia da vida cultural em contextos
não hegemônicos, a poética da emulação dificilmente pode
promover mudanças efetivas.
De um lado, seus procedimentos constitutivos nunca fo­
ram exclusivos da circunstância periférica. Se assim fosse,
seu emprego não exigiria 0 exercício do anacronismo delibe­
rado, seria antes 0 resultado da própria essência do “ser pe­
riférico” — multipliquem-se as aspas para esclarecer 0 tom
irônico com que se emprega 0 vocabulário ontológico.
Espero que tenha ficado suficientemente claro que não
me preocupo com essências, porém com estratégias. A poé­
tica da emulação propicia um olhar malicioso acerca da
tradição e das desigualdades culturais do presente; trata-se,

334
porém, de uma potência, cuja atualização demanda um
esforço determinado.
De outro lado, nos contextos não hegemônicos, o cotidia­
no tanto da vida literária como das universidades termina
por legitimar o desequilíbrio estrutural, pois os valores he­
gemônicos são adotados sem maiores questionamentos. Nos
Iestivais literários que (felizmente) se multiplicam em todo o
país, as estrelas são (quase) sempre autores estrangeiros. Nos
centros de pesquisa, os modelos teóricos de plantão são escri­
tos em dois, no máximo, três idiomas — os das “grandes
nações pensantes”: a definição de Eça continua válida.
A reação de Camilo Seabra permanece perturbadoramen-
te atual. Ele é o protagonista de “A parasita azul”, conto pu­
blicado em várias entregas no Jornal das Famílias, entre junho
e setembro de 1872, e recolhido no ano seguinte em Histórias
da meia-noite.
Escutemos o narrador:

Havia já um ano que o filho do comendador estava casado,


quando apareceu na sua fazenda um viajante francês. Levava
cartas de recomendação de um dos seus professores de Paris.
Camilo recebeu-o alegremente e pediu-lhe notícias da França,
que ele ainda amava, dizia, como a sua pátria intelectual. O
viajante disse-lhe muitas coisas, e sacou por fim da mala um
maço de jornais.
Era o Figaro.
— O Figaro! exclamou Camilo, lançando-se aos jornais.
Eram atrasados, mas eram parisienses. (II, p. 191, grifos meus)

Nem sempre as novidades demoravam a chegar. Pelo con­


trário, a certeza sobre o atraso local estimulava um esforço
coletivo, e involuntariamente divertido, de atualização a todo
custo. Em diálogo de Jean-Claude Carrière e Umberto Eco

335
acerca do futuro do livro o escritor francês menciona, com
evidente surpresa, “uma edição dos Miseráveis publicada •
impressa no Rio, em português, em 1862, isto é, no miMim
ano da publicação do livro na França. Apenas dois mr.<
depois de Paris!”77
O ritmo dominante nos textos oitocentistas reconl.i o
samba de uma nota só. Tudo se passa como se o tempo il.i
cultura batesse em uníssono e o seu meridiano passasse pelas
capitais definidoras da modernidade: Paris e Londres. É mm
to difícil compreender os dilemas e as ambições de autoivs
como Machado e Eça desconsiderando essa conjuntura. Tanto
sua visão do mundo como sua formação literária dependeram
dessa experiência.
A poética da emulação representa uma resposta subjetiva
a uma situação concreta de grande desequilíbrio nas relações
de poder cultural. Há o risco, contudo, de celebrar a assime­
tria, já que ela favorece a emergência de um conjunto de
procedimentos críticos, cujas conseqüências são fundamen­
tais no campo da arte e do pensamento.
Como antídoto, proponho uma leitura de “O espelho —
esboço de uma nova teoria da alma humana”, publicado na
Gazeta de Notícias, em 18 de dezembro de 1881, e coligido no
ano seguinte em Papéis avulsos.
Nos primeiros parágrafos, o narrador do conto prepara o
cenário, retornando no final do relato, e ainda assim de forma
enigmática: “Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha
descido as escadas” (II, p. 352). Esse “segundo” narrador é o
alferes Jacobina; o autor do relato, constituído pela lembran­
ça de episódio ocorrido na juventude.

77Umberto Eco e Jean-Claude Carrière. Não contem com ofim do livro. Tradução
de André Telles. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 49. Nas próximas ocorrên­
cias, apenas cito o número de página.

336
Jacobina principia a história explicitando a teoria aludida
no título: “Cada criatura humana traz duas almas consigo:
uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para
dentro...” (II, p. 346). Respectivamente, as almas interior e
exterior. O corolário da hipótese supõe uma filosofia peculiar.
Na doutrina do alferes, o homem é, “metafisicamente falan­
do, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde natu­
ralmente metade da existência; e casos há, não raros, em que
a perda da alma exterior implica a da existência inteira”
(ibidem).
Não deixa de ser divertido ler estudos desse conto que
levam muito a sério a teoria do alferes Jacobina. Algumas
análises são mesmo sugestivas e inteligentes. Contudo, por
que não reconhecer o tom herói-cômico da definição: metafi­
sicamente falando, uma laranja.
Uma laranja?
Metafisicamente falando?
A trama é mais complexa do que a teoria: jovem e sem
recursos, aos 25 anos, Jacobina foi nomeado alferes da Guarda
Nacional. Sua família encantou-se com a ascensão social: “Nào
imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha
mãe ficou tão orgulhosa! tão contente!” (II, p. 347). Uma tia,
D. Marcolina, viúva do capitão Peçanha, convidou Jacobina
para visitá-la em seu sítio. Todos demonstravam o devido
respeito: ele não era mais o Joãozinho do passado, mas o al­
feres do presente, e sabe-se lá que posto no futuro. Tudo
corria às m il maravilhas, o rapaz era tratado como gente
grande. Porém, como uma filha adoeceu, a tia precisou viajar.
Habituado a ser reconhecido pela patente, Jacobina desco­
briu-se sozinho, na companhia de escravos. Para um homem
livre, mas de origem modesta, uma inquietante forma de
solidão no Brasil oitocentista. Muito em breve principiou a

