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Tulio Kawata
Índice onomástico Sandra Kato
Diagramação Eduardo Amaral
Capa Deborah Mattos
Imagem de capa Christ of John of the Cross -
Salvador Dali © CSG CIC
Glasgow Museums
Collection
Conversão eBook Hondana

ISBN 978-858-240-081-4

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


ANGÉLICA ILACQUA CRB-8/7057

Petitfils, Jean-Christian
Jesus: a biografia / Jean-Christian Petitfils; tradução de Lea P. Zylberlicht,
Gian Bruno Grosso. - São Paulo : Benvirá, 2015. 528 p.

Bibliografia
ISBN 978-85-8240-080-7
Título original: Jesus

1. Jesus Cristo - Biografia 2. Jesus Cristo - História I. Título II. Zylberlicht, Lea P.
III. Grosso, Gian Bruno 1

CDD 232.9
5-0124
CDU 232(09)

Índice para catálogo sistemático:


1. Jesus Cristo - História
Este livro foi originalmente publicado em 2011.
Copyright © Librairie Arthème Fayard, 2011.
Todos os direitos reservados à Benvirá,
um selo da Editora Saraiva.
www.benvira.com.br

Nesta edição, os trechos da Bíblia foram extraídos da tradução


Almeida Revista e Atualizada, disponível no site
da Sociedade Bíblica do Brasil: www.sbb.org.br
Tradução de João Ferreira de Almeida - Edição Revista
e Atualizada, 2a edição®
Copyright © 1993 Sociedade Bíblica do Brasil
Todos os direitos reservados. Citado com permissão.

1a edição, 2015

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou
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crime estabelecido na lei no 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.

545.720.001.001
Para Éliane, minha irmã
Sumário

PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
JOÃO BATISTA
CAPÍTULO 2
CRISE POLÍTICA E ESPERA MESSIÂNICA
CAPÍTULO 3
JESUS E O PRECURSOR
CAPÍTULO 4
A FASE INICIAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO
CAPÍTULO 5
JERUSALÉM E O MINISTÉRIO DA JUDEIA
CAPÍTULO 6
DE SAMARIA PARA A GALILEIA
CAPÍTULO 7
O ENSINAMENTO DE JESUS
CAPÍTULO 8
JESUS E SEUS DISCÍPULOS
CAPÍTULO 9
O SINAL DE CONTRADIÇÃO
CAPÍTULO 10
DE JERUSALÉM AO MINISTÉRIO PÓS-GALILEIA
CAPÍTULO 11
O CONFRONTO
CAPÍTULO 12
DO ÚLTIMO INVERNO À ÚLTIMA PRIMAVERA
CAPÍTULO 13
A CEIA
CAPÍTULO 14
O COMPARECIMENTO DIANTE DE ANÁS
CAPÍTULO 15
O PROCESSO ROMANO
CAPÍTULO 16
O FINAL DO PROCESSO ROMANO
CAPÍTULO 17
A CRUCIFICAÇÃO
CAPÍTULO 18
A MORTE
CAPÍTULO 19
O SEPULTAMENTO
CAPÍTULO 20
A RESSURREIÇÃO

EPÍLOGO
ANEXO I
ANEXO II
ANEXO III
ANEXO IV
ANEXO V
ANEXO VI
ANEXO VII
NOTAS
INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

AGRADECIMENTOS
ÍNDICE ONOMÁSTICO
Prólogo

Jesus é a figura mais conhecida da história universal. Cerca de um


terço da humanidade, em diferentes níveis, recorre a ele – ao seu
ensinamento espiritual ou à sua mensagem ética. Ele se encontra na
origem da religião mais difundida no planeta, o cristianismo, tronco
comum ao qual se incorporam católicos, ortodoxos, luteranos,
calvinistas e anglicanos. Os evangelhos, onde estão relatados sua
vida e seu ensinamento, formaram numerosas culturas,
principalmente as da civilização ocidental. Além de seu valor moral,
no passado, eles inspiraram fortemente a arquitetura, a escultura, a
pintura e a música das culturas ocidentais, e, de forma mais geral, o
seu modo de vida. Apenas mais recentemente a fé se tornou uma
escolha pessoal. O próprio Alcorão, cuja redação data do século VII
da nossa era, reconhece em Jesus um dos grandes profetas que
precederam Maomé.
Além das afirmações da fé cristã, resumidas no Símbolo (ou
Credo) dos Apóstolos, que remonta, em sua primeira versão, ao final
do século II, e no Credo originário dos concílios ecumênicos de
Niceia (325) e de Constantinopla (381), que o tornam o único filho
de Deus vindo sobre a terra, morto e ressuscitado para os pecadores,
inumeráveis são aqueles, crentes ou descrentes, que se interessam
por sua figura histórica. Nesses últimos anos, multiplicaram-se as
obras sobre ele, principalmente nos Estados Unidos, onde a pesquisa
é efervescente (centenas teses foram escritas tanto em institutos
religiosos como em universidades públicas). Na Europa ocidental,
amplamente laica, a fascinação do público por Jesus não cessa. Seria
a perda de referências religiosas a causa que estimula o interesse por
sua pessoa e seu mistério?
As fontes documentais são bem conhecidas: os quatro evangelhos
canônicos (recomendados pela Igreja primitiva como referências
religiosas confiáveis, inspiradas divinamente), aqueles de Mateus,
Marcos, Lucas e João, as epístolas apostólicas, alguns evangelhos
ditos apócrifos, que por um ou outro motivo não fazem parte do
corpus cristão tradicional, algumas raras passagens de autores não
cristãos, como as do historiador judeu do século I, Flávio Josefo, e,
por fim, alguns extratos da Mishná (compilação das leis não escritas
do judaísmo antigo, transmitidas pela tradição). Essas fontes são
fragmentárias, certamente, mas em última análise são mais
abundantes e mais esclarecedoras do que as relativas a muitos
personagens históricos da Antiguidade, como Sócrates, Pitágoras,
Alexandre, o Grande, ou a maior parte dos imperadores romanos.
Embora Jesus não tenha deixado qualquer escrito, nenhum
historiador sério em nossos dias duvida de sua existência. Não foi o
caso, no século XIX, de David Friedrich Strauss, Christian Baur,
fundador da escola de Tübingen (influente escola teológica e
exegética iniciada em 1819 pelo católico Johann Sebastian Drey) ou,
ainda, no século XX, de Paul-Louis Couchod, líder dos “mitólogos”.
Um judeu chamado Yeshua (Jesus), isto é certo, viveu na Palestina
no início do século I da nossa era. Pregador itinerante que percorria
a Galileia e a Judeia, ele foi detido por instigação do alto sacerdócio
de Jerusalém, os sumos sacerdotes Anás e José, dito Caifás, seu
genro. Após um breve processo, foi condenado à morte e crucificado
às portas da Cidade Santa por ordem do governador romano Pôncio
Pilatos, durante o reinado de Tibério. Esses são os fatos
comprovados. Mas numerosas são as questões que permanecem
sobre esse assunto. O que sabemos sobre o conjunto de sua vida?
Como ele era visto por seus contemporâneos? Um reformador judeu?
Sim, mas de que tipo? Ele se considerava o libertador de Israel ou o
Profeta do final dos tempos? Por qual motivo foi executado? Qual a
responsabilidade que os governantes romanos e as autoridades
oficiais do Templo tiveram na sua morte trágica? Foi ele
verdadeiramente o fundador do cristianismo?
Os evangelhos canônicos, propriamente falando, não são
reportagens — ainda que se assemelhem a isso, particularmente o de
Lucas — nem biografias à moda antiga, que evocam a figura de um
mestre admirável que já morreu e que seus discípulos veneram. São
especialmente testemunhos escritos para suscitar ou confirmar a fé,
as catequeses biográficas, destinadas a mostrar que esse Jesus de
Nazaré, executado como um indigente, por ocasião da Páscoa
judaica, ressuscitou de fato no terceiro dia e continua vivo, presente
no meio dos seus. A morte foi definitivamente vencida por ele e seus
discípulos são chamados a se juntarem a ele no reino de Deus. Essa é
a essência da mensagem crística, o que torna Jesus, para os crentes,
o eixo do mundo. “E, se Cristo não ressuscitou”, dizia o apóstolo
Paulo, “logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé.”1 As
perguntas permanecem: os textos religiosos, em suas afirmações,
não alteraram a verdadeira face de seu herói, censurando as suas
palavras? A memória das testemunhas não falsificou os dados
históricos? Não houve, como alguns proclamam, uma utilização
fraudulenta pelas Igrejas de sua mensagem de fraternidade e de
amor? Em suma, como restituir a humanidade de Jesus
independentemente da prédica pós-pascal do Cristo triunfando sobre
a morte? Como passar do texto à história?
Alguns pesquisadores só percebem em Jesus um mestre de
sabedoria, à imagem de Buda, Sócrates, Confúcio ou Gandi; outros,
um rabino exemplar, ou mesmo um fariseu semelhante ao grande
Hilel;[1] outros, ainda, um filósofo cínico, um dissidente essênio, um
visionário apocalíptico e iconoclasta, um profeta escatológico que
afirma a iminência do final dos tempos, um pretendente político à
realeza messiânica judaica, um zelote revolucionário, um precursor
da causa palestina ou uma espécie de Che Guevara, anunciador da
teologia da libertação, etc. É cômodo afirmar, de acordo com essas
diferentes perspectivas, que a vida do homem de Nazaré foi ocultada
pela religião ou pela Igreja institucional e erigir um de seus
discípulos ulteriores, Saulo de Tarso, chamado Paulo, como
verdadeiro fundador do cristianismo.
Cada época fez de Jesus o reflexo de suas próprias preocupações.
Na França, na época da Revolução [1789], vimos aparecer a figura
de um Jesus “sans-culotte”,[2] em seguida, por ocasião da Revolução
de 1848, a de um Jesus proletário e socialista. No início do século
XX, o inglês Houston Stewart Chamberlain, inspirador das teorias
nazistas, até retratou um Jesus ariano, que não tinha “uma única
gota de sangue judeu”! Outros, nos dias atuais, com base num
pretenso evangelho secreto de Marcos (cujo manuscrito original
ainda hoje esperamos ver), gostariam de torná-lo um homossexual,
enquanto os americanos proclamam um Jesus feminista. O retorno
vigoroso do esoterismo e da gnose — uma gnose de qualidade
inferior, evidentemente —, como aquela que se extrai do romance O
Código Da Vinci, de Dan Brown, com sucesso comercial no mundo
todo, traduz a falta de rigor científico de uma parte da pesquisa.
Para alguns, Jesus, um “grande iniciado”, escapa da cruz de madeira
e se refugia num mosteiro do Tibete; para outros, ele casa com
Maria Madalena, a bela pecadora, com a qual terá um filho que
estaria na origem da dinastia dos merovíngios… No cerne dessa
subliteratura encontra-se um “enigma sagrado”, um segredo mortal
transmitido de geração a geração por alguns círculos ocultistas e
abafado pelas vestes negras dos jesuítas, pelas vermelhas do
Vaticano, pelos adeptos da Opus Dei ou, pelo contrário, protegido
pelo Priorado do Sião… Quanto maior a farsa, mais real ela parece
ser!
Vamos deixar de lado os “Jesus de cinema” para retomarmos a
expressão de um biblicista renomado, o padre Pierre Grelot. O que
diz a história? Em junho de 1863, aparecia a Vida de Jesus, de Ernest
Renan, que pretendia ser uma pesquisa autêntica sobre o Jesus
histórico. Essa não foi a primeira tentativa do gênero. No século
XVIII, o filósofo alemão Hermann Samuel Reimarus (1694-1768)
havia tentado, para além das afirmações evangélicas, reencontrar o
“Jesus da História”. Mas como ele mesmo não ousou publicar suas
obras, seu amigo Gerhard Lessing difundiu alguns extratos depois da
sua morte. Para ele, Jesus era um messias revolucionário que
proclamava a vinda do reino de Deus sobre a Terra e que os
romanos tinham executado friamente. Seus discípulos, recusando-se
a voltar à sua pobre existência anterior, roubaram o seu corpo,
fizeram todos acreditarem em sua ressurreição e inventaram uma
doutrina espiritual fundamentada na espera de seu retorno. Depois
de Reimarus, foi publicada, em 1835-1836, a Vida de Jesus, escrita
por um jovem assistente da faculdade de teologia de Tübingen,
David Friedrich Strauss, para quem o conjunto dos dados evangélicos
era apenas o produto de uma imaginação mítica. Tudo se reduzia a
símbolos sem nenhuma realidade histórica. Mas somente o estudo de
Renan obteve uma repercussão mundial com centenas de edições e
dezenas de traduções. O antigo seminarista de Tréguier[3] recolocava
em questão as verdades históricas do cristianismo. De maneira
contrária a Strauss, ele afirmava que Jesus havia existido, mas que
era apenas um idealista sensível, um “afável sonhador da Galileia”.
O livro deixou de ser usado. Entretanto, uma de suas auspiciosas
intuições foi a de considerar que o âmbito mais histórico é fornecido
pelo evangelho de João e não pelos três outros, chamados
evangelhos sinópticos.[4]
Mais tarde, os progressos da pesquisa foram consideráveis,
primeiro na exegese neotestamentária, na qual o campo de estudos
bíblicos ampliou-se extraordinariamente, projetando um novo
esclarecimento sobre os textos sagrados do Antigo e do Novo
Testamento. Os alemães se destacaram nisso, examinando em
detalhe palavra por palavra, versículo por versículo, analisando
suas estruturas, assinalando e isolando da trama do texto as
pequenas unidades narrativas (chamadas perícopes). Fala-se de
Formgeschichte (história das formas) e de Redaktiongeschichte
(história da redação). Dessa forma, nasceu, desenvolveu-se e tornou-
se mais requintado o método histórico-crítico. Sucedeu-se a ele, mais
recentemente, a crítica narrativa, que estuda o texto como produção
literária global. Mas essa análise estrutural ou semiótica dos relatos
tem o inconveniente de negligenciar por completo a realidade
histórica subjacente. Ela dedica-se a explicar o que o autor do texto
quis dizer, sem ir além disso.
De um ponto de vista histórico, podemos diferenciar três épocas.2
A primeira, representada pelos “costumes liberais” da escola alemã,
mas também francesa, com Renan (inspirado pela escola dita de
Estrasburgo), termina em 1906 com a obra de Albert Schweitzer
(1875-1965), o célebre médico missionário, organista e Prêmio Nobel
da Paz, que destrói a ideia de que se pode fazer uma biografia de
Jesus.3 Esses trabalhos, afirmava ele, nos ensinam mais sobre seu
autor do que sobre o seu assunto.
Como reação contra os primeiros ensaios biográficos sucedeu-se o
“momento Bultmann”.4 Para Rudolf Bultmann (1884-1976), exegeta
luterano sutil e qualificado, erudito com um espírito crítico muito
cáustico, mestre da suspeita por excelência, os evangelhos seriam
obras em parte míticas e em parte lendárias, produtos da
imaginação criativa e de elaboração redacional das comunidades
pós-pascais. Eles teriam sido forjados para responder às suas
preocupações concretas ou às suas necessidades imediatas de
catequese, enfeitando, embelezando a realidade com contos e
fábulas. O pouco de tradições que subsistia do Jesus autêntico teria
sido filtrado, retrabalhado e tornado irreconhecível. Dessa
perspectiva, a tarefa do sábio seria, portanto, a de “desmitificar”
tais textos por meio de uma interpretação crítica de sua linguagem,
para reencontrar o verdadeiro cerne da fé, para além das crenças
míticas. O resultado de sua pesquisa, publicado a partir de 1926 na
Alemanha, é extremamente decepcionante para o historiador.
Bultmann, com efeito, sustenta que não há estritamente nada a dizer
sobre a existência de Jesus, porque, desde o início, tropeça-se nas
afirmações de fé — o kérygme [5] — da Igreja primitiva. A
ressurreição pascal é uma muralha do tempo intransponível:
impossível ver antes dela! O estabelecimento real da existência do
Nazareno fica, dessa maneira, radicalmente negado. O “Jesus da
História” deveria distinguir-se do “Cristo da fé” e seria vão desejar
passar de um para outro. Mais grave ainda, o primeiro não poderia
em caso algum apoiar o conteúdo da fé. A história deve calar-se
para dar lugar às elaborações teológicas ou pietistas. Ela não é, além
disso, de nenhuma utilidade para o crente, o que, podemos admitir,
é o cúmulo do paradoxo para uma religião da Encarnação! O
“momento Bultmann” não durou, mas deixou — e deixa ainda —
profundas cicatrizes na exegese moderna, que mostra dificuldade
para renunciar a um ceticismo devastador que, aliás, não é
encontrado em lugar algum nas disciplinas científicas ou nas
ciências humanas.
Os discípulos de Bultmann, em particular Ernst Käsemann (que se
distinguiu de seu mestre por ocasião de uma célebre conferência em
1953) e Günther Bornkamm,5 entretanto, dedicaram-se a descobrir,
ao longo dos textos evangélicos, traços, ainda que tênues, do “Jesus
da História”. Nessa segunda pesquisa, tratava-se de fazer uma
triagem entre os materiais primitivos, atribuíveis àquele que veio da
Galileia, e as criações posteriores da Igreja, de isolar as lembranças
históricas verdadeiras daquilo que foi acrescentado pelos crentes, de
distinguir as palavras autênticas de Jesus, as ipsissima verba. Dessa
perspectiva, foram aperfeiçoados critérios diferentes de
historicidade, cuja utilização é por vezes bem delicada.6
A terceira pesquisa sobre o Jesus histórico apoia-se sobre os
últimos conhecimentos do contexto sociocultural palestino. Visa a
restabelecer Jesus dentro do judaísmo de sua época, a ponto de
considerar que ele nunca abandonou esse horizonte e de esquecer
sua singularidade irredutível. Chegamos a nos perguntar como o
cristianismo teria podido nascer de alguém tão perfeitamente judeu.
Estudiosos tão diversos, como David Flusser, Geza Vermes (Jesus and
the Jews, 1973), E. P. Sanders (Jesus and the Judaism, 1985, The
Historical Figure of Jesus, 1993), Bruce Chilton (Rabbi Jesus: An
Intimate Biography, 2000), Jacques Schlosser, Gerd Theissen
contribuíram amplamente com essa pesquisa que permanece, no seu
conjunto, disparatada e multiforme.7
Assinalamos também os sólidos trabalhos de outros exegetas
americanos, como os do padre Raymond E. Brown, professor de
estudos bíblicos em Nova York, e do padre John Paul Meier.8 Entre
os pesquisadores anglo-saxonicos sérios e muito ativos em nossos
dias, citamos também os de Richard Bauckham, James D. G. Dunn,
Sean Freyne ou Larry W. Hurtado.9 Não poderíamos negligenciar
igualmente os importantes trabalhos de exegetas franceses ou
francófonos. Sem remontar ao notável padre Lagrange (1855-1938),
fundador da Escola Bíblica de Jerusalém, citamos sobretudo os
padres Pierre Benoit, Ignace de La Potterie, Xavier Léon-Dufour,
Charles Perrot, Pierre Grelot, René Laurentin, Philippe Rolland, do
lado católico; e Joachim Jeremias, Oscar Cullmann, Daniel
Marguerat, do lado protestante. A especificidade da retórica bíblica,
sabiamente analisada por um padre jesuíta, Roland Meynet, abre
também novas perspectivas. Hoje em dia, não podemos mais
considerar os evangelhos como obras que aplicam as regras clássicas
de exposição usadas pelos autores latinos e gregos. Eles são
verdadeiras obras literárias, elaboradas segundo métodos bem
particulares da retórica oriental e semítica.10 Dito isso, a tradição
greco-romana, principalmente no que concerne ao evangelho de
Lucas, não deve ser negligenciada, como foi recentemente apontado
por outro jesuíta, Jean-Noël Aletti.
Na verdade, a abordagem do “Jesus da História” tornou-se
multidisciplinar, apesar da mania de alguns biblicistas de viver num
círculo fechado. A arqueologia foi considerada durante muito tempo
como um parente pobre da pesquisa, mas depois de permitir em
apenas alguns decênios uma compreensão melhor do judaísmo
primitivo,11 os historiadores começam, felizmente, a levá-la em
consideração. Os trabalhos de um monge beneditino italiano de
língua alemã, Bargil Pixner, são importantes a esse respeito.12
Descobrimos muita coisa sobre o meio ambiente judaico da época,
em especial sobre a origem davídica do clã dos nazarenos, do qual
Cristo era descendente.
Em mais de meio século, descobertas arqueológicas de primeira
ordem foram feitas. Em 1945, perto de Nag Hammadi, no Alto Egito,
foi encontrada uma biblioteca de textos gnósticos que continham
principalmente os evangelhos apócrifos, dos quais eram conhecidos
apenas o nome e breves extratos. Assim, foi desenterrado o famoso
evangelho de Tomé, que continua a intrigar e apaixonar numerosos
pesquisadores. Ainda em 1945, no bairro de Talpiot, em Jerusalém,
foi descoberto pelo professor israelita Sukenik um sepulcro selado
que havia escapado dos ladrões e dos profanadores. Ele continha
cinco ossadas, que datavam do ano 50 da nossa era, como certifica
uma moeda encontrada no mesmo local. Sobre uma das ossadas
marcadas com um sinal da cruz figuravam as palavras gregas: Iesou
Iou (Jesus, ajude!), sobre outra em aramaico: Yeshu Aloth (Jesus,
devolva-lhe a vida!).
A partir de 1947, no deserto da Judeia, houve a fenomenal
descoberta das ruínas de um estabelecimento da seita judaica dos
essênios, o Khirbet Qumran,[6] e, perto do local, descobriram-se
grutas que continham uma grande quantidade de textos bíblicos,
abandonados no ano 68 da nossa era, no momento em que os
romanos se preparavam para esmagar a revolta judaica. Os sábios
se dedicaram a decodificar esses textos fundamentais para o
conhecimento do judaísmo antigo, sensivelmente diferente do
judaísmo rabínico atual (lembramos François Roland de Vaux, Jean
Carmignac e Émile Puech, entre outros). A terra de Israel é sem
cessar reconsiderada. Todos os anos, ou quase, os pesquisadores se
deparam com novos vestígios. Encontram um anel enterrado nas
margens do lago Tiberíades[7] aqui, os restos de um poço acolá, as
fundações de uma casa mais adiante, o sepulcro de alguém
importante com seus nichos, ou ainda os vestígios enegrecidos de
uma sinagoga que remonta à primeira metade do século I da nossa
era. Tantas coisas inesperadas que permitem conhecer melhor o
enraizamento histórico e religioso de Jesus, seu ambiente palestino,
com sua realidade social, econômica ou linguística.

Tentar esboçar um retrato histórico de Jesus, dar uma interpretação


mais plausível dos acontecimentos, utilizando as ferramentas da
ciência moderna, é o objetivo deste livro. Trata-se de encontrar o
caminho estreito entre estudos técnicos, de difícil acesso, reservados
a um público erudito, e reconstruções ingenuamente concordantes
que ainda florescem para as necessidades da catequese, mas que têm
uma relação apenas longínqua com a pesquisa.
Apresentar uma vida de Jesus a cerca de cento e cinquenta anos
daquela exposta por Renan parecerá, com certeza, atitude
provocadora aos especialistas, que conhecem a impossibilidade de
escrever uma biografia completa, no sentido de uma reconstituição
minuciosa da totalidade da existência de Jesus. “Os evangelhos”,
dizia o padre Lagrange, “são a única vida de Jesus que podemos
escrever.” De Jesus conhecemos no máximo os três anos e alguns
meses de sua vida pública. Seria ilusório querer completar o quadro
apoiando-se sobre os escritos religiosos apócrifos dos séculos II e III
da nossa era. O artesão de Nazaré permanecerá sempre dissimulado
na sombra de seus “anos ocultos”. Seria inútil também referir-se às
descrições detalhadas de alguns místicos, como Anne Catherine
Emmerich ou Maria Valtorta. Seus escritos, cujo valor espiritual não
nos compete medir, descrevem de fato meditações piedosas, todas
pessoais, que não resistem à crítica histórica (mesmo se, por vezes,
reconheçamos que elas possam conter algumas fulgurâncias). Pelo
fato de ter se baseado na obra de Catherine Emmerich, o filme A
Paixão de Cristo, de Mel Gibson, A Paixão, em definitivo, é apenas
uma obra fantasista, um pouco grandiloquente, que caricatura essa
história. Certamente, é preciso contentar-se com visões
fragmentárias, mas suficientemente densas para que possam nos
revelar uma parte da personalidade de Jesus. Com as descobertas
dos últimos cento e cinquenta anos, a aventura merece em todo caso
uma tentativa, sabendo, ao mesmo tempo, que a objetividade
absoluta é impossível.
Permanecendo dentro de sua disciplina, cujo objetivo é a verdade
dos fatos, o historiador não necessita enunciar afirmações de fé. Ele
não poderá dizer nada, por exemplo, sobre o caráter salvífico da
vida e da morte de Jesus Cristo. Se falar da Ressurreição, o
historiador procurará os traços nos depoimentos de testemunhas ou,
indiretamente, no sepulcro vazio, onde as roupas brancas
permaneceram misteriosamente no seu lugar, tal como haviam sido
dispostas na antevéspera. Mas a sua conduta não poderia opor-se
àquela — completamente diferente — da fé. Isso seria contrário às
leis de uma crítica sadia.
Ainda é preciso libertar-se a priori da utopia racionalista e das
concepções positivistas e científicas que prevaleceram durante longo
tempo. Tal atitude supõe — particularmente para a vida de Jesus —
permanecer aberto ao mistério e ao sobrenatural. Negar a possível
existência de milagres, por exemplo, recusá-los como simples
infantilidade, não é competência da ciência histórica, mas sim de
pressupostos filosóficos. “Se o milagre tem alguma realidade”,
confessava ingenuamente Ernest Renan, “o meu livro é apenas uma
trama de enganos.” Ele permanecia, dessa forma, prisioneiro das
ilusões de seu tempo: a crença no progresso indefinido, a negação do
sobrenatural, a convicção de que as leis imutáveis da Natureza não
poderiam ser transgredidas por uma intervenção divina. Bultmann
não diz outra coisa: “Não podemos utilizar a luz elétrica e os
aparelhos de rádio, reivindicar em caso de doença os recursos
médicos modernos e, ao mesmo tempo, acreditar no mundo dos
espíritos e dos milagres do Novo Testamento”. Por que desejar
rejeitar de imediato o que a razão não explica? Os fenômenos
extraordinários, sobrenaturais, existem e suscitam o interesse dos
cientistas: transmissões de pensamentos que escapam às conhecidas
leis da física, curas repentinas e inexplicáveis, aparições, fenômenos
físicos do misticismo, incorruptibilidade dos corpos de numerosos
santos, prodígios eucarísticos solidamente confirmados… Alguns
resistem às análises da parapsicologia. Por que rejeitá-los num só
lance? Cientistas de renome são também crentes sinceros. Sua fé não
interfere nas conclusões de suas pesquisas.
Certamente, cada relato traz em si uma interpretação orientada.
Não há uma narrativa bruta, objetiva dos fatos, fora de certo olhar
dirigido ao acontecimento. Mas uma abordagem do interior, sem por
isso transformar-se em profissão de fé, permite, de um ponto de
vista estritamente histórico, apreender melhor as lógicas e coesões
do que uma visão exterior e distanciada. Historiadores e exegetas
profundamente ancorados na fé judaica, como David Flusser,
Schalom Ben-Chorin, Jacob Neusner ou André Chouraqui, não
perceberam melhor do que outros as ligações sutis que o Primeiro e o
Novo Testamento tecem entre si?
Seguramente, o historiador não poderia tomar partido sobre os
milagres ou a ressurreição de Cristo, nem lançar um olhar de fé
sobre o acontecimento sem se afastar de sua disciplina, mas ele tem
o direito de interrogar-se sobre o sentido profundo de um fato, a
intenção de um acontecimento ou de um discurso. Deve captar “a
alma” dos textos, sua dimensão interior, o objetivo ao qual eles
respondem. Essa abordagem metodológica, desenvolvida em 1979
por Ben Franklin Meyer, diferenciando “the outside” (o exterior) e
“the inside” (o interior), ultrapassa a análise histórico-crítica tal
como ela é habitualmente concebida.13 Se o historiador não está em
condições de dizer, por exemplo, que Jesus é o Filho de Deus, pode,
em contrapartida, mostrar com suas próprias ferramentas que Jesus
foi constantemente considerado como tal. Isso transparece tanto no
evangelho de João como nos evangelhos sinópticos. No seu livro:
Jésus savait-il qu’il était Dieu? [Jesus sabia que era Deus?], publicado
em 1984, o dominicano François Dreyfus havia aberto um caminho
proveitoso nesse sentido.14
O importante, mais uma vez, é permanecer aberto para o
mistério e evitar o reducionismo partidário. Quando os jornalistas-
cineastas Gérard Mordillat e Jerôme Prieur confessam que o objetivo
de suas séries de investigações, transmitidas pelo canal de televisão
Arte, é o de denunciar as invenções fraudulentas, os embustes e a
traição da Igreja, em suma, de desmascarar a impostura do
cristianismo, tido como intrinsecamente antissemita e violento, que
credibilidade podemos dar-lhes?15 Podemos com tal disposição
intelectual fazer um julgamento equitativo, perspicaz e expressar
nuances?16 A honestidade histórica se adapta mal a uma militância
antirreligiosa, assim como também a um fundamentalismo obsoleto.
Com a condição de respeitar limites estritos dos dois domínios, é
possível chegar a uma abordagem racional — e não racionalista —
do fundador da única religião que se pretende encarnada. A figura
de Jesus é difícil de ser delimitada numa primeira aproximação. Por
isso, é conveniente pesquisar, tanto quanto possível, por meio dos
traços que ele deixou, da coerência íntima de seu ser e de sua
mensagem, o “sinal específico da sua singularidade”.17 “O
cristianismo”, dizia o agnóstico Marc Bloch, “é uma religião de
historiadores.”18 Propósito ao qual faz eco o discurso de Bento XVI,
no sínodo de Roma, sobre a palavra de Deus, em 14 de outubro de
2008: “O fato histórico é uma dimensão constituinte da fé. A história
da salvação não é uma mitologia, mas uma história verdadeira, e é
por isso que ela deve ser estudada com os métodos da pesquisa
histórica séria”.
O trabalho do historiador consiste, portanto, em descobrir as
fontes utilizáveis, em selecioná-las, em assegurar-se de sua
autenticidade e em julgar, o mais honestamente possível, o seu grau
de probabilidade, principalmente quando se trata de escrever sobre
a vida de um homem nascido há dois mil anos. “A conjectura
articulada sobre uma informação”, dizia o grande exegeta inglês
Charles Harold Dodd, “é uma ferramenta legítima do historiador:
para o historiador da Antiguidade, é com frequência uma ferramenta
indispensável.”19 É preciso, como diz o professor Jacques Schlosser,
“assumir o risco de formular hipóteses e mesmo de recorrer à
imaginação, embora seja necessário fazê-lo com grande
sobriedade”.20 O presente relato apoia-se sobre certo número de
pressupostos, que consideraremos como dados até que novas
descobertas venham modificar ou influenciar o curso dessa ou
daquela interpretação.
Portanto, uma escolha de hipóteses foi feita, mas ela não tem
nada de arbitrário. As hipóteses são as que, em situação de pesquisa,
apresentam o mais alto grau de verossimilhança e que, seguidas e
desenvolvidas até o seu termo, conduzem a uma reconstituição
lógica. Por falta de certezas, permanece essencial a coerência dos
dados de base.
As fontes referentes à vida de Jesus poderiam formar por si um
volume, de tanto que elas necessitam ser cuidadosamente
analisadas, selecionadas, sopesadas em relação aos critérios de
historicidade. A tarefa é complexa na medida em que os textos
evangélicos, sobre os quais convém se apoiar para o essencial, são
considerados antes de tudo como escritos de fé, repletos de
significado teológico, e não como apreciações históricas críticas.[8]
Além dos evangelhos canônicos, diferentes autores da
Antiguidade mostram o enraizamento histórico de certo Jesus de
Nazaré, reformador judeu, executado por ordem de Pôncio Pilatos,
prefeito romano da Judeia: Tácito, Suetônio, Luciano de Samósata…
Plínio, o Jovem, procônsul da Bitínia e do Ponto, na Ásia Menor,
atesta que, desde os primórdios do século II — e, provavelmente,
bem antes —, os cristãos não consideravam Jesus como um sábio ou
um filósofo, mas um deus, rompendo fundamentalmente com o
estrito monoteísmo concebido em Israel (eles “cantam um hino ao
Cristo como a um deus”, escreve ele). O historiador Flávio Josefo,
judeu nascido em uma família sacerdotal, mas partidário do poder
romano, também faz alusão a Jesus por duas ou três vezes em seus
escritos, consagrando-lhe até um parágrafo inteiro, onde, parece-
nos, encontramos o original desembaraçado de sua interpretação
cristã. Infelizmente, há pouco a ser extraído de todos esses
documentos, inclusive dos evangelhos apócrifos, senão o fato de que
ninguém — nem mesmo os autores do Talmude da Babilônia ou os
primeiros contraditores do cristianismo, como o filósofo platônico
Celso, no século II — duvida de sua existência histórica.
Os quatro evangelhos que fazem parte do cânone[9] da Igreja
constituem, portanto, a fonte mais rica para conhecer Jesus de
Nazaré. Em cerca de dois séculos, resistiram aos ventos dessecantes
de tantas análises supercríticas, exegéticas ou históricas, que não
podemos absolutamente duvidar da autenticidade dos fatos que
relatam. Suas contradições dizem respeito a questões menores.
Se é verdade que os três primeiros evangelhos — os sinópticos —
refletem a pregação das comunidades cristãs primitivas, se mesclam
os enunciados teológicos com os acontecimentos que relatam,
rejeitá-los totalmente ou depreciá-los sensivelmente não é uma
atitude objetiva. Seus dados são em geral confiáveis, com a condição
de não se desviar em interpretações demasiado fideístas. Eles não
inventam nada sobre o essencial, não são de modo algum o produto
de comunidades fabulistas, como pretendeu Bultmann. Sua base
histórica é sólida. Integraram a memória de testemunhas da
primeira geração. Isso começa a ser cada vez mais admitido pela
pesquisa anglo-saxônica.21
A transmissão oral moldou-se em técnicas rabínicas de ensino e
de memorização. Numerosas passagens dos evangelhos sinópticos
refletem isso por seu estilo e seu ritmo. Mas, da própria época de
Jesus, foi possível realmente anotar por escrito algumas de suas
palavras (por meio de tabuinhas de madeira recobertas de cera, de
uso corrente no mundo mediterrâneo, como as encontradas em
Pompeia, em Herculano ou no norte da Inglaterra, perto da Muralha
de Adriano).
Nenhum dos três evangelhos sinópticos provém de confirmação
de uma testemunha ocular. Sua origem e suas relações mútuas são
complexas. Sobre isso coloco em documento anexo a possível
arqueologia, baseada em trabalhos de exegetas sérios. Se
acreditarmos nos primeiros padres da Igreja, o evangelho de Mateus
desenvolveu-se a partir de um núcleo primitivo, escrito
provavelmente em aramaico pelo apóstolo Levi, chamado Mateus,
ao passo que o evangelho de Marcos reflete a catequese do apóstolo
Pedro. O evangelho de Lucas, ao lado de outras fontes, próximas de
Paulo, incorporou elementos do ensinamento oral de João, que,
naquela época, não tinha ainda escrito o seu evangelho.
Quem é esse João (Yohanan), apresentado como o discípulo
preferido ou amado de Jesus, morto muito idoso em Éfeso, na Ásia
Menor? Muito claramente, uma testemunha. Um pequeno grupo de
apóstolos e discípulos que o cercou o diz sem rodeios no final do seu
livro: “Este é o discípulo que testifica destas coisas e as escreveu; e
sabemos que o seu testemunho é verdadeiro”.22 Polícrates, bispo de
Éfeso, no século II, sublinha que ele foi “hiéreus [sacerdote] e [a esse
título] usou o pétalon [a lâmina de ouro], testemunha e didaskale
[professor]”.23 Era um homem de Jerusalém, membro da alta
aristocracia judaica da cidade. O pétalon (o tsits, a flor ou lâmina de
ouro) era a insígnia sacerdotal usada sobre o peito pelo sumo
sacerdote no tempo do Êxodo, mas cujo uso, parece, estendeu-se a
alguns membros das famílias que originaram sumos sacerdotes. Esse
João não tem nada a ver, como se acreditou a partir do fim do
século II, com o João, filho de Zebedeu, pescador do lago de
Genesaré,[10] um dos Doze escolhidos por Jesus. Outros testemunhos
— aqueles de Irineu, Papias e Eusébio de Cesareia — apontam para
a mesma direção, sem esquecer a análise interna do quarto
evangelho, amplamente centrada em Jerusalém.
Um documento capital, o Cânone de Muratori, que data do século
II após Jesus Cristo, como parecem mesmo mostrar as últimas
pesquisas, explica as condições em que “João, um dos discípulos”
concebeu seu texto: “Quando seus discípulos e os bispos o
encorajavam, João disse: ‘Jejuem comigo três dias a partir de hoje e
aquilo que for revelado a cada um de nós, nós contaremos’. Naquela
noite, foi revelado a André, um dos apóstolos, que todos deveriam
revisá-lo, mas que João, em seu próprio nome, deveria escrever
tudo… [João] afirma ser não somente uma testemunha ocular e um
ouvinte, mas também aquele que escreveu na ordem em que
ocorreram todas as maravilhas que fez o Senhor”.24
Desse modo, após a divulgação dos evangelhos sinópticos nas
primeiras comunidades, os apóstolos — André, Filipe e Tomé (cujos
nomes são repetidos com bastante frequência no quarto evangelho)
e alguns outros discípulos — pediram a esse importante
personagem, muito versado no conhecimento das Escrituras, para
redigir por sua vez um evangelho. Tratava-se, se acreditarmos no
historiador Eusébio de Cesareia (séculos III e IV), autor da muito
importante Histoire ecclésiastique [História eclesiástica], de dar
informações exatas complementares sobre a vida e o ensinamento
de Jesus, principalmente sobre os primórdios de seu ministério. João
Evangelista, com efeito, havia sido, com André, um dos dois
primeiros discípulos de João Batista a seguir Jesus. André e o grupo
próximo a ele se tornaram fiadores de seu escrito e o ajudaram a
descrever os episódios que ele não tinha vivido durante o ministério
de Jesus na Galileia. O quarto evangelho é, de certa maneira, o
evangelho de João e desse grupo.
Com origem em várias testemunhas oculares, esse escrito é,
portanto, da mais alta importância. João não retoma o que disseram
seus três predecessores, mesmo que tenha, sem dúvida, lido seus
textos. Os historiadores reconhecem hoje que, ao lado de suas
perspectivas teológicas fascinantes, o seu evangelho é o mais
histórico. Já em 1968, o inglês A. M. Hunter tinha escrito um livro
Saint-Jean, témoin du Jésus de l’Histoire [São João, testemunha do Jesus
da História].25 “O que ele diz é apenas histórico”, escrevia Jean
Grosjean, autor de um comentário sobre o livro de João.26 “O
evangelho de João afinal”, assinala também a historiadora Marie-
Françoise Baslez, “Parece ser o mais rico em informações históricas,
o mais crível e o mais coerente na articulação dos fatos ainda que
ele seja reconhecido, unanimemente, como o mais teológico: não há
nisso o menor paradoxo.”27 Tudo o que nos dizem os dados históricos
exteriores, inclusive as últimas descobertas da arqueologia,
encontra-se maravilhosamente nesse texto: locais, cidades e aldeias,
fronteiras, instituições, homens que lá moravam, jogos de poder
entre judeus e romanos, facções religiosas rivais, mentalidades e os
menores detalhes da vida cotidiana da época anterior à queda de
Jerusalém, no ano 70 da nossa era.[11] Uma reavaliação começou a
ser feita sobre esse assunto nos Estados Unidos. Isso poderia ser o
início da quarta busca de Jesus.28
Eu me basearei, consequentemente, em primeiro lugar, sobre esse
evangelho, sem com isso negligenciar as esplêndidas contribuições
dos evangelhos sinópticos sobre o ministério de Jesus na Galileia.
Cronologicamente, é certo que esses últimos são menos confiáveis.
Eles agrupam as parábolas e as palavras de Jesus, concentram em
alguns dias a oposição dos fariseus e saduceus, reduzem o ministério
público de Jesus a um único ano, ao passo que João o faz durar um
pouco mais de três anos.
De modo contrário ao exegeta, que não pode mesclar os textos se
quer esclarecer a lógica própria de cada um deles, o historiador não
deve temer utilizar e cruzar as fontes à sua disposição, de maneira
crítica, evidentemente, protegendo-se de agrupamentos artificiais.
Algumas pessoas poderão se espantar ao ver a importância que
atribuo a três relíquias da Paixão, o sudário de Turim, o sudário de
Oviedo e a túnica de Argenteuil. Trata-se de assunto infinitamente
mais rico e complexo do que muitos imaginam. Ao lado de falsas
relíquias, essas três parecem resistir à crítica histórica e científica. A
primeira, a mais conhecida, o sudário de Turim, é o lençol que teria
envolvido o corpo de Cristo. O sudário apresenta a impressão facial
e dorsal, dos pés à cabeça, de um homem de tipo semítico, flagelado,
violentamente espancado no rosto, ensanguentado, levando na
cabeça uma coroa de espinhos, crucificado de acordo com as técnicas
romanas, com pregos nos punhos e nos pés, tendo no flanco direito
uma ferida, dito de outro modo, as chagas da Paixão. É uma imagem
impressionante, acheiropoieta (não feita por mão humana), quase
indelével, isótropa (quer dizer, sem efeito direcional), que nunca se
conseguiu reproduzir, mesmo em laboratório, segundo as mais
variadas técnicas. Sabe-se que o sudário é venerado na Europa, pelo
menos, desde o século XIV. Mas foi somente em 1898, quando
fotografado pela primeira vez, que ele revelou uma de suas
propriedades até então insuspeitadas, aquela de ser semelhante a
um negativo fotográfico. A segunda relíquia, o sudário conservado
na Espanha na catedral de Oviedo, é o lençol que teria recoberto o
rosto de Jesus imediatamente depois de sua morte sobre a cruz e que
teria sido mantido sobre ele até sua entrada no sepulcro. Esse
sudário só apresenta manchas de sangue e auréolas de líquido
seroso. Sua origem segura remonta ao século VII. A última relíquia,
por fim, a túnica oferecida pela imperatriz Irene a Carlos Magno,
encontra-se desde essa época no mosteiro de Nossa Senhora da
Humildade, em Argenteuil. Ela seria a veste usada pelo Cristo sobre
a pele ao longo do caminho da cruz.
Suas análises com carbono 14 suscitaram múltiplos debates e
polêmicas. Em 1988, os testes com radiocarbono concluíram que o
sudário de Turim tem uma origem medieval (entre 1260 e 1390),
resultado imediatamente contestado, sob o pretexto de que lençóis
tão imundos puderam ser rejuvenescidos por micro-organismos ou
por consequência de lavagem com águas repletas de carbono (o
sudário, danificado por ocasião de um incêndio em 1532, foi
molhado com água). Ora, em 2010, traços muito abundantes de
carbonato de cálcio, assim como bactérias e mofo, foram
encontrados sobre os fios do sudário examinados com microscópio
eletrônico pelo professor Gérard Lucotte, biólogo e geneticista.
Falou-se também de consertos com fios mais recentes, como
concluem os trabalhos do professor americano Raymond N. Rogers,
do Laboratório Científico de Los Alamos.
Consequentemente, não se poderia pensar que o assunto está
encerrado. Desde 1988, depois de progressos consideráveis
realizados no conhecimento científico desses fascinantes objetos
arqueológicos, existe hoje uma diferença muito profunda entre o que
repetem alguns jornalistas — na verdade, pessoas próximas da
Igreja católica 29 —, pessoas que se prendem a resultados de análises
ultrapassados, e as últimas pesquisas históricas e científicas, em
particular na França, na Itália e nos Estados Unidos. As descobertas
incidem sobretudo sobre a textura dos lençóis, os traços de escrita
em latim e grego encontrados sobre o sudário.
Em suma, não podemos opor uma única disciplina científica, a
datação ou o radiocarbono, por mais perfeita que seja (mas que nem
sempre deu resultados confiáveis, os próprios especialistas
concordam), a todas as outras. Existem outros métodos para datar
um objeto arqueológico. Isso se mostra tanto mais verdadeiro quanto
o exame comparado das três relíquias em questão mostra que elas
apresentam pontos em comum perturbadores: os mesmos pólens de
plantas de origem palestina e traços de feridas com contornos
idênticos, provenientes de sangue de mesmo grupo (AB,
relativamente raro).30 A probabilidade de observar esse grupo
sanguíneo nos três lençóis, cujo percurso foi tão diferente ao longo
das épocas, foi estabelecida em 0,000125, ou seja, uma chance em
8.000, sem nem falar das outras probabilidades de concordância que
decorrem do modelo dessas mesmas manchas. Apenas posso dizer
aos céticos que vejam o anexo IV da presente obra. No estado atual
da ciência, as três relíquias evocadas apresentam um grau de
autenticidade extremamente elevado. Dessa forma, considero que é
perfeitamente legítimo levar em conta neste relato as precisões
históricas que elas trazem.
A Palestina na época de Jesus
1

João Batista

O Jordão, ator da História


O rio Jordão nasce no Líbano, no local chamado Hasbaya, ao lado
do Grande Hermon, e junta-se ao lago Hula e ao lago Tiberíades,
penetrando cada vez mais profundamente na abrupta falha telúrica
do planeta, antes de se perder a cerca de 400m abaixo do nível dos
oceanos nas águas turquesas e opacas do Mar Morto. De início é
tumultuoso, mas se acalma pouco a pouco e estende-se em meandros
indolentes, avançando por planícies ornadas de jasmins, mimosas e
loureiros-rosas, serpenteando pelas margas brancas dos planaltos
arruinados do Ghor, arrastando no seu curso ervas lamacentas e
ramagens. Flui em seguida por regiões áridas e terras gretadas, em
meio a moitas espinhosas, caniços em tufos e tamarindeiros com
flores cor-de-rosa. Por vezes, como que esgotado, repousa em
patamares indolentes, onde se situam os vaus, outrora conhecidos
pelos condutores de caravanas. Em seu vale baixo, a paisagem
torna-se mais selvagem, com suas colinas de cor castanho-
avermelhada, com cumes pelados. Aqui começa o deserto da Judeia
com rochas calcinadas pelo sol.
Conhecemos a importância do deserto na simbologia bíblica.
Local de solidão e de despojamento, local de provação, é também o
lugar do encontro com Deus. Evoca a sarça ardente contemplada por
Moisés, a saída do Egito, as Tábuas da Lei, a longa errância sem
rumo do povo hebreu atrás de seu chefe… E era lá, no deserto, que
esse povo estava persuadido que o Messias se manifestaria primeiro.
Quanto ao Jordão, citado quase duzentas vezes na Bíblia, pode-se
dizer que ele desempenha um papel essencial na tradição sagrada da
Escritura e, por isso, no imaginário cultural e religioso do mundo
judaico. Esse rio mítico, sinal de abundância e de benevolência
divina, é um ator da História. A depressão do Jordão foi uma das
primeiras regiões da Ásia a ser colonizada pelo Homo erectus,[1] que
veio da África oriental. Foram encontrados traços de ocupação
durante a era paleolítica. Por volta de 10.000 anos antes de Jesus
Cristo, os primeiros habitantes sedentários apareciam em Mallaha,
Wadi Hammeh e no oásis de Jericó, onde abundam tamareiras,
bananeiras e balsameiros. A economia de produção emerge no
sétimo e no oitavo milênio, com a cultura do trigo, da cevada, e a
criação de cabras. Ao longo do rio, várias aldeias se implantaram e
numerosos objetos foram descobertos nos sepulcros do período de
bronze (3000-1200 a.C.).
Na época dos hebreus, o rio ancestral servia como fronteira entre
a Terra Prometida e os povos pagãos que a cercavam. Foi ao
transpor o Jordão em Guilgal, na frente de Jericó, que as tribos que
vinham das estepes de Moab sob a condução de Josué, filho de Nun e
sucessor de Moisés, entraram sem molhar os pés, de maneira
milagrosa, no país de Canaã.1 Segundo as proezas contadas no Livro
de Samuel, o povo avançou em procissão solene atrás da Arca da
Aliança, feita com madeira de acácia, com tampa de ouro maciço,
carregada pelos sacerdotes levitas. Foi na mesma região que o
profeta Elias, no século IX a.C., teria sido elevado ao céu em um
redemoinho. Na aldeia de Abel-Meolá, não longe de suas margens, a
tradição relata o nascimento de Eliseu. Foi ainda nas águas do
Jordão que Eliseu pediu a Naamã, comandante do exército do rei de
Aram (Síria), para ir se purificar sete vezes em suas águas, a fim de
curar-se da lepra…
Como lembrança desses fatos memoráveis, alguns agitadores,
acreditando-se inspirados, reuniram ali os seus partidários. Assim,
por volta do ano 44 d.C., um homem chamado Teudas persuadiu
uma multidão de judeus a liquidar seus bens e segui-lo até o rio,
cujas águas deviam se repartir em duas, como nos tempos bem-
aventurados de Josué. O procurador Cúspio Fado mandou capturá-lo
e decapitá-lo. Flávio Josefo relata que sua cabeça foi trazida em
triunfo para Jerusalém.2 Na época de Antônio Félix (52-60), outros
charlatães prometeram a seus adeptos “sinais e milagres” no deserto.
No início dos anos 60, sob Pórcio Festo, um pseudoprofeta queria
ainda levar seus partidários ao Jordão sob o pretexto de lá encontrar
a salvação.3 Todos esses empreendimentos terminaram banhados em
sangue.

“O ano quinze do principado de Tibério…”


Alguns anos antes, sob o reinado do imperador Tibério, aparecera,
na região desértica do Jordão, um homem singular, que as multidões
designavam como um novo profeta, talvez um novo Elias. Seu nome
era Iohanan, ou, dito de outra forma, João.4 Deram-lhe o sobrenome
de Batista ou o Batizante. Lucas, no seu evangelho, dá ao
acontecimento toda sua grandeza solene, porque com ele inaugura-
se uma nova era de salvação e de tempos messiânicos: “E no ano
quinze do império de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos presidente
da Judeia, e Herodes tetrarca da Galiléia, e seu irmão Filipe tetrarca
da Itureia e da província de Traconites, e Lisânias tetrarca de
Abilene, sendo Anás e Caifás sumos sacerdotes, veio no deserto a
palavra de Deus a João, filho de Zacarias”.5
Essa ampla introdução lembra menos os historiadores gregos que
dois pequenos profetas do Antigo Testamento que faziam questão,
eles também, de sublinhar o início dos novos tempos: Ageu (“No
segundo ano do rei Dario, no sexto mês, no primeiro dia do mês,
veio a palavra do SENHOR, por intermédio do profeta Ageu…”)6 e
Zacarias (“No oitavo mês do segundo ano de Dario veio a palavra do
SENHOR ao profeta Zacarias, filho de Baraquias…”).7
Podemos observar a minuciosidade do evangelista para situar
cronologicamente o início da pregação de João. Feita a verificação,
tudo é exato, o governo de Pôncio Pilatos na Judeia, a tetrarquia 8 de
Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande, na Galileia, a de seu
meio-irmão Filipe na Itureia e na Traconitide, províncias do
nordeste e do leste, o pontificado de José chamado Caifás, associado
àquele de seu sogro Anás, antigo sumo sacerdote, tudo, até a
tetrarquia desse pequeno príncipe Lisânias, originário de uma
família do Líbano, que Lucas menciona por causa da proximidade de
Abilene com a província romana da Síria, de onde ele próprio era
originário.9
Mas o que devemos entender com o décimo quinto ano do
governo de Tibério? Devemos contar a partir de sua associação com
o governo do Império (no ano 13) ou da sua ascensão ao governo,
depois da morte de Augusto, seu pai adotivo (no ano seguinte, em
14)? Os historiadores debateram esse assunto.10 No início do século
XX, o paleógrafo Arthur Loth mostrou que os historiadores latinos, o
judeu-romano Flávio Josefo, os primeiros Padres da Igreja, as
inscrições públicas, a numismática oficial, inclusive as moedas sírias
cunhadas na Antioquia, capital do Oriente romano, datavam todas
do início do reinado de Tibério com a morte de seu pai adotivo
Augusto. Isso ocorreu em 19 de agosto da era de Varrão,[2] quer
dizer, no ano 14 da nossa era, o décimo quinto ano do seu reinado
vai de 19 de agosto de 28 até 18 de agosto de 29 d.C..11

O eremita do deserto
Personagem estranho esse João! Ele usa uma veste original, que o
protege das diferenças de temperatura noturna e diurna:12 uma
túnica de pelo de camelo e um cinturão de couro ao redor dos rins.
Essa descrição lembra a de Elias (“Era homem vestido de pelos, com
os lombos cingidos de um cinto de couro”).13. Dessa forma foi
representado pelos artistas ao longo das eras. Ele aparece primeiro
em Pereia [3], na parte meridional do Jordão, na margem oriental.
Como recordação das privações sofridas pelo povo do Êxodo que
caminhava em direção à Terra Prometida, penetra no deserto, no
local onde rondam os animais selvagens: antílopes, gazelas, lobos,
hienas… Entre essas colinas desoladas, sem árvores nem arbustos,
ele leva uma existência ascética, não come pão, não bebe vinho nem
bebida fermentada, alimenta-se exclusivamente de mel silvestre,
depositado pelas abelhas nas fendas sombrias das rochas, e de
grandes gafanhotos amarelos que ele assa na grelha. O silêncio!
Nada além do silêncio entrecortado por grasnidos estridentes de
alguns corvos descarnados. Logo, sob o domínio de uma nova
vocação, de anacoreta ele se torna profeta. Magro, com a pele
curtida pelo sol, abandona as pedras calcinadas do deserto pelos
caniços da Jordânia. As multidões acorrem ao seu chamado. Elas
procuram um guia. Provavelmente, era outono ou início do inverno
do ano 28, porque no verão o forte calor impede esses
deslocamentos.
Seria ele um nazir, um desses judeus religiosos em busca de uma
vida de graça e de pureza de que fala o livro dos Números,14 que
impunha a si mesmo um regime vegetariano (os gafanhotos não
seriam considerados como carne, se acreditarmos na Mishná)?[4]
Sabemos que Sansão, o herói de força lendária, fora um deles. Os
nazirs deixam crescer a barba e os cabelos. João, “e será cheio do
Espírito Santo, já desde o ventre de sua mãe”, como diz o evangelho
de Lucas, fazia a mesma coisa? É o que Flávio Josefo deixa ver numa
passagem da versão em “eslavo antigo” de sua Guerra dos Judeus:
“Havia então um homem que percorria a Judeia com vestes
espantosas, pelos de animais colados ao corpo nos lugares onde ele
não estava coberto com seus pelos, e o rosto parecia o de um
selvagem”.15
Do mesmo modo que os antigos profetas, Elias, Amós, Oseias,
Jeremias ou Isaías, esse homem carismático e escatológico[5] anuncia
que a ira de Deus logo se abaterá sobre o povo ímpio de Israel e
aniquilá-lo. “Já está posto o machado à raiz das árvores; toda árvore,
pois, que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo.”16 Sua
visão do futuro nada tem de exaltante. João não anuncia nenhuma
“Boa Nova”, nem a salvação prometida a todos. Suas apóstrofes são
duras, incrivelmente duras. Deus vai separar o trigo do joio. “A sua
pá, ele a tem na mão, para limpar completamente a sua eira e
recolher o trigo no seu celeiro; porém queimará a palha em fogo
inextinguível.”17 A imagem é expressiva para o seu auditório.
Quando os pesados feixes são lançados na eira, e são esmagados e
amassados pelos cascos dos bois, os cesteiros lançam ao vento a
palha e os grãos. Uma é recolhida para desaparecer nas chamas, os
outros são cuidadosamente armazenados na reserva de grãos. Assim
será com os maus e os bons no Dia da Vingança. A palha irá para o
forno e as belas espigas de Israel serão recolhidas nos celeiros
celestes.
Com que violência, com que tom ameaçante, com que rispidez
fustigante e desesperadora ele invectiva seus concidadãos,
especialmente os membros dos dois grupos principais, ou “partidos”
religiosos de seu tempo, os fariseus e os saduceus que chegam para
vê-lo às margens do rio, muito mais por curiosidade que por espírito
de conversão: ele os trata por “corja” ou por “raça de víboras”, quer
dizer, de descendentes de Caim, nascidos, segundo a tradição
esotérica judaica, da união de Eva com a serpente. Uma das piores
injúrias possíveis para um israelita! Ele quer arrancar seus
correligionários de sua letargia espiritual, lançar a inquietação em
sua consciência. Não, não é suficiente refugiar-se coletivamente atrás
da observância legal dos ritos de pureza, nem temer o implacável
Julgamento, nem vir a ele para ser salvo! Nada disso pode preservá-
los do fogo inextinguível que se anuncia, e sua inclusão no povo
prometido não é um viático garantido. Cuidado com as concepções
petrificadas, com a falsa segurança de uma Aliança incondicional! A
eleição não está ligada à raça, a Israel pela carne e pelo sangue,
“porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a
Abraão”.18 O jogo de palavras, baseado na paronímia, só
transparece em hebraico: min ha-abanîm ha-elleh banîm.19
O que fazer então? Os judeus devem experimentar um profundo
arrependimento por seus pecados, individuais mas igualmente
coletivos, afastar-se da idolatria, modificar seu coração, levar uma
vida íntegra e justa, praticar a caridade. “Produzi, pois, frutos
dignos de arrependimento”, ele lhes diz em suas exortações.20 Se
alguém tem duas túnicas, que compartilhe com aquele que não tem;
se outro tem o que comer, que faça o mesmo.
Apesar de sua austeridade exigente, suas admoestações
aterradoras, seus apelos ao arrependimento e à ascese, o sucesso é
fulminante e atinge todos os meios, a começar pelos camponeses, os
pescadores, os artesãos, em suma, os am-ha-arets, as “pessoas da
região”, dito de outra forma, as pessoas ignorantes, desprezadas
pelas elites religiosas por sua lentidão e seu sacrilégio inato, com
frequência ritualmente impuros. A essas pessoas juntam-se os
soldados das tropas auxiliares de Herodes Antipas, seus aduaneiros e
coletores de impostos ou “publicanos”, numerosos nas fronteiras da
Judeia e da Pereia. “A ninguém maltrateis, não deis denúncia falsa e
contentai-vos com o vosso soldo […] Não cobreis mais do que o
estipulado”,21 recomendava ele aos publicanos, o que revela
bastante, sobre a brutalidade da soldadesca e a voracidade dos
coletores de impostos. É só depois de uma radical mudança interior
que ele se autoriza a administrar um batismo de água, o batismo da
última chance para escapar ao julgamento destruidor e à ruína final.

Abluções ou batismo?
Na Antiguidade, o uso de banhos era comum nos cultos orientais e
servia de iniciação ou de exorcismo. A água, símbolo da vida, da
fecundidade e da pureza, lavava e vivificava. Os adeptos do culto de
Ísis, de Mitra ou dos mistérios de Elêusis praticavam as cerimônias
sagradas de purificação nas águas do Nilo, do Eufrates ou no mar.
Quanto aos judeus, eles faziam abluções várias vezes ao dia, para se
preservarem das sujeiras contraídas na vida cotidiana. Entrar na
casa de um pagão, aproximar-se de um leproso, de um homem com
eczema ou de um morto tornava o judeu impuro. Então, era
necessário lavar-se para reintegrar a comunidade do culto. A
purificação era feita com água corrente, ramos de hissopo e as cinzas
de uma novilha vermelha, sem mancha, como é prescrito no livro
dos Números.22 Esse ritual não absolvia o homem do pecado ou da
falha moral, mas lhe permitia se separar do mundo impuro e se
aproximar de Deus.23 A regra dirigia-se inicialmente aos sacerdotes
do templo de Jerusalém, antes e depois das cerimônias de culto. Na
véspera da Festa dos Tabernáculos (Sucot), o sumo sacerdote
imergia-se na água cinco vezes e lavava dez vezes as mãos (era o
que se chamava o “Dia da Imersão”).
A partir dos séculos II e I antes de Jesus Cristo, os ritos de
ablução multiplicaram-se na vida doméstica e alcançaram a
totalidade dos israelitas. “Mantenha teu corpo em estado de pureza”,
diz o Livro dos Jubileus,[6] “lava-te na água antes de ir depositar tua
oferenda no altar, lava tuas mãos e teus pés antes de subir ao altar,
e quando completares teu sacrifício, lava-te novamente as mãos e os
pés.” Os arqueólogos descobriram nesse período um grande número
de instalações balneárias e piscinas, tanto na Judeia como na
Galileia. Elas são encontradas perto das portas do Templo, mas
também em Jericó, em Massada, em Séforis. As casas dos
aristocratas eram dotadas de mikvaot, quer dizer, de tanques de água
de chuva (portanto, que vinham das mãos de Deus), de cerca de 2
metros por 4, e que continham pelo menos 40 seah (600 litros), nos
quais as pessoas se imergiam descendo dois ou três degraus.
Essas não eram práticas dos conservadores saduceus, esses
sacerdotes notáveis e de alta posição, mais reticentes em relação às
novidades litúrgicas, mas dos doutores da Lei e mestres fariseus,
encarregados de explicar e ensinar a Lei. Esses últimos haviam
conquistado uma grande influência no seio da população. Desejando
tornar sacerdotal o povo de Israel, dedicado ao louvor divino, eles
tinham multiplicado as prescrições relativas às impurezas. O judeu
religioso devia constantemente se proteger do mundo e purificar-se:
depois de ter assistido aos funerais, depois de relações conjugais…
Os próprios objetos não escapavam a essa obsessão. As taças, os
jarros, os pratos deviam ser lavados sem cessar. Antes da Páscoa,
costumava-se branquear com cal as sepulturas para assinalar de
longe sua presença, evitando, dessa maneira, sujar-se com o seu
contato.[7] Tudo se tornava rapidamente motivo de impureza. Flávio
Josefo, em sua última obra, Contre Apion [Contra Apião], mostra os
habitantes de Jerusalém demolindo paredes para não terem que
encostar nos transeuntes que cruzavam!
Esses ritos invasores tinham como consequência separar, dividir
a sociedade ao extremo em “justos”, membros dos grupos e das
confrarias de santidade, e “pecadores”, aqueles que eram
indiferentes às múltiplas interdições (o próprio nome fariseus,
parishîm em aramaico, quer dizer “separados”). Na época de Jesus,
algumas ocupações e certas categorias são impuras unicamente por
seu possível contato com pagãos, mulheres ou cadáveres; prostitutas,
publicanos, pastores, médicos, açougueiros… Por toda parte, a
separação tinha se multiplicado, ameaçando a unidade fundamental
do povo judeu.
Em seu ódio pelos pagãos e judeus que se recusavam a se juntar a
eles, em sua condenação do culto maculado do Templo de Jerusalém,
os essênios — quer habitassem as aldeias, quer um pequeno bairro
ao sul de Jerusalém ou o rochedo desolado de Qumran — estavam
ainda mais presos aos ritos de purificação e às práticas dos banhos
que seus adversários fariseus. Levando a lógica da separação ao
extremo, somente eles se consideravam como os perfeitos, os “filhos
da Luz”. Desdenhando a frequentação do Templo desde a deposição,
em 152 antes da nossa era, de Simão, filho de Onias III, da linhagem
legítima de Zadoque (sumo sacerdote na época de Salomão), eles
viviam como autarquia ao redor de seu venerado “Mestre da
Justiça”.[8] Segundo Flávio Josefo, esses sectários se repartiam em
quatro castas. Quando um membro da casta superior tocava por
inadvertência um inferior, precisava com urgência lavar-se. Ao
esperar a restauração de um Templo regenerado que escapasse às
mãos dos sumos sacerdotes usurpadores, eles insistiam na única
prática de culto que lhes restava, o da água.24

Um novo rito
O batismo de João recobre um significado diferente. É um rito
purificador e unificador, que não encontra nenhum precedente no
judaísmo.25 Não separa o sagrado do profano, mas o bem do mal, o
moral do imoral. Ele visa, consequentemente, à pureza interior, à
santidade. Contrariamente às abluções, faz questão de uma
proclamação solene. Trata-se de um ato coletivo, administrado de
uma vez por todas, que confirma uma conversão. João é o ministro
que banha, e unicamente ele. Seu gesto define sua autoridade. O
batismo é feito por imersão completa em água agitada de uma fonte
ou de um rio ou naquela mais abundante, mas lamacenta e poluída,
do Jordão. Aquele que sai banhado renasce semelhante a uma nova
criação divina, pronto para enfrentar os próximos dias derradeiros.
É um rito de passagem, de incorporação dentro de uma comunidade
escatológica, que não é mais exatamente aquela de Israel.
Provavelmente João não era o único a adotar esse modo de vida.
De tempos em tempos, fugindo dos lugares habitados, um judeu
religioso retirava-se para o deserto. Na geração seguinte, Flávio
Josefo conta que, depois de ter experienciado por dezesseis anos os
três grandes partidos religiosos de seu tempo, fariseus, saduceus e
essênios, ele havia seguido um certo Banus (ou Bano) “que vivia no
deserto, contentando-se em ter como vestimenta o que as árvores lhe
forneciam e como alimento o que a terra produzia
espontaneamente, e fazia frequentes abluções com água fria de dia e
de noite, preocupado com a pureza”.26 Mas nenhum desses eremitas
vegetarianos batizava.
Foi somente depois do desaparecimento de João que proliferaram
as seitas batistas: batistas da manhã, hemerobatistas (batistas
cotidianos), nasaraïoi (não confundir com os nazarenos), sabeus,
masboteus… Elas vão continuar a coexistir com as primeiras
comunidades cristãs do Oriente. Sem mencionar as seitas batistas
cristãs, surgidas com a Reforma protestante, alguns pequenos grupos
subsistem ainda no sul do Iraque e do Irã, como os madianitas, mais
tarde ligados a essa tradição.
Para conseguir adeptos, João se desloca ao longo do Jordão. Por
toda parte, ele conquista: o grupo dos batizados não é estruturado
em seitas, não aspira a nenhuma transformação política. João não
convoca os batizados para derrubar o poder romano, não excita as
multidões contra quem ocupa o poder ou seus colaboradores, sumos
sacerdotes e saduceus. Sua ação, puramente moral e espiritual, está
voltada para a renovação interior, a caridade, o compartilhamento
com os miseráveis. Depois de batizados, os adeptos são mandados de
volta às suas ocupações habituais. Entretanto, um pequeno grupo de
fervorosos o segue permanentemente. Ele lhes ensina o jejum, a vida
ascética, fornecendo-lhes “alguns esquemas de oração, uma prece-
padrão como será o Pai Nosso para os cristãos”.27
João não realiza nenhum “sinal”, nenhum prodígio, nenhuma
cura milagrosa. Diferentemente do movimento apocalíptico[9] que
percorre o judaísmo antigo, ele não deixou nenhum escrito.
Estranhamente, fala da vinda próxima de um personagem que lhe é
superior, que é “mais poderoso”. Um personagem enigmático cuja
natureza ele não esclarece: será um anjo, um arcanjo, um
comandante de guerra ou um novo sumo sacerdote? Um messias real
ou um messias sacerdotal? Um descendente de Davi? Seria o Profeta
do final dos tempos, que agirá como um assistente de Deus? Ou esse
estranho “filho do homem”, de que falou o livro de Daniel no século
II antes da nossa era? O próprio João sabia? “E eu, em verdade, vos
batizo com água, para o arrependimento; mas aquele que vem após
mim é mais poderoso do que eu; cujas alparcas não sou digno de
levar.”28 Comparação das mais surpreendentes. Na literatura
rabínica, esse serviço humilhante era reservado aos escravos não
judeus. Os professores que ensinavam o judaísmo podiam pedir
muitas coisas a seus alunos, mas não isso. Ora, o Batista confere
“Àquele que vem”29 tal superioridade sobre esses mestres
professores, que ele próprio ficaria honrado de realizar essa tarefa
de lhe tirar as sandálias, se não se sentisse indigno dela.30
Voluntariamente, ele limita o seu papel, na expectativa desse
personagem escatológico, designado pelo Altíssimo para batizar não
mais na água, mas no Espírito Santo. O rito de João é apenas
transitório, é um batismo de espera, que não pode ser suficiente por
si só. A água apenas traz pureza à vida terrestre, o Espírito vai
trazer a vida eterna. Na história da salvação, João sabe que ele é
apenas o arauto, o “Precursor” cuja missão é a de abrir os corações e
preparar o caminho. “Ele não era a Luz”, diz João Evangelista “mas
veio para que testificasse da luz.”31

João Batista era um essênio?


Em 1955, poucos anos depois da descoberta sensacional dos
manuscritos do Mar Morto, o historiador Jean Steinmann
considerava como “provável” a influência dos essênios sobre a
formação e a pregação de João.32 O fato de que seu lugar de retiro
em Sokoka-Qumran ficasse apenas a cinco horas de caminhada do
local onde ele batizava seria um indício disso. Assim como os
estranhos cenobitas vestidos de branco, João rejeitava o modo de
vida comum dos judeus e o sacerdócio do Templo. Como eles, João
considerava que Israel havia se desencaminhado e que somente um
grupo de puros seria salvo. Como eles ainda, ele pregava a chegada
eminente do reino messiânico, partilhando com eles a
espiritualidade do êxodo no deserto.
O batismo de João não lembra o hábito das abluções rituais dos
sectários? Até mesmo seus hábitos alimentares parecem próximos
aos deles. Dizia-se que ele se alimentava de gafanhotos. Ora, um dos
escritos da seita, o Document de Damas [Documento de Damasco], no
capítulo XII, versículos 14 e 15, fala disso expressamente,
especificando que os gafanhotos deviam ser fritos ou cozidos antes
de serem ingeridos. João não tomava vinho. Os essênios também
não, contentavam-se com tirash, suco de uva doce…
A tradição cristã associou o ministério de João com os versículos
do livro de Isaías:

Voz do que clama no deserto:


Preparai o caminho do SENHOR;
endireitai no ermo
vereda a nosso Deus.33

Ora, percebeu-se que os essênios meditavam com especial fervor


o livro do grande profeta, aplicando a eles mesmos a passagem em
questão. Do mesmo modo que João, eles a interpretavam como um
chamado para se retirarem ao deserto, a fim de ali prepararem a
vinda do Todo-Poderoso e esperarem o julgamento pelo fogo.34
Steinmann, em definitivo, via em João Batista não um adepto
ortodoxo, mas um “dissidente do essenismo”. Ele teria sido
“amplamente iniciado à vida monástica, aos métodos da exegese da
comunidade, a suas regras de ascetismo” antes de se separar de uma
parte de seus ensinamentos. Daniel-Rops, o cardeal Jean Daniélou e
o padre Bargil Pixner também o situavam “na dependência do
essenismo”.35
Os historiadores voltaram a esse ponto de vista, adotado na
euforia das descobertas dos manuscritos do Mar Morto. De fato, as
diferenças são mais importantes que as semelhanças. João não usava
abluções pluricotidianas, consideradas pelos essênios como sinais de
inclusão no grupo dos eleitos. Por outro lado, dirigia-se a todos.
Desejar estabelecer um elo entre os sectários do Mar Morto e João é,
portanto, arriscado. Se ele frequentou Sokoka-Qumran antes de sua
vida profética, é obrigatório reconhecer que não lhe restaram
lembranças.
É mais interessante considerar o sucesso estrondoso de Batista.
Ele se explica em boa parte pela situação particular da região
naquela época. A fermentação de ideias alimentava a espera ardente
de uma renovação que se sabia certa, mas cujos contornos eram mal
distinguidos. Paradoxalmente, o justiceiro hirsuto e muito ruidoso,
com um discurso sombrio e grave, era portador dessa esperança
prodigiosa…
Jerusalém na época de Jesus
2

Crise política e espera messiânica

Os judeus e o mundo grego


No mundo antigo, os “descendentes de Abraão” formavam um povo
à parte. Por volta de cinco milhões e sete milhões deles estavam
estabelecidos fora da Palestina [1]. Essa era a diáspora, que datava de
muito tempo antes dos dois saques feitos em Jerusalém por
Nabucodonosor (598-586 a.C.) e a grande deportação ao longo das
margens do Eufrates. As guerras, as misturas das populações, o
desenvolvimento de permutas de mercadorias no interior de um
mundo greco-romano em via de unificação cultural explicariam a
amplitude dessa aglomeração da população. Roma contava, talvez,
com cinquenta mil judeus em meio a oitocentos mil habitantes:
Corinto, Antioquia e, principalmente, Alexandria, para onde uma
imigração maciça havia afluído desde o século IV antes de Jesus
Cristo, tinham vastos bairros judeus. Tendo perdido o uso do
hebraico ou do aramaico, esses homens falavam o grego e
acreditavam num único deus. Sua fé monoteísta, anunciada pelos
profetas de Israel e que excluía ciosamente as religiões pagãs,
exercia sobre o povo da Aliança, que se considerava o único
depositário de uma revelação incomparável, uma influência
absoluta, mesclando de maneira inextrincável a vida religiosa e a
vida social. Para assegurar-se de sua fidelidade, Roma havia
reconhecido a particularidade dos judeus, concedendo-lhes amplas
isenções. Eles estavam isentos de honrar os deuses locais e de prestar
serviços ao exército (por causa do repouso sabático e das proibições
alimentares); dotados de sua própria administração cultual, eles
estavam autorizados a rezar em suas sinagogas (kinnéreth, em
hebraico, “reunião”, “assembleia de preces”), a vender produtos
kosher e a coletar o imposto anual de dois dracmas para a
reconstrução e a manutenção do Templo. Alguns, como o pai de
Saulo de Tarso, tinham adquirido o título de “cidadão romano”.
Na Palestina, contava-se com um milhão a um milhão e meio de
habitantes, mas a situação demográfica variava de uma região a
outra. Ao sul, a acidentada Judeia, coração do antigo reino de Judá,
pobre economicamente, era mais homogênea. Terra dos “filhos de
Davi” por excelência, ela gozava do prestígio de possuir a capital
religiosa, Jerusalém, com seu Tempo, local único onde YaHWeH[2]
residia em meio ao seu povo e a quem sacrifícios de animais eram
ofertados. Davi a escolhera como capital e Salomão, seu filho, lá
construíra o primeiro Templo. Vivendo essencialmente desse
imponente edifício, a cidade era o centro de uma teocracia austera,
animada pelo sumo sacerdote e mais particularmente pelos
importantes sacerdotes que recebiam a santa unção, como outrora os
reis de Israel, e que estavam encarregados de fazer aplicar a lei
divina. Os judeus da diáspora, largamente helenizados, iam para lá
nas grandes festas, alojando-se na cidade em hospedarias ao lado de
suas próprias sinagogas. A Lei obrigava cada judeu a subir três vezes
por ano ao Templo, para a Páscoa (Pessach, que celebra a saída do
povo de Deus do Egito), Pentecostes (Shavuot, que comemora
cinquenta dias mais tarde a dádiva da Lei no monte Sinai) e a Festa
das Tendas ou dos Tabernáculos (Sucot, que glorifica no início do
outono a vinda de Deus ao deserto). Mas poucos eram os fiéis que
respeitavam a regra rigorosamente. No máximo, iam à Cidade Santa
uma ou duas vezes por ano. A festa mais sagrada era a da Páscoa, a
mais frequentada, a de Pentecostes, e a mais alegre, a das Tendas.
No centro, a Samaria era uma zona etnicamente heterogênea,
depois das transferências maciças de populações organizadas no
século VIII antes da nossa era pelo rei assírio Sargão II. O culto
pagão dos ídolos mesclava-se com o de YaHWeH. Depois do retorno
dos judeus do exílio, autorizado por Ciro II, o Grande, fundador do
império persa, os judeus cismáticos organizaram um templo rival
àquele de Jerusalém sobre o Monte Gerizim (868 m), que dominava
a capital, Siquém. Destruído em 128 antes de Jesus Cristo, por João
Hircano, sumo sacerdote de Jerusalém e príncipe dos judeus, ele
tinha sido reconstruído pelos samaritanos, empenhados em honrar
Deus sobre esse monte, que eles consideravam como sagrado. Essas
pessoas eram tomadas pelos judeus como heréticas “possuídas pelo
demônio”. “Um pedaço de pão dado por um samaritano, dizia um
ditado popular, é mais impuro que carne de porco.” Os samaritanos
também odiavam os judeus. Eles os vaiavam quando os judeus
atravessavam sua região, de tal modo que esses, para ir à Galileia,
preferiam fazer um desvio pelo vale inóspito do Jordão.
Ao norte, a Galileia, cujo nome vinha do hebraico guelil-al-GoYim
(o Círculo dos Pagãos ou Galileia das nações), também teve uma
história movimentada. As populações da região eram de sangue
misturado, judeus, itureanos, assírios, babilônios, gregos. Durante
muito tempo acreditou-se que nessa região as pessoas haviam
praticado um judaísmo com tendência universalista, até um dia
bastante recente em que os arqueólogos perceberam que a região era
mais judaica que helenizada (é verdade que é difícil opor essas duas
culturas tão estreitamente ligadas). Também, é fato que uma grande
homogeneidade cultural subsistia entre judeus da Galileia e os da
Judeia: desse modo, observamos nessas duas províncias a presença
de mikvaot (tanque de água natural) no interior das casas, jarros de
pedra para as abluções e potes cerâmicos com representações
abstratas. As práticas funerárias também eram idênticas.
Diferentemente dos samaritanos, os galileus eram fiéis ao culto do
Templo de Jerusalém, para onde iam por ocasião das grandes
festas.1
No século II antes da nossa era, a Palestina era cobiçada por
duas dinastias helenísticas rivais, originárias da partilha do império
de Alexandre entre seus generais, os ptolemaicos (ou lágides) do
Egito e os selêucidas da Síria. Depois de ter sido ocupada pelos
primeiros, de Ptolomeu II a Ptolomeu IV (310-200 a.C.), caiu sob o
domínio dos selêucidas em 200 antes de Cristo, conservando sob as
duas dinastias as mesmas vantagens de autoadministração, sob a
autoridade do sumo sacerdote. A existência de uma forte elite
judaica helenizada levou o sumo sacerdote Jasão a pedir ao rei
Antíoco IV Epifânio para transformar Jerusalém em cidade grega. O
empreendimento obteve um grande sucesso entre os dirigentes, mas
suscitou a desconfiança, e logo depois a ira dos meios tradicionais,
que se ofenderam, sobretudo, com a instalação de um ginásio.
Quando o sumo sacerdote Jasão foi demitido em benefício de um
rival mais radical que ele, Menelau, surgiu a questão de se a própria
religião não estaria em perigo (172 a.C.). Como isto foi
acompanhado por um acréscimo de impostos em benefício do rei,
numerosas pessoas provenientes da Judeia começaram a fugir para
o deserto e a revoltar-se. O movimento ampliou-se quando a
resistência se organizou nas colinas da Judeia ao redor do sacerdote
Matatias e de seu filho, o enérgico e feroz Judas Macabeu, também
chamado “o martelo” (cerca de 170 a.C.). A situação tornou-se tão
crítica que o rei Antíoco IV foi obrigado a enviar tropas para
restabelecer a ordem. De nada adiantou. O monarca resolveu
decretar uma medida extrema, inédita: visto que os dois campos,
“helenistas” e judeus religiosos, empenhavam-se num combate em
nome da Lei, ele decidiu abolir o uso desta (168 a.C.). É o que
habitualmente se chama o “edital de perseguição”, que trouxe como
consequência uma radicalização da revolta e, sem dúvida, cenas de
horror na região, relatadas principalmente nos dois livros dos
Macabeus. A profanação do Templo, dedicado a Zeus Olímpico, foi
apenas o episódio mais marcante de uma violenta repressão. No
entanto, desde dezembro de 165, o Templo foi libertado pelos
macabeus e consagrado de novo ao culto judaico. Negociações se
entabularam na primavera de 163 com o novo rei, Antíoco V.
Ainda que as operações fossem longas e difíceis, os judeus
conseguiram progressivamente conquistar sua independência.
Jônatas, irmão e sucessor de Judas (morto em 160 a.C.), instalou-se
em Jerusalém o mais tardar em 152. Em 142, Simão expulsava os
últimos grupos gregos de Jerusalém. Com João Hircano (134-104),
filho de Simão, apareceu claramente a dimensão dinástica dessa
sucessão de príncipes-sumos sacerdotes, a dinastia dos Hasmoneus,
soberanos expansionistas que estenderam sua dominação para as
regiões vizinhas, impondo às populações locais a circuncisão,
especialmente aos beduínos da Idumeia, às margens das estepes do
Neguev (126 a.C.). Eles agiam com intolerância, impondo por toda
parte um respeito estrito da Lei, mas, ao mesmo tempo, adotavam
na organização e na gestão do novo Estado características
emprestadas dos reinados helenistas. Aristóbulo I, que foi o primeiro
a usar o título de basileus, havia se qualificado a si mesmo como
soberano filelênico, “amante de tudo que era grego”. Sob o seu
reinado, as separações retomaram. Opondo-se ao seu nacionalismo
inquietante, os fariseus reprovavam-lhe a impiedade, a imoralidade
e a violência. Um sumo sacerdote da dinastia dos Hasmoneus, o
autoritário e pomposo Alexandre Janeu (106-76 a.C.), mandou
executar milhares dentre eles. Seus dois filhos, verdadeiros irmãos
inimigos, Hircano II e Aristóbulo II, devastaram a região.2

O peso da dominação romana


Chamada para a reconquista pelos dois partidos presentes, Roma,
que estava empenhada em uma atividade política de conquista
exterior depois do triunvirato de César, Pompeu e Crasso, apressa-se
a intervir. Preocupado em pôr um fim aos flagelos do Mediterrâneo,
a pirataria e a pilhagem, que a dinastia selêucida, dividida entre
vários rivais, era incapaz de dominar, Pompeu conquista a Síria em
64 antes de Jesus Cristo; depois, no ano seguinte, apodera-se de
Jerusalém após um cerco de três meses. Ele transformou o que
restava do reino selêucida em província romana e transformou o
reino judeu e os pequenos principados árabes das vizinhanças em
reinos clientes. Com o título de etnarca e de sumo sacerdote, o
hasmoneu Hircano II manteve simbolicamente apenas uma parte da
Judeia. O verdadeiro poder era exercido por um judeu da Idumeia,
Antípatro, homem experiente e havia longo tempo em relação com
os romanos. Roma conseguira dessa maneira, aumentar o grau de
segurança de seu celeiro de trigo egípcio, receber novos impostos e
melhorar suas provisões.
Graças a novas perturbações que agitaram a região,
principalmente uma invasão de toda a Síria pelos partos, o filho de
Antípatro, Herodes, associado durante longo tempo aos negócios, foi
nomeado por Marco Antônio e Otávio, por comum acordo, rei da
Judeia e empreendeu a conquista militar do seu reino. Foi no ano 40
antes da nossa era. Em 38, o conjunto da Palestina (Judeia, Pereia,
Samaria, Galileia) tinha passado ao seu domínio. O único bolsão de
resistência, Jerusalém, mantida por um rei pouco importante a soldo
dos partos, acabou por se render no ano seguinte. Alguns anos mais
tarde, por volta de 27-23 antes de Cristo, Augusto aumentou o seu
reino, anexando as vastas regiões do sul da Síria (Gaulanitide ou
região do Golã, Itureia, Bataneia, Traconitide, Auranitide).
Cliente fiel de Roma, Herodes, chamado o Grande, não era judeu.
Seu pai, Antípatro, vinha das estepes do sul, da Idumeia. Sua mãe,
Kypros, era uma árabe de Nabateia na Transjordânia. Mesmo
circuncidado, ele não era considerado um judeu autêntico. Para ser
admitido por seus súditos, casou-se com uma princesa hasmoniana,
Mariamme,[3] neta de Hircano II. Não podendo, por causa das suas
origens, exercer o cargo prestigioso de sumo sacerdote, ele o confiou
a marionetes ou a homens venais, testas de ferro, ao mesmo tempo
que restringia o seu campo de ação e enfraquecia as grandes
famílias dos saduceus. Seguiram-se perturbações profundas entre
judeus religiosos, em particular, os fariseus. A perda do sentimento
religioso judeu tornava-se mais intensa à medida que a situação
parecia deteriorar-se inexoravelmente.
Depois de ter firmado seu poder sob o protetorado de Antônio e,
em seguida, de Otávio (a quem o Senado conferiu o nome de
Augusto, em 27 antes de Cristo), Herodes, guerreiro corajoso,
diplomata hábil, administrador e grande príncipe construtor,
transformou-se pouco a pouco em tirano cruel e sanguinário. Um
clima de suspeita policial abateu-se sobre seu reino. Sádico e
mentalmente desequilibrado, alternando atos de crueldade com
crises de demência, imaginando complôs por toda parte, fez
decapitar Hircano II, bem como vários membros de sua própria
família: Mariamme, a hasmoniana, a única de suas dez esposas que
ele amou apaixonadamente, acusada de infidelidade, sua sogra
Alexandra, e três de seus filhos, Alexandre, Aristóbulo e Antípatro,
sem esquecer numerosos oficiais de sua guarda e fariseus oponentes.
Sentindo que ia morrer, ordenou à sua irmã, Salomé, que mandasse
matar todos os judeus importantes reunidos em Jericó, “para induzir
o povo, que não o amava, a adotar o luto”. Por sorte, a ordem não
foi executada…
Com a sua morte, que ocorreu no seu palácio de inverno em
Jericó em 1o de abril do ano 4 antes de Cristo,[4] violentas
perturbações eclodiram, fomentadas por Simão, o escravo, e pelo
pastor Atronges. Augusto, preocupado em verificar a capacidade dos
herdeiros para gerir esse reino difícil, reorganizou a região,
dividindo-a. Ele atribuiu a parte central, a Idumeia, a Judeia e a
Samaria, ao filho de Herodes, Arquelau, com dezoito anos na época,
dando-lhe o título de etnarca e a promessa da coroa real, se ele se
mostrasse digno. O resto foi dividido em duas tetrarquias. Uma, que
reagrupava a Galileia e a Pereia, foi confiada a Herodes Antipas,
filho de Herodes, o Grande, e de Maltaque, sua esposa samaritana. A
outra, principalmente com a Itureia e Traconitide (a leste do lago de
Genesaré, ou mar da Galileia ou lago Tiberíades), foi entregue a seu
meio-irmão Filipe, filho de Cleópatra de Jerusalém. Esses
principados, com suas estruturas locais, seus soldados, seus
funcionários, seus coletores de impostos, sem esquecer, no plano
religioso, a aristocracia do Templo, os doutores da Lei e o sumo
sacerdote, estavam submetidos ao imperium romanum,[5] como fora o
reino de Herodes, o Grande. O sistema funcionava por meio de elos
de clientela e de subordinação. Ao leste, na Transjordânia e na Síria,
nove cidades eram essencialmente gregas (Damasco, Canatha,
Hippos, Gerasa, Péla, Gádara, Filadélfia, Raphana, Dion). Com a
antiga Beit-Shean rebatizada como Citópolis, a oeste do Jordão, elas
formavam desde Pompeia um grupo informal de cidades-Estado, a
Decápolis. Elas só contavam com uma minoria de judeus. Mesmo o
impetuoso Alexandre Janeu não conseguira submetê-las.
A má administração de Arquelau, que, segundo Flávio Josefo,
tinha lançado o povo “na miséria e na última injustiça”, foi
denunciada a Augusto por uma delegação de judeus e de
samaritanos que tinham se deslocado para Roma. Ele havia, além
disso, escandalizado seus súditos aos desposar uma princesa da
Capadócia, casada duas vezes. Tumultos haviam irrompido, dois
grandes sumos sacerdotes foram depostos de repente. O imperador
não hesitou. No ano 6 depois de Cristo, desgraçou Arquelau,
confiscou seus bens e exilou-o para Viena na Gália. Ao perder sua
autonomia, a Judeia, a Idumeia e a Samaria foram colocadas sob o
regime de administração direta. Elas formaram um distrito da
província romana da Síria, confiado a um prefeito da ordem
equestre, sob a tutela de um legado. O recenseamento com objetivo
fiscal, organizado pelo legado de Quirino, desencadeou uma nova
revolta, conduzida por um doutor da Lei, Judas, o Galileu (de fato,
ele vinha de Gamala no Golã). Para os judeus religiosos desse
tempo, desejar recensear os homens era um sinal intolerável de
servidão, contrário à vontade de YaHWeH, mestre do país e de seus
habitantes. O governador Quintílio Varo reprimiu sem piedade os
rebeldes, ao mandar crucificar dois mil dentre eles. O prefeito da
Judeia foi, a partir do ano 26, Pontius Pilatus, Pôncio Pilatos.
Habitualmente, ele morava na nova capital administrativa da
Judeia, Cesareia Marítima, cidade helenizada, onde os judeus
estavam em minoria.
As perturbações apaziguaram-se. O reinado de Tibério, de 14 a
37, foi calmo no Oriente Médio (“sub Tiberio quies”, dizia Tácito com
seu laconismo habitual, “sob Tibério tudo estava calmo”). Não houve
grande revolta armada nem execução maciça de revolucionários ou
de rebeldes. A administração da prefeitura, e a dos dois príncipes-
clientes herodianos, Antipas e Filipe, corresponde a um período de
estabilidade, a Pax romana, mesmo se o fogo incubava sob as cinzas.
Um mundo em crise?
Sem estar no apogeu, a economia da Palestina, devido às riquezas
naturais da região e ao vigor de seus habitantes, era próspera, mas
seus frutos beneficiavam apenas alguns. Por baixo de uma classe de
grandes proprietários e de uma aristocracia sacerdotal, o mundo dos
“pequenos” — camponeses, pescadores, pastores, podadores de
videira, ceramistas, tecelões, ferreiros, trabalhadores de pedreira…
— vivia em geral na pobreza, sofrendo o peso da pressão fiscal.
Os romanos, efetivamente, haviam estabelecido na Judeia o
imposto imobiliário sobre as propriedades (tributum soli), calculado
sobre as colheitas e a capitação (tributum capitis), sobre as pessoas e
as rendas mobiliárias. A isso se acrescentavam o imposto sobre o sal
ou as vendas, a patente,[6] o portorium, direito aduaneiro ou de
pedágio recebido pela circulação das mercadorias, os serviços a um
senhor (angaria), os fundos para o exército. Uma situação que não
tinha nada de original: esse era o encargo de todas as províncias
romanas. Mas uma particularidade da Palestina é que havia também
as taxas religiosas: o imposto destinado ao Templo (shekalim,
recebido no local de habitação), o primeiro dízimo (para os levitas),
o abastecimento de madeira, os adiantamentos sobre as primícias…
Encargos muito pesados.
Alguns historiadores acreditaram que havia uma grave crise
econômica e social nessa época. A miséria crescente, o
desenraizamento do mundo camponês, a rejeição de indivíduos como
os doentes e os leprosos, seriam a prova disso. Pesquisadores como
John Dominic Crossan ou Marianne Sawicki foram até o ponto de
falar de “lutas de classes” e de “classes laboriosas”, conceitos
particularmente não apropriados para uma sociedade rural à
antiga!3 Gerd Theissen, ao mesmo tempo em que afasta a ideia de
uma generalização da miséria, conclui que existia uma crise. Outros
historiadores, como Sean Freyre são mais flexíveis. Outros ainda,
como o dinamarquês Morten Jensen, autor de uma monografia
notável de 2006 sobre Herodes Antipas na Galileia, não acreditam
em nada disso.4
Podemos estar certos, em todo caso, de que, se existia crise, ela
não era de ordem política. Entre dois períodos de perturbações
extremas, um depois da deposição de Arquelau (no ano 6 da nossa
era), outro no início da guerra judaica (em 66), não houve nenhuma
revolta séria da população tanto rural quanto urbana.
Provavelmente, a situação dos habitantes não era idílica. “As filhas
de Israel são belas, dizia um rabino da época, é pena que a pobreza
as torne feias!” A superpopulação levava à busca de novas terras,
sobretudo, no vale do Jordão. Mas não houve secas nem furacões,
nem epidemias para deplorar, como acontecera no século I antes de
Cristo. E era assim no tempo de Jesus. Foi somente em 46-48 da
nossa era que veio à tona uma crise econômica, que explicava em
parte, pelo menos, as tensões sociais e políticas que conduziram ao
desastre nacional no ano 70. Dito isso, os evangelhos e Flávio Josefo
referem-se a bandos de “salteadores” que pilhavam os campos.
Vivendo dentro de grutas, eles despojavam os viajantes, saqueavam
os mercados e extorquiam os proprietários. Mas essa insegurança
rural de certa maneira sempre havia existido.
Mais preocupante, por revelar uma profunda fragilidade, era o
estado psicológico das populações em uma sociedade inteiramente
baseada na Torá.[7] Nisso residia a verdadeira crise. Os
conquistadores, apoiando-se de um lado sobre as dinastias
herodianas semiestrangeiras, de outro sobre os sumos sacerdotes e a
aristocracia dos saduceus, haviam se unido para impregnar a
sociedade com a civilização greco-latina. Não há dúvida de que a
rápida urbanização, os deslocamentos dos trabalhadores, a extensão
dos intercâmbios comerciais, a progressão do grego, língua da
administração e dos negócios, tenham abalado os equilíbrios
ancestrais da sociedade agrária, desordenando as solidariedades dos
aldeões. Como negar que tensões tenham existido entre a Galileia
rural, tradicional, e a Galileia urbanizada e helenista, na qual se
instalava uma economia de mercado que fatalmente invadia a
região do interior? Os sistemas de valores e as referências culturais
opunham-se, alimentando inquietações locais.
Ainda assim, não podemos forçar as características. Como
mostrou extensivamente o acadêmico alemão Martin Hengel, no
século I da nossa era, estamos em presença de um verdadeiro
judaísmo helênico.5 “Nada nos documentos da época”, conclui o
historiador Martin Goodman, “confirma a ideia de um conflito
estrutural entre judaísmo e helenismo na época de Cristo.”6 Em
compensação, no contato com os estrangeiros, os costumes se
afrouxaram e a fé judaica sofria com isso. Era bem esse o escândalo
dos príncipes herodianos. “Encontramos, com dois séculos de
intervalo”, observa Maurice Sartre, “um fenômeno observado no
tempo da revolta dos macabeus: como os judeus religiosos podiam
compreender que um dos seus reivindica permanecer judeu quando
frequenta com assiduidade os gregos e romanos, come com eles,
visita seus palácios, acolhe-os na corte, faz construir templos para os
(falsos) deuses e monumentos de espetáculos destinados aos
estrangeiros, frequenta as termas onde ostentam imagens de
Hermes, de Héracles e de muitos outros ídolos?”7
A qualquer momento, o patriotismo judeu e a espera
escatológica, ligada à fé de Israel, podiam criar uma mescla
explosiva. Os sentimentos religiosos estavam, pode-se dizer, à flor da
pele, suscetíveis de ser rapidamente ofendidos pelos romanos.
Testemunho disso é a revolta que quase se produziu em 39-40 depois
de Cristo, quando o imperador Caio Calígula, sobrinho e sucessor de
Tibério, quis erigir uma estátua com a sua imagem no Templo de
Jerusalém. Em suma, um desejo de renovação começava a aparecer.
A sede de salvação confundia-se com a aspiração por melhores
tempos, e é essa grande fermentação político-religiosa que explica o
sucesso do movimento batista.

A efervescência messiânica
Do século IV ao III antes de nossa era, os autores judeus místicos e
apocalípticos tinham alimentado a esperança de um messias que
estabeleceria o triunfo de Israel sobre as nações. Essa espera, incerta
e polimorfa, era, portanto, muito antiga, mesmo que ela não tenha
estado sempre inscrita no coração da fé judaica. Messias? A palavra
vem do aramaico meshiha, do hebraico mashiah, e quer dizer aquele
que recebeu a unção divina, o óleo que consagra o rei ou o sumo
sacerdote. A tradução grega significa christos (de chrein, ungir),
Cristo em português. O profeta Isaías e muitos outros esperavam a
vinda de um filho de Jessé, pai de Davi, que faria renascer em todo
o seu esplendor o messianismo real:

Do tronco de Jessé sairá um rebento,


e das suas raízes, um renovo.8

Davi e seus descendentes, que tinham reinado no país de Judá


mais ou menos do ano 1.000 a 587 antes de Cristo, eram
considerados como os eleitos de YaHWeH, os salvadores do povo.
Apesar da decepção causada por alguns lamentáveis reis no século
VIII antes da nossa era, mantinha-se a nostalgia dos tempos
anteriores ao exílio, e esperava-se o advento de um herdeiro da
prestigiosa dinastia, que devia fazer reinar a justiça e a paz. O Livro
de Samuel dizia que ele seria tratado por Deus como um filho.9 O
Salmo 2 dava até a entender que ele seria gerado por Ele. Parece
que, na origem, esses textos faziam referência a um rei histórico, até
mesmo a uma figura coletiva, mas acabaram por interpretá-lo como
designando uma pessoa futura.10 Entretanto, a própria espera do
reino desse “maravilhoso Conselheiro” atenuou-se, e adiaram a sua
vinda para um futuro indefinido. Muitos judeus não acreditavam
mais nisso.
A falta de habilidade dos reis hasmoneus, cuja legitimidade
nunca tinha sido bem confirmada, a helenização crescente da
Palestina, a integração forçada do judaísmo da Palestina na zona de
influência política romana e a esperança popular de uma libertação
nacional contribuíram para reavivar as esperas antigas.11 Os judeus
debruçaram-se novamente sobre os textos proféticos da Bíblia
hebraica, como o de Isaías 11 (“Naquele dia, recorrerão as nações à
raiz de Jessé que está posta por estandarte dos povos; a glória lhe
será a morada…”) e o de Jeremias 33 (“Naqueles dias e naquele
tempo, farei brotar a Davi um Renovo de justiça; ele executará juízo
e justiça na terra”). Até a descoberta dos manuscritos do Mar Morto,
sabia-se pouco a respeito da esperança judaica dessa época. Ora,
esses escritos da comunidade esseniana de Sokoka-Qumran
anunciam a vinda de várias figuras messiânicas, por vezes confusas
ou contraditórias. De início, um profeta — o “Profeta”, por
excelência — que será o intérprete da Lei. Na Règle de la communauté
[Regra da comunidade], ele não é qualificado como mashiah, mas, em
outros textos, ele é “ungido”. Ele precederá dois messias. O primeiro,
o Messias de Israel, ainda chamado o Eleito, será descendente do
oitavo filho de Jessé, ou, dito de outro modo, de Davi, “Príncipe da
Congregação”, incumbido de funções essencialmente civis e
militares, ele salvará Israel, exterminará seus inimigos e receberá de
Deus um trono de glória. O segundo personagem será o Sacerdote ou
“Messias de Aarão”. Sumo sacerdote ideal, Ungido de Deus, ele
gozará de uma autoridade superior àquela do Messias de Israel, visto
que é ele que o colocará no trono. Congregando o povo santo, ele o
fará viver em paz, antes de presidir ao último banquete da
Comunidade, o banquete do fim dos tempos. Vamos reencontrar
entre os essênios o messianismo bicéfalo de alguns textos bíblicos
(Jeremias, Ezequiel, Zacarias, Daniel…) ou parabíblicos, como o
Testamento de Levi, ou ainda o Testamento de Judá, escrito
intertestamentário que faz parte do Testamento dos doze patriarcas.
Por vezes, na literatura judaica dos séculos II e I antes de Cristo,
outra figura misteriosa aparece, semi-humana, semiceleste,
executora do julgamento divino, Melquisedeque, sumo sacerdote e
rei de Salém que, segundo o Gênesis, abençoou Abraão pela vitória
que Deus lhe deu.12 Um papel de mediador e de congregador dos
justos foi-lhe devolvido no fim dos tempos, depois de sua vitória
sobre Belial, o chefe dos demônios. Os justos, ou, dito de outra
forma, os Filhos da Luz, recrutados entre as tribos de Levi, de Judá e
de Benjamim, verão o desaparecimento do reino das Trevas e o
nascimento de uma nova criação purificada pelo espírito de verdade.
Um dos escritos da seita, o Rouleau de la Guerre [Pergaminho da
Guerra], relata a batalha final que virá e a derrota dos
representantes de Belial, o anjo das Trevas, também chamado de
Melki-Resha. Um fragmento de papiro de Qumran, em aramaico,
encontrado na gruta n o4, deu origem a muitos escritos. Datado por
alguns pesquisadores no ano 25 antes de Cristo, ele fala de um
personagem que “será o Filho de Deus e [que] se chamará o Filho do
Altíssimo”.13 O americano John J. Collins, professor na Universidade
de Yale, interpreta-o de maneira messiânica, outros veem nele a
figura do Anticristo que assume o lugar de Deus, outros ainda o filho
e sucessor de um rei judeu.14
A literatura farisaica da mesma época também presta testemunho
da espera messiânica.15 De maneira contrária à dos essênios, os
fariseus achavam que, por estar legitimamente assumido o serviço
do Templo, não havia motivo para esperar um novo sumo sacerdote.
Sua atenção concentrava-se sobre o descendente da linhagem real de
Davi, anunciado por Isaías. Por isso, eles se irritavam com as
pretensões messiânicas dos últimos hasmoneus: Alexandre Janeu,
sumo sacerdote, que havia assumido o título de rei, não tinha
cunhado moedas com a estrela, como faria mais tarde, no século II
da nossa era, o falso messias Simão Bar Kokhba, “filho da estrela”?
O décimo sétimo dos Salmos de Salomão (escrito por volta de 63 a.C.,
depois da conquista de Jerusalém por Pompeu) apresentava o
Messias que viria como o Ungido do Senhor, chamado para
reagrupar e restaurar o reino perdido de Israel:16 “Eis aqui, Senhor,
e cria-lhes o rei filho de Davi no momento em que sabes, ô Deus,
para ele reinar sobre Israel teu servo, e cinge-o de força para
destruir os príncipes injustos. Purifica Jerusalém das nações que a
esmagam…”. No quarto Livro de Esdras, redigido pouco depois do
ano 70 da nossa era, fala-se de um filho de Deus (“Meu filho, o
Messias”) que nascerá da semente de Davi, castigará seus inimigos e
reinará quatrocentos anos antes de morrer. Essa é uma figura
celeste. Voando sobre as nuvens, ele se eleva acima do mar. Esse
messias justiceiro, “um dos anjos santos”, encontra-se igualmente
nas parábolas de Enoque. Observamos que nenhum desses textos
fala de um messias que se oferece em sacrifício para o perdão dos
pecados e que ressuscita dos mortos.
O sucesso e a inquietação
Longos meses se passaram desde os primórdios de João na região
desértica do Jordão. Ele continua a exercer uma irradiação
extraordinária. Seu movimento não cessa de ampliar-se, de ganhar
popularidade. Ao pequeno grupo original de discípulos fervorosos
agregaram-se pessoas curiosas, buscadores de Deus, pessoas
decepcionadas com o judaísmo tradicional. Sem temer as víboras e
os javalis que proliferam nas moitas espessas da margem, elas
chegam de toda parte para que João as mergulhe nas águas do
Jordão. Essa popularidade é tão grande que suscita uma dupla
inquietação, porque os peregrinos, como diz Flávio Josefo, parecem
“muito exaltados”.
A primeira inquietação é a de Herodes Antipas. Nas fronteiras da
Pereia, são numerosos os militares e os coletores de impostos
atraídos pela pregação de João: sua presença ao lado desse
iluminado constitui uma ameaça para Herodes. Se o movimento
assumisse repentinamente uma expressão política, o que seria de sua
autoridade? O filho de Herodes, o Grande, não tem a envergadura
de seu pai. É um personagem ambíguo, ao mesmo tempo esperto,
fingido, supersticioso e influenciável. O reformismo radical do
eremita do deserto só pode inquietá-lo. À medida que o seu reino se
prolonga, Antipas se afasta cada vez mais das normas e das
tradições do judaísmo. Sem dúvida, ele continua a enviar presentes
ao Templo e se abstém de cunhar seu perfil sobre suas moedas, mas
não hesitou em construir a nova cidade de Tiberíades no lugar onde
havia um cemitério, o que o tornou odioso aos fariseus e aos
camponeses da Galileia. Ele fez decorar o seu palácio com grandes
afrescos de animais, em contradição com a proibição de imagens.17
Em suma, esse idumeu helenizado, protegido por Roma, cuja
legitimidade é contestada, está dividido entre seu temor de uma
sublevação da multidão e sua fascinação por João. Ele quer conhecer
o segredo desse mestre judeu fora do comum, cuja popularidade
inveja. Por isso, multiplicou os espiões e os informantes dentro do
seu meio.
A essa ansiedade acrescentam-se as preocupações das autoridades
religiosas de Jerusalém. Sem ser explícita, a mensagem de João
contém uma crítica sobre a instituição do culto do Templo, porque
seu batismo substitui-se aos ritos de perdão que ali são concedidos.
Com efeito, todos os anos, no dia 10 do mês de Tishri (setembro-
outubro), a grande festa de Yom Kipur ou das Expiações é reservada
para um rito coletivo de perdão. O sumo sacerdote, ou sacrificador
supremo, expulsa para o deserto o infeliz bode simbolicamente
carregado com todos os pecados do povo.
Ao convocar para a conversão dos pecadores e, principalmente,
ao administrar uma imersão para o perdão dos pecados morais, o
profeta com pele de animal separa-se do judaísmo fariseu e saduceu.
Atitude tanto mais surpreendente porque ele próprio é originário de
um meio muito próximo ao Templo. Filho único de um sacerdote
oficiante, Zacarias, do oitavo grau, e de Isabel, da tribo de Aarão,
era esperado que ele sucedesse o seu pai nas funções sacerdotais,
que se casasse para continuar a linhagem. Os sacerdotes
descendentes de Aarão estavam divididos em vinte e quatro classes
de duzentas ou trezentas pessoas cada uma. Duas vezes por ano,
durante uma semana inteira, elas acompanhavam as tarefas
sagradas do serviço divino: oferecer o incenso, conservar as
lâmpadas, imolar as vítimas animais… A partida de João para o
deserto, sua rejeição radical ao estilo de vida paterno em troca de
uma existência nômade tinham sido consideradas uma falta grave ao
dever filial; pior ainda, como uma deserção.18
As autoridades do Templo, no sentido amplo — sumos
sacerdotes, a aristocracia dos saduceus e doutores da Lei presos à
interpretação das escrituras —, ficam tão inquietas com o seu
sucesso que decidiram enviar-lhe uma delegação encarregada de
submeter esse judeu dissidente a um rigoroso interrogatório. João
Evangelista é o único que menciona essa missão, e as informações
que dá deixam transparecer que ele próprio fez parte dessa
delegação como membro de uma rica família sacerdotal de
Jerusalém. Foi esse, talvez, o seu primeiro contato com o estranho
ser que promovia batismo no Jordão, a origem da sua própria
conversão, antes de seu encontro com Jesus. “Estas coisas se
passaram em Betânia, do outro lado do Jordão, onde João estava
batizando.”19
Esse povoado da Betânia (Beit Ananiah, Ananias, a “casa das
tâmaras”), situado na Pereia do Sul, na margem oriental do Jordão,
[8] cuja existência é assinalada em 333 por um viajante que era
chamado “o peregrino de Bordeaux”, mas que estava abandonado
desde a época das cruzadas, foi redescoberto em 1996 por uma
equipe jordaniana de arqueólogos dirigida por Mohammed Waheeb,
do Departamento de Antiguidades de Amã. Sobre uma colina
artificial (formada por ruínas), situada a montante, a menos de dois
quilômetros do curso atual do rio, pilares, restos de paredes,
cerâmicas e moedas do século I foram encontradas, não longe das
fundações de duas igrejas posteriores do século V, uma delas
dedicada a Elias, a outra a são João Batista (esta última teria sido
construída pelo imperador bizantino Anastase). Uma pedra gravada
traz as letras IOY BATT, abreviação de João Batista. Um pouco mais
longe, foram encontrados cinco tanques, alimentados por uma rede
hidráulica complexa, que atestam o rito batista.20 Numa paisagem
pedregosa e desértica, o local, na confluência do Jordão e do
pequeno vale de Wadi Kharrar, forma um oásis com vegetação
abundante, com tamargueiras e canas. Prosseguindo seus trabalhos,
os arqueólogos encontraram ali vestígios de onze igrejas e capelas,
bem como grutas que serviram de retiro para eremitas.
O interrogatório reproduzido por João Evangelista é preciso
como um processo-verbal oficial, impregnado de juridismo. Ele
reflete ao mesmo tempo o procedimento inquisitorial das pessoas do
Templo e suas vivas preocupações religiosas. Percebe-se que eles
estão inquietos diante da espera messiânica do pequeno povo e com
a identidade desse pretenso profeta que concorre com eles. Que
papel ele se atribui? Como situá-lo entre a pluralidade dos
personagens que devem assinalar o advento da era escatológica?
João não se liga a nenhum mestre rabínico, a nenhuma tradição,
quer seja a Lei, os doutores da Lei ou o sacerdócio hierosolimita.
Prega com sua própria autoridade (“eu vos digo…”),21 não procura
nenhuma legitimidade exterior, como se obtivesse diretamente de
Deus sua missão e sua mensagem, e é bem isso que intriga e irrita.
Ele é um mestre independente cujo radicalismo o aproxima dos
grandes profetas. Mas ele é verdadeiramente um deles? É portador
das promessas santas de Israel? Será que, em vez disso, ele não é um
impostor, que é importante embaraçar? Não houvera profetas desde
Zacarias, havia quinhentos anos! Teria YaHWeH rompido o silêncio?
“Quem és tu?” Perguntaram-lhe inesperadamente os emissários
de Jerusalém. “Eu não sou o Messias”, respondeu-lhes João com
franqueza. “Quem és tu? És Elias?”. Com efeito, o retorno de Elias
era considerado como o sinal da vinda eminente do reinado
messiânico. “Eu não sou ele!”. Ele não é Elias que voltou para a
Terra, mesmo se, com o seu comportamento, ele quis mostrar que
era de fato o novo Elias, anunciado por Malaquias e Ben Sira.22 O
diálogo prossegue. “És o profeta?”. “Não”.
Essas negações, anotadas com cuidado pelo evangelista, deixam
perplexas as pessoas do Templo. Não sendo o Messias, nem Elias,
nem o Profeta, esse novo Moisés esperado no final dos tempos,
quem era então? Debruçados sobre a Escritura e sua interpretação,
eles sofrem em imaginar que João possa ter um conhecimento
pessoal e intuitivo da vontade divina. O Batista contenta-se em dar
essa resposta desconcertante: “Eu sou a voz do que clama no
deserto: Endireitai o caminho do Senhor, como disse o profeta
Isaías”. Dessa maneira ele aplica a si mesmo essa profecia de Isaías.
Obrigado a falar, ele se refugia atrás da profecia, identifica-se com
ela.23 Resume da melhor forma o chamado que recebeu.
João Evangelista especifica que os membros da delegação eram
fariseus, especialistas em pureza ritual, intrigados e preocupados
com o estranho batismo do profeta do deserto, que parece aniquilar
as abluções tradicionais e toda a economia sacrificatória do Templo.
Eles o instigam, procurando encurralá-lo: “Então, por que batizas, se
não és o Cristo, nem Elias, nem o profeta?”. Em outros termos, com
que direito ages assim? Com qual autoridade podes prevalecer-te
para realizar um rito tão novo?
O filho de Zacarias e de Isabel lhes dá essa resposta que
certamente os surpreendeu: “Eu batizo com água; mas, no meio de
vós, está quem vós não conheceis…”.
Os cristãos, inclusive Paulo, viram nesse personagem enigmático
a figura de Jesus, mas numerosos adeptos de João não vão partilhar
esse ponto de vista. Para eles, o mestre vai permanecer o modelo
único que se bastava a si mesmo. Por isso, ao longo de todo o século
I e, além dele, vão coabitar os grupos cristãos e os grupos batistas.
3

Jesus e o Precursor

Entrada em cena
No início do ano 30, quando o movimento de João ampliou-se, um
homem que estava no meio da multidão avança para receber, ele
também, o batismo. Ele vem da Galileia, a três dias de caminhada.
Esse homem é Jesus de Nazaré. Vestido, como os judeus de seu
tempo, com uma única túnica de linho com mangas longas, listrada
e com franjas, ele não se parece em nada com um “selvagem” do
deserto, a exemplo de João. Seu nome, Ieschoua, extremamente
difundido naquela época, é uma contração do nome bíblico
Yehôshua’, Josué, o sucessor de Moisés. Significa: “YaHWeH salva”
ou “Deus é a salvação”. Como representá-lo? Se nos referirmos ao
sudário de Turim, ele é alto. Sua altura — entre 1,75m e 1,85m, ou
até mesmo mais1 — não é excepcional: foram encontrados em Israel
esqueletos de homens do século I com uma altura comparável. Com
um porte atlético, bem constituído, de boa corpulência, magro (entre
77 e 79 kg, estimam os médicos, sempre a partir da relíquia de
Turim), ele tem pouca relação com o homem mirrado de ombros
caídos do filme de Pier Paolo Pasolini: O Evangelho segundo são
Mateus.
Ele é de um tipo semita antigo, hebreu sefardita, segundo o
arqueólogo Carleton S. Coon, professor em Harvard, ou mais puro
ainda, como os indivíduos que encontramos no Iêmen, cujos
ancestrais não misturaram seu sangue com os egípcios babilônios ou
hititas. O rosto é alongado, as arcadas superciliares pronunciadas, as
maçãs do rosto salientes, a barba arredondada (a barba com duas
pontas, chamada bífida, que vemos na relíquia e nos ícones
bizantinos a partir do século IV, origina-se dos maus-tratos sofridos
na casa do sumo sacerdote Anás, quando lhe arrancaram uma parte
da barba violentamente). Os cabelos longos, com a risca no meio,
caem sobre os ombros. É o penteado típico judeu da época.2 Segundo
o sudário de Oviedo, as maçãs do rosto são salientes, o nariz,
bastante pronunciado, tem oito centímetros de comprimento (o
mesmo comprimento que no sudário).
Durante muito tempo, os cristãos, que ignoravam o aspecto físico
de Cristo, o representaram como um jovem imberbe de cabelos
curtos, à maneira dos deuses helênicos pagãos. A pintura romana do
Bom Pastor na cripta dos Aurelianos, que data da metade do século
III, esboça a representação de um Cristo barbudo. No século IV,
sempre em Roma, nas catacumbas de Commodilla e de são Pedro e
Marcelino, ele aparecia pela primeira vez com os traços de um filho
de Israel, barbudo, os cabelos sobre os ombros, o rosto oval, o nariz
bastante longo e os olhos negros expressivos. Foi somente no século
VI, depois da redescoberta do sudário em Edessa (a atual Urfa, na
Turquia), que o modelo iconográfico bem conhecido se generalizou.
Que idade atribuir-lhe? Não é necessário tomar ao pé da letra o
que diz Lucas: “Ora, tinha Jesus cerca de trinta anos ao começar o
seu ministério”. Trinta anos é a idade ideal, simbólica, aquela da
maturidade. É a idade de Adão no Gênesis, quando ele foi criado, a
idade de José quando ele permanece em presença do faraó, a mesma
de Davi quando ele se torna rei, a idade em que os rabinos começam
a pregar e os sacerdotes a fazer o seu serviço no Templo. Na
verdade, não conhecemos a sua idade exata. “Tu não tens cinquenta
anos”, reprovam-lhe os faraós no evangelho de João, uma maneira
de dizer que ele não é um verdadeiro sábio. Uma certeza: ele não
nasceu em 25 de dezembro do ano I da nossa era. Na liturgia latina,
a festa da Natividade foi fixada de maneira convencional nessa data
em 354, pelo papa Libério, para cristianizar a festa pagã do solstício
de inverno, a do Sol Invictus (Sol Invencível), divindade pagã
glorificada pelo imperador Aurélio (270-275), e a do renascimento
anual do deus indo-iraniano Mitra. A data não tem nenhum valor
histórico. E, para precisar ainda mais, Jesus nasceu alguns anos
antes de Jesus Cristo! Foi, com efeito, em consequência de um erro
de cálculo do monge da Cítia Dionísio, o Pequeno, no século VI, que
datamos o início da era cristã em 754 após a fundação de Roma. Se
nos referirmos aos evangelhos de Mateus e de Lucas, Jesus teria
nascido sob o reinado de Herodes, o Grande. Ora, esse morreu em 4
a.C. Partindo desse dado, numerosos historiadores estabeleceram o
nascimento de Jesus no ano 7 antes da nossa era. Mais tarde,
voltaremos a isso. No ano 30, quando se inicia sua vida pública, ele
teria então trinta e sete anos.
Jesus fala aramaico, um aramaico antigo, como ainda se fala nas
aldeias remotas da Síria, ao norte de Damasco, com um sotaque
típico da Galileia que articula mal as guturais semíticas.3 É
impossível, quando alguém da Galileia fala, distinguir as palavras
immar (cordeiro), hammar (vinho) e hamor (asno). Nascido na Alta
Mesopotâmia, incorporada nos séculos V e IV antes de Jesus Cristo
pela administração persa, o aramaico era de uso corrente no Oriente
Médio. Jesus também conhecia o hebraico, a língua dos textos
sagrados, que empregava em algumas circunstâncias solenes. Ele
não tem nada de iletrado. Sem ter a cultura de um doutor da Lei
poliglota de Jerusalém, que lia a Bíblia judaica em grego mais do
que em hebraico, ele devia conhecer suficientemente o grego para
ser capaz de sustentar uma conversa.4 Dito isso, vemos pelo
evangelho de João que, quando os judeus da diáspora querem falar
com Jesus, eles se dirigem em primeiro lugar a dois discípulos que
conheciam a língua grega, André e Filipe.5

Um judeu de seu tempo


De maneira contrária ao ensinamento permanente da Igreja, os
cristãos de hoje, com frequência influenciados por uma concepção
monofisista,[1] são quase sempre levados a considerar Jesus como
um ser desencarnado ou que revestiu uma humanidade abstrata, fora
de seu meio, que sabia tudo, dominava o tempo e o espaço, que caiu
misteriosamente como um ser celeste sobre o nosso planeta, uma
espécie de encontro “de terceiro grau”, para retomar um vocabulário
de ficção científica. O historiador não poderia, evidentemente,
concordar com tal visão. Jesus é um ser de carne e sangue,
anatomicamente, fisiologicamente e psicologicamente semelhante
aos outros, enraizado no mundo cultural de seu tempo, um judeu
religioso impregnado, não pelo judaísmo rabínico atual, mas pelo
judaísmo muito diversificado do século I, “que vivia como todo
mundo ao seu redor, vestindo-se, comendo, bebendo como todos na
Galileia, falando a mesma linguagem pictórica”.6 Ele sentiu fome,
sede, sofreu, ficou cansado pela caminhada na estrada. A miséria
dos homens despertou-lhe a compaixão. Ele chora a morte de Lázaro,
o amigo de Betânia. Os seus conhecimentos científicos, médicos, sua
visão do mundo, sua cosmogonia não diferem daqueles dos judeus
contemporâneos.
Jesus, um judeu comum? Não! Quando ele se apresenta para
receber o batismo de João, o mistério já plana sobre sua pessoa. Ele
é tão religioso, tão santo que espanta pelo seu conhecimento
excepcional da fé judaica, porém mais ainda pelo radicalismo com o
qual empreende seguir o caminho que lhe indica Deus, seu Pai. Seus
pais, José e Maria, ficaram surpresos com um incidente que ocorreu
durante uma peregrinação anual a Jerusalém, por ocasião da festa
da Páscoa. O menino tinha doze anos. Essa era a idade do bar miztva
(cerimônia de iniciação religiosa dos adolescentes) ou seu
equivalente na época.7 Ao final da oitava de Páscoa,[2] em lugar de
se reunir com eles em Nazaré, permaneceu em Jerusalém sem seus
pais saberem. Acreditando que ele estava na caravana,
provavelmente brincando com os jovens primos de sua aldeia, os
pais caminharam um dia inteiro sem perceber o seu
desaparecimento. Ao retornar para a Cidade Santa, e depois de
numerosas buscas, eles o encontraram sentado no Templo, em
presença dos teólogos de Israel, discutindo com eles, como poderia
fazê-lo um erudito versado nas Escrituras. Ele, um pequeno aldeão
da Galileia! “E todos os que o ouviam”, relata Lucas, a quem
devemos o relato desse episódio, “muito se admiravam da sua
inteligência e das suas respostas”. Ao ouvir a pergunta preocupada
de sua mãe, ele deu essa resposta espantosa: “Por que me
procuráveis? Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu
Pai?”. Maria, relata Lucas, “guardava todas estas coisas no
coração”.8 O abade Jean Carmignac acha que um texto muito
antigo, que precede o evangelho sinóptico de origem hebraica,
provavelmente conservado na comunidade judaico-cristã de
Jerusalém, foi a fonte de Lucas para relatar esse episódio.9
Mas eis ainda outra singularidade. Próximo aos quarentas ano,
seu pai morto, Jesus permanece celibatário, embora não seja um
nazir como João Batista. Nada permite afirmar, como fazem alguns
historiadores ou romancistas contemporâneos, Anthony Burgess, por
exemplo, que ele é viúvo. Uma escolha tão radical é algo estranho
num mundo judeu em que o casamento é sagrado, e no qual o
homem e a mulher têm o dever de se unir e engendrar uma
descendência numerosa. “Crescei e multiplicai-vos”, lhes havia dito o
Eterno.10 Mais tarde, compreenderemos que ele estava entre aqueles
que eram os “castrados por amor ao reino (de Deus)”.11 Da mesma
forma que no caso de João Batista, não dispomos de nenhuma
informação que permita estabelecer um contato de Jesus com os
essênios, entre os quais alguns, é verdade, praticavam o celibato. O
que logo Jesus vai ensinar situa-se, aliás, apesar de alguns pontos de
aproximação, em oposição ao legalismo intransigente desses
sectários.
Segundo Lucas, Jesus e João Batista são primos (mas em que
grau?), nascidos com seis meses de intervalo. Isso não impede que
pertençam a meios muito diferentes: João tem uma origem
sacerdotal do reino de Judá; Jesus vem de um pequeno burgo da
baixa Galileia, Nazaré, afastado dos grandes eixos de circulação. Ele
é filho do carpinteiro da aldeia, José, que desde muito cedo o iniciou
na sua profissão. Em lugar de um “aldeão” judeu mediterrâneo, ou
seja, um trabalhador de construção como alguns gostaram de
qualificá-lo,12 Jesus é um artesão, um técnico em madeira (tektôn),
pertencente a uma categoria social um pouco mais elevada que os
simples operários. No século II, Justino Mártir o descrevera como
alguém que fabrica cangas de parelhas e de arados. É preciso dizer
que, na época, a madeira era abundante: Nazaré era cercada por
grandes florestas de carvalhos.
É provável que, como seu pai, ele tenha sido empregado nas
obras da aldeia vizinha de Yafia (Jaffa) e de Séforis, a grande cidade
da região, a uma hora e meia de caminhada ao norte de Nazaré.
Esta fora incendiada pelos exércitos do governador romano Quintílio
Varo e seu aliado Aretas, rei de Nabateia, logo depois da revolta de
Judas, o Galileu, no ano 6 da nossa era.13 Jesus, nessa época com
doze ou treze anos, provavelmente tinha visto a espessa fumaça da
cidade incendiada obscurecer o céu de sua aldeia (talvez até tenha
percebido algumas silhuetas de cruzes dos numerosos condenados
bordejando os caminhos…). Depois desse desastre, Herodes Antipas
tinha ordenado a sua reconstrução e decidido fazer dessa cidade a
capital da Galileia (mais tarde, mudará de opinião quando edificar
Tiberíades). A obra continuou até o ano 25, proporcionando
trabalho a todos. Situada sobre uma acrópole fortificada, essa cidade
real, com vários milhares de habitantes, rebatizada com o nome de
Autocratis (Tzippori) em homenagem a César Augusto, era menos
helenizada do que se poderia crer (nela foram encontrados traços de
banhos rituais, mikvaot).14 Não havia motivo, portanto,
contrariamente a Tiberíades (impura, como já dissemos, por ter sido
construída sobre um cemitério), para que os judeus não fossem
trabalhar lá.15
Mais importante é compreender o ambiente muito particular no
qual Jesus passou sua infância. Nazaré é uma aldeia com cerca de
cinquenta casas —150 a 200 habitantes — construídas entre as
colinas onde ficava a antiga tribo de Zebulom, na baixa Galileia, na
saída da planície de Jizreel (“Deus semeia”), terra extremamente
rica para plantar o trigo. Era provavelmente um desvio da grande
cidade fortificada de Yafia, a uma milha de lá: algumas construções
estreitas, grutas que serviam como habitação e como depósito de
víveres, vinhedos luxuriantes protegidos por torres e muros baixos
de pedras, prensa de vinho, uma sinagoga ou sala comum, sem
esquecer o poço reencontrado em direção ao norte, onde talvez
Maria, sua mãe, ia buscar água. Uma via romana passa ao lado. Em
novembro de 2009, os arqueólogos desenterraram os restos de uma
casa modesta que data sem dúvida do século I — dois quartos, um
pátio que abrigava uma cisterna talhada na rocha, alimentada por
águas de chuva. Ao lado de vasos da época romana, foram
recuperados fragmentos de utensílios de cozinha feitos de pedra, em
conformidade com as regras rituais de pureza, que mostram a
grande religiosidade dos proprietários. Essa “descoberta capital”,
segundo Yardenna Alexandre, diretora das escavações, traz a prova
de que Nazaré já existia nessa época, ao contrário do que alguns
pretenderam. Por que motivo essa casa foi conservada, quando
aquelas situadas ao redor desapareceram? Não sabemos. Mas
podemos pensar que Jesus, Maria e José a conheceram. Situada no
centro da aldeia, estava próxima do local em que uma tradição
muito antiga situa a casa de Maria (e sobre o qual, sucessivamente,
foram construídos um local de culto judaico-cristão, uma igreja de
estilo bizantino no século IV, a igreja dos Cruzados e depois a atual
igreja da Anunciação).

Esses curiosos nazarenos


Essa aldeia de aparência banal oferece uma singularidade que lhe
proporciona toda a sua importância, como sublinhou Bargil Pixner.16
Seu nome, com efeito, vem da palavra hebraica netzer, que significa
o filho ou o descendente. Nazara ou Nazaré — que na época
escrevia-se Natzareth (com um t, tzadé, e não com um z, zaïn)17 —
significa o “Pequeno Filho”. Foi fundada por um clã familiar, os
nazoreans ou nazarenos, que pretendiam ser descendentes
longínquos de Jessé de Belém, pai de Davi. Esse clã veio da
Babilônia e instalou-se ali provavelmente por volta do final do
século II antes de Cristo, e tinha dado seu nome à aldeia, da mesma
maneira, explica o padre Pixner, que Dã havia se tornado aquele da
tribo de Dã, Shomron-Samaria, aquele dos Shomer, Jerusalém, dos
jebuseus, e Manda, dos madianitas…
Traços de habitações da Idade do Bronze foram percebidos em
Nazaré, que foi em seguida abandonada, em 733, depois da
conquista da Galileia, pelo rei assírio Tiglate-Phalazar III e a
deportação maciça dos judeus. A cidade permaneceu deserta do
século VI ao II antes de Cristo (não foi encontrado ali, por exemplo,
nenhum traço de cerâmicas persas ou pré-helênicas). A província
havia se tornado pagã e tinha sido esvaziada das antigas tribos de
Israel. Na época dos macabeus, não se contavam na região mais que
poucas famílias judias dispersas. Tudo se modificou com o hasmoneu
João Hircano. Ele e seus sucessores forçaram os habitantes a fazer a
circuncisão ou a tomar o caminho do exílio. Os judeus da Babilônia e
da Pérsia foram encorajados a estabelecer-se ali. É provável nessa
época que os nazarenos, voltando da Babilônia, lá se fixaram, no
âmbito da política de tornar a região habitada por judeus.
O clã, que tinha outra colônia a leste do Golã, em Kokhaba,
estava convencido de que, do seu seio, cedo ou tarde, nasceria um
Messias real, soberano triunfante, descendente de Davi, que reinaria
sobre Israel finalmente libertada de seus ocupantes estrangeiros. O
nome Kokhaba significa “estrela” em aramaico, o que o remete
exatamente à estrela anunciada no Livro dos Números (“Uma estrela
procederá de Jacó, de Israel subirá um cetro”).18 As sim, como
observa o padre Étienne Nodet, Nazaré e Kokhaba, ambas tinham
“um nome comum derivado da esperança de [seus] habitantes”.19
Esse clã, evidentemente, aplicava a si próprio a profecia messiânica
de Isaías: “Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes,
um renovo”. Uma grande luz vinda da Galileia resplendecerá. Virá
então um “maravilhoso Conselheiro”, “Príncipe da Paz”, que
estenderá seu poder “sobre o trono de Davi e sobre seu reino”.20
Esses nazarenos nem por isso eram os precursores do movimento
revolucionário zelote que aparecerá na segunda metade do século I e
liderará a luta contra os romanos. Eles eram camponeses pacíficos,
agricultores ou artesões rurais. Ao contrário dos essênios, eles iam
regularmente ao Templo de Jerusalém por ocasião das grandes
festas. Provavelmente, eram vigiados pelos sumos sacerdotes e pelas
autoridades oficiais, que não tinham nenhum interesse em ver
desenvolver-se uma agitação messiânica que poderia pôr em questão
o pouco poder que eles tinham sobre os romanos.
Jesus é ao mesmo tempo um habitante de Nazaré e um nazareno,
descendente de Davi.21 É dessa maneira que é compreendida a frase
um pouco enigmática do evangelho de Mateus, quando fala de José,
pai de Jesus, que “foi habitar numa cidade chamada Nazaré, para
que se cumprisse o que fora dito por intermédio dos profetas: Ele
[Jesus] será chamado Nazareno”. O termo não significa “habitante de
Nazaré” (uma profecia como essa não existe em lugar algum no
primeiro Testamento, que nem mesmo cita o nome dessa aldeia
minúscula e obscura), mas descendente do tronco de Jessé,
originário da linhagem real de Davi. Era o que já salientava são
Jerônimo por volta do ano 390 num comentário dessa passagem que
apresentava dificuldade, e, por volta de 395, em sua carta 57 a são
Pamáquio (traduzindo assim o versículo de Mateus: “de seu tronco
originou-se o Nazareno”). Nazareno ou nazorean para os judeus de
seu tempo tinha exatamente esse significado. Temos a prova disso
por um detalhe mencionado no evangelho de Lucas e de Marcos: a
história do mendigo de Jericó.
Quando disseram a esse infeliz que Jesus, o nazareno, passava
diante dele, ele exclamou espontaneamente: “Filho de Davi, tenha
compaixão de mim!”. Uma referência semelhante encontra-se no
Talmude da Babilônia.22 Entre os cinco mestres que se chamam
Jesus, há um que usa o nome netzer. E a ele é aplicada a citação de
Isaías: “Mas tu és lançado fora da tua sepultura, como um renovo
bastardo.”23

O clã de Jesus
Podemos pensar, dado o pequeno número de seus habitantes, que
toda a aldeia pertencia à dinastia de Davi. Isso é certo no que se
refere a José, o pai legal de Jesus, provavelmente já morto quando
Jesus se apresenta para João Batista, mas é altamente provável que
Maria, sua mãe, também seja da mesma linhagem real.24 Vemos nos
evangelhos de Mateus e de Lucas que o casamento de José e Maria
havia sido arranjado pelas famílias. Ora, os costumes dos clãs na
época eram extremamente restritivos. Raramente a lei dos ancestrais
era transgredida. No interior do pequeno grupo muito fechado dos
nazarenos, unidos para manter a tradição de Davi, esses costumes
deviam ser mais dominantes ainda. Segundo o Rouleau du Temple
[Pergaminho do Templo], um dos mais famosos documentos essênios
(século II antes de Cristo), o rei de Israel não devia escolher sua
esposa “entre as filhas das nações; mas é dentro de sua própria
família que ele a tomará, dentro do clã de seu próprio pai”.25
Hegésipo, judeu helenizado convertido ao cristianismo (século II),
que havia recolhido informações preciosas sobre a família de Jesus
junto aos judeu-cristãos, confirma a tradição: “Maria pertence à
mesma tribo que José, porque, segundo a lei de Moisés, não era
permitido casar-se com pessoas de tribos diferentes”.26 A origem
davídica de Maria é igualmente atestada pelos judeu-cristãos, pelos
cristãos siríacos como o anacoreta Afraates e Efrém, diácono e
doutor da Igreja, por Irineu, Justino, Orígenes, Agostinho e muitos
outros…27
Ao lado de Maria, esposa de José e mãe de Jesus, há algumas
mulheres pertencentes à mesma linhagem. Uma delas é “Maria de
Clopas”, também conhecida como a mulher de um homem chamado
Clopas ou Cléofas, mãe de quatro filhos, Tiago, o Justo, José (ou
Joset, ou Joseph), Simão e Judas. O fato de que todos esses nomes
sejam de patriarcas denota a grande fidelidade desse clã à lei de
Moisés. Para Hegésipo, esse Cléofas era o irmão de José, portanto,
tio de Jesus, e este era primo-irmão de seus filhos.28
O primeiro dentre eles, Tiago, o Justo, se tornará o chefe da
primeira comunidade judaico-cristã de Jerusalém e uma das figuras
essenciais da Igreja primitiva junto de Pedro. Hegésipo relata que
lhe deram o apelido de “joelho de camelo”29 porque orava
constantemente no Templo. Segundo o costume semítico, que
engloba numa mesma acepção os irmãos e os primos, ele era
chamado o “irmão do Senhor”, e este nome conservou-se com ele,
mesmo em grego.
Essa questão dos “irmãos de Jesus” já fez correr muitas penas.
Atualmente, numerosos protestantes afastaram-se da opinião dos
primeiros reformadores, Lutero, Zuínglio e Calvino, fiéis à perpétua
virgindade de Maria, para adotar a tese de uma Maria “mãe de
família numerosa”, defendida desde o século IV por um certo
Helvídio. Alguns católicos começam a segui-la,[3] sob a influência do
padre John Paul Meier nos Estados Unidos, do padre François
Refoulé e do jornalista Jacques Duquesne na França. “Jesus”,
escreve Jean-Claude Barreau na sua Biographie de Jésus [Biografia de
Jesus], “tinha irmãos e irmãs. Essa é uma certeza histórica, mesmo se
a Igreja posterior quis fazer dele um filho único.”30
O primeiro argumento desses autores é o de fazer valer a palavra
grega adelphos, utilizada nos evangelhos para qualificar Tiago, José,
Simão e Judas, que designa, claramente, irmãos de mesmo sangue.
Para os primos, outra palavra era escolhida: anepsios. Seu segundo
argumento atém-se ao seguinte raciocínio: João esclarece no quarto
evangelho que Maria, mãe de Jesus, encontra-se ao pé da cruz.
Mateus e Marcos não o dizem expressamente, mas mencionam a
presença de “Maria, mãe de Tiago e de José” (“de Tiago, o pequeno,
e de José” para Marcos). Concluem a partir daí que Maria, mãe de
Jesus, era também mãe de Tiago e de José! Último argumento, Lucas
no seu evangelho, escreve que Maria “deu à luz seu primogênito”,31
o que deixa supor que, em seguida, ela teve outros filhos.
Certamente, o método histórico não impede a priori de interpretar
os evangelhos de maneira diferente da tradição eclesiástica; ainda
assim, é preciso ter argumentos sólidos, porque, habitualmente, o
comentário de um texto não se dissocia do meio no qual ele surgiu.
Ora, aqui, esse não é o caso. A tese de uma Maria mãe de família
numerosa está longe de ser irrefutável, como demonstrou o exegeta
Frances Pierre Grelot num artigo publicado, em 2003, na Revue
Thomiste [Revista tomista].32 No final de uma investigação relativa à
sagrada Escritura “estritamente histórica”, referente ao uso das
palavras no judaísmo antigo, esse especialista em aramaico
unanimemente reconhecido concluiu que Jesus era filho único de
Maria e José.
É preciso considerar os “irmãos de Jesus” como primos à maneira
oriental, assim como são Jerônimo havia feito. Assim como na
África, atualmente, o conjunto de irmãos e irmãs no mundo semítico
da Antiguidade estende-se aos primos, membros da mesma família
no sentido amplo, uma família comparável à familia romana. Em
hebraico e em aramaico, ‘ah (ou hâ) significa na Bíblia
indiferentemente um irmão de sangue, um meio-irmão,33 um
sobrinho34 ou um primo.35 No livro de Tobias, de início redigido em
aramaico, como provam os textos de Qumran, as palavras “irmão” e
“irmã” englobam não apenas a fraternidade de sangue, mas também
a família próxima. Ao passo que o aramaico emprega uma palavra
única hâ para um irmão ou um primo, as traduções gregas utilizam
indiferentemente adelphos e anepsios.36 Podemos pensar que ocorreu
o mesmo com os evangelhos, escritos em grego, mas impregnados
com um forte substrato aramaico e convenções linguísticas da
cultura semítica. “Irmão” designa simplesmente um parente,
inclusive para Paulo.
Sobre a cruz, Jesus, antes de morrer, diz à sua mãe: “Eis teu
filho”, falando de João, o discípulo bem-amado, depois, dirigindo-se
a esse: “Eis tua mãe”. Não podemos pôr em dúvida as palavras
relatadas por João, testemunha direta, no seu evangelho, insiste o
padre Grelot. Seriam incompreensíveis esses propósitos, dentro do
contexto cultural do judaísmo, se Maria tivesse outros filhos. Eles
teriam a obrigação de cuidar de sua mãe, que seria impedida de
abandonar a casa dos seus, para ir viver em outro lugar.
É preciso não esquecer ainda o que dizem os evangelhos
sinópticos sobre “Maria, mãe de Tiago e de José”. Em nenhum
momento ela é apresentada como a mãe de Jesus. Os “irmãos” de
Jesus, por sua vez, não são jamais chamados de “filhos de Maria,
mãe de Jesus”. Esta, mesmo quando se encontra com os “irmãos de
Jesus”, é sempre chamada a “mãe de Jesus”.37 Por sua vez, João
Evangelista evoca outra Maria, que ele chama de “Maria de Clopas”,
dito de outra forma, “Maria, esposa de Clopas ou Cléofas”. É ela que
é a mãe de Tiago e de José.38 É preciso observar que Tiago, que era
chamado o “irmão de Jesus” ou o “irmão do Senhor”, nunca
reivindicou ser irmão. Na sua epístola, ele se designava como
“Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo”.
Quanto ao argumento extraído do evangelho de Lucas, utilizado
com frequência pelos protestantes, Maria “dá à luz seu
primogênito”, pode-se dizer que ele é certamente o mais fraco. Entre
os judeus, o termo jurídico de “primogênito” (o que “abre a matriz”,
em hebraico) não pressupõe necessariamente nascimentos
posteriores, mas refere-se à consagração especial a Deus do primeiro
filho, como apontado pelo Livro dos Números: “porém os
primogênitos dos homens resgatarás; também os primogênitos dos
animais imundos resgatarás. O resgate, pois (desde a idade de um
mês os resgatarás) será segundo a tua avaliação”.39 Quando, nesse
mesmo livro, está escrito: “Conta todo primogênito varão dos filhos
de Israel, cada um nominalmente, de um mês para cima”, é evidente
que uma criança “primogênita” com um mês de idade não pode ter
outros irmãos.40 Na necrópole de Leontópolis (Tell El-Yehoudieh), no
Egito, foi encontrada, na sepultura de uma mulher judia chamada
Arsinoe, morta durante o parto no ano 5 antes da nossa era, esse
epitáfio em grego: “Em meio às dores de parto do meu primogênito,
o destino me conduz ao fim da vida”.41

As genealogias davídicas
Os hebreus atribuíam grande importância aos documentos
genealógicos que eles conservavam para comprovar sua filiação. Era
assim também com as famílias aristocráticas de Jerusalém. Mas
ficamos muito espantados ao ver que os humildes camponeses
nazarenos agiam da mesma maneira. Um fragmento de Júlio
Africano, citado por Eusébio na sua obra História eclesiástica, diz, a
esse propósito:

Algumas pessoas guardaram cuidadosamente para si sua genealogia


particular, quer lembrando-se dos nomes, quer copiando-os, e glorificavam-
se por ter salvo a memória de sua nobreza. Entre elas, encontravam-se
aquelas das quais falamos, que se chamam desposynes por causa de sua
relação com a família do Salvador; originárias das aldeias judaicas de
Nazaré e de Kokhaba, essas famílias se espalharam por todo o resto do
país.42

Foi numa boa fonte — Tiago, seu irmão Simão e famílias judaico-
cristãs — que Mateus e Lucas se documentaram. Naturalmente, as
genealogias lisonjeiras reproduzidas em seus evangelhos eram mais
ou menos fictícias. Elas divergiam, aliás, entre si. Para Mateus, o pai
de José é Jacó; para Lucas, é Heli. As duas genealogias convergem
evidentemente para Davi, filho de Jessé, mas a mais aristrocática e a
mais messiânica é a de Mateus, visto que Jesus descende de Salomão,
nascido da mulher de Urias, de seu filho Roboão e dos reis de Judá,
incluindo Jeconias, ao passo que, naquela de Lucas, Jesus é
descendente de outro filho de Davi, Natã, e de seu filho Matata. Para
Mateus, que remonta a Abraão, catorze gerações separam esta da de
Davi, catorze outras vão de Davi até a deportação para a Babilônia,
as catorze últimas conduzem ao Cristo. Uma bela simetria! Mais
ambiciosa, a genealogia de Lucas remonta a Adão, “filho de Deus”, a
fim de mostrar que Jesus, ele também Filho de Deus, é o Salvador da
humanidade inteira. Tanto uma quanto a outra dispõem de maneira
conveniente o nascimento virginal de Jesus. Mateus: “E Jacó gerou a
José, marido de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama o
Cristo”. Lucas: Jesus “era, como se cuidava, filho de José”. Dito isto,
não se deve excluir que a genealogia de Lucas tenha sido a de Maria
e não a de José, como sustentava desde o início do século XVI o
dominicano Annius de Viterbo. Em conformidade com os costumes
das sociedades patriarcais, o nome de José teria sido substituído pelo
de sua mulher, Maria.
Após a lapidação, no ano 62, de Tiago, o “irmão do Senhor”, os
parentes de Jesus, que ainda eram bastante numerosos, reuniram-se
para designar seu sucessor na pessoa de Simeão, filho de Cléofas,
primo-irmão de Jesus.[4] Dessa forma, havia se constituído uma
espécie de cristianismo dinástico, da mesma maneira que mais tarde
um ramo do islã, o movimento xiita, se organizaria em torno dos
descendentes de Ali e de Fátima (genro e filha do Profeta). Os judeu-
cristãos ou descendentes de Jessé, ou nazarenos, assumiram em
seguida o nome de “cristãos”. Um ramo dissidente dessa corrente
continuará a usar o nome de nazarenos.43 Os judeus que não
estabeleciam diferença irão chamar os cristãos de “notzrim” (e os
árabes, de “nassara”). O próprio Paulo, o Apóstolo dos Gentios, será
apresentado diante do procurador romano como sendo o “chefe da
seita dos nazarenos”, o que evidentemente ele não era.
Para dizer a verdade, esses rebentos de Jessé embaraçavam
muita gente. Depois da tomada de Jerusalém, no ano 70 da nossa
era, Vespasiano ordenou que eles fossem procurados. Seria para
erradicar a ameaça que ele imaginava que essa tribo representava
para o poder imperial? Seu filho Domiciano, em todo caso, quis
suprimi-los. Os dois netos de Judas, primo de Jesus, foram assim
denunciados e trazidos diante do César tirânico. Este perguntou
sobre suas riquezas. Os infelizes, que eram pequenos cultivadores
(provavelmente nas cercanias de Nazaré), confessaram que não
possuíam cada um mais que 4.500 dinares, fortuna representada
principalmente por uma terra de 39 phèthres, “sobre a qual eles
pagavam os impostos e que eles cultivavam para viver”. Mostraram
suas mãos calejadas, prova do seu trabalho contínuo. Falaram de sua
espera pelo retorno de Jesus Cristo no final dos tempos. O
imperador, desdenhando desses “homens simples”, mandou que os
libertassem.44

O batismo de Jesus
Jesus chega então às margens do Jordão. Se acreditarmos no
evangelho de Mateus, João Batista tenta dissuadi-lo de sua intenção
de ser batizado. “Eu é que preciso ser batizado por ti, e tu vens a
mim?” Jesus lhe responde: “Deixa por enquanto, porque, assim, nos
convém cumprir toda a justiça”.45 Para alguns comentaristas,
estaríamos em presença de uma criação literária destinada a atenuar
o embaraço ulterior da Igreja diante da anomalia dessa inversão de
papéis: Jesus, que, não pecou, pode comportar-se como os judeus
que afluem para João? Não é para excluir, mas de modo algum
necessário. A explicação dada por Mateus é plausível: é um sinal de
cumprimento. Jesus age em solidariedade com Israel arrependida,
que espera a renovação anunciada pelos profetas. Ele está
intimamente convencido de que o rito da água dispensado por João
é uma instituição divina (ele dirá isso ulteriormente durante uma
controvérsia com os sacerdotes de Jerusalém), que faz parte da lenta
pedagogia de YaHWeH. Portanto, não é espantoso que se sinta
impelido a se submeter a esse batismo, para “cumprir toda a
justiça”.
Vamos tomar cuidado, aliás, para não nos comprometer com um
falso sentido. O batismo de João, se contém uma dimensão
“sacramental”,46 não desfaz os pecados. O filho de Zacarias não teria
se sentido de modo algum investido para realizar esse gesto de
perdão. Era, como diz Marcos, um “batismo de arrependimento para
remissão de pecados”, em outros termos, uma forte promessa de
absolvição dos pecados, ao comprometer-se com uma vida nova, na
espera da vinda daquele que batizará no Espírito Santo. Nos Atos
dos Apóstolos, Paulo fala somente de um “batismo de
arrependimento”47 expressão confirmada por Flávio Josefo: “Não era
usado para o perdão de alguns pecados, mas para a purificação do
corpo, depois que a alma tivesse sido anteriormente por completo
purificada pela justiça”.48
Aquilo que realmente se passou, no entanto, é difícil de precisar
— milagre? visão? experiência mística ou extática? “Os céus se
abrem”, diz Mateus. “Eles se rompem”, precisa Marcos. Essas são
imagens bíblicas clássicas que lembram, por exemplo, a vocação do
profeta Ezequiel (“estando eu no meio dos exilados, junto ao rio
Quebar, se abriram os céus, e eu tive visões de Deus […] e ali esteve
sobre ele a mão do SENHOR”). O Espírito Santo manifesta-se com a
aparência de uma pomba que “repousa acima de Jesus” (Mateus,
Marcos, Lucas). Depois, uma voz surge do Céu: “Tu és meu filho”
(Marcos). “Este é o meu filho amado, em quem me comprazo”
(Mateus).49 Trata-se de uma revelação, de uma epifania, quer dizer,
de uma manifestação divina. Se acreditarmos em Mateus e Marcos, a
voz só se dirige a Jesus, mas para Lucas, ela é, dá a impressão,
ouvida por todos.
Alguns textos falam de uma luz estranha ou de um fogo que teria
corrido ao longo do Jordão. Assim o Codex de Vercelli (século IV) e o
Sangermanensis (século VII) acrescentam à passagem conhecida de
Mateus: “… e enquanto ele recebia o batismo, um brilhante clarão
elevou-se da água, de modo que todos os assistentes ficaram cheios
de medo”. O fenômeno é mencionado no Evangelho dos Ebionitas
(“Imediatamente, uma grande claridade iluminou os locais”) e no
Diálogo com Trifão, de Justino Mártir (século II): “Então Jesus veio ao
rio Jordão onde estava João Batista; enquanto ele descia à água, o
próprio fogo acendeu-se no Jordão; e enquanto ele saía da água, o
Espírito Santo, como uma pomba, esvoaçou sobre ele; foram os
apóstolos desse próprio Cristo que o escreveram”.50
O autor do quarto evangelho não viu a cena do batismo
propriamente dito (aliás, ele não fala disso),51 mas ele estava na
beira do Jordão no “dia seguinte”, maneira elegante de simplificar e
de esquematizar as cenas. Confiando nas lembranças da sua
juventude, ele conta que Batista, ao ver Jesus regressar naquele dia,
designou-o a seus discípulos dessa maneira: “Eis o Cordeiro de Deus,
que tira o pecado do mundo! É este a favor de quem eu disse: após
mim vem um varão que tem a primazia, porque já existia antes de
mim. Eu mesmo não o conhecia, mas, a fim de que ele fosse
manifestado a Israel, vim, por isso, batizando com água”.52
“O Cordeiro de Deus”: a imagem provavelmente não remete à
vítima pascal, a Jesus morrendo sobre a cruz, oferecendo-se em
sacrifício para o perdão dos pecados, como um cordeiro inocente,
mas a um cordeiro vencedor, ao Messias glorioso da literatura
apocalíptica, que João Batista, vindo de um ambiente sacerdotal,
conhecia bem, principalmente graças ao livro de Enoque e ao
Testamento dos doze patriarcas, um cordeiro que vai fazer justiça,
vai castigar os malvados e, no final dos tempos, vai fazer
desaparecer o império do mal e do pecado, como diz o Apocalipse de
Baruch. Então, segundo a visão edênica da tradição judaica, o povo
inteiro se tornará santo.
Os exegetas se questionaram sobre a contradição entre a frase
que figura no evangelho de João (“Eu não o conhecia”) e os laços de
parentesco entre os dois homens de que fala Lucas no emocionante
episódio da Visitação (Maria, grávida de Jesus, indo encontrar sua
prima Isabel, ela também grávida). Se admitirmos o parentesco de
primos entre os dois homens, é possível que eles jamais tenham se
encontrado? Na verdade, a frase de Batista provavelmente reveste
outro significado; quer dizer em substância: eu apenas o conhecia
superficialmente, não desconfiava de sua eminente dignidade, não
sabia que Aquele “que devia vir” era ele.
Prosseguindo seu testemunho, Batista acrescenta: “Vi o Espírito
descer do céu como pomba e pousar sobre ele”. Ele não ficou
surpreso, porque, se acreditarmos em sua própria declaração, tinha
sido avisado algum tempo antes por uma revelação divina: “Aquele
sobre quem vires descer e pousar o Espírito, esse é o que batiza com
o Espírito Santo”. E João Batista conclui: “Pois eu, de fato, vi e
tenho testificado que ele é o Filho de Deus”.53 A expressão deve ser
entendida no sentido veterotestamentário (refere-se ao Velho
Testamento), amplamente utilizado.54 Nos antigos reinos de Israel e
Judá, por exemplo, os reis eram considerados como “filhos de
Deus”.55 Mas, para João Evangelista, naturalmente, o leitor é
remetido à ideia de “Filho único”. Para Batista, essa cena poderosa
da qual foi testemunha realiza o anúncio do profeta Isaías: “Sobre
ele repousará o Espírito de Javé”.56 Jesus é certamente o Messias de
Israel, aquele que recebeu a unção em plenitude, a efusão do Espírito
Santo.
Seria fácil ver na entronização celeste do Jordão um relato
imaginário destinado a revelar aos leitores, de maneira metafórica,
a vocação de Jesus. Sérios argumentos, no entanto, concorrem para
a sua autenticidade. “Eu vi e tenho testificado”, diz Batista.
Conhecemos, entre os judeus, a importância de um testemunho
solene. Acrescentam-se a isso as proclamações da Igreja primitiva,
recolhidas por Lucas nos Atos dos Apóstolos: “Vós conheceis a
palavra que se divulgou por toda a Judéia, tendo começado desde a
Galileia, depois do batismo que João pregou, como Deus ungiu a
Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com poder”.57 Esse discurso
de Pedro, de elaboração muito antiga, testemunha a fé dos apóstolos
e de todos os primeiros cristãos.
Para o historiador David Flusser, professor na Universidade
Hebraica de Jerusalém, seria errôneo considerar esse relato como
um mito: “Nada do que sabemos agora, ele escreve, deixa a menor
dúvida quanto à autenticidade histórica da experiência que Jesus
viveu quando era batizado nas águas do Jordão”.58 Naquele
momento, com efeito, ele teve uma revelação interior que ocasionou
uma mudança brutal de vida. “Por ocasião de seu batismo por João”,
estima o exegeta James D. G. Dunn, “Jesus viveu uma experiência
importante no nível da consciência de sua filiação e da presença do
Espírito.”59 O filho de Maria e de José, até então um simples artesão
de madeira em Nazaré, que trabalhava sob encomenda ou em
canteiros de obras em Séforis, sentiu-se chamado a abandonar tudo,
a romper com sua família, sua casa, seu ambiente, deixando o seu
trabalho por um ministério profético itinerante, pronto para
enfrentar a incredulidade, até mesmo a hostilidade dos seus. Sua
decisão estava ligada a essa visão inicial, marcada com o selo da
transcendência divina. Esse parece ser um momento de transição em
sua vida, “aquele no qual Jesus aceitou sua vocação”.60 A misteriosa
manifestação de Deus às margens do Jordão (“tu és meu Filho”)
parece ter tido um duplo efeito: Jesus, pela unção divina, descobriu
plenamente o sentido de sua missão, e João compreendeu melhor a
dele.
O Templo de Jerusalém
4

A fase inicial do ministério público

A tentação no deserto
Segundo os evangelhos sinópticos, Jesus, “impulsionado pelo
Espírito”, preparou-se para o seu ministério com um retiro de
quarenta dias no deserto, período durante o qual ele jejuou e foi
tentado por Satanás, o Adversário, o pai da mentira. No século IV da
nossa era, o local da tentação foi situado no monte chamado a
Quarentena, o Jebel Qarantal, que ergue acima do oásis de Jericó
sua massa desolada de rochedos ocres, em cujas laterais se engasta o
mosteiro grego ortodoxo de Sarandarion. No cume, o panorama
estende-se a oeste sobre o monte das Oliveiras, que oculta os muros
de Jerusalém, ao norte e ao leste vê-se a torrente do Jordão, ao sul
os declives castanho-avermelhados de Moab, a planície e o infinito
cintilante do Mar Morto.
Se seguirmos os relatos de Mateus e de Lucas, essas tentações são
de três ordens: a tentação dos bens materiais e da riqueza (“Se és o
Filho de Deus, manda que esta pedra se transforme em pão”), a do
poder (“Se és o Filho de Deus, atira-te daqui abaixo; porque está
escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito que te guardem; e:
Eles te susterão nas suas mãos”) e, finalmente, a tentação da glória
terrestre. Fazendo Jesus ver “todos os reinos do mundo”, o Tentador
sussurra-lhe: “Dar-te-ei toda esta autoridade e a glória destes reinos,
porque ela me foi entregue, e a dou a quem eu quiser. Portanto, se
prostrado me adorares, toda será tua”. A essas investidas sucessivas,
que têm como objetivo desviá-lo de sua missão, Jesus responde com
uma recusa: “Passadas que foram as tentações de toda sorte,
apartou-se dele o diabo, até momento oportuno”.
Vamos nos precaver de fazer uma leitura fundamentalista. Esse
episódio estilizado, do qual ninguém foi testemunha, tem
evidentemente um tom alegórico. Não parece verossímil que Jesus o
tenha relatado a seus discípulos dessa maneira. Não, Satanás não
realizou prodígios com a natureza! Não, Jesus não foi transportado
ao cume de uma montanha ou ao topo do Templo para ser tentado!
E os “quarenta dias” certamente pertencem à simbólica bíblica. Não
é ceder à mania de “eliminar os elementos míticos” considerar que
estamos aqui em presença de um gênero de literatura particular, que
é conveniente ler dentro do contexto cultural da época: um relato
fictício que ilustra uma ideia teológica, e que realiza uma “verdade
própria” para a história da salvação.1 Existem poucas no evangelho.
Essa é uma delas.
O que, então, queriam dizer os autores dos evangelhos
sinópticos? De início, que Jesus é um homem que reza. Esse é o
sentido de sua retirada para o deserto, depois daquela de João
Batista. Inúmeras obras sobre a vida de Jesus cometem o erro de
apagar tal aspecto, primordial no entanto, de sua personalidade,
eliminando a dimensão maior da sua mensagem. Um Jesus que não
reza não é um Jesus em quem se pode crer. Como todo judeu
religioso, formado pela prática familiar do culto, ele repete três
vezes por dia o Shema Israel que faz referência ao Deuteronômio:
“Ouve Israel! O Senhor nosso Deus é o Deus único. Amarás Deus com
todo teu coração, com toda tua alma e com todas as tuas forças…”.
Ele pronuncia as bênçãos sobre os alimentos e as bebidas e agradece
a Deus em cada instante de sua vida. Constantemente, reza, abençoa
aquele que ele chama seu Pai, vive uma união total e misteriosa com
ele, de coração a coração, em oração constante, sem ostentação. Ele
se retira para um “local afastado e solitário”,2 frequentemente sobre
um cume, e passa a noite ali.
Em seguida, os evangelhos sinópticos quiseram mostrar que,
como homem, o Nazareno sofreu tentações, tentações interiores
certamente bem reais, assaltos do demônio, e que ele rezou e jejuou
para lutar contra elas. Escrita aproximadamente na mesma época
por um discípulo de Paulo, a Epístola aos Hebreus também não
esconde isso: “Pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido
tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados”.3
Jesus precisou, num momento ou outro de sua pregação, contar
para seus discípulos o seu combate espiritual, porque é difícil
imaginar que tudo tenha sido inventado a posteriori, no momento em
que as testemunhas anunciam o Cristo glorioso, Filho de Deus.
O Jesus histórico foi realmente tentado. Mas essas tentações são
também um resumo daquelas que o povo hebreu conheceu no
deserto: tentação da fome, da sede ou da idolatria. Elas anunciam a
maneira como Jesus pretende abordar sua missão: ele não se
desviará do serviço dos homens por uma glória humana vã. Ele não
será o messias temporal e glorioso, rei da guerra que expulsa os
romanos, o que era esperado pela multidão de seus compatriotas.
Ele não vai se apoderar dos reinos deste mundo. O evangelho de
João, mais exato no plano da “historicidade empírica”, não se serve
dessa fabulação dramática. Ele nos mostra, em compensação, que
Jesus enfrenta ao longo da sua vida pública tentações fundamentais
de bens materiais, a vontade de poder e de evidenciar-se, resistindo
a elas vitoriosamente.

“Vinde e vede”
Jesus, o Nazareno, veio ver Batista como discípulo. Ele reconheceu
em João não um eremita iluminado, mas um autêntico profeta de
Deus, enviado a Israel pecador e infiel. Isto significa que ele
concorda com os grandes temas de João, com a ideia da vinda do
julgamento de Deus, com uma escatologia iminente, com a
necessidade de seus correligionários mudarem radicalmente a
maneira de ser. Isto significa também que ele considerou que o
batismo de João para o arrependimento, afastado do judaísmo
oficial de Jerusalém, era o caminho escolhido por Deus como único
meio de salvação.
A partir da fulgurante visão do Jordão, o Batista não age com
Jesus como o mestre em relação a seu discípulo; ele o associa a seu
anúncio profético, “como parceiro ou como assistente em uma
espécie de divisão de trabalho”, segundo os termos de Jacques
Schlosser. Ele deixa Jesus recrutar seus próprios discípulos,
desenvolver seu próprio grupo, enquanto ele prossegue com seu
anúncio.
João Evangelista, que compõe seu texto com cenas sucessivas,
contou o encontro desde o “segundo dia” de Jesus com seus
primeiros discípulos, homens curiosos que haviam começado a seguir
Batista. A iniciativa vem desse último, que lhe envia dois discípulos:
um da Galileia, André, pescador em Cafarnaum, e um discípulo não
nomeado, que estamos autorizados a identificar como o discípulo
secreto de Jerusalém, o “discípulo que Jesus amava”, dito de outra
forma, João, o autor do quarto evangelho.
Ambos interrogam Jesus: “Rabi (que quer dizer Mestre), onde
assistes? Respondeu-lhes: Vinde e vede”. Passagem típica dos escritos
de João, rica em símbolos. Ouvida da própria boca de Jesus, a
resposta é utilizada pelo evangelista com um objetivo pedagógico.
Na catequese ulterior da Igreja, essa resposta “Vinde e vede”, isolada
do seu contexto, remeterá às obras do Cristo. Ela será um apelo para
segui-lo e converter-se. Não sabemos nada do local onde Jesus tinha
estabelecido sua morada. “Vinde e vede. Foram, pois, e viram onde
Jesus estava morando; e ficaram com ele aquele dia, sendo mais ou
menos a hora décima.”4 Seria numa das grutas do vale de Wadi
Kharrar, nas cercanias da Betânia, perto do Jordão?5 Se João
Evangelista, uma testemunha ocular, ficou chocado com a hora, a
décima (4 horas da tarde), e a menciona, é menos para dizer que
Jesus e os dois primeiros discípulos tiveram longos momentos de
entretenimento até a caída da noite, e mais para lembrar que essa
“hora” é, na Bíblia, o momento da realização, como santo Agostinho
tinha visto.
Os primeiros discípulos
Assim Jesus recruta. André encontra seu irmão Simão, também
pescador em Cafarnaum, que tinha vindo, igualmente, ao encontro
do Batista. Ele lhe anuncia a grande nova: “Nós encontramos o
Messias!”.6 Como o pequeno povo da Galileia, que detesta a dinastia
de Herodes, esses pescadores do lago Genesaré esperam com
ansiedade a manifestação de um príncipe legítimo que os libertará
dessa pesada submissão. Simão, pleno de entusiasmo e de prontidão,
acompanha André, que o apresenta a Jesus. Este “olha” para ele e
lhe declara: “Tu és Simão, filho de João, tu serás chamado Cefas”
(kefâ em aramaico), dito de outra forma, Pedro. Esse é um sinal. Na
antiga Aliança, essas mudanças de nome são acompanhadas de um
significado, de uma nova missão; Abrão (de Abirão: “o pai é muito
alto”) tornou-se Abraão (“O pai de uma multidão de nações”), e Jacó
tornou-se Israel. Para Simão-Pedro começa uma nova vida. O nome
o remete a ser ele mesmo. Portanto, ele será Pedro, a Rocha.
Com os seus primeiros discípulos, Jesus sai da Pereia, sobe o vale
do Jordão e chega a Betsaida (“a casa dos pescadores”) na Galileia,
ao norte do lago de Genesaré. Vizinha de Cafarnaum, essa aldeia
encontra-se às vésperas de uma transformação maior. Herodes Filipe
II, irmão de Herodes Antipas, acaba de decidir, no ano 30, elevá-la à
categoria de polis (cidade). Sua intenção é construir uma grande
cidade, igual à de Cesareia de Filipe, que ele mandou construir sobre
o planalto norte do Golã. Ele mudou o nome da cidade para Julias
para honrar a esposa de César Augusto, Livia Drusilla, que se
tornara Júlia Augusta, morta no ano precedente. Essa lisonja era
uma consideração em relação a Tibério, de quem ela era mãe.
A parte principal da cidade encontra-se sobre um espigão
basáltico de 400m de comprimento por 200m de largura, dominando
as águas do lago a uma altura de 25m, mais ou menos. Esse local de
Et-Tell situa-se hoje a dois quilômetros das margens por causa das
aluviões do Jordão, muito próximo, aluviões que modificaram a
paisagem no decorrer dos séculos. Várias expedições de escavações
arqueológicas se sucederam no local desde 1987. Restos de ocupação
que datam da Idade do Bronze antigo (2900 a 2200 a.C.) foram
encontrados. No século X antes da nossa era, a cidade tinha sido a
capital do reino de Gechour, cuja história está ligada à de Israel.
Davi tinha desposado a filha de seu rei, Maaca, e de sua união
nasceu Absalão. Betsaida estava cercada por uma muralha de seis
metros de largura. A porta principal, da qual uma parte foi
conservada, tinha dimensões imponentes. Em 734 antes da nossa
era, Tiglate-Phalazar (ou Tiglate-Pileser) III, rei da Assíria,
conquistou essa cidade aramaica e destruiu-a, deixando subsistir
apenas a aldeia de pescadores. Mas os arqueólogos encontraram os
traços da cidade. Uma casa continha na sua adega ânforas de
cerâmica para vinho e vários ganchos para talhar o vinhedo. Outra
casa recobria uma superfície de 400m2 ao redor de um belo pátio
feito de lajes a céu aberto. Nos seus quartos foram recuperados
materiais de pesca: âncoras de ferro, um anzol, uma agulha curva
para consertar as velas, pesos de chumbo para as redes… Era, muito
provavelmente, uma habitação coletiva de pescadores. André e
Simão-Pedro, assim como Jonas (João), seu pai, será que habitaram
ali?, Porque Betsaida era o local de origem de sua família.
Mas, dentro de pouco tempo aparece Filipe, ele também
originário dessa aldeia. Jesus lhe diz simplesmente: “Siga-me!”. O
outro também não duvida de que ele acabara de encontrar o
Messias, portador da sublime esperança. Precisamos observar que tal
região de Betsaida tinha sido amplamente helenizada, porque os
nomes desses pescadores têm consonâncias gregas: André, Filipe e
mesmo Simão (Pedro), forma grega de Simeão.
Filipe, que soube que Jesus era filho do artesão José de Nazaré,
encontra, por sua vez, uma pessoa que conhecia da Galileia,
Natanael, e lhe anuncia: “Achamos aquele de quem Moisés escreveu
na lei, e a quem se referiram os profetas: Jesus, o Nazareno, filho de
José”. Natanael assume uma atitude provocadora. Ele replica — “De
Nazaré pode sair alguma coisa boa?”.7 Natanael — “dádiva de
Deus”, em hebraico — não é originário de Betânia, mas de Caná
(qânâh, o junco, a cana), uma aldeia distante catorze quilômetros ao
norte de Nazaré. Não é por chauvinismo local que ele emite esse
julgamento desencantado. Faz, evidentemente, referência aos seus
habitantes, os nazarenos, cujas loucas pretensões davídicas ele
condena. O que pode sair de muito interessante desse clã
extremamante reduzido? Certamente não o Salvador de Israel! Com
efeito, depois de Zorobabel no século VI antes da nossa era, a
linhagem de Davi se perdera. Por isso, o ceticismo de Natanael
diante da incrível pretensão real desses rústicos obscuros. Tudo isto
pertence ao sonho, “um pouco como se”, escreve o exegeta Charles
Perrot, “alguns realistas do nosso tempo esperassem a descoberta de
um descendente de Luís XVII!”.8
Ao ver Natanael, Jesus exclama: “Eis um verdadeiro israelita, em
quem não há dolo!”; dito de outra maneira, um judeu fiel e
autêntico, direito, sem embuste nem mentira. O outro fica surpreso.
Como o conhecia? “Antes de Filipe te chamar, eu te vi, quando
estavas debaixo da figueira.” A imagem da figueira remete aos
homens religiosos que estudavam tranquilamente a lei sob a sombra
das folhagens dessa árvore, em companhia de um mestre, de um
rabi.[1] Natanael é, portanto, um sábio que teve a ocasião de
perscrutar cuidadosa e minuciosamente os escritos messiânicos, e
disso concluiu que a perspectiva de um personagem de origem
davídica era uma pista falsa.
Mas que Jesus tenha podido “vê-lo sob a figueira”, sem o auxílio
dos olhos, foi suficiente para convencê-lo e modificar
profundamente suas crenças. A clarividência não é um dos atributos
messiânicos? Sim, o filho de José é por certo o futuro rei de Israel
como YaHWeH tinha prometido! Sim, contrariamente ao que ele
tinha pensado, as pessoas de Nazaré seguramente pertencem à
descendência davídica! Ele estava pronto para segui-lo. Jesus lhe
respondeu: “Porque te disse que te vi debaixo da figueira, crês? Pois
maiores coisas do que estas verás.” E anuncia para seus discípulos:
“Em verdade, em verdade vos digo que vereis o céu aberto e os anjos
de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem”. Com essa
abertura em Amém (em “Amen saying” [provérbios do quarto
evangelho], dizem os anglo-saxões), Jesus dá uma solenidade para o
seu propósito. Evocando o sonho do patriarca Jacó em Betel, com os
anjos que sobem e descem, introduz uma figura enigmática que
utilizará com frequência, aquela do Filho do Homem, emprestada de
um texto do profeta Daniel: “Entre as nuvens do céu vinha alguém
como um filho de homem”.9 Voltaremos a isso.

