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COLEÇÃO
C O N T E M
P O R A N EA
<2 .
i n ii i/.\(.:Ào
ItIIANII I lliA
Neste volume, João Cezar de Castro Rocha
desenvolve amplamente o que chama de
l>oética da emulação em Machado de Assis,
l endo organizado seis coletâneas de contos
do ficcionista para a editora Record, além
•le publicar diversos artigos sobre o assun-
10 no Brasil e no exterior, o pesquisador se
destaca como um dos mais argutos e origi-
n.lis especialistas machadianos.
A abordagem demonstra, de forma bri
lhante, como a ficção machadiana, sobre-
11ido na chamada “ segunda fase”, dialoga
i <>m os grandes autores da tradição: Pascal,
Xavier de Maistre, Shalcespeare, a Bíblia,
St endhal, Poe, Baudelaire e José de Alencar,
entre inúmeros outros. A hipótese funda
mental é que o maior escritor da dita Amé-
i ica Latina no século XIX teria redimensio-
nado a antiquíssima técnica de emulação,
desenvolvida pelos clássicos gregos e lati
nos e retomada com outras implicações no
renascimento. Emular diz respeito à neces
sidade de considerar autores prévios como
mestres, elaborando textos que, sem ja
mais perder de vista o modelo original,
acabam por engendrar uma nova obra.
( iom o advento da figura do autor como
demiurgo no período romântico, a emulatio
passa por uma transformação radical, pois
0 escritor não mais precisa ficar preso a có
digos e modelos, mas elege livremente suas
referências para interlocução de igual para
itfual, constituindo aquilo que, nos anos
1‘ )(><), será nomeado como intertextualiãade.
Um Machado, as inúmeras alusões cultu-
i ais e artísticas, em vez de denotarem sub
serviência, tornam-se o instrumento capaz
de 1'roblematizar a relação dissimétrica en-
11 e os centros europeus e as ex-colônias,
<•■.1.is ainda em fase de autoafirmação en-
<11 i.mto nações independentes. Como diz de
forma lapidar João Cezar de Castro Rocha:
“O autor de Páginas recolhidas compreendeu
que, se um autor, oriundo de contextos não
hegemônicos, dificilmente pode ser consi
derado ‘original’, então, a tradição literária
deve ser apropriada com irreverência. A
combinação de diversos séculos da tradição
e de distintos gêneros literários e, acima de
tudo, o resgate de atos pré-românticos de
leitura e de escrita favorecem a ruptura das
Memórias póstumas.”
Sem abrir mão da leitura da imensa for
tuna crítica de Machado, João Cezar de Cas
tro Rocha propõe aqui uma abordagem que
decerto ocupará lugar de destaque nos de
bates atuais e vindouros. Ao leitor, cabe
apenas desfrutar do prazer proporcionado
por um ensaio que alia a competência teó-
rico-crítica ao refinamento de estilo.
Evando Nascimento
Machado de Assis:
por uma poética da
emulação
O rg a n iza d o r da coleção
Evando Nascim ento
I a edição
CIVILIZAÇÃO B R A SILE IR A
Rio de Janeiro
2013
C opyright © Joào Cezar de Castro Rocha, 2013
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-200-1173-7
CDD: 869.909
13-00480 CDU: 821.134.3(81)(091)
Impresso no Brasil
2013
Sumário
Agradecimentos
4. Os anos decisivos
5. Formas da emulação
Referências bibliográficas
Agradecimentos
No meio do caminho
10
i in fevereiro de 1878 e, em abril do mesmo ano, Machado
publica dois longos textos, condenando tanto a opção estética
<l<> português como a estrutura de sua narrativa. A severa
•uwUise é considerada um dos pontos altos de seu exercício
• i ít ico. Pelo contrário, o ponto de vista machadiano era este-
I ii umente tradicional e moralmente conservador. É como se
Machado, autor das M em ó ria s póstum as, somente tivesse se
tornado possível após a superação dos princípios estreitos do
Machadinho,2leitor de 0 p rim o Basílio. Defendo essa releitura
110 segundo capítulo.
Daí, derivo a hipótese-chave deste ensaio: uma conseqüên
cia imprevista da reação machadiana ao romance de Eça foi
o resgate da noção clássica de aem ulatio, que o levou a desen
volver a poética da em ulação. No terceiro capítulo apresento
essa ideia, embora ela seja mencionada brevemente no segun
do. Não penso em oferecer uma contribuição teórica ao exa
me da aem ulatio, tema mais adequado aos estudos clássicos
do que à fortuna crítica machadiana. A poética da emulação
eqüivale ao resgate moderno de práticas retóricas progressi
vamente abandonadas depois do advento do romantismo. Por
isso, diferencio a em u la tio — técnica definidora do sistema
literário e artístico pré-romântico — e p oética da em ulação
— esforço deliberadamente anacrônico, marca-d’água da li
teratura machadiana.
“Anacronismo deliberado” — definido em crônica da série
H is tó ria de 15 dias, saída em I o de janeiro de 1877: “Mas aqui
lo é uma curiosidade velha, uma notícia morta. Venhamos à
coisa novíssima, posto que velhíssima; ou antes velhíssima,
2 Como esclareço no prim eiro capítulo, assim o autor era chamado, mesmo
já tendo chegado aos 30 anos.
11
posto que novíssima” (III, p. 355).3 Passagens como essa são
comuns, como mostro nos dois últimos capítulos, dedicados
precisamente ao resgate do campo semântico da a em ulatio na
obra machadiana. Com frequência, Machado parece refletir
sobre o estranhamento provocado pela atualização de práticas
literárias pré-românticas num ambiente pós-romântico — e
são surpreendentes as conseqüências desse deslocamento em
termos de política cultural.
Portanto, trato dos efeitos da poética da em ulação na rup
tura Brás Cubas. O campo semântico associado à aem ulatio
converteu-se num dos pilares da obra machadiana.
Nos dois últimos capítulos, realizo o mapeamento do vo
cabulário e dos procedimentos da técnica da im ita tio e da
aem ulatio em todos os gêneros literários e nas cinco décadas
em que Machado produziu. Defendo uma leitura cruzada do
conjunto da obra machadiana, identificando seus ritmos e
suas transformações.
Naturalmente, esta introdução não é o espaço apropriado
para discutir o conceito de aem ulatio. Adianto que a prática
da emulação implica uma ideia particular de sistema literário,
privilegiando o ato de leitura como gesto eminentemente
inventivo. Afinal, partindo-se da im ita çã o de um modelo
considerado a u torid a d e num determinado gênero, busca-se
em u lar esse modelo, produzindo uma diferença em relação a
ele. No final do quinto capítulo e na conclusão, trato do po
tencial político da poética da emulação.
Esclarecida a estrutura do livro, retomo o fio da meada.
O êxito de 0 crim e do padre A m a ro (1875) e de 0 p rim o B asílio
(1878) não teria deixado o brasileiro indiferente, representan-
12
i" 11 m ;icicate poderoso para que o sempre solícito Machadinho
•I*. k Iisse tudo arriscar, metamorfoseando-se no Machado que
.• .uImira em todo o mundo. Não se trata de questão “psico-
luru a", mas de insatisfação do autor com sua obra; dilema
i •i avado pelo aparecimento do jovem romancista português.
() argumento é potencialmente controverso, destacando a
i iv.ilidade literária como fator relevante na transformação
m.M hadiana. Tal aspecto contradiz a imagem dominante do
iiiior de “A causa secreta”: um Machado sempre cordial, a
' |ik*in aborrecia a polêmica. Peço ao leitor que acompanhe os
<.ipítulos que compõem este ensaio como se fossem peças de
11111 quebra-cabeça, cuja montagem depende de sua cooperação.
Em nenhuma circunstância considero o surgimento do
romance queirosiano a causa da metamorfose machadiana.
Nao se trata de fenômeno simples, passível de explicação
unívoca, mas de processo de grande complexidade, razão de
ser do escritor Machado de Assis.
Tal cautela não basta, pois ignora o que de fato importa:
o texto machadiano.
13
a reunião de recursos heteróclitos, experimentados anterior
mente nas crônicas e nos contos.
Por isso, denomino a ltern a tiva a explicação que ofereço
para a crise existencial e artística machadiana. Não reduzo
a dimensão múltipla do problema ao âmbito de minha hipó
tese, porém almejo descortinar um ângulo novo para sua
compreensão.
Uma hipótese
14
ir com a fortuna recém-adquirida pela mãe. Em meio às
« li.unas que devoram o trenó, um nome pouco a pouco desa-
|mi ece: “Rosebud.” Como a carta roubada do conto de Edgar
All.in l’oe, a resposta do problema encontra-se diante dos
olhos do espectador — ainda que por pouco tempo.
1,'ssa cena desencoraja uma interpretação mecânica. Se o
n poder, responsável pela produção do documentário, tives-
r procurado as “pistas” corretas, o sentido da palavra
Rosebud” seria revelado e, assim, esclarecido o fio condutor
d.i vida de Charles Foster Kane. Exatamente como faz o cri-
lerioso crítico literário na busca da frase oculta, da palavra
secreta, da referência oblíqua capaz de acionar o círculo
hermenêutico, em cujo centro todas as perguntas são respon
didas, estabelecendo o vínculo perfeito entre texto macha-
diano e contexto histórico. Na última cena, o repórter reco
nhece a miragem que o movera: vida alguma se explica
inteiramente. Ainda que o repórter tivesse descoberto o sig
nificado de “Rosebud”, sua reconstrução seria apenas isso:
montagem parcial, cuja totalidade nunca se alcança. Em al
gum momento, aliás, teria existido essa significação total
para o próprio Kane?
O olhar crítico é sempre anacrônico, surpreendendo preo
cupações atuais nos objetos de qualquer época. Tal inversão
ocorre no conto “Uma visita de Alcibíades”, publicado origi
nalmente no Jornal das Fa m ílias em 1876, e reunido em Papéis
avulsos (1882). Nele, o narrador, embora padeça de autêntica
“devoção do grego: devoção ou mania” (II, p. 352), diante do
ilustre ateniense, limita-se a defender a moda do seu próprio
tempo. Ao ser apresentado à vestimenta do século XIX, o
célebre orador morre “pela segunda vez” (II, 357), pois tam
bém não sabe, e tampouco deseja, abandonar seus valores
15
clássicos. Por isso, as palavras do narrador fazem o ático
perder a justa medida:
17
os cinco últimos descortina-se um horizonte radicalmente
novo — muitas vezes, é bem verdade, constituído pela reunião
eficaz de procedimentos previamente experimentados, des
tacando-se os diversos tipos de narrador, testados à exaustão
nos contos e nas crônicas.
Contudo, podem-se identificar traços constantes, presentes
desde Ressurreição, primeiro romance do autor, publicado em
1872, e mesmo em contos da década de 1860. Por exemplo,
determinados temas — sobretudo o estudo da condição do
agregado e da patologia do ciúme —; esboços de personagens
— especialmente as femininas —; séries metafóricas — des
tacando-se a relativa ao campo do olhar —; procedimentos
textuais — particularmente a explicitação do ato de leitura
como gesto autoral de uma escrita dos olhos anterior ao cor
rer da pena. Ainda assim, não se pode negar que a publicação
das M em ória s póstum as abriu rumos inéditos para Machado.
A própria presença de traços constantes serve como contra-
prova: se há elementos inegavelmente comuns, seu tratamen
to impõe uma diferença inequívoca.
Tal pressuposto permite estender a ruptura do defunto
autor ao plano dos contos, estabelecendo o paralelismo entre
M em ória s póstum as e Pape'is avulsos. Não se trata de artifício
sem problemas. Alguns dos contos reunidos na coletânea
foram publicados antes de Ia iá G arcia, último romance da
chamada primeira fase, lançado em 1878. “A chinela turca”
é de 1875; “Uma visita de Alcibíades”, de 1876.
Um conto como “Miss Dollar”, de 1870, publicado na pri
meira coletânea do gênero, C ontos flum inenses, lançada no
mesmo ano, possui uma tematização extremamente rica do
papel do leitor. O texto discute formas variadas de recepção;
daí as constantes e provocadoras adjetivações: “leitor super-
18
I (t ial” (II, 28), e até mesmo o “leitor grave” (II, 32), consagrado
ii.i líit ura nota “Ao leitor” das M em ória s póstum as.
lísse apelo ao leitor também se encontra no poema narra-
livo “ Pálida Elvira”, saído em Falenas, em 1870. Os versos
iniciais anunciam:
Q uando, leito ra a m ig a , n o oc id e n te
Surge a tard e e sm aia d a e p ensativa;
(III, 69, g r ifo m eu )
Este conto não se encontra reprod u zido na edição da Nova A gu ilar. Por
isso, trab alh o com a edição de John Gledson, Contos/Um a antologia. C itarei
o volu m e e o n úm ero da página.
21
Vejamos um pouco mais a singela estreia machadiana.
justamente num gênero que posteriormente o consagrou.
0 primeiro parágrafo do conto apresenta uma estrutura
que o Machado mais maduro certamente modificaria: “Uma
tarde, eram q u a tro horas, o Sr. X... voltava à sua casa p ara jan tar.
O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolé que
estava parado à sua porta” (I, p. 63, grifos meus). Nessa frase,
o emprego do pronome possessivo estabelece uma relação
“confirmadora”, referindo-se à casa do Sr. X., embora dificil
mente outra possibilidade ocorresse ao leitor. Uma questão
interessante seria acompanhar o abandono progressivo de
tais recursos reiterativos, a fim de aumentar a ambigüidade
potencial da frase: a marca-d’água do estilo machadiano. As
especificações “eram q u a tro horas” e “p a ra ja n ta r ” desempe
nham a mesma função “confirmadora”, revelando um autor
em formação, preocupado com a correção do texto, como se
fosse um estudante aplicado. Não é preciso uma imaginação
crítica particularmente inspirada para supor a reescrita ma
chadiana da sentença: “Uma tarde, o Sr. X... voltava à casa. O
apetite que levava não o fez reparar em um cabriolé que es
tava parado à porta”.
Em “Folha rota”, por exemplo, conto de 1878, saído no
Jornal das Fam ílias, e nunca republicado pelo autor, o dado não
é mais pura informação, mas lampejo que provoca a imagi
nação do leitor: “As duas mãos tornaram a encontrar-se e
ficaram presas uma à outra. Correram assim alguns minutos,
três ou q u a tro ” (II, p. 866, grifo meu). Aqui, não se trata de
exatidão cronológica, porém de ênfase na duração psicológi
ca do episódio, sugerindo o erotismo discreto da cena.
Entretanto, mesmo em “Três tesouros perdidos”, simples
exercício de estreante, observam-se temas que retornarão
com frequência na prosa machadiana
De um lado, a presença do “ louco varrido” que se trans-
loi ma num “doido com juízo” delineia o cruzamento de in
finidade e lucidez, uma das chaves do olhar machadiano,
■uja obra-prima é “O alienista”. A própria figura caricata do
in.irido enganado que enlouquece ao inteirar-se da infideli-
cl.uk* volta num conto muito mais bem construído, “O ma-
i lute”, publicado n o Jornal das Fam ílias, em 1878, e também
n.io reunido em livro pelo autor.
De outro lado, o tema do ciúme, somente delineado com
tintas ligeiras, retorna nas “dúvidas póstumas” de Félix,
personagem de Ressurreição (I, 195), e finalmente revela sua
.imbivalência máxima na imaginação sem peias de Bento
Santiago, em D o m C asm urro. Não estou dizendo que “Três
tesouros perdidos” seja mais do que um pálido esboço, mas
.ii nda assim é relevante observar que certos temas e procedi
mentos já estejam presentes.
Tal constatação reforça minha proposta: neste ensaio ra
dii alizo o procedimento metodológico de leitura cruzada da
obra machadiana. A hipótese de uma possível inter-relação
entre os gêneros literários permite reunir perguntas que,
isoladamente, foram propostas por outros pesquisadores. Em
lugar de hipertrofiar os estudos em torno do romance, iden-
ti ficaremos unidades temáticas e textuais presentes nos di
versos gêneros exercitados pelo autor de Esaú ejacó. 0 cronis-
ta, muito antes dos piparotes de Brás Cubas, havia tornado a
irreverência a forma própria de lidar com o leitor apressado
dos diários. Podemos observar nos contos publicados antes
de 1880 um laboratório de ideias, experimentos narrativos e
procedimentos textuais ressuscitados pelo defunto autor. Na
história da literatura, percursos semelhantes não são raros.
For fim, a atividade crítica abre uma importante via de com
preensão da prosa de Machado, pois domina todos os gêneros,
constituindo seu modo peculiar de examinar o mundo.
Refiro-me, porém, à possibilidade de reler sua crítica, a fim
de investigar se os critérios de avaliação trazem à superfície
as obsessões que demarcaram seu lugar particular na família
dos autores que se sabem sobretudo leitores. Em sua aprecia
ção da literatura alheia, qual o papel da valorização do ato de
leitura como gesto inventor? No exercício da atividade crítica
tais critérios já estavam claramente definidos como parte de
uma hermenêutica machadiana, posteriormente incorporada
à ficção?
Tais perguntas permitem forjar um novo perfil literário.
Para tanto, lanço mão da metáfora do autor-operário, propos
ta por Machado no prefácio à R essurreição. Essa metáfora
circunscreve a obra machadiana ao domínio da técnica e da
disciplina, compreendidas como indispensável respiração
artificial, favorecendo o aperfeiçoamento da vocação.
Reitero minha metodologia: a releitura simultânea dos
contos, crônicas, romances, peças de teatro, poemas e críticas
do autor de M em o ria l de Aires. Não se trata de negar a óbvia
diferença dos textos posteriores às M em ó ria s p óstum as em
relação à “primeira fase” de sua produção; aliás, em mais de
uma ocasião, Machado assim a denominou. Essa diferença é
incontornável e procuro entendê-la a partir do conceito de
poética da emulação.
Em outras palavras, não desejo reinventar a roda! Se for
possível verificar a relevância de procedimentos e temas ca
racterísticos da segunda fase do autor na produção prévia às
M em ória s póstum as, uma nova pergunta se impõe. Vale dizer:
em lugar de investigar a causa da ruptura, ocorrida em 1880,
podemos especular a razão pela qual os elementos que p ote n
cialm ente já coexistiam no texto machadiano dem oraram p ara
.1' iircc ip ita rn o com posto Brás Cubas — um emplasto discursivo
muito bem-sucedido. Se certos elementos haviam sido desen-
\i ilvidos isoladamente em gêneros literários diversos, por que
■omente em 1880 eles foram associados numa única obra?
Im preciso algum impulso externo para que a alquimia ti
vesse êxito?
Nao desejo reinventar a roda, mas indagar por que ela
ii .io girou inteiramente antes. Isso se a hipótese que propo
nho encontrar correspondência na leitura efetiva da obra
machadiana.
lissa é a prova dos nove à qual me submeto.
Autor-matriz
25
H is tó ria de 15 dias: “Cada tempo tem a sua ílía d a , as várias
Ilía das formam a epopeia do espírito humano” (III, p. 357).
É decisiva a centralidade da leitura no gesto inaugurado
pelas M em ó ria s póstum as. Por ser um leitor sistemático da
tradição, Machado pôde se transformar no autor-matriz por
excelência da literatura brasileira. O conceito não se confun
de com o de autor canônico, pois o que define o autor-matriz
é a pluralidade semântica de seu texto, em lugar de sua po
sição relativa na história literária. Gonçalves de Magalhães é
um autor canônico incontornável na formação da literatura
brasileira; porém, sua escrita se define antes pelo registro
monocórdio, caracterizado pelo empenho nacional. Ora, se
pensarmos na obra machadiana, Iaiá Garcia não é texto típico
de autor-matriz! O conceito se refere a uma potência textual
e não a uma localização hierárquica e absoluta.
A ambigüidade constitutiva do olhar machadiano —
atento às coisas do seu tempo e lugar, mas cuidadosamente
inscrito na tradição literária de muitos outros lugares e
tempos — estimulou polêmicas calorosas, que ainda hoje
animam o dia a dia dos bancos universitários. Nesse hori
zonte, o autor-matriz costuma ser transformado em pretex
to para a defesa de posições institucionais. Eis, então, o pa
radoxo: quanto mais instigante for o autor-matriz, tanto
menos legível sua obra se torna. Pois, em lugar de leituras
efetivas do texto, os debatedores circunscrevem seu interes
se à periferia das querelas críticas. Para cada parágrafo que
se deixa de analisar, mas que se usa à guisa de “evidência”,
emergem noções da moda. Para cada sutileza que se negli
gencia, aparecem correntes críticas diametralmente opostas,
que se atacam e, ao mesmo tempo, se ignoram; numa dis
puta cuja monotonia deixaria preocupado o mais bizantino
dos polemistas.
26
l-sse é o modelo da “leitura-consulta”, cuja finalidade é
• -i11por um arquivo de citações confirmadoras da visão do
leórico. Tal forma de leitura é favorecida pela pluralidade
1ii« rente ao autor-matriz: dada a riqueza de seu texto, é sem
pre possível encontrar o que se busca...
0 método •
27
reiro de 1880. Nele, tudo se resolve na decifração dos diferen
tes sentidos do ato de “piscar o olho” do major Caldas.
O jovem Luís Bastinhos conta com o apoio do major para
o futuro casamento com sua filha, Marcelina. Como o desen-
lace parecia incerto, o pai se revela um consumado etnógra-
fo amador:
(...) C aldas que con h e c ia a filh a não disse m ais nada. Q uan do
o p re te n d e n te lh e p e rg u n to u , d a í a pouco, se d e via con sid e
rar-se fe liz , ele usou de u m e x p e d ie n te assaz e n ig m á tic o :
p isco u -lh e o olho. Luís B astinh os fic o u rad iante; ergu eu -se às
nuvens nas asas da fe licid a d e . (II, p. 883, g r if o m eu )
28
( ,) Luís B astinhos abanou a cabeça sorrin d o; o m ajor, su pon
do que eles o e lo g ia v a m e m v o z b aixa, p is c o u o olho. (II, p. 885,
^ r ifo m eu)
29
não estudar a presença de temas recorrentes, assim como a
transformação de seu tratamento? Por que não identificar
séries metafóricas que estruturaram sua visão do mundo?
Houve mudanças no em prego desta ou daquela série?
Podem-se encontrar campos semânticos dominantes ao
longo de cinco décadas de escrita, conformando um núcleo
de palavras-chave utilizadas pelo autor de “A metafísica do
estilo”? Os narradores de seus contos e romances permane
ceram semelhantes, ou há rupturas que devem ser assina
ladas e compreendidas?
Essas perguntas demandam uma descrição densa da obra
machadiana. Neste ensaio pretendo surpreender a lógica
interna da transformação que conduziu o tímido autor de A
m ão e a luva ao irreverente leitor das M em órias póstum as de Brás
Cubas. Ao mesmo tempo, a imersão no corpus textual macha
diano ilumina aspectos importantes da condição de escritor
brasileiro, oriundo de uma circunstância não hegemônica.
A descrição densa supõe a técnica do close reading. Contudo,
não se limita à leitura cerrada, que em geral se restringe ao
estudo minucioso de um texto determinado. Penso na recons
trução de um sistema literário próprio, formado pelo conjun
to da obra do autor — isso para não mencionar sua leitura de
tradições diversas. A leitura cruzada de gêneros literários é
o método mais adequado para a descrição densa da literatura
de um autor-matriz; literatura que evoca a imagem do mo
saico ou do caleidoscópio como princípio compositivo.
Por isso, e sou o primeiro a reconhecê-lo, minha proposta
implica uma desvantagem: eclipsar as relações sutis do texto
machadiano com o contexto histórico. Porém, não desejo
retornar à polêmica sobre cosmopolitismo versus localismo.
Tal discussão não faz mais sentido, pois foi resolvida a con-
30
1•’ nto pelo trabalho de Roberto Schwarz. A contribuição do
.ml or de Um mestre na p erife ria do capitalism o tornou obsoleta
uma tradição crítica que insistia em assinalar o pretenso
.ilv.enteísmo machadiano como marca de sua visão do mundo
•• <le sua literatura. A obra de Schwarz ilumina a presença dos
Impasses da sociedade brasileira nas entrelinhas do texto
machadiano, mesmo em sua estrutura profunda. Em conse
qüência, e pela própria fecundidade de seu trabalho, busco
r s piorar outra via. Meu método, portanto, tem um limite
( l.iro, pois me concentro à roda da biblioteca.
O sistema lite rá rio M achado de Assis, e esse ponto é decisivo,
n.io pode ser reconstruído exclusivamente com base na sua
obra “visível”. Como no caso do “Pierre Menard, autor dei
(Jiiijole”, de Jorge Luis Borges, também há uma obra “invisível”,
indispensável à inteligência do autor de “0 imortal”. É neces-
s.i rio considerar a leitura e a apropriação da tradição literária
e da literatura contemporânea, até mesmo porque o desen
volvimento da poética da emulação demanda um ato de lei-
tura específico.
Trata-se, enfim, de compor um novo perfil do autor de
Qiiincas Borba, recorrendo prioritariamente à sua palheta lite
rária. Neste ensaio, o leitor encontrará uma espécie de texto-co-
lagem da obra machadiana. A única exceção será o terceiro
capítulo, no qual discuto a ideia de emulação recorrendo so
bretudo a textos de outros autores. Nada é mais apropriado
para apresentar a prática da emulação do que o recurso ao
alheio como primeiro passo na afirmação do próprio.
A obra machadiana ocupará o centro do palco: mesmo ao
t razer outros autores para a discussão, o eixo da análise será
sempre o texto do autor de Casa velha. Referências a teóricos
e a críticos estarão concentradas nas epígrafes que abrem os
31
capítulos. Recomendo vivamente a consulta a seus livros, pois
não seria capaz de compreender a literatura machadiana sem
o auxílio de suas interpretações. Em nenhuma circunstância
afirmo que o texto fa le p o r si só e que a teoria e a crítica sejam
ociosas; no limite, um estorvo. Espero que não me atribuam
tal ingenuidade.
Contudo, arrisco uma experiência diferente: desenhar um
novo retrato de Machado de Assis. Como pincel e tinta, suas
palavras. Se o exercício for malogrado, ao menos restará o
consolo de uma viagem sistemática à roda de sua obra.
0 naufrágio das iluSõesr
34
Nilo sei o que d eva pen sar deste liv ro ; ig n o r o sob retu d o o que
pensará d ele o leitor. A b e n e v o lê n c ia c om que fo i receb id o
um v olu m e de contos e novelas, que há dois anos p u b liqu ei,
nic a n im o u a escrevê-lo. É u m ensaio. V ai d espretensiosa-
i iu‘ nte às m ãos da c rític a e do pú b lico, que o tra ta rã o c o m a
liisi iça que m erecer.
(...)
Q u an do a te r ra é m ais jo v ia l
Todo b e m nos p a rec e e te rn o
C olhe-se antes qu e v e n h a o m a l
C olhe-se antes qu e ch egu e o in v e rn o . (III, p. 41)
36
Retorno ao projeto do autor-operário.
Mais do que palavras protocolares, redigidas apenas para
• «luzir o público e obter a complacência da crítica, o roman-
• r.i.i estreante levou a sério a metáfora do trabalhador das
lei im s e, numa constância invejável, publicou um novo título
.1 i .ida dois anos. Em 1874, lançou A m ão e a luva ; em 1876,
llcln u r, por fim, em 1878, Iaiá Garcia.
Nao se pense que o operário se limitou ao romance. Ele se
• \ercitou em todos os gêneros: da crítica à crônica, da poesia
.io teatro, do conto ao romance, do comentário político às
11 uluções, do prefácio ao discurso, da crônica rimada à fan-
i.isia, das paráfrases às imitações, do apólogo ao diálogo, da
correspondência aos pareceres de censor teatral do
< <mservatório Dramático.7Em todos os gêneros debutou com
,i modéstia do aprendiz disposto a superar seus limites.
Não é injusto afirmar que, com exceção da crítica literária,
os começos machadianos foram tateantes.
Seus primeiros contos são apenas exercícios interessantes
e, sem dúvida, prometedores, embora muitas vezes tingidos
por um tom moralizante que certamente surpreenderia o
leitor das M em ória s póstum as de Brás Cubas.
Os primeiros livros de poesia não são muito mais do que
um adestramento na técnica literária, a fim de experimentar
lormas diversas de expressão lingüística. Embora, é bem
verdade, tenham sido eles que deram a Machado sua primei
ra nomeada.
' Um ensaio como este não seria possível sem o trabalho indispensável de
José Galante de Sousa, Bibliografia de Machado de Assis. Recomendo a consul
ta do “Quadro demonstrativo da obra de Machado de Assis”. José Galante
de Sousa, Bibliografia de Machado de Assis, p. 37-38.
37
As peças de teatro nunca chegaram a empolgar os con
temporâneos, tampouco os futuros machadianos se sentem
atraídos por seus jogos de cena.
As primeiras crônicas ecoam o tom ligeiro, “ao correr da
pena”, conforme a expressão usada por José de Alencar.
Machadinho assim definiu a escrita dos contos publicados em
H istórias da m eia-noite (1873): “Vão aqui reunidas algumas nar
rativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que
não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor.”
Um pouco adiante, ele transformou a advertência em página
de agradecimento, referindo-se ao favor obtido pelo autor-ope-
rário: “Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à
crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu
primeiro romance, há tempos dado à luz” (II, p. 160).
Pois é: ele era carinhosamente chamado de Machadinho
mesmo já tendo alcançado os 30 anos.
Porém, desde os primeiros artigos seu olhar crítico se
mostrou promissor, revelando um leitor fino, preocupado em
conhecer a tradição. Isto é, duas faces da moeda que lastreou
a fama póstuma do escritor.
Vejamos o jovem de 19 anos, que publica em duas entregas
em A M a rm ota , no mês de abril de 1858, o ensaio “O passado,
o presente e o futuro da literatura”. O estudo cumpre as for
malidades da convenção. Machadinho passa em revista a li
teratura colonial, descobrindo-lhe a falta mais grave: por
seguir à risca o molde europeu, “a literatura escravizava-se,
em vez de criar um estilo seu, de modo a poder mais tarde
in flu ir no equilíbrio literário da Am érica” (III, p. 785).
Equilíbrio que também dependeria do estudo dos clássicos e
não apenas do destaque da cor local:
M.is após o F ia t p o lític o d e via v ir o F ia t lite rá rio , a em ancipa-
',.10 do m u ndo in tele c tu a l, v a c ila n te sob a ação in flu e n te de
41
chadianos foram hesitantes, sem ter analisado uma única
linha do autor de Esaú ejacó, com exceção de breves passagens
de sua crítica literária. Compus um autêntico colar de adje
tivos, mas não me submeti à prova dos nove da atividade
crítica: o exame dos textos do autor.
Acolho a objeção e corrijo o rumo da prosa, realizando um
estudo de certo aspecto formal dos quatro primeiros roman
ces de Machado, a fim de contrastá-lo com a produção poste
rior às M em ória s póstum as. Desse modo, se esclarece a força
da transformação da obra machadiana.
A chave do escrito
42
• 11 sòes constantes, que estimulam cada nova geração de
lt iiores. Ambigüidade formal e visão crítica do mundo se
i quivülem, pois, em ambos os casos, o registro dominante é
oil.i incerteza.
P osso explicitar o que digo através da análise do desfecho
•lo\ quatro primeiros romances, evidenciando economica
mente a ruptura que ocorre na obra machadiana após o
ino chave de 1878.