337
duvidar da própria existência, sobretudo depois que o-........ .
vos fugiram. Na cortante formulação de Machado, "o .ill* »<t
eliminou o homem” (II, p. 348). O posto se sobrepôs ,io •u|. i
to, o papel social revelou-se mais importante do que o imll
víduo.
Sem o espelho proporcionado pelo olhar do outro, J;u «>
1>i111
tornou-se invisível — especialmente a seus olhos. Recoi i •u t
terapêutica mais óbvia: mirou-se no grande espelho da «. i •,
relíquia da época da “corte de D. João V I” (II, p. 347). Nail.i
sua imagem apareceu “vaga, esfumada, difusa, sombi.i il«'
sombra” (II, p. 350). Desesperado, lançou mão de recurso qm
se revelou infalível. Jacobina vestiu a farda de alferes e voltou
a olhar-se no espelho. Como ensina o provérbio, o hábito f.i/
o monge: “era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alm.i
exterior” (II, p. 351-52). A construção da frase é mais ardilosa
do que parece à primeira vista.
A astúcia do segundo narrador ajuda a atar as pontas tio
meu argumento.
Se o “eu mesmo” é o próprio alferes - ou seja, a farda, vale
dizer, a patente -, a sentença revela-se tautológica, chegando
a comprometer o sentido da afirmação. Mais lógico seria dizer:
“era eu, Jacobina, que achava, enfim, minha alma exterior,
o alferes”. Se o eu é a própria farda, qual o papel da alma
interior? Esse “eu” não “é um outro”, como desejava o Rimbaud
adolescente. Esse eu é tão só “eu mesmo”.
Repetição, nunca diferença.
Em passagem anterior, Jacobina havia recordado seus es­
forços para sobreviver à solidão. Ele tentou dormir, pois “o
sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixa­
va atuar a alma interior” (II, p. 350). O alferes, portanto,
deixaria o centro da cena para a ressurreição de Jacobina. Eis
o resultado da automedicação: “Nos sonhos, fardava-me

338
••11.u1hosamente, no meio da fam ília e dos amigos, que me
Ho^iavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um
,mligo da casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de
•.ipitâo ou major; e tudo isso fazia-me viver” (ibidem).
De novo, a frase implica uma contradição lógica, reduzin­
do a alma interior aos atributos da alma exterior. Sem uma
diferença nítida entre as duas almas, como sustentar a teoria
descrita no conto? Antes de receber a patente, quem era o
.i líeres? Além da idade, só se sabe que era pobre. Do ponto de
vista da representação social, até ingressar na Guarda
Nacional, Jacobina passou 25 anos não existindo. A alma in-
lerior parece uma miragem; simples necessidade formal para
assegurar visibilidade à alma exterior. Porém, se a alma in­
terior vale tão pouco, o próprio conto desautoriza a teoria das
duas almas. A leitura maliciosa revela-se o duplo da escrita;
se a alma exterior, a farda, é o elemento central do conto,
como entender seu subtítulo: “esboço de uma nova teoria da
alma humana”? Efeito semelhante é produzido pela leitura
da “Teoria do medalhão”, ocasionando um curto-circuito.
Essa é a forma propriamente machadiana de tornar a técnica
da aemulatio um ato específico de leitura; ato caracteristica-
mente moderno, a forma livre no plano da recepção.
Esse curto-circuito se intensifica porque o espelho é uma
superfície que, em si, nada é. Por isso, pode refletir imagens
diversas e até mesmo opostas. O que revela um espelho vol­
tado para outro? A capacidade inventiva da ficção; a possibi­
lidade de produzir imagens que sem o espelho seriam invisí­
veis. Eis a compreensão m achadiana da potência da
literatura. Nesse registro, a poética da emulação é pura in­
venção, permitindo ao autor de “O imortal” freqüentar todas
as épocas, superando com proveito os limites de sua condição.
Porém, o autor de A mão e a luva ambientou sua reflexa* i
num cenário escolhido a dedo: um homem livre, pobre, qti«
ascendeu socialmente, e, ao encontrar-se “sozinho” no meio
de escravos, passa por uma crise de identidade. Eis a inteli
gência machadiana dos desafios impostos pela circunstância
brasileira. Daí, dissociar obra e experiência histórica implii .1
um empobrecimento desnecessário da análise, muito embo
ra tenha concentrado meu interesse à roda da biblioteca.
A ficção machadiana dialoga com sua circunstância e, ao
mesmo tempo, elabora uma forma nova de entendê-la. Os
dois gestos são um só, e cabe preservar 0 trânsito entre as
duas dimensões. Não vejo outro modo de estar à altura da
complexidade do sistema literário Machado de Assis.
Machado aprendeu a lidar ironicamente com a condição
periférica, através de um modelo de relacionamento com a
tradição, cujo eixo é a oscilação produtiva entre extremos.
Ele anunciou esse método em mais de uma ocasião, porém,
como era de seu feitio, obliquamente.
Leia-se “A Sereníssima República”, publicado na Gazeta de
Notícias, em 20 de agosto de 1882, e reunido no mesmo ano
em Papéis avulsos. O conto transcreve uma “conferência do
cônego Vargas”. Compenetrado, ele comunica ao mundo uma
descoberta científica de grande alcance: “uma espécie ara-
neida que dispõe do uso da fala” (II, p. 341). Além de satirizar
os costumes políticos locais, Machado lança uma garrafa ao
mar. Eis a mensagem do cônego Vargas:

Minha descoberta não é recente; data do fim do ano de 1876.