Caná, na Galileia
Se Jesus decidiu ir rapidamente para a Galileia, foi para assistir a
um casamento em Caná, a aldeia de Natanael, no antigo território
da tribo setentrional de Naftali. Situada no caminho que liga Séforis
ao lago de Genesaré, essa aldeia fortificada estendia-se pela encosta
de uma colina redonda e desnuda, dominando as terras agrícolas do
fértil vale de Beit Netofa (ou Netufa), ao Wadi Yodefat.10 A região
chama-se hoje Beit Cana e foi venerada até nos tempos dos
cruzados, antes de desaparecer. O local, muito antigo, remonta à
Idade Média do Bronze. Em 732 antes de Cristo, o lugar tinha sido
devastado por Tiglate-Phalazar III, depois repovoado na época
helenista, antes de ser novamente destruído por Vespasiano, no ano
67 da nossa era, e em seguida pelos árabes. Sobraram apenas alguns
muros baixos e ruínas modestas, pedaços de colunas, cisternas
escondidas nas rochas, blocos de pedras em meio a pedregulhos. No
decorrer de três séries de escavações, os arqueólogos Peter
Richardson e Douglas Edwards, da Universidade de Puget Sound,
encontraram no lugar traços anteriores ao ano 70: os de uma
sinagoga, de um ateliê de vidro soprado, várias prensas de óleo e os
restos de um cemitério. É preciso ter uma imaginação muito forte
para perceber que uma pequena comunidade judaica viveu no local
no século I da nossa era.
Era festa na aldeia, onde se prepara o casamento, mobilizando o
clã familiar. O casamento não se resume a um ato escrito, uma
ketubbah, que garante a soma de dinheiro que a mulher recebe em
caso de repúdio (vários documentos desse tipo foram encontrados no
deserto da Judeia). É uma espécie de sacramento, à imagem das
relações perfeitas que ligam Israel e a Torá, Israel e YaHWeH.
Selada pelo kiddushin, a cerimônia dá lugar a procissões, festividades
e danças.11 Risos, vivas, gritos estridentes convergem para a casa da
noiva. As mulheres desvelam-se ao redor da futura esposa,
colocando anéis e braceletes nas suas mãos e nos seus pés,
reavivando suas faces e seus lábios com cor-de-rosa, pintando suas
pálpebras e o contorno de seus olhos para torná-los maiores e mais
brilhantes, colorem com hena dourada seus cabelos e suas unhas,
enfeitam-na cuidadosamente com um vestido bordado e com o véu
nupcial, antes de coroá-la com flores. Bandos de crianças escapam
da vigilância dos pais e brincam na poeira. Os homens voltaram do
campo e acolhem primos e amigos que vieram dos povoados
vizinhos. Os touros e os animais gordos foram degolados e cortados
em pedaços para o festim. Ao cair do dia, com archotes e tochas
acesos, o cortejo nupcial se põe em marcha, irmãos e irmãs na
frente, cercando o futuro esposo. As pessoas batem palmas e cantam
ao som dos címbalos e ao ritmo dos tambores. Os clamores redobram
nas ruelas à aproximação da casa da moça. Ela sai ao encontro do
prometido, segurando uma lâmpada de óleo com uma mão,
protegendo a chama vacilante com a outra. Mas rapidamente ela é
agarrada pelo cortejo, erguida sobre uma cadeira, levada em triunfo
até o domicílio do pai do noivo. Pode-se então quebrar a ponta fina
da ampola de perfume e trocam-se os juramentos. Depois de ter
pronunciado as bênçãos, as carnes saborosas, que assaram no espeto
durante a tarde toda, são cortadas e bebe-se vinho, esse vinho
pesado, capitoso, que embriaga facilmente, produzido nas colinas
vizinhas. Tais festejos barulhentos vão durar os sete dias da
cerimônia nupcial, prolongando-se talvez até o sabá seguinte.
Maria, mãe de Jesus, provavelmente uma parente próxima de um
dos esposos, veio de Nazaré — a três horas de caminhada, pela
estrada de Séforis —, vestida com sua túnica de viúva, com seus
sobrinhos Tiago, José, Simeão e Judas, filhos de Cléofas. O próprio
Jesus foi convidado, como muitos outros. Ele não chega sozinho, mas
acompanhado por seus novos discípulos: André, João Evangelista,
Simão-Pedro, Filipe e Natanael, nativo do local. Nessa ocasião, João
Evangelista encontra aquela que, mais tarde, ele acolherá sob seu
teto em Jerusalém, essa Maria de Nazaré que, com infinita reserva e
respeito, ele só chama de “mãe de Jesus” ou “sua mãe”.
A festa começou numa terça-feira, no terceiro dia da semana,
contrariamente ao costume da quarta-feira, na qual ocasionalmente
os habitantes da Galileia faltam ao dever.12 A alegria é geral. O
vinho corre com abundância. Mas logo começa a faltar. Os jarros de
argila e os odres de pele esvaziaram-se muito rápido, e os
convidados sentem sede. Cheia de solicitude, Maria foi a primeira a
perceber. Talvez tivesse um papel na organização do festim? Ela diz
a Jesus: “Eles não têm mais vinho”. Este dá uma resposta
surpreendente: “Mulher, que tenho eu contigo?” (em aramaico: “ma
li ûleki”, termos de uma linguagem diplomática que sublinha um
profundo desacordo), que poderíamos traduzir assim: “Mulher, o que
há entre você e mim?”. Não se pode imaginar o evangelista João
inventando uma conversa tão dura, tão severa de um filho com sua
mãe, de que não encontramos nenhum outro exemplo na literatura
judaica. Um homem pode falar dessa maneira com sua mulher,
jamais com sua própria mãe! Prova que Jesus realmente pronunciou
essa frase. Alguns escribas cristãos ficaram tão chocados que a
omitiram ao recopiar o evangelho de João.
Não é por parte de Jesus um sinal de rejeição ou de desrespeito,
mas as preocupações materiais de sua mãe estão muito longe das
suas. Seu pedido lhe parece intempestivo: “Minha hora ainda não
chegou”, prossegue ele. Mal tinha iniciado no caminho de Batista;
ele considera que “sua verdadeira missão só deve começar depois
que João Batista terminar a sua”.13 Talvez tenha recebido esse
pedido como uma tentação?14 Ele está determinado a não se deixar
desviar de sua obra, a preservar contra todos o mistério de sua
pessoa.
Maria, se seguirmos o relato do evangelista, dirige-se então aos
servidores da boda: “Façam o que ele mandar!”. Será que ela
realmente pediu a seu filho para realizar um milagre, quando jamais
o viu fazê-lo? Apesar da vivacidade da sua primeira reação, Jesus
acede a seu pedido, mas opera de uma maneira estranha, à
distância, dando duas ordens aos empregados: primeiro, encher de
água até a borda os grandes jarros destinados às purificações, o que
prova, pelo uso que haviam feito do vinho, que eles já estavam no
segundo ou terceiro dia da boda, e depois retirar o vinho dos vasos e
levá-lo ao ecônomo. Na sociedade judaica, esse organizador da
refeição não é o simposiarca dos gregos, esse presidente eleito pelos
convidados e encarregado da distribuição do vinho, e ainda menos o
tricliniarque (principal doméstico) dos romanos, esse escravo de
confiança que dirige os servidores, mas um amigo ou um parente da
família, que libera o marido das preocupações materiais.15 O
ecônomo experimenta o vinho, e, talvez espicaçado por não ter sido
posto ao corrente, exclama com um tom humorístico em direção ao
anfitrião: “Todos servem primeiro o vinho bom, e quando os
convidados estão bêbados, servem o pior. Você porém guardou o
vinho bom até agora”.16

As bodas messiânicas de Deus com seu povo


Alguns comentaristas duvidaram da historicidade do episódio.17 Para
eles, tratar-se-ia de um relato alegórico, de um pequeno conto
oriental repleto de ensinamento teológico. Esse milagre supérfluo da
transformação da água em vinho em grande quantidade, quando os
convivas provavelmente já estavam embriagados, não é chocante
para a nossa racionalidade?
Esse raciocínio mostraria a falta de compreensão do evangelho
de João — o único a relatar esse episódio —, de sua lógica própria,
de seu “modo de funcionamento” interior. João é ao mesmo tempo
teólogo e historiador, historiador e teólogo. Ele mantém as duas
extremidades da corrente, sem nunca soltá-las nem separá-las. Sabe
ler os sinais do Céu nos fatos humildes e gestos da terra, depreender
da realidade o seu significado profundo. Ele realmente se preserva
de inventar os fatos. Todo seu sistema intelectual está baseado nesse
duplo registro, aquele da história dos eventos e do significado que se
depreende deles.
As bodas de Caná são um “sinal” no sentido joânico do termo,
não um símbolo. Um sinal contém uma realidade, uma realidade
inteligível que pede para ser transcendida, interpretada em função
de uma verdade mais alta, espiritual. O processo narrativo de João
apoia-se sobre detalhes autênticos — levando em conta o seu modo
de pensar, não poderia ser de outra forma —, mas esses detalhes, em
lugar de serem integrados num relato completo, são isolados e
sublimados. Disso decorre o caráter alusivo do relato. O que, para o
historiador, é mais que frustrante… Não saberemos nunca o nome do
noivo nem o da noiva, nem seu grau de parentesco com Jesus e sua
família, e não saberemos por que Maria foi a primeira a perceber
que faltava vinho, antes do responsável pela refeição, tampouco por
que ela pôde dar ordens aos servidores. Não saberemos o que o
noivo respondeu ao ecônomo nem a reação dos convidados diante
dessa sorte… Para ressaltar melhor o sentido oculto do episódio
escolhido, o evangelista até mesmo escondeu os principais
personagens — a noiva não aparece, o noivo é apenas evocado.
Se João quis compor um relato alegórico à maneira das tentações
do deserto, situado fora do espaço e do tempo, ele não teria
complicado tanto a sua tarefa, não teria procurado localizar a cena.
Sua construção teria sido mais afinada, mais clara. Se o esposo e a
esposa quase desaparecem é porque João, partindo dessas bodas
humildes entre aldeões (às quais, repetimos, Jesus assistiu com os
quatro outros primeiros discípulos), teve a ideia de fazer de
YaHWeH, distribuidor de todas as graças, o esposo das bodas, e de
Maria, figura de Sião e de Israel crente, a esposa. No seu espírito,
Caná anuncia nada menos que as bodas escatológicas do reino, o
banquete celeste dos últimos tempos, de que falam os profetas, o
júbilo da salvação e da Boa Nova. O vinho de qualidade que flui em
abundância simboliza a perfeição alcançada, a beatitude celeste, a
gratuidade e a superabundância da vida oferecida por Deus…
Mais tarde, em suas parábolas, Jesus também se servirá dos
festins das bodas para apresentar o reino dos Céus.18 O importante é
perceber que, com o que se passou em Caná, já é representada uma
inversão completa das perspectivas em relação ao ensinamento
patético de Batista, uma novidade absoluta. O Deus de Jesus não é
YaHWeH, o justiceiro, mas o Deus do amor e da brandura. A cena
anuncia o rompimento, ainda pouco perceptível, entre os dois
homens.
Enquanto o evangelista permanece mudo sobre os aspectos
essenciais dessa boda, ele se estende sobre a natureza das jarras, das
enormes jarras de pedra reservadas para a purificação dos judeus,
sobre seu número — seis — e seu conteúdo, cada uma com duas ou
três medidas, ou seja, de 360 a 540 litros ao todo. Notações
concretas que têm sua importância. Seis jarras e não sete, o número
perfeito, e que além do mais, são jarras de pedra, sinais, para esse
sacerdote hierosolimita, da imperfeição da antiga Israel e da Lei
escrita. Para ele, Jesus utilizou intencionalmente esses jarros de
purificação em lugar dos jarros de cerâmica ou de odres vazios à sua
disposição. A água transformada em vinho torna-se, portanto, o
sinal da continuidade entre a Israel antiga e a nova Israel. Para
João, como vemos, a história e a teologia estão intimamente ligadas.
Em definitivo, o historiador pode dizer que se produziu algo
extraordinário em Caná. João Evangelista, testemunha ocular, o
atesta. O resto, naturalmente, é do domínio da fé.
Quem foi testemunha do prodígio? O intendente do festim não
compreendeu: apenas espantou-se ao experimentar um vinho
melhor. Os servidores viram e compreenderam, mas não sabemos o
que disseram. Maria e os discípulos tiveram, eles também,
conhecimento do milagre. Jesus, escreve João, após ter assim
manifestado “sua glória”, “seus discípulos acreditaram nele”. Até
então, esses o haviam seguido somente porque Batista o tinha
designado como “aquele que devia vir”. Por meio do gesto teatral
em Caná, que inaugura por antecipação seu ministério (a pedido de
sua mãe), Jesus autentica diante deles sua missão, ele a oficializa
por meio de um símbolo poderoso que se abre sobre o mistério de
sua pessoa. Simão-Pedro, André, seu irmão, João Evangelista, ficam
mais do que nunca convencidos de que encontraram o Messias:
Filipe pode assegurar-se disso e Natanael admitir, se já não o havia
feito, que de Nazaré pode realmente sair algo de bom…
Cafarnaum
Depois desse episódio, Jesus, sua mãe, seus “irmãos” e seus
discípulos descem das colinas da Galileia em direção ao lago de
Genesaré, situado a 208m abaixo do nível do mar. Eles vão a
Cafarnaum, onde Simão-Pedro mora, junto de sua madrasta. Na
margem noroeste do lago, Cafarnaum (em hebraico Kfar Naüm, a
aldeia de Naum, o profeta) não devia contar com mais de 500 a 600
habitantes.19 Ao lado dessa aldeia, não cercada por muros, sem
banhos públicos, nem grandes monumentos, Séforis e Tiberíades, as
duas capitais cosmopolitas de Herodes Antipas, apareciam como
cidades enormes, com seus milhares de habitantes. Mesmo Betsaida,
situada mais a leste à beira do lago, era mais importante.
Na época de Jesus, Cafarnaum era uma aldeia de pescadores e de
camponeses que exploravam as oliveiras e o vinhedo, como mostra o
seu habitat rústico, composto de casas de basalto grosseiramente
talhado, cobertas com armações de telhados feitas com caniços
ligados por um reboco. Essas habitações, dispostas em quadriculados
ao longo de ruelas retilíneas, em geral só tinham um cômodo que
dava para um pátio interno a céu aberto, que várias famílias
compartilhavam — donde vinha sua promiscuidade, mas também
sua vida comunitária. A economia do local provinha dos recursos do
lago, conhecido pela abundância de seus peixes, e da planície de
Genesaré, particularmente fértil. O porto era bordejado por um
grande quebra-mar de dois metros de largura.20 Os habitantes eram
judeus religiosos, a julgar pela presença de recipientes de pedra do
tipo dos de Herodes, destinados às purificações rituais.21 A rica
sinagoga de pedra calcária, da qual se podem ver atualmente os
embasamentos e as colunas quebradas, data do período bizantino.
Mas, sob essas ruínas, as fundações de uma sinagoga em basalto,
mais modesta, anterior ao ano 70, foram encontradas pelos
arqueólogos. Elas correspondem ao edifício que Jesus conheceu.
As escavações efetuadas entre 1968 a 1985 por dois padres
franciscanos, V. Corbo e S. Loffreda, permitiram revelar os restos de
uma basílica octogonal do século V, que servia de igreja de
peregrinação. Debaixo dela encontravam-se uma primeira sala de
culto que datava do século III, depois, sob as ruínas desta, a casa de
Simão-Pedro. Era uma construção rudimentar, análoga à de seus
vizinhos. Todos os dados da arqueologia são favoráveis à
autenticação. O local era venerado desde tempos imemoriais como
sendo a morada do chefe dos apóstolos. “Em Cafarnaum”, escrevia
em 388 a abadessa espanhola Egéria, em sua descrição da Terra
Santa, “há uma igreja construída sobre a casa do apóstolo Pedro.”
Foi bem ali, nessa pequena casa de pescador, que Jesus estabeleceu
o seu quartel-general na Galileia, onde passou dias e noites em
companhia de Simão-Pedro, de sua família e de seus companheiros.
Um detalhe emocionante: ali foram descobertos anzóis. Entretanto,
por ocasião dessa primeira visita a Cafarnaum, Jesus permanece
apenas alguns dias. Como a Páscoa se aproxima, ele decide subir
para Jerusalém com seus cinco discípulos. Os peregrinos de todos os
povoados da Galileia têm o hábito de se agrupar para formar uma
caravana. Eles se inseriram nela.
5

Jerusalém e o ministério da Judeia

O Templo
Na lista — variável — das Sete Maravilhas do Mundo Antigo figura,
por vezes, o Templo de Jerusalém, ao lado do farol de Alexandria,
do mausoléu de Halicarnasso, da pirâmide de Quéops, dos jardins
suspensos da Babilônia, do Colosso de Rodes ou da estátua de Zeus
Olímpico feita por Fídias. “Aquele que não viu o Templo de
Herodes”, assegura um ditado, “não viu nada de belo em sua vida.”
Uma reputação que não era usurpada, se acreditarmos na descrição
de Flávio Josefo, em sua Guerra dos Judeus. De longe, na claridade
nascente da aurora, quer as pessoas viessem pelo caminho do norte,
quer pelos caminhos de Cesareia ou de Jericó, ele aparecia como
uma “montanha coberta de neve”, coroada no seu topo com o
mármore mais branco. Delicadas pontas cortantes de ouro impediam
os pássaros de sujar a cobertura.1 Projetado para o céu acima de
seus gigantescos embasamentos, a construção, em estilo grego,
recoberta por todos os lados com espessas placas de ouro, refletia os
raios de sol com tal intensidade que os peregrinos precisavam
desviar os olhos.
Cidade única, com destino incomparável, obra do Altíssimo,
diziam os hebreus, ornamentada com todos os esplendores
sobrenaturais, Jerusalém brilhava como uma joia, tendo como pano
de fundo as colinas ocres que a cercavam. Na angústia do exílio, os
deportados da Babilônia se lamentavam em um dos mais belos
salmos de Israel: “Às margens dos rios da Babilônia, nós nos
assentávamos e chorávamos, lembrando-nos de Sião. Nos salgueiros
que lá havia, pendurávamos as nossas harpas […]Se eu de ti me
esquecer, ó Jerusalém, que se resseque a minha mão direita. Apegue-
se-me a língua ao paladar, se me não lembrar de ti, se não preferir
eu Jerusalém à minha maior alegria”.2
A cidade, cercada por muralhas crenuladas, protegida pela vala
de Cedrom a oeste e pelo vale de Tiropeon ao norte, tinha sido
edificada nesse local para controlar a única fonte da região, ao pé
da pequena colina de Sião, o Giom. No século VII antes da era cristã,
o rei Ezequias tinha feito construir um túnel de 553m que conduzia
suas águas até o reservatório de Siloé. Ele ainda existe.
Durante o reinado de Davi, essa modesta povoação de um milhar
de habitantes tinha se tornado a capital dos reinos unificados de
Judá e de Israel. Em 967, Salomão, seu filho e sucessor, decidiu
construir um templo no local, onde seria permanentemente abrigado
o relicário sagrado das tábuas da Lei. Esse primeiro edifício,
revestido com lambris de madeira de cedro e coberto de ouro, foi
incendiado e demolido depois da conquista da cidade por
Nabucodonosor em 586 antes da nossa era. A arca da Aliança
desapareceu. Cinquenta anos mais tarde, em 538, Ciro, o Grande, rei
dos reis e soberano do império persa, autorizou os judeus a voltar do
exílio. A construção do segundo Templo, o de Zorobabel, começou
pouco depois. Ele só foi terminado em 516. A construção permanecia
de dimensões modestas. Foi Herodes, o Grande, que, no ano19-18
antes de Cristo, a fim de firmar sua legitimidade, decidiu substituí-lo
pelo edifício religioso mais grandioso do mundo: cinco vezes a
superfície da Acrópole! Devia ser o orgulho do povo eleito.
Ele não hesitou em utilizar abundantemente os meios necessários.
Dezenas de milhares de operários trabalharam nessa construção
durante anos. O antigo Templo foi demolido, aterraram a colina do
monte Moriá. Enormes assentamentos de pedra — estima-se que
alguns blocos pesavam 400 toneladas — serviram para a edificação
da estrutura de sustentação da imensa esplanada. As catorze fileiras
inferiores que subsistem do muro ocidental (Muro das Lamentações)
formam apenas uma pequena parte do Templo. Somente para elevar
e aterrar a plataforma foram necessários oito anos e meio e um jogo
complicado de alavancas e de roldanas.
O complexo do Templo tinha a forma de um retângulo irregular
com um perímetro de 1.550m (470m de comprimento para o muro
leste, 485m para o muro oeste, 315m para o muro norte e 280m
para o muro sul). Compunha-se de duas partes: um recinto exterior
de pedra delicada e branca, sobre a qual estava edificada a
esplanada, e o santuário propriamente dito. Grandes escadarias a
leste e ao sul conduziam a essa esplanada, ela própria dividida em
diversos adros. Nove portas, cobertas de ouro, permitiam o acesso.3
O primeiro adro, o mais vasto, aqueles dos goym ou dos gentios
(quer dizer, dos não judeus), contido na sua colunata de mármore
branco, com altura de 11m e meio, acolhia milhares de judeus e de
pagãos. Ao sul, erguia-se em toda a sua magnificência o Pórtico
Real, a mais vasta das construções do perímetro: dois andares, uma
cobertura sobrelevada, sustentada por cento e sessenta e duas
colunas de mármore com capitéis coríntios colocados acima e
dispostos em quatro fileiras, de modo a formar três naves. A leste,
do lado do vale do Cedrom, estendia-se o longo pórtico de Salomão,
formado também por uma impressionante série de colunas.
O pátio dos gentios era limitado por uma balaustrada de 1,30m
de altura. Ao transpô-lo, penetrava-se no recinto do Templo. Seu
acesso era reservado somente aos judeus, como mostra uma placa,
atualmente no museu arqueológico de Istambul: “É proibido aos não
judeus e a qualquer estrangeiro penetrar no interior da balaustrada
e no recinto. Qualquer um que for surpreendido poderá sofrer a
pena de morte.” Os não judeus podiam, certamente, oferecer
sacrifícios ao Templo comprando animais, mas estes eram imolados
pelos sacerdotes na ausência dos interessados. Por alguns degraus
acedia-se ao terraço central e ao recinto interior, que eram abertos
por nove portas recobertas com placas de ouro e de prata. A Porta
Formosa era a mais suntuosa de todas, em bronze de Corinto.
Em seguida, penetrava-se no pátio das Mulheres, judias,
unicamente. Depois de tê-lo atravessado e subido uma escada de
quinze degraus semicirculares, chegava-se à porta de Nicanor, cujos
batentes eram formados por placas de ouro e de prata. Ela era tão
pesada que eram necessários vinte homens para abri-la. Ela dava
aos judeus o acesso ao adro de Israel para assistir aos sacrifícios que
tinham lugar num gigantesco altar de 7m e meio de altura, instalado
sobre o adro dos Sacerdotes. Ali, desde a aurora, logo depois que
ressoavam os triplos toques das sete trombetas de prata, a porta se
abria. Então começavam as oblações sangrentas que só terminavam
no fim da tarde. Começavam e terminavam pelo “sacrifício
perpétuo” de dois cordeiros oferecidos pelo povo. Abatidos,
despojados de suas peles — que se tornavam propriedade dos
sacerdotes —, os animais — inclusive as vísceras — eram
queimados. À noite, depois de novos toques das trombetas, os
auxiliares levitas limpavam o sangue, as cinzas e os restos das
carcaças.
Somente os sacerdotes penetravam no santuário propriamente
dito, uma alta construção quadrada de 50m de lado, em estilo grego.
Sob a parte saliente que coroa a construção, precisa Flávio Josefo, os
lintéis eram enfeitados com ornamentações multicolores e com um
“friso de videira dourada de onde pendiam os cachos, que
maravilhavam, pela proporção e pela arte, todos aqueles que viam
com que riqueza de materiais ele tinha sido feito”.4 O interior era
dividido em três recintos: um vestíbulo, uma segunda sala, o “santo”,
com seu altar de incensos, onde sempre eram consumidos perfumes;
à direita do altar erguia-se o candelabro com sete braços (menorá), e
à esquerda ficava a mesa dos pães de sacrifício — doze pães que
simbolizam as doze antigas tribos de Israel. Vinha, por fim, o “santo
dos santos” (debir), o espaço mais sagrado de todos, isolado por uma
pesada cortina. Não continha mais a arca da Aliança, mas
manifestava, pelo vazio, a escuridão e o silêncio, a misteriosa
residência do Eterno no meio de seu povo.[1] Foi dito que o grande
sacrificador só penetrava ali uma vez por ano, no dia do Grande
Perdão (Kipur), depois de ter se submetido a um ritual de
purificação. Supunha-se que ele devesse obter o perdão por todas as
faltas cometidas pelo povo à lei divina. A ornamentação interior e os
pórticos com séries de colunas só foram terminados em 63-64 da
nossa era, quase às vésperas do desencadeamento da guerra judaica.

Os mercadores do Templo
Jesus frequenta regularmente a Cidade Santa desde sua
adolescência. Conhecia a magnífica cidade de Herodes, “de longe a
mais famosa do Oriente”, segundo Plínio, o Velho, com seus
monumentos impressionantes em estilo grego, o anfiteatro, os
palácios de mármore, as luxuosas casas dos aristocratas, os pórticos
com colunatas, as fortificações. Como em todas as grandes festas,
imensas multidões convergem para a cidade em peregrinação. É
preciso imaginar o turbilhão de pessoas que invadem Jerusalém
nesses dias, da aurora ao crepúsculo (com exceção do sabá): a
chegada das caravanas poeirentas de dromedários ou de asnos
carregados com mercadorias pesadas, a caravana barulhenta das
manadas de bois, dos rebanhos de carneiros e de ovelhas para os
sacrifícios rituais, a efervescência colorida das ruelas e dos pátios
interiores, os gritos dos mercadores e dos carregadores de água, o
odor acre do gado e das imundícies, as fumaças dos braseiros, e, no
interior do Templo, o sangue que jorrava, o mau cheiro dos
abatedouros, as exalações das gorduras quentes e das carnes
carbonizadas, que, misturados ao incenso, desciam sobre a cidade
em espirais sombrias sufocantes. Algumas praças estreitas se
esforçam para desobstruir as ruelas entrelaçadas da cidade antiga,
aquelas dos Matadouros, dos Tecelões de Lã, dos Moinhos ou da
Peixaria. Somente Xyste, a bela praça principal, construída por
Herodes, o Grande, dá uma impressão de espaço, como nas cidades
gregas.
Os habitantes da Judeia, da Galileia, da Pereia, de Itureia, de
Bataneia ou de Golã fizeram o caminho para Jerusalém a pé. Suas
caravanas se misturam com aquelas das pessoas da diáspora, judeus,
prosélitos ou tementes a Deus: partos, medos, elamitas, habitantes
da Mesopotâmia, da Lídia, da Capadócia, do Ponto, da província da
Ásia, da Frígia, da Panfília, do Egito, da região da Líbia, perto de
Cirene, romanos, cretenses, árabes… Reconhecemos aí a
enumeração de Lucas nos Atos dos Apóstolos. A população é então
multiplicada por três ou quatro, passando de 35.000-40.000 para
mais de 150.000 habitantes. Vê-se uma cintilação de cores, ouve-se
uma cacofonia de línguas, em que pobres e ricos seguem em
procissão com fervor, caminham lado a lado, percorrem a passos
largos as ruelas estreitas que levam ao santuário.
Perto da plataforma do Templo ficam os mercados, aquele do
Alto e aquele de Baixo. Nesses dias de festividade, os peregrinos, ao
lado das bancas de lembranças e de objetos usuais — tecidos, jarros,
lâmpadas a óleo —, encontram também com que se abastecer: carne
de carneiro, frutas secas, figos, maçãs, alfarrobas, amêndoas e, é
claro, as indispensáveis ervas amargas — dente-de-leão, chicória,
endívia —, para lembrar a aflição do cativeiro no Egito.
Jesus conhece muito bem o Templo e seus diferentes adros. Mas o
que ele vê nesse início de abril do ano 30 o choca: no adro dos
Gentios, mercadores de animais e cambistas instalaram-se numa
desordem de um bazar oriental. Os animais não são apenas pombas
em gaiolas, mas bois, carneiros recolhidos num cercado com palha,
em meio aos seus excrementos, maculando, profanando esse espaço
sagrado, onde é proibido entrar com um bastão, uma bolsa ou um
farnel. Ali, onde tudo deve impregnar-se de prece e de recolhimento,
ouvem-se os balidos dos carneiros, os mugidos dos bois, as gritarias
atarefadas dos cambistas. Um campo de feira! Jesus deixa explodir
sua ira. Como esse Templo único, sobre o qual YaHWeH tinha dito a
Salomão: “Porque escolhi e santifiquei esta casa, para que nela
esteja o meu nome perpetuamente; nela, estarão fixos os meus olhos
e o meu coração todos os dias”, poderia se transformar em estábulo,
em aviário e em balcão de câmbio? Ele agarra alguns pedaços de
corda, faz delas um chicote e espanta as ovelhas, os bois, espalha as
moedas dos cambistas, derruba suas bancas. Aos vendedores de
pombas, ele se dirige menos brutalmente: “Tirai daqui estas coisas;
não façais da casa de meu Pai casa de negócio”.
Quantos comentários acompanharam esse famoso episódio dos
mercadores do Templo! É necessário esclarecer, em primeiro lugar,
que esse comércio não era comparável àquele de objetos religiosos
que vemos atualmente nas proximidades de alguns santuários, como
em Lurdes. Os animais eram destinados às queimadas,
indispensáveis ao judaísmo da época. Ora, nem sempre era fácil
trazê-los consigo, com risco de feri-los e de torná-los impuros para o
culto. Sua presença perto do Templo parecia legítima. Quanto aos
cambistas, sentados atrás das mesas, sua função consistia em trocar
moedas judaicas em uso no Templo contra as moedas gregas e
romanas. Todo israelita com idade de trinta anos ou mais devia
pagar entre o dia 15 de Adar e o 1o dia de Nisã (março-abril) um
meio-shekel,[2] a título de imposto do Templo. O pagamento era
feito imperativamente na antiga moeda de Tiro, que não era mais
moeda corrente desde a ocupação romana (o tetradracma de Tiro
equivalia em peso ao siclo, a moeda do santuário)[3]. Podemos
concluir que, também, os cambistas estavam em seu lugar. Esse meio
ambiente econômico mostrava-se indispensável à vida do Templo.
Que alcance atribuir ao gesto de Jesus? Tratava-se de um gesto
de rebelião nacionalista, que visava os romanos por trás dos
magnatas judeus, o prelúdio para a grande revolta popular, como
pretenderam os partidários de um “Jesus revolucionário”, tal como
Samuel George F. Brandon?5 Certamente não. Derrubar as mesas dos
cambistas e expulsar os mercadores do Templo perturbava, talvez, a
ordem pública, mas não ameaçava a potência ocupante.
Seria possível ver nesse ato, como algumas pessoas, o anúncio do
fim do culto divino nesse local, a condenação do culto sacrificatório?
No entanto, Jesus, um judeu religioso, considerou o lugar, durante
toda a sua vida, como um local legítimo de prece, mesmo se ele não
praticou sacrifícios ali. Jamais ele se juntou à crítica radical dos
essênios, que consideravam o santuário de Jerusalém como
maculado depois da expulsão e do exílio de seu venerado Mestre de
Justiça pelo “sacerdote ímpio”. Os primeiros cristãos ou judeu-
cristãos lembraram-se disso: “Diariamente, todos juntos
frequentavam o Templo”, notava Lucas nos Atos dos Apóstolos,
“mas partiam o pão [eucaristia] nas casas tomando alimento com
alegria e simplicidade de coração…”.6 Por outro lado, é verdade, as
pessoas se lembravam de que, no seu ensinamento, Jesus havia
anunciado repetidas vezes a destruição do Templo. O diácono
Estêvão invocou isso, afirmando que o culto antigo era obsoleto. A
reação de Jesus, nesse início de abril do ano 30, está
verdadeiramente ligada a esse anúncio?
Ela, de preferência, deve ser posta em relação com a
transferência para esse local do mercado dos animais de sacrifício e
das bancas dos cambistas que, anteriormente, instalavam-se no
monte das Oliveiras. Na origem dessa inovação encontra-se uma
operação financeira lucrativa e proveitosa para os sumos sacerdotes
e desfavorável ao Sinédrio,[4] quer dizer, às pessoas que ocupavam
posições importantes. Com efeito, no ano 30, o próprio ano em que
esse órgão foi despojado pelos romanos do seu direito de condenação
à morte, os grandes sumos sacerdotes Anás e Caifás decidiram
transferir, pelo menos em parte, o Hanuth (o “mercado da carne”)
do seu lugar primitivo ao adro dos Gentios. Tratava-se de se
apoderar dos lucros e das butiques. Isso não é de espantar. O
historiador Joachim Jeremias mostrou que o alto clero corrompido
do século I tirava dinheiro de tudo.7 Como todas as grandes famílias
pontificais da época — os Boethos, os Qatros, os Elsiha —, a casa de
Anás e de Caifás, que detinha o pontificado supremo, era
secretamente detestada por quase todos por causa do seu nepotismo,
seus comércios clandestinos, sua avidez e a brutalidade de seus
fanáticos, se acreditarmos no Talmude da Babilônia.8 Uma velha
queixa conservada na Tosefta o diz sem rodeios: “Eles são sumos
sacerdotes, seus filhos tesoureiros, seus genros vigias do Templo e
seus servidores batem no povo com golpes de bastões”.9
Jesus, com sua violenta indignação contra uma operação
mercantil, seu gesto simbólico de purificação, não se opunha, de
modo algum, ao culto do Templo, ele somente desejava que ele fosse
mais respeitoso com a fé de Israel. Ele criticava, certamente, a
autoridade dos sumos sacerdotes, que instigavam essa transferência.
Ao derrubar as mesas dos cambistas, e ao expulsar os animais
com um chicote, ele provoca uma grande confusão. Mas agiu com tal
rapidez, que o comandante do Templo, o sagan, não teve tempo de
enviar a guarda. Ele contraria os representantes dos sumos
sacerdotes e dos fariseus indignados, que o interpelam. Eles querem
saber em nome de qual autoridade esse miserável da Galileia
permitiu-se tal audácia. Qual é sua legitimidade? Jesus se
salvaguarda de reivindicar-se profeta, como outrora havia feito
Jeremias, que tinha anunciado o desaparecimento do Templo de
Salomão. Também não invoca sua ascendência davídica. Ele lhes
responde maneira enigmática: “Destruí este santuário, e em três dias
o reconstruirei”. João Evangelista provavelmente esteve presente
durante essa altercação. Ele relata a reação escarnecedora de seus
interlocutores que ergueram os ombros diante de propósitos tão
absurdos: “Replicaram os judeus: Em quarenta e seis anos foi
edificado este santuário, e tu, em três dias, o levantarás?”.10 Uma
maneira de dizer que ele era louco.
Notemos a precisão cronológica. A decisão de reconstruir o
Templo havia sido anunciada por Herodes, o Grande, no início do
décimo nono ano do seu reinado, ou seja, em 19-18, mas ele tinha
prometido não tocar no antigo Templo antes que tudo estivesse
pronto para o novo. Com tal intenção, tinha encomendado 1.000
carretos, empregado 10.000 trabalhadores e formado 1.000
sacrificadores que unicamente deveriam trabalhar no santuário, de
maneira que os primeiros trabalhos só começaram em 17-16 antes
da nossa era. A demora de quarenta e seis anos nos leva ao ano 30
da nossa era.11 A combinação do calendário judaico e do cálculo
astronômico permite determinar com exatidão a data da Páscoa
daquele ano: sábado, 8 de abril.
Ninguém, nem mesmo seus discípulos, podia compreender o
sentido profundo das palavras enigmáticas de Jesus, que faziam
alusão à sua Paixão e à sua Ressurreição. Foi somente depois desta
que as palavras se revelaram. “Ele porém se referia ao santuário de
seu corpo”, diz João. O Ressuscitado será o novo Templo,
substituindo o antigo. E João prossegue: “Quando, pois, Jesus
ressuscitou dentre os mortos, lembraram-se os seus discípulos de que
ele dissera isto; e creram na Escritura e na palavra de Jesus”.
Tudo isso parece justo. Supor que o evangelista, ao mesmo
tempo, imaginou as palavras de Jesus e a lembrança pós-pascal que
seus discípulos tiveram, seria prestar-lhe um espírito particularmente
astuto, visto que, para ele, é o Espírito Santo que traz à sua memória
os atos e as palavras de seu mestre.12 Observemos de passagem que,
se João tivesse escrito depois do ano 70, não teria deixado de evocar
a destruição efetiva do Templo, em apoio a um relato que
naturalmente o incitava a isso. Era a ocasião, naquele momento ou
nunca mais.[5]
O incidente foi rapidamente encerrado, e é provável que,
encorajados pelas autoridades judaicas, os mercadores voltaram a se
instalar no adro dos Gentios. Mas o escândalo de Jesus não será
esquecido. Três anos mais tarde, suas palavras serão falsificadas,
acusando-o de ter dito que ele destruiria o Templo!

Primeiro encontro com um fariseu importante


Por ocasião dessa estada em Jerusalém, Jesus realizou o que João
chama de “sinais”, ou seja, milagres que deixam vislumbrar o
mistério de seu ensinamento e de sua pessoa. Mas o evangelista não
dá detalhes sobre isso, precisando somente que a partir desse
momento muitos acreditaram nele. É possível que, entre eles, se
encontrassem essênios que tinham ficado chocados com o seu gesto
de purificação, que rejeitavam os sumos sacerdotes desde a
usurpação dessas funções pelos hasmoneus e pelos lacaios de
Herodes.
Em todo o caso, o taumaturgo da Galileia provocou a indignação
da aristocracia sacerdotal, semeou uma perturbação entre os fariseus
influentes, entre os quais alguns tinham assento ao lado dos
saduceus no Sinédrio. É uma assembleia religiosa, mas é também
uma boul è — conselho municipal —, que administra, sob a alta
vigilância dos romanos, as atividades da cidade. O Sinédrio
compreende setenta e um membros, à imagem do Conselho que
havia rodeado Moisés, todos recrutados por cooptação. Fazem parte
do conselho os “príncipes dos sacerdotes” (ou seja, os antigos sumos
sacerdotes ou membros de suas famílias), os representantes das
oitenta classes sacerdotais, os escribas, os doutores da Lei e alguns
laicos escolhidos entre as pessoas importantes. Seu presidente, o
Nassi, é por direito o sumo sacerdote em exercício, na ocasião, José,
chamado Caifás. Eles se interrogam nos corredores sobre esse
marginal que veio da Galileia, parente de João Batista, que, em
lugar de permanecer como ele no deserto, perturba a paz do
santuário e começa a fazer adeptos.
Entre essas pessoas importantes, encontra-se um certo Naqdimon
ben Gurion (Nikodemus, em grego, Nicodemos). As fontes rabínicas
nos informam que esse homem era não somente membro do
Sinédrio, mas um dos três aristocratas mais ricos da cidade. Mais
tarde, durante a guerra judaica, os zelotes irão incendiar o seu
celeiro de trigo. Provavelmente, é ele também que vai se encarregar
de negociar o abastecimento da água das piscinas reservadas aos
romanos, por ocasião de uma das grandes festas judaicas.13 Ele
morreu pouco depois. Um de seus filhos, Gurion, tomará parte nas
negociações relativas à rendição da guarnição romana em
Jerusalém.
Nicodemos é um homem sábio e religioso que busca a verdade.
Ficou espantado com os fatos e os gestos desse humilde artesão de
Nazaré e seduzido por sua personalidade. Ele parece convencido de
que está diante de um profeta, pelo menos de um homem que tem
uma relação privilegiada com YaHWeH. Ele é certamente um dos
raros. Por intermédio do jovem João Evangelista, que pertence ao
mesmo meio instruído que ele, obtém um encontro secreto com
Jesus. A entrevista ocorre à noite — é preciso ser prudente —, ou em
sua casa, ou na casa de João (ou na de seu pai, porque ele era então
bem jovem), no monte Sião, que se tornará mais tarde o Cenáculo.
João, em todo caso, está presente e relata em algumas palavras sua
conversa.
“Rabi, diz Nicodemos dirigindo-se a Jesus, sabemos que és Mestre
e que vens da parte de Deus; pois ninguém pode fazer os sinais que
tu fazes se Deus não está com ele.” Jesus lhe responde: “Em verdade,
em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver
o reino de Deus”. Em relação a Batista, Jesus introduz uma noção
nova, sobre a qual ele vai insistir particularmente: o “reino de
Deus”.
O erudito Nicodemos acha o propósito obscuro. Essa ideia
paradoxal de um novo nascimento lhe escapa. O reino de Deus não
pertence por direito aos membros da Aliança? O que significa então
“nascer de novo”? Para mostrar que ele necessita de explicações
complementares, ironiza, à maneira dos fariseus, em suas disputas
habituais.14

Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao


ventre materno e nascer segunda vez? Respondeu Jesus: Em verdade, em
verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no
reino de Deus. O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do
Espírito é espírito. Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de
novo. O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem,
nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito.

Segundo Jesus, os homens não podem aceder à vida sem a


intervenção de Deus, sem a renovação radical que ela lhe traz. Um
novo nascimento — espiritual, evidentemente — é necessário. Ele é
a conversão. Nicodemos quer saber mais: “Como pode suceder isto?”
Jesus, exclama, devolvendo-lhe sua ironia:

Tu és mestre em Israel e não compreendes estas coisas? Em verdade, em


verdade te digo que nós dizemos o que sabemos e testificamos o que temos
visto; contudo, não aceitais o nosso testemunho. Se, tratando de coisas
terrenas, não me credes, como crereis, se vos falar das celestiais? Ora,
ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do
Homem [que está no céu]. E do modo por que Moisés levantou a serpente
no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado, para que
todo o que nele crê tenha a vida eterna.15
Quantas citações de amém (em verdade) solenes, quantas
revelações proféticas de uma alta densidade teológica naquela noite
da semana pascal do ano 30! Jesus não procura provar. Ele fala com
autoridade e testemunho. O Filho do Homem, descido dos céus, será
elevado da terra (quer dizer, exaltado, glorificado), como a serpente
de bronze de Moisés, fixada em seu bastão, para que os que crerem
nele sejam salvos. Esse é o primeiro anúncio da Crucificação. Sem
nem mesmo deixar tempo para Nicodemos reagir a essas palavras,
João encadeia, como de hábito, seu próprio discurso ao de Jesus
(“Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho
unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a
vida eterna”). Veremos que Nicodemos se comportará em seguida
como um autêntico discípulo do mestre da Galileia.

O ministério na Judeia
Terminadas as festas de Páscoa, Jesus se afasta de Jerusalém, mas
não deixa a Judeia. Percorre as aldeias da região com um pequeno
grupo de discípulos, o núcleo primitivo — André, Pedro, Filipe e
Natanael —, expandindo com os recém-chegados. Os Atos dos
Apóstolos falam de dois: José, chamado Barsabás, que tinha por
sobrenome Justus, e Matias, que foi escolhido por sorteio para
substituir Judas. Permanecendo no Templo, João Evangelista não o
seguiu. “Depois disso, ele se contenta em escrever, Jesus foi para a
região da Judeia com os seus discípulos. Lá ficou com eles e
batizava.” É possível que Jesus tenha se orientado para a Judeia
setentrional, para Betel e seus arredores, não longe da fronteira com
a Samaria, a menos que tenha voltado para as margens do Jordão,
onde o batismo é mais fácil de ser praticado. Em todo caso, sua
pregação teve uma repercussão considerável.
Ignoramos a duração exata desse ministério na Judeia, mas ele
não deve ter ultrapassado algumas semanas. João Evangelista
assinala que Batista, por sua vez, havia retomado o seu próprio
ministério batismal, em Enom (em aramaico, “as fontes”), perto de
Salim, lá onde “as águas são abundantes”.16 Essa localidade ainda
não foi formalmente localizada pelos arqueólogos. Seria em Ayn
Farah, na Samaria, a cerca de doze quilômetros a nordeste de
Nablus, onde as cascatas são numerosas,17 ou em Tell Sarem, mais
ao norte, não longe de Citópolis? O Batista, em todo caso, deixou as
margens do Jordão.
O discípulo bem-amado é o único a assinalar a atividade batismal
de Jesus no início do seu ministério. Entretanto, no seu texto, figura
um curioso inciso: “(se bem que Jesus mesmo não batizava, e sim os
seus discípulos)”. Essa observação não é do autor do evangelho. No
entanto, ela está presente em todos os manuscritos conhecidos. A
expressão “se bem que” — inusitada, aliás — nos remete
provavelmente ao acordo concluído entre o evangelistas e as
primeiras testemunhas, de que fala o Cânon de Muratori: “…
Naquela noite, foi revelado a André, um dos apóstolos, que todos
deveriam revisar o que Jesus disse, mas que João, em seu próprio
nome, deveria escrever tudo…”. Considerando essa hipótese, a
retificação teria sido feita pelos apóstolos e discípulos que ficaram
como fiadores de seu escrito. Após ter sido um dos primeiros a seguir
Jesus, João, com efeito, permaneceu em Jerusalém para ocupar sua
posição no seio da aristocracia sacerdotal. Ele não o seguiu em suas
diferentes peregrinações e só se encontrará com ele por ocasião de
suas breves passagens pela Cidade Santa. Para falar das atividades
de Jesus como profeta itinerante, João apoia-se nos testemunhos dos
que eram próximos e que lhe pediram para escrever. André sem
dúvida, provavelmente Filipe. Depois de terem passado pelos
círculos batistas e de ter recebido, eles também, o batismo de João
— diferentemente dos discípulos posteriores —, esses apóstolos
muito possivelmente participaram dessa atividade batismal. Sem
desejar modificar o texto, eles, portanto, restabeleceram a verdade o
mais honestamente possível. Uma correção posterior, datando do
início do século II, não teria sentido, ninguém estaria mais em
condições de contradizer nesse ponto o discípulo bem-amado.
Podemos observar que o batismo praticado pelo grupo de Jesus é
ainda um batismo de espera. Essa primeira prática, na continuidade
do ministério de Jesus, será rapidamente esquecida pelos cristãos.[6]
É na morte e na ressurreição de Jesus que estes receberão o batismo
que salva, como havia anunciado o Precursor. Por ocasião da última
ceia, na véspera de sua morte, Jesus, segundo Lucas, declara:
“Porque João, na verdade, batizou com água, mas vós sereis
batizados com o Espírito Santo, não muito depois destes dias”. São
Paulo evitará falar de João Batista. “Nos dias de sua carne”, Jesus
ensina e cura, mas não batiza: o Espírito Santo só se manifestará
sobre os discípulos depois de sua glorificação.
Tal episódio, em todo caso, nos faz compreender que Jesus não
transmitiu constantemente sua mensagem da mesma forma. Como
explicá-lo? Por uma evolução psicológica? São vãs as teorias
levantadas sobre esse assunto porque não conhecemos os seus
pensamentos íntimos. É preferível ver na forma pela qual Jesus
ensinava uma pesquisa experimental de uma pedagogia, que revela
gradualmente o sentido da sua missão e que comunica finalmente o
mistério da sua própria pessoa. Porque, contrariamente a João
Batista, que recusa colocar-se no centro de sua proclamação, Jesus o
faz desde o início. Ele não convida as pessoas para juntarem-se a ele
às margens do Jordão ou no deserto. Ele vai a elas em suas aldeias
ou mesmo em Jerusalém. Em lugar da severidade messiânica do
Precursor, anuncia a Boa Nova da salvação oferecida por Deus,
pratica exorcismos, milagres, passa um ensinamento novo com
autoridade.
E é isso que provoca discussões e tensões. Os judeus que seguem a
sua pregação interrogam-se sobre o valor respectivo dos dois
batismos. Seria um superior ao outro? Uma espécie de rivalidade
parece estabelecer-se naquele momento entre os dois grupos, mesmo
se seus mestres, talvez, tivessem repartido a tarefa e as zonas
geográficas. Para um, a Judeia, para outro, a Samaria.
Em nenhum momento Jesus renegará o batismo de João.
Quando, pouco tempo antes de sua Paixão, será interrogado pelas
pessoas importantes de Jerusalém sobre sua autoridade, ele lhes
responderá com uma questão embaraçosa: O batismo de João é de
origem humana ou divina? Prova de que ele mesmo o considerava
como de origem divina. Ele não rejeita a pregação de João, ele a
ultrapassa. Não haverá uma ruptura entre eles, mas uma evolução. A
mensagem de Jesus é uma mensagem de esperança, de amor, e não
uma mensagem de julgamento e de fogo divino se não houver
conversão. Mas ele não faz desaparecer o que João profetizou. A
efusão do Espírito virá fechar o ciclo batismal inaugurado no Jordão
pelo filho do sacerdote Zacarias.
Enquanto isso, muitos se colocam a pergunta: É preciso, depois
de ter recebido o batismo de João, receber o de Jesus? Qual é o valor
purificador de um em relação ao outro? Interpelados pelos
peregrinos, os discípulos de Batista, embaraçados e estupefatos, vão
até seu mestre e se abrem a ele: “Mestre, aquele que estava contigo
além do Jordão, do qual tens dado testemunho, está batizando, e
todos lhe saem ao encontro”.18 Quem é ele então?
João lhes responde com uma nova e forte atestação em favor de
Jesus. “O homem não pode receber coisa alguma se do céu não lhe
for dada. Vós mesmos sois testemunhas de que vos disse: eu não sou
o Cristo, mas fui enviado como seu precursor.” Ele se define como “o
amigo do esposo” e não como “o esposo” de Israel. O propósito pode
parecer paliativo. Demonstra, no entanto, um considerável
deslocamento conceitual: jamais no Primeiro Testamento o Messias
tinha sido considerado como o esposo de Israel. Tal privilégio
pertencia a YaHWeH, ao qual Jesus parece, dessa maneira, ser
incorporado. “Convém que ele cresça, diz o Batista, e que eu
diminua.”19 João se situa num processo de construção. Ele tem o
sentimento de que deve prosseguir o anúncio de sua mensagem e
que Jesus deve progressivamente firmar a sua, para que, por sua
vez, possa resplandecer. Mas um acontecimento irá mudar tudo.

Herodíades (ou Herodias)


Vimos que Herodes Antipas, tetrarca da Galileia, ao mesmo tempo
em que dizia pertencer ao judaísmo, mostrava uma atitude muito
livre em relação às suas prescrições. Não somente ele tinha posto
entre parêntesis alguns mandamentos rituais, mas sobretudo ele
havia infringido disposições essenciais das regras mosaicas. Em
pouco tempo, ele comete uma nova e grave provocação, ao violar a
lei do casamento.
No decorrer de uma viagem a Roma no ano 21 ou 22, ele se
apaixona loucamente por Herodíades, a mulher de seu meio-irmão, o
obscuro Herodes Filipe, filho de Herodes, o Grande, e de Mariamme.
Esse Herodes, que Marcos chama Filipe (e que, por causa disso, foi
confundido com o seu outro meio-irmão Filipe, tetrarca de Itureia e
da Traconites), era um príncipe ocioso. Deserdado por seu pai, vivia
sem título oficial na capital do Império, ali dilapidando seu último
bem. Herodíades, filha de Aristóbulo e neta de Herodes, o Grande,
era sua própria sobrinha, bem como a de Herodes Antipas. A
genealogia de Herodes, o Grande, é um quebra-cabeça: casado dez
vezes, teve uma descendência numerosa que misturou o seu sangue.
Os descendentes de Herodes praticavam as uniões consanguíneas
quase tanto quanto os ódios fratricidas!
A paixão de Herodes Antipas foi tal, que ele propôs a essa mulher
já com quarenta anos, mas plena de encanto, tornar-se sua esposa. A
ambiciosa Herodíade, princesa de cultura helênica, com costumes
mais livres, sofria por estar casada com um sujeito medíocre. Ela
aceitou com a condição de ser a única esposa, quando a lei judaica
permitia várias uniões. Antipas estava tão enamorado que cedeu. Ele
repudiará então sua mulher legítima Fasaelia, filha de Aretas IV,
chamado Filopátris (“o amigo de seu povo”), rei dos nabateus
árabes.
E, com essa decisão, ele voltou para a Galileia com o propósito
de preparar a instalação de Herodíades em Tiberíades. Fasaelia não
demorou a perceber suas intenções em razão de certas indiscrições, e
solicitou, sob um pretexto qualquer, a permissão de ir ao palácio de
Maqueronte, ao sul de Pereia, na margem oriental do Mar Morto.
Seu marido não mostrou nenhuma dificuldade para concordar com o
seu pedido, feliz talvez de vê-la afastar-se espontaneamente, sem
compreender que com isso ela evitava o repúdio. Maqueronte fazia
parte de seus estados, na fronteira com o país de Nabateia.
Essa cidade, cercada por muralhas e baluartes, estava situada ao
pé de um promontório rochoso em forma de cone truncado. Havia
sido edificada por Herodes, o Grande, ao preço de gigantescos
trabalhos de terraplanagem e de nivelamento. Uma rampa conduzia
ao cume da montanha, onde se erguia, no local da instalação de um
pequeno forte edificado pelos hasmoneus e arrasado pelos romanos,
uma cidadela e um palácio ornamentado com luxuosos
apartamentos. Dessa altura, numa paisagem extraordinária e
austera de ondulações de colinas desérticas, descobria-se ao longe as
águas do Mar Morto. Atualmente, resta somente um campo de
ruínas desses esplendores, destruídos no ano 72 da nossa era pelo
legado de Lucílio Basso.
De lá, Fasaelia decidiu juntar-se ao seu pai. Protegida por uma
pequena escolta, ela avançou para o sul, em direção ao deserto
árabe, transpôs os cumes montanhosos de Moab, onde os beduínos
transumantes pastavam seus rebanhos de cabras e de carneiros, e
em quatro ou cinco dias alcançou Petra, a rósea.
O reino de Aretas, com fronteiras mal definidas, estendia-se ao
norte da Síria até uma parte da península arábica ao sul. Composto
por tribos seminômades, o reino tinha como capital Petra, que esse
rei construtor havia embelezado. O país, longínquo vassalo de
Roma, vivia das taxas recebidas das ricas caravanas que utilizavam
o caminho de Damasco para Aqaba, carregadas com sedas, incensos
e pedras preciosas vindas da Pérsia, da Babilônia ou da Arábia. A
fugitiva contou seus infortúnios e seus espiões não tardaram em
descobrir que Herodes Antipas tinha se casado com Herodíades.
Ferido em sua honra, Aretas dissimulou injúria, reforçou seu
exército, esperando a ocasião de se vingar…

João é detido
Na primavera do ano 30, João passou pela Galileia. Herodes
Antipas, sempre curioso sobre a doutrina desse profeta radical,
convoca-o para interrogá-lo. Mas, como Elias, que outrora tinha se
oposto à influência pagã de Jezebel, a velha rainha ímpia do norte,
Batista reprova-lhe sem delicadeza sua união adúltera com
Herodíades. A Lei interditava, com efeito, casar-se com sua cunhada,
a menos que seu irmão tivesse morrido sem descendência. O episódio
é relatado, talvez de maneira romanceada, por Flávio Josefo na
versão eslava de A Guerra dos Judeus.
“Ele [João] foi levado para junto de Antipas20 e os doutores da
Lei se reuniram, e perguntaram-lhe quem ele era e onde tinha estado
até aquele momento. E ele responde dizendo: ‘Eu sou o homem que o
Espírito de Deus me destinou a ser, alimentando-me de cana e de
raízes e de aparas de madeira’. Como os doutores da Lei ameaçaram
torturá-lo se João não cessasse com essas palavras e esses atos, ele
disse: ‘São vocês que devem cessar seus atos impuros e juntar-se ao
Senhor seu Deus.’ Então, levantando-se com fúria, um doutor da Lei,
Simão, essênio de origem, disse: ‘Lemos todos os dias a escritura
divina e tu, saído hoje da floresta como um animal, ousas nos
instruir e seduzir o povo com tuas palavras ímpias?’ E correu para
dilacerar seu corpo […]. João, depois de dizer o que disse, foi para o
outro lado do Jordão; e, sem que ninguém se atrevesse a impedi-lo,
ele continuou a agir como antes.”21
Compreendemos o terror de Herodes Antipas. Depois das furiosas
tiradas do temível asceta contra a sua vida privada, ele se sente
diretamente ameaçado pelo magnetismo que este exerce sobre as
multidões. Como qualquer autocrata, vive com medo, suspeita
daqueles que o rodeiam, receia uma revolta popular. Ver soldados de
seu próprio exército, coletores de impostos e membros de sua
própria administração precipitarem-se em direção ao Jordão, é algo
que não pode deixar de alarmá-lo. Flávio Josefo destaca isso, a
excitação dessas pessoas “alcançava o auge quando escutavam suas
palavras”. Elas pareciam “prontas para segui-lo em qualquer
direção”.22 Fazer João desaparecer antes que ele se torne nocivo
parece a Herodes uma medida preventiva indispensável. João, que
não se manteve em segurança, é logo capturado — caiu, talvez,
numa armadilha? — e enviado acorrentado para Maqueronte com
uma boa escolta.
6

De Samaria para a Galileia

O poço de Jacó
A detenção de João Batista proporcionou ideias aos fariseus da
Judeia. Por que não se desembaraçar de seu sucessor inquietante que
prega nas suas cidades e faz, ele também, numerosos adeptos? Jesus
se sente tão ameaçado que prefere ir para a Galileia, ainda que esse
território seja administrado pelo responsável pela prisão de João.
“De fato, vos afirmo que nenhum profeta é bem recebido na sua
própria terra.”1 Tendo pressa em afastar-se, decide cortar caminho
pela Samaria ao invés de tomar a rota habitual para o Jordão. Como
a Judeia, essa província depende diretamente de Roma, mas pelo
menos ela escapa aos doutores da Lei e aos fariseus que não ousam
aventurar-se por lá. Três dias são suficientes para atravessar a
Samaria. Os samaritanos raramente se mostram violentos, são
simplesmente desconfiados em relação aos estrangeiros. Algumas
aldeias podem se fechar à aproximação deles ou recusar-se a vender-
lhe víveres.
João Evangelista recolheu de seus informadores o famoso
episódio da samaritana e contou-o com a arte delicada que lhe
pertence. Jesus chega a Sicar, a atual Askar, que domina com suas
rochas amareladas e desnudadas o Ebal e o Garizim. Depois de sete
ou oito horas de caminhada, que começou na aurora para escapar
dos fortes calores, chega diante de um poço que séculos antes teria
sido dado por Jacó a seus habitantes. Uma lenda propõe que o
Venerado patriarca teria feito a água transbordar por cima do
parapeito do poço.2 Jesus está sozinho. Seus discípulos tinham
partido em busca de provisões. Exausto por causa da estrada
poeirenta, sentou-se.[1] É a sexta hora, dito de outra maneira, meio-
dia. O sol é escaldante. “Os campos estão brancos para a ceifa”,
observa o evangelista. Estamos em maio do ano 30[2].
Uma samaritana chega com um cântaro sobre a cabeça, para
pegar água. “Dê-me de beber”, lhe diz Jesus. Ela encara o viajante.
Pelo seu sotaque da Galileia, ela compreende que ele é judeu.
“Como, sendo tu judeu, pedes de beber a mim, que sou mulher
samaritana.”3 O homem, com efeito, acaba de transgredir uma dupla
interdição: ousou dirigir-se a uma mulher sozinha em um local
público, e emitiu o desejo de utilizar, para beber, o mesmo utensílio
que ela, uma pessoa da Samaria!
Jesus retoma: “Se conheceras o dom de Deus e quem é o que te
pede: dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva”. Ela
continua a mostrar sua surpresa: “Senhor, tu não tens com que a
tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva? És tu,
porventura, maior do que Jacó, o nosso pai, que nos deu o poço, do
qual ele mesmo bebeu, e, bem assim, seus filhos, e seu gado?”.4
“Senhor”, o título deve ser considerado, segundo o costume da
época, como um sinal de honra reservado a um interlocutor
importante, e não evidentemente como uma denominação
cristológica. Ao insistir sobre a profundidade do poço, a mulher faz
alusão ao lendário prodígio do poço que transbordava.
Jesus, de maneira enigmática, dá a entender que ele é maior que
o patriarca Jacó. “Quem beber desta água tornará a ter sede; aquele,
porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo
contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a
vida eterna.”5 Ele fala da água vivificante da palavra à maneira de
Isaías (“Todos que tendes sede, vinde às águas cristalinas”)6 ou de
Ezequiel (“Então, aspergirei água pura sobre vós e ficareis
purificados”).7
Pouco versada nas Escrituras, a samaritana não compreende a
alusão. “Senhor, dá-me dessa água para que eu não mais tenha sede,
nem precise vir aqui buscá-la.” Jesus torna-se então mais direto. “Vai
chama seu marido e vem cá.” Como com Natanael, que ele “viu”
debaixo da figueira, novamente ele dá prova de clarividência. Ele
conhece a vida desordenada e repreensível dessa mulher. Seu
marido? Ela é justamente obrigada a confessar que não tem! “Bem
disseste, não tenho marido, retomou Jesus, porque cinco maridos já
tiveste, e esse que agora tens não é teu marido; isto disseste com
verdade”.8
Ela não se recobra. Como ele adivinhou tanto o seu passado
como a situação presente? “Senhor, ela exclama, Vejo que tu és
profeta.” Imediatamente, ela se abre a ele com uma questão que a
preocupa: “Nossos pais adoravam neste monte; vós, entretanto,
dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar”. Qual é,
pois, o lugar do verdadeiro culto?

Disse-lhe Jesus: Mulher, podes crer-me que a hora vem, quando nem neste
monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis;
nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas
vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai
em espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus
adoradores. Deus é espírito; e importa que os seus adoradores o adorem em
espírito e em verdade.9

Jesus anuncia assim uma nova maneira de compreender e de se


juntar a Deus. Nessa modesta povoação da Samaria, ele vai mais
longe que em Jerusalém, onde havia se contentado em purificar o
Templo. Ele não ignora, com certeza, os ódios ancestrais entre o seu
povo e os habitantes dessa região. Precisa somente erguer os olhos
para ver no alto do monte Garizim o santuário dos samaritanos,
onde um clérigo rebelde presta um mau serviço. Provavelmente, ele
ficou sabendo do imenso escândalo provocado por eles por volta do
ano 4 ou 6 da nossa era, quando vieram lançar no Templo de
Jerusalém ossadas humanas a fim de maculá-lo. Mas, ele proclama,
todas essas rivalidades desapareceram em torno do culto
sacrificatório. Com a vinda dos tempos messiânicos, um novo mundo
de adoração “em espírito e em verdade” se substituirá ao antigo,
ligado a um determinado local. Com isso será o fim das queimadas
de animais. Os favores da divindade não mais serão ganhos com
carne assada. Uma revolução cultural chegará. Ela já chegou, com
ele. Sete séculos antes, o pastor Amós havia anunciado: O que Deus
ama não são tanto os sacrifícios, mas a purificação moral, o
arrebatamento da alma, a caridade, a justiça.
“Eu sei, respondeu a mulher, que há de vir o Messias, chamado
Cristo; quando ele vier, nos anunciará todas as coisas.” Para os
samaritanos, a figura do Ungido do Senhor é diferente daquela
esperada na Judeia ou na Galileia: esse Ta’eh, “aquele que deve vir”
ou o “Restaurador”, não é de modo algum um messias real ou
guerreiro, é preferivelmente um profeta ou um doutor da Lei, um
novo Moisés. Esta é provavelmente a razão pela qual Jesus pode lhe
afirmar: “Disse-lhe Jesus: Eu o sou, eu que falo contigo”.10 Jesus está
seguro de que não será tomado por aquele que ele recusa ser.
Enquanto seus discípulos regressam e se espantam ao ver o
mestre conversando com uma samaritana desconhecida, a mulher,
deixando ali o seu cântaro, retorna apressada para Sicar e anuncia
em todas as casas: “Vinde comigo e vede um homem que me disse
tudo quanto tenho feito. Será este, porventura, o Cristo?!”. Ao
profeta que vem não se atribui o discernimento das coisas ocultas?
Jesus aproveita o momento em que está só com seus discípulos
para instruí-los. Ele lhes revela que sua missão vem do Pai que o
“enviou”. A colheita está próxima, ele acrescenta, mostrando-lhes os
campos. “O ceifeiro recebe desde já a recompensa e entesoura o seu
fruto para a vida eterna.” Tudo o que os profetas de Israel tinham
anunciado no decorrer dos séculos vai se realizar… Depois faz
alusão à sua missão de batistas. Eles trabalharam para a realização
do reino de Deus: “Eu vos enviei para ceifar o que não semeastes;
outros trabalharam, e vós entrastes no seu trabalho”.11
Em pouco tempo, os aldeões aparecem em grande número ao
poço e, depois de ter conversado com Jesus, eles lhe rogaram para
fazer-lhes a honra de ficar entre eles. Jesus e seus discípulos
permanecem ali por dois dias, o tempo para que os samaritanos, por
sua vez, se convertessem. “Já agora não é pelo que disseste que nós
cremos; mas porque nós mesmos temos ouvido e sabemos que este é
verdadeiramente o Salvador do mundo.”12 Dessa forma esses
heréticos acreditaram antes que os habitantes da Judeia!
Se João Evangelista escolheu esse encontro entre Jesus e uma
mulher de costumes levianos, é, como de hábito, para extrair desse
encontro um sentido espiritual, rico em símbolos, que vão além da
historieta. Trata-se inicialmente de condenar o comprometimento
dos habitantes dessa região cismática com as crenças pagãs. Em 751
antes de Cristo, Sargão II havia deportado os judeus da Samaria e os
substituíra por colonos de cinco cidades: Babilônia, Kuta, Avva,
Hamate e Sefarvaim.13 Estes conservaram o culto do deus de sua
cidade de origem, antes que o rei da Assíria consentisse em lhes
enviar um dos sacerdotes judeus deportados que lhes ensinou a
reverenciar YaHWeH. Os samaritanos, portanto, tinham tido cinco
“esposos” antes de adotar este último, que não era seu Deus, mas
aquele de Israel. A samaritana personifica a situação religiosa da
região: “Você teve cinco maridos, e o homem que você tem agora
não é seu marido!”. Jesus se liga, dessa maneira, com a crença dos
judeus de seu tempo, considerando o culto samaritano ilegítimo. “A
salvação vem dos judeus”, ele afirma sem rodeios. É o povo da
Aliança, e não os samaritanos, que traz a salvação do mundo. Nisso
reside o mistério da eleição de Israel, esposa do verdadeiro Deus.
Mas, ao mesmo tempo, ele anuncia uma novidade fundamental que
vai ultrapassar as fronteiras dos cultos: adoraremos Deus por toda
parte “em espírito e em verdade”, e este reunirá homens e povos
para a colheita universal.

O servidor real
Na manhã do terceiro dia, Jesus retomou a estrada. A Galileia agora
o acolhe com entusiasmo. Numerosos, diz João Evangelista, são os
habitantes que foram testemunhas de seus milagres. Antes de chegar
a Cafarnaum, onde Pedro e André o convidaram para ficar, Jesus
retorna a Caná, talvez para a casa dos jovens casados ou para a
casa de Natanael. É ali que se junta a ele um dignitário real vindo de
Cafarnaum. Trata-se de alguém com um alto cargo no exército de
Herodes Antipas. Escavações realizadas a leste desse povoado
revelaram a existência de um campo de mercenários pagãos,
provavelmente composto por frígios e gauleses. Suas casas, mais
confortáveis que as dos pescadores da aldeia, eram equipadas com
banhos à moda romana (com um caldarium — uma estufa —, um
tepidarium — termas com temperatura moderada — e um frigidarium
— câmara onde se tomavam banhos frios). Essa guarnição era
encarregada de proteger a fronteira entre a tetrarquia de Antipas e
a de seu irmão Filipe, bem como a grande estrada da via Maris, que
vai de Damasco a Akko (São João de Acre). O homem não era judeu,
mas um desses “tementes a Deus” bem-visto pela população local
porque financiara a construção da sinagoga,14 o que deixa supor que
ele era possuidor de uma bela fortuna.
O filho desse oficial — a menos que se trate de um de seus
servidores, o grego permite as duas acepções —, gravemente doente,
está à morte. Tendo recebido a informação de que Jesus acabara de
chegar à Galileia, o comandante vai com pressa à aldeia de Caná,
provavelmente a cavalo (meio de locomoção rápida muito raro na
Palestina, mas comumente usado pelos oficiais). Suplica com
insistência que Jesus desça a Cafarnaum e cure seu filho. Para Jesus,
não são os milagres que importam, mas a fé, que implica viver em
todas as circunstâncias na confiança divina. “Se, porventura, não
virdes sinais e prodígios, de modo nenhum crereis”, lhe disse ele. O
funcionário do rei disse: “Senhor, desce, antes que meu filho morra”.
Com pena da sua aflição, Jesus disse-lhe: “Vai, teu filho está vivo”. O
homem acreditou na palavra de Jesus e foi embora. Enquanto descia
para Cafarnaum, seus empregados foram ao seu encontro e
disseram: “Seu filho está vivo!”. O funcionário perguntou a que
horas o menino tinha melhorado. Eles responderam: a febre
desapareceu ontem pela uma hora da tarde. O pai percebeu que
havia sido exatamente naquela hora em que Jesus lhe havia dito:
“Seu filho está vivo”. João Evangelista nos relata que, a partir desse
momento, o oficial real acreditou e todos em sua casa acreditaram
também. Esse foi o segundo milagre realizado por Jesus na Galileia,
ambos em Caná.15
Mateus e Lucas relatam a mesma cura, mas com algumas
variações. O oficial real se torna um centurião. Portanto, ele
certamente não era um romano, porque não havia nessa época
nenhuma tropa de ocupação na Galileia. Podemos supor que o que
Mateus e Lucas relatam é a cura do centurião Cornélio por Pedro, no
início da pregação apostólica, que serviu de modelo aos dois
evangelistas e os incitou a considerar retrospectivamente esse
funcionário de Herodes Antipas como um oficial romano. A cena,
segundo eles, se passa em Cafarnaum e não em Caná.
Indiscutivelmente, a trama histórica foi modificada pela transmissão
oral.

“Farei de vós pescadores de homens”


Depois de sua breve estada em Caná, Jesus voltou para Cafarnaum.
Tudo se passa como se o fim brutal da missão de Batista tivesse sido
o sinal esperado. A fase de preparação terminou. Ele vai poder
anunciar sozinho a Boa Nova.16 “O tempo está cumprido, lhe faz
dizer Marcos, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede
no evangelho.”17 Ele estabelece então sua morada na casa de Simão-
Pedro.
Jesus reencontra as paisagens verdejantes da região de Genesaré
(Gan Sâr, “o jardim do Príncipe”), seu panorama suave e tranquilo,
formado por colinas azuladas e declives harmoniosos, terraços
alinhados, cintilando sob o sol, plantações ondulantes de trigo e de
cevada, vinhedos generosos, inumeráveis flores, ciprestes escuros em
forma de fuso, e oliveiras com folhas prateadas tremulando com a
brisa. Na serenidade do início da manhã, uma bruma leve e
silenciosa apaga os contornos do lago, e no entardecer, antes da
rápida caída da noite, uma luz vesperal, tingida de rosa e de cinza,
se espelha melancolicamente na superfície de água doce.
O lago é uma das riquezas da região. Contém muitas espécies de
peixes: vinte e três de sardinhas, oito de “pentes” (chamados assim
por causa de sua longa barbatana dorsal), clarias,[3] grandes siluros
cor de lama… Os mais propagados e os mais apreciados são os
ciprinídeos (espécies de carpas) e os chromides, dos quais uma
variedade ainda existe com o nome de “peixe de são Pedro” ou pater
familias. Há também os sargos, cuja particularidade é a de hospedar
sua prole na boca durante várias semanas. Quando os alevinos
chegam à maturidade, prendem uma pedra na sua cavidade bucal e
os expulsam. Simão-Pedro pegará um peixe que tinha engolido uma
moeda de prata (estatero) que pesava de 8 a 12 gramas.18 Os
bagres, em compensação, são devolvidos à água: como eles não têm
escamas, a lei mosaica proíbe comê-los.
Há alguns anos, uma embarcação do século I, um pouco
apressadamente chamada “barco de Jesus”, foi descoberta enterrada
na lama na margem noroeste, no kibutz de Ginosar. No interior, foi
encontrada uma lâmpada a óleo e uma ponta de flecha. Perto da
proa, em parte desaparecida, foi resgatada uma panela em
terracota, destinada à cozinha. Cuidadosamente restaurada e
conservada no museu local, essa embarcação de madeira de 8,20m
de comprimento por 2,30m de largura, curva, mas de baixo calado,
nos mostra como eram os pequenos barcos das flotilhas de pesca da
época. Quatro homens e um capitão na barra eram necessários para
manobrá-los, lançar e recuperar as redes. Montada por meio de
entalhes e encaixes, esse tipo de embarcação resistia de qualquer
maneira às violentas tempestades. Em geral, com efeito, a superfície
do lago era tranquila, pouco ondulada, mas acontece que o vento do
norte, vindo do Hermon, o qadim, se abate sobre o lago de modo
repentino e faz balançar todas as embarcações. É preciso, então,
enfrentar borrascas breves mas violentas.
Simão-Pedro e André retomaram, então, sua atividade de
pescadores, para alimentar sua família. O primeiro casou-se com
uma mulher da aldeia e mora na casa de sua sogra. Ignoramos se
André era casado. Eles partem de barco, lançam a rede de pescar
circular com um gesto amplo, como se faz desde sempre. Os
pescadores de Cafarnaum vivem de pequenas empresas familiares;
Simão-Pedro dirige uma. Eles dispõem de um local de pesca no
domínio atual de Tabgha, na costa noroeste. Encontraram-se
vestígios desse local quando o nível das águas baixou até 211,50m
abaixo do nível dos oceanos: dois quebra-mares, um de 60m de
comprimento, paralelo à margem e curvado para leste; o outro,
perpendicular, com 40m de comprimento.
Jesus os acompanha em suas saídas e logo lhes pede: “Vinde após
mim, e eu vos farei pescadores de homens”.19 Sem hesitar, eles
abandonam no local seus apetrechos e se colocam definitivamente
atrás dele. A poucos passos do ancoradouro localiza-se a empresa de
pesca de Zebedeu, rico, com pelo menos dois barcos e alguns
empregados. Seus dois filhos, Tiago e João, trabalham com ele,
lavam e reparam as redes. Jesus os chama. Eles também abandonam
seu ofício e se colocam à sua disposição.

Os inícios do ministério em Cafarnaum


Em Cafarnaum, Jesus ensina e realiza curas físicas ou espirituais,
exorcismos, o que Batista jamais fez. Os evangelhos sinópticos dão
exemplos disso. Um dia, a sogra de Simão-Pedro fica doente. Febril,
fica deitada no fundo do único cômodo da casa. Jesus, acompanhado
do discípulo, de seu irmão André, de Tiago e de João, vai até onde
ela estava e segura a sua mão. Então a febre a deixou e ela começou
a servi-los.20
Num outro dia, Jesus vai à sinagoga da aldeia, a que fora
financiada pelo oficial real. Nem todas as localidades têm casas de
prece como essa. A sinagoga é aquela cujos embasamentos de
basalto preto foram encontrados debaixo do belo conjunto bizantino
da época, ligeiramente deslocada em relação a ele, provavelmente
em razão de uma má orientação em direção a Jerusalém. Está
situada a um quarteirão das casas próximas, ao lado da casa de
Simão-Pedro e de André. Diferentemente dos doutores da Lei, que
comentam as Escrituras, Jesus fala com uma autoridade que espanta
os seus ouvintes. Marcos conta que, num dia de sabá, um homem
“possuído por um espírito impuro” se posta diante de Jesus e começa
a gritar: “Que temos nós contigo, Jesus Nazareno? Vieste para
perder-nos? Bem sei quem és: o Santo de Deus”. Jesus ameaçou o
espírito mau: “Cala-te e sai desse homem!”. Então o mau espírito
sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu dele.
Todos ficaram muito espantados e perguntavam uns aos outros.
“Que vem a ser isto? […] Com autoridade ele ordena aos espíritos
imundos, e eles lhe obedecem!”21 Com efeito, tal prática dos
exorcismos não lhe era própria. Os rabis judeus a usam igualmente.
Os essênios tinham seus rituais e seus textos de conjuração. Mas
todos invocavam o nome de YaHWeH, ao qual associavam, por
vezes, o nome de Davi ou de Salomão. Ele, Jesus, muda as fórmulas
e é em seu próprio nome que dá ordens aos demônios.
Compreendemos o ceticismo de nossos contemporâneos,
desorientados diante de tais cenas. É possível que nos seus relatos de
curas e de exorcismos, os evangelistas não distingam os casos de
histeria ou de psicose alucinatória das possessões autênticas. Seu
conhecimento médico é muito limitado, inclusive o de Lucas, médico
de formação. Manifestações patológicas, perturbações mórbidas ou
psicossomáticas, atualmente bem conhecidas, puderam na época
passar por possessões diabólicas. Ninguém nunca pretendeu que
Jesus tivesse conhecimentos particulares de neurologia. Ele se
adaptava às ideias médicas de seu tempo. O “lunático”, possuído por
um “espírito mudo”, que espuma, range os dentes, rola sobre o chão,
agitado por convulsões, era talvez um epilético. Mas não havia outra
maneira de expressar-se: Jesus o cura expulsando “o espírito mau”
que estava nele. A propósito de uma mulher curvada, incapaz de
endireitar-se havia dezoito anos, Lucas escreve que ela tem “um
espírito de doença”. Ele a considera como uma possuída? “Mulher,
estás livre da tua enfermidade”, ele relata as palavras de Jesus.
Nosso horizonte mental certamente difere daquele da época.
Continua a ser verdade que, se considerarmos os evangelhos no
seu conjunto, não poderíamos reduzir todos os exorcismos a simples
curas. Esses textos distinguem possessões e doenças. Com um doente,
Jesus contenta-se com um gesto terapêutico, unção, imposição de
mãos ou simples palavra. Com um possuído, ele comanda ao espírito
imundo para sair do corpo do qual se apoderou. Ele o interroga, o
interpela, o faz calar-se. O espírito imundo resiste, fala, grita, agita
o possuído, depois cede, “sai”, e o infeliz, enfim aliviado, reencontra
uma existência normal.
Como disse o exegeta americano Raymond E. Brown, “a
historicidade não é determinada por aquilo que presumimos possível
ou provável, mas pela antiguidade e a confiabilidade dos indícios; e,
por mais longe que remontemos, Jesus deixou a lembrança de
alguém que dispunha de poderes extraordinarios”.22 Não somente ele
acreditou na existência de uma entidade espiritual, Satanás,23
criatura em estado de perdição, perversa e maldosa, perniciosa e
hipócrita, como não cessou de enfrentá-la durante seu ministério
público, sofrendo seus assaltos, instruindo, colocando seus discípulos
em vigilância contra ela e as demais entidades demoníacas. Na
véspera de sua morte, ele adverte Simão-Pedro: “Simão, Simão, eis
que Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo”.24 O grande
combate que ele luta durante toda sua vida não é tanto contra os
fariseus, os sumos sacerdotes ou os romanos, mas contra ele, o
Adversário, o Príncipe das Trevas, o Pai da Mentira. Os evangelhos
apresentam essa luta como um drama cósmico de uma intensidade
excepcional. “Eu via Satanás caindo do céu como um relâmpago”,25
dirá Jesus. “Ele nada tem sobre mim” e “ele já está condenado”.26 As
Igrejas se lembrarão das lições de seu Mestre, praticando exorcismos
e expulsando os demônios em seu nome, segundo ritos específicos.[4]
Marcos insiste sobre o “segredo messiânico” de que Jesus,
empenhado em desencorajar os sonhos temporais de seus
compatriotas, não quer ser revelado muito cedo. Assim, impõe o
silêncio mesmo aos demônios que, segundo Marcos, buscam dar a
conhecer quem Jesus é. Mas, diante de tais prodígios, como impedir
que sua fama não se espalhe? Pessoas chegam para vê-lo, vindas de
todos os vales da Galileia. Ao entardecer, depois do pôr do sol, elas
lhe trazem os demoníacos e os doentes atingidos por graves
patologias. Toda a aldeia se reúne perto da porta da casa de Simão-
Pedro e de André. Jesus as cura de seus sofrimentos.
Num certo dia, Jairo, o hazan, isto é, o sacristão que cuida da
sinagoga de Cafarnaum, em nome da comunidade dos aldeãos, vem
encontrá-lo precipitadamente. Ele está perturbado. “Minha filha
faleceu agora mesmo; mas vem e impõe as mãos sobre ela, e viverá.”
Ele é recriminado. Sua filha morreu, por que ainda incomoda o
mestre? Mas Jesus lhe diz: “Não tenhas medo, apenas tenha fé!”. E
Jesus não deixou que ninguém o acompanhasse, a não ser Simão-
Pedro, Tiago e seu irmão João. Quando chegaram à casa do chefe da
sinagoga, Jesus viu a confusão e as pessoas chorando e gritando.
Jesus entrou e disse: “Por que estais em alvoroço e chorais? A
criança não está morta, mas dorme”. As pessoas começam a zombar
dele. Mas Jesus mandou que todos saíssem menos o pai e a mãe da
menina, e os três discípulos que o acompanhavam. Depois, entraram
no quarto onde a menina estava. Jesus pegou a menina pela mão e
disse: Talitha Kum (“menina, eu lhe digo, levanta-te”, em aramaico).
A menina levantou-se imediatamente e começou a andar, pois já
tinha doze anos. Todos ficaram muito admirados. Jesus recomendou
com insistência que ninguém ficasse sabendo disso. E mandou dar
comida para a menina.27
Associado à reanimação da filha de Jairo, um caso estranho é
relatado por Mateus e Marcos: o de uma mulher com hemorragia
havia doze anos, que tinha esgotado todos os seus recursos com
cuidados médicos. Seu estado só piorava. A mulher havia ouvido
falar de Jesus. Então, ela avançou no meio da multidão, aproximou-
se de Jesus por trás e tocou na roupa dele, porque pensava: Ainda
que eu só toque na roupa dele ficarei curada. “E logo, diz Marcos, se
lhe estancou a hemorragia, e sentiu no corpo estar curada do seu
flagelo”. Jesus percebeu de imediato que uma força havia saído dele.
Então, virou-se no meio da multidão e perguntou: “Quem me tocou
nas vestes?”. Seus discípulos se espantam: “Vês que a multidão te
aperta e dizes: Quem me tocou?” Mas Jesus ficou olhando em volta
para ver quem tinha feito aquilo. A mulher, cheia de medo, e
tremendo percebeu o que havia acontecido. Então, adiantou-se, caiu
aos pés de Jesus e contou toda a verdade. “E ele [Jesus] lhe disse:
Filha, a tua fé te salvou; vai-te em paz e fica livre do teu mal.”28
Outra cura, a de um paralítico, é contada pelos evangelhos
sinópticos. Ocorreu na casa de Simão-Pedro. Como uma multidão
numerosa se acotovela ao redor de Jesus, os quatro carregadores que
sustentavam o leito em que o doente está deitado acedem ao terraço
pela escada exterior, depois tiram os ramos do teto para descer.
Vendo sua fé, Jesus diz ao paralítico: “Filho, os teus pecados estão
perdoados”. Ao ouvir isso, alguns doutores da Lei sentados no pátio
ficam chocados. Eles provavelmente pertencem a um grupo de
fariseus — eles existem em quase todas as aldeias. Eles se
interrogam:

Por que fala ele deste modo? Isto é blasfêmia! Quem pode perdoar pecados,
senão um, que é Deus?”. Mas Jesus, que adivinha o que os agita, os
interpela: Por que arrazoais sobre estas coisas em vosso coração? Qual é
mais fácil? Dizer ao paralítico: Estão perdoados os teus pecados, ou dizer:
Levanta-te, toma o teu leito e anda? Ora, para que saibais que o Filho do
Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados — disse ao
paralítico: Eu te mando: Levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa.

O paralítico então se levantou, e, carregando sua cama, saiu


diante de todos. E todos ficaram muito admirados e louvaram a Deus
dizendo. “Jamais vimos coisa assim!”29 Como Mateus e Marcos,
Lucas relata o episódio, mas, ignorando que as casas da Galileia são
cobertas de ramos e de lama seca, ele fala de telhas que os
carregadores devem retirar para descer a maca…
Ao ultrapassar as capacidades humanas, as proezas do Mestre
parecem escapar às explicações racionais. Ele “realizava ações
espantosas”, dirá Flávio Josefo, uma testemunha exterior ao
cristianismo. Ele se apresenta como um curandeiro carismático, e
não como um mágico que usa fórmulas esotéricas, invocações
secretas, sortilégios ou amuletos. Não se pode compará-lo a Honi, o
riscador de círculos, esse curandeiro judeu do século I antes da nossa
era, a quem alguns textos bíblicos muito posteriores atribuíram
prodígios sobrenaturais (ele fazia especialmente chover à vontade).
Os milagres de Jesus não têm valor em si: somente ilustram sua
palavra, lhe dão o selo de autenticidade. No quarto evangelho, o de
João, não são classificados como atos de poder como fazem os
evangelhos sinópticos, mas como sinais que orientam em direção à
fé. E é por isso que são importantes. São sinais de realizações,
mostram que os tempos messiânicos chegaram. Para Jesus,
exorcismos e prodígios são indissociáveis de sua pregação. Sem eles,
Jesus não teria atraído tanta gente. Essa é uma das razões pelas
quais é difícil tratar esses prodígios como simples criações da Igreja
primitiva.
Muito claramente, Jesus deseja situar-se na tradição dos profetas
taumaturgos e escatológicos, Elias e Eliseu, que tinham exercido um
ministério de cura na Galileia e aos quais, aliás, os judeus religiosos
o comparam. Sua reputação de artífice de milagres é tão difundida
que o próprio Herodes Antipas, ávido pelo maravilhoso, e que não
viu nada disso com Batista, quer vê-lo realizar pelo menos um
milagre. É essa reputação que vai perdurar na tradição rabínica: o
Talmude da Babilônia dirá que ele foi condenado à morte por ter
praticado magia.

Pregações na Galileia
Para escapar das pressões muito intensas da multidão, ocorre a Jesus
pregar no barco de Simão-Pedro, não muito longe da margem. Às
vezes, ele se retira para locais isolados para orar. Seus discípulos vão
procurá-lo e o acompanham rumo aos povoados vizinhos.30 Por toda
parte aonde Jesus vai se reproduzem as mesmas cenas de exorcismo
ou de cura. Entretanto, ele evita as grandes cidades, assim como
Séforis e Tiberíades, talvez por receio dos soldados de Herodes
Antipas que se apoderaram de Batista. O campo, onde não há
patrulhas militares, oferece uma segurança relativa. Nas sinagogas,
nutrido pelas Escrituras, ele lê, escuta, comenta a Torá e os profetas,
canta os salmos. A cronologia desse ministério na Galileia é muito
incerta. Mateus, Marcos e Lucas criaram, cada um, um quadro
temporal para nele poderem inserir sua narração e as pequenas
unidades temáticas transmitidas pela tradição oral ou escrita.
Assim nos é contada a cura de um leproso31 em algum lugar na
Galileia. Esse chegou perto de Jesus e pediu de joelhos: “Senhor, se
quiseres, podes purificar-me”. Jesus ficou emocionado, estendeu a
mão e disse: “Quero, fica limpo.” No mesmo instante, a lepra
desapareceu e o homem ficou purificado. Então, Jesus o mandou
logo embora, ameaçando-o: “Ordenou-lhe Jesus que a ninguém o
dissesse, mas vai, disse, mostra-te ao sacerdote e oferece, pela tua
purificação, o sacrifício que Moisés determinou, para servir de
testemunho ao povo.” Mas o homem foi embora e começou a clamar
muito e a espalhar a notícia.32 Sabemos que Jesus foi a Corazim, a
três quilômetros ao norte de Cafarnaum. O local é conhecido pelos
arqueólogos, mas ainda não foram encontrados vestígios da aldeia
da época, sob as ruínas das casas de estilo greco-romano dos séculos
III e IV. A sinagoga de basalto preto, da qual subsistem algumas
pedras, só foi construída por volta de 250 depois de Cristo.
Em Betsaida, para onde ele volta, Jesus cura um cego.
Curiosamente, dessa vez, ele realiza esse milagre em duas etapas.
Cospe saliva sobre os olhos do homem e repousa as mãos sobre eles.
O cego ainda só vê sombras. Os homens que ele percebe são como
árvores que andam. Jesus repousa as mãos novamente. Então, o
homem começa a perceber distintamente.33 “Que queres que eu te
faça?”, pergunta Jesus a Bartimeu, o cego que ele encontra na saída
de Jericó, quando ele sobe para Jerusalém, e que o interpelou como
“filho de Davi”. “Mestre,[5] que eu torne a ver!” Jesus lhe responde:
“Pode ir, tua fé te curou.” E ele vê de novo.34 Os textos reproduzem
as contradições e as deformações da transmissão oral. Para Lucas, o
cego sem nome se encontra na entrada de Jericó.35 Para Mateus, são
dois cegos, e não um só, que são curados assim, mas na saída de
Jericó.36 Pouco importa. O essencial para os evangelistas é fazer
compreender que é a fé que salva e que a prece de Jesus a seu Pai é
sempre atendida.
A aldeia de Magdala, situada a sete quilômetros ao sul de
Cafarnaum e a seis ao norte de Tiberíades, é, na época, um dos
portos mais ativos do lago.37 Ali eram construídos os barcos de
pesca. Também ali se salgavam e se conservavam os peixes, que
eram mandados em cestos para Damasco, para Jerusalém e até
mesmo para a Espanha. Os vestígios de uma doca de descarga e de
um quebra-mar foram encontrados no litoral.38 Mais interessante
ainda foi a descoberta em agosto de 2009, no campo de um centro
de acolhimento para peregrinos, dos restos de uma sinagoga do
século I da nossa era, destruída por volta do ano 70 por Vespasiano.
Em seu interior, se encontravam bancos de pedra, um piso de
mosaico e paredes de gesso decoradas com afrescos coloridos. Sobre
uma grande coluna, no centro da construção, figura a menorá (o
candelabro com sete braços). Jesus certamente frequentou esse local.
Apenas seis outras sinagogas da mesma época foram desenterradas.
É provável que Jesus tenha encontrado nessa aldeia a famosa
Maria de Magdala, Maria Madalena. Ele a exorciza e a liberta de
sete demônios. Grata, ela o seguirá até o calvário. Ela será, com
João, a principal testemunha da sua crucificação e de seu
sepultamento. Ela deu origem a uma infinidade de lendas e de
mitos. Os gnósticos (evangelhos apócrifos de Tomás e de Filipe)
fizeram dela uma figura esotérica identificada a Sofia, ou seja, uma
deusa mãe, alter ego do homem Cristo. Outros viram nela o símbolo
da pecadora prostituída perdoada por Jesus, o que nenhum texto
evangélico confirma.
Engastada na encosta norte do monte Dore, Nain ou Naim é uma
pequena povoação fortificada da planície de Jezreel, a cerca de doze
quilômetros apenas do sudeste de Nazaré. Em 1982, vestígios de um
recinto circular, que data dessa época, foram encontrados debaixo
da moderna cidade árabe de Nain, por uma equipe americana da
Universidade do Sul da Flórida. Jesus chega a esse lugar
acompanhado por um grande número de discípulos. Ele vê perto da
porta de entrada um cortejo fúnebre. As pessoas se preparam para
enterrar um jovem, filho único de uma viúva. A situação de uma
mulher sozinha numa sociedade patriarcal como a de Israel antiga é
particularmente frágil. Além da sua angústia afetiva — privada de
seu marido e agora de seu filho —, ela não tem mais nenhum
sustento financeiro. Toda a aldeia em luto está presente e se
lamenta. A cena é impressionante. Ao ver a mãe vestida de preto, no
auge da aflição, Jesus fica tomado de compaixão. “Não chores”, ele
pede a ela. Depois se aproximou, tocou no caixão e os que o
carregavam pararam. Então, Jesus disse: “Jovem, eu te mando:
levanta-te!”. O moço sentou-se e começou a falar. E Jesus o entregou
à sua mãe. Todos ficaram com muito medo e glorificaram a Deus
dizendo: “Grande profeta se levantou entre nós; e: Deus visitou o seu
povo.”39 Essa é a proclamação unânime.
Por toda parte, Jesus vê multidões fatigadas e prostradas, como
ovelhas que não têm mais pastor. Ele calcula o caminho a percorrer.
Então, Jesus disse a seus discípulos: “A seara é grande, mas os
trabalhadores são poucos. Rogai, pois, ao Senhor da seara que
mande trabalhadores para a sua seara”.40

Os pobres e os excluídos
As curas e a pregação não são as únicas atividades de Jesus. Sua
maneira de viver, de fazer as refeições com pessoas humildes, de
acolher o outro com uma generosidade ilimitada, ilustra alguma
coisa de novo, baseada na bondade universal e misericordiosa de
Deus. Jesus testemunha uma predileção pelos pobres, doentes,
pecadores, inclusive pelas prostitutas. Ele quer reintegrar a fé, em
Israel, nos excluídos do Templo ou da Comunidade (“Sinagoga”), nos
estropiados, nos mancos, nos cegos, nos marginais rejeitados e
desprezados pelos judeus religiosos. Sua atitude se assenta de
maneira oposta à dos grupos essênios ou às dos membros da
confraria dos fariseus, que compartimentaram em excesso a
sociedade.
Com esse propósito, ele não frequenta somente os
desclassificados. Frequenta em todos os meios sociais os
amaldiçoados pela Lei, inclusive os ricos: desse modo, ele torna seu
discípulo um coletor de impostos, um homem influente e muito rico.
A quatro quilômetros a leste de Cafarnaum, no local onde o rio
Jordão se lança no lago de Genesaré, encontra-se a fronteira entre o
território de Herodes Antipas e o de seu irmão Filipe. Localiza-se ali
um posto de pedágio que tem como missão taxar as mercadorias que
entram na tetrarquia. Sentado em seu escritório encontra-se Levi,
filho de Alfeu, dito Mateus.41 Ele não é um simples coletor, mas um
télônès, dito de outra forma, o responsável pelos pedágios, que
explora o seu escritório fiscal, talvez, como uma forma de renda,
segundo a prática da época. Provavelmente tem, ao seu redor,
numerosos auxiliares e empregados domésticos. No seu escritório,
dois impostos são cobrados: a taxa marítima e a taxa de fronteira
sobre mercadorias que circulam sobre a via Maris.
Antes de se juntar à sua comitiva, Mateus convida Jesus para um
grande festim. Sua casa não é uma casa de pescador, como a de
Simão-Pedro. Sua mesa é farta. Habitualmente, bebe-se vinho, o que
os judeus pobres não podem fazer. Jesus relaciona-se com os amigos
de seu anfitrião: coletores, banqueiros, cambistas e outros
publicanos. Os fariseus da aldeia se inquietam com a sua
convivência, que o torna impuro. Informado sobre sua reprovação,
Jesus responde: “Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes
[…]não vim chamar justos, e sim pecadores [ao arrependimento].”

O estilo de Jesus
Orador excepcional, que possui um conhecimento impecável dos
meandros do coração humano, Jesus fascina as multidões. Sabe
adaptar seus propósitos a seu auditório. Em Jerusalém, diante das
pessoas do Templo, dos escribas e dos doutores da Lei, ele maneja de
maneira espantosa as referências à Bíblia hebraica. A seu auditório
rural da Galileia, reserva uma linguagem mais simples, mais
tradicional, a do Oriente antigo, uma linguagem metafórica, plena
de sabor semítico, que busca seus exemplos em cenas da vida
cotidiana.
Podemos creditar a Jesus um grande senso de observação. Ele
evoca as semeaduras, as colheitas, as vindimas, os ramos de videira
que é preciso enxertar nas cepas, o pastor que vigia suas preciosas
ovelhas ou parte à procura daquela que se perdeu, as relações do pai
com seus filhos, do senhor com seus servidores, do anfitrião com seus
convidados. Ele conhece os reflexos meteorológicos dos seus
interlocutores: “Chegada a tarde, dizeis: Haverá bom tempo, porque
o céu está avermelhado; e, pela manhã: Hoje, haverá tempestade,
porque o céu está de um vermelho sombrio”.43 Ele sabe que ninguém
cose remendo de pano novo em uma roupa velha; porque o remendo
novo repuxa a roupa velha e o rasgo fica ainda maior.44 Ele não
ignora que uma árvore boa pode dar bons frutos, mas que uma má
escolhida produz sempre frutos detestáveis. Nada lhe escapa das
pessoas com as quais se relaciona. Ele denuncia o intendente
desonesto ou o rico insensato, evoca até os ladrões que saqueiam as
casas depois de ter previamente amarrado o proprietário vigoroso.45
É sensível à beleza, à poesia da natureza, obra do Criador, admira os
pássaros, os corvos que não semeiam nem segam, mas que Deus
alimenta.46 E as flores, como esquecê-las? “Considerai como crescem
os lírios do campo, diz ele a seus discípulos, eles não trabalham, nem
fiam. Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, em toda a sua
glória, se vestiu como qualquer deles.”47
Esse mestre da narrativa fala frequentemente por parábolas: no
Primeiro Testamento, um masal, em hebraico (mathla em aramaico,
parabolè em grego), designa uma alocução de sabedoria ou de
escatologia, apresentada sob a forma de alegoria, de fábula, de
analogia, de provérbio ou de sentença enigmática. Sua realidade
matizada parte de uma situação concreta para convidar, por meio de
sua dinâmica paradoxal e seu vigor paroxístico, a uma mudança
pessoal. Por vezes, são histórias elaboradas. Jesus é um contador que
maneja a arte de revestir as imagens. Responde aos pedidos de
esclarecimento de seus discípulos dando-lhes chaves para a
compreensão, mas ele se recusa a fazê-lo para auditórios insensíveis
que rejeitam a sua missão e a sua mensagem. “Ao ler as parábolas,
observava Joachim Jeremias, entramos em contato imediato com
Jesus.” Aqui, com efeito, alcançamos um material particularmente
sólido, porque esses pequenos relatos ficam impressos mais
facilmente na memória do que os conceitos abstratos.48
Nas comparações de Jesus, como não reencontraríamos
reminiscências de seu antigo ofício de construtor? Ele dá como
exemplo o sábio que construiu sua casa sobre a rocha e o insensato,
que é semelhante a um homem que construiu sua casa sobre a areia,
sem alicerce: a enxurrada bateu contra a casa, e ela de imediato
desabou e grande foi a sua queda. Ele fala como artesão que reflete
antes de agir.

Pois qual de vós, pretendendo construir uma torre, não se assenta primeiro
para calcular a despesa e verificar se tem os meios para a concluir? Para não
suceder que, tendo lançado os alicerces e não a podendo acabar, todos os
que a virem zombem dele, dizendo: Este homem começou a construir e não
pôde acabar.50

A lembrança talvez de dois companheiros de trabalho, dos quais


um foi atingido por um pó de serra ou um pequeno pedaço de palha,
o faz meditar sobre os julgamentos recíprocos que as pessoas fazem
entre si: “Por que vês tu o argueiro no olho de teu irmão, porém não
reparas na trave que está no teu próprio?” “Não julgueis, para que
não sejais julgados. Pois, com o critério com que julgardes, sereis
julgados; e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão
também.”51
A palha, a trave: Jesus não recua diante da retórica do excesso,
ornamentando quase sempre essas hipérboles com uma pitada de
humor. É mais difícil para um rico entrar no reino dos céus do que
um camelo passar pelo buraco de uma agulha.52 Alusão à porta da
Agulha de Jerusalém, tão estreita que é impossível para os camelos e
para os dromedários transpô-la. Para denunciar os fariseus,
escrupulosos a propósito das ninharias, mas negligentes sobre o
essencial, isto é, a justiça, a boa fé, a misericórdia, ele diz que eles
detêm o mosquito com o filtro, mas “engolem o camelo”.53 A seus
discípulos, Jesus declara: “Se tiverdes fé como um grão de mostarda,
direis a esta amoreira: Arranca-te e transplanta-te no mar; e ela vos
obedecerá”,54 ou ainda, “a este monte: Ergue-te e lança-te no mar, e
não duvidar no seu coração, mas crer que se fará o que diz, assim
será com ele.”55 Os exageros com os quais ele embeleza
intencionalmente suas parábolas têm a finalidade de surpreender.
Assim é com aquela do servidor impiedoso. Para falar da
incomensurabilidade do perdão de Deus, ele evoca a figura de um rei
que dá a um de seus servidores os dez mil talentos que ele lhe deve
(ou seja, cem milhões de dinares). A enormidade dessa soma nos
choca, quando tomamos conhecimento que no ano 4 antes da nossa
era o tributo anual a ser pago ao ocupante romano pela Galileia e
pela Pereia reunidas perfazia duzentos talentos, somente. Devemos
considerar como autênticas as palavras de Jesus, como relatadas por
Irineu, segundo Papias: “Os sacerdotes que se encontraram com
João, o discípulo do Senhor, lembram-se de ouvi-lo contar como o
mestre ensinava naqueles tempos e dizia: ‘Haverá dias em que
crescem vinhas, que terão cada uma dez mil varas de cepa e uma
vara de cepa terá dez mil ramos e um ramo terá de novo dez mil
pequenos ramos e sobre cada pequeno ramo haverá dez mil cachos e
em cada cacho dez mil uvas e cada grão de uva prensado dará vinte
medidas de vinho […]. Da mesma forma, um grão de trigo produzirá
dez mil espigas e cada espiga dará dez mil grãos e cada grão dará
dez libras de peso de boa farinha, branca e limpa…’”.56 Devemos
notar a força simbólica do número dez mil. Tudo isso para anunciar,
é claro, que o reino dos céus será um jardim de delícias e de
abundância, semelhante ao Éden.
E que domínio da dialética! Utilizando o método que os próprios
rabis utilizavam para pegá-lo em erro, ele respondia a uma questão
com outra, deslocava as fronteiras e as questões do debate, remetia
seus interlocutores à sua própria consciência. De seu propósito quase
sempre aparecia o paradoxo que serve para apreender as verdades
mais profundas. Jesus ultrapassa a realidade presente, excede o
significado imediato das palavras para alcançar o essencial.
Quando, perto do poço de Jacó, seus discípulos lhe propõe restaurar-
se, ele lhes diz: “A minha comida consiste em fazer a vontade
daquele que me enviou e realizar a sua obra”.57 Os discípulos lhe
falam das necessidades biológicas e materiais, ele as transpõe para
necessidades espirituais. Vimos, por ocasião de sua conversa com
Nicodemos, como ele sabe manejar a ironia. É a “ironia crística” de
que fala o exegeta Jean Grosjean, um dos traços mais
impressionantes do seu caráter: “zombaria fascinante”, “escárnio
benevolente”, “jovialidade trocista”, “solenidade cheia de gracejo”,
por vezes, “zombaria altaneira”, recolocando em seu lugar seus
interlocutores.58

Uma cultura de seu tempo


Da mesma maneira que os mestres fariseus, ele não usa somente
referências relativas à Sagrada Escritura, mas busca fontes também
nos recursos comuns da cultura popular. Cita provérbios: “um é o
que semeia, e outro o que ceifa”, “Porque não se colhem figos de
espinheiros, nem dos abrolhos se vindimam uvas”,59 “Nem se põe
vinho novo em odres velhos”,60 “Julgamos uma árvore por seus
frutos”,61 “Onde estiver o cadáver, aí se ajuntarão os abutres”.62 Ele
faz alusões tênues mas reais às fábulas de Esopo, amplamente
conhecidas no mundo greco-romano: a de O caniço e a oliveira (que
La Fontaine vai ocidentalizar para O carvalho e o caniço), quando ele
interroga as multidões a respeito de Batista: “Que saístes a ver no
deserto? Um caniço agitado pelo vento?”;63 a do “pescador tocador
de flauta” que acredita pegar os peixes com música, mas acaba por
lançar sua tarrafa e recolher uma multidão de peixes agitados: “Nós
vos tocamos flauta, e não dançastes; entoamos lamentações, e não
chorastes.” A transposição é fácil para ele. “Mas a quem hei de
comparar esta geração? É semelhante a meninos que, sentados nas
praças, gritam aos companheiros:

Nós vos tocamos flauta,


e não dançastes;
entoamos lamentações,
e não pranteastes.”
“Pois veio João, que não comia nem bebia, e dizem: Tem
demônio! Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: Eis aí
um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores!
Mas a sabedoria é justificada por suas obras.”64 A moral é uma
adaptação da moral da fábula: Batista talvez agiu com
contrariedade, mas o Filho do Homem agiu oportunamente. Em
lugar de praticar a ascese, comeu e bebeu como todo mundo. E, no
entanto, o rejeitaram. Se agimos oportuna ou inoportunamente com
essa geração, isso dá no mesmo!
A história da figueira plantada na vinha lembra a fábula do
romance de Ahicar, antiga narrativa popular de origem babilônica,
conhecida em diferentes versões no mundo antigo. Uma árvore
plantada à beira d’água não dá frutos. O proprietário pensa em
cortá-la. Mas a árvore pede que ele suspenda sua decisão: “Se vier a
dar fruto, bem está; se não, mandarás cortá-la”. Para Jesus, a
história se transforma naquela de uma figueira plantada no meio de
uma vinha. O proprietário foi até ela procurar figos e não
encontrou. “Há três anos venho procurar fruto nesta figueira e não
acho; podes cortá-la; para que está ela ainda ocupando inutilmente a
terra? Ele, porém, respondeu: Senhor, deixa-a ainda este ano, até
que eu escave ao redor dela e lhe ponha estrume. Se vier a dar fruto,
bem está; se não, mandarás cortá-la.”65 A diferença com as fábulas é
que as plantas e os animais não falam. Não se trata, pois, de
diversões literárias, mas de mensagens veladas.
Duas parábolas, a do festim ou das núpcias reais (na qual, sem
conseguir reunir à sua mesa seus convidados que fugiam, o dono da
casa ou o rei — isto depende dos relatos — envia mensageiros para
procurar nas ruas, ao acaso, todos aqueles que, mendigos e
miseráveis, “maus ou bons”, poderiam encher sua sala 66) e a
parábola do rico malvado e do pobre Lázaro,67 incorporam os
elementos da história do “escriba pobre e do publicano rico Bar
Majan”, retomada mais tarde pelo Talmude. Na origem, tratava-se
de um conto egípcio que relatava a viagem de Osíris ao império dos
mortos, que os judeus de Alexandria importaram para a terra de
Israel. É impossível, em compensação, descobrir como Jesus adquiriu
essa cultura.

As palavras de um profeta intransigente


Incorreríamos em erro se comparássemos Jesus com um desses
filósofos cínicos que percorrem os campos ensinando o
despojamento. Jesus não é nem Diógenes nem Sócrates. Nós nos
enganaríamos, igualmente, se o equiparássemos a um missionário
suave ou a um exagerado professor de moral (o Jesus sulpiciano!).
Ele é um autêntico profeta que grita, injuria, lança ataques
fustigantes. Assim, lança o anátema sobre as aldeias testemunhas de
sua palavra e de seus milagres que recusaram sua mensagem e seu
apelo para o arrependimento:

Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em Sidom, se


tivessem operado os milagres que em vós se fizeram, há muito que elas se
teriam arrependido, assentadas em pano de saco e cinza. Contudo, no Juízo,
haverá menos rigor para Tiro e Sidom do que para vós outras. Tu,
Cafarnaum, elevar-te-ás, porventura, até ao céu? Descerás até ao inferno.69

De fato, não é necessário esperar o Juízo Final: Corazim,


Betsaida e Cafarnaum atualmente são apenas ruínas…
Jesus lança os anátemas para liberar as multidões de seu torpor
espiritual. Ele recupera assim as entoações de Batista: “Uma geração
má e adúltera pede um sinal […]Ó geração incrédula e perversa! Até
quando estarei convosco? Até quando vos sofrerei?”.70 Ele não foge
de seus adversários, ele os agride: “Ai de vós, escribas e fariseus,
hipócritas […]Serpentes, raça de víboras!”. Eles os matarão e
perseguirão, a fim de que se prestem contas a essa geração desde o
sangue de Abel até o sangue de Zacarias, que foi morto entre o altar
e o santuário!71
Jesus não desdenha o estilo provocante, por vezes implacável:
“Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois
te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu
corpo lançado no inferno”.72 O essencial é não pecar e preferir Deus
a tudo, absolutamente tudo. Há nele uma exigência ardente,
escaldante: “E qualquer que não tomar a sua cruz e vier após mim
não pode ser meu discípulo”.73 Não pensem que eu vim trazer paz à
terra, diz ele eu não vim trazer a paz, mas sim “a espada”,74 melhor
ainda o “fogo sobre a terra!” “E como eu gostaria que já estivesse
aceso!”75 “Pois vim causar divisão entre o homem e seu pai; entre a
filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra.”76
Como essas palavras incandescentes, levadas a sério, não
chocariam uma sociedade baseada sobre a família, onde o Decálogo
mandava honrar o seu pai e a sua mãe? Elas eram enunciadas
precisamente para isso, para chocar, levar à reflexão pessoas
mergulhadas na rotina e em preconceito.
E, no entanto, é o mesmo Jesus, compassivo, pleno de uma
misericórdia infinita, que chama a si todas as vítimas, todos os
feridos pela vida: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e
sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e
aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e
achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o
meu fardo é leve”.77 Não há nisso nada de contraditório. O
radicalismo do amor absoluto requer que tudo a ele seja
subordinado.
Condutor de homens, visionário, místico, profeta, exorcista,
pedagogo, realizador de atos surpreendentes, frequentando os
samaritanos e os excluídos do judaísmo, Jesus aparece como um ser
desconcertante, cercado por um círculo luminoso, completamente
diferente dos demais chefes religiosos de seu tempo. O que, então, a
sua mensagem traz de essencial?
7

O ensinamento de Jesus

O reino atual e o que virá


Desde a sua instalação na Galileia, Jesus coloca no centro de sua
pregação o reino de Deus.[1] Essa expressão não tem analogia no
Primeiro Testamento e é relativamente rara nos textos do Qumran 1
ou na literatura judaica antiga.2 Ela é encontrada, pelo contrário,
uma boa centena de vezes nos evangelhos — cinquenta e uma vezes
no de Mateus, catorze no de Marcos, trinta e quatro no de Lucas,
mas duas vezes somente no de João, que insiste muito mais em
Jerusalém. Essa expressão provém incontestavelmente do Jesus
histórico, e, como acentua Jean Paul Meier, de “uma escolha
consciente, pessoal”.3 Ela é uma maneira de invocar a divindade
sem falar de sua própria pessoa nem de sua relação com ela. De
maneira paciente, usando uma linguagem concreta, Jesus procura
elevar seus ouvintes — pessoas do campo e aldeões da Galileia
principalmente, que sonham com um messias terrestre e glorioso —
à realidade invisível de um reino transcendente.
O que é afinal este reino? É a Boa Nova, o domínio senhorial de
Deus, seu poder misericordioso e libertador realizando-se na sua
Criação, no seu povo e na sua história. Oculto aos sábios e aos
inteligentes, mas revelado às crianças,4 ele é um presente, um
benefício inimaginável, único, que sintetiza exclusivamente todas as
promessas de amor, de perdão e de reunião de Israel, tal como os
profetas haviam anunciado. Seu valor — infinito — convida a viver
na espera e na esperança. Pode-se dizer que se trata de uma imagem
com múltiplas facetas. Para esse fim, Jesus manifesta metáforas e
comparações. O reino de Deus? É como um rei que preparou a festa
de casamento de seu filho,5 como os homens que estão esperando o
seu senhor voltar da festa de casamento,6 como as virgens que,
segurando a sua lâmpada de óleo, saíram ao encontro de seu noivo,7
como um festim para qual muita gente do Oriente e do Ocidente, do
Norte e do Sul, foi convidada.8
Como um contador popular de histórias, Jesus é inesgotável. O
reino é como um tesouro escondido num campo ou uma pérola rara:
um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele
vai, vende todos os seus bens e compra esse campo.9 No entanto, o
tesouro é muito pequeno, não se deixa adivinhar, como a pitada de
fermento que uma mulher colocou em três grandes medidas de
farinha para que tudo fique fermentado,10 como a semente de
mostarda que um homem semeou em seu campo;11 embora ela seja a
menor de todas as sementes, quando cresce, fica maior que as outras
plantas e se torna uma árvore, de modo que os pássaros do céu vêm
e fazem seu ninho em seus ramos… Seu crescimento não depende da
atividade dos homens. Acontece a mesma coisa com a semente que
desabrocha secretamente na terra. Ela produz fruto por si mesma,
primeiro aparecem as folhas, depois a espiga e finalmente os grãos
que enchem as espigas. Quando as espigas estão maduras, o homem
as corta com a foice, porque o tempo da colheita chegou.12
Algumas vezes, a metáfora se transforma em parábola. Sentado
na parte da frente de um barco, atracado num ancoradouro do vale
das Sete Fontes, a oeste de Cafarnaum,[2] Jesus dirige-se a uma
multidão que se acotovela na margem. Escutai! lhes diz ele. Eis o
semeador. Ele espalha generosamente seus grãos. Mas alguns caem à
beira do caminho, e os pássaros se precipitam para comê-los. Outros
se perdem num solo pedregoso, onde a terra é rara e infértil[3].
Alguns grãos germinam, mas, por falta de raízes profundas,
queimam com o sol. Aqueles que se misturam com as ervas daninhas
não dão nada. Outros caem na terra boa. Então, eles produzem a
trinta, sessenta, cem para cada um! “Quem tem ouvidos, ouça!”,
conclui Jesus. Quando a multidão se dispersou, Jesus se ocupa em
explicar o sentido da parábola a seus discípulos. O grão é a palavra
de Deus. Na beira do caminho, Satanás retira o que foi semeado. Os
solos pedregosos correspondem aos “homens do momento” (que não
têm raízes em si mesmos). Quando surge o infortúnio e a
perseguição por causa da Palavra, eles caem inevitavelmente.
Aqueles que ouvem as palavras em meio a ervas daninhas — quer
dizer, em meio às preocupações do mundo, às seduções das riquezas
ou dos desejos profanos — não dão nenhum fruto. Felizmente, existe
a terra boa. Ali a colheita é abundante e o semeador — o próprio
Deus — só pode regozijar-se com isso.13
Outra parábola agrária: o reino é semelhante a um homem que
semeou boa semente em seu campo. Mas uma noite, enquanto todos
dormiam, veio o inimigo dele e semeou joio no meio do trigo, e foi
embora. Quando o trigo cresceu e as espigas começaram a se
formar, apareceu também o joio. Os empregados foram procurar o
dono e lhe perguntaram: queres que arranquemos o joio? “Deixai
crescer ambos juntos até à ceifa; e, por ocasião da ceifa, direi aos
ceifeiros: Colhei primeiro o joio, e atai-o em molhos para o queimar;
mas, o trigo, ajuntai-o no meu celeiro.”14
Os pescadores do lago recebem metáforas adaptadas a suas
atividades: o reino do céu é semelhante a uma rede lançada ao mar,
ela apanha todo tipo de peixes. Quando está pesada e resistente, os
pescadores puxam a rede para a praia. Sentam-se e escolhem. Os
peixes bons vão para os cestos, os que não prestam são devolvidos
ao mar. “Assim será na consumação do século. Mandará o Filho do
Homem os seus anjos, que ajuntarão do seu reino todos os
escândalos e os que praticam a iniquidade e os lançarão na fornalha
acesa; ali haverá choro e ranger de dentes.”15
Jesus, com efeito, não recusa a imagética do fogo que purifica.16
Porém, se ele utiliza o vocabulário apocalíptico, caro para a antiga
Israel, mantém distância em relação à pregação austera do
Precursor. Ele adapta e reinterpreta sua herança. Ele insiste. Não, o
julgamento não virá logo em seguida; não, o reino de Deus não é
uma ameaça, mas, ao contrário, é o tempo do perdão e da
misericórdia sem limite que alivia todas as angústias, restaura a
criatura na plenitude da sua dimensão divina, o tesouro, a pérola
sem preço que é preciso apressar-se para adquirir. O Deus de Jesus
não é tanto aquele da força, da glória ou do julgamento, mas o do
amor. “Deus é amor”,17 escreve na sua primeira epístola João
Evangelista, que compreendeu melhor a sua mensagem. Sua
bondade é infinita. Ela vai além de qualquer representação. Deus é
como o pastor que encontra a ovelha desgarrada na montanha e se
alegra mais por ela do que pelas noventa e nove outras que
permaneceram no rebanho.18 Deus concede gratuitamente e em
abundância seu perdão misericordioso, quando os homens não têm
nenhum direito de reivindicá-lo. Os méritos não são levados em
conta, como quer expressar a parábola do vinhateiro e do
vindimador: aqueles que trabalharam somente uma hora no final do
dia serão recompensados como os empregados que trabalharam
desde a manhã. O essencial é ter aceitado trabalhar na vinha do
Senhor.19 Toda a história do povo judaico foi apenas o anúncio e a
preparação dessa evangelion, dessa Boa Nova.
Próxima está a alegria da salvação. Por sua dinâmica irreversível,
o reino vai transformar o mundo. Ele vai surgir de maneira
repentina no coração da história. Ou melhor, já está aí! Sim, os
tempos estão concluídos!20 “Não vem o reino de Deus com visível
aparência. Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está! Porque o reino de
Deus está dentro de vós.”21
Que o reino de Deus seja, ao mesmo tempo, presente e futuro
parece paradoxal à primeira vista. Qual é, pois, essa misteriosa
realidade? O reino do céu começou, mas vemos apenas suas
primícias. Estamos no meio, entre o “ele já está aqui” e o “ainda não
está”, porque o reino, certamente, como observou Orígenes, é ele,
Jesus de Nazaré, no meio dos seus, mas a sua verdadeira natureza
crística só se revelará após a sua morte.22

As Beatitudes
Com a intenção de apresentar o essencial da mensagem, Mateus
reuniu em cinco grandes exposições temas que provavelmente foram
enunciados em ocasiões diferentes. A composição literária mais
importante é o “Sermão da Montanha”, montanha que a tradição
identifica com uma colina a oeste de Cafarnaum.23 Jesus senta no
chão e proclama os meios para alcançar a felicidade eterna do reino
de Deus. A exposição começa com as Beatitudes:24

Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus;


Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados;
Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra;
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos;
Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia;
Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus;
Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de
Deus;
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque
deles é o reino dos céus;
Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo,
disserem todo o mal contra vós por minha causa.
Exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque
assim perseguiram os profetas que foram antes de vós.25

Esse gênero literário, enaltecido com poesia semítica, não é novo.


Como ensinamento de sabedoria e chamado para viver uma vida
correta, as Beatitudes aparecem com frequência no Primeiro
Testamento. Algumas se originam diretamente da literatura própria
da sapiência; assim, quando Jesus exalta os mansos “porque eles
possuirão a terra”, ele se inspira no Salmo 37: “Os mansos herdarão
a terra.” Na literatura apocalíptica, essas Beatitudes ultrapassam o
simples plano moral. Elas se apresentam, ao mesmo tempo, como
um apelo para suportar os sofrimentos nesse baixo mundo e como
uma promessa de consolo no último dia. Organizadas para a vida
futura em Deus, assumem uma forma escatológica. Podemos
conjeturar que a formulação de Mateus — duas estrofes de quatro
versos de tipo curto, na terceira pessoa, seguidas por uma nona de
tipo longo, na segunda pessoa — é mais histórica, em todo caso
mais em conformidade com a literatura da época, que a formulação
de Lucas — três breves e uma longa, acompanhadas por quatro
maldições —, escrita num contexto grego.26 O especialista em
escritos do Qumran, o padre Émile Puech, acentua que as nove
Beatitudes de Mateus lembram, por sua estrutura e suas regras de
composição, alguns textos essênios, a ponto de conter para cada
uma delas o mesmo número de palavras em grego.27 Isto não
significa que Jesus procurou sua inspiração nos arredores do Mar
Morto. Ele, naturalmente, a extraiu do essencial da cultura judaica
que compartilhava com seus contemporâneos.
Em todo caso, o seu canto das Beatitudes reflete seu pensamento
profundo. Os pobres, os aflitos, os atormentados, os sem voz,
abatidos pela provação, vítimas da tirania dos poderosos, os
corações puros são designados não somente como pessoas dignas de
sua compaixão, mas como os primeiros beneficiários do reino a vir, o
da vida eterna.
Os exegetas hesitaram a respeito do significado da primeira
Beatitude: Qual texto reter? Jesus disse: “Bem aventurados os
pobres” (Lucas) ou “Bem aventurados os pobres de espírito”
(Mateus)? Alguns sustentaram que a formulação de Mateus era
secundária em relação à de Lucas, que teria, ao contrário,
conservado a conotação social de origem. Os pobres seriam os
oprimidos, os necessitados economicamente. Os manuscritos do Mar
Morto vieram transtornar essa perspectiva. “Os pobres de espírito”,
“os pobres de coração” correspondem a uma fórmula semítica típica
(‘nwy rw h.). Em seus hinos, os membros da comunidade dos essênios
de Qumran chamavam a si mesmos “pobres da graça”, “pobres de
tua redenção”. Entre os hebreus, os “pobres” se tornaram quase
sinônimos de homens religiosos, que se abandonam à providência
divina.28
O essencial, portanto, é que aquele que se apresenta diante de
Deus tenha as mãos vazias, que esteja disponível para a sua graça.
Podemos ser miseráveis ou necessitados no plano material e ter o
coração “endurecido, corrupto, maldoso, interiormente corroído pela
inveja de possuir, esquecido de Deus e ávido para se apropriar dos
bens de outrem”.29 Jesus não é um Espártaco revolucionário,
doutrinando os “condenados às penas do inferno da terra”, e
incitando-os contra os ricos. Ele não quer nem unir os proletários
nem derrubar a ordem social. “O meu reino não é deste mundo”, ele
dirá a Pilatos. O que não o impede, certamente, de sublinhar que a
indigência, a pobreza material predispõem ao reino, ao passo que a
riqueza e a notoriedade afastam a pessoa do reino, de tanto que elas
obscurecem o coração. Não se pode servir a dois mestres ao mesmo
tempo, Deus e o dinheiro.

A moral de Jesus
Após ter enunciado as Beatitudes, Jesus começa a aprofundar os
preceitos da lei do Sinai. Em lugar de considerá-las como preceitos
exteriores ao homem, ele as interioriza. Trata-se de libertar o
Decálogo de sua interpretação redutora, a de uma simples moral
social que proíbe o assassinato, o roubo ou o adultério. O mestre de
Nazaré ensina uma moral — evidentemente —, mas uma moral
transcendental, baseada na relação dos homens com Deus.
“Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e: Quem matar
estará sujeito a julgamento. Eu, porém, vos digo que todo aquele que
[sem motivo] se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento.”
Jesus tem em mira a intenção que já encerra em si o mal. É no
ódio ao próximo, mais ainda na cólera, no rancor, na animosidade
que reside a raiz do assassinato. É essa raiz que deve ser erradicada.
Disso decorre a necessidade de uma reconciliação dos homens entre
si, anterior a qualquer prece;

e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do


tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo. Se,
pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem
alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro
reconciliar-te com teu irmão […].

A interiorização exigida por Jesus o leva a rejeitar uma


interpretação literal, portanto minimalista, da lei mosaica. Sua
exigência é infinitamente maior. Assim, acontece o mesmo com a
concupiscência: “Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém,
vos digo: qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura,
no coração, já adulterou com ela.”
Jesus assimila o desejo impudico à passagem ao ato. Essa não é
uma condenação da sexualidade, como farão os gnósticos, mas da
cobiça ativa que visa a apropriar-se da mulher do outro. A pureza
deve vir do coração, da inocência do olhar. “São os teus olhos a
lâmpada do teu corpo; se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo
será luminoso; mas, se forem maus, o teu corpo ficará em trevas.”30
Contrariamente a algumas tolerâncias admitidas por Moisés, é
proclamada a indissolubilidade do elo conjugal. “Também foi dito:
Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio. Eu, porém,
vos digo: qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso de
relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que
casar com a repudiada comete adultério.”

Também ouvistes que foi dito aos antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás
rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos. Eu, porém, vos digo:
de modo algum jureis; nem pelo céu, por ser o trono de Deus; nem pela
terra, por ser estrado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser cidade do
grande Rei;[4] nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar um
cabelo branco ou preto.

O juramento repousa sempre sobre uma suspeita de mentira.


Jurar é tomar algum outro como testemunha, inclusive Deus. Jesus
reage contra um hábito que tinha se difundido amplamente em sua
época. Ele proíbe uma linguagem dupla. “Seja, porém, a tua
palavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar vem do maligno.” Se
o homem se compraz com a verdade, o juramento torna-se
supérfluo.

Ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo:
não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-
lhe também a outra; e, ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica,
deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com
ele duas.[5] Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja que lhe
emprestes.

Há séculos, os hebreus tinham adotado a lei de talião, destinada a


conter a crueldade primitiva. “olho por olho, dente por dente, mão
por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por
ferimento, golpe por golpe”, enunciava o livro do Êxodo.31 Essa lei
já figurava no código do rei Hamurabi da Babilônia (por volta de
1730 antes da nossa era). Jesus rejeita essa moral de acerto e de
vingança, mesmo limitada. É melhor sofrer a injustiça do que
cometê-la.

Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu,
porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem;
para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu
sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque, se
amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os
publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos,
que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo?

O preceito absoluto do amor


O amor ao próximo está, assim, no âmago do Sermão da montanha.
A Israel antiga não ignorava, evidentemente, esse preceito divino. O
Levítico já estipulava amar seu próximo como a si mesmo.33 Mas
quem era esse próximo? Os judeus daquela época não iam além do
círculo de seus concidadãos. Os gentios, quer dizer, os não judeus, os
estrangeiros, os samaritanos, os habitantes da Idumeia eram
rejeitados. O amor ao próximo não se estendia aos que eram
considerados como os inimigos de Deus, como testemunha essa
passagem do Salmo 139:
“Não aborreço eu, SENHOR, os que te aborrecem? E não abomino
os que contra ti se levantam? Aborreço-os com ódio consumado;
para mim são inimigos de fato.”34
Apesar de sua grande piedade, os fariseus olhavam do alto os am
ha aarets, as pessoas do povo, excluídas da verdadeira Israel. No seio
do grupo de Qumran, a interpretação era mais rígida ainda: é
preciso amar os membros da Comunidade ou os convertidos
recentes, todos “filhos de luz”, mas devotar um ódio eterno e sem
piedade aos outros, os “filhos das trevas”, os “filhos da perdição”,
todos aduladores de Belial.
Jesus modifica essa interpretação: “Quem é o meu próximo?”,
pergunta-lhe um dia um mestre da Lei. A parábola do bom
samaritano é a resposta. Um homem descia de Jerusalém para
Jericó. Agredido por bandidos, ele é abandonado moribundo, sem
roupas, coberto de feridas. Passando por lá, um sacerdote do Templo
o vê e prossegue seu caminho. Um levita faz o mesmo. Aparece um
samaritano. Cheio de piedade, recolhe o ferido, enfaixa seus
ferimentos, colocando neles azeite e vinho, o faz subir em seu
animal e o leva para a estalagem, onde continua a se ocupar dele.
No dia seguinte, tirando de suas vestes dois dinares, ele os dá ao
estalajadeiro dizendo: “Cuida deste homem, e, se alguma coisa
gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar”. Jesus pergunta
então ao mestre da Lei: “Qual destes três te parece ter sido o
próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-
lhe o intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele.
Então, lhe disse: Vai e procede tu de igual modo”.
Assim, qualquer homem, mesmo que estrangeiro, é o próximo do
outro. A moral corresponde à “regra de ouro” ou regra de
reciprocidade, já conhecida pelas grandes religiões ou filosofias da
Antiguidade (taoismo, budismo, confucionismo e mesmo judaísmo,
com o rabi Hilel): “Tudo o que desejais que os homens vos façam,
fazei também a eles”.36 Mas Jesus amplia os limites. O amor exige
tudo. Deve explodir no coração dos fiéis, derrubar todos os
obstáculos. Vós deveis, diz Jesus, amar todo mundo, mostrar-vos
compassivos, inclusive com vossos inimigos, rezar por aqueles que
vos perseguem ou vos difamam, fazer o bem àqueles que vos
odeiam, abençoar aqueles que vos amaldiçoam, sem esperar
recompensa.
Com esse novo mandamento, inaudito, o amor aos inimigos,
jamais as relações humanas tinham alcançado auges tão
vertiginosos. “Será grande o vosso galardão, e sereis filhos do
Altíssimo. Pois ele é benigno até para com os ingratos e maus.”37
Mas o amor é exigente. Não julguem e não serão julgados; não
condenem e não serão condenados; perdoem e serão perdoados;
deem e receberão. “Boa medida, recalcada, sacudida, transbordante,
generosamente vos darão; porque com a medida com que tiverdes
medido vos medirão também.”38

A esmola, o jejum e a oração


A esmola, o jejum e a oração são os três pilares da prática de culto
judaico. Para a esmola, Jesus recomenda agir com discrição e
secretamente, e não com ostentação, como os hipócritas, ávidos por
atrair consideração. Eles, diz Jesus, obtiveram sua recompensa na
terra. Ao contrário, que vossa generosidade seja sem limites, que tua
mão esquerda não saiba o que a mão direita dá! O Pai eterno, que vê
o âmago do coração de cada um, devolverá. Acontece a mesma coisa
no caso do jejum. O essencial não é o jejum em si, mas o sentido que
a ele é dado: a abertura para Deus. O mesmo para a oração. Não se
deve exibir nas sinagogas ou nos locais públicos, mas orar em
segredo, com portas fechadas, no cômodo mais alto ou no celeiro de
provisões. É supérfluo multiplicar as palavras ou repeti-las de
maneira mecânica. É suficiente falar com Deus no seu coração,
porque Deus sabe de antemão aquilo de que os homens necessitam, é
desnecessário insistir: “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei,
e abrir-se-vos-á”.39
O “Pai Nosso”, universalmente conhecido no mundo cristão, é a
única prece comunitária ensinada por Jesus a seus discípulos.
Existem duas versões, uma resumida de Lucas, e outra mais
desenvolvida de Mateus. É esta última, perfeitamente ritmada e
estruturada, que corresponde melhor ao estilo pessoal de Jesus, tal
como ele aparece nos evangelhos. Depois de dirigir-se a Deus, ela
contém três pedidos com “tu”, seguidos de quatro pedidos com “nós”.

Pai nosso, que estás nos céus,


santificado seja o teu nome;
venha o teu reino; faça-se a tua vontade,
assim na terra como no céu;
o pão nosso de cada dia dá-nos hoje;
e perdoa-nos as nossas dívidas,
assim como nós temos perdoado aos nossos devedores;
e não nos deixes cair em tentação;
mas livra-nos do mal
[pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém]!40

Para perceber a densidade desse texto, construído de acordo com


a arte poética da época, é importante lê-lo no seu contexto. A
referência a Deus como pai é um costume habitual: rara no Antigo
Testamento, ela é usada uma única vez em uma oração sálmica dos
manuscritos do Mar Morto.41 A frequência do termo Pai nos
evangelhos de Mateus e de João — são os que mais bem estão
enraizados na tradição judaica — mostra que o texto impressionou
fortemente os discípulos. O próprio Paulo não o negligencia em sua
correspondência.42 Os hebreus, por certo, tinham progressivamente
descoberto que o Altíssimo, o Deus único, criador do universo, os
amava com ternura, mas, para eles, o pai era Abraão. Ao contrário
dessa opinião dominante, Jesus coloca a paternidade divina no
âmago de sua mensagem: “sim, os homens podem, com a condição
de acolhê-lo, ‘tornar-se filhos de Deus’”.43 Pois todos vocês são
membros de uma mesma família e têm somente um Mestre.44
Um breve comentário se impõe. A fórmula “Pai Nosso que estais
nos céus”, com a qual a oração começa, não sugere uma localização
(a abóbada celeste), mas a ideia de sua transcendência. “Glorificado
seja teu nome”: este primeiro pedido do Pai Nosso é um apelo para
louvar o nome Divino e uma espera da manifestação do seu poder
santificante no coração dos homens. O “nome” no pensamento
semítico traduz a própria essência do ser, é um resumo de sua
pessoa. “Venha a nós o teu reino”: Deus, por meio de Jesus, é ao
mesmo tempo pai e rei. “Seja feita a tua vontade”: a vontade de
Deus sobre os homens é que eles observem os seus mandamentos,
mas o pedido é mais amplo, visa a todos os seres da Criação. “Assim
na terra como no céu”: este complemento, como mostrou Jean
Carmignac, refere-se aos três pedidos anteriores. “Dai-nos hoje o pão
nosso de cada dia”: trata-se não somente do pão que alimenta o
corpo, mas do pão espiritual, a palavra de Deus e a eucaristia que
Jesus vai instituir entre seus discípulos, à noite, quando será
entregue. “Perdoai-nos as nossas dívidas assim como perdoamos
nossos devedores”: a noção de dívida deve ser compreendida num
sentido mais amplo que a de pecado, que é desregramento ou
desobediência a seus mandamentos. Estar em dívida para com Deus
é não agir por ele. Assim, Jesus apresenta o homem pecador como
um devedor insolvente e Deus como um credor compassivo.45 O
perdão dos pecados é um pagamento das dívidas; Deus apaga a
conta das dívidas e das culpabilidades… “Como nós perdoamos
nossos devedores”: a conjunção “como” não indica aqui uma
causalidade. O homem não adquire o direito ao perdão pelo único
mérito de ter perdoado a seus semelhantes. É somente a sua
disposição de espírito que lhe permite implorar a graça de Deus. “se,
porém, não perdoardes aos homens [as suas ofensas], tampouco
vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas.”46 Quantas vezes é preciso
perdoar, perguntam os discípulos, até sete vezes? Não sete vezes,
lhes responde Jesus, mas setenta e sete vezes sete vezes, ou seja,
sempre.
“Não nos deixeis cair em tentação”: a sexta súplica do Pai Nosso
colocou uma séria de dificuldade, ligada à tradução do texto original
(em hebraico ou mais provavelmente em aramaico). O grego e o
latim não dispõem de conjugação equivalente ao “causativo” das
línguas semíticas, que expressa tanto a ideia de causa, como a de
efeito,[6] as fórmulas retidas pareceram ter duplo sentido e, até
mesmo, para alguns, sacrilégios, dando a impressão de que Deus
exercia um papel positivo na tentação, incitando por consequência o
mal. Jesus certamente não quis dizer: “Não nos induza em tentação”
ou “Não nos submeta à tentação” (fórmula duvidosa adotada em
1922 por um autor protestante anônimo e retomada, com muita
leviandade, por uma comissão ecumênica na tradução atual do Pai
Nosso). É provável que tenha sido para reagir contra a tradução
grega do Pai Nosso que Tiago, “irmão do Senhor”, fez questão de
escrever: “Quando tentado, que ninguém diga: ‘Deus está me
tentando’. Com efeito, Deus não é tentado a fazer o mal, nem tenta
ninguém. Mas cada um é tentado por seu próprio desejo que o atrai
e seduz …”.47 Mais tarde, Tertuliano e Orígenes igualmente
protestaram contra essa fórmula inadequada.
“Livrai-nos do demônio”: a tradução habitual da sétima e última
súplica — “livrai-nos do mal” — parece insuficiente para a maior
parte dos exegetas. O que se pede é o afastamento não somente do
pecado, mas literalmente do “perverso”, do “mau”, isto é, do
demônio, fonte do mal.

Uma revolta dos corações


Jesus assegura a seus discípulos que eles são o “sal da terra”. O sal
serve para temperar os alimentos ou para conservá-los. Se o sal
perde o seu gosto, não serve para mais nada, serve só para ser
jogado fora e pisoteado pelo homem.48 A fórmula assume sentido
quando sabemos que, naquele tempo, as pessoas iam procurar sal
nos rochedos acidentados do Jebel Usdum (monte Sodoma), a
sudoeste do Mar Morto (onde, segundo a Bíblia, a mulher de Lot foi
transformada em estátua de sal). De cor azulada, essas jazidas
continham tantas impurezas (gesso e marga gredosa) que com
frequência era-se obrigado a desembaraçar-se delas na rua.
Definitivamente, a única atitude meritória é a de se deixar
transformar interiormente pela Palavra de Deus, de se abandonar
totalmente a ela. Abandone, diz Jesus, as preocupações cotidianas
que aprisionam o homem, a inquietação pela comida ou pela bebida.
“Vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas; buscai, pois, em
primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos
serão acrescentadas.”49 Para que serve ganhar o mundo inteiro se
você perde a sua vida? “Porquanto, quem quiser salvar a sua vida
perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á.”50
O homem deve depender de Deus como a criança pequena de sua
mãe. Jesus insiste sobre esse caminho da infância, que é o da
confiança total. Enquanto os discípulos interrogam-se entre si para
saber qual será o maior no reino, ele chama uma criança e a coloca
no meio deles. Aquele que se tornar humilde como esta criança, disse
Jesus, será o maior. “Quem receber esta criança em meu nome a
mim me recebe.”51 Num outro dia, os discípulos querem afastar
crianças que são levadas a Jesus para que ele lhes impusesse as
mãos. “Deixai os pequeninos, não os embaraceis de vir a mim,
porque dos tais é o reino dos céus.”52 Mas quem “escandalizar” um
desses pequeninos que acreditam em mim, melhor seria para ele
pendurar uma pedra de moinho no pescoço, e ser jogado no fundo
do mar.53
Jesus não se apresenta como professor de uma moral fossilizada,
que define uma lista de proibições, mas como instigador de um amor
“em espírito e em verdade”. Ele mostra, ao mesmo tempo, a
proximidade, a ternura de Deus, a imensidão da salvação oferecida a
todos, e a porta estreita pela qual é preciso passar, o caminho
apertado que é preciso percorrer para alcançá-la; a salvação não
será dada sem o esforço de uma autêntica conversão. Não será
suficiente lamentar-se: “Senhor, Senhor!” para entrar no reino, mas
fazer a vontade do Pai. Os fracos, os indolentes, os beatos que
escutam passivamente serão renegados. Cada um receberá de acordo
com sua conduta, em função do dom que recebeu e que souber
cultivar. Este é o significado da parábola dos talentos:54 “Porque a
todo o que tem se lhe dará, e terá em abundância; mas ao que não
tem, até o que tem lhe será tirado”. Quanto a vocês, até os cabelos
da cabeça estão todos contados.55
Não se deve tomar tudo ao pé da letra: mostrar sistematicamente
a face esquerda, abandonar seu manto a quem pedi-lo, duplicar o
trabalho imposto, negligenciar seu ganha-pão para se abandonar à
Providência… O que é requerido é uma disposição interior profunda:
não exigir asperamente o que lhe é devido, renunciar com a maior
frequência possível a seu direito, opor a brandura à violência, o
desinteresse à avidez, em suma, recusar-se a opor a violência à
violência e vencer o mal pelo bem. Todas as coisas que já são difíceis
de realizar no plano da moral individual e que são impossíveis,
evidentemente, ao nível da sociedade baseada sobre o direito e a
equidade. Distribuir para todos o seu dinheiro não significa
favorecer a preguiça ou a prodigalidade? Submeter-se ao agressor
não significa exasperá-lo e incitá-lo a tornar-se mais intratável? O
mal, nesse caso, pode vir a ser maior que o bem. Os moralistas
cristãos se esforçarão para adaptar a essência da mensagem sem
privar o sal de sabor.
Tarefa muito mais difícil porque o ideal da prática religiosa é o
mais alto que existe. Partindo da perspectiva e da herança judaica,
revertendo os valores do mundo greco-romano, que privilegiava o
forte e desprezava o fraco, essa prática alcança o universalismo. A
exigência radical de Jesus é um chamado à transcendência de si por
amor ao reino. “Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso
Pai celeste.”56 É a esse ato heroico que o discípulo é chamado. Em si,
esse ato só pode ser um ideal, mesmo para os maiores santos. No seu
absoluto, para os homens comuns, repletos de fraqueza irremediável,
a moral cristã só pode ser um caminho, onde o essencial é avançar
sem recuar… Com tal avaliação, questionam os apóstolos, quem
pode ser salvo? Jesus responde: “Isto é impossível aos homens, mas
para Deus tudo é possível”.57
Jesus é completamente judeu. Entretanto, seu comportamento,
sua mensagem, mostram que ele é um judeu atípico que recusa o
aprisionamento pelas facções do seu tempo e por suas sutilezas
casuísticas. Ele não se identifica com nenhuma delas. A lei mosaica
cessa de ser absoluta. Ela se torna relativa por sua palavra. Uma
nova era começa. À ordem de coação se substitui a da liberação.
Como seus contemporâneos, ligados à fé recebida dos ancestrais e
religiosamente conservada, não teriam ficado perturbados ou
chocados com a sua palavra?
Jesus cumpre a lei e ao mesmo tempo a transcende. Não, ele não
veio suprimir o Decálogo, destruir a Lei e os profetas, mas completá-
los, levá-los à sua perfeição. “Até que o céu e a terra passem, nem
um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra.”58
Por essa razão, Jesus não é um reformador político. O profeta
Amós havia denunciado a sorte trágica dos prisioneiros de guerra,
sua redução em escravidão, o profeta Oseias havia estigmatizado os
massacres perpetrados pela dinastia reinante, Isaías e Jeremias
tinham lançado advertências impressionantes aos reis de Judá, mas
Jesus parece ser indiferente em relação à situação política ou às
reformas sociais que deviam ser realizadas. Não notamos nenhuma
palavra contra a escravidão, contra a ocupação romana ou a
exploração econômica dos mais pobres. A ordem social parece
desinteressá-lo.
No entanto, tudo no seu ensinamento, absolutamente tudo
condena os sistemas de dominação. “Sabeis que os governadores dos
povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre
eles.”59 Suas palavras implicam um apelo para estabelecer as
relações sociais sobre o compartilhamento, o respeito pelo outro, o
amor fraternal, a rejeição pela violência dos poderosos. Mas a
revolução anunciada é, acima de tudo, uma revolução interior, que
deve transformar tudo. A completa mudança evangélica começa
pela subversão dos corações.
8

Jesus e seus discípulos

Jesus acreditava ser Deus?


Atendo-se a esse exclusivo ensinamento moral, como não colocar-se
de acordo com a conclusão de Ernest Renan: “Entre os filhos dos
homens, não nasceu ninguém maior que Jesus”? Mas essa declaração
não seria deter-se no caminho? Como dissociar a mensagem do
mensageiro, visto que, no espírito de Jesus, um leva ao outro, pois o
reino de Deus está ligado à sua ação, à sua própria pessoa?
Se analisarmos seu comportamento, e isto nos quatro evangelhos,
percebemos que sua intenção para com Deus tem algo de inaudito,
que espanta, perturba, ultrapassa as fronteiras do judaísmo.
Certamente, o seu estilo não é o da força, mas o da humildade, e, no
entanto, a autoridade soberana que ele se atribui ultrapassa muito
amplamente a de todos os profetas que o antecederam, de todos os
rabis inspirados dos tempos antigos. Ela é até mesmo superior à de
Moisés. Não ousa ele afirmar que, tomando posição a favor ou
contra ele, o homem faz a escolha de sua salvação? “Portanto, todo
aquele que me confessar diante dos homens, também eu o
confessarei diante de meu Pai, que está nos céus.”1 Ele se apresenta
como a palavra criadora, a realização da Aliança e da espera de
Israel no decorrer dos séculos. “Bem-aventurados, porém, os vossos
olhos, porque veem; e os vossos ouvidos, porque ouvem. Pois em
verdade vos digo que muitos profetas e justos desejaram ver o que
vedes e não viram; e ouvir o que ouvis e não ouviram.”2
Jesus seria então Deus? Evidentemente, essa interrogação não faz
parte da investigação do historiador. Este, em compensação, pode
perguntar-se se Jesus acreditava ser Deus, e responder
afirmativamente, da mesma forma que ele pode dizer que
Alexandre, o Grande, se tomava por um deus, ou que Maomé estava
convencido de ser o enviado de Alá.3 Essa atitude não deprecia o seu
método. Trata-se de interrogar-se sobre uma convicção subjetiva,
sem esperar o conhecimento objetivo. Seguramente, a consciência
que Jesus tem de sua própria pessoa sempre escapará à investigação
histórica.
É habitual opor os evangelhos sinópticos ao evangelho de João.
Os primeiros têm como ponto de partida uma “teologia ascendente”,
que leva à interrogação sobre a natureza divina do Cristo, ao passo
que o último expressaria uma “teologia descendente”, que parte de
Deus e vai até o homem. Essa abordagem não é falsa, mas é
inadequada se quisermos expressar com isso que a segunda seria
menos histórica que a primeira, porque João, como sabemos, é uma
testemunha direta. É impossível compreender sua obra se negarmos
que ele tem a convicção íntima de relatar os fatos e as palavras
autênticas de Jesus encarnado, do Jesus da história.
Por outro lado, nos próprios evangelhos sinópticos, observamos
que a reivindicação identitária de Jesus, mesmo se ela é menos
sustentada, parece semelhante à afirmada com vigor no quarto
evangelho. Ele não se apresenta como o esposo de Israel? Como o
mestre do sabá? Não pratica exorcismos em seu próprio nome,
abstendo-se na fórmula de expulsão dos demônios de mencionar o
nome divino que, no entanto, na religião judaica, é o único que tem
poder sobre os espíritos? “Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: Sai
deste jovem e nunca mais tornes a ele.”4 Seu Eu o torna igual a
Deus.
Um dos aspectos mais assombrosos do Sermão da Montanha é a
liberdade soberana com a qual Jesus reinterpreta ou modifica a Lei
sagrada de Israel. Moisés, no monte Sinai, havia sido apenas o
intermediário de YaHWeH, transmitindo ao povo hebreu os seus
mandamentos. Jesus legisla com a sua própria autoridade, com uma
segurança espantosa e tranquila. Ficamos impressionados pela série
de antíteses que imprimem ritmo à sua mensagem oral: “Ouvistes o
que foi dito aos antigos… Eu vos digo…”. Por sua palavra soberana,
Jesus se torna igual ao legislador único de Israel. Os exegetas mais
críticos, como Bultmann, admitem a autenticidade dessas palavras.
Ora, falar em seu próprio nome, ensinar sem se referir a Deus, são
pretensões sem precedente na história profética de Israel. Sua
palavra se torna Lei e a Lei assume uma forma. Jamais alguém
antes dele tinha ousado fazê-lo. Jamais alguém fará o mesmo. Nada
na lei hebraica se parece de perto ou de longe com a ideia de uma
encarnação de YaHWeH. Se o messias real era, por vezes,
considerado como seu filho adotivo (“Tu és meu filho, eu, hoje, te
gerei”, diz o Salmo 2), em nenhum lugar fala-se de um filho
autêntico do Altíssimo que veio sobre a terra. No entanto, o que
Jesus diz parece pressupô-lo.
Essa confissão é explícita, reproduzida por Mateus e por Lucas,
na linha direta do evangelho de João: “Tudo me foi entregue por
meu Pai. Ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece
o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”.5 Aqui
também essas parábolas não encontram analogia no judaísmo ou
mesmo no helenismo. Nenhum dos profetas, inclusive Moisés, jamais
pretendeu partilhar sozinho o pleno e completo conhecimento de
YaHWeH.
Jesus, ao contrário, dá a impressão de que a sua relação com
Deus é única, que sua experiência religiosa não é a de um simples
mortal com o seu Criador. É nesse sentido que ele chama Deus de
“Pai”. A palavra é mais surpreendente em aramaico que em
português: “Abba” significa, com efeito, “Pai querido” ou “Pai muito
querido” (quase “papai”). Essa palavra traduz a familiaridade, a
ternura de um filho para com seu pai humano.6 O vocabulário da
paternidade e da filiação representa rigorosamente o perfil do rabi
da Galileia: vimos a propósito do Pai Nosso que Jesus havia
aconselhado seus discípulos a dirigirem-se à divindade chamando-a
dessa maneira (“Eis aqui como vós deveis orar”). Mas, além dessa
oração ensinada, em nenhum momento Jesus fala de Deus como
nosso Pai comum. Sempre ele se coloca à distância, toma o cuidado
de se distinguir dos seus, dizendo ou meu Pai, ou vosso Pai.
João Evangelista tem como objetivo convencer seu leitor de que
Jesus explicou bem que ele era Filho de Deus, no sentido forte do
termo, e mostrou isso por meio de sinais. É por essa razão que ele
insiste menos que os evangelhos sinópticos sobre as precauções
tomadas pelo seu mestre. Levando em conta a mentalidade de seus
contemporâneos, ele evita, principalmente na Galileia, onde vivem
muitos fariseus, afirmar a convicção que ele tem de sua própria
filiação. Ele prefere revelá-la por meio de atos, para não incorrer na
acusação de blasfêmia por assumir um poder reservado unicamente
a Deus, como o perdão dos pecados.
Para afirmar sua consciência, ao mesmo tempo messiânica e
divina, utiliza várias vezes, como vimos, a expressão insólita e
misteriosa de “Filho do Homem”. É impossível ver nessa expressão
uma criação da Igreja, aplicada retrospectivamente: ela desaparece
da linguagem cristã com uma rapidez espantosa. Nos Atos dos
Apóstolos, essa expressão só é encontrada uma vez, por ocasião da
lapidação do diácono Estêvão. Ela não figura mais de duas vezes no
Apocalipse de João, segundo a mesma formulação: “Parecia um
Filho de Homem”.7 Paulo não a utiliza nunca. Ela também não é
encontrada no Símbolo (Credo) dos Apóstolos (século II).
Manifestamente, tal expressão não pertence à cristologia primitiva,
a não ser nos grupos sectários que vão recuperá-la ao evocar tempos
remotos. No entanto, é certo o seu enraizamento na vida de Jesus.
A expressão é de origem semítica. O hebraico ben Adam,
literalmente “filho de Adão” (Adão sendo o homem), ou o aramaico
bar énash designam o homem em geral, qualquer homem. Se Jesus a
utiliza, não o faz num sentido indeterminado, mas muito claramente
como um título de poder, remetendo à figura escatológica evocada
no capítulo sete do livro do profeta Daniel:

Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha com as nuvens
do céu um como o Filho do Homem, e dirigiu-se ao Ancião de Dias, e o
fizeram chegar até ele. Foi-lhe dado domínio, e glória, e o reino, para que os
povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é
domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído.8

A expressão é encontrada oitenta e duas vezes nos evangelhos.


Frequentemente, ela é um sinal do Todo-Poderoso. João: “Em
verdade, em verdade vos digo que vereis o céu aberto e os anjos de
Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem”.9 Mateus,
Marcos, Lucas: “Tu o disseste; entretanto, eu vos declaro que, desde
agora, vereis o Filho do Homem assentado à direita do Todo-
Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu”.10 No pensamento
semítico, o lugar reservado à direita do senhor é o do herdeiro. Para
Jesus, por consequência, é uma maneira de indicar discretamente a
sua origem e o seu status divino.
É preciso compreender, entretanto, que esse estranho Filho do
Homem está, como o reino de Deus, ao mesmo tempo presente e
evoluindo em entrelaçamentos indefiníveis. O antigo artesão de
Nazaré não se identifica com o personagem escatológico do Messias
exaltado. Ele é, simultaneamente, o mesmo e diferente.11 O Filho do
Homem é ele próprio um outro, que retornará na sua glória,
aureolado pelo poder divino, para julgar o mundo. Além da fraqueza
impotente e dos limites de sua pobreza humana, ele sugere que é a
figura vitoriosa do final dos tempos.12 Aquele que tiver tido
vergonha dele e de suas palavras de vida, “dele se envergonhará o
Filho do Homem, quando vier na sua glória e na do Pai e dos santos
anjos”.13 Isto é de uma audácia assombrosa.
A ambiguidade semântica, a própria plasticidade da expressão,
lhe permitem subentender que ele é muito mais que um simples
messias temporal, ao mesmo tempo em que limita sua revelação
àquilo que os homens simples aos quais ele se dirige, enraizados em
seus preconceitos, são capazes de compreender.

Ser discípulo
João havia batizado numerosos peregrinos antes de reenviá-los para
suas casas na espera iminente do Julgamento. Somente um pequeno
círculo havia se formado em torno dele, cujos membros
permaneciam livres para deixá-lo. Jesus procede de maneira
diferente. Provavelmente, no decorrer do seu ministério na Galileia,
ele atrai uma multidão de ouvintes em busca de um guia espiritual,
simples curiosos ou adeptos entusiastas. Mas, ao mesmo tempo em
que instrui um grande número de pessoas, ele procura constituir um
núcleo permanente de discípulos.
Observamos uma primeira singularidade: a iniciativa vem dele.
Seu chamado não se dirige a todos. Para o eleito, é uma imposição
forte, draconiana, particularmente penosa, cujo preço é terrível:
imediatamente ele deve voltar as costas à sua vida comum,
abandonar tudo, sua casa, mulher, pais, família, clã, relações, até
mesmo os seus meios de existência. É exigida uma disponibilidade
total, sem reserva.
Tendo atirado simbolicamente o seu manto sobre os ombros do
jovem Eliseu, para lhe mostrar que ele entrava a seu serviço, Elias o
havia autorizado a despedir-se de seus pais. Isto estava em
conformidade com a tradição de piedade filial do povo de Israel.
Com Jesus, nada disso existe. Dizer adeus à sua família significa
enternecer-se. “Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha
para trás é apto para o reino de Deus.”14 Eis que um candidato a
discípulo solicita a permissão para enterrar seu pai que acaba de
morrer; Jesus lhe responde: “Segue-me, e deixa aos mortos o sepultar
os seus próprios mortos”.15 Para um judeu praticante, que respeita o
quinto mandamento (“Honrarás teu pai e tua mãe”), uma resposta
como essa só pode escandalizar. Não, Jesus não é um rabi como os
outros!
Alguns não podem aceitar tal fidelidade incondicional, que passa
por um despojamento absoluto. Assim é o jovem rico de que fala
Mateus. O que devo fazer de bom para possuir a vida eterna?, ele
pergunta ao Nazareno. “Se queres, porém, entrar na vida, guarda os
mandamentos”, responde Jesus. Quais mandamentos? Aqueles da
Lei: não mate, não cometa adultério, não roube, não levante falso
testemunho, honre seu pai e sua mãe e ame o seu próximo como a si
mesmo. O jovem disse a Jesus: “Tudo isso tenho observado; que me
falta ainda? Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende os
teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e
segue-me. Tendo, porém, o jovem ouvido esta palavra, retirou-se
triste, por ser dono de muitas propriedades”.16
Não é um caminho semeado com rosas que é proposto aos
discípulos. Jesus lhes anuncia que eles serão desprezados, que
encontrarão obstáculos por toda parte e hostilidades, enfrentarão
perigos, suportarão sofrimentos. “Se alguém quer vir após mim, a si
mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me”.17 “Tomar a
sua cruz” era uma expressão usada no mundo greco-romano para
evocar o ladrão ou o rebelde que carregava, ligada aos ombros, a
barra horizontal de sua cruz até o local de execução.
Jesus não teme fazer comparações que aterrorizam. De fato, há
homens castrados (eunucos), diz ele, porque nasceram assim, “e há
outros que a si mesmos se fizeram eunucos, por causa do reino dos
céus. Quem é apto para o admitir, admita”.18 Pôr-se a segui-lo
requer disciplina, uma ascese cotidiana. Portanto, a vida do
discípulo é difícil, mas a recompensa é prometida. Para Pedro, que
observa que ele e seus companheiros abandonaram tudo para segui-
lo, Jesus responde: “E todo aquele que tiver deixado casas, ou
irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe [ou mulher], ou filhos, ou campos,
por causa do meu nome, receberá muitas vezes mais e herdará a vida
eterna”.19
Escolas ou academias eram amplamente difundidas no mundo
romano, com os pitagóricos, os platônicos, os aristotélicos ou os
estoicos. Os alunos vinham para assistir a um ciclo de cursos,
obrigavam-se a memorizar os preceitos éticos ensinados e
partilhavam alguns meses da vida de seu mestre. A Israel antiga não
ignorava a figura do rabi e de seus discípulos. Filo tinha sua escola,
Hilel e Shamai as suas. O sistema rabínico do século II,
posteriormente à destruição do Templo, vai inspirar-se nesses
precedentes.
Os discípulos de Jesus não obedecem ao mesmo modelo.
Aparecem mais unidos que os alunos que escutam em círculo a boa
palavra de um mestre, em seguida se dispersam, ao cabo de um
certo tempo. Vindos de todos os meios sociais, vivendo entre eles, os
discípulos participam de uma verdadeira vida comunitária, com a
particularidade de permanecerem abertos aos pobres, aos marginais,
e de não se retirarem em seita separatista, à imagem de outras
fraternidades religiosas da época. O rigor do compromisso não os
impede de festejar, em companhia de Jesus, com os coletores de
impostos, de frequentar a mesa dos pescadores, de encontrar
personagens de reputação duvidosa, bêbados, trapaceiros,
prostitutas, em suma, os excluídos que parecem rejeitar os
mandamentos do Deus de Israel. A alegria, o sentido da festa
habitam os discípulos. Mas o grupo é estruturado somente em função
da sua missão. Jesus suprime com um gesto de mão as rivalidades e
as ambições. Aquele que se considera o maior torna-se o mais jovem
e aquele que governa transforma-se naquele que serve!
Outra característica do grupo é a relação bem particular que o
discípulo entretém com o mestre. Este exerce sobre ele uma
autoridade de tipo carismático.20 Jesus espera de seus discípulos uma
submissão que não é servil nem cega, mas uma dependência
espiritual, uma união íntima, consentida livremente. Tal é o sentido
da parábola da videira, símbolo da comunidade da Aliança. Ele é a
videira, os discípulos são os ramos. Somente os bons ramos,
inseparáveis e unidos ao tronco, dão bons frutos. “Quem permanece
em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada
podeis fazer”.21
Os evangelhos nos mostram também certo número de mulheres
que acompanham Jesus nos seus deslocamentos. Conhecemos
algumas: Maria Madalena (ou Maria de Magdala), uma antiga
possuída, Salomé, a mãe de Tiago e de João, Joana, mulher de Cusa,
alto funcionário de Herodes Antipas, Susana, de quem não se sabe
nada, “e várias outras mulheres”,22 acrescenta Lucas. Elas
preparavam as refeições, ocupavam-se com as tarefas de casa,
davam assistência financeira aos discípulos. Sem elas, a vida
material da comunidade não seria possível, de modo algum. Parece
verossímil que elas também fossem chamadas por um apelo
particular do Rabi, porque, sem uma iniciativa de sua parte, não se
explicaria seu comportamento. O fato de viver ao lado de um
pregador celibatário, em meio a discípulos masculinos, era um novo
desafio lançado à sociedade judaica e aos valores familiares da
época. Algumas dentre elas eram casadas, como Salomé e Joana.
Será que elas puderam aceitar o compromisso sem o consentimento
de seus esposos? Isso parece dificilmente concebível.
“As raposas têm seus covis, e as aves do céu, ninhos; mas o Filho
do Homem não tem onde reclinar a cabeça.”23 Ao ler essa frase,
seríamos tentados a pensar que Jesus e seus discípulos seriam
“carismáticos itinerantes”, segundo a expressão de Gerd Theissen,24
aqueles “sem domicílio fixo”, que vão de aldeia em aldeia, como os
filósofos cínicos. Essa interpretação parece exagerada quando
sabemos que as aldeias e os povoados da Galileia eram muito
próximos uns dos outros. Somente ao redor de Séforis, contavam-se
na época cerca de quarenta lugares habitados a menos de um dia de
caminhada.25 Devia ocorrer a mesma coisa na região de Cafarnaum,
onde Jesus era alojado por Simão-Pedro. Partindo de manhã, o
pequeno grupo podia facilmente retornar à noite. Isto não quer dizer
que não houve deslocamentos mais longos.
Alguns, em compensação, eram sedentários. Eles formavam um
grupo de simpatizantes, muito úteis, para assegurar aos discípulos
alimento, alojamento e auxílio financeiro. Entre eles, contava-se
Zaqueu, o coletor de impostos, Simão, o Piedoso, que vivia em
Betânia perto de Jerusalém, quase certamente as irmãs Marta e
Maria e seu irmão Lázaro, do mesmo povoado. Lucas contou a
respeito delas uma anedota: enquanto Maria estava sentada aos pés
de Jesus escutando a sua palavra, Marta, provavelmente a mais
velha, estava ocupada com muitos afazeres. Incomodada em ver sua
irmã não fazer nada, ela dirige-se a Jesus:

Senhor, não te importas de que minha irmã tenha deixado que eu fique a
servir sozinha? Ordena-lhe, pois, que venha ajudar-me. Respondeu-lhe o
Senhor: Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas.
Entretanto, pouco é necessário ou mesmo uma só coisa; Maria, pois,
escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada.26

Os Doze
Uma mudança brusca ocorre quando Jesus, ao fim de alguns meses,
decide escolher doze discípulos para acompanhá-lo constantemente
em seu ministério de ensinamento e de cura. Esse número representa
simbolicamente as doze tribos de Israel. Se acreditarmos na Bíblia
hebraica, essas tribos tinham como origem os doze patriarcas, filhos
de Jacó. Davi, por volta do ano 1000, as unificara no seio de seu
reino. Mas as rupturas tinham reaparecido durante o reinado de seu
neto, Roboão, com a constituição de um reino ao norte, Israel, e de
um reino ao sul, Judá. O primeiro foi invadido no ano 721 antes da
nossa era pelos assírios. Sempre, segundo a versão da Bíblia, as dez
tribos do norte foram deportadas e nunca mais voltaram. Quanto ao
reino do sul, ele foi derrubado por Babilônia no ano 587 antes da
nossa era. Os descendentes da tribo de Judá, Benjamim e Levi, só
voltaram meio século mais tarde para reconstruir Jerusalém. Em
suma, na época de Jesus, se as doze tribos de origem não existiam
mais, elas desempenhavam um grande papel no imaginário
escatológico do povo judaico. No final dos tempos, seriam
novamente reunidas em vista da restauração da Terra Prometida.
Esse tema da reunificação dos filhos de Israel do Oriente e do
Ocidente por Deus ou por um rei descendente de Davi encontra-se
também nos livros de Miqueias, Jeremias e Ezequiel e em certos
textos pós-exílio, como os de Tobias, Baruch e Ben Sira.27 A mesma
esperança é partilhada pelos Salmos de Salomão (século I antes da
nossa era) e pelo Pergaminho da Guerra de Qumran.
Jesus tem uma convicção profunda de ter sido enviado por Deus
a Israel. Não é de espantar, por consequência, que a sua abordagem
pedagógica se modele na proclamação escatológica dessa Israel
coroada. A criação dos Doze é, nesse sentido, um ato profético que
deve ser posto em relação com o anúncio do reino. Os doze estão
destinados a moldar o coração do povo judeu que Jesus pretende
reagrupar em torno de sua pessoa. No grande dia do Julgamento,
ele lhes promete, quando o Filho do Homem se sentar no seu trono
de glória, “Vós, que me seguistes […] também vos assentareis em
doze tronos para julgar as doze tribos de Israel”.28 O Apocalipse de
João faz alusão a isso na sua visão celeste do final dos tempos (“A
muralha da cidade tinha doze fundamentos, e estavam sobre estes os
doze nomes dos doze apóstolos do Cordeiro).29
Mateus e Marcos anotaram a lista dos Doze: ao lado de Simão-
Pedro e de André, e Tiago e de João, filho de Zebedeu, ambos
denominados Boanerges (filho do trovão),30 Jesus chama Filipe,
Bartolomeu, Tomás, Levi, chamado Mateus, o chefe do escritório de
pedágio de Cafarnaum, Tiago, filho de Alfeu, Tadeu, Simão, o
Cananeu, e Judas Iscariotes. Lucas, que dispõe de outra fonte, dá
uma lista ligeiramente diferente: Simão não é chamado o Cananeu,
mas o Zelote (ou seja, o piedoso, o zeloso, o vigilante).[1] No lugar
de Tadeu figura certo Jude ou Judas, filho de Tiago (que não é o
Iscariotes).
Além de Simão-Pedro, dos dois filhos de Zebedeu e de Judas
Iscariotes, é difícil distinguir os outros. Acreditar que podemos
preencher esses vazios biográficos consultando os evangelhos
sinópticos ou as lendas posteriores seria um procedimento arriscado.
Nenhum indício, por exemplo, permite identificar Bartolomeu (Bar
Talai, o filho de Tolmi ou o filho de Tolomeo) ao sábio Natanael de
Caná, como o faz uma tradição tardia do século IX. Esse último,
então, não foi convidado para fazer parte dos Doze.
João Evangelista fala também de Tomé (ou Tomás) como um dos
Doze. Por três vezes, ele traduz o aramaico te’ôma’ por seu
equivalente grego didyme, o que significa “gêmeo”, sem nos relatar
mais nada. Os gnósticos vão considerá-lo como o gêmeo do próprio
Jesus ou identificá-lo com Jude. Pura fantasia, evidentemente.
Tiago, filho de Alfeu, será denominado o Menor, para distingui-lo
de Tiago, o Maior, filho de Zebedeu.[2] Provavelmente, ele era o
filho de Levi, dito Mateus, ele também filho de Alfeu.
Tadeu (algumas vezes chamado Lebeu) foi, provavelmente, um
discípulo efêmero. Ao se retirar do grupo por uma razão
desconhecida, foi substituído por Jude ou Judas, filho de Tiago.
Lucas cita esse Jude ou Judas no seu evangelho e nos Atos, sem
qualquer exatidão. João Evangelista o faz aparecer na última ceia.
Por erro, ele foi confundido com seu predecessor, sob o vocábulo de
“Judas Tadeu”.31
Voltemos a Judas Iscariotes. Esse nome ou sobrenome Iscariotes
(Iskariotes ou Shariotes, segundo o Codex Bezae ou Códice de Beza)
permanece misterioso. João o chama “Judas, filho de Simão
Iscariotes”, mas não sabemos se é preciso concluir que seu pai usava
igualmente esse nome ou se é preciso ler essa parte de frase com
uma vírgula: “Judas filho de Simão, o Iscariotes”, porque, nesse caso,
é unicamente Judas que seria designado com tal denominação.
Várias explicações dividem os exegetas.32 Alguns fizeram a
comparação com o termo sikarion, “punhal”, daí vem o nome de
sicário. Isso não é conveniente. Os sicários, esses terroristas judeus,
não existiam na época de Jesus. Outros, inspirando-se em raízes de
nomes encontrados em Palmira, sqr ou shqr, tendem para uma
indicação de ordem física: Judas, o corado. Pouco convincente. É
possível, finalmente, que Iscariotes seja a transcrição d’ish Keriyyôt
(o homem de Keriyyôt ou Queriote). Uma localidade com esse nome
existia no sul da Judeia. Nessa hipótese, ele seria o único da Judeia
no grupo dos Doze.

