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JOÃO

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Original em inglês:
New Testament Commentary: John

Author: William Hendriksen

TRADUTOR: CARLOS BIAGINI

Baker Book House

Grand Rapids, Michigan

1981
João (William Hendriksen) 2
CONTEÚDO

Abreviaturas
Introdução
I. Escritor, data, lugar
II. Leitores e propósito
III. Características
IV. Gramática
V. Tema e divisões

I. ESBOÇO DOS CAPÍTULOS 1–6


JOÃO 1
Jo 1:1–5
Jo 1:6-13
Jo 1:14-18
Jo 1:19-28
Jo 1:29-34
Jo 1:35-42
Jo 1:43-51
JOÃO 2
Jo 2:1-11
Jo 2:12-22
Jo 2:23-35
JOÃO 3
Jo 3:1-21
Jo 3:22-36
JOÃO 4
Jo 4:1-26
Jo 4:27-42
Jo 4:43-54
João (William Hendriksen) 3
JOÃO 5
Jo 5:1-18
Jo 5:19-30
Jo 5:31-47
JOÃO 6
Jo 6:1-21
Jo 6:22-31
Jo 6:32-40
Jo 6:41-59
Jo 6:60-65
Jo 6:66-71

II. ESBOÇO DOS CAPÍTULOS 7–10


JOÃO 7
Jo 7:1-5
Jo 7:6-13
Jo 7:14-24
Jo 7:25-29
Jo 7:30, 31
Jo 7:32-36
Jo 7:37-39
Jo 7:40-44
Jo 7:45-52
JOÃO 8
Jo 7:53 – 8:11
Jo 8:12-20
Jo 8:21-29
Jo 8:30-38
Jo 8:39-59
João (William Hendriksen) 4
JOÃO 9
Jo 9:1-7
Jo 9:8-12
Jo 9:13-17
Jo 9:18-23
Jo 9:24-34
Jo 9:35-38
Jo 9:39-41
JOÃO 10
Pontos básicos da alegoria do Bom Pastor
Jo 10:1-5
Jo 10:6-21
Jo 10:22-42

III. ESBOÇO DOS CAPÍTULOS 11, 12


JOÃO 11
Observações acerca da ressurreição de Lázaro
Jo 11:1-16
Jo 11:17-37
Jo 11:38-44
Jo 11:45-57
JOÃO 12
Jo 12:1-11
Observações sobre a entrada triunfal em Jerusalém
Jo 12:12-19
Jo 12:20-36a
Jo 12:36b-43
Jo 12:44-50
João (William Hendriksen) 5
IV. ESBOÇO DO CAPÍTULO 13
JOÃO 13
Jo 13:1-20
Jo 13:21-30
Jo 13:31-38

V. ESBOÇO DOS CAPÍTULOS 14–17


JOÃO 14
Jo 14:1-11
Jo 14:12-24
Jo 14:25-31
JOÃO 15
Pontos básicos acerca da videira e os ramos
Jo 15:1-11
Jo 15:12-17
Jo 15:18-27
JOÃO 16
Jo 16:1-15
Jo 16:16-24
Jo 16:25-33
JOÃO 17
Observações acerca do Capítulo 17
Jo 17:1-5
Jo 17:6-19
Jo 17:20-26
João (William Hendriksen) 6
VI. ESBOÇO DOS CAPÍTULOS 18, 19
JOÃO 18
Jn 18:1-11
Jn 18:12-40
JOÃO 19
Jo 19:1-16
Jo 19:17-37
Jo 19:38-42

VII. ESBOÇO DOS CAPÍTULOS 20, 21


JOÃO 20
Jo 20:1-10
Jo 20:11-18
Jo 20:19-23
Jo 20:24-31
JOÃO 21
Observações preliminares sobre o João 21
Jo 21:1-14
Jo 21:15-25

Bibliografia Seleta

Bibliografia Geral
João (William Hendriksen) 7
ABREVIATURAS
As letras que correspondem a abreviaturas de livros são seguidas de
pontos. As que indicam abreviaturas de revistas omitem os pontos. Desta
forma pode-se distinguir imediatamente se a abreviatura refere-se a um
livro ou a uma publicação periódica.

A. Abreviaturas de livros

B.D.B. Brown-Driver-Briggs, Hebrew and English Lexicon to the


Old Testament
D.C.G. Hastings, Dictionary of Christ and the Gospels.
Gram. N.T. A. T. Robertson, Grammar of the Greek New Testament
in the Light of Historical Research.
H.B.A. Hurlbut, Bible Atlas (última edición).
I.S.B.E. International Standard Bible Encyclopedia
L.N.T. Thayer’s Greek-English Lexicon of the New Testament
N.N. Novum Testamentum Graece, editado por D. Eberhard Nestle
y D. Erwin Nestle (última edición).
S.BK. Strack and Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament aus
Talmud und Midrasch.
Th.W.N.T. Theologisches Wörtenbuch zum Neuen Testament (editada
por G. Kitt).
W.D.B. Westminster Dictionary of the Bible
W.H.A.B. Westminster Historical Atlas to the Bible

B. Abreviaturas de revistas

AJTh American Journal of Theology


ChrC Christian Century.
ClW Classical Weekly.
CQR Church Quarterly Review.
João (William Hendriksen) 8
CThM Concordia Theological Monthly.
EQ Evangelical Quarterly
ExT Expository Times.
GThT Gereformeerd Theologisch Tijdschrift.
HJ Hibbert Journal.
HThR Harvard Theological Review.
JBL Journal of Biblical Literature.
JThS Journal of Theological Studies.
PThR Princeton Theological Review.
RThPh Revue de Thèologie et de Philosophie.
ThG Theologie und Glaube.
VD Verbum Domini.
WE Watchman-Examiner.
ZNTW Zeitschrift fur die neutestamentl. Wissenschaft.
João (William Hendriksen) 9
INTRODUÇÃO AO EVANGELHO SEGUNDO JOÃO
I. Escritor, data, lugar

O Evangelho segundo João é o livro mais extraordinário que jamais


se escreveu. “Tira os teus sapatos de seus pés; porque o lugar onde estás
é santo”. Bem poderia ser esta a atitude de qualquer pessoa que pisa no
umbral de estudo deste livro; porque se o seu testemunho é verdadeiro,
então a fé em Jesus Cristo como o Filho de Deus recebeu uma
confirmação gloriosa. Logo se verá a razão desta afirmação.
O livro nos diz que, evidentemente nos dias do imperador Tibério e
do tetrarca Herodes Antipas, vivia na Palestina um judeu (Jo 4:19),
chamado Jesus, que afirmava que era o dono legítimo de todas as coisas,
o Pão da vida, a Água Viva, o Bom Pastor que daria Sua vida por Suas
ovelhas, Aquele que ressuscitaria os mortos no último dia, o próprio
Messias, o Caminho a Deus, o objeto legítimo da fé e a adoração, uma
pessoa tão completamente divina em todos os sentidos, que podia dizer:
“Eu e o Pai somos um”.
Isto é, na verdade, assombroso. Mas ainda mais maravilhoso é isso:
o escritor do livro aceita estas afirmações como verdadeiras! Ao “Jesus
da história” ele atribui os títulos mais exaltados. Chama-o o Verbo
(Logos) de Deus, e nos diz que este Verbo tinha estado “com Deus”
desde a eternidade, habitando na presença imediata do Pai. Ousadamente
o escritor incluso O chama Deus, e isso no primeiro versículo! Para o
escritor, Jesus não é em nada menos do que diz ser. O Deus feito carne
(Jo 1:1, 14).
Quem é este escritor que aceita tais afirmações e faz tão
extraordinárias declarações? É acaso um estrangeiro que vive num país
afastado do cenário que descreve, de forma que a distância lhe deu certo
encanto ao seu relato? Ou talvez escreve muito tempo depois dos
eventos, e por isso o “herói” da história se transformou gradualmente
João (William Hendriksen) 10
num operador de milagres, e, logo, em rigorosa obediência às leis da
lenda e do folclore, chegou a longo prazo a ser um deus? Justamente o
contrário! O escritor do quarto Evangelho aparece como alguém que
pertence à mesma raça, tronco e família que seu “herói”. Apresenta-se
como contemporâneo e testemunha ocular (Jo 21:24; cf. 1Jo 1:1–4). Não
só pertence ao amplo círculo dos seguidores do Mestre, mas também
segundo a tradição é também um dos doze, e dentro desse grupo de doze
é um dos três (Mc. 5:37; 9:2; 14:33). Mas até no caso de que alguém
pusesse reparos a estas citações dos Sinóticos e quisesse limitar-se tão
somente ao quarto Evangelho, deveria admitir que nele se considera o
escritor como um dos dois primeiros discípulos (Jo 1:35, 40). Esta é a
conclusão lógica a que se chega, a menos que se adote a improvável
opinião de que o discípulo sem nome em Jo 21:24 é alguém distinto do
discípulo anônimo em Jo 1:35, 40. E, destes dois, ele é aquele que se
descreve a si mesmo como o discípulo “a quem Jesus amava” (Jo 13:23).
Ninguém conheceu Jesus melhor que ele. Andou com ele dia após
dia e, portanto, teve oportunidades de sobra para observar as faltas de
seu caráter e os defeitos de sua personalidade, se os tivesse tido. Na noite
mais sagrada de todas, a noite da Ceia, reclinou-se em Seu peito.
Permaneceu junto à Sua cruz. Chegou, inclusive, a entrar no sepulcro (Jo
13:25; 19:26; 20:8). E, contudo, é este mesmo discípulo aquele que,
como escritor do quarto Evangelho, não se retrai de proclamar
abertamente a todos que este Jesus da história a quem ele conheceu tão
bem, é o próprio Deus!
E não só isto, mas também já no primeiro capítulo apresenta-nos a
outras testemunhas oculares. Diz-nos que aqueles homens ficaram tão
profundamente impressionados em seu primeiro encontro com Jesus que
deram expressão a seus pensamentos e emoções da seguinte maneira:
André: “Achamos ao Messias”.
Filipe: “Achamos aquele de quem Moisés escreveu na lei, e a quem
se referiram os profetas”.
João (William Hendriksen) 11
Natanael: “Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!” (Jo
1:41, 45, 49).
A isto podemos acrescentar o testemunho de João Batista que
também fica registrado no primeiro capítulo:
“Não sou digno de desatar-lhe as correias das sandálias.… Eis o
Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo! … tenho testificado que
ele é o Filho de Deus” (Jo 1:27, 29, 34).
Os que se opõem ao ponto de vista tradicional não podem permitir
que este testemunho se mantenha incólume. Notam perfeitamente que se
não acreditarem nele não perderam não só uma batalha mas também toda
a guerra. E bem, o que é que a Alta Crítica pode apresentar para sacudir
tal testemunho? Como tentam provar os anticonservadores que o quarto
Evangelho não foi escrito por uma testemunha ocular e contemporânea;
e que o apóstolo João não o escreveu na Ásia Menor, como diz a
tradição? Seus argumentos podem-se resumir da seguinte maneira: 1

1
Qualquer um que ler os seguintes livros — uma seleção dentre centenas de obras escritas a respeito
deste tema — poderá ver tanto os argumentos dos críticos como as respostas que deram os que
sustentam o ponto de vista tradicional com relação à paternidade literária do Quarto Evangelho.
Agradecemos a todos os seguintes:
Albright, W. F., From the Stone Age to Christianity, Baltimore 1940, especialmente pp. 298–300.
Andrews, Mary E., “The Authorship and Significance of the Gospel of John”, JBL 64 (1945), 183–
192.
Bacon, B. W., The Fourth Gospel in Research and Debate, Nova York, 1910.
Bernard, J. H., A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel according to St. John, 2
volumes (em International Critical Commentary), Nova York, 1929.
Burney, C. F., The Aramaic Origin of the Fourth Gospel, Oxford, 1922, especialmente pp. 126–
152.
Dods, M., The Gospel of St. John en The Expositor’s Greek Testament, reimpresión, Grand
Rapids, Michigan, sem data, vol. I, especialmente pp. 655–681.
Gardner-Smith, Percival, St. John and the Synoptic Gospels, Cambridge, 1938.
Godet, F., Commentary on the Gospel of John, 2 volumes, Nova York, 1886.
Goguel, M., Le Quatriéme Evangile, Paris, 1924.
Goodenough, E. R., “John a Primitive Gospel”, JBL 64 (1945), 145–182.
Grosheide, F. W., Johannes (en Kommentaar op het Nieuwe Testament), 2 volumes, Amsterdam,
1950, especialmente vol. I, pp. 1–42.
Hoskyns, E. C., The Fourth Gospel, 2 volumes, Londres, 1940.
Howard, W. F., The Fourth Gospel in Recent Criticism and Interpretation, Londres, 1945.
João (William Hendriksen) 12
(1) João, o apóstolo, morreu muito cedo para ter escrito um
Evangelho em Éfeso a fins do primeiro século de nossa era. Evidência:
No Codex Coislinianus, Paris 305, que é um dos manuscritos das
crônicas de Georgius Hamartolus, monge do nono século, diz-se que,
segundo Papias, o apóstolo João e seu irmão Tiago morreram como
mártires. Sabemos que Tiago morreu, por ordem de Herodes Agripa no
ano 44 ou antes, e que Pedro sobreviveu (At. 12). Portanto, se João
também morreu em data tão anterior, não pôde ter escrito o quarto
Evangelho. Prova: o escritor desse Evangelho sobreviveu inclusive a
Pedro (Jo 21:18–24). Esta é a essência do primeiro argumento.
As passagens importantes do códice antes mencionado são os
seguintes (notem-se as palavras que pusemos em itálico):
“Depois de Domiciano, Nerva reinou um ano. Foi ele quem chamou
João da ilha e lhe permitiu que vivesse em Éfeso. Naquele tempo ele era
o único dos doze apóstolos que restava com vida, e depois de compor o
Evangelho que leva seu nome foi julgado digno de sofrer o martírio.
(Papias, bispo do Heriápolis, que o conhecia pessoalmente, diz em seu
segundo livro dos) Oráculos do Senhor que morreu às mãos dos judeus.
Desta forma, junto com seu irmão, cumpriu claramente a profecia de

Howard, W. F., Christianity According to St. John, Filadelfia, 1946, especialmente pp. 11–33;
también su recensión de The Fourth Gospel, de Hoskyns, JThS 42 (1941), 75–81.
Luthardt, C. E., St. John the Author of the Fourth Gospel. Edimburgo, 1875.
Menoud, P. H., L’évangile de Jean d’apres les recherches recentés, Neuchatel e Paris, 1943.
Nunn, H. P. V., The Fourth Gospel, An Outline of the Problem and Evidence, Londres, 1946.
Redlich, E. B., An Introduction to the Fourth Gospel, Londres, 1939.
Roberts, C. H., An Unpublished Fragment of the Fourth Gospel, Manchester, 1935.
Robertson, A. T., John, in Word Pictures, Nueva York y Londres, 1932, vol. V, especialmente pp.
ix–xxvii (Introdução).
Robinson, J. A., The Historical Character of St. John’s Gospel, Londres e Nova York, 1908.
Sanday, W., The Authorship and Historical Character of the Fourth Gospel, Londres, 1872.
Sanday, W., The Criticism of the Fourth Gospel, Oxford, 1905.
Scott, E. F., The Fourth Gospel, Its Purpose and Theology, Edimburgo, 1906.
Strachan, R. H., The Fourth Evangelist, Dramatist or Historian?, Londres, 1925.
Streeter, B. H., The Four Gospels, Nova York, 1925.
Taylor, Vincent, “The Fourth Gospel and some Recent Criticism”, en Contemporary Thinking
About Jesus, editado por T. S. Kepler, Nova York e Nashville, 1944, pp. 99–106.
João (William Hendriksen) 13
Cristo: ‘… do cálice que eu bebo, bebereis; e do batismo de que eu sou
batizado, sereis batizados’. E isto, naturalmente, deve ser assim porque
Deus não pode pronunciar nada falso. Em sua exegese de Mateus, o
douto Orígenes também admite o martírio de João apoiando-se na
informação recebida dos sucessores dos apóstolos. Além disso, o grande
historiador Eusébio diz em sua História Eclesiástica: ‘Pártia caiu em
sorte a Tomé; Ásia a João. Ali viveu, morrendo em Éfeso’ ”.
Notemos, em primeiro lugar, que embora este manuscrito afirme
que, segundo Papias, João morreu nas mãos dos judeus, outros
manuscritos deste autor dizem que descansou em paz.
Em segundo lugar, este relato não diz sequer que João e Tiago
sofreram o martírio ao mesmo tempo.
E por último, também segundo este testemunho, o apóstolo João
aparece vivendo em Éfeso depois de sua volta de Patmos, e morrendo ali
depois de ter escrito o Evangelho que leva o seu nome.
Por conseguinte, o que achamos é isso: que os críticos, em sua
intenção de refutar a posição segundo a qual o apóstolo João escreveu o
quarto Evangelho, recorrem a um documento que afirma explicitamente
que pelo menos este elemento do ponto de vista tradicional é correto!
Em relação ao “martírio” de João e Tiago existe outro manuscrito
(Baroccianus 142), que foi publicado por C. De Boor (Texte un
Untersuchungen vol. 2, p. 170) e que apresenta um epítome da obra de
Philippus Sideto, historiador da igreja que se destacou a princípios do
quinto século. Neste manuscrito diz-se o seguinte:
“Papias, bispo do Hierápolis, discípulo de João, o Teólogo e
companheiro de Policarpo, escreveu cinco livros de oráculos do Senhor
… Em seu segundo livro Papias diz que João, o Teólogo e seu irmão
Tiago morreram nas mãos dos judeus”.
Existem também antigos calendários da igreja nos quais se
comemoram juntos o martírio de João e de Tiago.
João (William Hendriksen) 14
Quanto a isso, segue tendo validez o minucioso argumento de J. A.
Robinson, The Historical Character of St. John’s Gospel, Londres e
Nova York, 1908, pp. 64–80. Sua conclusão é esta:
“Não há suficiente evidência para duvidar seriamente da tradição
universal da igreja, que sustenta que o apóstolo João morreu em paz em
Éfeso a uma idade muito avançada. Atribuir a Papias a afirmação de que
os judeus mataram a João e a seu irmão Tiago é algo que tem um apoio
muito fraco. Não se pode conceber que, se Papias realmente disse isso,
nem Irineu, nem Eusébio, nem outros que tinham lido Papias, o
mencionassem. E, por outro lado, não é difícil explicar que erroneamente
se atribuísse a Papias tal afirmação devido a uma interpretação pouco
cuidadosa. Tampouco se pode apoiar essa única contradição da tradição
geral no fato de que em algumas ocasiões se denomine o apóstolo como
mártir, e que apareça como tal nos calendários da igreja. A palavra
mártir é o vocábulo normal grego para testemunha, e no princípio não se
empregava só para os que selavam seu testemunho com seu sangue”.
Tampouco devemos esquecer que nos escritos antigos se confunde
às vezes a várias pessoas chamadas João. E o mesmo se pode dizer
referente a Tiago. Se Papias disse “João e Tiago”, pôde ter-se referido a
João Batista e/ou a Tiago, o filho de Zebedeu, ou a Tiago, o irmão do
Senhor. Este último, segundo Josefo e Eusébio, certamente “morreu em
mãos dos judeus”. Sabemos, pelo menos, que Sideto não citou a Papias
corretamente, visto que o título O Teólogo não foi aplicado ao apóstolo
João até muito mais tarde. Por certo que Papias não o usou. Daí que toda
essa “citação” comece a adquirir um matiz duvidoso. Leria realmente
Sideto a Papias, ou foi Eusébio sua fonte original, quem, não obstante,
tinha lido mal? Certamente que não se lhe pode outorgar o qualificativo
de erudita uma hipótese (referente ao escritor do quarto Evangelho)
tirada de uma citação corrompida — se pode chamar-se citação — das
palavras de um escritor (Papias, segundo se crê) com reputação pouco
inteligente”, citação que os críticos acharam num resumo tardio da obra
de um historiador um tanto incompetente.
João (William Hendriksen) 15
Quanto aos calendários da igreja, num antigo martirológio
cartaginês achamos o seguinte:
Dec. 25 viii Kal. Jan. Domini nostri Jesu Christi, filii Dei.
Dec. 27 vi Kal. Jan. sancti Johannis Baptistae, et Jacobi Apostoli,
quem Herodes occidit.
Também aqui Tiago e João se comemoram juntos, mas o João a
quem se faz referência é João Batista! Num antigo martirológio siríaco
“João e Tiago, os apóstolos em Jerusalém” aparecem unidos. Quanto a
isto somos da mesma opinião do W. M. Ramsay: “O fato de que Tiago e
João, que não foram sacrificados juntos, se comemorassem juntos,
constitui a prova mais frágil que se pode conceber de que João morreu
desde cedo em Jerusalém”. O fato de que Tiago e João se
comemorassem juntos pode ser devido a que se destacavam entre os
Doze e eram irmãos e a uma má interpretação da profecia de Cristo em
Mc. 10:39 com relação a eles.
(2) Já a princípios do quarto século se rejeitava a teoria de que o
apóstolo João tivesse escrito o quarto Evangelho; ou seja, por Eusébio
quem cita uma frase de Papias na qual este último menciona a dois
Joãos, o segundo dos quais não era o apóstolo, e sim um ancião
(presbítero). Eusébio deduz disto que o “ancião” João foi aquele que
escreveu o Evangelho. Este é, essencialmente, o argumento de E. R.
Goodenough, “John a Primitive Gospel”, JBL 64 (1945), p. 148.
Mas o que aqui diz-se sobre Eusébio não é nem sequer verdade, 2
porque tal historiador nunca disse que “o ancião” João (diferente do
apóstolo João) escrevesse o Evangelho! Eusébio cria firmemente que o
apóstolo João foi o evangelista. Devemos reconhecer que é lamentável
que Eusébio inventasse um personagem de ficção. Estamos de acordo
com a opinião de T. Zahn: “Sem entrar em longas discussões pode-se
dizer que o presbítero João é um produto da fraqueza crítica e exegética
de Eusébio” (The New Schaff-Herzog Encyclopedia of Religious

2
Cf. R. P. Casey, “Prof. Goodenough and the Fourth Gospel”, JBL 64 (1945), 535–542.
João (William Hendriksen) 16
Knowledge, art. “John the Apostle”). Não há indícios históricos que
indiquem que este personagem existisse jamais. No entanto, os críticos
têm escrito página após página sobre esta nebulosidade; p. ex. B. H.
Streeter, The Four Gospels, Nova York, 1925, cap. 14.
As palavras de Papias que intrigaram Eusébio são estas: “E não
vacilarei em acrescentar às interpretações tudo o que aprendi e lembro
bem dos anciãos, pois confio em sua veracidade. Porque, ao contrário de
muitos, eu não me alegro nos que falam muito, mas nos que ensinam a
verdade, nem nos que repetem os mandamentos de outros, mas nos que
reiteram os que o Senhor deu para a fé e que se derivam da própria
verdade. Mas se alguma vez viesse alguém que tivesse seguido os
anciãos, eu investigava as palavras dos anciãos, o que haviam dito André
ou Pedro ou Filipe ou Tomé ou Tiago ou João ou Mateus, ou qualquer
outro dos discípulos do Senhor, e o que diziam Aristião e o ancião João,
os discípulos do Senhor” (Eusébio, História eclesiástica, III, xxxix, 3–
4).
A interpretação mais natural destas palavras de Papias pareceria ser
a que reconhecesse em ambos os casos o mesmo João (que também se
chama a si mesmo “o ancião” em duas epístolas do Novo Testamento
conhecidas usualmente como 2ª. de João e 3ª. de João). Se levarmos em
conta que, segundo a tradição, o apóstolo João viveu até uma idade
muito avançada, sobrevivendo a todos os outros discípulos, não será
difícil compreender por que Papias, depois de ter incluído primeiro a
João no grupo dos discípulos, volta a mencioná-lo: aquele que havia dito
certas coisas durante a vida dos outros discípulos, continuava dizendo-as
depois da morte deles.
Mas Eusébio era da opinião que Papias se referia a dois Joãos, o
primeiro dos quais foi o apóstolo e escritor do quarto Evangelho,
enquanto que o segundo (o “ancião”) foi o escritor do livro do
Apocalipse. Eusébio estava claramente influenciado por Dionísio (200–
265) na questão do escritor do Apocalipse, e os argumentos que este
último apresenta com tanta força contra o critério tradicional merecem
João (William Hendriksen) 17
um cuidadoso estudo embora não se esteja de acordo com suas
conclusões. E nós não o estamos. Deviam-se, em parte, estas conclusões
à sua aversão ao milenialismo que sempre se amparava em Apocalipse
20? Sobre este particular consulte-se a N. B. Stonehouse, The
Apocalypse in the Early Church, p. 151. Mas para o propósito que agora
nos ocupa, nossa pergunta é esta: Segundo Eusébio, quem escreveu o
quarto Evangelho? A resposta é dada claramente em seu comentário
sobre as palavras de Papias que acabamos de citar. Eusébio as interpreta
deste modo (tenham-se em conta as palavras que pusemos em itálico):
“Aqui é preciso observar que menciona duas vezes o nome de João,
e une o primeiro João com Pedro e Tiago e Mateus e os outros
apóstolos, dando claramente a entender que é o evangelista, mas ao
mudar sua asserção coloca ao segundo com os que estão fora do
número dos apóstolos, pondo a Aristião antes que ele e chamando-o com
toda clareza de ancião. Isto confirma a veracidade do relato dos que têm
dito que na Ásia havia dois personagens com o mesmo nome, e que há
duas tumbas em Éfeso que ainda continuam considerando-se de João.
Isto é importante: porque é provável que o segundo (a menos que alguém
prefira o primeiro) visse a Revelação que existe com o nome do
Apocalipse de João (Eusébio, op. cit., III, xxxix, 5–6)”.
Assim, pois, está claro que Eusébio considera que o segundo ou
“ancião” João foi aquele que provavelmente escreveu o livro de
Apocalipse. Não obstante, é importante insistir em que ele considerava
que João o apóstolo era o evangelista, o escritor do quarto Evangelho.
E volta a expressar esta mesma convicção o III, xxiv, 5.
Portanto, este recurso dos críticos de apelar a Papias fracassa bem
como os outros. A fonte de onde os críticos tiram seu recurso confirma o
critério tradicional.
(3) Os alogoi, uma seita herética de ao redor do ano 170 d.C.
atribuíam o quarto Evangelho e o Apocalipse a Cerinto. Vê-se daí que
João (William Hendriksen) 18
inclusive em tão anterior data se duvidava da paternidade joanina do
Evangelho. 3
Tampouco este argumento é tão formidável como parece. Atribuir a
Cerinto um Evangelho que proclama em voz alta a divindade de Jesus e
a encarnação do Verbo ou Logos é um absurdo, porque estes eram
precisamente os artigos de fé que este herege negava. É como se
atribuíssemos a um papa o Comentário de Lutero sobre Gálatas! Os
alogoi, como insinuou Epifânio ao lhes dar este nome, eram os ilógicos
oponentes do Evangelho do Logos, e os rejeitadores irracionais da
Razão pessoal e divina.
A teoria desta seita, embora absurda, contém um elemento de valor:
demonstra, ao menos, que estes hereges reconheciam a muito anterior
data da origem do quarto Evangelho, pois, segundo a tradição, João e
Cerinto foram contemporâneos. E se o quarto Evangelho é tão antigo, os
críticos devem seguir enfrentando-se com o insolúvel enigma que se
apresenta nas primeiras páginas deste comentário.
(4) A cristologia deste Evangelho é muito avançada para ter sido
escrita por um discípulo da primeira geração. 4
Mas isto não é nem sequer um argumento. É uma afirmação gratuita
feita quando falta toda prova. E além disso, muito bem se poderia
perguntar: Acaso a cristologia de Paulo é inferior? Leia-se Cl. 2:9 ou Fp.
2:6, ou aquela extraordinária passagem de Rm. 9:5 aquele que, apesar de
seus esforços, os críticos nunca conseguiram eliminar como texto de
prova da divindade de Cristo. E, por outro lado, é inferior a cristologia
dos Sinóticos? Leia-se Mt. 11:27–28.
(5) Não há desenvolvimento ou progresso nos eventos tal como se
relatam aqui. Jesus é o Messias, o Filho de Deus, desde o princípio. Sua
morte é tramada quase desde o princípio. É difícil crer que um dos Doze

3
Veja-se, p. ex., M. Goguel, Le Quatrieme Evangile, Paris, 1923, pp. 161, 162.
4
Cf. E. F. Scott, The Literature of the New Testament, Nova York, 1940, p. 242.
João (William Hendriksen) 19
escrevesse desta forma. Isto é, além disso, o oposto do que se vê nos
Sinóticos.
Este argumento não faz justiça aos fatos.
a. Não só no quarto Evangelho mas também nos Sinóticos se
reconhece a Jesus como o Messias desde o princípio. Nestes últimos é
João Batista o primeiro em reconhecê-lo (Mc. 1:7, 8) e também os
demônios (Mc. 1:24, 34; 3:11); e no primeiro é João Batista, André,
Filipe e Natanael (capítulo 1).
b. O fato de que o reconhecimento de Jesus como Messias e Filho
de Deus receba mais ênfase no quarto Evangelho que em nenhum outro
sítio deve-se ao propósito que o escritor perseguia, como diz em Jo
20:30, 31: “… para que creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus”.
De uma grande quantidade de fatos o escritor seleciona com cuidado
tudo o que concorda com o propósito que anunciou. Com frequência
omite o que os sinóticos já disseram. (Veja-se II da Introdução).
c. Se Jesus é realmente ou Messias, ou Filho do Deus, e se sua
aparição já desde ou princípio não podia deixar de causar assombro e
espanto (cf. Mc. 1:27, 28), então não é “difícil crer que um dos Doze
escrevesse desta forma”.
d. Há, no entanto, um progresso no reconhecimento de Jesus como
Messias e Filho de Deus. Os discípulos veem mais de “sua glória” em Jo
2:11 que no capítulo 1; e se não, para que se mencionaria isso em Jo
2:11? Não podemos também pensar que no princípio seu conceito do
ofício messiânico era, até certo ponto, nacionalista e terrestre? Mas
quando, por causa do milagre da multiplicação dos pães e os peixes,
Jesus derruba as esperanças das multidões mostrando claramente que Ele
não era um Messias a seu gosto, de maneira que “muitos já não andavam
com ele” (Jo 6:66), Simão Pedro, em resposta à pergunta do Mestre:
“Quereis também vós outros retirar-vos?” replica: “Senhor, para quem
iremos? Tu tens as palavras da vida eterna; e nós temos crido e
conhecido que tu és o Santo de Deus” (Jo 6:67–69).
João (William Hendriksen) 20
Esta confissão, sob tais circunstâncias, deve-se considerar como um
passo à frente. Mostra um progresso real, embora isto não exclua os
momentos posteriores de recaída na dúvida e na ignorância. Em Jo 16:30
aparece outra confissão dos discípulos, ainda mais significativa: “Agora,
vemos que sabes todas as coisas e não precisas de que alguém te
pergunte; por isso, cremos que, de fato, vieste de Deus”. Aqui, por um
momento, ao menos, a brilhante luz do dia irrompe por entre as nuvens
da tristeza e da ignorância. Os discípulos começam a reconhecer a Jesus
como Filho de Deus no sentido ontológico.
A gloriosa exclamação de Tomé: “Senhor meu e Deus meu!” (Jo
20:28), deve-se examinar à luz de todo o contexto precedente (Jo 20:24–
27), no qual o Cristo ressuscitado revela Sua onisciência (cf. Jo 16:30).
Mas mesmo esta adoração é imperfeita, conforme o demonstra
claramente Jo 20:29. O quarto Evangelho manifesta que mais adiante,
em e depois de Pentecostes, dar-se-ia um maior conhecimento referente à
pessoa e obra de Cristo. Lemos:
“Tenho ainda muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar
agora; quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a
verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver
ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir” (Jn 16:12, 13).
À luz desta passagem podemos dizer com razão que o Evangelho
segundo João é primordialmente um Evangelho de progresso e
desenvolvimento.
À luz da mesma passagem vê-se claramente que a cúspide quanto à
confissão da divindade de Cristo se alcança naquelas manifestações — p.
ex., o Prólogo, Jo 1:1–18 — nas quais o evangelista, com olhar
retrospectivo da posição vantajosa do período posterior ao Pentecostes,
expressa sua própria crença com relação ao Logos. É completamente
certo que não existe no quarto Evangelho uma cristologia mais alta que a
que se encontra em Jo 1:1–5, 14, 18. Mas estas passagens estão fora do
relato como tal. Não se podem usar para provar a teoria de que não há
progresso na narração.
João (William Hendriksen) 21
Existe, pois, um progresso na narração, como acabamos de
demonstrar. No entanto, devem-se distinguir cuidadosamente quatro
coisas: a. a consciência messiânica de Jesus, b. seu autorrevelação, c. o
reconhecimento e a confissão dos discípulos do ofício messiânico e a
divindade de Jesus e d. a fé do escritor do livro.
Quanto à primeira, a consciência messiânica, não se registra no
quarto Evangelho nenhuma classe de desenvolvimento. Devemos levar
em conta que este Evangelho não descreve a infância de Jesus. Mas se,
segundo os Sinóticos (Lucas 2:49), à idade de doze anos Jesus já é
consciente de que Deus é Seu Pai, não é de admirar que em João é
apresentado falando e agindo com divina majestade desde o começo.
Com relação à segunda, sua autorrevelação — veja-se H. N.
Ridderbos, Zelfopenbaring en Zelfverberging, Kampen, 1946, pp. 66–69;
e também G. Vos, The Self-disclosure of Jesus, Nova York, 1926 —
devemos admitir a dificuldade do problema. É evidente que enquanto
nos Sinóticos a ênfase recai na ocultação de Cristo, em João, de acordo
com o propósito de seu Evangelho, acentua-se a autorrevelação. No
primeiro e segundo capítulos (Jo 1:51; 2:19) não se pode considerar que
esta autorrevelação seja tão avançada como nos capítulos posteriores.
Mais adiante Jesus aparece com frequência no ato de revelar Seu ofício
messiânico e Sua divindade. Mas o significado total desta doutrina não
se pode descobrir até que o Espírito Santo foi derramado (Jo 16:12, 13).
O mesmo se pode dizer com relação a outras doutrinas que se referem à
pessoa e a obra do Senhor (Jo 13:7).
Com relação ao terceiro, a confissão dos discípulos, já se indicou o
progresso que este Evangelho registra.
E quanto ao quarto, a posição do próprio escritor, como é natural
permanece invariável em todo o livro.
e. Também existe no quarto Evangelho um progresso e
desenvolvimento quanto ao plano para dar morte a Jesus. Mais uma vez
deve levar-se em conta que o escritor desfruta da grande vantagem da
perspectiva histórica. Ao escrever muitos anos depois dos eventos aos
João (William Hendriksen) 22
que se está referindo, pode discernir a flor no casulo, quer dizer, o fim
desde o princípio.
Deste modo João pode ver que o propósito de matar a Jesus se
estabeleceu nas mentes e nos corações dos dirigentes judeus
imediatamente depois da suposta violação do sábado quando curou o
homem de Betesda e chamou a Deus como Seu Pai (Jo 5:18). Na festa
dos Tabernáculos estes dirigentes fizeram uma inútil tentativa de prender
Jesus (Jo 7:32). Mais adiante os judeus tomaram pedras para apedrejá-Lo
(Jo 8:59). A reunião oficial do Sinédrio na qual se pede a imediata
execução de Jesus, vem um pouco mais tarde em consequência da
ressurreição de Lázaro e da grande fama que Jesus adquiriu por ela.
Então um corpo oficial faz os planos numa reunião também oficial (Jo
11:47–53; cf. Jo 12:10, 11). Depois vem o processo (capítulo 18), e os
judeus entregam Jesus nas mãos dos gentios. Em tudo isso o relato
oferece progresso e desenvolvimento.
(6) Se os Sinóticos foram escritos por (ou se baseiam nos informes
de) testemunhas oculares, então é impossível crer que o apóstolo João
ou qualquer outra testemunha ocular escrevesse o quarto Evangelho,
visto que as diferenças são muito grandes e numerosas.
Nós respondemos:
a. Não há contradição na doutrina.
Nunca se pôde demonstrar que existem diferenças doutrinais entre
os Sinóticos e João. O enfoque, como é natural, é diferente. Os Sinóticos
assinalam que este homem chamado Jesus, o profeta de Nazaré, é o
Messias, o Filho de Deus. O quarto Evangelho ensina que o Filho de
Deus fez-se carne. Ambas as ideias se enlaçam belamente.
b. O esquema geral dos acontecimentos é o mesmo em ambos os
casos.
Ambos apresentam o ministério de João Batista. Ambos mostram a
Jesus como Aquele que prega a grandes multidões e opera milagres.
João (William Hendriksen) 23
Em ambos, Jesus alimenta a cinco mil e anda sobre a água. Em
ambos Se separa das multidões, que O rejeitaram, e Se dedica a ensinar a
Seus discípulos.
Em ambos entra em Jerusalém triunfante e é ungido em Betânia.
Em ambos aparece participando de uma comida com Seus discípulos,
durante a qual indica que Judas é o traidor.
Em ambos exorta a Seus discípulos contra a deserção, e a seguir
entra no jardim. Segue, em ambos, a prisão e o processo diante de (Anás,
em João, e logo) Caifás. Também se relata em ambos a negação de Pedro
e o processo diante de Pilatos. Ambos narram que a cruz foi levada por
Jesus, a crucificação, a vigília das mulheres e a visita delas à tumba de
onde tinha ressuscitado o Senhor.
Tem-se às vezes tentado reduzir a semelhança entre João e os
Sinóticos a dois grandes grupos de pensamento: o material conteúdo em
João 6, e a história da Semana Santa que começa no capítulo 18. Mas
isso não é justo. Em primeiro lugar a semelhança entre João 1:32, 33 e
Marcos 1:10 é assombrosa. Por outro lado, a unção em Betânia e a
entrada triunfal se relatam em João 12; e ambos os acontecimentos
aparecem nos Sinóticos (Mc. 14; Mt. 21; Mc. 11; Lc. 19). Achamos o
marco histórico dos eventos relacionados com a Ceia e com os discursos
durante a Ceia nos Sinóticos; cf. Mc. 14:12–18. Portanto, qualquer um
que não tenha fechado a mente à probabilidade de que os Sinóticos e
João se referem à mesma Ceia, se dará conta de que o material que se
acha nos capítulos 13–17 deste último Evangelho encaixa
maravilhosamente na estrutura dos outros. Nem sequer há conflito entre
o Primeiro Ministério na Judeia, Jo 2:12–4:42, o Último Ministério na
Judeia, Jo 7:1–10:42, e o que se encontra nos Sinóticos. Acaso não
sugere Mt. 23:37–39 um extenso ministério na Judeia? Não ensina Lc.
4:44, segundo o texto dos melhores manuscritos, que Jesus pregava nas
sinagogas da Judeia? Veja-se também Lc. 5:17, que pressupõe que os
fariseus e os doutores da lei se inteiraram da obra de Cristo na Judeia. E
João (William Hendriksen) 24
reciprocamente, não se vê em João 2:12, 4:43–54, e o capítulo 6, que o
quarto Evangelho deixa lugar para a atividade de Cristo na Galileia?
c. As “palavras de Jesus” tal como estão registradas nos Sinóticos
não são, absolutamente, incompatíveis com as registradas no quarto
Evangelho.
Os Sinóticos diferem em muitos aspectos do quarto Evangelho,
como indicamos mais abaixo. Isto se nota também nas frases e discursos
de Jesus. Mas as diferenças não são fundamentais. O tom das palavras e
os discursos atribuídos a Jesus em João, não é incompatível com o tom
que lhes é dado nos Sinóticos. E para que o argumento dos críticos tenha
valor deve-se provar que não só existem diferenças, mas também que há
incompatibilidade. Vejamos o que achamos na seguinte lista: (as citações
são da Almeida Revista e Atualizada, 1998).

Jn 3:3: “A isto, respondeu Jesus: Mt. 18:3: “Em verdade vos digo que, se
Em verdade, em verdade te digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes
se alguém não nascer de novo, tornardes como crianças, de modo algum
não pode ver o reino de Deus”. entrareis no reino dos céus”.

Jn 3:5: “…quem não nascer da água Mc. 10:23: “Quão dificilmente


e do Espírito não pode entrar no entrarão no reino de Deus os que
reino de Deus”. têm riquezas!”

Jn 4:35: “Eu, porém, vos digo: Mt. 9:37, 38: “A seara, na verdade, é grande,
erguei os olhos e vede os campos, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, pois,
pois já branquejam para a ceifa”. ao Senhor da seara que mande trabalhadores
para a sua seara”.

Jn 3:35; 10:15; 14:6: “O Pai ama ao Mt. 11:27, 28: “Tudo me foi entregue por
Filho, e todas as coisas tem confiado meu Pai. Ninguém conhece o Filho, senão
às suas mãos. … o Pai me conhece a o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o
a mim, e eu conheço o Pai … Eu sou Filho, e aquele a quem o Filho o quiser
o caminho, e a verdade, e a vida; revelar. Vinde a mim, todos os que estais
ninguém vem ao Pai senão por mim”. cansados e sobrecarregados, e eu os
aliviarei”.
João (William Hendriksen) 25

Jn 5:8: “Levanta-te, toma o teu leito Mc. 2:9: (em outra ocasião):
e anda”. “Levanta-te, toma o teu leito e anda”.

Jn 5:35, 36: “Ele (João Batista) era Mt. 11:11: “Em verdade vos digo: entre
a lâmpada que ardia e alumiava, .… os nascidos de mulher, ninguém apareceu
Mas eu tenho maior testemunho do maior do que João Batista; mas o menor no
que o de João”. reino dos céus é maior do que ele”.

Jn 5:39: “Examinai as Escrituras, Lc. 24:44, 45: “…importava se cumprisse


porque julgais ter nelas a vida eterna, tudo o que de mim está escrito na Lei de
e são elas mesmas que testificam de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Então,
mim”. lhes abriu o entendimento para
compreenderem as Escrituras”.

Jn 6:20: “Sou eu. Não temais!”. Mc. 6:50: “Tende bom ânimo! Sou eu.
Não temais!”.

Jn 6:44, 46: “Ninguém pode vir a Mt. 11:27, 28, citado acima.
mim se o Pai, que me enviou, não o
trouxer; e eu o ressuscitarei no último
dia … Não que alguém tenha visto
o Pai, salvo aquele que vem de Deus;
este o tem visto”.

Jn 8:12; 12:36: “Eu sou a luz do Mt. 5:14–16: “Vós sois a luz
mundo … Enquanto tendes a luz, do mundo … Assim brilhe também a
crede na luz, para que vos torneis vossa luz diante dos homens, para que
filhos da luz”. vejam as vossas boas obras e glorifiquem
a vosso Pai que está nos céus”.

Jn 12:25: “Quem ama a sua vida Lc. 9:24: “Pois quem quiser salvar
perde-a; mas aquele que odeia a a sua vida perdê-la-á; quem perder a vida
a sua vida neste mundo por minha causa, esse a salvará”.
preservá-la-á para a vida eterna”.
João (William Hendriksen) 26
Jn 12:27: “Agora, está angustiada a Mt. 26:37, 38: “…começou a
minha alma, e que direi eu? Pai, entristecer-se e a angustiar-se.
salva-me desta hora? Mas Então, lhes disse: A minha alma está
precisamente com este profundamente triste até à morte”.
propósito vim para esta hora”. Cf. também Lucas 12:50.

Jn 13:16, 20: “Em verdade, em


verdade vos digo que o servo não é Mt. 10:24, 40: “O discípulo não está acima
maior do que seu senhor, nem o do seu mestre, nem o servo, acima do seu
enviado, maior do que aquele que senhor … Quem vos recebe a mim me
o enviou. … quem recebe aquele recebe;e quem me recebe recebe aquele
que eu enviar, a mim me recebe; que me enviou”.
e quem me recebe recebe aquele
que me enviou”. Cf. Jn 15:20.

Jn 13:38: “Em verdade, em verdade Mt. 26:34: “Em verdade te digo que,
te digo que jamais cantará o galo nesta mesma noite, antes que o galo
antes que me negues três vezes”. cante, tu me negarás três vezes”.

É verdade que nos Sinóticos Jesus fala com frequência por meio de
parábolas, enquanto no quarto Evangelho não é assim. Mas é realmente
estranho que Aquele que pronunciou aquelas palavras sobre o reino em
João 3:3–5 propusesse as parábolas do reino? E deve-se considerar como
impossível a figura do Bom Pastor de João 10 na boca dAquele que disse
a parábola da Ovelha Perdida em Lucas 15?

Lc. 15:3–6: “Então, lhes propôs Jesus


esta parábola: Qual, dentre vós, é o homem
que, possuindo cem ovelhas e perdendo uma
Jn 10:27, 28: “As minhas ovelhas delas, não deixa no deserto as noventa e nove
ouvem a minha voz; eu as conheço, e vai em busca da que se perdeu, até
e elas me seguem. Eu lhes dou a vida encontrá-la? Achando-a, põe-na sobre os
eterna; jamais perecerão, e ninguém ombros, cheio de júbilo. E, indo para casa,
as arrebatará da minha mão”. reúne os amigos e vizinhos, dizendo-lhes:
Alegrai-vos comigo, porque já achei a
minha ovelha perdida”.
João (William Hendriksen) 27
d. Tampouco em assuntos secundários se pôde demonstrar que o
quarto Evangelho esteja em contradição com os Sinóticos.
Baseando-se em João 13:1, 29 e 18:28 tem-se dito que o quarto
Evangelho contradiz os Sinóticos, os quais ensinam claramente que
Jesus comeu a Páscoa na época normal (Mc. 14:12; Lc. 22:7). Mas seria,
certamente, muito raro que a Ceia descrita em João 13, que se distingue
de uma forma tão notável e em conexão com a qual ocorrem tantos
acontecimentos importantes, não fosse a ceia normal da Páscoa que se
comia na quinta-feira de noite de 14 de Nisã. Na realidade a combinação
(versículo 1): “Antes da festa da Páscoa” seguida de (versículo 2):
“Durante a ceia”, parece assinalar que a ceia aqui indicada é
precisamente a ceia da Páscoa. Quando se argumenta que, segundo Nm.
28:16, 17, esta ceia da Páscoa é seguida de sete dias de festa, e em
especial da jubilosa Festa da Páscoa (o Chagigah do 15 de Nisã), dá-se
uma solução para explicar a última cláusula de Jo 18:28 que, seja qual
for seu valor, é pelo menos mais razoável que a teoria que sustenta que o
quarto Evangelho dedica tanto espaço — cinco capítulos! — e dá tanta
importância à uma ceia que presumem que se celebrou precisamente na
noite anterior à grande ceia da Páscoa.
Segundo João 19:14 era como a sexta hora quando Pilatos tirou
Jesus, e se sentou no tribunal num lugar chamado Gabatá. Segundo Mc.
15:25 era a terceira hora quando crucificaram a Jesus. Tampouco nisso
há contradição. Uma solução lógica seria esta: João mede o tempo
segundo o sistema romano, e ao contar as horas começa à meia-noite e
ao meio-dia, tal como nós fazemos hoje (D.C.G., art. “Hour” * ). Por
conseguinte, quando diz “como a sexta hora”, significa um período entre
6:00 e 6:30 da manhã. O evangelista Marcos, por sua vez, mede o tempo
com o sistema judeu, e portanto nos diz que Jesus foi crucificado
aproximadamente três horas depois da saída do sol. Não apenas não há
contradição, mas ao adotar-se esta solução ficam esclarecidas outras

*
D.C.G. Hastings, Dictionary of Christ and the Gospels.
João (William Hendriksen) 28
passagens do quarto Evangelho. Veja-se a explicação de Jo 1:39; 4:6, 52,
53.
(7) Vejamos alguns argumentos secundários que em geral são de
caráter subjetivo e portanto não é necessário refutá-los minuciosamente:
a. Um verdadeiro judeu não podia ter escrito tão depreciativamente
a respeito dos judeus, apresentando-os como os próprios inimigos de
Deus, Jo 5:18; 7:1; 9:22. Ademais, não teria empregado a terceira pessoa
para referir-se a eles. Resposta: Quando João escreveu este Evangelho, a
nação judaica tinha rejeitado o Cristo. Além disso, os primeiros em ler
este livro eram, em sua maioria, cristãos gentios. É, pois, completamente
natural que ao escrever para eles, o escritor usasse a terceira pessoa ao
referir-se aos judeus.
b. Um discípulo de Jesus não teria atribuído a Jesus o mesmo estilo
de expressão que ele emprega. Resposta: Embora seja difícil determinar,
às vezes, onde exatamente acaba Jesus e começa João (p. ex., Jo 3:16–
20; 12:44–50), isto não nos deveria surpreender. Devemos levar em
conta que o escritor é o discípulo a quem Jesus amava. Estava tão
compenetrado com Jesus que começou a pensar como Ele, a falar igual a
seu Mestre, e a escrever com o mesmo estilo.
c. Se o apóstolo João escreveu o livro de Apocalipse, não pôde,
então, ter escrito o Evangelho visto que os dois diferem muito não só nos
conceitos mas também nas características linguísticas.
Para algumas sugestões a respeito de como resolver este problema
que admitimos ser difícil, consulte-se nosso livro Más que vencedores,
Grand Rapids, MI, reimpresso 1977, pp. 5ss. Tudo o que desejamos
dizer aqui sobre este assunto é que, quando vivia em Éfeso e escreveu o
Evangelho, João pôde ter tido alguns ajudantes que, sob a direção do
Espírito Santo e submetidos à aprovação final do apóstolo quem assumia
toda a responsabilidade, influíram, até certo ponto, no estilo e no
vocabulário do livro. Cf. Jn 21:24. A ausência destes ajudantes quando
escreveu o Apocalipse pode explicar em parte as diferenças linguísticas
(cf. A. T. Robertson, Word Pictures in the New Testament, Nova York e
João (William Hendriksen) 29
Londres, 1932, vol. V. p. xix). De qualquer maneira, a menos que se
conheçam perfeitamente as circunstâncias em que foram escritos ambos
os livros, é muito arriscado afirmar de forma tão categórica que quem
escreveu o Apocalipse não pôde ter escrito o quarto Evangelho.
Já se teme dito o bastante para indicar a inadequação dos
argumentos dos críticos.
Supondo que o Evangelho de São João fosse o último a ser escrito e
que seu propósito é distinto do dos Sinóticos, resolvemos, ao menos em
grande parte, o problema principal.
Segundo a informação que o próprio Evangelho proporciona, o
escritor era:
(1) Judeu:
a. Isto se depreende de seu estilo. Veja-se IV da Introdução e nota
14.
b. Também se deduz de seu perfeito conhecimento do Antigo
Testamento, que pode citar tanto do hebraico como da Septuaginta.
Vejam-se as seguintes passagens: Jo 2:17; 10:34, 35; 12:40; 13:18;
17:12; 19:24, 28, 36, 37.
c. É corroborado por suas referências às crenças religiosas judaicas
(e samaritanas), especialmente com relação ao Messias: Jo 1:41, 46, 49;
4:25; 6:15; 7:27, 42; 12:34.
d. Ele manifesta o fato de que o escritor está a par da situação
política e religiosa da Palestina: Jo 4:9; 7:35; 11:49; 18:13, 28, 31, 39; e
também das festas judaicas e os ritos da purificação: a Páscoa: Jo 2:13,
23; 6:4; 13:1; 18:28; talvez também Jo 5:1; a festa dos Tabernáculos: Jo
7:2, 37, 38; a festa da Dedicação: Jo 10:22, 23. Veja-se também Jo 3:25;
11:55; 12:12; 18:28, 39; 19:31.
e. Isto explica sua forma fácil e natural de apresentar os costumes
judaicos nas bodas e nos enterros: Jo 2:1–10; 11:38, 44; 19:40.
(2) Judeu da Palestina.
Possui um conhecimento detalhado da topografia da Palestina: Jo
1:28 cf. Jo 11:1; 2:1, 12; 3:23; 4:11, 20; 11:54; 12:21; em particular de
João (William Hendriksen) 30
Jerusalém e seus arredores: Jo 5:2; 9:7; 11:18; 18:1; 19:17; e do Templo:
Jo 2:14, 20; 8:2, 20; 10:22, 23; 18:1, 20.
(3) Testemunha ocular.
Como tal, ele lembra quando sucederam os acontecimentos às vezes
na hora exata: Jo 1:29, 35, 39; 2:1; 3:24; 4:6, 40, 52, 53; 6:22; 7:14;
11:6; 12:1; 13:1, 2; 19:14, 31; 20:1, 19, 26.
Sabe que Jesus Se achava cansado quando Se sentou perto do poço
(Jo 4:6); ele lembra as palavras que pronunciaram os vizinhos daquele
homem cego de nascimento (Jo 9:8–10); ele mesmo viu sair o sangue e a
água do lado ferido de Jesus (Jo 19:33–35); sabe o nome do criado do
sumo sacerdote a quem Pedro cortou a orelha (Jo 18:10); é conhecido do
pontífice (Jo 18:15). Estes e muitos outros detalhes demonstram
claramente que o escritor foi uma testemunha ocular dos eventos por ele
registrados.
(4) Um dos Doze.
O fato de que participa da Ceia com seu Senhor mostra que tem que
ter sido um dos Doze (Jo 13:23). Sua estreita relação com Pedro também
parece provar isso (Jo 1:35–42; 13:23, 24; 18:15, 16; 20:2; 21:20–23).
Seu íntimo conhecimento das ações, palavras e sentimentos dos
apóstolos, demonstra que o escritor era, efetivamente, um deles: Jo 2:17,
22; 4:27; 6:19; 12:16; 13:22, 28; e 21:21. E se alguém argumentasse que
não, em todos estes casos vê-se claramente que os discípulos cujos
reações se registram pertenciam ao grupo mais próximo, e que, portanto,
a conclusão que tiramos não é muito persuasiva, então dirigimos a
atenção a outras passagens onde se faz referência específica aos “Doze”,
(Jo 6:66–71; 20:24–29). O autor sabe exatamente o que se disse nesse
reduzido grupo! A conclusão inevitável é que o escritor pertence ao
mesmo.
Observe-se também que em Jo 1:35–51 menciona-se o discípulo
anônimo em conexão com André, Simão Pedro, Filipe, e Natanael, todos
os quais pertencem aos Doze.
(5) O apóstolo João.
João (William Hendriksen) 31
É esta a inferência mais natural que se tira de todos os dados
apresentados. Deve notar-se que enquanto o escritor menciona os outros
apóstolos por seus nomes, nunca o faz de forma tão específica com João
ou seu irmão Tiago. Este fato é muito significativo e parece assinalar o
caminho para descobrir a identidade do escritor.
Mediante um processo de eliminação não é muito difícil obter uma
resposta à pergunta: Quem é o escritor?
Existe uma velha rima que torna fácil o lembrar os nomes dos Doze
(cf. Mt. 10:2–4; Mc. 3:16–19; Lc. 6:14–16; At. 1:13):
“Pedro, André, Tiago e João,
Filipe e Bartolomeu,
Mateus logo e Tomé também,
Tiago, o Menor e Judas, o Maior,
Simão o Zelote e Judas, o traidor”.
Visto que o quarto Evangelho também fala dos Doze” (Jo 6:67, 70,
71; 20:24), pode-se supor que se refere ao mesmo grupo de homens.
Qual destes foi o escritor?
Como é natural, eliminamos imediatamente a Judas, o traidor.
Quando o escritor refere-se a ele, dá seu nome (Jo 6:71; 12:4; 13:2, 26,
29; 18:2, 3, 5).
Comparando Jo 21:24 com o versículo 20 do mesmo capítulo nos
damos conta de que o escritor é o discípulo que se reclinou no peito de
Jesus durante a Ceia. Certamente que não é Pedro, visto que se faz uma
distinção entre os dois. Portanto ainda restam dez de onde escolher.
O nome de Mateus também se pode eliminar por estar associado a
outro Evangelho. A pergunta que temos que nos fazer a seguir é a
seguinte: É provável que o escritor do quarto Evangelho, que é um dos
amigos mais íntimos de Jesus (Jo 13:23), fosse um dos discípulos mais
ou menos obscuros como Tiago, o Menor (o filho de Alfeu) ou Simão, o
Zelote? Por outro lado Judas (chamado “o Maior” na rima, mas “Judas
irmão de Tiago”, “Lebeu”, “Tadeu” e “Judas não o Iscariotes” nas
referências bíblicas) e Tomé (chamado Dídimo) aparecem mencionados
João (William Hendriksen) 32
por seus nomes no quarto Evangelho (Jo 14:5, 22), e isto os distingue
claramente do escritor, cujo nome não é dado.
Restam, pois, os nomes de Tiago, João, André, Filipe e Bartolomeu.
João relata como Filipe conduziu Natanael a Jesus, e nas listas dos Doze
dos outros três Evangelhos Filipe e Bartolomeu sempre aparecem juntos.
João nunca menciona Bartolomeu; os Sinóticos nunca mencionam
Natanael. É, portanto, altamente provável que o Natanael de João seja o
Bartolomeu de Mateus, Marcos e Lucas (Natanael seria seu nome
próprio e Bartolomeu indicaria sua relação filial, significando filho de
Tolmai. (Cf. C. E. Macartney, Of Them He Chose Twelve, Filadélfia,
1927, pp. 63, 64). Se o discípulo anônimo for a mesma pessoa em todo o
Evangelho, então também o encontramos em Jo 1:35–51.
Aqui aparece claramente diferenciado de André (v. 40), de Simão
Pedro (vv. 41 e 42), cujo nome já eliminamos devido à informação do
capítulo 21, de Filipe (vv. 43 e 44), e de Natanael (Bartolomeu, vv. 45–
51).
Subtraindo também os nomes de André, Filipe e Bartolomeu,
restam unicamente Tiago e João. No entanto, depreende-se claramente
de Jo 21:19–24 que o escritor do quarto Evangelho ainda vivia e dava
testemunho quando este se publicou pela primeira vez (observe-se o
tempo no presente do versículo 24) embora Pedro já tivesse ganho a
coroa de mártir (v. 19). E visto que sabemos que Pedro sobreviveu a
Tiago (At. 12), fica bem claro que este último não pôde ter escrito o
quarto Evangelho. Resta o apóstolo João.
Observe-se que na argumentação que seguimos, nossas conclusões
se basearam totalmente nos dados subministrados pelo próprio quarto
Evangelho. A comparação com os Sinóticos confirma nossa conclusão.
Em João 1:35–40 descobrimos que o escritor do quarto Evangelho foi
um dos primeiros discípulos de Cristo, e os outros dois foram André e
Simão Pedro. O Evangelho segundo Marcos também contém uma lista
dos primeiros discípulos (Jo 1:16–20, 29). Nessa lista aparecem quatro
nomes: Simão e André, Tiago e João. Comparando as duas listas vê-se
João (William Hendriksen) 33
que o discípulo anônimo do quarto Evangelho é um dos filhos de
Zebedeu.
Qualquer tentativa de fugir da força destes argumentos está
destinada ao fracasso. Com frequência frases tentativas se apoiam no
fato de que em Jo 21:2 faz-se menção de “outros dois de seus discípulos”
(além de Simão Pedro, Tomé, Natanael, e os filhos de Zebedeu). Alega-
se que estes “dois” não podem ter pertencido aos Doze, e que um deles
— talvez o Ancião João? — pôde ter sido o escritor. Mas tudo isto está
completamente fora de lugar, e não leva em conta toda a evidência que
acabamos de apresentar.
Por outro lado, tais argumentos não têm nenhum valor. Porque até
no caso de que o escritor não fosse o apóstolo João mas algum obscuro
discípulo citado em Jo 21:2, continua sendo verdade que se tratava de
uma testemunha ocular que, segundo o relato registrado em João 21,
tinha visto o Senhor ressuscitado e agora proclama à igreja de todas as
idades que Jesus é o que disse ser: Deus no mais alto sentido da palavra
(Jo 1:1–18), e que os primeiros seguidores de Jesus O reconheceram
como o Messias, o Filho de Deus. Como isso pode ser possível? Como
se pode explicar psicologicamente? Em última instância, só pode haver
uma solução plenamente satisfatória para este problema, e esta é a de que
Jesus é na realidade o que disse ser e o que estes homens proclamaram
que era: o Messias, o Filho de Deus, o objeto da adoração. Se forem
aceitos ambos os testemunhos como verdadeiros, os problemas começam
a desaparecer.
O testemunho da igreja primitiva harmoniza com a conclusão que
se acaba de derivar do próprio quarto Evangelho. Por isso Eusébio,
depois de ter feito uma cuidadosa investigação da literatura ao seu
dispor, diz:
“Mas agora indiquemos os indiscutíveis escritos deste apóstolo. Em
primeiro lugar reconheçamos seu Evangelho, pois se lê em todas as
igrejas sob os céus … Assim João, no curso de seu Evangelho, relata o
que Cristo fez antes de o Batista ter sido lançado na prisão, mas os outros
João (William Hendriksen) 34
três evangelistas narram os eventos depois do encarceramento do
Batista” (História eclesiástica III, xxiv, 1–13). O famoso historiador
escreveu estas palavras a princípios do quarto século.
Antes que ele, Orígenes (que floresceu entre 210–250) disse que
João, o discípulo amado, escreveu o quarto Evangelho e o Apocalipse.
Orígenes escreveu um comentário sobre o primeiro em que declara:
“Os Evangelhos, pois, são quatro, e eu opino que as primícias dos
Evangelhos é aquele que tu (Ambrósio) me encarregaste para investigar,
segundo minha capacidade, o Evangelho de João …” (Comentário sobre
João 1:6). No mesmo parágrafo indica que o escritor do quarto
Evangelho é aquele João “que se reclinou no peito de Jesus”.
De Orígenes podemos retroceder mais, até o seu mestre, Clemente
de Alexandria (que floresceu entre 190–200). Este conhece um só João:
o apóstolo; e sem indício de dúvida atribui a ele o quarto Evangelho,
dizendo:
“João, por último, sabendo que os fatos externos tinham ficado
claros nos Evangelhos e sendo pressionado por seus amigos e inspirado
pelo Espírito, compôs um Evangelho espiritual” (Eusébio, História
eclesiástica VI, xiv, 7). Clemente nos legou uma bela história a respeito
do ancião apóstolo João; veja-se II da Introdução. Por ter nascido nos
meados do segundo século, Clemente encontrava-se muito perto dos
sucessores dos apóstolos. Era pessoa de extensa cultura e tinha viajado
muito.
Aproximadamente na mesma época Tertuliano atribui o quarto
Evangelho ao apóstolo João (Contra Marcião IV, v).
Contemporâneo de Clemente foi Irineu. Foi um discípulo de
Policarpo, o qual tinha conhecido ao apóstolo João. Numa carta ao
Florino, que também tinha recebido os ensinos de Policarpo, mas que se
tinha desviado da verdade, Irineu diz:
“Essas opiniões, ó Florino, falando com precaução, não pertencem à
sã doutrina. Essas opiniões são incompatíveis com a igreja e conduzem
àqueles que creem nelas com a maior maldade. Nem sequer os hereges
João (William Hendriksen) 35
fora da igreja se atreveram a proclamar tais opiniões. Os que foram
presbíteros antes que nós, os que acompanharam os apóstolos, não te
transmitiram tais ideias. Porque sendo eu ainda um rapaz, conheci-te na
Ásia Menor, em casa de Policarpo, quando eras um homem de categoria
na real sala e te esforçavas em agradá-lo. Lembro-me melhor dos
acontecimentos daqueles dias que dos que sucederam recentemente,
porque o que aprendemos de pequenos cresce com a alma e fica unido a
ela, de maneira que poderia inclusive falar do lugar em que o bendito
Policarpo se sentou e dissertou, de como entrava e saía, do caráter de sua
vida, do aspecto de seu corpo, dos discursos que deu às pessoas, de como
contava sua amizade com João e com os outros que tinham visto o
Senhor; de como lembrava suas palavras, e quais eram as coisas
referentes ao Senhor que tinha ouvido deles, e sobre seus milagres, e seu
ensino; e de como Policarpo tinha recebido tudo das testemunhas
oculares do verbo de vida, e deu conta de todas as coisas de acordo com
as Escrituras” (Eusébio, História Eclesiástica, V, xx, 4–7).
Agora, Irineu, quem tinha viajado da Ásia Menor a Gália e tinha
com frequência contato com a igreja de Roma, não só conhecia o quarto
Evangelho mas também que era atribuído sem reserva ao apóstolo João.
Não é possível debilitar o testemunho do qual fora um discípulo de um
discípulo do apóstolo João. Além disso, devido a suas muitas viagens e
íntimo conhecimento de quase toda a igreja naqueles dias, o que Irineu
diz a respeito da paternidade literária do quarto Evangelho deve ser
extremamente significativo. Sua opinião sobre um assunto de tal
importância pode considerar-se como a opinião da igreja. Suas palavras,
tal como Eusébio as relata, são:
“Então João, o discípulo do Senhor, quem se tinha recostado sobre
seu peito, ele mesmo também deu o Evangelho, enquanto vivia na cidade
de Éfeso na Ásia” (História Eclesiástica, V, viii, 4).
Irineu, inclusive, discute que não podem existir nem mais nem
menos que quatro Evangelhos (Contra Heresias III, xI, 8).
João (William Hendriksen) 36
O Fragmento Muratoriano, uma lista incompleta dos livros do
Novo Testamento, escrito num latim pobre, que se pode situar no
período 180–200, e que deriva seu nome do cardeal L. A. Muratori
(1672–1750), quem o descobriu na Biblioteca Ambrosiana de Milão,
contém o seguinte:
“O quarto livro do Evangelho é o de João, um dos discípulos. Em
resposta à exortação de seus companheiros, discípulos e bispos, disse:
‘Jejuem comigo três dias e logo nos contemos o que nos tenha sido
revelado a cada um’. Aquela mesma noite foi revelado a André, que era
um dos apóstolos, que devia ser João aquele que em seu próprio nome
relata o que todos juntos lembravam. E assim não há discordância para a
fé dos crentes, apesar de que se deram diferentes seleções dos fatos nos
distintos livros dos Evangelhos, porque em todos eles, sob a mesma
direção do Espírito, declararam-se todas as coisas relativas a seu
nascimento, paixão, ressurreição, conversação com seus discípulos, e
suas duas vindas, a primeira em sua humilhação devida ao desprezo, que
já teve lugar, e a segunda na glória de seu poder real, que ainda há de
ocorrer. É de admirar, então, que João repete com tanta insistência em
suas epístolas todas estas coisas, dizendo pessoalmente: ‘o que vimos
com nossos olhos, e ouvimos com nossos ouvidos, e nossas mãos
tocaram, essas coisas temos escrito’? Pois assim afirma ser não só uma
testemunha ocular, mas também um ouvinte e narrador de todas as
maravilhosas coisas relativas ao Senhor, em sua devida ordem”.
Crê-se que o fragmento é uma tradução do grego e que teve sua
origem em Roma ou, pelo menos, na área de influência romana. Para
nosso propósito o que se deve levar em conta é que o discípulo João,
que, como André, é um dos apóstolos, aparece aqui como o escritor do
quarto Evangelho. A interessante história que descreve a maneira exata
em que aquele Evangelho teve sua origem deve ser considerada como
lenda, visto que é altamente improvável e contrário a toda a tradição que
os outros discípulos viveram até a época em que se escreveu este
Evangelho. Por essa mesma razão seria muito precário tirar qualquer
João (William Hendriksen) 37
conclusão desse conto circunstancial. Isto se tem feito às vezes. Em
primeiro lugar as palavras que principiam a cláusula “ut
recognoscentibus cunctis Johannes suo nomine cunta describeret” (“que
devia ser João aquele que em seu próprio nome relatasse o que todos
juntos lembrassem”) traduzem-nas por: “… todos eles agindo como
corretores”. A seguir tiram a conclusão de que, por causa de todos estes
corretores, o apóstolo João teria um papel muito secundário na
composição do livro. E, por último, o totalmente fictício “ancião” João
surge outra vez como o verdadeiro escritor. Isto é tirar muito de muito
pouco! A única conclusão legítima que se pode tirar do Fragmento
Muratoriano é que ao redor dos anos 180–200 a Igreja de Roma (ou pelo
menos alguma pessoa de importância na área de influência romana)
atribuía o quarto Evangelho ao apóstolo João.
Polícrates, que era bispo da igreja em Éfeso, escreveu
aproximadamente na mesma época. Tanto o lugar como a data são
significativos. Nessa data anterior (aproximadamente 196) estavam
frescas em Éfeso as tradições referentes ao apóstolo João, que tinha
vivido ali. Polícrates diz: “Sete de meus parentes foram bispos e eu sou o
oitavo”. A seguir dá seus conselhos sobre a controvérsia pascal (quer
dizer, a respeito de se a Páscoa de Ressurreição devia-se celebrar no dia
quatorze do mês lunar, sem consideração do dia, ou sempre em
domingo). Em sua carta não só faz referência a João 13:25 (ou pelo
menos ao que se afirma nessa passagem) mas também à residência e
morte de João em Éfeso:
“Além disso, João que se reclinou sobre o peito do Senhor e que
chegou a ser sacerdote mitrado e testemunha e mestre, descansa em
Éfeso” (Carta a Victor e à igreja em Roma sobre o dia de observância
da Páscoa, preservada por Eusébio, História Eclesiástica V, xxiv).
Uns poucos anos antes, provavelmente, escreveu Teófilo, o qual,
segundo Eusébio, foi o sexto bispo em Antioquia da Síria depois dos
apóstolos, cita expressamente a João como o escritor inspirado do quarto
Evangelho. Eis aqui sua declaração:
João (William Hendriksen) 38
“E disso nos ensinam os escritos sagrados, e todos os homens
inspirados, um dos quais, João, diz: ‘No princípio era o Verbo e o Verbo
estava com Deus’, mostrando-nos que no princípio Deus estava sozinho,
e o Verbo nele” (A Autólico II, xxii).
Com todo o precedente são esclarecidos vários pontos:
(1) Dentro da igreja ortodoxa existe uma tradição uniforme
referente ao escritor do quarto Evangelho. Esta tradição se remonta
desde Eusébio, a princípios do quarto século, até Teófilo, que escreveu
ao redor de 170–180.
(2) Segundo esta tradição uniforme o quarto Evangelho foi escrito
por João. Em geral, inclusive, deixa-se claro que este João era o
apóstolo, o discípulo amado que se reclinou sobre o peito de Jesus. As
principais testemunhas são: Eusébio, Orígenes, Clemente de Alexandria,
Tertuliano, Irineu, o escritor do Cânon Muratoriano e Teófilo.
(3) Irineu, uma das testemunhas mais antigas, foi discípulo de
Policarpo, o qual, por sua vez, tinha sido discípulo do apóstolo João.
Pode-se concluir legitimamente que a tradição com relação à paternidade
apostólica pode assim remontar-se até o discípulo a quem Jesus amava.
(4) Por causa de suas muitas viagens e seu perfeito conhecimento
das convicções de toda a igreja, pode-se considerar Irineu como uma
testemunha representativa. Representa a fé de toda a comunidade cristã.
Tertuliano, Clemente de Alexandria, Irineu e Teófilo nos mostram que
no último quarto do segundo século o quarto Evangelho era conhecido e
lido por toda a cristandade: África, Ásia Menor, Itália, Gália e Síria, e se
atribuía a esse João, tão amplamente conhecido.
(5) A evidência externa que se deriva desta uniforme e anterior
tradição, harmoniza com a evidência interna que o mesmo quarto
Evangelho proporciona.
(6) As evidências que examinamos provam três coisas importantes:
a. Que o quarto Evangelho existia já numa data muito anterior. Se
para o ano 170 denominar-se a este livro escrito sagrado composto por
um que foi inspirado pelo Espírito Santo, e quando este sagrado
João (William Hendriksen) 39
Evangelho emprega-se para provar determinadas posições doutrinais que
se consideram tão valiosas que os homens estão dispostos a morrer em
sua defesa, pode-se inferir com segurança que sua origem se remonta à
uma data anterior.
b. Que ele foi considerado (pelo menos) de igual valor e autoridade
aos outros Evangelhos.
c. Que ele era considerado como escrito pelo apóstolo João.
Entre os homens que podemos classificar como hereges achamos
que Taciano (ao redor do ano 170), quem caiu na heresia depois da
morte de seu mestre Justino Mártir, aceita o quarto Evangelho e o usa
para compor sua Harmonia (Diatessaron). Mais ainda, o livro de
Taciano começa com os primeiros cinco versículos do quarto Evangelho.
Heracleão, da escola de Valentim, que existiu entre 140 e 180,
chegou inclusive a escrever um comentário do quarto Evangelho.
Ptolomeu, também desta escola, atribuía-o “ao apóstolo”. Marcião, nos
meados do segundo século, rejeitou todos os Evangelhos e preparou um
próprio, usando como fonte uma versão mutilada de Lucas. Mas não se
demonstrou que negasse que o apóstolo João fosse o escritor do quarto
Evangelho. Parece que ele rejeitava este Evangelho porque considerava
seu escritor como judaizante. Esta conclusão ele a baseava nas palavras
de Paulo em Gl. 2:9, 11–13, que interpretava completamente mal (cf.
Tertuliano, Contra Marcião IV, iii).
O que temos que fazer ressaltar agora é que se estes hereges, que
sabiam muito bem que seus ensinos não concordavam com as do quarto
Evangelho, tivessem podido atribuir este Evangelho a um escritor não
apostólico, ele o teriam feito.
Entre os escritores ortodoxos que se destacaram durante o período
100–170 encontramos Justino Mártir, que cita João 3:3–5 (Apologia I,
61). Faz uso de muitas expressões deste Evangelho. (Veja-se também
seu Diálogo com Trifo, cap. 105). Sua doutrina do Logos, além disso, é
quase seguro que se deriva do quarto Evangelho. Por outro lado, não se
João (William Hendriksen) 40
deve esquecer que Taciano, discípulo do Justino, incluiu-o em sua
Harmonia.
Já falamos a respeito de Papias e Policarpo. Eusébio diz que Papias
“usou citações da Primeira Epístola de João” (História Eclesiástica III,
xxxix, 17). Pode haver diferença de opinião quanto a se alguém pode
basear algum argumento nesta alusão ao seu conhecimento do quarto
Evangelho, que é muito parecido em estilo.
O espírito do quarto Evangelho aparece por todas as partes nas
Epístolas de Inácio (breve resenha). Embora não se pôde provar com
absoluta certeza que quando foi conduzido ao martírio (ao redor do ano
110) já tinha visto e feito alusão a este Evangelho, esta parece ser, não
obstante, a conclusão mais natural. As semelhanças são tantas e tão
assombrosas, que não podem servir para apoiar nenhuma inferência
oposta. Certamente, é verdade que estas alusões não são citações exatas,
mas quem esperaria outra coisa de um prisioneiro que está a caminho de
ser martirizado em Roma? As colunas paralelas subministram a
evidência:

INÁCIO O QUARTO EVANGELHO

“Porque se eu obtive tal comunhão, que


não era humano mas sim espiritual, com
seu bispo em tão pouco tempo,
quanto mais os hei de considerar “eu neles, e tu em mim, a fim de que
benditos a vós que estais unidos a sejam aperfeiçoados na unidade”
ele como a igreja a Jesus Cristo, e (Jo 17:23).
Jesus Cristo ao Pai, para que tudo
harmonize em unidade” (Aos efésios V, i).
“Como o Senhor estava então unido
ao Pai e não fazia nada sem mim, nem por
si mesmo nem pelos anjos, assim também “o Filho nada pode fazer de si mesmo
vós não deveriam fazer nada sem o bispo mesmo, senão somente aquilo que vir
e os presbíteros” (Aos Magnésios VII, 1). fazer o Pai” (Jo 5:19).
João (William Hendriksen) 41
“Desejo o pão de Deus que é a carne “Quem comer a minha carne e beber
de Jesus Cristo … e por bebida desejo o meu sangue tem a vida eterna, e eu
seu sangue que é amor incorruptível o ressuscitarei no último dia. Pois a minha
(Aos romanos, VII, iii). carne é verdadeira comida, e o meu sangue
é verdadeira bebida” (Jo 6:54, 55).

“Porque ele (o Espírito) sabe de “O vento sopra onde quer, ouves a sua
onde vem e aonde vai” voz, mas não sabes donde vem, nem
(Aos filadelfianos VII, 1). para onde vai; assim é todo o que é
nascido do Espírito” (Jn 3:8).

Se estas e outras expressões que nos faz pensar em João indicam


que Inácio conhecia o quarto Evangelho, sua data de origem deveria ser,
então, trasladada a algum momento antes de 110. Isto quase serviria para
vindicar a crença tradicional que afirma que se escreveu não depois do
ano 98 e não antes do 80.
Não obstante, a crença tradicional sobre a data de origem do
quarto Evangelho recebeu uma forte confirmação com a recente
descoberta de um fragmento muito antigo de um códice de papiro do
Evangelho de João. Este, junto com outros papiros gregos, foi achado no
Egito e adquirido pela Biblioteca John Rylands. É o fragmento mais
antigo que se conhece de qualquer porção do Novo Testamento.
Provavelmente teve sua origem na comunidade cristã do Egito Médio.
Apoiando-se na evidência paleográfica, determinou-se que esta parte de
papiro pertenceu a um códice que circulava por aquela região na
primeira metade do segundo século. O fragmento contém palavras do
capítulo 18 do Evangelho de João. No anverso contém parte dos
versículos 31–33, e no reverso, parte dos vv. 37–38.
Agora, se este Evangelho já estava em circulação no Egito Médio
na primeira parte do segundo século, forçosamente teve que ter sido
composto mesmo antes. De Éfeso, onde segundo a tradição se escreveu
este Evangelho, ao Egito Médio, onde este códice circulava, há uma
grande distância. Em consequência, algumas autoridades admitem um
João (William Hendriksen) 42
lapso de tempo de uns trinta anos entre a data de composição e a de
circulação no Egito. A declaração de W. F. Albright é significativa:
“Enquanto isso, a sensacional publicação de um fragmento do
Evangelho de princípios do segundo século, e a de um fragmento
aproximadamente contemporâneo de um evangelho apócrifo baseado em
João, deu o coup de grâce a todas as datas radicalmente tardias
atribuídas a João e demonstrou que este Evangelho não pode ser
posterior ao primeiro século de nossa era” (From Stone Age to
Christianity, p. 299; veja-se também C. H. Roberts, An Unpublished
Fragment of the Fourth Gospel, Manchester, 1935).
Isto, portanto, significa que o ponto de vista tradicional sobre a
data de composição do quarto Evangelho ficou plenamente confirmado
com irrefutável evidência. Significa, também, que todos aqueles críticos
negativos que durante tanto tempo têm sustentado que a posição
conservadora era totalmente errônea, sofreram uma derrota decisiva.
Hoje mais que nunca podemos somar-nos à exclamação de Volkmar: “É
bem verdade que tudo já terminou para a tese critica sobre a composição
do quarto Evangelho nos meados do segundo século”. 5
Por outro lado, agora que temos esta evidência externa, e que
sabemos que o quarto Evangelho circulava na Ásia Menor a princípios
do segundo século (e provavelmente já no primeiro), começa a parecer

5
Datas atribuídas ao quarto Evangelho por diversos críticos: F. C. Baur: 160–170; Volkmar: 155;
Zeller y Scholten: 150; Hilgenfeld: 130–140; Keim: 130; Schenkel: 115–120; Reuss, Nicholas, Renán,
Sabatier, Hase: 110–125; E. F. Scott: 95–115.
P. H. Menoud, L ‘Evangile de Jean d’apres las recherches recentes, Neuchatel y París, 1943,
concluye con estas notables palabras:
“Pode-se dizer, sem ir longe demais, que os defensores da autenticidade joanina ocupam hoje em
dia posições mais favoráveis que, por exemplo, no começo do século. Porque as investigações
recentes tendem a superar os obstáculos que a crítica pôs no caminho da identificação do ‘Amado’
com o filho de Zebedeu”. Do mesmo autor também, “Le probleme johannique”. RThPh 29(1941),
236–256; 30(1942), 155ss; 31(1943), 80–101.
E contudo, em 1972 Vincent Taylor falava a respeito do “colapso da posição tradicional” em “The
Fourth Gospel and some Recent Criticism” HJ(1927), 725–743.
João (William Hendriksen) 43
mais aceitável que Inácio, que escreveu suas epístolas da Ásia Menor, o
tivesse lido.
É verdade, no entanto, que nem Justino Mártir nem Inácio, nem
nenhum outro antes de mediados do segundo século, menciona o
apóstolo João pelo nome como escritor deste Evangelho. Mas isto não
deve surpreender-nos. Estes homens viveram tão próximos à época do
discípulo amado que ao citar ou aludir ao seu Evangelho era-lhes
completamente desnecessário mencionar seu nome. Além disso, para
Inácio, os apóstolos ocupavam um lugar de honra:
“Eu não vos ordeno como o fizeram Pedro e Paulo; eles foram
apóstolos, eu sou um convicto” (Aos romanos IV, iii).
Pode-se, por conseguinte, dar por sentado que ao usar certas
expressões que fazem pensar no quarto Evangelho, Inácio estava
consciente de que ninguém senão um verdadeiro apóstolo poderia ser o
escritor daquelas verdades que lhe eram tão queridas que desejava gravá-
las nos corações dos demais.
Outro fator que favorece uma data anterior para o quarto Evangelho
é seu forte sabor semítico. (Veja-se IV da Introdução).
O testemunho mais antigo de sua autoridade apostólica nós o
encontramos no próprio Evangelho. Uma vez que João, guiado
divinamente, escreveu os primeiros vinte capítulos, terminando com a
bela conclusão de Jo 20:30, 31, e uma vez que outro líder de Éfeso, sob a
direção do Espírito Santo com a total aprovação de João, teve
acrescentado a bela história que tantas vezes tinha escutado dos lábios de
seu querido amigo e que terminava com uma clara referência ao
discípulo a quem Jesus amava (Jo 21:20–23), os presbíteros de Éfeso
acrescentaram estas significativas palavras:
“Este é aquele discípulo que dá testemunho destas coisas, e
escreveu estas coisas: e sabemos que seu testemunho é verdadeiro” (Jo
21:24).
Vimos que tanto as evidências internas como as externas apoiam
este testemunho.
João (William Hendriksen) 44
Tal como aparece nos Evangelhos, João era filho de Zebedeu e
Salomé (Mc. 1:19; 16:1, 2; cf. Mt. 27:56). Parece que Zebedeu era um
pescador acomodado que tinha servos assalariados (Mc. 1:20). Supõe-se
que Salomé era irmã da virgem Maria (Mt. 27:56; cf. Jo 19:25). Se isto é
correto, então Jesus e João eram primos. Tiago, o irmão de João,
normalmente é mencionado primeiro, e era certamente o mais velho dos
dois.
Antes de se tornar seguidor de Jesus, o apóstolo João foi discípulo
de João Batista. O apóstolo lembrava, no ocaso de sua vida, o momento
em que se encontrou com Jesus pela primeira vez e decidiu segui-Lo:
“… era como a hora décima” (Jo 1:39). A esse primeiro encontro que
temos registrado seguiu, depois de um intervalo, a decisão de tornar-se
discípulo permanente (Mc. 1:16ss.; Lc. 5:10); e logo em apóstolo (Mt.
10:2), enviado e comissionado por Jesus.
Parece que João e Tiago foram homens de emoções reprimidas que,
em algumas ocasiões, estalavam. Jesus os denominou “filhos do trovão”
(Mc. 3:17). Quando Jesus vai a caminho de Jerusalém e os habitantes de
certa aldeia samaritana recusam dar-lhe albergue, a ardente cólera dos
filhos de Zebedeu estala nestas palavras: “Senhor, quer que mandemos
que desça fogo do céu, e os consuma?” (Lc. 9:54). Certamente, João era
o “discípulo do amor”. Mas o amor e a cólera relampagueante não se
excluem mutuamente. O que se manifestou nesta desafortunada
expressão era um amor genuíno por Jesus. Foi também o amor que
impulsionou a João a atalhar àquele homem que, embora expulsava
demônios em nome de Jesus, não era um dos discípulos regulares (Lc.
9:49, 50).
Um dos sinais da genuína humildade de João é que nunca dá o
nome daqueles que pertencem ao círculo de seus familiares. Embora ele
amasse intensamente o seu Mestre, o que no Evangelho faz-se ressaltar
não é seu amor por Cristo mas o amor deste pelo apóstolo. João se define
a si mesmo como “o discípulo a quem Jesus amava” (Jo 13:23).
João (William Hendriksen) 45
Não só nos Evangelhos, como já indicamos, mas também em Atos
encontramos João com frequência na companhia de Pedro (At. 3:1; 4:19;
8:14). Depois da ressurreição transforma-se em um dos pilares da igreja
em Jerusalém (Gl. 2:9; At. 15:6). Provavelmente partiu de Jerusalém ao
começar a guerra dos judeus. T. Zahn diz:
“Pode-se, pois, dizer que o apóstolo João, junto com outros
discípulos de Cristo, chegou à Ásia Menor procedente da Palestina. Se
Policarpo, no dia de sua morte (23 de fevereiro de 155), podia
contemplar oitenta e seis anos de vida como cristão, não como homem, e
foi assim batizado em 69, e se sua conversão (segundo Irineu, Contra
Heresias III, iii, 4) foi obra de um apóstolo, então aquela emigração à
Ásia Menor deve ter ocorrido antes dessa data, possivelmente como
consequência da guerra dos judeus. Deste modo, João, que talvez não
teria então mais de sessenta ou sessenta e cinco anos, pôde dedicar uns
trinta anos a fomentar a vida cristã em tal província (“João, o Apóstolo”,
em The New Schaff-Herzog Encyclopedia of Religious Knowledge).
João viveu em Éfeso durante vários anos. Mas em algum momento
do reinado de Domiciano, 81–96, foi banido à ilha de Patmos. Com o
acordo de Nerva foi-lhe permitido voltar a Éfeso, onde morreu no
princípio do reinado de Trajano, ao redor do ano 98.
A tradição é quase unânime em manter que o apóstolo escreveu seu
Evangelho em Éfeso (Eusébio, História Eclesiástica III, xXIII, 1, 6; V,
vii, 4; xxiv, 4; Clemente de Alexandria, Quem é o rico que se salvará?
XLII, ii) 6 . Las repetidas tentativas que la literatura moderna ha hecho
para desacreditar esta fuerte tradición no han tenido éxito.
A pergunta, não obstante, é esta: Foi o quarto Evangelho escrito
antes ou depois do desterro de João a Patmos? Compôs-se antes ou
depois do livro de Apocalipse?
Parece que a data mais anterior que se pode dar para sua
composição seria ao redor do ano 80. Baseamos isso nas seguintes

6
Veja-se F. Godet, Commentaire sur l’Evangile de Saint Jean, París, 1881, vol. I, pp. 354–356.
João (William Hendriksen) 46
considerações: Pedro já tinha recebido sua herança, como Jo 21:19
parece sugerir; e Paulo sua coroa. Este último não menciona em nenhum
lugar a obra do apóstolo João na Ásia Menor. Crê-se provável que os
Sinóticos já se foram escritos e que o escritor do quarto Evangelho os
havia lido. Os judeus tinham chegado a ser inimigos declarados da
igreja. Não se menciona a queda de Jerusalém, certamente por ter
transcorrido já vários anos desde seu acontecimento.
Por outro lado, a data mais tardia para a composição deste
Evangelho é o ano 98, se o testemunho de Irineu e Jerônimo é digno de
confiança. O primeiro diz:
“Além disso, a igreja em Éfeso, fundada por Paulo, e que teve
permanentemente a João até os tempos de Trajano, é uma verdadeira
testemunha da tradição dos apóstolos” (Contra Heresias III, iII, 4).
A data, portanto, está entre 80 e 98. Pode-se ser mais exato e
determiná-la de uma forma mais precisa? Segundo Epifânio (quarto
século) João não escreveu seu Evangelho senão até depois de sua volta
de Patmos, quando tinha mais de noventa anos. Apesar disso, os
primeiros Pais não dizem nada semelhante em seus escritos.
Há aqueles que preferem uma data muito mais próxima do ano 80
dando como razão que o estilo do Evangelho é o de um escritor
amadurecido, porém não ancião. Pode haver algo de fato neste critério.
Mas devemos ir com precaução neste ponto. Se o apóstolo chegou a
Éfeso para o ano 67 (aproximadamente a época da morte de Paulo), e se
então tinha sessenta ou sessenta e cinco anos (Zahn), então para o ano 80
teria entre setenta e três ou setenta e oito anos. Assim que de todas
formas já era “um escritor ancião”. Também podemos enfocar o
problema deste modo: se João tinha vinte e cinco anos quando Jesus
morreu (para o ano 30), então no ano 80 teria uns setenta e cinco.
No entanto, pôde ter-se mantido jovem e forte em suas faculdades
mentais e físicas. Clemente de Alexandria diz-nos que mesmo depois de
sua volta de Patmos o apóstolo levava um ministério muito ativo como
principal administrador das igrejas situadas no distrito de Éfeso (Quem é
João (William Hendriksen) 47
o rico que se salvará? XLII). Assim, pois, devia ter tido mais de noventa
anos. Mas quem imaginaria dizer que aquele que a esta avançada idade
podia converter o capitão de um bando de ladrões, segundo a
interessante história que Clemente nos transmitiu na referência que
acabamos de dar, e aquele que ia de um lugar a outro “ordenando bispos
e pondo em ordem igrejas inteiras”, não podia ter escrito um Evangelho
sob a direção do Espírito especialmente quando já tinha tido este
propósito por longo tempo? A história da igreja provê vários exemplos
de homens que continuaram num ministério ativo com responsabilidades
sérias até depois dos noventa anos.
No entanto, o ponto de vista contrário — ou seja, aquele que
considera que João escreveu primeiro o Evangelho, ou seja, antes do
desterro em Patmos, que logo seguiram as Epístolas; e que o Apocalipse
veio em último lugar — continua exercendo sua atração (cf. Lenski,
Interpretation of St. John’s Gospel, p. 20), talvez porque este pareceria
ser a ordem natural e lógica. O problema não se pode resolver
definitivamente em nenhum sentido.

II. Leitores e propósito

Que propósito tinha o escritor ao compor este Evangelho? Alguns


dizem: corrigir os outros três. 7 Mas levando em conta tudo o que
dissemos, não se pode crer nisso. Não existem contradições reais entre
os Sinóticos e o quarto Evangelho.
Era seu propósito complementar os Sinóticos? A declaração de
Clemente de Alexandria que citamos mais acima parece sugeri-lo: os
Evangelhos se escrito para tratar as questões externas; agora era preciso
mostrar o fundo espiritual. Eusébio também defende este critério,
embora num sentido ligeiramente distinto: João relata o Primeiro
Ministério na Judeia, que os outros não descrevem.

7
Assim, por exemplo, F. Torm, ZNTW 30(1931) 130.
João (William Hendriksen) 48
Esta teoria pressupõe que o apóstolo tinha lido os Sinóticos, ou que
ao menos estava familiarizado com seu conteúdo, o que provavelmente é
certo. Assim se pode explicar por que se omite aqui uma parte tão grande
do material que achamos nos outros três Evangelhos. Nele não
encontramos a história da infância de Jesus, nem Sua genealogia, nem
um relatório extenso da pregação de João Batista, nem o relato das
tentações de Cristo no deserto, nem o Sermão da Montanha, nem a
história da dúvida de João Batista, nem as parábolas, nem o discurso
com a comissão aos doze ou aos setenta, nem narrações de expulsão de
demônios ou cura de leprosos, nem o Ministério de Retiro 8 (abril-
outubro do ano 29) que, segundo os Sinóticos, incluía acontecimentos
tais como a cura da filha da mulher siro-fenícia, a cura do gago surdo e
do cego que via os homens andar como árvores, o milagre pelo qual lhes
deu de comer a quatro mil, a confissão de Pedro, a transfiguração, e a
cura do rapaz epilético; além disso, não temos aqui nem discurso
escatológico, nem sermão de recriminação aos líderes religiosos, nem
relato da instituição da Ceia do Senhor.
Há, também, algumas determinadas passagens do quarto Evangelho
que, segundo muitos intérpretes, parecem indicar que João pressupunha
que seus leitores tinham lido os Sinóticos. Neste sentido são dignos de
menção os seguintes:
Jo 3:24: “Pois João ainda não tinha sido encarcerado”. O escritor
não dá a história do encarceramento do Batista, mas pode ser achada em
Marcos 6.
Jo 11:2: “Esta Maria, cujo irmão Lázaro estava enfermo, era a
mesma que ungiu com bálsamo o Senhor e lhe enxugou os pés com os
seus cabelos”. No quarto Evangelho esta história da unção acha-se no
capítulo seguinte. Escreve aqui (Jo 11:2) o evangelista, dando por
sentado que seus leitores já leram o relato de Marcos 14:3–9?

8
Exceção: um versículo (Jo 7:1).
João (William Hendriksen) 49
Jo 18:13: “E o conduziram primeiramente a Anás”. Aqui parece
como se João tivesse querido dizer: “Naturalmente já sabeis que Jesus
foi julgado diante de Caifás, pois o leram em Mateus ou Marcos, mas
primeiro o levaram a Anás, coisa que os outros não relataram”.
Estamos conscientes de que estes fatos não constituem uma
demonstração definitiva da teoria que afirma que João tinha lido os
Sinóticos e que pressupunha que seus leitores também os tinham lido,
mas, considerando tudo em conjunto, isto parece ser o mais provável. 9
No entanto, à vista da própria declaração de João quanto ao
propósito de seu Evangelho (Jo 20:30, 31), temos que considerar que o
complementar aos Sinóticos era algo secundário a seu objetivo principal.
Tinha o evangelista o propósito de combater certas ideias errôneas
referentes a João Batista?
É interessante observar que foi exatamente em Éfeso, o mesmo
lugar em que João vivia e compôs este livro, onde se encontraram certos
homens que tinham sido batizados no batismo de João (At. 19:3). É
quase seguro que tinham sido batizados no nome de João. Por esta causa
foram batizados de novo “em o nome do Senhor Jesus” (At. 19:5). Pois
bem, em seu Evangelho João indica repetidamente que João Batista fazia
ressaltar a seu Senhor e não a si mesmo (Jo 1:19–23, 25–27, 29, 36;
3:27–36), e que ele queria dar testemunho da Luz para que os homens
depositassem sua confiança nela (Jo 1:7–9).
Por conseguinte, inclusive o combater algumas ideias errôneas
sobre João Batista pode ser considerado como algo que contribui ao
propósito principal do quarto Evangelho: fixar a atenção dos leitores na
transcendente grandeza de Cristo (Jo 20:30, 31).

9
A conclusão oposta é tirada por P. Garner-Smith, St. John and the Synoptic Gospels, Cambridge,
1938; veja-se também W. F. Howard, Christianity According to St. John, Filadélfia, 1946, p. 17. O Dr.
Howard “quase se convenceu” pelo peso dos argumentos do Dr. Gardner-Smith. No entanto, aceita
certa relação entre João e os Sinóticos. “Certa assimilação verbal com os relatos de Marcos e Lucas”.
Cf. E. R. Goodenough, “John A Primitive Gospel”, JBL 64(1945), 145–182. As conclusões desta
classe devem-se ao fato de enfatizar exclusivamente os “contrastes” entre João e os Sinóticos. Mas já
mostramos que a pauta geral é, afinal de contas, a mesma.
João (William Hendriksen) 50
É verdade que João escreveu este Evangelho para refutar os erros
de Cerinto? 10
Este herege ensinava que Jesus não era mais que um homem, filho
de José e Maria por geração natural; mas que, no entanto, era mais justo
e sábio que nenhum outro; e que no batismo o Cristo tinha descido sobre
ele em forma de pomba, mas que o tinha abandonado na véspera de seu
sofrimento, de forma que não foi Cristo quem sofreu, morreu e
ressuscitou, e sim Jesus (Irineu, Contra heresias I, xxvi, 1; Hipólito,
Refutação de todas as heresias, VII, xxi).
Agora, Cerinto viveu nos dias do apóstolo. Irineu conta que havia
alguns que tinham ouvido Policarpo de que João, o discípulo amado,
indo um dia tomar um banho em Éfeso, e vendo que Cerinto estava
dentro, saiu dos banhos precipitadamente sem banhar-se e exclamando:
“Fujamos, não seja que até os banheiros sejam derrubados; porque
Cerinto, o inimigo da verdade, está dentro” (Contra Heresias III, iii, 4).
Irineu também diz concretamente que João trata, por meio da
proclamação do Evangelho, arrancar o erro que Cerinto tinha semeado
entre os homens (Contra Heresias III, xi, 1).
É muito provável que ao escrever o Evangelho o apóstolo levasse
em conta o erro de Cerinto. Assim podemos explicar por que insiste
tanto no fato de que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e de que este
Cristo não se limitou a cobrir a Jesus sem estabelecer uma união real e
permanente, e sim adquiriu realmente a natureza humana e nunca se
voltou para despojar-se dela. Mesmo admitindo que o que Irineu
apresenta como propósito do quarto Evangelho seja verdade, devemos
repetir que também este objetivo é de caráter secundário: o propósito
negativo (combater o erro de Cerinto) estava subordinado ao positivo,
que tão maravilhosamente se declara em Jo 20:30, 31, e ao qual
dirigimos agora nossa atenção.

10
Veja-se sobre tudo F. Godet, op. cit., pp. 356–368.
João (William Hendriksen) 51
“Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais
que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram registrados para
que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,
tenhais vida em seu nome”.
Deve-se levar em conta que os melhores manuscritos dizem “para
que continuem crendo” (πιστεύητε). Os erros de homens como Cerinto,
que ensinava que Jesus não era Deus e que Cristo não tinha vindo em
carne (não tinha adotado a natureza humana), estavam minando a fé dos
crentes. O apóstolo, vendo este perigo e dirigido pelo Espírito Santo,
escreve o seu Evangelho para que a igreja permaneça na fé com relação a
Cristo. 11
Em consequência, o propósito de João não é, absolutamente, o de
escrever uma biografia completa de Jesus. Isto não teria sido possível: se
todas as coisas se relataram, os livros não teriam cabido em todo mundo
(Jo 21:25). Ele escreve para confirmar os crentes na doutrina que tinham
recebido.
Uma vez bem entendido este propósito, não será difícil
compreender por que João, de todos os eventos que tinham ocorrido e de
todas as palavras que se tinham pronunciado, seleciona precisamente
material adicional, quer dizer, material que não se encontra nos outros
Evangelhos, e que era o mais apropriado para tirar à luz do dia a glória
do Senhor, ou seja, Seu ofício messiânico e Sua divindade no sentido
mais exaltado da palavra. Levando em conta isso, observem-se os relatos
distintivos de João:
(a) As bodas de Caná. “Com este, deu Jesus princípio a seus sinais
em Caná da Galiléia; manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram
nele” (Jo 2:11).

11
Que este Evangelho foi escrito para restabelecer a fé dos crentes é também a posição de E. N.
Harris, “Why John wrote his Gospel”, WE 32(J1944), 250, 251.
João (William Hendriksen) 52
(b) A conversação com Nicodemos. “Porque Deus amou ao mundo
de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele
crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3:16).
(c) A conversação com a mulher samaritana. A mulher lhe disse:
“Eu sei, respondeu a mulher, que há de vir o Messias, chamado Cristo;
quando ele vier, nos anunciará todas as coisas”. Jesus lhe disse: “Eu o
sou, eu que falo contigo” (Jo 4:25, 26; cf. também Jo 4:29, 42).
(d) A cura do homem de Betesda e o discurso que segue. “Meu Pai
trabalha até agora, e eu trabalho também” (Jo 5:17; cf. 5:18: “…também
dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus”).
(e) A alimentação dos cinco mil e o discurso que segue. “De fato, a
vontade de meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nele crer tenha a
vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6:40).
(f) O discurso sobre a água viva, pronunciado na festa dos
Tabernáculos. “Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em
mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva” (Jo
7:37, 38).
(g) O discurso sobre a semente de Abraão. “Se, pois, o Filho vos
libertar, verdadeiramente sereis livres. … Quem dentre vós me convence
de pecado? … Em verdade, em verdade vos digo: se alguém guardar a
minha palavra, não verá a morte” (Jo 8:36, 46, 51).
(h) A cura do cego de nascimento. “… e o adorou” (Jo 9:38).
(i) O discurso sobre o Bom Pastor. “Eu e o Pai somos um” (Jo
10:30).
(j) A ressurreição de Lázaro. “Não te disse eu que, se creres, verás a
glória de Deus?” (Jo 11:40)
(k) O lavamento dos pés dos discípulos. “Jesus, sabendo que o Pai
tinha depositado nas suas mãos todas as coisas, e que havia saído de
Deus, e que ia para Deus, …” (Jo 13:3, RC, AV).
(l) Os discursos no cenáculo, e a oração sacerdotal (capítulos 14–
17). “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai
senão por mim. … E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único
João (William Hendriksen) 53
Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste. … E, agora,
glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de ti,
antes que houvesse mundo” (Jo 14:6; 17:3, 5).
(m) Algumas seções no relato da Paixão e da Ressurreição.
“Respondeu-lhe Tomé: Senhor meu e Deus meu!” (Jo 20:28).
Observe-se que todo este material, que só se encontra no quarto
Evangelho, tem seu centro em Jesus como o Cristo, o Filho de Deus, e
tem como propósito que a igreja continue crendo nEle para vida eterna.
Os milagres que se encontram neste Evangelho também dirigem a
atenção para o poder divino de Cristo. Em consequência, o filho do
nobre é curado à distância (Jo 4:46–53); o homem de Betesda tinha
estado doente durante trinta e oito anos (Jo 5:5); o cego de Jerusalém era
cego de nascença (Jo 9:1); e Lázaro já tinha estado quatro dias na tumba
(Jo 11:17). (Cf. L. Berkhof, New Testament Introduction, Grand Rapids,
Michigan, p. 104).
Os leitores a quem foi dirigido, em primeiro lugar, este Evangelho
viviam em Éfeso e a comarca vizinha, embora, como é natural, em
última instância se compôs para a igreja de todas as épocas, cf. Jo 17:20,
21. Os primeiros eram essencialmente cristãos procedentes do mundo
gentílico. Isto explica o porquê das notas explicativas que o evangelista
acrescenta com relação aos costumes e situações judaicas: Jo 2:6; 4:9;
7:2; 10:22; 18:28; 19:31, 41, 42.
Também explica sua forma especial de situar os lugares da
Palestina: Jo 4:5; 5:2; 6:1; 11:1, 18; 12:1, 21.

III. Características

(1) O Evangelho de João descreve, com poucas exceções, a obra de


Cristo na Judeia. A seguir damos o que poderia ser uma breve tábua
cronológica da estadia de nosso Senhor na terra, do pesebre até o Monte
das Oliveiras:
a. Dezembro do ano 5 a.C. — dezembro do ano 26 d.C:
João (William Hendriksen) 54
Preparação. Não se encontra no quarto Evangelho; mas cf. o
Prólogo: João 1:1–18.
b. Dezembro do ano 26 — abril de 27: Iniciação. João 1:19–2:12.
c. Abril de 27 — dezembro de 27: Primeiro ministério na Judeia.
João 2:13–4:42.
d. Dezembro de 27 — abril de 29: Grande Ministério na Galileia.
João 4:43–6:71.
e. Abril de 29 — dezembro de 29: Ministério de Retiro (abril-
outubro) e Último Ministério na Judeia (outubro-dezembro). João não
relata nada (Jo 7:1) do primeiro. Para o último veja-se João 7:2–10:39.
f. Dezembro de 29 — abril de 30: Ministério na Pereia. João 10:40–
12:11.
g. Abril-maio de 30: Paixão, Ressurreição e Ascensão. João 12:12–
21:25.
No Evangelho segundo João diz-se muito pouco a respeito do
Ministério na Galileia; e quase nada sobre o Ministério de Retiro. No
entanto, alguns acontecimentos e discursos do Primeiro e do Último
Ministério na Judeia recebem cuidadosa atenção. Na realidade, João
dedica mais espaço à obra de Cristo na Judeia do que se depreende da
Tábua Cronológica; pois o cenário do milagre que se relata no capítulo 5
foi Judeia. Do mesmo modo, embora a ressurreição de Lázaro tenha
ocorrido durante o Ministério na Pereia, na realidade teve lugar na
Judeia; e João se deleita em explicá-lo. O mesmo ocorreu com a unção
por Maria quando Jesus voltou (a Betânia) de Seu ministério na Pereia e
estava prestes a entrar nas agonias da Semana da Paixão. E, certamente,
a Paixão, Ressurreição e Ascensão tiveram lugar na Judeia, exceto o que
ficou registrado no capítulo 21.
Vemos, portanto, que com exceção do que temos no capítulo 1
(veja-se Jo 1:28), em Jo 2:1–11, em Jo 4:43–54, no capítulo 6, em Jo
10:40–42, e no capítulo 21, tudo se desenvolve na Judeia (e Samaria, Jo
4:1–42). Já demonstramos que esta diferença de cenário não constitui
uma contradição entre os Sinóticos e o quarto Evangelho.
João (William Hendriksen) 55
(2) O quarto Evangelho é muito mais concreto que os Sinóticos ao
indicar a hora e o lugar exatos dos eventos que se relatam. Baseando-se
nas grandes festividades que se mencionam neste Evangelho, pode-se
determinar a duração do ministério de Cristo.
(3) Como já indicamos, omite-se aqui uma grande parte do material
que encontramos nos Sinóticos. Não obstante, conserva-se a mesma
estrutura do relato que há neles, embora se tenhas acrescentado muito
material novo. Tudo isso harmoniza com o propósito específico do
evangelista e não implica nenhum conflito entre João e os Sinóticos.
(4) Prepondera neste Evangelho o ensino de Cristo, mas aqui este
ensino não é em forma de parábolas, como o é com frequência nos
Sinóticos, mas na de elaborados discursos. Isto simplesmente significa
que, enquanto esteve na Judeia dirigiu-se aos líderes religiosos dos
judeus e também quando falou com Seus discípulos no Cenáculo, Cristo
considerou mais apropriado falar sem parábolas. Isto não mostra de
modo algum que não pôde ter usado a forma parabólica na Galileia.
(5) O tema principal em João não é o reino, como nos Sinóticos,
mas o próprio Rei, a pessoa do Cristo, Sua divindade. Apesar de tudo, a
diferença não é absoluta. Também no Evangelho de João, Jesus aparece
falando sobre a entrada no reino (Jo 3:3–5); e de igual forma, nos
Sinóticos Jesus revela a glória de Sua pessoa divina. Por isso, tampouco
existe contradição quanto a isso.
(6) Com relação ao dito em (5), este é o Evangelho dos sete “Eu
sou”. Encontram-se nas seguintes passagens: Jo 6:35; 8:12; 10:9, 11;
11:25; 14:6; e 15:5.
(7) Este Evangelho detém-se longamente nos eventos e discursos de
um período de menos de vinte e quatro horas (capítulos 13–19).
(8) A promessa da vinda e obra do Espírito Santo menciona-se aqui
(Jo 14:16, 17, 26; 15:26; 16:13, 14) em conexão com outras grandes
verdades reveladas aos discípulos no Cenáculo (capítulos 14–17).
(9) O estilo do quarto Evangelho difere do estilo de Apocalipse,
mas isso não demonstra que o mesmo escritor não pôde ter escrito os
João (William Hendriksen) 56
dois livros. Por outro lado, não se devem exagerar as diferenças. A
afirmação de A. T. Robertson é certa: “O Apocalipse tem muito em
comum com o evangelho” (A Grammar of the Greek New Testament in
the Light of Historical Research, Nova York, 1923, p. 134). Em nenhum
dos dois emprega-se o optativo. Em ambos aparece ἵνα com um sentido
semifinal; e o mesmo pode-se dizer de οὖν. O verbo δίδωμι encontra-se
em ambos com mais frequência que em qualquer outro lugar do Novo
Testamento. Outras semelhanças interessantes são:
a. Água para o sedento: cf. João 4:10 com Ap. 22:17. Maná para o
faminto: cf. João 6:49–51 com o Ap. 2:17.
b. Autoridade recebida do Pai: cf. João 10:18 com Ap. 2:27.
c. Cristo, o Logos: cf. João 1:1 com o Ap. 19:13. Cristo, a Luz: cf.
João 1:4, 5, 7, 9; 3:19; 8:12; 9:5; etc. com o Ap. 22:5. Cristo, o Cordeiro:
cf. João 1:29 (grego ἁμνόζ) com o Ap. 5:6 e passim (grego ἁρνίον).
Cristo, o Esposo: cf. João 3:29 com Ap. 19:7, e Aquele que nos redimiu
com Seu sangue: cf. João 6:53–56 com Ap. 1:5; 5:9; 7:14; 12:11.
d. A igreja, a esposa: cf. João 3:29 com Ap. 19:7; 22:17.
(10) A frase “simples mas sublime” descreve o estilo deste
Evangelho. Especialmente no Prólogo e nos discursos no Cenáculo,
podemos observar uma corrente rítmica de muito efeito e
verdadeiramente fascinante. A maneira de coordenar as cláusulas, de
forma que com frequência uma verdade aparece positivamente e logo
negativamente, ou vice-versa (Jo 1:3; 14:6; 15:5, 6; 14:18; 15:16); o
modo em que uma cláusula que expressa a gloriosa graça do Logos vai
seguida de outra que mostra a ingrata reação daqueles que deviam tê-Lo
aceito (Jo 1:5, 10, 11); e sobretudo, o cuidadoso, e no entanto natural,
equilíbrio de orações para que as antíteses vão seguidas das sínteses, e as
cláusulas breves de orações mais longas, faz com que, em resumo, o
quarto Evangelho seja um livro verdadeiramente belo.
No Prólogo (Jo 1:1–18), a forma em que uma cláusula une-se a
seguinte pela repetição da palavra principal de maneira que as orações
fiquem como tábuas superpostas, faz-nos pensar na epístola de Tiago, o
João (William Hendriksen) 57
irmão do Senhor. (Veja-se nosso Bible Survey, Grand Rapids, Mich.,
1949, pp. 329, 332.)
Assim, em João 1:4–14, temos:
“A VIDA estava nele e a VIDA era a LUZ dos homens. A LUZ
resplandece nas TREVAS, e as TREVAS não prevaleceram contra ela. ...
Veio para o que era SEU, e os SEUS não o RECEBERAM. Mas, a todos
quantos o RECEBERAM, etc. [Jo 1:4,5, 10, 11]. Cf. também Jo 1:1 e
1:10.
Entre as palavras características do quarto Evangelho encontram-se
as seguintes:
ἀγαπάω, ἀλήφεια, ἀληφήζ, ἁληφινόζ, ἁμαρτία, ἀμήν, ἀμην,
γινώσκω, δίδωμι, δόξα, θεωρέω, ζωή, ζωή αἱώνιοζ, Ἱ ουδαῖος, κρίσιζ,
λόγος, μαρτυρέων, ὁράω, πατήρ, πιοστεύω, σημεῖον, σχοτία, φιλέω.
João é rico em contrastes, tais como: luz, trevas; espírito, carne;
terreno, celestial; de cima, da terra; vida, morte; amar, aborrecer; alegrar-
se, lamentar-se; angustiar-se, confiar; ver, tornar-se cego.

IV. Gramática

Nosso propósito não é oferecer uma exposição completa da


gramática de João. Outros já o fizeram; p. ex. E. A. Abbot, Johannine
Grammar, Londres, 1906. No comentário, e à medida que se apresentam,
mencionam-se pontos importantes de gramática e sintaxe. Além disso,
eles são básicos para a tradução que se oferece.
Com relação aos três tipos de construção, faz falta fazer uma
observação especial, segundo nosso ponto de vista. Estas construções se
apresentam com grande frequência no Evangelho de João. Referimo-nos
a orações condicionais, cláusulas com ἵνα, e cláusulas com ὅτι. Alguns
comentários dizem muito pouco com relação às mesmas. Outros — entre
os quais figuram alguns dos melhores — comentam algumas destas
construções, e não outras. Às vezes uma frase com ὅτι realmente
discutível não recebe nenhum comentário. Facilmente podemos ver a
João (William Hendriksen) 58
razão disso: é simplesmente impossível abranger num comentário todos
os pontos gramaticais. Se eu tratasse de fazê-lo, teria que escrever toda
uma série de livros para cada um dos Evangelhos.
O método que seguiremos tem certas características que esperamos
o farão aceitável. Descrevem-se os grupos ou subdivisões sob cada um
dos três tipos de frases antes mencionadas. Explicam-se as passagens
difíceis em que se apresentam as frases. Cada frase é colocada em sua
coluna correspondente. Cremos que esta forma de dirigir as frases de uso
frequente tem as seguintes vantagens:
1. Integridade. Tentou-se classificar todas estas frases, de modo que
de uma olhada possa ver-se a que grupo pertence cada uma.
2. Economia de espaço. Por que tem que ser necessário repetir vez
após vez um comentário: “Esta é uma oração condicional contrária ao
fato. A prótase contém εἱ com o passado de indicativo; a apódose leva o
passado de indicativo com ἄν. Como em ambas as partes encontra-se o
tempo imperfeito, sabemos que a frase refere-se à uma irrealidade atual”.
Pode-se economizar quase um centena destes breves parágrafos com
relação a orações condicionais e vários centenas mais com relação às
cláusulas com ἵνα e ὅτι por meio de um método mais simples; além
disso, o espaço economizado pode ser utilizado para outros comentários
importantes.
Por essa razão, neste comentário do quarto Evangelho, sempre que
se encontre uma oração condicional na tradução, há uma breve nota que
diz que esta oração condicional pertence ao grupo I D (ou III A 1, etc.,
conforme corresponde). Veja-se as pp. 43–67. Nas páginas indicadas
será encontrada uma explicação do grupo a que pertence a frase, e
também a coluna na qual está classificada. Quando o significado de ὅτι
ou de ἵνα é imediatamente óbvio, não se comenta no texto. Se for
discutível ou por qualquer razão discute-se, há uma referência à página
em que se explica. Estas referências acompanham as traduções.
3. Legalidade. Embora alguém não conheça grego, talvez não se
oponha à inclusão de alguma que outra palavra grega ou comentário
João (William Hendriksen) 59
técnico. Se alguém assim encontrar num comentário muito material
dessa índole, logo se desesperará. Por esta razão é provavelmente melhor
separar até certo ponto o seguinte material gramatical de grande
frequência do comentário propriamente dito. Os que assim leem grego
agradecerão a intenção feita para oferecer uma classificação completa.
Esta facilitará a comparação com pontos gramaticais parecidos nos
Sinóticos e, por exemplo, no livro de Apocalipse.
Classificação de orações condicionais no quarto Evangelho
Há três grupos principais de orações condicionais, como segue:

I. A oração condicional simples ou de primeira classe.


Neste caso presume-se que a condição é real. Aquele que seja ou
não realidade, não tem nada que ver com a forma da frase condicional.
Nesta classe de condição encontramos εἰ e qualquer tempo do
indicativo na prótase. Isto está totalmente de acordo com a ideia do
indicativo, porque esse modo emprega-se para afirmar atos (ou atos
presumidos). Se a prótase for negativa, utiliza-se a partícula negativa οὐ.
A apódose dessa frase condicional pode ser a afirmação de um ato
(Jo 13:14), expresso com o presente do indicativo; uma pergunta (Jo
1:25), também em indicativo (tempo presente em quase todos os casos);
uma predição (Jo 11:12), futuro de indicativo; ou um mandato (Jo 7:4),
no imperativo.
Em consequência, no quarto Evangelho, subdividem-se as orações
condicionais de primeira classe como segue:

Prótase A Apódose
Condição que se presume como verdadeira, Afirmação de um ato
indicativo indicativo
Aoristo Jo 3:12a Presente
Presente Jo 8:39 Presente
Aoristo Jo 13:14 Presente
João (William Hendriksen) 60
Perfeito com sentido de presente 13:17a Presente

B
Condição que se presume como real, indicativo Pergunta, indicativo
Presente Jo 1:25 Presente
Presente Jo 5:47 Futuro
Presente Jo 7:23 Presente
Presente Jo 8:46 Presente
Aoristo Jo 10:35, 36 Presente
Aoristo Jo 18:23b Presente

C
Condição que se presume como real, indicativo Predição, indicativo
Perfeito Jo 11:12 Futuro
Aoristo Jo 13:32 Futuro
Aoristo Jo 15:20 Futuro
(2 vezes)

D
Condição que se presume como real, indicativo Mandato ou Proibição, imperativo
Presente Jo 7:4 Aoristo
Presente Jo 10:24 Aoristo
Presente Jo 10:37 Presente
Presente Jo 10:38a Presente
Presente Jo 15:18 Presente
Presente Jo 18:8 Aoristo
Aoristo Jo 18:23a Aoristo
Aoristo Jo 20:15 Aoristo

II. Oração condicional contrária ao fato ou de segunda classe


João (William Hendriksen) 61
Presume-se que a condição (ou premissa) está em conflito com a
realidade. A prótase tem εἰ com o passado do indicativo; a apódose
contém o passado de indicativo com ἄν (ordinariamente). Uma oração
condicional contrária ao fato que alude ao tempo presente usa o
imperfeito em ambas as cláusulas (Jo 15:19). Uma oração condicional
contrária ao fato que se refere ao tempo passado usa o aoristo ou o mais-
que-perfeito em ambas (Jo 14:7). Às vezes, no entanto, passa-se do
presente na prótase ao passado na apódose (Jo 14:28); ou do passado ao
presente (Jo 15:22).
Na prótase a partícula negativa é μή, o qual não resulta estranho se
levar-se em conta que o que se afirma é contrário ao fato.
Distinguimos os seguintes três grupos de orações condicionais de
segunda classe:

A
Orações condicionais contrárias ao fato que se referem ao tempo
presente εἰ com o imperfeito do indicativo na prótase; o imperfeito de
indicativo com ἄν na apódose.
5:46
8:19 (mais-que-perfeito com sentido de imperfeito)
8:42
9:33
9:41
15:19
18:36

B
Orações condicionais contrárias ao fato que se referem ao tempo
passado εἰ com o aoristo ou mais-que-perfeito de indicativo na prótase; o
aoristo ou mais-que-perfeito de indicativo com ἄν na apódose. Nestas
orações pode-se considerar a ἦν como aoristo em seu significado, porque
não se tem a forma do aoristo.
João (William Hendriksen) 62
11:21
11:32
14:2
14:7
C
Orações condicionais mistas contrárias ao fato
Prótase εἰ com Apódose com ou sem ἄν
Mais-que-perfeito
como imperfeito Jo 4:10 Aoristo
Imperfeito Jo 14:28 Aoristo
Aoristo Jo 15:22 Imperfeito
Aoristo Jo 15:24 Imperfeito
Imperfeito Jo 18:30 Aoristo
Mais-que-perfeito Jo 19:11 Imperfeito

III. Oração condicional chamada futuro mais vívido ou de terceira


classe
Concebe-se a condição nem como realidade nem como em conflito
com a realidade, e sim como uma realidade provável. A prótase, em
consequência, utiliza ἐάν com o subjuntivo. Em quase três quintas partes
dos casos, o quarto Evangelho utiliza na prótase esta classe de oração
condicional, o aoristo de subjuntivo; nas outras duas quintas partes, o
presente de subjuntivo. João é mais afeiçoado a este último que os
Sinóticos. À maneira de exceção encontra-se o perfeito de subjuntivo na
prótase.
Quando a prótase tem o aoristo de subjuntivo, a apódose costuma
ter o futuro do indicativo; às vezes, o presente de indicativo; outras vezes
incluso o subjuntivo ou imperativo.
Quando a prótase tem o presente de subjuntivo, a apódose
geralmente toma o presente do indicativo; às vezes, o futuro do
indicativo; mencionar-se-ão umas poucas exceções.
João (William Hendriksen) 63
Na prótase a partícula negativa é μή, como se podia esperar com
relação a um modo que indica incerteza.
Distinguimos os seguintes grupos e subgrupos:

A
Orações condicionais chamadas futuro mais vívido, que usam ἑάν
com o aoristo de subjuntivo na prótase, indicando que o verbo se
considera como um só conceito.
1
Com futuro de indicativo na apódose
Jo 3:12b
Jo 5:43
Jo 6:51
Jo 8:24
Jo 8:36
Jo 8:55
Jo 10:9
Jo 11:40
Jo 11:48
Jo 12:32
Jo 14:3b
Jo 14:14
Jo 15:10
Jo 16:7a
Jo 20:25

2
Com presente de indicativo na apódose
Jo 7:51
Jo 8:31
Jo 8:54
Jo 12:24
João (William Hendriksen) 64
Jo 12:47?
Jo 13:8
Jo 14:3a
Jo 19:12
3
Todos os outros
Apódose
Jo 8:51 Aoristo de subjuntivo
Jo 8:52 Aoristo de subjuntivo
Jo 9:22 Aoristo de subjuntivo (depois de ἵνα subfinal)
Jo 15:7 Aoristo de imperativo
Jo 16:7a Aoristo de subjuntivo
Jo 20:23a Perfeito de indicativo

B
Orações condicionais chamadas futuro mais vívido, que usam ?άν
com o presente de subjuntivo na prótase, indicando que o verbo significa
ação continua.
1
Com presente do indicativo na apódose
Jo 5:31
Jo 8:14
Jo 8:16
Jo 9:31
Jo 19:38b
Jo 11:9
Jo 11:10
Jo 13:17b
Jo 15:14
Jo 21:22 (implícito)
Jo 21:23 (implícito)
Jo 21:25
João (William Hendriksen) 65

2
Com futuro de indicativo na apódose
Jo 7:17
Jo 12:26b
Jo 13:35
Jo 14:15
Jo 14:23

3
Todos outros
Apódose
Jo 6:62 Deve acrescentar-se
Jo 7:37 Presente de imperativo
Jo 12:26a Presente de imperativo
Jo 20:23b Presente de indicativo

C
Orações condicionais chamadas futuro mais vívido, que utilizam
ἑάν com o perfeito passivo de subjuntivo perifrástico na prótase, que
indica que o verbo refere-se a uma ação no passado que ainda continua
em vigor no presente.

Apódose
Jo 3:27 Presente do indicativo
Jo 6:65 Presente do indicativo

Classificação das cláusulas ἵνα no quarto Evangelho


João (William Hendriksen) 66
A grande frequência de ἵνα (com muita frequência num sentido
subfinal ou não final, porém com mais frequência para indicar propósito)
é uma das características do quarto Evangelho. 12
A fim de explicá-lo, alguns sustentam que é simplesmente koinê
vernáculo, pelo qual o escritor mostra grande afeição; outros assinalam a
influência do aramaico. Não há dúvida de que ambos os fatores devem
ter-se em mente. E acaso não é possível que na raiz de ambos haja um
terceiro fator, ou seja, que em qualquer língua existe preferência pela
análise mais que pela síntese, preferência que tende a manifestar-se
através do tempo? Hoje em dia, por exemplo, o infinitivo quase
desapareceu da língua grega.
Depois de ter realizado um estudo independente do uso de ἵνα no
quarto Evangelho, segundo o texto do Novum Testamentum Graece,
preparado por D. Eberhard Nestle y D. Erwin Nestle, vigésima edição,
1950, chegamos às conclusões que se encontram tabuladas em colunas
nas páginas seguintes.
A coluna I menciona todas as frases ἵνα que, segundo nós,
expressam propósito. Depois de cada referência nesta e nas outras
colunas encontra-se uma menção do tempo, voz (para todos os verbos
que podem ter objeto, e nesse sentido são transitivos), e modo do verbo
(ou verbos) precedidos de ἵνα. No texto do Evangelho o verbo em
questão não segue necessariamente a ἵνα mas sim lhe pertence. Assim,
em 14:3 o verbo que se menciona na coluna não é εἰμί e sim ἧτε. Quando
a descrição do verbo vai precedida de neg. (ativo), o texto contém ἱνα
μή. Em todos os casos em que ἵνα expressa propósito, traduziu-se a fim
de que ou para que. Uma boa ilustração de ἵνα introduzindo uma frase
de propósito é Jo 3:16: “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que
deu o seu Filho unigênito, para que (ἵνα) todo o que nele crê não pereça,
mas tenha a vida eterna”.

12
C. F. Burney chama-o “um dos fenômenos mais notáveis deste Evangelho”, The Aramaic Origin of
the Fourth Gospel, Oxford, 1922, p. 69.
João (William Hendriksen) 67
A coluna II A faz referência a todas as frases ἵνα que funcionam
como: a. sujeito (de toda uma oração ou de uma cláusula mais extensa
dentro da oração) ou b. complemento subjetivo ou c. apositivo (do sujeito
ou de seu complemento) ou d. modificador de qualquer destes três.
A frase ἵνα de Jo 4:34 [grego] proporciona uma boa ilustração: “A
minha comida é que faça a vontade daquele que me enviou, e que acabe
sua obra” (ἵνα ποιῶ … καὶ τελειώσω).
A coluna II B contém as cláusulas ἵνα que funcionam como: a.
objeto (de uma oração inteira ou de uma cláusula mais ampla dentro da
oração ou inclusive de uma frase) ou b: seu apositivo. Verbos de pedir,
rogar (suplicar, solicitar), mandar, nomear, etc., com frequência levam
uma cláusula ἵνα como objeto.
Uma ilustração desta classe de cláusula encontra-se em Jo 17:15:
“Não peço que os tires do mundo, e sim que os guardes do mal.” (ἵνα
ἂρῃς … ἂλλʼ ἵνα τηρήσῃς).
Quando ἵνα introduz uma cláusula substantiva ou uma cláusula
objetiva (colunas II A e II B), traduziu-se em geral com que. Em outros
casos se utilizou um infinitivo para toda a cláusula ἵνα. A tradução “a fim
de que” não se utilizou nunca para estas cláusulas. O fato de ser
totalmente legítimo utilizar um infinitivo para traduzir uma frase com ἵνα
vê-se claramente se comparar-se Jo 1:27 com Lc. 3:16; este usa o
infinitivo e aquele contém a frase ἵνα; no entanto, ambos transmitem o
mesmo pensamento.
A coluna IIC contém as cláusulas de resultado ou consequência
com ἵνα. Uma das mais claras é Jo 9:2, onde se desse a ἵνα toda a força
ou sentido de desígnio ou intento, resultaria um significado dificilmente
aceitável. Claro que alguns falam de “preordenação” ou predestinação
inclusa neste caso (se não humana, então divina), mas é muito mais
natural e simples considerar esta cláusula ἵνα como indicando
simplesmente resultado; por isso o traduzimos:
“Rabi, quem pecou, este homem ou seus pais, para que (ἵνα)
nascesse cego?”
João (William Hendriksen) 68
Em muitos casos fica imediatamente claro em que sentido usa-se
ἵνα. Há outros, no entanto, nos quais excelentes gramáticos e intérpretes
chegaram a conclusões opostas. Algumas autoridades (sobretudo da
velha escola) negam-se a admitir que ἵνα introduza alguma vez uma
cláusula de resultado. Mas se ἵνα (cf. ut em latim) tem o sentido ecbático
no grego tardio fora do Novo Testamento, não há nenhuma razão
suficiente para sustentar que não pode ter esse significado no Novo
Testamento. A linguagem, afinal de contas, é algo vivo. Nunca é
prudente limitar de forma muito estrita o significado das palavras.
Outros, no entanto, vão ao extremo oposto e se negam a ver o significado
de propósito nem sequer em passagens que falam do cumprimento de
profecias (p. ex., Jo 13:18). Além disso, quereriam alargar muita a lista
de cláusulas de resultado com ἵνα. No entanto, diante de essa opinião
subsiste o fato de que neste Evangelho prepondera a ideia de propósito:
Jo 1:7, 8; 3:17; 5:23, 34, 36; considera-se a história (neste caso a história
redentora sobre tudo, embora não se podem separar as duas) como a
realização do plano e da vontade de Deus: Jo 4:34; 5:30; 6:37, 44, 64;
18:37; 19:28; e nesse plano se designou a hora exata em que deve
ocorrer cada um dos acontecimentos da história da redenção: Jo 2:4; 7:6,
30; 8:20; 13:1. Este Evangelho tem um caráter predestinatário do
princípio ao fim, como poderá ver qualquer estudante que sem
preconceitos queira lê-lo. Assim, pois, devemos conceder toda sua força
e sentido de intenção ou desígnio às cláusulas ἵνα de cumprimento
profético.
De fato, é verdade que às vezes é muito difícil estabelecer a linha
divisória entre cláusulas de propósito e cláusulas de resultado. Devem
permitir-se diferenças honestas de opinião (por exemplo, em casos como
Jo 5:40; 6:5; 9:36; e 14:29). Alguns, para fechar a brecha entre propósito
e resultado têm falado de cláusulas de resultado esperado.
Outro problema com que nos enfrentamos é o da sutil distinção que
às vezes deve fazer-se entre cláusulas substantivas, por um lado (se
forem sujeito ou objeto; p. ex., se pertencerem à coluna IIA ou a IIB), e
João (William Hendriksen) 69
cláusulas de propósito (Coluna I) por outro. Poderia, pois, perguntar-se:
Deverá tomar-se as três cláusulas com ἵνα em Jo 17:21 como de
propósito? Ou, deve-se considerar a primeira e a segunda como cláusulas
de objeto, e a terceira como de propósito? Embora nos inclinemos em
favor da segunda alternativa, porque as duas primeiras frases parecem
estar regidas por um verbo interrogativo, enquanto que a terceira é de
forma substancialmente diferente, a primeira alternativa tem entre seus
defensores a famosos exegetas que recorrem a Jo 17:22b e 23a nos quais
se costumam considerar como cláusulas de propósito as que se
assemelham em contido às duas primeiras do versículo 21. Felizmente,
no entanto, as interpretações finais não variam muito, quer seja que se
adote a primeira ou a segunda alternativa.
Em vista do que antecede deverá ficar evidente que o que se propõe
nas colunas deve considerar-se como uma tentativa sincera de precisão.
Cremos que a classificação é em sua maior parte correta.
Quanto a estatísticas, observe-se o seguinte:
As cláusulas finais com ἵνα (Coluna I) são um pouco mais de 100,
enquanto que as não finais com ἵνα (Colunas IIA, IIB, IIC) são perto de
40. De modo que, a proporção das cláusulas finais com relação às não
finais com ἵνα no quarto Evangelho é de 5 para 2.
A proporção de aoristo a presente de subjuntivo (e uns poucos
perfeitos perifrásticos) em todo o grupo de cláusulas com ἵνα é um pouco
mais de 2 para 1.
A proporção de cláusulas positivas (ἵνα) a negativas (ἵνα μή) é de
perto de 7 para 1.
Também há umas poucas cláusulas mistas (um verbo negativo, o
outro positivo, como em Jo 3:16).

I. Cláusulas Finais II. Cláusulas não Finais

A B C
SUJEITO OBJETO RESULTADO
João (William Hendriksen) 70
1:7(a)aor, at., subj.
explica μαρτυρίαν
1:7(b)aor, at., subj.
1:8 aor, at., subj.
1:19 aor, at., subj.
1:22 aor, at., subj.
1:27 aor, at., subj.
explica ἄξιος
1:31 aor, pas., subj.
2:25 aor, at., subj.
explica χρείαν
3:15 pres. at. subj.
3:16 aor, med, neg.
subj. e pres., at. subj.
3:17(a)aor.(ou pres.)
at., subj.
3:17(b) aor. pas. subj.
3:20 aor, pas, neg, subj.
3:21 aor. pas. subj.
4:8 aor. at. subj.
4:15 pres, neg, subj.
e pres, med, neg.
subj.
4:34 pres. act. subj.
(ποιήσω aor. act.
subj. también tiene
mucho apoyo) y
aor. act. subj.
4:36 pres. at. subj.
4:47 aor, at., subj. e
aor, med., subj.,
5:7 aor., at., subj.
modifica ἄνθρωπον
5:14 aor. med. neg. subj.
5:20 pres. at. subj.
5:23 pres. at. subj.
5:34 aor. pas. S ubj.
João (William Hendriksen) 71
5:36 aor. at. subj.

5:40 pres. act. subj.


6:5 aor. act. subj.
6:7 aor. at. subj.

6:12 aor. med. neg. subj.


6:15 aor. at. subj.
6:28 pres. med. subj.
6:29 pres. at. subj.
explica τοῦτο
6:30 aor. at. subj. e
aor. at. subj.
6:38 pres. at. subj.
6:39 aor. at. neg.
subj. ou fut. at. ind.;
aor. at. subj. ou fut.
at. ind.; estes verbos
explicam τοῦτο
6:40 pres. at. subj.;
explica τοῦτο
6:50 aor. at. subj. e
aor. at. neg. subj.
7:3 fut. at. ind.
7:23 aor. pas. neg. subj.
7:32 aor. at. subj.
8:6 pres. at. subj.
8:56 aor. at. subj.
8:59 aor. at. subj.
9:2 aor. pas. subj.
9:3 aor. pas. subj.
9:22 aor. med. subj.
9:36? aor. at. subj.
9:39 pres. at. subj.
e aor. subj.
10:10(a)
aor. at. subj. e
João (William Hendriksen) 72
aor. at. subj. e
aor. at. subj.
10:10(b) pres. at.
subj. e pres. at. sub.
10:17 aor. at. subj.
10:31 aor. at. subj.
10:38 aor. at. subj.
e pres. at. subj.
11:4 aor. pas. subj.
11:11 aor. at. subj.
11:15 aor. at. subj.
11:16 aor. subj.
11:19 aor. med. subj.
11:31 aor. at. subj
11:37 aor. at. neg. subj.
11:42 aor. at. subj.
11:50 aor. subj. e
aor. med. neg. subj.
11:52 aor. at. subj.
11:53 aor. at. subj.
11:55 aor. at. subj.
11:57 aor. at. subj.
12:7 aor. at. subj.
(acrescente: era)
12:9 aor. at. subj.
12:10 aor. at. subj.
12:20 aor. at. subj.
12:23 aor. pas. subj.
modifica ὥρα tem
quase força temporal
12:35 aor. at. neg. subj.
12:36 aor. subj.
12:38 aor. pas. subj.
12:40 aor. at. neg.
subj. e aor. at.
neg. subj. e aor.
at. neg. subj. e
João (William Hendriksen) 73
fut. at. neg. ind.
12:42 aor. med. neg. subj.
12:46 aor. at. neg. subj.
12:47 (a) aor. at. subj.
12:47 (b) aor. at. subj.
13:1 aor. at. subj.;
modifica ὥρα
13:2 aor. at. subj.
13:15 pres. at. subj.
13:18 aor. pas. subj.
13:19 pres. at. subj.
13:29 aor. at. subj.
13:34 pres. at. subj.;
explica ἐντολήν
14:3 pres. subj.
14:13 aor. pas. subj.
14:16 pres. subj.
14:29? aor. at. subj.
14:31 aor. at. subj.
15:2 pres. at. pres.
15:8 pres. at. subj.;
modifica ἐν τούτῳ
15:11 pres. subj. e
aor. pas. subj.
15:12 pres. subj.
at.; explica αὕτη
15:13 aor. at. subj.;
explica ἀγάπην
15:16 (a) pres. subj.
e pres. at. subj. e
pres. subj.
15:16 (b)
aor. at. subj.
15:17 pres. at. subj.
15:25 aor. pas. subj.
16:1 aor. pas.
neg. subj.
João (William Hendriksen) 74
16:2 aor. at. subj.;
modifica ὥρα; tem
quase força temporal
16:4 pres. at. subj.
16:7 aor. at. subj.
16:24 perf. pas.
per. subj.
16:30 pres. at. subj.
16:32 aor. pas. subj.
e aor. at. subj.
16:33 pres. at. subj.
17:1 aor. at. subj.
17:2 aor. at. subj.
(outro texto tem
fut. at. ind.) explica
ἐξουσίαν
17:3 pres. at. subj.;
explica αὕτῃ
17:4 aor. at. subj.
17:11 pres. subj.
17:12 aor. pas. subj.
17:13 pres. at. subj.

17:15 (a) aor. at. subj.


17:15 (b) aor. at. subj.
17:19 perf. pas.
perifr. subj.
17:21 (a) pres. subj.
17:21 (b) pres. subj.
17:21 (c) pres. at. subj.
17:22 pres. subj.
17:23 (a) perf. pas.
perifr. subj.
17:23 (b) pres. at. subj.
17:24 (a) pres. subj.
17:24 (b) pres. at. subj.
17:26 pres. subj.
João (William Hendriksen) 75
18:9 aor. pas. subj.
18:28 aor. pas. neg.
subj. e aor. at. subj.
18:32 aor. pas. subj.
18:36 aor. pas. neg. subj.
18:37 aor. at. subj.
18:39 aor. at. subj.;
explica συνήθεια
19:4 aor. at. subj.
19:16 aor. pas. subj.
19:24 aor. pas. subj.
19:28 aor. pas. subj.
19:31 (a) aor. neg. subj.
19:31 (b) aor. subj.
e aor. pas. subj.
19:35 pres. at. subj.
19:36 aor. pas. subj.
19:38 aor. at. subj.
20:31 (a) pres. at. subj.
20:31 (b) pres. at. subj.

Classificação das cláusulas ὅτι no Evangelho de João


Neste Evangelho encontra-se ὅτι com muita maior frequência que
em qualquer outro. Tem três usos principais: causal, declarativo e
recitativo. Aproximadamente uma terça parte dos exemplos são causais,
um pouco mais da metade são declarativos, e uma nona parte são
recitativos. Concretamente:
1. Um ὅτι causal pode-se traduzir porque, visto que, pois. Veja-se a
Coluna I mais abaixo.
2. Um ὅτι declarativo introduz uma cláusula que é objeto direto de
um verbo de declaração, testificar, ver, dizer, pensar, ouvir, lembrar,
saber, etc. Uma cláusula assim pode-se chamar de apresentação indireta
(se o termo emprega-se em seu sentido mais amplo). A tradução é que.
Veja-se Coluna II mais abaixo. A lista também contém uns poucos
exemplos que não são estritamente declarativos (assim, Jo 3:19
João (William Hendriksen) 76
epexegético; Jo 14:22 provavelmente consecutivo). Em Jo 6:46
provavelmente temos um uso elíptico: “Não que alguém”, etc.
2. Um ὅτι recitativo introduz uma citação direta. Em português iria
entre aspas (“.…”).
Neste Evangelho, quando o escritor cita Jesus diretamente, depois
da palavra “disse”, geralmente omite ὅτι (veja-se Jo 18:5). Quando cita
outras pessoas diretamente, suas palavras vão precedidas de ὅτι (Jo 1:20;
9:9). Há, no entanto, vários exemplos de discurso indireto (Coluna II),
nos quais apresenta-se a Jesus citando suas próprias palavras. Nestes
casos usa-se o ὅτι declarativo (Jo 1:50; 6:36; 8:24; etc.). A tendência
atual é considerar como recitativo o ὅτι depois de Ἀμὴν ἀμὴν λέγω. 13
Na grande maioria dos casos entende-se o significado distintivo de
ὅτι pelo próprio contexto. Assim, por exemplo, em Jo 8:47 (onde ὅτι vai
precedido de διὰ τοῦτο) é evidente o sentido causal. Assim também
depois de palavras que indicam dizer, ver, etc., não há dificuldade
geralmente para discernir o significado declarativo; veja-se p. ex., Jo
4:20. Também é muito claro que em Jo 1:20 ὅτι deve ser recitativo (não
há mudança de primeira a terceira pessoa), e que em Jo 4:51 é
declarativo (mudança de segunda a terceira pessoa). Também há casos
em que ὅτι pode ser declarativo ou recitativo sem que o sentido seja
afetado; p. ex., Jo 4:37.
Mas às vezes ὅτι cria problemas. Note-se o seguinte:

13
Assim várias versões deixam sem traduzir ὅτι em Jo 5:24, 25, de modo que não aparece a distinção
entre a construção sem ὅτι em Jo 5:19 e em Jo 5:24, 25. Cabe fazer-se a pergunta de se talvez a
presença de ὅτι depois de Ἀμὴν ἀμὴν λέγω acrescenta-lhe algo à natureza de voltar a assumir as
palavras que seguem às palavras de solene introdução. Se for assim, a construção tenderia rumo à
direção de apresentação indireta, como se Jesus voltasse a afirmar o já dito mas que agora repete com
palavras diferentes, talvez com uma nova ideia ou uma nova ênfase. Pode-se defender bem esta
posição com cada um dos casos em que as palavras introdutórias aparecem com ὅτι (Jo 3:11; 5:24, 25;
8:34; 10:7; 13:21; e 16:20). N. N. omite em todos os outros casos em que se encontra Ἀμὴν ἀμήν λέγω
σοι (ὁ ὑμῖν) (Jo 1:51; 3:3, 5; 5:19; 6:26, 32, 47, 53; 8:51, 58; 10:1; 12:24; 13:16, 20: 13:38; 14:12;
16:23; e 21:18). No entanto, a situação se complica com o fato de que em alguns casos há discussão
quanto ao texto.
João (William Hendriksen) 77
Jo 2:18. Neste caso, parece que terei que ir para além do simples
declarativo que para reproduzir o sentido de ὅτι. Os judeus não podem
ter querido dizer, “O que sinal nos amostras (para provar) que faz estas
coisas?” Não puseram em tela de juízo o fato de que Jesus realmente
tinha purificado o templo. O que queriam saber era como justificava
Seus atos; que razão boa e legítima podia apresentar. Isto se refere a ὅτι
com sentido causal.
Assim traduzimos, “Que sinal nos amostras, visto que fazes estas
coisas?”
Jo 3:7; 4:27; 5:28. O verbo grego θαυμάζω pode-se usar tanto em
sentido absoluto como com o acusativo de pessoa ou coisa. Uma vez que
se entende isso (ou seja, o fato de que o verbo pode ter objeto, e que esse
objeto pode ser uma só palavra ou até uma cláusula inteira), é fácil ver
que o ὅτι que segue ao verbo pode ser declarativo (introduzindo uma
cláusula com que). A forma em que se usa o verbo em Jo 3:7 e em Jo
4:27 não difere muito dos verbos que indicam declarar, testificar, dizer,
etc. (veja-se baixo 2), que em geral levam um ὅτι parecido, antecipante,
declarativo. Por conseguinte, embora nem em Jo 3:7 nem em Jo 4:27
importe muito para o significado final que se traduza “que” ou “porque”,
preferimos, no entanto, a tradução “que”.
Em Jo 5:28 a situação difere. Neste caso o objeto do verbo (μὴ)
θαυμάζετε não é uma frase, e sim o pronome τοῦτο. Além disso, τοῦτο
evidentemente se refere ao que precede. Não antecipa (neste caso);
porque se o fizesse, significaria que Jesus estava dizendo aos judeus que
deixassem de maravilhar-se de algo que ainda não havia lhes dito, a
saber, os detalhes referentes à futura ressurreição física. Por isso, a frase
μὴ θαυμάζετε τοῦτο é completa em si mesma e em nossas edições vai
adequadamente seguida de um ponto e vírgula. A frase ὅτι que segue ao
ponto e vírgula indica a razão da proibição imediatamente anterior. A
tradução correta, em consequência, é “porque”.
Jo 3:19. Neste caso Crisóstomo e outros tomaram ὅτι em seu
sentido causal. No entanto, a comparação com outras passagens
João (William Hendriksen) 78
semelhantes — 1Jo 1:5; 5:9, 11, 14 — mostra imediatamente que aqui se
usa ὅτι de forma epexegética, quer dizer, acompanhando uma cláusula
que está em aposto com um substantivo que a precede, para explicá-lo.
Assim, 1Jo 5:14 só se pode traduzir: “E esta é a confiança que temos
nele, que (e não porque) se pedirmos alguma coisa conforme a sua
vontade, ele nos ouve”. Quanto à forma, Jo 3:19 é exatamente
semelhante, e deve-se traduzir ὅτι por “que”.
Jo 4:35 (b). Neste caso tanto que como porque têm sentido. No
entanto, o contexto (versículo 35a) pareceria indicar que Jesus não quer
dizer: Contemplai os campos (fazê-lo porque branqueiam), mas antes,
Fixem os olhos na brancura de estes campos (em contraste com os
campos comuns). Temos aqui um verbo de ver com um objeto direto e
uma cláusula objetiva.
Jo 8:22. Em passagens como este (e como Jo 11:47) há uma elipse;
de modo que toda a pergunta pode-se parafrasear assim: “Então, diziam
os judeus: Terá ele, acaso, a intenção de suicidar-se? Porque (ou visto
que, ὅτι) diz: Para onde eu vou vós não podeis ir”.
Jo 14:2. Em nossa explicação desta passagem mostra-se que é
possível e inclusive provável neste caso que ὅτι equivalha a porque. Não
estamos de acordo com os expositores que insistem num ὅτι declarativo,
como se o sentido causal ficasse completamente excluído.
Quando se toma ὅτι como declarativo há duas possibilidades:
a. “Se assim não fosse (quer dizer, se não houvesse muitas mansões
na casa de meu Pai), eu vo-lo teria dito que vou preparar-vos lugar”
[RSV]. Esta explicação faz Jesus dizer que se não houvesse no céu
mansões predestinadas para os filhos de Deus, Ele mesmo iria tomar as
medidas necessárias para mudar a situação, e que nesse caso teria
informado a Seus discípulos a respeito desses planos. Mas não há dúvida
de que esta interpretação é impossível: Jesus e o Pai não estão em
conflito no Evangelho de João.
b. “Se assim não fosse, teria eu lhes dito que vou preparar-vos
lugar?” esta interpretação, sim, é possível, e muito melhor que a anterior.
João (William Hendriksen) 79
No entanto, surge a pergunta, «Quando Jesus havia dito isso a Seus
discípulos (ou seja, que ia preparar-lhes um lugar)?» Deve conceder-se a
possibilidade de que se tivesse dado um ensino tão importante como este
sem que o Evangelho o referisse; a probabilidade, no entanto, não é
muito grande.
Basicamente não há muita diferença entre b. (ὅτι, que numa
pergunta) e a posição de que ὅτι deve ser considerado como causal. Em
qualquer dos dois casos há dois fatos que ou se ensinam especificamente
ou pelo menos são sugeridos:
a. Na casa do Pai há lugar abundante para todos os Seus filhos.
b. Um dos propósitos da ascensão de Cristo ao céu foi preparar tudo
o que está relacionado com as mansões dos escolhidos.

Classificação das cláusulas ὅτι no Novo Testamento

I. CAUSAL II. DECLARATIVA III. RECITATIVA


(PRINCIPALMENTE)

= pois, porque, visto que = que = “…”


1:15
1:16
1:17
1:20
1:30
1:32
1:34
1:50(a)
1:50(b)
2:17
2:18
2:22
2:25
3:2
3:7
3:11
João (William Hendriksen) 80
3:18
3:19
3:21
3:23
3:28(a)
3:28(b)
3:33
4:1 (a)
4:1 (b)
4:17
4:19
4:20
4:21
4:22
4:25
4:27
4:35(b) 4:35(a)
4:42(b)
4:44
4:47
4:51
4:52
4:53
5:6
5:15
5:16
5:18
5:24
5:25
5:27
5:28
5:30
5:32
5:36
5:38
5:39
5:45
João (William Hendriksen) 81
6:2
6:5
6:14
6:15
6:22(a)
6:22(b)
6:24
6:26(a)
6:26(b)
6:36
6:38
6:41
6:42
6:46
6:61
6:65
6:69
7:1
7:7(a)
7:7(b)
7:8
7:12
7:22
7:23
7:26
7:29
7:30
7:35
(quase de resultado: de modo que)
7:39
«7:40»
8:14
8:16
8:17
8:20
8:22
8:24(a)
João (William Hendriksen) 82
8:24(b)
8:27
8:28
8:29
8:33
8:34
8:37(a)
8:37(a)
8:43
8:44(a)
8:44(b)
8:45
8:47
8:48
8:52
8:54
8:55
9:8
9:9 (a)
9:9 (b)
9:11
9:16
9:17(a)
9:18
9:19
9:20(a)
9:20(b)
9:22
9:23
9:24
9:25
9:29
9:30
9:31
9:32
9:35
9:41
João (William Hendriksen) 83
10:4
10:5
10:7
10:13
10:17
10:26
10:33
10:34
10:36(a)
10:36(b)
10:38
10:41
11:6
11:9
11:10
11:13
11:15
11:20
11:22
11:24
11:27
11:31(a)
11:31(b)
11:40
11:41
11:42(a)
11:42(b)
11:47
11:50
11:51
11:56
12:6(a)
12:6(b)
12:9
12:11
12:12
12:16
João (William Hendriksen) 84
12:18
12:19
12:34(a)
12:34(b)
12:39
12:41
12:49
12:50
13:1
13:3 (a)
13:3 (b)
13:11
13:19
13:21
13:29
13:33
13:35
14:2
14:10
14:11
14:12
14:17(a)
14:17(b)
14:19
14:20
14:22
14:28(a)
14:28(b)
14:28(c)
14:31
15:5
15:15(a)
15:15(b)
15:18
15:19
15:21
15:25
João (William Hendriksen) 85
15:27
16:3
16:4 (a)
16:4(b)
16:6
16:9
16:10
16:11
16:14
16:15
16:17
16:19(a)
16:19(b)
16:20
16:21(a)
16:21(b)
16:26
16:27(a)
16:27(b)
16:30(b)
16:30(b)
16:32
17:7
17:8(a)
17:8(b)
17:8(c)
17:9
17:14
17:21
17:23
17:24
17:25
18:2
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18:9
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19:4
19:7
19:10
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19:28
19:35
19:42
20:9
20:13
20:14
20:15
20:18
20:31
21:4
21:7
21:12
21:15
21:16
21:17(a)
21:17(b)
21:23(a)
21:23(b)
21:24

Influência do aramaico sobre o grego do quarto Evangelho


Com relação à possível influência do aramaico sobre o grego do
quarto Evangelho, provavelmente o melhor é evitar os extremos. 14 Por

14
Ver W. F. Albright, “Some Observations Favoring the Palestinian Origin of the Gospel of John,”
HThR, abril 1924; do mesmo autor, From the Stone Age to Christianity, Baltimore 1940, pp. 299, 300.
Haveria que ler pelo menos: C. F. Burney, The Aramaic Origin of the Fourth Gospel, Oxford, 1922;
O. T. Allis, “The Alleged Aramaic Origin of the Gospels”, PThP 26 (1928), 531–572; E. C. Colwell,
The Greek of the Fourth Gospel, Chicago, 1931; G. D. Dalman, Jesus-Jeshua, Studies in the Gospels,
Nueva York, 1937, cap.VI; J. de Zwaan, “John wrote Aramaic”, JBL, 57 (1938), 155–171; el debate
Riddle-Torrey, CHrC, julho 18-outubro 31, 1934; F. W. Wilson, One Lord-One Faith, Filadelfia,
João (William Hendriksen) 87
um lado, pareceria óbvio que um livro composto em Éfeso para os
efésios e os das cercanias, um Evangelho que devia ser lido por cristãos
de fala grega que viviam entre gentios, teria que escrever-se em grego. 15
Mas como seu escritor era judeu cuja língua materna era o aramaico, e
como as fontes primárias deste Evangelho devem ter sido aramaicas,
pareceria igualmente óbvio que suas peculiaridades linguísticas sejam
vistas frequentemente como aramaísmos; quando menos como
semitismos. É verdade que se pode encontrar equivalências para muitas
destas características em Epicteto ou nos papiros ou em ambos. Segue
em pé, no entanto, a pergunta de se quando se encontram tantas
peculiaridades, algumas delas com frequência, juntas no âmbito
relativamente estreito de um Evangelho, e quando, além disso, sabe-se
que o escritor e também a Pessoa cujas palavras reproduz eram judeus de
fala aramaica, se sob tais circunstâncias não é melhor reconhecer à
língua arameia uma influência formativa que contribuiu em parte para
determinar a classe de grego que se encontra em tal Evangelho. Assim,
pois, o emprego de várias palavras aramaicas, paralelismos que se
apresentam a cada passo (com frequência quiasmos), sujeitos elípticos,
expressões características (como “respondeu e disse” que também
aparece com frequência na seção aramaica do livro de Daniel), καi no
sentido de “mas” (ou “e contudo”), coordenação de cláusulas em lugar
de subordinação (parataxe em lugar de hipotaxe), e um uso abundante
(redundante?) de pronomes e do presente histórico, parecem totalmente
naturais quando um os encontra num livro escrito por um autor com o
nome de e alma judaicos.

1943, pp. 31–35; e as obras de C. C. Torrey, especialmente The Four Gospels, A New Translation,
Nova York e Londres, 1933; Our Translated Gospels, Nova York e Londres, 1936; e Documents of
the Primitive Church, Nova York e Londres, 1941.
15
F. W. Ginrich, “The Gospel of John and Modern Greek”, ClW, 36 (1942–1943), 122–123,
encontrou semelhança entre o grego de João e o grego moderno.
João (William Hendriksen) 88
V. Tema e divisões

O tema é dado em Jo 20:31: Jesus, o Cristo, o Filho de Deus. Há


uma divisão clara no final do capítulo 12. Cristo Se separa das multidões
e Se retira para o círculo íntimo de Seus discípulos.
Podem apresentar-se bons argumentos em favor de distintas
subdivisões dentro de cada uma destas duas partes principais. Preferimos
o seguinte:
Os primeiros seis capítulos constituem uma unidade extensa.
Proclamam o glorioso Filho de Deus que veio como homem, é
apresentado revelando-Se a Si mesmo a círculos cada vez mais amplos, e
então é rejeitado, primeiro na Judeia (capítulo 5) e logo na Galileia
(capítulo 6). Estes capítulos (depois do Prólogo, Jo 1:1–18) abrangem
vários grandes eventos e discursos que pertencem a um período de
aproximadamente dois anos e quatro meses; ou seja, desde dezembro do
ano 26 à Páscoa do ano 29. Segue um período do meio ano (O Ministério
do Retiro, da Páscoa à Festa dos Tabernáculos) a respeito do qual João
cala.
Os capítulos 7–10 constitui outra unidade. Relatam eventos e
discursos que ocorreram durante o período de outubro a dezembro do
ano 29 (da Festa dos Tabernáculos à Festa da Dedicação). A conclusão
do capítulo 10 indica que estamos de novo diante de uma divisão natural
(veja-se Jo 10:40–42). Esta subdivisão descreve o Filho de Deus fazendo
uma terna chamada aos pecadores e ao mesmo tempo repreendendo os
Seus inimigos cujo ódio e sinistro empenho com relação a Ele vão
crescendo paulatinamente.
Os capítulos 11 e 12 formam a terceira e última subdivisão dentro
da primeira divisão principal. O Verbo apresenta-Se como revelando-Se
a Si mesmo com clareza por meio de dois poderosos atos: A ressurreição
de Lázaro e a entrada triunfal em Jerusalém. Esta seção nos leva ao
começo da Semana da Paixão. Como já se indicou, o parágrafo final do
João (William Hendriksen) 89
capítulo 12 (veja-se sobretudo o versículo 37) forma uma conclusão
natural de toda a primeira parte do Evangelho.
A segunda parte, capítulos 13–21, pode ser facilmente dividida em
quatro seções. Estas são:
O capítulo 13 é independente, embora constitua uma introdução
natural aos discursos no Cenáculo. Mas aqui no capítulo 13, diferente
dos capítulos 14–17, temos material narrativo. Há ação, intercalada com
conversação dramática. Vemos o Mestre e os seus discípulos na Ceia.
Ele promulga e ilustra Seu novo mandamento de que devem amar-se uns
aos outros como Ele os amava. O relato referente à negação de Pedro,
que aparece nos versículos finais deste capítulo (Jo 13:36–38, a
predição), continua mais adiante (em Jo 18:15–18 e versículos 25–27, o
cumprimento da pregação). Entre esta predição e seu cumprimento está a
unidade dos capítulos 14–17.
Os capítulos 14–17 estão claramente inter-relacionados. Contêm os
discursos da Ceia e a Oração Sacerdotal. O Senhor instrui meigamente a
Seus discípulos e em Sua oração põe aos cuidados de Seu Pai a Si
mesmo, a eles, e aos que chegarão a crer por meio da palavra dos
discípulos.
Nos capítulos 18 e 19 se descreve Cristo morrendo como substituto
de Seu povo. É evidente, naturalmente, que também esta seção constitui
uma unidade.
A subdivisão final abrange os capítulos 20 e 21: a ressurreição e as
aparições.
Temos dividido o quarto Evangelho em duas grandes divisões e sete
subdivisões, três na primeira divisão principal e quatro na segunda.
Embora não pretendamos mais mérito para este esboço, mas o fato de
que é natural, como se indicou, e fácil de lembrar, no entanto, resulta
interessante observar que o apóstolo João, escritor do quarto Evangelho e
do Apocalipse, tem preferência por esta classe de distribuição. No
Apocalipse também subdivide às vezes os conjuntos de sete em dois
grupos, com três elementos no primeiro e quatro no segundo ou vice-
João (William Hendriksen) 90
versa. (Veja-se nosso Más que Vencedores, Grand Rapids, reimpresso
1977, pp. 19 e 68.) De fato, o livro de Apocalipse também se divide
exatamente na mesma maneira.
Observe-se o paralelismo:

Evangelho de João: Jesus, o Cristo, o Livro de Apocalipse: O triunfo de Cristo


Filho de Deus e sua igreja sobre Satanás e os seus
I. Durante seu ministério público I. A luta na terra
A. Revela-Se a Si mesmo a círculos A. Cristo no meio dos sete candelabros
cada vez mais amplos, é rejeitado de ouro

B. Faz uma chamada aos pecadores, B. O livro dos sete selos


é duramente resistido

C. Se manifesta como o Messias por meio C. As sete trombetas do juízo


de duas poderosas obras, é repudiado

II. Durante Seu ministério privado II. O profundo fundo espiritual


A. Emite e ilustra seu novo mandamento A. A mulher e o filho varão perseguidos
pelo dragão e os seus

B. Instrui meigamente aos seus e os B. Os sete cálices de ira


põe ao cuidado do Pai

C. Morre como substituto de seu povo C. A queda da grande meretriz e das


bestas

D. Triunfa gloriosamente D. O juízo sobre o dragão, seguido do


novo céu e a nova terra
(Quanto a este esquema, veja-se Más que vencedores, pp. 11–20)

O plano do Evangelho de João é realmente maravilhoso. A


distribuição é excelente. Vemos o Verbo em Sua glória antes da
encarnação, de modo que podemos valorizar seu amor condescendente
ao vir à terra para salvar aos pecadores. Em Seu ministério terrestre vai
se revelando a círculos cada vez mais amplos, mas é rejeitado tanto na
Judeia como na Galileia. No entanto, não destrói imediatamente os que
João (William Hendriksen) 91
O rejeitaram, mas antes, faz uma terna chamada aos pecadores, a fim de
que O aceitem pela fé. Enquanto isso a oposição vai se tornando mais
ativa e a resistência mais dura. Com duas obras poderosas Ele Se
manifesta claramente como o Messias. Mas enquanto os gregos O
buscam, os judeus, que viram provas tão evidentes de Sua natureza,
amor e poder, O repudiam. Ele Se vota, pois, ao Seu círculo íntimo,
instrui-os meigamente no Cenáculo, e pouco antes de Seu sofrimento
final e morte encomenda-os ao cuidado do Pai. Em Sua própria morte
vence ao mundo e por meio de Sua ressurreição revela o significado da
cruz.
João (William Hendriksen) 92
I. ESBOÇO DOS CAPÍTULOS 1–6
Tema: Jesus, o Cristo, o Filho de Deus, que durante Seu ministério
público Se revela a Si mesmo a círculos cada vez mais amplos,
é rejeitado.
Jo 1:1–18 1. A glória do Filho, como Verbo de Deus.
a. No princípio.
b. Na criação.
c. Depois da Queda.
d. Na encarnação.
Jo 1:19–4:54 2. revela-se a si mesmo a círculos cada vez mais
amplos.
a. A João Batista, o qual testifica a respeito dele.
b. A seus discípulos mais achegados. Seu
testemunho; sua fé ao presenciar o primeiro
sinal.
c. A Jerusalém. A purificação do templo; a
conversação com Nicodemos.
d. A Judeia. A retirada de João Batista.
e. A Samaria. A conversação com a mulher
samaritana e o ministério entre os habitantes de
Sicar.
f. A Galileia. A cura do filho de um nobre.
Jo 5–6 3. Rejeitado
a. Na Judeia, em consequência da cura do homem
de Betsaida no sábado, e das declarações feitas
em tal circunstância.
b. Na Galileia, como resultado do discurso sobre o
Pão da vida.
João (William Hendriksen) 93
JOÃO 1
JO 1:1–5

Este Evangelho começa maravilhosamente. Começa descrevendo a


vida de Cristo na eternidade, antes de que o mundo existisse. Aquela
vida era rica e gloriosa, cheia de infinita delícia e serena bem-
aventurança na presença do Pai. Se a pessoa compreender esta verdade,
apreciará com mais intensidade o amor condescendente de Cristo ao
fazer-se carne.
1:1 No princípio — quando os céus e a terra foram criados (Gn 1:1)
o Verbo já existia. Esta é outra maneira de dizer que existia desde a
eternidade. Não foi, como alguns hereges afirmavam, um ser criado.
(Veja-se II da Introdução.)
Era o Verbo. Tanto João como os hereges falaram sobre o Verbo (ὁ
λόγος); mas embora o vocábulo fosse o mesmo, o significado era
diferente. A doutrina de João não dependia das doutrinas de hereges nem
das de filósofos especulativos como Filo, notável pensador de
Alexandria que se destacou no primeiro século de nossa era. Nunca se
sabe o que fazer do logos de Filo. Embora empregue este termo mais de
mil e trezentas vezes, nunca lhe dá um significado definido.16 Em
algumas ocasiões ele o descreve como um atributo divino, mas às vezes
é como uma ponte entre Deus e o mundo, que não se identifica com
nenhum dos dois mas que participa da natureza de ambos. Filo
alegorizava e isso torna difícil a compreensão de seu significado. Assim,
por exemplo, ao considerar, em seu comentário de Gênesis 3:24, os
querubins armados de uma espada de fogo à entrada do Éden para
impedir o acesso à árvore da vida, Filo os interpreta como dois poderes
divinos: a misericórdia e a soberania de Deus. A espada é o Logos ou a

16
Cf. H. Bavinck, The Doctrine of God, Grand Rapids, Michigan, 1951 pp. 260–264; W. F. Howard,
Christianity According to John, Filadélfia, 1946, pp. 34–56.
João (William Hendriksen) 94
Razão que une a ambas. Balaão, o profeta néscio, não tinha espada
(Razão), visto que disse ao jumento: “Tomara que tivesse espada em
minha mão, que agora te mataria” (Sobre o Querubim XXXII).
Certamente, o termo, tal como o evangelista o emprega, não pode
derivar seu significado de uma alegorização semelhante. Suas raízes não
estão no pensamento grego e sim no semita. 17 Já no Antigo Testamento
apresenta-se o Verbo de Deus como Pessoa.
Veja-se especialmente Sl. 33:6: “Pela palavra de Jeová (LXX: τῷ
λόγῳ τοῦ κυρίου) foram feitos os céus”. O melhor comentário de João
1:1 encontra-se provavelmente em Pv. 8:27–30:

“Quando firmava as nuvens de cima;


Quando estabelecia as fontes do abismo;
Quando fixava ao mar o seu limite,
Para que as águas não traspassassem os seus limites;
Quando compunha os fundamentos da terra;
Então, eu estava com ele e era seu arquiteto,
Dia após dia, eu era as suas delícias,
Folgando perante ele em todo o tempo”.

O termo Verbo aparece no Novo Testamento, para designar a


Cristo, só em Jo 1:1, 14; 1Jo 1:1; e Ap. 19:13. Uma mesma palavra serve
para dois propósitos distintos: a. dá expressão ao pensamento interno, à
alma do homem, fazendo-o até sem que haja ninguém para ouvir o que
se diz ou para ler o que se pensa; e b. revela este pensamento (e portanto
a alma do qual fala) a outros. Cristo é o Verbo de Deus em ambos os
sentidos: expressa ou reflete a mente de Deus; e também revela o que é
Deus ao homem (Jo 1:18; cf. Mt. 11:27; Hb. 1:3).

17
Cf. R. Harris, The Origin of the Prologue to St. John’s Gospel, Cambridge, 1917, especialmente p.
6; W. F. Albright, From Stone Age to Christianity, Baltimore, 1940, p. 285; W. F. Howard, op. cit., p.
47; W. P. Phythian-Adams, “The Logos Doctrine of the Fourth Gospel”, CQR, 139 (1944) 1–23.
João (William Hendriksen) 95
18
E o Verbo estava com Deus (πρὸς τὸν θεόν). O significado é que o
Verbo existia na comunhão mais estreita possível com o Pai, e que
aquele achava profundamente no Logos que nunca se apagou de sua
consciência, como se evidencia em sua oração sacerdotal:
“Agora. glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu
tive junto de ti, antes que houvesse mundo” [Jo 17:5].
Deste modo a encarnação começa a destacar-se mais claramente
como uma obra de infinita condescendência e incompreensível amor.
E o Verbo era Deus. Para fazer recair toda a ênfase na absoluta
divindade de Cristo, no original o predicado precede ao sujeito. (και θεός
ἦν ὁ λόγος). Em oposição a todo herege deve ficar bem claro que este
Verbo era completamente divino.
2. Ele estava no princípio com Deus.
Este Verbo absolutamente divino, que existia desde a eternidade
como uma Pessoa distinta, desfrutava de amorosa comunhão com o Pai.
Desta forma se confessa mais uma vez a plena divindade de Cristo, Sua
eternidade, e Sua existência pessoal e distinta, para refutar os hereges e
para que a igreja fique alicerçada na fé e no amor de Deus.
3. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada
do que foi feito se fez.
Todas as coisas, uma a uma, foram criadas por meio deste Verbo
divino. Assim, a grande verdade de que Cristo criou todas as coisas
(visto que nas obras externas as três Pessoas cooperam) afirma-se em
primeiro lugar positivamente e do ponto de vista passado. Enunciado
negativamente e do ponto de vista do presente se expressa assim: “… e
sem ele nem uma só coisa do que existe chegou a ser”.
Aqui se fazem ressaltar dois atos: a. que o próprio Cristo não foi
criado; existia eternamente (para expressar este pensamento emprega-se
quatro vezes o tempo imperfeito nos versículos 1 e 2); e b. que todas as

18
O Novo Testamento contém mais de 600 exemplos de πρός com acusativo. Isto indica movimento
ou direção para um lugar, ou como aqui, estreita proximidade; daí, amizade, intimidade, neste
contexto.
João (William Hendriksen) 96
coisas (contempladas distributivamente, uma a uma sem nenhuma
exceção) foram criadas por Ele (aqui se faz uso do aoristo).
4. A vida estava nele.
Não diz através de mas em, igual que em Jo 5:26; 6:48, 53; 11:25.
A cláusula “a vida estava nele” significa que desde toda a
eternidade e através da antiga dispensação a vida residia no Verbo. Por
isso o melhor texto tem “estava”, e não “está”.
O que significa aqui a palavra vida? Refere-se diretamente a todo
tipo de vida, seja física ou espiritual, seja a vida de uma mariposa ou a de
um arcanjo?
A vida física, no entanto, não reside na segunda pessoa da Trindade.
Deus não é físico em nenhum sentido (cf. Jo 4:24). Por outro lado, é uma
boa regra exegética ver se um termo fica explicado quando se prossegue
a leitura. Aplicando tal regra neste caso, o resultado é o seguinte:
A vida identifica-se com a luz dos homens (Jo 1:4b). Esta luz
resplandece nas trevas e não a fazem sua os homens pecadores (Jo 1:5).
João Batista dá testemunho com relação a esta luz (vv. 6, 7). Ele não era
a luz original e perfeita, diante de cujo brilhantismo, qualquer outra luz
empalidece, mas veio para dar testemunho com relação à luz (vv. 8, 9).
Agora esta luz fica identificada como Aquele a quem o mundo rejeita
mas que é aceito pelos filhos de Deus (vv. 10–13).
Deste contexto se depreende claramente que os termos vida e luz
pertencem à esfera espiritual. Além disso, tanto no quarto Evangelho
como na Primeira Epístola, o termo vida (ζωή) sempre (54 vezes)
pertence a essa esfera. Às vezes aparece intercambiado com a expressão
“vida eterna” (Jo 5:24). Quando alguém possui realmente esta vida,
experimenta uma íntima comunhão com Deus em Cristo (Jo 17:3). O
significado é similar no livro de Apocalipse (livro da vida, água da vida,
árvore da vida, coroa da vida).
De tudo isto parece evidente que o termo refere-se basicamente à
plenitude da essência de Deus, aos Seus gloriosos atributos: santidade,
verdade (conhecimento, sabedoria, veracidade), amor, onipotência,
João (William Hendriksen) 97
soberania. Esta vida completa e bendita de Deus esteve presente no
Verbo desde a eternidade e através de toda a antiga dispensação: “A vida
estava nele”.
Mas embora esta vida seja absolutamente espiritual e não haja nela
nada de caráter físico, ela é, no entanto, a causa, fonte, ou princípio de
toda vida, tanto física como espiritual. 19 O universo deve a Ele sua
existência: “Todas as coisas por ele foram feitas; e sem ele nem uma só
coisa do que existe veio a ser (versículo 3); incluindo naturalmente a
humanidade (versículo 10). É certo, naturalmente, que esta luz é também
a fonte da revelação geral. Este contexto, não obstante, não faz menção
específica desta ideia. Está implícito, naturalmente, mas não se expressa.
No contexto presente (Prólogo de João) a vida de Deus em Cristo, à qual
todas as coisas e todos os homens devem sua existência, representa-se
como a fonte da iluminação dos homens quanto a assuntos espirituais e
da salvação eterna dos filhos de Deus. O que temos aqui é um contexto
do evangelho. Daí que lemos:
E a vida era a luz dos homens. Quando a vida se manifesta chama-se
luz, visto que a característica da luz é resplandecer. Desde a Queda, que
já está implícita na última cláusula do versículo 4, aquela luz foi
anunciada aos homens. A humanidade caracterizava-se pelas trevas, a
maldade e o ódio, tudo o que é o oposto da luz. Durante a antiga
dispensação proclamou-se aos homens (especialmente a Israel; veja-se a
explicação dos versículos 10, 11) o amor e a verdade de Deus em Cristo.
Amor e verdade são sinônimos de luz, (veja-se Jo 3:19–21 tanto para
sinônimos como para antônimos; também 1Jo 2:8–10.) Naturalmente,
não devemos limitar o significado do termo luz a estes dois atributos
unicamente (amor e verdade); estes, antes, representam todos os
atributos de Deus. Na obra da salvação todos os atributos divinos se
mostraram. Foram proclamados aos homens pecadores.
19
Cf. E. Smilde, Leven in De Johanneische Geschriften, tese doutoral apresentada à Universidade
Livre de Amsterdã, Kampen, 1943; em especial pp. 11–15, e a primeira das 20 proposições ou
exposições.
João (William Hendriksen) 98
5a. A luz resplandece nas trevas. Cf. versículo 9: a luz ilumina a
todo homem.
Observe-se a mudança no tempo, de imperfeito a presente: não só
brilhava a luz através de toda a antiga dispensação, mas também ainda
continua brilhando, visto que o resplandecer é a característica própria da
luz. Por outro lado, embora o Verbo (Cristo) é Aquele em quem reside a
vida e por quem esta apresenta-se iluminando como luz, ele também é
chamado a luz. (Cf. Jo 1:9; 8:12; 1Jo 2:8.) Bem como o sol no céu, esta
luz resplandece na promessa mãe (Gn. 3:15), no livro do Êxodo com o
cordeiro pascal e todos os outros símbolos, em Levítico com as ofertas
que anunciam o derramamento do sangue de Cristo, em Números com a
serpente levantada no alto (Nm. 21:8; cf. Jo 3:14, 15), sim, em todos os
livros históricos, proféticos e poéticos da antiga dispensação. Vejam-se,
p. ex., Gn. 49:10; Dt. 18:15–18; 2Sm. 7:12–14; Sl. 40:6, 7; 72; 110; 118;
Is. 1:18; 7:14; 9:6; 11:1 e seguintes; 35:5; 40; 42:1–4; 53; 54; 55; 60; 61;
63; 65; Os. 11:8; Am. 5:4; Mq. 5:2; 7:18: Ag. 2:9; Zc. 9:9; 13:1; Ml.
1:11. Devemos insistir, no entanto, em que a luz não brilha só nestas
profecias, promessas e convites, mas o faz também através de toda a
antiga dispensação e em todo o Antigo Testamento; igualmente o faz na
nova dispensação e em todo o Novo Testamento, revelando a Deus em
todos os Seus gloriosos atributos. Aquela luz segue resplandecendo hoje
em meio das trevas deste mundo.
A triste resposta a esta comunicação da luz se expressa na segunda
parte do versículo 5:
5b. E 20 as trevas não prevaleceram contra ela.
As trevas às quais o evangelista faz referência têm um significado
concreto. referem-se à humanidade caída e entenebrecida pelo pecado e a
20
O fato de que καί especialmente no quarto Evangelho tem com frequência o significado de mas ou
e, contudo vê-se com clareza em passagens como Jo 7:19; 16:32; 20:29. Cf. também Mt. 7:23; Mc.
4:16, 17; Lc. 10:24; 13:17. B. D. B., ao comentar a respeito de waw, conjunção hebraica que se traduz
por καί, afirma que une ideias contrastantes, enquanto que em nossa língua o contraste expressar-se-ia
explicitamente com a palavra mas. Veja-se Gn. 2:17; e um uso similar em aramaico, Dn. 2:6; 3:6, 18;
4:4.
João (William Hendriksen) 99
incredulidade. Não é este o único caso no Novo Testamento em que um
nome abstrato adquire um significado concreto. Temos outros exemplos
em Rm. 11:7 (“a eleição” significa o remanescente eleito), e em Rm.
3:30 (“a circuncisão” significa os indivíduos circuncidados). Estas trevas
são um sinônimo do “mundo” do versículo 10. São o antagonista de
Cristo, que é a luz. A escuridão é ativa e pessoal: não aceitou ou fez sua
a luz.
Uma tradução com crescente aceitação interpreta οὐ κατέλαβεν por
não a venceram, não a superaram ou não a apagaram ou extinguiram.
Cremos que isto está errado. Visto que a forma das três cláusulas dos
versículos 5b e 10b, e 11b é muito similar, é natural que também sejam
similares em significado. Encontramos aqui uma chamativa ilustração de
paralelismo:
“as trevas αὐτό οὐ κατέλαβεν (v. 5b);
“o mundo não o reconheceu” (v. 10b);
“os seus não o receberam” (v. 11b).
Fica imediatamente claro que a tradução “não prevaleceram contra
ela” (do versículo 5b) não encaixa neste paralelismo. A tradução não se
apropriaram dela (ou não a acolheram) é muito melhor. Por outro lado,
o significado radical e usual do verbo é tomar, agarrar, (às vezes no
sentido de surpreender, Jo 6:17; 12:35) apreender, tomar posse de,
agarrar. Também se pode usar para designar apreensão ou percepção
mental (veja-se Rm. 9:30; 1Co. 9:24; Fp. 3:12).
Mas até traduzindo corretamente: mas as trevas não a acolheram,
devemos sublinhar que nos achamos diante de uma figura da linguagem
chamada litote. Em passagens tais como Jo 3:20 (cf. Ef. 6:12) é evidente
que as trevas não se comportam meramente de modo negativo; pelo
contrário, odeiam a luz. Isto se refere a toda a humanidade contemplada
como poder hostil que resiste ativamente a luz e recusa aceitá-la.
Encontramo-nos aqui diante da absoluta antítese entre a luz e as trevas, o
reino de Deus e o do mundo, Cristo e as forças do maligno.
João (William Hendriksen) 100
Síntese de Jo 1:1–5
A glória do Filho (ou Verbo):
a. No princípio. Quando o universo foi criado, Ele já existia; existe
desde a eternidade. 21 O Verbo desfrutava de uma eternidade de
comunhão imensamente íntima com o Pai, alegrando-se sempre em sua
presença. Ele era Deus.
b. Na criação. Todas as coisas, uma a uma, alcançaram sua
existência por meio dEle. De tudo o que existe hoje não há nada que se
originasse sem Ele.
c. Nele desde a eternidade e também depois da Queda, durante toda
a antiga dispensação, a vida rica e plena de Deus residia nEle. Na mesma
dispensação aquela vida fez-se manifesta: os atributos gloriosos de Deus,
exibidos na obra da salvação, foram proclamados à humanidade. A vida
que se manifesta chama-se luz. Portanto, a vida era a luz dos homens.
Mas a luz continua resplandecendo também na nova dispensação: o
resplandecer está na própria natureza da luz. O mundo, no entanto, não
se apropriou dela: recusou-a obstinadamente e se opôs ativamente à
mensagem da verdade e o amor de Deus. Odiou a Cristo em quem residia
a vida de Deus e de quem resplandecia esta, como luz, aos que estão em
trevas.