Nào a divulguei então, — e, a não ser o Globo, interessante
diário desta capital, não a divulgaria ainda agora, — por uma
razão que achará fácil entrada no vosso espírito. Esta obra
de que venho falar-vos, carece de retoques últimos, de veri­
ficações e experiências complementares. Mas 0 Globo noticiou

340
que um sábio inglês descobriu a linguagem fônica dos inse­
tos, e cita o estudo feito com as moscas. Escrevi logo para a
Europa e aguardo as respostas com ansiedade. Sendo certo, po­
rém, que pela navegação aérea, invento do padre Bartolomeu,
é glorificado o nome estrangeiro, enquanto o do nosso patrí­
cio mal se pode dizer lembrado dos seus naturais, determinei
evitar a sorte do insigne Voador, vindo a esta tribuna, pro­
clamar em alto e bom som, àface do universo, que muito antes
daquele sábio, e fora das ilhas britânicas, um modesto natu­
ralista descobriu cousa idêntica, efez com ela obra superior. (II,
p. 340, grifos meus)

É divertida a galeria de tipos machadianos que transita


entre o invento de alcance universal e o raio limitado de di­
vulgação de seu engenho. O entendimento renovado do pro­
blema exige superar um ressentimento previsível — lembre-se
da “regra de três queirosiana”.
Machado enfrenta a situação com a pena da galhofa: o
cônego Vargas e a organização social dos aracnídeos, assim
como sua busca angustiada do reconhecimento europeu.
Recorde-se a ideia fixa de Brás Cubas, cujo emplasto signifi­
caria “a invenção de um medicamento sublime, um emplasto
anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica
humanidade” (I, p. 515). Na mesma linha temos o emplasto
filosófico de Quincas Borba. O humanitismo, como síntese
selvagem da história das ideias, se revela um deboche sério
das pretensões racionalistas de diversos sistemas de pensa­
mento, cujo desejo de ordem traz consigo um quê de irracio­
nalidade. Aliás, característica de outro personagem igual­
mente célebre, o Dr. Simão Bacamarte.
Seria prova de irremediável insânia o propósito periférico
de imaginar uma teoria com alcance universal? Não é o que
todo teórico deve almejar?

341
O parágrafo de abertura de “O alienista” deriva dcv, i
desproporção um efeito irresistivelmente cômico:

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos


vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da
nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal
e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pddua. Aos trinta e
quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar
dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em
Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.
— A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego
único; Itaguaíé o meu universo. (II, p. 253, grifos meus)

A gradação decrescente — Coimbra, Pádua... Itaguaí (!)


— sugere que a excentricidade de Simão Bacamarte se mani­
festa muito antes da edificação da Casa Verde. Produzir ciên­
cia de ponta na remota vila, depois de declinar as ofertas mais
prestigiosas da época, não parece uma escolha sensata. A
frase se desdobra em direções opostas. A primeira parte —
recusar cargos burocráticos de prestígio para dedicar-se à
ciência — é perfeitamente razoável. Já seu desfecho — decla­
rar Itaguaí o ponto supremo da investigação de alto nível —
aciona o primeiro de uma série de silogismos falsos, estrutu-
radores da comicidade da narrativa.

(Górgias não faria melhor.)

A poética da emulação permite transformar em projeto


crítico a secundidade do lugar não hegemônico. Porém, ela
não altera a desigualdade estrutural na circulação e na con­
seqüente legitimação do conhecimento. Não é impressionan­
te que o cônego Vargas mencione o exemplo do insigne Voador?
Algumas décadas depois da escrita do conto, o problema re-

342
iornou à ordem do dia na disputa entre os irmãos W right e
Santos Dumont pela primazia na invenção do aparelho voador
mais pesado do que o ar.
A poética da emulação é uma potência.
No fundo, poucas vezes atualizada na história cultural
latino-americana.

Civilização Nescafé?

Reitero o vínculo estrutural que associa obra machadiana e


poética da emulação. Em ambos os casos, distinções escolares
entre texto e contexto, forma e fundo, importam menos do
que a elaboração contínua de atos de leitura e de maneiras de
escrita que atam os extremos da condição não hegemônica.
Ademais, uma simples perspectiva histórica desautoriza
qualquer ingenuidade. A resposta usual à situação de assime­
tria tem sido o desenvolvimento de uma ansiedade de atua­
lização, obrigando o escritor a se engajar numa corrida im­
possível, para a qual não existe ponto de partida adequado.
Não há como compensar o espaço percorrido pelos autores
oriundos de países hegemônicos; ora, o simples fato de escre­
ver numa língua dominante os deixa numa vantagem consi­
derável. Nessa busca do tempo perdido, quanto mais se corre,
mais atrasado se cruza a linha de chegada. De maneira
bem-humorada, Carlos Fuentes diagnostica a síndrome: “As
imitações extralógicas, da era da independência, na sua cren­
ça numa civilização Nescafé: podíamos ser modernos instan­
taneamente, negligenciando o passado e ignorando a tradi­
ção.” Na seqüência, Fuentes assinala a singularidade do
inventor de Brás Cubas: “ O gênio de Machado se baseia,
exatamente, no contrário: sua obra defende uma convicção:

343
não há criação sem tradição que a alimente, como não huvc
rá tradição sem criação que a renove.”78 O leitor identifica .1

tradução moderna do par clássico da imitatio e da aemulatio.