No último parágrafo de Ressurreição, o leitor é brindado
i oin a síntese da narrativa, incluindo uma máxima de caráter
moralizante:
(I. P- 195)
46
I .ugênia realizaria seu propósito sem maiores obstáculos,
11111.11, o narrador deu a perfeita deixa — com o o le ito r se há de
Innhrar. Pode-se concluir a leitura do romance sem preocu-
l'.n,ao alguma com o aparente desespero de Estácio. O casa
mento com a voluntariosa filha do Dr. Camargo terminará
I" ii superar a tristeza causada pela morte de Helena. Ressalte-se
•11‘leito principal desse tipo de escrita: o término da narrati-
.1 esclarece todas as possíveis dúvidas do leitor — mais ou
menos como as tramas hollywoodianas mencionadas na in-
i rodução. O tom conservador do enredo e o traço tradicional
il.i prosa se confundem, pois dependem do mesmo gesto
<.mteloso.
Por fim, em Iaiá G arcia, o procedimento se repete. Mais
uma vez, consulte-se o fecho da trama:
47
— N ão d ire i nada; essa p a lavra e x p lic a tudo. Se o am a, c o m o
eu creio, é a sua fe lic id a d e que lh e trago, não d ig o a tr o c o da
m in h a , p o rq u e seria lan ça r-lh e e m rosto o sa c rifíc io , m as a
troco de um a ilu sã o , e n a ã a m ais. N ão p en se qu e lh e q u e ro m al;
não posso qu e re r m a l a qu em m e te m ou teve a lg u m a afeição
e su bstitu iu d ig n a m e n te m in h a m ãe. Se lh e quisesse m a l, é
p ro v á v el que não fize s se o que fiz . (I, p. 501, g r if o m eu )
48
• inpre oferece a peça-chave para sua montagem. Ideia expli-
i liada no capítulo XIII, na cena em que Jorge recebe uma
i .iria de Procópio Dias. Leia-se o trecho decisivo:
49
Desse modo, o leitor tem a sensação de uma conclusão razo
avelmente unívoca.
A partir de M em ó ria s póstum as de Brás Cubas, pelo contrá
rio o texto machadiano torna-se progressivamente enigmá
tico, mais difícil de ser reduzido ã interpretação sugerida
pelo narrador; em casos extremos, o narrador nem mesmo
a sugere. Nesse sentido, a escrita do defunto autor parece
encontrar-se a meio caminho entre a tranqüilidade herme
nêutica da primeira fase e a indeterminação semântica da
segunda, pois, se o último capítulo é o “das negativas”, o
sentido da ausência é ainda explicado, mesmo que seja iro
nicamente.
50
i ■ tiivo machadiano no tocante ao que se poderia chamar
' i • .1-.inicia à interpretação”, característica definidora de seus
i * nl<»*. a partir do final dos anos 1870. Esse traço favorece uma
11*«..ii* de leitura inovadora, pois agora cabe ao leitor imaginar
nli« i nal ivas, em lugar de esperar a chave do escrito, a ser for-
n*« ida pelo diligente narrador. O breve capítulo final da saga
.li' kubiào é a própria figura da ambigüidade hermenêutica,
iimudando um tipo de literatura que não permite uma in-
i« i pretação cômoda, estável:
Q u e ria d iz e r a q u i o f i m d o Q u in ca s B orba, q u e a d o e c e u
la m b e m , g a n iu in fin ita m e n te , fu g iu d e s v a ira d o e m busca
do dono, e a m a n h e c e u m o r to na rua, três dias d epois. Mas,
ven d o a m o r te d o cão n a rra d a e m c a p ítu lo esp ecia l, é p r o
vável qu e m e p e rg u n te s se ele, se o seu d e fu n to h o m ô n im o
é qu e dá o tít u lo ao liv r o , e p o r q u e an tes u m qu e ou tro ,
qu estã o p re n h e de qu estões, qu e nos le v a ria m longe... Eia!
ch o ra os d ois rec e n tes m o rto s , se ten s lá g rim a s . Se só ten s
riso ri-te! É a m e s m a coisa. O C ru z e ir o , qu e a lin d a S o fia
não quis fit a r c o m o lh e p e d ia Rubião, está assaz a lto p a ra
não d is c e r n ir os riso s e as lá g rim a s dos h o m en s. (I, p. 806,
g r if o m eu).
51
com base num ceticismo de plantão. “É a mesma coisa” porque
não se dispõem de critérios seguros para discernir o motor
último das ações humanas. Não se trata de aprisionar a resis
tência à interpretação numa teoria que torna o mundo neces
saria m ente território da ambigüidade infinita; nesse caso,
paradoxalmente saberíamos pelo menos de uma coisa com
absoluta segurança.
Penso no título de poema inicialmente publicado em 1886,
em A Semana, e posteriormente incluído em Ocidentais (1901):
“Perguntas sem resposta”. A literatura machadiana aprende
a caminhar nessa direção e os versos finais do poema não
deixam de evocar o último capítulo de Quincas Borba:
52
* **
***
53
bem, e o resto?”. Tal pergunta, em aparência ociosa, configu
ra um enigma que ainda hoje preocupa os leitores:
55
que se trate da causa determ inante, muito menos de fator úni
co, penso antes num efeito catalisador, que permitiu ao autor
de Iaiá G arcia superar-se, reinventando sua literatura.
Olhares e faróis
A s in g e le z a d o s v e r s o s a n t e c ip a o e m p r e g o r e c o r r e n t e n o s
•i>i.m 1 0 p r im e ir o s r o m a n c e s , d o m in a d o p e la a s s o c ia ç ã o e n t r e
■■ .n b s la n t iv o e o v e r b o : os o lh o s e s t ã o s e m p r e le n d o , o u s e n
i •n s o p esso as.
I m R e s s u rr e iç ã o , M e n e s e s é c o n f o r t a d o p e lo a p a r e n t e m e n -
i. In c o n s o lá v e l F é lix . O c u lt o r d a s “ d ú v id a s p ó s t u m a s ” n ã o
• in o n tr o u r e c u r s o m e lh o r d o q u e s u g e r i r ã o a m ig o : Q u em
. I. i .1 c|iie n ã o ! M a s e u e s to u a l e r n o te u r o s t o q u e a ú n ic a m a -
iM n .i d e c o n s o la r d e s t e n a u f r á g io é d a r - te o u t r o n a v i o ” (I, p.
I t i, g r i f o m e u ). O le it o r é q u e n u n c a n a u fr a g a , p o is os o lh o s ,
I I ro s to , os m e n o r e s g e s to s , v i r t u a l m e n t e to d a s a s in te n ç õ e s s ã o
ro c a p ít u lo d e I a iá G a r c ia :
“A s s im e r a ” — c o m o n ã o p o d ia d e ix a r d e ser. C o m o c o n te s -
la r a a u t o r id a d e d o n a r r a d o r , q u e d e c if r a o lh a r e s e id e n t if ic a
in te n ç õ e s s u b ja c e n te s a g e s to s e to n s d e v o z ? A f i n a l , a ch a ve d o
e s c rito n u n c a lh e e s ca p a . N es s a p a s s a g e m , a n te s m e s m o d a a ç ã o
p r in c ip ia r , o n a r r a d o r r e v e la o p e r f i l p s ic o ló g ic o c o m p le t o d e
57
Luís Garcia, que se mantém inalterado: durante a leitura, ne
nhuma surpresa modifica o retrato de corpo inteiro do perso
nagem. A mesma técnica define a apresentação de Esteia:
“Pálida era, mas sem nenhum tom de melancolia ascética.
Tinha os olhos grandes, escuros, com uma impressão de viri
lidade moral, que dava à beleza física de Esteia o principal
característico” (I, p. 409). Mais uma vez, os olhos revelam o
todo de uma personalidade que permanece idêntica ao longo
do romance. Marmóreos, os personagens do primeiro Machado
são quase sempre unidimensionais. Ou será o narrador que,
procurando manter rigorosamente tudo sob estreita vigilância,
termina por transformar todas as paisagens em monótonas
planícies? Eis o modelo acabado do narrador panóptico, ainda
muito distante do ébrio autor das M em órias póstum as.11
Em Helena, o Dr. Camargo tem a difícil tarefa de revelar
o inesperado testamento do Conselheiro Vale para Estácio e
D. Úrsula. O documento dá a conhecer a existência de uma
filha natural, a heroína que dá título ao livro. No desenrolar
da trama, o leitor descobre que Helena não é realmente filha
do conselheiro, mas, nos capítulos iniciais, ninguém o sabe.
Por isso, embora o filho e a tia disfarcem, o narrador identi
fica com facilidade o sentimento que os domina antes da
proclamação das últimas deliberações do parente: “A curio
sidade, porém, era natural, e o médico pôde lê-la nos olhos de
am bos” (I, p. 274, grifo meu).
58
i pediente sem elhante é empregado por Luís Alves,
i •i •<tuagem de A m ão e a luva. A fim de certificar-se do efei-
i |novocado por determinada atitude, recorre à hermenêu-
n. ,ul( iminante dos primeiros romances machadianos: “Luís
\Iws olhou longam ente para Guiomar, como a procurar ver-lhe
ia>iosIo todas as antecedências da resolução da baronesa”
(I, p 244, grifos meus).
Nesses romances, há várias cenas que recordam um jogo
■li \.idrez, no qual olhares são trocados como lances no tabu-
I* no da consciência: longos períodos de observação, enfren-
i .11 los por períodos ainda mais duradouros de dissimulações
<*i iganos. Ainda em A mão e a luva, Guiomar passeia no jardim
<l.i casa da baronesa, caminhando com um livro sintomatica-
nicnte fechado; metáfora sugestiva, preparando a conclusão
do narrador: “Se trazia saudades, não se lhe podiam ler no rosto,
<|ue era quieto e pensativo, sim, mas sem a menor sombra de
pena, ou de tristeza” (I, p. 209, grifo meu). Sem dúvida, um
livro fechado para Estêvão, um romântico fora de lugar, que
nunca chega a compreender os propósitos da heroína. Livro
lechado, m a non troppo, pois o narrador pode abrir suas pági
nas, encontrando diversas chaves de decifração e, mesmo se
o rosto se concentra em si mesmo, ele vislumbra o que é
preciso saber: sem a m en o r som bra de p en a , ou de tristeza.
Já os narradores e as personagens posteriores à invenção
de Brás Cubas parecem perder progressivamente o controle
da interpretação, antecipando o processo que idealmente deve
ocorrer com o próprio leitor, em virtude da complexidade
crescente dos recursos machadianos. Assim, se ao narrador
panóptico corresponde um ato de leitura pouco acidentado,
ao defunto autor ou ao narrador casmurro correspondem um
ato de leitura imprevisível.
59
Por isso mesmo, Rubião perde-se definitivamente na oca
sião em que “achou aquele par de olhos viçosos, que pareciam
repetir a exortação do profeta: Todos vós que tendes sede,
vinde às águas” (I, p. 644). O ignaro Rubião não se dá conta
que o olhar de Sofia prepara a ressaca moral de futura per
sonagem. A sede, nesse caso, era tanto a do professor de
província pelas formas generosas da esposa do Cristiano
Palha, quanto a do marido da sedutora senhora pela fortuna
inesperada de Rubião.
Poucas páginas adiante, o filósofo Quincas Borba tem seu
caráter excêntrico definido de forma reveladora: “Tinha outro
ar agora: olhos metidos para dentro viam pensar o cérebro”
(I, p. 646). Pensamento que nunca se revela ao leitor. Acaso o
n arrador te ria acesso à lógica própria do criador do
Humanitismo? Com tais olhos, as janelas da alma se fecham
permanentemente; aliás, uma das definições da loucura. O
simplório Rubião é sintomaticamente apresentado de forma
oposta: “(...) escutava, com a alma nos olhos, sinceramente de
sejoso de entender (...)” (I, p. 648, grifo meu). Na guerra de
olhares, Rubião jam ais receberia as batatas, pois a transpa
rência com que anuncia seus propósitos facilita a tarefa de
bajuladores e adversários. O contraste das atitudes vale por
todo um ensaio, cujo parágrafo decisivo foi escrito com o
auxílio das célebres caracterizações de Capitu. Na definição
in icial de José Dias, em diálogo com o jovem Bentinho:
“Capitu, apesar daqueles olhos que o Diabo lhe deu... Você já
reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissi
mulada” (I, p. 834). Coube ao narrador casmurro dar a pince
lada final do retrato:
Retórica dos nam orados, dá-me um a com paração exata e
poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não
me acode im agem capaz de dizer, sem quebra da dignidade
do estilo, o que eles foram e me fizeram . Olhos de ressaca?
Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova.
traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, um a força que
arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia,
nos dias de ressaca. (I, p. 843, grifo meu)
62
Meu bom Horário! Aposto mil contra um na palavra do
espectro. Percebestes?
Perfeitamente, príncipe
Na hora do veneno?
Com a m áxim a atenção.12
63
revela e pode ser decifrado, para o “olhar” embaçado que
escapa ao controle do próprio narrador, tornando o ato de
leitura uma forma peculiar das “dúvidas póstum as” que
atormentaram o Félix de Ressurreição.
Fecho aqui o primeiro círculo da análise formal das pri
meiras produções machadianas, em contraste com os textos
posteriores às M em órias póstum as.
Antes de dar o próximo passo, anoto o que se cumpriu:
procurei mostrar como os quatro primeiros romances macha
dianos são vazados numa forma bastante tradicional, como o
estudo do campo semântico do olhar deve ter enfatizado.
Abro, agora, novo círculo, dedicado ao estudo do conteúdo
conservador e mesmo moralizante das primeiras produções
do autor de Contos flum inenses.
0 ciúme e a literatura
64
m. i .miorfose similar à verificada nos procedimentos própria
mm 111c íòrmais, ocorridos no plano do romance. Há, porém,
inii.i diferença importante: as transformações ocorrem antes
. i* I880 — no conto, e também na crônica, a roda efetivamen-
i. ..irou antes da revolução Brás Cubas. Desse modo, se é
ii. * essário sublinhar as transformações internas do sistema
liicnirio M achado de Assis, é igualmente importante acentuar
linhas complexas de continuidade.
li começo pelo tema dominante na obra machadiana: o
»In me.
lim Ressurreição, o protagonista, Félix, abre mão do casa-
nie nto com Lívia, uma bela e jovem viúva, inteiramente de
vi ii,ida a seus caprichos. Como vimos, o comportamento de
I ' 11x é explicado numa frase lapidar: “O amor do médico teve
duvidas póstumas” (I, p. 195). Uma maliciosa carta anônima,
evidentemente inverídica, bastou para nublar o futuro do
casal. Embora a fidelidade da viúva tivesse sido comprovada,
Di) íédico não pôde afastar do espírito a verossimilhança de uma
eventual traição: “A veracidade da carta que impedira o ca
samento, com o andar dos anos, não só lhe pareceu possível,
mas até provável” (ibidem ).
A infidelidade, real ou virtual, é o tema da trama, ou seja,
0 fantasma do adultério estrutura o romance. Eis, porém, a
malícia do futuro autor de Dom Casm urro: a pretensa infide-
1idade é o efeito imaginário de um ciúme infundado. Esse é
o tópico que realmente importa, lançando uma sombra in-
contornável sobre o conhecimento: saber ou não saber, eis o
dilema de todo ciumento. O ciúme e o adultério apodera
ram-se do espírito de Machado desde as primeiras produções,
a exemplo de seu primeiro conto, “Três tesouros perdidos”
(1858). No entanto, é muito importante diferenciar suas ca
65
racterísticas, já que um autor como Machado também sugere
a existência de uma “literatura do adultério”, além da referi
da “literatura do ciúme”.
O adultério é parente próximo da investigação bem-suce
dida, como se fosse um romance policial de fácil resolução,
pois não paira dúvida sobre o “fato”. Afinal, nesse caso, sem
pre há um corpo disponível; na verdade, pelo menos dois
corpos...
Como o Dicionário Houaiss informa, trata-se da “infideli
dade estabelecida por relação carnal com outro(a) parceiro(a)
que não o(a) companheiro(a) habitual”. Uma vez que o adul
tério efetivamente ocorreu, o problema central do escritor
passa a ser o estudo da reação da “vítim a”, assim como a
análise das motivações do “pecador” ou da “pecadora”. Claro,
penso em M aãam e Bovary, de Gustave Flaubert, publicado em
1857, e em sua reescritura radical, 0 p rim o Basílio, de Eça de
Queirós, lançado em 1878 — fev ereiro de 1 8 7 8 . Pesquisar a
reação de Charles ou de Jorge, compreender as razões de
Emma e de Luísa constitui o cerne desses romances.
Já o ciúme, ensina o mesmo dicionário, define-se pelo
“receio de que o ente amado dedique seu afeto a outrem, zelo”,
é o “medo de perder alguma coisa”. O ciúme possui uma di
mensão muito mais inquietante, que, se o dicionário negli
gencia, a literatura revela. O cium ento nunca dispõe da
prova definitiva da infidelidade. Ele não pode saber; se sabe,
não é mais ciumento. Isto é, em tese, o ciumento somente
imagina evidências, jam ais comprova a traição. Nesse caso,
vale repetir, se ele dispõe de “prova”, não é mais “ciumento”,
é “traído” — o leitor substituirá o termo elegante pela voz
popular, muito mais expressiva.
O ciumento é um possessivo dotado de poderosa imagina
ção, um fabulador malogrado, que, em lugar de livros, produz
66
' •iii .r.ias de adultério. Dada a ausência da “prova” definitiva
•i i haição, o ciumento inventa verossimilhanças, criando
<11 •>los favoráveis à tese do adultério. Pode-se inclusive iden-
niliar uma estrutura comum nos textos que lidam com o
•ii uno. No primeiro momento, surge a dúvida — motivada
iinao. Como a comprovação sempre escapa ao ciumento, ele
io•i isa fabricar provas, que, embora inventadas, paradoxal-
Io alimentam a suspeita inicial, valendo por evidência
■ii I mit iva. Daí, o ciúme favorece um discurso autocentrado,
■111a autorreferência é apresentada como comprovação de seus
ii i mós, num círculo vicioso difícil de romper.
Por sua vez, Machado arranhou o tópico em Ressurreição,
i lal>orando-o de forma definitiva em Dom Casmurro. 0 próprio
n.i 11 aclor trouxe à superfície a estrutura profunda do problema:
69
revelar a tram a a Meneses, o marido turrão. Numa retórica
triunfal, o amigo altruísta antecipa o vocabulário da ressur
reição; nesse caso, da confiança conjugal:
70
•■i iminência da “queda”, busca fortalecer-se. Para tanto,
|.|'in\una-se de seu marido:
71
se a voz do narrador é feminina, pois ela reproduz em unís
sono os valores dominantes.
Nesse conto, Machado também problematiza o modelo da
publicação seriada e sua forma específica de recepção, tor
nando “Confissões de uma viúva moça” um texto relevante
na história de sua experimentação com vozes narrativas e
atos de leitura. Porém, o traço edificante impede o pleno
desenvolvimento dessa potência, pois o narrador pedagógico
se torna dominante. Basta recordar a tradução proposta pela
viúva do princípio horaciano do âocere et delectare “Dou-te a
m inha palavra de que hás de gostar e a p ren d e r” (II, p. 100,
grifos meus). É curioso que a narradora tenha invertido a
ordem dos termos da fórmula horaciana; para a jovem viúva,
o delectare parece ter primazia sobre o docere.15
Uma mudança relevante começa a ocorrer na década de
1870, inicialm ente nos contos e nas crônicas. Nesses dois
gêneros provavelmente pela frequência do exercício, assim
como pela resposta imediata do público. Isso sem mencionar
a extensão reduzida do texto, o que propiciaria experimen
tações mais ousadas, sobretudo com a voz narrativa.
Em “Ernesto de Tal”, publicado no Jornal das Famílias, em
março e abril de 1873, e reunido no mesmo ano em Histórias
da meia-noite, o tema e o tratamento começam a sofrer uma
modificação decisiva: não somente o adultério é real, como
ainda supõe o “perdão” do traído. Além disso, abre-se espaço
para a interpretação do leitor: finalmente o modelo “chave
do escrito” começa a ser abandonado. O tal do Ernesto encan
72
l ou se por Rosina, moça namoradeira, que costumava se
<mi responder com vários pretendentes ao mesmo tempo.
Numa ocasião, coincidem no carteio Ernesto e outro jovem,
ipresentado como “o rapaz do nariz comprido” (II, p. 207).
Mesmo depois de saber do triângulo formado à sua revelia,
I mesto perdoa Rosina, estabelecendo uma sociedade com o
ml igo rival; sociedade exclusivamente comercial, vale escla
recer. Ou não. Recorde-se o final do conto:
Não quer isto dizer que a amizade dos dois viesse a esfriar.
Feio contrário, o rival de Ernesto revelou certa m agnanim i
dade, apertando ainda os laços que o prendiam desde a sin
gular circunstância que os aproximou. Houve mais; dois anos
depois do casam ento de Ernesto, vemos os dois associados
num arm arinho, reinando entre ambos a mais serena inti
midade. O rapaz de nariz comprido é padrinho de um filho
de Ernesto.
— Por que não te casas? pergunta Ernesto às vezes ao seu
sócio, amigo e compadre.
— Nada, meu amigo, responde o outro, eu já agora m or
ro solteiro. (II, p. 220)
73
ameaça de retaliação, nunca concretizada, e de uma separa
ção, tem porária, tudo se acomoda e os dois retomam os ne
gócios, que não param de prosperar, reforçando a ironia do
título: Alves E rC ia .O desfecho da narrativa tudo sugere. Alves
diz ao sócio:
75
Negreiros, não era prova de infidelidade, mas mero presente
de aniversário da própria esposa. É a mesma estrutura de “A
mulher de preto”. Contudo, Machado já se permite brincar
com o ridículo da situação. Após a recusa da esposa em reve
lar o dono do malfadado relógio, o fecho do conto certam en
te leva o leitor a sorrir da ingenuidade da trama:
76
I > Severina, que habita m aritalm ente com o solicitador.
11 ,inscreva-se a sugestiva descrição do rapaz:
78
i •••I iva não sobre o que aconteceu, mas acerca do que poderia
1.1 .icontecido: “(...) o escrivão tinha morrido de apoplexia.
••mivição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem
it « ncontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente
luumentado do marido” (II, p. 611). Pois é: talvez ele tenha
üI»icndido a interpretar de outro modo a insônia da balza-
•|u1.111a. O casal passou a residir no mesmo bairro onde Bento
vmtiago escreveu não a H istória dos su b ú rb io s, mas Dom
( iismurro.
Dissimulação e vaidade
79
meiros contos e romances machadianos, surge um testamen
to fantástico. Bento, o pai de Adelaide, destinou à filha a
fortuna de 300 contos de réis. Impôs uma única condição: ela
deveria casar com o primo. Tudo pareceria perfeito, se não
fosse a evidente má-fé do rapaz. Tão pronto soube da fortuna
herdada pela prima, apaixonou-se num piscar de olhos! E nem
é preciso lançar mão da descrição densa para diferenciar
twitch (cacoete) de wink (piscadela): Luís Soares pretendia
apoderar-se do dinheiro da prima. O narrador não mediu
palavras para avaliar sua atitude, comentando a decisão da
sobrinha de recusar o casamento, mesmo se arriscando a
perder a herança: “O major ouviu atentamente a moça, pro
curou desculpar o sobrinho, mas no fundo ele acreditava que
Soares era um mau-caráter” (II, p. 58). Assim: mau-caráter, sem
ironia alguma, juízo moral em consonância com os valores
do tempo. No final do conto, o castigo é completo, e até me
lodram ático: mesmo sem a realização do m atrim ônio,
Adelaide recebe os 300 contos e se prepara para uma luxuosa
viagem à Europa, naturalmente sem a companhia do primo.
Ao que tudo indica, a vingança mais cruel no Brasil oitocen-
tista! Luís Soares abandona a casa do tio; empobrecido e, sem
alternativas, suicida-se. E como se não bastasse, o narrador
acrescenta a punição final: ele é rapidamente esquecido pelos
amigos. De fato, eles preferem:
HO
de 1868, e reunido pelo autor em Contos flu m inen ses. Nele,
Augusta, outra bela senhora de 30 anos, atravessa um dilema
em aparência insolúvel. Sua filha, Adelaide, completou 15
anos e, pelo costume do tempo, chegou à idade de casar.
Vasconcelos, seu pai, já havia inclusive escolhido um preten
dente. No entanto, Augusta rejeitou o matrimônio com tal
obstinação, que o marido desconfiou de seus motivos: teria
alguma relação secreta com o futuro noivo? O singelo misté
rio resolveu-se quando o marido escutou um diálogo entre a
esposa e uma amiga. Esta não entendia o motivo da decidida
recusa, argumentando incrédula:
81
Em “Galeria póstuma”, publicado na Gazeta de Notícias, em
2 de agosto de 1883, e coligido no ano seguinte em Histórias
sem data, o verdadeiro protagonista do conto é o diário de
Joaquim Fidélis, respeitável morador do Engenho Velho, ben-
quisto por todos. A confiar no narrador: “Tão amado que ele
era, com os modos bonitos que tinha, sabendo conversar com
toda a gente, instruído com os instruídos, ignorante com os
ignorantes, rapaz com os rapazes, e até moça com as moças”
(II, p. 396). O amigo ideal, o vizinho que todos desejariam,
um autêntico Zelig avant la lettre.
Porém, uma amarga surpresa aguardava seu sobrinho,
Benjamim. Ele descobriu um diário secreto mantido pelo tio
e, após ler avaliações edificantes sobre homens públicos e
análises certeiras sobre a condução da política nacional, co
meçou a folhear páginas comprometedoras. O cordial senhor
esboçou o perfil honesto de seus melhores amigos, sem deixar
de lado nem mesmo o sobrinho. Na avaliação do tio: “Discreto,
leal e bom — bom até a credulidade. Tão firm e nas afeições
como versátil nos pareceres. Superficial, amigo de novidades,
amando no direito o vocabulário e as fórmulas” (II, p. 400).
Avaliações ainda mais duras foram reservadas aos velhos
amigos. Um surpreendente Jano do subúrbio, Joaquim Fidélis
aprendeu a dissimular como se o gesto fosse uma espécie de
respiração artificial. Dessa vez, o narrador não condena o
m emorialista, pois a escrita do diário revela a necessária
máscara que usamos no dia a dia; afinal, o convívio com
Joaquim Fidélis seria pouco atraente se ele revelasse a todos
suas verdadeiras impressões.
H2
miico e multifacetado diário de Joaquim Fidélis, trazendo à
In/, as mazelas da circunstância brasileira e os impasses da
* ondição humana.)
84
demorou a vir: nem mais nem menos, D. Camila dormiu mãe
e despertou avó. A resolução do conto, porém, é mais bem-hu
morada do que a do modelo prévio:
0 inverno chegou
86
i r.( os. Porém, como construir uma obra relevante caminhan-
sempre a favor do vento? Numa advertência da nova edição
■l<» romance, publicada em 1905, o autor maduro assim releu
n esforço do estreante:
liste foi o meu prim eiro rom ance escrito aí vão muitos anos.
Dado em nova edição, não lhe altero a composição nem o
estilo, apenas troco dois ou três vocábulos e faço tais ou quais
correções de ortografia. Como outros que vieram depois, e
alguns contos e novelas de então, pertence a prim eira fase da
minha vida literária. (I, p. 116, grifo meu)
89
No meio do caminho tinha um autor
0 triunfo e a sombra
92
•<ii . ii) inglês. Recordem-se, nesse sentido, as sintomáticas
i 1 1,ivra s de abertura da crítica machadiana:
93
É lugar-comum considerar os dois artigos sobre 0 prim o
Basílio, publicados em 0 Cruzeiro, n os dias 16 e 30 de abril de
1878, um dos pontos máximos do exercício crítico machadia
no. Pelo contrário, são suas páginas menos felizes. No entanto,
o tom agressivo de certas passagens, algo inesperado para um
homem que nunca apreciou as polêmicas, talvez tenha sido o
elemento catalisador que permitiu a reinvenção do bem-com
portado autor de A mão e a luva. E pôde fazê-lo porque no meio
do caminho tinha um autor; na verdade, dois escritores.
De um lado, Eça e seu êxito; de outro, o autor no qual
Machadinho estava prestes a se tornar.
Nos artigos dedicados a 0 p rim o Basílio surge uma ideia
nova, quase um a nova sensação, embora ela fosse antiga como
os clássicos: a ideia de aem ulatio. Defendo, portanto, uma
leitura poético-retórica da transformação machadiana. Ao
mencionar a rivalidade com Eça, não a compreendo como
traço psicológico, porém como elemento catalisador que evi
denciou a insatisfação de Machado com seus próprios proce
dimentos.
Eis, se não me iludo, o ponto de inflexão de sua obra.
Assinale-se o aparente paradoxo da crítica machadiana
aos romances do português:
94
i >bre o horizonte da reflexão de Machado. Em tese, um fiel e
n in rrim o discípulo, possivelmente um copista, nunca seria
<(insiderado hom em de talento. No modelo imposto pela infla-
<,.u> das noções de subjetividade e de autoria, a reunião dos
!• rmos parece um autêntico contrassenso. Contudo, uma
lonna mais interessante de entender a perspectiva adotada
por Machado depende da noção de oficina literária. Trata-se de
metáfora característica do universo de práticas artísticas
pré-românticas, associadas à técnica da imitatio e da aemulatio.
N<>s artigos dedicados a 0 p rim o Basílio, esse universo paula-
i mumente se torna a novidade crítica decisiva, estimuladora
da pena da galhofa e da tinta da melancolia.
Roteiro
95
breava com V iagens na m inha terra, de Almeida Garrett, publi
cado em livro em 1846. Machado apenas ingressa nesse sele
to grupo dois anos depois, graças à prosa do defunto autor.
O segundo passo consiste na leitura cuidadosa dos artigos
machadianos, com o propósito de identificar os critérios es
téticos que perm itiram uma análise tão severa da obra quei-
rosiana. Talvez o leitor se surpreenda: os critérios eram este
ticamente normativos e moralmente conservadores.
Por fim, após breve estudo de determinados aspectos de
0 p rim o Basílio que o autor brasileiro preferiu ignorar, busco
observar, a p a rtir do texto m achadiano, a emergência da ideia
de emulação como critério decisivo de julgamento; critério
ainda tateante, mas presente e responsável pelos melhores
momentos de sua análise.
Eis o roteiro deste capítulo.
No final do cam inho, a pedra Eça de Queirós talvez se
converta no aguilhão que permitiu ao Machadinho, final
mente, arriscar-se. Machado deixou d e p e rd e r o bem pelo receio
de o buscar.
Centros e periferias
96
#* *
97
Entre o povoado rural e Londres, Bath ocupa uma posição
bifronte: centro alternativo para os vilarejos; inegável peri
feria para Londres. No século seguinte, idêntica triangulação
se encontra na base das aspirações de Emma Bovary, dividida
entre a provinciana e fictícia Yonville, o sonho de visitar Paris
e a realidade de Rouen; verdadeira cidade-ponte, como a Bath
de Catherine Morland. Aliás, relações triangulares que aju
daram a plasmar as culturas latino-americanas no século
XIX, sempre às voltas com o eixo Paris e Londres, embora
mediado pelas metrópoles Lisboa e Madri.
* * *
98
...... língua hegemônica pode produzir efeitos desestabiliza-
dores no interior do código que, no entanto, perm anece
'iiuninante. Desse modo, o alemão deliberadamente pouco
•■.ii Iizado do autor de A m etam orfose literalmente se transfor-
in.i 110 idioma reduzido da adm inistração im perial. Suas
11.ises secas e curtas revelam, pelo avesso, a ambivalência do
Inocesso civilizatório, idealizado na noção de B üãung, porém
«i n porificado na mão dura do cotidiano burocrático dos donos
do poder.18
lissa circunstância pode ser ainda mais complexa. Como
pensar a mesma constelação de problemas quando o idioma
i inpregado nunca foi hegemônico, isto é, não o francês da
Ilustração, muito menos o alemão da filosofia, tampouco o
II iglês do mundo contemporâneo, mas o português de Machado
ile Assis e de Eça de Queirós? Como produzir efeitos não ca
nônicos no interior de um código hegemônico quando a
própria língua na qual se escreve exige um passo prévio, qual
s e ja , a tradução? O dilema pode ser ainda mais agudo: como
produzir nas condições das culturas não hegemônicas sem
.i ntes traduzir o cânone das literaturas consideradas centrais?