JO 1:6–13

1:6. Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João.
Apresenta-se a João Batista como um exemplo do constante
resplendor da luz. Por esta referência ao arauto do Senhor vê-se outra
vez claramente que o escritor está falando da luz (não da razão ou da
consciência, mas sim) do amor e a verdade de Deus concentrados em
Jesus Cristo; quer dizer, refere-se à luz da salvação. João, cujo nome

21
A respeito da doutrina da preexistência real do Logos, veja-se S. BK., p. 353.
João (William Hendriksen) 101
significa “Jeová foi misericordioso”, tinha sido enviado (ἀπεσταλμένος
particípio perfeito passivo, que indica resultado permanente; do verbo
ἀποστέλλω) da parte de, comissionado por, Deus. O propósito de sua
vinda é dada nos versículos 7 e 8:
7, 8. Este veio como testemunha para que 22 testificasse a respeito da
luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele. Ele não era a luz,
mas veio para que testificasse da luz.
A natureza exata da obra de João Batista devia ser esclarecida pela
razão que já indicamos na seção Leitores e Propósito. Parece como se o
evangelista quisesse dizer: o Batista nunca se atribuiu o que alguns
hereges lhe atribuem hoje em dia. Claramente, ele não era a luz! Era uma
testemunha (versículo 8). Um exame cuidadoso dos versículos 6, 7 e 8,
comparando-os com os vv. 1, 2, 9 revela os seguintes pontos de contraste
entre Cristo e João:

Cristo João
a. era (ἦν) desde a eternidade: a. veio (ἐγένετο);
b. é o Verbo (ὁ λόγος); b. é simplesmente um homem (ἄνθρωπος);
c. é o próprio Deus c. vem comissionado por Deus;
d. é a luz verdadeira; d. veio para testificar a respeito da luz verdadeira
e. é o objeto de toda confiança e. é o agente por cujo testemunho os homens
chegam a confiar na luz verdadeira que é
Jesus Cristo.

O Batista veio (εἰς μαρτυρίαν) para dar testemunho, quer dizer, com
o propósito de testificar. O termo testemunho emprega-se quase
exclusivamente nos escritos de João. Encontra-se no quarto Evangelho,
nas epístolas de João e no livro de Apocalipse.
Vejam-se as seguintes passagens: Jo 1:7, 19; 3:11, 32, 33; 5:31, 32,
34, 36; 8:13, 17; 19:35; 1Jo 5:9, 10; 3Jo 12; Ap. 1:2, 9; 6:9; 11:7; 12:11,
17; 19:10, 35; 20:4. É provável que as palavras testemunho e testificar

22
Acerca de ἵνα, véase IV de la Introducción.
João (William Hendriksen) 102
empreguem-se aqui em seu sentido primário; quer dizer, (dar)
testemunho competente sobre algo que a gente mesmo viu, ouvido ou
experimentado. Isto se deduz do que se afirma nos versículos Jo 1:29,
32, 34. A cláusula (versículo 7) para testificar, repetida para maior
ênfase no versículo 8, explica a expressão anterior “para dar
testemunho”.
O propósito do testemunho do Batista era que por meio dele (διʼ
αὐτοῦ) todos cressem (πάντες πιστεύσωσιν). A ordem do original é
precisamente o reverso: para que todos cressem, por meio dele. Tem-se
exposto, portanto, o seguinte problema: “A quem se refere por meio
dele, a Cristo ou a João (o Batista)? Preferimos este último pelas
seguintes razões:
a. Em nenhum outro lugar faz uso o evangelista da expressão crer
por meio dele significando crer por meio de Jesus. Jesus sempre aparece
como objeto (não como agente) da fé (cf. Jo 3:16).
b. O sujeito do versículo 7 é João Batista, e o versículo 8 segue
tendo o mesmo sujeito. A construção natural é referir o pronome ele
(ἐκεῖνος) do versículo 8, que certamente refere-se ao Batista, ao pronome
ele (na frase por meio dele) do versículo 7.
Para que por meio dele todos cressem (πιστεύσωσιν aoristo
primeiro de subjuntivo ativo, ingressivo). Embora o substantivo fé
(πίστις) não se encontre no quarto Evangelho, e só uma vez nas epístolas
de João (1Jo 5:4), el verbo crer, não obstante, aparece quase cem vezes
neste Evangelho e nove na Primeira Epístola; quer dizer, tantas vezes
quanto nos Sinóticos. Nos Sinóticos Cristo também se apresenta como o
objeto da fé (Mt. 18:6). Em algumas ocasiões se empregam expressões
sinônimas tais como vir a Jesus, receber ou confessá-Lo (Mt. 10:32, 40;
11:28). Por outro lado, como se poderia dar significado a passagens tais
como Mt. 7:22, 23; 25:31 e seguintes, sem aceitar o fato de que Cristo Se
considerava como o legítimo objeto da fé e confiança, de modo que a
resistência a aceitá-Lo supunha castigo eterno? Também Paulo proclama
João (William Hendriksen) 103
a necessidade da fé na pessoa de Cristo e em Sua expiação (Rm. 3:22,
25; Gl. 2:16, 20; Ef. 1:5; Fp. 3:9; Cl. 1:4; 2:5; etc.).
A intenção d e João Batista era que todos aqueles que ouvissem seu
testemunho abraçassem a Cristo por meio de uma fé viva. Os versículos
4 e 5, e também o 9, revelam que Cristo é a luz; o Batista é um refletor.
Este último é luz num sentido secundário. Por isso só se pode chamá-lo
tocha que ardia e iluminava (Jo 5:35). João testifica a respeito do Cristo
como a lua o faz com relação ao sol.
9. A saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo
homem. 23
Aqui se denomina a Cristo a luz verdadeira pela razão exposta em
Jo 1:5. O vocábulo traduzido por verdadeira é ἀληθινός, que significa
real, ideal, genuína. O Verbo é aquela luz perfeita diante de cuja
brilhantismo todas as demais luzes parecem quase escuras.
Esta luz ilumina a todo homem. Entre as diversas interpretações que
se deram e que devemos considerar, estão as seguintes:
a. Cristo, que é a luz, concede realmente iluminação espiritual, no
sentido mais alto e pleno da palavra, a todo ser humano que habita nesta
terra, sem nenhuma exceção.
b. Cristo concede esta iluminação espiritual, a qual renova tanto o
coração como a mente, a todo filho da aliança (seja eleito ou não).
Alguns a tornam a perder.
c. Cristo concede esta bênção suprema a todo homem que é salvo;
no sentido de que nenhum dos salvos recebe esta iluminação de nenhuma
outra fonte.
23
Poderia traduzir-se como segue: “Havia a luz verdadeira — essa luz que ilumina a todo homem —
que vinha ao mundo”. A diferença em significado entre a tradução citada e a que damos acima é
insignificante. Segundo esta ἐρχόμενον considera-se como particípio complementar, que se combina
com ἦν para formar um imperfeito perifrástico. Isto dá uma frase fácil e sem ambiguidades. A única
objeção contra isso seria que o particípio fica muito separado do verbo. Mas João utiliza com
frequência a construção perifrástica, como se devia esperar, por ser o escritor deste Evangelho um
judeu de fala aramaica. Com frequência encontram-se palavras entre ἦν e o particípio. Neste caso, no
entanto, estaria de por meio toda uma frase. Daí que a escolha entre as duas traduções indicadas está
nivelada. Veja-se também E. A. Abbott, Johannine Grammar, Londres, 1906, pp. 220 y 367.
João (William Hendriksen) 104
d. Cristo derrama sobre todo ser humano, sem exceção, a luz da
razão e da consciência.
e. Cristo ilumina a todo homem que ouve o evangelho, quer dizer,
comunica um certo grau de compreensão nos assuntos espirituais (que
não resulta necessariamente na salvação) a todos aqueles a cujos ouvidos
e mente chega a mensagem de salvação. A maioria, não obstante, não
responde favoravelmente. Muitos dos que têm a luz preferem as trevas.
Alguns, no entanto, devido completamente à graça soberana e salvadora
de Deus, recebem a palavra com a devida atitude de mente e coração, e
obtêm a vida eterna.
As interpretações a. e b. podem-se rejeitar imediatamente. O quarto
Evangelho ensina uma expiação limitada. Nem todos são salvos, mas
todos os que o são, permanecem nesse estado (Jo 10:28). Embora alguns
eminentes exegetas conservadores apoiam a interpretação d., e ela
certamente ensina uma parte da verdade que não devemos negar, não
cremos que neste contexto — ou em qualquer lugar do quarto Evangelho
em que se usa o termo luz (φῶς) — faça-se referência específica à luz da
razão e da consciência. 24 A posição que aceitamos é que a luz de que
João fala é a vida de Deus em Cristo — e portanto o próprio Cristo —
feita manifesta ao mundo pela pregação do evangelho. (Veja-se o
versículo 4 para razões que apoiam esta posição.)
Nosso parecer é que os únicos critérios defensáveis são c. e e. E
destes dois preferimos o último pelas seguintes razões:
Primeiro: esta explicação harmoniza com o contexto que lhe segue.
Observe-se que também os versículos 10, 11 e 12 fazem referência a um
círculo mais amplo e a outro mais restrito, nos quais opera o evangelho.
Em ambos os casos trata-se do mesmo evangelho glorioso de salvação,
mas embora “muitos são chamados, poucos são escolhidos”. Assim no
versículo 10 vemos a Cristo em meio de uma humanidade que não O
reconhece; e no versículo 11 Ele é apresentado como tendo vindo a Seu

24
A respeito disto veja-se especialmente o artigo de W. J. Phythian-Adams, CQR, 139 (1944), 1–23.
João (William Hendriksen) 105
próprio lar, mas sem que Seu próprio povo O recebesse. Há, no entanto,
exceções, como o indica o versículo 12: alguns O aceitam.
Segundo: esta explicação também harmoniza com o contexto
precedente; veja-se os versículos 4b e 5: “… e a vida era a luz dos
homens. E a luz nas trevas resplandece; mais as trevas não as
acolheram”. Veja-se nossa explicação de tal passagem.
Terceiro: esta interpretação concorda bem com passagens similares
deste mesmo Evangelho. Devemos deixar que o escritor explique sua
própria fraseologia. Em Jo 3:19 e em Jo 12:46 nos encontramos com tal
explicação: “O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens
amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más” (Jo
3:19), e “Eu vim como luz para o mundo, a fim de que todo aquele que
crê em mim não permaneça nas trevas” (Jo 12:46; cf. Jo 12:35a, 36).
Quarto: este critério está em perfeita harmonia com Hb. 6:4–8 onde
se usa o mesmo verbo iluminar (φωτίζω) como aqui em Jo 1:9. Este
verbo não aparece em nenhum outro lugar do quarto Evangelho. No
resto do Novo Testamento usa-se tanto intransitiva (brilhar, dar luz,
como em Ap. 22:5) como transitivamente. Neste último sentido significa
sacar à luz (1Co. 4:5; 2Tm. 1:10) ou iluminar, alumiar. Em Ef. 1:18 esta
iluminação refere-se aos olhos do coração e se dá aos crentes. Mas em
Hb. 6:4 [RC] diz ter-se dado aos que subsequentemente “recaíram” e não
podem ser renovados para arrependimento. Por conseguinte, Hb. 6:4
ensina claramente que existe uma iluminação que não conduz
necessariamente à salvação.
A respeito da fonte de onde procede esta iluminação — quer dizer,
Cristo, a luz — lemos: “… a luz verdadeira … vinha ao mundo (ou,
estava no ato de vir ao mundo)”. A frase “vinha ao mundo” (ἐρχόμενον
εἰς τὸν κόσμον) não se deve entender como modificando a “todo
homem” (πάντα ἄνθρωπον) como o traduz a Almeida Atualizada. O
Evangelho de João não contém nenhuma passagem indiscutível em que a
expressão “vinha ao mundo” se refira ao nascimento de um ser humano
comum. Por outro lado, o apóstolo costuma falar de Cristo como
João (William Hendriksen) 106
25
dAquele que veio ao mundo : Jo 3:19; 9:39; 11:27; 12:46; 16:28; e
18:37.
Observe-se também que no versículo 10 Cristo continua sendo o
sujeito. Quando o Batista testificou a respeito da luz, este estava prestes
a começar o Seu ministério público. Estava no ato de vir ao mundo, ao
teatro da história humana, à esfera da humanidade.
10, 11. O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio
dele, mas o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não
o receberam.
No versículo 10 o evangelista sintetiza o tempo todo da presença de
Cristo no mundo. Numa nota à parte assinalamos os diversos usos do
termo mundo (κόσμος) no Evangelho de João. 26 Aqui (Jo 1:10, 11)
refere-se à humanidade que, embora criada pelo Verbo, afastou-se da
vida de Deus. O vocábulo κόσμος não se refere aqui aos pássaros, as

25
Cf. J. Sickenberger, “Das in die Welt Kommende Licht”, ThG, 33 (1941) 129–134.
26
Os léxicos não dão um resumo completo dos usos do termo mundo (κόσμος) no Evangelho de João.
O significado radical (Homero, Platão) é ordem, daí, ornato, como em 1Pe. 3:3. Isto conduz aos
seguintes significados no quarto Evangelho:
(1) o universo (ordenado), Jo 17:5; talvez, a terra, Jo 21:25.
(2) por metonímia, os habitantes humanos da terra; quer dizer, o gênero humano, o âmbito do
gênero humano, a raça humana, o teatro da história humana, o marco da sociedade humana, Jo 16:21.
(3) o público em geral, Jo 7:4; talvez também Jo 14:22.
(4) sentido ético: o gênero humano alienado da vida de Deus, carregado com pecado, exposto ao
juízo, necessitado de salvação, Jo 3:19.
(5) o mesmo que em (4) com a ideia adicional de que não se distingue quanto a raça ou
nacionalidade; quer dizer, os homens de toda tribo e nação; não apenas judeus mas também gentios, Jo
4:42 e provavelmente também Jo 1:29; 3:16, 17; 6:33, 51; 8:12; 9:5; 12:46; 1Jo 2:2; 4:14, 15. Tais
passagens deveriam ler-se à luz de Jo 4:42; 11:52; e Jo 12:32. Embora o significado (5) seja evidente
em pelo menos algumas destas passagens, parece estranho que léxicos populares o tenham omitido
por completo. Isto é verdade inclusive no caso do excelente artigo em Th.W.N.T. Também se omite
com frequência o significado (3).
(6) o âmbito do mal. É na realidade o mesmo que (4) mas com a ideia adicional de aberta
hostilidade contra Deus, Seu Cristo, e Seu povo, Jo 7:7; 8:23; 12:31; 14:30; 15:18; 17:8, 14.
Não se tentou classificar todas as passagens nas quais se encontra o termo. Além disso, às vezes
são muito delicadas as transições de um significado a outro (especialmente do (4) ao (6)). Em cada
caso o contexto terá que decidir. No entanto, o significado (5) não se deve ignorar.
Veja-se também W. Griffen Henderson, “The Ethical Idea of the World in John’s Gospel”, tese
doutoral apresentada no Southern Baptist Theological Seminary, Luisville, Kentucky, 1945.
João (William Hendriksen) 107
árvores, etc., e isto é evidente pela cláusula: mas o mundo não o
conheceu.
A cláusula e o mundo chegou a existir por ele é acrescentada para
mostrar que o mundo devia ter reconhecido a Cristo, a luz. (Cf. versículo
3.) Mas, em seu lugar, menciona-se uma realidade patética: o mundo não
o conheceu. O verbo ἔγνω é um aoristo constativo. Como se depreende
de Mt. 7:23, o verbo γινώσκω não só significa conhecer, chegar a
conhecer, perceber, compreender, mas também reconhecer como
próprio. E assim também aqui: o paralelismo entre os versículos 5 e 11
demonstra que se trata de algo mais que um mero reconhecimento
intelectual.
O mundo ao qual Cristo, a luz, veio, é representado por Israel, que
era como um círculo pequeno dentro de outro mais amplo; como se João
dissesse: “Estava no mundo, e o mundo chegou a existir por ele, mas
apesar disso o mundo não o reconheceu; veio, especificamente, a seu
próprio lar, 27 e no entanto seu próprio povo não lhe deu as boas-
vindas”. 28
Israel era, num sentido muito especial, possessão de Deus (Êx.
19:5; Dt. 7:6). Durante toda a antiga dispensação e também no princípio
da nova, Cristo veio para seu próprio lar. Mas o Seu povo não O recebeu.
Veja-se Jo 14:3 para o significado do verbo παραλαμβάνω. O melhor
comentário da tragédia que aqui se cita encontra-se em Is. 1:2, 3:
“Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o SENHOR é quem
fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim.
O boi conhece o seu possuidor, e o jumento, o dono da sua manjedoura;
mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende”.

27
Literalmente τὰ ἴδια; a suas próprias coisas. É a mesma expressão que se emprega com relação à
ação de João, quando levou a Maria, a mãe de Jesus, “a sua própria casa”. οἱ ἴδιοι significa: os de sua
própria casa; cf. Jo 13:1.
28
Cf. F. W. Grosheide, op. cit., p. 82, “Want we zullen telkens zien dat het ongelovige Israel staat
voor dien gevallen κόσμος” (vemos com frequência que o Israel incrédulo representa aquele κόσμος
caído).
João (William Hendriksen) 108
Como fizemos notar (veja-se versículo 5), as cláusulas “não
acolheram”, “não reconheceu”, “não receberam” são exemplos de litote.
Indicam que o mundo — e em particular o povo judeu, que O
representava — desentendeu-se totalmente de Cristo. Todos O
rejeitaram; todos, com a exceção daqueles que se faz referência nos
versículos 12 e 13.
12. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem
feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome.
Observe-se que a expressão: a todos quantos … deu-lhes, é uma
expressão comum do aramaico. (Veja-se IV da Introdução, a última
seção). Embora o mundo e seu representante, o povo judeu, rejeitaram ao
Salvador, algumas pessoas o aceitaram. Essas pessoas recebem o maior
favor espiritual sem consideração de nacionalidade ou ascendência
física. De modo que, a mencionada expressão significa “qualquer”, seja
judeu ou gentil. O judeu tinha dificuldade para compreender que na nova
dispensação já não existem privilégios especiais baseados em relações
físicas; e o evangelista entende perfeitamente esta inclinação judaica,
como repetidamente o indica em seu livro. Não é, pois, de estranhar que
João se detenha nesta grande verdade e a desenvolva com certo detalhe
no versículo 14.
A todos os que O aceitaram; quer dizer, a todos os que receberam,
reconheceram e deram as boas-vindas à luz (versículos 5, 10, 11), a
todos os que seguem unidos a Ele por meio de uma fé viva em seu nome
(isto é, em sua autorrevelação na esfera da redenção), a estes lhes deu —
sempre será um dom da graça soberana de Deus — o direito, (cf. Jo
5:27; 10:18; 19:10, 11; a autoridade, cf. Jo 17:2) de chegar a ser filhos de
Deus.
Não é verdade que os judeus se jactavam de seus direitos
hereditários, e que se chamavam a si mesmos filhos de Abraão? Pois
bem, os crentes recebem o direito de chegar a ser realmente filhos
(comparação tipicamente joanina, 1Jo 3:1); e filhos não só de Abraão
mas também de Deus.
João (William Hendriksen) 109
Mas como temos que interpretar que os crentes cheguem a ser
filhos de Deus? Acaso não é verdade que são filhos de Deus tão logo (e,
num sentido, inclusive antes) que aceitam conscientemente a Cristo?
Não cremos que a solução deste problema esteja em ler a oração como se
dissesse: “Mas a todos os que o aceitaram foi-lhes dado previamente o
direito de chegar a ser filhos de Deus, pois de outro modo não o
poderiam haver aceito”. Os dois aoristos (ἔλαβον e ἔδωκεν) são
simultâneos: quando alguém aceita a Cristo, nesse mesmo instante
recebe o direito de chegar a ser filho de Deus. E tampouco se pode achar
a solução debilitando o sentido do verbo chegar a ser (γενέσθαι) como
se simplesmente significasse ser chamado (ou ter-se por) filho de Deus.
Em nosso parecer, para chegar a uma interpretação correta desta
cláusula, devemos levar em conta o significado especial que João dá à
expressão filhos de Deus. Nem no Evangelho nem nas epístolas usa o
evangelista a palavra υἱοί para referir-se aos crentes. Chega-se a ser υἱός
por adoção, mas chega-se a ser τέκνον por regeneração e transformação.
Paulo faz uso de ambos os termos para descrever os crentes como filhos
de Deus. O substantivo que João usa para este propósito provém de
τίκτω, gerar. Para ele a salvação é a comunicação de vida, o ser gerado
de Deus, de forma que se chegue a ser filho dEle (1Jo 2:29; 3:9). Por
causa do fato de ser nascido de Deus o homem é transformado segundo a
semelhança de Deus. E visto que Deus é amor, o ser nascido de Deus se
manifesta em amar aos irmãos (1Jo 4:7, 8). João, em consequência,
refere-se continuamente ao amor considerando-o como a grande
característica do cristão: o amor é luz, mas o ódio é escuridão, e aquele
que odeia anda em trevas (1Jo 2:10, 11). O amor que se requer de nós é
de uma natureza abnegada (1Jo 3:16).
Mas esta transformação, embora comece com um ato instantâneo de
Deus, é, não obstante, um processo gradual. Em princípio, chega-se a ser
filho de Deus no preciso momento em que a vida do alto entra na alma.
Agora somos filhos de Deus. Mas a suprema realização deste ideal foi
reservada para o futuro em que, livres de toda impureza, a vida de Deus
João (William Hendriksen) 110
— sua santidade e amor — será completamente manifesta em nós. Se
entender-se isso, será claro por que João diz em Jo 1:12: “… deu-lhes o
direito de chegar a ser filhos de Deus”.
Esta explicação parece concordar com o próprio ensino de João. Cf.
1Jo 3:2, 3 - “Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se
manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se
manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como
ele é. E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim
como ele é puro” (Cf. também 2Co. 3:18; Gl. 4:19; e 2Pe. 1:4.)
13. Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem
da vontade do homem, mas de Deus.
Esta cláusula foi causa de muita controvérsia. Alguns comentaristas
capacitados, tanto liberais como conservadores, 29 seguindo o exemplo de
Irineu, preferem traduzir: “o qual não nasceu” (em lugar de “os quais não
nasceram”), de modo que o versículo 13 se referiria ao nascimento
virginal de Cristo (Irineu, Contra heresias, III, xvi, 2; xix, 2). Outros
estão inclusive dispostos a admitir a teoria de Tertuliano que diz que “os
quais não nasceram” é uma invenção dos gnósticos valentianos
(Tertuliano, Da carne de Cristo, XIX). Mas todas as unciais gregas estão
no plural. Por outro lado, esta cláusula constitui uma explicação muito
adequada das palavras “a todos os que … deu-lhes” do versículo 12. O
evangelista ensina que os verdadeiros filhos de Deus não devem sua
origem ao sangue 30 (ascendência física; por exemplo, de Abraão), nem à
vontade da carne (o desejo carnal, o impulso sexual do homem ou a
mulher), nem à vontade de varão (o instinto procreativo do homem), e

29
C. C. Torrey, Our Translated Gospels, Nova York e Londres, 1936, pp. 151, 152; R. C. H. Lenski,
The Interpretation of St. John’s Gospel, Columbus, Ohio, 1931, pp. 62–68. G. Vos, en The Self-
Disclosure of Jesus, considera que as razões em favor do singular são poderosas.
30
O original leva plural: sangres. São oferecidas várias explicações com relação a este plural; tais
como, o sangue dos pais, o sangue de muitos antepassados distinguidos, etc. Poderia também
perguntar-se por quê o português exige o plural cinzas quando o holandês leva o singular. Depende de
como se conceba o objeto. Por isso, alguns comentários sugerem que o plural sangres pode proceder
das muitas gotas de sangue que o compõem.
João (William Hendriksen) 111
sim só a Deus. Observe-se o arranjo ascendente das três expressões. As
três fazem ressaltar o fato de que em nenhum sentido os crentes devem
seu nascimento ou situação a causas físicas ou biológicas. Nicodemos
necessitava esta lição; e também a maioria dos judeus, como se vê nas
seguintes passagens: Jo 3:6; 8:31–59; Lc. 3:8; Gl. 3:11, 28. 31 .

Síntese de Jo 1:6–13
A glória do Filho depois da Queda (continuação)
Esta seção nos mostra que a luz verdadeira, o objeto da fé, é
imensamente mais gloriosa que João Batista. Este tinha recebido de Deus
a comissão de dar um testemunho competente a respeito da luz.
Enquanto o Batista testificava, aquela luz verdadeira, cujo puro
evangelho de salvação se anuncia a todos os homens sem distinção de
nacionalidade ou raça, estava prestes a entrar em seu ministério público.
O evangelista, olhando para trás, e sintetizando a presença da luz
verdadeira em meio das trevas deste mundo, declara: “No mundo estava,
e o mundo chegou a existir por ele, e no entanto o mundo não o
reconheceu. Veio para sua própria casa, mas sua gente não o recebeu
bem”.
Apesar disso, sempre houve exceções: aos que O aceitaram deu-
lhes o privilégio de chegar a ser filhos de Deus; quer dizer, de ser
transformado cada vez mais na imagem de Deus. Tal gente não se jacta
de seus antepassados físicos, de sua raça ou sua nacionalidade (como
faziam os judeus com frequência), mas sim reconhecem que são produto
da graça soberana de Deus.

31
Veja-se João Calvino, Ioannis Calvini in Evangelium Ioannis Commentarii, Berolini (apud
Guilelmum Thome), 1553, vol. III, p. 10: Isto se refere indiretamente à perversa presunção dos judeus.
A dignidade de sua ascendência estava sempre em seus lábios, como se fossem por natureza santos
devido ao fato de que tinham nascido de um ascendente santo.
João (William Hendriksen) 112
JO 1:14–18

1:14. O tema de Jo 1:14–18 é a glória do Verbo na encarnação. O


fato que se menciona no versículo 14 não é posterior no tempo aos atos
descritos nos versículos precedentes. É, antes, maior em amor. A
encarnação — e a realização de seu propósito, a crucificação — é a
cúspide da graça condescendente de Deus. Isto se vê claramente no
contexto; notem-se os versículos 10 e 11: “No mundo estava … e o
mundo não o reconheceu. Veio a sua própria casa, mas sua gente não o
recebeu”. E no entanto ele manifestou seu amor supremo no meio deste
mundo ingrato. Do âmbito infinito do deleite eterno na própria presença
do Pai, o Verbo acedeu a descer a este mundo de miséria e pôr Sua tenda
por um tempo entre homens pecadores.
E o Verbo se fez carne. (Veja-se também 1Jo 4:2; Rm. 1:3; 8:3;
2Co. 8:9; Gl. 4:4; Fp. 2:5–11; 1Tm. 3:16; e Hb. 2:14. Para comentário do
Verbo” veja-se sobre 1:1.) O verbo se fez tem aqui um significado muito
especial. Não é “se fez” no sentido de cessar de ser o que era antes.
Quando a mulher de Ló converteu-se em (se fez) pilar de sal, deixou de
ser a mulher de Ló. Mas quando Ló se fez pai de Moabe e Amom, seguiu
sendo Ló. Assim também aqui: o Verbo se fez carne mas continua sendo
o Verbo, o próprio Deus (veja-se versículos 1 e 18). A segunda pessoa da
Trindade assume a natureza humana sem deixar a divina. João insiste em
todo momento — contradizendo os hereges (cf. II da Introdução) — que
as naturezas divina e humana de Cristo se uniram completamente sem
chegar a fundir-se. Por todo este Evangelho se ensina que, a natureza
humana de Jesus é verdadeira (Jo 4:6, 7; 6:53; 8:40; 11:33, 35; 12:27;
13:21; 19:28). A relação das duas naturezas entre si sempre será um
mistério muito acima de nossa compreensão; mas certamente nunca se
encontrará uma fórmula mais adequada que a que se acha no Credo de
Calcedônia: “Nós, pois, seguindo aos santos Pais, todos de comum
acordo, ensinamos aos homens a confessar ao só e único Filho, nosso
Senhor Jesus Cristo, o mesmo perfeito em divindade e perfeito em
João (William Hendriksen) 113
humanidade … a ser reconhecido em duas naturezas inconfundíveis,
imutáveis, indivisíveis, inseparáveis (ἀσυγχύτως, ἀτρέπτως, ἀδιαιρέτως,
ἀχωρίστως); sem que tal união elimine de modo algum a distinção entre
as naturezas, antes preservando a propriedade de cada natureza, e
concorrendo em uma Pessoa e uma subsistência, não partida ou dividida
em duas pessoas, e sim um e o mesmo Filho unigênito, Deus o Verbo, o
Senhor Jesus Cristo; como os profetas desde o princípio declararam a
respeito dele, e o próprio Senhor Jesus Cristo nos ensinou, e o Credo dos
santos pais nos transmitiu”.
O vocábulo carne (σάρξ) tem vários significados no Novo
Testamento. 32 Em nossa passagem refere-se à natureza humana,
considerada não necessariamente como pecaminosa (Jo 8:46), embora
sim por um tempo sob a maldição devido ao pecado que descansa sobre
ela, de maneira que até que o resgate se pagou ela está sujeita ao
cansaço, a dor, a miséria e a morte (Jo 4:6, 7; 11:33, 35; 12:27; 13:21;
19:30). Foi esta classe de carne a que o Verbo assumiu em Seu amor
incompreensível e condescendente.
E habitou entre nós. Estas palavras (και ἐσκήνωσιν ἐν ἡμῖν) não se
devem considerar como uma simples repetição do que antecede (“e o
Verbo se fez carne”). Antes, a ideia é que o Verbo eterno que assumiu a
natureza humana permanentemente — embora não permanentemente em
sua fraca condição — armou a sua tenda por um tempo entre os homens,
e viveu entre eles.
Durante esse mesmo período, nós — quer dizer, o evangelista e
outras testemunhas oculares — vimos a sua glória. Este verbo vimos
(ἐθεασάμεθα) indica uma visão cuidadosa e deliberada que tenta
interpretar seu objeto. Refere-se, naturalmente, à vista física; e no

32
No quarto Evangelho a palavra σάρξ indica a natureza humana, sem menosprezo ético, Jo 1:13, 14;
a natureza humana considerada como sede e veículo do desejo pecaminoso; quer dizer, o homem tal
como é por natureza, Jo 3:6 (uso comum em Paulo); a “carne” (de Cristo) num sentido místico; quer
dizer, seu sacrifício vicário que se deve aceitar (comer) por fé, Jo 6:51–56; o aspecto externo do
homem, Jo 8:15. A expressão “toda carne” (Jo 17:2) é todos os homens, um semitismo.
João (William Hendriksen) 114
entanto, sempre inclui algo mais, um escrutínio cuidadoso, uma
contemplação, e inclusive um assombro. Este verbo descreve a ação de
um que não olha distraidamente, nem tampouco observa rapidamente,
nem necessariamente percebe de forma compreensiva. Pelo contrário, o
sujeito examina o objeto e reflete sobre ele. Esquadrinha-o, examinando-
o com cuidado. Estuda-o, contemplando-o e considerando-o atentamente
(Jo 1:32; 4:35; 11:45; At. 1:11). 33 Assim, enquanto Jesus andou entre os
homens, o olho e a mente do evangelista e de outras testemunhas
repousaram sobre o Verbo feito carne até que, de algum modo,
penetraram no mistério; quer dizer, viram Sua glória: o esplendor de Sua
graça e a majestade de Sua verdade manifestados em todas as Suas obras
e palavras (cf. Jo 2:11), os atributos da divindade brilhando através do
véu de Sua natureza humana.
Glória como do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. Estas
palavras do versículo 14 se prestam a várias interpretações.
O significado mais natural pareceria ser que a glória que as
testemunhas oculares viram em Jesus era a que se podia esperar daquele
que é o unigênito do Pai. E esta mesma Pessoa — isto é, o unigênito do
Pai — está cheio de graça e de verdade. No versículo 16 vê-se
claramente que o evangelista está pensando na plenitude de Cristo:
Porque de sua plenitude recebemos todos, graça sobre graça. Assim,
continuando a leitura chegamos ao verdadeiro significado. Preferimos
esta interpretação devido às seguintes razões:

33
Notem-se os seguintes sinônimos que João usa:
ὁράω: ninguém viu a Deus (Jo 1:18).
βλέπω: os discípulos se olhavam uns aos outros (Jo 13:22).
ἐμβλέπω: olhando-o Jesus, disse (Jo 1:42).
θεάομαι: vimos a sua glória (Jo 1:14).
θεωρέω: muitos creram em seu nome, vendo os sinais que fazia (Jo 2:23). Senhor, parece-me que é
profeta (Jo 4:19).
Estes verbos nem sempre se podem distinguir com clareza. Cada um deles tem pelo menos um
significado que compartilha com outros, e, além disso, uma conotação específica.
João (William Hendriksen) 115
(1) Jesus declara repetidamente que ele veio de Deus (παρὰ τοῦ
θεοῦ). Veja-se Jo 6:46; 7:29; 16:27; 17:8.
(2) A menos que haja suficientes razões para agir de outro modo —
e, certamente, às vezes existem, é recomendável unir uma frase ao
substantivo mais próximo a ela. Por isso, nossa construção deixaria a do
Pai como modificador de unigênito. E pela mesma razão consideramos
que as palavras cheio de graça e de verdade modificam a unigênito do
Pai. (Cf. At. 6:3, 8; 7:55; 11:24). Como já indicamos, o que se trata mais
extensamente no contexto, versículos 16 e 17, é a plenitude do Filho
unigênito. (As objeções contra esta interpretação se respondem numa
nota à parte. 34 Em outra nota examinam-se outras explicações. 35 ).

34
Uma objeção é que a expressão unigênito do (παρά) Pai seria insólita em João, quem emprega a
preposição de (ἐκ) sempre que deseja dizer nascido de Deus (cf. 1Jo 2:29; 3:9; 4:7; 5:1, 4, 18). Não se
pode tomar como séria esta objeção: em grego koinê estas duas preposições são às vezes
intercambiáveis. Além disso, é possível considerar a frase como elíptica em vez de “o unigênito que
procede do Pai” (para o qual veja-se Jo 6:46; 7:29) ou “que sai do Pai” (para o qual veja-se Jo 16:27;
17:8). Além disso, não deveria dar-se imediatamente por sentado que o elemento verbal em μονογενής
deriva-se de γεννάω. (Veja-se abaixo). Outra objeção que se encontra nos comentários antigos e que
perdeu sua força como resultado de descobertas recentes é que πλήρης, ao estar em caso nominativo,
não se pode tomar como modificador de uma palavra (μονογενοῦς) que está em genitivo.
Naturalmente, a mesma objeção dar-se-ia quando se considera πλήρης como modificador de δόξαν,
que está em acusativo. Mas qualquer léxico corrente proporciona a informação de que πλήρης com
frequência é indeclinável em koinê.
35
(1) glória como de um unigênito de um pai: quer dizer, glória como um filho unigênito recebe de um
pai, cheia (que modifica a glória) de graça e de verdade.
Os que aceitam esta interpretação assinalam o fato de que unigênito e pai não vão precedidos de
artigo definido. No entanto, podem-se considerar como definidas palavras desta classe inclusive
quando não vão precedidas de artigo definido. Além disso, um pai nem sempre e necessariamente dá
glória a um filho único.
(2) glória como do unigênito, do Pai, cheio (o unigênito) de graça e de verdade. Neste caso tanto
como o unigênito e do Pai modificam a glória, mas cheio de graça e de fato modifica a unigênito.
Nossa maior objeção a esta explicação é que é artificial; depois de ter interpretado a primeira e
segunda frases como modificadoras do substantivo glória, a atenção não se volta facilmente para a
primeira frase a fim de lhe acrescentar um modificador.
(3) glória como do unigênito, do Pai, cheia de graça e de verdade. Consideram-se as três frases
como modificadoras de glória. Esta construção resulta possível e seria nossa segunda preferida. No
entanto, o conceito “gloria … cheia de graça e de fato”, embora possível, não é fácil. Além disso, o
versículo 16 fala da plenitude do unigênito, não da plenitude de sua glória. Finalmente, ao
João (William Hendriksen) 116
Por conseguinte, a glória em que João e outros tinham fixado seu
olhar com adoração é a possessão natural e própria dAquele cujo nome é
o unigênito do Pai.
Com frequência fez-se a seguinte pergunta: Ao que classe de
filiação refere-se a expressão unigênito do Pai? Trata-se simplesmente
de uma filiação religiosa, de forma que aqui se diria que Jesus é filho de
Deus no mesmo sentido em que todos os crentes são filhos de Deus? Isto
o podemos desprezar imediatamente, pois nesse caso o qualificativo
“unigênito” não teria nenhum significado. Trata-se, então, da filiação
messiânica? Mas inclusive aqueles que sustentam que o vocábulo
μονογενής não tem nada que ver com o verbo γεννάω e que somente
significa que Cristo foi o “único” Filho (o único, μόνος, membro de uma
família, γένος de γίνομαι) e sendo o único era portanto o amado, terão
que admitir que segundo o contexto (veja-se especialmente Jo 1:1, 18) a
filiação que aqui se indica já existia desde a eternidade; daí que não se
pode referir ao ofício messiânico que se assumiu no tempo. (Sobre o
problema de se μονογενής deve-se conectar com γίνομαι, nascer, ou com
γεννάω, gerar, veja-se G. Vos, The Self-Disclosure of Jesus, Nova York,
1926, pp. 218, 219.)
É, talvez, a filiação natal o que aqui se comenta? Se fosse assim,
então o significado seria que nesta passagem se atribui à natureza
humana de Cristo à paternidade sobrenatural de Deus. Mas neste caso o
evangelista estaria falando de uma classe de filiação aqui no versículo 14
e de outra no versículo 18, o que não é provável. (Veja-se a explicação
do versículo 18.)
Nossa conclusão é que aqui se faz referência à filiação trinitária;
quer dizer, ao fato de que Jesus é Filho de Deus desde a eternidade. O
contexto (Jo 1:1, 18) favorece este critério, e também passagens tais

modificador cheio de graça e de verdade está bastante afastado do substantivo glória. Está mais perto
do título: o unigênito do Pai.
João (William Hendriksen) 117
como Jo 3:16, 18, que provam que o Filho já era o unigênito antes de
sua encarnação.
Sobre este tema H. Bavinck diz:
“Mas o nome Filho de Deus, quando se atribui a Cristo, tem um
significado muito mais profundo que o teocrático: Jesus não foi um
simples rei de Israel que no curso do tempo foi adotado como Filho de
Deus; nem tampouco foi chamado Filho de Deus por causa de seu
nascimento sobrenatural, como os socinianos e Hofmann afirmavam;
nem é o Filho de Deus meramente num sentido ético, como outros
supõem, nem recebeu o título de Filho de Deus por causa de Sua obra
expiatória e de Sua ressurreição, interpretação para cuja corroboração
citam-se Jo 10:34–36; At. 13:32, 33; e Rm. 1:4; antes, é Filho de Deus
num sentido metafísico: por natureza e desde a eternidade. Ele é exaltado
muito acima de anjos e profetas, Mt. 13:32; 21:27; 22:2; e mantém uma
relação muito especial com Deus, Mt. 11:7. É o Filho amado no qual o
Pai toma contentamento, Mt. 3:17; 17:5; Mc. 1:11; 9:7; Lc. 3:22; 9:35; é
o Filho unigênito, Jo 1:18, 3:16; 1Jo 4:9ss.; é o próprio Filho de Deus,
Rm. 8:32; o Filho eterno, Jo 17:5, 24; Hb. 1:5; 5:5; ao qual o Pai deu o
ter vida em si mesmo, Jo 5:26; igual ao Pai em conhecimento, Mt. 11:27;
em honra, Jo 5:23; em poder criador e redentor, Jo 1:3; 5:21, 27; em
obra, Jo 10:30; e em domínio, Mt. 11:27; Lc. 10:22; 22:29; Jo 16:15;
17:10; e por causa desta filiação foi condenado à morte, Jo 10:33, Mt.
26:63ss.”. (The Doctrine of God, Grand Rapids, Mich., 1951, p. 270).
Agora, lemos com relação ao Filho unigênito, que está cheio de
graça e de verdade. De graça, porque quando falava, Suas mensagens
estavam cheias desse favor imerecido para os culpados (p. ex.,
publicanos e pecadores), e os mesmos atributos se revelavam em Seus
milagres de cura, de fato, em toda Sua vida e morte, as quais devem ser
consideradas como um sacrifício expiatório cujo único propósito era o
merecer para Seu povo a graça de Deus. De verdade, porque Ele mesmo
era a realidade definitiva em contraste com as sombras que lhe tinham
precedido. Certamente era grande a glória do unigênito!
João (William Hendriksen) 118
15. João testemunha a respeito dele e exclama: Este é o de quem eu
disse: o que vem depois de mim tem, contudo, a primazia, porquanto já
existia antes de mim.
A consequência, naturalmente, é que Jesus ultrapassa a João
Batista. Os leitores da Ásia Menor necessitavam que se lhes lembrasse
isto. (Veja-se II da Introdução) Entre os dois (Cristo e o Batista) existe a
diferença que há entre o infinito e o finito, o eterno e o temporal, a luz
original do sol e a que reflete a lua. E isto é exatamente o que o mesmo
Batista tinha confessado, como indica este versículo 15. Talvez
imediatamente depois de ter batizado a Jesus, e depois que este houve
partido, João Batista clamou — e seu testemunho ainda ressoava —:
“Este era 36 Aquel de quien yo decía: El que viene tras mí se ha puesto
delante de mí, porque existía antes que yo”. En el sendero de la vida, 37
no sólo en su nacimiento sino también en su ministerio público, Jesús
había venido detrás de Juan (Lc. 1:36; Mr. 1:4–9).
E. contudo, Aquele que tinha vindo atrás Se colocou na frente: os
direitos de antiguidade pertenciam não a João, e sim a Jesus (cf. Mc.
1:7). Sua categoria em poder e glória está muito acima da do Batista.
Este deu a razão disso nas palavras: “… é antes de mim”: como Verbo
de Deus existia desde a eternidade (compare-se Jo 1:1 com 1:6: o
evangelista está de acordo com o Batista).
16, 17. Porque todos nós temos recebido da sua plenitude e graça
sobre graça. Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a
verdade vieram por meio de Jesus Cristo.
Nestes versículos não é o Batista mas o evangelista aquele que fala.
Aqui se continua o pensamento do versículo 14, onde se tinha

36
O imperfeito ἦν necessita explicação. Se, quando João afirmou: “Este é Aquele …”, Jesus se tivesse
ido, o tempo é muito natural; como se hoje alguém perguntasse: “Quem era a pessoa com quem você
conversava?” A resposta poderia ser: “Era o senhor Fulano”. Outra explicação faz com que ἦν se
refira ao passado de forma indefinida, como os versículos 1 e 2.
37
Basicamente os advérbios ποίσω e ἔμπροσθεν referem-se a lugar. Pode-se pensar numa pista de
carreiras ou num vereda. Mas esta vereda em si é metafórica, visto que é a senda da vida. Cf. C.
Lindeboom, GThT 16 (1916) 10.
João (William Hendriksen) 119
confessado a plenitude de Cristo. O escritor reforça agora isso
acrescentando que ele, e com ele todos os outros crentes, tinham
experimentado os benditos frutos desta plenitude: tinham recebido graça
sobre graça. (Quanto às diversas interpretações deste versículo veja-se
minha tese “O significado da preposição ἀντί no Novo Testamento” nas
bibliotecas de Princeton Seminary, Princeton, NJ, y de Calvin Seminary,
Grand Rapids, MI.). O significado do versículo 16 é que os crentes
recebem constantemente graça no lugar que deixa a graça. Quase não se
desvaneceu uma manifestação do favor imerecido de Deus em Cristo
quando já chegou outro; daí que se diga, graça sobre graça. A seguir
citamos um fragmento da tese:
“Estamos de acordo com esta interpretação tão comum pelas
seguintes razões:
(1) Concorda com o sentido normal da preposição ἀντί. Nesta tese
demonstrou-se plenamente que ἀντί indica substituição.
(2) Concorda com o contexto, que descreve a plenitude que existe
em Cristo, e da qual nós recebemos χάριν ἀντὶ χάριτος. A interpretação
que apoiamos faz justiça à unidade da frase, que consideramos em sua
totalidade como objeto direto do verbo ἐλάβομεν. O conceito graça
sobre graça, a saber, um fornecimento incessante de graça, concorda
melhor com a ideia de sua plenitude que simplesmente o termo graça. O
depósito ou fornecimento sem limites, que indicam as palavras sua
plenitude, parece sugerir também um fluxo ilimitado: graça sobre graça.
(3) Esta interpretação também vê-se apoiada por uma citação
(linguisticamente similar) de Filo: ‘Pelo qual Deus sempre faz cessar
Seus primeiros dons antes de que aqueles que os recebem se fartem e se
tornem insolentes: e ao mesmo tempo que estas reservas para o futuro
proporciona outros em seu lugar (ἀντʼ ἐκείνων), e logo um terceiro
fornecimento para substituir ao segundo (ἀντὶ τῶν δευτέρων), e assim
proporciona dádivas sempre novas em lugar das anteriores (ἀντὶ
παλαιοτέρων), às vezes de diferente natureza, às vezes da mesma’ (Filo,
A posteridade e o exílio de Caim, CXLV)”.
João (William Hendriksen) 120
Como corroboração do pensamento do versículo 14 — que o
unigênito se caracteriza por uma plenitude de graça e de verdade —
lemos: “Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a
verdade vieram por meio de Jesus Cristo”.
Não havia nada mau na lei moral e cerimonial. Deus a tinha dado
por meio de Moisés. Era de caráter preparatório. Revelava a condição
perdida do homem e também prefigurava sua libertação. Mas havia duas
coisas que a lei como tal não podia subministrar: graça para perdoar os
pecadores e ajudá-los nos momentos de necessidade, e verdade, isto é, a
realidade para a qual apontavam todos os tipos (pense nos sacrifícios).
Cristo, com sua obra expiatória, proveu ambas. Ele mereceu a graça e
cumpriu o que os tipos anunciavam. Tenha-se também em mente que
conquanto a lei “foi dada”, a graça e a verdade “vieram” pela Pessoa e
obra de quem, pela primeira vez no quarto Evangelho, é chamado pelo
Seu nome completo, Jesus Cristo.
18. Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do
Pai, é quem o revelou.
Não só tinha sido a lei dada por meio de Moisés, mas ademais este
também tinha tido o privilégio de falar com Deus “face a face”. No
entanto, nem sequer Moisés chegou a ver a Deus; quer dizer, não chegou
a conhecer a Deus em toda a sua plenitude (cf. Êx. 33:18). Tanto para
ele como para qualquer outro, as palavras de Jó 11:7 seguem sendo
certas:
“Porventura, desvendarás os arcanos de Deus
ou penetrarás até à perfeição do Todo-Poderoso?
Como as alturas dos céus é a sua sabedoria; que poderás fazer?
Mais profunda é ela do que o abismo; que poderás saber?”
Cf. também Dt. 4:12; Jo 5:37; 6:46; 1Tm. 1:17.
Deduzimos de João 6:46 que a ideia deste versículo não é:
“Ninguém viu jamais a Deus fisicamente, porque Deus é espírito e por
conseguinte invisível”. A visão física teria sido impossível inclusive para
o Filho. O evangelista está aqui pensando numa visão de Deus que é
João (William Hendriksen) 121
possível para o Filho, pois nessa passagem tão parecida de Jo 6:46 [TB]
lemos: “Não que alguém tenha visto o Pai, somente aquele que vem de
Deus, tem visto o Pai”.
Observe-se também a ordem das palavras: “Ninguém jamais viu a
Deus”. Nós não vemos o próprio Deus, mas a Sua revelação em Jesus
Cristo. (Para o significado do verbo ἑώρακεν tanto aqui como em Jo
6:46, veja-se a explicação de Jo 1:14, nota 33.)
Os melhores e mais antigos manuscritos confirmam que o texto
deveria dizer o unigênito Deus em lugar de o unigênito Filho. Visto que
o conceito Deus implica eternidade, é evidente que a expressão o
unigênito Deus (μονογενὴς θεός) deve referir-se à filiação trinitária de
Cristo. Qualquer outra classe de filiação supõe um começo no tempo que
é irreconciliável com a ideia de divindade. Por outro lado, a cláusula que
segue, que está no seio do Pai, indica uma relação de intimidade
permanente entre Deus o Pai e Deus o Filho. Jesus Cristo conhece o Pai
perfeitamente por causa de que é o Filho no sentido mais elevado da
palavra. Portanto é ele quem o deu a conhecer. Só ele reúne as condições
para ser o Intérprete ou Exegeta de Deus (o verbo é ἑξηγήσατο). Isto não
significa que nos dá um conhecimento tão adequado de Deus que, afinal
de contas, o finito chega a compreender o Infinito; mas nos explica a
respeito do ser de Deus o que é necessário para nossa completa salvação
e para um conhecimento relativo de Sua obra na criação e na redenção,
para que deste modo possamos glorificar o nosso Criador e Redentor.

Síntese de Jo 1:14–18
A glória do Filho na encarnação.
O versículo 14 prossegue o pensamento iniciado nos versículos 10 e
11. Não só se manifestou a luz verdadeira ao mundo, e não só veio para
seu próprio lar e povo, mas seu infinito amor se mostra em que o Verbo
se fez carne; quer dizer, assumiu nossa natureza humana, debilitada
durante um tempo pelos resultados do pecado, embora sem pecado em si
João (William Hendriksen) 122
mesma. Nesta natureza humana converteu-se em Emanuel, e armou a
sua tenda entre nós. Daí que nossos olhos e mentes descansaram em Sua
glória: a brilhantismo de seus atributos divinos resplandeceram através
do véu de sua natureza humana. Esta glória era a que se podia esperar
nEle, porque era a glória do unigênito que procede eternamente do Pai,
e possui a plenitude de graça e verdade. Era, em consequência, a glória
de um que é muito superior a João Batista, como este reconheceu
abertamente quando pronunciou aquelas singulares palavras: “Este era
Aquele de quem eu dizia: Aquele que vem após mim (na senda da vida)
pôs-se diante de mim, porque existia antes que eu”. Nossa própria
experiência como crentes nos capacita para dar testemunho desta
plenitude que há em Cristo, pois de sua plenitude todos recebemos graça
sobre graça, como as ondas que se sucedem sobre a margem do mar,
tomando constantemente uma o lugar da outra. A lei, que foi dada por
meio de Moisés, era incapaz de suprir esta plenitude de graça e de
verdade. Embora boa em si mesma, a lei era incapaz de salvar. Exigia,
mas não possuía a graça perdoadora e habilitadora necessária para os
pecadores que se enfrentam com essas exigências. A lei provia os tipos e
sombras (p. ex., nos sacrifícios), porém nunca a realidade (verdade). Esta
graça e verdade vieram por meio de Jesus Cristo, que com Sua vida e
morte redentora mereceu a graça e subministrou a realidade (verdade)
anunciada pelos tipos e sombras da lei mosaica.
E visto que Ele é plenamente divino, sendo o unigênito Deus, que,
segundo Sua natureza divina, repousa eternamente no seio do Pai, e lhe
conhece perfeitamente, só ele é capaz de ser o Intérprete do Pai. Por
conseguinte, deu-nos a conhecer a Deus ao qual ninguém jamais viu
(compreendeu).
Lendo só as palavras em itálicos, tem-se uma síntese desta síntese.
Constituem um parágrafo coerente.
João (William Hendriksen) 123
JO 1:19–28

1:19–23. Este foi o testemunho de João …


Nos versículos 6–8, 15 o evangelista indicou o propósito do
ministério de João Batista; ou seja, concentrar a atenção de todos sobre a
luz verdadeira, Jesus Cristo, como o objeto da fé. No parágrafo que
agora estudamos temos um relato detalhado do testemunho do Batista,
tal como o deu diante de uma delegação enviada pelo Sinédrio. Os dois
parágrafos que seguem a este (Jo 1:29–34 e Jo 1:35–42) contêm uma
narração de seu testemunho; primeiro diante de um grupo de gente não
identificada, e logo diante de dois de seus discípulos. À luz das elevadas
descrições do Cristo e dos exaltados títulos que o Batista lhe dá em Jo
1:27, 29–36, é fácil compreender por que o evangelista incluiu este
material em seu livro. Sua inclusão concorda com o propósito principal
declarado em Jo 20:30, 31. Não é a aparição do Batista, sua classe de
vida, sua pregação como tal, a reviravolta que levantou, ou inclusive
seus batismos, o que o escritor do quarto Evangelho faz ressaltar. Parece
dar por sentado que os leitores estão ao par de tudo isso por meio da
tradição oral e da leitura dos Sinóticos. O que constitui o tema destes
parágrafos é especificamente o testemunho do Batista com relação a
Cristo. E faz entrever, por sua vez, que este testemunho descansa sobre
uma revelação divina (Jo 1:31–34).
João Batista fez sua primeira aparição em público no verão do ano
26 de nossa era. Sua forma austera de viver, sua pregação severa e sua
insistência no fato de que inclusive os filhos de Abraão têm necessidade
de um arrependimento absoluto e de purificação espiritual (simbolizados
pelo batismo) causaram uma profunda comoção entre o povo, de maneira
que “Saíam a ter com ele toda a província da Judéia e todos os habitantes
de Jerusalém; e, confessando os seus pecados, eram batizados por ele no
rio Jordão” (Mc. 1:5).
Parece, pois, que o Batista, começando nas cercanias do Mar Morto,
tinha ascendido gradualmente pelo vale do Jordão até alcançar um
João (William Hendriksen) 124
pequeno lugar que nos melhores manuscritos recebe o nome de Betânia
(Jo 1:28). Somos informados claramente que esta Betânia estava do
outro lado do Jordão, para que não se confunda com outro lugar de
idêntico nome onde viviam Maria, Marta, e seu irmão Lázaro. Esta
última estava perto de Jerusalém.
Embora se desconheça a situação exata da Betânia mencionada em
nosso parágrafo, parece ser que não estão muito errados os que a
colocam na margem oriental do Jordão, a uns vinte quilômetros ao sul do
Mar da Galileia e trinta, mais ou menos, a sudeste de Nazaré (H.B.A., p.
99; cf. A. Fahling The Life of Christ, San Luis, Mo., 1936, p. 148).
Muitos dos mapas mais antigos e também a Lâmina XIV de W.H.A.B.
sugerem que esta Betânia encontrava-se justo ao norte do Mar Morto.
Mas toda a seção de Jo 1:19–2:1 vai contra uma localização tão ao sul.
Se supuser-se que todos os acontecimentos registrados no primeiro
capítulo de João (quer dizer, Jo 1:19–51) tiveram lugar perto de Betânia,
do outro lado do Jordão, hipótese que é provavelmente correta, então, se
Betânia tivesse estado tão ao sul, é muito difícil compreender como
Jesus e Seus discípulos puderam ter chegado a Caná da Galileia ao
terceiro dia (Jo 2:1) destes eventos. O viajar era muito lento naqueles
dias. Também se deve levar em conta que todos os discípulos a quem se
faz referência (direta ou indireta) no capítulo 1, tinham seu lar na
Galileia. Pedro, André e Filipe eram de Betsaida; Tiago e João, de
Cafarnaum; Natanael, de Caná. Portanto, o cenário do acontecimento
narrado neste parágrafo que vamos comentar (Jo 1:19–23) encontra-se
nas cercanias da Galileia, porém não na mesma Galileia (veja-se Jo 1:28,
43).
Foi durante os últimos dias de dezembro do ano 26 ou no mês de
janeiro do 27 quando Jesus abandonou Nazaré para responsabilizar-se
voluntariamente da grande obra que o Pai Lhe tinha atribuído. Foi a
Betânia do outro lado do Jordão, que, como vimos, não estava muito
longe de seu lar; e ali João o batizou (cf. Mt. 3:13–17; Mc. 1:9–11; Lc.
3:21, 22).
João (William Hendriksen) 125
Do vale do Jordão Jesus tinha sido levado às alturas do deserto,
para ser tentado pelo diabo. Esta tentação abrange um período de mais de
quarenta dias, e parece ter seguido imediatamente ao batismo (Mc. 1:12).
É provável que depois de Sua vitória na tentação Jesus retornasse
diretamente ao lugar onde João estava batizando. Em Jo 1:29 temos o
relato de sua chegada. O acontecimento descrito em nosso parágrafo (Jo
1:19–28) teve lugar um dia antes.
Por conseguinte, o cenário está a leste do Jordão, não longe do
Mar da Galileia, e a época é fevereiro (ou princípios de março) do ano
27. O evangelista nos diz o que ocorreu num período de quatro dias
sucessivos (observem-se as indicações exatas do tempo em Jo 1:29, 35,
42) e ao terceiro dia depois daquilo (Jo 2:1).
quando os judeus lhe enviaram de Jerusalém sacerdotes e levitas.
Entendemos que no primeiro daqueles quatro dias os judeus enviaram
uma delegação para investigar a João. No quarto Evangelho o termo
judeus tem, com frequência, um tom sinistro: a nação, representada por
seus dirigentes religiosos hostis a Jesus (Jo 7:1; 9:22; 18:12–14). Neste
caso foi o Sinédrio (composto de sumo sacerdotes, escribas, e anciãos)
que enviou a delegação. Embora não se diga exatamente a razão, é fácil
de supor: sem cessar chegavam informes sobre aquele novo pregador e
sobre a reviravolta que tinha levantado. É provável que o rumor também
sugerisse que se tratava do Messias. Também se falava de seu
impressionante método de guiar ao arrependimento, pronunciando
grandes ameaças sobre os impenitentes, e do fato que batizava a …
judeus, como se eles, os filhos de Abraão, também tivessem necessidade
de arrependimento e purificação. Por outro lado, certamente também
tinham chegado informes que este iniciador de um avivamento havia dito
algumas coisas desagradáveis sobre os fariseus e os saduceus (Mt. 3:7).
De modo que se organizou um comitê para investigar. Um falso Messias
podia causar muito dano. Acaso não era a obrigação dos veneráveis
membros do Sinédrio denunciar os falsos profetas e pressupostos
Messias (cf. Dt. 18:20–22) e velar pelos interesses religiosos de Israel?
João (William Hendriksen) 126
A delegação estava composta de sacerdotes e levitas. Os primeiros
seriam os que levaram a cabo o interrogatório. Os outros foram enviados
para assegurar-se de que o grupo chegasse a salvo, e para sufocar
qualquer revolta que pudesse levantar-se.
Para lhe perguntarem. Quando chegaram a seu destino e acharam a
João a primeira pergunta deste interrogatório oficial foi: Quem és tu?
Quer dizer: O que grande personagem pretende ser? O Batista, que sem
dúvida tinha obtido alguma informação sobre os rumores que
circulavam, Ele confessou e não negou; confessou:38 (tenham-no em
mente os que glorificam o Batista): Eu não sou o Cristo. Então lhe
perguntaram: Então, lhe perguntaram: Quem és, pois? És tu Elias?
Agora, embora João tenha vindo com o espírito e poder de Elias
(Lc. 1:17) e foi, portanto, chamado Elias pelo próprio Cristo (Mt. 17:12),
não era, no entanto, literalmente Elias; e o que os judeus esperavam,
como resultado de uma errônea interpretação de Ml. 4:5, era Elias em
pessoa como precursor. Daí que João respondesse: Ele disse: Não sou. A
esta resposta segue imediatamente outra pergunta: És tu o profeta? Isto é
uma referência a Dt. 18:15–18. Alguns interpretavam esta passagem
como um anúncio de outro precursor do Messias; outros como uma
referência ao Messias mesmo, o qual era correto (At. 3:22; 7:37). O
Batista, aceitando esta interpretação correta, e sabendo que ele não era o
Messias, responde: Respondeu: Não.
Disseram-lhe, pois: Declara-nos quem és, para que demos resposta
àqueles que nos enviaram; que dizes a respeito de ti mesmo? Então, ele
respondeu: Eu sou a voz do que clama no deserto: Endireitai o caminho
do Senhor, como disse o profeta Isaías.
Esta é uma citação livre de Is. 40:3 Observe-se que o que em outros
lugares diz-se a respeito de João (Mt. 3:3; Mc. 1:3; Lc. 3:4), aqui o diz o
próprio João. Por outro lado, sua citação de Isaías tem um duplo
propósito: indicar quem é o Batista, e assim responder a pergunta que lhe

38
A respeito de ὅτι veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 127
foi feita; e também fazer um sincero convite ao arrependimento. Cada
membro da delegação — mais ainda, cada membro do Sinédrio que ia
receber o relatório — devia endireitar o caminho para que o Senhor
entrasse. A metáfora que aqui se implica é a de um rei que está prestes a
visitar uma província de seu reino, bem como na profecia de Isaías, na
qual Jeová tinha prometido visitar com novas manifestações de sua graça
os que se representa como tendo retornado do cativeiro de Babilônia.
Naturalmente, quando um rei está prestes a visitar o seu povo deve-se
preparar o caminho para que entre na região sem dificuldades nem
obstáculos. De igual modo, o que o Batista quer dizer é que os judeus,
incluindo os membros do comitê de investigação, deveriam endireitar o
caminho do Senhor que conduz a seus corações. O que se requer é uma
dor sincera pelo pecado e uma oração suplicando misericórdia e perdão;
e ambas, naturalmente, consideradas como um produto da graça
soberana de Deus. O Batista não é mais que uma voz. Todos deviam
notar de que o mandamento de arrepender-se procedia dAquele a quem a
voz representava.
24. Ora, os que haviam sido enviados eram de entre os fariseus. O
verbo ἀπεσταλμένοι ἧσαν é um pretérito perfeito perifrástico de
ἀποστέλλω. Nos comentários encontram-se diversas interpretações. Há
duas que rejeitamos:
a. Que este versículo indica que os fariseus tinham enviado aos
saduceus (A. T. Robertson, Word Pictures in the New Testament, Nova
York e Londres, 1932, vol. V, pp. 18, 21). Mas por que haveriam os
fariseus que nem sequer eram os dirigentes do Sinédrio — de enviar os
saduceus para investigar um assunto que estes ignoravam? Os saduceus
eram as liberais daqueles dias. Formavam o partido mundano e
trabalhavam em excesso nos negócios deste mundo. Seria absurdo
pensar que os fariseus, que se inclinavam a favor de uma observância
estrita da lei e se preocupavam profundamente pelos problemas
referentes à vinda do Messias, enviassem os saduceus que eram tão
mundanos (cf. Mt. 22:23 e seguintes) para investigar a respeito de um
João (William Hendriksen) 128
possível falso Messias. A preposição ἐκ não indica necessariamente
agência.
b. Que aqui começa um novo parágrafo, e que o versículo 24 deve-
se traduzir: “E alguns fariseus tinham sido encarregados” (R. C. H.
Lenski, op. cit. p. 11). Segundo este critério os saduceus já tinham
terminado sua investigação. Aqui uma nova delegação começa a
funcionar.
Nossas objeções a este critério são as seguintes:
(1) Se isto fosse assim, o normal seria que dissesse: “E também
alguns fariseus tinham sido encarregados”.
(2) O versículo 25 está em clara conexão com os versículos 20–23.
João acaba de confessar que ele nem é o Messias nem tampouco o
precursor que os judeus esperavam. Agora a pergunta feita a ele é:
“Então, por que batizas?; quer dizer, por que fazes a obra que na
realidade corresponde ao Messias ou ao seu embaixador especial, se não
és nenhum dos dois?” É, pois, evidente que o que aqui temos é o relato
de uma só investigação realizada por uma só delegação.
Por conseguinte, a melhor interpretação do versículo 24 seria,
simplesmente, que a delegação mencionada no versículo 19, formada de
sacerdotes e levitas, tinha sido enviada de (ἐκ) os fariseus, no sentido de
que pertenciam ao partido dos fariseus.39 (Em Jo 1:35, 40; Gl. 2:15; Fp.
3:5, encontramos um uso similar de ἐκ.) Não se pôde provar que todos os
sacerdotes nos dias de Cristo fossem saduceus. Estes, evidentemente,
não o eram (Jo 1:19). Por outro lado, o que aqui se relata explica três
coisas: a. por que a investigação foi tão completa — os fariseus eram
muito estritos!; b. por que o Batista fez referência ao profeta Isaías — os
fariseus tinham muito mais respeito pelos profetas que os saduceus; e c.
por que se continuou o exame — os saduceus, com sua indiferença para
com a religião não teriam feito mais pergunta.

39
Assim também F. W. Grosheide, op. cit., p. 127.
João (William Hendriksen) 129
25. E perguntaram-lhe: Então, por que batizas, se não és o Cristo,
nem Elias, nem o profeta?40
O que incomodava aqueles sacerdotes, que estavam interrogando ao
filho de um sacerdote, não era tanto a pregação como o fato de que
batizava. Os sacerdotes pretendiam saber tudo a respeito dos lavamentos.
Naturalmente sabiam que não é qualquer um que podia administrar os
ritos da purificação. Afinal, não era a limpeza do povo uma ação
eminentemente messiânica, segundo passagens como Ez. 36:25 e 37:23?
Por que, pois, batizava João se não era nem o Messias nem a classe de
precursor que esperavam? Desta pergunta se depreende que não tinham
compreendido o significado da referência ao arauto pelo Batista (Jo
1:23). Não esperavam um precursor tão profundamente espiritual.
26, 27. Respondeu-lhes João: Eu batizo com água; mas, no meio de
vós, está quem vós não conheceis, o qual vem após mim, 41 do qual não sou
digno de42 desatar-lhe as correias das sandálias.
Ao dizer, “Eu batizo com água”, João faz ressaltar que, afinal de
contas, existe uma enorme diferença entre o que ele está fazendo e o que
o Messias fará. Tudo o que João pode fazer é administrar o sinal (água);
o Messias — e só Ele — pode derramar o que isto significa: o poder
purificador do Espírito Santo. (Cf. Mc. 1:8.) E o Messias já chegou.
Está no meio deles; quer dizer, pertence a sua própria geração; e
está prestes a começar sua tarefa pública como sucessor de João. De fato,
Ele já foi batizado. E no entanto não O conhecem, e nem sequer parecem
preocupar-se com Ele. Em seu zelo por denunciar a falsos Messias,
chegaram a ignorar o verdadeiro. Este, não obstante, é tão glorioso que o
Batista se considera sem importância ao comparar-se com Ele. De fato,
João se considera indigno de prestar até o serviço mais humilde a este
“forasteiro” da Galileia, como seria o ajoelhar-se diante dEle para Lhe
desatar as correias de suas sandálias, e tirá-las para lavar-lhe os pés.

40
Esta frase condicional pertence ao Grupo I B; veja-se IV da Introdução.
41
Literalmente: aquele que vem após mim; cf. versículos 15 e 30.
42
A respeito de ἵνα veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 130
28. Estas coisas se passaram em Betânia, do outro lado do Jordão,
onde João estava batizando. Para uma explicação deste versículo veja-se
acima, os versículos 19–23.

Síntese de Jo 1:19–28
O Filho de Deus Se revela a Si mesmo a círculos cada vez mais
amplos: A João Batista, o qual testifica a respeito dele.
Nesta seção amplia-se a referência ao testemunho do Batista que
aparece nos versículos precedentes (6–8, 15). O lugar é Betânia do outro
lado do Jordão, provavelmente num vau, não longe do Mar da Galileia.
A época, fevereiro ou princípios de março do ano 27. O que aqui se
relata sucedeu no primeiro de quatro dias sucessivos aos quais se refere o
evangelista. Sucedeu precisamente no dia antes de Jesus voltar do
deserto onde tinha sido tentado. Tendo ouvido o Sinédrio muitas coisas a
respeito de João, e provavelmente alarmado diante da possibilidade de
que se tratasse de outro falso Messias, envia uma delegação com o
propósito de fazer uma investigação oficial. Ao ser interrogado, o Batista
responde que ele não é nem o Messias nem o precursor que os judeus
esperavam (ou seja, Elias em pessoa) nem o profeta de Dt. 18:15–18. Ele
se identifica com a voz do que clama no deserto, de Is. 40:3. Como é,
então, que te dedicas a realizar a obra que corresponde ao Messias ou ao
Seu arauto oficial? Por que batizas? Sua resposta é que embora ele
administre o sinal (água), não pretende ser capaz de comunicar a coisa
significada (o dom do Espírito Santo). Este é o grande privilégio do
Messias, e esse Ser glorioso já apareceu na cena da história de Israel,
embora eles não O tenham reconhecido. Em sua busca de falsos Messias
perderam o Verdadeiro. Este é tão glorioso que o Batista se considera até
indigno de desatar as correias de suas sandálias.
João (William Hendriksen) 131
JO 1:29–34

1:29. No dia seguinte, viu João a Jesus, que vinha para ele. Jesus
retorna do deserto onde foi tentado. João, ao vê-Lo aproximar-Se, diz
aos que o escutam, ao mesmo tempo assinalando ou olhando para Jesus:
e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! Acaso não é
verdade que com Sua submissão voluntária ao rito do batismo e com Sua
vitória sobre Satanás no deserto diante da tentação, Jesus já tinha
começado Sua obra de tomar vicariamente sobre Si mesmo a maldição
da lei, e de prestar obediência perfeita? E acaso não estava, com estes
mesmos atos e com os que deviam seguir, tirando (gerúndio) o pecado
do mundo? Quão oportunas eram as palavras do Batista naquele
momento! O vocábulo ἴδε não se pode tomar por um verbo transitivo que
tem o cordeiro como objeto direto. Aqui tem função de interjeição. Por
isso a tradução não deveria ser: “Olhai o Cordeiro de Deus”, ou “Vede o
Cordeiro de Deus”. Se quer conservar qualquer destas duas palavras
deve-se pôr uma vírgula depois da primeira. Embora esta vírgula
encontra-se em algumas traduções, nem sempre se leva em conta ao ler
ou cantar. Para evitar ambiguidades o traduzimos assim: “Eis aqui, o
Cordeiro de Deus, que está tirando o pecado do mundo”.
Com frequência fez-se a seguinte pergunta: “referia-se João ao
cordeiro pascal (Êx. 12–13; cf. Jo 19:36; 1Co. 5:7; 1Pe. 1:19); ao
cordeiro da oferta diária (Nm. 28:4); ou ao cordeiro de Isaías 53:6, 7, 10?
Deram-se boas razões em favor de cada um destes critérios: do primeiro,
que a Páscoa estava próxima; do segundo, que o sacrifício daqueles
cordeiros era um acontecimento diário e, portanto, bem conhecido pelas
pessoas a quem João se dirigia; e do terceiro, que o Batista tão somente
um dia antes se havia descrito a si mesmo e a sua obra com linguagem
tirada de Isaías (capítulo 40). Também Mateus estava familiarizado com
Isaías 53 (veja-se Mt. 8:17); e igualmente Pedro (1Pe. 2:22); e também o
evangelista Filipe (At. 8:32); e o escritor da epístola aos Hebreus (Hb.
9:28). Mas por que é preciso escolher? Não eram todos eles tipos que se
João (William Hendriksen) 132
cumpriram em Cristo, e não era Ele o Antítipo ao qual todos eles
assinalavam (cf. 1Pe. 1:9; 2:22)?
Embora seja verdade que o significado primário do verbo αἴρω é
levantar, elevar (Jo 8:59), nos tipos, no entanto, o que se simbolizava
com o cordeiro sacrificado era a erradicação do pecado e/ou suas
consequências (Êx. 12:13; Is. 53:5, 8, 11, 12). Por isso, o natural é que
aqui em Jo 1:29 atribuamos a αἴρω o significado que sempre lhe deu o
leitor da Bíblia; ou seja, tirar (igual a em Jo 19:31). Segundo o Batista, o
que o Cordeiro está tirando é o pecado do mundo (homens de toda tribo e
povo, perdidos, por natureza, no pecado, cf. Jo 11:51, 52), e não
simplesmente o pecado de uma nação em particular (p. ex., os judeus).
Todos os pecados (plural em 1Jo 3:5) que o Cordeiro tira recebem o
nome coletivo do pecado. Esta passagem não ensina uma expiação
universal. Nem o Batista, nem o evangelista, nem o próprio Jesus
ensinaram isso (Jo 1:12, 13; 10:11, 27, 28; 17:9; 11:50–52; observe-se a
expressão “filhos de Deus” na última referência).
30. Provavelmente o Batista tinha falado com frequência a respeito
de Cristo numa linguagem similar à empregada no versículo 30. Daí que
testifique: É este a favor de quem eu disse: após mim vem um varão que
tem a primazia, porque já existia antes de mim. (Veja-se Jo 1:15 e 27;
especialmente o versículo 15 para um comentário.)
31. Eu mesmo não o conhecia. O Batista quer dizer: “Para mim era
tão desconhecido como para vós”. O verbo οἶδα (aqui ἤδειν, mais-que-
perfeito com significado de imperfeito) indica um processo mental.
Refere-se a um conhecimento por intuição ou reflexão, em contraposição
a γινώσκω, que se refere a um conhecimento por observação e
experiência. Naturalmente, é possível que João, habitante da Judeia, não
tivesse tido relações estreitas com Jesus, que tinha vivido a maior parte
de Sua vida na Galileia. Não obstante, vê-se claramente no contexto
(versículo 33) que aqui se faz referência a algo para além de um mero
conhecimento físico: o Batista confessa que lhe teve que ser revelado do
alto que este Jesus era o Cristo. Nesse sentido não o tinha conhecido.
João (William Hendriksen) 133
Mas, a fim de que ele (Jesus naquele oficio) fosse manifestado a Israel,
vim, por isso, batizando com água. A água simbolizava a impureza do
pecado, 43 o que dava a João a oportunidade de apontar a (ou de falar de)
Jesus como o Cordeiro de Deus que está tirando o pecado do mundo.
32. E João testemunhou, dizendo: Vi o Espírito descer do céu como
pomba e pousar sobre ele.
Aqui o evangelista parece dar por sentado que os leitores já
conhecem os Sinóticos, pois nestes a ocasião em que o Espírito Santo
desceu sobre Jesus em forma de pomba está claramente relatada (Mt.
3:13–17; Mc. 1:9, 10; Lc. 3:21, 22) e não simplesmente subentendido
como no versículo 33. Por isso, o escritor do quarto Evangelho omite
informar a seus leitores com clareza que este acontecimento teve lugar
quando Jesus foi batizado.
Para o significado dos verbos dar testemunho e ver, veja-se
respectivamente a explicação de Jo 1:7 e de Jo 1:14. Lc. 3:22 arroja luz
sobre vários dos termos que achamos em Jo 1:32–34. Assim, fazendo
uma comparação, descobrimos que o que João viu foi o Espírito Santo.
Naturalmente, o próprio Espírito não tem corpo e não se pode ver com os
olhos físicos. Mas somos informados abertamente que a terceira Pessoa
da Trindade manifestou-se ao Batista sob o simbolismo de uma pomba.
O que se viu fisicamente foi uma forma corpórea como uma pomba,
como também explica Lc. 3:22. Não se sabe exatamente por que Deus
escolheu uma pomba para representar o Espírito Santo. Alguns
comentaristas assinalam a pureza, a mansidão e a graça da pomba, estas
propriedades que, em grau infinito, caracterizam ao Espírito. É possível
que esta explicação seja correta. João observou que aquela forma
corporal repousou (por uns momentos) sobre Jesus; quer dizer, não
desapareceu imediatamente. nos baseando em passagens tais como Jo
3:34; Lc. 4:18 e seguintes; e Is. 61:1 e seguintes, podemos dizer o que

43
Não diretamente, naturalmente; mas indiretamente; como se afirma na Fórmula para o Batismo de
Crianças, na liturgia da Igreja Cristã Reformada: “A imersão em ou aspersão com água … com o que
se significa a impureza de nossas almas”.
João (William Hendriksen) 134
João viu foi a manifestação visível da unção de Jesus pelo Espírito
Santo. Esta unção, como indicam as referências, inclui dois elementos: a.
que Deus ordenou ao Mediador para Sua obra específica, e b. que o
Mediador foi capacitado cumpri-la.
33. Eu não o conhecia. O Batista repete que anteriormente não tinha
conhecimento de Jesus em sua função do Messias (veja-se versículo 31).
Daí que seu testemunho seja ainda mais valioso, pois foi dado do alto, e
se apoiava numa revelação sobrenatural. Aquele, porém, que me enviou a
batizar com água me disse: Aquele sobre quem vires descer e pousar o
Espírito, esse é o que batiza com o Espírito Santo. João cita as palavras de
seu divino Senhor. Para uma explicação quanto ao batismo com água em
contraposição ao batismo com o Espírito Santo, veja-se o comentário
sobre Jo 1:26. Observe-se a repetição de pronomes neste versículo, e
veja-se páginas 66, 67.
34. Neste versículo se conclui o testemunho do Batista. Pois eu, de
fato, vi e tenho testificado … O uso do tempo perfeito nestes verbos
indica claramente que o homem que teve esta maravilhosa experiência
deseja declarar na forma mais solene que não só O viu mas também a
visão ainda está à sua vista; que não só testificou, mas também seu
testemunho ainda permanece. O conteúdo do testemunho é: que ele é o
Filho de Deus. Ao colocar o título no final da frase produz-se um
surpreendente clímax, em bela harmonia com o propósito do quarto
Evangelho, conforme aparece em Jo 20:30, 31. Em relação ao
significado deste título podemos nos referir mais uma vez a Lucas 3:22.
Nessa passagem afirma-se claramente que o Batista, além de ver uma
forma corporal como de pomba, ouviu também uma voz do céu que dizia
a Jesus: “Tu és o meu filho amado, em ti me agradei”. Por isso, aqui em
Jo 1:34 a expressão o Filho de Deus refere-se ao próprio Filho de Deus
no sentido mais elevado em que se pode usar este termo. Expressa a
relação especial que existe eternamente entre o Pai e o Filho (Jo 1:1, 18;
3:16–18; 5:25; 17:5; 19:7; 20:31).
João (William Hendriksen) 135
Síntese de Jo 1:29–34
O Filho de Deus Se revela a Si mesmo a círculos cada vez mais
amplos: a João Batista, o qual testifica a respeito dEle.
Este parágrafo refere-se a um acontecimento que teve lugar um dia
depois da delegação do Sinédrio visitar o Batista. Este vai a Jesus que
voltou do deserto e exclama: “Eis aqui, o Cordeiro do Deus, que está
atirando o pecado do mundo”. Em Cristo, o Cordeiro de Deus, acham
seu grande Antítipo todos os cordeiros típicos da lei e das profecias. Este
Cordeiro estava tirando o pecado do mundo. E isto o fez durante toda a
Sua permanência na terra, não só quando morreu na cruz. Sua vida
inteira e Sua morte sob a maldição foi um sacrifício expiatório que
ofereceu a Deus. Além disso, estava tirando não só o pecado de Israel,
mas também de todo o mundo, pois Ele salva homens de toda tribo e
nação.
O Batista repete o testemunho que, talvez, tinha pronunciado com
frequência: “Depois de mim vem um varão o qual se pôs diante de mim
porque existia antes que eu”. (Veja-se versículo 15.) “E eu não o
conhecia”, diz João prosseguindo seu testemunho. No entanto, o
propósito de seus batismos era precisamente fazer com que a água, que
simbolizava a necessidade de purificação espiritual, atraísse a atenção de
Israel sobre o Cordeiro de Deus, que tira o pecado.
Ao Batista tinha sido revelado por meio de uma mensagem direta
de Deus que Jesus era este Cordeiro de Deus: “Sobre quem vir descer o
Espírito e que repousa sobre ele, este é aquele que batiza com o Espírito
Santo”. Com este sinal revelou-se que Jesus era certamente o Cristo;
quer dizer, o Ungido, separado e capacitado pelo Espírito para Sua obra
de Mediador e Redentor.
O testemunho do Batista alcança sua gloriosa culminação nas
palavras: “E eu vi, e dei testemunho que este é o Filho de Deus”. O
Batista tinha ouvido uma voz do céu: “Tu és o meu Filho amado; em ti
João (William Hendriksen) 136
me agradei”. Seu testemunho é, por assim dizer, como um eco desta voz.
E esse eco nunca se extingue.

JO 1:35–42

1:35. No dia seguinte, estava João outra vez na companhia de dois


dos seus discípulos.
Este é o terceiro dia dos quatro comentados em Jo 1:19–51. Como
nos anteriores, o Batista encontra-se num lugar destacado perto do
Jordão, e continua dando seu testemunho a respeito de Jesus. No entanto,
conquanto ontem dirigiu-se a uma multidão de quantidade e caráter
indetermináveis, hoje está com dois de seus discípulos (André e o
próprio apóstolo João; veja-se a demonstração em I da Introdução.)
36. e, vendo Jesus passar, disse: … Outra das diferenças entre os
dois dias é que ontem Jesus Se dirigia até o Batista; hoje evidentemente
se distanciava dele, indo para o lugar onde Se alojava temporariamente.
(Vejam-se os versículos 38b e 39).
Por outro lado, enquanto no dia anterior o testemunho do Batista
não tinha provocado nenhuma resposta ativa da parte dos dois discípulos,
hoje estes dois homens dão o passo decisivo que lembrarão pelo resto de
seus dias. Mais uma vez ouvimos o mesmo testemunho que no dia
anterior: Eis o Cordeiro de Deus! (Veja-se o comentário do versículo 29.)
No entanto, tenha-se em conta que o testemunho de hoje é mais conciso.
Provavelmente, a primeira parte da frase que encontramos no versículo
29 era suficiente para fazer lembrar o resto.
37, 38. Os dois discípulos, ouvindo-o (ao seu mestre João) dizer isto,
seguiram Jesus. E Jesus, voltando-se e vendo que o seguiam, disse-lhes:
Que buscais?
Observe-se: não diz, quem (buscais) mas sim que. Queriam que este
Cordeiro de Deus lhes tirasse o pecado? Buscavam, por conseguinte,
uma salvação completa e gratuita, e acesso ao reino? Fosse o que fosse,
Jesus era (e é) capaz de prover tudo.
João (William Hendriksen) 137
Ao responder, os dois discípulos de João empregam a forma cortês
de trato: “Rabi”. Esta palavra se deriva de um adjetivo que significa
grande; e daí, mestre ou amo. 44
João interpreta as palavras aramaicas devido ao fato de que escreve
para cristãos procedentes (principalmente) do mundo gentílico. É por
isso que lemos: Disseram-lhe: Rabi (que quer dizer Mestre). O vocábulo
traduzido é μεθερμηνευόμενον, gerúndio passivo de μεθερμηνεύω, um
composto de μετά e ἑρμηνεύω, em que o prefixo μετά indica a mudança
de uma língua a outra, e ἑρμηνεύω significa interpretar ou traduzir;

44
A forma em que o escritor do quarto Evangelho emprega o termo é interessante. Mostra que
também neste sentido há um grau de desenvolvimento em seu livro, pela simples razão de que houve
um grau de desenvolvimento na reverência dos discípulos por Jesus. No princípio os Doze
(Nicodemos também) diz, “Rabi”, enquanto que outros (a mulher de Samaria, o nobre de Cafarnaum,
o doente de Betesda, o homem cego de nascimento) diz κύριε. Quanto a “Rabi”, veja-se Jo 1:38, 49;
3:2; 4:31. Quanto a κύριε no sentido de “Senhor” veja-se Jo 4:11–19, 49; 5:7; 9:36. Muitos tradutores
preferem “Senhor” ou “Mestre” para o κύριε no Jo 9:38. No final do discurso de Cristo a respeito do
Pão da vida — pronunciado na conclusão do grande Ministério Galileu, — ouvimos que Pedro dirige-
se a Jesus como κύριε; em geral se traduz por “Senhor” (Jo 6:68). A multidão também mudou seu
“Rabi” por κύριε (Jo 6:25; cf. Jo 6:34). Só duas vezes depois disto — ou seja, em Jo 9:2 e Jo 11:8;
mas veja-se também Jo 20:16 — ouvimos os discípulos usarem o termo “Rabi”. Depois de Jo 11:8 os
discípulos de Jesus — ou seja, os Doze e também amigos como Marta e Maria — se apresentam como
dizendo κύριε, que nas passagens seguintes é geralmente traduzido como “Senhor”: Jo 11:12, 21, 27,
32, 34, 39; 13:6, 9, 25, 36, 37; 14:5, 8:22; 20:2, 13, 18, 20, 25, 28; 21:7, 12, 15, 16, 17, 20, 21.
Empregam este termo tanto para dirigir-se a Jesus para referir-se a Ele em terceira pessoa. No entanto,
não se pode deduzir muito destas cifras. Talvez seja correto dizer que se indica uma tendência geral,
que aponta na direção de uma reverência crescente de uma substituição gradual de κύριε no sentido de
“Senhor” em lugar de “Rabi” para dirigir-se a Jesus. Uma comparação de Jo 13:13 com Jo 1:38
mostra que, pelo menos por um tempo considerável, os dois termos — “Rabi” e κύριε — devem ter
sido utilizados indistintamente. Se isso for tido em mente, volta a ficar claro que também neste ponto
secundário — em oposição à opinião de alguns — não há na realidade diferença básica entre os
Sinóticos e João.
Depois da ressurreição de Cristo ῥαββί desaparece por completo e, como já se indicou, emprega-se
κύριε com grande regularidade. Também, o segundo termo adquiriu mais significado. Quando, depois
de Jo 11:8, os que o conheciam utilizam este título com relação àquele que sabiam que era Jesus,
encontra-se geralmente a tradução “Senhor” em nossas versões, tanto antigas como modernas. As
palavras em itálico indicam também por que em Jo 12:21 e em Jo 20:15 é preciso a tradução
“Senhor”: os gregos não conheciam Jesus; Maria não sabia que se estava dirigindo a ele. (Veja-se
mais a respeito do significado de χύριος G. Vos, The Self-Disclosure of Jesus, Nova York, 1926, pp.
117–1398; e G. J. Machen, The Origin of Paul’s Religion, pp. 293–317).
João (William Hendriksen) 138
trata-se, pois, de interpretar uma expressão passando-a de uma língua a
outra. Em Jo 1:42 acha-se a forma simples do verbo. O verbo se deriva
do Hermes, o deus da fala. At. 14:12 nos informa que os habitantes de
Listra apelidaram a Paulo, Hermes (ou Mercúrio), devido ao fato de que
era o principal pregador.
De modo que, os dois discípulos lhe perguntam: Onde assistes?
[NVI: “Onde estás hospedado?”]. Não nos foi revelado, e não é de
grande importância, se este albergue temporal de Jesus era alguma casa
de Betânia do outro lado do Jordão, ou alguma cabana daqueles
arredores, feita com ramos entrelaçados e coberta com tecidos. O
importante é notar de que os dois discípulos desejavam ter uma
oportunidade para conversar ininterruptamente com Jesus. Visto que isso
era algo difícil de conseguir ao ar livre, perguntam a Jesus onde se
hospeda sugerindo claramente que desejam ser convidados a visitá-Lo. O
testemunho de João Batista despertou plenamente seu interesse,
demonstrando assim que era um verdadeiro arauto.
39. Respondeu-lhes: Vinde e vede. A resposta foi melhor do que
esperavam. Jesus os convidou imediatamente a que O acompanhassem.
Foram, pois, e viram onde Jesus estava morando. 45 Os fatos são narrados
com simples aoristos históricos. Foram e viram. Buscaram e
encontraram. Observe-se que o verbo achar dos versículos 41, 43, 45
corresponde ao verbo buscar do versículo 38.
E ficaram com ele aquele dia, sendo mais ou menos a hora décima. O
aspecto importante deste assunto não é: “O que significa a hora
décima?”, mas sim, “Por que faz o escritor menção da hora?”
A resposta é: O escritor, como se demonstrou, era um daqueles dois
discípulos. Aquele dia com Jesus mudou toda sua vida! Deixou nele uma
impressão tão profunda que nunca esqueceu a hora exata em que tinha
recebido aquele convite e tinha determinado aceitá-la.

45
Em grego μένει, presente ativo do indicativo numa pergunta indireta depois de um tempo
secundário (εἶδαν). Isto é normal. Veja-se Gram. N.T., pp. 1029, 1043.
João (William Hendriksen) 139
Certamente os comentaristas nunca ficarão de acordo sobre o
significado da expressão “a hora décima”. Significa a décima hora
depois da saída do sol, ou seja, as 4 da tarde? Assim seria segundo o
método judaico de contar o tempo, usado nos Sinóticos. Mas os romanos
também usavam com frequência o mesmo método. Estes, no entanto,
para contar as horas também começavam à meia-noite e ao meio-dia, tal
como o fazemos hoje. Este último método o empregavam para designar
as horas de seu dia civil (p. ex. Para datar arrendamentos e contratos).
Mas os documentos da época não esclarecem exatamente onde terminava
um método de contar as horas e onde começava o outro. Seu uso variava,
provavelmente, nas distintas regiões. Portanto a expressão “a hora
décima” pode significar as 4 da tarde ou as 10 da manhã, ou inclusive as
10 da noite. Mas o contexto revela que é impossível pensar nas 10 da
noite. Quanto à escolha entre as 4 da tarde e as 10 da manhã, cremos
(com A. Edersheim, A. T. Robertson, F. W. Grosheide, e muitos outros)
que existem muitas razões em favor desta última:
(1) João está escrevendo a finais do primeiro século. Seus leitores
eram — em sua maioria — cristãos gentios. Isto torna desnecessário o
uso do método judaico de contar as horas. Pôde ter usado o sistema
romano do dia civil.
(2) Em Jo 20:19 o escritor deve referir-se forçosamente ao dia
romano. Se ali o fez, por que não aqui?
(3) O contexto parece favorecer esta interpretação: “E ficaram com
ele aquele dia”. Se tivessem sido as 4 da tarde o natural teria sido dizer:
“E ficaram com ele aquela tarde”. Cf. Lc. 24:29. Por outro lado se “a
hora décima” significa as 10 da manhã, fica bastante tempo naquele
mesmo dia para a busca que resultou no achado de dois discípulos mais:
Simão Pedro e (com toda probabilidade) Tiago. (Versículos 41, 42.)
(4) Este método de computar as horas também é adequado às
circunstâncias de outras passagens deste evangelho. (Veja-se nossa
explicação de Jo 4:6 e de Jo 4:52.)
João (William Hendriksen) 140
(5) Este cálculo do tempo faz harmonizar Jo 19:14 com Mc. 15:25.
Se em ambas as passagens se contam as horas a partir da saída do sol,
resulta uma contradição insolúvel. 46
40. Era André, o irmão de Simão Pedro, um dos dois que tinham
ouvido o testemunho de João e seguido Jesus. É como se o escritor
dissesse: “Um dos dois discípulos que seguiram a Jesus aquele dia era
André. Quero dizer: o irmão de Simão Pedro, a quem vós conheceis
bem”. Não parece dar por sentado que os leitores estão a par das
histórias dos Sinóticos a respeito de Simão Pedro?
O escritor não identifica o outro discípulo, mas já tratamos de
demonstrar que se tratava dele mesmo; quer dizer, do apóstolo João.
(Veja-se Escritor, Data e Lugar I da Introdução.)
41. Ele achou primeiro o seu próprio irmão, Simão. No versículo 41
podemos ler: “Ele (André), o primeiro (adjetivo πρῶτος), achou a seu
irmão Simão”, ou “Ele achou primeiro (advérbio πρῶτον) a seu irmão
Simão”. A evidência externa não decide definitivamente a questão em
favor de nenhum dos dois textos. 47 Se o segundo texto for correto—
como muitos intérpretes creem — então o evangelista deseja transmitir
uma das seguintes ideias:
(1) Antes de fazer outra coisa, André achou a seu irmão Simão; ou
(2) André achou primeiro a seu irmão Simão; depois achou a mais
alguém; ou
(3) André e João saíram para buscar a Simão, mas André o
encontrou primeiro.
Foram apresentadas objeções às três interpretações que resultam de
pôr o advérbio em lugar do adjetivo. Contra (1): Por que não se relata

46
É estranho que comentaristas que estão a favor da ideia contrária se refiram às vezes a Jo 11:9 em
defesa de sua teoria. Mas a expressão, “Não tem o dia doze horas?” não prova nada em nenhum
sentido. Também nós podemos utilizar a mesma expressão. Também para nós há, em média, doze
horas de luz num dia de vinte e quatro horas. Mas, ao indicar a hora do dia, contamos desde meia-
noite ou meio-dia.
47
Alguns manuscritos latinos antigos apoiam outra versão: mane, para o grego πρωί, mas tem muito
pouca força.
João (William Hendriksen) 141
nada mais então? Contra (2): Quem era, nesse caso, a outra pessoa que
achou André? Contra (3): Por que saíram estes dois homens para buscar
o irmão de um deles, quando João também tinha um irmão a quem devia
encontrar? E, efetivamente, encontrou-o conforme vemos em Mc. 1:16,
20, 29.
Embora a evidência externa se incline ligeiramente em favor do
advérbio, a diferença não é decisiva. É possível que o advérbio seja o
mais correto, mas se for assim devemos confessar que não podemos dar
uma explicação satisfatória.
Se a primeira interpretação for a correta, tudo é relativamente
simples. O significado então seria que dois homens (André e João),
depois de passar um dia com Jesus, ficaram tão impressionados pelo que
acharam nele que se transformaram em missionários. Os dois saíram
(talvez ao entardecer daquele mesmo dia) para buscar seus respectivos
irmãos. André, o primeiro missionário, encontra a seu irmão Pedro.
Depreende-se que João, o segundo missionário, achou a seu irmão
Tiago. Mas, de acordo com sua fina discrição, João não o diz
diretamente.
Quando André viu Pedro, a quem disse: Achamos o Messias. A
esperança da vinda do Messias, o testemunho do Batista a respeito de
Jesus (Jo 1:29, 36), e especialmente aquela visita ao alojamento temporal
de Jesus perto do Jordão, eram as circunstâncias que tinham preparado o
caminho para esta exclamação. Devemos levar em conta, não obstante,
que o conceito que os discípulos tinham a respeito do Messias precisava
refinar-se. A história de sua confissão e testemunho revela muitos altos e
baixos. Embora no conjunto pode-se observar uma ascensão gradual em
seu reconhecimento e compreensão do ofício mediador de Cristo, no
entanto, mesmo depois da ressurreição de Cristo, certos elementos
nacionalistas persistem em sua esperança e expectativa messiânica (cf.
At. 1:6). A prazerosa descoberta que expressam as palavras de André era
um bom princípio no caminho para um conhecimento maior e mais
João (William Hendriksen) 142
profundo. Quanto à cláusula entre parêntese: (que quer dizer Cristo), de
χρίω, ungir, vejam-se II da Introdução e também nota 44.
42. e o levou a Jesus. André levou a Pedro para onde Jesus estava.
Olhando Jesus para ele, quer dizer, Jesus considerou atentamente a
Simão, estudou-o uns momentos; literalmente observou-o ou examinou-o
(ἐμβλέψας). 48
Disse: Tu és Simão, o filho de João; tu serás chamado Cefas (que
quer dizer Pedro). Jesus, fazendo uso de Seu ofício profético, olha para o
futuro e o que vê não é o impulsivo Simão que agora tinha diante de Si,
mas o estável Cefas (em aramaico) ou Pedro (em grego): quer dizer,
Pedra. Portanto Jesus prediz o que a graça divina realizará no coração
deste discípulo. (Cf. também Mt. 16:18.)

Síntese de Jo 1:35–42
O Filho de Deus Se revela a Si mesmo a círculos cada vez mais
amplos: a João Batista, que testifica a respeito dEle; a seus discípulos
mais achegados: seu testemunho.
No dia seguinte (o terceiro dia) o Batista estava perto do Jordão
com dois de seus discípulos: André e João, o escritor deste Evangelho,
que com fina discrição não menciona seu próprio nome. Quando o
Batista viu Jesus dirigindo-se a seu alojamento temporal, disse a seus
dois discípulos: “Eis o Cordeiro de Deus!”. E eles seguiram a Jesus.
Jesus se voltou e lhes olhando cuidadosamente lhes perguntou: “O
que (não, a quem) estão buscando?” Eles responderam: “Rabi (isto é,
Mestre), onde moras?” Queriam que Jesus os convidasse a Sua casa para
passar um momento, longe das interrupções do exterior, com aquele
homem que lhes tinha sido apontado como o Cordeiro de Deus. Jesus
respondeu: “Vinde e vede”. Esta resposta foi melhor do que esperavam:

48
Temos nesta seção (vv. 35–43) vários sinônimos de visão: versículos 36 e 42: ἐμβλέπω; versículo
38: θεάομαι; 39: ὄψομαι que se usa como futuro de ὁράω. O aoristo εἶδαν também encontra-se neste
versículo (Quanto aos significados destes sinônimos, veja-se nota 33, e explicação de Jo 1:14.)
João (William Hendriksen) 143
significava que não deviam esperar algum dia no futuro, mas que lhes
era permitido — inclusive convidava — a acompanhar ao Senhor
imediatamente. Desde aquele momento aqueles dois homens se
converteram em discípulos de Jesus.
Isto ocorreu perto da hora décima; quer dizer, provavelmente por
volta das 10 da manhã. O escritor lembrava muito tempo depois a hora
exata, visto que isto foi um passo decisivo em sua vida. Os dois ficaram
aquele dia com Jesus.
Provavelmente ao entardecer daquele mesmo dia André encontrou a
seu irmão Pedro e o levou a Jesus. Parece implicar-se que João, um
pouco depois, fez o mesmo com seu irmão Tiago. Não é, pois, de
surpreender que em Mc. 1:29 se mencione os quatro juntos. Ao encontrar
a seu irmão, André exclama prazerosamente: “Achamos o Messias”.
Parece que tanto André como Simão tinham estado buscando o Messias;
quer dizer, tinham-no estado esperando ansiosamente.
Jesus, depois de olhar ao irmão de André, manifesta Seu penetrante
conhecimento e habilidade para predizer ao futuro, dizendo: “Tu és
Simão, o filho de João; tu serás chamado Cefas” (em aramaico) ou Pedro
(em grego), que significa Pedra. No entanto, isto não era simplesmente
uma predição mas também uma promessa que indicava o que a graça de
Deus ia realizar no coração e na vida daquele discípulo.

JO 1:43–51

1:43, 44. No dia imediato, resolveu Jesus partir para a Galiléia e


encontrou a Filipe, a quem disse: Segue-me. Ora, Filipe era de Betsaida,
cidade de André e de Pedro.
Este é o último dos quatro dias sucessivos comentados no primeiro
capítulo do quarto Evangelho. Jesus, que ainda estava em Betânia, do
outro lado do Jordão, decidiu cruzar à margem ocidental do Jordão e dali
continuar para a Galileia. Provavelmente, enquanto se ocupava em fazer
os preparativos para esta viagem, encontrou a Filipe. Isto não é estranho
João (William Hendriksen) 144
visto que Filipe era da mesma cidade que André e Pedro, ou seja,
Betsaida (Casa de Pesca) situada, ao que parece, não longe de
Cafarnaum. No entanto, o lugar exato se desconhece, e ainda se continua
sobre o problema de se existia mais de um lugar com esse nome 49 (Veja-
se também Jo 6:1.) Podemos supor que André e Pedro falaram com seu
amigo e patrício a respeito de Jesus. Possivelmente os três tinham vindo
ao batismo de João. Jesus disse a Filipe: “Segue-me”. Implica-se
claramente que este mandato foi obedecido, de maneira que Filipe
converteu-se em discípulo do Senhor. Dentre todos os apóstolos, só
André e Filipe tinham nomes gregos. Muito tempo depois, quando os
gregos quiseram ver Jesus, deram a conhecer seu desejo a Filipe. E ele e
André se encarregaram de transmitir a petição dos gregos a Jesus, Jo
12:20–22.
45. Voltemos agora para nosso parágrafo (vv. 43–51): Filipe, o novo
discípulo, encontrou, por sua vez, a Natanael, que era de Caná (Jo 21:2).
O Natanael do quarto Evangelho é, com toda probabilidade, o
Bartolomeu dos Sinóticos, como demonstramos em I da Introdução.
Bartolomeu é patronímico (Bar Tolmai, que significa filho de Tolmai).
Natanael é um nome hebraico que quer dizer Deus deu, como o grego
Teodoro, que significa dom de Deus.
e disse-lhe: … O versículo 45 nos diz o que Filipe disse a Natanael.
É importante conservar a ordem das palavras do original. Sendo feito
isso, vê-se claramente que em seu grande entusiasmo Filipe começa a
frase referindo-se ao Messias, mas a última palavra que Natanael ouve é
Nazaré. Estes dois conceitos (Messias - Nazaré) pareciam a Natanael
absolutamente contraditórios.
Cheio, pois, de entusiasmo, Filipe exclama: Achamos aquele de
quem Moisés escreveu na lei, e a quem se referiram os profetas: … Até
aqui Filipe está declarando uma grande verdade, pois Moisés e os
Profetas (isto é, todo o Antigo Testamento) não podem ser

49
Veja-se artigo “Betsaida”, em W.D.B. e em I.S.B.E.
João (William Hendriksen) 145
compreendidos a não ser que se veja Cristo neles. Se não se perceber
isso, o Antigo Testamento seguirá sendo um livro fechado. Mas quanto
se compreende esta ideia as Escrituras se abrem, como indicam
claramente as seguintes passagens: Lc. 24:32, 44; Jo 5:39, 46; At. 3:18,
24; 7:52; 10:43; 13:29; 26:22, 23; 28:23; e 1Pe. 1:10. Quando Filipe
acrescentou: Jesus, o Nazareno, filho de José, não disse nada falso, visto
que Jesus era legalmente o filho de José (cf. Mt. 1:16). Por outro lado, ao
dizer que era de Nazaré, Filipe simplesmente indicava que Jesus tinha
passado a maior parte de sua vida naquela cidade. Filipe não diz nada a
respeito do lugar de nascimento do Salvador. Não é justo acusá-lo de
erros que não cometeu. E é preciso levar em conta que nesta primeira
época Filipe não tinha chegado, provavelmente, a alcançar a exaltada
visão da filiação divina de Cristo, que tão maravilhosamente expressa o
escritor do quarto Evangelho no Prólogo (Jo 1:1–18), nem tampouco à
cúspide da confissão de Natanael (Jo 1:49).
46. Perguntou-lhe Natanael: … Ainda não se tinha extinto o som da
palavra Nazaré quando Natanael com grande candura, exclama: De
Nazaré pode sair alguma coisa boa? Embora alguns são da opinião que
esta mofa sobre Nazaré deve ser interpretada como nascida da rivalidade
entre duas cidades — possibilidade que não se pode negar — à vista do
contexto imediato (veja-se também Jo 7:52), parece mais provável que
Natanael quis dizer: “É realmente possível que o Messias possa vir de
Nazaré? Têm predito Moisés e os profetas que algo bom na categoria
messiânica surgiria dessa cidade?” Respondeu-lhe Filipe: … Filipe lhe dá
a melhor resposta possível — uma que se parece muito com resposta de
Cristo a André e João, em Jo 1:39, Vem e vê.
47. Jesus viu Natanael aproximar-se e disse a seu respeito: Eis um
verdadeiro israelita, em quem não há dolo! Jesus diz isso a respeito de
Natanael, que, acompanhado por Filipe, dirige-se até Ele. Jesus falou de
dolo (δόλος, cebo; daí, armadilha; logo, engano, insídia). À luz de todo o
contexto (veja-se versículo 51) vê-se claramente que em todo este relato
da conversação com Natanael, Cristo estava pensando no patriarca Jacó.
João (William Hendriksen) 146
Isaque, seu pai, queixou-se dele, falando com seu próprio filho Esaú:
“Veio teu irmão astuciosamente e tomou a tua bênção”. (Gn. 27:35; veja-
se também o versículo seguinte.) O emprego de engano a fim de obter
vantagens egoístas caracterizou não só o próprio Jacó (veja-se também
Gn. 30:37–43), mas também a seus descendentes (cf. Gn. 34). Era tão
excepcional encontrar um israelita honrado e sincero, sem doblez, que ao
aproximar-se Natanael, Jesus exclamou: “Eis um verdadeiro israelita, em
quem não há dolo!”
48. Um homem de menos integridade teria agradecido a Jesus pelo
elogio e teria guardado seus verdadeiros pensamentos, mas Natanael não.
Com cândida inocência Perguntou-lhe Natanael: Donde me conheces?
Quer saber do que fonte procede o conhecimento de Jesus. Teria sido
Filipe aquele que proporcionou a Jesus a informação para formar seu
juízo? O Senhor lhe mostra que esta dedução seria falsa. Respondeu-lhe
Jesus: Antes de Filipe te chamar, eu te vi, quando estavas debaixo da
figueira. Com grande surpresa Natanael dá-se conta de que o penetrante
olho de seu novo Senhor se introduziu até o santuário interno de suas
devoções sob a figueira (cf. Sl. 139).
49. Profundamente comovido, Então, exclamou Natanael: Mestre,
(veja-se sobre Jo 1:38, a nota 44); tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de
Israel! Como dissemos, o contexto nos impede opacar o significado
desta confissão. Não pretendemos afirmar que a consciência de Natanael
sobre o glorioso caráter de Cristo continuou naquele alto nível. O que,
sim, afirmamos é que esta confissão deve-se ler à luz da revelação do
conhecimento sobrenatural, que descobrimos no contexto imediato. Para
Natanael, no momento de pronunciar esta exclamação, Jesus era nada
menos que o próprio Filho de Deus. (Veja-se Jo 1:14.) Como, pois, não
ia a ser o Rei de Israel, o tão esperado Messias? (cf. Sl. 2).
50. Ao que Jesus lhe respondeu: Porque te disse que 50 te vi debaixo
da figueira, crês? Pois maiores coisas do que estas verás.

50
A respeito de ὅτι, veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 147
Jesus não menospreza em nada o glorioso testemunho de Natanael.
Seria melhor — e mais em harmonia com o contexto — ler o versículo
50 como uma declaração e uma promessa, e não como uma pergunta. A
essência do que o Senhor diz a Seu novo discípulo é que, em recompensa
a sua fé, ser-lhe-iam reveladas coisas maiores.
51. Em que coisas maiores pensava Jesus? O versículo 51 o
esclarece, introduzindo-o com o duplo Amém arameu, que aparece 25
vezes no quarto Evangelho. Em verdade, em verdade. Livremente
traduzido significa: Muito solenemente. 51 Serve com frequência para
introduzir uma afirmação que expressa a conclusão do que precede.
A grande promessa que agora faz Jesus é dirigida não só a Natanael
mas também a todos os presentes; vos digo que. E o conteúdo da
promessa é este: Vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e
descendo sobre o Filho do Homem.
Bem como no versículo 47, aqui também se faz referência à história
de Jacó, mas enquanto o versículo 47 tem a Gênesis 27 como fundo, o 51
se baseia em Gênesis 28. Segundo este último capítulo, Jacó teve um
sonho enquanto descansava uma noite quando fugia de seu irmão Esaú, a
quem tinha enganado. Viu uma escada que tocava o solo e cujo extremo
alcançava até o céu. Sobre ela viam-se subir e descer os anjos de Deus.
Com relação a este sonho Jacó ouviu uma voz que pronunciou sobre ele
uma bênção gloriosa, que foi coroada com estas palavras: “… e todas as
famílias da terra serão benditas em ti e em sua semente”. A escada de
Jacó tem seu antítipo ou cumprimento em Cristo. Este é o significado das
palavras do Senhor a Natanael: “…vereis o céu aberto e os anjos de Deus
subindo e descendo sobre o Filho do Homem”. Este aparece aqui como o
elo entre o céu e a terra, o laço de união entre Deus e o homem, Aquele
que por meio de Seu sacrifício reconcilia Deus com o homem. Os
discípulos poderiam vê-lo com o olho da fé sob aquela luz. Poderiam ver

51
Os Sinóticos têm o Amém único. Como expressão que indica afirmação ou confirmação, encontra-se
o Amém duplo também no Antigo Testamento: Nm. 5:22; Sl. 41:13; 72:19; 89:52.
João (William Hendriksen) 148
os anjos de Deus subir e descer sobre o Filho do homem. Este misterioso
termo (Filho do homem) é para Jesus tão rico em significado como o é o
conceito de Messias. Tal termo se baseia em Daniel 7, e o analisamos
detalhadamente em conexão com Jo 12:34.
Por conseguinte, quando se faz a pergunta: O que são essas maiores
coisas que veria Natanael?, dá-se a seguinte resposta:
(1) Natanael tinha vislumbrado algo do penetrante conhecimento de
Cristo. No futuro, este discípulo — e junto com ele outros — veria este
atributo, e todos os outros atributos, empregados no serviço da salvação
do homem, para a glória de Deus.
(2) Natanael tinha confessado que Jesus é o Filho de Deus. A maior
coisa que ele e outros discípulos iam ver é que o Senhor é tanto o Filho
de Deus (veja-se versículo 49) como o Filho do homem (versículo 51),
que reconcilia a Deus com o homem, a verdadeira Escada entre o céu e a
terra.
(3) Bartolomeu tinha dado expressão a sua nova descoberta,
exclamando: “Você é o Rei de Israel”. A maior coisa, reservada para o
futuro, é que os seguidores do Senhor aprenderão a adorá-Lo, não só por
Sua relação com Israel, mas também com toda a humanidade em geral,
visto que ele é o Filho do homem.

Síntese de Jo 1:43–51
O filho de Deus se revela a círculos cada vez mais amplos: a Seus
discípulos mais achegados: seu testemunho.
Enquanto fazia preparativos para ir a Galileia, no quarto dia, Jesus
acrescentou outro discípulo ao pequeno grupo. Tratava-se de um homem
com nome grego: Filipe (que significa, amante de cavalos). Não é de
estranhar que fosse este discípulo aquele que (junto com André, o outro
discípulo com nome grego, que significa varonil) apresentasse os gregos
a Jesus. Mas isto sucedeu muito tempo depois (Jo 12:20–22). Os dois
primeiros discípulos foram André e João. O terceiro e o quarto foram
João (William Hendriksen) 149
Pedro e Tiago. Filipe, portanto, foi o quinto. Em todas as listas dos
apóstolos é mencionado em quinto lugar (Mt. 10:2–4; Mc. 3:16–19; Lc.
6:14–16; e At. 1:13). Era de Betsaida, a cidade de André e Pedro. É,
pois, provável que estes dois discípulos já tivessem falado a Filipe sobre
sua grande descoberta. Jesus disse a Filipe que O seguisse, e este
obedeceu.
Por sua vez Filipe encontrou a Natanael, um homem de Caná da
Galileia. Quando lhe disse que o Messias era o filho de José, de Nazaré,
Natanael, ao ouvir o nome deste lugar, exclamou: “De Nazaré pode vir
algo bom?” Nunca tinha relacionado nenhuma promessa messiânica com
esta cidade. Filipe, em lugar de discutir, diz-lhe: “Vem e vê”.
Quando Jesus viu Natanael que se aproximava, disse: “Eis um
verdadeiro israelita, em quem não há engano”. Esta é uma referência
evidente à história de Jacó em Gênesis 27. Jesus revela a este novo
discípulo que suas devoções secretas sob a figueira não tinham passado
desapercebidas aos olhos dAquele a respeito de quem escreveram
Moisés e os profetas. À luz deste maravilhoso conhecimento Natanael
exclamou: “Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel”.
Como recompensa a esta manifestação de fé, Jesus promete a
Natanael e a outros que veriam maiores coisas; ou seja, “o céu aberto, e
os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem”, o que é
uma referência ao sonho de Jacó com relação à escada (Gn. 28). Entre
essas maiores coisas podemos mencionar: o reconhecimento de que
Jesus é não apenas o Filho de Deus mas também o Filho do Homem; e
por isso a “escada” entre Deus e o homem; e que empregaria todos os
Seus atributos com o propósito de salvar os escolhidos de toda nação,
para a glória de Deus.
João (William Hendriksen) 150
JOÃO 2
JO 2:1–11

2:1. Ao terceiro dia depois disto houve um casamento em Caná da


Galiléia [TB]. Foi ao terceiro dia depois de Jesus ter ganho mais dois
discípulos: Filipe e Natanael. Podemos supor que durante os dois dias
anteriores (e talvez parte do terceiro dia) o Senhor e Seus primeiros seis
discípulos (André, João, Pedro, Tiago, Filipe e Natanael) viajaram a pé
para o lugar onde ocorreu o fato relatado em João 2. De modo que, ao
terceiro dia nos encontramos com o grupo em Caná da Galileia. O fato
de que a mãe de Jesus, que vivia em Nazaré, estivesse também presente,
parece indicar que Caná e Nazaré não eram muito distantes. Crê-se, não
obstante, que existiram várias Caná, inclusive dentro da província da
Galileia. Desconhece-se a situação exata daquela em que se celebrou as
bodas. Os comentaristas e geógrafos modernos se inclinam em favor de
um ponto a 12 ou 13 quilômetros a norte de Nazaré. 52 Se não nos
equivocamos ao situar a “Betânia do outro lado do Jordão” a uns trinta
quilômetros a sudeste de Nazaré, então se necessitavam certamente dois
dias de viagem, ou um pouco mais de dois dias. Também devemos levar
em conta a possibilidade de que Jo 1:43 implique que saíram de Betânia
o mesmo dia em que Filipe e Natanael foram chamados; quer dizer, que
também puderam ter viajado umas quantas horas aquela mesmo dia. Se
Betânia e Caná encontravam-se onde assinalamos, não existem, então,
grandes problemas quanto à viagem. Por outro lado, os que situam a
Betânia no sul, perto do Mar Morto, veem-se na dificuldade de explicar a
presença de Cristo em Caná da Galileia “ao terceiro dia” dos eventos
relatados em Jo 1:43–51. Apesar de que tal viagem se poderia ter

52
Veja-se Ch. Kopp, Das Kana des Evangeliums, Colonia, 1940.
João (William Hendriksen) 151
53
realizado em tão escasso tempo, devemos considerá-lo como
improvável. Não obstante, alguns dos que insistem na viagem de uns
cem quilômetros, tentam soslaiar o problema dizendo que Jesus chegou a
Caná quando já se celebraram vários dias em festa. Mas isto quase não
merece comentar-se.
E achava-se ali a mãe de Jesus[ TB]. A mãe de Jesus encontrava-se
também nas bodas. O escritor, segundo seu costume, não menciona o
nome da mulher, que provavelmente era sua tia (irmã de sua mãe
Salomé). Através de todo o Evangelho tanto ele como seus parentes
próximos ficam no anonimato. Maria não era, provavelmente, uma das
pessoas convidadas, antes, uma das que ajudavam a servir nas bodas.
Isto poderia explicar por que sabia ela que se tinha acabado o vinho.
2. Jesus também foi convidado, com os seus discípulos, para o
casamento. Se pensamos que estes discípulos se uniram ao seu Mestre
tão recentemente, poderia perguntar-se: “Por que foram incluídos no
convite feito a Jesus?” Existem várias possibilidades, uma das quais é
que Jesus, em Sua viagem para Caná, detivera-se em Nazaré (para onde
não tivesse tido que desviar-se muito) recebendo ali o convite para Si e
para os que estavam com Ele. Outra possibilidade é que Natanael, que
era de Caná recebesse autorização para estender o convite. Há quem crê
que era parente do noivo, mas sobre isso nada sabemos.
O principal, no entanto, é que Jesus aceitou o convite para todo o
grupo. Ele não era um asceta. Ele veio comendo e bebendo (Mt. 11:19).
3. Tendo acabado o vinho. À medida que a festa ia se
desenvolvendo, o vinho começou a faltar. Não sabemos por que razão
sucedeu isso, e o melhor é não especular. 54 Mas seria errado supor que a
falta de vinho fosse provocada pela inesperada chegada de Jesus e Seus
seis discípulos, visto que tinham sido convidados e eram esperados. O

53
Como defende F. W. Grosheide em Komentaar op het Nieuwe Testament, Johannes, I, p. 167.
Josefo afirma que viajando rápido pode-se chegar a Jerusalém da Galileia em três dias (La vida LVII).
54
S.B.K., p. 401. As bodas judaicas às vezes duravam uma semana e iam chegando constantemente
novos convidados.
João (William Hendriksen) 152
fato de que se considerava o vinho como um alimento de uso geral vê-se
bem claro em passagens tais como Gn. 14:18; Nm. 6:20, Dt. 14:26; Ne.
5:18; Mt. 11:19. Por causa de seu caráter intoxicante seu uso estava
restringido e estava proibido com relação ao desempenho de certas
funções; e sempre se condena claramente um uso excessivo (Lv. 10:9;
Pv. 31:4, 5; Ec. 10:17; Is. 28:7; 1Tm. 3:8).
Na Palestina as uvas amadurecem de junho a setembro. Não existe,
por conseguinte, nenhuma razão para supor que o vinho empregado em
umas bodas celebrada durante o período outubro-maio era outra coisa
que suco de uva fermentado, quer dizer, vinho real. Mas a intemperança,
como já indicamos, é algo contrário tanto ao espírito do Antigo como do
Novo Testamento. De modo que, não há nada neste relato que de forma
alguma alente os que se inclinam ao abuso ou uso excessivo dos dons de
Deus.
A mãe de Jesus lhe disse: Eles não têm mais vinho. Naquela
embaraçosa situação, quando o vinho faltava Maria vai prestar ajuda
com umas palavras dirigidas a Jesus: “Eles não têm mais vinho”. De
todos os presentes ninguém sabia melhor que Maria quem era Jesus e
que obra lhe tinha sido encomendada (cf. Lc. 1:26–38). Pode dizer-se
que se mostrou impaciente porque ele não fez algo imediatamente para
resolver aquela molesta situação? Tenha-se em conta que não lhe disse o
que devia fazer. Simplesmente se limitou a lhe mencionar a necessidade;
mas aquele indício era suficiente. É quase seguro que Maria esperava um
milagre.
4. Mas Jesus lhe disse: Mulher, que tenho eu contigo? 55 Ainda não é
chegada a minha hora. (A palavra “mulher” muito bem poderia ser
traduzida por “senhora” visto que não existe ideia de falta de respeito; cf.
Jo 19:26). Quando o Senhor disse “mulher” não se expressou rudemente.
Pelo contrário, foi um ato de carinho de Sua parte o usar esta palavra

55
Veja-se M. Smith, “Notes on Goodspeed’s ‘Problems of New Testament Translation’ ”, JBL, dic.
1945, pp. 112, 113; também Juízes 11:12, “O que tens tu comigo?” Cf. T. Gallus, “Quid mihi et tibi,
mulier? Nondum venit hora mea’ (Jn. 2:4)”, VD, 22 (1942), 41–50.
João (William Hendriksen) 153
para levar Maria a ver que já não devia seguir pensando nEle como se
fosse unicamente seu filho; pois quanto mais o concebesse como filho,
mais sofreria quando Ele sofresse. Maria devia começar a olhar a Jesus
como seu Senhor. As palavras “Ainda não é chegada a minha hora”
indicam claramente o conhecimento que Cristo tinha de que estava
cumprindo uma obra encomendada pelo Pai, cujos detalhes se iam
cumprindo segundo o decreto eterno de maneira que para cada ação
existia um momento determinado. (Veja-se também Jo 7:6, 8; 7:30; 8:20;
12:23; 13:1; e 17:1.) Quando Jesus soubesse que Seu momento tinha
chegado, então agiria, porém não antes.
5. Maria percebeu imediatamente que a resposta de Jesus implicava
sua disposição de agir a seu devido tempo. Com um espírito de
submissão completa e de expectante confiança: Então, ela falou aos
serventes: Fazei tudo o que ele vos disser. Não nos deve surpreender que
julgasse necessário falar com os serventes. Ela se dava conta de duas
coisas: a. que teria parecido estranho que os serventes recebessem ordens
de um convidado; e b. que o que Jesus ordenaria poderia parecer absurdo
a estes serventes e resistissem a fazê-lo.
6. Havia ali seis talhas de pedra para a purificação dos judeus [BJ].
Perto da sala onde se celebrava a festa havia seis talhas de pedra. Eram
muito maiores que a que usou a mulher samaritana (Jo 4:28). Em Mc.
7:3 se explica a função destas grandes talhas: “Pois os fariseus e todos os
judeus, observando a tradição dos anciãos, não comem sem lavar
cuidadosamente as mãos”.
Cada uma contendo de duas a três medidas [BJ]. Uma medida era o
equivalente a 32 litros; e por isso cada talha podia conter entre 65 e 90
litros. Por conseguinte, as seis talhas tinham uma capacidade dentre 390
e 540 litros. Mas, por que se menciona este detalhe? Naturalmente para
fazer ressaltar a grandeza do dom de Cristo!
7. Jesus lhes disse: Enchei de água as talhas. E eles as encheram
totalmente. Também este detalhe da narração põe de relevo a grandeza
do dom de Cristo. Além disso, acrescenta-se a frase “com água” para
João (William Hendriksen) 154
mostrar que as talhas não continham outra coisa, e que nada mais se
podia acrescentar visto que estavam transbordando.
8. Então, lhes determinou: Tirai agora e levai ao mestre-sala. Eles o
fizeram. Parece ser que o que aqueles homens tiraram era água (v. 9) que
se transformou imediatamente em vinho. No entanto, o escritor não quer
dar a ideia de que só tiraram uma pequena parte da água e esta se
transformou em vinho. Antes, o sentido parece ser: continuem levando
(φέρετε) vinho. Voltaram a tirar vez após vez. E à medida que iam
tirando a água daquelas talhas que continham entre 390 e 540 litros, esta
se ia transformando imediatamente em vinho.
9, 10. Tendo o mestre-sala provado a água transformada em vinho
(não sabendo donde viera, se bem que o sabiam os serventes que haviam
tirado a água). Os serventes levaram o vinho ao mestre-sala da festa (ὁ
ἀρχιτρίκλινος), literalmente: o encarregado da sala de três divãs (que
costumavam colocar ao redor de três lados de uma mesa baixa). Este
administrador com toda certeza não se encontrava na sala onde se
achavam as seis talhas de água. Daí que se surpreendesse tanto ao ver
este vinho, e mais ainda ao prová-lo. Era um vinho de excelente
qualidade, como nunca tinha provado outro igual. Por isso chamou o
noivo e lhe disse: Todos costumam pôr primeiro o bom vinho e, quando já
beberam fartamente, servem o inferior; tu, porém, guardaste o bom vinho
até agora. Estas palavras nos informam que aparentemente existia o
costume de reservar o vinho de menor qualidade até que os convidados
tivessem bebido bastante e não fossem capazes de discernir o sabor do
que se servia por último. Por esta razão o mestre-sala expressou seu
assombro de que este noivo tivesse invertido a ordem normal. Alguns
interpretaram suas palavras como uma ligeira repreensão. Mas não há
necessidade de tirar esta conclusão, pois sua exclamação pode ser
considerada como uma expressão de surpresa. Inclusive poderia ter sido
um elogio que se fazia ao noivo pela excelência deste vinho.
João (William Hendriksen) 155
11. Com este, deu Jesus princípio a seus sinais. Em ordem
cronológica esta foi o primeiro sinal (σημεῖον). 56 João utiliza esta
palavra com mais frequência que os outros evangelistas. Indica um
milagre que é considerado como prova da autoridade e majestade
divinas. A atenção do espectador dirige-se, por isso, do próprio fato para
o divino Criador. O sinal, uma obra de poder na esfera física, ilustra com
frequência um princípio que opera na esfera espiritual; o que sucede na
esfera da criação aponta para a esfera da redenção. A multiplicação dos
pães, por exemplo, (um sinal, Jo 6:14, 26, 30) dirige a atenção para
Cristo, o Pão da vida (Jo 6:35); a cura do cego de nascimento (outro
sinal, Jo 9:16) baseia-se nas palavras do Senhor: “Eu sou a luz do
mundo” (Jo 9:5) — luz na esfera espiritual (Jo 9:39–41) —; e a
ressurreição de Lázaro (um sinal também, Jo 11:47; 12:18) conecta-se
imediatamente com Jesus como o Doador de toda vida, espiritual e física
(Jo 11:23–27). O contexto de cada passagem em particular determinará
se o termo sinal tem este significado profundo — quer dizer, o de ser
ilustração material de um princípio espiritual — ou não. Mas uma coisa é
certa: o sinal desvia a atenção para além de si mesmo para Aquele que o
realizou.
No presente relato esta verdade é ilustrada de forma surpreendente.
Observe-se que tudo o mais fica relegado a um segundo plano. Quem era
o noivo? Não o sabemos. Quem era a noiva? Não nos é dito. Que relação
tinha Maria com o casal? Era, talvez, tia do noivo ou da noiva? Há
silêncio outra vez. Agiu Natanael como “padrinho” do noivo? Tampouco
aqui vemos nossa curiosidade satisfeita. Cristo aparece em todo o Seu
esplendor. Tudo o mais fica nas sombras. O que Rembrandt fez na
pintura, João o fez, sob a direção do Espírito Santo, na religião.

56
Quanto a sinônimos veja-se R. C. Trench Synonyms of the New Testament, pp. 339–344. Em João
4:48 τέρας (prodígio) está unido a σημεῖον, como ocorre também com frequência no livro de Atos. A
respeito de σημεῖον, veja-se F. Stagg “ΣΗΜΕΙΟΝ in the Fourth Gospel”, tese não publicada,
apresentada ao Southern Baptist Theological Seminary, Louisville, Kentucky, 1943.
João (William Hendriksen) 156
A cláusula seguinte concorda perfeitamente com esta realidade:
manifestou a sua glória. (Consulte-se Jo 1:14 para o termo glória.)
Cristo aparece nesta passagem como:
(1) Aquele que honra o laço matrimonial. Não nos deve surpreender
isso, visto que segundo a descrição de João (Jo 3:29; cf. Ap. 19:7) o
próprio Cristo é o Esposo que, por meio de Sua encarnação, obra da
redenção e manifestação final, une-se à Sua esposa (a igreja). Como,
pois, não ia honrar o que era um símbolo de Sua própria relação com o
Seu povo?
(2) Aquele que derrama Seus dons prodigamente, sem restrição.
Naturalmente, aquele que provê com tanta abundância no campo físico
não será menos generoso no espiritual. Sua generosidade não tem
limites. E seus dons são da melhor qualidade. Chega inclusive a ajudar-
nos em nossas situações embaraçosas.
(3) Aquele cujo amor infinito torna-se eficaz por meio de Seu poder
igualmente infinito.
(4) Aquele que, em consequência, é o Filho de Deus, cheio de graça
e de glória.
E os seus discípulos creram nele. A fé dos discípulos, que já existia
antes desse dia, ficou fortalecida com este sinal.

Síntese de Jo 2:1–11
O Filho de Deus se revela a círculos cada vez mais amplos: a Seus
discípulos mais imediatos: sua fé ao presenciar o primeiro sinal.
Jesus e Seu pequeno grupo de discípulos, tendo saído
provavelmente no mesmo dia em que Filipe e Natanael foram chamados,
e depois de mais dois dias de viagem, chegaram por fim a Caná da
Galileia, tendo percorrido no total uma distância de aproximadamente
quarenta e cinco quilômetros, para assistir às bodas a que tinham sido
convidados. O fato de Jesus aceitar o convite é algo muito significativo.
Não veio para roubar aos homens seu alegria e felicidade.
João (William Hendriksen) 157
À medida que a festa continuava, o vinho começou a escassear. A
mãe de Jesus, que naquela época talvez já fosse viúva, também se
encontrava ali, possivelmente como ajudante general. Talvez era uma
boa amiga da jovem casal. Quando se precaveu da embaraçosa situação,
disse a Jesus: “Eles não têm mais vinho”. Devemos levar em conta que
Maria não só tinha guardado em seu coração (Lc. 2:51) todas as coisas
maravilhosas que lhe tinham sido ditas com relação à concepção e
nascimento de Jesus, mas além disso deve ter ouvido a respeito dos
assombrosos eventos relacionados com Seu batismo (a descida do
Espírito e a voz do céu). De modo que, ela esperava um milagre, porque
sabia melhor que ninguém quem era Ele realmente. No entanto, ainda
não se dava conta que a relação de mãe a filho devia ser substituída pela
de crente a Salvador. Ela cria que era seu dever indicar a seu filho que
devia fazer algo para remediar a escassez de vinho. Jesus lhe respondeu:
“Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é chegada a minha hora”.
Jesus sabia que todas as Suas ações tinham sido predeterminadas quanto
ao momento exato de seu cumprimento. Maria se deu conta de que
embora esta resposta tinha a forma de uma suave (inclusive
misericordiosa) repreensão, continha, também, uma promessa, e por isso
disse aos serventes (διάκονοι: ajudantes; em sentido técnico, como em
Fp. 1:1, adquiriu o significado de diácono): “Fazei tudo o que ele vos
disser”, sugestão que indubitavelmente era necessário fazer.
Perto da sala onde eram celebradas as bodas, provavelmente numa
habitação contígua, havia seis talhas de pedra, de tamanho e capacidade
consideráveis. A água destas talhas utilizava-se para a purificação
cerimonial na qual os judeus insistiam muito (especialmente depois de
sua volta do cativeiro em Babilônia). As seis talhas juntas podiam conter
entre 390 e 540 litros de água aproximadamente. Jesus indicou aos
serventes que enchessem as talhas, e eles as encheram até os bordes.
Jesus, então, disse-lhes: “Tirai agora e levai ao mestre-sala”.
Imaginemos sua surpresa ao ver que “a água, consciente da situação, viu
seu Deus e se ruborizou” (Crashaw).
João (William Hendriksen) 158
Nenhuma explicação natural é suficiente. A ideia de que aquelas
talhas tinham estado antes cheias de vinho e que o sedimento do vinho
explica o que ocorreu, não merece resposta alguma. A hipótese de que o
que aqui se relata não é mais que a aceleração de um processo natural
que tem lugar quando a água da chuva é absorvida pelas raízes da videira
e gradualmente se transforma em mosto que ao fermentar dá o vinho,
tampouco explica nada. Leve-se em conta que esta água (cf. Jo 2:7–9)
não estava em contato com a terra, nem entrou em combinação com sal
ou outros minerais, nem estava sob a influência do sol, e se encontrava,
por conseguinte, em condições completamente distintas. E é que,
simplesmente, não existe explicação possível do que aqui sucedeu. É um
milagre que ou se aceita ou se rejeita. Não há outra forma de resolver o
problema.
O mestre-sala felicitou o noivo pela excelente qualidade do vinho.
Em geral o melhor vinho era servido primeiro; mas neste caso foi o
último. Através deste sinal, o primeira de uma longa série, Cristo
desdobrou a glória de Seu poder e de Seu amor. Aqui vemos o Esposo
que, com sua presença, honra o laço matrimonial. O Esposo não recebe
aqui presentes, e sim os derrama da forma mais generosa. Por outro
lado, aqui se revela não só com amor infinito mas também com poder
infinito; quer dizer, como Filho de Deus. Seus discípulos começaram a
compreender isto, e creram nEle.
Se houvesse alguém que, por não entender as gloriosas lições que
aqui se revelam, deduzira do relato deste milagre a conclusão de que, em
nossa complexa situação atual (com o trânsito esmagador, a tensão
nervosa, etc.), esta passagem apoia o uso limitado dos licores, deveria ler
e considerar as seguintes passagens: 1Co. 8:9; 9:12; 10:23, 24, 32, 33.
João (William Hendriksen) 159
JO 2:12–22

2:12. Depois disto, desceu ele para Cafarnaum, com sua mãe, seus
irmãos e seus discípulos; e ficaram ali não muitos dias.
O acontecimento que descreve o parágrafo precedente teve,
provavelmente lugar a fins de fevereiro ou princípios de março do ano
27 de nossa era. Por isso, quando lemos, Depois disto, a primeira coisa
que pensamos é que o que está prestes a ser dito sucedeu pouco depois
das bodas de Caná. A mesma expressão empregada parece indicá-lo,
pois em outros lugares do quarto Evangelho serve para descrever um fato
que ocorreu pouco depois (Jo 11:11; 19:28). Esta dedução vê-se
confirmada pelo que lemos no versículo seguinte: “Estando próxima a
Páscoa dos judeus, subiu Jesus para Jerusalém”. Tudo isso é muito
lógico: em fevereiro ou princípios de março, Jesus mudou a água em
vinho; depois das bodas de Caná vai a Cafarnaum, onde permanece
vários dias; e a seguir vem a festa da Páscoa, que se celebrava ao
começar a primavera (por volta de abril). Não podemos, portanto, estar
de acordo com os que sustentam que a purificação do templo que temos
aqui teve lugar ao finalizar o ministério de Cristo, e é a mesma da qual
nos fala Mateus 21. 57
Das alturas de Nazaré, Jesus, sua mãe Maria, Seus irmãos (Tiago,
José, Judas e Simão; Mc. 6:3), e Seus discípulos desceram às planícies
na margem do lago, até chegar a Cafarnaum. Dois dos discípulos viviam
aqui: João e Tiago, os filhos de Zebedeu e Salomé. Não é, pois, de
estranhar que o Senhor fizesse uma visita a este lugar antes de prosseguir
Sua viagem para Jerusalém. A última cláusula do versículo 12, e
estiveram ali não muitos dias, muito dificilmente pode significar que a
família se trasladou a Cafarnaum nesta época.

57
Em íntima conexão com isto está a pergunta: Foi mal colocado Jo 2:13–3:21? Pelas razões alegadas,
não cremos assim. Veja-se E. B. Redlich, “St. John 1–3: A Study in Dislocation”, ExT 55 (1944) 89–
92; e G. Ogg, “The Jerusalem visit of John 2:13–3:21”, ExT 56 (1944) 70–72.
João (William Hendriksen) 160
13. Estando próxima a Páscoa dos judeus. Todo varão judeu, de
doze anos de idade em diante, devia assistir à Páscoa em Jerusalém,
festa que se celebrava para comemorar a libertação do povo de Israel da
escravidão egípcia. Nos dia dez do mês de Abibe ou Nisã (que em geral
corresponde a nosso mês de março, embora às vezes seus últimos dias
entram em abril) apartava-se um cordeiro macho de um ano, sem defeito;
e no dia quatorze, entre as três e as seis da tarde, matavam-no. Nos dias
de nosso Senhor a complicada celebração desta festa incluía os seguintes
elementos:
a. Uma oração de ação de graças a cargo do chefe de família; a
seguir se bebia a primeira taça de vinho. Continuava-se bebendo durante
toda a festa.
b. Como lembrança da amarga escravidão no Egito, comiam-se as
ervas amargas.
c. A pergunta do filho: “Por que esta é noite distinta das demais?”
era seguida da resposta correspondente do pai, que podia ser lida ou
narrada.
d. Canto da primeira parte do Hallel (Sl. 113, 114) e lavamento das
mãos.
e. Começava-se a comer o cordeiro junto com o pão sem levedura.
O cordeiro era comido em comemoração do que lhes tinha sido mandado
fazer aos seus antepassados na noite em que o Senhor feriu os
primogênitos do Egito e libertou Seu povo. (Veja-se Êx. 12 e 13.) O pão
sem levedura era um recordatório dos primeiros dias da viagem em que
comeram este pão depressa. Era, também, um símbolo de pureza.
f. A seguir a comida na qual cada um podia comer o que desejasse,
sempre que tivesse comido primeiro o cordeiro.
g. Canto de la última parte del Hallel (Sal. 115–118).
Depois do dia em que se matava o cordeiro, celebrava-se a festa dos
Pães Asmos, que durava d3 quinze a vinte e um de Nisã.
João (William Hendriksen) 161
A comida da Páscoa propriamente dita tinha tão estreita relação
com a festa dos Pães Asmos que com a palavra Páscoa se denominava
com frequência a ambas as festividades.
Por esta razão em Lc. 22:1 — uma passagem muito significativa —
lemos: “Estava próxima a Festa dos Pães Asmos, chamada Páscoa”.
Também em At. 12:4 (veja-se o versículo anterior) vê-se claramente que
a Páscoa refere-se aos sete dias da festa. E do mesmo modo, o Antigo
Testamento chama a Páscoa festa de sete dias (Ez. 45:21).
Durante esta festa de sete dias, chamada Páscoa, ofereciam-se
muitos animais em sacrifício (Nm. 28:16–25) ao Senhor. Daí que quando
no segundo capítulo de João lemos a respeito dos bois e ovelhas que se
vendiam no pátio do templo, parece lógico concluir que a Páscoa do
versículo 13, refere-se aqui também às festas de toda a semana. Subiu
Jesus a Jerusalém, o qual é certo neste caso num sentido literal (de fato
uma subida de 200 metros sob o nível do mar, nas proximidades do Mar
da Galileia, até 750 metros sobre o nível do mar na Cidade Santa), e
naturalmente é sempre certo no sentido religioso.
14. E encontrou no templo os que vendiam bois, ovelhas e pombas e
também os cambistas assentados. Ao entrar Jesus naquela ocasião no
templo de Jerusalém, viu que o Pátio dos Gentios se transformou em
algo parecido a um curral de gado. Por todas as partes podia-se notar o
mau cheiro dos excrementos, o balido e o mugido dos animais
destinados ao sacrifício. É verdade que, em teoria, cada fiel podia levar a
templo o animal que desejasse. Mas, que tentasse fazê-lo! Com toda
probabilidade os juízes, aqueles vendedores privilegiados que enchiam
as arcas de Anás, teriam nele achado algum defeito. Por esta razão, para
se poupar desgostos, os animais para o sacrifício compravam ali mesmo
no pátio exterior, que se chamava dos Gentios devido ao fato de que
estes podiam entrar nele. Como é natural, os vendedores de bois e
ovelhas e pombas cobravam preços exorbitantes por estes animais,
João (William Hendriksen) 162
58
explorando assim aos fiéis. Por outro lado estavam os cambistas que
com as pernas cruzadas se sentavam atrás de suas mesas cobertas de
moedas. Eles eram os encarregados de dar aos fiéis a moeda judaica
legal em troca da estrangeira. Deve-se levar em conta que no templo só
se podiam ofertar moedas judaicas, e cada fiel — exceto mulheres,
escravos e menores de idade — devia pagar o tributo anual de meio siclo
(cf. Êx. 30:13). Os cambistas também cobravam sua parte por toda
operação de mudança, e isto dava oportunidade para o abuso. Tudo isso
fez com que aquele Santo Templo, que devia servir de casa de oração
para todas as nações, tenha se transformado numa cova de ladrões (cf. Is.
56:7; Jr. 7:11; Mc. 11:17).
15, 16. Estes versículos descrevem o que Jesus fez diante desta
situação. E, tendo feito um azorrague de cordas, expulsou todos do
templo, bem como as ovelhas e os bois. As cordas não eram difíceis de
encontrar onde havia tantos animais amarrados. Mas, a que se refere a
palavra todos (πάντας)? Só aos bois e às ovelhas? Embora existam
algumas versões que parecem indicar este significado, contudo outras
dão a ideia de que Jesus expulsou realmente os ímpios mercadores junto
com os bois e as ovelhas. Este critério não só é melhor do ponto de vista
gramatical 59 mas também está apoiado por Mt. 21:12. Na segunda
purificação do templo, descrita nessa passagem, afirma-se claramente
que os mercadores foram expulsos. Se então sucedeu assim, podemos
dar por sentado que agora também ocorreu o mesmo.
Cheio de um zelo santo, Jesus dirigiu-se para os cambistas e
derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou as mesas e disse aos
que vendiam as pombas: Tirai daqui estas coisas; quer dizer, disse aos
que vendiam pombas que tirassem as jaulas em que as guardavam. Ao
dizer: Bão façais 60 da casa de meu Pai casa de negócio (cf. Zc. 14:21),

58
A. Edersheim The Life and Times of Jesus the Messiah, Nueva York, 1897, vol. I, p. 370.
59
O antecedente mais próximo de πάντας é τοὺς κερματιστὰς. Além disso, se πάντας refere-se só aos
animais, esperar-se-ia τοὺς βόας antes de τὰ πρόβατα no versículo 15 (como no versículo 14).
60
μή e o presente ativo do imperativo.
João (William Hendriksen) 163
Jesus fazia uso de Seu direito como o unigênito Filho do Pai (cf. Lc.
2:49).
17. Lembraram-se os seus discípulos de que está escrito: O zelo da
tua casa me consumirá. Ao presenciar os discípulos esta manifestação do
zelo de seu Senhor pela casa de Seu Pai, encheram-se de temor de que
Jesus tivesse que sofrer o que Davi teve que suportar em seu tempo; quer
dizer, que este zelo pudesse de alguma maneira resultar em que Ele
mesmo fosse consumido.
E, para expressar este pensamento faz-se uso do Salmo 69, que é
um dos seis salmos mais citados no Novo Testamento (os outros são: Sl.
2, 22, 89, 110, e 118). Outras várias passagens deste salmo (que é o Sl.
68 na LXX) deixam-se ouvir em Mt. 27:34, 48; Mc. 15:36; Lc. 23:36; Jo
15:25; 19:28; Rm. 11:9, 10; 15:3; Heb. 11:26; Ap. 3:5; 13:8; 16:1; 17:8;
20:12, 15; e 21:27. Algumas destas são citações literais, e outras são
alusões ou referências mais ou menos diretas. O próprio Jesus cita o
Salmo 69:4, “Sem causa me aborreceram” em Jo 15:25, e o refere à Sua
própria experiência. A palavra da cruz “Sede tenho” (Jo 19:28) foi
pronunciada em cumprimento do Sl. 69:21.
De tudo isto se deduz que o Salmo 69 é messiânico. É inclusive
possível que os discípulos já o considerassem assim naquele então, mas
isso não se pode demonstrar. Aqueles homens, ao contemplar como
Jesus purificava o templo, lembraram o Sl. 69:9. No entanto, leve-se em
conta que temendo que de alguma maneira pudesse suceder a Jesus o
que uma vez ocorreu a Davi, quando sofreu o desprezo como resultado
de seu ardente zelo pela causa do Senhor, os discípulos mudaram o
tempo de passado (LXX κατέφαγεν) ao futuro (καταφάγεται).
18. Perguntaram-lhe, pois, os judeus: Que sinal nos mostras, para 61
fazeres estas coisas? As hostis autoridades judaicas (possivelmente a
guarda do templo, escribas, sacerdotes) pedem agora explicações a Jesus
por sua drástica ação. Se Ele Se tinha atribuído o direito de agir como

61
A respeito de ὅτι veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 164
reformador, agora devia demonstrar a autoridade que possuía para fazê-
lo. Mas esta demanda era estúpida. A purificação do templo constituía
um sinal em si mesmo. Era claramente o cumprimento antecipado de Ml.
3:1–3 (“… e virá subitamente a seu templo o Senhor … purificará os
filhos de Levi”) e também — como dissemos no versículo 17 — do
Salmo 69. A forma majestosa em que Jesus realizou esta obra, de modo
que embora o vissem, ninguém se atreveu a resistir, era uma prova
suficiente de que o Messias tinha entrado no templo e o estava
purificando, como estava profetizado. Que outro sinal podia pedir-se?
Mas, aquele pedido de um sinal não só era néscio; era também
perverso. Provinha de sua má disposição para admitir sua culpabilidade.
As autoridades deviam estar envergonhadas de todo aquele roubo e
cobiça no pátio do templo. Em lugar de perguntar a Jesus por que
purificava o templo, deviam ter confessado seus pecados e agradecer-lhe
19. Jesus respondeu e disse-lhes: Derribai este templo, e em três dias
o levantarei [RC]. Aqui nos encontramos com outro mashal; isto é, uma
sentença paradoxal, uma observação velada e aguda que com frequência
adquire a forma de adivinhação. João Batista pronunciou o primeiro
(veja-se Jo 1:15). Aquele que agora nos ocupa requer um estudo
cuidadoso, pois contém vários termos que (provavelmente tanto em
aramaico como em grego) prestam-se a uma dupla interpretação. 62
Assim, derribai (λύσατε, é um termo que se pode aplicar tanto à
demolição de um edifício como à destruição de um corpo humano. Este
templo (τὸν ναόν τοῦτον) poderia referir-se ao santuário sagrado
(normalmente os lugares Santo e Santíssimo, mas no versículo 20
provavelmente significa todo o templo, incluindo os pátios, pois de outra
forma os judeus não houvessem dito quarenta e seis anos); mas também
poderia indicar o corpo físico do homem considerado como habitação do
Espírito. E, por último; levantarei (ἐγερῶ) é uma expressão que se pode

62
Cf. F. W. Gingrich, “Ambiguity of Word Meaning in John’s Gospel” ClW 37 (1943–1944) 77.
João (William Hendriksen) 165
usar tanto para a reconstrução de edifícios como para ressurreição de
pessoas.
Os judeus, em lugar de chegar precipitadamente à conclusão de que
Jesus Se referia exclusivamente ao lugar que acabava de purificar,
deviam ter considerado este paradoxo. Em todo caso, sua própria
literatura estava cheia destas sentenças veladas.
Mas eles interpretaram o mashal completamente mal (versículo 20).
Mais tarde chegaram inclusive a torcê-lo como se Jesus tivesse dito que
Ele ia destruir o templo (Mt. 26:61; cf. At. 6:14).
O que era, então, que o Senhor queria dizer? A primeira parte da
frase não se deve interpretar como um mandato direto, como se Jesus
lhes estivesse ordenando que o destruíram ou derrubassem. O significado
de toda a sentença pode-se parafrasear do seguinte modo:
“Apesar de que vós os judeus estão destruindo claramente com sua
maldade o santuário de Meu corpo (veja-se versículo 17), e apesar de
que, como resultado, estão destruindo seu próprio templo de pedra e todo
o sistema de cerimônias religiosas unido a ele, Eu, não obstante,
levantarei este santuário em três dias (referindo-se à Sua ressurreição dos
mortos) e, como resultado, estabelecerei um novo templo com um novo
culto: a igreja, com sua adoração ao Pai em espírito e em verdade”.
O tipo e o antítipo não se podem separar. O templo (ou
tabernáculo) de Israel era o lugar onde Deus habitava. Por esta razão
era tipo do corpo de Cristo, que era também, num sentido muito
superior, a morada de Deus. Se alguém destruir o segundo, o corpo de
Cristo, também derruba o primeiro, o templo de pedra de Jerusalém. E
isto é assim por duas razões: a. quando Cristo foi crucificado, o templo
material e todo seu culto deixaram de ter significado (quando Jesus
morreu, o véu se rasgou); e b. o terrível crime de cravá-lo à cruz resultou
na destruição de Jerusalém com seu templo material. E de forma similar,
a ressurreição do corpo de Cristo (cf. Jo 10:18), de maneira que o Senhor
ressuscitado envia agora Seu Espírito, implica o estabelecimento de um
novo templo que é Sua igreja (o santuário feito sem mãos, cf. Mr. 14:58).
João (William Hendriksen) 166
referente à igreja como templo de Cristo veja-se também 1Co. 3:16, 17;
2Co. 6:16; Ef. 2:21; e 2Ts. 2:4.
20. Disseram, pois, os judeus: Em quarenta e seis anos, foi edificado
este templo, e tu o levantarás em três dias? [RC] O quarto Evangelho
contém numerosos exemplos de crassa interpretação literal. Os inimigos
de Jesus, as pessoas com quem tinha contato, e com frequência Seus
próprios discípulos, não chegaram a ver o antítipo no tipo; ou, pelo
menos, não discerniram que o físico simboliza o espiritual; veja-se, neste
sentido, as seguintes passagens: Jo 3:3, 4; 4:14, 15; 4:32, 33; 6:51, 52;
7:34, 35; 8:51, 52; 11:11, 12; 11:23, 24; 14:4, 5. 63
Os judeus viam só o templo literal. Mas se tivessem estudado as
Escrituras com coração crente, teriam entendido que o templo, junto com
todos os seus acessórios e cerimônias, era só um tipo destinado a ser
destruído (cf. especialmente Sl. 40:6, 7 e Jr. 3:16). Por causa de sua
incredulidade e mente entenebrecida os judeus fazem agora a observação
de que o templo esteve sendo construindo 64 há quarenta e seis anos.
(Para a cronologia veja-se a Flávio Josefo, Antiguidades, lib. 15, xi; E.
Schürer, A History of the Jewish People in the Time of Christ, 2a. ed., I,
i, 438; e nosso Bible Survey, pp. 61, 415.). Herodes, o Grande começou a
reinar no ano 37 antes de Cristo, e, segundo Josefo, começou a construir
o templo no décimo oitavo ano de seu reinado; quer dizer, para o ano
20–19 antes de Cristo. Por isso, na primavera do ano 27 de nossa era os
judeus podiam dizer que tinha levado já quarenta e seis anos construir o
seu templo. É interessante levar em conta que esta grande estrutura não
se terminou até … uns poucos anos antes de ser destruída pelos romanos.
“ … e tu 65 o levantarás em três dias?” Estas palavras, como a
própria linguagem indica, foram pronunciadas se num tom de desprezo:

63
Cf. D. W. Riddle e H. H. Hutson, New Testament Life and Literature, Chicago, Ill., 1946, pp. 192,
193.
64
Advirta-se o aoristo. Embora tenha tomado quarenta e seis anos, no entanto todo o processo de
construção ao longo desses anos vê-se aqui como um só fato.
65
Nótese el enfático καὶ σὺ al comienzo mismo.
João (William Hendriksen) 167
tem-nos custado quarenta e seis anos, e ainda não terminamos; e tu crês
que o podes reedificar em tão somente três dias!
21. Mas ele falava do templo do seu corpo [RC]. O escritor
acrescentou estas palavras porque se dava conta de que mesmo entre os
leitores poderia haver alguns que não compreendessem que, pela razão já
exposta (veja-se acima), o templo era um tipo do corpo de Cristo.
22. Devido ao fato de que esta verdade foi anunciada na forma de
um mashal (sentença velada) ficou na mente dos discípulos. Apesar de
que lhe deram muitas voltas, não alcançaram, até o dia da ressurreição de
Cristo, a ver seu significado. Sem dúvida, isso era devido em parte para
sua resistência de aceitar o fato de que o Messias devia sofrer e morrer
realmente. Deste modo podemos facilmente ver que Quando, pois, Jesus
ressuscitou dentre os mortos, ao terceiro dia, lembraram-se os seus
discípulos de repente de que ele dissera isto: “… e em três dias o
levantarei”. E então e creram na Escritura (as diversas referências no
Antigo Testamento a respeito da necessidade do sofrimento, morte e
ressurreição de Cristo), e na palavra de Jesus (quer dizer, Jo 2:19).

Síntese de Jo 2:12–22
O Filho de Deus Se revela a círculos cada vez mais amplos: a
Jerusalém, a purificação do templo (reforma externa).
Para o fim de fevereiro ou princípios de março do ano 27 de nossa
era, Jesus, em companhia de Sua mãe, irmãos e discípulos, desceu a
Cafarnaum, a cidade de João e Tiago. Depois de uma breve estadia ali,
subiu a Jerusalém para assistir à Páscoa, uma festa religiosa e ao mesmo
tempo da colheita, que durava sete dias. Ao entrar na casa de Seu Pai
observou o terrível comércio que se levava a cabo no pátio de fora, os
abusos na venda de animais e no câmbio do dinheiro, e fazendo um
açoite expulsou do templo a todos aqueles ladrões com seus animais. A
seguir derrubou as mesas dos cambistas espalhando pelo solo as moedas.
Aos que vendiam pombas disse: “Tirai daqui estas coisas; não façais da
João (William Hendriksen) 168
casa de meu Pai casa de negócio”. Os discípulos viram nisso um
cumprimento do Sl. 69:9. Os judeus não compreenderam absolutamente
que o que Jesus acabava de fazer era o cumprimento de Ml. 3:1–3 e,
portanto, uma prova de Sua autoridade messiânica; eles pediram então
que vindicasse sua ação por meio de um sinal. Jesus, em resposta,
pronunciou o profundo mashal: “Derribai este templo, e em três dias o
levantarei”. Os judeus que tinham a mente obscurecida pela
incredulidade, assombraram-se de que Jesus sugerisse que levantaria tão
somente em três dias um edifício que fazia quarenta e seis anos que
estava em construção e ainda não se tinha terminado. Mas o Senhor se
referia na realidade ao santuário de Seu corpo, que tinha seu tipo no
templo terrestre. O fato de que Jesus ressuscitasse ao terceiro dia serviu
para abrir a mente dos discípulos de modo que então compreenderam
aquelas palavras veladas sobre a reedificação do santuário em três dias.
Por meio da purificação do templo Jesus:
(1) atacou o espírito mundano dos judeus. As coisas santas não se
devem corromper;
(2) denunciou o roubo e a cobiça;
(3) condenou o espírito antimissionário: o pátio dos gentios foi
construído como um convite para que estes adorassem ao Deus de Israel
(cf. Mc. 11:17); mas Anás e seus filhos estavam usando para seus
ambiciosos propósitos o que tinha sido desenhado para bênção das
nações; e
(4) cumpriu a profecia messiânica (Sl. 69 e Ml. 3).
João (William Hendriksen) 169
JO 2:23–25

2:23. Estando ele em Jerusalém, durante a Festa da Páscoa. Jesus


ficou em Jerusalém durante toda a festa da Páscoa (veja-se Jo 2:13).
Muitos, vendo os sinais que ele fazia, creram no seu nome; isto é, devido à
forma em que demonstrou seu poder o aceitaram como o grande profeta
e talvez inclusive como Messias. Isto, no entanto, não significa que lhe
entregaram seus corações. Nem toda a fé é fé salvadora (cf. Jo 6:26).
Aquelas pessoas que tinham acudido a Jerusalém de todas as partes,
aceitaram-no (no sentido explicado) vendo (θεωροῦντες, veja-se Jo 1:14,
nota 33) os sinais (τὰ σημεῖα, veja-se Jo 1:11) que ele fazia. Os sinais são
feitos para fortalecer uma fé verdadeira e salvadora (Jo 20:30, 31). Mas
por si mesmos não geram a fé. É o Espírito Santo quem deve fazer isso.
E, além disso, quando existe a fé salvadora, a pessoa crerá na palavra de
Jesus inclusive quando não houver sinais.
24. Mas o próprio Jesus não se confiava a eles. Observe-se o
contraste entre, muitos creram (ἐπίστευσαν) e não se confiava (οὐκ
ἐπίστευεν αὐτόν) a eles. Jesus não considerava a todas estas pessoas
como verdadeiros crentes a aqueles que lhes pudesse encomendar sua
causa. E isto era porque os conhecia a todos; quer dizer, sabia exatamente
o que havia no coração de qualquer pessoa com quem tivesse contato.
Isto já se viu extraordinariamente claro quando o Senhor se encontrou
pela primeira vez com Simão, e mais tarde com Natanael.
Pero, parece que en este versículo (Jn 2:24) tiene más bien relación
con lo que sigue:
25. E não precisava que 66 alguém lhe desse testemunho do homem;
pois ele mesmo conhecia o que havia no homem [TB]. Jesus não tinha
necessidade de escutar o testemunho (sobre esta palavra veja-se Jo 1:7)
sobre alguma determinada pessoa, pois Seus penetrantes olhos podiam
examinar o profundo do coração dessa pessoa; como por exemplo,

66
A respeito de ἵνα veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 170
Nicodemos. Por esta razão o capítulo 3 apresenta a história da
conversação de Cristo com esse dirigente judeu. Por isso, embora num
sentido Jo 2:23–25 seja uma continuação do parágrafo precedente (visto
que em ambos se descreve a obra de Jesus em Jerusalém), em outro
sentido, a divisão do capítulo podia ter sido feita depois do versículo 22.
Isto é evidente se for lido o último versículo do capítulo 2 e a seguir o
primeiro do capítulo 3:
“… pois ele mesmo sabia o que havia no homem. Agora, havia um
homem dos fariseus chamado Nicodemos”, etc.
Para a síntese veja-se no final de Jo 3:21.
João (William Hendriksen) 171
JOÃO 3
JO 3:1-21

Este extenso parágrafo pode ser dividido em três seções: a.


versículo 1, no qual aparece Nicodemos; b. versículos 2–10, nos quais
ele faz três perguntas e recebe três respostas; e c. versículos 11–21, nos
quais o diálogo se transforma num discurso — Nicodemos escuta em
silêncio as palavras de Jesus —, e se substitui a informação das “coisas
terrestres” pelo ensino a respeito das “coisas celestiais”.
3:1. Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um
dos principais dos judeus.
O Filho de Deus Se revela a círculos cada vez mais amplos. Em Jo
2:23–3:21 (veja-se especialmente Jo 2:23 e 3:21) Ele Se manifesta ao
povo que se encontrava em Jerusalém durante e depois da Páscoa. Em Jo
3:22–36 Ele Se dá a conhecer os habitantes da região da Judeia.
A seção Jo 3:1–21 é uma ilustração do profundo discernimento que
tem Cristo dos segredos da alma humana; já se fez referência a tal
discernimento em Jo 2:24, 25.
Uma noite, enquanto desenvolvia Sua obra em Jerusalém, o Senhor
recebeu uma visita. Sabemos o nome daquele visitante, assim como sua
filiação religiosa e sua posição. Sua situação econômica parece achar-se
implicada em Jo 19:39. Alguns comentaristas creem que em Jo 3:4 diz-
se algo a respeito de sua idade, mas possivelmente isso não é mais que
um exemplo de querer tirar muito de um versículo.
Seu nome era Nicodemos (que significa: vencedor do povo). É um
nome grego, mas isso não quer dizer que o homem fosse grego. Deve-se
levar em conta que, a partir da época dos reis macabeus que sucederam a
Simão, pode-se esperar uma mescla de nomes próprios gregos com
hebraicos. 67

67
Cf. A Sizoo, Vit De Wereld van het Nieuwe Testament, Kampen, 1946, pp. 183–200.
João (William Hendriksen) 172
Nicodemos pertencia ao partido dos fariseus. Parece que este
partido teve sua origem durante o período anterior às guerras dos
macabeus. Na realidade representa a cristalização de uma reação contra o
espírito de secularização do helenismo. 68 Aqueles que no século II antes
de Cristo se opuseram aos costumes idolátricos dos gregos e que durante
a terrível perseguição religiosa dirigida pelo monstruoso Antíoco
Epifânio permaneceram firmes e se negaram a abandonar sua fé,
receberam o nome de hasidhim (pietistas ou santos). Eles foram os
precursores dos fariseus (separatistas), que começaram a aparecer com
este nome durante o reinado de João Hircano (135–105 antes de Cristo).
Isto nos faz pensar no fato de que os puritanos do século XVII na
Inglaterra chegaram a ser os não conformistas do século XIX.
Mesmo quando os fariseus interpretavam corretamente muitos
pontos doutrinais — o decreto divino, a responsabilidade moral e a
imortalidade do homem, a existência de espíritos, recompensa e castigo
na vida futura —, e tinham produzido homens de muita fama —
Gamaliel, Paulo, Josefo —, cometiam, no entanto, um trágico erro
fundamental: faziam da religião algo externo. Com muita frequência
consideravam que o conformismo externo à lei era o propósito da
existência. Na prática (embora não em teoria) a tradição oral, que através
dos homens da grande sinagoga, os profetas, os anciãos, e Josué,
remontava-se a Moisés e ao próprio Deus, era tida, com frequência, em
mais alta estima que a lei escrita. O Senhor os acusou incontáveis vezes
por seu exibicionismo e sua atitude de santarrã superioridade (Mt. 5:20;
16:6, 11, 12; 23:1–39; Lc. 18:9–14). Seus escrúpulos não tinham limites,
especialmente no concernente à observância das leis do sábado
estabelecidas pelo próprio homem. Alguns diziam, por exemplo, que as
mulheres não deviam olhar-se no espelho no sábado pois, podiam ver
alguma cã e sentir a tentação de arrancá-la, o que seria trabalhar. Estava
68
No entanto, os fariseus com sua insistência no estudo sistemático e aplicação de certas normas
hermenêuticas, mostravam claramente que o helenismo não tinha deixado de afetá-los. Cf. W. F.
Albright, From Stone Age to Christianity, Baltimore, 1940, p. 272–275.
João (William Hendriksen) 173
permitido beber vinagre no sábado, para curar a dor de garganta, mas
não se podiam fazer gargarejos. É o cúmulo, talvez, era aquela regra que
permitia comer um ovo posto no sábado sempre que se tivesse a intenção
de matar a galinha. 69 Os fariseus deviam sua influência sobre o povo à
antipatia das pessoas contra a casa de Herodes.
Pois bem, Nicodemos pertencia a este partido de salvação pelas
obras. Sua posição era proeminente. Era um principal entre os judeus.
Cf. também Jo 1:10 e 7:50, o que indica que era membro do Sinédrio, e
também escrevia, isto é, que sua profissão era estudar, interpretar e
ensinar a lei.
2. Este, de noite, foi ter com Jesus.
Nicodemos foi ver Jesus de noite. Tinha talvez temor de que sua
conversação com Jesus fosse descoberta, e que outros membros do
Sinédrio o criticassem? Alguns comentaristas são deste parecer, parecer
que é muito geral e poderia ser correto (cf. Jo 19:38). Outros, por sua
vez, dizem que nesta primeira etapa do ministério de Cristo a oposição
ao Seu ensino não podia ser tão aguda para produzir tal temor. Alguns
aceitam a ideia do temor e, por essa mesma razão, colocam toda esta
história num período imediatamente anterior por ocasião da morte de
Cristo. E, por último, há aqueles que creem que Nicodemos foi até Jesus
de noite simplesmente porque Jesus estava ocupado demais durante o
dia: de noite podia-se conversar tranquilamente. Na realidade não
sabemos por que foi de noite.