Existe uma alternativa à corrida maluca da atualização .1

todo custo. Ela foi seguida por escritores que aprenderam ,1


converter 0 choque das percepções históricas em projeto li
terário. Esse expediente torna produtivo, no plano formal, ;i
precedência histórica da leitura sobre a escrita, da tradução
sobre o original
É como se Machado trouxesse para a estrutura do texto
uma circunstância bem latino-americana: as noções de lite­
ratura, em geral, e do gênero romance, em particular, foram
desenvolvidas através da tradução de títulos franceses e in­
gleses. Os primeiros romancistas foram necessariamente
leitores atentos, e às vezes críticos, de pelo menos dois séculos
do romance europeu. Machado se assenhoreou do conjunto
da tradição ocidental, sem negligenciar o estudo de seus pares
de língua portuguesa e 0 exame da literatura estrangeira
recente.
Volto a reconhecer 0 calcanhar de aquiles de minha hipó­
tese: 0 gesto de abarcar muitas tradições é comum a todas as
literaturas e não apenas às oriundas da condição periférica.
Sem esse cuidado, meu argumento, ainda que eu 0 negasse
repetidas vezes, não poderia evitar a confusão entre estraté­
gia e essência.
Tal ressalva é indispensável, a fim de evitar um elogio
ingênuo do “atraso”, identificado com 0 contexto não hege­
mônico, como se a desigualdade objetiva gerasse misteriosa­

78 Carlos Fuentes. Machado de la Mancha. México DF: Fondo de Cultura


Econômica, 2001, p. 10. A partir de agora, citarei apenas a página da
ocorrência.
mente alguma compensação subjetiva na forma de um olhar
particularmente agudo. Além disso, como o termo “atraso”
é controverso, explicito meu raciocínio.
Em primeiro lugar, leia-se a contrapelo a frase sintomáti­
ca de Camilo Seabra: os jornais eram atrasados, mas eram pari­
sienses. O atraso parisiense é o calor da hora nos trópicos
porque se concede a Paris e a Londres o privilégio de deter­
minar as modas do momento. O tópos permaneceu atuante
no século XX, fornecendo o mote para a tirada oswaldiana do
“Manifesto da Poesia Pau-Brasil”: “O trabalho da geração fu­
turista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura na­
cional” (p. 44, grifo meu). Quase se pode pensar que 1872,
momento da escrita de “A parasita azul”, e 1924, instante da
publicação do manifesto oswaldiano, são datas aparentadas
no que se refere ao campo semântico do “atraso”, pois, apesar
das óbvias diferenças, preserva-se um vocabulário similar,
revelador de um horizonte comum de preocupações.
Em segundo lugar, as literaturas nacionais compõem-se
de empréstimos, apropriações, diálogos com as mais variadas
tradições. Vimos as palavras menos diplomáticas de Pedro
Henríquez Urena: de imitações e até de roubos. De igual modo,
a ideia mesma de literatura nacional é datada; como todas as
ideias costumam sê-lo. Trata-se de noção relativamente jovem
no conjunto mais vasto da experiência literária ocidental.
Daí, associar “atraso” ao gesto de receber estímulos de litera­
turas outras que não a própria revelaria uma singeleza críti­
ca preocupante.
Contudo, a ingenuidade tem muitas faces e algumas são
até mesmo sofisticadas. A circulação dos bens simbólicos
nunca é neutra. Ela depende de critérios objetivos e de moti­
vações subjetivas. Pode-se constatar historicamente a capaci­

345
dade de imposição de uma voz hegemônica, em geral ivpi *
sentada pelo idioma dos poderes econômicos e políti»
dominantes.
Não pretendo transformar este ensaio num panfleto pi<
visível — fora de lugar, aquém do tempo e carente de inteiv.
se. Apenas desejo rematar meu raciocínio associando a rei I»
xão acerca do resgate deliberadamente anacrônico il.i
aemulatio à pergunta de Ricardo Piglia: 0 que acontece quando
se pertence a uma cultura secundária? 0 que acontece quando sr
escreve numa língua marginal? No fundo, tão ingênuo quanto
acreditar que a condição não hegemônica implica algum.i
espécie de vantagem cognitiva inata é ignorar que as cond i
ções objetivas de produção e circulação de conhecimento
acadêmico e de invenção artística obedecem à economia do
poder político.
É preciso encontrar um meio-termo entre o elogio, por
certo tonto, do atraso, e a negação, igualmente tola, da assi­
metria nas trocas simbólicas internacionais.
Eis o pulo do gato de Machado, possibilitado pela desco­
berta da poética da emulação.
Hora de dar voz ao interdito: a avaliação feita por um
autor brasileiro de sua obra costuma levar em consideração
a limitada circulação do português, o que influi diretamente
no seu reconhecimento. Se o crítico estiver interessado no
contexto oitocentista, não há como escapar à miríade de
textos relativos a esse dilema. Recordei, em mais de uma
ocasião, a implacável regra de três queirosiana, e vimos que
ela se mantém atual: “a Faute de VAbbé Mouret devia estar para
0 crime do padre Amaro como a França está para Portugal.
Assim achou sem esforço esta incógnita: PLAGIATO!”
Difícil encontrar instância mais evidente do desequilíbrio
estrutural nas trocas simbólicas.