Tal dificuldade ocorre em latitudes as mais distantes. Não
se trata de óbice exclusivamente latino-americano ou ibérico.
lVlo contrário, uma análise comparativa favorece uma com
preensão renovada da crítica machadiana a 0 p rim o Basílio
100
Brandes não se cansa de indicar a leitura de títulos impor-
lantes para o projeto filosófico do autor de Ecce Homo. Porém,
d mesmo obstáculo se insinua em todas as ocasiões. Em car-
Ia enviada em 11 de janeiro de 1888, Brandes lamenta: “Existe
ii in pensador escandinavo cujas obras lhe interessariam
muito se pudesse lê-las em algum a tra d ução : penso em Soren
Klerkegaard (...)” (p. 84, grifo meu). O crítico dinamarquês
.i 1 1iculou o que se pode denominar a “angústia da ilegibili
dade” ou o “imperativo da tradução”. Brandes nunca deixa de
recordar a Nietzsche o quanto ele está perdendo por não ler
polonês, sueco, islandês, dinamarquês — mais um pouco, e
exigiria que o filósofo também conhecesse o espanhol e o
português! Em outras palavras, menos do que arrogância de
.u adêmico pedante, ou provincianismo de intelectual arri-
vista, as reiteradas indicações de leitura esclarecem sua in
quietação. Brandes se via isolado tanto em seu idioma quan-
lo em seu meio. Leia-se a carta enviada em fevereiro de 1888:
Imagino que o senhor desfruta de uma agradável primavera,
.lo passo que nos últimos dias estamos sepultados debaixo de
neves repugnantes; separados da E uropa” (p. 88, grifo meu).
O sentimento permaneceu atual no século seguinte. Na
confissão do poeta polonês Czeslaw Milosz: “Meu lugar na
I uropa, em virtude de eventos extraordinários e letais que
.iIi ocorreram, comparável apenas a terremotos violentos,
estimula uma perspectiva peculiar.”20 A consciência de per
tencer à periferia da Europa atravessa suas reflexões. De igual
modo, o autor, que recebeu o prêmio Nobel de Literatura em
l ()80, lamenta diversas vezes que os melhores poetas polone-
\es não estejam traduzidos e, por isso, sejam praticamente
desconhecidos. É como se Brandes e Milosz pertencessem à
101
mesma época e não a séculos distintos. Ora, Machado e Eça,
no ano-chave de 1878, lidavam com os mesmos obstáculos
mencionados pelo crítico dinamarquês.
Neste capítulo, discuto precisamente as estratégias desen
volvidas no âmbito das culturas e literaturas não hegemôni
cas para afirm ar seus valores frente às literaturas e culturas
hegemônicas. Aqui, a poética da emulação propicia conseqü
ências inesperadas no plano da política cultural. O desenvol
vimento dessa possibilidade exige uma abordagem que não
deve ser reduzida ao espaço lusófono, estimulando um estu
do comparativo mais amplo.
A centralidade da tradução
21 pe re jra d a silva, “Os rom ances m odernos e sua in flu ên cia”, grifos do
autor. Publicado por M arcus Vinicius Nogueira Soares em Matraga, Revista
do P rogram a de Pós-graduação em Letras da Uerj. Ano 10, n° 15. Rio de
Jan eiro: Caetés, 2 0 0 3 , p. 43. A p a rtir de ag o ra, cito apenas a págin a da
o corrência.
102
I•«il»licação de Niterói — Revista brasiliense, inaugurou oficial-
..... . o romantismo no Brasil. Portanto, se, “pelos rom ances,
. "incham quase todas as literaturas”, já não seria hora de o
11 nnnnce brasileiro dar o ar de sua graça? Porém, segundo as
I’ il.ivras de Pereira da Silva, a ausência de romancistas brasi-
h iiiis nào havia impedido a formação de um público fiel de
h iloras. Após destacar a importância de Walter Scott, visto
«01110 “o homem que mudou inteiramente a forma dos ro
mances”, ele lamentou que as representantes brasileiras do
lu In sexo “(...) nào tenham ainda lido os romances desse Homero
I <ocês, porque ainda não se traduziram na língua p o rtu gu esa ,
.iliás tão cheia de maus romances, e de péssimas novelas”
(|>. 45, grifo meu).
O paradoxo da ausência de romancistas resolve-se facil
mente: o público leitor no Brasil formou-se através de roman-
•vs, novelas, contos, enfim , narrativas p rio rita ria m en te lidas
i tu tradução, embora uma parcela do público tivesse acesso
. io s textos em francês; mesmo romances escritos em outras
línguas eram geralmente lidos em tradução para o idioma de
Montaigne. Daí o “imperativo da tradução” no caso das lín
guas não hegemônicas. Foi assim que Nietzsche finalmente
pôde ler um dos autores recomendados por Brandes, como
informou em carta de 20 de novembro de 1888: “Anteontem
li com prazer, como se estivesse em casa, Os casados, do senhor
August Strindberg. Admiro-o sinceramente. E o admiraria
mais se não tivesse a impressão de que, nele, admiro um
pouco a mim mesmo” (p. 115).
Eis o ponto-chave para red im en sron ar o salto do
Machadinho ao Machado, além de propiciar o desdobramen
to inesperado da poética da emulação em prática de política
cultural. Como tornar produtiva, no plano formal, a prece
dência da leitura sobre a escrita, a precedência da tradução
103
sobre a obra original ? Como transformar a secundidade em
princípio de invenção? Pode-se considerar essa circunstância
uma característica das literaturas lusófonas, ou, para dizê-lo
de forma mais geral, um elemento definidor das literaturas
não hegemônicas? Sim: circunstância trazida à tona no travo
ressentido da afirmação de Eça na resposta dura, e somente
publicada na íntegra após a sua morte, à crítica igualmente
forte que Machado fez de 0 p rim o Basílio. Recorde-se a reação
acre à acusação de imitação lançada pelo brasileiro:
104
h.mcês, inglês e alemão, como oriundos das “três grandes
luçoes pensantes” (p. 174).
A resposta não publicada de Eça procurava responder à
ili ura ao juízo pouco diplomático de Machado (adiante, repe-
I irei essa citação, porém ela se impõe de imediato):
105
guarda: “Com conhecimento dos dois livros, so um a obtusida-
de córnea ou má-fé cínica”,25 permitiria assemelhar os romances
Machado preferiu não responder.
Sem dúvida, o problema da primogenitura literária não
se lim ita ao século XIX, mas foi vivido agudamente pelos
escritores daquele período, até mesmo pela centralidade do
texto impresso como meio de comunicação de massa. Nesse
contexto, como um autor lusófono poderia deixar de “im itar”
o modelo “superior” das três g ra n d es nações pensantes? A regra
de três queirosiana impõe limites rígidos. O gosto médio do
público português e brasileiro formava-se através da tradução
de romances escritos nos idiomas daquelas nações. Sublinhe-se
o sabor amargo da réplica de Eça, deixando claro o peso que
tal tradição implicava para os autores de língua portuguesa;
peso ainda maior porque faziam parte de um episódio dom és
tico, uma vez que comandava o favor do público em Portugal
e no Brasil. No sistema literário lusófono, isto é, no sistema
literário não hegemônico, especialmente no tocante ao gêne
ro romance, a tradução implica um problema teórico de
grande alcance: como refletir sobre as condições de criação
quando a tradução assume o papel de fonte da tradição? Como
escrever romances em língua portuguesa depois das produ
ções inglesa e francesa dos séculos XVIII e XIX? E veja que
limito a referência aos dois modelos dominantes na criação
do romance moderno, deixando de lado a vertente alemã do
romance de formação, o Bildungsrom an, e a virtual onipresen
106
ça da ficção russa no século XIX; e, via de regra, através de
I raduções francesas. Aliás, traduções libérrimas, que adapta
vam sem nenhum constrangimento o texto original ao pala
d ar do público parisiense.
Para dizê-lo sem diplomacia: a severa reação machadiana
ao êxito de 0 p rim o Basílio e a rude resposta de Eça têm como
base uma questão de política cultural ainda hoje mal resol
vida. A crítica machadiana e a reescritura queirosiana de
Madame Bovary oferecem uma resposta inicial. Nesse horizon
te mais amplo, os dois artigos de Machado podem adquirir
leição inesperada, cujo ponto final se encontra no resgate
anacrônico da técnica da aem ulatio ; anacronismo que vale por
um xeque-mate em termos de política cultural.
A técnica da emulação supõe partir da imitação conscien
te de um modelo prévio, com o objetivo de acrescentar-lhe
dados novos. Desse modo, o resgate deliberadamente ana
crônico da técnica da imitatio e da aem ulatio transform a a
secundidade da condição periférica em fator p otencialm ente
produtivo.
A própria fonte da malícia do defunto autor.
A crítica machadiana
107
A leitura machadiana acertou em pontos estratégicos e
pode ter sido relevante na correção de rumos do autor portu
guês — a começar pelo seu próximo livro, 0 m a n d a rim , tão
distante dos dois primeiros; na obra de Eça, uma novidade
em alguma medida comparável à escrita das M em órias póstu
m as de Brás Cubas. Por isso mesmo, desejo explicitar os pres
supostos críticos do argumento machadiano, pois, num pri
m eiro momento, Eça parece ter assim ilado muito bem o
golpe. Recordem-se os termos amigáveis da carta enviada da
Inglaterra, no dia 29 de junho de 1878:
(...) não quis estar mais tem po sem agradecer a V. S.a o seu
excelente artigo do dia 16. Apesar de m e ser adverso, quase
revesso, e de ser inspirado por um a hostilidade quase p arti
dária à Escola Realista — esse artigo pela sua elevação e pelo
talento com que está feito honra o m eu livro, quase lhe aumenta
a autoridade.26
108
.a»', que discordaram do primeiro artigo. Não foram poucos
. >' que saíram em defesa do autor de 0 crim e do p a d re A m aro;
|unle-se mesmo pensar que o ataque machadiano ajudou a
irlutinar o círculo de admiradores brasileiros de Eça.
A análise machadiana transformou-se em autêntico câno-
iii', seu estudo transformou-se em clichê difícil de questionar.
Ora, não é óbvia a razão do entusiasmo e muito menos o
motivo da unanimidade acerca do juízo machadiano, que
pode ser sintetizado em três pontos.
Em primeiro lugar, Machado condena a adesão incondi-
. lonal ao “realismo de Zola”, pois ela obriga a malabarismos
'|iii' comprometem a verossimilhança do enredo, uma vez
que, na adoção da receita naturalista, nenhum ingrediente
drve ficar de fora. Além disso, Machado aponta falhas estru-
turais na tram a, especialm ente no caráter acidental dos
•pisódios centrais. Por fim, considera insuficiente o desenho
clos personagens, destacando-se o célebre reparo à composição
da lieroína: “a Luísa é um caráter negativo, e no meio da ação
Ideada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral”
(III, p. 905).
Esse lugar-comum precisa ser questionado.
Meu ponto de partida é muito simples: os dois artigos
sobre 0 prim o Basílio não foram escritos com a pena da galho-
la e a tinta da melancolia do defunto autor, cuja certidão de
bat ismo data de 1880. Em outras palavras, o leitor de 0 p rim o
Ihisílio foi o autor de Iaiá Garcia e não o criador das M em órias
Ixístumas de Brás Cubas.
Apenas restauro a cronologia da polêmica, em lugar de
I >rojetar retrospectivamente o Machado das M emórias póstumas
para o conjunto de sua obra. Salvo engano, um equívoco
hermenêutico converteu-se em leitura corrente: o Machado
que criticou 0 prim o Basílio baseou seu juízo em critérios es
téticos que precisam ente um romance como as M em órias
109
póstum as tornaram ultrapassados e até caricatos! Os critérios
do Machadinho, leitor de 0 prim o Basílio, não são, e nem podem
ser, os mesmos do Machado, autor das M em órias póstum as.
Daí a necessidade de perguntar pelos critérios machadia
nos na avaliação da obra queirosiana.
Em primeiro lugar, os critérios são surpreendentemente
moralistas — e não no sentido do moralismo francês do sé
culo XVII, tão próximo ao próprio Machado, mas na acepção
burguesa satirizada por Flaubert, atacada por Eça e exposta
a seco nas M em órias póstum as. Recordo, por exemplo, como
Machadinho descreveu o caso de Luísa e Basílio: “essa ligação
de algumas semanas, que é o fato inicial e essencial da ação,
não passa de um incidente erótico, sem relevo, rep u gn a n te, vul
g a r ” (III, p. 906, grifo meu).
Por que re p u g n a n te e v u lga r? Simplesmente por ser um
incidente eróticol Machado, assim, não pode senão condenar a
“fatalidade das obras do Sr. Eça de Queirós ou, noutros termos,
do seu realismo sem condescendência: é a sensação física . Os
exemplos acumulam-se de página a página; apontá-los, seria
reuni-los e agravar o que há neles desvendado e cru” (III, p.
908, grifo meu). O Machado de 1878 mostrou-se incomodado
pela sem-cerimônia com que Eça lidou com o corpo e o dese
jo erótico em sua ficção, chegando a atribuir o sucesso do
livro ao escândalo provocado por tal liberdade:
111
vam sua vocação política; vale dizer, suas afinidades eletivas
com o futuro marido. Eis como se “ju stifica” (o verbo será
empregado pelo narrador!) a atitude de Guiomar:
112
}',i ifo meu). Os detalhes são significativos: nossa heroína, pois se
l rata de favorecer a identificação do público leitor com a trama
(‘ seus personagens. E uma identificação tranquilizadora; afi
nal, Guiomar mantinha sob rédeas curtas o império das emo
ções. Sem dúvida, espontâneas, pois, nesse registro carola, uma
heroína dissimulada seria um paradoxo inaceitável. Porém,
emoções regradas, já que, sem freios, aquele sentimento daria
lugar a transportes comprometedores. O meio-termo exato se
expressa na fórmula bem-comportada: até o ponto.
Machadinho precisava mudar sua visão do mundo, assim
como renovar sua concepção de literatura.
E precisava fazê-lo com urgência.
Especialmente a partir de/èvereiro de 1878.
Mas o câmbio não foi fácil, como se depreende de carta
enviada a José Carlos Rodrigues em 25 de janeiro de 1873
Nela, Machado agradece a resenha favorável que ele havia
publicado de Ressurreição:
113
Instinto de nacionalidade”. Machadinho sempre soube tecer
redes poderosas e alianças oportunas. O severo juiz recrim i
nou determinadas passagens de R essurreição com base no
princípio moral que será evocado pelo igualmente rígido
leitor de 0 p rim o Basílio:
(...) Que nos diz o autor nessa página? Que Luísa se envergo
nhava um pouco da m an eira “por que am ava o m arido;
sen tia vagam en te que naquela violência am orosa havia
pouca dignidade conjugal. Parecia-lhe que tinha apenas um
capricho ”.
Que horrorl Um capricho po r um marido! (III, p. 911, grifos
meus)
28 José Carlos Rodrigues, “Um rom ance flum inense", in Machado de Assis:
roteiro de consagração (crítica em vida do autor), p. 91.
114
N.i pena do defunto autor, as exclamações teriam um ar
.1- lii lusamente cínico, mesmo erótico, como ocorre no extra-
«ii«liuário capítulo LV, “O velho diálogo de Adão e Eva”. no
•.|ii.il se insinua a cópula dos amantes através de sinais de
...... . uação.29 No julgamento do autor de Iaiá Garcia, os pontos
•Ir exclamação valem quanto pesam. A boa sociedade flumi-
iH iise e os ilustres representantes da corte imperial prova-
<Imente leriam essa condenação sumária da “crim inosa”
11usa — penso no vocabulário relativo ao adultério emprega-
■li >na primeira fase machadiana — meneando a cabeça, numa
muência tácita com os elevados valores morais do autor,
li não é tudo.
O celebrado crítico de 0 p rim o Basílio reproduziu o parecer
«to pai de Eça de Queirós. Claro, sem sabê-lo, o que torna o
i<ordo particularmente significativo. Em carta enviada ao
lilho no calor da hora, em 26 de fevereiro de 1878, depois de
•logiar a composição (“O romance é magnífico, e como obra
Tarte acho-o superior ao Padre A m a ro ”30), permitiu-se uma
ressalva: “Do ponto de vista da escola realista que te domina,
o romance é uma obra d’arte perfeita. Entretanto eu creio,
i|iie, mesmo n’essa escola, há um ponto além do qual não é
permitido” (p. 48, grifo meu). Conhecemos outra fórmula: até
d ponto. A variação é mínima, pois se trata do mesmo princí
pio m oralizante. Contudo, como respeitar uma fronteira
116
i l!( se um anacronism o tonto: corpo policial deve ser
ih i|>i< elidido segundo a etimologia: politia, no sentido de
üm . i no, costume, hábito. 0 Conservatório constituiria um
ii «< . imlh ial, isto é, um conjunto de pessoas dedicadas à “po-
11111 <l,i adequação das peças a serem traduzidas e encenadas.
>i i assim não apenas útil, mas necessário, ao garantir a
.........no das feições menos decentes das concepções dram áticas. Tal
K •mi ia era plena porque um parecer negativo impediria a
» • nação do texto. A voz do censor tinha valor de crítica
"li* ml, tribunal sem apelação, garantido pelo governo. Evite-se,
pi.c.. o anacronismo tolo, mas não se incorra em nenhuma
I' 'i ma de hagiografia crítica: as palavras do jovem de 20 anos
■iiam subscritas por todos os medalhões do Segundo Reinado.
I pelo pai de Eça...
Nao se pense que o autor mais amadurecido teria mudado
iadicalmente de opinião. Numa observação aparecida no
•maio “Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de
nacionalidade”, Machado antecipa o rumo das críticas a 0
/>/htio Basílio:
117
deria apontar e co rrig ir parece aludir à crítica de José Carlos
Rodrigues ao romance de estreia do agora colaborador de 0
Novo M undo. Ora, cinco anos depois da escrita desse texto, um
livro inspirado em certa escola fra n cesa ameaçou contam inar a
literatura brasileira: justamente 0 prim o Basílio. Desse modo, a
crítica austera, esgrimida por Machado, já estava anunciada
no artigo de 1873. Peço que o leitor repare no vocabulário,
que recorda a dicção moralista que vimos nos primeiros con
tos machadianos: tendências m orais; irrepreensíveis; corrigir.
Ainda há mais.
O primeiro artigo de Machado sobre 0 p rim o Basílio provo
cou os partidários brasileiros de Eça e muitos escreveram
réplicas, contestando o juízo desfavorável do autor de Iaiá
Garcia. Um golpe duro foi desferido por Amenófis Efendi,
pseudônimo de Ataliba Lopes de Gomensoro, que publicou o
artigo “Eleazar e Eça de Queirós: um crítico do Primo Basílio”,
na Gazeta de Notícias, em 24 de abril de 1878. Para provar que
o erotism o contido no rom ance não era despropositado,
Amenófis lançou mão de argumento em tese irrefutável:
transcreveu passagens, digamos, intensas do Cântico dos cân
ticos, que comparavam os seios femininos a “verdadeiros ca
chos de uvas”. Recusar uma taça desse vinho? Nem mesmo o
censor de 0 p rim o Basílio, pois, supõe Amenófis, ele “deve
saber que o Cântico dos cânticos faz parte de seu livro sagrado
— a Bíblia”.31
Touchél
119
Tirai o extravio das cartas, a casa de Jorge passa a ser uma
nesga do paraíso; sem essa circunstância, inteiram ente casual,
acabaria o rom ance. Ora, a substituição do principal pelo
acessório, a ação transplantada dos caracteres e dos senti
mentos para o incidente, para o fortuito, eis o que me pare
ceu in con gru ente e co n trário às leis da arte. (III, p. 910,
grifo do autor)
120
I ■•■Mi.ijM-ni, alusões, episódios, e outras partes do livro, no-
« 1 | x)i mim, como menos próprias do decoro literário (III,
I* ill, grifo meu)”. É provável que Machado estivesse pen-
i ..lo na célebre cena do capítulo VII, com seu fecho epi-
uiiiinnl ico:
32 Augusto Meyer, “De M achadinho a Brás Cubas”. Revista Teresa, 6/7, 2006,
p. 409. A p a rtir de agora, citarei apenas a página da ocorrência. O ensaio
de Augusto Meyer foi publicado originalm ente na Revista do Livro, em 1958.
122
M,u hadinho seria nm exame alheio à “aplicação” das “leis da
n ic", travestidas de regras de moral. Contudo, em 1878, a
• i«i ica defendida nos dois artigos já se encontrava na con-
i i.imào da história. O curioso é que o pulo do gato machadia-
Mi>iornou esse anacronism o produtivo. Mas foi preciso, em
pi imeiro lugar, to rn ar o anacronism o um gesto deliberado e
n.Ki involuntário. Ao fazê-lo, Machado desenvolveu a poética
•l.i emulação.
Evito in co rrer no equívoco com um : ler toda a obra de
M.ichado como se tivesse sido escrita pelo autor das Memórias
i'ir,iiimas de Brás Cubas, dos contos antológicos de Papéis avulsos,
»11 is versos primorosos de Ocidentais, das crônicas impecáveis,
<scritas sobretudo a p a rtir do final da década de 1870.
Tal suposição piedosa pode ser o p o rtu n a para o exercí-
i io de panegíricos, m as não p erm ite entender a lógica in
terna que, segundo Augusto Meyer, conduz à “transm uta-
<,.io de Luís Garcia em Brás Cubas, ou de M achadinho em
Machadão” (p. 410). O m ero louvor condena M achado ao
papel tím ido de fundador da Academia Brasileira de Letras,
liincionário exem plar, bom amigo, ainda m elhor m arido,
cidadão im poluto.
E, para o bem ou para o mal, ele foi tudo isso.
No en tan to , ele tam bém foi o autor de rom ances que
ainda hoje nos desafiam . O criador de contos que viram
pelo avesso nossas certezas acerca do Brasil, do m undo e
de nós mesmos. O cro n ista cuja prosa e argúcia seguem
sem paralelo.
Como entender o trânsito de um a outro?
Reitero m inha hipótese: a fim de produzir a revolução Brás
Cubas, o autor Machado precisou despedir-se de Machadinho,
leitor de 0 prim o Basílio. A crítica m achadiana não tem sido
123
capaz de dizê-lo com a clareza necessária porque parte do
pressuposto otim ista de que coincidem o leitor do rom ance
de Eça e o autor das M emórias póstum as.
Flaubert
124
•Ir Balzac, Eugénie Grandet, publicado em 1833, Machado ex-
• lama, em aparência contente com sua argúcia: “O Sr. Eça de
Queirós incumbiu-se de nos dar o fio da sua concepção” (III,
p l)05). Nessa passagem do rom ance,33 Eça apenas procura
•li-spistar o leitor, pois o paralelo m ais significativo evoca
Mudame Bovary. No século seguinte, Jorge Luis Borges não
hesitou em relacionar os dois romances:
126
fi possível ir além da análise tem ática, indiscutivelm ente
importante, mas, pelo menos para meus propósitos, limitada?
Pode-se identificar algum procedim ento form al dom inante
n.i recriação de cenas de M adame Bovary em 0 prim o Basílio?
Mãos à obra.
No sexto capítulo da prim eira parte de M adame Bovary, o
leitor encontra o retrato psicológico da protagonista:
128
.'I iliitla por Eça. Na transcriação queirosiana destaca-se a
■•'iicentração de épocas e de culturas históricas. Além disso,
• mu um toque sutil, o autor português revela o caráter ad-
■• ul ido da imaginação de Luísa: somente o alheio lhe inspi-
1.1 sonhos: bem ao contrário de Emma, cujos devaneios pos-
iicm sotaque próprio. Luísa anuncia o hábito do Conselheiro
A« acio, que somente pode dizer o óbvio recorrendo a citações
lora do lugar, ou aquém do tempo, mas, desde que sejam es-
11.1 ngeiras, se encontram justificadas.
A fim de reforçar a ideia de imitação, Machado recordou
um possível paralelo para o célebre personagem: “(...) bastará
cilar o longo ja n ta r do C onselheiro Acácio (transcrição do
personagem de Henri Monier)” (III, p. 908, grifo meu). Machado
pousava em Joseph Prudhom m e, personagem símbolo da
• lasse média parisiense, imortalizado por Henry Monnier nas
Mcmoires de M onsieur Joseph P rudhom m e, em dois volumes,
aparecidos em 1857; aliás, o mesmo ano de M adame Bovary.
Nao seria tam bém inexato vislum brar no Conselheiro Acácio
certos traços do boticário Homais, cujas ações têm grande
importância no romance de Flaubert.
Vejamos outro exemplo.
No nono capítulo da segunda parte - quando Emma está
prestes a sucum bir ã sedução de Rodolphe, mas ainda sem
sequer ter beijado o futuro am ante -, o leitor encontra a se
guinte passagem: “Era a prim eira vez que Emma ouvia tais
coisas; e seu orgulho, como alguém que descansa num banho
de vapor, espreguiçava-se inteiram ente e com languidez ao
calor daquela linguagem ” (p. 172). Muito em breve o adultério
se concretiza, mas é preciso esperar seis longas páginas até
que se ouça a confissão feliz, sua felix culpa:
Porém, ao perceber sua imagem no espelho, surpreendeu-se
com seu rosto. Nunca tivera os olhos tão grandes, tão negros,
nem de um a tal profundidade. Algo de sutil, dissem inado
em sua pessoa, a transfigurava.
Repetia a si mesma: “Tenho um amante! Um am ante!”
deleitando-se com essa ideia como com a de um a outra pu
berdade que a tivesse atingido. Portanto ia possuir aquelas
alegrias do amor, aquela febre de felicidade da qual desespe
rara. Entrava em algo m aravilhoso onde tudo seria paixão,
êxtase, delírio; um a im ensidão azulada a rodeava, os cumes
do sentim ento cintilavam sob seu pensam ento, a existência
com um só aparecia ao longe, lá embaixo, na sombra, entre
os intervalos daquelas alturas, (p. 178)
130
III. escreviam aquelas sentimentalidades. A experiência imedia-
' i da presença física dos am antes se transform a na vivência
mediada pela escrita e pela leitura. Além disso, no romance
•|iii'irosiano, o leitor não precisa aguardar mais do que um
ni)',elo parágrafo para encontrar a mesma confissão de um a
I insa deslumbrada diante da própria imagem, agora adorna
da por um a beleza de origem nova, como a sensação que
muito em breve Basílio ensinará:
131
de Em m a e Leopoldina. No terceiro capítulo da segunda
parte, im ediatam ente antes de dar à luz, Emma pensa con
sigo mesma:
132
Outra vez, Eça recria um a passagem de M adame Bovary.
<ontudo, em lugar de apenas m encionar Luísa, reúne dois
I" i sonagens num diálogo revelador, além de aludir novamen-
i«• a presença controladora de Juliana. Com um a só pedra,
•lius coelhos: de um lado, concentração de cenas, de outro,
dispersão da voz de Emma em dois personagens. Na continu
ai, <io, Leopoldina afirm a seu desejo de autonomia: “(...) Uma
mulher com filho está inútil para tudo, está atada de pés e
iliaos! Não há prazer na vida. É estar ali a aturá-los... Credo!
I ii? Que Deus não me castigue, mas se tivesse essa desgraça
parece-me que ia ter com a velha da travessa da Palha!” (I, p.
')!>:*). Solução que não ocorreu à protagonista de Flaubert, mas
que a personagem de Eça saberia colocar em prática. Isso
mesmo: Leopoldina não deixa de ser um a m adam e Bovary
em m iniatura, embora a seu modo seja m uito bem-sucedida.
As cenas queirosianas apresentam um a concentração de
elementos, num a sucessão por vezes vertiginosa, cujo efeito
c a radicalização da crítica social. Leopoldina é razoavelm en
te exitosa em seu plano de igualdade entre os sexos; a julgar
pelo núm ero de am antes que coleciona e, sobretudo, pelo seu
desfecho. No últim o capítulo, de modo significativo, infor
ma-se que “Leopoldina dançava num a soirée da C unha” (I, p.
1147). Como Leopoldina nunca teve o hábito de bailar sozinha,
certam ente passou a noite em boa companhia.
Eça reescreve M adam e Bovary através de um a form a da
concentração; desse modo, seu olhar atravessa diversas esferas
sociais, e esse é o ponto decisivo.
A hipocrisia da sociedade lisboeta é satirizada sem clemên
cia na figura caricata do Conselheiro Acácio; na rua, m oralis
ta mor, em casa, “amancebado com a criada” (I, p. 863).
A condição lim itada e lim itadora imposta às m ulheres é
denunciada na pluralidade dos tipos fem ininos que compõe
133
o romance, desenhando um panoram a m uito mais rico do
que o esboçado em M adame Bovary. Luísa é mesmo um títere,
m as nesse traço reside a força da crítica à falta de opção de
u m a jovem m u lh e r na p ro v in cian a Lisboa oitocentista.
Machado assinalou o ponto, mas não compreendeu seus des
dobramentos. Na véspera de sua partida, Jorge o reconhece,
pedindo ao amigo Sebastião que não deixe de visitar a esposa,
ou seja, que não se esqueça de vigiá-la: “Não tem coragem
para nada; começam as mãos a trem er-lhe, a secar-se-lhe a
boca... É m ulher, é m uito mulher!... Não te esqueças, hein,
Sebastião?” (I, p. 870). O astuto Basílio nunca se esqueceu que
a prim a era m uito mulher, mas em sentido bem diferente ao
suposto pelo sossegado marido.
A dependência c u ltu ra l é satirizad a no deslum bre de
Basílio com Paris e do visconde Reinaldo com Londres. O
rom ance conclui quando eles tom am o rum o do único esta
belecim ento que merecia a sua condescendência: “E foram
tom ar xerez à Taverna Inglesa ” (I, p. 1149, grifo do autor).
Os resíduos da m entalidade ultrarrom ântica são ridicula
rizados na peça de Ernestinho, cujo título, Honra e paixão,
paródia implacável, deve provocar risos cúmplices por parte
do leitor.
A injustiça social é discutida a sério nas aspirações de
Juliana por condições mais hum anas de trabalho. Sua chan
tagem expressa um a incipiente luta de classes. Na piedosa
interpretação do pai do rom ancista, embora veja na criada a
verdadeira “protagonista do rom ance”, o retratista carregou
demais nas tintas. O com portam ento de Juliana seria deslo
cado em Portugal, “onde a brandura dos costum es faz dos
criados um a espécie de m em bros da fam ília” (p. 48). Pelo
contrário, a agudeza da composição queirosiana revela a
134
Htlencia diária que se oculta tanto na condição da emprega-
•l.i doméstica, quanto na circunstância do agregado; tema,
aliás, que não seria alheio ao autor de Iaiá Garcia.
Por fim, através do “brasileiro” Basílio, Eça radiografa a
I'i ópria estrutura do Império português. A fortuna que Basílio
Ir/ no Brasil não é investida em Portugal, mas desperdiçada
no estrangeiro; como ocorreu com os proventos oriundos das
II ilonias. Sua prim a, em diálogo com Sebastião, compreendeu
.eus motivos:
135
são de Luísa, m uito mais do que o centro do livro, possui .1
função de autêntica caixa de Pandora, expondo a hipocrisia
e a decadência reinantes. Pelo avesso, a anem ia subjetiva tio
Luísa expõe a alienação im posta às m ulheres.