Os discípulos em missão
Para multiplicar sua ação, Jesus envia durante alguns dias ou
algumas semanas os Doze em missão aos povoados e cidades da
Galileia. É assim que eles se tornam “apóstolos” propriamente ditos,
isto é mensageiros.33 Partem de dois em dois — Filipe e Bartolomeu,
Tomé e Matias, Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu, etc., segundo os
binômios enunciados pelo primeiro evangelho —, com poder e
instrução de curar os doentes, de purificar os leprosos e de expulsar
os espíritos impuros em seu nome.34
Alguns grandes rabis faziam o mesmo com seus discípulos, mas
com um espírito diferente.35 Nesse caso, tratava-se de proclamar a
proximidade do Reino de Deus, reino que está em relação estreita
com a própria pessoa de Jesus. “Quem recebe aquele que eu enviar,
a mim me recebe; e quem me recebe recebe aquele que me
enviou.”36 Em conformidade com a missão na qual se sente
investido, Jesus afasta os países estrangeiros ou distanciados da fé
judaica. Não tomem o caminho das nações pagãs, Jesus
recomendava, não entrem nas cidades dos samaritanos! Procurem as
ovelhas perdidas da casa de Israel! Para tal missão, os discípulos
devem colocar-se sob a completa dependência de Deus e
experimentar o despojamento absoluto requerido pelas Beatitudes.
Renunciem ao equipamento habitual dos viajantes! Não levem nos
cintos nem moedas de ouro, de prata ou de cobre;[3] nem sacola
para o caminho, nem duas túnicas, nem calçados, nem bastão,
porque o operário tem direito a seu alimento.37 Isto é o que se
salienta no evangelho de Mateus. Marcos traz uma relativização
dessa exigência radical: um bastão e sandálias são autorizados. E
Jesus prossegue: Se alguma casa vos recusar hospitalidade, sai dela
sacudindo a poeira de vossos pés. Com tal gesto, altamente
simbólico, eles se dissociam dos que se expõem ao julgamento. Eles
receberam gratuitamente, que deem gratuitamente!
Ao retornar de sua breve jornada missionária, os apóstolos estão
entusiasmados: “Eis que vos dou poder para pisar serpentes e
escorpiões, e toda a força do inimigo, e nada vos fará dano algum.
Mas, não vos alegreis porque se vos sujeitem os espíritos; alegrai-vos
antes por estarem os vossos nomes escritos nos céus”.38
O grupo escatológico dos Doze desempenhou um papel muito
pouco conhecido durante a vida pública de Jesus. Ele não cumprirá
mais nenhum papel em seguida e acabará por se apagar na memória
coletiva. Paulo só faz uma breve alusão ao grupo na sua Primeira
Epístola aos Coríntios. Quando evoca as suas relações difíceis com
Pedro, Tiago, João, ou os outros apóstolos da Igreja de Jerusalém,
nunca os cita como um colegiado. O mesmo silêncio é encontrado no
restante da literatura epistolar do Novo Testamento, quer sejam as
Epístolas de Pedro, de João, de Tiago ou a Epístola aos Hebreus.
Desde a primeira geração da Igreja primitiva, o grupo desapareceu.
Isto é tão verdadeiro que, após a morte de Tiago, filho de Zebedeu,
martirizado por Herodes Agripa I no ano 44, ninguém pensou em
completar o grupo, como havia sido feito onze anos antes, após a
deserção de Judas Iscariotes.
9

O sinal de contradição

A família fica inquieta


Muito rapidamente, o clã dos nazarenos ouve eco do comportamento
da criança da aldeia, depois de sua reunião no eremitério de Ein
Karem até suas atividades em Cafarnaum, onde o ardor das
multidões se tornou tão intenso que o impede, por vezes, de
alimentar-se. Suas exposições aos pescadores, sua estranha
pregação, contraria o que esperavam de um messianismo político e
real e assinalam aos seus olhos a extravagância de Jesus. O filho de
José, o tektôn,[1] não lhes parece ser um fugitivo banal que
abandonou a família e a profissão para tentar a sorte em outro
lugar, mas alguém que “perdeu a cabeça”, que “tinha ficado louco”.1
Eles ficaram muito mais chocados porque o consideravam como o
legítimo herdeiro de sua linhagem davídica.
Uma delegação decide dirigir-se a Cafarnaum, para fazê-lo
recuperar a razão e forçá-lo a voltar para casa. É composta por
Maria, sua mãe, e por seus “irmãos”, Tiago, José, Simeão e Jude ou
Judas, talvez mais alguns. Eles chegam às margens do lago.
Enquanto ele fala a um público sentado em círculo no pátio interior
da casa de Simão-Pedro, eles permanecem no exterior. Alguém avisa
a Jesus que sua mãe e seus “irmãos” estão do lado de fora. Jesus
pergunta àquele que tinha falado: “Quem é minha mãe? E quem são
meus irmãos?”. Passando o olhar sobre seus discípulos, ele
acrescenta, designando-os com um gesto: “Eis aqui minha mãe e
meus irmãos; Porque, qualquer que fizer a vontade de meu Pai que
está nos céus, este é meu irmão, e irmã e mãe”.2 Palavra áspera. E,
assim, a ruptura com o seu meio de origem é consumada. Seus
discípulos são sua nova família, unida não por laços de sangue, mas
por sua completa submissão à vontade do Pai. Quando uma mulher
exclamar mais tarde: “Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os
peitos em que mamaste”. Ele replicará: “Antes bem-aventurados os
que ouvem a palavra de Deus e a guardam”.3 Dali em diante
ninguém mais o desviará de sua missão.

Jesus volta a Nazaré


Depois de ter percorrido a Galileia, ensinado, multiplicado sinais e
prodígios, ele decide voluntariamente voltar a Nazaré e fazer os seus
compreenderem que tipo de profeta ele é, assumindo o risco de
provocá-los.4 No dia do sabá, penetra na sinagoga, onde tantas
vezes ele ouviu a palavra de Deus durante sua juventude. Não é
certamente uma sala grande, tendo em vista as dimensões da aldeia,
mas a religiosidade desses descendentes de Davi é tão grande que,
em lugar de contentar-se com a sinagoga do grande povoado vizinho
de Jaffa a três quilômetros de lá, eles quiseram ter a sua própria (na
época, não havia sinagoga em todas as aglomerações).
De acordo com o costume, além das preces habituais, faz-se na
sinagoga uma leitura em hebraico de uma passagem da Torá e dos
Profetas, e aquele que é encarregado desse serviço deve, em seguida,
tecer um breve comentário sobre o texto. O hazan (o oficial do
serviço) da sinagoga designa Jesus como leitor. Jesus avança para o
meio da comunidade reunida. É dado para ele o precioso rolo de
Isaías. Ele o coloca sobre a prancheta, o desenrola. Será que ele
escolheu este extrato, ou encontrou-o por acaso?

Porque o SENHOR será a tua luz perpétua, e os dias do teu luto findarão.
Todos os do teu povo serão justos, para sempre herdarão a terra; serão
renovos por mim plantados, obra das minhas mãos, para que eu seja
glorificado. O menor virá a ser mil, e o mínimo, uma nação forte; eu, o
SENHOR, a seu tempo farei isso prontamente. O Espírito do SENHOR Deus
está sobre mim, porque o SENHOR me ungiu para pregar boas-novas aos
quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a proclamar
libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados; a apregoar o ano
aceitável do SENHOR e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos
os que choram e a pôr sobre os que em Sião estão de luto uma coroa em vez
de cinzas, óleo de alegria, em vez de pranto, veste de louvor, em vez de
espírito angustiado; a fim de que se chamem carvalhos de justiça, plantados
pelo SENHOR para a sua glória.5

Nada pode dar mais prazer aos nazarenos que essa passagem
profética. Os “justos” que possuirão o país, são eles! José, o pai de
Jesus, não é qualificado como “homem justo” pelo evangelho de
Mateus, um tsadiq (pessoa correta) fiel à Torá?6 Tiago, o “irmão do
Senhor”, não era denominado o Justo? O tempo virá em que eles, os
“brotos” obscuros e desprezados da “plantação” de Jessé, se tornarão
uma nação poderosa para a glória de YaHWeH! Somente eles
formam o “pequeno resquício” de Israel.
Jesus devolve o rolo ao hazan e senta-se. Todos mantêm os olhos
fixados nele. Falando dessa vez em aramaico, a língua corrente dos
aldeãos, ele diz: “Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de
ouvir”.7 Sim, é ele, o Ungido do Senhor que recebeu o Espírito! Ele é
o resultado das escrituras!
Como um propósito como esse não reanimaria seus corações?
Eles ficam, diz Lucas, “e se maravilhavam das palavras de graça que
lhe saíam dos lábios”.8 Quem não se lembra da criança da região?
Ele é dos nossos, murmuram as pessoas nas filas da sinagoga. “Não é
este o carpinteiro, filho de Maria, e irmão de Tiago, e de José, e de
Judas e de Simão? e não estão aqui conosco suas irmãs?”. Eles estão
repletos de alegria. “Donde vêm a este estas coisas? Que sabedoria é
esta que lhe foi dada? E como se fazem tais maravilhas por suas
mãos?”.9 Todos esperam que Jesus faça na presença deles uma
exposição dos mesmos prodígios que apresentou em Cafarnaum, que
mostre seus poderes sobrenaturais a seus felizes compatriotas. Ah! Se
ele pudesse ser o Messias que deve surgir no meio deles! Após tantos
anos de direção obscura, o momento da restauração escatológica de
Israel, de que fala Isaías, teria chegado? Que glória para sua aldeia!
Que impacto para o clã sagrado que, desde a noite dos tempos,
entretém a chama da esperança davídica!
Mas o filho de José não os deixa muito tempo nessa ilusão. Ele
retoma a palavra:

Na verdade vos digo que muitas viúvas havia em Israel no tempo de Elias,
quando o céu se fechou por três anos e seis meses, reinando grande fome em
toda a terra; e a nenhuma delas foi Elias enviado, senão a uma viúva de
Sarepta de Sidom. Havia também muitos leprosos em Israel nos dias do
profeta Eliseu, e nenhum deles foi purificado, senão Naamã, o siro.10

Em algumas palavras, com algumas comparações bíblicas


extremamente chocantes, Jesus se livra de sua confraternidade
devoradora. Não, ele não será “seu” messias! Por não partilhar de
suas esperas temporais, ele se recusa a assumir sua herança, suas
esperanças.
Agitação, gritaria, furor na sinagoga. Jesus é bem o louco que
sua delegação quis prender em Cafarnaum! Ele é um impostor! Eles
o agarram, o empurram, o levam até um rochedo escarpado, de
onde querem precipitá-lo. Mas Jesus, no meio deles, continua o seu
caminho. A dois quilômetros e meio a sudeste de Nazaré, podemos
ver um precipício impressionante com paredes abruptas chamado o
“Salto do Senhor”. É o djebel El Qafsé, que se eleva a mais de
trezentos metros sobre o vale de Esdrelon. Será que foi para lá que
esses alucinados o conduziram?

Os saduceus
Jesus não se confronta somente com sua família. Em Jerusalém,
também os saduceus,11 membros ricos da aristocracia laica ou
sacerdotal, contestam o seu ensinamento. Esse grupo político, que
desapareceu completamente depois da destruição do Templo,
permanece pouco conhecido pelos historiadores, apesar das
pesquisas modernas.12 Politicamente, eram oportunistas,
preocupados em preservar os seus privilégios. Tinham aceitado o
domínio dos selêucidas da Síria, depois a dominação dos romanos e,
em contato com esses estrangeiros, tinham assimilado os costumes
helênicos. Conservadores, faziam questão de permanecer próximos
ao poder, qualquer que fosse. Mesmo durante a época da dinastia
dos hasmoneus, tinham procurado aproximar-se dos dirigentes. A
camada mais pobre da sociedade, que preferia os mestres fariseus, os
detestava [2].
No plano religioso, considerando que não deviam afastar-se da
observância rigorosa da Torá escrita, eles rejeitavam os comentários
de seus adversários fariseus sobre a lei oral, mesmo se não era certo,
como Orígenes e são Jerônimo disseram, que só aceitassem como
Escritura canônica o Pentateuco[3], excluindo os Salmos e os
profetas. Em compensação, admite-se que recusavam as visões
escatológicas e apocalípticas de profetas como Daniel, negando a
existência dos anjos e dos espíritos demoníacos. Para eles, não havia
castigo para os malvados além da sepultura, tampouco a
ressurreição corporal dos justos no final dos tempos. Esses obtinham
sua recompensa aqui embaixo.
No decorrer da estada de Jesus na Galileia, uma delegação de
fariseus e de saduceus veio ao seu encontro, como outra,
anteriormente, havia sido enviada a João Batista. Eles lhe pediram
para mostrar diante deles um sinal do Céu. Jesus, porém, lhe
responde que “Uma geração má e adúltera pede um sinal, e nenhum
sinal lhe será dado, senão o sinal do profeta Jonas. E, deixando-os,
retirou-se”. Ele também diz aos seus discípulos: “Adverti, e acautelai-
vos do fermento dos fariseus e saduceus”.13 O livro de Jonas, com o
nome de um pequeno profeta do reino do Norte que viveu no tempo
de Jeroboão II (783-743 antes de Cristo), é habitualmente datado do
século V antes da nossa era. É um conto popular, inspirado numa
fábula grega que põe em cena Héracles (o Hércules da mitologia
grega): ao desobedecer a ordem divina de ir pregar o
arrependimento aos habitantes de Nínive, capital do império assírio,
Jonas foge numa embarcação. Mas sobrevém uma tempestade. Para
apaziguá-la, a tripulação joga Jonas por cima da amurada da
embarcação. Ele é engolido por um monstro marinho, em cujas
entranhas passa três dias e três noites orando e cantando louvores
ao Senhor. O enorme peixe acaba por vomitá-lo. Ele chega a terra
firme e dessa vez parte para levar a Palavra de Deus à grande
cidade pagã. Jesus utiliza esse conto para evocar sua morte e sua
ressurreição “no terceiro dia”,14 sinal da força todo-poderosa de Deus
e de sua solicitude para com o enviado.
Os saduceus não deixam de voltar a importuná-lo. Ao saber que
Jesus anunciou, como os fariseus, a “ressurreição dos mortos”, eles
lhe colocam uma questão de casuística, mesclada com ironia,
unicamente para embaraçá-lo. É um verdadeiro caso de
ensinamento, como os judeus religiosos gostam de examinar
minuciosamente:

Mestre, Moisés disse: Se morrer alguém, não tendo filhos, casará o seu
irmão com a mulher dele, e suscitará descendência a seu irmão. Ora, houve
entre nós sete irmãos; e o primeiro, tendo casado, morreu e, não tendo
descendência, deixou sua mulher a seu irmão. Da mesma sorte o segundo, e
o terceiro, até ao sétimo; Por fim, depois de todos, morreu também a
mulher. Portanto, na ressurreição, de qual dos sete será a mulher, visto que
todos a possuíram?

Como conceber, se existe ressurreição, essa poliandria


abominável e impossível[4] induzida pela lei do Levirato?
Jesus encontra-se em circunstâncias favoráveis para recusar sua
visão estritamente materialista. Não, a ressurreição não é a
reanimação da carne, a retomada da vida terrestre, inclusive no
casamento e na atividade sexual. Há continuidade da pessoa, mas
uma ruptura radical quanto ao seu futuro modo de ser. “Errais, não
conhecendo as Escrituras, nem o poder de Deus”, responde ele. De
fato, na “ressurreição dentre os mortos, nem hão de casar, nem ser
dados em casamento; porque já não podem mais morrer; pois são
iguais aos anjos”. E para fazê-los cair em sua própria armadilha, ele
se refere ao livro do Êxodo.16 Vocês não leram o que foi anunciado
por Deus, quando ele diz: “Eu sou o Deus de Abraão, e o Deus de
Isaac, e o Deus de Jacó”? Ele não é o Deus dos mortos, mas dos
vivos.17 Com efeito, se o Deus eterno e Todo-Poderoso aceitou
identificar seu ser transcendente na sua relação com Abraão, Isaac e
Jacó, como ele poderia se definir em relação a “cadáveres
decompostos de homens mortos havia muito tempo”?18
A parábola dos vinhateiros homicidas, inspirada no canto da
vinha de Isaías contra a ingratidão do povo escolhido, parece ser a
resposta de Jesus às polêmicas dos saduceus. Certo proprietário
plantou uma vinha, cercou-a, fez um tanque para pisar a uva, e
construiu uma torre de guarda para protegê-la dos ladrões; depois
arrendou a vinha para alguns agricultores como meeiros, e viajou
para o estrangeiro. Quando chegou o tempo da colheita, o
proprietário mandou um de seus empregados até os agricultores
para receber os frutos. Os agricultores, ao invés de acolhê-lo, o
agarram, batem nele e o reenviam de mãos vazias. O proprietário
mandou de novo outro empregado. Eles o golpeiam na cabeça e o
tratam com desprezo. Mais um é enviado. Ele é morto. Finalmente,
o proprietário enviou-lhes o seu próprio filho, pensando: eles vão
respeitar o meu filho. Os agricultores, porém, ao verem o filho,
pensaram: “Este é o herdeiro. Venham, vamos matá-lo, e a herança
será nossa”. Jesus então pergunta: “O que fará então o dono da
vinha?” Seus interlocutores lhe respondem: “Virá e matará aqueles
lavradores e dará a vinha a outros. Vocês nunca leram esta
passagem das Escrituras? A pedra que os construtores rejeitaram
tornou-se a pedra angular; isso vem do Senhor, e é algo maravilhoso
para nós”.
“Portanto, eu vos digo que o reino de Deus vos será tirado, e será
dado a uma nação que dê os seus frutos.”19 Aviso aos sumos
sacerdotes e a seus partidários!
Os fariseus
Fiéis à lei, aos profetas e à tradição oral de seus pais, os fariseus
respeitam o repouso semanal do sabá, praticam o jejum duas vezes
por semana, nas segundas e quintas-feiras, fazem as abluções rituais,
e distribuem esmolas amplamente (fazendo coletas, dando o dízimo
aos pobres e colocando oferendas em uma das treze caixas de
esmolas reservadas para isso no adro das Mulheres). No século I da
nossa era, eles se dividem em duas grandes escolas exegéticas rivais,
a de Hilel, condescendente e até mesmo laxista, e a de Shamai, mais
rigorista, todas acusadas pelos essênios de serem “aqueles que
buscam abrandamentos”.
Em sentido oposto ao dos saduceus, chegaram, após uma longa
maturação de suas concepções religiosas, a admitir a ideia — como
também os essênios — de que YaHWeH, na sua sabedoria e na sua
soberana bondade, não deixaria os justos vegetarem eternamente no
Sheol (túmulo), a estada misteriosa e subterrânea dos mortos.
Enterrados na sepultura, eles ressuscitariam no dia de YaHWeH em
sua plenitude corporal, para uma vida nova. No século II antes da
nossa era, o autor do livro de Daniel já escrevia: “muitos que
dormem no pó despertarão: uns para a vida eterna, outros para a
vergonha e a infâmia eternas”.20
Num certo sentido, Jesus professa ideias semelhantes. No
entanto, ele não cessa de denunciar seus comportamentos. O que ele
lhes reprova? Em primeiro lugar, de serem vaidosos e cheios de si,
preocupados unicamente com as aparências. Em lugar de servir a
Deus na discrição e no silêncio de seu coração, eles só procuram
fazer-se notar, ampliando seus filactérios,[5] aumentando as franjas
de suas vestes para acentuar bem sua fidelidade à Lei. Eles fingem
fazer longas orações, mas exploram os bens das viúvas.21 Nas
sinagogas, se instalam nas primeiras filas e, nos lugares públicos,
esperam as saudações e se vangloriam de receber o nome de
“mestre”.
Jesus recomenda a seus discípulos para jamais permitirem ser
chamados dessa maneira, “porque um só é o vosso Mestre, a saber, o
Cristo, e todos vós sois irmãos Nem vos chameis mestres, porque um
só é o vosso Mestre, que é o Cristo. O maior dentre vós será vosso
servo. E o que a si mesmo se exaltar será humilhado; e o que a si
mesmo se humilhar será exaltado”.22
Outra crítica que Jesus faz é a de ter se “sentado sobre o trono de
Moisés” e de arrogar-se o direito de interpretar a palavra do grande
profeta. Com seu formalismo, eles colocam pesados fardos sobre os
ombros dos homens, mas se recusam eles mesmos a carregá-los.
“Porque dizem e não fazem.”23 “Mas ai de vós, escribas e fariseus,
hipócritas! pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós
entrais nem deixais entrar aos que estão entrando […]pois que
percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito; e, depois de o
terdes feito, o fazeis filho do inferno (géhénne)[6] duas vezes mais do
que vós.”
Loucos e cegos! lança-lhes Jesus ainda. Vós aceitais que é
possível jurar pelo altar do Santuário, mas não pela oferenda que
está em cima! No entanto, o que é maior não é o altar que santifica
a oferenda? Aquele que jura pelo altar jura por tudo que está acima.
Aquele que jura pelo Santuário jura por Aquele que o habita. Aquele
que jura pelo Céu jura pelo trono de YaHWeH e por Aquele que está
sentado nele. A recusa absoluta de Jesus por qualquer juramento é
um ponto fundamental de divergência.
Jesus estigmatiza também seu apego maníaco ao detalhe ao
passo que negligenciam o essencial. “Ai de vós, escribas e fariseus,
hipócritas! pois que dizimais a hortelã, o endro e o cominho, e
desprezais o mais importante da lei, o juízo, a misericórdia e a fé;
deveis, porém, fazer estas coisas, e não omitir aquelas.”25 Por fora
parecem bonitos, mas por dentro estão “cheios de ossos de mortos e
de toda imundicia”. Eles se enfeitam de justos, enquanto que estão
cheios “de hipocrisia e de iniquidade”. Eles se lamentam sobre a
sorte reservada aos antigos profetas, assegurando que se, tivessem
vivido no tempo de seus pais, não teriam sido cúmplices na morte
dos profetas. Mas, em realidade, não deixam de ser filhos daqueles
que mataram!26 Os coletores de impostos e as prostitutas vão entrar
antes de vós no Reino do Céu, porque João veio até vós para
mostrar o caminho da justiça e vós não acreditastes nele. Os
cobradores de impostos e as prostitutas acreditaram nele.27

Controvérsias com os fariseus


Quando descem de Jerusalém, os fariseus se tornam intratáveis. Eles
recriminam os exorcismos de Jesus. Acusam-no de estar possuído por
Belzebu,28 o chefe das potências infernais, e de expulsar os espíritos
invocando o seu nome. Atitude grave que salientaria o pecado
contra o Espírito, aquele que não será perdoado “nem neste século,
nem no futuro”.29 Jesus, que gosta do raciocínio dialético, coloca a
objeção: Como Satanás poderia expulsar Satanás?30
Os pontos de fricção giram em torno de algumas questões
fundamentais para a fé de Israel. A primeira é a do sabá, tão
essencial que toda a sociedade teocrática da Israel antiga parece
estar organizada ao redor dela. A interdição do trabalho no sétimo
dia da semana reveste um caráter sagrado, visto que ele é destinado
a comemorar o repouso de Deus no relato da Criação. Respeitá-lo é o
sinal da Aliança, da mesma forma que a circuncisão; faltar com
respeito a isso é um gesto de profanação. O Êxodo, o Livro dos
Números e mesmo o Livro dos Jubileus (escrito do corpus
intertestamentário que data de cerca do ano 160 antes de Cristo)
falam da pena capital para os contraventores.31
Mas havia muito tempo que conciliações e diminuições de penas
tinham sido previstas. Assim, tinha nascido uma casuística judaica,
mais bem adaptada à evolução da sociedade e à vida cotidiana. Os
essênios continuavam sendo os mais estritos. Para eles, por exemplo,
era proibido ajudar um animal a parir no dia santo do sabá. Se o
animal caísse num poço ou numa cisterna, tanto pior para ele. Se,
por sua vez, um homem caísse, era permitido estender-lhe ou a mão,
ou sua própria roupa, mas jamais uma corda, um bastão ou uma
escada, correndo o risco, por consequência, de deixá-lo morrer. Os
fariseus, menos rigorosos, admitiam que uma ovelha que caísse num
buraco poderia ser salva quando o animal era o único bem de seu
proprietário. Era também permitido ajudar, a fortiori,[7] quando se
tratava de um homem. Não era preciso preocupar-se com os meios.
Mas, fora desses casos raros, eles mantinham respeito ao princípio.
Jesus, quanto a ele, modifica radicalmente a maneira de ver de
seus contemporâneos. A lei do amor, da caridade, está acima de
tudo. O sabá não é um fim em si, mas um meio para o bem e a
liberdade do homem. Entrando no dia santo em uma sinagoga da
aldeia, Jesus vê um homem com a mão paralisada. Todos se
perguntam se ele vai curá-lo. Ele não hesita. Essa é uma maneira
concreta de prosseguir o seu ensinamento. Jesus convida o enfermo
a levantar-se. “É lícito curar nos sábados?”, pergunta Jesus. “Qual
dentre vós será o homem que tendo uma ovelha, se num sábado ela
cair numa cova, não lançará mão dela, e a levantará? Pois, quanto
mais vale um homem do que uma ovelha? É, por consequência, lícito
fazer bem nos sábados.”32 Seus adversários se calam. Triste por seu
endurecimento, ele diz ao homem: “estenda a tua mão”. O outro
obedece, e imediatamente sua mão é curada, “restabelecida”, escreve
Marcos.
Por mais conciliadores que fossem os fariseus, eles não poderiam
admitir transgressões como essas. Ficam sabendo com raiva que, por
ocasião de um sabá, os discípulos de Jesus, passando ao longo de um
campo de trigo ou de cevada, arrancaram espigas e as esmagaram
entre as mãos. Ora, esse simples gesto é considerado como
equivalente a fazer uma colheita e, consequentemente, a romper o
preceito. Recriminam o ato de Jesus, que lhes responde dando o
exemplo de Davi e de seus companheiros, que, tendo sentido fome
num desses dias santos, entraram no santuário e comeram os “pães
da proposição”, bolo chato e redondo feito com a farinha mais fina e
salpicado de incenso, colocado diante de YaHWeH e reservado em
seguida aos sacerdotes. Vós não lestes também na Lei que em dia de
sábado, no Templo, os sacerdotes violam o sábado, sem cometer
falta? “Pois eu vos digo que aqui está quem é maior que o
Templo.”33 Maior que o Templo? Essa, evidentemente, é a última
pretensão que deixa os fariseus mais furiosos. “O sábado foi feito por
causa do homem, e não o homem por causa do sábado. Assim, o
Filho do Homem até do sábado é senhor.”34 Como se pode relativizar
mais a lei intangível de Moisés e colocar uma reivindicação tão
inaceitável?
Entre os outros pontos de desacordo figuram as abluções antes
das refeições, bem como o jejum. Os fariseus reprovam aos
discípulos de Jesus por não praticarem essa ascese, enquanto eles
próprios, partidários de Batista, o praticam. Jesus lhes responde com
uma declaração provocativa, na qual ele se afirma como esposo de
Israel. “Podeis vós fazer jejuar os filhos das bodas, enquanto o
esposo está com eles? Dias virão, porém, em que o esposo lhes será
tirado, e então, naqueles dias, jejuarão.”35 É uma reivindicação
divina mal dissimulada.
Jesus, ao recusar os tabus alimentares, choca igualmente os
fariseus. Segundo ele, não há alimento impuro em si mesmo. Não é o
que entra na boca que torna o homem impuro, diz ele; mas o que sai
da boca.36 O mal vem da profundeza do homem. Tudo o que penetra
na boca passa por dentro do ventre e é evacuado nas latrinas,
enquanto o que sai da boca sai do coração: juízos malvados,
assassinatos, adultérios, fornicações, roubos, falsos testemunhos,
blasfêmias… Isto é muito mais grave que comer com mãos não
lavadas!37
Outro obstáculo é o ensinamento de Jesus sobre a
indissolubilidade do casamento. Os fariseus interpretam um texto do
Deuteronômio,38 que autoriza o marido a repudiar a mulher nas
seguintes circunstâncias: em caso de descumprimento da honra ou da
fidelidade, segundo a escola de Shamai, e pelo simples fato de que a
mulher deixa de agradar, segundo a escola de Hilel; equivale a dizer
que é possível repudiar a mulher sob qualquer pretexto. Os fariseus
representam a corrente majoritária, é provável que suas concepções
— menos rígidas, sobre essa questão, que a dos essênios, que se
opõem a um novo casamento depois do divórcio — tenham
amplamente influenciado os comportamentos da sociedade judaica
da época. Jesus também recusa sua abordagem permissiva. Cita
como apoio a Escritura: “Não lestes que o Criador, no começo, fez o
homem e a mulher e disse: Por isso, o homem deixará seu pai e sua
mãe e se unirá à sua mulher; e os dois formarão uma só carne?
Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o
homem o que Deus uniu”.39 Mas seus adversários não renunciam.
Então, como é que Moisés mandou dar certidão de divórcio ao
rejeitar, dispensar uma mulher? É, de fato, porque ele admitiu o
divórcio. Jesus respondeu: “Por causa da dureza do vosso coração é
que Moisés vos permitiu repudiar vossa mulher; entretanto, não foi
assim desde o princípio. Eu, porém, vos digo: quem repudiar sua
mulher, não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, e casar com
outra comete adultério [e o que casar com a repudiada comete
adultério]”.40
Não é certo que o inciso “a não ser em caso de relações sexuais
ilícitas” que figura no evangelho de Mateus seja de Jesus. Talvez ele
tenha sido acrescentado pelos judeus cristãos. Alguns pensam que ele
tinha em mira não o adultério, mas um grau de parentesco proibido
pela Lei. Em todo caso, esse inciso não figura nem nos textos
correspondentes de Marcos nem nos de Lucas,41 tampouco na
primeira Epístola aos Coríntios de Paulo, que diz relatar sobre esse
assunto uma prescrição vinda do Senhor.[8]
Também está ligada aos fariseus uma discussão sobre o famoso
episódio do tributo devido a César. Acompanhados pelos partidários
de Herodes, os fariseus tentam mais uma vez preparar uma
armadilha para Jesus. “Mestre, bem sabemos que és verdadeiro, e
ensinas o caminho de Deus segundo a verdade, e de ninguém se te
dá, porque não olhas a aparência dos homens. Dize-nos, pois, que te
parece? É lícito pagar o tributo a César, ou não?” A ratoeira era
perfeita: todos os anos os judeus deviam pagar a enorme soma de
3,6 milhões de dinares. Se Jesus respondesse que não era preciso
pagar, ele seria imediatamente considerado como um rebelde, um
revolucionário do tipo de Judas, o Galileu. Se ele aconselhasse o
contrário, reconhecia a ocupação romana e, com isso, mostrava
fidelidade a um imperador divinizado, ato comparável à idolatria.
Os judeus preocupavam-se muito com tal questão porque o tributo
do solo (o imposto sobre a propriedade) e o tributo por pessoa
deviam ser quitados em dinares de prata, moedas romanas que
representavam no anverso o perfil de Tibério e no reverso aquele de
sua mãe Lívia.
“Por que me experimentais, hipócritas?”, retruca Jesus, que lhes
pede que mostrem a moeda do tributo. Um deles tira um dinar.
Fazendo de conta que examinava a moeda, Jesus os interroga: “De
quem é esta efígie, e esta inscrição?”. De César, evidentemente!
Então, ele conclui: “Dai pois a César o que é de César, e a Deus o
que é de Deus”. Os fariseus ficam estupefatos.
Ao longo da história, os comentadores cristãos comentarão à
exaustão essas palavras, para diferenciar o temporal do espiritual, e
suas relações recíprocas. Jesus, certamente, não considerou isso. Ele
quis dizer que Deus prevalecia sobre César. Suas palavras,
deformadas, serão recriminadas.
Constantemente, os fariseus interrogam Jesus, nem sempre, aliás,
para colocá-lo em dificuldade, mas simplesmente para conhecer o
que ele pensava sobre o assunto, por exemplo, sobre a hierarquia
que devia ser estabelecida entre os seiscentos e treze mandamentos
que eles tinham resgatado. Um de seus doutores da Lei, um legista
apaixonado, lhe pergunta: “Mestre, qual é o maior mandamento da
Lei?”, Jesus responde: “Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o
teu coração”, e com todo o entendimento. Esse é o maior e o
primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: “Amarás o
teu próximo como a ti mesmo”. “Destes dois mandamentos
dependem toda a lei e os profetas.”42 “E o escriba lhe disse: Muito
bem, Mestre, e com verdade disseste que há um só Deus, e que não
há outro além dele; E que amá-lo de todo o coração, e de todo o
entendimento, e de toda a alma, e de todas as forças, e amar o
próximo como a si mesmo, é mais do que todos os holocaustos e
sacrifícios.” Jesus viu que o doutor da Lei tinha respondido com
inteligência, e disse: “Não estás longe do Reino de Deus”.43
Chegou a vez de Jesus de desconcertá-los. Ele lhes perguntou
numa outra ocasião:

Que pensais vós do Cristo? De quem é filho? Eles disseram-lhe: De Davi


Disse-lhes ele: Como é então que Davi, em espírito, lhe chama Senhor,
dizendo: Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que
eu ponha os teus inimigos por escabelo de teus pés? Se Davi, pois, lhe
chama Senhor, como é seu filho? E ninguém podia responder-lhe uma
palavra.

“Você é aquele que deve vir?”


Enquanto essas controvérsias rigorosas se desenvolviam, João
Batista continuava detido na fortaleza de Maqueronte, onde era
tratado como um prisioneiro importante. Provavelmente, devemos
interpretar nessa situação a fascinação que o profeta do Jordão
continuava a exercer sobre o espírito supersticioso de Herodes
Antipas.
Em pouco tempo, os discípulos são autorizados a subir a rampa
da cidadela, a penetrar em seu alojamento e a conversar com ele.
Naturalmente, eles falam do Nazareno e de seu ministério. O
comportamento desse homem tem algo de desconcertante. Seus
exorcismos, suas curas, seus milagres, sua pregação não
correspondem ao esperado. Aquele cuja vinda Batista profetizou não
age verdadeiramente com o vigor esperado dele. Além de algumas
alusões fugidias à sua superioridade em relação ao Templo ou à lei
de Moisés, ele não parece reivindicar formalmente nenhum atributo
de poder, nenhum status messiânico explícito. Ele devia trazer o
estrondoso julgamento do Céu, vir com seu machado de açougueiro
ou sua pá. Ora, ele só fala do amor divino, da misericórdia. Em
lugar de viver em ascese, festeja com seus adeptos. Seria esse o
plano do Altíssimo para Israel?
Os seguidores de João não são os únicos que questionam. Faz
meses que o ilustre prisioneiro enregela no seu cárcere, sofrendo
com a reclusão. Ele começa a ter dúvidas sobre suas próprias
esperas, sobre seu antigo aluno, apesar da efusão do Espírito que o
perturbou. Seria ele verdadeiramente “o cordeiro de Deus”? Batista
acreditava que a penosa espera de Israel iria terminar com a vinda
desse personagem escatológico. Infelizmente, ela se prolonga. Os
discípulos do rabi continuam a administrar um batismo semelhante
ao seu, um batismo provisório na espera do batismo do Espírito. Em
suma, João perdeu suas principais certezas. As intuições divinas que
ele recebera o faziam pensar que um profeta “mais forte” que ele
não tardaria a purificar a Israel pecadora. Ele estava convencido de
que assistiria em companhia de Jesus ao cumprimento dos tempos e
o julgamento pelo fogo. Nada disso aconteceu. Ele se vê na prisão,
sozinho, diante da sua própria morte, sem recurso espiritual,
abandonado por Deus. Ele viu crescer o movimento iniciado por seu
primo de Nazaré com um interesse indubitável, ao mesmo tempo em
que prosseguia sua própria pregação, mas eis que o recém-chegado
se afasta de seu ensinamento. Será que ele se enganou de pessoa?
Completamente impregnado com as imagens das Escrituras e dos
apocalipses judaicos, ele esperava um Messias justiceiro e
purificador, que cumprisse o “dia de YaHWeH”. Com toda a certeza,
Jesus não era esse Messias.
Essas reflexões amargas o fizeram encarregar dois de seus
próximos para interrogar Jesus sobre essa questão, capital para ele:
“És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro?”. Estes dois vão,
então, procurar Jesus. As relações se inverteram havia meses. O
artesão da Galileia não é mais o neófito que avança em direção a
João em meio aos caniços do Jordão, pedindo-lhe humildemente o
batismo. Jesus se tornou um mestre venerado, que fala com
autoridade soberana.
Ao receber os enviados por Batista, Jesus tem uma boa ocasião
para revelar quem ele é. Ele não o faz: João não terá uma resposta
direta. Ele se contenta em enunciar suas obras: “Ide, e anunciai a
João as coisas que ouvis e vedes: Os cegos veem, e os coxos andam;
os leprosos são limpos, e os surdos ouvem; os mortos são
ressuscitados, e aos pobres é anunciado o evangelho”.45 Milagres,
exorcismos, curas, gestos de conforto para com os excluídos, essa é a
salvação predita por Isaías,46 dada por um Deus misericordioso. João
recebe uma resposta inesperada, contrária, em todo caso, às suas
proclamações.
O mais singular nos relatos evangélicos é que não se conhece a
reação de Batista. Esse silêncio impressionante traduz o embaraço
posterior da Igreja em relação a ele. O Precursor anunciou em alto e
bom som a vinda de alguém maior que ele, e reconheceu em Jesus “o
cordeiro de Deus”, mas, no último momento, ele se perde em
incertezas. Ele permanece no limiar da porta do reino, e
provavelmente irá enfrentar a morte nessa cruel noite do espírito.47
“E bem-aventurado é aquele que não se escandalizar em mim”,,
anuncia Jesus, que se colocou de imediato no centro da salvação
oferecida e que pede a seus ouvintes para segui-lo. Jamais João
havia falado dessa maneira. Ele jamais ousara colocar sua própria
pessoa na perspectiva do Julgamento.
Jesus, sem romper com João, mostra que ele não é seu legatário
universal, encarregado de consagrar seu programa! Diante das
multidões que agora o escutam, ele faz seu próprio elogio de
maneira surpreendente: “Sim, que fostes ver? um homem ricamente
vestido? Os que trajam ricamente estão nas casas dos reis”.48 Por
detrás dessas palavras aparentemente inofensivas se esconde uma
acusação contra Herodes Antipas, “essa raposa”, esse reizinho
decadente helenizado, famoso por seus hábitos suntuosos, flutuando
entre duas esposas e duas capitais. Jesus compara o carrasco
resplandecente com o profeta que usa túnica feita com pelos de
camelo que se instalou no deserto.49 “Em verdade vos digo que,
entre os que de mulher têm nascido, não apareceu alguém maior do
que João o Batista; mas aquele que é o menor no reino dos céus é
maior do que ele.”50 Dito de outra forma, João se encontra na
transição da história de Israel, ele anunciou um mundo novo, mas
ele pertence ao mundo antigo, ao passo que o mais humilde dos
discípulos de Jesus é chamado para a graça do reino, cuja época ele
instaura. Com Jesus, uma mudança radical se afirma.

A degolação de João Batista


À imagem de seu pai, Herodes, o Grande, que havia retomado a
tradição dos reis selêucidas, Herodes Antipas tem o hábito de
comemorar sua elevação ao trono no dia do aniversário de seu
nascimento, seu dies natalis. Para o trigésimo quarto ano do seu
reinado — ele tem cinquenta anos —, organiza festividades em
Maqueronte. Cortesões, oficiais, camareiros, altos dignitários e
príncipes da Galileia foram convidados. Como nos grandes
banquetes antigos, os convivas estão recostados em divãs.
Circulando entre eles, escravos servem iguarias das mais deliciosas,
regadas com vinhos finos, enquanto, ornamentadas com joias,
cortesãs seminuas executam danças lascivas ao som de liras e de
alaúdes.
Entre as dançarinas figura uma adolescente fascinante, Salomé,
filha de Herodíades e de Herodes Filipe. Excitado com o espetáculo,
talvez bêbado, o voluptuoso Antipas está aos seus pés, perturbado,
seduzido. Seus desejos serão ordens! Salomé sai da sala, onde as
mulheres, exceto as dançarinas, não são admitidas e vai encontrar
sua mãe Herodíades. Para esta, é a ocasião sonhada. O ódio que ela
alimenta por João desde que ele se opôs publicamente a seu
casamento é inextinguível. Ela aconselha, então, sua filha a pedir a
cabeça de João. Assim, ela o faz. Herodes Antipas, desgostoso, é
obrigado a ordená-lo. Guardas descem à cela de João. A jovem
recebe o presente ensanguentado, como combinado, e o leva para
sua mãe sobre uma bandeja. Antipas autoriza que os restos de
Batista sejam enterrados por seus discípulos. Estes partem, em
seguida, para avisar Jesus.51 Indícios deixam supor que isto
aconteceu no final do verão do ano 31.52
Relatado por Mateus e Marcos, o episódio fascinou romancistas e
poetas (Gustave Flaubert, Oscar Wilde, Jules Laforgue…), inspirou
grande quantidade de obras pictóricas (de Cranach, o Antigo, a
Gustave Moreau) e até mesmo musicais (Salomé, de Richard
Strauss…). Vários edifícios religiosos reivindicam a posse da chave
da cela de João: na França, a igreja Saint-Jean-Baptiste em Saint-
Jean-d’Angély e Notre-Dame-d’Amiens, a grande Mesquita dos
Omíadas em Damasco. Seu corpo teria sido encontrado em 1976 sob
o muro norte da grande igreja de São Macário de Alexandria.
O final dessa história não é bem conhecido. A resplandecente
Salomé, tão ambiciosa como sua mãe, desposou seu tio, o tetrarca
Filipe, trinta anos mais velho que ela, filho de Herodes, o Grande, e
de Cleópatra de Jerusalém. Não tiveram filhos. Alguns anos depois
da morte de Filipe, que sobreveio no ano 34, cedendo às práticas
endogâmicas dos Herodes, ela casou-se de novo com Aristóbulo, filho
de Herodes, rei de Cálcis, e neto de Herodes, o Grande. Fato não
habitual para a mulher de um príncipe, uma moeda que data de 56-
57 a representa em busto com a cabeça coroada com um diadema.53
Seis anos depois do desaparecimento de Batista, aproveitando-se
de um conflito de interesses na fronteira referente à antiga
tetrarquia de Filipe, envolvendo principalmente o território de
Gamala, Aretas IV, finalmente pronto militarmente, ataca o exército
de seu antigo genro e lhe impõe uma severa derrota. A afronta
causada a Fasaelia é finalmente vingada! Todo o exército de Antipas
foi aniquilado. O povo, que havia mantido a lembrança de João,
conta Flávio Josefo, atribuiu essa ruína a um castigo de Deus.
Porém, Aretas havia cometido um erro grave: ele tinha agido sem o
consentimento do seu suserano longínquo, o imperador de Roma.
Herodes Antipas aproveitou-se disso para queixar-se com Tibério,
que ordenou a Vitélio, funcionário que administrava as províncias
da Síria, que castigasse o culpado. Na primavera do ano 37, as
legiões romanas marcharam para Petra, quando ficaram sabendo da
morte de Augusto. As tropas detiveram-se imediatamente…
10

De Jerusalém ao ministério pós-Galileia

O milagre de Betesda
“Depois disso, houve uma festa judaica…”, começa João Evangelista,
no início do seu capítulo V. Muito provavelmente, tratava-se de
Rosh Hashana, o novo ano judaico, que tem lugar entre os dias 1 e 2
de Tishri (início do outono do ano 31). Para essa ocasião, Jesus
retorna a Jerusalém depois de longos meses de ausência: Ele deixou
a cidade no final da Páscoa do ano 30 e não voltou para Jerusalém
na festa do ano seguinte.
João relata longamente, em seguida, a cura de um paralítico. Se
ele pode não ter sido uma testemunha direta do fato, o cuidado com
que narra o ambiente e os detalhes mostra que estava bem
informado e assistiu às controvérsias que se seguiram. O
acontecimento se passou na piscina de Betesda,1 ainda chamada
piscina Probática, local que era objeto de grande devoção popular,
suspeita ao olhar da fé judaica, mas famosa por suas curas
milagrosas.2 João relata que havia cinco pórticos. Situada a nordeste
do recinto do Templo, perto da Porta das Ovelhas, no lugar onde se
reuniam os rebanhos de ovelhas destinadas aos sacrifícios, ela data
do século III antes da nossa era e era alimentada pela água da
chuva. As escavações realizadas a partir de 1871 na propriedade dos
Padres Brancos (missionários da África), além do adro da igreja
Santa Ana de Jerusalém, permitiram identificar os restos desse
conjunto arquitetural no meio de uma sobreposição confusa de
grutas, de escadarias e de arcos: duas grandes piscinas com
profundidade de 13m, de forma trapezoidal, em parte cavadas na
rocha (elas eram chamadas de piscinas gêmeas), separadas por um
dique médio que sustenta uma bela colunata. O conjunto era cercado
por quatro outras colunatas; esse era o local descrito no século IV
por Cirilo, bispo de Jerusalém. As curas milagrosas ocorriam bem ao
lado, em pequenas piscinas alimentadas por dois canais e facilmente
acessíveis por alguns degraus. Seus vestígios foram encontrados
debaixo da igreja bizantina. No local havia um santuário pagão
dedicado a Asclépio (ou Esculápio), o deus da medicina grega,
representado envolto por serpentes, e que era igualmente
reverenciado em Epidauro, Pérgamo, Delfos, Corinto, Atenas e
Roma.3
“Porquanto um anjo descia em certo tempo ao tanque, e agitava
a água; e o primeiro que ali descia, depois do movimento da água,
sarava de qualquer enfermidade que tivesse.”4 A expressão “Anjo”
refletia, provavelmente, a preocupação dos israelitas em integrar na
sua religião uma prática estrangeira.5 Na verdade, as agitações
intermitentes ocorriam em razão das fontes que alimentavam o
fundo das piscinas.
Jesus penetra, então, nesse estranho santuário. Perto da água,
entre a multidão de infelizes que esperam o aparecimento do
fenômeno da agitação das águas, encontra-se uma pessoa estendida,
deitada no leito há trinta e oito anos. A exatidão não é dada ao
acaso: essa é a duração da travessia dos hebreus no deserto, mas
também a idade de Jesus! Este lhe pergunta se ele quer ficar
“curado” (em grego ugiès). A pergunta parece estranha, tanto a
resposta é evidente. A palavra ugiès é encontrada seis vezes no texto
e outra vez numa passagem que faz alusão ao mesmo episódio, mas
em nenhum outro lugar no quarto evangelho.6 Ora, esse termo
figura em lugar visível nas inscrições gregas nos santuários
dedicados a Asclépio.7 Tudo se passa como se Jesus, ao expressar-se
dessa maneira, sem tomar posição sobre as virtudes mágicas e
curativas da água que se agita, havia procurado colocar-se ao
alcance do enfermo e de suas crenças, da mesma maneira que ele
tinha curado o cego da Galileia com saliva.
O infeliz responde: “Senhor, não tenho ninguém que me ponha
no tanque, quando a água é agitada; pois, enquanto eu vou, desce
outro antes de mim”. Ele permanecia ali impotente. No entanto, não
formula nenhum pedido. Jesus lhe diz, então: “Levanta, toma o teu
leito e anda”.8 O homem se ergue sem dificuldade e, totalmente
espantado, pega sua cama e vai embora. O prodígio deixou
estupefatos os espectadores que estavam próximos. Esse episódio é
rico em ensinamento: não é absolutamente necessário passar pelas
águas que se agitam desse pretenso local mágico. Jesus é a fonte que
cura e que comunica aos homens a vida na sua soberana liberdade.
Ora, acontece que esse dia era um sabá. Em lugar de se informar
sobre a realidade ou as circunstâncias da cura, os fariseus encontram
o homem que milagrosamente foi curado, o abordam e, com
reprovações, observam: “Hoje é sábado, e não te é lícito carregar o
leito”. O outro responde: “O mesmo que me curou me disse: toma o
teu leito e anda!”.9 Esses legalistas rigorosos o interrogam então
sobre aquele que teve a audácia de lhe dar semelhante conselho no
dia da veneração de YaHWeH, quando é proibido transportar o
menor pacote. Mas o antigo enfermo ignora a identidade do seu
benfeitor, que nesse meio-tempo se esquivou.
Foi num dos pátios do Templo que o homem ficou curado, ele
pode finalmente, como todo judeu saudável, ter acesso à casa de
Deus, reencontrá-lo e aproximar-se dele. Jesus o exorta a não pecar
mais de medo que lhe aconteça algo pior. O pecado não é mais
grave que todas as enfermidades físicas? Com a sua saúde
restaurada, o homem deve dali em diante viver a exigência
espiritual de todos e afastar-se das superstições pagãs e idólatras.

A escalada das hostilidades


Ainda muito contente, o homem que foi curado revela ingenuamente
a seus acusadores quem é o autor de sua cura. Jesus! Ah! Então é ele,
o fanfarrão da Galileia, que, no ano passado, tinha declarado poder
erguer o santuário em três dias! Os fariseus o procuram, por sua vez,
e se aproximam dele. Ele tem consciência de ter transgredido um dos
preceitos mais fundamentais da religião de Moisés? Em lugar de
justificar-se como tinha feito anteriormente na Galileia, explicando
que circunstâncias particulares podem prevalecer sobre a proibição
sabática, responde de uma maneira que parece uma provocação;
pior ainda, uma blasfêmia: “Meu Pai trabalha até agora, e eu
trabalho também!”.10
O propósito, certamente, está em harmonia com o Rosh Hashana,
que celebra as obras de Deus na sua Criação. Mas que audácia! Ele
ousa chamar Deus de seu Pai e comparar suas obras com as do Todo-
Poderoso! Pretensão espantosa, infinitamente mais odiosa que a
ruptura do sabá! Jesus agrava seu caso com um longo e
surpreendente discurso reproduzido por João Evangelista. O discurso
se encontra no estilo de João, evidentemente, porque ele foi
reconstruído,11 mas não é insensato supor que o discípulo bem-
amado, residente em Jerusalém, o anotara pouco tempo depois e
meditara longamente sobre ele. Os temas abordados, as frases
pronunciadas, de uma inovação radical, voltam com muita
frequência sob sua pluma com paralelismos estreitos, até mesmo em
duplicações, colocadas pelo “editor” do livreto, para que possamos
acreditar que elas sejam fruto da imaginação ou o produto de
alguma construção teológica posterior.
Jesus, dessa vez, não fala por parábolas ou em linguagem
imagética, como diante das pessoas de camada mais baixa da
população, como na Galileia. Sente-se nele, quando está em
Jerusalém, uma concentração mais viva. Entretanto, diante dos
doutores da Lei apaixonados pelas Escrituras, ele não se contém.
Não hesita em definir-se como o Filho devotado do Pai, unido a Ele
em uma comunicação em que há fusão, uma dependência absoluta e
realizando suas obras. Não, ele não é um falso profeta! Como
sempre, a multiplicação dos améns (em verdade) intensifica a
solenidade de suas afirmações.
“Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer
de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo
o que este fizer, o Filho também semelhantemente o faz. Porque o
Pai ama ao Filho, e lhe mostra tudo o que faz, e maiores obras do
que estas lhe mostrará, para que vos maravilheis.”12
Jesus não reivindica nada, não se apropria de nada. A todos quer
comunicar a dinâmica do amor divino que salva os homens. Como já
disse a Nicodemos, acreditar no Filho é ter a vida eterna, é escapar
do Julgamento. O Pai, ele acrescenta, “ressuscita e vivifica os
mortos”. O Filho, a quem o Pai entrega todo julgamento, faz viver
quem ele quer. Depois de ter evocado abstratamente, a terceira
pessoa, o “Filho”, Jesus bruscamente se identifica com esse “Filho”:

Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele
que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte
para a vida. Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora e já chegou,
em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem
viverão.13 Eles sairão dos túmulos: “os que tiverem feito o bem, para a
ressurreição da vida; e os que tiverem praticado o mal, para a ressurreição
do juízo”.14 Jesus põe tudo em desordem. Ele se apresenta como mestre da
“ressurreição dos mortos”.

Ele lembra a esses doutores da Lei a delegação que enviaram a


João Batista. Diante dela, o profeta do deserto falou a verdade. Ele
era “candeia que ardia e alumiava”. Infelizmente, ele está morto.
Jesus acrescenta: “Mas eu tenho maior testemunho do que o de
João.” Suas obras — curas, milagres… — atestam que ele é
certamente o enviado escatológico do Pai, esse Pai no qual eles
infelizmente não acreditam, pois eles não dão crédito algum a seu
emissário. O discurso, como ele é relatado no quarto evangelho,
termina com esse requisitório implacável:

Examinais as Escrituras, porque vós cuidais ter nelas a vida eterna, e são
elas que de mim testificam […]Não cuideis que eu vos hei de acusar para
com o Pai. Há um que vos acusa, Moisés, em quem vós esperais. Porque, se
vós crêsseis em Moisés, creríeis em mim; porque de mim escreveu ele. Mas,
se não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras?15

O Evangelista não detalha a reação de seus ouvintes. Eles devem


ter ficado atordoados, tanto a pretensão de Jesus à filiação divina
lhes parecia loucura. Como ver, além da sua pessoa humana, um
enviado do Pai? Isto é definitivamente intolerável. Por ter desejado
se fazer “o igual de Deus”,16 sacrilégio supremo, ele merece a morte.
Eles entram em acordo. Não se trata ainda de unir-se aos sumos
sacerdotes e de capturá-lo, mas isso não vai tardar. Devido à
exacerbação das tensões e do crescimento dos perigos, Jesus não
permanece em Jerusalém nem na Judeia. Ele retorna a Cafarnaum
com seus discípulos.

O sinal dos pães e dos peixes


Seis meses se passam. Multidões cada vez mais numerosas agrupam-
se ao redor de Jesus. Contrariamente aos judeus, doutores da Lei, as
pessoas acreditam em suas obras. Aproxima-se a Páscoa do ano 32.
As colinas ensolaradas da Galileia tornaram-se verdejantes durante
a primavera, como que recobertas por uma penugem aveludada,
espalhando uma multidão deslumbrante de cores: branco das flores
de laranjeiras amargas e das cerejeiras, amarelo das giestas, das
mimosas e das amoreiras, malva da árvore da Judeia, rosa dos cistos
e dos cíclames, azul dos lírios, marrom dos áruns, vermelho-fogo das
anêmonas, que o Cântico dos Cânticos compara com os lábios da
bem-amada.
A jornada tinha sido difícil. Jesus ensinou e curou os doentes. Ele
sobe uma colina que domina o lago e senta-se cercado por seus
discípulos. A grama é abundante. A natureza exala seus suaves
odores. Um grande número de homens, mulheres e crianças o
acompanha, vindos não somente da Galileia, mas da Itureia, do
Golã, da Fenícia. Eles tinham abandonado seus campos, seus ateliês,
suas oficinas ao ar livre, suas butiques, percorrido bosques e
charnecas, colinas e aldeias. Quantos são eles? Quatro mil, cinco
mil, dirão provavelmente com exagero os evangelistas, mesmo se
Mateus estivesse presente.
A fome começa a atormentar o auditório. Não é possível mandar
essas pessoas embora em jejum, há o risco de desmaiarem. Jesus
pergunta a Filipe:

Onde compraremos pão, para estes comerem? Mas dizia isto para o
experimentar; porque ele bem sabia o que havia de fazer. Filipe respondeu-
lhe: Duzentos dinheiros de pão não lhes bastarão, para que cada um deles
tome um pouco. E um dos seus discípulos, André, irmão de Simão Pedro,
disse-lhe: Está aqui um rapaz que tem cinco pães de cevada e dois
peixinhos; mas que é isto para tantos?17

Jesus faz com que as pessoas se sentem. Ele pega no alforje do


rapaz os cinco pães de cevada — pães de cevada, o alimento dos
pobres — e os dois pequenos peixes. Ele dá graças a Deus, depois os
distribui aos discípulos, estes aos convidados e, misteriosamente,
cada um recebe o tanto que quer. Quando todos estão saciados, ele
pede a seus discípulos para recolherem os restos “para que nada se
perca”. Doze cestos foram preenchidos com os restos.
Conhecemos o papel simbólico dos números na literatura judaica:
doze cestos, como os doze apóstolos; cinco pães, como os cinco
Livros da Torá, aos quais se acrescentam os dois peixes, os Profetas e
os Salmos. O número doze significa a plenitude de Israel, a quem
Jesus veio oferecer a salvação. O sinal dos pães e dos peixes tem a
mesma prefiguração do grande banquete escatológico da Ceia. Ele é,
de alguma maneira, uma réplica de Caná, onde Jesus seria, dessa
vez, o senhor da boda.
Esse prodígio perturbador mergulha os nossos contemporâneos
em abismos de perplexidade. Tão desnorteantes e de tal modo
desconcertantes para a mentalidade ocidental são esses milagres
sobre a natureza, que eles provocam entre os descrentes ou os
agnósticos, dominados pela dúvida, uma reação de rejeição mais
viva que os milagres de cura, nos quais fenômenos psicossomáticos
podem interferir. Jarros de água transformados em vinho, pães e
peixes multiplicados em profusão são considerados como desafios
impossíveis à natureza. Como acreditar nessas besteiras? Seria
preciso falar em fraude? Jesus não teria sido apenas um falsificador?
Um ilusionista?
Os céticos quiseram minimizar o acontecimento. O evento seria
uma alegoria: a de um prosaico “piquenique” ao ar livre! Os
peregrinos tinham partido com provisões em seus alforjes. Eles os
partilhavam fraternalmente com o convite de Jesus. “Não é preciso
ver nada de sobrenatural nisso”, explica, na sua Biographie de Jésus
[Biografia de Jesus], Jean-Claude Barreau, que parece estar mais bem
informado que os próprios evangelistas: “trata-se somente de uma
verdadeira partilha, as pessoas importantes e ricas teriam aceitado
dar o que lhes era supérfluo (o encontro estava previsto
secretamente há muito tempo, eles tinham tomado suas precauções)
aos aldeões pobres e aos pescadores”.18 Em suma, muito barulho por
nada. No entanto, as primeiras comunidades cristãs atribuíram tal
importância a esse milagre, que é audacioso reduzi-lo a uma troca
banal de provisões tiradas do alforje. O prodígio está reproduzido
seis vezes nos quatro evangelhos, que tiveram à sua disposição
fontes diferentes.
Apesar do caráter desconcertante, inverossímil desse fenômeno,
outras multiplicações de víveres se produziram na vida de vários
místicos, bem-aventurados ou santos, sem falar daquela operada por
Eliseu no Primeiro Testamento, cujo relato serviu para a redação dos
evangelhos.19 Isso é atestado por diversos testemunhos,
estabelecidos por ocasião de seu processo de beatificação ou
canonização. Podemos admitir que para o caso do padre Angiolo
Paoli (1642-1720), que distribuía pedaços de pão a mendigos em
quantidade maior do que aquela de que dispunha, as provas não
estão perfeitamente estabelecidas, em razão da antiguidade do
milagre. Não se pode dizer o mesmo depois da reforma exigente das
regras normativas em matéria de canonização, realizada no século
XVIII pelo papa Bento XIV. Multiplicações de farinha, de trigo e de
pão aconteceram no convento de La Puye, na região de Poitu, em
1825 e 1827, sob a égide do diretor espiritual das Filhas da Cruz,
santo André Hubert Fournet; em Ars, por volta de 1830, onde,
depois da passagem do célebre pároco Jean-Marie Vianney, a
padeira Jeanne-Marie Chanay percebeu que o celeiro, até então
vazio, estava tão cheio que ela tinha dificuldade para abrir a porta.
Pouco depois, outro milagre é constatado, o de uma multiplicação da
massa na masseira. Outros casos foram assinalados no convento do
Bom-Pastor em Bourges, em 1845 e 1846. Fenômenos análogos se
produzem em Turim pelas mãos do santo João Bosco, quando ele
distribui hóstias ou pequenos pães (só havia uma quinzena em um
cesto e, no entanto, ele deu um a todos os quatrocentos alunos de
uma instituição religiosa pobre)… Em todos esses casos, sacerdotes,
religiosos, religiosas, leigos testemunharam sob juramento por
escrito ou com a mão sobre os evangelhos. Podemos negar tudo isso?
Podemos nos referir aos trabalhos de um jesuíta inglês, médico,
Herbert Thurston, homem pouco afeito ao maravilhoso, que
permanece perplexo diante desses fenômenos, bem como aos do
doutor Pierre Lassieur e de Patrick Sbalchiero, entre outros.20 Uma
vez mais, o historiador não pode dizer que Deus operou milagres,
por meio da pessoa de Jesus de Nazaré. Ele relembrará somente —
deixando a cada um a liberdade de apreciação — uma palavra de
Jesus, relatada pelo evangelista João: “Aquele que crê em mim
também fará as obras que eu faço, e as fará maiores do que estas”.21
Os evangelhos de Mateus e de Marcos apresentam dois milagres
de pães, e os de Lucas e João relatam apenas um.22 O primeiro teria
ocorrido no local das Sete Fontes (Heptapegon), próximo a Tabgha,
sobre a margem ocidental do lago; o segundo na margem oriental,
em Tell Hadar (a colina da Glória), não longe de Betsaida. A
lembrança de um é atualmente conservada por uma igreja, a do
segundo por um bloco de pedra gravada.
Acreditar em quê? Aquilo que permite pensar que nos
encontramos em presença de uma duplicação literária tem a ver com
a própria trama dos relatos e com seu significado teológico. Nos
relatos de Mateus e de Marcos, vemos os discípulos experimentarem
a mesma surpresa por ocasião da segunda multiplicação que por
ocasião da primeira. No final da refeição em Tabgha, são recolhidos
doze cestos cheios que evocam as doze tribos de Israel, chamadas
para o festim messiânico. Em Tell Hadar, na fronteira com a região
pagã, são recolhidos sete cestos, indício das nações chamadas a
partilhar com Israel o pão da salvação. Compreendemos que, em
comparação com uma primeira refeição, que reunia unicamente
judeus e figurava na primitiva versão de Mateus, em aramaico, os
autores dos evangelhos de Mateus e de Marcos,[1] que lançam o
anúncio da Boa Nova aos outros povos, tenham desejado acrescentar
uma segunda refeição, associando os pagãos. Assim, haveria duas
versões de um único milagre, uma versão com “matiz judeu-cristão”,
a outra com “matiz helenístico-cristão”.23 Devemos, uma vez mais,
confiar em João (e em Lucas, que o segue em muitos pontos).
Onde ocorre esse único milagre? Tabgha, na margem direita do
lago, perto de Cafarnaum, de que fala no século IV a peregrina
Egéria, tem alguma chance de ser o local autêntico.

A noite tempestuosa
O entusiasmo da multidão está no auge. Por toda parte, se repete:
“Este é verdadeiramente o Profeta que deve vir ao mundo!”. É
preciso concluir: fracasso na Judeia, sucesso na Galileia? Não há
certeza. Porque se lá as pessoas não quiseram ouvi-lo, aqui elas se
enganam, como sempre, sobre o sentido da sua missão. Pelo sinal
dos pães, Jesus reproduziu o milagre do maná, proporcionado aos
hebreus durante sua travessia no deserto. Jesus é logo considerado o
novo Moisés, como o anuncia o Deuteronômio.24 Como Moisés
libertou seu povo da escravidão, o taumaturgo de Nazaré vai libertar
a nação judaica do domínio dos romanos e de seus reizinhos
vassalos! É preciso elevá-lo ao trono de Davi e coroá-lo! Alguns estão
prontos para retirar-se com ele para o deserto, como, trinta anos
antes, Judas, o Galileu, tentara fazer. Jesus considera esse
movimento popular como uma tentação satânica.25 A realização do
messianismo temporal, que parece reforçar aos olhos de seus
contemporâneos sua filiação davídica, é a mais temível das
armadilhas.
Sua situação torna-se perigosa. O palácio de Herodes Antipas em
Tiberíades fica, provavelmente, situado a menos de quinze
quilômetros do local onde as multidões estão reunidas. Os espiões do
tetrarca encontram-se por toda parte. Uma vez mais, Jesus é
obrigado a fugir para escapar de uma detenção. Aproveitando a
obscuridade nascente, ele se retira sozinho à montanha — talvez
para essa gruta natural situada na encosta, chamada gruta Heremus
(ou Magharet Ayub), como sugere a tradição26 —, enquanto os
discípulos descem em direção ao lago e se resguardam numa
embarcação. Provavelmente, os Doze receberam instrução do Mestre
para passar à outra margem, em Betsaida, colocada sob a autoridade
do complacente Filipe.27 Mas, assim que a embarcação deixou a
margem, ela é agitada pela ondulação do lago. Chegou a noite
carregada de nuvens. Logo o vento se transforma em tempestade.
Depois de ter remado de vinte e cinco a trinta estádios (entre 4,5 e
5,5 km), os discípulos veem Jesus avançando sobre as águas. Eles
ficam aterrorizados. Pensam que é um fantasma. Jesus grita: “Sou
eu, não tenham medo!”.28 Os outros estão esgotados por remar com
os ventos contrários, de modo que Jesus os alcança, segundo o relato
de Marcos. Eles se apressam em içá-lo a bordo quando a embarcação
encosta. A tempestade apaziguou-se. Os discípulos encontram-se no
auge do estupor. Eles acabam de assistir, os discípulos estão
persuadidos disso, a um novo prodígio, uma nova “epifania”, como
declara o historiador Gerd Theissen.29 O mar, os espaços aquáticos,
no pensamento judaico, são símbolos de malefício e de morte (“as
águas do gigantesco Abismo”, diz Isaías).30 Andar sobre o mar é
mostrar que ele foi vencido, que a natureza está dominada. Esse
homem de Deus comanda as ondas, os ventos e a tempestade.
Naquele momento, o corpo de Jesus parece ter escapado às leis da
gravidade. Seria preciso relacionar esse prodígio com os fenômenos
de levitação observados em vários santos ou grandes místicos?31
Mateus é o único que acrescenta uma sequência ao episódio. Vendo
Jesus caminhar sobre a água, Simão-Pedro lhe diz: “Senhor, se és tu,
manda-me ir ter contigo por cima das águas”. Jesus lhe responde:
“Vem”. Pedro desceu da barca e começou a caminhar sobre a água,
em direção a Jesus. Mas ficou com medo quando sentiu o vento, e,
começando a afundar, gritou: “Senhor, salva-me!”. Jesus estendeu a
mão, segurou Pedro e lhe disse: “Homem de pouca fé, por que
duvidaste?”32 Esse acréscimo é histórico? Simbólico?

O pão da vida
No dia seguinte, a multidão volta ao lugar onde deixou Jesus, para
constatar que o barco de Pedro, puxado para cima da areia,
desaparecera. Como era de se esperar, a notícia do milagre
espalhou-se. Uma pequena frota chega, por sua vez, à Tiberíades.
Uma parte das pessoas sobe a bordo e rema para Cafarnaum em
busca de Jesus. Acabam por encontrá-lo do “outro lado do mar”,
quer dizer, além da embocadura do Jordão, perto de Betsaida.
“Mestre, quando chegaste aqui?”, eles perguntaram, porque sabiam
que, na véspera, ele deixara os discípulos partirem sozinhos.33
Como era seu hábito, Jesus responde com um ensinamento: “Em
verdade, em verdade vos digo: vós me procurais, não porque vistes
sinais, mas porque comestes dos pães e vos fartastes. Trabalhai, não
pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna, a
qual o Filho do Homem vos dará; porque Deus, o Pai, o confirmou
com o seu selo”.34 Então eles perguntaram: “Que faremos para
realizar as obras de Deus?”. Jesus respondeu: “A obra de Deus é esta:
que creiais naquele que por ele foi enviado”. Eles perguntaram:

Que sinal fazes para que o vejamos e creiamos em ti? Quais são os teus
feitos? Nossos pais comeram o maná no deserto, como está escrito: Deu-lhes
a comer pão do céu. Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo:
não foi Moisés quem vos deu o pão do céu; o verdadeiro pão do céu é meu
Pai quem vos dá. Porque o pão de Deus é o que desce do céu e dá vida ao
mundo. Então, lhe disseram: Senhor, dá-nos sempre desse pão.35

Essas frases introduzem o discurso que Jesus vai fazer em seguida


na pequena sinagoga de Cafarnaum. “Eu sou o pão da vida; o que
vem a mim jamais terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede.
[…]E a vontade de quem me enviou é esta: que nenhum eu perca de
todos os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último
dia.”36
Murmúrios na assembleia. Como este Ieschoua bar Josef, do qual
se conhece a origem, o nome de seus pais, pode dizer que ele é o pão
que desceu do Céu? É insensato! O mestre faz calar o auditório e
prossegue: “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o
trouxer […]quem crê em mim tem a vida eterna.”
Portanto, o verdadeiro pão é a fé. O essencial é acreditar. Mas
isso é também um alimento: “Eu sou o pão da vida. Vossos pais
comeram o maná no deserto e morreram. Este é o pão que desce do
céu, para que todo o que dele comer não pereça. Eu sou o pão vivo
que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente; e o
pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne.”37
Surpresa, escândalo, movimento nas filas da sinagoga. Os
ouvintes ficam nauseados. Como esse homem pode dar sua carne
para comer? Espantoso Jesus que, em certos momentos, adapta o
seu discurso aos seus ouvintes e, em outros, os irrita, os provoca. E
ele insiste ainda: “Em verdade, em verdade vos digo: se não
comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue,
não tendes vida em vós mesmos”. Novamente, ele se identifica com
o Filho do homem. E mais ainda, com a carne para consumir,
introduz o sangue para beber: “Quem comer a minha carne e beber
o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia.
Pois a minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue é
verdadeira bebida. Quem comer a minha carne e beber o meu
sangue permanece em mim, e eu, nele”.38
Dessa vez é demais! Seus ouvintes, horrorizados, ficam sem ar.
Como dar sua aprovação a um convite ao canibalismo? Na Bíblia
hebraica, o sangue é, por excelência, o sinal da vida, sobre o qual o
homem não tem direito.39 Depois do sangue derramado pelo
assassino de Abel, YaHWeH não reservou o sangue dos inocentes
como prova contra os carrascos? Ele proibiu à humanidade que
escapou ao Dilúvio de comer carne “com sua alma, a saber, com seu
sangue”.40 Moisés relembra isso nas prescrições do Levítico: “E
nenhum sangue comereis em qualquer das vossas habitações, quer de
aves quer de gado. Toda a pessoa que comer algum sangue, aquela
pessoa será extirpada do seu povo”.41 Assim se explica, entre os
judeus, a interdição absoluta de consumir os restos de um animal
morto por um animal selvagem ou de morte natural. Assim se
explica ainda o abate ritual dos animais, dos quais se secciona a
artéria da traqueia e o esôfago, e o animal é esvaziado de seu
sangue.
É compreensível que a multidão desconcertada tenha ficado
muito furiosa. Mesmo os seus discípulos mais próximos ficam
chocados. “Duro é este discurso”, eles suspiram. A poção é amarga.
Ela não passa pela garganta. “Isso escandaliza-vos?” retoma Jesus.
“Que seria, pois, se vísseis subir o Filho do homem para onde
primeiro estava? O espírito é o que vivifica, a carne para nada
aproveita; as palavras que eu vos digo são espírito e vida. Mas há
alguns de vós que não creem”.42
Devemos observar que Jesus não instaura naquele momento a
eucaristia. Ele diz somente: “o pão que darei a vós…”. No seu
espírito, é a morte que permitirá a sua realização, o pão distribuído
depois do seu corpo mortificado e o vinho partilhado depois do seu
sangue vertido. Portanto, anuncia de antemão, ao mesmo tempo,
sua morte livremente consentida e a vida dada pelos seus e aos seus.
É a grande ruptura que os exegetas e os historiadores chamaram
de “crise da Galileia”.[2] Uma multidão de pessoas que tinham
seguido Jesus até então, volta definitivamente para suas casas,
desencorajada. Elas vão retomar sua existência anterior. Elas não
aceitam, não compreendem a sua mensagem. Aquilo era demais! O
vazio se faz ao redor de Jesus. E os Doze? Jesus lhes pergunta:

Quereis vós também retirar-vos? Respondeu-lhe, pois, Simão Pedro: Senhor,


para quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna. E nós temos crido
e conhecido que tu és o Cristo, o Filho do Deus vivente. Respondeu-lhe
Jesus: Não vos escolhi a vós os doze? e um de vós é um diabo.43
Na terra dos gerasenos
Os Doze não são os únicos a permanecer perto de Jesus, mas o
movimento está muito enfraquecido. Depois do seu insucesso na
Judeia, Jesus fracassou na Galileia. O mais grave é que Herodes
Antipas está alerta. O tetrarca está perplexo, assim como seus
conselheiros. Alguns se perguntam se não seria João Batista que
“ressuscitou dos mortos”;44 outros afirmam: “Elias apareceu”, outros
ainda: “Ressurgiu um dos antigos profetas!” Herodes replica, como
para persuadir-se: “Eu mandei decapitar a João; quem é, pois, este a
respeito do qual tenho ouvido tais coisas? E se esforçava por vê-
lo”.45 Herodes gostaria de encontrá-lo, vê-lo realizar um prodígio,
antes de se livrar dele. Não há uma prisão vazia em Maqueronte?
Será que ele pensa num meio mais radical para preservar a paz na
Galileia? É nesse momento que alguns fariseus vão ao encontro de
Jesus e lhe dizem: “Retira-te e vai-te daqui, porque Herodes quer
matar-te”.46 Eles são sinceros ao lhe dar esse conselho? Jesus, em
todo caso, sabe que a sua segurança está ameaçada. Sua hora ainda
não chegou. Ele precisa escapar mais uma vez.
Por essa razão, ele não retorna a Jerusalém. Ele se ausenta por
ocasião da Páscoa do ano 32, que cai em 15 de abril. Passa para
território estrangeiro. É difícil precisar as etapas desse curto
ministério depois da Galileia. Após ter chegado a Betsaida, atravessa
os picos do Golã, região tranquila com charnecas odoríferas, onde,
em meio a pequenos bosques de carvalho, de rochas e de pedras
brutas de basalto em forma de mesas gigantescas, pastam rebanhos
de bovinos. Ele alcança, então, a aldeia de pescadores de Gergesa,
do outro lado do lago, a dez quilômetros a sudeste da embocadura
do Jordão? É na terra dos gerasenos ou gergesianos (há uma
incerteza nos Textos) — na dependência de Hippos, a antiga
Susitha, uma das cidades da Decápolis, rival de Tiberíades — que
ocorre o “milagre dos porcos”.
Um homem, possuído por um “espírito impuro”, vive separado da
aldeia, no meio dos túmulos. Ninguém conseguiu discipliná-lo. Ele
foi acorrentado, mas libertou-se. Vendo Jesus aproximar-se, o
espírito que está dentro dele começa a gritar: “Que temos nós
contigo, ó Filho de Deus! Vieste aqui atormentar-nos antes do
tempo?”. Jesus exorciza o infeliz, intimando o espírito impuro a sair.
À pergunta: “Qual é o teu nome?”, a entidade demoníaca responde:
“Meu nome é Legião, porque somos muitos”. Os espíritos malignos
se agitam, recusam-se a partir, depois pedem a Jesus para enviá-los
ao grande rebanho de porcos que está na montanha, não longe dali.
“E eles, saindo, passaram para os porcos; e eis que toda a manada se
precipitou, despenhadeiro abaixo, para dentro do mar, e nas águas
pereceram.”47 Os habitantes de Gergesa ficam aterrorizados.
Enraivecidos por causa do desaparecimento de seus animais, eles
intimam o Nazareno a ir embora. O homem curado do demônio, ao
contrário, lhe pede para ficar. Mas Jesus, antes de afastar-se, o
exorta simplesmente: “Vai para tua casa, para os teus. Anuncia-lhes
tudo o que o Senhor te fez e como teve compaixão de ti.”.48
Tal exorcismo curioso[3] é relatado pelos três evangelhos
sinópticos com algumas variações. Mateus fala de dois possuídos,
mas ele certamente se engana quando situa a cura nas terras dos
gadarianos, nome de outra cidade da Decápolis, Gadara, uma
fortaleza poderosa a nove quilômetros do lago de Genesaré. A aldeia
de Gergesa, do lado leste do lago, corresponde melhor. O local
atualmente chama-se Kursi. Ali foram descobertas ruínas de um
porto da época romana, com seu quebra-mar. Uma pequena capela
no meio de uma colina, diante de uma gruta, lembra, talvez, o
encontro de Jesus com o homem possuído pelo demônio. É desse
lugar, a menos que seja do penhasco abrupto, que se salienta sobre o
lago a algumas centenas de metros mais ao sul, que os porcos teriam
se precipitado. Animais impuros em terras judaicas desde a derrota
dos primeiros habitantes da região, os cananeus, que os utilizavam
em seus sacrifícios religiosos, eles são abundantes nessa região pagã
fortemente helenizada.49
Marcos relata no seu evangelho que Jesus fez ainda um milagre
na Decápolis, a cura de um surdo-gago. Jesus o leva para um lugar
afastado. Depois, põe os dedos no ouvido do homem, cospe e, com a
sua saliva, toca a língua dele. Em seguida, erguendo os olhos para o
céu, diz: “ Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te!”. Imediatamente, os
ouvidos do homem se abriram, sua língua se soltou e ele começou a
falar corretamente. Jesus recomendou com insistência que não
contassem nada a ninguém. No entanto, quanto mais recomendava,
mais eles pregavam.50

Jesus na Fenícia
Deixando a calorosa e radiante beleza das vizinhanças, Jesus se
dirige então para o território sírio de Tiro e de Sídon? O fato é que,
em algum momento, ele e seus discípulos vão para essas regiões. É a
primeira vez que chegam ao litoral mediterrâneo. Assentada sobre
um rochedo, Tiro, a branca, cercada por temíveis defesas, parece
emergir das ondas azuis. Fundada no terceiro milênio antes da nossa
era, é uma cidade fenícia altaneira e importante, ao mesmo tempo,
um porto, centro financeiro e de cruzamento de caravanas.
Construída a 600m do litoral, ela foi ligada no século IV antes de
Cristo por uma calçada pavimentada a sua irmã do continente, e
abriga dois portos bem protegidos. Resplandecente sobre todo o
Oriente Médio, enriquecida pelo comércio de madeira para
construções de edifícios e para as construções navais, domina
economicamente o interior da região libanesa. Coníferas do monte
Hermon, cedros do Líbano, carvalhos de Basã, vinhos de Helbon, lãs
de Saar, tecidos escarlates, turquesas, rubis e corais fazem a riqueza
de suas engenhosas negociações. Seus comerciantes são tão famosos
quanto seus marinheiros experientes. É o “mercado das nações”, já
dizia Isaías. Submetida sucessivamente aos assírios, babilônios,
persas, destruída por Nabucodonosor, depois por Alexandre, o
Grande, não cessou de renascer de suas cinzas e de criar agências
comerciais no Mediterrâneo (Cítio em Chipre, Karatepe na Turquia,
Cartago na Tunísia…). Ainda que no tempo de Jesus sua época
grandiosa houvesse passado, ela permanecia próspera.
Situada a 35 quilômetros ao norte, um pouco mais modesta,
menos povoada, “Sídon, a Grande”, uma capital muito antiga da
Fenícia meridional, é um porto ativo que vive na órbita de Tiro.
Depois da queda de Alexandre, a região caiu sob o controle de
Ptolomeu, depois dos selêucidas da Antioquia, antes de ser
incorporada pelos romanos à província da Síria. Portanto, trata-se
de uma região pagã, onde o dinheiro flui como água, onde domina o
espírito do lucro, bem longe das pedras cor de ocre, dos tetos feitos
com ramos e terra compacta das aldeias da planície de Jezreel ou de
Genesaré. Nessa região, nos lembramos da terrível rainha Jezebel,
filha do rei de Tiro e de Sídon, que tinha se casado com o rei da
província do Norte, Acabe (ou Acab), antes de introduzir em Israel
os seus deuses Baal e Achera. Há outro deus também em seu templo
em Tiro, Melkart (também chamado de Héracles ou Hércules), em
cuja honra são celebrados jogos de cinco em cinco anos. Isaías havia
predito a humilhação da orgulhosa cidade, Jeremias e Ezequiel, a
sua destruição por YaHWeH. Isso não tinha impedido os judeus da
tribo vizinha de Aser de instalar-se ali e de tomar parte na
impetuosa vida fenícia.
Novamente, Jesus muda de método. Ele cessa de ensinar às
multidões, afasta as controvérsias. Vem ao encontro das
comunidades da diáspora vizinha. Tanto em Tiro como em Sídon, ele
não é desconhecido. Os judeus dessas duas cidades e do litoral
vizinho tinham acorrido a Cafarnaum para ouvi-lo e fazerem-se
curar por ele. Mas dessa vez, ele age com discrição.
Mesmo chegando a países estrangeiros, ele não se sente
investido, por esse motivo, de uma missão universal. Certamente,
não há nenhuma hostilidade para com os não judeus, contrariamente
à maioria de seus compatriotas, quer eles sejam saduceus, fariseus e
a fortiori essênios. Ele está aberto às “nações”, cheio de amor e de
compaixão pelas pessoas que não praticam a religião de Moisés. Ele
não havia dito que era preciso amar seus inimigos? Mas, ao escolher
os Doze, demonstra que optou, como prioridade, pela restauração
simbólica de Israel.51
O episódio da Sírio-Fenícia relatado por Mateus e Marcos é
significativo. Jesus não quer se revelar. Entrou discretamente numa
casa onde fizeram a gentileza de acolhê-lo. Uma mulher que ouviu
falar dele quer encontrá-lo a qualquer custo. Trata-se de uma grega,
uma sírio-fenícia, portanto, uma pagã, uma idólatra. Ela lhe suplica
para expulsar o demônio que se apoderou do espírito da sua filha e a
faz sofrer. É sua angústia que lhe dá tanta audácia. “Senhor, filho de
Davi, tenha compaixão!” Jesus não responde. Seus discípulos se
aproximam e intervêm em favor dessa mulher convincente que não
cessa de importuná-los. Basta ele consentir com seu pedido e
poderão desembaraçar-se dela! Jesus responde: “Não fui enviado
senão às ovelhas perdidas da casa de Israel.” Mas a mulher não
desiste. Ela se obstina, insiste, se prosterna diante dele: “Senhor,
socorre-me!” Jesus recusa. “Não é bom tomar o pão dos filhos e
lançá-lo aos cachorrinhos. Ela, contudo, replicou: Sim, Senhor,
porém os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos
seus donos.” Tomado de piedade, emocionado pela prece confiante
dessa mulher de Cananeia, Jesus exclama: “Ó mulher, grande é a tua
fé! Faça-se contigo como queres”. E daí em diante a filha dela ficou
curada.52
Esse relato às vezes choca os cristãos. Ele os lembra o que eles
esquecem quase sempre, que “a salvação vem dos judeus”, como
Jesus já havia dito para a samaritana. Ele lhe confirma que só veio
para as ovelhas perdidas de Israel. Essa é sua missão exclusiva. Ele
não proibiu seus discípulos de irem até os gentios? Não, ele não é um
filósofo doutrinário que rompe as barreiras das nações, as opressões
das culturas e enuncia urbi e orbi um discurso de alcance
universalista. Ele não é nem Platão nem Aristóteles. Ele já não era
mais ouvido pelos seus. Como poderia ser ouvido aqui? Ele se
recusa, na terra pagã, a renovar os sinais que mostrou na Judeia ou
na Galileia. Ele quer permanecer fiel à sua vocação.
O que surpreende, evidentemente, é a metáfora irônica dos
“cachorrinhos” para qualificar os pagãos. A palavra é dura, mesmo
que os comentadores sublinhem habitualmente que ela não tenha o
caráter desprezível de “cachorros” que os judeus aplicam aos pagãos.
O adjetivo “pequeno” atenua seu alcance. É uma palavra que quase
sempre evoca a benevolência, até mesmo a ternura; (kunarion, em
grego, quer dizer “cão recém-nascido, cachorrinho”; os cachorrinhos
também fazem parte do lar). Isto ainda é humilhante. A mulher de
Cananeia se apodera dessa palavra e responde no mesmo tom. Ela
admite humildemente que ela não tem seu lugar à mesa dos filhos da
promessa, mas se pergunta se as migalhas que caem da mesa tiram
alguma coisa dos filhos de Israel.
Jesus fica desarmado, vencido pela fé ardente, a súplica
carinhosa dessa mulher que, no entanto, não pertence à
descendência de Abraão, Isaac e Jacó. E é essa fé, como
anteriormente a fé do funcionário de Herodes Antipas, que
consegue, por assim dizer, a cura de sua filha. Ele volta atrás em sua
recusa. Os pagãos, por sua vez, terão direito à salvação. O momento
das nações virá. Essa é, em todo caso, a moral da história que os
primeiros cristãos, não judeus, conservarão.

Na Cesareia de Filipe
É possível que, depois de uma curta estada em Tiro e Sídon, Jesus e
os seus tenham ido para a região da tetrarquia de Filipe, o irmão de
Herodes Antipas. Foram eles até as nascentes do Jordão, perto do
monte Hermon, no território da tribo de Dã?53 Chegam aos
arredores da capital do príncipe descendente dos Herodes, a antiga
Panyas (cidade do deus Pã), rebatizada de Cesareia no ano 3 ou 2
antes da nossa era em homenagem a César Augusto.54 É uma cidade
altamente helenizada, na qual a comunidade judaica, majoritária,
vive em meio a cultos pagãos. Ao pé de uma falésia, onde um
templo de mármore foi edificado, fluem as fontes consagradas a Pã,
o deus grego dos pastores.
No decorrer de uma parada, Jesus interroga seus discípulos sobre
o que as pessoas pensam dele: “No dizer das pessoas, quem é o Filho
do Homem?”. Eles confessam que as respostas não são unânimes:
“Alguns dizem que é Batista, outros que é Elias, outros ainda que é
Jeremias ou algum dos profetas”. Ninguém acha que se trata de uma
individualidade excepcional destacada da história de Israel.55 Então,
Jesus perguntou-lhes:
Quem dizeis que eu sou? Respondendo Simão Pedro, disse: Tu és o Cristo, o
Filho do Deus vivo. Então, Jesus lhe afirmou: Bem-aventurado és, Simão
Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que
está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.
Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado
nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus.56

Dessa forma, depois do que ele já tinha revelado para a


samaritana, Jesus, em país estrangeiro, levanta o véu — pelo menos
em parte — sobre o mistério da sua pessoa. Sim, ele é em verdade o
Cristo, o Messias de Deus[4]. Mas, como vimos, a noção de messias é
ambivalente. Jesus se recusa a uma interpretação nacionalista do
termo. Ele não quer vencer os inimigos de Israel, nem estabelecer
um reino temporal ou um império sobre as demais nações. Rejeita a
escatologia de Prometeu. Ele não será um novo Judas Macabeu. Não
tem a intenção de empreender uma resistência militar análoga
contra os romanos.
O jogo de palavras “Tu és Pedro (kefa em aramaico), e sobre esta
pedra…” também é compreendida em aramaico. Segundo Pierre
Grelot, Jesus situa essa futura Igreja em continuidade com o
Primeiro Testamento, no prolongamento da “instituição
preparatória da Antiga Aliança”, da qual os Doze são o símbolo.
Jesus não anuncia o nascimento de uma nova seita, mas a
comunidade de uma Israel renovada, aberta a todas as nações.57 O
mestre havia dito: ele não veio abolir, mas cumprir a Lei.
A partir desse momento, Jesus, que tinha limitado seu
ensinamento a seus discípulos, insiste sobre o sofrimento e a morte
que ele deve encontrar em Jerusalém. Desde o início de sua vida
pública, ele teve a presciência de seu destino e de seu fim. A partir
de então, parece, ele tem plena consciência de entrar no tempo da
provação. Será perseguido pelos anciões, os sumos sacerdotes e os
doutores da Lei; será morto e no terceiro dia se reerguerá.58 Simão-
Pedro, com sua generosidade impulsiva e sua espontaneidade
transbordante, se afasta com Jesus: “Senhor; isso de modo algum te
acontecerá. Mas Jesus, voltando-se, disse a Pedro: Arreda, Satanás!
Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de
Deus, e sim das dos homens”.59 Com efeito, é uma nova tentação que
assalta Jesus pela boca do apóstolo, aquela de escapar ao seu
sofrimento. Na misteriosa compreensão do seu ministério, Jesus
certamente meditou longamente sobre o capítulo LIII de Isaías, que
fala de um eleito de YaHWeH chamado a passar pelo sofrimento
para salvar seu povo:

Porque foi subindo como renovo perante ele


e como raiz de uma terra seca
[…] Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões
e moído pelas nossas iniquidades;
Ele foi oprimido e humilhado,
mas não abriu a boca;
como cordeiro foi levado ao matadouro; […]
Designaram-lhe a sepultura com os perversos,
mas com o rico esteve na sua morte, […]
posto que nunca fez injustiça,
nem dolo algum se achou em sua boca […]
levou sobre si o pecado de muitos
e pelos transgressores intercedeu.60

Como disse um exegeta alemão do século XIX, Franz Delitzsch,


essa profecia, que data do século VI antes da nossa era, “parece ter
sido escrita sobre a cruz do Gólgota (Calvário)”.61 O fato é que o
próprio Jesus se assemelha com o “Servidor sofredor”. Essa é a
primeira vez que uma ligação é estabelecida entre o Messias glorioso
esperado por Israel e esse personagem misterioso. Jesus, ao mesmo
tempo, era o Messias e o Servidor sofredor. Os discípulos de Jesus
lhe perguntaram: “Por que dizem, pois, os escribas ser necessário
que Elias venha primeiro?”. Então, Jesus respondeu: “De fato, Elias
virá e restaurará todas as coisas. Eu, porém, vos declaro que Elias já
veio, e não o reconheceram; antes, fizeram com ele tudo quanto
quiseram”. Então os discípulos compreenderam que Jesus falava de
João Batista. “Assim também o Filho do Homem há de padecer nas
mãos deles.”62 Mas, no que concerne a isso, a incompreensão
permanece.
Chegam os filhos de Zebedeu — a menos que seja Salomé, sua
mãe, se acreditarmos em Mateus — para reivindicar um lugar
privilegiado junto de Jesus, quando ele voltar na sua glória. “Não
sabeis o que pedis. Podeis vós beber o cálice que eu bebo ou receber
o batismo com que eu sou batizado? Eles responderam: “Podemos.
Tornou-lhes Jesus: Bebereis o cálice que eu bebo e recebereis o
batismo com que eu sou batizado…”63 Assim, Jesus anuncia não
somente sua morte — é o cálice que ele deve beber —, mas o
martírio dos dois irmãos, Tiago e João. E denuncia diante dos
apóstolos, que se indignam com a ambição dos filhos de Zebedeu, o
orgulho dos que exercem o domínio sobre as nações. “Quem quiser
tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser
ser o primeiro entre vós será servo de todos. Pois o próprio Filho do
Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida
em resgate por muitos.”64
11

O confronto

A Transfiguração
O que se passou alguns dias antes da Sucot no ano 32? Um
acontecimento misterioso, a Transfiguração, dito de outra forma, a
metamorfose breve e repentina do corpo de Jesus em um ser de luz.
Aos olhos dos teólogos, trata-se menos de um milagre e mais de uma
revelação divina, anunciando a glória celeste de Jesus, o Cristo. As
representações artísticas desse episódio foram numerosas,
particularmente na arte bizantina (basílica de Santo Apolinário em
Ravenna, no mosteiro de Santa Catarina). No Ocidente, conhecemos
as transfigurações de Giovanni Bellini, de Rafael, de Ticiano. O
compositor Olivier Messiaen consagrou um oratório a isso. Mas qual
é seu contexto histórico?
Como todos os anos no outono, a partir do dia 15 do mês de
Tishri,[1] celebra-se na Galileia e na Judeia, em meio às festas
populares e familiares, a Sucot, a Festa das Tendas, também
chamada Festa das Cabanas ou dos Tabernáculos. Do mesmo modo
que as grandes festas religiosas calcadas sobre o calendário agrícola,
ela era na origem a festa das colheitas e do dom divino da chuva,
depois dos seis meses habituais de seca; em seguida, era a
celebração, depois da saída do Egito, da vinda de Deus sob a tenda,
em meio a seu povo. Na época de Jesus, essa festa é uma das três
grandes celebrações religiosas, junto com a Páscoa, festa dos pães
ázimos e Pentecostes, a festa da colheita. Nessa ocasião, a lei
prescreve a todo adulto, judeu ou prosélito, de subir a Jerusalém e
de lá pemanecer, sob as tendas, durante sete dias, “para que saibam
as vossas gerações que eu fiz habitar os filhos de Israel em tendas,
quando os tirei da terra do Egito. Eu sou o SENHOR, vosso Deus”.1
YaHWeH está, portanto, no centro da solenidade da Sucot, “a mais
santa e a maior festa entre os hebreus”, segundo Flávio Josefo.2
Sobre os tetos das casas ou nos pátios são erguidas pequenas
cabanas de ramos: quatro estacas cercadas com tabiques feitos de
cana ou de caniços, de folhas de palmeiras ou de ramos de
salgueiros, com um teto que deixa, à noite, ver as estrelas e a lua. As
cabanas evocam ao mesmo tempo a vida rural na época das
vindimas, quando os vinhateiros se instalam no alto das torres para
vigiar os vinhedos, e as lembranças do Êxodo. Os homens devem
dormir nas cabanas e comer pelo menos uma refeição por dia em seu
interior. A vida precária nessas cabanas mal cobertas destaca a total
dependência dos judeus em relação a YaHWeH, único guia e
protetor.
Estamos então a alguns dias da festa, no período de penitência
que se inicia pela solenidade de Rosh Hashana, o ano novo judaico.
Apesar da “crise da Galileia”, os “irmãos de Jesus” — Tiago, José,
Simeão e Jude — não romperam com Jesus. Eles não acreditam
verdadeiramente em sua pessoa, mas, intrigados por seus poderes de
taumaturgo e seus sucessos junto das multidões, eles se puseram a
segui-lo e a juntaram-se a ele em Itureia. Aconselham Jesus a voltar
para Jerusalém para essa celebração. De que serve agir nos confins
do reino de Herodes, o Grande, nessas regiões paganizadas? Se ele é
o Messias, que o sangue de Davi fale nele, que ele se revele a todos!
Que suba para a Cidade Santa, e lá, na presença de seus discípulos e
das multidões, mostre os seus prodígios! Sua notoriedade estaria
assegurada, a deles também. “Se fazes estas coisas, manifesta-te ao
mundo!”,3 eles repetem. Seus argumentos não são desprovidos de
interesse.
Jesus considera tal apelo como uma nova tentação, a do poder
divino desviado para servir sua glória pessoal. Ele já tinha tido que
rejeitar essa tentação antes da última Páscoa, no momento em que
efetuou o sinal dos pães, quando a multidão delirante quis proclamá-
lo rei de Israel. Ele sabe que em Jerusalém só encontrará oposição e
hostilidade. As autoridades do Templo irão procurá-lo. Ameaças de
morte pesam sobre ele! “Não pode o mundo odiar-vos, mas a mim
me odeia, porque eu dou testemunho a seu respeito de que as suas
obras são más.”4 Seus discípulos podem ir sem ele! Eles são do
mundo. Ele não é. O mundo representa aqueles que recusam a
revelação divina e preferem as trevas. Jesus então permanece. Ele
espera alguma coisa? Um sinal de seu Pai?
Levando três de seus discípulos, Pedro e os dois filhos de
Zebedeu, Tiago e João, eles vão até o cume de uma “alta
montanha”, mas não o monte Tabor, o mais alto cume da Galileia,
apesar do que diz o evangelho apócrifo dos hebreus. Primeiro
porque essa imponente colina não ultrapassa 588 metros, depois
porque era povoada na época e uma fortaleza dominava seu cume e,
finalmente, porque, na época da Transfiguração, Jesus e seu grupo
se encontravam nas proximidades da Cesareia de Filipe. Tudo nos
leva a identificar, por consequência, essa montanha com o monte
Hermon, na extremidade sul da cadeia de montanhas do Antilíbano,
que culmina em 2.840 metros e domina a capital do tetrarca Filipe.
É o local lembrado por uma tradição muito antiga, bem como pelo
historiador Eusébio de Cesareia: uma “montanha santa” celebrada
na Bíblia, sempre coroada de neve, a ponto de levar o nome de
“velho xeique de barba branca”.
À imagem de Moisés subindo ao monte Sinai com Aarão, Nadabe
e Abiú, Jesus e seus companheiros sobem as encostas do monte
Hermon, introduzindo-se no meio das vinhas e das fontes de água
viva que correm entre as pedras. Chegando a um planalto, Jesus se
afasta para orar sozinho. É aí que seu aspecto repentinamente se
transforma. Seu rosto torna-se “outro” (Lucas), brilhante “como o
sol”; suas roupas são “brancas como a luz” (Mateus), de uma
“brancura resplandecente” (Lucas), “refulgentes, muito brancas,
como nenhum lavadeiro na terra as poderia alvejar” (Marcos).
Simão-Pedro, Tiago e João veem Jesus entreter-se com dois
personagens que acreditam ser Moisés e Elias, “que apareceram na
glória”, e que lhe falam do seu “êxodo” (quer dizer, da sua morte)
que acontecerá em Jerusalém. Moisés e Elias eram cada um, à sua
maneira, os precursores do Cristo. Sua morte estava envolta em
mistério. Um tinha-se apagado depois de ter descoberto a Terra
Prometida do alto do monte Nebo, o outro fora levado ao céu sobre
uma carruagem de fogo.
Simão-Pedro e seus companheiros caem de sono. Então, Pedro
toma a palavra e diz para Jesus: “Façamos três tendas: uma será
tua, outra, para Moisés, e outra, para Elias”.5 Persuadidos de que
vão permanecer ali alguns dias, antecipam a Sucot e fazem as
cabanas. Eles estão exaustos, inquietos e felizes ao mesmo tempo. De
fato, precisa Marcos, eles não sabem o que dizer. Simão-Pedro
parece perceber essa manifestação gloriosa como um sinal da vinda
dos tempos messiânicos, dos quais uma das características era “a
habitação dos justos em cabanas que representavam as choupanas
da Festa dos Tabernáculos”.6
Uma nuvem aparece e os cobre completamente, como ela tinha
recoberto Moisés. Uma voz se faz ouvir das nuvens: “Este é o meu
Filho amado, em quem me comprazo; a ele ouvi”.7 Os três discípulos
ficaram muito assustados e caíram com o rosto contra a terra. A
nuvem sagrada, a shekiná, não é quem assinala a presença divina?8
As palavras que vieram do céu não querem dizer que Jesus é
superior a Moisés e a Elias?
Em Jerusalém, nesse mesmo dia, 10 de Tishri, é a festa de Yom
Kipur, o dia das Expiações, um sábado sagrado no qual se celebra a
liturgia do perdão aos pecados.9 O sumo sacerdote, despojado das
suas vestes pomposas e coloridas, feitas de ouro, de púrpura violeta,
de púrpura vermelha, de carmesim e de linho franjado em espiral,
usa uma túnica de linho resplandecente e um turbante do mesmo
tecido, sinais de sua “santidade eterna”, e pronuncia pela única vez
durante o ano o nome de YaHWeH, em nome de todos os judeus. No
altar dos holocaustos, ele degola um bezerro por seus próprios
pecados e os de sua casa, depois um bode pelos pecados do povo, e
asperge a assembleia e o altar com o sangue das vítimas.
Finalmente, um animal designado pela sorte, o “bode emissário”,
leva para o deserto, lugar de estada dos demônios, “por causa das
impurezas dos filhos de Israel, e das suas transgressões, e de todos os
seus pecados”.10 Essa cerimônia ocorre seis dias antes da Festa das
Tendas.
Mais tarde, a Epístola aos Hebreus dirá: É com uma tenda maior
e mais perfeita e com o sangue “não por meio de sangue de bodes e
de bezerros, mas pelo seu próprio sangue”, que Cristo, “sumo
sacerdote dos bens já realizados”, entrou de uma vez por todas no
santuário e obteve “a libertação definitiva”, pondo fim aos
holocaustos, às oblações e aos sacrifícios. A Transfiguração aparece,
assim, como a prefiguração não somente do destino trágico do
Servidor sofredor, mas de sua morte expiatória. Ele se oferece a Deus
“sem mácula”, purificando a consciência dos homens de suas “obras
mortas”.11 Jesus aproxima-se dos três discípulos e lhes diz:
“Levantai-vos e não tenhais medo”. Eles se ergueram e veem apenas
Jesus. Em seguida, todos os quatro descem da montanha em silêncio.
Jesus lhes recomenda não falar com ninguém sobre o que viram, até
que o Filho do Homem “ressuscitasse dos mortos”.12
Para ater-se estritamente ao nível histórico, essa visão de estilo
apocalíptico escapa à experiência humana comum. Seria preciso
relacioná-la com fenômenos de bioluminiscência observados em
alguns místicos? Cita-se o caso de santa Teresa d’Ávila, de são
Benedito-João Labre, de são Miguel Garicoitz, de são Serafim de
Sarov. Testemunhas viram seus corpos emanarem uma energia
luminosa em períodos de êxtase. Mas isso não significaria desprezar
a singularidade de Jesus? Com certeza é fácil desmistificar o
acontecimento: três discípulos subiram uma montanha em sua
companhia. Eles o viram conversar com dois pastores, antes da
chegada de uma nuvem espessa, depois tornaram a descer a
montanha. O restante é apenas fruto de sua imaginação…
No entanto, não se pode negar que o episódio tem uma dupla
consequência histórica. A longo prazo, os apóstolos se apoiarão
nesse testemunho visual e auditivo contra os céticos. Assim, Pedro,
em sua última epístola, escreve: “E esta voz, nós a ouvimos
chegando do céu, quando estávamos na santa montanha”.13 A curto
prazo, os teólogos hesitam não em relação ao que transparece,
segundo eles, desse mistério — a exaltação da transcendência do
Cristo, a supressão momentânea de sua natureza humana diante de
sua natureza divina (“luz nascida da luz”, diz o Credo) —, mas no
que concerne à sua significação exata na vida de Jesus. Seria um
sinal dado aos três principais apóstolos para prepará-los para a
Paixão, ou uma revelação feita a Jesus para que ele aceitasse
livremente o seu destino? Permanece o fato de que ele muda de ideia
após ter resolvido não ir para Jerusalém para celebrar a Sucot e
declarado: “Meu tempo ainda não se cumpriu”.

Sucot em Jerusalém
Em Jerusalém, oito dias mais tarde, a festa está no auge. Estamos
em outubro do ano 32. Não somente a cidade, mas também as
colinas ao redor estão revestidas por construções cobertas com
folhagens decoradas com fitas coloridas, com flores ou com ramos
novos de videira. Quando se desce o monte das Oliveiras, o
espetáculo é impressionante. Os peregrinos, que vieram com mulher
e filhos, estão muito alegres. Eles compraram folhas de palmeira
cortadas no oásis de Jericó e de Ein Gedi (não havia palmeiras em
Jerusalém). Depois de tê-las enfeitado com fitas e ligado com hastes
de murta e de salgueiro do rio, eles erguem-na com uma mão,
segurando uma cidra com a outra — dessa maneira, formam as
“quatro espécies” (folha de palmeira, murta, salgueiro e cidra. É
costume sacudi-las numa alusão ao fato de que Deus está em toda
parte) —, dançam e agitam o seu aroma em direção aos quatro
pontos cardeais, em honra ao Todo-Poderoso. No último dia, o
convidado simbólico é o rei Davi, que é venerado como a figura do
Rei-Messias com o canto de grande louvor de Israel: Oshiana (que,
nos primeiros tempos, era uma súplica: “Senhor, salva-nos!”). O
templo desempenha um papel essencial no ritual. Durante os oito
dias da Sucot, os sacerdotes realizam a procissão ao redor do altar de
sacrifícios, enfeitado com ramos de salgueiro, acrescentando uma
volta suplementar a cada dia.
Pelo período que se estende da Sucot do ano 32 até a Paixão do
Cristo em abril do ano 33, o evangelho de João é capital. É a obra
de uma testemunha que assistiu às discussões e controvérsias entre
Jesus e os judeus importantes e que relata alguns fragmentos o mais
fielmente possível. As rupturas e discordâncias atestam que João não
procurou reconstruir em um texto uniforme as notas provavelmente
tomadas muito próximas do acontecimento. Os diálogos, ao mesmo
tempo, vivos e confusos, deixam adivinhar cenas tumultuosas.
As autoridades religiosas procuram Jesus para capturá-lo. Onde
ele está? Que tipo de homem é? A própria multidão está dividida.
Para alguns, é um anjo, para outros, um falso profeta. Mas cada um
fala a meia-voz com medo de ser interrogado ou de ter que prestar
contas.14
Quatro dias depois do início da festa, quando as multidões muito
alegres se comprimiam, Jesus aparece bruscamente. Ele sobe ao
Templo e lá discursa de modo que todos possam vê-lo e ouvi-lo. Não
fala mais sentado como um rabi, mas em pé. A autoridade com a
qual ele exorta e instrui o povo indigna a maior parte de seus
ouvintes, fariseus que lhe reprovam o fato de não ter nenhuma
formação, nenhuma competência, e de dirigir-se aos judeus em seu
local mais sagrado.15 O tom sobe. Jesus se defende de estar falando
em seu próprio nome ou de buscar uma glória pessoal. Não há nele
nenhuma mentira, nenhuma iniquidade. Ele interroga seus
interlocutores. Moisés não lhes doou a Lei? Ora, essa Lei, que vem de
Deus, eles não a colocam em prática! “Por que procurais matar-me?”
Jesus pergunta bruscamente. “Tens um demônio”, eles respondem,
“quem é que procura matar-te?” Jesus retoma: “Eu fiz uma única
obra e vos se espantais”. Ele faz alusão à cura do paralítico de
Betesda alguns meses antes. Se, para conformar-se com a lei de
Moisés, vocês aceitam praticar a circuncisão no dia de sábado, com
maior razão a saúde devolvida a um homem inteiro é legítima. “Não
julgueis segundo a aparência, e sim pela reta justiça.”16
Ao constatar que Jesus ensina com total liberdade, alguns ficam
perturbados e se questionam se as autoridades do Templo não
mudaram de ideia e reconheceram nele o Messias. Muitas pessoas
começam a segui-lo. O evangelista recolheu na multidão a opinião
de alguns desses convertidos: “Quando vier o Cristo, fará,
porventura, maiores sinais do que este homem tem feito?”.17 Mas
outros colocam objeções. Ele e suas origens são conhecidas. Quando
o Ungido do Senhor vier, ninguém saberá de onde ele vem! Jesus
lhes responde: “Vós não somente me conheceis, mas também sabeis
donde eu sou; e não vim porque eu, de mim mesmo, o quisesse, mas
aquele que me enviou é verdadeiro, aquele a quem vós não
conheceis”.18
Os fariseus religiosos estão escandalizados. Rapidamente, vão
denunciar o impostor à polícia do Templo. É dessa maneira que
vemos esboçar-se a coalizão entre os fariseus e os saduceus, que
conduzirá, alguns meses mais tarde, à condenação de Jesus. Os
primeiros reprovam a Jesus a pretensão de ser o enviado do Todo-
Poderoso. Estão inquietos com sua notoriedade crescente no seio das
multidões, temendo que isso seja feito em detrimento deles. Os
segundos se recordam de sua provocação de dois anos antes, quando
ele expulsou os mercadores do recinto do Templo. Eles consideram
que esse perturbador perigoso é uma ameaça para a ordem pública.
Mas como detê-lo no meio do turbilhão alegre da grande multidão de
peregrinos?
O autor do quarto evangelho observa ainda os propósitos que
Jesus lhes revela: “Ainda por um pouco de tempo estou convosco e
depois irei para junto daquele que me enviou. Haveis de procurar-
me e não me achareis; também aonde eu estou, vós não podeis ir”.19
O que ele quer dizer? Isso parece obscuro. Ele retoma de fato as
questões que ouve: “Para onde irá este que não o possamos achar?”.
Será que ele vai encontrar aqueles que estão espalhados entre os
gregos, quer dizer, os “tementes a Deus” da diáspora?20

A água e a luz
No último dia da festa, Jesus reaparece no Templo. Fica em pé —
postura de profeta — e exclama: “Se alguém tem sede, venha a mim
e beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior
fluirão rios de água viva”.21 O evangelista percebe nessa fala o
anúncio do Espírito Santo. Jesus pronuncia essa frase num contexto
bem particular: no último dia da Sucot, uma procissão vai buscar
água na piscina de Siloé, o lugar de “tirar água” ou da “salvação”,
como diziam então, ao pé da antiga colina do Sião. Dois sacerdotes,
com seu shofar (instrumento de sopro) de chifre de carneiro na mão
— esses mesmos instrumentos que, segundo a tradição, tinham
servido para pôr abaixo as muralhas de Jericó —, conduzem o
cortejo para a porta de Nicanor. No retorno, um deles sobe a rampa
do altar de sacrifícios. Erguendo aos olhos do povo e dos levitas uma
garrafa de ouro cheia de água e outra de vinho, ele as verte sobre o
altar. Nada menos que setenta e sete touros vão ser imolados, em
nome das setenta e sete nações da terra. Esse não é apenas um ritual
destinado a obter chuva para as semanas vindouras; ele tem uma
dimensão espiritual, ligada à palavra de Deus. A água, como
dissemos, sempre foi um símbolo poderoso disso.22 Ezequiel havia
anunciado que a água correria do Templo de Jerusalém como uma
torrente vivificante, fertilizando a terra de Israel.23 A tradição
judaica esperava, então, por ocasião do Dia do Messias, o
surgimento de fontes de água viva que fecundariam o deserto. E o
próprio Jesus tinha prometido para a samaritana que ele daria água
para saciar qualquer sede, fonte de vida eterna. Pronunciada em
pleno Templo, onde as multidões tinham afluído para a cerimônia
da libação, sua frase assume uma dimensão messiânica.
Seus ouvintes ficam perplexos. O Ungido do Senhor não deve,
segundo a profecia de Natã, ser originário da raça de Davi e ser de
Belém, a aldeia natal do grande rei? Citando expressamente Belém,
da qual falou o profeta Miqueias, o evangelista João certamente dá
uma piscadela para aqueles que sabem que Jesus, de fato, tinha
nascido nesse povoado da Judeia… Esse é um traço irônico de João:
aquele que está na ação ignora o que o leitor conhece.
As discussões são calorosas, mas ninguém, afinal, ousa deter
Jesus. Até mesmo os soldados da guarda do Templo estão
subjugados. Quando eles se apresentam diante dos sumos sacerdotes
e dos chefes fariseus, ouvem severas recriminações: “Por que não o
trouxestes?”. Por que desobedeceram as ordens? Os guardas
responderam: “Jamais alguém falou como este homem”.24 Os
fariseus estão furiosos.
Curioso, Jesus observou tudo, mesmo a opinião discordante do
rico e poderoso Nicodemos: “Acaso, a nossa lei julga um homem,
sem primeiro ouvi-lo e saber o que ele fez?”.25 O que ele quis dizer
com isso? Os mais intransigentes o tratam com maus modos: “Dar-
se-á o caso de que também tu és da Galileia? Examina e verás que da
Galileia não se levanta profeta”.26 Pequena observação irônica feita
em flagrante: baseando-se em fontes rabínicas, o historiador David
Flusser estabeleceu que a família de Nakdimon ben Gurjon
(Nicodemos filho de Gurjon), estabelecido em Jerusalém havia
algumas gerações, era originário da Galileia. Suas terras ficavam em
Ruma.
A Sucot termina com o fascinante rito vesperal das luzes. O povo
se dirige para o adro das Mulheres. Com jarros de óleo e mechas
feitas com velhas roupas de sacerdotes, quatro jovens sobem as
escadas e acendem os quatro candelabros de cinquenta côvados[2]
que lá se encontram. Os participantes, então, cantam e dançam
diante das luzes, com uma tocha na mão. O Dia do Messias será o
Dia da Luz. Os pátios das casas se iluminam. Os levitas parados
sobre os quinze degraus que levam do adro dos Homens ao adro das
Mulheres tocam harpa, lira, sopram em suas trombetas e tocam seus
címbalos.
Jesus se encontra lá, no meio dos peregrinos, e se expressa uma
vez mais como profeta. Por ocasião do ritual de Siloé, ele havia se
comparado com a água viva: aqui, enquanto cintilam por toda a
cidade milhares de velas, proclama em voz alta: “Eu sou a luz do
mundo; quem me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a
luz da vida”.27
Exasperados, os fariseus se posicionam dessa vez num plano
jurídico, retorquindo a Jesus que ao dar testemunho a si mesmo, sem
prova, ele se desconsidera, porque não tem testemunha. Jesus
retoma seu argumento. Mesmo quando ele testemunha sobre sua
própria ação, seu testemunho é verídico, porque ele vem do Pai.
“Também na vossa lei está escrito que o testemunho de duas pessoas
é verdadeiro. Eu testifico de mim mesmo, e o Pai, que me enviou,
também testifica de mim”.28
Mais uma vez, diante dos doutores da Lei e dos fariseus — e
unicamente diante deles —, Jesus recupera a sua independência da
lei mosaica. Naturalmente, ele não rompe com ela, mas contesta a
sua interpretação: “Onde está teu Pai?”, perguntam seus
interlocutores. E Jesus responde: “Não me conheceis a mim nem a
meu Pai; se conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai”.29
Seu Pai não é aquele em quem eles acreditam. Por meio desses
intercâmbios, percebemos que a discussão foi incisiva e o
enfrentamento severo. Jesus sofre por ser rejeitado por Israel, como
foram os profetas Isaías, Jeremias, Oseias, Amós e tantos outros.
João não poderia inventar semelhante cena. Ele a situa muito
exatamente no contexto do último dia da Sucot, no adro das
Mulheres, “perto do Tesouro”, uma precisão que mostra a que ponto
ele está familiarizado com os locais e os ritos do Templo. Seus
conhecimentos jurídicos como sacerdote do alto sacerdócio de
Jerusalém permitem que perceba o conteúdo das questões
fundamentais. “O desenvolvimento do diálogo é de tipo semítico,
por encadeamento, com a ajuda de palavras-ganchos (que
encadeiam)”, diz o padre Xavier Léon-Dufour.30 É pouco realista
afirmar que esse episódio é pura ficção, imaginado sessenta anos
depois, posteriormente à ruptura entre o cristianismo e a Sinagoga,
com a única finalidade de responder às preocupações dos cristãos do
círculo de João dos anos 90-100! João, com um pensamento
elaborado e sutil, não teria sido tão simplista nem tão ingênuo para
colocar na boca de Jesus, messias enviado a Israel, palavras como “a
vossa Lei…”, se elas não tivessem sido realmente pronunciadas.

As discussões prosseguem
A seus contraditores, Jesus repete que vai embora e que eles vão
morrer no pecado. “Para onde eu vou, não podeis ir.”31 Esses
acabam por compreender que ele fala da sua morte. Eles se
perguntam se Jesus vai se suicidar e acabar nas trevas do Inferno.
“Vós sois cá de baixo, eu sou lá de cima; vós sois deste mundo, eu
deste mundo não sou. Por isso, eu vos disse que morrereis nos vossos
pecados; porque, se não crerdes que EU SOU, morrereis nos vossos
pecados.” “Eu Sou” é uma evocação do nome divino. Certamente,
Jesus jamais pretendeu identificar-se com o Pai. Os fariseus
continuam sem compreender. “Quem és tu? […] Quando levantardes
o Filho do Homem, então, sabereis que EU SOU e que nada faço por
mim mesmo; mas falo como o Pai me ensinou.”32 Seus interlocutores
se empinam, indignados. Sofrendo com a ocupação romana, eles
protestam que são da descendência de Abrãao e que jamais foram
escravos de quem quer que seja. Como Jesus pode afirmar que eles
se tornarão livres? Ele lhes responde que é o pecado que torna
escravo, mas que o Filho liberta e torna livre. Eles se recusam a
escutar. Seu pai é Abraão. Eles não nasceram da “fornicação” e só
têm um Pai, YaHWeH! A alusão ao nascimento misterioso do
Nazareno, já transformado pelo rumor em nascimento ilegítimo, é
improvável aqui. Mais tarde, o polemista Celso, retomando esses
mexericos, dirá que Jesus é o filho bastardo de Panthère (Bar
Panthera, deformação de Bar Parthénos, o filho da Virgem). Jesus
disse: “Se Deus fosse, de fato, vosso pai, certamente, me havíeis de
amar; porque eu vim de Deus e aqui estou […]Vós sois do diabo, que
é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida
desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há
verdade”.33
Seus inimigos o acusam de ser um samaritano — uma infâmia —,
e de estar possuído por um demônio! Jesus retruca: “Eu não tenho
demônio; pelo contrário, honro a meu Pai, e vós me desonrais. Eu
não procuro a minha própria glória; há quem a busque e julgue. Em
verdade, em verdade vos digo: se alguém guardar a minha palavra,
não verá a morte, eternamente”.34 Os fariseus e os saduceus
sufocam. Agora eles têm, certeza de que Jesus está possuído pelo
demônio.

Abraão morreu, e também os profetas, e tu dizes: Se alguém guardar a


minha palavra, não provará a morte, eternamente. És maior do que Abraão,
o nosso pai, que morreu? Também os profetas morreram. Quem, pois, te
fazes ser? Abraão, vosso pai, alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e
regozijou-se. Perguntaram-lhe, pois, os judeus: Ainda não tens cinquenta
anos e viste Abraão? Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade eu vos
digo: antes que Abraão existisse, EU SOU.

Com essas palavras cheias de blasfêmia, e propriamente


insustentáveis, eles pegam pedras para lapidá-lo, mas Jesus
consegue se esconder e sair do Templo.36

O cego de nascença
Chega o sabá que se segue imediatamente à Festa das Tendas. Vendo
em seu caminho um mendigo, cego de nascença, os discípulos
interrogam Jesus: “Mestre, quem pecou: este homem ou seus pais,
para que ele nascesse cego?”37 Essa é uma questão eternamente
debatida em Israel! Na mentalidade arcaica, não há infelicidade sem
pecado anterior. O sofrimento é filho da culpabilidade. Para Jesus,
essa ligação não existe. A cegueira desse homem não tem relação
com o mal que ele ou seus pais puderam cometer. Também ele já se
recusou a julgar como culpados os infelizes que foram vítimas do
desmoronamento da torre de Siloé, como lhe haviam contado. Sem
explicar pela teologia ou pela filosofia a origem do sofrimento
inocente, Jesus se contenta em dizer que a presença desse cego vai
permitir que as obras de Deus se manifestem. Ele cospe na terra e,
com sua saliva, faz uma lama que aplica sobre os olhos do cego.
Lembramos que ele já agiu dessa forma com o cego de Betsaida. Mas
dessa vez, a saliva não opera imediatamente o milagre. “Lava-te no
tanque de Siloé”,38 ele aconselha ao mendigo. O evangelista apressa-
se em explicar que Siloé quer dizer o Enviado (a própria vocação de
Jesus). Enquanto Jesus e seus discípulos prosseguem seu caminho, o
homem obedece, esfrega os olhos e volta curado.
Os transeuntes, os vizinhos ficam abismados. Esse não era o
mendigo que ficava sempre sentado pela redondeza? Alguns
afirmam, outros negam. Ele é parecido, mas talvez não seja ele. O
homem protesta. O caso é tão extraordinário que as pessoas das
camadas mais baixas o levam até diante dos fariseus que
compreendem rapidamente que o rabi da Galileia, ao fabricar a
lama com sua saliva, transgrediu o sabá. Eles ficam divididos.
Alguns asseguram que decididamente Jesus não pode vir de Deus,
visto que ele não respeita o sabá. Ele se desqualificou mais uma vez.
O assunto é grave: o Deuteronômio condena o sedutor ou o falso
profeta. Ele merece a morte por ter pregado a apostasia para com
YahWeH.39 Outros, ao contrário, se espantam: Como um homem
pecador poderia mostrar esses sinais? Como Deus poderia acolhê-lo
favoravelmente? É um regresso ao milagroso. Eles perguntam ao
mendigo: “Que dizes tu a respeito dele, visto que te abriu os olhos?”.
Este responde sem rodeios? “Que é profeta”.40
Os fariseus se perguntam se não houve fraude. Eles convocam os
pais do cego. Esses prestam atenção nas respostas que dão, porque
ficaram sabendo que as autoridades religiosas estão decididas a
expulsar da Sinagoga, quer dizer, da comunidade judaica, qualquer
pessoa que reconhecer Jesus como messias. Eles se contentam em
dar respostas prudentes: é verdade que seu filho nasceu cego, mas
como ele passou a enxergar, eles não sabem nada sobre isso e nem
quem lhe abriu os olhos: “Perguntai a ele, idade tem; falará de si
mesmo.”41 A maioridade de um menino, entre os judeus, estava
fixada em treze anos e um dia!
Os investigadores não se declaram vencidos. Convocam uma
segunda vez o cego que foi curado: “Deus, diga a verdade!”, eles o
intimam. “Sabemos que esse homem é um pecador.” O outro replica
com prudência: “Se é pecador, não sei; uma coisa sei: eu era cego e
agora vejo”. Os inquisidores obstinam-se: “Que te fez ele? Como te
abriu os olhos?”. Extenuado, o outro toma coragem e retruca: “Já vo-
lo disse, e não atendestes; por que quereis ouvir outra vez?
Porventura, quereis vós também tornar-vos seus discípulos?”. Os
fariseus aumentam o tom: “Discípulo dele és tu; mas nós somos
discípulos de Moisés. Sabemos que Deus falou a Moisés; mas este
nem sabemos donde é”. Então, o cego curado não hesita mais em
tomar partido:

Nisto é de estranhar que vós não saibais donde ele é, e, contudo, me abriu os
olhos. Sabemos que Deus não atende a pecadores; mas, pelo contrário, se
alguém teme a Deus e pratica a sua vontade, a este atende. Desde que há
mundo, jamais se ouviu que alguém tenha aberto os olhos a um cego de
nascença. Se este homem não fosse de Deus, nada poderia ter feito.

Furiosos os fariseus o lançaram para fora gritando: “Tu és


nascido todo em pecado e nos ensinas a nós?”.42
Contaram a Jesus sobre o incidente. Ao encontrar o jovem a
quem ele devolveu a visão, ele lhe pergunta: “Crês tu no Filho do
Homem?”. O mendigo, que jamais tinha ouvido falar desse
personagem, diz: “Quem é, Senhor, para que eu nele creia?”. Jesus
lhe responde: “Já o tens visto, e é o que fala contigo”.
Imediatamente, o cego se ajoelha diante de Jesus: “Creio, Senhor.”
Jesus então declara: “Eu vim a este mundo para juízo, a fim de que
os que não veem vejam, e os que veem se tornem cegos”. Como de
hábito, uma pequena multidão reuniu-se em torno de Jesus. No meio
dela encontravam-se alguns fariseus. Eles o questionam: “Acaso,
também nós somos cegos?”. A resposta espalha-se: “Se fôsseis cegos,
não teríeis pecado algum; mas, porque agora dizeis: Nós vemos,
subsiste o vosso pecado”.43

O bom pastor
Jesus continua com uma metáfora pastoral lembrando a comparação
do Livro de Enoque, no qual as ovelhas — isto é, Israel — são cegas
até que o pastor — o Senhor — cuida delas.44 É uma tradição na
Bíblia hebraica comparar os chefes de comunidades com pastores;
assim é com Moisés, Josué, Davi.

Em verdade, em verdade vos digo: o que não entra pela porta no aprisco das
ovelhas, mas sobe por outra parte, esse é ladrão e salteador. Aquele, porém,
que entra pela porta, esse é o pastor das ovelhas. Para este o porteiro abre,
as ovelhas ouvem a sua voz, ele chama pelo nome as suas próprias ovelhas e
as conduz para fora.45

Ao perceber somente olhares desconcertados, Jesus é obrigado a


dar algumas explicações. Ele próprio é a porta pela qual as ovelhas
passam. Só ela dá acesso à vida. “Eu sou a porta. Se alguém entrar
por mim, será salvo; entrará, e sairá, e achará pastagem. O ladrão
vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham
vida e a tenham em abundância.”46
Em seguida, mantendo o tema do rebanho de YaHWeH, Jesus faz
uma nova metáfora, diretamente inspirada em Ezequiel:47

Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas. O mercenário,


que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê vir o lobo, abandona
as ovelhas e foge; então, o lobo as arrebata e dispersa […]. Eu sou o bom
pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim, assim como
o Pai me conhece a mim, e eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas
ovelhas. Ainda tenho outras ovelhas, não deste aprisco; a mim me convém
conduzi-las; elas ouvirão a minha voz; então, haverá um rebanho e um
pastor. Por isso, o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a
reassumir. Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a
dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-la. Este
mandato recebi de meu Pai.48

Os propósitos universalistas de Jesus, que anuncia sua morte, a


qual se refere à salvação não somente para as ovelhas de Israel, mas
para as de outros currais, desencadeiam novas injúrias: “Ele tem
demônio e enlouqueceu; por que o ouvis?”. Alguns não têm a mesma
opinião: “Este modo de falar não é de endemoninhado; pode,
porventura, um demônio abrir os olhos aos cegos?”.49 Mais do que
nunca, Jesus se tornou um símbolo de contradição.

Profecias e escatologia
Se existe um dado fundamental, que transparece ao longo das
páginas nos quatro evangelhos, é a presciência que Jesus teve dos
acontecimentos futuros. Foi assim que, além dos anúncios da Paixão,
ele predisse diversas vezes, durante os últimos meses de sua vida
pública, a destruição total da Cidade Santa.50
Um dia, quando seus discípulos, do alto do monte das Oliveiras,
lhe fazem observar o poderoso esplendor das construções do templo
de Herodes, Jesus respondeu: “Ele, porém, lhes disse: Não vedes tudo
isto? Em verdade vos digo que não ficará aqui pedra sobre pedra que
não seja derribada”.51 Essa destruição será acompanhada por
catástrofes. Que aqueles que se encontram na Judeia fujam para as
montanhas, quem estiver no terraço não desça a sua casa para
salvar alguma coisa, que aquele que estiver no campo não volte
para trás para pegar seu casaco. Infelizes as mulheres grávidas e as
que estiverem amamentando nesses dias. Será preciso desconfiar dos
falsos profetas que realizarão sinais e prodígios para enganar os
eleitos…52 Essas profecias anunciam as violências, os massacres e a
fome que vão se abater sobre o país dos judeus no ano 70.
No momento em que os evangelistas relatam o que Jesus falou,
isto é, no início dos anos 60, o Templo e a Cidade Santa ainda estão
em pé. Por essa razão, nenhum deles destacou que essa profecia —
tão essencial para a fé de Israel, completamente voltada para o
culto dos sacrifícios — seria cumprida, o que eles não teriam deixado
de fazer, evidentemente, se tivessem escrito depois do saque de
Tito.53 Encontramos outra prova no fato de que algumas passagens
dos evangelhos sinópticos relatam as profecias de Jesus, mas não na
ordem em que foram feitas, mesclando visões proféticas e horizontes
escatológicos. Assim, eles apresentam o cataclismo da guerra judaica
como o fim do mundo e o advento do Filho do Homem em sua
glória. Uma confusão que parece desprezar os anúncios de Jesus
relativos ao “tempo dos pagãos”, um tempo suficientemente longo
para permitir que a Boa Nova do reino seja proclamada e se espalhe
por toda a terra.54
Procedendo dessa maneira, os evangelhos sinópticos misturam os
gêneros de modo confuso. Ao lado do esclarecimento profético, mas
muito preciso, da ruína de Jerusalém, bem determinada no tempo
(“Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo
isto aconteça”),55 o anúncio apocalíptico do fim do mundo não é da
mesma natureza. Esse anúncio, com efeito, empresta muita coisa das
imagens e do vocabulário veterotestamentário para ser,
propriamente falando, uma clarividência, nem mesmo uma
longínqua projeção futurista. “O fato de falar do futuro com
palavras do passado tira desse relato qualquer relação cronológica.
[…] Torna-se claro que a palavra de Deus pronunciada outrora
ilumina o futuro no seu significado essencial. Ela não dá, entretanto,
uma descrição do futuro, mas nos mostra, somente hoje, o caminho
que é justo para agora e para amanhã.”56
Influenciado pelas concepções cosmológicas de seu tempo, Jesus
se inspira em Daniel e em Zacarias: o sol obscurecerá, a lua não dará
mais sua claridade, os astros cairão do céu e as forças que estão no
céu serão sacudidas. Entretanto, acrescenta Jesus, ninguém conhece
a data dessa catástrofe cósmica, “nem os anjos no céu, nem o Filho,
senão o Pai”.57 O importante é se manter constantemente pronto.
Jesus não cessa de multiplicar os apelos para a vigilância e a prece.
“Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à
tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã.”58
“Por isso, também vós estejais preparados, porque o Filho do
Homem virá na hora em que vós menos esperais.”59 Esse é o
significado da parábola das virgens prudentes e das virgens sem
juízo. Para ir ao encontro do esposo, as primeiras levaram uma
reserva de óleo para suas lâmpadas, enquanto as outras se deixaram
surpreender.60 Jesus disse ainda aos seus ouvintes;

Acautelai-vos por vós mesmos, para que nunca vos suceda que o vosso
coração fique sobrecarregado com as consequências da orgia, da embriaguez
e das preocupações deste mundo, e para que aquele dia não venha sobre vós
repentinamente, como um laço. Pois há de sobrevir a todos os que vivem
sobre a face de toda a terra.61

Tudo o que Jesus expressa com exatidão em relação aos


acontecimentos apocalípticos do final dos tempos — é essencial para
a imagem que quer deixar sobre o mistério de sua pessoa — é que
eles permanecerão subordinados à força de sua própria mensagem.
“Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão.”62
12

Do último inverno à última primavera

Sob o pórtico de Salomão


Por volta de 20 de dezembro do ano 32, Jesus voltou a Jerusalém
para a Festa da Dedicação, Chanuca (“Consagração”, em hebraico).
Ela comemora a purificação do Templo em 164 antes de Cristo,
depois de sua profanação, três anos antes, pelo rei sírio Antíoco IV
Epifânio. A liturgia, ornamentada com festividades populares, dura
oito dias completos (do dia 25 de Kisleva até o dia 2 de Tevet),
durante os quais são celebradas a vitória da fé judaica sobre as
trevas do culto helenístico. No primeiro dia, uma lâmpada a óleo é
acesa diante de cada casa; no dia seguinte, acrescenta-se uma
segunda e assim sucessivamente até o final das festividades. Na
obscuridade do inverno, o efeito é impressionante, e disso decorre o
nome de Festa da Luz que é dado à Chanuca.
João Evangelista, num surpreendente resumo cujo segredo ele
detém, observa sobriamente: “Era inverno. Jesus passeava no
templo, no Pórtico de Salomão”.1 Faz frio, mas é ainda nessa galeria
com altas colunas, fechada por um muro, que é possível resistir
melhor às ferroadas produzidas pelo vento. Jesus está sozinho, sem
seus discípulos. Anda em passos rápidos para aquecer-se.
Repentinamente, um grupo de adversários surge, o cerca, o impede
de escapar. São os fariseus doutores da Lei e os saduceus importantes
que têm a intenção de detê-lo e condená-lo. Eles o intimam a
responder: “Até quando nos deixarás a mente em suspenso? Se tu és
o Cristo, dize-o francamente”. Jesus não se esquiva: “Já vo-lo disse, e
não credes”. Suas palavras, seus milagres, as curas que realizou em
nome de seu Pai dão testemunho dele. “Mas vós não credes, porque
não sois das minhas ovelhas. As minhas ovelhas ouvem a minha voz;
eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais
perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão”. Ele prossegue:
“Aquilo que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai
ninguém pode arrebatar. Eu e o Pai somos um”.2
Seus inimigos não esperavam tanto! Para que continuar a escutá-
lo? Ele se faz o igual de YaHWeH. Isto é uma blasfêmia, e a pior de
todas. Ele merece a morte, sem processo, imediatamente. Alguns
deles vão procurar pedras para lapidá-lo — o Templo, inacabado, é
um canteiro de obras, com um pouco de blocos e de cascalho
espalhados por toda parte. Jesus não se revolta com isso. “Tenho-vos
mostrado muitas obras boas da parte do Pai; por qual delas me
apedrejais?”, ele lhes pergunta ironicamente. As autoridades dos
judeus responderam: “Não é por obra boa que te apedrejamos, e sim
por causa da blasfêmia, pois, sendo tu homem, te fazes Deus a ti
mesmo”.3
Jesus utiliza o argumento da Lei, da Lei deles. Ele se refere ao
Salmo 82, que chama os juízes de Israel de “deuses”, de “filhos do
Altíssimo”, expressões que os exegetas judeus estendiam aos profetas
e mesmo a todo o povo. Se a lei chama de “deuses” aqueles a quem a
palavra de Deus foi endereçada, então por que acusar de blasfêmia
“daquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo”? Acreditem
pelo menos nas obras que eu faço, lhes lança Jesus, “para que
possais saber e compreender que o Pai está em mim, e eu estou no
Pai”.
Assim, ele persiste. Pronunciadas no recinto do Templo, essas
palavras soam como uma nova provocação. As autoridades dos
judeus se aproximam dele, procuram capturá-lo, mas Jesus se solta e
escapa, perdendo-se na multidão que percorre o pórtico de Salomão.
Sua hora não chegou…4
Jesus não escolheu por acaso suas comparações. Se retomou o
tema do pastor e das ovelhas, é porque, por ocasião da Festa da
Dedicação, era costume ler, como haftará do dia (quer dizer, uma
lição tirada dos profetas), o capítulo 34 de Ezequiel, que fala do
pastor fiel e de suas ovelhas.5 Da mesma forma, quando ele fala
“daquele que o pai santificou e enviou para o mundo”, utiliza
intencionalmente a palavra “santificou”, particularmente oportuna
para essa festa da consagração do Templo. Jesus não quer anunciar
que ele é o novo Templo?

Retorno às fontes
Essa é a última vez que Jesus enfrenta livremente seus inimigos. A
ruptura está consumada. Ele sabe que não pode mais permanecer em
Jerusalém e vai para a Betânia na colina. A seus amigos Lázaro,
Marta e Maria, anuncia que parte para refugiar-se com os apóstolos
do outro lado do rio Jordão, na outra Betânia, na Pereia, no próprio
local onde ele havia recebido o batismo e recrutado seus primeiros
discípulos. Isso significa, de alguma maneira, um retorno às fontes.
A Pereia é um território cortado por vales além da Terra Santa.
Pereia, sob a autoridade de Herodes Antipas, mas afastada de seus
domínios na Galileia, oferece ao fugitivo uma segurança relativa,
fora da jurisdição do Sinédrio. A lembrança de sua passagem por lá
três anos antes ainda não se dissipou. Ele reencontra um grande
número de discípulos de Batista que o acolhem com entusiasmo.
“João não fez nenhum sinal, porém tudo quanto disse a respeito
deste era verdade.”6 Muitos começam a acreditar nele. Também
João Evangelista, Mateus e Marcos não ignoram essa missão na
Pereia e falam do seu sucesso. Acrescentam a ela, provavelmente de
maneira artificial, alguns ensinamentos de Jesus sobre o casamento,
seu encontro com o homem rico7 e curas.8

“Lázaro adormeceu…”
No início da primavera do ano 33, as amigas que moravam na outra
Betânia, próxima de Jerusalém, Marta e Maria, enviam um jovem da
aldeia para lhe anunciar a grave doença de seu irmão Lázaro.9 É um
pedido de socorro. Implicitamente, as duas irmãs esperam que o
mestre volte para lá e o cure. Jesus compreende, mas, apesar de sua
afeição por Lázaro, permanece onde está.10
Será que ele fica sabendo que seu amigo querido morreu nesse
meio-tempo? Repentinamente, dois dias mais tarde, toma outra
decisão. Os discípulos exclamam: “Mestre, ainda agora os judeus
procuravam apedrejar-te, e voltas para lá?”. Jesus lhes responde:
“Não são doze as horas do dia? Se alguém andar de dia, não tropeça,
porque vê a luz deste mundo; mas, se andar de noite, tropeça,
porque nele não há luz”.11 É preciso partir sem demora, caminhar
enquanto é dia, a fim de não cair e ferir-se, porque uma parte do
caminho é perigosa. Acrescenta-se a isso o risco de encontrar
salteadores.
“Eis o que ele disse”, escreve João. A oposição dia/luz e
noite/obscuridade remete certamente à própria pessoa de Jesus, que
convida seus discípulo reticentes a segui-lo. Em breve, ele lhes dirá:
“Ainda por um pouco a luz está convosco. Andai enquanto tendes a
luz, para que as trevas não vos apanhem…”.12
João Evangelista por certo não esteve em Pereia, mas obteve esse
testemunho dos discípulos, principalmente de Tomé, que aparece na
sequência do relato. Jesus acrescentou: “Nosso amigo Lázaro
adormeceu, mas vou para despertá-lo”. Jesus lhes explica que Lázaro
está morto. “E por vossa causa me alegro de que lá não estivesse,
para que possais crer.”13 O retorno de Lázaro à vida será para eles
um novo sinal da glória de Deus. Eles não percebem. Também,
quando Jesus lhes pede para pôr-se a caminho, eles estão
persuadidos de que esta volta para a Judeia significa sua detenção e
sua morte, e talvez a deles. Tomé, em nome de todos, exclama num
afã de generosidade incondicional: “Vamos também nós para
morrermos com ele”.
A estrada romana passava ao norte da estrada atual. Seu traçado
foi reconstituído por Robert Beauvery.14 Deixando a Transjordânia,
o pequeno grupo atravessa o rio Jordão e alcança o oásis de Jericó,
a “cidade das palmeiras”, com clima sempre suave. Depois de
passarem a impressionante fortaleza de Kypros, dedicada à mãe do
tirano Herodes, o caminho se torna escarpado. Ele serpenteia entre
as colunas desnudas, onde caminham rebanhos de cabras e de
carneiros à procura de pastagens ralas. De tempos em tempos,
aparecem algumas torres de vigia instaladas pelos romanos. As
encostas são íngremes, repletas de arbustos espinhosos. Os discípulos
do Rabi estão fatigados e transpiram, com suas pobres túnicas de lã
e sandálias cobertas de poeira. A estrada é frequentada por soldados
em trânsito, levitas que voltam do serviço no Templo, e carriolas de
mercadores, carregadas com mercadorias comestíveis destinadas a
Jerusalém. A estrada deve ainda atravessar uma zona de colinas
baixas, monótonas e ondulantes. Ao aproximar-se do monte das
Oliveiras, a rota toma uma direção oblíqua para o sul, passando por
Betfagé, para subir até Betânia na Judeia. Finalmente, chegam aos
arredores da cidade.
O relato de João prossegue com uma dinâmica espantosa,
deixando supor que seu autor, dessa vez, foi testemunha da cena, em
meio aos judeus de Jerusalém que vieram compartilhar os
sofrimentos dos parentes do defunto. Apenas três quilômetros
separam o povoado da Cidade Santa. Marta e Maria, oprimidas de
tristeza, estão sentadas em sua casa, cercadas por visitantes, homens
e mulheres, que procuram menos consolá-las, como se faria hoje em
dia, do que as acompanhar em sua dor. O luto dura sete dias, e já faz
quatro dias que toda a aldeia seguiu em procissão a padiola do
defunto entre os gritos das carpideiras, as lamentações e as litanias,
como é costume no Oriente.
Algumas pessoas perceberam de longe a aproximação do
pequeno grupo de viajantes. Quando anunciam que Jesus está
chegando, Marta se levanta e se precipita ao seu encontro, com o
coração cheio de esperança. “Se estivesses aqui, meu irmão não teria
morrido. Mas também sei que, mesmo agora, tudo quanto pedires a
Deus, Deus te concederá.” Jesus lhe diz: “Seu irmão há de
ressuscitar”. Marta retoma: “Eu sei […] que ele há de ressurgir na
ressurreição, no último dia”.15 Ela afirma sua fé, sua convicção
profunda na ressurreição dos mortos no final dos tempos, como as
famílias dos fariseus da época.
Jesus responde com a revelação que está no âmago do seu
anúncio: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda
que morra, viverá. E todo aquele que vive, e crê em mim, nunca
morrerá”.16 Ao crente que permanece fiel, portanto, é prometida,
para além da morte temporal, a vida imortal em Deus. Essa vida —
nisso reside a novidade radical de sua mensagem — é dada por sua
própria pessoa. “Crês isto?”, ele pergunta para Marta e ela responde
— “Sim, Senhor […] eu tenho crido que tu és o Cristo, o Filho de
Deus que devia vir ao mundo”. Essa confissão a transforma. “Em três
réplicas”, escreve o padre Xavier Léon-Dufour, “Marta passou da
convicção de uma ligação privilegiada de Jesus com Deus ao
reconhecimento do Enviado escatológico, para quem o Reino de
Deus aproximou-se e, portanto, ela passou da fé judaica para uma fé
propriamente cristã.”17

Ressurreição dos mortos


Marta volta à sua casa. Ela murmura para sua irmã: “O mestre
chegou e te chama”. Rapidamente, Maria se levanta e vai ao
encontro de Jesus, que ainda não entrou na aldeia. Ele permanece
perto do cume que domina Betânia, cercado por uma multidão de
aldeões. Na casa, os visitantes, que nada ouviram, ficam persuadidos
de que Maria voltou à sepultura para lá soluçar e jogar poeira sobre
sua cabeça, torcendo suas roupas de desespero. Eles a seguem. Mas
ela toma a direção oposta, vai para oeste. Ela ajoelha-se aos pés do
Mestre: “Senhor”, ela repete como sua irmã, “se estiveras aqui, meu
irmão não teria morrido”. Ela chora, como todos aqueles que a
acompanham. “Jesus agitou-se no espirito e comovou-se”.18
Jesus pergunta: “Onde o sepultastes?”. Eles disseram: “Vem e
vê”. A tumba familiar fica a uma centena de metros da aldeia. Jesus
também chora. Algumas pessoas, estupefatas, observam: “Vede
quanto o amava!” Outros, porém, comentam: “Não podia ele, que
abriu os olhos ao cego, fazer que este não morresse?”. Jesus avança
para o local da sepultura. A tumba, construída de maneira clássica, é
composta de uma antecâmara e de uma câmara funerária, ambas
cavadas num calcário que se fragmenta facilmente. Eles penetram
na antecâmara. O acesso à câmara está fechado com uma pedra
pesada. Era costume, com efeito, deixar as sepulturas abertas
durante três dias, para permitir que a família lacrimosa se recolhesse
para orar. Não se podia esperar mais tempo, porque a putrefação se
iniciava rapidamente. Por isso, ao final do terceiro dia, a câmara era
fechada. Um ano mais tarde, os ossos desidratados eram recolhidos e
colocados em pequenos ossuários retangulares de pedra, ossuários
ornamentados com decorações geométricas.[1] Foi encontrado um
grande número deles, particularmente aquele de Alexandre, filho de
Simão de Cirene.[2] Jesus pede que a pedra seja retirada. Marta
exclama: “Senhor, já cheira mal. Porque é já de quatro dias.”19 Jesus
responde: “Não te disse eu que, se creres, verás a glória de Deus?”.
Voluntários levantam a pedra que isolava, no nível inferior, o
corredor que levava à sepultura. Lázaro tinha sido enterrado
segundo os ritos funerários de hábito. Seu corpo tinha sido
cuidadosamente lavado, sua barba e cabelos ras-pados, suas unhas
cortadas. Foi vestido com a rica túnica branca que usava nos dias de
grandes cerimônias. Suas mãos e seus pés estavam atados juntos com
pequenas faixas, e lhe enfiaram uma espécie de boina que mantinha
a mandíbula fechada. Seu corpo não foi enrolado em uma mortalha.
Jesus ergue os olhos ao Céu: “Pai, graças te dou porque me ouviste.
Aliás, eu sabia que sempre me ouves, mas assim falei por causa da
multidão presente, para que creiam que tu me enviaste”. Terminada
essa breve invocação, ele grita com voz forte: “Lázaro, vem para
fora!”. Da abertura sombria e estreita as pessoas veem aparecer uma
espécie de múmia, com os pés e as mãos ainda atados, o rosto
coberto com um sudário. Jesus disse aos presentes: “Desatai-o e
deixai-o ir.”20
O relato, naturalmente, “toca no âmago da fé, pois mostra a
vitória sobre a morte, o último inimigo”.21 O retorno de Lázaro à
vida anuncia a ressurreição de Jesus, mas, para os cristãos, a
ressurreição é de outra natureza, visto que Lázaro, morto e
reanimado, será chamado novamente a morrer.
A arqueologia vem completar de maneira útil os dados do quarto
evangelho. A tradição que situa a sepultura de Lázaro é muito
antiga. Anterior à época de Constantino, quando as localizações
lendárias eram mais facilmente aceitas, a localização parece ser
autêntica. No início do século IV, Eusébio de Cesareia escrevia que
era possível ver a sepultura do irmão de Marta e de Maria na aldeia
de Lazarion (“a morada de Lázaro”, dito de outra forma, em Betânia,
cujo nome árabe atual, El-Azariyeh, lembra o milagre de Jesus). No
ano 390, são Jerônimo acrescentava que uma igreja havia sido
construída no local. Ela apresentava diversas naves divididas por
colunas e um pavimento com finos mosaicos. Aproximadamente na
mesma época, a peregrina Egéria descrevia no seu Itinerário a
liturgia dramática do anúncio pascal nesse local: “Uma multidão tão
numerosa se reúne nesse local que não somente Lazarion, mas os
campos circundantes se enchem de pessoas. Elas cantam hinos e
antífonas adaptadas ao dia e ao local e da mesma maneira fazem
leituras correspondentes”. No século V, a igreja, destruída por um
tremor de terra, foi reconstruída. Depois, os cruzados edificaram
outra construção religiosa, que foi em seguida ocupada pelos
muçulmanos, os quais também acreditam na ressurreição de Lázaro.
Depois disso, erigiu-se uma igreja franciscana e uma grega
ortodoxa.22
A antecâmara da tumba, que mede 3,35m de comprimento por
3,20m de largura, tem as dimensões prescritas pela Mishná. O
acesso, atualmente, se faz pelo norte, por uma escada de oitenta
degraus desiguais. Essa entrada foi cavada pelos franciscanos no
século XVI, quando as relações entre muçulmanos e cristãos se
deterioraram. A entrada primitiva ficava no mesmo nível que a
tumba e situava-se no lado leste do muro. Ainda podem ser vistos
seus traços. Do lado nordeste, após uma descida de dois degraus,
encontra-se um corredor estreito talhado na rocha. Antigamente, o
acesso a esse corredor estava fechado por uma pedra colocada
verticalmente diante dos dois degraus. Se seguirmos o relato de
João, foi essa pedra que Jesus mandou retirar, depois de ter
penetrado na antecâmara com Marta, Maria e algumas outras
pessoas. Essa é uma maneira habitual de fechar as entradas das
sepulturas, comparável àquela que existe na tumba de Helena de
Adiabene, em Jerusalém. A câmara mortuária propriamente dita, na
qual Jesus não penetrou, tem 2,45m de comprimento por 2,30m de
largura. Algumas fissuras aparecem na rocha. Nichos meio
arredondados com 84cm de altura eram cavados de três lados. Os
mortos jaziam nesses nichos, colocados sobre uma banqueta cavada
a 75cm do solo, com comprimento de 1,4m (os corpos ficavam em
parte dobrados) e profundidade de 74cm.23

A coalizão é formada
O prodígio do retorno à vida de Lázaro vai conduzir diretamente à
detenção de Jesus. João relata que um grande número de pessoas da
Judeia viu o que ele acabara de realizar e começaram a acreditar.
Novamente, o profeta da Galileia provoca o entusiasmo das
multidões. Os relatos de seu último milagre se espalham em
Jerusalém. Um movimento messiânico se esboça em seu favor,
enquanto outras testemunhas ficam inquietas e vão falar de sua
perturbação com os fariseus, doutores da Lei. Jesus é um falso rabi,
um blasfemador de um tipo particularmente perigoso, que convém
deter e eliminar o mais rapidamente possível. O Livro dos Números
diz: “Mas a pessoa que fizer alguma coisa atrevidamente, quer seja
dos naturais quer dos estrangeiros, injuria ao SENHOR; tal pessoa
será eliminada do meio do seu povo”.24 Os chefes fariseus estão
convencidos disso há meses. Compreenderam que sua influência
sobre a população padecia com essa situação.
A dificuldade é que eles não têm nenhum poder coercitivo. A
única autoridade capaz de intervir depende do Templo: é a sua
polícia, que está nas mãos do alto clero. Não poderiam deter Jesus
por perturbação à ordem pública? Decidem procurar seus adversários
religiosos, os sumos sacerdotes Anás e Caifás, que se apoiam sobre o
partido saduceu.
Os sumos sacerdotes, como sabemos, exercem as funções civis e
religiosas mais importantes, as mais sagradas do país. Apesar dos
numerosos ataques ao seu poder, feitos por Herodes, o Grande, e
depois pelos romanos, o seu prestígio permanece considerável. As
pessoas só se dirigem a eles com submissão e devoção. Eles
representam o povo diante das autoridades de ocupação. Estas, para
mantê-los à sua mercê, guardam os ornamentos pontificiais dentro
da Fortaleza Antônia e só os entregam por ocasião das grandes
festas.
Anás, filho de Seth, antigo sumo sacerdote, é o patriarca, o
“padrinho”, poder-se-ia dizer, tanto essa linhagem de grandes
aristocratas é corrompida e detestada. É esse homem muito rico e
todo-poderoso quem domina, enquanto seu genro José, chamado
Caifás, sumo sacerdote em exercício, é encarregado das relações com
o prefeito romano.25
Anás tinha sido nomeado kôhen gadôl (sumo sacerdote) por
Quirino, legado da Síria, no ano 6 da nossa era. Permaneceu em
função até o ano 15, quando foi deposto do cargo pelo novo
governador da Judeia, Valério Grato. Mas, segundo o direito
judaico, mesmo destituído, um sumo sacerdote mantém seu título e
sua influência.26 Depois de um curto intervalo, durante o qual um
membro de uma família rival ocupa o sumo sacerdócio (Ismael, filho
de Phabi), os Anás retomam a função suprema. A Anás sucedeu seu
filho Eleazar (16-17), que permaneceu apenas durante alguns meses.
Em seguida, depois de um intervalo intermediário assegurado por
Simão, filho de Camith, Caifás torna-se o sacrificador supremo.
Caifás, por sua habilidade política, sua flexibilidade, sua indolência,
seu senso de oportunismo, chega a manter-se no cargo até o ano 37.
É o pontificado mais longo do século I. Quando Pôncio Pilatos chega
a Cesareia Marítima, no ano 26, ele o mantém no seu posto. Muito
rapidamente, uma cumplicidade se estabelece entre os dois. O
prefeito romano fechava os olhos para suas pilhagens e seus
compromissos duvidosos, desde que ele permanecesse fiel. Tal pacto
indecente será rompido por Vitélio, legado da Síria, destituindo o
prefeito romano e seu compadre no ano 37, quatro anos após a
execução de Jesus.
Diante de Anás e Caifás, os fariseus expõem suas queixas: Jesus
rompeu o sabá, praticou magia, expulsando os demônios pelo poder
de Satanás. Esse pretenso rabi da Galileia — região de onde
comprovadamente não sai nenhum profeta —, esse falso doutor que
não esteve na escola de nenhum mestre, esse impostor cheio de
arrogância que se toma por Messias é, por acréscimo, um vil
blasfemador. Ao decretar novas leis morais, ele se coloca como
mestre superior a Moisés. Pior ainda, pretende ser o Filho do
Altíssimo, que ele chama “Abba” (Pai). Ao perdoar os pecados, por
assim dizer, tentou tornar-se igual ao Altíssimo.
Anás e Caifás, evidentemente, tinham ouvido falar do
ensinamento subversivo desse nazareno, suspeito, como todos os
nazarenos, de desejar restaurar a realeza e expulsar os romanos da
Palestina. Eles podem temer uma revolta popular capaz de colocar
em questão o modus vivendi que lhes permitiu estabelecer sua
autoridade. Ao atacar a economia do santuário, esse camponês da
Galileia opôs-se aos interesses de sua casta. Agora, com a
ressurreição de Lázaro, percebem que demoraram demasiado para
reagir.
Eles decidem, então, reunir o Sinédrio, o Grande Conselho de
Israel. Alguns dos membros dessa época são conhecidos: Anás, o
sumo sacerdote honorário, Jônatas, seu filho preferido, prefeito ou
sagan do Templo e chefe dos sacerdotes, Alexandre, um outro de seus
filhos, Nicodemos, o sábio fariseu, José de Arimateia, uma pessoa
rica e importante que irá intervir no momento do sepultamento de
Jesus, e o mestre fariseu Gamaliel, o Ancião, doutor da Lei, que fará
que, alguns meses depois da morte de Jesus, dois de seus discípulos,
Pedro e João, filhos de Zebedeu, sejam soltos. Caifás preside. João
Evangelista também é membro dessa assembleia? É possível, a
menos que o membro seja seu pai, se ele ainda está vivo, porque os
antigos e os chefes das grandes famílias sacerdotais se assentam no
Conselho por direito. Em todo caso, se ele não estava presente
fisicamente, soube precisamente o que foi dito no Sinédrio.
O Sinédrio trata das questões correntes, que têm uma repercussão
na vida religiosa e administrativa da Judeia. Para melhor controlá-
lo, os romanos retiraram do Conselho o direito de pronunciar uma
sentença de morte, com duas exceções. A primeira diz respeito a um
não judeu, inclusive um romano, que penetra no Templo além do
pátio dos Gentios. A lapidação pode ser realizada imediatamente. O
segundo refere-se ao adultério. Nesse caso, também, por respeitar a
lei de Moisés, os ocupantes não se intrometem.27 Com exceção desses
dois casos, é proibido na Judeia condenar legalmente alguém à
morte.
Alguns textos judaicos mostram que a decisão de excluir a
sentença capital das penas decretadas no Sinédrio foi tomada na
época de Pilatos, por volta do ano 30. “Quarenta anos antes da
destruição do segundo Templo, a pena de morte cessou de existir em
Israel, porque o Sinédrio foi exilado e não ficava mais ao pé do
santuário”, diz um comentário da Escritura, os Mekhiltas d’R Ishmaël e
d’R Shim é on ben Yhai. Há o mesmo propósito no tratado Sinédrio do
Talmude de Jerusalém e no Talmude da Babilônia. Esses textos
posteriores da literatura rabínica sugerem que a perda de poder do
Sinédrio teria sido consequência do afastamento da sua sala de
sessão habitual,28 o lishkat ha-gazit, ou Sala da Pedra Cortada, situada
no recinto dos adros exteriores do Templo, e de sua instalação nos
Bazares (Hanuf), que pertenciam à família do sumo sacerdote
Anás.29 É mais lógico pensar que esse direito lhes foi retirado pela
autoridade do dominante.30 O resultado é que, depois do ano 30, os
juízes judeus conservam o poder de instaurar um processo, mas não
têm mais a possibilidade de mandar executar uma sentença de
morte, nem mesmo de impor ao governador sua execução, o que se
chama o direito d’exequatur. O governador, com efeito, não se sente
em absoluto cerceado pela decisão deles. Seu imperium é sem limites.
Estabelecida tal questão de direito, podemos voltar à sessão do
Sinédrio.

“É melhor para vocês que um só homem morra…”


Caifás tomou o cuidado de convocar a seu palácio, situado ao sul de
Jerusalém, a pouco mais de duzentos metros da piscina de Siloé (na
zona atual de São Pedro, em Gallicantu),31 todos os membros do
Sinédrio, inclusive os que lhe pareciam hesitantes. Ele mantinha sob
domínio a assembleia que presidia e era amplamente dominada
pelos saduceus. Tudo dá a impressão de ser aparentemente legal,
mesmo que a sessão, que deveria realizar-se nos recintos do Sinédrio,
seja mais informal.
O debate é aberto. Os membros do Sinédrio estão embaraçados,
particularmente os saduceus: “Que estamos fazendo, uma vez que
este homem opera muitos sinais? Se o deixarmos assim, todos crerão
nele; depois, virão os romanos e tomarão não só o nosso lugar, mas
a própria nação”.32 O argumento é principalmente político. Ver o
Templo sagrado ser violado, perder o domínio da situação e não
poder mais manter o povo sob controle é inquietante para eles.
Essas pessoas muito importantes estão acomodadas com a ocupação
romana, na medida em que ela lhes deixa uma boa margem de
influência. No sistema de colaboração que existe na Judeia no ano
33, os papéis estão bem repartidos. As autoridades religiosas,
nomeadas e apoiadas pelos romanos, têm como missão assegurar a
ordem, principalmente no interior do Templo. Com certeza, os
ocupantes desfrutam de meios militares, com as legiões acantonadas
na Síria podendo aniquilar o país em alguns dias, mas não
conseguem gerir a vida corrente. E é precisamente por isso que eles
mantêm a administração político-religiosa das grandes famílias
aristocráticas. Existe ali, portanto, um jogo político bem conhecido:
em troca de seus cargos, dos quais as famílias tiram proveitos
materiais e morais, essas elites têm a missão de impedir a revolta do
povo.
Será preciso que a guarda do Templo capture Jesus. É difícil,
porque o homem é popular. Ele atrai as multidões. Jesus está
cercado por numerosos discípulos que poderiam interpor-se para
defendê-lo. A solução seria prendê-lo com seus partidários mais
próximos, quando eles menos esperassem por isso, e fazê-los
comparecer ao tribunal. Mas, depois de pronunciada a sentença de
morte, como executá-la? Seria preciso humilhar-se para pedir a
execução aos romanos. Todos acham que é urgente deter Jesus, de
preferência antes da festa, para que não se produza nenhum
movimento da multidão.33
Nesse momento, o sumo sacerdote Caifás, que é um político
experiente, se levanta, e, olhando a assembleia com desprezo, diz:
“Vós nada sabeis, nem considerais que vos convém que morra um só
homem pelo povo e que não venha a perecer toda a nação”.34 É
inútil perseguir seus discípulos, é preciso capturar Jesus sozinho, de
surpresa, e não submetê-lo a julgamento. Com um processo segundo
as regras, ele poderia defender-se, apoiar-se em seus partidários e
provocar perturbações na cidade. É melhor entregá-lo às autoridades
de ocupação e apresentá-lo como um impostor perigoso que cobiça a
realeza. Que prova melhor de zelo poderíamos oferecer? Como
Pilatos, que é um governador minucioso, preocupado com a ordem e
a segurança, poderia tolerar um agitador aspirante a se proclamar
rei num território que está sob sua administração? Ele seria
crucificado, pois esse é o único modo de execução que os romanos
reservam aos conspiradores, o que teria a vantagem de abater Jesus
com um estigma irreparável e, consequentemente, teria a vantagem
de desacreditar para sempre os seus partidários.35 Uma última
vantagem: ao entregá-lo aos romanos, mostrar-se-ia ao povo que as
autoridades de ocupação não têm misericórdia por esse tipo de
dissidência, o que, ao mesmo tempo, fortaleceria a sua própria
autoridade. Dessa maneira, seria possível preservar o que resta de
liberdade em Israel. Essa era uma proposta cínica, mas
inegavelmente astuciosa.
É melhor que “morra um só homem pelo povo…” João
Evangelista, sempre sensível ao duplo sentido das palavras, viu
nessa fala de Caifás um sinal providencial, que escapava àquele que
o tinha enunciado. Com efeito, na antiga Israel, considerava-se que
o sumo sacerdote em exercício podia profetizar. “Ora, ele não disse
isto de si mesmo; mas, sendo sumo sacerdote naquele ano,
profetizou que Jesus estava para morrer pela nação e não somente
pela nação, mas também para reunir em um só corpo os filhos de
Deus, que andam dispersos.”36 Pela sua morte, Jesus assegurava a
salvação de Israel e do mundo.
Os membros do Sinédrio, em sua maioria, juntam-se a Caifás e
ordenam aos sumos sacerdotes para se ocuparem com a prisão de
Jesus. Eles substituem aos motivos religiosos que arriscavam, quando
submetidos ao prefeito romano, fazer que ele não tomasse nenhuma
atitude,37 um motivo político, sem embaraçar-se nem com as regras
nem com as formas. Não houve julgamento, e não haverá nenhum.
Tudo isso é obra de alguns dirigentes que conceberam a
conspiração e souberam tomar rapidamente a decisão, apesar da
oposição de alguns deles, como José de Arimateia e Nicodemos,
discípulos secretos de Jesus, e talvez também da oposição do mestre
fariseu Gamaliel, o Ancião. A sessão do Sinédrio ocorreu cerca de
oito dias antes da Páscoa. Nenhum arauto, naturalmente, anunciou
aos quatro ventos a sentença, como pretenderá mais tarde o
Talmude de Jerusalém. Deviam contar com a surpresa, agir com
discrição, sem causar tumulto.38
Jesus, então, é sentenciado à morte, sem nem ser chamado para
explicar sua conduta. Não tarda a ficar sabendo da injusta sentença
que pesa sobre ele. Por quem? Por João Evangelista, Nicodemos ou
José de Arimateia? Não se sabe. Ele se retira, então, com seus
discípulos para Efraim (atualmente et-Taiybe), um povoado situado
num vale perdido, afastado de todas as estradas frequentadas, a
cerca de vinte quilômetros a nordeste de Jerusalém. O local contém
nascentes, grutas pouco profundas e plantações de trigo que
bordejam o deserto. O horizonte é obstruído pelo monte Baal-Açor, o
lugar mais alto da Judeia-Samaria (1.016m).