69
O Talmude babilônico, volume a respeito de Festividades. Cf. A. T. Robertson, The Pharisees and
Jesus, Nova York, 1920. S. B. K. deveria consultar-se: veja-se seu índice sob “Pharisäer”. A respeito
deste tema não se pode prescindir de Flávio Josefo; p. ex., Antiguidades XIII, x; XVIII, i; quanto a
outras referências, veja-se seu índice. De especial interesse e muito bem escrito (é preciso lê-lo com
discrição!) é L. Finlestein, The Pharisees, Filadélfia, 1938, dois volumes. Também gostamos das
distintas seções a respeito dos fariseus em W. F. Albright, From the Stone Age to Christianity. Outros
escritores recentes que trataram do mesmo tema são I. Abrahams, H. Danby, P. Fiebig, J. Goldin, R.
T. Herford, J. Jeremias, J. Klausner, G. F. Moore, e L. J. Newman. Uma excelente ajuda quanto ao
ponto de vista judeu neste e outros aspectos ligados é L. Finkelstein, The Jews, their History, Culture,
and Religion, Nova York, 1945, dois volumes; ver em especial vol. I, capítulo 3.
João (William Hendriksen) 174
E lhe disse: Rabi (veja-se Jo 1:49), sabemos que és Mestre vindo da
parte de Deus. Isto equivalia a dizer: “Nós — eu, e outros que pensam
como eu (cf. Jo 2:23; 3:11) — sabemos que é um profeta”. A razão que
Nicodemos dá de sua convicção está expressa nestas palavras: … porque
ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.
(Veja-se 1:11 para o significado da palavra sinal.) Nicodemos estava
convencido de que Jesus devia ter uma relação muito estreita com Deus
para ser capaz de realizar aqueles sinais.
3. A isto, respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo que, se
alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.
Nicodemos não fez ainda nenhuma pergunta; e, no entanto, Jesus
lhe responde, pois ele podia ler a pergunta que se albergava no profundo
do coração do fariseu. Com base na resposta de Cristo podemos supor
com certeza que a pergunta de Nicodemos era muito parecida com a que
encontramos em Mt. 19:16. Bem como o “jovem rico”, este fariseu, que
uma noite foi ver Jesus e que alguns consideram como um “velho rico”,
também queria saber que bem devia fazer para entrar no reino dos céus
(ou, para obter a vida eterna, que é, simplesmente, outra forma de dizer o
mesmo.) Mas Nicodemos nem sequer teve a oportunidade de expressar
em palavras a pergunta que havia no profundo de sua alma.
A resposta de Jesus é outro mashal (cf. Jo 2:19). A Nicodemos
deveu lhe parecer algo semelhante a uma adivinhação. Isto é verdade
tanto se a conversação se manteve em aramaico como em grego. O texto
grego, tal como o temos, expõe-nos imediatamente um problema:
Quando Jesus disse: “… a menos que se nasça ἄνωθεν”, qual é o
significado desta última palavra? Pode significar “de cima” (do alto). De
fato, este é o sentido que tem em outras partes do Evangelho de João (Jo
3:31; 19:11; 19:23). Parece, pois, provável que também aqui (Jo 3:3, 7)
tenha esse significado. Além disso, em Mt. 27:51, Mc. 15:38, e Tg. 1:17;
3:15, 17, tem também esse sentido. Por conseguinte, podemos crer que
Jesus Se estava referindo a um nascimento “de cima”, isto é, do céu. Esta
palavra, não obstante, pode ter uma acepção distinta; ou seja, “de novo”
João (William Hendriksen) 175
ou “outra vez” (Gl. 4:9). E em terceiro lugar, também pode denotar “do
primeiro” ou “desde o princípio” (Lc. 1:3; At. 26:5). Este terceiro
significado, no entanto, pode-se rejeitar por não ser adequado no
presente contexto. Então Nicodemos se enfrenta com a escolha entre a
primeira e a segunda conotação. No entanto, tudo o que foi dito até agora
é certo, tomando como base o grego. Se supormos que a conversação se
desenvolveu em aramaico, o que é muito provável, a adivinhação segue
mantendo-se, embora ligeiramente modificada.
Poderia arguir-se que em aramaico não existe nenhuma palavra que
tenha idêntica ambiguidade que a grega ἄνωθεν. Mas mesmo aceitando
isso, a realidade é que Nicodemos teve que enfrentar-se com esta grande
dificuldade: Como pode um homem experimentar outro nascimento, seja
qual for o sentido? Naturalmente, nós sabemos o que Jesus quis dizer; ou
seja, que para ver o reino de Deus é necessário que uma pessoa nasça de
cima; ou seja, que o Espírito Santo deve implantar em seu coração a vida
que tem sua origem não na terra mas no céu. Que não se imagine
Nicodemos que as dignidades terrestres ou nacionalistas capacitasse a
pessoa a entrar neste reino. Que tampouco pense este fariseu que um
melhoramento da conduta externa — uma conduta em completa
concordância com a lei — é tudo o se necessita. Deve haver uma
mudança radical. E a menos que a pessoa nasça do alto, não pode sequer
chegar a ver o reino de Deus; quer dizer, não pode experimentá-lo e
participar dele; não pode possuí-lo e desfrutá-lo (Cf. Lc. 2:26; 9:27; Jo
8:51; At. 2:27; Ap. 18:7).
Quando Jesus fala a respeito de entrar no reino de Deus, é evidente
que esta expressão equivale a ter vida eterna ou ser salvo (cf. Jo 3:16,
17). O reino de Deus é o âmbito em que seu domínio se reconhece e
obedece, e em que prevalece sua graça. Antes que alguém possa ver esse
reino, antes que alguém possa ter vida eterna em qualquer sentido, é
necessário que nasça do alto. Vê-se, pois, claramente, que há uma ação
de Deus que precede a toda ação do homem. Em sua etapa inicial, o
João (William Hendriksen) 176
processo de mudar uma pessoa em filho de Deus precede à conversão e à
fé. (Veja-se também Jo 1:12.)
4. Em sua pergunta Nicodemos demonstra que não tinha
compreendido absolutamente o profundo significado do divino mashal
“Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho?”
Esta resposta não implica necessariamente que Nicodemos fosse um
homem velho. Jesus tinha pronunciado algumas palavras que se podiam
aplicar a qualquer pessoa. Nicodemos, como querendo mostrar o caráter
absurdo destas palavras, toma um caso extremo: quem poderia pensar
que um homem velho realmente devia nascer outra vez! De modo que
Nicodemos prosseguiu: Pode, porventura, voltar ao ventre materno e
nascer segunda vez? Só o pensar nisso parece a este fariseu totalmente
impossível. A resposta que ele espera a esta pergunta retórica é,
naturalmente, negativa. (Veja-se Jo 2:19 para outros exemplos de uma
crassa interpretação literal.)
5. Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo: quem não
nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus. A chave
para a interpretação destas palavras encontra-se em Jo 1:22. (Cf. também
Jo 1:26, 31; e Mt. 3:11; Mc. 1:8; Lc. 3:16) onde a água e o Espírito
aparecem juntos com relação ao batismo. Assim, pois, o significado
evidente é este: o ser batizado com água não é suficiente. O sinal
certamente, é de grande valor. Tem muita importância como uma
representação visível e como selo. Mas o sinal deve ir acompanhada da
coisa significada: a obra purificadora do Espírito Santo. Esta obra é o
indispensável para a salvação. Tenha-se em mente que nos versículos 6 e
8 já não se diz nada sobre o nascimento de água mas somente a respeito
do nascimento do Espírito, o único indispensável.
É certo, não obstante, que a obra purificadora do Espírito Santo não
termina senão até que o crente entre no céu. Num sentido, o chegar a ser
filho de Deus é um processo que dura toda a vida (cf. Jo 1:12), mas na
presente passagem trata-se da purificação inicial derivada da
implantação de uma nova vida no coração do pecador, e isto se deduz
João (William Hendriksen) 177
claramente da afirmação feita de que a gente não pode entrar no reino de
Deus se não tiver nascido da água e do Espírito. (Para o significado do
reino de Deus veja-se Jo 3:3.)
6. Por conseguinte, insiste-se muito no fato de que o nascimento
físico (veja-se Jo 1:13) não dá a ninguém prerrogativas na esfera da
salvação. Por esta mesma razão Jesus prossegue: O que é nascido da
carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito. (A respeito dos
diversos significados da palavra “carne” no quarto Evangelho, veja-se Jo
1:14.) Este versículo poderia parafrasear-se do seguinte modo: A
natureza humana pecadora produz natureza humana pecadora (cf. Jó
14:4, “Quem pode tirar do imundo? o limpo Ninguém”. Cf. Também Sl.
51:5). O Espírito Santo é o autor da natureza humana santificada.
7. Jesus continua, Não te admires (ou, não comeces a admirar-te) de
70
que eu te diga: é-vos necessário nascer de novo [AV]. A Nicodemos
tudo aquilo lhe parecia extremamente estranho. Estava acostumado à
ideia de salvação por meio das obras da lei; quer dizer, por um ato do
homem. Mas o ensino que agora recebe é que a salvação é um dom de
Deus, e que, em sua primeira etapa, tem lugar por meio de um
acontecimento em que o homem é necessariamente passivo. Uma pessoa
não pode fazer nada quanto ao seu próprio nascimento. E, no entanto,
Jesus havia dito: “É-vos necessário nascer de novo”. Com frequência, na
pregação de nossos dias, interpreta-se mal a expressão é necessário.
Deve-se entender claramente que, em concordância com todo o contexto,
não se refere à esfera da obrigação moral, e sim na do decreto divino.
Quando Jesus diz: “É-vos necessário nascer de novo”, não significa,
“Fazei todo o possível para nascer de novo”. Pelo contrário, o que quer
dizer é: “Algo tem que vos suceder: o Espírito Santo deve pôr em seu
coração a vida do alto”. E Nicodemos devia ter tido um conhecimento
suficientemente profundo de sua própria incapacidade e corrupção para
compreender isso imediatamente. Então não teria mostrado com sua

70
Acerca de ὅτι véase IV de la Introducción.
João (William Hendriksen) 178
expressão ou com suas palavras que lhe era tão estranho e surpreendente
o ensino de Jesus a respeito da absoluta necessidade e do caráter
soberano da regeneração.
8. O caráter soberano da regeneração se esclarece com uma
ilustração tomada da ação do vento. Na primeira cláusula do versículo 8
o vocábulo πνεῦμα significa vento e não Espírito, como o demonstra a
última cláusula, “… assim é todo aquele que é nascido do Espírito”. Esta
cláusula — e especialmente a palavra assim — indica que se trata de
uma comparação. Jesus, então, diz: O vento sopra onde quer, ouves a sua
voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai. Não há ninguém na
terra que possa dirigir o vento. Age com independência completa. Nem
mesmo o pode ver. Sabemos que está aí porque produz um som ao
chocar com os objetos. Ninguém conhece sua origem nem seu destino. 71
Jesus acrescenta: … assim é todo o que é nascido do Espírito. A
relação do vento com respeito ao corpo assemelha-se à do Espírito com a
alma. O vento age conforme lhe agrada. Assim também o Espírito. Sua
ação é soberana, incompreensível e misteriosa. Que grande lição era esta
para um homem que se tinha criado na crença de que uma pessoa podia e
devia salvar-se a si mesma mediante uma obediência perfeita à lei de
Moisés e a uma multidão de preceitos fabricados pelo homem!
9. Deve ter sido muito difícil para Nicodemos despojar-se do que
sempre tinha crido. Por isso Nicodemos respondeu e disse-lhe: Como
pode ser isso? [RC] Sempre faz a mesma pergunta: como pode?, não
pode, verdade?, como pode? (Jo 3:4, 9). Vê-se claramente que este líder
religioso carecia do mais elementar conhecimento do caminho de
salvação. Sua preparação farisaica parece tê-lo feito imune à percepção
espiritual. Continuava ainda pensando que as palavras de Jesus deviam
ser entendidas num sentido completamente literal?
10. Jesus respondeu e disse-lhe: Tu és mestre de Israel e não sabes
isso? [RC]

71
Jesus não diz que ninguém conhece a direção do vento.
João (William Hendriksen) 179
Tanto Israel como mestre vão precedidos do artigo definido, de
forma que esta exclamação poderia parafrasear-se do seguinte modo: E
tu, o tão conhecido e importante mestre do muito favorecido povo de
Israel, quer realmente dizer que tu és ignorante quanto a estes assuntos?
Nicodemos dispunha do Antigo Testamento, dos ensinos do Batista, e
das palavras de Jesus dadas em Jo 3:3–8; mas até agora a verdade não
parece ter penetrado em sua mente.
11. O diálogo se transforma agora num discurso. Jesus fala e
Nicodemos escuta. Jesus diz: Em verdade, em verdade (cf. Jo 1:51) te
digo que72 nós dizemos o que sabemos e testificamos o que temos visto.
Em contraste com o “sabemos” de Nicodemos (Jo 3:2), conhecimento
produzido pela reflexão humana, o Senhor apresenta Seu próprio
“sabemos”, que expressa um conhecimento resultante de Sua estreita
comunhão com o Pai (Jo 5:20; 14:10). Jesus, por conseguinte, quer que
Nicodemos saiba que não existem dúvidas a respeito da doutrina do
batismo e da regeneração que acaba de comentar, nem tampouco com
relação à doutrina do decreto eterno de Deus para a salvação de
pecadores, que está prestes a desenvolver.
Neste versículo observamos um paralelismo: paralelo a “o que
sabemos” está “o que temos visto”, que tem mais força. E de igual modo,
“falamos” fica explicado por “testificamos”, que é também uma
expressão mais poderosa e definida. (Veja-se Jo 1:7 para os termos
testemunho e testificar.) Jesus fala no plural e não no singular. Com toda
probabilidade não Se refere a Si mesmo e aos profetas. É mais natural
que a referência seja ao próprio Jesus e a João Batista. O termo
testificamos lembra-nos imediatamente o que se havia dito com relação
ao Batista (cf. Jo 1:7, 8, 34). Não se deve esquecer tampouco que Jo 3:5
aponta para a obra do precursor.
Jesus continua: … contudo, não aceitais o nosso testemunho.
Nicodemos tinha mostrado com suas perguntas e com toda sua expressão

72
A respeito de ὅτι veja-se IV da Introdução (e nota 13).
João (William Hendriksen) 180
que não estava preparado para aceitar os ensinos de Jesus referentes à
necessidade da regeneração. Além disso, Jesus podia ler o que havia em
seu coração (Jo 2:25). E Nicodemos não era o único que vacilava em
crer nessa estranha doutrina. Cristo usa o plural vós. Os membros do
Sinédrio recusaram admitir que o Batista estava certo ao testificar sobre
Jesus. Este corpo tampouco quis crer que Jesus era o que dizia ser. Em
consequência, todos estes pontífices, anciãos e escribas rejeitaram o
ensino de Jesus a respeito da regeneração.
12. O Senhor prossegue: Se, tratando de coisas terrenas —
implicando que esteve fazendo isso — não me credes, como crereis, se
vos falar das celestiais? 73
Jesus tinha estado falando de coisas terrestres, quer dizer, de coisas
que, embora de caráter e origem celestiais, têm lugar na terra; p. ex., a
regeneração. Mas em Jo 1:11, 26; 2:4, 9, vê-se claramente que, embora
tais verdades apareçam inclusive no Antigo Testamento, foram, não
obstante, rejeitadas por homens como Nicodemos. Tais doutrinas, no
melhor dos casos, eram consideradas como muito raras. Não eram bem
recebidas.
Agora, o que Jesus faz ressaltar é: se forem consideradas incríveis
estas coisas terrestres, que sucedem dentro da esfera da experiência do
homem (não dizemos experiência consciente) e cuja necessidade deveria
tornar-se evidente imediatamente a qualquer um que refletisse sobre sua
própria incapacidade natural de agradar a Deus, não se rejeitarão com
maior prontidão as coisas celestiais — p. ex., o plano eterno de Deus de
enviar a seu Filho ao mundo para a redenção da humanidade (cf. Jo
3:16)? Estas coisas celestiais estão completamente fora do alcance da
experiência do homem. São tão majestosas e transcendentes em sua
concepção e origem que nunca teriam passado pela mente finita do
homem. Se, pois, as coisas terrestres foram rejeitadas, como se pode
esperar que se aceitem as coisas do céu que são muito mais misteriosas?

73
A frase condicional pertence ao Grupo I A e III A 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 181
Esta pergunta serve, ao mesmo tempo, como uma chamada de atenção a
Nicodemos. Devia pensar e refletir. Até agora os ensinos de Cristo lhe
pareciam incríveis. Poderia ser que este silêncio de Nicodemos, a saber,
sua incapacidade para interromper com outro “como pode ser isto” (Jo
3:4, 9), mostra que a chamada de atenção sortiu efeito?
13. Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a
saber, o Filho do Homem que está no céu. 74
Para ter informação em primeira mão sobre essas coisas celestiais
tem-se que ter estado presente no salão do trono de Deus quando se
tomaram as decisões. Mas, ninguém subiu ao céu. Por esta razão, o
decreto de Deus referente à redenção de seu povo está totalmente fora do
alcance do conhecimento do homem a menos que lhe seja revelado.
Não havia realmente ninguém com o Pai quando se traçou o plano
que se centraliza no decreto de enviar o Filho ao mundo para suportar a
maldição e libertar os homens? Sim, havia um, aquele que desceu do
céu, ou seja o Filho do Homem. (referente a ὁ ἐκ τοῦ οὐρανοῦ καταβάς,
veja-se também sobre Jo 6:41.) Sobre Filho do Homem veja-se Jo 12:34.
Sobre que está no céu, veja-se nota 458.
14, 15. O coração e centro deste maravilhoso plano da redenção
aparece nos versículos 14–18. Apresenta-se, não como algo
completamente novo, e sim como algo que já tinha sido parcialmente
revelado nos tipos da antiga dispensação; e em particular o tipo que
constitui a serpente que Moisés pôs no alto para que todos pudessem vê-
la. E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim
importa que o Filho do Homem seja levantado.
O relato sobre a serpente levantada encontra-se em Números. De
fato, aquela narração (capítulo 21) subministra a chave para a
interpretação do quarto livro do Pentateuco. O conteúdo deste livro
pode-se resumir desta maneira:

74
N. N. omite “que está nos céus”. Também F. W. Grosheide, op. cit., p. 226, nota 1. A ideia contida
na frase omitida é, no entanto, bíblica (cf. Jo 1:18).
João (William Hendriksen) 182
Tema: Viagem de Israel do Sinai até as planícies de Moabe: Uma
lição sobre o pecado e a graça.
Capítulos
1–9: I. Preparativos para sair de Sinai.
Jornada desde Sinai até as planícies de Moabe: uma história
de pecado contínuo e de conseguintes fracassos até que o
Senhor,
10-21: II em sua graça, faz com que a serpente seja posta em alto.
Daí em diante, principalmente
22–36: III. Bênção e vitória nas planícies de Moabe. 75
Israel tinha novamente se rebelado. O povo havia falado contra
Deus e contra Moisés, dizendo: “E o povo falou contra Deus e contra
Moisés: Por que nos fizestes subir do Egito, para que morramos neste
deserto, onde não há pão nem água? E a nossa alma tem fastio deste pão
vil” (Nm. 21:5). Por isso o Senhor tinha enviado serpentes ardentes entre
o povo, as quais mataram muitos. Quando o povo confessou seus
pecados, Moisés orou por eles. “Disse o SENHOR a Moisés: Faze uma
serpente abrasadora, põe-na sobre uma haste, e será que todo mordido
que a mirar viverá. Fez Moisés uma serpente de bronze e a pôs sobre
uma haste; sendo alguém mordido por alguma serpente, se olhava para a
de bronze, sarava” (Nm. 21:8, 9).
Agora, em João 3:14 as palavras “… como Moisés … assim é
necessário que o Filho do Homem”, indicam claramente que o
acontecimento narrado em Números 21 é um tipo do levantamento do
Filho do Homem. Isso, contudo, não significa que agora tenhamos o
direito de subministrar ingenuamente uma longa lista de analogias entre
o tipo e o Antítipo, como se faz com frequência. Na realidade, a nosso
parecer, em Jo 3:14, 15 (cf. também o versículo 16) só se mencionam
especificamente, ou estão claramente implícitos, os seguintes pontos de
comparação:

75
Cf. Bible Survey, Grand Rapids, Mich., 1949, pp. 229, 230.
João (William Hendriksen) 183
a. Em ambos os casos (Nm. 21 e Jo 3) a morte ameaça como
castigo do pecado.
b. Em ambos os casos é o próprio Deus aquele que, em sua graça
soberana, provê um remédio.
c. Em ambos os casos o remédio consiste em algo (ou alguém) que
deve ser levantado à vista de todos. 76
d. Em ambos os casos todos os que, com coração crente, olham ao
que (ou, àquele que) é levantado, são curados.
Aqui, como sempre ocorre, o Antítipo transcende grandemente o
tipo. Em Números o povo se enfrenta com uma morte física; em João a
humanidade vê-se sob a pena de morte eterna por causa do pecado. Em
Números o que é levantado é o tipo; mas este tipo — a serpente de
bronze — não tem poder para curar. Aponta para o Antítipo, Cristo, que
é aquele que possui esse poder. Em Números se sublinha a cura física:
quando um homem fixava os olhos na serpente de bronze, era-lhe
devolvida a saúde. Mas em João o que se concede ao que deposita sua
confiança nAquele que foi levantado é vida espiritual, vida eterna.
O “levantamento” do Filho do Homem apresenta-se como uma
necessidade (cf. Mc. 8:31; Lc. 24:7). Não é um remédio a mais; é o
único remédio possível para o pecado, pois só desta forma podem-se
satisfazer as exigências da justiça e a santidade — e o amor! — de Deus.
Mas, o que significa exatamente este levantamento? Neste ponto não
podemos seguir os raciocínios daqueles comentaristas que tratam de
excluir do significado deste termo qualquer referência à morte de Cristo.
Pelo contrário, o levantamento na cruz está certamente incluído. De fato,
o termo ser levantado (de ὑψόω) no quarto Evangelho sempre se refere à
cruz (cf. Jo 8:28; 12:32, 34). É, não obstante, muito significativo que este
inspirado escritor empregue um termo que, embora se refira
indubitavelmente à morte de Cristo na cruz, em outros livros usa-se em
76
Muitos comentaristas acrescentam algo assim: assim como a serpente que foi levantada não era real
e sim de bronze, assim também Cristo não é verdadeiro partícipe do pecado mas sim só “feito à
semelhança do corpo de pecado”. Não será isso levar longe demais a tipologia?
João (William Hendriksen) 184
relação à exaltação de Jesus (At. 2:33; 5:31). A cruz nunca aparece
isolada dos outros grandes acontecimentos (como a ressurreição,
ascensão e glorificação) da história da redenção. É a senda que conduz à
coroa. Além disso onde resplandece com mais brilho a glória dos
atributos de Deus em Cristo que na cruz? (Cf. Jo 12:28 com 12:32, 33.)
Embora Cristo é levantado a vista de todos, não salva, no entanto, a
todos. Lemos que é para que todo o que nele crê tenha a vida eterna. Do
mesmo modo que o israelita se curava por meio da serpente de bronze
(pois, embora a serpente não tivesse poder para curar e era simplesmente
uma parte de bronze, 2Rs. 18:4, completamente indigno de adoração e
veneração, a bênção de Deus, não obstante, obtinha-se olhando a esta
serpente), assim também por meio de Cristo, o grande Antítipo, os
crentes obtêm a vida eterna. Pelo fato de que os principais conceitos do
versículo 15 voltam a aparecer no versículo seguinte, passaremos
imediatamente à mais preciosa de todas as passagens da Bíblia:
16. Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho
unigênito, para que 77 todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida
eterna.
O infinito amor de Deus manifestou-se de uma forma imensamente
gloriosa. Este é o tema do texto de ouro que se tem feito tão querido aos
filhos de Deus. Este versículo arroja luz sobre os seguintes aspectos de
tal amor: 1. seu caráter (de tal maneira amou), 2. seu autor (Deus), 3. seu
objeto (o mundo), 4. seu dom (o Filho, o unigênito), e 5. seu propósito
(que todo aquele que nele crê, não pereça, mas tenha a vida eterna).
A conjunção porque estabelece uma relação causal entre este
versículo e o anterior. Poderíamos parafraseá-lo assim: O fato de que só
por meio de Cristo pode-se obter a vida eterna (veja-se versículo 15), vê-
se claramente em que lhe foi do agrado de Deus conceder este supremo
dom somente aos que põem sua confiança nEle (versículo 16).

77
A respeito de ἵνα veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 185
1. Seu autor divino.
Deus (no original leva o artigo: ὁ θεός, tal como em Jo 1:1 onde,
como dissemos, indica-se ao Pai) amou. Para obtener una idea de la
deidad, nunca se debe sustraer del concepto popular tantos atributos
como sean posibles hasta que literalmente no quede nada. Deus é
plenitude de vida e plenitude de amor. 78 Tomem-se todas as virtudes
humanas; eleve-se então ao infinito, e se perceberá que por muito grande
e gloriosa que seja a imagem total que se forme na mente, não será mais
que uma mera sombra do amor e a vida que existem eternamente no
coração dAquele cujo próprio nome é amor. E o amor de Deus sempre
precede o nosso amor (1Jo 4:9, 10, 19; cf. Rm. 5:8–10), e o torna
possível.

2. Seu objeto.
O objeto do amor de Deus é o mundo. (Veja-se Jo 1:10 e a nota 26
onde se resumiram os diversos significados.). O que significa exatamente
aqui em Jo 3:16 este termo? Nossa resposta é:
a. As palavras “todo o que no crê” indicam claramente que não se
refere a aves e plantas, e sim à humanidade. Cf. também Jo 4:42; 8:12;
1Jo 4:14.
b. Aqui, no entanto, não se entende a humanidade como o reino do
mal, que está em rebeldia e aberta hostilidade contra Deus e Cristo
(significado 6 da nota 26), visto que Deus não ama o mal.
c. Tal como aqui usa-se, o termo mundo significa a humanidade
que, embora carregada de pecado, sujeita ao juízo, e necessitada de
salvação (veja-se versículo 16b e 17), continua sendo objeto do cuidado
de Deus. A imagem de Deus se reflete ainda, até certo ponto, nos filhos
dos homens. A humanidade é como um espelho. Originalmente este
78
Deus não é uma essência abstrata, sem contido, o Absoluto dos filósofos. Pelo contrário, é uma
plenitude infinita de essência. A respeito de este tema veja-se H. Bavinck, The Doctrine of God,
Grand Rapids, Mich., 1951, pp. 121–124.
João (William Hendriksen) 186
espelho era muito belo, uma obra de arte. Mas, sem nenhuma culpa do
Criador, ficou horrivelmente manchado. Seu Criador, não obstante, ainda
reconhece Sua própria obra.
d. Levando em conta o contexto e outras passagens em que se
expressa um pensamento similar (veja-se nota 26, significado 5), é
provável que em Jo 3:16 esta palavra indique a humanidade caída num
sentido internacional: homens de toda tribo e nação; não só judeus mas
também gentios. Isto concorda com o pensamento expresso repetidas
vezes no quarto Evangelho (incluindo este mesmo capítulo) que revela
que a ascendência física não tem nada que ver com a entrada no reino
dos céus (Jo 1:12, 13; 3:6; 8:31–39.)

3. Seu caráter.
A frase “de tal maneira”, levando em conta o que segue, deve
interpretar-se com este significado: num grau tão infinito e de forma tão
transcendentemente gloriosa. Enfatiza-se muito este pensamento.
Amou o mundo de tal maneira. O tempo que se usa no original (o
aoristo ἠγάπησεν) mostra que o amor de Deus em ação, o qual se
remonta até a eternidade e frutifica em Belém e no Calvário, considera-
se como um fato grande, central e único. Aquele amor era rico e
verdadeiro, cheio de compreensão, ternura e majestade. 79

4. Seu dom.
“… que deu o seu Filho unigênito”. O original diz literalmente:
“que o seu Filho, o unigênito, deu”. Toda a ênfase recai na assombrosa
grandeza do dom; por essa razão, nesta cláusula o objeto direto precede o
verbo. O verbo deu deve ser tomado no sentido de, deu para morrer
como oferta pelo pecado (cf. Jo 15:13; 1Jo 3:16; especialmente 1Jo 4:10;
Rm. 8:32: o deu de João é o não poupou de Paulo). Veja-se Jo 1:14 para

79
A respeito da diferença entre ἀγαπάω e φιλέω veja-se comentário sobre Jo 21:15–17.
João (William Hendriksen) 187
o significado de unigênito. Leve-se em conta que o artigo que precede à
palavra Filho repete-se diante de unigênito. Deste modo tanto o
substantivo como o adjetivo ficam reforçados. 80 Parece como se
ouvíssemos o eco de Gênesis 22:2: “Toma teu filho, teu único filho,
Isaque, a quem amas …” O dom do Filho é a culminação do amor de
Deus (cf. Mt. 21:33–39).

5. Seu propósito.
“… para que todo o que nele crê, não pereça, mas tenha a vida
eterna”.
Deus não deixou a humanidade abandonada. Amou ao mundo de tal
forma que deu o seu Filho, o unigênito, com este propósito: que os que O
recebem com confiança e fé 81 permanentes tenham a vida eterna.
Embora o evangelho é anunciado a homens de toda tribo e nação, nem
todo aquele que o ouve crê no Filho. Mas todo aquele que crê — quer
judeu ou gentil — tem a vida eterna.
As palavras “… não pereça” não significam simplesmente: não
perca a existência física; nem tampouco querem dizer: não seja
aniquilado. Como indica o contexto (versículo 17), a perdição de que
fala este versículo refere-se à condenação divina, completa e eterna, de
forma que o condenado fica expulso da presença do Deus de amor e
habita eternamente na presença de um Deus de ira, estado que, em
princípio, começa agora aqui, mas que não alcança sua completa e
terrível culminação, tanto para o corpo como para a alma, até o dia da
grande consumação. Observe-se que perecer é o antônimo de ter vida
eterna.

80
Veja-se Gram. N.T., p. 776.
81
A respeito de πιστεύω veja-se Jo 1:8; 8:30, 31. O gerúndio deste verbo εἰς = exercitar a fé viva na
pessoa de Cristo. A respeito de πιστεύω no quarto Evangelho veja-se W. F. Howard, Christianity
According to St. John, Filadélfia, 1946, pp. 151–173.
João (William Hendriksen) 188
“… mas tenha a vida eterna”. (Sobre o significado de vida veja-se
Jo 1:4). A vida que pertence ao futuro, ao reino da glória, passa a ser
possessão do crente aqui e agora; quer dizer, em princípio. Esta vida é
salvação, e se manifesta na comunhão com Deus em Cristo (Jo 17:3); na
participação do amor de Deus (Jo 5:42), de Sua paz (Jo 16:33), e de Sua
alegria (Jo 17:13). O adjetivo eterna (αἰώνιος) aparece 17 vezes no
quarto Evangelho, e 6 vezes em 1Juan, sempre acompanhando ao
substantivo vida. Indica, como já fizemos notar, uma vida que é diferente
em qualidade da vida que caracteriza esta era presente. No entanto, tal
como se usa aqui em Jo 3:16, o nome e o adjetivo têm também um
sentido quantitativo: trata-se realmente de uma vida eterna, que nunca
termina.
Para receber essa vida eterna deve-se crer no unigênito Filho de
Deus. Mas é importante notar de que Jesus menciona a necessidade da
regeneração antes de falar a respeito da fé (cf. Jo 3:3, 5 com Jo 3:12, 14–
16). A obra de Deus dentro da alma sempre precede a obra de Deus em
que a alma coopera (veja-se especialmente Jo 6:44). E visto que a fé é,
por conseguinte, o dom de Deus (não só para Paulo, Ef. 2:8, mas também
no quarto Evangelho), seu fruto, a vida eterna, é também o dom de Deus
(Jo 10:28). Deus deu o Seu Filho; Deus nos dá a fé para aceitar o Filho; e
Ele nos dá a vida eterna como recompensa pelo exercício dessa fé. A Ele
seja a glória para todo o sempre!
17. Em estreita relação com o anterior, o versículo 17 prossegue
assim: Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que
julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele.
Conforme criam os judeus, quando o Messias viesse condenaria os
pagãos. O Dia do Senhor traria castigo para as nações que tinham
oprimido Israel, porém não para Israel. Amós já tinha censurado com
grande severidade esta interpretação errada das profecias (Am. 5:18–20),
mas eles nunca a abandonaram. As palavras de Jesus vão dirigidas contra
este exclusivismo judeu. O versículo 17 indica claramente:
João (William Hendriksen) 189
a. que o propósito redentor de Deus não se limita aos judeus mas
abrange todo mundo (homens de toda tribo e nação, considerados em
conjunto).
b. que o objetivo principal da primeira vinda de Cristo não era o
condenar, mas o salvar.
É verdade que o verbo que se traduziu por condenar (κρίνῃ de
κρίνω) tem no original um sentido muito amplo. Nossa palavra
discriminar, que provém da mesma raiz, assinala-nos a ideia básica:
separar. Desta, por sua vez, vem a ideia de selecionar uma coisa e não
outra; e daí, julgar, decidir. Embora neste mundo pecador julgar
signifique com frequência condenar, a palavra empregada no original
também pode ter esse sentido, que se expressaria mais exatamente com o
termo κατακρίνω. O fato de que aqui, em Jo 3:17, tenha (ou ao menos se
aproxime a) esse significado está demonstrado pelo antônimo: salvar. A
salvação, no sentido mais completo da palavra (libertação não só do
castigo mas também do próprio pecado, e a dádiva da vida eterna), era o
que Deus tinha preparado para o mundo ao qual enviou Seu Filho; não
condenação mas salvação.
Isto faz surgir uma pergunta: Temos que dizer, então, que o
propósito da primeira vinda de Cristo foi o trazer salvação, enquanto o
propósito de Sua segunda vinda será o de trazer condenação (ou juízo,
pelo menos)?
Mas, como o versículo 18 indica, o assunto não é tão simples como
parece. Ninguém tem que esperar até o dia da grande consumação para
receber sua sentença. Naquele dia, naturalmente, sucederá algo muito
importante: o veredito será publicamente proclamado (Jo 5:25–29). Mas
a decisão em si mesma, que é a base desta proclamação pública, já foi
feita há muito tempo:
18. Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado,
porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.
Jesus divide a todos os que ouvem a mensagem de salvação em dois
grupos, cada um dos quais está representado por um indivíduo:
João (William Hendriksen) 190
(1) Aquele que permanece em Cristo pela fé não é julgado; isto é,
nunca se pronunciará contra ele uma sentença de condenação. A partir de
agora aparece sem culpabilidade aos olhos de Deus.
(2) Aquele que rejeita a Cristo e não crê nEle como o Filho
unigênito de Deus (sobre este termo veja-se Jo 1:14) não tem que esperar
o juízo final, como se o veredito fosse postergado até então. Pelo próprio
fato de sua obstinada incredulidade, já foi condenado e, portanto,
permanece nesse estado.
19. Neste versículo é anunciado o veredito contra estes obstinados
rejeitadores. Pouco se deve comentar aqui, porquanto a maior parte das
ideias e conceitos desta passagem já se explicaram. O julgamento é este.
A palavra juízo (κρίσις) significa (neste contexto) decisão ou veredito
divino. (Veja-se também sobre Jo 3:17, o termo κρίνω.) Para a cláusula:
que 82 a luz veio ao mundo, – veja-se Jo 1:4, 5, 9, 10, 11. Sobre o
vocábulo mundo veja-se Jo 1:10; nota 26. Sobre trevas veja-se Jo 1:5, e
sobre luz, Jo 1:4 – e os homens amaram mais as trevas do que a luz;
porque as suas obras eram más.
Poderíamos parafrasear o pensamento do versículo 19 deste modo:
E com relação aos que rejeitam o unigênito Filho de Deus, este é o
veredito divino: Que Cristo, que é em si mesmo a Luz — o amor e a
verdade, e todos os atributos de Deus, de forma corporal —, através da
palavra profética e especialmente por meio de Sua encarnação, veio para
habitar com a humanidade caída; mas, embora alguns O tenham
aceitado, a imensa maioria preferiram as trevas morais e espirituais do
pecado (cegueira espiritual, aborrecimento dos irmãos, etc., veja-se
especialmente 1Jo 2:11, mas também Jo 8:12; 12:35, 46; e 1Jo 2:8, 9).
De fato amaram realmente essas trevas; e a razão não foi que eram
ignorantes por nunca terem ouvido o evangelho, mas antes, que suas
obras eram más.

82
A respeito de ὅτι veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 191
20. O dizer que essas pessoas amassem as trevas mais que a luz não
significa que, afinal de contas, amaram também a luz até certo ponto.
Justamente o contrário: Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz
e não se chega para a luz. Tal pessoa sempre evita a luz; quer dizer, não
quer ter nenhuma relação com Cristo, a fonte e imagem do amor e a
verdade de Deus. Por isso nunca lê a Bíblia; recusa assistir à igreja, etc.
Na realidade odeia a luz em seu coração. E a causa disso é temente a fim
de 83 não serem arguidas as suas obras (repreendidas ou repreendidas). A
gente dessa classe semelha-se a aborrecíveis insetos que se ocultam sob
as madeiras e as pedras, que preferem sempre a escuridão, e que se
assustam terrivelmente quando lhes é tirada a luz.
21. Conquanto os incrédulos podem ser comparados com habitantes
do reino das trevas, os crentes, por outro lado, são parecidos com essas
belas plantas que voltam suas folhas na direção do sol. Quem pratica a
verdade aproxima-se da luz, a fim de que as suas obras sejam manifestas,
porque feitas em Deus. (cf. 1Jo 1:6.) Já indicamos que existe uma estreita
relação entre a luz e a verdade, e por isso não nos surpreende que aquele
que pratica a verdade vem à luz para mostrar que suas obras, embora
estejam longe de ser perfeitas, foram, no entanto, feitas com a aprovação
de Deus (quer dizer, que foram feitas, em princípio, segundo a lei de
Deus) e que mantêm esse caráter eternamente.
Jesus disse: “Quem pratica a verdade aproxima-se da luz”, assim
termina seu discurso da maneira mais adequada, convidando
implicitamente a Nicodemos para que deixe o domínio das trevas e da
incredulidade, e se una a Cristo, a luz verdadeira.

83
Literalmente ἵνα μὴ “para que não”.
João (William Hendriksen) 192
Síntese de Jo 2:23 – 3:21
O Filho de Deus Se revela a círculos cada vez mais amplos: a
Jerusalém; conversação com Nicodemos.
Em Jerusalém, durante a semana da Páscoa, muitas pessoas
observaram com atenção os sinais que Jesus fez, aceitaram-No como
mestre divino e como grande e poderoso profeta, e depositaram sua
confiança nEle neste sentido. Mas Jesus sabia que isso não era fé
salvadora e, por isso, não se confiou a eles. Com seu olhar penetrante
podia ler os segredos do coração do homem, como já tinha indicado no
caso de Simão e Natanael, e como estava prestes a demonstrar no caso
de Nicodemos.
Este era fariseu e membro do Sinédrio. Era um de aqueles que
depois de contemplar os sinais aceitaram a Jesus como mestre divino. O
Senhor descobriu imediatamente a inarticulada pergunta que albergava o
coração de Nicodemos. A pergunta era: “Como posso entrar no reino de
Deus?” Em sua resposta o Senhor insistiu na necessidade de nascer de
novo. A expressão que empregou pode significar: nascer do alto ou
nascer de novo. Nicodemos o interpretou com um cru literalismo. Então
Jesus lhe faz ver que não está falando de nada físico, e que as diferenças
físicas não têm nenhum significado no reino dos céus. Seu ensino é que a
regeneração é uma obra sobre a qual o homem não tem mais domínio
que o que tem sobre o vento. Nicodemos, evidentemente em tom de
protesto, pergunta: Como pode ser isto?
Jesus faz ver que a surpresa de Nicodemos e de outros como ele
provém de uma fonte: a incredulidade. E então pergunta: “Se, tratando
de coisas terrenas (batismo, regeneração), não me credes, como crereis,
se vos falar das celestiais (o plano de Deus para a redenção)?” O plano
da redenção é ainda mais misterioso que o da regeneração, pois se
preparou no céu e só o pode revelar Aquele que estava ali quando se
traçou e desceu para manifestá-lo. O essencial deste plano é o decreto de
enviar o Filho para que fosse levantado na cruz para a salvação do
João (William Hendriksen) 193
homem, do mesmo modo que a serpente foi levantada no deserto para o
restabelecimento físico do homem.
Com relação a isso Jesus apresenta o infinito amor de Deus (Jo
3:16), dando a conhecer: a. seu autor divino, b. seu objeto, c. seu
glorioso caráter, d. seu dom, e e. seu propósito. Jesus faz notar que o
propósito de Sua primeira vinda não foi condenar e sim salvar o mundo,
e que em Sua segunda vinda esse veredito será revelado com relação a
cada pessoa. Tal veredito corresponde à sua atitude atual para o Filho
unigênito de Deus. Se alguém rejeitar o Filho, o tal já está condenado. A
maioria dos que ouvem o evangelho pertencem a essa categoria: a luz
veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas que a luz, porque
suas obras são más. Fogem da luz.
O discurso conclui com um belo e implícito convite a Nicodemos
para vir à luz. As palavras desta última passagem são:
“Mas aquele que habitualmente faz o que é bom vem à luz, para que
seja evidente que suas obras são feitas em Deus”.

JO 3:22–36

3:22. Sobre o significado da frase: “Depois disto …” (μετὰ ταῦτα)


veja-se também Jo 5:1.
Foi Jesus com seus discípulos para a terra da Judeia. Depois da
semana da Páscoa e da entrevista com Nicodemos, Jesus, acompanhado
de Seus discípulos (provavelmente os seis mencionados em Jo 1:35–51),
saiu de Jerusalém e foi para a terra da Judeia. Visto que no versículo 22
faz-se menção do batismo, crê-se bem possível que a localidade de que
aqui se fala não estivesse muito longe de Jericó, perto dos vaus do
Jordão.
Ali permaneceu com eles (quer dizer, com seus discípulos).
Certamente esteve um considerável período de tempo naqueles arredores
João (William Hendriksen) 194
84
ou algo assim como de maio a dezembro do ano 27. E batizava.
Enquanto esteve ali Jesus batizava, não pessoalmente, mas através de
Seus discípulos (Jo 4:2). Este rito, tal como se realizava aqui, pode-se
considerar como uma transição entre o batismo de João e o batismo
cristão. Tanto em um como em outro, a água indica a necessidade de
purificação espiritual, conseguida pelo sangue e o Espírito de Cristo, o
Cordeiro de Deus. No entanto, ao não batizar pessoalmente senão através
de outros, Jesus manifesta ser maior que João Batista. A etapa seguinte
será o mandamento de batizar em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo, Mt. 28:19. Além disso, este batismo estender-se-á a todas as
nações.
23. Ora, João estava também batizando em Enom, perto de Salim,
porque havia ali muitas águas. Ao mesmo tempo que Jesus, por meio de
Seus discípulos, batizava na região da Judeia, João continuava seu
ministério um pouco mais ao norte. Voltamos a encontrá-lo muito perto
de onde estava a última vez. Então se encontrava em Betânia do outro
lado do Jordão (Jo 1:28). Agora cruzou o rio, e continua sua obra neste
lado do Jordão (quer dizer, na parte oeste). Segundo o parecer de muitos,
Enom (provavelmente de uma palavra aramaica que significa fontes)
perto do Salim encontrava-se situada a uns poucos quilômetros a sudeste
de Betânia. Embora se ignore sua localização exata, o critério que
melhor concorda com todas as circunstâncias e é também apoiado por
Eusébio e Jerônimo, é aquele que afirma que se encontrava perto da
intercessão de Samaria, Pereia e Decápolis, a uns doze quilômetros de
Citópolis. Nesse lugar existe um grupo de sete mananciais. A pouca
distância para o norte encontra-se Galileia. De modo que este lugar tinha
uma situação central, ao alcance dos habitantes de quatro províncias, e
provido de uma grande quantidade de água para batizar. E para lá
concorria o povo e era batizado. As pessoas vinham a João de todas as

84
Veja-se Bible Survey, pp. 59–62.
João (William Hendriksen) 195
partes e eram batizadas. Mas pouco a pouco as massas foram
abandonando a João e começaram a seguir a Jesus.
24. Antes de prosseguir o relato, o escritor resolve um problema. Os
leitores poderiam objetar: “Como pode ser que João estivesse batizando
nesta época? Acaso não é verdade que imediatamente depois das
tentações do Senhor o Batista foi encarcerado?” O escritor dá-se conta de
que alguns poderiam interpretar mal Mt. 4:11, 12, dando-lhe este
sentido. Por isso, dando naturalmente por sentado que os crentes na Ásia
Menor já tinham lido os primeiros Evangelhos (veja-se II da Introdução),
o escritor corrige um possível mal-entendido, e mostra que entre Mt.
4:11 e Jo 4:12 (ou entre Mc. 1:13 e Jo 1:14; ou entre Lc. 4:13 e Jo 4:14;
quer dizer, entre a tentação de Cristo e o encarceramento de João Batista)
houve um considerável espaço de tempo durante o qual João e Jesus
realizaram um ministério paralelo. Esta é nossa explicação das palavras:
Pois João ainda não tinha sido encarcerado.
25–28. Ora, entre os discípulos de João e um judeu suscitou-se uma
contenda com respeito à purificação. O ministério paralelo de Jesus e
João foi ocasião de uma disputa entre os admiradores deste último e
algum judeu que apoiava o primeiro. Os discípulos de João começaram a
discussão, atribuindo, provavelmente, uma eficácia purificadora superior
(ou exclusiva) ao batismo de seu mestre.
Em muito desagrado por causa das multidões que, cada vez mais
numerosas, reuniam-se em torno de Jesus e vendo que o número dos que
ficavam com João diminuía gradualmente, os discípulos deste último
foram ao seu mestre com amargas palavras de queixa. E foram ter com
João e lhe disseram: Mestre, aquele que estava contigo além do Jordão,
do qual tens dado testemunho, está batizando, e todos lhe saem ao
encontro. Observe-se que:
(1) Levados pelo ciúme e a ira evitam, a propósito, o mencionar o
nome de Jesus. A seu entender, Jesus e João são rivais, competidores.
(2) Não parecem muito agradados com o fato de que João tivesse
dado testemunho de Jesus. Suas palavras parecem entranhar uma velada
João (William Hendriksen) 196
repreensão. (Em relação a esse testemunho veja-se Jo 1:6, 7, 8, 15; 1:26–
34.)
(3) Fazem pleno uso da figura de linguagem chamada hipérbole “…
e todos lhe saem ao encontro”, quer dizer, logo ficarás sem nenhum
partidário.
Concordando com o propósito do livro (veja-se II da Introdução), o
escritor detém-se na humilde resposta de João Batista. Isto era para que
aqueles discípulos da Ásia Menor levassem em conta e soubessem que
quando colocavam João acima de Jesus, pecavam não só contra este mas
também contra João.
A resposta de João Batista é surpreendente e nobre: O homem não
pode receber coisa alguma se do céu não lhe for dada. 85 (Cf. Jo 6:65;
19:11; 1Co. 4:7.) O arauto de Cristo queria dizer que Deus atribuiu um
lugar a cada um em Seu plano eterno, e que ele, o Batista, não tinha
direito a reclamar uma honra que não lhe tinha sido dado pelo céu. Uma
vez dado, assim permanece, tal como indica o tempo do verbo original. E
do mesmo modo, uma vez retido, assim fica para sempre. Em lugar de
queixar-se pelo êxito de Jesus, os discípulos de João deviam haver-se
alegrado de que a obra do Batista estava se cumprindo. E a natureza
daquela obra já se indicou claramente: Vós mesmos sois testemunhas de
que vos disse: eu não sou o Cristo, mas fui enviado como seu precursor.
(Sobre a primeira cláusula veja-se Jo 1:8, 20; para a segunda, Jo 1:15,
23, 27.)
29. A seguir João se vale de uma ilustração tirada dos costumes do
casamento. Diz: O que tem a noiva é o noivo. O Batista faz ver que a
noiva pertence ao noivo, não ao amigo deste. Agora, Cristo é o Noivo, e
Seu povo é a noiva. A noiva, pois, deve ser levada ao Noivo. Isto é
exatamente o que João tinha estado fazendo. Sempre apontava para o
Cordeiro de Deus, esperando que muitos O seguiriam. O amigo do noivo
que está presente e o ouve muito se regozija por causa da voz do noivo.

85
III C; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 197
Isto mesmo acontece com João. Do mesmo modo que o amigo do noivo,
que está ao seu lado escutando, alegra-se quando o noivo proclama sua
alegria ao receber a noiva, assim também o Batista sente-se muito feliz
ao refletir sobre a satisfação no coração do verdadeiro Noivo, Cristo, ao
dar as boas-vindas aos seus. João diz: … Pois esta alegria já se cumpriu
em mim. Quer dizer: quando, com relação ao relatório sobre a disputa em
torno da purificação, asseguram-me que as pessoas estão me
abandonando e vão em massa a Jesus, o cálice de minha alegria
transborda.
30. Resumindo o anterior, o precursor diz: É necessário que ele
cresça, e que eu diminua [TB], quer dizer, é necessário que Ele (Jesus)
continue crescendo e que eu (João) continue minguando. Leve-se em
conta o “é necessário”, que indica que isso está de acordo com o plano
eterno de Deus. Para que serve um arauto quando o rei já chegou? Por
que deviam continuar as multidões ao redor do precursor se este já tinha
cumprido sua obra? Uma vez concluída sua responsabilidade, era preciso
que todos se fossem. Que todos sigam ao Rei! Que se deem conta que
sua origem é gloriosa e que é portador de uma gloriosa mensagem! João
Batista prossegue: 86
31. O que vem de cima, é sobre todos; o que é da terra, é da terra e
fala da terra. O que vem do céu, é sobre todos [TB].
Continua o contraste entre Jesus e o Batista. Jesus veio de cima (cf.
Jo 3:13), e devido à Sua origem celestial, está sobre todos (cf. Ef. 1:20–
23); e por isso é superior, também, à voz que clama no deserto”. Em
comparação com Jesus, o arauto tem uma origem e um caráter terrestre
(cf. Mt. 11:11). Fala, inclusive, coisas terrestres; pois, embora quando
Deus fala por meio dele, é a voz de Deus a que fala, não obstante; em
algumas ocasiões, quando se manifesta a fraca e pecaminosa natureza do

86
Muitos comentaristas sustentam que as palavras deste ponto até o final do capítulo não as pôde ter
pronunciado o Batista. Consideram sobretudo que o conteúdo de Jo 3:34, 35 é muito elevado como
para que lhe possa ser atribuído. Mas não resulta nada claro que alguém que tinha visto e ouvido o que
se relata em Jo 1:32; Mc. 1:9–11 (cf. Lc. 3:21, 22) não pudesse dizer o que se encontra em Jo 3:34, 35.
João (William Hendriksen) 198
arauto, começam a aflorar temores e dúvidas (como realmente sucedeu
no caso de João, Mt. 11:2, 3). O Cristo, Aquele que vem do céu, é sobre
todos: os temores e as dúvidas pecaminosas nunca O assaltam.
32, 33. Seu testemunho é puro e deve-se aceitar, pois: E testifica o
que tem visto e ouvido (cf. Jn 1:18; 3:11, 13, 31; cf. Jn 8:40; 15:15).
(Sobre a expressão testificar, veja-se Jo 1:7.)
Como se recebeu esse testemunho? Em geral, foi rejeitado: contudo,
ninguém aceita o seu testemunho. No entanto há algumas exceções:
Quem, todavia, lhe aceita o testemunho, … Aqui temos o mesmo
contraste que em Jo 1:11, 12. daquele que recebe o testemunho de Cristo
diz-se que por sua vez, certifica que Deus é verdadeiro. A explicação
mais simples é esta: Os que aceitam o testemunho que Cristo dá de Si
mesmo (ou seja, que Ele é o Filho de Deus) põem deste modo o selo de
sua aprovação sobre o testemunho de Deus referente a Jesus: “Tu és o
meu Filho amado” (Lc. 3:22; cf. Jo 1:34). Mostram que Deus é
verdadeiro ao chamar assim a Jesus. O que aqui diz-se de forma
positiva, dá-se negativamente em 1Jo 5:10: “…Aquele que não dá
crédito a Deus o faz mentiroso, porque não crê no testemunho que Deus
dá acerca do seu Filho”.
34, 35. Todos devem aceitar o testemunho de Cristo, não só porque
(a) fala o que viu e ouviu (versículo 32); e porque (b) seu testemunho
sobre Si mesmo está em perfeita harmonia com aquele que o Pai deu
(versículo 33); mas também porque (c) aquele que Deus enviou (como
embaixador Seu), fala as palavras de Deus [TB]. Embora é verdade que no
quarto Evangelho não se apresenta a Jesus como o único que foi enviado
por Deus (em Jo 1:6 e 3:28 diz-se que o Batista foi enviado), também é
certo, não obstante, que em quase todos os casos esta designação se
emprega com referência a Ele; quer dizer, ao Filho (Jo 3:17; 5:36, 38;
6:29, 57; 7:29; 8:42; 9:7; 10:36; 11:42; 17:3, 8, 18, 21, 23, 25; 20:21).
Por esta razão, não vemos motivo algum para nos apartar da
interpretação usual de que em Jo 3:34 se descreve o Filho com as
palavras: “… aquele que Deus enviou”. De modo que, é o Filho
João (William Hendriksen) 199
unigênito de Deus aquele que, tendo sido enviado por Deus, fala as
palavras de Deus. Na realidade nunca fala senão isso, pois não é um
profeta comum como, por exemplo, o Batista, sobre o qual descansa o
Espírito num grau limitado. Porque Deus não dá o Espírito por medida
(mas em plenitude). Os melhores textos omitem o pronome o. No
entanto pode-se suprir mentalmente, e deve-se considerar como fazendo
referência a Cristo, conforme implica claramente o versículo 35. (Veja-
se também Jo 1:33.) O Pai não deu só o Espírito ao Filho. Deu-lhe todas
as coisas em Sua mão (cf. Jo 5:19–30; 6:37; 12:49; 13:3; 17:2, 4, 11; cf.
Mt. 11:27; 28:18). Não seria muito correto limitar esta passagem à
filiação messiânica de Cristo. A linguagem (começando no versículo 31)
é muito majestosa para permitir tal interpretação. Depois de ter
presenciado a descida da pomba, e de ter ouvido a voz do Pai desde o
céu, o Batista compreendeu que a relação filial de Jesus como Mediador
descansava em Sua filiação trinitária. Por isso, também, o dom de todas
as coisas resulta da relação eterna de amor entre o Pai e o Filho: O Pai
ama ao Filho (cf. Jo 21:15–17), e todas as coisas tem confiado às suas
mãos.
36. No versículo 36 o testemunho do Batista alcança sua
culminação. Já observamos que em Jo 1:29 e logo em Jo 1:34 chegou-se
a culminações similares. Combinando as três encontramos o seguinte:
“Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”.
“E eu vi, e dei testemunho de que este é o Filho de Deus”.
“Quem crê no Filho tem a vida eterna; mas quem desobedece ao
Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele”.
Visto que todas as coisas estão em mãos do Filho (versículo 35), a
vida eterna também está em Sua mão. Por conseguinte lemos: Por isso,
quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde
contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus.
Esta passagem nos faz retroceder algumas palavras muito parecidas
do próprio Jesus em Jo 3:16–18. (Veja-se o comentário de Jo 3:16–18.)
A culminação de Cristo é também a de João. A vida eterna é dada aos
João (William Hendriksen) 200
que têm uma fé permanente no Filho. Não é para os que buscam
emoções (que “creem” nEle como operador de milagres; cf. Jo 2:23)
senão para os que confiam.
Em contraste com o destino dos crentes, Jesus falou do destino dos
incrédulos (compare-se Jo 3:16 com Jo 3:18). O Batista faz o mesmo ao
terminar suas observações dizendo que aquele que desobedece ao Filho
não verá a vida, e que a ira de Deus permanece sobre ele. Leve-se em
conta que o contrário de uma fé permanente é a desobediência; isto é, a
negativa a aceitar a Cristo com uma fé verdadeira e permanente. Esta vil
rejeição do Filho de Deus (sobre este termo veja-se Jo 1:14), quem Se
apresenta diante dos pecadores com o convite e com a demanda de
“confiar e obedecer”, tem como resultado o castigo descrito na última
cláusula: “… não verá a vida”, quer dizer, não experimentará suas
alegrias e deleites. Além disso, a ira de Deus permanece sobre tais
pessoas. O Batista já tinha falado sobre a ira de Deus em outro sentido
(Mt. 3:7; cf. Lc. 3:7). Lucas fala da ira de Deus em seu Evangelho (Lc.
21:23). Paulo fala dela vez após vez (Rm. 1:18; 2:5, 8; 3:5; 4:15; 5:9;
9:22; 12:19; 13:4, 5; Ef. 2:3; 5:6; Cl. 3:6; 1 Ts. 1:10; 2:16; 5:9). O
mesmo conceito encontra-se também em Hebreus (Hb. 3:11; 4:3), e no
livro de Apocalipse (Ap. 19:15; cf. 6:16, 17; 11:18; 14:10; 16:19). Numa
ocasião esta atitude é atribuída a Cristo (Mc. 3:5), que no ensino por
meio de parábolas não vacila em atribuí-la ao Rei, Senhor, ou Dono nos
céus (Mt. 18:34; 22:7; Lc. 14:21).
Embora à luz de Rm. 1:18 e Ef. 2:3 é certamente errôneo limitar
excessivamente esta atitude divina definindo-a como o desagrado de
Deus para os que rejeitam o evangelho (pois também se manifesta para
os que nunca o ouviram) é, não obstante, certo que o coração
impenitente do homem, sua dureza e sua sinistra rebelião a aceitar a
Cristo com uma fé viva, constitui com frequência o marco destas
passagens sobre a ira de Deus. Isto é o que sucede também na passagem
que agora nos ocupa (Jo 3:36). Esta é a única vez que se emprega a
palavra ira (ὀργή) no quarto Evangelho. Indica uma indignação
João (William Hendriksen) 201
permanente ou fixa (às vezes em contraste com furor, θυμός, que se pode
definir como uma comoção turbulenta, que estala de repente e se
extingue rapidamente, como o fogo na palha, 87 mas quando o aplicamos
especialmente a Deus, seria errado insistir na diferença entre as duas
palavras) 88
A menção da desobediência do homem e sua vil negativa a aceitar o
evangelho, faz voltar nossos pensamentos à história da queda no Paraíso.
Como resultado desta queda negou-se a Adão e a Eva o acesso à árvore
da vida (Gn. 3:24), e a ira de Deus desceu sobre a humanidade. João 3:36
nos ensina que essa ira continua sobre os que desobedecem ao Filho.
(Veja-se o comentário sobre Jo 3:18.)
A conclusão do testemunho do Batista é realmente bela por causa
de sua clara implicação: Recebe ao Filho de Deus com uma fé viva e
permanente, e terá vida eterna. Cf. Jo 3:21.

Síntese de Jo 3:22–36
O Filho de Deus Se revela a círculos cada vez mais amplos: a
Judeia; o ocaso de João Batista.
Depois de sua conversação com Nicodemos em Jerusalém, Jesus Se
retirou com Seus discípulos à terra da Judeia, perto do Jordão, onde, por
meio de Seus discípulos, batizava (certamente de maio a dezembro do
ano 27).
Um pouco mais ao norte, em Enom perto de Salim, João — que
ainda não tinha sido encarcerado — batizava também. Seus seguidores
diminuíam e iam após Jesus. Isto despertou o ciúme nos discípulos de
João Batista, aqueles que, depois de discutir com um judeu que apoiava a
Jesus, correram a queixar-se com seu mestre: “Rabi, aquele que estava
contigo ao outro lado do Jordão, de quem deste testemunho, olhe, ele
batiza, e todos vêm a ele”.

87
Cf. C. Trench, Synonyms of the New Testament, Grand Rapids, Mich., 1948, pp. 130–134.
88
Veja-se artigo θυμός, ὀργή em Th. W.N.T.
João (William Hendriksen) 202
De acordo com o propósito do livro, o escritor detém-se para
considerar a humilde resposta do Batista. Este, depois de haver-se
referido a seu anterior testemunho, afirma que cada homem deve aceitar
com gratidão o lugar que Deus lhe atribui na vida. João faz ver que o
mesmo modo que na vida comum a noiva pertence ao noivo, e não ao
amigo deste último, assim também sucede no reino. A obrigação do
amigo é levar a noiva ao Noivo. Neste caso o Noivo é Cristo. A noiva é
constituída por aqueles que foram levados até Ele e O aceitaram com
uma fé viva. O “amigo” é João Batista. Quando ele ouve a voz do noivo
dando as boas-vindas à noiva, alegra-se grandemente. Quando o rei
celestial chega, o arauto terrestre se retira. Que todos recebam agora o
Rei, o Filho de Deus cheio do Espírito, que fala as palavras de Deus. Os
que ao contrário que a imensa maioria, aceitam o Filho com fé viva,
indicam com isso que aceitaram o veredito do Pai a respeito dEle (“Este
é o meu Filho amado”). Sua fé no objeto do amor e da generosidade de
Deus será recompensada com a vida eterna. Mas a ira (a indignação
permanente) de Deus continua sobre os desobedientes. Implicação: Não
endureça seu coração, mas aceite pela fé o Filho de Deus.
João (William Hendriksen) 203
JOÃO 4
JO 4:1-26

4:1. Quando, pois, o Senhor veio a saber que os fariseus tinham


ouvido dizer que ele, Jesus, fazia e batizava mais discípulos que João.
João foi encarcerado por volta de dezembro do ano 27 (cf. Mc.
6:17–20). Os líderes religiosos de Jerusalém que, nos dias da grande
popularidade de João, tinham estado cheios de ciúme, agora se
alegravam. Quais foram as causas de sua inimizade com ele? (Veja-se Jo
1:19.) Mas sua alegria durou pouco, pois outras notícias chegaram até os
fariseus: ou seja, que as multidões que rodeavam a Jesus — os discípulos
que ganhava e batizava — eram mais numerosas que as que tinham
seguido o arauto. Na realidade, já antes do encarceramento de João,
Jesus lhe tinha avantajado com relação ao favor da opinião pública (Jo
3:22–26). Em consequência, do ponto de vista dos membros do Sinédrio,
as coisas estavam piorando em vez de melhorar.
“Quando, pois, o Senhor veio a saber” (veja-se Jo 1:38, nota 44).
Como soube? (veja-se 5:6). O Novo Testamento grego moderno tem
aqui, ἔμαθεν — entendeu — veio a saber. Concretamente Jesus tinha
chegado a saber: a. que João tinha sido encarcerado (Mt. 4:12); e b. que
os fariseus tinham ouvido que as multidões iam ter com Jesus, o qual
ganhava e batizava mais discípulos que João.
2. se bem que Jesus mesmo não batizava, e sim os seus discípulos.
Ninguém poderá jactar-se nunca dizendo: “Fui batizado pelo próprio
Senhor em pessoa, e foste batizado por um simples discípulo”. (Cf. 1Co.
1:17.) No entanto, depreende-se claramente do uso do singular no verbo
“batizar”, tanto aqui (Jo 4:1) como em Jo 3:22, que Jesus aprovava o
batismo e assumia a responsabilidade do rito que administravam seus
discípulos. O que eles faziam, na realidade Ele o estava fazendo (através
de Seus ajudantes).
João (William Hendriksen) 204
3. Deixou a Judeia. Jesus decide sair de (sobre este verbo veja-se Jo
4:28) Judeia. Por quê? Porque notava perfeitamente que Sua grande
popularidade na região da Judeia despertaria tão intenso ressentimento
nos líderes religiosos daquela província meridional que, com o curso
natural dos acontecimentos, chegar-se-ia à uma crise prematura. Agora,
o Senhor sabia que para cada acontecimento de Sua vida havia um
momento determinado pelo decreto de Deus. Além disso, sabia que a
hora apropriada de Sua morte ainda não tinha chegado. Ele daria
voluntariamente Sua vida logo que chegasse aquele momento (cf. Jo
10:18; 13:1; 14:31). Ele o faria então, mas não antes. Por conseguinte,
devia sair da Judeia.
Retirando-se outra vez para a Galileia. Desta palavra outra vez
(πάλιν) não se pode deduzir que já tinha vivido na Galileia durante um
considerável espaço de tempo, pois então toda a história do capítulo 4
deveria ser trasladada ao final do ministério terrestre de Cristo. É muito
mais natural inferir que o escritor está pensando nos eventos narrados em
Jo 2:1–12. Jesus tinha estado na Galileia no fim de fevereiro ou
princípios de março. Ali fez seu primeiro sinal. De Caná e Cafarnaum
tinha ido a Jerusalém por ocasião da Páscoa. E agora, depois de ter
estado algum tempo na capital e na região da Judeia, retornava outra vez
a Galileia.
4. E era-lhe necessário atravessar a província de Samaria. Jesus
devia passar por Samaria. Existiam vários caminhos que conduziam da
Judeia a Galileia: um perto da costa, outro pela Pereia, e outro
atravessando Samaria. Josefo nos informa que os galileus, quando iam à
cidade santa para as festas, costumavam tomar o caminho que passa pelo
país dos samaritanos (Antiguidades, XX, vi, 1). Além disso, a distância
mais curta da zona de Jerusalém e Jericó em que Jesus tinha
desenvolvido Seu ministério, até seu destino, que era Caná da Galileia
(Jo 4:46), era o caminho que passava por Samaria. É possível que o
verbo “devia” ou “era necessário” (ἔδει) refira-se meramente a esta
circunstância; ou seja, que para economizar tempo e uma volta
João (William Hendriksen) 205
desnecessária, o viajante que ia da região da Judeia a Caná da Galileia
devia passar por Samaria. No entanto, levando em conta que neste
Evangelho se insiste continuamente no conhecimento que Cristo tinha de
estar cumprindo o plano divino (veja-se Jo 2:4; 7:30; 8:20; 12:23; 13:1;
14:31), e que o contexto imediato também o indica implicitamente (Jo
4:1–3), o significado mais provável aqui é: devia passar por Samaria de
acordo com as ordens de seu Pai celestial: para fazer a vontade dAquele
que o tinha enviado, e acabar Sua obra (Jo 4:34).
5. Chegou, pois, a uma cidade samaritana, chamada Sicar. Depois
de ter entrado na província de Samaria, Jesus chegou à encruzilhada de
uma via romana, um pouco ao sul de Sicar, onde hoje se encontra Askar,
nos arredores da tumba de José. A oeste-noroeste de Sicar ou Askar se
acha Gerizim, o monte da bênção (Dt. 27:12). Atrás de Askar e a
noroeste do Gerizim se levanta Ebal, o monte da maldição, mais alto que
o anterior (Dt. 27:13).89 Hoje existe uma cidade moderna de bastante
importância ao pé do monte Gerizim. Chama-se Nablus, corrupção árabe
do Neápolis (cidade nova). Na ladeira meridional do Gerizim está a
sinagoga dos samaritanos que guarda os rolos do Pentateuco Samaritano,
aos quais os proprietários atribuem uma antiguidade fantástica. A cidade
bíblica de Siquém encontrava-se não muito longe da atual Nablus.
(Sobre Siquém veja-se Gn. 12; 34; 37:12, 13; Js. 21:21; 24; Jz. 9; 1Rs.
12:25; Jr. 41:5.)
Jesus deteve-se num lugar aproximadamente a um quilômetro ao
sul-sudoeste de Sicar, perto das terras que Jacó dera a seu filho José.
Segundo Gn. 33:19, em sua volta de Padã-Arã, Jacó comprou um campo
dos filhos do Hamor por cem moedas de prata. Certamente o terreno que
comprou era de bastante extensão, muito maior que a parcela onde se
encontra a tumba de José. Provavelmente incluía o lugar onde se fez o
poço, que portanto se achava perto de onde José estava enterrado. No

89
Veja-se W. H. A. B., lâmina IX; também Viewmaster Travelogue, Rolo nº. 4016, Os samaritanos,
Samaria, Palestina, cena 4.
João (William Hendriksen) 206
entanto, parece que os amorreus não respeitaram esta transação, e agiram
como se o campo nunca tivesse sido vendido a Jacó. Por isso Jacó teve
que reconquistar sua propriedade pela força das armas. Tempo mais
tarde a deu a seu filho predileto José. Em Gn. 48:22 lemos:
“Dou-te, de mais que a teus irmãos, um declive montanhoso
(literalmente ombro ou ladeira; hebraico: shechem, de onde se deriva o
nome de Siquém), o qual tomei da mão dos amorreus com a minha
espada e com o meu arco”.
Quando José estava prestes a morrer no Egito, pediu que quando o
Senhor visitasse o Seu povo, fazendo-os voltar para a terra de seus pais
(Gn. 50:25, 26), enterrassem seu corpo ali (Gn. 50:25, 26). Conforme
vemos em Js. 24:32 isto foi feito assim:
“Os ossos de José, que os filhos de Israel trouxeram do Egito,
enterraram-nos em Siquém, naquela parte do campo que Jacó comprara
aos filhos de Hamor, pai de Siquém, por cem peças de prata, e que veio a
ser a herança dos filhos de José”.
6. Nesta parcela, que em outros tempos tinha pertencido a Jacó, e
não longe de onde estava enterrado José, Jesus Se deteve para descansar
um momento. O lugar era ideal para fazê-lo pois estava ali a fonte de
Jacó (ou o manancial de Jacó). Os judeus, os samaritanos, os
muçulmanos e os cristãos estão de acordo em relacionar esta fonte com o
patriarca Jacó. Não existe nenhuma razão para duvidar desta tradição.
Devemos distinguir entre os dois termos que se empregam neste
relato: manancial 90 (πηγή, provavelmente no sentido de poço alimentado
por um manancial, Jo 4:6) e poço (φρέαρ). O primeiro vocábulo aparece
em Jo 4:6, 14. Em Jo 4:6 (aparece duas vezes neste versículo) refere-se
provavelmente ao fato de que se sabia que a água brotava no fundo do
poço. A segunda expressão encontra-se em Jo 4:11, 12. Indica qualquer
tipo de poço, seja ou não alimentado por um manancial. A profundidade
do poço de Jacó naqueles dias, e ainda hoje, era de mais de 30 metros.

90
Cf. W. R. Hutton, “ ‘Spring’ and ‘Well’ in John 4:6, 11, 12”, Ext, 56 (1945), 27.
João (William Hendriksen) 207
Nos últimos anos tirou-se o escombro que se tinha depositado com o
passar dos séculos e que foi a causa de que muitos comentários
dissessem que a profundidade era de 23 metros. O poço está rodeado
pelos muros de um convento. A água do poço de Jacó é muito fresca e
não de inferior qualidade a das fontes próximas.
Às vezes se tem perguntado: Por que fez Jacó um poço aqui se uma
abundante provisão de água vinha das próximas montanhas de Samaria?
A resposta poderia ser que às vezes as outras fontes se secavam no verão
ou que ele queria ter seu próprio poço em seu terreno para seus rebanhos.
Não queria ter desgostos com os vizinhos pelos direitos sobre a água.
Veja-se Gn. 26:15 com relação aos problemas de seu pai Isaque com os
poços.
Cansado da viagem, assentara-se Jesus (quer dizer, estava cansado,
poeirento e sedento) junto à fonte. O quarto Evangelho não faz ressaltar
só a natureza divina de Jesus, mas também a humana; cf. sobre 1:14. A
preposição grega ἐπί que se traduziu por junto a significa basicamente,
sobre (o bordo de) o poço. No entanto, levando em conta que esta
preposição (que aqui se usa com o locativo) também pode ter o
significado secundário, junto a, que é mais simples (e não requer a
inserção mental de palavras que não se encontram no texto), é
provavelmente melhor lhe dar esse significado, tal como em Jo 5:2.
Por volta da hora sexta. (Sobre o difícil problema da medição do
tempo no quarto Evangelho, consulte-se o dito no comentário sobre Jo
1:39.) Aqui em Jo 4:6 podem ser dados muitos argumentos em favor do
sistema civil romano, de modo que quando Jesus chegou ao poço seriam
as seis da manhã ou as seis da tarde. No entanto, temos que modificar
imediatamente esta afirmação visto que, à vista de todo o contexto, está
claro que não se tratava das seis da manhã. Não dizemos que seja
completamente impossível que aqui se use o sistema judaico de contar o
tempo, e que então seria por volta de meio-dia quando Jesus chegou ao
poço. Não obstante, preferimos a teoria das seis da tarde, e isto nos
baseando nas seguintes considerações:
João (William Hendriksen) 208
(1) Esta era a hora acostumada para ir tirar água (Gn. 24:11). O
fato de que uma mulher fosse ao poço completamente sozinha não prova
o contrário. Leve-se em conta que havia várias fontes naquela vizinhança
e, portanto, não era estritamente necessário que todas as mulheres de
Sicar fossem a esta. 91 Ou talvez as outras mulheres costumavam a ir um
pouco antes não desejando associar-se com esta mulher, por razões
fáceis de supor (Jo 4:16–18).
(2) Ainda ficaria tempo suficiente para os eventos de 27–40. Além
disso, é muito mais natural que os samaritanos fossem em tão grande
número a Jesus com o afresco do entardecer quando as tarefas já se
terminaram, que ao meio-dia.
(3) Se foi para o entardecer (às seis da tarde), podemos então
compreender a petição do povo de que se ficasse com eles (Jo 4:40), o
qual nos faz pensar em Lc. 24:29: “Fica conosco, porque é tarde, e o dia
já declina”. Naturalmente, admitimos que a mesma petição poderia ter
sido feita a qualquer hora do dia, mas era mais apropriada ao terminar o
dia..
7–10. A mulher vai a um forasteiro junto ao poço de Jacó. É Jesus,
que, em obediência à vontade do Pai, e em perfeita harmonia com Seus
próprios desejos internos (Jo 4:34), vai dirigir todos os Seus esforços
para manifestar Sua glória no país dos samaritanos, recolhendo fruto
para vida eterna. (Jo 4:36). O Senhor Se propõe alcançar os vizinhos por
meio desta mulher. Demonstrará que é o Salvador não só de Seus
escolhidos na Judeia mas também dos de Samaria.
O contraste entre o capítulo três de João (a obra de Cristo na Judeia)
e o capítulo quatro (sua obra em Samaria) é muito surpreendente. No
primeiro vemos a Jesus diante de um homem (Nicodemos); aqui diante
de uma mulher; ali com um judeu, aqui com uma samaritana; ali com
uma pessoa de elevada moralidade, aqui com uma de baixa reputação.
No entanto, o Senhor demonstra que é capaz de salvar a ambos.

91
A. Edersheim, The Life and Times of Jesus the Messiah, Nueva York, 1898, vol. I, p. 409.
João (William Hendriksen) 209
No processo de ganhar a alma (veja-se Pv. 11:30; Dn. 12:3; Tg.
5:20) desta mulher o Senhor apela a cada parte de sua personalidade para
alcançar seu propósito: a sua amabilidade (“Dê-me de beber”), a sua
curiosidade (“Se conhecesse”), a seu desejo de satisfação e descanso
eterno (“aquele que beber da água que eu lhe darei, não terá sede
jamais”), e a sua consciência (“Vai, chama o teu marido”).
E, enquanto isso, o que é que a mulher fazia? Quase estaria
justificado dizer que durante um momento fez todo o possível para não
ser salva, como logo mostraremos. No entanto, embora se oponha aos
esforços de Cristo, os pontos de resistência vão caindo um a um até que,
por fim, em seu caso talvez repentinamente, a graça penetra e alcança a
vitória. Mas essa vitória da graça sobre o pecado em sua vida não se
relata explicitamente mas antes, se pressupõe (cf. Jo 4:34, 36). O
verdadeiro tema aqui não é o da salvação desta alma, nem tampouco o da
salvação de muitas almas na província de Samaria, mas o da forma em
que por meio desta obra faz-se manifesta a glória de Deus em Cristo.
Nisto, veio uma mulher samaritana. Isto não significa que aquela
mulher veio da cidade de Samaria, a duas horas de caminho! Quer dizer
que era natural da província de Samaria. Veio tirar água. Podemos
imaginá-la levando o cântaro (Jo 4:28) sobre a cabeça ou, como Rebeca,
sobre o ombro (cf. Gn. 24:15), e dirigindo-se desde sua casa em Sicar (Jo
4:5, 28) para o sul, ao poço de Jacó. Para muitas pessoas de nossos dias
pareceria muito cansativo ter que andar quase um quilômetro para obter
a água. A mulher samaritana pensava o mesmo (Jo 4:15).
Apelando então à amabilidade da mulher, Disse-lhe Jesus: Dá-me de
beber. É razoável supor que esta petição se fizesse depois de a mulher ter
tirado a água; consulte-se Jo 4:28. Era um pedido completamente
natural, pois Jesus estava verdadeiramente sedento. Mas, ao mesmo
tempo, era uma manifestação da estratégia divina e de Sua percepção
psicológica, pois se alguém deseja ganhar acesso ao coração de uma
pessoa podem-se empregar dois métodos: a. fazer um favor a essa
pessoa; b. deixar que essa pessoa lhe faça um favor. Com frequência o b.
João (William Hendriksen) 210
tem mais efeito que o a. No entanto, considerando-o bem, Jesus
combinou os dois.
8. O pedido de Jesus era, além disso, natural, porque estava
sozinho, não havia ninguém para O servir, e não tinha nada com que tirar
a água. Pois seus discípulos (consulte-se Jo 2:2) tinham ido à cidade para
comprar alimentos. Parece que naquele então, embora judeus e
samaritanos estavam inimizados entre si, tinham até certo ponto trato
entre eles (os judeus podiam comprar dos samaritanos), o que nos deve
servir de aviso para não interpretar erroneamente a frase entre parêntese
de Jo 4:9.
9. Mas as relações entre judeus e samaritanos distavam muito de ser
cordiais, como o evidencia o que a mulher diz em resposta à petição
deste estranho. Então, lhe disse a mulher samaritana: Como, sendo tu
judeu, pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana? O acento e a
pronúncia de Cristo provavelmente bastaram para que aquela mulher
notasse que o forasteiro era judeu.
Para compreender a inimizade religiosa entre os dois povos é
necessário fazer uma breve recapitulação da história dos samaritanos.
Quando Oseias, o último rei de Israel, depois de ter pago tributos a
Assíria, transferiu sua vassalagem ao Egito, Samaria, a capital do reino
do norte, foi rodeada pelas tropas de Salmaneser, e depois de um longo
sítio, foi conquistada por Sargão. Isto sucedeu no ano 722 antes de
Cristo. A maior parte do povo teve que sair do país e foi levada a Assíria,
Hala, ao Habor, o rio de Gozã, e às cidades dos medos (2Rs. 17:3–6). Foi
permitido que as pessoas pobres ficassem na terra de Israel. Tanto de
Babilônia como de outros territórios vizinhos, muitos estrangeiros foram
estabelecer-se na devastada região, misturando-se com os israelitas que
haviam ficado. Esta população mista recebeu o nome de samaritanos
(derivado de Samaria, a metrópole fundada por Onri). Os colonos
estrangeiros não estavam muito satisfeitos com a situação tal como a
encontraram ao chegar. Encontraram um país infestado de animais
selvagens e, com razão, atribuíram esta praga ao desgosto do Senhor,
João (William Hendriksen) 211
que tinha sido ofendido. Então rogaram ao seu monarca que lhes
enviasse um sacerdote israelita que lhes ensinasse “a lei do deus do
país”. E assim ocorreu que um judaísmo adulterado ficou enxertado ao
culto pagão. Quando um resíduo dos judeus retornou ao país de seus pais
(principalmente, mas não exclusivamente, parte dos que tinham sido
deportados a Babilônia no ano 586 a.C.), e construiu um altar para o
holocausto, e pôs os fundamentos do templo, os zelosos samaritanos e
seus aliados interromperam as obras (Ed. 3 e 4). Isto era devido ao fato
de que lhes tinha sido negado a permissão para cooperar na obra de
reconstrução. Seu pedido foi:
“Deixai-nos edificar convosco, porque, como vós, buscaremos a
vosso Deus; como também já lhe sacrificamos desde os dias de Esar-
Hadom, rei da Assíria, que nos fez subir para aqui” [Ed. 4:2]
A resposta que receberam foi a seguinte:
“Nada tendes conosco na edificação da casa a nosso Deus”. Ao
receber esta seca negativa os samaritanos se sentiram cheios de ódio para
com os judeus (cf. também Ne. 4:1, 2) e logo começaram a construir seu
próprio templo no monte Gerizim. João Hircano, um dos reis macabeus,
destruiu este templo para o ano 128 antes de Cristo. Os adoradores, não
obstante, continuaram oferecendo seu culto no topo da montanha, onde
se tinha levantado o sagrado edifício. Ainda hoje continuam fazendo
isso. Para a páscoa toda a comunidade vai acampar no cimo do Gerizim,
e, quando sai a lua cheia, o sumo sacerdote entoa as orações e os
açougueiros degolam os cordeiros, tal como o faziam há muitíssimos
séculos. Na atualidade os samaritanos somam 270 pessoas. Do Antigo
Testamento só aceitam os cinco livros de Moisés. Por algum tempo
pareceu que a seita estava destinada a extinguir-se, devido ao seu caráter
fechado e à escassez de mulheres entre eles. Ultimamente, no entanto,
começaram a casar-se com mulheres judias.
Os sentimentos hostis dos judeus para os samaritanos se descrevem
em passagens como Jo 8:48 e em (o livro apócrifo) Eclesiástico 50:25,
26. A mesma atitude da parte dos samaritanos com relação aos judeus se
João (William Hendriksen) 212
observa em Lc. 9:51–53. A misericórdia de nosso Senhor transpassou as
barreiras do ódio nacionalista, como se vê não só aqui, João 4, mas
também em Lc. 9:54, 55; 17:11–19; e na parábola do Bom Samaritano
(Lc. 10:25–37).
Uma vez repassada brevemente a história das relações entre judeus
e samaritanos, estamos em melhor situação para compreender a pergunta
da mulher: “Como, sendo tu judeu, pedes de beber a mim, que sou
mulher samaritana?” Mas, se não levarmos em conta outro fator,
poderíamos sentir-nos movidos a perguntar: Se os samaritanos estavam
dispostos a vender alimentos aos judeus (Jo 4:8), por que não iam estar
dispostos a lhes oferecer água? Ou, a pergunta poderia ser formulada
deste modo: Se os discípulos de Jesus podiam ir comprar alimentos dos
samaritanos, por que pareceu tão estranho àquela mulher que um judeu
lhe pedisse de beber? A explicação encontra-se na nota explicativa (não
vem agora ao caso discutir se forem palavras do próprio João ou não; e a
evidência textual não é conclusiva):
(Porque os judeus e os samaritanos não bebem dos mesmos copos.)
O verbo que traduzimos por “não beber dos mesmos copos”
(συγχρῶνται) com toda segurança não se deve traduzir por “não se
tratam entre si”. De fato os judeus tinham procedimentos com os
samaritanos, mas segundo uma interpretação farisaica das leis da pureza
(p. ex. Lv. 15), os judeus e os samaritanos não podiam beber dos
mesmos copos.92 Precisamente por esta razão, a samaritana, percebendo
que Jesus teria que usar seu cântaro, fica grandemente surpreendida e,
talvez, agradada de que este judeu lhe dirija a palavra e esteja disposto a
beber de seu cântaro.
10. Nosso Senhor faz uso deste sentimento de surpresa que se
despertou nela e acende sua curiosidade para que seu respeito para com
Ele cresça, e siga seu curso a obra de resgatar esta alma das cadeias do
pecado e do mal. Embora não responda sua pergunta diretamente, nem

92
Cf. JBL, 69 (1950), 137–147.
João (William Hendriksen) 213
por isso a passa por alto. Mas lhe mostra que sua pergunta se baseava
numa premissa errônea. O raciocínio da mulher era: tu, um judeu, estás
necessitado e não podes resolver, … eu, mulher samaritana, sou
autossuficiente e, portanto, posso te ajudar. Em sua resposta Jesus lhe faz
ver que a realidade é completamente ao contrário. É ela quem necessita a
água, e ele é a Fonte que pode subministrá-la. Cf. Ap. 3:17. Em
consequência lemos: Replicou-lhe Jesus: Se conheceras o dom de Deus e
quem é o que te pede: dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água
viva 93 . 94
Estas palavras constituem outro glorioso mashal. (Remetemos ao
leitor ao tal sobre este tema em Jo 2:19.) A expressão água viva se presta
a uma dupla interpretação (igual aos misteriosos termos em Jo 2:19 e
3:3). O caráter misterioso do dito faz refletir e causa estranheza. É uma
forma para incitar à mulher a fazer mais perguntas. E isto é precisamente
o que Jesus busca. Embora ela não compreenda imediatamente o
significado de Suas palavras, irá dando voltas na mente até que, de forma
repentina e dramática, tudo será esclarecido. Isto, como já dissemos, é
pedagogia divina.
Quando Jesus falou a respeito do “dom de Deus” Ele Se referia à
“água viva”. Mas “água viva” também podia significar manancial de
água (Gn. 26:19) que brota por si mesma, diferente da água de chuva
que se recolhe numa cisterna ou depósito. Naturalmente, às vezes sucede
que ao escavar um poço chega-se a descobrir um manancial. O poço de
Jacó ilustra exatamente este ponto. Assim, pois, quando Jesus disse: “ele
te daria água viva”, a mulher o interpretou por: “… ele te daria não a
água que leva tempo no poço, mas a água que sai do manancial que há
no fundo”.

93
II C; veja-se IV da Introdução.
94
A prótase indica irrealidade atual, enquanto que a apódose refere-se à irrealidade passada. Mas a
diferença temporal é insignificante: “Se soubesses agora … então faz um momento não terias
perguntado”.
João (William Hendriksen) 214
No entanto, na mente de Cristo a água fresca e pura de manancial
era símbolo da vida eterna ou salvação. Até agora a mulher segue sem
saber quem é Ele — ou seja, o Autor da salvação — e sem entender o
que significa a água viva de que está falando.
Observe-se também este detalhe: nas palavras de Jesus há uma leve
repreensão; como se houvesse dito: “Eu te pedi água comum, um dom
inferior, e tu vacilas; se me tivesses pedido a água viva, o dom supremo
(“o dom de Deus”), eu não tivesse vacilado, e sim te haveria dado essa
água imediatamente”. No entanto, esta repreensão é suavizada pela
cláusula: “Se conhecesses o dom de Deus, e quem é …”, querendo dizer:
“Não o conheces”.
11. Respondeu-lhe ela: Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço
é fundo; onde, pois, tens a água viva?
Jesus acabava de dizer à mulher que ao que Lhe pedisse, Ele lhe
daria água viva. Pensando que isto se referia ao manancial de água que
existia no fundo do poço, a mulher respondeu: “Senhor, não tens um
cubo com corda” (de ἄντλος, água de sentina num recipiente; de ἀντλέω,
tirar, esgotar; e ἄντλημα, cubo com corda para tirar água de um poço).
Segundo a mulher existem dois obstáculos que tornam impossível que
Jesus possa oferecer essa água viva de que esteve falando:
a. não tem um cubo com corda; mas inclusive se o tivesse,
b. o poço (τὸ φρέαρ) é profundo (consulte-se Jo 4:6).
Como, então, pode alguém chegar ao manancial que brota no
próprio fundo do poço, debaixo da água tranquila? A mulher parece estar
completamente perplexa. O que diz este forasteiro parece absurdo. Mas,
enquanto isso, continua dando voltas na cabeça esta adivinhação.
12. A mulher prossegue: És tu, porventura, maior do que Jacó, o
nosso pai (os samaritanos remontavam sua ascendência até Jacó através
de José, esquecendo-se convenientemente de sua misturada genealogia),
que nos deu o poço (veja-se Jo 4:5), do qual ele mesmo bebeu, e, bem
assim, seus filhos, e seu gado? (gados: literalmente, recém-nascidos,
qualquer criatura que tem que ser alimentada; aqui refere-se a animais.)
João (William Hendriksen) 215
Embora esta pergunta pressuponha uma resposta negativa, mostra, no
entanto, que a mulher começa a considerar a grandeza deste forasteiro.
Deste modo ela começa a ser receptiva ao evangelho.
13, 14. Duvidou ela da superior grandeza do estranho? Jesus indica
agora que, certamente, ele é muito maior que Jacó, visto que o dom que
Ele derrama é imensamente mais precioso que aquele que herdou a
descendência do patriarca. A resposta de Cristo deve-se interpretar nesse
sentido: Afirmou-lhe Jesus: Quem beber desta água tornará a ter sede;
aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede;
pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a
vida eterna. Desta forma Jesus apela aos desejos na mulher, de
verdadeiro descanso e máxima satisfação.
Observe-se o contraste que Jesus apresenta aqui:

A água do poço de Jacó: A água viva que Jesus concede:

(1) não pode evitar que se tenha sede (1) faz perder a sede para sempre; isto
outra vez … e outra vez … e outra vez. é, da satisfação duradoura. Uma vez
crente, sempre nascido de novo.
Veja-se Jn.6:35; Is. 49:10;
Ap. 7:16, 17; 21:6; 22:1, 17.

(2) fica fora da alma, e não é capaz (2) entra na alma e permanece dentro, como
de preencher suas necessidades. fonte de frescura e satisfação espiritual.

(3) é de quantidade limitada, (3) é um manancial perpétuo. Aqui na


diminui, desaparece ao bebê-la. terra sustenta a pessoa espiritualmente
com vistas à vida eterna nos céus
(“para vida eterna”).

15. A mulher já se deu conta (versículo 14) de que Jesus se estava


referindo a uma classe muito especial de água. Por isso: Disse-lhe a
mulher: Senhor, dá-me dessa água … Mas ela ainda continuava crendo
que essa água, por muito preciosa que fosse, era de caráter físico. Cria
João (William Hendriksen) 216
que lhe poderia acalmar a sede física: … para que eu não mais tenha
sede, nem precise vir aqui (presente subjuntivo de διέρχωμαι) buscá-la.
Normalmente, se quisesse água do poço de Jacó devia andar uns dez
minutos de sua casa ao poço, pelo menos uma vez por dia. Por isso anela
a água que não só apaga a sede mas também impede que volte.
Em Jo 4:10 Jesus lhe disse: “Se conheceras o dom de Deus … tu lhe
pedirias”. Agora é ela a que pede: “Senhor, dá-me dessa água”. Sua
petição, não obstante, não se adapta ao indício que contém o versículo
10, pois ainda não percebe a natureza espiritual do dom de Deus nem o
caráter do Doador.
16. Há muitos que não veem relação entre a petição da mulher:
“Senhor, dá-me dessa água” (versículo 15), e a resposta de Jesus. Disse-
lhe Jesus: Vai, chama teu marido e vem cá. Pensam que o Senhor muda
de tema neste momento. Outros, com inclinação semelhante, sugerem
que o que Jesus queria dizer é algo assim: «Mulher, visto que és tão lenta
para entender, e não percebes que ao dizer “água viva” estava falando de
um dom espiritual, considero que seu é um caso perdido. Vai e chama
teu marido. Talvez tenha mais êxito com ele».
Mas nesse caso teríamos que supor que Jesus não sabia que a
mulher não tinha marido; mas o contexto nos informa que ele sabia disso
(Jo 4:17, 18). No entanto, existe uma estreita relação entre a petição da
mulher e a ordem de Cristo. Para que a mulher quisesse a água viva,
devia haver sede primeiro. E esta sede não se despertará verdadeiramente
até que haja um sentido de culpabilidade, uma consciência de pecado. A
menção de seu marido é o melhor meio de fazer esta mulher lembrar da
sua vida imoral. O Senhor está Se dirigindo à sua consciência.
17, 18. ao que lhe respondeu a mulher: Não tenho marido.
A resposta da mulher é muito abrupta. Ela, que tinha estado falando
tanto (Jo 4:11, 12, 15), cala-se de repente. É algo interessante contar o
número de palavras de cada resposta: segundo o texto grego, no
versículo nove usa 11 palavras (em siríaco, muito semelhante ao
samaritano, 11 palavras também); no versículo quinze, 13 palavras
João (William Hendriksen) 217
(siríaco, 15); nos versículos onze e doze 42 palavras (siríaco, 29); porém
no versículo dezessete, só 3 palavras: “não tenho marido” (οὐκ ἔχω
ἄνδρα; siríaco, 3 palavras também). É, então, solteira? Talvez viúva?
Sabe muito bem que seu seca resposta não faz honra à verdade. A
mulher se pôs em guarda. Não quer ser desmascarada nem exposta à luz.
Não está disposta a fazer uma confissão total de seu pecado. Isto é o que
quisemos dizer quando em Jo 4:7–10 declaramos: Quase seria justo dizer
que por um momento fez todo o possível para não ser salva.
Mas o Senhor não a abandona. Termina o que começou. Replicou-
lhe Jesus: Bem disseste, não tenho marido. Observe-se que Jesus põe toda
a ênfase na palavra marido. (Em grego esta palavra figura em primeiro
lugar na resposta de Jesus, enquanto na afirmação da mulher está em
último, o que é significativo. O fato de que alguns manuscritos tenham a
mesma ordem nos dois casos é uma corrupção provavelmente devido à
intenção de harmonizar). A mulher vive com um homem. Tem um
amante; não um marido, nem sequer num fraco sentido legal. Jesus
prossegue “…porque cinco maridos já tiveste, e esse que agora tens não é
teu marido; isto disseste com verdade. Em que forma o Senhor põe a
descoberto, com poucas palavras, toda sua vida passada e presente! (Cf.
Jo 4:29) Se mesmo entre os judeus havia muitas pessoas que seguia a
escola mais relaxada de Hillel para a interpretação das regras do divórcio
de Dt. 24:1, segundo a qual o marido podia divorciar-se de sua mulher se
esta não lhe agradava em tudo, é fácil notar que entre os samaritanos a
situação não era melhor. Esta mulher tinha tido cinco maridos.
(Naturalmente é possível que um ou dois tivessem morrido.) São
Jerônimo faz menção de uma mulher que teve até vinte e dois maridos!
Não há nada novo debaixo do sol.
E como sabia Jesus tudo isto? (Veja-se sobre Jo 5:6.) Jesus, em sua
conversação com esta mulher, tinha-lhe indicado que precisava ter um
conhecimento salvador de: a. o dom de Deus; quer dizer, a água viva; e
b. o Doador deste dom (veja-se Jo 4:10). Ao trazer à luz o seu pecado,
Jesus preparou seu coração para chegar ao conhecimento e a recepção do
João (William Hendriksen) 218
dom (Jo 4:16–18). A revelação e crua exposição de toda uma vida de
imoralidade é o método para dar a conhecer o caráter do Doador (Jo
4:17, 18). Cristo se manifesta como aquele que, de acordo com sua
natureza divina, é o Ser Onisciente. Deste modo responde também a
pergunta de Jo 4:12.
19. Senhor, disse-lhe a mulher, vejo que tu és profeta.
A mulher não nega as observações de Jesus a respeito de sua vida
imoral. Na realidade, ao chamá-lo profeta (que para ela queria dizer
alguém que adivinha segredos) admite sua culpabilidade. Pode-se
deduzir de Jo 4:29 que o resumo que este estrangeiro fez de sua turva
conduta a havia comovido indescritivelmente. Embora não visse que Ele
fosse o Messias, este conhecimento tão penetrante (“disse-me tudo o que
tenho feito”) a leva a pensar no Messias que há de vir, que tudo saberá e
declarará.
20. A mulher continua: Nossos pais adoravam neste monte; vós,
entretanto, dizeis que 95 em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar.
Alguns comentaristas veem nestas palavras a pergunta (implícita)
de uma pessoa que busca informação sobre um assunto em que está
realmente interessada. Outros as consideram como uma forma ardilosa
de desviar a conversação de um tema muito doloroso a outro de caráter
mais inócuo.
A nosso parecer devem-se levar em conta os seguintes pontos: (a)
Quando a Escritura não revela motivos internos, é melhor, em geral, não
fazer afirmações com um ar de certeza. Devemos ficar satisfeitos com a
probabilidade. (b) Uma resposta ou solução provável será a que faça
justiça ao requisito de uma descrição coerente do caráter. A esta
categoria pertence a teoria de que a mulher estava tratando de mudar o
tema com suas observações a respeito do verdadeiro lugar para adorar.
Este critério é digno de levar-se em conta visto que já tinha tentado fazer
o mesmo anteriormente (Jo 4:17). É completamente natural que os

95
A respeito de ὅτι veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 219
pecadores mudem de tema para evitar as dolorosas lembranças de sua
pecaminosa conduta. (c) No entanto, por que não se pode considerar
possível que as duas classes de comentaristas estejam certos, exceto,
como é natural, em seu rechaço definitivo da solução contribuída pelo
outro grupo? Não parece ser esta a solução mais plausível?
A nosso parecer, aqui vemos uma mulher que em sua ansiedade
para concluir um doloroso tema, faz uma pergunta sobre algo que ouviu
com frequência e sobre o qual chegou a interessar-se até certo ponto.
Além disso, o forasteiro do poço despertou este interesse, chegando a
impressioná-la até o mais profundo de seu ser. O Espírito Santo está
operando em seu coração. Embora não lhe agrada a ideia de seguir
falando a respeito de sua vida de pecado, já começa a sentir-se afligida
por seu estado. Mas, aonde irá, e o que fará? Deve adorar em Gerizim ou
em Jerusalém? (Consulte-se nossa explicação de Jo 4:4, 5, 9 sobre
Gerizim e a adoração daquele lugar.) “Nossos pais” (p. ex. Abraão e
Jacó, Gn. 12:7; 33:20) erigiram altares em Siquém e em Gerizim ou em
seus arredores. E o Pentateuco samaritano substitui Gerizim pelo Ebal
em Dt. 27:4. Por outro lado, os judeus tinham insistido muito em que
Jerusalém era o único lugar de adoração. 96 Implicitamente, a mulher
estava perguntando: Quem tem razão?
21. Jesus responde que o que importa não é onde se deve adorar, e
sim a atitude do coração e a mente, e a obediência à verdade de Deus
quanto ao objeto e o método de adoração. Não é o onde, e sim o como e
o que é o que realmente importa.
Disse-lhe Jesus: Mulher, podes crer-me. Isto o disse para acentuar o
caráter surpreendente da declaração que está prestes a fazer. A expressão
que a hora vem encontra-se também em Jo 4:34; 5:25, 28; 16:2, 25, 32.
O Senhor continua e diz: … quando nem neste monte, nem em Jerusalém
adorareis o Pai; predizendo assim que os escolhidos de Deus de toda
tribo e nação O servirão (cf. Sf. 2:11; Ml. 1:11). Esta cláusula pode-se

96
S. B. K., p. 437.
João (William Hendriksen) 220
parafrasear assim: “a hora vem quando nem neste monte exclusivamente
nem em Jerusalém exclusivamente adorarão ao Pai (através de Jesus
Cristo) da Igreja Universal”. Esta é a resposta quanto ao onde (que em si
já contém indícios do como e o quê).
22. Referindo-se ao quê, o Senhor prossegue: Vós (os samaritanos)
adorais o que não conheceis — isto é, um ser criado por sua imaginação,
por ter rejeitado os livros proféticos e poéticos do Antigo Testamento —
nós (os judeus) adoramos o que conhecemos — quer dizer, o Deus que
nos foi revelado em todo o Antigo Testamento —, porque a salvação
vem dos (ἐκ) judeus. Jesus fala da salvação concretamente; ou seja, da
libertação específica da culpa, a corrupção e o castigo do pecado, e a
soma total de todo dom espiritual que Deus concede ao Seu povo pelos
méritos da obra redentora de Seu Filho. Esta salvação procede dos
judeus, como se vê claramente em Sl. 147:19, 20; Is. 2:3; Am. 3:2; Mq.
4:1, 2; Rm. 3:1, 2; 9:3–5; 9:18.
23. Finalmente, em Jo 4:23, 24 Jesus declara o referente ao como e
ao quê. Como introdução a este grande tal, Jesus emprega uma expressão
que também encontra-se em Jo 5:25: Mas vem a hora e já chegou. Na
mente do Senhor, o estado já aperfeiçoado do futuro se acha prefigurado
no presente. O presente é o futuro em embrião. Assim, o reino dos céus é
tanto presente como futuro. Isto é também válido com relação à vida
eterna. É verdade que a adoração ao Pai em espírito e em verdade não
alcançará a perfeição até o grande dia da consumação de todas as coisas;
mas já agora começa a desvanecer-se a religião da antiga dispensação
que dava tanta importância a dias, lugares e outras observâncias
externas. Logo se rasgará o véu do templo de alto a baixo (Mt. 27:51), e,
com ele, cessará de existir o último resíduo da validez da adoração
cerimonial.
… em que os verdadeiros adoradores (isto é, os que merecem esse
nome) adorarão o Pai em espírito e em verdade. O verbo adorarão
(futuro de indicativo de προσκυνέω) no quarto Evangelho nunca
significa simplesmente respeitarão; veja-se também Jo 4:20, 21, 22, 24;
João (William Hendriksen) 221
9:38; 12:20. A frase final: em espírito e em verdade recebeu várias
interpretações. O contexto deve decidir. Jesus esteve pondo de relevo
duas coisas: a. uma adoração que mereça esse nome não se vê limitada
por considerações de tipo físico; p. ex., que se ore neste ou em outro
lugar (Jo 4:21); e b. que essa adoração opera em ao âmbito da verdade: o
conhecimento claro e definido de Deus que se deriva de Sua revelação
especial (Jo 4:22). Neste contexto ele adorará em espírito e em verdade
só pode significar, a nosso entender, o seguinte: a. tributar a Deus uma
homenagem em que participe todo o coração, e b. fazer isso em completa
harmonia com a verdade de Deus conforme está revelada em Sua
palavra. Esta adoração, portanto, não só será espiritual em lugar de
material, interna em lugar de externa, mas também estará dirigida ao
verdadeiro Deus que a Escritura apresenta e que se revelou na obra da
redenção. Para alguns, a atitude humilde e espiritual não significa grande
coisa. Para outros, a verdade ou pureza doutrinal não tem muita
importância. Ambos são parciais, estão desequilibrados, e, portanto,
errados. Os adoradores genuínos adoram em espírito e em verdade.
Porque são estes que o Pai procura para seus adoradores. Isso não
significa que existam pessoas que se têm feito adoradores elas mesmas, e
que, por assim dizer, o Pai as está buscando; antes, tem o sentido de que
o Pai continua buscando intensamente os Seus escolhidos para torná-los
Seus adoradores. Sua busca entranha salvação (cf. Lc. 19:10). Sempre é
Deus quem toma a iniciativa na obra de salvação; nunca o homem (veja-
se Jo 3:16; 6:37, 39, 44, 65; 15:16).
24. A necessidade de uma adoração realmente espiritual tem suas
raízes na essência de Deus: Deus é Espírito. No original (πνεῦμα ὁ θεός)
o sujeito, Deus, vai no final e leva artigo. O predicado, Espírito, é a
primeira palavra da oração e vai sem artigo. (Cf. nossas observações
sobre a construção gramatical da terceira cláusula de Jo 1:1.) O
predicado fica em primeiro lugar para fazer ressaltar esta verdade: Deus
é completamente espiritual em Sua essência! Não é um deus de pedra,
nem uma árvore, nem uma montanha para que se tenha que adorar neste
João (William Hendriksen) 222
ou aquele monte; p. ex., o Gerizim! É um Ser incorpóreo, pessoal e
independente. E por isso os que o adoram devem adorá-lo em espírito e
em verdade [NTLH]. Os verdadeiros adoradores não só adorarão o Pai
em Espírito e em verdade, mas que devem fazê-lo assim. Jesus põe seu
dizer devem em contraste com o da mulher (cf. Jo 4:24 com 4:20). (Veja-
se o comentário do versículo 23 para o significado de “adorar em espírito
e em verdade”.)
25. Os pensamentos da mulher se dirigem agora para a vinda do
Messias. O profundo conhecimento que o estranho tinha de sua vida (Jo
4:17, 18; cf. 4:29), e seu penetrante discernimento sobre a essência de
Deus e sobre a verdadeira adoração (Jo 4:21–24), fazem-na pensar em
umas tradições que, partindo de Dt. 18:15, 18, tinham chegado até o
povo de Samaria. Isto não significa que ela de modo algum reconhecesse
neste forasteiro o Messias. Naturalmente que não, mas o que havia dito a
levou a pensar no Messias. Por isso a resposta não nos surpreende: Eu
sei, respondeu a mulher, que há de vir o Messias, chamado Cristo (isto é
algo que João, o escritor, acrescenta levando em conta os seus leitores da
Ásia Menor); quando ele vier, nos anunciará todas as coisas.
O fato de que também entre os samaritanos existisse uma
expectação messiânica (observe-se que a mulher emprega inclusive a
palavra Messias como nome próprio, sem artigo) vê-se claramente nesta
passagem, em At. 8:9, e em Josefo, Antiguidades, XVIII, iV, 1. No
entanto, a esperança desta mulher era vaga quanto ao tempo de seu
cumprimento: “… quando ele vier”; pode ser amanhã, mas também pode
ser daqui a muitos anos. No entanto, o que é preciso fazer ressaltar é isto:
agora tem esperança! A mulher começa a desejar a vinda do Messias,
dAquele que lhe dirá o que é preciso fazer com sua pecaminosa
condição; mais ainda, Aquele que lhe declarará (cf. 16:13, 14, 15) todas
as coisas, não só a ela mas também a seu povo (“nos”).
26. E agora chega o momento supremo da autorrevelação
messiânica. Disse-lhe Jesus: Eu o sou, eu que falo contigo. Esta é a maior
de todas as surpresas! Mas esta é também a única solução a todos seus
João (William Hendriksen) 223
problemas, e a única resposta a todas as perguntas que brotou no coração
desta mulher.
Chegou esta mulher a aceitar a Jesus como Senhor? Sendo assim,
por que não se diz explicitamente? Para responder a estas perguntas
remetemos o leitor ao que foi dito em Jo 4:7–10.
Poderia fazer-se, também, outra pergunta: Como é que Jesus Se
revelou a ela como o Messias e não a todos os que tiveram contato com
Ele? A resposta é que pareceu bem ao Pai o ocultar esta grande realidade
aos sábios e entendidos, e o revelar a Seus filhos predestinados (Mt.
11:25, 26). Corria perigo Jesus por revelar que era o Messias? Devemos
levar em conta, neste sentido, que saibamos Jesus não operou nenhum
milagre em Samaria. Estes sinais de poder às vezes resultavam numa
perversão do conceito do ofício messiânico (cf. Jo 6:15). Por outro lado,
depois de uma estadia de tão somente dois dias (Jo 4:40) prosseguiu sua
viagem para a Galileia, de modo que não houve praticamente tempo para
que a declaração “Eu sou o Messias” provocasse oposição da parte das
autoridades e resultasse numa crise prematura.

Síntese de Jo 4:1–26
O Filho de Deus Se revela a círculos cada vez mais amplos: a
Samaria: conversação com a mulher samaritana.
Para evitar uma crise prematura Jesus saiu da Judeia e foi a
Galileia. Devia passar por Samaria. Quando chegou a Sicar, em tal
província, sentou-se, cansado e sedento junto ao poço ou fonte de Jacó.
Ali iniciou conservação com uma mulher samaritana que levava uma
vida imoral. Pediu-lhe de beber, falou-lhe da água viva que Ele podia lhe
dar, disse-lhe que esta água viva não só lhe apagaria a sede, mas também
que a suprimiria, revelou-lhe os segredos de sua vida de pecado,
mostrou-lhe o caráter da verdadeira adoração, e, por último, Se revelou a
ela como o Messias.
João (William Hendriksen) 224
O coração da mulher se rebelou contra a descoberta de seu estado
pecaminoso e tentou mudar de tema. Parece que no princípio a mulher
tem o controle da conversação e o Senhor permite este desvio. Mas sem
notar, a mulher vai sendo conduzida à meta que o próprio Senhor
estabeleceu.
É esta mulher, em sua intenção de fugir do verdadeiro problema,
um símbolo do pecador em seu estado natural? É a forma em que Cristo
Se dirige a ela um exemplo que devemos seguir ao tratar com os
perdidos? Esta seção nos mostra uma série progressiva de surpresas.
Jesus revela pouco a pouco quem é Ele; e, em perfeita harmonia com
esta revelação gradual, a confissão da mulher também avança, de modo
que neste forasteiro vê primeiro um judeu, logo um profeta, e por último
o Cristo.

JO 4:27–42

4:27. Neste ponto, chegaram os seus discípulos. Obsérvese: Nesse


ponto [NVI: Naquele momento]. Os discípulos tinham terminado seus
assuntos em Sicar e retornaram naturalmente ao poço. Jesus acaba de
fazer Sua grande declaração alcançando o ponto culminante de uma
forma natural e sem violência. Mas a providência divina é tal que
naquele preciso momento chegaram os discípulos — não antes, para não
interromper a conversação com a mulher, e não depois, para que os
discípulos não deixassem de presenciar este grande acontecimento (a
condescendência do Senhor com esta mulher samaritana), com todas as
suas consequências missionárias. Isto é uma manifestação e ilustração
gloriosa da operação da providência de Deus para a extensão de Seu
reino.
Os discípulos chegaram e se admiraram de que 97 estivesse falando
com uma mulher. Acaso não era um rabi? Como podia, pois, ignorar

97
A respeito de ὅτι, veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 225
aquela regra rabínica que dizia: “Ninguém fale com uma mulher na rua,
não, nem sequer com sua própria mulher”. Os discípulos estavam
recebendo uma lição sobre a verdadeira emancipação da mulher. Embora
era-lhes muitíssimo estranho o que viam e ouviam, sua reverência para o
Mestre era tão grande que todavia, nenhum lhe disse: Que perguntas? A
resposta, de haver-se dado, teria sido: Que me dê água. Nem tampouco
lhe perguntaram: Por que falas com ela? Pois a resposta teria sido: Para
lhe dar água viva.
28. Quanto à mulher, deixou o seu cântaro, foi à cidade e disse
àqueles homens. As maravilhosas novas que a mulher acabava de receber
(e que tinha que dizer a outros), e a chegada dos discípulos,
determinaram que ela retornasse à cidade. O cântaro o deixou no poço.
Com frequência se interpreta isto como se queria dizer que, nervosa por
estranhos eventos que tinham ocorrido, esqueceu-se do cântaro ao partir
precipitadamente a dar as notícias a todos. Para muitos o incidente do
cântaro desta mulher é como segue: a. A mulher chega ao poço com seu
cântaro para tirar água. Antes de tirá-la, um fatigado viajante — sabemos
que era Jesus — lhe pede de beber. b. A conversação continua, e ela se
interessa tanto que não se lembra de encher o cântaro. c. Ao ouvir a
grande declaração do forasteiro, parte correndo, esquecendo o cântaro.
No entanto a seguinte construção é mais natural, e, também, está
mais de acordo com a tradução correta da cláusula que se encontra entre
parênteses do versículo 9:
a. A mulher chega ao poço com seu cântaro, para tirar água. Tira a
água, enchendo assim seu cântaro. Um desconhecido sentado junto ao
poço, a quem ela reconhece como um judeu, ao ver a vasilha cheia,
pede-lhe de beber.
b. Sabendo que os judeus não têm costume de beber dos mesmos
copos que os samaritanos, não lhe oferece imediatamente o que lhe pede
mas sim solicita que lhe explique sua estranha petição. A seguir se
desenvolve uma conversação muito interessante e reveladora.
João (William Hendriksen) 226
c. Depois de ouvir a grande declaração do forasteiro, e estando além
disso completamente convencida de que a verdadeira adoração é
completamente de natureza espiritual, e que por conseguinte não existe
nenhum impedimento fundamental para que judeus e samaritanos bebam
dos mesmos copos, a mulher deixa a propósito o cântaro junto ao poço
para que Jesus beba e para que veja que compreendeu a lição sobre a
natureza da verdadeira religião. Mais tarde, depois de ter conduzido uma
grande multidão de gente ao poço, recuperará o cântaro.
Devemos lembrar, com relação a isto, que Jo 4:28 não diz esqueceu
(ἐπελήσατο cf. Fp. 3:13), e sim deixou (ἀφῆκεν, aoristo primeiro ativo de
indicativo de ἀφίημι) seu cântaro. Um pouco antes, neste mesmo
capítulo (Jo 4:3), usou-se exatamente a mesma forma deste verbo: o
Senhor … deixou (saiu de) Judeia (ὁ κύριος … ἀφῆκεν τὴν Ιουδαίαν).
Não se esqueceu da Judeia mas que se propôs deixá-la (sair dela). E aqui
ocorre o mesmo: a mulher não se esqueceu do cântaro, e sim o deixou
deliberadamente para que Jesus fizesse uso dele.
29. Em Sicar, a mulher reuniu uma grande multidão e exclamou:
Vinde comigo e vede um homem que me disse tudo quanto tenho feito.
Aqui revela a mesma sabedoria de Filipe ao falar com Natanael (Jo
1:46). Embora não temos razão para duvidar de que em seu coração já
cria que Jesus era o Cristo, a forma de fazer a pergunta é tal que as
pessoas devem responder-se a si mesmos: Será este, porventura, o
Cristo?!
30. Saíram, pois, da cidade e vieram ter com ele. A multidão saiu
imediatamente (aoristo) e aqui são descritos no ato de vir a Jesus
(imperfeito). No versículo 35 Jesus diz a Seus discípulos que levantem
os olhos e olhem para essa multidão que se aproxima do poço. No
versículo 40 se pressupõe que já chegaram.
31. Nesse ínterim, os discípulos insistiam com ele, dizendo: Rabi,
come! [NKJV] O assombro dos discípulos foi por fim vencido por sua
sincera preocupação pelas necessidades materiais de Jesus. Assim,
enquanto isso — quer dizer, da partida da mulher até a chegada dos
João (William Hendriksen) 227
samaritanos — Seus discípulos Lhe suplicavam sem cessar que comesse,
dizendo: “Rabi, come”. (Sobre o vocábulo Rabi, veja-se Jo 1:38, nota
44). Segundo estes homens era hora de comer. Além disso, Jesus devia
ter fome. Portanto, que coma.
32. Mas ele lhes disse: Uma comida tenho para comer, que vós não
conheceis. No original, a palavra traduzida para comida no versículo 32 é
βρῶσις; conquanto no versículo 34 é βρῶμα. Parece que João usa estes
dois termos com muito pouca diferença de significado. O primeiro deles,
em seu sentido original, significa comida ou viandas (como Paulo o
emprega em 1Co. 8:4: “No tocante à comida sacrificada a ídolos… ”); e
daí se converte em sinônimo de alimento, e por isso dizemos: uma boa
comida. O segundo termo significa alimentos, víveres, qualquer coisa
para comer, e também nesse sentido carne (viandas). Cf. Paulo em 1Co.
6:13; “As viandas para o ventre …”
33. No versículo 34 o próprio Jesus explica o caráter desta comida.
É um alimento espiritual. Como os discípulos não tinham estado
presentes durante a conversação com a mulher, não tinham nenhuma
ideia desta misteriosa comida a que o Senhor se referia. Como tantas
vezes ocorre neste Evangelho — veja-se Jo 2:19 — os discípulos, bem
como a mulher samaritana (Jo 4:11, 15), interpretam suas palavras
literalmente. Aqui os vemos: Diziam, então, os discípulos uns aos outros:
Ter-lhe-ia, porventura, alguém trazido o que comer? Não podiam crer
que em terra de samaritanos alguém tivesse dado de comer a Jesus!
34. Disse-lhes Jesus: A minha comida — a que me dá satisfação e na
qual se deleita minha alma — consiste em fazer 98 a vontade daquele que
me enviou — quer dizer, do Pai (Jo 5:36) (veja-se também Jo 3:34) —, e
realizar a sua obra. Isto é, conduzir esta obra à sua meta predestinada;
cumpri-la e concluí-la. Na noite da Última Ceia, poucas horas antes de
morrer na cruz, Jesus usando o particípio do mesmo verbo, disse: “Eu te
glorifiquei na terra, tendo terminado (τελειώσας) a obra que me deste

98
A respeito de ἵνα, veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 228
para fazer” (Jo 17:4). A natureza desta obra é indicada em Jo 17:4, 6. O
verbo que se usa em Jo 19:28, 30, quando Jesus inclinou a cabeça e
entregou o espírito, dizendo: “Está consumado!”, (τετέλεσται) deriva da
mesma raiz.
35. Não dizeis vós que ainda há quatro meses até à ceifa? Os
discípulos diziam isso. Nesta região a ceifa era feita em abril (ou
princípios de maio). Agora era dezembro (ou princípios de janeiro).
Certamente isso não era um refrão para indicar o intervalo entre a
semeadura e a colheita. Além de que quatro meses seria um período
incorreto (pois o intervalo é na realidade maior), e de que não se
encontrou em nenhum sítio tal refrão, nem nada que se assemelhe a isso,
o advérbio ainda não encaixaria. Num provérbio tudo o que se espera é
simplesmente: “Há quatro meses entre a semeadura e a colheita”, ou
simplesmente: “Faltam quatro meses para a ceifa”, mas não: “Ainda
faltam quatro meses para que chegue a ceifa”. As palavras que servem de
introdução a esta observação cronológica — “Não dizeis vós?” — não
provam nada em nenhum sentido. Os discípulos tinham estado
observando o verdor que tinha brotado num mês nos campos e disseram:
“… ainda faltam quatro meses para que chegue a ceifa”.
Na mente de Jesus existe uma estreita relação — embora também
um contraste (consulte-se Jo 4:36, 37) — entre a ceifa material e a
espiritual. Nos versículos seguintes o Senhor usa esta relação como base
de Suas observações. Devemos levar em conta que nesta altura já se
podia ver claramente o numeroso grupo de samaritanos (Jo 4:30) que se
dirigia pelos campos para o poço. Apontando a esta ceifa de fé (Jo 4:39)
Jesus diz a seus discípulos: Eu, porém, vos digo: erguei os olhos e vede os
campos (θεάσασθε; veja-se em Jo 1:14 nota 33), pois 99 já branquejam
para a ceifa (Jo 4:35). Embora ainda faltem quatro meses para a ceifa dos
cereais, a colheita de almas já se pode começar a recolher agora. Quando
Jesus pede a Seus discípulos que considerem o espetáculo que formam

99
A respeito de ὅτι, veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 229
os samaritanos ao aproximar-se, e que os vejam como campos
preparados para ser segados, não quer dizer claramente que envia a Seus
discípulos para que recolham esta colheita? 100
36. A palavra já (ἤδη) pertence ao versículo 36 e não aos 35, onde
seria redundante.
O ceifeiro recebe desde já — não daqui a quatro meses como ocorre
com a ceifa material — a recompensa e entesoura o seu fruto para a vida
eterna, quer dizer, recolhe fruto destinado para vida eterna. (Sobre o
significado de vida eterna veja-se Jo 1:4 e 3:16.) E, dessarte, se alegram
tanto o semeador como o ceifeiro. Cristo, o semeador, e os discípulos, os
ceifeiros, alegram-se juntos. A profecia de Am. 9:13 cumpre-se:
“Eis que vêm dias, diz o SENHOR, em que o que lavra segue logo
ao que ceifa, e o que pisa as uvas, ao que lança a semente; os montes
destilarão mosto, e todos os outeiros se derreterão”.
37, 38. Por conseguinte, os discípulos, como ceifeiros, se alegrarão
na colheita espiritual que eles não plantaram. Porque a regra no reino
espiritual é que o semeador e o ceifeiro sejam duas pessoas diferentes.
Em consequência, Jesus diz:
37. Pois, no caso, é verdadeiro o ditado: 101 — e constitui uma
surpreendente ilustração. No campo do natural, Um é o semeador, e outro
é o ceifeiro, é um provérbio que com frequência corresponde à realidade;
p. ex., um homem pode segar onde não semeou (Dt. 6:11; Js. 24:13), ou
pode ser que um semeador nunca experimente a alegria de segar o que
plantou (Dt. 28:30; Jó 31:8; Mq. 6:15): algum outro pode fazer a ceifa.
Mas no campo espiritual o normal é que um homem segue onde outro
semeou. Cada trabalhador do reino é ao mesmo tempo ceifeiro (pelo que
outros semearam) e semeador (da semente que produzirá uma colheita
que outros segarão). Por isso, tanto o semeador como o ceifeiro se

100
Note-se uma relação similar entre Mt. 9:37, 38 e 10:1. Aqui Jesus diz aos discípulos que a colheita
é abundante e os trabalhadores poucos. Incita-os a orar ao Senhor da colheita para que enviei
trabalhadores à sua seara. Logo os chama e os envia a colher.
101
A respeito de ὅτι, veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 230
alegram com este plano divino: sempre haverá uma colheita para
recolher.
Eu vos enviei para ceifar, diz Jesus. Pode-se perguntar: A que
encargo faz referência esta frase? Não se pode referir ao que se relata em
Mc. 3:13–19, nem ao conteúdo de Mc. 6:6–13 (cf. Mt. 9:35–11:1), visto
que os eventos que ali se descrevem ainda não tinham ocorrido. Por
outro lado, nestas passagens os discípulos recebem o encargo de semear
e não de recolher. É também duvidoso que o Senhor estivesse pensando
em Jo. 4:2, que se refere à obra dos discípulos na Judeia. Em nosso
parecer está muito mais em harmonia com o presente contexto a hipótese
de que Jesus fazia alusão à comissão que tão claramente se implica em
Jo. 4:35. (Veja-se o comentário de Jn.4:35.) Eu vos enviei para segar o
que não semeastes; outros trabalharam, e vós entrastes no seu trabalho.
Precisamente aqui em Samaria, o Senhor acabava de encarregar agora
aos seus discípulos que segassem aquilo no que não tinham trabalhado.
Outros tinham trabalhado entre os samaritanos, e agora os discípulos
recebem o encargo de entrar em (quer dizer, recolher os frutos de) o
trabalho. Mas, quais eram estes outros que tinham lavrado (trabalhado
com muito esforço)? A este respeito muitos citam Moisés, os profetas do
Antigo Testamento, João Batista, etc. Mas estaria mais em harmonia
com os fatos históricos e com o contexto imediato inferir que o Senhor
aqui Se refere a Si mesmo — pense-se na obra de amor que Ele tinha
levado a cabo no poço, como se relata em Jo. 4:1–26 — e à mulher
samaritana, cujo trabalho preparatório é narrado em Jo. 4:29, 39. Tanto
Jesus como a mulher samaritana tinham estado trabalhando entre estes
samaritanos: Jesus, indiretamente, através da mulher samaritana; esta,
por sua vez, diretamente, entre seus vizinhos. E os discípulos acabavam
de entrar nesta obra.
39. Agora se continua a história começada em Jo 4:28, 29. Muitos
samaritanos daquela cidade creram nele, em virtude do testemunho da
mulher, que anunciara: Ele me disse tudo quanto tenho feito. Quer dizer,
João (William Hendriksen) 231
ficaram profundamente impressionados pelos poderes misteriosos de Um
que era capaz de revelar o passado de uma pessoa.
40. Além disso, mostraram-se amistosos com Jesus, não hostis. Na
realidade, tinham tanta vontade de conhecer pessoalmente a este
forasteiro e de vê-Lo com seus próprios olhos, que: Vindo, pois, os
samaritanos ter com Jesus, pediam-lhe que permanecesse com eles,
mostrando-se muito hospitaleiros.
Jesus não evangelizou a província de Samaria. De acordo com a
vontade de Seu Pai celestial (Jo 4:4) e ficou ali dois dias somente e
limitou Sua obra a um pequeno povo. Por conseguinte não há nada neste
relato que contradiga à ordem dada aos discípulos em Mt. 10:5. E aquela
ordem, tenha-se em mente, era de caráter completamente temporal.
Ficou derrogada e substituída pela grande comissão (Mt. 28:18–20).
Tempo mais tarde seria desenvolvido um frutífero trabalho tanto na
cidade como na província de Samaria (At. 8).
41. Muitos outros creram nele, por causa da sua palavra. A atitude
dos samaritanos que foram ao poço contrasta profundamente com a de
outros aldeãos samaritanos que mais tarde se negaram a recebê-Lo
porque ia a caminho a Jerusalém (Lc. 9:51–56). Não obstante, não temos
que supor que a fé de toda esta gente que saiu de Sicar para ver Jesus era
fé salvadora. Em muitos provavelmente ficou ao nível de Jo 2:23.
(Consulte-se Jo. 2:23). Em outros, podemos crer com segurança, elevou-
se ao nível mais alto uma vez que ouviram a palavra de Jesus. Além
disso, o número dos que creram nEle por causa de Sua palavra foi muito
maior que o número dos que creram como resultado do testemunho desta
mulher.
42. E diziam à mulher. Todos aqueles crentes se dirigem à mulher
com estas palavras: Já agora não é pelo que disseste que nós cremos; mas
porque nós mesmos temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o
Salvador do mundo. Observe-se:
(1) A declaração (ἡ λαλιά) da mulher se contrasta aqui (Jo 4:42)
com a palavra (ὁ λόγος, Jo. 4:41) de Cristo. No entanto, em Jo. 4:39, o
João (William Hendriksen) 232
testemunho da mulher (para μαρτυρία e μαρτυρέω veja-se Jn.1:7) é
chamada palavra (λόγος) dela.
(2) O que estes samaritanos dizem supõe um princípio que tem
validez para todas as idades: o contato pessoal com Cristo é necessário
para tornar completa a fé.
(3) Os samaritanos chamaram Jesus o Salvador do mundo”. 102 O
Senhor havia dito à mulher samaritana que a salvação vem dos judeus
(Jo. 4:22). Durante Sua breve estadia com eles fez ressaltar, no entanto,
que esta salvação era para o mundo. De fato, esta gloriosa verdade já se
acha implicitamente em Jo. 4:21, 23. Estudem-se as seguintes passagens
para compreender o conceito de Salvador na forma em que é aplicado a
Jesus: Mt. 1:21; Lc. 2:11; At. 5:31; 13:23; Fp. 3:20; Ef. 5:23; Tt. 1:4;
2:13; 3:6; 2Tm. 1:10; 2Pe. 1:1, 11; 2:20; 3:2, 18. O título completo de
Salvador do mundo não só se encontra aqui em Jo. 4:42, mas também em
1Jo 4:14. Este mundo compõe-se dos escolhidos de cada nação: tanto do
campo dos pagãos (no presente contexto, do campo dos samaritanos)
como do campo dos judeus. (Veja-se Jo 1:10, nota 26, para os diversos
significados do termo mundo no quarto Evangelho.)
Jesus, como Salvador do mundo, com base em e por meio de Seu
infinito sacrifício, tira a culpa do pecado, a corrupção e o castigo, e
derrama sobre os corações e as vidas dos que assim favorecem todos os
frutos da obra do Espírito Santo.

Síntese de Jo 4:27–42
O Filho de Deus Se revela a círculos cada vez mais amplos; a
Samaria: ministério entre os habitantes de Sicar.
Quando, naquele momento providencial, os discípulos retornaram
de Sicar, depois de ter comprado as provisões, surpreenderam-se
grandemente ao ver o Senhor falando com uma mulher. Assim,

102
Os romanos chamavam seus imperadores Salvador do mundo. Veja-se A. Deissman, Light from the
Ancient East, Nova York, 1922, pp. 364, 365.
João (William Hendriksen) 233
silenciosamente e sem ostentação, Jesus dá a estes homens uma lição
sobre a verdadeira emancipação espiritual da mulher. Sem mudar
nenhuma ordenança da criação referente ao lugar adequado da mulher, o
Senhor indica claramente que diante de Deus a alma de uma mulher não
é menos preciosa que a de um homem.
Quando chegaram os discípulos, e Jesus havia chegado à cúspide de
sua autorrevelação, a mulher parte correndo à cidade para anunciar a
seus vizinhos as grandes novas. Ao ir-se, deixa deliberadamente o
cântaro no poço para que Jesus acalme Sua sede. Acaso não havia lhe
dito claramente o Senhor que a verdadeira adoração é essencialmente de
natureza espiritual, e que é igual para toda pessoa, quer judeu ou
samaritano? Por que, então, ia um judeu vacilar em beber de um
recipiente samaritano?
Ao chegar a Sicar a mulher conta os acontecimentos e desperta a
curiosidade de seus vizinhos lhes dizendo: “Vinde comigo e vede um
homem que me disse tudo quanto tenho feito. Será este, porventura, o
Cristo?”
Na ausência da mulher os discípulos, reunidos junto ao poço com
seu Mestre, chegam a compreender que a necessidade que o Senhor
poderia ter de comida material é ultrapassada pela intensa satisfação que
experimentou ao tirar esta mulher das trevas à luz, cumprindo assim a
vontade dAquele que dos céus O enviou. Ao se aproximarem os
samaritanos, Jesus exorta os Seus discípulos a considerarem este grupo
como uma colheita espiritual. A semente foi semeada fazia tão somente
uns momentos — primeiro Jesus no coração da mulher, e logo ela nos
corações de seu povo —, e agora o momento da colheita já tinha
chegado. Quão diferente era no campo natural onde ainda faltavam
quatro meses para a ceifa! E que maravilhoso que os discípulos,
considerados como ceifeiros, tivessem o privilégio de recolher o que não
tinham semeado!
Ao aceitar a Jesus pela fé, os samaritanos formam um
surpreendente e agradável contraste com a maioria dos judeus. Se for
João (William Hendriksen) 234
considerado todo o relato (Jo 4:1–42) em conjunto, pode-se apreciar um
claro progresso na fé; de maneira que primeiro se olha a Jesus como
judeu, logo como profeta, depois como Messias, e finalmente como
Salvador do mundo.
A onisciência que o Senhor revela o distingue como o que
realmente é, o Cristo, o Filho de Deus. Por isso, mais uma vez, o escritor
do quarto Evangelho consegue Seu propósito (Jo 20:30).

JO 4:43–54

4:43–45. Passados dois dias, partiu dali para a Galileia. Porque o


mesmo Jesus testemunhou que um profeta não tem honras na sua própria
terra. Assim, quando chegou à Galiléia, os galileus o receberam, porque
viram todas as coisas que ele fizera em Jerusalém, por ocasião da festa, à
qual eles também tinham comparecido.
Este parágrafo apresenta um problema. Somos informados que
Jesus voltou para a Galileia porque “um profeta não tem honras na sua
própria terra”. O que significa isto? Da lista de explicações que se
ofereceram, selecionamos as seguintes:
(1) Alguns afirmam que Jesus persiste em seu plano de ir a Galileia
apesar de que sabe que um profeta não tem honra em sua própria terra,
(quer dizer, na Galileia). 103
Esta explicação não se pode aceitar. A passagem afirma claramente
que Jesus foi a Galileia porque sabia que um profeta não tinha honra em
sua própria terra; não apesar deste conhecimento, mas sim por causa
dele. A palavra que conecta o versículo 43 com o 44 é a partícula porque
(γάρ) em seu sentido causal.

103
Cf. F. W. Grosheide, Kommentaar op het Nieuwe Testament, Johannes, Amsterdam, 1950, vol. I,
p. 324. Sustenta que o sentido da passagem é que Jesus não leva em conta o fato, que conhecia bem,
de que o profeta não recebia honra em sua terra.
João (William Hendriksen) 235
(2) Outros dizem que Jesus vai de Sicar a Galileia porque sabe que
em Sua terra — isto é, a terra onde nasceu, Judeia — Seu trabalho tinha
sido estéril. 104
Também rejeitamos esta solução, pela simples razão de que em
outras partes dos Evangelhos a expressão sua terra designa claramente a
Galileia, nunca a Judeia. Veja-se Mt. 13:54, 57; Mc. 6:1, 4; Lc. 4:16, 24.
Nestas passagens achamos a mesma declaração, mas o país a que se faz
referência é o mesmo em que se encontra Nazaré. Embora Jesus tenha
nascido em Belém da Judeia, seus pais habitavam na Galileia, e foi onde
foi criado. Por conseguinte, Galileia era Sua terra.
(3) Por outro lado há aqueles que dizem: Jesus vai a Galileia, mas
não até haver ganho certo apreço em Jerusalém, pois sabia que um
profeta não tem honra em sua terra (quer dizer, na Galileia). Uma vez
alcançado este apreço na Judeia, crê que Galileia está disposta a honrá-
lo. 105
Diz-se que o versículo 45 demonstra que esta teoria é correta. Nele
lemos:
“Assim, quando chegou à Galileia, os galileus o receberam, porque
viram todas as coisas que ele fizera em Jerusalém, por ocasião da festa, à
qual eles também tinham comparecido”.
Deve-se admitir que há fatores que favorecem esta explicação: a.
Faz justiça ao significado da partícula porque (relação causal). b.
Interpreta corretamente o termo, Sua terra como referência a Galileia, e
c. leva em conta, até certo ponto, o contexto.
No entanto, tampouco podemos aceitar esta teoria. Nossas objeções
são as seguintes: a. Subentende muitas coisas no texto. Dizer, “Jesus saiu
… e foi a Galileia, porque ele mesmo deu testemunho de que o profeta
não tem honra em sua terra”, não é o mesmo que dizer: “Jesus não foi a
Galileia até que adquiriu fama em Jerusalém, pois Ele mesmo testificou

104
Assim C. Bouma, Het Evangelie naar Johannes, em Korte Verklaring, Kampen, 1927, p. 69.
105
Cf. R. C. H. Lenski, The Interpretation of John, Columbus, Ohio, 1931, pp. 332–335.
João (William Hendriksen) 236
que um profeta não tem honra em sua terra”. No primeiro caso (tal como
diz o texto) dá-se uma razão para mostrar por que Jesus foi a Galileia.
No segundo caso dá-se uma razão para indicar por que trabalhou em
Jerusalém antes de ir a Galileia. Estas proposições são diferentes, e
nunca bastará supor que o leitor já conhece o conteúdo do versículo 45
quando ainda não leu o versículo 44. b. Este ponto de vista supõe que o
texto quer dizer que Jesus recebeu honra na Galileia. Mas em outras
passagens em que aparece o mesmo tal, ensina-se justamente o contrário
(Mt. 13:54–58; Mc. 6:1–6; Lc. 4:16–30: em lugar de honrá-Lo a
multidão tentou matá-lo). Além disso, quando Jo 4:45 afirma que os
galileus O receberam bem, porque haviam visto Seus milagres, não
significa que O honrassem (Jo 4:48 ensina o contrário). O entusiasmo
externo, que com frequência procede de motivos egoístas, não é honra.
(4) Resta ainda outra explicação: Jesus foi a Galileia porque ali
não receberia uma honra tal que O levasse a um choque imediato com
os fariseus, criando assim uma crise prematura.106
Aceitamos esta explicação pelas seguintes razões:
a. Esta é a mais simples e natural de todas. Não só faz plena justiça
à expressão: sua própria terra (interpretando-o à luz de passagens
paralelas nos outros Evangelhos) e à relação causal expressa pela
partícula porque, e sim, além disso, aceita os versículos 43 e 44 em seu
verdadeiro valor, tal como estão, sem tentar completá-los com inserções
mentais ou construções históricas preconcebidas. O conteúdo dos dois
versículos pode-se analisar brevemente deste modo: Dois dias depois,
Jesus saiu de Sicar. Então foi a Galileia, sua terra. Isto o fez porque sabia
que um profeta não tem honra em sua própria terra, como Ele mesmo
também tinha testificado.
b. Está em completa harmonia com o contexto precedente.
Devemos levar em conta neste sentido que os versículos 43 e 44 reatam
o pensamento expresso nos versículos 1–3. O relato da conversação de

106
Cf. M. Dods, The Gospel of St. John en The Expositor’s Greek Testament, pp. 732, 733.
João (William Hendriksen) 237
Cristo com a mulher samaritana e de Sua obra entre os samaritanos (Jo
4:4–42) é, na realidade, um interlúdio. A natureza lógica da explicação
aparecerá quando Jo 4:1–3 e 4:44 forem lidos consecutivamente:
“Quando, pois, o Senhor entendeu que os fariseus tinham ouvido
dizer: ‘Jesus faz e batiza mais discípulos que João’ (embora Jesus não
batizava, e sim seus discípulos), saiu da Judeia, e foi embora outra vez a
Galileia.… Porque o próprio Jesus deu testemunho, ‘um profeta não tem
honra em sua própria terra’ ”.
c. Está em perfeita harmonia com o contexto posterior. Embora,
naturalmente, os galileus se alegraram de ter entre eles a um operador de
milagres (Jo 4:45), nem por isso O honraram (Jo 4:48). Pouco a pouco
começaram a queixar-se dEle (Jo 6:41); e por fim O abandonaram em
grande número (Jo 6:66).
46. Dirigiu-se, de novo, a Caná da Galileia.
O Grande Ministério na Galileia começa neste momento.
Compreende o período entre dezembro do ano 27 e abril do ano 29 de
nossa era, uns dezesseis meses em conjunto. Depois da morte de
Herodes, o Grande no ano 4 antes de Jesus Cristo, seu reino se dividiu da
seguinte maneira:
Arquelau veio a ser governador da Judeia, Samaria e parte da
Idumeia, exercendo suas funções desde ano 4 a.C. até o ano 6 d.C.
Quando foi deposto, seu território passou às mãos de procuradores que
se sucediam uns aos outros. Pôncio Pilatos, aquele que ordenou a
crucificação de Cristo, foi um deles. Governou do ano 26 ao 36 de nossa
era.
Filipe tinha sido feito tetrarca da região este e nordeste do Mar da
Galileia, tetrarquia a que o evangelista Lucas dá o nome de “Itureia e
Traconites” (Lc. 3:1).
A Herodes Antipas foi atribuído Galileia e Pereia, sobre os quais
governou como tetrarca desde ano 4 a.C. até o 39 d.C. Era irmão de
Arquelau.
João (William Hendriksen) 238
Por conseguinte, durante o Grande Ministério na Galileia Jesus
ministrou nos domínios de Herodes Antipas. Este é o Herodes dos
Evangelhos (exceto Mateus 2 e Lucas 1).
Uma grande parte dos evangelhos de Mateus e Marcos está
dedicada a este Grande Ministério na Galileia; e também uma porção
considerável do Evangelho de Lucas (Mt. 4:12–15:20; Mc. 1:14–7:23;
Lc. 4:14–9:17).
Visto que o propósito do Evangelho de João consiste em selecionar
somente aqueles eventos da vida de nosso Senhor em que sua deidade
aparece com uma evidência surpreendente (veja-se II da Introdução), e
visto que seu escritor dá por sentado que seus leitores já conhecem o
conteúdo dos outros três Evangelhos (veja-se II da Introdução), não é de
surpreender que o relato do Grande Ministério na Galileia se reduza aqui
a dois acontecimentos: a cura do filho de um oficial do rei (Jo 4:46–54) e
a multiplicação dos pães (capítulo 6). O milagre que se narra no capítulo
5, embora tenha ocorrido durante o Grande Ministério na Galileia, na
realidade teve lugar na Judeia.
O principal, no entanto, é: Jesus, o Cristo, o Filho de Deus, revela-
Se a círculos cada vez mais amplos. Agora chegou a Caná da Galileia.
Aqui opera um milagre em que se exibem Sua majestade e poder divinos
de uma forma extraordinária.
Onde da água fizera vinho. Este Caná para onde Jesus foi, era o
mesmo onde tinha realizado seu primeiro sinal (veja-se nosso comentário
de Jo 2:1–11). Aqui vivia Natanael (Jo 21:2). A notícia da chegada do
Senhor a Caná chegou até Cafarnaum, a qual se encontra a uns quatro
quilômetros ao sudoeste do ponto em que o Jordão, que vem do norte,
entra no Mar da Galileia. Esta era a cidade de Tiago e João, os filhos de
Zebedeu e Salomé. Era um centro de arrecadação de impostos, e
provavelmente sede de um posto militar romano. Consulte-se também Jo
2:12.
Ora, havia um oficial do rei, cujo filho estava doente em Cafarnaum.
Aparece neste momento um oficial real (τις βασιλικός). Provavelmente
João (William Hendriksen) 239
era um dos cortesãos do tetrarca Herodes Antipas. Não sabemos seu
nome. Por isso, o dizer que se trata de Cuza (“intendente” de Herodes,
Lc. 8:3) ou de Manaém (At. 13:1) é pura especulação. Parece ser que
este cortesão era judeu, pois em Jo 4:48 aparece incluído na multidão
judia (cf. Jo 2:23), que tinha certo interesse por Jesus, principalmente
como operador de milagres. É possível, inclusive que este homem
tivesse estado na Páscoa em Jerusalém e naquele tempo tivesse
presenciado algum de Seus milagres. De todas formas reconhecia que
aquele novo profeta tinha poder para curar; porque a fama de Jesus já
tinha tido tempo suficiente para espalhar-se por toda Galileia.
O relato nos diz que este homem tinha um filho que estava doente.
O fato de que este filho fosse o único da família (o que alguns deduzem
da expressão ὁ υἱός en Jo 4:46, 50) é algo que não se pode provar. Nem
sequer é absolutamente certo que este filho fosse uma criança pequena.
O quarto Evangelho usa o termo παιδίον no sentido de um pequeno (Jo
16:21), e também como uma expressão de afeto ou familiaridade, como
nosso “filhinho” (Jo 21:5).
Sabemos, no entanto, que a enfermidade deste filho era muito
grave. Estava prestes a morrer (Jo 4:47, 49).
47. Tendo ouvido dizer que Jesus viera da Judéia para a Galiléia, foi
ter com ele e lhe rogou que descesse para curar seu filho, que estava à
morte.
O pai do rapaz doente, ao fazer a viagem de Cafarnaum a Caná
cometeu pelo menos dois erros: (1) Deu por sentado que para fazer uma
cura Jesus deveria ir de Caná a Cafarnaum e chegar até a cama do rapaz.
Neste sentido não se pode compará-lo favoravelmente com aquele
centurião cujo servo estava doente (Lc. 7:1–10), e com o qual, no
entanto, às vezes se confundiu. (2) Estava também convencido de que o
poder de Cristo não alcançava para além da morte. Jesus devia ir
imediatamente pois o rapaz estava prestes a morrer. Se havia algum
atraso e o rapaz morresse antes de que Aquele que cura chegasse, tudo
estaria perdido. Tal era sua “fé”.
João (William Hendriksen) 240
Unido a estes dois erros existe um terceiro que se indica no
parágrafo seguinte:
48–50. Então, Jesus lhe disse: Se, porventura, não virdes sinais e
prodígios, de modo nenhum crereis. Jesus lamenta que este homem, que
já tinha ouvido (e, talvez, visto) tanto de Cristo, estivesse ainda no
degrau mais baixo da fé. Sua confiança, e a de outros como ele, devia ser
constantemente alimentada por sinais e prodígios. Não crê na
personalidade divina de Cristo, nem tampouco em sua palavra, a não ser
que esta vá acompanhada de um milagre.
Quando Jesus falou de sinais e prodígios não se referia a duas
classes de obras sobrenaturais. Antes, trata-se de que a mesma obra é
sinal quando for considerada de um ângulo, e prodígio (τέρας) quando
for contemplada de outro. (Sobre o significado do termo “sinal, σημεῖον,
consulte-se Jo 2:1–11.) Um prodígio é algo surpreendente. Com este
termo se contempla a poderosa obra não como sinal, do ponto de vista da
luz que derrama sobre a pessoa e obra do Senhor, mas da perspectiva do
efeito que causa sobre os espectadores. Estes espectadores sempre
desejavam ver algo sensacional e emocionante! Por isso Jesus diz: “Se
não virdes sinais e prodígios não (ο_ μή) de modo nenhum crereis”.
Estas palavras de terna repreensão alcançaram o alvo. Como vemos
em Jo 4:50, o homem leva muito em conta esta sincera advertência e ao
mesmo tempo grave queixa. Mas ao mesmo tempo seu coração está
obcecado pelo estado de seu filho. Rogou-lhe o oficial, portanto, derrama
sua alma numa breve frase de obrigação: Senhor, desce, antes que meu
filho morra.
Jesus, que naquele mesmo momento estava curando o corpo do
rapaz e a alma do pai: Vai, disse-lhe Jesus; teu filho vive. Esta última
expressão não se deve rebaixar como se quisesse dizer: “… vai viver”. O
que indica é que mediante um ato onipotente realizado naquele
momento, o rapaz tinha ficado completamente restabelecido, e estava,
portanto, desfrutando de plena saúde e vigor.
João (William Hendriksen) 241
O homem, cuja fé até agora tinha descansado unicamente em
milagres avança a um estádio superior: creu na palavra de Jesus. Aceitou
a palavra até sem ver nenhuma obra. No dia seguinte (cf. Jo 4:52), o pai
provavelmente ao amanhecer, partiu a Cafarnaum.
51. Já ele descia, quando os seus servos lhe vieram ao encontro,
anunciando-lhe que107 o seu filho vivia. Em Cafarnaum, enquanto isso, os
criados se deram conta do repentino e surpreendente restabelecimento.
Cheios de alegria, não podem esperar a chegada do amo. Podemos ler
nas entrelinhas que naquela casa as relações entre dono e servos eram
ideais. Os criados saem ao encontro de seu senhor com as gratas novas, e
logo que o veem dão-lhe a reconfortante mensagem. A frase que muito
provavelmente 108 usaram deve ter sido quase idêntica a que o próprio
Jesus pronunciou: “o teu filho vive”. Observe-se: Jesus havia dito, o teu
filho (_ υ_ός σου); o pai havia dito, meu querido filho (τό παιδίον μου)
mas cf. Jo 4:47; agora os criados dizem: o seu filho.
52. A pergunta que o pai faz a seguir é, de fato, muito natural.
Então, indagou deles a que hora o seu filho se sentira melhor.
Informaram: Ontem, à hora sétima a febre o deixou. Mais uma vez nos
enfrentamos com o problema da medida do tempo no quarto Evangelho.
E também agora, como antes, o sistema do dia civil romano parece
proporcionar a explicação mais natural. Se “a sétima hora” significar
uma da tarde (segundo o sistema judaico) então teríamos que supor que o
oficial, depois de ouvir dos lábios de Jesus que seu filho estava curado,
decidiu ficar em Caná o resto do dia, não empreendendo a volta até a
manhã seguinte; ou que depois de andar uns poucos quilômetros, ficou
toda aquela tarde e a noite em alguma aldeia próxima, e logo continuou
seu caminho para ver o seu filho. Mas isto, certamente, está muito longe
de ser natural. A explicação que, apesar de tudo, dão os que são
partidários do sistema judaico de medir o tempo é esta: o pai atrasou
deliberadamente sua volta a Cafarnaum, sabendo que “aquele que crer
107
A respeito de ὅτι veja-se IV da Introdução.
108
Não podemos estar totalmente seguros, porque aqui estamos diante de um discurso indireto.
João (William Hendriksen) 242
não se apresse” (Is. 28:16). Mas, não o teria impulsionado o amor de pai
para com seu filho já curado, a seguir seu caminho imediatamente; e
muito mais até se for levado em conta que aplicando aqui o sistema
judaico teria havido tempo suficiente para chegar antes da meia-noite?
Temos que supor, então, que tanto o pai como os criados agiram com tal
tranquilidade? Mas se a cura se realizou às sete da tarde, segundo o
sistema do dia civil romano, podemos compreender que o pai não
chegasse a Cafarnaum senão até o dia seguinte. Até a distância entre
Caná e Cafarnaum é de só uns vinte e cinco quilômetros, uma grande
parte dela é terreno montanhoso, de forma que se necessitam umas sete
horas para percorrê-la. (Outros exemplos do uso do sistema do dia civil
romano para medir o tempo aparecem no comentário sobre Jo 1:39 e
4:6.)
53. Quando os criados responderam: “Ontem, à hora sétima a febre
o deixou”, seu senhor lembrou imediatamente a hora: Com isto,
reconheceu o pai ser aquela precisamente a hora em que Jesus lhe
dissera: Teu filho vive; e creu ele e toda a sua casa; quer dizer, todos os
que viviam naquela casa; talvez (além do pai) a mãe, os criados, o rapaz
curado e outras crianças, se havia alguém que já tivesse idade de
discernir. Naturalmente, não é necessário supor que havia outras
crianças. Por outro lado não há por que dar por sentado que este fosse o
único filho.
54. Foi este o segundo sinal que fez Jesus, depois de vir da Judeia
para a Galileia.
Depois de voltar da Judeia para a Galileia, este foi o segundo sinal
que o Senhor fez neste último lugar. Ambas ocorreram em Caná. Nos
dois manifestou o Senhor a Sua glória. Primeiro, ao transformar a água
em vinho, mostrou Seu controle absoluto sobre o universo físico. E
agora, por meio deste segundo sinal, faz ver que a distância não
representa um verdadeiro obstáculo para a manifestação de Seu amor e
poder. Por conseguinte, nos dois casos o Salvador Se revela como o
Filho de Deus (Jo 20:31). E, por último, o Senhor usou estes dois
João (William Hendriksen) 243
milagres (unidos a Suas palavras) para pôr fé nos corações de Seus
filhos. Depois do primeiro sinal os discípulos creram. Depois do
segunda, não só creu o oficial, mas também todos os de sua casa. Este é
o método normal no reino. Deus é o Deus da aliança. Sua promessa
consiste em abençoar os pais crentes e a sua semente (Gn. 17:7; Sl.
105:8–10; At. 2:39).

Síntese de Jo 4:43–54
O Filho de Deus Se revela a círculos cada vez mais amplos; a
Galileia: cura do filho de um nobre.
Depois de ter recolhido fruto para vida eterna em Samaria, Jesus
prossegue Sua viagem a Galileia. Desta vez não volta para a Judeia, onde
o rápido crescimento no número de Seus discípulos tendia a provocar
uma crise prematura (Jo 4:1–3), mas antes, segue para o norte, sabendo
que o perigo não é tão imediato na Galileia, sua própria terra, como na
Judeia: “um profeta não tem honra em sua própria terra”.
Tendo chegado a Caná — o lugar onde operou o Seu primeiro
milagre — um nobre judeu lhe rogou que fosse imediatamente a sua
casa. Parece ser que este homem era um cortesão no serviço do “rei”
Herodes Antipas, o qual era, na realidade, tetrarca (Lc. 3:1; 3:19; 9:7;
literalmente significa governador de uma quarta parte do reino; mais
tarde passou a significar governante de uma parte qualquer do país; e
logo, reizinho). O filho do nobre estava doente em Cafarnaum. O pai
suplicou urgentemente a Jesus que descesse a Cafarnaum para curar o
seu filho.
Jesus não só concedeu a cura física ao filho, mas também
comunicou cura espiritual ao pai, cuja fé se transformou do seguinte
modo:
(1) de uma mera crença no poder de Cristo para operar milagres (Jo
4:47, 48);
(2) à fé na palavra de Jesus (Jo 4:50); e finalmente
João (William Hendriksen) 244
(3) à fé na pessoa de Cristo, a cuja fé se uniu toda a sua casa.
Neste segundo sinal em Caná a glória de Cristo manifestou-Se de
uma forma muito singular. Houve ocasiões em que Jesus comunicou a
cura tocando no doente (Mc. 1:41), ou tomando-o pela mão (Mc. 1:31),
ou lhe dando uma ordem (Mc. 2:11). Mas aqui não há nada de tudo isso.
O Filho de Deus declara Sua vontade. Resultado? Instantaneamente o
poder curativo entra no corpo do rapaz, restabelecendo-o completamente
a uma distância de vinte e cinco quilômetros!
João (William Hendriksen) 245
JOÃO 5
JO 5:1–18

5:1. A frase [NVI]: Depois disto (μετ_ τα_τα, que aparece em Jo


3:22; 5:1, 14; 6:1; 7:1; 13:7; 19:38; e 21:1) não indica necessariamente
muito tempo depois (em Jo 19:38 não pode ter esse significado). No
entanto, a deve distinguir da expressão: depois disto (μετ_ το_το que se
acha em Jo 2:12; 11:7, 11; 19:28 e que sempre se refere a
acontecimentos que tiveram lugar pouco depois), por ser mais indefinida.
Limita-se a não dar nenhum indício referente à duração do período
transcorrido dos últimos eventos relatados.
Em consequência, não sabemos exatamente quando sucedeu o
milagre que nos ocupa neste capítulo. Sabemos que foi no tempo em que
havia uma festa dos judeus; mas também esta indicação é um tanto vaga.
A que festa se refere o escritor?
Ao considerar este problema pode ser de utilidade o quadro de
festividades judaicas que damos a seguir. Naturalmente os nomes dos
meses são apenas aproximados; quer dizer, não correspondem
exatamente aos do calendário religioso judaico. O período abrangido se
estende do batismo de Cristo até o derramamento do Espírito Santo.

MARÇO ABRIL MAIO OUTUBRO DEZEMBRO


Durante o ano 26 de nossa era
Dedicação
Durante o ano 27 de nossa era

Purim Páscoa Pentecostes Tabernáculos Dedicação


Jo 2:13, 23 cf. Jo 4:35
Durante o ano 28 de nossa era
Purim Páscoa Pentecostes Tabernáculos Dedicação
João (William Hendriksen) 246
Jo 5:1?

Durante o ano 29 de nossa era

Purim Páscoa Pentecostes Tabernáculos Dedicação


Jo 6:4 Jo 7:2, 37 Jo 10:22, 23

Durante o ano 30 de nossa era

Purim Páscoa Pentecostes


Jo 12:1; 13:1; 19:14 Atos 2:1

Ao observar este quadro vê-se imediatamente que a festa indicada


em Jo 5:1 não pode pertencer ao ano 26 d.C. nem tampouco ao ano 27
d.C., pois Jo 4:35 já se trasladou a dezembro do ano 27 d.C.
Há aqueles que apontaram que a Páscoa mencionada em Jo 6:4 é a
do ano 28 d.C., e que, por conseguinte, a festa de Jo 5:1 é a do Purim
daquele ano.
Contra este critério apresentamos as seguintes objeções:
(1) Depois de ter saído da Judeia pela razão exposta em Jo 4:1–3,
43, 44, Jesus não teria tornado àquela região tão cedo, a não ser para
assistir a uma das três festas de peregrinação.
(2) O Purim não era uma festa de peregrinação. Celebrava-se nas
sinagogas locais onde, no meio do regozijo geral, lia-se o livro de Ester.
(3) A Páscoa mencionada em Jo 6:4 leva-nos à conclusão do
Grande Ministério na Galileia. Se aquela Páscoa teve lugar no ano 28
d.C., todo este longo ministério, no qual sucederam tantas coisas, deveria
comprimir-se num período de quatro meses. E isto não pode ser.
Agora, se a festa de Jo 5:1 não era o Purim do ano 28 d.C., e se
(como claramente o indica o “depois disto” de Jo 6:1, TB) não pode ser a
Páscoa de Jo 6:4, temos que datar esta última no ano 29 d.C.
João (William Hendriksen) 247
Chegamos, portanto, à conclusão de que a festa de Jo 5:1, se era
uma das três festas judias de peregrinação, 109 teve que ter sido a Páscoa,
Pentecostes ou Tabernáculos do ano 28 d.C.
Destas três, o termo: festa dos judeus (Jo 5:1) usa-se em outras
partes do quarto Evangelho para designar a Páscoa (Jo 6:4) ou a festa dos
Tabernáculos (Jo 7:2). Além disso, em ambos os casos o original leva o
artigo determinado junto ao substantivo festa. Por conseguinte, a
omissão deste artigo aqui em Jo 5:1, segundo a melhor evidência textual,
não decide a questão em nenhum sentido.
Concluímos, em consequência, dando nossa opinião sobre esta
anônima festividade, dizendo que: a. era uma das três festas de
peregrinação; b. deve ser datada no ano 28 d.C.; e c. era, com toda
probabilidade, ou a Páscoa, ou Tabernáculos (sem descartar a
possibilidade de que fosse Pentecostes). Para apoiar a teoria de que se
tratava da Páscoa, apresentam-se, às vezes, dois argumentos mais: 1. a
tradição de Irineu o afirma, e 2. esta era a única festa a que os judeus
tinham a obrigação de assistir. No entanto, a evidência não é
completamente decisiva.
Lemos a seguir que Jesus assistiu à festa: e Jesus subiu para
Jerusalém. Em todo este capítulo não se diz nada a respeito de Seus
discípulos. Mas isto não prova que não O acompanhassem. É bem
possível que aqui, como em outros lugares (p. ex. em Jo 3:22, cf. Jo 4:2),
fosse todo o grupo, embora só se mencione o nome do líder. (Sobre a
expressão “subiu a Jerusalém” veja-se Jo 2:13.)
2. Ora, existe ali, junto à Porta das Ovelhas, um tanque, chamado
em hebraico Betesda, o qual tem cinco pavilhões.
Não longe da Porta das Ovelhas (a de São Estêvão?), assim
chamada provavelmente porque por ela passavam muitas ovelhas que se
levavam para sacrificar no próximo átrio do templo, havia um tanque.

109
É difícil crer que Jesus teria ido a Jerusalém neste tempo para assistir à uma das festividades
menores, como a da Oferta da Madeira ou inclusive a das Trombetas, embora também estes recebam o
apoio de alguns comentaristas.
João (William Hendriksen) 248
Popularmente, este tanque é conhecido pelo nome de Betesda (casa de
misericórdia), mas o de Betesda (aramaico: casa de oliveira?) tem mais
apoio textual.
Depois de muitas tentativas de identificar este tanque, seu sítio foi
finalmente estabelecido para satisfação da maioria dos eruditos. O
tanque (ou, na realidade, o depósito que o formava) foi posto a
descoberto no ano 1888 por ocasião da reparação da igreja da Sta. Ana,
na parte nordeste de Jerusalém. Em sua parede aparece um afresco muito
apagado em que se vê um anjo agitando as águas. Parece, pois, que a
igreja primitiva considerava que este tanque era Betesda. Nos tempos de
nosso Senhor tinha cinco pórticos ou colunatas cobertas onde podiam
descansar os doentes e proteger-se das inclemências do tempo. 110
3. Nestes (cinco pavilhões), jazia uma multidão de enfermos (de toda
classe, particularmente:) cegos, coxos, paralíticos; quer dizer murchos ou
paralisados (ξηρός, literalmente secos; daí, encolhidos pela enfermidade;
cf. Mc. 3:3; Lc. 6:6). Parece que o doente a quem Jesus curou era um
destes secos. É digno de levar-se em conta que no tanque não haviam só
entrevados e paralíticos esperando a cura, mas também cegos.
Recebeu alguma vez um cego a vista no tanque de Betesda, ou
antes, foi que o favor que o paralítico recebeu fez o cego pensar que
também podia haver cura para ele?
Depois de Jo 5:3, tanto a versão Almeida Atualizada como a
Tradução Brasileira dizem o seguinte: Versículo 4: “esperando que se
movesse a água. Porquanto um anjo descia em certo tempo, agitando-a;
e o primeiro que entrava no tanque, uma vez agitada a água, sarava de
qualquer doença que tivesse”.

110
Véase J. Jeremías, Die Wiederentdeckung von Bethesda, Gotinga, 1949. También W. H. A. B., p.
99 y Lámina XVII B.
João (William Hendriksen) 249
No entanto, nenhum dos melhores e mais antigos manuscritos
contêm estas palavras. 111 Mas, por outro lado, Tertuliano (por volta de
145–220 d.C.) já dá amostras de conhecer esta passagem; pois diz:
“Um anjo, com sua intervenção, agitava o tanque de Betsaida. Os
que estavam afligidos de alguma enfermidade o esperavam; porque
aquele que primeiro descia àquelas águas, depois de lavar-se cessava sua
doença” (Do Batismo V).
A seguir damos uma posição razoável sobre toda esta narração, e
em particular quanto às palavras que se omitem nos melhores
manuscritos antigos:
(1) Provavelmente seria muito mais difícil explicar como se
omitiram estas palavras dos melhores manuscritos se realmente eram
parte do texto original, que explicar em que forma se introduziram no
texto (p. ex., como glosa marginal dirigida a explicar a agitação da água,
mencionada em Jo 4:7, atribuindo-o à visita periódica de um anjo).
(2) Baseando-nos no texto que encontramos nos melhores
manuscritos (quer dizer, omitindo Jo 4:4) não há necessidade de crer que
a agitação da água devia-se a uma causa sobrenatural. Além disso, a
ideia de que o primeiro em descer depois do movimento das águas ficava
curado, não se apresenta aqui necessariamente como a crença do escritor
do quarto Evangelho nem como o ensino do Espírito Santo, mas sim
como a opinião implícita do homem doente (Jo 4:7b).
(3) Por outro lado, é completamente certo que não se deve descartar
a possibilidade de uma atividade sobrenatural e angélica. Nunca se deve
esquecer que uma interpolação marginal no texto pode ser correta. Nos
dias do ministério terrestre de nosso Senhor, o ministério dos anjos
aparece proeminentemente vez após vez, e poderes e forças pouco
comuns representam um importante papel.

111
Veja-se também sobre este tema A. T. Robertson, An Introduction to the Textual Criticism of the
New Testament, Nova York, 1925, pp. 154, 183, 209.
João (William Hendriksen) 250
(4) É preciso fazer notar, não obstante, que o milagre que aqui tem
lugar quando este homem doente recupera a saúde, não se atribui a
nenhuma virtude medicinal do tanque, nem à atividade angélica, e sim ao
poder e ao amor de Jesus. De fato, quando Jesus cura este homem não
faz nenhum uso do tanque (compare-se com Jo 9:7; 2Rs. 5:10, 14).
Nossa atenção deve centralizar-se neste milagre; não na questão de se
neste tanque se produziam ou não milagres constantemente.
5. Estava ali um homem, quer dizer entre os inválidos havia um
homem que atraiu a atenção de Jesus mais que nenhum outro. Tratava-se
do homem enfermo havia trinta e oito anos. Isto, naturalmente, não
significa que tivesse estado no tanque todo aquele tempo. Já
mencionamos (II da Introdução) por que razão João selecionou este
milagre para incluí-lo em seu Evangelho.
6. Jesus, vendo-o deitado e sabendo que estava assim há muito
tempo. Jesus viu este homem, e sem dúvida o olhou com afeto (cf. Mc.
8:3; 10:21), sondando sua alma. O Senhor sabia que o inválido tinha
estado naquele lamentável estado durante muito tempo. De onde obteve
Jesus este conhecimento? Existem três possibilidades, nenhuma das
quais se deve desprezar:
(1) Qualquer um pôde ter-lhe dado esta informação de forma
completamente humana e natural. Neste caso deveríamos traduzir: “E
quando se informou que …”
(2) O Pai pôde ter-lhe revelado.
(3) A natureza divina de Cristo pôde ter dado este conhecimento à
Sua natureza humana de uma forma que não podemos compreender.
Sabendo, pois, que este homem tinha estado em essa condição
durante muito tempo, Jesus perguntou-lhe: Queres ser curado? Significa
esta pergunta que a alma daquela homem havia já caído em tal estado
que tinha perdido até o desejo de curar-se? Seja este o caso ou não, com
toda probabilidade estas palavras foram pronunciadas para levá-lo a um
pleno conhecimento de sua miséria e de sua incapacidade para sair dela;
de forma que, por sua vez, esta frase fizesse com que a milagrosa
João (William Hendriksen) 251
recuperação ressaltasse mais por sua amplitude. A pergunta de Jesus
também contém uma promessa de ajuda.
7. Respondeu-lhe o enfermo: Senhor, não tenho ninguém que 112 me
ponha no tanque, quando a água é agitada; pois, enquanto eu vou, desce
outro antes de mim.
Parece que a regra neste tanque era: “Cada qual cuide do seu”.
Ninguém jamais ajudou este inválido que, devido à sua aflição física,
quase não podia mover-se. Nunca pôde agir com suficiente rapidez:
sempre, antes que ele chegasse, outro já se colocava no tanque. E se,
neste sentido, alguém dissesse que as coisas mudaram em nossos dias —
porque agora tivesse havido alguém para ajudá-lo: um assistente ou uma
enfermeira —, não se deve esquecer que as atuais condições
humanitárias, onde quer que se apliquem, têm, em grande parte, suas
origens na amorosa e compassiva influência do coração de Cristo,
conforme o revelam as Escrituras, incluindo este capítulo.
Como já indicamos, a causa da agitação da água podia ser natural
ou sobrenatural. Se era natural, então parece que o repentino movimento
era causado por uma corrente intermitente que alimentasse o tanque. Em
geral pode-se dizer que não é nada raro ver gente com diversas
enfermidades indo reunir-se nos mananciais de águas minerais. Pense-se
nas fontes dos arredores de Tiberíades, ou nos balneários que abundam
em todos os países, aos quais, desde a antiguidade se atribuem
propriedades curativas.
8. Quando o doente se lamentou, com grande desalento, de que
sempre descia alguém ao lago antes que ele, é muito provável que a luz
de afeto e simpatia que brilhava nos olhos do Senhor avivasse, de algum
modo, sua esperança; e especialmente devido à pergunta que Jesus lhe
fez: “Queres ser curado?” Pensaria, talvez, o inválido que na próxima
vez que se agitasse a água este forasteiro estaria disposto a colocá-lo no
tanque? Que surpresa recebeu quando de repente o Médico Celestial lhe

112
A respeito de ἵνα veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 252
dirigiu aquelas inesquecíveis palavras: Então, lhe disse Jesus: Levanta-te,
toma o teu leito e anda. 113 ¡ O que desafio para um homem que acabava
de confessar sua completa incapacidade! O leito a que Jesus Se refere
(κράβαττος cf. o latim grabatus) era algo semelhante a uma cama de
campanha, esteira, saco, ou colchão, etc. Jesus disse a este homem que
recolhesse aquilo e começasse a andar.
9a. Imediatamente, o homem se viu curado. Obedeceu e ficou
curado imediatamente (ε_θέως). O próprio fato de que o escritor do
quarto Evangelho, ao contrário de Marcos, use poucas vezes as
expressões no momento, imediatamente, ou instantaneamente (também
em Jo 6:21; 18:27; para ε_θύς veja-se Jo 13:30, 32; 19:34) indica que
deseja fazer ressaltar especialmente o caráter completo e repentino da
cura. Mais uma vez a glória do Filho de Deus aparece claramente
revelada. Esta recuperação não é nem gradual nem parcial; nem,
podemos acrescentar, tampouco foi um simulacro (como alguns creram).
Todos os que pretendem “curar pela fé” deveriam estudar
cuidadosamente este maravilhoso relato. Quando Jesus pronunciou a
palavra, o corpo daquele homem recebeu novo poder e energia; e,
tomando o leito, pôs-se a andar.
9b, 10. E aquele dia era sábado. Por isso, disseram os judeus ao que
fora curado.
Jesus curou aquele homem no sábado. Por esta causa se desenvolve
uma controvérsia entre Jesus e os judeus (veja-se Jo 1:19 para o
significado específico desta palavra). Os fariseus tinham acrescentado à
Lei de Deus suas ridículas distinções e restrições rabínicas. Isto se tinha
agravado em tudo o que se referia ao sábado, como já indicamos em Jo
3:1. Em lugar de considerá-lo como um dia consagrado especialmente
para obras de gratidão pela salvação que Deus tinha concedido, olhavam-
no como dia de descanso de todo trabalho comum com vistas a uma

113
Dos três imperativos, o primeiro é aoristo presente; o segundo, aoristo; o terceiro, presente
continuado: segue caminhando.
João (William Hendriksen) 253
salvação que o homem devia merecer. Para eles o sábado significava
folga; para Cristo trabalho. E, contudo, para eles constituía uma pesada
carga; mas para Ele um descanso. Segundo o parecer deles, o homem
tinha sido feito para o sábado; tal como Cristo o entendia, o sábado tinha
sido feito para o homem.
Em consequência, os judeus disseram ao homem que tinha sido
curado: Hoje é sábado, e não te é lícito carregar o leito. Sem lugar a
dúvida referiam-se a Êx. 20:10, e mais ainda a Jr. 17:19–27 (“Assim diz
o SENHOR: Guardai-vos por amor da vossa alma, não carregueis cargas
no dia de sábado, nem as introduzais pelas portas de Jerusalém; não tireis
cargas de vossa casa no dia de sábado …”) e a Ne. 13:15 (“Naqueles
dias, vi em Judá os que pisavam lagares ao sábado e traziam trigo que
carregavam sobre jumentos; como também vinho, uvas e figos e toda
sorte de cargas, que traziam a Jerusalém no dia de sábado; e protestei
contra eles por venderem mantimentos neste dia”). Estas passagens, no
entanto se referem claramente a essa classe de transporte de carga que
produz lucro e que supõe comércio e especulação. Ao proibir a este
homem curado que recolhesse seu leito — como se fosse algo
comparável a uma carga que levasse a mercado para vendê-la com
benefício — faziam da Lei de Deus uma caricatura.
11. A resposta do homem curado foi adequada: Ao que ele lhes
respondeu: O mesmo que me curou me disse: Toma o teu leito e anda.
Seu raciocínio era assim: Aquele que realiza uma obra tão gloriosa —
concedendo instantaneamente cura completa a um corpo que esteve
trinta e oito anos atrofiado — tem direito, inclusive no sábado, de dizer
ao que curou o que deve fazer.
12. Perguntaram-lhe eles: Quem é o homem (quer dizer, o tipo, em
tom de mofa) que te disse: Toma o teu leito e anda? Não lhe perguntam:
“Quem te curou?” A preocupação gloriosa deste homem não lhes
interessava absolutamente. A única coisa que lhes interessava eram os
pequenos regulamentos humanos. Devido ao seu grande zelo em
observá-los chegaram, inclusive, a esquecer o caráter altamente ridículo
João (William Hendriksen) 254
de sua observação: não pareciam notar de que, afinal de contas, o que o
homem levava não era mais que um leito (veja-se acima). Por isso,
inclusive, omitem essa palavra. A seu modo de ver, o pecado que este
homem estava cometendo era este: a. que havia levantado uma coisa do
solo; o que fosse, não importava, e b. que estava caminhando com ela.
Não obstante se comportam com lógica ao atribuir a terrível ação ao que
tinha ordenado que o fizesse.
13. Mas o que fora curado não sabia quem era; porque Jesus se
havia retirado, por haver muita gente naquele lugar. O homem curado
não se tinha informado da identidade de seu Benfeitor, pois Jesus,
imediatamente depois de operar Seu milagre, tinha desaparecido dentre a
multidão de visitantes doentes que acudiam nos sábado. Apartou-se
Jesus para evitar uma manifestação popular? Ou foi, talvez, para poder
enfrentar-se com os dirigentes religiosos e não com Seus seguidores?
Ou, como alguns pensam, para dar uma oportunidade a este homem
curado para afirmar-se em suas convicções ao ver-se obrigado a
expressá-las sem a ajuda de ninguém? Seja qual for a razão ou
combinação de razões, continua sendo certo que aquele homem não pôde
determinar quem tinha sido Aquele que havia tornado sua aflição em
alegria.
14 Mais tarde, Jesus o encontrou no templo e lhe disse: Olha que já
estás curado; não peques mais, para que não te suceda coisa pior. 114
Veja-se Jo 5:1 para a expressão: depois destas coisas. Jesus o
encontrou no templo; provavelmente no átrio dos gentios. O texto não
permite decidir se este encontro teve lugar no mesmo dia, no dia seguinte
ou mais tarde. Tampouco há nada no texto ou no contexto que indique
com o que propósito o homem curado tinha ido ao templo. Havia muitas
razões — umas estritamente religiosas, e outras não tanto — pelas quais
os judeus, em grande números entravam na casa de Deus e permaneciam

114
Literalmente: “para que não te suceda algo pior”.
João (William Hendriksen) 255
ali um momento. Por isso, nesta ocasião seria devido a que tivesse ido
levar uma oferta de ação de graças a Deus por seu restabelecimento.
Por outro lado, pode-se compreender muito claramente por que
razão Jesus continuou operando com este homem. Em todo o relato de
sua cura (Jo 5:1–13) não se diz nada sobre alguma mudança de sua
condição espiritual. O seu corpo tinha sido curado. Portanto, não é de
estranhar que o Médico lhe restabeleça agora a alma.
Jesus, pois, dirige-se a ele com estas palavras: “Olha que já estás
curado; não peques mais, para que não te suceda coisa pior”. Nossa
interpretação desta passagem não nos permite estar de acordo com
aqueles comentaristas — e há muitos! — que tiram a conclusão de que o
Senhor quis dizer: “Faz mais de trinta e oito anos cometeste um pecado.
A consequência foi que ficaste fisicamente deformado e paralítico.
Agora te admoesto para que não peques mais; de outro modo te pode
suceder algo pior”. Pelo contrário, visto que o verbo (μηκέτι _μάρτανε)
acha-se no presente, traduzimo-lo por “não continues pecando”, o
significado é, antes, referente à situação presente deste homem e não ao
que pôde haver sucedido trinta e oito anos antes. 115 Naquele momento
estava sem reconciliar-se com Deus. Jesus sabia disso. Por isso, Jesus lhe
adverte que não continue nesta condição, pois de outra forma lhe
aguarda algo pior que a enfermidade física de que acaba de ser libertado.
Não é possível que ao dizer “algo pior” Jesus se referisse ao castigo
eterno? Daí se vê claramente que o relato não contém uma só palavra
que faça referência à causa da enfermidade física deste homem. Esta
explicação concorda também com as palavras de Cristo em Jo 9:3.
15. Com gratidão em seu coração, o homem retirou-se e disse aos
judeus que fora Jesus quem o havia curado. Não obstante, pode-se
observar que existe uma diferença interessante entre a pergunta dos
dirigentes religiosos judeus e a resposta do homem. Eles perguntaram:
“Quem é o homem que te disse: Toma o teu leito e anda?” Mas ele

115
Cf. F. W. Grosheide, op. cit., pp. 352, 353. Estamos de acuerdo con él.
João (William Hendriksen) 256
respondeu: “Jesus é aquele que me curou”. Enfatiza o que corresponde;
ou seja, a cura, na qual os judeus não tinham mostrado nenhum
interesse.
16. Quando a atenção das autoridades judaicas se fixa em Jesus, seu
furor é tão intenso que determinam em seus corações persegui-Lo até
levá-Lo à morte. E os judeus perseguiam Jesus. O verbo desta oração faz
referência à uma atividade hostil contínua. Foi fazendo-se mais definida
e determinada até que finalmente cravaram Cristo na cruz. Sobre o
caráter progressivo desta perseguição, veja-se sobre Jo 6:41. A razão
deste ódio é-nos dado nestas palavras: porque fazia estas coisas no
sábado.
17. Foram os judeus os que neste momento começaram a dirigir-se
a Jesus pessoalmente, acusando-O de violar o sábado? Ou foi o Senhor,
que, lendo em seus corações, lhes falou primeiro? Seja como for, Jesus
faz notar que ao realizar aquela obra de misericórdia no sábado tinha
agido de acordo com o exemplo de seu Pai (Meu Pai; e veja-se em Jo
1:14, a natureza da filiação de Cristo) e de acordo com o mandato que
dEle tinha recebido. Pretendiam os judeus dizer que a essência do sábado
consistia na folga e que toda forma de trabalho era ilícita? Mas não seria
isto acusar ao próprio Deus de violar o sábado? Se até este momento o
Pai de Jesus está desenvolvendo uma obra de preservação e de redenção,
como não ia o Filho fazer o mesmo se possui a mais íntima relação com
Ele (Jo 5:19–23)? Em todo caso; o Pai e o Filho realizam uma mesma
obra. Por conseguinte lemos: Mas ele lhes disse: Meu Pai trabalha até
agora, e eu trabalho também.
18. Por isso (δι_ το_το tal como em Jo 4:16), pois, os judeus ainda
mais procuravam matá-lo; quer dizer, tinham determinado já fazê-lo
morrer porque não somente violava o sábado (a seu modo de ver Jesus
era violador do sábado), mas também dizia que Deus era seu próprio Pai,
fazendo-se igual a Deus; e esta era a causa de que sua determinação se
tornou mais intensa e enérgica.
João (William Hendriksen) 257
Com as palavras, também dizia que Deus era seu próprio Pai,
fazendo-se igual a Deus, o escritor volta a apresentar claramente o
propósito de seu Evangelho. Este propósito, lembraremos, era o de
fortalecer os crentes para que continuassem crendo que Jesus é o Cristo,
o Filho de Deus, e para que crendo continuassem tendo vida em Seu
nome (Jo 20:30, 31).
O que, pois, levou Jesus à cruz foi que, além de sua forma de
considerar o sábado, dizia ser igual a Deus. Quando as autoridades
judaicas ouviram que Jesus chamava a Deus “meu (próprio) Pai”, não
fizeram o que muitos em nossos tempos têm feito: não tentaram rebaixar
o caráter da filiação de Cristo. Compreenderam imediatamente que Jesus
Se atribuía a divindade no sentido mais alto possível desta palavra. Esta
pretensão, ou era a mais maligna blasfêmia, que se devia pagar com a
morte, ou a mais gloriosa verdade, que devia aceitar-se pela fé. O próprio
caráter do milagre que Jesus acabava de operar devia ter feito com que
estes dirigentes religiosos adotassem esta última alternativa; mas, em
lugar disso, escolheram a primeira.

Síntese de Jo 5:1–18
O Filho de Deus rejeitado na Judeia em consequência da cura do
homem de Betesda no sábado, e de afirmar que era igual a Deus.
Durante oito meses completos Jesus tinha estado levando a cabo seu
ministério de ensino e curas em Jerusalém e Judeia. Logo, depois de uma
estadia de só dois dias em Samaria, foi a Galileia. Também aí já havia
operado muitos milagres, sendo um deles a cura do filho de um nobre,
sinal muito notável se levar-se em conta que se realizou a uma distância
de uns vinte e cinco quilômetros do lugar onde estava a criança doente.
Já fazia como quatro meses que o Grande Ministério na Galileia tinha
começado. No transcurso deste ministério o Senhor estava cumprindo a
profecia de Is. 9:1: “Mas para a terra que estava aflita não continuará a
obscuridade. Deus, nos primeiros tempos, tornou desprezível a terra de
João (William Hendriksen) 258
Zebulom e a terra de Naftali; mas, nos últimos, tornará glorioso o
caminho do mar, além do Jordão, Galileia dos gentios”.
Na Galileia todo era emoção e entusiasmo, mas não havia fé
verdadeira e salvadora. Estando ocupado nesta obra na província
setentrional, Jesus decidiu assistir a uma das três festas de peregrinação
em Jerusalém. Isto sucedia no ano 28 d.C. Em Jerusalém visitou o tanque
de Betesda e ali curou um homem que estava paralítico fazia trinta e oito
anos.
Era sábado quando Jesus disse àquele homem doente: “Levanta-te,
toma o teu leito e anda”. O homem obedeceu e instantaneamente
recuperou a saúde completa. Do ponto de vista espiritual, o Senhor
também lhe prestou ajuda dizendo-lhe, ao achá-lo no templo: “Não
continues pecando, ou algo pior te pode suceder”.
Quando as autoridades judaicas viram que este homem, obedecendo
ao mandato de Jesus, transportava seu leito no sábado, criticaram-no a
ele e a seu Benfeitor. No entanto, Jesus respondeu: “Meu Pai trabalha até
agora, e eu trabalho também”. Os dirigentes religiosos de Jerusalém, a
partir de então, maquinaram um complô para matar a Jesus, e isto por
duas razões: a. violação do sábado, b. blasfêmia (por fazer-se igual a
Deus).