Talvez pela am plitude da crítica, Zola tenha considerado
o rom ance queirosiano superior ao modelo flaubertiano. Dt*
m in h a parte, não participo desse cam peonato peculiar, em
que autores e obras se enfrentam num improvisado campo
de futebol. Mas tam bém não fico em cim a do muro: 0 prim o
Basílio é um a obra-prim a, que ainda hoje perm anece provo-
cadora. Porém, 0 im pacto de M adam e Bovary é dificilm ente
comparável, pois a sistem atização de determ inados proce
dim entos técnicos, em especial o emprego do discurso in d i
reto livre, transform ou a história do rom ance moderno. Para
0 m eu argum ento, contudo, 0 que se destaca na avaliação
de Zola é a ideia de que a apropriação de um modelo pode
ter um resultado surpreendente, e mesm o superior, em re
lação ao m odelo adotado. Eis 0 universo da im ita tio e da
aem ulatio.
Aemulatio
136
(Jih* o Sr. Eça de Queirós é discípulo do autor do Assommoir,
ninguém há que o não conheça. O próprio 0 Crime do Padre
Amuro é imitação do rom ance de Zola, La Faute de 1’Abbé Mouret.
Sll uação análoga, iguais tendências; diferença do meio; diferen-
iit do desenlace; idêntico estilo; algumas reminiscências, como
iio capítulo da missa, e outras; enfim , o mesmo título. Quem
<n h'ii a ambos, não contestou decerto a originalidade do Sr. Eça de
ijurirós, porque ele tin h a , e tem , e a m an ifesta de modo
afirmativo; creio até que essa mesma originalidade deu mo-
i ivo ao m aior defeito na concepção d ’0 Crime do Padre Amaro.
(III, p. 903, grifos meus)
137
Como com preender a fórmula?
Antes de oferecer u m a resposta, reto rn o à crítica de
Machado. Ele reconstrói com habilidade o possível diálogo de
Eça com a tradição francesa e não condena a apropriação
queirosiana, mas discorda da ênfase concedida aos princípios
do naturalismo. Na verdade, Machado usa outra denominação,
como a passagem abaixo revela (e essa confusão geral entre
realismo e naturalism o precisa ser discutida):
138
Para ouvidos educados nos princípios da estética român-
lica, tanto a prim eira equação quanto a segunda fórm ula
parecem paradoxos, pois ameaçam apagar a diferença entre
original e cópia, voz própria e dicção alheia. Contudo, até a
explosão rom ântica, o sistema literário, desde a Antiguidade
( lássica, obedecia a um a dinâm ica diferente, na qual o re
pertório literário comum, isto é, a tradição, era o ponto de
partida obrigatório de cada “nova” criação. Nesse sistema,
uma relação dinâm ica assegurava o equilíbrio entre talento
individual e tradição — recupero os term os do ensaio de T.
S. Eliot, “Tradition and Individual Talent” (1919). Trata-se da
mesma intuição crítica de Machado, apenas arranhada nos
artigos dedicados a 0 prim o Basílio e, posteriorm ente, refina
da na escrita das M emórias póstum as de Brás Cubas.
Refiro-me à técnica da im itatio e da aemulatio.
Nesse horizonte, ilum ina-se a diferença decisiva en tre
imitação, como prim eiro passo, e cópia, como resultado final.
A equação m achadiana se torna perfeitam ente razoável, su
gerindo que ele começava a in tu ir a técnica que estim ulou o
salto qualitativo implicado na escrita das Memórias póstum as.
Desse modo, os dois artigos sobre 0 prim o Basílio podem ser
lidos sob nova luz.
As duas passagens trazem à superfície um m odelo de
análise com base na ideia clássica de im itatio, seguida da ne
cessária aemulatio; afinal, vale a repetição, o simples copista
apenas im ita, ele nunca se arrisca no m omento indispensável
da emulação. A recuperação m achadiana de práticas literárias
pré-rom ânticas em tem pos pós-rom ânticos eqüivale a um
program a de política cultural, cujos efeitos subversivos da
ordem tradicional aparecem na instigante frase: na pátria de
Alexandre Herculano e no idiom a de Gonçalves Dias.
139
0 poeta da “Canção do exílio” foi inicialm ente consagrado
por um a famosa crítica de Alexandre Herculano. O poeta
brasileiro estreou em livro em 1846, com seus Primeiros cantos,
obra dividida em três seções, “Poesias am ericanas”, “Poesias
diversas” e “Hinos”. O grande nome do rom antism o português
saudou a estreia, porém lam entou que as “poesias am erica
nas” não ocupassem um espaço m aior no livro. Sua crítica
não deixava de ser um a carta de alforria poética, mas anun
ciava regras para a emancipação: m anter a im aginação lírica
circunscrita à geografia dos trópicos.
Por sua vez, M achadinho começa a transform ar-se em
Machado ao assum ir o papel de um im aginário Alexandre
Herculano para Eça de Queirós, apontando-lhe os méritos,
porém indicando defeitos e exigindo correções. O gesto era
ousado e provocou reações aqui e lá. Dois anos depois, um
gesto ainda mais tem erário consagrou o brasileiro: a escrita
das M emórias póstum as de Brás Cubas.
Emulação pós-1878
140
i . Ih/iiías de Casa Velha (1906). A questão c e n tral do juízo
iimehadiano repousa no problem a da imitação: o Judeu foi
«.11 -1 nal ou se lim itou a reproduzir modelos prévios? Numa
P« rgunta direta: Antônio José em ulou ou não os m estres que
■ f.iiiu? Machado coloca os term os do problem a de form a
Inequívoca:
142
imaginário, relíquia de um a vida consagrada à biblioteca.
I mlo se passa como se Machado recuperasse o sistema pré-ro-
m.intico, com base na relação dinâm ica en tre os term os
iinUiitio e aemulatio, e, desse modo, reinventasse sua condição
ili' escritor periférico, artífice de um a língua não hegemôni-
<.i, aprendendo a ser sim u lta n e am e n te pré-rom ântico e
pós-romântico. As conseqüências políticas dessa decisão es-
trl ica levam longe.
Realismo ou naturalismo?
143
tam bém aparecida em 1880. Postum am ente, deu-se a conhe
cer a carta toda. Nela, com evidente sarcasmo, Eça tripudia
de seu crítico:
144
■i i. laro: passar a lim po a vida nacional, debatendo os prin-
11• !is assuntos do m om ento. A p a le stra de a b e rtu ra foi
i*M»li*rida pelo organizador, versando sobre as “Causas da
>1.. adcncia dos povos p eninsulares” — o tem a de 0 prim o
11,1 i lio preocupava toda um a geração. A terceira conferência
■"iibi* ao próprio Eça, e ele falou sobre o “Realismo como
. pressão da a rte ”.
Por fim, a resposta de Eça à crítica de Machado tem o re-
■ lador título de “Idealismo e Realismo”. Nesse contexto, a
' milusão term inológica m achadiana adquire outro aspecto,
i J )o se pode reduzi-la ao m ero descompasso entre novidade
•uropeia e atraso tropical, pois ela se refere a determ inado
momento da história intelectual luso-brasileira. Para que se
r.d are ç a o ponto de form a definitiva, escute-se o desabafo
de Eça:
146
, (>dialogo intertextual mais im portante ocorre com Madame
jli ivury, rom ance publicado em 1857.
0 que im porta assinalar é a cronologia às avessas da pro-
,.i de Eça: eis o fator decisivo que ilum ina a confusão term i
nológica de Machado. O sentido anti-horário da produção
<I»u‘irosiana ainda não foi devidam ente valorizado. 0 prim o
Hasílio não pode ser classificado como um rom ance natura-
I i i a com a mesm a facilidade com que se etiqueta 0 crime do
/nutre Amaro. Machado equivocou-se ao julgar os dois roman-
ccs com a mesma lupa an tinaturalista — antirrealista, em
■.(‘ii vocabulário. A questão exigia um a leitura mais densa.
Porém, seu tropeço esclarece o pulo do gato queirosiano, que
0 narrador ébrio das M emórias póstum as radicalizará ao má-
\ imo. Machado reage visceralmente ao êxito de 0 prim o Basílio
■io intuir um cam inho que m uito em breve ele transform a
cm seu dom ínio particular.
Explico-me.
Em lugar de seguir a últim a moda, Eça deu um im portan-
1íssimo passo atrás — e voltou a fazê-lo em seu próxim o títu
lo, 0 m andarim , saído em 1880; texto m uito diferente de 0
primo Basílio e totalm ente distinto de 0 crime do Padre Amaro.
liça escreveu um rom ance m uito superior ao que Machado
foi capaz de ler, pois o brasileiro acreditou que o português
simplesmente procurou m anter-se atualizado com a escola
“realista” de Zola. Porém, com 0 p rim o Basílio, Eça começou
a afastar-se do rígido modelo naturalista. Na m inha análise
do romance, o processo de concentração form al, característico
da reescritura de M adame Bovary, conduziu à concentração de
épocas literárias e de culturas históricas, pois, além da tradição
do romance moderno, Eça dialoga com a literatura portugue
sa contem porânea.
147
Não é verdade que a escrita das M emórias póstum as de Brris
Cubas tam bém implicou a apropriação sim ultânea de gêneros
e de estilos diversos, por vezes contraditórios? De igual modo,
Machado se revelou um leitor da tradição literária em sua
acepção mais ampla, assim como um agudo revisor da litera
tu ra brasileira e portuguesa contem porâneas.
Eis a radicalização m achadiana: se Eça deu, por assim
dizer, um passo atrás, o defunto autor, em seu delírio, viajou
“à origem dos séculos” (I, p. 520), apropriando-se do conjunto
da tradição literária, com um a liberdade inovadora e um a
irreverência libertadora. Não obstante a crítica acre a 0 prim o
Basílio, o escritor brasileiro soube aproveitar a lição do rom an
cista português. Se não me iludo, graças à em ergência da
técnica da emulação como critério de leitura crítica e de es
crita inventiva.
Coda
148
Meu caro H. Chaves. — Que hei de dizer que valha esta ca
lamidade? Para os rom ancistas é como se perdêssem os o
melhor da fam ília, o mais esbelto, o mais valido. E tal fam í
lia não se compõe só dos que en traram com ele na vida do
espírito, mas tam bém das relíquias da outra geração, e, fi
nalmente, da flor da nova. Tal que começou pela estranheza e
acabou pela admiração. (III, p. 953, grifo meu)
149
Por uma poética da em ulação
151
tensão entre imitação de modelos e crítica dessa imitação.
Tensão que constitui um modo basilar de sua pedagogia e
de sua agonística. Inúmeras são as formas pelas quais uma
obra —texto ou pintura — subsiste em outra, fenômeno que
se identifica com a própria natureza reticular da criação
artística.
Das negativas
152
ilr modo a compreender a im portância do campo semântico
da emulação na obra m achadiana. Não almejo, por fim, redi-
>•ir uma resenha interessada das discussões mais recentes
acerca da centralidade da aem ulatio nas práticas artísticas
.interiores ao rom antism o.
No capítulo “Das negativas”, Brás Cubas inventa um a
aritm ética do precário que favorece m in h a reflexão: “ao
<Ilegar a este outro lado do mistério, achei-me com um peque
no saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negati
vas: — Não tive filhos, não transm iti a nenhum a criatura o
legado da nossa m iséria” (I, p. 639, grifo meu).
Pelo avesso, toda essa série de nãos abre cam inho para um
sim constrangido. De igual forma, o que não tenciono, ilum i
na o que posso alcançar. A ambição deste capítulo reside no
cruzam ento de dois fatores.
De um lado, a reinvenção conscientem ente anacrônica da
aemulatio, em sua reciclagem pós-rom ântica, através da poé
tica da emulação, provoca efeitos inesperados no plano da
política cultural. O mais im portante teria favorecido a supe
ração da crise artística de Machado, um a vez que lhe perm i-
l iu com preender de form a inovadora o relacionam ento de
um escritor periférico com o modelo das “grandes nações
pensantes”.
153
venções, produzem variantes virtualm ente inesgotáveis. A
paixão de Machado pelo jogo de xadrez e pela música pode
ter estim ulado a compreensão do caráter lúdico da aemulatio.
Vale o esclarecim ento: não se tra ta de relação de causa e
efeito, mas de sim ilaridade potencial de procedim entos ar
tísticos e lógicos.
Por fim, trabalho com o conceito de emulação em dois
níveis, distinguindo aem ulatio - técnica fu n d am en tal no
sistem a literário e artístico pré-rom ântico — e poética da
emulação — esforço deliberadam ente anacrônico, desenvolvi
do especialmente em circunstâncias não hegemônicas. Aliás,
como a corresp o n d ên cia de Georg Brandes e F riedrich
Nietzsche revela, o problema afeta latitudes as mais distantes,
exigindo um o lh ar comparativo. Não é dilem a brasileiro,
tam pouco lusófono, nem mesmo latino-americano, mas difi
culdade de ordem geral, que envolve relações assim étricas de
poder simbólico.
O caso Machado de Assis, por isso, é bem local e, ao mesmo
tempo, m arcadam ente universal: exatam ente como sua obra.
Retorno à aemulatio.
Meu interesse em relação ao prim eiro nível da emulação
é modesto. Limito-me a assinalar suas práticas, observando
a ressurreição extem porânea de certas formas no segundo
nível, particularm ente na obra machadiana. Recorde-se a nota
que, em 1901, foi acrescentada ao poema “Flor de Mocidade”,
e que vimos no Capítulo 1:
154
O vocabulário empregado pertence ao domínio clássico da
imitatio e da aemulatio. Seu caráter agônico era derivado da
Idisào entre dois gestos: reverência à tradição e crítica desse
mesmo legado. Porém, ainda que em ulando a tradição, per-
in.mecia-se em seu âmbito, enriquecendo-a pelo acúm ulo de
novas soluções, em lugar de condená-la ao m useu narcíseo de
uma modernidade autocentrada, definida pelo valor de fetiche
at ribuído à ideia de originalidade.
Na reinvenção anacrônica do horizonte pré-romântico, o
i io v o retrato de Machado começa a ganhar contornos precisos.
Na apropriação sim ultânea de tem poralidades opostas, o
autor de Memórias póstum as de Brás Cubas encontra seu domí
nio particular.
156
Se, na fam osa sentença do escritor e ensaísta Ricardo
ri>-1ia, toda crítica é autobiográfica,36 essa seria a confissão
ilr Machado. Afinal, o “certo sentim ento íntim o” (III, p. 804),
mencionado no “Instinto de nacionalidade”, seria exatam en
te o ponto de fuga da alma da nação com a vida da humanidade,
• i mi pondo a perspectiva típica do autor-m atriz, na oscilação
perm anente entre o mesmo e o forâneo. Uma possível analo-
1.1 formal desse movimento rem ete ao território da aemulatio.
0 sistema literário pré-rom ântico exigia que se partisse do
<ondim ento alheio para confecção de tem pero próprio. A
metáfora é bem m achadiana, utilizada precisam ente na aná-
1r.e da obra de Antônio José: “pode buscar a especiaria alheia,
mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fá b rica” (II, p.
7:U, grifos meus). M etáfora am pliada no gosto pelo verbo
ruminar, hóspede contum az dos textos m achadianos, cuja
expressão m ais saliente talvez se encontre em conhecida
passagem de Esaú e Jacó, publicado em 1904:
158
. ii. cn‘s morais e políticas, para as despesas da conversação ” (I,
I' vi:>, grifo meu). As despesas da erudição ou as despesas da
iKiivcrsação: a fórm ula m uda para perm anecer idêntica. No
universo da aemulatio, o outro é sempre o ponto de partida
i • i <<instituição de um saber coletivo, em princípio acessível
ii Iodos os partícipes da cultura letrada.
() estabelecimento de tal equivalência entre rum inação e
iii iiiulatio exige um passo suplementar. Afinal, se a rum inação
pressupõe um ato interpretativo, a técnica da aemulatio ne-
i i ssariamente vai além, propondo um ato inventivo através
i|n incorporação do alheio. Herm enêutica com dentição afia
da, o resgate anacrônico da aemulatio possui sabor antropo-
lágico.
O ingrediente decisivo desse horizonte aparece num dos
primeiros textos críticos de Machado, “Ideias sobre o teatro”,
publicado em três núm eros de 0 Espelho. Na segunda entrega,
saída em 2 de outubro de 1859, tanto o léxico da emulação
quanto o emprego do verbo transplantar já se encontravam
na ordem do dia do jovem aspirante a hom em de letras, então
com 20 anos.
Leiamos o artigo:
159
Falta de emulação? Donde vem ela? Das platéias?
Das platéias. Mas é preciso entender: das platéias, porque
elas não têm , como disse, um a sedução real e conseqüente
(III, p. 792, grifos meus)
160
o jovem de 20 anos seria o pai do autor de 40, ou seja, do in
vcntor de Brás Cubas. A receita seria a mesma: apropriar-se
do conjunto da tradição, através da rum inação de autores
devidamente devorados. Um passo adiante, e Machado teria
servido a entrada do banquete que somente vinte anos depois
pôde preparar, reunindo, na nota “Ao leitor”, das Memórias
l>oslumas de Brás Cubas, Stendhal, Laurence Sterne e Xavier de
Maistre; trio respeitável, ao qual acrescentou, no prefácio à
lerceira edição, o nome de Almeida G arrett — o escritor que
nào fo i copista, embora tenha trazido a Portugal flores origi
nalmente cultivadas em outros jardins.
Acontece que a falta de em ulação vem das platéias. O
lexto é claro: porque elas não têm um a sedução real e conseqüente.
i; isso ocorre pela ausência de compromisso dos autores com
a missão nacional. Assim, o espectador não é seduzido pelo
leatro porque nele só encontra concepções de estranhas atmos
feras, de céus remotos. Em terra sem palm eiras, sabiá algum
pode cantar. O mais sério é que, no ritm o binário entre o
alheio e o próprio, entre o cá e o lá, a aemulatio perde vigor,
pois ela se alim enta da oscilação perm anente entre os dois
polos. Afinal, sua prática dem anda a adoção prévia de um
modelo e, ao mesmo tem po, a crítica posterior do modelo
adotado; somente assim a im itatio deixa de ser resultado final
— m era cópia —, convertendo-se em ponto de partida de um
processo de invenção — m eta de todo artista.
(Invenção : palavra-chave.)
161
Nos dois últim os capítulos, retorno ao m apeam ento do
campo semântico da emulação no conjunto da obra m acha
diana. O que aqui vimos não passa de um aperitivo. Desse
modo, no artigo sobre G arrett, Machado definiu Álvares de
Azevedo: “era o nosso aperitivo de Byron e Shakespeare” (III,
p. 931). Mais um a vez, Machado sugere um a afinidade sur
preendente do modelo clássico com um a fisiologia da leitura,
ensaiada na dedicatória de Brás Cubas: “ao verme que prim ei
ro roeu as frias carnes do m eu cadáver” (I, p. 511).
Hora de recuar no tempo, a fim de observar a técnica da
emulação em seu contexto próprio, o momento pré-românti-
co, num a perspectiva de longa duração.
162
I' ilheta do artista. Os súditos de Antíoco louvavam o sobe-
i .mo por um a vitória improvável contra o exército dos gála-
( is. mais num eroso e bem preparado. O im previsto triunfo
.('»loi possível porque as hostes inimigas foram surpreendidas
I «i*lo emprego de 16 elefantes, arm a secreta do rei; atônitos,
os gálatas bateram em retirada. Ora, general algum deseja
•.cr lembrado por um êxito no qual sua coragem ou sua es-
h.itégia pouco contaram . Nem todo aplauso recom pensa:
.r.sinalar corretam ente o m érito é mais im portante do que
Minplesmente aclam ar um criador ou celebrar um general.
C.iso contrário, o louvor se converte em m enosprezo dos
I raços que realm ente distinguem o hom em de talento ou o
cstratego.
Luciano sentiu na pele a am bigüidade de determ inados
ro te iro s de c o n sag ra ç ão ; d ile m a b em c o n h e cid o do
Machadinho. Após proferir um discurso, os ouvintes o cerca
ram e, cheios de admiração, louvavam “o inusitado de meus
escritos e sua grande originalidade”.38 Luciano aborreceu-se
com a homenagem, pois am esquinhava o valor de seu traba
lho. Trata-se de sentim ento talvez incompreensível para ou
vidos acostumados à inflação rom ântica do gênio e da cria-
lividade, cuja base se encontra na imagem do artista como
iudivíduo dotado de subjetividade autônoma, capaz de criar
sem recorrer a convenções retóricas. Já a justificativa irritada
do autor de Uma história verdadeira ilum ina o panoram a cons-
tituído pelo sistem a literário anim ado pela associação de
imitatio e aemulatio:
164
Ia 1 ambição levou o autor-operário, na advertência de
i . Airreição (1872), a ecoar o modelo de Luciano, recusando o
ipia uso irrefletido:
165
comuns, cuja reunião articula um a tópica, acessível a todo
a sp ira n te a hom em de letras. O sentido de proporção se
aprim ora pela necessidade de em pregar critérios seletivos, a
fim de dar conta do repertório a ser inicialm ente im itado e,
então, emulado. A emulação envolve a imitação de modelos a
p a rtir de um a proporção exata: carência de emulação produzi
ria meras cópias ; excesso de emulação engendraria objetos p ro
priam ente incomunicáveis. Esse procedim ento ajuda a entender
as palavras de Luciano: “não pensava em atribuir tão grande
parte à novidade, pois esta, à m aneira de acessório, contribui
ao adorno” (p. 294). O escritor consciente de seu ofício consi
dera a busca absoluta do novo um falso problem a, pois o
desafio m aior consiste em contribuir para o enriquecim ento
da tradição na qual se insere. Caso contrário, abre o flanco à
ressalva severa de Horácio: “Se não posso nem sei respeitar o
dom ínio e o tom de cada gênero literário, por que saudar em
m im um poeta? por que a falsa m odéstia d e preferir a ignorân
cia ao estudo?” (p. 57, grifo meu).
Machado com preendeu bem a diferença entre o “a rtista ”
e o “hom em de talento”. “O habilidoso” é o título de um de
seus contos, publicado em 1895, na Gazeta de Notícias, e não
reunido em livro pelo autor. Nele, um jovem promissor, João
Maria, particu larm en te dotado para a pintura, não soube
converter o dom em obras de arte significativas. O motivo é
simples: “Toda arte tem um a técnica; ele aborrecia a técnica,
era avesso à aprendizagem , aos rudim entos das coisas” (II, p.
1.051, grifo meu). O artista som ente se realiza ao triu n fa r
sobre o artesão talentoso; no fundo, o artista não se desen
volve em virtude de seu talento, mas ao resistir à facilidade
proporcionada pela vocação. Nesse horizonte, recupera-se a
etimologia: o a rtista deve antes de tudo conhecer bem as
regras do ofício, pois dizem o m esm o as palavras técnica
166
|ii'i liné) e arte (ars). Não se trata de afiançar normas imutáveis,
•*nlelididas como “leis da a rte ”, porém de dom inar o modo
■Ir lazer definidor de um a prática específica. No final do
Minio, o habilidoso limita-se a copiar repetidam ente o mesmo
<|u.icl 1*0 , restringindo suas aspirações a um quase nada: “Que
r\te é o últim o e derradeiro horizonte de suas ambições: um
I*«i o e quatro m eninos” (II, p. 1.054). 0 beco sem saída não
m■explica pela circunstância periférica de João Maria, como
.«■fosse um a m etáfora previsível da vida cultural nos tristes
liopicos. De jeito nen h u m : se o habilidoso se cham asse
|ean-Marie, vivesse na Meca das artes no século XIX, e ainda
i'.sim ignorasse que toda arte tem um a técnica, o melancólico
líual seria idêntico.
Em “O anel de Polícrates”, saído na Gazeta de Noticias, em
de julho de 1882, e reunido no mesmo ano em Papéis avulsos,
o motivo reaparece na figura de Xavier, hom em de rara apti-
tl.io verbal, capaz de inventar fórm ulas espirituosas e frases
definitivas com a naturalidade de um a respiração. Porém,
nunca chegou a publicar um livro, um ensaio, um conto, nem
sequer um breve artigo de jornal. A razão da paradoxal este-
n 1idade anuncia, pelo avesso, a singularidade da trajetória
artística e intelectual de Machado. Eis a caracterização do
personagem:
167
dificuldades sintomáticas: “A prim eira é que era impacicin*,
não sofria a gestação indispensável à obra escrita. A seguiuI.»
é que varria com os olhos um a linha tão vasta de coisas, que*
m al poderia fixar-se em qualquer delas” (II, p. 330). Nesse
panoram a autoindulgente, quanto m aior o talento, menoi .1
capacidade de realização! Melhor dito: talento não aprimora
do pela disciplina e pelo estudo.
Trata-se de perfil sem elhante ao do imprevisível Elisiário,
do conto “Um erradio”, publicado em A Estação, em 1894, e
coligido em Páginas recolhidas (1899). A descrição do persona
gem vale por um tratado sobre a vida literária no universo
dos m edalhões da prosa m achadiana:
168
| h eus princípios acerca da tarefa do inventor. Machado
eui'l< Ha o motivo com frequência nos mais diversos gêneros:
fniitn, romance, sem deixar de lado a crônica e a crítica. Não
i inlade que Bento Santiago tam bém se m ostrou sensível à
i-11 Io menor esforço? No segundo capítulo de Dom Casmurro,
li l.-1 •mfessa que desistiu de redigir um a H istória dos subúrbios
imn o ma causa prosaica: “era obra modesta, mas exigia docu-
in. nlos e datas como prelim inares, tudo árido e longo” (I, p.
HO. grifo meu). A antecipação do esforço necessário para
11 .msformar a intuição em obra somente provoca bocejos nos
iiiiimeros habilidosos da ficção m achadiana: eis a origem do
Ir.u/asso que invariavelm ente os acompanha.
líssa circunstância ajuda a deslindar os elementos funda
dores do sistem a literário Machado de Assis: estudo atento da
11 adição; domínio da técnica; lapidação do talento; disciplina.
A contrapelo do padrão usualm ente celebrado do dom espon-
taneo e prolífico, Machado passou a vida polindo sua arte:
cm lugar do fácil e do imediato, o autor de Quincas Borba levou
a sério a imagem do artista-operário.
O tem a retorna obsessivamente, constituindo motivo de
term inante, autêntica visão do mundo. M achadinho se tra n s
forma em Machado ao entender que, sem o domínio da ars,
imitatio nunca se transm uda em aemulatio.
Novidade? Talvez,.,
169
Hora de retornar a Luciano, recordando seu texto Como se
deve escrever a história, o único opúsculo sobre o tem a que foi
preservado da Antiguidade Clássica, m uito lido e comentado
no Renascimento. O leitor apenas pode apreciar o ensaio ao
identificar o alvo das críticas: os autores prévios e contem po
râneos que se dedicaram à escrita do mesmo gênero. Repito,
pois o ponto é decisivo: no sistema literário desenvolvido com
base na relação entre im itatio e aemulatio, os ouvintes ou lei
tores idealmente dom inavam o mesmo repertório. Tal reper
tório articulava um conhecimento objetivo, transm itido nas
instituições de ensino, exercitado em ocasiões públicas, au
têntico cartão de visitas de pertencim ento a determ inado
nível cultural. Os poemas homéricos, em suas passagens mais
famosas, eram ensinados nas escolas rom anas e aprendidos
de cor. Desse modo, tanto a escrita quanto a leitura favoreciam
um exercício lúdico de alusões àquele repertório coletivo,
incluídas no processo as transform ações a que era submetido.
Por exemplo, Virgílio sabia que os seus leitores identificariam
as referências aos poemas homéricos, podendo assim avaliar
o êxito de sua aemulatio. Na composição da Eneida esse fator
já se encontrava integrado à fatu ra do poem a. O caráter
bem -sucedido de sua em ulação tran sfo rm o u V irgílio em
poeta que tam bém deveria ser emulado. Na Idade Média,
muitos de seus textos ganharam notação musical, pois eram
cantados nas escolas — um a técnica comum de memorização.
Em relação à escrita da história, Luciano adota como mo
delos exemplares, ou seja, autoridades no gênero, Heródoto e
Tucídides. Portanto, para ser considerado autor na escrita da
história era preciso aprender os procedimentos adotados e os
temas discutidos pelos dois. Ignorar a auctoritas dos modelos
significaria a exclusão imediata do sistema literário; exclusão
170
■I-1. .cria levada a cabo pelos receptores, pois eles conheceriam
i*i Histórias e A história da Guerra do Peloponeso, e, por isso, re-
■m,i nain direito de cidadania a um auctor cuja obra revelasse
in. nosprezo pela autoridade do gênero escolhido. Essa autori-
■l-i. Ie não é resultado de juízo individual, mas norma coletiva,
. .1ijet ivamente empregada como um a espécie de língua franca
no universo da emulação.
Talvez o leitor esteja pensando: em tal sistema, altam ente
regrado, como preservar a busca da “novidade”? Como enten-
. li i seu papel no discurso de Luciano, se ela, à maneira de
iii cssório, contribui ao adorno ? Apenas isso?
Mantenho o método da descrição densa: para entender
I uciano, nada m elhor do que recorrer à leitura de Como se
deve escrever a história:
171
Tucídides, seria propriam ente um auctor, buscando im prim ir
sua diferença no âmbito da necessária repetição inicial.
Eis a resposta à pergunta sobre a novidade: trata-se, por
certo, de buscar o novo, ou a cópia im peraria. Porém, não se
confunde novidade com ruptura traum ática, mas com acu
mulação de alternativas num a arte combinatória, cujo poten
cial de variações é na prática infinito. A percepção desse
tem po cultural nada tem a ver com o sentido linear, domi
nante após o Ilum inism o, que implica a superação de etapas
prévias como pressuposto naturalizado da noção de progres
so. No dom ínio da emulação, o gesto de escrita e o ato de
leitura dem andam a apreensão sim ultânea de tempos histó
ricos diversos. Tal sim ultaneidade estim ula apropriações
anacrônicas, tornadas produtivas através do caráter sincrô-
nico dos atos de leitura e de escrita.
172
I I<<in isso: o universo da im itatio e da aemulatio recorda
i» i ilmleiro de xadrez: se de um a p arte há-de estar branco, da
i "d Iia ilc estar negro.41 Em suas 64 casas, 32 peças obedecem
• vImentos predeterm inados e a regras preestabelecidas.
! i aberturas e nas defesas mais estudadas, como é o caso
■i i Abert ura Ruy Lopez ou da Defesa Siciliana, os prim eiros
lmi cs devem ser decorados, pois um a autêntica legião de
c ii I idas anteriores foi cuidadosamente exam inada e devida-
ii mnte codificada, criando um repertório comum, a que todo
■n .idrista de certo nível deve recorrer. Um jovem que confie
•Inuais no seu talento dificilm ente derrotará um adversário
ii H-díocre, mas em dia com as últim as contribuições teóricas.
I ,\r habilidoso bem pode ser um m enino que ainda não co-
111 íeça os enxadristas do verbo, ainda não tenha sido apresen-
i.ido a Vieira, Camões ou Machado. Não importa: se ele for
.i| >aixonado pelo jogo, e não pela vitória, sempre há o momen-
i <i em que os cálculos táticos são interrom pidos e a estratégia
c deixada de lado. Nesse instante, impõe-se a pura beleza da
.1 rle combinatória e o jovem talentoso finalm ente com preen
de1o jogo no qual se encontra — nas casas de cores alternadas
ou na página em branco.
0 futuro autor das Memórias póstum as estaria de acordo. 0
xadrez é um a referência im portante na sua obra. Em Iaiá
Garcia, o nam oro de Jorge com a filha de Luís Garcia é m edia
do por peões, cavalos, torres, bispos e, claro, reis e damas. A
conclusão do narrador é um xeque-mate: “Das qualidades
necessárias ao xadrez, Iaiá possuía as duas essenciais: olho de
* * *
174
(A forma de lidar com o leitor: lances arriscados num jogo
•Ir xadrez imaginário.)
* * *
175
A técnica da aem ulatio com partilha afinidades estruturais
decisivas com o jogo de xadrez.