A unção em Betânia
A Páscoa do ano 33 se aproxima. Grande número de judeus sobe
para Jerusalém a fim de purificar-se antes do início da festa.
Procuram por Jesus. Ele é objeto de todas as conversas. “O que você
acha? Ele não virá à festa?” Os sumos sacerdotes e seus aliados
deram o aviso que se repete nas filas: se alguém vir Jesus, eles
devem ser imediatamente avisados.
Seis dias antes da Páscoa, na noite do sabá,[3] Jesus volta
secretamente de Efraim e chega a Betânia na Judeia. Para festejá-lo,
seus amigos o convidam para uma refeição. Lázaro, que está
contente em revê-lo, senta-se à mesa com os demais convidados.
Marta serve. Entra sua irmã Maria, segurando um frasco com meio
litro de um perfume muito caro. Ela quebra o gargalo, unta os pés
de Jesus, depois os seca com sua grande cabeleira desfeita. A casa
toda fica repleta do aroma do maravilhoso perfume de nardo.39
Esse relato difere de um evangelho a outro, ao mesmo tempo em
que eles se complementam em alguns pontos. Mateus e Marcos nos
dão o nome do dono da casa: Simão, o leproso (ou mais
provavelmente “o religioso”, de acordo com o exegeta Pinchas
Lapide).40 É provavelmente uma pessoa importante do povoado (ele
não é muito rico, porque não tem servidor). Esses dois evangelistas
provavelmente se enganam quando dizem que “uma mulher” — cujo
nome eles não dizem (porque não conhecem Maria de Betânia) —
verte um frasco de alabastro contendo perfume “sobre a cabeça” de
Jesus. É preciso ter mais confiança no autor do quarto evangelho,
que frequentou a casa de Marta, Maria e Lázaro: foi sobre os pés de
Jesus que Maria verteu o perfume, o que é mais insólito que uma
unção sobre a cabeça, que se faz antes de uma refeição para honrar
um convidado importante.
O caso de Lucas é o mais singular. Dizem que seu evangelho
tinha incorporado elementos da catequese de João. A imprecisão do
seu relato é decorrente dessa transmissão oral. Incapaz de situar a
cena em Betânia, ele fala de uma cidade ou de uma aldeia. Em
compensação, confirma que o dono da casa onde é servida a refeição
se chama Simão e fornece detalhes complementares ouvidos da boca
do discípulo bem-amado ou de alguma outra fonte. Simão, o
anfitrião, pertence à confraria dos fariseus.[4] Uma mulher —
anônima, como nos Evangelhos de Mateus e de Marcos —, ao saber
que Jesus está à mesa na casa de Simão, entra com um vaso de
alabastro contendo perfume. Ela é uma pecadora. Em outros termos,
ela não é considerada por Simão, o fariseu, como ritualmente pura.
Ela infringiu diversas prescrições mosaicas. Isso é tudo que se pode
dizer. Torná-la uma “pecadora pública”, uma prostituta, é fruto da
imaginação. Lucas relata que a mulher “chorando, regava-os com
suas lágrimas e os enxugava com os próprios cabelos; e beijava-lhe
os pés e os ungia com o unguento”.41 De acordo com a visão de
Lucas, essa seria mais uma expressão de arrependimento do que de
reconhecimento (visto que não se trata, na sua narrativa, da
ressurreição de Lázaro).
A sequência do relato de Lucas não deixa de ser interessante. O
rigorista Simão pensa: se seu convidado era verdadeiramente um
profeta, saberia que essa mulher que toca seus pés é uma pecadora.
Jesus, que adivinhou seu pensamento, coloca-lhe uma pergunta:
certo credor tem dois devedores; um lhe deve quinhentos dinares, o
outro cinquenta. Ele perdoa aos dois. Qual deles o amará mais?
Simão sente-se obrigado a responder que é aquele a quem ele
perdoou mais. “Julgastes bem”, concluiu Jesus. E, voltando-se para a
mulher, ele lhe disse:

Vês esta mulher? Entrei em tua casa, e não me deste água para os pés; esta,
porém, regou os meus pés com lágrimas e os enxugou com os seus cabelos.
Não me deste ósculo; ela, entretanto, desde que entrei não cessa de me
beijar os pés. Não me ungiste a cabeça com óleo, mas esta, com bálsamo,
ungiu os meus pés. Por isso, te digo: perdoados lhe são os seus muitos
pecados, porque ela muito amou; mas aquele a quem pouco se perdoa,
pouco ama. Então, disse à mulher: Perdoados são os teus pecados.42

A “pecadora” anônima de Lucas deve, evidentemente, ser


identificada com Maria de Betânia. O que lhe reprovavam na aldeia
depois da ressurreição de seu irmão e a partida de Jesus? Mistério.
Em todo caso, ela não tem nada a ver com Maria Madalena, que
Jesus exorcizou outrora de sete demônios, pois ela própria nunca foi
apresentada nos evangelhos como pecadora e ainda menos como
prostituta. Muitas confusões foram feitas, ou seja, foram distinguidas
três mulheres em lugar de duas (Tertuliano, Clemente de Alexandria,
Orígenes, Crisóstomo, Ambrósio, Jerônimo), ou quiseram ver
somente uma mulher (o papa Gregório, o Grande).
Mas regressemos ao gesto da unção. Se acreditarmos em João,
Judas Iscariotes protesta contra esse desperdício — ele está
encarregado, como sabemos, da caixa comunitária de dinheiro que
serve aos gastos do grupo durante seus deslocamentos —: “Por que
esse perfume não foi vendido por trezentas moedas de prata para
dar aos pobres?”.43 Trezentos dinares seria o equivalente ao salário
de um trabalhador agrícola durante um ano!
Se expressa sua reprovação, Judas o faz não por caridade, mas
por cupidez. Ele finge apresentar-se como defensor dos pobres. Na
verdade, como diz o autor do quarto evangelho, ele tinha o hábito de
tirar dinheiro da caixa para seu próprio proveito. Jesus, porém,
disse: “Deixa-a! Que ela guarde isto para o dia em que me
embalsamarem; porque os pobres, sempre os tendes convosco, mas a
mim nem sempre me tendes”.44
A chegada de Jesus em Betânia não passou despercebida. Uma
multidão de curiosos se acotovela para vê-lo e também Lázaro, tido
como uma espécie de herói. A notícia chega aos sumos sacerdotes,
que tomam nesse momento uma segunda decisão: Lázaro também
será morto.

A traição de Judas
No momento em que se trama o drama do Gólgota, é preciso
considerar a traição de Judas. É inimaginável pensar que tal gesto,
que não honrava os Doze, pudesse ter sido inventado pelas
comunidades cristãs depois da Páscoa. Celso usará isso para atacar
Jesus e colocar em questão seu poder de discernimento. Ao escolhê-lo
entre seus discípulos, Jesus sabia que Judas o delataria?
Certamente, a figura de Judas Iscariotes foi explorada de
maneira odiosa pela polêmica antijudaica na literatura e no
imaginário cristão. Pensemos nos mistérios medievais e na Legenda
áurea, do dominicano Jacopo de Varazze (século XIII). Judas,
Yehuda, está etimologicamente associado à palavra judeu, yehudi.
Por ter delatado seu mestre, encarna o arquétipo do traidor, e do
judeu traiçoeiro.
Algumas pessoas, reagindo a isso, procuraram reabilitá-lo,
algumas vezes em excesso. Quiseram acreditar que ele foi movido
por sentimentos nobres, em lugar de sua avidez por dinheiro. Zelote
nacionalista, ele teria seguido o Nazareno na esperança de que ele
revoltasse a população contra os romanos. A recusa de Jesus em
praticar um messianismo terrestre teria levado Judas ao seu gesto.
Nenhum indício permite dar crédito a essa tese. É melhor ater-se
àquilo que diz João. Iscariotes era uma pessoa medíocre, habitada
pelo espírito de lucro e de pilhagem. Realizou sua baixeza apenas
com intuito pecuniário, sem dar-se conta das consequências do seu
gesto. Sua ruptura com Jesus deve ter sido progressiva. Em Betânia,
seu espírito crítico e acerbo mostra que ele tinha perdido a fé em seu
mestre. É nesse momento que ele desce a Jerusalém para encontrar
os sumos sacerdotes ou seus representantes. Vimos que ele talvez
fosse judeu. Nessa hipótese, sua origem familiar, provavelmente, lhe
permitia deslocar-se na cidade com mais familiaridade do que os
demais discípulos, todos da Galileia. Sua atitude encheu Anás e
Caifás de satisfação. Saber o local exato onde Jesus se encontrava
vai permitir agir com discrição e com a rapidez desejada. “Que me
quereis dar, e eu vo-lo entregarei?”, pergunta Judas. Mateus, um
melhor conhecedor do mundo oriental que Marcos e Lucas, diz que
“pesaram” para Judas trinta moedas de prata. Na época, com efeito,
as moedas não tinham o mesmo peso. Essa pequena fortuna
representava o preço da compra de um escravo.
13

A ceia

Os Ramos
Judas aceitou, então, entregar seu mestre às autoridades do Templo,
mas ainda não é capaz de revelar o local do seu retiro. Nesse dia, o
proscrito não teme aparecer no meio da multidão. Em compensação,
à noite, ele troca de pousada. No dia seguinte, ao jantar em Betânia,
Jesus se apressa em voltar para Jerusalém. Ao aproximar-se da
pequena aldeia de Betfagé (a “casa dos figos verdes”) — algumas
manchas brancas perdidas em meio de um pequeno bosque de
vegetação, na encosta sudeste do monte das Oliveiras —, ele envia
para lá dois de seus discípulos e diz a eles:

Ide à aldeia que aí está diante de vós e, logo ao entrar, achareis preso um
jumentinho, o qual ainda ninguém montou; desprendei-o e trazei-o. Se
alguém vos perguntar: Por que fazeis isso? Respondei: O Senhor precisa
dele e logo o mandará de volta para aqui. Os dois discípulos foram, e, como
indicado, encontram na rua um jumentinho amarrado perto de uma porta.1

Como que para entronizar seu mestre, os discípulos colocam seu


manto sobre o jumentinho e Jesus senta-se em cima. Ao saber que
aquele que deu vida a Lázaro se aproxima, os habitantes de
Jerusalém pegam as palmas que tinham conservado desde a Festa
das Tendas e vão ao seu encontro. Peregrinos juntam-se a eles. No
monte das Oliveiras, uma multidão delirante aclama Jesus, gritando:
“[Osianna] Hosana ao filho de Davi! Bendito aquele que vem em
nome do Senhor! [Osianna barrama] Hosana no mais alto do céu!”.2
Teria Jesus já visto tamanha alegria? As pessoas estendem seus
mantos por terra para deixar o jumentinho passar. Novamente, nos
encontramos numa atmosfera de restauração monárquica.
Será que é conscientemente que Jesus decide solenizar, dessa
maneira, sua chegada à Cidade Santa?3 Evidentemente, ele não
aspira à dignidade real como os outros a compreendem. João
Evangelista escreve: “Seus discípulos a princípio não
compreenderam isto; quando, porém, Jesus foi glorificado, então,
eles se lembraram de que estas coisas estavam escritas a respeito
dele e também de que isso lhe fizeram”.4 Zacarias não havia
profetizado: “Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta, ó filha de
Jerusalém: eis aí te vem o teu Rei, justo e salvador, humilde,
montado em jumento, num jumentinho, cria de jumenta”.5 Ameno e
humilde, ele é um rei da paz, um rei dos pobres que se aproxima e
não um conquistador montado em um carro de triunfo. Os fariseus
ficam inquietos com seu sucesso.6
Jesus parou no vale do Cédron, ao pé do monte das Oliveiras.
Um grupo de gregos se dirige ao apóstolo Filipe: “Senhor, queremos
ver Jesus”. Filipe falou com André e os dois foram falar com Jesus.
Este não lhes responde diretamente:

É chegada a hora de ser glorificado o Filho do Homem. Em verdade, em


verdade vos digo: se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele
só; mas, se morrer, produz muito fruto. Quem ama a sua vida perde-a; mas
aquele que odeia a sua vida neste mundo preservá-la-á para a vida eterna. Se
alguém me serve, siga-me, e, onde eu estou, ali estará também o meu servo.
E, se alguém me servir, o Pai o honrará.”7

Com tal resposta enigmática Jesus indica que, à imagem do grão


de trigo que morre na terra, seu suplício dará fruto até entre eles.8
Getsêmani
É nesse momento que se situa, segundo toda verossimilhança — e
não depois da última refeição de Jesus —, o que se chama “a agonia
de Getsêmani”, que ocupa um lugar tão importante na misericórdia
cristã. Getsêmani! Quantas homilias proféticas foram pronunciadas,
quantos desenvolvimentos dramáticos foram escritos sobre esse
episódio doloroso (pensamos na desesperança sem limites de um
Alfred de Vigny no seu poema Le Mont des Oliviers [O monte das
Oliveiras] ou, ao contrário, no ato de fé de Pascal no seu Le Mystère
de Jesus [O mistério de Jesus]), quantos pintores célebres ou
desconhecidos procuraram representar a cena no decorrer da qual
Jesus revela em plenitude a fragilidade da sua natureza humana! É
isso que torna esse momento tão singular, tão emocionante, tão
pungente para os crentes e os descrentes.
Jesus penetrou em uma propriedade fechada com um pequeno
muro de pedras soltas — João, no seu evangelho, precisa que por ele
“se entra” e por ele “se sai”.9 A propriedade chama-se Getsêmani,
em aramaico Gat Shemani, prensa de azeite. Imaginamos uma
pequena exploração agrícola que fabrica azeite de oliva, ao abrigo
de uma gruta. De uma maneira mais perfeita aqui do que nas
encostas, as oliveiras torcem seu tronco atarracado e suas cascas
cheias de fissuras. O local é familiar a Jesus e a seus discípulos.
Algumas vezes, é nesse local que eles se reúnem, quando não vão a
Betânia durante a noite. A quem pertence esse jardim fechado e seu
empreendimento agrícola? Possivelmente, a João, o discípulo
secreto e futuro evangelista, porque mais tarde esse terreno servirá
de sepultura para Maria (que ele alojou em Jerusalém).10
Jesus está ciente de que vai enfrentar o sofrimento e a morte, que
entra no período de grande provação, o do combate escatológico
contra o Mal. Ele mostra sua fraqueza de homem. Ora
ardentemente. Pede a seu Pai para modificar o plano de sofrimento
que ele deve suportar, para afastar o cálice amargo da morte, esse
mesmo cálice com o qual ele tinha, entretanto, desafiado os filhos de
Zebedeu, Tiago e João, a beber junto dele. Isso mostra a angústia em
que ele submerge. Os teólogos cristãos, para os quais Jesus é, ao
mesmo tempo, um verdadeiro homem e um verdadeiro Deus,
afirmam que nesse momento é a vontade humana que se expressa.
Para Celso, ao contrário, essa é uma fonte de argumentos sarcásticos
que mostram o caráter inverossímil do cristianismo: como esse ser,
pretensamente “divino” pode “chorar e se lamentar e orar para
escapar do medo da morte, expressando-se assim: ‘Ó Pai, se for
possível, que esse cálice passe longe de mim!’”.11 Se ele sabia que
esse drama deveria acontecer, por que não fez nada para evitá-lo?12
Historicamente não é simples dizer o que se passou. No entanto,
o episódio não deixa nenhuma dúvida. Não podemos imaginar os
primeiros cristãos inventando essa “fraqueza” de Jesus orando a
Deus, seu Pai, para livrá-lo da fatalidade da provação final. Vamos
tentar examinar melhor esse episódio.
O relato dos evangelhos sinópticos é uma construção elaborada a
partir de diversas tradições e de frases fora de seu contexto. Levando
consigo o pequeno grupo de privilegiados, como Pedro, Tiago e
João, filhos de Zebedeu, como contam Mateus e Marcos, Jesus se
retira. Ele começa a sentir tristeza e ansiedade. “A minha alma está
profundamente triste até à morte; ficai aqui e vigiai comigo.”13
Depois ele se afasta “um pouco”, conta Lucas.[1] Ele cai com o rosto
contra a terra e começa a suplicar: “Meu Pai, se possível, passe de
mim este cálice! Todavia, não seja como eu quero, e sim como tu
queres”. Voltando para junto de seus discípulos, Jesus encontrou-os
dormindo. Ele recrimina a Pedro por não ter tido a força de vigiar
uma hora com ele: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação;
o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca”.14
Jesus se afasta pela segunda vez. “Meu Pai, se não é possível
passar de mim este cálice sem que eu o beba, faça-se a tua
vontade.”15 Voltando-se para seus três discípulos, ele os encontra
profundamente adormecidos. Jesus se afasta uma terceira vez,
pronuncia as mesmas palavras e reúne-se uma última vez com
Pedro, Tiago e João e lhes diz: “Eis que é chegada a hora, e o Filho
do Homem está sendo entregue nas mãos de pecadores. Levantai-
vos, vamos!”.16
Esse episódio, em Mateus e em Marcos, opõe a cena da
Transfiguração à da Agonia, com os mesmos apóstolos com os olhos
pesados de sono. Num caso, trata-se de glorificar Jesus, no outro, de
mostrar sua humilhação e sua fraqueza.17 A relação que Lucas
apresenta é um pouco mais curta. Ela dá a impressão de que todos os
apóstolos, e não somente os três, acompanharam Jesus.
Jesus, como sabemos, por diversas vezes, anunciou sua morte
próxima. Se, como tudo permite pensar, ele entreviu a maneira pela
qual ia morrer, compreendemos que todo o seu ser tivesse sido
tomado por agonia com a ideia de crucificação. Para os teólogos, sua
alma fica ainda mais perturbada com o pensamento de ter que
enfrentar a grande provação, o terrível combate do qual depende o
destino do mundo. Ah! Que pudesse esse cálice afastar-se dele! Que
ele pudesse ser libertado de uma morte como essa! O Pai, que pode
tudo, não pode fazer o advento de seu reino sem essa terrível
provação? Mas, imediatamente após sua prece lacrimosa, ele se
retrai diante da vontade do Pai.
A maneira como os evangelhos sinópticos recompuseram a cena
choca-se com uma objeção material: como os apóstolos puderam
contá-la, já que eles estavam adormecidos, e relatar as palavras de
Jesus, visto que ele foi preso imediatamente depois? Uma vez mais,
João restabelece a lógica e o encadeamento dos fatos. Foi depois da
cena dos Ramos, imediatamente antes da última entrada de Jesus
em Jerusalém, que a cena ocorre, não depois da última ceia.[2] Todos
os discípulos estão no local e ouvem distintamente a prece do
Mestre: “Agora, está angustiada a minha alma, e que direi eu? Pai,
salva-me desta hora? Mas precisamente com este propósito vim para
esta hora. Pai, glorifica o teu nome”.18
Para João, a tentação é breve e o domínio do Mestre é quase
imediato. Sobrevém uma epifania, uma manifestação de reconforto
divino. Uma voz se faz ouvir do céu: “Eu já o glorifiquei e ainda o
glorificarei.” Essa é a resposta do Pai. Um grande número de
discípulos e de amigos, que se encontravam no local e olhavam para
Jesus em lágrimas e orando, ouviu como um “barulho de trovão”.
Alguns asseguram que um anjo falou com Jesus. Não é de espantar
reencontrar no evangelho de Lucas, ouvinte assíduo da pregação de
João, a mesma alusão a um mensageiro celeste que aparece e
reconforta Jesus.
No quarto evangelho, o episódio é particularmente amenizado e
ambíguo. João ficou constrangido por essa crise? Quantos heróis da
Antiguidade, com efeito, a começar por Sócrates, são representados
andando serenamente para a morte? De fato, ele se mantém muito
aquém da realidade por razões teológicas. Seu relato da Paixão
mostra o menos possível o sofrimento de Cristo para afirmar melhor
sua ascensão em glória. Ele voluntariamente apagou a angústia de
Jesus. Nesse plano, é melhor confiar nos evangelhos sinópticos.
Veremos como prova o que diz sobre esse fato a Epístola aos
Hebreus,19 também composta antes da queda de Jerusalém, que se
baseia numa tradição independente; nos “dias de sua carne”, está
escrito, Jesus orou “com forte clamor e lágrimas” a seu pai, que
tinha o poder de salvá-lo da morte. Esse é o único texto que dá essas
precisões.
Lucas, que era médico, relata, por sua vez, que gotas de suor
caíam de Jesus “como coágulos de sangue [thromboï haïmatos]”.
Conclui-se que um fenômeno físico relativamente raro produziu-se
na ocasião: uma transpiração de sangue, uma hematidrose. Mas o
texto de Lucas não foi demasiado dirigido? O suor de sangue ou
hematidrose é um fenômeno raríssimo que consiste na coloração
vermelha da secreção do suor, como consequência da passagem de
hemoglobina para o suor. Essa transudação, acompanhada por dores
violentas e enfraquecimento geral, não é uma verdadeira
hemorragia. Ela afeta, em geral, as pessoas atacadas de histeria e de
crises mais ou menos longas. Ora, Jesus não pode ser qualificado
como histérico. Ele manterá pleno domínio de si ao longo da
Paixão.20 Observamos que Lucas não disse que Jesus suou lágrimas
de sangue. Ele só comparou o suor que caía com coágulos de
sangue.21
Permanece o fato de que Jesus sofreu um intenso choque
emocional, que ele superou. A vontade de permanecer fiel a seu Pai
até o final foi mais forte que a própria tentação e até mesmo que o
instinto vital. O anjo compassivo, que foi enviado para confortá-lo
— qualquer que seja a representação material da cena — certamente
não lhe retirou o cálice, mas vai ajudá-lo a bebê-lo. Daí em diante,
libertado do medo no final desse intenso combate, Jesus está pronto
para a grande prova.

A Páscoa judaica
No dia 14 de Nisã, o primeiro mês do ano, no crespúsculo, celebrava-
se a solenidade de Pesach (pascha, em grego), a Páscoa do Senhor,
como lembrança da libertação do povo hebreu do seu cativeiro no
Egito. Na noite de lua cheia, o carneiro, depois de ter sido degolado
por um sacerdote no perímetro do Templo, era assado e consumido
em família com ervas amargas e pão sem fermento. No dia seguinte,
começava a festa dos pães sem fermento, que correspondia ao início
da colheita da cevada. Sua origem mais tardia, remontava à fixação
do povo hebreu em Canaã.22 Na época de Jesus, as duas festas
estavam interligadas: a Páscoa durava sete dias.
Como todos os anos, dezenas de milhares de judeus religiosos,
vindos da Galileia, da Judeia ou da diáspora, subiram para
Jerusalém. Eles já chegaram há vários dias, porque, como a Lei
prescreve, devem purificar-se previamente. Jesus sabe que sua morte
é iminente e que não poderá fazer a refeição pascal no dia 14 de
Nisã, que naquele ano cai numa sexta-feira. Por essa razão, decide
dar à última ceia, que fará no dia 13 à noite, com todos os
discípulos, homens e mulheres que vieram da Galileia, um caráter
pascal. Essa ceia será uma antecipação litúrgica do festim do dia
seguinte.23 A tradição será respeitada: eles farão a ceia no interior
dos muros de Jerusalém, à noite, com mais de dez convidados,
ritualmente puros, recostados sobre sofás; vão beber vinho; vão
empenhar-se para dar uma esmola aos pobres, e palavras serão
pronunciadas sobre o pão sem fermento e o cálice da bênção.24
Jesus combinou com João, o discípulo oculto, que ele faria sua
última refeição na casa dele. Provavelmente, os dois homens se
puseram de acordo alguns dias antes em Betânia, na casa de Marta e
Maria. Todas as precauções foram tomadas. A atmosfera na qual se
encontram é de segredo e de temor. Jesus sabe que está sendo
ativamente procurado. Envia dois discípulos como batedores, Simão-
Pedro e João, filhos de Zebedeu, com a missão de encontrarem perto
da piscina de Siloé um homem carregando um jarro sobre a cabeça
em sinal de reconhecimento. São, em geral, as mulheres que vão
buscar água. Esse homem é um servidor de uma das grandes famílias
de Jerusalém, provavelmente um escravo. “Segui-o e dizei ao dono
da casa onde ele entrar que o Mestre pergunta: Onde é o meu
aposento no qual hei de comer a Páscoa com os meus discípulos? E
ele vos mostrará um espaçoso cenáculo mobilado e pronto; ali fazei
os preparativos.”25
Que audácia de Jesus ir fazer uma refeição na casa de um alto
dignitário da aristocracia judaica, quando ele é procurado pela
polícia do Templo! Jesus conhece os locais, diferentemente dos
apóstolos. Foi lá, talvez, que ele encontrou Nicodemos, três anos
antes.
Situada na colina sudoeste de Jerusalém, que mais tarde passou a
se chamar monte Sião,[3] a atual sala gótica franciscana que lá se
encontra corresponde ao lugar no qual a tradição local sempre
situou a “câmara alta” da Ceia. Essa câmara fazia parte da morada
aristocrática do jovem sacerdote João (a menos que ela seja uma
dependência), não longe da porta dos essênios e do bairro longínquo
onde essa comunidade de sectários tinha suas habitações, sua escola
e seus banhos rituais, como mostraram as escavações de Bargil
Pixner, auxiliado pelos arqueólogos israelenses Doron Chen e
Shlomo Margalit.26 Desde 1951, as pesquisas realizadas pelo
israelense Jacob Pinkerfeld tinham provado que a lendária tumba de
Davi, situada debaixo da sala elevada, era na verdade um
monumento sepulcral dos cruzados. Nos embasamentos encontram-
se vestígios de uma sinagoga judaico-cristã do século I, abastecida
com um nicho destinado aos rolos da Torá. Essa construção estava
orientada — um fato inédito — não para o monte do Templo situado
a nordeste, mas em direção ao Gólgota e à tumba vazia ao norte. Ali
foram encontradas inscrições que traziam invocações a Jesus.27 Tal
sinagoga venerada, que assumirá o nome de “Igreja dos Apóstolos”
(a primeira igreja da cristandade), data dos anos 73-75, quando os
cristãos judeus, depois de sua fuga para Péla em 66, tiveram o
direito de voltar a Jerusalém. Ela tinha sido construída sobre o
próprio local da Ceia, após a total destruição, no ano 70, da
propriedade de João Evangelista.28

A lavagem dos pés


Depois do reconhecimento feito por Pedro e João de Zebedeu, o
grupo penetra, por sua vez, pela porta de Teqoa ao sul, passa diante
de uma prensa de azeite, sobe os degraus de uma grande escada que
conduz à colina do sudoeste, longe do muro do bairro dos essênios e
se encontra diante da morada de João. Acolhidos pelo dono da casa,
os convidados se instalam no primeiro andar e, como para todas as
refeições solenes, recostam-se nas almofadas, preparadas para isso.
Mesas baixas foram dispostas para os discípulos, a família de Jesus e
as mulheres que vieram da Galileia: Maria, a mãe de Jesus, Maria
Madalena, Maria, mulher de Cléofas, Salomé…
Na mentalidade semítica, partilhar uma refeição era um rito de
hospitalidade e de profunda comunhão. É possível que Jesus tenha
se inspirado nas refeições festivas e comunitárias de seu tempo. O
grande liturgista anglicano dom Gregory Dix comparou a Ceia com o
cerimonial das refeições de festa das confrarias dos fariseus, os
habouroth,[4] de que fala o tratado Berakoth da Mishná.29 Os essênios
também faziam refeições para as quais eles convidavam
simbolicamente o Messias de Aarão e o Messias de Israel. Em nome
do primeiro, eram abençoadas “as primícias do pão e do vinho
novo”; em nome do segundo, estendia-se a mão sobre o pão e
abençoava-se a congregação “cada um segundo sua dignidade”.
No entanto, Jesus vai ultrapassar essas tradições de maneira
inesperada. Ele não se situa mais na ordem do símbolo, realiza a
figura messiânica. “Tenho desejado ansiosamente comer convosco
esta Páscoa, antes do meu sofrimento”.30, diz Jesus, como
preâmbulo. Ele pega um primeiro cálice e dá graças, talvez
utilizando a fórmula dos habouroth: “Bendito sejas tu, Senhor nosso
Deus, Rei eterno que criou o fruto da vinha”.31 Ele passa em seguida
o cálice aos convivas: “Recebei e reparti entre vós; pois vos digo
que, de agora em diante, não mais beberei do fruto da videira, até
que venha o reino de Deus”.32 Ao falar dessa maneira, ele não
expressa um voto de abstinência. É a sua última refeição de festa.
Ele profetiza a iminência de sua morte e a vinda do reino final de
Deus, quando os tempos serão cumpridos.
A refeição mal tinha começado quando Jesus se levanta, tira sua
túnica e amarra um grande lençol em sua cintura, a roupa dos
servidores ou dos escravos. Verte água numa grande bacia. Para
espanto geral, em lugar de lavar as mãos dos seus discípulos com
água perfumada, como no ritual dos fariseus, ele lava seus pés e os
enxuga com o lençol. Uma das obrigações da Páscoa judaica era,
com efeito, a de purificar o corpo. Isto, os discípulos tinham feito
não no local preparado para essa obrigação, no recinto do Templo,
onde a polícia teria podido intervir, mas provavelmente numa
pequena gruta na encosta do monte das Oliveiras, preparada para
mikvé (imersão ritual em água).33 Eles só precisam purificar os pés,
cobertos de poeira.
Desnorteados por essa cena, os apóstolos se entregam. Quando
ele chega diante de Simão-Pedro, esse protesta: “Senhor, tu me lavas
os pés a mim?”. Ele, que reconheceu em Jesus o Messias de Deus,
não pode aceitar esse gesto. Jesus lhe responde: “O que eu faço não
o sabes agora; compreendê-lo-ás depois”. O impetuoso Simão-Pedro
se defende: “Nunca me lavarás os pés”. Jesus lhe responde: “Se eu
não te lavar, não tens parte comigo”. O outro então exclama:
“Senhor, não somente os pés, mas também as mãos e a cabeça”.
Jesus responde: “Quem já se banhou não necessita de lavar senão os
pés; quanto ao mais, está todo limpo. Ora, vós estais limpos, mas
não todos”.34
Jesus recoloca sua roupa e se dirige a seus discípulos:
“Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais o Mestre e o Senhor e
dizeis bem; porque eu o sou. Ora, se eu, sendo o Senhor e o Mestre,
vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros”.35
João Evangelista ficou chocado com essa cena. Jesus, disse ele, amou
os seus até o fim, quer dizer, até os últimos instantes da sua vida e
até o extremo limite do amor. Esse não é apenas um gesto de
humildade e de apelo à caridade fraterna, mas o anúncio simbólico
de sua Paixão iminente. Ele se desapossa de si mesmo, faz dom de
sua pessoa.
Do lado de fora, a noite cai. Trazem para Jesus uma lâmpada e
incenso. Ele os abençoa. A lâmpada vai servir para acender os cotos
de vela da sala elevada. A refeição começa verdadeiramente com o
burburinho das conversas. Jesus não esconde que vai ser entregue
por um dos seus. Ele parece perturbado. Os apóstolos olham uns
para os outros espantados.
Para compreender a sequência, algumas precisões topográficas
são necessárias. As quatro mesas centrais, aquelas dos Doze, estão
verdadeiramente dispostas como um quadrado. Segundo o costume
judaico, o dono da casa, ou, em sua ausência, seu filho mais velho,
João, ocupa o meio de um dos lados, tendo à sua esquerda aquele
que quer honrar, Jesus, e à sua direita o segundo em importância,
Simão-Pedro. Judas está colocado perto de Jesus, mas numa das
laterais.36 Recostados sobre seu divã, os convidados se apoiam sobre
o cotovelo esquerdo e levam a comida à boca com a mão direita.
Simão-Pedro, então, inclina-se para João, aquele que mais tarde
os discípulos de Jesus chamarão de o “discípulo bem-amado” ou
“aquele que Jesus amava”: “Pergunta a quem ele se refere”. João,
por sua vez, inclina-se para a esquerda, quase tombando
familiarmente no colo de seu Mestre, “sobre seu peito”, e lhe diz:
“Senhor, quem é?” Jesus insinua: “É aquele a quem eu der o pedaço
de pão molhado”. Juntando o gesto à palavra, ele mergulha o
pedaço de pão no molho com ervas amargas e o estende a seu
vizinho da esquerda, Judas Iscariotes, na mesa ao lado. Esse o come.
“E, após o bocado, imediatamente, entrou nele Satanás.” Então,
Jesus lhe disse: “O que pretendes fazer, faze-o depressa”.37 Judas se
levanta e se prepara para sair. Os discípulos não se espantam: eles
pensam que o mestre recomendou-lhe comprar provisões para a
festa do dia seguinte, a da Páscoa oficial, ou que lhe pediu para dar
alguma coisa aos pobres para associá-los, dessa maneira, ao jantar
deles, visto que ele detém as finanças da comunidade.
João se lembra da noite, daquela sala elevada bem iluminada e
das trevas que envolvem Jerusalém. Emocionado com o contraste,
dá à cena um sentido dramático e poderoso, de fato, uma espécie de
confrontação escatológica entre Jesus, a Luz vinda nesse mundo, e
as potências do Mal. Judas sai, deixa a claridade para perder-se na
escuridão. “Era noite”, escreve João com sobriedade.
Como era perigoso para Jesus, procurado pela polícia do Templo
e pelos agentes dos sumos sacerdotes, passar a noite em Jerusalém,
mesmo numa casa amiga, ele havia avisado a seus companheiros
que iria para Getsêmani. Judas se dirige ao Templo ou diretamente à
casa de Anás, onde deve ocorrer, o mais discretamente possível, o
interrogatório do Galileu, enquanto se espera que no dia seguinte
ele seja entregue aos romanos? Não sabemos. Mas o encontro tinha
sido combinado de antemão. Jônatas, filho de Anás e sagan do
Templo, foi avisado e mobilizou um esquadrão armado. Fariseus se
juntaram a eles com bastões, assim como os membros da guarda
pessoal do sumo sacerdote. Assim, todos os que armaram a operação
estão prontos. Jesus sabe que a provação se aproxima. “Agora, foi
glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele.”38

A “refeição do Senhor”
Na casa de João, depois da partida do traidor, o jantar prossegue.
Jesus festeja a Páscoa por antecipação, disseram. Mas nela falta o
principal: o cordeiro que é partilhado em família. Os discípulos e os
servidores de João não puderam prepará-lo. Já fazia muito tempo,
com efeito, que cada pai de família, no pátio de sua casa, degolava o
animal e o mandava assar. Esse trabalho agora pertencia aos
sacerdotes, e não era mais possível realizar o abate ritual nas casas
particulares. E esse só se iniciaria sobre o altar dos sacrifícios na
tarde do dia seguinte, 14 de Nisã. Naquela noite, os animais
esperavam dentro dos cercados nos arredores do Templo.
No lugar do cordeiro, Jesus, fiel à sua missão, vai oferecer sua
própria carne e seu próprio sangue, não como preço a ser pago a
algum deus inexorável cuja cólera é conveniente aplacar, mas como
o próprio Deus operando a expiação: essa é a Páscoa cristã da
eucaristia (ação de graças).
Foi Paulo que, na sua primeira Epístola aos Coríntios, relembra a
mais antiga tradição relativa à sua instituição, “a noite em que Jesus
foi entregue”. Essa tradição é anterior ao início da escrita dos quatro
evangelhos, anterior à sua Epístola, escrita por volta do ano 55,
anterior até mesmo à sua primeira campanha de evangelização de
Corinto, que remonta a cinco anos antes. Ela data do ano 36, mais
ou menos, pouco depois de sua conversão. Época, portanto, bastante
próxima do acontecimento. O apóstolo dos gentios cristalizou o
essencial das palavras de Jesus sobre o pão e o cálice.
Em lugar das palavras rituais sobre os matzôts, os pães sem
fermento, Jesus pega um, dá graças e diz: “Este é o meu corpo [ou
mais exatamente minha carne],39 que é partido por vós; fazei isso
em memória de mim”. Depois ele o quebra e o distribui a seus onze
companheiros. Jesus faz o mesmo nas outras mesas, distribuindo a
todos os seus que vieram da Galileia. No ritual da Páscoa judaica,
era costume prever um último cálice, que ninguém bebia, aquele do
profeta Elias, o mensageiro do Messias. Esse é o “cálice da bênção”,
que Jesus toma no fim da refeição e que faz circular entre os
participantes. “Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei
isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim”.40 Após as
palavras “nova aliança no meu sangue”, Lucas, muito próximo da
tradição paulina, acrescenta “que é derramado por vós”. Mateus e
Marcos dão formulações menos precisas, sem omitir o essencial.
Para o pão abençoado e quebrado: “Tomai, comei, este é meu corpo”
(Mateus); “Tomai, este é o meu corpo” (Marcos). Para o vinho:
“Bebei dele todos, porque este é meu sangue, o sangue da Aliança,
que é derramado por muitos para remissão dos pecados” (Mateus);
“Isto é o meu sangue, o sangue do novo testamento, que por muitos
é derramado” (Marcos).
O que Jesus quis expressar naquela noite? Que é primeiramente
sua refeição — a “refeição do Senhor”, dirá Paulo. Ele franqueou sua
mesa aos seus, todos reunidos na Cidade Santa pela primeira vez.
Essa refeição é uma refeição festiva de tipo judaico. Nela bebe-se
vinho, bebida muito cara reservada para as grandes solenidades,
mas é também uma refeição de despedida que se desenvolve num
contexto pascal, o que lhe dá um significado novo e definitivo. Ela
não tem nada a ver com os rituais sagrados praticados nos cultos
pagãos.41 Muito claramente, Jesus, ao convidar seus discípulos a
comungar com sua pessoa, antecipa, ao mesmo tempo, sua morte,
sua ressurreição e sua glorificação. Certamente, era essa sua
intenção. Ela é deduzida de todos os textos. O cordeiro, sacrificado
pelo povo no dia santo da Páscoa, é ele! Aliás, na mesma Epístola
aos Coríntios, o apóstolo dos gentios liga o sacrifício eucarístico com
a morte de Jesus e com a imolação do cordeiro pascal. Depois de ter
exortado seus leitores a se purificar do velho fermento “para serdes
massa nova, ja que sois fermento”, ele acrescenta “porque o Cristo,
nossa páscoa, foi imolado”. Na sua primeira Epístola, Pedro diz do
mesmo modo: o cristão é salvo “pelo sangue sem defeito e sem
mácula”.42 Na comunhão eucarística, Jesus quis estabelecer uma
imanência recíproca e não um simples ritual de ação de graças. Ele
já não havia dito na sinagoga de Cafarnaum: “Aquele que come a
minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele”? É
a sua morte e a sua ressurreição que salvam os pecadores e os fazem
entrar numa vida nova.
Por essa celebração, repetida ao longo dos séculos, os cristãos
sabem que eles comungam com o sacrifício da cruz e com a
ressurreição de seu mestre. Paulo diz isso expressamente: “Porque,
todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a
morte do Senhor, até que ele venha”.43 A eucaristia é um viático na
espera da parusia, quer dizer, do retorno de Jesus na glória.
Também é importante, segundo o apóstolo, celebrar dignamente e
com discernimento, para não comer e beber “sua própria
condenação”.44
João Evangelista não relatou a instituição da eucaristia, naquela
noite, na sua casa. Ele a substituiu pelo relato da lavagem dos pés,
mostrando a dimensão caritativa do mesmo sacramento: participar
da refeição do Senhor implica o dever de trabalhar para a comunhão
humana e para a justiça. Com certeza, no momento em que ele
escreve, o ato litúrgico da partição do pão era universamente
praticado nas assembleias cristãs, e os evangelhos sinópticos tinham
lembrado suas palavras. Isso não deixa de ser algo estranho, que
suscitou muitas discussões.
Para João, ligado ao ritual do Templo, a Páscoa dos judeus só
acontecerá no dia seguinte à noite, 14 de Nisã, no momento em que
se parte o cordeiro em família. A refeição de Jesus não pode stricto
sensu ser uma refeição pascal, porque é preciso esperar a
intervenção dos sacerdotes para degolar os animais. Sabemos, aliás,
que João só retém os fatos que esclarecem a sua visão cristológica.
Ora, os últimos capítulos de seu evangelho são consagrados à subida
de Jesus na cruz gloriosa. Ele já fez abundantemente alusão à
eucaristia por ocasião do discurso na sinagoga de Cafarnaum. Dessa
vez, transpõe a simbólica do carneiro oferecido no mesmo momento
em que Jesus, sobre a cruz, entrega a alma ao Criador. No instante,
relata João, em que os primeiros cordeiros são sacrificados no
Templo, o sangue do Filho de Deus escorre sobre a cruz, como o
sangue dos cordeiros de Moisés, sobre o lintel das portas. Jesus é a
vítima do sacrifício, o cordeiro imolado do qual nenhum osso foi
quebrado.45 No Apocalipse, que podemos atribuir ao mesmo autor,
evoca repetidas vezes a figura crística do Cordeiro degolado, figura
que assume seu pleno significado pela morte na véspera da Páscoa,
esperando a última “festa das bodas do Cordeiro”.
A Ceia, portanto, assinala para os cristãos o fim dos sacrifícios
sangrentos. Os fariseus, doutores da Lei, que vão contribuir para o
nascimento do judaísmo rabínico, também abandonam a prática dos
holocaustos depois da destruição do Templo no ano 70. Os essênios
os precederam instaurando um culto espiritual, composto de preces
litúrgicas, salmos e hinos de louvor. Mas eles esperavam a partida
dos sumos sacerdotes ilegítimos para se reinstalar no Templo e
reintroduzir os sacrifícios. Jesus vai muito mais além que esses dois
grupos religiosos, visto que é a oblação de sua própria pessoa que
substitui definitivamente as vítimas inocentes oferecidas a Deus. Por
esse motivo, o seu gesto é realizado, mas ele também ultrapassa o
culto de Israel.

O discurso de despedida
Agora que a refeição terminou, Jesus entrega seu testamento. João
apresenta duas versões sucessivas desse discurso de despedida, às
quais se acrescenta uma prece dirigida ao Pai, que é chamada desde
Clemente de Alexandria de prece sacerdotal. Composta pelo
Evangelista a partir das palavras do Mestre que ele lembrava, a
segunda versão foi provavelmente inserida pelo editor do evangelho
como uma variante brilhante, encontrada entre os papéis do
discípulo bem-amado. Com efeito, no final do capítulo XIV, lemos:
“Levantai-vos, vamos partir daqui”, em seguida o segundo discurso,
sempre no estilo de João, retoma em substância os mesmos temas
que o primeiro.46
“Filhinhos meus, por um pouco apenas ainda estou convosco. Vós
me haveis de procurar, mas como disse aos judeus, também vos digo
agora a vós: para onde eu vou, vós não podeis ir.” Dessa forma, ele
se despede dos seus. “Dou-vos um novo mandamento: Amai-vos uns
aos outros. Como eu vos tenho amado, assim também vós deveis
amar-vos uns aos outros. Nisto todos conhecerão que sois meus
discípulos, se vos amardes uns aos outros…” O comportamento de
caridade e amor fraternal é essencial. Provavelmente, a Lei não
ignora esse preceito. Mas o que é novo no mandamento de Jesus é
que, para ser verdadeiramente seu discípulo, aqueles que o seguem
devem viver de seu próprio amor.
Simão-Pedro, sempre generoso e impetuoso, mas lento em
compreender exclama: “Senhor, para onde vais?”, Jesus lhe
responde que aonde ele vai Pedro não pode segui-lo naquele
momento, mas acrescenta: “Tu me seguirás mais tarde”, alusão a seu
martírio futuro. Simão-Pedro volta a perguntar: “Por que te não
posso seguir agora? Daria a minha vida por ti”. Jesus respondeu:
“Darás a tua vida por mim!… Em verdade, em verdade te digo: não
cantará o galo até que me negues três vezes”.47
Depois ele retoma suas exortações. Que o coração deles não se
perturbe! Que eles acreditem em Deus, que acreditem também nele!
Na casa de seu Pai existem muitas moradas, senão ele lhes teria dito
que iria preparar um lugar para eles? “E, quando eu for e vos
preparar lugar, voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que,
onde eu estou, estejais vós também. E vós sabeis o caminho para
onde eu vou.”48 Mas Tomé intervém e objeta que eles não conhecem
esse caminho. Jesus lhe responde: “Eu sou o caminho, e a verdade, e
a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim. Se vós me tivésseis
conhecido, conheceríeis também a meu Pai. Desde agora o conheceis
e o tendes visto”. Filipe então exclama: “Senhor, mostra-nos o Pai, e
isso nos basta”. Jesus respondeu: “Há tanto tempo estou convosco, e
não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu:
Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em
mim?”.
Jesus prossegue. Quando ele estiver perto do Pai, prosseguirá sua
obra por meio daqueles que acreditam.49 Tudo que esses pedirem em
seu nome, ele fará para que o Pai seja glorificado no Filho. Ele
rogará ao Pai para enviar-lhes um “Paraclet”, isto é, um Defensor —
dito de outra maneira, o Espírito Santo, o Espírito da verdade. Esse
Espírito Santo lhes ensinará tudo e lhes recordará tudo o que ele lhes
disse. Assim, eles compreenderão o sentido das palavras que
permaneceram até então obscuras. Eles não ficarão isolados. “Não
vos deixarei órfãos, voltarei para vós outros. Ainda por um pouco, e
o mundo não me verá mais; vós, porém, me vereis; porque eu vivo,
vós também vivereis”.50 Essa é apenas uma despedida.
Judas, filho de Tiago (outro Judas do grupo, e não o Iscariotes),
pergunta: “Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao
mundo?”. Jesus não lhe responde diretamente: “Se alguém me ama,
guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e
faremos nele morada. Quem não me ama não guarda as minhas
palavras”. Ao recusar a palavra do Enviado, recusa-se também a
palavra do Pai e fica-se excluído de qualquer comunicação ulterior.51
Jesus faz suas despedidas: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos
dou…”.
Quando nos referimos ao evangelho de Lucas, Jesus ainda exorta
seus discípulos a se prepararem para futuros combates contra as
forças do Mal, contra o Príncipe desse mundo que se obstinará em
fazê-los cair.52 Eles deverão estar preparados para qualquer
eventualidade. Aquele que tem uma bolsa deve pegá-la! Aquele que
não tem uma espada, Jesus acrescenta metaforicamente, que ele
venda seu manto para comprar uma! Seus interlocutores lhe
respondem que eles já têm duas espadas. “É o bastante”, os
interrompe Jesus com lassidão. Eles ainda compreenderam mal! Ele
não lhes falava do momento presente, nem da necessidade de uma
luta armada, mas de combates espirituais e de perseguições que
iriam atormentá-los e contra as quais era preciso prevenir-se.
As refeições sagradas das confrarias dos fariseus terminavam, em
geral, por uma grande eucaristia ou com ação de graças: “Bendito
sejas tu, Senhor nosso Deus, Rei Eterno, Tu que nutres o mundo
inteiro com Tua Bondade, com Tua graça, com Tua Misericórdia e
com Tua afetuosa compaixão. Tu dás a toda carne seu alimento,
porque Tua misericórdia dura para sempre…”. Jesus substitui a ela a
longa “prece sacerdotal”. É um louvor dirigido a seu Pai que
apresenta, segundo o padre Xavier Léon-Dufour, a oscilação típica
das preces judaicas, em que se alternam um “olhar sobre aquilo que
aconteceu” e uma “abertura para o futuro”.53

Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o Filho te glorifique a
ti, assim como lhe conferiste autoridade sobre toda a carne, a fim de que ele
conceda a vida eterna a todos os que lhe deste. […] Pai santo, guarda-os em
teu nome, que me deste, para que eles sejam um, assim como nós. […]
Quando eu estava com eles, guardava-os no teu nome, que me deste, e
protegi-os, e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição, para que
se cumprisse a Escritura. […]Eu lhes tenho dado a tua palavra, e o mundo
os odiou, porque eles não são do mundo, como também eu não sou. Não
peço que os tires do mundo, e sim que os guardes do mal. […]Não rogo
somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por
intermédio da sua palavra; a fim de que todos sejam um…54

Depois desse louvor, Jesus dá o sinal de partida.


14

O comparecimento diante de Anás

No jardim das Oliveiras


Depois da refeição, em conformidade com a liturgia pascal que eles
quiseram antecipar, Jesus e seus discípulos cantam em ação de
graças os Salmos de Halel.1 Em seguida, eles deixam os muros de
Jerusalém para se retirarem aos pés do monte das Oliveiras. Ao
aproximar-se do Cedron — um curso d’água temporário sempre seco,
exceto no inverno —, o atalho torna-se estreito e íngreme. Depois de
ter passado a ponte, eles entram no jardim de Getsêmani.
O grupo inteiro subiu para Jerusalém com Jesus, que se encontra
lá apesar do frio. João e Lucas falam dos “discípulos” e não dos onze
apóstolos. As mulheres os seguiram ou ficaram com outros hóspedes,
na casa de João, na cidade? É impossível dizer. João Evangelista
provavelmente também se encontra lá, acompanhando-os por
amizade, para não perder nada das palavras de seu convidado.
Assim que chegaram, Jesus vê aproximar-se um grupo de homens
com tochas e lanternas. Esse grupo é composto de soldados da corte
do Templo, atrás do chiliarchos, por um lado; e, por outro lado, os
guardas e servidores dos sumos sacerdotes. Entre eles não se
encontra nenhum levita, cujo serviço fica limitado ao recinto do
Templo. A corte de que fala João não designa os seiscentos homens
da guarnição romana de Jerusalém, mas a guarda especialmente
destinada à vigilância do santuário, e o chiliarchos não é um oficial
romano superior delegado por Pôncio Pilatos, mas o chefe dessa
milícia judaica, o sagan Jônatas, de que já falamos.2
A detenção de Jesus é uma operação inteiramente organizada
pelas autoridades judaicas.3 É o resultado da deliberação do
Sinédrio. Nesse momento, os romanos não estão a par de nada.4
Além das lanternas e tochas, os homens do Templo carregam
espadas, enquanto os domésticos dos sumos sacerdotes erguem
cacetes e porretes em sinal de ameaça. Servindo-lhes de guia, Judas
Iscariotes os conduz ao jardim de Getsêmani, que ele conhece bem.
Naquela noite, no monte das Oliveiras, acampa uma multidão de
peregrinos que não encontraram alojamentos intramuros e que
dormem em cabanas feitas com ramos ou ao ar livre. É preciso
reconhecer os diferentes grupos, alguns que chegam de muito longe.
Alguns braseiros distribuem sua iluminação entre os troncos de
oliveira e a vegetação muito abundante que cresce debaixo das
árvores, particularmente nesse início de primavera.
Jesus, relata João, está consciente do que vai acontecer. Ele
enfrenta sua Paixão dolorosamente, mas livremente, com uma
determinação soberana. Sabe que a hora chegou e que a grande
provação não lhe será poupada. Ele se adianta, sai do jardim e vai
ao encontro dos soldados: “Quem procurais?”, pergunta Jesus. Eles
respondem: “Jesus, o Nazareno”. “Sou eu!”(Egô eimi). Os guardas
recuam e tombam. João, evidentemente, dá ao acontecimento toda
sua profundidade teológica. Em lugar de “Sou eu!”, Egô eimi pode ser
traduzido como “Eu o sou”, o que remete às afirmações anteriores do
Cristo, “Eu sou o pão da vida… o bom pastor… o caminho, a
verdade e a vida…”, mas remete igualmente a essa frase
extraordinária, relatada pelo mesmo autor: “Em verdade, em
verdade, eu vos digo: Antes que Abraão existisse, Eu sou!”, que tanto
havia escandalizado os fariseus.
Seria preciso deduzir dessas referências teológicas que o relato é
imaginário? Pierre Benoit, padre dominicano da Escola Bíblica e
Arqueológica de Jerusalém, pergunta-se se, naquele momento,
alguns soldados e guardas, ao recuarem, não tropeçaram nas
grandes raízes das oliveiras, apesar da lua cheia. Eles teriam se
reerguido na confusão.5 Esse pequeno detalhe teria servido para a
composição de João, que provavelmente estava com os Salmos 27 e
56 na cabeça: “Quando malfeitores me sobrevêm para me destruir,
meus opressores e inimigos, eles é que tropeçam e caem.6 […]No dia
em que eu te invocar, baterão em retirada os meus inimigos”.7
Em todo caso, o autor do quarto evangelho omite o relato do
famoso beijo de Judas, sinal combinado de que falam os evangelhos
sinópticos. Para dizer a verdade, a sua narração não se presta bem
para uma inserção como essa: não seria esse gesto, arquétipo do
beijo do traidor, apenas uma figura literária, cujo sentido simbólico
acentua a perfídia extrema? Vamos deixar de lado esse
comportamento teatral, embora seja de uso bastante corrente no
Oriente. Contrariamente ao relato de Marcos, que valoriza o papel
de Judas e o apresenta como dirigente do grupo de soldados, ele
serviu de simples denunciante.
Jesus, portanto, adianta-se até os soldados e os funcionários dos
sumos sacerdotes. Uma segunda vez ele pergunta: “Quem
procurais?”. Novamente, eles lhe respondem: “A Jesus, o Nazareno.
Então, lhes disse Jesus: Já vos declarei que sou eu; se é a mim, pois,
que buscais, deixai ir estes”. Jesus não esboça nenhum gesto de
defesa. Ele se preocupa com a libertação dos seus. Aceita ser detido,
mas pede que seus discípulos possam deixar livremente o local.
Simão-Pedro, sempre impulsivo, puxa então sua espada da
bainha e faz uma incisão na orelha do servidor do sumo sacerdote.
João, que conhece todo mundo entre os empregados dos sumos
sacerdotes, menciona o nome do ferido, Malco, e precisa que foi a
orelha direita a atingida. Jesus repreende Pedro: “Embainha a tua
espada. […]não beberei, porventura, o cálice que o Pai me deu?”.
Esse cálice representa, certamente, o cálice da amargura, evocado
no Antigo Testamento, o das últimas provações. Jesus quer manter-
se fiel à sua missão até o fim. Não é com violência que entramos no
reino! O tom é o mesmo em Mateus: que Pedro recoloque a espada
na bainha, porque aqueles que erguem a espada morrerão pela
espada! “Acaso, pensas que não posso rogar a meu Pai, e ele me
mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos?”8 No
Cenáculo, os apóstolos já não tinham compreendido que Jesus lhes
havia falado da necessidade de estar preparados: eles acreditavam
que era suficiente ter armas e utilizá-las…
Quem é esse Malco, servidor do sumo sacerdote? Segundo alguns,
ele seria o prefeito dos sacerdotes, submetidos às regras de pureza
sacerdotal. Seu ferimento tornava-o inválido para as funções de
sacrifício do Templo, daí o gesto de Pedro. Em sua obra Antiguidades
judaicas, Flávio Josefo relata um episódio similar, quando Antígono
II arranca a orelha de seu irmão e rival Hircano II com uma
dentada, de maneira a interditar seu acesso ao pontificado.9 Mas, se
acreditarmos em Josefo, esse nome de Malco ou Malikhos, bastante
difundido, designaria um escravo não judeu. No ambiente dos sumos
sacerdotes figuravam, com efeito, certo número de escravos. Se não
existiam mais escravos judeus na Palestina, subsistiam alguns vindos
de outros povos, especialmente dos nabateus. Esse Malco era talvez
o chefe dos domésticos enviados por Anás e Caifás.10 Lucas relata
que Jesus toca na orelha de Malco e o cura. João omite tal gesto,
que pertence provavelmente a uma lenda piedosa ulterior.
Enquanto os discípulos fogem, o comandante e os guardas se
apoderam de Jesus e o prendem como um criminoso comum,
segundo as leis. Um jovem vestido com linho branco, que se
encontrava no jardim, é detido. Mas, conseguindo tirar a roupa, ele
foge nu. Esse pequeno incidente, relatado por Marcos, deu o que
falar.11 Alguns pensaram que o jovem poderia ser o próprio
evangelista que teria, dessa maneira, participado discretamente da
cena. Entretanto, os Padres da Igreja afirmam que Marcos não foi
uma testemunha ocular; e eles provavelmente têm razão. Esse
personagem anônimo seria João Evangelista? Ele usava um chitôn
(uma túnica grega) e não estava, portanto, vestido de maneira
indecente, como sua nudez revelada — sinônimo de vergonha entre
os judeus — deixaria crer. Essa túnica de linho, tecido caro, faz
pensar, com efeito, em uma roupa de sacerdote: somente os
sacerdotes e as mulheres usavam linho, as pessoas comuns vestiam-
se com lã… Eram vestimentas amplas e sem costura, cortadas no
meio, formando um buraco que servia de abertura para o pescoço.
A sessão na casa de Anás
O grupo de soldados atravessa novamente o Cedron, passa ao sul
diante de duas tumbas monolíticas de pessoas importantes, com
remate de obelisco em forma de pirâmide, que ainda existem, com
suas colunas jônicas ou sua fachada esculpida,12 entra pelas ruas
entrelaçadas e chega ao palácio de Anás. O magnífico palácio
residencial que ocupa uma superfície de 750m2 entre o Templo e o
palácio real e que foi descoberto nos anos 1970-1980, por ocasião da
expedição de escavações feitas no velho bairro de Herodes na cidade
alta, seria o palácio da família de Anás? A hipótese sustentada por
Jacqueline Genot-Bismuth, especialista em judaísmo antigo e
medieval, não deve ser rejeitada, porque foi encontrado no mosaico
do vestíbulo dessa grande casa o triplo cacho de romãs, emblema
sacerdotal.13 Parece que esse bairro teria sido a cidade dos
Sacerdotes, com palácios pertencentes às grandes famílias
pontificais, aquelas de Ben Hanin (ou Anás), dos Boethus e dos Ben
Fiabi (Phabi). Essa cidade domina com seus altos muros a cidade
baixa e seus quarteirões populares.
Se admitirmos essa identificação, a topografia é fácil de ser
reconstituída, a configuração do andar térreo e as caves com
abóbadas foram bem conservadas. A entrada fica a oeste. Após uma
porta estreita, de um metro de largura, um corredor com dois metros
de comprimento e quatro degraus descendentes que dão para um
vestíbulo, estende-se o apartamento faustoso à moda romana, com
seus afrescos vermelhos no estilo de Pompeia. Observa-se à esquerda
uma vasta sala (o traqlin), de doze metros por sete, coberta de
estuque branco, ideal para uma sala de audiências. Para lá Jesus foi
conduzido. A leste, do outro lado de um pátio a céu aberto,
pavimentado com pedra calcária, estão instalados os apartamentos
particulares da família, dispostos à moda judaica, com o complexo
de banhos rituais, numerosos, as cozinhas e as salas de serviço. Se
essa morada — chamada de “casa queimada” —, destruída no ano
70, não é a de Anás, podemos supor que essa era uma casa vizinha à
dele e bastante semelhante.
Jesus penetra na casa. João prossegue seu relato: “Simão Pedro e
outro discípulo seguiam a Jesus. Sendo este discípulo conhecido do
sumo sacerdote, entrou para o pátio deste com Jesus”.14 Esse “outro
discípulo” é naturalmente o jovem João, nosso evangelista. Podemos
imaginar a cena. Em Getsêmani, todos os discípulos fugiram,
protegidos pela noite e pelos troncos pretos e as folhagens das
oliveiras, todos exceto Pedro e João, o discípulo bem-amado. Se esse
é o desconhecido que, durante a desordem da detenção, abandonou
sua túnica de linho para não ser reconhecido pela guarda do
Templo, ele teve tempo de recuperá-la depois da partida do grupo
armado, e os dois homens se encontraram na obscuridade. À
distância, eles percebem as lanternas e as tochas do grupo de
soldados que leva o prisioneiro para a casa de Anás. Eles os seguem.
João entra sem dificuldade. Lá ele se sente quase como em sua
própria casa. É o único íntimo de Jesus que tem relação direta com o
sumo sacerdote. “Sendo este discípulo conhecido do sumo
sacerdote…”, diz ele para designar a si mesmo:15 em grego gnôstos
designa um “familiar”. Talvez ele fosse um parente de Anás ou de
Caifás? Pedro não ousa entrar. Ele seguiu Jesus por fidelidade, mas
tem medo. Ele não tinha acabado de fazer uma incisão na orelha do
servidor do sumo sacerdote? Ele permanece no exterior, perto da
porta vigiada por uma mulher, uma servente da casa,
provavelmente uma escrava, que cumpria esse tipo de atribuição.
João sai, dirige-se a ela e faz seu companheiro entrar. Entretanto,
ela interpela Pedro: “Não és tu também um dos discípulos deste
homem?”. O advérbio também deixaria supor que a servente estava a
par do segredo de João. Pedro protesta: “Não sou!”. Ao atravessar o
vestíbulo, ele chega ao grande pátio pavimentado, onde os guardas,
que voltaram de sua missão, acenderam um braseiro. Nessa noite de
2 para 3 de abril do ano 33, faz frio (8o em média no mês de abril).
Pedro aproxima-se sem dizer nada e se aquece, enquanto João se
introduz livremente na grande sala para onde Jesus foi conduzido.
João não é preciso, porque ele gosta de compor cenas nas quais
dois personagens se enfrentam, mas podemos imaginar que há muita
gente ao redor de Anás: seu filho Jônatas, que conduziu a detenção,
dois outros filhos seus, Teófilo e Matias, tesoureiros do Templo,
hierarcas fariseus membros do alto sacerdócio, talvez alguns
doutores da Lei fariseus e uma parte dos conspiradores do Sinédrio,
com exceção de Caifás. Todos aqueles que não foram a Getsêmani
atrás de Judas esperam o resultado da expedição noturna.
O velho Anás (ou Anan) ben Seth, irmão de Yoshua (Josué),
antigo pontífice, como ele, está sentado na outra ponta da sala.
Imaginamos esse idoso solene, rígido e severo sob seu espesso
turbante e sua barba branca, imbuído de sua força todo-poderosa e
de sua autoridade moral. Havia dezoito anos, pouco depois da vinda
de Tibério, que ele não exercia mais o cargo de sacrificador supremo.
Provavelmente, ele acha injusto o fato de ter sido deposto, porque o
Livro dos Números considera que aquele que foi ungido com o óleo
santo permanece nessa posição até a morte.16 Entretanto, decano do
Sinédrio, chefe do clã pontifical, ele continua a usar o título
honorífico de sumo sacerdote, a beneficiar-se de honrarias, de
privilégios, levando um tipo de vida principesco. Por causa do seu
papel patriarcal, goza de um prestígio considerável, mais ainda do
que seu genro, o sumo sacerdote em exercício. Sua influência oculta
o torna o verdadeiro guia moral e espiritual da nação judaica,
apesar de suas pilhagens e de seu nepotismo, do qual se queixam
secretamente os habitantes da cidade. Flávio Josefo o qualifica ainda
de sumo sacerdote no fim do pontificado de Caifás.17
Ele interroga o prisioneiro — ainda amarrado — sobre seus
discípulos e seu ensinamento. Está curioso para ouvir o que esse
homem disse aos aldeões da Galileia e aos da Judeia no Templo. Ele
está interessado nos aspectos religiosos da doutrina desse pregador,
que atraiu tantas multidões e que lhe disseram ter sido discípulo de
João Batista. Com quem ele está ligado? Ele e seus discípulos
representam uma ameaça para Israel e sua fé? Ele tem a pretensão
de ser o Messias? Em si, isso não é uma blasfêmia. Mas ele não
chama Deus seu Pai (Abba)? Ele não deixa entender que é
verdadeiramente o Filho do Altíssimo? Ele não profetizou a
destruição do Templo? Tudo isso, Anás está convencido, faz pensar
demasiado em Jesus como um falso profeta, como os condena o
Deuteronômio.18 Por instinto, desconfia dos que são da Galileia. Foi
no início do seu pontificado que se produziu no norte do país a
revolta de Judas da Galileia.
Com tranquilidade, Jesus lhe responde que se dirigiu a todos, sem
se esconder, que ensinou nas sinagogas e no Templo. Ele não é um
feiticeiro ou um profeta esotérico que transmite um saber oculto. Seu
discurso é uma revelação. Intencionalmente, João Evangelista utiliza
o verbo lalein, que significa em grego bíblico a palavra reveladora
de Deus. Ele nunca conspirou na sombra contra as autoridades. Por
que está sendo interrogado? Se não acreditam nele, que eles
procedam a uma investigação profunda! Que questionem aqueles
que o escutaram: eles sabem bem! E são numerosos. Jesus, portanto,
solicita um verdadeiro processo, com a audição de testemunhas
autênticas, mas sem sucesso.
Habitualmente, as pessoas interrogadas pelo sumo sacerdote,
impressionadas e até mesmo aterrorizadas pela força todo-poderosa
do personagem, dão mostras de submissão, de humildade ou de
comportamento obsequioso, mas Jesus não estremece diante do
chefe moral da religião judaica, que detém os poderes da nação
junto com seu genro Caifás. Responde com autoridade e firmeza,
dando a entender que Anás está mal informado. Essa ousadia é
entendida como insolência. Um dos guardas o esbofeteia com força.
“Assim que falas ao sumo sacerdote?” Jesus lhe responde: “Se falei
mal, dá testemunho do mal; mas, se falei bem, por que me feres?”.
Foi, provavelmente, mais que um tapa que Jesus recebeu naquele
momento. A palavra grega rapisma também pode ser compreendida
como um golpe de bastão. No sudário de Turim, podemos perceber
uma tumefação importante na face direita e na base do nariz, na
junção do osso frontal e da cartilagem lateral superior que parece
fraturada. Sobre o sudário de Oviedo fez-se a mesma observação. O
objeto contundente que provocou o ferimento tinha pelo menos
quatro centímetros de diâmetro: um grande bastão. Alguns
comentadores atribuíram esse ferimento a uma das quedas de Jesus
por ocasião de sua subida ao calvário, mas, nesse caso, o ferimento
não teria aparecido nesse lugar.19 “Com um bastão fere-se a face
daquele que deve ser o dominador de Israel”, tinha anunciado o
profeta Miquéias.20
João, cujo objetivo não é o de mostrar o sofrimento e a
humilhação de Jesus, não insiste nisso.21 No seu evangelho, ele só dá
um curto resumo do interrogatório. O historiador lamentará a
sobriedade da testemunha ocular. Isso não é uma reportagem. Anás,
os membros da família sacerdotal e os doutores da Lei fariseus
buscaram compreender quem era esse homem que multidões haviam
aclamado como um libertador, alguns dias antes. É provável que os
interrogadores tenham pressionado Jesus com perguntas sobre sua
pretensão de ser o messias. É preciso completar esse resumo de João
com elementos tirados do “processo judaico” de Jesus, reescrito e
arranjado pelos evangelhos sinópticos? Essa atitude não é ilegítima,
em absoluto, com a condição de não pretender obter uma coerência
que não existe. A cronologia de João é a única que, historicamente,
serve de referência.
O livro de Mateus, situa de modo errado a cena do interrogatório
na casa de Caifás, o sumo sacerdote em exercício.22

Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de


Deus. Respondeu-lhe Jesus: Tu o disseste; entretanto, eu vos declaro que,
desde agora, vereis o Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso
e vindo sobre as nuvens do céu. Então, o sumo sacerdote rasgou as suas
vestes, dizendo: Blasfemou! Que necessidade mais temos de testemunhas?
Eis que ouvistes agora a blasfêmia! Que vos parece? Responderam eles: É
réu de morte. Então, uns cuspiram-lhe no rosto e lhe davam murros, e
outros o esbofeteavam.23

O relato de Mateus é plausível. No evangelho de Marcos, o sumo


sacerdote diz: “És tu o Cristo, o filho de Deus?”. A expressão
“Bendito”, para designar Deus na antiga Israel, é desconhecida na
literatura veterotestamentária, mas sabemos que era costume
empregar epítetos de substituição em lugar do nome divino. Seria
esse um sinal da antiguidade da tradição? Para alguns exegetas, ao
contrário, isso seria a prova de que a expressão não é histórica.24 É
difícil pronunciar-se a respeito. Podemos, no entanto, admitir que,
depois de ter escutado as respostas de Jesus, Anás, com um gesto
teatral, que no Oriente simbolizava uma reprovação violenta, tenha
rasgado sua túnica (e não a veste de cerimônia de sumo sacerdote
que ele usava no Templo) e tenha perguntado para a assistência se
esse homem merecia a morte, um pouco como para confirmar ou pôr
em execução a sessão do Sinédrio, inusitadamente rápida, na qual o
acusado não esteve presente. Pretender sentar-se algum dia à direita
do Todo-Poderoso e vir sobre as nuvens significa reivindicar uma
posição divina, o que é escandaloso para os judeus.
É possível também que as zombarias e as humilhações que Jesus
teve que suportar tenham sido mais violentas que o violento golpe
de bastão de que fala João. Depois que Anás e os hierarcas de
Jerusalém partiram, os guardas, os servidores do dono dos locais, os
escravos — os “cachorros sanguinários”, dirá são João Crisóstomo —
aproveitam para se divertir. Cospem no rosto de Jesus, espancam-
no. As cuspidas são sinais de desprezo na Bíblia. Colocam um véu em
seu rosto e pedem-lhe: “Imite o profeta. Quem bateu em você?”. Isso
relembra o chalkè muia, o jogo de cabra-cega, já praticado na
Antiguidade. Eles tratam de ridicularizar os talentos proféticos de
Jesus. Foi, provavelmente, nesse momento que lhe arrancaram uma
parte da barba (no sudário, a barba é degredada à esquerda), porque
essa era a punição reservada aos blasfemadores. “Ofereci as costas
aos que me feriam e as faces aos que me arrancavam os cabelos”,
tinha profetizado Isaías.25
Devemos observar a útil precisão de Lucas acerca da cena dos
ultrajes. Não foram o sumo sacerdote e seus próximos, membros do
Sinédrio, que se rebaixaram para violentar o prisioneiro,
diferentemente do que Mateus deixa supor, mas foram os guardas e
os servidores.26 Lucas provavelmente ficou sabendo por João o
detalhe do rosto coberto, o que prova que Jesus ainda tinha as mãos
atadas. Mas, delicado, o médico de Antíoco atenua as humilhações
suportadas por Jesus, como tudo o que atinge muito a sua dignidade.
O que permanece é que a audiência informal diante de Anás não
foi nem um interrogatório em boa e devida forma, nem uma
instrução preliminar, ignorada pelo procedimento judaico, e menos
ainda um processo diante do Sinédrio, como Marcos apresenta, mais
afastado da realidade histórica que Mateus. Essa sessão não tem
nenhum valor jurídico ou político. É até duvidoso que os habituais
secretários-funcionários (hazzam) [escrivães, atualmente], que estão
presentes nas audiências do Sinédrio, tenham sido convidados e
tomado notas em suas tabuinhas de cera com a finalidade de
transcrever o relatório da audiência sobre papiro ou pergaminho.
Jamais saberemos com certeza, porque o local dos arquivos foi
queimado com o Templo no ano 70…

Jesus jamais compareceu diante do Sinédrio


Caifás, o sumo sacerdote em função, convocou de manhã, logo cedo,
uma nova sessão do Sinédrio, para fazer Jesus comparecer diante
dele? Essa é a versão adotada por Lucas para combinar com suas
fontes pré-sinópticas. Segundo Mateus e Marcos, teria havido duas
sessões do Conselho supremo, uma à noite (que corresponde, em
verdade, ao comparecimento informal de Jesus diante de Anás) e
uma de manhã. Essa última sessão não tem nada de histórico e até se
choca com diversas impossibilidades. Os historiadores judaicos
destacaram, com toda a razão, as poucas horas que decorreram
desde a detenção de Jesus até sua morte. Nesse curto espaço de
tempo, como eles teriam podido constituir, ao mesmo tempo, uma
documentação com testemunhas de acusação e convocar os setenta e
um membros do Sinédrio para uma sessão à noite ou logo cedo?
Nesse caso, vários pontos de direito judaico se impõem. Segundo
a Mishná, um processo criminal não pode ser realizado à noite. Na
verdade, essa compilação de regras e de comentários data do final
do século II, consequentemente, depois da queda de Jerusalém, mas
ela retoma certo número de prescrições antigas. “Em todos os povos,
e particularmente nos povos da Antiguidade”, escreve o historiador e
jurista Jean Imbert, “o direito penal é aquele que permanece mais
estável, aquele no qual o conservadorismo se manifesta com maior
vigor.”27 A interdição de fazer uma audiência à noite, por exemplo,
já existia no século I, pois nos Atos dos Apóstolos vemos que Pedro e
João, filhos de Zebedeu, detidos à noite pelas autoridades judaicas,
só comparecem na manhã seguinte diante do Sinédrio.28 O mesmo
aconteceu com Paulo.29 Por outro lado, as regras estipulavam que,
em caso de abandono de uma ação ou de absolvição da ação judicial,
a decisão deveria ser aplicada imediatamente, ao passo que, em caso
de condenação à morte, os juízes deveriam reunir-se novamente no
dia seguinte, a fim de proteger o condenado: após esse prazo de
reflexão, somente os que tinham votado pela morte deviam
confirmar seu voto ou mudar de opinião. Além do mais, os debates
judiciários não podiam ser introduzidos na véspera de um sabá ou de
um dia de festa. Ora, nada disso foi respeitado no caso de Jesus.
Se supusermos que os sumos sacerdotes tenham decidido pela
convocação rápida de uma sessão do Sinédrio, teria sido oportuno
fazê-lo? Os membros do Sinédrio que não estavam entre os
conspiradores, tal como Nicodemos e José de Arimateia, teriam
podido assumir a defesa de Jesus; tentariam obter uma prorrogação,
pelo menos para respeitar a legalidade. E o que teria, então,
acontecido nessa cidade apinhada de pessoas, onde os discípulos e
admiradores de Jesus já tinham se manifestado por ocasião da sua
entrada triunfal? Não, era preciso se desembaraçar o mais
rapidamente possível desse arruaceiro. Não se pode imaginar, além
do mais, uma sessão clandestina do Grande Conselho, enquanto
permanecesse em Jerusalém o suscetível e imperioso Pôncio Pilatos.
Os prudentes e fracos colaboradores do ocupante romano, os sumos
sacerdotes, teriam se precavido, de maneira correta, de dar um
passo em falso no exato momento da restituição das vestes
sacerdotais sagradas, indispensáveis para a realização da liturgia do
sacrifício. Devemos, uma vez mais, nos ater à versão de João, mais
próxima da realidade. Esse jamais fala de uma sessão. Conhecemos a
objeção clássica: a omissão seria voluntária, o procedimento teria
sido escrito pelos outros evangelistas. Mas o argumento não se
mantém, pois seu evangelho, como sabemos, é independente dos
evangelhos sinópticos. Se João não fala da sessão — João, que fazia
parte das grandes famílias de sacerdotes de Jerusalém — é porque a
sessão jamais ocorreu. Não houve processo judaico contra Jesus, com
o comparecimento do acusado, audição de testemunhas e veredito
pronunciado.
Assim, é um equívoco dos evangelhos apócrifos quando evocam
uma sessão do Sinédrio na noite de quinta para sexta-feira ou na
manhã de sexta-feira. Trata-se apenas de uma amplificação literária
da sessão na casa de Anás, da qual eles ouviram um rumor e que
devia agrupar os sacerdotes e os fariseus mais hostis a Jesus, mas
certamente sem a presença completa do Alto Conselho de Israel.
Levando em conta seu esquema biográfico, que os levou a
concentrar na Semana Santa os acontecimentos que se desenrolaram
em Jerusalém ao longo de toda a vida pública de Jesus, aqueles que
estavam presentes na casa de Anás juntaram num processo fictício o
conjunto dos elementos que opunham Jesus às autoridades judaicas:
a palavra no Templo, a proclamação messiânica, a condenação por
blasfêmia… Essa privação de um processo em boa e devida forma foi
uma falta grave cometida por Anás e Caifás. “Nossa legislação, já
tinha se indignado Nicodemos, condenaria um homem sem tê-lo
escutado e sem saber o que ele fez?”

A tripla negação de Pedro


Agora, é preciso apressar-se. Jesus, detido na quinta-feira, na
antevéspera da Páscoa, deve ser executado antes do início da festa.
Os dois grandes sumos sacerdotes decidiram dessa maneira. Durante
o interrogatório, Pedro, no pátio interior, misturado com os guardas
e os servidores, continua a aquecer-se ao lado de um fogo de carvão.
Ele está em pé, diz João. Alguém o olha com atenção e lhe pergunta:
“Não és também tu um dos seus discípulos? Ele negou, e disse: Não
sou”. Lucas e Marcos oferecem um detalhe tirado, talvez, de uma
boa fonte, dito de outra maneira, do próprio Pedro. O homem que
olha para Pedro com atenção teria acrescentado: “Também é
Galileu”, mostrando que ele o reconheceu por causa do seu forte
sotaque do Norte. “Tua fala é semelhante”, Mateus também o faz
dizer. Pedro jura, exalta-se. Mas ninguém recebeu ordens de deter os
discípulos do prisioneiro. Um pouco mais tarde, um dos servidores
de Anás — um parente de Malco, precisa o minucioso João —
retoma: “Não te vi eu no jardim com ele?” Novamente, Pedro nega e
se esquiva. No mesmo instante, um galo canta. Lucas nos mostra,
então, Jesus, que provavelmente foi levado para o pátio enquanto
aguardava sua transferência para a casa de Caifás, se voltando e
olhando para Pedro. Será que Lucas fica sabendo dessa cena por
João, que a teria omitido no seu evangelho? Em todo caso, ela é
muito bela e comovente.30 Pedro percebe o que ele acaba de fazer e
se lembra da advertência de Jesus. Ele sai do palácio e chora
amargamente.
Os judeus não gostavam muito dos que vinham da Galileia por
causa dos vermes e de outros animais impuros que encontravam
raspando a terra, mas havia alguns desses vermes em Jerusalém, nos
jardins particulares. Na primeira bênção da manhã, como observa
Schalom Ben-Chorin, o Senhor Deus era louvado por ter dado ao
galo a inteligência de distinguir a noite do dia; não haveria certa
ironia no propósito de Jesus ao olhar para Pedro, que era incapaz de
distinguir a luz das trevas?31
Voltemos a Jesus. A melhor maneira de desembaraçar-se dele é
enviá-lo às autoridades romanas, que dispõem da força e do direito.
Caifás, que utilizava as formas mais valiosas da bajulação para
amansar Pôncio Pilatos, provavelmente dando a ele importantes
somas de dinheiro todos os anos para manter-se em sua função,
planejava conseguir rapidamente seu consentimento. Por isso, Anás
decide transferir Jesus, durante a noite, para a casa de seu genro.32
De manhã, Anás e Caifás em pessoa, cercados por seus cúmplices,
sobem até a residência de Pôncio Pilatos, prefeito da Judeia.

Judas, o arrependimento e a morte


Antes de voltar ao processo, vamos dizer algumas palavras sobre o
trágico destino de Judas. No Novo Testamento, existem duas versões
diferentes, a de Mateus e a de Lucas. Para o primeiro, Judas, ao
saber da condenação de seu antigo mestre pelo poder romano, é
assaltado pelo remorso e relata aos sumos sacerdotes e aos antigos o
preço de sua traição: “Pequei, traindo sangue inocente”. Esses lhe
respondem: “Que nos importa? Isso é contigo” Judas lança então as
trinta moedas de prata no recinto do Templo e vai se enforcar, como
fez antigamente Aitofel, que tinha desejado entregar Davi. Os sumos
sacerdotes, considerando que não era permitido retornar esse
dinheiro ao tesouro, porque era o “preço do sangue” (e, por isso,
tornara-se impuro), o utilizam para comprar um campo perto de
Jerusalém, o campo do oleiro, para lá sepultar os estrangeiros. Esse
campo, explica Mateus, será chamado “até este dia” o campo do
Sangue.
A versão de Lucas, nos Atos dos Apóstolos, é um pouco diferente.
No seu relato, não são mais os sumos sacerdotes que compram uma
terra, mas Judas, que o faz “com o salário de sua injustiça”. Mas ali,
“precipitando-se, rompeu-se pelo meio, e todas as suas entranhas se
derramaram”. Por essa razão, os habitantes chamaram essa terra
Aceldama (ou Akeldama), “campo de Sangue”. E Lucas faz referência
a esse local desértico citando o livro dos Salmos: “Seja devastadora a
sua morada, não haja quem habite em suas tendas!”. As tentativas
para harmonizar as duas versões jamais foram muito convincentes.33
Lucas parece menos confiável que Mateus, que fez uma pesquisa
aprofundada nos recintos do Templo, trazendo informações
preciosas sobre a Paixão.34
O fim trágico de Judas, mantido na memória dos primeiros
cristãos, deu origem a muitas especulações. É muito difícil dizer se o
traidor foi tomado por um remorso lancinante e autêntico, como
pensava Orígenes,35 quando avaliou com atraso as consequências do
seu ato. Ele não teria compreendido que as autoridades de Jerusalém
desejavam a morte de Jesus. Entretanto, este havia anunciado aos
Doze em várias ocasiões que o Filho do Homem seria entregue aos
sumos sacerdotes, aos antigos e àqueles que liam e interpretavam a
Lei, e que ele seria executado! Ao devolver as moedas de prata,
parece que Judas quis se isentar de suas responsabilidades, talvez
anular a maldição que o atingia. Ele não carregava em si todo o
horror dos hebreus pelo derramamento de sangue inocente, tal como
o estigmatizava o Deuteronômio: “Maldito aquele que aceitar
suborno para matar pessoa inocente?”36 Mas, finalmente, não
podendo suportar a vergonha, Judas foi se enforcar, acrescentando
a desonra de atentar contra a própria vida. Observamos, por fim,
que Mateus fala do “campo do oleiro” como de um local conhecido
pelos habitantes de Jerusalém, que serve de sepultura para os
estrangeiros. Esse campo, diz ele, foi chamado “campo do Sangue”,
até este dia, o que prova que, quando ele escrevia seu evangelho, os
romanos ainda não tinham esvaziado Jerusalém de sua população,
expulsando-a ou reduzindo-a à escravidão, como fizeram no ano 70.
Esse campo — haquel dema, em aramaico — estaria situado a
sudoeste da cidade, na confluência dos vales de Cedron, de Tiropeon
e de Hinon.
15

O processo romano

Pôncio Pilatos
Entra, então, em cena Pôncio Pilatos, da ordem equestre, isto é,
membro da pequena aristocracia romana (por oposição à ordem
senatorial), prefeito da Judeia de 26 a 36. Seu nomen (nome),
Pôncio (Pontius) — nome de sua gens (gente, seu clã) —, era de
origem samnita (ramo dos sabinos habitantes dos Abruzos). Seu
cognomen — sobrenome —, que representava sua família, era um
derivado de Pilum, a lança, a arma dos legionários. Para ter
merecido esse sobrenome de “o homem da lança”, ele era habilidoso
no manejo dessa arma? O cargo de prefeito era essencialmente
militar, não é despropositado pensar que ele havia se tornado ilustre
nas armadas romanas. Em compensação, seu praenomen (nome
próprio) é desconhecido (alguns propuseram Lucius, sem prova).
Segundo algumas fontes, ele vinha de Sevilha e tinha se casado com
Cláudia, filha de Júlia e neta do imperador Augusto, com o
consentimento de Tibério. O evangelho apócrifo de Nicodemos a
chama de Cláudia Prócula.
Não temos dele nenhum escrito; duas linhas, no máximo, são
consagradas a Pôncio Pilatos nas obras de História Antiga e, no
entanto, ele é universalmente conhecido. Milhões de cristãos pelo
mundo o nomeiam ao recitar o Símbolo (Credo) dos Apóstolos ou o
Credo de Niceia): “Ele sofreu sob Pôncio Pilatos…”, “Crucificado por
nós por Pôncio Pilatos…”. O modesto prefeito da Judeia não podia
imaginar tão grande — e tão sulfurosa — fama, enquanto o mundo
esqueceu até o nome de poderosos césares romanos. O processo e a
morte de Jesus, pelos quais, em definitivo, ele é responsável, estão
na origem de sua notoriedade.1
Ele não era procurador, ao contrário do que pensavam Flávio
Josefo, Fílon de Alexandria e mesmo Tácito, que prognosticavam
sobre a titularidade dos governadores da Judeia, mas prefeito. Uma
pedra descoberta em 1961 em Cesareia Marítima pela missão
arqueológica italiana do Instituto Lombardo de Ciências e Letras,
missão encarregada de desprender uma pequena escada da orquestra
do teatro da cidade, traz, com efeito, a menção, infelizmente
incompleta.

[…] PONTIUS PILATUS [PRAEF] ECTUS IUDA [EA]E

Esse bloco de calcário (82x68x21cm), que servia de pedra de


preenchimento, está conservado atualmente no Museu de Israel em
Jerusalém. A inscrição tinha, de início, servido para a dedicatória de
uma construção que conhecemos mal, que Pilatos tinha mandado
construir por volta do ano 31 em honra a Tibério, o Tiberium.2
O procurador, no período de Augusto, era o representante
pessoal do imperador, encarregado de recolher em suas
propriedades os rendimentos privados e os impostos particulares.
Esse era, consequentemente, um agente financeiro e fiscal que se
ocupava dos interesses de seu mestre. Mais tarde, em razão da sua
ligação com o imperador, a função ganhou prestígio e absorveu a
função de prefeito. Mas foi somente a partir do reinado de Cláudio
(41-54), sucessor de Calígula, que os governadores de províncias, de
nível equestre, vão ter o título de procurador.
O prefeito, sob Augusto e Tibério, era um administrador público
que recebia uma delegação do poder imperial e exercia funções
militares e judiciárias.3 A província romana da Judeia, cujo
encarregado era Pilatos, abrangia a Judeia geográfica, a Samaria ao
norte e a Idumeia palestina ao sul. Ela era limitada no sudeste pelo
reino da Nabateia, a leste pela Pereia, ao norte pelas dez cidades da
Decápolis (colocadas sob a jurisdição do legado da Síria), da Galileia
de Herodes e da província romana da Síria.
O prefeito da Judeia comandava as tropas estacionadas em seu
território. Os efetivos não eram muito numerosos, prova da calma
relativa que reinava nessa época: um esquadrão de cavalaria e cinco
coortes de infantaria, ou seja, no total, pouco mais de três mil
homens, dos quais seiscentos estavam permanentemente baseados
em Jerusalém, na Fortaleza Antônia, a noroeste do Templo, e antigo
palácio de Herodes. O restante do exército estava acantonado nas
duas grandes cidades de guarnição militar, a antiga Samaria, que se
tornou Sebaste, e Cesareia Marítima, que servia de capital
administrativa, bem como em algumas fortalezas da Judeia, como a
de Kyrpos ou Massada. A maior parte dos soldados era recrutada
entre pagãos, da região sírio-palestina, judeus que estavam isentos
do serviço na armada romana. Esse recrutamento local explica a
brutalidade dessas pessoas em relação aos judeus. Por pertencerem
aos exércitos auxiliares, eles não podiam tornar-se cidadãos
romanos, a não ser no final de seu serviço, ou seja, ao cabo de vinte
e cinco anos.
Pilatos sucedia a quatro governadores sobre os quais temos
poucas informações, Copônio (6-9), Marco Ambíbulo (9-12), Ânio
Rufo (12-14) e Valério Grato (15-26). Tibério tinha o hábito de
deixar os agentes longínquos durante muito tempo no mesmo local,
para que eles não procurassem enriquecer muito rapidamente. Por
isso, a administração de Valério Grato durou onze anos, e a de
Pilatos, onze ou doze anos.
Em virtude do imperium (autoridade) recebido do imperador, o
governador exercia a suprema jurisdição criminal e civil, deixando
aos tribunais nativos o cuidado de ocuparem-se com os assuntos
subalternos. Ele dispunha, é claro, do direito de condenar à morte
um soldado cidadão romano (o jus gladii, inerente ao seu cargo) e,
com maior razão, um estrangeiro.4
Entretanto, Pilatos não dirigia uma província com pleno poder.
Estava submetido ao controle do legado potente e prestigioso da
província da Síria, escolhido entre os senadores. Esse último
dispunha de exércitos muito mais numerosos: quatro legiões — a VI
“Ferrata”, a X “Fretensis”, a III “Gallica” e a XII “Fulminata”, cada
uma delas com 5.120 homens —, sem contar com os contingentes
auxiliares, que podiam abastecer os régulos clientes de Roma, como
Herodes Antipas. Isto significa que, com quase 25 mil homens, a
mais possante armada do Oriente, a pax romana (paz romana) da
região dependia desse legado.

Um homem brutal e desastrado


Flávio Josefo e, sobretudo, Fílon de Alexandria esboçaram um
retrato de Pilatos provavelmente excessivo: um homem duro,
desprezível, cruel, conhecido por seus abusos de poder, seus ultrajes
gratuitos, suas pilhagens, suas execuções sumárias, seu ódio pelos
judeus que ele administrava e por violar abertamente seus costumes
religiosos. Atualmente, os historiadores atenuam tal julgamento,
sendo mais cautelosos ao dar uma descrição dele como um tirano
louco e execrável. Pilatos era um administrador brutal, servidor
zeloso do imperador, firme em suas ordens, sem ser desequilibrado, e
de modo algum um monstro sedento de sangue. Provavelmente,
para manter a ordem, acreditava mais na exemplaridade de algumas
execuções do que na persuasão das pessoas. Mas reconhecia também
a necessidade de ter o apoio de pessoas ricas importantes e da
aristocracia sacerdotal para governar. Sua longa cumplicidade com
o grande sacrificador José, chamado Caifás, prova sua sagacidade.
Quando chegou à Palestina, em lugar de substituir Caifás por uma
pessoa conhecida dele, ele o confirmou e apoiou seu poder. Dito isso,
era rígido e desastrado, faltava-lhe diplomacia e senso psicológico.
Não procurava compreender os costumes daqueles que ele
administrava, um defeito particularmente grave em um país com
população heterogênea (judeus, samaritanos, pessoas da Idumeia),
formada por pessoas consideradas revoltosas, que prezavam muito a
sua autonomia e a sua fé ancestral.5
Diversos exemplos ilustram esse retrato de Pilatos. Pouco depois
que assumiu sua função, no ano 26, contrariamente a seus
predecessores, que tinham tomado o cuidado de respeitar as
tradições judaicas, ele tinha ordenado a seus exércitos para entrarem
em Jerusalém à noite com estandartes, que tinham suspensos em
suas lâmpadas a efígie do imperador reinante. Os estandartes
romanos tinham um caráter religioso: os soldados os montavam
perto dos altares e lhes ofereciam sacrifícios. Uma festa, a Natalis
signorum, lhes era consagrada. Circunstância agravante, a Fortaleza
Antônia, próxima ao Templo, onde os estandartes tinham sido
instalados, conservava as vestes de festa do sumo sacerdote judeu.
Os predecessores de Pilatos, evidentemente, tinham feito entrar em
Jerusalém os estandartes dos exércitos à sua disposição, mas tinham
tido o cuidado de retirar deles os retratos de César, sabendo que a lei
dos israelitas não admitia representações humanas em locais
sagrados.6 Pilatos tinha ordenado primeiro encobri-los para depois
descobri-los.
Os judeus, tanto os da cidade como os do campo, furiosos,
promoveram manifestações durante cinco dias diante da sua
residência, em Cesareia. Pilatos não cedeu, menos por obstinação do
que por temer uma reação do imperador, particularmente suscetível
em relação aos insultos às imagens romanas. No sexto dia, Pilatos
mandou cercar os manifestantes com soldados armados, ameaçando
massacrá-los se eles não se retirassem, mas os judeus não
aquiesceram e se deitaram no chão, prontos para morrer em lugar
de aceitar a transgressão da Lei que impedia o culto de imagens e de
ídolos. Pilatos, surpreso com essa determinação, recuou diante de um
banho de sangue. Ele retirou os estandartes da Cidade Santa. “Este
episódio”, sublinha o historiador americano B. C. McGing, “revela
em Pilatos uma curiosa mistura de provocação, de indecisão, de
teimosia e, finalmente, de fraqueza.”7 A esses epítetos, poderíamos
acrescentar a dissimulação, visto que a entrada dos estandartes tinha
sido feita em segredo, na calada da noite.
Essa vontade de afirmar o poder pagão de Roma diante das
crenças judaicas se encontra na moeda adotada por ele. Ao lado das
moedas imperiais fundidas na Antioquia, capital da Síria, algumas
peças foram cunhadas na Cesareia Marítima e postas em circulação
na Judeia. Sem querer ferir a consciência religiosa de seus
administrados — ele não vai, como Calígula, mais tarde, desejar
erigir uma estátua com a sua efígie dentro do Templo —, ele faz
representar sobre as moedas de bronze, os leptons (moeda judaica
com o valor equivalente a meio-quadrante romano, ou seja, um
oitavo de um as [moeda romana em cobre]), símbolos ligados ao
culto imperial. Ele reproduz sobre algumas moedas um lituus (bastão
episcopal para os augúrios) e sobre algumas outras moedas um
simpulum (uma concha que serve para verter o vinho por ocasião dos
sacrifícios de libação), o que era uma maneira de exaltar a felicitas
(bênção) da função imperial e o seu caráter religioso. Seus
predecessores, mais prudentes, tinham se contentado com símbolos
mais inofensivos: espiga de cevada e tamareira com oito ramos para
Copônio e Ambíbulo, cornucópia da abundância ou ramo com nove
folhas por Valério Grato. Três cunhagens foram realizadas por
Pilatos: em 29 (com a menção LIS, o que corresponde ao ano 16-17
do reinado de Tibério), no ano 30 (com LIZ, ano 17-18) e em 31
(com LIH, ano 18-19).
Pilatos procurava fazer provocações calculadas, mas calculava
mal! Subestimando a cultura e a sensibilidade judaicas, ele fornece
outras mostras de falta de habilidade. Um grave incidente,
brevemente relatado por Lucas no seu evangelho, teria ocorrido por
ocasião de uma festa de Páscoa: as pessoas da Galileia que vieram
ao Templo foram massacradas e seu sangue foi misturado ao dos
animais oferecidos em sacrifício. Parece que Jesus não esteve em
Jerusalém durante aquela Páscoa — talvez a segunda de seu
ministério —, porque tiveram que lhe contar o episódio. Outro
assunto explode pouco depois. Para financiar a construção de um
aqueduto de vinte e cinco quilômetros — uma intenção em si
louvável —, Pilatos havia tirado dinheiro do tesouro sagrado do
Templo. Esse tesouro, chamado korbonas, gerado por prepostos
escolhidos entre os sacerdotes, era imenso: vestes, ornamentos em
vasos sagrados, donativos espontâneos feitos por judeus religiosos. O
tesouro era alimentado por meio shekel (o shekel era a moeda
corrente dos judeus), que todo judeu homem de vinte e um anos ou
mais devia dar todos os anos. Os fundos recebidos serviam para as
necessidades de culto, mas também para o bem-estar e para alguns
trabalhos de reorganização urbana. Naturalmente, eles não estavam
à disposição do ocupante romano, por isso o escândalo ocorreu.
Mesmo o poderoso Pompeu, quando chegou à Palestina, não tinha
ousado tocar no tesouro. É provável que Pilatos, a fim de permitir
que seus homens penetrassem na sala do tesouro, tivesse extraído à
força o acordo de Caifás e dos principais responsáveis. Os judeus
haviam protestado violentamente. Por ocasião de sua vinda a
Jerusalém, eles tinham vaiado e injuriado o governante, cercando o
tribunal que Pilatos tinha instalado na praça do palácio. Pilatos
tinha previsto sua reação. Seus soldados estavam vestidos com
roupas civis e armados com porretes. Repentinamente, do alto do
seu trono, Pilatos fez o sinal combinado. Os soldados cercaram os
manifestantes e bateram num grupo de pessoas, ultrapassando,
provavelmente, as ordens dadas.8 Na confusão furiosa que se seguiu,
pessoas foram pisoteadas e sofreram agressões, houve mortos e
feridos. A multidão fugiu desvairada e aterrorizada.
Esse retrato de Pilatos corresponde muito pouco àquele que os
evangelhos sinópticos apresentam, nos quais vemos o prefeito
embaraçado se comportar com rodeios diante das hierarquias de
Jerusalém, manifestando certa benevolência em relação a Jesus e
procurando salvá-lo de uma condenação à morte. Esse governador
terrível, investido da autoridade imperial, que não estava em sua
primeira execução, aparece nos evangelhos sinópticos como um
débil chefe indeciso, que teme condenar um inocente, influenciado
pelos sonhos de sua mulher e, finalmente, como alguém fraco. Por
pouco nossos evangelistas fariam dele um homem bom e justo. De
repente, eles foram acusados de desejar lisonjear a posteriori o poder
romano, sob o jugo do qual viviam as primeiras comunidades cristãs,
culpando as autoridades judaicas pela morte de Jesus. Talvez haja
uma parte de verdade nessa crítica, mas essa diferença também
pode ser explicada por uma má percepção de seu papel. O drama
que se desenrolou em Jerusalém na Páscoa do ano 33 e a atitude
pelo menos ambígua de Pôncio Pilatos só podem ser compreendidos
por um acontecimento que se produziu em Roma alguns meses
antes. Um contexto que os próprios exegetas e os historiadores quase
sempre negligenciaram.

Um homem de Sejano?
Em 18 de outubro do ano 31, Lúcio Élio Sejanus, chamado Sejano,
braço direito e amigo de Tibério, foi detido e estrangulado por
ordem do imperador na prisão de Tullianum. Esse personagem
ávido, cruel e corrompido havia feito uma carreira fascinante,
começando como prefeito no Egito à sombra de seu pai. Em Roma,
conquistando a confiança de Tibério por causa de suas qualidades
militares, tornou-se prefeito do pretório, comandante da guarda
pretoriana. Tinha reinado sobre a administração imperial, colocando
nos postos-chave seus protegidos e seus cúmplices, a ponto de poder
atingir o poder do seu mestre, que ele ambicionava substituir. Já
tinha depurado o Senado, semeado a discórdia no seio da família
imperial e multiplicado as intrigas no palácio. Depois, havia se
desembaraçado de Druso, filho do imperador e herdeiro do trono,
fazendo com que a sua própria mulher Livila, que se tornara amante
de Sejano, o envenenasse. Tibério, cujos olhos enfim se abriram,
desembaraçou-se dele no momento oportuno.
Pôncio Pilatos era um de seus homens? Seu biógrafo, Jean-Pierre
Lémonon, não pensa assim. Porém, outros historiadores, como
Arthur Loth, Paul L. Maier, Ernst Bammel, são de opinião contrária.9
Sejano foi quem teria nomeado Pilatos para Jerusalém no decorrer
do verão do ano 26, numa época em que ele assumia o governo
imperial, enquanto Tibério se retirava e estabelecia sua residência
num promontório distante que estava situado acima de Capri. Seja
como for, Pôncio Pilatos devia ter se comportado como um
protegido fiel, sem o que teria sido substituído.
A queda do potentado romano, que tinha sido acompanhada por
uma reviravolta política de grande importância, fragilizava
consideravelmente a sua posição. A depuração tinha sido difícil e
numerosos funcionários haviam sido destituídos. Sejano havia
perseguido os judeus por toda a Itália.10 Depois de sua execução,
Tibério cuidou, ao contrário, de melhorar a situação dos judeus no
império, assinando um édito de tolerância e mandando os
governadores das províncias respeitarem seus costumes.
Pilatos diminuiu discretamente suas provocações calculadas. Ele
cessou qualquer cunhagem nova de moedas11 e multiplicou os sinais
de submissão e de lisonja em relação ao imperador. No ano 31, em
Cesareia, empreendeu, como dissemos, a construção do Tiberium.
Alguns meses mais tarde, acreditou ser solícito ao instalar no seu
palácio de Jerusalém escudos de ouro com o seu nome e o de
Tibério.12 Esses escudos não eram revestidos com qualquer efígie.
Pilatos achava que os judeus não se ofenderiam com isso, apesar do
sentido religioso da dedicatória.
Isso foi prova de uma imensa falta de habilidade! Uma delegação
conduzida por quatro filhos de Herodes, o Grande, veio protestar
solenemente, lembrando-lhe dos compromissos de seu mestre. “Não
nos provoque para a revolta e a guerra, disseram eles, não procure
perturbar a paz!” Palavras firmes acompanhadas de uma ameaça: se
Pilatos se recusasse a ouvi-los, enviariam deputados para Roma.
Entre os príncipes das famílias Herodes presentes, encontravam-se
Herodes Antipas, Filipe de Itureia, e talvez Herodes Filipe, pai de
Salomé. Alguns gozavam da amizade de Tibério, como Antipas,
educado em Roma com ele. Pilatos lamentou seu gesto, mas não
ousou dar-se por vencido diante desses vassalos do imperador. Eles
cumpriram a ameaça. Enviaram a Tibério uma carta não de
reclamação, mas de humilde súplica. Como recompensa, o
imperador decretou uma repreensão ao prefeito da Judeia,
ordenando que ele retirasse os escudos de seu palácio. Era o ano 32,
um ano antes do processo de Jesus, como estabeleceram dois
historiadores britânicos, A. D. Doyle e Harold W. Hoehner…13
Enquanto Sejano estava vivo, jamais as autoridades judaicas teriam
ousado enviar uma delegação para Roma.
O último erro de Pilatos ocorreu no ano 36, três anos após a
morte de Jesus.14 Esse erro foi fatal. Ele tinha sido avisado,
provavelmente por Caifás, que um profeta samaritano havia
marcado encontro com seu povo na cidade de Tirathana, ao pé do
monte Gerizim.15 A multidão foi convidada a subir a montanha
santa, onde o profeta mostraria a eles os vasos sagrados que Moisés
havia escondido. Os samaritanos, que esperavam um sinal de Deus
para lhes provar a legitimidade do seu culto, estavam ardentes e
febris. Alguns esperavam que o Templo, o verdadeiro, fosse
restaurado nesse local venerado. Talvez até mesmo o profeta que os
entusiasmava fosse o Ta’eb, o Restaurador tão esperado?
Como bom estrategista, Pilatos fez com que um destacamento de
cavaleiros e de soldados de infantaria ocupasse as vias de acesso ao
santuário. Os soldados cercaram os homens na aldeia, mataram
alguns e apoderaram-se de outros. O prefeito, determinado a
esmagar na raiz qualquer exaltação messiânica, ordenou a execução
do profeta e de seus principais acólitos. Indignado, o conselho dos
samaritanos deu queixa junto a Vitélio, legado da Síria,
argumentando que os peregrinos não tinham, de modo algum,
perturbado a ordem pública. Vitélio, julgando a reação militar fora
de proporção, lhes deu razão e destituiu Pilatos (seu cúmplice,
Caifás, foi destituído imediatamente depois). Pilatos, portanto,
deixou a Judeia no final do ano 36 ou no início do ano 37. Chegou a
Roma para se inteirar da morte de Tibério, ocorrida em 17 de março
de 37. A partir desse momento, não se sabe o que aconteceu com ele.
Para alguns, teria sido decapitado por ordem do imperador Calígula.
Para outros, teria se suicidado. Para outros ainda, teria morrido no
exílio em Viena, em Delfinado. Sua conversão ao cristianismo é
certamente uma lenda.16 Se ela fosse verdade, teria causado muito
falatório!
Em última análise, como qualificar Pôncio Pilatos? Um homem
duro, cruel seguramente, como os homens podiam ser naquela
época, imbuídos da autoridade e da grandeza imperial que ele
representava, desprezível em relação aos judeus que ele detestava.
Porém, mais que um tirano sanguinário, é preciso ver nele um
homem psicologicamente rígido, forte diante dos fracos, fraco diante
dos fortes.

No palácio de Herodes, o Grande


O processo de Jesus tem como ambiente o palácio edificado pelo rei
Herodes, o Grande, no lugar mais elevado da cidade, a oeste, no
espaço da atual cidadela. Esse palácio, “cuja magnificência e
suntuosidade ultrapassavam qualquer descrição”, segundo Flávio
Josefo, estava protegido ao norte por três torres massivas que o
velho potentado tinha chamado de Hippicos, Fasael e Mariamme,
em memória de seu amigo, de seu irmão e de sua mulher. Podemos
ver ao pé da atual torre Fasael, reconstruída no século XIV pelo
sultão mameluco Malik-an-Nasir, os enormes blocos da base de
Herodes, que dão, junto daqueles do Templo, uma ideia da possante
grandeza dessa arquitetura. Era para essa residência, coberta de
mármore e de lambris esplêndidos, que continha pórticos, piscinas,
pátios interiores guarnecidos com estátuas, imensas salas para
refeições, diversas hospedagens com cem leitos e dois vastos
apartamentos reais ricamente decorados, “com os quais o próprio
Templo não podia ser comparado”, dizia ainda o entusiasta Josefo,
que Pôncio Pilatos ia quando permanecia em Jerusalém. Em geral,
residia na costa a uma centena de quilômetros dali, no seu palácio
de Cesareia — esse também uma construção de Herodes —, mas
preservava o hábito de ir para a Cidade Santa nos dias de grandes
festas, para a manutenção da ordem. Esse era sempre um momento
delicado, devido ao grande afluxo de peregrinos. Os lèstaï, isto é, os
vagabundos e os ladrões do grande caminho, aproveitavam-se dessas
ocasiões para se introduzirem, assaltando os peregrinos e os
mercados e provocando rixas, até mesmo motins. O prefeito levava
seus servidores e a coorte pretoriana, que duplicava os efetivos do
grupo de soldados da guarnição. Sua mulher também o
acompanhava. Alguns historiadores contestaram tal afirmação de
Mateus, assegurando que não era permitido aos governadores
residirem nas províncias com sua esposa, mas é suficiente consultar
os Anais de Tácito para constatar que essa interdição tinha sido
suprimida depois de Augusto.17
Os romanos tinham outro ponto de apoio em Israel: a Fortaleza
Antônia, construída pelos reis-padres hasmoneus no contrabaixo da
colina de Betesda. A fortaleza ficava engastada num rochedo, que
dominava o Templo a noroeste. Sombria e triste, vista do exterior,
tinha sido reformada com grandes gastos por Herodes. Servia de
caserna para a coorte romana. Os historiadores acreditaram, em
certo momento, que a fortaleza havia sido o local do julgamento de
Jesus. Eles apoiavam seu argumento na existência de um imenso
lajeado de pedra, hoje situado no recinto do convento da
Congregação de Nossa Senhora de Sion, que lembra aquele de que
fala o evangelista João. Esse lajeado antigo estava gravado com
desenhos e jogos que tinham servido aos soldados da guarnição. Mas
os arqueólogos acabaram por datá-lo da época do imperador
Adriano e da construção da cidade Aelia Capitolina, em 135, sobre
as ruínas de Jerusalém.
Sabemos, atualmente, graças aos trabalhos pioneiros do padre
Pierre Benoit, que os prefeitos e procuradores da Judeia faziam
justiça sobre um “tribunal” (bêma) edificado para a ocasião sobre o
pavimento que se encontrava na entrada do palácio de Herodes.18
Era uma plataforma de madeira, que continha uma mesa, um
assento (a cadeira curul, ou portátil) e dois outros para os
assessores. Acedia-se ao tribunal por alguns degraus. Os
representantes do poder imperial recebiam os pedidos dos
pleiteantes e julgavam os prisioneiros que esperavam, em presença
“dos sumos sacerdotes, dos cidadãos mais poderosos e mais
conhecidos”, segundo Flávio Josefo.19

Jesus entregue aos romanos


Vamos seguir João, o nosso melhor guia. Ao nascer do dia, na sexta-
feira 14 do mês de Nisã, levam Jesus ao palácio, que os evangelistas
chamam pretório.20 Os funcionários romanos começam seu serviço
às 6 horas. Foi, portanto, aproximadamente nesse horário que
apresentam Jesus a Pilatos. Da cidade dos sacerdotes até o palácio
há apenas 300m, mas as ruas da cidade alta, iluminadas pelos
primeiros raios de sol, já estão repletas de peregrinos. Durante esse
tempo, no recinto do Templo, Jônatas e os sacerdotes de guarda,
vestidos com suas roupas sacerdotais, inspecionam o perímetro do
santuário e preparam o altar dos sacrifícios.
Preocupada em evitar qualquer impureza ritual, e para poder
comer naquela mesma noite a comida da Páscoa, a delegação,
conduzida por Anás e Caifás, junto com alguns membros do Sinédrio,
aristocratas e doutores da lei fariseus, recusa-se a entrar no antigo
palácio de Herodes. As casas dos não circuncidados, e ainda por
cima dos idólatras romanos, sempre contêm algum objeto ou
substância suscetível de tornar um judeu impuro, especialmente o
fermento. Os sumos sacerdotes e seus acólitos, que vão à tarde
presidir o abate dos cordeiros pascais, não podem expor-se à
contaminação pelos gentios. As vestes sacerdotais do sacrificador
supremo, que acabam de ser restituídas para a festa, foram elas
próprias purificadas cuidadosamente.21
Pilatos é, então, obrigado a avançar sobre o grande local
retangular. Ele vê a delegação, os guardas e o prisioneiro, amarrado
como um criminoso para melhor convencê-lo de sua periculosidade.
O homem mais poderoso da Judeia, o representante de César
Tibério, adianta-se, vestido com sua toga branca debruada de
vermelho, com o anel de ouro dos cavaleiros romanos na mão
direita. Ele está lá, cercado por seus guardas vestidos com couraças e
armados, arrogante, pouco preocupado em agradar a esses sumos
sacerdotes, sempre prontos para lisonjeá-lo. Pilatos se serve deles,
mas não quer de modo algum tornar-se devedor de obrigações, e
ainda menos de se deixar influenciar. Ele considera que não deve ser
o executor de suas obras desprezíveis. Se alguém deve ser condenado
à morte, isso só pode ser feito por sua ordem, mandando realizar um
processo à moda romana.
Enquanto os guardas se apoderam de Jesus e o conduzem ao
interior do palácio, Pilatos, impaciente, pergunta aos sumos
sacerdotes: “Que acusação trazeis contra esse homem?” Eles
respondem: “Se este não fosse malfeitor, não to entregaríamos”.
Pilatos retruca, não sem ironia provocadora: “Tomai-o vós outros e
julgai-o segundo a vossa lei”. Ele quer ouvi-los dizer com amargura
que eles não têm o direito de executar uma pena capital, porque,
evidentemente, a solenidade de sua petição implica uma tal
sentença. E eles são obrigados a confessar: “A nós não nos é lícito
matar ninguém”.
Em algumas palavras, eles expõem suas ofensas. Em
conformidade com o seu plano, apresentam Jesus como um agitador
político, um chefe de guerra: “Encontramos este homem pervertendo
a nossa nação, vedando pagar tributo a César e afirmando ser ele o
Cristo, o Rei”.22 Uma maneira hábil de apresentar a realeza
messiânica de Jesus, completamente espiritual, como uma pretensão
real que prejudica o imperium do ocupante. Ao “laicizar” suas
acusações para um crime político passível de morte segundo o
direito romano, eles se protegem de expor suas verdadeiras ofensas,
de ordem religiosa, mas também econômicas. Essa astúcia se
encontra no cerne do caso sobre Jesus.
Esse homem, eles explicam, um descendente de Davi, quer
restabelecer na Judeia a realeza outrora exercida pelos hasmoneus e
Herodes, o Grande. Por esse motivo, ele desafia o imperador que
suprimiu essa coroa local. Alguns anos mais tarde, quando o
apóstolo Paulo foi detido, o advogado do grande sacerdote,
Tertuliano, o apresentará por motivos semelhantes ao governador
Félix: “Tendo nós verificado que este homem é uma peste e promove
sedições entre os judeus esparsos por todo o mundo, sendo também o
principal agitador da seita dos nazarenos, o qual também tentou
profanar o templo”.23
Caifás conta com as relações excelentes que entretém com Pilatos
para influenciar a decisão. Ele não lhe presta um serviço completo
ao entregar-lhe um malfeitor perigoso, inimigo da pax romana?
Antecipar-se aos desejos do ocupante não é dar provas do melhor
espírito de colaboração? Ele lhe fornece uma vítima e um motivo
legal, a ordem pública. Como o prefeito poderia rejeitar esse bom
comportamento, mostra de sua leal submissão? Se ele se recusasse a
acolher favoravelmente sua petição, não daria a impressão de
favorecer um candidato à realeza judaica? Em suma, caberia a ele
proclamar a inocência de Jesus.

O início do processo romano


Pilatos retorna para o interior do palácio. Como o prisioneiro não
era um cidadão romano, ele pode interrogá-lo sem o formalismo do
direito romano, mas respeita o procedimento romano do cognito
extra ordinem em uso no Oriente:24 para evitar as pressões, a
instrução do processo se fará em particular, mas o julgamento será
público. Depois de ter escutado as acusações levantadas pelas partes
e a defesa do interessado, o governador, cercado por assessores,
tomará assento sobre o estrado ou tribunal e pronunciará a
sentença, uma sentença imediatamente executória, sem apelação
possível. Nesse tipo de processo criminal, não há nem advogado nem
ministério público.
Trata-se, portanto, de saber se Jesus se apresentou como o chefe
de um movimento de libertação nacional e quis ser reconhecido
como rei, atos que se apresentam como uma acusação de crime
contra o povo romano, passível de morte. É aplicado a esse
prisioneiro a Lex Julia de majestate, que pune os crimes de lesa-
majestade imperial. Essa lei se aplica, desde Augusto, a qualquer
tentativa de rebelião.
Em seu longínquo palácio na Cesareia, Pilatos jamais ouvira
falar desse pregador da Galileia que suscitara tamanho entusiasmo e
esperança entre a multidão de pessoas de classe social mais baixa?
Sua mulher, a neta de Augusto, interessada pela religião judaica,
talvez; ele provavelmente não. O poder romano não dispõe de
informações em número suficiente para colocá-lo a par de tudo o
que se passa na Judeia-Samaria e a fortiori na Galileia. Ele se limita
às tarefas de manutenção da ordem. Essa é a razão pela qual se
apoia nas autoridades locais, os sumos sacerdotes e seus protegidos,
que ele mantém estritamente sob seu controle e dos quais espera a
mais franca colaboração.
O diálogo se desenvolve em grego, uma língua que
provavelmente Jesus conhece. Apesar de tudo, um intérprete
encontra-se presente, porque outros prisioneiros devem ser
interrogados e não falam necessariamente grego. Será que esse
intérprete, de origem palestina, os assessores de Pilatos ou o
escrivão, direta ou indiretamente, deram informações a João? É
possível, a menos que o próprio Pilatos tenha informado, em
algumas palavras, aos judeus importantes o que havia se passado no
interior do pretório. Certamente, houve várias testemunhas.
Permanece o fato de que esse diálogo, mesmo sendo de segunda mão
e esquemático, não é uma construção imaginária, composta a
posteriori. O erro de grego e latinismo observados no texto de João
pelo abade Pierre Courouble permitem não duvidar que o
evangelista procurou muito de perto encontrar a realidade.[1]
Inesperadamente, Pilatos pergunta ao prisioneiro: “Éu tu o rei
dos judeus?”. Há espanto na voz do prefeito romano, talvez ironia,
diante desse homem já enfraquecido, com o rosto tumefato. Jesus,
que ignora de que maneira os sumos sacerdotes o apresentaram,
responde com uma questão: “Vem de ti mesmo esta pergunta ou to
disseram outros a meu respeito?”. Pilatos: “Porventura, sou judeu? A
tua própria gente e os principais sacerdotes é que te entregaram a
mim. Que fizeste?”. Nesse “Porventura, sou judeu?” transparece todo
o distanciamento e o desprezo do prefeito por seus administrados.
Ele está impaciente. Não tem tempo a perder. Jesus responde
misteriosamente: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino
fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim,
para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino
não é daqui”. Pilatos, que não compreende, retoma: “Logo tu és
rei?”. Essa é a única coisa que lhe interessa. Jesus lhe responde: “Tu
dizes que sou rei”. Jesus não anula nem confirma a questão. Se ele é
rei, ele o é de outra maneira. Mateus, Marcos e Lucas dão a mesma
resposta que Jesus: “Tu dizes”. Essa resposta chocou as primeiras
comunidades cristãs. Jesus prossegue com uma explicação: “Eu para
isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da
verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz”. Pilatos
não entende nada dessas elucubrações ontológicas. Um abismo
cultural separa esse latino do judeu Jesus. Ele responde brutalmente:
“Que é a verdade?”. Realmente, Pilatos não está interessado na
origem dessa estranha realeza e não faz questão de saber no que ela
consiste. Sua pergunta: “O que é a verdade?”, não é uma
interrogação filosófica, à maneira de um velho sábio cético, mas um
“final de inadmissibilidade”.25 João mostra que Pilatos, dessa forma,
se condena a si mesmo: ao se recusar a escutar a voz do Cristo, ele
se coloca do lado das trevas.
Os primeiros cristãos ouviram o eco das fortes palavras
pronunciadas pelo mestre e de sua segurança diante do prefeito
romano. São Paulo fala sobre isso na sua primeira Epístola a
Timóteo. O Cristo Jesus, disse ele: “Diante de Pôncio Pilatos, fez a
boa confissão…”.26
O prefeito, naturalmente, ouviu falar da espera do Messias pelos
judeus, o que, no seu espírito, se confunde com a aspiração à
independência nacional. Ele sabe que uma parte do povo espera
ardentemente o advento de um rei chamado Messias que restauraria
a soberania de Israel. Ele ficou sabendo — e foi provavelmente a
primeira coisa que lhe disseram quando da sua chegada em Judeia
— que as revoltas dos pequenos reis, autoproclamados pouco depois
de Herodes, o Grande, como Judas, filho de Ezequias, Simão, o
antigo escravo, e Atronges, o pastor, foram implacavelmente
reprimidas por Quintílio Varo, governador da Síria, que mandou
executar crucificações em massa. Pilatos sabe que um pouco mais
tarde um guerreiro de Deus, partidário da teocracia, Judas da
Galileia, promoveu uma revolta entre os camponeses do Norte para
protestar contra o recenseamento fiscal de Quirino, legado da Síria,
e que foi preciso mais uma vez esmagar a insurreição com
derramamento de sangue. Assim, os messias judaicos, agitadores que
almejam a realeza, podem ser perturbadores perigosos.
Entretanto, Pilatos reconheceu que Jesus não é um instigador
desse tipo. Não tem nada de um chefe de guerra ou de bando. Ele
percebe bem que Jesus não procura instaurar seu reino pela força.
Essa é a razão pela qual não dá nenhuma ordem para procurar os
seus cúmplices. Pilatos está convencido de que se trata de um
iluminado, como por vezes são encontrados, um desses loucos
religiosos com os quais não é possível raciocinar, mas que
manifestamente não são perigosos. Esse homem não fez nada de
mau e não tem nenhuma pretensão política. Essas histórias de
messias israelita, quando se reduzem a especulações puramente
religiosas e não se estendem ao domínio público, não lhe interessam.
Depois, no ano 6, que a Judeia, dirigida pelo etnarca Arquelau,
passou para o controle de um prefeito romano, a paz reina na
região. Podemos estar seguros de que sua reação seria
completamente diferente se ele tivesse se dado conta de que o
homem que os sumos sacerdotes, pessoalmente, lhe entregaram
havia perturbado a ordem pública. Sem dúvida alguma, Pilatos teria
mandado executá-lo, sem sentir qualquer emoção. Manifestamente,
não foi informado do entusiasmo da multidão, que veio aclamá-lo
como “rei de Israel” nos dias anteriores com as palmas, símbolos da
vitória. Essa multidão não esteve na origem da revolta que teria se
produzido em Jerusalém e que Lucas menciona no seu evangelho.
Dessa revolta, em compensação, Pilatos ouviu falar, e essa é,
provavelmente, a razão pela qual foram detidos alguns salteadores
que ele deve julgar ao mesmo tempo.
Ele é um iluminado, pensa Pilatos, perdido em seus sonhos. Ele
compreende, ao mesmo tempo, que Anás e Caifás zombaram dele ao
almejar uma condenação à morte por um motivo falso. O assunto é
religioso, um assunto judaico, do qual ele não tem motivo para se
ocupar. Ele está contrariado com isso, descontente, exasperado
talvez. Certamente, necessita dos sumos sacerdotes e do partido
saduceu para manter a calma na Judeia, mas só sente desdém por
esses colaboradores, ao mesmo tempo fracos e arrogantes. Ele quer
mantê-los sob sua sujeição. Pilatos não se esqueceu do assunto
humilhante dos escudos de ouro no ano precedente, que por pouco
lhe custou caro. Se ele cedesse, que impressão daria? Seria tratado
como um fraco e abusariam da sua autoridade. Ele se tornaria
joguete dos judeus para sempre!
A mulher de Pôncio Pilatos — é Mateus que nos dá essa
informação, e não vemos por qual motivo o último redator desse
evangelho a teria inventado; essa informação faz parte de sua
pesquisa em Jerusalém — ouviu falar desse Jesus, um homem de
bem.27 Ela está inquieta. Teve um sonho premonitório que confiou a
seu marido. Sob sua aparência de mata-mouros, Pilatos é um homem
supersticioso. Tudo que diz respeito ao sagrado lhe dá medo. Eles
estão, então, no seu palácio, ele vai ao encontro dos sumos
sacerdotes e lhes diz: “Eu não acho nele crime algum”. Ele queria
concluir com um abandono da ação. Os pontífices insistem (é Lucas
que nos revela): “Ele alvoroça o povo, ensinando por toda a Judéia,
desde a Galileia, onde começou, até aqui”.

Na casa de Herodes Antipas


O que dava alguma consistência à acusação dos sumos sacerdotes era
o fato de que Jesus pertencia ao clã dos descendentes de Davi
estabelecido em Nazaré, clã pelo qual eles só sentiam desprezo. Eles
não deixaram de dizer isso a Pôncio Pilatos. O prefeito percebeu
uma vantagem na situação. Nazaré não fica na Galileia? Se esse
Jesus vem da Galileia, ele depende da autoridade de Herodes
Antipas, que se encontra em Jerusalém para a Páscoa, como nos
anos anteriores, não exatamente para praticar suas devoções, mas
para ali se mostrar nessa festa solene. Por que não lhe enviar o
prisioneiro?
João omite esse episódio que só é relatado por Lucas. Este último
fica sabendo do episódio por Joana de Cusa (ou Cuza), mulher do
intendente de Herodes, que seguia Jesus na Galileia, a menos que
seja por Manaém, companheiro de infância do tetrarca, do qual ele
fala nos Atos dos Apóstolos e que conheceu em Antioquia.28 O
marido de Joana ou Manaém, em razão de suas altas funções,
provavelmente estivera presente na conversa entre o prefeito e o
prisioneiro.
É preciso compreender corretamente: mesmo se Pilatos, como
bom administrador colonial, procura um estratagema para se livrar
desse vespeiro e ganhar tempo, ele não se desfaz do processo. Ele
não transfere o julgamento de Jesus ao tetrarca, que, quando reside
em Jerusalém, é uma pessoa particular, desprovida de qualquer
autoridade. Legalmente, no direito romano, o criminoso deve ser
julgado no local do crime e não na sua província de origem. Ele lhe
pede somente um conselho suplementar. Em outros termos, adia seu
julgamento para ter um suplemento de informação. Somente no caso
em que Herodes Antipas reivindicasse o direito de julgar esse
provocador de perturbações é que Antipas poderia reenviá-lo diante
da magistratura do local de sua residência, como o direito romano
autoriza a fazer. A ideia é engenhosa. Ao agir assim, Pilatos
homenageia o poder desse príncipe, grande amigo de Tibério. Ele
lhe demonstra um gesto afável, dirá Justino.29 Pilatos está curioso
em saber como vai reagir diante desse pretenso “rei dos judeus”, o
tetrarca a quem Roma não quis conferir a dignidade e a coroa real,
contrariamente a seu pai. Ao mesmo tempo, ele escapa da pressão
dos sumos sacerdotes, o que lhe é particularmente desagradável. Já é
hora, para ele, de examinar os outros assuntos que o aguardam.
O prisioneiro é, então, conduzido por um destacamento romano
ao palácio de Herodes Antipas, que se situa no bairro velho, sobre a
colina ocidental de Acra, a meia distância do palácio do governador
e do Templo. Ele havia sido outrora a residência dos reis hasmoneus.
Os sumos sacerdotes, os doutores da Lei e os acusadores de Jesus,
bem decididos a não largar a sua presa, são obrigados a segui-lo
para valorizar suas ofensas. Dessa vez, a despeito da religiosidade
duvidosa e dos costumes pagãos do tetrarca, eles não hesitam em
penetrar em sua casa.
Herodes Antipas, o assassino de João Batista, desejava havia
muito tempo ver Jesus. O “raposo” tem na época cinquenta e dois
anos e reina há trinta e seis anos na Galileia e na Pereia. Quantas
vezes ouviu falar de Jesus e de sua pregação! Quantas vezes ordenou
a sua polícia que fosse procurá-lo nas aldeias e povoados de sua
tetrarquia! Finalmente, ele se encontra diante dele, prisioneiro,
fatigado, vencido, à sua mercê. Ele se rejubila. Atormenta-o com
perguntas, por curiosidade, pelo desejo de ver Jesus realizar um de
seus prodígios, pelos quais ele se tornou famoso. Sua curiosidade
insaciada vai por fim ser satisfeita.
Mas Jesus permanece mudo, impassível diante dessa logorreia
febril e da veemência acusatória dos sumos sacerdotes e dos doutores
da Lei. Esse silêncio glacial decepciona e depois irrita o frívolo
tetrarca. Ele nota certo desdém na mudez. Frustrado, decide reenviar
Jesus de volta para a casa de Pilatos, vestindo-o de maneira ridícula
com uma “esplêndida” roupa faustosa de cor branca, visto que Jesus
pretende ser rei. Ele se vinga com a sua zombaria, e os soldados da
sua guarda se divertem com ele. Ele não deu sua opinião, ou a
opinião estava implícita na zombaria. Esse pretenso rei é apenas um
fantoche que não ameaça ninguém. O fato de Jesus não ter realizado
nenhum sinal prova sua impostura! Herodes também não quer
contradizer Pilatos, que achou que Jesus é inocente. Ele devolve a
gentileza, enviando Jesus de volta para a sua casa. Entre o prefeito
romano e os sumos sacerdotes, escolhe o primeiro sem hesitar.
O evangelho de Pedro, um apócrifo do século II sem
enraizamento palestino, comete um erro grosseiro ao atribuir a
Antipas a sentença de morte. O tetrarca contentou-se em reconduzir
Jesus diante do prefeito da Judeia, encantado com o gesto amável
de Pilatos. Dali em diante, a aborrecida lembrança dos escudos é
esquecida. “Naquele mesmo dia, escreve Lucas, Herodes e Pilatos se
reconciliaram, pois, antes, viviam inimizados um com o outro.”
Pilatos também estava interessado em reconciliar-se com esse amigo
de infância de Tibério, que entretinha excelentes relações com a
família Júlio-Claudiana. Tanto para um quanto para o outro,
tratava-se de tirar benefício político desse assunto.
16

O final do processo romano

Bar Abba (Barrabás)


Pilatos ganhou um amigo e pregou uma peça nos sumos sacerdotes.
Como ele, Herodes Antipas não julgou necessário executar Jesus. O
que fazer agora? Infelizmente, ele tem, ainda a ideia de propor uma
transação para Anás e Caifás, que voltaram à porta do seu palácio
para exigir justiça. Como de hábito, na Páscoa, ele solta um
prisioneiro a pedido do povo. Esse costume foi discutido pelos
historiadores, porque somente os evangelistas falam a respeito disso.
Os especialistas em direito romano relacionaram esse “privilégio
pascal” com vários proce-dimentos: a abolitio, graça coletiva que
permite o abandono de um procedimento judicial controverso; a
indulgentia, suspensão da pena em função de um apelo, ou ainda a
venia, simples graça individual. Pensamos, nesse caso, num costume
local, aceito pelos romanos, destinado a dar prazer às multidões
judaicas por ocasião do sacrifício pascal.
Pilatos sabe que é mantido nas masmorras de Antônia, antes do
seu julgamento, um “prisioneiro famoso”, como diz Mateus,
chamado Barrabás ou Bar Abbas (em aramaico Bar Abba, o filho do
pai ou do mestre). Como Pilatos vem para a Cidade Santa somente
por ocasião das grandes festas e procede, então, ao julgamento dos
criminosos apresentados a ele, esse indivíduo devia ter sido detido
depois de sua última vinda. Se acreditarmos em alguns manuscritos
evangélicos, Barrabás também usava o nome Jesus.1 Por que o
prefeito romano não proporia ao povo escolher entre Jesus, o
Nazareno, e Jesus Barrabás? Esse último, explicita João, era um
bandido. O termo “bandido”, ulteriormente usado para designar os
resistentes judeus, fez pensar num terrorista ligado ao movimento
pseudomessiânico dos zelotes contra o ocupante romano. Essa tese
não resiste a um exame. Nenhum elemento permite assimilar os
bandidos da época, vagabundos e ladrões de estrada, muito
numerosos no meio rural, com os revolucionários ou combatentes
implicados em uma guerrilha de libertação nacional. Flávio Josefo
jamais emprega esse termo para designar os resistentes durante o
primeiro período da prefeitura romana, entre os anos 6 e 41. Os
terroristas ou sicários só aparecem nos anos 54-60, sob os
procuradores Félix e Festo. Aos resistentes junta-se, um pouco mais
tarde, um grupo de jovens judeus religiosos, nacionalistas fanáticos,
os zelotes preocupados com a pureza do culto, com a Lei e com o
Templo. Repetimos que o movimento zelote não existe nos anos 30.
Ele nasce por volta do final do ano 66, depois da revolta de
Menahem, filho (ou neto) de Judas, da Galileia.
Na época de Jesus não havia nenhuma agitação política, mas os
campos e algumas vezes Jerusalém, por ocasião das grandes festas,
eram tomados por desordens e pilhagens, como contam as
parábolas. A região não era segura. Essas atividades eram realizadas
pelos “bandidos”, citados catorze vezes nos evangelhos, sobretudo
na parábola do Bom Samaritano.2
Se Barrabás tivesse sido um chefe político rebelde, que procurava
levantar os judeus contra o ocupante, Pilatos teria mandado executá-
lo sem a menor hesitação. Esse era o seu dever de soldado. Ele não
teria proposto à multidão reunida diante de seu palácio uma
alternativa como essa, com o risco de vê-la escolher esse resistente a
Roma. Ora, nesse momento, o que Pilatos quer é conseguir a
libertação de Jesus, não por simpatia, não porque ficou seduzido por
seu discurso, mas para conter os sumos sacerdotes, para diminuir sua
arrogância.
Em suma, Barrabás era um desses homens sem fé e sem lei do
qual os judeus honestos poderiam desejar se desembaraçar. Lucas,
verossimilmente, diz que “Barrabás estava no cárcere por causa de
uma sedição na cidade e também por homicídio”.3 Esse criminoso de
direito comum havia, provavelmente, se aproveitado, algumas
semanas ou alguns dias antes, da proximidade da Páscoa do ano 33
e do afluxo de peregrinos para desencadear um motim e realizar
pilhagens.
Pilatos dirige-se à multidão. “É costume entre vós que eu vos solte
alguém por ocasião da Páscoa; quereis, pois, que vos solte o rei dos
judeus?”. Ele está persuadido de que as simpatias populares vão se
dirigir para esse iluminado que sonha em instaurar um reino que
não seria desse mundo, esse “justo”, como o chama sua mulher. O
que ele não compreendeu foi que, para mostrar a sua força, os
sumos sacerdotes e seus cúmplices, não tendo conseguido um acordo
rápido e discreto sobre o assunto, juntaram um grande número de
pessoas gratas por causa de favores, de protegidos, de pessoas
assalariadas, guardas, capangas, servidores de todos os níveis. Pelo
jogo entrecruzado dos interesses econômicos e da religião, a força de
Anás e de Caifás é considerável em Jerusalém. Dos 7.200 sacerdotes,
dos 9.200 levitas, os milhares de auxiliares, músicos, membros do
coro e domésticos, quantos são seus cúmplices? A punição é
decretada com rapidez. A multidão pede a libertação de Barrabás. “E
Jesus?”, pergunta Pilatos. “Que ele seja crucificado”, respondem.
Tendo subido da cidade baixa e dos bairros populares, a multidão
está bem dirigida. Eles se encontram longe das pessoas humildes da
Galileia que vieram fazer sua refeição de Páscoa em Jerusalém ou
dos peregrinos que espontaneamente aclamaram Jesus quando este
entrou na Cidade Santa. Existem dois mundos ali, dois povos
diferentes.
Mateus acrescentou um detalhe. Vendo que a situação se
transformava em revolta, Pilatos, para que o seu gesto fosse claro,
pega água e lava publicamente as mãos dizendo: “Estou inocente do
sangue deste [justo]; fique o caso convosco! E o povo todo
respondeu: Caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos!”.
Tal fórmula sobre o sangue assumido, que recai de geração em
geração sobre aqueles que o derramaram, tem suas raízes no
Primeiro Testamento.4 Infelizmente, ela vai alimentar entre os
cristãos um antijudaísmo, um ódio aos judeus como povo que matou
Cristo, que nada, absolutamente nada justifica. Ela vai servir de
pretexto para séculos de assassinatos, de perseguição aos judeus e de
incompreensão. “Não se trata, nesse caso”, explica o exegeta
americano Raymond E. Brown a propósito dos partidários dos sumos
sacerdotes, “nem de um grito sedento de sangue, nem de uma
maldição, mas de uma afirmação pela qual, a despeito do
julgamento de inocência pronunciado por Pilatos, eles consideram
Jesus como culpado e querem ser responsáveis diante de Deus por
seu sangue derramado.”5
No plano histórico, não há verdadeiramente certeza de que os
acontecimentos tenham se passado como Mateus os relatou, que
essas palavras radicais tenham sido ditas e Pôncio Pilatos tenha
desempenhado a comédia do inocente que lava suas mãos do sangue
que querem obrigá-lo a derramar. Mas isso, também, não é
impossível. Poderíamos ver, nesse ato, uma nova ironia do
governador romano em relação aos judeus. Impressionado com o
sonho de sua mulher, ele teria desejado escapar de sua
responsabilidade, como vai fazer Judas, por sua vez, ao devolver os
trinta dinares.

A flagelação ao estilo romano


Em todo caso, Pilatos, depois da libertação de Barrabás, ainda não
quer ceder. Sonha em soltar Jesus, depois de ordenar que o
chicoteassem fortemente por causa de suas divagações, suas
loucuras. Dessa vez, o prefeito romano dificilmente poderá dizer que
ele é inocente do sangue que vai jorrar das costas e do peito de
Jesus.
É verdade que os condenados à crucificação eram flagelados
cerca de vinte vezes antes de seu suplício, para enfraquecê-los. Mas,
até aquele momento, Pilatos ainda não declarara a sentença de
morte. Não se trata, portanto, de um suplício que precede a
crucificação, mas de uma punição em si. Alguns anos mais tarde, um
camponês iluminado, Jesus, filho de Ananias, que percorria
Jerusalém dia e noite, lançando imprecações contra a Cidade Santa
e o Templo, será detido e enviado a vários membros do Sinédrio e
chicoteado “até os ossos”, por ordem do procurador Albino, antes de
ser libertado. Pilatos vai agir dessa maneira.
É preciso observar o engano de Mateus e de Marcos que colocam
a flagelação de Jesus depois da condenação à morte, como uma
preliminar à crucificação ligada à sentença principal. É verdade que
Pedro, cuja catequese era vista como, ao menos em parte, inspirada
no escrito de Marcos, não foi testemunha dessa cena. João e Lucas
estão certos em situá-la antes do veredito. “É, pois, claro que nada
contra ele se verificou digno de morte. Portanto, após castigá-lo,
soltá-lo-ei.”6
A cena se desenrola no interior do pretório, provavelmente no
pátio. O prisioneiro, completamente despido, é amarrado com os
braços levantados, o ventre colado a um pilar ou a uma superfície
vertical. O sudário de Turim dá uma ideia impressionante dos
sofrimentos infligidos: são contadas cento e vinte chicotadas,
distribuídas em leque sobre as espáduas e as pernas. A imagem
dorsal do corpo é salpicada com um grande número de manchas
ensanguentadas que vão das costas até abaixo da barriga das
pernas, ao passo que, na parte da frente, aparecem apenas algumas
chicotadas — porém, as mais perigosas — que foram dadas sobre a
caixa torácica. Como bons profissionais, os algozes romanos
respeitaram a zona pericárdica, a fim de não provocar a morte
imediata. As partes atingidas mostram que Jesus não estava
amarrado com as costas curvadas a uma coluna baixa, como a
coluna de mármore preto com veios brancos que podemos ver na
igreja de Santa Prassede em Roma, que tem uma altura de apenas
setenta centímetros, e na qual os artistas se inspiraram para
representar a cena.7 Nessa posição, com efeito, os braços teriam
protegido o peito, pelo menos parcialmente. Os punhos elevados
provavelmente estavam atados juntos, o que explica a exposição do
peito ao chicote.8
Durante muito tempo acreditou-se que as chicotadas tivessem
sido dadas alternadamente por dois carrascos — essa função, em
geral, era reservada aos lictores —, um homem mais alto à direita
que o da esquerda, porque o centro de onde partem as contusões é
mais alto à direita que à esquerda.9 O flagelador mais baixo teria
batido no corpo inteiro, enquanto o outro teria se concentrado no
alto das costas. Na barriga das pernas só se constata uma única
direção do chicote. Em apoio à reconstituição, um pesquisador,
Antoine Legrand, mostrou que a orientação dos ferimentos
necessitava da intervenção de um único carrasco, colocado a cerca
de um metro do corpo da vítima, lançando chicotadas diretas do
lado direito do corpo e do lado esquerdo com golpes de revés.10
Existe a certeza, em todo caso, que se trata de um suplício
romano, impiedoso, porque o Deuteronômio proibia aos judeus ir
além de quarenta chicotadas:11 eles se detinham, por precaução, na
trigésima nona. Como os chicotes judaicos tinham, em geral, três
correias (sem extremidades mortíferas), eles se contentavam em dar
treze chicotadas para as penas mais severas.12 No decorrer da sua
vida, Paulo será flagelado dessa maneira cinco vezes.
Para Jesus, o chicote utilizado foi um flagrum taxilatum. Ao seu
cabo, de cerca de 60cm de comprimento, estavam atadas duas
correias de couro, guarnecidas em suas extremidades com phalères,
pequenas esferas metálicas emparelhadas, com cerca de vinte
gramas cada uma. No sudário, encontramos em cada marca de
chicote duas contusões, a mais ou menos 3cm e meio uma da outra.
Os dilaceramentos são violentos. Furam a epiderme até cinco
milímetros de profundidade. No microscópio, foi inclusive percebido
o traço da barra transversal que unia as duas pequenas esferas. Os
arqueólogos encontraram em Herculano um instrumento desse tipo,
formado com três correias. Existe igualmente um modelo de chicote
no Museu do Cinquentenário em Bruxelas (mas no qual as esferas
metálicas não são emparelhadas). No lugar das esferas de chumbo,
alguns chicotes têm correntes, outros astrágalos de carneiro, mas
esse não é o caso aqui: o modelo das esferas é bem redondo, como
observou Robert Bucklin, médico legista de Los Angeles. Fotografias
com luz ultravioleta fluorescente colocaram em evidência, ao redor
das marcas ensanguentadas, grandes acumulações de serosidade até
então invisíveis, em particular na região da omoplata esquerda, o
que faz supor a presença de hematomas subcutâneos e ressudação de
soro branco pálido.13
A cena deve ter sido atroz. Podemos imaginar os grosseiros
clamores da sala de guarda, o assobio estridente do chicote no ar, a
violência das chicotadas que se abatem sobre o corpo, a excitação do
lictor, os gemidos de Jesus, expelidos em cada rasgão. Pilatos
assumiu o risco de mandar alimentar Jesus no curso desse suplício.
Somente a boa constituição e a robustez natural do artesão de
Nazaré o pouparam de perecer sob a correia do carrasco, mas ao
preço de quais sofrimentos?

A coroa radiante
Se Pilatos está persuadido de que o prisioneiro é inocente do crime
de rebelião pelo qual foi acusado pelos sumos sacerdotes, ele não
experimenta para com Jesus nenhuma compaixão. Entrega Jesus ao
bel-prazer de seus soldados; como diz Lucas, ele os deixa descarregar
sua raiva. Pilatos vai se servir de Jesus como de um brinquedo, para
zombar dos sumos sacerdotes e dos judeus em geral e humilhá-los. O
manto branco que Herodes fez Jesus usar, provavelmente, sugere a
Pilatos a ideia de uma paródia do rei dos judeus.
Ele é rei? Vamos, pois, coroá-lo! Os soldados, rindo, pegam
ramos de um arbusto mediterrâneo com espinhos longos e cortantes.
Gundelia tournefortii, que servem para alimentar o fogo dos
braseiros. Para não se picar, eles utilizam, do lado de fora, um
círculo de palha trançada que enfiam com os ramos na cabeça de
Jesus. É o que se chama na tradição cristã a coroa de espinhos, que,
na verdade, é uma espécie de capacete ou de gorro espinhoso que
cobre toda a superfície craniana, porque, contrariamente à
iconografia habitual, essa coroa não é feita apenas de ramos
espinhosos finos entrelaçados.
Os espinhos são para lembrar as coroas radiantes de ferro usadas
pelos soberanos orientais ou helênicos. É um sofrimento suplementar
para Jesus. O sudário de Turim mostra os múltiplos traços de picadas
e escorrimentos sanguíneos sobre a testa, o alto do crânio e atrás,
sobre o couro cabeludo, algumas se acumulando em torno do barrete
de junco. O doutor Pierre Barbet foi o primeiro a notar a
coincidência perfeita entre a localização das veias e das feridas.
Retomando esses trabalhos, um médico perito italiano, o professor
Sebastiano Rodante, enumerou treze perfurações do couro cabeludo
na fronte e na parte da frente da cabeça, vinte na região occipital. A
região das têmporas não era visível por causa da formação da
imagem por projeção octogonal. Mas ele calcula um total de
cinquenta ferimentos provocados pela coroa de espinhos14. Esse
ponto de vista é compartilhado por Robert Bucklin.15 A forma mais
visível desses indícios é a que se fixou sobre a fronte em forma de
ípsilon. O escorrimento sanguíneo, correspondente à veia frontal,
serpenteou entre as rugas da fronte, dolorosamente contraída,
espessando-se em cada meandro antes de escorrer mais para baixo.
A maior parte dos artistas que reproduziu o retrato do homem do
sudário, depois do século VI (data da sua descoberta em Edessa), não
sabia que se tratava de um ferimento, e esse escorrimento de sangue
foi representado como uma mecha de cabelo.
O arbusto Gundelia tournefortii (chamado na Palestina Zizyphus
Spina Christi) possui espinhos de 4 a 6cm de comprimento e nasce
apenas na região sírio-palestina. O professor Max Frei encontrará no
sudário de Turim o traço de numerosos pólens (um terço dos grãos
identificados). Quanto ao círculo, não se exclui a hipótese de que
seja aquele que o tesouro da Notre-Dame de Paris conserva num
relicário de cristal ornamentado com folhas de ouro, que é
apresentado à veneração dos fiéis nas sextas-feiras da Quaresma e
na Sexta-Feira Santa. Esse círculo de palha grosseiramente trançado,
que não contém nenhum espinho, teria, portanto, servido para fixar
os ramos mortíferos. Conservado pelos primeiros cristãos, é
assinalado na Terra Santa no ano 409. Dos séculos VI ao IX, ele foi
guardado em Constantinopla, onde era venerado como uma das
grandes relíquias da Paixão. Balduíno de Courtenay, quinto
imperador latino dessa cidade, o deixou como penhor entre os
venezianos. São Luís o recomprou e abrigou-o em Villeneuve-
l’Archevêque, perto de Troyes, em 1239. Seu diâmetro interior de
21cm é muito largo para que pudesse ser posto sobre uma cabeça,
mas ele convém perfeitamente para reter na cabeça os ramos
espinhosos. São Luís tinha igualmente recebido alguns desses ramos,
cujos espinhos distribuiu generosamente.

As sevícias
Depois dessa zombeteira investidura real, Jesus fica com o rosto, os
cabelos e a barba sujos de sangue. Sobre as espáduas desse farrapo
humano, eles lançam um manto de cor púrpura, símbolo de poder
entre os romanos, uma espécie de grande capa que os oficiais
usavam presa sobre o ombro direito. Pilatos provavelmente se
diverte ao ver seus homens aproximarem-se do supliciado,
ajoelharem-se diante dele em sinal de fidelidade. “Salve, rei dos
judeus!” Esse pobre homem miserável é o único rei que os soldados
romanos merecem, um rei de Carnaval! Tal cena odiosa e dolorosa
lembra as pantomimas satíricas do “rei zombado”, que era
representado nos jogos de comparsas ou das saturnais, as bufonarias
sangrentas da festa persa dos rituais sacas.[1] Temos outros
exemplos, na história antiga, dessas paródias. Fílon narra a
aventura em Alexandria, no ano 38, de um espírito simples chamado
Kara-Bas, cuja cabeça era coberta com uma folha de papiro sob a
forma de diadema e para quem era dada uma haste de papiro como
cetro. Ele era instalado sobre um estrado e a multidão entretida
vinha pedir-lhe justiça… Tratava-se de zombar do rei judeu Herodes
Agripa I, de passagem por Alexandria.
“E eles se puseram a dar-lhe golpes”, diz João. Golpes é um
eufemismo para não relatar o horror do suplício suportado por
Jesus, mas João, uma vez mais, na sua exaltação transcendente do
Cristo, atenua o sofrimento físico. O sudário de Turim, ao criar
realismo, mostra o rosto depois dessa sessão de tortura, sem que se
possam distinguir os traços das feridas e contusões sofridas na casa
de Anás daquelas que foram infligidas a Jesus no palácio do
governador: tumefação das duas sobrancelhas, uma parte da barba e
do bigode arrancada, rompimento da pálpebra direita, equimose
debaixo do olho direito, uma ferida triangular na face direita,
tumefação da face esquerda, inchaço do lado esquerdo do queixo. O
sadismo dos soldados é explicado por sua origem. Recrutados entre
os não judeus da Palestina, eles detestam os judeus.

Ecce homo[2]
Se Pilatos autorizou essas cenas, não foi para divertir os soldados
rústicos da coorte de Cesareia. Trata-se, novamente, de ridicularizar
os sumos sacerdotes e seus partidários dedicados que esperavam do
lado de fora. Ele sai do pretório e dirige-se à multidão. “Eis que eu
vo-lo apresento, para que saibais que eu não acho nele crime
algum”. Cinicamente, Pilatos cria uma espécie de “suspense”,16
como no teatro. Num estado de esgotamento total, Jesus,
desfigurado, escorrendo sangue, adianta-se em silêncio,
cambaleante, tremendo, tendo na cabeça a coroa de espinhos e
vestido com o manto vermelho. Muito magro e com o olhar
desnorteado, coberto de lesões e de escoriações, quase não podendo
respirar, ele carrega em si todo o sofrimento do mundo. Seu corpo é
apenas dor. A metade direita do seu rosto está deformada, desde o
olho até a mandíbula. Ele não comeu, nem bebeu, tampouco dormiu
desde a noite anterior. “Eis o homem!” Para um prisioneiro que o
prefeito julga inocente, ele se encontra num estado semicomatoso…
Ele está, de fato, ali — mas quem se preocupa com ele? —, o
Servidor sofredor descrito por Isaías: “Desde a planta do pé até à
cabeça não há nele coisa sã, senão feridas, contusões e chagas
inflamadas”.17
Essa é a famosa cena do Ecce homo, que inspirou tantos artistas,
poetas e literatos. Os sumos sacerdotes compreendem a pesada e
cruel ironia contida nesse “Eis o homem!”? Vocês disseram que ele
era rei? Um rei de comédia, lamentável, ridículo, monarca
insignificante, de uma soberania improvável. Ao fazer isso, é toda a
espera messiânica, esse “sonho secular de Israel”,18 que é
ridicularizado, estigmatizado, lacerado por Pôncio Pilatos. Roma não
tem o que fazer com os messias judeus!
Os judeus importantes e sua criadagem dão a impressão de não
compreender o sentido ultrajante dessa zombaria untada de sangue.
Mas seu furor vai se expressar de outra maneira. Mais do que nunca,
o que querem é a morte de Jesus. Ademais, conta João, assim que
viram Jesus, puseram-se a gritar: “Crucifica-o! Crucifica-o!”. Pilatos
continua a zombar deles: “Tomai-o vós outros e crucificai-o”. Esse,
evidentemente, não é um convite sério, mas uma maneira, ao
contrário, de Pilatos lembrar aos judeus que esse homem está em
suas mãos e que só ele tem o poder de crucificá-lo. A cruz é um
suplício romano. Os judeus utilizam a lapidação.19 E ele acrescenta,
para avivar a cólera dos judeus: “Eu não acho nele crime algum”. É
a terceira vez que pronuncia essa frase. Ela impressionou João.
Lucas, no seu evangelho, repete essa tripla afirmação.
Os sumos sacerdotes retrucam: “Temos uma lei, e, de
conformidade com a lei, ele deve morrer, porque a si mesmo se fez
Filho de Deus”. Finalmente, eles revelam sua verdadeira ofensa! A
alusão à Lei tem como objetivo lembrar Pilatos que os
administradores romanos são obrigados a honrar os costumes locais.
No fundo, eles invocam, sem dizer explicitamente, o direito de
exequatur, quer dizer, a obrigação que o ocupante tem de executar
uma sentença pronunciada por eles, sem ter a possibilidade de
transformá-la ou de desviá-la. Visto que os romanos privaram os
judeus de pronunciar a pena de morte, cabe a eles aplicar as outras
punições. A verdade, como se sabe, é que a sentença não foi
legalmente pronunciada pelo Sinédrio e que a autoridade romana,
supondo que ela quisesse deferi-la, não tinha nenhuma base para se
justificar. Não desagrada a alguns juristas do século XIX, como o
alemão Theodor Mommsen, a ideia de que, se a potência ocupante
estava satisfeita em deixar aos judeus o cuidado de decidir seus
assuntos judiciários comuns, jamais ela teria consentido em limitar
seu próprio imperium por uma decisão de um tribunal nativo.
Pilatos não se envolve nessas argúcias jurídicas. João observa
que, quando ouve que Jesus se declarou “Filho de Deus”, ele fica
“cada vez mais assustado”. Essa incursão brutal tornou-o sombrio.
Por quê? Ele tem o sentimento de ser ultrapassado por algo de
sobre-humano? Talvez, mas não, evidentemente, no sentido da
transcendência judaica. Como bem observou o padre Étienne Nodet,
aludir ao Filho de Deus significa evocar o imperador e a aura
sobrenatural que o cerca na religião romana. Tibério é um ser
sagrado, um deus, um filho de deus, ao qual se deve prestar um
culto.
O assunto, então, se torna grave, muito mais grave. Pode causar
a Pilatos problemas muito grandes. Jesus pretenderia se colocar
como rival de César? Ele tem poderes misteriosos? Pilatos é
supersticioso. Provavelmente, ele se lembra do que sua mulher lhe
disse. Ele volta ao palácio, olha para o prisioneiro e pergunta: “De
onde vens?”. Não é o local de seu nascimento que lhe interessa, mas
sua verdadeira origem. “Quem és tu, verdadeiramente?” “Qual é tua
verdadeira natureza? De onde vêm as tuas pretensões?” Saber a
identidade de Jesus se torna primordial. Ela é mais importante do
que aquilo que ele fez. Essa é uma reviravolta no processo. O
prefeito romano abandonou o tom de zombaria. Ele acreditava estar
lidando com um retardado mental, e se depara com um mistério que
o assusta. É preciso que esse pregador fale.
Contudo, Jesus se cala. Mateus e Marcos propagam esse silêncio
no breve e incompleto resumo que escrevem. Eles assinalam o
espanto de Pilatos, intrigado, aflito com esse estranho mutismo. Ele
reencontra sua arrogância. “Não me respondes? Não sabes que tenho
autoridade para te soltar e autoridade para te crucificar?” Essa é
uma maneira de lembrar Jesus que ele detém o imperium em
plenitude, que é a autoridade absoluta, que nenhuma lei exterior e
concorrente poderia limitá-lo. Sim, ele é todo-poderoso! O homem
que está entre suas mãos deve, portanto, mostrar-se um pouco mais
cooperativo se ele quer verdadeiramente recuperar sua liberdade!
Jesus responde de maneira enigmática: “Nenhuma autoridade terias
sobre mim, se de cima não te fosse dada; por isso, quem me entregou
a ti maior pecado tem”. De quem se trata? De Judas? Não, porque
não foi ele quem o entregou aos romanos. De Caifás e dos chefes
judeus? É mais certo, pois foram eles que se recusaram a reconhecer
Jesus em verdade. Quanto à resposta sobre a autoridade de que
Pilatos dispõe, é preciso não ver nisso uma reflexão sobre o poder do
Estado subordinado à vontade divina, como fez são Tomás de
Aquino. É porque Jesus, segundo os cristãos, renuncia
voluntariamente à sua vida que o prefeito romano recebe de Deus
seu Pai o poder muito provisório de julgá-lo e de condená-lo,
segundo as leis terrestres. E nisso ele é julgado: ele carrega um
pecado, mesmo se menor do que o dos sumos sacerdotes.

O final do processo
Apesar da atitude e das palavras misteriosas do acusado, Pilatos não
pode condená-lo à morte. Ele já o puniu suficientemente. Ele sai de
novo e anuncia que vai libertá-lo. Foi então que se ouve dizer: “Se
soltas a este, não és amigo de César! Todo aquele que se faz rei é
contra César!”. Pela primeira vez, ameaças são proferidas contra
ele. “Amigo de César” era um título oficial, compartilhado com
alguns altos dignitários imperiais, que ele havia adquirido,
provavelmente, por intermédio de Sejano”. “Qualquer um próximo a
Sejano, escreve Tácito, “podia ambicionar a amizade de César.”20
Essa é uma recompensa por serviços prestados. No início do Império
Romano, os “amigos de Augusto” representavam um tipo de nobreza
particular. Moedas foram cunhadas por Herodes Agripa II, que reina
do ano 37 a 44, com a inscrição philokaisar (“Amigo de César”).21 A
ameaça é grave. Chega a ser uma chantagem! Anás e Caifás, não
tendo conseguido o que queriam invocando a lei judaica, apelam à
lei romana, que eles tentam voltar contra o prefeito para fazê-lo
mudar de atitude. Esse é o primeiro passo para uma queixa a uma
dignidade mais elevada.
João escreve, em seguida: “Ao ouvir essas palavras, Pilatos faz
Jesus sair e toma lugar no tribunal no local chamado Lithostrôton, em
hebraico, Gabbatha (Gábata), [… depois] ele diz aos judeus: ‘Aqui
está vosso rei!’.” Esse é o momento decisivo, o ponto culminante do
processo. Tal cena apresenta uma curiosa dificuldade de
interpretação que é conveniente assinalar, porque, segundo o ponto
de vista que se adota, o seu sentido fica completamente alterado. O
texto grego traz a palavra ekathisen, do verbo kathizein. Ora, esse
verbo pode ser utilizado no sentido de sentar-se ou de fazer sentar.
Primeira tradução, a mais tradicional: Pilatos faz Jesus sair e toma
lugar no tribunal”. Segunda tradução: “Pilatos faz Jesus sair e o faz
sentar no tribunal”. Essa segunda interpretação, muito mais
original, foi defendida pelo padre de La Potterie22 e retomada pela
TEB.[3] Ela toca num ponto que o evangelho apócrifo de Pedro no
século II já assinalava. A solenidade com a qual João apresenta o
acontecimento — ele apresenta cuidadosamente a tradução do local
chamado Gabbatha (a palavra designa uma “altitude”, o que
corresponde ao palácio de Herodes no cume da colina mais alta, na
parte ocidental da cidade), e explicita a hora (a sexta, quer dizer
meio-dia, no início das solenidades da Páscoa que vão se desenrolar
no dia seguinte, no momento em que os primeiros cordeiros do
sacrifício cotidiano do Tamid serão degolados) — poderia nos fazer
preferir essa última interpretação. Essa seria, então, uma cena
poderosa com uma simbologia bem ao estilo de João. Com efeito,
Pilatos, em lugar de voltar para o estrado do julgamento, conduz
Jesus ao estrado, sempre vestido com o seu extravagante traje real,
tendo na cabeça a coroa de espinhos pontudos, e o faz sentar na
cadeira curul. “Eis aqui o vosso rei!”, Pilatos exclama novamente. O
cristão terá compreendido: Jesus se senta como majestade no
tribunal supremo. Ele é rei e juiz e, ao mesmo tempo, o cordeiro
pascal oferecido em holocausto, o Cordeiro de Deus. As autoridades
judaicas e romanas acreditam estar julgando Jesus. Mas é ele, na
verdade, que é seu juiz, e as autoridades os verdadeiros condenados!
Cena extraordinária de entronização real! Esse é o ápice da Paixão e
de sua força dramática! Se essa interpretação filológica é a correta,23
João, a testemunha insubstituível, terá percebido novamente o real
significado espiritual que se depreende dos acontecimentos.
“Eis aqui vosso rei!”: é possível que essa última comédia
representada por Pilatos tenha tido menos como objetivo
ridicularizar novamente os chefes judeus do que obter deles o que ele
quer, quer dizer, a libertação de Jesus e o final desse assunto
enfadonho. Nessa hipótese, ele esperava não a piedade dos judeus,
mas o reconhecimento de que, em definitivo, não valia a pena
obstinar-se contra esse homem enfraquecido, esse rei insignificante e
sem poder, que não é um verdadeiro rival do imperador.
No entanto, a multidão amotinada pelos sumos sacerdotes
vocifera: “A morte! A morte!”, literalmente: “Fora! Fora!”, depois:
“Crucifica-o! Crucifica-o!”. Pilatos lança uma última provocação:
“Hei de crucificar vosso rei?”. Os sumos sacerdotes: “Não temos rei,
senão César!”. Exclamação que gera estupefação, vinda dos mais
altos representantes da religião judaica, que tinham feito questão de
preservar, até então, a especificidade de sua nação: “Tomada
isoladamente”, comenta o padre Xavier Léon-Dufour, “essa frase
renega a soberania absoluta de Deus sobre Israel e renega, portanto,
a fé judaica em Deus, rei único do povo da Aliança, fé que celebra
precisamente a Hagadah pascal.”24
“Então, prossegue João, Pilatos o entregou para ser crucificado.”
A frase, mal construída, é sempre mal compreendida: “a eles” não se
refere aos sumos sacerdotes ou aos judeus, mas aos soldados
romanos que conduziram Jesus. É habitual, no caso de João, cometer
erros gramaticais (como também no caso de Lucas). Pilatos, por
covardia, por medo, cedeu. Ele preferiu cometer uma injustiça do
que arriscar que os sumos sacerdotes se queixassem diretamente a
Tibério, monarca implacável e imprevisível.
Foi esse o principal motivo de Pilatos no último momento: ao
dizer-lhe que ele não seria “amigo de César”, ao afirmar com força
que eles “não tinham outro rei senão César”, Anás e Caifás deram a
entender que eles poderiam apelar a Roma. Essa intimidação só
pode ser compreendida à luz do incidente provocado pelos escudos
de ouro no ano anterior. O prefeito não quer receber uma nova
carta de reclamação. Ele procurou ridicularizá-los da melhor forma
possível. Ir além do que já tinha feito poderia ser perigoso. Tibério
poderia reprová-lo por ter libertado um impostor da Galileia que se
toma por Filho de Deus, seu igual, de certa maneira, e de ser
cúmplice desse amotinador! Pilatos capitula e entrega Jesus a seus
soldados.
17

A crucificação

O titulus crucis [título da cruz]


A sentença de morte não foi expressamente formulada, o que é mais
bem compreendido quando lembramos que Pilatos não assumiu o seu
lugar sobre o estrado, mas ela está implícita. Foi ele, o prefeito
romano, que por último decidiu a sorte de Jesus, mesmo que para
isso tenha sofrido a pressão muito forte das autoridades de
Jerusalém. É ele quem agora vai mandar executar Jesus, segundo os
costumes romanos. Na época, o enunciado das condenações à
crucificação é extremamente curto: In necem ibis (“À morte violenta
tu irás”) ou In crucem ibis (“À cruz tu irás”). Isso significa que o
condenado deve ir a pé para o local de sua execução, carregando,
ele próprio, o seu instrumento de tortura. A flagelação é o suplício
prévio à crucificação. Como a flagelação já foi infligida a título de
punição autônoma — e com que violência, como vimos —, não há
motivo para recomeçá-la. Coberto de hematomas sanguinolentos,
Jesus não teria sobrevivido a uma nova flagelação. Passam, então,
diretamente para a execução da pena. Foi Pilatos quem fez redigir o
texto do titulus damnationis: essa tabuinha de madeira indica o
motivo da condenação. Pintada, em geral, de branco, com um texto
em vermelho ou em preto, ela é levada ao pescoço pelo supliciado
ou erguida por um soldado que anda na frente dele. Em seguida, ela
é fixada sobre a madeira da cruz.1 Na sua História eclesiástica,
Eusébio relata o tipo de morte de um cristão chamado Attali,
conduzido durante o reinado de Marco Aurélio ao anfiteatro de Lyon
para ser supliciado naquele local. Ele usava uma plaquinha de
madeira com tal inscrição: Hic est Attalus christianus (o simples fato
de ser cristão merecia, na época, a pena capital).2
O texto de Pilatos estava redigido da seguinte maneira: “Jesus, o
Nazareno, o rei dos judeus”. Essa foi a sua vingança: os sumos
sacerdotes quiseram que ele o condenasse como “rei dos judeus”,
pois bem, os judeus vão ver seu rei em evidência na entrada da
cidade! A título de advertência! “Nazareno”: a menção é importante.
Ela vem dos sumos sacerdotes. Percebe-se nela sua desonestidade,
porque Anás, que interrogou Jesus sobre sua doutrina, se deu
perfeitamente conta de que Jesus havia se desprendido das
aspirações do seu meio de origem e de que ele não era um messias
político. Mas isso mostra indiretamente a importância do papel que
a ascendência davídica desempenhou em sua execução.
Para que todos possam compreender, Pilatos, o obstinado, faz o
texto ser escrito nas três línguas praticadas na Palestina, o
aramaico, a língua corrente, o latim, a língua oficial do Império, e o
grego, aquela dos intercâmbios culturais e comerciais:

Yesua Nazaraya malka diyehudaye 3


Iesus nazarenus rex iudaeorum4
Ho Nazôraios ho Basileus tôn Ioudaiôn

Reencontrado em 326 por santa Helena, mãe de Constantino, em


uma gruta do sepulcro, o titulus teria sido dividido em três: uma
parte ficou em Jerusalém, onde a peregrina espanhola Egéria o viu
por volta de 381 na igreja do Santo Sepulcro, outra parte foi
enviada a Constantinopla e a terceira a Roma. Seria esse último
pedaço, carcomido, pintado de branco com letras vermelhas,
conservado na basílica Santa Croce, em Roma, uma parte do titulus?
Medindo 25cm por 14cm e pesando 687g, ele apresenta indícios de
ter sido serrado. Teria sido escondido no alto de uma abóbada no
momento das invasões dos godos, século V e reencontrado dez
séculos mais tarde por ocasião de uma reconstrução.5 As análises
científicas não foram muito aprofundadas. Entretanto, para a
professora Maria-Luisa Rigato, o estudo epigráfico e a
particularidade das escrituras latina e grega, traçadas da direita
para a esquerda, como o aramaico, tenderiam em favor da
autenticidade, a menos que se trate de uma cópia que reproduziria
escrupulosamente o original.6 As dimensões originais da tabuinha
deviam ser da ordem de 65cm de comprimento por 20cm de largura.
Em todo caso, seria equivocado, como alguns pretendem, fazer do
texto do titulus uma pura “construção ao estilo de João”, destinada a
proclamar a realeza universal do Cristo, que, por sua morte, serve a
humanidade.
Sem ser explícita, essa condenação é dada por crime de alta
traição. Para o jurisconsulto Ulpien, dessa forma, ela alcança
qualquer empreendimento dirigido “contra o povo romano ou contra
sua segurança…”, o que equivale a dizer que ela reflete quase todos
os delitos de ordem política. Jesus, convencido de ter prejudicado a
majestade imperial, morre não como profeta, mas como agitador
político.