JO 5:19–30

5:19 Em lugar de buscar a forma de atenuar a afirmação anterior


(versículo 17), que tinha despertado o furor dos judeus, Jesus a reforça
mais ainda com: a. a majestosa fórmula introdutória, Em verdade, em
verdade vos digo (veja-se Jo 1:5) e b. o resto do conteúdo dos versículos
19–23. A passagem que agora nos ocupa pode-se parafrasear do seguinte
modo:
“Vós, judeus, Me acusais de transpassar o mandamento do Pai
sobre no sábado e de blasfemar Seu nome por dizer que sou igual a Ele?
A acusação é absurda, pois nesse caso a vontade do Filho estaria
João (William Hendriksen) 259
desligada (e não simplesmente diferenciada) da vontade do Pai e,
inclusive, se oporia a ela. Mas em realidade o Filho nada pode fazer
(ο_δύναται … ποιε_ν … ο_δέν) de si mesmo, senão somente aquilo que
vir fazer o Pai; porque aqui verdadeiramente está a norma perfeita do
que tão frequentemente vê-se na terra; ou seja, que tudo o que este fizer,
o Filho também semelhantemente o faz (nisto há uma correspondência
exata).
20, 21. “Tenho o direito de dizer isto, porque (γάρ) sendo Eu o
Filho, sei que o Pai ama (φιλε_ veja-se o comentário de Jo 21:15–17) ao
Filho, e lhe mostra tudo o que (continuamente) faz ao desenvolver seu
eterno plano de redenção. A realização de milagres — p. ex., a cura deste
homem no tanque — também pertence ao desenvolvimento deste plano
eterno; e maiores obras do que estas lhe mostrará — a saber, o reviver os
que estão mortos, e o julgar a todos — para que, que já estais
assombrados pelo milagre do tanque, vos maravilheis verdadeiramente.
Pois assim como o Pai ressuscita e vivifica os mortos (tanto aos que estão
espiritualmente mortos, como aos que o estão fisicamente, a estes no dia
do juízo), assim também o Filho, pois é igualmente soberano, vivifica
aqueles a quem quer.
22, 23. E o Pai a ninguém julga, mas ao Filho confiou todo
julgamento, quer dizer, o Pai nunca age sozinho (separado do Filho) ao
pronunciar juízo, mas encomendou todo o juízo ao Filho (tanto para o
presente, no sentido de 3:18b, 19; como para o futuro, no sentido de Mt.
25:13ss.). Assim, o Pai sempre opera através do Filho, a fim de que todos
honrem o Filho do modo por que honram o Pai; quer dizer, para que
estas duas Pessoas, que são iguais em essência (Jo 5:17, 18) e em obras
(Jo 5:19–22) sejam também iguais em honra. Vós, judeus incrédulos,
que vos tendes proposto matar ao Filho (Jo 5:18), não deviam imaginar
que podem honrar ao Pai: Quem não honra o Filho não honra o Pai que o
enviou.
24–30. O dar vida aos mortos e o pronunciar juízo eram as duas
maiores obras que o Pai tinha atribuído ao Filho (Vejam-se os vv. 20b,
João (William Hendriksen) 260
21, 22). Visto que as palavras “julgar” e “juízo” aparecem nos vv. 24,
27, 29, remetemos ao leitor a nossa explicação de Jo 3:17–19 para um
comentário mais amplo. No presente parágrafo somos informados:
a. Como o Filho realiza sua obra no presente na esfera espiritual
(vv. 24, 25); e
b. Como vai realizá-la no futuro no campo físico (vv. 28, 29). Entre
estas duas passagens há outro que mostra
c. Como se deve entender que o Filho pode cumprir esta dupla
tarefa (levantar os mortos e julgar) no presente e no futuro, e isto em
ambas as esferas (vv. 26, 27).
d. A passagem final (versículo 30) baseando-se em a. b. e c.
reafirma a perfeita unidade do Filho com Aquele que O enviou.
As subdivisões a. e c. (vv. 24, 25 e vv. 28, 29) distinguem-se
claramente pelas palavras: “Vem a hora e já chegou” do versículo 25, e
as palavras: “Vem a hora” (mas não: “e já chegou”) do versículo 28. Por
conseguinte, a primeira passagem trata da primeira ressurreição; quer
dizer, a da alma; a segunda subdivisão descreve a segunda ressurreição;
ou seja a do corpo. Esta mesma ordem de acontecimentos achamos em
outra obra do mesmo escritor (João); referimo-nos ao livro de
Apocalipse, onde se discute o primeiro tema em Ap 20:4–6; e o segundo
em Ap 20:11ss. 116 Observe-se o paralelismo:

116
Veja-se nosso Más que vencedores, reimpressão de T.E.L.L., Grand Rapids, Michigan, 1977, pp.
231–233.
João (William Hendriksen) 261
Quarto Evangelho Apocalipse
A. Primeira Ressurreição A. Primeira Ressurreição
Em verdade, em verdade vos digo: “Vi ainda as almas dos decapitados …
quem ouve a minha palavra, e crê tantos quantos não adoraram a besta, nem
naquele que me enviou tem a vida tampouco a sua imagem, e não receberam
eterna ... passou da morte para a vida. a marca na fronte e na mão; e viveram e
Em verdade, em verdade vos digo que reinaram com Cristo durante mil anos.
vem a hora e já chegou, em que os ... Esta é a primeira ressurreição.
mortos ouvirão a voz do Filho de Deus;
e os que a ouvirem viverão. ...
não entra em juízo (Para a solene “Bem-aventurado e santo é aquele que tem
fórmula introdutória ver Jo 1:51) parte na primeira ressurreição; sobre esses
a segunda morte não tem autoridade”.

B. Segunda Ressurreição (para juízo) B. Segunda Ressurreição (para juízo)


Não vos maravilheis disto, porque vem a Vi um grande trono branco e aquele que
hora em que todos os que se acham nos estava sentado sobre ele … Vi também
túmulos ouvirão a sua voz e sairão: os os mortos, os grandes e os pequenos,
que tiverem feito o bem, para a postos em pé diante do trono. Então, se
ressurreição da vida; e os que tiverem abriram livros. Ainda outro livro, o Livro
praticado o mal, para a ressurreição da Vida, foi aberto. E os mortos foram
do juízo. julgados, segundo as suas obras, conforme
o que se achava escrito nos livros.
Deu o mar os mortos que nele estavam. A
morte e o além entregaram os mortos que
neles havia. E foram julgados, um por um,
segundo as suas obras. ... E, se alguém não
foi achado inscrito no Livro da Vida, esse
foi lançado para dentro do lago de fogo.

Apoiando-nos nesta comparação podemos tirar várias conclusões:


1. Embora se diga com frequência que o quarto Evangelho não
contém nenhum ensino referente às últimas coisas, isto, como o presente
João (William Hendriksen) 262
parágrafo demonstra, não é verdade. Veja-se também Jo 6:39, 40, 44, 54;
11:24; 12:28; 14:3, 28; 15:18ss.; 16:1ss. 16:19ss. 117
2. A primeira ressurreição não tem nada que ver com o corpo;
refere-se à alma. Quando se aceita a palavra de Cristo pela fé (“aquele
que ouve minha palavra e crê”) o homem “tem a vida eterna (sobre isso
veja-se Jo 1:4; 3:16) e passou da morte para a vida”; e o que é isto senão
a primeira ressurreição que, embora comece aqui na terra, culmina na
vida da alma com Cristo no céu? Na passagem de Apocalipse o que se
faz ressaltar mais é a última fase desta primeira ressurreição.
3. Aquele que participa da primeira ressurreição (quer dizer, aquele
que recebeu a Cristo com uma fé viva) não tem por que temer o dia do
juízo. O quarto Evangelho, em sua própria linguagem, diz: “… não vem
a juízo” (ε_ς κρίσιν); e na linguagem de Apocalipse: “…sobre esses a
segunda morte (na qual se cumpre a sentença de condenação) não tem
autoridade”.
4. A segunda ressurreição é de caráter físico. 118 Pertence ao grande
dia da consumação de todas as coisas. É universal: todos ressuscitarão,
tanto crentes como incrédulos.
5. Nem o quarto Evangelho nem o Apocalipse ensina que entre a
ressurreição física dos crentes e a dos incrédulos haja um período de mil
anos: “…vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão
a sua voz e sairão”. “Vi os mortos, grandes e pequenos … e os livros
foram abertos, e outro livro foi aberto … E o mar entregou os mortos que
nele havia; e a morte e o além entregaram os mortos que haviam neles”.
Tudo fala de algo general. Calvino está certo ao fazer notar que nesta
passagem do Evangelho de João (Jo 5:28) a expressão: “todos os que se
acham nos túmulos … sairão”, não implica de modo algum que os que
foram devorados pelas feras, ou se afogaram, ou morreram queimados,

117
Veja-se a respeito de este tema W. F. Howard, Christianity According to St. John, Filadélfia, 1946,
pp. 106–128.
118
M. Goguel, Le Quatriéme Évangile, Paris, 1924, vol. II, p. 536, erra quando afirma:
“L’eschatologie est, comme nous l’avons vu, entiérement spiritualisée”.
João (William Hendriksen) 263
estejam excluídos do número dos que ressuscitarão. Quando chegar esse
grande momento, todos ressuscitarão, e todos serão julgados. Veja-se
também Mt. 25:46; At. 24:15; 2Co. 5:10; 2Ts. 1:7–10. Em nenhum lugar
se indica que haja diferença de tempo; nem nos escritos de João, nem
nos de Paulo. (1Co. 15:22, 23 e 1Ts. 4:13–18 não ensinam nada disso,
como já fizemos notar em outra obra). 119
6. Embora pelo que se refere ao tempo não existe senão uma
ressurreição física universal, não obstante, com referência à qualidade ou
o caráter podemos, naturalmente, falar de duas ressurreições futuras.
(Veja-se também Dn. 12:2). Quer dizer, a grande ressurreição universal
tem duas fases, como claramente se ensina no quarto Evangelho e em
Apocalipse. Existe, por um lado, uma “ressurreição de vida” (genitivo
qualitativo: esta ressurreição concorda com o caráter da vida eterna, e
por isso é gloriosa, etc.), e por outro lado uma “ressurreição de
condenação” (o mesmo genitivo: esta ressurreição concorda com a ideia
de condenação, e por isso é de vergonha e escárnio). Os crentes
ressuscitarão para reinar por toda a eternidade com Cristo, em corpo e
alma (até então só tinha sido em alma); os incrédulos serão jogados no
lago de fogo.

Além destas observações baseadas na comparação do Evangelho e


do Apocalipse de João, deve-se prestar atenção aos seguintes pontos
referentes a Jo 5:24–30:

Com relação ao ponto a. (versículos 24, 25):


O avivamento espiritual não tem lugar sem a palavra. No entanto, o
mero ouvir a palavra não é suficiente; deve-se aceitar por fé: “quem 120
ouve a minha palavra e crê”. O objeto desta fé deve ser Jesus como o
Filho de Deus: “crê naquele que me enviou”. Tal pessoa “tem a vida

119
Veja-se nosso Lectures on the Last Things, Grand Rapids, Michigan, 1951, pp. 31–49.
120
A respeito de ὅτι nos versículos 24 e 25 veja-se IV da Introdução (também nota 13).
João (William Hendriksen) 264
eterna”. A ideia de que o pecador está morto por natureza, de modo que
quando a grande mudança tem lugar passa realmente “da morte para a
vida”, encontra-se não só aqui, mas também em Lc. 15:32; Ef. 2:1; 5:14.
A regeneração e a conversão são mudanças básicas, transformações
radicais. Não se deve confundi-las com as reformas morais, pelas quais,
por exemplo, um alcoólico renuncia a bebida. Como é natural, quando a
personalidade é regenerada toda a moral muda também.
A expressão: “Vem a hora e já chegou!” refere-se a toda esta nova
dispensação que, quando Jesus pronunciou estas palavras, era ao mesmo
tempo presente e futura. O Senhor pensa aqui nas multidões de
convertidos que, até o dia de Sua segunda vinda, passarão das trevas à
luz, e da morte para a vida, tanto do campo dos judeus como do dos
gentios. “… os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a
ouvirem viverão”.

Com relação ao ponto b. (versículos 26, 27):


26, 27. Porque assim como o Pai tem vida em si mesmo, também
concedeu ao Filho ter vida em si mesmo. E lhe deu autoridade para
julgar, porque é o Filho do Homem. Do mesmo modo que o Pai é
autossuficiente, tendo em Si mesmo vida eterna, assim também deu ao
Filho o ter esta vida (inerente) em Si mesmo; e isto explica o fato (leve-
se em conta γάρ) de que seja capaz de dar vida eterna aos Seus
escolhidos.
Nesta classe de passagens não se deve esquecer que a relação filial
do Senhor como Mediador na qual realiza Sua obra na terra, descansa em
sua filiação eterna na Trindade. Quando Jesus pronunciou estas palavras,
os judeus deveram perguntar: “De onde tem este homem o direito de
falar assim? É que vai ser Ele realmente quem julgará?” Jesus faz ver
que Sua autoridade para julgar (o mesmo que o poder para comunicar
vida) foi-lhe dada porque é o Filho do Homem. Além disso, as duas
ideias: julgar e Filho do Homem sempre estão juntas nas Escrituras.
João (William Hendriksen) 265
(Sobre o título Filho do Homem e sua conexão com o juízo, veja-se
nosso comentário de Jo 12:34.) Muitos comentaristas sugerem que a
ausência do artigo diante de Filho do Homem aqui em Jo 5:27 (υ__ς
_νθρώπου) é muito significativa. Baseando-se nesta ausência deram-se
multidão de interpretações; especialmente estas duas:
a. A autoridade de agir como juiz devia ser dada a Jesus porque esta
obra Ele a desenvolve como homem, e não como Deus.
b. A autoridade de agir como juiz dos homens foi dada porque
também ele é homem, e, portanto, com perfeito conhecimento dos
pensamentos, palavras e ações humanas. Para ser um bom juiz é preciso
ser participante da natureza dos que hão de ser julgados.
Mas, com o devido respeito à habilidade dos comentaristas que
baseiam toda a exegese desta passagem na omissão do artigo, não
podemos estar de acordo com suas conclusões. É, inclusive, duvidoso
que se deva fazer insistência na ausência do artigo. É bem sabido que os
títulos oficiais têm uma tendência a perder o artigo. Seria, por
conseguinte, muito estranho que o título tivesse nesta caso um
significado distinto do que normalmente tem. Além disso, como já
indicamos, a ideia de que o direito de julgar foi dado porquanto era (o)
Filho do Homem, no sentido messiânico da palavra, dá um sentido
excelente à passagem. É um pensamento eminentemente bíblico,
enquanto não se pode dizer o mesmo com relação às outras duas
interpretações.

Com relação ao ponto c. (versículos 28, 29):


A ideia de juízo (condenação e absolvição; com o conseguinte
castigo ou recompensa) não tomou os judeus de surpresa. O que os
encheu, no entanto, de assombro foram as palavras de Jesus (vv. 22 e 27)
que, para eles, representavam uma pretensão totalmente absurda e
intolerável, pois supunham que o direito de julgar Ele o tinha recebido, e
João (William Hendriksen) 266
que os homens estavam sendo julgados e iam ser julgados segundo a
atitude que adotassem para com Ele.
Jesus, portanto, diz: Não vos maravilheis disto, porque 121 (o que
tenho dito é verdade, como o demonstrará o fato de que) vem a hora em
que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão”. A
frase, todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz, parece
indicar que a segunda vinda, longe de ser silenciosa ou secreta, vai ser
pública e audível (além de visível). Cf. 1Co. 15:52. 122 Observe-se
também que tanto no terreno físico como no espiritual, a voz de Cristo é
criadora. Se não o fosse, os mortos não poderiam ouvi-la! Para mais
comentário sobre esta passagem (vv. 28, 29) remetemos ao que já se
disse sobre Jo 5:24, 25.

Com relação ao ponto d. (versículo 30):


Jesus resume neste versículo todo o argumento. Chegou à conclusão
que já se formulou no princípio (veja-se versículo 19), mas agora a
reforça por meio do pronome pessoal, primeira pessoa singular, para
indicar que os judeus não têm direito a julgá-Lo e O condenar como se o
que fez pelo homem do tanque no sábado (ou, em geral, como se
qualquer ação que realizasse) fosse algo do que ele sozinho — e não ele
e o Pai fosse responsável. Jesus diz: Eu nada posso fazer de mim mesmo.
Os judeus precisavam saber que ao criticar ao Filho de Deus eles se
opunham ao próprio Deus. Como Mediador, o Filho recebeu instruções
definidas (referentes às normas de juízo) do Pai. Além disso, visto que,
como Mediador, Sua relação filial descansa sobre Sua filiação eterna,
está claro que Ele mesmo deseja fazer a a absolutamente justa vontade
do Pai, com o qual está unido em essência: na forma por que ouço, julgo.
O meu juízo é justo, porque não procuro a minha própria vontade, e sim
a daquele que me enviou (το_ πεμψαντός με; há muito pouca diferença,

121
A respeito de ὅτι no versículo 28 veja-se IV da Introdução.
122
Veja-se nosso Lectures on the Last Things, Grand Rapids, Michigan, 1951, pp. 26, 33, 34.
João (William Hendriksen) 267
se é que existe, entre πέμπω e _ποστέλλω na linguagem de João; veja-se
também Jo 1:6 e 3:34).

Síntese de Jo 5:19–30
O Filho de Deus rejeitado na Judeia em consequência da cura do
homem de Betesda no sábado, e por afirmar que é igual a Deus.
Nesta seção Jesus apresenta Seus direitos com relação a Sua relação
ao Pai. Faz isto em resposta à incredulidade e o ódio dos judeus que
estão resolvidos a matá-lo.
A defesa do Senhor pode-se resumir do seguinte modo:
1. Ao atacardes a mim, o Filho, atacais ao próprio Pai, pois o Filho
faz o que vê fazer o Pai; julga como o Pai julga. Não pode agir de outro
modo. E tampouco deseja agir de outro modo.
2. Assombram-lhes pela cura deste homem doente? Esta foi,
certamente, uma grande obra, mas a seguirão maiores obras: dar vida aos
que estão mortos (tanto os que estão espiritualmente mortos, como, no
último dia, aos que estão mortos fisicamente) e julgar a todos os homens
(agora e em Sua vinda em glória).
3. Perguntais-vos como é possível que Eu dê vida, e pronuncie e
execute juízo? O primeiro posso fazê-lo porque o Pai me deu o ter vida
em Mim mesmo (do mesmo modo que Ele tem vida em Si mesmo); e o
segundo em Minha qualidade de Filho do Homem.
4. A reação correta a Minhas palavras e obras não é a ruim
incredulidade e o ódio, nem tampouco a atitude mental que não consegue
passar do assombro, mas sim a fé que honra ao Filho como honra ao Pai.
5. Os que exercem esta fé não são condenados, mas a partir de
agora passaram da morte para a vida. No grande dia do juízo eles
ressuscitarão também fisicamente, junto com outros mortos. Mas,
embora todos ressuscitarão, haverá uma grande diferença na qualidade
ou no caráter de sua ressurreição: os que praticaram o bem sairão para
“ressurreição de vida”; os que praticaram o mal, para “ressurreição de
João (William Hendriksen) 268
condenação”. Implicação: “Portanto, aceita pela fé ao Filho de Deus”.
Cf. o propósito do Evangelho (Jo 20:30, 31).

JO 5:31–47

5:31. Jesus fez afirmações majestosas. Mas, quem é Ele para fazê-
lo? Por isso não nos surpreende que no presente parágrafo essas
afirmações sejam corroboradas por alguns testemunhos sobre Si mesmo.
O Senhor começa dizendo: Se eu testifico a respeito de mim mesmo, o
meu testemunho não é verdadeiro. 123 Os comentaristas, como é natural,
estão de acordo em que estas palavras não podem ser tomadas
literalmente, como se quisesse dizer que o que afirmava com relação a Si
mesmo não era real. Se esta fosse a verdadeira interpretação, Jesus
deixaria de ser Aquele que não tem pecado. Vejamos algumas das
tentativas que se têm feito para explicar estas palavras.
1. O significado é: “Se testificasse sobre mim mesmo, meu
testemunho não seria verdadeiro”. Objeção: uma simples olhada à
construção destas palavras no original mostra-nos que isto não pode ser
correto, pois aqui não temos uma oração condicional irreal, mas sim uma
do grupo III B 1.
2. O que Jesus quer dizer é: “Se eu der testemunho isolado e sem
prova sobre mim mesmo, meu testemunho não é verdadeiro”. Mas se
este fosse o significado aqui, por que, então, não temos que lhe dar a
mesma interpretação às mesmas palavras em Jo 8:14: “Posto que eu
testifico de mim mesmo, o meu testemunho é verdadeiro”? Jesus não diz
nada de um testemunho isolado e sem prova.
3. A palavra “verdadeiro” tem aqui um significado distinto. O
sentido da passagem é: “Se eu der testemunho a respeito de mim mesmo,
meu testemunho não é admissível diante de um tribunal” (baseando-se
em Mt. 18:16; 2Co. 13:1; 1Tm. 5:19). Mas este raciocínio implicaria que

123
III B 1; véase IV de la Introducción.
João (William Hendriksen) 269
em Jo 8:14 Jesus afirma que o testemunho sobre Si mesmo é admissível
diante de um tribunal. E isto seria uma contradição completa.
A verdadeira solução, a nosso modo de ver, se achará quando nos
dermos conta de que Jesus está falando na linguagem popular. Uma das
características desta forma de falar é que está cheia de figuras,
expressões abreviadas, alusões e implicações que os ouvintes entenderão
imediatamente, etc. Nunca devemos perder de vista o fato de que aqueles
a quem eram dirigidas estas palavras não só ouviam as palavras, mas
também viam os olhos de nosso Senhor, e podiam notar o tom de Sua
voz e as palavras em que recaía a ênfase. Levando em conta tudo isso,
cremos que num sentido a situação em que o Senhor Se encontrava ao
pronunciar estas palavras pode-se comparar a de alguém em nossos dias
que estivesse falando com um grupo de gente pouco amistosa.
Suponhamos, por exemplo, que essa pessoa deseja
entusiasticamente que o Sr. X obtenha o primeiro prêmio de um
concurso literário, enquanto seus interlocutores desejam o triunfo de
outro concorrente. Então poderia lhes dizer: “Se lhes disser que o Sr. X é
o homem que realmente merece o prêmio, então, está claro que sou um
embusteiro”. Seus ouvintes imediatamente interpretariam estas palavras
neste sentido: “Se lhes disser que o Sr. X é o nome que realmente merece
o prêmio, então, está claro que sou um embusteiro segundo vocês.
A nosso modo de ver, o mesmo se pode aplicar à presente passagem
(Jo 5:31). Jesus quer dizer simplesmente: “Se eu der testemunho a
respeito de mim mesmo, meu testemunho, segundo vós, não é
verdadeiro”. Ou, em outras palavras: “Em seguida objetareis: ‘Tu dás
testemunho de ti mesmo; portanto, o teu testemunho não é verdadeiro’ ”.
Naturalmente, esta interpretação está apoiada pelo fato de que isto
mesmo sucedeu um pouco depois, como indica Jo 8:12, 13. Nessa
passagem Jesus testifica a respeito de Si mesmo, dizendo: “Eu sou a luz
do mundo”. Imediatamente os fariseus objetam furiosos: “Tu dás
testemunho a respeito de ti mesmo; o teu testemunho não é verdadeiro”.
João (William Hendriksen) 270
32, 33. Jesus prossegue: Outro é o que testifica a meu respeito, e sei
que é verdadeiro o testemunho que ele dá de mim. Sem admitir de modo
algum que seu testemunho a respeito de si mesmo não fosse digno de
crédito, Jesus apresenta agora outra testemunha que constantemente está
dando testemunho a respeito dEle. Jesus, por ser o Filho de Deus, sabe
que o testemunho deste outro é verdadeiro. No entanto, não diz quem é
esta outra testemunha. Pelos versículos 36 e 37 sabemos que Se refere ao
Pai. Enquanto isso, os judeus, que não sabiam, tratam de adivinhar a
quem Se referia Jesus. Seria, talvez, a João Batista? Percebendo os
pensamentos de seus ouvintes, Jesus continua:
Mandastes mensageiros a João, e ele deu testemunho da verdade.
Isto é uma referência ao testemunho de João que achamos em Jo 1:19–
28, e que ele deu à delegação que foi enviada. (Veja-se o comentário
sobre Jo 1:19–28). Não obstante, o testemunho do Batista na verdade não
se limita a este parágrafo, mas também se encontra em Jo 1:29–36 (veja-
se o comentário), e em Jo 3:22–36 (veja-se o comentário). Em resumo
equivalia a isso: “Eu (João) não sou o Cristo; Jesus é o Cristo; Ele é o
Cordeiro de Deus que está tirando o pecado do mundo; sobre Ele vi
descer e repousar o Espírito Santo; Ele é o Esposo; Ele é Aquele que
veio do alto, e está sobre todas as coisas; Ele fala as palavras de Deus, e
é o Filho de Deus”.
34. Por que mencionou Jesus este testemunho do Batista? Acaso
porque tinha necessidade dele? Não! O Senhor diz: Eu, porém, não aceito
humano testemunho. Assim que não foi sua intenção apelar ao
testemunho do homem para Se defender ou para apoiar Suas afirmações
sobre Si mesmo. Pelo contrário, disse estas coisas porque eram um
testemunho verdadeiro sobre Ele, e para que o aceitassem, o aplicassem,
e fossem salvos. Jesus diz: … digo-vos, entretanto, estas coisas para que
sejais salvos.
35. O Senhor continua: Ele (João) era a lâmpada que ardia e
alumiava. Jesus Se chama a Si mesmo, a luz (τό φ_ς), e a João a lâmpada
(_ λύχνος). Uma lâmpada deve ser acendida, e seu mecha necessita óleo;
João (William Hendriksen) 271
além disso, ilumina um espaço muito limitado. Embora creiamos que a
escolha da palavra foi premeditada, é duvidoso, não obstante que a ideia
predominante na mente do Senhor tenha sido o contraste entre lâmpada e
luz. Afinal de contas, o próprio Jesus é também lâmpada (emprega-se a
mesma palavra em outro livro do mesmo escritor, Ap. 21:23). É a
lâmpada por excelência da nova Jerusalém. O que se faz ressaltar em Jo
5:35 é o fato de que o Batista, em sua função de lâmpada, ardia e
iluminava (sobre esta última palavra veja-se Jo 1:5) de tal modo que,
como resultado, atraía as pessoas. O contexto indica claramente que o
que o Senhor queria sublinhar era esta característica da lâmpada (e não
seu contraste com Cristo, a luz, embora este contraste não se exclua); e
por isso prossegue: … e vós quisestes, por algum tempo, alegrar-vos com
a sua luz. Aqui está o miolo: da mesma maneira que uma lâmpada atrai
os insetos, assim o Batista atraía a multidão de gente. Acaso não o
escutava Herodes Antipas de boa vontade (Mc. 6:20); mas por um
tempo? Quando Jesus diz: “Ele era a lâmpada … e vós quisestes, por
algum tempo, alegrar-vos” refere-se evidentemente, por implicação, ao
fato de que o Batista tinha sido arrancado da cena pública e agora estava
na prisão. O propósito principal desta observação, não obstante, era o de
fazer ver que embora os buscadores de emoções tinham estado,
inclusive, dispostos a alegrar-se por um tempo na luz da lâmpada do
Batista, no entanto, não tinham querido aceitar o seu testemunho a
respeito de Cristo para salvação.
36. Mas a observação de Jesus: “Outro é aquele que dá testemunho
de mim” (versículo 32) não fazia referência a João Batista. Isto se
depreende claramente do que segue: Mas eu tenho maior testemunho do
que o de João; porque as obras que o Pai me confiou para que 124 eu as
realizasse (_να τελείωσω; veja-se Jo 4:34), essas que eu faço
testemunham a meu respeito de que o Pai me enviou. Certamente, o
testemunho do próprio Pai através das obras de Cristo excede ao

124
A respeito de ἵνα veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 272
testemunho indireto do Batista. (Veja-se II da Introdução para
referências a João Batista neste Evangelho.) As obras que Jesus está
cumprindo são os Seus milagres, incluindo a cura do homem no tanque.
Estas obras, está claro, por si mesmas não produzem fé. Nunca têm a
importância que possuem as palavras de nosso Senhor. No entanto, não
devem ser passadas por alto. Servem para fortalecer a fé. Além disso,
têm valor demonstrativo, pois a observação de Nicodemos era certa:
“Ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com
ele”. Estes sinais eram o selo da aprovação, do Pai; e especificamente do
fato de que o Pai O tinha enviado (_πέσταλκεν, veja-se Jo 1:6; 3:34; cf.
Jo 5:30).
37. Jesus continua: O Pai, que me enviou, esse mesmo é que tem
dado testemunho de mim. No batismo foi ouvida a voz do céu (Mc. 1:11)
à qual João alude em Jo 1:34. Além disso, também está o testemunho do
Pai no coração dos crentes (1Jo 5:9, 10). No entanto, aqui, nesta
passagem (Jo 5:37), como claramente o indica o contexto que segue
imediatamente, ao que se faz referência é às Escrituras do Antigo
Testamento. O Pai deu testemunho; quer dizer, que embora desse
testemunho no passado, este testemunho tem validez em todos os
tempos: deu-se para que permaneça. Mas Jesus acrescenta uma palavra
de penetrante repreensão: Jamais tendes ouvido a sua voz, nem visto a sua
forma. A voz de Deus é, naturalmente, o próprio Cristo (Jo 5:19; 14:19,
24); o aspecto de Deus, também é o Cristo (veja-se especialmente 2Co.
4:4, ε_κών — semelhança, imagem — το_ θεο_; aqui em Jo 5:27 se
emprega o termo ε_δος — forma externa). Os judeus não reconheceram
em Jesus a voz e a forma de Deus. E não O reconheceram por causa da
incredulidade.
38. Pelos versículos seguintes (vv. 38–40) vê-se com clareza que no
versículo 37 faz-se referência específica aos judeus. Jesus não nega que,
num sentido, os judeus tenham a palavra de Deus. O que diz é que não a
têm em seus corações de uma forma permanente, e a causa disso é que
não haviam posto sua confiança nAquele que o Pai tinha encarregado
João (William Hendriksen) 273
para a obra messiânica: Também não tendes a sua palavra permanente
em vós, porque não credes naquele a quem ele enviou. Não podiam ver
porque o véu da incredulidade lhes cobria os olhos do coração (2Co.
3:15). referente a: “a quem ele enviou”, veja-se Jo 3:34; cf. Jo 1:6. O que
segue no versículo 39 está estreitamente relacionado com isto.
39. Jesus diz: Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a
vida eterna, e elas mesmas são as que dão testemunho de mim [TB].
Depois de ler todos os argumentos dos que insistem em que o verbo
_ρευν_τε deve ser traduzido por imperativo, e que, por conseguinte
deve-se ler: “Examinai as Escrituras”, como nas versões normais,
devemos confessar que não estamos de acordo. Entendemos que o verbo
é presente indicativo de ação contínua pelas seguintes razões:
a. Isto, como já se disse, concorda perfeitamente com o versículo
precedente (tendes a palavra, porém não a tendes em vossos corações; e
aqui igual: Examinais as Escrituras, porém não achais o Cristo nelas).
b. O imperativo “Examinai as Escrituras” constitui uma introdução
muito estranha à cláusula “porque julgais”. Se realmente tivesse sentido
de imperativo, seria de esperar-se um; “porque vós tendes” ou “porque
vós obtereis vida eterna por meio dessa busca”. Por outro lado, a frase,
“Estais examinando as Escrituras porque vos parece que nelas tendes a
vida eterna”, tem muito bom sentido.
c. O contexto que segue indica também claramente que a intenção
de Jesus não é absolutamente dizer a Seus inimigos que seu pecado
consiste em que não esquadrinham as Escrituras. Pelo contrário, seu
desejo é lhes fazer ver esta importante verdade: “Embora tendes os livros
de Moisés e inclusive pusestes vossa esperança neles, não vos servirão,
mas antes, testificarão contra vós porque não me vedes neles” (veja-se
versículos 45, 46).
Jesus não nega que os homens tenham vida eterna nas Escrituras do
Antigo Testamento (sobre isto veja-se Jo 3:16). Se os judeus pensam que
seus escritos sagrados são em potencial um meio de graça, estão certos.
Mas o que o Senhor deseja deixar bem gravado neles é: Não conseguis
João (William Hendriksen) 274
ver-me revelado nestas escrituras, e, no entanto, “elas são as que dão
testemunho de mim”. Esta mesma verdade — Cristo em toda a Escritura
— que abre os mistérios do Antigo Testamento (e também do Novo), e
sem a qual a Bíblia é um livro fechado, faz-se ressaltar nas seguintes
passagens: Lc. 24:32, 44; Jo 5:46; At. 3:18, 24: 7:52; 10:43; 13:29;
26:22; 28:23; e 1Pe. 1:10.
40. Atrás desta cegueira está um coração rebelde: e não quereis vir a
mim para 125 terdes vida. À luz desta passagem, expressões tais como:
“nunca ouvistes”, “não vistes”, “não crestes” (Jo 5:37, 38), devem-se
considerar como exemplos de litote. O verdadeiro significado é: pela
vossa dureza de coração, rejeitastes vilmente ao Filho de Deus.
41, 42. Qual foi a razão do choque entre Jesus e os judeus?
Provavelmente os judeus tivessem respondido a esta pergunta assim:
“Ele se incomodou porque O criticamos por transpassar o sábado e por
fazer-se igual a Deus; se lhe tivéssemos louvado pelo que fez com o
homem do tanque estaria satisfeito”.
Jesus, que os conhecia muito bem e podia ler em seus corações,
responde: Não recebo glória dos homens. Nem a busca, nem quer dar por
válido o louvor dos incrédulos. A seguir Jesus dá Sua explicação sobre a
causa de Sua controvérsia com os judeus. A verdadeira razão não é que
Ele anseie seu louvor, mas sim eles não amam a Deus. O Senhor diz:
Mas eu lhes conheço (veja-se Jo 5:6) e sei que não tendes em vós o amor
de Deus (quer dizer, amor a Deus, pois o contexto que segue claramente
mostra que se trata de um genitivo objetivo). Se esse amor tivesse
existido em seus corações, haveriam aceito, naturalmente, o testemunho
do Pai a respeito do Filho.
43. Não era difícil para Jesus demonstrar que Sua afirmação “não
tendes amor a Deus” era certa. A prova consistia nisto: Eu vim em nome
de meu Pai, e não me recebeis. Apesar de que tinha vindo em nome do
Pai (quer dizer, não só por Seu mandato, mas também especificamente

125
A respeito de ἵνα veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 275
para O revelar por palavra e obra) não O haviam aceito. Aqui temos
outro exemplo de litote. Tinham-No rejeitado tenazmente, e isto apesar
dos poderosos testemunhos enumerados em Jo 5:31–40. Se outro vier em
seu próprio nome, recebê-lo-eis. 126 Esta profecia se cumpriu vez após vez.
Teudas foi um falso messias; Judas o galileu foi outro (At. 5:36, 37).
Logo veio Bar Kochba (132–135 d.C.) a quem um rabi tão distinto como
Akiba chamou: A estrela de Jacó (Nm. 24:17). Desde aqueles dias houve
muitos mais. O último será o próprio anticristo (2Ts. 2:8–10). Todos
estes se apresentam sem as credenciais adequadas: vêm “em seu próprio
nome”. E mesmo assim as pessoas lhe entregam tudo; e eles guiam
muitos ao erro.
44. A realidade não é só que os judeus não creem, mas além disso, é
que não podem crer, visto que buscam constantemente o louvor dos
homens, e não a que vem de (παρά) Deus. Jesus proclama esta verdade
nas seguintes palavras: Como podeis crer, vós que recebeis glória uns dos
outros, e não buscais a glória que vem do único Deus?
O próprio nome de judeu — de Judá, que significa louvado —
falava-lhes continuamente de glória, louvor e honra; mas a classe de
honra que eles buscam procede de uma fonte corrupta. Cf. Rm. 2:29
onde Paulo lembra aos seus leitores que um verdadeiro judeu é aquele
cujo louvor não é dos homens mas de Deus.
Os judeus a quem Jesus agora Se dirige elevavam suas petições
duas vezes por dia, e as ofereciam ao Único Deus — baseando-se em Dt.
6:4, 5 — e, no entanto, não buscavam o louvor que vem do Único Deus,
nem tampouco O amavam, como ordena a passagem de Deuteronômio.
A falta de amor sempre produz cegueira. Não foi falta de evidência, mas
falta de amor o que fez com que estes homens rejeitassem a Cristo.
45, 46. Os judeus escutaram em silêncio esta dura correção. Talvez
chegassem à conclusão de que as palavras de Jo 5:34: “…digo-vos estas
coisas para que sejais salvos”, não eram verdadeiras. Talvez começaram

126
III A 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 276
a considerar Jesus como um acusador, igual a Satanás quando se pôs à
direita do Anjo do Senhor para acusar a Josué, o sumo sacerdote, por
suas vestes sujas (Zc. 3:1–5). Mas Jesus não vinha com este propósito
(cf. Jo 3:17). Na realidade não fazia falta. O Senhor pronuncia a
provocação final ao seu hostil auditório, com palavras de terrível
significado: Não penseis (ou: não penseis μ_ δοκε_τε, pres. imperativo)
que eu vos hei de acusar perante o Pai; quem vos acusa é Moisés, no qual
confiais. Os judeus apelavam vez após vez a Moisés, e se jactavam,
dizendo: “… discípulos de Moisés somos” (Jo 9:28). Mas Jesus lhes diz
agora que Moisés, o objeto de sua esperança, a cujos escritos apelavam
constantemente e cujas instruções debatiam e analisavam com suma
meticulosidade, seria na realidade quem os acusaria; e isto porque,
apesar de jactar-se de ser seus seguidores, na verdade, não criam nele:
Pois se tivésseis crido a Moisés, me teríeis crido a mim; porque ele
escreveu de mim. 127 “Moisés escreveu a respeito de mim”, disse Jesus.
Sobre este particular devemos fazer menção da lista de referências que
demos em nosso comentário de Jo 1:5 e que mostram que Cristo é
verdadeiramente o coração dos escritos de Moisés e de todo o Antigo
Testamento. No Pentateuco, que em sua essência foi escrito por Moisés
segundo o testemunho do próprio Cristo neste versículo, há certas
passagens que se referem com toda certeza a Cristo; p. ex.: Gn. 3:15;
9:26; 22:18; 49:10; Nm. 24:17 e Dt. 18:15, 18. Mas o que Moisés
escreveu a respeito de Cristo não fica limitado a estas passagens. Todo o
Pentateuco — e não só o Pentateuco, mas também todo o Antigo
Testamento — aponta à vinda de Cristo e prepara claramente Sua
chegada. Há quatro caminhos que, atravessando todo o Antigo
Testamento, convergem em Belém e no Calvário; ou seja: o histórico, o
tipológico, o psicológico, e o profético.
Por preparação histórica queremos dizer que as forças do mal
dirigem seu ataque contra o povo de Deus, esforçando-se em fazer

127
II A; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 277
impossível o cumprimento da promessa de Deus com relação ao Cristo
que devia vir; e também queremos dizer que quanto maior foi a
necessidade, mais próxima esteve a ajuda: a grande necessidade do
homem é a oportunidade de Deus. O Pentateuco e os restantes livros do
Antigo Testamento estão cheios de exemplos.
Por preparação tipológica queremos dizer que o caráter do Messias
vindouro e da salvação que há nEle estão representados em tipos
materiais ou pessoais. Pensemos, por exemplo, na água que brotou da
rocha, no maná, na páscoa, na coluna de fogo, no tabernáculo com seus
arranjos, em todo o ritual dos sacrifícios, na serpente elevada no alto; e
por outro lado, em pessoas como Adão, Melquisedeque, Josué, Davi,
Salomão, etc. Os livros de Moisés estão cheios de símbolos centralizados
em Cristo.
A preparação psicológica aponta ao fato de que durante toda a
antiga dispensação — e naturalmente também nos livros de Moisés — há
uma verdade que se vai fazendo cada vez mais patente: o homem nunca
pode alcançar a verdadeira felicidade e a salvação por suas próprias
forças. Um dos principais objetivos da promulgação da lei no Sinai foi
criar esta convicção. Se algum homem tiver que salvar-se, tem que ser
salvo por outro. Este outro é Cristo.
E, por último, a preparação profética indica que a vinda de Cristo,
Sua obra, Seu sofrimento e a glória subsequente tinham sido anunciados
por meio de profecias diretas.
Certamente, pois, podia dizer: “Moisés escreveu de mim”. Bem
entendido, tudo o que escreveu Moisés concernia a Cristo. 128
47. Jesus conclui Seu discurso aos judeus com esta pergunta
retórica: Porém se não dais crédito aos seus escritos, como dareis crédito
às minhas palavras? 129 (_ήμασιν, locução, discurso). (Cf. Lc. 16:31).
Pôs-se na moda o aceitar a teoria que sustenta que neste versículo
128
Temos escrito um resumo da história do Antigo Testamento, que gira em torno desse tema; veja-se
Bible Survey, terceira edição, Grand Rapids, Michigan, 1949, pp. 79–130.
129
I B; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 278
contrasta entre seus e minhas, mas não entre escritos e palavras. Não
obstante, inclinamo-nos a crer, junto com A. T. Robertson e outros, que
o contraste não existe só entre os possessivos, mas também entre os
substantivos: seus escritos contrasta com minhas palavras. Se Jesus
tivesse desejado simplesmente colocar um possessivo diante de outro,
então tivesse empregado provavelmente o mesmo substantivo (por
exemplo, ensinos, palavras, mandamentos) depois dos adjetivos; e assim
tivesse ficado: “Mas se não credes em suas palavras, como crereis nas
minhas?” Com esta construção, o contraste entre “seus” e “minhas” é
mais evidente. Mas nesta oração condicional encontramos seus escritos
na prótase, e minhas palavras na apódose. Por outro lado, o contraste
entre estes dois conceitos (cada um com um substantivo e seu
modificativo) tem sentido. A nosso modo de ver, o que Jesus queria
dizer era isto: “Vós, os judeus, sempre estão dizendo que não há nada
mais sagrado que a Torá escrita (embora na prática muitas vezes dão
mais crédito à lei oral que à escrita). Essa lei escrita vós a colocais acima
de tudo, e, naturalmente, acima das palavras que qualquer um possa
pronunciar. Vós, além disso, consideram Moisés como o vosso principal
líder, e rivalizais em exaltar sua memória. Segundo vós, nenhum ser vivo
hoje em dia pode-se comparar com ele. Por conseguinte: se não credes
em seus escritos, como crereis em minhas palavras? A estrutura inversa
(quiasmo) da frase no original, que tratamos de reproduzir, confirma a
ideia de que, efetivamente, este é o contraste que Jesus desejava
produzir. A pergunta que Jesus fez não se podia responder. Se forem
negados os escritos sagrados, tudo foi perdido. Os judeus necessitavam
esta lição; e também nós neste tempo.

Síntese de Jo 5:21–47
O Filho de Deus rejeitado na Judeia em consequência da cura no
sábado do homem de Betesda, e por afirmar que é igual a Deus
(conclusão).
João (William Hendriksen) 279
À seção sobre as afirmações de Jesus segue esta outra a respeito de
suas testemunhas. Estes podem ser resumidas do seguinte modo:
(1) O testemunho do próprio Jesus (Jo 5:31; 8:14).
É certo, mas os judeus negam seu valor.
(2) O testemunho de João Batista (Jo 5:33–35).
Deu testemunho da verdade concernente a Cristo, chamando-o o
Cordeiro de Deus, o Filho de Deus, etc. Este testemunho deve ser aceito
pela fé, para salvação.
(3) O testemunho de Suas obras (Jo 5:36).
Estas têm um valor evidente, demonstrando que o Pai enviou a
Jesus para realizar Sua obra mediadora.
(4) O testemunho do Pai (Jo 5:37, 38).
Seu testemunho foi por meio da voz do céu, mas especialmente por
meio de:
(5) O testemunho da Escritura (Jo 5:39–47).
A falta de amor a Deus tinha cegado os judeus, de modo que não
podiam ler estes escritos como era necessário. Em consequência, Moisés,
em quem eles se gloriavam, testificará contra eles.
(6) O testemunho dos crentes individuais (Jo 15:27).
(7) O testemunho do Espírito Santo (Jo 14:16, 26; 15:26).
Nisto, no entanto, temos que ir com precaução. Tal como
mostramos na exegese, estes sete não se podem realmente considerar
como testemunhas isoladas. É o Pai quem testifica através de todos eles.
João (William Hendriksen) 280
JOÃO 6
JO 6:1–21

6:1. O relato começa com a familiar frase: Depois disto, que já se


explicou em Jo 5:1. O milagre que o presente parágrafo nos dá a
conhecer teve lugar entre seis meses e um ano depois dos eventos do
capítulo 5. Provavelmente ocorreu em abril do ano 29 d.C.; veja-se Jo
5:1. Quer dizer, um ano antes da morte de Jesus Cristo.
O Evangelho de João parece dar por sentado que os leitores estão
bem inteirados do Grande Ministério na Galileia que achamos nos
Sinóticos (Mt. 4:12–15:20; Mc. 1:14–7:23; Lc. 4:14–9:17). Depois de
registrar o milagre que se operou no princípio deste ministério (Jo 4:43–
54), o evangelista salta agora ao último milagre do mesmo. O milagre
dos pães e os peixes está registrado nos quatro Evangelhos (Mt. 14:13–
23; Mc. 6:30–46; Lc. 9:10–17; Jo 6:1–15). O propósito de João nesta
narração é o de apresentar a majestade de Cristo (cf. Jo 20:30, 31). Por
esta razão ele nos dá certos detalhes que não se encontram em outros
Evangelhos. Por outro lado, apresenta-nos um surpreendente paralelismo
entre os capítulos 5 e 6: no primeiro ele nos mostra como se rejeitou a
Jesus na Judeia; no segundo ele nos fará ver como foi rejeitado na
Galileia (compare-se especialmente Jo 5:18 com Jo 6:66). A história
desta dupla rejeição é necessária para subministrar um fundo aos
seguintes capítulos; porque faz com que o terno amor do Salvador
ressalte nitidamente contra o fundo da ingratidão humana.
O presente capítulo revela também, provavelmente com mais
clareza que nenhuma outra passagem da Escritura, a classe de Messias
que o povo queria; ou seja, Alguém que fosse capaz de satisfazer suas
necessidades físicas e estivesse disposto a fazê-lo. Quando creram que
Jesus cumpriria suas esperanças, quiseram levá-Lo em triunfo a
Jerusalém, pela força se fosse preciso, para coroá-Lo rei. Mas logo que
João (William Hendriksen) 281
lhes deu a entender claramente que seu herói não era o que eles tinham
imaginado, mas que era um Messias espiritual que tinha vindo salvar o
Seu povo da culpa, da corrupção e da miséria do pecado, voltaram-lhe as
costas e já não andaram mais com Ele. Portanto, no mesmo capítulo,
Jesus aparece na cúspide de Sua celebridade, e logo, de repente, avança a
grandes passos para o ponto mais baixo da zombaria pública. Mas no
meio desta volúvel multidão, aparece revelada Sua glória, e
especialmente no sentido de que, embora conhecesse este povo a fundo,
estava, no entanto, disposto a derramar o Seu favor sobre eles.
Somos informados que Jesus atravessou o mar da Galileia. Lc. 9:10
nos informa que o lugar onde isto sucedeu estava nos arredores de
Betsaida. Embora não se possa falar com certeza sobre o problema de se
havia mais de uma cidade com esse nome nas cercanias do Mar da
Galileia (veja-se também a explicação de Jo 1:44), sentimo-nos
inclinados a responder afirmativamente depois de ter estudado ambas as
possibilidades. Eis aqui nosso raciocínio:
1. Segundo os Sinóticos, Jesus tinha estado ministrando, antes de
cruzar o mar da Galileia, na parte ocidental do país, Cafarnaum e seus
arredores, Nazaré, etc. Além disso, como já vimos, o milagre que relata o
capítulo 5 de João teve lugar a oeste do Jordão (em Jerusalém, no lago).
Por ambas as razões, parece que a expressão “atravessou Jesus o mar” só
podia ter significado para os que tinham lido as narrações do Evangelho
até aqui: Jesus cruzava agora para o este (ou nordeste) do mar. E,
exatamente ali, era onde estava Betsaida Júlia, precisamente ao sudeste
do ponto em que o rio Jordão desemboca no mar da Galileia.
2. Depois do milagre dos pães e os peixes, os discípulos voltaram a
cruzar o mar. Seu barco ia rumo a Cafarnaum (Jo 6:17), mas segundo
Mc. 6:45 dirigia-se a Betsaida. Como é natural, a explicação mais
simples é que se trata de outra Betsaida, situada perto de Cafarnaum.
João (William Hendriksen) 282
3. Esta conclusão está apoiada também pelo fato de que esta
Betsaida (a de Mc. 6:45) encontrava-se na planície de Genesaré (Mc.
6:53), que se estende a noroeste do mar da Galileia. 130
4. O próprio fato de que ao se mencionar a cidade natal de Filipe
(Jo 12:21), que também era de André e Pedro (Jo 1:44), se denomine
Betsaida da Galileia, parece marcar uma distinção entre essa Betsaida e
outra Betsaida que não estava na Galileia; ou seja, Betsaida Júlia, cidade
recentemente levantada pelo tetrarca Filipe, e à qual se tinha dado o
nome da bela mas dissoluta filha do Imperador Augusto.
5. O argumento que às vezes se opõe à hipótese de que havia duas
Betsaidas é este: deve-se considerar muito fora do comum a existência
de duas cidades com o mesmo nome à beira do mesmo lago. Mas a
resposta é esta: a. existiam muitas cidades e povos na Palestina bíblica
com nomes idênticos, e alguns deles não estavam muito separados; e b.
levando em conta a abundância de peixe no mar da Galileia, quase
pareceria estranho que só uma cidade da costa tivesse recebido o nome
de “Casa de Peixe” (ou seja, Betsaida).
Jesus, então, atravessou o mar da Galileia e desembarcou nas
proximidades de Betsaida Júlia. O mar da Galileia é designado aqui
também com outro de seus muitos nomes. Entre estes estavam: mar de
Quinerete (Nm. 34:11; Dt. 3:17; Js. 13:27; 19:35), Lago de Genesaré
(Lc. 5:1) e mar de Tiberíades (aqui em Jo 6:1). Este último nome, que,
ligeiramente modificado, emprega-se até hoje, deriva-se do de uma
cidade (Tiberíades) que Herodes Antipas fundou no ano 22 d.C., na
margem ocidental. Provavelmente os leitores da Ásia Menor conheciam
melhor este nome que qualquer dos outros. Por esta razão se acrescenta a
explicação, que é o de Tiberíades.
Em Mc. 6:30–32 e Mt. 14:12, 13 é-nos dito por que razão Jesus e
Seus discípulos cruzaram o mar: os discípulos acabavam de retornar de

130
O Viewmaster Travelogue, rolo nº. 4009, O Mar da Galileia, cena 7, proporciona uma vista a cores,
muito vívida, em três dimensões, da planície de Genesaré.
João (William Hendriksen) 283
uma viagem missionária, e precisavam descansar e estar a sós com Jesus.
Nas povoadas margens ocidentais, especialmente em Cafarnaum, não
havia oportunidade de descansar. Por outro lado, a terrível notícia do
cruel assassinato do Batista acabava de chegar até Jesus. Era preciso
refletir sobre isso e meditá-lo serenamente.
2. Seguia-o numerosa multidão, porque tinham visto os sinais que ele
fazia na cura dos enfermos. Numa linguagem pitoresco — observe-se os
três imperfeitos — se descreve aqui à multidão que seguia a Jesus
durante seu ministério na Galileia: ele O seguiam porque viram os sinais
que fazia nos doentes. Somos informados em Mt. 14:13 (cf. Mc. 6:33;
Lc. 9:11) que a multidão, percebendo que Jesus embarcou e Se dirigia
para Betsaida Júlia, saiu de diversas cidades e aldeias e correu
bordejando o lago para voltar a reunir-se com Jesus. Isto não significa
que vissem nEle o Salvador que os livrasse de seus pecados, mas que
tinham ficado impressionados por um Operador de milagres. Estes
milagres na realidade eram sinais (veja-se Jo 2:11), mas a multidão não
compreendeu isso.
3. De modo que, enquanto a multidão bordejava o lago, Jesus o
estava atravessando. 131 Chegou à solitária região perto de Betsaida Júlia.
Então, subiu Jesus ao monte (ε_ς τ_ _ρος). Na margem nordeste deste
mar, a uns dois quilômetros ao sul de Betsaida, existe uma pequena
planície de rico material de inundação. Visto que, quando Jesus e seus
discípulos foram ali, era primavera, não deve nos surpreender que se nos
diga que havia erva verde em abundância. No final desta planície se
eleva um monte, de modo que se cumprem todos os requisitos das
narrações dos Evangelhos. Portanto, quando o evangelista escreve que
Jesus subiu ao monte, os que estavam familiarizados com os arredores
saberiam exatamente a que monte se referia; e os que desconheciam a

131
Quem chegou primeiro, Jesus ou a multidão? Muitos creem que existe discrepância entre Mc.
6:33b e Jo 6:5a. Não há, no entanto, razão para pensar assim. O termo προῆλθον na passagem de
Marcos deve ser interpretado corretamente, e então vê-se o acordo. Em apoio de João 6:5a veja-se
também Mt. 14:13 e Lc. 9:11.
João (William Hendriksen) 284
paisagem podiam adivinhar facilmente que havia um monte no final de
uma faixa plana ao longo da margem do mar.
Aqui, pois, podemos ver a Jesus. Subiu um trecho pela ladeira do
monte, e assentou-se ali com os seus discípulos. Os leitores da Ásia Menor
— e de outros lugares — já saberiam, pelos Sinóticos, que nesta época
Jesus tinha doze discípulos. Neste mesmo capítulo se dão os nomes de
alguns: Filipe (Jo 6:5, 6), André (Jo 6:8), Simão Pedro (Jo 6:68), e Judas
Iscariotes (Jo 6:71). Suas reações à obra e às palavras de Jesus ficaram
registradas. O que o Senhor fez foi uma prova que revelou o que havia
em seus corações.
4. Ora, a Páscoa, festa dos judeus, estava próxima. Aqui é chamada
festa dos judeus, nome que em Jo 7:2 dá-se à festa dos Tabernáculos.
Provavelmente menciona-se a proximidade da Páscoa para explicar Jo
6:15. A Páscoa era uma comemoração da libertação da escravidão no
Egito. Era, em consequência, nesse dia em que os pensamentos dos
judeus giravam em torno da pergunta: “Quando ficaremos livres da
escravidão de Roma?”
5. De Sua elevada posição Jesus podia ver facilmente que se
aproximava uma grande multidão. Então, Jesus, erguendo os olhos e
vendo (θεασάμενος, igual a quando o numeroso grupo de samaritanos se
aproximou dEle, veja-se Jo 4:35) que grande multidão vinha ter com ele,
longe de considerá-los como um motivo de moléstia inconveniente,
começou a descer do monte para encontrá-los, pois estava cheio de
compaixão para eles (Mt. 14:14). disse a Filipe: Onde132 compraremos
pães para 133 lhes dar a comer? Em relação a isto, leve-se em conta:
1. Não se nos revelou por que razão o Senhor Se dirigiu a Filipe. Os
comentaristas deram diversas explicações, tais como: a. Filipe era de
Betsaida, e, conhecendo bem aquela região, era de esperar que soubesse

132
A palavra πόθεν (onde) não significa necessariamente “do que cidade ou povo”. Também pode
significar “de que recursos pecuniários”. De fato, Filipe parece tomá-lo no último sentido (veja-se
versículo 7). A tradução “como” torna possível qualquer das duas ideias.
133
A respeito de ἵνα veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 285
onde podiam obter pão (mas aqui, para não dizer mais, confundem-se
provavelmente as duas Betsaidas); b. Filipe era tardo para compreender e
tinha mais necessidade que os outros de ser provado (referindo-se
geralmente a Jo 14:8, 9); c. era uma pessoa realista e calculadora; d.
acabava de fazer uma pergunta; ou e. porque era aquele que estava mais
perto de Jesus.
Da nossa parte não temos nenhuma resposta. Não há nada no
contexto que explique por que Jesus escolheu a Filipe para lhe fazer esta
pergunta. Naturalmente, a fé de Filipe precisava ser posta à prova (Jo
6:6), mas, não era isso também certo com relação à fé dos outros
discípulos?
2. O termo que no original se emprega para “pão” não indica um
pão de forma alongada. Um _ρτος era algo redondo e plano, parecido
com uma torta magra. Às vezes quer dizer simplesmente pão.
6. A razão desta pergunta é dada nas palavras seguintes: Mas dizia
isto para o experimentar; porque ele bem sabia o que estava para fazer. A
palavra que se emprega no original pode significar tentar (como em Tg.
1:13) ou examinar, provar (como em Tg. 1:2, provas). Aqui,
naturalmente, o significado é que o Senhor queria dar uma oportunidade
a Filipe para revelar se ele se compadecia daquela multidão, e se tinha
compreendido a lição que ensinavam os milagres, em sua qualidade de
sinais; quer dizer, que apontavam para a majestade, poder e glória do
Senhor, Sua capacidade e disposição para satisfazer as necessidades. O
propósito da pergunta não era obter informação a respeito de onde se
poderia comprar pão; nem tampouco esta pergunta representa que o
Senhor não sabia o que fazer, pois lemos: “…porque ele bem sabia o que
estava para fazer”.
7. Filipe contempla a enorme multidão, e imediatamente começa a
calcular, esquecendo completamente que o poder de Jesus ultrapassa
todo cálculo. Então, Respondeu-lhe Filipe: Não lhes bastariam duzentos
denários de pão (genitivo de preço) para receber cada um o seu pedaço.
O denário, moeda de prata, era provavelmente a moeda romana mais
João (William Hendriksen) 286
empregada nos tempos do Novo Testamento. Literalmente, o nome
denário significa: que contém dez. É assim denominado com relação ao
asse, moeda de bronze que valia a décima parte de um denário. Não
obstante, quando se diz, como alguns comentários fazem, que o denário
é equivalente a 16, 17 ou inclusive 20 centavos de dólar, e que portanto
Filipe falava de uma quantidade de $32, $34 ou $40, comete-se um
equívoco. O valor do dólar é flutuante. Portanto, é melhor dizer,
baseando-se na Escritura (Mt. 20:2, 9, 13) que o denário representa o
salário que se pagava a um operário por um dia de trabalho; e, em
consequência, duzentos denários seria a quantidade de dinheiro que um
homem receberia em duzentos dias de trabalho. Com esta soma não teria
sido possível comprar suficiente pão para que cada um tomasse um
pouco (βραχύ τι) Por outro lado, é de duvidar que Judas, o tesoureiro,
tivesse duzentos denários na bolsa!
Filipe teve tempo para refletir na resposta que tinha dado e,
sobretudo, na pergunta que lhe foi feita. Jesus começou a falar com a
multidão a respeito do reino de Deus. Os que necessitavam cura foram
curados (Lc. 9:11). No entanto, apesar destas manifestações de poder,
parece que não ocorreu a Filipe pensar que o Senhor, que em Caná tinha
manifestado Seu poder para dar vinho quando este faltou, seria
igualmente capaz de dar pão em Betsaida.
8, 9. O dia foi passando, e chegou o entardecer. A multidão, que
tinha estado escutando a Jesus várias horas, começou a ter fome. Em Mc.
6:35–37 se narra o que sucedeu a seguir: “Em declinando a tarde, vieram
os discípulos a Jesus e lhe disseram: É deserto este lugar, e já avançada a
hora; despede-os para que, passando pelos campos ao redor e pelas
aldeias, comprem para si o que comer. Porém ele lhes respondeu: Dai-
lhes vós mesmos de comer. Disseram-lhe: Iremos comprar duzentos
denários de pão para lhes dar de comer?”
Daí se deduz claramente que a fé dos restantes discípulos não era
mais forte que a de Filipe. Não passou pela cabeça de nenhum deles
pensar no poder de Jesus. Todos eles calcularam, mas não exerceram fé.
João (William Hendriksen) 287
Marcos nos informa que Jesus perguntou aos discípulos: “Quantos
pães tendes? Ide ver!” (Mc. 6:38). A resposta (Mc. 6:38b; Mt. 14:17; Lc.
9:13b) foi: “Cinco pães e dois peixes”. O escritor do quarto Evangelho
que foi testemunha ocular, acrescenta alguns detalhes interessantes: Um
de seus discípulos, chamado André, irmão de Simão Pedro (veja-se Jo
1:40), informou a Jesus: Está aí um rapaz que tem cinco pães de cevada e
dois peixinhos; mas isto que é para tanta gente?
É interessante observar que não só aqui mas também em Jo 12:20–
22, encontramos Filipe e André mencionados juntos. Sabemos, por certo,
que eram da mesma cidade e que foram dos primeiros seis discípulos do
Senhor (veja-se Jo 1:41–43). André, como resposta à pergunta que Jesus
fez, aponta um rapaz, παιδάριον; este não devia ser necessariamente um
menino pequena, pois os diminutivos em grego, como ocorre em outras
línguas, tendem a perder algo de sua força diminutiva original. André
informa ao Senhor que este rapaz tem cinco pães de cevada e dois peixes
(_ψάρια aqui e também em Jo 21:9–13, não _χθύας como nos Sinóticos),
os quais seriam para acompanhar o pão ou para servir à maneira de
segundo prato.
Têm sido pregados muitos sermões a respeito deste rapaz. Têm sido
ditas coisas das quais não há indícios na Escritura ou em qualquer outro
lugar; p. ex., que este rapaz tinha ido a um mandado e estava de volta
para levar à sua mãe os pães e os peixes que lhe tinha encarregado; ou
que tinha saído de excursão levando sua comida, e André valendo-se da
persuasão, fez com que cedesse suas provisões; ou (não mais afortunado)
que este rapaz estava desempenhando seu trabalho cotidiano de vendedor
de refrigério (como se fosse hoje!). O Senhor não teve por bem dar mais
informação sobre este particular. A luz se centraliza no Senhor, não no
rapaz. É-nos suficiente saber que Jesus quis servir-se deste rapaz. O fato
de que o pão de cevada se considerasse em certos círculos como o “pão
de pobre”, e que inclusive Josefo fale de uma classe de pão de cevada
João (William Hendriksen) 288
134
“muito vil para que o consuma o homem”, não tem nada que ver com
o presente relato. O pão de cevada é um alimento bom e completo. A
comida que comem os pobres não precisa ser necessariamente comida
pobre! Quando André pensou nos cinco pães — só cinco! — e nos dois
peixes — só dois! — e na vasta e faminta multidão, mas não em Jesus,
em seu poder e em seu amor, exclamou: “Mas isto que é para tanta
gente?” E o que André disse, pensaram-no todos os outros.
10. Sem repreendê-los verbalmente por seu pequena fé, Disse Jesus:
Fazei o povo assentar-se. A ordem era fácil de acatar, visto que nesta
época do ano havia muita erva naquele lugar; e se recostaram (_νέπεσαν,
reclinaram-se sobre as ladeiras). Para maior facilidade em contá-los e
para servi-los, a multidão assentou-se em grupos de cem e de cinquenta
formando uma bela imagem comparável a outros tantos adornos de
jardim (cf. Mc. 6:40 no original). Podemos imaginar facilmente a esta
multidão embelezada com seus pitorescos vestidos orientais e reclinadas
na verde erva, sob o azul do céu, tendo ao fundo o Mar da Galileia. Eram
como safira num campo de esmeralda. Esperariam eles ver um milagre?
Seria esta a razão pela qual não vacilaram em obedecer o mandato de
assentar-se em ordem? É possível que se contassem os homens porque
havia muitos mais deles que de mulheres e crianças? De qualquer
maneira havia homens em número de quase cinco mil, além das mulheres
e as crianças.
11. A seguir se relata o milagre com uma extraordinária
simplicidade: Então, Jesus tomou os pães e, tendo dado graças,
distribuiu-os entre eles; e também igualmente os peixes, quanto queriam.
Observe-se que primeiro vem a ação de graças e logo o milagre, tal
como em Jo 11:41, 42. (Sobre as orações depois das comidas, veja-se Dt.
8:10.) Costuma dizer-se que Jesus deve ter usado alguma conhecida
oração para a mesa. Mas isto é muito improvável. A melhor resposta, no

134
F. Josefo, Jewish Antiquities, em H. St. J. Thackeray e R. Marcus, Josefo com tradução inglesa,
The Loeb Classical Library, Londres e Cambridge, 1934, vol. V, pp. 100, 101.
João (William Hendriksen) 289
entanto, é que não o sabemos. É preciso levar em conta que os sermões
que nosso Senhor pregava às multidões sempre se distinguiam por seu
frescor e originalidade; nunca falou como os escribas, copiando as
palavras dos rabis anteriores. É, pois, muito improvável que ao dirigir-se
a seu Pai celestial fizesse uso de uma oração pré-fabricada.
Jesus repartiu os pães entre os que estavam assentados. Observe-se
que João abrevia aqui. * Parece dar por sentado que os leitores já saberão
os outros detalhes através dos demais Evangelhos. Neles (Mc. 6:41; Mt.
14:19; Lc. 9:16) somos informados que depois que o Senhor teve dado
graças, tomou os pães e começou a parti-los (em partes de bom tamanho)
e a distribuí-los entre os discípulos, os quais os levaram (talvez em
cestos recolhidos dentre a multidão) às pessoas. Algo similar foi feito
com os peixes. O que se faz ressaltar é que todos os que estavam
presentes receberam quanto queriam. Alguns, inclusive, tomaram mais
do que podiam consumir. E assim, com majestosa simplicidade, narra-se
este milagre. Multiplicou-se o pão nas próprias mãos do Salvador? Em
que momento ocorreu o milagre exatamente? A única coisa que sabemos
é que um grande milagre teve lugar, e este sinal teve o caráter de uma
transformação. Do mesmo modo que Jesus em Caná não criou, e sim
transformou a água em vinho, assim também aqui não cria, e sim muda o
pão em mais pão. Isto está totalmente em consonância com o propósito
de Sua vinda à terra. Veio não para criar, e sim para transformar, e no
transcurso de Sua gloriosa obra mostra Sua extraordinária generosidade,
e portanto a do Pai: quando Ele dá, faz isso prodigamente.
12. Os recursos infinitos, contudo, não são uma desculpa para
desperdiçar. O desperdiçar é pecado. Por outro lado, não havia outros
que também deviam comer, como por exemplo o rapaz, os discípulos, os
pobres acudiriam amanhã, e inclusive, o próprio Jesus? Em consequência

*
O texto grego utilizado pelo autor deste comentário é seguido pela Versão Almeida Atualizada 1999,
Tradução Brasileira, Nova Versão Internacional, Bíblia de Jerusalém. Só a Authorized Version e a
Versão Almeida Corrigida 1998, falam da mediação dos discípulos na partilha dos alimentos. – Nota
do Tradutor.
João (William Hendriksen) 290
não nos deve surpreender ler: E, quando já estavam fartos, disse Jesus
aos seus discípulos: Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se
perca. Observe-se que diz os pedaços e não as migalhas.
13. Assim, pois, o fizeram e encheram doze cestos de pedaços dos
cinco pães de cevada, que sobraram aos que haviam comido. O sentido
aqui é que alguns tinham tomado muitos pedaços quando se repartiu o
pão. Agora se passa à coleta destas partes, enchendo-se não menos de
doze cestos de vime (κόφινος-οι; compare-se com σφυρίς) com o que
sobrou.
14, 15. O verdadeiro caráter do milagre não se apreciou. Não se
compreendeu o que ensinava. Vendo, pois, os homens o sinal (sobre a
palavra sinal, veja-se Jo 2:1) que Jesus fizera, disseram: Este é,
verdadeiramente, o profeta que devia vir ao mundo. Identificavam Jesus
com o profeta de Dt. 18:15–18. Até aí tudo ia bem. É, inclusive, possível
que neste profeta vissem o Messias, pois não há que perder de vista que
para caracterizar a este profeta empregam a frase “que devia vir (ou que
vai vir) ao mundo” (_ _ρχόμενος ε_ς τ_ν κόσμον; veja-se sobre Jo 1:10,
11) que por todo o quarto Evangelho refere-se a Cristo. Mas ainda
supondo que o considerassem como Messias, o que eles imaginavam ver
nele era um Messias terrestre e político, segundo a esperança farisaica,
como claramente o revela o versículo 15:
15. Sabendo, pois, Jesus que estavam para vir com o intuito de
arrebatá-lo para o proclamarem rei, retirou-se novamente, sozinho, para
o monte. Cheios de entusiasmo, com a classe de ardor que se apodera de
uma multidão judia na época da Páscoa, prepararam-se para ir
rapidamente a Jerusalém levando consigo Aquele seu homem forte que
era capaz de fazer curas e prover pão e prosperidade para todos — se
recusasse ir voluntariamente, estavam dispostos a raptá-Lo e obrigá-Lo a
ir com eles para, uma vez chegados à Cidade Santa, coroá-Lo rei, sacudir
o jugo romano e estabelecer o reino de Deus na terra. Mas aquele, cujo
reino não é deste mundo (Jo 18:36), retirou-Se de novo para o monte (cf.
Jo 6:3 e Mt. 14:14); quer dizer, subiu mais para o cimo, para estar
João (William Hendriksen) 291
sozinho. Mas antes, com o poder de Sua palavra, frustrou o propósito da
multidão: simplesmente despediu a multidão, ao tempo que mandava aos
Seus discípulos que embarcassem e voltassem à margem oposta do mar
da Galileia.
16-18. Ao descambar o dia, os seus discípulos desceram para o mar.
E, tomando um barco, passaram para o outro lado, rumo a Cafarnaum.
Já se fazia escuro,135 e Jesus ainda não viera ter com eles. E o mar
começava a empolar-se, agitado por vento rijo que soprava.
Os discípulos, ao receber a ordem de Jesus de “passar adiante dele
para o outro lado” (Mt. 14:22), desceram ao mar. O evangelista relata
que depois de embarcar fizeram-se ao mar, em direção a Cafarnaum, na
margem noroeste. A hipótese de alguns de que esperaram muito crendo
que Jesus se uniria a eles, é uma contradição total de Mt. 14:22, e
certamente não se deriva de Jo 6:17.
A forma em que João usa os tempos dos verbos gregos nos
versículos 17 e 18 é muito instrutiva. 136 Emprega os imperfeitos “iam
cruzando” (_ρχοντο) e “se levantava” (διηγείρετο) para descrever a
situação dos homens no barco e do mar, respectivamente. Mas entre
estes imperfeitos faz uso de dois mais-que-perfeitos: “já havia”
(escurecido) — _γεγόνει — e (Jesus) “não tinha vindo” — ο_πω
_ληλύθει —, para indicar o que havia (ou não havia) sucedido antes de
que os discípulos chegassem à margem oposta. Por outro lado, quando o
escritor diz: “Já se fazia escuro, e Jesus ainda não viera ter com eles”, ele
o faz do ponto de vista de alguém que tinha estado no barco e agora,
muitos anos mais tarde, escreve a história. Ao escrever, sabia,
naturalmente, que antes de ter amanhecido, e de ter chegado à outra
margem, o Senhor se uniu ao pequeno grupo. Sabia também que os
leitores conhecem isso por Marcos 6 ou Mateus 14. Por conseguinte,
suas palavras podem ser parafraseado da seguinte maneira: “Já tinha
escurecido, e Jesus não tinha vindo a eles; a vinda de Jesus, a respeito da
135
Literalmente, “a escuridão já tinha começado”.
136
Cf. Gram. N.T. pp. 904, 905.
João (William Hendriksen) 292
qual têm lido nos outros Evangelhos, teve lugar um pouco mais tarde,
naquela mesma noite. Mas muito antes de que Jesus aparecesse, o mar
começou a encrespar-se (ou, a levantar-se), pois soprava um forte
vento”.
O vento descia às vezes repentinamente pelos barrancos que há
entre os montes para o oeste e com forte ímpeto dava sobre o lago, cuja
superfície está a 210 m. por debaixo do nível do Mediterrâneo. Logo em
seguida a intensidade do temporal aumentou. A noite fez-se mais escura.
Durante várias horas os discípulos, acostumados ao mar, remaram sem
descanso. Eles estavam de cara a Betsaida Júlia mas o barco ia em
direção a Betsaida da Galileia. Logo se viram numa situação de
verdadeiro perigo, quer dizer, de um ponto de vista humano. Na
realidade não era assim, como se verá claramente quando se
relacionarem dois versículos de Mateus 14. Estes versículos formam, por
assim dizer, um quadro composto. Alguns artistas 137 famosos pintaram a
primeira parte deste quadro (Jesus orando sozinho) ou a segunda parte
(os discípulos na tormenta), mas o que devemos levar em conta é a
imagem composta, tal como Mateus nos apresenta o quadro nas
seguintes palavras:
“E, despedidas as multidões, subiu ao monte, a fim de orar sozinho.
Em caindo a tarde, lá estava ele, só. Entretanto, o barco já estava longe, a
muitos estádios da terra, açoitado pelas ondas; porque o vento era
contrário” (Mt. 14:23, 24).
Mesmo quando a tempestade rugia furiosa, e as trevas envolviam ao
pequeno grupo, na realidade estavam totalmente seguros, pois no monte
o Senhor intercedia por eles. Aqui temos, verdadeiramente, uma bela
imagem com muitas aplicações em nosso tempo.
Os discípulos tinham remado várias horas. Tinham partido da
margem oriental ao escurecer, ou pouco depois. Agora seriam as 3 da

137
Penso, por exemplo, no famoso quadro de Hofmann, Cristo no Getsêmani (o qual, embora a cena
não seja a de João 6, mostra Jesus no ato de orar) e de Jalabert, Tormenta na Galileia.
João (William Hendriksen) 293
madrugada, ou mais tarde (Mt. 14:25: a quarta vigília da noite; quer
dizer, entre 3 e 6 da madrugada). Tão forte era a tempestade que o barco
não tinha percorrido mais que vinte e cinco ou trinta estádios. Um
estádio são 180 metros, e portanto o significado é que o barco tinha
navegado quatro ou cinco quilômetros. Agora, se a distância do ponto
em que os discípulos embarcaram ao ponto de chegada era de algo mais
de sete quilômetros, como parece provável, então fica claro que os
discípulos encontravam-se, realmente, “no meio do mar” (Mc. 6:47). Por
outro lado, não há que descontar a possibilidade de que a violência do
vento os tivesse desviado um pouco de sua rota, ou que eles tivessem
tentado alcançar a margem. Seja como for, ainda faltava muito trecho
para chegar a seu destino.
19. Tendo navegado uns vinte e cinco a trinta estádios, eis que viram
Jesus andando por sobre o mar, aproximando-se do barco; e ficaram
possuídos de temor.
Sucedeu de repente! Olhando para o este (enquanto seu barco
dirigia-se a oeste), aqueles remadores viram na espessa escuridão a
silhueta de uma figura que andava sobre as enfurecidas ondas. Nem os
ventos nem as ondas pareciam lhe preocupar muito a esta forma humana.
Andava, pois, no meio da tempestade, e o fazia tão rápido que
gradualmente foi embora aproximando ao barco, até que pareceu que ia
passar por seu lado. Muito assustados, fatigado-los discípulos gritaram:
“Um fantasma, um fantasma!” (Mc. 6:48, 49). Estes detalhes que Mateus
e Marcos dão, são omitidos por João, quem se limita a dizer
simplesmente: “Quando tinham remado como quatro ou cinco
quilômetros, viram Jesus que andava sobre o mar e se aproximava ao
barco; e tiveram medo”. A causa deste medo era que, no princípio, os
homens não entenderam que era Jesus.
20. Mas Jesus lhes disse: Sou eu. Não temais! (μ_ φοβε_σθε,
presente de imperativo). Segundo Mateus e Marcos, as palavras “Sou
eu” foram precedidas por “Tende ânimo!”. Em Mt. (14:28–31) segue a
João (William Hendriksen) 294
história da tentativa de Pedro de andar sobre as águas para chegar até
Jesus.
Voltando ao quarto Evangelho (Jo 6:21), quando os discípulos se
convenceram de que o que viam não era um fantasma, e sim o próprio
Senhor, quiseram recebê-Lo a bordo, e, com efeito, o fizeram. Então
cessou o vento (Mt. 14:32). E em seguida (ε_θέως) o bote, que quando
Jesus o abordou encontrava-se a muita distância da margem, achou-se na
terra para onde iam. Também isto é apresentado como um milagre.
Aquele que já tinha manifestado o Seu poder nas enfermidades (cap. 5)
tinha também absoluto domínio do vento e das ondas. Demonstrou ser o
Filho de Deus (Jo 20:30, 31; cf. Mt. 14:32).

Síntese de Jo 6:1–21
O Filho de Deus rejeitado na Galileia (os dois milagres).
As duas subdivisões são: Jo 6:1–15, que nos lembra as linhas:
“Celeste voz que nos convida … Ao grande banquete do amor”, e Jo
6:16–21, “Quando tempestades surgem ao redor …”

Sob o primeiro tema temos:

A. O fracasso dos cálculos humanos


O lugar (uma planície a quase dois quilômetros de Betsaida Júlia, a
nordeste do Mar da Galileia) estava solitário. Quanto à hora, já estava
escurecendo. Além disso, havia mais de cinco mil bocas que alimentar.
Os discípulos não tinham dinheiro nem para comprar “um pouco” para
cada pessoa. E o rapaz que apareceu em cena só tinha cinco pães e dois
peixes! A situação, em resumo, parecia não ter solução; quer dizer,
contando com o cálculo humano, à parte da fé no amor e o poder de
Cristo. Os discípulos (não só Filipe e André, mas todos eles) eram
homens de pequena fé. Parece que ainda não tinham chegado a conhecer
João (William Hendriksen) 295
suficientemente bem a Jesus, o Filho de Deus, cujos recursos são
infinitos.

B. A suficiência total da provisão divina


Jesus nunca teve dúvida sobre o que devia fazer. Desde o princípio
sabia como devia prover. Seu coração estava cheio de amor. Perturbou
aquela multidão Seu desejo de descansar e ter tranquilidade? Era gente
em busca de emoções, com ideias terrenas? Sabia Jesus que buscavam
um Messias político e que rejeitariam o verdadeiro Messias? Por certo
que o sabia! E, no entanto, deu-lhes pão, quanto quiseram. Quando se
estuda este milagre, expõe-se a seguinte pergunta: Que virtude brilha
com mais gloria: o amor ou o poder de Cristo?
Como eventos do Antigo Testamento que prefiguram este milagre,
citamos Nm. 11:13; 1Rs. 17:16 e 2Rs. 4:42.
Embora o milagre seja relatado nos quatro Evangelhos, o modo em
que João o faz transforma-o em algo diferente: em seu Evangelho
aparece como um sinal (veja-se Jo 1:11) e constitui a introdução ao
sermão de Cristo sobre O Pão da vida.
É uma estultícia buscar explicar o que ocorreu ali. Um dos
exemplos mais absurdos é este: Jesus e os discípulos levavam algo de
comida, e começaram a dar aos que não tinham. Quando a multidão viu
isso, todos os que tinham levado algo consigo, envergonhados de seu
egoísmo, começaram a fazer o mesmo. E por esta razão houve suficiente
para todos. Mas o relato deste milagre deve ser aceito pela fé. Se a
pessoa não crer nele, que não tente explicá-lo com outras razões; que
seja sincero e diga: “Não acredito”.
O milagre que se produziu no mar é, constitui na realidade, quatro
milagres em um: 1. Jesus anda sobre o mar (sem suprimir as leis da
gravidade, Ele as controla para benefício do reino); 2. faz com que Pedro
ande também sobre o mar (embora este evento não seja narrado no
quarto Evangelho); 3. revela-se como Senhor da tempestade, pois ao
João (William Hendriksen) 296
entrar no barco, a tormenta cessa (omitido em João); e 4. mostra Seu
domínio sobre as distâncias, visto que ao entrar no barco este se encontra
imediatamente na margem.
Tal como João explica a história, esta pode ser dividida em três
partes:
A. Os discípulos sem Jesus.
B. Os discípulos e o Jesus irreconhecido.
C. Os discípulos e o Senhor que eles conhecem, e que lhes fala
palavras de paz.

JO 6:22–31

6:22. Jesus e Seus discípulos tinham desembarcado na margem


ocidental do mar da Galileia entre as três e as seis da manhã. Agora nos
encontramos no dia seguinte; quer dizer, a manhã depois do milagre dos
pães e os peixes, o que equivale a dizer: a manhã em que Cristo e Seus
discípulos atracaram à planície de Genesaré. Lembremos a multidão que
ficara do outro lado do mar. Esta gente que, depois de ter sido despedida
por Jesus, não retornou a suas casas, e sim que tinha ficado passando a
noite na outra margem, começou a notar de algo: notou:
a. que ali (ou seja, no lugar de desembarque ao sul de Betsaida
Júlia) não havia senão um (ou seja: aquele com que o Senhor e seus
discípulos tinham chegado a esta margem do nordeste) pequeno barco
(πλοιάριον, diminutivo); e
b. que Jesus não embarcara nele com seus discípulos, tendo estes
partido sós naquele barco. Jesus tinha subido a orar no topo do monte, e
os discípulos, como sabemos por Mt. 14:22, partiram-se sozinhos
obedecendo Suas ordens.
Então a multidão começou a buscar Jesus, crendo que ainda Se
encontrava nos arredores de Betsaida Júlia. Isto é o que implica Jo 6:24a.
No entanto, descobriram que Jesus tinha desaparecido, embora de um
modo misterioso. Chegaram à conclusão acertada de que Jesus tinha
João (William Hendriksen) 297
retornado à região ocidental (Cafarnaum); mas, como é natural, não
vendo nenhum outro barco que tivesse podido levá-Lo, não
compreendiam como tinha podido voltar. Foi, acaso, bordejando o mar?
Mas, não o teriam visto, se assim fosse? Nem por um momento passou-
lhes pela cabeça pensar que pudesse ter cruzado o mar andando! 138
A multidão queria estar com Jesus. Além disso, as pessoas queriam
voltar a suas casas, na margem ocidental. Naturalmente podiam voltar
andando pela margem do lago (coisa que, provavelmente, já tinham feito
muitos), o que representava uma marcha de 16 quilômetros para os que
viviam em Cafarnaum ou em suas proximidades. No entanto, devido aos
atoleiros que existem na parte norte do mar, e sobretudo a que no dia
anterior esta gente fez a mesma viagem, a empresa não era fácil. Mas os
barqueiros de Tiberíades 139 (a capital, na margem sudoeste, ao sul da
Planície de Genesaré) inteiraram-se de que ao outro lado do lago tinham
um bom negócio: uma grande multidão estava esperando um meio de
transporte para ir a suas casas e aldeias. Por isso não nos surpreende ler:
23. Entretanto, outros barquinhos chegaram de Tiberíades, perto do
lugar onde comeram o pão, tendo o Senhor dado graças (as últimas
palavras: tendo o Senhor dado graças são acrescentadas para indicar que
não tinha sido uma comida comum).
24. Quando, pois, viu a multidão que Jesus não estava ali nem os
seus discípulos, tomaram os barcos e partiram para Cafarnaum à sua
procura. Não nos estranha que se diga que as embarcações levaram os
passageiros a Cafarnaum, pois: a. ali teve Jesus sua residência durante o
ministério na Galileia; e b. do ponto de vista dos passageiros, esta cidade

138
A frase contida no versículo 22 não fica pendurada no ar, sem uma conclusão adequada, como
ocorre em algumas versões que tratam o versículo 23 como um parêntese, e logo no versículo 24
tentam grosseiramente reiniciar a frase começada no versículo 22. Consideramos tosca esta tentativa,
porque embora o versículo 24 tem sentido como uma nova afirmação que acrescenta algo à anterior,
no entanto não constitui uma conclusão adequada à frase que, supostamente, começou no versículo
22. O versículo em que ocorrem essas versões de débito ao fraco texto ΐδων em lugar do correto ϵΐδων.
139
No Viewmaster Travelogue, rolo nº. 4009, cena 6, Antigo Tiberíades, que se encontra em vista
muito vívida, a toda cor e em três dimensões, da Planície de Genesaré.
João (William Hendriksen) 298
tinha uma situação conveniente para todos. Uma vez chegados a
Cafarnaum, a multidão começou a buscar Jesus.
25. E, tendo-o encontrado no outro lado do mar, … Dado o que se
conhece quanto à situação da planície de Genesaré e da hora em que
Jesus e Seus discípulos tinham chegado ali — entre as três e as seis da
manhã — não é nada estranho que leiamos que aquela gente,
efetivamente, encontrou a Jesus. Não podemos ver nenhuma razão
plausível para supor, como fazem alguns comentaristas, que em tão curto
espaço de tempo Jesus não podia ter percorrido a distância do lugar em
que desembarcou até Cafarnaum. Ainda procedendo da maneira comum
havia tempo de sobra, sem necessidade de outro milagre, inclusive
admitindo sem reservas que todo o discurso do versículo 28 em diante
foi pronunciado na sinagoga de Cafarnaum (veja-se Jo 6:59). Também
havia tempo suficiente para os acontecimentos relatados em Mt. 14:35,
36.
Aquela multidão, que acabava de cruzar o mar nos barcos dos que
viviam em Tiberíades, depois de achar a Jesus, disseram-lhe: Rabi (RC;
sobre esta palavra veja-se Jo 1:38, nota 44), quando chegaste aqui? A
causa de sua surpresa já se mencionou. Em lugar de responder a sua
pergunta, o que teria podido reafirmar sua convicção de que Jesus era,
acima de todo, um operador de milagres o suficientemente poderoso para
comandar uma revolução e prover bem-estar para todos, o Senhor os
repreendeu severamente. O motivo pelo qual buscavam Jesus era mau.
26. Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: vós me
procurais, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos
fartastes. (Sobre as solenes palavras que abrem esta oração, veja-se Jo
1:51.) O que Jesus queria dizer era que, embora esta gente havia visto
Seus milagres (especialmente a cura dos doentes e a multiplicação dos
pães e os peixes, e, de um modo mais geral, todas as maravilhas que
tinha realizado), não os tinham compreendido em sua qualidade de
sinais, os quais O apontavam como o Messias espiritual, o Filho de
Deus. (Sobre o vocábulo sinal, σημε_ον, veja-se Jo 2:11.) O povo se
João (William Hendriksen) 299
interessava em Jesus particularmente porque tinha comido do pão que
lhe tinha dado e encheu o estômago (_χορτάσθητε: “e vos fartastes”,
palavra que em seu significado primário faz referência à forma de comer
que praticavam os animais; quer dizer, quando comem pasto: χόρτος da
qual se deriva este verbo).
27. A seguir temos outro belo mashal (veja-se Jo 2:19): Trabalhai
(ou “deixai de trabalhar”, o verbo está no presente de imperativo), não
pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna, a qual o
Filho do Homem vos dará; porque Deus, o Pai, o confirmou com o seu
selo.
Esta declaração velada deve ser comparada com o muito parecido
de Jo 4:14; e a resposta, especialmente a contida no versículo 34, deve-se
comparar com a de Jo 4:15. Os judeus não compreenderam as palavras
de Cristo sobre a comida (quer dizer, pão; vejam-se versículos 31–35),
do mesmo modo que a mulher samaritana tampouco captou o significado
de água, pois tanto eles como ela deram um sentido literal a este mashal,
e portanto erraram. À luz da explicação que segue nos versículos 32–35
(para a última cláusula veja-se também Jo 5:31–37) sabemos que esta
declaração tem o seguinte significado:

Mashal Significado

“Trabalhai, não pela comida que perece Deixai de ansiar pelos pães, e coisas
semelhantes, como se a comida material
fosse capaz de encher o vazio do
coração. Percebei que esta comida
perece, e que não tem valor permanente.

“mas pela que subsiste para a vida eterna Em lugar disso, tributai a Deus a obra
de fé nAquele a quem ele enviou, o qual
é a verdadeira comida, que produz e
sustenta a vida eterna;

“a qual o Filho do Homem vos dará; e esta comida a darei eu, o Filho do
João (William Hendriksen) 300
Homem; quer dizer, eu me darei àqueles
dentre vós que creem em mim;

“porque Deus, o Pai, o confirmou pois por meio do testemunho do próprio


com o seu selo”. Filho, de João Batista, das muitas obras
ou sinais, do Pai (diretamente), e das
Escrituras, Deus o Pai certificou que eu
sou o verdadeiro Messias, o Filho de Deus.

Sobre a palavra βρ_σις veja-se Jo 4:32. Para Filho do Homem, Jo


12:34. Para vida eterna, Jo 3:16.
28, 29. Os ouvintes não compreendem nada do sentido espiritual e
verdadeiro do mashal. Quando Jesus menciona as “obras” interpretam
este termo em seu sentido mais literal, como indicativo das obras da Lei
que a se deve praticar para ganhar um lugar no reino. Os fariseus
pesavam e contavam tais obras. Dirigiram-se, pois, a ele, perguntando:
Que faremos para realizar as obras de Deus? Respondeu-lhes Jesus: A
obra de Deus é esta: que 140 creiais naquele que por ele foi enviado. (Sobre
Jesus como o enviado, consulte-se Jo 3:34; cf. Jo 1:6.) Mas não chama
Jesus ao exercício da fé uma obra? E se for uma obra que o homem deve
realizar, como pode ser certo que o homem é salvo pela graça? (cf. Ef.
2:5, 8). Nossa resposta é:
a. O ensino de Cristo que encontramos no quarto Evangelho,
incluindo o capítulo 6, não deixa lugar a dúvidas de que a salvação é
completamente pela graça. É a obra de Deus e de seu Cristo; é um dom:
Jo 1:13, 17, 29; 3:3, 5, 16; 4:10, 14, 36, 42; 5:21; 6:27, 33, 37, 39, 44,
51, 55, 65; 8:12, 36; 10:7–9, 28, 29; 11:25, 51, 52; 14:2, 3, 6; 15:5; 17:2,
6, 9, 12, 24; e 18:9.
b. Mas isto não exclui a ideia de que o homem deve tributar a Deus
a obra da fé. Uma ilustração esclarecerá isso: as raízes de um frondoso
carvalho realizam uma quantidade de trabalho quase incrível absorvendo

140
A respeito de ἵνα veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 301
do solo a água e os minerais que nutrem a árvore. No entanto, não são as
raízes as que produzem estes elementos necessários, mas simplesmente
os recebem como um dom. Do mesmo modo, a obra da fé é a obra de
receber o dom de Deus.
30. Quando Cristo pediu que cressem nEle como o enviado do Pai,
os judeus quiseram ver Suas credenciais (cf. Dt. 18:20–22). Então, lhe
disseram eles: Que sinal fazes para que o vejamos e creiamos em ti? Quais
são os teus feitos? Mas porventura Jesus não havia já realizado muitos
sinais? Acaso não tinha sido a multiplicação dos pães do dia anterior um
sinal glorioso? Como é possível, então, que esta gente se atrevesse a
dizer isto? O versículo 31 explica o que pensavam:
31. Nossos pais comeram o maná no deserto, como está escrito: Deu-
lhes a comer pão do céu. As palavras “do céu” modificam o substantivo
“pão” (como se vê claramente no versículo 32) e não ao verbo “deu”.
Esta citação é do Sl. 78:24 (não obstante veja-se também Ne. 9:15; Êx.
16:4, 15; e Sl. 105:40). Nas passagens do Antigo Testamento afirma-se
de um modo positivo que foi Deus quem tinha dado este pão
maravilhoso. É certo, no entanto, que a passagem de Neemias menciona
a Moisés no versículo anterior (a saber, Ne. 9:14); e o mesmo em Êx. 16.
Pela resposta de Jesus pode-se deduzir que os judeus pensavam desta
maneira:

“Se este é maior até que Moisés, que faça então um milagre maior
que aquele que ele fez quando nos deu pão do céu. Naturalmente, Jesus
multiplicou ontem aqueles pãezinhos.
Tinha pão e com ele fez mais pão. Mas tinha algo com o que
começar: cinco pães e dois peixes; e, além disso, o que nos deu era pão
terrestre, e Moisés nos deu pão diretamente do céu”.
João (William Hendriksen) 302
JO 6:32–40

32, 33. Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: não


foi Moisés quem vos deu o pão do céu; o verdadeiro pão do céu é meu Pai
quem vos dá. Porque o pão de Deus é o que desce do céu e dá vida ao
mundo.
Depois de outra solene introdução (veja-se Jo 1:51) Jesus aniquila
nos versículos 32 e 33 o contraste que os judeus tinham feito, e em seu
lugar apresenta Sua própria comparação, que diz assim:

1. Moisés, como agente de Deus, limitou-se a 1. O verdadeiro Doador é sempre


dar instruções ao povo sobre a maneira em o Pai nos céus.
que se devia recolher o maná, Êx. 16.

2. Até ao considerar Moisés como doador, 2. O Pai dá o verdadeiro pão do céu.


continua sendo certo que ele não deu o Este pão verdadeiro é Cristo,
verdadeiro pão do céu. O maná era um o Antítipo.
tipo; não era o Antítipo.

3. O maná, que descia do céu visível, 3. O que o verdadeiro pão da vida,


provia alimento (τροφή). Jesus, oferece é vida (ζώη). (Sobre
o significado da palavra vida
veja-se Jo 1:4; 3:16.).

34. Com o mesmo espírito de Jo 4:15, os judeus, completamente


cegos quanto ao significado espiritual das palavras de Cristo, Então, lhe
disseram: Senhor (veja-se Jo 1:38, nota 44), dá-nos sempre desse pão;
quer dizer, não deixes nunca de nos prover deste pão material e
maravilhoso que não só sustenta, mas também, inclusive comunique vida
(física).
35, 36. Jesus explicou estas misteriosas palavras, e lhes disse: Eu (eu
mesmo) sou o pão da vida; ou seja, Eu sou aquele que dá a vida, e
Aquele que a sustenta. Pela construção da oração no original, vemos que
Jesus Se identifica com este pão da vida; ou para ser mais exatos, da vida
João (William Hendriksen) 303
(τ_ς ζω_ς, genitivo qualitativo, que faz referência não a qualquer classe
de vida, mas sim à vida espiritual e eterna). O homem alcança vida
eterna por meio da fé; quer dizer, por meio da união íntima com Cristo,
assimilando-o espiritualmente do mesmo modo que o pão se assimila
fisicamente. Quando Jesus prossegue dizendo: o que vem a mim jamais
terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede, refere-se naturalmente, à
fome e a sede espirituais. Observe-se também que crer em Jesus aqui se
define como o ato de vir a Ele; quer dizer, vir como quem nada tem
(exceto pecado) e necessita tudo; olhando para Ele como as plantas
olham para o sol. (Sobre o significado de crer veja-se também Jo 3:16, e
a nota 83.). Quem vem a Jesus com coração crente, nunca terá fome nem
sede. Temos aqui, por certo, outro exemplo da figura de linguagem
chamada litote (afirmar uma coisa negando sua contrária). O significado
é que a pessoa em questão receberá completa e perdurável satisfação
espiritual, e perfeita paz em sua alma.
Mas os judeus não aceitaram a Jesus com fé viva. Segundo o
versículo 30 o que pediram era ver um sinal, e disseram que se sua
petição se cumprisse, então creriam nEle. Mas Jesus lhes diz: Porém eu
já vos disse que, 141 embora me tenhais visto, não credes; e esta afirmação
faz-se com o espírito do v. 26, ao qual faz referência com toda
probabilidade o v. 36. O Senhor, portanto, inculpa claramente a estes
incrédulos como pessoas que são totalmente responsáveis por suas ações.
Isto significa, então, que a pessoa que aceita a Jesus com um coração de
fé, pode-se atribuir o mérito de tão excelente obra? De modo algum: a
salvação é sempre pela graça, e a fé é sempre a obra de Deus no coração
do pecador. Por isso, imediatamente a seguir de uma afirmação em que
se sublinha a responsabilidade humana (v. 36), temos outra em que se
acentua a predestinação divina:
37. Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a
mim, de modo nenhum o lançarei fora. Ninguém pode salvar-se a menos

141
A respeito de ὅτι veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 304
que venha a Jesus; e ninguém vem exceto se lhe é dado (cf.
especialmente Jo 6:44). Mas “todo aquele que” lhe é dado, sem dúvida,
virá. A expressão “todo aquele que” (veja-se também Jo 6:39; 7:2, 24;
1Jo 5:4) considera os escolhidos como uma unidade; todos são um só
povo. A frase “e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora”,
sublinha mais uma vez a responsabilidade humana; como se dissesse,
“Que ninguém duvide, dizendo, ‘Talvez não fui dado ao Filho pelo Pai’.
Todo aquele que vem é acolhido calorosamente” (Não o lançarei fora é
outro exemplo de litote). Observe-se que o versículo 37 também ensina:
a. que na realização do plano de redenção, de modo que se outorgue a
salvação às pessoas escolhidas e a toda a raça escolhida, há uma
harmonia completa e uma cooperação total entre o Pai e o Filho: o Filho
acolhe àqueles que o Pai lhe dá; e b. que a obra da redenção não se pode
frustrar devido à incredulidade dos judeus, que se menciona no versículo
anterior: há uma raça escolhida; sem dúvida que se salvará um
remanescente. A razão de que seja tão seguro que o Filho não lançará
fora aqueles que o Pai lhe dê, formula-se no versículo 38:
38. Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade,
e sim a vontade daquele que me enviou. Naturalmente que isto não pode
significar que as duas vontades possam alguma vez chocar-se; ensina-se
expressamente o contrário em Jo 4:34; 5:19; e 17:4. Se significa, no
entanto, que os judeus incrédulos que tinham questionado a autoridade
de Jesus devem entender que quantas vezes se opõem à Sua vontade
também se opõem à vontade do Pai.
39, 40. Define-se essa vontade nos versículos finais deste parágrafo:
E a vontade de quem me enviou é esta: que 142 nenhum eu perca de todos
os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia. De fato, a
vontade de meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nele crer tenha a
vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia.

142
A respeito de ἵνα veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 305
Aqui no versículo 39 adiciona-se algo ao que se afirmou nos
versículos anteriores com relação à vontade do Pai que o Filho cumpre.
Antes, por meio de um litote, afirmou-se que este acolheria a todos os
que o Pai lhe desse; agora se adiciona que os protegerá até o fim.
Voltamos a nos encontrar com um litote: “Nenhum eu perca”. Este
acréscimo é, na verdade, muito consolador. A doutrina da perseverança
dos santos aparece ensinada aqui em termos indiscutíveis; primeiro de
forma negativa, logo de forma positiva. O último dia é o dia do juízo;
veja-se o tal a respeito de Jo 5:28, 29. A ideia é: escolhido-los serão
guardados e protegidos até o próprio fim. Também se ensina esta
doutrina em Jo 10:28; Rm. 8:29, 30, 38; 11:29; Fp. 1:6; Hb. 6:17; 2Tm.
2:19; 1Pe. 1:4, 5; etc. Nestas e em muitas outras passagens a Bíblia
ensina algo que não se pode mudar, uma chamada que não se pode
revogar, uma herança que não se pode contaminar, um fundamento que
não se pode mover; um selo que não se pode quebrar, e uma vida que
não pode perecer. No próprio termo vida eterna (a respeito do que veja-
se Jo 3:16), sem dúvida, vai implícita a doutrina da preservação (de
onde, perseverança) dos santos. No versículo 40 dá-se outra definição da
vontade do Pai (a qual é ao mesmo tempo razão do fato de ressuscitar os
crentes no último dia). Todo aquele que com olhos de fé vê em Jesus o
Filho de Deus, e quem, em consequência, crê nEle, tem a vida eterna. o
próprio Jesus o ressuscitará no último dia. Neste versículo se descreve,
da perspectiva da responsabilidade humana, o mesmo que no versículo
anterior se considerou do ponto de vista da predestinação divina (cf. as
duas frases de Jo 6:37). Observe-se também que π_ν, do versículo 39,
em que se considera os crentes de forma coletiva, agora se individualiza,
de modo que temos π_ς. Veja-se também o tal a respeito de Jo 1:14 para
determinar o sentido em que Jesus é o Filho de Deus no quarto
Evangelho. Note-se também o muito enfático “eu (mesmo)”.
João (William Hendriksen) 306
JO 6:41–59

6:41. Murmuravam, pois, dele os judeus. Diante da antítese “pão


comum contra o maná do céu”, que os judeus tinham proposto, Jesus
tinha apresentado uma muito melhor: “pão” (ou maná) considerado
como um tipo contra o pão real, quer dizer “eu mesmo”, o Antítipo.
Ninguém gosta de ver derrubar-se totalmente sua argumentação
cuidadosamente elaborada. Por isso murmuravam dele. O original é
_γόγγυζον. O verbo é uma palavra imitativa. Não tem necessariamente
um sentido sinistro. Poderia referir-se simplesmente a falar em sussurros.
No entanto, à vista dos versículos 42, 52, e da proibição do versículo 43,
provavelmente é melhor ver nesta classe de reação uma espécie de
queixa ou murmúrio de desagrado, um falar em tom baixo e áspero.
Neste sentido não se deve perder de vista que os que murmuravam foram
os judeus (veja-se sobre Jo 1:19). No quarto Evangelho costumam
apresentar-se como hostis a Jesus. Segundo alguns comentaristas aqui se
alude aos representantes do Sinédrio em Jerusalém; para afirmá-lo
baseiam-se em Mc. 3:22. Mas neste contexto nada se insinua a respeito.
Além disso, o versículo 42 parece indicar que estes judeus eram da
Galileia e conheciam bem a família no meio da qual tinha crescido Jesus.
É melhor, pois, pensar nesses homens como líderes da sinagoga de
Cafarnaum e outros que eram da mesma maneira de pensar.
Ao que os judeus se opunham com mais denodo era à afirmação de
Jesus com relação a Si mesmo (cf. a passagem paralela em Jo 5:17, 18).
Por isso, lemos, porque dissera: Eu sou o pão que desceu do céu. Ele
mesmo, e não o alardeado maná de seus antepassados, era o verdadeiro
pão, que sustentava a vida e a comunicava. (Estes “gloriosos”
antepassados, de passagem, nem sempre tinham apreciado tanto a esse
maná; cf. Nm. 11:6, “Agora, porém, seca-se a nossa alma, e nenhuma
coisa vemos senão este maná”. É muito fácil idealizar o passado). Jesus
recebe o nome de pão “que desceu do céu” (_ καταβ_ς _κ το_ ο_ρανο_).
Note-se que se emprega o particípio aoristo, embora o próprio Jesus no
João (William Hendriksen) 307
versículo 33 tinha empregado o presente ao falar daquele que desce (ou:
está descendo) do céu” como o verdadeiro pão de Deus. Alguns
comentaristas assinalam que Jesus Se acomodou aos termos que
empregavam os judeus, porque nos versículos 51 e 58 também Ele
utiliza o aoristo. No entanto, não se deve esquecer que o primeiro em
usar o aoristo não foram os judeus, e sim Jesus, em Sua conversação com
Nicodemos (Jo 3:13). Quanto À diferença de significado: (a) ou presente
(Jo 6:33, 50) indica qualidade; mostra que inclusive durante sua
permanência na terra o Senhor conservava em muitos aspectos o caráter
de Um que pertencia à esfera celestial; (b) o aoristo (Jo 3:13; 6:41, 51,
58) centraliza a atenção na encarnação como tal, concebida como um só
ato; e (c) o perfeito (Jo 6:38, 42) descreve-o como a alguém cujo ato de
humilhação realizado no passado tem um significado permanente.
42. Resulta muito claro de Jo 6:42 que quando Jesus falou de Si
mesmo desta maneira, os judeus não interpretaram Suas palavras como
se referindo só à Sua missão messiânica. Deram-se conta de que o
Senhor negava que tivesse nascido como qualquer outro ser humano.
Jesus nunca diz nem dá a entender que, ao eles chegarem a tal
conclusão, tivessem interpretado mal suas palavras. Em consequência, é
evidente a inferência de que o que Jesus ensinou nesta passagem era a
contrapartida ou complemento do nascimento virginal. Aquele que nasce
de uma virgem — e em consequência, nunca teve pai humano (no
sentido comum do termo), e não é pessoa humana (embora possua
natureza humana) — deve ter descido do céu! Os sinóticos e João
harmonizam perfeitamente. (Veja-se também I, II da Introdução). E
naturalmente que não nos surpreende achar uma referência indireta à
doutrina do nascimento virginal num Evangelho escrito pelo grande
competidor de Cerinto! (Veja-se II da Introdução) 143

143
Cf. J. Orr, The Virgin Birth of Christ, Nova York, 1924, pp. 108–113. Também J. Gresham
Machen, The Virgin Birth of Christ, New York, 1930, pp. 254–259.
João (William Hendriksen) 308
E diziam. Expõem uma pergunta. Esta pergunta dos judeus, Não é
este Jesus, o filho de José? Acaso, não lhe conhecemos o pai e a mãe?
requer uma resposta afirmativa. A pergunta não implica necessariamente
que José estivesse ainda vivo. As palavras têm um tom zombador. Quase
se poderia traduzir assim a primeira parte: “Não é este tipo (ο_τος) Jesus
…?” Consideram Jesus como culpado de uma presunção desprezível, se
não de aberta blasfêmia. Com esta intenção se formula a seguinte
pergunta: Como, pois, agora diz: Desci do céu? A argumentação era:
“Conhecemo-lo desde a infância; o seu pai, a sua mãe, a sua família.
Mas agora que cresceu, vejam o que sucede! Atribui-se direitos
extravagantes. Esperará de fato que creiamos?”
43, 44. Diante dos testemunhos que se tinham apresentado (veja-se
sobre Jo 5:30–47), não havia desculpa para esta atitude zombadora da
parte dos judeus. Se algo não lhes era imediatamente evidente, poderia
ter feito perguntas corteses e humildes. As perguntas que formularam
estavam erradas, tanto em conteúdo como em intenção. Por isso Jesus
não as responde. Dá-se conta de que teria sido inútil. Numa passagem (o
versículo 43 completo) que volta a colocar juntas a responsabilidade
humana e a predestinação divina, Respondeu-lhes Jesus: Não murmureis
entre vós. Aqui se sublinha a responsabilidade humana. Logo, voltando a
utilizar um de Seus pontos principais (veja-se Jo 6:37), Jesus prossegue,
Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o
ressuscitarei no último dia. Aqui se sublinha o decreto divino de
predestinação realizada na história. Quando Jesus Se refere à atividade
divina de trazer, emprega um termo que indica claramente que isto
significa mais que influência moral. O Pai não se limita a rogar ou a
aconselhar — traz! O mesmo verbo (_λκω, _λκύω) utiliza-se também em
12:32, onde esta atividade de trazer é atribuída ao Filho; e também, em
Jo 18:10; 21:6, 11; At. 16:19; 21:30; e Tg. 2:6. O trazer do qual falam
estas passagens indica uma atividade muito poderosa — inclusive,
poderíamos dizer, irresistível. Por certo, o homem resiste, mas sua
resistência é ineficaz. Neste sentido falamos da graça de Deus como
João (William Hendriksen) 309
irresistível. Tira-se, ou se arrasta a rede à margem, cheia de grandes
peixes (Jo 21:6, 11). Paulo e Silas são levados ao fórum (At. 16:19).
Paulo é arrastado fora do templo (At. 21:30). O rico arrasta o pobre
diante dos tribunais (Tg. 2:6). Voltando agora para o quarto Evangelho,
Jesus atrairá a Si mesmo todos os homens (Jo 12:32) e Simão tirou ou
desembainhou a espada, para ferir o servo do sumo sacerdote, cortando-
lhe a orelha direita (Jo 18:10). Claro que é diferente tirar uma rede ou
uma espada, por um lado, e trazer um pecador, por outro. Neste caso
Deus tem que ver com um ser responsável. Influi poderosamente na
mente, na vontade, no coração, toda a personalidade. Todas estas
faculdades começam a funcionar por si mesmas, de modo que se aceita a
Cristo com uma fé viva. Mas tanto no começo como no curso de todo o
processo de ser salvo, o poder vem sempre do alto; é muito real,
vigoroso, efetivo. O próprio Deus o exerce!
Pode-se perguntar: Por que no ensino de Jesus (Jo 12:32) esta
atividade de atração se atribui ao Pai (Jo 6:44) e ao Filho (Jo 12:32), mas
não ao Espírito Santo? Respondemos: a. enquanto não tenha sido
derramado o Espírito, não se pode esperar que se ensine nada detalhado
com relação a Ele; b. no entanto, na noite da traição Jesus Se referiu ao
poder de atração do Espírito Santo, embora com palavras diferentes (Jo
14:26; 15:26; 16:13, 14; veja-se sobretudo o versículo treze desse
capítulo); e c. a obra de regeneração que se atribui especificamente ao
Espírito (Jo 3:3, 5) vai certamente incluída neste processo de trazer um
pecador da morte à vida. Com relação à obra do Deus triúno em trazer
pecadores a Si mesmo, veja-se também Jr. 31:3; Rm. 8:14; e Cl. 1:13.
Aquele que é trazido, certamente chega: aquele a quem o Pai traz, o
Filho o levanta para a vida. Além disso, a poderosa operação afeta tanto
a alma como o corpo. Jesus diz, “Eu o ressuscitarei no dia último”. O
último dia é o dia do juízo. A respeito de Jesus como o enviado do Pai,
veja-se Jo 3:34; cf. Jo 1:6.
45, 46. Não é verdade que Jo 6:45 anule ou, pelo menos, debilite Jo
6:44. A expressão Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por
João (William Hendriksen) 310
Deus não coloca de modo algum em mãos dos homens o poder de aceitar
a Jesus como Senhor. Aqui trata-se de mais — muito mais — que de um
simples progresso intelectual. É mais que uma influência moral.
Trata-se da transformação de toda a personalidade! A alusão aos
profetas é muito geral, o que indica que se tratava do ensino
predominante dessa seção do Antigo Testamento que se chama “os
profetas”, de que na época messiânica todos os cidadãos do verdadeiro
Israel receberiam ensino a respeito de Deus. Vêm imediatamente à mente
as seguintes passagens: Is. 54:13; 60:2, 3; Jr. 31:33, 34; Jl. 2:28; Mq. 4:2;
Sf. 3:9; e Ml. 1:11. A mais clara é Is. 54:13, como se pode ver quando se
colocam de forma paralela.

A SEPTUAGINTA e João 6:45


κα_ πάντας το_ς υ_ούς σου διδακτο_ς θεο_. κα_ _σονται πάντες διδακτο_ θεο_.

Na Septuaginta as palavras citadas estão no acusativo, como objeto


do verbo θήσω; na passagem do quarto Evangelho as palavras formam
uma frase completa. A ideia, no entanto, é a mesma.
Também aqui se justapõem as atividades divina e humana na obra
da salvação, porque imediatamente depois de “E serão todos ensinados
por Deus” segue, Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e
aprendido, esse vem a mim. A este respeito, no entanto, deveria
sublinhar-se que ao mostrar como se salvam os pecadores, a Bíblia
nunca se limita a justapor os fatores divino e humano, predestinação e
responsabilidade, o ensino de Deus e a acolhida do homem. Pelo
contrário, sempre se indica de forma concreta que Deus é quem toma a
iniciativa e quem controla a situação do princípio até o fim. Deus é
quem atrai antes de que o homem venha; Ele é quem ensina antes de que
o homem possa escutar e aprender. A não ser que o Pai atraia, ninguém
pode vir. Esse é o lado negativo. O positivo é: todo aquele que escuta o
Pai e aprende dEle virá. A graça sempre triunfa; faz o que se propõe
fazer. Nesse sentido é irresistível. O caráter absoluto da cooperação entre
João (William Hendriksen) 311
o Pai e o Filho, que, por sua vez, baseia-se na unidade de essência, fica
de relevo mais uma vez como em muitas outras passagens deste
Evangelho: aquele que escuta o Pai (não só num sentido externo mas
também de forma que de fato aprenda dEle) vem ao Filho, “vem a mim”.
Essa pessoa aceitará a Cristo com uma fé genuína e viva. Este escutar e
aprender, no entanto, não indicam que algum ser humano poderá alguma
vez compreender a Deus (ou possuir um conhecimento imediato dEle
além de sua revelação em Cristo). Esta plenitude de conhecimento é
prerrogativa do Filho. Por isto se lê, Não que 144 alguém tenha visto o Pai,
salvo aquele que vem de Deus; este o tem visto. (A respeito disso, veja-se
também Jo 1:18. A respeito do uso de παρά em Jo 6:46, cf. Jo 1:14).
47–51. Mas o conhecimento que se consegue ao escutar o Pai e
aprender dEle não se deve menosprezar. Produz a maior bênção possível:
Em verdade, em verdade vos digo (a respeito disto veja-se Jo 1:51):
quem crê em mim tem a vida eterna. (Quanto ao verbo crer e a vida
eterna, veja-se Jo 3:16.). Observe-se: o crente já a tem; tem-na aqui e
agora. Esta vida é o dom de Jesus como “o pão da vida”. Por isto se
repete este pensamento:
48. Eu sou o pão da vida (para isso ver Jo 6:35). Este pão faz o que
nenhum outro pão, incluindo até o maná do céu, jamais tem feito ou
poderá fazer: comunica e mantém a vida, e afasta a morte. Comunica e
sustenta a vida espiritual; afasta a morte espiritual. No entanto, afeta,
inclusive, o corpo, ressuscitando-o no último dia de modo que possa
conformar-se ao corpo glorioso daquele que é o pão da vida (cf. Fp.
3:21). Contrasta totalmente com este o maná que os antepassados tinham
recolhido:
49, 50. Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram
(apontou-se Jesus a Si mesmo quando disse isto?). Este é o pão que desce
do céu (veja-se Jo 6:32), para que todo o que dele comer não pereça.
Jesus não só é o pão da vida (que comunica e mantém a vida), mas Ele o

144
A respeito de ὅτι veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 312
é porque é o pão vivo (cf. Jo 4:10), que contém em Si a fonte de vida (Jo
5:26):
51. Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer,
viverá eternamente. 145 Quanto a _ _ξ ο_ρανο_ καταβάς, veja-se sobre Jo
6:41. Deve-se comer este pão, não só o prová-lo (Hb. 6:4, 5). Comer a
Cristo, como pão da vida, significa aceitá-Lo, apropriar-se dEle,
assimilá-Lo — em outras palavras, crer nEle (Jo 6:47) —, de modo que
comece a viver em nós, e nós nEle. Aquele que o faz, viverá eternamente
(a verdade do versículo 51 agora formulada positivamente). As palavras
viverá eternamente indicam claramente que não se pode dissociar a ideia
quantitativa do conceito de “vida eterna”. Quando a gente possui ζω_ν
α_ώνιον, de fato ζήσει ε_ς τ_ν α__να. Naturalmente, o significado de
“vida eterna” não se esgota neste conceito quantitativo. (Veja-se sobre Jo
3:16 e cf. Jo 1:4).
Agora se adiciona um novo pensamento. Até agora Jesus veio
sublinhando o fato de que Ele mesmo, e não o maná, é o verdadeiro pão
do céu. Agora acrescenta outra definição do termo pão, mostrando em
que sentido é Ele o pão: E o pão que eu darei pela vida do mundo é a
minha carne. 146 (A respeito do significado do termo σάρξ, veja-se Jo
1:14; também a nota de rodapé da página.). O que Jesus quer dizer aqui é
que vai dar-Se a Si mesmo — veja-se Jo 6:57 — em sacrifício vicário
pelo pecado; que entregará Sua natureza humana (alma e corpo) à morte
eterna na cruz. O Pai deu o Filho; o Filho dá-se a Si mesmo (Jo 10:18;
Gl. 2:20; Ef. 5:2). Observe-se: “o pão que eu mesmo — quanto distinto
do Pai — darei”. O tempo futuro — “darei” — indica com clareza que o
Senhor pensa num ato concreto; ou seja, o Seu sacrifício expiatório na
cruz, o qual, por sua vez, representa e culmina Sua humilhação durante
toda Sua permanência na terra. Isto, e só isto, quer dizer quando Se
chama a Si mesmo carne. O significado não pode ser que Jesus seja para

145
III A 1; veja-se I da Introdução.
146
Esta tradução se baseia na melhor versão grega.
João (William Hendriksen) 313
nós o pão da vida num sentido duplo: (a) totalmente além de Sua morte
como sacrifício; e (b) em Sua morte como sacrifício. Pelo contrário, as
palavras são muito claras: “E o pão que eu darei é a minha carne”. Crer
em Cristo significa aceitar (apropriar-se e assimilar) a Cristo como O
Crucificado. Além desse sacrifício voluntário, Cristo deixa de ser em
todo sentido pão para nós. Que Jesus de fato pensou em Sua morte vê-se
com clareza em Jo 6:4, 53–56, 64, 70 e 71, que deveriam estudar-se em
relação a este tema.
Este pão é dado “pela vida do mundo”. Seu propósito é, em
consequência, que o mundo possa receber vida eterna. Os conceitos vida
e mundo se empregam aqui como em Jo 3:16. (Veja-se o comentário
sobre Jo 3:16.)
52. Os judeus chegaram à conclusão correta: o que Jesus queria é
que os homens comessem sua carne. Jesus não havia dito isto com estas
mesmas palavras, mas a implicação resultava muito clara. Jesus havia
dito:
a. “Eu sou o pão da vida” (Jo 6:35, 48).
b. Os homens deveriam comer este pão (Jo 6:50, 51).
c. “O pão … é a minha carne” (Jo 6:51).
A conclusão era óbvia: os homens deveriam comer Minha carne. Eu
a dou com este propósito (Jo 6:51).
No entanto, como ocorreu outras vezes (ver sobre Jo 2:19, 20; 3:4),
também ocorre agora; os judeus interpretam as palavras de Jesus de
forma literal, como se o Senhor tivesse querido que de uma forma ou
outra os homens consumissem seu corpo físico. Mas como? Para alguns
isto deve ter parecido uma coisa totalmente impossível. Outros
provavelmente trataram de mostrar que sentido, sempre físico, Jesus
pôde ter querido dar a suas palavras. Nenhuma das respostas parecia
satisfatória. Quanto mais discutiam, tanto mais impossível lhes parecia
tudo. Por isso lemos:
53. Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como pode este
dar-nos a comer a sua própria carne? Este “como pode” nos lembra Jo
João (William Hendriksen) 314
3:4, 9; 4:11, 12; e Jo 6:42. A incredulidade nunca compreende os
mistérios da salvação. Além disso, está sempre disposta a zombaria, e a
dizer, “Isto ou aquilo é totalmente impossível”.
53–58. Em Sua resposta Jesus não trata de mitigar Suas afirmações
anteriores. Fortalece-as, de forma que o que a princípio parecia
impossível, agora parece absurdo. Em lugar de falar simplesmente a
respeito da necessidade de comer a sua carne, agora fala da necessidade
de comer sua carne e beber o seu sangue. Aos judeus era muito repulsivo
o beber sangue; cf. Gn. 9:4; Lv. 3:17; 17:10, 12, 14. No entanto, se
tivessem conhecido a fundo as Escrituras, também teriam reconhecido o
simbolismo que Jesus utilizou. Teriam sabido que o sangue, visto como
sede de vida, representa a alma e não possui valor intrínseco para a
salvação além da alma. A linguagem de Lv. 17:11 é muito clara a este
respeito: “Porque a vida da carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado
sobre o altar, para fazer expiação pela vossa alma, porquanto é o sangue
que fará expiação em virtude da vida”. É evidente, portanto, que quando
Jesus fala a respeito do comer sua carne e beber seu sangue, não pode
referir-se a nenhum comer e beber físico. Deve querer dizer: “Aquele
que aceita, apropria-se e assimila o Meu sacrifício vicário como o único
fundamento de sua salvação, permanece em Mim e Eu nele”. Assim
como se oferecem e aceitam comida e bebida, assim também o sacrifício
de Cristo é oferecido aos crentes e aceito por eles. Assim como o corpo
assimila aqueles, assim também a alma assimila este sacrifício. Assim
como aqueles nutrem e sustentam a vida física, assim também este nutre
e sustenta a vida espiritual. Aqui temos a doutrina do derramamento
voluntário do sangue de Cristo como resgate para a salvação dos crentes.
A mesma doutrina ou se ensina explicitamente ou está implícita em
passagens como os seguintes:
Jo 1:29, 36; Mt. 20:28; Mc. 10:45; Lc. 22:20; At. 20:28; Rm. 3:25;
5:9; 1Co. 10:16; 11:25, 26; Ef. 1:7; 2:13; Cl. 1:20, 22; Heb. 9:14, 22;
10:19, 20; 13:12; 1Pe. 1:2, 18, 19; 1Jo 1:7; 5:6; Ap. 1:5; 7:14; 12:11.
João (William Hendriksen) 315
Na história da teologia fizeram-se repetidas tentativas de conceber
este comer a carne de Cristo e beber seu sangue de uma maneira física.
Estas interpretações são derrubadas diante dos seguintes argumentos:
a. A passagem em que Jesus, por implicação, incita a comer sua
carne e a beber seu sangue é evidentemente um mashal. Frases veladas
como esta requerem sempre uma interpretação espiritual; veja-se sobre
Jo 2:19, 20.
b. Se estas palavras se interpretam num sentido literal, a única
conclusão lógica seria que Jesus advogava pelo canibalismo. Ninguém se
atreve a tirar tal conclusão.
c. O versículo 57 indica claramente que a expressão “comer a
minha carne e beber o meu sangue” significa “comer a mim”. É, pois,
um ato de apropriação e comunhão pessoais o que se indica. Cf. também
Jo 6:35 que mostra que “vir a mim” significa “crer em mim”.
d. Somos informados que os que comem a carne de Cristo e bebem
o seu sangue permanecem nele e ele neles (versículo 56). Isto,
naturalmente, não pode ser certo de forma literal. Deve ser-lhe dada uma
interpretação metafórica (união íntima, espiritual com o Senhor).
Igualmente, o resultado de tal comer e beber é dito ser vida eterna.
Também isto é um conceito espiritual. Se o resultado for espiritual,
pareceria razoável que também a causa se conceba como espiritual.
A seção Jn 6:53–58 é uma síntese do ensino de Cristo com relação
ao pão da vida. Quase todas as frases e cláusulas aparecem em outras
passagens deste Evangelho. Em consequência, para evitar repetições não
voltaremos a comentar o que se explicou em outras partes do livro; em
lugar disso, limitaremos a duas coisas: a. reproduziremos em sua
totalidade a passagem, dando em cada caso a referência da passagem em
que se explica a frase ou cláusula idêntica (ou muito parecida); b.
daremos uma paráfrase de toda a passagem.
Em verdade, em verdade vos digo (veja-se sobre Jo 1:51): se não
comerdes a carne (veja-se sobre Jo 1:14) do Filho do Homem (veja-se
sobre Jo 12:34), e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós
João (William Hendriksen) 316
mesmos (veja-se sobre Jo 4:14). Quem comer a minha carne e beber o
meu sangue tem a vida eterna (veja-se sobre Jo 3:16); e eu o ressuscitarei
no último dia (veja-se sobre Jo 5:28, 29; 6:39, 40). Pois a minha carne é
verdadeira comida, e o meu sangue é verdadeira bebida (veja-se sobre Jo
6:32, 35). Quem comer a minha carne e beber o meu sangue permanece
em mim, e eu, nele (veja-se sobre Jo 15:4). Assim como o Pai, que vive
(veja-se sobre Jo 5:26), me enviou (veja-se sobre Jo 3:17, 34; cf. Jo 1:6),
e igualmente eu vivo pelo Pai (veja-se sobre 5:26), também quem de mim
se alimenta por mim viverá (veja-se sobre Jo 14:19). Este é o pão que
desceu do céu (veja-se sobre Jo 6:41), em nada semelhante àquele que os
vossos pais comeram (veja-se sobre Jo 6:31) e, contudo, morreram (veja-
se sobre Jo 6:49); quem comer este pão viverá eternamente (veja-se
sobre Jo 6:50, 51).
Esta passagem pode-se parafrasear da seguinte maneira: De modo
que Jesus lhes disse, de certo vos asseguro que, a não ser que com uma
fé viva aceiteis, apropriai-vos e assimilais o Cristo, confiando em Seu
sacrifício (corpo destroçado e sangue derramado) como único
fundamento de vossa salvação, 147 não possuis a vida eterna (o amor de
Deus derramado no coração, salvação plena e gratuita). Por outro lado,
aquele que aceita o Meu sacrifício com coração crente, e o assimila
espiritualmente, tem vida eterna para a alma, e ressuscitarei seu corpo
gloriosamente no último dia, o grande dia do juízo. Porque o Meu
sacrifício (corpo destroçado e sangue derramado) é o verdadeiro
alimento e bebida espirituais. Aquele que assimila espiritualmente esta
comida permanece na união mais íntima e vital Comigo. Assim como o
Pai, o Eterno, comissionou-Me, e é para Mim a fonte de vida, assim
também aquele que Me assimilar espiritualmente, esse encontra em Mim
a fonte de vida para si mesmo. (Destacando-se a si mesmo?) Este é o pão
verdadeiro, a fonte genuína de vida e alimento espiritual, aquele que não
147
En la mesa de la comunión adquiere su expresión más clara este “comer y beber”. Cf. 6:53 con Lc.
22:17–20. Sin embargo, la actividad espiritual que aquí se indica no se limita a la eucaristía. Estamos
totalmente de acuerdo con F. W. Grosheide, op. cit., p. 468.
João (William Hendriksen) 317
tem sua origem nesta esfera terrestre mas procede do céu. E este pão é
muito melhor que a simples sombra e símbolo — ou seja, o maná do
deserto — que vossos pais comeram, mas que não os mantinha vivos em
nenhum sentido, nem sequer fisicamente, porque morreram. Aquele que
Me assimila espiritualmente como o pão verdadeiro de vida, viverá para
sempre (primeiro, com relação à alma, logo também com relação ao
corpo, que no último dia será gloriosamente ressuscitado).
59. Somos informados que esta exposição a respeito do Pão da vida
foi um sermão proferido numa sinagoga. A tradução, Estas coisas disse
Jesus, quando ensinava na sinagoga não é necessariamente errada.
Embora é verdade que o original não tem o artigo, provavelmente não
era necessário para lhe dar caráter definido à palavra. Também nós
dizemos “em casa”, e no entanto a expressão é suficientemente definida,
embora não leve o artigo. A sinagoga na qual Jesus pronunciou este
discurso era de Cafarnaum. Os restos de uma construção que
provavelmente se assemelhava a ela em muitos sentidos, foram
descobertos em anos recentes. Essa antiga sinagoga foi edificada ao
redor do terceiro século d.C.
Do fato de que Jesus pronunciasse este discurso na sinagoga não se
segue necessariamente que o dia em que o pronunciou fosse sábado.
Também tinham serviços religiosos na segunda-feira e quinta-feira. 148

JO 6:60–65

6:60. Muitos dos seus discípulos, tendo ouvido tais palavras,


disseram: … Os que ouviram Jesus pronunciar o discurso a respeito do
Pão da vida formam três grupos, segundo o escritor: “os judeus” (líderes
hostis e seus seguidores), “os discípulos”, e “os doze”. Os dois últimos
grupos na realidade coincidem; ou podem ser representados por meio de

148
L. Finkelstein, The Jews: Their History, Culture, and Religion, dois volumes, Nova York, 1949,
vol. II, p. 1359.
João (William Hendriksen) 318
círculos concêntricos, o maior dos quais representa os “discípulos” (Jo
6:66), e o menor os doze” (Jo 6:67). Tem-se dito qual foi a reação dos
judeus: fizeram perguntas que procederam de seu coração incrédulo, de
sua autocomplacência, de seu gloriar-se na tradição (Jo 6:28, 30, 31);
murmuraram e desprezaram (Jo 6:41, 42); inclusive disputaram entre si
(Jo 6:52). A seção que nos ocupa (Jo 6:60–65) descreve a reação dos
discípulos. Trata-se do grupo de seguidores mais ou menos regulares do
Senhor, como o indica claramente Jo 6:66. Provavelmente havia
dezenas, se não centenas, na Galileia.
Uma vez concluído o sermão, parece que a estes discípulos não lhes
agradou. Disseram, Duro é este discurso; quem o pode ouvir? Pela
resposta de Jesus (Jo 6:61–65) e pela própria reação final dos discípulos
(Jo 6:66) vê-se com clareza que não quiseram simplesmente dizer que o
sermão foi difícil de entender, e sim era difícil de aceitar. Traduzimos,
“Quem pode escutá-lo?” É certo, no entanto, que outra tradução possível
é “Quem o pode ouvir?”, visto que o verbo que se utiliza permite ambas
as traduções (cf. também Jo 10:16, 27; At. 9:7; 22:7, 10 no original),
contudo, o antecedente do pronome é, sem dúvida, “esta mensagem ou
palavras”, ao qual se refere também o contexto que segue imediatamente
(v. 61). Estes discípulos de Jesus se ofenderam evidentemente com Suas
palavras. Dizer que se sentiam desgostados é provavelmente correto.
Seus corações estavam em rebeldia. Assim é como se pode entender a
pergunta do Senhor que continua a seguir.
61–65. Mas Jesus, sabendo por si mesmo (como? veja-se sobre Jo 5:6)
que eles murmuravam a respeito de suas palavras, interpelou-os: Isto vos
escandaliza? O verbo traduzido por escandalizar (σκανδαλίζει de
σκάνδαλον, o pau da ceva na armadilha; este pau torcido dispara a
armadilha) não significa simplesmente ofender, nem tampouco matar;
significa: fazer cair numa armadilha, em sentido figurado neste caso;
daí, fazer pecar. Jesus, por conseguinte, pergunta se com Seu sermão
estes ouvintes têm se sentido de fato conduzidos ou levados ao pecado.
Mas o que produziu essa reação desfavorável não foi a dureza do sermão
João (William Hendriksen) 319
149
mas a dureza de seus próprios corações (como Calvino e muitos
outros comentaristas depois dele o indicaram). A que se opunham nas
palavras de Cristo? Sem dúvida que a resposta é: desagradou-lhes todo o
sermão. O Senhor tinha destacado que não era o maná a respeito do que
tanto tinham ouvido falar, senão Ele mesmo o verdadeiro pão que tinha
descido do céu; que em sua condição de verdadeiro pão oferecia Sua
carne; e que para ter vida eterna (ou seja, para ser salvo) era preciso
comer a Sua carne e beber o Seu sangue. Isto foi demais para essas
pessoas. Se só tivessem estado dispostos a aceitar as provas das
testemunhas com relação a Jesus (veja-se Jo 5:30–47), teriam
perguntado, “É possível que estas palavras tenham um significado mais
profundo?” Mas de fato eles consideravam as frases do Senhor como
carentes de espírito e vida. Atribuíam-lhes a interpretação literal mais
estrita. Quando Jesus mencionou a palavra “carne”, pensaram em seu
corpo não como instrumento da alma senão simplesmente como algo
distinto dela. Quando disse “sangue”, não pensaram na possibilidade de
que Se estivesse referindo a Seu próprio sacrifício voluntário até o
derramamento do sangue. Não, viram só as gotas reais de sangue, e se
estremeceram diante da ideia de ter que bebê-lo. Como! Acaso esse
homem, cujos pais conheciam (ou tinham conhecido) tão bem, era Ele o
pão que tinha descido do céu? Jesus responde:
62. Que será, pois, se virdes o Filho do Homem subir para o lugar
onde primeiro 150 estava? A apódose provavelmente é: O que diriam
então? Acaso a ascensão do Filho do homem não provaria que havia
realmente descido do céu? (A respeito do termo Filho do Homem veja-se
nosso comentário sobre Jo 12:34). Jesus prossegue:
63. O espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita.
Pareceria que o sentido é perfeitamente claro à luz de todo o contexto
precedente. Jesus quis dizer: “A Minha carne como tal não vos pode

149
João Calvino, op. cit., p. 130: Durus est hic sermo. Quin potius in illorum cordibus erat durities,
non in sermone.
150
III B 3; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 320
beneficiar; deixai de pensar que Eu vos pediria que comessem
literalmente o Meu corpo ou que literalmente beberem o Meu sangue. O
que outorga e sustenta a vida, a vida eterna, é o Meu espírito, a Minha
pessoa, no ato de dar o Meu corpo para que seja destruído e o Meu
sangue para que seja derramado”. Voltando agora para o desatino da
interpretação errada de Suas palavras, Jesus diz: As palavras que eu vos
tenho dito são espírito e são vida. Estas palavras estão cheias de seu
próprio espírito e vida. Não são letra morta. Pelo contrário, não só são
ricas em metáforas, como declarou expressamente Jesus (Jo 16:25),
antes, quando se aceitam por fé, em seu sentido profundo e espiritual,
convertem-se em instrumentos de salvação para os seus. O Senhor
continua:
64. Contudo, há descrentes entre vós. A incredulidade era a raiz da
letargia intelectual; e isto, por sua vez, era a causa do não conseguir
entender as palavras de Cristo e de lhes dar uma crassa interpretação
literal. O evangelista acrescenta o comentário: Pois Jesus sabia, desde o
princípio, quais eram os que não criam e quem o havia de trair. Esta
última frase se explica com Jo 6:70, 71. Jesus sabia tudo isso desde o
começo de Sua obra como Mediador. (A respeito deste conhecimento de
Jesus, veja-se sobre Jo 5:6.) Agora, esta incredulidade, embora
indesculpável, era de esperar-se, porque a fé é dom de Deus, e não se dá
a todos os homens:
65. E prosseguiu: Por causa disto, é que vos tenho dito: ninguém
poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido.151 Refere-se a
passagens como Jo 6:37, 44 (veja-se nosso comentário sobre Jo 6:37,
44).

151
III C; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 321
JO 6:66–71

66. À vista do contexto imediato anterior, traduzimos _κ τούτου


como resultado disto, em lugar de simplesmente “depois disto” ou “desde
então”. Como consequência, pois, o discurso de Jesus a respeito do Pão
da vida, mas sobretudo como resultado da acusação de Cristo de que “há
descrentes entre vós”, muitos dos seus discípulos o abandonaram e já não
andavam com ele. Voltaram para o que tinham deixado atrás (ε_ς τ_
_πίσω), não só seus afazeres cotidianos mas também sua antiga forma de
pensar e viver, com a intenção de não voltar para Jesus. Com isso
demonstraram que não eram dignos do reino de Deus (Lc. 6:62). Este foi
o verdadeiro ponto crítico. Agora não só as massas O abandonavam, mas
também, inclusive, muitos (possivelmente a maioria, cf. v. 66, 67) de
Seus discípulos, quer dizer, daqueles que tinham estado associados com
Ele de forma muito mais estreita e regular.
67. Jesus agora quer que esta deserção de muitos de Seus seguidores
regulares resulte para o círculo mais íntimo ocasião para provar-se a si
mesmos, uma oportunidade para confessar sua fé. Então, perguntou
Jesus aos doze — designados aqui com este nome pela primeira vez no
quarto Evangelho — Porventura, quereis também vós outros retirar-vos?
A forma da pergunta, tal como se encontra no original, mostra que se
espera uma resposta negativa. 152 Desejam realmente continuar sendo
seguidores Seus? Decidem isto conscientemente depois de ter escutado o
discurso a respeito do Pão da vida? Decidiram-se definitivamente a
permanecer com Jesus, prescindindo do fato de que O tenham

152
Alguns comentaristas lhe atribuem significado ao fato de que Jesus utiliza o verbo ὑπάγω (Jo 6:67),
e não ἀπέφχομαι, que João emprega no versículo 66. Insistem em que o prefixo ὑπό em ὑπάγω deve
receber toda sua força primária. No entanto, a conjunção καί na pergunta de Jesus indica claramente
que considera que o verbo aplica-se também aos muitos desertores mencionados no versículo 66.
Além disso, se terei que dar importância especial ao verbo na pergunta de Cristo, em razão de seu
prefixo, parece que Pedro não caiu na conta disso (veja-se v. 68).
João (William Hendriksen) 322
abandonado as grandes massas, incluindo muitos de seus seguidores
regulares?
68, 69. Pedro é quem responde. E de forma esplêndida! Utiliza o
plural, com o que mostra que era o porta-voz de todos, embora na
realidade não de Judas. Respondeu-lhe Simão Pedro por meio de uma
pergunta: Senhor (a respeito disto veja-se Jo 1:38; nota 44), para quem
iremos? O homem é feito de tal forma que deve ir a alguém. Não pode
viver isolado. O que Pedro quer dizer é evidentemente isto: “Não há
outra pessoa a quem podemos ir; não há outra pessoa que satisfaça o
anelo do coração”. Prossegue: Tu tens as palavras da vida eterna.
Refere-se claramente ao que o próprio Jesus disse (Jo 6:63). Pedro sabe
que as palavras de Jesus são mais que simples sons ou manifestações
vazias. São vitais e dinâmicas, cheias de espírito e vida, meios para a
salvação, meios da graça (a respeito de vida eterna veja-se Jo 3:16; cf. Jo
1:4). Pedro acrescenta: E nós temos crido e conhecido — ou seja,
começamos a crer e ainda cremos; chegamos a nos dar conta, e ainda
estamos convencidos — que tu és o Santo de Deus. Confessam que Jesus
é o Santo ou seja, o consagrado a Deus para cumprir a tarefa messiânica;
foi separado e dotado para levar a cabo tudo o que corresponde ao Seu
ofício (cf. Jo 10:36; At. 3:14; 4:27; Ap. 3:7). É o Santo de Deus, que
pertence a Deus e é nomeado por Deus. Foi uma confissão esplêndida e
muito significativa!
70. Jesus sabe, no entanto, que esta confissão não representava a
convicção íntima de cada um dos doze; havia uma exceção. Por isso, a
fim de que aquele que constitui esta exceção nunca possa dizer que não
foi advertido, e a fim de que os outros nunca possam pensar que seu
Senhor foi tomado de surpresa, Replicou-lhes Jesus: Não vos escolhi eu
em número de doze? Contudo, um de vós é diabo (A respeito dos doze
veja-se II da Introdução). Sabiam, naturalmente, que estes doze tinham
sido escolhidos para ser os discípulos especiais e apóstolos de Cristo. Os
leitores deste Evangelho também sabiam, tanto pela tradição oral como
pelos Sinóticos. Jesus diz, “… contudo, um de vós é diabo”. O termo
João (William Hendriksen) 323
διάβολος significa caluniador, acusador falso. Este homem é o servidor,
o instrumento do diabo. Seu caráter diabólico se manifesta sobre tudo no
fato de que enquanto outros, inclusive muitos dos demais, tinham
abandonado o Senhor quando se deram conta de que não podiam estar
de acordo com Ele e quando se rebelaram contra o caráter espiritual de
Seu ensino, esta pessoa permaneceu com ele, como se estivesse em
acordo total com Jesus! (Isto lembra uma dessas pessoas que, embora
odeiam as doutrinas específicas da denominação a qual pertencem,
preferem seguir nela tentando levar todos até o fracasso final.) O
evangelista, como escreve muitos anos mais tarde, acrescenta uma nota
explicativa:
71. Referia-se ele a Judas, filho de Simão Iscariotes; porque era
quem estava para traí-lo, sendo um dos doze. O pai de Judas era Simão.
Este Simão se chamava Iscariotes, ou seja, homem de Queriote;
provavelmente na Judeia (Js. 15:25), embora também houvesse um lugar
que levava este nome de Moabe (Jr. 48:24). Descreve-se com tanto
detalhe o traidor para distingui-lo de outro Judas, que também formava
parte do grupo dos doze. O apositivo “um dos doze”, provavelmente se
acrescentou para mostrar a enormidade de seu pecado (apesar de ser um
dos mais favorecidos, ia cometer esta terrível ação) e para justificar a
observação de Jesus no versículo 70, “Não vos escolhi eu em número de
doze?” Aqui não se descreve a forma como Judas ia entregar o Senhor
(mas veja-se Jo 13:2, 30; 18:2, 3; Mc. 14:43–45). Basta com que se tenha
indicado o ato terrível.

Síntese de Jo 6:22–71
O Filho de Deus rejeitado na Galileia (conclusão).
O dia depois da milagrosa alimentação dos cinco mil, as multidões
embarcaram em Tiberíades para ir encontrar a Jesus na margem
ocidental. O Senhor os criticou pelo motivo totalmente materialista que
os induziu a buscá-Lo. Jesus lhes disse que se esforçassem por conseguir
João (William Hendriksen) 324
o alimento que permanece. Quando compararam este milagre com
aquele que tinha ocorrido muitos séculos atrás, no deserto, onde seus
antepassados tinham recebido maná do céu, enquanto que Jesus lhes
tinha dado somente pão terrestre, destruiu a argumentação deles,
dizendo que Ele mesmo era “o verdadeiro pão do céu”, do qual o maná
não era senão uma simples sombra. Numa bela e significativa exposição
a respeito do Pão da vida, declarou-Se a Si mesmo como o verdadeiro
dom do Pai. Disse que Ele, por sua vez, daria Sua carne e sangue pela
vida do mundo, e que para salvar-se, a pessoa devia comer a Sua carne e
beber o Seu sangue.
Embora Jesus, naturalmente, tinha em mente a necessidade da
aceitação, apropriação e assimilação espirituais, muitos de Seus ouvintes
não só interpretaram Suas palavras de forma literal, mas também em seu
incrédulo coração rebelaram-se contra Ele e Sua mensagem. Jesus
sublinha que só vão a Ele os que foram trazidos pelo Pai.

A reação da audiência diante de este discurso é quádruplo:


a. As massas e seus líderes “religiosos” repudiaram por completo a
mensagem e desprezaram o mensageiro. Seu sentimento se sintetiza em
Jo 6:42: “Não é este Jesus, o filho de José? Acaso, não lhe conhecemos o
pai e a mãe? Como, pois, agora diz: Desci do céu?”
b. A maior parte do grupo de seguidores regulares (chamados aqui
“discípulos”) considerou que o discurso era difícil de aceitar; quando
Jesus lhes mostrou que a raiz desta reação era a incredulidade,
apartaram-se dEle em grande quantidade.
c. O grupo íntimo de discípulos (chamado “os doze”) por boca de
Pedro, fez uma esplêndida confissão, na qual reconheceram a Jesus
como o Santo de Deus.
d. Judas, embora em rebelião contra o divino mensageiro e Suas
palavras, com estilo traidor típico, decidiu permanecer na companhia de
Jesus.
João (William Hendriksen) 325
ESBOÇO DOS CAPÍTULOS 7–10
Tema: Jesus, o Cristo, o Filho de Deus, que durante Seu ministério
público exorta encarecidamente aos pecadores que se
arrependam, encontra forte resistência

Jo 7 1. Na Festa dos Tabernáculos em Jerusalém Jesus exclama:


“Se alguém tiver sede, que venha para mim e beba”. Seus
inimigos lhe consideram um pretendente endemoninhado.
Jo 8 2. Nesta mesma festa (ou imediatamente depois dela) Jesus
exorta à mulher apanhada em adultério: “Vai-te e não
peques mais”, e às multidões: “Eu sou a luz do mundo”.
Seus inimigos querem apedrejá-Lo.
Jo 9 3. Jesus cura o homem cego de nascença e logo se revela a ele
em amor como o Filho do homem. Seus inimigos
decidiram excomungar da sinagoga os que aceitam a Jesus.
Jo 10 4. Jesus Se revela a Si mesmo como o bom pastor e também
(na Festa da Dedicação) como o Cristo, um com o Pai.
Seus inimigos tentam novamente apedrejá-Lo.
João (William Hendriksen) 326
JOÃO 7
JO 7:1–5

7:1. Passadas estas coisas. Os eventos que ocorreram durante o


período de abril a outubro do ano 29 d.C. os resume João num versículo:
“Passadas estas coisas, Jesus andava pela Galiléia, porque não desejava
percorrer a Judéia, visto que os judeus procuravam matá-lo” (Jn 7:1). Em
Mateus, Marcos e Lucas temos um relato detalhado dos eventos que
pertencem a este meio ano do ministério de Cristo. Podemos chamá-lo o
Ministério de Retiro; veja-se Marcos, capítulos 7–9. João diz que durante
estes meses Jesus andava pela Galileia. Isto está de acordo com o relato
dos Sinóticos, o que indica que o Senhor foi de Cafarnaum na Galileia
até os limites de Tiro e Sidom, atravessando uma grande parte da
Galileia; logo saindo da Galileia, cruzou até Decápolis; retornou de novo
a Galileia (Dalmanuta); saiu de novo rumo à região de Cesareia de
Filipe; e finalmente, abrangendo outro grande setor do território galileu,
retornou a Cafarnaum. No entanto, nem sempre resulta imediatamente
claro se estes viagens se descreverem em ordem cronológica (cf. p. ex.,
Mc. 8:1: “naqueles dias”). Se dermos uma olhada ao mapa pareceria ser
que sim. O que caracteriza este período é que em grande parte Jesus
retirou-se (de onde, Ministério de Retiro) das multidões de Cafarnaum
para estar com Seus discípulos. Visto que os judeus procuravam matá-lo.
Aqui se trata da continuação da trama que se mencionou pela primeira
vez em Jo 5:18; veja-se sobre Jo 12:23, 24. Agora, embora o Senhor
tenha vindo do céu precisamente para entregar Sua vida, sabia que ainda
não tinha chegado o momento exato em que, de acordo com o conselho
eterno de Deus, isto devia ter lugar. Por isso, ficou nas regiões
setentrionais do país durante este período. Também é verdade,
naturalmente, que um motivo positivo guiava os passos do Mestre:
desejava revelar Sua glória para a salvação dos pecadores neste território
João (William Hendriksen) 327
setentrional, e desejava dar a Si mesmo esta oportunidade de retiro
relativo para instruir a Seus discípulos com relação ao sofrimento que se
aproximava.
2. Ora, a festa dos judeus, chamada de Festa dos Tabernáculos,
estava próxima.
Mas quando por fim aproximou-se outubro, teve que apresentar-se à
mente dos que conheciam Jesus um interrogante; ou seja, era Seu plano
ir a Jerusalém a fim de assistir a muito importante festa-peregrinação dos
Tabernáculos? A respeito desta festa veja-se Lv. 23:33–44 e Nm. 29.
Esta se celebrava do quinze a vinte e um ou vinte e dois do sétimo mês, o
que equivale aproximadamente ao nosso mês de outubro. Era uma festa
de ação de graças pela vindima. Mas além de ser uma festa de colheita
também era uma comemoração prazerosa da direção divina concedida
aos antepassados em sua travessia pelo deserto. Visto que se celebrava
imediatamente depois do dia de Expiação, era muito proeminente a ideia
de alegria depois da redenção. Fazia-se um sacrifício especial de setenta
bois em escala diária decrescente. Tocavam-se todos os dias as trombetas
do templo. Celebrava-se a cerimônia do derramamento de água, tirada de
Siloé, em comemoração do manancial refrescante que tinha brotado
milagrosamente da rocha em Meribá (Êx. 17:1–7), e em antecipação das
bênçãos tanto para Israel como para o mundo. Iluminava-se o pátio
interior do templo, onde a luz dos grandes candelabros lembrava a
coluna de fogo noturno que tinha servido de guia através do deserto
(Nm. 14:14). Havia um desfile de tochas. E sobretudo, em todas as
partes, tanto em Jerusalém como em seus arredores, nas ruas, na praça, e
inclusive nos tetos das casas, levantavam-se cabanas. Estas moradias de
folhas proviam refúgio aos peregrinos que vinham de todas as partes
para assistir a esta festa. Mas sobretudo lembravam a vida dos
antepassados no deserto (Lv. 23:43).
Costuma-se pensar que João menciona esta festa porque está prestes
a relatar certas frases de Jesus que tinham relação com as cerimônias da
mesma (Jo 7:37; 8:12; 9:7).
João (William Hendriksen) 328
3–5. Quando parece que Jesus não tem pressa em ir à festa, Seus
irmãos — Tiago, José, Simão, e Judas, Mt. 13:55 — começam a criticá-
Lo. Consideram como inconsequente Sua conduta atual. Por um lado,
pensam, Jesus busca um posto público elevado. No entanto, por outro
lado, fica na Galileia, enquanto “o público” já está a caminho para
Jerusalém. Dirigiram-se, pois, a ele os seus irmãos e lhe disseram: Deixa
este lugar e vai para a Judéia, para que também os teus discípulos vejam
as obras que fazes. Porque ninguém há que procure ser conhecido em
público e, contudo, realize os seus feitos em oculto. Se fazes estas coisas,
manifesta-te ao mundo. 153 Em Jerusalém Jesus estará nas lamparinas.
Seus seguidores, que se reuniram em Jerusalém procedentes de todo
lugar, terão assim a oportunidade de ver os Seus milagres. Se Jesus fizer
estas obras poderosas, fato que Seus irmãos não põem em dúvida, então
que Se presente diante do mundo. Jesus deve alcançar a glória e a fama
por meio de uma grande demonstração de poder. Assim o veem eles.
A razão por que o veem assim, é, como se afirma no versículo 5,
Pois nem mesmo os seus irmãos criam nele. É verdade que não viam nEle
o Messias que ia demonstrar quem era por meio do sofrimento e da cruz.
Seu conceito messiânico era, num sentido, parecido ao da multidão que
tinha participado dos pães (Jo 6:15). Era totalmente terrestre e
materialista. Falando estritamente, nem sequer se deduz que estes irmãos
considerassem que Jesus fosse o Messias em nenhum sentido. O relato
simplesmente mostra que O acusavam de ser inconsequente, e que eles,
como tantos outros, tinham ideias seculares com relação à vinda e o
ofício do Messias. Depois da ressurreição de Cristo a atitude destes
irmãos mudou completamente (At. 1:14).

153
I D; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 329
JO 7:6–13

7:6. Disse-lhes, pois, Jesus: O meu tempo ainda não chegou, mas o
vosso sempre está presente. 154
Jesus fala a respeito do “tempo adequado” (καιρός diferente de
χρόνος; nem sequer no koinê desapareceu totalmente esta distinção). Diz
que o tempo adequado ainda não lhe chegou. No entanto, pode-se
perguntar: “O tempo adequado para fazer o que: para ir à festa ou para
manifestar-se ao mundo?” O contexto que antecede permite qualquer das
duas interpretações. No entanto, o contexto que segue permite uma só
explicação. Quando Jesus diz (versículo 6b), “… mas para vós qualquer
hora é favorável” (literalmente, “vosso tempo adequado sempre está
preparado”), só pode querer dizer, “Vós podeis ir à festa em qualquer
momento”. Portanto, é sem dúvida muito provável que também no
versículo 6a o que queira dizer seja: “Para mim o tempo adequado para
ir à festa ainda não chegou”. Esta conclusão também harmoniza com o
versículo 8 (segunda frase) onde, independentemente do texto que se
seguir (quer seja ο_κ ou ο_πω) Jesus fala duas vezes de subir à festa. Por
isso, o versículo 6 mostra com clareza que para cada ato e ação do
Senhor (não só para Sua morte na cruz) há um momento concreto, fixado
desde toda a eternidade no plano de Deus. Veja-se também sobre Jo 2:4.
Estando a vontade de Jesus em harmonia total com este conselho eterno
de Deus, espera com naturalidade que chegue o momento adequado.
Para os irmãos de Jesus não existem tais considerações. Não tinham tal
contato consciente com o relógio do conselho eterno de Deus. Além
disso, ainda eram incrédulos. Por isso, Jesus diz, “… mas para vós
qualquer hora é favorável”.
Quando se formula a outra pergunta, ou seja, “Por que se atrasou
Jesus subir à festa?”, a resposta está provavelmente nesta direção: de ter
ido imediatamente, com os primeiros, teria havido muito tempo para que

154
Literalmente: “mas seu tempo adequado sempre está preparado”.
João (William Hendriksen) 330
o Sinédrio planejasse seu arresto neste tempo, para matá-Lo agora. Mas
Jesus sabia que Sua morte como Cordeiro de Deus devia ter lugar na
Páscoa seguinte, não durante esta festa dos Tabernáculos. Por isto Ele se
demora.
7. Os irmãos haviam dito, “Manifesta-te ao mundo”. Do seu ponto
de vista isto é compreensível, como também o diz Jesus agora. Não pode
o mundo odiar-vos, mas a mim me odeia …” O mundo (_ κόσμος; veja-se
a nota 26) é aqui o reino do mal, o gênero humano alienado da vida de
Deus, e manifestando aberta hostilidade a Deus e a seu Ungido. Este
mundo está representado pela hierarquia religiosa de Jerusalém.
Como os irmãos de Jesus nesta época “não criam nele” (Jo 7:5), o
mundo, naturalmente, não podia odiá-los. Cf. Jo 15:18, 19; 17:14.
Odiava ao Cristo; a razão era: porque eu dou testemunho a seu respeito
de que as suas obras são más. Com relação a este testemunho veja-se Jo
2:14–16; 3:19, 20; 5:30–47.
8, 9. Jesus prossegue: Subi vós outros à festa; eu, por enquanto, não
subo, porque o meu tempo ainda não está cumprido. 155 (Literalmente,
ainda não se encheu: o compartimento inferior do relógio de areia da
providência de Deus ainda não se encheu). Jesus difere totalmente de
Seus irmãos. Ao subir à festa, o propósito deles, por muito “religioso”
que seja, é contudo muito mundano. Por isso, que vão sozinhos. A
respeito do subir a Jerusalém, veja-se sobre Jo 2:13. Pela razão já dada,
ainda não chegou a Jesus o tempo adequado para subir. Irá, mas não
imediatamente.
Esta explicação é muito singela, e harmoniza com todo o contexto.
No entanto, criou-se uma verdadeira dificuldade ao ler “não” em lugar
de “ainda não” no versículo 8. Vemo-nos então diante deste quebra-
cabeças: Jesus diz, “Não subo à festa” (p. ex., BJ); mas um pouco
depois, sim, sobe (versículo 10). Uma vez estabelecido que este é o texto
que se deve adotar, tentam-se todo tipo de explicações. Segundo alguns,

155
Literalmente: “porque meu tempo adequado ainda não se cumpriu”.
João (William Hendriksen) 331
quando Jesus disse, “Não subo”, quis dizer, “Não subo para me
manifestar como o Messias. Isto o farei numa festa posterior”. Segundo
outros, o versículo 8 deve interpretar-se deste modo: “Não subo em
público, mas em segredo”. Estes comentaristas recorrem ao versículo 10.
Outros creem que Jesus mudou de ideia ou que o Pai mudou Seus planos
para Ele. Podem-se evitar todas estas explicações artificiais com a
simples adoção: “Eu não subo ainda a essa festa”. As provas textuais são
quase iguais. 156 O contexto (versículos 6, 9, 10) está totalmente em favor
da leitura que tem “ainda não” (ο_πω) em lugar de “não”. Jesus já
indicou (versículo 6) que “ainda não” Lhe chegou o tempo adequado
para subir à festa. Por isso, disse-lhes Jesus estas coisas e continuou um
pouco mais na Galileia. Mas depois de que Seus irmãos tiveram ido, Ele
também foi (versículo 10). Harmoniza muito bem com este contexto a
leitura “ainda não” no versículo 8. Por que criar uma dificuldade quando
é desnecessário? Já há problemas suficientes na exegese sem criar mais.
10. De modo que, Jesus permaneceu na Galileia um pouco mais.
Mas, depois que seus irmãos subiram para a festa, então, subiu ele
também, não publicamente, mas em oculto. Como pôde Jesus subir a
Jerusalém em oculto? As respostas variam.

156
As provas externas em favor de óñypv não são de modo algum inferiores às que favorecem a οὐκ.
A. T. Robertson, quem em sua Introduction to Textual Criticism of the New Testament, Nova York,
1925, pp. 162, 169, 173, 176, 180, 182, 198, e 209, defende οὐκ, admite que, de existir alguma
diferença, a balança de apoio textual se inclina em favor de οὔπω, o qual encontra-se em B, W, L, T,
etc.; οὐκ em Aleph, D, K, M, etc. As versões mais antigas estão divididas. Por isso, sem ajuda
suficiente das provas textuais, os que, no entanto, apoiam οὐκ recorrem às provas internas; sobretudo,
à norma: “É preciso preferir a leitura que explique melhor a origem das outras”. Na prática isto
costuma equivaler a aceitar a leitura mais difícil. Argui-se que um escriba substituiria mais facilmente
οὔπω em lugar do difícil οὐκ que vice-versa, e que, em consequência, οὐκ é provavelmente o correto.
No entanto, outros creram — opinamos que acertadamente — que a norma, embora tenha muito
valor, não deve levar-se longe demais. Quando a palavra menos difícil — neste caso οὔπω — tem o
apoio claro do contexto, como demonstramos, perde sua força o argumento baseado nas provas
internas. daí que, com Westcott e Hort, Nestle até (e incluindo) a edição de 1936, e Grosheide, Het
Heilig Evangelie Volgens Johannes en Kommentaar op het Nieuwe Testament, Amsterdam, 1950, vol.
I, p. 501 nota 1, aceitamos οὔπω na segunda (e também na terceira) frase de Jo 7:8.
João (William Hendriksen) 332
Alguns são da opinião de que esta era a única forma possível de que
Jesus fosse, porque os caminhos nesta época estavam desertos, visto que
as nutridas caravanas de peregrinos, incluindo os irmãos de Jesus, já
haviam chegado à capital. Mas se a explicação é tão óbvia, então por que
se menciona? Outros se inclinam a pensar que Jesus, acompanhado só de
Seus discípulos, escolheu os caminhos mais solitários, viajou sozinho ou
principalmente de noite, e não anunciou publicamente sua saída da
Galileia nem sua chegada a Jerusalém. Não há dúvida que algo assim é o
que quer dizer a afirmação de que Jesus subiu em oculto.
11. Ora, os judeus, que eram principalmente ou exclusivamente os
líderes religiosos de Jerusalém inimigos de Jesus, tinham-No esperado
antes. E, vez após vez, o procuravam na festa e perguntavam: Onde
estará ele? Suas intenções, em vista de Jo 5:18 e Jo 7:25, não podem ter
sido amistosas. No entanto Jo 9:22 e 11:49–53 estão ainda por vir.
12. E havia grande murmuração a seu respeito entre as multidões.
Entre as multidões que tinham ido chegando à cidade de todas as partes a
opinião estava claramente dividida, bem como o estava na Galileia (note-
se Jo 6:6: muitos, nem todos, tinham-No abandonado), embora estas
multidões, que vinham não apenas da Galileia mas de todas as outras
partes da Terra Santa e de todos os países da Diáspora, estavam talvez
igualmente divididas em seus sentimentos. Uns diziam: Ele é bom, busca
fazer o bem, é moralmente justo, não um impostor. E outros, no entanto,
diferiam totalmente (note-se ο_, _λλά), e diziam: Não, antes, engana o
povo. Cf. Lc. 23:2, 5. Viam em Jesus a um simples demagogo, a alguém
de quem se devia fugir, a um falso profeta, a alguém que estava
interessado em atrair a Si a multidão ou massa (τ_ν _χλον),
congraçando-se com eles com fins egoístas.
13. Entretanto, ninguém falava dele abertamente, por ter medo dos
judeus. Estas opiniões contrastantes, no entanto, emitiam-se em
sussurros. Como o Sinédrio não tinha emitido ainda um veredito oficial,
ninguém se atrevia a falar abertamente. Cf. Jo 9:22. Ninguém ousava
“expor-se”. Dizer algo inadequado em público podia significar a
João (William Hendriksen) 333
expulsão da sinagoga. A temida “maquinaria” política de Jerusalém era
muito poderosa. Ia rapidamente se convertendo numa maldição para a
vida religiosa de Israel. Desde esse tempo houve maldições parecidas.
As multidões comentavam muito em voz baixa. O centro de interesse
eram o paradeiro e a índole de Jesus.

JO 7:14–24

7:14, 15. Corria já em meio a festa, e Jesus subiu ao templo e


ensinava.
De repente Jesus apareceu no templo. A festa, que durava uma
semana inteira (Lv. 23:26), andava pela metade (_δη δ_ τ_ς _ορτ_ς
μεσούσης, “já a metade da festa”). Com tantos peregrinos em Jerusalém,
muitos dos que estavam o suficientemente interessados por Jesus e
inclinados para Ele como para que qualquer dano que lhe fosse causado
pudesse criar dificuldades para os líderes, não era possível fazer
preparativos realmente adaptados para prendê-lo. Não levaram a nada,
como veremos (Jo 7:32, 45–52), certos esforços incompetentes e do
último momento nesse sentido. Jesus então, uma vez encontrado um
lugar adequado (talvez no pátio dos gentios), Se assentou, posição
habitual para aquele que ensinava (cf. Mt. 5:1, 2; mas, cf. Jo 7:37).
Imediatamente se reuniu uma multidão de ouvintes, aos quais começou a
instruir. Desta vez não houve milagres, como o da ocasião anterior
(relatado; capítulo 5). Mas o povo logo descobrirá que tudo o que o
Senhor faz é surpreendente, tanto Seus milagres como Seu ensino.
Logo se uniram ao auditório alguns líderes hostis. Escutaram por
certo tempo. Logo, alarmados pelo conteúdo e índole das palavras que
escutavam, estes homens, que jamais queriam aceitar grandeza alguma
de parte do Senhor, não puderam conter-se mais. Então, os judeus se
maravilhavam de seu atrevimento. Sua ira explorou numa exclamação
depreciativa com relação a Jesus, e diziam: Como sabe este letras, sem ter
estudado? Jesus nunca tinha recebido instrução em escolas rabínicas. Em
João (William Hendriksen) 334
termos modernos, poderia dizer-se que não tinha nenhum título de
alguma instituição reconhecida. Portanto, tudo o que dissesse devia estar
errado! Não sabia de “letras” (γράμματα, a. letras do alfabeto, Gl. 6:11;
b. carta, At. 28:21; c. Escritura, 2Tm. 3:15; finalmente, como aqui,
aprendizagem; no entanto, a aprendizagem judaica centralizava-se nos
escritos sagrados e sua interpretação). Dava-se a entender que Jesus
simplesmente expressava Suas opiniões pessoais a respeito de assuntos
religiosos; e, portanto, era preciso negar-se a seguir escutando-o.
16. Em Sua resposta Jesus mostra que os críticos não tinham
pensado na possibilidade de que o conteúdo de seu ensino pudesse
proceder de outra fonte, muito superior a qualquer seminário judaico. Tal
como o viam os críticos, havia só duas possibilidades: ou Jesus tinha
estado numa escola rabínica como estudante regular; ou, simplesmente
emite Suas próprias ideias. E como sabiam que a primeira destas
alternativas estava definitivamente excluída, a segunda devia ser
verdadeira. Respondeu-lhes Jesus: O meu ensino não é meu, e sim daquele
que me enviou. Nenhum homem lhe tinha ensinado, nem era autodidata,
mas o próprio Deus O tinha instruído; essa foi Sua resposta. A respeito
de Jesus como enviado pelo Pai, veja-se sobre Jo 3:17; 3:34, 35; 5:37.
Não só tinha recebido o conteúdo de Seu ensino do Pai nos céus, mas
também tinha recebido o mandato divino de transmiti-lo aos homens.
Que Seus inimigos tomem nota deste fato; ou seja, que ao repudiarem a
Ele e a Sua mensagem, repudiam ao próprio Deus (cf. Jo 4:34; 5:23, 24,
30; Mt. 10:40).
17, 18. Jesus formula logo o princípio básico: estipula os requisitos
que alguém deve reunir antes de poder, de algum modo, fazer uma
avaliação do ensino de Cristo. Quem deseja fazê-lo deve a. ter a
disposição adequada (versículo 17); b. buscar o ideal adequado
(versículo 18).
Deve ter a disposição mental e emocional adequada: Se alguém
quiser fazer a vontade dele, conhecerá a respeito da doutrina, se ela é de
João (William Hendriksen) 335
157
Deus ou se eu falo por mim mesmo. Se não houver um verdadeiro
desejo de obedecer a vontade de Deus segundo se manifesta em Sua
palavra, não se encontrará um verdadeiro conhecimento (tanto intelectual
como experimental). Isto leva à interessante pergunta: Do que forma se
relacionam entre si os vários elementos da experiência cristã? Em geral
pode-se dizer que, segundo o ensino de Cristo e dos apóstolos, primeiro
vem o conhecimento (com relação a Cristo e aos fatos da redenção:
implicando, naturalmente, o conhecimento do pecado). Quando tentamos
descobrir a fonte de nosso amor por Deus em Cristo, encontramos que
este brotou da contemplação dos fatos do Evangelho e de nossa
interpretação do significado destes fatos. No entanto, apressamo-nos a
acrescentar: o conhecimento em si mesmo nunca produz amor. Leva a
amor quando o Espírito Santo aplica este conhecimento ao coração; ou
seja, quando produz no coração uma resposta ao amor de Cristo, cujo
conhecimento já está presente na mente. E este amor, por sua vez, se
expressa em atos de obediência: “Se me amais, guardareis os meus
mandamentos”. A relação fundamental entre os três é, pois: a.
conhecimento, b. amor, c. obediência. Cf. Jo 17:26; 14:15.
No entanto, esta exposição necessita certas distinções. Cada um dos
três elementos (conhecimento, amor, obediência), uma vez presente no
mais mínimo grau, enriquece, intensifica e aprofunda os outros. Há uma
interação constante, cada um deles influindo nos outros dois. De fato, os
três estão tão intimamente relacionados que nenhum é completo em si
mesmo e por si mesmo. De modo que, não só o conhecimento, aplicado
pelo Espírito Santo, conduz ao amor; o amor, por sua vez, é o pré-
requisito indispensável de um conhecimento totalmente desenvolvido.
Daí que às vezes encontramos a ordem inversa: em lugar de
conhecimento … amor, encontramos amor … conhecimento. Cf. Ef.
3:17. Do mesmo modo, em lugar da ordem segundo o qual a obediência
é última (como em Jo 14:15), também encontramos a ordem em que é

157
Literalmente: “ou se falo por mim mesmo”. III B 2; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 336
primeira. Esta é, naturalmente, a sequência na passagem que estamos
examinando (Jo 7:17): “Se alguém quiser fazer a vontade dele,
conhecerá a respeito da doutrina, se ela é de Deus ou se eu falo por mim
mesmo”. Aí temos: 1. obediência (disposição de fazer a vontade de
Deus) e 2. conhecimento.
A única conclusão lógica, diante destas apresentações variadas e (à
primeira vista) aparentemente (embora nunca realmente) contraditórias,
é esta: quando falamos de conhecimento, amor e obediência, não
pensamos em três experiências totalmente separadas, senão uma só
experiência compreensiva na qual os três elementos estão de tal forma
unidos que cada um deles contribui com algo, e todos cooperam à
salvação do homem e à glória de Deus. Esta experiência é de caráter
pessoal. Por isso, já não se pode falar da primazia da inteligência ou da
primazia das emoções ou da primazia da vontade, mas sim da primazia
da graça soberana de Deus que influi em toda a personalidade e a
transforma para a glória de Deus.
O conhecimento, portanto, nunca santificará o coração nem
conduzirá a um discernimento genuíno do caráter e a origem divinas do
ensino de Cristo a não ser que acima de tudo esteja presente a disposição
de fazer a vontade de Deus. Quando esta última está presente, se
perceberá imediatamente que a mesquinha acusação dos judeus — ou
seja, que Jesus estava simplesmente expressando sua opinião pessoal —
é totalmente falsa.
Agora, quem tem a disposição adequada (versículo 17) também
buscará o ideal adequado (versículo 18):
18. Quem fala por si mesmo está procurando a sua própria glória;
mas o que procura a glória de quem o enviou, esse é verdadeiro, e nele
não há injustiça. A respeito desta passagem veja-se Jo 5:41–44. Se esta
glória de Deus for o ideal do ouvinte, também poderá detectar se for o
ideal do qual fala. Poderia um profeta autonomeado fazer o que Jesus faz
(cf. Jo 5:19; 7:16; 17:4), quer dizer, mostraria em todas suas palavras e
ações que está buscando a glória de quem o enviou? Acaso aquele que se
João (William Hendriksen) 337
limita a expressar suas próprias opiniões não faria exatamente o
contrário, ou seja, buscar sua própria glória? Estas palavras têm uma
dupla utilidade: a. mostram a vacuidade total da observação depreciativa
dos líderes, “Como pode este saber de letras sem educação?” e b. põem a
descoberto o pecado destes líderes. Eram eles aqueles que sempre
buscavam sua própria glória, até o extremo de que seis meses depois
desta festa dos Tabernáculos, sua inveja os conduziu a entregar a Jesus
para ser crucificado (Mt. 27:18). Simplesmente não podiam aceitar que
houvesse tal interesse por Jesus da parte das multidões. Por isso,
enquanto que ele era verdadeiramente confiável (_ληθής), alguém em
quem não havia engano nenhum, eles eram aqueles cuja religião, apesar
de sua manifestação externa de zelo pela lei, não era mais que falsa
aparência.
19. Jesus põe a descoberto esta hipocrisia mais detalhadamente
quando pergunta retoricamente: Não vos deu Moisés a lei? De fato, estes
homens se jactavam constantemente de ser discípulos de Moisés (Jo
9:28), e de estar sentados na cadeira de Moisés (cf. Mt. 23:2). Tinham
recebido a Torah (toda a lei: civil, ritual, moral, com ênfase na última
resumida nos Dez Mandamentos) por intermediário de Moisés. Jesus
prossegue: Contudo, ninguém dentre vós a observa. Por que procurais
matar-me? O ofendido toma agora a ofensiva. A dupla acusação, feita
aos líderes, cai como trovão e relâmpago. Mostra que Jesus nesse preciso
momento estava lendo os corações destes homens. Sabia que embora
tratavam de apresentar-se como custódios da lei de Moisés, lei que se
resumia na palavra amor, albergavam no coração ódio e destruição (cf.
Jo 5:18). Mas a terrível e devastadora acusação, não foi dirigida só
(embora sim de forma especial) aos líderes. Jesus sabe que os cidadãos
de Jerusalém logo vão se unir a eles, bem como o farão outros (Jo 7:30,
44), até que por fim, meio ano mais tarde, todo o povo, concentrado em
Jerusalém procedente de todas as partes, gritará, “Crucifica-o!” Daí que
a pergunta, “Por que procurais matar-me?”, vai dirigida, em certo
sentido, a toda a multidão.
João (William Hendriksen) 338
20. Respondeu a multidão: Tens demônio. Quem é que procura
matar-te?
No entanto, entre a multidão congregada — composta de líderes
hostis (fariseus, escribas), peregrinos de diversas procedências e
residentes de Jerusalém (cf. vv. 14, 20, 25, respectivamente, para as três
classes) — há aqueles que nesse momento não têm desejo de dar morte a
Jesus. Pode-se imaginar como essas pessoas, que sem dúvida eram
principalmente os que tinham vindo de longe, sentiram-se afligidas pela
pergunta de Jesus. Com as bochechas vermelhas de indignação,
prorrompem na exclamação, “Tens demônio. Quem é que procura matar-
te?” Estão seguros de que algum espírito mau deve ter-se apoderado da
mente de Jesus até tornar-se louco. Esta multidão peregrina
evidentemente não sabia que os líderes de Jerusalém já tinham planejado
em seu coração eliminá-lo. A multidão costuma ser lenta em notar as
tramas dos líderes “religiosos” pelos quais têm grande respeito. O
episódio sucedido aqui em Jerusalém repetiu-se muitas vezes na história,
em escala reduzida. Por exemplo, uns poucos líderes de posição elevada,
cheios de inveja, tramam a destruição desta ou daquela pessoa. Traçam
os planos com grande habilidade. A trama tem êxito. A multidão não
costuma nunca perceber o sucedido. Se a presumida vítima dos líderes e
de sua inveja houvesse lhes dito alguma vez claramente, “Estes líderes
estão tramando destruir-me”, teriam respondido: “Ora, tens um demônio,
ou pelo menos um complexo de perseguição! Ninguém está tentando
fazer-te nenhum dano”.
21–24. Jesus, no entanto, confirma Seu argumento. A ideia de matá-
Lo tinha entrado no coração e na mente dos líderes com relação à cura
do homem no tanque, como se diz concretamente em Jo 5:18. Replicou-
lhes Jesus: Um só feito realizei, e todos vos admirais. É certo que Jesus
tinha realizado outras obras de cura em Jerusalém (Jo 2:23; 4:45); mas
esta ação — a cura do paralítico em Betesda (Jo 5:1–18; veja-se sobre Jo
5:1–18) —, realizada no sábado, tinha sido a ocasião imediata para a
trama contra a Sua vida. O próprio milagre, mas sobretudo as
João (William Hendriksen) 339
circunstâncias concretas (que se realizou no sábado e que no sábado
tinha ordenado ao homem que levasse seu leito), havia causado surpresa
geral. Deve lembrar-se que nem aqui nem no versículo 15 deste capítulo
a surpresa implica aprovação. Mas pelo fato de que a reação da multidão
não foi de fé viva e verdadeira mas de crítica adversa (sobretudo da parte
dos líderes), o Senhor prossegue: Pelo motivo de que vos digo (δι_ το_το
provavelmente é elíptico neste caso 158 ) que Moisés vos deu a circuncisão
(se bem que ela não vem dele, mas dos patriarcas), no sábado circuncidais
um homem.
Para lhes mostrar a fraqueza da crítica de Sua ação, como se tivesse
sido violação do sábado, fala-lhes da lei da circuncisão. Embora este rito
tenha passado a ser lei para Israel em virtude de sua incorporação à
legislação mosaica (Lv. 12:1–3), contudo foi praticada muito antes de
Moisés, no tempo dos “pais” que o tinham precedido (Gn. 17:9–14, 23–
27; 21:4). Os judeus, zelosos da lei de Moisés, tinham a tendência a
esquecer que certas práticas religiosas importantes tinham estado em
voga muito antes do tempo do profeta; por isso, Jesus acrescenta a frase
explicativa em parêntese. Agora, segundo a lei que regia este rito
religioso, o menino varão devia ser circuncidado no oitavo dia depois do
nascimento. O que Jesus recalca é isto: inclusive se esse oitavo dia cair
no sábado, circuncida-se a criança. E prossegue, fazendo ver claramente
Sua argumentação de forma que resulte evidente a força lógica da
mesma: E, se o homem pode ser circuncidado em dia de sábado, para que
a lei de Moisés não seja violada, por que vos indignais contra mim, pelo
fato de eu ter curado, num sábado, ao todo, um homem? 159 Se a
purificação ritual de um membro do corpo (o membro procriador)
permite-se em sábado, então resultará proibido nesse dia a cura real de
158
Se for considerado continuação do versículo 21, a expressão ficaria redundante. Além disso,
geralmente encontra-se no começo de uma frase (Jo 1:31; 5:16, 18; 6:65; 8:47; 9:23; 10:17; 12:18, 27,
39; 13:11; 15:19; 16:15; e 19:11); e no sentido de “por conseguinte” (ou: “por esta razão”), como
aqui, nem sempre vai seguida de ὅτι causal (cf. Jo 1:31; 9:23; 12:27; 19:11). No quarto Evangelho a
elipse não é incomum.
159
I A, B; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 340
todo o corpo (sim, de todo o homem, corpo e alma), dando ao povo
causa justa para irar-se contra Aquele que cura? O argumento é,
naturalmente, irrefutável. “O sábado foi feito por causa do homem, e não
o homem por causa do sábado” (Mc. 2:27).
O que o povo (tanto os líderes como outros) deveria fazer é isto:
refletir serenamente a respeito destas coisas. Eles deveriam deixar de
emitir juízos precipitados. Por isso Jesus diz: Não julgueis segundo a
aparência, (κατ_ _ψιν) e sim pela reta justiça. Compare-se com o
pensamento muito similar expresso tão belamente em 1Sm. 16:7b:
“Porque o SENHOR não vê como vê o homem. O homem vê o exterior,
porém o SENHOR, o coração”.