E tam bém com a música, outra paixão de Machado. O tema
poderia ensejar um novo livro, tal a onipresença das referên
cias à m úsica na obra m achadiana.42 Em algum a medida,
Machado define sua poética em textos cujo protagonista é a
música mesma, ou músicos, sempre às voltas com um cruza
m ento tenso entre música erudita e manifestações populares.
Penso nos contos “O m achete” (1878), “Cantiga de esponsais”
(1883), “Cantiga velha” (1883), “Trio em lá m enor” (1886), “Um
hom em célebre” (1888).
Nesse sentido, é possível surpreender um a confissão do
autor na pena do Conselheiro Aires: “A música foi sempre
um a das m inhas inclinações, e, se não fosse tem er o poético
e acaso o patético, diria que é hoje um a das saudades. Se a
tivesse aprendido, tocaria agora ou comporia, quem sabe?” (I,
p. 1.142). O mesmo conselheiro define o perfil de Flora em
Esaú eJacó (1904): “A música tin h a para ela a vantagem de não
ser presente, passado ou futuro; era um a coisa fora do tem po
e do espaço, um a idealidade pura” (I, p. 1.036). Essa descrição
é um a autêntica fotografia da personagem, cujo caráter etéreo
atravessa a narrativa, desorientando a todos: o conselheiro,
e, por certo, os irreconciliáveis gêmeos, Pedro e Paulo. A
música desem penha função constitutiva no enredo, ajudando
a definir o perfil de Flora. Já no M emorial de Aires (1908), a
nomeação do casal protagonista, Fidélia e Tristão, homenageia
óperas de Beethoven e Wagner. Aliás, Machado foi membro
ativo do Clube Beethoven e, em sua juventude, envolveu-se
176
ii.is querelas a favor desta ou daquela soprano; Machado foi
partidário fervoroso de Augusta Candiani.
lisqueço a im pertinência dos fatos e me concentro no as
pecto estrutural.
A escala musical, com sua seqüência ordenada de tons,
limitada por um núm ero predeterm inado de notas, recorda
um tabuleiro de xadrez, embora, por assim dizer, com quan-
I ulade inferior de casas e de peças. Ainda assim, as variações
possíveis da escala musical são na prática infinitas. O rendi
mento ficcional dessa noção leva longe.
Recordem-se as palavras cortantes de Hamlet, desaconse
lhando Guildenstern a seguir as ordens do rei;
Auctoritas
178
.... a zero. Uma vez que se adotam certas regras como ponto
•Ir partida necessário, é virtualm ente infinita a capacidade de
ulaptar-se a circunstâncias particulares.
Como nenhum ator bem formado ignora, a espontaneida-
iIr clo improviso exige a exaustão de ensaios interm ináveis.
IJm exemplo se impõe. Talvez dois ou três.
Para o gênero épico, Homero sempre foi auctoritas incon-
lornáveL Na cultura latina, submeter-se às prescrições desse
i-« uero significava, no m ínim o, principiar pela imitação da
lluida e da Odisséia; quem não o fizesse seria julgado inepto e,
como tal, desconsiderado como poeta. Na palavra lhana de
I lorácio: “Homero m ostrou qual o ritm o apropriado à n arra
ção dos feitos dos reis e capitães nas guerras funestas. (...)
(.'uarde cada gênero o lugar que lhe coube e lhe assenta” (p.
57). O cam inho de Virgílio, portanto, era seguir o passo a
passo da tecnicidade da imitação, um a vez que a im itatio é
um a ars, u m m odo específico de re a liz a r u m a tare fa .
Precisamente o que não se pode dizer do Elisiário ou do Xavier
dos contos machadianos.
A questão da auctoritas foi central num a literatura como
a latina, cuja prim eira m anifestação de peso é a obra de um
tradutor, Lívio Andrônico, conhecido pela tradução da Odisséia.
É como se retornássemos, cronologicamente às avessas, ao “im
perativo da tradução”. É como se surpreendêssemos traços de
um a afinidade estrutural entre a circunstância cultural la
tina e a condição histórica latino-americana; não hegemôni
ca, em geral. Ou devo dizer circunstância latino-americana?
A relação dos rom anos com o m undo grego conheceu
peculiaridades que devem ser consideradas. A c u ltu ra la
tin a nunca foi exatam ente não hegem ônica, pois, para os
rom anos, im ita r e em u lar os gregos fazia p arte do direito
de tom ar o espólio dos vencidos. Na época de Virgílio, os
179
rom anos já rivalizavam poeticam ente com os gregos em
igualdade de condições.
Por isso, não busco compor um a narrativa histórica com
base num a continuidade idealizada e de longa duração; aliás,
de longuíssim a duração! Uma diferença inviabiliza o projeto
no nascedouro: a circunstância cultural latina tornou-se não
apenas hegemônica, mas tam bém im perialista, enquanto a
condição latino-am ericana define-se antes pela secundidade
em relação às “grandes nações pensantes”. Do ponto de vista
de política cultural destaca-se a descontinuidade entre as duas
experiências.
Contudo, insisto na ideia da afinidade estrutural, compre
endida no nível dos procedimentos artísticos e intelectuais.
A história da emulação na obra de Virgílio é sobejamente
conhecida e seus volumes ocupariam lugar proem inente na
biblioteca im aginária de Jorge Luis Borges, pois o M antuano
foi autor de peso na sua concepção de literatura. Eu nada
poderia aduzir à m iríade de passagens escrutinadas pelos
especialistas em busca do Santo Graal da aemulatio virgiliana.
181
independência por parte de autores de contextos não hege
mônicos, pois a condição de secundidade deixa de ser obstá
culo intransponível, convertendo-se no prim eiro passo, ne
cessário, do processo artístico. Releia-se, nesse contexto, a
carta de Eça a Machado, na qual se m enciona a prim eira
parte da crítica a 0 prim o Basílio. O leitor terá um a nova m is
siva sob os olhos: “esse artigo, pela sua elevação e pelo talen
to com que está feito, honra o meu livro, quase lhe aum enta a
au to rid a d e” (p. 227, grifo meu). O vocabulário escolhido é
perfeito, pois a aemulatio queirosiana do modelo flaubertiano
transform ou o rom ancista português em auctoritas incontor-
nável no universo lusófono.
Machado o entendeu perfeitam ente.
Daí sua reação acre.
Universo lusófono, eu disse. As fronteiras são claras e
devem ser assinaladas. A poética da emulação é um a respos
ta subjetiva de grande inteligência estética, mas ela não alte
ra condições objetivas de desequilíbrio estru tu ral nas trocas
simbólicas. Esse ponto é decisivo, caso contrário, seria inevi
tável incorrer em elogios constrangedoram ente ingênuos da
condição periférica, pois, ao fim e ao cabo, ela estim ula a
inventividade im plícita nos procedim entos da poética da
emulação.
Para tudo na vida há compensação — pensam alguns.
Não é o m eu caso.
Além disso, volto a assinalar o calcanhar de aquiles de
m inha hipótese. No fundo, reajo às perguntas que provavel
m ente ocorrem ao leitor: sendo um a “resposta”, a poética da
emulação é fruto “exclusivo” da circunstância não hegemô
nica? A hierarquia da auctoritas tem como base somente a
assim etria político-cultural ou tam bém envolve um a questão
propriam ente “técnica”? O que diferencia a aemulatio, exer-
182
• ula no âmbito de um mesmo contexto político e cultural, da
l 'i tf tíca da emulação que tenha lugar entre um autor brasileiro
uilocentista e um escritor irlandês setecentista?
Machado, como ele mesmo reconhece na “Nota ao leitor”
d.is M em órias póstum as, emula a Laurence Sterne: aqui, minha
lupótese parece exata; afinal, em princípio, não se questiona
I assim etria que os d e fin e no u n iverso da h ierárqu ica
República das Letras.
For sua vez, e muito próximo ao espírito de Luciano, Sterne
emulou, parodicam ente, a tradição nascente do rom ance
inglês, que estava sendo criada pelos livros de Samuel
Kichardson e Henry Fielding, entre outros. Desse modo, The
Life and Opinions ofTristram Shandy — A Gentleman, cujos dois
primeiros volumes saíram em 1759, parodia títulos anteriores,
ia is como Pamela, or Virtue Rewarded, de Samuel Richardson,
lançado em 1739, e, sobretudo, The History o fT o m Jones — A
Ivundling, de Henry Fielding, publicado em 1749. Fielding já
havia mostrado o cam inho em 1742, com o aparecimento de
Joseph A ndrews, uma divertidíssima releitura de Pamela.
No fin al do Capítulo 4, volto a mencionar as diferentes
concepções de rom ance de Sterne e de Fielding, a fim de
mostrar como Machado as discute na mesma “Nota ao leitor”,
embora o faça de form a críptica. De imediato, assinalo que a
ascensão do romance britânico foi fortalecida pela presença
de um sistema interno de emulação, cuja dinâmica assegurou
a vitalidade do próprio gênero.
Sistema interno de emulação; trata-se de exemplo de prá
ticas de emulação entre autores pertencentes ao mesmo nível
hierárquico, oriundos de idêntico contexto hegemônico. Em
palavras diretas: pode haver poética da emulação sem que
haja necessariamente relações assimétricas externas de poder
183
simbólico. A aem ulatio, compreendida como prática artística
dom inante no am biente pré-rom ântico, não representava
“ inferioridade”, antes significava um estímulo à invenção.
Assim etria interna, porém, sempre estará presente, uma
vez que a aem ulatio supõe a presença de autores cuja auctori-
tas deve ser reconhecida tanto pelos coetâneos quanto pelos
pósteros, nem que seja um reconhecim ento paródico.
Eis a dificuldade m aior à hipótese que proponho: não se
deve confundir a poética da emulação com uma suposta es
sência periférica. Pelo contrário, trata-se de um conjunto de
procedimentos que favorece uma estética determinada, que
nada tem a ver co m esta ou aquela latitude. No fin a l do
Capítulo 5 e na conclusão, ofereço uma alternativa a esse
impasse.
Machado-Virgílio?
184
i it liado não podia deixar de incluir na equação um contem
porâneo de língua portuguesa.
l im aparência, missão mais improvável do que a de Virgílio.
No caso de Machado, outra dificuldade se impôs. Como
185
Czarina, se estas linhas chegarem às tuas mãos, não faças
com o V ítor Hugo, que, recebendo um fo lh eto de Lisboa,
respondeu ao autor: “ Não sei português, mas com o auxílio
do latim e do espanhol, vou lendo o vosso liv ro ”... Não, nem
peço que m e respondas. Manda traduzi-las na lín gu a de
Gógol, que dizem ser tão rica e tão sonora, e em seguida lê.
(III, p. 737)
186
. i .iva como me parecia na maior parte das vezes, conversan-
187
Nesse espírito, destaco o capítulo XX VI das M em órias pós
tumas. O jovem Cubas é inform ado dos planos de seu pai: ele
deve casar-se e dedicar-se à carreira política. Indiferente, o
fu tu ro defunto autor lança letras num papel, escrevendo
precisamente os versos da Eneida emulados por Camões nos
prim eiros versos dos Lusíadas: “A rm a virum qu e cano” — “As
arm as e os barões assinalados”, na transcriação do português.
Num a associação livre de ideias, rem iniscente de Sterne,
Cubas joga com distintas possibilidades combinatórias, como
se fosse um adepto avant la lettre da poesia concreta:
V ir V irg ílio
V irg ílio V irg ílio
V irg ílio
V irg ílio
188
No fim do alm oço, Aires deu-lhes uma citação de Homero,
aliás duas, um a para cada um, dizendo-lhes que o velh o
poeta os cantara separadamente, Paulo no começo da Ilíada:
—” Musa, canta a cólera de Aquiles, filh o de Peleu, cólera
funesta aos gregos, que precipitou à estância de Plutão tantas
almas válidas de heróis, entregues os corpos às aves e aos
cães...”
Pedro estava no começo da Odisséia:
— “ Musa, canta aquele herói astuto, que errou por tantos
tempos, depois de destruída a santa ílion...”
Era um m odo de d efin ir o caráter de ambos, e nenhum
deles levou a m al a aplicação. Ao contrário, a citação poética
valia por um diploma particular. O fato é que ambos sorriam
de fé, de aceitação, de agradecim ento, sem que achassem
uma palavra ou sílaba com que desmentissem o adequado
dos versos. (I, p. 1.002)
189
Machado pode ser o mesmíssimo Virgílio porque descobre
na emulação a possibilidade de ressuscitar uma técnica esva
ziada após o romantismo. A mesma técnica empregada por
V irg ílio em seus enfrentamentos com a herança grega clás
sica. A recuperação deliberadamente anacrônica da aemulatio
perm ite form ular uma alternativa à circunstância das cultu
ras não hegemônicas, agravada pelo uso de uma língua con
siderada secundária na hierárquica República das Letras. Ora,
se a aemulatio demanda o passo anterior da imitatio, a secun-
didade deixa de ser vivida como angústia e pode ser experi
mentada como um campo de possibilidades, cuja lógica in
terna implica conseqüências decisivas no plano da política
cultural.
Porém, devagar com o andor! Minha reflexão pode con
duzir a uma falácia: a secundidade acarreta vantagens, já que
a circunstância periférica proporciona inovação. Em conse
qüência, o sistema literário e o sistema capitalista funciona
riam às avessas... Tal postura levaria in evitavelm en te ao
constrangedor elogio do atraso, como se ele assegurasse uma
misteriosa vantagem epistemológica, inacessível aos artistas
de países centrais. No caso do contexto não hegem ônico,
penso em gestos estratégicos e não em traços essenciais: se,
isoladamente, os procedimentos artísticos que constituem a
poética da emulação podem ser encontrados em qualquer
latitude, a ocorrência simultânea de todos eles, em geral, carac
teriza a potência da circunstância não hegemônica.
O desenvolvimento da poética da emulação parte de hori
zonte perfeitamente caracterizado no desembaraço de Oswald
de Andrade: “Filiação”, a felix culpa do inventor periférico. O
que se segue é a explicitação feliz de suas dívidas:
190
Filiação. 0 contato com o Brasil Caraíba. Oü Villegaignon print
turre. Montaigne. O hom em natural. Rousseau. Da Revolução
Francesa ao R o m a n tism o , ã R evolu çã o B o lch evista , ã
Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling.
Caminhamos.43
191
Na crônica de A Sem ana, de 7 de jan eiro de 1894, a ideia
foi sintetizada numa fórm ula eloqüente: “(...) já tudo é m a r;
ao m ar já faltam praias, dizia O vídio na boca de Bocage” (III,
p. 598, g rifo do autor). Dito em português, o poeta parece
outro, assim como o latim de O vídio propicia nova cor à
dicção de Bocage. Anacronism o de ponta-cabeça, anacronis
m o de mão dupla, trânsito interm inável entre o próprio e o
alheio.
A poética da emulação tam bém foi intuída por autores os
mais diversos. É o que mostro a seguir, privilegiando a cena
hispano-americana.
192
Tudo se passa como se os autores latino-americanos pade
cessem do “m al de Luciano”: ele mesmo sírio, abraçando e
.1 prendendo uma cultura que, em princípio, não lhe pertencia.
() olhar luciânico é irreverente e distanciado, assim como sua
literatura em inentem ente paródica. Estrangeiro, pois, seu
estilo.
Em 24 de abril de 1950, um jovem jornalista colombiano
publicou em El Heraldo, de Barranquilla, um artigo desafiador.
Seu texto refletia sobre “os problemas do romance”, e com e
çava com uma provocação:
194
I )epois do artigo programático, Garcia Márquez esperou
por 17 longos anos que alguém respondesse às suas expecta-
t Ivas. Como ningu ém o fez, lançou Cien anos de soledad...
( arpentier tam bém necessitou de 17 anos para publicar El
h ino de este mundo, texto fundam ental na formação da litera-
lura latino-americana moderna. O romance veio à luz em
1949, contudo o fam oso prólogo, no qual se apresentou o
conceito de “real m aravilhoso”, saiu em 8 de abril de 1948,
i*m El Nacional, jornal de Caracas.
A coincidência impressiona: dois aspirantes a homens de
k*t ras, em décadas distintas e em países diferentes, expressam
princípios similares, lançando títulos que alteraram o pano
rama da literatura latino-americana no século XX.
O encontro pode ser ainda mais intrigante.
Em outro contexto, em século diverso, com preocupações
próprias, Machado defende gesto aparentado, com a largueza
de vistas que assinalou sua segunda fase. Em 1882, no prefá
cio a Contos seletos das M il e um a noites, livro organizado por
Carlos Jansen, ele pondera:
195
nheiro de xadrez, A rtu r Napoleão, fez com Machado: juntos,
assinam a autoria de “ Lua da estiva noite”.
No comércio entre as artes, im porta menos a especifici
dade desta ou daquela do que o traço subjacente a todas. O
processo artístico não deixa de ser parasita, partindo sempre
de uma obra preexistente: esse é o sentido forte da palavra
inventio.
Por certo, o vocabulário é díspar, como as épocas são dis
tintas, mas a intuição permanece gêmea: Machado de Assis,
Oswald de Andrade, Alejo Carpentier e Gabriel Garcia Márquez
lançam mão do mesmo campo semântico, compartilhando
estratégias discursivas semelhantes.
Como entender tal sintonia dentro do quadro que venho
traçando?
Recorde-se, à guisa de resposta, o pensamento de Pedro
Henríquez Urena. Numa im portante compilação de ensaios,
La utopia de Am erica, um dos temas dominantes é exatamen
te o relacionamento do intelectual latino-americano com a
cultura europeia, em geral, e a norte-americana, em particu
lar. Isto é, a presença constitutiva do outro, tomado como
modelo para a determinação da identidade cultural. Subjacente
à distância “entre im itação e herança”,46 proposta como m e
todologia correta para refletir acerca do problema, encon
tra-se o eixo da poética da emulação:
196
Portanto, onde começa o m al da imitação?
Qualquer literatura se nutre de influxos estrangeiros, de
imitações e até de roubos: nem por isso será menos original.
(...) Porém, o caso é grave quando a transform ação não se
cumpre, quando a im itação perm anece como imitação.
Nosso pecado, na Am érica, não é a imitação sistemática
— que não prejudica a Catulo nem a V irg ílio , a C orneille
tam pouco a M olière — mas a imitação difusa, (p. 53, grifos
meus)
197
do modelo. Portanto, a poética da emulação perm ite reunir
Machado de Assis, Gabriel Garcia Marquéz, Alejo Carpentier,
Jorge Luis Borges e Pedro H enríquez Urena, entre tantos
outros pensadores e inventores.
198
Ao ler a réplica espirituosa de Sarmiento, o leitor prova-
<*l mente pensa na obra de Oswald de Andrade. E tem toda a
i i ao, pois se trata de estratégia aparentada à antropofagia.
I )e igual modo, na busca dessas afinidades estruturais,
m encione-se o u tro a rtig o do jo v e m G arcia M á rqu ez,
Possibilidades da antropofagia”. Publicado em 1950 — mes
mo ano em que Oswald de Andrade concluiu A crise dafiloso-
lm messiânica, ensaio no qual aprofundou as conseqüências
do canibalismo cultural —, o texto de Garcia Márquez cam i
nha na mesma direção: “A antropofagia daria origem a um
11<>vo conceito da vida. Seria o princípio de uma nova filosofia,
cie um novo e fecundo rum o das artes” (p. 400).
Fiel à monomania que anim a este ensaio, retorno ao autor
de “O alienista”. A crônica de A Semana, de I o de setembro de
1895, é dedicada a supostos casos de canibalismo, ocorridos
na Guiné e no interior de Minas Gerais. A conclusão irônica
de Machado poderia ser assinada por Oswald ou por Garcia
Márquez:
199
convertendo-se em guardiães zelosos de sua m em ória, na
proliferação de oximoros institucionais: museus de arte m uün
na e contem porânea. A posição retardatária do editor de H
Progreso assegura uma vantagem inesperada: tudo se encont ra
à disposição, como itens de um cardápio inesgotável, cujo ho
rizonte desenha uma nova form a de entender a arte e o pen
sarnento em circunstâncias não hegem ônicas. Na crônica
acerca do hipotético retorno à antropofagia, Machado admite:
“ (...) nós não fazemos mais do que andar à roda, como dizia o
outro...” (III, p. 672). Sem dúvida, e, sobretudo, como dizia o outro,
na oscilação que define a potência do anacronismo às avessas.
Defunto autor avant la lettre, Sarmiento não precisou es
p era r pela cam pa para v iv e r o d e lír io de Brás Cubas.
Pressionado por condições objetivas que não podia alterar,
relacionadas à concretude de relações políticas e econômicas
desiguais, ele inventou uma maneira subjetiva de enfrentar o
impasse, a seu m odo retornando à origem dos séculos.
Nas palavras de Sarmiento, no universo da estética e do
pensamento, os últimos, às vezes, podem ser os primeiros,
simplesmente porque selecionam do conjunto da tradição os
elementos que lhe interessam mais diretamente.
Reitere-se, porém, o elemento mais importante: trata-se
de uma potência, que exige um gesto deliberado para sua
atualização.
*■ * *
200
' -i/i las, em 9 de julho de 1888. Nele Machado rememora seu
iijii.ise) encontro com o argentino.
Vale a pena transcrever suas impressões:
* * *
201
No século seguinte, outro argentino reformulou a pergun
ta de Sarmiento. Nos termos propostos por Ricardo Piglia, em
seu estudo do rom ance de W itold G om browicz, a questão
enfrentada por Machado e Eça tam bém retorna:
202
Machado de Assis.”49Tratava-se de vingança tardia, mas nem
por isso menos saborosa. Victoria Soller, a disciplinada aluna,
UTininara o relacionamento com o lisboeta Soares, cuja ob
sessão era provar a superioridade da literatura de Eça de
Queirós. De form a previsível, a catalã term ina por discordar
do ex-amante. O diálogo com o professor reitera a pergunta
cie Ricardo Piglia:
203
Exatamente como V irg ílio e Camões.
Precisamente como Machado e Eça.
Não seria o caso de recordar a origem de Picasso? Oriundo
de Málaga, autêntico centro da periferia, viajou a Madri,
centro na Espanha, mas lugar periférico no sistema de artes:
um subúrbio do mundo europeu. E, completando o percurso
existencial característico do inventor periférico, finalm ente
chegou ao centro do mundo das artes, Paris. De qualquer
modo, precisou adaptar-se ao novo ambiente antes de con
quistá-lo. Uma exposição recente procurou dar conta dessa
dimensão da obra do pintor espanhol. Refiro-m e à exibição
realizada em 2008, Picasso et les m aítres, cujo eixo conceituai
propunha uma nova interpretação da obra e, sobretudo, dos
procedimentos artísticos do pintor.
Em ensaio instigante, “Picasso cannibale. Deconstruc-
tion-reconstruction des m aítres”, a curadora sugeriu: “ Esta
pintura da pintura praticada por Picasso é, como disse, uma
form a de canibalismo.”50 Na sua visão, Picasso somente pôde
transformar-se no ícone da arte no século XX ao apropriar-se
conscientemente da tradição, num processo duplo e intrinse-
camente inter-relacionado de imitatio e aemulatio, constituin
do o que denomino poética da emulação. Desse modo inter
preto a observação: “Uma das características deste período é
o recurso à repetição como form a de criação.”51 Ora, repetir
para inovar era o eixo do procedimento clássico. Os inventores
mais instigantes de culturas não hegemônicas, consciente
mente ou não, desenvolveram uma estratégia de atualização
de procedimentos estéticos anteriores à inflação romântica
dos conceitos de “gênio”, “subjetividade” e “criação”.
204
Nesse cenário, um luxo típico dos criadores das culturas
l» rinônicas é a disputa ociosa para saber quem é o mais
'" i i;',inal”, no esforço de reivindicação de uma im possível
pi imogenitura estética. Em culturas não hegemônicas, para
m .irtífices de línguas marginais, a simples postulação se
i* veste de um aspecto involuntariam ente cômico. Então, o
I'iiconceito da originalidade pode ser substituído pelo de-
m nvolvimento da complexidade textual. A leitura se im põe
• i >1110 m atriz de toda invenção, capaz de rom per hierarquias,
im aginando tem poralidades inesperadas e por vezes de
ponta-cabeça.
Afinal, como Machado percebeu com clareza, V irgílio bem
poderia ser considerado um brasileiro na corte de Pedro II,
ou um inglês na Londres vitoriana. Tudo depende da radica-
I idade da leitura. Penso na crônica de A Semana, publicada
cm 11 de novembro de 1894:
205
Machado ressalva: “ Sacudi fora os jornais e cheguei à janela.
A antiguidade é boa, mas épreciso descansar um pouco e respirar
ares m odernos ” (III, p. 630, grifo meu). Tudo se passa como se
os escritores não hegemônicos fossem sempre mais originais
quanto mais imitassem a tradição e, ao mesmo tempo, respon
dessem às questões de sua época. O paradoxo, como o leitor
já sabe, é apenas aparente.
206
demiurgo. De outro, ao conceber a originalidade como inven-
llo, o autor se m etam orfoseia em leitor agudo da tradição,
.il ravés de reciclagens e ruminações, que levam à celebração
das “ filiações”, no espirito oswaldiano, pois elas asseguram
o ingresso no circuito da tradição.
A invenção, assim compreendida, é procedimento funda
mental da poética da emulação, já que seu corolário perm ite
valorizar a anterioridade da leitura em relação à escrita e, no
caso das culturas não hegemônicas, a centralidade da tradu-
çao no desenvolvimento da própria tradição.
Inventar im plica a form ação de um eixo com plexo de
justaposição de tempos históricos, gêneros literários e inte
resses conflitantes. A vivência dessa simultaneidade estimu
la uma percepção que singulariza a fatura literária, favore
cendo o fenômeno da “compressão dos tempos históricos”.
Aceito o pressuposto da justaposição de tempos históricos
e gêneros literários, a literatura pensada nas condições não
hegemônicas necessariamente inclui diversas tradições si
multaneamente. Nas palavras de Piglia: “ (...) as literaturas
secundárias e marginais, deslocadas das grandes correntes
europeias, têm a possibilidade de um tratam ento próprio,
‘irreverente’ das grandes tradições” (p. 73).
Tal irreverência é estimulada pela compressão dos tempos
históricos, pois a presença simultânea de tempos históricos
diversos conduz a uma bem-vinda ampliação do repertório,
típica dos inventores de culturas periféricas. Essa ampliação
demanda um esforço de síntese que, potencialm ente, produz
um olhar particularm ente crítico. A agudeza desse olhar,
ademais de traço individual, é um dado estrutural.
A combinação, aparentemente caótica, de séculos da tra
dição e de gêneros literários distintos — isso para não m en
cionar o resgate de atos de leitura e de escrita definidores do
207
período pré-romântico —, ajuda a redimensionar, no plano
crítico e teórico, o “anacronismo deliberado” do célebre con
to de Jorge Luis Borges, “Pierre Menard, autor dei Quijote”.
Se a invenção favorece a compressão dos tempos históricos,
esta estimula o esforço de reunir tempos distintos, e às vezes
muito distantes entre si, assim como a iniciativa de mesclar
gêneros diversos, e às vezes contraditórios. Tal procedimento
engendra um efeito discutido na ficção do autor de El haceàor.
Na busca da obra invisível de Pierre Menard, Borges intuiu
uma nova técnica de leitura:
52 Jorge Luis Borges, “ Pierre Menard, autor dei Quijote", in Obras completas,
vol. I, p. 450.
208
liis o pulo do gato das M em ória s póstum as de Brás Cubas.
Gesto que tam bém se encontra nos versos de Roberto
Irrnández Retamar. Penso no poem a “^Y Fernández?”, no
i|tial recorda seu pai:
211
seu liv ro tin ha de com um com os dos seus m odelos e ,i<|ml.i
em que se diferenciava deles: “ É taça que pode ter lavnu i
de igu al escola, mas leva ou tro v in h o ”. Quanto à taça u<
lavores sem elh an tes d e ix a m c la ro que todos saíram .1 i
mesma oficina. Sua m arca de origem está gravada no cum .11
é um a origem shandiana.
213
0 círculo vicioso se refere ao afã de copiar o outro tão
perfeitam ente a ponto de com ele confundir-se, im pulso que
não deixa de situar a rivalidade no centro da cena. Sempre
insatisfeito com o que somos, projetamos no outro, tomado
como m odelo insuperável, a im agem da plenitude que nos
falta. O pensador francês René Girard denom inou de “ m e
tafísico” este desejo de ser outro, paroxism o do desejo mi
mético. O circuito se fecha no eterno retorno do mesmo:
entre o vaga-lume e o sol, a distinção é de grau, não de na
tureza.
De igual modo, no universo da aemulatio não se pode fu gir
da obrigação de im itar a auctoritas do gênero escolhido. O
círculo só se torna vicioso se perm anecer lim itado à simples
cópia; ou se for reduzido à pura inveja. Mas não se pense em
termos psicológicos; recordem-se os comentários de Quevedo
à Retórica aristotélica:
essas coisas são possuídas mas por nossa causa, pois que nós
próprios tam bém não as obtivemos: c la r a m e n t e res u lta q u e a
e m u la ç ã o é a lg o h o n e sto e a b s o lu ta m e n te p r o b o , não alheio até
215
Essa intuição começa a tornar-se mais sistemática para
Machado nos artigos sobre 0 prim o Basflio. Em seu vocabulário,
trata-se da distância que vai do simples copista ao hom em de
talento. Sugiro que o leitor volte ao Capítulo 2, especialmente
na seção “A em ulatio”, em que discuto a emergência sistemá
tica da ideia de emulação na severa crítica machadiana. Posso
recordá-la através de uma única citação, na qual se ilumina
o campo semântico que reconstruo:
(...) não quis estar mais tem po sem agradecer a V. S.a o seu
excelente artigo do dia 16. Apesar de me ser adverso, quase
revesso, e de ser inspirado por uma hostilidade quase parti
dária ã Escola Realista — esse artigo pela sua elevação e pelo
talento com que está feito honra o m eu livro, quase lhe aumenta
a autoridade. Quando conhecer os outros artigos de V. S.a
poderei perm itir-m e discutir as suas opiniões sobre este —
não em m inha defesa pessoal (eu nada valho), não em defesa
dos graves defeitos dos meus romances, mas em defesa da
Escola que eles representam e que eu considero com o um
elevado fator do progresso m oral na sociedade moderna, (p.
227, g rifo meu)
216
A publicação de O prim o Basílio transformou Eça na grande
nuctoritas do rom ance em língua portuguesa, posição que
manteve por tempo considerável. A qualificação do prim eiro
artigo de Machado — quase lhe aumenta a autoridade — anuncia
0 desencontro que dominou a relação dos dois escritores, pois
1udo depende da ênfase que se conceda aos termos da frase.
Quase — vale dizer, como Brás Cubas afirm a, a obra em si
mesma é tudo.
Ou: lhe aum enta a autoridade — isto é, a crítica colabora
para o êxito do romance, especialmente pela polêm ica que
engendra.
O jovem Machado empregou idêntico vocabulário em 1863
ao publicar duas peças, 0 caminho da porta e 0 protocolo. Em car
ta ao amigo Quintino Bocaiúva, encontra-se a palavra-chave:
217
Em 1893, Valentim Magalhães, então diretor de A Semana,
lançou um concurso com a seguinte pergunta: “ Quais são os
seis m elhores romances escritos em língu a portuguesa?”
A lém das M em órias póstumas, Machado publicara Quincas Borba
dois anos antes; o aparecimento de D om Casm urro ainda teria
de esperar sete anos; portanto, ele se encontrava em posição
relativam ente desfavorável. Eça já havia escrito alguns de
seus títulos fundamentais: 0 crime do padre A m a ro (1875), 0
p rim o Basílio (1878), 0 m andarim (1880), A relíquia (1887), Os
M aias (1888). O método de apuração era o do voto universal;
qualquer pessoa podia enviar seu veredicto para a redação.