O caminho da cruz
Desembaraçado de seu rico manto, o condenado torna a vestir suas
roupas. Retiram dele sua macabra coroa de espinhos para que possa
vestir sua túnica, mas a coroa é recolocada imediatamente. Foi uma
iniciativa dos guardas? Não, trata-se mais provavelmente de uma
ordem de Pilatos. A idéia é, mais uma vez, ridicularizar o
pretendente à realeza judaica. No Império Romano, na maior parte
do tempo, os condenados à crucificação eram conduzidos ao suplício
completamente despidos. Por respeito aos costumes judaicos, eles
não ousaram desnudar Jesus no interior dos muros de Jerusalém.
Os soldados colocam sobre seus ombros uma cruz de madeira
pesada. Essa cruz é carregada pelo próprio Jesus, como ordena a
regra romana, atestada por diversos autores, principalmente
Plutarco em sua obra Sobre a demora da justiça divina [“Nos suplícios
corporais cada um dos malfeitores carrega sua própria cruz”]. Em
sua Mostellaria (também conhecida como a Comédia do fantasma),
Plauto faz um dos seus personagens dizer: “Eles te conduzirão pelas
ruas, com o patibulum sobre a nuca, enchendo-te com golpes de
estímulo”. O patibulum é a travessa de madeira horizontal, ajustada
por meio de um entalhe à travessa vertical fincada na terra. Essa
peça de madeira, que pesava pelo menos treze quilos, era em geral o
único elemento mantido por meio de cordas sobre as espáduas do
condenado, e a parte vertical, o stipex crucis, que ficava no lugar,
sem se deslocar, servia para outras crucificações. No momento do
suplício, o homem, com os braços estendidos, era pregado sobre o
patibulum no solo, depois era levantado e fixava-se a trave,
entalhada para isso, sobre a parte vertical.7
Será que as coisas se passaram dessa maneira? João, que viu
Jesus sair pela porta norte do palácio de Herodes, escreve: “Ele
próprio carregando a sua cruz, saiu”. Isso quer dizer que ele estava
carregando a totalidade da cruz, patibulum e stipex fixados juntos?
Os historiadores se concentraram na ideia de que Jesus carregava
somente a barra transversal, como era de uso corrente. Não é certo
que eles tenham razão. Em primeiro lugar, porque o evangelista não
era um homem que mentia em relação à realidade. Se ele diz que o
próprio Jesus carregava a sua cruz, foi precisamente assim que ele o
viu. Por outro lado, não é evidente que no Gólgota as estacas
verticais ficassem ali permanentemente, como era o caso em Roma,
na colina de Esquilino. As execuções não eram comuns na época. Se
houve três execuções no ano 33, isso fora, provavelmente, uma
exceção (nenhuma outra é assinalada por Flávio Josefo entre o ano
6 e o ano 40).
Dispomos atualmente de outro indício. O professor André
Marion, físico do Instituto de Ótica Teórica e Aplicada de Orsay, que
estudou em paralelo o sudário de Turim e a santa túnica de
Argenteuil, reconstituiu em computador o estrago sofrido pela túnica
em cima da corpulência de um homem com a estatura do homem do
sudário (que media cerca de 1,80m e pesava mais ou menos 77
quilos). Esse modelo geométrico de alteração da forma lhe permitiu
observar sobre as costas das duas relíquias a superposição perfeita
dos grandes desgastes, causados por fricção e manchados de sangue.
Duas bandas retilíneas e ortogonais com cerca de 20 centímetros de
largura, indícios de um objeto pesado e rugoso, mostram que o
Cristo carregou uma cruz inteira que se esfregou sobre a sua roupa e
reavivou os ferimentos e as escoriações da flagelação. “A parte mais
longa da cruz teria se apoiado pesadamente sobre a omoplata e a
espádua esquerdas, formando um ângulo de aproximadamente trinta
graus com a vertical, enquanto o lado direito da travessa de madeira
era suportado pela espádua direita do supliciado.”8 Provavelmente,
Jesus se serviu da sua mão direita para manter a parte horizontal da
cruz, porque foi levando em conta as pregas causadas na túnica por
esse gesto que André Marion chegou a uma correspondência
impressionante entre as marcas ensanguentadas das duas relíquias.
O instrumento de suplício seria, portanto, uma cruz latina com as
duas partes já ajustadas. De que tamanho? Devia ser suficientemente
alta para levantar o supliciado por cerca de um metro, porque seria
preciso estender-lhe na ponta de um caniço uma esponja embebida
em água para fazê-lo beber, o que confirma igualmente a orientação
do golpe de lança de baixo para cima, visível no sudário. Essa cruz
deve pesar pelo menos 75 quilos. Enfraquecido ao extremo, Jesus só
conseguiu arrastá-la. Se confiarmos nas relíquias da catedral de Pisa,
do Duomo de Florença, de Notre-Dame de Paris e da basílica da
Santa Cruz de Jerusalém, a madeira utilizada teria sido o pinho. Foi
Pilatos, com certeza, que decidiu recorrer à cruz sublimis — a cruz
alta — em lugar da cruz humilis, para mostrar com clareza o seu rei
para os judeus.
No sudário de Turim, os traços de sujeira na altura dos
calcanhares — os fios estão cheios de poeira e de partículas de lama
— são visíveis somente com o microscópio eletrônico. Um
cristalógrafo americano da Hercules Aerospace Division, Joseph
Kohlbeck, notou no meio dessa poeira uma grande concentração de
carbonato de cálcio e pequenas quantidades de estrôncio e de ferro.
Ele identificou esse material com uma variedade bastante rara de
calcita, a aragonita, que se apresenta sob a forma de massa fibrosa e
compacta com fissuras brilhantes, cujos traços foram encontrados
em uma sepultura de Jerusalém. Outro químico, Ricardo Levi-Setti,
da Universidade de Chicago, ao trabalhar sobre amostras de
aragonita provenientes da Cidade Santa, ficou impressionado com a
identidade de estrutura que elas apresentavam em relação aos traços
do sudário.10 A aragonita foi igualmente encontrada sobre a túnica
de Argenteuil.
O itinerário de Jesus não tem nada a ver com a famosa Via
dolorosa que os peregrinos percorrem atualmente. Essa via,
concebida no século XVIII, a partir de um dos caminhos de cruzes
medievais — cada crença ou doutrina tinha a sua —, parte do local
da Fortaleza Antônia e passa debaixo do famoso arco do Ecce Homo,
cuja datação é discutida, mas que não existia no tempo de Jesus. Na
verdade, o local do suplício, o Gólgota, fica situado a cerca de 400
metros do antigo palácio de Herodes, no lado de fora dos muros,
porque as execuções eram proibidas no interior da cidade.
Na sua perspectiva de exaltação gloriosa de Jesus, João faz do
caminho da cruz quase uma marcha triunfal. Ele se abstém de
precisar que, ao cabo de uma dezena de passos, provavelmente
antes de ter transposto a porta do recinto dos Jardins, não longe da
torre Hippicos, o condenado titubeia e depois desaba. Ele cai
violentamente, com o rosto contra a terra, o que desperta a dor da
fratura do nariz. Os joelhos estão esfolados. Provavelmente, ele sofre
outras quedas, como as expõem as estações dos modernos caminhos
de cruz. Em todo caso, o sudário, essa testemunha insubstituível,
deixa perceber graves contusões nos joelhos: nesse local do sudário,
com efeito, o microscópio eletrônico mostra indícios lamacentos e
células epidérmicas.11 Talvez, essas quedas deixassem cair no chão a
coroa de espinhos? Ela é recolocada no lugar com brutalidade.
A análise das manchas de sangue sobre a túnica de Argenteuil
revela um esgotamento extremo. Algumas hemácias, observadas pelo
geneticista Gérard Lucotte, apresentam uma forma alterada e estão
rasgadas, privadas de sua hemoglobina. Ao passo que as hemácias
normais são bicôncavas, as de Jesus são menores, redondas,
acompanhadas de protuberâncias cônicas na sua superfície. Essas
particularidades são explicadas pela perda do líquido intracelular,
sinal de um organismo desidratado. A presença de ureia, a rarefação
dos sais minerais, como o cálcio e o ferro, são sinais de uma anemia,
pior ainda, sinais de uma “situação traumática”.12 Depois da
flagelação, que causou fortes edemas na pleura, Jesus sobrevive a
ele mesmo. Procurando encontrar, a partir do sudário, a cor dos fios
de cabelo de Cristo, um pesquisador americano, Gilbert R. Lavoie,
chegou à conclusão de que os cabelos e a barba se tornaram brancos
ou cinza muito claro:13 um fenômeno que pode se produzir algumas
horas em seguida a um choque emocional intenso. “A sua cabeça e
cabelos eram brancos como alva lã, como neve”, escreve João no
Apocalipse.14

Simão de Cirene
Em seguida, é necessário reportar-se aos evangelhos sinópticos. Os
soldados requisitam um espectador, Simão de Cirene, “que voltava
do campo”. Esse detalhe prova uma vez mais que eles estavam na
véspera da Páscoa, dia em que o trabalho cessa ao meio-dia, e não
no próprio dia, no qual qualquer atividade era proibida, sobretudo
nos campos. Marcos precisa que Simão de Cirene era “o pai de
Alexandre e de Rufo”, dois personagens familiares aos destinatários
de seu evangelho. Paulo, na sua Epístola aos Romanos, fala de um
Rufo, membro da comunidade cristã.15 Seria o mesmo? Não sabemos,
porque esse nome é bastante comum. Precisamos observar, somente,
que Marcos escreveu seu evangelho cerca de trinta anos depois da
morte de Jesus. Simão de Cirene teria podido, então, confiar suas
preciosas lembranças a seus dois filhos, Rufo (forma helenizada do
hebraico Ruben) e Alexandre (nome grego comum na Palestina), que
se tornaram cristãos, e eles teriam divulgado as informações.
Ninguém, aliás, coloca em questão seu papel.
Simão é um judeu originário de Cirene, capital da região da
África do Norte chamada Cirenaica. Seria ele um peregrino que veio
para a festa? Um membro da comunidade helenística da Cirenaica?
Esses membros possuem em Jerusalém sua própria sinagoga, na qual
há uma hospedaria. Lucas nos descreve Simão encarregando-se da
cruz e Jesus andando na frente dele. Não é com alegria no coração
que ele carrega essa madeira, que o torna impuro no momento da
Páscoa. O fato de que ele pôde pegar na cruz estabelece outra
particularidade: contrariamente ao costume, o condenado não foi
amarrado com cordas a seu instrumento de morte. Isto se liga à frase
de João, que relata Jesus “Ele próprio, carregando a sua cruz”, sem
coação.

As mulheres de Jerusalém
Quem são essas carpideiras de que fala Lucas, que se lamentam e
cantam cantilenas fúnebres batendo no peito quando passa o
cortejo?

Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai, antes, por vós mesmas e
por vossos filhos! Porque dias virão em que se dirá: Bem-aventuradas as
estéreis, que não geraram, nem amamentaram. Nesses dias, dirão aos
montes: Caí sobre nós! E aos outeiros: Cobri-nos! Porque, se em lenho verde
fazem isto, que será no lenho seco?16

Essa é a última recomendação de Jesus no estilo apocalíptico que


conhecemos. Que as carpideiras, em lugar de pensar nele, pensem
nelas! A catástrofe vai vir, a sorte está selada. Visto que não o
escutaram, nenhuma lamentação dali em diante poderá salvar
Jerusalém da devastação. É melhor não ter filhos quando a punição
se abater, porque eles não conseguirão proteger a si mesmos!… De
fato, a tragédia do cerco de Jerusalém, trinta e sete anos mais tarde,
revelará episódios assustadores no campo judaico, principalmente
casos de canibalismo. Cita-se a rica Maria de Eleazar, que matará
com suas próprias mãos sua criança de peito e mandará assá-la no
espeto antes de comê-la!…
Alguns comentadores duvidaram da realidade histórica da cena
das carpideiras. O episódio, construído a partir de reminiscências
escriturárias, seria apenas a lembrança da profecia de Jesus sobre o
fim de Jerusalém. “As lamentações fúnebres, observa um deles,
ocorriam depois da morte e por ocasião do sepultamento. Além
disso, essas lamentações eram interditadas para os criminosos
executados.”17 No entanto, Lucas, que não está muito familiarizado
com os costumes dos palestinos, nesse caso é preciso. Existia na
Cidade Santa uma confraria de senhoras e de moças de Jerusalém
encarregadas de acompanhar os supliciados lançando gritos de dor.
Em compensação, consideraremos como lendária a história de
Verônica, essa mulher compassiva que teria enxugado o rosto de
Cristo com uma peça de roupa branca, sobre a qual os traços de
Cristo teriam ficado impressos milagrosamente. Esse fato nos remete
ao sudário e à sua misteriosa impressão. Verônica viria de um nome
meio latim, meio grego, vera icona, a “verdadeira imagem”.18 O “véu
de Verônica”, levado a Roma por volta do ano 705 pelo papa João
VII, figura ainda entre as relíquias da basílica de São Pedro. Esse
rosto santo, atualmente bem enegrecido, seria, na verdade, uma
cópia do rosto do homem no sudário, então conservado em Edessa
com o nome de Mandylion.
Os romanos não gostavam dessas manifestações das carpideiras
institucionais. Provavelmente, elas tinham sido proibidas. Mas
teriam eles os meios de esquadrinhar Jerusalém, invadida por
dezenas de milhares de peregrinos? Lucas fala de “uma grande
multidão”, mais curiosa que agressiva. Prova de que em Jerusalém
nem todo mundo partilhava da hostilidade dos sumos sacerdotes em
relação a Jesus.
Cercado por soldados romanos, o cortejo saiu da cidade. Depois
de ter alcançado o caminho a Belém, ele sobe para o norte,
dirigindo-se em diagonal à direita, em direção à colina do Dejerab.
Nessa região, em meio a uma ondulação de vales ergue-se um
espigão rochoso com uma dezena de metros de altura, o Gólgota, em
aramaico, gulgolta, em latim, calvária (de onde vem a palavra
“calvário”), o local do crânio. Uma lenda de que os judeus religiosos
gostavam situava nesse local o sepultamento do crânio de Adão, o
primeiro homem. Esse espigão rochoso está situado no meio de
antigas jazidas de pedra. A má qualidade da rocha poupou o
enxadão dos trabalhadores, e é muito provável que a sua forma
arredondada, como a de um crânio, tenha inspirado o seu nome. Era
costume na Judeia dar denominações antropomórficas a certos
lugares: kétef (espádua), dahr (costas) ou hatn (ventre).
Está solidamente embasada a identificação desse lugar com o
local tradicional da basílica do Santo Sepulcro, como mostraram os
trabalhos de André Parrot e de Albert Storme.19 Debaixo da basílica
e do seu adro sul, foram encontradas as antigas pedreiras. Em 1885,
foram descobertas na proximidade desse local algumas sepulturas do
século I, dentre as quais se destaca uma indevidamente chamada
“sepultura de José de Arimateia”. João fornece uma informação
suplementar, confirmada pela existência da porta dos Jardins: no
local onde Jesus foi crucificado e enterrado, estendia-se um jardim.
Em si, essa precisão topográfica é interessante: uma pedreira no
final da exploração transforma-se facilmente em jardim. Existem
exemplos nas cercanias de Belém.
Depois da Ressurreição, o local tornou-se um lugar de
peregrinação. As pessoas dirigiam-se para lá para ver o lugar de
instalação da cruz e a sepultura vazia, a alguns passos dali. No local,
as pessoas rezavam e liam trechos da Paixão. Depois da segunda
revolta judaica, a de Bar Kokhba, no ano 135, o imperador Adriano,
querendo enterrar para sempre Jerusalém e, com ela, a religião
cristã, fez desaparecer a colina de Gólgota e a sepultura de Jesus sob
uma gigantesca acumulação de terra e de cascalho. Sobre essa
plataforma, fez construir um caminho bordejado com colunas, um
fórum e templos dedicados a Vênus e a Júpiter. Esse foi um dos
ornamentos topográficos da nova cidade, Élia Capitolina. Durante o
reinado de Constantino, a tradição mantida na memória por
gerações de judeus cristãos era tão resistente que, em lugar de
procurar um local mais acessível para edificar o Santo Sepulcro, eles
teimaram em desobstruir o antigo fórum, realizando enormes e
custosos trabalhos de desentulho.
Jesus é crucificado
Diferente da escolta, que tem como finalidade proteger o cortejo dos
condenados, um grupo de quatro executores enviados ao Calvário e
conduzidos por um oficial foi cuidadosamente escolhido.20 Depois de
subir a colina rochosa do Gólgota, eles “Deram-lhe a beber vinho
com fel”, observa Mateus. “Ele, porém, não tomou.”21 Para Marcos,
tratava-se de “vinho misturado com mirra”.22 Vamos considerar
como autêntico tal episódio omitido por Lucas e João. Com efeito,
era costume entre os judeus fazer os supliciados absorverem uma
bebida anestésica, para diminuir os seus sofrimentos: Quando um
homem é condenado, diz o Talmude da Babilônia, permitem que ele
tome um grão de incenso com um cálice de vinho, para perder a
consciência… As damas virtuosas de Jerusalém ficavam encarregadas
dessa tarefa.23 As damas virtuosas pertencem à confraria de que já
falamos. Os romanos tornaram, eles próprios, esse gesto de
compaixão? Permitiram que essas filhas de Sião o fizessem? É
possível. Os romanos eram instruídos para respeitar os costumes
locais. Portanto, deram a Jesus vinho misturado com mirra, como
indica Marcos. Mateus, inspirando-se no Salmo 69, prefere falar de
vinho misturado com fel (um raro exemplo da influência da
Escritura sobre a realidade). Mas Jesus recusa o narcótico. Ele quer
manter até o fim sua lucidez, sem recuar diante do sofrimento.
Para Cícero, a crucificação era “o mais cruel e o mais horrível dos
suplícios”, o mais atroz, dizia também Sêneca na sua Carta 101 a
Lucílio. Os condenados faleciam em meio a contorções e tormentos
indizíveis, depois de permanecer horas, até mesmo um dia ou dois —
raramente mais tempo — presos à madeira, sofrendo de câimbras, os
pulmões asfixiados, os músculos tetanizados e o cérebro mal
irrigado. A sede, o esforço que era preciso fazer para respirar
apoiando-se sobre os pés encravados, a aceleração cardíaca criada
pelo estresse agudo acabavam com a sua vida. O cadáver, então, era
deixado exposto às aves de rapina.
Reservada, em geral, aos escravos, aos desertores, aos
salteadores ou aos revoltados, a crucificação era para os judeus uma
ignomínia, denunciada pelo Deuteronômio.24 “Cristo, escreve Paulo,
nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em
nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo aquele que for
pendurado em madeiro).”25 Podemos perceber, então, a extrema
dificuldade que os primeiros cristãos tiveram para transformar esse
instrumento de tortura num sinal de salvação universal. Como os
cidadãos de Roma teriam acreditado no ensinamento de um homem
tão violentamente estigmatizado na sua morte, excluído da
humanidade antes mesmo de ter exalado seu último suspiro? Para os
cristãos, o patíbulo maldito tornou-se o acontecimento redentor, o
ato essencial por meio do qual o Cristo se oferece livremente, por
amor pela humanidade “como propiciação por nossos pecados”,26
dirá João. Paulo falará da “loucura” da cruz, loucura para os pagãos,
“escândalo” para os judeus.
Esse modo de execução tinha origem persa (dizem que o rei Dario
mandou crucificar três mil babilônios). A crucificação tinha sido
adotada pelos cartagineses, os gregos, os celtas e a maior parte dos
povos da Antiguidade. As crucificações foram muito numerosas,
inclusive entre os judeus, até a abolição desse suplício por Herodes,
o Grande.27 Por volta do ano 88 a.C., o cruel Alexandre Janeu, rei e
sumo sacerdote hasmoneu, mandou executar, dessa maneira, em
plena Jerusalém, oitocentos rebeldes fariseus que haviam feito um
apelo ao rei selêucida Demétrio III. Por volta da mesma época,
Simeão ben Shetah teria condenado a tal suplício oitenta feiticeiras
pagãs em Ascalão.
Quanto aos romanos, são inumeráveis os que morreram dessa
forma, durante cada turbulência ou agitação. No ano 71 antes da
nossa era, o cônsul Marco Licínio Crasso mandou suspender em
cruzes ao longo da Via Apia, entre Roma e Cápua, seis mil escravos,
culpados por seguirem Espártaco na sua revolta. No ano 4 a.C., o
implacável Públio Quintílio Varo, governador da Síria, fez a mesma
coisa em Jerusalém com relação a dois mil rebeldes. Em Roma, no
tempo de Nero, os cristãos também conheceram horrores
semelhantes. “Eles eram amarrados à cruz”, escreve Tácito, “e
chamas eram acesas; quando o dia terminava, eles iluminavam as
trevas como tochas.”28 Por sadismo ou por zombaria, os carrascos
fixavam com pregos ou amarravam os prisioneiros em todas as
posições, inclusive as mais grotescas ou as mais degradantes. “Eu
vejo diante de mim, escreve Sêneca, cruzes de diversos modelos que
variam de acordo com a forma que o dono mandou fazê-las: há
aquelas que penduram as vítimas de cabeça para baixo, outras
empalam os prisioneiros e outras, ainda, estendem seus braços sobre
um suporte.”29 Em junho de 1968, por ocasião das escavações
efetuadas no bairro de Giv’at ha-Mivtar (“colina da Partilha”), a
nordeste de Jerusalém, encontramos num ossuário os restos de um
supliciado do século I. Seu nome era Yohanan ben Hizqiel
(Ezequiel).30 O homem, que media entre 1,77m e 1,80m, tinha sido
crucificado sobre um tronco de oliveira, com as pernas dobradas. O
calcanhar tinha sido furado, as duas tíbias e o perônio tinham sido
quebrados com pancadas de clava, para que ele exalasse o último
suspiro, como mandava o costume romano. O prego de ferro do
calcanhar, enfiado no calcâneo, media 17,7cm.
Quando chegaram à plataforma do Gólgota, Jesus se despiu. Sua
túnica, ensanguentada, colada à pele, foi arrancada de seu corpo,
revelando um corpo coberto com uma grande quantidade de
equimoses e de chagas. Os quatro carrascos, que o acompanharam e
ergueram a cruz sobre o montículo, retiram até suas cuecas de pano,
o michrasim, também ensanguentado. Eles colocam um lençol na
cintura, tal como Jesus é representado nas pinturas? O respeito dos
romanos pelo pudor judaico poderia endossar essa hipótese, assim
como a existência no tesouro da catedral de Aix-la-Chapelle do
perizonium ou da Santa Tanga, que remonta a Carlos Magno
(infelizmente, pelo que sabemos, ela não foi submetida a análises
científicas). Ao contrário, Melito, bispo de Sardes, na Lídia, escreve
no século II: “Ele nem mesmo foi julgado digno de uma roupa, para
que não fosse visto”.31 A questão permanece em suspenso.
Os carrascos deitam brutalmente Jesus sobre o solo, esticam os
braços, seguram os punhos para fixá-los sobre a travessa horizontal.
Eles conhecem anatomia, por experiência. Os pregos cravados nas
palmas das mãos têm pouca chance de reter o corpo de um
supliciado, porque, com o peso, as carnes, músculos e ligamentos se
rasgam, e a vítima cai de seu sinistro patíbulo. Muito vascularizada,
essa região arrisca, além disso, provocar grandes hemorragias. Eles
sabem, em compensação, que existe um espaço entre os ossos do
pulso, o que é colocado em evidência em 1898 pelo médico
anatomista Étienne Destot, facilmente localizável do ponto de vista
clínico. É esse espaço que é utilizado pelos romanos para cravar o
prego. A maior parte dos pintores, com raras exceções
(principalmente Rubens e Van Dyck),32 ignorava esse detalhe
anatômico. Representaram-se os pregos da Crucificação nas
palmas.33 É preciso dizer que, desde o reinado de Constantino, no
início do século IV, o suplício da cruz foi abandonado no Ocidente.
No decorrer do espaço entre as duas guerras, o doutor Pierre
Barbet, depois de numerosas experiências com cadáveres em
hospitais, redescobriu os incidentes anatômicos da crucificação. No
sudário de Turim, podemos ver com nitidez que são os punhos que
foram cravados e não as palmas. Quando se enfia o prego no espaço
de Destot, isso provoca geralmente a compressão do nervo mediano;
a dor sentida é fulgurante, irradiando-se até a nuca. Isso é
acompanhado pela contração dos músculos tênares e da retração do
polegar em direção à palma da mão. Se nos reportarmos ainda à
relíquia, foram utilizados dois pregos redondos com oito milímetros
de diâmetro, pregos grossos de carpintaria, enfiados a golpes de
malho. Como observou o doutor Jacques Jaume, a passagem de um
prego desse tamanho “acarreta um traumatismo muito significante,
com a distensão e a luxação do osso do carpo, o que provoca um
edema muito significativo e um estado inflamatório agudo; a
hiperpressão e o edema provocados pelos pregos podem comprimir
os nervos e paralisar o conjunto da mão, com a retração do polegar
para o interior: as dores impedem, então, qualquer movimento”.34
Segundo a doutora Judica-Cordiglia, a colocação dos pregos teria
sido precisa e rápida para a mão esquerda, e mais difícil para a
direita. O carrasco teria tateado, arrancando o prego mal fixado
antes de enfiá-lo corretamente.35 Observamos que, de um ponto de
vista semântico, não há contradição com o evangelho de João,
relatando os propósitos de Tomé: “Se eu não vir nas suas mãos o
sinal dos cravos…”. Para os semitas, com efeito, o punho e a mão
são designados por uma só palavra, yad. Jesus foi realmente
pregado pelos punhos.
Para os pés, os soldados se serviram de um único prego,
quadrado, de um centímetro de diâmetro. O pé esquerdo é
sobreposto ao direito, de modo que o joelho esquerdo aponte
ligeiramente para frente. Segundo Pierre Barbet, o prego teria sido
colocado entre o segundo e o terceiro metatarsos. O doutor Pierre
Mérat, médico ortopedista do hospital Saint-Joseph em Paris, indica
um lugar mais fácil para colocar os pregos, entre os escafoides e os
cuneiformes. O corpo inteiro é suportado por esse único prego. Os
pregos são cravados diretamente sobre o suporte vertical.
O sudário nos revela outra particularidade: Jesus não foi
crucificado com os braços alongados, mas dobrados: cordas
colocadas sobre o patibulum provavelmente sustentaram o corpo
pelas axilas, não para aliviar o condenado, mas, ao contrário, para
fazer o suplício durar mais tempo! Suspenso unicamente pelos
braços, Jesus não teria sobrevivido mais que alguns minutos. Ao
contrário, sustentado pelas cordas, ele sofreria durante horas. Se
esse detalhe é exato, todas as nossas representações do Cristo na
cruz deveriam ser revistas!36 Para erguer a cruz, o esforço de vários
homens é necessário. Os quatro carrascos se empenham nessa tarefa.
Depois, eles consolidam a estaca com blocos de madeira fixados na
terra.

Os dois ladrões
Na manhã de sexta-feira, Pilatos manteve outras audiências. Ele
condenou à morte dois bandidos. Quem são eles? Nenhuma precisão
é dada nos escritos evangélicos. Talvez, fizessem parte dos
insurgentes “Os quais em um tumulto haviam come-tido
homicídio”,37 de que fala Marcos. Talvez fossem companheiros de
Barrabás, que não tiveram a chance de beneficiar-se com a anistia?
Mas, assim como Barrabás, eles não são zelotes. Muito
provavelmente, são salteadores ou ladrões de estrada, culpados
talvez por cometerem crimes de sangue. Jesus, o inocente, é
executado no meio deles (“um de cada lado”, esclarece João). Se
Pilatos fez colocar Jesus no centro, foi para aperfeiçoar a comédia
do rei dos judeus: Jesus, com a sua coroa de zombaria, é cercado
como uma majestade por dois bandidos, provavelmente colocados
em cruzes baixas (cruz humilis). Podemos admitir que essas cruzes
também traziam igualmente um titulus que indicava o motivo da
condenação, mas isto não é certo. Essas inscrições não são
sistemáticas. Para melhor valorizar o horror do suplício de Jesus,
acentuar o seu caráter único, a arte cristã quase sempre representou
os seus dois companheiros de miséria amarrados com cordas: pura
convenção iconográfica, que não se baseia em nenhum dado
histórico. Muito provavelmente, os três foram executados da mesma
maneira.
Alguns manuscritos dão nomes aos dois ladrões: Joathas e
Maggatras (no antigo latim de Lucas), Zoathan e Camma (no antigo
latim de Mateus), Dysmas e Gestas no relato apócrifo dos Atos de
Pilatos, Titus e Dumachus no evangelho árabe da Infância. Podemos
escolher!
Esses ladrões também são flagelados, porém com menos
violência, porque, como se trata de uma punição anterior ao
suplício, os carrascos sempre temem ter de responder por uma morte
prematura de suas vítimas.38 De fato, Jesus, esgotado, vai morrer
antes deles, ao passo que será preciso desferir um último golpe nos
ladrões.
Uma vez terminado o trabalho, em conformidade com um
costume romano (confirmado mais tarde por um decreto do
imperador Adriano), os soldados, salvo o oficial, repartem entre si
os despojos das três vítimas. É a sua recompensa. Eles não os
empregam em seu uso pessoal, mas os negociam. Os evangelhos
mantiveram esse detalhe, porque pareceu aos evangelistas que assim
se cumpria o Salmo 22: “Repartem entre si as minhas vestes e sobre
a minha túnica deitam sortes”.
No caso de Jesus, eles dividem quatro partes, uma para cada um.
O cinto, as cuecas (michrasim), a túnica de baixo (simba)39 e as
sandálias.40 Sobra a túnica de cima ou manto (chetoneh), usado
diretamente sobre a pele, em tecido de lã bastante grosseiro,
chamado sadin, sem costura. Os soldados decidem sorteá-lo.
Descreveram-na: essa “túnica sem costura, tecida como uma única
peça desde o alto”, que João descreve com a minúcia de uma
testemunha ocular, pode ser identificada com a túnica que está em
Argenteuil… Uma camisa longa de lã, característica dos habitantes
pobres da Galileia na época, que ia até o cotovelo e descia até o
meio da coxa.

Os insultos
Lucas é o único a citar a prece de Jesus na cruz: “Pai, perdoa-lhes,
porque não sabem o que fazem”.41 Essa palavra de perdão refere-se
ao mesmo tempo aos romanos e aos que o entregaram. Ela chocou
alguns copistas, em uma época em que judeus e cristãos opunham-se
violentamente, por isso, há a omissão desse versículo em algumas
versões. Entretanto, parece que essa notação é autêntica. No ano 36,
Estêvão, ao morrer lapidado e querendo imitar Jesus, vai retomar
mais ou menos a mesma invocação, dirigida não ao Pai, mas a Jesus:
“Senhor, não os condene por esse pecado”.42 No século II, o
historiador Hegésipo oferecerá uma frase semelhante para Tiago, o
Justo, no momento da sua lapidação.43 Talvez Lucas ficasse sabendo
desses detalhes por João, que, entretanto, não os relata em seu
evangelho, do mesmo modo que não relata as injúrias de que é
objeto o supliciado. Em seguida, provavelmente, Lucas se baseia no
relato primitivo do texto aramaico de Mateus,[1] matriz dos
evangelhos sinópticos:44 “O povo permanecia ali, olhando; os chefes,
porém, zombavam de Jesus, dizendo: ‘A outros ele salvou. Que salve
a si mesmo se é de fato o Messias de Deus, o Escolhido’”.45 O
evangelista diferencia o povo, que não é completamente hostil, dos
chefes, que odeiam o crucificado. O nome de “Jesus” (que, podemos
lembrar, significa “Deus salva”) que figurava sobre o titulus,
associado à sua qualificação de “rei dos judeus”, sugere essas
zombarias e esses desafios. Ele diz que é o Salvador? “Salvou os
outros; a si mesmo se salve.” “Salva-te a ti mesmo, descendo da
cruz.”
Há grande número de pessoas ao redor do rochedo do Gólgota e
no caos das antigas pedreiras, cobertas nessa primavera com uma
vegetação abundante. Todos aqueles que entram em Jerusalém pelo
caminho de Belém para noroeste, quer pela porta dos Jardins, quer
pela porta de Efraim, não podem escapar ao espetáculo, e são
numerosos nessa véspera do grande sabá de Páscoa. As três cruzes
também podem ser vistas do alto das muralhas, a algumas dezenas
de metros do local da crucificação.
“Também os que com ele foram crucificados o insultavam”,
escreve Marcos. Mas foi provavelmente João quem relatou a Lucas o
episódio do bom ladrão, ou então foram as santas mulheres,
postadas perto da cruz. Enquanto um dos malfeitores fazia coro com
a multidão, o outro lhe declarava: “Nem ao menos temes a Deus,
estando sob igual sentença? Nós, na verdade, com justiça, porque
recebemos o castigo que os nossos atos merecem; mas este nenhum
mal fez. E acrescentou: Jesus, lembra-te de mim quando vieres no
teu reino”. O ladrão havia ouvido um rumor da sua pregação, ou
tinha assistido ao processo de Jesus enquanto aguardava o seu?
Jesus lhe responde usando a fórmula solene: “Em verdade te digo
que hoje estarás comigo no paraíso”. No anúncio escatológico da
literatura judaica, bem como mais tarde, no pensamento cristão, o
paraíso é o jardim da justiça, o reino celeste, onde os justos
encontrarão sua recompensa final, plena e inteira. Para os teólogos,
essa palavra expressa a misericórdia gratuita de Deus que se exerce
pelo intermédio de Cristo. Não é de espantar que Jesus, apesar da
atrocidade de seu suplício, tenha podido falar, pelo menos
brevemente, durante as três horas pelas quais se estende a sua
agonia. Segundo Schalom Ben-Chorin, era comum os condenados
proferirem discursos, colocarem-se a gritar ou a lançar imprecações
do alto de seu patíbulo sangrento.46 É surpreendente o contraste
com Jesus, que só pronunciará palavras de bondade e de perdão.
Os sumos sacerdotes em pessoa levaram adiante sua baixeza até
irem ao pé da cruz? Mateus e Marcos não dizem nada a respeito.
Lucas, ao falar dos “chefes”, parece dizer que sim. A hipótese parece
surpreendente, até mesmo excessiva. Por que se plantar diante de
sua vítima? A execução era um assunto de trabalhos inferiores. O
essencial para eles não era ter conseguido à força do ocupante
romano a sentença de morte? Além disso, sua presença nesse lugar
de execução os tornaria ritualmente impuros. Mas talvez se deva
levar em conta a dimensão passional do drama. Os sumos sacerdotes
tiveram dificuldade para conseguir tal condenação. Para deleitar-se
com a visão desse falso messias que os provocara com desprezo e
escárnio no Templo, teriam eles deixado de lado sua dignidade
durante alguns minutos?
Em todo caso, mesmo que não tenham estado presentes, Anás e
Caifás logo ouviram rumores do que Pilatos mandara inscrever no
titulus e cuja significação messiânica era evidente. “Muitos judeus,
escreve João, leram este título, porque o lugar em que Jesus fora
crucificado era perto da cidade.”47 Eles não o retiraram da cruz. “O
rei dos judeus”! Como esse miserável poderia sê-lo? Isso era
intolerável! Eles se sentem duplamente humilhados, religiosa e
socialmente. Pilatos zombou deles. Em lugar de consagrar sua tarde
ao sacrifício dos animais para a refeição da noite, eles decidem
retornar para vê-lo. Apesar de terem anunciado sua fidelidade a
Tibério, seu “rei”, continuam ligados à espera da chegada de um
novo Messias a Israel. Schalom Ben-Chorin pensou também que a
abreviação INRI, que corresponde em hebraico ao tetragrama JHWH
(Jeshu Hanozri Wumeleh Hajehudim), ou, dito de outra forma,
YaHWeH, pode tê-los chocado no mais alto grau.48
Eles pedem para falar com o prefeito na entrada do palácio.
Pilatos aparece. Eles lhe dizem: “Não escrevas: Rei dos judeus, e sim
que ele disse: Sou o rei dos judeus”. Pilatos lhes responde: “O que eu
escrevi está escrito”. Não se volta atrás num assunto julgado! Uma
sentença não pode ser aumentada ou diminuída! O prefeito
recuperou sua autoridade e responde com uma recusa grosseira,
excessiva. Para João, esse é ainda um sinal providencial: mesmo o
pagão Pilatos tornou-se profeta sem mesmo o saber, como Caifás
outrora fora inconscientemente conduzido pela Providência divina a
dizer a verdade sobre Jesus! Daí a fórmula de Justino, reflexo
perfeito da teologia de João: “O Senhor reina do alto da madeira [da
cruz]”.49
A fórmula: “O que eu escrevi está escrito”, pronunciada em
grego, traz em si o traço de um latinismo (correspondente à sua
tradução latina, Quod scripsi, scripsi, dos latinos). Isso tenderia a
provar que o próprio João ouviu tal resposta e que, por
consequência, seguiu a delegação judaica no momento, antes de
dirigir-se ao pé da cruz, ou então que um de seus próximos lhe
contou o propósito do prefeito no seu grego mal falado.

Maria e as santas mulheres


As santas mulheres estão lá, a distância. Quem são elas? Mateus
enumera três: Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, e a
mulher de Zebedeu, o patrão pescador do lago, cujos dois filhos
Tiago e João, fazem parte dos Doze. Marcos cita igualmente três
mulheres: Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, o Justo, e de José,
e Salomé. São as mesmas citadas por Mateus: Salomé é a mulher de
Zebedeu. O evangelista acrescenta, sem nomeá-las, várias mulheres
que subiram com Jesus para Jerusalém. Lucas fala igualmente desse
grupo de mulheres que seguiu Jesus e nomeia uma parte delas no
momento do episódio da sepultura vazia: Maria Madalena, Joana e
Maria, mãe de Tiago. Portanto, ele acrescenta Joana à lista:
sabemos que ele designa, então, a mulher de Cusa, intendente de
Herodes Antipas. Os autores dos evangelhos sinópticos, dentre os
quais nenhum foi testemunha da cena, reproduziram os principais
nomes dos seguidores de Jesus e dos Doze.
João Evangelista, João, o fiel, presente no suplício como esteve
no processo, traz precisões: “E junto à cruz estavam a mãe de Jesus,
e a irmã dela, e Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena”. Um
pequeno grupo destacou-se, então, dos raros discípulos e das
mulheres que olhavam o suplício de longe (talvez do alto das
muralhas do segundo muro, como sugere um autor alemão).50 Seria
preciso distinguir “a irmã de sua mãe” e “Maria de Cléofas”, e, nesse
caso, haveria quatro mulheres ao pé da cruz, ou, ao contrário,
considerar que “Maria [mulher] de Cléofas” é apenas uma aposição
a “irmã de sua mãe”, o que reduziria a três o número das mulheres
ao pé da cruz? Nessa última hipótese, a irmã de Maria se chamaria
igualmente Maria. Isso não é impossível, mas pouco usual. A
preferência é da primeira solução, por uma razão gramatical. Se
olharmos, com efeito, o texto grego de João, percebemos que “as
quatro designações estão ligadas duas a duas por kai”.51 Aliás,
dissemos que a outra Maria, mulher de Cléofas, mãe de Tiago e de
José, era a cunhada de Maria, mãe de Jesus (seu marido Cléofas era
o irmão de José).
A presença de Maria, mãe de Jesus, em todo caso, é capital. Ela
não faz parte das mulheres ligadas ao grupo de pregação de Jesus.
Ela veio para a Páscoa, como a cada ano, deixando sua casa em
Nazaré, em companhia de sua irmã (cujo nome não conhecemos), de
sua cunhada, chamada igualmente Maria, mulher de Cléofas, e de
seus sobrinhos, Tiago, José, Simeão (ou Simão) e Judas, os “irmãos”
de Jesus, aqueles mesmos que insistiram que Jesus fosse a Jerusalém,
apesar da ameaça que pesava sobre ele. Esse é o pequeno clã dos
nazarenos, acrescentado talvez de algumas outras pessoas.
João só fala de quatro mulheres ao pé da cruz. Ele está lá com
elas, e provavelmente foi ele quem, depois de ter deixado a
delegação dos sumos sacerdotes, obteve dos soldados de Pilatos a
permissão excepcional de aproximar-se do supliciado.
É somente mais tarde que João irá perceber o alcance teológico e
a riqueza simbólica da cruz, trono de Jesus coroado, triunfando
sobre as forças das trevas. “E do modo por que Moisés levantou a
serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja
levantado, para que todo o que nele crê tenha a vida eterna.” O
titulus escrito em três línguas proclama o caráter universal da
realeza de Jesus.
Ao ver sua mãe e, perto dela, o discípulo que ele amava, Jesus
diz à sua mãe: “Hâ berék” (Mulher, esse é teu filho), depois ao
discípulo: “Hâ immâk” (Essa é tua mãe). “Dessa hora em diante, o
discípulo a tomou para casa.”52 Não vamos nos estender sobre a
excepcional riqueza simbólica que os comentadores cristãos tiraram
dessa passagem: a maternidade espiritual de Maria, mãe da Igreja (o
discípulo bem-amado representando, por sua exemplaridade e seu
papel privilegiado, a comunidade dos crentes); a maternidade
celeste da nova Eva, mãe dos discípulos do Cristo, associada à obra
da salvação… Essas interpretações foram muito fecundas, a partir de
Anselmo de Cantuária e de Alberto Magno, particularmente no
interior do catolicismo, onde os desenvolvimentos relativos à
mariologia foram muito impulsionados. Digamos que essas
interpretações não são gratuitas: João não quis somente revelar o
destino que Jesus reservava à sua mãe depois de sua morte, nem
mesmo mostrar que ele desejava reconciliar sua família natural dos
nazarenos e aquela, completamente espiritual, dos seus discípulos.
Ao confiar sua mãe ao discípulo bem-amado, que havia
compreendido melhor o sentido de sua obra e de suas palavras,
Jesus desejou assegurar-lhe um sustento material que ninguém lhe
daria depois de sua morte. De maneira diferente dos Onze, que
abandonaram tudo para seguir Jesus, João permaneceu em
Jerusalém, onde ele possuía uma morada aristocrática sobre a colina
do Sião, a exploração de Getsêmani e certamente outros bens. É,
portanto, a João que Maria é confiada, dali em diante ele cuidaria
dela. De antemão, Jesus definiu sua relação, a de uma mãe e de seu
filho. É ao mesmo tempo uma palavra de adoção e um testamento.
Por meio desse gesto de ternura e de amor filial, Jesus administra
indiretamente a prova de que sua mãe não tinha outros filhos,
porque a lei de Israel obriga os filhos a assumirem seus pais idosos.
Esse é um dever sagrado. Se Jesus tivesse tido irmãos ou meio-
irmãos, como o sugerem alguns comentadores, teria encarregado
João ou as outras mulheres de enviar uma mensagem para seus
irmãos. Ele não o fez. Isto porque Tiago, o Justo, da mesma forma
que José, Simeão ou Judas, todos presentes, no entanto, em
Jerusalém por ocasião dessa última Páscoa, não tinham nenhuma
obrigação moral em relação a Jesus. Eles são apenas seus primos.
Diversos padres da Igreja acentuaram isso: Hilário, Epifânio,
Jerônimo e, sobretudo, Ambrósio. As pessoas que consideram Maria
como mãe de uma família numerosa parecem ignorar tal passagem,
que é, contudo, muito clara. No seu evangelho, João, com extrema
discrição, mostra que permaneceu fiel às fortes palavras do Mestre:
“Dessa hora em diante, o discípulo a tomou para casa”. Ele não dirá
mais que isso.
18

A morte

Os últimos sofrimentos
Jesus, esgotado, submetido a uma tortura insustentável, luta contra
a crispação mortal. Seu corpo, tumefato, com as carnes laceradas e
entalhadas, agitado por movimentos convulsivos e espasmódicos, os
peitorais fortemente contraídos, perde sangue. Sem poder responder
a todas as necessidades, esse sangue precioso, como uma reação de
sobrevida, se rarefaz no baço e nos rins para se concentrar no
cérebro. A pele tornou-se violácea. O encravamento das mãos e a
terrível torção dos pés provocam danos nervosos e uma tortura
tetânica intolerável. A fricção contínua da coroa de espinhos contra
a madeira agrava os ferimentos do crânio. Os espinhos penetram
mais profundamente, atingindo um ramo da artéria occipital e as
veias do plexo vertebral posterior.1 A respiração, já entravada pelas
muito fortes secreções pulmonares decorrentes da flagelação,
tornam-se cada vez mais opressoras, sufocantes. A caixa torácica
inchada, em hipertensão, não consegue mais expirar o ar viciado.
Sob a saliência do esterno e da cavidade epigástrica, o ventre está
inchado como um balão. Os cabelos e a barba estão untados com
suor e sangue. A transpiração abundante o desidrata. A garganta se
torna seca e a sede demasiado intensa. O ritmo cardíaco se acelera,
a pressão aumenta perigosamente. A temperatura se eleva a 41°. O
corpo, que cessou de eliminar os dejetos metabólicos, envenena-se.
Examinado no sudário de Turim, o sangue vai revelar taxa
excepcionalmente alta de bilirrubina, substância secretada pelo
fígado em caso de agonia extrema, de sofrimento intolerável e de
traumatismo devastador. Aproxima-se o processo terminal que vai
conduzir à morte do crucificado.
“Depois, relata João, vendo Jesus que tudo já estava consumado,
para se cumprir e Escritura, disse: Tenho sede!”.2 João acentua assim
o pleno domínio de Jesus sobre o seu destino, sua consciência de ter
chegado ao término de sua missão. Esse “Tenho sede” expressa um
desejo ardente de juntar-se ao Pai, como canta o salmista: “Minha
alma tem sede de ti, Senhor!”.3 Ele não observou no momento de sua
detenção: “Não hei de beber eu o cálice que o Pai me deu?”. Essa
construção teológica elaborada não está desconectada da realidade:
faz parte integrante do testemunho do discípulo, mesmo se este só
compreenderá mais tarde, depois de uma longa e religiosa
meditação das Escrituras, o sentido desse domínio interior.
Concretamente, a palavra de Jesus manifesta uma sede ardente,
devoradora, própria a todos os crucificados. É um grito de
sofrimento, mas não de desespero. Em outros termos — e é o que
nos interessa aqui, no plano histórico —, no cerne mesmo do horror,
João, ao pé da cruz, viu o supliciado permanecer lúcido até o fim,
sem ceder à desesperança ou à revolta.
Os evangelhos de Mateus e de Marcos insistem, ao contrário, na
solidão incomensurável dos últimos instantes do crucificado,
zombado e condenado pelos judeus, os soldados romanos, os dois
ladrões, rejeitado pelos Doze, que se dispersaram depois da sua
detenção. E o próprio Pai não abandonara seu Filho, deixando-o
agonizar? Jesus, sozinho diante da sua Paixão, teria então
pronunciado o grito que abre o Salmo 22: “Eli, Eli, lema sabachthani”
(Mateus) “Elôï, Elôï, lama sabachthani” (Marcos), “Deus meu, Deus
meu, por que me desamparaste?”. Essa parte inicial, grito de
angústia mais do que de desespero absoluto, foi realmente o que
ocorreu? Alguns duvidaram disso. Isso seria uma pura construção
teológica para mostrar que Jesus cumpriu o destino do Justo
sofredor, tal como o Salmo descreve. Pode-se objetar que a frase que
lhe é atribuída prossegue por uma reflexão de “alguns daqueles que
estavam lá”: “Ele chama Elias!”,4 o que deixa supor um pano de
fundo histórico. Esse mal-entendido a propósito do supliciado
chamando Elias parece muito plausível. Muitas vezes foi dito que os
evangelhos não inventam situações em função dos escritos bíblicos.
Interpretam os fatos à luz da Escritura, livre para adaptações, até
mesmo para solicitar o sentido dos textos. Como observa Schalom
Ben-Chorin, “é preciso tomar muito cuidado para ver nisso alguma
dúvida quanto a existência de Deus, porque se o judeu da tradição,
na última hora, pode colocar tal questão a Deus, o homem moderno,
em compensação, coloca em causa o próprio Deus”.5
A partir de que elemento real os evangelhos sinópticos
compuseram a sua versão? Uma hipótese foi emitida por alguns
exegetas, dentre os quais está Léon-Dufour.6 Jesus teria
simplesmente suspirado em hebraico: “ Eli atta” (“Meu Deus, és tu”).
Essa palavra, que figura apenas nos Salmos do Servidor sofredor,
anuncia não o desespero absoluto, mas a certeza da libertação
esperada ou obtida.7 Isto se integraria perfeitamente ao que João
percebeu da Paixão de Jesus, a do Filho sofredor, mas sempre
voltado para seu Pai, consciente de ter levado a cabo sua missão
terrestre.
Os soldados, auxiliares palestinos e samaritanos que
compreendiam o aramaico, acreditaram ouvir o crucificado chamar
Elias nessa língua: “Elia ta’” (“Elias, vem”). Daí teria nascido o
trabalho de escrita do pré-Mateus, que mostra a fidelidade constante
de Jesus a seu Pai, até no cerne do seu sofrimento. Raymond E.
Brown pensa que essa solução é a melhor para explicar os textos.8
Jesus caiu num estado de perturbação e de profunda angústia, mas
não num sentimento de total abandono, num abismo de desamparo,
para mostrar que ele havia assumido a plenitude da sua natureza
humana, como disseram alguns teólogos. Não somente ele não
rejeita seu Pai, não o injuria como faria um homem revoltado, mas
conserva a esperança e suplica em oração com um hino de louvor
escatológico, dando graças, sabendo que será ouvido. O Salmo 22,
no qual Jesus pensa ou ao qual faz alusão, após seus primeiros
versículos angustiados, não termina na confiança e na vitória do
Justo: “Tu me respondes […] perante ele se prostrarão todas as
famílias das nações”.

“Eu tenho sede”


Mas voltemos ao último lamento de Jesus na cruz: “Eu tenho sede”,
que também remete ao Salmo 22. João, com a precisão da
testemunha, escreve: “Estava ali um vaso cheio de vinagre.
Embeberam de vinagre uma esponja e, fixando-a num caniço de
hissopo, lha chegaram à boca. Quando, pois, Jesus tomou o vinagre,
disse: Está consumado! E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito”.
Essa jarra tinha sido levada ao Gólgota pelos soldados romanos.
Continha posca, um vinho azedo de má qualidade, misturado com
água e vinagre e adicionado com ovos batidos — um vinho de “má
qualidade”, em suma. É uma bebida que serve como refresco aos
ceifeiros e aos soldados. Um deles arranca uma haste de hissopo e
fixa em uma das extremidades uma esponja, que mergulha no jarro
antes de apresentá-la a Jesus.
Tal haste de hissopo perturbou os exegetas. O hissopo, eles
observaram, é uma planta de pequeno tamanho. Não é realista
pensar que é possível amarrar uma esponja em sua haste. Alguns
pensaram numa adulteração do manuscrito. No lugar do hyssôpos
(hissopo), seria preciso ler hyssos, palavra grega que designa uma
lança. Infelizmente, nenhum manuscrito o trata dessa forma. Outros
avaliaram que João havia inventado esse suporte para fins
apologéticos. O hissopo, com efeito, é mencionado no Livro do
Êxodo. Ele serve para a aspersão ritual do lintel das portas das casas
israelenses com o sangue do cordeiro pascal.9 Ora, Jesus morre como
o Cordeiro pascal da Nova Aliança. Essa relação é plausível, mas
nem por isso podemos imaginar que o evangelista construiu a cena a
partir do zero para lembrar um rito bíblico. De fato, existem diversos
tipos de hissopos. Um deles é arbusto das regiões mediterrâneas,
com ramos longos de cerca de um metro. Observemos, aliás, que
Mateus e Marcos falam de “caniço”, sem outra precisão. A melhor
solução, portanto, é voltar ao texto de João, testemunha ocular, e
considerar que um dos soldados arrancou um ramo longo de hissopo,
que crescia no Gólgota, e conseguiu fixar a esponja nele, que
estendeu em seguida ao crucificado.
Mateus e Marcos falam de “vinagre”. Nós estamos aqui, ao que
parece, em presença de um caso raro de influência deformadora da
Escritura sobre a realidade (já citamos uma deformação da Escritura
a propósito da primeira bebida oferecida, segundo Mateus, a Jesus).
Os dois evangelistas seguiram literalmente o texto do Salmo 69
(versículo 21):

Por alimento me deram fel,


e na minha sede me deram a beber vinagre.

Na realidade, como mostra João, apresentar uma esponja


impregnada de posca (e não de vinagre puro) não é um gesto de
envenenamento ou de zombaria, que prolonga a cena de escárnio
cruel do pretório. Tal cena se situa num outro contexto. Uma vez
que Jesus foi condenado à morte, os soldados realizam sua tarefa de
acordo com seus hábitos, sem zelo nem violência gratuita. Quando o
supliciado pede para beber, eles respondem favoravelmente. Seria
esse um gesto de humanidade de sua parte? Ou, ao contrário, seria
com a intenção de acelerar a morte, porque sabem que nesse estágio
a deglutição de um líquido é fatal? É o que pensava Ernest Renan:
“Imagina-se no Oriente que o fato de dar de beber aos crucificados e
aos empalados acelera a morte.”10 Permanece o fato de que Jesus
expira imediatamente depois: “Quando, pois, Jesus tomou o vinagre,
disse: Está consumado! E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito”.11
Teologicamente, essas palavras, “Tudo está consumado”, algumas
vezes traduzidas como “Terminou”, mostram o cumprimento da
Escritura.
Lucas não partilha a visão sombria de Mateus e de Marcos. Ele
insiste, como João, sobre a serenidade, a perfeita consciência de
Jesus, que não é abandonado por seu Pai, mas que se abandona a
Ele. Ele acrescenta que Jesus solta um “grande grito”, e diz: “Pai, em
tuas mãos entrego o meu espírito”. Em lugar de “Está consumado”,
como diz João, o terceiro evangelista utiliza de maneira hábil o
versículo 6 do Salmo 31, que ele faz preceder por uma invocação do
Pai.
Que Jesus, ao morrer, tenha soltado um “grande grito”, como
relatam os evangelhos sinópticos, é muito provável, visto o estado
de sofrimento paroxístico em que ele se encontrava.
Compreendemos que João o tenha omitido, porque o grito não entra
na sua teologia da morte triunfal. A agonia durou três longas horas.
Posto na cruz, no momento do sacrifício cotidiano do Tamid (tratado
que regulamenta as oferendas), no Templo, ele morre no instante
em que o sumo sacerdote Caifás, vestido com um manto azul, após
ter subido solenemente os degraus, imola no altar dos holocaustos o
primeiro cordeiro pascal, símbolo da libertação e da salvação de
Israel. O sangue do animal sagrado escorre como o de Jesus sobre a
cruz.

As causas da morte
Quantos romances inverossímeis foram escritos para contar que
Jesus não foi sacrificado ou que não morreu na cruz! Isso começa
com o gnóstico Basilides, persuadido de que Simão de Cirene tomou
o lugar de Jesus. Metamorfoseado com uma batida de varinha
mágica, o porta-cruz teria revestido os traços de Jesus, enquanto
este, assistindo ao seu próprio falecimento no meio da multidão,
teria se divertido com o belo artifício que ele teria usado contra os
sumos sacerdotes! Os motivos são teológicos: o Deus tornado homem
não pode morrer sobre uma cruz! Seria preciso, então, que houvesse
uma substituição no último minuto ou que a divindade tivesse se
retirado subitamente de sua pessoa. Confundindo Judas, um dos
“irmãos” de Jesus, com o apóstolo Tomé, dito de outra forma, com
Dídimo (“o gêmeo”), alguns gnósticos supuseram que “Judas Tomé”,
gêmeo e sósia do Cristo, tinha sido levado ao sacrifício em seu lugar.
Além disso, segundo essas mesmas doutrinas esotéricas, Jesus é
verdadeiramente homem? Não tinha ele apenas, essa aparência? O
Alcorão, que investigou os apócrifos cristãos da Síria, assegura
também que foi o “semelhante” a Jesus o sacrificado.12
Atualmente, a imaginação se excita, e o tema é retomado com
fins menos religiosos do que comerciais. Dessa vez, não se trata de
teologia: Jesus, simples mortal, curado de seus ferimentos, teria se
retirado para o Himalaia em companhia de Maria Madalena!… Essa
é a teoria de Gérald Messadié no seu romance de sucesso, L’Homme
qui devient Dieu [O homem que se tornou Deus], fruto de pesquisas
mal digeridas, ao qual o abade Pierre Grelot fez críticas muito
severas.13 O romance O Código Da Vinci é outra variante.
O caso clínico de Jesus na cruz suscitou numerosos estudos
médicos. É evidente que, nos últimos momentos, sua circulação
sanguínea tinha se tornado extremamente deficitária. Os tecidos não
recebiam mais oxigênio, uma série de fenômenos irreversíveis de
acidose metabólica e respiratória se criou, asfixiando pouco a pouco
as células. Sobre as causas precisas da morte, as opiniões se
divididem: a angústia, depois a falência respiratória (doutor Barbet),
a tetanização paroxística neuromuscular devido à suspensão
prolongada (doutor Hynck). O crucificado, cujos músculos se
tetanizam, é obrigado a apoiar-se sobre os pés para respirar, até o
momento em que a fadiga, o esgotamento, acabam por sufocá-lo. O
inconveniente dessa tese é que a asfixia leva geralmente ao coma:
ora, os evangelistas mostram que Jesus permaneceu lúcido até o
final. Sem negar as dificuldades respiratórias, outros médicos, como
o doutor Davis, atribuem a morte a um derramamento de soro na
pleura (decorrendo disso uma pericardite serosa fatal). Para outros,
o falecimento seria por conta de uma brutal falência cardiovascular,
uma hemorragia do pericárdio, fase terminal de um infarto do
miocárdio. Essa isquemia cardíaca terminal, muito dolorosa,
explicaria melhor o falecimento do supliciado, consciente até o final,
que lançou no último momento um grande grito. À luz do estado dos
conhecimentos atuais, parece que as causas são múltiplas, como
destacou o doutor Olivier Pourrat, do serviço de reanimação médica
do hospital Jean-Bernard, em Poitiers.14

O golpe de lança
As autoridades judaicas ainda não sabem da notícia. Ora, o tempo é
curto. As multidões se agrupam à porta de Nicanor. O abate dos
animais prossegue. Em breve, vão aparecer as três primeiras
estrelas, seguidas por três toques de trompete vindos do Templo,
anunciando o início do sabá. Esse sabá é particularmente solene
porque se trata da celebração da Páscoa. O Deuteronômio proíbe que
se deixe um supliciado passar a noite sobre o patíbulo: “Se um
homem sentenciado à pena de morte for executado e suspenso em
uma árvore, seu cadáver não poderá permanecer na árvore durante
a noite. Tu deverás sepultá-lo no mesmo dia, pois quem é suspenso
torna-se um maldito de Deus”.15 Uma delegação, em nome dos
sumos sacerdotes, vai até Pilatos para lhe pedir que “mande quebrar
as pernas dos condenados e tirá-las da árvore” (João). A ruptura das
tíbias — ou crurifragium — impede, com efeito, que o crucificado se
apoie sobre o único prego de seus pés e encha o peito de ar fresco.
Ele morre em alguns instantes, por não conseguir respirar, esgotado
por uma tetania asfixiante ou fulminado por um colapso cardíaco.
Pilatos, espantado que Jesus tenha morrido tão depressa (ele não
pensa na violência da flagelação pela qual o fez passar), aceita. Não
há nenhuma razão para antagonizar a população judaica por causa
de um cadáver.
Um esquadrão de soldados parte, então, para o Gólgota. Esses
soldados se dirigem para os dois ladrões que enquadram Jesus e com
um único golpe de barra quebram suas pernas. Quando chegam a
Jesus, constatam que ele já está morto. Então, um soldado, com sua
lança, o golpeia no lado. Esse é o “golpe de graça”, regulamentado,
que deve ocorrer antes da restituição do corpo para a família. No
sudário de Turim, vemos o traço do lado direito. Por que a direita e
não a esquerda, se o soldado queria atingir o coração? A resposta é
simples. Essa é a técnica de esgrima dos gladiadores e dos
combatentes romanos, descrita por Júlio César no seu De Bello
Gallico: ao querer proteger seu coração com o escudo, o adversário
deixa o lado direito descoberto.
A morfologia da ferida — uma elipse perfeita de 4,6cm de
comprimento por 1,5cm de largura — permite conhecer a arma
utilizada. Não se trata da pesada hasta ou de seu modelo próximo, a
hasta valitaris, lança mais curta com a ponta longa e fina, nem do
pilum, arma muito longa de ferro cortante que serve nos combates de
infantaria, mas da lancea, em uso nas guarnições, de comprimento
variável, cujo ferro é chato, em forma de folha de louro, que vai se
arredondando perto do cabo de madeira. Essa lancea, lonché em
grego, está na origem do nome lendário do soldado que teria
golpeado Jesus: Longino.[1] Uma arma desse modelo foi encontrada
em Jerusalém. Fortemente corroída, ela foi provavelmente
abandonada pelos soldados de Tito por ocasião do cerco da cidade.
“Logo, diz João, que permaneceu ao pé da cruz com Maria e as
santas mulheres, saiu sangue e água.” Os mais antigos manuscritos
(manuscrito grego do ano 579, manuscrito chamado Palatinus,
versão copta boáirica…) citam “água e sangue”; foi, provavelmente,
o que se produziu. A lâmina enfiada entre a quinta e a sexta costela
atravessou a pleura parietal, depois a pleura visceral, enfiou-se no
lobo mediano do pulmão direito, perfurou a cavidade pericárdica
antes de atingir a aurícula direita que ela desventrou.16 No seu
caminho, a lança liberou o líquido pleural, depois o líquido
pericárdico fortemente comprimido e, finalmente, o sangue da veia
cava superior que permanece líquido depois da morte. A “água” que
escorreu e da qual podemos ver as imitações de veios de mármore no
sudário era um soro claro abundante de origem inflamatória. A
região torácica, submetida a um traumatismo profundo devido à
flagelação, desenvolveu uma pericardite serosa. O golpe não foi
violento, mas, ao contrário, lento, senão os líquidos teriam se
misturado.
João fica perturbado. Ele não tem suficiente conhecimento
médico para ver nisso um fenômeno físico. Ele, que dá uma
importância tão grande aos sinais, que sabe ler a luminosidade
resplandecente do símbolo por meio da espessa bruma dos fatos, viu
nisso uma manifestação do Espírito. A água não é o Espírito Santo, e
o sangue, a vida eterna? Mais tarde, os comentadores cristãos
descobrirão nessa cena uma lógica sacramental: a água é a do
batismo e o sangue, o da eucaristia; outros interpretarão o fato como
o nascimento da Igreja, nova Eva, tirada da costela aberta do novo
Adão.
João fica tão perturbado por tal lembrança que insiste sobre a
veracidade absoluta do que viu: “Aquele que isto viu testificou, sendo
verdadeiro o seu testemunho; e ele sabe que diz a verdade, para que
também vós creiais”.17 Como no mundo judaico é preciso sempre
duas testemunhas, o autor, “aquele que viu” invoca o testemunho de
“Aquele outro”, isto é, o Espírito. Alguns exegetas, contudo, pensam
que esse comentário não é do discípulo bem-amado, mas foi
adicionado pelo editor do evangelho. Temos certeza, em
compensação, de que, na sua primeira Epístola, João volta a esse
acontecimento, que ele considera como extraordinário: “Este é
aquele que veio por meio de água e sangue, Jesus Cristo; não
somente com água, mas também com a água e com o sangue. E o
Espírito é o que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade. Pois
há três que dão testemunho [no céu: o Pai, a Palavra e o Espírito
Santo; e estes três são um”.18
Os lábios da ferida provocada pelo golpe da lança ficaram
escancarados, como mostra a abertura com largura de um
centímetro e meio: nesse momento, Jesus já estava morto. Por isso,
ele foi poupado da quebra das pernas. Como o cordeiro pascal, Jesus
foi imolado sem que nenhum de seus ossos tenha sido quebrado.19

As trevas da Sexta-Feira Santa


A crucificação e a morte de Jesus foram acompanhadas por
fenômenos visíveis, constatados por todos? Entre exegetas, teólogos
e historiadores, entre partidários de uma leitura simbólica e de um
acontecimento real, o debate não está encerrado.
Sabemos que os evangelhos sinópticos falam de um
obscurecimento extraordinário do sol em pleno dia. “Desde a hora
sexta até à hora nona, houve trevas sobre toda a terra. […] Eis que o
véu do santuário se rasgou em duas partes de alto a baixo; tremeu a
terra, fenderam-se as rochas” (Mateus); “Chegada a hora sexta,
houve trevas sobre toda a terra até a hora nona. […]o véu do
santuário rasgou-se em duas partes, de alto a baixo” (Marcos); “Já
era quase a hora sexta, e, escurecendo-se o sol, houve trevas sobre
toda a terra até à hora nona” (Lucas). João, testemunha ocular, no
entanto, fica mudo. Isso não quer dizer que nada se passou.
Os primeiros escritores eclesiásticos e os Padres da Igreja, Melito
de Sardes, Tertuliano, Orígenes, Júlio Africano, Lactâncio, são
Jerônimo, são Gregório de Nazienzo, são Cirilo de Alexandria, não
duvidaram da realidade desses fenômenos, nem os primeiros
adversários do cristianismo. Juliano, o Apóstata, Celso ou Porfírio,
que, no entanto, tinham nesse caso um magnífico argumento de
ataque. Podiam-se – parece – ver os sinais do tremor de terra no
próprio local da execução de Jesus. Em suas Catequeses batismais, o
bispo Cirilo de Jerusalém fala do “santo Gólgota que se eleva acima
de nós, permanece visível até esse dia mostrando até agora como,
por causa do Cristo, os rochedos se fenderam na época”.20
A maior parte dos exegetas contemporâneos é formal. Trata-se de
uma linguagem simbólica, extraída do Antigo Testamento, que
descreve o dia de YaHWeH, o grande Dia da Punição e o início da
era escatológica. “Aquele dia é dia de indignação, diz o profeta
Sofonias, dia de angústia e dia de alvoroço e desolação, dia de
escuridade e negrume, dia de nuvens e densas trevas.”21 O profeta
Amós escreve, por sua parte: “Naquele dia, diz o SENHOR Deus,
farei que o sol se ponha ao meio-dia e entenebrecerei a terra em dia
claro. […] Farei que isso seja como luto por filho único, luto cujo fim
será como dia de amarguras”.22 Joel se expressa na mesma
linguagem: “Diante deles, treme a terra, e os céus se abalam; o sol e
a lua se escurecem, e as estrelas retiram o seu resplendor.
[…]Mostrarei prodígios no céu e na terra: sangue, fogo e colunas de
fumaça”.23 Encontram-se ainda teofanias na literatura judaica
apocalíptica, Enoque ou o Testamento de Levi: a terra estremece, os
rochedos se fendem, o sol escurece. Com a morte de rabinos
venerados, o Talmude evoca estrelas que aparecem em pleno dia,
árvores desenraizadas, tremores de terra, estátuas de ídolos
derrubadas…
De modo mais comum, na Antiguidade, o desaparecimento de
grandes homens ou de personagens nobres é acompanhado por
sinais celestes extraordinários. O sol escurece com a morte de
Rômulo. Com a morte de Júlio César, acrescenta-se a erupção do
Etna, um sismo nos Alpes, o aparecimento aterrador de espectros.
Com a morte do imperador Cláudio, um cometa cruza o céu, um raio
atinge os estandartes, uma chuva de sangue se abate, e o templo de
Júpiter Victor abre-se bruscamente. Flávio Josefo relata, por sua vez,
diversos prodígios e presságios que teriam precedido a destruição do
Templo: uma estrela em forma de espada, um cometa, carruagens e
exércitos que aparecem nas nuvens ao pôr do sol…
Os textos bíblicos não deviam, portanto, ser considerados como
predições, mas como visões apocalípticas. Os evangelhos teriam
utilizado essa linguagem profética, repleta de imaginário poético e
oriental, para mostrar que Jesus é certamente o Messias de Deus
anunciado pelos profetas. Em suma, o assunto estaria encerrado.
Não houve trevas na Sexta-Feira Santa nem tremores de terra.
No entanto, isso não é tão simples. Evidentemente, Mateus toma
emprestada a linguagem apocalíptica quando fala — e ele é o único
— da ressurreição de vários “santos” saídos de suas sepulturas, que
teriam sido vistos em Jerusalém: “Abriram-se os sepulcros, e muitos
corpos de santos, que dormiam, ressuscitaram; e, saindo dos
sepulcros depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa
e apareceram a muitos”. Alguns avaliam que ele quis evocar a
descida de Jesus aos infernos. Outros pensam na ressurreição dos
justos no Dia de YaHWeH e na sua entrada na Jerusalém Celeste.
Em todo caso, essa visão escatológica escapa ao terreno histórico.
Mas e o escurecimento do dia e o tremor da terra?
Os autores pagãos da Antiguidade falam de um estranho
fenômeno solar que sobreveio, se não sobre toda a terra, pelo menos
na Palestina: um contemporâneo de Jesus, antigo habitante da
Samaria, Talo, um rico escravo libertado por Tibério, assinala por
volta do ano 52, no terceiro livro de suas Histórias, crônica universal
da qual só restam breves fragmentos, esse estranho “eclipse do sol”.
Na sua Cronografia, um historiógrafo eclesiástico do século II, Júlio
Africano, cita de forma explícita esse testemunho em favor do relato
evangélico, falando da existência de um eclipse solar na Páscoa no
momento da lua cheia.
Na mesma época, outro escravo libertado, amigo do imperador
Adriano, o grego Flégon de Trales, na Lídia, a quem devemos uma
História Universal, em doze volumes, também chamada História das
Olimpíadas, escreve: “No quarto ano da 202a Olimpíada houve um
eclipse do sol, o maior que jamais tinha sido visto, e fez-se noite na
sexta hora do dia, a ponto de que as estrelas ficaram visíveis no céu.
E um grande tremor de terra, sentido em Bitínia, causou numerosas
modificações em Niceia”. Entre os gregos, uma olimpíada
correspondia a um intervalo de quatro anos entre duas festas de
Zeus Olímpico, em Olímpia. Ela servia de base para a cronologia em
vigor na época. O quarto ano da 202a Olimpíada estendia-se do
solstício de verão do ano 32 àquele do ano 33, o que corresponde ao
período da morte de Jesus (3 de abril de 33). Manifestamente, esse
texto não foi tirado dos evangelhos sinópticos, nem de um autor
cristão posterior. Segundo o historiador Eusébio, outros analistas
profanos teriam igualmente falado das trevas e de um tremor de
terra ocorrido no décimo nono ano do reinado de Tibério (ano 33).
Se acreditarmos em Tertuliano (séculos II-III), as trevas teriam
sido observadas no município de Útica, perto de Cartago. Tertuliano
e são Luciano, sacerdote mártir da Antioquia (século IV), remetem
aos arquivos ou anais cotidianos de Roma, isto é, aos Acta populi
romani diurna, que conservavam as notícias importantes do Império.
“Procurem nos seus anais, dizia Luciano a seus juízes romanos, vocês
encontrarão ali que, na época de Pilatos, durante a Paixão de Cristo,
o sol havia desaparecido, o dia foi interceptado pelas trevas.” O
gramático e filósofo João, chamado João Filopono de Alexandria
(século VI), também achava que esse fato era autêntico: “Foi nesse
décimo nono ano do reinado de Tibério que o fato ocorreu, para a
salvação do mundo, a crucificação do Cristo, durante a qual
apareceu esse maravilhoso e extraordinário eclipse, da maneira que
Dionísio, o Areopagita, relatou na sua carta para Policarpo”.
O pseudo-Dionísio, o Areopagita –, (século V) cita de fato a carta
de uma testemunha desconhecida do século I: “O que você diz do
eclipse que ocorreu no momento da morte de Nosso Senhor? Nós
estávamos em Heliópolis [perto do Cairo] e vimos esse estranho
fenômeno: a lua ocultando o sol, sem que fosse a época de sua
conjunção: depois, da nona hora até a noite, essa mesma lua se
colocava maravilhosamente em oposição ao sol…”.24 E o pseudo-
Dionísio relacionou esse fenômeno com certos milagres no Antigo
Testamento: “E o sol se deteve, e a lua parou” (Josué, 10, 13), “Eis
que farei retroceder dez graus a sombra lançada pelo sol declinante
no relógio” (Isaías, 38,8).
Apesar do caráter estranho e incerto dessas descrições, a tese
simbólica não parece tão sólida como poderíamos acreditar. Sem
negar a maneira habitual pela qual a Bíblia expressa o Dia de
YaHWeH, nem a utilização que os evangelhos sinópticos fazem desse
fato, a ideia de uma ocultação misteriosa do sol em 14 de Nisã do
ano 33 não deve ser rejeitada de imediato, como um gracejo para os
simples de espírito ou fundamentalistas ávidos pelo maravilhoso.
Segundo os Padres da Igreja, teria ocorrido na tarde da Sexta-Feira
Santa, da terceira hora (meio-dia) até a sexta hora (quinze horas),
um escurecimento extraordinário sobre toda a Palestina e,
provavelmente, sobre todo o Oriente Médio. Evidentemente, não
pode tratar-se de um eclipse solar: a Páscoa judaica é determinada
pela lua cheia, que ocorreu segundo um cálculo astronômico às
16h46 no dia 3 de abril de 33. Situado exatamente no lado oposto ao
Sol em relação à Terra, o disco lunar não podia interpor-se entre as
duas. De todo modo, a duração de um fenômeno como esse é muito
breve (um minuto e meio para o eclipse solar de 24 de novembro de
29). As tabelas astronômicas não mostram, aliás, nenhum eclipse
solar no hemisfério setentrional durante o quarto ano da 202a
Olimpíada.
Seria um prodígio de ordem sobrenatural? Pensamos na dança
aparente do Sol, observada por setenta mil pessoas, crentes ou não,
em 13 de outubro de 1917, em Fátima e nas suas cercanias. O
historiador não pode naturalmente pronunciar-se sobre isso. Alguns
procuraram uma explicação racional: essa ocultação misteriosa do
Sol em pleno dia seria consequência de um espesso vento de areia, o
siroco preto ou khamsin, que se ergue com frequência do deserto da
Judeia, transformando subitamente o dia em noite. Essa é a hipótese
avançada pelo padre Lagrange. Em Pentecostes do ano 396, são
Jerônimo foi testemunha de um escurecimento do mesmo tipo. Para
outros, seria preciso atribuir o fenômeno à passagem de um grande
meteorito diante do Sol, como no Egito em 8 de fevereiro do ano
897.25
Dois professores de Oxford, Colin J. Humphreys e W. G.
Waddington, evocaram outra possibilidade. Depois de ter
reconstituído minuciosamente o calendário judaico do século I, por
meio de cálculo astronômico, e de ter determinado a data exata da
morte de Jesus, eles chegaram à conclusão de que no dia 3 de abril
do ano 33 produziu-se um eclipse parcial da Lua. O eclipse começou
às 15h40, atingiu seu máximo às 17h15, quando sessenta por cento
da superfície lunar ficou oculta pela sombra da Terra. Naquele
momento, a Lua ainda estava abaixo da linha do horizonte. Ela se
ergueu no céu de Jerusalém às 18h20, num momento, podemos
supor, que o céu estava claro. A sombra da Terra representava,
então, vinte por cento da superfície do disco lunar, o que daria ao
astro, como quase sempre acontece nesses casos, nas camadas
espessas do horizonte, uma estranha cor vermelha (a atmosfera
absorve as nuances do azul). Precedido, talvez, por uma nuvem de
areia que teria momentaneamente escurecido o sol, o acontecimento
teria provocado temor nos peregrinos judeus. “O Sol”, havia
anunciado o profeta Joel, “se converterá em trevas, e a lua, em
sangue.”26 Um fenômeno que não foi ignorado pelos evangelhos
apócrifos.27 Quando sabemos que o aparecimento da lua cheia era o
elemento determinante na fixação da data da Páscoa e que a
ocultação parcial se produziria no momento em que se iniciava a
Páscoa e o sabá, anunciados pelos trompetes do Templo, podemos
imaginar a perturbação dos espectadores, que se voltaram “batendo
no peito”, relata Lucas.28 Não seria esse um sinal de ruptura da
Aliança?

A cortina do Templo rasgada


Os evangelhos sinópticos falam do véu do Templo, que teria se
rasgado “de alto a baixo”, segundo Mateus e Marcos, “pelo meio”,
de acordo com Lucas. De que véu se trata? Aquele do santo dos
santos, o katapetasma, que protege a intimidade de YaHWeH, que o
sumo sacerdote em exercício não transpunha a não ser uma vez por
ano, ou aquele do santo, o kalymna, que isolava o interior do Templo
das pessoas que estavam no adro e dos pagãos? Esse último, mais
bem conhecido que o primeiro, era uma grande cortina de linho com
trinta metros de altura, tecida, segundo Flávio Josefo, com quatro
cores que simbolizavam os quatro elementos do universo, a terra, a
água, o ar e o fogo, bem como o panorama dos céus.
Apesar de seu caráter eminentemente simbólico, esse
acontecimento realmente se produziu? É difícil pronunciar-se a
respeito. Podemos defender a ideia de que, com a morte de Jesus e a
dimensão dada a ela pelos evangelhos sinópticos, mudaram de
registro literário, passando de um relato apoiado sobre a Escritura
para um imaginário apocalíptico. Isso é particularmente sensível no
evangelho de Mateus, em que ele teria partido da visão descrita por
Ezequiel das ossadas secas que se cobrem novamente com carne, ou
da visão de Daniel, que evoca o despertar daqueles que dormem na
poeira, para falar dos corpos de santos que ressuscitam.29
Observamos que, nesse caso, também João, sacerdote e membro
da alta aristocracia sacerdotal, que deveria ter ficado chocado com
um sinal tão forte, permanece mudo. Dito isso, a Epístola aos
Hebreus, texto muito antigo que data de antes do ano 70, quase
sempre atribuído a alguém próximo do apóstolo Paulo, Barnabé ou
Apolo, parece aludir a isso quando o texto evoca o acesso ao
santuário “pelo sangue de Jesus”: “Pelo novo e vivo caminho que ele
nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne”.30
No momento preciso da morte de Jesus, o Templo de Jerusalém,
o lugar mais sagrado dos judeus, o santuário por excelência, perde o
seu status de único local da presença divina sobre a terra. Por esse
rasgão irreparável, o tabernáculo israelita fica dessacralizado, e
ainda mais na própria noite da Páscoa! Será o sinal da ira de Deus?
Será uma advertência terrível antes da destruição, trinta e sete anos
mais tarde, desse edifício esvaziado da sua presença? A
interpretação pessimista de Marcos e de Mateus dá lugar, na
Epístola aos Hebreus, a uma leitura mais otimista. Seu ator relaciona
o sacrifício de Jesus, sumo sacerdote da Nova Aliança, com aquele
do sumo sacerdote da Antiga Aliança penetrando no santo dos
santos no dia do Perdão, e aspergindo sangue de um touro e de uma
cabra na tampa de ouro da arca da Aliança: o véu rasgado são os
Céus que se abrem. O acesso ao culto de YaHWeH não é mais
exclusivo do povo judeu, mas é dali em diante aberto a todos.
Alguns imaginaram que o tremor de terra de que fala Mateus
teria abalado os muros do Templo. Se acreditarmos no Evangelho
dos Hebreus, cujo original foi visto por são Jerônimo, o lintel do
edifício, enorme, teria sido quebrado e se despedaçara. Observamos
ainda que a tradição judaica relata algo estranho que se produziu
quarenta anos antes da destruição do Templo: segundo o tratado
Yoma do Talmude de Jerusalém, as portas do Templo teriam se
aberto bruscamente…31
As primeiras comunidades cristãs retiveram como também
simbólica a exclamação do centurião da armada romana diante da
morte do Justo: “Verdadeiramente, este era filho de Deus!” (Mateus
e Marcos). “Certamente, este homem era justo” (Lucas).
Habituado com execuções capitais, jamais esse homem tinha visto
semelhante comportamento: um condenado consciente até o final,
que, em lugar de se revoltar contra os zombadores e seus sarcasmos,
em lugar de cobrir seus carrascos com imprecações e maldições,
implora e ora a Deus em seu favor! No seu espírito, ele é mais que
um inocente injustamente morto, é um herói celeste, digno de ser
venerado, como podia sê-lo o longínquo imperador. O testemunho
excepcional desse “rei dos judeus”, pretendente real e Messias de
Israel morrendo sobre uma cruz, junto aos prodígios que
acompanharam a sua morte, o impressionaram tão fortemente — ao
passo que os romanos habitualmente desprezam as crenças judaicas
e as consideram como superstições desprezíveis — que lhe arrancou
esse grito do coração. Essa confissão da verdade dá acesso à fé para
todo o “paganismo”. Para Marcos, que escreve a Roma, o fato é
importante. “Verdadeiramente, este era filho de Deus”: este foi o
primeiro pagão a utilizar essa fórmula e, num certo sentido, a aceder
ao mistério crístico. A Igreja se valerá amplamente desse fato…
19

O sepultamento

José de Arimateia
Ao lado dos que seguiam Jesus em suas peregrinações pela Judeia e
pela Galileia, existiam, como vimos, discípulos sedentários. Eram os
partidários ocultos. Em Jerusalém, conhecemos pelo menos três:
João, o discípulo preferido, Nicodemos e José de Arimateia. Como
seu nome indica, esse último era originário de Arimateia
(Ramathem), muito provavelmente a aldeia atual de Rentis (ou de
Remphtis), a cerca de trinta quilômetros a noroeste de Jerusalém.1
Era um judeu importante e influente, rico proprietário, membro
respeitado do Sinédrio. Lucas o descreve como um homem justo e
bom esperando o reino de Deus. Ele havia, provavelmente, ouvido
Jesus pregar muitas vezes no Templo e, tocado pela força de suas
palavras, ficara convencido de que Jesus era com certeza o Messias
de Israel. Ele escondia sua fé, “por temor aos judeus”, diz João, isto
é, dos sumos sacerdotes e de seus partidários, determinados a obter a
morte do Nazareno por ocasião da sessão do Sinédrio que se seguiu à
ressurreição de Lázaro. Nessa sessão, ele tinha estado presente, mas,
como precisa Lucas, “que não tinha concordado com o desígnio e
ação dos outros”. Havia condenado em seu foro íntimo a conspiração
que visava à detenção de Jesus, sem poder opor-se a ela. Ele havia
assistido, impotente, ao julgamento de Pilatos e à Crucificação. O
suplício e a morte desse justo, em condições tão vergonhosas,
deixaram-no perturbado. Mais tarde, na Idade Média, como Simão
de Cirene, ele entrará no ciclo arturiano do Santo Graal, esse cálice
com o qual Jesus teria celebrado a Ceia e no qual José de Arimateia
teria recolhido o sangue do Cristo.2
Ora, José possui, contíguo ao Gólgota, no declive oeste da colina
rochosa, um grande jardim no qual ele mandou cavar uma sepultura
nova, destinada, muito provavelmente, ao seu próprio
sepultamento. Por que ele não depositaria ali o corpo do rabino
venerado? Segundo a lei judaica, o cadáver de um supliciado devia
ser enterrado no mesmo dia em uma fossa individual, onde suas
carnes se decomporiam, esperando a restituição, um ano mais tarde,
das ossadas para a família, que as recolheria num dos ossuários de
pedra. Esse costume permitia reutilizar várias vezes as sepulturas. Os
restos do crucificado Yohanan ben Hizqiel, descobertos em 1968 em
Giv’at ha-Mivtar, foram encontrados num ossuário. Corajosamente,
José de Arimateia, superando a proibição de que ele deverá se
purificar para comer a refeição da Páscoa, vai ao palácio, solicita
uma breve audiência a Pilatos e lhe pede como um favor especial o
corpo do defunto.
O pedido não é habitual, principalmente por se tratar de crimem
majestatis, mas o prefeito não tem nenhum motivo para recusar. Ele
não pretende afrontar abertamente a Lei de seus administrados; o
episódio da escrita sobre a tabuinha de Jesus satisfez a sua
arrogância. Os judeus são muito ligados ao sepultamento dos
cadáveres, mesmo dos malfeitores. Ignorando, é claro, que José é um
discípulo secreto de Jesus, ele o considera uma pessoa importante e
influente, que pode lhe prestar serviço. O evangelho apócrifo de
Pedro, que data do primeiro terço do século II, sugere que Pilatos
teria concedido o corpo mesmo antes da Crucificação. Essa sequência
de acontecimentos não deve ser rejeitada, ainda que ela se concilie
mal com a narrativa de João.3 É muito possível, em compensação,
que José de Arimateia tenha declarado o seu desejo aos sumos
sacerdotes que, naquele momento, não teriam visto nenhum
inconveniente no fato (eles mudarão de ideia no dia seguinte,
exigindo uma guarda especial). Para conseguir sua adesão, teria
José de Arimateia lhes observado que a sepultura era nova e não
continha outros corpos suscetíveis de serem contaminados pela
presença de um crucificado?
Por volta de 16 horas, José volta ao Gólgota com servidores e
uma escada. É preciso agir depressa. O sepultamento deve terminar
antes do início do sabá, ao anoitecer. Jesus estava morto havia uma
hora, mais ou menos, e sob a guarda dos soldados romanos até o
fechamento da sepultura.
Provavelmente, José não agiu ele próprio, mas deu ordens a seus
servidores. Manda retirar a coroa de espinhos, colocar sobre a
cabeça uma toalha de linho, pregada com um alfinete de colchete
aos cabelos, e escondendo completamente os traços de Jesus. É
costume dissimular aos transeuntes os estigmas do sofrimento em um
morto. Essa roupa branca protetora é o sudarium, o sudário de
Oviedo, coberto com manchas de sangue e de soro, cuja análise por
uma equipe espanhola pluridisciplinar permitiu reconstituir de
maneira espantosamente precisa o desenrolar das operações de
sepultamento. O sudário media um côvado e meio judaico-assírio de
comprimento por um côvado de largura (as dimensões atuais são
52,5cm x 85,5cm). As perfurações do alfinete são visíveis no tecido.
Sobre o sudário, as auréolas sanguíneas post mortem se formavam
cada vez que o corpo era deslocado. Ao sangue juntou-se, na
proporção de seis para um, um líquido biológico soro-hemático
proveniente de um edema na pleura. Um modelo de informática
permitiu que os pesquisadores avaliassem o tempo decorrido entre a
formação de cada uma das auréolas. A primeira produziu-se sobre a
cruz, quando o corpo estava em posição vertical. O escorrimento se
fez pelo nariz. Concluiu-se que a cabeça de Cristo, no momento da
sua morte, estava inclinada, formando um ângulo de 70° a 75° para
a frente do peito e de 20° para a direita.
Algumas manchas de forma muito particular coincidem com as
do sudário de Turim, a mancha sobre a nuca do crucificado, por
exemplo. Outras, ao contrário, aparecem somente sobre a mortalha,
o que é explicado pelo fato de que os coágulos só se reumidificaram
na noite da sepultura, ao passo que o sudarium só foi utilizado no
momento da inumação. O sangue vital e o sangue post mortem se
recobrem de maneira idêntica sobre o sudário de Oviedo e a
mortalha, prova de que as duas roupas brancas envolveram a
mesma cabeça.

A preparação para o enterro


Ao deixar o Gólgota, José vai para a cidade comprar um longo
lençol de linho de 8 côvados judaico-assírios de comprimento
(4,38m) por dois de largura (1,10m), que vai servir de mortalha,
uma mortalha “limpa” ou “sem manchas”, segundo Mateus, ou seja,
não somente branca, mas ritualmente pura.4 Esse sudário de Turim
— porque é bem dele que se trata — é um belo tecido de sarja com
zigue-zagues em forma de espinhas de peixe, chamado “três em um”
(o fio passa três vezes debaixo da trama para cada passagem por
cima), que deve ter custado uma pequena fortuna. Mas ele
apresenta irregularidades, e o linho foi curtido (isto é, branqueado)
depois de tecido, contrariamente aos tecidos medievais. Os fios de
linho são torcidos em Z, outro sinal de uma manufatura primitiva.
Ele foi urdido, de acordo com os peritos internacionais Gabriel Vial e
Mechthild Flury-Lemberg, num tear com quatro liços manobrados
por fios e pedais, como eram os teares no século I na Síria ou na
Palestina, em Tiro, Sídon, Damasco ou Palmira.5 O fato de não ter
sido encontrado nenhum fio de lã misturado aos fios de linho, ao
passo que foram reparados fios de algodão originários do Oriente
Médio (Gossypium herbaceum), nos faz optar por uma origem
palestina, porque os judeus proíbem misturar nos seus teares fibras
animais e vegetais.6
Segundo a historiadora italiana Maria-Luisa Rigato, a torção
excepcional em Z dos fios e a qualidade notável do tecido nos fazem
pensar que seria um sadin shel buz, a roupa branca litúrgica de que
falam o Êxodo e o Levítico, que envolvia o sumo sacerdote no dia da
Expiação (Kipur). Em lugar de comprá-la na cidade, onde todas as
lojas estavam fechadas para a festa, José de Arimateia foi procurá-la
nas lojas do Templo. Esse comportamento, que não tem nada de
banal, significaria o seu desejo de atribuir ao defunto a maior das
honrarias, nos limites prescritos pela Lei.7 Se essa hipótese é correta,
isso se ligaria, no plano simbólico, com o sentido expiatório que o
próprio Jesus quis dar à sua morte.
Em todo caso, quando José volta, já são quase 17 horas. Com
isso, faz pelo menos uma hora que o sudarium permaneceu sobre o
rosto de Jesus. A rigidez cadavérica ganhou a nuca e os membros
inferiores. Ela provavelmente tinha começado quando o supliciado
ainda estava vivo.
No sudário de Turim, podemos constatar que as pernas
permaneceram em posição semiflexionada, tal como estavam na
cruz. A perna esquerda dá, então, a impressão de ser mais curta do
que a outra: foi essa particularidade, observada sobre a mortalha
quando ela chegou em Constantinopla em 944, que explica a
presença sobre as cruzes bizantinas, a partir do século XI, de uma
pequena prancheta oblíqua, o suppedaneum. Acreditaram que Jesus
era manco! Alguns ícones da Virgem até mesmo representam a
criança com um pé normal e outro torcido e mais curto.
Os soldados romanos tiram as cordas e os pregos, equipados com
fortes tenazes, o corpo balança, esticado por um momento pelo
braço direito ainda fixado à madeira. Ele está alongado, o rosto
sempre oculto, inclinado sobre o lado direito, a fronte apoiada sobre
uma superfície dura. A cabeça rígida, inclinada para o solo,
apresenta um ângulo de 115° em relação à vertical. É então que se
forma a segunda mancha sobre o sudarium, produzida por um novo
escorrimento nasal de sangue e de líquido da pleura. É a veia cava
que se esvazia, dessa vez sob o efeito da gravidade. O sangue do
primeiro escorrimento já teve tempo de secar.
Maria e as santas mulheres se aproximaram? A famosa cena da
pietá, que tanto inspirou os pintores, na qual Maria, inundada pela
dor, mantém em seus braços o corpo morto de seu filho, é pouco
provável. A morte, com efeito, é tabu em Israel. Os judeus evitam
tocar num cadáver, sobretudo nessa véspera da Páscoa. Além do
mais, o corpo de Jesus está completamente rígido. As mulheres
devem ter se contentado em olhar as ações de José de Arimateia e de
seus servidores. Naquele momento, a mãe de Jesus talvez já tenha
deixado o local, levada por João para a sua casa em Jerusalém.
O morto permanece mais ou menos uma hora nessa posição (o
sangue do segundo escorrimento seca, por sua vez). Retiram o
alfinete do sudarium. Metade do lençol é colocada sobre aquele outro
que ainda cobre o rosto. O corpo é deitado de costas e, com uma
tração muito forte sobre os braços, eles são abaixados sobre o púbis.
Um terceiro escorrimento ocorre nesse instante. No microscópio, os
pesquisadores descobriram sobre o sudário de Oviedo as marcas dos
dedos daquele que apertou o lençol sobre o nariz para impedi-lo de
sangrar…
Nicodemos, provavelmente, combinou com o seu amigo José. Ele
não assistiu à Paixão. Ele trouxe “uma mistura de mirra e de aloé de
cerca de cem libras”. Essa última palavra, em grego litra, fez
algumas pessoas cometerem um contrassenso: cem libras de ervas
aromáticas representa 32,545 quilos, uma quantidade considerável,
extravagante, totalmente fora de proporção em relação ao
necessário para um sepultamento comum. Essas pessoas concluíram
que João inventava e queria dar a entender simbolicamente que
Jesus tinha tido uma sepultura digna de um rei! Na verdade, litra (ou
libra romana) não é somente uma unidade de peso, mas também
uma unidade monetária. É nesse sentido que é preciso compreender
esse texto: José de Arimateia comprou mirra e aloé no valor de cem
libras, o que de resto representava um custo bastante elevado.
A mirra (smyrna) é uma goma-resina, obtida por entalhe de um
arbusto da família das terebintáceas, Commiphora abyssinica, que
cresce no sul da Arábia e no norte da Somália. Fica com uma cor
avermelhada ao se solidificar e é procurada por seu perfume (isso
foi, segundo Mateus, um dos presentes dos Reis Magos à Criança
Jesus). Nas inumações, a mirra é usada como antisséptico. João, no
seu evangelho, distingue cuidadosamente a mirra (myron), óleo
perfumado que Maria de Betânia usou na cena da unção, e essa
mirra (smyrna), utilizada na sepultura sob a forma de pó seco.
O aloé medicinal — Aloé vera (L) Burm f. (babosa) — é uma
planta gordurosa que cresce na Arábia Saudita, cujo suco
desidratado de cor amarelada é conhecido por suas propriedades
farmacológicas. No Oriente Médio, os cadáveres se decompõem
muito rapidamente. A mistura de mirra e de aloé é uma preparação
de herbanário, sob a forma de pó seco ou de pequenos pedaços,
permitindo mascarar os odores, retardar o processo de putrefação e
impedir que os insetos ataquem demasiado rapidamente os restos
mortais. Foi provavelmente essa mistura que foi espalhada sobre as
paredes do jazigo e queimada em pequenas lâmpadas para purificar
o ar.8
Os professores Pierluigi Baima Bollone e Eugenia Nitowski vão
identificar os traços de aloé e de mirra no sudário, principalmente
nas zonas manchadas de sangue. Dois outros cientistas, Sebastiano
Rodante, médico de Siracusa, e Gaetano Intrigillo, confirmam tal
descoberta, demonstrando que as grandes auréolas denteadas,
bilaterais e simétricas, formadas pela água lançada sobre o lençol
por ocasião do incêndio de Chambéry em 1532, não puderam
apresentar esse aspecto porque o lençol havia sido embebido em
mirra e aloé. Giovanni Riggi encontrará também resíduo de natrão,
carbonato de sódio hidratado, utilizado na Antiguidade,
principalmente nos tecidos funerários egípcios, para a desidratação
dos cadáveres9. Esse pó teria sido, portanto, acrescentado ao aloé e
à mirra de Nicodemos. Alguns pistaches secos (Pistacia palaestina),
visíveis sobre o sudário, também serviram como produto aromático.
Os servos de José de Arimateia abriram o túmulo, a
aproximadamente quarenta metros dali. Quarenta e cinco minutos
se passaram. O corpo é carregado por dois ou três servos. Sobre os
pés ensanguentados do homem da mortalha, pode-se notar as
impressões digitais das mãos de alguém que o carregou. A sua
posição dá a entender que ele andava na frente dos outros. Uma
última marca de sangue e de líquido pleural se forma sobre o
sudário. Ela se estende pelas costas como um cinturão
ensanguentado e irregular.
O sepultamento
A sepultura descoberta em 1883, a 250m ao norte dos muros
otomanos de Jerusalém e da porta de Damasco, pelo general
britânico Gordon, e apresentada pelos protestantes anglo-saxões
como o local de inumação do Cristo, é bem interessante de um ponto
de vista arqueológico, na medida em que ela representa o exemplo
de uma sepultura rica do século I, mas ela não é de modo algum uma
séria rival do Santo Sepulcro.10 Ocorre o mesmo com a sepultura de
Talpiot, nos arredores de Jerusalém, que uma publicidade midiática
exagerada e bem orquestrada tentou promover como sendo aquela
de Jesus.11
Diante do montículo do Gólgota, a sepultura de José de
Arimateia é a sepultura clássica de uma família aristocrática de
Jerusalém, cavada horizontalmente na lateral do rochedo, no
afloramento dos estratos das antigas pedreiras de pedra. A entrada,
portanto, não se faz por um poço vertical, mas por uma abertura
estreita no nível do solo, com uma altura de cerca de 1,10 ou 1,20m,
que obriga a pessoa a abaixar-se bastante. A sepultura, à qual se
acede por alguns degraus, contém duas pequenas salas cavadas na
rocha: uma antecâmara com uma banqueta, para permitir aos
parentes chorar pelo defunto, e em seguida uma câmara funerária de
cerca de 4m quadrados (2m x 2m), na parede da qual, à direita,
quando se entra, a cerca de um metro do solo, foi escavado na
rocha, com uma talhadeira, um nicho (arcosolium), dominado por um
arco semicircular situado acima dele, tendo na base um rebordo
plano para receber os restos mortais.
Para fazer o corpo penetrar, os carregadores executam uma
meia-volta. O que segura a cabeça entra primeiro, de costas,
abaixando-se bastante. Os pés ficam então orientados em direção à
abertura. Sobre o rebordo do nicho, é espalhado um colchão de ervas
aromáticas, ao qual foram acrescentados cristais de sal. Coloca-se
em seguida a metade do sudário, sobre o qual se estende o corpo
rígido de Jesus, o lado esquerdo do lado da parede. A cabeça, que
eles conseguiram fazer voltar para o eixo do corpo, continua
inclinada para a frente. É inútil cercá-la com uma ligadura para o
queixo, porque a rigidez cadavérica 12 fechou a mandíbula havia
muito tempo. Coloca-se sobre o corpo a outra metade do sudário.
Eles costuram as laterais do sudário em volta do corpo.13 Dessa
maneira, o cadáver fica completamente envolvido pelo lençol. Para
fixar o sudário, eles enrolam, provavelmente, ao redor da cintura e
depois ao redor dos tornozelos uma faixa de 10cm de largura,
recortada do comprimento do lençol.14 O sudarium que cobriu o rosto
de Jesus foi retirado, enrolado e deixado de lado na sepultura.
O sepultamento foi apressado, mas definitivo. Ele foi praticado à
maneira judaica, corpo estendido sobre as costas, mãos cruzadas
sobre o púbis (nessa posição foram encontradas as ossadas de um
homem no cemitério de Qumran). Mas nem os cabelos nem a barba
foram cortados, tampouco o corpo foi vestido com uma túnica. A
questão se coloca, em compensação, para saber se ele foi ou não
lavado. Para Frederick T. Zugibe, professor de patologia em
Columbia, a toalete fúnebre teria sido feita sumariamente.15 Para
outros pesquisadores, ela não foi feita. Cortado com feridas, coberto
de sangue, o corpo teria sido deixado como estava.
Segundo o rito funerário hebraico, atestado na Idade Média entre
os judeus mais ortodoxos,16, e que teria estado em voga na
Antiguidade, os cadáveres de supliciados deviam ser enterrados sem
ser lavados, sem unção, nem purificação ritual, com suas roupas
ensanguentadas. Devia-se até mesmo recolher a terra impregnada de
seu sangue, esse símbolo da vida, que faz parte integrante do corpo.
Isso está em contradição com uma pedra avermelhada dita “de
unção”, que os crentes reverenciam na igreja do Santo Sepulcro
desde a época bizantina.
Alguns buquês de flores foram dispostos sobre o corpo? O
palinólogo suíço Max Frei encontrou indícios de vinte e cinco pólens
pertencentes a flores que germinam durante a primavera na
Palestina. Seu colega da Universidade da Pensilvânia e de
Estocolmo, A. Orville Dahl, observou que uma boa parte dos pólens
encontrados no sudário provinha de flores colocadas sobre o lençol.
Em 1985, Alan e Mary Whanger identificaram, graças à sua técnica
de superposição com luz polarizada (Piot), o traço — como sobre um
velho herbário — da imagem de vinte e oito dessas flores, que
crescem na Palestina entre março e abril: Chrysanthemum coronarium
(crisântemo guirlanda), Scabiosa prolífera, Capparis aegyptia,
Zygophyllum dumosum, Hyoscyamus reticulatus… O palinólogo
israelita Uri Baruch e o botânico Avinoam Danin confirmaram seus
trabalhos num relatório apresentado em Turim, em 6 de junho de
1998, no Terceiro Congresso Internacional de Estudos sobre o Santo
Sudário. As folhas de Zygophyllum dumodum, que podem ser vistas
sobre o peito do homem do sudário, só nascem no leste do deserto da
Judeia de janeiro a abril. Tais impressões de plantas não são
conclusões enganosas: elas estão localizadas sobre as fotos do
cavaleiro Pia, em 1898, e também sobre aquelas — com melhor
resolução — de Vernon Miller, em 1978.
É emocionante pensar que, entre esses buquês de flores frescas de
primavera, alguns teriam sido colhidos no jardim de José de
Arimateia pelas mulheres santas, por Maria talvez. Capparis, de
forma oval, que figura sobre o lado esquerdo do rosto, é uma das
mais interessantes, porque ela se abre por volta das 10 horas da
manhã e se fecha com o pôr do sol: portanto, pode ter sido colhida,
segundo Avinoam Danin, por volta de 15 ou 16 horas…

Os fantasmas de escrita
Alguns se perguntaram se as inscrições paleográficas em latim, em
grego e na escrita hebraica, lidas por diversos pesquisadores ao
redor do rosto do homem no sudário, não seriam marcas de dois
porteiros, um romano e outro judeu, presentes por ocasião do
enterro: o primeiro teria inscrito, sobre uma faixa de papiro que
colou ao lençol, a sentença de morte em letras pretas ou vermelhas,
como era costume fazer; o segundo teria garantido a identidade do
defunto. O fato de que Pilatos tenha aceitado mandar inumar um
condenado em uma sepultura particular poderia justificar a
intervenção de um funcionário romano (o exactor), que atesta que o
procedimento se desenrolara normalmente.
Em 1994-1995, dois físicos franceses, o professor André Marion e
sua assistente, Anne-Laure Courage, encontraram esses espectros de
escrita ao utilizarem um aparelho fornecido pelo laboratório de ótica
de Gif-sur-Yvette. Eles puderam ler, principalmente no local do lado
esquerdo do rosto: INNECE (com, no final da palavra, o fragmento
de um M maiúsculo do qual só se vê a barra vertical e o esboço de
uma barra oblíqua). Seria uma estranha abreviação de In necem ibis
(em português, “à morte tu irás”), que era uma das fórmulas
habituais das sentenças romanas, obrigatoriamente redigidas em
latim, como exigia a Lei a partir de Tibério?
Na altura do pescoço, esses mesmos pesquisadores encontraram
dois Is. Do outro lado, perto da maçã direita do rosto, em cor escura,
PEZΩ (palavra arcaica grega que significa “eu atesto”, “eu cumpro”
ou “eu abaixo assinado executo”) e, sobre uma faixa vertical, à
direita do rosto, algumas outras letras, dois N unidos, um A, um Z,
um A, um P, um H, mais um duplo N e um ∑, que corresponde,
talvez à palavra grega NAZAPHNO∑ (“o Nazareno” ou “de Nazaré”,
forma latinizada do grego de Nazaré). Debaixo do queixo, abaixo de
um misterioso duplo N, aparecem as letras IH∑OY∑ (Jesus em
grego). A presença desses espectros de escrita, dentre os quais
alguns tinham sido notados desde 1978 por dois pesquisadores
italianos, Piero Ugolotti e o padre Aldo Marastoni, professor de
literatura antiga na Universidade Católica de Milão17, e depois pelo
padre André Dubois em 1982, é difícil discernir. Para André Marion
e Anne-Laure Courage, porém, esses fantasmas da escrita são bem
reais, porque o seu reconhecimento foi realizado após a digitalização
da imagem do sudário e depois da eliminação do “ruído de fundo”,
além das interferências das divisas (sinais de pontuação), segundo
uma técnica complexa na qual intervém um microdensitômetro,
aparelho de alta precisão geométrica, tudo isso combinado com um
tratamento informatizado dos resultados. Não sabemos como são
impressos na roupa. Os paleógrafos consultados calcularam que se
tratava de caracteres orientais anteriores ao século V. O duplo N e a
mistura das letras maiúsculas e minúsculas (maiúsculas quadradas e
unciais) seriam característicos dos primeiros séculos.
Curiosamente, a maior parte desses sinais gráficos está situada
sobre as faixas retilíneas horizontais e verticais que formam o U
duplo que enquadra o rosto. Não se trata também de um preparado
passado sobre a face externa do sudário para tornar o tecido mais
apto a receber tinta (sobre essa face, com efeito, não subsiste
nenhum traço), mas talvez pedaços de tecido deixados no interior da
roupa, que indicam a identidade do morto.18 É sobre elas que o
exactor teria escrito. Isso tenderia a mostrar que os romanos
supervisionaram os trabalhos de inumação efetuados por José e seus
servidores. Além disso, parecem existir outras inscrições na região
das sobrancelhas tanto à direita como à esquerda. Segundo Carlo
Orecchia, professor de hebraico bíblico na Faculdade de Teologia de
Milão, e Roberto Messina, médico legista, poder-se-ia ler: mlk
hw’hyhwdym ou então mlch dy hyhwdym, dito de outra forma: “o rei
dos judeus”.19
Em 2009, retomando o conjunto da documentação, uma
historiadora italiana, especialista em epigrafia grega e latina,
Barbara Frale, chegou a datar essas escrituras como sendo do século
I, mostrando assim que elas eram contemporâneas à formação da
imagem.20 Traçadas com uma mão desastrada, com a ajuda de um
cálamo, elas não têm nada de solene. As inscrições não são nem
preces, nem louvores fúnebres. O sigma anguloso com quatro traços
que figura no final da palavra NNAZAPENNO∑ é uma forma muito
antiga, que se tornara rara no século II da nossa era. Seu autor era,
talvez, um porteiro delegado pelos sumos sacerdotes. O homem que
traçou o letreiro NNAZAPENNO∑, escreve Barbara Frale, era de
língua materna oriental, não compreendia o latim e tinha um
conhecimento muito sumário do grego, como testemunha a
duplicação de N grego para tornar a nasal semítica. E esse estranho
NNAZAPENNO∑ era um artifício para transformar em grego uma
língua oriental21. Barbara Frale obteve confirmação da datação
dessas escritas submetendo-as a um dos melhores especialistas em
papiros, o professor Mario Capasso, sem lhe dizer que se tratava do
sudário de Turim: esse especialista indicou um intervalo estatístico
que ia de cinquenta anos antes de Cristo até cinquenta anos depois
de Cristo.
Com as operações de inumação terminadas, a sepultura foi
fechada com uma grossa pedra colocada na frente da abertura, a fim
de protegê-la dos animais e segurar os odores da decomposição. As
sepulturas principescas apresentavam uma grossa pedra que rolava
sobre uma corrediça. A sepultura de José é mais simples. Um simples
bloco de pedra é suficiente para fechá-la. Já são quase 19 horas. O
sol se pôs há uma hora. As trombetas do Templo vão em breve
anunciar o início do sabá.
José provavelmente recuperou a coroa de espinhos e comprou,
naquele dia mesmo, as relíquias que ficaram com os soldados (não
tendo sido lavada, a túnica ficou coberta de sangue). Nem ele, nem
os primeiros cristãos se vangloriam de deterem tais objetos impuros,
segundo a lei hebraica. A cruz foi jogada num poço que foi em
seguida selado, no jardim de José de Arimateia. Foi lá que, segundo
a tradição, a imperatriz Helena, apesar dos profundos percalços do
terreno, irá descobri-la, três séculos mais tarde, a partir de
indicações de cristãos que teriam contado a localização de geração
em geração. As mulheres que vieram da Galileia, inclusive Maria,
não participaram do sepultamento, senão, talvez, enviando flores.
Mateus e Lucas, no entanto, assinalam sua presença diante da
sepultura. As mulheres também deixam o Gólgota.

Moedas romanas no interior do sudário?


Antes de dobrar o lençol sobre o corpo de Jesus, os servidores de
José de Arimateia teriam colocado moedas sobre os olhos do morto?
Algumas vezes esse costume é praticado entre os judeus não para
pagar o óbolo a Caronte, o barqueiro dos Infernos, como entre os
gregos, mas para impedir que as pálpebras se abram na sepultura.
Ao estudar metodicamente a imagem tridimensional do sudário
de Turim, tal como ela lhes apareceu no analisador de imagens VP 8
da Nasa, os físicos americanos Jumper e Jackson observaram sobre
as pálpebras dois leves inchaços, deixando supor que haviam
colocado ali pequenas moedas ou fragmentos de cerâmica. Quando
aumentaram a imagem do olho direito, dava a impressão de que ali
havia uma moeda com a borda enferrujada, decorada com um
cajado de astrólogo ou de um augúrio pagão, um lituus, emblema de
Pôncio Pilatos. Em 1979, partindo desses primeiros dados, um
jesuíta americano da Universidade de Santo Inácio de Loiola, em
Chicago, o padre Francis J. Filas, examinando mais detalhadamente
o objeto misterioso, concluiu que se tratava certamente de um lépton
(antiga moeda fracionária da Grécia) cunhado pelo supersticioso
prefeito da Judeia entre os anos 29 e 31, sobre o qual distinguiam-se
quatro letras Y CAI provenientes, provavelmente, da legenda grega
TIBEPIOY KAICAPOC (“De Tibério César”).
Descoberta controversa. Colocaram-se objeções de que esse
costume judaico era duvidoso, até o dia em que, no decorrer de
escavações feitas no cemitério de Jericó, encontraram, nas cavidades
orbitais de um crânio, duas moedas do rei Herodes Agripa (37-44).
Da mesma forma, na sepultura dita de Caifás, desenterraram um
lépton que datava do ano 42 ou 43. Os arqueólogos assinalam ainda
dois ou três exemplos de tais práticas, que desapareceram no
decorrer do século II.
Alguns fizeram notar que não era Y KAI que se lia no sudário,
mas Y CAI, o que, evidentemente, diminuía a força da
demonstração. Ora, em 1981, o padre Filas descobriu duas moedas
de Pôncio Pilatos — desconhecidas até então pelos especialistas —
onde figurava esse erro de ortografia: CAICAPOC. O padre
triunfava! Mais tarde, cinco ou seis outras moedas de bronze do
mesmo tipo foram assinaladas. Não é raro encontrar moedas antigas
com erros de ortografia. O americano Haralick e o italiano
Barbesino confirmaram o trabalho do padre Filas.
Mais difícil de decifrar, a segunda moeda, observada pelo
professor Pierluigi Baima Bollone, não sobre o olho esquerdo, mas
na extremidade da arcada superciliar esquerda (como se ela tivesse
escorregado), representava a figura de um vaso ritual com a
inscrição (dessa vez, desprovida de erro) TIBEPIOY KAICAPOC.
Tratar-se-ia, nessa hipótese, de um outro lépton de Pilatos, contendo
as letras LIS, que designam o décimo sexto ano do reinado de
Tibério, ou seja, o ano 29. Para outros, em lugar de um vaso ritual,
figurariam na moeda três espigas de trigo ligadas, e ela teria sido
cunhada no mesmo ano, em homenagem a Júlia, mãe de Tibério.
Restam os céticos para afirmar que em todos esses fatos existem
apenas visões mentais, ou melhor, ilusões de ótica, e que, pelo jogo
entrecruzado dos zigue-zagues do linho, podemos ler qualquer coisa
no tecido. Essa é a opinião de André Marion: “Encontramos sem
dificuldade as imagens apresentadas por esses autores, mas
pensamos que são simples conclusões enganosas decorrentes da
estrutura do tecido, em lugar de formas correspondentes a
impressões reais de objetos sobre o tecido”.22 Como, aliás, explicar a
referência de suas impressões sobre a roupa?
Entretanto, estatisticamente, a combinação de dados legíveis
sobre a moeda identificada sobre a pálpebra direita — o lituus, as
letras gregas, a ferrugem da borda da moeda (fato corrente para as
moedas antigas) — parece diminuir o risco de engano. Para o padre
Filas, contamos pelo menos 24 pontos de semelhança. Utilizando a
técnica da superposição de luz polarizada, Alan Whanger enumera
74 pontos para a moeda do olho direito e 73 para a do olho
esquerdo. Teríamos chegado a uma certeza?

O guarda judaico da sepultura


Os chefes fariseus, bem como seus aliados do momento, os saduceus,
estão satisfeitos com a morte desse “impostor”. No entanto, são
tomados de inquietação durante o sábado. Eles se recordam das
discussões que tiveram com Jesus, de seus ensinamentos. Recordam-
se que Jesus deu a entender que ele ressuscitaria no terceiro dia
(“Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei”). Eles são
sensíveis a esse tema, devido à sua crença na ressurreição geral dos
mortos no final dos tempos. E se os discípulos retirassem o corpo de
seu mestre para fazer crer numa ressurreição? Uma impostura como
essa seria de extrema gravidade, porque ela faria o povo crédulo
pensar que o Altíssimo havia intervindo em favor daquele que
enganou Israel. Eles vão falar com os sumos sacerdotes que, por sua
vez, se inquietam, compreendendo que o Templo estaria ameaçado
por uma mistificação como essa. O guarda, que havia sido colocado
na entrada da sepultura por vinte e quatro horas, com dispensa de
assistir às festas — supondo que realmente tivesse existido um
guarda, como determina a lei judaica no caso de supliciados —, vai
em breve cessar seus serviços.23 O sabá vai terminar. O que vai se
passar ao redor da sepultura? Todos os que tiveram fé em Jesus —
eles foram centenas, talvez milhares —, que o aclamaram como um
rei, vão se dirigir ao túmulo em peregrinação. Eles vão esperar o seu
pretenso retorno, criando um tumulto maior, talvez, do que aquele
por ocasião da reanimação de Lázaro. A segurança não estará mais
garantida.
Diante dessa perspectiva, os sumos sacerdotes e os fariseus
decidem ir à casa de Pilatos, apesar da maculação à qual eles se
expõem por ir mais uma vez à casa de um pagão. Afinal, trata-se de
um assunto de ordem pública, cuja manutenção incumbe aos
romanos! O palácio do governador encontra-se a uma distância de
caminhada autorizada num dia de sabá.
O último redator do evangelho, segundo Mateus, o doutor da Lei
judeu que compilou esse episódio, relata em sua essência os
propósitos da delegação:

Senhor, lembramo-nos de que aquele embusteiro, enquanto vivia, disse:


Depois de três dias ressuscitarei. Ordena, pois, que o sepulcro seja
guardado com segurança até ao terceiro dia, para não suceder que, vindo os
discípulos, o roubem e depois digam ao povo: Ressuscitou dos mortos; e
será o último embuste pior que o primeiro.24

O comportamento era um pouco humilhante. Pilatos, aborrecido,


os observa com desprezo e manda os embora. “Aí tendes uma
escolta; ide e guardai o sepulcro como bem vos parecer.” Munidos da
autorização necessária, as autoridades judaicas enviam alguns
homens retirados do esquadrão do Templo, que inspecionam a
sepultura, selam a pedra para que ninguém possa violá-la e
instalam-se diante dela.25
Para os exegetas que acreditam que o evangelho de Mateus foi
escrito nos anos 90, esse episódio seria um acréscimo grosseiro,
falso, inventado para acentuar melhor a realidade da ressurreição de
Jesus. O comportamento comum dos fariseus e dos sumos sacerdotes
é, no entanto, perfeitamente lógico, é mais arriscado não dar fé ao
que Jesus falou do que crer na verdade. O último redator do
evangelho de Mateus, que escreveu como dissemos por volta de 62-
63, utilizou um ou mais informantes bem habituados ao ambiente da
guarda do Templo. São essas pessoas que, depois da morte de Anás e
de Caifás, provavelmente lhe contaram esse fato.
20

A Ressurreição

A sepultura vazia
A primeira claridade da aurora se ergue sobre Jerusalém, entre cinco
e seis horas. Esse primeiro dia da semana (o nosso domingo), 16 de
Nisã, é o dia de Ômer. Essa festa consistia em entregar ao sumo
sacerdote um feixe de cevada, primícias da colheita, a fim de obter
uma colheita abundante. Ele o apresentava ao Senhor, fazendo-o
girar em direção ao oriente do altar, da frente para trás, depois do
alto para baixo. Ao mesmo tempo, procedia-se à oferenda de um
cordeiro de um ano, de dois décimos de efa (seis quilos), de flor de
farinha amassada com azeite, que era queimada, e um quarto de him
(um litro e meio) de vinho. De acordo com o Levítico, era proibido
comer espigas torradas ou grãos triturados antes do final da
cerimônia. É a partir do dia seguinte à festa de Ômer que se contam
as sete semanas que levam a Shavuot, dito de outra forma, a
Pentecostes, festa da colheita do trigo.
Algumas mulheres da Galileia vão até a sepultura. Lucas cita
Maria de Magdala (Maria Madalena), Joana, mulher de Cusa, e
Maria, mãe de Tiago, acrescentando que havia outras.1 Marcos cita
os nomes de Maria de Magdala, de Maria, mãe de Tiago, e de
Salomé. Elas, provavelmente, passaram a noite no Cenáculo, na
vasta morada de João, agrupadas ao redor da mãe de Jesus. A maior
parte dos apóstolos, depois de sua fuga e de seu vaguear dentro da
Cidade Santa, também se reencontraram ali.
Por que razão elas vão tão cedo para a sepultura? Lucas indica
que elas trazem os perfumes e os produtos aromáticos que
prepararam. Marcos precisa que compraram esses produtos de
manhã bem cedo para untarem o corpo. Mas esse motivo, digamos,
é difícil de acreditar. Como elas poderiam ter comprado os produtos
antes do nascer do sol, quando todas as barracas de Jerusalém
estavam fechadas? Como poderiam ter-se perguntado, de repente,
quando estavam a caminho: “Quem removerá a pedra da entrada do
túmulo?” (Marcos). Uma sepultura não é reaberta. Para fazer isso,
elas precisariam ter a autorização dos sumos sacerdotes, o que era
impensável, visto que eles tinham designado um guarda para proibir
o acesso à sepultura. Seria preciso também quebrar o selo e tirar o
corpo de Jesus, enrolado e atado nas mortalhas funerárias. Como
poderiam encarregar-se disso sozinhas, antes de proceder à toalete
funerária?
A verdade é que Lucas e Marcos não compreenderam o motivo
pelo qual as mulheres iam para a sepultura e imaginaram a posteriori
essa explicação. Mateus, que conhece melhor os costumes da região,
se contenta em dizer que elas vinham “ver a sepultura”, o que é
muito mais provável. Iam chorar sobre a sepultura de seu mestre,
como Marta e Maria sobre aquela de seu irmão.
João, por sua vez, explicou que, na noite de sexta-feira, José de
Arimateia e Nicodemos haviam se encarregado dos produtos
aromáticos “segundo o costume dos judeus”. A unção havia sido feita
segundo as regras, o sepultamento concluído. Certamente, o corpo
não foi limpo, nem os cabelos e as unhas cortados, mas Jesus é um
supliciado a quem tais costumes são proibidos. No seu relato, o
evangelista só coloca em cena uma das mulheres, Maria Madalena.
Ele não dá nenhuma razão pela qual ela vai até a sepultura tão cedo.
Quando chega ao Gólgota, ela descobre a pedra rolada. Não entra,
nem procura ver o que há dentro da sepultura. Essa anomalia só tem
uma explicação para ela: desconhecidos retiraram o corpo — as
violações de sepulturas não eram raras na Antiguidade. Ela volta
pelo mesmo caminho e corre para o Cenáculo, onde vê Simão-Pedro
e “o outro, o discípulo que Jesus amava”. “Tiraram do sepulcro o
Senhor, e não sabemos onde o puseram”.2 (aqui, as pessoas “não
sabem” certamente são várias mulheres acompanharam Maria
Madalena).3
Eles se recusam a acreditar nela (Lucas).4 Para os juízes daquela
época, o testemunho das mulheres não tem valor jurídico, “por
causa”, dizia Flávio Josefo, “de sua leviandade e do atrevimento de
seu sexo”. Simão-Pedro e João ficam também perturbados. Eles saem
correndo em direção ao Gólgota. João, mais jovem, e que conhecia
melhor as ruas da cidade do que o pescador da Galileia, tem tanta
pressa de chegar que se distancia do seu companheiro.
Durante sua corrida inquieta, os dois homens se perguntam se,
apesar de tudo, as mulheres não disseram a verdade; o corpo de seu
mestre teria sido roubado? Por quem? Pelos guardas judeus? Pelos
romanos? Com que intenção? Para tirar o corpo da veneração de
seus discípulos? A menos que tenha sido por saqueadores de
sepulturas? Nem um nem outro pensava no que Jesus havia
anunciado por diversas vezes, que o Filho do Homem ressuscitaria de
entre os mortos…
No local, constatam que a pedra, com efeito, havia sido retirada.
João se inclina. Da entrada baixa, cavada na rocha, ele percebe na
câmara sepulcral, além da antecâmara, a banqueta e os lençóis
“colocados ali”, estendidos. Ele não entra. Não por deferência ou
respeito protocolar, para esperar por Pedro, o chefe dos Doze, que
ele tinha colocado à sua direita por ocasião da última refeição, mas
porque ele próprio é sacerdote permanente do Templo. O contato
com um morto é proibido para ele, sob pena de tornar-se impuro. O
Levítico é formal: “Não se aproximará de nenhum cadáver!”.5 Pedro
finalmente alcança seu companheiro e entra primeiro. Quanto a
João, somente quando compreende que a sepultura está vazia é que
ele, por sua vez, desce os degraus.
Na câmara mortuária, nada saiu do lugar, nada a não ser o corpo
que desapareceu. Não há nenhuma impressão de desordem ou de
ordem artificialmente recriada. As roupas funerárias — othonia,[1]
escreveu João, quer dizer, o sudário e as faixas que tinham servido
para atar o morto na altura dos pés e do tórax — permanecem na
posição em que estavam por ocasião do sepultamento, invioladas,
mas caídas (frouxas) sobre si mesmas, enquanto o sudarium está
enrolado separadamente, no local onde o haviam colocado quando
fecharam a sepultura.6 A disposição desses tecidos, particularmente
do sudário fechado e ajustado, colocado horizontalmente sobre a
banqueta, persuade João de que o corpo não se reanimou. Ele não
vê, com efeito, nenhum amarrotado no tecido, como quando alguém
sai do leito ao despertar. E, no entanto, o morto foi retirado de sua
sepultura. Se ladrões ou inimigos de Jesus o tivessem levado,
certamente o teriam levado no seu lençol. Por que teriam perdido
tempo para desatar o corpo? Supondo que o tivessem feito, eles
teriam deixado, na precipitação, o lençol e as roupas em desordem.
A hipótese de uma retirada do corpo deve ser excluída. Foi o que
pensou João.7
É aqui, nessa sepultura vazia, que a história se detém e começa a
fé. O historiador, sem se comprometer com a ressurreição de Jesus,
só pode, a partir desse momento, registrar os testemunhos,
confrontá-los e pesquisar a sua lógica interna.
Diante dessa sepultura vazia, o companheiro de Simão-Pedro fica
convencido de ser a testemunha de um fenômeno extraordinário,
muito perturbador, único, sobrenatural: “Ele viu e ele acreditou”,
escreve João com sobriedade e emoção. Sua fé no Cristo ressuscitado
não vem de uma iluminação mística, mas de um raciocínio
intelectual. Ele compreendeu que Jesus tinha saído vencedor dos elos
da morte e havia misteriosamente entrado na glória de Deus.
Provavelmente, ele se lembra de Lázaro saindo da sepultura, envolto
em sua mortalha? Aqui, nada disso ocorreu. O corpo de Jesus
escapou às leis do mundo. De alguma maneira, ele evaporou,
passando para o outro lado do tempo. João viu alguma outra coisa
sobre o sudário, como leves marcas de queimaduras? Um texto da
liturgia moçárabe[2] afirma: “Pedro correndo para o sepulcro com
João viu os traços recentemente deixados sobre os lençóis do morto,
que havia ressuscitado”. Esse texto, infelizmente, data apenas do
século VII.8 Não podemos considerá-lo. Não é certeza de que as
impressões tenham sido aparentes naquele momento.
João, em todo caso, está estupefato. No caminho de volta, ele
não confia a Pedro os pensamentos que o agitam. No seu evangelho,
ele acrescenta somente que nem um nem outro haviam
compreendido ainda que Jesus devia se erguer de entre os mortos.9
Ambos estavam a cem léguas de acreditar na Ressurreição.
Lucas ouve de João esse relato e ele é o único, com João, a
relatá-lo. “Pedro, porém, levantando-se, correu ao sepulcro. E,
abaixando-se, nada mais viu, senão os lençóis de linho; e retirou-se
para casa, maravilhado do que havia acontecido.”10 O silêncio sobre
o discípulo bem-amado, companheiro de Pedro na corrida ao
sepulcro, é significativo. Esse é um discípulo secreto.

O relâmpago na sepultura e o Anjo do Senhor


O último redator do evangelho de Mateus teve, muito
provavelmente, contatos diretos ou indiretos com os guardas do
Templo. Ele fala de um fenômeno físico estranho que teria ocorrido
durante a noite, enquanto os guardas estavam postados na entrada
da sepultura. Ele utiliza a linguagem metafórica da Igreja primitiva:
“E eis que houve um grande terremoto; porque um anjo do Senhor
desceu do céu, chegou-se, removeu a pedra e assentou-se sobre ela.
O seu aspecto era como um relâmpago, e a sua veste, alva como a
neve. E os guardas tremeram espavoridos e ficaram como se
estivessem mortos”.11
Não somos obrigados a acreditar literalmente nisso, quando
Lucas nos diz que, um pouco mais tarde, o anjo se dirige às
mulheres: “Não temais; porque sei que buscais Jesus, que foi
crucificado. Ele não está aqui; ressuscitou, como tinha dito. Vinde
ver onde ele jazia. Ide, pois, depressa e dizei aos seus discípulos que
ele ressuscitou dos mortos…”. Recorrendo ao personagem do “Anjo
do Senhor”, esse mensageiro celeste que, na Gênese e no Êxodo, se
expressa em nome de Deus, o Pai,12 Mateus conta a Ressurreição e a
anuncia aos discípulos de maneira resumida e esquemática. Essa
relação, em todo caso, não concorda com o testemunho de João, que
ouviu o relato de Maria Madalena e das outras mulheres, que, de
início, nada viram.
Em compensação, o que pensar do relâmpago na sepultura, do
novo tremor de terra na noite de 15 para 16 de Nisã, da vibração do
rochedo, da pedra que se desloca e que dissemina o temor entre os
guardas judeus? Por mais extraordinários que sejam esses
fenômenos, são autênticos ou simbólicos? No primeiro caso, eles
seriam testemunhas da inscrição da ressurreição de Jesus na trama
da história, independentemente de “qualquer intervenção prévia de
uma psicologia humana”.13 Para a Igreja, a misteriosa passagem do
corpo inerte de Jesus para a glória transcendente de Deus não se
reduziria, com efeito, a uma simples experiência relacional entre o
ressuscitado e seus discípulos. Esse é um fenômeno objetivo em si,
portanto, histórico, mesmo se a Ressurreição escapa, na plenitude de
sua dimensão metafísica, à história. Como diz Joseph
Ratzinger/Bento XVI, “a ressurreição de Jesus vai além da história,
mas ela deixa sua marca na história”.14
Voltemos ao relato de Mateus. Testemunhas de sinais
inquietantes que se passaram no Gólgota, os soldados judeus vão
descontrolados advertir o seu chefe hierárquico, o sagan Jônatas. Os
sumos sacerdotes devem ser informados assim que acordarem. Esses,
depois de se reunirem com os anciãos, dão aos soldados uma boa
soma de dinheiro e a instrução para que digam que os discípulos da
Galileia vieram durante a noite e roubaram o corpo enquanto eles
dormiam. “Caso isto chegue ao conhecimento do governador, nós o
persuadiremos e vos poremos em segurança. Eles, recebendo o
dinheiro, fizeram como estavam instruídos. Esta versão divulgou-se
entre os judeus até ao dia de hoje.”15
Que as autoridades judaicas, atordoadas, tenham desejado
acreditar na tese do rapto do cadáver não é impossível. Podemos
imaginar que os responsáveis pela detenção de Jesus não tenham
reunido o Sinédrio completo, mas sim um Sinédrio reduzido. Terão
José de Arimateia e Nicodemos sido interrogados? Os soldados, que
cometeram infração, tinham o maior interesse em se calar. Foi
somente vinte ou trinta anos mais tarde, depois da morte de Anás e
de Caifás, que as línguas se desataram. Incorporada ao evangelho de
Mateus, a mesma informação se encontra na Ascensão de Tiago, um
evangelho apócrifo do século II, incluído nos Reconhecimentos
pseudoclementinos: “Porque alguns daqueles que tomaram conta do
lugar com diligência o trataram como mágico quando não
conseguiram impedi-lo de ressuscitar; outros deram a entender que
ele tinha sido roubado”.16 A história também é encontrada no
evangelho de Pedro (século II), mas dessa vez os soldados da guarda
são romanos: “Depois de ter presenciado aquilo, o centurião e os que
o cercavam foram apressados para a casa de Pilatos, durante a
noite, abandonando a sepultura que eles vigiavam; e eles contaram
tudo que haviam visto, atormentados por uma grande inquietação
[…]. Eles pediram e suplicaram a Pilatos para ordenar ao centurião
e aos soldados para não contarem a ninguém o que tinham visto.”.

O sudário de Turim mostra algum indício da


Ressurreição?
Esse relâmpago súbito, fulguração violenta, seria ele o flash da
Ressurreição? Isso nos remete, evidentemente, ao sudário de Turim e
ao mistério da formação dessa imagem acheiropoieta, isto é, não
feita pela mão do homem, e de cuja autenticidade não temos
motivos para duvidar. Seria, então, como pensam alguns, o indício
material da Ressurreição?
Toda a questão é saber como se formaram as impressões
enigmáticas do sudário. Pode-se tratar, é claro, de um fenômeno
natural devido aos efeitos da desidratação ou a vapores amoniacais
produzidos pela fermentação da ureia misturada com as substâncias
aromáticas funerárias, o aloé e a mirra. Essa é a tese da
vaporografia que foi sustentada por alguns pesquisadores. O fato é
que em 1901-1902, por ocasião das escavações de Antinoé (ou
Antinoópolis), no Alto Egito (o atual Cheikh Abadeh), foram
encontradas sobre um véu de linho impressões de cor marrom que
representavam o rosto de uma mulher morta há cerca de dois mil
anos. Dito isso, esses traços estão longe de ter a clareza perfeita e
fascinante daqueles do sudário. Acontece o mesmo com o lençol
encontrado sobre o rosto de são Charbel Makhlouf, no Líbano, morto
em 1898, no qual as manchas têm formas muito grosseiras.
Outras hipóteses foram emitidas. Para alguns, a imagem teria se
formado durante anos, até mesmo decênios, como acontece nos
velhos herbários, bem depois que as folhas secas foram retiradas.17
Esse fenômeno dá resultados bastante semelhantes (ausência de
fluorescência ultravioleta, tridimensionalidade, negatividade…),
mas ele não explica como a imagem se projetou de maneira plana,
nem como ela pôde ser registrada depois de o lençol estar formando
dobras sobre o corpo durante menos de quarenta horas. Seria, então,
preciso recorrer a explicações sobrenaturais: uma fulguração, um
relâmpago, um fluxo de energia desconhecida, uma luz de uma
brancura resplandecente, análoga àquela da Transfiguração? Alguns
falaram de radiações eletromagnéticas, de campos elétricos, até
mesmo de radiações nucleares (poupando Jerusalém?!). Para o
padre Jean-Baptiste Rinaudo, docente da Faculdade de Medicina de
Montpellier, o sudário teria sido misteriosamente irradiado por um
duplo bombardeamento de núcleos de prótons e de nêutrons
oriundos de núcleos de deutério presentes no corpo, o todo
provocando um leve chamuscado na superfície do lençol e seu
rejuvenescimento.18 Apesar de diversas tentativas de modelização, a
intervenção da tal força misteriosa ainda deve ser provada. Na
verdade, nenhuma teoria atualmente explica de modo exato como a
imagem se formou, uma imagem que ninguém jamais conseguiu
reproduzir de maneira idêntica. É obrigatório reconhecer que a
imagem no santo sudário é devida a um fenômeno físico ainda
desconhecido no século XXI.
Muitas coisas estranhas permanecem inexplicáveis. No sudário, a
impressão dorsal apresenta a mesma intensidade de cor que a
impressão facial, sem nenhum espessamento. Ora, se levarmos em
conta o contato e o peso do corpo, a impressão dorsal deveria ser
esmagada e menos nítida. Os próprios cabelos não caem para trás.
Tudo se passa como se a imagem tivesse sido impressa sobre o lençol
quando o corpo se encontrava em estado de imponderabilidade,
sobre um lençol esticado, sem ser moldado ao modelo do corpo,
exceto nos locais das manchas de sangue.19 Isso é quase
inacreditável!
Outros dados também são tão misteriosos como esses. O corpo
não ficou dentro do lençol mais do que trinta e seis a trinta e nove
horas. Além desse tempo, os traços de metabolitos de decomposição
(nos lábios, no ventre e sobre os coágulos de sangue) teriam sido
descobertos. Ora, não existe nada. Segundo dado: o corpo parece ter
se desmaterializado do interior, deixando o lençol desmoronar sobre
o vazio. Enfim, não é fornecida nenhuma explicação científica do
fato, observável fisicamente, senão os coágulos das feridas, secos
quando Jesus foi baixado da cruz, que se reumedeceram durante a
noite na sepultura, e colaram no lençol, com contornos muito
nítidos. Alguns correspondem a hemorragias arteriais ou venosas e a
escorrimentos post mortem. A precisão desses escorrimentos, dizem os
especialistas, correspondem com definição de um milímetro às veias
atingidas. Se mãos estranhas tivessem tentado tirar o corpo, não há
dúvida de que seus gestos teriam deixado traços de estiramento, de
rastos vermelhos ou de manchas, misturando as suas bordas. Ora, as
impressões permanecem absolutamente intactas, na sua perfeição
anatômica. O corpo, ao abandonar o lençol, não perturbou nenhuma
das fibrinas de sangue, nem mesmo as fibrilas do linho.20 Esse é um
fenômeno inexplicável atualmente. Um dos especialistas americanos
do sudário, Alan Whanger, vai ainda mais longe: ele assegura que,
por seu método de polarização da imagem, PIOT, do qual já falamos,
podemos ver os ligamentos das mãos, os dentes e os ossos do rosto,
como se o sudário, ao desabar, tivesse escaneado o corpo de Jesus. O
propósito é perturbador, certamente, mas ele mereceria ser
verificado objetivamente por uma equipe pluridisciplinar.
Daí a afirmar peremptoriamente a materialidade verificável da
Ressurreição há um passo perigoso a transpor. Para o crente, com
efeito, supondo-se que o desaparecimento do corpo tenha deixado
traços materiais perceptíveis, a Ressurreição é antes de tudo um ato
de fé, que só pode ser concebido na plenitude da Revelação. Não
admiti-lo seria prejudicar o livre arbítrio.

Uma cronologia das aparições?


É difícil estabelecer uma cronologia das aparições de Jesus
baseando-se unicamente nos relatos dos quatro evangelhos. Aliás,
esse não era o seu objetivo. Não há dúvida de que eles expõem
lembranças disparatadas, sem ligação entre si. Mateus fala de duas
aparições: a primeira às mulheres, em Jerusalém, anunciando que
ele se manifestaria aos Onze na Galileia. A segunda, na Galileia,
“sobre a montanha” (o local típico da Revelação). Jesus lhes diz:
“Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em
nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar
todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco
todos os dias até à consumação do século”.21
Lucas, em seu evangelho, reuniu numa só jornada o domingo de
Páscoa, a aparição aos discípulos de Emaús (ou Nicópolis), aquela
aos Onze e a seus companheiros, e a Ascensão: Jesus leva seus
discípulos “até Betânia”. Ergue as mãos, os abençoa e depois se
separa deles, levado para o Céu. Com a exaltação celeste do Messias
começa o tempo da Igreja.
O relato de Marcos se interrompe primitivamente com a ida das
mulheres à sepultura e o seu encontro com um “jovem homem”
sentado, vestido com uma camisa branca, anunciando-lhes que Jesus
havia se erguido dentre os mortos e que ele reencontraria seus
discípulos na Galileia. “E, saindo elas, fugiram do sepulcro, porque
estavam possuídas de temor e de assombro; e, de medo, nada
disseram a ninguém.”22 Um redator posterior, inspirando-se nos
escritos finais de Mateus e de Lucas, fez um resumo das aparições.
Antes de ser “levado para o Céu” e de se sentar “à direita de Deus”,
Jesus disse aos Onze: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a
toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém,
não crer será condenado”.23
Assim, nos evangelhos sinópticos, a relação dos acontecimentos
foi feita de maneira esquemática, para as necessidades da catequese.
Nos Atos dos Apóstolos, que cronologicamente dão sequência a seu
evangelho e que são dedicados ao mesmo personagem, “o excelente
Teófilo”, Lucas não hesita, aliás, em modificar sua própria
cronologia: Jesus se mostra a seus discípulos durante quarenta dias e
lhes fala do reino, até o momento em que, após ter declarado suas
últimas prescrições, ele é elevado “e uma nuvem o encobriu de seus
olhos”. Quando eles fixavam seus olhos no céu, enquanto Jesus ia
embora, duas criaturas com vestes brancas se apresentaram e
disseram: “Varões galileus, por que estais olhando para as alturas?
Esse Jesus que dentre vós foi assunto ao céu virá do modo como o
vistes subir”.24
Um fato é certo. A ressurreição de Jesus está no centro da
proclamação dos discípulos. “A este Jesus Deus ressuscitou, do que
todos nós somos testemunhas”, disse Pedro, no seu primeiro discurso
no dia de Pentecostes;25 “[…] Matastes o Autor da vida, a quem
Deus ressuscitou dentre os mortos, do que nós somos testemunhas”,
repete Pedro por ocasião de seu segundo discurso.26 Em outra
ocasião: “A este ressuscitou Deus no terceiro dia e concedeu que fosse
manifesto, não a todo o povo, mas às testemunhas que foram
anteriormente escolhidas por Deus isto é, a nós que comemos e
bebemos com ele, depois que ressurgiu dentre os mortos”.27 Esses
relatos não nos dizem quantas vezes Jesus apareceu, nem em quais
circunstâncias. Na sua Epístola aos Coríntios, Paulo é mais preciso e
dá um esboço cronológico:

Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos
nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao
terceiro dia, segundo as Escrituras. E apareceu a Cefas e, depois, aos doze.
Depois, foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a
maioria sobrevive até agora; porém alguns já dormem. Depois, foi visto por
Tiago, mais tarde, por todos os apóstolos e, afinal, depois de todos, foi visto
também por mim, como por um nascido fora de tempo.28
E o apóstolo, referindo-se, ao mesmo tempo, aos fariseus na
ressurreição, afasta o pensamento dos que não acreditam nisso, quer
dizer, os saduceus. Jesus é como o primeiro ramo da colheita divina,
por quem veio a ressurreição dos mortos. “Cristo ressuscitou dentre
os mortos, sendo ele as primícias dos que dormem.”29
Desse texto decorrem duas notações importantes. De início, o
grande número de testemunhas: quando Paulo escreve sua Epístola,
por volta do ano 55, diz que a grande maioria das quinhentas
pessoas que viram Jesus depois da sua morte ainda está viva. Ele
acentua também que Jesus apareceu aos dois grupos que se
opunham durante a vida pública do Nazareno: Pedro e os apóstolos
de um lado, Tiago e sua família do outro. Observamos que ele omite
a aparição para as mulheres.

João e as aparições
Vamos examinar o Evangelho de João. Após a descoberta do
sepulcro vazio, a primeira aparição de que ele fala é a de Jesus a
Maria Madalena. Ela voltou ao sepulcro, sem dizer nada. Ao ver a
pedra rolada, ela chora. Depois, ela se inclina e percebe, através da
abertura da tumba, sobre o nicho onde o corpo estava colocado, dois
anjos vestidos de branco, sentados um na altura da cabeça, o outro
na altura dos pés. “Mulher, por que choras?”, eles perguntam. Ela
lhes reponde: “Porque levaram meu Senhor, e não sei onde o
puseram”. Assim que pronuncia essas palavras, ela se volta e vê um
homem que toma por um jardineiro. Ele a questiona: “Mulher, por
que choras? A quem procuras? Ela, supondo ser ele o jardineiro,
respondeu: Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o puseste, e eu o
levarei”. Então o homem a chama: “Maria!”. Subjugada, ela
exclama: “Rabbouni!” (“Mestre muito querido”, em aramaico). João
não diz, mas ela provavelmente se aproxima de Jesus, se prosterna
e, com um gesto de adoração, abraça seus pés.30 Jesus disse: “Não
me detenhas; porque ainda não subi para meu Pai, mas vai ter com
os meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu
Deus e vosso Deus”. Assim, foi uma mulher quem se beneficiou com a
primeira aparição. Ele se tornou visível, mas sua presença sensível é
apenas transitória. Ele não está mais na sua condição humana. Sua
relação com o mundo é diferente. É isto que ele quer dizer para
Maria quando ele lhe pede para não o tocar. Ela deve ir avisar seus
“irmãos”. Maria volta rapidamente ao Cenáculo para anunciar: “Eu
vi o Senhor”. E contou o que Jesus tinha dito.
Na noite do mesmo dia, prosseguiu João, os discípulos se
encontravam reunidos, é bem provável, em sua própria casa. Eles
são muito mais numerosos do que os Onze. Maria, talvez, estivesse
com eles. Temerosos, pediram que as portas fossem trancadas.
Receiam que lhes seja atribuído o desaparecimento do cadáver.
Bruscamente, Jesus aparece em meio a eles e lhes diz: “A paz esteja
convosco!”[3] Ele lhes mostra seus punhos transpassados e a ferida
feita pela lança. Os discípulos, que provavelmente ficaram
espantados com o relato de Maria Madalena, sem estarem
verdadeiramente convencidos, se enchem de alegria com a visão do
mestre ressuscitado. Novamente, Jesus lhes diz: “A paz esteja
convosco!”. Depois, ele sopra sobre eles dizendo: “Recebei o Espírito
Santo. Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se
lhos retiverdes, são retidos”.31 Essa cena, durante a qual Jesus
transmite a seus discípulos o Espírito — esse Espírito anunciado e
tão esperado outrora por João Batista — e que lhes dá o poder de
perdoar em seu nome os pecados, não deve ser confundida com o
Pentecostes, que vê o mesmo espírito se manifestar sob o aspecto de
línguas de fogo.
Tomé era o único ausente. Ele se recusa a acreditar quando os
outros lhe anunciam a notícia extraordinária. Bem conhecida é a
resposta que ele lhes dá: “Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos
cravos, e ali não puser o dedo, e não puser a mão no seu lado, de
modo algum acreditarei”.32 No domingo seguinte, 23 de Nisã, os
discípulos estão novamente reunidos no Cenáculo. Eles
permaneceram em Jerusalém depois do encerramento das festas
pascais. Tomé, dessa vez, encontra-se com eles. Como da primeira
vez, as portas estão trancadas. Jesus aparece no meio deles e diz a
Tomé: “Põe aqui o dedo e vê as minhas mãos; chega também a mão
e põe-na no meu lado; não sejas incrédulo, mas crente”. Tomé
exclama admirado e cheio de amor: “Meu Senhor e meu Deus!”. E
Jesus lhe responde: “Porque me viste, creste? Bem-aventurados os
que não viram e creram”.
O narrador coloca em evidência duas propriedades do corpo
glorioso de Jesus: ele atravessa as portas (assim como ele se evadiu
misteriosamente dos lençóis), e é possível palpá-lo e tocá-lo. Suas
chagas mostram claramente que ele é o crucificado do Gólgota.
Mesmo que Jesus tenha voltado para a glória divina junto a seu Pai,
ele retomou suas relações de pessoa a pessoa com seus amigos.33
Num epílogo que ele acrescenta a seu evangelho (o capítulo XXI),
depois da morte de Pedro, em Roma, João narrou uma nova
manifestação de Jesus às margens do lago da Galileia. Alguns
discípulos estavam reunidos, provavelmente em Cafarnaum: Simão-
Pedro, Tomé, Natanael, Tiago e João, filhos de Zebedeu, e dois
outros discípulos que não são nomeados, porém, mais tarde
percebemos que um deles é “o discípulo a quem Jesus amava, o qual,
na ceia, se reclinara sobre o peito de Jesus”. Simão-Pedro decidiu
partir para pescar — certamente, é preciso viver e alimentar sua
família —, os demais decidem acompanhá-lo em seu barco. Mas eles
não pescam nada e voltam decepcionados à noite. Pela manhã, eles
se aproximam a duzentos côvados da margem (cerca de 90m).
Um homem ao longe lhes grita: “Filhos, tendes aí alguma coisa
de comer?”. Eles lhe respondem negativamente. O homem lhes
aconselha, então, a lançar a rede do lado direito. O discípulo amado
diz então para Pedro: “É o Senhor!”. Imediatamente, Simão-Pedro
fecha ao redor do corpo a blusa que ele usa sobre a pele e se lança
na água. Levada para dentro da barca pelo grupo, a rede está
repleta de peixes. Eles atracam. Um fogo de brasas fumega sobre o
areal, onde os peixes grelham. Alguns pedaços de pão estão
dispostos perto do fogo. Jesus — porque é bem ele — diz aos
discípulos: “Trazei alguns dos peixes que acabastes de apanhar!”. É
uma brincadeira, porque Simão-Pedro, que subiu de novo ao barco,
retirou dele, com seus braços musculosos, não menos que cento e
cinquenta e três peixes, diz João. Número simbólico evidentemente,
cujo sentido exato os exegetas discutem. A captura dos peixes, em
todo caso, é prodigiosa, e a rede não se rasgou. Para alguns, esse
seria o número total de espécies de peixes conhecidas na
Antiguidade; para outros, a soma das letras da expressão “filhos de
Deus” em hebraico (bny h’lhym). A Igreja deve reuni-los na unidade.
Por meio desse número simbólico, o evangelista quer mostrar que
não é mais somente Israel que é salva, mas a totalidade do mundo.
“Vinde comer”, lhes diz Jesus. Eles o reconheceram. Admitidos
para partilhar sua refeição, eles sabem que foram perdoados por sua
fuga. E Jesus lhes dá o pão e os peixes. Em seguida, inicia-se uma
conversa entre Jesus e Simão-Pedro, no decorrer da qual este último
também recebe o perdão por sua renegação e a missão explícita de
guiar sua Igreja. Por três vezes, com efeito, Jesus, como que para
responder à sua tripla renegação, lhe pergunta: “Simão, filho de
João, tu me amas?”, e esse responde com submissão: “Sim, Senhor,
tu sabes todas as coisas. Tu sabes que eu te amo”. O Ressuscitado lhe
diz então: “Apascenta as minhas ovelhas!”. Pedro será, portanto, o
único pastor dos crentes. Jesus dá a entender que ele também
conhecerá o martírio da crucificação: “Em verdade, em verdade te
digo que, quando eras mais moço, tu te cingias a ti mesmo e
andavas por onde querias; quando, porém, fores velho, estenderás as
mãos, e outro te cingirá e te levará para onde não queres”.34
A sequência da conversa tem como finalidade explicitar o papel
do discípulo bem-amado em relação a Pedro. A uma questão deste
último: “Senhor, e quanto a este?”. Jesus responde: “Se eu quero que
ele permaneça até que eu venha, que te importa? Quanto a ti, segue-
me”. É a partir dessa palavra que se espalha o rumor, entre a
comunidade de João, de que ele não morreria. Porém, o editor do
quarto evangelho, provavelmente depois da morte de João, destaca
que Jesus não havia absolutamente dito: “Se eu quero que ele
permaneça até que eu venha, que te importa?”.

Lucas e as aparições
Lucas é o único a contar o célebre episódio dos peregrinos de Emaús,
ilustrado em várias pinturas. Seu relato, muito literário,
magnificamente elaborado, tem um significado teológico denso e
parece se ligar a uma fonte mais antiga, talvez um testemunho oral
de um deles, de modo que teria um núcleo histórico. Assim, na noite
de domingo da Páscoa, dois discípulos estão caminhando em direção
a uma aldeia chamada Emaús. Sua localização é incerta. Alguns
manuscritos a situam a 60 estádios de Jerusalém (ou seja, cerca de
doze quilômetros), outros a 160. Hesitaram entre Amwâs (Nicópolis),
a 160 estádios da Cidade Santa, Qiryat-Yéarim (Abu-Gosh), a 66
estádios sobre a rota de Jafa (ou Jaffa ou Yafo), Al-Qubaybah
(Chubebe), a 63 estádios sobre a rota de Lida (Lod), Mozah, a 36
estádios sobre a mesma estrada, e Urtas(Artas), a 60 estádios de
Jerusalém, ao sul de Belém.
Enquanto discutiam entre si sobre os trágicos acontecimentos que
acabavam de ocorrer, um homem se aproxima e caminha ao lado
deles. É Jesus, mas, como nas demais aparições, os discípulos não o
reconhecem imediatamente. Ele se mistura à conversa. Um dos
viajantes, chamado Cléofas,[4] lhe diz que ele é certamente o único
de passagem por Jerusalém que não sabe o que tinha ocorrido três
dias antes. E se põe a explicar que Jesus de Nazaré havia se revelado
ao povo como um profeta poderoso por suas obras e suas palavras,
mas que ele tinha sido entregue pelos sumos sacerdotes e pelos
chefes para ser condenado à morte e crucificado. Os dois esperavam
que fosse ele aquele que iria resgatar Israel. Algumas mulheres, é
verdade, os deixaram estupefatos. Elas tinham ido bem cedo até o
sepulcro e, não tendo encontrado o corpo, confessaram ter tido
“uma visão de anjos” que lhes afirmara que ele estava vivo. Depois,
fazendo alusão a Simão-Pedro e João, eles acrescentaram que alguns
dos seus também tinham ido até o sepulcro e o encontraram aberto,
mas que não o tinham visto. O homem assume, então, a palavra: “Ó
néscios e tardos de coração para crer tudo o que os profetas
disseram! Porventura, não convinha que o Cristo padecesse e
entrasse na sua glória?”. Então, começando com Moisés e
continuando com todos os profetas, Jesus explica a seus discípulos
todas as passagens da Escritura que falavam a respeito dele.
Ao chegar a Emaús, o homem dá a impressão de que vai
prosseguir na estrada. Eles insistem para que o homem permaneça
com eles, porque a noite já vai cair e o dia começa a escurecer. Ele
aceita partilhar sua refeição. À mesa, ele pega o pão, abençoa-o,
quebra-o em pedaços e dá aos outros. Quando ele quebra o pão, os
outros o reconhecem. Provavelmente, eles também assistiram à ceia.
Mas Jesus desapareceu. Eles ficam, ao mesmo tempo, espantados e
alegres. Decidem, então, retornar a Jerusalém, encontram os Onze e
seus companheiros, que lhes anunciam que Jesus realmente ergueu-
se dentre os mortos e que ele apareceu para Simão-Pedro.
É então, sempre segundo Lucas, que Jesus aparece de novo no
meio dos seus. Lucas utiliza aqui, fundindo-os, dois relatos de João: a
aparição ao grupo no domingo de Páscoa e aquela à beira do lago. O
Cristo subitamente se mostra no meio de seus discípulos e insiste
sobre sua corporeidade. Não, ele não é um fantasma desprovido de
carne e osso. E lhes mostra suas chagas. Como, em sua alegria, eles
ainda se recusam a acreditar, Lucas cita a mesma questão de Jesus
que João coloca no episódio do lago: “tendes aqui alguma coisa que
comer?”.35 Apresentam-lhe, então, um pedaço de peixe grelhado que
Jesus come diante deles.
Quanto ao relato da pesca milagrosa, Lucas, é muito provável,
ouviu-a da boca de João e inseriu-a em seu evangelho, em certo
estilo narrativo. Ele não compreendeu — ou não reteve — que a
pesca se situava depois da Ressurreição. Ele, então, integrou-a a um
episódio da vida pública de Jesus, quando, pressionado pela
multidão da Galileia, Jesus ministra sentado sobre uma barca.36 Mas
a própria atmosfera que ele descreve permite compreender que a
cena se desenrolou num contexto pós-pascal: “o assombro” que se
apodera de Pedro e dos outros discípulos, a exclamação cheia de
arrependimento: “Senhor, retira-te de mim porque sou um
pecador”,37 até a missão conferida naquele momento a Simão-Pedro:
“Não temas, doravante tu serás pescador de homens” (João havia
utilizado uma comparação pastoral: “Sê o pastor de minhas
ovelhas”.)
O relato de Pilatos
Pôncio Pilatos foi informado do que se passou? É muito possível que
tenha tomado conhecimento da versão judaica — o roubo do cadáver
—, e isso o irritou. A guarda judaica, que ele tinha autorizado, não
havia cumprido seu dever. Justino, Tertuliano, o historiador Eusébio
sustentaram que Pilatos havia enviado um relatório a Roma sobre o
caso de Jesus e que esse documento se encontrava nos arquivos
imperiais. Historiadores e exegetas rapidamente eliminaram esse
conto ridículo. O que representava para o poderoso enviado de
Tibério na Judeia a morte desse obscuro homem da Galileia?
Quantos outros esse funcionário implacável havia feito executar
sumariamente? Conhecemos a anedota imaginada por Anatole
France: o antigo prefeito da Judeia, quando voltou a Roma, foi
durante muito tempo interrogado sobre Jesus. Ele não se lembrava
de nada…
Seremos menos afirmativos sobre a inexistência desse relatório.
Pilatos, apesar de suas atitudes desastradas e seu gosto pela
provocação, era um homem inquieto, desestabilizado desde o
desaparecimento de seu patrão Sejano. A ameaça velada dos sumos
sacerdotes de se queixarem para Tibério o havia perturbado
profundamente. Ele não queria de modo algum receber uma censura
com palavras enérgicas do imperador. Por precaução, pode muito
bem ter enviado um relatório a Roma sobre a execução do “rei dos
judeus”. Por toda parte, os acontecimentos surpreendentes ocorridos
no decorrer dessa Páscoa memorável, os testemunhos dos guardas do
sepulcro que chegaram aos seus ouvidos, talvez tudo o estimulasse a
enviar um relato pormenorizado.
Esse fato, possivelmente, deve ser posto em relação com uma
curiosa placa de mármore de cerca 60cm x 40cm, com uma inscrição
em grego de vinte e duas linhas, posta à venda por um mercador de
Nazaré e enviada ao Louvre em 1878. Ela tem como título: Diatagma
Kaisaros. Segundo uma análise da placa feita por Franz Cumont, na
Revista de História em 1930, tratar-se-ia de uma ordem local,
decretada por um imperador romano no início do século I — como
atesta a paleografia —, requerendo honrar os mortos e respeitar as
sepulturas.38 Todos aqueles que retirassem corpos por qualquer
motivo, ou que “por uma fraude maligna transferissem os corpos
para outros lugares”, seriam julgados e punidos com a morte. O
conteúdo estranho dessa placa, sua descoberta em Nazaré ou na
região, o caráter geograficamente limitado da interdição levaram a
pensar que tal ordem poderia ter alguma relação com o caso de
Jesus. Tratar-se-ia, nessa hipótese, de uma reação ao relato de
Pilatos…
Até então, a violação de uma tumba dependia de um direito
privado, e os culpados ficavam sujeitos a receber uma multa. Por
que motivo a decisão imperial desqualificou a natureza do delito
para torná-lo um crime passível de pena de morte? Seria porque o
desaparecimento do corpo havia criado um problema de ordem
pública? Será que foi porque a família do morto habitava Nazaré,
onde ela teria podido esconder os despojos, que as autoridades
decidiram gravar o decreto imperial sobre uma placa de pedra,
como faziam para eternizar as decisões importantes, e instalá-la na
proximidade dessa aldeia minúscula da alta Galileia?39
Epílogo

Os evangelhos da Infância
Depois desses acontecimentos, os primeiros discípulos de Jerusalém
quiseram, logicamente, conhecer tudo sobre a vida de seu venerado
mestre. Eles se voltaram para aqueles que tinham sido os primeiros
a segui-lo. Agruparam-se em torno dos Doze: com efeito, Tomé havia
substituído Judas. É dito nos Atos dos Apóstolos que os primeiros
descendentes de Jessé e os nazarenos que se acercaram dos
discípulos tinham em torno de vinte anos. Durante o dia, eles iam ao
Templo; à noite, se encontravam no aposento alto, onde Jesus
partilhara com os discípulos sua última refeição, e ali procediam à
quebra do pão e à partilha do cálice de vinho. Lucas escreve: “Todos
estes perseveravam unânimes em oração, com as mulheres, com
Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele”.1
Os discípulos desejaram, em seguida, ir além da vida pública de
Jesus. Eles começaram a interrogar as testemunhas de Nazaré, em
primeiro lugar, Maria, sua mãe, sua cunhada Maria, mulher de
Cléofas, e os filhos dela, os “irmãos do Senhor”. Maria, que João
Evangelista havia recolhido em sua casa, sobreviveu apenas alguns
anos a seu filho (ela desaparece depois do primeiro capítulo dos Atos
dos Apóstolos). Entre os “irmãos do Senhor”, dois ocuparam posição
de primeiro plano na jovem Igreja judaico-cristã: Tiago, o Justo,
morto em 62, lapidado no Templo por ordem do sumo sacerdote
Anás II, filho de Anás, durante a ausência do procurador romano; e
seu irmão Simeão, que o sucedeu como bispo de Jerusalém e
organizou em 73 ou 74 o retorno dos judeus cristãos para a Cidade
Santa, depois da catástrofe da guerra judaica e da queda de
Massada, a última fortaleza mantida pelos zelotes revoltados. Esse
Simeão, morto centenário, ainda estava vivo na virada do século.2
Foi a partir desses testemunhos que se difundiu uma tradição,
segundo a qual Jesus não somente havia escapado, por ocasião da
sua morte, às leis do Cosmos, mas tinha sido concebido
milagrosamente. Engendrado por Maria, ele era plenamente Filho
de Deus, desde a sua concepção. O testemunho essencial provinha de
Maria, que, disse Lucas por duas vezes, “guardava todas estas
palavras, meditando-as no coração”. Suas revelações foram escritas
e circularam na comunidade, da mesma maneira que as compilações
das palavras do Senhor. Observamos os traços desses arcaísmos
semíticos no evangelho e nos Atos de Lucas. Esses escritos já eram,
pela importância dos fatos relatados, um pré-evangelho (eles
incorporavam, com efeito, as lembranças sobre João Batista, sobre
seus pais, sobre o sacerdote Zacarias e sua mulher Isabel, sobre
alguns milagres de Jesus, bem como sobre os primeiros passos da
Igreja de Jerusalém). “O autor dessa fonte”, escreve o abade
Carmignac, “permanecerá, provavelmente, sempre anônimo. Sua
obra nos mostra que ele tinha seguido Jesus pessoalmente e que
tinha se interessado pelos progressos da Igreja nascente. Suas
informações sobre o nascimento de João Batista e sobre o de Jesus
devem remontar, de uma ou de outra maneira, a são José e à Santa
Virgem, talvez por intermédio das santas mulheres.”3
Entretanto, em 62, imediatamente depois da morte de Tiago, a
Igreja sofreu uma mudança importante, colocando em xeque as
primeiras convicções da fé. Uma parte dos judeus cristãos,
contestando a influência muito forte do clã de Davi, separou-se,
seguindo um indivíduo de grande conhecimento chamado Thebutis.
Esse foi, segundo Hegésipo, o primeiro cisma da Igreja de Jesus
Cristo, que até então tinha vivido unida. A origem do cisma foi o
ciúme desse personagem, furioso por não ter sido eleito bispo de
Jerusalém; muito em breve sua dissidência assumiria uma coloração
doutrinal. Foram, muito provavelmente, esses judeus religiosos,
defensores da circuncisão, dos costumes ancestrais e da Lei — como
os judeus cristãos, porém mais radicais do que eles — a quem foi
dado, no decorrer do século, o nome de ebionitas (do hebraico,
evyonim, os “pobres”).4 Eles se equiparam com o seu próprio
evangelho, do qual conhecemos fragmentos por meio de Epifânio.
Tertuliano, Hipólito, Orígenes e Eusébio falam desses sectários, sem
infelizmente dar muitos detalhes. A sua ovelha negra era Paulo,
muito marcado para seu gosto pela cultura helenística e uma
concepção universal da salvação. Para os dissidentes da primeira
hora, se Jesus era verdadeiramente o Messias de Israel, o filho
esperado de Davi, não podia ser o Filho de Deus. Ele havia nascido
de um homem e uma mulher, José e Maria.5 Só havia recebido o
espírito de Deus com o batismo de João e o tinha perdido sobre a
cruz.[1] A todos os que tinham ouvido o testemunho de Maria, de sua
cunhada, dos filhos desta, Tiago e Simeão, tal confissão cristológica
pareceu inadmissível, herética em relação ao que eles consideravam
como dados sérios e sólidos da origem divina de Jesus. A notícia
espalhou-se dentro das diferentes comunidades cristãs, inclusive a da
diáspora.
Foi por essa razão que se sentiu a necessidade de dispor de textos
mais completos do que aqueles resumidos que estavam em circulação
naquele momento; os autores de nossos evangelhos atuais de Mateus
e de Lucas acharam necessário, cada um por seu lado, colocar no
início de sua biografia de catequese um relato da infância de Jesus, a
fim de insistir sobre o fato de que ele tinha nascido de Deus, desde a
sua concepção. Seus escritos datam de 62-63. Lucas, que redigia na
Beócia, mas que tinha ido para Jerusalém alguns anos antes, serviu-
se dessa fonte anônima. Quanto ao escriba sírio, redator da última
versão do evangelho de Mateus, coletou em Jerusalém, talvez
diretamente de Simeão, em todo caso de sobreviventes judeus
cristãos que tinham conhecido Jesus em Nazaré, todas as tradições
concernentes a ele. É assim que dispomos de duas versões dos
evangelhos da Infância, uma proveniente de Maria, aquela de Lucas,
a outra da família de José, a de Mateus.
Essas duas versões não coincidem perfeitamente. Mas há acordo
sobre os seguintes dados essenciais: uma jovem virgem chamada
Maria foi prometida em casamento por sua família a José,
descendente de Davi. O Anjo do Senhor lhe apareceu e anunciou que
ela daria à luz um filho, Jesus, que seria concebido pelo Espírito
Santo. Como previsto, ela deu à luz no tempo do rei Herodes, o
Grande, em Belém, na Judeia. O casal, em seguida, instalou-se em
Nazaré, na Galileia.
Com toda a evidência, os evangelhos da Infância não têm a
mesma relação com a história que os relatos da vida pública de
Jesus. Eles são fruto de uma atividade de redação elaborada. Em
primeiro lugar, porque remontam mais longe no passado, cerca de
setenta anos atrás, em seguida porque evocam fatos particulares,
familiares, e porque o número de testemunhas ainda vivas naquele
momento era particularmente restrito. Finalmente, e sobretudo,
porque foram escritos com um objetivo apologético bem específico, a
saber, a exaltação da origem divina de Jesus desde a sua concepção,
e não de sua adoção pelo Pai no momento do batismo de João, como
alguns dissidentes haviam começado a reivindicar. Disso decorre a
multiplicação das referências escriturárias e o aspecto de glória
teofânica com a qual eles cercam a Natividade (particularmente em
Lucas, com o anúncio feito aos pastores, envolvidos pela claridade
do Anjo do Senhor, e o coro do exército celeste cantando o louvor do
Altíssimo…). Sua teologia assume voluntariamente a forma do
maravilhoso. Sua escrita floreada, embelecida com anedotas, faz a
alegria da devoção popular. Para o padre Lagrange, esses escritos
são Hagadahs, um gênero literário que tem suas próprias leis e que se
apresentam como desenvolvimentos da Escritura Santa. Como
observava em 1982 o cardeal Joseph Ratzinger, eles “ultrapassam
radicalmente o quadro da verossimilhança histórica comum e nos
confrontam com a ação imediata de Deus”.6 É preciso deduzir disso
que o historiador não deve intervir?

O relato de Mateus
Vamos abordar primeiro o relato de Mateus. Maria, noiva de José,
“achou-se grávida pelo Espírito Santo antes que eles morassem
juntos”. José, homem justo, querendo evitar um escândalo, resolveu
repudiá-la em segredo. O Anjo do Senhor apareceu para ele em
sonho e disse: “José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua
mulher, porque o que nela foi gerado é do Espírito Santo. Ela dará à
luz um filho e lhe porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu
povo dos pecados deles”. O nome de Jesus, muito propagado
naquela época, significa, com efeito, como podemos lembrar, “Deus
salva” ou “Deus é a salvação”. Quando despertou, José obedeceu à
sua visão angélica. Ele a tomou como esposa e não a “conheceu” —
conhecer, no sentido bíblico do termo, significa ter relações carnais
— até que ela deu à luz um filho, que ele chamou de Jesus. O
nascimento ocorreu em Belém, na Judeia, “nos dias do rei
Herodes”.7 Segue-se o episódio bem conhecido dos Reis Magos.
O número desses Reis Magos “vindos do Oriente” não nos é dado:
eles teriam sido doze, segundo as Igrejas síria e armênia, como as
doze tribos de Israel, três segundo a tradição ocidental,
representando a humanidade inteira, oriunda dos filhos de Noé,
Sem, Cam (ou Cã) e Jafé. A partir do século IX, a lenda passou a
chamá-los Melchior, Baltazar e Gaspar, e lhes atribuiu um lugar de
origem, a Pérsia para o primeiro, a Arábia para o segundo e a Índia
para o terceiro. No século XII, fizeram deles reis mártires e santos,
cuja catedral de Colônia (Alemanha) acolheu os supostos restos em
1164 (ela os conserva sempre em um relicário de ouro e de prata).8
Seus despojos teriam sido levados para Constantinopla sob a
instrução de santa Helena, mãe do imperador Constantino, e, de lá,
transferidos para Milão e depois para Colônia.
No relato de Mateus, eles cumprem uma função: mostrar a
extensão universal da fé. Jesus era reconhecido não somente pelos
judeus, mas pelos gentios, realizando assim a profecia de Isaías —
“A multidão de camelos te cobrirá, os dromedários de Midiã e de Efa;
todos virão de Sabá; trarão ouro e incenso e publicarão os louvores
do SENHOR”.9 — e aquele do Salmo 72:
Paguem-lhe tributos os reis de Társis e das ilhas;
os reis de Sabá e de Sebá lhe ofereçam presentes.
E todos os reis se prostrem perante ele;
todas as nações o sirvam.