JO 7:25–29

7:25–27. A reação dos membros do Sinédrio referiu-se em Jo 7:15; a


da multidão (sobretudo peregrinos) em Jo 7:20. Agora ouvimos os
cidadãos de Jerusalém (Jo 7:25–27). Estes estavam melhor informados
com relação às verdadeiras intenções dos líderes, aqueles que tinham seu
quartel general em sua própria cidade. Além disso, não eram tão cordiais
com Jesus como muitos dos peregrinos vindos de longe. Os residentes de
Jerusalém se surpreenderam muito de que ninguém tivesse tratado de
deter Jesus quando fez tão terríveis acusações na cara de Seus oponentes
(versículo 19), e, além disso, tinha acusado a eles e a seus seguidores de
uma inconsequência patente (versículos 21–24). Claro que, tinha havido
uma interrupção momentânea, uma manifestação de ira (versículo 20),
mas não tinha passado daí. Foi permitido a Jesus continuar Seu ensino
“revolucionário”.
À luz disto pode-se entender a afirmação: Diziam alguns de
Jerusalém: Não é este aquele a quem procuram matar? Eis que ele fala
abertamente (παρρησία de π_ς y ρ_σις; daí, dizer tudo, não guardar-se
nada, termo que na forma de μετ_ παρρησίας tem um belo significado
em Hb. 4:16), e nada lhe dizem (os encarregados do templo, de seus ritos
João (William Hendriksen) 341
e serviços, etc.). Atravessa-lhes a mente uma possibilidade, mas
imediatamente a descartam: Porventura, reconhecem verdadeiramente as
autoridades que este é, de fato, o Cristo? Nós, todavia, sabemos donde este
é; quando, porém, vier o Cristo, ninguém saberá donde ele é. A opinião
dos governantes! Isto era o mais importante, porque esses homens
tinham o direito de expulsar da sinagoga os dissidentes, castigo
extremamente terrível (cf. Jo 7:13; 7:48; 9:22; 9:34; e 12:42). Mas como
se pode explicar que, diante de acusações tão terríveis como as que Jesus
fez contra eles, permitissem Ele continuar como se não tivesse
acontecido nada? Poderia ser que tivessem chegado a convencer-se de
verdade (_γνωσαν, convencer-se de fato) de que era o Cristo? Mas não,
não podia ser isso. Por isso a pergunta se formula de um modo que
espera uma resposta negativa, embora se deixe ligeiramente entreaberta a
porta da dúvida (μήποτε _ληθ_ς). A ideia de alguns no sentido de que
essa gente de Jerusalém faz a pergunta em atitude de ridículo parece
dificilmente em harmonia com o tom calmo da conversação — o sopesar
os argumentos em prol e contra — que aparece no versículo 27. A
sugestão dos habitantes de Jerusalém, de que os dirigentes podiam ter
chegado à conclusão de que este era realmente o Cristo, desvanece-se
diante da objeção de que o lugar de origem deste homem, Jesus, era bem
conhecido; mas a origem do verdadeiro Messias seria desconhecida.
Acaso não sabia todo mundo que Jesus procedia de Nazaré na
Galileia, e que era filho de José e de Maria! Algo parecido encontramos
em Jo 6:42 e em Jo 7:41, 42. Por isto se descarta imediatamente a
possibilidade de que pudesse ser o Cristo. Segundo este capítulo do
Evangelho de João havia duas opiniões entre os judeus com relação à
origem do esperado Messias: a. segundo alguns, ninguém saberia de
onde vinha (Jo 7:27); b. segundo outros, nasceria em Belém (Jo 7:41, 42;
cf. Mt. 2:3–5).
A primeira destas ideias — que o Messias apareceria de repente,
como por encanto — parece ter sido parte da teologia popular,
provavelmente baseada em deduções de certas passagens dos livros
João (William Hendriksen) 342
apócrifos (embora não o encontramos afirmado com clareza em nenhum
desses livros). 160 A segunda ideia (como o indicam as referências dadas)
era correta, e era a posição oficial do Sinédrio. De qualquer modo, no
entanto, como todo mundo “sabia” de onde procedia Jesus, ou seja, de
Nazaré na Galileia, não podia ser o verdadeiro Messias!
28. Quão completamente errados estavam! E como esta lamentável
ignorância com relação à Sua verdadeira origem deve haver entristecido
ao Senhor! Comovido até o mais profundo de seu ser, Jesus clamou
(_κραξεν) — isto também formava parte de seu ensino no templo —
dizendo: Vós não somente me conheceis, mas também sabeis donde eu
sou! Também pode ler-se a exclamação como pergunta: “Assim que,
conheceis-me, e sabeis de onde venho?” Em ambos os casos o
significado é o mesmo. Jesus ridiculariza a própria ideia de que estes
cidadãos preconceituosos, legalistas, materialistas de Jerusalém
conhecessem realmente quem era Ele e qual era Sua origem! E quando
agora diz “De maneira que me conhecem, e sabem de onde venho!, quer
dizer, “Isso é o que vós pensais! Não aceitamos a interpretação dos que
excluem a ideia de ironia, e creem que Jesus realmente quis dizer que
estes cidadãos capitalinos O conheciam e sabiam qual era Sua origem,
porquanto sabiam que procedia de Nazaré na Galileia. Não podemos
aceitar isto, pelas seguintes razões:
a. Sendo assim, acaso o Senhor não teria ocultado Sua origem real
(ou seja, que procedia do céu e que tinha nascido, segundo a profecia,
em Belém); e não teria sido, portanto, em parte responsável pela ideia de
que não podia ser o Cristo? Além disso, Sua infância em Nazaré não
constitui um argumento convincente nem em prol nem contra Sua
origem e caráter elevado. Daí que não podemos crer que Jesus pudesse
tirar seriamente esse tema.

160
Veja-se, no entanto, A. T. Robertson, Word Pictures in the New Testament, Nova York e Londres,
1932, vol. V, p. 127.
João (William Hendriksen) 343
b. O próprio Jesus vez após vez afirma, tanto de forma explícita
como por implicação, que o povo não O conhece nem conhece Sua
origem (Jo 8:19, 42, 43; veja-se também Jo 3:11; 5:18, 37, 38; 6:42, 60–
62; 8:55–59; e cf. Jo 14:9). Diria então precisamente o contrário aqui (Jo
7:28)? Note-se também que na última frase do versículo 28 Jesus diz a
essa gente que não conhece a Deus. É lógico, pois, supor que no mesmo
versículo diria: “Mas de fato me conheceis”? Cf. Jo 8:19!
c. A falta de percepção do caráter vivaz e faiscante da conversação
de nosso Senhor — por exemplo, a ideia de que rebaixaria Sua dignidade
e majestade gloriosa o utilizar a ironia ou o ridículo — conduziu a erros
múltiplos na exegese. Veja-se o que se disse a respeito disto com relação
a Jo 5:31.
d. O fato de que quando Jesus pronunciou estas palavras, estivesse
tão profundamente comovido que elevasse a voz, harmoniza muito bem
com a ideia de que o que temos neste caso não é uma afirmação tranquila
de um fato mas uma exclamação veemente: “De modo que me conheceis
e sabeis de onde venho!” À luz desta aguda ironia não é difícil entender
que as pessoas às quais se dirigiu estivessem ansiosas para prendê-Lo (Jo
7:30).
e. Finalmente, devemos ter em mente que os líderes e alguns dos
habitantes de Jerusalém consideravam Jesus como um farsante, um
impostor; como alguém que com toda certeza não podia ser o Messias
(Jo 7:12, 27, 41, 42). É lógico, pois, supor que Jesus dissesse a pessoas
assim que de fato O conheciam e sabiam de onde vinha?
Com João Calvino (e muitos outros: Godet, Wizsäcker, Lücke,
Lenski) cremos, portanto, que Jesus neste caso utiliza a ironia. 161
Estas mesmas pessoas que estavam tão seguras de que Jesus não
podia ser o Messias prometido, consideravam-no como profeta

161
João Calvino. Ioannis Calvini in Evangelium Ioannis Commentarii, Berolini (apud Guilelmum
Thome), 1553; vol. III, p. 145: Acerbis verbis in corum temeritatem invehitur, quod superbe sibi in
falsa opinione placentes a veri notitia se excluderent, acsi diceret, Vos omnia cognoscendo nihil
tandem cognoscitis … Ironice loquitur quum dicit me nostis, et nostis unde sim, a me ipso non veni.
João (William Hendriksen) 344
autonomeado. Daí que à maneira de refutação Jesus diz, e não vim
porque eu, de mim mesmo, o quisesse, mas aquele que me enviou é
verdadeiro, aquele a quem vós não conheceis. Em vez de ter vindo por Si
mesmo, Jesus tinha sido divinamente comissionado, tinha sido enviado
pelo Pai, como se ensina em muitas passagens do quarto Evangelho (Jo
5:30; 8:28; 12:49; 14:10). Além disso, o povo não deve pensar que
Aquele que envia é uma pura ficção da imaginação, uma ideia subjetiva;
pelo contrário, é o Verdadeiro (_ληθινός), mas também aquele a quem o
povo não conhece (cf. Jo 8:19, 55), embora creiam que o conhecem
muito bem.
29. Jesus prossegue: Eu o conheço, porque venho da parte dele (ou:
de sua presença), e fui por ele enviado. Existem certas dúvidas com
relação à leitura correta, se for “dele procedo” ou “estou com ele”. No
entanto, o contexto mostra claramente que a interrogação que todos
tinham era esta: “Quem é Jesus, e de onde vem?” Assim no versículo 27
e também no 28. Além disso, a ideia de que Jesus é Aquele que veio do
Pai é bastante comum em João (Jo 1:14; 6:46; 16:27; 17:8).
Naturalmente, aquele que veio de Deus estava ao mesmo tempo (e em
certo sentido o está sempre) com Ele. E como o Filho estava com o Pai e
procedia dEle, conhece-O muito bem (cf. Jo 1:18; 8:55; 17:25; Mt.
11:27). Que ninguém o duvide. Nos críticos de Jerusalém há presunção e
erro, devido à sua incredulidade. O silogismo deles era assim:
Premissa maior: Ninguém saberá de onde procede o verdadeiro Messias.
Premissa menor: Sabemos de onde vem Jesus.
Conclusão: Jesus não pode ser o verdadeiro Messias.
Dadas as premissas maior e menor, a conclusão segue-se com toda
lógica. Mas a premissa maior era falsa; a premissa menor era falsa; a
conclusão era falsa. Diante de tais conceitos falsos, Jesus, quem procede
diretamente do Pai e recebeu dEle a comissão, proclama a verdade; ou
seja, que Ele é, na verdade, o Cristo, e que Ele, e só Ele, conhece
completamente o Pai.
João (William Hendriksen) 345
JO 7:30, 31

7:30. Jesus fez as afirmações mais sublime a respeito de Sua própria


pessoa e origem, tinha posto em ridículo o pretendido conhecimento dos
habitantes de Jerusalém, e lhes havia dito com palavras inconfundíveis e
francas que nem sequer conheciam a Deus (Jo 7:28, 29). Por isso não nos
surpreende ler: Então, procuravam 162 prendê-lo. Por que não cumpriram
seu desejo? Temiam que os peregrinos simpatizantes de Jesus fossem
detê-los? O versículo 31 parece apontar nesta direção (veja-se também
Jo 7:12a). A razão mais profunda desta sentença quanto a deter Jesus
nesse tempo é formulada com palavras que resultam já conhecidas no
quarto Evangelho: Mas nenhum lhe pôs a mão (cf. Mt. 26:50) porque
ainda não era chegada a sua hora. Quanto a esta última expressão veja-se
Jo 2:4. Embora rodeado de perigos — a ira dos de Jerusalém, o desejo
hostil e o poder dos líderes —, Jesus na realidade estava livre de todo
perigo, porque não era a vontade de Deus que morresse nesses
momentos. 163
31. E, contudo, muitos de entre a multidão (sem dúvida, em sua
maioria peregrinos) creram nele. Isto, no entanto, não indica
necessariamente uma fé viva e verdadeira. Provavelmente estavam
dispostos a aceitar a Jesus como o Messias político de seus sonhos.
Baseavam sua atitude nos milagres que tinham visto ou em relatos tão
maravilhosos que tinham ouvido. Cf. Jo 2:23: 4:45, 48; At. 8:13.
Esperavam que quando viesse o Messias realizasse milagres (cf. Is. 35:5,
6; Mt. 11:2–5) e restaurasse o reino de Israel (At. 1:6). À luz do que
Jesus veio fazendo estão dispostos a aceitá-Lo como um Messias dessa
classe. Quando vier o Cristo, fará, porventura, maiores sinais

162
Provavelmente de intenção (ἐζήτουν).
163
João Calvino, op. cit., p. 146: Res difficilis creditu, quod tot fortuitis casibus obnoxii, tot hominum
ferarumque inuriis et insidiis expositi, tot obsessi morbis, simus tamen extra omnem periculorum
aleam nisi quum evocare nos Deus volet: sed cum diffidentia nostra luctandum.
João (William Hendriksen) 346
(possivelmente: maiores) do que este homem tem feito? Presume-se uma
resposta negativa.

JO 7:32–36

7:32. Os fariseus, ouvindo a multidão murmurar estas coisas a


respeito dele, juntamente com os principais sacerdotes enviaram guardas
para o prenderem.
Tal como o viam os fariseus, as coisas estavam ficando difíceis. A
multidão estava de fato começando a considerar este impostor como o
verdadeiro Messias. Ouviu-se o murmúrio de vozes que expressavam
estes sentimentos. Era necessário intervir. Não se podia esperar mais. Por
esta razão estes guardiões da lei comunicam sua ansiedade aos membros
das famílias sacerdotais (em sua maioria saduceus). Logo chegam a um
acordo. Os que eram grandes inimigos entre si — fariseus e saduceus —
estão totalmente dispostos a unir-se em sua oposição comum a Jesus (cf.
Lc. 23:12; At. 4:27). Não se sabe se celebraram nesse momento uma
sessão do Sinédrio ou não (como em Jo 7:45–52, e em Jo 11:47). Talvez
o acordo teve um caráter menos formal. De qualquer modo, a oposição a
Jesus já alcança um novo nível: começa a pôr-se em movimento o
sinistro desejo expresso em Jo 5:18. Aqueles que deveriam ter sido os
mais zelosos defensores de Cristo e de Seu reino, de fato enviam oficiais
(_πηρέτας: remadores de baixo; daí, servidores, oficiais) para prender o
Messias!
33. Mas Jesus mostra que se deve cumprir o conselho de Deus. Com
calma e serenidade, com majestade imperturbável, Disse-lhes Jesus
(dirigindo-se a toda a multidão reunida, mas sobretudo aos líderes
presentes): Ainda por um pouco de tempo estou convosco e depois irei
para junto daquele que me enviou. Cf. Jo 16:16–19. Jesus sabe que
permanecerá na terra um pouco mais; quer dizer, meio ano (desde
outubro do ano 29 a abril do ano 30; da festa dos Tabernáculos à da
João (William Hendriksen) 347
Páscoa). Então voltará ao que O enviou, uma vez cumprida plenamente a
tarefa que lhe tinha sido encomendada.
34. Com uma afirmação cheia de mistério prossegue o Senhor:
Haveis de procurar-me e não me achareis. Cf. Jo 13:33–36. A nação
judaica, por desespero buscará libertação, mas então será tarde demais.
Pense-se no desespero de Esaú (Gn. 27:30–38; Hb. 12:17); nos homens
com relação aos quais escreveu Amós sua profecia de infortúnio: “Eis
que vêm dias, diz o Senhor Deus, em que enviarei fome sobre a terra,
não de pão, nem sede de água, mas de ouvir as palavras do Senhor.
Andarão de mar a mar e do Norte até ao Oriente; correrão por toda parte,
procurando a palavra do Senhor, e não a acharão” (Am. 8:11, 12). Cf.
Também Pv. 1:24–28. Ao não fazê-lo morrerão em seus pecados (Jo
8:21).
Quando Jesus acrescenta: também aonde eu estou, vós não podeis ir,
quer dizer: “Vou ao Pai; mas vós rejeitastes ao Pai ao me repudiares.
Portanto, não podeis vir aonde eu estou”. Não há lugar na presença do
pai para os que não quiseram aceitar o Filho.
Fica, naturalmente, muito clara a advertência implícita nestas
palavras. É a advertência do Sl. 95:8–11.
Jesus, pois, mostrou claramente que, independentemente do que os
judeus pudessem estar planejando, Ele morrerá no tempo assinalado, e
que em Sua morte o propósito divino, longe de fracassar, cumprir-se-ia;
por meio da cruz chegaria à coroa; alcançaria a glória que o esperava no
céu depois de cumprir Sua missão mediadora na terra.
35, 36. Mas sucede também agora como nos casos anteriores: lhe dá
uma interpretação literal crassa a esta advertência significativa. Pela
reação dos judeus vê-se claramente que não viram nas palavras de Jesus
uma revelação do temível estado de pecado deles com suas
consequências inevitáveis. Descartando sem mais a insinuada
advertência: Disseram, pois, os judeus uns aos outros: Para onde irá este
que não o possamos achar? Irá, porventura, para a Dispersão entre os
gregos, com o fim de os ensinar? Que significa, de fato, o que ele diz:
João (William Hendriksen) 348
Haveis de procurar-me e não me achareis; também aonde eu estou, vós
não podeis ir?
Estavam zombando. Era a intenção de Jesus, depois de Sua obra na
Judeia ter fracassado, ir aos judeus dispersos (διασπορά de διασπείρω
dispersar-se; cf. At. 8:1, 4; Tg. 1:1) entre os gregos? Havia judeus
vivendo em várias regiões da terra entre gregos e outros povos pagãos
(cf. At. 2:9–11). Quando o evangelista menciona os gregos, não quer
dizer judeus de fala grega (helenistas; veja-se At. 6:1; 9:29) mas aos de
raça grega. Era a intenção de Jesus trabalhar entre os judeus dispersos, e
quando também esta obra terminasse em fracasso, trabalhar então entre
os próprios gregos?
Não se dão conta de que o que dizem em zombaria contém uma
gloriosa profecia. De fato, os gregos se interessarão pelo evangelho
(veja-se Jo 12:20). E se estenderão por toda a terra as novas de salvação,
e se estabelecerá o reino de Deus, e … os zombadores buscarão … em
vão!

JO 7:37–39

7:37–38. No último dia, o grande dia da festa, levantou-se Jesus e


exclamou: Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim,
como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva.
Da metade da festa (Jo 7:14) o relato passa agora a seu último dia.
Não é seguro se este “último dia” indica o sétimo ou o oitavo dia (ou
seja, se isso se refere ao vigésimo primeiro ou ao vigésimo segundo do
sétimo mês). Havia sete dias de festejos regulares que se caracterizavam,
entre outras coisas, por viver em tendas, trazer ofertas em escala
decrescente (no primeiro dia, além de outros sacrifícios, treze touros
castrados jovens; no segundo dia, doze; no terceiro dia, onze; etc.; veja-
se Nm. 29:12–34), e levar água do poço de Siloé. O oitavo dia era de
descanso, de “solene assembleia” ou “santa reunião”.
João (William Hendriksen) 349
Embora muitos comentaristas mostram preferência pelo sétimo dia
ou pelo oitavo, se partimos das provas disponíveis pareceria mais
prudente deixar este ponto sem resolver.
Em favor que Jo 7:37 refere-se ao oitavo dia foram apresentados os
seguintes argumentos:
1. Não só mencionam este oitavo dia as passagens do Antigo
Testamento, mas também durante o período intertestamentário e depois
do mesmo, era comum falar desta festa como de uma festa de oito dias.
Assim, 2 Macabeus 10:6: “E observaram (a festa) oito dias com alegria”,
e Flávio Josefo, Antiguidades judaicas III, x, 4: “E observaram uma festa
por oito dias”.
2. A menção “último dia, o grande dia da festa” harmoniza melhor
com o oitavo dia que com o sétimo; porque o oitavo dia era o final não
só da festa dos Tabernáculos mas também de todo o grande ciclo de
festividades religiosas anuais. A LXX (p. ex. em Lv. 23:35) chama a este
dia _ξόδιον, quer dizer, a festividade final ou de clausura.
3. Como a cerimônia de derramar a água ocorria em cada um dos
sete dias regulares da festa mas não no oitavo (embora isto não o
admitam todos), esta mesma ausência que caracterizava esse oitavo dia
proporcionou uma razão muito adequada para que Cristo exclamasse,
“Se alguém tem sede, venha a mim e beba”.
Os que apoiam a teoria oposta — que Jo 7:37 refere-se ao sétimo
dia — arguem como segue:
1. Pode-se presumir com confiança que a linguagem de Jo 7:37 tem
suas raízes no Antigo Testamento mais que nos Apócrifos ou em Josefo.
Agora, no Antigo Testamento sempre se trata do oitavo dia de forma
separada, e da festa mesma diz-se que dura sete dias: “Celebrareis a festa
do Senhor, por sete dias” (Lv. 23:39; Nm. 29:2); “E celebraram a festa
por sete dias” (Ne. 8:18). Portanto, o último dia da festa (Jo 7:37) é o
sétimo.
2. Este era o grande dia da festa. O sétimo dia era realmente grande
porque: a. nele havia sete procissões ao redor do altar; nos dias
João (William Hendriksen) 350
precedentes só uma cada dia. b. Nestas procissões os sacerdotes
entoavam, “Oh! Salva-nos, SENHOR, nós te pedimos; oh! SENHOR,
concede-nos prosperidade!” (Sl. 118:25). Por isso, ao sétimo dia, quando
se cantava esta passagem tantas vezes se chama O Grande Hosana.
3. Não só era este o último dia da série regular de sacrifícios que
diminuíam, e o último dia de tirar água de Siloé, mas era também o
último dia de habitar em tendas. Pela tarde desse dia se desmontavam as
tendas, e concluía a festa. A santa reunião do oitavo dia não era parte da
própria festa. O último dia da festa é, portanto, o sétimo dia.
O que é mais importante lembrar com relação aos eventos deste dia
— quer seja que se considere como o sétimo ou como o oitavo dia da
festa — é o fato de que o Senhor, longe de separar-se das pessoas,
muitas das quais O tinham rejeitado de uma forma ou outra, faz Seu
carinhoso convite: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba”.
Estava-se cumprindo a profecia de uma maneira notável. Uns cinco
séculos e meio antes Ageu tinha insistido com o remanescente que tinha
retornado para reiniciarem a obra da reconstrução do templo. Para
animar os que lamentavam o aspecto insignificante do novo edifício
inclusive no próprio começo, o profeta serviu de instrumento para
comunicar a seguinte mensagem do Senhor, palavra cheia de consolo e
alento:
“Pois assim diz o Senhor dos Exércitos: Ainda uma vez, dentro em
pouco, farei abalar o céu, a terra, o mar e a terra seca; farei abalar todas
as nações, e as coisas preciosas de todas as nações virão, e encherei de
glória esta casa, diz o Senhor dos Exércitos. Minha é a prata, meu é o
ouro, diz o Senhor dos Exércitos. A glória desta última casa será maior
do que a da primeira, diz o Senhor dos Exércitos; e, neste lugar, darei a
paz, diz o Senhor dos Exércitos” (Ag. 2:6–9).
Esta passagem, que em suas implicações mais profundas é uma
gloriosa profecia messiânica, deve ter sido pronunciada não longe do
mesmo lugar em que Jesus Se encontrava nestes momentos; quer dizer,
mais de cinco séculos depois. O momento em que se transmitiu também
João (William Hendriksen) 351
é muito notável. Ageu comunicou esta mensagem de alento “no sétimo
mês, aos vinte e um dias do mês”. E quando Jesus cumpriu em certa
medida esta profecia e tratou de persuadir os sedentos a virem a Ele para
beber, foi também no sétimo mês, no vigésimo primeiro ou vigésimo
segundo dia do mês.
Embora não se possa demonstrar com certeza matemática, deve
considerar-se como muito provável que o convite que Jesus fez (Jo 7:37)
teve certa relação com o tirar água do tanque de Siloé. Em todos os sete
dias da festa um sacerdote enchia uma jarra de ouro com água desse
tanque. Acompanhado de uma solene procissão, voltava para o templo e,
no meio do toque de trombetas e de gritos das alegres multidões,
derramava-a num funil que terminava na base do altar dos sacrifícios
acesos. O povo estava jubiloso. Esta cerimônia não só lhes lembrava as
bênçãos outorgadas aos antepassados no deserto (a água da rocha), mas
também apontava para a abundância espiritual da era messiânica.
Tinham a mente, o coração e a voz cheios de passagens como Is. 12:3:
“Vós, com alegria, tirareis água das fontes da salvação”. Na direita
sustentavam um ramo de murteira, uma vara de salgueiro e uma palma:
na esquerda, uma cidra ou outro fruto semelhante. Lembravam a vida
dos antepassados no deserto. A festa parecia um desfile histórico. E as
cidras, embora não fossem para isso, eram úteis quando algum sumo
sacerdote mundano tentava de melhorar o ritual prescrito, como o pôde
comprovar Alexandre Janeu (104–78 a.C.), para sua consternação,
quando os arrojaram em cima.
A voz de Jesus, forte e clara, “Se alguém tem sede, venha a mim e
beba”, pôde ter sido ouvida imediatamente depois de completar o rito
simbólico de derramamento de água e do canto das conhecidas palavras
do Salmo 118, ou também num dia em que, segundo muitos, não houve
nenhuma cerimônia similar. Era como se desejasse dizer: «Não percebeis
que essa água aponta para Mim, e que todos esses recordatórios da vida
dos antepassados no deserto perdem seu significado vital se não Me
levardes em conta?»
João (William Hendriksen) 352
A esta altura deveríamos prestar certa atenção a uma discrepância
da tradução comum dos versículos 37 e 38. Na realidade, é algo que se
refere à pontuação do grego, e à suposta vocalização errônea do original
aramaico. É preciso conceder que as palavras de Jo 7:37, que Jesus
dirigiu a um grande grupo de judeus no templo, foram pronunciadas de
fato em aramaico. Isto, naturalmente, não implica necessariamente que o
que se encontra em nosso Novo Testamento grego se baseia num original
aramaico escrito. Certos peritos em aramaico — entre os que queremos
mencionar sobretudo a C. F. Burney e a C. C. Torrey 164 — atacaram a
passagem tal como se encontra no Novo Testamento grego, e, de forma
indireta, as traduções que se baseiam nele. Torrey fala do texto como
chegado a nós em forma de “lamentável desatino”. Refere-se ao
“absurdo texto de nossa versão grega”. Quanto a Jo 7:37, 38, Torrey
propõe o seguinte:
1. No original (embora não na tradução de Torrey) os dois sujeitos
deste suposto paralelismo são desiguais em estrutura (τις … _ πιστεύων).
2. Pareceria que da tradução de Torrey segue-se que “se alguém tem
sede” e “quem crer em mim” são sinônimos. Mas segundo Jo 6:35 o
crente é exatamente aquele que “não terá sede jamais”. O crente é a
pessoa que apagou a sede indo a Cristo, a Verdadeira Fonte. É a pessoa
que acalmou a fome indo a Cristo, o Verdadeiro Pão.
3. Quanto à última parte do versículo 38, é verdade que no Antigo
Testamento o rio da vida encontra-se na “cidade de Deus” (Sl. 46:4) e
brota “de debaixo do limiar do templo” (Ez. 47:1); mas no texto grego de
João 7:38 se descreve as águas brotando do coração do crente. No
entanto, não é verdade que com frequência, no Novo Testamento, dá-se
às passagens do Antigo uma aplicação ligeiramente diferente? Além
disso, se estas águas brotarem da “cidade de Deus”, não procedem

164
C. F. Burney, The Aramaic Origin of the Fourth Gospel, Oxford 1922, p. 109; C. C. Torrey, Our
Translated Gospels, Nueva York e Londres, 1936, pp. 108–111; o mesmo autor, The Four Gospels, A
New Translation, Nueva York e Londres, 1933, pp. 100, 201.
João (William Hendriksen) 353
necessariamente dos corações de cada crente? Acaso estes não
constituem coletivamente a verdadeira “cidade de Deus”?
4. Que o texto grego que exige “de dentro dele” (e não: “de dentro
dela”) é correto, de modo que a alusão é ao crente como indivíduo,
também harmoniza com o contexto que segue imediatamente, que ainda
fala dos “que creem nele”.
5. O texto grego e a tradução baseada no mesmo harmonizam
perfeitamente com Jo 4:14 [RC]: “Mas aquele que beber da água que eu
lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma
fonte de água a jorrar para a vida eterna”. Ouvimos falar (Jo 4:14) da
fonte de água no coração do crente. Agora somos informados (Jo 7:38)
que emanarão de dentro dele rios de água. O que poderia ser mais
consequente? O Senhor, em harmonia completa com a mesma metáfora
que Ele mesmo usou anteriormente, agora lhe dá uma nova aplicação.
Pelas razões expostas mantêm o texto grego como está. Numa terra
onde a água não está sempre ao alcance de todos e o calor pode fazer
alguém sentir-se muito incômodo, a água é «o mais necessário» no meio
físico. 165 É em consequência, um símbolo adequado da salvação, da vida
eterna. Falando de forma metafórica, num sentido todos os homens têm
sede; quer dizer, por natureza todos carecem da água da vida. Em outro
sentido, só têm sede os que foram regenerados e receberam a chamada
interna. Como resultado da ação da graça soberana de Deus em seu
coração, sentem a necessidade da água espiritual. Embora, em
consequência, o convite faça o ouvinte responsável, só aqueles que o Pai
deu a Jesus irão de fato beber. Nas palavras “venha a mim e beba”,
temos dois imperativos que deveriam considerar-se como aoristos
presentes. Quando alguém bebe da Fonte, Cristo, nunca volta a ter sede
(Jo 4:14; 6:35). Isto se expressou muito belamente nas seguintes estrofes
do conhecido hino:

165
Veja-se G. Dalman, Jesus-Jeshua; traduzido por Paul P. Levertoff; Nova York, 1929, pp. 208, 209.
João (William Hendriksen) 354
Ouvi a voz do Salvador dizer com terno amor,
Ó, vem a mim, descansarás, carregado pecador;
tal como fui a meu Jesus cansado eu acudi,
e logo doce alívio e paz por fé dEle recebi.
Ouvi a voz do Salvador dizer: vinde, bebei,
Eu sou a fonte de saúde que apaga toda sede;
com sede de Deus, do vivo Deus, busquei a meu Emanuel,
achei-o, minha sede Ele apagou e agora vivo nEle.
Ouvi Sua doce voz dizer do mundo sou a luz,
olhai a mim e sede salvos, porque por ti morri na cruz.
Olhando a Cristo logo nEle meu norte e sol achei,
e nessa luz a vida já para sempre viverei.

Deveria comparar-se com esta passagem (Jo 7:37, 38) Is. 55:1, 2;
Ap. 22:16. O nominativo absoluto, de modo que temos no versículo 38:
“Quem crer em mim … do seu interior”, não é incomum nos escritos de
João (cf. Ap. 3:12, 21). Como estas palavras foram pronunciadas em
aramaico, é preciso esperar construções assim. Veja-se IV da Introdução.
Embora não haja nenhuma passagem do Antigo Testamento que
equivalha exatamente ao que encontramos aqui, na verdade não custa
trabalho encontrar a ideia básica — águas que brotam de Sião (ou de
seus habitantes) como bênção para outros — em várias passagens: Pv.
11:25; 18:4; Ez. 47:1–12; Zc. 8:14. Sobretudo, as duas últimas passagens
são muito claras a respeito e talvez Jesus as tivesse em mente quando
emitiu o conteúdo de João 7:38. Há também outras passagens que
mostram certas semelhanças com esta. A semelhança talvez se encontre
na presença do rio em Sião, ou na insistência na abundância de águas, ou
na conexão que se propõe entre as águas (como símbolo) e o Espírito
(como o simbolizado): Sl. 46:4, 5; Is. 58:11 (cf. também Is. 55:1); e Is.
44:3. Tomadas juntas todas estas passagens, está plenamente justificada
a cláusula “como diz a Escritura”.
João (William Hendriksen) 355
A ideia geral da passagem é, por certo, perfeitamente clara: não só
recebem satisfação duradoura para si mesmos — vida eterna, salvação
plena e gratuita — os que bebem da Fonte, Cristo, (a ideia expressa em
Jo 4:14), mas além disso, comunica-se a vida a outros de forma
abundante. Aquele que recebe a bênção converte-se, pela graça
soberana de Deus, em canal de bênçãos abundantes para outros. A
igreja proclama a mensagem de salvação, e desta maneira são reunidos
os escolhidos de todo lugar e nação.
39. Isto, como se vê com clareza por todo o Novo Testamento —
sobretudo pelo livro de Atos — fez-se realidade num sentido especial no
momento do derramamento do Espírito Santo no dia do Pentecostes e
também depois. Quanto ao significado de Espírito, veja-se sobre Jo
13:21. Quando o Espírito, como pessoa, fez da nova Sião a Sua morada
central, a igreja se voltou internacional. Por isso não nos surpreende ler:
Isto ele disse com respeito ao Espírito que haviam de receber os que nele
cressem. É verdade que a terceira pessoa da Trindade existia desde toda a
eternidade e fez sentir sua influência muito antes do Pentecostes (cf. Jo
3:3, 5); mas pois o Espírito até aquele momento não fora dado (_ν
equivale a παρ_ν neste caso), no sentido já indicado; e a razão era
porque Jesus não havia sido ainda glorificado. Assim como os crentes
não podem ser a maior bênção que existe para o mundo até que o
Espírito Santo venha a eles (At. 1:8), tampouco esse Espírito podia vir
até que Jesus fosse glorificado (veja-se sobre Jo 16:7). O Antigo
Testamento relaciona o fluxo de torrentes de bênção com a vinda do
Espírito Santo. É muito claro sobretudo Is. 44:3.
João (William Hendriksen) 356
JO 7:40–44

7:40–42. Então, os que dentre o povo tinham ouvido estas palavras


diziam: Este é verdadeiramente o profeta.
O efeito das palavras de terno convite foi variado. Alguns disseram:
“Este é verdadeiramente o profeta”. Não há certeza se viram ou não
neste profeta (de Dt. 18:15–18) o Cristo. Veja-se também sobre Jo 1:21.
no entanto, outros foram muito mais concretos, pois diziam: Ele é o
Cristo. Aceitaram a Jesus como o Messias prometido. Mas mais uma
vez, isto não significa que todos os que disseram isto O aceitaram com fé
viva como Aquele que veio para salvar o Seu povo do pecado. Um
terceiro grupo está convencido de que Jesus não pode ser de modo algum
o Cristo. Lemos: Outros, porém, perguntavam: Porventura, o Cristo virá
da Galileia? Era uma pergunta que esperava uma resposta negativa.
Seguiu-lhe outra pergunta que esperava uma resposta positiva: Não diz a
Escritura que o Cristo vem da descendência de Davi e da aldeia de Belém,
donde era Davi? Observe-se o seguinte:
1. A objeção que suscitou essa gente era a mesma que no caso de Jo
6:42 e Jo 7:27. Os objetantes deviam ter apresentado sua dificuldade a
Jesus. Ao não fazê-lo, devem considerar-se culpados de rejeitá-Lo.
2. A premissa maior — ou seja, que o Cristo procede da
descendência de Davi e de Belém, povo onde viveu Davi — era
totalmente correta. Embora alguns comentaristas ortodoxos neguem esta
premissa e creem (baseados no que consideramos uma interpretação
errada de Lc. 1:5, 36) que Jesus (segundo Sua natureza humana) e Sua
mãe Maria não descendiam de Davi, estamos diante de um ensino
uniforme da Escritura: 2Sm. 7:12, 13; At. 2:30; Rm. 1:3; 2Tm. 2:8; Ap.
5:5. 166 Também é certo, naturalmente, que o Messias devia nascer em
Belém, segundo a profecia (Mq. 5:2). Esta era a interpretação oficial do
Sinédrio desta famosa profecia, e era correta. Veja-se Mt. 2:6. Mas a
166
Veja-se a apresentação da genealogia de Jesus em meu Bible Survey, Grand Rapids, Mich., 3ª. ed.,
1952, pp. 135–139.
João (William Hendriksen) 357
premissa menor — este homem, Jesus, embora provavelmente da
linhagem de Davi, não nasceu em Belém e sim na Galileia — era errada.
Por isso a conclusão — não pode ser o Cristo — também era errônea.
43, 44. Assim, houve uma dissensão entre o povo por causa dele.
O resultado da expressão destas três opiniões foi uma divisão ou
cisma (σχίσμα) entre o povo. Alguns dentre eles queriam prendê-lo, mas
ninguém lhe pôs as mãos. Quanto a isso veja-se sobre Jo 7:32. Mas já
tinham enviado oficiais para prender a Jesus; isto nos conduz ao seguinte
parágrafo:

JO 7:45–52

7:45–49. Voltaram, pois, os guardas à presença dos principais


sacerdotes e fariseus, e estes lhes perguntaram: Por que não o trouxestes?
Agora voltaram os oficiais. O que se descreve nesta última seção
deve ter sucedido numa reunião oficial do Sinédrio. O que
imediatamente atraiu a atenção do concílio foi que os oficiais voltaram
com as mãos vazias; quer dizer, sem Jesus. Muito surpreendidos, os
superiores exclamaram: “Por que não o trouxestes?” Em sua resposta os
oficiais mostram a. que ficaram muito impressionados com as palavras
de Jesus (talvez, porque punham de relevo a graça de Deus, como em Jo
7:37, mais que as obras do homem); e b. que tiveram o valor de admiti-
lo. Responderam eles: Jamais alguém falou como este homem. Cheios de
violência, os fariseus, ao advertir que Jesus impressionou os que tinham
sido enviados para prendê-lo e que os encantou, prorrompem numa
exclamação cheia de zombaria, numa acusação cheia de sarcasmo:
Replicaram-lhes, pois, os fariseus: Será que também vós fostes
enganados? Porventura, creu nele alguém dentre as autoridades ou algum
dos fariseus? Quanto a esta plebe que nada sabe da lei, é maldita.
Observe-se o seguinte:
1. Quando os oficiais disseram: “Jamais alguém falou como este
homem”, quiseram dizer: tão divinamente, com uma graça e verdade tão
João (William Hendriksen) 358
naturais e por isso tão convincente e eficazmente. Mas os do Sinédrio o
mudam em: tão habilmente, com o propósito sinistro de enganar.
2. Os fariseus tratam de fazer crer nestes “plebeus”, aqueles que não
tinham estudado a lei, que estava errado pensar por sua conta. Tudo o
relacionado à identidade e o caráter do Messias devia deixar-se
totalmente aos peritos.
3. Com desdém estes líderes judeus, aqueles que veem escapar o
poder, olham com ares de superioridade à iletrada multidão, à “plebe”, a
simples chusma, à gentinha. A ideia básica dos fariseus era que o estudo
da lei torna o homem sábio e piedoso. Por isso a multidão deve ser
ignorante e perversa.
50–52. No entanto, suscita-se oposição, entre suas próprias filas:
Nicodemos, um deles, que antes fora ter com Jesus, perguntou-lhes —
veja-se sobre Jo 3:1–21 — : Acaso, a nossa lei julga um homem, sem
primeiro ouvi-lo e saber o que ele fez? 167 É notável que imediatamente
depois de os fariseus terem dado a entender implicitamente que sem
dúvida nenhum líder tinha crido em Jesus como o Cristo, um deles fale
favoravelmente dele. Talvez mais notável ainda é o fato de que os que
um momento antes repreenderam a “chusma” por sua ignorância da lei,
vejam agora posta a descoberto sua própria ignorância. Ou se não
ignorância, algo pior: falta de vontade de obedecer a lei neste caso
específico; ou seja, no caso de Jesus. O precipitado veredito dos do
Sinédrio, juízo que implicava que aos olhos deles Jesus era um farsante
(Jo 7:47), merecedor de arresto (Jo 7:32) e inclusive da morte (Jo 5:18),
era uma tosca violação de uma lei humana básica — que inclusive os
pagãos observavam — confirmada por uma ordenança mosaica (Êx.
23:1; Dt. 1:16, 17), no sentido de que a justiça deve ser imparcial e
sempre deve dar ao homem a oportunidade de que seja ouvido antes de
condená-lo. Tem-se dito que Nicodemos agiu com fraqueza neste caso.
Limitou-se meramente a fazer uma pergunta. Mas deve advertir-se que a

167
A oração condicional de Jo 7:37 é de III B 3, veja-se IV da Introdução; a de Jo 7:51 é de III A 2.
João (William Hendriksen) 359
Nicodemos se opunha uma maquinaria grande e muito poderosa no
mundo religioso. Nicodemos mostrou muita coragem, embora seja
verdade que ainda não tinha chegado ao topo da confissão cristã.
Com zombaria e indignação evidentes os fariseus Responderam
eles: Dar-se-á o caso de que também tu és da Galileia? Examina e verás
que da Galiléia não se levanta profeta. A acusação implícita na pergunta
de Nicodemos — ou seja, que estes que se jactam de ser guardiões da lei
a estão quebrantando — não tinha resposta. Era simplesmente
impossível defender-se. Os líderes deveram admiti-lo. Mas em lugar
disso, de admitir a acusação de um dos seus, preferem fazer caso omisso
e lhe dar resposta que implicava que o consideravam como insincero.
Deve ser que também ele procedia da Galileia!
Jesus procedia da Galileia, e da Galileia procediam alguns dos que
O consideravam pelo menos o profeta de Dt. 18:15–18 E na Galileia não
se estudava a lei como em Jerusalém! Malditos esses galileus!
Em meio de sua profunda ira, ira nascida do ciúme, os fariseus
inclusive cometem um erro bastante grave. Desafiam a Nicodemos a que
busque nas Escrituras. Se o fizer, logo descobrirá que Galileia nunca
produz nenhum profeta (e portanto, tampouco o Messias). Esqueceram-
se de Jonas (2Rs. 14:25; cf. Jon. 1:1) e talvez também de Oseias e Naum
(cf. Cafarnaum; segundo alguns: povo de Naum, o profeta), e do fato de
que a Escritura simplesmente não revela o lugar de origem de cada um
dos profetas. De modo que, voltam a repudiar a Cristo. De fato, a atitude
dos líderes, movidos pela inveja, tornou-se mais azeda que antes. Mas
fracassou por completo a intenção do Sinédrio de prendê-lo nesse tempo.

Síntesis del Capítulo 7


O Filho de Deus exorta encarecidamente aos pecadores a que se
arrependam. Na festa dos Tabernáculos diz às multidões no templo: “Se
alguém tem sede, venha a mim e beba”. Seus inimigos se opõem a Ele
encarniçadamente.
João (William Hendriksen) 360
Terminou o ministério galileu. Logo vieram seis meses de retiro
relativo (chamado Ministério de Retiro), passados nas regiões
setentrionais do país. Com Jo 7:2 começa o relato do Ministério Judeu
final, que durou desde outubro até dezembro do ano 29 d.C., e que
incluiu a presença de Cristo em Jerusalém na festa dos Tabernáculos e na
da Dedicação. Sob o tema geral:
“O Filho de Deus, ao assistir à festa dos Tabernáculos, faz sua
chamada fervente, mas seus inimigos se opõem a Ele
encarniçadamente”, temos as seguintes subdivisões:
1. sua demora deliberada em assistir à festa.
2. O sentimento dividido na festa entre os que esperavam que
assistisse.
3. A reação à Sua repentina presença; reação de:
a. Os líderes. Já cheios de ira contra Ele pelo sucedido em Betesda,
aumenta a violência de sua hostilidade quando percebem de que não só
confirma Suas sublime afirmações anteriores, mas também põe a
descoberto o raciocínio inconsequente deles com relação ao sábado, e
que entre a multidão há um sentir muito considerável em Seu favor. Por
isso fazem uma tentativa frustrado de prendê-Lo.
b. Alguns dos habitantes de Jerusalém. Estes O rejeitam porque
“sabem de onde vem”.
c. Muitos dos peregrinos. Em razão dos sinais que faz com que
consideram que é o Messias.
4. A sua chamada premente (terno convite, exortação fervente).
a. Seu contido (Vv. 37, 38, com a observação explicativa no v. 40).
b. Seu recebimento:
(1) Pelas multidões. O sentir estava dividido. Alguns diziam: “Este
é o profeta”; outros, “Este é o Cristo”; e outros, “Sem dúvida que o
Cristo não procede da Galileia, verdade?”
(2) Pelos oficiais que tinham sido enviados para prendê-lo: “Jamais
homem alguém falou como este homem”.
João (William Hendriksen) 361
(3) Pelos fariseus, numa sessão oficial do Sinédrio. Com uma
crítica zombeteira dos oficiais que não O tinham detido, estes fariseus
mostram que O consideram como alguém que desorienta “esta plebe que
nada sabe da lei”.
(4) Por Nicodemos. Recorrendo à lei defende o direito de Jesus a
ser julgado de forma total e justa.
João (William Hendriksen) 362
JOÃO 8
JO 7:53 – 8:11

Comentários preliminares
Tem-se escrito muito com relação à autenticidade deste relato. Deve
considerar-se como uma parte genuína do quarto Evangelho escrita (pelo
menos ditada) pelo apóstolo João? Do mesmo modo, prescindindo de se
o próprio João o escreveu, pertence à Bíblia ou deveria eliminar-se da
mesma? Em resposta à primeira pergunta deveria afirmar-se claramente
que os fatos de que dispomos não nos permitem afirmar concretamente
que o próprio apóstolo escreveu ou ditou este relato. Quanto ao segundo,
nosso convencimento é que estes mesmos fatos indicam que não deveria
tentar-se eliminar esta porção da Escritura.
Os fatos, pois, são como segue:
1. O relato contém várias palavras que não se encontram em
nenhum dos outros escritos de João. Isto, no entanto, não é totalmente
decisivo.
2. Os manuscritos mais antigos e melhores (Álef, A, B, L, N, W)
não contêm este relato. Aparece pela primeira vez no Código Bezae.
Encontra-se nos últimos unciais (o assim chamado texto Koinê) e os
cursivos que se baseiam neles. Desta forma se introduziu na Almeida
Revista e Corrigida e na Nova Versão Internacional. A Almeida Revista
e Atualizada e a Tradução Brasileira contêm o relato, mas o colocam
entre itálico. “Os versículos de Jo 7:53 a 8:11, encerrados aqui entre
colchetes, não aparecem na maioria dos mss.”. Alguns manuscritos o
colocam na conclusão do quarto Evangelho e alguns (os itálicos Ferrar)
depois de Lc. 21:38.
3. Alguns dos antigas testemunhas latinas (a, f, g) e também o
sinaítico, siríaca, a cursiva siríaca, o Peshito, bem como as traduções
sahírica (Alto Egito), armênia e gótica omitem esta porção. Além disso,
João (William Hendriksen) 363
os expositores gregos Orígenes, Cirilo de Alexandria, Crisóstomo, Nono
e Teofilacto não o comentam. Encontra-se nesta localização (ou seja
entre Jo 7:52 e 8:12) em algumas testemunhas latinas antigas (b, c, e, ff,
j), na Vulgata, e na tradução Siríaca Palestina.
Agora, se não houvesse informação adicional com relação a este
parágrafo, as provas a seu favor seriam realmente muito fracas. Não nos
surpreende absolutamente que A. T. Robertson o considere como uma
glosa marginal que chegou ao texto através de um erro de transcrição. 168
Lenski se expressa numa linguagem bem clara, considera-o como
espúrio e o omite completamente de sua exposição. E. J. Goodspeed o
considera uma ilustração que deveria omitir-se.
4. No entanto, o problema não é de modo algum simples. Eis aqui
alguns fatos que assinalam na direção oposta:
O relato harmoniza muito bem com o contexto atual. Pode-se
considerar que serve para preparar e ilustrar o discurso do Senhor em Jo
8:12ss. Tenha-se em mente que esta mulher tinha andado em trevas
morais. É provável que Jesus dissipasse suas trevas. Por isso não nos
surpreende ler no versículo 12: “Eu sou a luz do mundo”.
5. O Cristo que se apresenta aqui (Jo 7:53 – 8:11) está totalmente
“em Seu papel”: é descrito aqui bem como é descrito em outras
passagens. Aqui é o Salvador que veio não para condenar senão para
salvar, e que de fato salvou pessoas como a mulher de Lucas 7, a mulher
samaritana, publicanos, pecadores. Aquele que pronunciou a
comovedora parábola do “filho pródigo” apresenta-se nesta passagem
manifestando Sua terna misericórdia para com uma filha pródiga. E
também os escribas e fariseus estão “em seu papel”. Estes homens, os
quais tinham mostrado bem claramente que se preocupavam mais por
suas normas sabáticas que pela recuperação total do paralítico no tanque

168
A. T. Robertson, Introduction to the Textual Criticism of the New Testament, Nova York, 1925, p.
154.
João (William Hendriksen) 364
(cap. 5), revelam sua total ausência de consideração humana no caso
desta mulher.
6. Papias, discípulo do apóstolo João, parece ter conhecido esta
história e havê-la explicado. Diz Eusébio: “O mesmo escritor (Papias)
explicou outro relato a respeito de uma mulher acusada diante do
Senhor de muitos pecados, a qual contém o evangelho segundo os
hebreus” (História Eclesiástica III, xxxix, 17). Pareceria, pois, que
Papias já conhecia este relato, que o considerava de suficiente
importância para explicá-lo, mas que não o encontrou no Evangelho de
João. Não esteve alguma vez aí, ou foi tirado daí por alguma razão
especial?
7. Agostinho afirmou concretamente que certas pessoas tinham
tirado de seus códigos a seção referente à adúltera, porque temiam que as
mulheres recorreriam a este relato como desculpa para sua infidelidade
(De adulterinis conjugiis II, vii). Intimamente relacionado com isso está
o fato de que o ascetismo desempenhou um papel importante na era
subapostólica. Daí que não se possa descartar totalmente a sugestão de
que esta seção (Jo 7:53 – 8:11) formava em outro tempo parte do
Evangelho de João para ser tirada do mesmo mais tarde.
Nossa conclusão final, pois, é esta: embora não se possa provar
agora que este relato formou parte integral do quarto Evangelho,
tampouco é possível provar o oposto de forma definitiva. Cremos, além
disso, que o que se relata realmente teve lugar, e não contém nada que
esteja em conflito com o espírito apostólico. Daí que, em lugar de
eliminar esta seção da Bíblia, deveria reter-se e utilizar-se para nosso
proveito.169 Os ministros não deveriam temer basear sermões no mesmo!

169
Cf. João Calvino, op. cit., p. 156: Satis constat historiam hanc olim Graecis fuisse ignotam. Itaque
nonnulli coniiciunt aliunde assutam esse. Sed quia semper a Latinis Eclesiis recepta fuit et in plurimis
vetustis Graecorum codicibus reperitur, et nihil Apostolica Spiritu indignum continet, non est cur in
usum nostrum accommodare recusemus. — Defende a ideia contrária E. J. Goodspeed em Problems
of New Testament Translation, Chicago, 1945, pp. 105–109.
João (William Hendriksen) 365
Por outro lado, deveriam dar-se a conhecer todos os fatos relacionados
com a evidência textual.
7:53; 8:1. E cada um foi para sua casa. Jesus, entretanto, foi para o
monte das Oliveiras.
Aqueles que tinham sido enviados para prender Jesus tinham
retornado com as mãos vazias. Em consequência, suspende-se a sessão
do Sinédrio e seus membros vão para casa. A multidão do templo
também volta a suas moradas. Jesus Se retira para passar a noite no
Monte das Oliveiras, talvez para descansar no Getsêmani, ou na
hospitaleira morada de Maria, Marta e Lázaro em Betânia (localizada
justo ao outro lado da colina, a leste do monte). Cf. Lc. 21:37; 22:39.
Retirou-se Jesus da cidade para evitar o perigo de arresto, sabendo que o
tempo adequado para seu arresto e crucificação ainda não tinha chegado?
2. O que quer que seja, de madrugada, voltou novamente para o
templo. Não sabemos, tal como se indicou, se este era o oitavo dia da
festa ou o dia depois; veja-se a explicação de Jo 7:37–39. Como de
costume, e todo o povo ia ter com ele; e, assentado (contraste-se Jo 7:37),
os ensinava.
3. Os escribas e fariseus trouxeram à sua presença uma mulher
surpreendida em adultério.
Nestes momentos alguns escribas e fariseus — pessoas que
copiavam, interpretavam, e ensinavam a lei — entraram e criaram um
distúrbio. Trazem uma mulher surpreendida no próprio ato de adultério.
Pelo uso do termo μοιχεία pode-se deduzir que era casada. Talvez a
polícia do templo ordenou seu arresto. É possível que os homens que a
trouxeram diante de Jesus pertencessem ao Sinédrio e que tivessem a
intenção de levá-la diante desse corpo oficial para sentenciá-la. No
entanto, o relato deixa a impressão de que estes líderes religiosos estão
simplesmente utilizando a mulher como instrumento, e que não lhes
interessa levá-la diante do Sinédrio. Assim, pois, como se realmente
pensassem que Jesus tivesse autoridade para julgar estes casos, arrastam-
na pelo meio da multidão que se tinha reunido em torno do Mestre até
João (William Hendriksen) 366
pô-la diante dEle. e, fazendo-a ficar de pé no meio de todos da multidão
que a contempla,
4, 5. disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi apanhada em
flagrante adultério (_π_α_τοφώρ_: literalmente, no próprio ato de
roubar, mas com o passar do tempo no próprio ato de qualquer pecado
grande) E na lei nos mandou Moisés que tais mulheres sejam
apedrejadas; tu, pois, que dizes? Observe-se o seguinte:
1. A festa dos Tabernáculos, tal como se celebrava, era uma festa de
alegria. Não surpreende que ocorressem atos imorais quando tanta gente
estava junta em meio de tanto folguedo e regozijo.
2. Muitos comentaristas alegam que não se pode tratar de uma
mulher casada, porque “a lei de Moisés” menciona a morte por
lapidação só no caso de uma jovem comprometida culpada de adultério
(Dt. 22:23ss.), mas ordena que a mulher casada que cometa tal pecado
morra, sem estabelecer a forma em que se deve levar a cabo este castigo
(quer por apedrejamento, estrangulamento, ou alguma outra forma). Mas
diante disto subsiste o fato de que o termo “adultério” indica
concretamente uma pessoa que já está casada. Além disso, Ez. 23:43, 44,
47 parece indicar que — prescindindo do que se tenha prescrito mais
adiante no Talmude (morte por estrangulamento para a mulher casada)
— a intenção original da lei mosaica era que também as mulheres
casadas que cometiam tais atos de infidelidade deviam ser apedrejadas
até a morte.
3. Tem-se exposto a seguinte pergunta: “Que razão conduziu estes
escribas e fariseus a levar a esta mulher diante de Jesus e a lhe fazer esta
pergunta?” Foram sugeridas várias respostas, tais como:
a. Expor-lhe o dilema de mostrar falta de respeito quer seja pela lei
de Moisés (se respondesse: “não a apedrejem”) ou para com a lei romana
(se dissesse que a mulher fosse apedrejada até a morte, porquanto
segundo a lei romana não se permitia aos judeus executar a ninguém);
João (William Hendriksen) 367
b. Fazer com que se enfrentasse com a alternativa de converter-se
em inimigo da lei de Moisés (se aconselhasse que não fosse apedrejada)
ou em inimigo do povo comum, do qual Se dizia ser o defensor.
Mas no caso presente a resposta à pergunta apresenta-se claramente
no versículo 6.
6. Isto diziam eles tentando-o, para terem de que o acusar. O verbo
πειράζω usa-se neste caso em seu sentido mau (em contraste com Jo
6:6), tentar. Seu propósito era evidentemente este: fazer com que Jesus
desse uma resposta que implicasse violação da lei de Moisés; logo,
apresentar isso como acusação oficial contra ele; logo, baseados nesta
acusação, fazê-lo ser condenado pelo Sinédrio numa sessão oficial; e,
finalmente, ao tachá-Lo de transgressor, destruir sua influência entre o
povo.
Este propósito também pode explicar por que não foi levado diante
do Senhor o homem implicado nessa transgressão. Para fazer a acusação
contra Jesus era suficiente a detenção de um dos dois. Com relação a isso
não é seguro que os escribas e fariseus de fato quisessem que se
apedrejasse esta mulher. Não estavam primordialmente interessados
nela; simplesmente usavam seu caso para chegar até Jesus, quem era a
vítima que verdadeiramente perseguiam. E para levar a cabo seu
propósito diabólico contra ele, fizeram de lado a bondade e a modéstia.
A fim de poder conseguir seu propósito, nada significava para eles a
vergonha ou os temores desta mulher, ao ver-se tratada publicamente
nesta forma. Assim eram os líderes “religiosos” de Jerusalém! Só quando
nosso pensamento penetra de alguma maneira na condição tragicamente
perversa do coração humano afundado na maldade, pode-se valorizar a
reação de Jesus, que agora se relata:
Mas Jesus, inclinando-se, escrevia na terra com o dedo. Jesus se
inclinou (cf. Mc. 1:7), com a cabeça para o solo. Logo com o dedo
escreveu no solo ou desenhou algo. Deram-se várias explicações; como
segue: a. Jesus escreveu os nomes e pecados dos homens que lhe haviam
trazido esta mulher; b. Jesus escreveu uma palavra de advertência
João (William Hendriksen) 368
dirigida a estes escribas e fariseus; c. Jesus rabiscou, como se faz quando
se sonha acordado, para mostrar que simplesmente não Se interessavam
em casos como este, porque seu propósito ao vir ao mundo não era julgar
e sim salvar (naturalmente que estamos totalmente de acordo com esta
última cláusula); d. Jesus não sabia o que dizer; por isso, simplesmente
rabiscou algo na areia.
O Senhor não nos quis revelar se Jesus escreveu certas palavras ou
desenhou algo; e no primeiro caso, o que escreveu, para quem o
escreveu ou por que o escreveu. No entanto, se fosse preciso explicar,
deveria fazer-se de acordo com o contexto, o qual, como vimos, descreve
as profundidades da depravação humana, a depravação não tanto desta
mulher, mas antes, destes escribas e fariseus perversos e presunçosos,
destes homens de coração homicida, dispostos a utilizar a esta mulher
como simples instrumento para levar a cabo seu plano sinistro contra
Jesus. De acordo com este contexto cremos que há muito que dizer em
favor da explicação de que Jesus estava tão surpreso da aberta dureza de
Seus inimigos que permaneceu silencioso por longo tempo,
simplesmente rabiscando figuras ou letras na areia. Foi um silêncio mais
eloquente que as palavras.
Faz lembrar Ap. 8:1. 170 Em ambas as passagens é símbolo de
horror. O rabisco silencioso na areia, que precede e também segue às
palavras que Jesus pronunciou nesta ocasião, dá-lhe um marco de
majestade e temor.
7, 8. Como insistissem na pergunta, Jesus se levantou e lhes disse:
Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire
pedra. E, tornando a inclinar-se, continuou a escrever 171 no chão.
Com desenvoltura, apesar do primeiro silêncio, os perseguidores
continuam insistindo em obter resposta. Podemos imaginar que sua
conversação foi mais ou menos assim, enquanto rodeavam o Senhor:

170
Cf. Más que vencedores, reimpressão de T.E.L.L., Grand Rapids, Mich., 1977, p. 140.
171
κατέγραφεν (versículo 6) e ἔγραφεν (versículo 8) respectivamente, neste caso talvez traçou
(figuras ou letras). Há variantes alternativas, sem muito apoio.
João (William Hendriksen) 369
“Bom, o que dizes tu … estás de acordo com Moisés … o que dizes … a
apedrejaremos, como exige a lei de Moisés … ou a deixaremos livre …
o que dizes tu … o que dizes tu?”
Para dar mais peso à Sua resposta (cf. Jo 7:37) Jesus Se levantou.
Então deu uma resposta como só Ele podia dar. Não tirou importância ao
pecado da mulher. Nem tampouco aboliu de forma expressa ou implícita
o sétimo mandamento. Nem tampouco disse que descartava a lei que
exigia a pena de morte para ofensas como estas. Pelo contrário, sem
implicar de nenhuma forma que pessoalmente desejasse a morte da
mulher, baseou-se no suposto mencionado por eles, como se a lei de
Moisés fosse aplicar-se literalmente neste caso determinado — o que
nem sequer eles, naturalmente, desejavam de fato — mas lhes mostrou
que não eram dignos de executar a mesma lei que aparentemente tanto
desejavam cumprir. O que fez arder de indignação suas bochechas foi o
fato de que estes homens, que tinham a intenção de cometer o pecado de
homicídio contra o próprio Messias, eles se apresentassem como se
estivessem escandalizados pela ofensa imensamente menor (embora
grave) desta mulher. Por isso disse: “Aquele que dentre vós estiver sem
pecado seja o primeiro que lhe atire pedra”. Alude-se a Dt. 17:7: “A mão
das testemunhas será a primeira contra ele, para matá-lo; e, depois, a
mão de todo o povo”. Estes escribas e fariseus agiam como testemunhas
e acusadores. No entanto, o pecado do acusado não era nada em
comparação com a perversidade deles.
9. Mas, ouvindo eles esta resposta e acusados pela própria
consciência, foram-se retirando um por um, a começar pelos mais velhos
até aos últimos, ficando só Jesus e a mulher no meio onde estava.
A gente pode quase ver os acusadores retirando-se, um por um,
começando pelo mais ancião, até que todo o grupo de escribas e fariseus
se desvaneceu. Por que se retiraram? Foi porque se envergonharam de
sua própria condição pecaminosa? Ou foi porque tinham sido superados
em habilidade (e já não sabiam o que dizer ou o que fazer) ao ter
fracassado por completo em tirar da boca de Jesus uma resposta que
João (William Hendriksen) 370
pudesse constituir a base de uma acusação contra ele? Nada no contexto
sugere a primeira alternativa. Tinham sofrido uma derrota humilhante, e
os primeiros em ver isto, foram os mais anciãos; por isso foram os
primeiros em desaparecer. Outros foram seguindo.
As palavras, “ficando só Jesus e a mulher no meio onde estava”, só
com esta mulher, como a pode descrever ainda como “no meio”? A
resposta mais simples e melhor é provavelmente esta: embora o círculo
interior (que consistia de escribas e fariseus) desapareceu, o círculo
exterior (a multidão) continuava presente; por isso a mulher ainda está
“no meio” da multidão.
10. Erguendo-se Jesus e não vendo a ninguém mais além da mulher,
perguntou-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te
condenou?
Como se Jesus não soubesse! Mas desejava gravar nela o grande
favor que lhe tinha outorgado. Que lhe fosse dando voltas a isso no
pensamento, que lhe fosse dando forma; ou seja, que ninguém tinha
pronunciado contra ela a sentença de condenação, exigida pela lei de
Moisés.
11. Respondeu ela: Ninguém, Senhor! Então, lhe disse Jesus em tom
de amável confiança e séria admoestação: Nem eu tampouco te condeno;
vai e não peques mais.
Em total conformidade com Jo 3:17 e Lc. 12:14 Jesus não repudiou
esta mulher nem a condenou como indigna do reino. Há de fato um lugar
para adúlteros e adúlteras nesse reino, se deixarem de viver em adultério
(Lc. 7:47).

Síntese de Jo 7:53 – 8:11


O Filho de Deus exorta à mulher tomada em adultério: “Vete e de
agora em diante não peque mais”.
Embora não se possa demonstrar que este relato formasse parte do
quarto Evangelho (como o escreveu originalmente João), tampouco é
João (William Hendriksen) 371
possível deixar estabelecido o contrário. Deveria reter o relato e utilizá-
lo para nosso proveito.
Os membros do Sinédrio, tendo fracassado sua intenção de prender
Jesus, retiraram-se. A multidão saiu do templo. Jesus Se dirigiu ao
Monte das Oliveiras para passar a noite. Quando volta ao templo nas
primeiras horas da manhã seguinte, todo o povo vai a Ele e Ele lhes
ensina.
Os escribas e fariseus interrompem. Trazem a Jesus uma mulher
tomada no ato de adultério, e lhe perguntam: “Na lei de Moisés se exige
a lapidação de tais pessoas. Tu, o que dizes?” A fim de minar a
influência de Jesus diante do povo tratam de apresentá-Lo como
oponente de Moisés.
Esta disposição da parte deles de utilizar inclusive os meios mais
sórdidos para levar a cabo seu ímpio plano contra Jesus, faz com que
este permaneça silencioso por bastante tempo enquanto, surpreso mais
do que as palavras podem expressar, rabisca figuras ou letras na areia.
Logo diz: “Aquele que de vós esteja sem pecado seja o primeiro em
arrojar uma pedra contra ela”.
Ao perceber sua derrota, começam a retirar um a um, começando
pelos mais anciãos. A mulher fica no meio da multidão aí concentrada.
Com a Sua ternura habitual Jesus Se dirige a ela com estas palavras
memoráveis: “Mulher, ninguém te condenou?” A sua resposta negativa é
seguida pela observação tranquilizadora dEle: “Nem eu te condeno; vai-
te, e de agora em diante não peques mais”.

JO 8:12–20

8:12. De novo, lhes falava Jesus, dizendo: Eu sou a luz do mundo;


quem me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz da vida.
Segundo muitos isto é continuação de Jo 7:37–52. Deve admitir-se
que esta conexão é realmente possível. Poderia raciocinar-se da seguinte
maneira: o fato de que segundo Jo 7:37, 38 Ele Se descreve a Si mesmo
João (William Hendriksen) 372
como água viva para o sedento, revela-se aqui (em Jo 8:12) como luz
para os que estão em trevas. Ele é tão rico e esplêndido que não pode ser
descrito com um só termo, e uma só metáfora não pode indicar toda sua
grandeza. Ele é vida, luz, pão, água, etc.
Outros, no entanto, veem uma íntima conexão entre o relato da
adúltera (Jo 7:53 – 8:11) e esta seção (8:12ss.). Raciocinam dizendo que
Jesus, ao dissipar as trevas morais que reinavam no coração dessa
mulher (se, de fato, foram dissipadas!), ilustrou Sua obra como a luz do
mundo. Não possuímos suficiente informação para fazer uma seleção
final entre estas alternativas. A decisão dependeria da autenticidade de Jo
7:53 – 8:11, a qual se discutiu antes.
Jesus volta a dirigir-se ao povo no templo. Diz-lhes, “Eu sou a luz
do mundo”. Este é o segundo dos sete “Eu sou”. A lista inteira encontra-
se em II da Introdução. Este segundo “Eu sou” assemelha-se em
estrutura gramatical ao primeiro (veja-se nossa explicação de Jo 6:35).
Em consequência, também neste caso são intercambiáveis o sujeito e o
predicado (o último precedido pelo artigo). Jesus é a luz do mundo; a luz
do mundo é Jesus. Ele em pessoa é essa luz. Ele — nenhum outro fora
dEle — é essa luz, porque só nEle e por meio dEle brilham com absoluto
resplendor os gloriosos atributos de Deus no meio do mundo.
O significado de Cristo como luz já se expôs em conexão com Jo
1:4 e 1:9. Que Jesus Se descreva a Si mesmo (aqui em Jo 8:12) como a
luz do mundo, indica que no meio do gênero humano oprimido pelo
pecado, exposto ao juízo e necessitado de salvação, o gênero humano em
todos os seus aspectos (tanto judeus e gentios, jovens e velhos, homens e
mulheres, ricos e pobres, livres e escravos), destaca-se como a fonte da
iluminação dos homens quanto a assuntos espirituais e da salvação
eterna dos filhos de Deus. A todos os que estão ao Seu alcance lhes
João (William Hendriksen) 373
proclama o evangelho de libertação do pecado e de paz sem fim. A
respeito do conceito mundo (κόσμος) veja-se a explicação de Jo 1:10. 172
Jesus é a luz do mundo; quer dizer, ao ignorante lhe anuncia
sabedoria; ao impuro, santidade; aos tristes, alegria. Além disso, a todos
os que pela graça soberana são atraídos (Jo 6:44) à luz e seguem sua
direção, não somente proclama estas bênçãos mas de fato as comunica.
Mas nem todos vão para onde indica a luz. Há separação, divisão de
caminhos, uma antítese absoluta, conforme aparece com clareza pelas
palavras, “Quem me segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a
luz da vida”. Alguns seguem a luz; muitos não. Muitos são chamados;
poucos escolhidos.
Seguir a luz, ou seja a Cristo, significa confiar nEle e Lhe obedecer.
Significa crer nEle e por gratidão guardar os Seus mandamentos. O
homem deve seguir a direção da luz: não lhe é permitido traçar seu
próprio curso através do deserto desta vida. No deserto os antepassados
tinham seguido a coluna de luz. O simbolismo da festa dos Tabernáculos
(ainda celebrando-se ou recém-terminada) lembrava à audiência esta luz
que os antepassados tinham tido como guia. Os que a tinham seguido e
não se tinham rebelado contra sua direção, tinham alcançado Canaã. Os
outros haviam falecido no deserto. Assim é neste caso: os verdadeiros
seguidores não só não andarão na escuridão da ignorância moral e
espiritual, da impureza, e das trevas, e sim alcançarão a terra da luz. E
muito mais: terão a luz! O Antítipo sempre é mais rico que o tipo. A luz
física — por exemplo, a da coluna de luz no deserto ou a dos
candelabros no pátio das Mulheres — comunica iluminação externa.
Esta luz, Jesus Cristo como objeto de nossa fé, converte-se em nossa
possessão íntima: nós o possuímos, e de forma permanente; cf. Jo 4:14. É

172
Com relação ao significado deste termo é instrutivo o que diz H. Bavinck em sua Gereformeerde
Dogmatiek, terceira edição, Kampen, 1918, Vol. III, p. 527; e o que afirma L. Berkhof em sua
Vicarious Atonement Through Christ, Grand Rapids, Mich., 1936, p. 167. Ambos os autores destacam
que em certas passagens do Novo Testamento (incluindo a história de João) a palavra refere-se a todas
as nações, e que põe de relevo o fato de que o evangelho não está limitado aos judeus.
João (William Hendriksen) 374
além disso a luz da vida (τ_ φ_ς ρ_ς ζω_ς). De acordo com o que se
disse com relação a Jo 1:4b, consideramos este como genitivo de aposto:
a luz é em si mesma a vida, quando esta última se manifesta. 173
13. Jesus fez uma afirmação majestosa. Em resposta: Então, lhe
objetaram os fariseus: Tu dás testemunho de ti mesmo; logo, o teu
testemunho não é verdadeiro. Com relação a este artigo e os seguintes
veja-se nossos comentários sobre Jo 5:31. Certamente que os fariseus
não podem ter querido dizer, “Embora o teu testemunho com relação a ti
mesmo possa ser verdadeiro, não é legalmente válido nem aceitável”. O
que de fato quiseram dizer foi isto: “Quando chamas a ti mesmo a luz do
mundo, não fazes senão te jactares. Ninguém confirma o teu testemunho
com relação a ti mesmo: em consequência, não pode ser verdadeiro”.
14. Quando respondeu Jesus e disse-lhes: Posto que eu testifico de
mim mesmo, o meu testemunho é verdadeiro, de nenhuma forma
contradiz o que havia dito antes (veja-se a respeito de Jo 5:31). Para
corroborar o caráter verdadeiro de Seu próprio testemunho, em contraste
com o caráter falso das afirmações farisaicas, o Senhor assinala: a. sua
origem e destino celestiais (versículo 14b); b. seu união íntima com o Pai
(versículos 15, 16); e c. o acordo perfeito entre o Seu próprio testemunho
e o do Pai (versículos 17, 18).
Com relação a a. Jesus diz … porque sei donde vim e para onde
174
vou. O que quer dizer é: conheço-me a mim mesmo. Este
conhecimento, além disso, não só é imediato, e reflexivo (ο_δα) mas
também completo: conheço os fatos referentes a Mim mesmo, de onde
vim (do céu, de Deus) e para onde vou (ao céu, a Deus). Em
consequência, quando digo que sou a luz do mundo, esta afirmação se
baseia em Minha perfeita autoconsciência e deveria, consequentemente,
aceitar-se. Vós, pelo contrário, não possuís tal conhecimento com
relação a Mim mesmo: mas vós não sabeis donde venho, nem para onde

173
Cf. a respeito de Ho 8:12 o artigo de J. L. Koole, en GThT, XLIII (1942), 406–407.
174
III B 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 375
vou. daí que sua negativa a aceitar o Meu testemunho com relação a Mim
mesmo nada vale.
15, 16. Com relação a b. Jesus prossegue, Vós julgais segundo a
carne, eu a ninguém julgo. Se eu julgo, o meu juízo é verdadeiro, porque
não sou eu só, porém eu e aquele que me enviou. 175
Observe-se que b. segue naturalmente a a. O que o Senhor quer
dizer é: Embora careçais do conhecimento necessário para julgar, no
entanto estais constantemente Me julgando. Além disso, vós o fazeis de
acordo com pautas terrestres, segundo a aparência externa (a respeito de
σάρξ, veja-se o comentário sobre Jo 1:14). Segundo isto, Eu não sou a
luz do mundo senão simplesmente um compatriota da Galileia, filho de
José. Veja-se o comentário sobre Jo 6:42, 7:24, 41, 42, 52. Por outro
lado, Eu, embora (por meu perfeito conhecimento de mim mesmo e dos
demais) sou capaz de julgar, não julgo a ninguém. Veja-se o comentário
sobre Jo 3:17–19. Não vim para julgar senão para salvar. Não obstante,
até se resultar inevitável o juízo devido à dureza do coração dos homens,
de forma que embora Eu tenha vindo para salvar deva julgar a alguns, o
Meu juízo é verdadeiro, genuíno, real (_ληθινή), porque não só não é
contrário à vontade divina, mas também é um juízo em que se unem o
Pai e o Filho. A respeito de “Eu e aquele que me enviou” veja-se Jo 3:34;
5:19, 30, 36, 37; cf. Jo 1:6. Não é o juízo de um simples homem, como
vós pensais, mas sim de Deus.
17, 18. Com relação a c. (o acordo perfeito entre Seu próprio
testemunho e o de Seu Pai) Jesus prossegue: Também na vossa lei está
escrito que o testemunho de duas pessoas é verdadeiro. Alude a passagens
como Dt. 17:6 (“Por tal de dois ou de três testemunhas morrerá aquele
que tivesse que morrer; não morrerá pela declaração de uma só
testemunha”), cf. Nm. 35:30. Vossa lei, porque pretendeis considerá-la
tão elevada. O raciocínio é este: Sem dúvida, se esta lei aplica-se com
relação aos homens, aplica-se ainda mais com relação a Deus. Argui-se

175
III B 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 376
de menor a maior. O testemunho (_ μαρτυρία; veja-se o comentário
sobre Jo 1:6) de duas testemunhas considerava-se verdadeira, não
simplesmente “legal no externo” ou “válido” (legalmente aceitável). Que
a tradução “verdadeiro” seja correta neste caso — e que seu significado
não deve de forma alguma reduzir-se — segue-se também do fato que,
segundo a lei de Moisés a qual se alude, quando duas testemunhas
estavam de acordo, devia dar-se morte ao homem com relação ao qual
estavam de acordo. Considerava-se o testemunho como totalmente
confiável, como base adequada para uma ação drástica. Naturalmente
que as testemunhas deviam ser pessoas de confiança, não falsas ou
injustas. Também isto se estipulava claramente na lei (Dt. 19:16–19).
Sem dúvida que o Pai e o Filho são ambos confiáveis! É um testemunho
em que os dois (Pai e Filho) — sendo cada um deles uma testemunha
confiável — estão totalmente de acordo. No original o versículo 18 tem
uma estrutura quiástica. Os nomes das duas testemunhas se apresentam
no próprio começo e no final da frase, para enfatizar o caráter
independente de cada um. Cada um por si mesmo é totalmente confiável
(a respeito disso cf. versículo 14, “Posto que eu testifico de mim mesmo,
o meu testemunho é verdadeiro,”); ao estar de acordo ambos, a
argumentação faz-se duplamente irrefutável. Eu testifico de mim mesmo,
e o Pai, que me enviou, 176 também testifica de mim. Com relação ao
testemunho do Pai quanto ao Filho veja-se sobre Jo 5:31–40.
19. Os judeus, que tinham repudiado o testemunho do Filho, agora
também repudiam o testemunho do Pai. Então, eles lhe perguntaram:
Onde está teu Pai? Estas palavras provavelmente foram acompanhadas
de uma gesto de desdém. Indicam claramente que o ensino de Cristo com
relação ao Pai tinha caído em ouvidos surdos. Os fariseus estavam
dedicados à atividade mais perigosa que se dá entre os homens: Estão
endurecendo o coração! Este endurecimento produz cegueira e
ignorância totais. Em consequência, respondeu Jesus: Não me conheceis

176
Literalmente: “aquele que me enviou”.
João (William Hendriksen) 377
a mim nem a meu Pai; se conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu
Pai. 177 A única forma de chegar ao Pai é por meio do Filho; cf. Jo 5:38;
14:7, 9; Mt. 11:27.
20. Proferiu ele estas palavras no lugar do gazofilácio, quando
ensinava no templo.
Frente ao muro do Pátio das Mulheres havia treze cofres em forma
de trombeta nos quais o povo depositava seus donativos para diferentes
causas. Em consequência, usando uma sinédoque, quer dizer tomando a
parte pelo todo, este pátio às vezes era chamado a Tesouraria. Jesus
ensinava aí, na proximidade imediata da sala na qual o Sinédrio tinha
(ou: costumava ter) suas sessões. E embora seja possível que este
augusto corpo, tão hostil a Jesus, pôde quase ouvir o eco de sua voz, e
ninguém o prendeu, porque não era ainda chegada a sua hora. A respeito
do significado destas palavras, veja-se Jo 7:30.

JO 8:21–29

8:21. Disse-lhes outra vez: Eu vou retirar-me, e me buscareis, e


morrereis em vossos pecados; para onde eu vou, vós não podeis ir [TB].
Devido à forma zombeteira em que os judeus tinham tratado o
testemunho de Jesus, este volta a proclamar sua condenação. Diz de novo
o que havia dito antes (veja-se Jo 7:33, 34). As palavras, “Ainda um
pouco de tempo estarei convosco”, agora se omitem, talvez porque desta
vez ninguém tenta prendê-lo. A ida a que Jesus Se refere indica Sua
partida para o Pai (veja-se sobre Jo 7:33, 34). Quando Ele adiciona, “E
me buscareis”, a que Se refere Jesus? À busca em arrependimento e fé?
A frase seguinte exclui esta possibilidade. À busca de um libertador com
relação aos terríveis acontecimentos que acompanharam à destruição de
Jerusalém no ano 70 d.C.? Provavelmente é melhor interpretar esta busca
como a do desespero no momento da morte. Adotamos esta interpretação

177
II A; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 378
com base nas palavras: “mas perecereis no vosso pecado”. Na morte não
experimentarão consolo nem paz de nenhuma classe; só tenebroso
desespero. Aquele que rejeitaram não estará presente para ajudá-los em
sua necessidade. Em seu pecado — todos os seus pecados vistos
coletivamente, mas de forma separada no versículo 24 (pecados) —
morrerão. A ira de Deus cai sobre eles, pelo que irão ao lugar de
perdição eterna. Não podem ir para onde Jesus vai; ou seja, ao Pai.
22. Então, diziam os judeus: Terá ele, acaso, a intenção de suicidar-
se? Porque 178 diz: Para onde eu vou vós não podeis ir
Os judeus, feridos pelo anúncio de sua condenação vindoura, agem
como se nem sequer tivessem ouvido as palavras de Jesus referentes a
eles. Comentam só a última parte de suas observações; quer dizer, com
relação aos planos de Jesus para Si mesmo: que logo iria a um lugar ao
que eles não podiam ir. Com zombaria, perguntam, “Terá ele, acaso, a
intenção de suicidar-se?” Como se suicidando-se fosse a um lugar onde
eles (na opinião deles) não pudessem ir! Numa ocasião anterior (Jo 7:35,
36) em que Jesus pronunciou palavras semelhantes, tinham proposto
outra interpretação, também apresentada com zombaria: “Certamente irá
à dispersão entre os gregos, e ensinará aos gregos, verdade?”
A insinuação insultante de que possivelmente pensava no suicídio
(muito frequente nesses dias) era, sem eles saberem, uma triste caricatura
da verdade; ou seja, que ia dar sua vida em resgate por muitos (Jo 10:11,
18; cf. Mt. 20:28).
23, 24. E prosseguiu: Vós sois cá de baixo, eu sou lá de cima; vós sois
deste mundo, eu deste mundo não sou. Por isso, eu vos disse que 179
morrereis nos vossos pecados; 180 porque, se não crerdes que EU SOU,
morrereis nos vossos pecados.
Esta resposta de Jesus serve tanto como continuação do versículo
21, que dá a razão (como se houvesse dito, “Para onde eu vou vós não

178
A respeito de ὅτι veja-se IV da Introdução.
179
A respeito de ὅτι tal como usa-se aqui veja-se IV da Introdução.
180
III A 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 379
podeis vir, porque sois de baixo, e eu de acima”), e como resposta
adequada a pergunta zombeteira dos judeus (como se houvesse dito,
“Vossa zombaria indica que sois de baixo”, etc.). O que Jesus quer dizer
é que os pensamentos e motivos destes judeus estavam inspirados no
inferno; e os seus próprios no céu. Jesus então repete as palavras do
versículo 21 (“Morrereis”, etc.) com uma pequena mudança (veja-se
nesse versículo). Esta morte em seus pecados será o resultado de não crer
que eu sou ele; literalmente, que eu sou (_γώ ε_μι), e o predicado deve
completar-se mentalmente, como em Jo 4:26; 6:20; 9:9; 13:19; 18:5, 6,
9. São básicos para esta expressão passagens como Êx. 3:14; Dt. 32:39;
Is. 43:10. O significado é que Eu sou tudo o que digo ser; o enviado do
Pai, aquele que vem de acima, o Filho do homem, o unigênito Filho de
Deus, igual ao Pai, Aquele que tem vida em si mesmo, a própria essência
das Escrituras, o pão da vida, a luz do mundo, etc. O fato de que a
rejeição do Filho — a falta de fé nEle e o não obedecer-Lhe — tenha
como resultado a morte eterna se expressa não somente aqui em Jo 8:24
mas também em Jo 3:36 (veja-se sobre este versículo), que pode
considerar-se como explicação de Jo 8:24.
25, 26. Então, lhe perguntaram: Quem és tu? Mais uma vez, como
no versículo 22, os judeus agem como se não tivessem ouvido as
observações de Jesus com relação a eles mesmos. Provavelmente creem
que a melhor defesa é atacá-Lo, e O atacam com uma expressão de
zombaria e ridículo: “Quem és tu?” (σ_ τ_ς ε_;) Que é que desde o
princípio vos tenho dito? 181 Muitas coisas tenho para dizer a vosso
respeito e vos julgar.

181
Há várias interpretações da expressão τὴν ἀρχήν. Deveria adverti-lo seguinte:
(1) Desde o princípio. Cf. Almeida Atualizada. O uso do tempo presente (λαλῶ) não é objeção
insuperável para esta tradução. No entanto, está cheia de dificuldades, entre as quais destacam-se: a.
Nesse caso se esperaria ἀπʼ ἀρχῆς, como em Jo 15:27 ο ἐξ ἀρχῆς, como em Jo 16:4; e b. a expressão
estaria mais perto de λαλῶ.
(2) Absolutamente. Assim o traduzem vários pais gregos; veja-se a nota na Versão Latino-
americana (1953). Desta forma a frase equivaleria à uma pergunta exclamativa: “Por que me ocupo
em lhes falar?” Mas se Jesus não está seguro de si deveria lhes falar absolutamente aos judeus, como
João (William Hendriksen) 380
É evidente que Jesus não vai deixar que se desvie seu argumento.
Responde à sua escarnecedora pergunta de forma direta e breve, e logo
depois de imediato prossegue com o ataque contra eles, que começou
nos versículos 21, 23, e 24. A pergunta deles (Quem és tu?) não só era
perversa; também era totalmente inoportuna e supérflua, porque Jesus
lhes tinha vindo dizendo o tempo todo quem era Ele (veja-se sobre
versículo 24) e neste preciso momento isso é o que estava fazendo. Em
consequência, passa imediatamente ao ataque, como se quisesse dizer,
«Ainda não terminei convosco». Quando Jesus diz, “Muitas coisas tenho
que dizer e julgar de vós”, dá a entender que as expressões (Observe-se o
verbo λαλέω tanto aqui como no versículo anterior) de sua boca são
juízos. Além disso, o verbo que se utiliza também é muito adequado para
casos como este, em que alguém expressa o que pensa (não só ele
mesmo mas também) Outro (neste caso, o Pai). Por Jo 8:15, 16 (cf. em
Jo 3:17, onde se explica o verbo κρίνω) é evidente que quando Jesus
julga a estes homens os condena.
O Senhor prossegue: Porém aquele que me enviou é verdadeiro.
Alguns argumentaram que a conjunção _λλά (traducida “porém”) neste
caso não tem sentido adversativo. No entanto, não é necessário de modo
algum desviar do significado mais comum da palavra. O que aqui se tem
— como em muitos outros casos — é um exemplo de estilo abreviado,
uma elipse, a respeito da qual já fizemos comentários em outro contexto
(veja-se sobre Jo 5:31). Fica muito difícil hoje completar o omitido.
Talvez o pensamento do versículo 26 expresso de forma completa

poderia dizer imediatamente, “Muitas coisas tenho que dizer e julgar de vós”? Se a resposta for que o
que diz com relação a uma pessoa não se lhe diz à pessoa, esta resposta dificilmente satisfaz porque
Jesus segue falando tanto com relação aos judeus e a seus seguidores como a eles. Além disso, a
tradução também é discutível de um ponto de vista teológico. Equivaleria à uma espécie de
autoacusação , que está em conflito com a natureza impecável de Cristo.
(3) Exatamente, justamente, nem mais nem menos. Esta tradução, que seguem Melâncton, Lutero,
Dods, e muitos outros, tem muito sentido, está em harmonia com a ordem das palavras, tem paralelos
em outras passagens, e é fácil de explicar. Cf. nossa expressão: do princípio ao fim (em consequência,
precisamente, exatamente).
João (William Hendriksen) 381
poderia reproduzir-se nestas palavras: “Tenho muitas coisas que dizer
com relação a vós e julgar. Mas, apesar de vossas veementes rejeições e
de vossas manifestações de incredulidade, o que Eu digo é verdadeiro
porque Aquele que me enviou é verdadeiro, e o que digo ao mundo é o
que ouvi dEle”.
A respeito de “aquele que me enviou”, veja-se Jo 3:17, 34; 5:30, 36,
37; cf. 1:6. Aquele que envia é, naturalmente, o Pai. Aquele que envia é
verdadeiro em todas as Suas declarações e juízos, porque é verdadeiro
em Sua natureza íntima. Cf. em Jo 3:33. De modo que as coisas que dele
tenho ouvido, essas digo ao mundo. Em cada uma das palavras de Jesus
se expressa a mente do Pai. Em consequência, quando os judeus rejeitam
Aquele que agora Se dirige a eles, por este mesmo fato rejeitam ao Pai.
O mesmo (ou muito semelhante) pensamento se expressa em Jo 3:11;
5:19, 30, 32, 37; 7:16. O que Jesus ouviu (desde toda a eternidade) do
Pai, é isso o que comunica não só aos judeus, mas também a judeus e
gentios igualmente; vai destinado a todos, a todo mundo (a respeito do
significado de κόσμος veja-se Jo 1:10, nota 26, neste caso com o
significado provável do número 5).
27. Eles, porém, não atinaram que lhes falava do Pai. Embora Jesus
tivesse dito com frequência aos judeus com linguagem clara que Aquele
que O enviava era o Pai (cf. Jo 5:36, 37; 8:18), no entanto não lhes tinha
ficado gravado. Assim de ofuscante é a força da infidelidade e o
preconceito! Não sabemos de que forma indicaram esta ignorância.
Talvez a manifestaram apresentando uma objeção ou fazendo uma
pergunta estúpida ou olhando de forma vaga.
28. Disse-lhes, pois, Jesus: Quando levantardes o Filho do Homem,
então, sabereis que EU SOU e que nada faço por mim mesmo; mas falo
como o Pai me ensinou. A substância da observação é, sem dúvida, esta:
«Uma vez que me tenham cravado na cruz (em consequência, uma vez
que me tenham conduzido à coroa) abrir-se-á na vossa mente a terrível
verdade de que Eu sou na realidade o que tenho dito que sou, e que em
Minhas palavras e ações revelo e represento ao Pai».
João (William Hendriksen) 382
Quanto ao significado do verbo levantar veja-se sobre Jo 3:14.
Quanto a Filho do Homem veja-se sobre Jo 12:34. Ao afirmar “sabereis
(γνώσεσθε de γινώσκω) Jesus quis dizer “reconhecereis ou percebereis”.
Este verbo encontra-se 56 vezes no Evangelho de João enquanto que seu
sinônimo (ο_δα) encontra-se 84 vezes no mesmo livro. Veja-se também
sobre Jo 1:10, 31; 3:11. Quanto à frase “que eu sou” veja-se sobre Jo
8:24. Quanto ao significado da frase “que nada faço por mim mesmo;
mas falo como o Pai me ensinou” veja-se sobre Jo 8:26 (última frase),
que expressa o mesmo pensamento.
A frase “então, sabereis que EU SOU” não é uma predição de que
os judeus se salvariam. O conhecimento que se indica neste caso não é
um conhecimento salvífico e não se refere à conversão dos três mil no
dia do Pentecostes (At. 2:36, 41). O contexto não permite essa
interpretação (veja-se sobretudo os vv. 21 e 24). O que Jesus quer dizer é
que ao negar-se a aceitá-lo pela fé e ao cravá-lo na cruz (o que, por sua
vez, conduziu à coroa), um dia abrirão os olhos para perceber, aterrados,
que Aquele a quem rejeitaram, era, contudo, o que dizia ser. Esta
verdade lhes seria evidente tarde demais, na hora da morte e do juízo
final.
29. E aquele que me enviou está comigo, não me deixou só, porque
eu faço sempre o que lhe agrada. “Aquele que me enviou” é,
naturalmente, o Pai (Jo 5:36, 37; 8:18, 27), ao qual constantemente Se
refere como ao que envia; quer dizer, como Aquele que comissionou a
seu Filho para que fosse o Mediador (veja-se sobre Jo 3:17, 34; cf. 1:6).
Nas duas afirmações: a. está comigo, e b. eu faço sempre o que lhe
agrada, temos uma bela expressão da natureza estreita e íntima da
cooperação entre Aquele que comissiona a Aquele que é comissionado.
Veja-se também sobre Jo 3:11; 5:19, 30, 32, 37; 7:16; e 8:26. A
obediência absoluta do Filho, que sempre faz o que agrada ao Pai,
garante a continuação do amor do Pai por Ele. “Não me deixou só”, não
rejeitou o Filho nem o abandonou. Nem sequer Mt. 27:46 pode significar
que o Pai O rejeitaria como filho desobediente, porque isto é totalmente
João (William Hendriksen) 383
impossível. Nessa passagem o Filho é abandonado num duplo sentido:
a. Ele sozinho leva o peso da ira de Deus contra o pecado, ninguém
compartilha Seu castigo; e b. ao experimentar em si essa tortura
indescritível, deve prescindir da doçura consoladora da intimidade com o
Pai. No entanto, devido à Sua aceitação voluntária desta morte eterna, o
Pai O ama ainda mais. É preciso acrescentar imediatamente que esta
intimidade espiritual descansa, naturalmente, na relação ontológica ou
trinitária entre o Pai e o Filho.

JO 8:30–38

8:30, 31a. Ditas estas coisas, muitos creram nele. Disse, pois, Jesus
aos judeus que haviam crido nele: …
Durante o desenvolvimento do discurso comentado nos versículos
precedentes, uns e depois outros chegaram a convencer-se de que Jesus
era (pelo menos até certo ponto) o que dizia ser, até que os que reagiram
desta maneira chegaram a formar um grupo considerável (“muitos”). Foi
este convencimento fé genuína? Foi simplesmente uma persuasão mental
ou foi também uma entrega pessoal total? Esta pergunta, que produziu
muita discussão e controvérsia entre os comentaristas, faz-se ainda mais
aguda se tiver-se em mente que os versículos que seguem mostram uma
mudança repentina de uma atitude de fé a uma hostilidade violenta. Jesus
não só encontra oposição verbal (versículo 33), mas também ofensa
verbal (versículo 48: “És samaritano e tens demônio”; cf. 52). Enfim,
inclusive, há uma tentativa de apedrejá-lo (versículo 59). Os distintos
pontos de vista dos comentaristas podem-se resumir da seguinte forma:
(1) Versículo 30 (_πίστευσαν, creram) refere-se àqueles que
aceitaram a Jesus com fé genuína. Versículo 31 (πεπιστευκότας, tinham
crido) refere-se àqueles que não tinham chegado à entrega total de fé.
Em consequência, a transição dá-se entre os versículos 30 e 31. 182

182
Cf. W. F. Howard, The Interpreter’s Bible, Nova York, 1952, vol. VII, p. 600.
João (William Hendriksen) 384
(2) Os versículos 30, 31 e 32 referem-se a crentes genuínos, àqueles
que experimentaram uma verdadeira mudança de coração e vida. A
transição dá-se entre os versículos 32 e 33. Os objetantes no versículo 33
(e os versículos que seguem) são os judeus incrédulos. 183
(3) Os versículos 30–36 referem-se a crentes genuínos. A transição
dá-se entre os versículos 36 e 37. 184
(4) Toda a seção é um relato ininterrupto: os que no versículo 30
são descritos como que creram nEle são os mesmos que se opõem a Ele
veementemente nos versículos que seguem. Não há transição de um
grupo a outro. Aqueles que aparecem nos versículos 30 e 31 não têm fé
genuína, como o indicam claramente os versos subsequentes. 185
Com relação aos três e primeiros pontos de vista é evidente o
seguinte:
a. Todos consideram que os que aparecem no versículo 30 são
crentes genuínos.
b. Todos aceitam a teoria de que nos encontramos com dois grupos
diferentes, e que é uma transição (antes, brusca, pareceria) entre os
crentes genuínos do versículo 30 e os incrédulos genuínos que aparecem
na cena seguinte (quer seja no versículo 31 ou no versículo 33 ou no
versículo 37).
Mas, quanto a a., não há nada que nos obrigue a considerar os
homens descritos no versículo 30 como crentes genuínos. O verbo finito
creram (_πίστευσαν) seguido de nele (ε_ς α_τόν) ou em seu nome nem
sempre indica mudança de coração. Veja-se sobre Jo 2:23; 7:31; 12:42.
Mas veja-se especialmente o contexto de Jo 2:23 e 12:42. O que, sim, é

183
Cf. R. C. H. Lenski, Interpretation of St. John’s Gospel, Columbus, Ohio, 1931, pp. 607–613.
184
Cf. F. W. Grosheide, Kommentaar op het Niewe Testament, Johannes, Amsterdan, 1950, vol. II, p.
42.
185
João Calvino, op. cit., p. 167: Caeterum fidem Evangelista improprie nominat, quae solum erat
quaedam ad fidem praeparatio. Nihil enim altius de illis praedicat quam quod propensi fuerunt ad
recipiendam Christi doctrinam, quo etiam spectat proxima admonitio. Este é seu comentário do
versículo 30. Assim também C. Bouma, M. Dods, J. P. Lange, A. T. Robertson, e M. G. Tenney (veja-
se a bibliografia para os títulos).
João (William Hendriksen) 385
verdade é que o gerúndio (πιστεύων, -οντε_ς) em tais casos sempre
indica fé genuína (Jo 3:16, 18, 36; 6:35, 40, 47; 7:38; 11:25, 26; 12:44,
46; 14:12; 17:20). Veja-se também sobre Jo 3:16. Mas aqui em Jo 8:30
não se emprega o gerúndio. Em consequência, os versículos seguintes (o
contexto) devem indicar se a fé da qual se fala aqui é genuína ou não.
Quanto a b., para o leitor comum do texto grego ou da tradução
portuguesa não parece clara nenhuma classe de transição de um grupo de
homens a outro grupo totalmente diferente. Assim, pois, é muito difícil
ver por que os homens descritos pelo particípio (το_ς πεπιστευκότας) no
versículo 31 seriam um grupo completamente diferente daqueles aos
quais se faz referência com o verbo finito no versículo 30. Creram
enquanto Jesus lhes falava; alguns deles talvez depois de Jesus ter falado
só alguns minutos. Continuaram crendo (Observe-se a força do particípio
perfeito) até o final da exposição (quer dizer, até que Jesus novamente Se
dirige a eles no versículo 31).
Quanto à transição que começa no versículo 33 ou no versículo 37,
nenhum destes dois versículos indica transição de um grupo a outro. O
versículo 33 começa com as palavras, “responderam-lhe”. Naturalmente,
que o sujeito do verbo “responderam” são as pessoas às quais se refere o
versículo 32. O versículo 36 diz: “Se, pois, o Filho vos libertar,
verdadeiramente sereis livres”. Logo prossegue o versículo 37: “Bem sei
que sois descendência de Abraão; contudo, procurais matar-me”. A
conclusão que se tira naturalmente de tais casos é que o sujeito do verbo
“sereis” do versículo 36 é o mesmo que o sujeito do verbo “procurais”
do versículo 37. Do contrário resulta ininteligível todo o parágrafo.
Em consequência, aceitamos a opinião de Calvino e da maioria dos
outros comentaristas (número 4 acima) como muito mais natural.
Tudo isto não quer dizer que não haja transição. Há, de fato,
transição; mas não é de um grupo a outro totalmente diferente. A
transição é de uma atitude a outra dentro do mesmo grupo de pessoas.
Essa transição é muito clara. É, de fato, uma mudança surpreendente.
Quanto Jesus mostra a estas pessoas que a simples aceitação mental (por
João (William Hendriksen) 386
exemplo, com relação a que Jesus é o aguardado Messias) não é
suficiente, mas devem entregar-se a Ele como Seu libertador pessoal da
escravidão a Satanás e ao pecado, enfurecem-se e já não creem nEle em
nenhum sentido.
31b, 32. Se vós permanecerdes na minha palavra, sois
verdadeiramente meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade
vos libertará. 186
A pessoa permanece na palavra de Cristo quando faz dela a norma
para a vida. Em outras palavras, obediência é o mesmo que permanecer
na palavra. Isto faz da pessoa um discípulo verdadeiro de Jesus e leva a
conhecimento genuíno da verdade (a revelação especial de Deus que tem
sua medula e centro na obra de Cristo). Este conhecimento, nascido na
revelação e na experiência, liberta a pessoa. Quanto ao significado das
duas palavras gregas mais comuns para conhecer, veja-se sobre Jo 1:10,
31; 3:11; 8:28. o próprio Jesus comenta o que significa liberdade. A
pessoa é livre quando o pecado não a domina, e quando a palavra de
Cristo domina o coração e a vida (versículos 34, 35, 37). A pessoa é

186
Esta seção — versículos 30–59 — contém não menos que nove frases condicionais distribuídas
entre os três grupos como segue:
IA versículo 39;
IB versículo 46;
IIA versículo 42;
IIIA1 versículos 36 e 55;
IIIA2 versículos 31 (quanto ao pensamento o versículo 32 se inclui na apódose), 54;
IIIA3 versículos 51, 52 (a segunda frase condicional repete a primeira, com uma ligeira mudança);
veja-se IV da Introdução.
De modo que nesta seção estão representados cada um dos três grupos principais. Com relação às
frases condicionais que se encontram nos versículos 31, 36, 39, 54, e 55, deveria ter-se em mente a
afirmação de A. T. Robertson: “o que é preciso advertir com relação às quatro classes é que a forma
da condição afeta só a afirmação, não a verdade absoluta ou certeza do conteúdo” (Gram. N. T., p.
1006). De modo que, no versículo 55 a forma da frase não quer dizer que Cristo de fato considerasse
provável que dissesse, “não o conheço (ao Pai)”. Jesus simplesmente destaca a conclusão lógica que
se seguiria se o que se afirma na prótase se considerasse provável. Poderia traduzir-se: “Suponde que
eu diga …” Assim também, a forma da frase condicional não prova nada com relação ao caráter
genuíno da fé daqueles a quem se refere no versículo 31. E a forma da frase não prova que Jesus
considerasse Seus competidores judeus como de fato filhos de Abraão, versículo 39.
João (William Hendriksen) 387
livre, por conseguinte, não quando pode fazer o que quer, e sim quando
ela deseja e pode fazer o que se deve fazer. Veja-se também sobre Jo
7:17, 18 (exposição da ordem dos elementos na experiência cristã).
33. Responderam-lhe: Somos descendência de Abraão e jamais
fomos escravos de alguém; como dizes tu: Sereis livres?
Os que respondem a Jesus são os mesmos aos quais acaba de Se
dirigir (veja-se sobre Jo 8:30, 31a). A atitude, no entanto, muda. A
palavra de Jesus, que deu a entender que não eram livres espiritualmente
mas escravos, surpreendeu-os e os irritou. Dói-lhes profundamente tal
observação. Cheios de orgulho exclamam, “Somos descendência de
Abraão e jamais fomos escravos de alguém”. É óbvio que não pensam
em sua condição política ao dizerem isso. Sem dúvida que não podiam
esquecer sua passada escravidão ao Egito, Babilônia, Medo-Pérsia, e
Síria, nem sua escravidão atual a Roma. Tampouco pensam em sua
condição social: muitos judeus tinham sido escravos. Religiosamente, no
entanto, consideram-se livres, por ser linhagem (descendentes) de
Abraão, com quem Deus fez Sua aliança de graça (Gn. 17:7). Por isso,
como povo ou nação (a linha de descendência física; veja-se sobre Jo
1:13) desfrutam de uma posição religiosa única. Acaso não são raça
escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo que pertence só a Deus (Êx.
19:6; Dt. 7:7; 10:15; cf. 1Pe. 2:9)? Amós 3:2 (a primeira parte do
versículo) está sempre em sua mente, mas por conveniência esquecem
Amós 3:2 (a última parte do versículo)! Raciocinam assim: os pagãos
são escravos; servem a ídolos; nós não somos escravos. Não somos
pagãos; nem sequer somos samaritanos (cf. Jo 8:48). Como é, pois, que
Jesus pode dizer “Sereis livres?”
34. Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: 187 todo o
que comete pecado é escravo do pecado.
Quanto ao significado das palavras de solene introdução veja-se
sobre Jo 1:51. Esta é um das frases mais notáveis que o Senhor jamais

187
A respeito de ὅτι veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 388
tenha pronunciado. Imediatamente elimina a distinção entre judeu e
gentio com relação à posição dos mesmos diante de Deus e de Sua santa
lei. Diz: “Todo o que … é escravo do pecado”. O sujeito vai qualificado
por que comete pecado (_ ποι_ν τ_ν _μαρτίαν); quer dizer, aquele que
constantemente comete pecado; presente contínuo; poderia traduzir-se:
aquele que vive em pecado. Isto nos lembra a força contínua do presente
em 1Jo 3:6. Um pecador tal não viu ao Senhor, e não O conhece. João
não ensina que o homem é capaz de viver sem pecar; longe disso (veja-
se 1Jo 1:8). Mas o homem que constantemente erra o alvo da glória de
Deus (cf. o uso de διαμαρτάνοντες em LXX Jz. 20:16), e se alegra nisso
é decididamente transgressor da lei de Deus (1Jo 3:4).
Esse homem é chamado aqui de escravo do pecado (cf. Rm. 6:16;
11:32; 2Pe. 2:19). É escravo, porque foi derrotado e feito cativo por seu
dono, o pecado, e é incapaz de libertar-se desta escravidão. Está tão
(mais, realmente) acorrentado como o prisioneiro que leva argolas no pé,
essa argola que está unida a uma cadeia embutida na parede do
calabouço. Não pode romper a cadeia. Pelo contrário, cada pecado que
comete a estreita mais, até que por fim o esmaga por completo. Esta é a
metáfora que Jesus usa aqui para descrever os pecadores conforme são
por natureza. Consideram-se livres os judeus? Na realidade são escravos
sem nenhuma liberdade. São prisioneiros em cadeias.
35, 36. O escravo não fica sempre na casa; o filho, sim, para sempre.
Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres. 188
Jesus descreveu os Seus inimigos como escravos em cadeias,
carentes de verdadeira liberdade. Agora — mudando ligeiramente a
metáfora — descreve outro aspecto desta condição de escravidão: o
escravo pode desfrutar dos privilégios da casa do amo por um tempo,
porém não para sempre. Pode ser despedido ou vendido a qualquer
momento. Os judeus, aqueles que se jactam de ser descendentes de
Abraão, devem ter em mente isso. Terminou a antiga dispensação com

188
A respeito de esta frase condicional, veja-se nota 182.
João (William Hendriksen) 389
seus privilégios especiais para Israel. Os verdadeiros filhos de Abraão
permanecerão na casa deste e desfrutarão dos privilégios da mesma
permanentemente, mas os escravos de Abraão (pense-se em Agar, e cf.
Gl. 4:21–31) serão expulsos. Só o filho desfruta de liberdade. Se, por
conseguinte, o Filho de Deus — veja-se sobre Jo 1:14 — os libertar,
serão realmente livres. A frase condicional faz recair a responsabilidade
sobre eles, mas a ação (de libertar) sobre Ele! A expressão
verdadeiramente livres refere-se provavelmente ao fato de que a
liberdade que Cristo dá é a única liberdade real:
a. É liberdade da escravidão do pecado, em contraste com a
liberdade na qual pensavam os judeus (tais como liberdade da escravidão
a ídolos, liberdade das trevas do politeísmo pagão).
b. É sempre liberdade e algo mais. Quando o acusado é declarado
não culpado, ele é livre. Mas o juiz ou o emancipador não adota, em
geral, a pessoa livre como a seu próprio filho. Mas, quando o Filho
liberta, a pessoa é livre de fato, desfrutando na gloriosa liberdade da
filiação. E como liberta o Filho? Resposta: veja-se Jo 18:12; cf. Is. 53:5;
2Co. 3:17; Gl. 4:6, 7.
37. Bem sei que sois descendência de Abraão. Jesus continua
dirigindo-se ao mesmo grupo de pessoas que no versículo anterior (veja-
se sobre Jo 8:30, 31a). Aceita o fato de que, no sentido físico, são
descendentes de Abraão. Mas esta relação, que indicava tantas vantagens
(veja-se Rm. 3:1, 2; 9:4, 5), só servia para aumentar sua responsabilidade
(cf. Am. 3:2). Fazia sobressair com maior clareza sua atitude, em toda
sua atrocidade, sua atitude pecaminosa presente para com o Cristo de
Deus. Por isso, Jesus prossegue: contudo, procurais matar-me. A
descendência de Abraão tentando matar Aquele a quem Abraão tinha
esperado com prazerosa expectação (Jo 8:56)! Que os judeus estavam de
fato decididos a matar a Jesus fica claro nas seguintes passagens: Jo
5:18; 7:19, 25; cf. 7:30, 32, 45; 8:59. Que neste plano de dar morte a
Jesus se adverte um progresso constante no Evangelho de João, mostrou-
se em I da Introdução. Quando Jesus põe de relevo aqui que a própria
João (William Hendriksen) 390
descendência de Abraão busca matá-Lo, começa a mostrar-lhes que,
afinal de contas, Abraão não é seu pai no sentido espiritual. Quem são,
pois, os verdadeiros filhos de Abraão? Todos os verdadeiros crentes.
Veja-se Rm. 4:11, 12; Gl. 3:7, 29. É verdade que Jesus não o afirma com
estas mesmas palavras; contudo, nas palavras do Senhor está claramente
implícita esta verdade que Paulo proclama.
Por que buscam os judeus matar a Jesus? A resposta é: porque a
minha palavra não está em vós. As tramas de homicídio ocupam um
lugar tão grande nos corações destes judeus que não fica espaço (χώρα;
daí, o verbo χωρε_) para a palavra de Jesus. Aqui temos outro exemplo
de litote. O significado verdadeiro é: vós rejeitais por completo minha
palavra!
38. Eu falo das coisas que vi junto de meu Pai; vós, porém, fazeis o
que vistes em vosso pai.
O significado é brevemente o seguinte:
a. Há um contraste entre de (no sentido por meu) Pai e vosso pai.
Meu Pai e vosso pai não são o mesmo. Meu Pai é a primeira pessoa da
Trindade; o seu é … adivinhem! Chegado o momento, Jesus lhes dirá
quem é seu verdadeiro pai espiritual (veja-se Jo 8:44).
b. Há um contraste entre minha relação com meu Pai, e vossa
relação com vosso pai. Na presença de meu Pai (porque estava em sua
própria presença desde a eternidade; veja-se também Jo 1:14; 6:46; 7:29;
16:29; 17:8; e cf. Jo 1:1) não só ouvi, mas também vi certas coisas; na
presença de vosso pai (porque estais muito próximos dele) ouvistes
certos sussurros; p. ex., a instigação a matar-me.
c. Minha ênfase (atual) é em dizer (o verbo é λαλ_) o que vi; Eu sou
o grande Profeta, que veio para revelar a vontade do Pai. Vossa
insistência é em fazer, sem entender por completo o que isto implica, o
que quer que seja o que vosso pai vos sussurra no ouvido.
Tendes ouvido os sussurros de vosso pai e estais dispostos a agir;
Eu vi de fato a glória de Meu Pai, e estou expressando o que vi.
João (William Hendriksen) 391
A sequência indica, no entanto, que o contraste básico é entre o (ou
seja, meu) Pai e vosso pai.

JO 8:39–59

8:39a. Então, lhe responderam: Nosso pai é Abraão. O próprio fato


de que Jesus não tinha afirmado claramente em quem pensava quando
disse “vosso pai”, irritou estes judeus. A implicação (ou seja, que quis
dizer o diabo) ia esclarecer-se, mas por agora seguia velada. No entanto,
eles descartam o que quer dizer ou implicar quando afirmam, “Nosso pai
é Abraão”. Querem dizer, naturalmente, que Abraão é nosso pai em todo
o sentido da palavra, não só fisicamente mas também espiritualmente;
em consequência, somos espiritualmente livres e não precisamos ser
libertados da escravidão. Consideram-se a si mesmos como a
descendência espiritual de Abraão.
39b, 40. Disse-lhes Jesus: Se sois filhos de Abraão, praticai as obras
de Abraão. 189 Jesus, à maneira de argumentação, admite por um
momento que os judeus tinham razão ao chamar Abraão seu pai
(espiritual). Se isto é assim, diz Jesus, praticai as obras de Abraão. Não
pode ser de outra forma. Os filhos de Abraão fazem as obras de Abraão.
Bem como Abraão, obedecem os mandamentos de Deus, confiando
plenamente em que Deus fará bem todas as coisas; acolhem os Seus
mensageiros; e, por último, mas não de menor importância, alegram-se
no dia de Cristo (veja-se sobre Jo 8:56). Estas eram as obras de Abraão.
(Veja-se p. ex., Gn. 12:1–4; 17:17; 18:1–8; cap. 22). Por todo o contexto
(veja-se em especial versículos 37 e 40), pelo tom de voz, e o olhar de
seus olhos, os judeus podem facilmente inferir que Jesus está
simplesmente admitindo, para argumentar, que estas pessoas são
descendência de Abraão e, em consequência, fazem as obras de

189
Com relação a esta frase condicional veja-se nota 182.
João (William Hendriksen) 392
190
Abraão. As figuras de linguagem, incluindo a ironia, abundam no
animado discurso que encontramos aqui e em outros lugares dos
Evangelhos. Veja-se o que se disse a respeito disto com relação a Jo
5:31. Se prescindir-se da ironia, a intenção da afirmação é, naturalmente,
esta: “se fosseis realmente filhos 191 de Abraão faríeis as obras de
Abraão”.
Jesus prossegue: Mas agora procurais matar-me, a mim que vos
tenho falado a verdade que ouvi de Deus; assim não procedeu Abraão.
Em marcado contraste com Abraão, quem recebeu os mensageiros de
Deus com grande cordialidade (Gn. 18:1–8), e quem esperou com alegria
a vinda do Cristo (veja-se sobre Jo 8:56), estes judeus procuravam matar
a este último. Estavam tramando a destruição do maior Benfeitor do
gênero humano, um homem (neste caso está em primeiro plano a
natureza humana de Cristo) que, no entanto, é também Deus, visto que
vem da própria presença de Deus, de forma que pode dizer: Eu lhes
tenho dito o que ouvi de Deus. Observe-se o pronome pessoal na
primeira pessoa que se emprega no original; literalmente: “homem que a
190
Neste caso estou de acordo com o texto de N. N. O não ver a ironia na afirmação é, talvez, a razão
de que se tenha tentado mudar ἐστε por ἦτε, e ποιεῖτε por ἐποίειτε. Também isto pode explicar o fato
de que alguns comentaristas, embora conservem ποιε͂τε, interpretam-no como imperativo. Deve
admitir-se que o apoio em favor de ἐποίειτε não é de modo algum escasso. Veja-se o aparelho textual
em N. N. A versão que se conserva no texto de N. N. também tem forte apoio, e se explica facilmente
a mudança do presente ao imperfeito. É certo, naturalmente, que quer seja que se considere a frase
condicional em Jo 8:39 como condição mista, com uma apódose que indica irrealidade, ou como uma
condição simples de primeira classe, com implicação irônica, a ideia final é a mesma. Em ambos os
casos o que Jesus quer dizer é que estes judeus não são realmente os filhos de Abraão, fato que se
demonstra porquanto não fazem as obras de Abraão.
191
É verdade que Jesus emprega σπέρμα no versículo 37 e τέκνα no versículo 39. No entanto, é
provavelmente incorreto insistir nisso, como se o termo σπέρμα como tal significara semente material,
e o termo τέκνον-α semente espiritual. A referência a Rm. 9:7 (como se também aí o segundo termo
tivesse a conotação mais espiritual) baseia-se no pressuposto de que a tradução usual dessa passagem
seja correta. No entanto, é muito evidente pelo contexto aqui (em Rm. 9:7) que esta tradução habitual
é incorreta e confusa, e que de fato o termo σπέρμα é o mais exclusivo (“em Isaque será chamada tua
descendência … os que são filhos segundo a promessa são contados como descendentes). Em nossa
passagem (Jo 8:39) o termo filhos tem o mesmo significado que o termo descendência (Jo 8:37):
fisicamente, estes judeus são, na realidade, descendência ou filhos de Abraão; espiritualmente não são
descendência ou filhos de Abraão.
João (William Hendriksen) 393
verdade a vós eu estive dizendo”. Veja-se sobre Jo 8:37 as provas (as
referências ali enumeradas) do fato de que os judeus procuravam
realmente matar a Jesus. Quanto ao significado da afirmação “vos tenho
falado a verdade que ouvi de Deus”, ver sobre Jo 5:30; 7:16; e Jo 8:26 e
cf. Jo 3:11; 5:19, 32, 37. Veja-se sobre Jo 8:32 o significado do termo a
verdade. A breve frase, “assim não procedeu Abraão”, é também litote:
Abraão fez exatamente o contrário (veja-se especialmente Jo 8:56).
41. Vós fazeis as obras de vosso pai. Isto é, em essência, uma
repetição das palavras de Jesus referidas no versículo 38; só que começa
a ficar mais claro quem é este pai dos judeus: é a classe de pai que os
estimula a matar ao Filho único de Deus. Isto fica claro do versículo 40.
O próprio fato de que Jesus ainda não indica concretamente em quem
pensa quando fala a respeito do pai deles, impacienta e indigna ainda
mais os judeus. Por isso, eles dizem abruptamente o nome daquele a
quem consideram seu pai espiritual, seu único e indiscutível Pai. Então
lhe disseram: nós não nascemos de fornicação [AV]. 192 Se tivessem
nascido de fornicação (πορνεία; o substantivo, usado somente aqui no
evangelho de João — mas veja-se Mt. 5:32; 15:19; 19:9; Mc. 7:21 —
encontra-se com frequência nas cartas e em Apocalipse), ou seja, de uma
relação sexual ilícita, sem dúvida teria havido interrogantes aceitáveis
com relação ao seu nascimento.
Quando alguém nasceu que fornicação mencionam-se várias
pessoas como possíveis pais. Estes judeus, no entanto, estão seguros de
que conhecem a identidade de seu Pai: temos um pai, que é Deus. Não
resulta totalmente impossível que nas palavras destes inimigos do Senhor
esteja implícita uma sinistra insinuação, e que o que realmente queriam
dizer fosse isto: “Nós não nascemos que fornicação, mas tu, sim! Com
relação a nosso nascimento não há duvida razoáveis, mas teu caso é
diferente!” Cf. Jo 8:48. Em todo caso, mais adiante circularam entre os

192
Para el significado de fornicación véase C. N. T. en 1 Ts. 4:3.
João (William Hendriksen) 394
judeus história como esta, e em sua literatura com frequência se
representa a Jesus como o filho bastardo de Maria. 193
Quando os judeus chamavam a Deus seu único Pai, talvez
estiveram pensando em Ml. 2:10: “Não temos nós todos o mesmo Pai?
Não nos criou o mesmo Deus?”
42. Replicou-lhes Jesus: Se Deus fosse, de fato, vosso pai, certamente,
me havíeis de amar; porque eu vim de Deus e aqui estou; pois não vim de
mim mesmo, mas ele me enviou. 194 Desta maneira Jesus destrói a
pretensão dos judeus. As próprias ações e a atitude deles desmentem o
que afirmam. Se Deus fosse seu Pai real e espiritual, logicamente
amariam a Ele. Ao amá-Lo, também amariam o Seu Filho, Jesus. Mas o
odeiam; portanto, também odeiam o Pai, e não são Seus verdadeiros
filhos. 1Jo 5:1 é o melhor comentário da primeira parte da resposta de
Cristo. Veja-se também o que dissemos com relação a Jo 7:17, 18, a
respeito dos elementos da experiência cristã.
Não cremos que as palavras eu vim de Deus e as palavras vim dele
devam separar-se de tal modo que a primeira expressão se refira à
encarnação de Cristo e a segunda à Sua missão messiânica. Sem dúvida,
ambas se referem à Sua missão (ou comissão); mas, naturalmente, não se
pode pensar nisso como além de Sua encarnação. E é essencial para
ambas a geração eterna do Filho por parte do Pai.
Agora, na encarnação Jesus veio de Deus para levar a cabo sua
tarefa mediadora na terra. Mas o contato entre aquele que envia e o
Enviado segue intacto; este no que faz, segue representando verdadeira e
plenamente ao Pai. Em consequência, lemos e vim dele. O Filho não é a
classe de embaixador que deve voltar para seu país e a seus superiores
para receber novas instruções e para ver se, talvez, perdeu verdadeiro
contato com as ideias e atitudes daqueles que O enviaram. Quanto ao
significado de eu vim de Deus ou do céu veja-se também sobre Jo 6:41,

193
Cf. T. Walker, Jewish Views of Jesus, Nova York, 1931, pp. 14–23.
194
Com relação a esta frase condicional veja-se nota 182.
João (William Hendriksen) 395
onde se apresenta o delicado matiz de significado dos diferentes tempos
verbais.
Os judeus sempre olhavam a Jesus como a um vaidoso pretendente;
alguém que vinha de si mesmo. Veja-se sobre Jo 7:28. Jesus volta a
negar enfaticamente isto quando afirma, “Não vim que mim mesmo”. As
palavras ele me enviou se explicam com o paralelismo eu vim de Deus.
Veja-se acima e veja-se também sobre Jo 1:6; 3:17, 34; 5:36, 37; 8:18,
27, 49; 10:36; 11:42; 12:49; 14:10; 17:3, 8.
43. Qual a razão por que não compreendeis a minha linguagem? É
porque sois incapazes de ouvir a minha palavra.
Os judeus tinham dado repetidos indícios de embotamento
espiritual. Isto chama muito a atenção neste capítulo, como se vê em Jo
8:27; pelas muitas perguntas estúpidas que constantemente fazem, tais
como “Onde está teu pai?” (Jo 8:19), “Terá ele, acaso, a intenção de
suicidar-se?” (Jn 8:22), “Quem és tu?” (Jn 8:25), “Como dizes tu: Sereis
livres?” (Jn 8:33); e sobretudo pelo fato de que não parecem entender a
quem Jesus tem em mente quando fala do verdadeiro pai espiritual deles.
A linguagem que Jesus emprega, os termos e as frases, toda a expressão
(λαλιά) ou maneira de falar, resulta-lhes um mistério. Não o entendem.
Para o significado do verbo veja-se sobre Jo 1:10, 31; 8:28.
Jesus explica este embotamento espiritual. Diz que nasce do fato de
que não escutam sua palavra (τ_ν λόγον), ou seja, Sua mensagem. No
contexto preciso é evidente que Jesus os considera responsáveis por esta
incapacidade. Por isso, as palavras sois incapazes significam não
suportais. A vontade deles é má, como se mostra no seguinte versículo.
A pergunta e sua resposta não constituem uma tautologia; pelo contrário,
a resposta da razão do fato que se afirma na pergunta. Tudo isso pode-se
parafrasear como segue: “Por que não reconheceis o significado de
Minhas palavras, como o indicam claramente suas constantes perguntas
e exclamações e insultos? É porque, por má vontade, não suportais o
ouvir a verdade ou a mensagem que estas frases transmitem”. O
preconceito obscurece sua mente! Não podeis — não podeis — não
João (William Hendriksen) 396
podeis (veja-se Jo 3:3, 5; 5:44; 6:44; e agora também Jo 8:43), este é o
triste estado do pecador; especialmente do homem que se endurece
contra as palavras de Deus.
44. Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os
desejos.
De repente Jesus fala abertamente, quer dizer, já não dá a entender
mas sim claramente menciona o pai deles. O que agora diz é como atirar
uma bomba: “Vós sois do diabo, que é vosso pai”. Cf. Mt. 13:38; 23:15;
1Jo 3:8; e Ap. 12:9. Fisicamente estes judeus, por certo, são filhos de
Abraão; mas espiritual e moralmente — e esse era o ponto — são filhos
do diabo. Pode-se observar de passagem a tradução “sois filhos do pai do
diabo” é, naturalmente, tão alheia ao contexto que não merece
comentário.
Jesus não só faz esta acusação mas também a demonstra. A
natureza das paixões e desejos íntimos indicam a ascendência espiritual:
quereis (tempo presente contínuo) constantemente levar a cabo os
desejos do diabo; portanto deve ser vosso pai. O diabo deseja matar e
mentir, e também eles. Jesus detém-se um momento em cada um destes
desejos:
Ele foi homicida desde o princípio. Desde o começo da história da
humanidade o diabo teve em seu coração o homicídio, e de fato afundou
a raça humana no oceano da morte, física, espiritual e eterna; cf. Rm.
5:12; Hb. 2:14; 1Jo 3:8. A queda do homem com todas as suas
consequências teve a ele como autor. E jamais se firmou na verdade,
porque nele não há verdade. Por meio da mentira o diabo trouxe a morte
(veja-se Gn. 3:1, 4). Por isso Jesus relaciona ambas as coisas: o diabo é
homicida e mentiroso ao mesmo tempo. Ao dizer que Satanás não está
pela verdade, e imediatamente acrescentando que não há verdade nele, o
Senhor sublinha na forma mais vigorosa possível a ideia de que não há
conexão alguma entre o diabo e a verdade: os dois são opostos. Observe-
João (William Hendriksen) 397
se, no entanto, que a segunda afirmação apresenta-se como razão da
primeira: o que Satanás é determina sua posição. 195
Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio. O diabo,
pois, é o próprio manancial de mentiras, o criador de falsidades (veja-se
Gn. 3:1, 4; Jó 1:9, 10, 11; Mt. 4:6, 9; At. 5:3; 2Ts. 2:9, 10, 11). Quando
mente, ele é original. Quando não mente (At. 16:16, 17), ele cita ou
inclusive plagia; mas inclusive então dá um marco falso às palavras
tomadas emprestadas, a fim de criar uma ilusão. Sempre busca mentir e
enganar, e isto o faz para dar morte.
Porque é mentiroso e pai da mentira. Pode-se traduzir … e o pai
dela (ou seja, da mentira), ou … e o pai dele (ou seja, do mentiroso); no
entanto, a conexão lógica neste caso favorece o primeiro.
Como fica evidente por toda esta passagem, Jesus crê que o diabo
de fato existe e exerce uma influência tremenda na terra. Para nosso
Senhor o príncipe do mal não era uma ficção da imaginação mas uma
terrível realidade!
45. Mas, porque eu digo a verdade, não me credes. O termo a
verdade é empregado no sentido desse conjunto de ideias que
corresponde com a realidade tal como o Pai a revelou ao Filho (veja-se

195
A tradução, “não permaneceu na verdade”, embora a adotem muitos comentaristas por razões
textuais, torna a frase muito difícil. Estas são algumas tentativas de explicação, uma vez que se tenha
adotado essa tradução:
(1) O anjo perfeito, Satanás, não permaneceu na verdade mas caiu. Objeção: caiu porque não há
(no presente) verdade nele? Mas então o efeito precede à causa. Caiu, talvez, porque essencialmente
não há verdade nele (não há, nem nunca houve)? Mas então, como pode-se falar de queda?
(2) Depois da Queda, o diabo não permaneceu na verdade. Embora isto seja melhor, ainda
teríamos esperado que a seguinte frase fosse dita: “porque não havia verdade nele”.
As dificuldades são eliminadas e se obtém uma frase muito bem equilibrada, com os tempos em
correspondência perfeita, o adotar a tradução que preferimos: “e não se baseia na verdade, porque não
há verdade nele”. A frase que segue imediatamente também indica que Jesus enfatiza o que o diabo
está fazendo no momento atual (como continuação de sua atividade desde o princípio). A prova
textual em favor da leitura que constitui a base da tradução (“e permaneceu”) não se pode considerar
concludente. Concedemos sim que os textos “melhores” favorecem a leitura οὐκ ἔστηκεν (em lugar de
οὐχ ἕστηκεν) mas devem ter-se apresente dois atos intimamente relacionados: a. o texto preferido
pode ser também uma forma do perfeito; b. é característica do grego koinê a aspiração gradual.
João (William Hendriksen) 398
Jo 8:40). É a verdade com relação a assuntos espirituais, tais como a
depravação total do homem e sua incapacidade natural, o plano de Deus
para sua salvação, o envio do Filho para merecer esta salvação, o castigo
para os que rejeitam o Filho, etc. O orgulhoso coração do homem não
aceita esta verdade, porque revela seu caráter imperdoável e sua
condição de perdição. Além disso, deve ter-se em mente que se dirige
aos filhos daquele que se chama pai da mentira. Por isso, porque Jesus
fala a verdade, é rejeitado. Cf. sobre Jo 8:43.
46, 47. Jesus prevê a objeção: “Não dizes a verdade; por isso não
podes esperar que creiamos em ti”. Mas nesse caso, seria pecador, e
deveriam podê-lo provar. Podeis?, diz Jesus, Quem dentre vós me
convence de pecado? Convencer aqui significa acusar e logo provar a
acusação. A pergunta implica claramente que Jesus não só não tinha
consciência de nenhum pecado em Si mesmo, mas também de fato não
tinha pecado. A conclusão iniludível, certamente, é que sempre diz a
verdade. O teólogo radical de hoje é inconsequente quando por um lado
proclama claramente a perfeição moral de Jesus; e por outro, rejeita Suas
majestosas afirmações. Se Jesus não tem pecado, suas afirmações devem
ser aceitas. Qualquer outra alternativa é positivamente má: Se vos digo a
verdade, por que razão não me credes? 196 A pergunta os aturde. Carecem
de resposta. A verdadeira resposta teria sido: “porque não somos de
Deus”. Quem é de Deus ouve as palavras de Deus; por isso, não me dais
ouvidos, porque 197 não sois de Deus. Assim como os que são do diabo
estão possessos por seus prazeres (Jo 8:44), assim também os que são de
Deus ouvem o que Ele diz. Os judeus, ao não as escutar, provam também
desta maneira sua ascendência espiritual.
48. Como não estão dispostos a admitir a derrota, os judeus agora
recorrem a insultos maliciosos e agudos: Responderam, pois, os judeus e
lhe disseram: Porventura, não temos razão em dizer que és samaritano e

196
Com relação a esta frase condicional veja-se nota 182.
197
Com relação a ὅτι veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 399
tens demônio? O ódio entre judeus e samaritanos era violento! Veja-se
sobre Jo 4:9, onde se demonstra e explica este ponto. Por isso, a mordaz
observação, “és samaritano”, era quase o pior que os judeus podiam
pensar. Para tornar a ofensa ainda mais devastadora dizem a Jesus que
esta é a opinião comum entre eles. E como se não bastasse, acrescentam
(porque sua pergunta se expõe de tal forma que uma resposta positiva é
tão óbvia que não resulta necessária): “e tens demônio”. Cf. também Jo
10:20 e Mt. 12:24. está possuído por um espírito mau que faz com que
acuse estas boas pessoas que não reconhecem a outro Pai senão Deus!
49, 50, 51. Replicou Jesus: Eu não tenho demônio; pelo contrário,
honro a meu Pai, e vós me desonrais.
A enfática negação de Jesus de que os judeus tivessem direito de
chamar a Deus seu Pai não esteve inspirada por Satanás; pelo contrário,
foi produzida por Seu zelo pela honra do Pai (cf. Jo 7:18); porque, ao
chamarem a Deus Pai deles (Jn 8:41), Pai de tais filhos, e ao lançar
insultos monstruosos sobre o Filho (Jo 8:48), estão desonrando ao Pai.
Também desonram ao Filho, diretamente ao dizer, “és samaritano e tens
demônio”, e indiretamente ao desonrar ao Pai (cf. Jo 5:23).
No entanto, não é necessário que o Filho defenda Sua própria
honra; o Pai cuidará disso e julgará com juízo reto; Eu não procuro a
minha própria glória; há quem a busque e julgue. Pelo contrário, Em
verdade, em verdade vos digo (com relação a isto veja-se Jo 1:51): se
alguém (em lugar de me desonrar) guardar a minha palavra, não verá a
morte, eternamente * . 198 Os inimigos não poderão dizer que nunca
tiveram oportunidade de escutar a proclamação do evangelho. Guardar a
palavra de Cristo significa: a. aceitá-la pela fé, b. obedecê-la, e c. cuidá-
la. Veja-se também Jo 8:55; 14:23, 24; 15:20; 17:6; e 1Jo 2:5. Quem
quer (tanto judeu como gentio, não importa o mais mínimo) que faça esta
vontade, certamente nunca verá (quer dizer, experimentar; cf. em Jo 3:3)

*
A Tradução Brasileira [TB] lê: “nunca jamais verá a morte”. – Nota do Tradutor.
198
Com relação a esta frase condicional veja-se nota 182.
João (William Hendriksen) 400
a morte. Fica claro pelas passagens paralelas neste Evangelho, que a
morte, no sentido usado aqui, é separação do amor de Deus e o
experimentar o peso esmagador de Sua ira e condenação, e isto para
sempre. Cf. também Mt. 25:46; 2Tm. 1:9. Toda a expressão é,
naturalmente, um litote. O verdadeiro significado é que a pessoa que
guarda a palavra de Cristo verá realmente a vida (eterna) e participará da
mesma em toda sua doçura e beleza, como se descreve tão
esquisitamente em Jo 14:23; 17:3; e Ap. 3:20. Veja-se também sobre Jo
3:16. Compare-se também com esta passagem (Jo 8:51) 3:36; 5:24; e Jo
11:25, 26.
52, 53. Disseram-lhe os judeus: Agora estamos certos que estás
possesso de demônio. Abraão morreu e também os profetas, e tu dizes: Se
alguém guardar a minha palavra, nunca jamais provará a morte. 199
Porventura és tu maior do que nosso pai Abraão, que morreu? também os
profetas morreram. Quem pretendes tu ser? [TB]
Repete-se agora com mais força a terrível ofensa (cf. Jo 8:48).
Converteu-se numa mofa ímpia e alvoroçada: “Agora estamos certos que
estás possesso de demônio”. Não se deveria mitigar o significado desta
expressão, como se significasse “… que está louco”. Aceitava-se
usualmente a realidade da possessão diabólica (cf. Mt. 12:24). Mais uma
vez, como tantas vezes antes, dá à sublime expressão de Cristo (Jo 8:51)
um interpretação totalmente literal e terrestre, como se tivesse falado da
morte física. Disseram, “Abraão morreu e também os profetas”. A
biografia de cada um destes grandes homens concluiu com o direto
comentário “E morreu”. Parece ouvir-se o eco de Gn. 5: “e morreu … e
morreu … e morreu”. Claro que, inclusive no plano puramente físico,
houve também Gn. 5:24 e 2Rs. 2:11, e estes profetas (Enoque e Elias)
não tinham morrido — nem sequer fisicamente! Mas Jesus não tinha
falado da morte física. Por isso, quando estes hostis judeus repetem
agora e repudiam veementemente de forma implícita a promessa

199
Com relação a esta frase condicional veja-se nota 182.
João (William Hendriksen) 401
majestosa do Senhor como se fosse algo palpavelmente absurdo,
simplesmente demonstram a verdade do dito de Jesus referido em Jo
8:43.
A exclamação, “Porventura és tu maior do que nosso pai Abraão
…?” lembra imediatamente outra semelhante que saiu dos lábios da
mulher samaritana (Jo 4:12). No entanto, pouco depois o coração dessa
mulher deu resposta afirmativa à sua própria pergunta. No caso deles foi
diferente. Foi um caso de endurecimento progressivo: “Quem pretendes
tu ser?” como se Jesus tratasse de glorificar-Se Si mesmo! Naturalmente,
nem sequer tinham captado Jo 8:49 (“Honro ao meu Pai”). Em
consequência,
54. Respondeu Jesus: Se eu me glorifico a mim mesmo, a minha
glória nada é. 200 A glória de um hipócrita ou usurpador vaidoso, de um
megalômano ou fanfarrão, é vácua. Não tem conteúdo nem mérito. Mas
Jesus definitivamente não pertence a esta classe: quem me glorifica é
meu Pai, o qual vós dizeis que é vosso Deus. Veja-se sobre Jo 8:41, 42
para a pretensão dos judeus de que Deus era seu Pai, e a refutação que
faz Cristo desta pretensão. O mesmo, a quem estes denegridores ímpios e
vis chamam orgulhosamente “Nosso Deus”, glorifica ao Filho ao que
eles rejeitam. Isto demonstra quão vácua era sua pretensão e quão ímpio
seu ataque. O Pai está sempre dedicado (observe-se a força contínua do
gerúndio) à glorificação do Filho. Ele o faz ao capacitar o Filho para
realizar obras poderosas (Jo 11:4, cf. At. 2:22), ao fazer com que as
virtudes do Filho se destaquem com relação ao Seu sofrimento e
recompensando-o por isso (Jo 12:16; 13:31; 17:1, 2, 5; cf. Fp. 2:9–11); e
às vezes, inclusive, por meio de uma voz direta do céu (veja-se Jo 1:34).
“O qual que vós dizeis que é vosso Deus”, diz Jesus, e prossegue:
55. Entretanto, vós não o tendes conhecido; eu, porém, o conheço. Se
eu disser que não o conheço, serei como vós: mentiroso; mas eu o conheço
e guardo a sua palavra.

200
Com relação a esta frase condicional veja-se nota 182.
João (William Hendriksen) 402
Embora vós jactanciosamente o monopolizam, chamando-o nosso
Deus, e não o conheceis. Mas eu o conheço. No original o primeiro
verbo é _γνώκατε (de γινώσκω); o segundo é ο_δα. Em consequência, a
não ser que a transição de um verbo a outro se faça meramente à maneira
de variação (o que é improvável) o significado é este: não aprendestes a
reconhecê-Lo, não chegastes a se familiarizar com Ele (embora se
revelou), mas Eu o conheço de forma intuitiva e direta (tendo estado em
Sua presença desde toda a eternidade; cf. Jo 1:18). Vale acrescentar, no
entanto, que os ímpios judeus não possuíam nenhuma destas duas classes
de conhecimento (cf. Jo 8:55 com Jo 7:28); e que Jesus possuía ambas;
quer dizer, conhecia o Pai tanto por intuição como por experiência (cf. Jo
8:55 com Jo 10:15; 17:25).
Observe-se que por meio da frase condicional (a respeito da qual
veja-se nota 182 em nossa explicação de Jo 8:32) Jesus chama
mentirosos a estes homens em sua própria cara. Isto já estava implícito
em Jo 8:44; veja-se explicação deste versículo.
Quanto ao mais, as ideias contidas em Jo 8:55 devem considerar-se
como repetitivas. Quanto a “vós não o tendes conhecido”, veja-se sobre
Jo 7:28; 8:19; cf. sobre Jo 3:11; 5:37, 38; 6:42. Quanto a “eu, porém, o
conheço”, veja-se sobre Jo 7:29; cf. sobre Jo 3:11, 32, 34; 6:46; 10:15;
17:25. Quanto a “guardo sua palavra” veja-se sobre Jo 8:29, 46, 49. Com
relação ao significado do verbo guardar veja-se Jo 8:51.
56. Abraão, vosso pai, alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e
regozijou-se.
Os judeus se jactaram pelo fato de que Abraão era seu pai (Jo 8:33).
Mas Jesus mostra que esta autocongratulação não tem fundamento.
Abraão foi de um espírito totalmente diferente (Jo 8:39, 40). Teria se
mostrado totalmente insatisfeito com eles, se tivesse vivido nesta época,
porque a atitude sua com relação a Cristo foi totalmente oposta, como
Jesus afirma: “Abraão, vosso pai (fisicamente sim, mas espiritualmente
só em sua imaginação), alegrou-se (quanto ao verbo veja-se também Jo
5:35; Mt. 5:12; Lc. 1:47; 10:21: At. 2:26; 16:34; 1Pe. 1:6, 8; 4:13; Ap.
João (William Hendriksen) 403
19:7; e observe-se sua associação regozijar-se em algumas destas
passagens como também na passagem atual, Jo 8:56) por ver o meu dia”.
Desejou esse dia, esperando-o com expectação ansiosa. E quando
chegou, “viu-o e regozijou-se”.
O que nos parece ser a explicação mais razoável desta frase é a
seguinte: Abraão se alegrou ao extremo quando Deus lhe prometeu dar-
lhe um filho. Quase não pôde esperar que a promessa se cumprisse. E
quando de fato chegou esse feliz dia ao já então centenário, o filho foi
chamado Isaque; ou seja, risada. A promessa do nascimento desse filho
(e também a realização dessa promessa) significou tudo para Abraão;
porque com isso não só estavam relacionadas muitas bênçãos temporais,
mas também a grande promessa espiritual, ou seja, que todos as nações
da terra seriam benditas por meio deste nascimento. Compreendeu
Abraão, em seu tempo, que a esperança do gênero humano não seria o
próprio Isaque, mas o nascimento de Isaque abriria o caminho para a
vida do verdadeiro Messias? Sem dúvida que deve ter esperado
confiantemente que Deus cumpriria Seus desígnios através de Isaque,
porque quando Deus lhe mandou sacrificar o seu filho, teve a convicção
total de que a morte não teria a última palavra mas Deus, se fosse
necessário, devolveria Isaque à vida (Gn. 22; cf. Hb. 11:17–19). E por
que se encheu de tanta alegria seu coração com relação ao nascimento de
Isaque? Isaque foi seu próprio filho, o filho de Sara. Mas, houve uma
razão mais profunda? Sim, e foi esta: interpretou a promessa de Deus
(Gn. 15:4–6; 17:1–8; cf. 22:18) no sentido de que a descendência de
Isaque chegaria por fim Até aquele por meio de quem Deus abençoaria a
todas as nações. Assim, pois, tal como se afirma especificamente em Hb.
11:13, ele (e outros antes e depois dele) morreram na fé, não tendo
recebido (o cumprimento de) as promessas, mas tendo-as acolhido à
distância. Desta forma foi que Abraão viu o dia de Cristo e se regozijou.
Aceitamos esta explicação pelas seguintes razões:
(1) baseia-se no sólido fundamento da tradição histórica inspirada:
o regozijo de Abraão (e de Sara, embora no caso dela se misturou com
João (William Hendriksen) 404
pecado) com relação ao nascimento de Isaque foi um fato bem conhecido
ao qual há muitas alusões (Gn. 17:17; 21:3, 6; cf. Gn. 18:12–15 e Hb.
11:17). Quem quer que ouvisse as palavras de Jesus e conhecesse a
história de Abraão relacionaria naturalmente esta referência (ao regozijo
de Abraão) com as bem conhecidas passagens de Gênesis.
(2) O Targum aramaico de Gn. 17:17 traduz a palavra hebraica
“riu” por “alegrou”. 201
(3) O fato de que durante a antiga dispensação e até os dias de
Cristo na terra houvesse uma esperança messiânica, ensina-se claramente
na Bíblia (veja-se ademais Hb. 11:13; também Gn. 3:15; 49:10; Dt.
18:15–18; 2Sm. 7:12, 13; Sl. 2:8, 16; 22; 40; 45; 48; 69; 89; 95; 102;
109; 110: 118; Is. 7:14; 9:6; 42; 53; Dn. 7:9; Mi. 5; Zc. 6:9; Ml. 3; Mt.
11:1–3; Lc. 2:25, 26, 38; 3:15; Jo 1:19–28, 41; 4:25, 29, 42; At. 10:43;
1Pe. 1:10–12); e embora a maior parte das referências dadas sejam
posteriores a Abraão, quem negará a possibilidade de que esta
expectação de um libertador pessoal pôde ter surgido já no Paraíso e
pôde ter-se abrigado certamente no coração de Abraão? — Quanto às
explicações que rejeitamos veja-se a nota. 202
57. Perguntaram-lhe, pois, os judeus: Ainda não tens cinquenta anos
e viste Abraão?
Os judeus, com sua mentalidade materialista, terrestre e literal, não
puderam imaginar como pôde ter havido contato algum entre Abraão e
Jesus. A ideia de ver (e acolher) à distância pela fé era-lhes,

201
Veja-se E. Nestle, “Abraham Rejoiced”, ExT, 20 (1909), 477.
202
Não podemos estar de acordo com as seguintes explicações de Jo 8:56:
(1) Alegrou-se quando viu Jesus como um dos três homens aos que se alude em Gênesis 18. —
Mas, além de outras objeções, nesse relato não se usa o termo alegrar ou rir com relação a Abraão.
Além disso, por que ia se chamar a esta entrevista “meu dia”?
(2) Para Abraão, o dia de Cristo no qual se alegrou chegou de fato com relação ao nascimento de
Isaque. — Mas com isso é-lhe dado um significado estranho à expressão “o meu dia”. Também, não
se faz justiça a Hb. 11:13.
(3) A alma de Abraão no céu alegrou-se quando Jesus nasceu em Belém. — Mas esta explicação
cria em nós a impressão de que se introduz no texto um elemento forâneo, uma novidade que não se
menciona em nenhuma parte da Escritura.
João (William Hendriksen) 405
naturalmente, estranha. Jesus havia dito que Abraão tinha visto o seu dia.
Em consequência, podia-se esperar que dissessem, “… e Abraão te viu?”
E esta é exatamente a forma em que aparece numa versão importante.
Esta leitura pode ser correta. Por outro lado, pode ser também um erro
natural de escriba nascido do fato de que o texto que o escriba copiava
continha a pergunta na forma inesperada: “e viste Abraão?” A pergunta
formulada assim (o que tem forte apoio textual), embora um tanto
surpreendente quanto à sua forma, pode-se explicar como resultado do
seguinte processo de raciocínio: «se, como dizes, Abraão te viu, então
deves ter visto Abraão; mas para teres visto Abraão, que viveu faz uns
dois mil anos, deves ser muito velho, realmente”. Por isso disseram,
“Ainda não tens cinquenta anos, e viste Abraão?” Para suas mentes
infiéis era absurdo que Jesus pudesse ter visto Abraão. Nem sequer tem
quarenta anos; mas para ser muito generosos estão dispostos a aceitar
que “ainda não (tem) cinquenta”. De qualquer maneira (assim
raciocinam) Jesus não pôde ter visto Abraão. — À margem, deveria
advertir-se que sua pergunta, nascida da incredulidade, não implica nada
com relação à idade exata de Jesus ou ao Seu aspecto externo (se parecia
que tivesse quase cinquenta anos ou não).
58. Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade eu vos digo:
antes que Abraão existisse, EU SOU.
Os judeus tinham cometido o erro de atribuir a Jesus uma existência
meramente temporal. Viam só a manifestação histórica, não a Pessoa
eterna; só o humano, não o divino. Jesus, portanto, reafirma Sua essência
eterna, atemporal, absoluta. Quanto à cláusula introdutória (“Em
verdade, em verdade eu vos digo”) veja-se sobre Jo 1:51. Resulta
imediatamente evidente o apropriado desta cláusula, tal como se usa
aqui, para introduzir uma verdade tão sublime.
Diante da duração passageira da vida de Abraão (veja-se Gn. 25:7)
Jesus coloca Seu próprio presente atemporal. Para enfatizar este presente
eterno utiliza diante do infinitivo aoristo, que indica o nascimento de
Abraão no tempo, o presente indicativo, com relação a Si mesmo; quer
João (William Hendriksen) 406
dizer, não fui, mas sim sou. Por isso, o pensamento que se transmite é
não só que a Segunda Pessoa sempre existiu (existiu desde toda a
eternidade; cf. Jo 1:1, 2; cf. Cl. 1:17), embora também se dê a entender
isso; mas também, e muito especificamente, que Sua existência
transcende o tempo. Por isso Ele é exaltado imensamente acima de
Abraão. Veja-se também Jo 1:18 e cf. Jo 1:1, 2. Aqui (Jo 8:58) o “eu
sou” faz lembrar o “eu sou” de Jo 8:24. Em ambas as passagens se
expressa basicamente o mesmo pensamento; ou seja — que Jesus é
Deus! Além disso, o que afirma aqui em Jo 8:58 é Sua resposta não só à
afirmação dos judeus referida em Jo 8:57, mas também a que se encontra
em Jo 8:53.
59. Então, pegaram em pedras para atirarem nele; mas Jesus se
ocultou e saiu do templo. A oposição a Jesus alcançou uma nova
intensidade. Incapazes de conter-se mais e de controlar sua indignação
iracunda, e aparentemente considerando a afirmação de Cristo (Jo 8:58)
como blasfêmia horrível que deve ser castigada com a morte por
apedrejamento (Lv. 24:16), os judeus correm para um lugar no amplo
recinto do templo onde ainda está em construção. Veja-se sobre João
2:20. Há pedras por todas as partes. Tomam-nas para atirarem em Jesus,
e assim matá-Lo sem processo legal ou juízo na corte.
Enquanto isso, no entanto, Jesus — sabendo, naturalmente, que o
momento adequado para dar a vida ainda não chegou — Se oculta
(talvez, em meio de um grupo de amigos) e sai do templo. É provável
que esta última frase de Jo 8:59 deva considerar-se como hendíadis, de
modo que o pensamento que resulta seja da seguinte ordem: Saiu em
segredo (encoberto pela multidão) do templo.

Síntese de Jo 8:12–59
O Filho de Deus exorta às multidões: “Eu sou a luz do mundo”.
Seus inimigos querem apedrejá-lo.
João (William Hendriksen) 407
Mais uma vez, ao exortar à multidão no templo (líderes religiosos
hostis, fariseus, cidadãos de Jerusalém, e talvez alguns peregrinos
atrasados) Jesus de novo revela quem é. Esta seção contém: a. Suas
afirmações elevadas, e b. a reação deles. Nos versículos 12–20 temos o
relato da reação dos fariseus. Alguns deles, sem dúvida, eram membros
do Sinédrio. Nos versículos 21–30 se descreve a atitude dos judeus. É
muito provável, no entanto, que os termos fariseus e judeus
sobreponham-se (como pareceria evidente ao comparar os versículos 13,
20, 21, e 22). O termo judeus geralmente indica a classe dominante hostil
e seus seguidores. Neste amplo grupo estavam, naturalmente, muitos
fariseus. Do versículo 30 até o final do capítulo a conversação se
sustenta entre Jesus, por um lado, e pelo outro: muitos da multidão
congregada. Em geral, no entanto, ainda estamos com a mesma multidão
de gente: Observe-se a expressão “os judeus” nos versículos 48, 52, e 57.
De fato, pareceria que em todo o capítulo são as mesmas, em geral, as
pessoas com as quais se conversa; embora, naturalmente, nem todos
respondem de forma oral às palavras de Jesus.
A autorrevelação de Cristo, por um lado, e a reação daqueles a
quem Se dirige e aqueles que respondem, por outro, podem resumir-se
brevemente como segue:

Jesus: Judeus:
O portador de luz: 1. Contradição aberta:
“Eu sou a luz do mundo”. “o teu testemunho não é verdadeiro”.

O confiável 2. Insinuação caluniosa


“meu testemunho é verdadeiro .… Eu “Onde está o teu Pai?”
sou aquele que dou testemunho de mim
mesmo, e o Pai que me enviou”.

Aquele que vai ao Pai: 3. Sarcasmo zombador:


“Aonde eu vou, vós não podeis “Terá ele, acaso, a intenção
ir”. de suicidar-se?”
João (William Hendriksen) 408
O objeto devido da fé: 4. Desdém depreciativo:
“Se vós não credes que eu sou “Quem és tu”
morrereis em vossos pecados”.

Enviado pelo Pai: 5. Ignorância nascida do preconceito:


“aquele que me enviou é verdadeiro; “não entenderam que lhes falava
e eu, o que ouvi dele, isto tenho do Pai”.
falado ao mundo”.

O Filho do homem que ia a ser 6. Assentimento meramente mental:


“levantado” por eles: “falando ele estas coisas, muitos
“quando tiverdes levantado o Filho do creram nele”.
Homem, então conhecereis que eu sou”.

A verdade, capaz de libertar os homens: 7. Surpresa arrogante:


“se vós permanecerdes em minha palavra, “somos descendência de Abraão, e
sois verdadeiramente meus discípulos; e nunca fomos escravos de ninguém.
conhecereis a verdade, e a verdade vos Como dizes tu: sereis livres?”
libertará”.

Aquele que revela a Deus: 8. Insinuação (de novo) caluniosa


“se sois filhos de Abraão, praticai as e jactância cega:
obras de Abraham. Mas agora procurais “nós não somos nascidos de
matar-me a mim, que vos falei a verdade, fornicação; e um Pai temos,
a qual ouvi de Deus; Abraão não fez isto. que é Deus”.
Vós fazeis as obras de vosso pai”.

Aquele que não tem pecado: 9. Insulto difamatório:


“vós sois de seu pai o diabo. ... “não dizemos com razão nós,
quem de vós me convence que tu és samaritano, e que
de pecado?” tens demônio?”

O príncipe da vida: 10. Infidelidade jactanciosa:


“eu não tenho um demônio … aquele “Agora estamos certos de que tens
que guarda minha palavra, nunca demônio … Quem, pois, te fazes ser?”
jamais provará a morte”.
João (William Hendriksen) 409
Deleite de Abraão: 11. Zombaria daninha:
“Abraão, vosso pai, alegrou-se “Ainda não tens cinquenta anos,
Por ver o meu dia; viu-o e se e viste Abraão?”
regozijou?”

O Eterno: 12. Violência aberta:


“antes que Abraão existisse, EU SOU”. “pegaram em pedras para
atirarem nele”.
João (William Hendriksen) 410
JOÃO 9
JO 9:1–7

9:1. Caminhando Jesus, viu um homem cego de nascença.


Ao passar Jesus por ali, viu um homem acometido de cegueira
congênita. Esta enfermidade era bastante comum entre os antigos, como
o é hoje entre os que não usam as medidas preventivas necessárias em
conexão com o nascimento. 203
Não se mencionam nem o tempo nem o lugar do evento relatado
neste parágrafo. Há, no entanto, uma comparação interessante entre o
homem acometido de cegueira congênita e aquele que tinha paralisia
congênita (veja-se quanto a isto At. 3). Ambos eram mendigos (cf. Jo 9:8
com At. 3:3). Este se colocava todos os dias na porta do templo chamada
Formosa. Como muitos devotos passavam para entrar e sair por esta
porta, era um lugar lógico para os que queriam despertar piedade e
caridade. Também o parágrafo que nos ocupa (Jo 9:1–7) estabelece uma
íntima relação entre o templo (Jo 8:59) e este mendigo que era cego de
nascença. Por isso, alguns opinam que Jesus ao sair do templo encontrou
este homem que estava sentado numa das portas do templo, pedindo
esmola. Outros, no entanto, assinalam o fato de que o cego foi curado no
sábado (Jo 9:14), e consideram improvável que os judeus tivessem
procurado apedrejar o Senhor (Jo 8:59) nesse dia sagrado. No entanto,
provavelmente não é prudente limitar com muita rigidez o número de
crimes que os judeus, fora de si pela ira e o ciúme, permitiram-se
cometer no sábado (cf. Mt. 27:62–66). Simplesmente não sabemos se os
eventos relatados nos capítulos 8 e 9:1–34 sucederam no mesmo dia.
Mas se o cego não foi curado no dia em que Jesus evitou ser apedrejado
de morte, o milagre teve que suceder muito pouco tempo depois (talvez
no seguinte dia). É incorreta a opinião de que ocorreu na festa da

203
Veja-se artigo Cegueira em D. C. G.
João (William Hendriksen) 411
Dedicação (em dezembro). Não é senão até Jo 10:22 que se chega a essa
festa.
Não nos é dito como Jesus ou Seus discípulos descobriram que este
homem tinha sido cego de nascença, mas talvez todo mundo o sabia.
Veja-se também sobre Jo 5:6.
2. E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou,
este ou seus pais, para que 204 nascesse cego? [RC]
Pareceria por este versículo que os discípulos tinham acompanhado
a seu Mestre até Jerusalém. Para eles este cego era um quebra-cabeças
teológico. Provavelmente raciocinaram mais ou menos assim: “Atrás de
toda aflição ou defeito físico há um pecado, geralmente o pecado do qual
tem o problema. Mas, como pode ser assim se a pessoa nascer com um
defeito? Nesse caso não pode haver trazido sobre si o defeito por meio
de sua má conduta, verdade? É castigado, então, pelo pecado de seus
pais? E neste caso, é justo? Porém não; há outra possibilidade: a pessoa
que nasceu com um defeito pode, afinal de contas, ser a causa de sua
própria desgraça; porque pode ter cometido pecado enquanto estava no
ventre de sua mãe”.
Sopesando as duas possibilidades, os discípulos fazem a pergunta:
“Rabi — com relação a este termo veja-se Jo 1:38 —, quem pecou, este
ou seus pais, para que nascesse cego?”
Segundo a Escritura (e os Apócrifos) as aflições físicas (defeitos,
privações, sofrimentos, “acidente”, enfermidade, morte) podem ser
devidos a diversas causas morais; tais como:
(1) O pecado de Adão, em quem todos temos pecado e somos por
natureza culpados diante de Deus. Assim dá-se a entender em Rm. 5:12–
21 (cf. também Gn. 3:17–19; Rm. 8:20–23; 1Co. 15:21, 22; Ef. 2:3 e o
livro apócrifo Eclesiástico 25:24).

204
A respeito de ἴνα veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 412
(2) Os pecados dos pais (Êx. 20:5; 34:7; Nm. 14:18; Dt. 5:9; 28:32;
Jr. 31:29; Êx. 18:2. Cf. os livros apócrifos Sabedoria de Salomão 4:6 e
Eclesiástico 41:5–7).
(3) Os próprios pecados pessoais (Dt. 28:15–68; Jr. 31:30; Ez.
18:4).
Sempre se pressupõe a causa (1), a qual condiciona as causas (2) e
(3). Por isso, ninguém tem nunca o direito de acusar a Deus de injustiça.
Os judeus, no entanto, tinham a tendência a exagerar a importância
de (2) e (3) para além do que indicava a verdade revelada. Relacionavam
cada problema específico com um pecado concreto. Por esta razão os
amigos de Jó atribuíram suas aflições ao pecado de crueldade para com a
viúva e os órfãos (Jó 4:7; 8:20; 11:6; 22:5–10); e nos dias de Jesus
prevalecia ainda muito esta classe de raciocínio (veja-se, por exemplo,
Lc. 13:2–5). O fato de o próprio Jesus não aprovar esta ênfase
desproporcionado torna-se claro pela última referência mencionada, e
não fica contradito por João 5:14 (veja-se sobre este versículo).
Quando os discípulos mencionaram como uma das alternativas que
o homem, embora nascido cego, estava talvez colhendo os frutos de seu
próprio pecado, provavelmente não pensavam na metempsicose
(transmigração das almas), embora Calvino e Beza atribuem este
significado à sua pergunta, nem na preexistência puramente espiritual da
alma (cf. Filo, On The Giants (A respeito dos gigantes) III, 12–15;
alguns acrescentariam Sabedoria de Salomão 8:20; contudo, esta
passagem não implica necessariamente essa doutrina), mas na ideia
rabínica (excesso de ênfase nela) de que as crianças podem pecar no seio
materno. Com base em Gn. 25:22–26 (cf. Sl. 58:3 e Lc. 1:41–44) os
rabinos chegavam à conclusão que Esaú tinha procurado matar a Jacó
estando ainda no seio materno. 205
A outra alternativa que passou pela mente dos discípulos foi que
este pobre desafortunado era vítima de uma transgressão dos pais, talvez

205
Veja-se S. BK. II, pp. 527–529.
João (William Hendriksen) 413
o pecado de um pai dissoluto (como de fato sucede às vezes, inclusive
hoje em dia).
3–5. Jesus respondeu: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi assim
para que se manifestem nele as obras de Deus. 206
Nesta resposta Jesus descarta imediatamente os pecados pessoais do
homem e os pecados de seus pais como causas às quais atribuir sua
cegueira. Se há que mencionar uma causa, a resposta seria o pecado de
Adão, nossa cabeça representativa. No entanto, nestes momentos Jesus
nem sequer se interessa por isso. Prefere olhar para frente em lugar de
olhar retrospectivamente como os discípulos. Tinham perguntado,
«Como sucedeu?» Responde, «Sucedeu para um fim; ou seja, para que
as obras de Deus (milagres nos quais se mostram Seu poder e amor)
manifestem-se nele». Todas as coisas — inclusive as aflições e
calamidades — têm como propósito último a glorificação de Deus em
Cristo por meio da manifestação de Sua grandeza (cf. Jo 1:14; 5:19, 20).
É necessário que façamos as obras daquele que me enviou, enquanto é dia
(não há razão textual adequada para mudar esta leitura); a noite vem,
quando ninguém pode trabalhar. Para os discípulos o olhar a este
homem expunha-lhes um quebra-cabeças teológico. Para Jesus um olhar
em direção ao homem apresentava-Lhe um desafio, uma oportunidade
para trabalhar. Eles raciocinavam: «Como veio a suceder-lhe?» Ele
respondeu: «O que podemos fazer por ele?» Havia, pois, duas formas de
olhar a este homem. E a segunda era grandemente a melhor.
A norma do versículo quatro aplica-se tanto a Jesus como a Seus
discípulos (e, num sentido, a todos os Seus seguidores): enquanto dura o
dia devemos fazer as obras de Deus. Essencialmente estas obras são uma
(cf. Jo 5:17, 20; 14:12); são obras do reino, cuja unidade resulta evidente
pela expressão que Jesus utiliza ao chamá-las “as obras daquele que me
enviou”. A respeito de “enviou” veja-se depois no versículo 7.

206
Ou: «mas para que as obras de Deus se manifestem nele devemos fazer as obras daquele que me
enviou, enquanto há tempo». Veja-se W. H. Spencer, “Juan 9:3” Ex T, 55 (1944), 110.
João (William Hendriksen) 414
Este ensino de nosso Senhor é muito surpreendente, sobretudo no
texto em que se encontra. É como se quisesse dizer: quando alguém
cruza no seu caminho, pode-se reagir de três maneiras:
(1) Se suscitar sua inveja, pode apedrejá-lo com insultos.
Precisamente nesse momento (ou muito pouco antes) os judeus tinham
tratado de fazer isto com Jesus (Jo 8:59). A história do mundo — e, triste
é dizê-lo, também até certo ponto a da igreja visível — proporciona
exemplos desta atitude geral. Algumas pessoas nunca fazem nada com
espírito construtivo. Sua vida diária é uma tentativa constante de
aniquilar o objeto de seu ciúme. Os “judeus” seguem conosco.
Tampouco desapareceu completamente o “sinédrio” (pelo menos seu
espírito).
(2) Se suscitar o desejo de obter informação adicional, pode-se
tratar de satisfazer a curiosidade com perguntas a respeito dele, a fim
de, talvez, resolver um quebra-cabeças teológico.
Os discípulos se dedicavam a isso, como se acaba de demonstrar
(veja-se sobre Jo 9:2). Sem dúvida que a curiosidade tem um lugar
legítimo, e se deve estimular e não evitar as perguntas de índole
teológico. Mas há um limite. Não só se deve fazer perguntas; também se
deve fazer obras de amor. De fato, isto é o que se deve enfatizar. Daí
que,
(3) É preciso amá-lo e ajudá-lo. “Essa”, diz Jesus, por assim dizer,
deve ser nossa atitude: “É necessário que façamos as obras daquele que
me enviou, enquanto é dia”.
A expressão “enquanto é dia” explica-se no versículo que segue
com “enquanto estou no mundo”. Quando Jesus, proferiu “Está
consumado!”, emite Seu último suspiro, Seu dia terminou, Sua obra de
expiação pelo pecado foi cumprida. Embora seja verdade que, inclusive
depois de Sua ressurreição, houve “aparições”, no entanto Ele já não está
mais “no mundo” como o esteve antes. O mesmo se aplica com relação
ao discípulo: também em seu caso há um tempo divinamente atribuído;
ou seja, sua vida terrestre. Que aproveite ao máximo suas oportunidades.
João (William Hendriksen) 415
O mandamento é premente, porque “a noite vem (isto é, a morte),
quando ninguém pode trabalhar”. Enquanto estou no mundo, sou a luz do
mundo. A partícula que traduzimos por “enquanto” (_ταν), bem como na
maior parte dos casos, refere-se à uma relação temporal, indefinida
(Jesus não diz por quanto tempo estará no mundo). Pareceria pelo
contexto presente que neste caso a melhor tradução não é “sempre que”,
como se Jesus quisesse referir-se a mais de um ato de vir ao (e estar no)
mundo, ideia totalmente alheia ao parágrafo presente. A tradução
“enquanto” é sugerida pelo paralelismo do versículo 4, “enquanto”.
Quanto ao significado da solene declaração “Eu sou a luz do mundo”,
veja-se sobre Jo 8:12. É verdade que aqui em Jo 9:5 o artigo definido não
precede ao substantivo luz, mas é muito duvidoso que se deve atribuir
algum significado especial a esta omissão. Se uma descrição do caráter
de nosso Senhor começa a considerar-se como nome ou título próprio,
nem sempre se considera necessário o artigo. Há uma certa amplitude
neste uso.
É evidente que a expressão “Eu sou a luz do mundo” subministra a
chave para a interpretação do que segue. A cura do homem cego de
nascença, que está prestes a relatar-se, é uma ilustração do que Jesus está
fazendo constantemente em Sua condição de luz do mundo.
6. Dito isso, cuspiu na terra e, tendo feito lodo com a saliva, aplicou-o
aos olhos do cego.
Não sabemos por que o Senhor escolheu este método específico. As
explicações que se costumam dar não satisfazem completamente; por
exemplo, que o fez para gravar no homem a ideia de que o poder de cura
vinha de Jesus (mas, não teria bastado para isso a palavra de Jesus?); ou
para utilizar as qualidades salubres da saliva ou do barro; ou para fazer
ainda mais cego a este homem de forma que pudesse valorizar mais
profundamente a cura; ou para simbolizar o fato de que o homem tinha
sido feito do pó da terra; etc., etc. Se for preciso dar uma explicação,
poderia dizer-se que o Senhor provavelmente utilizou este método para
produzir a atitude adequada de coração e mente; quer dizer, para
João (William Hendriksen) 416
produzir obediência perfeita, essa classe de submissão que leva a cabo
um mandato ao que parece arbitrário. Cf. Gn. 2:16, 17. Segundo esta
explicação, o lodo não tinha nada que ver com a cura física; não tinha
qualidades medicinais, como tampouco as tinham as águas do Jordão nas
quais Eliseu pediu a Naamã que se submergisse sete vezes (2Rs. 5:10) a
fim de curar a lepra. Em ambos os casos o mandamento foi prova de
obediência.
Deve ter-se em mente que aquele que age aqui é aquele que Se
chama a luz do mundo, e que neste caso concreto a luz é comunicada não
só ao corpo mas também à alma (Jo 9:35–38).
7. Dizendo-lhe: Vai, lava-te no tanque de Siloé 207 (que quer dizer
Enviado).
Este tanque lembra o de Betesda, mas enquanto este estava situado
no noroeste de Jerusalém — veja-se sobre Jo 5:2 — o tanque de Siloé
estava apenas dentro dos muros da cidade na parte sudeste. O rei
Ezequias tinha mandado construir um conduto para levar a água do
manancial de Giom (agora Fonte da Virgem), situado fora dos muros em
direção sul-sudoeste até apenas dentro dos muros. O propósito tinha sido
garantir o fornecimento de água em caso de assédio. O nome original do
tanque foi provavelmente Siloé, nome próprio derivado do particípio
passivo hebraico que significa “enviado” ou “conduzido”, que lhe foi
dado porque através desse conduto a água era (e ainda o é) conduzida do
manancial que brota intermitentemente até o tanque; cf. nossa palavra
“aqueduto”. 208

207
O genitivo é de aposto (o tanque de Siloé) ou possessivo (o tanque de — ou seja, pertencente a —
Siloé). No segundo caso o nome Siloé designa todo o sistema de águas: o manancial, conduto, tanque;
e somos informados que o tanque em que o cego deve lavar-se pertence a este sistema.
208
Veja-se também W.H.A.B., pp. 50, 98, e lâmina XVII B. Também 2Rs. 20:20; 2Cr. 32:4, 30;
33:14; Ne. 3:15; Is. 8:6; Lc. 13:4; Jo. 7:2, 37; Josefo, Antiguidades, VII, xiv, 5. Quanto à inscrição
siloense veja-se artigo Siloé em W.D.B., e também o artigo O túnel siloense em M. S. & J. L. Miller,
Enciclopedia of Bible Life, Nova York e Londres, 1944, p. 430.
João (William Hendriksen) 417
Alguns comentaristas rejeitam a ideia de que Jesus desse
significado simbólico ao nome deste tanque. No entanto, deveriam ter-se
em mente três fatos:
(1) Este milagre é certamente simbólico, visto que descreve a Jesus
como a luz do mundo (Jo 8:12; 9:5).
(2) Neste Evangelho Jesus Se apresenta constantemente como o
enviado do Pai (veja-se sobre Jo 3:17, 34; 5:36, 37; 6:57; 7:29; 8:18, 27,
29; etc.). Ora, o nome do tanque é também Siloé; quer dizer, Enviado.
Não é perfeitamente natural relacionar a água deste manancial e este
tanque com Aquele que é a água da vida (veja-se Jo 4:10; 7:37)?
(3) As águas de Siloé fluem do templo e mesmo no Antigo
Testamento eram consideradas como simbólicas das bênçãos espirituais
que vêm da morada de Deus (veja-se Is. 8:6 e cf. Ez. 47:1). Em
consequência, quando é dito ao homem que vá lavar-se no tanque de
Siloé, embora seja verdade que isto deva tomar-se no sentido mais
literal, de forma que devia realmente lavar os olhos neste tanque, o
significado mais profundo é, sem dúvida, este: que para a purificação
espiritual alguém deve ir ao verdadeiro Siloé, quer dizer, Àquele que foi
enviado pelo Pai para salvar os pecadores.
Ele foi, lavou-se e voltou vendo. Apesar do estranho do mandato, o
homem não segue o exemplo de Naamã. Não protesta mas obedece
imediatamente. Vai ao tanque e com a mão recolhe água. Lava-se com
ela o lodo dos olhos. (A passagem não implica de modo algum que se
submergisse no tanque. Trata-se de um cego, não de um leproso.) Sua
obediência recebe recompensa imediata: voltou vendo.

JO 9:8–12

9:8, 9. Agora o homem podia ver tudo: o sol, o firmamento, as


casas, e — o mais importante de tudo — as pessoas. Não nos surpreende
que, com toda probabilidade, fosse a sua casa. Quando os vizinhos o
viram, estavam olhando para um homem que parecia muito distinto do
João (William Hendriksen) 418
mendigo que quase todos conheciam. O milagre tinha produzido uma
mudança em todo seu aspecto e porte.
Então, os vizinhos e os que dantes o conheciam de vista, como
mendigo, 209 perguntavam: Não é este o que estava assentado pedindo
esmolas? Uns diziam: 210 É ele. Outros: Não, mas se parece com ele. Ele
mesmo, porém, dizia: 210 Sou eu.
Nesta altura o relato torna-se muito gráfico. (Observe-se os muitos
casos em que se utiliza o tempo imperfeito: “diziam”. Cf. Jo 7:11–13.)
As opiniões estavam divididas. Uns diziam: “Não é este o que estava
assentado pedindo esmolas?” Esperavam resposta afirmativa, embora na
pergunta há um ligeiro elemento de dúvida nascida da surpresa. Outros
responderiam com absoluta certeza, “É ele”. Mas outros, incapazes de
crer que alguém cego de nascença pudesse ser curado, afirmavam
vigorosamente vez após vez: “Não, mas se parece com ele”. Talvez estes
últimos se enganaram um pouco devido à mudança que havia ocorrido
no aspecto e no porte do homem. Aquele que tinha sido curado pôs fim à
controvérsia afirmando repetidamente, “Sou eu”.
10. Os vizinhos já não duvidam com relação à identidade do
homem. É muito natural que: Perguntaram-lhe, pois: Como te foram
abertos os olhos? O homem lhes faz um relato ligeiramente condensado
do que tinha sucedido (cf. isto com os versículos 6, 7), relatório que era
certo em todos os detalhes.
11. Respondeu ele: O homem chamado Jesus fez lodo, untou-me os
olhos e disse-me: Vai ao tanque de Siloé e lava-te. Então, fui, lavei-me e
estou vendo. Inclusive ele menciona o nome de seu benfeitor — alguém
deve ter-lhe dito —, mas ao que parece não se dá conta de que aquele
que fez o milagre é o Redentor do mundo. Ao informar a respeito de suas
próprias ações (“Então, fui, lavei-me e estou vendo”) utiliza-se um verbo
(_νέβλεψα) que significa “recuperei a vista”; mas como este homem

209
Literalmente, “que era mendigo”. O declarativo ὅτι não é incomum depois deste verbo de visão; cf.
Jo 4:19; 12:19. Não é necessário, por conseguinte, considerar este ὅτι como causal no caso presente.
210
A respeito de ὅτι em ambos os casos veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 419
nunca tinha desfrutado da bênção da visão, podemos traduzi-lo mais
livremente, “recebi a vista”. Também é muito natural o desejo de ver o
homem que tinha realizado um milagre tão grande.
12. Disseram-lhe, pois: Onde está ele? (como em Jo 7:11).
Respondeu: Não sei. Dadas as circunstâncias, não podia saber onde
estava Jesus. Lembre-se também Jo 8:59 com relação a isso. Neste
tempo e por boas razões Jesus não aparecia em público.

JO 9:13–17

9:13. Levaram, pois, aos fariseus o que dantes fora cego.