346
No século XIX, mesmo nas décadas iniciais do século se­
guinte, os ecos de Paris e de Londres foram onipresentes e
assombraram autores de latitudes as mais diversas: de Georg
Brandes a Eça de Queirós; de Domingo Faustino Sarmiento a
Machado de Assis, sem esquecer Richard Wagner.
Ecos de Paris é o título de um volume póstumo de Eça,
publicado em 1905, e composto por crônicas publicadas no
jornal brasileiro Gazeta de Notícias. Seus textos eram publica­
dos com destaque, na primeira página ou no folhetim, e
exerceram influência considerável na intelectualidade da
época. Num artigo de 1880, o autor de A capital descreve o
impasse:

E assim para a turba humana, mais impressionável que


crítica, o mundo aparece como uma decoração armada em
torno de Paris e Londres, uma curiosidade cenográfica que
se olha um momento, fixando-se logo toda a atenção na
tragicomédia social que palpita no centro. (...)
O que essa humanidade de província faz, diz, sofre ou goza
— é-lhe indiferente. (...) Positivamente a multidão só reco­
nhece uma sociedade — a de Paris e de Londres.79

O vocabulário queirosiano é sugestivo: Paris e Londres


eqüivalem ao centro palpitante da vida política e cultural; os
demais países são englobados num singular revelador: essa
humanidade de província.
Num tom ainda mais enfático, e numa passagem discuti­
da com frequência, Joaquim Nabuco disse quase o mesmo:

79Eça de Queirós. Ecos de Paris. Porto: Livraria Lello & Irmãos, 1945, p. 6 e 8,
grifos meus. Nas próximas citações, anotarei apenas a página da ocorrência.

347
Não quero dizer que haja duas humanidades, a alta e a baixa,
e que nós sejamos desta última; talvez a humanidade se re­
nove um dia pelos seus galhos americanos; mas, no século em
que vivemos, o espírito humano, que é um só e terrivelmente
centralista, está do outro lado do Atlântico; o Novo Mundo
para tudo o que é imaginação estética ou histórica é uma
verdadeira solidão (...).80

De novo, Londres e Paris absorvem o espírito humano, como


“simples” resultado de sua vocação centralista. Para além
desse centro, resta a amargura da verdadeira solidão, cuja
metonímia aparece na figura dos galhos americanos; sugestiva
representação da província, da periferia do sistema-mundo.
Poderia oferecer um colar de citações semelhantes. Porém,
apenas anoto o óbvio: não é possível avaliar a maior parte das
manifestações culturais latino-americanas, pelo menos até a
Segunda Guerra Mundial, sem considerar que, para os atores
do processo, o centro de atração encontrava-se em outro lugar.
Um lugar com nome próprio: Paris.
E uma sede: Londres.
Nesse horizonte, entende-se melhor a singularidade macha­
diana em sua mentalidade de torna-viagem, em tudo oposta
ao deslumbramento do rastaquera. O Conselheiro Aires expli­
ca o hábito com precisão: “cansado de ouvir e de falar a língua
francesa, achei vida nova e original na minha língua, e já
agora quero morrer com ela na boca e nas orelhas” (I, p. 1.182).
Não se confunda o gesto com sintoma de nacionalismo
senil. O Conselheiro somente pode encontrar uma dicção
inédita no próprio idioma porque se deu ao trabalho de asse-
nhorear-se da língua e da cultura alheia.

8UJoaquim Nabuco, Minha formação, p. 50, grifos meus.

348
No caso, a cultura e a língua francesa.
Poderia ser o domínio do inglês e de sua literatura.
E ainda um conhecimento básico do alemão e do grego,
apenas para degustar o prazer de ler textos com a surpresa
de quem os decifra pouco a pouco.
O importante é nunca deixar de ampliar o repertório. E
de modo a também incorporar a própria cultura, encontran­
do nela vida nova e original.
Por que não? Acreditar-se cosmopolita a ponto de desde­
nhar o que se faz aqui e agora é a forma mais melancólica de
provincianismo.
Contudo, o extremo oposto deve ser laboriosamente evitado.
Daí, a crítica irônica de Machado ao projeto do “Sr. Dr.
Castro Lopes, ilustre latinista brasileiro, [que] começou uma
série de neologismos, que lhe parecem indispensáveis para
acabar com palavras e frases francesas” (III, p. 517). A conclu­
são da crônica, publicada na série Bons Dias, em 7 de março
de 1889, é uma deliciosa boutade:

Não estou brincando. Nunca comi croquettes, por mais que


me digam que são boas, só por causa do nome francês. Tenho
comido e comerei filet de boeuf, é certo, mas com restrição
mental de estar comendo lombo de vaca. Nem tudo, porém,
se presta a restrições; não poderia fazer o mesmo com as
bouchées de dames, por exemplo, porque bocados de senhoras dá
ideia de antropofagia, pelo equívoco da palavra. (III, p. 517,
grifos do autor)

A utopia da pureza lingüística é alvo da derrisão do cro­


nista, pois a oscilação entre o próprio e o alheio é o sal da
poética da emulação. O fenômeno nunca foi exclusivamente
latino-americano. Vimos o eclipse em que Georg Brandes