Essas duas referências pareciam indicar uma proveniência


arábica. Justino Mártir, Epifânio e Tertuliano se detiveram nessa
dedução.
Os Reis Magos, portanto, chegam a Jerusalém. “Perguntaram
eles: Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua
estrela no oriente e viemos adorá-lo.” Como Herodes, o Grande, não
teria ficado profundamente perturbado? Não era ele o rei dos
judeus? Com efeito, não sendo de origem davídica, ele sofria de falta
de legitimidade. Naquele momento, o velho rei temia menos a volta
ao poder da obscura linhagem de Davi — teria ele ouvido falar das
humildes pessoas que viviam nos campos de Nazaré e de suas
nostalgias reais[2]? — do que a dinastia dos hasmoneus. Reuniu os
sumos sacerdotes e os doutores da lei e lhes perguntou onde devia
nascer o Messias, segundo as Escrituras. Os especialistas fizeram
pesquisas e detiveram-se numa passagem um pouco esquecida do
profeta Miqueias, que remontava talvez a 400 anos a.C.:

E tu, Belém, terra de Judá,


não és de modo algum a menor entre as principais de Judá;
porque de ti sairá o Guia
que há de apascentar a meu povo, Israel.

As autoridades religiosas relataram, então, a Herodes que o


Ungido do Senhor devia nascer na pequena aldeia de Belém na
Judeia, a duas horas de caminhada ao sul de Jerusalém, pátria de
Davi, que ali cuidara de seus rebanhos.
Herodes fez vir os Reis Magos em segredo e perguntou-lhes
quando a estrela tinha aparecido. Depois, ele os enviou a Belém.
“Ide informar-vos cuidadosamente a respeito do menino; e, quando
o tiverdes encontrado, avisai-me, para eu também ir adorá-lo.” Pura
astúcia, evidentemente. Eles partiram. A estrela ficou novamente
visível e os conduziu até a casa onde vivia a criança e Maria, sua
mãe. Eles se prosternaram diante dele. Abrindo suas bagagens, eles
lhe ofereceram os presentes, ouro, incenso e mirra, depois
retornaram a seus países por outro caminho, sem voltar a ver
Herodes.10
José, por seu lado, recebeu em sonho o conselho de partir para o
Egito com Jesus e Maria, a fim de escapar às investigações de
Herodes. Este último, com efeito, havia compreendido que tinha sido
enganado pelos Magos e decidiu eliminar todas as crianças, de
Belém e das cercanias, com idade de menos de dois anos. A Santa
Família, após uma estada de alguns anos no Egito, voltou para a
Judeia. Mas, ao saber que Arquelau tinha sucedido a seu pai
Herodes, ela decidiu estabelecer-se em Nazaré na Galileia…11

Dois textos pouco conhecidos de Flávio Josefo


Tudo nesse relato ou quase tudo parece fictício. Segundo alguns
comentadores, ao lado do romance dos Reis Magos, o Massacre dos
Inocentes seria apenas o eco da história do jovem Moisés e do
afogamento de crianças ordenado pelo faraó. Em relação à fuga
para o Egito, onde numerosas colônias judaicas estavam
estabelecidas, Mateus teria calcado o episódio sobre aquele do
retorno de Moisés do exílio de Madiã.12 Uma maneira de estabelecer
discretamente um paralelo entre Jesus, perseguido por Herodes, o
Grande, e Moisés, perseguido pelo faraó. Quanto ao astro, ele seria
uma reminiscência do quarto oráculo de Balaão, o pagão que vivia
às margens do Eufrates, filho de Beor, referente à vinda do Messias,
tal como anunciada no Livro dos Números: “Uma estrela procederá
de Jacó, de Israel subirá um cetro”.13
Mas esses episódios são realmente lendários? Seria preciso ver
uma alusão à estrela dos Magos no Apocalipse de João: “Eu sou a
Raiz e a Geração de Davi, a brilhante Estrela da manhã”?14 O
Talmude da Babilônia faz referência a isso quando lembra que, nos
últimos tempos do reinado de Herodes I, um grande número de
gentios (goim: não judeus) tinha ido a Jerusalém a fim de ver erguer-
se a estrela de Jacó?15
O que se segue não procede nem de uma vontade de tornar esses
fatos históricos a qualquer custo, nem de uma leitura ingênua e
fundamentalista dos textos neotestamentários, mas de dados
objetivos que lançam de maneira surpreendente, podemos confessar,
outra luz sobre o texto de Mateus. Na versão eslava de Flávio Josefo,
publicada pelo padre Étienne Nodet, figuram dois textos pouco
estudados. O primeiro diz respeito ao desejo secreto de Herodes, o
Grande, de se fazer reconhecer como messias. Ao saber da
hostilidade secreta que alguns sumos sacerdotes alimentavam contra
ele, Herodes mandou massacrá-los.16 Esse primeiro texto não contém
nada que possa contradizer o que sabemos sobre o personagem. Sua
pretensão messiânica explicaria por que várias de suas moedas
trazem uma estrela, aquela precisamente do oráculo de Balaão.
O segundo texto é mais espantoso: ele nos relata bastante
longamente e com muitos detalhes inéditos a vinda dos Reis Magos
persas a Jerusalém. Uma estrela recentemente aparecida no céu os
havia guiado até lá, depois desaparecido. Eles se lamentavam:
“Nossos pais e nossos ancestrais foram astrólogos excelentes e
jamais mentiram quando observavam as estrelas. O que essa pode
ser? Engano ou equívoco? A imagem apareceu a nós para significar
o nascimento de um rei pelo qual o mundo inteiro será mantido. E,
ao olhar essa estrela, nós caminhamos durante um ano e meio em
direção a essa cidade, e não encontramos um filho de rei. E [agora]
a estrela escondeu-se de nós. Nós fomos enganados. Mas vamos
enviar ao rei [Herodes] os presentes que preparamos para a criança
e pedir-lhe para nos deixar [retornar] para nossa pátria”.
Herodes, que havia recebido os Reis Magos uma primeira vez,
mas sem nada descobrir, tinha colocado espiões que compreendiam
o persa junto deles. Informado de seus propósitos, enviou os espiões
para a hospedaria onde os reis estavam instalados. Foi nesse
momento que a “estrela assinalada” a eles apareceu novamente.
Eles foram muito felizes até o rei dos judeus. Este começou por
repreendê-los: “Por que vocês entristeceram meu coração e afligiram
minha alma não me dizendo a verdade? Por que vocês vieram para
cá?” Eles responderam: “Oh, rei, nós não temos dupla linguagem,
mas nós viemos da Pérsia. Nossos ancestrais aprenderam com os
caldeus a astronomia, que é nossa ciência e nossa arte. Jamais nós
nos enganamos ao observar as estrelas. Nós vimos uma estrela
inefável, distinta de todas as [outras]. […] Mas, quando chegamos, a
estrela desapareceu até agora; enquanto vínhamos em direção a ti,
ela reapareceu”. E eles a mostraram através de uma fresta. Herodes
deu aos Reis Magos uma escolta, composta principalmente por seu
irmão e pessoas importantes, para que fossem descobrir aquele que
tinha nascido.
No caminho, a estrela desapareceu novamente, e eles voltaram
para trás. Deixaram a Judeia depois de prometerem a Herodes que
voltariam caso reencontrassem a estrela. Um ano se passou.
Descontente, o rei convocou os sacerdotes e os doutores da Lei que
eram seus conselheiros. Herodes lhes perguntou qual era o
verdadeiro significado dessa estrela. Eles lhe responderam,
repetindo a profecia de Balaão que anunciava a vinda do Messias:
“Nós compreendemos que ele nascerá sem pai”. “Como descobrir
esse futuro rei?”, lhes perguntou Herodes. Um de seus amigos
sacerdotes, chamado Levi, sugeriu-lhe ordenar o recenseamento de
todas as crianças de sexo masculino nascidas na Judeia, depois da
chegada dos Reis Magos, e mandar matá-las. “E o teu reino ficará
em segurança para ti e para tuas crianças e mesmo para os teus
bisnetos.” Herodes seguiu o conselho. Enviou arautos para todas as
aldeias, encarregados de anunciar que todas as crianças de sexo
masculino com menos de três anos receberiam ouro como presente e
que, se alguma criança fosse órfã, Herodes a adotaria e faria dela
um rei. Sem descobrir nada entre as sessenta e três mil crianças
recenseadas, o rei mandou matá-las todas. Chorando e se
lamentando diante dessa perspectiva, os sumos sacerdotes
permaneceram prostrados durante horas aos pés do rei. Eles lhe
confessaram que o Messias deveria nascer em Belém. “Mesmo que
não tenhas piedade por teus servidores, mate as crianças de Belém e
deixe partir as outras.” E assim foi feito.17
Ficaríamos tentados a enxergar nesse longo e curioso relato a
adição astuciosa de um autor cristão posterior, desejoso de fortalecer
o texto de Mateus, se não constatássemos que em nenhum momento
se trata da Criança Jesus, de Maria, de José, de Nazaré ou dos
nazarenos. A passagem eslava de Flávio Josefo apresenta, aliás,
divergências com o evangelho e, como observou Étienne Nodet,
algumas incoerências narrativas fazem supor uma elaboração muito
longa. O fato de que se fala de uma criança nascida sem pai deixa
supor, apesar de tudo, uma influência cristã ou judaico-cristã.18 Que
crédito conceder a esse relato? É bem difícil dizer.
Quanto ao Massacre dos Inocentes, pode bem ser, levando em
conta a exiguidade do povoado de Belém, que ele se limitou a uma
dezena ou quinzena de crianças de pouca idade. Uma ninharia no
oceano dos crimes hediondos praticados. Em um texto do apocalipse
judaico, a Assunção de Moisés, redigido pouco depois da morte de
Herodes, é dito que o tirano sanguinário de Jerusalém havia
suprimido não somente as pessoas importantes, “mas os idosos e os
‘jovens’, sem piedade”. Seria à tragédia de Belém que o texto fazia
alusão? Um texto mais perturbador é aquele do filósofo e homem
político pagão, Macróbio, do Baixo Império. Em suas Saturnais, ele
escreve, mas talvez influenciado por Mateus, que Herodes mandou
matar “na Síria” “as crianças que tinham menos de dois anos”.
Certamente, o filho de Antípatro nunca reinou sobre a Síria, porém,
mais tarde, a Judeia cessou de ser autônoma e foi absorvida por essa
província.19

A estrela dos Reis Magos


Entretanto, outro dado — perfeitamente científico dessa vez — vem
reforçar o evangelho. Em 17 de dezembro de 1603, no castelo de
Praga, o astrônomo oficial da corte imperial, Johannes Kepler,
observava a conjunção muito luminosa de Júpiter e de Saturno na
constelação de Peixes. Seu encontro aparente tinha no céu um
aspecto de um astro volumoso, visível a olho nu. Em 9 de outubro de
1604, Marte se juntava a esses dois planetas. Por meio de cálculo,
Kepler estabeleceu que o mesmo fenômeno tinha se produzido no
ano 7 antes da nossa era. Foi então que ele se lembrou de um texto
do rabino português Isaac Abravanel (1437-1508),20 segundo o qual
o Messias devia aparecer quando Júpiter e Saturno unissem sua luz
na constelação de Peixes. Kepler refez diversas vezes o seu cálculo e
chegou à conclusão de que a estrela de Belém havia sido um
fenômeno naturale não sobrenatural, e que Jesus tinha nascido não
no ano I, como havia pensado o monge Dionísio Exíguo, mas no ano
7 antes da nossa era.
Durante muito tempo, essa descoberta foi rejeitada pelos sábios,
a despeito de outros textos que pareciam confirmá-la, mas aos quais
não se prestou nenhuma atenção. Antes de Abravanel, um judeu de
Bassorá (Baçorá) que viveu no século IX, Masha’allah, cujos
trabalhos tinham sido traduzidos do árabe para o latim por Jean
Séville no início do século XII, também achava que essa conjunção
era o sinal do Messias. No início do século XIX, um sábio
dinamarquês, Frédéric Munter, encontrou a confirmação disso em
um comentário medieval do livro de Daniel. Em 1902, um papiro
egípcio, A tabela planetária, hoje conservado em Berlim, que dava
todos os movimentos dos planetas de 17 a.C. até 10 da nossa era,
indicava que essa figura astronômica havia certamente ocorrido no
céu do Médio Oriente no ano 7 antes da era cristã.
Tudo mudou em 1925, quando um orientalista alemão, Peter
Schnabel, examinando milhares de tabuinhas em terracota,
descobertas alguns decênios antes em Abbu-Habbah (o antigo local
sumério e neobabilônico de Sippar, 32 km ao sul de Bagdá),
encontrou um calendário que explicitava que a conjunção dos dois
planetas havia ocorrido três vezes no decorrer do ano 305 da era
selêucida, ou seja, 7-6 antes de Jesus Cristo.21 Como não pensar nos
textos de Mateus e de Flávio Josefo, os quais falam de um astro que
aparece e depois desaparece antes de reaparecer? É inútil dizer que
os cálculos foram refeitos pelos astrônomos modernos e confirmaram
os movimentos planetários. A conjunção foi quase perfeita no fim de
maio, no início de outubro e de dezembro do ano em questão. No
ano seguinte, em 6 a.C., o planeta Marte veio se juntar aos planetas
Júpiter-Saturno, formando com eles um deslumbrante triângulo
radiante.
O elo estabelecido entre o Messias e essa estranha figura celeste,
que se repete muito raramente — ela só aparece a cada 754 anos —
não é gratuito. Na Caldeia, a antiga Babilônia, depois de centenas
de anos, uma casta de sacerdotes-adivinhos observava os astros e
interpretava os sonhos e os harúspices. No século II antes da nossa
era, o historiador grego Diodoro Sículo dizia que eles eram os
“homens mais avançados no conhecimento da astrologia e os que
haviam se aplicado mais no estudo das ciências”. Todas as noites,
subiam a seu terraço-observatório e contemplavam a abóbada
celeste, essa abóbada extremamente límpida nos céus do Oriente.
Graças ao exame sistemático do céu e dos fenômenos que o afetavam
(eclipses, halos lunares, conjunções de astros, quedas de meteoros,
trajetórias de cometas e de planetas), bem como a seus
conhecimentos astronômicos, eles tinham estabelecido efemérides e
almanaques em escrita cuneiforme, alguns dos quais estão
conservados no Museu Britânico, no Museu do Louvre e no
Vorderasiatisches Museum de Berlim, e ainda conheciam as doze
constelações do zodíaco. Aliás, constatou-se o aparecimento dos
primeiros horóscopos por volta do final do século V a. C. Cada
grande cidade tinha a sua escola — Babilônia, Nippur, Uruk. O
século I antes da nossa era marcou a supremacia de Sippar, onde se
encontrava um vasto templo e um zigurate (estrutura enorme
construída na antiga Mesopotâmia) dedicado ao deus titular do Sol,
Shamash (ou Samas, o antigo Utu da Suméria).
Para esses escribas, ao mesmo tempo astrônomos e astrólogos, os
astros constituíam a principal ligação entre os mundos celeste e
humano. Na trajetória dos astros, podiam ser lidas mensagens
enviadas pelos deuses. A cada país correspondia um signo do
zodíaco e um planeta. Júpiter representava o domínio soberano,
aquele de Marduk, o deus principal da Babilônia, o sol da
primavera, o organizador do céu e da terra. Saturno era o planeta
do deus assírio Kaiwan, mas também aquele das regiões do Oeste,
reino da Judeia e província da Síria (Amaru, país dos amorreus). A
constelação de Peixes, que era chamada os Queues, tinha mais ou
menos a mesma simbologia.
Qual era o significado desse encontro, por três vezes, de Júpiter e
do astro de Amaru? Seria o anúncio de um acontecimento
extraordinário que iria se produzir perto das margens do
Mediterrâneo? Por que esses astrônomos mesopotâmicos teriam tido
interesse em um acontecimento que não lhes dizia respeito e
empreenderam uma viagem de quase cinco mil quilômetros por meio
do deserto e de oásis, em caminhos poeirentos de caravanas? Para
prestar homenagem a um hipotético novo rei da Síria ou do país dos
judeus? Suas crenças mitológicas não explicam esse comportamento.
É nesse ponto que adquire valor a sugestão de Christopher Walker:
“Se os Reis Magos existiram, acho que a única explicação plausível é
que eles eram judeus da diáspora”.22 Haveria, então, no seio da
confraria dos magos caldeus, astrólogos judeus, fixados às margens
do Eufrates desde a grande deportação, que teriam conservado a
tradição da espera messiânica de seu meio de origem. Na memória
judaica, com efeito, a estrela é o símbolo guia do Messias que devia
vir. A mais antiga representação da estrela da casa de Davi figura
sobre um sinete do século VII antes de Cristo. Vimos que o clã dos
nazarenos, ao lado de Nazaré, tinha chamado o outro
estabelecimento que Davi ocupava a leste do Golam de “Kokhba” (a
estrela). Mais tarde, no século II da nossa era, quando o chefe zelote
Shimon Bar Keziva quis se fazer passar pelo Messias, ele mudou o
nome para Bar Kokhaba (o “filho da estrela”).
Nada impede de pensar, por consequência, que no ano 7 antes da
nossa era alguns desses estudiosos judeus tinham compreendido o
que seus confrades caldeus não conseguiam desvendar, e adquiriram
a convicção de que o nascimento do Messias de Israel era iminente.
No início de maio daquele ano, de seu observatório em Sippar,
viram Júpiter afastar-se da constelação de Aquário e entrar na de
Peixes, onde Saturno o esperava. Seu encontro, visível a leste do céu
matinal, teve lugar em 29 de maio e durou até 8 de junho. A
segunda coisa que os espanta ainda mais: a concentração se fez a
partir do dia 26 de setembro. O sábado, 10 de Tishri (3 de outubro),
foi o momento da maior intensidade da estrela. Ora, naquele dia,
em Jerusalém, era o fim da festa de Kipur. Podemos conjeturar se foi
essa coincidência que os fez decidir viajar. Sippar, estabelecida em
um palmeiral do antigo país de Akkad (império acadiano), do lado
de um canal que ligava os rios Tigre e Eufrates, era um dos
principais centros de partida de caravanas da Síria. Nossos magos se
misturaram com os mercadores sírios e babilônios e com seus
dromedários carregados com muito peso. Era, com efeito,
impensável que eles viajassem sozinhos, por causa dos ataques
frequentes de saqueadores. Ao fim de seis semanas, chegaram a
Jerusalém. Era, provavelmente, o fim de novembro. Depois de sua
visita a Herodes, tomaram o caminho para Belém a oito quilômetros
de lá. “E eis que a estrela que viram no Oriente os precedia…”,
escreve Mateus. No céu, de 5 a 15 de dezembro, produziu-se a
terceira conjunção na mesma constelação de Peixes. Ela era mais
perfeita que as precedentes. A nova estrela cintilava no crepúsculo
em direção ao sul. Descendo pelo caminho de Jerusalém, os magos
tinham a estrela diante deles, que parecia guiá-los para Belém…
Outros fenômenos astronômicos foram antecipados para explicar
a estrela de Mateus: (1) Um cometa, como representado por Giotto,
no século XV, em sua Natividade. No ano 10 antes da nossa era, o
cometa mais famoso, o Halley, arrastou sua longa cabeleira nas
paragens da Terra. Mas a data parece muito antiga. Nós nos
limitamos ao cometa n o52, que apareceu em março-abril do ano 5
antes de Cristo, na constelação de Capricórnio, ou o cometa n o53,
visível um ano mais tarde na constelação da Águia. Os anais
chineses e coreanos falam disso: “No segundo ano do reinado de
Chien-p’ing, no segundo mês, um cometa apareceu em Ch’ien-niu
durante setenta dias”. Porém, um cometa naquela época evocava um
presságio infeliz. Como ele teria anunciado a vinda do salvador de
Israel? (2) Alguns pensaram, sem ter provas, que, em lugar de um
cometa, os Reis Magos teriam visto uma supernova, explosão estelar
espetacular oriunda do desabamento de um astro que queimou todas
as suas reservas de hidrogênio e de hélio. (3) Uma ocultação de
Júpiter pela Lua na constelação de Carneiro, que ocorreu em 20 de
março e 17 de abril do ano 6 antes da nossa era (essa é a hipótese
do astrônomo Michael R. Molnar).23 Peças de moedas judaicas
decoradas com um carneiro e uma estrela foram encontradas. Mas
alguns objetaram que esse fenômeno, bastante comum, foi muito
pouco visível no Oriente Médio. (4) Uma conjunção entre Júpiter e
Vênus (o planeta de Ishtar, a deusa da fecundidade) em 17 de junho
do ano 2 antes da nossa era na constelação de Leão, símbolo da
tribo de Judá. Infelizmente, os evangelhos de Mateus e de Lucas
concordam ao dizer que Jesus nasceu durante o reinado do rei
Herodes, o Grande; ora, este morreu no ano 4 antes de Jesus
Cristo…24 Em suma, nenhuma dessas hipóteses é mais importante do
que a convicção da dupla conjuntura do ano 7 antes da nossa era.

O relato de Lucas
Vamos examinar o relato de Lucas. Ele se baseia na tradição oriunda
de Maria, mãe de Jesus, tal como foi reproduzida no documento pré-
evangelista do qual falamos. Ele começa na aldeia de Nazaré: o anjo
Gabriel, enviado por Deus, saúda como “cheia de graça” Maria,
noiva de José, e lhe anuncia que ela conceberá e dará à luz um filho.
“a quem chamarás pelo nome de Jesus. Este será grande e será
chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de
Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu
reinado não terá fim.” Maria espantou-se: “Como será isto, pois não
tenho relação com homem algum?”. E o anjo lhe disse, então: “O
Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua
sombra; por isso, também o ente santo que há de nascer será
chamado Filho de Deus”. Maria respondeu: “Aqui está a serva do
Senhor; que se cumpra em mim conforme a tua palavra. E o anjo se
ausentou dela”.25
Esse texto dá lugar a uma interpretação que não corresponde à
intenção de Lucas. Quando Maria pergunta: “Como será isto, pois
não tenho relação com homem algum?”, isso não significa: “se eu
não partilhei ainda meu leito com um homem”. Como uma moça
poderia se espantar com a predição de uma futura criança, quando
ela vai se casar? Entre os judeus, os noivados, que duram cerca de
um ano, eram muito mais que uma simples promessa de casamento.
Eles tinham, diz Fílon de Alexandria, o mesmo valor do casamento.
A prometida era chamada “mulher” do noivo. Mas a coabitação
(nissouin) era rigorosamente proibida. Se, durante esse período, a
prometida se tornava infiel, ela era considerada adúltera, portanto,
passível de lapidação. No pensamento de Lucas, trata-se de outra
coisa. A frase de Maria revela um compromisso pessoal, outro
projeto de vida: “não me é permitido aproximar-me de um homem,
pois eu fiz o voto de não conhecer nenhum homem”. O evangelista
nos apresenta Maria como uma virgem consagrada, que tencionava
permanecer assim, como acentuaram os Padres da Igreja,
principalmente santo Agostinho e Gregório de Nissa.

Ora, portanto, retoma Lucas, naqueles dias, foi publicado um decreto de


César Augusto, convocando toda a população do império para recensear-se.
Este, o primeiro recenseamento, foi feito quando Quirino era governador da
Síria. Todos iam alistar-se, cada um à sua própria cidade. José também
subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, para a Judéia, à cidade de Davi,
chamada Belém, por ser ele da casa e família de Davi, a fim de alistar-se com
Maria, sua esposa, que estava grávida. Estando eles ali, aconteceu
completarem-se-lhe os dias, e ela deu à luz o seu filho primogênito,
enfaixou-o e o deitou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles
na hospedaria.26

A palavra grega kataluma provavelmente, significa quarto de


hóspede em lugar de hospedaria, porque é duvidoso que essa
pequena aldeia judaica, separada dos grandes eixos de comunicação,
tenha tido um albergue, e a fortiori uma estalagem para caravanas,
como se diz com frequência. Na ausência de celeiros exteriores, a
maior parte das casas da região tinha no piso térreo um espaço
reservado aos animais, com uma manjedoura de pedra. Não
conseguindo encontrar um quarto de hóspedes por causa da chegada
de outros descendentes de Davi que também vieram se recensear,
José e Maria encontraram refúgio no local reservado aos animais.
No entanto, o texto coloca uma dificuldade mais séria. Não se
trata da historicidade do recenseamento. Vamos afastar a ideia de
um recenseamento geral dos povos decretado por Augusto. Uma
medida como essa não corresponde à realidade, mesmo quando
sabemos atualmente que essas operações com fins fiscais foram
numerosas no Império Romano a partir do ano 12 a. C. Mais
perturbador ainda é o fato de que Públio Sulpício Quirino só teria
vindo para a Síria no ano 6 da nossa era, e que ele teria procedido,
como “juiz do povo e censor dos bens” (segundo o título dado a ele
por Flávio Josefo), a um recenseamento para colocar a província de
Arquelau sob a administração direta de Roma. Ora, esse não pode
ser o recenseamento de que fala Lucas.
Esse assunto proporcionou muitos escritos, suscitando por vezes
vivos debates entre crentes e descrentes, numa época não tão
longínqua na qual os escritos evangélicos eram tidos como verdade
histórica, irrefutável. Mais de um terço do livro de Arthur Loth, Jésus
Christ dans l’Histoire [Jesus Cristo na História], por exemplo, é
dedicado a isso. Lucas cometeu um equívoco factual? Ele imaginou
tudo? Os especialistas estão divididos. Alguns observaram que a
formulação grega é ambígua. “Este primeiro recenseamento ocorreu
enquanto o governador da Síria era Quirino.” Ora, Tertuliano fala
de uma primeira iniciativa semelhante que se inicia no ano 8 a. C.
sob a condução de Sêntio Saturnino, legado ordinário da Síria.
Segundo outros, seria preciso admitir que Quirino presidiu a dois
recenseamentos com vários anos de intervalo. Mas ele estava na
Síria por volta do ano 8 antes da nossa era? Uma inscrição
descoberta em 1764 na Itália, perto de Tivoli, a Lapis Tiburtinus, fala
de um personagem poderoso que teria sido duas vezes legado na
Síria. Outra inscrição, encontrada em 1912 em Antioquia de Pisídia,
indica que Quirino certamente se encontrava no Oriente Médio
entre o anos 12 e 7 a. C. Dotado de poderes muito vastos, Quirino
combatia vitoriosamente as tribos revoltadas nas montanhas de
Taurus. É possível (mas de modo algum provado) que ele tenha
participado do recenseamento de Sêntio Saturnino, de que fala
Tertuliano. Negando a verossimilhança desse empreendimento,
alguns objetaram que, na época, a Judeia não dependia diretamente
de Roma, mas de seu vassalo Herodes, que tinha o status de rei.
Como isso poderia não ser levado em conta? Seria esquecer que
aquele tinha caído em desgraça por ter declarado guerra aos
nabateus e por essa razão perdido uma grande parte de sua
autonomia. A discriminação de sua população era, talvez, o prelúdio
a um tributo que Augusto considerava impor-lhe por ter violado a
Pax Romana na região. Teria havido, portanto, um primeiro
recenseamento de pessoas, empreendido por Sêntio Saturnino no
ano 8 antes da nossa era, no qual o cônsul Quirino procedeu, dessa
vez, como legatus Augusti ad censum accipiendus.
Pouco importa, afinal, que Lucas tenha ou não se enganado sobre
o nome do primeiro organizador do recenseamento. Como imaginar
que ele tenha inventado esse procedimento administrativo com a
única finalidade de fazer Maria dar à luz em Belém, a aldeia de
nascimento de Davi, e de demonstrar assim a pertinência da
profecia de Miqueias? Como observa Arthur Nisin, autor de uma
Histoire de Jésus [História de Jesus] (1961), “não percebemos bem
qual seria o interesse apologético do nascimento de Jesus em Belém.
Isso não é absolutamente necessário para afirmar a essencial
descendência davídica”.27 A origem nazarena de Jesus era um
indicador mais poderoso que a profecia de Miqueias, que jamais foi
“um dado firme da espera messiânica”.28
Outra dificuldade provém do fato de que os recenseadores
romanos não exigiam habitualmente dos habitantes que eles
regressassem a seu local de origem. Mas a regra não era geral.
Observamos que um papiro egípcio do início do século II,
conservado em Londres, menciona de maneira expressa essa
obrigação. É possível que o recenseamento da Judeia, feito durante
a vida de Herodes, tenha respeitado os costumes judaicos, o que
explicaria a calma com que ele se desenrolou, contrariamente à
operação cadastral realizada catorze anos mais tarde, que
desencadeou a revolta de Judas da Galileia. José, chefe do clã
davídico de Nazaré, teria experimentado, portanto, a necessidade de
se ligar com a circunscrição de origem da sua tribo, aquela da antiga
Efrata. Tendo se casado com uma moça de Nazaré pertencente
também à descendência de Davi, ele teria decidido levá-la com ele,
apesar do seu estado. Tudo isso, mesmo sem prova, não parece
improvável.
A gruta na cripta da igreja da Natividade em Belém, onde se
comprime atualmente uma multidão de peregrinos, apresenta um
grau bastante alto de autenticidade. Ela já era conhecida na época
de Justino no ano 150 da nossa era e de Orígenes no início do século
III. Podemos pensar que lá havia se cristalizado uma tradição muito
antiga, que remonta às primeiras visitas organizadas por Maria e os
“irmãos do Senhor”, em companhia dos apóstolos. Com a sua
vontade de erradicar o cristianismo, bem como o judaísmo, o
imperador Adriano, depois da segunda rebelião judaica, mandou
plantar em 135, no local tradicional do nascimento de Jesus, um
bosque sagrado em homenagem a Tamnuz, o Adônis dos gregos. Em
326, santa Helena, mãe de Constantino, empreende a construção de
uma basílica com cinco naves, precedidas por um vasto átrio. O
edifício foi danificado, em 529, talvez por ocasião da revolta dos
samaritanos, e substituído durante o período de Justiniano por uma
grande igreja em forma de cruz latina, que subsiste em parte até
hoje.
Belém tem esse nome, ao que parece, por causa de uma
divindade assíria, Lahamu. Somente mais tarde os cristãos
estabelecerão a relação entre a etimologia popular (Beth-léem, a
“casa do pão”) e a eucaristia, entre a eucaristia e a manjedoura, na
qual Jesus foi depositado quando nasceu. Foi o que queria significar
o primeiro presépio, imaginado por são Francisco de Assis para o
Natal de 1223. Ele reuniu os habitantes de Greco, na Úmbria, em
uma gruta onde figurava somente uma manjedoura, símbolo do altar
e da eucaristia, cercada pelo asno e pelo boi.
A concepção virginal
Permanece o problema da concepção virginal de Jesus, para o qual,
bem evidentemente, o historiador não pode dar, sem a priori, uma
resposta. Abordamos o domínio das definições dogmáticas e uma
constante tradição cristã, tida como um dado fundamental da fé,
enquanto sinal específico da Encarnação. Jesus, diz o Símbolo dos
Apóstolos (século II), “Filho único” de Deus, foi “concebido pelo
Espírito Santo” e “nasceu da Virgem Maria”. “Filho único do Pai, diz
o Símbolo de Niceia-Constantinopla (Credo de Niceia no século IV),
nascido antes de todos os séculos”, ele foi “engendrado, não criado”.
“Pelo Espírito Santo, ele tomou a carne da Virgem Maria e fez-se
homem.”
Essas afirmações cristológicas desconcertantes pertencem à
ordem do milagre, assim como a Ressurreição. Elas supõem a
divindade de Jesus, escapando pelo seu nascimento e por sua morte
do destino comum aos homens. O trabalho do historiador se limitará
aqui a se interrogar sobre a origem e a natureza dessa crença. A
quando ela remonta? Pode estar ligada ao meio judaico ou é
totalmente estranha a ele?
É preciso destacar dois fatos. O primeiro é que não é possível,
com o risco de apelar para a caricatura, reduzir a concepção virginal
de Jesus a uma das fábulas antigas que relatam o nascimento dos
heróis ou dos deuses, seja Perseu para os gregos, Rômulo, ou até
mesmo Augusto para os romanos, Horus ou os faraós para os
egípcios, Krishna para as religiões orientais. Todas essas lendas
extrabíblicas, nas quais se trata de seres que desceram diretamente
do céu, ou do acasalamento de um humano com um deus ou com
uma deusa, são muito diferentes. No Novo Testamento, Maria é
apresentada como a única origem humana de Jesus, mas em
nenhum momento é dito que Deus é o seu pai biológico. Não se trata
de “teogamia” (na mitologia egípcia, é o princípio que permite ao
deus tomar o lugar físico do faraó para unir-se com a rainha), mas
de uma nova criação. Por consequência, o nascimento de Jesus situa-
se muito longe das explicações das mitologias pagãs.
O segundo fato é que a concepção virginal tinha pouca
credibilidade tanto naquela época quanto hoje. Ela se orientava na
contramão do contexto cultural do Primeiro Testamento, no qual a
virgindade era percebida de maneira negativa. Essa é a razão pela
qual, durante muito tempo, foi considerado que o voto perpétuo de
virgindade pronunciado por Maria, tal como decorre do texto de
Lucas, era incompatível com a mentalidade judaica, que retira o
papel procriador da mulher. Havia boas razões para pensar que se
tratava, nesse caso, de uma invenção tardia, até o dia em que, sobre
um rolo de Qumran, foram encontrados esses votos de continência,
por razões de oblação religiosa, mesmo no interior do casamento.
Esse texto reagia a certos excessos, o que deixa supor que os casos
não eram tão raros: “Se uma moça fez um voto de virgindade sem
que seu pai seja advertido, ele pode libertá-la desse voto. No caso
inverso, ele e sua filha ficam presos ao voto. Se uma mulher casada
pronuncia tal voto sem que o marido saiba, ele pode declarar o voto
nulo. Se, entretanto, ele está de acordo com essa medida, os dois são
obrigados a respeitar o voto”.29 Isso permite compreender a surpresa
de Maria, virgem consagrada, com o anúncio do anjo Gabriel:
“Como vai acontecer isso, se não vivo com nenhum homem?”,30 e
aquela de José, herdeiro do clã davídico, que tinha pensado em
repudiá-la em segredo.
Buscando apoiar a ideia da concepção virginal de Jesus, para a
qual eles não estavam culturalmente preparados, os primeiros
cristãos encontraram uma passagem de Isaías, que figura na versão
grega da Bíblia hebraica (a Septuaginta), que lhes pareceu profética.
Em lugar de dizer a propósito do Messias, como na versão hebraica:
“Eis que a adolescente está grávida e deu à luz um filho, e ela lhe
dará o nome de Emanuel”, a tradição falava de uma “virgem”
(parthenos). Provavelmente, a palavra correspondente em hebraico
— ‘almâh — se traduz como “adolescente núbil”, o que implica a sua
virgindade, mas nunca essa passagem de Isaías tinha sido
interpretada como significando uma concepção virginal. Não foi na
Septuaginta que Mateus achou a ideia. Mas o texto confortou-o
oportunamente. Foi, provavelmente, em consequência da extensiva
interpretação dessa passagem pelos judeus cristãos que as novas
autoridades rabínicas de Jâmnia (Yavne) decidiram, por volta do
ano 85, retirar a Septuaginta das versões autorizadas da Escritura,
para manter apenas o original hebraico de Isaías.
Parece, então que Mateus e Lucas, longe de ter inventado, cada
um de seu lado, a ideia da concepção virginal, herdaram essa ideia
de relatos anteriores, orais ou escritos. Eles não puderam escapar a
essa apresentação dos fatos, que era mais embaraçosa que
valorizável no contexto judaico do momento, pois arriscava
apresentar Jesus como um filho ilegítimo (vimos que, no decorrer da
sua vida pública, Jesus foi acusado de ter “nascido da fornicação”).
Marcos, que escreveu seu evangelho em Roma, não sentiu a
necessidade de falar do nascimento e da infância de Jesus. O
essencial, para ele, era anunciar aos gentios sua morte e sua
ressurreição. Mas a maneira pela qual relata o espanto dos
habitantes de Nazaré acerca disso mostra que ele tinha
conhecimento de sua concepção virginal: “Não é este o carpinteiro, o
filho de Maria…?”. Na sociedade judaica da época, regida por
estruturas patriarcais, não se dizia que alguém descendia de uma
mulher, mas de um homem, mesmo que esse estivesse morto no
momento em que se falava de seu filho. Ora, Marcos jamais nomeia
José. A mesma observação vale para Paulo. Na sua Epístola aos
Gálatas, ele escreve: “Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus
enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei…”.31 Ele
também jamais faz referência a um pai humano. Na Epístola aos
Romanos, ele designa Jesus como Filho de Deus, “o qual, segundo a
carne, veio da descendência de Davi e foi designado Filho de Deus
com poder, segundo o espírito de santidade.”32 Na Epístola aos
Filipenses, ele afirma até mesmo a preexistência de Jesus: “Que,
sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus,
Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se
semelhante aos homens…”.33 Se Paulo tivesse ficado perturbado ao
afirmar a plena humanidade de Cristo, ele teria escrito de outra
forma. Essas afirmações tendem a provar que ele sabia que José não
era o pai biológico de Jesus. A mesma visão é encontrada em João,
segundo a leitura de um versículo do Prólogo feita por diversos
teólogos: “[…] os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da
carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”.34
Sem dúvida, entre o Evangelho da Infância segundo Mateus e o
de Lucas aparecem discordâncias, até mesmo contradições. Segundo
Lucas, Maria vivia em Nazaré, onde ocorreu a Anunciação; para
Mateus, parece que somente ao retornar do Egito é que Maria e
José, fugindo da Judeia, do cruel Arquelau, teriam se fixado numa
aldeia chamada Nazaré. Nesse caso, daremos razão a Lucas, levando
em conta o que sabemos, aliás, do clã dos nazarenos, do qual Maria
e José faziam parte. Mas as convergências triunfam.
Permanece o fato de que ignoramos a data exata do nascimento
de Jesus, no decorrer do ano 7 antes da nossa era. A visita dos Reis
Magos que, por hipótese, situa-se em dezembro, ocorreu depois da
circuncisão (oito dias, no máximo, depois do nascimento) e da
purificação no Templo. Com efeito, quarenta dias depois do
nascimento, todo primogênito devia ser consagrado ao Senhor, e
seus parentes deviam oferecer um sacrifício, o que eles fizeram
oferecendo um casal de pequenas rolinhas ou de pequenos pombos,
prova da modéstia de seus recursos.
De acordo com o relato de Lucas, talvez tirado das lembranças de
Maria, um ancião “justo e piedoso” chamado Simeão, a quem o
Todo-Poderoso havia prometido que não morreria antes de ter visto
Israel, segurou a criança em seus braços e profetizou diante de sua
mãe atônita: “Eis que este é posto para queda e elevação de muitos
em Israel, e para sinal que é contraditado (E uma espada
traspassará também a tua própria alma); para que se manifestem os
pensamentos de muitos corações”.35 Uma profetisa, viúva de oitenta
e quatro anos, se encontrava lá, Ana, filha de Fanuel, da tribo de
Azer. Ela nunca deixava o Templo e prestava um culto constante a
Deus por meio de jejuns e de orações. Ela também falou da criança a
todos aqueles que esperavam o resgate de Israel.

O Jesus da história e o Jesus da fé


Os quatro evangelistas não se focaram somente no ensinamento de
uma moral, por mais elevada que ela fosse, nem mesmo no anúncio
da salvação oferecida a todos os homens. Ao contar, à sua maneira,
a vida de Jesus, uma vida provavelmente esclarecida à luz da
Ressurreição, mas também uma vida de homem, apesar de tudo, eles
assumiram como missão atestar a identidade e a continuidade entre
Jesus de Nazaré e o Cristo ressuscitado, interrompendo, dessa
maneira, o caminho para uma espiritualidade intemporal, pietista,
sem fundamentos nem raízes históricas. Para eles, o Glorificado não
é outro senão o Nazareno, esse artesão judeu que, nos limites da sua
condição carnal, nasceu, viveu e morreu na Palestina no século I.
Mesmo se o contexto mudou radicalmente e desapareceu uma
boa parte das controvérsias que ele teve que enfrentar, a vida de
Jesus, tal como é apresentada pelos evangelhos, se oferece como um
exemplo e um assunto para meditação. Se o desembaraçarmos de um
imaginário sulpiciano, que o encerra em uma visão desencarnada e
estereotipada, Jesus aparece como personagem único, insólito,
profeta desconcertante, orador que abala os hábitos, ameaça, irrita,
exaspera as pessoas, particularmente os ricos, os religiosos
importantes e os poderosos do sacerdócio de Jerusalém, encerrados
em suas certezas. Ele frequenta os marginais, denuncia as práticas
religiosas meramente formais. Jesus não é nem um revolucionário
político nem um professor de moral. Se ele chama a uma revolta, é
para a do amor divino, que manifesta por meio de sua pessoa. Ele
faz isso numa linguagem apocalíptica de uma radicalização absoluta
e com uma aspereza irreverente. Entregue a Pôncio Pilatos pelos
sumos sacerdotes, foi julgado e executado pelos romanos como
perturbador.
A história das religiões está repleta de personagens elevadas ao
status de deuses durante sua vida ou após a morte: reis, imperadores,
magos ou gurus. O espantoso é que é do povo judeu, no seio da
religião mais monoteísta que existe, que um homem crucificado
como um escravo foi levado para os altares.
Muito rapidamente, Jesus é chamado por seus discípulos de
Messias, Cristo ou Jesus Cristo. A aceitação multiforme, nessa época,
permite dar a ele um novo sentido a partir de imagens antigas. Ele é
o messias davídico anunciado pelos profetas, mas igualmente o rei
suave e humilde que avança sobre seu burrico, tal como Zacarias o
descreve. Ele é o messias inesperado, o servidor sofredor, o justo, o
cordeiro que se deixou conduzir para o abatedouro, de que falou o
profeta Isaías. Ele é ainda o sumo sacerdote, segundo a ordem de
Melquisedeque, o Filho do Homem de Daniel, chamado para voltar
no fim dos tempos para o Juízo Final. Não é necessário, em absoluto,
esperar longos anos para que a jovem Igreja dos apóstolos devote a
Jesus um culto e o designe com um solene Kyrios (Senhor), o nome
de YaHWeH. Ao considerá-lo igual a Deus, seu Filho único,
engendrado por Maria, os discípulos tinham o sentimento não de
afastar-se dele, mas, ao contrário, de expressar o que ele mesmo
havia experimentado na sua consciência de homem. Nenhum
conceito equivalente é encontrado no judaísmo da época, que tem
horror a qualquer divinização humana. Assim, os germes da ruptura
já estão posicionados.37
Ao lado do Templo, cujas instituições elas aceitam, ou do qual
esperam a renovação, as diferentes escolas judaicas, os fariseus, os
saduceus, os essênios ou outros baseiam-se sobre um fundo literário
comum, de contornos mal definidos, mas também sobre uma pessoa,
sobre uma Palavra viva, constitutiva de uma Nova Aliança. Desde o
início, o Templo e a Torá não são suficientes. Com Paulo, a ruptura é
consumada: ao estudo e à prática da Lei se substitui a fé no Cristo
ressuscitado. Por volta do ano 110, os habitantes de Antioquia
deram aos adeptos de Jesus uma alcunha que permanecerá pelo
resto dos séculos, christianoï, cristãos.
Há ainda um fato inexplicável racionalmente, que ultrapassa as
fronteiras do improvável. Tudo deveria ter se detido com a pedra
rolada no sepulcro de José de Arimateia, cavado perto de um jardim,
às portas de Jerusalém. Abatidos depois da detenção de seu mestre e
da tragédia do Gólgota, os discípulos estavam aniquilados por sua
morte ignominiosa sobre uma viga de madeira. Ora, estranhamente,
tudo começou aí. Esse grupo de fugitivos amedrontados
metamorfoseou-se subitamente em um grupo não de fanáticos
hipnotizados, mas de homens livres, ardentes, com convicção,
prontos a dar sua vida para anunciar por toda parte a Boa Nova.
Surpreendidos por um acontecimento inesperado — o
deslumbramento pascal —, cheios de alegria e de admiração,
repletos de certeza absoluta, a de ter encontrado o seu mestre vivo,
de tê-lo visto depois de sua morte, de tê-lo tocado, de ter comido em
sua companhia, eles se tornaram testemunhas radiosas de uma
verdade libertadora, persuadidos de que a cruz não era o fim, mas,
ao contrário, o começo da Esperança. Graças a eles, o movimento
missionário assumirá uma amplitude planetária. Como acreditar que
tenham sido fabuladores banais, mitômanos, vítimas de alucinações?
Existe nisso um fenômeno único, que o historiador, munido apenas
de sua ciência, não pode penetrar. Desse ponto de vista, o Jesus da
história, a quem os discípulos remetem, permanece um enigma, um
mistério insondável. “Mas vós[…] quem dizeis que eu sou?”, ele lhes
havia perguntado. Quase dois mil anos mais tarde, a questão ainda
se coloca. Cabe a cada um responder a isso, com consciência.
ANEXO I
As fontes exteriores

O testemunho de Flávio Josefo


Se ninguém na Antiguidade contestou a existência de Jesus, é
forçoso reconhecer que os dados referentes a ele — além daqueles
que figuram nos evangelhos — são pobres e pouco numerosos. O
fato, em si, não tem nada de espantoso: muitos escritos dos dois
primeiros séculos desapareceram e, para os analistas dessa época,
Jesus era um judeu obscuro, insignificante — um “judeu marginal”,
para retomar a expressão de John Paul Meier —, que vivia numa
província afastada do vasto Império Romano. No momento em que
ocorre seu processo, diante do prefeito romano da Judeia, Pôncio
Pilatos, o processo parece secundário, banal à primeira vista. Jesus
não foi o único “agitador” político-religioso a conhecer a morte
ignominiosa dos escravos e dos rebeldes. Seu destino, milhares de
outros o partilharam antes dele, milhares o conhecerão depois.
Seu nome, no entanto, é evocado por um historiador judeu
romanizado do século I, Joseph ben Mattias, conhecido mais tarde
sob o nome falso de Flávio Josefo. Nascido na Palestina por volta do
ano 37 da nossa era — quatro anos depois da Crucificação —,
falecido na virada do século II, esse aristocrata erudito, oriundo de
uma família sacerdotal da Judeia, tinha se ligado a uma das
tendências religiosas do judaísmo da sua época, muito apreciada
pelas pessoas de condição inferior, o grupo dos fariseus. No ano 64,
ele foi a Roma a fim de falar em favor da causa dos sacerdotes
deportados por ordem do procurador Félix e ganhou seu processo
graças a Popeia Sabina, segunda mulher de Nero. Quando voltou
para a Palestina no ano 66, ao ver seus compatriotas à beira de uma
insurreição, ele os aconselhou à moderação, mas acabou por ceder
ao movimento geral. Nomeado governador da Galileia pelo Sinédrio,
tomou a direção das tropas revoltadas dessa província. Em julho do
ano 67, caiu nas mãos, dos romanos, depois da tomada da fortaleza
de Jotapata (antiga Yodfat), e foi conduzido diante de Flávio
Vespasiano. Com habilidade, ele lisonjeou esse procônsul brutal,
profetizando que ele se elevaria à dignidade suprema de imperador.
Depois de sua ascensão ao trono imperial, graças ao apoio do
exército do Oriente, Vespasiano concedeu a cidadania a esse
prisioneiro importante e o empregou como historiógrafo. Em sinal
de agradecimento, Josefo juntou a seu nome o de Flávio.
Naturalmente, a partir desse momento, ele foi considerado um
traidor por seus correligionários. No ano 70, por ocasião do cerco
implacável a Jerusalém, ao qual ele assistiu participando das fileiras
romanas, Josefo serviu repetidas vezes de intermediário junto aos
revoltados, mas sem sucesso. A intransigência e o fanatismo levaram
a melhor sobre ele, e a Cidade Santa foi aniquilada. Ele se fixou,
então, em Roma e se tornou protegido da dinastia dos imperadores
descendentes de Vespasiano. Vespasiano inicialmente, depois seus
dois filhos, Tito e Domiciano.1
Josefo nos deixou duas obras importantes, A Guerra dos Judeus
(75-79) e Antiguidades judaicas (93-94). Nessa última obra, ele evoca
a figura de João Batista, sua pregação no deserto, sua execução por
ordem de Herodes Antipas, tetrarca da Galileia, cita o nome de
Tiago, “o irmão de Jesus chamado Messias”, chefe da primeira
comunidade judaico-cristã, e finalmente consagra algumas linhas a
esse último. Tal como se apresenta, esse texto, chamado o
testimonium flavianum (o testemunho de Flávio), foi objeto de muitas
controvérsias, de tanto que ele parece refletir uma confissão da fé
cristã:

Nessa época viveu Jesus, um homem excepcional, se, em todo caso, convém
chamá-lo um homem, porque ele realizava coisas extraordinárias. Mestre de
pessoas que estavam completamente dispostas a receber bem as doutrinas de
boa qualidade, ele ganhou muitos adeptos entre os judeus e até entre os
helenos. Ele era o Cristo. Quando, por denúncia de nossos cidadãos
importantes, Pilatos o condenou à morte sobre a cruz, aqueles que lhe
haviam dado seu afeto no início não cessaram de amá-lo, porque Jesus lhes
apareceu no terceiro dia, vivo novamente, como os profetas divinos tinham
declarado, assim como há mil outras maravilhas a seu respeito. Em nossos
dias ainda não se extinguiu a linhagem daqueles que por causa dele são
chamados cristãos.2

Essa passagem é realmente de Josefo? Como admitir que esse


rico e importante fariseu, jamais convertido, tenha reconhecido em
Jesus o Messias (ou Cristo),[1] dito de outra forma, o Ungido de
YaHWeH esperado pelo povo judeu? Alguns historiadores,
entretanto, defendem sua autenticidade. Para o dominicano Étienne
Nodet, especialista em Flávio Josefo, membro da Escola Francesa
Bíblica e Arqueológica de Jerusalém, o autor não teria dado a sua
opinião pessoal, mas repetido a “confissão batismal dos cristãos de
Roma”.3 Essa opinião não era unânime. Alguns consideram o
Testimonium como obra de um falsário. Outros, mais numerosos,
acham que ele é autêntico, mas que um interpolador cristão,
provavelmente no final do século III, acrescentou à obra pelo menos
duas menções marginais (as expressões que colocamos em itálico:
“se, em todo caso, convém chamá-lo um homem” e “ele era o Cristo”).
Um copista desastrado teria, em seguida, introduzido essas notas
explicativas no texto primitivo, cujo vocabulário e estilo, em
compensação, provinham certamente de Josefo.
O historiador israelita Shlomo Pinès parece ter resolvido esse
mistério: ele encontrou, com efeito, na História Universal de Agapios
de Menbidj (ou Agapios de Hierápolis), historiador árabe cristão do
século X, uma versão truncada do Testimonium, no qual — oh,
surpresa! — as passagens contestadas não aparecem:

Nessa época vivia um sábio que se chamava Jesus. Sua conduta era justa e
era conhecido por ser virtuoso. E um grande número de pessoas entre os
judeus e as outras nações se tornaram seus discípulos. Pilatos o condenou a
ser crucificado e morrer. Mas os que tinham se tornado seus discípulos
continuaram a ser seus discípulos. Eles diziam que Jesus havia aparecido a
eles três dias depois de sua crucificação e que ele estava vivo: assim, talvez
ele seja o Messias a respeito do qual os profetas contaram maravilhas.4

Essa versão resumida e levemente remanejada, proveniente de


um texto muito mais antigo, parece autêntica. Ela confirma de facto
o trabalho do interpolador cristão, que, ao lado de seus ajustes,
manteve o essencial do trabalho de Josefo. Com efeito, imaginamos
com dificuldade que um cristão como Agapios tenha podido eliminar
do original as considerações que valorizavam Cristo.
No plano histórico, uma descoberta como essa é muito
importante:5 nos anos 93-94, um escritor judeu de renome atestava,
independentemente do Novo Testamento, a existência na Palestina
de um homem chamado Jesus, famoso por sua sabedoria e seu
ensinamento. Realizando milagres, esse profeta judeu havia
adquirido certa popularidade entre seus correligionários, inclusive
aqueles da diáspora. Ele foi crucificado durante o governo de Pôncio
Pilatos, ou seja, entre o ano 26 e o ano 36 da nossa era. Sua
existência é uma certeza, e a crença em sua ressurreição foi, logo
depois da crucificação, atestada por seus discípulos.

Outros testemunhos antigos


Alguns pagãos da Antiguidade falam igualmente de Jesus. Plínio,
o Jovem, sobrinho e filho adotivo de Plínio, o Velho, procônsul de
Bitínia e Ponto na Ásia Menor, que perseguia os sectários dessa
religio illicita, escrevia a respeito deles ao imperador Trajano entre
111 e 113 da nossa era:

Eles afirmam que toda a sua infração ou seu erro limitou-se a ter o hábito de
reunir-se em dias fixos antes da aurora, de cantar entre si, alternadamente,
um hino de louvor ao Cristo como a um deus, de comprometer-se por
juramento não só a não perpetrar algum crime, mas a não cometer nem
roubo, nem pilhagem, nem adultério, a não faltar com a palavra dada, a não
negar uma arrecadação reclamada em justiça… Eu acreditei que era muito
necessário extrair a verdade de duas escravas que se diziam diaconisas, com
o risco de serem submetidas à tortura. Eu só encontrei uma superstição
irracional e sem medida.6

Esse é um documento que também indica que, fora das fontes


cristãs, sabia-se desde o início do século II que seus discípulos
consideravam Cristo não como um simples profeta, mas como um
“deus”, por consequência, um rival daqueles, inumeráveis que
figuravam no panteão romano.
Mais ou menos na mesma época, o grande historiador Tácito (56-
118), senador, antigo governador da província da Ásia, evocava os
cristãos em seus Anais. Falando de represálias sangrentas
organizadas por Nero contra os cristãos, ele escrevia:

Esse nome vem de Cristo [Christos], que o procurador Pôncio Pilatos,


durante o principado de Tibério, havia dado ao supliciado. Reprimida no
momento, essa detestável superstição aflorava novamente não somente na
Judeia, onde o mal havia nascido, mas também em Roma, onde o que existe
de mais horrível e de mais vergonhoso no mundo aflui e encontra adeptos
numerosos. Começaram então a apoderar-se daqueles que confessavam a sua
fé, depois, de acordo com suas revelações, de uma multidão de outros que
foram culpados não de provocar um incêndio, mas de ódio contra o gênero
humano. Os romanos não se contentaram em mandá-los matar: fizeram uma
brincadeira de vesti-los com peles de animais, para que eles fossem
arrebentados pelos dentes de cachorros; ou então eles eram amarrados em
cruzes, revestidas com materiais inflamáveis e, quando o sol se punha, eles
iluminavam as trevas como tochas.7

Vamos nos lembrar dos fatos. Na noite de 18 para 19 de julho do


ano 64, um incêndio havia se propagado na cidade de Roma. Correu
o boato de que Nero fora o autor do incêndio, e este fez dos cristãos
seu bode expiatório. A feroz repressão contra aquilo que ele
considerava como uma seita dissidente e perigosa começou na
primavera do ano seguinte. Alguns judeus, membros da corte
imperial, talvez a própria imperatriz Popeia, teriam sugerido essa
decisão.8
Ainda menos prolixo do que Tácito, o historiador Suetônio (69-
125), chefe do serviço de correspondências de Adriano, observava,
em sua obra A vida dos doze Césares, a propósito do imperador
Cláudio: “Como os judeus se revoltavam continuamente, instigados
por Cresto, ele os expulsou de Roma”. A frase não é perfeitamente
clara — ignoramos se Suetônio considera Cresto como ainda vivo
nessa época —, mas a frase tem o mérito de mostrar que, nos anos
49-50 na época do decreto de expulsão, já havia numerosos cristãos
na capital imperial diferenciando-se das comunidades judaicas
tradicionais.
Um pouco mais tarde, por volta do ano 170, na sua obra sobre A
morte de Peregrino, o satírico Luciano de Samósata também
denunciava os cristãos que veneravam, dizia ele, “o homem que foi
empalado na Palestina por ter introduzido no mundo um novo
culto”. Eles “adoravam esse sofista crucificado e seguiam suas leis”.
Uma carta, descoberta em 1855 e conservada no Museu
Britânico, estabelecia uma ligação entre Jesus e a queda de
Jerusalém no ano 70. Sua data, infelizmente, é difícil de ser
calculada (entre os séculos I e II). Escrita por um estoico sírio, um
certo Mara Bar Serapião, ela era dirigida a seu filho em Edessa:

Que vantagem os atenienses tiveram em matar Sócrates, visto que eles foram
atingidos pela fome e pela peste? Ou aqueles da ilha de Samos em queimar
Pitágoras, pois o seu país foi num só instante inteiramente soterrado sob as
areias? Ou os judeus em crucificar o seu sábio rei, visto que, a partir dessa
época, o reino lhes foi retirado? Foi com equidade que Deus vingou esses
três sábios. Os atenienses morreram de fome, os habitantes da ilha de Samos
foram recobertos pelo mar, os judeus foram deportados e expulsos de seu
reino, vivendo dispersos por toda parte. Sócrates não foi morto por causa de
Platão, nem Pitágoras por causa da estátua de Hera, nem o sábio rei por
causa da nova lei que anunciou.9
Portanto, contrariamente a Flávio Josefo e a Tácito, Mara Bar
Serapião atribuía aos judeus a responsabilidade pela execução de
Jesus. No mesmo sentido um baraita — ou seja, um comentário
rabínico — inserido no tratado Sinédrio do Talmude de Babilônia
indicava que as altas autoridades de Jerusalém tinham decidido de
modo legal enviar Jesus para a morte, por ter enganado o povo:

Na véspera da Páscoa, penduraram Yeshu (ou Yeshua) de Nazaré. O arauto


tinha andado durante quarenta dias na frente dele dizendo: “Este é Yeshu, o
Nazareno, que vai ser lapidado porque ele praticou feitiçaria e porque
seduziu e desviou Israel. Que todos aqueles que conhecem alguma coisa que
o inocenta venham pleitear a favor dele”. Mas nenhuma pessoa foi
encontrada para defendê-lo, e ele foi pendurado na véspera da Páscoa.10

Esse texto dataria do século III. Mas sabemos que a literatura


talmúdica conservava as tradições rabínicas anteriores à queda da
Cidade Santa. Que se fale de “pendurar” a propósito de “Yeshu”, isso
não deve nos perturbar: os manuscritos do Mar Morto atestam que a
crucificação era designada dessa forma.
Outro documento rabínico, mais polêmico, atribui as culpas a um
Yeshu ben Pantera ou ben Pantere, filho de uma moça judia que
teria tido relações ilegítimas com um soldado romano chamado
Pantheras: pantera seria, na realidade, uma deformação da palavra
grega parthenos, virgem. Trata-se, como compreendemos, de um
ataque contra o nascimento virginal de Cristo, sustentado pelos
cristãos. Essa versão, que circulava nos meios judaicos da época, será
retomada no final do século II por Celso, filósofo platônico,
polemista fervoroso, autor de Discurso verdadeiro. Celso reprovava
aos adeptos dessa nova “superstição” de ter em considerado “como
Deus um personagem que terminou uma vida infame com uma
morte miserável”. Mas ele também não contestava a existência de
Jesus.

As fontes romanceadas antigas


A fim de não negligenciar nada, os pesquisadores se debruçaram
igualmente sobre as obras romanceadas da Antiguidade. Nelas se
encontram alusões a Jesus? Para Ilaria Ramelli, professora na
Universidade Católica do Sagrado Coração de Milão, não há
nenhuma dúvida de que os autores pagãos do século I foram
influenciados pelos textos evangélicos.11 Assim, algumas passagens
do Satíricon, um texto burlesco e licencioso de Petrônio, escrito por
volta do ano 65, no momento das perseguições de Nero, teriam suas
correspondências no evangelho de Marcos:
— o canto do galo, apresentado como o anúncio de um
acontecimento funesto, lembraria a renegação de Pedro, ao passo
que, comumente, no mundo clássico, esse canto predizia
acontecimentos felizes;12
— o pedido de uma ampola de nardo por Trimalcião
(personagem do Satíricon), como prefiguração de sua sepultura,
seria uma paródia da unção de Jesus por Maria de Betânia, pouco
antes da Paixão;13
— a promessa de Eumolpo de deixar toda a sua herança a quem
se alimentasse de sua carne, depois de tê-la cortada em pedaços,
seria uma alusão, plena de zombaria, à instituição da eucaristia.14
Outra passagem tirada da novela “A matrona de Éfeso”, fala de
ladrões crucificados, condenados por um governador de província e
velados durante a noite por um soldado para que ninguém retirasse
o corpo; entretanto, no terceiro dia, um deles é levado e substituído
por outro.15 Ilaria Ramelli encontra outras alusões aos textos
evangélicos em autores dos séculos I e II, como Cáriton de Afrodísias
ou Apuleio: morte aparente de crucificados, sepultura de uma moça
encontrada vazia no momento em que trazem as oferendas
funerárias, etc.
Entretanto, não há algum risco na superinterpretação desses
textos, de extrair deles algumas passagens às quais desejamos dar
algum sentido? Dispersas no fogo da ação e na trama quase sempre
burlesca dos romances antigos, essas anedotas de galo cantor, de
perfume, de festim, de crucificação e de roubo de cadáver são tão
comuns que se torna difícil retirar delas correspondências
significativas.
Em compensação, podemos ver nas descrições feitas por
Filóstrato dos milagres de Apolônio de Tiana uma imitação dos
evangelhos. O relato de uma ressurreição às portas de Roma poderia
ser uma repetição da ressurreição do filho da viúva Naim ou aquela
da filha de Jairo, realizadas por Jesus. Um jovem segue a maca de
uma moça morta, sua noiva. Apolônio detém o cortejo fúnebre, toca
a defunta, pronuncia algumas palavras misteriosas, e ela volta à
vida…
Apolônio, nascido em Tiana, na Capadócia, era um mago e
filósofo da segunda metade do século I, discípulo de Pitágoras, que
viajava pela Ásia Menor, pela Babilônia e pelas Índias, onde
estudou o ensinamento dos brâmanes. Homem pacífico, vivia pobre
e castamente, se alimentava de legumes e se abstinha de beber
bebidas fermentadas. Famoso pelo seu saber, seus talentos de
orador, ele pregava a caridade e distribuía seus bens aos pobres.
Apolônio morreu em Éfeso, onde havia estabelecido uma escola de
ensinamento filosófico, sob o reinado de Nerva (96-98). A vida desse
homem, de quem só temos escritos de autenticidade duvidosa, é uma
trama de contos e lendas. Sua biografia foi escrita um século e meio
depois de sua morte por um sofista grego, Flávio Filóstrato, chamado
o Ateniense, no momento das grandes tentativas de sincretismo
religioso, que mesclam o platonismo pitagórico, mitologias pagãs,
feitiçarias e mistérios do Oriente. O objetivo do livro era o de exaltar
em Apolônio um personagem quase divino, erguido ao céu na sua
morte, uma espécie de “Cristo pagão”, e talvez decorram daí os
empréstimos tirados dos testemunhos evangélicos.
Mas esses dados, ou essas deduções talvez instrutivas para
mostrar a influência do cristianismo nascente sobre a sociedade
antiga não nos esclarecem em nada sobre a vida do Jesus histórico…

Os evangelhos apócrifos
Além dos quatro evangelhos ditos canônicos, podemos encontrar
informações complementares nos evangelhos apócrifos? Devemos
precisar que apócrifo não é usado aqui no sentido de “falso”. A
palavra vem do grego apocryphos, que significa “secreto, oculto”. São
textos que não foram retidos pelas Igrejas cristãs como dignos de
figurar entre as Santas Escrituras. Atualmente, uma corrente de
pensamento tenta reabilitar esses opúsculos marginais, repletos de
parábolas, sentenças, diálogos, bênçãos e maldições, que lhes dão,
por vezes, um status superior aos evangelhos canônicos. Os apócrifos
estão na moda. Entusiasmo midiático, gosto pelo escandaloso
sensacional e credulidade desarmada fizeram o seu sucesso. Eles
seriam nem mais nem menos que a fonte e a chave do verdadeiro
cristianismo! A intenção ideológica é evidente: denunciar a Igreja
que os havia sufocado a fim de impor a “sua” verdade, em
detrimento da pessoa autêntica de Jesus. Assim, o evangelho de
Tomé seria mais importante historicamente do que aqueles de
Mateus, Lucas ou Marcos. Para o historiador americano John
Dominic Crossan, o evangelho de Pedro seria derivado diretamente
de um evangelho primitivo desconhecido, o evangelho da Cruz, que
teria inspirado os evangelhos canônicos. Essas aproximações,
digamos, não convencem. Vamos tentar ver mais claramente.
As Igrejas cristãs reconhecem como autênticos integrantes de seu
cânone, quatro livretos evangélicos, nenhum deles assinado, mas
que uma tradição constante e que remonta à mais alta antiguidade
atribui a Mateus, Marcos, Lucas e João. Antes de serem incorporados
ao cânone da Igreja no século IV (Concílio de Laodiceia, por volta
do ano 360, epístola de Atanásio no ano 367, Concílio de Hipona em
396), eles eram considerados como textos dignos de confiança desde
o século II pelo Cânone Muratori (c. 150-170) e por Irineu, bispo de
Lyon, morto mártir, autor de Contra as heresias (c. 180). O filósofo
Orígenes, no início do século III, também os comentava e os
diferenciava dos apócrifos, mantidos separados das leituras públicas
e da proclamação da Igreja, por não representarem a fé autêntica
recebida dos apóstolos. Esses evangelhos apócrifos pertencem a três
tipos diferentes.16
Os primeiros são os evangelhos que hoje estão perdidos e
serviram a algumas comunidades rapidamente marginalizadas.
Assim, o Evangelho dos Hebreus, do qual se conhecem apenas alguns
fragmentos por intermédio dos Padres da Igreja. No século III, são
Jerônimo afirma ter descoberto um exemplar em Cesareia e outro
entre os judeus cristãos de Beroea (atualmente, Alepo). Esse precioso
códice redigido em aramaico somava duas mil folhas. Ele acreditou
que se tratava de uma primeira versão do evangelho de Mateus, mas
as passagens que cita não correspondem a este.17 Esse texto
secundário, usado pela comunidade de judeus cristãos, da qual era
chefe Tiago, o Justo, chamado “irmão do Senhor”, pode ter recolhido
vestígios não conhecidos dos ensinamentos de Jesus, como essa frase
citada por um apologista erudito, Clemente de Alexandria (c. 160-
220): “Aquele que se surpreende reinará. E aquele que reinar gozará
de repouso. Aquele que busca vai continuar sua busca até encontrá-
la. E aquele que encontra se surpreenderá. E aquele que se
surpreende reinará e aquele que reina gozará de repouso”. Outra
citação atribuída a Jesus, recompilada dessa vez por Jerônimo: “Não
se alegre enquanto não olhar para seu irmão com amor”. No plano
dos relatos há pouca novidade, a não ser algumas breves anotações
complementares sobre o batismo de Jesus e o relato de uma aparição
para Tiago depois da Ressurreição.
Esse evangelho seria o mesmo que aquele dos nazarenos ou dos
ebionitas, de que falam Hegésipo, escritor cristão do século II, e
Eusébio (c. 267-340), bispo de Cesareia, autor de uma preciosa
História eclesiástica em dez volumes? Não temos certeza disso, nem
mesmo se esse evangelho desconhecido era também ligado aos
grupos judeus cristãos18.
Existe ainda outro apócrifo misterioso, o do Papiro Egerton 2[2]
— quatro fragmentos publicados em 1935, extraídos de um códice,
atualmente propriedade do Museu Britânico. Podemos ler nele uma
versão da cura de leprosos feita por Jesus e outra relativa ao
pagamento do imposto devido às autoridades (“aos reis” e não “a
César”, como é contado em Mateus ou Marcos). Datando do final do
século II, mesclaria tradições orais com uma remodelação dos
evangelhos sinópticos.
O evangelho de Pedro, do qual um fragmento importante foi
encontrado em 1886, na sepultura de um monge em Akhmim no Alto
Egito, apresenta um longo relato sobre a Paixão e a Ressurreição,
aos quais foram enxertados desenvolvimentos manifestamente
lendários.19 Esse é um dos evangelhos mais interessantes da
categoria. O exegeta americano Raymond E. Brown, que vê nele
“uma harmonização livre de lembranças e de tradições dos
evangelhos canônicos”, situa sua composição por volta do ano 140
na Síria, na região de Antioquia. A obra reflete até nas suas
variações absurdas o antijudaísmo virulento dessa época (seriam os
judeus e não os romanos os únicos responsáveis pela crucificação de
Jesus). Quando, por volta do ano 190, Serapião, bispo de Antioquia,
percebeu que esses escritos eram apreciados pelos cristãos de Rhosus,
um povoado de sua diocese, e podiam, por suas afirmações, conduzir
à heresia docética, ele denunciou sua influência danosa.
O segundo tipo de evangelho apócrifo é oriundo da literatura
popular e romanceada. Seu objetivo era satisfazer, à margem da
pregação eclesiástica, a curiosidade do povo cristão das camadas
mais baixas. Seus exageros literários, sua tendência ao maravilhoso,
seus desvios lendários ou folclóricos são manifestos. Contrariamente
à sobriedade e à discrição dos relatos canônicos, eles acrescentam
para melhor convencer, fazendo frutificar com interesse milagres,
fatos extraordinários, historietas embelezadas, detalhes pitorescos
ignorados pela tradição apostólica. Nesses contos de fadas, repletos
de fantasias e de extravagâncias, mas sem grande alcance espiritual,
beberam, durante a Idade Média, compilações fabulosas, como A
legenda áurea, de Jacopo de Varazze, ou O espelho da História, de
Vicente de Beauvais, sem falar dos pintores de ícones, das
iluminuras e de outros pintores de vitrais.
O evangelho árabe da Infância mostra o encontro no Egito do
jovem Jesus com os dois outros ladrões, mais tarde crucificados com
ele, chamados aqui Tito e Dismus. A criança anuncia para sua mãe
que Tito — o “bom ladrão” — o precederia no paraíso. Também
vemos nesse evangelho o jovem Judas, já possuído pelo demônio,
batendo no filho de Maria.
O evangelho de Tomé, o filósofo israelita, ainda chamado o
evangelho do Pseudo-Tomé (não confundir com o evangelho
segundo Tomé, outro apócrifo), apresenta um Jesus Criança
onisciente, teimoso e vingativo, repreendendo seu mestre na escola,
Zaqueu, e cobrindo-o de vergonha. “Uma outra vez”, conta o autor
desse relato, “Jesus passeava pela aldeia, quando uma criança,
correndo, esbarra em seu ombro. Irritado, Jesus lhe diz: ‘Você não
prosseguirá seu caminho’. No mesmo instante a criança cai morta…”
É nesse romance de má qualidade que encontramos a anedota dos
pássaros de argila, modelados num dia de sabá para a jovem
Criança de Deus, que ela subitamente faz voar…
A fim de provar a virgindade perpétua de Maria, professada pela
Igreja, o protoevangelho de Tiago recorre a uma apologética de mau
gosto, fazendo parteiras intervirem antes, durante e depois do
nascimento de Jesus.21
O Livro da passagem da muito santa Virgem Maria, mãe de Jesus,
atribuído a Melito, bispo de Sardes no final do século II, embeleza a
morte e a assunção de Maria. A história de José, o carpinteiro, que
data talvez do século IV, muito apreciada nos meios coptas do Egito,
apresenta a vida de José relatada pelo seu filho divino.
O evangelho de Nicodemos, também chamado de Atos de Pilatos,
cuja existência é assinalada por são Epifânio, no ano 376, dá uma
descrição extraordinária da descida do Cristo aos Infernos, luz
resplandecente que faz estremecer de alegria todos os que estão
“sentados nas trevas e na sombra da morte”, desde Adão até os
santos patriarcas e profetas.
Os Atos de Pedro, do final do século II, narram em detalhe a
estada em Roma do chefe dos apóstolos, seus milagres, sua fuga, seu
reencontro com Jesus ressuscitado na Via Ápia. “Senhor, aonde você
vai?” E Jesus lhe responde, para fazê-lo voltar aos seus passos: “Eu
vou a Roma para ser crucificado de novo!”. Essa tradição, como
sabemos, servirá de fio condutor para o célebre romance de Henryk
Sienkiewicz, Quo vadis?
A terceira categoria de evangelhos, e a mais importante, é a dos
escritos gnósticos. A gnose (a palavra vem do grego gnôsis,
“conhecimento”) é uma vasta corrente filosófica e religiosa com
tendência hermética, que se situa no cruzamento das religiões e dos
mistérios, do pensamento iraniano, do helenismo, do judaísmo e do
cristianismo. Ela repousa sobre concepções cosmológicas e
antropológicas radicalmente diferentes da Bíblia. A criação do
mundo nesse texto é obra de um demiurgo malvado, que alguns
cristãos heréticos, como Marcião (c. 100-160), que rejeitam a
herança judaica, não hesitam em assimilar ao Deus terrível e
vingador do Antigo Testamento. O espírito é prisioneiro da matéria,
encerrado num envoltório carnal. O homem deve desapegar-se dessa
sujidade e reencontrar a parcela de divindade que existe nele. Nisso
reside a sua salvação. Como? Fugindo do mundo pela ascese e pela
busca do seu próprio “eu”. O homem só se torna “perfeito” depois de
uma iniciação particular aos segredos do reino. Essas são mais ou
menos as teses de Cerinto, Valentim, Basilides, Carpócrates ou
Heracleon, contra as quais as comunidades crentes, muito fortes no
ensinamento apostólico, pouco a pouco definiram uma linha
ortodoxa e ergueram um cordão sanitário.
Evidentemente, esses textos gnósticos não têm como objetivo
difundir contos inocentes, mas sim recuperar a mensagem cristã,
parasitá-la com palavras artificiais e fundi-la com seu sistema
esotérico, com os antípodas da fé… As referências ao Jesus histórico,
à sua vida pública, à sua Paixão, à sua morte redentora, à sua
Ressurreição, à universalidade de sua mensagem não lhes
interessam. Eles consideram que somente o conhecimento salva —
um conhecimento oculto, que uma minoria de iniciados é capaz de
desvendar —, e não as obras ou a graça divina. Para eles, a gnose
situa-se no coração da doutrina secreta do mestre Jesus, o “Vivo”
fora do tempo, que veio despertar os espíritos e lembrar-lhes que são
centelhas oriundas da esfera divina. É característico, em relação a
isso, o início do evangelho segundo Tomé, que será muito apreciado
pelos maniqueístas do século III. “Eis as palavras que Jesus, o Vivo,
disse e que Judas Tomé Dídimo escreveu: E ele [Jesus] disse: ‘Aquele
que descobrir a interpretação dessas palavras não encontrará a
morte’”. Para viver a verdadeira vida divina, é preciso receber a
iluminação, procurar as chaves da interpretação. Vamos abrir, por
exemplo, o evangelho de Filipe: “Aqueles que dizem que o Senhor
morreu primeiro e (então) se levantou se enganam, pois ele
primeiro se levantou e (então) morreu. Se alguém não alcança
primeiro a ressurreição, ele não morrerá. […] Aquele que possui a
gnose da verdade é livre”. As próprias palavras da eucaristia são
contaminadas pelas especulações da seita: “Aquele que não comer da
minha carne e não beber do meu sangue não tem vida nele”. O que é
sua carne? Sua carne é o Logos e seu sangue, o Espírito Santo.
Até 1945, esses escritos só eram conhecidos por algumas citações
dos Padres da Igreja, como Irineu de Lyon ou Hipólito de Roma,
empenhados em lutar contra essa heresia multiforme. Em dezembro
daquele ano, no Alto Egito, na região de Nag Hammadi, a cerca de
sessenta quilômetros de Luxor, ao pé dos penhascos muito difíceis do
djebel El-Tarif, um camponês, Mohammed Ali, exumou uma jarra
selada, enterrada numa sepultura de um cemitério próximo do
antigo povoado de Khénoboskion. Essa jarra continha uma coleção
de treze códices em pergaminho, protegidos por estojos de couro
leve, 52 tratados no total (45 títulos diferentes), na maior parte de
inspiração gnóstica, que representavam 1.156 páginas. Pertencente,
talvez, ao mosteiro associado de São Pacômio, essas traduções coptas
de textos gregos tinham sido colocadas ali por volta do ano 400; foi
a secura excepcional do local que as preservou do apodrecimento.
Depois de algumas peregrinações por vários antiquários, os códices
foram recuperados pelo governo egípcio e depositados no museu
copta do Cairo Velho. No lote, figuravam o livro secreto de Tiago, o
Apocalipse de Paulo, o evangelho da Verdade (atribuído a Valentim
ou a um de seus discípulos), o evangelho de Filipe, uma versão
completa do evangelho segundo Tomé escrito em copta, e
fragmentos do evangelho de Pedro.22
Não precisamos nos espantar com esses nomes prestigiosos. Para
valorizar seus textos e torná-los críveis às comunidades cristãs, os
autores anônimos os haviam colocado sob o patronato lisonjeiro de
um apóstolo. Três personagens do ambiente de Jesus,
metamorfoseados pelo imaginário gnóstico, fascinam, aliás, os
apócrifos: Judas assimilado a Tomé Dídimo, que teria sido morto
sobre a cruz em lugar de seu irmão gêmeo, Jesus; Maria Madalena,
deusa da Sabedoria e grande sacerdotisa do esoterismo; enfim Judas,
o homem benfeitor, que entrega Jesus, segundo o plano de Deus,
para a salvação da humanidade…
Em 1978, ainda no Egito, foi encontrado um códice, chamado
Codex Tchacos, que foi juntar-se no museu copta do Cairo Velho aos
textos de Nag Hammadi, depois de muitas vicissitudes: proposto no
mercado sem encontrar comprador, por causa do seu preço muito
elevado, ele se degradou durante anos no cofre de um banco
americano, onde foi colocado — ideia ridícula! — num congelador,
por um intermediário americano, onde ele se deteriorou ainda mais.
Esse códice contém uma pseudocarta de Pedro para Filipe, um
primeiro Apocalipse de Tiago, já conhecidos, e principalmente o
texto completo do evangelho de Judas, que teve um imenso sucesso
midiático por ocasião de sua publicação em 2006.23 Nesse escrito
gnóstico e doceta, a traição de Judas é apresentada como uma
realização necessária, que permite a Jesus, “oriundo do reino da
imortal Barbelô” (uma deusa mãe), libertar-se de sua prisão de
carne. “Tu ultrapassarás todos”, disse Jesus a esse discípulo
preferido, “porque tu sacrificarás o homem que me serve de
envelope carnal…”

Valor histórico dos apócrifos


Aqui também, no plano histórico, o florescimento dessa literatura
nos faz conhecer melhor os grupos à margem da grande Igreja e as
seitas do Oriente Médio dos primeiros séculos do que o fundador do
cristianismo. Todos esses trabalhos, com efeito, são compilações
ecléticas e tardias. As mais antigas não são anteriores aos anos 140-
150, as mais recentes são do século III. Nenhum deles remonta à era
apostólica. A maior parte, ignorante das realidades palestinas, tirou
suas informações dos evangelhos canônicos. Ocorreu o mesmo com o
evangelho de Pedro, uma hábil miscelânea do século II.24
Podemos encontrar nesses textos algumas reminiscências
históricas, alguns materiais autênticos, veiculados por uma longa
tradição oral, os agrapha (quer dizer, palavras e atos extracanônicos
até então não consignados)? Isso não deve ser excluído, mas sua
exploração permanece um assunto delicado. É razoável pensar, por
exemplo, que o protoevangelho de Tiago, escrito por volta do ano
150 e inspirado no de Mateus e no de Lucas, conservou, misturada
com lendas piedosas, uma parte das antigas tradições que se ligam à
memória de Maria, mãe de Jesus, venerada nas comunidades
judaico-cristãs. Esse evangelho, em todo caso, é o único a nomear os
pais de Maria, Ana e Joaquim.
Um dos evangelhos mais curiosos é o evangelho segundo Tomé,
do qual só conhecíamos alguns pequenos fragmentos, antes da
descoberta da jarra de Khenoboskion. Sua primeira versão, redigida,
provavelmente, na Síria, data dos anos 140-150. A edição definitiva,
terminada no Egito, seria do século III. Diferentemente dos
evangelhos canônicos, essa é uma compilação de logia (palavras) de
Jesus, sem ligações entre elas, começando na maior parte das vezes
por essas palavras: “Jesus diz…” ou “Jesus disse…”. Entre 114
palavras, 79 delas são encontradas nos evangelhos sinópticos, 11
palavras apresentam variantes. Entre as logia desconhecidas, os
especialistas estimam que algumas de execução ou de ressonância
cristã poderiam provir de fontes muito antigas, principalmente
judaico-cristãs. Em Homílias sobre Jeremias, Orígenes perguntava-se,
por exemplo, se Jesus realmente tinha dito: “Aquele que está perto
de mim está perto do fogo; aquele que está longe de mim está longe
do reino”. É plausível. Os pesquisadores dizem que também podemos
reter isso: “Depois ele disse: ‘o homem é como um pescador sábio
que lança sua rede no mar. Ele a recolheu cheia de peixes pequenos,
entre os quais o pescador sensato encontrou um grande e excelente.
Ele jogou de volta todos os peixinhos no mar, sem hesitar, e escolheu
o peixe grande. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça’”.
Mas ao lado dessa sentença, quantas outras que resvalam para a
impostura! Assim é a aversão à mulher e à feminilidade em geral,
que encontramos em todas as religiosidades com tendência gnóstica
até os cátaros. O pecado original reside na diferenciação entre os
sexos. O nascimento de Eva, tirada do corpo de Adão, é o princípio
de morte. Disso decorre a total rejeição da sexualidade e do
casamento, professada pelos encatritas[3]. Para aceder ao reino, as
mulheres, esses seres inferiores, deverão reencontrar a Unidade
primordial, voltar a ser do sexo masculino. Esse tema, central no
evangelho segundo Filipe, também é encontrado no evangelho de
Tomé:
“Simão-Pedro lhes diz: ‘Que Maria saia do nosso meio, porque as
mulheres não são dignas da vida!’. Jesus diz: ‘Eis que eu a atrairei
para torná-la homem, para que ela também se torne um espírito
vivo, como vós homens! Porque toda mulher que se tornar homem
entrará no Reino dos céus’.”25 Algumas logia de Jesus, que ele
certamente não pronunciou, relacionam-se com o panteísmo: “Eu
sou a luz que está sobre todos eles. Eu sou o Todo; o Todo saiu de
mim, e o Todo chegou até mim; cortai a madeira e eu estou lá;
levantai a pedra e ireis me encontrar”.
No total, se fizermos o balanço dessas fontes exteriores, quase
sempre repletas de lacunas, contraditórias ou tendenciosas, vemos
que há pouco para recolher sobre o Jesus histórico. A maior parte
desses documentos, constata o exegeta e historiador alemão Joachim
Jeremias, ao final de uma longa investigação, “são apenas lendas e
traz [em] a marca da ficção […]. É insignificante aquilo que poderia
ser de alguma utilidade para o historiador”.26 Ele mesmo só
consegue isolar dezoito palavras que teriam sido pronunciadas por
Jesus (a menos que sejam livres adaptações dos sinópticos), mas
nenhuma acrescenta um traço verdadeiramente novo. É preciso,
então, voltar-se para os textos do Novo Testamento, particularmente
os evangelhos canônicos.
ANEXO II
Os evangelhos sinópticos

As fontes cristãs
O Novo Testamento contém vinte e sete livros, considerados como
canônicos por todas as grandes Igrejas, e, com algumas variações,
pelas Igrejas siríaca ou etíope. Mas fora os quatro evangelhos, os
dados contidos nos outros livros são bastante pobres em materiais
históricos relativos a Jesus. De um interesse capital para conhecer a
vida das comunidades cristãs, as primeiras proclamações de Pedro e
as missões de Paulo, os Atos dos Apóstolos, devidos à evangelização
de Lucas, não trazem nada sobre o Jesus terrestre. Ocorre o mesmo
com o Apocalipse de João, escrito místico dentro da tradição
visionária e profética judaica.
As treze epístolas de Paulo são anteriores aos evangelhos escritos.
Nascido em Tarso, na Cilícia (que fica na atual Turquia), entre 5 e
10 antes da nossa era, seu verdadeiro nome era Saulo, foi
“circuncidado no oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de
Benjamim”, como ele próprio se definia na sua Epístola aos
Filipenses, e pertencia a uma família judaica abastada que o enviou
por volta dos treze anos para começar uma carreira de doutor da
Lei. Teve, de início, como mestre, um rabino ilustre, o fariseu
Gamaliel, o Ancião, neto de Hilel, partidário de um judaísmo aberto
e tolerante. Mas, muito em breve, ao provar um ardente zelo
religioso, juntou-se às fileiras dos perseguidores dos primeiros
cristãos, participando, especialmente, da lapidação do diácono
Estêvão, por volta do ano 36. Munido de cartas oficiais que lhe
permitiam perseguir outros discípulos instalados em Damasco, foi a
caminho dessa cidade que ele foi derrubado por um clarão ofuscante
que o deixou cego durante três dias. Ele foi testemunha de uma
aparição de Jesus, que perturbou completamente sua vida: “Saulo,
Saulo, por que me persegues?”. Renunciando a uma carreira
promissora de mestre fariseu, ele se converteu e recebeu o batismo
do Cristo de alguém chamado Ananias. A partir desse momento, ele
se tornou um evangelizador infatigável, anunciando a Boa Nova da
Ressurreição nas sinagogas, depois se voltou para os “gentios”, ou,
dito de outra forma, os que não eram circuncidados, viajando por
todo o leste da bacia mediterrânea, fundando novas comunidades
cristãs e sustentando aquelas já existentes. Por toda parte, ele
proclamava “o Cristo crucificado e ressuscitado”, centrando sua
cristologia sobre a morte e a ressurreição de Cristo. Uma cristologia
“elevada”, apesar da data antiga de seus escritos, que faz de Jesus o
Filho de Deus, vindo ao mundo para salvar os pecadores.
Ainda que ele seja um dos contemporâneos de Jesus, Paulo não o
conheceu “segundo a carne”, mas recolheu numerosos testemunhos
sobre Jesus e viveu em meio àqueles que o tinham visto e
compreendido. Instruído por Pedro, por Tiago, o Justo, e por dois de
seus companheiros de viagem que haviam vivido durante muito
tempo em Jerusalém, Silas e Barnabé, ele foi bem informado sobre a
vida pública e o ministério de Jesus. Infelizmente, para o
historiador, suas epístolas falam pouco sobre isso.
Dirigidas aos tessalonicenses, aos coríntios, aos filipenses, aos
gálatas, aos romanos, a Tito e a Timóteo, a Filemon, aos colossences
e aos de Éfeso, são escritos de circunstância, sermões e exortações
apostólicas, destinadas a encorajar os cristãos na sua fé. Elas não
têm por objetivo suplementar a catequese e transmitir um
conhecimento de base de Jesus. A única exceção é a sua Epístola aos
Coríntios, na qual, em razão da crise atravessada por essa
comunidade, devido às suas lacunas doutrinais e sua falta de
caridade, Paulo se sente obrigado a lembrá-los dos fundamentos
preciosos, visto que eles permitem ir além dos anos 50 (os dados
retomados eram considerados como conhecidos, há muito tempo).
Assim, ele nos ensina as palavras de Jesus pronunciadas por ocasião
de sua última refeição, a da Ceia, sobre o pão e sobre o vinho, sua
morte, o sentido que Jesus quis lhe dar, seu sepultamento, sua
ressurreição, distinguindo escrupulosamente o que o mestre havia
ensinado e aquilo que ele ensina em seguida: “Mas aos outros digo
eu, não o Senhor […]Todavia, aos casados mando, não eu mas o
Senhor”.27 Ao longo das epístolas, particularmente das epístolas
ditas “protopaulinas”,[1] encontramos alguns dados esparsos,
pertencentes ao conjunto dos pronunciamentos primitivos que serão
retomados pelos evangelhos: Jesus, oriundo da raça de Davi segundo
sua carne, tem como missão dirigir-se ao povo de Israel e não “às
pessoas das nações”.28 Colheita magra!
Se nos voltarmos para a correspondência dos demais discípulos, a
decepção também é grande. Trata-se de exortações morais,
certamente importantes para a história do cristianismo, apelos para
a santidade e para o amor fraterno, recordações das Escrituras,
considerações teológicas sobre a salvação em Jesus Cristo, a vida
eterna, a parusia [2] e o julgamento último dos Justos, mas não há
nada sobre o Jesus histórico. Nada na epístola católica de Tiago, o
“irmão do Senhor”, que dirigia a primeira comunidade judaico-cristã
de Jerusalém, nada nas epístolas de João, a não ser que ele fale com
a autoridade de uma testemunha, nada na primeira epístola de
Pedro. Há uma exceção na segunda: nela, o chefe dos apóstolos
insiste sobre seu testemunho e, num breve parágrafo, atesta sobre a
realidade da Transfiguração de Jesus.

Formação e crise do modelo-padrão


Compostos no seio das primeiras comunidades cristãs, integrados
depois de madura reflexão dentro da tradição da grande Igreja, os
evangelhos não são somente testemunhos de fé, mas — o que
importa aqui para nossa investigação — textos mais ou menos
impregnados de história, que é legítimo passar pelo crivo da crítica.
Considerados pelos cristãos como divinamente inspirados,29 eles não
têm o status que os muçulmanos dão ao Alcorão, texto sagrado
ditado palavra por palavra, em árabe, pelo arcanjo Gabriel a
Maomé, destinado a ser compreendido literalmente, sem poder ser
objeto da menor investigação crítica, literária ou histórica.
Os originais, escritos sobre papiros frágeis, desapareceram.
Apenas temos cópias de cópias, ao todo, 5.487: 800 manuscritos
gregos que datam do século II ao IV, 299 em letras maiúsculas
(chamadas unciais), que datam do século IV ao IX, 2.811
manuscritos em letras minúsculas que se distribuem do século XI ao
XV. Os textos completos mais antigos são os pergaminhos que
remontam ao século IV, o Codex Sinaïticus, conservado na Biblioteca
Britânica de Londres, e o Codex Vaticanus, na Biblioteca do Vaticano.
Um pouco mais recentes, o Codex Alexandrinus (permaneceu em
Alexandria até o século XVII) e o Codex Bezae (dado a Théodore de
Bèze) datam do século V. A isso se acrescentam centenas de
lecionários ou livros litúrgicos. Para os períodos precedentes,
existem 98 fragmentos. O Papiro II Bodmer (papiro 66), que contém
quase o texto completo de João, remonta aos anos 170-200. O
pequeno Papiro 457 John Rylands (papiro 52), datado do ano 125,
apresenta alguns versículos do mesmo autor. De uma cópia para
outra surgem, evidentemente, variações, devido às leituras malfeitas
ou a negligências, mas elas são, no conjunto, mínimas ou pouco
significativas. É uma situação excepcional quando sabemos que seis
séculos separam Virgílio dos mais antigos manuscritos de suas obras,
treze dos de Platão, dezesseis dos de Eurípides e que a primeira
versão conhecida da Guerra da Gália, de Júlio César, remonta
somente ao século X!
Vamos falar em primeiro lugar dos evangelhos sinópticos. Eles
têm uma amplitude diferente. Mateus contém cerca de 18.300
palavras (1.068 versículos). Lucas, 19.000 palavras (1.149
versículos), e Marcos, 11.000 palavras (661 versículos). Escritos em
grego, contêm na sua morfologia, na sua sintaxe, no seu vocabulário
e em seu estilo, traços de semitismos (características hebraicas ou
aramaicas) que fazem pensar quer em autores de origem judaica,
quer em um substrato de escritos semíticos anteriores, hoje
desaparecidos. O evangelho de Mateus se liga a um dos doze
apóstolos escolhidos por Jesus, o publicano Mateus. Marcos, antigo
companheiro de viagem de Paulo e depois de Pedro, reflete a
catequese deste último. Da mesma forma que Marcos, Lucas, o autor
do terceiro evangelho, não é uma testemunha ocular, mas ele
também acompanhou Paulo em várias de suas viagens.
Que credibilidade conceder a esses evangelhos? Responder a tal
questão requer expor pormenorizadamente suas relações e
determinar a data de sua composição. O problema é complexo e
divide exegetas. Dos 1.068 versículos do evangelho de Mateus, cerca
de 600 são reencontrados no evangelho de Marcos, 235 (ausentes em
Marcos) são comuns aos de Lucas, o restante lhe é próprio; dos
1.149 versículos de Lucas, 350 são apresentados no evangelho de
Marcos, aproximadamente 560 lhe são próprios. Este último conta
661 versículos, dos quais somente cerca de trinta são próprios. Todos
os três seguem a mesma ordem de exposição: preparação do
ministério de Jesus, ministério na Galileia, subida para Jerusalém,
Paixão, Ressurreição, mas a disposição de alguns relatos ou de certas
parábolas difere.30
Sob a influência da escola protestante alemã do século XX, foi
elaborado um modelo que conheceu e conhece ainda um grande
sucesso, inclusive no catolicismo romano: a teoria chamada “das
duas fontes”. O evangelho de Marcos, sendo o mais curto e contendo
menos fatos e discursos, seria o mais antigo. Ele dataria do ano 70,
mais ou menos. Aqueles de Mateus e de Lucas, mais desenvolvidos,
teriam sido escritos quinze ou vinte anos mais tarde, por volta de 85-
90, utilizando livremente o texto de seus predecessores, valorizando
declarações de Jesus ou episódios de sua vida. Entretanto, para as
logia e as parábolas que os textos têm em comum, mas que não
figuram no evangelho de Marcos, os autores dos evangelhos teriam
utilizado uma segunda fonte, que os alemães chamam Q (de
“Quelle”, que significa fonte em alemão), de datação difícil (talvez
composta em várias etapas). Este é o modelo-padrão, apresentado
com frequência nas catequeses atuais e nas publicações de
vulgarização como uma certeza absoluta, mas que certo número de
investigadores independentes colocam em questão atualmente:
A anterioridade do evangelho de Marcos é, com efeito, a solução
mais fácil: não é por um texto ser mais conciso que ele é
necessariamente o mais antigo. Essa anterioridade se impôs
principalmente por razões eclesiásticas ou teológicas bem
posteriores. Mas essa tese é bem sedimentada?
Ao examiná-la de perto, percebemos que ela apresenta fissuras
inquietantes. De início a língua. “Se Mateus tivesse trabalhado
unicamente sobre o evangelho de Marcos”, escrevia em 1952 Léon
Vaganay, professor na Faculdade de Teologia de Lyon, “ele não teria
melhorado o grego ao longo do texto de Marcos, para nele incluir,
ocasionalmente, semitismos de sua lavra.”31 Com efeito, mesmo
escrito num grego de má qualidade, o evangelho de Marcos tem
menos semitismos que aquele de Mateus. Para o padre Étienne
Nodet, o evangelho de Marcos, destinado aos meios pagão-cristãos
de Roma, é o menos judaico dos sinópticos; teria, portanto sido
necessário que ele “rejudaizasse” seu evangelho para chegar aos
textos de Mateus e de Lucas. Um paradoxo difícil de acreditar!32
Ao transcrever os episódios da vida de Jesus para os cristãos de
Roma, Marcos sobrecarrega com notas explicativas relatos
aparentemente anteriores. Um exemplo: quando, no capítulo XV,
Mateus assinala que os fariseus e os doutores da Lei que vieram de
Jerusalém perguntam a Jesus: “por que os teus discípulos
desobedecem à tradição dos antigos? De fato, comem pão sem lavar
as mãos!”,33 Marcos acrescenta este comentário destinado a seus
leitores, não iniciados nas regras do judaísmo:

E, vendo que alguns dos seus discípulos comiam pão com as mãos impuras,
isto é, por lavar, os repreendiam. Porque os fariseus, e todos os judeus,
conservando a tradição dos antigos, não comem sem lavar as mãos muitas
vezes; E, quando voltam do mercado, se não se lavarem, não comem. E
muitas outras coisas há que receberam para observar, como lavar os copos,
e os jarros, e os vasos de metal e as camas.34

À luz desse episódio, não é mais lógico pensar que o evangelho


de Mateus, escrito diretamente na Palestina ou na Síria, é anterior
ao de Marcos? É mais difícil acreditar que ele copiou um evangelho
que veio de Roma, retirando dele explicações de que seus leitores
judaico-cristãos não tinham necessidade alguma!
Outro exemplo está relacionado à sólida proibição do divórcio
por Jesus. De acordo com a lei de Moisés, unicamente o marido
tinha o direito de repudiar sua mulher, enquanto o inverso, com
raríssimas exceções, era proibido. É provável que Jesus, ao
expressar-se num ambiente judaico, tenha considerado a questão
unicamente do ponto de vista do marido. Esse é o ensinamento
retomado por Mateus, que se dirige ao povo do Oriente Médio.
Marcos, que compôs o seu texto no universo cultural romano, onde o
direito ao divórcio era concedido à mulher, estendeu logicamente a
posição do mestre da Galileia à mulher romana. Como não ver que,
nesse caso também, Mateus é anterior a Marcos?35
Em seguida, encontramos as concordâncias entre Mateus e Lucas
contra Marcos, nos episódios que todos os três relatam — e eles são
numerosos. Para os defensores desse modelo-padrão, essas
concordâncias levantam dificuldades técnicas embaraçosas: Mateus e
Lucas não se conhecem, o fato é unanimemente reconhecido; ora,
eles acrescentam palavras, expressões idênticas, que não
encontramos no texto correspondente de Marcos. De onde eles as
tiraram? São pequenos detalhes, certamente, mas significativos. Dois
exemplos, entre outros:
Marcos (5, 27): “[uma mulher] tocou sua veste.”
Mateus (9, 20): “[uma mulher] tocou na orla de sua veste.”
Lucas (8, 44): “[uma mulher] tocou na orla de sua veste.”

Marcos (14,72): “E, retirando-se dali, chorou.”


Mateus (26,75): “E, saindo dali, Pedro chorou amargamente.”
Lucas (22, 62): “E, saindo para fora, Pedro chorou amargamente.”

Se Lucas dependesse de Marcos, seria preciso admitir também


que ele omitiu o relato de mais de trinta episódios de seu evangelho.
A questão surge por si mesma: por que ele teria amputado a tal
ponto sua fonte, quando ele se vangloriava de “ter se informado
com precisão de tudo desde as origens”? Tudo isso revela uma
cronologia dos textos menos simples do que pensamos. Depois de
outros, um exegeta francês, o padre Philippe Rolland, evidenciou
esses obstáculos.36
Podemos acrescentar outro dado menos perturbador: a
contradição flagrante entre o modelo-padrão e as afirmações dos
Padres da Igreja ou dos primeiros autores cristãos, cuja
anterioridade ao evangelho de Mateus todos defendiam; como
Irineu, o bispo de Lyon, que viveu no século II, considerado
geralmente como confiável, que conheceu bem as tradições do
Oriente (ele havia nascido em Esmirna, onde passou sua juventude;
como Papias de Hierápolis na Frígia (60-120), e Clemente de
Alexandria (século II); também como Orígenes (século III) e Eusébio
de Cesareia (século IV), historiador e bibliotecário, que colecionou
um grande número de tradições em sua História eclesiástica. Não há
uma certa leviandade em querer expulsar de uma só vez esses
testemunhos, cuidadosa e constantemente repetidos? Em suma, o
modelo-padrão parece dificilmente sustentável, a menos que
fechemos os olhos às suas perspectivas cegas e suas contradições
internas.

A datação dos evangelhos


Em 1976, um teólogo anglicano ultraliberal, pouco suspeito, por
consequência, de fundamentalismo ou de conservadorismo, John
Arthur Thomas Robinson, bispo de Woolwich, recusando o que havia
ensinado no início, provocou um escândalo ao procurar demonstrar
que todos os escritos do Novo Testamento eram anteriores ao ano
70; sua argumentação relativa aos evangelhos sinópticos parecia
muito convincente.37
Jesus anuncia no Novo Testamento em um estilo apocalíptico a
destruição do Templo de Jerusalém, sem que nenhuma referência
evoque nessa possibilidade a tomada e a pilhagem da cidade no ano
70 pelos exércitos de Tito, filho de Vespasiano, acontecimento que
concretizava, apesar disso, suas palavras de maneira estridente.
Silêncio impressionante! Se a profecia de Jesus tivesse sido
registrada post eventum, o texto não teria sido mais específico?
“Como, escrevendo depois do ano 70”, observa Philippe Rolland,
“um cristão poderia ter resistido ao desejo apologético de mostrar
que Jesus era um autêntico profeta e que suas predições tinham se
realizado?”38
Jerusalém era o local do poder central do judaísmo e seu Templo
magnífico, orgulho de Herodes, o Grande, e da nação, o único centro
de culto da religião judaica, para onde iam os primeiros cristãos,
como mostram os Atos dos Apóstolos.39 O cerco da cidade foi de uma
violência extrema. O Templo foi profanado pelos sacrifícios que os
soldados romanos ofereciam a seus estandartes, os sobreviventes
judeus foram expulsos, deportados, reduzidos a escravos. Vespasiano
ordenou destruir completamente a cidade e o Templo, deixando em
pé apenas três torres e a parte oeste das muralhas. Se os evangelhos
são posteriores aos anos 70, como afirmam os defensores do modelo-
padrão, por qual motivo eles teriam ocultado tamanha catástrofe?
Tal omissão parece difícil de ser admitida, tanto mais que os
textos do Novo Testamento não são escritos intemporais. Eles fazem
alusão a fatos posteriores à vida de Jesus. Quando Marcos fala de
Simão de Cirene, que ajudou o mestre da Galileia a carregar sua
cruz, ele precisa que é o pai de Rufo e de Alexandre, personagens
que, manifestamente, seus leitores conhecem. Quando Lucas, nos
Atos dos Apóstolos, cita a profecia de certo Ágabo anunciando uma
grande fome, ele apressa-se em dizer que ela sobreveio na época do
imperador Cláudio (41-54).40 E querem nos fazer acreditar que o
aniquilamento daquilo que os judeus tinham de mais sagrado não
mereceria nenhuma referência explícita! Nem uma palavra foi dita,
nem uma aproximação, no entanto, evidente! Por mais que se diga
que, na linguagem bíblica, profecia não é predição — revelação com
um leve toque de escatologia —, há nisso algo de inexplicável.
Alguns objetaram que uma alusão à destruição de uma cidade
teria sido sugerida por Mateus na parábola do festim nupcial. Trata-
se de um rei que fica irado, envia suas tropas, faz perecer os
assassinos de seus servidores e põe fogo na aldeia deles.41 “Discreto
retoque”, que teria sido acrescentado depois da destruição de
Jerusalém.42 No anúncio profético de Jesus, Lucas também teria
introduzido detalhes que deixam pensar que o cerco ocorreu:
“Porque dias virão sobre ti, em que os teus inimigos te cercarão de
trincheiras, e te sitiarão, e te estreitarão de todos os lados”;43 os
habitantes “serão levados prisioneiros para todas as nações”.
Mas esses argumentos são realmente aceitáveis? Como se um
cataclismo tão violento, tão decisivo como o aniquilamento da
Cidade Santa, com consequências espirituais incomensuráveis, tanto
para o judaísmo como para o cristianismo, pudesse ser encaminhado
com uma ou duas frases curtas e vagas! Isso parece inverossímil!
Essas aldeias cercadas, queimadas, essas pilhagens das cidades por
exércitos armados eram banais na Antiguidade. Na Bíblia hebraica,
esses são lugares-comuns e clichês literários habituais. Não é
necessário remontar ao dilúvio de fogo que atingiu Sodoma e
Gomorra! De resto, especialistas confiáveis estabeleceram que Lucas
tinha redigido o anúncio de Jesus inspirando-se não na queda de
Jerusalém no ano 70, mas no relato da pilhagem da cidade por
Nabucodonosor, em 587 antes de Cristo!44
A contrario, alguns episódios do evangelho de Mateus mostram
que, no momento em que ele foi difundido, o Templo ainda estava
em pé: por exemplo, o episódio das duas dracmas de prata exigidas
anualmente pelo culto de Jerusalém, sobre o qual Jesus debate com
Pedro em Cafarnaum.45 Tratava-se de informar os leitores cristãos
sobre a posição do Senhor em relação a essa taxa. Isso certamente
era um assunto atual! Depois do ano 70, uma anedota como essa
apresenta muito menos interesse, a taxa havia desaparecido em
benefício de um imposto pagão pago ao tesouro do Templo de
Júpiter Capitolino (também conhecido como Capitólio) em Roma!
Ocorre o mesmo com o episódio do óbolo da viúva, que é encontrado
também em Lucas e em Marcos. Essas lembranças cristalizadas
teriam se tornado sem sentido se a esplanada do Templo não fosse
mais que um campo em ruínas.
Outro argumento proposto para designar uma data tardia ao
evangelho de Mateus viria do seu antijudaísmo. A ruptura entre
judeus e cristãos, dizem, teria se produzido nos anos 80-85, época em
que os escribas e doutores fariseus, depois do final dos sacrifícios
sangrentos no Templo, reorganizaram a religião judaica sobre novas
bases. Sua assembleia de Jamnia 46 inseriu, entre suas Dezoito
Bênçãos, uma maldição contra os cristãos (Birkat Ha-minim): “Possam
os nozrim e os minim desaparecer num piscar de olhos. Possam eles
ser apagados do livro da vida e não ser inscritos entre os justos…”. A
partir daí, os cristãos teriam sido expulsos das sinagogas.
Na verdade, a proposta de Jamnia — supondo que ela visasse
exclusivamente os nazarenos e os cristãos, o que foi contestado —
terminaria um longo processo de separação, iniciado com a
lapidação de Estêvão no ano 36. Um biblicista reputado, um
religioso da Ordem de São Sulpício, Henri Cazelles, mostrou que
desde o ano 52 em Corinto, os cristãos, tidos como indesejáveis nas
sinagogas, tinham se separado dos judeus. Paulo foi, por isso,
arrastado por eles diante do tribunal do procônsul Galião: “Este
indivíduo, diziam eles, procura persuadir as pessoas a adorarem a
Deus de uma maneira contrária à Lei!”. Em 54-58, em Éfeso, Paulo
foi ainda obrigado a afastar-se das sinagogas e ensinar na escola
pagã de Tirano. Finalmente, lembramos que, no ano 62, Tiago, o
“irmão do Senhor”, chefe da comunidade judaico-cristã de Jerusalém,
foi lapidado por ordem do sumo sacerdote Anás, o Jovem, e do
partido saduceu.48 Não é necessário, consequentemente, demorar-se
mais na composição do evangelho de Marcos para compreender suas
farpas antijudaicas.
Outro fato notável, Lucas, nos Atos dos Apóstolos, não menciona
os martírios de Pedro e de Paulo que ocorreram em Roma, um
provavelmente em 65, o outro talvez no ano 67.49 Sua obra se detém
subitamente por volta do ano 62, depois dos dois anos de residência
vigiada de Paulo na capital imperial, sem informar o resultado do
seu processo. É imaginável que ele tenha escrito os dois tomos de sua
obra — o evangelho e os Atos, redigidos um em seguida do outro,
que formam um conjunto muito coerente — vinte anos depois, sem
falar do destino dos dois apóstolos principais da cristandade?
Em suma, a ideia central de Robinson, a saber, a falta de
referência explicita à destruição do Templo nos evangelhos
sinópticos, não recebeu uma explicação convincente por parte dos
partidários de uma datação posterior ao ano 70. Os outros
argumentos que esses apresentam, como o antijudaísmo, parecem,
desde então, ter menor peso. A datação dos sinópticos anteriormente
ao ano 70 abala, talvez, as bases sobre as quais os exegetas
trabalharam durante decênios — e é esta a razão pela qual ela os
perturba; nem por isso ela deixa de ser a mais provável atualmente.
Mesmo um dos mais firmes partidários do modelo-padrão, Raymond
E. Brown, é obrigado a confessar sua perplexidade: “Nós admitimos
que a ausência de uma alusão indiscutível, clara e precisa do
evangelho (e mesmo no que diz respeito ao Novo Testamento) à
destruição do Templo, já ocorrida, permanece problemática, porque
o acontecimento deve ter tido um impacto enorme sobre os
cristãos”.50
A data exata de redação dos evangelhos sinópticos é mais difícil
de ser estabelecida. Um dos eixos da pesquisa consiste em estudar a
língua na qual eles teriam sido primitivamente escritos. Certamente
o texto grego parece ser confiável, mas eles não foram redigidos
primeiro em hebraico ou aramaico, o que tenderia a provar sua
antiguidade?
Claude Tresmontant, filósofo cristão, autor do Christ hebreu
[Cristo Hebraico, 1983], optou pelo hebraico, a língua sagrada dos
judeus.51 Para ele, todos os textos evangélicos teriam, de início, sido
escritos nessa língua, a partir de notas redigidas, enquanto Cristo
estava vivo, por testemunhas diretas de sua vida, como estudantes
podem fazer ao assistir a um curso magistral. Seriam “pilhas” de
notas, reunidas em ordem diferente, escolhidas em função de seus
destinatários, que teriam sido traduzidas para o grego palavra por
palavra. Tresmontant negava qualquer transmissão oral, qualquer
trabalho redacional e mesmo qualquer relação estrutural entre os
textos (os estudantes não teriam copiado uns aos outros, mas teriam
escutado o Mestre!). Mateus teria sido difundido antes do ano 36,
João antes do ano 40, Lucas nos anos seguintes.
Partindo de análises menos esquemáticas, um grande erudito,
especialista nos manuscritos do Mar Morto, fundador da Revue de
Qumrân [Revista de Qumran], o abade Jean Carmignac, juntou-se a
Tresmontant no que se refere à origem hebraica dos sinópticos.
Infelizmente, ele faleceu antes de terminar a obra científica em
vários volumes que projetava. Mas, em 1984, numa breve exposição
consagrada à La Naissance des évangiles synoptiques [O nascimento dos
evangelhos sinóptico s], ele salientava nos três livretos traços de
diferentes tipos de semitismo: semitismos de pensamento, de
vocabulário, de sintaxe, de estilo, de composição, de transmissão, de
tradução…52 Concluía que, estando tudo gramaticalmente correto, o
grego dos sinópticos, por vezes irregular, conservava um forte sabor
e um perfume semíticos. Em lugar de respeitar as leis da poesia
grega, o Benedictus (também conhecido como Cântico de Zacarias), o
Magnificat (também conhecido como canção de Maria), o “Pai
Nosso”, por exemplo, seriam construídos segundo as regras da
poesia hebraica.53 Em suma, os evangelhos de Marcos e de Mateus
teriam sido escritos, antes, em hebraico, num hebraico neoclássico
próximo àquele do Qumran, ao passo que o de Lucas, redigido em
grego, teria utilizado um documento semítico. O abade Carmignac
também chegou a datações muito antigas: Marcos, na sua primeira
versão, por volta do ano 42, Marcos completo por volta do ano 45;
Mateus em hebraico por volta do ano 50; Lucas pouco depois do ano
50. A essas conclusões, ele acrescentou uma hipótese audaciosa: a
primeira versão do evangelho de Marcos teria sido composta pelo
próprio apóstolo Pedro, e Marcos só a traduziu.
Essas pesquisas, por mais interessantes que sejam no fato de que
insistem no substrato semítico dos evangelhos sinópticos, fato
durante muito tempo negligenciado, não são totalmente probatórias.
Foram objeto de críticas vigorosas de estudiosos reputados,
particularmente do padre Grelot, especialista em aramaico, que
considera que a redação dos evangelhos foi feita em grego, língua
amplamente difundida no Oriente Médio, contendo, ao mesmo
tempo, evidentes e numerosos arameísmos.54 Essa já era a conclusão
de Matthiew Black, que, nos seu Aramaic Approach to the Gospels and
Acts [Uma abordagem em aramaico para os evangelhos e os Atos]55,
havia revelado procedimentos de um estilo próximo ao aramaico da
Galileia. Trata-se de um debate muito erudito que ainda não
terminou. Assim como a tese de John A. T. Robinson sobre a
anterioridade dos evangelhos à queda de Jerusalém, por sua
simplicidade e sua limpidez incansável, conquista a convicção, é
igualmente difícil formar uma opinião nessa batalha de peritos. Um
fato permanece conquistado: a presença no seio dos evangelhos
sinópticos de materiais semíticos extremamente arcaicos.
Subsiste o fato de que os defensores de uma datação antiga dos
evangelhos (nos anos 36-50) não conseguiram sustentar sua tese.
Essa tese se opõe às afirmações dos primeiros Padres da Igreja,
dentre os quais alguns estavam muito ligados aos apóstolos e aos
presbíteros da primeira geração. Seu testemunho irrecusável não
permite fazer remontar nossos evangelhos sinópticos atuais antes
dos anos 60. Então, o que concluir à luz dos textos dos Santos Padres
e da exegese moderna?
O nascimento dos evangelhos é o fruto de um processo que
necessariamente implica a existência prévia de vários documentos
anteriores: os pré-evangelhos. Nesse caso também, é preciso retornar
aos trabalhos do padre Philippe Rolland. Sua hipótese é aquela que,
no estado atual da pesquisa, parece resolver melhor as dificuldades
internas e as variantes dos textos. Na origem do atual evangelho de
Marcos estariam dois pré-evangelhos, que seriam traduções
diferentes de um primeiro evangelho de Mateus, bastante sumário,
escrito em língua hebraica (hebraico ou aramaico), acrescidos de
palavras e relatos tirados da tradição oral e que respondiam às
necessidades das comunidades que os viu surgir. Nossos evangelhos
atuais de Mateus e de Lucas seriam, por sua vez, o produto da
evolução separada desses dois pré-evangelhos, enriquecidos com
fontes orais e com o texto da fonte Q (comum a Mateus e a Lucas,
mas não conhecida por Marcos).56
O esquema autêntico é talvez mais complexo, mas,
provavelmente, não modifica a arquitetura do conjunto:

A tradição oral
No começo era a palavra. Jesus, que não deixou nenhum escrito,
havia ordenado a seus discípulos ensinar e pregar. A catequese,
então, foi feita oralmente. Os primeiros cristãos se encontravam
todo primeiro dia da semana (o dies domini, o dia do Senhor, dito de
outra forma, o domingo), para receber o pão da eucaristia. Situados
no interior da tradição missionária, os relatos orais foram compostos
na Igreja, dentro do âmbito do culto compartilhado, das preces
comunitárias e da compreensão dos acontecimentos vividos pelas
testemunhas.
Temos pouca noção, em nossas sociedades modernas, da
importância da memorização da Escritura no mundo hebraico, a
saber, de capítulos ou de livros inteiros. Os trabalhos de Birger
Gerhardsson, Werner Kelber e Marcel Jousse insistem com total
razão sobre a preeminência concedida à oralidade, à meditação
sagrada, à “reconsideração periódica” na fidelidade e no coração a
coração permanente com o Todo-Poderoso. Formados por levitas,
portadores de tradições vivas do ensinamento religioso até nas
aldeias mais longínquas, os judeus eram o povo mais religioso e
mais cultivado do mundo antigo (uma boa parte da população sabia
ler e escrever). À imagem das escolas rabínicas de Hilel, Shamai,
Gamaliel II, Ben Zakai ou Akiva, que se dedicavam a uma exegese
oral da Torá, e procuravam resolver os problemas da vida cotidiana,
os primeiros discípulos de Jesus anunciaram e ensinaram a Boa
Nova pela repetição contínua de suas palavras e de suas ações,
conservadas segundo o ritmo característico, os efeitos e os meios e
métodos de memorização da poesia hebraica, principalmente sob a
forma de quiasmo, essa figura de retórica composta de uma dupla
antítese cujos termos se cruzam. Exemplo tirado de Mateus:

Quem quiser, pois, salvar a sua vida (A), perdê-la-á (B).


Mas quem perder a sua vida por minha causa (B’), salvá-la-á (A’).57

Dessa maneira, as lembranças se gravam sem esforço na


memória. Os ditos eram reagrupados, ligados por séries uns aos
outros. Não é certo, em compensação, que essa estrutura oral
reaparecesse perfeitamente nos próprios textos evangélicos, como
pensa Pierre Perrier.58 O jesuíta Roland Meynet mostrou que os
evangelhos obedecem a regras complexas de composição escrita,
oriundas da retórica oriental e semítica: “binaridade” (agrupamento
binário de palavras), “parataxe” (justaposição de palavras ou de
partes de frases sem ligação aparente entre elas), etc. Não se passa
diretamente do oral para o escrito.59 A isso se acrescentam as
influências indubitáveis do mundo greco-romano, principalmente no
evangelho de Lucas (ver Jean-Noël/Aletti, Le Jésus de Luc).
Dito isso, na sua primeira Epístola aos Coríntios, o apóstolo dos
gentios mostra todo o peso da tradição oral.

Também vos notifico, irmãos, o evangelho que já vos tenho anunciado; o


qual também recebestes, e no qual também permaneceis. Pelo qual também
sois salvos se o retiverdes tal como vo-lo tenho anunciado; se não é que
crestes em vão. Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi:
que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi
sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E que
foi visto por Cefas, e depois pelos doze.60

A Epístola aos Hebreus, escrita por volta do ano 66-67 por um


discípulo de Paulo, Apolo ou Barnabé, também insiste na tradição
oral, vivida como uma certeza poderosa: a salvação, “começando a
ser anunciada pelo Senhor, foi-nos depois confirmada pelos que a
ouviram”.61
Esse trabalho foi composto no interior da Igreja primitiva, ao
redor das testemunhas e dos ministros responsáveis, “servidores da
Palavra”, devidamente escolhidos, que tinham como missão vigiar a
integridade da deposição e a transmissão da primeira pregação dos
apóstolos. Falava-se disso nas assembleias litúrgicas ou nas escolas
de catequese. Não se tratava simplesmente de relatar a vida de
Jesus, enquanto personagem do passado, mas de anunciar o Cristo
sempre vivo e presente na sua Igreja. Por essa ótica, as logia foram
triadas, peneiradas segundo o prisma do querigma, a fim de
responder às necessidades de evangelização e de adaptação aos
diferentes meios aos quais elas se dirigiam. Paralelamente, à luz da
experiência criadora da ressurreição pascal, as comunidades
eclesiásticas aprofundaram teologicamente a mensagem de Jesus e
fizeram ressaltar todas as virtualidades latentes, porque,
evidentemente, quando Jesus estava vivo, as testemunhas oculares
não tinham entrevisto toda a sua riqueza. As fórmulas que elas
repetiam não eram sempre bem assimiladas. Suas interpretações,
seus desvendamentos são feitos apenas lentamente, sob o controle
de Pedro e dos apóstolos — à luz do Espírito, acrescentam os cristãos
—, em todo caso, longe das crenças imaginárias que os primeiros
grupos gnósticos queriam impor.

Os primeiros escritos
Sem valorizá-la excessivamente, é preciso não negligenciar a
tradição escriturária que pôde se formar, enquanto Jesus estava
vivo, por meio de ouvintes atentos, que se impregnavam de seu
ensinamento. Seria concebível, quando sabemos das atividades dos
escribas, de alguns judeus palestinos cultos, que ouviam as lições
assombrosas de um rabino fascinante e misterioso, ao mesmo tempo
profeta, pregador e curandeiro, achar que ninguém tenha tomado
qualquer nota? Os procedimentos para uma escrita rápida existiam
na Antiguidade. A taquigrafia (ou estenografia) já estava em uso.
Em uma gruta de Wadi Murabba’at (também conhecida como Nahal
Darga), perto do Mar Morto, encontraram um texto grego escrito
dessa maneira.62 Se o fato parece duvidoso para a maior parte dos
apóstolos da Galileia, “homens sem instrução ou cultura”, como dito
nos Atos dos Apóstolos (devemos entender isso como: sem instrução
recebida por meio dos doutores da Lei), o espanto seria grande se
não tivesse sido de outro modo para os ouvintes diversificados
reunidos pelo homem de Nazaré. A cultura da escrita estava
difundida em meio ao povo judeu e os primeiros cristãos. Os escribas
se serviam de tabuinhas de madeira (pinax) recobertas com cera, que
podiam ser reutilizadas. O processo era difundido no mundo greco-
romano, como mostram as tabuinhas encontradas em Pompeia e
Herculano ou em Vindolanda, perto da muralha de Adriano na
província da Britânia na Inglaterra. Um buraco feito na lateral mais
comprida permitia reunir as tabuinhas com uma correia de couro.
“Torna-se atualmente cada vez mais evidente”, escreve Graham
Stanton, professor de Escrituras Sagradas no King’s College de
Londres, “que esses cadernos de anotações foram amplamente
usados na época de Jesus. Certamente, é possível, e até mesmo
provável, que os discípulos de Jesus tenham tomado nota de seus
ensinamentos e de seus atos muito tempo antes que os evangelhos
fossem escritos. O caráter conciso das tradições relativas a Jesus
pode ser explicado tanto pela tradição oral como pelo uso dessas
cadernetas de anotações.”63
É verossímil que os relatos da Paixão e da Ressurreição, ligados à
celebração da eucaristia, fossem os primeiros a ser registrados por
escrito. Proclamados nas assembleias de culto, eram lidos em público
diante do Gólgota e do túmulo vazio. Pouco a pouco, coleções de
logia, de parábolas, de discursos, de relatos de milagres ou de
controvérsias com os adversários circularam em aramaico, a língua
local, e, provavelmente, ao mesmo tempo, em grego, língua dos
primeiros cristãos helenistas, ao redor de Estêvão e do grupo dos
Sete.64 Eram resumos fragmentários de sumários muito úteis para as
comunidades locais, espalhados pelos missionários e outros
pregadores itinerantes. Eles devem ter se multiplicado com o passar
do tempo, quando os apóstolos e as primeiras testemunhas não
foram mais os únicos a anunciar a Boa Nova. Era preciso
evangelizar Samaria, Fenícia, Chipre, Damasco, o país da Antioquia
e muitas regiões do contorno mediterrâneo. Essa primeira literatura
evangélica desapareceu em razão da fragilidade do seu suporte de
papiro, mas de sua existência os especialistas não duvidam, ela é
quase certa. Oralidade e escrita, portanto, coabitaram durante muito
tempo, mesmo depois da redação definitiva dos evangelhos.
Depois da época das compilações parciais, veio a dos pré-
evangelhos. À medida que envelhecia e depois desaparecia a geração
das testemunhas, à medida também que o retorno de Cristo, que de
início acreditavam que fosse iminente, parecia mais distante,
apareceu a necessidade de colocar por escrito, numa obra mais
completa, uma exposição da fé apresentada sob a forma de uma
biografia simplificada de Jesus, fácil de evangelizar. O elemento
desencadeante foi a dispersão dos apóstolos sobreviventes no início
dos anos 60. Tudo aconteceu muito depressa, porque,
contrariamente a uma ideia recebida, não eram necessários anos
para ver os textos circularem de uma comunidade a outra. Algumas
semanas, alguns meses eram suficientes.65 Os meios de comunicação
por terra ou por mar eram relativamente eficazes no interior do
mundo romano. “Depois que vocês lerem essa carta”, escrevia Paulo
aos colossenses, “façam com que ela seja lida também na igreja de
Laodiceia, e vocês leiam a de Laodiceia.”66

A formação complexa do evangelho de Mateus


Enquanto Pedro e Paulo se encontravam em Roma e fortaleciam a
comunidade cristã que lá se instalara — situamo-nos por volta do
ano 60 ou 61 —, pediram a Mateus, que evangelizava os “hebreus”
(da Palestina ou da Síria), mas que devia dirigir-se a outros povos,
para redigir em “língua hebraica” — provavelmente o aramaico —
uma versão sintética da vida e do ensinamento de Jesus, “uma forma
escrita de evangelho”, como diz são Irineu.67 Para esse trabalho, a
intervenção de uma testemunha da primeira hora pareceu
indispensável. Esse foi o primeiro evangelho condensado da
catequese apostólica, mais reduzido que o nosso evangelho atual de
Mateus.68 Do grupo dos doze apóstolos escolhidos por Jesus, Levi,
chamado Mateus, antigo chefe do escritório de cobrança de impostos
de Cafarnaum, era provavelmente o personagem que ocupava a
condição social mais elevada, comparado com os pescadores do lago,
como Pedro, André ou Tiago e João, filhos de Zebedeu. Culto,
falando, por exigência profissional, tanto o aramaico como o grego,
lendo o hebraico, Mateus era um homem de letras e de números.
Habituado a segurar uma pluma ou um estilete, era o mais bem
preparado para compor essa obra. Ele reuniu suas lembranças,
retomou, talvez em algumas de suas tabuinhas sobre as quais tinha
feito anotações na escrita estenográfica ou taquigráfica própria às
pessoas de negócios, as frases ou os episódios da vida de Jesus que o
tinham particularmente tocado, depois se pôs a trabalhar.69
Concebido com um objetivo prático, seu evangelho era apresentado
numa forma verdadeiramente breve, desnudada, esquemática,
reduzida ao essencial, no qual os detalhes pitorescos eram
supérfluos. Irineu escreve, em Contra as heresias: “Mateus publicou
entre os hebreus, em sua própria língua, uma forma escrita de
evangelho, na época em que Pedro e Paulo evangelizavam em Roma
e lá fundavam a Igreja”.70 Eusébio de Cesareia, em sua História
eclesiástica, redigida por volta de 315-320, observa, por sua vez:
“Mateus pregou, de início, aos hebreus. Como ele também devia
dirigir-se para outros povos, ele confiou à escrita, na sua língua
materna, seu evangelho, substituindo assim sua presença, por meio
da escrita, para aqueles dos quais ele se afastava”.71 Foi, então, a
perspectiva de sua partida que desencadeou tudo.
Provavelmente, esse livreto fez bastante sucesso entre os judeus
da Palestina e da Síria. Ele preenchia uma lacuna: aquela de uma
biografia do Cristo que incluía as principais etapas de sua vida
pública, até sua Paixão, não omitindo nem seus milagres nem seu
ensinamento. Pantene (c. 240-306), doutor cristão que dirigia a
Academia de Alexandria, encontrou, quando voltou da Índia, esse
evangelho “em caracteres hebraicos”. Ele teria sido trazido pelo
apóstolo Bartolomeu para as populações locais, que desde então o
conservaram preciosamente.72
Essa versão de Mateus interessou também às comunidades cristãs
de língua grega, que muito rapidamente a traduziram. Entretanto,
essa catequese hierosolimita dificilmente podia ser exportada do
jeito que estava. Sem trair seu espírito geral, era preciso adaptá-la às
necessidades dos novos ouvintes oriundos dos círculos pagão-
cristãos, dar-lhe um aspecto particular especial, sem fazer a versão
sofrer remanejamentos e transposições, aumentar algumas logia ou
sentenças do Senhor que não haviam sido inseridas no texto
esquelético em aramaico. “Cada um”, escreve Papias por volta do
ano 120, “traduz o texto segundo sua capacidade.” Houve pelo
menos duas traduções, com retoques e acréscimos. Uma delas foi
concebida em Antioquia, um dos locais mais importantes de
evangelização do Oriente Médio. Os judeus helenistas tinham, com
efeito, necessidade de um texto próprio.
O conceito antigo de autor não era o mesmo que nosso e a
proteção literária não existia. Depois da partida de Mateus para
outros locais de evangelização, um de seus discípulos, escriba,
pertencente ao meio judaico de fala grega, que vivia provavelmente
na Síria, completou o pré-evangelho grego de Antioquia e conferiu a
ele um toque final. Ele insistia sobre as parábolas de Jesus com
ressonância universalista e sobre as tradições antifarisaicas. Uma
investigação realizada em Jerusalém lhe permite, provavelmente,
acrescentar informações extraídas nos meios judaico-cristãos,
particularmente lembranças do ambiente de Tiago, o “irmão do
Senhor”, sobre José, o esposo de Maria, sobre a infância de Jesus e
informações das testemunhas da Paixão. Ele se serve igualmente da
compilação de logia da fonte Q, que remontava, talvez, aos anos 50:
essa compilação, que não era propriamente falando um evangelho,
provavelmente oriunda de Cesareia Marítima, a capital
administrativa da Judeia. Ela se dirigia aos “tementes a Deus”, esses
pagãos seduzidos pela religião monoteísta de Moisés, que
frequentam as assembleias nas sinagogas, mas recusam deixar-se
circuncidar.73 Com um tom muito universalista, ela insistia sobre as
palavras ou os exemplos de Jesus, apelando para a transcendência
do horizonte puramente judaico. Estaria ela redigida em grego?74
O escrito composto pelo escriba grego, mesclando habilmente
todos esses elementos, é o nosso evangelho de Mateus atual. Ele
data talvez dos anos 62-63. O escrito é, ao mesmo tempo, realçado
por memórias muito antigas, que lembram que Jesus, no decorrer da
sua vida terrestre, não se dirigiu unicamente às “ovelhas perdidas da
casa de Israel”. (“Não entreis em cidade de samaritanos”, ele
recomendava a seus discípulos…) e ele está aberto para o universal
(Jesus, segundo esse evangelho, derramou seu sangue “em benefício
de muitos, para remissão de pecados”). A missão do povo judeu
devia, portanto, ampliar-se, e não fechar-se numa visão nacionalista
da Lei, como Isaías já havia anunciado.75

Lucas, o evangelho dos “gentios”


Na mesma época, um médico de Antioquia, Lucas, espírito cultivado
e erudito, começou a redigir a história de Jesus e a da difusão do
cristianismo até Roma. O tomo I será o seu evangelho, o tomo II, os
Atos dos Apóstolos. O autor apresentava as autoridades romanas
quase sempre sob um aspecto favorável; podemos pensar que esses
dois livros, escritos um após o outro, num único projeto literário,
dedicado a um certo Teófilo, são anteriores à violenta perseguição
do ano 65, consecutiva ao incêndio de Roma.76 Lucas é o “caro
médico” de que fala o apóstolo dos gentios (Paulo) na sua Epístola
aos Colossenses. Ele é um amigo e um discípulo fiel, um dos seus
colaboradores próximos. Lucas viajou durante muito tempo com
Paulo, seguiu-o para a Macedônia, para a Grécia e para Roma. Não
é de espantar que seu evangelho reflita em grande parte a sua
catequese. “Lucas”, diz Irineu, “o companheiro de Paulo, colocou em
livro o evangelho que havia sido pregado por este.” Orígenes
repetirá: “O evangelho de Lucas é aquele que invoca o testemunho
de Paulo.”
Pagão convertido ao judaísmo e depois ao cristianismo, ele não
foi uma testemunha ocular, mas frequentou os numerosos
representantes da catequese primitiva. Segundo Eusébio, ele esteve
em relação com Paulo e com os “outros apóstolos” que viveram com
Jesus (por apóstolo devemos entender, como sempre nessa época,
não somente os Doze, mas os primeiros discípulos). Ele conheceu
Tiago, primeiro bispo de Jerusalém, Filipe, um dos Sete, Mnäson de
Chipre, um fiel da primeira hora, provavelmente também Simeão,
primo de Jesus que sucedeu a Tiago e morreu muito idoso. Lucas não
leu os evangelhos de Marcos e de João, mas muito certamente
encontrou-se com esses dois personagens. Ele se aproximou do
primeiro no meio ambiente de Paulo e seguiu o ensinamento do
segundo, que ele incorporou amplamente em seu próprio texto.77 É
muito possível que tenha conhecido Pedro em Roma no ano 61 ou
62. Em compensação, é preciso renunciar à ideia, com frequência
sustentada, de um contato entre Lucas e Maria, mãe de Jesus. No
momento em que ele teria podido encontrá-la, quer dizer, por
ocasião de sua estada na Cesareia Marítima em 58-60, ela teria mais
de oitenta anos. Ora, segundo os Atos, ela aparece somente bem no
início da jovem comunidade cristã de Jerusalém, o que deixa supor
um desaparecimento relativamente rápido depois da morte de seu
filho.
Entre o evangelho de Lucas e aquele do escriba sírio, autor do
evangelho atual de Mateus, não há nenhum contato direto. Sua fonte
comum é o livreto de Mateus em aramaico, e ainda Lucas utilizou a
segunda tradução, diferente daquela de Antioquia. Lucas completou
o seu evangelho usando a fonte Q e os textos que respondiam às
necessidades dos judeus gregos da diáspora (ver o esquema na
página 369). Segundo o abade Carmignac, disseram que Lucas
utilizou uma fonte importante, de caráter semítico, “constituída pelo
menos pelo evangelho da Infância, a ressurreição em Naim, a
parábola do bom samaritano, a entrada em Jerusalém, várias
passagens dos Atos dos Apóstolos”.78
Apesar de algumas negligências de estilo, Lucas é um narrador
talentoso, compositor sensível e informado. Impregnado de grego
bíblico, mas também de hebraísmo, ele conhece pouco os costumes
familiares judaicos. Se atravessou a terra de Israel indo ao encontro
de testemunhas, ele tem uma percepção imperfeita dos locais. Seus
dois livros teriam sido redigidos na região de Acaia, na Beócia, onde
teria morrido, sem mulher nem filhos, com a idade de oitenta e
quatro anos.79 Sua obra, destinada aos pagão-cristãos do mundo
mediterrâneo, torna intencionalmente difusa a cor local da
Palestina. Sua preocupação com a misericórdia divina, sua
compaixão e sua delicadeza de sentimento o levaram a suprimir ou a
atenuar as palavras que lhe pareciam muito duras. Tudo isso dá a
seu evangelho uma tonalidade particular, impregnada de suavidade,
que torna suas descrições muito agradáveis, sem alterar a essência
de suas fontes (testemunhando os semitismos que afloram sob seu
grego literário). Ele procura lógica e harmonia da composição mais
do que a ordem cronológica.
No momento em que Lucas escreve o seu evangelho, por volta do
ano 62-63, ele sabia que vários empreendiam o mesmo projeto. Mas,
tendo acumulado, durante anos, os testemunhos mais diversos e
reunido uma grande base documental, ele pensava fazer melhor que
os outros. Assim, ele legitima seu projeto na introdução:
Tendo, pois, muitos empreendido pôr em ordem a narração dos fatos que
entre nós se cumpriram, Segundo nos transmitiram os mesmos que os
presenciaram desde o princípio, e foram ministros da palavra, pareceu-me
também a mim conveniente descrevê-los a ti, ó excelente Teófilo, por sua
ordem, havendo-me já informado minuciosamente de tudo desde o
princípio; para que conheças a certeza das coisas de que já estás
informado.80

Observamos na passagem que essa insistência em se referir às


testemunhas oculares mais antigas exclui uma redação por volta do
ano 85-90, como desejaria o modelo-padrão. Lucas procura fazer um
trabalho de historiador e de sábio, tal como era concebido na sua
época, principalmente entre os gregos. Seu evangelho aproxima-se
das biografias à moda antiga. O prólogo é copiado de um tratado
elaborado por um médico militar, Dioscórides, Sobre a questão
médica.

Marcos, o evangelho dos romanos


Marcos é um cristão que veio do judaísmo, João (Yohanan, em
hebraico) chamado “Marcos”. Como muitos de seus correligionários,
ele havia adotado um sobrenome grego (Markos), correspondente ao
latim Marcus. Ele e sua mãe, Miriam, faziam parte da comunidade
cristã de Jerusalém, onde essa mulher possuía uma casa que, num
certo momento, serviu de refúgio para Pedro. Por volta do ano 45,
quando ele tinha provavelmente cerca de vinte anos, Marcos
acompanhou Paulo e seu primo Barnabé, originário de Chipre, numa
primeira missão de evangelização na Ásia Menor. Ele os deixou no
meio do caminho, por uma razão desconhecida. Por volta do ano 50,
ele partiu de novo com Barnabé. Depois de ter sido colaborador de
Paulo, Marcos se torna o colaborador de Pedro, que o aprecia,
chamando-o até mesmo de “seu filho”. Ambos estavam em Roma no
início dos anos 60. Foi lá que ele escreveu o seu evangelho,
inspirando-se na catequese oral do chefe dos apóstolos.
“Marcos”, escreve Papias, “que havia sido intérprete de Pedro,
escrevia exatamente tudo aquilo de que se lembrava, aquilo que o
Senhor tinha dito e feito, mas não na ordem. Isso porque ele não
tinha ouvido o Senhor e não tinha sido seu discípulo, mas, muito
mais tarde, como eu dizia, discípulo de Pedro. Este expunha seu
conhecimento de acordo com as necessidades, sem se propor a
colocar na ordem as palavras do Senhor, de modo que Marcos não
cometia uma falta ao escrever algumas coisas como ele se lembrava.
Ele só se preocupava com uma coisa: não omitir nada do que tinha
ouvido e só relatar a verdade.”81
Irineu disse que, após o exodos (a partida) de Pedro e de Paulo,
“Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, nos transmitiu ele
também o que Pedro pregava”.82 Interpretamos a palavra exodos
como significando a morte. Seria aí então, depois do falecimento dos
dois apóstolos em Roma, por volta do ano 67 ou 68, que Marcos
teria redigido seu evangelho. Mas, depois do estudo do americano E.
Earle Ellis, mostrando que, em sua obra, Irineu emprega sempre e
sem exceção a palavra thanatos para designar a morte, precisamos
aceitar a palavra “partida” no seu sentido literal, o que faz avançar
em alguns anos a data da composição do evangelho.83 Essa
conclusão parece corroborar aquilo que Clemente de Alexandria
dizia no século II: os ouvintes de Pedro, principalmente alguns
cavaleiros de César, exortaram Marcos a transcrever para eles sua
pregação; o apóstolo Pedro ficou sabendo disso, mas não “fez nada,
com seus conselhos, nem para impedir nem para apoiar Marcos”.84
Onde ele estava, então? Não sabemos. Havia deixado Roma para
alguma outra missão, antes de voltar e de terminar crucificado em
Roma? Talvez a lenda de Quo vadis? não seja completamente
imaginária: Pedro teria procurado salvar sua vida afastando-se da
cidade. Segundo algumas fontes, o próprio Paulo teria num dado
momento saído de Roma para uma viagem à Espanha, antes de
regressar e de também morrer supliciado ali. Marcos teria então
pegado a pluma, obedecendo ao mesmo fenômeno relativo à
sagrada Escritura que vimos acontecer no Oriente: é a dispersão dos
apóstolos que provoca, como consequência, a escrita dos textos
evangélicos. O evangelho de Marcos data da metade do reinado de
Nero, numa época em que os cristãos ainda não sofriam perseguição,
porque, como no evangelho de Lucas, em nenhuma parte no de
Marcos se reflete a atmosfera de terror que reinou nas comunidades
cristãs de Roma nos anos 65-66. Se ele tivesse sido redigido nessa
época ou posteriormente, Marcos teria se mostrado tão indulgente
em relação aos romanos ao abordar o processo de Jesus?
Secretário e intérprete de Pedro, Marcos inseriu elementos de sua
catequese, como asseguram Irineu de Lyon, Papias e Clemente de
Alexandria. Alguns de seus desenvolvimentos acumulam pequenos
traços, precisos, circunstanciados, pitorescos, emocionantes, que
parecem provir dessa testemunha excepcional, Pedro, cuja figura
singular se destaca do conjunto. Seria a razão pela qual esse
evangelho parece tão vivo, tão concreto, tão vibrante, tão potente,
ou é preciso atribuir tais qualidades ao estilo inventivo e metafórico
de seu autor?
Marcos não se contentou em incorporar as lembranças do
príncipe dos apóstolos ou de colocar por escrito a sua pregação; ele
reuniu os dois documentos gregos oriundos do evangelho de Mateus
em hebraico que tinham chegado até ele, liberando-se o mais
possível de seu próprio estilo. Uma síntese perfeitamente
compreensível: Pedro e Paulo tinham vindo ambos a Roma. Não
querendo “esquecer nada”, Marcos reuniu as duas tradições a fim de,
com elas, fazer um texto solene e definitivo, como mostra o início de
seu texto: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus…”.
Destinado aos pagão-cristãos de Roma, o evangelho de Marcos,
impregnado de latinismos, apaga certos traços palestinos, sem
interesse para os seus leitores, explicando, ao contrário, como vimos,
os costumes judaicos que acha importante relatar. O livreto
terminava com a descoberta do túmulo vazio, como testemunham
certos manuscritos.85 Ele foi completado numa data posterior com
um final curto e um final longo, sintetizando as aparições
mencionadas nos três outros evangelhos. O final longo, que figura
em 99% dos manuscritos (mas não no Codex Sinaïticus et Vaticanus),
é considerado pela Igreja como ligado à tradição evangélica mais
autêntica.
Em que ordem os evangelhos sinópticos foram redigidos? Além
do de Mateus, em aramaico, cuja anterioridade é reconhecida (c. 60-
61) e que serviu de matriz aos outros, é difícil dizer, dada sua grande
proximidade cronológica. Irineu sugere a ordem que será retida pela
Igreja: Mateus, Marcos e Lucas. Clemente de Alexandria, baseando-
se em “uma tradição dos primeiros presbíteros”, assegura, ao
contrário, no seu Hypotyseis [Disposições], que os evangelhos que
trazem genealogias (Mateus e Lucas) são os primeiros.86 O fato de
que os relatos da Infância de Mateus e de Lucas não coincidam, de
que os textos circulavam muito rapidamente entre os primeiros
cristãos, faz pensar que sua respectiva data de composição é muito
próxima uma da outra (c. 62-63, disseram). Marcos, que efetuou a
fusão literária de duas traduções em grego do evangelho de Mateus
em aramaico, uma proveniente dos próximos a Pedro, a outra dos
próximos a Paulo, acrescentando a elas lembranças próprias à
catequese oral de Pedro, viria então em último lugar, talvez no ano
64. O quadro é complexo, vamos admitir, mas é aquele que, no
estado atual da pesquisa, responde melhor ao quebra-cabeça daquilo
que chamamos o “problema sinóptico”.
ANEXO III
João Evangelista, testemunha da história

Um evangelho atípico
Muito diferente dos evangelhos sinópticos, o quarto evangelho se
apresenta, sem sombra de dúvida, como o de uma testemunha
ocular, João, o “discípulo bem-amado” (ou “que Jesus amava”). O
autor insiste sobre o seu status de homem apostólico, sincero, digno
de fé, e não esconde o projeto de sua obra: mostrar que o Jesus da
história é o mesmo que o Cristo da fé, que o Jesus encarnado é o
Cristo eterno, tal como ele é apresentado na sua Igreja. Ele se
empenha, então, em reconstituir, de modo breve mas fiel, a vida
pública de Jesus, como uma etapa capital na história da salvação.
A análise do seu evangelho permite ressaltar alguns pontos
importantes:
(1o) Sua independência em relação aos dois outros.
Mesmo quando ele supunha que certos dados dos sinópticos são
conhecidos — a existência do grupo dos Doze, por exemplo —, João
compôs o seu escrito sem colher informações dos outros textos, aos
quais ele nunca se refere, o que se compreende, porque, ao contrário
dos outros (exceção feita a Mateus, autor do núcleo primitivo do
evangelho de Mateus em aramaico), ele é uma testemunha ocular.
Mas não é improvável que João os tenha lido (pelo menos o de
Mateus e o de Lucas). As diferenças com os três outros são maiores
que aquelas existentes entre estes. Em compensação, vamos observar
numerosas correspondências com Lucas, fenômeno que se explica
por um contato não relativo à Escritura Sagrada, mas oral. Em
outros termos, se Lucas não teve entre as mãos o evangelho de João
— ainda não redigido no momento de sua investigação —, há pouca
dúvida sobre o fato de que ele tenha encontrado o discípulo bem-
amado, escutado o seu ensinamento, recolhido relatos, anotado
detalhes, apanhado no ar algumas expressões e termos precisos. A
semelhança do vocabulário exclui um contato com algum outro
discípulo da “tradição joânica”. O exegeta alemão Adolf Von
Harnack tinha contado não menos do que trinta e duas palavras
comuns (evangelho e Atos), ausentes nos evangelhos de Mateus e de
Marcos.
(2o) A unidade literária, a homogeneidade do estilo, de
pensamento e de alcance teológico.87
Aparentemente são repetidas na obra falhas de habilidade na
escrita, articulações toscas, junções de má qualidade. São
encontradas algumas notas explicativas que não são do autor. Mas,
com exceção desses acréscimos facilmente perceptíveis, o evangelho
é obra de uma única mão. A escrita é simples, impregnada de estilo
poético aramaico (particularmente no prólogo), o vocabulário é
idêntico do início ao fim, bem como são coerentes a dramaturgia e a
teologia que se revelam na obra. Ocorre o mesmo nas Epístolas de
João. O homem tem um senso singular de composição, uma arte
perfeita de encenação, como Lucas, aliás, mas num estilo que lhe é
próprio.
(3o) A arquitetura narrativa, extremamente complexa, que revela
conhecimentos notáveis não somente da Bíblia hebraica, mas da
organização do Templo, das festas e da vida em Jerusalém, que não
encontra sua contrapartida nos evangelhos sinópticos.
Profundamente impregnado de uma mentalidade sacerdotal,
João dá indicações preciosas sobre a topografia, os ritos judaicos da
época. Seu texto encerra um jogo sutil de símbolos, uma variedade
de metáforas em vários níveis, com múltiplas leituras de uma riqueza
excepcional, que não cessam de nos espantar. Prova de que o
cristianismo nascente não era uma religião de pessoas pobres
incultas, mas dirigia-se também a classes sociais eruditas. Entre os
procedimentos literários preferidos de João figuram o equívoco e o
subentendido, o duplo sentido e principalmente a ironia, a famosa
ironia joânica, uma espécie de piscadela para o leitor, que
compreende então que a ilusão cega-o ou os personagens evocados.
(4 o) A origem semítica do autor, que expressa um pensamento
tipicamente judaico do século I da nossa era.
Difundido em grego, o quarto evangelho, como os evangelhos
sinópticos, contém numerosas características subjacentes do
aramaico. Alguns estudiosos, como o inglês C. F. Burney,
sustentaram que João tinha, de início, composto nessa língua.88
Durante muito tempo procuraram as suas raízes intelectuais no
helenismo. David Friedrich Strauss, no século XIX, via em João uma
testemunha da filosofia alexandrina; sustentou-se, por causa do
conceito de “Logos” (Verbo ou Razão) do prólogo, que João teria se
inspirado no pensamento grego, como seu contemporâneo Fílon de
Alexandria. Mas o evangelho parece mais impregnado de sabedoria
judaica que da sophia (sabedoria) grega.89 Se é verdade que naquela
época, na Palestina, uma estreita interpenetração unia as duas
culturas, as descobertas dos manuscritos do Mar Morto
reintroduziram esse evangelho no meio judaico. A oposição do Bem e
do Mal, da Luz e das Trevas, lembra aquela que encontramos no
Qumran. Enfim, não é pelo fato de que o evangelho de João foi
utilizado pelos gnósticos que é preciso torná-lo um escrito desses
grupos sectários. No sentido oposto, João insiste sobre a Encarnação
(“E o verbo se fez carne…”), sobre o caráter carnal da Ressurreição
(São Tomé convidado a colocar seu dedo sobre as chagas de Jesus).
(5o) A destinação da obra, escrita para leitores oriundos do
judaísmo da diáspora ou do paganismo.
Todos já estão convertidos, mas eles têm necessidade de ser
fortalecidos na sua fé, e estar convencidos da justeza da “cristologia
do alto”, que faz de Jesus o Filho preexistente do Pai, concebido
antes de todos os séculos. As comunidades que se valem de seu
evangelho permaneceram algum tempo à margem da “grande
Igreja”, antes de se ligarem a ela.
Tudo isso coloca em evidência uma forte personalidade literária,
uma figura apostólica de prestígio e ainda por cima um teólogo
poderoso, habituado a longas discussões sacerdotais. Não é sem
razão que, na simbólica dos evangelistas, a águia é sua figura [1].
João não é um compilador de fontes orais ou escritas, mas uma
testemunha dos fatos e das palavras autênticas de Jesus. Ele escreve
com uma autoridade inovadora que nenhum outro evangelista ousou
expressar. É um intelectual — “João, o teólogo”, como o apelidaram
— que meditou longamente e tem a convicção de não trair o
pensamento de seu divino mestre. As lembranças que ele reproduziu
voltaram à sua memória com a ajuda do “espírito de verdade”, o
Paracleto. “Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai
enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará
lembrar de tudo quanto vos tenho dito.”90 Na sua Primeira Epístola,
João insiste sobre seu papel de testemunha:

O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos
olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram da Palavra da
vida (porque a vida foi manifestada, e nós a vimos, e testificamos dela, e vos
anunciamos a vida eterna, que estava com o Pai, e nos foi manifestada); o
que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais
comunhão conosco.91

Nada mais forte do que essa atestação ousada, insistente,


circunstanciada: “o que ouvimos, […] vimos, […] contemplamos, […]
tocamos…”. Não há nenhuma razão para recusar: ele viu, ouviu,
contemplou, tocou Jesus de Nazaré e, muito tempo mais tarde, no
outono da sua vida, quando escreveu essa epístola, ainda estava sob
forte comoção. Mais adiante, no mesmo texto, ele ainda insiste: “E
vimos, e testificamos que o Pai enviou seu Filho para Salvador do
mundo”.92

A identidade do discípulo que Jesus amava


Quem é João? O nome é muito difundido em Israel; em grego,
Iôanes, em hebraico, Iohanan ou Yohanan, com sua variante Jônatas.
É preciso distingui-lo de João, dito “Marcos”, autor do segundo
evangelho, que pertence a uma geração ligeiramente posterior. Ele
próprio se apresenta como um discípulo anônimo; ou melhor, como
o discípulo preferido, “o discípulo que Jesus amava” (a expressão,
cuja conotação parece um pouco vaidosa sob a pluma de um autor
considerado “humilde”, dixit, Epifânio, talvez tenha sido
acrescentada pelo “editor” do livro depois de sua morte).
Companheiro secreto do futuro apóstolo André, irmão de Pedro,
João esteve lá desde o início da história: às margens do Jordão com
João Batista, na última refeição do Mestre em Jerusalém, bem ao
lado dele, e um de seus títulos de glória é precisamente o de ter se
reclinado contra o peito de Jesus para conhecer o nome daquele que
iria traí-lo. Ele ainda estava lá, ao pé da cruz, no Gólgota, e foi a ele
que Jesus confiou sua mãe.
Durante muito tempo, pensou-se que, dada a sua grande
proximidade com Jesus, só podia se tratar de João, filho de Zebedeu,
pescador do lago de Genesaré, e um dos Doze escolhidos por Jesus.
Essa identificação tradicional, prática para defender com uma
autoridade indiscutível um escrito que não tinha sido aceito, no
início, por todas as Igrejas, não é satisfatória. Como um texto tão
impregnado de liturgia sacerdotal, considerado de forma justa como
o mais teológico de todos, poderia sair da pluma do modesto filho de
um pequeno chefe pescador da Galileia, que reparava as redes de
seu pai?
Devemos observar que, na sua segunda e na terceira epístolas, o
autor do evangelho se apresenta como “o antigo” (dito de outra
forma, “o presbítero”), quer dizer, um dos membros da primeira
geração apostólica que não fazia parte dos Doze. No seu evangelho,
aliás, procuraríamos em vão os principais episódios aos quais o filho
de Zebedeu esteve associado, como a ressurreição da filha de Jairo
ou a Transfiguração… Sua descrição do ministério de Jesus é
sumária. Ele parece pouco conhecer a geografia dessa região, ignora
o nome dos povoados do contorno do lago de Genesaré — o que é o
cúmulo para um pretenso pescador de Cafarnaum! —, enquanto está
perfeitamente familiarizado com a topografia da Judeia e,
principalmente, de Jerusalém (ele fala da piscina de Betesda,
daquela de Siloé, do pórtico de Salomão, do pavimento de pedra do
pretório romano…). Seu evangelho está centrado na Cidade Santa.
Esse judeu religioso, que tem uma compreensão fascinante do
judaísmo do seu tempo, é “conhecido” pelo sumo sacerdote Anás. Ele
conhece Malco, de quem Pedro arranca o lobo da orelha; o irmão de
Malco, que interpela Pedro; e conhece até o vigia do palácio, que,
com uma simples palavra, deixa João e Pedro entrarem.93
Manifestamente, ele é um residente importante de Jerusalém,
próximo do Templo e de sua administração, um homem do palácio,
poder-se-ia dizer. João possui uma casa na Cidade Santa, sobre a
colina de Sião, ao lado do bairro essênio, e foi essa morada imensa
(ou um dos seus anexos) — como tudo deixa supor — que acolheu os
apóstolos, os discípulos e as mulheres que vieram da Galileia na
noite da Quinta-Feira Santa, antevéspera da Páscoa, o que permite
compreender por que João, o anfitrião do grupo, pôde, por ocasião
da refeição, sentar-se à direita de Jesus e inclinar-se sobre ele. É
ainda nessa morada que o discípulo bem-amado acolherá Maria, mãe
de Jesus, depois da morte de seu filho.
A análise do quarto evangelho opõe-se, portanto, à identificação
de seu autor com o filho de Zebedeu, apesar de algumas tentativas
de determinadas pessoas (a família de Zebedeu teria sido a
fornecedora titular de peixes para o sumo sacerdote e teria tido uma
casa em Jerusalém para armazenar sua mercadoria!).94
Além do mais, nenhum dos primeiros Padres da Igreja nos diz
que João Evangelista era filho de Zebedeu e havia acompanhado
Jesus em seus deslocamentos pela Galileia. No final do século II,
Irineu, que tinha frequentado na sua juventude o velho Policarpo,
bispo de Esmirna, ouvinte de João, escreve: “Depois dos outros
discípulos, João, o discípulo do Senhor que repousou sobre seu peito,
também deu sua versão do evangelho quando permanecia em
Éfeso”.95 No século III, Orígenes afirmava que ninguém poderia
captar o sentido do seu evangelho, se não soubesse “que João havia
se inclinado sobre o peito de Jesus e recebido de Jesus Maria como
mãe”. Nenhuma alusão desses dois autores aos fatos e gestos do
outro João, aquele do lago.
É um fato histórico pouco contestável que o discípulo bem-amado
tenha terminado sua vida no início do século II em Éfeso. Irineu
precisa que João morreu ali muito idoso, durante o reinado de
Trajano (98-117): “Acrescentamos que a Igreja de Éfeso fundada por
Paulo, e onde João permaneceu até a época de Trajano, também é
uma testemunha autêntica da tradição dos apóstolos”. Seu
contemporâneo, Clemente de Alexandria, explicita que João, de
início exilado na ilha de Patmos (onde ele terminou seu Apocalipse),
esperou o desaparecimento do “tirano” (imperador Domiciano,
morto no ano 96) para voltar a Éfeso. De lá, ele difundiu seu
ensinamento pela região, convidado pelas Igrejas locais, “ora para
estabelecer bispos, ora para ali organizar Igrejas completas, ora
para escolher como eclesiástico um daqueles designados pelo
Espírito”.
Seria problemático pensar que os filhos de Zebedeu conheceram
uma velhice tão tranquila. Os evangelhos de Mateus e de Marcos
relatam, com efeito, como ambos seriam associados à sua Paixão:
“Podeis vós beber o cálice que eu bebo ou receber o batismo com que
eu sou batizado?”.96 Muito provavelmente, no momento em que
esses evangelhos foram difundidos, nos anos 62-63, esses dois
personagens já estavam mortos, e foi presumivelmente o martírio a
que foram submetidos que rememorou o anúncio profético do Mestre
a respeito deles. Para o apóstolo Tiago, o mais velho, temos certeza,
graças aos Atos dos Apóstolos, de que, por volta do ano 44, o rei
Herodes Agripa, neto de Herodes, o Grande, mandou matá-lo “pela
espada”.97 Para João, mais novo que ele, vários indícios apontam
para o mesmo sentido: uma notícia de Papias, transmitida por dois
historiadores gregos, um martirológio siríaco composto no ano 411
que relata o martírio dos dois irmãos em Jerusalém, um livro da
liturgia galicana, um sacramentário irlandês e um manuscrito
conservado na catedral de Trier (Alemanha). O estudo desses textos
pelo padre Marie-Émile Boismard deixa pouco lugar à dúvida.98 João
de Zebedeu, irmão de Tiago, morreu ou durante a perseguição do
ano 43, ou pouco depois.
A confusão das pessoas remonta ao século III, com Dionísio,
bispo de Alexandria. No início do século precedente, Papias falava
ainda de dois Joões. Quando estava em Hierápolis, conta ele,
informava-se sempre sobre o que os viajantes diziam: “Se de algum
lugar vinha alguém que havia estado em companhia dos presbíteros,
eu me informava sobre as palavras dos presbíteros: o que disseram
André, ou Pedro, ou Filipe, ou Tomé, ou Tiago, ou João, ou Mateus,
ou algum outro discípulo do Senhor? O que dizem Ariston e o
presbítero João, discípulo do Senhor? Eu não achava que as coisas
provenientes dos livros fossem tão úteis como aquilo que vem de
uma palavra viva e durável”.
Vamos observar, em primeiro lugar, como era importante a
tradição oral enquanto subsistiam as últimas testemunhas. A
autoridade dos antigos se sobressaía porque eles eram portadores da
tradição viva. Nessa passagem, Papias distingue dois Joões, ambos
colocados na geração apostólica, o primeiro associado a André,
Pedro, Filipe, Tomé, Tiago e Mateus, mortos no momento em que ele
enunciava seu propósito (“é o que se diz…?”), e dois discípulos do
Senhor, Ariston e o presbítero Joões, ainda vivos, visto que ele fala
no presente (“é o que dizem…?”). O primeiro João deve ser
identificado com o filho de Zebedeu, um dos Doze; o segundo, o
presbítero, com o autor do quarto evangelho, cujo prestígio não
havia cessado de crescer à medida que desapareciam os últimos
representantes da geração apostólica.
No entanto, o testemunho essencial da identidade do autor do
quarto evangelho é o de Polícrates, a par das tradições de Éfeso,
onde ele foi bispo, como cinco membros anteriores de sua família.
Seu testemunho é de peso. Ao invocar, numa carta dirigida ao papa
Vítor por volta de 190-198, as “grandes luzes” que haviam se
apagado na Ásia, ele cita Filipe, “um dos Doze, que adormeceu em
Hierápolis” e “João, que repousou sobre o peito do Senhor, que foi
hiéreus [sacerdote] e [a esse título] usou o pétalon [a lâmina de ouro],
testemunha e didaskale [professor]. Ele adormeceu em Éfeso”.
Esse João, então, não é um simples sacerdote da Judeia ou da
Galileia, vindo, como tantos outros, realizar seu serviço por
revezamento no templo. Ele tinha direito ao pétalon, em hebraico tziz
zahab, a “flor”, a lâmina de ouro, insígnia sacerdotal usada sobre o
peito, reservada ao sumo sacerdote da época do Êxodo, mas cujo uso
havia se estendido, talvez, a algumas famílias que proporcionaram
sumos sacerdotes.
Em todo caso, no momento do ministério de Jesus, podemos
representá-lo como um aristocrata jovem e rico.99 Essa é a conclusão
à qual chegava em 1969 o historiador e exegeta Jean Colson no final
de sua investigação sobre L’Énigme du disciple que Jésus aimait [O
enigma sobre o discípulo que Jesus amava].100 Depois, essa tese
convenceu Oscar Cullmann, François Le Quéré, Joseph A. Grassi,
James H. Charlesworth, Xavier Léon-Dufou,101 etc.

Data e origem do evangelho de João


Qual data atribuir a esse evangelho? Um papiro de 8,9 centímetros
por 6 centímetros encontrado no Egito, o P52 da Biblioteca
Universitária John Rylands de Manchester, contém os fragmentos
mais antigos desse evangelho.102 Em 1935, o especialista britânico
em papiros, Colin H. Roberts, o datou, com prudência, como sendo
do ano 125. A difusão da obra no final do século I, como afirma a
tradição dos Padres da Igreja, é, portanto, completamente
verossímil. Mas a análise combinada da própria obra e dos dados
dos santos Padres permite aprimorar essa pesquisa.
Algum tempo depois do suplício de Tiago, precipitado do alto do
Templo e lapidado no ano 62, conta Eusébio, os apóstolos e
discípulos que haviam permanecido em Jerusalém foram alvo, por
parte dos judeus, de “mil maquinações destinadas a matá-los”.103 Foi
então que eles decidiram dispersar-se por “todas as nações”, a fim de
levar para elas a Boa Nova. Tomé recebeu, na divisão, o país dos
partos, André, a Cítia, e João, a Ásia Menor (de fato, a parte oeste
da atual Turquia ao redor de Éfeso).
Com toda a verossimilhança, antes de sua partida, ao ver que os
evangelhos de Mateus e de Lucas (talvez aquele de Marcos), já
compostos, não falavam do início do ministério de Jesus, um certo
número de apóstolos pediu a João, que tinha estado com André, um
dos dois primeiros discípulos de João Batista, e depois do próprio
Jesus, para redigir em seu nome um novo relato dos acontecimentos.
[2] João não tinha escrito nada até então, preferindo a pregação.
“Dizem que foi por isso”, prossegue Eusébio, “que foi pedido ao
apóstolo João para transmitir em seu evangelho os episódios que
não foram contados pelos evangelistas precedentes e as ações feitas
pelo Salvador durante esse tempo, quer dizer, antes do
aprisionamento de Batista.”104
Os textos antigos proporcionam um esclarecimento sobre a
maneira pela qual João compôs o seu texto. O primeiro é o Cânone
de Muratori, que leva o nome desse sábio italiano do século XVIII,
Ludovico Antonio Muratori, que o descobriu. Redigido em latim no
século IV, os pesquisadores estabeleceram que era a tradução de um
original, infelizmente truncado, que datava do ano 150,
aproximadamente:

[…] O quarto evangelho, aquele de João, um dos discípulos. Quando seus


condiscípulos e bispos o encorajaram, João disse: “Jejuem comigo três dias
a partir de hoje e aquilo que for revelado a cada um de nós, nós
contaremos.” Naquela noite, foi revelado a André, um dos apóstolos, que
todos deveriam revisar os acontecimentos, mas que João, em seu próprio
nome, deveria escrever tudo… [João] afirma ser não somente uma
testemunha ocular e um ouvinte, mas também aquele que escreveu na ordem
todas as maravilhas que fez o Senhor.105

Os sonhos, como sabemos, eram considerados pelos hebreus como


um modo habitual de comunicação com o Céu, quando Deus queria
transmitir aos humanos uma mensagem importante.
Clemente de Alexandria une-se ao Cânone de Muratori: “Ao ver
que os outros haviam relatado somente os fatos materiais, João, o
último de todos, encorajado por seus amigos e divinamente inspirado
pelo Espírito Santo, escreve o evangelho espiritual”. Deixemos de lado
a oposição um pouco artificial entre fatos materiais e evangelho
espiritual. O que é importante notar é o encorajamento de seus
“amigos” e a inspiração divina. Um eco semelhante é encontrado em
Epifânio, um contemporâneo de são Jerônimo: João, de início,
recusou-se a escrever, mas foi obrigado a fazê-lo pelo Espírito Santo.
Tudo isso tende a provar que o quarto evangelho é uma obra, ao
mesmo tempo, individual e coletiva. Um grupo colaborou na sua
elaboração, pelo menos no plano documental. João não seguiu Jesus
em todos os seus deslocamentos pela Galileia. André e Filipe lhe
contaram a multiplicação dos pães e o discurso sobre o pão da vida,
na sinagoga de Cafarnaum. Em compensação, naquilo que se refere
a Jerusalém, João é uma testemunha ocular, por vezes privilegiada.
Mas ele sabe reconhecer suas dívidas. No prólogo ele escreve: “E o
Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a
glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade”.106 Aqui não
se trata de um plural de modéstia. João expressa a opinião do grupo
que lhe delegou o papel de escrever.
No ano 66 da nossa era, a população cristã de Jerusalém, sobre a
qual os dirigentes tinham sido avisados por uma “revelação”, deixou
a Cidade Santa para refugiar-se do outro lado do Jordão em uma
cidade da Pereia chamada Péla, evitando assim as atrocidades da
guerra judaica que estourou logo em seguida.
O evangelho de João parece ser anterior a esse acontecimento,
assim como é anterior à destruição de Jerusalém, à qual não faz
alusão. Datando, muito provavelmente, dos anos 64-65, reflete a
hostilidade que reinava nessa época na capital religiosa do judaísmo
entre os judeus que permaneceram fiéis ao Templo e os primeiros
cristãos, de origem judaica ou os pagãos convertidos. Quando João
fala dos “judeus” é para designar quer os que habitavam a Judeia,
quer as autoridades de Jerusalém, inimigas de Jesus, autoridades
com as quais ele, o antigo aristocrata do Templo, sentia que havia
rompido. A separação entre os dois grupos, já sensível no final dos
anos 50, se tornou total depois do massacre de Tiago, o “irmão do
Senhor”, e de vários de seus discípulos judaico-cristãos.
Tudo deixa supor que foi em Jerusalém que João escreveu.
Quando ele precisa, a propósito do batismo de Jesus, que “isso se
passou do outro lado do rio Jordão”, ou então quando ele fala de um
deslocamento de Jesus “para o outro lado do mar da Galileia”, é
difícil imaginar que ele já estivesse em Éfeso, porque, se levarmos
em conta a distância de Éfeso até Jerusalém, a ideia de colocar no
texto: desse lado do rio ou do outro lado do rio não tem sentido.107
O bispo anglicano de Woolwich, John A. T. Robinson, que tanto
havia desordenado o pequeno mundo da exegese ao sustentar que
todos os evangelhos eram anteriores à destruição de Jerusalém,
reincidiu ao publicar um livro intitulado: The Priority of John [A
prioridade de João], no qual ele acumula, não sem virtuosidade, os
argumentos que demonstram a grande antiguidade do texto de João
e sua fiabilidade.108
Um erudito, o abade Pierre Courouble, especialista em grego
antigo, percebeu a estranheza de duas frases pronunciadas por
Pôncio Pilatos relatadas por João, quando do processo de Jesus.
“Que acusação trazeis contra este homem?” (tina katègorian phérété
kata tou anthrôpou toutou) e “Aquilo que está escrito está escrito” (ho
guégrapha guégrapha). Elas foram pronunciadas em grego, que era,
nas províncias periféricas do Império, a língua administrativa.
Entretanto, o grego de Pilatos é um grego de má qualidade. E essas
duas frases são afetadas por expressões que não são hebraicas nem
aramaicas, mas latinas. Somente Pilatos poderia pronunciá-las dessa
maneira e cometer essas incorreções, nada graves, certamente, mas
reveladoras.109
O latim só utiliza uma palavra para a forma interrogativa: Quam
(Quam accusationem affertis adversus hominem hunc? “Que acusação
trazeis contra este homem?”). O grego, em compensação, se serve da
palavra tina quando a questão é sobre a identidade de uma pessoa e
poian quando ela se refere ao tipo de delito (“Que espécie de
acusação trazeis?…” Ele matou, ele roubou?). Pilatos comete um
primeiro erro ao utilizar tina. Mais significativo é o erro cometido na
utilização do verbo. O latim fala de “trazer uma acusação”, o grego
diz “fazer uma acusação” (verbo poiein). Em suma, dois latinismos
poluem a primeira frase. O prefeito romano deveria, portanto, ter
dito isto: poian katègorian poieisthé kata tou anthrôpou toutou (em lugar
de: tina katègorian phéréthé kata tou anthrôpou toutou). Na segunda
frase, para expressar uma ação passada e seu resultado, o latim
utiliza um único tempo, o perfeito: scripsi (aquilo que eu escrevi,
escrevi bem). Ora, o grego, ao distinguir os dois aspectos, coloca o
primeiro verbo em aoristo, e o segundo no perfeito. Se o mau aluno
Pilatos tivesse pensado em grego, ele deveria ter dito: ha égraspa
guégrapha (e não ho guégrapha guégrapha).
João, evidentemente, não inventou esses erros para dar um
realce local. Ou algum personagem importante lhe relatou as duas
frases em questão imediatamente depois, ou ele próprio as ouviu,
com os erros. Nesse caso, o jovem membro da alta aristocracia
sacerdotal, de cuja convivência com Jesus e com seus amigos
ninguém suspeitava, estava presente, com a delegação dos sumos
sacerdotes, na entrada do pretório. Talvez ele tenha registrado a
cena sobre papiro ou tabuinhas de argila, imediatamente depois dos
acontecimentos, enquanto sua memória ainda era recente. Essas
notas, antes de serem integradas em seu evangelho, puderam ajudá-
lo no que ele mais gostava de fazer, a pregação.