Em 23 de setembro, anunciou-se o resultado: Os M aias foi o
grande vencedor, com 94 votos; 0 p rim o Basílio contou com o
apoio de 81 votantes; M em ória s póstum as de Brás Cubas obteve
68 indicações; A rdzquia, 50; A m ão e a luva, 49; por fim , 0 Ateneu
contabilizou 41 leitores fiéis.
Três romances de Eça, dois títulos de Machado e a lem
brança do nome de Raul Pompeia. É incontestável a prim azia
concedida ao escritor português. Naturalmente, ele tam bém
desfrutou de prestígio sim ilar em Portugal.
Concurso anterior, realizado em Coimbra, em 1884, buscou
identificar os três maiores escritores de língua portuguesa.
O resultado não deixa de ser surpreendente, esclarecendo as
modificações do gosto literário. O prim eiro lugar coube a Eça,
com 473 votos; a vice-liderança foi concedida a Alexandre
Herculano, com 202 adeptos; o terceiro posto, e eis o inespe
rado, pertenceu a Aluísio Azevedo, com sólidas 195 indicações;
José Alencar contou com 174 admiradores; a Machado restou
o consolo de um quinto lugar e 164 votos; por fim , Camilo
Castelo Branco recebeu 139 sufrágios.55
218
Tais resultados nem sempre valem o quanto pesam; seria
um equívoco trivial considerá-los juízos críticos indiscutíveis.
Porém, eles esclarecem a autoridade atribuída pelos contem
porâneos a Eça. Por isso, ele busca iniciar um debate com
Machado acerca do realismo, com o propósito de pontificar
em terreno espinhoso. Os termos da carta são claros e guar
dam um leve sabor irônico: “Um total acolhimento da parte
de uma literatura tão original e tão progressiva como a do
Brasil é para m im uma honra inestimável — e para o Realismo,
no fim de tudo, um a confirmação esplêndida de influência e de
vitalidade” (p. 228, grifo meu).
Pelo avesso, a dureza da crítica machadiana demonstra a
força da opção estética queirosiana, pois a veemência do re
paro ilum ina a im portância do m ovim ento. Machado não
morde a isca e, se cogitou a possibilidade de levar adiante o
diálogo, um passo em falso de Eça tornou a correspondência
improvável.
Ao que tudo indica, passo em falso de seu editor, Ernesto
Chardron. Em 27 de julho, ele envia uma carta de agradeci
mento ao autor de Helena, adicionando ao gesto de cortesia
uma proposta com ercial no m ín im o imprudente. De olho
comprido no mercado editorial brasileiro, Chardron remete,
junto com a carta, a folha de rosto tanto da nova tiragem de
0 p rim o Basílio quanto da prim eira edição de A ca p ita l No
verso das provas, figurava a seguinte afirmação, impressa
— e sem que Machado tivesse sido consultado:
219
Ora, além de engolir em seco o êxito incontestável de Eça,
M achadinho deveria assumir o singelo papel de represen
tante com ercial de seu colega mais jovem ; o m esm o que
transpôs ainda há pouco as portas da oficina literária. O tópico
é sensível, pois nem sempre se ambiciona o papel tranqüilo
de segundo violino. Mesmo um m elôm ano poderia desapro
var a sugestão.
Lembre-se como Machado procurou justificar a dureza de
seu exame:
221
Machadinho descreve o brio de Esteia com simpatia reve-
ladora. A oferta comercial de Eça e Chardron chega no pior
momento. Machado nunca respondeu; é quase desnecessário
acrescentá-lo.
O escritor português acusa o golpe e, embora não se possa
estabelecer uma relação simples de causa e efeito, é sintomá
tica a virulência da prim eira réplica à crítica machadiana.
Como vim os no Capítulo 2, sem nenhuma intenção de ser
sutil, Eça sugere agressivamente que Machado não tinha lido
o romance de Zola, a Faute de VAbbé M ouret: “ um dia, por aca
so, descobriu, anunciado num jorna l francês, ou viu, num a vitri
na de livreiros” (p. 171, grifos meus).
A réplica sardônica foi publicada na íntegra apenas pos
tumamente. Contudo, isso não fez muita diferença. Em 1880,
numa nova edição de 0 crime do padre Am aro, Eça não deixou
pedra sobre pedra. O desconforto com a acusação de plágio
seguia forte:
1879: véspera
223
Em p rim eiro lugar, uma diferen ça decisiva: Machado
lança apenas cinco textos. Como os futuros leitores do defun
to autor: talvez cinco. Provavelmente, ele consagra boa parte
do tem po à revisão fin al do manuscrito que trouxe de Nova
Friburgo.
E não é tudo.
Nessa exígua produção, destacam-se textos que elaboram
precisam ente o campo sem ântico da emulação, com seus
termos correlatos: plágio, originalidade, imitação, cópia.
Vimos o estudo dedicado à obra de Antônio José, autênti
co texto-ponte entre a crítica a 0 p rim o Basílio e a revolução
Brás Cubas. Por isso, mais uma vez, peço ao leitor que retorne
rapidamente ao Capítulo 2 e reveja a eloqüência dos termos
empregados no longo artigo dedicado ao Judeu.
Vale a pena, ainda assim, repetir algumas passagens, nas
quais Machado recorre ao horizonte da aemulatio:
(Fecham-se as cortinas.)
(Ainda bem.)
226
ü poema tampouco parece ju stificar o esforço de com po
sição — isso para não mencionar a diligência exigida em sua
leitura. Os versos iniciais devem bastar para demonstrá-lo:
227
A “Advertência” perm ite esclarecer o enigma:
Agora direi que não é sem acanham ento que publico este
livro. Do gênero dele há principalm ente duas composições
célebres que me serviram de modelo, mas que são verdadeira
mente inimitáveis, o Lutrin e o Hissope. Um pouco de ambição
me levou contudo a m eter mãos à obra e perseverar nela.
Não foi a de competir com Dinis e Boileau; tão presunçoso não
sou eu.
(...)
228
A menção às autoridades define o marco no qual 0 Alm ada
• Irn* ser compreendido: duas composições celebres que me serviram
iIr modelo, mas que são verdadeiram ente inimitáveis, o Lutrin e o
lllssope.
O poema de Boileau, Le Lutrin, composto em seis cantos,
m ire 1674 e 1683, é autoridade incontornável no gênero. Nele,
dois sacerdotes se engajam numa discussão infinita acerca
da melhor posição onde colocar um atril; pretexto divertido
para esclarecer o ju ízo do autor na querela dos antigos e dos
modernos. O poem a de Boileau serviu de modelo a Antônio
I )inis de Cruz e Sousa na composição de 0 Hissope, publicado
postumamente em 1802.0 poema do português, assim como
o do brasileiro, se aproveita de episódio histórico, vazado no
molde herói-cômico.
A advertência de Machado revela pleno conhecim ento da
história do gênero. A lém disso, evidencia um em prego deli
berado de práticas discursivas pré-românticas, cujo conheci
mento se revela no vocabulário associado ao campo semân
tico da emulação: parodiar o tom , o jeito e as proporções da poesia
épica.
N aturalm ente, não proponho conclusões d efin itivas a
partir de passagens como as extraídas da advertência a 0
Alm ada. Contudo, o vocabulário machadiano estimula m inha
hipótese. A referência às imitações realizadas por A ntônio
Dinis que somente não foram identificadas talvez p o r se não
ter advertido nelas im plica o elem ento-chave na técnica da
emulação: um circuito em que os polos da produção e da
recepção com partilham idêntico repertório. A técnica clássi
ca da aem ulatio é acionada a partir de modelos fixos, embora
múltiplos. A emulação, prática moderna, deliberadam ente
anacrônica, dispõe de maior liberdade, até mesmo devido ao
progressivo esquecimento daquele repertório. Contudo, em
ambos os casos, a citação direta ou a alusão às fontes clássicas
é o procedim ento definid or da arte literária, revelando .1
231
gear o livreiro Garnier, Machado define seu célebre estabe
lecimento; era um “ponto de conversação e de encontro” (II,
p. 654). Ao caracterizá-lo, o emprego do substantivo mais uma
vez evoca a etim ologia latina;
Não é m ister lem brar o que era essa livraria tão copiosa e tão
variada, em que havia tudo, desde a teologia à novela, o livro
clássico, a com posição recente, a ciência, a im aginação, a
m oral e a técnica. (II, p. 655, g rifo meu)
2S2
Machado vira habilm ente o feitiço contra o feiticeiro.
Apesar da defesa da estética da criação e do elogio do gênio
como dem iurgo de si mesmo, os próprios românticos teriam
recorrido aos mesmos procedimentos que se encontram na
hase da poética da emulação; fator especialmente verdadeiro
no caso da poesia romântica brasileira. Assim, se as form as
literárias precisam ser renovadas, por que não fazê-lo através de
um gesto já conhecido do leitor: buscar e rejuvenescer algumas
formas arcaicas? Torção tipicamente machadiana, o romantis
mo é visto como inesperada contrafação do sistema literário
que os valores românticos relegaram ao ostracismo.
O uso constante dos verbos transplantar e aclimatar deve
ser entendido no mesmo diapasão. Por isso, a objeção que se
possa fa zer à origem estrangeira do alexandrino é fro u x a e sem
valor.
Claro! O preconceito nacionalista, elevado a critério lite
rário, tornou-se característico durante o romantismo. Somente
então a história literária pautou-se pela determinação nacio
nal. No contexto pré-romântico, aclimatar e transplantar são
verbos que designam uma ação exata, tanto necessária como
codificada, pois sempre se parte do repertório alheio para a
elaboração do próprio trabalho.
Ressalve-se, porém, que Machado tam bém em pregou o
verbo numa acepção distinta, ainda presa ao espírito rom ân
tico; portanto, em direção contrária ao meu argumento. Penso
em seus prim eiros textos críticos.
Em “O passado, o presente e o futuro da literatura”, artigo
longo, publicado em duas entregas em A M a rm ota , nos dias 9
e 23 de abril de 1858, o jovem crítico segue à risca o figu rin o
da época. Ele chega a deplorar o recurso à literatura francesa,
num raciocínio que o ensaio de 1879 vira de ponta-cabeça:
(...) Raros, bem raros, se têm dado ao estudo de uma form a
tão im portante como o romance; apesar mesmo da convivên
cia perniciosa com os romances franceses, que discute, aplaude
e endeusa a nossa mocidade, tão pouco escrupulosa e m fe rir
as susceptibilidades nacionais. (III, p. 788, grifos meus)
235
Alguns vão até Paris estudar a parte fisiológica dos cole
gas de lá; é inú til d izer que degeneraram no físico com o no
moral.
Força é dizê-lo: a cor nacional, em raríssimas exceções,
tem tom ado o folhetinista entre nós. Escrever folhetim e ficar
brasileiro é na verdade difícil.
Entretanto, como todas as dificuldades se aplanam, ele
podia bem tom ar mais cor local, mais feição americana. Faria
assim menos m al ã independência do espírito nacional, tão
preso a essas imitações, a esses arrem edos, a esse suicídio de
originalidade e iniciativa. (III, p. 958-60, grifos meus)
236
«jiundo ele se tornou aprendiz de tipógrafo da Imprensa
ai ional. Por que não lhe prestar uma singela homenagem?
«.< ;io de gratidão que seria aprovado pelo Sr. Antunes...
Cheio de entusiasmo, o jovem Machado não hesita em
i lclender a emergência de um meio de comunicação capaz de
n lipsar os anteriores: “(...) o jornal é mais que um livro, isto
<. está mais nas condições do espírito humano. Nulifica-o
« oino o livro nulificará a página de pedra? Não repugno ad-
inil i-lo” (III, p. 946).
Machado alude, nessa passagem, a célebre título de Victor
111igo. De fato, um personagem de Notre-Dam e de Paris resumiu
mima frase famosa a revolução provocada pela Galáxia de
(iutenberg. 0 arquidiácono Dom Claude comparou o livro
impresso com a Catedral, concluindo com pessimismo:
Infelizmente! — disse —, isto matará aquilo.”580 livro des-
l ruiria o edifício.
A edição definitiva do romance de Victor Hugo é de 1832.
A ação narrativa, porém, tem lugar em 1482, ou seja, poucas
décadas após a invenção da tecnologia dos tipos móveis. 0
próprio narrador justifica a desconfiança do arquidiácono:
“Era a cátedra e o manuscrito, a palavra falada e a palavra
escrita que se alarmavam com a palavra impressa” (p. 216).
A melancolia do religioso ajuda a compreender que mais
importante do que assinalar o óbvio equívoco de sua predição
é observar a abertura de Machado para a hipótese de o livro
não ser um m eio definitivo, encerrado em si mesmo, mas,
pelo contrário, estar sujeito às m odificações da história con
tem porânea. Essa intuição perm anece atual, em bora não
237
tenha sido desenvolvida no quadro tradicional dos comeni.i
rios acerca da aclimatação do folhetim .
A segunda parte da citação reitera a condenação a essa\
imitações, a esses arremedos, a esse suicídio de originalidade e inl
ciativa. Pelo avesso, a recusa do estilo afrancesado afirm a um
projeto nacionalista, defendido no mesmo período para o
teatro brasileiro. Por isso, escrever folhetim e ficar brasileiro é nu
verdade difícil.
Contudo, outra vez, em m eio a frases previsíveis, o jovem
crítico ameaça superar-se. Se o folhetinista da corte de Dom
Pedro II parece ter aclimatado com êxito o modo forâneo,
ainda assim, esquece-se, nas suas divagações sobre o boulevard c
café Tortoni, de que está sobre um m ac-adam lamacento. Mesmo
dedicado às belezas da Cidade Luz, traz os sapatos sujos de
barro; à prosa elegante de quem escreve ao correr da pena
reúne-se inesperadamente o descompasso de uma grossa tenda
lírica no meio de um deserto. Há algum a coisa que parece não
se encaixar na nova ordem do folhetim aclimatado, embora
o jovem crítico somente veja no descompasso um tom menor,
quase caricato. Ele identifica o hiato somente para condená-lo,
recorrendo a chavão que atravessa os séculos: considerar os
trópicos um deserto de hom em e de ideias.
238
A literatura de um autor-matriz costuma ser superior à
formulação crítica, já que a pluralidade potencial de seus
t- m idos desautoriza a pretensão de reduzir sua obra a uma
interpretação unívoca.
() esforço crítico, contudo, pode ser igualm ente criativo.
I ira tanto, necessita reconstruir os processos internos à fa
una ficcional, levando a indagações sobre a própria literatu-
ia que não necessariamente se encontram na superfície da
obra estudada.
I lora de concluir o estudo de 0 Alm ada.
A consulta às notas apensas ao poema permite ler 0 Alm ada
eom outros olhos, favorecendo um entendim ento novo do
exercício em aparência extemporâneo.
Machado reconhece exem plarmente suas filiações, como
diria Oswald. No Canto I, a terceira estrofe recorda o voo das
cegonhas de um continente a outro:
240
dade da cena alencariana. De fato, o diálogo entre os cônjuges
é mais sugestivo do que a narração onisciente contida nos
Natchez. E isso para não m encionar o trabalho lingüístico de
Alencar, que introduz no português uma dicção tupi-guarani,
compondo uma linguagem literária de grande vigor, como se
depreende da fala de Iracema, cuja singeleza lírica contrasta
com o tom direto da pergunta de Martim. Ademais, o autor
de 0 guarani sempre reconheceu em Chateaubriand a autori
dade m áxim a no desenvolvimento de uma “poesia america
na”. O jovem Machado considera a possibilidade de a imitação
do modelo resultar artisticamente superior, mas ainda não
havia com preendido a dim ensão técnica da aem ulatio. Ele
precisou de alguns anos antes de tornar a intuição princípio
compositivo.
É exatamente o que ocorre no poema 0 A lm ada.
Consulte-se outra nota.
No Canto II, na estrofe VIII, o verso “Para o braço espraiar
do grande Alm ada” (III, p. 235) merece a seguinte ju stificati
va: “Espraiar o braço é tradução de épanouir la rate, não minha,
mas de Filinto Elísio” (III, p. 319, grifos do autor). Como se
fosse um sampleador poético, ou um precursor da “escrita
não criativa” (uncreative w ritin g), Machado incorpora a seu
poema a tradução alheia, sem nenhuma marca distintiva, e
esse é o ponto decisivo. Mais do que o modo tradicional da
alusão ou da citação, o autor de 0 A lm ada se apodera radical
mente da palavra do outro. O leitor que ignorar a nota ou não
fo r um e x ím io conhecedor de F ilin to Elísio considerará
Machado o criador do verso “ Para o braço espraiar do grande
Alm ada”. Em proveito de sua invenção poética, Machado ado
ta o critério com o qual exam inou a obra teatral de Antônio
José: o estrangeiro como condimento do próprio.
241
A simples adoção do gênero herói-cômico ilum ina o cami
nho que ele radicaliza com as M em órias póstum as de Brás Cubas.
Tal parece ser a form a mais fecunda de compreender o exer
cício poético sobre uma form a olvidada.
De um lado, o gênero exige o uso de linguagem sublime,
o recurso à estrutura literária semelhante à da épica, o em
prego de metáforas ricas e a invenção de conceitos agudos,
porém, o assunto do poema deve ser banal, mesmo farsesco.
A óbvia inadequação entre form a épica e conteúdo trivial
provoca o desequilíbrio cômico, dicção dominante do gênero.
Não é verdade que a força das M em ória s póstum as tam bém se
baseia em desproporções similares? Vim os a comparação,
propriamente risível, entre a narrativa do defunto autor e o
Pentateucol O método se dissemina em todo o livro e se man
tém marca registrada nos romances da segunda fase, nos
contos e na crônica. 0 A lm ada, assim, readquire seu lugar na
produção machadiana, como se o autor estivesse aquecendo
os músculos para o desafio mais difícil.
242
111111o da tradição não deixa de ter ressonâncias cômicas, como
«• houvesse uma assimetria estrutural entre circunstância
■ isi encial e projeto estético. Tema aproveitado por Machado
«'in inúmeros contos, crônicas e mesmo em sua poesia.
I)e fato, especialmente em seus versos, Machado sampleia
com a desenvoltura dos atuais músicos de hip-hop. Atitude
.inundada em suas primeiras produções.
No poema “Minha mãe”, publicado na M arm ota Fluminense,
cm 2 de setem bro de 1856, e não reu nido em liv ro por
Machado, o leitor é adequadamente inform ado de que se
I rata de uma “Imitação de C ow per”. É provável que o jovem
autor aludisse ao conhecido poema de W illia m Cowper, fre
qüente nas antologias da época, “ On the Receipt o f m y
Mother’s Picture”. Reminiscente do modelo clássico, pintura
e poesia se associam na fórmula “imitação de...”.
Nas décadas seguintes, o procedimento é aperfeiçoado.
Em Falenas, segundo livro de poemas de Machado, saído
em 1870, encontra-se “Uma ode de Anacreonte”, texto teatral
em verso alexandrino; aliás, já vimos seu ju ízo sobre a origem
francesa do verso. Num determ inado momento, lê-se um
poema de Anacreonte. No final, o leitor é convidado a con
sultar o revelador esclarecimento:
244
demonstram sua habilidade na arte de dar nova roupagem
»io t raje alheio. Numa observação discreta, Machado revela a
fonte:
246
Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe
loj^o, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade.
Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento
buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que
semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de
futuro. As tradições de Gonçalves Dias, Porto Alegre e
Magalhães são assim continuadas pela geração já feita e pela
que ainda agora madruga, como aqueles continuaram as de José
Basílio da Gama e Santa Rita Durão. (III, p. 801, grifos meus)
247
à autoridade que mais respeitava: “(...) e perguntarei mais se
o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma
coisa com a história inglesa nem com o território britânico,
e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio um
versai, um poeta essencialmente inglês” (ibidem).
A página final do ensaio é impressionante, oferecendo
uma síntese primorosa do meu projeto:
250
Qiu* Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros
p.ira cem leitores, é coisa que admira e consterna. O que
ii.io admira, nem provavelmente consternará é se este outro
livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta,
nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. (I, p. 513,
grifo meu)
61 Trata-se da estrofe 119 do terceiro canto de Os Lusíadas: “Tu só, tu, puro
Amor, com força crua/Que os corações humanos tanto obriga,/ Deste causa
à molesta morte sua,/ Como se fora pérfida inimiga./ Se dizem, fero Amor,
que a sede tuaI Nem com lágrimas tristes se mitiga,/ É porque queres, ás
pero e tirano, Tuas aras banhar em sangue humano.” Luís de Camões. Obra
completa em um volume. Antônio Salgado Júnior (organização, introdução,
comentários e anotações). Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1988, p. 86.
Nas próximas ocorrências, cito apenas o número da página.
252
.... . , i‘ aventuras. Apenas isso: sem feições épicas, tampouco
if»t /iimus, sem a cômoda projeção retrospectiva que reduz a
M"N|ilcxidade de um percurso existencial e artístico à cons-
i i«..10 empírica de que Camões escreveu Os Lusíadas, tornan-
ii>■.<
•o poeta maior da língua portuguesa, autoridade incon-
i» Mr no gênero épico —, em qualquer idioma, diga-se de
i i ,.igem. Ora, ele poderia não ter sobrevivido ao naufrágio.
11 mleria não ter se empenhado na consecução da obra-prima:
11 .ibalho árido e longo, diria o narrador casmurro, cujo resul-
i ml<>é sempre incerto. Quantos habilidosos abandonaram a
i.iicfu no meio do caminho, condenando-se à miríade de
iioines secundários e de datas irrelevantes que povoam as
lnsiórias literárias?
0 Camões de Tu só, tu, puro amor é como o autor que ima-
>;inei no segundo capítulo: Machadinho, leitor severo e um
l a nto carola de 0 primo Basílio, e não Machado, autor singular
das Memórias póstumas de Brás Cubas. Ora, ele poderia não ter
escrito o romance, antes seguindo seu destino pálido de autor
de romances no estilo não-me-toques. Machadinho poderia não
ter sobrevivido ao naufrágio das ilusões ou à enfermidade do
final de 1878.
Ou ao inverno que finalmente chegou em fevereiro de
1878.
Todo o meu esforço se encontra sintetizado na perspectiva
com que Machado entende Camões: não lhe dandofeições épicas,
e, por assim dizer, póstumas.
Retorno à peça.
Envolvido em aventuras amorosas e demonstrações de
valentia, o jovem poeta dispersa seu talento. Seu adversário
na trama, Pêro de Andrade Caminha, não lhe perdoa a falta
de seriedade. Na história da literatura portuguesa de extração
romântica, Caminha foi estigmatizado no papel de rival de
253
Camões. Machado parece ter assimilado essa versão sem
questionamentos. Na peça, Caminha se opõe ao autor de Os
Lusíadas, chegando mesmo a declarar:
254
l m diálogo áspero, Caminha aconselha com severidade:
"Mc à Itália, senhor Camões, ide à Itália” (II, p. 1.148). Nesse
• iso, mais do que um deslocamento espacial, “ir à Itália”
Minere uma viagem no tempo, iluminando a novidade formal
•Ins procedimentos machadianos.
íi curioso que o mesmo símbolo apareça em 0 mandarim,
i novela queirosiana publicada em 1880, e que, do ponto de
vista formal e temático, se distancia consideravelmente de 0
i rime do padre Amaro e de 0 primo Basílio. Depois do equívoco
cometido por uma personagem, que imagina um Goethe
inspirado pelas terras portuguesas, Meriskoff, “doutor alemão
pela universidade de Bonn”, como todo bom acadêmico, não
resiste ã tentação de corrigir o erro:
255
Nos dois casos, tanto em Machado como em Eça, “ir .1
256
No caso do Camões machadiano, era preciso manter os
hormônios sob controle, a fim de adquirir o conhecimento e
,i disciplina necessários à produção da obra-prima.
No mesmo dia em que a peça Tu só, tu, puro amor é ence-
n,ida no teatro D. Pedro II, Machado publica um soneto em
<tlição especial do Jornal do Comércio. Ele é todo composto sob
0 signo da emulação bem-sucedida — tanto histórica, com as
viagens portuguesas em relação à Antiguidade, quanto lite-
1.1 ria, com a escrita de Os Lusíadas em comparação com os
modelos consagrados:
Pois é.
O caminho não foi curto.
Eis, então, uma forma de entender o pulo do gato macha
diano: enquanto a maior parte dos contemporâneos apurava
a audição para captar o último grito da moda, o autor de “Uma
visita de Alcibíades” viajou à Itália — mas, como o Camões
do soneto, não somente à península. Ele frequentou todas as
épocas, como se elas compartilhassem o mesmo instante
histórico, definido, não pela diacronia do calendário, mas
pela simultaneidade dos momentos de leitura e de escrita. A
twmlação enseja outro tipo de temporalidade, negando a li-
i" .ii idade e recusando superações irreversíveis; não se trata
•!«•promover rupturas traumáticas, mas de contribuir para o
•nritiuecimento do repertório comum, na promessa de sin-
«ronia entre épocas e tradições diversas. Exemplo notável é
o cie Dante, no Canto IV do Inferno, quando ele vê “quatro
r.i andes sombras” se aproximarem. Seu guia, Virgílio, escla
rece a situação:
“(...)
Ülha o que vem à frente qual decano
dos outros três, segurando uma espada;
Emulação e autoria
260
i| •« iias interpreta os escritores com os quais dialoga, como
i ' 1111)ém propõe o conceito articulador de seus procedimentos:
Inrma livre. Além disso, Machado distorce essa forma livre de
modo particular.
Hle não faz digressões intermináveis, ou viaja ao redor do
quarto, impelido tão só, ou principalmente, por um humor
(•••pirituoso. Como ele mesmo sugere, seu itinerário exige um
( opiloto: para a pena da galhofa adiciona a tinta da melancolia,
<
•essa reunião inesperada de termos contrários singulariza a
lal ura de sua segunda fase. Machado reúne os séculos X V III
c XIX nas figuras de Sterne, Xavier de Maistre e Stendhal,
contaminando o humor com o tom sombrio da melancolia.
Kccordo que a possibilidade de justapor tempos históricos
diversos e de mesclar gêneros literários antecipa a técnica
borgiana do anacronismo deliberado.
O narrador das Memórias póstumas se inscreve em domínio
próprio à técnica da aemulatio, transformando-a através de
sua apropriação moderna. Além de nomear os modelos de sua
escrita, ele também esclarece o propósito de emulá-los. Leia-se
o prólogo da terceira edição, lançada em 1896. Releia-se opró
logo na perspectiva aqui proposta; ele se torna revelador, indis
pensável:
261
0 vocabulário não poderia ser mais direto e pertence tod( >
ao campo semântico da emulação. A descrição é tão precisa
que dispensa maiores comentários. Melhor dito: o leitor já
identifica o caráter deliberado das alusões do defunto autor à
prática da emulação. Assinale-se a ourivesaria conceituai:
lavores de igual escola, pois o molde é o mesmo para todos;
encontra-se estabelecido pelo repertório comum e consagra
do pela tradição dos usos retóricos. Porém, a mesma taça
sempre leva outro vinho, já que a aemulatio somente se realiza
ao afirm ar sua diferença.
* * *
262
( .'ontudo, começou-se a produzir no Chile um tipo inco-
iniim de vinho, em princípio preparado com base na uva
mri lot cultivada na região. Os especialistas ficaram intrigados
i resolveram estudar a fundo essa variedade.
li is que os enólogos chegaram a uma conclusão surpreen
de nie: a variedade desconhecida demerlot era fruto das únicas
|*l.i ntações de carmenère que haviam sobrevivido à praga da
liloxera. A descoberta foi feita em 1994, pelo ampelógrafo
11 ,i ncês Jean-Michel Boursiquot. A uva carmenère foi resgatada
porque, transplantada para o Chile, e, sem que se soubesse,
misturada com vinhedos de merlot, se aclimatou à perfeição,
lavorecendo o desenvolvimento de terroir próprio para sua
produção.
Arqueologia dos vinhedos, a pequena história da uva car
menère talvez inspirasse um poema herói-cômico.
Ou talvez tenha mesmo razão Sarmiento, editor de El
Progreso, jornal publicado no Chile oitocentista. Recupero a
citação mencionada no terceiro capítulo:
* * #
263
0 longo caminho percorrido por Machado no entendimen
to da aemulatio pode ser evidenciado por um contraste.
Regresso à advertência da primeira edição de Ressurreição
(1872). Nela, Machadinho reconhece a necessidade de consi
derar modelos prévios, mas ainda não possuía uma visão
abrangente da complexa técnica da imitatio, que, como repe
ti inúmeras vezes, sempre inclui o gesto de aemulatio:
264
(Uma coleção de medalhas não vale o parágrafo de aber-
I ura das Memórias póstumas.)
266
Se o meu hipercrítico for obstinado, insistindo em que dois
minutos e treze segundos não são mais do que dois minutos
e treze segundos, (...) e em que esta alegação, conquanto
possa salvar-me dramaticamente, condenar-me-á biográfi
ca mente, convertendo o meu livro (...) num ROMANCE con
fesso (um livro que, antes, era apócrifo).64
267
de Sterne, se traduz puro romance; novel, no sentido de Fieldini;,
se translada romance usual. Machado combina galhofa e mr
lancolia, associa os séculos X V III e XIX, funde novel e roman
ce — numa mostra eloqüente do fenômeno da compressão
dos tempos históricos.
Há outra passagem muito similar à nota “Ao leitor”. Penso
no capítulo CXII de Quincas Borba. Vale transcrevê-lo na íntegr.i:
268
■miiiii c e novel, sugerindo uma sutil percepção da história
i'" i .1 ria. A apropriação machadiana é meditada, o que con-
h i< Ibrça à categoria de puro romance em confronto com a
mi. ;u) de romance usual.
li não é tudo.
Machado associa à forma do romance um modo especifico
■
Ir recepção. Estruturalmente, escrita e leitura são pensadas
.Io mesmo tempo, são dispositivos gêmeos. Novel demanda a
i \lima dos graves; romance supõe o amor dosfrívolos.
Ainda não é tudo.
Pois essa reflexão seria muito pouco machadiana se me
contentasse com a oposição binária: tal ou qual leitor. Nesse
caso, bastaria decidir o tipo de leitor que se deseja, a fim de
escrever sempre o mesmo livro, reduplicando as soluções
previamente encontradas. 0 defunto autor dá um passo além,
reconhecendo a possibilidade de perder o apoio dessas duas
colunas máximas da opinião, pois a mescla de estilos corre o
risco de desagradar a todos.
0 leitor, grave ou frívolo, não conta mais com a facilidade
de um universo monocromático. Articula-se assim uma nova
ficção de leitura. Machado não somente se configura como
leitor irreverente da tradição, como também convoca o pú
blico a participar da construção ficcional, através do desen
volvimento de uma técnica de leitura que possui na colagem
o procedimento definidor. Trata-se da leitura-colagem, pro
cedimento fundamental para que se aprecie a forma literária
propriamente machadiana.
Formas da em ulação
M. de A.
* * *
273
dia, ele visita a redação do jornal e, por acaso, lê um artigo
de Camacho, o advogado e inescrupuloso jornalista. Rubião
sugere, sem maiores pretensões, mudanças mínimas no tex
to — a inclusão de um adjetivo. Naturalmente, Camacho
adota as emendas de seu mecenas, o que provoca uma reação
inesperada:
274
(leste em diante a carreira fez-se rápida. Não importa; a
análise seria ainda assim longa e fastidiosa. O melhor de
l udo é deixar só isto; durante alguns minutos, Rubião se teve
l>or autor de muitas obras alheias. (1, p. 739, grifos meus)
275
Ao contrário, se o teu copeiro acreditar que escreveu os
Lusíadas, lerá com orgulho (se souber ler) as estâncias cio
poeta; repeti-las-á de cor, interrogará o teu rosto, os teus
gestos, as tuas meias palavras, ficará por horas diante dos
mostradores mirando os exemplares dos poemas expostos.