A seção Jo 9:13–34 contém o relato do exame que os fariseus
fizeram ao homem.
A primeira pergunta que se expõe é esta: quem examinou a este
homem; um grupo de pessoas que se reuniram informalmente ou um
corpo oficial num exame formal? Com relação a esta pergunta os
comentaristas dividem-se em dois grupos. Por um lado, estão aqueles
que defendem a posição que, com ligeiras variações, pode-se descrever
assim:
O homem foi levado diante de um grupo de fariseus, reunidos
informalmente, talvez em casa de um deles. Estes líderes religiosos,
enfurecidos diante do fato de que Jesus havia tornado a violar as normas
sabáticas e ainda mais por sua crescente influência entre o povo,
procuram desacreditar o milagre. Suspeitam que se perpetrou uma
fraude. Ao não poder persuadir o homem que admite sua culpa e ao
perder na discussão, seu furor explode. Totalmente enfurecidos pelo que
consideram uma aberta desfaçatez do homem, expulsam-no da casa ou
átrio.
Para apoiar sua posição (de que todo o exame é informal e que se
emite uma sentença não formal de excomunhão da vida religiosa de
Israel) estes intérpretes afirmam que a pessoa em questão, simples
mendigo, teria sido considerado como muito pouco importante para que
João (William Hendriksen) 420
se tomassem medidas formais contra ele, e também que o verbo utilizado
em Jo 9:34 (“e o expulsaram”) não é aquele que se utiliza em Jo 9:22
(“expulso da sinagoga”).
Por outro lado, também há aqueles que consideram como muito
mais formal este incidente. Cremos que têm razão. É certo, naturalmente,
que o evangelista não descreve uma sessão plenária do grande Sinédrio
(cf. Jo 9:13), mas isto não quer dizer que a reunião e a sentença que se
pronunciou fossem de índole informal. Com toda probabilidade estes
fariseus agiam com ordens do Sinédrio e sabiam que ao expulsar este
homem agiam de acordo com a decisão desse corpo. Ou tinham recebido
autoridade para agir neste caso específico, ou, ao ser nomeados para
examinar este homem, sabiam que sua ação com relação ao mesmo
receberia a aprovação posterior do Sinédrio. Consideramos o verbo de Jo
9:34 como sinônimo do que se utiliza em Jo 9:22.
Baseamos esta conclusão nas razões seguintes:
(1) É evidente por Jo 1:24 (veja-se nesse versículo) que o Sinédrio
às vezes delegava a um grupo de fariseus para que examinasse assuntos
relacionados com pessoas que alguns consideravam como o Messias. Se
nesses casos agia assim, por que não neste? Sem dúvida que os fariseus
não só examinariam ao pretendido Messias, mas também àqueles que
com seus relatos de ações milagrosas poderiam oferecer o perigo de
fomentar essa pretensão.
(2) O fato de que às vezes se desse autoridade a um grupo de
mestres religiosos para agir parece confirmar-se com documentos
existentes. 211 Acaso não é possível que nos encontremos aqui com o
Sinédrio menor ou um tribunal da sinagoga, dos quais se diz que havia
dois em Jerusalém?
(3) Segundo Jo 9:22 o Sinédrio tinha decidido expulsar da sinagoga
aos que confessassem que Jesus era o Cristo. Segundo Jo 9:28 o grupo
de fariseus que examina este homem considera-o como discípulo de

211
S. BK. IV, p. 298.
João (William Hendriksen) 421
Jesus; em consequência, candidato à expulsão. É verdade que até esse
momento o homem ainda não tinha confessado de fato que Jesus fosse o
Cristo (veja-se Jo 9:38), porém não parece provável que os inimigos de
Jesus, exasperados como estavam, levassem generosamente em conta
esta diferença. O homem, afinal de contas, tinha confessado que Jesus
era profeta (Jo 9:17), genuíno operador de milagres, num sentido
totalmente único (Jo 9:32), pessoa que fez milagres devido ao favor e
poderes extraordinários que Deus Lhe havia concedido (Jo 9:33). Em
consequência, quando Jo 9:34 afirma “E o expulsaram”, é muito natural
considerar isso como uma expulsão real da sinagoga. O que se relata em
Jo 9:22, 28, 32, 33 preparou certamente o leitor para esperar nada menos
que a excomunhão deste homem.
(4) A forma em que este grupo de fariseus convoca as pessoas (Jo
9:18, 24), o formalismo legal de seu método de averiguação (Jo 9:19), e
também a extrema cautela com que agiram os pais (Jo 9:21, 22), cautela
nascida do temor, militam em favor de uma reunião formal diante de um
grupo de representantes autorizados do Sinédrio.
(5) A importância que Jo 9:35 atribui à sua expulsão também
aponta na mesma direção.
Por todas estas razões procederemos na exegese segundo este ponto
de vista.
Quem conduziu este homem para diante dos fariseus? Talvez os
vizinhos (veja-se contexto Jo 9:8, 12). Por outro lado, também é possível
que a terceira pessoa do plural de um verbo ativo, seguida do pronome
objeto (“levaram-no”) deveria simplesmente considerar-se como igual
em significado à nossa terceira pessoa do singular do verbo em voz
passiva precedido pelo pronome sujeito (“foi levado”), segundo uma
característica estilística familiar do aramaico (cf., por exemplo, Dn. 4:25.
A referência na Bíblia hebraica é Dn. 4:22). Nesse caso, se desejamos
conservar a terceira pessoa do plural da construção ativa, o pronome
implícito “eles” deve considerar-se como indefinido, como o alemão
man (holandês men o francês on).
João (William Hendriksen) 422
Quando foi levado? Provavelmente não no sábado mas um pouco
depois.
Por que foi levado diante dos fariseus? Foi porque tinha violado as
normas sabáticas que as autoridades religiosas tinham em tão alta
estima? É possível, porém não se menciona nada com relação ao sábado
antes de começar a averiguação judicial. Pela conexão existente entre os
versículos 13 e 14, pareceria como se os fariseus mesmos suscitassem
este ponto.
Outra razão pareceria lógica: os fariseus tinham estado dizendo às
pessoas que Jesus era um enganador. De fato, o povo já sabia que o
Sinédrio tinha tomado a decisão que qualquer que confessasse que Jesus
era o Cristo seria expulso da sinagoga (Jo 9:22). Mas o que iam dizer
agora os fariseus? Acaso este grande milagre não era mais eloquente que
qualquer veredito do Sinédrio? Que se leve esta pessoa diante dos juízes
fariseus de modo que possam ouvir o relato de seus próprios lábios.
Persistiriam ainda, depois disso, em sua opinião com relação a Jesus? Ou
se cometeu alguma fraude que eles possam descobrir e pôr de manifesto?
Não estamos seguros de que a razão sugerida seja a verdadeira. No
entanto, proporcionaria uma explicação muito natural.
14, 15. E era sábado o dia em que Jesus fez o lodo e lhe abriu os
olhos.
Fazer lodo no sábado e cobrir nesse dia os olhos de alguém com
esse lodo era violação das normas. Além disso, no sábado não era
permitido praticar a arte da cura, exceto em casos de urgência extrema.
Com relação à atitude farisaica diante do sábado veja-se sobre Jo 3:1 e Jo
5:9b–13. Por isso os fariseus (contudo, de modo algum todos eles; veja-
se sobre Jo 9:16) provavelmente raciocinam mais ou menos assim: (a)
Incluso se de fato não fez um milagre, Jesus violou de qualquer maneira
o sábado; em consequência, (b) é um pecador notório; mas (c) Deus
nunca admitiria que pecadores notórios fizessem verdadeiras curas; em
consequência, (d) todo este caso é muito suspeito e exige uma
investigação exaustiva. É talvez uma fraude? Cf. Jo 9:18.
João (William Hendriksen) 423
Os fariseus novamente perguntaram-lhe também como tinha
recebido a vista [RSV]. De fato, novamente, porque esta não era a
primeira vez que se fazia esta pergunta. Já o tinham bombardeado com
ela. Primeiro tinha saído dos lábios dos vizinhos, os quais o tinham
repetido vez após vez (Jo 9:10). E agora também os fariseus a expõem.
15b. Ele respondeu: Aplicou lodo aos meus olhos, lavei-me e agora
vejo [TB].
Parece que o homem já se mostra precavido. Sopesa as palavras.
Observe-se como está se tornando cada vez mais conciso o relato do
milagre; cf. versículos 6, 7; depois 11; logo 15b.
16. Segue agora a Batalha dos Silogismos. Prossegue até o final do
episódio. Temos primeiro: o silogismo do grupo predominante de
fariseus (versículo 16a); e logo, o silogismo vagamente indicado pela
pergunta da minoria. Este segundo silogismo o homem curado vai
utilizar com força impressionante (veja-se em Jo 9:31–33). Em
consequência, falaremos de Silogismo A e Silogismo B.
Por isso alguns dos fariseus diziam: Este homem não é de Deus,
porque não guarda o sábado.

Silogismo A
Premissa maior: Todos os que vêm de Deus guardam o sábado.
Premissa menor: Este homem (Jesus) não guarda o sábado.
Conclusão: Este homem não é de Deus.
Na aparência parece um raciocínio excelente. Como silogismo tem
validez. Mas isto não significa que a conclusão seja verdadeira. Pode
não haver deficiências na lógica com a qual se deriva uma conclusão de
suas premissas maior e menor, mas se alguma destas premissas é
contrária aos fatos, a conclusão já não é legítima. No caso atual é errôneo
o que estes homens querem dizer em sua premissa maior. Os fariseus
identificaram com a lei de Deus suas próprias normas sabáticas
meticulosas e fúteis. Daí que sua verdadeira premissa maior é: “Todos
os que são de Deus, observam nossas normas sabáticas”. Também é
João (William Hendriksen) 424
errônea a premissa menor, pela mesma razão: confusão de conceitos. E
como estas premissas são falsas, a conclusão (“este homem não é de
Deus”) não é aceitável. Outra questão é, se em si mesma é verdadeira ou
falsa. Mas sabemos que a afirmação que constitui a conclusão é
totalmente falsa, totalmente oposta à verdade.
Outros, porém, diziam: Como pode um homem pecador fazer tais
milagres?
Aqui temos:
Silogismo B sem melhorar
Premissa maior: Só os que são de Deus (ou: os que não são
pecadores) podem dar a vista aos cegos de nascença (ou: podem fazer
“tais” sinais).
Premissa menor: Este homem, Jesus, deu vista a um cego de
nascença (ou: fez “tal” sinal).
Conclusão: Este homem é de Deus (ou: este homem não é pecador).

Observe-se, no entanto, que este silogismo apresenta-se em forma


de pergunta. Quando muito, está apenas sugerido, não claramente
elaborado. Estes fariseus mais moderados estão diante de um problema e
buscam uma solução. O problema é: “Como pode um homem pecador
fazer tamanhos sinais?” Inclusive entre este grupo havia provavelmente
vários que teriam rejeitado a proposição: “Talvez Jesus não seja
pecador”. Para eles Jesus é certamente pecador. Em consequência, para
eles todo o assunto é um profundo mistério. Para eles o Silogismo B não
tem nenhuma validez. Outros, entretanto, começam a ver a luz. O
silogismo, pois, é o máximo que se pode deduzir da pergunta, e inclusive
então só está sugerido pela pergunta. Não é uma afirmação positiva.
É válido o silogismo vagamente sugerido? Como exercício em
lógica (observe-se o caráter exclusivo da premissa maior: a palavra “só”)
deve admitir-se a ele validez. O raciocínio é tão válido como uma moeda
recém-cunhada. Mas é correta a premissa maior? Se ela não for, então a
João (William Hendriksen) 425
conclusão — embora muito correta como fato histórico — não é
legítima.
Para responder esta pergunta não se deve esquecer que aqueles cuja
pergunta sugere este silogismo (aqui no versículo 16) são, afinal de
contas, fariseus. Embora sejam a classe melhor e mais moderada de
fariseus, continuam sendo igualmente fariseus. A forma de raciocinar
que se sugere aqui harmoniza com seu esquema mental. Encontra-se algo
que se parece a ela no seguinte silogismo:
Premissa maior: Só os maus sofrem aflições físicas.
Premissa menor: Este homem sofre aflição física.
Conclusão: Este homem é mau.
Foi mostrado em conexão com Jo 9:2 que este raciocínio não
harmoniza com a realidade. Em consequência, se entre estes fariseus há
aqueles que adotam o Silogismo B sem melhorar porque creem que a
capacidade para realizar um milagre (qualquer milagre) é, em si mesma
e por si mesma, sempre prova de aprovação divina, estão errados, como
se torna claro a qualquer pessoa que leia Mateus 7:22. Mas devemos ser
justos com eles. A situação, tal como se descreve é, na realidade, algo
diferente. Entre estes fariseus mais moderados deve ter havido um
número considerável que sublinhavam a grandeza extraordinária deste
milagre. Leiamos o silogismo. Havia algo nele, como fica claro de Jo
15:24 [RSV]. O próprio Jesus ia dizer: “Se eu não tivesse feito entre eles
as obras que ninguém mais fez, não teriam pecado”. Disto se deduz
claramente que Ele mesmo via que Seus milagres constituíam de uma
classe especial (num sentido), eram sinais de Sua divindade e de Sua
missão divina.
Deve acrescentar-se, no entanto, um elemento, porque o próprio
Jesus o acrescentou. É este, que não só seus milagres foram únicos em
natureza (“obras que ninguém mais fez”) mas sim foram feitos em
resposta à oração; por isso, com o propósito de glorificar a Deus. Se o
Silogismo B for separado de su contexto fariseo, é totalmente válido.
Veja-se sobre versículos 31–33; também em Jo 10:37, 38; 11:39–44;
João (William Hendriksen) 426
15:24; e 20:30, 31. o próprio Jesus proporcionou este contexto quando
disse: “Isto sucedeu para que as obras de Deus se manifestem nele. É-
nos necessário fazer as obras daquele que me enviou, enquanto é dia.”
Isto nos dá:

Silogismo B melhorado
Premissa maior: Só os que são de Deus (ou: que não são pecadores)
podem dar a vista aos cegos de nascença, para que com isso manifestem as
obras de Deus.
Premissa menor: Este homem, Jesus, com esse propósito em mente,
deu a vista a um cego de nascença.
Conclusão: Este homem é de Deus (ou: este homem não é pecador).
E houve dissensão entre eles. Quer dizer, produz-se entre os fariseus
uma marcada divisão ou cisma entre os que defendiam o Silogismo A e
os que sugeriam o Silogismo B sem melhorar. Aqueles, depois de um
breve ataque direto à conclusão do Silogismo B, ataque em forma de
pergunta (veja-se o versículo 17), começam um ataque indireto. Os
versículos 18–26 contêm o relato do intento que fizeram de demolir a
conclusão rejeitando a premissa menor. Se for possível demonstrar que
este homem, Jesus, não tem feito um grande sinal, terão lançado por terra
a conclusão que sugerem seus oponentes.
Cheios de confusão, incapazes de pôr-se de acordo entre sim, os
fariseus se dirigem de novo ao homem que acabava de ser curado de sua
cegueira.
17. De novo, perguntaram ao cego: Que dizes tu a respeito dele, visto
que te abriu os olhos?
É evidente pelo versículo 18 que os que estavam em favor do
Silogismo A (os decididos opositores de Cristo) eram a maioria, como
teríamos esperado. À luz desse fato é evidente, naturalmente, que quando
os fariseus (provavelmente ambos os grupos) perguntam agora ao
homem: “Que dizes tu a respeito dele?” o modificador causal — “visto
que te abriu os olhos” — não implica admissão alguma, da parte da
João (William Hendriksen) 427
maioria, como se agora estivessem dispostos a admitir que Jesus tivesse
realizado este milagre surpreendente. A cláusula é elíptica em lugar de
“que dizes que te abriu os olhos”.
Que é profeta, respondeu ele. O conhecimento do homem progride.
Também demonstra coragem. Sabia que, por meio de Jesus, Deus Se
havia revelado a Si mesmo a Ele por meio deste milagre. E,
evidentemente, quem revela a Deus de uma maneira tão notável deve ser
profeta!

JO 9:18–23

9:18, 19. Não acreditaram os judeus que ele fora cego e que agora
via, enquanto não lhe chamaram os pais e os interrogaram: É este o vosso
filho, de quem dizeis que nasceu cego? Como, pois, vê agora?
Em sua intenção de lançar por terra a conclusão sugerida no
Silogismo B, os fariseus não tinham conseguido a cooperação da pessoa
mais diretamente implicada. Bem, então, se fracassa o método direto,
tentarão o indireto: lançar por terra a conclusão atacando a premissa
menor. Além disso, se o filho não os ajuda no esforço de conseguir este
resultado, buscarão a ajuda de seus pais!
Aqui, aos oponentes de Jesus, são chamados “os judeus” (veja-se
sobre Jo 1:19). Como se explicará que eles (a maioria dos fariseus) não
cressem que este homem tinha sido cego e tinha recuperado a vista? Há,
naturalmente, várias possibilidades: a. o mendigo talvez não era tão
conhecido pelos líderes religiosos como o era pelas pessoas comuns; b.
talvez duvidaram que este fosse aquele conhecido mendigo. Talvez
cressem que aquele que realmente era cego tinha sido sequestrado e que
foi substituído por um “sósia” (em tudo menos na cegueira); c. ou,
finalmente, talvez deduziram que esse tão conhecido mendigo tinha
estado enganando a todo mundo, agindo como se fosse cego.
Claro que a má vontade contra Jesus desempenhou o seu papel.
Crer que este homem tinha sido cego e havia sido curado da cegueira,
João (William Hendriksen) 428
teria sido o primeiro passo para conceder a Jesus um milagre admirável.
Não queriam dar este passo. Assim como a pessoa com frequência crê no
que deseja crer, assim também com frequência não crê no que não deseja
crer.
Não creram que este homem tivesse sido cego e tivesse recebido a
vista, até chamar os seus pais. Creram nestes dois fatos depois? É
verdade que a palavra “até” não implica necessariamente isso. No
entanto, é difícil crer que, inclusive depois que os pais deram seu
testemunho, continuasse a incredulidade (com relação aos dois fatos
antes mencionados). O versículo 34 certamente implica que então creram
que este homem tinha nascido cego (como castigo pelo pecado). Era tão
evidente que tinha sido curado de sua cegueira, que isso não se podia
negar.
Mas uma coisa é aceitar o fato de que este homem tinha sido curado
da cegueira. E outra coisa é atribuir esta cura a Jesus. Para ser justos
diante da verdade, os hostis judeus teriam tido que dar quatro passos.
Teriam tido que admitir: a. Este homem foi curado de cegueira
congênita. b. Jesus o curou. c. A cura foi realizada por meio do poder e o
amor de Deus, que Jesus tinha, e não por meio do poder do príncipe dos
demônios que agia em Jesus. d. Isto mostra que Jesus é, realmente, um
«homem que vem de Deus». De fato, indica que é tudo o que diz ser.
Agora, o versículo 18 simplesmente ensina que, antes de terem sido
convocados os pais, os hostis judeus não tinham dado nem sequer o
primeiro passo.
O versículo 19 implica que os líderes judeus tinham ouvido um
rumor no sentido de que estes pais tinham estado falando da cura de seu
filho. Baseados nesta informação, os examinadores fazem dias
pergunta. 212 Primeiro, querem saber se este é o filho do qual tanto se fala

212
Muitos comentaristas são da opinião de que há essencialmente três perguntas, embora só se
expressam concretamente dois. Estas três, segundo eles, são as seguintes: a. É este vosso filho? b.
Nasceu cego? c. Como vê agora? — Porém, não podemos aceitar este ponto de vista. Antes, os judeus
dizem essencialmente, “É este vosso filho do qual estais dizendo a todo mundo que foi curado de
João (William Hendriksen) 429
e do qual seus pais diziam que tinha nascido cego; em segundo lugar
desejam informação sobre o fato e a forma de sua cura.
20. Então, os pais responderam: Sabemos que este é nosso filho e que
nasceu cego.
Com esta aberta declaração na qual identificam este homem como
filho dele e testificam que, na realidade, nasceu cego, estes pais obrigam
os judeus a dar o temido primeiro passo (veja-se sobre Jo 9:18, 19) para
atribuir a Jesus um notável milagre. É discutível se eles (a maioria, os
que evidentemente formavam a parte principal) deram alguma vez o
segundo passo, o de admitir, inclusive mentalmente, que foi Jesus quem
o curou. O versículo 26 não implica necessariamente isso. Abertamente
nunca deram este passo, e sim que se opuseram a ele (veja-se sobre Jo
9:24). Certamente nunca deram os terceiro e quarto passo.
21. Mas não sabemos como vê agora; ou quem lhe abriu os olhos
também não sabemos. Perguntai a ele, idade tem; falará de si mesmo. Os
pais fogem da segunda pergunta. Também mentem. Sabem, sim, como é
que seu filho agora vê. O filho certamente lhes contou tudo relacionado
com o milagre. O versículo 22 implica que também sabiam quem o fez.
Foi a falta de coragem, a egoísta covardia, que os levou a dizer: “não
sabemos … também não sabemos … idade tem (aos treze anos e um dia
considerava-se que o judeu já era de idade). Perguntai a ele; falará por si
mesmo”. Num momento decisivo, quando deviam ter falado, fizeram-se
culpados de “lançar a carga a outro”. No entanto, não devemos ser muito
duros com eles. Sempre se deve perguntar: “O que teríamos feito em
circunstâncias semelhantes?” O castigo anunciado era muito terrível!
Veja-se os versículos 22, 23. É possível que o conhecimento íntimo que
tinham estes pais com relação aos talentos e caráter de seu filho — sua
capacidade para defender-se a si mesmo, sua acuidade e sua coragem —
tivessem algo que ver com o desejo de fazer com que ele falasse. A razão

cegueira congênita? Neste caso como é que ele vê agora?” É verdade que na resposta que os pais dão
há três (ou quatro!) partes. Mas não se deve confundir a pergunta com a resposta.
João (William Hendriksen) 430
principal de por que falaram da maneira como o fizeram, contudo,
indica-se na passagem seguinte:
22, 23. Isto disseram seus pais porque estavam com medo dos
judeus; pois estes já haviam assentado que, se alguém confessasse ser
Jesus o Cristo, fosse expulso da sinagoga.213 Por isso, é que disseram os
pais: Ele idade tem, interrogai-o.
O medo aos judeus é um tema comum no Evangelho de João; veja-
se sobre Jo 3:2 e Jo 7:13. As hostis autoridades judaicas tinham decidido
(ou seja, decisão formal do Sinédrio) já (muito antes de Jesus ser
formalmente condenado como merecedor da morte) que qualquer de seus
seguidores que O reconhecesse como o Messias, o Ungido de Deus, seria
expulso da sinagoga (_ποσυνάγωγος γένηται). Provavelmente não se
justifica o querer incorporar a este relato as normas posteriores com
relação à expulsão menor (por trinta dias, sessenta ou noventa) e a
expulsão maior (para sempre). O relato, sem dúvida, dá a entender que a
excomunhão neste caso pretendia ser definitiva e terrível. Outras
referências quanto à aplicação desta norma encontram-se em Jo 12:42;
16:2. Observe-se que na última referência se justapõem a expulsão da
sinagoga e a morte. Aquele que era expulso da sinagoga ficava
virtualmente excluído da vida religiosa e social de Israel (cf. Lc. 6:22).
De qualquer ponto de vista — social, econômico, religioso — os
resultados eram espantosos, sobretudo para pessoas tão pobres que seu
filho devia viver da esmola. Por isso, embora não possamos justificar
estes pais por evitar seu dever, podemos entender. Quantas vezes faltou a
coragem àqueles que deveriam mostrá-la quando o Sinédrio, ou seu
equivalente sob algum outro nome, ameaçava expulsar os que defendiam
a verdade de Deus! A história da igreja está cheia de exemplos!

213
III A 3; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 431
JO 9:24–34

9:24. Então, chamaram, pela segunda vez, o homem que fora cego e
lhe disseram: Dá glória a Deus; nós sabemos que esse homem é pecador.
Os judeus estavam procurando de todas as formas possíveis
demonstrar que Jesus não era aquele que tinha aberto os olhos ao cego de
nascença. Estavam empenhados em atacar a premissa menor do
Silogismo B sem melhorar (veja-se sobre versículo 16), a fim de destruir
a conclusão: «Jesus vem de Deus». Mas nesta tentativa não tinham
recebido ajuda dos pais, que, cheios de temor, se negaram a
comprometer-se de qualquer forma com relação à maneira como seu
filho tinha recebido a vista.
De fato, o testemunho dos pais tornou o caso ainda mais difícil para
os fariseus, porque os tinha deixado sem desculpa quanto a que não tinha
havido milagre algum. E temiam que em muito pouco tempo o nome de
Jesus seria relacionado com este milagre na mente de todos. E deviam
impedir isso por todos os meios.
Em consequência, estes líderes decidem voltar a citar ao que tinha
sido cego, para fazê-lo prometer que nunca mais atribuiria a Jesus o
grande benefício que tinha recebido. E lhe dizem: “Dá glória a Deus; nós
sabemos que esse homem é pecador”. A explicação mais simples desta
afirmação é a seguinte: «Glorifica a Deus atribuindo a Ele o milagre, e
não a outra pessoa. Não lhe dê o mérito a esse homem (Jesus), porque
sabemos quem é: sabemos que é um pecador notório. Evidentemente, um
homem assim não pôde ter feito algo tão grande».
Observe-se como, nesta argumentação, o Silogismo A começa a dar
frutos. Sua conclusão converteu-se na premissa menor de outro
silogismo, desta índole:

Silogismo A (2)
Premissa maior: Só os que são de Deus podem abrir os olhos aos
cegos de nascença.
João (William Hendriksen) 432
Premissa menor: Este homem (Jesus) não é de Deus.
Conclusão: Ele não pode ter aberto os olhos de um cego de nascença.
Admitam-se, pois, assim raciocinam estes fariseus, que Jesus, com
efeito, pôs lodo nos olhos deste homem e que logo o enviou a Siloé.
Quando o homem chegou a Siloé e lavou o lodo dos olhos, foi Deus —
não Jesus — quem fez o milagre. Em consequência: o homem deveria
dar a glória a Deus!
Esta explicação harmoniza com todo o contexto. Note-se como se
contrastam as palavras Deus e este homem. A honra deve receber não
este homem mas Deus.
Há outra interpretação que desejamos comentar brevemente. É no
sentido de que a expressão, «dar glória a Deus», é uma espécie de frase
comum, que significa «Glorifica a Deus, confessando seu pecado».
Segundo estes comentaristas, os fariseus ainda não renunciaram à ideia
de que tudo é fraude, por isso pedem agora ao homem que confesse.
Estes intérpretes costumam referir-se a Js. 7:19 em defesa da posição de
que também aqui em Jo 9:24 a discutida expressão tem este significado.
No entanto, pode-se glorificar a Deus em mais de uma forma: a.
reconhecendo os pecados próprios, certamente; mas também com a
apresentação de uma oferta conciliadora (cf. 1Sm. 6:5); ou, b. como aqui
em Jo 9:24, dando a Deus as graças e o louvor pelo inestimável
privilégio da visão física. Em consequência, ficamos com a interpretação
de Jo 9:24 que antes demos.
25. À medida que o relato continua torna-se cada vez mais claro que
este homem não é uma pessoa comum. Não é movido facilmente.
Evidentemente o alardeado conhecimento destes eminentes juízes não o
tinha impressionado. Ele respondeu: Se é pecador, não sei; uma coisa sei:
Eu era cego, e agora vejo [TB]. Com valentia opõe ao “sabemos” deles
seus “não sei” e “uma coisa sei”. Em lugar de estar de acordo com a
afirmação deles, “este homem é pecador”, afirma abertamente que ele,
aquele que antes tinha sido cego, não sabe isto; mas que está
perfeitamente consciente do fato de que, embora cego, agora pode ver
João (William Hendriksen) 433
perfeitamente. Pode-se muito bem ler entre as linhas desta afirmação tão
clara o seguinte: «Diante de vosso simples dizer, ponho este grande fato
da experiência: embora eu fosse cego, agora vejo. Os fatos são mais
inquebrantáveis que as opiniões sem fundamento”.
26. Os fariseus estão claramente contra a parede. Depois de ter
perdido a entrevista com os pais, fracassam ainda mais na conversação
com o filho. Parecem estar num apuro. Por isso, Perguntaram-lhe, pois:
Que te fez ele? como te abriu os olhos? Uma vez esgotados todos os
recursos mentais, agora voltam para as perguntas que tinham feito antes
(veja-se em Jo 9:15), talvez porque não podem pensar em nada mais.
Também é possível que, por este meio, procuraram cansar o homem, de
forma que o aborrecendo pudessem conduzi-lo a alguma afirmação
inconsequente, em algum momento de descuido. Quantas vezes tinha
ouvido o homem estas perguntas: primeiro dos lábios dos vizinhos, e isto
muitas vezes; logo, dos fariseus; e agora, mais uma vez, dos fariseus!
Vez após vez, repetia-se o mesmo: “Que te fez ele? como te abriu os
olhos?”
27. Ele lhes respondeu: Já vo-lo disse, e não atendestes. É evidente
que o homem está perdendo a paciência. Desagrada-lhe este
procedimento tedioso. Isto, em si mesmo, não surpreende absolutamente.
O que, sim, surpreende é o fato de que não tenha medo de expressar com
palavras claras e fortes seu evidente desagrado. Não herdou o
acanhamento de seus pais. Além disso, esgrime a arma da ironia — para
ele tão deliciosa, mas para eles tão desagradável — e o faz de tal forma
que as vítimas da mesma nunca o esqueceriam ou perdoariam. Diz: Por
que quereis ouvir outra vez? Porventura, quereis vós também tornar-vos
seus discípulos? As últimas palavras constituem uma pergunta
habilmente expressa que espera uma resposta negativa, sem dúvida, mas
deixa a porta ligeiramente aberta para uma resposta positiva; como se
alguém dissesse: “Isto é, certamente, impossível … no entanto, nunca se
sabe o que vós, os fariseus, poderiam fazer!” Se isto não for sátira
demolidora, aproxima-se muito. É-nos impossível entender como alguns
João (William Hendriksen) 434
comentaristas podem imaginar que este homem era de fato da opinião de
que os fariseus (em especial os que preponderavam) estavam
considerando seriamente a ideia de tornar-se discípulos de Jesus.
28, 29. Então, o injuriaram e lhe disseram: Discípulo dele és tu; mas
nós somos discípulos de Moisés. Sabemos que Deus falou a Moisés; mas
este nem sabemos donde é.
Em tal circunstância a reação dos líderes judeus é inteiramente
compreensível. Não eram a classe de pessoas que admitiriam a derrota.
Além disso, sentem-se profundamente ofendidos e humilhados. Um
simples mendigo desafiou sua autoridade. Zombou de sua dignidade e de
sua posição superior. Como, eles tornar-se discípulos de Jesus? O
próprio nome de Jesus é veneno para eles, até o ponto que se negam a
pronunciá-lo; preferem chamá-lo “este”.
“Discípulo dele és tu”, dizem. Parecem considerar o título de
discípulo de Jesus o insulto máximo. Não passa pela cabeça deles nada
pior para dizer ao mendigo. Nem sequer passa pela cabeça deles que
estão lhe dando a mais elevada honra possível. Com arrogância e
satisfação própria referem-se a si mesmos como “discípulos de Moisés”
(veja-se sobre Jo 5:45, 46; 6:32; 8:5), não se dando conta que Moisés
mesmo ia condená-los. Sabem que Deus falou com Moisés. Sim,
conhecem a origem divina das leis e ordenanças que instituiu Moisés. O
que não sabem é que aquele que odeiam com ódio tão diabólico tem
direito a dizer: “Moisés falou de mim”.
Quando, em relação a isto, afirmam, “Mas com relação a esse, não
sabemos de onde é”, não negam o que eles (ou seus amigos) têm dito
antes com relação à origem de Jesus (Jo 6:42; 7:27). O que querem dizer
é: “não sabemos do que fonte Ele, diferente de Moisés, recebe sua
autoridade”. Mas Jesus tinha respondido a essa pergunta muitas vezes, e
eles se negaram a aceitá-la.
30. Respondeu-lhes o homem: Nisto é de estranhar que vós não
saibais donde ele é, e, contudo, me abriu os olhos.
João (William Hendriksen) 435
E é realmente surpreendente ouvir estes homens tão dignos dizer,
“Não sabemos”. Estavam tão acostumados a dizer, “Sabemos” (Jo 9:24,
29 e cf. 6:42; 7:27), que é chocante que nesta ocasião admitissem de fato
sua ignorância com relação a algo — e algo tão importante!
Relacionava-se com Aquele que tinha outorgado a bênção da vista ao
homem cego de nascença! A respeito deste notável operador de milagres
estes sábios não sabem quase nada. Nem sequer conhecem a fonte de
Sua autoridade. O cego de nascença aproveita-se totalmente da situação.
Para usar uma expressão comum, reprova-lhes a teimosia! Diz-lhes
“Nisto 214 é de estranhar (literalmente, nisto está a maravilha), que vós
(que pretendem saber tanto) não saibais donde ele é, e, contudo (veja-se
sobre Jo 1:5, a nota com relação a καί), me abriu os olhos”.
31, 32, 33. O homem curado continua: Sabemos que Deus não atende
a pecadores; mas, pelo contrário, se alguém teme a Deus e pratica a sua
vontade, a este atende. 215 Desde que há mundo, jamais se ouviu que
alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença. Se este homem não
fosse de Deus, nada poderia ter feito. 216
Aqui o Silogismo B volta de uma forma robustecida
(essencialmente a mesma que o Silogismo B melhorado). O versículo 31
é a premissa maior; o versículo 32 a menor; o versículo 33, a conclusão.
Veja-se sobre Jo 9:16.
Premissa maior: Só os que são de Deus — quer dizer, os que temem a Deus
(literalmente, “adoram a Deus”) e fazem Sua vontade — são atendidos por
Deus, de forma que podem abrir os olhos aos cegos de nascença.
Premissa menor: Este homem, Jesus, foi ouvido por Deus, de modo que
abriu os olhos de um cego de nascença, e com isso realizou um milagre tão
grande como nunca se ouviu desde o princípio do mundo (literalmente, “há
muito tempo”).

214
Advirta-se o sentido enfático ἀλλά em exclamações, como o nosso: como! de fato! Veja-se as
seguintes passagens quanto a este uso da partícula: At. 4:16, 34; 8:31; 16:37; 19:35; 1Co. 5:3; 11:22;
2Tm. 2:7.
215
III B 1; veja-se IV da Introdução.
216
II A; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 436
Conclusão: Este homem é de Deus. Se não o fosse, nada poderia ter feito.
Definitivamente não é pecador.
Observe-se que, ao falar como o faz este homem emprega a classe
de argumentação farisaica. Derrota os fariseus com seu próprio
raciocínio silogístico. Isto em si mesmo é muito notável: um mendigo
derrotando um fariseu com a própria arma do fariseu! Mas este homem
faz ainda mais: toma o silogismo farisaico, e melhora, não só afirmando
de forma clara o que antes era só um indício (cf. Jo 9:31–33 com Jo
9:16b), mas também lhe dando um marco concretamente bíblico. O
homem considera o milagre como uma resposta à oração. Diz: “Se
alguém teme a Deus e pratica a sua vontade, a este (Deus) atende”. Esta
posição É totalmente correta. É bíblica. A ideia de que Deus ouve as
orações do justo e rejeita as orações do ímpio encontra-se em muitos
lugares da Bíblia: 1Sm. 8:18; Jó 27:9; 35:12; Sl. 18:41; 66:18; Pv. 1:28;
15:29; Is. 1:15; 59:2; Jr. 11:11; 14:12; Ez. 8:18; Mq. 3:4; Zc. 7:13; Jo
8:21; At. 10:35. Além disso, os milagres (especialmente tais milagres;
veja-se em Jo 15:24) feitos em resposta à oração e para manifestar as
obras de Deus, têm valor de evidência (veja-se sobre Jo 10:37, 38;
11:39–44; 20:30, 31; cf. At. 2:22; 4:31; 2Co. 12:12).
Os fariseus sofreram uma derrota humilhante. Foram encurralados.
Enquanto isso, o mendigo progrediu em sua confissão. Já não diz, “Se
(Jesus) é pecador, não sei” (Jo 9:25). Agora sabe que Jesus não é
pecador, e sim receptor do favor de Deus de forma muito elevada.
34. Tendo perdido na argumentação, os fariseus recorrem ao ultraje
arrogante e notório. Mas eles retrucaram: Tu és nascido todo em pecado e
nos ensinas a nós? Mas inclusive este ultraje contém a prova de sua
derrota, porque por implicação admitem agora que este homem que está
diante deles e que vê, tinha nascido cego. A posição relatada no
versículo 18 (“Não acreditaram os judeus que ele fora cego e que agora
via”) foi abandonada. O milagre ocorreu realmente. Isto já é evidente
para todos. A própria ideia, contudo, de atribuí-lo a Jesus como aquele
em quem descansa o favor de Deus, é tão ofensiva para os fariseus que
João (William Hendriksen) 437
consideram ao que assim pensa como “nascido todo em pecado”
(considerando sua cegueira como castigo pelo pecado; veja-se sobre Jo
3:2). Que um tipo tão vil tomasse sobre si o ensinar a pessoas tão dignas
como eles, é repugnante! E o expulsaram; quer dizer, expulsaram-no do
edifício e da comunhão religiosa de Israel. Veja-se sobre Jo 9:13.

JO 9:35–38

9:35. Ouvindo Jesus que o tinham expulsado, encontrando-o, lhe


perguntou: Crês tu no Filho do Homem?
Jesus, o bom pastor (veja-se capítulo 10), interessa-se não só pelo
corpo, mas também pela alma daqueles aos quais salva (veja-se também
Jo 5:4). De modo que, tendo ouvido que tinham expulsado este homem
da sinagoga, o Senhor o busca e o encontra. Uma vez encontrado, Jesus
lhe pergunta: “Crês tu no Filho do Homem?” É provável que o pronome
tu recebeu certa ênfase, de modo que o sentido da pergunta é: «¿Crês tu,
como verdadeiro discípulo e diferente dos judeus incrédulos …?” 217 O
contexto indica claramente que a expressão crer em no caso presente
indica verdadeira fé; em outras palavras: “Confias totalmente — para
vida e morte — no Filho do Homem? Confias nEle, e te entregas
totalmente a Ele com relação ao presente e ao futuro, tanto para tuas
necessidades materiais como para as espirituais?” Quanto a πιστεύω
veja-se sobre Jo 1:8; 3:16; 8:30, 31a. Jesus perguntou se este homem cria
no Filho do Homem. Quanto a este termo veja-se sobre Jo 12:34. O
apoio textual para a variante o Filho de Deus é certamente mais fraco; de
fato, não há razões satisfatórias para dar esta variante.
36. Ele respondeu e disse: Quem é, Senhor, para que 218 eu nele
creia? Antes de poder responder a pergunta, o homem sente a
necessidade de saber quem poderia ser este Filho do Homem — este

217
Baseamos esta probabilidade não na presença do pronome (veja-se IV da Introdução) mas em sua
posição no começo da pergunta.
218
A respeito de ἴνα veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 438
Messias. Daí que a pergunta comece com a conjunção e, que espera
informação adicional. Observe-se que a palavra grega κύριος equivale
aqui (versículo 36) a senhor (com minúscula) e no versículo 38 a Senhor.
A razão é, certamente, que neste versículo o cego de nascença dirige-se a
alguém cuja identidade ainda não foi revelada com clareza, embora
possa ter suspeitado que era Jesus; porém no versículo 38 o homem
adora Aquele a quem agora reconhece totalmente pelo que é. Veja-se
também sobre Jo 1:38. A respeito de crer nele, veja-se versículo 35.
37. E Jesus lhe disse: Já o tens visto, e é o que fala contigo.
Literalmente a resposta de Jesus é: “Tu o viste e Aquele que fala
contigo, Ele é”. Mas cremos que a tradução que demos é um pouco mais
clara sem mudar de forma alguma o sentido. Em palavras que são quase
idênticas às que se encontram em Jo 4:26 (veja-se sobre essa passagem)
Jesus Se revela a Si mesmo a este homem como o verdadeiro Messias,
como o Filho do Homem.
38. Então, afirmou ele: Creio, Senhor; e o adorou. Consciente agora
de maneira total do fato de que Aquele que falou é para ele o mesmo que
o curou, ou seja, Jesus, em quem com surpresa total põe seu olhar (Que
privilégio é poder ver!); e reconhecendo em Jesus o Messias, o próprio
Filho do Homem, quem é também Filho de Deus e, por conseguinte, o
objeto próprio de adoração, o homem cai de joelhos e rende adoração
religiosa (não só respeito ou inclusive reverência) a seu Benfeitor. No
Evangelho de João o verbo sempre indica adoração divina (veja-se
também Jo 4:20, 21, 22, 23, 24; 12:20).

JO 9:39–41

9:39. Prosseguiu Jesus: Eu vim a este mundo para juízo. Quando


Jesus vê este homem de joelhos em atitude de culto genuíno, e compara
esta condição humilde e confiante com a hostilidade e obstinação dos
fariseus, vê que Sua vinda a este mundo produz dois efeitos
diametralmente opostos. Alguns O recebem com alegria e são
João (William Hendriksen) 439
recompensados. Outros O rejeitam e são castigados. Esta recompensa e
este castigo são Seu juízo (κρίμα; veja-se sobre Jo 3:17) sobre aqueles
que entram em contato com Ele. Por esta razão pode dizer: “Eu vim a
este mundo para juízo”. Veja-se sobre Jo 3:19–21. Veio com o propósito
de pronunciar seu veredito autoritário e levá-lo a efeito nestes dois
grupos tão marcadamente contrastantes. A respeito da expressão “vim a
este mundo” como caracterização do Messias, veja-se Jo 1:9.
O aspecto remunerador deste juízo se expressa nas palavras: a fim
de que os que não veem vejam; quer dizer, a fim de que os que carecem
da luz da salvação (que estão sem verdadeiro conhecimento de Deus,
sem justiça, sem santidade, sem alegria), e que lamentam sua condição,
e, pela graça preparatória de Deus, sentem o anelo de receber a luz,
possam ser colocados em plena possessão da mesma. Aquele que tinha
nascido cego e agora podia ver tanto física como espiritualmente ilustra
este ponto. Segue logo o aspecto punitivo deste juízo: e os que veem se
tornem cegos; quer dizer, a fim de que aqueles que dizem
constantemente, “vemos” (Jo 9:41), mas que se enganam a si mesmos
rejeitando a luz, possam enfim ser completamente separados dela (cf. em
Jo 7:34). Pense-se nos fariseus, aqueles que se endurecem cada vez mais.
40, 41. Reuniram-se em torno dEle alguns dos fariseus (veja-se em
Jo 1:24) a fim de continuar a discussão? Assim parece, porque lemos:
Alguns dentre os fariseus que estavam perto dele perguntaram-lhe: com
zombaria e desprezo arrogantes: Acaso, também nós somos cegos? Acaso
Jesus os coloca na categoria da plebe maldita que não conhece a lei
(veja-se sobre Jo 7:49)? Eles os devotos discípulos e intérpretes de
Moisés, na mesma categoria que o povão que nada sabe? Jesus lhes
respondeu: Respondeu-lhes Jesus: Se fôsseis cegos, não teríeis pecado
algum;219 quer dizer, se não só estivessem sem a luz (o verdadeiro
conhecimento de Deus, a santidade, a justiça e a alegria) mas também
conscientes desta condição deplorável e desejando veementemente a

219
II A; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 440
salvação de Deus, de nada os acusaria. Prossegue: mas, porque agora
dizeis: Nós vemos, subsiste o vosso pecado. Em outras palavras, “Se não
verdes a grandeza de vossos pecados e misérias, não podeis desfrutar de
verdadeiro consolo. Vosso pecado permanece, porque rejeitastes a
salvação de Deus.

Síntese do Capítulo 9
O Filho de Deus cura o homem cego de nascença, e logo Se revela
a ele em amor como o Filho do Homem. Seus inimigos decidiram
excomungar da sinagoga os que aceitam a Jesus.
O relato pode-se esquematizar como segue:

I. Um mendigo de Jerusalém é curado de sua cegueira congênita


(Jo 9:1–7).
Jesus, ao sair do templo, ou pouco depois, viu um cego de nascença.
Os discípulos Lhe perguntaram se o que tinha causado esta cegueira era
o pecado do próprio homem ou o de seus pais. Jesus de forma implícita
criticou a pergunta, e substituiu o olhar retrospectivo pelo olhar para o
futuro, a especulação puramente teórica pela obra de misericórdia. Disse,
“Não é que pecou este, nem seus pais, mas sim (que isto sucedeu) para
que as obras de Deus se manifestem nele”. Assim, pois aquele que se
chamou a si mesmo a luz do mundo (Jo 9:5), deu entendimento moral e
espiritual aos discípulos. Logo ilustrou mais esta atividade doadora de
luz comunicando a luz física aos olhos do cego. fê-lo depois de cobrir os
olhos do homem com barro e enviando-o ao tanque de Siloé para que se
lavasse.

II. Os vizinhos o interrogam (Jo 9:8–12).


Entre os vizinhos as opiniões estavam divididas: alguns estavam
seguros de que este era o homem cego de nascença; outros estavam
quase seguros; e outros veem uma grande semelhança. O próprio homem
João (William Hendriksen) 441
pôs fim a tudo isso com sua afirmação concreta, “Sou eu”. Em resposta a
outras perguntas relatou a forma como foi curado e afirmou que
desconhecia o paradeiro de seu benfeitor.

III. Os líderes judeus o interrogam e o expulsam da sinagoga (Jo


9:13–34).
Interrogam ao homem numa entrevista oficial. Quando relatou o
que tinha sucedido, suscitou-se divisão entre os fariseus: ambos os
partidos tiraram conclusões, logicamente válidas, de premissas falsas.
Quando convocaram os pais, estes prejudicaram a causa dos
interrogadores ao responder de tal forma que só era possível uma
conclusão: tinha ocorrido realmente um milagre. Por temor às
autoridades, aqueles que já tinham decidido que os que aceitaram a Jesus
como o Messias deviam ser expulsos da sinagoga, os pais se negam a
dizer como e por quem seu filho havia sido curado. O cego de nascença,
convocado outra vez, negou-se a responder às perguntas que já tinha
respondido antes. Com humor mal disfarçado perguntou se os fariseus
talvez desejavam tornar-se discípulos de Jesus. Difamando-o com
relação ao seu nascimento, as autoridades o expulsaram da habitação e
da comunhão religiosa.

IV. Jesus o encontra, e, em Sua condição de Filho do Homem,


revela-Se a ele (Jo 9:35–38).
A este respeito o comentário de Calvino contém um belo
pensamento. É este: Se tivessem permitido ao homem permanecer na
sinagoga, com o tempo teria se separado de Cristo. O próprio fato de sua
expulsão o fez mais receptivo à graça de Deus. Igualmente, quando o
papa expulsou a Lutero e a outros da sinagoga romana, e brandiu
anátemas sobre eles, Cristo estendeu a mão e Se revelou plenamente a
eles. Em consequência, o melhor para nós é afastar-nos o mais possível
João (William Hendriksen) 442
dos inimigos do evangelho, a fim de que Cristo nos possa atrair muito
mais a Si mesmo. 220
Com ternura o Bom Pastor lhe perguntou: “Crie tu no Filho do
Homem?” A salvação é sempre assunto pessoal. Quando, em resposta à
pergunta do homem, Jesus Se revelou a Si mesmo como o Filho do
Homem, a luz plena dos céus brilhou na alma do mendigo. Disse:
“Creio, Senhor”, e o adorou. Assim, pois, as “obras de Deus” (seu poder,
amor, graça) manifestaram-se neste homem (cf. Jo 9:3).

V. Ele é contrastado com os fariseus, voluntariamente cegados, (Jo


9:39–41).
Jesus, com relação a isto, revela o duplo propósito de Sua vinda ao
mundo “a fim de que os que não veem vejam, e os que veem se tornem
cegos”. Alguns fariseus, que estavam perto, ofenderam-se do que lhes
pareceu ser uma alusão ofensiva a si mesmos. Disseram: “Certamente
nós não somos também cegos, verdade?” Jesus censurou sua
autocomplacência dizendo: “Se fôsseis cegos, não teríeis pecado algum;
mas, porque agora dizeis: Nós vemos, subsiste o vosso pecado”.
Assim, pois, “a luz nas trevas resplandece, mas as trevas não a
aceitaram … Veio para os seus, mas os seus não o receberam. Mas aos
que o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus”.

220
João Calvino, op. cit., p. 192: Si retentus fuisset in synagoga, periculum erat ne paulatim a Christo
alienatus in idem eum impiis exitium mergeratur … Hoc idem et nostro tempore experti sumus. Nam
quum Lutherus et alii similes initio crassiores Papae abusus reprehenderunt, vix tenuem habebant puri
Christianisimi gustum. Postquam in eos fulminavit Papa ac terrificis bullis a Romana synagoga eiecti
sunt, manum illis prorexit Christus ac penitus illis innotuit. Ita nobis nihil melius quam ab Evangelii
hostibus longissime abesse, ut ipse propius ad nos accedat.
João (William Hendriksen) 443
JOÃO 10
Apresentação de alguns pontos básicos com relação
à alegoria do Bom Pastor
Os comentaristas diferem muito na interpretação desta sublime
alegoria. A solução que se adote com relação aos distintos problemas
que se expõem aqui determina, de algum modo, a explicação de
passagens concretas. Por esta razão apresentamos alguns dos pontos e
problemas mais importantes antes de entrar numa exegese detalhada.

I. Sua relação com o contexto precedente (se houver)


Pronunciou-se Jo 10:1–18 no dia em que Jesus encontrou o homem
excomungado (e pertence toda a seção Jo 10:1–21 ao mesmo dia?) O
primeiro relato do que sucedeu nesse dia encontra-se em Jo 9:35–41.
Deve considerar-se Jo 10:1–21 como a continuação lógica e cronológica?

A. Os que não veem esta conexão íntima arguem como segue:


1. O estilo é totalmente diferente: Jo 9:35–41 é polêmico; Jo 10:1–
18 é alegórico.
2. A exposição sobre o Bom Pastor continua em Jo 10:26–28, e esta
passagem foi pronunciada na festa da Dedicação (Jo 10:22), em
dezembro; em consequência, uns meses depois de Jo 9:35–41. É
evidente, portanto, que ou toda a passagem do Bom Pastor pertence a
essa festa ou simplesmente não sabemos onde localizá-la; fica totalmente
incerto o momento em que se pronunciou.

B. Os que veem esta conexão íntima (entre Jo 9:35–41 e Jo 10:1–


21) respondem como segue, e nós estamos de acordo com esta resposta:
1. Embora o estilo seja diferente, a conexão de pensamento é muito
estreita. Jesus Se descreve a Si mesmo como o bom pastor diante dos
João (William Hendriksen) 444
maus pastores. O bom pastor dá sua vida pelas ovelhas; os fariseus, por
outro lado, como pastores maus, não se preocupam com as ovelhas, e as
expulsam. O cego de nascença, verdadeira ovelha, foi excomungado
pelas autoridades judaicas; mas Jesus, como bom pastor, buscou-o e o
achou. O que importa nisto é o pensamento. Uma vez que se percebe
isso, fica evidente que Jo 10:1–21 é a continuação lógica e cronológica
de Jo 9:35–41 (e num sentido, de todo o capítulo 9).
2. Por que teria que considerar-se impossível que Jesus (em Jo
10:26–28) refira-se a um tema (o cuidado do Bom Pastor) que uns meses
antes tinha sido o conteúdo de um extenso discurso? Observe-se como o
milagre de Betesda (Jo 5:2) volta a discutir-se muitos meses depois (Jo
7:23). Além disso, a seção presente (Jo 10:1–21) mostra muito
claramente que está intimamente relacionada com a precedente (quer
dizer, com o capítulo 9), porque o versículo 21 diz: “pode, porventura,
um demônio abrir os olhos aos cegos?” A abertura dos olhos do cego foi
o tema do capítulo 9.
3. Não se introduz esta seção com uma menção específica do
tempo. Pelo contrário, começa com a conhecida expressão: “Em
verdade, em verdade vos digo”, que em nenhuma outra parte deste
Evangelho dá princípio a uma nova seção. N. N. nem sequer começa um
novo parágrafo neste ponto.

II. Seus antecedentes veterotestamentários


O auditório que ouviu esta alegoria é o mesmo que em Jo 9:35–41:
os discípulos de Cristo, o homem curado da cegueira (a não ser que já
houvesse partido), os fariseus, e provavelmente outros judeus, veja-se
em Jo 10:6. Não a entenderam. Se tivessem sido melhores
esquadrinhadores da Palavra, eles a teriam entendido pelo menos até
certo ponto, porque esta apresentação tem suas raízes no simbolismo do
Antigo Testamento, que Jesus utilizou para Seus propósitos.
João (William Hendriksen) 445
Eis aqui alguns dos paralelismos mais notáveis no Antigo
Testamento:
A. O Senhor é o pastor de Israel e de cada crente, aos que se
consideram como ovelhas. “O Senhor o meu pastor; nada me faltará”,
etc. (Sl. 23). “Quanto a nós, teu povo e ovelhas do teu pasto, para sempre
te daremos graças” (Sl. 79:13). “Dá ouvidos, ó pastor de Israel, tu que
conduzes a José como um rebanho” (Sl. 80:1). “Ele é o nosso Deus, e
nós, povo do seu pasto e ovelhas de sua mão” (Sl. 95:7). “Eu mesmo
apascentarei as minhas ovelhas e as farei repousar, diz o Senhor Deus”
(Ez. 34:15; veja-se este belo capítulo). As ovelhas têm inclinação a
desencaminhar-se e, em consequência, necessitam um pastor que as guie,
como se vê com clareza em Sl. 119:176; Is. 53:6.

B. Ele é um pastor muito bom, de coração terno e amoroso.


Resulta evidente pelas passagens mencionadas em A (acima), e
também em Is. 40:11: “Como pastor, apascentará o seu rebanho; entre os
seus braços recolherá os cordeirinhos e os levará no seio; as que
amamentam ele guiará mansamente”. Cf. 2Sm. 12:3; Lc. 15:3–6.

C. Há, no entanto, maus pastores: “Ai dos pastores que destroem e


dispersam as ovelhas do meu pasto! — diz o SENHOR” (Jr. 23:1ss.).
“Filho do homem, profetiza contra os pastores de Israel; profetiza e dize-
lhes: Assim diz o SENHOR Deus: Ai dos pastores de Israel que se
apascentam a si mesmos! Não apascentarão os pastores as ovelhas?” (Ez.
34:2). Os povos semitas (p. ex. os assírios) com frequência se referem a
seus governantes (reis, príncipes, líderes religiosos, etc.) como a
pastores. “Ai do pastor inútil, que abandona o rebanho!” (Zc. 11:17).

D. Abandonadas pelo pastor, as ovelhas tornam-se presa de


animais selvagens: leões, ursos, especialmente lobos. “…que a
congregação do SENHOR não seja como ovelhas que não têm pastor”
(Nm. 27:17). “Respondeu Davi a Saul: Teu servo apascentava as ovelhas
João (William Hendriksen) 446
de seu pai; quando veio um leão ou um urso e tomou um cordeiro do
rebanho, eu saí após ele, e o feri, e livrei o cordeiro da sua boca;
levantando-se ele contra mim, agarrei-o pela barba, e o feri, e o matei. O
teu servo matou tanto o leão como o urso” (1Sm. 17:34–36). “Vi todo o
Israel disperso pelos montes, como ovelhas que não têm pastor” (1Rs.
22:17). “O lobo habitará com o cordeiro” (Is. 11:6, no sentido,
naturalmente, de que até esse momento o lobo tinha sido o maior inimigo
do cordeiro). “Por isso, anda o povo como ovelhas, aflito, porque não há
pastor” (Zc. 10:2). “Fere o pastor, e as ovelhas ficarão dispersas” (Zc.
13:7).

E. O grande Filho de Davi (o Messias) será o único pastor do


remanescente reunido (Israel e Judá, que já não se consideram como
separados): “Suscitarei para elas um só pastor, e ele as apascentará; o
meu servo Davi é que as apascentará; ele lhes servirá de pastor” (Ez.
34:23; cf. Jr. 23:5 onde o renovo justo se contrasta com os pastores
maus).
A alegoria relatada em João 10:1–18 pode ser considerada como o
cumprimento de Ezequiel 34:23. O próprio Jesus é o bom pastor, como
tinha sido predito.

III. Seu caráter como alegoria


A. O que é uma alegoria?
O discurso a respeito do bom pastor chama-se paroimia. Em geral
uma παροιμία (literalmente, um tal marginal) é um dito figurativo (Jo
16:25, 29). Aqui no capítulo 10 é uma alegoria em vez de uma parábola.
O Evangelho de João não contém parábolas. O próprio termo parábola
encontra-se unicamente nos Sinóticos (e em Hb. 9:9; 11:19), enquanto
que παροιμία encontra-se apenas no quarto Evangelho, (e em 2Pe. 2:22).
No Novo Testamento há certa superposição no significado dos termos
parábola e paroimia: ambos podem referir-se a um provérbio (2Pe. 2:22;
João (William Hendriksen) 447
cf. Lc. 4:23), mas isto é a exceção mais que a regra. Assim também o
hebraico mashal tem uma conotação muito ampla: provérbio, parábola,
poema, adivinhação (observação velada e penetrante). Veja-se em Jo
2:19.
Em essência a diferença em significado entre uma παροιμία no
sentido de alegoria (como aqui no capítulo 10) e uma parábola equivale
a isto, que aquela tem algo de metáfora e esta é mais como um símile.
Uma metáfora é uma comparação implícita (“Dizei àquela raposa”,
significando Herodes); um símile é uma comparação explícita (“seu
aspecto era como raio”). Uma alegoria pode-se definir como uma
metáfora ampliada; uma parábola, como um símile ampliado.

B. Como se deve interpretar uma alegoria?


Devem observar-se as seguintes regras:
1. Não se deve tentar explicar cada aspecto ou característica do
símbolo. Mas, quando o próprio Jesus ou a situação histórica concreta
proporciona a explicação, é preciso levar em conta essa elucidação.
Não se deve perguntar acerca de cada ponto: “O que representa isto
e o que representa aquilo?” O excesso de análise conduz a más
interpretações. Deve-se captar a ideia principal (veja-se IV mais abaixo).
Em harmonia com esta ideia principal, certos objetos que se mencionam
têm paralelo na esfera do reino ou na esfera dos inimigos do reino. Na
alegoria presente é assim com relação ao seguinte: porta, redil, ovelhas,
pastor, rebanho; e também o seguinte: ladrão, estranho, assalariado.
Mas é legítimo perguntar: Como se sabe que estes elementos têm
um significado simbólico? Respondemos:

a. Quanto à primeira lista (porta, redil, ovelhas, pastor, rebanho), o


próprio Jesus o interpreta. Não deveríamos duvidar em atribuir a um
termo o significado simbólico que o autor mesmo lhe atribui. Observe-se
o seguinte:
João (William Hendriksen) 448
Versículo 1

Símbolo: Significado:

a porta o próprio Jesus (versículos 7 e 9)


o redil Israel (claramente implícito em versículo 16)

ovelhas aqueles por quem Cristo morreu,


os destinados a ser salvos; os que
obtêm a vida eterna; os que
ouvem a voz de Jesus e O seguem
(Jo 10:4, 9, 11, 14, 28).

Versículo 2

pastor Jesus (o bom pastor, Jo 10:11, 14)

Versículo 16

rebanho todo o grupo dos salvos (um rebanho, Jo 10:16).

b. Quanto à segunda lista (ladrão, estranho, assalariado) veja-se


sobre 3, mais abaixo. A situação histórica e concreta da qual surge a
alegoria é a única coisa necessária para explicar estes símbolos.
Quando seguimos esta regra, ficarão certos termos aos que não
podemos atribuir com toda segurança um significado simbólico; como
porteiro. Estes termos são necessários para completar o simbolismo.
Quanto a lobo veja-se sobre Jn 10:29.
2. Nem toda afirmação deve referir-se necessariamente ao símbolo.
Chegamos a um ponto crucial na interpretação da presente alegoria.
Para nós, aqui é onde se extraviam muitos intérpretes. Com frequência a
realidade (na esfera do reino) é mais destacada que a figura. Isto
João (William Hendriksen) 449
significa que em certos casos a frase tem como sujeito (ou sujeito
implícito) uma metáfora, mas o predicado aplica-se não à metáfora
mesma mas à pessoa a que se refere a metáfora. Assim, pois, quando no
Sl. 79:13 o poeta diz: “Quanto a nós, teu povo e ovelhas do teu pasto,
para sempre te daremos graças”, é evidente que este dar graças não se
dá na esfera da vida animal (ovelhas, por exemplo). As ovelhas (no
sentido literal) não podem dar graças. No entanto, as pessoas como
ovelhas, sim, dão graças. (Neste caso particular a referência apresenta-se
com muita clareza com as palavras “teu povo” que explicam “ovelhas do
teu pasto”. As duas expressões se interpretam mutuamente).
Uma vez que se compreendeu este ponto, já não será difícil explicar
a última parte de Jo 10:9: “Se alguém entrar por mim, será salvo; entrará,
e sairá, e achará pastagem”. Naturalmente que é totalmente certo que não
se pode dizer dos animais que são “salvos”, mas se pode dizê-lo com
relação a pessoas que têm as características de certos animais (neste caso
ovelhas). Em consequência, não podemos estar de acordo com os
comentaristas que afirmam que toda a interpretação se altera com a
teoria de que no versículo 9 Jesus pensa em ovelhas. Sua argumentação é
que como o sujeito da frase (alguém) é masculino, não se pode referir a
uma ovelha, visto que a palavra grega para ovelha é neutra. Também
dizem que seria parvo falar de ovelhas que entram pela porta, porque
como, se não pela porta, entrariam no redil? Dizem, além disso, que toda
a ideia da ovelha que entra e sai do redil à vontade é errônea, visto que
nenhuma ovelha o faz; e que uma ovelha não encontra pasto por si
mesma. Mas tudo isso, em nosso parecer, é consequência de não
compreender a importante regra de interpretação simbólica que aparece
em itálico no começo deste parágrafo: “Nem toda afirmação deve
referir-se necessariamente ao símbolo”.
O sujeito (alguém) pode muito bem referir-se a uma ovelha; ou seja,
a uma pessoa com características de ovelha (alguém que realmente segue
o pastor, Cristo). Além disso, não é parvo falar de que uma ovelha entra
pela porta, porque neste caso se alude também à pessoa que pela fé em
João (William Hendriksen) 450
Cristo entra no reino. Mas sucede que muitas pessoas procuram entrar de
alguma outra forma; por exemplo, por meio de suas próprias boas obras.
Além disso, a ovelha — quer dizer, a pessoa como ovelha — entra e sai
e encontra pasto, alegrando-se quando o encontra (p. ex., na Palavra).
Além disso, tanto o contexto anterior (versículo 8) como o contexto
seguinte (versículo 10) mostram claramente que nossa interpretação vai
por bom caminho, porque estas passagens falam de pessoas, não de
animais (veja-se nossa explicação destes versículos). Sempre se deve
explicar um texto à luz de seu contexto (neste caso, o versículo 9 deve
explicar-se à luz dos versículos 8 e 10). Finalmente, os versículos 26–29
também falam de ovelhas; mas fica muito claro que essas ovelhas são
pessoas, os verdadeiros seguidores de Jesus.
Uma vez que se entende a regra 2, não serão tão difíceis as
chamadas “metáforas mistas”. Em consequência, passamos a seguinte
regra:
3. As chamadas “metáforas mistas” (na realidade, mudanças
bruscas de metáforas) não criam nenhum problema se tivermos em
mente que o que pode ser impossível para o símbolo, com frequência é
totalmente razoável e verdadeiro com relação à realidade a que se
refere o símbolo.
Na alegoria que nos ocupa, a dificuldade que turvou a tantos
intérpretes consiste no fato de que se refere a Jesus como a porta (Jo
10:7, 9) e como o bom pastor (Jo 10:11, 14). Como pode ser ambas as
coisas? Pensando que é impossível, alguns recorreram à ideia de que nos
encontramos diante de um texto corrompido. Mas não há provas sólidas
disso. Pelo contrário, deve buscar-se a solução no sentido da aplicação
da regra 2 (acima). Jesus é tão grande que Seu significado não se pode
nunca expressar plenamente. Nenhum símbolo, por si mesmo, pode
descrever Sua plenitude. É, de fato, porta e pastor. Encontramos
exatamente o mesmo fenômeno no livro de Apocalipse. João espera ver
um leão (Ap. 5:5), mas vê … um cordeiro (Ap. 5:6). O cordeiro aparece
como imolado! João espera ver uma esposa (Ap. 21:9), mas vê uma
João (William Hendriksen) 451
cidade (Ap. 21:10). Mas quando começamos a estudar estas aparentes
irregularidades, encontramos sempre uma razão satisfatória. Claro que
uma esposa não pode ser ao mesmo tempo uma cidade, mas a igreja de
Deus (a que se referem tanto a esposa como a cidade) pode ser (e é)
ambas as coisas. Cristo é tanto leão como cordeiro. 221 Assim também
aqui em João 10, embora seja verdade que uma porta não pode ser um
pastor ao mesmo tempo, também é verdade que Jesus é ambas as coisas
ao mesmo tempo.
E assim como Jesus é tanto porta como bom pastor, assim também
seus inimigos (os fariseus) descrevem-se como ladrões, assaltantes,
estranhos e assalariados. Não é nem necessário nem aconselhável
considerar que cada um desses termos refira-se a uma categoria
diferente, de modo que, por exemplo, os ladrões e assaltantes indicariam
falsos messias; os estranhos, fariseus; e os assalariados, ministros
avarentos. É preciso estar muito atentos à situação histórica concreta.
Em todo o contexto nada é dito a respeito de falsos messias nem de
pregadores sedentos de dinheiro. Os fariseus, por outro lado, estão muito
à vista. A eles Jesus Se refere como ladrões e assaltantes num sentido,
em outro como estranhos, e ainda em outro como assalariados. Esta
interpretação não introduz elementos alheios na exegese.

IV. Sua ideia principal


O tema principal em tudo isso é Jesus como o bom pastor, em
contraste com os maus pastores. Claro que Jesus é também a porta. Mas
este pensamento é secundário. É um elemento muito belo e necessário
em todo o quadro, mas está subordinado à ideia principal. Introduz-se,
primeiro, para mostrar quem são os falsos profetas. São os que procuram
entrar de forma ilegítima no redil; ou seja, não pela porta (fé em Jesus e
eleição da parte dEle), mas por algum outro meio (intimidação, por

221
Outros exemplos podem-se ver em Más que Vencedores, Grand Rapids, Mich., reimpressão 1977,
p. 135, nota 9.
João (William Hendriksen) 452
exemplo, Jo 9:22). O verdadeiro pastor não é assim de modo algum. Tem
o direito de entrar (“para este o porteiro abre”). A ideia de Jesus como a
porta também serve para sublinhar o fato de que Ele proporciona
descanso, segurança (inclusive salvação!), e alimento a Suas ovelhas
(espirituais). Sendo o bom pastor, naturalmente que é a porta!
O fato de que a ideia do bom pastor seja realmente a predominante
é visto com clareza pelo fato de contar com as muitas referências que se
fazem a Jesus como tal. Note-se que, como bom pastor, Jesus:

1. entra pela porta e o acolhe o porteiro (Jo 10:3).


2. chama as ovelhas pelo seu nome (Jo 10:3); conhece-as bem (Jo
10:14, 15; cf. Jo 10:27, 28).
3. as conduz (Jo 10:3).
4. vai adiante delas (Jo 10:4).
5. é reconhecido e seguido pelas ovelhas (“conhecem a sua voz”)
(Jo 10:3, 4).
6. dá acesso a toda bênção (Jo 10:7–9); é “a porta”.
7. proporciona vida e abundância (Jo 10:10; cf. Jo 10:27, 28).
8. dá a vida pelas ovelhas (Jo 10:11, 14).
9. guia as ovelhas (cf. Jo 10:4), reunindo também outras ovelhas, de
modo que todas chegam a formar um rebanho com um pastor (Jo
10:16).
10. é amado pelo Pai (Jo 10:17).

De acordo com tudo o que se tem dito até aqui, podemos agora
interpretar a alegoria:
João (William Hendriksen) 453
JO 10:1–5

10:1, 2. Em verdade, em verdade vos digo: o que não entra pela


porta no aprisco das ovelhas, mas sobe por outra parte, esse é ladrão e
salteador. Quanto às palavras de solene introdução “Em verdade, em
verdade vos digo,” veja-se Jo 1:51. O símbolo latente é o do redil. O
original emprega um termo (α_λή de _ω soprar) cujo significado em
certas passagens dos Evangelhos tem sido objeto de discussão. Veja-se
em Jo 18:15. Mas neste caso (Jo 10:1) o significado é claro. É um redil.
Era um espaço ao ar livre, cercado e sem cobertura. Consistia num muro
de pedra tosca com uma forte porta. Às vezes desempenhavam o mesmo
papel as covas, mas neste caso não é esta a ideia. Um ladrão (alguém que
quer tirar de outro sua propriedade) e um salteador (alguém que utiliza a
violência para obter o que quer) não buscariam entrar pela porta, porque
a. estava fechada e devia abrir-se; e b. estava protegida pelo porteiro. Em
consequência, um homem assim, para entrar, deveria entrar por outro
lugar. Assim também os líderes religiosos, hostis a Jesus, procuravam
ilegalmente dominar o povo de Israel (veja-se versículo 16). Procuravam
dominar ao povo pela intimidação (veja-se 9:22). Evitavam a porta, o
Senhor Jesus Cristo (não criam nEle, não foram escolhidos por Ele). Por
meio de ameaças (expulsão da sinagoga) queriam privar a Jesus de Seus
discípulos. Por conseguinte eram ladrões e salteadores. Por outro lado,
Jesus, quem tinha sido concretamente nomeado e enviado por Seu Pai
celestial, aparece aqui em qualidade de legítimo pastor (veja-se Jo 10:11,
14). 222 Isso está implícito aqui: Aquele, porém, que entra pela porta, esse
é o pastor das ovelhas, e explícito em Jo 10:11, 14.

222
De uma maneira, é possível que o sujeito “aquele que entra pela porta” se refira a todos os
embaixadores (profetas, apóstolos, ministros, etc.) divinamente nomeados (em consequência,
legítimos). Mas, na explicação que Ele mesmo dá da alegoria Jesus Se refere só a Si mesmo como o
pastor (Jo 10:11, 14). Embora fale de muitos ladrões, salteadores, etc., refere-se só a um pastor. Por
esta razão explicamos o versículo 2 como o fazemos. Embora o símbolo latente possa pressupor vários
pastores, cada um com suas próprias ovelhas (Jo 10:3, 4), só um pastor tem simbólico significado. No
João (William Hendriksen) 454
3. Para este o porteiro abre, as ovelhas ouvem a sua voz, ele chama
pelo nome as suas próprias ovelhas e as conduz para fora. Podemos
descrevê-lo assim. Durante a noite o porteiro esteve com as ovelhas.
Conhece o pastor. Em consequência, quando pela manhã ouve a voz do
pastor, abre a porta. Também as ovelhas reconhecem imediatamente a
voz de seu pastor. Não só ouvem (mais ou menos inconscientemente)
mas sim escutam. Obedecem. Assim é com relação às verdadeiras
ovelhas (animais). Mas num sentido mais elevado assim é também no
caso de todos os verdadeiros discípulos de Jesus. E deve ter-se em mente
que a realidade no reino de Deus domina o símbolo neste caso. Assim
como um pastor oriental, inclusive nestes tempos, com frequência chama
suas ovelhas pelo nome (fala-se de casos de pastores aos quais se têm
coberto os olhos, mas que inclusive assim reconhecem suas ovelhas uma
por uma), assim também (e de fato, muito mais!) Jesus, como o bom
pastor, tem um conhecimento íntimo e pessoal de todos aqueles a quem
quer salvar. E assim como o pastor tira suas ovelhas do redil, assim
também o pastor terno e amoroso, Jesus, reúne o rebanho, e o tira do
redil de Israel (Jo 10:3; cf. Jo 1:11–13; Mq. 2:12) e do paganismo (Jo
10:16).
4, 5. Depois de fazer sair todas as que lhe pertencem, vai adiante
delas, e elas o seguem, porque lhe reconhecem a voz; mas de modo
nenhum seguirão o estranho; antes, fugirão dele, porque não conhecem a
voz dos estranhos.
O pastor volta todas as manhãs. Assim também Jesus está
constantemente reunindo Suas ovelhas. Por isso lemos “depois de”. Num
redil oriental, às vezes se guardam durante a noite vários rebanhos
juntos. Pela manhã cada um dos pastores tira suas próprias ovelhas. Suas
ovelhas, e só elas, respondem a sua chamada. As outras, as de outros
pastores, não prestam atenção. O pastor, Jesus, tira todas as Suas. Vence
todas as dificuldades. Às vezes há ovelhas às quais é preciso empurrar!

entanto, é verdade que até certo ponto a obra do pastor principal (1Pe. 5:4) vê-se refletida na dos
pastores subordinados (Jo. 21:15–17).
João (William Hendriksen) 455
Em todo caso, não fica nem uma só das suas. Observe-se a palavra todas.
Veja-se em Jo 6:37, 39.
O pastor, uma vez que tirou todas suas ovelhas, vai diante delas, e
as ovelhas O seguem. Esse é o costume no oriente. Em outras partes o
pastor toca as ovelhas adiante. Vemos imediatamente que o costume
oriental se adapta melhor para ilustrar a relação entre Cristo e Seus
discípulos. Jesus guia, vai diante; não toca por trás!
A razão pela qual as ovelhas seguem a seu pastor dá-se nas palavras
“porque conhecem sua voz”. Na Palavra de Deus o bom pastor dirige-se
a suas ovelhas. Elas reconhecem sua voz, e o seguem — ou seja,
confiam nEle e Lhe obedecem.
De maneira nenhuma (observe-se a vigorosa negação) seguirão as
ovelhas a um estranho! Quando Jesus pensa no cuidado fiel e sempre
vigilante que tem pelas Suas e deseja contrastá-lo com o egoísmo dos
fariseus, aqueles que sempre procuram promover sua própria glória e de
Lhe tirar Seus seguidores (Jo 9:22), Ele Se chama a Si mesmo bom
pastor, e a eles ladrões e salteadores. Mas quando pensa no
conhecimento íntimo que tem de Seus discípulos e deseja contrastá-lo
com a ignorância dos fariseus — porque não conhecem nem ao Senhor
nem a seu povo —, embora pense em Si mesmo como o bom pastor
(porque à ideia de ser um bom pastor vão unidos o cuidado terno e o
conhecimento completo), chama-os estranhos.
Uma ovelha normal não segue a um estranho embora se vista de
pastor, e procure imitar a voz do pastor. Isto se comprovou muitas vezes.
Assim também (e muito mais até!) o verdadeiro discípulo do Senhor
“não conhece” (nega-se a reconhecer) a voz dos estranhos (cf. 2Jo 10),
aqueles que vêm a ele com filosofias estranhas, teologias estranhas e
éticas estranhas; e, por conseguinte, não os segue. Está absolutamente
decidido a seguir só ao único pastor verdadeiro, Jesus, quando fala em
Sua palavra. A outros ele os evita; de fato, aparta-se deles com horror.
João (William Hendriksen) 456
JO 10:6–21

10:6. Jesus lhes fez esta comparação [TB]. Custa entender como
alguns intérpretes podem sustentar que esta alegoria dirigiu-se apenas
aos discípulos, e que estes discípulos — e só eles — não entenderam o
seu significado. Que estas palavras se dirigiram não só aos discípulos (Jo
9:2), mas também aos fariseus e talvez a outros judeus, pareceria claro
depois de um exame cuidadoso das seguintes passagens: Jo 9:40, 41 (que
continua em Jo 10:1ss.); 10:7; e sobretudo Jo 10:19–21. Quanto ao
significado do termo alegoria (παροιμία) e às regras de interpretação que
lhe são aplicadas, veja-se o que se disse no princípio deste capítulo.
Os judeus não entenderam a alegoria: mas eles não compreenderam
o sentido daquilo que lhes falava. Se tivessem conhecido melhor o Antigo
Testamento, não teriam experimentado esta dificuldade. Veja-se o que se
disse nas pp. 368–372 acima. No entanto, teria que se que distinguir aqui
com muito cuidado. Embora a ideia do pastor e as ovelhas (O Senhor era
o pastor, Seu povo as ovelhas) pode-se encontrar em tantas páginas do
Antigo Testamento, que ignorância total com relação a esta comparação
é quase inimaginável, provavelmente não era tão conhecido o
pensamento adicional que se inclui em Jo 10:1–6, ou seja, que o bom
pastor (aqui não Jeová, e sim Jesus) separaria o verdadeiro Israel do
Israel nacional (tiraria os seus do redil). No entanto, inclusive esta ideia
não devia ter soado tão estranha. A reunião ou eleição de um
remanescente se ensina em muitas passagens do Antigo Testamento: Jr.
3:14; 23:3; Am. 3:12; 5:15; Mq. 2:12; 5:3, 7, 8; 7:18–20; Hc. 2:4; Sf.
3:12, 13; Ag. 1:12, 14; Zc. 8:6, 12; 13:8, 9. Em Mq. 2:12 esta reunião do
remanescente se associa inclusive com a ideia do pastor. Cf. Am. 3:12.
7. Jesus, pois, lhes afirmou de novo: Em verdade, em verdade vos
digo: 223 Eu sou a porta das ovelhas.

223
A respeito de ὅτι veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 457
Como os ouvintes não haviam entendido a alegoria, Jesus a explica
no parágrafo seguinte. No entanto, aqui temos mais que uma explicação.
Acrescentam-se alguns detalhes, de modo que podemos falar de uma
explicação e ampliação.
Quando Jesus diz: “Eu — enfático; ou seja, só Eu — sou a porta
das ovelhas”, quer dizer que o é o único por meio do qual pode-se ter
acesso legítimo. Simplesmente, não há outra entrada. Cf. Jo 14:6.
Esta ideia recebe uma dupla aplicação. Uma vez que se veja isso, já
se respondeu a pergunta de se Jesus é a porta das ovelhas ou para as
ovelhas. No versículo 7 Jesus aparece como a porta das ovelhas; no
versículo 9 como a porta para as ovelhas. Ele, e só Ele, é, e o é sempre, a
porta. Para o verdadeiro pastor, Ele é a porta. Para toda ovelha
verdadeira, Ele é a porta. Para o pastor Ele é a porta das ovelhas. Para as
ovelhas Ele é a porta para todas as bênçãos da salvação. A metáfora é
muito adequada: a porta leva tanto ao exterior como para o interior: dá
ao pastor acesso a Suas ovelhas que estão dentro. Dá às ovelhas acesso
ao redil, e ao pasto que se encontra fora.
8. Todos quantos vieram antes de mim são ladrões e salteadores.
Os versículos 7 e 8, juntos, dão uma explicação muito bela dos
versículos 1 e 2. À luz desta interpretação, que o próprio Jesus
proporciona, podem-se parafrasear os versículos 1 e 2 como segue:
“Asseguro-vos com toda certeza, aquele que não entra no redil pela
fé em Mim e por Minha eleição, mas entra de forma ilegítima, essa
pessoa é um ladrão e salteador. Por isso, todos os que vieram antes de
Mim são ladrões e salteadores. Mas aquele que entra de forma legítima é
pastor das ovelhas”.
Jesus, como único pastor bom, contrasta-se muito claramente com
todos os que tinham vindo antes dEle. Mas o que significa a preposição
antes (πρό) neste caso? No Novo Testamento esta pequena palavra tem
os seguintes significados reconhecidos: a. “diante de” (de lugar), como
em At. 12:6: “guardas diante da porta”; b. “antes de” (de tempo), como
em Mt. 8:29: “vieste aqui atormentar-nos antes de tempo?” c. “mais que”
João (William Hendriksen) 458
ou “acima” (preferivelmente), como em 1Pe. 4:3: “acima de tudo”. Não
há exemplos indiscutíveis no Novo Testamento de outros significados
que se deram a esta palavra (tais como “em interesse de” ou, inclusive,
“em nome de” e “em lugar de”). 224 O mais comum portanto é o
significado b. antes de tempo. De fato, em todos os outros lugares em
que o quarto Evangelho utiliza esta preposição tem esse significado (Jo
1:49; 5:7 — onde a ideia de lugar parece misturar-se com a de tempo —
Jo 11:55; 12:1; 13:1; 13:19; 17:5, 24). É, sem dúvida, o significado
natural também aqui em Jo 10:8. Se a força temporal não for básica
neste caso, pelo menos deve considerar-se como o significado resultante.
Mas nem sequer podemos aceitar a interpretação de todos os que dão um
significado temporal à preposição. Por exemplo, pareceria que a ideia de
que o Senhor aqui Se refere aos profetas do Antigo Testamento e a João
Batista, como se tivessem sido ladrões e salteadores, não merece nem
comentar-se. Pensar aqui nos falsos messias que tinham surgido antes do
começo do ministério de Cristo, parece também pouco realista. Nada diz
o contexto deles. Sem lugar a dúvida, segundo nossa opinião, Jesus
pensa aqui nos homens que estão diante dEle enquanto fala, ou seja, os
líderes religiosos do povo, os membros do Sinédrio, saduceus e fariseus,
mas sobretudo os últimos (veja-se Jo 9:40; 10:19). Eles eram os que
procuravam, por meio da intimidação (Jo 9:22), roubar as pessoas, e com
isso conseguir-se de forma ilegítima honra para si. Se as ameaças fossem
insuficientes, utilizariam a violência. Eram, na verdade, tanto ladrões
como salteadores. Além disso, já estavam no cenário quando Jesus veio
ao mundo (veja-se sobre Jo 3:1). Em consequência, é fácil entender por
que Jesus diz que tinham vindo antes dEle. Também é compreensível

224
Não posso estar de acordo com H. E. Dana e J. L. Mantey os quais, em seu excelente livro (uma
pequena joia para o uso em classe!) A Manual Grammar of the Greek New Teslament, Nova York,
1950, pp. 109, 110, dão o significado “em lugar de” ou “em nome de” à preposição nesta passagem Jo
10:8. W. D. Chamberlain, quem também escreveu um valioso livro a respeito da gramática do N. T.,
An Exegetical Grammar of the Greek New Testament, Nova York, 1941, pp. 127, 128, reconhece só
os três significados que demos acima. (Aqui não discutimos o significado de πρό quando aparece em
palavras compostas). Está de acordo com isto Gram. N. T., pp. 620, 622.
João (William Hendriksen) 459
que Jesus diga, “são (não eram) ladrões e salteadores”. Não tinham
desaparecido, estavam ainda presentes.
Muitos prestavam atenção a estes líderes religiosos egoístas. Mas as
ovelhas — os verdadeiros discípulos de Cristo — não lhes prestavam
atenção. Em lugar disso, as ovelhas obedeciam ao verdadeiro pastor
Jesus (Jo 10:3, 14).
9. Eu sou a porta. Veja-se sobre Jo 10:7 quanto ao significado desta
afirmação, “Eu sou a porta”. Jesus não é só a porta das ovelhas; é
também a porta para as ovelhas. Já explicamos até certo ponto o
versículo 9. Veja-se o comentário sobre esse versículo. Devem
acrescentar-se alguns pensamentos. Jesus acaba de afirmar que Seus
verdadeiros seguidores negam-se a escutar a ladrões e salteadores. É
lógico, pois, supor que quando agora diz Se alguém entrar por mim,
segue pensando nestes mesmos seguidores verdadeiros. Observe-se a
posição enfática das palavras por mim. Não há outra entrada! Jo 3:16
pode servir de comentário: a fé em Cristo como Filho de Deus é a única
porta de entrada. E esta fé é confiança plena e pessoal nEle e em Sua
expiação substitutiva.
Jesus diz: “Se alguém entrar por mim, será salvo”. O que quer dizer
quando afirma que essa pessoa será salva? No versículo 10 se explica
esse termo. Significa que lhe será dado vida. Os termos ser salvo e ter
vida são empregados juntos aqui, como ocorreu em Jo 3:16 e 3:17. Por
Jo 3:16 sabemos que quer dizer vida eterna. Veja-se comentário a esse
versículo. E embora não tivéssemos Jo 3:16, 17, ainda possuiríamos o
comentário que nos faz Jo 10:28. Estas ovelhas recebem libertação da
culpa, da miséria e do castigo do pecado. Sua parte, agora em princípio e
depois com perfeição, é a abundância — o amor de Deus derramado em
seu coração, a paz de Deus que supera todo entendimento. Não há razão
para limitar o significado do verbo nesta passagem, como se não
significasse mais que, “estará seguro”. Claro que a segurança também
está implícita nas palavras, entrará, e sairá; mas este é só parte do
significado. Não só sairá e entrará, quer dizer, experimentará libertação
João (William Hendriksen) 460
perfeita de todo verdadeiro dano e perigo, e isto inclusive no pequenos
problemas da vida diária, e se sentirá perfeitamente cômodo na rotina
diária do povo de Deus (veja-se sobretudo as belas palavras do Sl.
121:8), mas além disso, e achará pastagem,225 quer dizer, vida e
abundância, como indica o versículo seguinte. Sem dúvida que se inclui
o pasto que a verdadeira ovelha encontra no estudo da Palavra.
10, 11. O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim
para que tenham vida e a tenham em abundância. O ladrão é o fariseu,
como se explicou (veja-se sobre Jo 10:1). Observe-se a ordem
progressiva: roubar, matar, destruir. Em Mt. 23:15 vê-se com clareza que
estes líderes religiosos mataram e destruíram espiritualmente o povo que
tinham roubado. O oposto a matar e destruir é dar vida. E o oposto ao
ladrão é o bom pastor, Cristo. Por isso Jesus diz, “Eu vim para que
tenham (quer dizer, o povo; aqui, as ovelhas) vida (veja-se sobre 3:16) e
a tenham em abundância” (de graça, Jo 1:16; cf. Rm. 5:17, 20; Ef. 1:7,
8; de alegria, 2Co. 8:2; de paz, Jr. 33:6). Veja-se também Jo 2:6, 7; 4:14;
6:13, 35. Estas passagens mostram que Jesus sempre dá em medida
superabundante, em excesso.
Jesus prossegue, Eu sou o bom pastor, na realidade: o pastor, o
bom. fica de relevo o adjetivo! Este adjetivo, no entanto, não é _γαθός e
sim καλός. O significado básico desta palavra é belo. Neste caso indica
excelente. Este pastor corresponde ao ideal tanto em seu caráter como
em sua obra. E é o único desta classe. (Veja-se a nota 222 acima.) O
predicado deste grande EU SOU leva artigo, e por conseguinte é
intercambiável com o sujeito. A afirmação “Eu sou o bom pastor”
explica Jo 10:2, 3, 4. Agora sabemos a quem tinha em mente Jesus
quando falava do pastor a quem as ovelhas ouvem.
O caráter excelente deste pastor se manifesta sobre tudo nisto: O
bom pastor dá a vida pelas ovelhas. Neste sentido isto não se pode aplicar
a um pastor comum, por bom que seja. Um pastor assim talvez arriscará

225
III A 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 461
a vida em defesa das ovelhas (1Sm. 17:34–36), mas na realidade não dá
(τίθησι) a vida; quer dizer, não entrega a vida em sacrifício voluntário.
Além disso, na vida comum, a morte do pastor significa perda e possível
morte do rebanho. Neste caso a morte do pastor significa vida (ζωή) para
as ovelhas! O bom pastor “entrega” sua alma (note-se τ_ν ψυχ_ν α_το_
tanto aqui em 10:11 como em Is. 53:12, a tradução LXX) para morte”.
Dá-se a si mesmo! A ideia não é que este pastor dá somente sua vida
natural. Não, ψυχή, que se apoia no original aramaico (quer seja oral ou
escrito), é o equivalente total do eu, da pessoa. Veja-se também a mesma
expressão, “sua vida”, em Mt. 20:28; Mc. 10:45, enquanto que 1Tm. 2:6
tem si mesmo. É provável que ψυχή tenha este significado todas as vezes
que se encontra no Evangelho de João (Jo 10:11, 15, 17, 24; 12:25, 27;
13:37, 38; e 15:13).
O bom pastor dá sua vida pelas ovelhas. A preposição é _πέρ,
palavra que tem o significado etimológico de por causa de. No quarto
Evangelho utiliza-se sempre com o genitivo. 226 Usado desta forma, seu
significado oscila do tênue com relação a (Jo 1:30), passando por em
benefício de e o intimamente relacionado para o bem de (Jo 6:51; 11:4;
17:19), até o verdadeiramente significativo em lugar de (veja-se 10:11,
15: 11:50, 51, 52; 13:37, 38; 15:13; 18:14). No entanto, é provavelmente
incorreto dizer que esta preposição em si mesma signifique em lugar de.
Esta é sua conotação consequente quando utiliza-se em certos contextos.
O bom pastor dá sua vida para o bem das ovelhas, mas a única forma em
que pode beneficiar às ovelhas, as salvando da destruição eterna e lhes
comunicando vida eterna, é morrendo em lugar delas, como sabemos de
Mt. 20:28; Mc. 10:45, onde utiliza-se a preposição _ντί (em lugar de, em
troca de). É fácil ver, como com uma transição muito gradual, em
benefício de ou para o bem de pode converter-se em em lugar de. Assim,
nos papiros o escriba que redige um documento em benefício de alguém

226
A possível exceção (ὑπέρ com acus.) é Jo 12:43, mas neste caso a que provavelmente é a melhor
versão contém ἤπερ.
João (William Hendriksen) 462
227
que não sabe escrever o faz em lugar de essa pessoa iletrada. Cf.
também 2Co. 5:21; Gl. 3:13.
É pelas ovelhas — e só pelas ovelhas — que o bom pastor dá sua
vida. O desígnio da expiação está claramente limitado. 228 Jesus morre
por aqueles que o Pai lhe tinha dado, pelos filhos de Deus, pelos
verdadeiros crentes. Este é o ensino do quarto Evangelho em sua
totalidade (Jo 3:16; 6:37, 39, 40, 44, 65; 10:11, 15, 29; 17:6, 9, 20, 21,
24). Também é a doutrina do resto da Bíblia. Com Seu precioso sangue,
Cristo compra Sua igreja (At. 20:28; Ef. 5:25–27); o Seu povo (Mt.
1:21); os escolhidos (Rm. 8:32–35).
No entanto, o amor de Deus é largo como o oceano. Em todas as
partes encontram-se as ovelhas. Não estão confinadas a um redil (Jo
10:16; veja-se também em Jo 1:10, 29; 3:16; 4:42; 6:33, 51; 11:52).
A respeito de Jesus como o bom pastor veja-se também Ez. 34:31;
Lc. 15:3–6; Heb. 13:20 e 1Pe. 2:25; veja-se especialmente Jo 10:14, 15.
12, 13. Jesus já tinha comparado os Seus inimigos com estranhos e
ladrões. São estranhos porque não conhecem as ovelhas. São ladrões
porque buscam apoderar-se das ovelhas de uma forma ilícita. E agora
Jesus acrescenta a metáfora do assalariado. Sim, os fariseus são também
assalariados. O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as
ovelhas. São assalariados porque não se preocupam nem amam as
ovelhas. Isto é típico do assalariado. Não equivale a qualquer homem
227
Veja-se a respeito de ὑπέρ A. T. Robertson, The Minister and his Greek New Testament, Nova
York, 1923, pp. 35–42. Também W. Hendriksen, The Meaning of the Preposition ἀντί in the New
Testament, tese doutoral na biblioteca do Seminário de Princeton, especialmente pp. 77, 78, de onde
cito o seguinte: “O fato de que ἀντί possa chamar-se em certo sentido, e como um de seus
significados, sinônimo de ὑπέρ, não quer dizer que as duas preposições sejam exatamente iguais em
conotação. Depende do contexto em que um caso dado ὑπέρ possa aproximar-se do sentido
estritamente substitutivo”. Veja-se também E. H. Blakeney, “ὑπέρ com genitivo no Novo
Testamento”. ExT 55 (1944), 306.
228
Veja-se a respeito de este tema L. Berkhof, Teologia Sistemática, Grand Rapids, Mich., 1963, pp.
468–474. O mesmo autor também escreveu Vicarious Atonement Through Christ, Grand Rapids,
1936; veja-se pp. 151–178. C. Bouma, Geen Algemeene Verzoening; Kampen, 1928. Todo o livro está
dedicado à discussão do caráter limitado da expiação e ao intento de responder às objeções propostas
contra esta doutrina. A. A. Hodge, The Atonement, Filadélfia, 1867, pp. 347–429.
João (William Hendriksen) 463
contratado. Alguns que trabalham por salário podem ter o coração de
pastor. Mas estes assalariados não o têm. Simplesmente trabalham por
dinheiro. Acabavam de dar um exemplo muito eloquente de sua total
falta de preocupação pelas verdadeiras ovelhas (Jo 9:34). Era a classe de
gente que devoraria as casas de viúvas.
O assalariado vê vir o lobo. (A respeito deste lobo veja-se no
versículo 29) abandona as ovelhas e foge. Imediatamente se esquece das
ovelhas. Diz-se a si mesmo: “Por que me preocupar com as ovelhas se de
todas formas não são minhas?” Assim, pois, com espírito de frio
egoísmo, foge. Jesus não poderia ter escolhido uma melhor metáfora que
a do assalariado. Tinham os fariseus — estes líderes religiosos do povo
— mostrado o menor interesse pelo aleijado em Betesda (veja-se sobre
Jo 5:10, 12)? Tinham manifestado sequer um pouco de piedade pela
mulher surpreendida no ato de adultério (veja-se sobre Jo 8:3, 6)? E veja-
se como trataram o homem a quem Jesus havia curado de sua cegueira
congênita (Jo 9:34). Em lugar de defender de algum modo a Israel diante
dos perigos espirituais que o rodeavam, concentravam toda a sua atenção
em si mesmos e em seu próprio benefício. Eram exatamente como o
assalariado que, quando vê vir ao lobo, abandona as ovelhas. Então, o
lobo as arrebata e dispersa. O mercenário foge, porque é mercenário e
não tem cuidado com as ovelhas. Esse assalariado, por conseguinte, é
exatamente o contrário do bom pastor que se preocupa para que ninguém
lhe arrebate as ovelhas de suas mãos (veja-se em Jo 10:28, 29). Além
disso, em lugar de dispersar a suas ovelhas, o bom pastor as reúne (cf. Jo
10:16).
14, 15. Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me
conhecem a mim, assim como o Pai me conhece a mim, e eu conheço o
Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas.
Aqui temos uma repetição enfática e uma ampliação do anterior.
Jesus diz: “Eu sou o bom pastor”. É repetição de Jo 10:11 (veja-se
explicação desse versículo). Aqui (nos versículos 14 e 15), entretanto, o
João (William Hendriksen) 464
assunto não se afirma simplesmente, mas se elabora de forma total. Jesus
— e só ele — é o bom pastor, porque:
a. Diferente dos fariseus considerados como estranhos (Jo 10:5),
ele conhece as Suas ovelhas. Note-se: “Conheço”. Veja-se Jo 10:27;
2Tm. 2:19. Conhece o nome (Jo 10:3) e o caráter de cada ovelha, e as
ovelhas têm um conhecimento experimental de seu pastor (Jo 10:3, 4).
b. Diferente dos fariseus considerados como assalariados (Jo 10:12,
13), Ele ama as Suas ovelhas, até o ponto de oferecer-se a si mesmo
como sacrifício por elas e em lugar delas. Diz: “Dou a minha vida pelas
ovelhas”. A explicação desta sublime afirmação encontra-se no versículo
11. (Note-se, contudo, a diferença: no versículo 11 emprega-se a terceira
pessoa; aqui no versículo 15 a primeira pessoa; em consequência o
versículo 15 explica o versículo 11).
Note-se também a distribuição quiástica do paralelismo que temos
nestes versos:
a. Conheço os Meus
b. Os Meus me conhecem
c. (igual a) Meu pai Me conhece, e
d. Eu conheço o Pai.
Em a. e d. Jesus, o bom pastor, é o sujeito: a ação parte dele. Em b.
e c. é o objeto: a ação parte das ovelhas e do Pai.
O que Jesus afirma nestes versículos não pode significar que a
comunhão que se acha na terra (entre o bom pastor e as ovelhas) é tão
íntima como a que se acha nos céus (entre o Pai e o Filho), mas que a
primeira é cópia (ou reflexo) da segunda. Quanto à intimidade da
comunhão entre o Pai e o Filho veja-se Jo 10:30, 38; 14:11, 17, 21;
também Mt. 11:27.
Nestes dois versículos o verbo conhecer (γινώσκω) encontra-se
quatro vezes. Veja-se Jo 1:10, 31; 3:11; 8:28. Aqui é conhecimento
experimental e de comunhão amorosa. Jesus conhece aos seus (como
seus verdadeiros discípulos); eles o conhecem (como seu Senhor). Nada
João (William Hendriksen) 465
poderia ser mais maravilhoso! Assim também o Pai conhece o Filho; e o
Filho conhece pai.
16. Ainda tenho outras ovelhas, não deste aprisco; a mim me convém
conduzi-las; elas ouvirão a minha voz; então, haverá um rebanho e um
pastor.
Nem todas as ovelhas pertencem ao rebanho de Israel. O bom
pastor tem também outras ovelhas. Ele as tem até agora porque Lhe
foram dadas pelo Pai no decreto de predestinação desde a eternidade (Jo
6:37, 39; 17:6, 24). Esta é também a razão pela qual mesmo antes de ser
reunidas podem ser chamadas Suas ovelhas. 229
Aqui se proclama uma maior verdade, ou seja, que o rebanho de
Cristo já não ficará praticamente limitado aos crentes dentre os judeus.
Alvorece um novo período. Durante a antiga dispensação todas as nações
— com exceção dos judeus — estavam sob a servidão de Satanás.
Naturalmente não no sentido absoluto do termo, porque Deus sempre é o
rei soberano, mas no sentido de At. 14:16 (NVI): “No passado ele [Deus]
permitiu que todas as nações seguissem os seus próprios caminhos”. Mas
isso vai mudar agora. A igreja vai tornar-se internacional. 230 Por meio da
obra de Paulo e outros grandes missionários que o seguiram seriam
acrescentados à igreja crentes dentre os gentios. Prediz-se aqui a grande
bênção do Pentecostes e da era do evangelho que o seguiu. É um tema
maravilhoso. Em certo sentido já foi predito no Antigo Testamento: Gn.
12:3; Sl. 72:8, 9; 87:4–6; Is. 60:3; Jo. 2:28; Sf. 2:9; Ml. 1:11. Mas ali não
se enfatiza a ideia de que os escolhidos dentre os gentios se unirão sobre
uma base de igualdade com os escolhidos de Israel. O que se costuma
apresentar é que a tenda de Israel será ampliada para poder acolher às

229
João Calvino, op. cit., p. 202: nec vero tantum hoc nomine quales futuri sint docet, quin potius ad
arcanam Patris electionem hoc refert, quia iam oves sumus Deo, antequan ipsum sentiamus nobis esse
pastorem; quemadmodum alibi dicimur fuisse inimici quo tempore nos amabat (Ro. 5:10); qua ratione
etiam Paulus dicit nos prius a Deo fuisse cognitos, quam illum cognosceremus (Gá. 4:9).
230
Veja-se W. Hendriksen, Más que Vencedores, Grand Rapids, Mich., reimpressão 1977, pp. 224–
230. O que encontramos em Jo. 10:16 harmoniza muito bem com o Ap. 20:1–3 (“para que não mais
enganasse as nações”).
João (William Hendriksen) 466
nações (Is. 54:2, 3); que as nações irão ao monte de Jeová em Jerusalém
(Mq. 4:1, 2). No Antigo Testamento não se põe de relevo a ideia de que
os gentios seriam co-herdeiros, co-membros do corpo, e co-participantes
da promessa em Cristo Jesus; em outras palavras, que entrariam no reino
sobre a base de igualdade com os judeus (embora esta ideia não seja
excluída nos profetas). Em consequência, Paulo pôde falar disso como
de um mistério (Ef. 1:9, 10; 3:1–6).
Mas Jesus proclama aqui esta mesma ideia. Note-se que não guia as
ovelhas do paganismo até o redil de Israel. Reúne as ovelhas de Israel e
as ovelhas do paganismo num só rebanho!
Esta passagem pode considerar-se como chave para a explicação do
termo mundo em Jo 1:29; 3:16, 17; 4:42; 6:51; 8:12; 9:5; 11:52; 12:46.
Veja-se sobre Jo 1:10; cf. 12:32.
O bom pastor deve guiá-las. É o dever da predestinação, da
profecia, e do impulso interior, reunidos em um. O pastor as guia (indo
adiante delas, de modo que O possam seguir; veja-se sobre Jo 10:4), e
elas ouvem a Sua voz (veja-se sobre Jo 10:3), que lhes chega na Palavra
que o Espírito aplica ao seu coração. Desta forma todas chegam a formar
um rebanho (não um redil, como dizem algumas versões baseadas na
Vulgata), com um pastor. Cf. Jo 17:20, 21; Ez. 34:23.
17, 18. Por isso, o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a
reassumir. Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a
dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-la. Este
mandato recebi de meu Pai.
Jesus falou de dar a vida (versículos 11, 15). Diz-se às vezes que
Jesus faz o que qualquer bom pastor faz por suas ovelhas. Isto é assim só
no sentido de que nenhum dos dois foge quando se aproxima o lobo.
Mas o Antítipo é sempre melhor que o tipo. A ação de Cristo difere em
duas maneiras da do pastor que arrisca a vida pelo rebanho: a. é um
sacrifício voluntário (quando chegar o momento apropriado, Jesus não
Se apegará à vida, como o pastor que, em sua luta com o lobo, trata de
salvar-se); e b. salva de fato às ovelhas. Advertimos agora (vv. 17 e 18)
João (William Hendriksen) 467
uma terceira diferença: c. Jesus dá a Sua vida para reavê-la. Veja-se
sobre Jo 2:19. Nenhum pastor comum pode fazer isto. A morte de Cristo
(assim como seu nascimento) tem um propósito. Se não teria dado a Sua
vida (ou seja, se tivesse resistido à morte) não teria podido voltar a tomá-
la. De modo que dá para voltar a tomar, e o faz tanto em obediência à
vontade divina como por interesse do Seu povo.
O fato de que a morte de Cristo seja um ato voluntário deve pôr-se
de relevo a fim de que quando ocorrer a morte, os inimigos que a
produziram não tenham direito a jactar-se como se isso fosse sua vitória,
e também para que os discípulos não tenham razão para desesperar-se
como se fosse a derrota de Cristo.
O morrer e ressuscitar de novo são fatos, não simples experiências.
São atos de obediência e amor perfeitos e com um fim. Por esta razão (a
frase aqui olha para o futuro) o Pai ama o Filho (quanto ao significado
do verbo _γαπάω veja-se sobre Jo 21:15–17) “porque”, diz Jesus, “Eu
dou a minha vida para a reassumir”. O Pai mostrará Seu amor com a
recompensa descrita em Fp. 2:9.
Vendo de forma profética todo o seu sacrifício expiatório da
perspectiva de quem já o realizou, Jesus diz: “Ninguém a tira de mim;
pelo contrário, eu espontaneamente a dou”. Assim, pois, volta a enfatizar
o caráter voluntário da ação. À parte dessa natureza voluntária, a morte
de Cristo não teria tido nenhum valor salvador. Sem o aspecto resolvido
e determinado que teve Jesus em caminho para Jerusalém e à Cruz, não
teria prosperado em Suas mãos a complacência de Jeová. Veja-se Jo
18:4–11; Mt. 26:52–54; 27:50; Rm. 5:8; Hb. 9:14; e cf. Is. 53:10.
Ninguém tem direito de entregar a vida, mas Jesus sim o teve. Teve
tanto o direito de entregá-la como de tomá-la de novo. No entanto, a
tradução exata do termo _ξουσία (veja-se também sobre Jo 1:12) não é
fácil. De fato, é duvidoso que exista em português o equivalente
completo do termo grego. traduziu-se como “direito”, “autoridade”,
“liberdade”, “poder”. O fato de que Jesus tenha a _ξουσίαν significa
provavelmente que nada no âmbito do que é nem no âmbito do que é
João (William Hendriksen) 468
possível podiam lhe impedir que fizesse o que desejava fazer. É livre de
fazer o que tenta, em todos os aspectos. Neste caso não só é livre mas
também recebeu do Pai um encargo ou comissão concreto, um encargo
de fazer o que ele mesmo queria fazer. (Quanto ao significado do termo
encargo veja-se também sobre Jo 13:34.) Também aqui a vontade do
Filho como Mediador harmoniza totalmente com a do Pai. O Pai
entregou o Filho à morte (Jo 3:16), o Filho Se entregou a Si mesmo. O
Pai ressuscitaria o Filho; o Filho voltaria a reassumir Sua vida.
19–21. Por causa dessas palavras, rompeu nova dissensão entre os
judeus. Muitos deles diziam: Ele tem demônio e enlouqueceu; por que o
ouvis? Outros diziam: Este modo de falar não é de endemoninhado; pode,
porventura, um demônio abrir os olhos aos cegos?
Não é difícil entender que para a compreensão do homem natural as
palavras de Jesus pareciam estultícia. Por que alguém entregaria a vida
para voltar o tomá-la? Certo que alguns querem suicidar-se, mas sem
dúvida não com a intenção de voltar à vida de novo embora pudessem.
Muitos (talvez, a maioria; veja-se também sobre Jo 9:16) raciocinavam
desta maneira. Por isso, disseram, “Tem um demônio, e está fora de si”.
Veja-se sobre Jo 7:20, 49, 52; 8:48. Não quiseram identificar a loucura
com o ser possuído do demônio, mas procuraram transmitir a ideia de
que Jesus, por estar certamente sob o controle de um espírito mau, estava
dizendo estultícias. Em consequência, por que alguém O escutaria?
Nem todos estavam de acordo com este sentir. Voltou a produzir-se
uma divisão (cisma) entre os judeus. Em Jo 6:52; 7:43; 9:16 podem-se
ver outros exemplos de choques de opinião. Os que estiveram em
desacordo com a maioria pensavam em toda a bela alegoria do bom
pastor quem, ao contrário dos estranhos, conhece as suas ovelhas, ao
contrário dos ladrões e salteadores, é dono de suas ovelhas, e, em
contraste com os assalariados, ama as suas ovelhas. Talvez não
entendiam tudo, mas estavam seguros de uma coisa: “Este modo de falar
não é de endemoninhado”. Além disso, não tinham esquecido o grande
milagre que Jesus havia realizado fazia muito pouco tempo. Segundo
João (William Hendriksen) 469
eles, este milagre tinha valor de prova (veja-se sobre Jo 9:16, 31–33).
Agora não lhes interessa debater a questão: «Indica o fato de abrir os
olhos do cego de nascença que Jesus é de Deus?» Assumem uma posição
que inclusive à primeira vista, parece incontestável: “Pode, porventura,
um demônio abrir os olhos aos cegos?” A implicação é: “Certo que
não!” Observe-se o impressionante e dramático que é esta frase final do
relato com que o quarto Evangelho reproduz o discurso sobre o bom
pastor. Jerusalém recebeu a um Grande Visitante. Ninguém pode ser
neutro diante dEle!

Síntese de Jo 10:1–21
O Filho do Homem Se revela a Si mesmo como o Bom Pastor. Seus
inimigos o consideram como maníaco endemoninhado.
Nesta atrativa alegoria Jesus Se descreve a Si mesmo como o Bom
Pastor, em oposição aos pastores maus que prejudicam as ovelhas (tendo
em mente, sem dúvida, os fariseus que tinham expulso o homem ao que
Jesus tinha curado de sua cegueira).
A figura que subjaz na alegoria é a do pastor oriental, que pela
manhã procura entrar no redil onde dormem suas ovelhas. O porteiro lhe
abre, e então o pastor tira suas próprias ovelhas as chamando pelo nome
que lhes deu. Logo, um pouco mais tarde, vemos o pastor que guia as
ovelhas para os pastos, e as chamando faz com que sintam a sua
constante presença. De noite o pastor volta com o rebanho e o protege
contra os lobos. Está disposto, se fosse necessário, a arriscar sua própria
vida em defesa delas. Como é verdadeiro pastor está profundamente
interessado em suas ovelhas.
Devemos distinguir entre o símbolo e a realidade que o símbolo
indica. Às vezes — como em Jo 10:1–5, 12, 13 — o símbolo “brota à
superfície”, por assim dizer. É tão claro que devemos lembrar vez após
vez que estas coisas significam algo. Outras vezes — como em Jo 10:6,
11, 14–18 — as próprias realidades (Jesus, cuidando aos seus, dando
João (William Hendriksen) 470
sua vida por eles; crentes humildes, que confiam nEle e Lhe obedecem;
os fariseus que odeiam a Jesus e a Seus seguidores) são muito mais
evidentes.
Como se indicou, há, principalmente, três realidades que requerem
atenção, como também se indica com os três pontos principais do
seguinte resumo:

A alegoria do Bom Pastor


I. O amigo das ovelhas: o Bom Pastor
Neste termo vai envolto tudo o que indica propriedade legítima,
completa, protetora, conhecimento surpreendente, íntimo, intuitivo, e
amor ilimitado, decidido, sacrificado. As ações do bom pastor se
resumiram na p. 372. O pensamento principal é este, que todo o bem que
um pastor terrestre possa ter não é mais que reflexo tênue da “beleza”
transcendental (lembre o adjetivo grego: καλός) do grande antítipo Jesus,
o Bom Pastor real e genuíno, o único de sua classe. Possui, conhece e
ama as Suas ovelhas, e faz tudo isto de uma forma maravilhosa!
Embora haja só um bom pastor, ou seja, Jesus, no entanto,
encontram-se aqui lições para todos os pastores ajudantes, para todos os
ministros. O ministro também deveria exercer um cuidado protetor com
relação ao seu rebanho, deveria conhecer cada membro, e deveria amar
meigamente a cada um deles. Em relação a isso a igreja primitiva
formulava a seguinte pergunta premente: “Está permitido ao pastor
abandonar alguma vez as suas ovelhas; por exemplo, se a vida do pastor
correr perigo? Os integrantes de ambos os lados da controvérsia faziam
afirmações extremas. Alguns sustentam que esta ação é permitido só se
a. houver outro pastor ajudante que pode assumir imediatamente a
responsabilidade; e se b. ao abandonar as ovelhas que pertencem a uma
parte do redil, salva-se a vida do pastor para servir em outra parte e para
voltar possivelmente mais tarde ao seu posto inicial. Outros
simplesmente sublinham que deverá fazer o que promoverá o máximo
João (William Hendriksen) 471
bem do maior número possível. Que outro pastor ajudante e toda
denominação que o envia estudem este problema à luz das lições que se
podem deduzir legitimamente da alegoria presente. Enquanto isso, a
ideia principal é, sem dúvida, não o pastor ajudante, mas o único bom
pastor, que nunca abandona a suas ovelhas.

II. O inimigo das ovelhas: ladrões e salteadores, estranhos,


assalariados
São ladrões e salteadores, porque não são donos das ovelhas;
estranhos, porque não conhecem as ovelhas; assalariados, porque não
amam as ovelhas. De modo que, são em todo a contraposição exata do
bom pastor (veja-se acima, primeira frase sob I).
Procuram apoderar-se das ovelhas pela intimidação: escalam a
cerca para introduzir-se no redil. Procuram atrair as ovelhas por meio da
imitação (falsa filosofia, falsa religião, falsa ética). Quando se aproxima
o perigo, separam-se das ovelhas. São totalmente egoístas, símbolo
adequado dos fariseus da época de Jesus e de muitos falsos líderes em
todas as épocas da história.

III. As ovelhas
Têm as seguintes características:
1. Ouvem a voz do pastor, mas não a dos estranhos (Jo 10:3–5).
2. Seguem ao pastor, mas se apartam dos estranhos (Jo 10:4, 5).
3. Entram pela porta (fé genuína em Jesus e em Sua justiça), são
salvas, entram e saem e encontram pasto (Jo 10:9). Conseguem vida e
abundância (Jo 10:11).
4. Nem todas pertencem ao mesmo redil, mas todas chegarão a
constituir um rebanho, com um pastor, Jesus (Jo 10:16).
Em todo momento dá-se a entender a dependência absoluta das
ovelhas com relação ao pastor. As ovelhas dependem dEle quanto a
provisão, direção e proteção. O pastor “é tudo” para elas. E elas colocam
João (William Hendriksen) 472
toda sua confiança nEle. Benditas as ovelhas que têm tal pastor! Nenhum
inimigo poderá jamais perturbá-las.

JO 10:22–42

10:22a. O evangelista passa imediatamente dos eventos que, em


geral, pertencem à festa dos Tabernáculos, à festa da Dedicação.
Celebrava-se em Jerusalém a Festa da Dedicação. Mas onde esteve Jesus
entre estas duas festas? Onde esteve entre outubro e dezembro do ano 29
d.C.? As opiniões variam. Uns dizem, «passou este tempo no lugar onde
João primeiro batizava». Baseiam isto em Jo 10:40 (na palavra de novo),
mas não é difícil ver que esta conclusão não é de modo algum lógica.
Outros fazem Jesus viajar de volta a Galileia. E outros sustentam que se
manteve encerrado na cidade, que passou o tempo em Betânia, ou que
esteve “em algum lugar” na Judeia (cf. Jo 10:1–13:21). João
simplesmente não dá nenhuma informação concreta com relação a este
ponto.
Na festa da Dedicação da última parte de dezembro, Jesus segue (ou
está de novo) em Jerusalém. Esta festa era (e continua sendo hoje em
dia) a comemoração da purificação e rededicação do templo da parte de
Judas Macabeu no ano 165 a.C. (no dia vinte e cinco de Quisleu, que é
mais ou menos nosso dezembro), exatamente três anos depois de ter sido
profanado pelo ímpio Antíoco Epifânio. Veja-se Macabeus 1:59; 4:52,
59; Flávio Josefo, Antiguidades XII, vii, 7; L. Finkelstein, The Jews,
Their History, Culture and Religion, dois volumes, Nova York, 1949,
vol. II, p. 1373; cf. também Dn. 8:14. É uma festa alegre de oito dias,
notável pela iluminação das casas (por isso chamada também “festa das
Luzes”) e reuniões familiares. Embora não seja uma das três grandes
festas de peregrinação, no entanto atraía muitas pessoas a Jerusalém.
10:22b, 23. Era inverno. Jesus passeava no templo, no Pórtico de
Salomão.
João (William Hendriksen) 473
Tinha chegado a estação chuvosa. Por isso, não surpreende que
Jesus caminhasse pelo pórtico coberto que discorria ao longo do muro
oriental do templo. Diz-se que este pórtico era a única coisa que ficava
do templo original. Por isso chamava-se Pórtico de Salomão (veja-se
também At. 3:11; 5:12). Subsistiu até a destruição do templo por Tito, 70
d.C. (Flávio Josefo, Antiguidades XX, ix, 7).
24. Rodearam-no, pois, os judeus e o interpelaram (veja-se sobre Jo
1:19), ainda doídos pela dura repreensão verbal que Jesus lhes fez
quando, de forma implícita, tinha-os chamado ladrões e salteadores,
estranhos e assalariados (Jo 10:1–18), rodearam-no a fim de lhe fazer
dizer algo a partir do que pudessem levá-lo à morte.
Por isso lhe expõem a pergunta: Até quando nos deixarás a mente
em suspenso? Literalmente lhe disseram: Até quando nos terás a alma em
suspense? O que tem aqui o significado de manter alguém em suspense,
como aparece claramente pela frase que segue imediatamente: Se tu és o
Cristo, dize-o francamente. 231 (“Não nos deixes na incerteza”). Quanto ao
significado de ψυχή veja-se Jo 10:11 Pode-se perguntar, “Por que Jesus
não lhes tinha dito abertamente (quer dizer, com tantas palavras): “Eu
sou o Cristo”? revelou-se como tal à mulher samaritana (Jo 4:25, 26).
Por que não tinha utilizado a mesma linguagem clara ao falar com os
judeus? Deram-se várias respostas a esta pergunta; no entanto, a melhor,
a nosso parecer, é a tradicional; ou seja, que para a mente judaica
(sobretudo, os líderes religiosos judeus, hostis a Jesus) ser o Cristo
significava ser o rei político (mais que espiritual) de Israel, em rebelião
contra o governo romano. Cf. Mt. 26:63 e Lc. 23:2. Se Jesus tivesse
utilizado a linguagem clara que agora pediam, tê-lo-iam interpretado mal
por completo. Veja-se também Jo 6:15. Com relação a isso deve ter-se
em mente que nem sequer à mulher samaritana Jesus Se deu a conhecer a
Si mesmo como o Cristo até que não lhe teve dado uma lição muito
necessária com relação ao caráter espiritual da religião.

231
I D; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 474
Mas embora Jesus não tenha utilizado as mesmas palavras que
agora os judeus procuravam obter de Seus lábios, se tinha utilizado, no
entanto, frases que claramente implicavam que se considerava a Si
mesmo como o Messias; no sentido estritamente espiritual, no entanto.
Veja-se também sobre Jo 8:25; e logo sobre Jo 8:23, 24. Daí:
25a. Respondeu-lhes Jesus: Já vo-lo disse, e não credes.
Se os judeus tivessem estado dispostos a acolher as palavras de
Jesus com coração crente, teriam sabido que Jesus era, de fato, o
Messias, o Filho de Deus enviado pelo Pai para realizar a tarefa
mediadora. A afirmação, “Já lhes vo-lo disse”, está totalmente
justificada, como o pode comprovar qualquer um al ler as seguintes
passagens: Jo 5:17–47; 6:29, 35, 51, 65; 7:37–39; 8:12–20, 28, 29, 42,
56–58; e 10:7–18. Jesus explica que a incredulidade tem um efeito
ofuscante e embrutecedor: a falta de compreensão espiritual. Em Jo 8:43
o Senhor manifestou a mesma ideia com estas palavras: “Por que não
entendem o que digo? Porque não suportam ouvir a minha palavra”.
Veja-se sobre esse versículo.
25b, 26. Jesus prossegue: As obras que eu faço em nome de meu Pai
testificam a meu respeito. Jesus não só lhes falou de Sua origem e caráter
sublime, mas sim o demonstrou! As palavras foram acompanhadas de
obras. Pense-se no paralítico no tanque de Betesda e no cego de
nascença (veja-se capítulos 5 e 9). Jesus fazia constantemente opera no
nome de seu Pai; quer dizer, sob Sua direção, em cooperação com Ele, e
especialmente, com o propósito de revelar Seu poder, amor e glória. Que
estas obras tinham valor de prova — indicando claramente que Jesus é o
comissionado pelo Pai para levar a cabo o plano de salvação — foi
afirmado antes (veja-se 5:20, 36; e cf. sobre Jo 9:31–33; quanto ao
significado do termo dar testemunho, veja-se sobre Jo 1:7).
Os judeus, no entanto, tinham fechado os olhos ao significado
destes sinais. Pior ainda, faziam todo o possível para paralisar o efeito
que podiam produzir entre o povo. Por isso Jesus diz aos judeus, mas vós
não credes o que estas obras ensinam com tanta clareza. Este sentença de
João (William Hendriksen) 475
não crer, esta aberta hostilidade, é seu pecado. Disto, eles — e só eles —
são totalmente responsáveis. No entanto, está também o fator da
predestinação divina: “mas vós não credes, porque não sois das minhas
ovelhas”. As ovelhas do bom pastor são as que Lhe foram dadas pelo Pai
(Jo 10:29; cf. 6:39, 44). Ouvem a voz do pastor e O seguem (Jo 10:3, 4).
Voltando à perspectiva do decreto divino, observe-se o seguinte:
embora todos os homens tenham pecado em Adão, e estão sob a
maldição, merecendo a morte eterna, ninguém pode jamais acusar a
Deus de injustiça por ter deixado que alguns pereçam, enquanto que
escolheu a outros dentre esta massa de corrupção para que sejam Seus.
Confessamos, naturalmente, que não nos é possível harmonizar estas
duas linhas que correm paralelas na Bíblia (e às vezes, como aqui, num
só versículo: Jo 10:26): a responsabilidade humana por um lado, e a
predestinação divina pelo outro. Negar qualquer das duas é estultícia.
Jesus traça claramente ambas as linhas, e também João (e a Bíblia em
geral; cf. Lc. 22:22; At. 2:23), e isto repetidas vezes. Não só isto, mas
também o fator da predestinação divina é mais básica que o da
responsabilidade humana; mais básico no sentido de que os que ouvem a
voz de Cristo e O seguem (confiam nEle e Lhe obedecem), fazem-no
porque foi-lhes dado e foram atraídos; e os que não o escutam e seguem
permanecem neste estado de incapacidade porque Deus não quis resgatá-
los da condição na qual, por própria culpa deles, afundado-se. Observe-
se a conexão causal: “Mas vós não credes, porque não sois das minhas
ovelhas”. Deus não está obrigado a salvar os que se quiseram destruir a
si mesmos. Além disso, deve sempre ter-se em mente que da parte deles
sempre vão juntos a incapacidade e a má vontade. Em consequência, em
toda esta exposição Deus continua sendo tanto santo como soberano, e é
o homem sobre quem recai toda a responsabilidade.
27, 28. As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas
me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as
arrebatará da minha mão.
João (William Hendriksen) 476
Se examinarmos esta sublime frase de um ponto de vista puramente
formal notaremos seis partes distribuídas numa bela relação recíproca.
Poderia representar-se da seguinte maneira:

Minhas ovelhas Eu
1. escutam minha voz e 2. as conheço;
3. me seguem e 4. lhes dou a vida eterna;
5. nunca perecerão e 6. cuidarei para que ninguém
as arrebate de mim.

No entanto, deve sublinhar-se que é assim só de um ponto de vista


formal. Não está certo basear conclusões doutrinárias erradas nesta
distribuição retórica, e dizer, por exemplo, que de fato, os seis elementos
são simultâneos. É evidente que ninguém pode fazer-se a si mesmo
ovelha (Jo 6:38, 44; 10:29); as ovelhas não ouvem a voz até que essa voz
seja primeiro emitida; e as ovelhas não seguem até que o pastor as tire do
redil e vai adiante delas (Jo 10:3, 4). Além disso, porque o bom pastor dá
às ovelhas vida eterna, estas nunca morrem e ninguém as arrebatará da
mão do pastor. As ovelhas não são passivas. Claro que não! Ouvem;
seguem. Mas a ação procede do dom. Elas mesmas são o dom do Pai ao
Filho. Este pensamento fica de relevo neste mesmo contexto (versículo
29).
Os seis elementos foram mencionados antes com ligeiras variações.
Em consequência, para sua explicação referimo-nos simplesmente às
passagens nas quais estas verdades já se expressaram. Tenha a bondade
de referir-se às seguintes passagens:
1. Minhas ovelhas ouvem a minha voz. Veja-se sobre Jo 10:3, 8, 16.
2. E eu as conheço. Veja-se sobre Jo 10:3, 14.
3. E elas me seguem. Veja-se sobre Jo 10:4, 5.
4. E lhes dou vida eterna. Veja-se sobre Jo 10:10 e sobre Jo 3:16.
5. E não perecerão. Veja-se sobre Jo 3:16.
6. E ninguém as arrebatará de minha mão. Veja-se sobre Jo 10:12.
João (William Hendriksen) 477
O que aqui se afirma, em consequência, equivale brevemente a isso:
«Minhas ovelhas — que o chegaram a ser porque meu Pai as deu para
mim (Jo 10:29) — esforçam-se para captar o som de Minha voz. Fazem-
no constantemente. Obedecem-Me com fidelidade, colocando toda sua
confiança em Mim. Eu as conheço, reconhecendo-as como Minhas. Elas
Me seguem e se apartam dos estranhos. Dou-lhes aqui e agora (bem
como no futuro) essa vida que tem suas raízes em Deus e que pertence
ao futuro, ao reino de glória. Em princípio essa vida passa a ser
possessão delas inclusive antes chegarem ao céu. Essa vida é a salvação
plena e gratuita, e se manifesta na comunhão com Deus em Cristo (Jo
17:3); no compartilhar o amor de Deus (Jo 5:43), Sua paz (Jo 16:33) e
Sua alegria (Jo 17:13). Em consequência, difere em qualidade da vida
que caracteriza a era atual, visto que é o extremo oposto. Nunca acaba.
As ovelhas certamente nunca perecerão; quer dizer, nunca entrarão no
estado de ira, a condição de ser separadas para sempre da presença do
Deus de amor. E ninguém as arrebatará de Minha mão (simbolizando
meu poder)».
Alguns comentaristas insistem em que quando Jesus afirma “Jamais
perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão”, não quer realmente
dizer isso. Estão tão seguros de que há crentes que, afinal de contas,
perdem-se, que não estão dispostos a aceitar o que é o sentido óbvio da
Bíblia. Mas deve ter-se em mente, como se mostrou antes (veja-se p.
311; veja-se também Jo 4:4; 6:39, 44) que no quarto Evangelho a ideia
da predestinação (e às vezes também seu corolário: a perseverança dos
santos, o ser protegidos pelo poder de Deus de modo que permanecem
unidos a Ele até o final) sublinha-se constantemente (veja-se Jo 2:4;
4:34; 5:30; 6:37, 39, 44, 64; 7:6, 30; 8:20; 13:1; 18:37; 19:28). Por isso,
é totalmente vão negar isso e refugiar-se numa passagem que,
considerando-o só à primeira vista, pode parecer estar em conflito com
este ensino constante. Por isso, com frequência utiliza-se Jo 15:6 para
negar o que João enfatiza com tanta clareza; mas veja-se o que dizemos
nesse versículo. A base da salvação do homem descansa sempre em
João (William Hendriksen) 478
Deus, não no homem. Este ponto não o captam os que ensinam que o
homem pode, afinal de contas, libertar-se do poder de Deus. Em
consequência, Deus vem a ser destronado, e perde-se o consolo da
segurança da salvação.
29. Aquilo que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai
ninguém pode arrebatar.
Este versículo apresenta um problema textual muito conhecido. O
original tem duas versões diferentes, e cada uma delas tem por sua vez
variações ligeiras em distintos manuscritos. Quando as versões diferem,
as traduções baseadas nelas também diferem. Aquela que nós preferimos
também é adotada por alguns comentaristas como F. W. Grosheide, C.
Bouma, e outros. “O que meu Pai me deu é mais excelente do que tudo,
e ninguém o pode arrebatar das mãos de meu Pai”. Esta versão (e em
consequência, também a tradução) que preferimos tem maior respaldo,
muito sentido, e está em total harmonia com o contexto; por isso
comentaremos os argumentos que se suscitaram contra ela, (e em favor
de uma versão mais fraca) numa nota. 232

232
Têm sido esgrimidas as seguintes objeções:
(1) Alguns intérpretes afirmam que o apoio textual para a versão que escolhemos é, afinal de
contas, fraco; pelo menos insuficiente. Mas terei que ter muito cuidado a este respeito. O exame das
provas — veja-se, p. ex., N. N. — nos convence de que a verdadeira situação é esta: a versão que
seguimos, e que faz com que o verdadeiro sujeito da primeira cláusula se refira ao rebanho, tem
evidentemente o apoio textual mais forte, embora dentro deste grupo de manuscritos há variações
quanto a pontos de menor importância.
(2) Diz-se que a gramática é irregular, a sintaxe estranha, especialmente porque a frase começa
com as palavras “meu Pai” (tradução literal: “meu Pai, o que me deu”, etc.) Mas o aramaico (que em
todo caso é anterior ao grego) usa muito “nominativos pendentes”. Veja-se IV da Introdução. Além
disso, não é estranho, no contexto presente, que a frase enfatize as palavras meu Pai. Veja-se ponto:
(3). E por outro lado, as dificuldades gramaticais da outra versão são pelo menos igualmente
grandes. Por exemplo, enquanto não é muito estranho omitir um pronome (para substituí-lo
mentalmente), sem dúvida é bastante estranho num espaço tão breve omitir dois pronomes esperados.
Literalmente, a frase, segundo a versão que rejeitamos, seria assim: “O Pai que me deu é maior, e
ninguém pode arrebatar de sua mão”. Quem deu o quê? Arrebatar o quê?
(3) Perguntou-se, “Em que sentido são as ovelhas (tomadas aqui de forma coletiva, o rebanho; daí
o quê) mais excelentes (literalmente maior) que tudo?” A resposta é: exatamente no sentido de que
constituem o dom do pai ao Filho no decreto eterno de predestinação. Todos os homens são objeto da
João (William Hendriksen) 479
Observe-se que Jesus utiliza a expressão meu Pai (não nosso Pai).
Ele o faz assim porque Sua filiação é totalmente única (veja-se sobre Jo
1:14).
Ao ver as ovelhas como um rebanho, Jesus Se refere a elas como “o
que meu Pai me deu”. Com relação a este dom do Pai ao Filho veja-se
também Jo 6:37, 39, 44. A pessoa retém um dom, especialmente se for
um dom de alguém tão querido como o é o Pai para o Filho. Isto explica
o versículo 28: “Ninguém as arrebatará da minha mão (do Filho)”. Mas
também explica o versículo 29: o Pai cuidará e protegerá o que, em amor
incompreensível, deu ao Seu Filho. Note-se também que neste caso o
que o Pai deu ao Filho continua sendo possessão do Pai (agora é
possessão de ambos). Este dom, pois, por ser mais excelente
(literalmente maior; em consequência, mais precioso) que todas as
demais criaturas (veja-se nota 235, ponto 3), não pode perecer nunca. Os
verdadeiros crentes nunca perdem-se. São objetos do cuidado
especialíssimo de Deus, que descansa nesse amor que predestina.
“Ninguém pode arrebatar”. Este ninguém (pense-se no lobo de Jo
10:12) deve entender-se em seu sentido absoluto. Nem Satanás, nem o
hábil falso profeta, nem o poderoso perseguidor, nem ninguém mais
poderão nunca arrebatar da mão do Pai nenhuma ovelha do rebanho. Cf.
1Pe. 1:4, 5. Veja-se também sobre o versículo 28.
30. No versículo 28 Jesus falou a respeito de Seu próprio amor pelas
ovelhas; no versículo 29 a respeito do amor de Seu Pai. Ninguém as
arrebatará nem da mão do Filho nem da do Pai, porque são mais

providência especial de Deus, mas só as ovelhas são o objeto da especialísima providência de Deus
(veja-se Rm. 8:23).
(4) Afirma-se que a versão (e tradução) que preferimos não concorda com o contexto. Pelo
contrário, estamos convencidos de que harmoniza muito bem com o contexto. Note-se que segundo o
versículo 28 Jesus acaba de dizer, com relação às ovelhas, “Ninguém as arrebatará da minha mão”.
Surge espontaneamente a pergunta, “Por que não?” A resposta (versículo 29) é, em essência: «Porque
são tão valiosas tanto para o Pai como para mim, porque o Pai as deu para mim”.
Não vemos nenhuma razão, por conseguinte, para nos apartar do que consideramos ser o melhor
texto.
João (William Hendriksen) 480
preciosas que tudo o mais. Em consequência, com relação a este cuidado
protetor, o Filho (versículo 28) e o Pai (versículo 29) são um. Por isso
Jesus diz, Eu e o Pai somos um.
No entanto, como em outras passagens, ensina-se claramente que a
unidade é algo não só de operação externa mas também (e basicamente)
de essência íntima (veja-se em especial Jo 5:18 mas também Jo 1:14, 18;
3:16), é evidente que também aqui não se pode ter querido dizer senão
isso. Certamente, se o Filho e o Pai são essencialmente um, então quando
Jesus afirma, “Eu e o Pai somos um”, não pode querer dizer
simplesmente, “somos um quanto a prover cuidado protetor às ovelhas”.
A trindade econômica descansa sempre na trindade essencial (veja-se
sobre Jo 1:14 e 1:18).
Note-se com quanto cuidado aqui se expressa tanto a diversidade
das pessoas como a unidade da essência. Jesus diz, “Eu e o Pai”.
Portanto, fala claramente de duas pessoas. E esta pluralidade se
manifesta também com o verbo (em grego uma palavra) “nós somos”
(_σμεν). Estas duas pessoas nunca se convertem numa pessoa. Por isso
Jesus não diz “Somos uma pessoa” (ε_ς), mas diz: “Somos uma
substância” (_ν). Embora sejam duas pessoas, as duas são uma
substância ou essência. Tem-se dito muito bem que _ν livra-nos do
Caríbdis do arianismo (que nega a unidade da essência), e _σμεν de Cila *
do sabelianismo (que nega a diversidade das pessoas). Assim, pois, nesta
passagem Jesus afirma sua igualdade completa com o Pai.
31. Os judeus (veja-se sobre Jo 1:19) compreenderam muito bem
que Jesus, ao dizer “Eu e o Pai somos um”, tinha afirmado Sua igualdade
absoluta com o Pai. Veja-se sobre Jo 5:17, 18. Agora, se Jesus não
tivesse sido Deus, estes judeus teriam tido muita razão em considerar
esta afirmação como blasfêmia. Que assim o fizeram é dito no versículo
33. Além disso, também tinham razão ao proceder sob o suposto de que

*
A expressão «entre Cila e Caríbdis» é uma forma invulgar de «entre a espada e a parede» e significa
estar «num dilema, em perigo iminente, em grande dificuldade» – Nota do Tradutor.
João (William Hendriksen) 481
o blasfemo deva ser apedrejado até a morte, porque a lei assim o
prescrevia (Lv. 24:16). Seu raciocínio pode-se expressar em forma de
silogismo, como segue:
Premissa maior: Um blasfemo deve ser apedrejado até a morte.
Premissa menor: Este homem é blasfemo.
Conclusão: Este homem deve ser apedrejado até a morte.
Este raciocínio era muito lógico, mas a premissa menor era errônea.
Em consequência, a conclusão era errônea e … ímpia! (Não esquecemos,
naturalmente, que, inclusive, a premissa maior era certa só do ponto de
vista da teocracia do Antigo Testamento, e não legalmente possível na
situação política atual.) Era ímpia porque Jesus tinha subministrado
provas abundantes de Sua filiação divina.
Os judeus pegaram, então, outra vez, em pedras para o apedrejarem
[RC]. Note-se que os judeus pegram pedras. O verbo é _βάστασαν de
βαστάζω que quer dizer: levar, causar, levar-se. Assim em Jo 12:6, diz-
se que Judas tirava o que se punha na bolsa; em Jo 16:12 Jesus diz aos
discípulos que neste tempo não podiam levar (suportar) o que devia lhes
dizer; em Jo 19:17 se descreve a Jesus levando Sua própria cruz; e em Jo
20:15 Maria Madalena lhe diz ao que considerava como hortelão,
“Senhor, se tu o levaste”, etc. No contexto presente a ideia parece ser
que os judeus, desejando executar a sentença que a lei estabeleceria no
caso dos blasfemos, foram à parte do templo na qual ainda se estava
construindo, e tendo recolhido algumas pedras começaram a levá-las
para o Pórtico de Salomão. A palavra voltaram a refere-se ao fato de que
esta não era a primeira vez que tinham procurado apedrejar a Jesus (veja-
se sobre Jo 8:59 e cf. Jo 11:8).
32. Disse-lhes Jesus: Tenho-vos mostrado muitas obras boas da parte
do Pai. Jesus tinha realizado muitas obras belas em intenção e execução
(quanto ao adjetivo veja-se sobre Jo 10:11). Tinham sido realizadas sob a
direção do Pai, e manifestaram Sua glória (poder, sabedoria, graça); daí,
“da parte do Pai”. Estas obras deviam ter convencido os judeus de que
este era, realmente, o Filho de Deus. Tinha havido muitos (veja-se
João (William Hendriksen) 482
capítulos 5, 6, 9, também Jo 2:23, e as obras que se mencionam nos
Sinóticos) grandes obras que tiveram como desígnio salvar ou manter a
vida tanto física como espiritual.
Agora Jesus pergunta: por qual delas me apedrejais? O que Jesus
quer dizer é: «por que classe de obras (sublinha-se a qualidade) procurais
(indicativo presente ativo conativo) apedrejar-me?» As obras que Jesus
tinha realizado, sendo obras do Pai, mostravam que Jesus e o Pai eram
um; por conseguinte, que não era blasfemo e não deveriam apedrejá-Lo
por isso mas adorá-Lo!
33. Responderam-lhe os judeus: Não é por obra boa que te
apedrejamos, e sim por causa da blasfêmia, pois, sendo tu homem, te fazes
Deus a ti mesmo. Os judeus não entenderam absolutamente a observação
de Jesus com relação a Suas boas obras. Para eles o que Jesus disse em
Jo 8:30 era muito mais importante que o que fez. De fato, para eles, o
que disse com relação a Si mesmo estragava tudo o que fez, subtraindo
disso tudo significado e valor. Pelas conseguintes comparações fica
evidente que compreenderam o fato de que Ele Se atribuía igualdade
completa com o Pai.
Jn 5:17, 18: “Mas ele lhes disse: Meu Pai trabalha até agora, e eu
trabalho também. Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-
lo, porque não somente violava o sábado, mas também dizia que Deus
era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus”.
Jn 8:58, 59: “Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade eu
vos digo: antes que Abraão existisse, EU SOU. Então, pegaram em
pedras para atirarem nele”.
Jn 10:30, 31, 33: “Eu e o Pai somos um. Novamente, pegaram os
judeus em pedras para lhe atirar … Responderam-lhe os judeus: Não é
por obra boa que te apedrejamos, e sim por causa da blasfêmia, pois,
sendo tu homem, te fazes Deus a ti mesmo”.
Os judeus consideravam Jesus como um simples homem que
cometeu o terrível pecado de procurar fazer crer em outros que era Deus.
Isto era blasfêmia, que devia ser castigada com a morte.
João (William Hendriksen) 483
34–36. Replicou-lhes Jesus: Não está escrito na vossa lei: Eu disse:
sois deuses? Se ele chamou deuses àqueles a quem foi dirigida a palavra
de Deus, e a Escritura não pode falhar, então, daquele a quem o Pai
santificou e enviou ao mundo, dizeis: Tu blasfemas; porque declarei: sou
Filho de Deus? 233
A argumentação que Jesus utiliza é irrebatível. Baseia se no Sl. 32:6
no qual se descreve a Deus no ato de entrar na reunião dos juízes e
condená-los devido a suas injustiças. A argumentação, brevemente,
equivale a isto:
1. Não se pode quebrantar a Escritura. É absolutamente
indestrutível, sem importar como o homem a considere. O Antigo
Testamento, tal como está escrito, é inspirado, infalível, autoritativo.
(Note-se que os dias de Karl Barth ainda não tinham chegado.)
2. Agora, a Escritura (sua lei, vossa porque lhe dão tanta
importância, cf. em Jo 8:17; lei porque todo o Antigo Testamento é a lei,
ou também porque esta passagem implica uma ordenança divina) chama
os homens deuses. Utiliza este título com relação aos juízes, porque
representam a justiça divina: a eles veio a Palavra de Deus. Pense-se na
lei moral de Moisés, que era (pelo menos, deveria ter sido) a base de
suas decisões em casos concretos.
3. Nunca protestastes por este uso do termo. Nunca dissestes que
Deus (ou Asafe) cometeu um erro ao chamar a estes juízes deuses.
4. Então com mais razão (o argumento procede de menor a maior,
de menos a mais) deveriam abster-se de protestar quando Eu me chamo a
Mim mesmo Filho de Deus. Notem-se as diferenças:
a. A Palavra de Deus (de forma escrita) tinha vindo aos juízes, mas
Jesus é Ele mesmo, em sua própria pessoa, a Palavra de Deus (a Palavra
encarnada).
b. Os juízes tinham nascido, como outros homens, mas Jesus foi
enviado ao mundo (vindo do alto).

233
I B; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 484
c. Os juízes eram filhos de Deus num sentido geral somente, Jesus é
o unigênito de Deus (veja-se sobre Jo 1:14, 18; 3:16).
d. Os juízes receberam uma tarefa muito importante mas,
comparada com a de Jesus, inferior; pelo contrário Jesus foi consagrado
(separado e capacitado, cf. Jo 17:19) e enviado (de _ποστέλλω; veja-se
sobre Jo 3:17, 34; 5:36–38) ao mundo para ser Salvador.
37, 38. Se não faço as obras de meu Pai, não me acrediteis; mas, se
faço, e não me credes, 234 crede nas obras; 235 para que possais saber e
compreender que o Pai está em mim, e eu estou no Pai.
A chamada de Jesus, convidando aos homens a pôr sua confiança
nEle, é terna e séria. Foi infrutífero este convite? Diante do fato de que a
maioria dos ouvintes eram inimigos da verdade, pareceria que a resposta
correta é a afirmativa. Mas deve ter-se em mente que inclusive entre os
(atuais) inimigos Deus com toda probabilidade há alguns escolhidos que
em última instância irão a Ele.
A alternativa que Jesus apresenta a seu auditório é esta: a. Se não
faço as obras de Meu Pai (não que Jesus de fato cresse que isso seja
possível — são suficientemente claros Jo 5:19, 30, 36; 6:38; 8:29; 9:31–
33! —, mas antes, parte desta pressuposição em benefício deles), então
não me acrediteis; mas b. se as faço (e, naturalmente que as faço), então,
embora não me creiam (note-se a classe de condição; veja-se nota 234),
creiam nas obras; quer dizer, embora não Me aceitem diretamente como
vosso Salvador e Senhor, sigam considerando Minhas obras para que por
fim, ao ver que são as mesmas obras do Pai, cheguem à fé genuína e
permanente em Mim: quer dizer, “para que chegueis a reconhecer e
continuai reconhecendo (γνώτε κα_ γινώσκητε; veja-se também sobre Jo
1:10, 31; 8:28) que o Pai está em mim, e eu no Pai”. Há identidade nas
obras; porque há uma só essência; e as pessoas existem uma na outra e
uma em mérito à outra (esplêndida relação recíproca!) como momentos
numa só vida divina e autoconsciente. O pai não está subordinado ao
234
I D; veja-se IV da Introdução.
235
I D e III B 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 485
Filho, e o Filho não está subordinado ao Pai. São idênticos em essência,
mas distintos em pessoa.
39. Nesse ponto, procuravam, outra vez, prendê-lo; mas ele se livrou
das suas mãos. Já não tentam apedrejá-lo, mas (como em Jo 7:30; cf.
7:45) agora procuram prendê-Lo para entregá-Lo ao Sinédrio para Sua
condenação e castigo. No entanto, como seu tempo ainda não tinha
chegado, escapou (milagrosamente?) de suas mãos (quer dizer, de seu
poder).
40. Novamente, se retirou para além do Jordão, para o lugar onde
João batizava no princípio; e ali permaneceu.
O Ministério Judaico Tardio — Jo 7:1–10:39 (outubro-dezembro do
ano 29 d.C.) — concluiu, embora não o trabalho na Judeia. Veja-se III da
Introdução. Jesus volta a atravessar (πέραν) o Jordão. Começa o
Ministério na Pereia — Jo 10:40–12:11 (dezembro ano 29-abril do ano
30 d.C.). A que se refere a expressão Novamente para além do Jordão?
Alguns opinam que Jesus passou o intervalo entre a festa dos
Tabernáculos e a da Dedicação (o intervalo suposto entre Jo 10:21 e 22)
do outro lado do Jordão, e que agora volta novamente para retirar-se a
essa região. Deve aceitar-se esta possibilidade. No entanto, não há prova
no texto de que Jesus de fato cruzasse o Jordão entre as duas festas. Esta
hipótese se baseia totalmente no uso da palavra novamente aqui em Jo
10:40.
Parece mais provável que a expressão de novamente para além do
Jordão deva interpretar-se à luz do que segue imediatamente, ou seja,
“para o lugar onde João batizava no princípio”. O significado, então, é
este: Jesus volta a ir ao lugar onde tinha estado antes, ou seja, quando
João batizava: volta para o lugar do outro lado do Jordão.
O que lugar se indica? João tinha estado batizando por “toda a
circunvizinhança do Jordão” (Lc. 3:3). Pode-se provavelmente supor que
o Batista, tendo começado perto do Mar Morto (cf. Mt. 3:1; Mc. 1:4, 5),
tinha pouco a pouco subido pelo Vale do Jordão até que chegou a
Betânia (Jo 1:28), a leste do Jordão, a uns vinte e dois quilômetros mais
João (William Hendriksen) 486
abaixo do Mar da Galileia e a uns trinta e cinco quilômetros a sudeste de
Nazaré. Mais adiante (Jo 3:23) encontramos João em Enom, perto da
fronteira de Samaria, Pereia e Decápolis.
É, portanto, natural que o escritor, que antes mencionou dois
lugares onde João batizava, e agora diz que Jesus foi ao lugar onde João
começou a batizar, pense no lugar mencionado em primeiro lugar, ou
seja, Betânia do outro lado do Jordão (Jo 1:28). Veja-se sobre Jo 1:19.
Este lugar estava a uns oitenta quilômetros (provavelmente alguns mais a
caminho) de Betânia, perto de Jerusalém. Se no dia em que Lázaro
morreu, o lugar de onde partiu Jesus foi Betânia transjordânica (embora
isto não se chega a afirmar em João 11), não seria nada estranho que
quando chegou a Betânia da Judeia, Lázaro “houvesse já estado por
quatro dias no sepulcro” (Jo 11:17). Jesus permaneceu por um tempo no
lugar onde João tinha estado batizando primeiro.
41, 42. E iam muitos ter com ele e diziam: Realmente, João não fez
nenhum sinal, porém tudo quanto disse a respeito deste era verdade. É
lógico que aqui, no lugar onde João tinha estado batizando e onde o
próprio Jesus tinha sido batizado, muitos lembrassem do Batista e seu
ministério de preparação. Lembravam o que João havia dito a respeito de
Jesus (veja-se Jo 1:19–36; 3:22–36; e Jo 5:33), e quando ouviram as
palavras de Jesus ao reunir-se em torno dEle e ver seus sinais (em
contraste com João que não tinha realizado nenhum sinal), exclamaram,
“João não fez sinais (veja-se sobre Jo 2:11); no entanto, (embora não fez
sinais para confirmar sua mensagem) tudo o que João disse a respeito de
este homem é verdadeiro (cf. Jo 5:33)”. E o resultado foi que muitos ali
creram nele. Este creram nele é a mesma expressão que se encontra em
Jo 8:30. Não quer dizer necessariamente que todos estes crentes O
aceitaram com fé viva (veja-se sobre Jo 8:30). É possível que a palavra
ali, pela localização que tem na frase, estabeleça o contraste entre o que
sucedeu aqui em Betânia ao outro lado do Jordão e o que tinha ocorrido
em outros lugares, mas levando em conta Jo 8:30 não podemos estar
muito seguros disto.
João (William Hendriksen) 487
Síntese de Jo 10:22–42
O Filho de Deus Se revela a Si mesmo como o Bom Pastor
(continuação) e também como o Cristo, um com o Pai. Seus inimigos
procuram novo de apedrejá-lo.
Durante a festa da Dedicação, em dezembro do ano 29 d.C., Jesus
andava pelo que provavelmente era o último remanescente do antigo
templo de Salomão; daí que fosse chamado Pórtico de Salomão. Os
judeus pediram que se era o Cristo os dissesse claramente. Jesus, ao
responder-lhes, refere-se a suas anteriores declarações (que implicavam
Sua condição de Messias espiritual), e a Seus milagres considerados
como sinais. Afirma que a razão da incredulidade deles era o fato de que
não eram ovelhas. Se tivessem sido ovelhas, pertencentes ao Pastor,
Jesus, teriam ouvido Sua palavra, o teriam obedecido e teriam obtido
vida eterna. As ovelhas nunca chegam a perder-se. Como são o mais
precioso tanto para o Pai como para o Filho, ninguém pode arrebatá-las
das mãos (ou do poder) do Pai ou do Filho. Estes dois são Um, um não
só no ministério do cuidado protetor mas também na mesma essência.
Esta asserção de igualdade perfeita com Deus ofende os judeus,
aqueles que, considerando-a como blasfêmia, vão para o lugar onde há
um montão de pedras. São vistos no ato de levar as pedras para atirá-las
em Jesus, como exigia a lei mosaica em casos de blasfêmia. Com base ao
Sl. 82:6 Jesus, arguindo de menor a maior, revela o caráter injustificado
de sua conclusão. Se aos juízes terrestres eram chamados deuses porque
representavam a justiça divina, acaso aquele que procede do céu e a
quem o Pai consagrou para Sua tarefa messiânica, não tem o direito a ser
designado assim? Que estudem com cuidado as obras de Jesus para que
possam aceitá-Lo pela fé. Abandonando sua intenção de apedrejá-Lo, os
judeus agora buscam prendê-lo mas ele lhes escapa.
O Ministério Judaico Tardio terminou e Jesus sai para a Pereia, ao
lugar onde João tinha batizado em primeiro lugar, provavelmente
João (William Hendriksen) 488
Betânia (cf. Jo 1:28), onde muitos, ao lembrar o que o Batista havia dito
a respeito do Jesus e ao ver que tudo se cumpria nEle, creram nEle.
Assim, pois, conclui outra seção (capítulo 7–10) da primeira parte
principal do Evangelho de João (capítulos 1–12). Veja-se o esboço ao
princípio do capítulo 7 e também V da Introdução.
O que sobretudo chama a atenção é o fato de que esta seção
(capítulos 7–10), por um lado, mostra o progresso da hostilidade, e por
outro, também está cheia de séria exortação e terno convite. Às vezes
estas advertências se expressam com clareza (Jo 7:37; 8:11; 10:38);
outras vezes são implícitas com igual clareza (Jo 7:17, 33; 8:12, 31, 32,
36, 51; 9:35–37; 10:1–18; 10:27–30). Passagens como as citadas no
segundo grupo não se compreendem realmente até que se entenda que ao
mostrar a grandeza das bênçãos que se outorgam aos verdadeiros crentes,
Jesus convida seriamente os pecadores a ir a Ele e a unir-se a Ele por
uma fé viva. Assim, pois, embora por sua forma real a linguagem não
seja de convite, em essência é, sem dúvida, um convite, e, ao mostrar
bênçãos, na realidade fala com mais força.
João (William Hendriksen) 489
ESBOÇO DOS CAPÍTULOS 11, 12
Tema: Jesus, o Cristo, o Filho de Deus.

Durante o Seu ministério público Ele Se manifesta a Si mesmo


como o Messias através de duas poderosas obras
Ungido por Maria, buscado pelos gregos, mas rejeitado pelos
judeus.

Cap. 11 Ressuscita a Lázaro de Betânia. O Sinédrio planeja sua


morte.
Cap. 12 É ungido por Maria, faz Sua entrada triunfal em
Jerusalém, é buscado pelos gregos, mas rejeitado
pelos judeus.
João (William Hendriksen) 490
JOÃO 11
Observações preliminares acerca da ressurreição de Lázaro

I. Seu significado
É tríplice:
A. É um sinal que aponta a Jesus como Filho de Deus;
especificamente, como a ressurreição e a vida (Jo 11:25). Como a
multiplicação milagrosa dos pães foi ilustração de Jesus como o pão da
vida, e a cura do cego de nascença (e também o perdão concedido à
mulher adúltera) manifestavam-no como a luz do mundo, assim este
milagre o assinala como a ressurreição e a vida.

B. Com relação a A. (acima) ela revelou que Jesus era o Messias


que ia morrer por seu povo, o cumprimento da profecia (veja-se sobre Jo
11:51, 52; 12:14, 15).
Não deveríamos nunca perder o fio do relato total. Em seu
ministério inicial Jesus Se revelou a Si mesmo a círculos cada vez mais
amplos, mas foi rejeitado (capítulo 1–6). Na festa dos Tabernáculos e na
da Dedicação fez um convite sério aos pecadores, vez após vez, não só
com uma chamada direta mas também indiretamente ao lhes mostrar as
recompensas do discipulado. Também fez um grande milagre. Mas
resistiram decididamente (capítulo 7–10). E agora, por meio de duas
obras que em grandeza sobressaem acima de todas as demais (a
ressurreição de Lázaro e a entrada triunfal em Jerusalém) Ele Se
manifesta a Si mesmo, agora mais do que nunca, como o que
efetivamente era — o Messias.

C. Ela conduziu diretamente à decisão formal de levar Jesus à morte


a, e à execução do complô. Veja-se Jo 11:47–55; e I da Introdução.
João (William Hendriksen) 491
II. Os componentes do relato
Há quatro partes, como segue:

A. O relatório da enfermidade de Lázaro; sua morte (Jo 11:1–16).

B. A chegada de Jesus (e Seus discípulos) a Betânia perto de


Jerusalém (Jo 11:17–37).

C. O milagre em si (Jo 11:38–44).

D. Seus resultados (Jo 11:45–57).


Podem-se apresentar provas satisfatórias em apoio da posição que
afirma que os versículos 55–57 realmente são o começo de um novo
capítulo. No entanto, também se pode argumentar que a tensão em
Jerusalém (cf. a tensão bastante parecida depois do milagre da
multiplicação dos pães, capítulo 6; logo Jo 7:11) foi causada em parte
pela ressurreição de Lázaro, e por conseguinte, pode-se considerar como
um de seus resultados.

III. O lugar e o momento do evento


A. O lugar
O lugar onde Jesus recebeu o relatório com relação à enfermidade
de Lázaro não é mencionado no capítulo 11. Pode ter sido Betânia para
além do Jordão (veja-se sobre Jo 10:40). O lugar onde Lázaro e suas
irmãs viviam era Betânia perto de Jerusalém (veja-se em Jo 11:18).

B. O momento.
A última indicação temporal que se menciona de forma concreta
encontra-se em Jo 10:22, a festa da Dedicação; em consequência,
dezembro (provavelmente do ano 29 d.C.). Este milagre sucede um
pouco depois. Jesus permaneceu por um breve tempo no lugar onde João
João (William Hendriksen) 492
primeiro batizou (Jo 10:40). Talvez se deteve aí umas poucas semanas
ou um mês (durante o qual talvez fez uma viagem), porém não muito
mais (veja-se Jo 11:8). Também há, no entanto, um lapso considerável
de tempo entre a ressurreição de Lázaro e a Páscoa do ano 30 d.C. (Jo
11:54, 55). Também isto dá tempo para eventos que o apóstolo João não
refere.
Sobre a base de todos estes indícios não nos equivocaremos muito
se afirmarmos que Lázaro foi ressuscitado em janeiro ou a começos de
fevereiro do ano 30 d.C. A unção em Betânia ocorre seis dias antes da
Páscoa; em consequência, no final do Ministério na Pereia, ao qual
pertence também a ressurreição de Lázaro. A entrada triunfal (Jo 12:12–
19) corresponde à semana da Paixão (abril do ano 30 d.C.), bem como a
solicitude dos gregos para ver Jesus (Jo 12:20–36).
Por isso fica claro que, na realidade, o apóstolo João não nos dá
uma descrição total dos ministérios de Jesus; por exemplo, o Ministério
na Pereia. Simplesmente refere uns quantos eventos dentro de um
Ministério. Todos estes eventos juntos ocupam, na realidade, só uns
poucos dias. Por isso, não existe verdadeiro conflito com os relatos que
encontramos nos Sinóticos (particularmente no Evangelho de Lucas). O
Ministério na Pereia, por exemplo, durou o suficiente (dezembro do 29-
abril do 30 d.C.) — para permitir muitos outros eventos e viagens.
Segundo muitos, o que se relata em Lucas 13:22–19:27 corresponde a
este ministério. Em todo caso não existe conflito.

IV. A sequência de eventos dentro do relato


Há dois pontos de vista que rejeitamos por ser muito especulativos:

A. O primeiro dá por entendido que o mensageiro levou só um dia


para trasladar-se de Betânia na Judeia até o lugar onde estava Jesus; que
quando chegou, Lázaro já tinha morrido; que depois da morte de Lázaro
Jesus permaneceu aí mais dois dias, e que Jesus então em um dia
João (William Hendriksen) 493
trasladou-se à casa de Maria e Marta; assim se explica o fato de que
quando chegou, Lázaro tinha estado sepultado quatro dias (Jo 11:17, 39).
Mas o relato não contém indícios de que esta reconstrução seja a
verdadeira. De fato, se há inferências justificadas, vão em direção
contrária. Pareceria haver certa base para crer que, quando o mensageiro
chega, Jesus só sabe que Lázaro está doente (Jo 11:4, 6), e que Lázaro de
fato morreu dois dias depois, quando Jesus informou imediatamente a
Seus discípulos desta morte (Jo 11:11, 14). Então em seguida vão a
caminho para Betânia da Judeia (Jo 11:15). O fato de irem, no entanto,
no quarto dia (três dias depois do dia da morte e sepultura) quando o
grupo chegou, pareceria indicar que o lugar de onde procedia Jesus
estava bastante longe. Isto harmonizaria muito bem com a ideia de que
Jesus tinha estado muito ao norte, em Betânia do outro lado do Jordão,
exatamente como Jo 10:40 pareceria indicar.

B. A segunda opinião, que é totalmente contrária à primeira, parte


da base de que Lázaro continuava vivo, e isto não só quando o
mensageiro (enviado pelas irmãs para que informasse de sua
enfermidade) chegou até Jesus, mas também quando voltou; e que então
encontrou a Lázaro ainda plenamente consciente, e lhe indicou que seria
ressuscitado dentre os mortos, de modo que soube disso e se sentiu
consolado antes de morrer! Mas tudo isso é muito especulativo. O relato
nada diz a respeito disso; parece de fato contradizer esta reconstrução
(veja-se sob A. acima). Deveríamos aceitar o relato tal como nos é dado
pela Escritura.

JO 11:1–16

11:1, 2. Estava enfermo Lázaro, de Betânia, da aldeia de Maria e de


sua irmã Marta. Esta Maria, cujo irmão Lázaro estava enfermo, era a
mesma que ungiu com bálsamo o Senhor e lhe enxugou os pés com os seus
cabelos.
João (William Hendriksen) 494
A ocasião do milagre foi a enfermidade de Lázaro. Seu nome é
abreviação de Eleazar, que significa “aquele a quem Deus ajudou”. A
fim de distingui-lo de outras pessoas que usavam o mesmo nome (cf. Lc.
16:20) é chamado Lázaro de Betânia, nativo e residente desse povo. E a
fim de distinguir esta Betânia da Judeia (veja-se em Jo 11:18) da Betânia
da margem oriental do Jordão (veja-se em Jo 1:19) é aqui chamada a
“aldeia de Maria e de sua irmã Marta”. Isto sugere que se dá por sentado
que os leitores conhecem o belo relato referido em Lucas 10:38–42, onde
se nomeiam juntas Maria e Marta. Quando na frase seguinte a Maria a
que se refere é descrita de forma ainda mais concreta como “a mesma
que ungiu com bálsamo o Senhor”, não só a distingue de outras Marias
— distinção muito necessária porque havia muitas mulheres que usavam
este nome — mas também a designa como aquela a que os leitores
encontraram antes, ou seja, no relato referido em Mc. 14:3–9 (Mt. 26:6–
13). Veja-se II da Introdução. No entanto, nem em Mateus nem em
Marcos faz-se menção do nome da mulher que ungiu a Jesus. Em
consequência, João menciona o nome aqui. Em Jo 12:1–8 vai dar sua
própria versão da unção (veja-se nesse parágrafo). Acrescentará certos
detalhes não mencionados nos outros Evangelhos; por exemplo, o
mencionado inclusive aqui em Jo 11:2: “e lhe enxugou os pés com os
seus cabelos”.
A menção de Maria antes de Marta (embora esta fose
provavelmente a irmã mais velha), e de Marta simplesmente como irmã
de Maria (contrasta a ordem dos nomes em Jo 11:5, 19; Lc. 10:38, 39)
pode ser devido ao fato de que em ambos os relatos referidos antes (o
recebimento e a unção) é Maria (quer seja que seja nomeada ou não),
quem faz algo que a torna famosa para a posteridade. Em Lc. 10:38–42 é
Maria diferente de Marta; mas veja-se especialmente Mt. 26:13. Além
disso, não é improvável que fosse a ressurreição de Lázaro, referida aqui
em Jo 11, a que conduzisse à ação de gratidão de Maria, no capítulo 12.
João (William Hendriksen) 495
236
3. Mandaram-lhe, pois, suas irmãs dizer: Senhor, eis que está
enfermo aquele que tu amas [RC].
Como a condição de Lázaro tornava-se cada dia mais grave, as
irmãs desejavam ardentemente que Jesus, o amigo íntimo, e o grande
Médico, estivesse presente (Jo 11:21, 32). Sentem-se seguras de que com
Ele presente seu irmão seria curado, e não morreria. Podemos imaginar
dizendo vez após vez «Tomara que Jesus estivesse aqui!» Neste estado
mental é totalmente natural que enviassem um mensageiro a Jesus. Não
sabemos quanto tempo tomou para chegar ao destino. Se (como parece
provável) o Senhor continuava em Betânia, do outro lado do Jordão,
muito ao norte, talvez levou bastante tempo, possivelmente três dias,
certamente não menos de dois se viajou rapidamente.
A mensagem que as irmãs enviaram foi muito bela: “Senhor,
(quanto a esta palavra veja-se em Jo 1:38 a nota) escuta! (veja-se nota
236 acima), está enfermo aquele que tu amas”. Advirta--se ou seguinte:
a. O caráter premente da súplica, como o manifesta a palavra
escuta!
b. O fato de que não dizem a Jesus o que deve fazer, mas que
deixam tudo a Ele, simplesmente afirmando o fato: “está enfermo aquele
que tu amas”. Nem sequer pedem a Jesus que venha a curá-lo.
c. O fato de que baseiam sua súplica não no amor de seu irmão ou
em seu próprio amor pelo Senhor, mas sim só no amor do Senhor pelo
seu irmão. Sabem que no coração de Jesus há um afeto cálido e pessoal
por Lázaro. Provavelmente em algumas ocasiões anteriores o tinham
advertido. Jesus talvez, inclusive, o disse de palavra. Logo outros vão
fazer observações a respeito do amor de Jesus por Lázaro (Jo 11:36).
Quanto a possível distinção entre as duas palavras usadas para amor
neste relato, veja-se sobre Jo 21:15–17.

236
Literalmente, olhe!
João (William Hendriksen) 496
4. Ao receber a notícia, disse Jesus: Esta enfermidade não é para
morte, e sim para a glória de Deus, a fim de que o Filho de Deus seja por
ela glorificado.
A resposta que Jesus dá indica que olhava para além da morte.
Quando disse, “Esta enfermidade não é para morte”, não quis dizer,
«Lázaro não vai morrer», mas «A morte não será o resultado final desta
enfermidade». A culminação será “a glória de Deus”, ou seja, a
manifestação do poder, amor e sabedoria de Deus, de forma que os
homens possam ver e proclamar estas virtudes. Deveria comparar-se isto
com Jo 9:3. Veja-se também sobre Jo 1:14; 2:11; 5:41, 44; 7:18; 8:50,
54; 11:40; 12:41, 43; e 17:5, 22, 24. Quando o Filho é glorificado através
da manifestação de Suas brilhantes virtudes em obras de poder e graça,
também é glorificado o Pai. Estes dois não Se podem separar (Jo 10:30;
logo Jo 5:23). E a fim de que esta glória possa brilhar com mais
esplendor, Lázaro deve primeiro morrer (veja-se sobre Jo 11:6). A
enfermidade é para a (no interesse da) glória de Deus.
Quando Jesus diz, “Esta enfermidade não é para morte”, pareceria
legítima a inferência de que Lázaro ainda não tinha morrido, e que Jesus
o sabia. Mas quando acrescenta, “É para a glória de Deus”, fica evidente
que já sabia com exatidão o que ia suceder, ou seja, que Lázaro morreria
e que Ele o ressuscitaria.
Se supusermos um intervalo de pelo menos dois dias
(provavelmente três) entre a entrega da mensagem (“está enfermo aquele
a quem amas”) e a volta do mensageiro à casa de Maria e Marta, então,
com toda probabilidade, Lázaro já havia morrido quando se completou a
viagem de ida e volta. Mas em meio a tristeza mais profunda das irmãs,
as palavras do Senhor, que o mensageiro lhes trouxe para sua volta,
continuariam ressoando em seus ouvidos: “Esta enfermidade não é para
morte, e sim para a glória de Deus, a fim de que o Filho de Deus (quanto
a este termo veja-se sobre Jo 1:14) seja por ela glorificado”. A
mensagem deve ter surpreendido as irmãs. Contudo, em certos
momentos pode ter feito inclusive que um raio de esperança iluminasse
João (William Hendriksen) 497
sua vereda. Do que outra forma pode-se explicar o misterioso dito de
Marta registrado em Jo 11:22?
Quando Jesus disse, “Esta enfermidade não é para morte”, os
discípulos devem ter pensado que quisesse dizer: «Lázaro não morrerá
como resultado desta enfermidade».
5, 6. Ora, amava Jesus a Marta, e a sua irmã, e a Lázaro. Quando,
pois, soube que Lázaro estava doente, ainda se demorou dois dias no lugar
onde estava.
Quanto ao verbo amava (observe-se o imperfeito de ação contínua)
veja-se sobre versículo 3 acima; logo sobre Jo 21:15–17. Quanto à razão
de por que se menciona Marta agora pela primeira vez, veja-se em Jo
11:1, 2.
Segundo o versículo 4 o objetivo final do surpreendente milagre
que vai ocorrer é o incremento da glória de Deus. Mas este objetivo final
não exclui objetivos subsidiários que harmonizem com esse. Um deles
foi o fortalecimento da fé dos membros desta família e dos discípulos (Jo
11:15). Agora, qual era o meio mais efetivo de conseguir este fim? Era o
curar um doente ou o ressuscitar um morto? Naturalmente o segundo.
Em consequência, quando Jesus ouviu que Lázaro estava doente,
permaneceu mais dois dias no lugar onde estava; ou seja, provavelmente
não saiu para a Judeia até que Lázaro tivesse estado no sepulcro quatro
dias, a fim de que o milagre e a glória fossem tanto maiores. Por isso, o
que pode ter parecido como demora cruel, foi na realidade a preocupação
mais terna pelo bem-estar espiritual dos verdadeiros discípulos. Os
caminhos de Deus são às vezes muito estranhos! Além disso, quanto
mais se fortalece a fé, tanto mais se incrementa a glória de Deus. Em
consequência, há harmonia perfeita entre o fim subsidiário e o último.
7–10. Depois, disse aos seus discípulos: Vamos outra vez para a
Judéia. Disseram-lhe os discípulos: Mestre, ainda agora os judeus
procuravam apedrejar-te, e voltas para lá? Respondeu Jesus: Não são
doze as horas do dia? Se alguém andar de dia, não tropeça, porque vê a
João (William Hendriksen) 498
237
luz deste mundo; mas, se andar de noite, tropeça, porque nele não há
luz. 238
Passaram dois dias, e Lázaro morreu. Jesus diz, pois, aos discípulos,
“Vamos outra vez para a Judeia”. Os discípulos, seguros de que Lázaro
está se recuperando (veja-se sobre Jo 11:4), perguntam-se se o Senhor
procura empreender uma nova tarefa na província onde tem os seus
piores inimigos. Ainda não entendiam que Jesus devia sofrer (cf. Mt.
16:21, 22). Visto desta forma não surpreende a resposta dos discípulos,
“Rabi (quanto a este termo veja-se sobre Jo 1:38), ainda agora os judeus
(veja-se sobre Jo 1:19) procuravam apedrejar-te, e tornas para lá?” [RC].
Não estamos de acordo com os comentaristas que negam a palavra agora
(ν_ν) seguida do imperfeito tem aqui força temporal. É, sem dúvida, o
significado mais natural no contexto presente (veja-se também em Jo
21:10). Entendido assim se explica a surpresa que experimentam os
discípulos: não podem entender por que Jesus quer retornar a um
território onde tão recentemente se tentou apedrejá-lo (Jo 10:31 cf.
10:39).
A resposta que Jesus dá, como tantas de suas frases, tem um
profundo significado.
Emprega-se uma metáfora para ilustrar uma bela e confortadora
verdade espiritual. No entanto, assim como inclusive hoje em dia alguns
dentre o auditório de um ministro escutam a ilustração, porém não
conseguem captar o ponto que tenta pôr de manifesto, assim também os
auditórios aos quais nosso Senhor Se dirigiu durante Sua permanência na
terra com muita frequência viram a metáfora, porém não compreenderam
a verdadeira lição, a verdade subjacente (veja-se sobre Jo 2:19; 3:3; 4:10;
6:52; e também os versículos 11–13 do presente capítulo).
A metáfora que Jesus utilizou, em seu significado literal, foi como
segue:

237
III B 1; veja-se IV da Introdução.
238
III B 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 499
O dia judeu tinha doze horas. Quer fosse inverno ou verão tinha
sempre exatamente doze horas, embora a longitude da hora diferia, desde
(o que para nós seriam) 9 horas e 48 minutos até 14 horas e 12 minutos.
Sendo, pois, a hora judia flexível, difere da nossa que sempre tem a
mesma duração. No entanto, inclusive em nosso caso, há, em média, 12
horas por dia, de modo que a declaração de Jesus é válida para todos os
tempos. Agora, se alguém caminhar de dia, não tropeça, pela razão de
que embora haja obstáculos que por si mesmos poderiam facilmente
fazê-lo tropeçar, vê-os com clareza, porque brilha no alta a luz do
mundo, o sol. daí que os obstáculos podem-se evitar e inclusive superar.
No entanto, se alguém caminhar durante a noite (especialmente num país
que nem sequer tem luz artificial), tropeça, porque a luz do sol já não
ilumina seus olhos (não há luz nele).
Agora, se Jesus quis simplesmente dizer «Caminhemos de dia, e
nos escondamos de noite», esta declaração teria estado fora de contexto
com seu estilo sempre altamente simbólico; veja-se neste mesmo
capítulo, versículos 11–13. Em harmonia com expressões similares que
abundam no Evangelho de João (veja-se sobre Jo 2:4; 7:30; 8:20; 12:23;
13:1; 17:1), o que quis dizer é o seguinte:
O tempo que Me foi concedido para realizar o Meu ministério
terrestre tem uma duração fixa (como a duração do dia é sempre
exatamente 12 horas). Veja-se sobre Jo 9:4, 5. Não se pode prolongar por
meio de nenhuma medida preventiva que vós, Meus discípulos,
quisessem tomar, nem tampouco pode-se abreviar por nenhum complô
que Meus inimigos quisessem executar. Foi definitivamente fixado no
decreto eterno. Se andarmos à luz deste plano (que a Jesus lhe era
conhecido), com a disposição de nos submeter ao mesmo, não teremos
que nos preocupar com nada (não podemos sofrer verdadeiras feridas);
se não, fracassaremos. Para o próprio Jesus a rebelião contra o plano de
Seu Pai celestial (que era também seu próprio plano) era, naturalmente,
inconcebível. No caso dos discípulos era diferente. Precisavam desta
instrução.
João (William Hendriksen) 500
11–13. Assim falou e depois lhes disse: Nosso amigo Lázaro dorme,
mas vou despertá-lo do sono. Disseram-lhe, então, os discípulos: Senhor,
se dorme, ficará bom. 239 Jesus tinha falado da morte de Lázaro; mas eles
supunham que falasse do repouso do sono [TB].
Jesus revela agora o propósito de Seu plano ao ir a Judeia. Tem que
ver com Lázaro. O Senhor chama o irmão de Maria e Marta nosso amigo
Lázaro. Disso os discípulos podem deduzir que não foi ausência de amor
o que fez com que Jesus permitisse a morte de Lázaro. O Senhor Se
dirige a Seus discípulos com estas palavras: “Nosso amigo Lázaro
dorme, mas vou despertá-lo do sono”. Como sabia Jesus que Lázaro
tinha passado a outra vida? Veja-se sobre Jo 5:6 «Método (2) ou (3)».
A morte dos crentes se compara com frequência com o dormir: Gn.
47:30 [TB]: “Quando eu (Jacó) dormir com meus pais …” 2Sm. 7:12
[RC]: “Quando teus dias (os de Davi) forem completos, e vieres a dormir
com teus pais …” Mt. 27:52 - “Muitos corpos de santos, que dormiam,
ressuscitaram”. At. 7:60 [TB]: “Tendo (Estêvão) dito isto, adormeceu”.
1Ts. 4:13 - “Não queremos, porém, irmãos, que sejais ignorantes com
respeito aos que dormem”. A comparação é, naturalmente, muito
adequada: os crentes esperam o despertar glorioso do outro lado. No
caso de Lázaro a metáfora é ainda mais surpreendente: como alguém se
levanta do sono, assim Lázaro está prestes a levantar-se de novo da
morte.
Com relação a isto é instrutivo observar a forma bela e consoladora
em que a Escritura fala em todas as partes a respeito da morte dos
crentes. Essa morte é preciosa, é “Preciosa é aos olhos do Senhor” (Sal.
116:15); “foi levado pelos anjos para o seio de Abraão” (Lc. 16:22, TB);
“estará comigo no paraíso” (Lc. 23:43); “Na casa de meu Pai há muitas
moradas” (Jn 14:2); “[bendito] partir” (Fp. 1:23; 2Tm. 4:6), a fim de
“estar com Cristo” (Fp. 1:23), “habitar com o Senhor” (2Co. 5:8);

239
I C; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 501
“lucro” (Fp. 1:21); “muitíssimo melhor” (Fp. 1:23); e, como aqui,
“dormir” no Senhor.
As passagens que falam de crentes que dormem não ensinam um
estado intermediário de repouso inconsciente (sono da alma,
psicopânico). Embora a alma esteja dormindo para o mundo do qual saiu
(Jó 7:9, 10; Is. 63:16; Ec. 9:6), está desperta com relação ao seu próprio
mundo (Lc. 16:19–31; 23:43; 2Co. 5:8; Fp. 1:21–23; Ap. 7:15–17; 20:4).
Quando Jesus disse a Seus discípulos que ia a Betânia para
“despertar” a Lázaro, deveriam dar-se conta, pela duração da viagem
(talvez três dias), que Se referia não ao repouso do sono natural. Para os
leitores na Ásia Menor (e em todas as partes) o evangelista esclarece
bem que Jesus esteve falando a respeito da morte de Lázaro. Os
discípulos, tomando Suas palavras (a respeito de Lázaro que dormia) no
sentido mais literal (aqui como com tanta frequência; veja-se nos
versículos 7–10 acima), demonstraram que ainda não eram muito bons
em exegese. Faziam o que tantos hoje em dia querem que façamos:
tomavam cada detalhe literalmente. Diziam, “Senhor, se dorme, ficará
bom”; quer dizer, o próprio sono produzirá nele seu efeito restaurador.
Embora isto possa parecer como uma observação muito parva de sua
parte — e até certo ponto foi estúpida! — é apropriado advertir que a
ideia de que Lázaro vai recuperar-se da enfermidade era uma inferência
natural das palavras de Jesus relatadas em Jo 11:4, segundo (com toda
probabilidade) eles as interpretaram. Um erro simplesmente conduziu a
outro. Quando João escreve, “Disseram-lhe, então, os discípulos ... ficará
bom” isso não implica necessariamente, «mas eu (João) conhecia melhor
as coisas”. Uma exegese tal faria dizer muito ao texto.
14, 15. Então, Jesus lhes disse claramente: Lázaro morreu; e por
vossa causa me alegro de que lá não estivesse, para que possais crer; mas
vamos ter com ele.
Jesus esperou até esse momento para dizer aos discípulos
claramente (veja-se sobre Jo 7:26): “Lázaro morreu”. Ao esperar até este
momento permitiu que refletissem a respeito de Seu anúncio à luz da
João (William Hendriksen) 502
outra afirmação surpreendente (feita só uns momentos antes): “Nosso
amigo Lázaro adormeceu, mas vou para despertá-lo”. Assim, pois,
começa-se a interpretar esse despertar. É o despertar de alguém que
acaba de dormir, isto é, que acaba de morrer! Mas o fato de que isto
deveria ter esclarecido ideias na mente dos apóstolos não quer dizer que
de fato produziu este efeito. No caso de Tomé sabemos que não foi
assim (veja-se sobre verso 16). Tinham esquecido os discípulos o grande
evento que se refere em Lucas 7:11–17? E havia Pedro, Tiago e João
esquecido a ressurreição da filha de Jairo quando Jesus tinha utilizada
linguagem semelhante (não idêntica) com relação à morte (“Não está
morta, mas dorme”)?
Se Jesus tivesse estado presente, teria sido ia esperado dEle um
milagre de cura; mas, como se assinalou antes (veja-se sobre Jo 11:5, 6),
o voltar à vida a um morto seria uma forma mais eficaz de fortalecer a fé
que a cura de um doente. Por esta razão Jesus disse, “…por vossa causa
me alegro de que lá não estivesse, para que possais crer”. Como o
milagre que se vai realizar é (entre outras coisas) em benefício dos
discípulos, não surpreende que Jesus diga, “Mas vamos ter com ele”.
16. Então, Tomé, chamado Dídimo, disse aos condiscípulos: Vamos
também nós para morrermos com ele.
Um dos discípulos tinha um nome que tanto em aramaico (Tomé)
como em grego (Δίδυμος) significava gêmeo. Nada sabemos a respeito
de seu irmão gêmeo ou irmã gêmea, e não serve de nada teorizar. João,
que escrevia para leitores gregos, acrescenta o equivalente grego do
nome aramaico.
Em outros lugares Tomé é simplesmente mencionado na lista dos
apóstolos (Mt. 10:3; Mc. 3:18; Lc. 6:15; cf. At. 1:13). O quarto
Evangelho o descreve, indica seu modo de ser. Caracterizam o homem
sua devoção (a Jesus) e o desalento (cf. Jo 11:16; 14:5; e Jo 20:24–28).
Sempre tem medo de perder a seu amado Mestre, ou que lhe ocorra
algum mal. Espera o mal, e não pode crer no bem quando ocorre.
João (William Hendriksen) 503
Segundo este espírito de devoção e desalento diz, “Vamos também
nós para morrermos com ele”. Tomé não pensa em primeiro lugar em
Lázaro, nem em si mesmo, mas em seu Senhor, ao que não há que
permitir-se que morra sozinho!
Cremos que a expressão “com ele” (em “Vamos também nós para
morrermos com ele”) significa com Jesus. Na opinião dos discípulos, ir a
Judeia significa perigo, possivelmente morte, para Jesus (veja-se o
contexto, versículo 8). Alguns hábeis comentaristas arguem que a
cláusula “para morrermos com ele” não pode significar «que morramos
com Jesus», devido ao fato de que no momento da crise “todos os
discípulos (incluindo Tomé) deixando-o, fugiram” (Mt. 26:56). Mas
acaso não sucede com frequência que as intenções de alguém são
melhores que suas ações? Provavelmente Tomé seja muito sincero na
intenção de morrer com seu Senhor, mas lhe falhou a coragem quando a
morte realmente ameaçou. E não se pode presumir sem risco que Pedro
também foi sincero quando afirmou com veemência que nunca negaria
ao Mestre? No entanto, sabemos que assim sucedeu!
Não vemos razão, pois, para interpretar a cláusula, “para morrermos
com ele”, como se significasse “para morrermos com Lázaro”. Quando
Tomé disse, “Vamos também nós”, quis dizer, “Vamos nós com Jesus”.
Em consequência, quando acrescentou, “para morrermos com ele”, deve
ter querido dizer “para morrermos com Jesus”. Pedro disse igualmente,
“Embora me seja necessário morrer contigo” (quer dizer, com Jesus, Mt.
26:35).