As duas edições de Éfeso


A primeira versão do evangelho de João terminava com essa
conclusão: “Jesus realizou diante dos discípulos muitos outros sinais
que não estão escritos neste livro. Estes sinais foram escritos para
que vós acreditais que Jesus é o Messias, o Filho de Deus. E para
que, acreditando, vós tenhais a vida em seu nome”.110
Entretanto, no ano 65, um acontecimento inesperado sobrevém,
a morte de Pedro, supliciado por ordem de Nero. Disseram que ele
foi crucificado com a cabeça para baixo, a seu pedido, por
sentimento de indignidade. A desolação foi grande nas comunidades
cristãs. Ela não poupou os discípulos de João. Este, então, sentiu a
necessidade de “reajustar” sua obra, que ainda não tinha sido
difundida.111 Esse foi o objeto do capítulo XXI, acrescentado por
João alguns meses mais tarde como uma segunda conclusão (uma
prática que ele utilizará igualmente em sua primeira epístola). Nela,
ele evoca a aparição de Jesus às margens do lago de Genesaré e uma
discussão entre este, Pedro e ele próprio, o que permite situar suas
relações com o chefe da Igreja. Do capítulo I ao capítulo XX, com
efeito, toda a sua obra estava voltada para um único objetivo
cristológico: mostrar em Jesus de Nazaré o Filho eterno de Deus,
fazer o leitor ter acesso à verdadeira identidade do Salvador. Sua
intenção no capítulo XXI era diferente: tratava-se de definir os
respectivos papéis de Pedro e do discípulo bem-amado na
comunidade dos crentes, talvez uma maneira de integrar melhor
seus discípulos na grande Igreja, aquela de Pedro, que acabava de
sofrer o martírio.112
No momento em que João fazia esse acréscimo, ele ainda não
tinha deixado Jerusalém para aventurar-se pelas regiões do mar
Mediterrâneo e ir até Éfeso. Um pequeno detalhe parece prová-lo.
Quando evoca o lago de Genesaré ou de Tiberíades, ele emprega a
mesma expressão usada no capítulo VI do seu evangelho: “o mar
[thalassa] da Galileia”.113 Devemos observar que essa expressão não
figura em lugar algum no evangelho de Lucas, que conhecia bem o
Mediterrâneo (haYam haGadol, como era chamado pelos judeus, o
“Grande Mar”).
Um testemunho encerra o capítulo XXI: “Este é o discípulo que
testifica destas coisas e as escreveu; e sabemos que o seu testemunho
é verdadeiro”.114 Nesse caso, duas interpretações são possíveis. Para
aqueles que atribuem ao evangelho de João uma redação tardia, esse
testemunho seria aquele da comunidade joânica, ao redor do ancião
de Éfeso. É possível. Mas como os ouvintes de João, que não foram
testemunhas oculares, poderiam dizer honestamente, sinceramente:
“Nós sabemos que o seu testemunho é verdadeiro…”? De que
autoridade superior ao mestre eles poderiam se valer para
autenticar os acontecimentos que não viveram?
Essa aprovação lembra muito aquilo que o Cânone de Muratori
afirma para não fazer pensar em um selo colocado pelo grupo
primitivo. “O Cânone de Muratori”, observa John A. T. Robinson,
que descreve a origem do evangelho, “não sugere nenhuma data,
mas pressupõe que os companheiros discípulos de João, inclusive
André, ainda estão vivos e com ele; o Cânone supõe, portanto, uma
data tardia.”115 Podemos conceder que, no ano 65, alguns
companheiros e discípulos tinham se afastado, mas podemos avaliar
que outros tinham permanecido perto dele, antes da grande partida
dos cristãos de Jerusalém no ano seguinte. João, tendo escrito em
seu nome, cabia a eles confirmar a veracidade do seu texto:
“Este é o discípulo que testifica destas coisas...” (eles só o ajudaram,
fornecendo-lhe informações complementares sobre o ministério de
Jesus na Galileia) “e as escreveu…” (e se ele as escreveu, foi a
pedido deles) “e SABEMOS que seu TESTEMUNHO é verdadeiro”. A
atestação assume seu pleno sentido: eles também foram testemunhas
oculares![3]
Até então, João tinha sempre falado, reunindo os discípulos em
torno dele, aos quais ele relatava no seu estilo inimitável as
palavras, os fatos, os milagres e o ensinamento do Senhor. Polícrates
e Lucas aproveitaram-se disso. É possível que João tenha continuado
assim em Éfeso, sem se ocupar com a publicação de um texto que,
talvez, ele não cessasse de remanejar e de aperfeiçoar. Vimos,
quando falamos de Papias, que os primeiros cristãos preferiam a
palavra de uma testemunha a um texto escrito.
Mas, novamente, as perseguições se abateram sobre os cristãos.
Por volta do ano 94, João, que ocupava uma posição muito exposta
na Ásia Menor, foi exilado para a ilha de Patmos, no arquipélago
das Espórades, por ordem de Domiciano. Foi lá que ele redigiu ou
terminou seu Apocalipse, um texto de prodigiosa riqueza espiritual,
que apresenta numerosas analogias temáticas com seu evangelho,116
mas muito difícil de ser interpretado pelos cristãos atuais de tanto
que é inspirado em visões escatológicas. O Apocalipse é uma
epístola dirigida às sete Igrejas da Ásia Menor estabelecidas durante
seus deslocamentos (Éfeso, Esmirna, Pergamon, Tiatira, Sardes,
Filadélfia, Laodiceia). Talvez a obra estivesse em elaboração há
muito tempo. No Apocalipse, João, diferentemente do que faz no seu
evangelho, não hesita em se nomear; “Eu, João, que também sou
vosso irmão, e companheiro na aflição, e no reino, e paciência de
Jesus Cristo, estava na ilha chamada Patmos, por causa da palavra
de Deus, e pelo testemunho de Jesus Cristo…”. Depois do ano 96,
João volta para Éfeso, que estava sob o domínio do sucessor de
Domiciano, Nerva, e foi lá, segundo o comentador grego Vitorino de
Pettau (século III), que publicou seu livro.
Pouco depois, para responder às doutrinas gnósticas de um certo
Cerinto, presente na ilha de Éfeso, João decidiu difundir seu
Evangelho?117 “Ele queria, com efeito”, escreve Irineu, “pelo
Anúncio do Evangelho, extirpar o engano semeado entre os homens
por Cerinto, e, bem antes dele, por aqueles chamados nicolaítas
(seguidores de Nicolau). Tratava-se de um ramo que havia se
separado da pretensa gnose. João desejava confundi-los e persuadi-
los de que existe um único Deus, que fez todas as coisas por sua
Palavra [seu Verbo].”118
João morreu muito provavelmente no ano 101, durante o
reinado de Trajano, com aproximadamente 90 anos.119 Sabemos que
ele trabalhou os textos intensamente. Depois de seu
desaparecimento, um de seus próximos “editou” a versão definitiva
do seu evangelho, acrescentando nos locais apropriados notas,
trechos de ensaios e variantes de discurso encontrados em seus
papiros. Ele não queria perder nada dos escritos do “discípulo bem-
amado”, não ousando, contudo, fazer junturas próprias para tornar
seus acréscimos invisíveis.120 Esta é a melhor hipótese para explicar
as adições, duplicações ou quase duplicações que percebemos
atualmente no corpo do texto.121
ANEXO IV
Historicidade dos evangelhos

A comunidade criadora?
É preciso reconhecer que a dúvida e a desconfiança foram levadas
até o absurdo. Numerosos pesquisadores, sem prova para apoiá-los,
consideraram os evangelhos fontes altamente suspeitas, que
deveriam ser rejeitadas na sua totalidade. Seu guru, Rudolf
Bultmann, no início do século XX, considerava os evangelhos
produções imaginárias, fabulações tardias das comunidades, e que
eram destinados a responder aos desafios que tinham que enfrentar
(“somente a comunidade é criativa”, martelava o guru). Seu
empreendimento demolidor só concedia a Jesus um pequeno número
de palavras autênticas. Sem adotar o conjunto de suas conclusões,
muitos exegetas contemporâneos conservaram sua técnica de
aproximação aos textos, observando elementos separados em
periscópios e dissecando-os com escalpelos, em busca de “camadas
redacionais” sempre mais primitivas. Assim, em alguns decênios,
passou-se de um excesso a outro, da recusa amedrontada da menor
crítica à generalização da suspeita. A história se acautelará diante de
um ceticismo metodológico tão radical, ainda que o método
histórico-crítico permaneça globalmente pertinente.
Quais são as aquisições dessa investigação? Os evangelhos
sinópticos — com exceção do “núcleo” central de Mateus — não
foram escritos por testemunhas oculares, mas por cristãos que se
relacionavam com elas: um escriba anônimo, discípulo do publicano
Mateus; Lucas, o “caro médico” de Antioquia, colaborador próximo
de Paulo; João, chamado Marcos, o secretário intérprete de Pedro.
Redigidos entre os anos 62 e 64, pertencentes à geração apostólica,
seus escritos deviam gozar de uma credibilidade relativamente boa
no seio das primeiras comunidades cristãs. Suas diferenças são
explicadas pela personalidade de cada autor e pelos grupos
religiosos ou étnicos aos quais eles se dirigiam: judeus do Oriente
Médio para Mateus, pagãos de cultura grega para Lucas e pagãos
que viviam na península itálica para Marcos.
Quanto a João, trata-se de uma testemunha ocular da mais alta
importância. Membro da aristocracia religiosa, ele foi venerado
como mestre por uma escola de ouvintes, antes de morrer muito
idoso em Éfeso. Seu evangelho, escrito em duas etapas, ao que
parece, por volta dos anos 64-65, talvez difundido tardiamente, por
volta do ano 98, e com uma versão completada depois da sua morte,
incorpora as informações que lhe foram dadas por alguns apóstolos
da Galileia: André, irmão de Pedro, e os que ele cita várias vezes,
Natanael, Filipe e Tomé.
Tudo isso mostra a priori uma grande proximidade dos evangelhos
com os acontecimentos que eles relatam. Mas isso é uma garantia
suficiente para ter acesso à verdade? Para saber se podemos utilizá-
los como fontes de informações fiáveis e reconstituir, graças a eles,
uma cronologia plausível, é importante estabelecer sua verdadeira
relação com a história: eles alteraram ou não os dados originais com
embelezamentos narrativos, tendo em vista uma resposta à sua
reflexão teológica?
É certo que os evangelistas não estavam interessados em escrever
uma biografia exaustiva de Jesus, ainda que tivessem à sua
disposição um grande número de informações que nós não temos
mais. Houve, como sempre, uma perda ao nível dos textos. O
próprio João diz isso, com a ênfase oriental que o caracteriza: “Jesus
fez ainda muitas outras coisas. Se elas fossem redigidas uma a uma,
penso que não caberiam no mundo os livros que seriam escritos”.122
Que os autores tenham realizado certa triagem, retendo da
existência de Jesus o que lhes parecia útil para seu projeto, é uma
evidência. Se os primeiros cristãos, por exemplo, se referiram às suas
curas, é porque pensavam que ele podia ainda em seu tempo agir e
renovar esse ato de salvação. É provável que tenham feito
adaptações, até mesmo algumas distorções aqui e ali, devido ao
novo contexto. Pensamos, por exemplo, na utilização, mais do que
na reutilização, pelas comunidades crentes das parábolas originais,
fora de seu contexto e por vezes de seu sentido primeiro.123 Um
comportamento que, de resto, nada tem de ilegítimo, visto que as
palavras e os atos de Jesus se prestam a uma multiplicidade de
interpretações. Atualizar não é trair. Senão, não haveria mais
homilias nas igrejas!
Daí a pretender que a maior parte dos discursos e dos fatos tenha
sido forjado a posteriori há um passo que não poderia ser transposto.
Se tivesse sido assim, os primeiros cristãos teriam colocado na boca
de seu Mestre palavras que respondiam às suas preocupações: seria
preciso obrigar os pagãos a se converter em massa à lei de Moisés, a
respeitar as proibições rituais, a circuncisão, o sabá, as festas
judaicas? Podia-se comer junto a eles? Ora, sobre esses assuntos, as
opiniões eram divergentes e os confrontos por vezes acirrados. Ao
passo que, para Paulo, o Cristo havia tornado ultrapassada a Lei
antiga, para os judeus cristãos ela devia continuar a ser aplicada
integralmente. Foram adotados compromissos. O silêncio dos
evangelistas prova o seu respeito escrupuloso pelo ensinamento de
Jesus, que não havia deixado nenhuma exposição normativa sobre
tais questões. Daí os propósitos aparentemente contraditórios do
Mestre. Quando do envio dos apóstolos em missão, ele não tinha
dito: “Não tomeis o caminho dos pagãos”? Agradou a Mateus
mencionar o fato. Mas Jesus ressuscitado não lhes havia igualmente
pedido: “Façamos discípulos em todas as nações”? Não nos
esqueçamos disso também.
Esse respeito dos evangelistas estava inscrito em seu amor pela
verdade, sua rejeição pelos “falsos profetas” e suas “perniciosas
heresias”. “E, se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta
profecia, Deus tirará a sua parte do livro da vida, e da cidade santa,
e das coisas que estão escritas neste livro”.124
Certamente, a Igreja primitiva por vezes atenuou alguns fatos
embaraçosos para sua pregação, como o batismo de Jesus por João
Batista ou a traição de Judas, mas ela não hesitou em relatá-los. Ela
relatou o escândalo da cruz, suplício infame reservado aos escravos,
ou a renegação de Pedro, esse “rochedo” que devia fortalecer a fé de
seus irmãos!
As fisionomias do Cristo propostas pelos evangelhos diferem.
Sem negligenciar a filiação divina de Jesus, Mateus e Lucas,
partindo de uma cristologia ascendente, o descrevem como o
Messias de Israel. João insiste sobre a encarnação do Verbo de Deus,
sua unidade com o Pai (“Quem me vê, vê o Pai”) e apresenta uma
cristologia descendente que inclui a preexistência do Cristo no
mundo (“Antes que Abraão fosse, eu sou!”). No seu relato da Paixão,
Marcos e Mateus mostram um Jesus abandonado pelos seus,
enfrentando a morte e o sofrimento sozinho. Colocando em relevo o
valor de salvação de seu sacrifício, Lucas mostra o poder de cura e
de perdão de Jesus até enquanto caminha para a morte. João,
depois que os “judeus” e o “mundo” recusam a oferta de salvação de
Jesus, considera a Paixão e a cruz como um caminho de glorificação
do Filho pelo Pai, livremente aceito. Tais perspectivas com
tonalidades e colorações teológicas diferentes, longe de se oporem,
completam-se. A Igreja, desde os primeiros tempos, reconheceu Jesus
como verdadeiro homem e verdadeiro Deus, antes mesmo de
enunciar os dogmas (essas ramificações que a razão considera como
um mistério, sem poder uni-las completamente).

Como “funcionam” os sinópticos?


Só pode reconstruir a vida de Jesus ao preço de uma apreensão
exata do funcionamento dos textos, sabendo que os escritores do
século I viviam num universo cultural radicalmente diferente do
nosso. Um ponto importante é compreender que os sinópticos não
inventaram o Novo Testamento a partir do Velho, imaginando
episódios com a única finalidade de mostrar a realização de antigas
profecias. O que eles descrevem não é uma criação cenográfica
produzida pela Escritura. As citações bíblicas de que se servem não
dão nascimento ao relato, mas vêm, ao contrário, apoiá-lo. No
pensamento judaico, a Sagrada Escritura é um jogo de
correspondências, com constantes idas e voltas no tempo. O passado
esclarece o presente. Esse é o propósito de qualquer civilização
tradicional, porém, mais ainda do povo de Deus, portador da
Palavra revelada: “Na época”, observa o dominicano Olivier-Thomas
Venard, “o cumprimento das Escrituras, mais que um tema, é uma
prática: as pessoas pensam, falam ‘em Escritura’!”125 Esse é o
procedimento do péschèr, utilizado em Qumran, que consiste em
descrever uma situação presente inspirando-se numa passagem da
Bíblia hebraica. Essa preocupação de atualização é encontrada em
Lucas e Marcos, e principalmente em Mateus. Para mostrar que
Jesus, filho de Davi e Salvador, realiza profecias, Mateus convoca os
profetas Miqueias, Oseias, Jeremias, Isaías e multiplica as citações
“de realizações” (“tudo isso aconteceu para que sejam cumpridas as
palavras do profeta…”).
Os redatores dos evangelhos sinópticos, portanto, fizeram um
trabalho de natureza “tipológica”, que busca no Primeiro
Testamento a revelação antecipada do Novo. Eles puseram em
paralelo os episódios, escreveram os relatos de milagres ou de cenas
da vida de Cristo com a ajuda do vocabulário da Bíblia hebraica,
particularmente de sua tradução grega, a Septuaginta. É a
meditação sobre a vida de Jesus que os impulsiona a examinar
cuidadosa e minuciosamente os textos sagrados e a explorar seus
diversos sentidos. Que o episódio da ressurreição do filho da viúva
de Sarepta, descrito por Elias, tenha servido a Lucas de modelo para
o episódio da reanimação do filho da viúva de Naim não retira nada
da realidade que ele ouviu descrita. Que passagens do Livro dos Reis
tenham sido utilizadas para redigir o relato da ressurreição da filha
de Jairo, ou para o da multiplicação dos pães, não há nada de
espantoso: tratava-se de mostrar que Jesus havia desejado seguir os
passos de Elias e de Eliseu.126 Não foi porque havia sido anunciado
que o Servidor sofredor seria tratado como um ladrão que os
evangelistas inventaram a morte de Jesus entre dois ladrões. Não foi
porque o cordeiro pascal devia ser imolado sem ter os ossos
quebrados que João observou que os romanos se abstiveram de dar
golpes com barras nas pernas de Jesus, quando este estava na cruz.
Uma coisa é considerar que os escritos veterotestamentários
influenciaram com seu vocabulário e suas imagens a apresentação
dos textos, e outra é pretender que estes sejam fruto de uma
atualização artificial da literatura judaica. A historicidade dos
evangelhos não sofre com essa dissimulação que, aliás, permanece
discreta. Os autores sagrados contentaram-se quase sempre com
simples alusões, cuja única finalidade era ilustrar o enraizamento
bíblico do drama, a dimensão escriturária da salvação, na plenitude
do seu sentido.

João: história e simbolismo


Vamos nos desembaraçar, também para o evangelho de João, da
teoria segundo a qual ele teria organizado seus relatos e discursos
unicamente em função da controvérsia que opunha as comunidades
joânicas à Sinagoga, nos anos 80-100. Tratando-se de uma
testemunha, isso evidentemente não tem sentido algum! Foi apenas
recentemente que a solidez histórica de seu escrito foi percebida.
Todos os que, nesses últimos decênios, examinaram o escrito em
detalhe, ficaram impressionados com a diferença entre a sua difusão
tardia e o conteúdo demasiadamente arcaico dos dados fornecidos,
reflexos “cristalizados” ou “fossilizados” das condições geográficas,
políticas e religiosas do mundo palestino, riscados do mapa no ano
70 d. C., desde Charles Harold Dodd a Xavier Léon-Dufour, ambos
autores de comentários importantes sobre o quarto evangelho,
passando por John E. Hunter, Bruce Schein, René Kieffer, Schalom
Ben-Chorin, Ignace de La Potterie, Jacqueline Genot-Bismuth e
muitos outros. Difundido muito tarde, o evangelho parece ter sido
escrito cedo, imediatamente depois dos evangelhos sinópticos.
João tem uma maneira particular de tratar a história. Os
acontecimentos estão repletos de alcance simbólico e grande
densidade teológica, que só se revelam por meio da reflexão. A
verdade é diferente daquela que percebemos num primeiro
momento, e disso decorrem os desentendimentos múltiplos e as
situações invertidas. É preciso não julgar pelas aparências, mas
segundo um “julgamento justo”, procurando o significado oculto dos
fatos. É nisso que reside a ironia joânica.
Constantemente, o plano histórico se vê ultrapassado por um
plano teológico, ao qual somente a luz da Ressurreição permite dar
acesso. Como um organista veterano, João toca diferentes teclados:
a lembrança concreta da testemunha e a contemplação invisível do
mistério pelo crente. Ele não tem como objetivo contar tudo o que
sabe sobre Jesus com a única finalidade de satisfazer a curiosidade
de seus ouvintes. Seus relatos, cuidadosamente construídos, estão
impregnados de intenções teológicas subjacentes. Um personagem
real é colocado em cena para encarnar um grupo ou expressar uma
ideia. Ele tem valor de arquétipo.
O historiador não poderia se queixar desse desdobramento de
perspectivas, porque, para que esse “sistema” literário funcione, é
preciso necessariamente que os acontecimentos relatados sejam
autênticos. A base visível, sensível, material, portanto, é de grande
importância. Nenhuma cena é fictícia, alegórica ou mítica. O quarto
evangelho, no seu conjunto, é uma teologia da Encarnação. João
não engana com os fatos. Ele não é um romancista que compõe
cenas imaginárias. Relata o que viu ou o que lhe contaram os que o
estimularam a escrever. A verdade se revela por meio de toda a vida
de Jesus, nas grandes ações, assim como nos menores detalhes. São
os “sinais”. O objetivo final é levar o leitor a interrogar-se e a
acreditar. João é uma testemunha “empenhada”, mas de boa-fé. Da
mesma forma que os autores dos evangelhos sinópticos, ele não
fabrica o acontecimento para fazê-lo coincidir com a Bíblia hebraica.
Impregnado da cultura das Sagradas Escrituras, ele utiliza essa
Bíblia hebraica para a composição de seus textos porque, para ele
também, o passado e a fé de Israel aclaram, ou melhor, iluminam o
presente.
O problema é que João, que aprecia particularmente os
simbolismos dramáticos, tem a tendência de simplificar ao extremo
suas descrições. Tomemos as bodas de Caná: não sabemos quem se
casa, nem os laços de parentesco entre os noivos e a família de
Jesus. O relato é depurado, reduzido à sua expressão mais simples, a
ponto de ser apenas escassamente explorável. O que importa é a
lição teológica que decorre das bodas. Trata-se menos de narrar o
acontecimento do que de alcançar, por meio dele, a verdade nas
suas profundezas ontológicas.127 Por essa razão, ele não é um mito.
Aqueles que consideram o episódio de Caná como um midrash
judaico, isto é, uma fábula carregada de ensinamento, enganam-se
porque negligenciam o funcionamento geral do evangelho, provido
de seus dois planos distintos, sempre presentes: a realidade material
e o símbolo. Dito isso, às vezes é preciso desconfiar de sua maneira
de tratar a história: como diz Raymond E. Brown, sua
reinterpretação da Paixão, “apagando o sofrimento do supliciado em
nome de uma cristologia da glória, é impressionante”.
Contrariamente ao evangelho de João, destinado a ser lido e
plenamente compreendido por uma elite intelectual, os evangelhos
sinópticos foram escritos para serem ouvidos em assembleia
comunitária. Disso decorrem suas perspectivas litúrgicas, que, por
vezes, fazem desaparecer a materialidade dos fatos em proveito de
uma verdade superior. A proclamação pastoral do querigma é mais
importante do que a exatidão histórica perfeita. Com um objetivo de
simplificação, por exemplo, os evangelhos tomaram liberdades
evidentes em relação à cronologia. Para Mateus, Marcos e Lucas, o
ministério de Jesus, que se estende por apenas um ano, é organizado
de maneira esquemática: depois do anúncio de João Batista, o
Precursor, e do batismo de Jesus, desenvolve-se o ministério na
Galileia, entrecortado por alguns deslocamentos para regiões pagãs.
O todo termina com a subida para Jerusalém e a Paixão. Nesse
âmbito puramente literário, os evangelistas distribuíram por temas
ou segundo sua natureza as pequenas unidades escritas (perícopes),
modificando ligeiramente, conforme a necessidade da estrutura, o
texto em aramaico de Mateus — já artificial. Eles buscaram uma
ordem lógica e não histórica. No evangelho de João, a vida pública
de Jesus dura um pouco mais de três anos.
Da mesma forma, os evangelhos sinópticos reagruparam de
maneira didática e espetacular as tentações de Jesus no início do seu
ministério, sob a forma de uma parábola que, evidentemente, não
tem nada de histórico: tentação de bens materiais, tentação de
poder, desvio do objetivo divino, tentação da glória terrestre.
Alguns, convencidos da realidade do episódio — inclusive do
transporte de Jesus nos ares até o pináculo do Templo —,
espantaram-se ao ver os evangelistas, que evidentemente não foram
testemunhas desse prodígio diabólico, relatar o diálogo entre Jesus e
o Tentador!
De uma ótica litúrgica, os evangelhos sinópticos fazem coincidir
a instituição da eucaristia com a refeição pascal, indo a ponto de
deslocar um dia o desenvolvimento do drama final: no dia 15 do mês
de Nisã, dia da Páscoa judaica, Jesus teria comparecido diante de
Pilatos antes de ser crucificado. Historicamente, essa apresentação é
difícil de ser sustentada: como considerar um processo e uma
execução de Jesus no dia de uma festa tão importante?128 João
parece ser mais exato: Jesus teria reunido seus discípulos para uma
refeição de despedida no dia 13 de Nisã, e teria sido crucificado no
dia seguinte, 14, na véspera da Páscoa judaica.
Os mesmos que se perguntavam como os evangelistas teriam
tomado conhecimento do diálogo entre Jesus e Satanás, interrogam-
se: como eles puderam relatar a prece de Jesus em Getsêmani, visto
que os discípulos dormiam, e que, temos certeza dessa vez, Jesus não
teve tempo de dizê-la a eles, pois foi detido imediatamente depois?
Houve, é claro, uma reconstrução narrativa do acontecimento. Nesse
caso, também a versão joânica, muito mais elíptica, é verdade, está
mais bem situada.
Os evangelhos sinópticos, em suma, instituíram o processo de
Jesus como uma ficção teológica, reunindo em uma sessão solene do
Sinédrio, o Grande Conselho de Israel, os principais temas de
oposição entre as autoridades religiosas de sua época e Jesus. A
leitura do evangelho de João nos faz compreender que jamais houve
o comparecimento de Jesus diante dessa assembleia de elevada
categoria, tampouco condenação legal foi pronunciada por ela. A
controvérsia com o judaísmo, na versão dos fariseus ou dos saduceus,
desenrola-se continuamente.
Os evangelhos não cumprem, portanto, um papel informativo.
Cada um deles obedece à sua lógica própria. É por isso que é preciso
ter cuidado com uma harmonização ingênua de seus relatos,
preenchendo as omissões de um com informações de outro.129 É
preciso fazer escolhas.

Os evangelhos, fontes principais de uma história de Jesus


Passemos a um resumo. Ao colocar por escrito o testemunho da
primeira geração apostólica, os três evangelhos sinópticos devem ser
considerados como obras razoavelmente confiáveis, historicamente
dignas de fé, mesmo que eles tenham tomado liberdades evidentes
com a cronologia. Portadores de um verdadeiro projeto de escrita,
seus autores fizeram uma obra pessoal. Redigidos num estilo literário
particular, refletindo as necessidades litúrgicas de sua respectiva
comunidade, esses textos foram difundidos cerca de trinta anos
depois da Crucificação, a partir de uma documentação escrita e de
relatos orais. Sua escrita é oriunda da retórica oriental, que obedece
a leis específicas de composição. Levando em conta a preocupação
principal das primeiras Igrejas cristãs, preocupadas em manter
intactas as lembranças do Senhor, levando em conta também as
técnicas de memorização e as compilações de resumos que
precederam os evangelhos, esse intervalo de trinta anos é
relativamente curto, limitando, assim, os riscos de deformação.
Naquela época, a geração das testemunhas que tinha conhecido e
seguido Jesus, assistido a seus milagres, que afirma tê-lo visto depois
da Ressurreição, ainda não havia desaparecido. Se os evangelistas
tivessem pregado o falso, contado extravagâncias, inserido
informações fantasiosas em seu texto, sem dúvida teriam sido
desmentidos e desqualificados pelas testemunhas dos primeiros
tempos. Em 62-63, no momento em que, segundo toda a
probabilidade, os evangelhos sinópticos foram redigidos, um homem
que tivesse seguido Jesus e escutado seu ensinamento com a idade de
vinte anos teria apenas cinquenta e dois ou cinquenta e três anos.
Nos anos 50, Paulo, na sua Primeira Epístola aos Coríntios,
assinalava numerosos sobreviventes: Jesus, ele dizia: “Depois, foi
visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a
maioria sobrevive até agora; porém alguns já dormem”. Uma dezena
de anos mais tarde, os sobreviventes, com certeza, eram menos
numerosos, mas nem todos haviam desaparecido. A experiência
vivida e compartilhada havia abalado sua vida para sempre. É difícil
imaginar, nesse contexto, que os evangelistas, cujo objetivo era fixar
por escrito as “memórias dos apóstolos”, segundo a fórmula de
Justino, tenham começado a fabular, a forjar relatos completamente
inventados.
Subsiste, entretanto, em todos os evangelhos sinópticos, certo véu
que os separa da realidade, porque são reconstituições muito
estilizadas, e seria provavelmente cair num literalismo considerar
como exatas suas sequências cronológicas. Por outro lado, eles
apresentam contradições entre si — puramente fatuais,
convenhamos —, mas que não deixam de dizer respeito à trama do
relato. O evangelho de João, uma testemunha de primeira mão,
libera-nos daquilo que o americano Charles W. Hedrick chamou “a
tirania do Jesus dos sinópticos”, que prevaleceu durante muito
tempo.130 É preciso compreender que não se trata de desvalorizar no
plano espiritual os textos de Mateus, Lucas e Marcos, de colocar em
questão a profundidade de sua riqueza meditativa, sua perspectiva
teológica ou sua atitude de catequese. Nós nos situamos sobre um
plano puramente histórico.
Em relação a isso, o texto de João, irrigado pela história, se
revela claramente superior e mais importante na precisão. Podemos
perceber que seu texto foi longamente meditado, primeiro ensinado,
antes de ter sido posto por escrito, e que ele é a obra de uma vida.
Sabemos da importância que João atribui à verdade, à autenticidade
absoluta dos fatos relatados. Nós nos encontramos nos antípodas de
um evangelho puramente espiritual, que é muito hábil com os
símbolos. Infelizmente para a nossa conduta, o autor do quarto
evangelho, testemunha ocular, é avaro com as precisões. Ele se
interessa somente por alguns fragmentos de realidade, que capta
com uma arte sublime e transcende com uma genialidade que só ele
tem.
A descoberta do abade Courouble sobre o grego de Pilatos é um
indício da grande antiguidade e da confiabilidade do evangelho de
João. Mas ela permite ir mais além. Se o discípulo bem-amado
relatou dessa maneira, com uma exatidão que impressiona, as breves
palavras do prefeito romano, podemos supor que os discursos de
Jesus, longamente reproduzidos, também não foram inventados. Não
são palavrórios fictícios à maneira de Tito Lívio, mesmo que,
certamente, ele os tenha reproduzido no seu estilo tão característico.
João confia em sua memória e no “espírito de verdade” que o
habita. Algumas palavras, algumas fórmulas lapidares foram,
provavelmente, retidas no seu literalismo estrito.
Os evangelhos sinópticos e o de João estão longe de ser
contraditórios. Eles se completam, visto que Lucas, cuja vontade de
fazer uma obra histórica é mais manifesta, incorporou em seu texto
uma parte do ensinamento oral do discípulo bem-amado. Este não
armazenou tudo, então, os complementos de Lucas são
indispensáveis. Dito isso, quando uma contradição aparece entre os
evangelhos sinópticos e o de João, achamos razoável escolher a
versão do último.

Cristianismo e antissemitismo
Um fato é certo, a identidade judaica de Jesus e a origem hebraica
do cristianismo intimamente ligado à espera do povo da Promessa
foram negligenciadas e até mesmo ocultadas durante séculos, com as
consequências desastrosas que conhecemos. Jesus era judeu
“segundo a carne”. Nascido sob a Lei, circuncidado, viveu sob a Lei;
Maria, sua mãe, era judia, assim como toda a sua família. Judeu
igualmente era João Batista, como os apóstolos e os primeiros
discípulos… O Evangelho saiu da Bíblia hebraica, à qual ele se refere
constantemente. Os cristãos receberam de seus irmãos mais velhos
judeus a fé no Deus único de Abraão, de Isaac e de Jacó.
As primeiras comunidades eram compostas por judeus
convertidos que permaneciam fiéis à lei mosaica, à circuncisão, ao
repouso no sabá e às preces no Templo, contentando-se em “quebrar
o pão” em suas casas, segundo o rito eucarístico instaurado pelo
Cristo. Essas comunidades se dispersaram nos meios judaicos da
Palestina e da diáspora. Provavelmente, elas foram perseguidas por
outros judeus, chefes dos sacerdotes de Jerusalém e pelos fariseus.
Antes de sua fulgurante conversão, Saulo de Tarso, o futuro Paulo,
foi de início um dos agentes mais ativos dessas autoridades. Mas os
cristãos por sua vez, se tornaram perseguidores e acusadores, com
ainda maior obstinação.
A partir do século II, a tradição cristã assumiu com força o
antijudaísmo, diminuindo, por exemplo, a responsabilidade de
Pilatos na morte de Jesus, em detrimento dos judeus. Testemunham
esse fato a epístola dita de Barnabé, os escritos de Melito de Sardes
ou o evangelho apócrifo de Pedro. Na mesma época, Justino Mártir
reprovava ao rabino Trifão: “Vocês o crucificaram, o único
irrepreensível e justo… Vocês levaram ao auge sua perversidade, ao
odiar o Justo que vocês mataram”.131 Os ataques se intensificaram
com o Adversus Judaeos [Contra os Judeus] de Tertuliano, os
Testimonia [Testemunhos] de Cipriano e as Homilias de João
Crisóstomo. Gregório de Nissa lançou imprecações terríveis contra os
judeus, vítimas da maldição divina: “Assassinos do Senhor,
assassinos dos profetas, rebeldes e odiosos diante de Deus, eles
ultrajam a Lei, resistem à graça, repudiam a fé de seus pais.
Comparsas do diabo, raça de víboras, delatores, caluniadores, de
cérebro obscuro, fermentos farisaicos, sinédrios do demônio,
malditos execráveis, lapidadores, inimigos de tudo que é belo…”.
Por volta do século IV apareceu a acusação de “povo deicida”,
imputando aos judeus de todos os tempos a responsabilidade
coletiva e perpétua pela Crucificação. Propósito infinitamente mais
grave, levando em conta as suas consequências históricas, do que
acusar os ingleses de ter queimado Joana d’Arc!
Essa repulsa não ia até o ponto de desejar o extermínio do antigo
povo eleito. Com Jerônimo e Agostinho, sabia-se que Israel seria
resgatada pela misericórdia divina no final dos tempos. Na origem
desse primeiro antijudaísmo cristão, não havia nenhum racismo. No
breviário da Didascália, que data do final do século II, os fiéis eram
convidados a orar e jejuar pelos judeus. Essa inspiração será
reencontrada na fórmula da prece da Sexta-Feira Santa para os
“judeus pérfidos” (perfidis judaeis). O vocábulo perfidus era, na
origem, sinônimo de infiel ou de incrédulo, mas é evidente que ele
era ouvido de outra forma, até sua supressão pelo papa João XXIII.
Devemos acrescentar que o mundo protestante também não esteve
isento dessa ira raivosa. Os propósitos de Martinho Lutero se
juntavam, por sua violência, aos de João Crisóstomo ou de Gregório
de Nissa.
Como reação, o Concílio de Trento (1545-1563) afirmou que
eram os cristãos pecadores, mais que os judeus, que assentaram
sobre Jesus suas “mãos deicidas”. O catecismo do Concílio de Trento
imputava à humanidade inteira a responsabilidade pela morte do
Salvador: “São os nossos crimes que fizeram com que Nosso Senhor
Jesus Cristo sofresse o suplício da cruz”. Mas a condenação formal
do antissemitismo só se concretiza pelo decreto do Santo Ofício de
25 de maio de 1928. “Espiritualmente, nós somos semitas”, dirá com
ênfase o papa Pio XI, dez anos mais tarde.
Um “ensinamento do desprezo”, para retomar a fórmula do
historiador Jules Isaac, prevaleceu portanto nas Igrejas católica e
ortodoxa. Seguiram-se humilhações, ostracismos, agressões e
assassinatos terríveis. No século XX, se é evidente que o racismo de
Hitler, marcado por um paganismo antimonoteísta, tem origens
intelectuais e ideológicas radicalmente diferentes, não se pode negar
a responsabilidade de alguns cristãos na atmosfera antissemita que
conduziu ao Holocausto na Europa.
Há cinquenta anos, as coisas mudaram. Com vigor, o Concílio
Vaticano II, João XXIII, depois todos os papas, de Paulo VI a Bento
XVI, condenaram firmemente o antissemitismo. A constituição Nostra
Aetate do Concílio Vaticano II é clara a respeito desse assunto: “É
verdade que as autoridades judaicas e aqueles que seguiram a sua
liderança tenham pressionado pela morte de Cristo (João, 19,6),
ainda assim, o que aconteceu na sua Paixão não pode ser imputado
a todos os judeus sem distinção, então vivos, nem aos judeus de hoje.
Embora a Igreja seja o novo povo de Deus, os judeus não devem ser
apresentados como rejeitados, ou amaldiçoados por Deus, como se
isso decorresse das Sagradas Escrituras… Além disso, em sua rejeição
de toda perseguição a qualquer homem, a Igreja, consciente do
patrimônio que compartilha com os judeus e não movida por razões
políticas, mas pelo amor espiritual do Evangelho, denuncia o ódio,
as perseguições, as demonstrações de antissemitismo, dirigidos
contra judeus, a qualquer momento e por qualquer pessoa”.132
Depois disso, estabeleceu-se entre os representantes do judaísmo e
do cristianismo um diálogo frutífero fundamentado sobre o respeito
mútuo.
A descoberta recente da “identidade judaica” de Jesus é uma das
maiores contribuições da pesquisa histórica desses últimos decênios.
No século XX, sábios judeus, como Joseph Klausner, David Flusser,
Schalom Ben-Chorin, ampliaram nossos conhecimentos nesse
domínio, mostrando que Jesus foi um completo judeu. A mesma
constatação foi feita na França pelo biblicista André Chouraqui e
Jacqueline Genot-Bismuth, ou nos Estados Unidos, pelo historiador e
rabino Jacob Neusner.
Vamos voltar aos evangelhos. Certamente, nenhum deles fala do
“povo deicida”. Não poderíamos acusá-los de serem escritos
“antissemitas”, no sentido étnico e moderno do termo. Três de seus
autores, Mateus, Marcos e João, eram judeus e o quarto, Lucas, um
pagão convertido ao judaísmo. Como, provavelmente, todos os
evangelhos foram escritos antes da queda de Jerusalém, no ano 70,
eles só poderiam atribuir culpa ao judaísmo pré-rabínico. Podemos,
talvez, detectar nos evangelhos ataques aos fariseus, até mesmo
algumas indiretas antijudaicas, com uma tendência visível,
principalmente em Mateus, a generalizar ou a endurecer o quadro,
tendência que é reencontrada em certas passagens dos Atos dos
Apóstolos; mas esses ataques se situam no interior de um sistema
fechado, hoje desaparecido, o judaísmo do Segundo Templo, em que
os debates entre as diferentes escolas eram muito mais vivos, muito
mais diversificados do que teríamos pensado, como mostraram os
manuscritos do Mar Morto.
Foi muito reprovado ao evangelho de João, publicado mais
tardiamente, seus ataques contra os “judeus”, apresentados como
uma entidade coletiva que rejeita o Cristo e seu ensinamento. É
preciso não se equivocar sobre essa denominação. Na maior parte do
tempo, o evangelista, antigo hierarca hierosolimita, ao romper
relações ou distanciar-se de seu próprio meio, designa como “judeus”
as altas autoridades da Judeia, os sumos sacerdotes e seus fanáticos.
De modo algum ele acusa o povo judeu no seu conjunto. Não é ele o
único a citar a frase de Jesus: “A salvação vem dos judeus”?
Na verdade, judeus e cristãos têm o mesmo enraizamento
histórico: a Palestina do século I. Os cristãos deram ao seu
movimento uma orientação diferente daquela dos outros grupos
judaicos da época, mas, no início, eles não estavam tão afastados,
particularmente dos fariseus, com os quais partilhavam sua crença
na ressurreição. O judaísmo de hoje busca a mesma fonte. Se deriva
do movimento fariseu da época do Segundo Templo, ele não pode
ser totalmente assimilado a esse movimento. Assim, eles são dois
movimentos de mesma origem que evoluíram de maneira
divergente. Mas André Paul, biblicista e historiador, disse bem: a
ruptura entre eles era inevitável, por causa do fato singular e da
pessoa do fundador do cristianismo.133 Jesus observava a Lei e os
Profetas, ao mesmo tempo em que os transcendia.
Os quatro evangelhos são certamente o nosso principal guia e a
nossa principal fonte para reconstituir o Jesus histórico. No entanto,
outras fontes não devem ser negligenciadas.
ANEXO V
O Qumran e os manuscritos do Mar Morto

Uma descoberta impressionante


Na primavera de 1947, quando a Palestina ainda se encontrava sob
o mandato britânico, um jovem beduíno da tribo seminômade dos
Ta’âmireh, Mohammad edh-Dhi’d, “Mohammad, o Lobo”, fazia
pastar seu rebanho de cabras nas cercanias de Khirbet Qumran (as
ruínas de Qumran), sobre a superfície mais ou menos plana e
margosa que dominava o horizonte, numa paisagem admirável e
desolada com uma beleza espetacular e austera, o azul intenso das
águas salgadas do Mar Morto. Partindo para procurar uma de suas
ovelhas desgarradas, ele percebeu, na lateral de um penhasco
rochoso, ocre e tortuoso, uma cavidade num rochedo de acesso muito
difícil, onde o animal poderia ter se refugiado. Voltou ao local, no
dia seguinte, em companhia de seu primo Ahmad Mohammed.
Erguendo-se para a caverna, com a ajuda de uma corda, os dois
jovens não encontraram a cabra, mas, tateando na penumbra,
descobriram oito jarros de argila fechados com tampas, assim como
restos de cerca de cinquenta outras… Essas jarras continham rolos
de couro cobertos por uma escrita estranha. Colocados a par, os
beduínos da tribo esvaziaram rapidamente a caverna e venderam o
resultado de sua pilhagem a um comerciante e a um sapateiro-
antiquário de Belém, de sobrenome Kando. Esses, persuadidos do
grande valor desses documentos, os mostraram ao bispo da
metrópole siríaca Mar Athanase Samuel, bem como a um professor
de arqueologia da Universidade Hebraica de Jerusalém, Eleazar L.
Sukenik. Esse último identificou a escrita como sendo hebreu arcaico
e reconheceu fragmentos de passagens de Isaías, uma compilação de
hinos e uma curiosa Regra da Guerra (logo chamada, em razão de seu
conteúdo e de seu gênero apocalíptico, Guerra dos filhos da luz contra
os filhos das trevas). Era impossível aos israelenses deslocarem-se até
o lugar dos achados em razão das tensões políticas, então, os
beduínos astuciosos, que haviam erguido suas tendas pretas na
região árida do noroeste de Mar Morto, continuaram a extrair os
preciosos documentos das fissuras dos penhascos, e a alimentar os
bazares de Belém e de Jerusalém com seus achados clandestinos.
Assim começa a história — e, talvez, já a lenda — de uma das mais
fabulosas descobertas do século XX, a dos manuscritos do Mar
Morto, uma importante descoberta arqueológica que fascinou e
continua, com toda a razão, a fascinar o mundo inteiro.
A partir de 1949, depois da proclamação do Estado judaico de
Israel e o fim da primeira guerra entre judeus e árabes, o
Departamento de Antiguidades da Jordânia, a Escola Bíblica e
Arqueológica Francesa de Jerusalém, o Museu Arqueológico
Palestino (atualmente, Museu Rockefeller) e a Escola Americana de
Pesquisa Oriental decidiram empreender uma exploração sistemática
do local. Era preciso evitar a dispersão. Os trabalhos só começaram
em 1952 com o exame do penhasco, somente com a participação da
escola americana. As pesquisas duraram até 1956, com a
empolgação de uma caça ao tesouro. A colheita foi abundante. Onze
grutas, algumas muito fascinantes, continham manuscritos, cacos de
cerâmica, roupas emboloradas, cobertas de poeira ou de lama seca.
Sete dentre elas eram escavações artificiais feitas pela mão do
homem no planalto, não longe de Qumran; as outras eram
esconderijos naturais situados a um ou dois quilômetros ao norte. Os
manuscritos, redigidos principalmente em hebraico, alguns em
aramaico ou em grego, estavam escritos sobre peles de cabras, de
cabrito montês ou de gazelas, excepcionalmente sobre papiros e,
num caso somente, sobre folhas de cobre (esse último documento,
descoberto separado na gruta n o3, continha uma lista de tesouros
escondidos). Foram encontrados rolos inteiros, pequenos pedaços,
fragmentos, num total de quinze mil fragmentos cobertos de tinta de
fuligem, alguns menores que um selo postal. Provinham de cerca de
novecentos textos, que representavam um total de mais ou menos
duzentas e trinta obras: tratados espirituais, regras comunitárias,
escritos bíblicos (o Pentateuco, os livros proféticos de Samuel, Isaías,
Jeremias, Ezequiel, Daniel, Amós, Oseias, etc., as Hagiografias,
Salmos, Provérbios, Lamentações, Crônicas…), os apócrifos (livro
dos Jubileus, livro de Enoque, Testamento dos doze patriarcas,
Pseudo-Jeremias, Pseudo-Daniel, Pseudo-Moisés…), cuja datação se
escalonava do século II a.C. ao século I d.C. No interior desse
conjunto, um pouco mais tarde, foi encontrado um conjunto de
livros de sabedoria. Um dos manuscritos mais preciosos é o rolo de
“Isaías A”, de sete metros de comprimento, escrito sobre dezessete
folhas de couro costuradas umas às outras, contendo o mais antigo
manuscrito hebraico completo do Antigo Testamento. A maior parte
dessa biblioteca está conservada, atualmente, no Santuário do Livro
de Jerusalém. Outros fragmentos encontraram refúgio em Amã, na
Jordânia, em Paris, na Biblioteca Nacional da França, na
Universidade de Chicago, bem como em algumas coleções
particulares espalhadas pelo mundo.
Equipes pluridisciplinares internacionais e interconfessionais,
francesas, israe-lenses, inglesas, americanas, dedicaram-se à imensa
tarefa de reconstituir, decodificar e publicar esses textos. Um quebra-
cabeça de uma complexidade incomensurável, ainda mais porque na
época não existia computador! A Escola Bíblica e Arqueológica
Francesa de Jerusalém, fundada no século XIX pelo padre Marie-
Joseph Lagrange, desempenhou no início um papel piloto.

Qumran e os essênios
Paralelamente, havia continuado, sob a condução do padre
dominicano Roland Guérin de Vaux, diretor da Escola Bíblica, a
investigação das construções em ruínas que se encontravam no
planalto. Tratava-se de uma estranha exploração agrícola e
industrial, organizada para viver em autarcia. Foram encontrados
ali, ao redor de uma construção central e de uma torre da época
helênica, ateliês de artesanato, padarias, tinturarias, lavanderias…
Entre as ruínas, descobriu-se a presença de numerosas piscinas ou
mikvaot, que permitiam os banhos rituais de purificação, e restos do
que foi considerado um scriptorium (local para escrever), com
grandes mesas cobertas de gesso (três tinteiros foram encontrados
no local). Centenas de tigelas e de cântaros empilhados em outro
recinto fizeram pensar num refeitório.
Por volta do final de junho do ano 68 d.C., o lugar conheceu um
fim trágico, como atestam os traços de incêndio e as pontas de
flechas encontradas. Na última camada de detritos, foram recolhidas
moedas do segundo ano da revolta judaica (no ano 67 d.C.) e
algumas moedas cunhadas na Cesareia Marítima em 67-68, o que
indica que o povoamento dessas construções se deteve nessa época.
As paredes tinham sido destruídas. Os caniços que protegiam os tetos
eram apenas cinzas e as vigas de palmeiras eram fragmentos
carbonizados.
Para o acadêmico francês André Dupont-Sommer, professor na
Sorbonne e depois no Collège de France, essas ruínas eram de um
“mosteiro” da seita judaica dos essênios (do grego essênoï, religioso),
que haviam sido expulsos do Templo e exilados, praticando na sua
solidão a observância de um judaísmo estrito. Vamos deixar de lado
o “mito essênio” que floresceu no decorrer dos séculos e que os
adeptos da New Age fascinados pelo esoterismo sagrado e pela gnose
recuperaram. Tudo o que se pode dizer sobre esses ascetas
celibatários, vestidos de branco, com um modo de vida frugal, de
moral rigorosa, é que eles se dedicavam ao estudo, à oração, ao
louvor comunitário, aos banhos rituais cotidianos, e tomavam suas
refeições em comum. Segundo o tomo V da História Natural de Plínio,
o Velho, esses solitários residiam na margem ocidental do Mar
Morto, a montante da cidade de Ein Gedi (ou Engaddi), tendo como
única companhia “a sociedade das palmeiras”, localização que
parece corresponder ao local de Qumran. A leitura dos documentos
da seita, encontrados nas grutas vizinhas, permite reconstituir, pelo
menos em parte, sua história.
Quando, em outubro do ano 152 a.C., a estola e o tecido cor de
púrpura do sumo sacerdote do Templo foram confiados pelo rei
grego da Síria, Alexandre Balas, a Jônatas, chamado Afus, irmão de
Judas Macabeu, pertencente a uma classe sacerdotal da linhagem de
Aarão, certo número de judeus religiosos, oriundos do movimento
dos hasîdîm,[1] retiram-se para o deserto com o sumo sacerdote
deposto (talvez Simão, filho de Onias III, da linhagem legítima de
Zadoque, sumo sacerdote do tempo de Salomão), que eles chamavam
de o “Mestre de Justiça”, e instalaram-se em Sokoka, a atual
Qumran. Mas Jônatas, o usurpador ganancioso e corrompido, o
orgulhoso “Sacerdote ímpio”, o “cuspidor de mentiras”, como dizem
os textos encontrados, perseguiu os membros da seita, oprimiu o
Mestre de Justiça e o sitiou em vão com os seus partidários em seu
pequeno forte no deserto.
Os essênios não saíram de seu refúgio, enquanto a dinastia
independente dos hasmoneus, oriunda da revolta dos macabeus
contra os selêucidas da Síria, mantinha-se em Jerusalém, em meio a
violentas desordens da guerra civil e das rivalidades de facções
político-religiosas. Eles também não saíram do refúgio quando
Pompeu se apoderou da Cidade Santa no ano 63 a.C., fazendo a
região passar ao domínio de Roma. Os essênios igualmente não se
manifestaram quando Herodes, o Grande, filho do governador
Antípatro, nomeado por César, obteve de Otávio e Antonio a coroa
da Judeia e empreendeu a reconstrução do Templo. Para os essênios,
esse Templo permanecia um local maculado e impuro, do qual
deviam manter-se afastados, esperando a sua restauração solene
pelos Filhos da Luz, ou seja, eles mesmos. E se os romanos — os
Kittim, no seu vocabulário codificado — ocupavam o país, isso era,
infelizmente, apenas o fruto amargo das obras de seus compatriotas
ímpios. Somente num momento o local foi abandonado: por ocasião
de um tremor de terra no ano 31 a.C.134
Esses cenobitas religiosos e virtuosos — de 150 a 200 pessoas,
disseram — levavam uma existência comunitária, rude e ascética, na
qual tudo era compartilhado, despesas e lucros, roupas e alimentos.
Devotados ao celibato, formavam uma escola de filosofia judaica
bem estruturada, com sua própria interpretação da Lei e seu próprio
calendário (o antigo calendário sacerdotal solar de 364 dias, que
marcava as festas religiosas em datas fixas, diferente do calendário
lunissolar, de 354 dias, dos sacerdotes de Jerusalém). Para poder
entrar nesse “mosteiro”, era preciso passar por um período de prova
de noviciado de um ano e depois por um noviciado de dois anos.
Entretanto, havia outros grupos de essênios, além das pessoas de
Qumran. Alguns residiam nas aldeias da Judeia, outros tinham um
bairro só deles na parte sudoeste de Jerusalém, que se abria pela
chamada Porta dos Essênios. Estes podiam se casar a partir dos vinte
anos. Flávio Josefo estima seu número total em quatro mil.
Do grupo majoritário dos hassídicos ou chassídicos nasceu uma
segunda corrente, mais moderada, mais adaptável, os fariseus
(parîshim em aramaico, perushim em hebraico, os separados), que
procuravam adaptar à vida cotidiana os rigores da lei de Moisés.
Negligenciando os negócios do Estado diante dos excessos e das
violências da dinastia dos hasmoneus, eles haviam concentrado seu
ensinamento nas sinagogas e nos tribunais locais, acabando por
ocupar um lugar importante na sociedade judaica. Flávio Josefo
calculava o seu número em seis mil, espalhados por toda a Palestina.
Os evangelhos deixaram uma imagem particularmente negativa dos
fariseus: pessoas hipócritas, que amavam as honrarias e praticavam
uma religiosidade de fachada. Apesar de seus defeitos,
provavelmente eles mereciam ter uma reputação melhor do que
essa, deplorável, porque sua preocupação em elevar o povo inteiro à
santidade era real. Os essênios integristas os odiavam, assim como
eles odiavam o outro grande grupo judaico da época, os saduceus,
constituído pela elevada e rica aristocracia sacerdotal, que se unia
em torno dos sumos sacerdotes hasmoneus de Jerusalém. Os ódios, a
bem da verdade, eram recíprocos.
Quanto aos escritos judaicos encontrados nos penhascos
morgosos das cercanias do Qumran, tratar-se-ia do patrimônio
escrito que esses solitários tinham tido o cuidado de esconder no
início do verão do ano 68, diante do avanço da X legião “Fretensis”,
comandada por Tito Flávio Vespasiano. Partindo de Cesareia
Marítima, esse exército fortemente armado havia penetrado no vale
do Jordão, tinha se apoderado de Jericó e ameaçava as margens do
Mar Morto. Todos os textos dessa biblioteca essênia não teriam sido
redigidos no local pelos monges eruditos do mosteiro, que
prefiguravam os monges copistas da Idade Média cristã. Alguns rolos
tinham sido trazidos do Templo por ocasião do exílio dos essênios.
Com as grandes obras do judaísmo (com exceção do livro de Ester,
talvez desaparecido) se encontravam misturados escritos essênios,
na proporção de um quarto mais ou menos: Documento de Damasco,
Regra da Comunidade, Regra da Guerra (ou Rolo da Guerra dos Filhos
da Luz contra os Filhos das Trevas), Rolo do Templo, Rolo dos Hinos,
Compilação das Benções, Comentário de Habacuque…

As contestações recentes
O modelo explicativo do padre Roland Guérin de Vaux e dos
primeiros sábios era considerado como justificado até que, nos
últimos anos do século XX, as pesquisas arqueológicas conduzidas
por novas equipes essencialmente israelenses o colocam em questão,
provocando fissuras no consenso admitido até então. Primeiro,
voltaram a rever a noção de solidão no deserto. A bacia do Mar
Morto, a quatrocentos metros abaixo do nível dos oceanos, não era,
na Antiguidade, uma região tão inóspita como hoje. Certamente, o
clima era o mesmo, mas múltiplos sinais de atividade humana foram
percebidos depois que as águas baixaram, devido aos bombeamentos
israelenses: propriedades agrícolas, residências de lazer, instalações
portuárias… Qumran, de acesso fácil quando se chega por
Jerusalém, seria um desses domínios que se integram numa rede de
explorações agrícolas e de produção de peças de cerâmica.
O local teria conhecido várias ocupações. No início, o
estabelecimento teria sido uma residência profana — a menos que
fosse um dos pequenos fortes hasmoneus erigidos ao norte do Mar
Morto até Massada, ao sudoeste. Essa é a tese dos arqueólogos Amir
Drori e Yitzhak Magen. Foi somente na segunda metade do século I
antes da nossa era que a região teria sido ocupada por uma
fraternidade de tipo essênio, abrigando, aliás, apenas uma quinzena
de residentes permanentes. Parece, portanto, pouco provável que
Sokoka-Qumran tenha sido o quartel-general da seita e tenha
abrigado o Mestre de Justiça, personagem que teria vivido no século
II a.C. e morrido no exílio em Damasco. Para alguns, seu inimigo
jurado, o Sacerdote ímpio, não seria Jônatas, mas seu irmão e
sucessor, Simão. Outros situam todo esse acontecimento no século I
a.C., e identificam o Sacerdote ímpio com a Hircano II, sumo
sacerdote sustentado pelos fariseus.135
A finalidade dos recintos no interior do pretenso mosteiro
também foi recolocada em questão: o scriptorium teria sido uma sala
para refeições e as famosas mesas recobertas com gesso, que, na
teoria do padre de Vaux, teriam sido usadas para as cópias de
manuscritos, seriam sofás guarnecidos com almofadas, sobre os quais
os judeus comiam semideitados, segundo um hábito copiado dos
romanos. Em suma, Sokoka-Qumran seria apenas uma grande
fazenda, que continha um ateliê de cerâmica, o que necessitava de
muita água e justifica a existência de cisternas e de piscinas.
Assistimos à “quebra de um dogma”, como diz André Paul?136 A
tese radical que nega qualquer implicação dos essênios não é
unânime. Fizeram objeção ao caráter comunitário do
estabelecimento: uma só cozinha, um único refeitório, um vasto
cemitério com dois mil túmulos, onde estavam exumados apenas
homens (os restos encontrados de algumas mulheres e crianças eram
muito mais recentes).137 Um fato notável é que os túmulos
individuais não estão voltados para a Cidade Santa e seu Templo,
mas para o Norte, em direção ao “Paraíso da Justiça e da Montanha-
Trono divino”.138 Em suma, “uma instalação como essa”, observa o
padre Émile Puech, diretor da Revue de Qumrân, “não convém a um
pequeno forte militar, nem a um entreposto, nem a uma villa rustica
(casa de campo) de hasmoneus ou de romanos, etc., como alguns
estimaram”.139 Na ausência de “mosteiro”, algumas pessoas falaram
de “casa de edição” de manuscritos, até mesmo de escola para
estágios de essênios, ou de peregrinos que vinham ouvir a boa
palavra e se fazer enterrar no local… Mas nesse caso também
faltam provas. Os defensores da teoria do padre de Vaux conservam
argumentos sólidos.
Também foi feita uma revisão dos manuscritos. Depois de um
entusiasmo inicial, seguiu-se um período de dúvidas, à medida que
eram utilizadas técnicas de investigação mais modernas. Não temos
mais certeza, atualmente, de que se trata de uma só e única
biblioteca e de que ela tenha pertencido aos sectários. O fato de que
foi reparado apenas um pequeno número de textos com uma escrita
semelhante combina mal com a teoria de um ateliê para cópias que
teriam funcionado com os mesmos tipos de escrita à mão,
semelhantes a caracteres de impressão. Os rolos, pelo menos uma
boa parte deles, vêm de outro lugar. Mas como negar a existência de
uma ligação entre as ruínas e os manuscritos? Os jarros cilíndricos
com tampa encontrados na região e nas grutas são do mesmo tipo. O
contrário seria espantoso, visto a proximidade, nesse recanto
perdido do deserto, das grutas e dos cenobitas, a algumas dezenas de
metros para as grutas mais próximas.
No conjunto, as obras do deserto de Judá refletem a espantosa
diversidade de doutrinas e práticas da sociedade judaica pré-cristã.
Teriam existido diversos depósitos de origem diferente? Não temos
prova disso. Ainda que não tenha sido encontrada uma literatura
tipicamente farisaica, uma das obras teria sido do feitio de
comunidades judaicas de Jerusalém ou de Jericó. Outra estaria,
provavelmente, ligada aos últimos ocupantes de Sokoka-Qumran, e
não é proibido identificá-la com os essênios, com a condição de não
considerá-los como a única das fraternidades ligadas ao ascetismo
dessa esfera de influência ainda misteriosa, cujo nome não figura
nos evangelhos. No total, esses textos formariam um “conservatório
que representa várias correntes de pensamento e de ideais da
sociedade judaica pré-cristã”.140 Ao deixar o Templo com os rolos
principais, os essênios teriam se considerado seus guardiões?

O Qumran e o cristianismo
Evidentemente, uma das grandes questões é a de determinar as
relações entre o grupo de Qumran e o cristianismo. Se alguns
manuscritos remontam ao século II a.C., outros datam do início da
era cristã. A seita, então, estava bem presente na época de Jesus.
Ernest Renan, que só conhecia os essênios por meio de Flávio Josefo
e de Fílon de Alexandria, havia declarado categoricamente: “O
cristianismo é um essenismo que teve um amplo sucesso. O espírito é
o mesmo e, certamente, quando os discípulos de Jesus e os essênios
se encontravam, deviam acreditar que eram confrades”. Temos
menos certeza disso atualmente.
Em 1950, baseando-se em uma leitura precipitada do Comentário
de Habacuque, encontrado na gruta n o1, André Dupont-Sommer, um
dos pioneiros dos estudos de Qumran, pensou que o Mestre de
Justiça teria sido um messias encarnado, que pregava uma doutrina
de amor ao próximo idêntica àquela de Jesus, antes de ser
crucificado por ordem dos sumos sacerdotes de Jerusalém. Daí tirou
uma conclusão revolucionária: o cristianismo seria apenas uma
pálida repetição do que teria se passado um século antes, e Jesus,
um simples imitador, representaria “uma espantosa reencarnação do
Mestre de Justiça”!141 Uma hipótese de audaciosa fragilidade! Que o
Mestre de Justiça tenha sido tratado pelos “irmãos” como um
sacerdote profético, eleito por Deus, cumulado de graças, é
indiscutível; mas nada permite pensar que ele tenha sido o Messias
para os “irmãos”, nem que tenha morrido de uma morte violenta,
tampouco que tenha sido objeto de um culto. Dupont-Sommer
apercebeu-se disso e renunciou à sua conjectura aventurosa no seu
livro definitivo.142
Outras identificações foram feitas: João Batista seria o Mestre de
Justiça e Jesus o Mestre Ímpio,143 a menos que o primeiro seja
Tiago, o Justo, o “irmão” do Senhor, chefe da comunidade judaico-
cristã, que o sacerdote Anás seja o segundo, e que Paulo seja o
Homem da Mentira.144 Comparações falaciosas e teorias sem
fundamento, visto que o Mestre de Justiça e seu adversário
implacável viviam no século II antes da nossa era. De um ponto de
vista estritamente científico, essas interpretações estrondosas se
resumem a “golpes” midiáticos. A própria ideia segundo a qual uma
parte do ensinamento essênio teria se baseado na fé cristã parece
difícil de se conceber de tanto que as concepções dessas duas
correntes se situam em dimensões diametralmente opostas ao prisma
judaico. Se essas correntes se enraízam no terreno judaico, o
fundamentalismo essênio, fechado sobre si mesmo, separado dos
“homens perversos”, tem muito poucas relações com a religião cristã,
aberta aos pecadores e aos excluídos, que anuncia a Boa Nova a
todos.145
Alguns chegaram até a ponto de dizer, numa época em que a
publicação dos últimos manuscritos tardava e provocava
recriminações legítimas, que o Vaticano procurava bloquear a sua
difusão, como se ele pusesse em causa a historicidade de Jesus. Tal
acusação fantasiosa foi desmentida pela publicação em 1991 de
micro-fichas e de negativos fotográficos da coleção, até nos seus
menores fragmentos. Em 2002, os textos estavam finalmente
acessíveis a todos. Percebeu-se então que jamais houve uma
conspiração.
Outra pista consistiu em saber se na massa dos documentos
descobertos se encontrava algum escrito que as comunidades cristãs
também teriam escondido no momento da chegada dos romanos. Em
1972, um jesuíta espanhol, José O’Callaghan, sugeriu que alguns
fragmentos de papiros encontrados na gruta 7 seriam provenientes
do Novo Testamento e que um deles, o 7Q5, escrito na primeira
página — fazia, portanto, parte de um rolo e não de um códice —,
conservaria uma passagem do evangelho de Marcos (o episódio
referente à chegada de Jesus à região dos gadarenos). Esse seria o
trecho mais antigo da literatura cristã, copiado por volta do ano 50
e certamente antes de 68, data na qual os romanos assumiram o
controle da zona litorânea do Mar Morto. Outro fragmento conteria
a passagem de uma epístola de Paulo a Timóteo.
A partir de 1984, a teoria foi retomada com paixão por Carsten
Peter Thiede, vice-diretor do Centro de Pesquisa do Instituto Alemão
para a Educação e a Ciência da Universidade de Paderborn.146 Seus
artigos e livros desencadearam polêmicas ásperas. Além da adesão
isolada de alguns especialistas em papiros, o ceticismo foi geral. Em
si, convenhamos, a hipótese era audaciosa, mas, enfim, não havia
nenhum motivo para rejeitá-la a priori.
O fragmento é minúsculo: ele só contém cerca de vinte
caracteres, uma dezena deles muito deteriorados, repartidos em
cinco linhas. Toda a teoria de O’Callaghan e de Thiede repousa,
finalmente, sobre a existência ou não da letra grega nu[2] na borda
desfiada do documento. Se for estabelecido que essa letra é um nu,
seria possível — mas de modo algum certo — que o 7Q5 fosse um
extrato do evangelho de Marcos. Em compensação, sem a presença
desse caractere, é impossível admitir. Isso denota a extrema
fragilidade da hipótese. Ora, um dos melhores especialistas de
Qumran, Émile Puech, baseando-se em “observações estritamente
paleográficas, sem nenhum a priori exegético”, estabeleceu a
impossibilidade absoluta de que a letra deteriorada fosse um nu.
Dois exegetas franceses, Marie-Émile Boismard e Pierre Grelot,
compartilham esse ponto de vista, assim como outros sábios
renomados, como o inglês Graham Stanton.147 A tese, portanto, não
se sustenta.148
O que sobra, então, do Qumran depois de ter sido posto em
questão tantas vezes? Uma enormidade, é claro! Os escritos do Mar
Morto constituem uma documentação inestimável sobre a Bíblia
hebraica e as obras sagradas do judaísmo antigo, numa época em
que o cânone ainda não tinha sido fixado pelos doutores da Lei da
Palestina e de Alexandria. Eles fazem os pesquisadores dar um salto
de um milhar de anos para trás em relação aos manuscritos
hebraicos conhecidos, provando a extraordinária permanência dos
textos através do tempo. Alguns manuscritos estão muito próximos
da Massorá, uma versão crítica do século VI d.C., outros, ao
contrário, lembram a versão alexandrina, dito de outra forma, a
Septuaginta grega, elaborada entre a primeira metade do século III
e o final do século II a.C., da qual só havia cópias completas da
Idade Média. Ao lado de textos incomuns, foram encontradas várias
versões do Livro dos Salmos, dos textos originais em hebraico e
aramaico do Livro de Tobias, integrado à Bíblia católica na sua
tradução grega… Essas variações e flutuações, adições ou omissões
são naturalmente do mais alto interesse para a pesquisa bíblica. Elas
revalorizaram a tradução grega da Septuaginta, que os cristãos
usavam.
Se não existe alguma relação direta entre o Qumran e o
cristianismo, as descobertas do Mar Morto não deixam de renovar
nossos conhecimentos sobre um período em que o cristianismo
firmou suas raízes. Elas permitem conhecer melhor o embasamento
social e religioso da Palestina às vésperas e no início da era cristã.
As descobertas enraízam fortemente, ali, a pessoa e a mensagem de
Jesus, projetando uma nova iluminação sobre as crenças, as
representações e as práticas da sociedade judaica da sua época.
Presumia-se, e foi confirmado, que o cristianismo brotou das ideias e
das esperanças judaicas de sua época, antes de fazer emergir sua
originalidade radical. No plano linguístico, esses textos ajudam a
compreender que o hebraico não era uma língua completamente
morta e que sua prima, o aramaico — elas têm suas diferenças assim
como o francês e o italiano —, língua popular por excelência, podia
servir para a expressão de textos sagrados. Até então, só se dispunha
de um pequeno número de targum, isto é, de comentários aramaicos
da Escritura. Tudo isso fortaleceu a ideia de que os evangelhos
apresentam um forte substrato semítico, tornando quase evidente as
afirmações dos Padres da Igreja sobre a existência de um primeiro
Mateus redigido sob essa forma (hebraico ou aramaico).
Os manuscritos de Qumran reintroduziram no fértil terreno
palestino certos textos do Novo Testamento, que se pensava serem
inspirados no pensamento grego, como o evangelho de João. Assim,
a oposição dualista utilizada por ele — a Luz / as Trevas — não
deixa de lembrar o vocabulário da seita: “Príncipe da Luz”, “Filho da
Luz”, “Filho das Trevas”. Ocorre o mesmo com Paulo de Tarso,
formado pelos mestres fariseus de Jerusalém, cujos escritos,
acreditava-se, estavam totalmente impregnados de cultura
helenística. Ou, por exemplo, sua ideia da “carne” (basar, em
hebraico) para designar o pecado e a natureza corrompida do
homem, como oposta ao espírito, ideia distanciada do ensinamento
bíblico tradicional, que é encontrada de maneira idêntica na Regra
da Comunidade, na Regra da Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos
das Trevas ou nos Hinos de Ação de Graças. Isso mostra a importância
dos manuscritos do Mar Morto para a compreensão de Jesus e do
cristianismo nascente.149
ANEXO VI
As relíquias da Paixão

O sudário de Turim
Ao lado dos textos bíblicos e extrabíblicos, o historiador não poderia
se esquecer da contribuição das grandes relíquias da cristandade, um
domínio quase sempre ignorado, até mesmo desprezado pela
exegese clássica.150 As relíquias, como sabemos, foram objeto de uma
devoção intensa na Idade Média, época em que o maravilhoso se
misturava com a verdadeira fé. Elas deram origem a cultos
florescentes, alimentando o entusiasmo e o fervor transbordante do
povo cristão pertencente às camadas inferiores. Também foi
computada, na origem, um grande comércio clandestino persistente
e lucrativo. Não vimos fragmentos do vestido da Virgem, cabelos,
uma ampola contendo seu leite, pelos da barba de são Pedro, um
dente do santo João Batista, vários prepúcios do Cristo? Quantos
pedaços da verdadeira cruz e dos pregos da Paixão existem no
mundo? Pensava-se que esses objetos, por sua presença material,
facilitavam a prece e a meditação dos peregrinos. É preciso observar
que nem sempre havia a intenção de enganar. Era suficiente tocar
com um lençol o original para obter uma cópia, ou incorporar um
pouco de limalha extraída de um prego da Paixão, presumido
autêntico, para fabricar outro, que, por sua vez, se tornava fonte de
milagres… e de lucros. As virtudes dessas “relíquias de contato” se
multiplicavam ao infinito. O imperador Constantino, por exemplo,
mandou inserir em sua armadura um pequeno pedaço de um dos
pregos da cruz, da mesma maneira que fez Teodolinda (ou
Teodolina), rainha dos lombardos, em sua coroa de ferro,
conservada em Monza.
A ciência foi fatal para a maior parte dessas relíquias. O exemplo
mais célebre é o do sudário de Cadouin ao sul de Périgord:
acreditava-se que ele havia envolvido o corpo de Cristo na noite da
Sexta-Feira Santa; ele revelou ser um estandarte maometano do final
do século XI, de origem fatímida, que trazia inscrições em escrita
kufi (ou kufic, estilo de caligrafia árabe) que louvava a glória do
emir El Moustali! Dito isso, algumas relíquias — um pequeno
número —, depois de impressionantes trabalhos de pesquisa, se
mostram perfeitamente autênticas. É o caso das três grandes
relíquias da Paixão do Cristo, o sudário de Turim (Itália), o sudário
de Oviedo (Espanha) e a túnica de Argenteuil (França).
O sudário de Turim, impropriamente chamado Santo Sudário, é a
mais famosa das relíquias da cristandade. É uma peça de linho muito
caro, uma sarja tecida em zigue-zague. Sua identificação deu lugar,
nos últimos anos, a discussões apaixonadas. Esse sudário, venerado
desde a Idade Média, foi “testemunha silenciosa” da sepultura e da
ressurreição de Jesus? Muitos, hoje em dia, não duvidam mais. “Uma
testemunha muda”, dirá João Paulo II, “mas, ao mesmo tempo,
espantosamente eloquente”…
À primeira vista, parece pouco concebível que esse lençol
sepulcral tenha sido conservado. Entretanto, que uma peça de
tecido, datada do século I, tenha sobrevivido até nossos dias sem
grande degradação não tem em si nada de excepcional. Alguns
tecidos de textura semelhante foram encontrados nas cinzas de
Pompeia. Véus funerários mais antigos escaparam aos estragos do
tempo. Descobertos em tumbas, tecidos egípcios, conservados no
Louvre, datam de trinta ou trinta e cinco séculos.
Segundo o evangelho dos Hebreus, o lençol venerado teria sido
confiado à guarda de são Pedro.151 Provavelmente, ele fazia parte
das “coisas, objetos e imagens sagradas” que os judeus cristãos
levaram consigo ao deixar Jerusalém rumo às grutas de Péla, no ano
66. Os primeiros depositários do lençol evitaram mostrá-lo, assim
como as outras relíquias da Paixão, porque a lei de Moisés
considerava impuro o que tocou um cadáver. Mais tarde, por volta
do ano 340, são Cirilo de Jerusalém menciona a existência do
“sudário, testemunha da Ressurreição”. Textos muito numerosos
atestam que ele teria sido transportado para Edessa (Urfa, na
Turquia) antes do ano 57 por um discípulo, Addai ou Tadeu de
Edessa. Durante muito tempo escondido num nicho debaixo da Porta
do Oeste, o sudário foi redescoberto no ano 544. Foi venerado na
catedral de Hagia Sophia como um ícone do Cristo, sem que se
soubesse que se tratava de um lençol funerário coberto de sangue.
Pensava-se que Jesus, enquanto vivo, havia milagrosamente
impresso seus traços sobre a roupa branca. Esse era o Mandylion.[1]
Quatrocentos anos depois, esse sudário foi adquirido por
Constantinopla, depois de ásperas discussões com o sultão. Em 15 de
agosto do ano 944, atravessando o Bósforo, ele foi transferido para
a igreja imperial da Virgem do Farol. O sudário recebeu uma
acolhida memorável, em presença do imperador Constantino VII
Porfirogênito. Foi verificado, então, que ele não representava
somente o misterioso e glorioso rosto do Cristo, ligeiramente
sombreado, mas que havia sido dobrado quatro vezes em dois
(tétradiplon) no seu relicário (os traços ainda subsistem e são visíveis
com luz rasante). Desenrolado, ele revela em sua totalidade o corpo
nu do supliciado: era um lençol sepulcral que havia sido dobrado
para não chocar os crentes! Na sua homilia de acolhimento,
Gregório, o arcebispo referendário de Santa Sofia falou de uma
imagem que não resulta “de nenhuma cor natural”, e evocou a dupla
impressão, com o “suor sangrento” que ele tinha observado sobre o
lençol, assim como as “gotas saídas de seu flanco”. É esse sudário
que, certamente, viram em 1147 Luís VII, rei da França, em 1171
Amalrico II, rei de Jerusalém (“o lençol que se chama synne, pelo
qual Jesus foi envolvido”), e em agosto de 1203 o cavaleiro picardo
Roberto de Clari. Infelizmente, no ano seguinte, os cruzados francos
da Quarta Cruzada pilharam a cidade de maneira odiosa. Eles não
pouparam a igreja bizantina de Santa Maria de Blaquernas, onde se
encontrava na época a preciosa relíquia. O que aconteceu com ela?
Levada para Atenas com o restante do que foi saqueado por Oto de
la Roche, do Franco-Condado e chefe dos cruzados, a relíquia
desapareceu durante quase um século e meio, antes de reaparecer
em Lirey, em Champagne, em 1357, na casa de Jeanne de Vergy,
bisneta do saqueador Oto e esposa de Geoffroy de Chamy. A partir
dessa época, a história do sudário é mais conhecida. Exibições foram
organizadas, regularmente, primeiro em Lirey, depois em Saint-
Hippolyte-sur-le-Doubs e em alguns outros lugares. Cedido para a
família de Saboia, o sudário ficou em Chambéry de 1453 a 1578, e
depois foi transferido para Turim, onde está até hoje. É propriedade
da Santa Sé desde 1983. Multidões inumeráveis através dos séculos,
papas, santos, Carlos Borromeu, Francisco de Sales, Joana de
Chantal, Teresa de Lisieux (essa última, sob a influência de M.
Dupont, o “santo homem de Tours”, assumiu o nome de Teresa Irmã
do Menino Jesus e da Santa Face) veneraram essa relíquia
misteriosa, à qual são atribuídas curas milagrosas. Ainda hoje,
centenas de milhares de peregrinos se espremem cada vez que o
sudário é mostrado.
A história do sudário chamou novamente a atenção quando um
advogado italiano, o cavaleiro Secondo Pia, o fotografou pela
primeira vez, em 28 de maio de 1898. Foi o início do período
científico. Até então, não se via quase nada sobre o lençol, além de
algumas manchas amarelo-palha, de pouco contraste, e algumas
placas de sangue rosa carminado. Perto do tecido só havia sombras,
sem contornos definidos. A dois metros de distância, a impressão
desconcertante se apagava: aparecia a representação de um homem
flagelado e crucificado.
Enquanto, na penumbra do seu laboratório, Secondo Pia retirava
sua primeira placa do banho revelador, uma emoção violenta
apoderou-se dele. Quase deixou cair a placa. O que ele viu ninguém
antes dele havia contemplado por quase dezenove séculos: uma
imagem perturbadora, que gritava a verdade, a de um homem em
dor, de uma beleza misteriosa e fascinante, dignamente,
serenamente, majestosamente fixado na morte! O modelo era de
uma clareza surpreendente. Somente a inversão das zonas claras e
sombrias havia permitido tal prodígio. “Eu fiquei como petrificado”,
confessou. O cavaleiro Pia compreendeu que o sudário tinha a
propriedade — insuspeita, até então — de um negativo ótico:
negativo sobre negativo dá positivo. Em 1931, um fotógrafo
profissional, Giuseppe Enrie, confirmou a descoberta e produziu
negativos com uma resolução bem melhor. As lesões então aparecem
com uma exatidão irrepreensível, tanto no plano anatômico como
circulatório.
A partir dessa descoberta, apareceu uma grande quantidade de
estudos médico-legais, dentre os quais o estudo notável de Pierre
Barbet, cirurgião no hospital Saint-Joseph de Paris.152 O biólogo
Paul Vignon estabeleceu vinte pontos de convergência entre o rosto
do homem no sudário e os ícones ou retratos do Cristo na arte cristã.
Um dos pontos mais impressionantes é uma grande gota de sangue
em forma de épsilon (ou de um 3 ao contrário) que escorreu ao
longo das sinuosidades da fronte, atribuível à contração dolorosa do
músculo facial: os pintores, desde o século VI, a interpretaram como
uma mecha de cabelo! Outro ponto de convergência é uma linha
transversal debaixo do queixo, por causa de má dobra do tecido: ela
foi retomada pela tradição artística. Para Paul Vignon e muitos
outros, nenhuma dúvida é possível, o modelo canônico do Cristo,
adotado depois da descoberta do lençol em Edessa, só pode vir da
misteriosa impressão conservada hoje em dia em Turim.
As pesquisas científicas prosseguiram em 1969, 1973 e,
sobretudo, em 1978. Foi então criado o STURP (Shroud of Turin
Research Project – Projeto de Pesquisa do Sudário de Turim)
composto por trinta e três pesquisadores multidisciplinares, em sua
maioria, americanos. A aparelhagem mais moderna foi utilizada.
Aos três mil negativos fotográficos juntaram-se testes microquímicos,
o uso de espectrógrafos, estudos de radiometria infravermelha, de
microscopia ótica, de fluorescência ultravioleta.
As primeiras conclusões dos peritos são indubitáveis. A hipótese
de uma pintura deve ser descartada. As poucas cópias ingênuas e
desastradas que chegaram até nós mostram, sem margem de dúvida,
que nenhum artista antigo ou medieval teria sido capaz de um
trabalho tão minucioso. Que pintor, ainda hoje, poderia realizar
uma pintura sem deixar o menor traço das pinceladas nem de
pigmentos coloridos? A microscopia eletrônica não encontrou
nenhuma direção pictórica, e, melhor ainda, nenhum contorno.
Pode-se concluir disso que se trata de uma imagem
acheiropoieta [2], quase indelével, resistente ao calor e à água,
isotópica (quer dizer, sem efeito direcional), como estabeleceram,
em 1976, Donald J. Lynn e Jean J. Lorre, do Jet Propulsion
Laboratory, de Pasadena, Califórnia. Isso exclui, igualmente, a
hipótese de uma fina camada de tinta transparente, de uma
aplicação sobre o tecido de um baixo-relevo de madeira ou de
mármore, ou até mesmo de uma estátua metálica previamente
aquecida. As deformações obtidas com esses métodos nos afastam da
imagem perfeita do sudário. É impossível, materialmente, que o
sudário seja uma obra de arte.
Sabemos, depois dos trabalhos de dois pesquisadores da STURP,
os médicos John H. Heller e Alan D. Adler, que as manchas em rosa
carminado no local das chagas são certamente manchas de sangue,
de sangue humano. Essas manchas correspondem com uma precisão
absoluta à anatomia do corpo representado e a seu sistema arterial e
venoso.153 Os negativos em luz ultravioleta fizeram aparecer lesões,
escoriações, invisíveis até então.
A imagem — quase todos os pesquisadores estão de acordo sobre
tal ponto — produziu-se por emanação a distância, por projeção
ortogonal, fazendo desaparecer todo o aspecto lateral. Ela é
formada por oxidação ácida e desidratante da celulose do linho. Esse
leve escurecimento esbatido, que só afeta o alto das fibrilas numa
espessura de vinte a quarenta micros, varia de intensidade em
função da distância entre o corpo e o lençol. Essa particularidade
permitiu ao engenheiro francês Paul Gastineau e, depois, a dois
físicos da Academia da Força Aérea dos Estados Unidos, John P.
Jackson, doutor em astrofísica, e Eric J. Jumper, doutor em
termodinâmica, reproduzirem, o primeiro, em 1974, com um leitor
de intensidade luminosa, os dois outros, em 1976, com um
analisador VP 8 da Nasa, uma imagem tridimensional do sudário —
em relevo, consequentemente —, fenômeno impossível de ser
realizado com um desenho ou um decalque do corpo.154
As múltiplas concordâncias entre o lençol e os textos evangélicos,
os estudos iconográficos e as pesquisas pluridisciplinares de 1978
(seis toneladas de material disposto em setenta e duas caixas, cinco
dias de coleta de informações, mais de cento e cinquenta mil horas
de trabalho) constituíram testemunhos sólidos e fortes em favor da
autenticidade.

A análise com carbono 14 contestada


Foi então que o teste com carbono 14, efetuado por três laboratórios
especializados, Oxford, Zurique e Tucson, cujos resultados foram
anunciados em 13 de outubro de 1988, veio abalar essas primeiras
conclusões: a mortalha não remontava além do século XIII ou XIV.
De acordo com esse procedimento, que avalia a idade de objetos
graças à velocidade de deterioração do isótopo radioativo do
carbono 14 que eles contêm, o linho do tecido teria sido colhido
entre 1260 e 1390. O sudário, portanto, não poderia ter envolvido o
corpo do Cristo. Tratarse-ia de uma imitação fraudulenta, de uma
mistificação particularmente realista, visto que ela integra todos os
dados históricos e arqueológicos conhecidos da Paixão, e acrescenta
outros, esquecidos, como a técnica de crucificação à maneira
romana. A notícia, difundida pela mídia do mundo inteiro, teve o
efeito de uma catástrofe. À primeira vista, tudo parece simples. O
verdadeiro sudário teria desaparecido com o passar do tempo, e
algum monge fanático do Oriente teria se empenhado em fabricar
outro, torturando e sacrificando um homem em tudo semelhante ao
Cristo. Um crime atroz para um truque lucrativo. Tudo parece
simples… E, no entanto, nada, absolutamente nada é simples! A
partir do momento em que se admite a origem medieval do sudário,
iniciam-se as dificuldades, porque, então, é preciso recusar ou
relativizar as sólidas experiências anteriores que conduzem às
conclusões incompatíveis.
Além da perturbação criada na opinião pública, o resultado dos
laboratórios foi contestado pelo restante da comunidade científica
que havia se ocupado com a relíquia, desencadeando ardentes
discussões polêmicas. As condições mais que frágeis a partir das
quais a experiência havia sido feita tiraram uma parte de sua
confiabilidade.155 Imediatamente, ficou evidente que o intervalo
entre os dois valores das datas resultante dos cálculos dos
laboratórios não eram homogêneos, apesar da identidade dos
métodos de contagem que tinham sido utilizados: os números de
Oxford (1262-1312) não coincidiam com aqueles dos dois outros
laboratórios (1353-1384). Em lugar de concluir, segundo o teste de
Pearson (sobre a variável Khi2), que a dispersão do C14 era
heterogênea sobre o lençol em 95,7%, como devia estabelecer
Philippe Bourcier de Carbon, politécnico e estatístico profissional, a
comissão encarregada de harmonizar os resultados combinou
artificialmente — e muito oportunamente — uma média fora dos
limites, que permitiria situar a origem do sudário em um dos
períodos históricos para os quais faltavam informações (o período
que precede o reaparecimento do sudário na igreja colegial de Lirey,
em Champagne, em 1357).
Não vamos nos juntar à conspiração e colocar em dúvida a
honestidade e a seriedade desses renomados laboratórios. Se tivesse
havido substituição de amostras, os resultados teriam sido mais
coerentes. Mas, independentemente desses erros metodológicos, é
um fato que o famoso método de análise com C14, elaborado em
1955 por William Libby, não é de confiabilidade absoluta. Ele
necessita de um longo trabalho de limpeza e descontaminação das
amostras, depois de um tratamento dos dados brutos, de calibragem
dos resultados, de cálculos no decorrer dos quais são eliminados os
números a priori julgados aberrantes. Os solventes previstos pelos
protocolos-padrão nem sempre estão adaptados a antigas poluições.
Aproximações ou erros podem se insinuar no curso do processo. A
interpretação do resultado pode ser influenciada pelo conhecimento
histórico da amostra, porque os testes raramente são feitos às
cegas.156 As revistas científicas especializadas não cessam de relatar
erros, que apresentam uma variação de várias centenas, e até
mesmo de milhares de anos (como para as pinturas ruprestes de
Lascaux ou para a corneta viking que remonta aos anos 1500, e foi
datada pelo C14 como sendo do século XXI!). “Quando o C14
calculou para o banco romano do vau do Plantain, na província de
Hainaut, a data de 4000 anos a.C.”, escrevem Jean-Maurice Clercq e
Dominique Tassot, “os arqueólogos não concluíram que Júlio César
havia nascido no quinto milênio; eles rejeitaram o resultado,
estimando que uma contaminação qualquer tornara o método
impraticável.”157 Muitas pessoas julgam que esse método,
relativamente confiável para madeiras e carvões de madeira, está
longe de dar resultados muito seguros para ossadas ou tecidos
antigos, sobretudo se estes sofreram alterações sucessivas, remendos
e consertos.
Em 1996, o microbiologista americano Leoncio Garza-Valdés, da
Universidade de San Antonio, no Texas, percebeu contaminações
bacterianas sobre as fibras do sudário por causa de um cogumelo,
Lichenothelia, que formava um “filme bioplástico” de natureza a
carregar isotopicamente o sudário com C14 e, consequentemente,
perturbar de modo muito sensível a sua datação158. Mais
recentemente, num livro que apareceu em 2010, o francês Gérard
Lucotte, biólogo e geneticista, especializado no estudo científico de
relíquias, encontrou, sobre amostras de poeira retiradas do lençol,
traços muito abundantes de carbonato de cálcio, bem como bactérias
e bolor em grande número, que os procedimentos de limpeza são
incapazes de eliminar totalmente. Tal presença, necessariamente,
falseou os cálculos.159
Por outro lado, segundo a pesquisadora italiana Maria Grazia
Siliato, o peso médio do tecido analisado era de 42 miligramas por
centímetro quadrado, mas, para o conjunto do tecido, era de 23
miligramas! A amostra tinha restaurações em mais de 40% de sua
superfície.160 Em 2004, o professor Raymond N. Rogers, do
Laboratório Científico de Los Alamos, constatou, a partir de testes
microquímicos muito sensíveis, a presença de baunilha em uma das
amostras retiradas, enquanto essa substância está ausente no
restante do tecido: parece que quiseram aplicar essa substância
corante sobre os fios costurados, de modo a tornar homogênea a cor
do conjunto. Em 2008, o novo diretor da unidade de Acelerador de
Radiocarbono de Oxford, o professor Christopher Bronk Ramsey, ao
constatar as discordâncias entre as conclusões tiradas com o C14 e
as tiradas com outras análises científicas, não excluiu a possibilidade
de um erro de sua organização, vinte anos antes, dizendo-se
preparado para realizar novas pesquisas.161 Uma admissão
suavizada muito corajosa.

A impossibilidade de uma falsificação


Depois do teste de 1989, os conhecimentos sobre o sudário
progrediram consideravelmente e novas provas de autenticidade
foram trazidas. Algumas nos reconduzem para além do período
1260-1390. Em 1150, por exemplo, um grupo de senhores húngaros
tinha ido para Constantinopla numa delegação diplomática, a fim de
preparar o casamento de uma das filhas do imperador Manuel I
Comneno com o príncipe hereditário Bela. Nessa ocasião, o
imperador lhes havia mostrado sua relíquia mais preciosa, o sudário.
Um dos visitantes, miniaturista, reproduziu em vários desenhos o
que ele tinha visto sobre o duplo comprimento do lençol sagrado: o
corpo nu do Cristo, com barba e cabelos longos, o local exato do
prego no punho direito, as mãos cruzadas, a direita por cima da
esquerda, a ausência do polegar (dobrado no interior da palma por
causa da lesão do nervo mediano), muitos detalhes — cerca de doze
ao todo —, que são vistos com perfeição sobre o sudário, do qual ele
representou até a tecedura em zigue-zague tão característica. Ele
detalhou até os quatro pequenos pontos de queimadura em
esquadro, causadas provavelmente por grãos de incenso aceso, que
são bem anteriores aos traços deixados pelo incêndio de Chambéry
de 1532. Essas miniaturas, conservadas na Biblioteca Nacional de
Budapeste, estão inseridas no Códice de Pray (nome do jesuíta inglês
que as descobriu no século XVIII), que data de 1190 ou 1195. Como
o sudário sempre foi cuidadosamente conservado em
Constantinopla, podemos deduzir que esse é o mesmo que chegou a
15 de agosto de 944.162
Outra descoberta confirma que o lençol é bem anterior a 1260 e é
originário do Oriente Médio. Em 1999, o professor de botânica da
Universidade de Jerusalém, Avinoam Danin, encontrou no sudário
pólen de uma planta do Mar Morto desaparecida desde o século VIII.
Sua comunicação foi levada ao Congresso Internacional de Botânica,
realizado em Nova York naquele ano. Na sua pesquisa, conduzida no
decorrer dos anos 1970, com a ajuda de um microscópio ótico, um
renomado criminologista, o professor suíço Max Frei, perito no
tribunal de Zurique, havia reconhecido sobre o sudário treze espécies
de plantas que só crescem nos desertos salgados ou arenosos do Mar
Morto e do Negev. Ele havia, igualmente, reconhecido pólen de
plantas que florescem em abril em Jerusalém, como a Hyoscyamus
aureus e a Onosma orientalis. Essas primeiras pesquisas foram
confirmadas por outros especialistas botânicos: Jacques-Louis de
Beaulieu, do Laboratório de Botânica Histórica e de Palinologia da
Universidade de Marselha, Paul C. Maloney, arqueólogo americano,
e mais recentemente por Avinoam Danin e o doutor Uri Baruch,
especialista em flora no Departamento de Autoridade em
Antiguidades de Israel.163 A presença, ao mesmo tempo, da Gundelia
tournefortii e da Zygophyllum dumosum, uma que cresce na região
norte do Mediterrâneo, na Turquia e na Síria, e a outra no deserto
do Sinai até as cercanias do Mar Morto, permite aos pesquisadores
localizar a origem do sudário em Jerusalém e estabelecer a estação
de sua utilização no final do inverno ou no início da primavera.164
Paul Maloney, aliás, identificou pólen de Cistus creticus L., um
pequeno arbusto que só existe nas redondezas da Cidade Santa. Se é
verdade que o pólen pode, por vezes, segundo a orientação dos
ventos, percorrer centenas de quilômetros, nenhum desses ventos
tem a possibilidade de trazer para o Ocidente os pólens do Oriente
Médio. Ora, o número das espécies palestinas ultrapassa
amplamente o das espécies europeias.
Nas imponentes ruínas da fortaleza de Massada, a cidadela dos
judeus irredutíveis, que foi aniquilada no ano 74 pelos romanos, foi
encontrado um pedaço de tecido de linho cuja textura corresponde
exatamente àquela do sudário, a ponto de o professor Pierluigi
Baima Bollone, do Instituto de Medicina Legal de Turim, pensar que
ele era proveniente do mesmo ateliê de tecelagem. Entre os outros
tecidos encontrados em Massada, Mechthild Flury-Lemberg, a
curadora do Museu de Tecidos de Lausanne e renomada especialista
mundial em tecidos antigos,165 observou que sua costura era do
mesmo tipo daquela encontrada na faixa lateral, de 7 a 8 cm de
largura, recortada ao longo do sudário para servir, talvez, para
enrolar o corpo e recosturada logo em seguida. Ora, nenhuma outra
costura, chata de um lado e bojuda do outro, foi encontrada em
outra parte, com a data do século I.
Voltando a examinar os trabalhos sobre a iconografia do
professor Vignon, o americano Robert M. Haralick, do Instituto
Politécnico da Virgínia, demonstrou, com a ajuda de um
procedimento aperfeiçoado, que os contornos do rosto do homem do
sudário se superpunham aos do Cristo que figuram sobre as moedas
bizantinas dos séculos VI-IX. Alan D. Whanger, professor do Duke
University Medical Center, de Durham, Carolina do Norte, com sua
técnica de luz polarizada (PIOT: Técnica de Sobreposição de Imagem
Polarizada), observou cento e quarenta e cinco pontos de
sobreposição com as representações de Christ Pantocrator (“todo-
poderoso”) e duzentas e cinquenta com o ícone do Mosteiro
Ortodoxo de Santa Catarina. O critério judiciário americano se
contenta com sessenta pontos para estabelecer a identidade ou a
similitude da imagem166…
Essas investigações científicas mobilizaram dezenas de sábios do
mundo inteiro, de todas as crenças, de todas as religiões, cristãos,
judeus, agnósticos ou ateus. Elas convergem para a conclusão de que
o sudário de Turim é um autêntico lençol funerário de um judeu
crucificado do século I, flagelado à maneira romana, coroado com
espinhos, sepultado com um tecido caro. Poderíamos citar muitos
nomes, pertencentes a laboratórios ou a universidades de prestígio,
físicos, bioquímicos, biólogos, anatomistas, médicos-legistas,
hematologistas, traumatologistas, botânicos, mineralogistas,
criminologistas, historiadores, arqueólogos… É impossível admitir
que um falsário medieval, mesmo por meio de um cadáver de um
crucificado, tenha criado uma imagem monocroma invertida,
portadora de dados numéricos codificados. Apenas os
ultrarracionalistas do Cercle zététique [Círculo zetético: associação
dos céticos franceses], complacentemente acolhidos pela revista
Science et Vie [Ciência e Vida], tentam nos fazer acreditar, sem
réplica possível, que o sudário é uma pintura do século XIV, além de
alguns vaidosos orgulhosos, céticos e agressivos, que pretendem que
o sudário certamente é obra de Leonardo da Vinci!167
É verdade que essa peça histórica única, embaraçosa,
perturbadora, em razão dos dados espantosos que contém, sempre
desencadeou reações irracionais. Em abril de 1902, o agnóstico Yves
Delage, professor de anatomia comparada, foi zombado, insultado e
banido por seus pares acadêmicos por ter apresentado na Academia
das Ciências — crime imperdoável — uma comunicação favorável à
autenticidade do sudário: a comunicação foi censurada pelo
secretário permanente, Marcelin Berthelot, ateu militante, que não
acreditava nem em Jesus Cristo… nem na existência dos átomos!
“Se, em lugar do Cristo, se tratasse de uma pessoa como Sargão,
Aquiles ou um dos faraós”, replicou Yves Delage, “ninguém iria
pensar em protestar […]. Eu não faço uma obra clerical porque o
clericalismo ou o anticlericalismo não têm nada a ver com esse
assunto. Eu considero o Cristo um personagem histórico e não vejo
por que as pessoas se escandalizariam com a existência de um traço
material de sua existência.”168 O próprio sudário suscitou a
violência. Em abril de 1997, faltou pouco — a intervenção de um
jovem bombeiro corajoso e modesto, Mario Trematore, guiado, como
disse, por uma voz interior — para que o sudário desaparecesse nas
chamas de um incêndio criminoso na capela Guarani, da catedral de
São João Batista, de Turim, onde ele era conservado. Uma tentativa
do mesmo tipo produziu-se em 1972, e outra em 1990. O sudário
figurava na lista de alvos que a al-Qaeda queria destruir.
A Igreja, é claro, nunca sacralizou essa relíquia, por mais
venerável e mais autêntica que fosse. Isso não é assunto de fé (cujo
único objetivo é a Revelação da palavra de Deus). “Ela não é o
Cristo, mas conduz ao Cristo”, dizia em 2010 o cardeal sacrário de
Turim, Severino Poletto. Mas, do ponto de vista científico, o sudário
apresenta, atualmente, todas as garantias desejáveis e o nível de
exigência requerido. Não somente é um vestígio arqueológico
excepcional, de um valor inestimável, com realismo evangélico
surpreendente — falou-se, a seu propósito, de quinto evangelho —,
mas completa de maneira espantosa os escritos apostólicos, nos
fazendo penetrar mais concretamente nas diversas particularidades
da Paixão. O historiador não poderia, por consequência,
negligenciar os dados.

O sudário de Oviedo e a túnica de Argenteuil


Vamos nos estender menos sobre as duas outras relíquias, o sudário
de Oviedo e a túnica de Argenteuil. O sudário conservado na
catedral de Oviedo nas Astúrias é um tecido de linho retangular de
85,5 cm x 52,5 cm, feito com tecelagem arcaica, conservado numa
moldura de prata, que se imagina ter enxugado o sangue do Cristo
no momento de sua descida da cruz, antes de ele ser colocado na
sepultura. O tecido não mostra nenhuma imagem humana. Sujo,
manchado, parcialmente rasgado e queimado, ele não é tão
espetacular como o sudário. Desprovido de qualquer valor artístico,
não sabemos direito por que ele teria sido conservado se não fosse
autêntico. Nele podemos ver duas grandes manchas de sangue e
duas auréolas de líquido seroso. Elas se superpõem ao redor de um
eixo vertical, o que permite deduzir que se formaram quando o
tecido estava dobrado em dois em toda a sua espessura, mas não no
meio.
Esse tecido teria feito parte das relíquias da Paixão conservadas
pelos primeiros cristãos. Um peregrino anônimo de Piacenza (Itália),
que visitou a Terra Santa por volta do ano 570, assegura que, numa
caverna das margens do Jordão, podia-se ver o sudarium, isto é o
sudário, que havia sido colocado sobre a cabeça do Senhor.
Transferido para a Alemanha por volta do ano 615 para escapar dos
invasores persas, ele encontrou refúgio na Espanha, em Sevilha,
depois em Toledo. Foi deslocado novamente no momento das
invasões muçulmanas e chegou a Oviedo, capital do reino das
Astúrias, onde Afonso II, o Casto, lhe dedicou uma capela, mais
tarde absorvida pela catedral.
Sua análise científica foi primeiramente conduzida pelo
Monsenhor Ricci e o professor Max Frei (que descobriu no tecido,
como no sudário, pólens de plantas que só crescem em Jerusalém e
em Jericó), depois, em 1989-1990, foi analisado por uma equipe
pluridisciplinar espanhola, dirigida por Teresa Ramos, Guillermo
Heras e o doutor José Villalain. Dois congressos científicos, um
realizado em Cagliari, o outro em Oviedo, contribuíram com
resultados assombrosos no sentido de sua autenticidade. Um longo e
minucioso trabalho permitiu compreender o mecanismo de
formação, em várias etapas, das manchas sanguíneas. A história da
descida da cruz ficou, assim, modificada e notavelmente precisa.
Quanto à Santa Túnica de Argenteuil, trata-se de um manto de lã
de carneiro não merino, de cor marrom-púrpura um pouco puxando
para o vinho, hoje remendado, danificado e comido pelas traças (o
pedaço mais importante mede 122 cm de comprimento x 90 cm de
largura na altura dos braços e 130 cm na altura do peito). Dizem
que esse manto era vestido por Cristo sobre a pele, e que, por
ocasião da crucificação, os carrascos jogaram dados para saber quem
ficaria com ele. De início conservado em Jafa (atualmente, Tel
Aviv), onde sua presença é atestada no final do século VI, ele teria
sido transferido nessa época para a basílica de Anges, em Germia,
perto de Constantinopla. Segundo Gregório de Tours, ele foi ali
objeto de uma grande veneração. O manto teria chegado à França
no século IX, presente da imperatriz Irene de Constantinopla para
Carlos Magno, em razão de seu futuro casamento. Esse último o teria
oferecido à sua filha Théodrade, abadessa do mosteiro de Notre-
Dame-d’Humilité [Nossa Senhora da Humildade], em Argenteuil.
Para escapar das destruições dos normandos, o manto foi colocado
ao abrigo dentro de um muro da abadia, onde foi encontrado por
acaso em 1156, dentro de seu cofre de marfim. Ele foi escondido
novamente por ocasião das guerras religiosas. Durante a revolução,
para subtraí-lo novamente às ameaças de destruição, o pároco desse
burgo, Ozet, o cortou em vários pedaços, que ele enterrou durante
dois anos no jardim de seu presbitério. Atualmente, o manto foi
reconstituído, pelo menos em parte.
Experimentos foram feitos em 1893, 1931 e 1934, datas em que
foram tiradas fotografias infravermelhas. Em 1995, um comitê
ecumênico e científico da Santa Túnica de Argenteuil (ou Costa),
composto por sábios de várias disciplinas, empreendeu novas
pesquisas. Como a túnica era propriedade da República Francesa,
em 2004, M. Jean-Pierre Maurice, subprefeito de Argenteuil,
mandou fazer uma avaliação com C14 no laboratório do CEA/CNRS
de Saclay (Gif-sur-Yvette). Decepção para os partidários da
autenticidade: o intervalo estatístico o situava entre 530 e 650.169
Mas foi só recentemente, graças aos trabalhos decisivos do professor
Gérard Lucotte, que esse resultado foi recolocado em questão e que o
erro foi demonstrado e explicado. O professor, primeiramente,
mandou refazer o teste do C14 pela firma Archéolabs, habituada a
trabalhar com monumentos históricos. Ora, o intervalo estatístico de
tempo obtido — 670-880 — não coincidia com o encontrado em Gif!
Haveria poluições que passaram despercebidas? Examinando o
tecido no microscópio eletrônico de varredura, Gérard Lucotte
percebeu então que as fibras estavam todas impregnadas com
depósitos de carbonato de cálcio (contrariamente ao que pretendia o
relatório do CEA). Tentativas de limpeza efetuadas segundo os
protocolos habituais dos laboratórios o levaram a constatar que as
fibras, depois da operação, continham ainda um terço de cálcio,
aprisionadas no interior das moléculas de queratina. Foi esse
elemento mais recente que teria influenciado a radiodatação no
sentido do rejuvenescimento do tecido. Outra especialista em C14,
Marie-Claire Van Oosterwyck-Gastuche, associada a essas pesquisas,
observou também que o protocolo de limpeza havia dissolvido uma
parte da lã que devia ser datada, deixando uma parte das
impurezas!170
Em seguida, o professor Lucotte realizou a análise estrutural da
relíquia. Ele concluiu que se tratava de uma tecelagem com fios
simples, regulares, fortemente torcidos em Z, como os tecidos
originários da Síria, encontrados em Dura Europos, perto de
Palmira. A veste, tecida sem costura, foi tingida antes com ruiva-dos-
tintureiros, e o mordente, aplicado depois, continha alume de
potássio. Tudo isso remetia a procedimentos usados na Antiguidade
e a uma zona geográfica precisa, o Oriente Médio. Muitas dessas
vestes eram fabricadas de maneira artesanal, por vezes, em família.
A presença de numerosa poeira de silício corresponde a solos de
natureza desértica ou quase desértica. Entre os grãos de pólen
encontrados figuram aqueles de uma espécie de palmeira presente
na Palestina, a Phoenix dactylifera, e pólen de uma planta gordurosa,
a Prosopis farcta, também encontrados no sudário de Turim.
Enquanto ainda se duvidava da presença de grandes manchas de
sangue na altura das espáduas, nas costas, e ao nível dos quadris,
Gérard Lucotte percebeu que a relíquia estava “repleta” de sangue
humano. Graças a alguns linfócitos detectados, ele conseguiu
estabelecer uma sequência de DNA da pessoa que havia manchado o
tecido e localizar uma quinzena de marcadores genéticos. “Penso”,
conclui Lucotte, “que a túnica é a autêntica túnica de Cristo.” Foi a
partir desses trabalhos que o romancista Didier van Cauwelaert
escreveu seu Cloner le Christ [Clonar o Cristo], cujas conclusões são
oriundas de pura ficção científica, pois é rigorosamente impossível,
no estado atual do conhecimento, conceber uma clonagem a partir
de antigos traços de DNA. Algumas seitas americanas, que aguardam
o retorno de Cristo, acreditam nisso muito fortemente.

As relíquias autenticadas por sua análise comparada


A grande novidade das análises realizadas nesses últimos anos sobre
as três relíquias, de Turim, de Oviedo e de Argenteuil, consideram
que elas revelam pontos de semelhança surpreendentes que
dificilmente podem ser atribuídos ao acaso. A comparação dos
pólens encontrados sobre as três é perturbadora quando conhecemos
suas vicissitudes históricas e suas peregrinações. Em onze tipos de
pólen, estudados em 1994 por Carmen Gómez Ferreras, sete são
comuns nas três relíquias, dois tipos provêm unicamente da
Palestina, aqueles de uma árvore de pistache, Pistacia palestin, e de
tamarindo, Tamarix hampeana.171
Sobre o sudário e a túnica, as manchas de sangue manifestam as
mesmas dimensões e as mesmas formas. Nove dentre dez podem ser
superpostas, como mostrou, em 1997, com a ajuda de instrumentos
científicos muito modernos, André Marion, engenheiro do CNRS,
especialista em tratamento numérico das imagens no Instituto de
Ótica Teórica e Aplicada de Orsay. Entre a mortalha e o sudário, a
cartografia sanguínea é de uma concordância perfeita também ao
nível da barba. O médico americano Alan Whanger encontrou
setenta pontos de convergência com a mortalha no lado direito do
sudário de Oviedo e cinquenta para o reverso (catorze pontos são
suficientes para declarar duas impressões digitais idênticas). As
pequenas manchas de sangue sobre a nuca evocam sem contestação
a coroa de espinhos.
Finalmente, foi analisado o sangue que se encontra sobre os três
pedaços de tecido: ele é do mesmo grupo, AB, um grupo muito raro,
visto que é encontrado em apenas 4% da população mundial
(frequência que chega a 18% entre os judeus da Babilônia e os da
Judeia).172 O fato havia sido estabelecido desde 1982 pelo professor
Baima Bollone para a mortalha. Ele foi também estabelecido pelo
médico José Villalain e pelo hematologista Carlo Goldoni para o
sudário, em 1986, e em 2005 pelos professores Saint-Prix e Lucotte
para a túnica. Ora, a probabilidade de observar o grupo sanguíneo
AB sobre as três roupas foi estabelecida em 0,000125, ou seja, uma
chance em 8.000, e não falamos de outras possibilidades de
concordância do modelo das manchas sanguíneas.173 Essa
impressionante reunião de convergências científicas é suficiente
para confirmar a autenticidade das três relíquias.174 Tendo estado
em contato com o mesmo indivíduo, elas se fortalecem mutuamente,
aniquilando simultaneamente — até que se prove o contrário — as
tentativas incertas do C14.175 Nenhum falsário poderia arranjar tão
perfeitamente os três objetos, como admitem todos os que passaram
essas relíquias pelo crivo de todas as técnicas exploratórias atuais.
As reuniões de conjecturas em favor da autenticidade atingem
limiares jamais conhecidos no domínio histórico e arqueológico.176
Tal veredito da ciência, ignorado pelo grande público, é
evidentemente essencial numa abordagem do Jesus histórico.
ANEXO VII
Cronologia

(Note bem. Algumas datas são hipotéticas; c. = cerca de)

Antes de Jesus Cristo


63 Tomada de Jerusalém por Pompeu

37 O rei Herodes, o Grande, se instala em Jerusalém

16-17 Início dos trabalhos de reconstrução do Templo

7 Nascimento de Jesus

4 Morte de Herodes, o Grande. Divisão de seu reino

Depois de Jesus
Entre 5 e 10 Nascimento de Paulo de Tarso

6 Nomeação de Anás como sumo sacerdote

6 Fim do reinado de Arquelau à Judeia

14 Morte de Augusto. Advento de Tibério

15 Exoneração do sumo sacerdote Anás

18 Caifás é nomeado sumo sacerdote

26 Chegada do prefeito Pôncio Pilatos na Judeia

29 Início da pregação de João Batista


30 Início do ministério público de Jesus

31 Execução de João Batista

33 (3 de abril) Crucificação de Jesus

36 Massacre dos samaritanos no Monte Garizim 36 Pilatos é chamado de volta a


Roma
Morte de Estêvão. Dispersão dos cristãos helenistas
Conversão de Paulo

37 Morte de Tibério. Advento de Calígula


Nascimento de Flávio Josefo

41 Morte de Calígula. Advento de Cláudio

41 Advento de Herodes Agripa I

45-49 Primeira viagem missionária de Paulo

c. 50-51 Primeira e segunda epístolas de Paulo aos tessalonicenses

54 Morte de Cláudio. Advento de Nero

c. 55 Primeira epístola de Paulo aos coríntios

56-58 Outras epístolas de Paulo

c. 57 Epístola de Tiago

c. 58 Detenção de Paulo em Jerusalém


Chegada de Pedro a Roma

60-61 Chegada de Paulo a Roma

c. 60-61 Evangelho de Mateus em língua semítica

62 Execução de Tiago, o Justo, em Jerusalém

c. 62-63 Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos, escritos em grego

c. 62-63 Última versão do evangelho de Mateus

c. 64 Evangelho de Marcos, escrito em Roma

64 Roma incendiada por Nero


c. 64-65 Evangelho de João, escrito em Jerusalém

c. 65 Perseguição dos cristãos em Roma

65 Execução de Pedro

65-66 João redige o capítulo 21 de seu evangelho

66 Emigração da comunidade cristã para Péla

67 Execução de Paulo

68 Destruição do local de Qumran


Morte de Nero. Advento de Galba

70 Destruição de Jerusalém por Tito


Reorganização do judaísmo por Yochanan ben Zakai

73 Queda de Massada

75-79P Aparecimento do livro Guerra dos Judeus, de Flávio Josefo

81 Advento de Domiciano

93-94 Aparecimento das Antiquidades dos Judeus, de Flávio Josefo

96 Epístola de Clemente de Roma


Morte de Domiciano

97 Advento de Trajano

101 Morte em Éfeso de João Evangelista

c. 112 Carta de Plínio, o Jovem

c. 116 Epístola de Inácio de Antioquia

118 Morte de Trajano. Advento de Adriano

c. 130 Evangelho apócrifo de Pedro


Evangelho apócrifo de Tomé

130-131 Início da segunda revolta judaica 134 Segunda tomada de Jerusalém

c. 150-170 Cânone de Muratori


Notas

Prólogo
1. Primeira epístola aos Coríntios, 15, 1.
2. GOWLER, David. Petite histoire de la recherche du Jésus de
l’Histoire. Paris: Cerf, 2009.
3. SCHWEITZER, Albert. Von Reimarus zu Wrede (1906), segunda
edição revista e aumentada publicada em 1913, com o título:
Geschichte der Leben-Jesu-Forschung. Tradução francesa
publicada em 1961 (Le Secret historique de la vie de Jésus. Paris:
Albin Michel).
4. BULTMANN, Rudolf. Jésus. Mythologie et démythologisation.
Paris: Seuil, 1968; do mesmo autor, L’Histoire de la tradition
synoptique. Paris: Seuil, 1973.
5. BORNKAMM, Günther. Qui est Jésus de Nazareth?, edição alemã
1956; edição francesa, Paris: Seuil, 1973.
6. (1o) O critério de descontinuidade ou de dessemelhança (as
palavras de Jesus que estão manifestamente em ruptura com o
judaísmo de seu tempo têm toda a probabilidade de serem
dele); (2o) o critério de certificação múltipla (a presença de
atos ou de palavras confirmadas por várias fontes literárias
independentes reforça a sua credibilidade); (3o) o critério de
coerência (determinada palavra se harmoniza com o que
sabemos por outro aspecto do ensinamento de Jesus: esse é
também um sinal de autenticidade); (4 o) o critério de
constrangimento eclesiástico (a renegação de Pedro, por
exemplo, embaraçosa para as primeiras comunidades, não
pode ter sido inventada, bem como o batismo de Jesus levanta
dificuldades teológicas: por qual razão aquele que os primeiros
cristãos consideram como Filho de Deus e que, não tendo nunca
pecado, pediu a João, o ermitão do deserto, o batismo para a
“remissão dos pecados”?, etc.); (5o) o critério de
“plausabilidade histórica” ou de explicação suficiente (por
exemplo, o nome carinhoso de Abba – mais próximo de
“Papai” do que de “Pai” em aramaico – dado a Deus por Jesus:
como imaginar que essa “intimidade filial inaudita” tenha sido
inventada pelos primeiros cristãos?). A utilização desses
postulados metodológicos tem seus limites. Qual é o valor do
critério de certificações múltiplas se as fontes não são
independentes, se os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas
remontam a um Proto-Evangelho de Mateus escrito em
aramaico, como muitos pensam, se o evangelho de Lucas
utilizou em parte a pregação oral de João, o discípulo “bem-
amado”, autor do quarto evangelho? A aplicação sistemática
do critério de descontinuidade caro a Käsemann levaria, por
outro lado, a excluir qualquer traço judeu do Jesus histórico, o
que é em si absurdo. Como separá-lo de sua própria tradição?
Quanto ao critério de coerência, ele não é tão simples de
precisar. De fato, tal abordagem, por mais interessante que
possa ser, apresenta o inconveniente de lançar a dúvida sobre
tudo o que não entra num padrão preestabelecido.
7. É necessário colocar de lado o lançamento nos Estados Unidos,
em 1985, do Jesus Seminar, por iniciativa de um pesquisador
independente, Robert W. Funk, e de um antigo religioso, John
Dominic Crossan (The Historical Jesus. The Life of a
Mediterranean Jewish Peasant. Edimburgo: T. and T. Clark,
1991), cujos trabalhos mostraram limites zombeteiros, quase
cômicos, da empreitada. Tratava-se, com efeito – reunindo um
comitê de uma vintena de especialistas particularmente
críticos, recrutados por coerção –, de colocar em votação as
palavras (logia) de Jesus e de determinar as que eram
consideradas verdadeiras. Em vermelho as autênticas, em preto
as falsas, em cor-de-rosa as prováveis, em cinza as incertas. A
maior parte dos dados evangélicos, sendo eliminados por
maioria (só 16% dos atos e 18% das palavras são consideradas
como prováveis), chega a ver em Jesus um profeta vago, um
sábio autor de aforismos, que só curava os doentes
psicossomáticos. O messianismo do Cristo é negado, bem como
sua filiação divina e sua ressurreição. O túmulo vazio é uma
fábula. Sem falar do nascimento virginal do Cristo (segundo
esses especialistas americanos, Maria teria sido seduzida ou
violada!). Nenhuma de suas palavras, que aparecem no quarto
evangelho, o de João, são consideradas verdadeiras, o que tem
a propriedade de uma visão retrógrada, porque, se há um
evangelho que um grande número de pesquisadores considera
como histórico, trata-se precisamente desse! Esse dogmatismo
nos deixa atônitos. A ênfase das declarações, a forte
midiatização das conclusões do Jesus Seminar nos leva
claramente a falar do circo Barnum da exegese. De fato, a
análise desses autoproclamados especialistas evidencia
preconceitos partilhados, infelizmente, por outros
pesquisadores contemporâneos. Ao declarar, sem a
preocupação de provar, que essa ou aquela palavra de Jesus
não é dele, mas pertence a uma “classe redacional” das
comunidades responsáveis pelos evangelhos, só conservam as
que matizam o retrato de Jesus que queremos esboçar.
8. BROWN, Raymond E. Que sait-on du Nouveau Testament? Trad.
J. Mignon. Paris: Bayard, 2000; do mesmo autor, La Mort du
Messie. Encyclopédie de la Passion du Christ, de Gethsémani au
tombeau. Trad. J. Mignon. Paris: Bayard, 2005; MEIER, John P.
Jésus. Un certain juif. Les données de l’Histoire. t. I, Les Sources,
les origines, les dates; t. 11, Les Paroles et les gestes; t. III,
Attachements, affrontements, ruptures; t. IV, La Loi et l’amour.
Trad. D. Barrios, J.-B. Degorce, C. Ehlinger e N. Lucas. Paris:
Cerf, 2004-2009.
9. BAUCKHAM, Richard. Jude and the Relatives of Jesus in the Early
Church. Edimburgo: T. and T. Clark, 1990; do mesmo autor,
Jesus and the Eyewitnesses. The Gospels as Eyewitness Testimony.
Grand Rapids, Michigan/Cambridge (U. K.): W. B. Eerdmans
Company, 2006; FREYNE, Sean. Jesus, a Jewish Galilean. A New
Reading of the Jesus Story. Londres, Nova York: T. and T. Clark,
2005; DUNN, James D. G. & McKNIGHT, Scot (Ed.). The
Historical Jesus in Recent Research. Winona Lake (Ind.):
Eisenbrauns, 2005; HURTADO, Larry W. Le Seigneur Jésus-
Christ. La dévotion envers Jésus aux premiers temps du
christianisme. Paris: Cerf, 2009.
10. MEYNET, Roland. Traité de rhétorique biblique. Paris:
Lethielleux, 2007; do mesmo autor, Une nouvelle introduction
aux évangiles synoptiques. Paris: Lethielleux, 2009.
11. CHARLESWORTH, James H. Jesus within Judaism: New Light
from Exciting Archaeological Discoveries, 1988.
12. PIXNER, Bargil. Paths of the Messiah and Sites of the Early Church
from Galilee to Jerusalem. Jesus and Jewish Christianity in Light of
Archaeological Discoveries. San Francisco: Ignatius Press, 2010;
do mesmo, With Jesus through Galilee. According to the Fifth
Gospel. Corazin: Rosh Pina, 1992. Ver, igualmente, McNAMER,
Elizabeth & PIXNER, Bargil. Jesus and First-Century Christianity
in Jerusalem. Nova York, Mahwah (NJ): Paulist Press, 2008.
13. MEYER, Ben Franklin. The Aims of Jesus. Londres: SMC Press,
1979.
14. DREYFUS, François. Jésus savait-il qu’il était Dieu? Paris: Cerf,
1984.
15. Além de suas séries televisivas, vendidas em caixas por Mille et
Une Nuits, Arte Éditions (1997), Gérard Mordillat e Jérôme
Prieur escreveram várias obras: Jésus contre Jésus (1999), Jésus
après Jésus (2004), Jésus sans Jésus (2008).
16. Em Les Chevaliers de l’Apocalypse. Réponse à MM Prieur et
Mordillat (Lethielleux/Desclée de Brouwer), Jean-Marie
Salamito, professor de história do cristianismo antigo na
Universidade de Paris-IV Sorbonne, mostrou bem o aspecto
ideológico dos cortes abusivos e das montagens subversivas
desses dois autores.
KERESZTY, Roch. “La place du Jésus de l’histoire dans la
17. théologie. Éclaircissements méthodologiques”, Communio, XXII,
2-3, n.130, 1997, pp. 49-64.
18. BLOCH, Marc. Apologie pour l’histoire ou Métier d’historien. Paris:
Colin, 1993, p. 70.
19. DODD, Charles Harold. Le Fondateur du christianisme. Trad. P.-
A. Lesort. Paris: Seuil, 1972, p. 127.
20. SCHLOSSER, Jacques. Jésus de Nazareth. Noisy-le-Grand:
Noesis, 1999, p. 23.
21. Recentemente, por exemplo, o historiador Richard Bauckham
insistiu sobre o papel da memória individual (e não coletiva)
na formação da tradição oral, reabilitando vigorosamente as
propostas de Papias, bispo de Hierápolis na Frígia, um dos Pais
da Igreja (1o-2o séculos), proposta relatada pelo historiador
Eusébio de Cesareia (IV século), mas desdenhada por muito
tempo pelos intérpretes (BAUCKHAM, Richard. Jesus and the
Eyewitnesses. The Gospels as Eyewitness Testimony, op. cit.).
22. João, 21, 24.
23. EUSÉBIO, Histoire ecclésiastique. t. V, 24 e seguintes.
24. Citado por STANTON, Graham. Parole d’évangile? Paris,
Montréal: Cerf-Novalis, 1997, p. 134. Às vezes datado do
século IV no Oriente, esse documento dataria realmente do
século II e teria sido composto no Ocidente. Ver FERGUSON, E.
“Canon Muratori. Date and Provenance”, Studia Patristica, v.
17, 2, Oxford, 1982, pp. 677-83; HENNE, Philippe. “La
datation du canon de Muratori”, Revue Biblique, jan. 1993, pp.
54-75; VERHEYDEN, J. “The Canon Muratori. A Matter of
Dispute”, em AUWERS, J.-M. & DEJONGE, H. J. (Ed.). The
Biblical Canons, BETL, CLXIII, Leuven, 2003, pp. 485-556.
25. HUNTER, A. M. Saint Jean, témoin du Jésus de l’Histoire. Paris:
Cerf, 1970 (original publicado em Londres, em 1968). Ver
também: MUSSNER, Franz. Le Langage de Jean et le Jésus de
l’histoire. Paris: Desclée de Brouwer, 1969.
26. GROSJEAN, Jean. L‘Ironie christique. Commentaire de l’Évangile
selon Jean. Paris: Gallimard, 1991, p. 14.
27. BASLEZ, Marie-Françoise. Bible et Histoire. Judaisme, hellénisme,
christianisme. Paris: Fayard, 1998, p. 218.
28. ANDERSON, P. N., JUST, F. & THATCHER, T., (Ed.). John,
Jesus and History. t. II, Aspects of Historicity in the Fourth Gospel.
Atlanta: Society of Biblical Literature, 2009. Rompendo com a
interpretação, até então dominante, que via nos discursos
reproduzidos por João o reflexo dos conflitos que opunham a
Igreja de João à Sinagoga na virada do século I para o II,
Joseph Ratzinger/Bento XVI considera, pelo contrário, que o
seu evangelho relata “corretamente” (apesar de não ser na
forma literal) os discursos e os testemunhos de Jesus nos
grandes debates de Jerusalém, “de sorte que o leitor encontra
realmente o conteúdo decisivo dessa mensagem e, nele, a
figura autêntica de Jesus”. RATZINGER, Joseph/BENTO XVI,
Jésus de Nazareth. t. I. Paris: Flammarion, 2007, p. 255.
29. Assim, em seu artigo publicado em nov. de 2010 em La Vie
spirituelle (p. 579-93), Odile Celier, professora no Instituto
Católico de Paris, não leva em consideração os resultados
obtidos após a publicação, em 1992, de seu livro consagrado ao
Sudário (CELIER, Odile. Le Signe du linceul. Le Saint Suaire de
Turin: de la relique à l’image. Paris: Cerf, 1992).
30. Em 2005, o sumário já impressionante dessas pesquisas foi
estabelecido pela Terceira Conferência Internacional de Dallas
de 8 a 11 de set. de 2005. Evidences for Testing Hypotheses about
the Body lmage formation of the Turin Shroud (acessível pela
internet, www.shroud.com/pdfs/doclist.pdf).

CAPÍTULO 1
João Batista
1. A travessia a pé do rio Jordão por Josué tem uma explicação
científica: o desmoronamento a montante das margens e a
interrupção provisória da corrente fluvial? O fenômeno
ocorreu em três oportunidades, em 1267, 1916 e 1927. Isto não
impediria que, numa perspectiva religiosa, o surgimento desse
fenômeno pudesse ser interpretado como ação de Deus em
favor de seu povo.
2. JOSÈPHE, Flavius. Antiguidades dos judeus, 20, 5, 1 § 97-98.
3. Ibid., 20, 8, 10 § 188.
4. Em hebreu, “bênção de Yahvé” ou ainda “Yahvé realizou a
graça”.
5. Lucas, 3, 1-2.
6. Aggeu, 1, 1.
7. Zacarias, 1, 1.
8. A tetrarquia – o quarto de um reino – era um distrito autônomo
do Império Romano governado por um tetrarca. Era inferior a
uma etnarquia e com maior razão a um reino. Após a morte de
Herodes, o Grande, seu reino foi dividido em quatro partes de
áreas desiguais: (1o) a Judeia-Samaria (Cisjordânia),
inicialmente confiada a Arquelau, seu filho, com o cargo de
etnarca, depois, por ocasião de sua deposição, no ano 6 da era
cristã, colocada em administração direta sob a autoridade de
um prefeito romano; (2o) a Galileia e a Pereia, confiadas a
Herodes Antipas, com o cargo de tetrarca; (3o) a Itureia, a
Gaulanítide [as Colinas de Golã], a Bataneia, a Traconítide, a
Araunítide [o Houran], províncias situadas ao norte e a leste
do lago de Genesaré, confiadas a Filipe, com o cargo de
tetrarca; (4 o) dois pequenos territórios, um ao norte de
Absalon, o outro ao norte de Jericó, confiados a Salomé, filha
de Herodes, o Grande.
9. A Abilene, que não fazia parte do reino de Herodes, o Grande
(40-4 antes de Cristo), foi incorporada ao domínio de seu neto,
Herodes Agripa I (4-44).
10. Algumas medalhas cunhadas em Alexandria, no Egito,
consideram o ano de sua adoção (4 d.C.) como aquele do início
de seu reino, mas tratava-se de pura bajulação. O costume
egípcio e judeu concluía o primeiro ano de um novo reinado
com o fim do ano civil (em 30 de set.), o que situaria o décimo
quinto ano do reinado de Tibério de 1o de out. do ano 27 até
30 de set. do ano 28. Mas não comprendemos porque Lucas,
influenciado pela cultura greco-latina, e que não era nem
egípcio nem judeu, teria seguido esse critério oriental de
utilização bastante limitada.
11. LOTH, Arthur. Jésus-Christ dans l‘Histoire. L’Ère chrétienne, la
date de la naissance de Jésus-Christ avec l’année de sa mort.
Paris: F.-X. de Guibert, 2003, pp. 413-52.
12. MEIER, John P., op. cit., t. II, p. 63.
13. Segundo Livro de Reis, 1, 8.
14. Números, 6, 5, 9, 19.
15. A autenticidade dessa versão, que data do século XI e comporta
acréscimos substanciais em relação à versão habitual, é
discutida. Segundo o padre Étienne Nodet, da Escola Bíblica e
Arqueológica Francesa de Jerusalém, ela poderia provir de
uma primeira versão grega do texto primitivo de Josefo
(NODET, Étienne. Histoire de Jésus? Nécessité et limites d’une
enquête. Paris: Cerf, 2003, p. 222 e seguintes).
16. Lucas, 3, 9.
17. Mateus, 3,12.
18. Lucas, 3, 8.
19. Em aramaico, a frase torna-se: “min abanayya illèn… banîn”.
20. Lucas, 3, 8.
21. Lucas, 3, 10-14.
22. Números, 19, 1 e seguintes.
23. PERROT, Charles. Jésus et l’Histoire. Paris: Desclée, 1979, pp.
99-136. Do mesmo, “Les rites d’eau dans le judaísme”, Le
Monde de la Bible. Archéologie et Histoire, jul.-ago. de 1990, n.
65, pp. 23-5.
24. PERROT, Charles, op. cit., pp. 110-1.
25. Sobre o conjunto da questão, ver LÉGASSE, Simon. Naissance
du baptême. Paris: Cerf, 1993.
26. JOSÈPHE, Flavius. Autobiographie, 2 § 11. Trad. A. Pelletier.
Paris: Les Belles Lettres, 1959.
27. THOMAS, Joseph. Le Mouvement baptiste en Palestine et en Syrie
(150 a.C. 300 d.C.). Gembloux: Duculot, 1935, p. 93.
28. Mateus, 3, 1, Bíblia TEB.
29. “Aquele que vem atrás de mim” (em grego: ho opisô mou
erchomenos) não significa uma subordinação em algum tipo de
hierarquia, mas uma consideração temporal: “aquele que
deverá logo aparecer”.
30. Alguns exegetas que traduziram a palavra grega ikanos por
“capaz” (juridicamente) preferivelmente a “digno”, evocaram
a esse propósito a lei do levirato: o parente mais próximo do
marido falecido de uma viúva sem filhos é chamado a casar-se
com esta e é o único apto a retirar sua sandália (Ruth, 4, 7).
Assim, seria introduzido o tema do “esposo” (Jesus) vindo a
unir-se a Israel. Um ritual diferente ligado a essa lei é dado
pelo Deuteronômio, 25, 5-10.
31. João, 1,8.
32. STEINMANN, Jean. Saint Jean Baptiste et la spiritualité du désert.
Paris: Seuil, 1955, p. 58 e seguintes.
33. Isaías, 40, 3.
34. IQS (Regra da comunidade).
35. DANIEL-ROPS, Jésus en son temps. Paris: Fayard, 1965, p. 83;
DANIÉLOU, Jean. Les Manuscrits de la mer Morte et les origines
du christianisme. Paris: Éd. de l’Orante, 1974, p. 20; PIXNER,
Bargil. Paths of the Messiah…, op. cit., pp. 395-6.

CAPÍTULO 2
Crise política e espera messiânica
1. REED, Jonathan L. Archaeology and the Galilean Jesus: A Re-
examination of the Evidence. Harrisburg, Pennsylvania: Trinity,
2000; McRAY, J. Archaeology and the New Testament. Grand
Rapids: Baker, 1991.
2. SARTRE, Maurice. D’Alexandre à Zénobie. Histoire du Levant
antique, IVe siècle avant J.-C. IIIe siècle après J.-C. Paris: Fayard,
2001, nova edição, 2010; GOODMAN, Martin. Rome et
Jérusalem, le choc de deux civilisations. Paris: Perrin, 2009;
BASLEZ, Marie-Françoise, op. cit.
3. CROSSAN, John Dominic, op. cit.; SAWICKI, Marianne. Crossing
Galilee: Architectures of Contact in the Occupied Land of Jesus.
Harrisburg: Trinity Press International, 2000.
4. THEISSEN, Gerd. Le Mouvement de Jésus. Histoire sociale d’une
révolution des valeurs. Paris: Cerf, 2006. Já há alguns anos, os
historiadores não cessam de interessar-se pelas condições
econômicas e sociais da Galileia sob o reinado de Herodes
Antipas. Ver, especialmente, FREYNE, Sean. Jesus, a Jewish
Galilean, op. cit.; e JENSEN, Morten Herning. Herod Antipas in
Galilee. The Literary and Archaeological Sources on the Reign of
Herod Antipas and its Socio-Economic Impact on Galilee.
Tübingen: Mohr Siebeck, 2006. HENGEL, Martin. Judaism and
Hellenism: Studies in their Encounter in Palestine During the Early
Hellenistic Period. Filadélfia: Fortress Press, 1974, 2 volumes.
5. GOODMAN, Martin, op cit., p. 130.
6. SARTRE, Maurice, op. cit., p. 550.
7. Isaías, 11, 1.
8. Segundo Livro de Samuel, 7, 14.
9. COLLINS, John J. “L’attente messianique et les Psaumes”,
Religions et Histoire, nov-dez. de 2010, n.35, pp. 42-7.
10. LAPERROVSAZ, Ernest-Marie. L’Attente du Messie en Palestine à
la veille et au début de l’ère chrétienne à la lumière des documents
récemment découverts. Paris: A. et J. Picard, 1982; COLLINS,
John J. The Scepter and the Star: Messianism in Light of the Dead
Sea Scrolls. Grand Rapids, Cambridge: William B. Eerd-mans,
1995.
11. Gênesis, 14, 18-21.
12. 4Q246.
13. FITZMYER, J. A. “4Q246: The ‘Son of God’ document from
Qumran”, Biblica, v. LXXIV, n.2, 1993, pp. 153-174; PUECH,
Émile. “Note sur le fragment d’apocalypse 4Q246. Le fils de
Dieu”, Revue Biblique, v. CI, n.4, 1994, pp. 533-58.
14. ATTIAS, Jean-Christophe, GISEL, Pierre & KAENNEL, Lucie
(Ed.). Messianismes. Variations sur une figure juive. Genebra:
Labor et Fides, 2000.
15. Salmos de Salomão, 17, 23.
16. Um dos primeiros atos da grande revolta do ano 66 será a
destruição desses afrescos por um grupo de judeus religiosos.
17. MEIER, John P., op. cit., t. II, p. 35. Lucas é o único evangelista
a reportar às origens familiares do Batista, que ele possui de
fonte fidedigna, talvez de João Evangelista, testemunha ocular
dos inícios do Batista e depositário enquanto membro da
aristocracia sacerdotal das tradições do Templo.
Historicamente, é difícil pronunciar-se sobre o nascimento
tardio e milagroso de João. O cântico de Zacarias (Lucas, 1, 68-
79) contém talvez uma das primeiras orações cristãs, próxima
da liturgia judaica, como pensava o padre P. Benoit
(“L’enfance de Jean Baptiste selon Luc I”, New Testament
Studies, v. III, 1957, pp. 169-94).
18. João, 1, 28.
19. Alguns pesquisadores (entre eles, Bargil Pixner) quiseram
colocar a Betânia muito mais ao norte, na Bataneia, às
margens da torrente Kerit (Yarmuk), região sob o governo de
Herodes Filipe. Mas essa hipótese desmoronou depois da
descoberta, em 1996, do sítio arqueológico de Wadi Kharrar.
20. Lucas, 3, 8.
21. Malaquias, 3, 23-24, e livro do Sirácida, 48, 10-11.
22. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’évangile selon Jean, t. I.
Paris: Seuil, 1988, p. 159.

CAPÍTULO 3
Jesus e o precursor
1. BAZELAIRE, Éric de. Revue Internationale du Linceul de Turin, n.
30, dez. de 2007. A partir de um estudo anatômico muito
detalhado (inédito) do dr. Jean-Maurice Clerq, sua altura
ultrapassaria 1,95m.
2. Examinando o lado dorsal do sudário, alguns têm a impressão
de que os cabelos formavam nesse lugar uma trança. Na
realidade, o exame das fotos pelo computador revelou tratar-se
de um objeto (HELLER, John H. Enquête sur le Saint Suaire de
Turin. s.l. [Paris]: Sand, 1985, p. 143).
3. A versão do evangelho de Mateus, inserida no Codex Bezae, a
Vulgata Latina e a Vulgata Sinaïtique (referente ao Sinai), que
aborda a renegação de Pedro, parece referir-se à sua
entonação, idêntica à de Jesus.
4. Notemos, entretanto, que o grego não era tão disseminado
entre o povo judeu simples. Quando Paulo, em Jerusalém,
dirige-se ao tribuno da coorte, esse se espanta: “Você conhece o
grego! Então você não é o egípcio que, nesses dias, sublevou e
conduziu ao deserto os quatro mil sicários?” (Atos dos
Apóstolos, 21, 37-38). O tribuno permite que Paulo se dirija à
multidão, e esse o faz não em grego, mas em aramaico:
“Quando ouviram que ele se dirigia a eles em língua hebraica,
eles redobraram o silêncio” (Atos dos Apóstolos, 22, 3). Mas
Jesus, filho de um artesão e ele próprio artesão, não pertencia
à categoria mais baixa.
5. João, 12, 21.
6. WINANDY, Jacques, OSB. Autour de la naissance de Jésus.
Accomplissement et prophétie. Paris: Cerf, 1970, p. 27.
7. ARON, Robert. Les Années obscures de Jésus, reed. Paris:
Desclée de Brouwer, 1995, p. 129 e seguintes.
8. Lucas, 2, 41-52.
9. Esse texto bem longo teria incluído o evangelho da Infância, a
ressurreição em Naim, a parábola do Bom Samaritano, a
entrada em Jerusalém e inúmeras passagens dos Atos dos
Apóstolos (CARMIGNAC, Jean. Le Magnificat et le Benedictus en
hébreu? Versailles: Éd. de Paris, Association des Amis de l’Abbé
Jean Carmignac, 2009, p. 1.123 e seguintes).
10. Gênesis, 1, 28.
11. Mateus, 19, 12.
12. CROSSAN, John Dominic. op. cit.
13. HOEHNER, H. W. Herode Antipas. Cambridge: Cambridge
University Press, 1972, pp. 84-7.
14. CHANCEY, Mark A. The Myth of a Gentile Galilee. Cambridge:
Cambridge University Press, 2002, pp. 79-81.
15. Não é certo, por outro lado, que Jesus tenha visto o magnífico
anfiteatro que os arqueólogos resgataram: sua data de
construção é incerta, alguns a situam no início do reinado de
Antipas, outros muito mais tarde. Mas é possível, se
acreditarmos nos trabalhos de James Strange, que Jesus tenha
conhecido um teatro menor, que teria sido aumentado e
renovado entre 70 e 80 d.C. (CHARLESWORTH, James H.,
ELLIOTT, J. Keith, FREYNE, Sean & REUMANN, John. Jésus et
les nouvelles découvertes de l’archéologie. Paris: Bayard, 2006, p.
56 e seguintes).
16. PIXNER, Bargil. Paths of the Messiah…, op. cit., pp. 3-9; do
mesmo autor, With Jesus through Galilee…, op. cit., pp. 14-7;
ver, igualmente, a obra do padre dominicano Étienne Nodet,
op. cit., pp. 109-11.
17. Numa mesa de mármore datada do século III ou do IV,
encontrada na Cesareia Marítima em 1962, o nome de Nazaré
é grafado com ts, tzadé (ver reprodução em PIXNER, B. With
Jesus through Galilee…, op. cit., p. 15), o que permite descartar
uma das explicações que faziam do sobrenome Nazareno um
nazir. É bem a raiz netzer, “rebento”, “broto” que parece mais
apropriada.
18. Números, 24, 17.
19. NODET, Étienne, op. cit., p. 111.
20. Isaías, 9, 5-6.
21. O evangelho de Mateus fala de Nazarenos, aquele de Marcos
de Nazorenos, mas o significado é o mesmo: são os herdeiros
do grande rei de Israel.
22. Talmud da Babilônia, Sinédrio 43a.
23. Isaías, 14, 19.
24. Um manuscrito sírio do evangelho de Lucas o especifica
expressamente.
25. 11Q RT, LVII 15-19.
26. EUSÉBIO, Histoire ecclésiastique, t. I, 7, 17.
27. Epifânio de Salamina escreve, no século IV: “O Cristo nasceu
da semente de Davi conforme a carne, isto é, da Santa Virgem
Maria”. Em seu Commentaire sur les Bénédictions d’Isaac, de
Jacob et de Moïse, Hipólito de Roma também é muito explícito:
“Um rebento sairá da raiz de Jessé e uma flor sairá dele. A raiz
de Jessé é Maria, porque ela é da casa e da família de Davi”.
Mesma resposta nos evangelhos apócrifos; assim, o
protoevangelho de Tiago: “Ela era da tribo de Davi e sem
mácula diante de Deus”; os Atos de Paulo: “Jesus Cristo nasceu
de Maria, da semente de Davi”; a Histoire de Joseph le
charpentier: “José escreveu seu nome no registro, a saber, José,
filho de Davi e Maria, sua noiva, que são da tribo de Judá”
(MANNS, Frédéric, OFM. Jésus fils de David. Les Évangiles, leur
contexte juif et les Pères de l‘Église. Paris: Médiaspaul, 1994, pp.
17-22).
28. EUSÉBIO, op. cit., t. III, 11 e 32.
29. Ibid., t. II, 23, 3-18.
30. BARREAU, Jean-Claude. Biographie de Jésus. Paris: Plon, 1993,
p. 12. REFOULÉ, François. Les Frères et soeurs de Jésus, frères
ou cousins? Paris: Desclée de Brouwer, 1995. Ver a atualização
de CARLE, Paul-Laurent. Les Quatre Frères de Jésus et la
maternité virginale de Marie. Paris: Éd. de l’Emmanuel, 2004.
31. Lucas, 2, 7.
32. GRELOT, Pierre. “Les frères de Jésus”, Revue Thomiste, Revue
Doctrinale de Théologie et de Philosophie, t. CIII, jan.-mar. 2003,
pp. 137-44.
33. Gênesis, 42, 15; 43, 5.
34. Gênesis, 13, 8; 14, 16.
35. Lévitico, 10, 4; primeiro livro das Crônicas, 23, 21-22.
36. Tobias, 7, 2 e 7, 4, 15.
37. Atos, 1, 14.
38. Tentando conciliar a existência dos “irmãos” e das “irmãs” de
Jesus com a crença na virgindade perpétua de Maria, o autor
do protoevangelho de Tiago (século II), bem como Epifânio de
Salamina, tornaram-nos meios-irmãos e meias-irmãs, nascidos
de um primeiro casamento de José. Essa tese de um José velho,
viúvo, casando com Maria, ainda sustentada pelas Igrejas
grega, siríaca e copta, não tem base histórica. Em nenhum
lugar dos evangelhos fala-se de outros “filhos de José”. Nunca
o termo grego homopatôr (meio-irmão por parte de pai) foi
empregado.
39. Números, 18, 15-16.
40. Números, 3, 40.
41. Texto publicado por R. P. Frey na revista Biblica de dez. 1930,
pp. 373-90.
42. EUSÉBIO, op. cit., t. I, 7, 14; POURKIER, Aline. L ‘Hérésiologie
chez Épiphane de Salamine. Paris: Beauchesne, 1992, p. 461.
43. BLANCHETIÈRE, François. “Reconstruire les origines
chrétiennes: le courant nazaréen”, Bulletin du Centre de
Recherche Français de Jérusalem, n. 18, 2007, pp. 43-58.
44. EUSÉBIO, op. cit., t. III, 20, 1-3.
45. Mateus, 3, 14-15.
46. SCHLOSSER, Jacques. Jésus de Nazareth, op. cit., p. 102.
47. Atos, 19, 4.
48. JOSÈPHE, Flavius. Antiguidades dos judeus, 18,5, 2 § 117.
49. A fórmula utilizada pelos apócrifos: “Tu és meu Filho, hoje eu
me tornei teu pai” é tomada do Salmo 2 (versículo 7). Ela era
dirigida aos reis de Israel e de Judá.
50. JUSTIN, Dialogue avec Tryphon, 88, 3. Paris: Éd. Archambault,
p. 73.
51. Se João Evangelista não comenta voluntariamente esse
episódio importante, não é somente porque ele não o
testemunhou diretamente, mas porque quer evitar qualquer
ambiguidade ou polêmica com os grupos batistas que, no pe
ríodo em que ele escreve, ainda consideram seu mestre
superior a Jesus.
52. João, 1, 29-33.
53. João, 1, 32-34, Bíblia TEB.
54. A leitura: “eleito por Deus”, adotada por alguns exegetas, como
M.-É. Bois-mard e R. E. Brown, é menos solidamente
confirmada pela tradição manuscrita do que a de “Filho de
Deus”.
55. RÖMER, Thomas. “Roi et messie. Idéologie royale et invention
du messianisme dans le judaísme ancien”, Religions et Histoire,
nov.-dez. 2010, n. 35, pp. 30-5.
56. Isaías, 11, 2 e 42, 1.
57. Atos, 10, 37-38.
58. FLUSSER, David. Jésus. Paris: Éd. de l’Éclat, 2005, p. 41.
59. DUNN, James D. G. Jesus and the Spirit: A Study of the Religious
and Charismatic Experience of Jesus and the First Christians as
Reflected in the New Testament. Filadélfia: Westminster Press,
1975, p. 65.
60. DODD, Charles Harold. Le Fondateur du christianisme. Trad. do
inglês por P.-A. Lesort. Paris: Seuil, 1972, p. 131.

CAPÍTULO 4
O início do ministério público
1. GRELOT, Pierre. Les Évangiles. Origine, date, historicité. Paris:
Éd. du Cerf, 1983, pp. 56-9. (Col. “Cahiers Évangile”, n. 45)
2. Mateus, 14, 13.
3. Hebreus, 2, 18.
4. João, 1, 39.
5. Segundo uma lenda posterior, uma entre tantas, um monge
teria tido uma aparição de João Batista indicando-lhe o lugar
do batismo de Jesus.
6. A insistência do evangelista João em afirmar que André foi o
primeiro a confessar o messianismo de Jesus se deve ao fato de
que André foi um dos inspiradores de seu evangelho, como
revela o Cânone de Muratori (ver anexo III).
7. João, 1, 46.
8. PERROT, Charles. Jésus et l’Histoire, op. cit., p. 176.
9. Daniel, 7, 13.
10. MACKOWSKI, R. “Scholars ‘Qanah. A Re-examination of the
Evidence in Favor of Khirbet-Qanah”, Biblische Zeitschrift,
Paderborn, 1979, v. XXIII, n. 2, pp. 278-84; FINEGAN, Jack.
The Archeology [sic] of the New Testament. The Life of Jesus and
the Beginning of the Early Church. Princeton: Princeton
University Press, 1992, pp. 62-5. Duas outras localidades
competem para essa identificação: Qana-Al-Jalil no Líbano, a
uma quinzena de quilômetros a sudeste de Tiro, que tinha a
simpatia do historiador Eusébio da Cesareia, mas esse não era
um guia confiável no plano geográfico. É a antiga Qana da
tribo de Azer. Ali foram encontrados vestígios de uma
residência, com tecidos e fragmentos de jarras. Um curioso
baixo-relevo, desajeitadamente esculpido sobre um rochedo dos
arredores, representa doze personagens ao redor de um outro,
mais alto. Trata-se supostamente de uma representação
simbólica da Ceia, com o Cristo e seus apóstolos. É
seguramente a prova de que cristãos viveram muito cedo nesse
lugar (Le Commerce du Levant, n. 5.324, 13 jan. 1994, pp. 64-
6), mas não se demonstra com isso que esse seja o lugar do
primeiro milagre. João, o evangelista, por sua vez, é formal.
Ele fala de Canaã “na Galileia”. Ora, tal região meridional da
Fenícia, o país de Bechara, nada tem a ver com a Galileia
judaica, cujas fronteiras estavam situadas mais ao sul. A
segunda localidade é o povoado árabe de Cana [Kafr Cana], a
nove quilômetros ao nordeste de Nazaré: circundada por um
belo e pequeno vale, onde brotam palmeiras, romãs e loureiros
rosados, é a Canãa dos turistas, com suas duas igrejas latina e
ortodoxa, suas falsas jarras do século XIX, sua pretensa sala de
festas e sua mesa de núpcias. No tempo de Jesus, esse vilarejo
certamente existia. Era o antigo Itta Hazim, ou Isanna.
Situava-se mais a oeste, num olivedo onde foram encontrados
restos de uma sinagoga mais antiga. No século IV, são
Jerônimo não emite dúvidas sobre o lugar que lhe mostram:
“Nós fomos a Nazaré… e a pouca distância visitaremos Canaã,
onde a água foi transformada em vinho”. A dificuldade é que
esse lugar parece ter sido escolhido quando a cidade de
Tiberíades subjugou Séforis, e os peregrinos que se dirigiam
para o lago de Genesaré modificaram seu itinerário para
passar por essa cidade.
11. GOODMAN, Martin, op. cit., pp. 260-1.
12. Alguns pesquisadores (Dodd, Boismard, Charlier…), tentando
se basear na cronologia do quarto evangelho, imaginaram
descobrir uma “semana inaugural”, completamente simbólica,
começando com o batismo de João e terminando com as
núpcias de Canaã. Mas outros demonstraram a fragilidade
dessa hipótese (ROBINSON, John A. T. The Priority of John.
Londres: S. C. M. Press, 1985, pp. 161-8).
13. KLEIN, Félix. Jésus et ses apôtres. Paris: Bloud et Gay, 1931, p.
9.
14. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’évangile selon Jean, t. I.
Paris: Seuil, 1988, pp. 233-4.
15. PRAT, Ferdinand, sj. Jésus-Christ, sa vie, sa doctrine, son ouvre,
t. I. Paris: Beau-chesne, 1933, p. 186.
16. João, 2,10.
17. Essa é a posição de Jacques Duquesne em seu Jésus, mas
também a de alguns exegetas. “O relato de Canaã não é do
tipo biográfico”, escreve o padre Xavier Léon-Dufour. Ele não
“remonta”, afirma John P. Meier, “a qualquer acontecimento
do ministério público de Jesus” (MEIER, John P., op. cit., t. II,
p. 1.233).
18. Mateus, 22, 2; 25, 1.
19. Tomando-se como modelo, a título de hipótese, o habitat de
Pompeia e da Óstia antiga, o arqueólogo Jonathan Reed
chega, vista a extensão de Cafarnaun do século I, a uma
estimativa de 1.700 habitantes, o que parece excessivo.
20. Segundo Mendel Nun, pescador do kibutz Ein Gev, que
verificou as fundações de ao menos dezessete portos e quebra-
mares antigos ao redor do lago.
21. CHARLESWORTH, James H., ELLIOTT, J. Keith, FREYNE, Sean
& REUMANN, John, op. cit., p. 16.

CAPÍTULO 5
Jerusalém e o ministério judaico
1. JOSÈPHE, Flavius. Guerra dos Judeus, V. 6, 222-224.
2. Salmo 137.
3. A oeste se encontravam os arcos, ditos de Robinson e de
Wilson.
4. JOSÈPHE, Flavius. Antiguidades dos judeus, XV, p. 380-7.
5. BRANDON, Samuel George Frederick. Jésus et les zélotes. Paris:
Flammarion, 1976, p. 371 e seguintes.
6. Lucas, Atos dos Apóstolos, 2, 44-4.
7. JEREMIAS, Joachim. Jérusalem au temps de Jésus. Paris: Cerf,
1967, p. 37.
8. GAECHTER, P. “The Hatred of the House of Annas”, Theological
Studies, 8, 1947, pp. 3-34.
9. JEREMIAS, Joachim. Jérusalem au temps de Jésus, op. cit., pp.
267-8.
10. João, 2, 20.
11. HOEHNER, H. W. “The Year of Christ’s Crucifixion”, Bibliotheca
Sacra, CXXXl (1974), p. 339; LOTH, Arthur, op. cit., pp. 531-8.
12. Ver igualmente João, 12, 16.
13. FLUSSER, David. Jésus, op. cit., pp. 135-6; GENOT-BISMUTH,
Jacqueline. Un homme nommé Salut. Genèse d’une hérésie à
Jérusalem. Paris: O. E. I. L., 1986, pp. 154-5.
14. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’évangile selon Jean, op. cit.,
t. I, p. 291.
15. João, 3, 1-15.
16. João, 3, 23.
17. BOISMARD, Marie-Émile. “Aenon, près de Salem”, Revue
Biblique, n. 80, 1973, pp. 218-29.
18. João, 3, 26.
19. João, 3, 30.
20. Por conta de um erro de redação, Josefo escreveu Arquelau,
mas este fora exilado para a Gália no ano 6 de nossa era.
21. Citado por NODET, Étienne, op. cit., p. 223. Outro lugar de
retiro do Batista foi descoberto? Em 2004, um arqueólogo
inglês, Shimon Gibson, anunciou com alarde o descobrimento
de uma gruta que permaneceu inviolada durante séculos, no
vale selvagem do kibutz Tzouba. Esse longo túnel de 24m x
3,5m contém cacos de louça, fontes batismais e grafite muito
grosseiros que datam dos séculos IV e V, e representam, ao
menos pelo que se supõe, um personagem vestido com pele de
animais, segurando um bastão pastoral, cruzes e um homem
decapitado. Sobre a borda de uma bacia ritual, alimentada por
uma cisterna que recolhe a água da chuva, vemos uma marca
misteriosa em forma de pé. O lugar, onde cerca de trinta
pessoas podiam reunir-se, foi apresentado como um antigo
santuário venerado pelos fiéis do Batista e pelos primeiros
cristãos, mas foi talvez também um dos primeiros lugares de
batismo de João, porque alguns dos inúmeros tesouros de
argila encontrados ali remontam ao século I de nossa era. Essa
gruta situa-se não longe do povoado de Ein Karem, a sudeste
de Jerusalém, onde uma tradição imemorial fixou o lugar de
nascimento do Batista. Resulta que essa descoberta, que só
pode ser vista como um “golpe publicitário”, como ocorre
frequentemente na arqueologia bíblica, torna os historiadores
céticos (VILLENEUVE, Estelle. “La grotte de Jean le Baptiste?”,
Le Monde de la Bible, n. 162, nov.-dez. 2004, pp. 49-50).
22. JOSÈPHE, Flavius. Antiguidades dos judeus, 18, 5, 2 § 116-119.

CAPÍTULO 6
De Samaria para a Galileia
1. João, 4, 43. O evangelista coloca essa frase no lugar certo.
Jesus considera de fato que a Judeia é a sua pátria verdadeira,
não tanto porque ele nasceu em Belém, mas porque a
verdadeira pátria de um profeta é essa. Os sinópticos a
colocarão por ocasião de sua visita movimentada a Nazaré.
2. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’évangile selon Jean, op. cit.,
t. I, pp. 346-7.
3. João, 4, 9.
4. João, 4, 11-12.
5. João, 4, 14-15.
6. Isaías, 55, 1.
7. Ezequiel, 36, 25. A religião dos samaritanos conhece também
essa identificação simbólica: “Nas águas profundas de uma
fonte agradável, diz o tratado de Menar Marqah, vamos nos
manter no conhecimento para beber de suas águas. Temos sede
das águas da vida” (LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de
l’évangile selon Jean, op. cit., t. I, p. 356). Marqah, teólogo do
século IV, evidencia nesse texto antigas tradições espirituais da
região.
8. João, 4, 16-18.
9. João, 4, 21-24.
10. João, 4, 26.
11. João, 4, 38.
12. João, 4, 42.
13. Segundo Livro dos Reis, 17, 24-41.
14. Lucas, 7, 5.
15. João, 4, 45-54.
16. DODD, Charles Harold. Le Fondateur du christianisme, op. cit., p.
134.
17. Marcos, 1, 14-15.
18. Mateus, 17, 24-27.
19. Mateus, 4, 19.
20. Marcos, 1, 31. LÉON-DUFOUR, Xavier. “La guérison de la
belle-mère de Simon-Pierre”, em Études d’Évangile. Paris: Seuil,
1965, pp. 124-48.
21. Marcos, 1, 23-27.
22. BROWN, Raymond E. La Mort du Messie, op. cit, p. 1.616.
23. Çâtânâ’ em aramaico.
24. Lucas, 22, 31.
25. Lucas, 10, 18.
26. João, 14, 30; 16, 11, Primeira Epístola de João, 3, 8.
27. Marcos, 5, 21-24, 35-45.
28. Marcos, 5, 25-34.
29. Marcos, 2, 2-12.
30. Marcos, 1, 38.
31. Os evangelhos consideram provavelmente dessa maneira todas
as infecções de pele, não necessariamente a lepra ou a doença
de Hansen.
32. Marcos, 1, 40-45.
33. Marcos, 8, 22-26.
34. Marcos, 10, 46-52.
35. Lucas, 18, 35-44.
36. Mateus, 20, 29-34.
37. Seu nome semítico de Migdal nunaja significa a “torre dos
peixes”. Também, sob a denominação de Tarichée, do grego
Tarichaea, “Salgação”.
38. BEAULIEU, Marie-Armelle. “La ville de Magdala une nouvelle
fois détruite?”, La Terre Sainte, n. 596, jul.-ago. 2008, pp. 20-
35.
39. Lucas, 7, 11-16.
40. Mateus, 9, 35-38.
41. Em hebreu, matthia, isto é: “presente de Deus”.
42. Marcos, 2, 15-17; Mateus, 9, 12-13; Lucas, 5, 31-32.
43. Mateus, 16, 2-3.
44. Mateus, 2, 21.
45. Marcos, 3, 27.
46. Lucas, 12, 24.
47. Mateus, 6, 28-29.
48. JEREMIAS, Joachim. Les Paraboles de Jésus. Paris: Seuil, 1984,
p. 18.
49. Mateus, 7, 26-27; Lucas, 6, 49.
50. Lucas, 14, 28-29.
51. Mateus, 7, 1-5; Lucas, 6, 41-42.
52. Mateus, 19, 24.
53. Mateus, 23, 24.
54. Lucas, 17, 6.
55. Mateus, 21, 21.
56. DUNKERLEY, Roderic. Le Christ. Paris: Robert Laffont, 1975,
pp. 101-2.
57. João, 4, 34.
58. GROSJEAN, Jean. L‘Ironie christique. Commentaire de l’Évangile
selon Jean. Paris: Gallimard, 1991, pp. 28-9.
59. Lucas, 6, 44.
60. Mateus, 2, 22; Lucas, 5, 37-38.
61. Mateus, 12, 33.
62. Mateus, 24, 28.
63. Mateus, 11, 7. A alusão talvez fosse dúbia: ela visaria à roseira,
emblema que Herodes Antipas havia mandado reproduzir
numa de suas moedas nos anos 19-20, símbolo que não foi mais
cunhado e foi substituído por uma palmeira?
64. Mateus, 11, 16-19.
65. Lucas, 13, 6.
66. Mateus, 22, 1-10.
67. Lucas, 14, 16-24.
68. Lucas, 16, 19-31.
69. JEREMIAS, Joachim. Les Paraboles de Jésus, op. cit., pp. 182,
243.
70. Mateus, 11, 20-24; Lucas, 10, 12-15.
71. Mateus, 16, 4; 17, 17.
72. Mateus, 23, 29-32; Lucas, 11, 51.
73. Lucas, 14, 26.
74. Mateus, 10, 34.
75. Lucas, 12,49.
76. Mateus, 10, 35-36.
77. Mateus, 11, 28-30.

CAPÍTULO 7
O ensinamento de Jesus
1. Os cantos para o holocausto do sabá e a Regra da guerra lhe
fazem referência.
2. Uma alusão está, por exemplo, no 17o Salmo de Salomão, que
data do século I antes de nossa era: A soberania e a escatologia
de Deus são manifestadas por um messias glorioso,
descendente de Davi, que unirá e purificará as tribos de
Israel…
3. MEIER, John P., op. cit., t. II, p. 224.
4. Mateus, 11, 25.
5. Mateus, 22, 2; Lucas, 12, 36.
6. Lucas, 12, 36.
7. Mateus, 25, 1.
8. Lucas, 13, 29.
9. Mateus, 13, 44-46.
10. Mateus, 13, 31-33.
11. Lucas, 13, 19.
12. Marcos, 4, 26-29.
13. Marcos, 3, 3-20.
14. Mateus, 13, 24-30.
15. Mateus, 13, 47-50.
16. Marcos, 9, 49.
17. Primeira Epístola de João, 4, 8.
18. Mateus, 18, 12-14.
19. Mateus, 20, 1-16.
20. Marcos, 1, 15.
21. Lucas, 17, 20-21, Bíblia TEB. Para alguns, a tradução seria
muito fraca: Entos humôn significaria “em vós”, “no interior de
vós”, e não “entre vós” ou “no meio de vós”, o que iria de
encontro à intuição dos grandes místicos. Nessa circunstâncias,
essa interpretação não parece ser o sentido que Jesus deu à sua
frase.
22. RATZINGER, Joseph/BENTO XVI, op. cit., p. 70.
23. PIXNER, Bargil. Paths of the Messiah, op. cit., p. 77 e seguintes.
24. São ainda chamados macarismos, do adjetivo grego makarios,
“felizes” ou “bem-aventurados”.
25. Mateus, 5, 3-12.
26. Lucas, 6, 20-26.
27. PUECH, Émile. “Les manuscrits de la mer Morte et le Nouveau
Testament. Le Nouveau Moïse: de quelques pratiques de la
Loi”, conferência dada em Barcelona em set. 2009.
28. PRAT, Ferdinand, op. cit., t. I, p. 271.
29. RATZINGER, Joseph/BENTO XVI, op. cit., p. 98.
30. Mateus, 6, 3.
31. Êxodo, 21, 24-25.
32. Mateus, 5, 13-47.
33. Levítico, 19, 18.
34. Psaume 139, 21-22, Bíblia TEB.
35. Lucas, 10, 25-37.
36. Mateus, 7, 12.
37. Lucas, 6, 27-35.
38. Lucas, 6, 37-38.
39. Mateus, 7, 7.
40. CARMIGNAC, Jean. À l’écoute du “Notre Père”. Paris: O. E. I. L.,
1984, p. 118. O estilo do Pai Nosso, escreve o abade Jean
Carmignac, é “muito simples, límpido, tem uma grande
densidade de pensamento, ao mesmo tempo que uma grande
economia de palavras; só encontramos isto nas parábolas e em
alguns discursos de são João. E me pergunto se são João não
seria, dentre todos os evangelistas, aquele que teria
reproduzido melhor o pensamento de Jesus: é ele que tem a
maior memória do coração e da inteligência” (La Lettre des
Amis de l’Abbé Jean Carmignac, n. 74, mar. 2011, p. 9).
41. BROWN, Raymond E. La Mort du Messie, op. cit., p. 213.
42. Romanos, 8, 15; Gálatas, 4, 6.
43. João, 1, 12.
44. “Todos vós sois membros de uma mesma família e tendes
somente um Mestre”, Mateus, 23, 8.
45. CARMIGNAC, Jean. À l’écoute du “Notre Père”, op. cit., p. 51.
46. Mateus, 6, 15. É o tema da parábola do mau servidor, a quem
o mestre perdoou sua enorme dívida em lugar de vendê-lo
como escravo, com a mulher e filhos, mas que se mostra ele
mesmo um impiedoso credor (Mateus, 18, 23-35).
47. Epístola de Tiago, 1, 13-14. Ver CARMIGNAC, Jean. Recherches
sur le “Notre Père”. Paris: Letouzey et Ané, 1969, pp. 365-6;
FEUILLET, A. L‘Agonie de Geths émani. Paris: Gabalda, 1977,
pp. 110-1; TOURNAY, R. J. “Ne nous laisse pas entrer en
tentation”, Nouvelle Revue Théologique, t. 120, 3, jul.-set.-out.
1998.
48. Mateus, 5, 13.
49. Mateus, 6, 32-34.
50. Mateus, 16, 25.
51. Mateus, 18, 1-5.
52. Mateus, 18, 3; Marcos, 10, 13-16.
53. Mateus, 18, 6.
54. Mateus, 25, 14-29.
55. Mateus, 10, 28-30.
56. Mateus, 5, 48.
57. Mateus, 19, 25-26.
58. Mateus, 5, 18.
59. Mateus, 20, 25-26.