349
julgava viver em sua longínqua Dinamarca: “nos últimos dias
estamos sepultados debaixo de neves repugnantes; separados
da Europa” (p. 88, grifo meu).
Richard Wagner também sucumbiu ao canto da sereia dos
ecos de Paris.
Mas quem resistiu no século X IX ?
Mesmo no século XX, se pensarmos na chamada lostgene-
ration dos norte-americanos que cumpriram à risca o ritual
de peregrinação à Cidade Luz. Ou se lembrarmos dos artistas
latino-americanos que “descobriram” seus países em Paris,
Londres ou Nova York. Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral
e Anita Malfatti incluídos na eclética lista.
Wagner foi um pouco além.
Não apenas se endividou, apostando num êxito parisiense,
que idealmente seria convertido em lucros generosos. O vo­
luntarioso compositor fez uma concessão estética de peso,
modificando a abertura de Tanhàuser, ópera com a qual ima­
ginava conquistar Paris.
Na tradição operística francesa, o primeiro ato se abre com
um número de dança. Wagner não hesitou em adaptar sua
concepção original, escrevendo uma nova abertura para a
estreia parisiense de Tanhàuser. O esforço, porém, não foi re­
compensado: o estilo wagneriano desorientou o público —
com a notável exceção de Baudelaire, que desde o primeiro
momento se maravilhou com o compositor.

(Ofereço essa pequena fábula aos que sorriem da ingenui­


dade daqueles que, como eu, ainda pensam em termos de
centro e periferia, ou seja, em termos de circunstâncias he­
gemônicas e não hegemônicas.)

350
Poética da emulação

Machado não se mostrou indiferente ao tema. Vimos sua


carta a Joaquim Nabuco, na qual considerava indispensável
reclamar para a nossa língua o lugar que lhe cabe. Em 10 de julho
de 1902, ao sair a primeira tradução das Memórias póstumas,
para o espanhol, no Uruguai, escreve a Luís Guimarães Filho:
“A tradução só agora a pude ler completamente, e digo-lhe que
a achei tão fiel como elegante, merecendo Júlio Piquet, ainda
mais por isso meus agradecimentos” (III, p. 1.060, grifo meu).
Brasileiro radicado em Montevidéu, Júlio Piquet foi o tradutor
do romance. Antes houve uma malograda tentativa de publi­
cação de seus livros no idioma de uma das “grandes nações
pensantes”, como se depreende de carta enviada a Alfredo Elis,
em 10 de junho de 1899: “Acabo de escrever para Paris ao Sr.
H. Garnier, pedindo-lhe que diretamente dê autorização à
senhora, de quem V. Ex.a fala no seu bilhete, para a tradução
dos meus livros em alemão” (III, p. 1.047). A autorização não
foi dada, mas o empenho machadiano é o que conta.
Ainda mais por isso: Machado deveria agradecer ao esmero
do tradutor, mas o reconhecimento mais relevante diria res­
peito à divulgação da obra. Tarefa meritória, porém de resul­
tados incertos; afinal, a quem interessaria a literatura de um
brasileiro no concerto oitocentista das nações?
Não se trata de pergunta ressentida, tampouco retórica.
Leia-se outra crônica de Ecos de Paris. Ao que tudo indica,
Eça preocupou-se com os acontecimentos da Revolta da
Armada, a rebelião de unidades da Marinha contra o governo
do m arechal Floriano Peixoto, liderada pelo alm irante
Custódio de Melo. O escritor português, contudo, nào pôde
acompanhar o desenrolar da rebelião:

_
Debalde, porém, se procura agora uma notícia, mesmo falsa,
sobre o Brasil. Nada! É como se o almirante Melo e os seus
couraçados se tivessem sumido para sempre nas brumas
atlânticas. Que digo? É como se oBrasil tivesse desaparecido — ou
antes tivesse entrado naquela era de felicidade, classicamen-
te conhecida, em que os povos deixam de ter história, (p. 127,
grifos meus)

Sem história, vale dizer, na mentalidade oitocentista,


ágrafos; portanto, como esperar notícias sobre a literatura
brasileira?
Ecos de Paris: já se sabe.
Ou de Londres.
Ecos — em ambos os casos.
A singularidade machadiana se esclarece por efeito de
contraste. O autor de Páginas recolhidas compreendeu que, se
um autor, oriundo de contextos não hegemônicos, dificilmen­
te pode ser considerado “original”, então, a tradição literária
deve ser apropriada com irreverência. A combinação de di­
versos séculos da tradição e de distintos gêneros literários e,
acima de tudo, o resgate de atos pré-românticos de leitura e
de escrita favorecem a ruptura das Memórias póstumas. Carlos
Fuentes observa:

E, no entanto, a fome latino-americana, o desejo de tudo


abarcar, de apropriar-se de todas as tradições e culturas,
inclusive as aberrações; a ânsia utópica de criar uma nova
atmosfera em que todos os espaços e tempos sejam simultâneos,
aparece de maneira brilhante nas Memórias póstumas de Brás
Cubas como uma visão surpreendente do primeiro Aleph,
anterior ao muito famoso imaginado por Borges. Sim: é o de
Machado de Assis. (p. 24, grifo meu)
É como se Machado transformasse a noção de “atraso”, que
acompanha o processo de modernização periférica, em pro­
jeto crítico, virando a mesa com uma pergunta singela: já que
a primogenitura estética parece fora de questão, por que não
perm itir que o escritor se torne um leitor malicioso e, ao
mesmo tempo, um autor irreverente, jogando com hierarquias
culturais e glórias literárias?
A poética da emulação permite elaborar a circunstância
periférica,potencialmente convertendo o exíguo em estímulo;
a escassez, em agudeza; a lacuna, na própria estrutura.
Arte de poucos.
E para poucos.
Talvez cinco.
O leitor que acompanhou o percurso proposto neste ensaio
talvez tenha apreciado a descrição densa do sistema literário
Machado de Assis.
O resultado que tenho a oferecer é a descoberta do campo
semântico da emulação, procedimento estruturador da vira­
da machadiana.
Se meu estudo tornou tal campo semântico visível, posso
dar este ensaio por encerrado. Ou quase: falta uma última
questão a ser enfrentada; brevemente, pois seu pleno desen­
volvimento aguarda um novo livro.81

Intensidade estrutural

Tive o cuidado de ressaltar, à exaustão, o caráter deliberado do


anacronismo que propicia o resgate de práticas literárias pré-ro-

81 Começo a preparar Por uma poética da emulação, livro no qual pretendo


desenvolver teoricamente o método apresentado neste ensaio.