JO 11:17–37

11:17. Chegando Jesus, encontrou Lázaro já sepultado, havia quatro


dias. Jesus chegou aos subúrbios de Betânia da Judeia. A palavra
encontrou provavelmente significa que tinha averiguado a respeito de
Lázaro e Lhe haviam dito que o irmão de Marta e Maria tinha estado na
sepultura já por quatro dias. A alma de Jesus podia conseguir informação
João (William Hendriksen) 504
de mais de uma maneira. Veja-se sobre Jo 5:6. No caso presente alguém
parece haver-lhe dado informação de uma forma perfeitamente natural e
humana.
As notícias que o Senhor recebeu foram que Lázaro tinha estado no
sepulcro (μνημε_ον, monumento comemorativo, Lc. 11:47; ou seja,
como aqui, sepulcro, tumba) havia quatro dias. Provavelmente tendo
ficado em caminho imediatamente depois de Lázaro ter morrido e ter
sido sepultado (a morte e a sepultura ocorreram no mesmo dia, como era
costume; veja-se Dt. 21:23; At. 5:5, 6, 9, 10), Jesus tinha chegado à
entrada do povo de Betânia depois de três dias de viagem; quer dizer, no
quarto dia (contando como primeiro o dia da morte e sepultura). Veja-se
sobre Jo 10:40; também antes sob Observações Preliminares, III. O
evangelista faz uma menção especial deste quarto dia a fim de pôr de
relevo a magnitude do milagre. Segundo uma tradição rabínica, a alma
da pessoa morta ronda perto do corpo durante três dias esperando reunir-
se com ele, e se separa por completo quando adverte que o corpo entrou
em estado de decomposição. 240 A Escritura não ensina isso em nenhuma
passagem; antes, o contrário: a alma vai imediatamente ao seu estado
eterno (veja-se sobre Jo 11:11–13); mas é possível que o povo do tempo
de Jesus vivesse enganada com esta superstição. Dizemos possivelmente
(não certamente), porque a forma escrita desta tradição data da primeira
parte do terceiro século d.C. Se isto era crido nos dias da vida terrestre
de Jesus, a grandeza do milagre que ia realizar ficaria naturalmente mais
de relevo. No entanto, inclusive totalmente à parte disto, o quarto dia
neste caso significava certamente decomposição (veja-se sobre Jo
11:39); em consequência, esta nota temporal prepara o leitor para uma
manifestação extremamente notável de poder.
18, 19. Ora, Betânia estava cerca de quinze estádios perto de
Jerusalém. Muitos dentre os judeus tinham vindo ter com Marta e Maria,
para as consolar a respeito de seu irmão.

240
S. BK. II, pp. 250, 251.
João (William Hendriksen) 505
Esta nota topográfica é acrescentada para que os leitores que viviam
longe da Palestina pudessem visualizar o sucedido. Significa o verbo
estava que a Betânia da Judeia do tempo de Jesus tinha deixado de
existir quando se escreveu este Evangelho? Provavelmente não: o tempo
passado harmoniza com a narração de um evento passado. Literalmente
João localiza a Betânia como segue: “cerca de quinze estádios” (_ς _π_
σταδίων δεκαπέντε); que é uma forma idiomática de expressar distância,
tomando o lugar mais distante (neste caso Jerusalém) como base do
cálculo. Um estádio é 1/5 de quilômetro; em consequência, quinze
estádios é como três quilômetros. Veja-se também sobre Jo 6:19. A
proximidade de Betânia com relação a Jerusalém menciona-se para
explicar por que tantos judeus da capital tinham ido consolar as irmãs.
Quanto ao significado do termo judeus veja-se em Jo 1:19. Pelo fato de
que Marta e Maria fossem discípulas de Jesus não se deve concluir que
os judeus que tinham vindo a apresentar seus sentimentos fossem todos
amigos do Senhor. O fato é que antes de suceder este milagre estes
judeus criticavam a Jesus e não criam nEle em nenhum sentido. Muitos
mudaram de atitude depois de ver o milagre. Alguns, no entanto,
seguiram com sua incredulidade, a qual se manifestou e produziu
hostilidade. Este é o quadro tal como o descreve o evangelista (Jo 11:36,
37, 42, 45, 46).
20. Marta, quando soube que vinha Jesus, saiu ao seu encontro,
pareceria que a proximidade de Jesus não tinha sido anunciada ao grupo
de enfermos que estavam na casa de Marta e Maria. Tinha enviado Jesus
um mensageiro especial (talvez um de Seus discípulos) para informar a
só a Marta? Não nos é dito, com palavras expressas, que Jesus chamou
Marta. De qualquer modo, parece que o Senhor desejava falar com
Marta, e que queria fazê-lo longe da ruidosa multidão. Desejava falar
com ela a sós e sem estorvo. Por isso permaneceu à entrada do povo.
Talvez houve alguma outra razão pela qual Jesus Se deteve aí em lugar
de proceder até a casa de luto. Veja-se sobre versículo 30.
João (William Hendriksen) 506
Maria, porém, ficou sentada em casa. A bela correspondência entre
os Evangelhos (neste caso Lucas e João) mostra-se nesta descrição
pessoal das duas irmãs. Compare-se Lc. 10:28–32 (Marta ocupada,
muito ativa; Maria tranquila e contemplativa, ficando aos pés do Mestre)
e o presente relato em João. Jesus, compreendendo a forma de ser de
cada irmã, permite que Maria permaneça mais na casa, enquanto sustenta
a conversação com Marta à entrada do povo.
21, 22. Disse, pois, Marta a Jesus: Senhor, se estiveras aqui, não teria
morrido meu irmão. 241
Quando Marta encontra-se com Jesus, repete, em substância, o que
muito provavelmente se disse tantas vezes durante a enfermidade de seu
irmão. Logo tanto ela como Maria (veja-se sobre Jo 11:32) tinham vindo
expressando esse anelo que raiava ao desespero: «Se Jesus tivesse estado
aqui». Por isso agora Marta diz, “Senhor (quanto a isto veja-se sobre Jo
1:38), se estiveras aqui, não teria morrido meu irmão”. Esta observação
não deve ser vista como expressão de recriminação ou ressentimento,
como se Marta dissesse, «por que te entretiveste dois dias completos,
ficando onde estava quando sabias muito bem que necessitávamos tanto
de ti?» Não é a expressão de desencanto com relação a Jesus. Marta
sabia muito bem que teria sido difícil (se não de fato impossível, exceto
por meio de um milagre) que Jesus tivesse chegado à casa de Betânia a
tempo para curar a Lázaro. Humanamente falando a mensagem tinha
chegado tarde demais. Em consequência, devemos considerar as palavras
de Marta como expressão de uma aguda dor.
Marta acrescenta: Mas também sei que, mesmo agora, tudo quanto
pedires a Deus, Deus to concederá. A índole surpreendente desta
afirmação deve receber a atenção que merece. Não é realista dizer que
com estas palavras Marta não pode ter insinuado que possivelmente
Jesus poderia inclusive devolver a vida a Lázaro. É verdade que, à
primeira vista, Jo 11:24, 39 parece indicar o abandono de tal esperança.

241
II B; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 507
Mas deve ter-se em mente que uns dias antes (anteontem?) estando já
Lázaro na sepultura! — o mensageiro tinha retornado de sua entrevista
com Jesus. E a mensagem que trouxe foi, citando as palavras do Senhor:
“Esta enfermidade não é para morte, senão para a glória de Deus, para
que o Filho de Deus seja glorificado por ela”. Veja-se sobre Jo 11:4.
Podemos imaginar como vez após vez Marta, agora que seu irmão tinha
morrido, teria se repetido estas palavras tão misteriosas: “Esta
enfermidade não é para morte”. À luz disso as palavras do versículo 22
adquirem o significado: Deus concederá a Jesus qualquer coisa que Ele
pedir. Para Marta, a ressurreição de Lázaro não ficava excluída deste
qualquer coisa.
No entanto, embora as palavras de Marta implicassem a
possibilidade do grande milagre que está prestes a ocorrer, ela tinha só
uma esperança vacilante. Não se atrevia a expressá-la abertamente e em
palavras explícitas. Tinha medo de sua própria conclusão. Quando Jesus
afirmou em linguagem muito clara (veja-se Jo 11:23) o que Marta havia
simplesmente insinuado, então ela, uma vez que transferiu sua atenção
da gloriosa promessa de Cristo (em Jo 11:4) ao estado atual de seu irmão
morto, ocultou sua esperança (Jo 11:24). Inclusive podemos dizer que no
momento se apagaram em sua alma as faíscas, de modo que tiveram que
ser reavivadas. No versículo 39 temos um exemplo parecido da derrota
momentânea experimentada por Marta.
Cremos que esta explicação psicológica é a correta. No coração de
Marta combatiam as trevas da dor e a luz da esperança. Às vezes seus
lábios expressavam seu quase desespero; logo depois de novo seu
otimismo. Por isso, é errôneo, parece-nos, dizer que, em vista de Jo
11:24, 39, as palavras referidas em Jo 11:22 não devem interpretar-se
como a expressão de uma esperança semirevelada e semi-oculta.
Estamos diante de uma mulher profundamente emotiva. Sua alma é presa
de dor pela morte de um irmão a quem amava muitíssimo. Mas também
estamos diante de uma discípula de Jesus, com a alma cheia de
João (William Hendriksen) 508
reverência para seu Senhor. Estamos, pois, diante de um coração
comovido até o mais íntimo e indeciso entre a dor e a esperança.
Marta considerava as obras de Jesus como feitas em resposta à
oração. É correto (veja-se sobre Jo 9:31). No entanto, quando disse,
“Mas também sei que, mesmo agora, tudo quanto pedires a Deus, Deus
to concederá”, utilizou uma palavra para oração (α_τέω: pedir) que Jesus
nunca utilizou com relação a Suas próprias petições. O termo que Marta
utilizou é adequado no caso de um inferior que pede um favor a um
superior (Jo 4:9, 10; 14:13; 15:7, 16; 16:23, 24, 26). O termo que Jesus
empregava com relação a Suas próprias petições implica geralmente a
igualdade das duas pessoas (a que pede e aquela a quem se pede). Este
último termo (_ρωτάω) significa fazer uma petição, veja-se sobre Jo
14:16, 17:9, 15, 20; mas também simplesmente: perguntar ou inquirir (e
neste sentido é adequada nos lábios de qualquer), veja-se sobre Jo 16:19,
23. Poderíamos dizer, portanto, que Marta, que estava prestes a fazer
uma bela confissão com relação a Jesus, não compreendeu o significado
pleno da relação entre o Pai e o Filho. No entanto, o que é preciso
sublinhar é que no versículo 22 a luz da fé de Marta, embora ainda
obscurecida pelas dúvidas que a assaltavam, dissipa momentaneamente
as trevas de seu quase desespero.
23, 24. Declarou-lhe Jesus: Teu irmão há de ressurgir. Eu sei,
replicou Marta, que ele há de ressurgir na ressurreição, no último dia.
Na forma mais simples possível Jesus predisse o que estava prestes
a ocorrer: “Teu irmão há de ressurgir”. Marta, refreando (inclusive
talvez apagando?) no momento sua vacilante esperança, como se fosse
muito bela para ser verdade, e como se o apegar-se à promessa de Jesus
fosse muito atrevido, respondeu em tom dolorido, “Eu sei que
ressuscitará na ressurreição, no dia último”. Se refreando — e não
extinguindo — fosse a palavra adequada neste caso, poderia ainda
perguntar-se: Estava procurando com sua resposta que Jesus lhe
explicasse claramente o que queria dizer? Mas é mais provável a opinião
de que, no momento (veja-se sobre 11:21, 22), mais uma vez tinham
João (William Hendriksen) 509
triunfado a dor e o desalento. Provavelmente pensava: «Jesus Se refere,
certamente, à ressurreição no fim dos tempos”. Esta referência à
ressurreição na grande consumação foi talvez uma espécie de consolo
convencional, que frequentemente utilizavam os chorosos profissionais
que não sabiam o que dizer. Mas isto não era o que Jesus tinha em mente
quando disse, “teu irmão há de ressurgir”.
Não deve passar inadvertido que no que disse Marta deu por
sentado, como totalmente indiscutível, a ressurreição no dia último. Em
muitas referências antigas do Antigo Testamento se manifesta a fé
pessoal na ressurreição individual (Sl. 16:9–11; 17:15; 49:16; 73:24, 26;
talvez também Jó 19:25–27). Dá-se a entender a ressurreição coletiva em
Ez. 37:1–14; Os. 6:2; e se expressa claramente em Is. 26:19 e Dn. 12:2.
Além disso, deve-se lembrar que Marta não era simplesmente judia; era
também discípula de Jesus. Podemos presumir que havia aceito pela fé o
ensino que encontramos em Jo 5:28, 29 (veja-se sobre esses versículos).
25, 26. Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em
mim, ainda que esteja morto, viverá; 242 e todo aquele que vive e crê em
mim nunca morrerá. Crês tu isso? [RC]
Segue aqui outro grande EU SOU — o quinto. Há sete. Quanto aos
outros veja-se sobre Jo 6:35; 8:12; 10:9; 10:11; 14:6; e 15:5. De novo
são intercambiáveis o sujeito e o predicado.
Jesus é a ressurreição e a vida; a ressurreição e a vida, isso é Jesus.
Tanto a ressurreição como a vida estão nEle (cf. Rm. 6:8, 9; 1Co. 15:20,
57; Cl. 1:18; 1Ts. 4:16). Observe-se a ordem: primeiro ressurreição, logo
vida; porque a ressurreição abre a porta para a vida imortal. Jesus é a
ressurreição e a vida em pessoa (veja-se sobre Jo 1:3, 4), a vida plena e
bendita de Deus, todos os Seus gloriosos atributos: onisciência,
sabedoria, onipotência, amor, santidade, etc. Como tal é também a causa,
manancial ou fonte da gloriosa ressurreição dos crentes e de sua vida
eterna. Porque Ele vive, também nós viveremos. Se Ele desaparecer, não

242
III A 1; véase IV de la Introducción.
João (William Hendriksen) 510
resta senão a morte. Se Ele estiver presente, estão asseguradas a
ressurreição e a vida. O príncipe da vida é sempre o vencedor da morte.
Não só o é na ressurreição no último dia; é-o sempre. Esta é exatamente
a verdade que Marta não chegou a captar. Por isso, Jesus enfatizou aqui
isso, a fim de reavivar a chama da esperança no coração de Marta, de
modo que se alimentasse até se transformar numa chama viva e ardente.
O que Marta quase não se atrevia a esperar ia converter se em algo real;
porque Ele, quem era o Príncipe da vida, também neste momento, era o
vencedor da morte em todas as suas formas.
O resto deste glorioso EU SOU é um desenvolvimento sistemático
das palavras iniciais. Jesus é a ressurreição; por isso, “Quem crê em
mim, ainda que esteja morto, viverá”. Jesus é a vida; por isso, “todo
aquele que vive e crê em mim nunca morrerá”. É um belo paralelismo
sintético. A segunda frase reforça a primeira mas não se limita a repeti-
la.
Primeiro, descreve-se ao crente no momento da morte. A gente
pensa naturalmente em Lázaro, mas o que se diz aplica-se a todo crente
que morre fisicamente. As palavras são: “Quem crê (permanentemente)
em mim (observe-se o gerúndio _ πιστεύων seguido de ε_ς; e veja-se
sobre Jo 1:8; 3:16; especialmente sobre Jo 8:30, 31a), embora morra
(fisicamente) viverá (conseguindo a vida eterna na glória).
Logo, descreve-se o crente como alguém que vive na terra, antes da
morte. Lemos: “Quem vive (espiritualmente; veja-se sobre Jo 1:3, 4;
3:16) e crê (permanentemente) em mim, nunca morrerá (nunca provará a
morte eterna; nunca estará separada alma e corpo da presença do Deus
de amor)”. Veja-se também Jo 3:15–17; 6:47; 8:51. Inclusive a morte
física não pode apagar a vida real do crente; pelo contrário, essa morte é
lucro, porque o introduz ao desfrute pleno da vida.
Na primeira frase, crer é seguido por viver. Refere-se à vida do céu.
É certo, naturalmente, que inclusive na terra o crente experimenta de
antemão esta vida celestial (Jo 3:36; cf. 3:16). Na segunda frase ao viver
e crer (uma espécie de hendíadis: viver pela fé) segue-lhe o não morrer
João (William Hendriksen) 511
jamais. Temos aqui um exemplo de litote: nunca morrerá implica
realmente: certamente viverá para sempre, sim, para sempre. Observe-se
o duplo negativo: não morrerá jamais (ο_ μ_ _ποθάν_ ε_ς τ_ν α__να).
Tudo isso é um belo paralelismo, no qual a segunda cláusula
confirma e reforça a primeira. Além disso, a distribuição, é ascendente.
Isto se verá imediatamente: o fato de que o crente ao morrer entra na
vida no estado de perfeição resulta consolador, embora não seja algo
desconhecido; mas o fato de o crente que reside na terra tenha a
segurança de que não morrerá jamais resulta surpreendente. Cf. também
Rm. 8:10; 2Co. 4:16.
Deste modo o próprio milagre (Jo 11:38–44) tem uma introdução
gloriosa e clara, de modo que quando ocorrer se verá não como um fim
em si mesmo, e sim como um exemplo do que Jesus é e deseja ser para
todos os que confiam nEle. Assim, pois, o milagre será visto em seu
verdadeiro caráter, ou seja, como sinal, que aponta para Cristo, e o
manifesta em toda a Sua glória.
O incrédulo repudia ambas as cláusulas deste glorioso EU SOU (ou
seja, tanto Jo 11:25b e 11:26a), e também a afirmação na qual ambas se
apoiam (Jo 11:25a). Opina que com a morte tudo acaba. Por isso não
pode aceitar a afirmação: “quem crê em mim, ainda que esteja morto,
viverá”. Também concebe a morte física como o real, como o inflexível
ceifeiro; por isso, para ele, não tem sentido a ideia de que esta morte
poderia alguma vez ver-se privada de seu verdadeiro poder. Estas
verdades se aceitam pela fé, só pela fé. Por esta razão, Jesus exigiu que
Marta fizesse pessoalmente seu o que acabava de ouvir dos lábios dEle,
ou seja, que como resultado do que Ele é — quer dizer, a ressurreição e a
vida — a vida do crente triunfa sempre sobre a morte. “Crês tu isso?”,
diz Jesus a Marta. Segue uma bela confissão:
27. Sim, Senhor, respondeu ela, eu tenho crido que tu és o Cristo, o
Filho de Deus que devia vir ao mundo.
A confissão de Marta aqui é positiva, heroica e ampla. É, na
realidade, muito comovedora, tanto mais notável devido ao fato de que
João (William Hendriksen) 512
foi feita sob circunstâncias tão difíceis. O EU SOU de Jesus a ajudou
grandemente. Vemo-la agora em seu melhor momento; antes, vemos que
a graça de Deus se manifesta nela, ao ouvi-la dizer, “Sim (assim entendo
a afirmação de que Jesus é a ressurreição e a vida, e as duas proposições
que lhe seguem), Senhor (veja-se sobre Jo 1:38); eu tenho crido (tempo
perfeito: chegou a ser uma profunda convicção em mim) que tu és o
Cristo (veja-se sobre Jo 10:25), o Filho de Deus (veja-se sobre Jo 1:14,
34; 20:31; e II da Introdução), que devia vir ao mundo” (título exato para
Aquele que voluntariamente veio do céu à terra, Fp. 2:5–8; 2Co. 8:9;
veja-se sobre Jo 1:9).
Dizer, como faz-se às vezes, que Marta não queria confessar a
deidade plena do Senhor, leva a pessoa a uma inconsistência
irremediável. Marta tinha ouvido Jesus que falava de Si mesmo como o
Filho de Deus. Agora, se outros entenderam que isto significava que se
atribuía igualdade plena com o Pai (veja-se sobre Jo 10:30–33; cf. em
5:18), por que não Marta? Ela tinha ouvido as pretensões de Jesus, e as
tinha crido. Observe-se: “Eu tenho crido”. O pronome eu, porque está
explícito e devido à sua posição na frase, deve provavelmente
considerar-se neste caso como enfático (mas veja-se IV da Introdução).
Outros tinham ouvido as mesmas afirmações, mas as tinham rejeitado
chamando a Jesus de blasfemo.
Quanto a outras notáveis confissões, referidas em capítulos
anteriores do Evangelho de João, veja-se a de João Batista (“Eis o
Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, Jo 1:29), a de André
(“Achamos o Messias”, Jo 1:41), a de Filipe (“Achamos aquele de quem
Moisés escreveu na lei, e a quem se referiram os profetas”, Jo 1:45), a de
Natanael (“Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel”, Jo 1:49,
RC), a dos samaritanos (“Este é verdadeiramente o Salvador do mundo”,
Jo 4:42), e a de Simão Pedro (“Senhor, para quem iremos? Tu tens as
palavras da vida eterna; e nós temos crido e conhecido que tu és o Santo
de Deus”, Jo 6:68, 69; cf. também a confissão referida em Mt. 16:16).
João (William Hendriksen) 513
É compreensível que um pouco depois (veja-se sobre 11:39) Marta
vacile de novo, de modo que no momento não veja as implicações plenas
de sua anterior confissão. Os olhos de Marta não estavam sempre fixos
em Jesus. Às vezes se dirigiam ao cadáver. Quando isto sucedia,
obscurecia-se sua visão espiritual. Pedro teve uma experiência um tanto
similar (veja-se Mt. 14:28–31).
28–30. Tendo dito isto, retirou-se e chamou Maria, sua irmã, e lhe
disse em particular: O Mestre chegou e te chama.
Uma vez feita sua gloriosa confissão, Marta entra de novo na casa
de luto. Podemos imaginá-la entrando e sussurrando à sua irmã Maria.
Por que chamou Maria em segredo? Foi porque não queria que os judeus
(em geral hostis a Jesus) soubessem que Jesus estava perto? Tinha medo,
talvez, de que pudesse suscitar-se controvérsia entre Jesus e os judeus, e
desejava dar também a Maria a oportunidade de conversar com o Mestre
em particular? É possível.
A razão pela qual chamou Maria foi (além de seu próprio desejo),
que Jesus lhe tinha pedido que o fizesse. Esta é, sem dúvida, a
explicação mais natural das palavras: “O Mestre chegou e te chama”.
Ela, ouvindo isto, levantou-se depressa e foi ter com ele, pois Jesus
ainda não tinha entrado na aldeia, mas permanecia onde Marta se
avistara com ele. Quando Maria ouviu isso, pôs-se de pé para sair
apressadamente da casa. Dirigia-se (tempo imperfeito, muito gráfico) a
Jesus. Este ainda não tinha entrado na aldeia, mas estava ainda no lugar
onde Marta O encontrou. Os comentaristas sugerem várias razões
possíveis para explicar o fato de que Jesus permanecesse aí inclusive
depois de sua conversação com Marta. Uma razão que se sugere é: dar a
Maria a mesma oportunidade de uma entrevista particular que tinha
desfrutado sua irmã. Mas com relação a isto deve lembrar-se que de fato
a entrevista de Maria dificilmente se pode chamar particular. Talvez
deve-se buscar a solução numa direção totalmente diferente, que também
é sugerida por vários comentaristas; ou seja, que o lugar onde se
efetuaram as conversações com Marta e (logo) com Maria estava muito
João (William Hendriksen) 514
perto do “cemitério”. Embora não saibamos isso com certeza, o relato,
no entanto, deixa esta impressão em nós (cf. versículos 30, 32, 33, 34,
38). Se este fosse o caso, não é difícil entender por que Jesus, que não
tinha nada a fazer na casa e sim na tumba, permaneceu onde estava.
31. Os judeus que estavam com Maria em casa e a consolavam,
vendo-a levantar-se depressa e sair, seguiram-na, supondo que ela ia ao
túmulo para chorar.
Quanto ao significado da expressão “os judeus que estavam com
Maria em casa e a consolavam” veja-se sobre o versículo 19 acima.
Pareceria que Maria era a mais emotiva das duas irmãs, como parece
indicar sobretudo o versículo 32 (e veja-se também Jo 12:3). É possível
que este característico também explique a forma apressada de levantar-se
para sair da casa, embora deva ter-se em mente que nos é dito claramente
que Jesus, através de Marta como mensageira, tinha chamado a Maria.
Não lemos que tivesse chamado a Marta, embora também seja provável
(veja-se sobre versículo 20).
Foi esta forma apressada de levantar-se que fez com que os judeus
tirassem a conclusão de que Maria dirigia-se ao sepulcro para chorar
nele, de modo que a seguissem embora não tivessem seguido a Marta?
Certos comentaristas opinam assim, o que pode ser correto, mas não o
sabemos com segurança.
Devemos levar em conta também que esta decisão da parte dos
judeus, ou seja, a de seguir a Maria até a tumba, estava no plano de
Deus. Queria que os judeus vissem o milagre! A palavra para chorar
aqui no versículo 31 não é a mesma da do versículo 35; veja-se sobre
esse versículo.
32. Quando Maria chegou ao lugar onde estava Jesus, ao vê-lo,
lançou-se-lhe aos pés, dizendo: Senhor, se estiveras aqui, meu irmão não
teria morrido.
Quando Maria viu Jesus, caiu instantaneamente aos Seus pés para
chorar (veja-se versículo 35). Nesta atitude de reverência e adoração
repetiu o que Marta havia dito: “Senhor, se estiveras aqui, não teria
João (William Hendriksen) 515
morrido meu irmão”. Quanto ao significado desta exclamação veja-se
sobre Jo 11:21. Note-se que enquanto Marta não caiu aos pés de Jesus
(Jo 11:20, 21), Maria não acrescentou (como Marta o fez). “Mas também
sei que, mesmo agora, tudo quanto pedires a Deus, Deus to concederá”.
As irmãs parecem iguais agora. Em qualquer caso, sobre a base do que
se encontra em João 11 não há prova suficientes para afirmar que a fé de
Maria era de qualidade ou grau mais excelente que a de Marta. Mas veja-
se também capítulo Jo 12:1–8; e Lc. 10:38–42. Neste segundo relato sem
dúvida foi Maria a que “escolheu a melhor parte”.
33, 34. Jesus, vendo-a chorar, e bem assim os judeus que a
acompanhavam, agitou-se no espírito e comoveu-se. E perguntou: Onde o
sepultastes? Eles lhe responderam: Senhor, vem e vê!
Quando Jesus viu que Maria chorava e que os judeus, que tinham
vindo com ela — muitos dos quais iam aceitá-Lo pela fé (Jo 11:45) —
também choravam, agitou-se no espírito e comoveu-se (veja-se sobre Jo
13:21). O verbo que se utiliza aqui tem o significado radical de soprar
(do cavalo); logo, de comover-se de ira (Mc. 14:5), encarregar
rigorosamente (Mt. 9:30; Mc. 1:43). Suscita-se a pergunta, por
conseguinte: “tem o mesmo significado este verbo tal como se usa aqui
no versículo 33 (veja-se também versículo 38)?” Muitos comentaristas
creem que sim. Jesus, segundo sua interpretação, encheu-se de
indignação. Mas por que se zangou? Certamente não porque Maria e os
judeus chorassem. Ele mesmo estava prestes a desatar-se em lágrimas
(versículo 35). Por quê, então? A resposta que se costuma dar é: Jesus
concentrava Sua atenção no pecado, como a causa subjacente de todo
sofrimento, dor e tristeza. Estava cheio de indignação contra o pecado.
Parece-nos que esta explicação contém um considerável elemento de
fato. O próprio fato de que o verbo que se costuma empregar (a saber,
em outras passagens) refira-se a um sentimento de indignação, pareceria
apontar para essa direção. Além disso, é inconcebível que Cristo
pensasse no pesar e na dor e não no pecado como sua causa. No entanto,
cremos que esta explicação, embora correta no que diz, não vai
João (William Hendriksen) 516
suficientemente longe. A emoção intensa que surgiu no coração do
Senhor compreendeu pelo menos outro elemento além da indignação. Ia
para além da ira e incluía mais que isso. Todas as circunstâncias
implicam claramente que também incluía simpatia. De fato o contexto
imediato nem sequer menciona o pecado. Fala só a respeito do chorar de
Maria e dos judeus, e dá-se a impressão de que foi este pranto o que
conduziu a Seu pranto (cf. Jo 11:33, 34 com 11:35). O contexto, por
conseguinte, é de simpatia mais que de ira. Também o verbo comoveu-se
ou turvou-se que se usa em conexão com o verbo em questão, sugere
turvação interna (como também o faz em Jo 12:27; 13:21; 14:1, 27), de
qualquer índole que seja, mais que pura indignação. Quanto ao
significado do segundo verbo (ταράσσω) veja-se também Jo 14:1.
Pareceria, por conseguinte, que a tradução comoveu-se
profundamente no espírito é a melhor. Traduzido assim, o verbo é
suficientemente inclusivo para abranger tanto a indignação como a
simpatia. O intenso brotar de emoção fez-se provavelmente visível no
aspecto de Jesus, seu tom de voz e (talvez sobretudo) em seu constante
suspirar. Quanto ao significado do termo espírito (πνε_μα) veja-se sobre
Jo 13:21.
Indignado com o pecado como raiz de todo sofrimento e pesar, mas
também fazendo Sua a dor dos que estão junto a Ele, Jesus, comovido
profundamente no espírito e visivelmente agitado, disse: “Onde o
sepultastes?” Embora tivesse podido pedir informação de várias
maneiras (veja-se sobre Jo 5:6), utilizou aqui o método mais humano:
perguntou aos que estavam juntos a Ele. Estes (talvez os que estavam
mais favoravelmente inclinados para Ele) responderam “Senhor (veja-se
sobre Jo 1:38), vem e vê!” Para o primeiro verbo utiliza-se o presente
aoristo e para o segundo o aoristo simples; ambos são imperativos, com
muito pouca, talvez nenhuma, distinção quanto ao significado dos
tempos.
35. Jesus chorou. É o único lugar no Novo Testamento onde aparece
este verbo. É provavelmente aoristo ingressivo (_δάκρυσε). No entanto,
João (William Hendriksen) 517
o substantivo (lágrima, lágrimas) cuja raiz entra na formação deste
verbo, encontra-se também em Hb. 5:7 com relação a Jesus: “nos dias da
sua carne, tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e
súplicas a quem o podia livrar da morte e tendo sido ouvido por causa da
sua piedade”, etc. Veja-se também Mc. 9:24; Lc. 7:38, 44; At. 20:19, 31;
2Co. 2:4; 2Tm. 1:4; Heb. 12:17; Ap. 7:17; 21:4. Em todas estas
passagens (começando com Mc. 9:24) outros derramam as lágrimas, não
Jesus. No entanto, sem dúvida há relação entre Jo 11:35 (“Jesus chorou”)
e Ap. 7:17 (“Deus enxugará toda lágrima dos olhos deles”): devido a
Suas lágrimas as nossas serão enxutas.
Observe-se a diferença, que não pode ser casual: em Jo 11:31, 33
utiliza-se outro verbo (κλαίω) que aqui em Jo 11:35. Maria e os judeus
choraram. No caso de Maria este pranto foi, naturalmente, genuíno,
expressão de pesar real e íntimo pela morte de um irmão querido. No
caso dos judeus foi, como em muitos casos, provavelmente equivalente a
gemer. Veja-se sobre Jo 16:20. O verbo κλαίω não significa sempre ou
necessariamente gemer (em consequência, no sentido de chorar, não
gemer ou lamentar, pode-se utilizar inclusive com relação a Jesus, Lc.
19:41: Jesus chorou sobre Jerusalém), mas pode ter esse significado (Mc.
5:38, 39). O verbo δακρύω utilizado aqui em Jo 11:35 não quer dizer
gemer ou lamentar-se. Mas estas lágrimas eram a expressão de amor,
amor não só por Lázaro (como pensaram os judeus, Jo 11:37) mas
também por Maria, Marta e outros (veja-se sobre Jo 11:33). Eram
lágrimas de genuína simpatia (Hb. 4:15; cf. Rm. 12:15).
Com relação a estas lágrimas com frequência se observa que
demonstram a verdadeira humanidade de Jesus. É claramente correta
esta observação (veja-se também sobre Jo 1:14). O quarto Evangelho
(justamente o próprio livro que põe de relevo a divindade de Cristo, veja-
se II da Introdução) descreve-o não só como absolutamente divino mas
também como verdadeiramente humano. Deve insistir-se, contudo, em
que estas lágrimas de nosso Senhor não foram acompanhadas de pecado.
Não foram as lágrimas do choroso profissional, nem as do sentimental,
João (William Hendriksen) 518
mas as do puro e santo Sumo Sacerdote cheio de compaixão. Nasceram
do mais genuíno amor, pelo homem que se encontra em todo o universo,
o amor pelo qual Jesus Se deu a Si mesmo.
36, 37. Então, disseram os judeus: Vede quanto o amava. Mas alguns
objetaram: Não podia ele, que abriu os olhos ao cego, fazer que este não
morresse?
Os judeus interpretaram de forma bem limitada estas lágrimas de
Jesus, como se só as tivesse derramado por dor diante da morte de
Lázaro e não, ao mesmo tempo (como o indica claramente o contexto),
por simpatia genuína para com as lágrimas de outros. Entre os judeus,
como já se observou, havia aqueles que iriam aceitar a Cristo pela fé (cf.
Jo 11:45). Os judeus (veja-se sobre Jo 1:19) comoveram-se
profundamente diante do amor de Cristo, bem como um pouco depois
vão sentir-se profundamente impressionados diante de Seu poder. Em
sua exclamação referem-se ao terno afeto de Jesus por Lázaro. (Quanto
ao significado do verbo traduzido por amar e seus sinônimos veja-se
sobre Jo 21:15–17). A forma que aqui se utiliza é vívida (o imperfeito:
_φίλει): amava (no passado e até o momento da morte de Lázaro) ou
amava constantemente.
Os judeus creram que o caso de Lázaro tinha concluído. O
problema já não tinha solução. Afinal de contas, Lázaro estava morto.
Mas, por que Jesus não tinha impedido sua morte? Alguns Lhe
perguntaram com espírito crítico, outros por simples perplexidade:
«Acaso aquele que tinha aberto os olhos ao cego (o último grande
milagre em Jerusalém, a respeito do qual ainda se falava: veja-se sobre
capítulo 9) não poderia ter também impedido que este homem
morresse?» Esta pergunta lembra a exclamação de pesar referida em Jo
11:21 e 11:32, mas não transmite exatamente o mesmo pensamento.
Além disso, não alcança a altura conseguida por Marta em 11:22 (veja-se
sobre esse versículo). Parece que as notícias da ressurreição da filha de
Jairo e do filho da viúva não tinham chegado a Jerusalém, ou, em caso
João (William Hendriksen) 519
contrário, esta morte era totalmente diferente: Já estava no quarto dia! O
caso não tinha remédio!

JO 11:38–44

11:38. Jesus, agitando-se novamente em si mesmo, encaminhou-se


para o túmulo; era este uma gruta a cuja entrada tinham posto uma
pedra.
Jesus Se dirigiu à tumba comovido. Quanto ao verbo
profundamente comovido (no espírito, versículo 33) veja-se sobre Jo
11:33. A tumba tinha forma de caverna ou antecâmara escavada na
rocha. Imaginamos a rocha sobressaindo da terra, talvez ligeiramente
inclinada para trás. A fim de afugentar os animais selvagens, sobre ela
repousava uma lápide de pedra.
39. Ao realizar milagres Jesus não esbanjava Seu poder. Só Deus
pode ressuscitar os mortos, mas os homens podem tirar a lápide de uma
tumba. Por isso Jesus lhes pediu que o fizessem. Observe-se a brevidade
do mandato: Então, ordenou Jesus: Tirai a pedra (aoristo imperativo
ativo). Nesse momento Disse-lhe Marta, irmã do morto, fixando a
atenção no cadáver do irmão e não no Conquistador da morte (veja-se
sobre Jo 11:21, 22): Senhor (veja-se sobre Jo 1:38), já cheira mal,
porque já é de quatro dias. O evangelista refere esta objeção de Marta a
fim de pôr de relevo a grandeza do milagre (veja-se também sobre Jo
11:17). Não é necessário nem tampouco aconselhável traduzir o original
como se dissesse: “Senhor, já há aroma” (Bíblia das Américas). As ideia
atrás desta tradução pode ter sido que, com a pedra ainda enfrente do
sepulcro, não podia despedir aroma. Por isso, argui-se que Marta não
pode ter querido dizer: já cheira. Mas inclusive hoje em dia em torno à
uma tumba adequadamente fechada se percebe certo aroma! 243 Quando
Marta acrescenta “porque já é (morto) de quatro dias” (cf. At. 28:13),

243
F. W. Grosheide, op. cit., p. 176, nota 1.
João (William Hendriksen) 520
atribui o aroma da decomposição do corpo. A preparação do corpo para
sepultá-lo não era tão meticulosa na Palestina como no Egito.
Embalsamar era um costume alheio ao povo hebreu, mas o praticavam
com muita meticulosidade os egípcios influentes (cf. Gn. 50:2, 26). A
unção que tinham adotado os judeus proeminentes era menos eficaz.
Veja-se também sobre Jo 11:44.
A fé de Marta vacilou momentaneamente. Por isso,
40, 41a. Respondeu-lhe Jesus: Não te disse eu que, se creres, verás a
glória de Deus? 244
A fim de fortalecer a fé de Marta, Jesus resumiu o que lhe havia
dito antes, quer fosse por meio de um mensageiro (Jo 11:4) ou
diretamente (Jo 11:23, 25, 26); notem-se sobretudo as seguintes palavras:
Jn 11:4: “Esta enfermidade não é para morte, e sim para a glória de
Deus, a fim de que o Filho de Deus seja por ela glorificado”.
Jn 11:23: “Teu irmão há de ressurgir”.
Jn 11:25, 26: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim,
ainda que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim não morrerá,
eternamente. Crês isto?”
Tudo isto se resume brevemente nas palavras: “Não te disse eu que,
se creres, verás a glória de Deus?”
Naturalmente, Jesus não pode ter querido dizer que a realização do
milagre dependia do exercício de fé da parte de Marta. O que queria
comunicar era que se Marta deixasse de pensar no cadáver e concentrava
sua atenção em Jesus, confiando completamente nEle (em Seu poder e
amor), veria este milagre como verdadeiro sinal, como ilustração e prova
da glória de Deus refletida no Filho de Deus. Quanto ao significado do
conceito glória veja-se sobre Jo 1:14.
Marta ficou calada, e: Tiraram, então, a pedra.

244
III A 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 521
41b, 42. E Jesus, levantando os olhos para o céu, disse: Pai, graças te
dou porque me ouviste. Aliás, eu sabia que sempre me ouves, mas assim
falei por causa da multidão presente, para que creiam que tu me enviaste.
Antes de realizar o milagre Jesus ofereceu uma oração, bela por sua
confiança, simplicidade, e sinceridade. Orou como o Enviado do Pai
(veja-se sobre Jo 3:17, 34; 5:36, 37; 8:18, 27, 29); ou seja, orou como o
Mediador, visto que era o Filho de Deus. Levantou os olhos, porque o
trono de Deus está no alto, e disse, “Pai (não nosso pai; Deus é Seu Pai
num sentido único; veja-se sobre Jo 1:14; 3:16), graças te dou porque me
ouviste”. Jesus podia dizer isso, falando como se o milagre já se tivesse
realizado, porque tinha a certeza no coração de que ia realizar-se. Pelo
bem do auditório Jesus pronunciou estas palavras em voz alta, e pelo
bem deles acrescentou, “eu sabia que sempre me ouves”. Que o Pai
sempre ouve o Filho se desprende naturalmente de Jo 5:30 e 10:30 (veja-
se sobre estas passagens). Quando o cego de nascença (e logo Marta)
consideraram os milagres de Cristo como resposta à oração (Jo 9:31;
11:22), tinham razão.
O propósito da oração, na qual aparece, naturalmente, a íntima
relação entre o Pai e o Filho, foi que a multidão que os rodeava cresse
(aoristo ingressivo: πιστεύσωσι) que Jesus é o Enviado, o verdadeiro
Messias, com a comissão divina de levar a cabo Sua tarefa mediadora.
Veja-se acima sob Observações preliminares 1 B.
43, 44. E, tendo dito isto — tendo colocado o milagre, que ia realizar
se, no marco apropriado —, clamou em alta voz. A respeito da alta voz
veja-se também Mt. 27:46, 50; Lc. 23:46; 1Ts. 4:16; e cf. Jo 5:28, 29.
Não era absolutamente necessária a grande voz, o grito penetrante para
despertar o morto (veja-se Mc. 5:41; Lc. 7:14). Mas Jesus gritou para
que todos os da multidão estivessem conscientes do fato de que o morto
ia responder à Sua chamada.
O que Jesus gritou foi, Lázaro, vem para fora! (literalmente,
“Lázaro, para cá, fora” dois advérbios). Foi esta voz de Jesus, a
expressão de Sua vontade onipotente a que fez com que o morto voltasse
João (William Hendriksen) 522
à vida e obedecesse o mandato. Não sabemos como sucedeu, porque foi
um milagre, e o milagre transcende a compreensão humana. Com
simplicidade majestosa se relata a maravilhosa obra: Saiu aquele que
estivera morto. descreve-se a Lázaro como “morto”, não no sentido de
“tendo estado morto e ainda morto”, o que converteria tudo em algo sem
sentido, mas sim morto no sentido que tinha estado morto e neste
momento era devolvido à vida.
Apresenta-se um quadro vívido de Lázaro saindo do sepulcro.
Tinha os pés e as mãos ligados (literalmente, preso com relação aos pés e
as mãos) com ataduras, faixas de linho que envolviam suas
extremidades. Não se diz nada do lençol branco que envolvia o corpo.
Parece que, embora preso pelas mãos e os pés, Lázaro pôde caminhar,
embora talvez com dificuldade. E o rosto envolto num lenço. A palavra
que se utiliza (σουδάριον) deriva-se do latim sudarium, de suor. Veja-se
também sobre Jo 20:7; cf. Lc. 19:20; At. 19:12.
A glória de Deus, a revelação de seus maravilhosos atributos
(poder, amor, etc.), manifestou-se para que todos a vissem. E isto é o que
o evangelista quer enfatizar, porque o próprio Jesus o sublinhou (Jo
11:4). Por isso, o Senhor desalentou toda vã curiosidade. Não quis que
Lázaro permanecesse aí para deixar boquiabertos os curiosos ou para
responder perguntas; por exemplo: “Onde estava sua alma?” “Como
alguém se sente ao voltar à terra?” Para impedir tudo isso e para ajudar a
Lázaro, que ainda estava impedido pelas ataduras e o sudário, Jesus
emitiu um breve mandato (provavelmente aos que estavam mais perto):
Então, lhes ordenou Jesus: Desatai-o e deixai-o ir (dois imperativos
aoristos, o segundo seguido de infinitivo presente).

JO 11:45–57

Implica-se claramente ou se relata de forma precisa um efeito


quádruplo: (1) O milagre fez com que muitos dos judeus, que antes
tinham mostrado inimizade para Jesus, chegassem a crer nEle (Jo 11:45).
João (William Hendriksen) 523
(2) Incrementou a ira de seus inimigos, aqueles que agora, numa sessão
oficial do Sinédrio, começaram a tramar Sua morte (Jo 11:46–54; cf.
versículo 57). Veja-se Observações preliminares. (3) Produziu grande
excitação entre a multidão pascal em Jerusalém (Jo 11:55–57). (4)
Fortaleceu a fé de Maria e Marta e dos discípulos (exceto, por certo, de
Judas, que não a tinha; cf. Jo 12:4). Este fortalecimento da fé não se
refere explicitamente, mas pode-se deduzir de Jo 11:4, 15, 26, 40. Além
disso, no caso de Maria manifestou-se numa ação de glorioso amor (Jo
12:1–8). Estes quatro pontos se apresentam, nessa ordem, nos versículos
que se explicarão a seguir:
11:45. O milagre fez com que muitos dos judeus que antes tinham
mostrado inimizade para Jesus, chegassem a crer nele. As palavras são:
Muitos, pois, dentre os judeus que tinham vindo visitar Maria, vendo o
que fizera Jesus, creram nele.
Quanto ao caráter dos judeus que tinham vindo para consolar, veja-
se sobre Jo 1:19; logo em Jo 11:19. Tomamos a cláusula “que tinham
vindo visitar Maria, vendo o que fizera Jesus” como modificadora de seu
antecedente mais próximo judeus. Implicitamente também modifica os
muitos que chegaram a crer em Jesus. Só se menciona a Maria, talvez
pela mesma razão que fez com que se mencionasse antes que Marta em
Jo 11:1 (veja-se sobre Jo 11:1, 2).
Lemos que muitos destes judeus que tinham visitado o lar de Maria
para manifestar seu pesar tinham visto o que Jesus fez. Não só tinham
sido testemunhas físicas do milagre mas também o tinham estudado,
refletido e ponderado. O verbo é θεάομαι; veja-se em Jo 1:14. O
resultado foi que chegaram a crer em Jesus. Embora a expressão creram
nele (_πίστευσαν ε_ς α_τόν) não se refere necessariamente à fé genuína
(veja-se sobre Jo 1:8; 3:16; 8:30, 31), e embora, como o indicam os
versículos seguintes (especialmente os versículos 48, 49, 50), os
dirigentes interpretassem esta fé como lealdade para com Jesus como
senhor terrestre, no entanto, à luz de Jo 11:4, 52, dificilmente se pode
duvidar que no dia da ressurreição milagrosa de Lázaro foram
João (William Hendriksen) 524
acrescentados ao rebanho muitos crentes sinceros em Jesus Cristo como
Salvador espiritual.
46. O milagre incrementou a ira de Seus inimigos, aqueles que
agora, numa sessão oficial do Sinédrio, começaram a tramar Sua morte.
Outros, porém, foram ter com os fariseus e lhes contaram dos feitos que
Jesus realizara. Alguns dos judeus, tendo sido testemunhas do milagre e
tendo observado seu efeito sobre o povo, tornaram-se inclusive mais
violentos contra Ele. Embora gramaticalmente seja possível interpretar
alguns deles no sentido de alguns dos muitos judeus que creram, esta
interpretação é obviamente incorreta. A ideia, neste caso como em
muitos outros casos, é simplesmente que as testemunhas judias
dividiram-se em duas classes: muitos creram (seja qual for o sentido em
que isto possa ter sido verdade), outros se tornam mais hostis que antes.
Com intenções sinistras o segundo grupo foi aos fariseus (veja-se sobre
Jo 3:1), não para lhes dizer que tinham estado errados a respeito de
Jesus, senão para convencê-los de que era preciso tomar alguma ação
drástica contra o operador de milagres. Esta interpretação harmoniza
com o que segue nos versículos 47, 48:
47, 48. Então, os principais sacerdotes e os fariseus convocaram o
Sinédrio; e disseram: Que estamos fazendo, uma vez que 245 este homem
opera muitos sinais? Se o deixarmos assim, todos crerão nele; depois,
virão os romanos e tomarão não só o nosso lugar, mas a própria nação.246
Alertado pelos fariseus, um comitê do Sinédrio que consistia de
sumos sacerdotes (ex-sumos sacerdotes e membros de famílias de sumos
sacerdotes, principalmente de saduceus) e fariseus, convocou uma sessão
do Sinédrio. Explicaram aos membros reunidos que a razão de convocar
a sessão era para considerar o ponto: “O que estamos fazendo (ou: o que
devemos fazer), porque este homem está fazendo muitos sinais?”
Provavelmente pensavam sobretudo nos sinais referidos nos capítulos 9
(cura do cego de nascença) e 11 (ressurreição de Lázaro); possivelmente

245
A respeito de ὅτι veja-se IV da Introdução.
246
III A 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 525
também nos referidos nos capítulos 5 e 6 e outros que não se encontram
no quarto Evangelho. Note-se que admitem abertamente que Jesus fazia
muitos sinais. A razão de seu temor se manifesta nas seguintes palavras:
“Se o deixarmos assim — o conselho que Gamaliel ia dar-lhes uns anos
mais tarde com relação aos discípulos de Cristo; veja-se At. 5:38 —
todos crerão nele; depois, virão os romanos e tomarão não só o nosso
lugar, mas a própria nação”.
Conforme o via o comitê do Sinédrio, muito em breve todo mundo
aceitaria a Jesus como messias político. Assim sucederia a não ser que se
tomassem algumas medidas. Se não se fizesse nada, os romanos, ao
ouvir que havia um novo messias que estava prestes a dirigir uma
rebelião contra o governo constituído, viriam para tirar os judeus
(sobretudo o Sinédrio) tanto seu lugar (a cidade de Jerusalém com seu
templo, talvez com referência especial a este; cf. At. 6:13) como sua
nação, acabando com sua existência como nação, e dispersando-os por
toda a terra. A palavra grega τόπος às vezes significa posição (nossa
posição como dirigentes), mas o significado concreto de lugar, no
sentido de cidade ou templo, harmoniza com o que segue: e nossa nação.
49, 50. Caifás, porém, um dentre eles, sumo sacerdote naquele ano,
advertiu-os, dizendo: Vós nada sabeis, nem considerais que vos convém
que morra um só homem pelo povo e que não venha a perecer toda a
nação.
Como ninguém sugeria uma solução, o presidente da reunião
propôs uma. É evidente que este presidente não era simplesmente um
parlamentar que mantinha a ordem. Pelo contrário, falou quase só ele.
No mosaico de sua personalidade se misturavam intimamente elementos
de atrevimento descarado, ambição louca, ciúme rancoroso e habilidade
consumada. Ele tinha todas as respostas, e sabia como fazer com que
outros vissem os assuntos à sua maneira. Era a classe de pessoa a
respeito da qual um provérbio holandês diz: “A pessoa insolente se
apropria da metade do mundo”.
João (William Hendriksen) 526
Seu nome era Caifás (“José ao que se chama Caifás”, diz Josefo). O
significado exato do nome Caifás se desconhece, embora se tenha
interpretado como fisionomista (perito na arte de interpretar o caráter nos
aspectos da cara ou forma de uma pessoa) ou, com uma ligeira
modificação desta interpretação, adivinho, profeta. Se for correta esta
explicação do significado de seu nome, seria muito apropriado (veja-se
sobre Jo 11:51). Nomeado ao sumo sacerdócio por Valério Gratius,
predecessor de Pôncio Pilatos, no ano 18 d.C., o ia depor Vitélio,
sucessor do Pôncio Pilatos, no ano 36 d.C. Caifás era genro de Anás,
quem foi sumo sacerdote de 6 a 15 d.C.
Resulta claro, segundo as passagens que o mencionam (Mt. 26:3,
57; Lc. 3:2; Jo 11:49; 18:13, 14, 24, 28; At. 4:6), que Caifás era um
manipulador ardiloso e ousado, um oportunista, que não conhecia o
significado da justiça ou honestidade e que buscava fazer sua própria
vontade a como desse lugar. Não retrocedia diante do derramamento de
sangue inocente. O que desejava ardentemente, com intenções egoístas,
ele o fazia aparecer como se fosse o necessário para o bem-estar do
povo. A fim de conseguir a condenação de Jesus, quem tinha suscitado
sua inveja (Mt. 27:18), ia utilizar recursos que eram resultado de hábil
cálculo e ousadia sem precedentes (Mt. 26:57–66). Era hipócrita, porque
no processo final, no mesmíssimo momento em que se sentiu cheio de
intensa alegria visto que tinha encontrado o que considerava como
fundamento para a condenação de Jesus, rasgou sua veste sacerdotal
como se ficasse sobressaltado por um profundo pesar. Assim era Caifás.
Veja-se também Josefo, Antiguidades XVIII, iV, 3.
Agora, segundo a passagem que estudamos, nesse ano memorável,
quando Lázaro foi ressuscitado dentre os mortos e quando depois Jesus
foi condenado e crucificado, Caifás era o sumo sacerdote e, por
conseguinte, presidente do Sinédrio. Tendo escutado a colocação do
problema (veja-se versículos 47, 48) e tendo observado o fato de que
ninguém propunha uma solução, exclamou, “Vós nada sabeis”. A grande
brutalidade da observação lembra a forma como Josefo descreve os
João (William Hendriksen) 527
saduceus. Esse famoso historiador judeu, quem à idade de 19 anos se fez
fariseu e mantinha certos preconceitos a favor dos mesmos, afirma, “Os
fariseus são afetuosos entre si e cultivam relações harmoniosas com a
comunidade. Os saduceus, pelo contrário, são, inclusive entre eles, de
conduta selvagem, e na relação com seus iguais são tão ásperos como
com os estranhos” (Guerra judaica II, viii, 14). A grosseira observação
de Caifás nesta ocasião parece confirmar a afirmação de Josefo com
relação aos saduceus.
Caifás continua: “…nem considerais que vos convém que morra um
só homem pelo povo e que não venha a perecer toda a nação”. Sob a
pretensão de nobre patriotismo, este vilão inescrupuloso procurava
eliminar um obstáculo para sua própria popularidade e glória.
A alternativa que Caifás sugeriu era falsa porque se baseava numa
pressuposição que era precisamente o contrário da verdade. Seu
raciocínio era: seguir a Jesus e a nação perece; dar morte a Jesus, e a
nação se salva. Conclusão: Jesus deve morrer — por ironia da história ia
suceder precisamente o contrário: quando os judeus mataram a Jesus,
selaram sua própria condenação. Vieram os romanos, com efeito, e
destruíram a cidade (com seu templo) e a nação. Veja-se sobre versículo
48.
“Um homem pelo povo”, disse Caifás. O significado de por (_πέρ)
explicou-se com relação a Jo 10:11; veja-se sobre esse versículo.
51, 52. Ora, ele não disse isto de si mesmo; mas, sendo sumo
sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus estava para morrer pela
nação e não somente pela nação, mas também para reunir em um só
corpo os filhos de Deus, que andam dispersos.
As palavras de Caifás tiveram um significado mais profundo que
aquele que ele mesmo compreendeu. Os antigos profetas com frequência
pronunciavam palavras que não entendiam por completo. Cf. 1Pe. 1:10–
12. Caifás deu um significado a suas palavras; Deus, outro. A cláusula,
“Ele não disse isto de si mesmo”, não pode significar que Caifás viu-se
obrigado a dizer, “Convém que morra um só homem pelo povo e que
João (William Hendriksen) 528
não venha a perecer toda a nação”. Disse o que quis dizer, e a
responsabilidade pelo ímpio significado que transmitiram suas palavras é
exclusivamente sua; no entanto, na maravilhosa providência de Deus, a
seleção de palavras foi dirigida de tal modo que estas mesmas palavras
puderam expressar a substância do glorioso plano de salvação de Deus.
Como antes Deus tinha falado através do ímpio profeta Balaão, assim
também agora voltou a falar, e desta vez por meio do ímpio sumo
sacerdote Caifás. O fato de Deus ter escolhido um sumo sacerdote para
isso era, por certo, caracteristicamente apropriado, porque ele era quem
estava entre Deus e o povo. No momento Caifás foi não só sumo
sacerdote mas também profeta (“profetizou”). Esta passagem oferece
uma perspectiva do mistério da maravilhosa relação entre a providência
e o conselho divinos, por um lado, e o exercício da responsabilidade
humana, por outro; Caifás foi totalmente livre, não foi impedido de
nenhuma forma de dizer o que seu ímpio coração o impulsionava a dizer.
No entanto, a vontade de Deus, sem resultar no mínimo que seja
contaminada, dirigiu de tal forma a seleção de palavras que iam sair dos
lábios deste frio assassino, que resultaram exatamente as que se
necessitavam para expressar a verdade mais sublime e gloriosa com
relação ao amor redentor de Deus. Sem ter isso consciência o vilão se
converteu em profeta!
Sim, Jesus ia, realmente, a morrer pela nação; quer dizer, pela
“nação santa” de Êx. 19:6 (_θνος _γιον segundo a LXX), por “todo
Israel” de Rm. 11:26. Para Caifás o termo “a nação” (tal como o
emprega na cláusula, “não venha a perecer toda a nação”) tinha um
significado, ou seja, o povo de Israel visto como unidade política; para
Deus tinha outro significado, como fica muito claro pelo contexto que
segue imediatamente (versículo 52). O significado, na mente divina, não
pode ser “Jesus vai morrer por Israel, como unidade política, mas
também pelos filhos de Deus que estão dispersos em outras nações”. Não
se pode unir um conceito político com outro puramente espiritual (“os
filhos de Deus”). A explicação correta — que também harmoniza com o
João (William Hendriksen) 529
ensino constante do quarto Evangelho — exige que a expressão “não
somente pela nação” se interprete à luz de “mas também para reunir em
um só corpo os filhos de Deus, que andam dispersos”.
Há, pois, dois grupos. Todos os que se incluem nestes dois grupos
são filhos de Deus (τέκνα το_ θεο_; quanto ao significado desta frase
veja-se em Jo 1:12). Mas o primeiro grupo está composto daqueles filhos
de Deus que não estão dispersos; quer dizer, os judeus, e só os judeus, o
rebanho de Israel (veja-se sobre Jo 10:1); enquanto o segundo grupo
compreende àqueles filhos de Deus que estão dispersos; quer dizer, os
gentios, e só os gentios, aqueles filhos escolhidos de Deus (tivessem já
nascidos ou não) que não são do rebanho de Israel (veja-se sobre Jo
10:16). Fica claro que a última referência mencionada (Jo 10:16) é a que
o autor tem em mente pela surpreendente semelhança entre as palavras
finais desta mensagem e as palavras finais do versículo que estamos
estudando. Observe-se a semelhança:
Jo 10:16: “Ouvirão a minha voz, e haverá um rebanho, e um
pastor”.
Jo 11:52: “… para reunir em um só corpo os filhos de Deus, que
andam dispersos”.
O significado, em consequência, é este: os filhos de Deus
(idealmente, vale dizer, segundo o decreto de Deus desde a eternidade)
que estão dispersos no mundo pagão, ao longo da história, se reunirão
com aqueles filhos de Deus que constituem “todo Israel” (todos os
judeus escolhidos, concebidos como uma unidade orgânica, “nação
santa”), de maneira que constituem uma igreja e esta igreja é reunida por
Ele (Jesus). Observem-se as palavras “Jesus devia morrer … para
congregar em um”. Assim, o Cordeiro de Deus tirava o pecado do
mundo (Jo 1:29; veja-se também Jo 1:10).
53, 54. Desde aquele dia, resolveram 247 De sorte que Jesus já não
andava publicamente entre os judeus, mas retirou-se para uma região

247
Ou como querem alguns: “conspiraram para lhe dar morte”.
João (William Hendriksen) 530
vizinha ao deserto, para uma cidade chamada Efraim; e ali permaneceu
com os discípulos.
Com relação ao plano de matar a Jesus há no quarto Evangelho uma
sequência e um desenvolvimento, como se assinalou em I da Introdução.
O lembro oficial já se obteve numa sessão oficial do Sinédrio, embora a
farsa do juízo, com a sentença fixada de antemão, ainda não se realizara.
Quer seja que se traduza «conspiraram para poder matá-lo», ou
“combinaram matá-lo” (em outras palavras, quer _να seja considerado
aqui como introduzindo uma cláusula final ou como introduzindo uma
cláusula objeto) faz muito pouca diferença no resultado final. Qualquer
das duas é possível.
De modo que, Jesus, sabendo que ainda não tinha chegado
plenamente o tempo designado no plano eterno de Deus para Sua morte,
já não andava (pregando de um lugar a outro) abertamente (παρρησία;
veja-se sobre Jo 7:4, 13, 26:10:24; 11:14; 16:25, 29; 18:20) entre os
judeus (os líderes hostis e seus seguidores; veja-se sobre Jo 1:19), mas
saiu dali (quer dizer, dos arredores de Betânia e Jerusalém) para ir junto
ao deserto (com toda probabilidade o deserto da Judeia), a uma cidade
chamada Efraim. A localização exata de Efraim não foi determinado.
W.H.A.B. (veja-se lâmina IX) sugere que poderia ser idêntica a Ofra.
Podemos imaginar este lugar como uma pequena e apartada aldeia
construída de tijolo cru, no deserto. W.H.A.B. localiza a Ofra no
território originalmente outorgado à tribo de Efraim (veja-se lâmina VI).
Se este povo for o Efraim ao que se refere Jo 11:54, estava a 22
quilômetros ao noroeste de Jerusalém, cerca da mesma distância a oeste
do rio Jordão, e ao redor de 26 quilômetros ao sul do Poço de Jacó. Uns
poucos quilômetros ao sudoeste do mesmo estava Betel. Cf. 2Cr. 13:19.
Neste remoto povo de Efraim Jesus permaneceu encerrado com
Seus discípulos.
55. Estava próxima a Páscoa dos judeus; e muitos daquela região
subiram para Jerusalém antes da Páscoa, para se purificarem.
João (William Hendriksen) 531
O milagre (da ressurreição de Lázaro) produziu grande excitação
entre as multidões pascais em Jerusalém.
Os versículos 55–57 introduzem o leitor ao que deve ter
transcendido em Jerusalém ao redor de março do ano 30 d.C.
Aproximava-se a Páscoa. Quanto à festa de Páscoa veja-se sobre Jo 2:13.
Era uma festividade de sete ou oito dias, uma das três grandes festas de
peregrinação. De todo o país (quer dizer, da região fora da capital) o
povo começava a encaminhar-se para Jerusalém, “subindo” (veja-se
sobre Jo 2:13) à cidade santa. Muitos dos peregrinos desejavam chegar
ao destino antes da Páscoa a fim de cumprir as normas referentes à
purificação. Veja-se Êx. 19:10–15; Nm. 9:9–14; 2 Cr. 30:17, 18; e cf. Jo
18:28.
56, 57. Lá, procuravam Jesus e, estando eles no templo, diziam uns
aos outros: Que vos parece? Não virá ele à festa? Ora, os principais
sacerdotes e os fariseus tinham dado ordem para, se alguém soubesse
onde ele estava, denunciá-lo, 248 a fim de o prenderem.
Como já tinha ocorrido antes, na festa dos Tabernáculos, os judeus,
cheios de curiosidade e animação, tinham perguntado, “Onde está?”
(veja-se sobre Jo 7:11), de modo que agora a pergunta, “Que vos parece?
Não virá ele à festa?” era feita uns aos outros os judeus que formavam
grupos nos pátios do templo. Observe-se que a forma da pergunta é tal
que aquele que pergunta já presume que é muito mais provável que Jesus
não venha à festa. Naturalmente, todos lamentavam, ansiosos como
estavam para ver Aquele que tinha ressuscitado a Lázaro. Cf. Jo 12:9.
A razão que fez com que os primeiros peregrinos concluíssem que,
com toda probabilidade, Jesus não viria era o decreto recentemente
promulgado do Sinédrio (“sumos sacerdotes e fariseus”): “Se alguém
soubesse onde ele estava, denunciá-lo”. O propósito disto era: “…a fim
de o prenderem”. Em vista de Jo 11:53, isto não nos surpreende. O
Sinédrio estava totalmente decidido a matar a Jesus. Por Jo 11:57 parece
248
III A 3; veja-se IV da Introdução. A cláusula condicional é parte da cláusula objeto ἵνα enumerada
como tal. Cf. Jo 9:22.
João (William Hendriksen) 532
que o sentimento que prevalecia (devido ao conselho dos fariseus dentro
do comitê supremo?) era dar ao procedimento certo caráter de
legalidade: prendê-lo.

Síntese do Capítulo 11
O Filho de Deus ressuscita a Lázaro de Betânia. O Sinédrio
planeja sua morte.

I. O relatório (Jo 11:1–16).


“Senhor, está enfermo aquele a quem amas”. As irmãs (Marta e
Maria) do doente (Lázaro) contaram a Jesus simplesmente a situação
confiando que faria o melhor. E o fez, embora não o que tinham
esperado.
Basearam sua súplica implícita no amor de Cristo por Lázaro, e não
o contrário.
Jesus, por meio do mensageiro, informa às irmãs: “Esta
enfermidade não é para morte, e sim para a glória de Deus, a fim de que
o Filho de Deus seja por ela glorificado”. Refletindo a respeito disso, os
passos eram os seguintes:
1. Deus (e o Filho de Deus, Jesus Cristo) deve ser glorificado.
2. É glorificado quando os incrédulos O aceitam pela fé e quando se
robustece a fé dos crentes.
3. Esta fé pode produzir-se (ou fortalecer-se, se já estiver presente)
por meio de um grande milagre; quer dizer, quando o Espírito aplica seu
significado ao coração.
4. Devolver a vida a Lázaro, sobretudo depois de ter estado morto
por bastante tempo, é um milagre maior que impedir sua morte.
5. Mas para poder devolver a vida a Lázaro, deve permitir-se que a
enfermidade siga todo seu curso: Lázaro deve morrer.
Desta forma a enfermidade de Lázaro foi para a glória de Deus.
Enfermidade, morte, ressurreição, fé, a glória de Deus: estes foram os
João (William Hendriksen) 533
passos. Jesus os viu todos desde o começo. Ele sempre vê o fim desde o
princípio. Nós vemos só um passo por vez, e às vezes nem sequer isso.
Em consequência, a atitude de humilde confiança é a única correta. Isto é
o que se quer dizer “andando de dia”.

II. A chegada (Jo 11:17–37).


Primeiro, há uma conversação entre Jesus e Marta. Sempre que fixa
sua atenção em Jesus, em Seu poder, sabedoria e amor, espera grandes
coisas (veja-se sobre tudo versículos 22 e 27). Mas quando aparta sua
vista de Jesus, e pensa no poder da morte, torna-se pessimista (veja-se
sobretudo versículos 24 e 39).
Em Seu quinto grande EU SOU Jesus mostra a Marta que Ele é
sempre a Ressurreição e a Vida, sempre triunfante sobre a morte. Em
consequência, a verdadeira morte (separação do amor de Deus em
Cristo) não existe para o crente, nem agora nem depois, e nem sequer a
morte física chega a ser tal que ele não a possa apartar. Marta não deve
pensar que a única esperança para seu irmão está com relação à
ressurreição do último dia — em resposta à pergunta de Cristo Marta
confessa a Jesus como o Messias, Aquele que havia de vir ao mundo, o
Filho de Deus.
Em segundo lugar, há uma conversação entre Jesus e Maria. Esta
(como o fez sua irmã um pouco antes) exclama com pesar: “Senhor, se
estiveras aqui, não teria morrido meu irmão”. Assim como Marta e
Maria se haviam sentido perplexas como consequência da ausência de
Jesus durante a enfermidade de seu irmão (ausência pela qual, no
entanto, não criticavam a Jesus), assim também os judeus se
surpreendem por Suas lágrimas diante da tumba de Lázaro. Todas as
pessoas interessadas parecem estar seguras de que tudo teria sido muito
melhor se Jesus tivesse estado perto durante a enfermidade de Lázaro.
Todas as pessoas interessadas sentem-no assim, exceto Jesus, quem viu o
fim desde o princípio. Veja-se sob I. acima. Quando Jesus vê Maria e aos
João (William Hendriksen) 534
outros chorar, prorrompe em lágrimas. São lágrimas de compaixão
genuína. Jesus não despreza a compaixão como o fez Nietzsche, nem
tampouco permite que se converta numa espécie de brando
sentimentalismo. Pelo contrário, revela-Se a Si mesmo aqui como
Aquele que “leva nossas dores e carrega nossos pesares”, Aquele que se
“aflige com todas as nossas aflições”. Toma a peito o sofrimento de Seus
amigos. Estes sofrimentos o fazem sentir-Se profundamente comovido
em espírito. Odeia as agonias que atormentam as almas de Seus amigos,
odeia-as o suficiente para fazer algo a respeito. O que temos aqui em
João 11 não é um Schopenhauer ou um Wagner, que se gloriam numa
espécie de compaixão que se baseia numa filosofia mística da identidade
de tudo o que existe, e que não conseguem vislumbrar suficientemente a
realidade do pecado como raiz da dor. O que sim temos aqui é ao sumo
sacerdote Jesus Cristo, quem, como o Cordeiro de Deus, toma sobre Si o
pecado do mundo (escolhido-los de todas as nações), e por conseguinte
também seu sofrimento e infortúnio. Além disso, a compaixão que se
expressa nas lágrimas de nosso infortúnio. Além disso, a compaixão que
se expressa nas lágrimas de nosso Senhor quando chora na tumba de
Lázaro, contrasta notavelmente com essa caricatura de compaixão que
muitos (não dizemos todos) dos chorões profissionais revelaram esse dia.

III. O milagre (Jo 11:38–44).


Tendo prescindido da objeção de Marta (“Senhor, já cheira mal,
porque já é de quatro dias”), Jesus pede a alguns dos presentes que tirem
a pedra. Depois de uma comovedora oração a Seu Pai celestial, Jesus
grita, “Lázaro, vem para fora!” O morto começa a mover-se. Levanta-se
e sai da tumba. Libertado dos obstáculos das ataduras, depois da ordem
de Jesus (“Desatai-o e deixai-o ir”), aparta-se da multidão,
provavelmente para voltar a essa morada que já não é uma casa de luto.
Tem-se destacado o significado deste milagre (veja-se sob
Observações preliminares I, no começo deste capítulo). É necessário
João (William Hendriksen) 535
deter-se um momento no segundo dos três pontos mencionados ali: o
milagre revela a Jesus como o Messias que ia vir. Isso é evidente pelo
seguinte:
(1) Está claramente implícito na oração de Jesus diante da tumba:
“Eu sabia que sempre me ouves, mas assim falei por causa da multidão
presente, para que creiam que tu me enviaste”.
(2) Também está claramente implícito em Jo 10:24, 25: “Rodearam-
no, pois, os judeus e o interpelaram: Até quando nos deixarás a mente
em suspenso? Se tu és o Cristo, dize-o francamente. Respondeu-lhes
Jesus: Já vo-lo disse, e não credes. As obras que eu faço em nome de meu
Pai testificam a meu respeito”. Veja-se também Jo 10:28. Sem dúvida
que entre todas estas obras a ressurreição de Lázaro é uma das maiores,
se não a maior. Cf. Jo 20:30, 31.
(3) Ao devolver a vida a Lázaro Jesus cumpriu (em excesso) a
profecia com relação ao Messias e a Suas gloriosas obras (cf. Is. 35:5, 6;
Mt. 11:2–4).

IV. As consequências (Jo 11:45–57).


Quanto ao efeito quádruplo do milagre veja-se o comentário sobre
Jo 11:45.
João (William Hendriksen) 536
JOÃO 12
JO 12:1–11

12:1. Seis dias antes da Páscoa, foi Jesus para Betânia. Quer dizer,
seis dias antes da última Páscoa Jesus veio de novo a Betânia. O quarto
Evangelho não diz se veio diretamente de Efraim onde o mesmo
Evangelho o situou imediatamente antes (Jo 11:54), ou se veio de Jericó
(da casa de Zaqueu; cf. Lc. 18:35–19:10), como parece possível. Se
Jesus se retirou a Efraim a princípios de fevereiro e permaneceu aí duas
ou três semanas, haveria tempo suficiente para outras viagens antes da
Páscoa em abril. Em consequência, não há nenhum conflito neste caso
entre João e Lucas.
A fim de se determinar o que quer dizer com “seis dias antes da
Páscoa”, deve ser preciso acima de tudo o dia em que começava a
Páscoa. Será discutido em detalhe este assunto com relação a Jo 13:1
(veja-se sobre esse versículo). Adiantando-nos à conclusão tirada na
discussão dessa passagem, daremos por sentado aqui que a semana de
Páscoa começava na quinta-feira, 14 de Nisã. Baseados em Êx. 12:6
pode-se provavelmente concluir que começava oficialmente na tarde
desse dia. Em consequência, não é necessário averiguar se João tinha em
mente o dia romano ou o dia judaico, porque se a festa começava na
tarde antes do ocaso, seria o mesmo dia segundo qualquer dos dois
sistemas de contar.
No entanto, inclusive dando isto por sentado, não é fácil determinar
o dia exato em que Jesus chegou a Betânia. Exclui a expressão seis dias
antes da Páscoa o primeiro dia de la semana pascal ou o inclui? Se a
Páscoa começava na quinta-feira, então seis dias antes da Páscoa,
segundo o método inclusivo de cálculo, levar-nos-ia ao sábado anterior;
João (William Hendriksen) 537
o método exclusivo situaria a data de chegada um dia antes (sexta-feira).
Qual é correto? 249
Estaríamos dispostos a deixar a questão sem resolver e a confessar
nossa ignorância se não fosse pela informação que recebemos em Jo
12:9–11. Ao crer, como cremos (veja-se sobre Jo 13:1), que a entrada
triunfal (Jo 12:12–19) ocorreu no domingo, fica claro por Jo 12:9–11 que
no dia anterior (cf. Jo 12:12), ou seja, o sábado, uma grande multidão foi
a Betânia para ver tanto a Jesus como a Lázaro, a quem tinha
ressuscitado dentre os mortos. Pareceria que esta grande multidão
provinha de Jerusalém (veja-se sobre Jo 12:9), ao ter sido informada do
paradeiro de Jesus pela caravana que tinha passado por Betânia (e tinha
deixado lá a Jesus) a caminho para a festa. Expõe-se, pois, a pergunta,
“se Jesus não chegou a Betânia até o sábado pela tarde (a tarde
imediatamente antes da entrada triunfal), então teria havido suficiente
tempo para que ocorressem nessa tarde todos os eventos seguintes?”
Estudemos a lista:
a. A caravana, com Jesus nela, partiu depois do ocaso, quer dizer,
depois de finalizar no sábado (de Jericó? — mas trata-se de uma
distância de vinte e dois quilômetros!) e chegou a Betânia.
b. Jesus Se aparta da caravana para passar umas horas com Seus
amigos na aldeia.

249
Outras passagens do Novo Testamento não ajudam em nada. Os que estão a favor da interpretação
inclusiva da expressão seis dias antes da Páscoa aludem a Jo 20:26, onde oito dias depois significa
uma semana (sete dias) depois. (Poderia também aludir-se a Mc. 2:28). Mas este uso de depois de
(μετά) não determina como deveríamos contar os dias (ou anos, cf. 2Co. 12:2) quando se utiliza a
preposição antes de (πρό). O autor lembra como no lugar onde nasceu, a expressão “de hoje a oito
dias” equivalia à uma semana a partir de hoje” (fraseologia inclusiva). No entanto, se o aniversário de
alguém era 18 de novembro, a expressão “três dias antes de seu aniversário” significaria certamente
15 de novembro (fraseologia exclusiva). Parece que temos um uso parecido no quarto Evangelho.
Assim, também, se o método inclusivo aplica-se a Jo 12:1, então Jesus chegou a Betânia no sábado, É
razoável presumir que viajasse no sábado? Quando se dá a resposta, “Sim, uma viagem de sábado”,
não é acaso um subterfúgio?
João (William Hendriksen) 538
c. O resto da caravana segue a Jerusalém, distância (em média) de
uns três quilômetros e meio (Jo 11:18), embora para alguns que
acampavam entre Jerusalém e Betânia, seria um pouco mais curta).
d. Os que vinham na caravana agora começam a difundir a notícia
do paradeiro de Jesus.
e. Um pouco depois, reúne-se uma grande multidão que se dirige de
Jerusalém a Betânia para ver tanto a Jesus como a Lázaro, a quem Jesus
tinha ressuscitado dentre os mortos.
f. Muitos creem, tendo visto Jesus e a Lázaro.
g. Estas notícias chegam até Jerusalém, onde os sacerdotes se
reúnem e decidem matar também a Lázaro.
Não é mais provável que os pontos, a., b., c., e d. sucederam na
sexta-feira, enquanto que e., f., e g. ocorreram no sábado? Do contrário
pareceria que há muita concentração de acontecimentos numa tarde.
Supomos, por conseguinte, que Jesus chegou a Betânia antes do ocaso da
sexta-feira, e que no sábado (do ocaso da sexta-feira ao ocaso do sábado)
desfrutou do descanso sabático com Seus amigos, último sábado antes de
Seu corpo descansar na sepultura. Enquanto isso em Jerusalém se
difunde a notícia de que Jesus está em Betânia; e se faz planos para a
noite do sábado. (Veja-se sobre Jo 12:9–11).
Em Betânia nessa mesma noite do sábado, oferece-se um jantar em
honra a Jesus.
Nesta altura o Evangelho de João começa um relato paralelo ao dos
Sinóticos. Veja-se Mt. 26:6–13; Mc. 14:3–9. Não há conflito. As
referências temporais de Mt. 26:2 e Mc. 14:1 não dizem que o jantar em
Betânia ocorresse dois dias antes da Páscoa, e sim dois dias antes da
Páscoa sucedeu o seguinte: a. Jesus predisse que seria entregue para ser
crucificado depois de dois dias, y b. os dirigentes resolveram que não se
devia levá-Lo à morte na festa.
A fim de mostrar a conexão entre o relato referido no capítulo 11 e
o relato atual (Jo 12:1–8), o evangelista escreve: Betânia, onde estava
Lázaro, a quem ele ressuscitara dentre os mortos.
João (William Hendriksen) 539
2. Deram-lhe, pois, ali, uma ceia; Marta servia, sendo Lázaro um dos
que estavam com ele à mesa.
Em vez de delatar a Jesus para O prenderem (Jo 11:57), os amigos
de Betânia ofereceram um jantar em Sua honra. Como não se
considerava apropriado que as mulheres se sentassem em público com os
homens, devemos presumir que os convidados eram somente homens.
Houve pelo menos quinze: Jesus, os doze, Lázaro, e um certo Simão, que
só se menciona nos Sinóticos (Mt. 26:6; Mc. 14:3).
A pergunta «Por que se menciona só a Lázaro de forma especial?»
(Jo 12:2), recebeu várias respostas. Uns dizem «porque era convidado de
honra». Outros, «porque sua apresentação pública, depois de ter sido
ressuscitado dentre os mortos, era insólita». E outros, «porque sua
ressurreição era a razão, ou uma das razões deste banquete».
Desconhecemos a resposta, embora a última nos pareça a mais provável.
É fácil compreender a ideia de que este jantar surgiu do amor pelo
Senhor, sobretudo como amostra de gratidão pela ressurreição de Lázaro
(e talvez também pela cura de Simão que tinha sido leproso e a quem
ainda se chama “Simão, o leproso” em Mateus e Marcos). Ofereceu-se
na casa de Simão.
Embora não se sentaram com os convidados, tanto Marta como
Maria figuram de forma destacada neste relato. Marta, como de costume
(cf. Lc. 10:40), tomou sobre si a responsabilidade de servir. Aceitou ela
fazê-lo a pedido de Simão, pelo fato de que este era solteiro? Não
sabemos. Não se menciona se Maria também ajudou. No entanto, o
relato refere-se a ela e a seu Senhor mais que a nenhuma outra pessoa:
3. Então, Maria, tomando uma libra de bálsamo de nardo puro, mui
precioso, ungiu os pés de Jesus e os enxugou com os seus cabelos; e
encheu-se toda a casa com o perfume do bálsamo.
Muitos intérpretes afirmam que, ao descrever a bela ação de Maria,
o evangelista copiou Lc. 7:36–50, e que a Maria mencionada em Jo 12:3
é a mesma que a mulher pecadora de Lc. 7; ou que, embora os dois
eventos sejam distintos, o escritor do quarto Evangelho confundiu as
João (William Hendriksen) 540
fontes e simplesmente acrescentou ao relato que tinha encontrado em Mt.
26:6–13 e Mc. 14:3–9 o detalhe relacionado com o enxágue dos pés de
Jesus, que tinha encontrado em Lc. 7. Rejeitamos completamente esta
teoria. Veja-se a nota. 250
“... sendo Lázaro um dos que estavam com ele à mesa. Então, Maria
…” É possível que à conjunção ο_ν se deve dar-lhe aqui todo o seu
significado de por conseguinte; quer dizer, como Lázaro tinha sido
ressuscitado dentre os mortos e agora estava sentado, vivo e são, com
Jesus, por conseguinte Maria realizou sua nobre ação.
Maria tomou uma libra de unguento (doze onças). Unguento no
original é μύρον; cf. nossa mirra. O nome de mulher Muriel procede da
mesma raiz, e significa perfume. Quanto à distinção entre azeite (_λαιον)
250
Não há quase nenhuma semelhança entre os dois relatos. Notem-se as seguintes diferenças:
Lucas 7:36–50 João 12:1–8
A ocasião
O jantar foi devido provavelmente ao desejo de O jantar foi devido provavelmente ao desejo de
certo fariseu pouco amistoso de examinar a este um grupo em Betânia, amigos de Jesus, de
famoso rabino, talvez para confirmar as suspeitas honrá-lo e Lhe expressar sua gratidão.
que tinha sobre Jesus. Note-se a maneira pouco
amistosa de tratar ao Senhor. Ver Lc. 7:44–46.
O Lugar
A casa de um fariseu A casa de Simão, leproso, segundo Mt. 26:6.
O principal personagem feminino
Uma mulher pecadora que estava na cidade. Maria de Betânia, discípula devota de Jesus. É
Inclusive segundo Lucas esta mulher não era Maria, mencionada com relação a sua irmã
a irmã de Marta, porque a estas irmãs são logo Marta e seu irmão Lázaro.
Apresentadas como novos personagens
(em Lc.10:38, 39).
O fato
Esta mulher chorou. Suas lágrimas caíram aos Maria não chorou. Não molhou os pés de Jesus
pés de Jesus. Logo passou a secar estas lágrimas. com suas lágrimas. Ungiu estes pés com unguento,
Também beijou e ungiu os pés de Jesus e logo secou o unguento restante. É evidente,
pois, que inclusive o detalhe relacionado com o
enxágue dos pés é completamente diferente
nos dois relatos.
O resultado
Jesus repreendeu duramente ao fariseu. Elogiou Jesus censurou a Judas Iscariotes por criticar
a mulher e a despediu com uma palavra amistosa Maria. Defendeu a ação de Maria à luz de
e alentadora. seu propósito.
João (William Hendriksen) 541
251
e unguento (μύρον) veja-se Lc. 7:46. O unguento que Maria comprou
era muito precioso (πολύτιμος-ον, cf. βαρύτιμος-ον, em Mt. 26:7). Mc.
14:3 diz de muito preço, πολυτελής-ές; mas esta palavra usa-se às vezes
de forma metafórica com mais ou menos a mesma conotação que
πολύτιμος-ον; cf. 1 Pedro 3:4. No entanto, em vista de Marcos (cf. Jo
12:5) é provável que em Mc. 14:3 πολυτελής-ές signifique de fato de
muito preço.
A essência deste perfume era tirado do nardo puro, que é uma erva
aromática que cresce nos pastos do Himalaia entre o Tibete e a Índia. 252
À vista do fato de que devia conseguir-se numa região tão remota, e
transportar-se no lombo de camelo por quilômetros e quilômetros de
desfiladeiros, custava muito. Note-se, além disso, que este nardo não era
imitação. Pelo contrário, era o nardo genuíno. O perfume foi extraído de
nardo puro. 253 Além disso, os sinóticos destacam que este perfume
estava num frasco de alabastro; ou seja, uma jarra de uma espécie de
gesso de delicada cor branca (ou talvez brandamente colorido).
Pode-se imaginar a cena. Com o coração cheio de amor e gratidão
por seu Senhor, Maria tinha se situado atrás de Jesus, enquanto que os
convidados, segundo o costume oriental, estavam reclinados em divãs
distribuídos em forma de U invertida ao redor de uma mesa baixa (veja-
se sobre Jo 2:9, 10; 13:23, 24). De repente rompe o frasco que tem na
mão e derrama o conteúdo aromático sobre Jesus. Segundo Mateus e
Marcos ela o derrama sobre Sua cabeça (cf. Sl. 23:5); segundo João
unge seus pés. Não há contradição, porque Mateus e Marcos indicam
claramente que o perfume se derramou sobre o corpo de Cristo (Mt.
26:12; Mc. 14:18): cabeça, pescoço, costas, e inclusive pés. (Cf. Sl.

251
Veja-se também R. C. Trench, Synonyms of the New Testament, Grand Rapids, Mich., 1948
(reedición), pp. 135–137.
252
M. S. e J. L. Miller, Encyclopedia of Bible Life, Nova York e Londres, 1944, pp. 204, 205.
253
Quanto ao significado do adjetivo πιστικός-ή-όν veja-se tal termo em J. H. Moulton e G. Milligan,
The Vocabulary of the Greek New Testament, Nova York, 1945. As provas parecem favorecer a
tradição puro ou genuíno em vez de líquido ou concentrado. Cf., no entanto, E. Nestle, ZNTW 3
(1902), 169ss.
João (William Hendriksen) 542
133:2, mas aqui em João o perfume não se desliza simplesmente para
baixo, mas de fato se derrama sobre os pés.) Sem ter absolutamente em
conta as normas orientais de decoro, que consideravam inapropriada a
ação da mulher que soltasse o cabelo na presença dos homens, Maria,
deixando seu coração falar livremente, não somente solta o cabelo mas
(pior ainda, do ponto de vista oriental) enxágua os pés com seu cabelo.
Evidentemente, inclusive os pés (é significativa a comparação com Lc.
10:39!) estão cobertos com uma quantidade de perfume tão abundante
que terá que secá-los. Uma libra de perfume é uma grande quantidade! E
Maria, depois de romper o frasco, derrama-o todo sobre Jesus. Esvazia o
conteúdo do frasco de alabastro. Por isso a casa de Simão enche-se,
literalmente, da fragrância. Espalha-se por todas as partes, e, durante um
tempo, continua espalhando-se. Quase não se sabe o que admirar mais —
o caráter incontível da devoção de Maria ou da natureza generosa de seu
sacrifício. Aquela naturalmente produziu esta.
É errôneo desvirtuar, de qualquer forma que seja, a generosidade de
Maria. No entanto, às vezes é feito. Nesse caso a reconstrução do relato
é esta: as irmãs tinham comprado um pouco de perfume para sepultar
Lázaro, porém não haviam utilizado tudo. O que restava derramou Maria
na cabeça e nos pés de Jesus. Mas isso é errôneo. O que Maria tinha na
mão era um novo frasco de alabastro. Para derramar o conteúdo sobre
Jesus, rompeu-o nesse momento (Mc. 14:3).
4, 5. Mas Judas Iscariotes, um dos seus discípulos, o que estava para
traí-lo, disse: Por que não se vendeu este perfume por trezentos denários e
não se deu aos pobres?
O contraste entre a generosidade de Maria e o egoísmo de Judas é
surpreendente. O evangelista, que escreve tanto tempo depois do evento
e o lembra, descreve o traidor como segue: “Judas Iscariotes, um dos
seus discípulos, o que estava para traí-lo”. Quanto ao significado da
expressão, veja-se sobre Jo 6:71.
Judas diz para si «Que desperdício!» O fato a linguagem genuína do
amor se expresse em veemente generosidade é algo que Judas não podia
João (William Hendriksen) 543
compreender. A pessoa egoísta não pode entender a não egoísta. Por isso
Judas disse: “Por que não se vendeu este perfume por trezentos denários
e não se deu aos pobres?” Judas é a classe de homem que sempre tem na
mente o dinheiro. Vê tudo pelo aspecto do valor monetário. Já valorizou
o preço deste frasco de alabastro cheio do unguento mais precioso.
Calcula que deve valer trezentos denários. Veja-se sobre Jo 6:7. Esta
quantidade representa o salário que um trabalhador comum receberia por
trezentos dias de trabalho.
O salário de trezentos dias por um simples frasco de unguento! Para
Judas isso é uma extravagância injustificável sob qualquer circunstância,
embora Maria mesmo fosse rica (o que era provavelmente certo) e não
tivesse que trabalhar para viver. Quanto melhor, segundo Judas, teria
sido que Maria tivesse vendido este unguento e tivesse dado o
conseguido … a quem? Bom, a Jesus e os doze, aos cuidados de Judas, o
tesoureiro; mas a Judas não lhe convém dizer isso; por isso, o que de
fato diz é: “aos pobres”. Que nobre é este Judas! Quão profunda
preocupação tem pelos pobres!
Como Judas era um mestre na arte da dissimulação e de defender
persuasivamente seus pontos de vista, outros (Mc. 14:4) imediatamente
concordaram. Os discípulos “indignaram-se” (Mt. 26:8). Onde quer que
Maria dirigia seus olhos encontrava olhares irados, expressões de
manifesto desacordo. Só um sai em sua defesa, mas era justamente o
maior de todos! Veja-se sobre Jo 12:8, 9.
Aqui, no versículo 5, segue uma observação explicativa, segundo o
costume de João. Arroja luz sobre o caráter de Judas. Quer seja pelo
curso dos acontecimentos que se seguiram (por exemplo, a traição de
Jesus da parte de Judas por trinta moedas de prata), ou por direta
revelação, ou por ambas, o evangelista penetrou na alma do traidor.
Escreve muito depois, e ao fazê-lo revela aos leitores a informação que
obteve.
6. sto disse ele, não porque tivesse cuidado dos pobres; mas porque
era ladrão e, tendo a bolsa, tirava o que nela se lançava.
João (William Hendriksen) 544
Judas era, na realidade, um ladrão. Era a classe de ladrão que ainda
não foi desmascarado. Ainda desfrutava da confiança de todos. Tinha
sido constituído em tesoureiro do fundo comum. Em consequência, tinha
a bolsa (γλωσσόκομον, originalmente uma caixa que continha as
“linguetas” das flautas; logo ampliado para indicar qualquer recipiente
em forma de caixa). Desta bolsa furtava de vez em quando uma pequena
quantidade.
Fica claro que o verbo βαστάζω tem aqui o significado de tomar (ou
seja, roubar) pelo fato de que vai imediatamente precedido pela
informação de que Judas era ladrão. Quanto ao significado deste verbo
em várias passagens do evangelho de João, veja-se sobre Jo 10:31.
7, 8. Jesus, entretanto, disse: Deixa-a! Que ela guarde isto para o dia
em que me embalsamarem; porque os pobres, sempre os tendes convosco,
mas a mim nem sempre me tendes.
Quando todos criticaram Maria, Jesus vai em sua ajuda. As palavras
que pronuncia em defesa dela foram reproduzidas e interpretadas de
distintas maneiras.
As que mais preponderam são as seguintes:
(1) “Deixem-na para que o guarde para o dia de minha sepultura”.
Ou: “Deixem-na, para que possa guardar isto para o dia de minha
sepultura”. Ou: “Deixem-na; que o guarde para o dia de minha
sepultura”.
Ao traduzir-se assim, a explicação usual (se é que se dá alguma) é
esta: Maria não tinha utilizado todo o unguento. Algo restava no frasco.
Jesus quer dizer essencialmente, “deixem-na guardar o que resta, não
tirem dela. Nem a obriguem a vendê-lo para que dê o obtido aos pobres.
Chegará o momento em que necessitará o que resta. Ele precisará dele
para minha sepultura”.
A maior objeção contra esta interpretação é que o Evangelho de
Marcos afirma concretamente (Jo 14:3) que Maria rompeu o frasco.
Rompeu-o para esvaziar seu conteúdo sobre a cabeça (Mateus e Marcos)
e os pés (João) de Jesus. Não sobrou nada. Os que, apesar disso, desejam
João (William Hendriksen) 545
aferrar-se à teoria de que sobrou um pouco de unguento no frasco, e que
segundo Jo 12:7 defendeu o direito de Maria de guardar o resto para um
tempo futuro, só têm uma saída lógica. É a que toma W. F. Howard, em
The Interpreter’s Bible (p. 655), ou seja, afirmar especificamente que a
versão do relato do quarto Evangelho é contrário aos sinóticos. Segundo
W. F. Howard, João contradiz Marcos. Isto é raciocinar com lógica. Mas
esta conclusão não pode ser aceita por ninguém que cria na infalibilidade
da Escritura. Além disso, em nenhum lugar — nem em Mateus, nem em
Marcos, nem em João — há indicação alguma de que Maria tinha
utilizado só um pouco do unguento. Pelo contrário, inclusive João, que
não menciona a ruptura do frasco, no entanto põe de relevo o caráter
generoso do dom: “encheu-se toda a casa com o perfume do bálsamo”.
É, pois, totalmente impossível que aceitemos esta interpretação.
(2) “Deixem-na: guardou isto para o dia da minha sepultura”. Isso é
melhor. O que diz é verdade e harmoniza por completo com o relato que
se encontra em Mateus e Marcos. No entanto, embora verdadeira em si
mesma, esta repetição da afirmação do Senhor não está apoiada nos
melhores manuscritos. Os manuscritos melhores e mais antigos inserem
a palavra para que (_να) e levam o aoristo subjuntivo ativo (τηρήο_) do
verbo em lugar do indicativo perfeito ativo (τετήρηκε). Por conseguinte,
literalmente o que o melhor texto diz não é “Deixem-na guardou”, mas
sim “Deixem-na … para que possa (ou: pudesse) guardá-lo”.
(3) “Deixem-na, (foi) para que pudesse guardá-lo para o dia de
minha sepultura”. Esta é a tradução que, com ligeiras variações, muitos
seguem. Cremos que é a melhor. Fica imediatamente evidente que
estamos diante de um exemplo de estilo abreviado, como em muitos
outros casos. Veja-se o que se disse a respeito disso com relação a Jo
5:31. Omitem-se palavras que é preciso acrescentar-se mentalmente. No
caso presente temos que acrescentar “foi”. Para mostrar que estas
palavras não estão de fato no texto, nós as colocamos entre parêntese.
Falando estritamente, também o versículo 5 deste capítulo é uma
expressão condensada. Judas não quis dizer literalmente: “Por que não se
João (William Hendriksen) 546
vendeu este perfume por trezentos denários e se deu aos pobres?” Não
quis dizer que o unguento se desse aos pobres, mas sim o obtido da
venda do unguento se desse a eles. Em consequência, também com
relação a esse versículo, acrescentam-se (talvez inclusive
inconscientemente) umas poucas palavras que são necessárias para
completar o pensamento. Nada tem de estranho nisso. Nossa
conversação diária também está cheia de expressões abreviadas.
A fim de chegar ao que é provavelmente o significado das palavras
de Jesus em Jo 12:7, deve ter-se em mente o contexto precedente. Judas
(como porta-voz dos demais) criticou Maria. Se Maria possuía este
custoso frasco cheio do unguento muito precioso (quer pela compra,
herança, ou presente, Judas não o averigua), por que não o vendeu para
dar o obtido aos pobres? Jesus revela agora a razão pela qual Maria
(quem, naturalmente, havia comprado el ungüento) não tinha seguido a
linha indicada por seus críticos: “a fim de que guarde isso para o dia da
minha sepultura” [Jo 12:7, TB].
Maria sabia o que fazia. De fato cria que em pouco tempo Jesus
seria entregue à morte por seus inimigos. Teriam seus amigos a
oportunidade de ungir seu corpo? Mas esta honra não tem que deixar de
lhe dar-se. Maria lhe deve tanto, tantísimo a Jesus! Deve-lhe a salvação,
e … o retorno de seu irmão Lázaro do reino mesmo da morte. Por isso
tinha decidido guardar o unguento para o dia da sepultura do Senhor.
Mas não no sentido de que desejasse literalmente guardar o frasco até
que esse dia chegasse de fato, porque poderia resultar tarde demais; mas
sim assim que o guardaria até que se apresentasse uma boa oportunidade,
e então o ungiria em antecipação de sua sepultura. Esse momento era
agora ou nunca! Contraste Jo 19:39, 40.
Cremos que esta interpretação é a mais acertada pelo seguinte:
(1) Harmoniza com a clara afirmação que se encontra em Mt.
26:12: “Ela o fez para o meu sepultamento”, em Mc. 14:8, “ungiu o meu
corpo antecipadamente para a sepultura”.
João (William Hendriksen) 547
(2) Também harmoniza com o fato de que Maria, talvez mais que
nenhum outro discípulo de Jesus, deve ter estado convencida de que o
dia da morte e sepultura de Cristo se aproximava rapidamente. Note-se
com relação a isso:
a. Jesus havia predito com frequência Sua próxima morte; às vezes
em público, às vezes em particular. Veja-se Mt. 9:22; 16:21; Mc. 8:31,
32; 9:12; 10:32–34; Jo 6:52–56; 7:33; 8:21–23; 10:11, 15. Algumas
destas predições devem ter chegado aos ouvidos de Maria.
b. Os eventos dos últimos meses apontavam claramente em direção
ao cumprimento de Suas predições. Veja-se Jo 8:58; 9:22; 10:31; 11:45–
57; cf. 12:10. Pouco a pouco a ira dos inimigos se transformava em ação.
c. Maria era talvez a melhor ouvinte que Jesus teve jamais. A que
agora ungiu os pés do Senhor era a mesma que previamente se sentou
aos pés do Senhor (Lc. 10:39). Há uma íntima conexão entre estes dois
fatos.
Maria tinha aproveitado sua oportunidade, e essa oportunidade logo
seria algo pertencente ao passado. Daí que, de forma muito significativa,
Jesus, ao defender sua ação, acrescenta: “…os pobres sempre os tendes
convosco, mas a mim nem sempre me tendes”. Note-se o fato de que vós
é plural. As traduções que substituíram o “vós” pelo “tu” indicam que
Jesus disse a Judas que este sempre teria os pobres consigo. Mas Jesus,
de fato, fala não só a Judas mas também a todos os discípulos; a todos os
que O escutam nesse dia. Diz-lhes que agora o ungi-Lo em antecipação
de sua sepultura é mais importante que o cuidado dos pobres.
Implicitamente, no entanto, diz à igreja de todos os tempos que o
cuidado dos pobres é sua responsabilidade e privilégio. Jesus ama os
pobres que confiam nEle. Cf. Mc. 10:23; Lc. 16:19–31. Deseja que
sejam objeto de cuidado constante da igreja (Mc. 14:7). Que Judas, quem
parece ser o defensor da causa dos pobres mas que às escondidas lhes
está roubando, entenda-se isso!
Como recompensa da ação generosa de Maria, Jesus acrescenta
uma bela promessa. Veja-se Mc. 14:9; Mt. 26:13.
João (William Hendriksen) 548
9. Soube uma grande multidão dos judeus que Jesus estava ali, e
foram lá não somente por causa dele, mas também para verem a Lázaro,
a quem ele ressuscitara dentre os mortos.
Para a explicação dos versículos 9–11 veja-se também em Jo 12:1.
É lógico presumir que a grande multidão (_ _χλος πολύς: a multidão em
grande número) dos judeus consistia sobretudo daqueles que, tendo
chegado cedo à capital, tinham estado perguntando a respeito de Jesus
(veja-se sobre Jo 11:55, 56). Da caravana que acabava de entrar na
cidade e que tinha chegado pela via de Betânia, receberam resposta à tão
repetida pergunta: “Que vos parece? Não virá ele à festa?” Na sexta-feira
de noite e no sábado, em meio a grande excitação, a multidão diz entre
si: “Ouviram a última? Jesus, sim, vem. Já chegou a Betânia”. E assim,
no sábado de noite, sai uma multidão da cidade a caminho de Betânia.
(Os que se hospedavam a menos de um dia de sábado de viaje desde
Betânia talvez vieram um pouco antes.) Seu propósito, naturalmente, era
ver tanto a Jesus, quem acabava de ressuscitar a Lázaro dentre os mortos,
como ao próprio Lázaro.
Estes judeus que se mencionam aqui não são os líderes religiosos,
hostis a Jesus (o sentido em que o termo é usado com tanta frequência no
quarto Evangelho; veja-se sobre Jo 1:19), e sim a gente comum, os
buscadores de emoções.
10, 11. Mas os principais sacerdotes resolveram também tirar a vida
a Lázaro, pois muitos judeus por causa dele se retiravam e criam em
Jesus.
Os sumos sacerdotes (veja-se sobre Jo 11:47) eram absolutamente
implacáveis. A fim de conseguir seu objetivo estavam dispostos a matar
não só a Jesus mas também a Lázaro. Também este era ofensivo para
eles, por duas razões: a. a razão expressa concretamente aqui: “pois
muitos judeus por causa dele se retiravam e criam em Jesus”; e b. Lázaro
tinha sido ressuscitado dentre os mortos, e os sumos sacerdotes, como
saduceus, não criam na ressurreição. Por isso tramaram matar também a
João (William Hendriksen) 549
Lázaro, esperando com toda probabilidade que não voltaria a ressuscitar.
Parece que a decisão com relação a Lázaro nunca foi levado a cabo.
Lázaro, desfrutando de excelente saúde, desenvolvendo-se como de
costume, deixou uma impressão indelével na multidão, porque sabiam
que este mesmo homem tinha estado morto e sepultado por quatro dias.
Como consequência do que agora tinham visto com seus próprios olhos,
muitos, ao sair de Betânia, criam nEle (usa-se aqui o imperfeito
_πίστευον seguido de ε_ς). Quanto ao significado de πιστεύω ε_ς veja-se
também sobre Jo 1:8; 3:16; 8:30, 31a. Em vista de 12:37 onde se utiliza a
mesma forma no original, (o imperfeito do verbo seguido de ε_ς), e onde
se alude à fé genuína, deve considerar-se provável que estes crentes se
transformaram em discípulos no melhor sentido do termo; pelo menos,
que assim foi com relação a muitos deles.

Síntese de Jo 12:1–11
O Filho de Deus é ungido por Maria de Betânia. Nobre ação de
Maria.

I. Seu caráter.
A. Nascido do agradecimento.
A diferença entre Maria e Judas era esta: Judas não chegou a
completar o círculo; Maria (pela soberana graça de Deus) completou-o.
A intimidade (embora só externa) com o Senhor dia após dia deveria ter
produzido lealdade em Judas, porém não foi assim, porque era
totalmente egoísta, ladrão frio e calculador, mesquinho e hipócrita.
Maria, por outro lado, compreendeu que quando o amor desce do céu em
ações de poder e misericórdia — tais como a ressurreição de Lázaro —
deve devolver-se em forma de agradecimento. O céu tinha falado:
“Lázaro, vem para fora!” A terra respondeu, e o doce aroma de sua ação
ascendeu de novo ao céu. Assim, pois, o amor respondeu ao amor, e se
João (William Hendriksen) 550
completou o círculo. Ai do homem ou a mulher que não chega a
completar o círculo! Cf. Ef. 1:3, 12.
B. Foi única em sua compreensão.
Jesus tinha mencionado com frequência Seu sofrimento e morte
próxima (também Sua ressurreição, mas nem sequer Maria parece ter
captado isso). Não se criam nestas predições. Pedro havia dito: “isso
nunca te sucederá”. Mas Maria compreendeu, pelo menos até certo
ponto. Creu, e ungiu a Jesus em antecipação de Sua sepultura.
C. Foi régia em sua generosidade.
Nada foi medido ou cuidadosamente calculado quanto a este dom.
Maria rompeu o frasco e o esvaziou completamente! Sua devoção se
expressou sem limites. O frasco era do alabastro mais custoso. O
perfume era muito fino. Sua essência era genuína: verdadeiro nardo,
obtido com grande dificuldade de uma região remota. E a quantidade do
perfume era uma libra, suficiente para ungir não só a cabeça mas
também inclusive os pés, e isto com tanta abundância que terá que secá-
los. Toda a casa se encheu da fragrância!
D. Foi bela em sua oportunidade.
A própria presença de Lázaro ressuscitado dentre os mortos (e de
Simão, curado da lepra) tornou o ato oportuno. Além disso, Jesus estava
prestes a penetrar nas águas profundas e na noite escura da semana de
paixão. Este era o momento oportuno para o nobre ato de Maria (sua
καλ_ν _ργον: bela ação; veja-se Mc. 14:6).
II. Sua avaliação.
A. Por Judas: “Para o que este desperdício?” (Mt. 26:8).
B. Por Jesus: “Boa obra me tem feito” (bela obra, Mc. 14:6).
João (William Hendriksen) 551
Observações preliminares sobre a entrada triunfal em Jerusalém

A. Significado.
Estamos diante de um acontecimento de extraordinário significado.
Deveriam adverti-los seguintes pontos:
1. Jesus por meio de Sua entrada triunfal indica definitivamente
que Ele mesmo entrega Sua vida; ou seja que morre voluntariamente.
Toma os assuntos em Suas próprias mãos. Jesus força a situação. Planeja
deliberadamente uma demonstração, plenamente consciente de que,
como consequência disso, o entusiasmo das massas enfurecerá os hostis
líderes de Jerusalém até tal ponto que desejariam mais intensamente que
nunca levar a cabo seu complô contra Ele.
2. Jesus força os membros do Sinédrio a mudar o horário (com
relação à Sua execução) de forma que harmonize com o Seu próprio
horário (e com o do Pai). Originalmente o Sinédrio não tinha planejado
entregar Jesus à morte nesta época. Mas a excitação em torno de Jesus
provocada pela Entrada Triunfal foi um dos fatores que, visto da
perspectiva humana, precipitou o desenlace.
3. Jesus Se apresenta como o Messias.
Por meio desta Entrada Triunfal cumpre-se a profecia messiânica de
Zc. 9:9. Além disso, quando as multidões O aclamam como Messias, em
nenhum momento nega a clara implicação da aclamação.
4. Também mostra às multidões que classe de Messias é, ou seja,
não o Messias terrestre dos sonhos israelenses. Entra em Jerusalém sobre
um jumento, um jumentinho, animal associado não com os rigores da
guerra e sim com a prática da paz. Entra como o Príncipe da Paz.

B. Fuentes.
O relato encontra-se nos quatro Evangelhos, mas o conteúdo difere,
embora não haja nenhum conflito entre eles. Poderia comparar-se isto
com o milagre da alimentação dos cinco mil. Também nesse caso
João (William Hendriksen) 552
encontramos o relato nos quatro Evangelhos (como indicamos em I da
Introdução e também sobre Jo 6:1); mas os conteúdos diferiam tanto em
extensão que, de mais de cinquenta versículos que João dedica ao
mesmo e ao sermão sobre o Pão da vida (que vem a seguir), só uns
quantos têm paralelo nos Sinóticos. Os conteúdos são tão diferentes que
incluímos João 6 (o milagre e o discurso tomados juntos) na lista de
material peculiar a João (veja-se II da Introdução e também sobre Jo 6:1
e a Síntese de Jo 6:1–21).
Algo parecido temos em João 12. João apresenta um resumo. No
entanto, inclusive neste relato encontram-se vários detalhes não
registrados nos Sinóticos. Assim, também, enquanto os Sinóticos (como
observa Edersheim) “acompanham a Jesus desde Betânia”, João, por sua
vez, “parece seguir de Jerusalém a essa multidão que, ao ouvir que se
aproxima, sai ao seu encontro”. 254
A fim de poder apreciar o relato de João da Entrada Triunfal,
provavelmente o melhor é ver primeiro todo o episódio de forma
esquemática. Reunindo os diferentes relatos (Sinóticos e João) obtemos
o seguinte:
1. Mt. 21:1–3, 6, 7; Mc. 11:1–6; Lc. 19:29–34:
Ao sair Jesus de Betânia, pouco depois (talvez ao se aproximar à
aldeia oriental do monte das Oliveiras) envia dois dos discípulos a um
pequeno povoado (provavelmente Betfagé, ao qual se chamou subúrbio
de Jerusalém) a fim de conseguir um jumento sobre o qual planeja entrar
na capital. Na realidade, (como indica Mateus) havia dois animais (um
jumentinho e sua mãe), mas parece que logo Jesus utiliza o jumentinho,
conquanto o outro animal ou caminhou ao lado ou os discípulos o foram
dirigindo.
Os discípulos encontram exatamente tudo tal como Jesus o havia
predito: encontram a jumenta e o seu jumentinho atados à entrada do
povo. Havia algumas pessoas ali. “Por que os (ou o) desatam?”

254
A. Edersheim, The Life and Times of Jesus the Messiah, Nova York, 1898, Vol. II, p. 364.
João (William Hendriksen) 553
perguntam os proprietários. “O Senhor os (o) necessita”, é a resposta. Os
proprietários, aqueles que provavelmente eram discípulos de Jesus,
aceitam imediatamente, e os discípulos levam os animais a Jesus.
2. Mt. 21:4, 5; Mc. 11:7; Lc. 19:35; Jo 12:14, 15:
Os discípulos colocam seus mantos sobre ambos os animais (não
sabendo no começo qual Jesus vai utilizar), e quando veem que deseja
montar o jumentinho, ajudam-no a montar. Jesus Se encaminha para
Jerusalém.
Tanto Mateus como João veem neste evento o cumprimento da
profecia de Zc. 9:9. “Não temas, filha de Sião; eis aqui seu Rei vem,
montado sobre um jumentinho de jumenta” (ou “… humilde, e
cavalgando sobre um jumento, sobre um jumentinho filho de jumenta”).
3. Mt. 21:8; Mc. 11:8; Lc. 19:36.
A maior parte dos que acompanham a Jesus desde Betânia
estendem seus mantos no caminho. Outros cortam ramos de árvores com
os que vão cobrindo o caminho diante dEle.
4. Jo 12:1, 12, 13a, 18:
Enquanto isso a multidão de peregrinos que já estava em Jerusalém
e tinha ouvido a. que Jesus havia ressuscitado a Lázaro dentre os mortos,
e b. que Se encaminhava para a cidade, vão saindo pela porta oriental
para ir ao Seu encontro. Cortam ramos das palmeiras ao longo do
caminho, e as agitando, dirigem-se a dar as boas-vindas ao Messias.
5. Mt. 21:9; Mc. 11:9, 10; Lc. 19:37, 38; Jo 12:31b:
Ao encontrar-se as duas multidões aumenta o entusiasmo. Esta
grande multidão dos que (ao dar a volta para O encontrarem) vão adiante
dEle e dos que O seguem, inclui aos seguintes: os Doze, uma multidão
de Betânia (muitos dos que tinham sido testemunhas do milagre, o qual,
no entanto, também tinha sido visto por alguns procedentes de
Jerusalém), um grupo de peregrinos da Galileia (que tinham chegado ao
seu destino, Jerusalém), e inclusive alguns fariseus hostis.
João (William Hendriksen) 554
Descendo pela ladeira ocidental do monte das Oliveiras, e
aproximando-se de Jerusalém, as duas multidões juntas, com exceção
dos fariseus hostis, começam a exclamar:

“Hosana!
Bendito aquele que vem em nome do Senhor, o Rei de Israel!
Bendito o reino de nosso pai Davi que vem!
Paz no céu e glória nas alturas!”

6. Jo 12:17:
A parte da multidão que tinha estado com Jesus quando Lázaro foi
ressuscitado dentre os mortos, segue dando testemunho com relação ao
extraordinário feito. Como consequência, a animação e o entusiasmo
chegam a um ponto culminante.
7. Lc. 19:39, 40:
Os fariseus, fora de si de inveja ao ouvir este clamor entusiasta,
pedem a Jesus que o detenha: “Mestre, repreende os teus discípulos!”
Jesus responde: “Asseguro-vos que, se eles se calarem, as próprias
pedras clamarão”.
8. Lc. 19:41–44:
Quando, de repente, começa-se a ver a cidade, Jesus, percebendo
plenamente que muito do que veio recebendo é superficial e se baseia na
identificação de Si mesmo com o esperado Messias terrestre e político,
começa a chorar. Diante dos Seus olhos proféticos apresenta-se a visão
de Jerusalém como cidade assediada e rodeada pelas legiões romanas.
Num gemido de amarga lamentação exclama:
“Ah! Se conheceras por ti mesma, ainda hoje, o que é devido à paz!
Mas isto está agora oculto aos teus olhos. Pois sobre ti virão dias em que
os teus inimigos te cercarão de trincheiras e, por todos os lados, te
apertarão o cerco; e te arrasarão e aos teus filhos dentro de ti; não
deixarão em ti pedra sobre pedra, porque não reconheceste a
oportunidade da tua visitação”.
João (William Hendriksen) 555
9. Mt. 21:10, 11:
Ao entrar Jesus em Jerusalém, toda a cidade está em comoção.
Todos os que tinham permanecido na mesma, ao ver alguém rodeado de
tão grande multidão e entrando na cidade num jumento, pergunta-se:
“Quem é este?” Recebem como resposta: “Este é o profeta Jesus, de
Nazaré da Galileia!”
10. Mt. 21:14: Mc. 11:11a:
Chegados ao templo, Jesus cura os cegos e paralíticos.
11. Mt. 21:15, 16:
As crianças que estão no templo começam a gritar: “Hosana ao
filho de Davi!” Os sumos sacerdotes e os escribas, cheios de fúria,
perguntam a Jesus: “Ouves o que estes estão dizendo?” Jesus responde:
“Sim; nunca lestes: Da boca de pequeninos e crianças de peito tiraste
perfeito louvor?”
12. Jo 12:19 [TB]:
Os fariseus, cheios de frustração, inveja e fúria, dizem entre si:
“Vedes que nada conseguis; eis aí após ele foi todo o mundo”.
13. Mt. 21:17; Mc. 11:11b:
Ao cair a noite, Jesus e os doze se retiram a Betânia.
14. Jo 12:16:
Não foi senão até que Jesus teve sido glorificado que os discípulos,
lembrando e refletindo sobre todas estas coisas deram-se conta de que a
Entrada Triunfal era o cumprimento de uma profecia.

JO 12:12–19

Dos quatorze elementos que constituem este relato harmônico João


inclui seis (o 2, 4, 5, 6, 12, e 14). Os e primeiros três têm em comum
com os Sinóticos; os últimos três são novos. Ao enumerar os quatorze
elementos não pretendemos que seja correta a ordem em que os
apresentamos. A única coisa que se pode afirmar razoavelmente é que a
João (William Hendriksen) 556
sequência que apresentamos provavelmente não está muito afastada dos
fatos tal como ocorreram.
12:12, 13a. No dia seguinte, a numerosa multidão que viera à festa,
tendo ouvido que Jesus estava de caminho para Jerusalém, tomou ramos
de palmeiras e saiu ao seu encontro.
Este é o quarto ponto das Observações preliminares desta seção.
Assim, pois, se a ordem que sugerimos é correta, Jesus, montado num
jumentinho, procede agora de Betânia para Jerusalém. A multidão que
saiu de Jerusalém para o monte das Oliveiras ouviu falar da ressurreição
de Lázaro (Jo 12:18) e da proximidade de Jesus (Jo 12:12). As notícias
de que Jesus planejava de fato assistir à festa (veja-se sobre Jo 12:9),
apesar da decisão do Sinédrio (veja-se sobre Jo 11:57), tinham chegado
primeiro; e agora se ouve a exclamação: “Está em caminho!”
A multidão que saiu pela porta oriental de Jerusalém nesse domingo
pela manhã era grande, a multidão da Páscoa. Ao a multidão ver a Jesus,
ela, que havia cortado ramos das palmeiras, que nesse tempo bordejavam
o caminho de Jerusalém para o monte das Oliveiras, provavelmente
começaram às agitar em sinal de regozijo.
Na Bíblia a palmeira, com seu verdor perpétuo e sua notável
longevidade (constantemente reabastecida de seiva nova subministrada
por suas profundas raízes), seu crescimento majestoso e seu aspecto
senhorial (com o tronco que se ergue ereto da terra, e a folhagem de um
magnífico cálice), é símbolo da justiça e o vigor espiritual dos filhos de
Deus (Sl. 92:12).
O sustentar numa mão o lulav — palma com ramos de murteira e
salgueiro a cada lado — segundo o mandato divino (Lv. 23:40), e o
agitá-lo, era a forma em que Israel manifestava sua alegria durante a
festa dos Tabernáculos. Aqui em João 12 o simbolismo é o mesmo. A
multidão agitou ramos de palmeira em amostra de regozijo e triunfo.
Agora, por fim, a vitória (prosperidade, “salvação”, concebida em
termos terrestres) parecia segura, porque se Jesus ressuscitou a alguém
João (William Hendriksen) 557
que tinha estado quatro dias na tumba, quais eram os limites de Seu
poder? Sob tal líder podia sacudir-se, inclusive, o jugo dos romanos!
O fato de que não só hoje mas também nessa época se considerasse
os ramos de palmeira como emblema não só de alegria mas também de
vitória e prosperidade, tem sido questionado por alguns comentaristas.
No entanto, as fontes assinalam para este duplo significado. Ou,
poderíamos dizer, combinando os dois conceitos, «O agitar os ramos de
palma era a manifestação da alegria da vitória, do sentimento de que de
agora em diante tudo vai ser melhor». Quando Simão Macabeu entrou
em Jerusalém de forma triunfal, relata-se que entrou “com aclamações e
ramos de palma, com harpas, címbalos e cítaras, com hinos e cantos,
porque um grande inimigo tinha sido vencido e expulso de Israel” (1Mc.
13:51). E quando seu irmão, Judas Macabeu, derrotou os sírios, diz-se:
“levando tirsos, ramos verdes e palmas, entoavam hinos” (2Mc. 10:7).
No contexto presente, não só o levar ramos de palma mas também o
levar esse forte clamor que ressoou de colina em colina, e que começou
com a exclamação “Hosana!”, certamente apoia o ponto de vista de que
o que o povo expressava era a alegria da vitória e a prosperidade.
13b. Clamando: Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor e
que é Rei de Israel!
Este é o ponto 5 das Observações preliminares desta seção. As duas
multidões — a de Betânia e a de Jerusalém — já se reuniram. A
procissão desce pela ladeira ocidental do monte das Oliveiras. O clamor
vai se tornando cada vez mais intenso. Este júbilo e entusiasmo
tumultuoso se baseavam nas seguintes razões:
(1) A Páscoa estava perto, em comemoração da libertação da
escravidão do Egito. Em algumas ocasiões assim a libertação do jugo
estrangeiro era sempre um dos principais temas de conversação.
(2) Para libertar os judeus da dominação romana requeria-se um
libertador poderoso. Jesus já tinha demonstrado Seu extraordinário
poder, especialmente o ressuscitar a Lázaro dentre os mortos. Por isso,
João (William Hendriksen) 558
parecia como se por fim o antigo sonho do restabelecimento da dinastia
de Davi fora a realizar-se. Veja-se também sobre Jo 6:15.
O que os judeus seguiram gritando, enquanto punham ramos ao
longo do caminho que seguia Jesus, e agitavam as palmas era:
“Hosana!” Esta palavra se deriva da forma imperativa do verbo
salvar, e significa “salva agora”, ou “salva, pedimos-te”. É uma súplica
que o adorador dirige a Jeová, visto que está convencido de que chegou
por fim o momento apropriado para a total libertação. No espírito de
alegria e de triunfo próximo pede a Jeová que já não dilate mais a
prometida salvação. Equivale a: “Suplicamos-te, ou Jeová, que nos salve
agora”. Desejamos pôr de relevo que esta expressão não se tinha
deteriorado até converter-se numa simples exclamação de alegria como
nosso “Hurra!”, mas seguia mantendo (pelo menos em parte) seu sentido
original: “salva agora … envia agora prosperidade”. 255 Prova: tem este
sentido de súplica no Sl. 118:25, e as palavras que seguem (aqui em Jo
12) indicam que o povo pensava nesse salmo de louvor.
Em consequência, o clamor continua com estas palavras (tiradas do
Salmo 118:26): “Bendito o que vem em nome do Senhor”.
O Salmo 118 é um dos seis salmos aos quais mais se alude no Novo
Testamento. (Quanto aos outros veja-se sobre Jo 2:17). É um salmo
marcadamente messiânico, que fala a respeito da pedra que os
edificadores rejeitaram e que se converteu em pedra de ângulo (Cf. Sl.
118:22, 23 com Mt. 21:42; Mc. 12:10; Lc. 20:17; At. 4:11; e 1Pe. 2:7).
Fica claro, segundo o Salmo 118 (à luz de sua interpretação
neotestamentária), que aquele que vem em nome do Senhor, e ao que se
chama Bendito, é o Messias. Note-se os versículos citados em João 12
segundo se encontram em seu contexto no Salmo 118:22, 24-26
“A pedra que os construtores rejeitaram
essa veio a ser a principal pedra, angular,
Este é o dia que o SENHOR fez

255
Veja-se Eric Werner, “Hosanna in the Gospels”, JBL 65 (junho, 1946), 97–122.
João (William Hendriksen) 559
Regozijemo-nos e alegremo-nos nele.
Oh! Salva-nos, SENHOR, nós te pedimos;
Oh! SENHOR, concede-nos prosperidade!.
Bendito o que vem em nome do SENHOR”.
O Salmo 118 era um dos salmos de louvor que se cantavam na
Páscoa. 256
Mas consideravam os judeus o Salmo 118 como messiânico?
Segundo Marcos 11:8, 9 resulta claro que a grande multidão proclamou
que Jesus era o rei-Messias. Segundo João 12:13b o consideravam como
o Bendito, aquele que tinha vindo no nome (revelação) do Senhor Jeová.
No entanto, também fica claro que muitos dos que O aclamavam
tão forte e que suplicavam com tal entusiasmo esperavam que este
Messias responderia a suas expectativas terrestres. Aclamaram-No como
o Rei de Israel, Aquele que devia restabelecer “o reino de nosso pai
Davi”. Para eles era o poderoso realizador de milagres (Lc. 19:37). À luz
de tudo isso não nos surpreende que quando Jesus viu a cidade, chorasse.
Veja-se o ponto 8 nas Observações preliminares.
14, 15. E Jesus, tendo conseguido um jumentinho, montou-o,
segundo está escrito: Não temas, filha de Sião, eis que o teu Rei aí vem,
montado em um filho de jumenta.
O relato neste ponto, segundo João nos apresenta, desvia-se da
multidão para centralizar-se em Jesus, que vem de Betânia. Havendo
encontrado e montado um jumento (veja-se pontos 1 e 2, Observações
preliminares, para o comentário que proporcionam os Sinóticos) Jesus
prossegue para Jerusalém.
O que Jesus fez foi um claro cumprimento da profecia, e o povo de
Jerusalém deveria tê-lo visto imediatamente. A predição que cumpriu
encontra-se no livro de Zacarias (Jo 9:9). Veja-se pontos 2, Observações
preliminares. Esse livro tem como tema:

256
Cf. o comentário sobre Jo 2:13; também A. Edersheim, The Temple, Londres (sem data), pp. 223–
225, 262, 279, 334.
João (William Hendriksen) 560
A glória futura de Sião e de seu Rei-Pastor
Suas quatro partes são:
I. Visões (Jo 1:1–6:8)
II. Um fato simbólico (Jo 6:9–15)
III. Resposta a uma pergunta (capítulos 7, 8)
IV. Predições e promessas (capítulos 9–14)
São claramente messiânicas sobretudo as partes segunda e quarta,
embora várias seções da Parte I estão na mesma categoria. A parte IV
compreende predições e promessas referentes ao futuro de Sião, e ao
rechaço e a glória subsequente de seu Rei-Pastor. 257
A profecia citada toma-se da quarta parte. Deve comparar-se a LXX
com a versão que se oferece em Mateus 21:5. João ainda abrevia mais, e
muda o Alegre-te muito em Não temas. No entanto, isto não é
importante, visto que o pensamento subjacente é exatamente o mesmo:
quando se alegra muito, também, com o tempo (nem sempre
imediatamente, cf. Mt. 28:8), deixa de temer. João também omite a frase
“justo e salvador, humilde” (reduzido em Mateus à simples palavra
manso), e quanto ao animal em que Jesus cavalgou simplesmente diz um
jumentinho de jumenta (não a versão mais complicada que se encontra
em Mateus 21:5, que deu lugar a diversas interpretações).
Quando Sião recebe o seu próprio rei, não há razão de temer. Agora
nenhum rei estrangeiro aproxima-se de Jerusalém; por isso, que a filha
de Sião deixe de ter medo. Este rei, em harmonia (como se indicou) com
toda a quarta parte da profecia de Zacarias, é o Rei-Pastor, o próprio
Messias. Inclusive o Talmude aplica esta profecia ao Messias.
A filha de Sião, a que aqui se dirige, é a própria Sião, ou seja,
Jerusalém e seus habitantes. 258

257
Veja-se minha Bible Survey, Grand Rapids, quarta edição 1953, pp. 283–286.
258
Há muita confusão com relação ao significado do termo Sião na Escritura. Devem distinguir-se os
seguintes significados:
João (William Hendriksen) 561
É dito à filha de Sião que seu rei, seu Messias espiritual, aquele que
abrirá um manancial para o pecado e para a impureza (Zc. 13:1), já vem.
Para pôr de relevo o caráter pacífico de Sua aproximação e de Seu reino,
adiciona-se que subida no jumentinho de uma jumenta. Vem como o
Príncipe da Paz, não como guerreiro. Por isso a filha de Sião não mais
deveria temer.
O jumento ou asno costuma estar associado com a busca da paz (Jz.
10:4; 12:14; 2Sm. 17:23; 19:26; Is. 1:3); o cavalo, com a guerra (Êx.
15:1, 19, 21; Sl. 33:17; 76:6; 147:10; Pv. 21:31; Jr. 8:6; 51:21; Zc. 10:3;
e Ap. 6:4). Este rei é manso (πραΰς), pacífico, amável.
Vem para trazer salvação. Oh, se o povo o entendesse! Mas
inclusive os discípulos não o entenderam naquele então, como o indica o
seguinte versículo:
16. Seus discípulos a princípio não compreenderam isto; quando,
porém, Jesus foi glorificado, então, eles se lembraram de que estas coisas
estavam escritas a respeito dele e também de que isso lhe fizeram.
Veja-se o ponto 14, Observações preliminares nesta seção. Devido
à ignorância das Escrituras e à sua pequena fé (cf. Lc. 24:25) nem sequer
os Doze entenderam imediatamente que o que Jesus fazia era o
cumprimento da profecia de Zacarias 9:9, e que por meio dela Se

(1) Originalmente Sião era (ou veio a ser) a cidade de Davi, situada na parte sudeste da Jerusalém
posterior (veja-se 2Sm. 5:7; 1Cr. 11:5). Estava mais baixa que a área onde se construiu logo o templo,
e também mais baixa que o setor sudoeste da cidade (cf. 2Sm. 24:18; 1Rs. 8:4).
(2) Desta cidade de Davi (2Sm. 6:16) a arca foi subida ao templo de Salomão (2Cr. 5:2). É
possível que daí em diante o Moriá (a colina-templo, localizada a norte da cidade de Davi; daí, na
seção nordeste da Jerusalém posterior) se identificasse com Sião. Poderíamos dizer: a localização de
Sião mudou com o traslado da arca (veja-se Is. 10:12; 24:23), mas segundo alguns intérpretes a
mudança foi diretamente de (1) a (3).
(3) Por uma mudança semântica muito natural o termo começou a indicar a toda a cidade de
Jerusalém e a seus habitantes (Is. 10:24; Jr. 3:14).
(4) Finalmente, alcançou um significado mais espiritual: os fiéis ao Senhor, Seus escolhidos, a
igreja (tanto na terra como no céu). Quanto a este significado espiritual veja-se Is. 40:9; 52:1; Zc. 2:7.
Cf. também Is. 1:27.
O erro de Eusébio e Jerônimo, aqueles que identificaram Sião com a colina sudoeste (localização
impossível, porque daí os israelitas não poderiam ter subido ao lugar da arca) ainda não se tem
eliminado do H.B.A., p. 105.
João (William Hendriksen) 562
proclamava a Si mesmo como o Messias espiritual. Quando Jesus foi
glorificado por meio de Sua cruz e Sua ressurreição, e enviou o Seu
Espírito (Jo 16:12, 13), tudo isso ficou claro. Lembraram-se de tudo, e
viram seu significado. Entenderam que Zacarias 9:9 se referia a Ele, e
que estas coisas lhe tinham sido feitas a Ele. (Não se deveria insistir na
tradução: “que eles as tinham feito a ele”, e logo começar a perguntar-se
o que se quer dizer com o eles. Trata-se simplesmente de um aramaísmo;
em lugar do ativo, utiliza-se o passivo; cf. IV da Introdução). Estas
coisas significa: o agitar de palmas, o estender ramos em seu caminho, o
clamor, etc.
17, 18. Dava, pois, testemunho disto a multidão que estivera com ele,
quando chamara a Lázaro do túmulo e o levantara dentre os mortos. Por
causa disso, também, a multidão lhe saiu ao encontro, pois ouviu que ele
fizera este sinal.
João retorna mais uma vez à multidão. Veja-se os pontos 4 e 6
Observações preliminares. A tradução que se apresenta se baseia na
melhor versão (_τε em lugar de _τι), e tem muito sentido. Tenha-se em
mente que a grande multidão consistia de vários elementos mencionados
no ponto 5. Ao continuar a grande multidão o seu caminho, os que
tinham estado com Jesus quando ressuscitou a Lázaro dentre os mortos
seguiram testificando diante de outros. Era algo tão maravilhoso e
incomum que tinham simplesmente que o repetir vez após vez. Davam
testemunho do que tinham visto com seus próprios olhos. Quanto ao
significado de dar testemunho veja-se sobre Jo 1:7.
Em completa harmonia com Jo 12:9 lemos que a grande multidão
de peregrinos que tinham ido a Jerusalém de todos os lugares tinham
saído ao encontro de Jesus porque tinham ouvido que tinha realizado este
grande sinal, ou seja, ressuscitar a Lázaro dentre os mortos.
19. De sorte que os fariseus disseram entre si: Vedes que nada
conseguis; eis aí após ele foi todo o mundo [TB].
Veja-se o ponto 12, Observações preliminares. Os fariseus mais
radicais, disseram ao grupo menos agressivo — isto parece provável,
João (William Hendriksen) 563
embora não se diz textualmente —: “Vedes que nada conseguis” com
essa demora. É preciso fazer algo, e fazê-lo rapidamente, ou será tarde
demais, “Vedes”, acrescentam, “que nada conseguis; eis aí após ele
(apartando-se de nós) foi todo o mundo (veja-se sobre Jo 1:10, nota 26;
aqui provavelmente 3: o público em geral, «todo mundo»)” Os fariseus
estão furiosos! O mundo, num sentido diferente, ia realmente após Ele:
Vinham os gregos! Veja-se a seguinte seção (Jo 12:20–36a).

Síntese de Jo 12:12–19
O Filho de Deus faz sua entrada triunfal em Jerusalém.
As Observações preliminares com relação a esta seção constituem
uma Síntese.

JO 12:20–36A

12:20. Entre os que tinham ido para adorar na festa havia alguns
gregos.
O relato agora passa por um momento dos judeus aos gregos. A
passagem não se refere aos helenistas ou judeus que falavam grego (cf.
At. 6:1), mas aos helenos (gregos). Não cremos que o significado que o
escritor tenta transmitir seja que estes gregos figuravam entre os
adoradores judeus regulares. Pelo contrário, o significado é que estes
gregos eram de (_κ, a ideia partitiva, como em Jo 1:24, 35, 40; 7:48)
aqueles que costumavam ir para adorar na festa; em outras palavras,
estes gregos pertenciam ao grande grupo de adoradores aos que nós
costumamos chamar de prosélitos (neste caso mais provavelmente
prosélitos da porta ou tementes a Deus, At. 10:1, 22, 35; 13:16, 26, 43,
50; 17:4, conversos e circuncidados à religião monoteísta dos judeus).
No original temos o gerúndio do verbo subir (por isso, os que subiam ou
os que costumavam subir). O conceito de subir a Jerusalém explica-se
João (William Hendriksen) 564
com relação a Jo 2:13. Quanto a na festa (de Páscoa) veja-se também Jo
2:13.
Estes gregos, pois, eram gentios que tinham abandonado seu culto
politeísta e tinham sido ganhos para o culto do único Deus, o Deus de
Israel. O fato de que a tais pessoas se permitisse prestar culto religioso
no templo fica claro por 1Rs. 8:42; Is. 56:7; Mc. 11:7. Não se permitia
que fossem além do Pátio dos Gentios. Quanto ao significado do verbo
traduzido como adorar veja-se sobre Jo 4:23 e 9:38.
21, 22. Estes, pois, foram ter com Filipe, que era de Betsaida da
Galiléia, e lhe fizeram este pedido: Senhor, queremos ver a Jesus. Filipe
foi dizê-lo a André, e André e Filipe foram-no dizer a Jesus.
Estes gregos desejam entrevistar-se com Jesus. Não surpreende que
vacilem em aproximar-se de Jesus diretamente. Não lhes é claro se
aceitará conversar. Por isso pedem a Filipe que aja como intermediário.
Naturalmente, não é o diácono e evangelista (de At. 6 e 8), e sim um dos
Doze, o apóstolo Filipe que era de Betsaida da Galileia (quanto a isso
veja-se a explicação com relação a Jo 1:44 e 6:1), a cidade de André e
Pedro.
Por que escolheram a Filipe? E por que este, por sua vez, consultou
a André? Acaso estes dois homens falavam grego melhor que os outros?
É mais que simples coincidência que entre os Doze estes sejam os únicos
discípulos que aparecem desde o princípio com nomes gregos? (Mas
deve-se tomar cuidado em tirar conclusões disso; veja-se em Jo 3:1.) Ou
havia uma razão totalmente diferente do por que estes dois homens
figuram em primeiro plano neste relato? Não temos a resposta. Veja-se
também sobre Jo 1:35–42.
Os gregos se dirigem a Filipe muito cortesmente. Dizem
“Senhor”. 259

259
Em algumas traduções da Bíblia não se distingue entre o título grego (κύριος) tal como usa-se aqui
e a mesma palavra tal como usa-se em Jo 20:28 (“Senhor meu e Deus meu”). Estas traduções utilizam
o termo Senhor em ambos os casos, como o equivalente português. No entanto, isto confunde, porque
embora o único termo grego (κύριος) tem uma grande amplitude de significados, de forma que se
João (William Hendriksen) 565
A expressão, “queremos ver a Jesus”, não pode querer dizer
“queremos ver que aspecto tem, a fim de satisfazer a curiosidade que
temos com relação a Ele, para que possamos contar aos nossos amigos
que nossos olhos posaram em pessoa tão famosa”. Tampouco significa,
necessariamente: “Desejamos expor a Jesus a proposta de que Se
esqueça dos rebeldes judeus para, de agora em diante, pregar a nós, os
gregos, o evangelho”. Esta interpretação faz o texto dizer muito.
Levando em conta o que segue (veja-se especialmente versículos 24
e 32) parece que o desejo dos gregos tinha algo que ver com o grande
tema da salvação. Desejavam ver Jesus: a. porque a sabedoria dos
gregos tinha naufragado, ao não poder satisfazer os anelos mais
profundos da alma? e b. porque baseados no que tinham ouvido a
respeito de Jesus tiveram esperança de que poderia proporcionar-lhes a
paz espiritual e mental que não tinham podido encontrar em nenhum
outro lugar? Isto não é totalmente improvável.
Para Filipe — e mais tarde para Filipe e André — o pedido dos
gregos representava um duplo problema: a. Dado o que Jesus havia dito
em outras ocasiões (Mt. 10:5; 15:24), poderia logicamente acolher os
gregos em Sua presença? — mas, por outro lado, acaso não tinha falado
a respeito de “outras ovelhas, não deste redil”, às quais também devia
reunir? Veja-se também Mt. 8:5–13. Qual era, pois, a atitude de Jesus
para os gregos: acolhê-los-ia ou se negaria a lhes dar audiência? b. Acaso
Jesus, ao conceder audiência aos gregos, não incitaria a ira de todo o

pode utilizar: a. como título de respeito, adequado para dirigir-se a qualquer cavalheiro, b. como nome
próprio divino, c. como equivalente a nosso “Mestre ou Senhor” e d. como título que expressa a
divindade de Cristo, esta mesma amplitude de significado não a tem a palavra em português “Senhor”,
em sua conotação atual. O que se argui às vezes no sentido de que os gregos se dirigiram desta forma
a Filipe porque consideravam que, sendo discípulo de Cristo, participava da glória dEle e em
consequência deviam dirigir-se o com o mesmo título, carece de fundamento, pela simples razão de
que estes gregos não conheciam Jesus. E como não O conheciam nem tampouco a Sua glória, não
podiam lhe dar afinal este profundo significado quando se dirigiram a Seu discípulo Filipe. Falaram
com Filipe, não com Jesus. Apresentavam sua petição a um simples homem. Por isso, a tradução
correta aqui é “senhor” (não “Senhor” no sentido de Mestre). Veja-se também nota 44.
João (William Hendriksen) 566
povo judeu, especialmente se a entrevista fosse mantida em algum lugar
do templo? (veja-se At. 21:28).
Como o problema era grande demais para Filipe, consulta com seu
amigo e compatriota, André. André e Filipe, não querendo ofender os
gregos, nem tampouco alentá-los, apresentam a petição dos gregos a
Jesus.
23, 24. Respondeu-lhes Jesus: É chegada a hora de 260 ser glorificado
o Filho do Homem. Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo,
caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito
fruto. 261
Jesus respondeu a André e Filipe. Estes, por sua vez, poderiam
levar a resposta aos gregos. Muitos judeus estavam ao redor quando
Jesus deu a resposta (Jo 12:29).
Na petição dos gregos Jesus vê sua linhagem, quer dizer,
posteridade espiritual abundante. Isto tinha sido prometido ao Messias
como fruto de Seu sacrifício voluntário: “Quando tiver posto sua vida em
expiação pelo pecado, verá linhagem” (Is. 53:10). À parte deste
sacrifício voluntário Jesus nada podia fazer por estes gregos. Entenderam
isto eles? Deram-se conta que um Messias terrestre, por famoso que
fosse (pense-se no louvor que recebeu ao entrar triunfalmente!) de nada
lhes serviria? Entenderam totalmente que só por meio de Sua expiação
substitutiva Ele, como Messias espiritual poderia salvá-los?
Para sublinhar este pensamento Jesus fala imediatamente de Sua
morte. Diz, “Chegou a hora para que o Filho do Homem seja
glorificado” (AV). Antes tinha indicado que o momento decisivo, o
tempo de sofrimento mais amargo, ainda não tinha chegado (veja-se
sobre Jo 7:30; 8:20). 262 Agora já chegou! O termo hora, quase não faz

260
Quanto a ἵνα veja-se IV da Introdução.
261
Frase condicional composta. As duas prótase são de construção paralela, e também o são as duas
apódose. Veja-se IV da Introdução, III A 2.
262
Em vários comentários também se alude, com relação a isto, a Jo 2:4 e 7:6, como se estas
passagens também contivessem a ideia de que o tempo assinalado da morte de Cristo ainda não tivesse
chegado. Mas, como mostramos ao expô-los, as passagens indicadas não se referem a esse tema. Em
João (William Hendriksen) 567
falta indicá-lo, não deve tomar-se de forma literal, como se a referência
fosse a um período de exatamente sessenta minutos. É o tempo
designado, a época na qual o Senhor entrou no vale do mais intenso
sofrimento, seguido pela recompensa justa e prometida: a ressurreição,
ascensão e coroação. Nesta culminação de humilhação seguida
imediatamente pela gloriosa exaltação, o Filho do Homem (veja-se sobre
Jo 12:34) é glorificado: o esplendor de Sua graça e a majestade de Sua
verdade ficam claramente de manifesto. O Pai, ao entregar o Filho para
que morra na cruz, e ao Lhe outorgar a recompensa prometida, manifesta
os atributos divinos (amor, justiça, onipotência, fidelidade, etc.) em toda
sua majestosa e indescritível beleza. Manifestam-se de forma pública
para que todos os olhos os contemplem.
Dada a necessidade absoluta de sua morte, a Jesus acrescenta: “Em
verdade, em verdade vos digo (quanto a esta expressão introdutória veja-
se sobre Jo 1:51): se o grão de trigo (ou a semente do grão, qualquer
classe de grão, cf. Mc. 4:28; Lc. 12:18), caindo na terra, não morrer, fica
ele só; mas, se morrer, produz muito fruto”. À parte da cruz não há
colheita espiritual. (A respeito da necessidade da morte substitutiva de
Cristo veja-se também Gn. 2:16, 17; Lc. 24:26; Rm. 3:23–25; 5:12–21.)
A ilustração era muito clara, especialmente no momento em que se
utilizou, apenas uns dias antes da festa (religiosa y) da colheita da
Páscoa. As sementes tinham sido entregues à terra e, em consequência,
tinham morrido. Mas por meio deste mesmo processo de decomposição
tinham produzido abundante colheita. Se a semente não morrer, fica
sozinha, não produz fruto. Assim também se Jesus não morrer,
permanecerá sozinho, sem fruto espiritual (almas salvas para a
eternidade). Sua morte, no entanto, produzirá uma colheita espiritual
abundante.

consequência, ao comentar Jo 12:23 só é apropriado referir-se a Jo 2:4 e 7:6 quanto estas afirmações
também provam que para todo o programa mediador do Senhor havia um momento designado de
antemão.
João (William Hendriksen) 568
25, 26. Quem ama a sua vida perde-a; mas aquele que odeia a sua
vida neste mundo preservá-la-á para a vida eterna. Se alguém me serve,
siga-me; 263 e, onde eu estou, ali estará também o meu servo. E, se alguém
me servir, o Pai o honrará. 264
A solene verdade contida no versículo 24 aplica-se a Cristo, e só a
Ele. Só Ele morre como substituto, e ao assim fazer produz muito fruto.
No entanto, há um princípio análogo que age na esfera dos homens. É
aquele que se afirma nos versículos 25, 26. A relação entre as duas leis
(uma que se aplica a Cristo, outra aos discípulos) pode-se resumir como
segue:
1. Quanto a Cristo: para que haja fruto, deve morrer (versículo 24).
2. Quanto a seus discípulos: devem estar dispostos a morrer pela
causa de Cristo (versículos 25, 26). Naturalmente, não podem fazer isto
por si mesmos.
Dado o contexto presente e as passagens paralelas nos outros
Evangelhos, o significado desta importante afirmação (versículos 25, 26)
é como segue:
Aquele que, quando o dilema se expõe entre Mim e Meu evangelho,
por um lado, e o que lhe é mais querido (pai, mãe, filho, filha, coisas
materiais, o mundo todo, sua própria vida, Mt. 10:37; 16:26; Lc. 17:32)
por outro lado, escolhe (aqui em Jo 12:25; “ama” veja-se nota 457 no
final do capítulo 21) o último, perecerá para sempre. Na minha vinda me
envergonharei dele (Mc. 8:38; Lc. 9:26). Mas aquele que, neste mundo
— ou seja, no meio da geração presente adúltera e má (Mc. 8:38; e veja-
se nota 26, significado 6) — está disposto a sacrificar sua vida 265 por
Mim e Meu evangelho (Mc. 8:35) guardá-la-á e a preservará (Lc. 17:33),
de forma que florescerá em vida eterna nas mansões celestiais (veja-se
sobre 4:14). Se alguém me serve, que me siga até o fim, embora seja o

263
Seção IV da Introdução, III B 3.
264
Seção IV da Introdução, III B 2.
265
A vida em passagens assim é o eu: os termos si mesmo e sua vida são usados alternativamente;
veja-se Lc. 9:23, 24; também sobre Jo. 10:11.
João (William Hendriksen) 569
caminho da abnegação e da cruz (Mt. 16:24; 10:38; Mc. 8:34), tendo em
mente que o caminho da cruz conduz à coroa. Compartilhará comigo a
glória do céu, permanecendo para sempre em Minha presença. Além
disso, também Meu Pai, quem Me ama, honrá-lo-á porque honra aos que
Me honram.
Fica claro que este é, na realidade, o significado quando a passagem
se compara com suas paralelas, depois de tê-lo estudado em seu próprio
contexto. Observe-se o seguinte:
Mateus 10:37–39. “Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a
mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a
mim não é digno de mim; e quem não toma a sua cruz e vem após mim
não é digno de mim. Quem acha a sua vida perdê-la-á; quem, todavia,
perde a vida por minha causa achá-la-á”.
Mateus 16:24–26. “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se
negue, tome a sua cruz e siga-me. Porquanto, quem quiser salvar a sua
vida perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á. Pois
que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?
Ou que dará o homem em troca da sua alma?”
Marcos 8:34–38. “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se
negue, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser, pois, salvar a sua vida
perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho salvá-
la-á. Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua
alma? Que daria um homem em troca de sua alma? Porque qualquer que,
nesta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e das minhas
palavras, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier
na glória de seu Pai com os santos anjos”.
Lucas 9:23–26. “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se
negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua
vida perdê-la-á; quem perder a vida por minha causa, esse a salvará. Que
aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder-se ou a
causar dano a si mesmo? Porque qualquer que de mim e das minhas
João (William Hendriksen) 570
palavras se envergonhar, dele se envergonhará o Filho do Homem,
quando vier na sua glória e na do Pai e dos santos anjos”.
Lucas 17:32, 33. “Lembrai-vos da mulher de Ló. Quem quiser
preservar a sua vida perdê-la-á; e quem a perder de fato a salvará”.
27, 28a. Agora, está angustiada a minha alma, e que direi eu? Pai,
salva-me desta hora? Mas precisamente com este propósito vim para esta
hora. Pai, glorifica o teu nome.
Jesus veio falando a respeito de Sua próxima morte — morte
eternal — como uma necessidade absoluta. Mas a contemplação desta
terrível prova cheia sua alma de angústia indescritível. Exclama: “Agora,
(neste momento; veja-se versículo 23: Chegou a hora!) está angustiada a
minha alma”. A expressão minha alma é simplesmente eu, como se
houvesse dito “agora estou angustiado”. As duas se intercambiam com
frequência; p. ex., cf. Mt. 20:28 com 1Tm. 2:6 (“dar sua alma ou sua
vida en resgate” é o mesmo que “dar-se a si mesmo em resgate”). O
verbo angustiada ou agitada (a respeito do que ver também Jo 5:7;
11:33; 13:21; 14:27; especialmente 14:1), aqui no indicativo perfeito
passivo, indica que esta confusão dolorosa na alma de Cristo tinha vindo
sucedendo por certo tempo e agora se tornou muito intensa. Sentia agora
como nunca antes os horrores da iminente cruz.
Até aqui não há muita diferença em interpretação. No entanto, com
relação a “Pai, salva-me desta hora” as opiniões variam. De um sem-
número de interpretações escolhemos as seguintes:
(1) “E que direi eu? Pai, salva-me desta hora? (observe-se os sinais
de interrogação). Mas precisamente com este propósito vim para esta
hora”.
Inclusive entre os que aceitam esta apresentação, os quais, em
consequência, creem que Jesus não orou senão simplesmente expôs uma
pergunta, há diferenças de opinião. Alguns pensam que na realidade
vacilou por um momento em Sua obediência, que por um instante Se
rebelou contra a ideia de ter que sofrer na cruz. — Nossa resposta seria,
“Nem pensar!” — Outros, no entanto, aceitam a dupla pergunta num
João (William Hendriksen) 571
sentido muito mais inocente: Jesus, segundo eles, expõe simplesmente
uma pergunta retórica. É como se tivesse dito: «Que direi? Pensais que
diria ‘Pai, salva-me desta hora?’ Mas isto é totalmente impossível,
porque para isto cheguei a esta hora».
Rejeitamos esta dupla pergunta de qualquer maneira que se
apresente. E isto não só porque toda esta representação, inclusive se for
interpretado na forma melhor e mais adequada (como, por exemplo,
Zahn e Lenski) parece-nos como uma tentativa de evitar uma
dificuldade, mas sobretudo porque nas agonias parecidas do Getsêmani,
que ocorreram muito pouco depois, Jesus não perguntou, “Direi, Pai
salva-me desta hora?” mas de fato orou: “Meu Pai, se possível, passe de
mim este cálice! Todavia, não seja como eu quero, e sim como tu
queres” (Mt. 26:39); “Aba, Pai, tudo te é possível; passa de mim este
cálice; contudo, não seja o que eu quero, e sim o que tu queres” (Mc.
14:36). Cf. também Lc. 22:42. Não é verdade que a construção com
pergunta dupla seja a única coisa que faz justiça à palavra mas com a
qual inicia a frase seguinte. Veja-se em (4) mais abaixo.
(2) “E que direi eu? Pai salva-me desta hora”. Segundo esta
interpretação a primeira frase é uma pergunta; e a segunda é uma petição
positiva. Até aí estamos em total acordo. Mas esta segunda opinião
propõe uma explicação que é extremamente interessante e merece um
exame consciencioso, ou seja, que o que Jesus quis dizer foi: “Pai,
concede-me que, depois de ter sofrido esta hora de amarga agonia e dor,
possa sair triunfante”. Como diz um autor, «Salva-me de toda a aflição e
a morte desta hora.» 266
Esta interpretação talvez seja a correta. Gramaticalmente é possível.
A preposição de (_κ), pode ter esse significado. Veja-se Ap. 3:10.
Concebida assim, esta oração é uma petição de ressuscitar. Mas deve

266
H. Hoeksema, The Amazing Cross, Grand Rapids, Mich., 1944, p. 117. Vale a pena ler os livros
deste autor a respeito da paixão de nosso Senhor. escreveu: The Royal Sufferer, Rejected of Men, e
The Amazing Cross, todos eles publicados por Wm. B. Eerdmans Co., Grand Rapids, Mich.
Hoeksema é autor de muitas outras obras.
João (William Hendriksen) 572
aceitar-se que a exaltação (ressurreição, etc.) do Senhor como resultado
de Seu sofrimento e morte voluntários são mencionados neste mesmo
contexto (Jo 12:23; cf. também versículo 32; inclusive o versículo 28,
que fala da glória do nome do Pai, implica a glória do Filho). Em
consequência, pode-se dizer muito em favor desta exegese.
As razões de por que, apesar disso, não estamos seguros de que seja
a explicação correta, são:
a. Nas passagens análogos (Mt. 26:39 e Mc. 14:36, citados antes) a
ideia não é que o Senhor peça receber recompensa depois de ter
consumado o cálice de amargo sofrimento, e sim concretamente que, de
ser possível, nem sequer tenha que beber este cálice! Veja-se Mt. 26:42:
“Meu Pai, se não é possível passar de mim este cálice sem que eu o beba,
faça-se a tua vontade”.
b. Tanto em Hb. 5:7 e em Tg. 5:20 a expressão da morte (_κ
θανάτου) significa de experimentar a morte.
(3) “E que direi? Pai, salva-me desta hora”.
Segundo esta terceira teoria Jesus de fato Se rebelou, por não estar
disposto a subir à cruz. Mas esta rebelião durou pouco. — Não faz falta
dizer que rejeitamos esta opinião sem mais comentário.
(4) “E o que direi? Pai salva-me desta hora”. A tomada profunda de
consciência do caráter indescritivelmente terrível desta próxima descida
ao inferno comoveu a alma humana de Jesus até as vísceras. Isto não
implica desobediência. A pessoa pode retroceder diante de uma
experiência pela qual, no entanto, quer passar; p. ex., uma operação.
Assim ocorre no caso de Cristo. Embora tenha a alma cheia de horror,
nem por um momento se rebela contra a vontade do Pai. Cumprir essa
vontade era Seu desejo mais íntimo, tanto nesse momento como no
Getsêmani. Mas pede que se há alguma outra forma de poder cumprir a
vontade do Pai, alguma outra forma de morte voluntária e substitutiva,
que se manifeste tal alternativa, de forma que possa ser poupado da
terrível agonia da cruz.
João (William Hendriksen) 573
No conjunto, cremos que esta interpretação muito comum é
provavelmente a correta. Está em total harmonia com o relato do
Getsêmani. Custa trabalho crer que palavras que são tão parecidas (Jo
12:27, 28; cf. as passagens do Getsêmani citadas antes) pudessem ter um
significado totalmente diferente. A única objeção possível que podemos
ver seria que aqui em Jo 12:27, 28, Jesus não acrescenta uma expressão
como, “Se for possível” (Mt. 26:39) ou “Faça-se segundo a tua vontade”.
Mas não é razoável interpretar Jo 12:27, 28, à luz das passagens do
Getsêmani? Em outras palavras, embora a frase condicional não se
acrescenta aqui em Jo 12:27, 28, não está acaso claramente implícita?
Embora o façamos com certa vacilação (devido às razões da segunda
teoria apresentada antes), no entanto cremos que esta quarta explicação é
a mais plausível. Se for correta, o que a passagem quer dizer é isto:
«Pai, salva-me desta hora de tão amargos sofrimentos na cruz».
Mas enquanto pronuncia estas palavras, o pensamento é este: «… se isto
for possível e estiver de acordo com a tua santa vontade, porque desejo
cumprir a tua vontade».
Jesus acrescenta: “Mas precisamente com este propósito vim para
esta hora”. A partícula adversativa mas não deveria surpreender.
Encontra-se com frequência onde não se espera. Seu uso é muito natural
em conversação abreviada. 267 Veja-se Jo 5:31. Toda a ideia da oração
pode talvez ser parafraseada como segue (e isto também mostra por que
se utiliza a conjunção mas):
“Pai, salva-Me desta hora, se for possível e está de acordo com a
Tua santa vontade, mas não Me salve desta hora se isto for significar que
perderia a colheita espiritual (Jo 12:24), porque o propósito de Minha
vinda a este mundo é conseguir esta colheita por meio da morte
voluntária. Em consequência, Pai, concede-Me que através de Minha
perfeita obediência à Tua vontade, onde quer que esta vontade Me dirija
267
Prescindindo da interpretação que se adotar, é evidente que estamos diante de um estilo abreviado,
porque Jesus diz, “Para isto”, sem indicar concretamente o propósito. O auditório, no entanto, estava
em condições de completar o pensamento, dado o que Jesus havia dito antes, ou seja, no versículo 24.
João (William Hendriksen) 574
(especialmente em Meu sofrimento e morte), Teu nome seja
glorificado”.
28b, 29, 30. Então, veio uma voz do céu: Eu já o glorifiquei e ainda o
glorificarei. A multidão, pois, que ali estava, tendo ouvido a voz, dizia ter
havido um trovão. Outros diziam: Foi um anjo que lhe falou. Então,
explicou Jesus: Não foi por mim que veio esta voz, e sim por vossa causa.
Jesus tinha pedido que o Pai glorificasse o Seu nome; quer dizer,
que o Pai, por meio de Sua revelação no Filho, fizesse com que se
manifestasse publicamente o resplendor de Seus majestosos atributos, a
fim de que os homens pudessem Lhe dar a honra devido ao Seu nome. O
nome do Pai é Sua revelação; aqui, Sua revelação em Cristo.
Imediatamente saiu uma voz do céu que dizia: “Eu já o glorifiquei e
ainda o glorificarei”. Por meio de vozes diretas do céu (no batismo, Mc.
1:11; na transfiguração Mc. 9:7) e por meio dos poderosos milagres que
Jesus realizou, o Pai já foi glorificado a Si mesmo no Filho. Aqui
promete que na ulterior humilhação e subsequente exaltação do Filho, e
por meio dela, voltará a fazer o mesmo.
Bem como no caso da experiência de Paulo na rota a Damasco, os
que estavam com ele, embora ouviram um ruído, não chegaram para
ouvir as palavras concretas (At. 9:7; 22:9). Também aqui a multidão
ouve um ruído procedente do alto, mas não pode compreender a
mensagem. Em consequência, a maior parte dos que estavam por lá
diziam que tinha velho. Talvez sabiam mais que isto, mas procuravam
dar uma explicação natural a um evento sobrenatural, como o fazem os
céticos de hoje. Outros, no entanto, estavam dispostos a admitir que o
que tinha sucedido era de índole extraordinária. Estes disseram: “Foi um
anjo que lhe falou”.
Jesus respondeu dizendo: “Não foi por mim que veio esta voz, e
sim por vossa causa”. Esta afirmação produziu grande dificuldade.
perguntou-se: «Acaso a própria natureza da mensagem do alto — a qual,
afinal de contas era uma resposta direta à oração de Cristo — não indica
que se transmitiu por causa dEle, para estimulá-lo no terrível sofrimento
João (William Hendriksen) 575
que se aproximava?» Parece razoável que neste caso bem como em
expressões semelhantes (veja-se sobre Jo 4:21; 12:44) o significado é:
«Não veio esta voz exclusivamente por minha causa, mas também por
causa de vós».
Outra pergunta que facilmente vem à mente mas que se responde
com facilidade é esta: «Se a multidão nem sequer podia entender as
palavras como se pode dizer que a voz tinha vindo por causa deles?» A
resposta é: a voz que veio do alto (embora não se compreendesse) e que
veio imediatamente depois da oração, era claro indício de que o Pai
tinha ouvido a petição do Filho, ou seja, a petição de que o Pai fosse
glorificado no Filho). Se alguém seguia negando-se a admitir isso, era
sua culpa.
Jesus prossegue:
31–33. Agora é o juízo deste mundo; agora será expulso o príncipe
deste mundo; e eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim.268
Isto dizia, dando a entender o modo por que havia de morrer [TB].
Ao dizer agora Jesus fala de sua descida ao inferno como algo que
já está sucedendo. Quando Jesus morreu na cruz pareceu como se o
mundo triunfasse e Cristo fora derrotado. Parecia que o mundo era o
vencedor! Tomamos o termo mundo neste caso no sentido do povo judeu
que O rejeitou, de seus líderes que O condenaram, de Judas que O traiu,
dos soldados que zombaram dEle, de Pilatos que O sentenciou — em
resumo, todo este grupo de homens maus, alienados de Deus, e que
tinham o diabo como príncipe (veja-se nota 26, significado 6). Tinham
julgado ao Cristo, e O tinham repudiado. O mundo pouco se apercebeu
que por meio desta mesma ação condenou-se a si mesmo. Como indica o
contexto, o termo juízo aqui é a decisão divina com relação ao mundo.
Essa decisão equivale a condenação. Quanto ao significado de juízo,
veja-se sobre Jo 3:17, 19.

268
Seção IV da Introdução, III A 1.
João (William Hendriksen) 576
“Agora será expulso o príncipe deste mundo”. Este príncipe (ou
governante) é evidentemente Satanás. Em outras partes o escritor do
quarto Evangelho e do livro de Apocalipse o descreve de forma
simbólica como o “grande dragão escarlate, que tinha sete cabeças e dez
chifres, e em suas cabeças sete diademas” (Ap. 12:3). Cf. também Lc.
4:6; 2Co. 4:4; Ef. 2:2; 6:12. O expulsar o príncipe deste mundo deve
explicar-se à luz da afirmação que segue imediatamente: “E eu, quando
for levantado da terra, atrairei todos a mim”. A atração de todos os
homens a Cristo é o expulsar o demônio. Este perde o poder sobre as
nações. Um momento antes os gregos tinham pedido para ver a Jesus.
Este é claramente o contexto. Estes gregos representavam as nações —
os escolhidos de todas as nações — que chegariam a aceitar a Cristo com
fé viva, através da graça soberana de Deus. Em consequência, por meio
da morte de Cristo que quebranta o poder de Satanás sobre as nações do
mundo. Durante a antiga dispensação, estas nações tinham estado sob a
escravidão de Satanás (embora naturalmente, nunca no sentido absoluto
do termo). Com a vinda de Cristo ocorre uma tremenda mudança. No
Pentecostes, e depois do mesmo, começamos a ver a formação de uma
igreja dentre todas as nações do mundo (cf. Ap. 20:3). 269 Isto é o que
Jesus vê tão claramente quando estes gregos se aproximam dEle.
Jesus promete atrair a todos os homens a si mesmo. Este todos os
homens, neste contexto que coloca os gregos junto aos judeus, deve
significar homens de toda nação. Esta ideia encontra-se com frequência
no quarto Evangelho: a salvação não depende do sangue ou da raça (Jo
1:13; cf. 8:31–59); Jesus é o Salvador não só dos judeus mas também
dos samaritanos; em consequência, é o Salvador do mundo (Jo 4:42);
tem outras ovelhas que não são deste redil (judaico), mas do mundo
gentílico (Jo 10:16); morrerá não só pela nação (judaica), senão para

269
Veja-se nosso Más que Vencedores, T.E.L.L., Grand Rapids, Mich., reimpressão 1952, pp. 224–
230.
João (William Hendriksen) 577
assim reunir em um só aos filhos de Deus que estão dispersos (Jo 11:51);
em resumo, é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1:29).
Jesus atrairá os homens a Si mesmo quando é levantado da terra.
Este ser levantado foi explicado com relação a Jo 3:14. Por meio da
crucificação, ressurreição, ascensão e coroação Jesus atrai a Si mesmo
(ou seja, a fé permanente em Si mesmo) a todos os escolhidos de Deus,
de toda idade, região e nação. Atrai-os por meio de Sua palavra e
Espírito. Esta atividade do Espírito é a recompensa pelo levantamento do
Filho. Desta ação de atrair os pecadores a Cristo não se deve excluir a
operação do Espírito Santo na regeneração do coração. Antecede
inclusive a nossa fé, dada por Deus. Veja-se mais comentários a respeito
desta atividade de atrair e a respeito do significado do termo utilizado no
original, na explicação de Jo 6:43, 44.
“Isto dizia, dando a entender o modo por que havia de morrer”. Ou
seja, dizia-o para indicar que Sua morte consistiria em ser levantado na
cruz, como meio de glória para Si mesmo e para Seus escolhidos de
todas as nações.
34. Replicou-lhe, pois, a multidão: Nós temos ouvido da lei que o
Cristo permanece para sempre, e como dizes tu ser necessário que o Filho
do Homem seja levantado? Quem é esse Filho do Homem?
As multidões judaicas, familiarizadas até certo ponto com a lei,
surpreenderam-se de que Jesus tivesse falado a respeito da necessidade
de ser “levantado”. Da lei — provavelmente tomada no sentido mais
inclusivo neste caso; ou seja, o que hoje chamamos o Antigo Testamento
— tinham ouvido que o Cristo permaneceria para sempre. As passagens
que tinham em mente eram provavelmente as seguintes: Sl. 110:4; Is.
9:7; Ez. 37:25; Dn. 7:14. Interpretavam literalmente estas passagens,
como se ensinassem que o Messias permaneceria na terra para sempre
como rei dos judeus.
Agora perguntam: “Como dizes tu ser necessário que o Filho do
Homem seja levantado? Quem é esse Filho do Homem?” Que classe de
Filho do homem é em todo caso aquele que, em lugar de permanecer
João (William Hendriksen) 578
conosco para sempre, vai ser afastado de nós? Quem é esta pessoa, o
Filho do Homem (τίς _στιν ο_τος _ υ__ς το_ _νθρώπου)?
Às vezes se comenta que o evangelista deve ter cometido um erro
ao relatar esta conversação entre Jesus e os judeus. Esta conclusão é
tirada do fato de que no contexto imediato Jesus nem sequer mencionou
a expressão Filho do Homem. Diz-se que disse, “E eu, se for levantado
da terra a todos atrairei a mim”. Eles respondem: “Como dizes tu ser
necessário que o Filho do Homem seja levantado? Quem é esse Filho do
Homem?” Diz-se que a pergunta dos judeus não pode ter originado da
declaração de Jesus. Mas os críticos se equivocam. A multidão
mencionada no versículo 34 já estava presente no versículo 29, e talvez
já no versículo 20. Portanto, faz uns momentos a multidão ouvia Jesus
falar a respeito do Filho do Homem. Achamos o termo no versículo 23.
O povo entendia bem que na mente de Jesus o Filho do Homem (do
versículo 23) e o eu (do versículo 32) eram um, a mesma pessoa. Isto
explica a forma em que eles fazem a pergunta. Por isso, quando
perguntam “Quem é este Filho do Homem?” não querem dizer “Por
favor, diga-nos quem é”, e sim “Que classe de pessoa é este Filho do
Homem quem deve ser levantado?” É também claro de sua pergunta que
eles identificam ao verdadeiro Filho do Homem (como eles pensam
dEle) com o Messias. Eles percebem o fato de que Jesus Se considera a
Si mesmo ser o Filho do Homem, quer dizer o Cristo, mas eles se
assombram diante da declaração que lhes parece estar em conflito com o
ensino contido na lei.
“Quem é este Filho do Homem?” Aqui é o lugar apropriado para
considerar brevemente este termo. 270

270
A literatura sobre este tema é muito extensa. Mencionamos alguns poucos títulos:
Aalders, G. Ch., Korte Verklaring, Daniel, Kampen, 1928, pp. 133–135.
Bavinck, H., Gereformeerde Dogmatiek, Kampen, 1918, terceira edição, vol. III, pp. 259–264.
Berkhof, L., Teología sistemática, Grand Rapids, 1969, pp. 371, 372.
Bouman, J., “Son of Man”, em ExT 59 (1948), pp. 283ss.
Campbell, J. Y., “Son of Man”, em A Theological Word Book of the Bible, Nova York, 1952, pp.
230–231.
João (William Hendriksen) 579
Quanto a estatísticas, o termo ocorre pelo menos oitenta vezes nos
Evangelhos. No quarto Evangelho encontra-se treze vezes (ou onze
vezes se excluir-se as passagens disputadas em Jo 5:27 e em 9:35). 271
Os exemplos de seu emprego em João são os seguintes:
(1) Jo 1:51. “vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e
descendo sobre o Filho do Homem”.
(2) Jo 3:13. “Ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu,
a saber, o Filho do Homem”.
(3) Jo 3:14. “E do modo por que Moisés levantou a serpente no
deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado”.
(4) Jo 5:26, 27. (disputado). “Porque assim como o Pai tem vida em
si mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo.