(III, p. 743)
276
imiago não era aristocrata, antes se encontrava em declínio,
•mbora preservasse com esmero a sombra da elegância pas-
ula. Entretanto, o narrador não se aborrece. Na verdade,
ir.iMsforma o apelido no título de suas memórias, conceden-
ilo ao jovem poeta uma reveladora homenagem:
O procedimento se radicaliza.
Em Memórias póstumas de Brás Cubas, o defunto autor con
verte seus leitores, ou sua escassez, em princípio de escrita.
Em Quincas Borba, Rubião transita sem cerimônia do papel
de leitor à função de autor.
Em Dom Casmurro, o narrador encena uma impossível si-
multaneidade entre o ato de escrita — se não tiver outro daqui
até ofim do livro, vai este mesmo — e o de leitura, cujo corolário
inclui a transferência parcial da atribuição de sentido ao
leitor. Não me refiro a um plano metafórico, mas à formula
ção de dispositivos textuais especialmente desenvolvidos para
estimular essa finalidade.
Nos dois últimos romances, Machado leva adiante a explo
ração desse procedimento através de inesperado xeque-mate:
armemos o tabuleiro.
Em tese, Esaú ejacó, lançado em 1904, e Memorial de Aires,
saído no ano de sua morte, em 1908, são textos selecionados
do diário do Conselheiro Aires: essa é a ficção de leitura pro
posta por Machado de Assis.
277
Ou seja, por M. de A. — como é assinada a advertência do
Memorial de Aires.
E eis a questão.
O leitor tem acesso às páginas extraídas do Memorial dr
Aires? Ou se trata de uma piscadela ao leitor, dada por Machado
de Assis?
Leiam-se as notas que abrem os volumes: elas esclarecem
a (falsa) charada.
Em Esaú eJacó tudo parece mais ou menos claro. Basta
consultar a advertência: não assinada, ressalve-se.
278
i "i i in/rs and Misfortunes ofthe Famous Moll Flanders, de Daniel
i '' Inc. aparecido em 1721.67
No contexto machadiano, o modelo mais sugestivo é Manon
i ■, Ki/t, de Prévost, publicado em 1731, como o sétimo volume
>h . Memórias e aventuras de um homem de qualidade, atribuídas
■ l ictício marquês de Renoncour. Manon Lescaut propõe um
I* k lo ficcional que se tornou célebre: o marquês encontra o
m.i logrado cavaleiro Des Grieux e escuta o relato de seu con-
i mbado relacionamento com a heroína, Manon Lescaut. O
livro, portanto, é a transcrição da narrativa do cavaleiro Des
Grieux.68
O sétimo volume, eu disse.
E que não deixava de ser a narrativa estranha à matéria dos
vis cadernos anteriores do marquês de Renoncour.
Pois é.
Retorno ao romance de Machado.
Em princípio, não há dúvida: quem escreve (mas não assi
na) a advertência é o leitor dos manuscritos do Conselheiro,
279
responsável pela publicação póstuma não exatamente de sett
diário, mas de uma narrativa, na qual o Conselheiro também
é personagem. A publicação de Esaú ejacó é decidida por um
leitor anônimo, que, no plano ficcional, não se confunde
necessariamente com Machado de Assis. Esse leitor, literal
mente, é o organizador da publicação, o responsável pela
seleção dos escritos do Conselheiro.
A charada é falsa! Nem sempre vale para o crítico a arte
do cronista, tal como definida por Machado em A Semana,
em 11 de outubro de 1897: “Eu gosto de catar o mínimo e o
escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu com
a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto"
(III, p. 772).
Nem sempre, porém, não quer dizer nunca.
A charada pode ser falsa, mas o jogo com as iniciais é
verdadeiro e pode se tornar ainda mais interessante.
Consulte-se o capítulo XII, de Esaú eJacó, “Esse Aires”.
Começo pelo final do capítulo anterior, “Um caso único”,
quando o Conselheiro irrompe na narrativa. Plácido, adepto
zeloso do espiritismo, não economiza esforços para converter
o diplomata ao novo credo. E, bem ao contrário de Bento
Santiago no trem de subúrbio, Aires mantém-se atento, em
bora permaneça indiferente ao entusiasmo do interlocutor:
281
o método machadiano, definido em crônica de A Semana, ilr
27 de outubro de 1895. Numa deliciosa discussão, motivad.i
pelo fato de alguns adeptos do espiritismo terem sido procvs
sados — o Plácido que se cuide! —, o narrador confessa su.i
desorientação: “Os entendidos terão resposta fácil; eu, simples
leigo, não acho nenhuma. Deixo-me estar entre o Código e a
Constituição, pego de um artigo, pego de outro, leio, releia v
tresleio” (III, p. 683, grifo meu).
Em seu memorial, Aires redige uma narrativa em tercei
ra pessoa, incluindo-se como personagem, ator coadjuvante
da trama, mas que merece uma minuciosa análise de seu
físico e caráter. Tecnicamente a possibilidade não apresenta
dificuldades intransponíveis. Porém, dada a natureza reser
vada do Conselheiro, amigo de apagar seus traços, a fim de
se concentrar nos demais, o recurso provoca surpresa.
O curto-circuito se intensifica, pois o autor da advertência
se encarrega de sublinhar a aparente discrepância — Último
por quê? —, porém não oferece resposta. A interrogação acom
panha a leitura do romance: por que último? Questão pro
priamente insolúvel: não se compreendeu então nem depois. O
silêncio do leitor-organizador da publicação é mais uma das
perguntas sem resposta da obra machadiana.
Nesse contexto, a advertência do Memorial de Aires merece
ser lida na íntegra:
282
dois anos (1888-1889), sefor decotada de algumas circunstân
cias, anedotas, descrições e reflexões, — pode dar uma narração
seguida, que talvez interesse, apesar da forma de diário
que tem. Não houve pachorra de a redigir à maneira da
quela outra, — nem pachorra, nem habilidade. Vai como
estava, mas desbastada e estreita, conservando só o que
liga o mesmo assunto. O resto aparecerá um dia, se apa
recer algum dia.
M. de A. (I, p. 1.096, grifos meus)
283
Nos dois romances, o leitor dos textos efetivamente publ i
cados não tem acesso ao memorial do Conselheiro; ele apenas
lê excertos previamente selecionados pelos autores das adver
tências. Em Esaú ejacó, um censor anônimo; no Memorial de
Aires, M. de A. — aliás, ele somente assina a advertência ou
também realiza o trabalho de produzir uma narrativa desbas-
tada e estreita? O texto é ambíguo: “Tratando-se agora de im
prim ir o Memorial, achou-se que (...)”.
Quem achou?
Além disso, a operação textual realizada pelo leitor M. de
A. consiste em suprimir do Memorial todos os traços do gêne
ro. Sua premissa — sefor decotada de algumas circunstâncias,
anedotas, descrições e reflexões — transforma as anotações do
Conselheiro em outra coisa, isto é, “uma narração seguida,
que talvez interesse, apesar da forma de diário que tem”. Em
sentido forte, o leitor do Memorial de Aires nunca tem acesso
às notas do diplomata, porém à mediação estabelecida por
um ato prévio de leitura.
Os dois últimos romances de Machado situam o ato de
leitura em posição autoral. Através da seleção dos escritos do
Conselheiro, o leitor anônimo constitui o sentido possível do
texto. Daí, o enigma frustrado das advertências importa não
como pretenso exercício literário de esconde-esconde, mas
como provocação que aciona a potência da leitura.
Nos termos propostos por Machado, o questionamento (ou
a ampliação) do conceito de autoria implica o redimensiona
mento (ou a ampliação) do papel atribuído ao leitor. A simetria
da formulação é exigida pelo rigoroso paralelismo entre os
atos de leitura e de escrita.
Seria uma tolice associar aquele questionamento e este
redimensionamento exclusivamente à técnica da aemulatio.
i i,io se trata de processo simples, monocausal. Contudo, apos-
h) nas cores novas que a emulação e seus procedimentos
li. i/em para a composição do novo retrato do autor de
Krssurreição.
Um pouco antes
286
•icesso ao texto do frei Simão, mas à reconstrução mediada
pela leitura do narrador. O leitor deve contentar-se com a
memória que o narrador tem da leitura das “Memórias que há
de escrever frei Simão Águeda, frade beneditino” (ibidem, grifos
do autor). Uma vez que o frade não concluiu o texto, por que
não dar forma póstuma ao escrito, através dos olhos de um
póstero? A figura do autor que se sabe em primeiro lugar um
leitor já se encontra na estruturação desse conto.
Vejamos a natureza das memórias de frei Simão.
Nas palavras do narrador-leitor: “Eram, pela maior parte,
fragmentos incompletos, apontamentos truncados e notas
insuficientes; mas de tudo junto pôde-se colher que realmen
te frei Simão estivera louco durante certo tempo” (ibidem). E,
se a incompletude e as lacunas conduzem o leitor à prosa das
Memórias póstumas, outra questão surge em novo comentário
sobre o manuscrito.
Na primeira vez que retorna à casa, o nome da prima é
estrategicamente ignorado. Porém, no cumprimento de sua
missão evangelizadora, o frade visita uma vila no interior do
estado. Para sua surpresa, embora o leitor antecipe o desen-
lace com facilidade, no final da pregação, “entrou na igreja
um par, marido e mulher: ele, honrado lavrador, (...) ela, se
nhora estimada por suas virtudes, mas de uma melancolia
invencível” (II, p. 157). Era Helena. Ao reconhecer o primo,
desmaia no meio do culto. Interrompe-se momentaneamente
o sermão, o frade identifica a recém-chegada, dando-se conta
do engano em que vivera e do ardil empregado pelos pais para
afastá-lo da prima. O narrador prossegue: “No manuscrito do
frade há uma série de reticências dispostas em oito linhas. Ele
próprio não sabe o que passou” (ibidem, grifo meu).
Vale destacar o emprego de recursos tipográficos, consa
grados nas Memórias póstumas, presentes em texto de 1864,
287
ainda que se encontrem apenas sugeridos para a imaginação
do leitor, sem chegar à superfície da página. Assinale-se tam
bém a forma do “diagnóstico” da loucura do frei Simão: ela
é diagnosticada verbalmente. O comportamento arredio, cas
murro, poderia sugerir misantropia, mas não autorizaria o
diagnóstico. Foi o caráter lacunar de suas memórias e o delí
rio verbal no referido sermão que serviram de base à conclu
são: frei Simão enlouquecera.
Recorde-se a passagem:
0 texto e a leitura-colagem
289
devem ser reconhecidas sem dificuldade, intensificando o
caráter lúdico da experiência literária. Sua constituição re
corda um xadrez mental, pois o deslocamento de uma simples
peça no tabuleiro da tradição propicia variações potencial
mente infinitas, cuja apreciação depende da capacidade de
avaliar os efeitos deste ou daquele lance. Num poema, cada
palavra escolhida ou imagem empregada ativa uma cadeia
de associações e paralelismos que constitui autêntica obra
invisível, numa miríade de palimpsestos e de possibilidades
latentes a serem materializadas pela recepção. A técnica da
montagem transforma essa latência em ato de leitura parti
cular, explicitando a radicalidade da forma do romance ma-
chadiano.
No fundo, o advento do romantismo foi favorecido pela
progressiva perda do repertório comum. O caráter lúdico da
técnica da imitatio oculta um dado socialmente nada diverti
do: o conhecimento da tradição literária envolvia um círculo
muito reduzido da população, a elite letrada. Em alguma
medida, e talvez mal comparando, recorda os jogos de corte
ou os passatempos de salão, admiráveis em sua agudeza, mas
desde que se esqueça a desigualdade estrutural sobre a qual
se apoia.
O advento do romantismo, dizia, colaborou para alterar
profundamente esse panorama.
De um lado, em lugar do domínio de um verdadeiro ar
quivo de temas e formas, passou-se a privilegiar o conheci
mento da cultura pátria. A rima não é casual: na escrita da
história literária, romantismo e nacionalismo são manifes
tações gêmeas. De outro, o papel do leitor foi progressivamen
te reduzido, cingindo-se à tarefa de compreensão da intenção
autoral; aliás, adequação estratégica, e numa relação de ho-
mologia transferida para o plano da leitura, pois se passa do
290
{ iiiijunto da tradição à individualidade do artista criador. Em
ir da imagem do leitor-enxadrista, implícita na técnica
■
l,i iicinulatio, pouco a pouco se impôs a figura do leitor-intér-
|*i de, hermeneuta de um horizonte limitado.
Tal processo leva à redução do repertório cultural. No
•iii auto, pelo menos em tese, amplia-se o número de partíci
pe. da cidade letrada. Daí, o caráter francamente anacrônico
•Io resgate deliberado da técnica da aemulatio em tempos
pós-românticos, sobretudo no Brasil escravocrata do século
XIX. No contexto brasileiro, o recurso à emulação também
eqüivale a um sutil, porém corrosivo, comentário político.
Na Europa e nos Estados Unidos, a alfabetização em mas-
sa criou efetivamente um público novo. Dois caminhos se
destacaram: a via protestante, que ensinava as primeiras letras
para facilitar o contato direto com as Escrituras, e a via na-
poleônica, que considerava a alfabetização indispensável para
fomentar certo ideal de cidadania. Não importa o caminho:
em ambos os casos, o desaparecimento paulatino do univer
so da imitatio e da aemulatio correspondeu ao surgimento
efetivo de um público leitor urbano. Sem esse fenômeno, o
gênero romance dificilmente teria adquirido a proeminência
que desfrutou.
No caso brasileiro, dada a ausência de campanhas de al
fabetização, perdeu-se o círculo letrado, dono de sólido reper
tório clássico, mas não se ganhou um público multiplicado,
ávido consumidor de jornais, folhetins e romances encader
nados. Em crônica de 15 de agosto de 1876, ao comentar o
recenseamento do Império, Machado enfrenta o problema:
293
A receita brasileira deixa de lado os meios-tons, explii I
tando o verdadeiro propósito do camareiro-mor, que se ad. 11 ■
ta perfeitamente às relações sociais do universo do agregai li -
O pai de Janjâo resume sua filosofia com um direto no qun
xo do filho: “nào transcendas nunca os limites de uma inve
jável vulgaridade” (II, p. 294). O adjetivo invejável revela qur <i
substantivo remete à etimologia: vulgo, no sentido de “o ro
mum das pessoas”. O conselho é um elogio absoluto da ?nr
diocritas. Literalmente estar no meio é a forma mais seguia
de conduzir-se na instabilidade da vida pública, especialmen
te se não há diferença entre liberais e conservadores no
exercício do poder.
A ideia de uma invejável vulgaridade traz à mente do leiloi
de Esaú eJacó o drama vivido pelo pacato Custódio, dono da
Confeitaria do Império. Na véspera da Proclamação da
República, ele decide encomendar uma nova tabuleta para
seu estabelecimento. Ao inteirar-se dos últimos eventos, nào
hesita: “Escreveu às pressas um bilhete e mandou um caixei
ro ao pintor. O bilhete dizia só isto: ‘Pare no D’. Com efeito,
não era preciso pintar o resto, que seria perdido, nem perder
o princípio, que podia valer” (I, p. 1.027). Se a República se
firmasse no poder, a tabuleta anunciaria, em acordo com os
novos tempos: Confeitaria da República. Se por acaso a Monarquia
retornasse, a tabuleta afirm aria a fidelidade aos eternos
princípios: Confeitaria do Império. Contudo, o bilhete chega
tarde e o dono da Confeitaria tem de arcar com o prejuízo,
afinal, “as revoluções trazem sempre despesas” (I, p. 1.030).
Naturalmente, a serem pagas pelos tantos Custódios da his
tória brasileira.
Mais precavido do que o malogrado dono da confeitaria,
o pai do aniversariante desenvolveu um método infalível para
294
0 filho atingir sem percalços o nirvana político. Em primeiro
lunar, submeter-se a “um regime debilitante, ler compêndios
■
Ir retórica, ouvir certos discursos, etc.” (II, p. 290). E isso com
1atenção diplomática do Conselheiro Aires e não com o des-
i aso do casmurro Bento Santiago. De igual modo, Janjão de
veria tornar o clichê o idioma do dia a dia, seguindo a lição
ile outro Conselheiro, o Acácio, de 0 primo Basílio.
Vejamos o receituário:
295
Retórica: “a arte da eloqüência, a arte de bem argumcm u
arte da palavra”.
Esse é o sentido clássico. Em seu âmbito, a técnica dairnllulhi
supõe o enxadrismo literário discutido no Capítulo 3, fonun cn
do a base da leitura que proponho da obra de Machado de As ,h
296
Lugar-comum: “fonte geral de onde os oradores podem tirar
.ii )',umentos e provas para qualquer assunto”.
ionte geral: o pecúlio comum, no vocabulário machadiano,
• .1udado em “O instinto de nacionalidade”. É a própria tra-
tlição, cujo conhecimento era compartilhado por escritores e
ouvintes ou leitores. Desse acervo deriva o caráter lúdico da
experiência literária.
Essa passagem — aparentemente, ela também, um lu-
nar-comum, ou seja, simples clichê — implica uma ambigüi
dade inesperada, cujas conseqüências ajudam a esclarecer o
que torna Brás Cubas um autor particular, nos termos do prefá
cio à terceira edição das Memórias póstumas.
De um lado, se a passagemfor lida do ponto de vista do pai de
Janjão, o filho deve exercitar-se na arte de discursar longa
mente sem esclarecer o que pensa. Na verdade, não deve se
quer pensar. Condição ideal para proferir discursos vazios,
porém empolados; afinal, lançar mão de palavras difíceis e
recorrer a latinismos bem escolhidos permite obter o cobiça
do passaporte para o parque temático dos donos do poder.
De outro lado, se a passagem for lida pelo avesso, ela é um
elogio cifrado à arte retórica, sugerindo um reconhecimento
indireto da técnica da emulação: basta ler os preceitos com
uma hermenêutica de ponta-cabeça. O conto é uma sátira
impiedosa aos hábitos mentais e políticos da elite brasileira,
logo, tal leitura não parece excessiva. Invertendo os termos
da equação, ou, melhor dito, devolvendo aos termos seu sen
tido original, Machado confidencia ao leitor atento um cami
nho alternativo para entender sua obra.
Trata-se de apurar a audição.
297
Eis o paradoxo que estrutura o texto: a “teoria do meda
lhão”, em seu princípio básico, é abalada pela leitura cl<»
conto “Teoria do medalhão” ! A mera explicitação de seus
pressupostos, enumerados com a seriedade cômica de um
Polônio, inviabiliza sua aplicação. Revelado seu artifício, <
>
mágico deixa de ser um ilusionista bem-sucedido. De igu.il
modo, é difícil conceber um leitor que, ao escutar os conselht >s
dados ao jovem, consiga evitar “esse movimento ao canto da
boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da de
cadência, contraído por Luciano, transm itido a Sw ift e
Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não. Usa
antes a chalaça” (II, p. 294). O pai de Janjão pinta a ironia com
cores sugestivas, mas recomenda a chalaça, antídoto eficaz,
pois, como o texto adverte, a ironia deve ser evitada ao má
ximo. O cuidado faz parte da terapêutica: em relação a ideias
próprias, “o melhor será não as ter absolutamente” (II, p. 290).
Afinal, como dissociar ironia e agudeza; agudeza e pensa
mento próprio? Já a chalaça, pura exterioridade, se coaduna
à perfeição com o exercício da vulgaridade.
Se possível, invejável.
Contudo, se o conto provoca esse movimento ao canto da boca,
a teoria desmorona no exato instante de sua leitura.
Produzir curtos-circuitos interpretativos é o efeito propi
ciado pelo texto machadiano, e que exige o método da leitura-
colagem.
298
prática do medalhão não resiste ao esclarecimento da própria
teoria: a leitura do conto revela-se o duplo da escrita, seu
avesso potencial.
Esse movimento favorece a dualidade realmente inovado
ra. De um lado, a escrita como museu vivo, reinvenção da
biblioteca. De outro, a leitura como antecâmara da escrita,
colagem de livros possíveis.
O leitor se revela o duplo do autor, e este o futuro daquele.
O mais importante: em nenhum momento, o narrador
chama atenção para a contradição que estrutura o conto.
Trata-se de sentido latente, cujos elementos se encontram
dispostos no tabuleiro do texto, mas cabe ao leitor armar a
jogada, montando as peças do quebra-cabeça.
Nada impede, porém, que o gesto de montagem somente
ocorra a poucos — talvez cinco. É provável que uma boa parte
do público leitor permaneça na superfície do texto, deixando
de intuir sua afinidade com a ética do medalhão.
O texto se desenvolve numa estrutura em palimpsesto. Na
camada superficial, a sátira impiedosa dos medalhões.
Subjacente, a crítica a toda a sociedade, incluindo o leitor
— sobretudo, o leitor. Machado pode ter aprendido a aperfei
çoar o método de escrever para públicos diversos com o autor
de Hamlet. Esse é um dos traços mais fascinantes do teatro
shakespeariano e o salto machadiano exercita a mesma ha
bilidade, associada a um ato de leitura que evoca o princípio
da montagem.
Leitura-colagem e romance
300
pi i vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de
rt••I- inado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando:
'Mamãe! mamãe! é hora da missa!’ restituiu-me à consciên-
-11 da realidade.” Bento Santiago esteve prestes a reconci-
liiii so com Capitu, abafando suas suspeitas, reconhecendo
•11k1lhe faltavam evidências irrefutáveis. Esse é o momen-
in cliave do romance, assinalando a ruptura definitiva do
■i wil. O narrador tem como base para sua certeza uma hipó-
irsc*: havia por força alguma fotografia de Escobar, mas, como a
própria frase sugere, tal fotografia simplesmente não existe.
A não ser que se considere o menino Ezequiel uma fotografia
cin movimento do menino Escobar!
Coloque-se essa conclusão em paralelo com a situação
vivida no capítulo “O retrato”. Bentinho vai à casa de
Sancha, que estava doente. Essa era a desculpa: ele fora
atrás de Capitu. Gurgel, pai da enferma, puxa conversa
mostrando um quadro na parede, “onde pendia um retra
to de moça, perguntou-me se Capitu era parecida com o
retrato” (I, p. 892). Pouco afeito a desacordos, Bentinho
confirma a parecença sem realmente prestar atenção na
tela. Animado pelo acordo, Gurgel continua:
301
um, pareciam irmãs. 0 narrador parece aceitar a conclusão ilo
pai de Sancha: Na vida há dessas semelhanças assim esquisita\
Pelo menos, não a contesta, e ao escrever suas memórias
poderia tê-lo feito retrospectivamente.
Recapitulo, pois muito depende da forma dos capítulos dos
romances machadianos da segunda fase: lidos através de uma
técnica de leitura-colagem, um curto-circuito é produzido.
Ora, se vale o que se afirma em “O retrato”, a conclusão a qm*
chega o narrador em “A fotografia” pesa pouco: se são críveis
semelhanças assim esquisitas, a sim ilitude entre Ezequiel e
Escobar não pode ser considerada prova conclusiva da infide
lidade de Capitu.
Contudo, se a hipótese exposta no Capítulo CXXXIX tem
peso, então o célebre fecho do LXXX1II pouco vale: a seme
lhança entre Escobar e Ezequiel não pode ser casual. Nesse
caso, a falta de comentário do narrador casmurro apenas
ilustra sua personalidade: “Um dos costumes da minha vida
foi sempre concordar com a opinião provável do meu inter
locutor, desde que a matéria não me agrava, aborrece ou
impõe. Antes de examinar se efetivamente Capitu era parecida com
o retrato, fui respondendo que sim” (ibidem, grifo meu). Logo, a
conclusão do pai de Sacha — Na vida há dessas semelhanças
assim esquisitas — perde-se no vazio do desinteresse de
Bentinho. A ausência de resposta não significa necessaria
mente que Gurgel tenha razão.
E agora?
Eis o desafio do texto que estimula a leitura-colagem: o
narrador não oferece pistas, cabe ao leitor reconhecer que se
encontra à deriva. Ele não pode mais se contentar com o
papel de intérprete da “verdade” do texto, já que o próprio
autor desacredita a noção. Essa é a radicalidade da forma
302
machadiana: a organização última do texto é parcialmente
i ransferida para o leitor, propiciando de maneira inesperada
e anacrônica a ressurreição do circuito definidor da aemulatio,
temperada pela forma livre, tanto nos modos de apropriação
quanto na pluralidade dos atos de leitura.
A desorientação semântica não é reconhecida pelo narra
dor. Bento Santiago não se jacta de sua agudeza metalinguís-
tica, tampouco se encanta com os próprios recursos estilísti
cos. O narrador parece convencido da traição de Capitu e
Escobar. O colapso potencial do sentido, possibilitado pela
técnica da leitura-colagem, só se atualiza através de um ato
de leitura particular. Para ativá-lo, é preciso que o leitor com
pare os capítulos e, como no caso das advertências de Esaú e
Jacó e Memorial de Aires, encontre dissonâncias que somente
se tornam visíveis a partir da comparação. Muitos leitores de
Dom Casmurro continuam preocupados com a culpa ou a
inocência de Capitu, preparando laboriosas listas de evidên
cias a favor desta ou daquela hipótese. Nesse exercício ocioso,
embora tentador, a potência do texto-esfinge se perde; na
verdade, passa despercebida.
A habilidade de escrever para mais de um tipo de público
e a forma sutil de disseminar pistas contraditórias ao longo
do texto permitem a Machado resgatar um ato de escrita
pré-romântico, favorecendo um ato de leitura característico
do mesmo período histórico. Como vimos, autores, leitores e
ouvintes compartilhavam o repertório disponível e, assim,
tanto a produção quanto a recepção acionavam o dispositivo
definidor da arte combinatória, compondo palimpsestos vir
tuais no exame das variações possíveis. E cada leitor ou ou
vinte reagia segundo seu repertório e capacidade analítica,
configurando a diversidade do público.
303
Xadrez de palavras: o autor começa o jogo com as peças
brancas, mas o segundo lance cabe sempre ao leitor.
Essa é a contribuição propriamente machadiana à form.i
do romance, tornada possível no âmbito do resgate delibera
damente anacrônico da técnica da imitatio e da aemulatio.
Aemulatio — Emendar
304
Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos
faz senhores da terra, é esse poder de restaurar opassado, para
tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos
nossos afetos. Deixa lá dizer o Pascal que o homem é um
caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada
estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que
será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor
dá de graça aos vermes. (I, p. 549, grifos meus)
305
Shakespeare, ele emendou Hamlet: “Há entre o céu e a terra,
Horácio, muitas coisas mais do que sonha a vossa vã filan
tropia.” (I, p. 783-84, grifo meu)
306
Vaidade ancestral, ressalve-se; pois como isto épecado de
muitos, caracteriza um procedimento típico da técnica da
Imitatio. Na seqüência, o ensaísta desenvolve um precioso
estudo das deturpações de Machado, especialmente em re
lação à obra de Molière, esclarecendo com erudição o mé
todo machadiano; “a fusão de dois elementos diversos, de
duas leituras antigas” (p. 270). A reciclagem de fontes di
versas na fatura de obras novas é o modelo shakespeariano
por excelência, que tem como base o exercício definidor
da emulação.
Porém, considerando que as onipresentes citações ex
pressavam um sintoma da vaidade do autor, o ensaísta não
pode fugir a uma conclusão decepcionante: “ Em todo o
caso, a hipótese de uma falha de memória, baseada em
confusas lembranças de leitura, não seria inadmissível ou
absurda” (p. 269).
Talvez não, mas a hipótese é simplesmente anacrônica.
Anacronismo puro e simples.
Anacronismo em estado de dicionário, sem o charme do
anacronismo às avessas, ou a complexidade do anacronismo
de mão dupla.
Aceitemos o juízo de Magalhães Júnior: o autor de
Ressurreição costuma deturpar a fonte citada. Seria melhor
pensar que o método machadiano dessacraliza o texto-ori-
gem, mas fiquemos com o termo de Magalhães Júnior. A
dificuldade maior é que o ensaísta parece não compreender
o móvel da “deturpação”. Ela corresponde a um acordo de
cavalheiros — autêntica piscadela à tradição e também ao
leitor, pois cabe a ele identificar as modificações feitas.
Exatamente como o estudioso não deixou de fazê-lo, reite
rando, ainda que à sua revelia, o caráter lúdico do xadrez de
307
palavras. Pelo contrário, a referência sempre exata demanda
a consulta permanente de textos, exigência da especializada<>
universitária. As indefectíveis notas de rodapé e as intermi
náveis querelas sobre a fonte mais adequada assinalam <
>
momento histórico no qual a tradição deixa de fazer parle
do cotidiano, transformando-se em exigência acadêmica
Haverá forma mais seca de tratar o que um dia foi repertó
rio comum? Haverá meio mais eloqüente de medir a distân
cia que se estabelece em relação a textos que um dia forma
ram parte do dia a dia da cidade letrada? A sutileza do
modelo clássico se revela na emenda a que toda auctoritas era
submetida: somente o pedante faz questão de citar palavra
a palavra, ao passo que o verdadeiro homem de letras intro
duz aqui e ali o molho de suafábrica — como Machado definiu
o teatro de Antônio José. O artesão pode ser o mesmo, mas
a taça leva outro vinho, cujo terroir determina a singularidade
do defunto autor.
Emendar o alheio, a fim de torná-lo próprio, é o modus
operandi da aemulatio. Nesse procedimento desempenha papel
central a memória, e especialmente suas falhas voluntárias.
Machado fez o favor de explicitar sua arte, mas é preciso lê-lo
com olhos bem abertos. Recorde-se o conto “Um dístico”,
publicado em I o de julho de 1886, em A Quinzena, e nunca
reunido em livro pelo autor:
308
Aproximações que não escaparam ao defunto autor em
m‘ii inusitado paralelo das Memórias póstumas de Brás Cubas
com o mesmo Pentateuco. Tal técnica é descrita na forma de
uma lembrança do defunto autor de suas travessuras de
criança. O menino Cubas, com indisfarçável alegria, denuncia
o beijo que o Dr. Vilaça roubou à D. Eusébia:
309
provavelmente um pouco longa, como não poderia deixar dr
ser no caso de um Diabo wagneriano. De qualquer modo, ou
por isso mesmo, uma peça de grande vigor. Logo a seguir, o
leitmotiv volta, marcando o compasso do texto:
311
com base em suas recordações, Bento Santiago encont 1.1 um
surpreendente consolo:
312
propriamente machadiana, a “função autor” desloca-se do
i «ntro da cena, que passa a ser ocupado pela “função leitor”.
I m Esaú eJacó e Memorial de Aires, o organizador final do tex
to é o leitor primeiro do diário de lembranças do diplomata
literalmente, um Ur-Leser. Machado elabora uma forma
literária na qual o autor abre mão do desejo de controlar a
.uitoria “exclusiva” da significação; seu procedimento sorri
dessa ideia, pois o sentido “último” é o que não há.
Dom Casmurro é a obra-prima da literatura machadiana,
uma vez que a determinação do sentido é definitivamente
transferida ao leitor. E, no entanto, não é possível determiná-lo
de maneira inequívoca. Exercício semelhante pode ser veri
ficado tanto nas Memórias póstumas de Brás Cubas quanto em
Quincas Borba, mas a radicalidade do experimento atinge seu
ponto máximo na prosa do narrador casmurro. Como um
Górgias na Rua do Ouvidor, Machado torna o impasse, pro
dutividade; a lacuna, estrutura.
Após desejar a morte de sua mãe, para livrar-se da pro
messa que ela fizera e que o obrigava a cursar o seminário,
Bentinho solicita o concurso do leitor. Leia-se o Capítulo
LXVII, “Um pecado”: “Se achares neste livro algum caso da
mesma família, avisa-me, leitor, para que o emende na segunda
edição; nada há mais feio que dar pernas longuíssimas a ideias
brevíssimas” (I, p. 880, grifo meu).