353
mânticas num ambiente pós-romântico. De igual modo, con­
siderei as conseqüências políticas desse resgate extemporâneo.
John Barth entendeu perfeitamente a questão ao observar
como Machado desenvolve uma maneira própria de ser simul­
taneamente Romântico e romântico — no meu vocabulário, ao
mesmo tempo “pré-romântico” e “pós-romântico”.
Busquei, assim, enfatizar o sentido estratégico e não es­
sencial da poética da emulação.
Não poderia ser diferente: seus procedimentos pertencem
potencialmente a autores de qualquer latitude. Seria absurdo,
do ponto de vista do mais elementar conhecimento de histó­
ria literária, lim itar à condição periférica os elementos estu­
dados no Capítulo 3.
Recorde-se o conjunto: o fenômeno da compressão dos
tempos históricos e, daí, o exercício do anacronismo delibe­
rado; o primado da invenção sobre a criação, portanto, a
centralidade da tradução; a precedência da leitura em lugar
da escrita, logo, uma noção especial de autoria.
Isoladamente, tais elementos se encontram em qualquer
contexto, assim como na obra de autores os mais diversos. A
força que atribuo ao caráter anacrônico da poética da emu­
lação depende da articulação simultânea de todos esses pro­
cedimentos.
No Capítulo 2, sugeri esse ponto ao recordar o ensaio de
T.S. Eliot, “Tradition and the Individual Talent”, publicado
em 1919. De fato, boa parte dos procedimentos da poética da
emulação é perfeitamente descrita pelo poeta-crítico.
Nas suas palavras:

Tradição é uma questão de relevância muito mais ampla. Não


pode ser herdada, e, se alguém a deseja, deve obtê-la a custa
de muito trabalho.

354
Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer ofício, pos­
sui seu sentido completo em si mesmo. Sua relevância, sua
avaliação depende de sua relação com poetas e artistas mor­
tos. (...) o que ocorre quando uma nova obra de arte é criada,
é algo que ocorre simultaneamente a todas as obras de arte
que a precederam.
(...)

Porém, a diferença entre o presente e o passado é que o


presente consciente representa uma consciência do passado
de um modo e com uma profundidade que o próprio passado
não poderia ter mostrado.82

O calcanhar de aquiles de minha hipótese ameaça tornar-se


fratura exposta. E poderia com facilidade multiplicar citações
semelhantes. Todas reiterariam o que disse: isoladamente, os
procedimentos da poética da emulação não exigem terroir al­
gum. Portanto, não pertencem a território determinado.
Contudo, proponho que se reserve a ideia de poética da
emulação à atualização simultânea dos elementos descritos no
Capítulo 3. Tal simultaneidade é o traço decisivo, favorecendo
a produção de uma síntese crítica que gera uma intensidade
própria na reciclagem de procedimentos pré-românticos.
Como vimos nos dois últimos capítulos, essa voltagem define
a segunda fase machadiana. Tal possibilidade foi tematizada
pelo defunto autor: “Obra de finado. Escrevi-a com a pena da
galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que
poderá sair desse conúbio” (I, p. 513).
Conúbio que parece faltar, por exemplo, no mesmo ensaio
de Eliot. Registre-se o horizonte (reduzido e redutor) de sua
importante reflexão:

82T.S. Eliot. “Tradition and the Individual Talent”. Londres: Faber & Faber,
1932, p. 14-16. Nas próximas citações, indico apenas o número da página.

355
Para todo aquele que aprovou essa ideia de ordem, da forma
de literatura europeia, de literatura inglesa, não parecerá absur­
do que o passado deva ser alterado pelo presente, assim como
o presente é guiado pelo passado, (p. 15)83

Como em geral ocorre com os autores de contextos hege­


mônicos, Eliot parece naturalizar essa ideia de ordem, daforma
de literatura europeia, com a própria essência da literatura. Não
apenas a English literature, mas certa imagem da literatura
ocidental, circunscrita em última instância ao âmbito das
“grandes nações pensantes”. Daí a segurança surpreendente
com que Eliot delimita suas fronteiras.
Essa mesma segurança permite que se ignorem literaturas
produzidas fora dos contextos hegemônicos, o que provoca
um empobrecimento da perspectiva crítica.
À guisa de conclusão, recordo uma distinção proposta por
Ernesto Sábato: “Os europeus não são europeístas; são sim­
plesmente europeus.”84O europeísta lida com códigos de uma
cultura que sempre permanecerá terra estrangeira. É por ser
estrangeiro que o europeísta mantém a necessária dose de
irreverência para zombar da arrogância dos valores hegemô­
nicos. Para ser europeísta, é preciso aprender pelo menos uma
segunda língua e depois uma nova cultura e literatura — o
método do Conselheiro Aires.
Numa tradução bem-humorada, pode-se pensar que a
distância entre europeu e europeísta jaz no tamanho de suas
bibliotecas. O europeísta tem que dominar pelo menos duas

83 No original, a restrição soa mais reveladora: “Whoever has approved this


idea oforder, oftheform ofEuropean, of English literature will not find itpreposte-
rous that thepast should be altered by thepresent as much as thepresent is directed
by thepast.”
M Ernesto Sábato, La cultura en 1a encrucijada nacional, p. 27.