CAPÍTULO 8
Jesus e seus discípulos
1. Lucas, 12, 8.
2. Mateus, 13, 16-17.
3. Essa passagem deve muito ao livro de François Dreyfus, Jésus
savait-il qu’il était Dieu? Paris: Cerf, 1984.
4. Marcos, 1, 25.
5. Mateus, 11, 27.
6. JEREMIAS, Joachim. Abba. Jésus et son Père. Paris: Seuil, 1975.
7. Apocalipse, 1, 13; 14, 14.
8. Daniel, 7, 13-14, Bíblia TEB.
9. João, 1, 51.
10. Mateus, 26, 64; Marcos, 14, 62; Lucas, 22, 69.
11. BROWN, Raymond E. La Mort du Messie, op. cit., p. 564.
12. PERROT, Charles. Jésus et l’Histoire, op. cit., p. 266.
13. Marcos, 8, 38.
14. Lucas, 9, 61-62.
15. Mateus, 8, 21-22; Lucas, 9, 59-60.
16. Mateus, 19, 16-22.
17. Marcos, 8, 34.
18. Mateus, 19, 12.
19. Lucas, 18, 28-30; Mateus, 19, 29; Marcos, 10, 29-30.
20. O sociólogo Max Weber (1864-1920) estabelecia uma distinção
entre três tipos de autoridade, segundo sua origem:
carismática, tradicional e legal. Sem ser oriundo nem da
tradição habitual nem de qualquer instituição legal, o poder de
Jesus era tipicamente “carismático”.
21. João, 15, 5.
22. Lucas, 8, 1-3.
23. Lucas, 9, 58.
24. THEISSEN, Gerd. Le Mouvement de Jésus. Histoire sociale d’une
révolution des valeurs. Paris: Cerf, 2006.
25. MICHAUD, Jean-Paul. “De alguns debates atuais no terceiro
encontro”, em De Jésus à Jésus-Christ, t. I, Le Jésus de l’Histoire.
Colóquio da Universidade de Estrasburgo, 18-19 nov. 2010.
Paris: Mame-Desclée, 2010, p. 202.
26. Lucas, 10, 38-42.
27. MEIER, John P., op. cit., t. III, p. 114-20.
28. Mateus, 19, 28.
29. Apocalipse, 21, 14.
30. Essa palavra corrompida e um pouco misteriosa de Boanêrges,
que Marcos traduziu por “filhos do trovão”, seria de origem
semita: bénê significa “filho de”, e rgz pode ser traduzido por
“ira”, “excitação” (ou ainda r’m, “trovão”). Ela traduziria o
temperamento impetuoso dos dois filhos de Zebedeu.
31. Observar que a epístola de são Judas, que faz parte do Novo
Testamento, não é dele, mas de um homônimo, filho de Clopas
(ou Cléofas), um dos quatro “irmãos” do Senhor.
32. MORIN, J-A. “Les deux derniers des Douze: Simon le Zélote et
Judas Iskariôth”, Revue Biblique, n. 80, 1973, pp. 332-58.
33. Apóstolos em grego, šělîhîn em aramaico. Na Igreja primitiva, o
termo apóstolo abrangia uma categoria mais ampla que os
Doze (os quais não foram todos apóstolos, no sentido
etimológico do termo, visto que muitos ficaram em Jerusalém).
34. Marcos, 6, 6-8. Lucas (10, 1) é o único que fala do envio em
missão de setenta e dois discípulos. John Paul Meier duvida da
historicidade desse envio, que viria de uma utilização duvidosa,
questionável, de suas fontes pelo evangelista. É bem difícil
pronunciar-se (MEIER, John P., op. cit., t. III, p. 21).
35. BONNARD, Pierre. L’Évangile selon saint Matthieu. Genebra:
Labor et Fides, 2002.
36. Mateus, 10, 40.
37. Mateus, 10, 8-10.
38. Lucas, 10, 17-20.

CAPÍTULO 9
O sinal da contradição
1. Marcos, 3, 21.
2. Mateus, 12, 46-50; Marcos, 3, 31-35; Lucas, 8, 19-21.
3. Lucas, 11, 28.
4. Lucas optou por compor o seu relato posicionando esse
episódio no início da pregação de Jesus na Galileia. De fato,
provavelmente passaram-se meses antes desse acontecimento,
permitindo a Jesus firmar sua reputação em todo o país.
5. Isaías, 60, 20-22; 61, 1-3. Lucas (4, 18-20) só apresenta uma
parte desse texto, essencial para uma maior compreensão dessa
cena.
6. Mateus, 1, 19.
7. Lucas, 4, 18-19.
8. Lucas, 4, 22.
9. Marcos, 6, 2.
10. Lucas, 4, 25-27.
11. Em hebraico, saddûqîn: a palavra deriva presumivelmente do
nome Sadoq, o sacerdote de Jerusalém a serviço de David e de
Salomão.
12. LE MOYNE, Jean. Les Sadducéens. Paris: Gabalda, 1972;
MEIER, John Paul, op. cit., t. III, pp. 253-312.
13. Mateus, 16, 1-6.
14. Mateus, 16, 21.
15. Mateus, 22, 23-28.
16. Êxodo, 3, 6.
17. Mateus, 22, 29-32; Marcos, 12, 18-27.
18. MEIER, John P., op. cit., t. III, p. 296.
19. Mateus, 21, 33-46; Marcos, 12, 1-12; Lucas, 20, 9-19.
20. Daniel, 12, 2.
21. Marcus, 12, 40.
22. Mateus, 23, 1-12.
23. Mateus, 23, 3.
24. Mateus, 23, 15.
25. Mateus, 23, 23.
26. Mateus, 23, 29-31.
27. Mateus, 21, 31-32.
28. Esse nome deriva de Baal, o falso deus dos pagãos,
notadamente o deus dos filisteus. Baal-Zeboul significa
“Príncipe Baal” ou “Baal, o Sublime”, nome que os judeus
haviam transformado por zombaria em Baal-Zeboud, o
“príncipe das imundícies”, do “esterco”, rapidamente
assimilado ao príncipe das Trevas, Satanás, Belzebu, outro
nome de Satanás, deriva diretamente de Béelzéboul.
29. Mateus, 12, 31-32.
30. Mateus, 12, 25; Marcos, 3, 22-26.
31. Êxodo, 31, 12-17; 35, 2; Números, 15, 3-36.
32. Mateus, 12, 10-12. Ver um relato compatível em Lucas, 14, 1-6.
33. Mateus, 12, 5-6.
34. Marcos, 2, 23.
35. Marcos, 2, 18-20; Mateus, 9, 14-15.
36. Mateus, 15, 11; Marcos, 7, 15.
37. Mateus, 15, 16-20.
38. Deuteronômio, 24.
39. Mateus, 19, 3, 6.
40. Mateus, 19, 7-9.
41. Marcos, 10, 2-12; Lucas, 16, 18.
42. Mateus, 22, 34-40.
43. Marcos, 12, 32-34.
44. Mateus, 22, 41-46.
45. Mateus, 11, 4-6, Bíblia TEB.
46. Isaías, 26, 19; 29, 18-19; 35, 5-6; 61, 1.
47. MEIER, John P., op. cit., t. II, pp. 127-9.
48. Mateus, 11, 7-8.
49. THEISSEN, Gerd. The Gospels in Context: Social and Political
History in the Synoptic Tradition. Minneapolis: Fortress Press,
1991, pp. 26-42.
50. Mateus, 11, 11.
51. Mateus, 14, 12.
52. A divisão do reino de Herodes, o Grande, foi realizada na
segunda metade do ano 4 antes de nossa era, e é, portanto, na
segunda metade do ano 31 que devemos situar o banquete de
aniversário de Maqueronte (LOTH, Arthur, op. cit., p. 541). Por
outro lado, como o evangelista João deixa entender que Batista
já estava morto por ocasião do episódio da piscina de Betseda
(ver capítulo seguinte), episódio que ocorreu presumivelmente
durante o ano novo judaico (princípio do outono), podemos
deduzir que é por volta do mês de agosto ou de setembro do
ano 31 que Batista foi executado.
53. FLUSSER, David, op. cit., pp. 255-61.

CAPÍTULO 10
De Jerusalém ao ministério pós-Galileia
1. Literalmente: a “casa de misericórdia”.
2. Vários manuscritos trazem o nome de Bethzatha. Mas esse nome
designa provavelmente o conjunto do bairro. A forma Béthesda
encontrou um apoio filo lógico no famoso rolo de couro
encontrado na gruta n. 3 do Mar Morto (3Q 15, XI.12 s).
Trata-se de um lugar em Jerusalém chamado Beth-esdatain,
onde se encontra uma piscina com dois tanques de dimensões
desiguais.
3. Oferendas votivas encontradas nesse lugar mostram que o
culto continuava no século II de nossa era, quando Jerusalém
era chamada Aelia Capitolina. DUPREZ, Antoine. Jésus et les
dieux guérisseurs. A propos de Jean V. Paris: Gabalda, 1970;
MURPHY-O’CONNOR, Jérôme, OP. Guide archéologique de la
Terre Sainte. Trad. A. Kischkum. Paris: Denoël, 1982, pp. 42-3;
ALLIATA, Eugenio. “La piscine probatique à Jérusalem”, Le
Monde de la Bible, n. 76, maio-jun. 1992, pp. 25-34; PIXNER,
Bargil. Paths of the Messiah, op. cit., pp. 33-7.
4. João, 5, 4.
5. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’évangile selon Jean, op. cit.,
t. II, p. 26.
6. João, 7, 23.
7. BERDER, Michel. “Prends ton grabat et marche…”, Le Monde
de la Bible, n. 76, maio-jun. 1992, p. 36.
8. João, 5, 7-8.
9. João, 5, 5-11.
10. João, 5, 17.
11. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’évangile selon Jean, op. cit.,
t. II, pp. 42-3.
12. João, 5, 19-20.
13. João, 5, 24-25.
14. João, 5, 26-29.
15. João, 5, 39-47.
16. João, 5, 18.
17. João, 6, 5-9.
18. BARREAU, Jean-Claude, op. cit., p. 104.
19. Segundo livro dos Reis, 4, 42-44.
THURSTON, Herbert. Les Phénomènes physiques du mysticisme.
20.
Aux frontières de la science. Paris: Gallimard, 1961; LASSIEUR,
Pierre. Les Évangiles sont-ils menteurs? Des miracles du Christ à
ceux des temps modernes. Paris: Médiaspaul, 1991;
SBALCHIERO, Patrick. L’Église face aux miracles. Paris: Fayard,
2007.
21. João, 14, 12.
22. Mateus, 14, 3-21; Marcos, 6, 30-46; Lucas, 7, 10-17; João, 6, 1-
24.
23. HAUDEBERT, Pierre. “Multiplication des vivres”, em
Dictionnaire des miracles et de l’extraordinaire chrétiens, sob a
dir. de Patrick Sbalchiero. Paris: Fayard, 2002, pp. 557-9.
24. Deuteronômio, 18, 15.
25. “Eu lhe darei todo este poder e a glória destes reinos… Se você
se prosternar diante de mim, tudo isto será seu”, lhe diz
Satanás no episódio estilizado da tentação, relatado por Lucas
(4, 6-7).
26. PIXNER, Bargil. With Jesus through Galilee…, op. cit., pp. 3-74.
27. A retirada para Betsaida é mencionada por Marcos. João, que
conhece mal a Galileia, escreve Cafarnaum. Um recuo para a
tetrarquia é muito mais verossímil, considerando-se a situação
política.
28. João, 6, 21.
29. Citado por LÉON-DUFOUR, Xavier (Dir.). Les Miracles de Jésus
selon le Nouveau Testament. Paris: Seuil, 1977, p. 310, nota 25.
O milagre foi objeto de inúmeras análises exegéticas. Ver
especialmente os trabalhos sintéticos de HEIL, John Paul. Jesus
Walking on the Sea. Roma: Biblical Institute, 1980; e MADDEN,
Patrick J. Jesus’ Walking on the Sea. Berlim: De Gruyter, 1997.
30. Isaías, 51, 10.
31. Pensamos nas levitações estáticas de santa Teresa de Ávila, de
são João da Cruz, de são José de Cupertino, de santo Afonso de
Ligório, de são José Benito Cottolengo, de são Geraldo Magela,
etc. (ver LASSIEUR, Pierre, op. cit., pp. 74-87).
32. Mateus, 14, 28-31.
33. João, 6, 25.
34. João, 6, 26-27.
35. João, 6, 28-34.
36. João, 6, 35-40.
37. João, 6, 41-51.
38. João, 6, 52-56.
39. Ver BARTHÉLEMY, Dominique. Dieu et son image. Ébauche
d’une théologie biblique. Paris: Cerf, 2008, pp. 207-28.
40. Gênesis, 9, 2-4.
41. Levítico, 7, 27.
42. João, 6, 61-64.
43. João, 6, 67-70.
44. Mateus, 14, 2.
45. Lucas, 9, 7-9.
46. Lucas, 13, 31.
47. Mateus, 8, 28-32.
48. Marcos, 5, 20.
49. PIXNER, Bargil. Paths of the Messiah…, op. cit., pp. 148-55.
50. Marcos, 7, 31-37.
51. FREYNE, Sean, op. cit., pp. 60-91.
52. Mateus, 15, 21-28.
53. FREYNE, Sean, op. cit., pp. 75, 160.
54. É hoje a cidade de Banias.
55. BONNARD, Pierre. L’Évangile selon saint Matthieu, op. cit.
56. Mateus, 16, 13-20.
57. Pierre GRELOT, La Tradition apostolique. Paris: Cerf, 1995, pp.
233-53. O autor situa a promessa de Jesus a Pedro num
contexto pós-pascal (GRELOT, Pierre. “L’origine de Matthieu,
16, 16-19”, em “A cause de l’Évangile”. Études sur les Synoptiques
et les Actes offertes au père Jacques Dupont, OSB, à l’occasion de
son 70 e anniversaire. Paris: Cerf, 1985, pp. 91-105).
58. Os sinópticos apresentam, assim, de forma esquemática, três
anúncios da Paixão (Mateus, 16, 21; 17, 22-23; 20, 18-19;
Marcos, 8, 31; 9, 31; 10, 33-34; Lucas, 9, 22; 9, 44; 18, 31-33).
59. Mateus, 16, 23.
60. Isaías, 53, 1-12.
61. Citado por CONDAMIN, Albert. Le Livre d’Isaïe. Paris: Gabalda,
1905, p. 340.
62. Mateus, 17, 10-13.
63. Marcos, 10, 35-39.
64. Marcos, 10, 41-45.

CAPÍTULO 11
O confronto
1. Levítico, 23, 42-43.
2. JOSÈPHE, Flavius. Antiguidades dos judeus, 8, 100.
3. João, 7, 4.
4. João, 7, 8.
5. Marcos, 9, 5.
6. DANIÉLOU, Jean. Bible et liturgie. La théologie biblique des
sacrements et des fêtes d’après les Pères de l’Église. Paris: Cerf,
1951, p. 459.
7. Mateus, 17, 1-9; relato paralelo em Marcos, 9, 2-10; e em
Lucas, 9, 28-36. Observamos que João Evangelista, que relatou
alguns acontecimentos da vida de Jesus fora de Jerusalém,
graças às informações que lhe foram fornecidas por André,
Filipe e alguns outros, acautela-se, não falando sobre esse
acontecimento de que foram testemunhas só três apóstolos,
Simão-Pedro e os dois filhos de Zebedeu, Tiago e João. Esse é
um argumento adicional para recusar identificar o autor do
quarto evangelho com João, filho de Zebedeu, o pescador do
lago.
8. RATZINGER, Joseph/BENTO XVI. Jésus de Nazareth, op. cit., t.
1, p. 344.
9. Eis o que permite pensar que a Transfiguração ocorreu no dia
da Expiação: a Transfiguração posiciona-se no contexto da
Festa dos Tabernáculos e da morte próxima de Jesus. Ela data
então de Tishri do ano 32. João Evangelista fala, por outro
lado, da chegada de Jesus a Jerusalém para a Festa dos
Tabernáculos, mas com quatro dias de atraso. Se contarmos os
nove dias necessários para ir do monte Hermon, no sul do
Líbano, até a Cidade Santa, chegamos ao dia 10 de Tishri para
o dia da Transfiguração. Essa coincidência com o dia da
Expiação é de um simbolismo muito mais poderoso do que o
expresso pela hipótese de Jean-Marie van Cangh e Michel van
Esbroek (“La primauté de Pierre (Mateus, 16, 16-19) et son
contexte judaïque”, Revue Théologique de Louvain, 11, 1980, pp.
310-24), que faz coincidir a profissão de fé de Pedro em
Cesareia com o dia da Expiação, hipótese que tem o
inconveniente de não levar em conta o atraso de quatro dias
que Jesus teve por ocasião da última Festa dos Tabernáculos.
10. Levítico, 16, 1-34.
11. Carta aos Hebreus, 9, 11-14.
12. Marcos, 9, 10; BENOIT, P. & BOISMARD, M.-É. Synopse des
quatre évangiles en français, t. I. Paris: Cerf, 2005, p. 155.
13. Segunda Epístola de Pedro, 1, 16-18. Um certo número de
exegetas sustenta há alguns anos que essa Segunda Epístola de
Pedro é uma peça pseudoepigráfica (uma “piedosa fraude’’ de
alguma forma, não sendo Pedro o seu autor). Seu argumento
essencial é que ela faria parte de um texto tardio, a Epístola de
Judas, da qual se aproxima, com efeito, pelo vocabulário. Mas
sua autenticidade foi defendida por ao menos dois especialistas
contemporâneos: CREHAN, J. “New Light on S. Peter from the
Bodmer Papyrus”, in: LIVINGSTONE, E. A. (Ed.). Studia
Evangelica, v. VII, Berlim, 1982, pp. 145-9; e ROLLAND,
Philippe. L’Origine et la date des évangiles. Les témoins oculaires
de Jésus. Paris: Saint-Paul, 1994, pp. 81-98, 102-3; do mesmo,
La Mode “pseudo” en exégèse. Le triomphe du modernisme depuis
vingt ans. Paris: Éd. de Paris, 2002. Esse último demonstra que
foi Judas que se inspirou na segunda Epístola de Pedro, e não o
inverso.
14. João, 7, 13.
15. MOORE, G. Judaism in the First Centuries of the Christian Era, t.
I. Cambridge: Harvard University Press, 1966, p. 308 e
seguintes.
16. João, 7, 24.
17. João, 7, 31.
18. João, 7, 28.
19. João, 7, 34.
20. João, 7, 35.
21. João, 7, 37-38.
22. Assim o Salmo 42: “Como a corça bramindo por águas
correntes/assim minha alma aspira por ti, ó meu Deus./ Minha
alma tem sede de Deus, do Deus vivo…” “Com alegria vocês
todos poderão beber água nas fontes da salvação”, assim havia
anunciado o profeta Isaías (12, 3).
23. Ezequiel, 47.
24. João, 7, 46.
25. João, 7, 51.
26. João, 7, 52.
27. João, 8, 12.
28. João, 8, 14-18.
29. João, 8, 19.
30. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’Évangile selon Jean, op. cit.,
t. II, p. 265.
31. João, 8, 21.
32. João, 8, 23-28.
33. João, 8, 42-46.
34. João, 8, 49-51.
35. João, 8, 52-58.
36. João, 8, 59. Outro episódio relatado por João é famoso, o da
mulher adúltera. Situa-se durante uma das estadas de Jesus em
Jerusalém, talvez essa. Os doutores da lei e os fariseus trazem
uma mulher para Jesus, que ensina no Templo. “Mestre, essa
mulher foi pega em flagrante cometendo adultério. A lei de
Moisés manda que mulheres desse tipo sejam apedrejadas. E
tu, o que dizes?” É uma cilada. A infeliz só serve como
pretexto. Se ele aprova a sentença, ele se contradiz em relação
à sua preleção que prega o perdão dos pecados; se ele opta
pela indulgência, ele se opõe à Lei. A culpada é certamente
uma mulher casada, porque quando uma noiva tem uma
relação sexual com outro homem que não seu prometido, a
pena era o estrangulamento. Podemos imaginá-la no meio
desses homens, desvairada, suas roupas em desordem, os
cabelos despenteados, o rosto desfeito, aguardando seu castigo.
Jesus não diz nada, abaixa-se e traça algumas letras no chão.
Seus interlocutores sabem muito bem o que significa esse gesto
do profeta; eles são chamados à sua própria consciência:
“Todos aqueles que se afastam de mim, diz YaHWeH, terão
seus nomes escritos na poeira” (Jeremias, 17, 13). Como eles o
pressionam, Jesus se ergue e lhes diz: “Quem de vós não tiver
pecado, que atire nela a primeira pedra!”. E inclinando-se de
novo, continuou a escrever no chão. Ao ouvir isto, eles foram
saindo um a um, começando pelos mais velhos. Eles
reconhecem em seu íntimo que seu próprio pecado os impede
de condenar. Eles reconhecem sua derrota. Jesus fica só com a
acusada, e então levanta-se e pergunta: “Mulher, onde estão os
outros? Ninguém te condenou?”. Ela responde: “Ninguém,
Senhor”. Então Jesus disse: “Eu também não te condeno. Podes
ir, e não peques mais”. O final é importante, evidentemente.
Jesus não nega o pecado. Ele chama para a conversão. Da
mesma forma que no episódio do tributo a César, a armadilha
não funcionou. Cada um se deu conta de seu próprio pecado.
Curiosamente, essa perícope é um episódio ordinário. Ele não
pertence verossimilmente à versão primitiva do evangelho de
João, mas acabou por ser a ele acrescido por volta do fim do
século III. Ele aparece em alguns manuscritos de Lucas.
Inúmeros exegetas consideram que o episódio é histórico. Mas,
no início, a Igreja, que excomungava os batizados culpados de
adultério, o rejeitou, daí sua ausência em alguns manuscritos.
37. João, 9, 2.
38. João, 9, 7.
39. Deuteronômio, 13, 6.
40. João, 9, 17.
41. João, 9, 20-21.
42. João, 9, 24-34.
43. João, 9, 35-41.
44. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’Évangile selon Jean, op. cit.,
t. II, p. 356.
45. João, 10, 1-3.
46. João, 10, 7-10.
47. Ezequie1, 34.
48. João, 10, 11-18.
49. João, 10, 20-21.
50. Mateus, 23, 37-38; Lucas, 13, 34-35.
51. Mateus, 24, 1-2.
52. Mateus, 24, 15 e seguintes.
53. É, apesar disso, o que sustentam alguns exegetas racionalistas.
Para eles, as premonições, as profecias e outros fenômenos de
clarividência não existem. Jesus não pôde falar da destruição
de Jerusalém, e, se os Evangelhos colocam esse anúncio em sua
boca, é porque o fato já havia ocorrido na hora em que foram
escritos (por isto a sua datação posterior ao ano 70!). É difícil
negar, entretanto, a autenticidade das predições
extraordinárias, das visões precisas do futuro. Os exemplos são
abundantes. Só citarei um, particularmente convincente, o de
uma mística, religiosa agostiniana, dotada de carisma
espantoso, Yvonne Beauvais, na vida religiosa Yvonne-Aimée
de Malestroit (1901-1950). No diário que ela manteve de 20 de
agosto de 1928 a 4 de junho de 1929, ela escreveu, em 5 de
março de 1929 (a autenticidade do documento é incontestável):
“Este parecia ser um dia de festa. Era um belo dia. Eu tinha
sobre o peito, presas com alfinetes, quatro ou cinco medalhas
dentre as quais estava a Legião de Honra. Eu estava no meio
das religiosas e parecia ser a madre superiora delas. Um oficial
graduado veio me saudar. Outra religiosa também tinha uma
medalha…”. Em 7 de agosto de 1949, já como madre superiora
das agostinianas, ela foi condecorada pelo general Audibert,
homem muito alto, com a Cruz de Guerra, em companhia de
outra irmã. Um pequeno filme em cores da época mostra a
cerimônia. Vê-se sobre o peito da condecorada cinco medalhas,
dentre as quais a da Legião de Honra, que lhe fora concedida
pelo general de Gaulle em Vannes, no dia 22 de julho de 1945.
Somente na vida dessa religiosa, cuja causa de beatificação,
depois de interrompida, foi retomada em Roma, constatamos
inúmeras visões e predições, uma mais extraordinária que a
outra (LAURENTIN, René. Prédictions de sœur Yvonne-Aimée de
Malestroit. Une vérification exceptionnelle dans l’histoire de ce
charisme. Paris: O. E. I. L., 1987).
54. Mateus, 24, 14.
55. Marcos, 13, 30.
56. RATZINGER, Joseph/BENTO XVI. Jésus de Nazareth, op. cit., t.
II, p. 68.
57. Marcos, 13, 31.
58. Marcos, 13, 35.
59. Mateus, 24, 44.
60. Mateus, 25, 1-10.
61. Lucas, 21, 34-35.
62. Mateus, 24, 35; Marcos, 13, 31.

CAPÍTULO 12
Do último inverno à última primavera
1. João, 10, 22-23.
2. João, 10, 24-30.
3. João, 10, 31-33.
4. Esse relato, estamos certos, não recorre a algum diálogo
imaginário relatado pelo evangelista, à maneira de uma
composição literária tardia. Essas palavras, de fato, o discípulo
bem-amado não cessou de repeti-las em seu ensinamento, como
vindas diretamente do Mestre, e isto bem antes da redação –
tardia – de seu texto. Elas refletem perfeitamente a
controvérsia entre Jesus e as autoridades judaicas. Lucas,
ouvinte de João, pegou essas palavras no ar e as reproduziu
em seu relato do processo, em que reúne o conjunto dos
debates contraditórios com os habitantes da Judeia. As
semelhanças entre João e Lucas são aqui fortes demais para
não revelarem um elo de dependência. Lucas: “Se tu és o
Cristo, diz a nós? – Se eu disser, vós não acrediteis”. João: “Se
tu és o Cristo, diz a nós abertamente. – Eu já vos disse, mas vós
não acrediteis”. Lucas: “De agora em diante, o Filho do Homem
sentará à direita do poder de Deus”. Em João, a ideia é
expressa de modo ligeiramente diferente: “Eu e o Pai, somos
um!”. Lucas: “Tu és então o Filho de Deus? – Vós dizeis bem
que eu sou”. João: “Sendo homem, tu te fazes Deus. – Vós dizeis
que eu blasfemo porque disse que sou Filho de Deus”.
5. “Assim diz o senhor YaHWeH: Eu mesmo vou procurar as
minhas ovelhas, eu também contarei as minhas ovelhas. […]
Eu as retirarei do meio dos povos e as reunirei de todos os
lugares onde se haviam dispersado nos dias nebulosos e
escuros” (Ezequiel, 34, 11, 12).
6. João, 10, 41.
7. Mateus, 19 e 20, 1-16; Marcos, 10, 1-31.
8. Mateus, 19, 2.
9. João, 11, 3.
10. João, 11, 4.
11. João, 11, 9.
12. João, 12, 35.
13. João, 11, 15.
14. BEAUVERY, Robert. “La route romaine de Jérusalem à
Jéricho”, Revue Biblique, v. LXIV, 1957, pp. 72-101.
15. João, 11, 24.
16. João, 11, 25-26.
17. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’Évangile selon Jean, op. cit.,
t. II, p. 419.
18. João, 11, 33. BÍBLIA TEB.
19. João, 11, 39.
20. João, 11, 40-44.
21. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’Évangile selon Jean, op. cit.,
t. II, p. 404.
22. MURPHY-O’CONNOR, Jérôme, OP. Guide archéologique de la
Terre Sainte, op. cit., p. 125.
23. KROLL, Gerhard. Auf den Spuren Jesu. Leipzig: Benno, 2002,
pp. 278-87.
24. Números, 15, 30.
25. Em novembro de 1990, foi descoberta ao sul das muralhas de
Jerusalém uma tumba magnificente que teria pertencido à
família de Caifás, cujo nome aparecia em aramaico num dos
ossários: Yhwsp br Qp’ ou Qyp’ (José, filho de Quapa’ ou
Qaypa). Caifás seria, talvez, um nome de família. Mas os
pareceres estão divididos sobre essa identificação. O padre
Émile Puech (“A-t-on redécouvert le tombeau du grand prêtre
Caïphe?”, Le Monde de la Bible, n. 80, 1993, pp. 42-7) a recusa.
26. JEREMIAS, Joachim. Jérusalem au temps de Jésus, op. cit., 1967,
pp. 221-5.
27. A lapidação do diácono Estêvão no ano 36, em razão de seus
ataques contra a legitimidade do Templo, teria sido uma
medida ilegal ou a aplicação do princípio da santidade do
Templo? Não se sabe. Por ocasião das primeiras perseguições
aos cristãos, podemos pensar que aconteceram inúmeras
execuções sumárias. Paulo dirá: “Eu mesmo prendi muitos
cristãos com autorização dos chefes dos sacerdotes, e dei o meu
voto para que fossem condenados” (Atos dos apóstolos, 26,
10).
28. LÉMONON, Jean-Pierre. Ponce Pilate. Edição revista e
atualizada. Prefácio de Maurice Sartre. Ivry-sur-Seine: Les
Éditions de l’Atelier-Éditions Ouvrières, 2007, pp. 74-8 (la ed.
Pilate et le gouvernement de la Judée. Textes et monuments.
Paris: J. Gabalda, 1981).
29. Flávio, Josefo manifesta uma prova da privação de posse de
que foi vítima o Grande Conselho Judaico quando relata que,
no ano 62, o sumo sacerdote Anás II (filho do Anás do tempo
de Jesus) aproveita-se da vacância do cargo de governador (o
novo governador Albanius estava a caminho da Judeia) para
reunir o Sinédrio e decidir-se pela lapidação de Tiago, o
“irmão” do Senhor. Isto prova a contrario que esse órgão havia
perdido seus poderes em termos de pena capital.
30. Seria necessário relacionar a perda da soberania penal do
Sinédrio com a decisão dos sumos sacerdotes de meter a mão
nos fundos recebidos pela venda de animais oferecidos em
sacrifício? Consta que foi também no ano 30 que instalaram o
mercado de animais no interior do recinto do Templo, para
esvaziar o caixa de Sinédrio em benefício próprio. Caifás teria
se aproveitado da redução do poder desse órgão para reforçar
o seu poder. Essa é uma hipótese.
31. Mateus diz expressamente que a reunião ocorreu no palácio de
Caifás (26, 3-4). Para sua localização, ver PIXNER, Bargil.
Paths of the Messiah…, op. cit., pp. 253-65.
32. João, 11, 48.
33. Mateus, 26, 5.
34. João, 11, 49-50.
35. Um enforcado, dizia o Deuteronômio, “torna-se um maldito de
Deus” (Deuteronômio, 21, 22-23).
36. João, 11, 51-52.
37. Mais tarde, os judeus de Corinto cometerão o erro de denunciar
Paulo como blasfemador ao procônsul Galeno, que teria
replicado: “Judeus, se fosse por causa de um delito ou de uma
ação criminosa, seria justo que eu atendesse à queixa de vocês.
Mas como é uma questão de palavras, de nomes e da Lei de
vocês, tratem disso vocês mesmos! Eu me recuso ser juiz dessas
coisas” (Atos dos apóstolos, 18, 12-6).
38. O procedimento criminal prevê, de fato, a intervenção de um
arauto, mas isto ocorre somente quando o condenado é levado
a seu lugar de execução, e para apelar a novos testemunhos
eventuais (Mishna, Sinédrio, 6, 1).
39. João, 12, 3.
40. LAPIDE, Pinchas. “Hidden Hebrew in the Gospel”, Immanuel, n.
2, 1973, pp. 28-34.
41. Lucas, 7, 38.
42. Lucas, 7, 39-50.
43. João, 12, 5.
44. João, 12, 7-8.

CAPÍTULO 13
A Ceia
1. Marcos, 11, 2-3.
2. Mateus, 21, 9. A fórmula Osianna barrama é mencionada por
são Jerônimo em sua carta 20 a Damasco, como vinda do
evangelho de Mateus em língua hebraica.
3. RATZINGER, Joseph/BENTO XVI, Jésus de Nazareth, op. cit., t.
II, p. 17.
4. João, 12, 16.
5. Zacarias, 9, 9, BÍBLIA TEB.
6. João, 12, 19.
7. João, 12, 23-26.
8. RATZINGER, Joseph/BENTO XVI, Jésus de Nazareth, op. cit., t.
II, p. 33.
9. João, 18, 1 e 18, 4.
10. Consideramos uma lenda – apesar das visões místicas de
Catherine Emmerich – o fato de que Maria tenha seguido João
Evangelista na Ásia Menor. Mostra-se aos turistas, não longe
de Éfeso, no alto da colina de Panhaya Kapulu, a casa dita de
Maria. Mas, cronologicamente, esse êxodo não parece
concebível. João só deixou Jerusalém tardiamente, pouco antes
da partida dos cristãos de Jerusalém para Péla, no ano 66.
Maria só fez, segundo os Atos, uma breve aparição em
companhia dos apóstolos, e permaneceu desaparecida por
muito tempo. Podemos supor que ela sobreviveu pouco a seu
filho. O lugar de seu “dormítion” é a igreja de Getsêmani, de
arquitetura cruzada, aos pés do monte das Oliveiras. Lá, os
arqueólogos resgataram uma cripta, aos pés de uma longa
escada de quarenta e oito degraus. À direita se encontra uma
minúscula câmera funerária, com uma única banqueta de
mármore, que parece ter sido venerada desde o século I, pelo
menos. Foi restaurada em 1972. “Temos agora a certeza de que
a tumba tradicional de Maria era realmente um pequeno
quarto cravado na rocha e depois isolado da camada rochosa,
quando foi construída a igreja” (BAGATTI, B. “La tombe de
Marie à Gethsémani”, Les Dossiers de l’Archéologie, n. 10, maio-
jun. 1975, pp. 122-6). Foram os cristãos de origem judaica que
se encarregaram, até o final do século IV, da guarda dessa
sepultura, o que poderia explicar o silêncio dos Padres sobre a
tumba (POTIN, Jacques e Jean. Cette année à Jérusalem. Guide
du voyage en Terre Sainte. Paris: Centurion, 1992, p. 213). Para
os católicos, lembremos que o dogma da Assunção significa que
Maria subiu de corpo e alma ao Céu, sem conhecer a
corrupção. Isso não a impediu de passar pela morte, como
pensam muitos teólogos.
11. ORÍGENES, Contre Celse, 2, 24.
12. Ibid., 2, 9, 17.
13. Mateus, 26, 38.
14. Mateus, 26, 41.
15. Mateus, 26, 42.
16. Mateus, 26, 45-46.
17. FEUILLET, A. L‘Agonie de Gethsémani, enquête exégétique et
théologique. Paris: Gabalda, 1977, p. 17.
18. João, 12, 27-28.
19. Carta aos Hebreus, 5, 7-8.
20. GILLY, René. La Passion de Jésus. Les conclusions d’un médecin.
Paris: Fayard, 1985, pp. 76-81.
21. É necessário preceder as palavras thromboï haïmatos de hôseï,
que significa “como se” ou “como quando”.
22. Levítico, 23, 5-6.
23. Essa antecipação da refeição pascal incitou os sinópticos a
realizarem um deslizamento da data. Para eles, Jesus teria
celebrado em 14 de Nisã a verdadeira refeição pascal e teria
sido morto no dia 15, no próprio dia da Páscoa, o que
historicamente é bastante duvidoso (como conceber um
processo e uma execução nesse dia?). Entretanto, eles não
ousam falar da partilha do cordeiro entre os discípulos,
nenhuma tradição fala disso. Esse deslocamento do calendário
teria produzido consequências no século I sobre a celebração
da data da Páscoa pelas comunidades cristãs? Em todo o caso,
inspirando-se no calendário joânico, os “quartodecimanistas”
pretendiam, contrariando outros grupos cristãos, que deveriam
invariavelmente celebrar a Páscoa em 14 de Nisã, qualquer que
fosse o dia da semana.
24. JEREMIAS, Joachim. The Eucharistic Words of Jesus. 2a ed. Nova
York: Scribners, 1966, pp. 41-62. Os essênios consumiam
também uma refeição pascal sem o sacrifício do cordeiro. Mas
o calendário deles, baseado no ano solar de 364 dias, com
adições intercaladas, era diferente daquele de Jesus, que havia
sempre se conformado com o calendário lunar do Templo. Não
consideraremos a tese muito contestada de Annie Jaubert, para
quem Jesus, seguindo o calendário dessa seita ultrarrigorista,
teria comido a refeição da Páscoa na terça-feira à noite, sido
preso durante a noite e executado na sexta-feira ao meio-dia,
após um processo de dois dias e meio (JAUBERT, Annie. La
Date de la Cêne. Calendrier biblique et liturgie chrétienne. Paris:
Gabalda, 1957).
25. Marcos, 14, 13-15.
26. PIXNER, Bargil. Paths of the Messiah…, op. cit., pp. 192-219.
27. PUECH, Émile. “La synagogue chrétienne du mont Sion”, Le
Monde de la Bible, n. 57, 1989, pp. 18-20.
28. PIXNER, Bargil. Paths of the Messiah…, op. cit., pp. 319-59.
29. DIX, Dom Gregory. The Shape of Liturgy. Londres, 1945.
BOUYER, Louis. La Bible et l’Évangile. Paris: Cerf, 1951, pp.
295-310.
30. Lucas, 22, 15-16.
31. Berakoth, Mishna, 6, 6; Tosefta, 4, 8.
32. Lucas, 22, 17-18.
33. É a “gruta sagrada” da Igreja judaico-cristã, em cujas paredes
os arqueólogos encontraram, em 1951, grafites muito antigos,
realizados sem dúvida pelos primeiros cristãos. Num deles
pode-se ler: “Senhor Deus que ressuscitou Lázaro, lembra-te de
teu servidor Asclepius e de sua serva Chionion” (BENOIT, P. &
BOISMARD, M.-É. “Un ancien sanctuaire chrétien à Béthanie”,
Revue Biblique, 58, 1951, 200-51; PIXNER, Bargil. The Paths of
the Messiah…, op. cit., p. 232 e seguintes).
34. João, 13, 10.
35. João, 13, 12-14. Lucas evoca esse episódio quando faz Jesus
dizer na hora da ceia: “Eu que sou o Mestre e o Senhor lavei os
seus pés, por isso vocês devem lavar os pés uns dos outros!”
(22, 27).
36. COLSON, Jean. L’Énigme du disciple que Jésus aimait. Paris:
Beauchesne, 1968, p. 87.
37. João, 13, 27.
38. João, 13, 31.
39. O grego sôma corresponde ao aramaico bésar (carne). Ver
BONSIRVEN, J. “Hoc est corpus meum. Recherches sur
l’original araméen”, Biblica, 29, 1948, pp. 205-19.
40. Primeira Epístola aos Coríntios, 11, 23-25.
41. GRELOT, Pierre. La Tradition apostolique, op. cit., pp. 197-230.
42. Primeira Epístola de Pedro, 19.
43. Primeira Epístola aos Coríntios, 11, 26.
44. Primeira Epístola aos Coríntios, 11, 27-28.
45. Salmos, 34, 21, e Êxodo, 12, 46.
46. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’Évangile selon Jean, op. cit.,
t. II, p. 66.
47. João, 13, 33-38.
48. João, 14, 3-4.
49. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’Évangile selon Jean, op. cit.,
t. II, p. 106.
50. João, 14, 18-19.
51. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’Évangile selon Jean, op. cit.,
t. II, p. 128.
52. Lucas, 22,53.
53. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’Évangile selon Jean, op. cit.,
t. II, p. 275.
54. João, 17, 1-20. Bíblia de Jerusalém.

CAPÍTULO 14
O comparecimento diante de Anás
1. Alguns colocaram dúvidas quanto à utilização dos Salmos de
louvor do Halel nessa época. Notemos, entretanto, que Fílon de
Alexandria atesta que, desde os tempos de Jesus, os hinos eram
cantados à mesa durante a Páscoa (De specialibus legibus, 2, 27
§ 148). Por que não seriam aqueles do Halel, de que fala a
Mishna?
2. Em 37, ele sucederá a José, diz Caifás ao pontificado supremo,
e só permanecerá no cargo alguns meses, antes de ser
substituído por seu irmão Teófilo.
3. BLINZER, Joseph. Le Procès de Jésus. Paris: Mame, 1962, pp.
81-8.
4. É evidente que, em caso contrário, Jesus teria sido conduzido
para uma prisão romana.
5. BENOIT, Pierre. Passion et Résurrection du Seigneur. Paris: Cerf,
1966, p. 58.
6. Salmo 26, 2.
7. Salmo 55, 10.
8. Mateus, 26, 53.
9. JOSÈPHE, Flavius. Antiguidades dos judeus, XIV, 365-366.
10. VIVIANO, B. “The high priest’s servant’s ear, Mark 14, 47”,
Revue Biblique, n. 96, 1989, pp. 71-80.
11. Marcos, 14, 51-52.
12. CAILLOU, Jean-Sylvain. Les Tombeaux royaux de Judée dans
l’Antiquité. De David à Hérode Agrippa II. Essai d’archéologie
funéraire. Paris: Geuthner, 2008, p. 30 e seguintes.
13. GENOT-BISMUTH, Jacqueline. Jérusalem ressuscitée. La Bible
hébraïque et l’évangile de Jean à l’épreuve de l’archéologie
nouvelle. Paris: F.-X. de Guibert-Albin Michel, 1992, pp. 172-87.
Para outros, tratar-se-ia da residência de outra família
pontifical dessa época, os Kathros, como indicaria uma
inscrição em hebraico encontrada nesse lugar.
14. João, 18, 15.
15. A expressão “o outro discípulo” designa sem dúvida alguma
João, o autor do quarto evangelho. Um pouco mais adiante, o
narrador é ainda mais explícito, quando escreve: “o outro
discípulo, aquele que Jesus amava” (João, 20, 2).
16. Números, 35, 25.
17. JOSÈPHE, Flavius. Antiguidades dos judeus, 18, 4, 3, § 95.
18. Deuteronômio, 13, 2-6; 18-20.
19. DAGUET, Dominique. Le Linceul de Jésus de Nazareth, cinquième
évangile? Paris: Éd. du Jubilé-Sarment, 2009, p. 72.
20. Miqueias, 4, 14 e 5, 1.
21. POTTERIE, Ignace de La. La Passion de Jésus selon l’évangile de
Jean. Texte et Esprit. Paris: Cerf, 1986, p. 79.
22. Esse interrogatório é, além do mais, seguido, como em João, da
negação de Pedro.
23. Mateus, 26, 63-68, Bíblia TEB, Cerf et SBF, 1988.
24. BROWN, Raymond E. La Mort du Messie, op. cit., p. 546.
25. Isaías, 50, 6.
26. Lucas, 22, 63-65, Bíblia TEB, Cerf et SBF, 1988.
27. IMBERT, Jean. Le Procès de Jésus. Paris: PUF, 1980, p. 46.
28. Atos dos Apóstolos, 4, 3.
29. Ibid., 22, 30.
30. Para Raymond E. Brown, o encontro face a face de Jesus
ressuscitado e de Pedro perto do lago de Tiberíades e a tripla
pergunta: “Simão-Pedro, tu me amas?” seria o “equivalente
funcional” desse encontro (op. cit., p. 700).
31. BEN-CHORIN, Schalom. Mon frère Jésus. Perspectives juives sur
le Nazaréen. Paris: Seuil, 1983.
32. A casa da Caifás estava situada no lugar da igreja de São Pedro
em Gallicantu ou na propriedade vizinha dos armênios. A
cripta que podemos visitar ali foi, dizem, a prisão de Cristo,
mas faltam provas.
33. Judas teria se pendurado inicialmente em uma forca, depois
seu corpo teria caído no chão, deixando suas entranhas
espalhadas, ou ainda – outra hipótese –, o cadáver do
enforcado teria sido descoberto com o ventre já inflado,
dilacerado pela pressão dos gases internos (MESSORI, Vittorio.
Il a souffert sous Ponce Pilate. Enquête historique sur la passion et
la mort de Jésus. Paris: F.-X. de Guibert, 1995, p. 35).
34. Isto não o impede, como de costume, de narrar a história do
suicídio e da desco berta do campo a partir de uma combinação
de textos do Antigo Testamento: Zacarias, 11, 12-13; Jeremias,
19, 1-13; 32, 9.
35. ORÍGENES, Contre Celse, 2, 11.
36. Deuteronômio, 27, 25.

CAPÍTULO 15
O processo romano
1. LÉMONON, Jean-Pierre. Ponce Pilate, op. cit.
2. CALDERINI, A. “L’inscription de Ponce Pilate à Césarée”, Bible
et Terre Sainte, n. 57, jun. 1963, pp. 8-14.
3. Ele podia ser também “procurador” para os assuntos tributários
e financeiros. Assim, o governador da Sardenha usava o duplo
título de “procurator Augusti praefectus”.
4. SZRAMKIEWICZ, Romuald. Les Gouverneurs de province à
l’époque augustéenne, t. II. Paris: Nouvelles Éditions Latines,
1975, pp. 523, 527.
5. SARTRE, Maurice. D’Alexandre à Zénobie, op. cit., pp. 529-607.
6. JOSÈPHE, Flavius. La Guerre Juive, 2, 169-174, e Antiguidades
dos judeus, 18, 55-59.
7. McGING, B. C. “The Governorship of Pontius Pilate: Messiahs
and Sources”, Proceedings of the Irish Biblical Association, 10,
1986, p. 62 (citado por BROWN, R. E. La Mort du Messie, op.
cit., p. 780).
8. JOSÈPHE, Flavius La Guerre Juive, 2, 175-177, e Antiguidades
dos judeus, 18, 60-62
9. Particularmente MAIER, Paul L. “Sejanus, Pilate and the date
of the Crucifixion”, Church History, v. XXXVII, 1968, pp. 3-13;
do mesmo autor, “The episode of the Golden Roman shields at
Jerusalem”, Harvard Theological Review, v. LXII, n. 1, 1969, pp.
109-21.
10. PHILON d’ALEXANDRIE, Legatio ad Caium, 24, 160-161; In
Flaccum, 1.
11. BAMMEL, E. “Syrian coinage and Pilate”, The Journal of Jewish
Studies, Londres, 2, 1951, pp. 108-10.
12. PHILON d’ALEXANDRIE, op. cit., 299-305.
13. DOYLE, A. D. “Pilate’s career and the date of the Crucifixion”,
The Journal of Theological Studies, Oxford, v. XLII, 1941, pp.
190-3; HOEHNER, Harold W. Herod Antipas, op. cit., pp. 180-1.
14. MACCHI, Jean-Daniel. Les Samaritains. Histoire d’une légende,
Israël et la province de Samarie. Genebra: Labor et Fides, 1994,
pp. 9-45.
15. A identificar, provavelmente, com Khirbet Ed-Duwara ou
Dawerta, a leste do monte Gerizim.
16. Tertuliano fará dele um cristão devoto; os Atos de Pilatos
evidenciarão a retidão de seu comportamento e o evangelho de
Gamaliel, outro apócrifo do século IV ou V, descreverá seu
martírio. Na Igreja copta, Pilatos seria um nome de batismo
dado um século mais tarde.
17. TACITE, Annales, 18-40.
18. BENOIT, Pierre. “Prétoire, Lithostroton et Gabbatha”, Revue
Biblique, t. LIX, 1952, pp. 531-50.
19. JOSÈPHE, Flavius. Guerra dos Judeus, 2, 14, 8, § 301.
20. Pretorium designa o palácio do prefeito e não, como no sentido
moderno, a sala de audiências.
21. Não se sabe, exatamente, quando essas roupas foram
devolvidas. Flávio Josefo contradiz-se, nesse assunto,
afirmando, uma vez, que foi na véspera da festa e outra vez
que foi sete dias antes (Antiguidades dos judeus, 15, 11, 4, § 408
e 18, 4, 3 § 93-94).
22. Lucas, 23, 2, Bíblia TEB, 1995, Cerf et SBF.
23. Atos dos Apóstolos, 24, 5, Bíblia TEB.
24. BOVON, François. Les Derniers Jours de Jésus. Textes et
événements. Paris: Neuchâtel, Bruxelles, Delachaux e Niestlé,
1974, pp. 60-9.
25. LÉON-DUFOUR, Xavier. Lecture de l’Évangile selon Jean, op. cit.,
t. IV, p. 89.
26. Timóteo, 6, 12-13.
27. Tácito e Juvenal relatam que alguns romanos de alta condição
social se interessavam pela religião judaica. A Igreja grega irá
até honrar a esposa de Pilatos como uma santa, fixando sua
festa em 27 de outubro.
28. Atos dos Apóstolos, 13, 1.
29. JUSTIN, Dialogue avec Tryphon, 103, 4.

CAPÍTULO 16
O fim do processo romano
1. Esses manuscritos dão, provavelmente, o verdadeiro primeiro
nome de Barrabás [Bar Abba], já que Jesus era um nome muito
comum na época. Orígenes se escandaliza que possam ter
atribuído a esse bandido o mesmo primeiro nome do que o do
Salvador. Daí a supressão de Jesus nos outros manuscritos.
2. Lucas, 10, 30-36.
3. Lucas, 23, 19.
4. Deuteronômio, 21, 8-9; Levítico, 20, 9-10; 2o Samuel, 3, 28-29;
Josué, 2, 19; 1o Reis, 2, 32-33, etc.
5. BROWN, Raymond E. La Mort du Messie, op. cit., p. 446.
6. Lucas, 23, 15-16.
7. A relação da peregrinação de santa Paula, em 385, menciona
uma coluna de flagelação na colina de Sion. “Mostram-nos ali
uma coluna que sustenta um pórtico da igreja tingida com o
sangue do Senhor, onde, dizem-nos, ele foi amarrado durante a
sua flagelação.” Essa localização corresponderia, portanto, à
prisão judaica que se encontra em São Pedro, em Gallicante. A
atribuição é certamente lendária, porque Jesus não foi
flagelado durante a sua noite de detenção na casa de Caifás.
8. LEGRAND, Antoine, Le Linceul de Turin. Prefácio René
Laurentin. Paris: Desclée de Brouwer, 1988, p. 111.
9. WILSON, Ian. Le Suaire de Turin. Paris: Albin Michel, p. 52.
10. LEGRAND, Antoine. op. cit., p. 112.
11. Deuteronômio, 25, 3: “Se o culpado merecer açoites, o juiz o
fará deitar-se ao chão e mandará açoitá-lo em sua presença,
com número de açoites proporcional à culpa. Podem açoitá-lo
até quarenta vezes, não mais, para não acontecer de a ferida
se tornar grave…”.
12. JOSÈPHE, Flavius. Antiguidades dos judeuss, 4, 7, 21.
13. HELLER, John H. Enquête sur le Saint Suaire de Turin, op. cit., p.
191.
14. RODANTE, Sebastiano. “The coronation of thorns in the light
of the Shroud”, Shroud Spectrum International, v. I, 1982;
Anatomia topografica. Indagine mediconecroscopica e mistica.
Nuova luce sulla coronazione di spine, Atos do Terceiro Simpósio
Científico Internacional sobre o Sudário de Turim, Nice, 1997.
Paris: Éditions du Cielt, p. 89-93.
15. “The Shroud of Turin: a pathologist’s viewpoint”, Legal
Medicine Annual, 1982.
16. LÉON-DUFOUR, Xavier, op. cit., t. IV, p. 9.
17. Isaías, 1, 6.
18. LÉON-DUFOUR, Xavier, op. cit., t. IV, p. 97.
19. É verdade que os judeus crucificaram condenados, mas isto foi
no século I antes de nossa era, no tempo de Alexandre Janeu.
Herodes, o Grande, mandou suprimir esse tipo de castigo.
20. TACITE, Annales, 6, 8.
21. PHILON d’ ALEXANDRIE, In Flaccum, 6, 40.
22. LA POTTERIE, Ignace de. “Jésus roi et juge, d’après Jean 19,
13”, Biblica, t. XLI (1960), pp. 217-47; do mesmo autor, La
Passion de Jésus selon l’évangile de Jean. Texte et esprit, Cerf,
1986, pp. 116-21.
23. É necessário precisar que ela é recusada por alguns exegetas,
notadamente por LÉON-DUFOUR, Xavier (op. cit., t. IV, pp.
109-10); ROBERT, R. (Quelques croix de l’exégèse néo-
testamentaire. Paris: Téqui, 1993, pp. 185-202) e Raymond E.
Brown. Notemos, entretanto, que o evangelho de Pedro se
refere a isso. Nesse apócrifo, são os judeus que, por escárnio,
fazem Jesus sentar nessa cadeira de justiça. No mesmo sentido,
Justin, Apologies, I, pp. 35-36. Tudo isso pode ser uma
reminiscência de uma cena autêntica.
24. LÉON-DUFOUR, Xavier, op. cit., t. IV, p. 112.

CAPÍTULO 17
A crucificação
1. SUÉTONE, Caligula, 32; REGARD, Paul-F. Revue archéologique, t.
V. 1928, pp. 95-105.
2. BLINZER, Joseph, op. cit., p. 409.
3. João fala de uma inscrição em hebraico, mas o aramaico é
frequentemente a língua que ele designa quando fala do
hebreu. Nessa última língua, o texto seria: Ieschoua ha-nôtzeri
melek ha-iehoudim (BROWN, Raymond E., op. cit., p. 1.063).
Donde a abreviação I. N. R. I., frequentemente reproduzida
4. pelos pintores.
5. Essa relíquia foi descoberta em janeiro de 1492, quando
trabalhadores realizavam restaurações nessa basílica que data
do século IV.
6. Montre-nous ton Visage, dezembro 2005, n. 33. RIGATO, Maria-
Luisa. Il titolo della Croce di Gesù. Confronto tra i Vangeli e la
Tavoletta-reliquia della Basilica Eleniana a Roma. Roma:
Pontificia Università Gregoriana, 2005, t. XXV. (Col. “Tesi
gregoriana”)
7. Na igreja de Santa Cruz, em Jerusalém, conserva-se uma viga
que mede 1,78m de comprimento e 0,13m de largura, que teria
sido o patibulum do bom ladrão. Nenhuma análise científica
dessa viga parece ter sido feita.
8. MARION, André. “Du linceul de Turin à la tunique
d’Argenteuil”, Revue Internationale du Linceul de Turin, n.10,
outono 1998, p. 25.
9. Archaeology, v. XXXIV, n. 1, jan.-fev. 1981, p. 41.
10. Biblical Archaeology Review, v. XII, n. 4, jul.-ago. 1986, pp. 24-
5.
11. BAIMA BOLLONE, Pierluigi. 101 questions sur le Saint Suaire.
Saint-Maurice (Suíça): Éd. Saint-Augustin, 2001, p. 161.
12. MARION, André & LUCOTTE, Gérard. Le Linceul de Turin et la
tunique d’Argenteuil. Le point sur l’enquête. Paris: Presses de la
Renaissance, 2006, pp. 273-5.
13. LAVOIE, Gilbert R. Unlocking the Secrets of the Shroud. Allen
(Texas): Thomas More, 1998, pp. 136-7.
14. Apocalipse, 1, 14.
15. Romanos, 16, 13.
16. Lucas, 23, 28-32.
17. LÉGASSE, Simon. Le Procès de Jésus, t. I. L’Histoire. Paris: Cerf,
1994, p. 129.
18. Para outros, Verônica evocaria Berenice, Berenikè, nome que os
Atos dos Apóstolos dão à mulher hemorrágica do evangelho.
19. PARROT, André. “Golgotha et Saint-Sépulcre”, Cahiers
d’Archéologie Biblique, n. 6, Neuchâtel-Paris, Delachaux et
Niestlé, 1955; STORME, Albert. “Les Lieux saints évangéliques.
Qu’en est-il aujourd’hui de leur authenticité? XII: Jérusalem”,
La Terre Sainte, mar.-abr. 1992, pp. 59-75.
20. Os pelotões romanos eram compostos no Oriente por quatro
soldados (Atos, 12, 4).
21. Mateus, 27, 34.
22. Marcos, 15, 23.
23. Talmud da Babilônia, Sinédrio, 43a.
24. Deuteronômio, 21, 23.
25. Epístola aos Gálatas, 3, 13.
26. Primeira Epístola de São João, 4, 10. Em seu evangelho, João,
unicamente preocupado com a exaltação de Cristo na cruz
gloriosa, não tinha podido até então empregar a perspectiva
teológica da redenção pelo sofrimento. Se ele se “recupera”,
em sua Primeira Epístola, é talvez para completar esse
ensinamento e bloquear algumas interpretações gnósticas que
prevaleciam em Éfeso no final de sua vida.
27. HENGEL, M. La Crucifixion dans l’Antiquité et la folie du message
de la croix. Paris: Cerf, 1981, pp. 106-8.
28. TACITE, Annales, XV, 44-4, em Œuvres complètes. Paris:
Gallimard, 1989 (nova edição 1991), p. 776. (Col.
“Bibliothèque de la Pléiade”, n. 361)
29. Citado por HENGEL, La Crucifixion, op. cit., nota 19.
30. PUECH, Émile. “Notes sur 11Q19 LIX 6-13 et 4Q524 14, 2-4. À
propos de la crucifixion dans le Rouleau du Temple et dans le
judaïsme ancien”, Revue de Qumrân. t. XVIII, 1997-1998, p.
120.
31. MÉLITON de SARDES. Sur la Pâque. Paris: Cerf, 1966, p. 194.
32. Ambos foram informados dessa particularidade, perfeitamente
visível no sudário.
33. Se o sudário de Turim era falso, porque os falsários teriam
privilegiado a verdade anatômica em detrimento da
representação tradicional do crucificado?
34. Montre-nous ton Visage, jun. de 2007.
35. JUDICA-CORDIGLIA, Giovanni. L’Uomo della Sindone è il Gesù
dei Vangeli? Chiari: Edizioni Fondazione Pelizza, 1974.
36. Se os braços não tivessem sido sustentados nas axilas, na morte
do supliciado, o corpo teria caído, suportado pelos braços, que
deveriam estar esticados.
37. Marcos, 15, 7.
38. JOSÈPHE, Flavius. La Guerre des Juifs, op. cit., II, 306; TITE-
LIVE, op. cit., XXXIII, 36, 3.
39. Alguns o assimilam à santa túnica ou santa veste de Trier. Essa
vestimenta está, infelizmente, em tal estado de decomposição,
que é impossível analisá-la. Mechthild Flury-Lemberg, grande
especialista em tecidos antigos, só encontrou, sob camadas de
tecidos datados de 1512 e de outros de 1890 e 1891, alguns
tufos de lã esverdeada muito alterados pela umidade, traços do
tecido original.
40. Essas sandálias foram conservadas. Uma delas estaria
atualmente conservada num reliquário na Abadia de Prüm, na
Alemanha. Ela proviria de uma doação de Pepino, o Breve.
41. Lucas, 23, 34.
42. Atos, 7, 60.
43. EUSÈBE. Histoire ecclésiastique, 2, 23, 16.
44. ROLLAND, Philippe. Jésus et les historiens. Versailles: Éd. de
Paris, 1998, p. 77.
45. Lucas, 23, 35.
46. BEN-CHORIN, Schalom. Mon frère Jésus. Perspectives juives sur
le Nazaréen. Paris: Seuil, 1983, p. 210.
47. João, 19, 20.
48. BEN-CHORIN, Schalom, op. cit, pp. 205-6.
49. JUSTIN. Dialogue avec Tryphon. Paris: Picard, 1909, 73, 1.
50. RIESNER, R. “Golgota und die Archäologie”, Bibel und Kirche,
XL, 1985, p. 24, citado por LÉGASSE, Simon, op. cit., t. I, p.
154.
51. LÉON-DUFOUR, Xavier, op. cit., t. IV, p. 136.
52. João, 19, 26-27.

CAPÍTULO 18
A morte
1. O sangue encontrado no sudário nesse lugar é, segundo
especialistas, artério-venoso (DAGUET, Dominique, op. cit., p.
220).
2. João, 19, 28.
3. Salmos, 63, 2.
4. Mateus, 27, 47.
5. BEN-CHORIN, Schalom. Mon frère Jésus, op. cit., p. 209.
6. LÉON-DUFOUR, Xavier. Face à la mort. Jésus et Paul. Paris:
Seuil, 1979, pp. 145-67.
7. Salmos, 22, 11; 31, 15; 63, 2; 118, 28 e 140, 7.
8. BROWN, Raymond E. La Mort du Messie, op. cit., p. 1.194.
9. Êxodo, 12, 22.
10. RENAN, Ernest. Vie de Jésus. Paris: Arléa, 1992, p. 227.
11. João, 19, 30.
12. ARNALDEZ, R. Jésus, fils de Marie, prophète de l’islam. Paris:
Desclée, 1980, pp. 221-33. (Col. “Jésus et Jésus-Christ”, n. 13)
13. MESSADIÉ, Gérald. L’Homme qui devint Dieu, t. II, Les Sources.
Paris: Robert Laffont, 1989; GRELOT, Pierre. Un Jésus de
comédie: “L’Homme qui devint dieu”. Paris: Cerf, 1989.
14. Revue Internationale du Linceul de Turin, n. 28.
15. Deuteronômio, 21, 22-23.
16. SOLAS, Jean. “Les traces de sang sur le Saint Suaire.
Particularités anatomopathologiques. Problème de leur
transfert”, Actes du 3oSymposium Scientifique Inter national du
Cielt-Nice 1997, pp. 83-8.
17. João, 19, 35.
18. Primeira Epístola de João, 5, 6-7.
19. Êxodo, 12, 46.
20. JÉRUSALEM, Cyrille de. Catéchèses baptismales, XIII, 39,
Patrologie grecque, 33, 820.
21. Sofonías, 1, 15.
22. Amos, 8, 9-10.
23. Joel, 2, 10; 3, 3-4.
24. Œuvres complètes du pseudo-Denys l’Aréopagite. Trad., pref. e
notas Maurice de Gandillac. Paris: Aubier, 1943, pp. 333-4.
25. NANTEUIL, Hugues de. Les Ténèbres du vendredi saint. Paris:
Téqui, 1983.
26. Joel, 3, 4; Atos, 2, 20.
27. JAMES, M. R. The Apocryphal New Testament. 2a ed. Oxford:
Clarendon, 1953, p. 154.
28. HUMPHREYS, C. J. & WADDINGTON, W. G. “The Jewish
calendar, a lunar eclipse and the date of Christ’s Crucifixion”,
Tyndale Bulletin, XLIII, n. 2, 1992, pp. 331-51. Para seus outros
trabalhos sobre a data da morte de Jesus, ver “Dating the
Crucifixion”, Nature, CCCVI, 1983, pp. 743-6, e “Astronomy
and the date of the Crucifixion”, em VARDAMAN &
YAMAUCHI, E. M. Chronos, Kairos, Christos. Nativity and
chronological studies presented to Jack Finegan. Winona Lake:
Eisensbrauns, 1989.
29. Ezequiel, 37, 12-13; Daniel, 12, 2.
30. Carta aos Hebreus, 10, 19-20.
31. Talmud de Jérusalem, Yoma, 6, 43c.

CAPÍTULO 19
O sepultamento
1. Para outros pesquisadores, tratar-se-ia de Beit Rimeh, a 9
quilômetros a leste de Rentis, ou ainda de Ramallá.
2. Conta-se que José de Arimateia teria levado esse Graal para a
Inglaterra e teria sido construído um primeiro santuário em
honra da Virgem no meio do pântano Glastonbury…
3. VAGANAY, Léon (Ed.). L’Évangile de Pierre. Paris: Gabalda,
1930, pp. 211-7. (Col. Études bibliques)
4. Mateus, 27, 59. Existe hoje um padrão desse tipo, a vareta de
Anouti, conservada no Museu Petrie de Londres (DICKINSON,
Ian. “ De nouvelles preuves pour le Suaire de Jésus”, Revue
Internationale du Linceul de Turin, n. 13, 1999, pp. 3-11). O
comprimento do sudário não foi afetado pela retirada lateral
realizada por um imperador bizantino, provavelmente Isaac
Ângelo, no século XI, com o objetivo de fazer um escapulário
para si. Observamos que o comprimento dessa vareta
corresponde, com a diferença de alguns milímetros, às novas
dimensões do sudário, constatadas após os trabalhos de
restauração de 2002.
5. Uma especialista inglesa em têxteis, Elisabeth Crowfoot,
estima também que o tecido seja de origem síria.
6. Observar, entretanto, alguns traços ínfimos de fibras animais,
descobertos com o uso de um microscópio eletrônico por
Gérard Lucotte (Vérités sur le Saint Suaire. Études scientifiques
récentes sur le linceul de Turin. Paris: Atelier Fol’fer, 2010, pp.
45-6).
7. RIGATO, Maria-Luisa. Il titolo della Croce di Gesù, op. cit., pp.
198-213.
8. MARINELLI, Emanuela. Suaire de Turin. Témoignage d’une
présence. Dernières avancées scientifiques. Paris: Téqui, 2010,
pp. 117-8.
9. RIGGI, Giovanni. Rapporto Sindone, 1978-1982, p. 208, citado
por PETROSILLO, Orazio & MARINELLI, Emanuela. Le Suaire.
Une énigme à l’épreuve de la science. Paris: Fayard, 1991, p.
361. Observemos, entretanto, que ao longo de suas
investigações sobre o sudário, Helier e Adler não encontraram
nenhuma das substâncias aromáticas (HELLER, op. cit., p. 214).
10. VINCENT, Louis-Hugues. “Garden Tomb: histoire d’un mythe”,
Revue Biblique, XXXIV, 1925, pp. 401-31.
11. Foram encontrados, em 1980, ossários de várias famílias judias
ricas que viveram na época do segundo Templo, e algumas
trazem os nomes de “Jesus, filho de José”, “Maria e Marta”,
“Judas, filho de Jesus”, “Mateus”… Os arqueólogos sérios
recusaram-se a identificar esses personagens com Jesus de
Nazaré e seus seguidores (tese sustentada com alarde, em 2007,
pelos cineastas James Cameron e Simcha Jacobovici em seu
documentário The Lost Tomb of Jesus e retransmitida por James
Tabor, professor da Universidade da Carolina do Norte em seu
livro La Véritable Histoire de Jésus. Une enquête scientifique et
historique sur l’homme et sa lignée. Paris: Robert Laffont, 2007).
Evidenciamos especialmente a relativa frequência no seio da
população judaica da época dos primeiros nomes em questão:
9% para Jesus, 14% para José, 10% para Judas, 5% para
Mateus, 25% para Maria, etc. “Em definitivo, escreve Estelle
Villeneuve, em seu artigo ‘Le vrai-faux tombeau de Jésus’ (La
Recherche, jan. 2008, p. 57), nenhum dos argumentos
principais sobre os quais repousa a tese desenvolvida em Le
Tombeau perdu de Jésus resiste à crítica científica.”
12. Um barrete curioso, formado por várias camadas de linho,
conservado na catedral de Cahors, passa por ter sido a
ligadura para o queixo de Cristo. Infelizmente, ele ainda não
foi objeto de estudos científicos como as outras grandes
relíquias da Paixão. Ele teria algumas manchas de sangue, sete
à direita e cinco à esquerda, correspondentes às marcas
deixadas pela coroa de espinhos. Ao supor-se autêntico, é
possível que tenha sido fixado, inicialmente, na cabeça do
falecido, mas em seguida foi retirado, por ser inútil, diante da
rigidez cadavérica. Em todo caso, o sudário não apresenta
nenhum traço desse barrete. Sobre essa “touca” de Cahors, ver
BABINET, Robert. Le Témoin secret de la Résurrection. Paris:
Jean-Cyrille Godefroy, 2001.
13. Encontravam-se traços de sangue sobre esses pedaços de
lençóis dobrados.
14. Essa faixa teria sido costurada sobre o sudário, pouco depois do
descobrimento de sua tumba vazia, visto que essa costura,
segundo Mme. Flury-Lemberg, especialista em tecidos antigos,
data do século I e assemelha-se às costuras de linho
encontradas em Massada.
15. ZUGlBE, Frederick T. “The man of the shroud was washed”,
Sindon, nova série, n. 1, jun. 1989, pp. 171-7.
16. Texto de Rav Radak datado do século X e o código Kizzur
Schulchan Aruch, do rabino Salomone Ganzfried, datado do
século XVI.
17. MARASTONI, Aldo. Sindon, n. 9, dez. 1980.
18. Falou-se também de um suporte, peça de madeira utilizada na
Antiguidade para o apoio da cabeça (MARION, André &
COURAGE, Anne-Laure. “Décryptage de fantômes d’écritures
sur le linceul de Turin”, Actes du 3e Symposium Scientifique
International du Cielt-Nice, 1997, pp. 13-20), mas, mais
recentemente, pesquisadores chegaram a mostrar que as faixas
laterais ditas “cegas” deixavam ver em parte a imagem das
bochechas.
19. MARINELLI, Emanuela. Suaire de Turin, op. cit., p. 92. Em
2005, um matemático e geofísico francês, Thierry Castex, e
alguns outros acreditaram distinguir sob o queixo fragmentos
de letras esparsas em caracteres hebraicos, representando
talvez uma dezena de linhas.
20. FRALE, Barbara. Le Suaire de Jésus de Nazareth. Paris: Bayard,
2011.
21. Ibid., p. 279.
22. MARION, André & LUCOTTE, Gérard. Le Linceul de Turin et la
tunique d’Argenteuil, op. cit., p. 92.
23. JACKSON, Rebecca J. “‘ Hasadeen Hakadosh’: The Holy Shroud
in Hebrew”, em L’Identification scientifique de l’homme du
linceul. Jésus de Nazareth. Paris: F.-X, de Guibert, 1995, p. 27-
33.
Mateus, 27, 63-65, Bíblia de Jerusalém, Desclée de Brouwer,
24.
1975.
25. É necessário admitir que a resposta de Pilatos é de difícil
leitura. As palavras gregas Echete koustodian podem ser lidas
de duas formas. “Vocês têm sua própria guarda” ou “Eu lhes darei
uma guarda”. Se admitirmos esse último sentido, isto
significaria que a guarda foi composta por soldados romanos.
Essa versão, que é admitida por alguns exegetas, parece
entretanto pouco aceitável, porque temos dificuldade em
imaginar Pilatos cedendo às autoridades judaicas alguns de
seus soldados e colocando-os de alguma forma sob a autoridade
delas. A continuação da história mostra que, na manhã da
Páscoa, os guardas constataram que a pedra havia sido
deslocada e que o túmulo estava vazio; então, foram
diretamente prestar contas aos sumos sacerdotes e que estes
lhes deram dinheiro para que contassem ao povo que os
discípulos de Jesus haviam retirado seu corpo. É muito mais
fácil imaginar esse episódio se os guardas fossem do Templo.
Caso contrário, as autoridades judaicas, aliás, teriam acusado
os romanos de falha, ou de cumplicidade com os discípulos.

CAPÍTULO 20
A Ressureição
1. Lucas, 24, 10.
2. João, 20, 2.
3. BENOIT, Pierre. Passion et résurrection du Seigneur, op. cit., p.
284.
4. Lucas, 24, 11.
5. Levítico, 21, 11.
6. Alguns exegetas pensaram que João teria visto o sudário caído
e a ligadura para o queixo no interior, formando uma
protuberância no lugar da cabeça (LAVERGNE, C. “La preuve
de la résurrection de Jésus d’après João 20, 7”, Sindon, n. 5 e 6,
1961; FEUILLET, André. “La découverte du tombeau vide en
João 20, 3-10 et la foi au Christ ressuscité”, Esprit et vie, 1977,
n. 18, pp. 257-66 e n. 19, pp. 273-84; CARMIGNAC, Jean. “La
position des linges selon João 20, 6-7 et le linceul de Turin”;
LEON, Domingo Mufioz (Ed.). Salvacion en la palabra. Targum,
Derash, Berith. En memoria del professor Alejandro Diez Macho.
Madri Ediciones Cristiandad, 1986, pp. 11-21). Isto os levou a
modificar ligeiramente o texto do evangelista. Mas não está
confirmado que o “homem do sudário tenha tido o maxilar
preso por uma ligadura. O sudário – sundarion – tinha sido
enrolado à parte, de forma que a tumba continha todo o
sangue vertido por Jesus.
7. FEUILLET, André. “La découverte du tombeau vide en Jean 20,
3-10 et la foi au Christ ressuscité”, Esprit et Vie, n. 18, 1977, pp.
257-66 e n. 19, pp. 273-84.
8. Citado por LEGRAND, Antoine, op. cit., p. 26.
9. João, 20, 9.
10. Lucas, 24, 12.
11. Mateus, 8, 2-4.
12. Gênesis, 22, 11-15; Êxodo, 3, 2-6.
13. FÉRET, H.-M. Mort et résurrection du Christ, d’après les Évangiles
et d’après le linceul de Turin. Paris: Buchet-Chastel, 1980, p.
107.
14. RATZINGER, Joseph/BENTO XVI. Jésus de Nazareth., v. II, p.
310. “O mistério da ressurreição do Cristo, expõe o Catéchisme
de l’Église catholique, é um acontecimento real que teve
manifestações constatadas, como afirma o Novo Testamento”
(§ 639).
15. Mateus, 28, 11-15. Dans son Dialogue avec Tryphon (§ 108, 2.
Paris: Archambault, 1909, p. 161), Justino retoma esse dado.
Mas, talvez, inspirado no texto de Mateus?
16. Reconnaissances pseudo-clémentines, Latin 1, 42, 4.
17. SILIATO, Maria Grazia. Contre-enquête sur le Saint Suaire. Paris:
Plon-Desclée de Brouwer, 1998.
18. RINAUDO, Jean-Baptiste. “Nouveau mécanisme de formation
de l’image sur le linceul de Turin ayant pu entraîner une fausse
radio datation médiévale”, Actes du Symposium Scientifique
International du Cielt à Rome en 1993, op. cit.
19. LÉVÊQUE, Jean & PUGEAUT, René. Le Saint Suaire revisité.
Paris: Sarment-Éd. du Jubilé, 2003, pp. 151-2.
20. DAGUET, Dominique, op. cit., p. 31.
21. Mateus, 28, 16-20.
22. Marcos, 16, 5-7.
23. Marcos, 16, 15-16. Conforme as edições, o final de Marcos
comporta uma versão longa e outra curta (reportar-se a esse
respeito às notas da Bíblia TEB).
24. Atos dos Apóstolos, 1, 9-11.
25. Atos dos Apóstolos, 2, 32.
26. Atos dos Apóstolos, 3, 15.
27. Atos dos Apóstolos, 10, 41-42.
28. Primeira Epístola aos Coríntios, 15, 3-8.
29. Primeira Epístola aos Coríntios, 15, 20.
30. É o que diz Mateus a propósito da primeira aparição às
mulheres (Mateus, 28, 9-10).
31. João, 20, 19-23.
32. João, 20, 25.
33. SEYNAEVE, Jacques. “De l’expérience à la foi (Jean, 20, 24,
31)”, em La Bonne Nouvelle de la Résurrection, sob a direção de
R. Gantoy. Paris: Cerf, 1981, p. 111.
34. João, 21, 18.
35. Lucas, 24, 41.
36. Os fatos relatados são tão próximos que dificilmente
poderíamos duvidar de que Lucas reproduz o relato de João,
ligeiramente deformado: “Nós sofremos a noite toda sem pegar
nada” (Lucas); “eles passaram a noite sem pegar nada” (João).
A iniciativa vem de Jesus, que ordena: “Lançai a rede para
pegar peixes” (Lucas); “Lançai a rede à direita do barco e vós
encontrareis” (João); “eles pegaram uma tal quantidade de
peixes que suas redes se rasgaram” (Lucas). Lucas não fala da
presença dos Doze, mas só de alguns discípulos, entre os quais
Tiago e João, filhos de Zebedeu. João Evangelista também não
evoca a presença completa dos Doze, mas de alguns, entre os
quais Tiago, João e ele próprio, o discípulo que Jesus amava,
homônimo desse João, filho de Zebedeu.
37. Lucas, 5, 8.
38. CUMONT, F. Revue d’Histoire, n. 163, 1930, pp. 241-66.
39. FRALE, Barbara, op. cit., pp. 17-8.

CAPÍTULO 21
Epílogo
1. Atos dos Apóstolos, 1, 14.
2. EUSÈBE, op. cit., 3, 32, 3; HERRMANN, L. “La famille de Jésus
d’après Hégésippe”, Revue de l’Université de Bruxelles, t. XLII,
1936-1937, pp. 387-94; PIXNER, Bargil. Paths of the Messiah,
op. cit., pp. 408-14.
3. CARMIGNAC, Jean. Le Magnificat et le Benedictus en hébreu?,
op. cit., p. 127.
4. Os ebionistas haviam talvez surgido um pouco antes, se
admitirmos, com Tertu liano (De la prescription, 33, 5), que
foram eles que estigmatizaram Paulo em sua carta aos Gálatas.
Nesse caso, os dissidentes teriam se juntado a eles.
5. Isso é o que diz Orígenes em sua Homilia sobre são Lucas (17,
4).
6. Prefácio do livro de LAURENTIN, René. Les Évangiles de
l’Enfance du Christ. Vérité de Noël au-delà des mythes. Paris:
Desclée et Desclée de Brouwer, 1982, p. 3.
7. Mateus, 1, 18-25.
8. Observemos que a palavra “reis” já havia sido acrescentada
por Orígenes no século II, baseado no Salmo 72.
9. Isaías, 60, 5-6.
10. Mateus, 2, 1-12.
11. Mateus, 2, 13-23.
12. Mateus, 2, 19-21; Êxodo, 4, 19-20.
13. Números, 24, 17.
14. Apocalipse, 22, 16.
15. Talmud da Babilônia, 11a.
16. NODET, Étienne. Histoire de Jésus?, op. cit., pp. 217-9.
17. Ibid., pp. 217-21.
18. O padre Nodet não acredita, por sua vez, em uma influência
cristã. Segundo ele, esse texto levaria em conta uma tradição
relatada por Suetônio, segundo a qual Augusto divinizado teria
nascido sem pai (Apolo), portanto, filho de deus.
19. LOTH, Arthur, op. cit., pp. 382-3.
20. Também chamado Abrabanel ou Abarbanel.
21. SACHS, Abraham J. & WALKER, Christopher B. F. “Kepler’s
view of the Star of Bethlehem and the Babylonian almanac for
7/6 B. C.”, Iraq, t. XLVI, 1984. Kepler havia ficado chocado
com a conjunção triangular de Marte, Saturno e Júpiter e a
explosão no dia seguinte de uma supernova.
22. KIDGER, Mark. The Star of Bethlehem. An Astronomer’s View.
Princeton: Princeton University Press, 1999, p. 197.
23. MOLNAR, Michael R. The Star of Bethlehem: The Legacy of the
Magi. New Brunswick (New Jersey): Rutgers University Press,
1999.
24. Alguns calcularam que ele teria morrido no ano I a.C., sem
certeza.
25. Lucas, 1, 26-38.
26. Lucas, 2, 1-7.
27. NISIN, Arthur. Histoire de Jésus. Paris: Seuil, 1961, p. 139.
28. Ibid., p. 138.
29. V.11 Q 53, 16-20 e 54, 1-3.
30. Lucas, 1, 34.
31. Epístola aos Gálatas, 4, 4.
32. Epístola aos Romanos, 1, 3.
33. Epístola aos Filipenses, 2, 6-7.
34. João, 1, 13. Ver LAURENTIN, René. Les Évangiles de l’Enfance
du Christ, op. cit., pp. 480-1.
35. Lucas, 2, 34-35 (Bíblia de Jerusalém).
36. Sobre esse tema ver HURTADO, Larry W., op. cit.
37. O monoteísmo absoluto da religião judaica proibia os judeus-
cristãos de definirem perfeitamente a relação de Jesus com
YaHWeH, paralisando qualquer reflexão cristológica profunda.
Os esboços de uma teologia trinitária só surgiram no início dos
anos 50, nas primeiras cartas de Paulo. Pelo menos foi nessa
época que foram consignados por escrito, mesmo se, no
ensinamento oral que ele professava a grupos de amigos, João
Evangelista já devia falar disto.

ANEXOS
1. HADAS-LEBEL, Mireille. Flavius Josèphe. Le juif de Rome. Paris:
Fayard, 1989.
2. PELLETIER, A. “L’originalité du témoignage de Flavius Josèphe
sur Jésus”, Recherches de Science Religieuse, v. LII, n. 2, 1964,
pp. 177-203; BARDET, S. Le “Testimonium flavianum”. Examen
historique. Considérations historiographiques. Paris: Cerf, 2002.
3. NODET, Étienne. Histoire de Jésus?, op. cit., p. 229. A versão
eslava da Guerra dos Judeus dá uma versão um pouco mais
desenvolvida do Testimonium flavianum, mas poucos
comentaristas admitem sua autenticidade (exceção feita a
Étienne Nodet).
4. PINES, Shlomo. An Arabic Version of the Testimonium flavianum
and its Implications. Jérusalem: Israel Academy, 1971, pp. 9-10.
5. MEIER, John P. Jésus. Un certain juif, op. cit., t. I, p. 59.
6. Livro 10, letra 96.
7. TACITE. Annales, XV, 44.
8. CAZELLES, Henri. Naissance de l’Église: secte juive rejetée?
Paris: Cerf, 1983, p. 110.
9. Carta inicialmente editada por CURETON, W. Spicilegium
syriacum. Londres: 1855, pp. 43-8.
10. Talmud da Babilônia, Sinédrio, 43a. Trad. J. Klausner. Jésus de
Nazareth. Son temps. Sa vie. Sa doctrine. Paris: Payot, 1933, p.
27. (Col. “Bibliothèque historique”)
11. Ver sua comunicação no congresso sobre “La contribution des
sciences historiques à l’étude du Nouveau Testament” (Roma,
out. 2002), atos do congresso em La Libreria Editrice Vaticana.
Ver também: Nouvelles de L’Association Jean Carmignac, n. 34 a
42 (jul. 2007 a jun. 2009).
12. PETRONIUS. Satiricon, 74, 1-3.
13. Ibid., 77, 7; 78, 4.
14. Ibid., 141.
15. Ibid., 111, 5; 112-3.
16. BOVON, François & GEOLTRAIN, Pierre (Dir.). Écrits apocryphes
chrétiens, t. I. Paris: Gallimard, 1997. (Col. “Bibliothèque de la
Pléiade”, n. 442)
17. LAGRANGE, Marie-Joseph. “L’Évangile selon les Hébreux”,
Revue Biblique, v. XXXI, 1922, p. 177 e seguintes.
18. Entretanto, para o sábio holandês A. F. J. Klijn, é necessário
distingui-los. O evangelho, segundo os ebionitas, teria sido
escrito a leste do Jordão, o dos nazarenos em Bercea, na Síria,
e o dos hebreus no Egito (KLIJN, A. F. J. Jewish-Christian Gospel
Tradition. Leyde: Brill, 1992).
19. Ele comportava, segundo Orígenes, um relato da infância de
Jesus que não foi mais encontrado.
20. BROWN, Raymond E. La Mort du Messie, op. cit., p. 1.467.
21. Le Protévangile de Jacques et ses remaniements. Trad. Émile
Amann. Paris: Letouzey, 1910.
22. “Une découverte fondamentale: Nag Hammadi, bibliothèque
gnostique au bord du Nil”, Histoire et Archéologie, n. 70, fev.
1983. A coleção completa foi publicada em 2007, na
Bibliothèque de la Pléiade, com o título: Écrits gnostiques. La
bibliothèque de Nag Hammadi.
23. KROSNEY, H. L’Évangile perdu. La véritable histoire de l’Évangile
de Judas. Paris: Flammarion, 2006, original americano;
ROBINSON, J. M. Les Secrets de Judas. Paris: M. Lafon, 2006,
original americano.
24. VAGANAY, Léon. L’Évangile de Pierre. Paris: Gabalda, 1930.
25. DORESSE, Jean. Les Livres secrets des gnostiques d’Égypte, t. II,
L’Évangile selon Thomas ou les paroles secrètes de Jésus. Paris:
Plon, 1959, p. 110.
26. JEREMIAS, Joachim. Les Paroles inconnues de Jésus. Paris: Cerf,
1970, p. 118.
27. Primeira Carta aos Coríntios, 7, 10.
28. Epístola aos Romanos, 1, 3; 15, 8.
29. “Os Livros da Escritura”, enuncia a constituição Dei Verbum do
concílio Vaticano II, “ensinam claramente, fielmente e sem
erros a verdade tal como Deus, em vista de nossa salvação,
quis que fosse consignada nas Santas Escrituras” (3, 11).
30. MARCHADOUR, Alain. Les Évangiles au feu de la critique. Paris:
Bayard, Centurion, 1995, pp. 91-2.
31. VAGANAY, Léon. Le Problème synoptique, une hypothèse de
travail. Paris: Desclée, 1952, p. 218.
32. NODET, Étienne. Histoire de Jésus?, op. cit., p. 80 e seguintes.
33. Mateus, 15, 1-2.
34. Marcos, 7, 1-5. Bíblia de Jerusalém.
35. Mateus, 19, 1-9; Marcos, 10, 1-12.
36. ROLLAND, Philippe. Les Premiers Évangiles. Un nouveau regard
sur le problème synoptique. Paris: Cerf, 1984, pp. 110-22. Ver,
do mesmo autor, “Marc, première harmonie évangélique?”,
Revue Biblique, v. XC, n. 1, 1983, pp. 23-79. Para responder a
esse tipo de críticas, os defensores do modelo-padrão foram
obrigados a imaginar que Mateus e Lucas teriam se inspirado
não no Marcos atual, mas num Proto-Marcos (Ur-Markus,
como dizem os alemães), de que nunca se ouviu falar e do qual
apenas se entreveem os contornos…
37. ROBINSON, John A. T. Re-dater le Nouveau Testament. Paris:
Lethielleux, 1987 (edição inglesa, em 1976).
38. ROLLAND, Philippe. L’Origine et la date des évangiles, op. cit., p.
25.
39. Atos, 2, 46. Apesar de terem cessado de participar do culto do
sacrifício, os discípulos compareciam para fazer suas orações.
40. Atos, 11, 28. Houve muitas carestias no Império sob o reinado
de Cláudio. Trata-se provavelmente daquela de 48.
41. Mateus, 22, 7.
42. GRELOT, Pierre. Les Paroles de Jésus. Paris: Desclée, 1986, pp.
238-41.
43. Lucas, 19, 43.
44. ROLLAND, Philippe. L’Origine et la date des évangiles, op. cit.,
pp. 108-9. Ver também MÉHAT, André. “Les écrits de Luc et les
événements de 70. Problèmes de datation”, Revue de l’Histoire
des Religions, v. CCIX, n. 2, 1992, pp. 149-80.
45. Mateus, 17, 24-27.
46. Também chamado Yavneh ou Yabneel.
47. Não é comprovado que os cristãos sejam apontados com a
palavra “minim”. Para o historiador Reuven R. Kimelman, essa
“excomunhão” visaria a alguns sectários judeus do século I e
não os discípulos de Jesus (KIMELMAN, Reuven. “Birkat Ha-
Minim and the lack of evidence for an anti-Christian Jewish
prayer in late Antiquity”, em SANDERS, E. P. (Ed.). Jewish and
Christian Self-Definition, t. II. Londres: 1981, pp. 226-44).
48. CAZELLES, Henri, op. cit., p. 110.
49. Segundo Clemente Romano [são Clemente], Paulo foi
executado (e não crucificado) com “uma grande quantidade de
eleitos” por ocasião da mesma perseguição de Pedro, mas
provavelmente não na mesma data, antes, em todo caso, do
suicídio de Nero em 9 de julho de 68.
50. BROWN, Raymond E. Que sait-on du Nouveau Testament? Paris:
Bayard, 1997, p. 314n.
51. TRESMONTANT, Claude. Le Christ hébreu. La langue et l’âge des
évangiles. Paris: O. E. I. L., 1983. Posteriormente, o autor
apresentou traduções francesas dos quatro evangelhos
retraduzidos do hebraico: João (1984), Mateus (1986), Lucas
(1987), Marcos (1988), bem como o Apocalipse (1984).
52. CARMIGNAC, Jean. La Naissance des évangiles synoptiques.
Paris: O. E. I. L., 1984. Ver também a obra de MARION,
Francis. Les Saints Évangiles. Paris: F.-X. de Guibert, 2005.
53. CARMIGNAC, Jean. Le Magnificat et le Benedictus en hébreu?,
op. cit.
54. GRELOT, Pierre. Évangiles et tradition apostolique. Réflexion sur
un certain Christ hébreu. Paris: Cerf, 1984; do mesmo, L’Origine
des évangiles. Controverse avec J. Carmignac. Paris: Cerf, 1986.
55. A terceira edição de 1967 leva em conta as descobertas de
Qumran.
56. Estamos menos convencidos da grande antiguidade contribuída
a esses pré-evangelhos pelo padre Rolland: um Mateus
primitivo datado por volta do ano 36 (antes da morte de
Estêvão), os dois textos gregos que dele procedem nos anos 40-
50.
57. Mateus, 16, 25.
PERRlER, Pierre. Évangiles de l’oral à l’écrit. Paris: Sarment-Éd.
58.
du Jubilé, 2000.
59. MEYNET, Roland. Traité de rhétorique biblique, op. cit.
60. Primeira Epístola aos Coríntios, 15, 3-5.
61. Carta aos Hebreus, 2, 3.
62. BENOIT, P., MILIK, J. T. & VAUX, R. de (Ed.). “Les grottes de
Muraba’at”, Discoveries in the Judaean Desert of Jordan. II.
Oxford, 1961, pp. 275-9.
63. STANTON, Graham. Parole d’évangile?, op. cit., pp. 80-1.
64. Atos, 6, 1 e 7, 28.
65. Isso não excluía que as comunidades preferissem um texto ao
outro.
66. Epístola aos Colossenses, 4, 16.
67. IRÉNÉE, Adversus haereses (Contra as heresias), III, 1, 1. Trad.
Rousseau. Paris: Cerf. (Col. “Sources chrétiennes”)
68. Philippe Rolland apresentou uma reconstituição verossímil
(Jésus et les historiens, op. cit., pp. 59-78).
69. GOODSPEED, E. J. Matthew, Apostle and Evangelist. Filadélfia:
Winston, 1959, pp. 16-7; GUNDRY, R. H. The Use of the Old
Testament in St Matthew’s Gospel. Leyde: Brill, 1967, pp. 182-4;
ORCHARD, B. & RILEY, H. The Order of the Synoptics. Macon
(Géorgie): 1987, pp. 269-73.
70. Citado por EUSÈBE. Histoire ecclésiastique, livro V, cap. VIII.
Paris: Éd. Bardy, Le Cerf, 2003, n. 2-4.
71. Ibid., livro III, cap. XXIV, n. 6.
72. Ibid., livro V, cap. X, n. 3, p. 40. Ele deveria ser diferenciado
do “Evangelho segundo os Hebreus”, compilação posterior de
que falamos a propósito dos apócrifos.
73. ROLLAND, Philippe. L’Origine et la date des évangiles, op. cit.,
pp. 33-4.
74. STANTON, Graham, op. cit., p. 86.
75. “Faço de ti uma luz para as nações, para que a minha salvação
chegue até os confins da Terra”, Isaías, 49, 6.
76. Essa data é admitida por um grande número de exegetas.
Marshall, por exemplo, em seu comentário sobre o evangelho
de Lucas (The Gospel of Luke), admi te que este pode muito bem
tê-lo escrito no início dos anos 60.
77. Esses contatos entre Lucas e João são detalhados por
FEUILLET, André. Jésus et sa mère. Paris: Gabalda, 1974, p. 86
e seguintes.
78. CARMIGNAC, Jean. Le Magnificat et le Benedictus en hébreu?,
op. cit., p. 126. Notemos, entretanto, que o padre Émile Puech
mostrou que o relato da Anunciação retomava amplamente
uma composição aramaica do Qumran (“Le fils de Dieu, le fils
du Très-Haut, Messie Roi en 4Q246”, no Le Jugement de l’un et
l’autre Testament. I-Mélanges offerts à Raymond Kuntzmann.
Paris: Cerf, 2004, pp. 271-86).
79. É o que assegura uma introdução datada talvez do século II, o
Prólogo anti marcionista (dom Donatien De Bruyne, “Les plus
anciens prologues latins des évangiles”, Revue Bénédictine, v.
XL, 1928, pp. 193-214). Os restos de Lucas (com exceção de sua
cabeça) teriam sido encontrados em Pádua, onde uma tradição
atesta que seu corpo teria sido transportado. As análises
científicas não se opõem a essa identificação.
80. Lucas, 1, 1-4.
81. Citado por EUSÈBE, op. cit., t. III, 39, 15-16.
82. IRÉNÉE, op. cit., t. III, 1, 1.
83. Comunicação de E. Earle Ellis no congresso internacional de
Qumran, na Universidade de Eichstätt, out. 1991 (ver THIEDE,
Carsten Peter & D’ANCONA, Matthew. Témoin de Jésus. Paris:
Robert Laffont, 1996, p. 239).
84. EUSÈBE, op. cit., t. VI, 14, 6.
85. Marcos, 16, 8.
86. EUSÈBE, op. cit., t. VI, 14, 5-7.
87. É isso que demonstraram, por exemplo, autores como Eduard
Schweizer, Eugen Ruckstuhl, R. Alan Culpepper, Peter F. Ellis
ou Oscar Cullmann.
88. BURNEY, C. F. L’origine araméenne du IVoévangile (em inglês).
Oxford: 1922.
89. ALETTI, Jean-Noël. “Le Prologue de Jean et la Sagesse”, em La
Sagesse et Jésus-Christ. Paris: Éd. du Cerf, 1980, pp. 66-9. (Col.
“Cahiers Évangile”, n. 32)
90. João, 14, 26.
91. Primeira Epístola de João 1, 1-3, Bíblia de Jerusalém, Desclée
de Brouwer, 1998.
92. Primeira Epístola de João 4, 14.
93. João, 18, 15-17 e 26-27.
94. BROWN, Raymond E. La Mort du Messie, op. cit., p. 670.
95. IRÉNÉE, op. cit., III, 1, 2.
96. Mateus, 20, 20-28; Marcos, 10, 35-45.
97. Atos, 12, 2.
98. BOISMARD, Marie-Émile. Le Martyre de Jean l’apôtre. Paris:
Gabalda, 1996. (Col. “Cahiers de la Revue biblique”, n. 35).
Ver também COLSON, Jean. L’Énigme du disciple que Jésus
aimait, op. cit., pp. 65-84.
99. Uma conjetura arriscada, lançada por Claude Tresmontant
(Enquête sur l’Apocalipse. Paris: F.-X. de Guibert, 1994), faz de
João Evangelista Jônatas, um dos filhos de Anás. Essa
identificação não leva em conta o fato de que Jônatas era o
chefe da polícia do Templo no momento da prisão de Jesus. Ele
se tornará sumo sacerdote em 37, será deposto alguns meses
mais tarde e morrerá assassinado em 67. Ele não tem,
portanto, nada a ver com João, morto no ano 101, em Éfeso.
Mas pode ser que os dois homens estivessem ligados por um elo
de parentesco que não conhecemos.
100. COLSON, Jean. op. cit.
101. CULLMANN, Oscar. Le Milieu johannique, étude sur l’origine de
l’évangile de Jean. Neuchâtel, Paris: Delachaux e Niestlé, 1976;
LE QUÉRÉ, François. Recherches sur Saint Jean. Paris: F.-X. de
Guibert, 1994; GRASSI, J. A. The Secret Identity of the Beloved
Disciple. Nova York: Paulist, 1992; CHARLESWORTH, J. H. The
Beloved Disciple. Valley Forge: Trinity, 1995. O padre Xavier
Léon-Dufour, que havia começado o primeiro volume de sua
Lecture de l’Évangile selon Jean (Paris, Seuil) sustentando que
na origem desse evangelho encontravam-se as lembranças de
João, filho de Zebedeu, aderiu a essa solução na conclusão de
seu quarto volume.
102. João, 18, 31-33 e 18, 37-38.
103. EUSÈBE, op. cit., t. III, cap. V.
104. Ibid., t. III, cap. XXIV.
105. Citado por STANTON, Graham. Parole d’évangile?, op. cit., p.
134.
106. João, 1, 14.
107. João, 1, 28; 6, 1.
108. ROBINSON, John A. T. The Priority of John, op. cit.
109. COUROUBLE, Pierre. “Le grec de Pilate selon l’évangile de
saint Jean”, La Lettre de l’Abbé Jean Carmignac, n. 15, mar.
1993, p. 5.
110. João, 20, 30.
111. ZUMSTEIN, Jean. “La rédaction finale de l’évangile selon
Jean”, em BEUTLER, J., CULPEPPER, R. A., DETTWILER, A. et
al. La Communauté johannique et son histoire. Genebra: Labor et
Fides, 1990, p. 207 e seguintes.
112. O capítulo XXI, que é parte integrante da obra (conhecemos
um único manuscrito muito marginal, de origem síria, em que
ele está ausente), é de João: não só a mudança de perspectiva
não é acompanhada por nenhum deslize teológico, mas o estilo
é quase o mesmo (essas pequenas diferenças – a ausência de
qualquer ironia joânica, por exemplo – são simplesmente o
indicador de uma escrita posterior). Em todo caso, é difícil
imaginar discípulos imitando o estilo de seu mestre venerado
para fabricar um “falso”.
113. Lucas, que havia atravessado o Mediterrâneo, fala de lago ou
de lagoa (limnè em grego).
114. João, 24, 21.
115. ROBINSON, John A. T. Re-dater le Nouveau Testament, op. cit.,
p. 338.
116. Entre os dois textos, Philippe Rolland notou a identidade de
vocabulário e dos temas teológicos. A melhor qualidade do
grego no evangelho pode ser explicada pela ajuda de um
secretário (ROLLAND, Philippe. La Mode “pseudo” en
exégêse…, op. cit., pp. 221-33).
117. Esse Cerinto era um judeu de Antioquia, impregnado de ideias
neoplatônicas, que estudara em Alexandria. Oponente temível
do cristianismo, ele fazia uma síntese confusa entre os temas
gnósticos e as teorias dos ebionitas, professando a existência
de um Deus soberano, pai do “Cristo do alto”, e de um deus
inferior, o “Demiurgo”, organizador do mundo material. O
Cristo divino teria habitado Jesus de Nazaré por ocasião de seu
batismo e o teria deixado antes de sua crucificação. Ele
afirmava também que o reino esperado seria puramente
terrestre e que desfrutaríamos abundantemente de comidas, de
bebidas e dos prazeres da carne. João tinha horror desse
personagem arrogante e sensual. Uma anedota, relatada por
Irineu e Eusébio, mostra João entrando um dia num banho
público de Éfeso. “Ao saber que Cerinto estava lá, ele deixou o
lugar e fugiu em direção à porta, não suportando estar sob o
mesmo teto que ele, e ainda aconselhou aos que estavam com
ele a fazerem a mesma coisa: ‘Fujamos, com medo de que os
banhos desabem: Cerinto está ali, o inimigo da verdade’”.
(EUSÈBE, op. cit., t. III, cap. XXVIII).
118. IRÉNÉE. Contre les héresies, III, 11, 1.
119. São Jerônimo situa de fato a sua morte “no sexagésimo oitavo
ano após a Paixão de Nosso Senhor”.
120. No final do capítulo XIV, por exemplo, depois de um longo
discurso que se seguiu à última refeição de despedida, João faz
dizer a Jesus: “Levantemo-nos e partamos daqui”. Mas logo o
discurso continua com um texto sobre temas muito próximos.
Trata-se, com toda a probabilidade, de uma versão não
utilizada pelo evangelista.
121. É suficiente comparar João, 3, 31-36 a 3, 7-18; 5, 26-30 a 5, 19-
25; 10, 9 a 10, 7-8; 10, 14 a 10, 11; 16 4-33 ao capítulo 14.
122. João, 21, 25.
123. JEREMIAS, Joachim. Les Paraboles de Jésus, op. cit.
124. Apocalipse, 22, 19.
125. Prefácio da obra de NODET, Étienne. Histoire de Jésus?, op. cit.,
p. XIII.
126. Primeiro Livro de Reis, 17, 17-24, Segundo Livro de Reis, 4, 29-
37 e 4, 42-44.
127. LA POTTERIE, Ignace de. La Passion de Jésus selon l’évangile de
Jean. Paris: Cerf, 1986, p. 128.
128. As tentativas de explicação dessa divergência foram numerosas
por parte dos exegetas e dos historiadores. Baseando-se num
calendário essênio do Qumran, Annie Jaubert remodelou
completamente a cronologia da Paixão: para ela, Jesus teria
feito a refeição da Páscoa na terça-feira à noite e sido
executado na sexta-feira. Mas essa solução encontra muitas
objeções. Não compreendemos por que Jesus e seus discípulos,
que frequentavam regularmente o Templo quando estavam em
Jerusalém, teriam seguido o calendário da seita que proibia
seus adeptos de aceder ao Santuário. Outra explicação, dada
pelo padre Lagrange, é de ordem astronômica. Os apóstolos
teriam percebido na Galileia a lua crescente, e tal fato
indicava outra data para a Páscoa, não a do clero do Templo.
Em todos esses casos, permanece mal explicado como o
pequeno grupo, vindo da Galileia, infringindo as regras do
abate coletivo, teria conseguido um cordeiro imolado
regularmente no Templo ou como teria conseguido realizar um
abate ilegal numa casa privada.
129. Pouco depois do ano 150, Tatiano compôs uma harmonia dos
quatro evangelhos, da qual só se conservaram alguns extratos,
o Diatessaron. Outras harmonias foram provavelmente
experimentadas na mesma época. Mas a Igreja sempre
considerou que os quatro evangelhos deviam permanecer as
únicas referências (“Um único Evangelho sob uma forma
quádrupla”, já dizia Irineu desde o século II).
130. HEDRICK, Charles W. The Historical Jesus and the Rejected
Gospels. Semeia XLIV. Atlanta: Scholars Press, 1988.
131. JUSTINO. Dialogue avec Tryphon, 18, 1, 136, 2.
132. Nostra Aetate, 4, 6.
133. Ver especialmente o ensaio de PAUL, André. Jésus-Christ, la
rupture. Essai sur la naissance du christianisme. Paris: Bayard,
2001.
134. MÉBARKI, Farah & PUECH, Émile. Les Manuscrits de la mer
Morte. Rodez: Éd. du Rouergue, 2002, pp. 37-67.
135. WISE, Michael, ABEGG Jr., Martin & COOK, Edward. Les
Manuscrits de la mer Morte. Paris: Perrin, 2003, p. 38 e
seguintes.
136. PAUL, André. Les Manuscrits de la mer Morte. Paris: Bayard,
2000; La Bible avant la Bible. La grande révélation des manuscrits
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manuscrits de la mer Morte, un cinquantenaire. Paris: Cerf, 1997,
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139. Qumrân. Le secret des manuscrits de la mer Morte, catálogo da
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140. PAUL, André. Qumrân et les esséniens…, op. cit., p. 58.
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manuscrits de la mer Morte. Paris: A. Maisonneuve, 1950, p. 21.
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144. Tese de Robert H. Eisenman, professor na Universidade do
Estado da Califórnia (Maccabees, Zadokites, Christians and
Qumran. A New Hypothesis of Qumran Origins. Leiden: E. J.
Brill, 1983; James the Just in the Habakkuk Pesher. Leiden: E. J.
Brill, 1986), retomada por dois autores sensacionalistas,
BAIGENT, M. & LEIGH, R. (La Bible confisquée. Enquête sur le
détournement des manuscrits de la mer Morte. Paris: Plon, 1992).
145. PUECH, Émile. “Les manuscrits de la mer Morte et le Nouveau
Testament”, em LAPERROUSAZ, Ernest-Marie (Ed.). Qoumrân
et les manuscrits de la mer Morte…, op. cit., pp. 253-313.
146. THIEDE, Carsten Peter. Qumrân et les Évangiles. Paris: F.-X. de
Guibert, 1994
147. BOISMARD, Marie-Émile. “ A propos de 7Q5 et Mc 6, 52-53”,
Revue Biblique, t. CII, n. 4, out. 1995, pp. 585-8; GRELOT,
Pierre. “Note sur les propositions du Pr Carsten Peter Thiede”,
Revue Biblique, t. CII, n. 4, out. 1995, pp. 589-91.
148. PUECH, Émile. “Des fragments grecs de la grotte 7 et le
Nouveau Testament? 7Q4 et 7Q5, et le papyrus Magdalen grec
17 = p64”, Revue Biblique, t. CII, n. 4, out. 1995, pp. 570-84.
Com o objetivo constante de demonstrar a origem antiga dos
evangelhos, Carsten Peter Thiede tentou em seguida
estabelecer que os fragmentos de papiros provenientes do
evangelho de Mateus datavam dos anos 50-70. Seria o caso do
papiro p64 do Magdalen College de Oxford, cuja origem o
especialista em papiros Colin Roberts, em 1953, teria fixado a
origem na segunda metade do século II (THIEDE, Carsten
Pieter. Jésus selon Matthieu, la nouvelle datation du papyrus
Magdalen d’Oxford et l’origine des évangiles. Examen et discussion
des dernières objections scientifiques. Paris: F.-X. de Guibert,
1996). Aqui também, Thiede não convenceu a comunidade
científica. A crítica de Puech sobre essa segunda hipótese é
igualmente radical.
149. PAUL, André. Qumrân et les esséniens…, op. cit., pp. 97-114.
150. DUBARLE, A.-M. “Pourquoi les biblistes négligent-ils le linceul
de Turin?”, Sindon, n. 25, Turim, abr. 1977, pp. 17-29.
151. E não ao “servidor do sumo sacerdote” (petro e não puero),
como uma tradução inferior havia inicialmente induzido a
acreditar.
152. BARBET, Pierre. La Passion de N-S. Jésus-Christ selon le
chirurgien. Issoudun: Dillen, 1950.
153. HELLER, John H. Enquête sur le Saint Suaire de Turin. Paris:
Sand, 1985.
154. Uma primeira experiência dita de “fotoescultura” foi realizada
em 1913 por Gabriel Quidor.
155. Ausência de qualquer interdisciplinaridade, afastamento
autoritário dos cientistas pesquisadores do Sturp e dos
especialistas da Academia Pontifícia das Ciências, não respeito
ao protocolo primitivo (evitando, entre outros, textos sem
reflexão e proibindo aos laboratórios a comunicação entre si),
adição no último momento de uma quarta amostra não
prevista, datada do final do século XIII, a não publicação dos
valores brutos e do relatório completo pela revista Nature, que
se satisfez com um escasso relato de quatro páginas… Ver
“Prélèement sur le linceul effectué le 21 avril 1988 et études du
tissu”, Actes du Symposium Scientifique International de Paris sur
le Linceul de Turin, 7-8 de set. 1989, O. E. I. L., 1990; ver
igualmente o estudo de PETROSILLO, Orazio & MARINELLI,
Emanuela. Le Suaire. Une énigme à l’épreuve de la science, op.
cit.
156. VAN OOSTERWYCK-GASTUCHE, Marie-Claire. Le Radiocarbone
face au linceul de Turin. Paris: F.-X. de Guibert, 1999.
157. CLERCQ, Jean-Maurice & TASSOT, Dominique. Le Linceul de
Turin face au C14. Analyse scientifique et critique de la datation
par le carbone 14. Paris: O. E. I. L., 1988, p. 35.
158. GARZA-VALDÉS, Leoncio A. & CERVANTES-IBARROLA,
Faustino. “Biogenic Varnish and the Shroud of Turin”, Actes du
Symposium Scientifique International de Cielt, em Roma, em
1993. Paris: F.-X. de Guibert, 1995.
159. LUCOTTE, Gérard. Vérités sur le Saint Suaire. Études scientifiques
récentes sur le linceul de Turin. Paris: Atelier Fol’fer, 2010, pp.
43, 87 e seguintes.
160. SILIATO, Maria Grazia. Contre-enquête sur le Saint Suaire. Paris:
Plon-Desclée de Brouwer, 1998, pp. 36-42. Esse ponto
mereceria, sem dúvida, ser verificado.
161. Segundo o doutor Ramsey, uma única fibra teria sido analisada
em Oxford, no lugar das sete previstas. Uma análise realizada
em 2010 por Timothy Jull, diretor da revista Radiocarbon, a
partir de um fio do sudário tirado do mesmo lugar que o de
1988, teria conduzido a uma datação medieval idêntica às
primeiras análises (Science et Avenir, set. 2011). Observaremos,
entretanto, que outra análise, feita em 1982 por solicitação do
Sturp sobre uma pequena amostra do sudário, chegou a um
resultado incoerente: duzentos anos depois de Cristo num lugar
e mil anos depois de Cristo em outro.
162. LEJEUNE, Jérôme. “Étude topologique des suaires de Turin, de
Lier et de Pray”, Actes du Symposium de Rome sur l’Identification
Scientifique de l’Homme du Linceul, Cielt, 1993, pp. 103-9.
DAGUET, Dominique. Le Linceul de Jésus de Nazareth, cinquième
163. évangile?, op. cit., p. 184.
164. DANIN, A., WHANGER, A. D., BARUCH, U. & WHANGER, M.
Flora of the Shroud of Turin. Saint Louis, Missouri: Missouri
Botanical Garden Press, 1990, pp. 37 e 41.
165. Ela supervisionou os trabalhos de restauração do sudário, em
2002.
166. PETROSILLO, Orazio & MARINELLI, Emanuela, op. cit., p. 340.
167. BLANRUE, Paul-Éric. Miracle ou imposture? L’histoire interdite
du“suaire” de Turin. Villeurbanne: Golias, 1999; do mesmo
autor, Le Secret du suaire. Autopsie d’une imposture. Paris:
PygmaIion, 2006; “La science aveuglée par la passion”, Science
et Vie, n. 1.054, jul. 2005.
168. Lettre à la Revue Scientifique, 31 de maio de 1902.
169. DEVALS, Jean-Maurice. Une si humble et si sainte tunique. Paris:
F.-X. de Guibert, 2005.
170. VAN OOSTERWYCK-GASTUCHE, Marie-Claire. “La datation
radiocar-bone la plus instructive du point de vue scientifique:
celle de la Sainte Tunique d’ Argenteuil”, Atos do Colóquio La
Sainte Tunique d’Argenteuil face à la Science, 12 de nov. de
2005. Paris: F.-X. de Guibert, 2007, pp. 115-74.
171. DAGUET, Dominique, op. cit., pp. 98-9.
172. Segundo alguns cálculos, a probabilidade de que o sangue
encontrado na mortalha e no sudário de Oviedo venha do
mesmo homem eleva-se a 99,75% (DAGUET, D., op. cit., p.
103). Ainda que não faça parte do nosso tema tratar do “Cristo
da fé”, notamos que o sangue AB se encontra em pelo menos
três fenômenos milagrosos ou sobrenaturais: (1o) o prodígio
eucarístico de Lanciano na Itália. Há treze séculos, durante a
celebração da missa, um monge de São Basílio, assaltado pela
dúvida sobre a presença real do Cristo na eucaristia, viu a
hóstia tornar-se carne e o vinho transformar-se em sangue. Em
1971, examinando essas relíquias, Odoardo Linoli, professor de
anatomia e de história da patologia na Universidade de Siena,
estabeleceu que os restos da hóstia eram de carne humana (um
pedaço do músculo cardíaco) e que o líquido coagulado
pertencia ao mesmo homem e era sangue humano do grupo
AB. Em 1973, uma comissão científica da OMS confirmou esses
resultados; (2o) em 1976, em Betania, na Venezuela, durante
uma missa celebrada pelo padre Otti, sangue apareceu sobre
uma hóstia consagrada no momento da comunhão. Essa hóstia
foi analisada alguns dias depois, a pedido do monsenhor Pio
Bello Ricardo, bispo de Los Teques, pelos melhores laboratórios
de análise de Caracas: o sangue era do tipo AB. Nele
encontraram-se misturadas, como em Lanciano, fibras
musculares do coração; (3o) em maio de 2004, em Alberobello,
na Pulha, uma “transpiração de sangue” apareceu sobre uma
representação do rosto do sudário pertencente ao padre
Chiriatti, fundador de uma ordem de missionários. Analisada
pelo laboratório de genética legal da Universidade de Bolonha,
ela também se revelou ser de sangue tipo AB.
173. Foi feita a objeção de que todos os sangues antigos evoluiriam
para o grupo AB, em razão da interação com os têxteis. Tal
explicação é contestada pelo professor Gérard Lucotte, biólogo
do sangue, para quem, se houvesse evolução, ela se realizaria
para o grupo O.
174. JACQUET, Claude. “Concordance hématologique des trois
grandes reliques de Jésus-Christ”, Atos do Colóquio La Sainte
Tunique d’Argenteuil face à la science, 12 de nov. de 2005, op.
cit., pp. 223-9.
175. Para o sudário de Oviedo, o laboratório de Tucson (Arizona)
chegou a um intervalo de datas de 642-769 e o de Toronto
(Canadá) a 653-786. Mas será que poderemos datar com
confiabilidade velhos lençóis tão poluídos, tendo atravessado
tantas regiões e conhecido tamanhas vicissitudes (uma estada
prolongada na terra para a túnica)?
176. CLERCQ, Jean-Maurice. Les Grandes Reliques du Christ. Synthèse
et concordances des dernières études scientifiques. Paris: F.-X. de
Guibert, 2007, p. 147.
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nouvelle série, n. 1, jun. 1989, pp. 171-7.
Agradecimentos

Faço questão de expressar minha enorme gratidão pelos conselhos


sensatos e ensinamentos que me foram dados por personalidades de
sensibilidades diversas: Maurice Sartre, professor emérito de história
antiga na Universidade François-Rabelais de Tours, especialista em
Oriente antigo; padre Émile Puech, especialista em manuscritos do
Mar Morto; frei Thomas-Olivier Venard, OP (Ordem Dominicana),
especialista no evangelho de Mateus; e irmão Étienne Nodet, OP,
especialista em Flávio Josefo; os três membros da Escola Francesa
Bíblica e Arqueológica de Jerusalém; o padre Jean-Robert
Armogathe, historiador, biblicista, exegeta, diretor da revista
Communio;[1] padre Michel Gitton, membro da comunidade
apostólica Ein Karem (segundo a tradição cristã, esse seria o local de
nascimento de João Batista), diretor da revista Réssurrection
[Resurrection]; padre Phillipe Rolland, biblicista e exegeta; padre
Bernard Sesboüé, SJ,[2] teólogo, professor no Centro Sèvres em Paris;
padre Henry de Villefranche, professor de Escritura Sagrada no
Collège des Bernadins.[3] Um grande agradecimento igualmente
para o professor Gérard Lucot te, biólogo e geneticista, que
trabalhou e trabalha ainda com as relíquias da Paixão; ao doutor
Jean-Maurice Clerq, especialista nas mesmas relíquias; a M. Roger
Le Masne, presidente da Associação dos Amigos do Abade
Carmignac, ao meu filho Jocelyn, à minha irmã Éliane, bem como
ao meu amigo Francis Rey.
Também agradeço muito ao irmão Renaud Escande, OP, filósofo
e teólogo, por ter tido a grande amabilidade de reler atentamente o
meu manuscrito e por ter me mostrado suas observações; ao meu
amigo Antoine Mulet, que igualmente releu o meu texto e me ajudou
com suas sugestões perspicazes; padre Luc Pialoux, da Comunidade
Emmanuel,[4] professor no Collège des Bernadins, pelo seu trabalho
de pesquisa e críticas construtivas que me foram tão úteis; e,
certamente, à minha mulher Emmanuelle, primeira leitora, que,
como sempre, me auxiliou preciosamente na ingrata tarefa de
revisão e de finalização deste texto. Finalmente, não poderia
esquecer nesta lista o meu editor, Anthony Rowley, que confiou em
mim e cuidou, com seu olhar benevolente, mas vigilante, da
elaboração da obra.
É evidente que a responsabilidade por todas as posições,
hipóteses e conclusões adotadas neste livro competem unicamente a
mim.
Índice onomástico

Aarão 50, 178


Abel 116, 168
Abiú 178
Abraão 30, 38, 48, 63, 73, 126, 147, 173, 184, 395, 402
Abravanel, Isaac 331
Absalão 74
Adão 63, 133, 269, 288, 353, 356
Adiabene, Helena de 197
Adler, Alan D. 421
Ágabo 365
Agapios de Menbidj ou Agapios de Hierápolis 345
Ageu 28
Aitofel 232
Alberto Magno 279
Albino 254
Aletti, Jean-Noël 15
Alexandra, filha de Hircano II 43
Alexandre Janeu 41, 43, 49, 271-2
Alexandre, o Grande 10, 40, 131, 171
Alexandre, filho de Anás 199
Alexandre, filho de Simão de Cirene 196, 298, 365
Alexandre, Yardenna 58
Afonso II, o Casto 428
Ambíbulo, Marco 236, 238
Ambrósio, santo 204, 280
Amós, profeta 29, 99, 130, 184, 289, 407
André, santo 21, 55, 72-4, 77, 80, 91-2, 101, 103-4, 106, 138, 162, 207, 373,
383, 385, 388, 391, 394
Ana, mãe de Maria 356
Ana, profetisa 340
Annius de Viterbo 64
Anselmo de Cantuária, santo 279
Antíoco IV Epifânio 40-1, 191
Antíoco V 41
Antípatro 42-3, 409
Marco Antônio 42
Afraates 60
Apolônio de Tiana 349-50
Apolo 293, 371
Akiva, rabi 370
Arquelau 43-5, 247, 328, 335
Aretas IV 57, 95, 157
Aristóbulo I 41, 94
Aristóbulo II 41, 43
Aristóbulo, filho de Herodes, rei de Cálcis 156
Ariston 385
Aristóteles 172
Atanásio, santo 350
Atronges 43, 247
Augusto, César 28, 42-4, 57, 157, 173, 235, 242, 245, 335-6, 409
Agostinho, santo 60, 335, 403
Marco Aurélio 263
Aurélio, imperador 54
Ávila, Teresa d’, santa 179

Baima Bollone, Pierluigi 299, 305, 425, 430


Balaão 328-9
Balas, Alexandre 409
Bammel, Ernst 240
Banus ou Bano 33
Bar Abba ou Barrabás 251-3, 274
Bar Kokhba, Simão 49, 270, 333
Bar Serapião, Mara 347-8
Bartimeu 109
Barbesino 305
Barbet, Pierre 256, 273, 286, 420
Barnabé, santo 293, 359, 371, 377, 402
Barreau, Jean-Claude 61, 163
Bartolomeu, apóstolo, santo 138-40, 374
Baruch, Uri 66, 138, 302, 425
Basilides 285, 353
Baslez, Marie-Françoise 22
Basso, Lucílio 95
Bauckham, Richard 14
Balduíno de Courtenay 257
Baur, Christian 10
Beaulieu, Jacques-Louis de 425
Beauvery, Robert 194
Ben Sira 52, 138
Ben Zakai 370
Ben-Chorin, Schalom 17, 231, 276-7, 282, 397, 404
Bento XIV, papa 164
Bento XVI, papa 18, 209n, 312, 403
Benoit, Pierre 14, 222, 243
Berthelot, Marcelin 426
Black, Matthiew 368
Bloch, Marc 18
Boismard, Mari-Émile 385, 415
Bornkamm, Günther 14
João Bosco, santo 164
Bourcier de Carbon, Philippe 422
Brandon, Samuel George F. 87
Brown, Raymond E. 14, 105, 253, 283, 352, 367, 398
Bucklin, Robert 255-6
Bultmann, Rudolf 13-4, 17, 20, 22n, 132, 393
Burgess, Anthony 56
Burney, C. F. 381

Caim 30
Caifás, José, chamado 10, 28, 88, 90, 198-202, 205, 223, 225-7, 229-31, 237-8,
241, 243-4, 247, 251-2, 260-2, 277, 285, 305-7, 312
Calígula, Caio 46, 235, 238, 241
Calvino, João 61
Capasso, Mario 304
Cáriton de Afrodísias 349
Carmignac, Jean, abade 15, 56, 127, 324, 368, 376
Carpócrates 353
Cazelles, Henri 366
Celso 19, 184, 205, 208, 289, 348
Cerinto 353, 392
César, Júlio 42, 287, 289, 361, 423
Cesareia, Eusébio de 63, 64n, 178
Chamberlain, Houston S. 11
Charbel, Makhlouf, são 313
Carlos Magno 23, 272, 428
Carlos Borromeu, santo 419
Charlesworth, James H. 386
Charny, Geoffroy de 419
Chen, Doron 212
Chilton, Bruce 14
Chouraqui, André 17, 404
Cusa ou Cuza, Joana de 248
Crisóstomo, João, são 204, 228, 402-3
Cícero 271
Clari, Robert de 419
Cláudio, imperador 235, 289, 347, 365
Cláudia Prócula 234, 245, 248, 252
Clemente de Alexandria 204, 218, 351, 364, 378-9, 384, 387
Cleópatra de Jerusalém 43
Cléofas, peregrino de Emaús 320
Clercq, Jean-Maurice 423
Clopas ou Cléofas, irmão de José 60, 62, 64, 77, 139n, 278
Collins, John J. 48
Colson, Jean 386
Constantino, imperador 196, 264, 270, 273, 326, 337, 416
Constantino VII Porfirogênito, imperador 419
Coon, Carleton S. 53
Copônio 236, 238
Corbo, V. 80
Cornélio, centurião 102
Couchod, Paul-Louis 10
Courage, Anne-Laure 302-3
Courouble, Pierre, abade 22n, 246, 389, 401
Crasso, Marco Licínio 42, 272
Crossan, John Dominic 45, 350
Cullmann, Oscar 14, 386
Cumont, Franz 322
Cirilo de Alexandria, são 289
Cirilo de Jerusalém, são 158, 289, 418
Ciro II, o Grande 39, 83

Dahl, A. Orville 301


Daniel, profeta 34, 48, 75, 134, 146, 148, 189, 293, 331, 341
Daniélou, Jean 36
Daniel-Rops 36
Danin, Avinoam 302, 424-5
Dario 28, 271
Davi ou Daví 34, 39, 47-9, 54, 58-60, 63, 74, 83, 104, 138, 143, 151, 153, 165,
172, 177, 180, 182, 206, 212, 232, 244, 248, 324-8, 332-40, 359
Davis, médico 286
Delage, Yves 426
Delitzsch, Franz 175
Demétrio III 272
Dionísio, o Areopagita 291
Dionísio Exíguo, o Pequeno, monge 54, 331
Dionísio, bispo de Alexandria 385
Destot, Étienne 273
Diodoro Sículo 331
Diógenes 115
Dioscórides 377
Dix, Gregory 213
Dodd, Charles Harold 19, 397
Domiciano, imperador 64, 344, 385, 391-2
Doyle, A. D. 241
Dreyfus, François 18
Drori, Amir 411
Druso 240
Dubois, André 303
Dunn, James D. G. 14, 67
Dupont-Sommer, André 408, 413
Duquesne, Jacques 61
Dyck, Van 273

Edwards, Douglas 76
Egeria 81, 165, 196, 264
Elêusis 31
Elias, profeta 27-9, 51-2, 96, 107, 135, 144, 169, 173, 175, 178, 216, 282-3,
396
Isabel, mãe de João Batista 50, 52, 66, 324
Eliseu, profeta 27, 107, 135, 144, 163, 396
Ellis, E. Earle 378
Emmerich, Anne Catherine 16
Enrie, Giuseppe 420
Efrém 60
Epifânio, santo 280, 324, 327, 353, 383, 388
Esculápio ou Asclépio 159
Esdras 49
Esopo 114
Ester 411
Estêvão, diácono 87, 133, 275, 358, 366, 372
Eusébio de Cesareia 21, 63, 64n, 178, 196, 263, 290, 321, 324, 351, 364, 374-5,
386-7
Eva 30, 288, 356
Ezequias 83
Ezequiel 48, 65, 98, 138, 171, 182, 187, 192, 272, 293, 407

Fado, Cúspio 27
Félix, procurador 27, 244, 252, 343
Ferreras, Carmen Gómez 430
Festo, Pórcio 27, 252
Filas, Francis J. 305-6
Flury-Lemberg, Mechthild 297, 425
Flusser, David 14, 17, 67, 183, 404
Fournet, André Hubert 164
Frale, Barbara 303
France, Anatole 321
Francisco de Assis, são 337
Francisco de Sales, são 419
Frei, Max 257, 301, 425, 428
Freyne, Sean 14

Gabriel, arcanjo 334, 339, 360


Galião 366
Gamaliel, o Ancião 199, 202, 358
Gamaliel II 370
Garicoitz, Michel, são 179
Garza-Valdés, Leoncio 423
Gastineau, Paul 421
Genot-Bismuth, Jacqueline 224, 397, 404
Gerhardsson, Birger 370
Gibson, Mel 16
Goldoni, Carlo 430
Goodman, Martin 46
Gordon, general britânico 300
Gurion, filho de Nicodemos 90
Grassi, Joseph A. 386
Grato, Valério 198, 236, 238
Gregório de Nazienzo, são 289
Gregório de Nissa 335, 402-3
Gregório de Tours 428
Gregório, o Grande, papa 204
Gregório, o referendo 419
Grelot, Pierre 12, 14, 61-2, 174, 285, 368, 415
Grosjean, Jean 22, 113

Habacuque 411, 413


Adriano, imperador 243, 270, 275, 290, 337, 347, 372
Hamurabi, rei da Babilônia 123
Anás, o Jovem 366
Anás, sumo sacerdote 10, 28, 53, 88, 198-200, 205, 215, 221-33, 243, 247, 252,
258, 261-4, 277, 307, 312, 323, 384, 413
Haralick, Robert M. 305, 425
Harnack, Adolf Von 381
Hedrick, Charles W. 401
Hegésipo 60-1, 275, 324, 351
Helena, santa, mãe de Constantino 264, 326, 337
Heller, John H. 421
Helvídio 61
Hengel, Martin 46
Enoque 49, 66, 187, 289, 407
Heracleon 353
Héracles ou Hércules 46, 87n, 146, 171
Heras, Guillermo 428
Hermes 46
Herodes Agripa I 141, 257, 261, 305, 385
Herodes Antipas 28-31, 43, 45, 49, 57, 73, 80, 94-6, 101-2, 108-10, 137, 154-7,
165, 169, 173, 193, 236, 240, 248-50, 251, 278, 344
Herodes, o Grande 42-3, 49, 54, 82-3, 85, 88, 94-5, 156, 177, 198, 235, 240,
242-4, 247, 256, 265-7, 271, 325-30, 333, 336-7, 365, 385, 409
Herodes Filipe, filho de Herodes, o Grande 73, 94, 156, 240
Herodíades 94-6, 156
Hilário, santo 280
Hilel, rabino 11, 125, 136, 148, 151, 358, 370
Hipólito, santo 324, 354
Hoehner, Harold W. 241
Honi 107
Humphreys, Colin J. 292
Hunter, A. M. 22
Hunter, John E. 397
Hurtado, Larry W. 14
Hynck, médico 286
Hircano, João 40-1, 59
Hircano II 41-3, 223, 411

Intrigillo, Gaetano 299-300


Irene de Constantinopla, imperatriz 23, 428
Irineu, santo 21, 60, 64n, 113, 373, 375, 378-9, 384, 392,
Isaac, Jules 403
Isaac, patriarca 147, 173, 402
Isaías, profeta 29, 35, 47-8, 52, 59-60, 67, 98, 130, 143-4, 147, 155, 166, 171,
174, 184, 228, 258, 291, 326, 339, 341, 375, 396, 406
Ísis 31

Jackson, John P. 421


Jacob, patriarca 59, 63-4, 73, 97-9, 113, 138, 147, 173, 328, 334, 402
Jacopo de Varazze 352
Tiago, o Justo, filho de Maria de Clopas ou Cléofas 60-4, 76, 127, 139, 141-4,
278-9, 320n, 323, 351, 359, 413
Tiago, filho de Alfeu 131-2, 139-40
Tiago, filho de Zebedeu 103, 138-9, 141-2, 175, 177-8, 207-9, 318, 373, 385-6
Jairo 349
Jasão 40
Jaume, Jacques 273
Jean Séville 331
João Batista, são 21, 26-36, 49-52, 56-7, 60, 65-7, 71, 77, 90, 93, 97, 145n, 146,
153, 156-7, 161, 169, 175, 226, 249, 318, 324, 344, 383, 387, 395, 399,
402, 413, 417, 427
João XXIII, papa 403
João, são, filho de Zebedeu 21, 103, 175, 177-8, 208-9, 211, 278, 318, 373, 383
João, são, o Evangelista 10, 13, 18-22, 34, 50-1, 61-2, 67, 72-3, 77, 79-80, 88-
92, 97-101, 119, 133, 139, 145n, 158-62, 181-2, 186, 191, 193, 199-202,
207-8, 212, 214, 217-8, 221, 223, 225-6, 242-3, 246, 265, 276, 278, 284,
309, 319, 323, 380-92
João Paulo II, papa 418
Joana de Chantal, santa 419
Joana, mulher de Cusa ou Cuza 137, 248, 278, 308
Jeconias ou Joaquim 63
Jensen, Morten 45
Jeremias, Joachim 14, 88, 112, 357
Jeremias, profeta 29, 47-8, 88, 130, 138, 171, 173, 184, 396, 407
Jeroboão II 146
Jerônimo, são 59, 62, 64n, 145, 196, 204, 280, 289, 292-3, 351, 388, 403
Jessé 47-8, 58-9, 63-4, 144, 323
Jesus, filho de Ananias 254
Jezebel, rainha 96, 171
Joaquim, pai de Maria 356
Joel, profeta 289, 292
Jonas 146
Jônatas, filho de Anás 215, 221, 225, 243, 312, 383
Jônatas, irmão de Judas Macabeu 41, 409, 411
José de Arimateia 199, 202, 230, 270, 295-300, 302, 304, 309, 312, 342
José, chamado Barsabás 92
José ou Jost, filho de Maria de Cléofas ou Clopas 60-1, 76, 142, 144, 177, 278-80
José, pai de Jesus 56, 58-9, 63-4, 67, 144, 278, 324-7, 330, 334-5, 339-40, 353,
374
Josefo, Flávio 10, 19, 27-9, 32-3, 44-5, 49, 65, 82, 84, 96, 107, 157, 177, 223,
226, 234, 236, 242-3, 252, 265, 289, 293, 309, 328-31, 335, 343-57, 410,
413
Josué 27, 53, 187, 225, 291
Jousse, Marcel 370
Judas Iscariotes 138-9, 139, 141, 204-5, 214-5, 222, 225, 232-3, 253, 260, 352,
395
Judas, o Galileu 44, 57, 152, 165, 226, 252, 337
Judas Macabeu, da Galileia 41, 174, 409
Judas, filho de Ezequias 247
Jude ou Judas, filho de Tiago, apóstolo 139-40, 142, 219
Jude ou Judas, filho de Maria de Cléofas ou Coplas 60-1, 77, 142, 144, 177, 278,
280, 285, 494
Judica-Cordiglia 273
Júlio Africano 63, 289-90
Júlia Augusta, mãe de Tibério 73, 305
Juliano, o Apóstata 289
Jumper, Eric J. 305, 421
Justino, são 57, 66, 249, 277, 321, 327, 337, 401-2
Justiniano, imperador 337

Kando 406
Käsemann, Ernst 14
Kelber, Werner 370
Kepler, Johannes 330
Kieffer, René 397
Klausner, Joseph 404
Kohlbeck, Joseph 266
Kypros 42, 194

La Fontaine, Jean de 114


La Potterie, Ignace de 14, 261, 397
La Roche, Oto de 419
Labre, Benedito-João, são 179
Lactâncio 289
Lagrange, Marie-Joseph, padre 14, 16, 292, 326, 408
Lapide, Pinchas 203
Lassieur, Pierre 164
Laurentin, René, msr 14, 105
Lavoie, Gilbert R. 267
Lázaro 51n, 55, 137, 192-9, 202-4, 206, 295, 306, 311
Lázaro, o “pobre” da parábola 115
Le Quéré, François 386
Legrand, Antoine 255
Lémonon, Jean-Pierre 240
Léon-Dufour, Xavier 14, 184, 195, 220, 262, 282, 397
Lessing, Gerbard 12
Levi-Setti, Ricardo 266
Libby, Wil1iam 423
Loffreda, S. 80
Lorre, Jean J. 421
Loth, Arthur 28, 240, 336
Luís VII, rei da França 419
Luís IX, rei da França, são Luís 257
Lucas, são 10, 12n, 15, 20, 28-9, 54, 56-7, 60-4, 66-7, 70, 86-7, 93, 101-4, 107-
9, 117, 121, 126, 132, 134, 137-9, 144, 152, 164-5, 178, 203-5, 208-10,
216, 219, 221, 223, 228-9, 231-2, 238, 246-50, 252, 254, 256, 259, 262,
268-70, 274-8, 284, 288, 292, 294-5, 304, 308-9, 311, 315, 319-21, 323-5,
334-40, 350, 356, 358, 361-70, 375-82, 387, 390-404
Luciano de Samósata 19, 347
Luciano, são 290
Lucílio 271
Lucotte, Gérard 23, 267, 423, 429-30
Lusignan, Amaury de, Amarilco II 419
Lutero, Martinho 61, 403
Lynn, Donald J. 421
Lisânias 28

Maaca 74
Macróbio 330
Magen, Yitzhak 411
Maomé 9, 131, 360
Maier, Paul L. 240
Malaquias 52
Malco 223, 231, 384
Maloney, Paul C. 425
Maltaque, mulher de Herodes, o Grande 43
Manaém 248
Manuel I Comneno, imperador 424
Marastoni, Aldo 303
Marcos, são 10-1, 12n, 20, 60-1, 65-6, 102, 104-8, 117, 134, 138, 140, 150,
152, 156, 164-6, 170, 172, 178, 193, 203, 205, 208-9, 216, 222-3, 228-9,
231, 246, 254, 260, 268, 270-1, 274, 276-8, 282, 284, 288, 292-4, 308-9,
315, 339, 349-51, 361-9, 376-9, 381-7, 393-6, 399, 401, 404, 414
Marcião 353, 356n
Margalit, Shlomo 212
Marguerat, Daniel 14
Mariamme, mulher de Herodes, o Grande 42, 43, 94, 242
Maria, mulher de Eleazar 269
Maria Madalena ou Maria de Magdala 11, 109, 137, 204, 212, 278, 285, 308-9,
312, 317, 355
Maria, mulher de Cléofas ou Clopas 60-2, 212, 278, 323
Maria, mãe de Jesus 56, 58, 60-2, 64, 66-7, 76-9, 137, 142, 144, 192-7, 202-3,
211-2, 278-80, 287, 298, 302, 304, 308-9, 323-30, 334-40, 342, 352-3, 356,
374, 376, 384, 402
Maria, irmã de Lázaro 51, 137, 145n, 192-4, 196-7, 202-3, 211, 309
Marion, André 265-6, 302-3, 306, 430
Marta, irmã de Lázaro 51, 137, 145n, 192-4, 196-7, 211, 309
Masha’allah 331
Matias, filho de Anás 225
Matata 63
Matatias 41
Matias 92, 140
Mateus, são 10, 12n, 20, 53-4, 59-66, 70, 101-2, 106-11, 117, 120-1, 126, 132,
134-5, 138-40, 144, 152, 156, 162, 164-6, 170, 172, 175-8, 193, 203, 205,
208-9, 216, 223, 227-9, 231-3, 242, 246, 248, 251, 253-4, 260, 270-1, 274,
276-8, 282-4, 288, 290, 292-4, 297, 299, 304, 307, 309, 311-2, 315, 325-8,
330-1, 333-4, 339-40, 350-1, 356, 361-76, 379-82, 385-7, 393-6, 399, 401,
404, 416
Maurice, Jean-Pierre 428
McGing, B. C. 237
Meier, John Paul 14, 61, 117, 343
Melito, bispo de Sardes 272, 289, 353, 402
Melquisedeque 48, 341
Menahem 252
Menelau 40
Mérat, Pierre 274
Messadié, Gérald 285
Messina, Roberto 303
Meyer, Ben Franklin 18
Meynet, Roland 14, 370
Miqueias, profeta 138, 182, 327, 336, 396
Miller, Vernon 302
Mitra 31
Mnäson 376
Moisés 26-7, 39n, 52-3, 60, 74, 90-1, 99, 108, 123, 131-3, 146, 148, 151-2, 154,
160-1, 165, 167-8, 172, 178, 181, 186-7, 199, 217, 241, 279, 320, 328, 330,
363, 375, 395, 407, 410, 418
Molnar, Michael R. 334
Mommsen, Theodor 259
Mordillat, Gérard 18
Munter, Frédéric 331
Muratori, cânone 21, 92, 350, 387, 391

Naamã 27
Nabucodonosor 38, 83, 171, 366
Nadabe 178
Natã ou Natan, filho de David 63, 182
Natanael de Caná 74-5, 77, 80, 91, 98, 101, 139, 318, 394
Nero, imperador 272, 343, 346-7, 349, 378, 390
Nerva, imperador 349, 392
Neusner, Jacob 17
Nicodemos 90-1, 113, 145n, 161, 183, 199, 202, 212, 230, 234, 295, 299-300,
309, 312, 353
Nisin, Arthur 336
Nitowski, Eugenia 299
Nodet, Étienne 59, 259, 328, 330, 345, 362

O’Callaghan, José 414


Onias III 33
Orecchia, Carlo 303
Orígenes 60, 120, 128, 145, 204, 232, 289, 324, 337, 351, 356, 364, 375, 384
Oseias, profeta 29, 130, 184, 396, 407

Pamáquio, são 59
Pantene 374
Paoli, Angiolo 164
Papias 21, 113, 364, 374, 378-9, 385, 391
Parrot, André 270
Pascal, Blaise 207
Pasolini, Pier Paolo 53
Paulo VI, papa 403
Paul, André 405, 412
Paulo, são 10, 11, 20, 52, 62, 64-5, 71, 93, 126, 133, 141, 152, 215-7, 229, 244,
246, 255, 268, 271, 293, 316, 324, 339-42, 354, 358-9, 361, 366-7, 373-9,
384, 393, 395, 400-2, 413-6
Perrier, Pierre 370
Perrot, Charles 14, 74
Petrônio 349
Pettau, Victorino de 392
Fasaelia 95, 157
Filemon 359
Filipe, apóstolo 21, 55, 73-4, 77, 80, 91-2, 109, 138, 140, 162, 173-5, 207, 219,
354-6, 358, 385-8, 394
Filipe, diácono 376
Filipe, Tetrarca 28, 43-4, 73, 94, 101, 110, 156, 166, 178, 240
Fílon de Alexandria 234, 236, 257, 334, 381, 413
Filopono de Alexandria, João 291
Filóstrato, Flávio, chamado o Ateniense 349-50
Flégon de Trales 290
Pia, Secondo 302, 419-20
Pio XI, papa 403
Pedro, são 20, 54, 61, 67, 73-4, 77, 80-1, 91, 101-6, 108, 111, 136-9, 141-2,
162, 166, 169, 173-4, 177-9, 200, 208-9, 211-4, 216, 218, 223, 225, 229,
231, 250, 254, 261, 269, 296, 309-12, 316, 318-21, 349-50, 352-6, 358-63,
366-8, 371, 373-4, 377-9, 384-5, 390-1, 393, 395, 402, 417-8
Pilatos, Pôncio 10, 19, 22n, 28, 44, 122, 198-9, 201, 221, 230-1, 234-66, 274-5,
277, 279, 286, 291, 295-6, 302, 305-7, 312-3, 321-2, 341, 343-6, 353, 389,
399, 401-2
Pinès, Shlomo 345
Pinkerfeld, Jacob 212
Pixner, Bargil 15, 36, 58, 212
Platão 172, 347, 361
Plauto 265
Plínio, o Velho 85, 346, 409
Plínio, o Jovem 19, 346
Plutarco 265
Poletto, Severino 427
Policarpo 291, 384
Polícrates 20, 386, 391
Pompeu, general 42, 49, 85n, 238, 409
Popeia Sabina, segunda mulher de Nero 343, 347
Porfírio 289
Pourrat, Olivier 286
Prieur, Jerôme 18
Ptolomeu II 40
Ptolomeu IV 40
Puech, Émile 15, 33n, 121, 412, 415
Pitágoras 10, 347, 349

Quirino, Públio Sulpício 44, 198, 247, 335-7

Ramelli, Ilaria 348


Ramos, Teresa, 428
Ramsey, Christopher Bronk 424
Ratzinger, Joseph, ver Bento XVI
Refoulé, François 61
Reimarus, Hermann S. 12
Renan, Ernest 12-3, 16-7, 131, 284, 413
Ricci, msr 428
Richardson, Peter 76
Rigato, Maria-Luisa 264, 298
Riggi, Giovanni 300
Rinaudo, Jean-Baptiste 314
Roberts, Colin H. 386
Robinson, Woolwich John Arthur Thomas 364, 367-8, 389, 391
Roboão 63, 138
Rodante, Sebastiano 256, 299
Rogers, Raymond N. 23, 424
Rolland, Philippe 14, 364, 369
Rubens 273
Rufo, Ânio, filho de Simão de Cirene 236, 268, 365

Zadoque 33, 409


Saint-Prix 430
Salomé, mulher de Zebedeu 137, 175, 212, 278, 308
Salomé, filha de Herodíade ou Herodias 156, 240
Salomé, irmã de Herodes, o Grande 43
Salomão 33, 39, 63, 83-4, 86, 88, 104, 112, 138, 191-2, 384, 409
Sansão 29
Samuel, Mar Athanase 406
Samuel, profeta 27, 47
Sanders, E. P. 14
Sargão II 39, 100
Sartre, Maurice 46
Saturnino, Sêntio 336
Sawicki, Marianne 45
Sbalchiero, Patrick 164
Schein, Bruce 397
Schlosser, Jacques 14, 19, 72
Schnabel, Peter 331
Ben-Chorin, Schalom 17, 231, 276-7, 282, 397, 404
Schweitzer, Albert 13
Sejano 239-41, 261, 322
Sêneca 271-2
Serafim de Sarov 179
Serapião, bispo de Antioquia 352
Seth, pai de Anás 198, 225
Shamai 136, 148, 151, 370
Silas 359
Siliato, Maria Grazia 423
Simeão, ou Simão, filho de Maria de Cléofas ou Clopas 60-1, 63-4, 76, 142, 144,
177, 278, 280, 323-5, 376
Simeão, filho de Shetah 272
Simão, o Cananeu 138
Simão de Cirene 196, 268, 285, 295, 365
Simão, filho de Camith 198
Simão, filho de Onias III 33, 409
Simão, o Leproso [ou o Piedoso] 137, 139, 203
Simão Macabeu, o escravo 41, 43, 247
Sócrates 10-1, 115, 210, 347-8
Sofonias, profeta 289
Espártaco 122, 272
Stanton, Graham 372, 415
Steinmann, Jean 35-6
Storme, Albert 270
Strauss, David Friedrich 10, 12, 381
Suetônio 19, 347
Sukenik, Eleazar L. 15, 406
Susana 137
Simeão, ancião “justo e piedoso” 340

Tácito 19, 44, 234, 242, 272, 346-8


Tassot, Dominique 423
Tiglate-Phalazar III, rei assírio, ou Tiglate-Pileser 58, 74-5
Tertuliano 128, 204, 244, 289-91, 321, 324, 327, 336, 402
Tadeu 138-40, 418
Talo 290
Thebutis 324
Theissen, Gerd 14, 45, 137, 166
Teodolinda ou Teodolina 417
Théodore de Bèze 360
Théodrade 428
Teófilo, filho de Anás 225
Teresa de Lisieux, santa 419
Teudas 27
Thiede, Carsten Peter 414
Tomás de Aquino, são 260
Tomás, são ou Tomé 15, 21, 109, 138, 140, 193-4, 219, 273, 285, 318, 352-4,
356, 382, 385-7, 394
Thurston, Herbert 164
Tibério, imperador 10, 27-8, 44, 46, 73, 153, 157, 226, 234-41, 249-50, 259,
262, 277, 290-1, 302, 305, 321-2, 346-7
Timóteo 246, 359, 414
Tito 359
Tito Lívio 401
Tito, imperador 189, 287, 344, 364
Tobias 62, 138, 415
Trajano, imperador 64n, 346, 384-5, 392
Trematore, Mario 427
Tresmontant, Claude 367
Trifão 66, 402

Ugolotti, Piero 303


Ulpien 264
Urias 63

Vaganay, Léon 362


Valentim 353-4, 356n Valtorta, Maria 16
Van Cauwelaert, Didier 429
Van Oosterwyck-Gastuche, Marie-Claire 429
Varo, Públio Quintílio 44, 57, 247, 272
Vaux, Roland Guérin de 15, 408, 411-2
Venard, Olivier-Thomas 396
Vergy, Jeanne 419
Vermes, Geza 14
Verônica 269
Vespasiano, imperador 64, 75, 109, 344, 364-5, 410
Vial, Gabriel 297
Vianney, João Maria, são 164
Vítor, papa 386
Vignon, Paul 420
Vigny, Alfred de 207
Villalain, José 428, 430
Vicente de Beauvais 352
Leonardo da Vinci 426
Virgílio 361
Vitélio 157, 198, 241
Varazze, Jacopo de 205

Waddington, W. G.292
Waheeb, Mohammed 51
Walker, Christopher 332
Whanger, Alan D. 301, 306, 314, 426, 430
Whanger, Mary 301

Zacarias, pai de João Batista 28, 48, 50, 65, 94, 324, 368
Zacarias, profeta 28, 52, 116, 189, 207, 341
Zaqueu 137, 352
Zebedeu 103
Zorobabel 74, 83, 85n
Zugibe, Frederick T. 301
Zuínglio Ulrico 61
1 Hilel, o Ancião: no primeiro século da era cristã, é considerado o maior sábio
do período do Segundo Templo. [N. T.]
2 “Sans-culotte”: denominação dada pelos aristocratas aos artesãos,
trabalhadores e até pequenos proprietários participantes da Revolução
Francesa. [N. T.]
3 Tréguier: capital histórica de Treg, localizada na região da Bretanha, na
França. [N. T.]
4 São chamados sinópticos os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, porque,
diferentemente daquele de João, apresentam numerosas analogias, e podem
ser lidos em paralelo, em sinopse (em grego: “sob um mesmo olhar”).
5 Conteúdo essencial da fé anunciado e transmitido pelos primeiros cristãos.
6 Khirbet Qumran: o “sítio da manhã cinzenta”, a um quilômetro e meio da
margem noroeste do Mar Morto. [N. T.]
7 Mar da Galileia. [N. T.]
8 Como esta obra foi concebida para um público amplo, achei preferível
acrescentar em documento anexo a análise técnica das fontes.
9 Kanôn, em grego, significa “caniço”. Dessa palavra, foi extraído o significado
de “medida” ou de “regra de verdade”.
10 Também conhecido como lago Tiberíades ou mar da Galileia. [N. T.]
11 Ver, no documento anexo III, a descoberta muito interessante feita por um
especialista em grego antigo, o abade Pierre Courouble: latinismos típicos
figuram nas palavras pronunciadas em grego por Pôncio Pilatos, prova de
que essas palavras foram anotadas muito cedo pelo discípulo bem-amado de
Jesus e prova, igualmente, de que, de maneira mais geral, João utiliza um
cuidado especial para registrar os propósitos que ele ouviu e não inventá-los,
como pensa a escola de Bultmann, em função das situações da comunidade na
qual ele se insere. Isto não nos impede de pensar que o testemunho de João
tenha sido meditado e reescrito, num contexto de compreensão pós-pascal.
1 Espécie extinta de hominídeo. [N. T.]
2 Era que começa em 754 antes de Cristo com a fundação de Roma.
3 Região que pertencia, com a Galileia, à tetrarquia de Herodes Antipas.
4 Essa coleção de tradições orais jurídico-religiosas compiladas, cerca do ano
200 da nossa era, contém muitos ensinamentos e prescrições que remontam
aos séculos precedentes.
5 A escatologia é a doutrina dos fins derradeiros, os que anunciam o destino
último do homem depois de sua vida terrestre.
6 Texto de discussões e de interpretações escritas em hebraico no século II
antes de Jesus Cristo. Faz parte do que se chama de escritos
intertestamentários.
7 Daí surge o nome “sepulcros caiados”, que Jesus atribuirá aos fariseus: puros
no exterior, impuros no interior.
8 A identificação entre Simão e o “Mestre da Justiça”, proposta pelo padre
Émile Puech, é a hipótese mais provável.
9 Que evoca ou espera o fim do mundo. O Apocalipse (“revelação” ou
“manifestação”, em grego) é, como se sabe, uma obra de são João
Evangelista, que fazia parte do Novo Testamento. Integra um gênero literário
teológico particular, utilizado por autores judeus da Antiguidade para
enunciar as palavras proféticas em geral sob a forma de visões.
1 Esse nome, de início utilizado pelos gregos para designar de maneira restrita
a “terra dos Filisteus” (Peleshet em hebraico), depois retomado pelos
romanos, não aparece na Escritura, mas designa habitualmente a partir da
segunda metade do século I da nossa era a região bíblica no sentido amplo,
de um lado e do outro do Jordão. No século II, a região se tornará a
província romana da Síria-Palestina. Em sua extensão máxima, ela perfazia
não mais de 20.000 km2.
2 Iavé ou Javé, nome que Deus mesmo se deu em presença de Moisés no
arbusto ardente, que corresponde ao tetragrama YHWH. A raiz hebraica da
palavra vem da terceira pessoa do verbo hayah (ser, yiheye.) Essa palavra é
traduzida como: “Eu sou Aquele que é” ou “Eu sou Aquele que sou”. Deus se
define na Bíblia como o Ser incriado, transcendente por toda a eternidade, o
Ser por excelência. Em lugar do tetragrama, voluntariamente
impronunciável, os judeus dizem Adonai, “Senhor” (a combinação dos dois
nomes dará Yeovah ou Jeová).
3 Miriam em hebraico. [N. T.]
4 A localização do sepulcro de Herodes, o Grande, foi encontrada em maio de
2007, por arqueólogos israelenses no meio da encosta da vertente nordeste
do Herodium, palácio situado a sudeste de Belém.
5 A soberania de Roma.
6 Imposto devido à profissão, indústria ou comércio. [N. T.]
7 Em sentido amplo, a Lei escrita: os cinco livros do Pentateuco (Gênesis,
Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), os Profetas e os diversos livros
que compunham as Escrituras judaicas.
8 Não confundi-la com a aldeia de mesmo nome, próxima à Jerusalém, onde
viveram Marta, Maria e seu irmão Lázaro.
1 Que confere uma natureza unicamente divina a Jesus. As Igrejas católica,
ortodoxa e protestante, que, diferentemente das Igrejas ortodoxas orientais
(copta, síria, ortodoxa, armênia…), são partidárias das decisões do concílio
da Calcedônia (451), reconhecem em Jesus uma dupla natureza, humana e
divina, indissoluvelmente ligadas. Jesus é, então, para a imensa maioria dos
cristãos, ao mesmo tempo um “verdadeiro homem” e um “verdadeiro Deus”.
Sua plena e inteira humanidade impede de perceber nele uma simples
aparência humana (tese da heresia do docetismo). Para os teólogos, Jesus é o
Filho de Deus, não criado, preexistente a todos os séculos, e ao mesmo tempo
um ser humano que recebeu uma alma ao nascer.
2 A Páscoa tem uma duração de oito dias. [N. T.]
3 Observar que o Catequismo da Igreja católica reafirma ainda, na atualidade, a
“virgindade real e perpétua de Maria” (Paris, Mame, 1992, n. 499-500).
4 Esse Simeão ou Shimeão morreu muito idoso. Eusébio de Cesareia disse que
ele foi crucificado no reinado de Trajano (98-117), durante a legação de
Atticus (homem de Attica) na Judeia (entre 100 e 107). Com seu irmão mais
velho, Tiago, e o evangelista João, o “discípulo bem-amado”, morto em Éfeso
provavelmente em 101 (“sessenta e oito anos depois da ressurreição de Nosso
Senhor”, diz são Jerônimo; “morto de velhice sob o reinado de Trajano”, diz
Irineu), ele foi aquele que melhor informou o último redator do evangelho de
Mateus e de Lucas, o autor do terceiro evangelho, que se vangloria de ter
conduzido uma investigação com “testemunhas oculares e ministros da
palavra” (Lucas, 1, 2).
1 Não confundir os rabis, mestres versados no estudo das Escrituras na época
de Jesus, com os rabinos da época talmúdica, chefes de culto que receberam
a semikha (uma espécie de ordenação que se fazia no início por imposição
das mãos, depois pela entrega de um diploma).
1 Conta-se que Pompeu, curioso por descobrir o segredo da religião judaica e
seu ídolo desconhecido, tinha entrado com a espada na mão no santo dos
santos e ficado surpreendido ao encontrar somente uma sala vazia. Tratava-se
então do templo de Zorobabel, mas o templo de Herodes, o Grande, tinha
conservado a mesma disposição dos locais.
2 O shekel é a principal moeda utilizada nos Estados Palestinos. [N. T.]
3 Concessão estranha ao culto de ídolos: essa moeda de Tiro estava gravada
com a figura de um deus sírio: Melkart (Héracles)!
4 Assembleia legislativa tradicional do povo judaico, sua Suprema Corte. [N.
T.]
5 Para conhecer os problemas de datação do evangelho de João, ver o
documento anexo III.
6 Observamos, entretanto, que, para alguns exegetas, esse já era um “batismo
trinitário”, visto que era realizado segundo as instruções de Jesus. O
historiador, naturalmente, não pode entrar nesse debate teológico.
1 O poço ainda existe, na entrada de Nablus, no interior de uma igreja ortodoxa
que sucedeu a uma igreja dos tempos dos cruzados e, antes dela, a uma
construção que data do século IV. Com uma profundidade de cerca de 30m,
ele é ainda utilizado.
2 Na Samaria, a cevada fica madura no final de abril ou começo de maio. O
trigo candial só amadurece três semanas mais tarde.
3 Peixes que podem sair da água e percorrer longas distâncias na terra. [N. T.]
4 Atualmente, ainda, a Igreja católica e algumas Igrejas orientais ou
protestantes atuam invocando o nome de Jesus Cristo em exorcismos de casos
considerados como possessões diabólicas, casos extremos que escapam
também aos diagnósticos médicos habituais (histeria, doenças
psicossomáticas…) e aos tratamentos da psiquiatria. Sem ir até os excessos
dos filmes de Hollywood consagrados a esse tema, cenas espetaculares,
fenômenos inexplicáveis são relatados por exorcistas modernos, aos quais se
atribui o serviço de libertar os seres afligidos por esses terríveis sofrimentos
(existe um exorcista por diocese). Ver especialmente os testemunhos do
padre René Chenesseau (Journal d’un prêtre-exorciste, Éd. Bénédictines, Saint-
Benoît-du-Sault, 2007) ou do padre Gabriele Amorth (Confessions. Mémoires
de l’exorciste officiel du Vatican, Neuilly-sur-Seine, Michel Lafont, 2010).
Sobre a questão do Mal, ver a síntese do monsenhor René Laurentin, Le
Démon, mythe ou réalité?, Paris, Fayard, 1995.
5 Nome afetuoso dado a um rabi, um mestre.
1 Mateus, preocupado em não nomear a divindade, segundo o costume
judaico, prefere falar do “reino dos céus”.
2 O local chamado “a baía das parábolas” oferece uma acústica excelente, como
foi verificado.
3 Na Israel antiga, as semeaduras eram realizadas antes de se lavrar a terra, o
que explica que os grãos se perdessem nos caminhos ou nos maciços de ervas
daninhas: tudo, em seguida, era revolvido.
4 Ou seja, Deus.
5 Uma milha equivale a cerca de 1.475m. Aqui Jesus faz alusão a uma
requisição militar.
6 No caso, a negação diante do causativo semítico pode significar, de acordo
com o contexto: ou “não nos faça entrar”, ou “faça com que não entremos em
tentação”. Deus, para Jesus, não podia ser o autor do mal, é a segunda
fórmula que deve ser aplicada.
1 Era então um judeu rigorista, mas certamente não um “zelote”, no sentido de
um combatente pela libertação de Israel; esse movimento violentamente
nacionalista ainda não existia naquele tempo.
2 É preciso, também, não confundi-lo com Tiago, o Justo, filho de Maria de
Cléofas, chamado o “irmão do Senhor”, que não fazia parte dos Doze.
3 Os cintos dos viajantes judeus tinham uma dobra que servia de bolsa.
1 Um artífice ou construtor em madeira ou pedra. [N. T.]
2 Nem toda a aristocracia de Jerusalém fazia parte dos saduceus. Outro grupo,
ainda menos conhecido, era o dos boetusianos. A qual linhagem, a que escola
de pensamento pertencia João Evangelista, sacerdote e aristocrata de
Jerusalém? O fato é que jamais ele cita os saduceus no seu evangelho. Sua
casa ficava próxima do bairro essênio de Jerusalém, mas ele certamente não
pertencia a essa corrente religiosa. Com efeito, não recusava nem as
instituições do Templo, nem o seu calendário litúrgico. Parece que ele tinha,
preferencialmente, uma disposição favorável aos fariseus. Sabia-se que era
benevolente com o fariseu Nicodemos e que frequentava Marta, Maria e
Lázaro, fariseus da Betânia. Vimos também que talvez tenha tomado parte na
delegação enviada para interrogar João Batista, antes de juntar-se a ele. Ora,
essa delegação era composta de fariseus.
3 Literalmente os “cinco estojos”: Gênese, Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronômio.
4 A poligamia (um marido que tem várias esposas ao mesmo tempo) havia sido
aceita desde o início de Israel; a poliandria (uma mulher que tem vários
maridos ao mesmo tempo), jamais.
5 Os filactérios, usados pelos judeus religiosos, existem desde sempre na
religião judaica. São faixas estreitas de pergaminho sobre as quais estão
inscritos os preceitos mais importantes da Lei. Eles estão encerrados em
pequenas caixas quadradas, fixadas na testa e no antebraço esquerdo.
6 Em grego antigo Geenna, transcrição da locução hebraica Gê-Hinnom,
designava o sinistro vale de Hinnom, às portas de Jerusalém, considerado
como o local do inferno e do suplício dos mortos condenados pela justiça
divina. Ali eram queimadas continuamente as imundícies e as carcaças de
animais.
7 Por causa de uma razão mais forte. [N. T.]
8 “Àqueles que são casados, eu prescrevo, não eu, mas o Senhor: que a mulher
não se separa de seu marido —, mas se ela se separar dele, que ela não se
case, ou que ela se reconcilie com seu marido — e que o marido não deixe
sua mulher” (primeira Carta aos Coríntios, 7, 10-11). Casar-se de novo,
naturalmente, só era proibido enquanto o cônjuge estivesse vivo.
1 Sobre a provável genealogia dos evangelhos sinópticos, ver o documento
anexo II.
2 Essas palavras de Jesus na sinagoga de Cafarnaum dão origem a grandes
debates entre os exegetas. João não as reescreveu no ambiente de uma leitura
pós-pascal, expressando com isso uma verdade religiosa e não histórica? Mas
como compreender a profunda crise de confiança que se seguiu? Se João não
relatou palavra por palavra dessa conversa, podemos ter certeza de que,
como sempre, ele não inventa, não mente. O que ele narra está perfeitamente
situado no tempo e no espaço: “Jesus disse essas coisas quando ensinava na
sinagoga de Cafarnaum” (João 6, 59). Podemos pensar que, nos evangelhos,
há algumas retroprojeções pós-pascais, mas elas permanecem limitadas no
seu conjunto.
3 Será que foi porque a Xa legião romana “Fretensis”, estacionada na Síria,
tinha um javali no alto de suas insígnias que os evangelistas deram a esses
demônios o nome de “Legião”?
4 Para grande número de exegetas, a expressão “Filho de Deus” utilizada por
Pedro, seria uma profissão de fé pós-pascal.
1 Setembro ou outubro dependendo do ano.
2 Cada côvado equivale a 66cm. [N. T.]
1 Eles servirão de modelos para os relicários cristãos.
2 O homem que, segundo os evangelhos sinópticos, foi obrigado pelos soldados
romanos a carregar a cruz de Jesus Cristo até o Gólgota, o local onde Jesus
Cristo foi sacrificado. [N. T.]
3 A data é sábado, 8 de Nisã (28 de março do ano 33).
4 O que confirma que devemos considerar que é Simão, o religioso, e não
Simão, o leproso, nos evangelhos de Mateus e de Marcos.
1 A tradição da gruta da Agonia não parece histórica.
2 Sem querer optar pela cronologia de João ou pela dos evangelhos sinópticos,
José Ratzinger/Bento XVI diz que esse episódio é “a versão de João do relato
do monte das Oliveiras” (Jésus de Nazareth, t.II. Monaco: Le Rocher, 2011,
p.95). Esse nome duplo que o papa Bento XVI utilizou para assinar a obra
tem como objetivo assinalar que ele intervém enquanto exegeta e teólogo
particular, e absolutamente não em nome do magistério romano do qual está
encarregado.
3 Primitivamente, a colina de Sião, que correspondia à antiga cidade de Davi,
ficava situada sobre a pequena colina a sudeste de Jerusalém. Provavelmente,
era lá que ficava a tumba do grande rei de Israel.
4 Irmandades. [N. T.]
1 Ver anexo III.
1 Festa na qual os senhores e escravos trocavam de papéis entre si. Sacas eram
uma tribo nômade iraniana. [N. T.]
2 Seriam as palavras que Pilatos teria dito em latim, ao apresentar Jesus Cristo
aos judeus. [N. T.]
3 TEB = Tradução Ecumênica da Bíblia. [N. T.]
1 Ver documento anexo II.
1 Também conhecido no Brasil e em Portugal como São Longuinho. [N. T.]
1 Faixas e não tiras estreitas, como dizem algumas traduções: nós não estamos
no Egito!
2 Nome pelo qual eram conhecidos os cristãos que viviam em território
muçulmano. [N. T.]
3 Para os teólogos, não se trata de uma simples saudação judaica, shalom, mas
da paz messiânica prometida por ele antes da sua morte.
4 Existe uma relação com Cléofas, irmão de José e tio de Jesus? Nessa
hipótese, seu companheiro de viagem seria talvez seu filho, Tiago, o Justo.
Não sabemos. Cléofas, nome grego, é abreviação de Cleopatros, que significa:
célebre por seu pai.
1 Eles foram, então, os primeiros adeptos do “adocionismo”, que considerava
Jesus como um homem comum, adotado por Deus por ocasião de seu
batismo.
2 Para se desembaraçar de qualquer veleidade desse tipo, ele tinha mandado
queimar os arquivos judaicos que continham as indicações genealógicas.
1 Lembrar que Christos (Cristo) é o equivalente, em grego, de mashiah
(messias) em hebraico, aquele que recebeu a Unção.
2 Evangelho Egerton, também chamado de O Evangelho Desconhecido. [N. T.]
3 Seita gnóstica dos séculos II e III, próxima de Valentim e de Marcião, cujos
membros abstinham-se de comer carne de animais e de beber vinho, e
condenavam o casamento como uma abominação.
1 Primeira epístola aos tessalonicenses, aos gálatas, a Filemon, aos filipenses,
aos romanos, a primeira e a segunda aos coríntios (essas epístolas são
unanimemente reconhecidas pelos críticos como provenientes de Paulo. Para
as outras, há discussão).
2 Retorno do Cristo na glória esperada no final dos tempos.
1 A simbólica cristã, que encontramos, por exemplo, nos mosaicos da basílica
de São Vital (em Ravenna, na Itália), associa o homem a são Mateus, o leão a
são Marcos e o touro a são Lucas.
2 É o que fica ressaltado da combinação do texto de Eusébio com o Cânone de
Muratori, do qual vamos falar em seguida.
3 Aquilo que precede, repetimos, é apenas uma hipótese. Numerosos autores
atribuem ao evangelho de João uma data mais tardia e um local de
composição em Éfeso. É verdade que o capítulo XXI foi, talvez, escrito após o
ano 70. Observamos, no entanto, que o contexto de parusia próxima evocada
(“Se eu quero que ele fique até que eu venha”, diz Jesus a Pedro, a propósito
de João, “o que te importa a ti? Quanto a ti me segue”, João 21, 22) se
adapta melhor a uma data próxima da morte de Pedro (por volta do ano 65).
Seja como for, um fato permanece: o indubitável valor histórico do
testemunho do discípulo bem-amado ao longo de todo o evangelho.
1 Hassidianos ou chassidianos, grupo de judeus religiosos que resistiram
quando o rei selêucida da Síria, Antióquio IV Epifânio, e seus sucessores
(século II a.C.) quiseram impor aos judeus o culto de seus deuses.
2 “N” maiúsculo. [N. T.]
1 Como a Imagem de Edessa é conhecida na Igreja Ortodoxa. [N. T.]
2 Do grego: imagem não feita pela mão do homem. [N. T.]
1 Revista católica internacional. [N. T.]
2 SJ, em latim, Societa Iesu, Companhia de Jesus. [N. T.]
3 Local de pesquisa e de debate para a Igreja e a sociedade. [N. T.]
4 Associação internacional de fiéis de direito pontífice. [N. T.]

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