Hora, portanto, de concluir esta seção.
A ideia da leitura-colagem e do ato de emendar evocam a
técnica contemporânea do samplear, envolvendo questões
complexas relativas às noções de autoria, cópia, original e
plágio.
Aliás, o plágio pode ser criativo?
0 plágio como criação?
314
f.mi da combinação de fontes diversas, portanto, de invenções,
* nào de enredos originalmente criados pelo dramaturgo.
Somente quatro peças possuem uma história propriamente
imaginada pelo dramaturgo,71 mas, mesmo nesses casos, ele
lançou mão de sugestões diversas para cenas específicas e
laias determinadas.
As fontes shakespearianas eram múltiplas e heteróclitas:
não apenas os clássicos, mas também os contemporâneos.
Shakespeare pilhou com proveito as comédias de Plauto e
Terêncio, as tragédias de Sêneca, os relatos dos historiadores
da Antiguidade Clássica, crônicas medievais, episódios histó
ricos, lendas. Ao mesmo tempo, estudou o trabalho de seus
pares, tirando partido, sem pudor algum, de suas melhores
ideias e soluções cênicas. De igual modo, Shakespeare aper
feiçoou a arte de escrever para mais de um público, cifrando
mensagens para poucos ouvidos na audiência.
Talvez cinco?
Ou, pelo contrário, os cem leitores de Stendhal?
Shakespeare escreveu para públicos diversos, como se
depreende do apelo de John Heminge e Henry Condell, ami
gos do escritor e editores do First Folio: “À GRANDE VARIEDADE
DE LEITORES. Do mais capaz àquele que apenas pode soletrar:
todos estão incluídos.”72
316
■ .i o! ica, o drama do mouro é parcialmente reencenado em
i ' iii Casmurro, mas com a supressão de lago, pois o dilema de
"irIo reside menos no ciúme e muito mais na consciência de
ii.i condição. O aguilhão do mouro é de outra natureza:
miti indo da Mauritânia, alçado à posição de poder e prestígio
rin Veneza, centro do mundo, eixo político e econômico do
Mediterrâneo, o mouro nunca ignorou o caráter precário de
.11,1 bem-aventurança.
Antes de aprofundar essa possibilidade, recapitulo sucin-
i .i mente a leitura de Caldwell: o artifício engenhoso de
M.ichado permite retratar a natureza do ciúme como um
<irculo vicioso que, mesmo sem evidência objetiva, alimenta-se
.i si mesmo — o vaga-lume e o sol que brilham a contragosto,
mas não podem deixar de fazê-lo. Bento Santiago tenta con
vencer o leitor que Capitu e Escobar foram amantes. E, quan-
lo mais apresenta o caso perante o júri, menos parece capaz
de persuadir os leitores. Sem um lago para culpar, como jus
tificar um ciúme desproporcional, aparentemente gratuito, a
não ser apontando para o próprio ciumento, revelando o ca
ráter pouco confiável de um narrador tão parcial?
Contudo, e não é indispensável imaginar que as duas in
terpretações se excluam automaticamente, a leitura interes
sada que Bento Santiago faz da peça de Shakespeare propõe
um paralelismo que deve ser discutido. 0 mouro e Bento
Santiago são oriundos de latitude semelhante: a periferia.
Otelo, general indispensável à cidade de Veneza em tempos
de guerra, sabe muito bem que, em tempos de paz, volta a ser
um simples mouro, ocupando indevidamente o lugar que
caberia a outros. Especialmente, o cobiçado leito.
0 primeiro ato da tragédia se passa em Veneza, na im i
nência da guerra com os turcos. Nesse momento, homem
algum vale mais do que o mouro. Nas palavras enfática-..l>•
Doge: “a opinião pública, a mais alta soberana do êxito, vm
distingue com seu voto” (p. 617). Quem mais poderia en 11<•11
tar a ameaça estrangeira? Otelo é perdoado, embora tenha
318
Retornar ao ponto de partida: do centro do mundo ao
centro da periferia, passando pela periferia do centro, a ilha
de Chipre. Outra vez, identificamos as relações triangulares
que se encontram na base da formação das culturas latino-
.nnericanas.
Porém, o paralelo entre Bentinho e o mouro exige cuida
dos. Não é casual que o marido de Capitu seja leitor de Plutarco.
A comparação exige cautela, pois, ao contrário de Otelo,
Bentinho é filho da elite econômica. Nesse sentido, o perso
nagem que mais recorda Otelo é a própria Capitu. Recorde-se
a visão cruel do casmurro narrador, contaminando a lem
brança do jovem Bentinho:
319
dicção interessada de Bento Santiago, buscando convencer sr
da traição, e do tom amargurado de Dom Casmurro, cético
em relação a tudo e a todos. 0 menino de 15 anos nunca
desviaria os olhos das formas robustas da Capitu adolescente
para concentrar-se nos signos de inferioridade social: o tecido
barato e os sapatos remendados. Machado mescla as lembran
ças do jovem apaixonado, e ingênuo, com o ponto de vista do
homem amadurecido, e atormentado.
Portanto, embora em posições estruturalmente opostas,
Otelo e Capitu são personagens aparentados e precisaram
arcar com as conseqüências de sua condição. Em alguma
medida, desterrados, embora tenham conhecido o benefício
de uma ascensão temporária.
320
do raciocínio e sorrir sozinho, com esse movimento ao canto da
boca, cheio de mistérios. Recupero a citação na íntegra, cujo
jogo irônico com a ideia de imitação é notável, incluindo a
defasagem entre modelo e apropriação:
321
tilos aperfeiçoada pelo defunto autor. O exemplo nobre de
Catão se transforma no fracasso previsível de Bento Sant iny.i >
,
afinal, começar por um tomo truncado não pode senão asse
gurar um desfecho irrisório. A inadequação entre modelo e
cópia provoca o efeito cômico, resultado da simples despro
porção, pois o embaraço de Bentinho traz à cena a super11
cialidade de sua apropriação cultural. O problema não é .1
323
Em Dom Casmurro, Machado oferece outra bela homemi>*i ni
a Shakespeare, como sempre problematizando o conceito «U
autoria. No já referido capítulo IX, o narrador recorda a teoiu
de um velho tenor italiano: no princípio dos tempos, o num
do não foi um sonho, tampouco um drama, porém um.i
ópera. Marcolino explica a questão: “Deus é o poeta. A imiM
ca é de Satanás. (...)” (I, p. 817). Após ser expulso do Parais»»,
Satanás roubou o manuscrito do Pai e compôs a partituiM.
que, a princípio, Deus não queria sequer escutar. Vencido pol.i
insistência do Outro, decide representar a peça, criando “um
teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia in
teira” (I, p. 818). Alguns parágrafos adiante, o leitor encont r;i
o corolário da teoria:
324
ck‘ “influências” potencialmente se torna libertadora, porque
o fato de ser “influenciado” abre as portas da tradição literá
ria. O passado deixa de ser um peso, transformando-se num
mosaico, cuja recombinação é o traço da invenção periférica,
nào hegemônica. O que importa é não ser influenciado apenas
pelas últimas modas, mas sim pelo conjunto da tradição; se
possível, de todas as tradições.
Exatamente como na resposta irônica de M ário de
Andrade, ao ser acusado de copiar Vom Roraima zum Orinoco,
de Theodor Koch-Grünberg. Numa réplica bem-humorada às
aborrecidas acusações de ter plagiado o sábio alemão na
composição de Macunaíma, Mário transformou o problema
em produtividade: “O que me espanta e acho sublime de
bondade, é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto
sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Grünberg, quando
copiei todos.”74Não se trata de afirm ar uma hipotética origi
nalidade, aliás sempre duvidosa no caso de inventores das
culturas não hegemônicas, mas de postular uma máxima
intensidade na apropriação do alheio. É nessa mesma cir
cunstância que Oswald de Andrade lança o “ Manifesto
Antropófago”, no mesmo ano de Macunaíma, 1928. Na fórmu
la definitiva: “Só me interessa o que não é meu. Lei do ho
mem. Lei do antropófago”(p. 47).75
Em diversas ocasiões, o antropófago-mor da cultura bra
sileira retoma com olhos livres a noção de plágio.
No “Conto alexandrino”, publicado na Gazeta de Notícias,
em 15 de maio de 1883, e reunido em Histórias sem data (1884),
326
Em crônica de A Semana, saída em 27 de outubro de 1895,
Machado comenta os contos de Pedro Rabelo. Eis o que diz:
327
(II, p. 1.051, grifo meu). A caricatura do espontaneísmo n.ii»
deixa de alvejar o conceito-chave da escola romântica ■
>
resto cabia ao gênio do artista, e João Maria supunha 10 I"
(ibidem, grifo meu). Insinua-se, outra vez, a distância com -
respeitoso comentário do Machadinho na advertência •l<
Ressurreição: a lei dos gênios finalmente se revela uma ilusan
no limite, um equívoco. Afinal, sem disciplina, talento algum
se realiza. O habilidoso copiador de modelos nunca chega .1
328
ria e público leitor: eis o dispositivo que potencialmente estimu
la .1 atualização inesperada da técnica da aemulatio.
Na reta final deste ensaio, importa reiterar que tal hipó-
irse surgiu a partir da leitura dos textos machadianos.
Perceba-se, ainda, o cuidado com que sempre digo potencial
mente. Não se trata de condição necessária, mas de decisão
deliberadamente anacrônica, cujos desdobramentos discuto
na conclusão.
Hora de encerrar este capítulo com uma das mais agudas
definições do método machadiano:
76John Barth, “Foreword”, in The Floating Opera & The End oftheRoad, p. VI-VII.
329
crítico dinamarquês — afirmando com idêntico donaiiv
Descobri por um feliz acidente os romancistas Mareei Proust ou
Virgínia Woolf.
330
Menard — e sempre anacronicamente; às avessas, multipli
cando precursores.
Shakespeare, no juízo do velho tenor italiano.
Ou: um obsessivo leitor de Otelo.
Machado inventou um modo de transformar o dilema da
secundidade em princípio formal, cujo alcance no plano da
política cultural leva longe.
Conclusão
Ecos de Paris?
333
inglesa, Shakespeare, o New Criticism, a tradição oi íd< ui .«I
e tutti quanti, seriam universais? Se a pergunta se clfsi in • (
mascarar os nossos déficits de ex-colônia, não vale .1 i- 1 . 1
comentá-la. Se o propósito é duvidar da universalitl.iil. -U
universal, ou do localismo do local, ela é um bom puniu >l«i
partida.
Política da emulação?
334
porém, de uma potência, cuja atualização demanda um
esforço determinado.
De outro lado, nos contextos não hegemônicos, o cotidia
no tanto da vida literária como das universidades termina
por legitimar o desequilíbrio estrutural, pois os valores he
gemônicos são adotados sem maiores questionamentos. Nos
Iestivais literários que (felizmente) se multiplicam em todo o
país, as estrelas são (quase) sempre autores estrangeiros. Nos
centros de pesquisa, os modelos teóricos de plantão são escri
tos em dois, no máximo, três idiomas — os das “grandes
nações pensantes”: a definição de Eça continua válida.
A reação de Camilo Seabra permanece perturbadoramen-
te atual. Ele é o protagonista de “A parasita azul”, conto pu
blicado em várias entregas no Jornal das Famílias, entre junho
e setembro de 1872, e recolhido no ano seguinte em Histórias
da meia-noite.
Escutemos o narrador:
335
acerca do futuro do livro o escritor francês menciona, com
evidente surpresa, “uma edição dos Miseráveis publicada •
impressa no Rio, em português, em 1862, isto é, no miMim
ano da publicação do livro na França. Apenas dois mr.<
depois de Paris!”77
O ritmo dominante nos textos oitocentistas reconl.i o
samba de uma nota só. Tudo se passa como se o tempo il.i
cultura batesse em uníssono e o seu meridiano passasse pelas
capitais definidoras da modernidade: Paris e Londres. É mm
to difícil compreender os dilemas e as ambições de autoivs
como Machado e Eça desconsiderando essa conjuntura. Tanto
sua visão do mundo como sua formação literária dependeram
dessa experiência.
A poética da emulação representa uma resposta subjetiva
a uma situação concreta de grande desequilíbrio nas relações
de poder cultural. Há o risco, contudo, de celebrar a assime
tria, já que ela favorece a emergência de um conjunto de
procedimentos críticos, cujas conseqüências são fundamen
tais no campo da arte e do pensamento.
Como antídoto, proponho uma leitura de “O espelho —
esboço de uma nova teoria da alma humana”, publicado na
Gazeta de Notícias, em 18 de dezembro de 1881, e coligido no
ano seguinte em Papéis avulsos.
Nos primeiros parágrafos, o narrador do conto prepara o
cenário, retornando no final do relato, e ainda assim de forma
enigmática: “Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha
descido as escadas” (II, p. 352). Esse “segundo” narrador é o
alferes Jacobina; o autor do relato, constituído pela lembran
ça de episódio ocorrido na juventude.
77Umberto Eco e Jean-Claude Carrière. Não contem com ofim do livro. Tradução
de André Telles. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 49. Nas próximas ocorrên
cias, apenas cito o número de página.
336
Jacobina principia a história explicitando a teoria aludida
no título: “Cada criatura humana traz duas almas consigo:
uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para
dentro...” (II, p. 346). Respectivamente, as almas interior e
exterior. O corolário da hipótese supõe uma filosofia peculiar.
Na doutrina do alferes, o homem é, “metafisicamente falan
do, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde natu
ralmente metade da existência; e casos há, não raros, em que
a perda da alma exterior implica a da existência inteira”
(ibidem).
Não deixa de ser divertido ler estudos desse conto que
levam muito a sério a teoria do alferes Jacobina. Algumas
análises são mesmo sugestivas e inteligentes. Contudo, por
que não reconhecer o tom herói-cômico da definição: metafi
sicamente falando, uma laranja.
Uma laranja?
Metafisicamente falando?
A trama é mais complexa do que a teoria: jovem e sem
recursos, aos 25 anos, Jacobina foi nomeado alferes da Guarda
Nacional. Sua família encantou-se com a ascensão social: “Nào
imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha
mãe ficou tão orgulhosa! tão contente!” (II, p. 347). Uma tia,
D. Marcolina, viúva do capitão Peçanha, convidou Jacobina
para visitá-la em seu sítio. Todos demonstravam o devido
respeito: ele não era mais o Joãozinho do passado, mas o al
feres do presente, e sabe-se lá que posto no futuro. Tudo
corria às m il maravilhas, o rapaz era tratado como gente
grande. Porém, como uma filha adoeceu, a tia precisou viajar.
Habituado a ser reconhecido pela patente, Jacobina desco
briu-se sozinho, na companhia de escravos. Para um homem
livre, mas de origem modesta, uma inquietante forma de
solidão no Brasil oitocentista. Muito em breve principiou a
337
duvidar da própria existência, sobretudo depois que o-........ .
vos fugiram. Na cortante formulação de Machado, "o .ill* »<t
eliminou o homem” (II, p. 348). O posto se sobrepôs ,io •u|. i
to, o papel social revelou-se mais importante do que o imll
víduo.
Sem o espelho proporcionado pelo olhar do outro, J;u «>
1>i111
tornou-se invisível — especialmente a seus olhos. Recoi i •u t
terapêutica mais óbvia: mirou-se no grande espelho da «. i •,
relíquia da época da “corte de D. João V I” (II, p. 347). Nail.i
sua imagem apareceu “vaga, esfumada, difusa, sombi.i il«'
sombra” (II, p. 350). Desesperado, lançou mão de recurso qm
se revelou infalível. Jacobina vestiu a farda de alferes e voltou
a olhar-se no espelho. Como ensina o provérbio, o hábito f.i/
o monge: “era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alm.i
exterior” (II, p. 351-52). A construção da frase é mais ardilosa
do que parece à primeira vista.
A astúcia do segundo narrador ajuda a atar as pontas tio
meu argumento.
Se o “eu mesmo” é o próprio alferes - ou seja, a farda, vale
dizer, a patente -, a sentença revela-se tautológica, chegando
a comprometer o sentido da afirmação. Mais lógico seria dizer:
“era eu, Jacobina, que achava, enfim, minha alma exterior,
o alferes”. Se o eu é a própria farda, qual o papel da alma
interior? Esse “eu” não “é um outro”, como desejava o Rimbaud
adolescente. Esse eu é tão só “eu mesmo”.
Repetição, nunca diferença.
Em passagem anterior, Jacobina havia recordado seus es
forços para sobreviver à solidão. Ele tentou dormir, pois “o
sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixa
va atuar a alma interior” (II, p. 350). O alferes, portanto,
deixaria o centro da cena para a ressurreição de Jacobina. Eis
o resultado da automedicação: “Nos sonhos, fardava-me
338
••11.u1hosamente, no meio da fam ília e dos amigos, que me
Ho^iavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um
,mligo da casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de
•.ipitâo ou major; e tudo isso fazia-me viver” (ibidem).
De novo, a frase implica uma contradição lógica, reduzin
do a alma interior aos atributos da alma exterior. Sem uma
diferença nítida entre as duas almas, como sustentar a teoria
descrita no conto? Antes de receber a patente, quem era o
.i líeres? Além da idade, só se sabe que era pobre. Do ponto de
vista da representação social, até ingressar na Guarda
Nacional, Jacobina passou 25 anos não existindo. A alma in-
lerior parece uma miragem; simples necessidade formal para
assegurar visibilidade à alma exterior. Porém, se a alma in
terior vale tão pouco, o próprio conto desautoriza a teoria das
duas almas. A leitura maliciosa revela-se o duplo da escrita;
se a alma exterior, a farda, é o elemento central do conto,
como entender seu subtítulo: “esboço de uma nova teoria da
alma humana”? Efeito semelhante é produzido pela leitura
da “Teoria do medalhão”, ocasionando um curto-circuito.
Essa é a forma propriamente machadiana de tornar a técnica
da aemulatio um ato específico de leitura; ato caracteristica-
mente moderno, a forma livre no plano da recepção.
Esse curto-circuito se intensifica porque o espelho é uma
superfície que, em si, nada é. Por isso, pode refletir imagens
diversas e até mesmo opostas. O que revela um espelho vol
tado para outro? A capacidade inventiva da ficção; a possibi
lidade de produzir imagens que sem o espelho seriam invisí
veis. Eis a compreensão m achadiana da potência da
literatura. Nesse registro, a poética da emulação é pura in
venção, permitindo ao autor de “O imortal” freqüentar todas
as épocas, superando com proveito os limites de sua condição.
Porém, o autor de A mão e a luva ambientou sua reflexa* i
num cenário escolhido a dedo: um homem livre, pobre, qti«
ascendeu socialmente, e, ao encontrar-se “sozinho” no meio
de escravos, passa por uma crise de identidade. Eis a inteli
gência machadiana dos desafios impostos pela circunstância
brasileira. Daí, dissociar obra e experiência histórica implii .1
um empobrecimento desnecessário da análise, muito embo
ra tenha concentrado meu interesse à roda da biblioteca.
A ficção machadiana dialoga com sua circunstância e, ao
mesmo tempo, elabora uma forma nova de entendê-la. Os
dois gestos são um só, e cabe preservar 0 trânsito entre as
duas dimensões. Não vejo outro modo de estar à altura da
complexidade do sistema literário Machado de Assis.
Machado aprendeu a lidar ironicamente com a condição
periférica, através de um modelo de relacionamento com a
tradição, cujo eixo é a oscilação produtiva entre extremos.
Ele anunciou esse método em mais de uma ocasião, porém,
como era de seu feitio, obliquamente.
Leia-se “A Sereníssima República”, publicado na Gazeta de
Notícias, em 20 de agosto de 1882, e reunido no mesmo ano
em Papéis avulsos. O conto transcreve uma “conferência do
cônego Vargas”. Compenetrado, ele comunica ao mundo uma
descoberta científica de grande alcance: “uma espécie ara-
neida que dispõe do uso da fala” (II, p. 341). Além de satirizar
os costumes políticos locais, Machado lança uma garrafa ao
mar. Eis a mensagem do cônego Vargas:
340
que um sábio inglês descobriu a linguagem fônica dos inse
tos, e cita o estudo feito com as moscas. Escrevi logo para a
Europa e aguardo as respostas com ansiedade. Sendo certo, po
rém, que pela navegação aérea, invento do padre Bartolomeu,
é glorificado o nome estrangeiro, enquanto o do nosso patrí
cio mal se pode dizer lembrado dos seus naturais, determinei
evitar a sorte do insigne Voador, vindo a esta tribuna, pro
clamar em alto e bom som, àface do universo, que muito antes
daquele sábio, e fora das ilhas britânicas, um modesto natu
ralista descobriu cousa idêntica, efez com ela obra superior. (II,
p. 340, grifos meus)
341
O parágrafo de abertura de “O alienista” deriva dcv, i
desproporção um efeito irresistivelmente cômico:
342
iornou à ordem do dia na disputa entre os irmãos W right e
Santos Dumont pela primazia na invenção do aparelho voador
mais pesado do que o ar.
A poética da emulação é uma potência.
No fundo, poucas vezes atualizada na história cultural
latino-americana.
Civilização Nescafé?
343
não há criação sem tradição que a alimente, como não huvc
rá tradição sem criação que a renove.”78 O leitor identifica .1
345
dade de imposição de uma voz hegemônica, em geral ivpi *
sentada pelo idioma dos poderes econômicos e políti»
dominantes.
Não pretendo transformar este ensaio num panfleto pi<
visível — fora de lugar, aquém do tempo e carente de inteiv.
se. Apenas desejo rematar meu raciocínio associando a rei I»
xão acerca do resgate deliberadamente anacrônico il.i
aemulatio à pergunta de Ricardo Piglia: 0 que acontece quando
se pertence a uma cultura secundária? 0 que acontece quando sr
escreve numa língua marginal? No fundo, tão ingênuo quanto
acreditar que a condição não hegemônica implica algum.i
espécie de vantagem cognitiva inata é ignorar que as cond i
ções objetivas de produção e circulação de conhecimento
acadêmico e de invenção artística obedecem à economia do
poder político.
É preciso encontrar um meio-termo entre o elogio, por
certo tonto, do atraso, e a negação, igualmente tola, da assi
metria nas trocas simbólicas internacionais.
Eis o pulo do gato de Machado, possibilitado pela desco
berta da poética da emulação.
Hora de dar voz ao interdito: a avaliação feita por um
autor brasileiro de sua obra costuma levar em consideração
a limitada circulação do português, o que influi diretamente
no seu reconhecimento. Se o crítico estiver interessado no
contexto oitocentista, não há como escapar à miríade de
textos relativos a esse dilema. Recordei, em mais de uma
ocasião, a implacável regra de três queirosiana, e vimos que
ela se mantém atual: “a Faute de VAbbé Mouret devia estar para
0 crime do padre Amaro como a França está para Portugal.
Assim achou sem esforço esta incógnita: PLAGIATO!”
Difícil encontrar instância mais evidente do desequilíbrio
estrutural nas trocas simbólicas.
346
No século XIX, mesmo nas décadas iniciais do século se
guinte, os ecos de Paris e de Londres foram onipresentes e
assombraram autores de latitudes as mais diversas: de Georg
Brandes a Eça de Queirós; de Domingo Faustino Sarmiento a
Machado de Assis, sem esquecer Richard Wagner.
Ecos de Paris é o título de um volume póstumo de Eça,
publicado em 1905, e composto por crônicas publicadas no
jornal brasileiro Gazeta de Notícias. Seus textos eram publica
dos com destaque, na primeira página ou no folhetim, e
exerceram influência considerável na intelectualidade da
época. Num artigo de 1880, o autor de A capital descreve o
impasse:
79Eça de Queirós. Ecos de Paris. Porto: Livraria Lello & Irmãos, 1945, p. 6 e 8,
grifos meus. Nas próximas citações, anotarei apenas a página da ocorrência.
347
Não quero dizer que haja duas humanidades, a alta e a baixa,
e que nós sejamos desta última; talvez a humanidade se re
nove um dia pelos seus galhos americanos; mas, no século em
que vivemos, o espírito humano, que é um só e terrivelmente
centralista, está do outro lado do Atlântico; o Novo Mundo
para tudo o que é imaginação estética ou histórica é uma
verdadeira solidão (...).80
348
No caso, a cultura e a língua francesa.
Poderia ser o domínio do inglês e de sua literatura.
E ainda um conhecimento básico do alemão e do grego,
apenas para degustar o prazer de ler textos com a surpresa
de quem os decifra pouco a pouco.
O importante é nunca deixar de ampliar o repertório. E
de modo a também incorporar a própria cultura, encontran
do nela vida nova e original.
Por que não? Acreditar-se cosmopolita a ponto de desde
nhar o que se faz aqui e agora é a forma mais melancólica de
provincianismo.
Contudo, o extremo oposto deve ser laboriosamente evitado.
Daí, a crítica irônica de Machado ao projeto do “Sr. Dr.
Castro Lopes, ilustre latinista brasileiro, [que] começou uma
série de neologismos, que lhe parecem indispensáveis para
acabar com palavras e frases francesas” (III, p. 517). A conclu
são da crônica, publicada na série Bons Dias, em 7 de março
de 1889, é uma deliciosa boutade:
349
julgava viver em sua longínqua Dinamarca: “nos últimos dias
estamos sepultados debaixo de neves repugnantes; separados
da Europa” (p. 88, grifo meu).
Richard Wagner também sucumbiu ao canto da sereia dos
ecos de Paris.
Mas quem resistiu no século X IX ?
Mesmo no século XX, se pensarmos na chamada lostgene-
ration dos norte-americanos que cumpriram à risca o ritual
de peregrinação à Cidade Luz. Ou se lembrarmos dos artistas
latino-americanos que “descobriram” seus países em Paris,
Londres ou Nova York. Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral
e Anita Malfatti incluídos na eclética lista.
Wagner foi um pouco além.
Não apenas se endividou, apostando num êxito parisiense,
que idealmente seria convertido em lucros generosos. O vo
luntarioso compositor fez uma concessão estética de peso,
modificando a abertura de Tanhàuser, ópera com a qual ima
ginava conquistar Paris.
Na tradição operística francesa, o primeiro ato se abre com
um número de dança. Wagner não hesitou em adaptar sua
concepção original, escrevendo uma nova abertura para a
estreia parisiense de Tanhàuser. O esforço, porém, não foi re
compensado: o estilo wagneriano desorientou o público —
com a notável exceção de Baudelaire, que desde o primeiro
momento se maravilhou com o compositor.
350
Poética da emulação
_
Debalde, porém, se procura agora uma notícia, mesmo falsa,
sobre o Brasil. Nada! É como se o almirante Melo e os seus
couraçados se tivessem sumido para sempre nas brumas
atlânticas. Que digo? É como se oBrasil tivesse desaparecido — ou
antes tivesse entrado naquela era de felicidade, classicamen-
te conhecida, em que os povos deixam de ter história, (p. 127,
grifos meus)
Intensidade estrutural
353
mânticas num ambiente pós-romântico. De igual modo, con
siderei as conseqüências políticas desse resgate extemporâneo.
John Barth entendeu perfeitamente a questão ao observar
como Machado desenvolve uma maneira própria de ser simul
taneamente Romântico e romântico — no meu vocabulário, ao
mesmo tempo “pré-romântico” e “pós-romântico”.
Busquei, assim, enfatizar o sentido estratégico e não es
sencial da poética da emulação.
Não poderia ser diferente: seus procedimentos pertencem
potencialmente a autores de qualquer latitude. Seria absurdo,
do ponto de vista do mais elementar conhecimento de histó
ria literária, lim itar à condição periférica os elementos estu
dados no Capítulo 3.
Recorde-se o conjunto: o fenômeno da compressão dos
tempos históricos e, daí, o exercício do anacronismo delibe
rado; o primado da invenção sobre a criação, portanto, a
centralidade da tradução; a precedência da leitura em lugar
da escrita, logo, uma noção especial de autoria.
Isoladamente, tais elementos se encontram em qualquer
contexto, assim como na obra de autores os mais diversos. A
força que atribuo ao caráter anacrônico da poética da emu
lação depende da articulação simultânea de todos esses pro
cedimentos.
No Capítulo 2, sugeri esse ponto ao recordar o ensaio de
T.S. Eliot, “Tradition and the Individual Talent”, publicado
em 1919. De fato, boa parte dos procedimentos da poética da
emulação é perfeitamente descrita pelo poeta-crítico.
Nas suas palavras:
354
Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer ofício, pos
sui seu sentido completo em si mesmo. Sua relevância, sua
avaliação depende de sua relação com poetas e artistas mor
tos. (...) o que ocorre quando uma nova obra de arte é criada,
é algo que ocorre simultaneamente a todas as obras de arte
que a precederam.
(...)
82T.S. Eliot. “Tradition and the Individual Talent”. Londres: Faber & Faber,
1932, p. 14-16. Nas próximas citações, indico apenas o número da página.
355
Para todo aquele que aprovou essa ideia de ordem, da forma
de literatura europeia, de literatura inglesa, não parecerá absur
do que o passado deva ser alterado pelo presente, assim como
o presente é guiado pelo passado, (p. 15)83
356
tradições: a europeia e a sua. A questão nada tem a ver com
número de livros na estante, mas à necessidade de estabelecer
relação entre eles, imaginando critérios de leitura, cuja am
pliação favorece a intensidade estrutural que caracteriza a
poética da emulação. A diferença, portanto, não é de natureza,
mas de grau. A fome latino-americana, identificada por Carlos
Fuentes, exige um processo singular de assimilação das ideias
apropriadas. A noção de intensidade estrutural relaciona-se
a essa exigência.
Tal noção, reconheço, parece excessivamente vaga; um
conceito a que nos aferramos quando não sabemos exatamen
te o que dizer.
Ou como colocar o ponto final num livro.
Pois bem.
Retorno ao diálogo de Jean-Claude Carrière e Umberto Eco.
O mediador do colóquio, Jean-Philippe de Tonnac, propôs uma
pergunta em aparência anódina. A resposta de Eco e Carrière,
contudo, vale por um esclarecimento definitivo da noção de
intensidade estrutural.
Uma definição pelo avesso.
Cito a passagem na íntegra; ela é longa, mas indispensável:
357
e não ser famoso. Estive uma vez na Geórgia, e me disseram
que seu poema nacional, 0 homem da pele de tigre, era uma
imensa obra-prima. Acredito, mas ela não teve a repercussão
de Shakespeare!
Em segundo lugar, um país deve ter atravessado os gran
des acontecimentos da história para produzir uma consci
ência capaz de pensar de forma universal.
JCC: Quantos Hemingway nasceram no Paraguai? Talvez
tivessem, ao nascer, capacidade para produzir uma obra de
grande originalidade, de uma força genuína, mas não o fi
zeram. Nào puderam fazê-lo. Porque não sabiam escrever.
Ou então porque não existia editor para se interessar por sua
obra. Talvez até mesmo ignorassem que podiam escrever,
que podiam ser “um escritor”, (p. 132-33)
358
é a redução considerável do repertório cultural. Essa natura
lização lim ita a intensidade do emprego dos procedimentos
definidores da poética da emulação.
Já o perfil de europeísta implica uma ampliação de refe
rências, idiomas, literaturas e culturas, cujo processamento
demanda a alta voltagem que define a intensidade estrutural
que associo, potencialmente, à condição não hegemônica.
É o que tenho a oferecer: além da descoberta do campo
semântico da emulação na estrutura profunda da obra ma
chadiana, a postulação da intensidade estrutural como traço
próprio da poética da emulação.
* * *
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A Coleção Contemporânea se
COLE ÇÃO
propõe a tratar de temas atuais
CONTEM
nas áreas de Filosofia, Literatura
PORÂNEA
& Artes. Participam dela nomes
é o de um pensamento original,
preservando a profundidade e
o rigor da reflexão.