356
tradições: a europeia e a sua. A questão nada tem a ver com
número de livros na estante, mas à necessidade de estabelecer
relação entre eles, imaginando critérios de leitura, cuja am­
pliação favorece a intensidade estrutural que caracteriza a
poética da emulação. A diferença, portanto, não é de natureza,
mas de grau. A fome latino-americana, identificada por Carlos
Fuentes, exige um processo singular de assimilação das ideias
apropriadas. A noção de intensidade estrutural relaciona-se
a essa exigência.
Tal noção, reconheço, parece excessivamente vaga; um
conceito a que nos aferramos quando não sabemos exatamen­
te o que dizer.
Ou como colocar o ponto final num livro.
Pois bem.
Retorno ao diálogo de Jean-Claude Carrière e Umberto Eco.
O mediador do colóquio, Jean-Philippe de Tonnac, propôs uma
pergunta em aparência anódina. A resposta de Eco e Carrière,
contudo, vale por um esclarecimento definitivo da noção de
intensidade estrutural.
Uma definição pelo avesso.
Cito a passagem na íntegra; ela é longa, mas indispensável:

JPT: Então, outra pergunta: podemos imaginar descobrir uma


obra-prima desconhecida?
UE: Um aforista italiano escreveu que era impossível ser
um grande poeta búlgaro. A ideia em si parece um pouco
racista. Provavelmente ele queria dizer uma dessas duas
coisas, ou ambas ao mesmo tempo (em vez da Bulgária, ele
poderia ter escolhido qualquer outro país pequeno): em
primeiro lugar, ainda que esse grande poeta tenha existido,
sua língua não é suficientemente conhecida e logo nunca
teríamos a oportunidade de atravessar seu caminho. Portanto,
se “grande” quer dizer famoso, é possível ser um bom poeta

357
e não ser famoso. Estive uma vez na Geórgia, e me disseram
que seu poema nacional, 0 homem da pele de tigre, era uma
imensa obra-prima. Acredito, mas ela não teve a repercussão
de Shakespeare!
Em segundo lugar, um país deve ter atravessado os gran­
des acontecimentos da história para produzir uma consci­
ência capaz de pensar de forma universal.
JCC: Quantos Hemingway nasceram no Paraguai? Talvez
tivessem, ao nascer, capacidade para produzir uma obra de
grande originalidade, de uma força genuína, mas não o fi­
zeram. Nào puderam fazê-lo. Porque não sabiam escrever.
Ou então porque não existia editor para se interessar por sua
obra. Talvez até mesmo ignorassem que podiam escrever,
que podiam ser “um escritor”, (p. 132-33)

Confio que o leitor não espera comentários indignados de


minha parte, tampouco esclarecimentos acerca da ingenui­
dade das afirmações dos interlocutores; de outro modo, inte­
lectuais muito sofisticados. Por que recordar o nome de
Augusto Roa Bastos, invocando a importância de Yo, el supre­
mo, como um dos romances definitivos do século XX, e isso
em qualquer idioma?
Vale a pena apontar as contradições elementares das pa­
lavras de Umberto Eco? Talvez, mas sem insistir muito.
A obra-prima do poeta búlgaro não ingressará no cânone
ocidental, pois sua língua não é suficientemente conhecida e logo
nunca teríamos a oportunidade de atravessar seu caminho. Afinal,
parece absurda a hipótese de estudar os idiomas de nações
que não viveram os grandes acontecimentos da história. A cômo­
da tautologia não é sequer percebida.
O círculo vicioso do raciocínio é tão elementar que a sim­
ples transcrição das falas é suficiente para identificar o fenô­
meno decisivo: a naturalização do próprio lugar, cujo efeito

358
é a redução considerável do repertório cultural. Essa natura­
lização lim ita a intensidade do emprego dos procedimentos
definidores da poética da emulação.
Já o perfil de europeísta implica uma ampliação de refe­
rências, idiomas, literaturas e culturas, cujo processamento
demanda a alta voltagem que define a intensidade estrutural
que associo, potencialmente, à condição não hegemônica.
É o que tenho a oferecer: além da descoberta do campo
semântico da emulação na estrutura profunda da obra ma­
chadiana, a postulação da intensidade estrutural como traço
próprio da poética da emulação.

* * *

Para alguns, o resultado parecerá insuficiente.


Porém, na aritmética da precariedade, Brás Cubas encon­
trou motivos para celebrar um pequeno saldo.
Pouco, dirão muitos. E é verdade.
Mas um saldo pequeno não é o mesmo que nada.

(Pelo menos é um princípio.)


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A Coleção Contemporânea se
COLE ÇÃO
propõe a tratar de temas atuais
CONTEM
nas áreas de Filosofia, Literatura
PORÂNEA
& Artes. Participam dela nomes

de destaque na produção cultural

contemporânea, sempre com

a finalidade de refletir sobre

assuntos, pensadores e correntes

que de algum modo ajudam a

rever o mundo em tempos de

cultura planetária. 0 enfoque

é o de um pensamento original,

em linguagem acessível, mas

preservando a profundidade e

o rigor da reflexão.

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