Greijdanus, S., Het Evangelie naar de Beschrijving van Lukas, Amsterdam, 1940, Vol. I, p. 253 (e
a literatura indicada nessa página).
Stalker, J., art. “Son of Man”, em I.S.B.E.
Stevens, G. B., The Theology of the New Testament, Nova York, 1925, pp. 41–53.
Vos, G., The Self-Disclosure of Jesús, Nova York, 1926, pp. 42–55; 228–256.
Young, E. J., The Prophecy of Daniel, Grand Rapids, Mich., 1949, pp. 154–156.
271
Conto 83 casos em que se utiliza nos Evangelhos, ou 81 sem Jo. 5:27 e 9:35. Esta cifra inclui os
treze (ou onze, se omitir-se Jo 5:27 e 9:35) em João. Baseio estas cifras em W. F. Moulton e A. S.
Geden, A Concordance to the Greek Testament, Edimburgo, terceira edição 1950 (reimpressão). J. Y.
Campbell (veja-se a nota anterior para a referência) chega ao mesmo resultado (menciona a cifra 81).
No entanto, R. C. H. Lenski em sua Interpretation of St. John’s Gospel, Columbus, Ohio, 1931, p.
172, afirma que a designação o Filho do Homem encontra-se nove vezes no Evangelho de João e mais
de cinquenta e cinco vezes em todos os Evangelhos. Em parte esta cifra mais baixa deve-se ao fato de
que não inclui Juan 9:35, nem tampouco João 5:27 (omitem-se os artigos definidos). Mas, segundo
nossa recontagem, isto ainda deixa 81 casos nos quatro Evangelhos, incluindo 11 em João. Obtemos
as seguintes cifras:
Mateus: 31
Marcos: 14
Lucas: 25
João: 13
quatro Evangelhos: 83
Atos: 1 (Atos 7:56)
Apocalipse: 2 (estes “semelhante ao Filho do Homem” certamente deveriam incluir-se: Ap. 1:13;
14:14).
Total para o N.T. : 86 (ou 84, quando se excluem os dois casos controvertidos de João).
João (William Hendriksen) 580
27 E lhe deu autoridade para julgar, porque é o Filho do Homem
(υ__ς _νθρώπου)”. Veja-se sobre Jo 5:27.
(5) Jo 6:27. “Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que
subsiste para a vida eterna, a qual o Filho do Homem vos dará; porque
Deus, o Pai, o confirmou com o seu selo”.
(6) Jo 6:53. “Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos
digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu
sangue, não tendes vida em vós mesmos”.
(7) Jo 6:62. Que será, pois, se virdes o Filho do Homem subir para
o lugar onde primeiro estava?”
(8) Jo 8:28. “Disse-lhes, pois, Jesus: Quando levantardes o Filho do
Homem, então, sabereis que EU SOU e que nada faço por mim mesmo;
mas falo como o Pai me ensinou”.
(9) Jo 9:35 (disputado). “Ouvindo Jesus que o tinham expulsado,
encontrando-o, lhe perguntou: Crês tu no Filho do Homem?”
(10) Jo 12:23. “É chegada a hora de ser glorificado o Filho do
Homem”.
(11) Jo 12:34 (dois casos). “Replicou-lhe, pois, a multidão: Nós
temos ouvido da lei que o Cristo permanece para sempre, e como dizes
tu ser necessário que o Filho do Homem seja levantado? Quem é esse
Filho do Homem?”
(13) Jo 13:31. “Agora, foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi
glorificado nele”.
Nos Evangelhos, com a única exceção de Jo 12:34, o termo o Filho
do Homem nunca é usado por ninguém mais que o próprio Jesus. É sua
autodesignação. O fato de utilizar este título com relação a Si mesmo
fica claro por Jo 6:53, 54; 8:28; 9:35 (melhor versão), 37; cf. também Jo
12:34 à luz do que antecede. O fato de o povo compreender que se
referia ao Cristo, já se indicou (a passagem presente, Jo 12:34). Apenas
se for possível discutir a derivação do termo de Dn. 7:13, 14 quando se
compara essa passagem e Mt. 26:64, dificilmente sobra lugar para
qualquer dúvida sincera a respeito. Não é verdade que “um como um
João (William Hendriksen) 581
Filho de Homem” em Daniel represente o povo hebreu, e que a
transferência do título de um sentido coletivo a uma pessoa fez-se
através da literatura pós-canônica (p. ex., o livro de Enoque). Um como
um Filho de Homem aparece nas nuvens do céu, mas os santos
encontram-se na terra. (Veja-se a argumentação detalhada em G. C.
Aalders e em Young; os títulos na nota 270). Também no livro de
Apocalipse, que utiliza a mesma expressão (“semelhante ao Filho do
Homem”), a referência é especificamente a uma pessoa, ou seja, o Cristo
exaltado. Com frequência se insiste muito no fato de que lemos
“semelhante a”, como se isto significasse que o indivíduo designado não
é realmente o Filho do Homem mas uma figura vaga, simbólica, que o
representa. Mas esta inferência é incorreta. A figura, tal como aparece na
visão, assemelha-se ao homem pela simples razão de que o designa e
descreve. A descrição em Daniel converte-se no título no Novo
Testamento, mas em ambos se indica a mesma pessoa.
Jesus provavelmente utilizou esta autodesignação a fim de indicar
sua própria natureza celestial e transcendente. É Aquele que vem do alto,
Aquele a quem foi encarregado o juízo final, Aquele que virá nas nuvens
com grande glória. Não é, em consequência, de modo algum o Messias
político, terrestre e nacionalista das expectativas judias. Não é só rei de
Israel mas rei dos reis. Tem conexão com toda a raça humana, visto que
é o Filho do Homem. No entanto, é totalmente único entre os homens.
Não é um filho de homem, mas o Filho do Homem. Como homem sofre
e transita pela senda da humilhação. É o varão de dores. Mas esta
mesma vereda de sofrimento conduz à coroa, à glória. Além disso, esta
glória se revela não só escatologicamente, quando vier nas nuvens, mas
também abrange, por assim dizer, toda Sua vida na terra e Seu próprio
ato redentor. É sempre o glorioso Filho do Homem!
Concretamente, tal como indicam as passagens citadas antes, no
Evangelho de João o Filho do Homem é Aquele que desceu dos céus (Jo
3:13), fala a linguagem de seu Pai celestial (Jo 8:28), é o vínculo entre o
céu e a terra (Jo 1:51), cumpre uma missão de inspiração celestial
João (William Hendriksen) 582
(sofrendo e morrendo pelo Seu povo, Jo 3:14), tem autoridade dos céus
para exercer como juiz tanto no presente como no futuro (Jo 5:27), é o
pão do céu, que o homem deve comer (Jo 6:27, 53), é, em consequência,
o objeto da fé (Jo 9:35), e manifesta a glória celestial tanto em Seu
sofrimento e Sua morte, como também em Sua recompensa pelos
mesmos que ela significa (Jo 3:13; 12:23, 34; 13:31).
35, 36. Respondeu-lhes Jesus: Ainda por um pouco a luz está
convosco. Andai enquanto tendes a luz, para que as trevas não vos
apanhem; e quem anda nas trevas não sabe para onde vai. Enquanto
tendes a luz, crede na luz, para que vos torneis filhos da luz.
Quando o povo, por meio de sua observação mais ou menos
depreciativa — “Quem é este Filho do Homem (que vai ser levantado,
apesar de que a lei diz que o Cristo permanecerá para sempre)?” —
indicou claramente que não recebia Suas palavras na atitude mental
apropriada e reverente, Jesus, segundo se refere nos versículos 35 e 36,
lembrou-lhes sua grave responsabilidade. Por isso, embora a passagem
que estudamos talvez não seja uma resposta direta à pergunta que tinham
formulado (tampouco é chamada resposta), sim é uma réplica ao espírito
com que se tinha formulado. Jesus disse,: “Ainda por um pouco a luz
está convosco”. Veja-se sobre Jo 7:33 (cf. Jo 8:21). Era apenas assunto
de horas, ou quando muito de poucos dias (provavelmente de terça-feira
pela tarde à quinta-feira de noite). Quanto a Cristo como luz veja-se
sobre Jo 1:4, 5, 9; 3:19, 20, 21; 8:12; 9:5; 11:9, 10. Jesus prossegue,
“Andai enquanto tendes a luz, para que as trevas não vos apanhem”. Esta
expressão arroja luz sobre o significado de Jo 1:9. Veja-se nossas
observações com relação a essa passagem. Os judeus, sim, têm a luz
realmente!
Por certo que o homem natural, embora lhe seja pregado o
evangelho, não tem uma percepção íntima, experimental e espiritual nos
mistérios de Deus e da redenção. Este conhecimento está totalmente
reservado aos filhos de Deus (1Co. 2:14). No entanto, qualquer um a
quem se proclame o evangelho recebe uma certa iluminação, no sentido
João (William Hendriksen) 583
de que chega a conhecer a vontade de Deus para sua vida (Lc. 12:47).
Muito lhe é dado (Lc. 12:48; cf. Rm. 3:2). Inclusive pode profetizar em
nome de Jesus (Mt. 7:22). Conhece o caminho da justiça, e nesse sentido
possui o conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo (2Pe. 2:20,
21). Pense-se em Balaão, o rei Saul, Judas, Demas, e outros. Mas apesar
de tudo isso, são muitíssimas as pessoas que ouvem o evangelho e que
não andam na luz, ou seja, não mostram com sua conduta diária que
aceitaram e se apropriaram da verdade proclamada por Cristo, a luz.
Os que não andam enquanto têm a luz, são surpreendidos (o verbo
se explica em detalhe com relação a Jo 1:5) pelo monstro, as trevas.
“Quem anda nas trevas não sabe para onde vai”. Talvez vive no meio do
paganismo. Está totalmente confundido. Ou talvez vive numa cidade
conhecida por suas muitas igrejas. Imagina ser homem de cultura
superior, fala sempre de Platão e Aristóteles, e olha com superioridade e
olhos de compaixão aos que, com a ajuda de Deus, procuram estudar
escrupulosamente a Escritura. O veredito divino é que, apesar de todo
seu conhecimento dos filósofos (que não é mau em si mesmo) não sabe
para onde vai. Está totalmente nas trevas, sem guia, sem estrela, sem
bússola. O texto tem muitas aplicações atuais. Cf. 1Jo 2:11.
A admoestação final é muito comovedora e bela: “Enquanto tendes
a luz (Cristo em meio de vós, como a fonte de verdade e salvação), crede
— exercitai a fé salvadora, pela graça soberana de Deus; veja-se em Jo
1:8; 3:16; 8:30, 31a — na luz, para que vos torneis filhos de luz,” ou seja,
luzes (semitismo; cf. Mt. 5:14), com a luz de Cristo não só em vossa
volta, mas também dentro de vosso coração e vossa mente (cf. Ef. 5:8;
1Ts. 5:5).

Síntese de Jo 12:20–36a
Veja-se o esboço ao princípio do capítulo 11. O Filho de Deus é
buscado pelos gregos.
Neste relato se discernem seis partes ou movimentos:
João (William Hendriksen) 584
I. O pedido dos gregos.
Entre os prosélitos da porta que costumavam assistir à festa de
Páscoa havia alguns gregos. Ao não encontrar satisfação espiritual em
nenhuma outra parte, aproximam-se a Filipe com a petição, “Senhor,
queremos ver a Jesus”. Filipe, provavelmente perguntando-se como
reagiria Jesus e como reagiria o público se fosse concedida esta
audiência, consulta com seu compatriota André e juntos informam a
Jesus. Parece provável que o evento relatado neste parágrafo sucedeu na
terça-feira da Semana de Paixão. Veja-se 12:36b.

II. A Reação de Jesus.


A. O princípio que estabelece:
1. A fim de que haja fruto espiritual, é absolutamente necessária
Sua morte. Isto se esclarece por meio de uma ilustração tomada da
natureza (o grão de trigo deve morrer antes de poder dar fruto).
2. Os que participam dos benefícios de Sua morte devem estar
dispostos, se fosse necessário, a morrer por Sua causa.

B. A oração que oferece:


“Agora, está angustiada a minha alma, e que direi eu? Pai, salva-me
desta hora? Mas precisamente com este propósito vim para esta hora.
Pai, glorifica o teu nome”.

III. A resposta do Pai à oração de Cristo.


“Glorifiquei-o, e o glorificarei outra vez”.

IV. Como se interpretou esta resposta.


1. Pela maioria da multidão presente: “A multidão dizia que tinha
sido um trovão”.
2. Por alguns: “Outros diziam: um anjo lhe falou”.
João (William Hendriksen) 585
3. Por Jesus: Esta resposta sela definitivamente a condenação do
mundo. O mundo, ao me condenar, condena-se a si mesmo. Seu príncipe
(Satanás) será expulso, perderá o domínio sobre as nações. A vinda dos
gregos é a promessa de uma rica colheita dentre os gentios: “E eu,
quando for levantado da terra, a todos atrairei a mim mesmo”.

V. Como reagiu a multidão à interpretação de Cristo.


Não estavam dispostos a aceitar sua interpretação. Consideram-na
como em conflito com o ensino da lei: “Replicou-lhe, pois, a multidão:
Nós temos ouvido da lei que o Cristo permanece para sempre, e como
dizes tu ser necessário que o Filho do Homem seja levantado? Quem é
esse Filho do Homem?”

VI. A admoestação que Jesus pronuncia.


“Enquanto tendes a luz, crede na luz, para que vos torneis filhos da
luz”.

JO 12:36B–43

12:36b. Jesus disse estas coisas e, retirando-se, ocultou-se deles.


“Estas coisas” abrange todo o ministério público entre os judeus.
Uma vez terminada Sua obra entre eles, retirou-se. Pelos Sinóticos
deduzem que na terça-feira da Semana de Paixão foi um dia muito
ocupado para Ele. Ensinou no pátio do templo. Na noite desse dia, no
entanto, já Se retirou. Agora está com Seus discípulos, no Monte das
Oliveiras (caminho a Betânia), ensinando-lhes a respeito da próxima
destruição de Jerusalém e do fim do mundo. Por isso parece provável
que Sua separação final da multidão judia, Seu afastamento da nação de
Israel, ocorreu quando saiu da templo na terça-feira pela tarde. 272

272
Veja-se nosso Bible Survey, pp. 167–181.
João (William Hendriksen) 586
Recalcamos que esta separação foi a definitiva. Retirou-se e se
ocultou (_κρύβη aoristo indicativo passivo de κρύπτω; literalmente, foi
oculto, mas o verbo tem aqui o significado reflexivo) deles. O versículo
37 também mostra claramente que isto foi realmente o final; quer dizer,
o final de seu ministério público. O povo já não voltará a aparecer até
que Ele seja conduzido diante de Pilatos, quem O sentenciará à cruz.
Durante o juízo, no entanto, nunca Se dirige ao público. Com Jo 12:36b
conclui totalmente Seu ministério público. O que temos nos versículos
44–50 não se disse depois, mas é uma síntese de todo o Seu ensino
público.
37. E, embora tivesse feito tantos sinais na sua presença, não creram
nele.
Em geral (Jo 12:11 é uma exceção) a resposta do povo ao
ministério de Cristo tinha sido de incredulidade. Esta atitude era, no
entanto, indesculpável, porque Jesus tinha realizado sempre tantos sinais.
Veja-se sobre Jo 2:11 o significado do termo; quanto a referências a
estes sinais veja-se Jo 2:11; 2:23; 3:2; 4:48; 4:54; 6:2; 6:14; 6:26; 7:31;
9:16; 10:41; 11:47 e 12:18. Estas referências também mostram que no
quarto Evangelho se pressupõem muito mais sinais que os que se relatam
de fato. Cf. Jo 21:25. Depois de Jo 12:37 o termo sinal não volta a
apresentar-se até que chegamos ao resumo de Jo 20:30.
O tempo imperfeito “não creram” (quanto ao verbo veja-se sobre Jo
1:8; 3:16; 8:30, 31a; 12:11) indica que havia uma falta de vontade
constante e progressiva de aceitar a Jesus com uma fé genuína e viva. Os
sinais, que com tanta clareza dão testemunho do caráter elevado daquele
que os realiza e que deveriam ter sido ajuda para o desenvolvimento da
fé genuína, não foram tomados em seu verdadeiro significado. Embora
houvesse exceções de vez em quando, e embora todas estas exceções
tomadas juntas constituem um conjunto considerável (Jo 12:11), em
geral Israel foi endurecendo-se espiritualmente cada vez mais, fazendo-
se insensível às obras e às palavras de Cristo. Embora muitos estivessem
João (William Hendriksen) 587
convencidos de que era na realidade o Messias, nem sequer este
conhecimento resultou em fé genuína.
38. para se cumprir a palavra do profeta Isaías, que diz: Senhor,
quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do Senhor?
Não se podem considerar bem-sucedidas as tentativas de debilitar o
sentido de _να (quer seja por referência a um presumível original escrito
em aramaico ou ao uso não final de _να em outras passagens). Veja-se
seção IV da Introdução. A fim de que a ordem moral divina, tal como foi
decretado desde a eternidade e o descrevem os profetas, pudesse
cumprir-se, as multidões judias, por sua própria culpa, não chegaram a
aceitar a Cristo com fé genuína. Essa ordem divina exige que os que
voluntariamente se endurecem a si mesmos sejam endurecidos. Quando
o faraó endurece seu coração, Deus realiza Seu plano (Rm. 9:17) com
relação a ele, e endurece ainda mais o seu coração. Jeová tinha previsto
claramente todo este processo. Não só o previu, mas também de fato
tinha planejado endurecer o coração do faraó (Êx. 7:3); endurecê-lo em
resposta, naturalmente, ao próprio endurecimento do mesmo (Cf. Êx.
8:32 e 9:12). O homem nunca peca sem consequências. No entanto, a
responsabilidade e a culpa é totalmente sua. E bem como no caso do
faraó, assim ocorreu no caso de Israel.
Esta cláusula de propósito é, afinal de contas, muito consoladora.
Mostra que o repúdio de Israel para Cristo não foi a frustração do plano
de Deus. De fato — mas de novo de uma forma tal que a culpa foi
totalmente de Israel! — o endurecimento de Israel serviu como meio
para que se realizasse o plano divino. Conduziu à cruz de Cristo e com
isso à Sua coroa; a Sua humilhação e com isso à Sua exaltação. Só os
que (como Isaías) pela graça de Deus têm o privilégio de ver o fim desde
o princípio, a glória de Cristo na humilhação, podem aceitar isto sem
protesta.
A frase “para se cumprir a palavra do profeta Isaías”, indica que a
ideia tradicional da genuinidade de Is. 53 é correta, porque é evidente
que aqui (Jo 12:38, 39, 41) o escritor não fala a respeito do livro de
João (William Hendriksen) 588
Isaías mas sim a respeito do próprio profeta, quem viu a glória do
Senhor e escreveu a respeito da mesma em seu rolo de pergaminho.
A citação é de Is. 53:1, segundo a versão dos LXX. O rei de todos
os profetas descreve profeticamente a Cristo e a Seus fiéis embaixadores
como exclamando, “Senhor, quem creu em nosso anúncio (literalmente,
o que se ouviu de nós, de nossos lábios)? E sobre quem se manifestou
(ou seja, quem entendeu e assimilou seu significado), o braço do
Senhor” — o poder do Deus todo-poderoso (Cf. Is. 40:10; 52:10; 63:5)
manifestado nos sinais que Jesus realizou. Essa profecia se cumpriu
agora, porque quase ninguém chegou a aceitar a Cristo com fé genuína.
39–41. Por isso, não podiam crer, porque Isaías disse ainda: Cegou-
lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os
olhos, nem entendam com o coração, e se convertam, e sejam por mim
curados. Isto disse Isaías porque viu a glória dele e falou a seu respeito.
Esta citação (realmente “adaptação”) é de Is. 6:9, 10: “Então, disse
ele: Vai e dize a este povo: Ouvi, ouvi e não entendais; vede, vede, mas
não percebais. Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os
ouvidos e fecha-lhe os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos,
a ouvir com os ouvidos e a entender com o coração, e se converta, e seja
salvo”.
Cf. o uso que se faz desta passagem em Mt. 13:14, 15; Mc. 4:12;
Lc. 8:10; At. 28:26; veja-se também Rm. 11:8.
Ao adaptar esta passagem às circunstâncias presentes, o evangelista
muda os imperativos de Isaías em indicativos passados (cegou,
endureceu), porque a profecia alcançou agora seu cumprimento na era
messiânica. Na cláusula, “cegou-lhes os olhos” omite qualquer
referência aos ouvidos e ao ouvir, talvez porque nessa frase não se refere
à pregação de Jesus senão aos sinais que realizou. A cegueira dos olhos
tinha como propósito que o povo não pudesse ver as poderosas ações de
Cristo como sinais, as quais apontavam para Ele como o Filho de Deus,
o Cristo. Tal como nos dias de Isaías, assim também agora o Senhor
João (William Hendriksen) 589
tinha endurecido o coração do povo, com este propósito em mente, ou
seja, que não pudessem perceber o significado de sua pregação.
A razão pela qual o Senhor tinha cegado seus olhos e endurecido
seu coração era que não pudessem voltar-se a Ele e, como resultado, ser
curados.
Tentar eliminar em tudo isso a ideia de propósito é totalmente
inadequado. Qualquer tentativa de mudar o claro significado de um texto
para fazê-lo harmonizar com nossa própria teologia é repreensível.
Devemos deixar que a passagem fique como está sem alterá-la de modo
algum.
A terrível consequência de endurecer-nos diante das solenes
admoestações e advertências que nos são feitas é o que se põe de relevo
aqui. Mais uma vez, tal como se esclareceu na exposição do versículo 38
— Deus de nenhum modo tem a culpa! Ele é o Deus de amor. Não é um
monstro cruel que deliberadamente e com prazer íntimo prepara ao povo
para sua condenação eterna. Pelo contrário, adverte com interesse,
proclama o evangelho, e diz — como Jesus o fez repetidas vezes durante
Seu ministério terrestre — o que sucederá se o povo crê, e também o que
sucederá se não crer. Inclusive os apressa a andar na luz. Mas quando o
povo, por sua própria decisão, e depois de repetidas ameaças e
promessas, rejeita-O e despreza Suas mensagens, então — e só então —
Ele os endurece, a fim de que os que não queiram arrepender-se não
possam arrepender-se.
As pessoas superficiais, que estão sempre dispostas a acusar a Deus
de injustiça e crueldade, talvez não possam ver a justiça do trato de Deus
com os filhos dos homens. Mas porque (_τι é a melhor versão neste
caso) Isaías, na gloriosa visão relatada no mesmo capítulo do qual se
tomou a citação (capítulo 6, versículos 1–5 a visão; versículos 9 e 10 as
palavras citadas), viu a glória, a majestade transcendente (não restringida
à qualidade moral de santidade mas certamente incluindo-a) do Senhor
Jesus Cristo (em quem a glória de Jeová se reflete a si mesma) e estava
consciente do fato de que falava dEle, não criticou ou protestou, mas
João (William Hendriksen) 590
referiu fielmente o que tinha visto e ouvido. Sim, Isaías tinha visto não
só o sofrimento do Servo do Senhor (Is. 53:1–10a) mas também sua
glória (Is. 6:1–5; 9:6, 7; 52:13–15; 53:10b–12). Quanto a Cristo como
coração e centro da profecia do Antigo Testamento veja-se sobre Jo 1:5 e
5:39–47.
42, 43. Contudo, muitos dentre as próprias autoridades creram nele,
mas, por causa dos fariseus, não o confessavam, para não serem expulsos
da sinagoga; porque amaram mais a glória dos homens do que a glória de
Deus.
Embora totalmente contrários a aceitá-lo com uma fé pessoal,
verdadeira e viva, no entanto, inclusive os dirigentes (pense-se em
homens tais como Nicodemos, José de Arimateia; e cf. At. 6:7; “muitos
dos sacerdotes”) muitos creram nEle (utiliza-se o tempo aoristo; veja-se
a explicação sobre Jo 8:30, 31). No entanto, devido ao temor dos fariseus
(veja-se sobre Jo 3:1), que invejavam o seu “competidor” Jesus, e que
(embora ao que parece muito religiosos!) eram seus principais inimigos,
estes dirigentes não se atreveram a confessar o que criam. Dia após dia
(note-se o tempo imperfeito: não o confessavam) guardavam-se a
opinião para si mesmos. Como, pois, veio a sabê-lo João? Talvez
Nicodemos ou José de Arimateia lhe disseram depois. O temor devia-se
à decisão de que qualquer que confessasse que Jesus era o Cristo seria
expulso da sinagoga, (veja-se sobre Jo 9:22).
Estes homens eram como tantos judeus no tempo de Antíoco
Epifânio (e como muitos hoje), sempre dispostos a seguir a corrente para
estar com a maioria (cf. Dn. 11:32, 34). Como gostam de agradar aos
líderes! “Amavam mais a glória dos homens — p. ex., os carinhos dos
membros do Sinédrio — que a glória de Deus”. Quanto à explicação,
veja-se sobre Jo 5:44. Não estavam dispostos a levar a sério o ensino de
Jesus referido em Jo 12:25 (veja-se sobre essa passagem).
João (William Hendriksen) 591
JO 12:44–50

Como o que segue é um resumo de ensino público prévio (e até


certo ponto também de instrução particular posterior), e por isso as
distintas passagens se explicam em outro lugar, referiremos o leitor aos
lugares onde se pode encontrar a explicação:
12:44. E Jesus clamou, dizendo: Quem crê em mim crê, não em mim,
mas naquele que me enviou.
Como é muito frequente em afirmações desta classe (veja-se sobre
Jo 4:21; 12:30) o sentido é: «Quem crê em mim não crê exclusivamente
em mim, e sim crê também naquele que me enviou”. Veja-se
especialmente sobre Jo 13:20, embora também sobre Jo 7:16; 8:19, 42.
Conhecer Cristo significa conhecer o Pai. Amar a Cristo significa amar
o Pai. Receber a Cristo significa receber o Pai. Cristo e o Pai são um.
(Jo 10:30).
45. E quem me vê a mim vê aquele que me enviou.
Quando se contempla intensa e constantemente a Jesus (θεωρ_ν de
θεωρέω; veja-se nota 33), e observa como se reflete em Suas palavras e
obras a glória do Pai, então com o olho da fé contempla-se Aquele que O
enviou. Veja-se especialmente sobre Jo 14:9, e também sobre Jo 8:19;
10:38.
46. Eu vim como luz para o mundo, a fim de que todo aquele que crê
em mim não permaneça nas trevas.
As promessas de Deus são para os que creem (cf. Jo 3:16). Claro
que o evangelho se proclama a um círculo mais amplo, mas a iluminação
daqueles que não aceitam a Jesus pela fé é simplesmente externa. Em
seus corações permanecem as trevas. De fato, tornam-se mais intensas.
Veja-se também sobre Jo 1:4, 5; 1:9; 8:12; 9:5; e 12:35, 36.
47. Se alguém ouvir as minhas palavras e não as guardar, eu não o
julgo; 273 porque eu não vim para julgar o mundo, e sim para salvá-lo.

273
III A 2; veja-se IV da Introdução. À luz do seguinte contexto o verbo κρίνω é provavelmente
indicativo.
João (William Hendriksen) 592
O propósito principal da primeira vinda de Cristo foi não trazer
condenação, e sim salvação. Veja-se sobre Jo 3:17 e sobre Jo 8:15, 16.
Com relação ao cumprimento dos frases de Cristo veja-se sobre Jo 8:51.
Quanto para ouvir mas não guardar cf. Mt. 7:24–26; Tg. 2:14–26.
48. Quem me rejeita e não recebe as minhas palavras tem quem o
julgue; a própria palavra que tenho proferido, essa o julgará no último
dia.
Com relação à palavra como juiz veja-se sobre Jo 5:24; 5:45–47;
8:31, 37, 51; y 14:23, 24. Cf. Mt. 7:21–27; Lc. 11:28. Quanto ao último
dia veja-se sobre Jo 5:24–30; 6:40, 46.
49. Porque eu não tenho falado por mim mesmo, mas o Pai, que me
enviou, esse me tem prescrito o que dizer e o que anunciar.
Em Jo 7:16 encontra-se exatamente o mesmo pensamento. Veja-se
também sobre Jo 3:11; 8:26, 28, 38; e 14:10. A fim de sublinhar a ideia
de que absolutamente todo o ensino do Filho se baseia na instrução do
Pai, a frase sinônima “o que dizer” se acrescenta a “o que anunciar”.
Provavelmente é melhor não distinguir entre o significado destes dois
verbos (dizer e anunciar) no contexto presente. Quanto ao significado do
termo mandamento (_ντολή) veja-se também sobre Jo 13:34.
50. E sei que o seu mandamento é a vida eterna. As coisas, pois, que
eu falo, como o Pai mo tem dito, assim falo.
O mandamento dado a Jesus foi que obtivesse, revelasse e
proclamasse a vida eterna. Em consequência, esse mandamento resulta
em vida eterna para Seu povo. Veja-se sobre Jo 3:16, 6:63. Cf. 1Jo 2:25.
Deus nos livre da ideia de que entre o Pai e o Filho há um amplo abismo
(o Juiz iracundo contra o Salvador amoroso). Pelo contrário, Jesus
comunica só o que o Pai lhe deu, e o comunica exatamente como lhe foi
dado.
João (William Hendriksen) 593
Síntese de Jo 12:36b–50
O Filho de Deus é rejeitado pelos judeus.
I. O rechaço de Jesus pelos judeus (Jo 12:36b–43).
A. Foi indesculpável.
1. Os judeus viram muitas assinale.
2. Eles, por decisão própria, buscam a própria glória, não a de
Deus.
B. Tinha sido predita.
1. Deus não foi surpreendido; Seu plano não foi perturbado pela
incredulidade dos judeus.
2. Ao contrário, a incredulidade dos judeus foi o cumprimento de
profecias concretas (Is. 53:1; 6:9, 10).
C. Foi o resultado do endurecimento divino.
1. Deus de fato cega os olhos e endurece o coração de certas
pessoas para que não possam mudar e converter-se.
2. Este endurecimento é, no entanto, castigo por seu próprio pecado.
Deus é amor. Seus convites, advertências e admoestações são sempre
sinceras e sérias. No entanto, quando o homem rejeita a Ele e Sua
palavra, produz-se um terrível castigo. Deus endurece o homem que se
endureceu a si mesmo.
II. A importância suprema da fé genuína e pessoal em Jesus como o
Cristo (Jo 12:44–50).
A. É impossível crer em Deus se a pessoa não crer em Jesus Cristo
e em Sua palavra, pela qual nos julgará no último dia.
B. A fé genuína em Jesus tira a pessoa das trevas.
C. A fé genuína em Jesus (Sua pessoa, Sua palavra) produz vida
eterna.
João (William Hendriksen) 594
ESBOÇO DO CAPÍTULO 13
Tema: Jesus, o Cristo, o Filho de Deus.

Durante o Seu ministério privado emite e ilustra Seu novo


mandamento e prediz a traição e a negação.

Jo 13:1–20. Ilustra Seu novo mandamento ao lavar os pés de Seus


discípulos, lhes explicando que lhes deu um exemplo a
seguir.

Jo 13:21–30. Surpreende os discípulos dizendo que um deles vai


traí-Lo. Judas se retira.

Jo 13:31–38. Emite Seu novo mandamento e prediz a negação de


Pedro.
João (William Hendriksen) 595
JOÃO 13
JO 13:1–20

13:1. Ora, antes da Festa da Páscoa, sabendo Jesus que era chegada
a sua hora de 274 passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que
estavam no mundo, amou-os até ao fim.
O fato de que agora já estava prestes a sair deste âmbito humano
(quanto ao significado de κόσμος veja-se nota 26; aqui em Jo 13:1
parece provável o significado 2), e que estava prestes a ir para casa, ou
seja, de voltar para o Pai (veja-se também sobre Jo 5:24; 8:23; 14:12,
28; 16:10, 28; e 17:5) não é algo que Jesus começa a compreender de
repente. Inclusive em Sua natureza humana (veja-se sobre Jo 5:6) tinha
sabido muito antes desta festa de Páscoa do ano 30 d.C. Foi com
conhecimento pleno deste fato e com grande segurança 275 que se
aproximou dos importantes acontecimentos da semana de Páscoa.
Quanto ao conhecimento prévio de Cristo veja-se também Jo 2:1; 7:6;
12:23; 13:11, 18; 18:4; 19:28.
Em consequência, aquele que sempre tinha amado os seus próprios
discípulos (próprios não só no sentido de Jo 1:11, mas no sentido pleno e
amplo de Jo 17:6, 9, 11, 20) considerou que este era o momento
apropriado para a manifestação de seu amor até o fim (ε_ς τέλος,
provavelmente como em 1Ts. 2:16). Em tudo o que segue — ou seja, no

274
Quanto a ἵνα veja-se IV da Introdução.
275
O versículo 1 tem seu comentário no versículo 3: para Jesus, sair deste mundo e ir para o Pai
significou que retornava àquele que lhe tinha dado todas as coisas nas mãos. Em consequência,
falamos do conhecimento de Cristo que lhe dava segurança. Podia ver não só a cruz mas também a
coroa. Esta íntima convicção deu a Cristo (em Sua natureza humana) esse repouso e estabilidade
mental que lhe fez possível, apesar do fato de que estava no umbral do Getsêmani, Gabatá e Gólgota,
operar de forma condescendente para com os discípulos num ato de amor e ternura infinitos. Cremos,
portanto, que Calvino tem toda a razão quando diz (comentando as palavras parecidas no versículo 3):
Hoc ideo additum fuisse interpretor, ut sciamus unde Christo tam composita animi quies, nempe quod
iam mortis victor animum ad triumphum, qui mox sequuturus erat, extulit (Juan Calvino in
Evangelium Ioannis Commentarii, Berlim, 1553, vol. III, p. 254).
João (William Hendriksen) 596
lavamento dos pés, o discurso de despedida, a oração sacerdotal, a
crucificação, etc. — está agindo este motivo de amor. Quanto ao
significado do termo a festa da Páscoa, veja-se sobre Jo 2:13; e 13:29).
Este é brevemente o significado de Jo 13:1, conforme nos parece, à
luz de seu próprio contexto. Nossa tradução do mencionado versículo
indica que tomamos a frase antes da Festa da Páscoa como um
modificador da forma verbal mais próxima, que neste caso é o gerúndio
sabendo. Isto pareceria ser o mais natural. Admitimos, no entanto, que
gramaticalmente é possível interpretar esta expressão com o verbo
principal amou. Se for interpretado no sentido de que no começo da
semana de Páscoa Jesus manifestou Seu amor na forma mais esplêndida
(por meio do lavamento dos pés), a explicação resultante não se aparta
muito da nossa. Sugestão: os leitores deste livro que não se interessam
pela discussão de problemas críticos farão bem em passar imediatamente
aos versículos 2, 3, 4.

A origem do problema
No entanto, entre os intérpretes que creem que a expressão antes da
Festa da Páscoa modifica a amou há aqueles que inserem no texto uma
ideia totalmente diferente. Sua interpretação é a seguinte:
“Agora, vinte e quatro horas antes da ceia pascal, Jesus, tendo
amado aos seus que estavam no mundo, mostrou-lhes seu amor na forma
mais esplêndida comendo com eles, e em conexão com isso lavou os
seus pés”.
Partindo desta hipótese, argui-se além disso, que, para João, a
comida do capítulo 13 não pode ter sido pascal. Outros, no entanto, são
da opinião de que João deseja que se considere como ceia pascal o que
Jesus e Seus discípulos comeram um dia antes do tempo normal. Em
qualquer caso, segundo estes intérpretes, a intenção de João foi
descrever o Senhor como o verdadeiro Cordeiro pascal que morreu
quando os cordeiros pascais eram sacrificados no pátio do templo. Morre
João (William Hendriksen) 597
enquanto os judeus ainda não comeram seu cordeiro pascal. Ou, segundo
outros (cf. soluções propostas (_4)), morre enquanto muitos judeus —
por exemplo, os saduceus — ainda não tinham comido a ceia pascal
(como se explicará).
Mais apoio para esta ideia, ou seja, que a comida de João 13:2
conforme a viu o escritor do quarto Evangelho, efetua-se num dia antes
da (ou uma) ceia pascal, encontram-no alguns intérpretes em Jo 13:29:
“… compra o que necessitamos para a festa”, frase a que fazem dizer,
“… compra o que necessitamos para a ceia pascal”. Argui-se que esta
passagem indica claramente que no momento da comida mencionada em
Jo 13:2, nem sequer se tinham comprado ainda os elementos da ceia
pascal. Também neste caso alguns modificariam a última frase de modo
que diga, “No momento da comida a que se refere Jo 13:2, nem sequer
se tinha comprado o alimento necessário para a ceia pascal tal como
muitos a observavam”.
Outra passagem que se considera como forte baluarte em apoio
desta teoria é Jo 18:28, o qual mostra, segundo estes intérpretes, que,
para João, na manhã da crucificação ninguém havia ainda comido o
cordeiro pascal. Com relação aos homens que conduziram a Jesus desde
Caifás até o pretório lemos, “Eles não entraram no pretório para não
contaminar-se, e assim poder comer a Páscoa”. E também aqui mais uma
vez alguns intérpretes (cf. soluções propostas (4)) diriam que Jo 18:28
mostra que, para João, muitos judeus na manhã da crucificação ainda
não tinham comido o cordeiro pascal. Mas, dentro do possível,
deixaremos Jo 18:28 fora de consideração na discussão presente. Veja-
se, no entanto, o comentário sobre esse versículo.

Colocação do problema
O problema que se expõe é o seguinte: Mateus, Marcos e Lucas
(Mt. 26:17; Mc. 14:12; Lc. 22:7) ensinam claramente que Jesus e Seus
discípulos comeram a ceia pascal no momento prescrito; e que Jesus
João (William Hendriksen) 598
morreu (o que poderíamos chamar) o dia seguinte (Mc. 15:1ss.). Mas, se
os intérpretes cuja opinião temos descrito têm razão, então João ensina
que Jesus morreu antes de os judeus terem comido o cordeiro pascal. Ou,
segundo alguns, Jesus morreu antes de muitos judeus o comerem.
Morreu Jesus depois da ceia pascal (como indicam os Sinóticos),
ou morreu antes da ceia pascal (tal como, segundo alguns, indica João)?
Este é o dilema.

As soluções propostas
Com relação a uma possível resposta ou solução expressaram-se as
seguintes opiniões:
(1) “Ainda não se propôs uma verdadeira solução que leve em
conta todos os dados da Escritura. O problema é muito difícil”. Com
frequência aqueles que expressam esta opinião evitam a propósito dizer
nada que possa criar a impressão de que creem que João e os Sinóticos
não podem harmonizar-se. Creem que, sim, há uma solução, mas que
ainda não se descobriu. Isto é sincero, e temos o maior respeito por
aqueles que dão esta resposta. Costumam ser eruditos e meticulosos, de
inclinação ortodoxa. Outros, no entanto, creem que não há solução, que
as fontes simplesmente nos deixam em trevas, e que tudo o que sabemos
é que Jesus morreu ao redor da festa da Páscoa.
(2) “Os Sinóticos e João se contradizem. Os Sinóticos têm razão.
João está errado”. Este é o enfoque geral da resposta que dá C. Dalman,
Jesus-Jeshua (Jesus-Jesua), Nova York, 1929; pp. 88, 106. Segundo ele,
a ceia de João 13 não é a ceia pascal. João apresenta a Jesus como
morrendo antes da Páscoa. Os Sinóticos são mais objetivos que o quarto
Evangelho com relação a este tema. Também preferem os Sinóticos em
lugar de João (embora com variantes individuais) F. C. Baur, D. F.
Strauss, W. Bauer y muchos otros.
(3) “Os Sinóticos e João se contradizem. João tem razão. Os
Sinóticos estão errados”. Assim opinam J. H. Barnard, M. Dibelius, E.
João (William Hendriksen) 599
Hosdyns, A. E. J. Rawlinson, H. Windish, etc. — M. Dods simplesmente
afirma que, segundo João, embora não em harmonia com os Sinóticos,
Jesus sofreu como Cordeiro pascal no dia da Páscoa.
(4) “O problema resolve-se se tivermos em mente que Jesus e Seus
discípulos comeram a Páscoa na quinta-feira de noite, quando a maior
parte dos judeus, incluindo os fariseus, comiam-na; e que os saduceus
celebravam a Páscoa na noite seguinte (sexta-feira). Em João 13:2 a ceia
é a Páscoa dos Sinóticos. Em Jo 18:28 a Páscoa é a dos saduceus. Em
consequência, quando os Sinóticos indicam que Jesus morreu depois da
ceia pascal têm razão, e quando o quarto Evangelho (em Jo 18:28) ensina
que morreu antes da ceia pascal, também tem razão”.
Distintos autores dão várias razões quanto a comer o jantar pascal
em dois dias. Alguns dizem que quando o décimo quinto de Nisã
coincidia com o sábado, os fariseus, temendo que se pudesse profanar o
sábado ao levar a cabo o elaborado ritual pascal, celebrassem-no um dia
antes; enquanto que os saduceus não eram tão escrupulosos. Outros
assinalam que às vezes havia diferenças de opinião com relação ao dia
de começo do mês; ou que era preciso sacrificar tantos cordeiros no pátio
do templo que não se podia matá-los todos numa só tarde.
De uma forma ou outra esta teoria é defendida por D. Chwolson en
Das Letzte Passamahl Jesu-Christi und der Tag sienes Todes nach den
in Uebereinstemmung gebrachten Berichten der Synoptiker und des
Evangeliums Johannis (A última Ceia pascal de Jesus Cristo e o dia de
Sua morte segundo a sincronização dos relatos dos Sinóticos e do
Evangelho de João) San Petersburg, 1892; S. BK, * pp. 812–854; J. H.
Bavinck, Geschiedenis der Godsopenbaring, Kampen, 1949, pp. 419,
420; C. Bouma, W. M. Christie, P.A.E. Sillevis-Smit, J. Th. Ubbink, etc.
À luz de sua origem tem direito de existir este problema aqui no
capítulo 13?

*
S. BK Strack and Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch.
João (William Hendriksen) 600
Qualquer tentativa de resolver um problema pressupõe que
realmente há um problema legítimo. Mas, limitando-nos ao capítulo 13,
será que existe? Não fica claro que o problema nasceu de duas
pressuposições: (a) que a ceia de Jo 13:2 não é a mesma que a ceia
pascal descrita nos Sinóticos (exceção: os que estão em favor da solução
proposta (4) consideram que é a mesma); e (b) que o termo festa em Jo
13:29 (“… compra o que necessitamos para a festa”) refere-se à ceia
pascal e ao cordeiro que se comia nessa ceia?
Se não fosse por estas duas pressuposições, não haveria problema
com o capítulo 13. Mas veja-se também sobre Jo 18:28; 19:14, 31, 42.
Estão justificadas estas pressuposições?
Quanto ao primeiro, já se demonstrou que descansa não só numa
construção do texto grego que não é de modo algum segura (a ideia de
que a expressão antes da festa da Páscoa modifica a amou em Jo 13:1)
mas em uma interpretação ainda mais incerta que se impõe a esta
construção incerta, como se o texto dissesse, “agora, vinte e quatro horas
antes da ceia pascal Jesus … mostrou seu amor comendo com seus
discípulos”, ou seja, a comida de Jo 13:2.
Quanto ao mais, podemos confiantemente deixar que o leitor decida
se João e os Sinóticos falam da mesma ceia ou não. Eis aqui as provas.
Comparem-se os dois relatos.

A comida segundo é A comida segundo é


descrita por Mateo, descrita por Juan
Marcos y Lucas:

“Chegada a hora, pôs-se


Jesus à mesa, e com ele
os apóstolos. E disse-lhes:
Tenho desejado ansiosamente
comer convosco esta Páscoa,
antes do meu sofrimento.
Suscitaram também entre
João (William Hendriksen) 601
si uma discussão sobre
qual deles parecia ser o Depois de lavar os
maior. Mas Jesus lhes disse: pés dos discípulos ...
… o maior entre vós seja Jesus disse: “Em verdade,
como o menor; e aquele em verdade vos digo que
que dirige seja como o que o servo não é maior do que
serve. Pois qual é maior: eu senhor, nem o enviado, maior
quem está à mesa ou quem do que aquele que o enviou.
serve? Porventura, não é Ora, se sabeis estas coisas,
quem está à mesa? Pois, bem-aventurados sois
no meio de vós, eu sou se as praticardes.” (Jn 13:16, 17).
como quem serve.”
(Lc. 22:14, 15, 24–27).—
A disputa a respeito da
grandeza (Lucas) é o
fundo natural do
lavamento dos pés (João).
“Quando estavam à mesa “Não falo a respeito de
e comiam, disse Jesus: todos vós, pois eu conheço
Em verdade vos digo aqueles que escolhi; é, antes,
que um dentre vós, o para que se cumpra a Escritura:
que come comigo, Aquele que come do meu pão
me trairá”. levantou contra mim seu calcanhar.
A isto segue um .… Em verdade, em verdade
relato detalhado da vos digo que um dentre vós me trairá”
reação (diante deste A isto segue um relato detalhado da
anúncio surpreendente) reação (diante deste anúncio surpreendente)
da parte dos discípulos da parte dos discípulos (Jn 13:18, 21–30).
(Mc. 14:17–21; Mt. 26:20-25). Os detalhes (tal como o apresentam os
Sinóticos e João) diferem, porém não
estão em conflito.

“Replicou-lhe Jesus (a
saber, a Pedro): Em verdade Respondeu Jesus: Darás
te digo que, nesta mesma a vida por mim? Em verdade,
noite, antes que o galo em verdade te digo que jamais
cante, tu me negarás três cantará o galo antes que me
João (William Hendriksen) 602
vezes” (Mt. 26:34: negues três vezes.” (Jo 13:38).
cf. Mr. 4:30; Lc. 22:34). A negação ocorreu durante
A negação ocorre no essa mesma noite. Assim devia ser,
curso dessa mesma noite porque havia de ocorrer antes
Assim devia ser, porque havia que o galo cantasse.
de ocorrer antes
que o galo cantasse”.

Devemos, realmente, supor que estes três incidentes idênticos — a


lição com relação à verdadeira grandeza, o surpreendente anúncio a
respeito do traidor e a predição da negação de Pedro, seguida pouco
depois pela própria negação — ocorreram com relação a duas comidas
diferentes em duas noites diferentes? Negou Pedro o Senhor duas noites
sucessivas? Não é acaso claro que os Sinóticos descrevem a mesma ceia,
e que João, tendo lido os relatos dos demais, acrescenta certos detalhes?
Uma vez esclarecido que foi a mesma ceia temos agora o direito de
ir aos Sinóticos para perguntar que classe de ceia foi. Por passagens
como Mt. 26:17; Mc. 14:12, 14; e Lc. 22:11, 14, 15 fica claro que foi a
ceia pascal.
Fica claro, por Lc. 22:7 que esta ceia ocorreu na hora indicada, quer
dizer, durante a noite que seguia à tarde na qual, segundo a lei de
Moisés, os cordeiros tinham sido sacrificados. Jesus foi crucificado no
dia seguinte (cf. Lc. 22:66–23:33). Que o dia da morte de Cristo foi
sexta-feira, o dia antes do sábado, afirma-se expressamente em Mc.
15:42 (cf. Lc. 23:54). Foi o Dia de Preparação (παρασκυή), que foi por
muito tempo o termo usual para sexta-feira no grego (como também o
indica meu calendário grego). Agora, João está em completa harmonia
com isso. Também relata que Jesus morreu na sexta-feira (Jo 19:14;
19:31; 19:42).
Pode-se chegar também a este resultado de outra perspectiva.
Segundo o quarto Evangelho Jesus ressuscitou o primeiro dia da semana;
ou seja, no domingo (Jo 20:1, 19). Começando a partir daí e seguindo em
retrocesso pelo Novo Testamento, a cronologia de João resulta clara. No
João (William Hendriksen) 603
dia antes deste domingo o corpo de Jesus descansava na tumba (Jo
19:31). Na sexta-feira foi crucificado (Jo 19:30, 31). Como Jo 18:28 —
note-se a expressão “era de amanhã” — começa claramente um novo dia
(ou seja, na sexta-feira), é evidente que os eventos relatados em Jo 18:1–
27 se referem ao dia anterior; ou seja, na quinta-feira. Mas Jo 18:1 —
“Tendo Jesus dito estas palavras, saiu” — indica que o discurso de
despedida e a oração sacerdotal pertencem ao mesma quinta-feira. E a
comparação entre Jo 13:38 — “Jamais cantará o galo antes que me
negues três vezes” — e Jo 18:25–27 — a própria negação de Pedro
mostra claramente que os eventos relatados no capítulo 13 do Evangelho
de João sucederam nessa quinta-feira de noite.
Estamos, pois, totalmente de acordo com S. BK., p. 841, ao crer que
há uma harmonia total entre João e os Sinóticos a respeito, ou seja, que a
ceia de Jo 13:2 é a ceia pascal dos Sinóticos, e que sucedeu na quinta-
feira de noite, a noite antes da morte de Cristo.
Isto conduz à discussão da segunda pressuposição mencionada no
comentário sobre Jo 13:1. Refere-se o termo festa em Jo 13:29 (“…
compra o que necessitamos para a festa”) à ceia pascal e ao cordeiro que
se comia nessa ceia?
Deve observar-se o seguinte:
O povo judeu estava plenamente consciente do fato de que a lei
tinha estipulado um dia específico para o sacrifício dos cordeiros.
Duas noites diferentes para comer o cordeiro teriam produzido a
confusão mais tremenda e desesperadora. Os saduceus, que regulavam os
assuntos do templo, certamente não o teriam permitido. Veja-se M.
Goguel, op. cit., p. 433.
Além disso, refere-se para algo o termo discutido em Jo 13:29 ao
jantar pascal? Já se mostrou — veja-se sobre Jo 2:13 — que o Antigo
Testamento chama à Páscoa uma festa de sete dias (Ez. 45:21). O Novo
Testamento evidencia o mesmo uso. Assim, Lc. 22:1 aplica o nome
Páscoa a toda a festa de sete dias dos pães Asmos.
João (William Hendriksen) 604
Agora, com relação ao termo festa em Jo 13:29, o que significa este
termo (quando se aplica à Páscoa) em outras passagens do quarto
Evangelho? O fato notável é que com toda probabilidade em todas as
passagens tem o significado de festividade de sete dias.
Foi “estando em Jerusalém na festa da Páscoa” que muitos creram
em seu nome ao observar os sinais que fazia (Jo 2:23). Sem dúvida que
Jesus não realizou estes sinais durante a comida da ceia pascal. A festa
neste caso é evidentemente toda a celebração dos sete dias.
Segundo Jo 4:45, “os galileus o receberam, tendo visto todas as
coisas que fez em Jerusalém, na festa; porque também eles tinham ido à
festa”. É evidente que tampouco aqui a festa pode-se referir a outra coisa
que não seja a festividade de sete dias.
Outra referência clara à festa de Páscoa (a identidade da festa em Jo
5:1 é tema de discussão, como se explicou no comentário sobre Jo 5:1) é
Jo 6:4: “Ora, a Páscoa, festa dos judeus, estava próxima”. Encontramos
exatamente a mesma expressão em Jo 7:2. Também aí aproxima-se a
festa, mas desta vez é a festa dos Tabernáculos. No entanto, Jo 7:37 —
“No último dia, o grande dia da festa” — mostra claramente que a
referência é feita a toda a festa de sete (ou oito) dias. Se isto é assim com
relação a Jo 7:2, por que não com relação a Jo 6:4, onde o mesmo
escritor utiliza uma expressão idêntica?
Outra referência mais à festa da Páscoa encontra-se em Jo 11:56 —
“Que vos parece? Não virá ele à festa?” Isto não pode querer dizer “… à
ceia”.
Em Jo 12:12 a expressão “grandes multidões que tinham vindo à
festa” refere-se, naturalmente, à festividade de sete dias. Os judeus não
iam de todas as partes da Palestina e das regiões fora da Palestina para
passar só uma noite (e para participar só de um jantar) em Jerusalém.
Igualmente, o jantar de Jo 13:2 que pertence à festa (Jo 13:1) indica
a ceia pascal que era parte da celebração de sete dias.
Agora, se em qualquer lugar que (fora de Jo 13:29) que João
emprega o termo “festa” com relação à Páscoa, sempre e sem exceção
João (William Hendriksen) 605
refere-se a toda a festividade de sete dias, por que não teria que utilizar
o termo no mesmo sentido de Jo 13:29? É, por conseguinte, totalmente
lógico que o termo festa na expressão “… compra o que necessitamos
para a festa” seja interpretado da mesma maneira que nas demais
passagens do Evangelho de João. Atribuir-lhe um significado diferente
seria injustificado.
Ficou evidente que a ceia do capítulo 13, que ocorreu na primeira
noite da festa da páscoa, era a ceia pascal regular, da qual Jesus
participou na hora normal, a noite da quinta-feira. Também ficou
evidente que não há nada no capítulo 13 que contradiga a ideia de que
foi crucificado na sexta-feira, 15 de Nisã. Veja-se além sobre Jo 18:28.
Em plena consciência do fato de que estava prestes a voltar ao Pai,
Jesus, quem tinha amado aos Seus o tempo todo, soube que tinha
chegado o momento adequado para lhes revelar Seu amor ao máximo.
2-4. Durante a ceia, 276 tendo já o diabo posto no coração de Judas
Iscariotes, filho de Simão, que traísse a Jesus, sabendo este que o Pai tudo
confiara às suas mãos, e que ele viera de Deus, e voltava para Deus,
levantou-se da ceia, tirou a vestimenta de cima e, tomando uma toalha,
cingiu-se com ela.277
É quinta-feira de noite. O sol se pôs. É hora da ceia. A tradução
“acabado de cear” de algumas versões deve ser rejeitada. Baseia-se num
texto de qualidade inferior (γενομένου en lugar de γινομένου), e
inclusive essa versão não significa necessariamente “acabada a ceia”. 278
O lavamento dos pés seria feito certamente no começo da ceia e não no
final.
A situação tal como se descreve aqui é a seguinte:

276
Ou “e na hora da ceia” (literalmente: chegando a ceia).
277
Ou “se cingiu a si mesmo ao redor” (literalmente).
278
Assim, por exemplo, em Mt. 27:1 πρωῒας γενομένης no significa tendo concluído a manhã, mas
tendo começado a manhã; e γενομένου σαββάτου em Mc. 6:2 é simplesmente no sábado. Já vimos
que em Jo. 10:22 a cláusula ἐγένετο τότε ἐγκαίνια significa, “Logo veio a festa da Dedicação”. Não
significa, “Então concluiu a festa da Dedicação”.
João (William Hendriksen) 606
Jesus e os discípulos chegaram de Betânia. Os pés, cobertos só
pelas sandálias, tinham estado em parte expostos ao pó e a areia.
Estavam sujos, ou pelo menos incômodos. Em tais circunstâncias, era
costume o lavamento dos pés. O anfitrião, embora não costumava prestar
ele mesmo este serviço (cf. Gn. 18:4; Lc. 7:44), assegurava-se que se
realizasse. Era, afinal de contas, uma tarefa servil, quer dizer, tarefa que
devia ser realizada por um servente. Quando João Batista quis expressar
seu sentimento de indignidade com relação a Cristo, não pôde pensar de
uma forma melhor de expressá-lo que dizer que se considerava indigno
de ajoelhar-se diante de Jesus para desatar Suas sandálias e tirá-las
(pensando em lavar os pés do Mestre). Veja-se sobre Jo 1:8; cf. também
1Sm. 25:41: “Então, ela (Abigail) se levantou, e se inclinou com o rosto
em terra, e disse: Eis que a tua serva é criada para lavar os pés aos
criados de meu senhor (Davi)”.
Mas aqui no cenáculo não havia servente. Em consequência, um
dos discípulos deveria ter prestado este serviço. Mas ninguém estava
disposto. Todos eles eram homens orgulhosos. Uns momentos antes
(provavelmente com relação à ordem em que se situariam ao redor da
mesa) tinham estado discutindo entre si a respeito da questão da
grandeza (Lc. 22:24). E esta não era a primeira vez que tinham
disputado em torno disso. A pergunta “Quem é o maior?” parece ter
ocupado suas mentes e corações repetidas vezes. Não tinha impregnado
neles o fato de que a grandeza se mede com a vara do serviço.
No cenáculo tudo estava preparado. Aí estava o lava-mãos e a jarra;
e estavam também os panos de linho. Havia água na jarra. Mas ninguém
se moveu. Todos esperavam que outro tomasse a iniciativa. E entre estes
discípulos havia um de um caráter tão vil que inclusive neste preciso
momento estava totalmente decidido a trair o Senhor — sim, totalmente
resolvido a entregá-lo por meio de uma traição em mãos de seus
inimigos, e de fazê-lo por trinta moedas de prata. Nenhum dos outros
discípulos o sabia nem suspeitava.
João (William Hendriksen) 607
Era o diabo quem tinha posto no coração de Judas Iscariotes, filho
de Simão, este vil propósito. Tendo descoberto desde há tempo que não
era bom negócio ser discípulo de Jesus, e sendo uma pessoa muito
avarenta, estava decidido a não ser excluído da sinagoga (veja-se sobre
Jo 9:22) mas, pelo contrário, a cultivar o favor das autoridades
indicando-lhes “onde estava Jesus” (Jo 11:57). Veja-se ademais sobre Jo
6:71 e 12:4–6.
Foi em meio de tais homens — homens que intimamente se sentiam
muito importantes, homens em cujo meio estava Judas o traidor — que
Jesus estava prestes a apresentar um exemplo de humildade e serviço.
Esta alusão a Judas, em consequência, faz com que a ação se destaque
em toda sua verdadeira grandeza. Sim, o Mestre lavou, inclusive, os pés
de Judas!
Outra circunstância maravilhosa que acrescenta glória à ação foi o
fato de que quando Jesus a realizou, fê-lo com plena consciência (ε_δώς,
provavelmente particípio modal, não causal, não simplesmente
concessivo) de que era o Filho unigênito de Deus; em consequência, o
herdeiro legítimo de todas as coisas. Sabia “que o Pai lhe tinha dado
todas as coisas nas mãos” — cf. Sl. 2:8 e veja-se II da Introdução e sobre
Jo 3:34, 35, — “e que tinha saído de Deus, e ia para Deus” (veja-se
acima sobre o versículo 1).
Jesus esperou o bastante. Os discípulos já tinham ocupado seu lugar
em torno da mesa em forma de U. A comida estava servida, e prestes a
começar. Mas nenhum se oferecia para prestar o serviço do servente. A
jarra, o lava-mãos e a toalha, colocados lá à vista de todos os estava
acusando. Estes utensílios constituíam uma silenciosa acusação contra
estes homens. Mas ninguém se moveu.
Foi então que Jesus começou a agir. Com calma e majestade (veja-
se acima sobre o versículo 1) levantou-se, e tirou suas vestes (_μάτια).
Note-se que o evangelista utiliza o plural “vestes” tanto aqui como no
versículo 12. Em Jo 19:2 e 5 (“manta de púrpura”) utiliza o singular. Em
Jo 19:23, 24 (a distribuição das vestes entre os soldados, com relação à
João (William Hendriksen) 608
crucificação), utiliza de novo o plural. Parece, pois, que João distingue
cuidadosamente. Em consequência, se a palavra vestimentas em Jo 13:2,
5 tem o mesmo significado que em Jo 19:23, 24, o que parece provável,
descreve-se aqui a Jesus como se fosse um escravo oriental, vestido só
de um cinto. Vem imediatamente à mente Fp. 2:7 “tomando forma de
servo”. Ele tirou tanto o manto exterior como a túnica (bem como o
cinturão, naturalmente).
Então Jesus tomou um pano grande de linho (λέντιον, do latim,
linteum), e o cingiu de forma que a extremidade desta toalha servisse
para secar os pés dos discípulos depois de haver lavado com as mãos.
Verdadeiramente, o Senhor da glória Se revestiu de humildade” (cf. 1Pe.
5:5).
5. Depois, deitou água na bacia e passou a lavar os pés aos discípulos
e a enxugar-lhos com a toalha com que estava cingido. 279
Descrevem-se um a um os detalhes da ação. A cena tinha deixado
uma impressão indelével na mente do evangelista João, que estava
presente. Em consequência, o relato é muito gráfico, e com razão, visto
que o propósito é que a mente do leitor possa ponderar esta manifestação
de maravilhosa condescendência. O coração deve deter-se uns momentos
aqui, até que se tenha aprendido a lição. Jesus derramou água da jarra na
bacia. Colocou esta no piso justo atrás de um dos homens cujos pés
saíam acima da liteira na qual estava reclinado. Com esta água o Senhor
procedeu então a lavar os pés deste discípulo. Logo os secou com a
extremidade da toalha com a qual se rodeava a cintura.
Utilizamos a propósito os termos “lava-mãos” e “lavar” a fim de
transmitir a semelhança que existe no original entre os correspondentes
νιπτήρ y νίπτω.
Não sabemos quais os pés que Jesus lavou em primeiro lugar. As
palavras “começou a lavar” provavelmente servem para preparar o leitor
com relação ao fato de que ia haver uma interrupção. (Como esta

279
Ou “com a que se tinha cingido ao redor” (literalmente).
João (William Hendriksen) 609
explicação concorda com o contexto, pareceria ser a mais provável. Mas
os comentaristas que expõem este ponto não estão todos de acordo). A
interrupção se relata nos versículos 6–11.
6. Aproximou-se, pois, de Simão Pedro, e este lhe disse: Senhor, tu
me lavas os pés a mim?
Não se registra mais que a reação de um discípulo. Provavelmente
outros se mantiveram em silêncio, perplexos, e (tomara que)
envergonhados (com a exceção naturalmente de Judas) pelo fato de que
Jesus fazia por eles o que eles deviam fazer por Ele e uns pelos outros.
No entanto, o caso de Pedro era diferente. O impetuoso e impulsivo
Pedro! Era o homem que não podia ficar calado. Pensou em voz alta.
“Senhor” (quanto ao termo veja-se sobre Jo 1:38, nota 44; também sobre
Jo 12:21), diz Pedro, “tu me lavas os pés a mim?” Pedro vê a
incongruência do que sucede. O Senhor da glória, por um lado, e os
sujos pés de Pedro, por outro; o que contraste! Para este discípulo a
simples ideia do Senhor lhe lavando os pés resulta intolerável. Segundo
o original, o contraste entre as palavras tu e mim apresenta-se colocadas
uma junto à outra. A fim de conservar o gosto do original deveríamos na
realidade traduzir a manifestação de Pedro como segue: “Senhor, tu
meus pés lavas?” Pedro estava mais que surpreso!
7. Respondeu Jesus e disse-lhe: O que eu faço, não o sabes tu, agora,
mas tu o saberás depois [RC].
Quanto a “respondeu … e disse-lhe”, veja-se IV da Introdução.
Pedro tinha objetado enfaticamente o que Jesus começava a fazer
precisamente agora. Um ato tal de humilhação para confortar fisicamente
a Pedro era muito. Não acertou de modo algum a certificar-se que o que
o Senhor procurava fazer neste momento formava parte de todos os
acontecimentos dessa noite memorável e das horas que se seguiriam.
Pedro simplesmente não sabia o que dizia; porque se objetar à
necessidade da humilhação parcial para alívio físico dele, não terá acaso
que rejeitar o ato de humilhação absoluta que tem como propósito sua
salvação completa (espiritual tanto como física)? Na realidade as duas
João (William Hendriksen) 610
vão juntas: quando Jesus lava os pés de Seus discípulos, também isto é
parte constitutiva e necessária de Seu sofrimento da concepção até o
sepultamento, com a que obtém a salvação para o Seu povo.
Por esta razão Jesus, quem deu não só uma parte mas também o
todo, diz a Pedro, “O que eu faço, não o sabes tu, agora, mas tu o
saberás depois”. Quanto à diferença em significado entre os dois verbos
utilizados aqui (ο_δα e γινώσκω) veja-se sobre Jo 1:10, 31; 3:11; e Jo
8:28. Quanto ao significado da expressão depois (literalmente, “depois
destas coisas”, μετ_ τα_τα) veja-se sobre Jo 5:1. Das muitas explicações
desta expressão em Jo 13:7 há duas que rejeitamos: a. «no Depois (o
mais além)», quer dizer, depois de que tenha entrado no céu; e b.
“quanto tenha lavado os pés de todos vós e tenha acrescentado umas
palavras de explicação”. Em harmonia com Jo 16:12–14 devemos
interpretar a expressão no sentido de «depois de minha morte,
ressurreição, ascensão; sobretudo, depois do derramamento do Espírito
Santo. Então te resultará claro o significado não só deste lavado dos pés
mas também de toda a Minha obra de humilhação».
8. Disse-lhe Pedro: Não me lavarás os pés jamais. Replicou-lhe Jesus:
Se eu não te lavar, não tens parte comigo [TB]. 280
Como já se explicou — veja-se no versículo 7 — Pedro vê a parte,
não o todo. Pensa só a respeito do que está sucedendo nesse momento, e
inclusive isso não o vê em seu verdadeiro contexto. Jesus, no entanto,
constantemente pensa em toda a obra de humilhação, da qual este lavado
dos pés é só parte. É necessário manter esta distinção em mente. Do
contrário, será impossível explicar o diálogo.
Pedro, consciente da incongruência da situação presente, mas
completamente inconsciente da incongruência de que um discípulo diga
a seu Senhor o que deve fazer e o que não deve fazer, exclama: “Nunca
me lavarás os pés”. Observe-se a vigorosa dupla negação ο_ μ_. Havia
Jesus estabelecido um contraste entre agora e depois? Pois, por longo

280
III A 2; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 611
que fora o tempo que pudesse transcorrer antes de que o depois chegasse,
nunca, jamais, nem em toda a eternidade (ο_ μ_ … ε_ς τ_ν α__ν)
permitiria Pedro que Jesus lavasse os pés de Seu discípulo. Devemos
provavelmente imaginar que Pedro, com os pés já lavados em parte, de
repente os retirou com um protesto decidido.
Jesus respondeu, “Se eu não te lavar, não tens parte comigo”. O
significado é simples, embora muito profundo: «Pedro, a não ser que por
meio de toda Minha obra de humilhação — da qual este lavamento dos
pés é só parte — te purifique de teus pecados, não participas comigo nos
frutos de Meus méritos redentores». Jesus, e só ele, é o Filho, o
verdadeiro Herdeiro. A Ele lhe foram prometidas todas as coisas.
Também ganhou com Sua obra de humilhação. Em princípio já as possui
todas (veja-se sobre Jo 13:1 e 3). Mas o que tem, compartilha-o com os
Seu, pensamento que se põe belamente de relevo em Rm. 8:17. Os
crentes são co-herdeiros com Cristo. Mas se Cristo não lava a Pedro,
este não compartilhará com Aquele.
9. Então, Pedro lhe pediu: Senhor, não somente os pés, mas também
as mãos e a cabeça.
Pedro não entendeu o significado das palavras de seu Senhor. Jesus
não quis enfatizar o físico, como se de uma maneira misteriosa a limpeza
física tornaria o indivíduo participante das bênçãos providas por Jesus e
como se a maior área lavada, maiores ou numerosas seriam as bênçãos.
Procedendo desta ideia errônea, Pedro diz abruptamente: “Senhor, não
somente os pés, mas também as mãos e a cabeça”.
Note-se como este discípulo vai de um extremo ao outro. Isso era
característico de Simão Pedro. Nos Evangelhos é pintado como um
homem que muitas vezes perde o equilíbrio. Agora o vemos caminhando
corajosamente sobre as águas (Mt. 14:28); pouco depois o ouvimos
gritando: “Senhor, salva-me!” (Mt. 14:30). Num momento faz a gloriosa
confissão: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt. 16:16); quase não
apagado o eco dessa maravilhosa declaração, e Pedro começa a
repreender o Senhor a quem confessou (Mt. 16:22). Pouco depois do
João (William Hendriksen) 612
lavamento dos pés — durante esta mesma noite descrita aqui em João 13
— Simão promete decididamente entregar sua vida por Jesus (Jo 13:37;
e cf. Mt. 26:33, 35). Poucas horas depois lhe ouvimos dizer vez após
vez, “Não sou seu discípulo” (Jo 18:17, 25); cf. Mt. 26:69–75. Depois da
vitoriosa ressurreição de Jesus, Simão Pedro e João correm à tumba,
sendo Pedro deixado atrás por João. Mas chegando ao sepulcro, Pedro
entra antes de João (Jo 20:4–6). E mais tarde, em Antioquia, Pedro é o
primeiro em pôr de lado a segregação racial e come com os gentios. No
entanto, pouco depois se retira completamente dos conversos do mundo
pagão.
Cremos que no caso de Pedro a graça gradualmente ganhou a
vitória, como é evidente por suas epístolas. Mas o que temos aqui em
João 13 é o Simão típico, o homem que nos lembra o filho do camponês
quem anda de uma maneira instável com seu balde de leite. Ao
caminhar, o leite salpica do balde, agora de um lado, logo do outro.
Assim era Simão.
A resposta de Pedro aqui em Jo 13:9 nos faz lembrar a resposta da
mulher samaritana registrada em Jo 4:15. Veja-se o comentário sobre
esse versículo.
10, 11. Declarou-lhe Jesus: Quem já se banhou não necessita de lavar
senão os pés; quanto ao mais, está todo limpo. Ora, vós estais limpos, mas
não todos. Pois ele sabia quem era o traidor. Foi por isso que disse: Nem
todos estais limpos.
Jesus, que continua usando palavras em seu sentido mais profundo
e amplo — veja-se sobre os versículos 7 e 8 acima — responde à
solicitude de Simão (que lhe sejam lavados não só os pés mas também as
mãos e a cabeça), dizendo: “Quem já se banhou — ou seja, aquele que
foi lavado pelo Meu sangue (justificado) — não necessita de lavar senão
os pés (baseando-se em provas internas, aqui todo o contexto, estas
palavras em itálico devem considerar-se como genuínas) — ou seja, ao
estar esta pessoa completamente limpa, (tendo sido perdoados todos seus
pecados) só necessita uma coisa, ou seja, a santificação, aqui em especial
João (William Hendriksen) 613
(embora não de forma exclusiva) refere-se a essa obra de Deus no
coração pela qual o crente alcança uma humildade constantemente
renovada e crescente, e dia após dia tem a vontade e o desejo de prestar
serviço a outros em gratidão por todos os benefícios recebidos.
É certo, naturalmente, que é básico para este grande dito do Senhor
um símbolo muito apropriado. Na esfera da vida diária do oriente a
pessoa que tivesse tomado um banho antes de ir a uma ceia não
precisava tornar a fazê-lo ao chegar ao lugar do banquete. A única coisa
que era necessário era lavar-se os pés. Mas como em todos os outros
casos (veja-se em nossas explicações dos capítulos 3, 4, e 6), também
aqui Jesus não fala do físico, e sim do espiritual. O fato de que no
capítulo 3 fala a respeito do nascimento espiritual, no capítulo 4 a
respeito da água espiritual, e no capítulo 6 a respeito do alimento
espiritual que ele como pan de vida subministra, aqui em Jo 13:10 fala a
respeito da limpeza espiritual. E isto continua também no versículo 11:
“Nem todos estais limpos”. O intérprete que explica o versículo 10 como
referindo-se à limpeza física deve ser consequente quando chega à
explicação do versículo 11. A lógica exige que então interprete os
versículos como segue: «Jesus lhe disse, aquele que se banhou
fisicamente não precisa lavar-se mais que os pés, porque tudo está limpo
fisicamente. E vós estais fisicamente limpos, mas nem todos. No rosto
de Judas vejo sujeira». Isto mostra quão absurdo pode ser uma
conclusão, embora seja extremamente lógica, se a premissa for falsa.
“Vós estais limpos”, Jesus acrescenta; quer dizer: “Sois partícipes
da redenção adquirida por Minha humilhação para vós”. A fim de indicar
à posteridade que Judas não O toma de surpresa mas que Ele controla
completamente a situação, e a fim de fazer o traidor único responsável
por suas ações, Jesus acrescenta esta significativa cláusula de exceção:
“mas não todos”. Judas não estava espiritualmente limpo. E Jesus
conhecia (_δει mais-que-perfeito de ο_δα, com sentido de imperfeito,
soube sempre) aquele que inclusive agora estava prestes a traí-lo. Porém
não mencionou a Judas. Nem sequer disse em que sentido este homem
João (William Hendriksen) 614
não era limpo. Os discípulos encontram-se diante de um quebra-cabeças.
E havia boa razão para isso. Veja-se sobre Jo 13:22.
12–15. Depois de lhes ter lavado os pés, tomou as vestes e, voltando à
mesa, perguntou-lhes: Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais o
Mestre e o Senhor e dizeis bem; porque eu o sou. Ora, se eu, sendo o
Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos
outros. 281 Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais
vós também.
Tendo sido satisfeita a objeção de Pedro, Jesus termina de lavar
seus pés, e também os pés dos outros até que se conclui o trabalho. Então
o Senhor voltou a vestir-se e a sentar-se no lugar que tinha na mesa.
A fim de entender o que segue, deve ter-se em mente que o
lavamento dos pés era (a) um elemento especial na humilhação de
Cristo; (b) um símbolo dessa humilhação (a água que tirava a sujeira
física era verdadeiro símbolo do sofrimento de Cristo durante toda Sua
vida na terra e especialmente na cruz, com o que não só expia a culpa de
Seu povo, mas também obtém para o mesmo a ação santificadora do
Espírito Santo) e (c) uma lição de humildade; em outras palavras, um
exemplo.
As ideias a. e b. estão intimamente relacionadas. Com relação a elas
Jesus já disse a Pedro que entenderia depois, não agora. No entanto,
Jesus tinha preparado sua mente — e a mente dos demais — dizendo a
ele: “Se eu não te lavar, não tens parte comigo”. Mas embora os
discípulos podiam, neste momento captar só um vislumbre do profundo
significado do que estava implicado no lavamento dos pés, a moral tem
significado imediato para eles. Como necessitavam a lição (c. acima)
que Jesus lhes quis ensinar por meio desta ação! Tenha-se em mente Lc.
22:24!
Assim, pois, Jesus disse a seus discípulos: “Compreendeis o que
vos fiz?” Captam o ensino positivo e prática que lhes acabo de
comunicar? — Observe-se que o Senhor não repreende estes homens.
281
I A; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 615
Não lhes diz: “Envergonhai-vos! Devíeis ter lavado os pés uns aos outros
em lugar de esperar a que Eu o fizesse”. Este recriminação vai
certamente implícito na exortação, mas as palavras de Jesus vão muito
além. Nunca fica satisfeito sendo somente negativo. É como se dissesse:
“O passado foi suficientemente mau; já não vamos falar mais dele;
quanto ao futuro, sigam meu exemplo”. A recriminação implícita, oculto
em palavras de exortação amorosa e positiva, com frequência produz
melhores resultados que a recriminação explícita. Nesta atmosfera
positiva Jesus prossegue:
“Vós me chamais o Mestre e o Senhor e dizeis bem; porque eu o
sou”.
Na realidade os discípulos tinham razão em dirigir-se 282 a Jesus
como Mestre (_διδάσκαλος, provavelmente deve considerar-se como
tradução do aramaico Rabi; como Jo 1:38 parece indicar), porque Seu
ensino “com autoridade e não como vos escribas” era o maior que se
tivesse ouvido na terra. Também tinham razão em dirigir-se a Ele como
Senhor (_ κύριος); e quanto mais profundo fosse o significado que
dessem a este conceito, tanta maior razão tinham. Era, realmente, o
Senhor de todas as coisas (veja-se sobre Jo 13:1, 3); além disso, era
igual, em essência e autoridade, a Deus Pai. Veja-se nota 44, quanto à
substituição gradual de Senhor em lugar de Rabi. E veja-se sobre Jo
12:21.

282
Certos comentaristas objetam a ideia de considerar os termos “Mestre” e “Senhor” como vocativos.
Segundo eles, Jesus não quis dizer, «Quando vos dirigirdes a mim, chamai-me ‘Mestre’ e ‘Senhor’».
O que quis dizer foi: «Quando falardes a respeito de mim com outros, tendes o costume de chamar-
me o Mestre e o Senhor». Estes comentaristas fundamentam esta ideia no fato de que o grego neste
caso utiliza o artigo definido com relação aos termos Mestre e Senhor. Este argumento é apresentado
com muito vigor por R. C. H. Lenski, op. cit., pp. 901, 902. Não compartilhamos esta opinião.
Inclusive no grego, além das influências aramaicas, não é incomum o uso do artigo com o vocativo.
Quando, além disso, encontra-se influência aramaica (veja-se IV da Introdução), absolutamente
surpreende o uso. Estudem-se também os seguintes no original Jo 20:28; Ap. 4:11; 6:10; 15:3; e
compare-se Mt. 11:26; Mc. 5:41; 9:25; Lc. 8:54; 12:32. Veja-se Gram. N.T., pp. 465, 466. O verbo
φωνέω (φωνεῖτε) em nenhum modo está em conflito com nossa interpretação. Cf. seu uso em Jo 1:49;
4:16; At. 16:28.
João (William Hendriksen) 616
Quando Jesus acrescenta “e dizeis bem; porque eu o sou”, faz uma
afirmação que está totalmente em harmonia com sua grande declaração
de Jo 10:30: “Eu e o Pai somos um”. Os que pretendem que Jesus nunca
Se apresentou a Si mesmo como o objeto digno e legítimo de adoração,
estão claramente em erro. Veja-se também sobre Jo 1:7, 8.
Agora vem a aplicação. argumenta-se de maior a menor: “Pois se
eu, seu Senhor e Mestre — os termos estão invertidos agora, porque é
sobretudo como Senhor que Jesus pode exigir o direito à obediência —
lavei vossos pés (e a própria forma da frase condicional indica que se
supõe corretamente que esta ação efetivamente teve lugar), vós também
deveis (tempo presente) lavar os pés uns aos outros”. Sem dúvida que, se
o Senhor da glória está disposto a cingir-se com uma toalha, tomar a
forma de servo, lavar e secar realmente os pés daqueles que estão muito
por baixo de Si mesmo, deveria ser fácil aos que são simples discípulos
prestar este serviço de amor entre si com espírito de genuína humildade.
Observe-se a posição enfática dos pronomes no original. Tratamos de
conservar algo do sabor do original por meio da letra itálica.
Institui Jesus aqui uma nova ordenança, a do lavamento dos pés?
Não, não manda os discípulos que façam o que (_)ele tem feito; deu-lhes
um exemplo a fim de que eles, por decisão própria, possam fazer como
(καθώς) Ele fez. Em consequência, acrescenta expressivamente: “porque
eu vos dei exemplo (_πόδειγμα só aqui em João, embora se encontre
também em Hb. 4:11; 8:5; 9:26; Tg. 5:10; e 2Pe. 2:6), para que como eu
vos fiz, vós também façais”. Jesus mostrou (cf. o verbo δείκνυμι) sua
humildade (_πό) na mesma presença deles (daí, _πόδειγμα).
Mas embora aqui não se tenha instituído nenhum sacramento que
deva imitar-se283 literalmente, isto não elimina o fato de que sob certas
283
Assim o entenderam, contudo, muitos sinceros crentes ao longo da história da igreja. O lavamento
dos pés se praticou na Quinta-feira Santa na igreja do tempo de Agostinho. Foi recomendado por
Bernardo de Clairvaux em um de seus sermões. Continuaram, além disso, a prática o papa de Roma e
imperadores (da Áustria, da Rússia) e reis (da Espanha, Portugal, Baviera). Durante um tempo o
praticaram a Igreja da Inglaterra e os morávios. Continuaram-no até hoje certos grupos batistas e
adventistas. Lutero e seus seguidores o condenaram totalmente como “abominável corrupção papal”.
João (William Hendriksen) 617
condições aqueles que queiram mostrar sua hospitalidade desta forma
estejam fazendo o que corresponde (cf. 1Tm. 5:10). Deveria, no entanto,
sublinhar-se que o que Jesus teve em mente não foi um rito externo mas
uma atitude interna, a da humildade e vontade de servir.
16. Em verdade, em verdade vos digo que o servo não é maior do que
seu senhor, nem o enviado,284 maior do que aquele que o enviou.
Quanto às palavras de solene introdução veja-se sobre Jo 1:51. Com
toda probabilidade Jesus acrescentou estas palavras para impedir que
alguém dissesse: «Está por baixo de minha dignidade lavar os pés de
outro crente». Se não esteve por baixo da dignidade do Senhor, sem
dúvida que não deveria considerar-se por baixo da dignidade do “servo”.
Isto é assim, inclusive, quando o servo é enviado ou divinamente
comissionado para desempenhar um cargo elevado e para levar a cabo
uma tarefa importante na igreja. Se a humildade é a atitude própria do
Senhor e Doador, quão generosamente não deveria o servidor e enviado
exercitar-se nesta graça e crescer nela. Veja-se também 15:20; Mt. 10:24,
Lc. 6:40, 22:27.
17. Ora, se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as
praticardes. 285

Veja-se P. Tschackert, “Foot washing” (Lavamento dos pés) em The New Sehaff-Herzog
Encyclopedia of Religious Knowledge, reedição, Grand Rapids, Mich., 1950, Vol. IV, pp. 339, 340.
284
Ou “um apóstolo” (o qual significa: alguém enviado ou comissionado).
285
Esta é uma frase condicional com uma dupla prótase. Há uma condição dentro de uma condição. A
prótase da condição mais geral (ou seja de toda a frase) é “Se sabeis estas coisas”. A apódose que
corresponde a este é: “bem-aventurados sois se as praticardes”. A prótase da condição menor é “se as
praticardes”. A apódose correspondente é: “bem-aventurados sois”. Em consequência, a cláusula
comum às duas apódose é “bem-aventurados sois”. O verbo desta cláusula é presente do indicativo.
Devido à dupla prótase (também se poderia dizer, devido às duas prótases), a frase pertence a dois
grupos (I A e III B 1); veja-se IV da Introdução. Este fato tem muito significado. Assim, enquanto o
conhecimento dos discípulos com relação à atitude e conduta apropriadas do um para com o outro
supõe-se que é real (quer dizer, oração condicional da primeira classe), a pergunta de se os discípulos
agem de acordo com este conhecimento deixa-se mais ou menos em suspense, não se concebe nem
como realidade nem como em conflito com a realidade, mas antes, como uma expectativa confiante
(daí, oração condicional da terceira classe). Toda a responsabilidade é dos discípulos. Ao não querer
ser mais concreto Jesus dá margem para o que afirma logo no versículo 18.
João (William Hendriksen) 618
Veja-se o que se disse a respeito deste versículo antes, na nota 281.
As palavras de Jesus são muito claras. A fé sem opera está morta. Veja-
se também Mt. 7:17, 24–27; 11:30; 1Co. 4:20; e Tg. 1:22–27; 2:14–26.
Não devemos passar por alto o fato de que neste caso não temos um
mandamento e sim uma declaração amorosa e terna. Chamou-se
promessa, mas é mais que isto. É a afirmação de um fato: a prática da
humildade comunica bem-aventurança. Quando Jesus diz, “Se sabeis
estas coisas”, etc., quer dizer, segundo o contexto, «Se sabeis a. Aquele
que é Senhor e Mestre está disposto a atender as necessidades daqueles
que são Seus súditos e discípulos, embora ao fazê-lo tenha que
condescender muito baixo; e se sabeis que b. além disso, os que
receberam este benefício deveriam estar dispostos a servir-se uns aos
outros em humildade de espírito; se sabeis estas coisas, bem-aventurados
sois se as praticardes».
O termo bem-aventurados (μακάριοι) não se refere necessariamente
àqueles a quem outros consideram felizes; nem tampouco principalmente
àqueles que se consideram a si mesmos felizes, mas sim àqueles que são
de fato objetos do favor de Deus, quer seja que os outros homens ou eles
mesmos os consideram assim ou não. Os bem-aventurados podem ser
pobres e, inclusive, podem estar tristes (cf. Mt. 5:1–12, As Bem-
aventuranças). A bem-aventurança da qual aqui se fala não é assunto
(pelo menos, não em primeiro lugar) de sentimento, mas de condição ou
estado espiritual íntimo. O cristão que pratica a humildade possui esta
felicidade quer seja que esteja sempre consciente disso ou não. Diante de
Deus, aos Seus olhos, é bem-aventurado. A palavra aramaica que Jesus
provavelmente utilizou tanto aqui em Jo 13:17 (veja-se também Jo
20:29) como nas Bem-aventuranças (também em outras várias passagens
do Novo Testamento) assemelha-se à palavra hebraica que se encontra
em muitas passagens dos salmos (Jo 1:1; 2:12; 31:1; 32:2; 33:12; 34:8;
40:4; 41:4; etc.). Significa extremamente bem-aventurado, grandemente
bem-aventurado. É verdade, por certo, que o sorriso de Deus que está
sobre a pessoa que constantemente faz estas coisas (observe-se o tempo
João (William Hendriksen) 619
presente contínuo), de forma que a humildade seja da mesma essência de
sua natureza, refletir-se-á mais cedo ou mais tarde em seu coração, de
forma que possuirá a paz de Deus que ultrapassa todo entendimento.
18. Não falo de todos vós; eu conheço aqueles que escolhi, mas
286
para que se cumpra a Escritura: Aquele que come o meu pão, levantou
contra mim o seu calcanhar [TB].
A fim de mostrar a conexão provável entre os versículos 17 e 18 e
de afirmar mais plenamente o pensamento deste dito condensado,
parafraseamos os versículos 17 e 18 como segue:
«Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as praticardes.
Porém, não estou falando de todos vós quando menciono esta
perspectiva de bem-aventurança. Conheço aqueles que escolhi para que
sejam Meus apóstolos. Há um que, embora escolhido, não é bem-
aventurado. Mas quanto ao fato de que também o escolhi, assim foi para
que se pudesse cumprir a Escritura: ‘Aquele que come do meu pão
levantou contra mim seu calcanhar’».
Na frase “mas para que se cumpra” pareceriam faltar as palavras
“isto sucedeu”. Cremos que há uma elipse na mesma. Certos
comentaristas não aceitam esta elipse e, em consequência, sua tradução e
conseguinte interpretação é completamente diferente. Veja-se a nota na
qual apresentamos as razões para não poder aceitar seu ponto de vista. 287

286
Quanto a ἵνα veja-se IV da Introdução.
287
Referimo-nos a intérpretes como Zahn e Lenski (veja-se a argumentação de este na p. 908 de sua
Interpretation of St. John’s Gospel). Estes autores não podem entender como uma referência a “ele”
(Judas) pode-se deduzir de τίνας. Respondemos: a. Este “ele” (em nossa paráfrase apresentada antes:
“Quanto ao fato de que também o escolhi”) está claramente implícito na frase: “não estou falando de
todos vós.” Além disso, esteja-se ou não disposto a admitir a elipse, completa-se involuntariamente a
declaração tal qual aparece. Algo tem que acrescentar-se. Porque não sendo assim, não há sequência
de pensamento: Jesus de repente passa do plural ao singular: “Eu conheço aqueles que … mas para
que se cumpra a Escritura: Aquele que”, etc.
Nossas objeções à teoria do Zahn e Lenski, os quais negando que haja elipse, consideram que
“para que se cumpra a Escritura” é uma espécie de parêntese, e aqueles que creem que mas deveria
relacionar-se com “aquele que come pão comigo”, são as seguintes:
1. A conjunção mas (ἀλλά) tem sua relação mais natural com as palavras que estão mais junto a
ela.
João (William Hendriksen) 620
“Não falo de todos vós”. Judas deve ter ponderado esta afirmação.
Deve ter tomado muito a peito a clara implicação. A declaração serve
para colocar a responsabilidade de seu ato totalmente nele. Também
serve para fortificar a fé dos outros discípulos. Quando, dentro de pouco,
têm a surpresa de sua vida com relação a Judas, começarão a notar de
que Jesus tinha sabido de sempre, e que o que estava sucedendo não
constituía uma frustração, e sim o cumprimento do plano divino.
“Eu conheço aqueles que (τίνας) escolhi” (ou: escolhi para mim, se
a voz média conservar seu sabor distintivo). Jesus os conhece agora.
Conhecia-os desde o começo (veja-se sobre Jo 1:42; 1:47; 2:24, 25).
Sabia que classe (provavelmente implicado em τίνας) de homens eram.
Assim era também com relação a Judas. No entanto, quando dentre
muitos discípulos (num sentido geral) Jesus escolheu os Doze (Lc. 6:13),
também escolheu a Judas (não para salvação e sim) para que fosse um
dos apóstolos. Totalmente consciente do que fazia incluiu em Sua
seleção o homem que ia traí-Lo. Explicando isso, prossegue: “Mas (isto
sucedeu) para que se cumpra a Escritura: Aquele que come o meu pão,
levantou contra mim o seu calcanhar”. Quanto a este uso de _να veja-se
não só a nota 282 mas também sobre Jo 12:38.

2. No quarto Evangelho encontra-se com frequência uma elipse com relação a mas:
a. Jo 1:8: “Não era ele a luz, mas … para que desse testemunho da luz”. Algo assim como “veio”
terá que introduzir-se entre mas e para que.
b. Jo 9:3: “Não é que pecou este, nem seus pais, mas … para que as obras de Deus se manifestem
nele”. Acrescente-se: “isto sucedeu”.
c. Jo 15:25: “Mas … para que se cumpra a palavra que está escrita em sua lei”. Acrescente-se “isto
é”. Muito parecido a Jo 15:25 é a passagem que estamos comentando (Jo 13:18); daí:
d. Jo 13:18: “mas … para que se cumpra a Escritura”. Acrescente-se “isto sucedeu”.
3. A tradução e interpretação que dão Zahn e Lenski não enfatiza a ideia de predestinação. É
exatamente esse pensamento que João deseja sublinhar aqui (e com muita frequência; veja-se IV da
Introdução). Neste sentido a passagem presente está totalmente em harmonia com Jo 12:38–40. Judas
deve cumprir a profecia de uma forma tal que faz dele, e a ele só, completamente responsável por sua
ação; deve levar a cabo o plano de Deus com relação ao Cristo e a si mesmo.
4. A tradução e interpretação que estamos criticando não consegue levar suficientemente em conta
o caráter conciso e abreviado do estilo coloquial. Veja-se sobre Jo 5:31.
João (William Hendriksen) 621
A passagem bíblica que estava prestes a alcançar seu cumprimento
final era Sl. 41:9, que se cita aqui de acordo com o hebraico. Sublinha o
caráter repreensível do pecado de trair ao benfeitor de alguém. Comer o
pão de outra pessoa (τρώγων, originalmente mastigar, mas aqui o mesmo
que _σθίων, como resulta claro pela versão LXX de Sl. 41:9, da
comparação de Mt. 24:38 e Lc. 17:27), e logo depois de repente dar-lhe
patadas (levantar o calcanhar contra ele, como o cavalo que sem aviso
ataca a seu dono, chutando-o violentamente) é o pecado que se descreve
e condena aqui.
Assim Davi tinha sido traído por Aitofel. Leia-se 2Sm. 15:12;
16:23. Na passagem citada (Sl. 41:9) o salmista refere-se a Aitofel ou a
uma pessoa semelhante a ele. Veja-se também Sl. 55:12–14. É
absolutamente certo que o oriental considera o ataque a uma pessoa da
parte de alguém que foi convidado a comer como algo quase
inimaginável. Mas — sobretudo à luz de Sl. 55:12–14 — uma ação
como a de Aitofel merece vigoroso repúdio e reação prescindindo de
qualquer etiqueta regional. E se é assim com relação a Aitofel, é-o
certamente com relação a Judas, quem conservou a aparência de amizade
até o último momento. Nenhum dos discípulos suspeitava de Judas. Era
hipócrita. O traidor merece desprezo.
19. Desde já vos digo, antes que aconteça, para que, quando
acontecer, creiais que EU SOU.
Aqui Jesus revela Seu coração. Mostra que Salvador bondoso é.
Desdobra sua preocupação afetuosa e pessoal pelo bem-estar espiritual
dos Seu, e o faz de uma forma maravilhosa. Sabe que a traição de Judas
tenderá a perturbar os discípulos e a minar sua fé. Poderiam inclusive
começar a pensar que seu Mestre se converteu na vítima do complô
desse colega tão ardiloso, Judas. Isto sucederá a não ser que o Senhor
possa convencê-los de que tudo o que ocorre, longe de tomar de
surpresa, estava incluído no plano eterno e detalhado de Deus. E a fim de
que quando (_ταν quando quer que, o momento exato não especifica)
suceda possam ser fortalecidos nesta convicção consoladora, menciona e
João (William Hendriksen) 622
descreve a ação adiantadamente. Não só isto, mas também inclusive lhes
diz explicitamente que esta é a razão de fazer a predição neste momento
e a partir deste momento (_π_ _ρτι, a predição torna-se mais concreta em
Jo 13:21, 26). Trata os Seus discípulos como uma mãe trata o seu filho,
explicando amorosamente por que segue certa linha de conduta.
Quando Judas, chegado o momento, trai o Mestre com um beijo, e
este parece ter sofrido uma derrota, quando Ele, o Messias, experimenta
as amargas agonias do Getsêmani, Gabatá, e Gólgota, os discípulos
devem seguir crendo (πιστεύητε) 288 . Veja-se II da Introdução, também
em Jo 20:30, 31. Devem seguir crendo que “Eu sou (aquele)”, quer dizer,
que Jesus é o que disse ser. Veja-se sobre Jo 8:24.
20. Em verdade, em verdade vos digo: quem recebe aquele que eu
enviar, a mim me recebe; e quem me recebe recebe aquele que me enviou.
Quando começa a cumprir-se a predição do versículo 18, Jesus
continua sendo o Messias, o Filho de Deus, revestido de autoridade para
enviar a Seus embaixadores. Em consequência, quando os discípulos
virem seu Senhor entregue em mãos de Seus inimigos, que não se
desesperem. Que não pensem «tudo terminou, não só para Ele, mas
também para nós, Seus seguidores». Pelo contrário, tudo segue como
era. Antes, os próprios fatos da humilhação confirmam sua autoridade e
a validez da comissão deles. Um embaixador de “Cristo traído,
condenado e crucificado”, continua sendo um verdadeiro embaixador; de
fato, é o único verdadeiro embaixador.

288
Na explicação partimos do suposto de que N. N. tem razão no texto. O aparato textual indica, no
entanto, que a variação πιστεύσητε também tem forte apoio. Veja-se também sobre Jo 14:29. O
cumprimento das predições deve indicar aos discípulos que Jesus é Aquele em quem estas predições
iam cumprir se.
João (William Hendriksen) 623
Segue-se, naturalmente, que “quem recebe aquele que eu enviar, 289
a mim me recebe; e quem me recebe recebe aquele que me enviou”.
Cristo e aquele que O enviou são um (Jo 10:30). É impossível aceitar um
e rejeitar o outro. Os dois são inseparáveis. E quando o plano de Deus se
leva a cabo, e Judas trai o Senhor, entregando-O nas mãos do inimigo, os
discípulos devem seguir conscientes do divino de sua chamada. Seguirão
sendo embaixadores de Cristo. E quando disserem a alguém «Rogamos-
te, em nome de Cristo, que te reconcilies com Deus”, o próprio Deus
através de sua pregação fará sua chamada ao pecado. Se alguém, seja ele
judeu ou grego, rejeita essa chamada, rejeitará a Cristo; e se alguém
rejeita a Cristo, rejeitará aquele que O enviou, Deus. A afirmação aplica-
se a todos os tempos e a todos os verdadeiros embaixadores de Cristo
(ou seja, a todo embaixador que verdadeiramente O represente e
proclame verdadeiramente Sua palavra). Em consequência, esta
afirmação é ainda mais geral em sua aplicação que a frase parecida em
Mt. 10:40.

289
Esta é basicamente uma frase condicional. É como se Jesus tivesse começado a dizer «Se eu enviar
a alguém (prótase), aquele que o recebe me recebe, e aquele que me recebe, recebe a aquele que me
enviou (apódose)». Isto seria III A 2, veja-se IV da Introdução. No entanto, em forma e significado, de
fato, a afirmação se desviou da frase condicional original: Jesus certamente não quer dizer que pode
enviar a alguém, nem tampouco que provavelmente enviará a alguém. A ênfase do indefinido não está
na atividade predita de enviar por parte do Senhor, mas no objeto desta atividade divina de
comissionar. O pensamento é que seja quem for que Jesus enviar, deve ser aceito; e isso pela simples
razão de que isto constituiria uma comissão divina. Em consequência, ἀν deve ser visto como uma
partícula que a propósito incrementa a qualidade indefinida do pronome τίνα, com o que se põe de
relevo o pensamento, “qualquer um que eu enviar, que seja recebido”. Veja-se também H. E. Dana e
J. R. Mantey, A Manual of the Greek New Testament, Nova York, 1950, pp. 259, 260.
João (William Hendriksen) 624
JO 13:21–30

21. Ditas estas coisas, angustiou-se Jesus em espírito e afirmou: Em


verdade, em verdade vos digo 290 que um dentre vós me trairá.
A ordem exata em que os eventos no cenáculo se seguiram uns aos
outros não foram revelados de uma forma tão clara e definida como para
que todos os intérpretes estejam de acordo. A nosso modo de ver, a
sequência que apresenta A. T. Robertson (A Harmony of the Gospels,
Nova York, 1922, pp. 190–196) é tão bom como qualquer outra das que
foram propostas e melhor que algumas. Agora, se isto é correto, a ordem
dos eventos foi o seguinte:
1. Jesus lava os pés dos discípulos e lhes explica que lhes deu um
exemplo a seguir (Jo 13:1–20).
2. Sobressalta os discípulos dizendo que um deles vai traí-lo. Judas
sai (Jo 13:21–30).
3. Proclama seu “novo mandamento” e prediz a negação de Pedro
(Jo 13:31–38).
4. Institui a Ceia do Senhor (Mt. 26:26–29; Mc. 14:22–25; Lc.
22:17–20; 1Co. 11:23–26). Este importante evento, que os Sinóticos e
Paulo têm descrito em detalhe, João não o repete.
5. Instrui meigamente os Seus discípulos e os encomenda ao
cuidado do Pai (Discurso de Despedida e Oração Sacerdotal, capítulos
14–17 do Evangelho de João).
Observe-se que, com a exceção do ponto 4, que João omite, esta é a
ordem em que relata os eventos quem esteve realmente ali. Mas acaso
Mateus não esteve também presente? Assim é, embora haja esta
diferença entre o relato de João e o dos Sinóticos (incluindo Mateus),
que em geral, os detalhes de tempo que João apresenta aqui (e com
frequência; veja-se sobre Jo 8:2, ponto (2)), são mais numerosos e mais
concretos que os deles. Enquanto os Sinóticos (sobretudo Lucas) não

290
A respeito de ὅτι veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 625
parecem ter intenção alguma de nos apresentar um relato cronológico
estrito, João produz a impressão de que nos dá um relato tal, como se
transluz nos seguintes detalhes temporais:
a. Jo 13:2 “Durante a ceia …” Segue o relato do lavamento dos pés
(veja-se Jo 13:1–20).
b. Jo 13:21 “Ditas estas coisas, angustiou-se Jesus em espírito e
afirmou …” Segue o anúncio com relação à traição de Judas (Jo 13:21–
30).
c. Jo 13:30 “Ele, tendo recebido o bocado, saiu logo. E era noite”.
d. Jo 13:31 “Quando ele (Judas) saiu, disse Jesus …” Segue o novo
mandamento e a predição com relação à negação de Pedro (Jo 13:31–
38).
Agora passamos a 2, o anúncio com relação ao traidor (e sua saída).
Ocorreu “enquanto comiam” (Mt. 26:21; Mc. 14:18). Isto provavelmente
o coloca no ponto f. na ordem da Ceia Pascal descrito no comentário
sobre Jo 2:13.
Jesus havia dito certas coisas que refletiam e incrementavam Seu
pesar. Estava comovido. Quanto ao significado deste verbo, veja-se sobre
Jo 11:33, 34; 14:1. Havia dito “vós estais limpos, mas não todos” (Jo
13:10); e “Aquele que come do meu pão levantou contra mim seu
calcanhar” (Jo 13:18). Ao dizer “vós estais limpos, mas não todos”, tinha
dado um indício de que o ímpio conspirador em que estava pensando era
um dos doze. Mas provavelmente eles não captaram este indício.
Jesus sabe que chegou já o momento de falar mais claramente a
respeito deste penoso tema. Em consequência, não nos surpreende ler
que “Ditas estas coisas (referindo-se, talvez, a tudo o que havia dito nos
versículos 6–20), angustiou-se Jesus em espírito”. O original tem para
espírito, πνεῦμα. Este é o elemento mais elevado no homem visto em sua
relação com Deus. É a mesma substância imaterial que na LXX e no
Novo Testamento se designa às vezes como a alma (ψυχή, Mc. 12:30;
At. 14:2; Fp. 1:27, a sede da vontade, os desejos e afetos); mas
contemplado de um ponto de vista muito diferente. Às vezes, no entanto,
João (William Hendriksen) 626
usam-se os termos indistintamente (cf. Lc. 1:46, 47; At. 7:59 com At.
15:26). 291 Jesus estava comovido pelo que acabava de dizer, e diante do
que ia dizer. “E afirmou”, isto é, de uma forma impressionante fez uma
declaração aberta. Poderia, inclusive, querer dizer: deu testemunho do
que já tinha visto com o olho profético de sua alma. Quanto ao verbo
testificar veja-se sobre Jo 1:51. Testificou, e disse, “Em verdade, em
verdade vos digo (veja-se Jo 1:51) que um dentre vós me trairá”.
Um de vós! Isto caiu como um raio. Foi um golpe devastador. O
quê! Quis de fato dizer o Senhor que um de entre eles ia entregá-Lo
(παραδώσει) às autoridades, para que lhe fizessem o que quisessem?
22. Então, os discípulos olharam uns para os outros, sem saber a
quem ele se referia.
A fim de ter todo o quadro deveria ler-se também os Sinóticos com
relação a este ponto (Mt. 26:21–25; Mc. 14:18–21; Lc. 22:21–23). Eles
nos dizem que quando Jesus disse, “um dentre vós me trairá”,
acrescentou, “um que come comigo” (Mc. 14:18; Lc. 22:21; cf. em Jo
13:18). Eles mostram que neste contexto Jesus caracterizou o ato do
traidor como: a. uma ação que não tomou de surpresa, mas sim tinha
sido plenamente determinada no conselho eterno de Deus; e b. uma ação
pela qual aquele que fazia era, no entanto, plenamente responsável (veja-
se Lc. 22:22; cf. Mt. 26:24: Mc. 14:21).
A vívida descrição da reação dos discípulos mostra que o escritor
do quarto Evangelho era um do grupo. Nunca esqueceu esse momento
dramático. Enquanto escrevia, era como se as aterradoras palavras de
Jesus com relação ao traidor ainda ressoassem no Cenáculo. Esta
expressão de esmagadora consternação, grave temor e dolorosa surpresa,

291
No quarto Evangelho o termo πνεῦμα tem os seguintes significados: a. vento (Jo 3:8a); b. o espírito
humano (Jo 4:23, 24b; 6:63a; 6:63b; 11:33; 13:21; 19:30); c. um ser incorpóreo (Jo 4:24); e d. o
Espírito Santo (Jo 1:32; 1:33a; 1:33b; 3:5, 6, 8b, 34; 6:63; 7:39a: 7:39b; 14:17, 26; 15:26; 16:13 e
20:22). No caso de algumas das passagens enumeradas as palavras que se utilizam com relação ao
nome mudam ligeiramente o significado (p. ex., Jo 4:23, 24b; 6:63a; 6:63b). Em consequência, em
cada caso referimo-nos à exegese da passagem na qual se apresenta o termo. — No Evangelho de João
ψυχή é a pessoa ou o eu. Veja-se sobre Jo 10:11.
João (William Hendriksen) 627
no rosto dos companheiros de João tal como os tinha visto nessa noite,
refletiu-se mais uma vez na tela de sua memória. Voltou a ver tudo,
como se tivesse ocorrido (não meio século antes ou mais senão só) uns
minutos antes. Do mesmo modo que ele os tinha visto, eles o tinham
visto a ele. Escreve:
“Os discípulos — incluindo-se a si mesmo, naturalmente —
olharam (veja-se nota 33) uns aos outros” com surpreendida angústia.
Estavam desorientados, visto que não sabiam (não viam forma de saber;
note-se _πορούμενοι, sem caminho, sem recurso) de quem falava.
Estavam totalmente perplexos.
O desconcertante anúncio de Cristo provocou três respostas; e estas
respostas formularam-se à maneira de perguntas, como segue:
1. Uma pergunta de total desconfiança de si mesmo, “sou eu,
Senhor?” Esta foi a reação da parte de todos os discípulos exceto Judas
(Mt. 26:22).
2. Uma resposta de desprezível hipocrisia, “Sou eu, Mestre?” Esta
foi, provavelmente depois de considerável indecisão, a reação de Judas
(Mt. 26:25).
3. Uma resposta de infantil confiança, “Senhor, quem é?” E esta,
como veremos, foi a forma em que João, impulsionado por Pedro,
expressou-se a si mesmo.
Quando os discípulos perguntaram, “Sou eu, Senhor?” Jesus não
apaziguou imediatamente seu temor nem curou sua autodesconfiança.
Tampouco satisfez imediatamente sua curiosidade repentinamente
excitada. Deu uma resposta muito geral: “O que põe comigo a mão no
prato, esse é o que me trairá” (Mt. 26:23, TB). Mas sem dúvida que não
foi só Judas que colocou a mão no prato com Jesus. Em consequência,
esta resposta não identificou o traidor. O que conseguiu foi o seguinte:
a. Pôs de relevo o caráter vil da ação do traidor, e com isso serviu
de advertência. Pense-se nisso: colocar a mão com o Mestre no mesmo
prato, e logo traí-lo! Que Judas reflita no que está fazendo. Parece que o
Mestre dissesse: «Conheço tuas intenções, Judas». A revelação deste
João (William Hendriksen) 628
conhecimento específico teve como fim dar uma séria advertência. Sim,
no decreto incompreensível mas todo inclusivo de Deus há lugar até para
admoestações solenes dadas àqueles que em última instância estão
perdidos. Se for perguntado: “Como é possível?” Respondo: “Não sei,
mas, entretanto, o fato subsiste”. Se a pessoa não quiser aceitar a ideia da
admoestação incluso para réprobos, perderá algo do significado deste
relato. A índole grave da admoestação implícita incrementa a culpa de
Judas. Também proporciona uma visão melhor, mais verdadeira, da alma
de Jesus. Antes de negar a possibilidade de advertências sérias, inclusive
para os réprobos, dever-se-iam estudar Gn. 4:6, 7; Is. 5:1–7; Ez. 3:18–
21; 18:30–32; 33:11; Pv. 29:1; Lc. 13:6–9; 13:34, 35; At. 20:31. Poderia
ter-se acrescentado muitas passagens semelhantes.
b. Fixa a atenção na profundidade do sofrimento de Cristo. De uma
forma traidora e humilhante, o Senhor da glória é entregue aos inimigos.
É muito importante que vejamos isto. Nossa reflexão em torno do relato
da paixão de Cristo não deveria perder-se em todo tipo de detalhes com
relação a Judas, Pedro, Anás e Pilatos. É, afinal de contas, o relato do
sofrimento de Cristo. Centraliza-se nEle, e nunca devemos deixar de nos
perguntar como todas estas coisas afetaram a Cristo.
c. Mostrou, mais uma vez, que Jesus controlava totalmente a
situação. Não O tomou de surpresa. Sabia exatamente o que sucedia e o
que ia suceder, até os próprios detalhes. Veja-se sobre Jo 13:19.
d. Proporcionou aos discípulos a oportunidade de examinar-se a si
mesmos. Com frequência se esquece este ponto. É, no entanto, muito
importante. Ao dar a resposta que se relata em Mt. 26:23 (veja-se acima)
Jesus não identificou o traidor, e precisamente, ao não identificá-lo, o
Senhor estava fazendo um favor a todos. Sabia que o autoexame seria o
melhor exercício para homens como estes (lembrar Lc. 22:24). Que cada
discípulo se sinta embargado por um certo temor de si mesmo. Que
desconfie seriamente de si mesmo, que o embargue uma saudável
incerteza. Estes homens necessitam tempo para o autoexame. E por isso,
João (William Hendriksen) 629
ao menos por uns momentos, abre-se a porta ao trabalho da introspecção.
Acaso alguém recitou a oração do Salmo 139:23, 24?
“Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração,
prova-me e conhece os meus pensamentos;
vê se há em mim algum caminho mau
e guia-me pelo caminho eterno”.
23, 24. A um deles (Pedro, naturalmente) a incerteza resultou logo
intolerável. João nos diz o que sucedeu, porque ele mesmo viu-se
envolto no seguinte incidente: Ora, ali estava conchegado a Jesus um dos
seus discípulos, aquele a quem ele amava; a esse fez Simão Pedro sinal,
dizendo-lhe: Pergunta a quem ele se refere.
Os ocupantes do cenáculo estavam prostrados em divãs ou liteiras
em torno de uma mesa baixa. Ao entrar na habitação podiam ver-se estes
divãs distribuídos em forma de U investido, com os convidados
prostrados no extremo oposto da mesa e de ambos os lados.
Cada um, de cara para a mesa, jazia de forma enviesada, com os pés
estendidos para o piso.
Eles se sobre o lado esquerdo, apoiados sobre o braço esquerdo, a
fim de manter o braço direito e a mão livres para tomar a comida.
Naturalmente, a pessoa que estivesse à direita, estaria de costas para seu
vizinho, e a cabeça descansaria enfrente (ou sobre) o peito de seu
vizinho, quer dizer, ao seu lado: a parte (ou dobra) do vestido que cobre
o peito.
Assim pois, está reclinado no seio de Jesus — em consequência, à
sua direita — um de Seus discípulos, aquele a quem Jesus amava.
Quanto à explicação da possível distinção em significado entre dois
diferentes verbos que significam amar, veja-se sobre Jo 21:15–17.
Quem era este discípulo a quem Jesus amava? Veja-se Jo 13:23;
19:26; 20:2 (_φίλει); 21:7, 20. Fizeram-se muitas tentativas de identificá-
lo. 292 Pelas razões mencionadas em I da Introdução, aderimo-nos à ideia
292
Duas tentativas de data recente são as de Floyd V. Filson, “Who Was the Beloved Disciple?” JBL
68 (junho 1949), 83–88; e a de Eric L. Titus, “The Identity of the Beloved Disciple” JBL 69
João (William Hendriksen) 630
tradicional de que este discípulo amado era João, o escritor do quarto
Evangelho. É evidente que Jesus amava a todos os verdadeiros
discípulos (Jo 13:1; 14:21; 15:9; 17:9, 12). No entanto, o nome do
discípulo “a quem Jesus amava” tinha sido dado só a este discípulo, e a
ninguém mais. Não é possível acaso que outros tivessem dado este título
honorável a João quando observaram o caráter íntimo da comunhão entre
ele e o Mestre? Se isto é assim, João simplesmente se limita a utilizar o
nome que os outros lhe tinham dado. E não é possível que esta relação
única entre Jesus e João estivesse baseada no fato de que, devido à
distribuição soberana da parte de Deus de dons e talentos, João
entendesse a Jesus melhor que qualquer dos demais? Além disso,
quando o evangelista chama-se a si mesmo “o discípulo a quem Jesus
amava”, não se está jactando de seu próprio amor pelo Mestre; pelo
contrário, gloria-se no amor do Mestre por ele. Este gloriar-se não é
pecaminoso.
“A esse fez Simão Pedro sinal”. Tentou-se indicar os lugares que
ocuparam respectivamente Jesus, João, Pedro e Judas. 293 Mas, além do
fato de que João estava ao lado de (“junto a”, “perto de”, “frente a”)
Jesus, sabemos muito pouco. A informação que nos é dada neste relato é
insuficiente para chegar a resultados precisos, como fica evidente pelo
conflito nas opiniões dos intérpretes. Um expositor muito conhecido
coloca Pedro junto a — e à direita de — João (por que, então teria Pedro
que fazer sinais a João?); outros o veem deitado atrás de — ou seja, à
esquerda de — Jesus (não teria feito isto a conversação entre João e
Pedro mais difícil, com Jesus entre eles?); e vários, provavelmente
seguindo Edersheim, colocam Pedro diretamente do outro lado da mesa
em frente de João (o que é melhor, embora não seja a única
possibilidade). Os que adotam este último ponto de vista com frequência

(dezembro, 1950), 323–328. Filson o identifica com Lázaro. Titus pensa que se passou por alto uma
verdadeira possibilidade na pessoa de Matias.
293
Veja-se, por exemplo, a gravura em A. Edersheim, The Life and Times of Jesus, the Messiah, Nova
York, 1898, Vol. II, p. 494.
João (William Hendriksen) 631
acrescentam que Simão, muito envergonhado de si mesmo pela lição que
Jesus lhe tinha dado no lavamento dos pés, apressou-se a ocupar o lugar
mais discreto. Mas todas estas coisas são conjeturas.
Pedro fez gestos a João. Reconheceu que este sabia mais que ele.
Simão estava convencido de que João sabia a quem tinha Jesus em
mente quando disse, “um de vós me trairá”. Por que João guardava esta
informação para si? Assim, pois, tendo atraído sua atenção, Pedro lhe
pede, “pergunta a quem ele se refere”. 294
25. Então, aquele discípulo, reclinando-se sobre o peito de Jesus,
perguntou-lhe: Senhor, quem é?
Esta é a pergunta que indica confiança tranquila e infantil. Veja-se
acima, sobre Jo 13:23. João dirige-se a Jesus como o seu Senhor divino.
Veja-se sobre Jo 1:38 e Jo 12:21. Era muito fácil para João, que estava
tão perto do peito de Jesus, inclinar um pouco a cabeça para trás para
olhar diretamente aos olhos do Mestre. Com franqueza e simplicidade
admiráveis, totalmente convencido de que Jesus não o defraudaria, João
pergunta, “Senhor, quem é?”
26. Respondeu Jesus: É aquele a quem eu der o pedaço de pão
molhado. Tomou, pois, um pedaço de pão e, tendo-o molhado, deu-o a
Judas, filho de Simão Iscariotes.
Pareceria que inclusive antes de João ter feito a pergunta, Jesus
tinha cortado uma parte de pão asmo de um dos pães-doces achatados
que estavam na mesa. Sustentando-o na mão, sussurra a seu discípulo
amado que o traidor é aquele a quem vai dar este bocado depois de tê-lo
molhado. Assim, pois, depois de submergi-lo num recipiente cheio de
ervas amargas, vinagre e sal, ou em um que continha um molho feito de
purê de fruta (provavelmente tâmaras, figos e uvas, que representavam
os frutos do país), água e vinagre — ambas (ervas amargas e purê de
294
A tradução de Almeida Atualizada “a esse fez Simão Pedro sinal, dizendo-lhe: Pergunta a quem ele
se refere”, baseia-se num texto definitivamente menos aceitável. Pedro não pediu a João que
perguntasse a Jesus quem era. Pelo contrário, partiu da base de que João, que estava tão perto de Jesus
e em relações tão íntimos com ele, já o sabia. “Então que diga o que sabe”. Não é necessário
introduzir o pronome a mim ou a nós (“diga-me — ou diga-nos — quem é”).
João (William Hendriksen) 632
frutas) talvez por esse então já se misturaram num só recipiente, como se
costumava fazer anos depois —, tirou-o de novo e o deu a Judas, o filho
de Simão Iscariotes (veja-se sobre Jo 6:71).
Agora João sabia que Judas era o traidor. Talvez podemos presumir
que imediatamente transmitiu a informação a Pedro (por meio de
sinais?), mas não consta no relato.
Mas por que utilizou Jesus este método para responder a pergunta?
Por que não disse simplesmente ao ouvido “É Judas”? Foi para gravar
neste último a ideia da enormidade de seu crime, para que pudesse servir
como advertência adicional. Veja-se sobre Jo 13:22. Judas estava
disposto a trair Aquele de cuja mão tinha comido.295
27. E, após o bocado, imediatamente, entrou nele Satanás.
O demônio tinha posto uma sugestão perversa no coração de Judas
(veja-se sobre Jo 13:2). Judas tinha agido de acordo com a sugestão.
Agora o demônio — aqui chamado Satanás, ou seja, o adversário —
entra no coração de Judas. Esta é sua forma habitual de proceder com
aqueles que não resistem. Satanás toma plena posse da alma do traidor.
(Não nos foi revelado como o evangelista descobriu isso.) Judas
converteu-se agora numa pessoa totalmente endurecida. As advertências
de Jesus não tinham sido escutadas. Por isso agora já não se tornarão a
fazer. Jesus já não tem nada que ver com Judas.
Então, disse Jesus: O que pretendes fazer, faze-o depressa. (Ou: “O
que está fazendo, faze-o mais rápido”.) A palavra que se traduz por
depressa (τάχιον) encontra-se também em Jo 20:4: “O outro discípulo
correu mais depressa do que Pedro”.
Deste modo Jesus despediu concisamente a Judas, e ao mesmo
tempo revelou que Ele, como Senhor de todas as coisas, era o dono
completo da situação. Todos os detalhes de Sua Paixão, incluindo o

295
O dar a Judas o bocado não foi um ato de amizade, como se pretende às vezes recorrendo a Rute
2:14. À luz do contexto (Jo 13:18 e 26a) — e isto, afinal de contas, é importante! — o que Jesus faz
quando dá o bocado a Judas deve ver-se como a. resposta a pergunta de João, e b. advertência para
Judas.
João (William Hendriksen) 633
calendário dos eventos, estava em Suas mãos, não nas mãos do traidor.
No plano de Deus foi decidido que o Filho de Deus Se ofertaria a Si
mesmo pelo pecado com Sua morte na cruz, e que isto sucederia na
sexta-feira, 15 de Nisã. Esse não era o momento que tinha escolhido o
Sinédrio ou Judas. Em consequência, Judas deve agir depressa. E Judas,
sim, age mais depressa, provavelmente porque agora sabia (Mt. 26:25)
que tinha sido descoberto. Provavelmente tinha medo de que todo o
complô fracassasse se não agisse rapidamente.
28, 29. Nenhum, porém, dos que estavam à mesa percebeu a que fim
lhe dissera isto. Pois, como Judas era quem trazia a bolsa, pensaram
alguns que Jesus lhe dissera: Compra o que precisamos para a festa ou
lhe ordenara que desse alguma coisa aos pobres.
A esta altura três ou quatro pessoas das que estavam à mesa
conheciam a identidade do traidor: Jesus, que sempre o tinha sabido,
Judas (por certo), João e, provavelmente, Pedro. Não é necessário
certamente supor que todos tivessem ouvido a conversação entre Jesus e
João, referida em Jo 13:25, 26. Sabemos que a boca de Jesus estava
muito perto do ouvido de João, e vice-versa. Por que, então, estes dois
teriam que falar-se senão em voz baixa? No entanto, as palavras “O que
pretendes fazer, faze-o depressa”, todos as ouviram. É fácil entender que
para os outros discípulos (todos exceto Judas, João e provavelmente
Pedro) estas palavras eram uma enigma, mas por que teria que ser
ininteligíveis para João e Pedro? Por que diz o evangelista que nenhum
entendeu por que Jesus tinha dado essa ordem direta? Provavelmente é
preciso buscar a resposta nesta direção geral: quando alguém está muito
surpreso por uma notícia totalmente inesperada, toma tempo para a
mente ajustar-se à nova situação. Provavelmente nem João nem Pedro,
nem nenhum dos outros, nunca tinham pensado mal de Judas. Em
consequência, não puderam nesse instante “ligar os fatos”. Não puderam
imediatamente relacionar as palavras de despedida (Jo 13:27b) com a
ação simbólica de identificação (Jo 13:26b).
João (William Hendriksen) 634
Depois, quando, lembrando esta cena inesquecível, os discípulos
intercambiaram notas, o evangelista descobriu que nessa noite
memorável alguns deles, dando voltas na mente ao dito enigmático de
Jesus a Judas, “O que pretendes fazer, faze-o depressa”, tinham chegado
a conclusões quanto ao que poderiam significar estas palavras. Tinham
sido da opinião de que como Judas tinha a responsabilidade pelo
dinheiro (vexa--se sobre o Jo 12:6), recebera instrução para comprar
tudo o que fosse necessário para a festa dos sete dias (ver sobre Jo 13:1);
ou que o tesoureiro tinha recebido a instrução velada a fim de que 296
pudesse dar algo aos pobres. Isto, entre parêntese, indica que os
discípulos consideravam natural que Jesus promovesse a caridade e a
benevolência cristã. Diante da ideia de que esta era a noite da ceia pascal
tem-se exposto a objeção: «Como se poderia esperar que Judas
comprasse algo nessa noite?» Agora, a inferência que os discípulos
tiraram indica pelo menos que nem tudo em Jerusalém estava fechado
todas as noites. Em nossas grandes cidades algumas tendas de alimentos
estão abertas toda a noite. E se outras noites se podiam comprar coisas,
por que não durante a noite pascal?
É difícil ver por que em Jerusalém durante essa noite não se
poderiam obter absolutamente provisões em nenhum lugar. Deve ter-se
em mente que precisamente então havia muita atividade por toda a
cidade. Os peregrinos que se alojavam fora de Jerusalém retornavam a
seus lugares depois da ceia pascal. As grandes leva do templo se abriam
a meia-noite para começar os preparativos para a oferta da Chagigah
296
Depois de por que (“Mas nenhum à mesa entendeu por que Ele disse isso a eles” Jo 13:28, AV),
ἵνα, que expressa propósito (“a fim de que”) resulta natural. A ideia parece ser que alguns pensaram
que ao dizer, “O que fazes, faze-o depressa”, Jesus quis dizer «apressa-te a comprar provisões para as
festas», ou que havia dito estas palavras a fim de que fizesse chegar às pressas ajuda aos pobres.
Segundo certos intérpretes, pelo contrário, o significado é como segue: «Alguns pensavam que Jesus
havia dito com efeito ‘compra o que necessitamos para a festa’, ou que havia lhe dito expressamente a
Judas que (ἵνα) desse algo aos pobres”. Neste caso ἴνα seria subfinal. Mas a objeção a esta
interpretação é que o versículo 28 definidamente implica que a observação de Jesus tinham-na ouvido
todos claramente. Todos sabiam o que Jesus havia dito a Judas. Ninguém entendeu por que o havia
dito. Em consequência, damos a ἵνα sua plena força final neste caso.
João (William Hendriksen) 635
(sacrifício festivo). E os pobres naturalmente estavam visíveis perto do
templo e onde quer que a gente se reunisse em grupos. A obrigação de
provar o contrário a têm naturalmente aqueles que procuram dizer que
nessa noite não se podia comprar absolutamente nada, nem no recinto do
templo nem em nenhuma outra parte da cidade. Veja-se A. Edersheim,
op. cit., p. 508, 568; G. Dalman, op. cit., p. 95.
30. Judas aparece em todo momento como hipócrita. Não se pode
confiar nele. Quando, no final do Ministério Galileu, “muitos dos seus
discípulos o abandonaram e já não andavam com ele”, (Jo 6:66) Judas,
ao continuar com Jesus, fingiu ser verdadeiro discípulo (veja-se sobre Jo
6:70, 71). Quando Maria de Betânia ungiu a Jesus, Judas fingiu estar
preocupado pelos pobres (veja-se sobre Jo 12:4–6). Quando, durante esta
mesma noite da ceia pascal, o surpreendente anúncio do Mestre, “Um
dentre vós me trairá”, tinha produzido a rápida resposta de muitos, “por
certo, não serei eu, Senhor?”, Judas também tinha agregado um “Por
certo que não serei eu, Rabi?” Também isto era simples fingimento. E
agora, uns momentos depois, quando Jesus Se dirige a Judas para lhe
entregar um bocado, este toma com descaramento, como se tivesse
direito a aceitar comida da mão dAquele cuja destruição buscava. Se
houve alguma vez um homem com a consciência endurecida, esse foi
Judas!
Judas se alegrou muito, naturalmente (veja-se sobre Jo 13:27), de
seguir a petição de Jesus de fazer mais rápido o que ia fazer. Ele, tendo
recebido o bocado, saiu logo. E era noite. Saiu imediatamente para
conferir com as autoridades quanto ao lugar e o momento da detenção. ¡
Era agora ou nunca! O complô havia sido “descoberto”. Em
consequência, para que não fracassasse, os dirigentes deviam agir
imediatamente …! Era de noite quando Judas saiu dessa habitação, era
de noite fora; era de noite também no coração de Judas.
João (William Hendriksen) 636
JO 13:31–38

13:31. Quando ele saiu, disse Jesus: Agora, foi glorificado o Filho do
Homem, e Deus foi glorificado nele.
Com a saída de Judas a sorte estava lançada. Não é que houvesse
alguma vez havido incerteza com relação ao plano divino de que Jesus
morresse por Seu povo. O decreto eterno de Deus é absolutamente
imutável, cumpre-se com toda segurança. Mas agora, com a saída de
Judas, a realização deste plano na história chegou a outra etapa decisiva.
Quando Jesus se despediu de Judas com as palavras, “O que pretendes
fazer, faze-o depressa”, manifestou outra vez de forma decisiva Sua
vontade de entrar nas águas profundas e na noite tenebrosa da morte
eterna pelos Seus. O Senhor sabia que Judas tinha saído da habitação
com um propósito em mente, ou seja, revelar aos dirigentes o paradeiro
de Jesus e lhes mostrar como podiam capturá-lo. Em pleno
conhecimento deste fato, o Mestre acabava de dizer a este endurecido
pecador que passasse a fazer mais rápido o que estava resolvido a fazer.
Isto mostra que o Filho desejava obedecer a vontade do Pai, e que
desejava manifestar Seu glorioso amor pelos escolhidos por meio do
sofrimento e a morte por eles.
Por meio desta obediência e este amor Jesus, como o Filho do
Homem — veja-se sobre Jo 12:34 — foi glorificado. Foi glorificado
agora mesmo ao pronunciar estas palavras dirigidas ao traidor, e a glória
permanecia nEle. 297 Tinha visto que a tempestade se aproximava, mas
em vez de evitá-la, fez-lhe frente. Como a galinha que, ao estender as
asas para proteger os pintinhos (com o que faz com que a chuva caia a
torrentes sobre o lombo, enquanto seus pintinhos estão perfeitamente a
salvo), provoca expressões de admiração dos lábios daqueles que a
estiveram observando, assim também, e ainda mais, o Senhor, ao

297
ἐδοξάσθη, aoristo dramático, utilizado para ações que acabam de suceder e cujo efeito sente-se no
presente. Veja-se Gram. N. T., pp. 841–843.
João (William Hendriksen) 637
despedir a Judas, reflete glória para si mesmo; porque ao fazê-lo permite
que a tempestade, não de chuva mas de ira, caia sobre Ele, enquanto
protege os Seus. Esta era Sua glória. Veja-se sobre Jo 1:14.
Em consequência, precisamente agora, neste mesmo momento que
parece indicar derrota, desonra e desastre, o Filho do Homem é na
realidade glorificado.
E, devido à proximidade infinita que existe entre Aquele que envia
e o enviado (cf. Jo 10:30), Deus é glorificado nEle. Os dois são
inseparáveis. Ao pensar no sofrimento de Cristo, não sabemos que coisa
admirar mais: a entrega voluntária do Filho a uma morte tal por um povo
tal, ou a boa vontade do Pai ao entregar um Filho tal a uma morte tal por
um povo tal.
32. O que tinha acontecido agora é um objeto para o futuro: Se Deus
foi glorificado nele (note-se nele, não meramente por ele; como um pai é
honrado não somente por seu filho, mas também no caráter e no
comportamento), também Deus o glorificará nele mesmo.
Pai e Filho glorificam um ao outro, porque, embora sejam duas
pessoas, eles são um em essência. Por meio da paixão, ressurreição,
ascensão, e coroação, Deus glorificará o Filho em comunhão íntima
consigo mesmo (de maneira que a glória do Filho reflete glória ao Pai, e
vice-versa). E glorificá-lo-á imediatamente. 298 Imediatamente, por certo,
porque Getsêmani, Gabatá, e Gólgota está ali, à volta! Era noite (Jo
13:30). Dentro de poucas horas o Filho do Homem entraria no
Getsêmani!
33. Filhinhos, ainda por um pouco estou convosco; buscar-me-eis, e o
que eu disse aos judeus também agora vos digo a vós outros: para onde eu
vou, vós não podeis ir.
Sabendo Jesus que em poucas horas terminaria a associação diária
com os discípulos (e jamais se reataria naquela forma terrestre), o Senhor
Se dirige a eles muito afetuosamente como “filhinhos”. Este é o único

298
IC; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 638
lugar nos Evangelhos onde encontram a palavra filhinhos (τεκνία). No
Novo Testamento a palavra é usada uma vez por Jesus, mas muitas vezes
pelo discípulo a quem Jesus amava” (João). 299 João o emprega nas
seguintes passagens: 1Juan 2:1, 12, 28; 3:7, 18; 4:4; e 5:21. Ao usar esta
forma aqui em Jo 13:33 Jesus implica que os discípulos, embora
espiritualmente imaturos, são-lhe, no entanto, muito queridos.
Para o pensamento achado neste versículo veja-se também em Jo
7:33; 8:21; 12:35; 14:19; e 16:16–20. Na festa dos Tabernáculos, meio
ano antes, Jesus havia dito aos judeus que estaria com eles só um pouco
mais. Os meses se converteram em semanas; as semanas em dias; os dias
em horas. Em umas poucas horas mais a comunhão diária (e, num
sentido, a física) entre o Mestre e Seus discípulos cessará para sempre.
Com a Sua morte Jesus irá ao Pai. As esperanças dos discípulos
murcharão. Sentirão falta dEle, quer dizer, da sua proximidade física.
Neste sentido é que O buscarão, ou seja, Sua presença visível, e isto
tanto depois de Sua morte como depois de Sua ascensão. Veja-se Lc.
24:21; At. 1:11. Esta busca é muito semelhante à manifestação do anelo,
que tantas vezes se ouviu desde essa época: “Ó, se Jesus estivesse ainda
na terra!”
Não só não poderão trazer de novo Jesus à terra, mas também não
poderão ir ao lugar onde Ele está: “para onde eu vou, vós não podeis ir”.
Vai ao Pai. Não podem ir ao Pai, quer dizer, não até depois (Jo 13:36),
não até que morram. Com relação à morte será revelada a grande
diferença entre os verdadeiros discípulos de Cristo e os inimigos judeus.
Estes últimos não irão ao Pai, mas sim morrerão em seu pecado (Jo
8:21).
Mas embora os discípulos já não poderão alegrar-se na presença
visível de Jesus, sim, seguirão desfrutando da presença visível mútua.
Por isso, Jesus prossegue:

299
Em Gl. 4:19 a melhor versão é provavelmente “filhos” em vez de “filhinhos”.
João (William Hendriksen) 639
300
34. Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros;
assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros.
No quarto Evangelho o termo que traduzimos por mandamento
(_ντολή) utiliza-se em três contextos; como segue,
a. com relação a um mandato ou ordem legal emitida pelo Sinédrio
(Jo 11:57);
b. com relação ao encargo ou instrução que o Pai deu a Jesus
(10:18; 12:49, 50; 14:31);
c. com relação ao preceito que Jesus deu aos discípulos (13:34;
14:15, 21; 15:10, 12).
Embora estes três significados estejam intimamente relacionados,
provavelmente o melhor é distingui-los. O mandato ou ordem legal
emitem-no homens que podem ter ou não interesse sincero e pessoal
naqueles que devem obedecê-lo. Não há naturalmente prova alguma de
que o Sinédrio estivesse cheio de afeto pelo povo! Se utiliza-se nesse
sentido, a palavra tem o sabor de algo externo oficial e codificado. O
cargo ou a instrução que o Pai deu ao Filho é a diretiva que Aquele que
envia, em Seu amor, dá ao Enviado, em harmonia completa com o plano
eterno no qual estão de acordo. O preceito é uma norma, que Jesus
formulou e ilustrou com Seu exemplo, para regular a conduta e a atitude
interna dos discípulos para Cristo, entre si, e para o mundo. Embora não
seja inadequado o termo popular novo mandamento, e o usamos na
tradução, no entanto, no caso do versículo 34, a palavra utiliza-se no
sentido de preceito. Tanto o encargo como o preceito nascem do amor;
em consequência, quando a necessidade o pede (mostrar que o mesmo
termo utiliza-se no original em ambas as seções de uma frase), qualquer
dos dois termos pode-se utilizar para abranger ambas as ideias (como em
Jo 15:10). O preceito que se dá aqui é novo (καινή, não νέα). 301

300
Para ἵνα véase IV de la Introducción.
301
Cf. R. C. Trench, Synomyms of the New Testament, Grand Rapids, Mich., (reimpresión), 1948, pp.
219–225. Νέος significa recentemente surgido, jovem. Refere-se ao que é novo do ponto de vista
temporal; καινός significa não desgastado ou quebrado pelo tempo. Tem em conta o que é novo do
João (William Hendriksen) 640
Caracteriza-se pelo frescor e a beleza do amanhecer. É totalmente
desejável.
É verdade que o mandamento que exigia amor ao próximo, pelos
“filhos do teu povo”, já se encontra no Antigo Testamento (Lv. 19:18;
Pv. 20:22; 24:29). De fato, o amor a Deus e o amor ao próximo são o
resumo da lei (Mc. 12:29, 31). Mas a novidade do preceito que se
promulga aqui fica evidente pelo fato de que Jesus exige que Seus
discípulos se amem uns aos outros como Ele os amou. Seu exemplo de
amor constante (observe-se: continuar amando), abnegado (pense-se em
sua encarnação, ministério terrestre, morte na cruz) deve ser a pauta da
atitude e relação deles entre si. visto que a obediência voluntária deste
preceito é de importância capital para o bem-estar espiritual dos
discípulos (e, de fato, de toda a igreja), e pelo fato de que Seu próprio
coração está cheio de amor, Jesus repete este preceito.
35. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes
amor uns aos outros. 302
O amor genuíno, profundo, constante e abnegado de uns aos outros
é a característica distintiva do cristão. Por meio da manifestação externa
desta gloriosa qualidade, os discípulos do Mestre podem esperar exercer
influência no mundo, de modo que os homens comecem a reconhecer
(γνώσονται; veja-se sobre Jo 1:10, 31; 3:11; 8:28) que estes crentes
pertencem a Cristo (note-se o _μοί enfático) e a ninguém mais. Desta
maneira, todos começarão a ver «Cristo no cristão».

ponto de vista da forma ou qualidade. Refere-se às vezes ao que não se utilizou antes (Jo. 19:41; cf.
Mt. 27:60). Em consequência, a tumba na qual descansou o corpo de Jesus, embora pôde ter sido
escavada muito tempo antes, e talvez não era νέον, era, no entanto καινόν. É discutível se os dois
objetivos forem sempre distintos en significado ou tendem às vezes a utilizar-se alternadamente com
pouca ou nenhuma diferença em significado (como ocorre com relação a muitas palavras,
especialmente quando se tornam “velhas”). Trench mantém sempre a diferença em significado,
inclusive entre διαθήκη νέα (Hb. 12:24) e διαθήκη καινή (Hb. 8:8, 13). Talvez tenha razão! Em cada
caso o contexto deve decidir.
302
III B 2; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 641
Como uma surpreendente confirmação histórica das palavras de
Jesus referidas aqui em Jo 13:35, Tertuliano (ao redor do 200 d.C.)
escreveu:
“Mas são sobretudo as amostras de um amor tão nobre as que levam
muitos a nos distinguir. ‘Vede’, dizem, ‘como se amam entre si’, porque
eles são movidos, antes, pelo ódio mútuo; ‘vede como estão inclusive
dispostos a morrer uns por outros”, porque eles mesmos, antes, se
matariam” (Apologia XXXIX).
36. Pedro tinha sido perturbado pela observação de Jesus, “Ainda
por um pouco estou convosco … para onde eu vou, vós não podeis ir”
(Jo 13:33; veja-se nesse versículo). 303 Deseja conservar a Jesus com ele
na terra. Mas se Jesus for apartar-se do grupo, Pedro pelo menos deseja
ir com Ele. Por isso: Perguntou-lhe Simão Pedro: Senhor, para onde
vais? Respondeu Jesus: Para onde vou, não me podes seguir agora; mais
tarde, porém, me seguirás.
Jesus, através da morte por crucificação, vai ao Pai. Pedro não o
pode seguir agora. Por que não? Respondemos: a. porque, segundo o
decreto eterno de Deus, não tinha chegado ainda o momento exato da
partida de Pedro; e b. porque Pedro (como fica muito evidente pelo que
segue) ainda não estava espiritualmente preparado.
Depois, no entanto, Pedro seguirá o caminho de Cristo. Também ele
irá ao Pai. Irá, além disso, ao Pai por meio da morte por crucificação.
Veja-se sobre Jo 21:18, 19. (Não é necessário acrescentar que,
naturalmente, a morte de Pedro na cruz não teve valor expiatório,
substitutivo.)

303
O relato do versículo 1 até o final do capitulo 13 está tão intimamente relacionado que é muito
difícil encontrar em algum ponto lugar para a instituição da Ceia do Senhor. Em consequência, os que
a colocariam entre os versículos 35 e 36 esquecem que o versículo 36 é reflexo do versículo 33. Em
geral, pareceria que os que preferem manter a divisão por capítulos (entre os capítulos 13 e 14)
exatamente tal como está, e inserir a instituição da Ceia do Senhor nesse ponto (como se tivesse
ocorrido entre a predição com relação à negação de Pedro e o discurso que começa no capítulo 14)
podem ter razão. No entanto, não podemos estar seguros. Veja-se também sobre Jo 13:21.
João (William Hendriksen) 642
37. Como estava felizmente inconsciente de suas próprias
fraquezas, Replicou Pedro: Senhor, por que não posso seguir-te agora?
Proporciona, talvez, a melhor ilustração que se encontra na Escritura do
problema do Eu desconhecido. Sua pergunta, “Senhor, por que não posso
seguir-te agora (_ρτι, Jesus tinha utilizado ν_ν)?” mostra três coisas:
a. seu devoção ao Mestre; deseja estar onde esteja Jesus;
b. sua impaciência (“agora”); e
c. seu autossuficiência; pensa que está preparado para seguir a Jesus
inclusive até a morte, como o indica claramente ao acrescentar:
Por ti darei a própria vida.
A comparação com passagens paralelas nos Sinóticos mostra que a
jactância de Pedro continha os seguintes elementos: a. Serei mais valente
que outros discípulos. Eu não me deixarei enganar. «Embora todos os
outros fujam por causa de ti, eu nunca te abandonarei». b. Tampouco te
negarei, não importa o que suceda: «embora me custe a morte, não te
negarei”. c. Irei até o final por ti: “Por ti darei a própria vida”. Pedro está
disposto, se fosse necessário, a morrer por Cristo.
Em conexão com esta jactância devem notar uns poucos atos mais:
a. Pedro pronunciou estas palavras tanto antes como depois da
predição de Cristo que se relata em Jo 13:38, como fica claro por Mt.
26:33–35; Mc. 14:29–31. Evidentemente, nesse momento, as palavras de
Jesus que se disseram a Pedro que apesar de sua jactância faria
precisamente o que tinha prometido tão insistentemente que não faria,
não chegaram a gravar-se. Pedro estava muito seguro de si mesmo.
b. Utilizou uma linguagem muito enfática. Observe-se a dupla
negação em Mt. 26:35, de forma que a jactância se poderia traduzir:
“Certamente não te negarei”. E compare-se: “Nunca te abandonarei”.
c. Falou com grande veemência (Mc. 14:31), evidentemente não
totalmente agradado do fato de que Jesus tivesse uma opinião diferente.
d. A passagem de João indica que a jactância foi não só negativa
(“não te abandonarei”, “não te negarei”) mas também positiva: “Por ti
darei a própria vida”. Lc. 22:33 proporciona o comentário.
João (William Hendriksen) 643
e. Seu exclamação autossuficiente foi copiada pelos outros: “Assim
disseram também todos os discípulos”. Nenhum solo dos discípulos se
conhecia bem. Observe-se o tríplice “todos”: “Todos vos
escandalizareis” (Mc. 14:27), disse Jesus. Todos eles disseram,
“impossível” (as palavras exatas estão em Mt. 26:35). “Então todos os
discípulos, deixando-o, fugiram” (Mt. 26:56).
Embora nenhum dos discípulos se conhecia bem, no entanto,
enquanto todos se escandalizaram, Pedro foi muito além: até negou
conhecer ao Mestre; veja-se sobre Jo 18:15–17; 18:25–27; cf. Mateus
26:69–75.
38. Respondeu Jesus: Darás a vida por mim?
Jesus sabia, naturalmente, que dentro de poucas horas ia suceder
exatamente o contrário, e isto de duas maneiras:
a. Pedro não daria sua vida por Jesus, mas Jesus daria a vida por
Pedro.
b. Pedro não daria a vida por Jesus, mas sim o negaria.
Por isso, Jesus prossegue: Em verdade, em verdade te digo (veja-se
sobre Jo 1:51) que jamais cantará o galo antes que me negues três vezes.
O canto do galo serviu como indicador do tempo. Mc. 13:35 indica
que assinalava a terceira de quatro “vigílias”. Estas quatro eram as
seguintes: “noite”: 6–9 “meia-noite”: 9–12, “o canto do galo”: 12–3,
“manhã”: 3–6. De modo que, o que Jesus quer dizer parece ser que antes
das 3 da manhã Pedro O negaria três vezes. Em Mc. 14:3 aparece
claramente que se refere à segunda parte deste período de 12 a 3. Mas a
menção do canto do galo refere-se não só a tempo, mas também ao
próprio canto que indicaria o tempo. Pedro de fato ia ouvir este canto.
Com referência a esta predição destacam-se três atos:
a. Vemos a Jesus como o grande Profeta. Embora Pedro não se
conhecesse si mesmo, Jesus não só o conhecia, mas também revelou
como era. Observe-se o caráter detalhado deste conhecimento e esta
revelação: três vezes. Veja-se também seu caráter enfático: não cantará
(ο_ μή).
João (William Hendriksen) 644
b. Vemos a Jesus como o grande Sofredor. Como deve ter-lhe
doído o próprio fato de que viu tudo adiantado!
c. Vemos a Jesus como o grande Salvador. A referência ao canto do
galo desempenha um duplo papel: 1. Indica a vacuidade da jactância de
Pedro. A poucas horas antes que amanhecesse, Pedro ia negar
publicamente o Mestre. 2. É uma forma de conduzir Pedro ao
arrependimento. A referência ao canto do galo se fixaria firmemente no
subconsciente. Chegado o momento, esta lembrança oculta manifestar-
se-á e se apoderará da consciência de Pedro. Veja-se Jo 18:15–17;
18:25–27 e passagens paralelas nos Sinóticos.

Síntese do capítulo 13
O Filho de Deus emite e ilustra Seu novo mandamento, e prediz a
traição e a negação.

I. Ilustra Seu novo mandamento ao lavar os pés de Seus discípulos,


explicando que lhes deu um exemplo a seguir (Jo 13:1–20).

A. As circunstâncias.
Jesus realizou esta ação com o estimulante conhecimento, adquirido
muito antes da festa da Páscoa, de que tinha chegado a hora de voltar
para o Pai. Sentia-se apressado, porque o demônio já tinha posto no
coração de Judas Iscariotes a decisão de traí-Lo. Quando agora Se
ajoelha para lavar os pés dos discípulos, faz isso plenamente consciente
do fato de que o Pai tinha posto tudo em Suas mãos.

B. Seu desenvolvimento.
Tendo esperado até o último momento, Jesus finalmente Se
incorpora, deixa de lado sua vestimenta, e assume a forma de servo.
Toma uma toalha longa, e depois de atá-la na cintura, derrama água
numa bacia. Começa a lavar os pés dos discípulos e a secá-los com um
João (William Hendriksen) 645
extremo da toalha. Pedro protesta: “Senhor, tu me lavas os pés?… Não
me lavará os pés jamais”.

C. Seu significado.
Com relação ao protesto de Pedro e também depois de ter
completado a tarefa, Jesus explica seu significado como segue: a. É
símbolo de sua humilhação total: “O que eu faço, não o compreenderás
agora; mas o entenderás depois”. b. É um elemento essencial na
humilhação de Cristo, sem o qual ninguém, nem sequer Pedro, pode ser
salvo: “Se eu não te lavar, não tens parte comigo”. c. É uma lição de
humildade e serviço, um exemplo a seguir: “Eu vos dei o exemplo, para
que, como eu vos fiz, façais vós também”. Isto deve comparar-se com o
versículo 34, muito semelhante: “Assim como eu vos amei, que também
vos ameis uns aos outros”. Ao comparar estas duas passagens (versículos
15 e 34) fica claro que nos versículos 1–20 Jesus ilustra o novo
mandamento que proclama no versículo 34.
II. Surpreende os discípulos dizendo-lhes que um de entre eles vai
traí-lo. Judas sai.
A. A surpreendente predição.
Embora Jesus já tenha dado um indício geral no sentido de que
entre os doze havia um em quem não se podia confiar (por não estar
interiormente limpo; veja-se Jo 13:10, 18), contudo, a cortante
afirmação, “um dentre vós me trairá”, produziu sobressalto no pequeno
grupo: “Os discípulos olharam uns para os outros, sem saber a quem ele
se referia”.
B. As três respostas.
No quarto Evangelho só se relata a terceira. Quanto às outras três
veja-se sobre versículo 22. João, incitado por Pedro, perguntou, “Senhor,
quem é?”
João (William Hendriksen) 646
C. A reação do Senhor à pergunta de João.
“É aquele a quem eu der o pedaço de pão molhado”, disse Jesus. Ao
dá-lo a Judas, identificou-o como o traidor, de modo que João (e
provavelmente Pedro) agora sabiam quem era. E Judas também sabia
que tinha sido “descoberto” (ou: assim o pensou; na realidade, Jesus o
tinha sabido sempre). Quando Judas toma o bocado, Jesus o despede
com: “O que pretendes fazer, faze-o depressa”, observação que outros
interpretaram de forma variada.

D. A saída de Judas.
Judas, uma vez recebida a admoestação, sai. Era noite.

III. Promulga o novo mandamento e prediz a negação de Pedro.

A. Jesus explica que por meio da saída de Judas foi glorificado (e


Deus nEle), e que Deus O glorificará de novo, (crucificação,
ressurreição, ascensão, coroação); sim, imediatamente (Getsêmani,
Gabatá, Gólgota). Na humilhação e exaltação de Cristo irradia o
esplendor dos gloriosos atributos de Deus (justiça, fidelidade, amor,
etc.). Assim é a glória.

B. Diante da saída iminente para um lugar onde ninguém O pode


seguir, Jesus promulga seu “novo mandamento” (melhor: preceito): que
Seus discípulos devem mostrar um amor constante e abnegado entre si,
olhando sempre a Ele como Aquele que lhes deu o exemplo. (Só por
meio do poder do Espírito Santo receberiam a possibilidade de cumpri-
lo. Cf. Rm. 5:5; Gl. 5:22; 2Tm. 1:7).

C. Pedro responde “Senhor, por que não posso seguir-te agora? Por
ti darei a própria vida”. Desta maneira Pedro indica sua devoção,
impaciência, autossuficiência.
João (William Hendriksen) 647
D. Jesus contradiz a Pedro declarando: “Darás a vida por mim? Em
verdade, em verdade te digo que jamais cantará o galo antes que me
negues três vezes”.
João (William Hendriksen) 648
ESBOÇO DOS CAPÍTULOS 14–17
Tema: Jesus, o Cristo, o Filho de Deus, durante o Seu ministério
privado instrui meigamente a Seus discípulos e os encomenda
ao cuidado do Pai.

Cap. 14 - Uma palavra de consolo


Dez fundamentos; veja-se síntese do capítulo 14

Cap. 15 - Uma palavra de exortação


1. “Permaneçam em mim” (vv. 1–11); a relação dos crentes
com Cristo.
2. “Amai-vos uns aos outros” (vv. 12–17): a relação dos
crentes entre si.
3. “Dai testemunho também” (vv. 18–27): a relação dos
crentes com o mundo (em resposta à atitude do mundo com
relação ao crente: “o mundo vos aborrece”)

Cap. 16 - Uma palavra de predição.


1. Aos crentes os espera perseguição. Virá o Espírito Santo.
Desempenhará sua função no mundo (vv. 1–11) e na igreja
(vv. 12–15).
2. O pesar dos discípulos se converterá em alegria com a volta
do Filho, na Ressurreição e no Pentecostes (vv. 16–24).
3. Observações finais: “O Pai mesmo vos ama … Tereis paz
… Confiai” (vv. 25–33)

Cap. 17 - A oração do sumo sacerdote


1. Por si mesmo (vv. 1–5).
2. Por seus discípulos imediatos (vv. 6–19).
3. Pela igreja em geral (vv. 20–26).
João (William Hendriksen) 649
Nota: Embora este seja o esboço geral destes capítulos, na realidade
não há divisões claras. Com frequência as ideias que se mencionam
numa subdivisão encontram-se na seguinte. Há muita superposição.
João (William Hendriksen) 650
JOÃO 14
Observações preliminares acerca dos capítulos 14–17
Estes capítulos contêm os Discursos na Ceia e a Oração Sumo-
sacerdotal. Há uma relação íntima entre o capítulo 13 e o capítulo 14. O
consolo que se proporciona neste último tem pouco significado à parte
do ensino (em conexão com o lavamento dos pés dos discípulos) e as
predições (com relação à iminente partida de Cristo, a traição de Judas e
a negação de Pedro) contidas no primeiro. Sem nem sequer uma fórmula
introdutória 304 tal como “Jesus disse”, apresenta-se imediatamente ao
Senhor ainda na companhia de seus discípulos, dirigindo-se a eles e
preparando-os para os eventos que se aproximam.
Por conseguinte, não surpreende que alguns tenham falado de uma
divisão desafortunada em capítulos. No entanto, não podemos estar de
acordo. Também nós teríamos colocado a divisão em capítulos
exatamente onde se encontra. Porque, uma vez que se pôs de relevo a
íntima relação existente entre os capítulos 13 e 14, também é adequado
assinalar as diferenças:
1. O capítulo 13 conclui com uma palavra de Jesus dirigida a Pedro,
e só a ele. O capítulo 14 começa com palavras dirigidas a todo o grupo.
Em Jo 13:38 o pronome é singular (“tu”, “te”); em Jo 14:1 encontramos
o pronome vosso (plural).
2. O capítulo 13 contém um relato e um diálogo; os capítulos 14–16
contêm discursos. Isto ficta evidente imediatamente pelo fato de que
embora os 38 versículos do capítulo 13 Jesus é interrompido não menos
de seis vezes, nos 91 versículos dos capítulos 14–16 é interrompido só
quatro vezes.
3. O tema do capítulo 13 é de índole mista. Pelo contrário, os
capítulos 14, 15, 16, e 17 têm cada um um tema central.

304
A versão, “e disse a seus discípulos”, tem fundamento fraco; trata-se de uma interpolação oriental.
João (William Hendriksen) 651
Por certo, que embora os discursos dos capítulos 14, 15 e 16 tenham
forma de conversação mais que de breves discursos formais, e embora à
primeira vista possa parecer que os pensamentos se sobrepõem (e de fato
se sobrepõem) até certo ponto, de modo que alguns inclusive falaram
que uma “confusão divina” (Como quiser que se entenda isso!), no
entanto, uma análise mais detalhada indica que há certa conexão
orgânica e lógica ao longo dos três capítulos: a nota predominante do
capítulo 14 é o consolo (“Não se turbe o vosso coração”); a do capítulo
15 a exortação (“Permanecei em mim … amai-vos uns aos outros … dai
testemunho”); e a do capítulo 16 a predição (“Eles vos expulsarão das
sinagogas”); enquanto que o capítulo 17 contém a Oração do Sumo
sacerdote, famosa por sua simplicidade e ternura.

JO 14:1–11

14:1. Não se turbe o vosso coração. Preferimos esta tradução porque


reproduz melhor o significado do original. O pensamento não é, “não
comecei a turbar-vos”, nem “deixai de estar turbados”, ou “não se turbe
mais vosso coração”. Observe-se que Jesus não Se limita a dizer aos
discípulos que já não devem estar tristes; exorta-os a não estar turbados,
atormentados, agitados, afundados num estado de confusão e
perplexidade. O verbo que se utiliza é ταρασσέσθω, terceira pessoa do
singular do presente imperativo passivo de ταράσσω. Veja-se também
sobre Jo 5:7; 11:33; 12:27; 13:21. O original tem seu coração. O coração
é aqui o centro do sentimento e a fé bem como a fonte das palavras e as
ações, como é evidente por passagens como Jo 16:6, 22; cf. Mt. 12:34;
15:19; 22:37; e Rm. 10:10. João poucas vezes utiliza este termo (só em
Jo 13:2; 14:1, 27; 16:6 e em Jo 12:40, que, no entanto, é uma citação de
Is. 6:10).
Os corações dos discípulos estavam cheios de uma mescla de
emoções. Estavam tristes devido ao nada alentadora perspectiva da
partida de Cristo; envergonhados devido ao egoísmo e ao orgulho que
João (William Hendriksen) 652
tinham evidenciado; perplexos devido à predição de que um dentre eles
trairia ao Mestre, que outro O negaria e que todos ficariam confundidos
por causa dele; e finalmente, vacilantes na fé, pensando provavelmente:
«Como pode ser o Messias alguém que vai ser traído?» No entanto, ao
mesmo tempo, amam o seu Mestre. Esperam contra toda esperança.
Tudo isto se dá a entender nas palavras: “Não se turbe o vosso coração”.
A exortação baseia-se no mais terno e desprendido amor, porque
quando Jesus a pronunciou Ele mesmo estava turbado no espírito (Jo
13:21; e comparar também com Mt. 26:38; Lc. 22:28, 44). O pastor
angustiado, que enfrenta a cruz, consola a outros. Consola aos mesmos
que acabam de demonstrar seu egoísmo e que vão escandalizar-se dele.
Houve alguma vez um pastor mais amável, mais terno, mais doce?
Além disso, o que Jesus expressa não é somente um desejo piedoso,
como nossa frase de alento (embora com frequência vazia): «Não se
preocupe. Tudo sairá bem». Quando Jesus diz, “Não se turbe o vosso
coração”, fundamenta isto sobre bases sólidas. Veja-se a Síntese no final
do capítulo.
A este respeito há uma interessante semelhança, embora superficial,
entre o cristianismo e o epicurismo. Este último também sublinha a
necessidade de manter a calma e a tranquilidade em todas as
circunstâncias da vida. De fato esta escola utiliza inclusive um termo que
se deriva da mesma raiz que o verbo que Jesus utiliza aqui em Jo 14:1,
27. Falavam da ataraxia (_ταραξία), o estado de ausência de confusão. E
no entanto, ao examinar a questão atentamente, a diferença entre o
cristianismo e o epicurismo, tal como ela se depreende claramente de
João 14, é muito grande. O raciocínio do epicurismo e de seus
equivalentes atuais é este: «Não vos turbeis, porque os deuses, em caso
de que existam, nem se preocupam por vós”. Pelo contrário, o ensino de
Jesus é esta: “Não vos turbeis, porque o Deus em quem confiam cuida de
vós. Ouve vossas orações. Ele vos ama como também o Filho de Deus”.
Em consequência, o cristianismo — ou se preferir Cristo — proporciona
o único fundamento adequado para a exortação de Jo 14:1, 27.
João (William Hendriksen) 653
Crede em Deus, crede também em mim [TB].
A posição de que ambos os verbos (πιστεύετε … πιστεύετε) são
imperativos ou preceitos tem bastante pretexto. 305 A forma imperativa
harmoniza com todo o discurso (Jo 14:11; 15:4, etc.). Também
harmoniza com a primeira frase, porque “Não se turbe o vosso coração”,
também é imperativo. O velho argumento, que se pode encontrar em
muitos livros, no sentido de que a primeira cláusula não pode ser
mandato porque Jesus sabia que os discípulos já criam em Deus, e em
consequência, não podia lhes mandar que o fizessem, não tem muito
valor. Embora tinham fé, esta fé começava a vacilar. Em consequência
(utilizando o presente imperativo continuativo) Jesus diz, “Segui
confiando!”
Embora os discípulos seguiam amando o Mestre, sua fé nEle como
o Messias-Salvador começava a vacilar. Jesus sabe que quando ali a
poucas horas morrer na cruz e for sepultado, essa fé se debilitaria ainda
mais (Jo 16:20; cf. Mt. 26:31; Mc. 14:27; 16:13; Lc. 24:21). Sabe
também que o único remédio para o coração turbado é a segurança de
que Jesus é e continua sendo o Salvador embora — ou em virtude do
próprio fato de que — sofra e morra. Por isso diz, segundo o original,
“Segui confiando em Deus, e também segui confiando em mim”. O
verbo também pode ser traduzido segui crendo. Há pouca diferença.
Preferimos segui confiando porque é especialmente o elemento de
confiança dentro da fé aquele que está em primeiro plano num contexto
que se refere ao coração turbado.
Jesus, nesta conexão, não explica totalmente por que deve morrer
na cruz, embora algo havia ensinado neste sentido antes (Jo 10:11, 14,
28; Mc. 10:45); nem tampouco era possível ainda dar uma explicação
completa (Jo 16:12). Pede confiança ou fé permanente em Deus e nEle

305
Em grego a segunda pessoa do plural do indicativo e do imperativo são idênticas em forma. Em
consequência, a palavra que aqui se emprega pode ser qualquer das duas. F. W. Ginrich, “Ambiguity
of Word Meaning in John’s Gospel”, CLW, 37 (1943–1944), 77, pensa que este é um caso de
ambiguidade deliberada. Mas isso não é um mashal no sentido de Jo 3:3.
João (William Hendriksen) 654
mesmo, inclusive nesses momentos quando os mistérios aumentam.
Jesus pede que os discípulos continuem apoiando-se em Deus e nEle
mesmo com todo seu ser, de forma que o coração, a alma, a mente e a
fortaleza procurem continuamente a fonte de sua salvação, a meta de sua
existência. Quanto ao verbo, veja-se também sobre Jo 1:8; 3:16; 8:30,
31a.
A implicação clara é que Jesus é Deus. Isto se põe belamente de
relevo por meio da inversão da ordem das palavras na segunda
exortação, de forma que as frases em Deus e também em mim vão uma a
seguir da outra.
2. Na casa de meu Pai há muitas moradas.
Além de 2. Na casa do que já se tem dito em outros lugares a
respeito desta passagem (veja-se IV da Introdução), deve bastar o
seguinte:
Segundo o texto, Jesus consolava os discípulos, que temiam pensar
na próxima separação. Com relação a isso o Senhor lhes assegura que o
ir à casa do Pai tem como propósito realizar uma reunião, e que não era
uma separação permanente. No lugar para onde vai há lugar também
para eles. De fato, sua própria ida (pense-se em Sua morte na cruz e a
ascensão que Lhe permitirá enviar o Espírito) faria possível esta reunião,
de forma que o que parecia ser uma calamidade na realidade era uma
bênção. Sem a morte de Cristo e a obra do Espírito Santo não teria
havido lugar no céu para os discípulos.
A casa do Pai é o céu (cf. Sl. 33:13, 14; Is. 63:15). É um lugar
muito espaçoso. Nele há moradas completas, casas, e mansões
permanentes para todos os filhos de Deus. A casa do Pai não se parece à
uma casa de vizinhança ou cortiço, em que cada família ocupa uma
habitação. Pelo contrário, é mais como um belo edifício de
apartamentos, com uma infinidade de apartamentos espaçosos e
completamente mobiliados, sem aglomerações de nenhuma classe.
Dentro da casa única há muitas mansões! A única ideia que se expressa é
que “há muito espaço no céu, espaço para mim mas também para vós”.
João (William Hendriksen) 655
(A ideia de variedade, de graus de glória, embora verdadeira em si
mesma, é alheia ao contexto presente.)
Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. 306 Pois vou 307 preparar-vos
lugar. Esta tradução, que retém a conjunção pois (en “pois vou”)
proporciona um significado excelente: «Se na casa de meu Pai não
houvesse muito espaço para todos os filhos de Deus, certamente o teria
sabido e vos teria dito, pois, por meio de minha humilhação e exaltação,
preparo um lugar para vós; sem minha ascensão e o envio do Espírito,
não estaríeis preparados para o lugar.
3. E, quando eu for e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei
para mim mesmo, 308 para que, onde eu estou, estejais vós também.
A volta da qual Jesus fala neste versículo é o complemento da ida.
Cf. At. 1:9–11. Este fato explica seu caráter. Com toda probabilidade,
por conseguinte, refere-se à segunda vinda, e seu propósito é fazer com
que Cristo possa receber os discípulos em Sua presença amorosa, para
que morem com Ele para sempre.
Observe-se que em lugar de dizer o que se poderia esperar que
dissesse, ou seja, “E quando me for e vos preparar lugar, virei outra vez e
vos levarei a esse lugar”, Jesus diz algo que é muito mais consolador:
“vos receberei para mim mesmo”, «tomar-vos-ei para que estejam
comigo» (ou: para que estejamos face a face; quanto ao significado de
πρός veja-se sobre Jo 1:1). Tão maravilhoso é o amor de Cristo pelos
Seus que não está satisfeito com a ideia de simplesmente levá-los ao céu.
Quer levá-los para estar em íntima comunhão com Ele.
O verbo que se traduz “receberei” (παραλήμψομαι, ideia básica:
receber de outro), com uma grande variedade de matizes de significado,
tem aqui o sentido de dar as boas-vindas a alguém. A. Deissmann
mostrou que o consolo contido nesta passagem (Jo 14:3) foi aplicado
pelos primeiros cristãos por ocasião da morte dos seres queridos. Embora

306
II B; veja-se IV da Introdução.
307
A respeito de ὅτι veja-se IV da Introdução.
308
III A 2, III A 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 656
o próprio Jesus provavelmente não se referisse de forma direta a isso,
mas antes, ao encontrar-se de novo com relação à segunda vinda, no
entanto, resulta legítima a aplicação à morte. Em consequência, em
antigas cartas de consolo encontra-se com frequência a fraseologia de Jo
14:3. 309
Quanto ao propósito explícito destas boas-vindas, ou seja, “para que
onde eu estou, estejais vós também”, veja-se Ap. 14:1; 19:14; 20:4. Onde
quer que esteja o Cristo, ali também estão os crentes.
4. E vós sabeis o caminho para onde eu vou. O caminho é o meio
pelo qual os discípulos são levados ao Pai. Jesus quer dizer, “vós me
conheceis; eu sou o caminho”. Mas não diz ainda em concreto que Ele é
o caminho. Quanto a isso veja-se sobre Jo 14:6. Podia dizer “sabe”,
porque antes Se revelou a Si mesmo como o caminho ao Pai (Jo 8:19;
10:1, 7, 9, 37, 38; 12:26, 44, 45, 49, 50; cf. Mt. 11:27, 28).
A afirmação é um convite velado: «Ide ao Pai por meio deste
caminho». Até este momento (Jo 14:1, 2, 3) Jesus tinha falado a respeito
do que ia fazer por Seus discípulos (preparar-lhes um lugar, e voltar para
recebê-los a Si mesmo). Não devem pensar, no entanto, que eles não têm
nada para fazer. Devem ir à casa onde há um lugar preparado para eles
(cf. Sl. 84:7; Heb. 11:13–16).
5. Disse-lhe Tomé: Senhor, não sabemos para onde vais; como saber
o caminho?
Ao dizer isto Tomé pode provavelmente considerar-se como o
porta-voz do grupo, quem de fato disse o que a maior parte deles
pensavam (cf. Jo 13:36, 37). Quanto ao seu modo de ser, veja-se sobre Jo
11:16. Sua objeção, embora encerrasse um elemento de fraqueza e
pecaminosidade como de costume, uma lentidão em entender por não ter
prestado suficiente atenção, contudo também revela sua devoção ao
Mestre. Não pode suportar o pensamento de que Jesus vai embora. Por
esta razão protesta. Note-se como Da Vinci em A Última Ceia, com

309
A. Deissmann, Light From the Ancient East, Nueva York, 1927, pp. 177–178.
João (William Hendriksen) 657
delicado tato, coloca o leal e desalentado Tomé muito perto de Jesus na
mesa. O artista o pinta como uma pessoa emotiva, com o dedo levantado
quase à altura do rosto de Jesus enquanto diz: “Não serei eu, verdade,
Senhor?” — nesta passagem Tomé quer dizer:
“Como se pode esperar que saibamos o caminho se nem sequer
sabemos o destino?”
Tomé cometeu dois erros:
a. Talvez pensou que Jesus Se referia à Sua partida por meio da
morte, ou talvez pensou que o Mestre ia partir para outro lugar da terra.
Neste caso o caminho seria uma rota comum, e seu erro seria semelhante
ao dos judeus em Jo 7:35 (veja-se sobre essa passagem).
b. Ele imaginou que o Senhor falava a respeito do caminho que
estava prestes a seguir, embora Jesus de fato se referisse ao caminho que
os discípulos devem tomar para alcançar seu destino, como fica evidente
por Jo 14:6b.
No entanto, a objeção exposta por Tomé contém um elemento de
fato. Aquele que não conhece o destino não conhece o caminho. Veja-se
o versículo 7 quanto à distinção de significado entre os dois verbos
comuns para saber ou conhecer.
6. Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida.
Este é outro dos sete grandes EU SOU do Evangelho de João
(quanto aos outros veja-se em Jo 6:48; 8:12; 10:9; 10:11; 11:25; e 15:1).
No predicado cada uma das palavras caminho, verdade e vida vai
precedido pelo artigo definido.
“Eu sou o caminho”. Jesus não mostra simplesmente o caminho;
Ele mesmo é o caminho. É verdade que ele ensina o caminho (Mc.
12:14; Lc. 20:21), nos guia no caminho (Lc. 1:79), e nos abriu um novo
e vivo caminho (Heb. 10:20); mas tudo isso é possível só porque Ele
mesmo é o caminho.
Cristo é Deus. Deus é igual a cada um de Seus atributos, visto que
“possui” cada atributo em grau infinito. Em consequência, Deus não só
tem amor (ou exercita amor), mas sim é amor, todo amor; é justiça, toda
João (William Hendriksen) 658
justiça, etc. Assim também Cristo é o caminho: em cada ação, palavra e
atitude é o Mediador entre Deus e Seus escolhidos.
Observe-se também o pronome EU. Em última instância não nos
salva um princípio ou uma força, e sim uma pessoa. Na escola, o aluno é
educado não precisamente pelos quadros-negro, livros e mapas, mas
pelos mestres que utilizam todos estes meios. Na casa é educado pelo pai
e a mãe. Assim também o meio de acesso ao Pai é o próprio Cristo.
Somos pessoas. O Deus do qual nos apartamos é um Deus pessoal. Por
isso, não é estranho que à parte da comunhão viva com a pessoa, Jesus
Cristo, que existe em união indissolúvel com o Pai, não haja salvação
para nós (cf. Rm. 5:1, 2).
Agora, Jesus é o caminho num sentido duplo (cf. também em Jo
10:1, 7, 9). É o caminho de Deus ao homem — todas as bênçãos divinas
descem do Pai através do Filho (Mt. 11:27, 28) —; é também o caminho
do homem a Deus. Como já se indicou, no contexto presente se enfatiza
a segunda ideia.
“Eu sou … a verdade”.
Muito do que se disse com relação a “Eu sou o caminho” aplica-se
também aqui. Jesus é a própria encarnação da verdade. É a verdade em
pessoa. Como tal é a realidade final em contraste com as sombras que o
precedem (veja-se sobre Jo 1:14, 17). Porém, no contexto presente o
termo a verdade parece ter um matiz diferente de significado. É o que se
ergue diante da mentira. Jesus é a verdade porque é a fonte confiável de
revelação redentora. O fato de ser este o sentido em que se utiliza a
palavra fica claro pelo versículo 7, que ensina que Cristo revela o Pai.
Cf. Mt. 11:27.
Mas assim como o caminho é um caminho vivo, também a verdade
é uma verdade viva. É ativa. Apodera-se de nós e influi em nós
poderosamente. Ela nos santifica, nos guia e nos liberta (Jo 8:32; cf.
17:17). Basicamente Ele é a verdade, Ele mesmo em pessoa. Pilatos
perguntou, “O que é verdade?” (Jo 18:38). Jesus aqui em Jo 14:6
responde: “Eu sou a verdade”.
João (William Hendriksen) 659
“Eu sou … a vida”.
Jesus não se refere aqui ao hálito ou espírito (πνε_μα) que anima
nosso corpo. Não pensa na alma (ψυχή), nem na vida em sua
manifestação externa (βίος), mas na vida como o contrário à morte
(ζωή). Todos os gloriosos atributos de Deus estão no Filho de Deus
(veja-se sobre Jo 1:4). E como tem a vida em Si mesmo (veja-se sobre Jo
5:26), é a fonte e o doador de vida para os Seus (veja-se sobre Jo 3:16;
6:33; 10:28; 11:25). Possui a luz da vida (Jo 8:12), as palavras de vida
(Jo 6:68), e veio para que pudéssemos ter vida e vida em abundância (Jo
10:10). Assim como a morte significa separação de Deus a vida implica
comunhão com Ele (Jo 17:3).
Os três conceitos são ativos e dinâmicos. O caminho conduz a
Deus; a verdade liberta os homens; a vida produz comunhão.
Como se relacionam estes três? Como entidades mais ou menos
separadas, mas sim coordenadas? Ou, como constituintes de um só
conceito: “o caminho verdadeiro e vivo”? Não é necessário escolher uma
destas alternativas. Verdade e vida são substantivos, não adjetivos.
Cristo é a verdade e a vida, bem como é o caminho. No entanto, o
contexto indica que prepondera a ideia de caminho. O significado parece
ser: «eu sou o caminho porque sou a verdade e a vida». Quando Jesus
revela a verdade redentora de Deus que liberta os homens do poder
escravizante do pecado, e quando comunica a semente de vida, que
produz comunhão com o Pai, então, e por isso mesmo, ele, como o
caminho (que eles mesmos, por graça soberana, escolheram), conduziu-
os ao Pai. Por isso, Jesus prossegue: Ninguém vem ao Pai senão por mim.
Como os homens dependem absolutamente de Cristo para o
conhecimento da verdade redentora e também para a faísca que faz com
que a verdade viva em suas almas (e para que suas almas vivam
conscientes dessa verdade), segue-se que ninguém vem ao Pai senão
através dEle. Além de Cristo não pode haver verdade redentora, nem
vida eterna; por isso, além de Cristo não há caminho ao Pai. Cf. At. 4:12.
João (William Hendriksen) 660
Tanto o absoluto da religião cristã como a necessidade premente das
missões cristãs ficam evidentes.
7. Se vós me tivésseis conhecido, conheceríeis também a meu Pai. 310
Jesus havia dito, “Sabeis o caminho”. Tomé tinha respondido, “Como
saber o caminho?” Jesus pôde dizer, “sabeis”, porque o caminho tinha
sido claramente revelado. Mas em um sentido era certo que os discípulos
não sabiam, não tinham prestado suficiente atenção às palavras de Jesus.
Não conheciam o Senhor tão plenamente como o teriam conhecido se
tivessem prestado mais atenção a todas as Sua palavras e admoestações.
Além disso, se tivessem feito isso, teriam tido uma percepção mais plena
e rica do Pai. Com muita frequência não tinham conseguido ver em Jesus
o único e absoluto caminho para o único e absoluto fim. Não tinham
conseguido, até certo ponto, ver nEle o único Filho de Deus que, porque
é Filho, revela o Pai. Por isso Jesus diz, por assim dizer, «se me tivésseis
escutando diariamente, vendo Minhas palavras e obras, se por meio desta
experiência pessoal e diária, tivessem aprendido a conhecer-me
(_γνώκειτα é provavelmente o texto mais acertado) teríeis conhecido
(_δειτε, conseguido compreender pela reflexão mental) também a meu
Pai”. 311 Note-se meu Pai, o que indica a filiação única de Cristo (veja-se
sobre Jo 1:14).
Diz Jesus: Desde agora o conheceis e o tendes visto. A explicação
mais óbvia parece ser esta: “Sabeis (reconheceis) o Pai desde agora
devido a estas mesmas palavras, porque agora lhes falei claramente que
eu mesmo sou o caminho (e a verdade e a vida) ao Pai, de maneira que
agora há menos desculpa que antes para a ignorância. Tendes visto o
caminho com vossos próprios olhos, físicos e espirituais”.

310
II B; veja-se IV da Introdução.
311
Nos versículos 4 e 5 utiliza-se o verbo οἶδα. No versículo 7 parece haver uma transição deliberada
de γινώσκω a οἶδα, e logo volve-se de novo a γινώσκω. Fica difícil satisfazer-se com a ideia de que a
mudança no uso das palavras neste contexto se deva simplesmente a um desejo de variação por
simples eufonia. Se der-se aos verbos seu sentido pleno e distintivo obtém-se um bom significado, que
também harmoniza por completo com o contexto. Veja-se também sobre Jo 1:10, 31; 3:11; 8:28.
Também no versículo 9 γινώσκω harmoniza exatamente com o contexto.
João (William Hendriksen) 661
8. Replicou-lhe Filipe. Quanto a Filipe veja-se sobre Jo 1:43–46;
6:5–7 e 12:20–22. Foi um dos primeiros discípulos, um homem com o
nome de grego. Procedia de Betsaida na Galileia, a cidade de André e
Pedro. Sua intervenção foi decisiva para conduzir Natanael a Jesus.
Numa ocasião anterior Jesus lhe tinha dirigido a pergunta: “Onde
compraremos pães para lhes dar a comer?” Ele tinha respondido de uma
forma que revelava seu pequena fé (que, entretanto, era característica
não só dele, mas também de todos). A ele tinham chegado os gregos com
a petição, “Senhor, queremos ver a Jesus”.
Este Filipe foi quem disse a Jesus: Senhor, mostra-nos o Pai, e isso
nos basta. Com seus olhos físicos Filipe (provavelmente representando a
outros; note-se: mostra-nos) evidentemente desejava ver o Pai; por certo
que não negava a espiritualidade de Deus e sua invisibilidade essencial,
mas pedia uma teofania: uma manifestação visível da glória do Pai, tal
como tinha sido concedida a Moisés e a outros crentes na dispensação
antiga (Êx. 24:9–11; 33:18). Não parecia cair na conta de que a ele tinha
sido dado um privilégio muito maior que aquele que Moisés tinha
desfrutado na terra. Quanto a “Senhor” veja-se em Jo 1:38; 12:21.
9. Disse-lhe Jesus: Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me
tens conhecido? Filipe não tinha ouvido cuidadosamente as palavras ditas
a Tomé, no sentido de que o Pai se manifestou no Filho. Além disso,
acaso o Mestre não tinha revelado esta verdade vez após vez desde o
início de Seu ministério? Desde sua primeira apresentação em público
tinham transcorrido mais de três anos: “tanto tempo”. Poderia perguntar-
se: Havia alguma verdade que Jesus tivesse enfatizado tão repetidamente
como esta: que Ele, o Mediador enviado por Deus, tinha vindo para falar
as palavras e realizar as obras de Deus; que nestas palavras e ações
revelava ao Pai e que esta manifestação do Pai nEle como mediador
descansava na relação eterna e intratrinitária entre o Pai e Ele, o
unigênito de Deus? Veja-se as seguintes passagens: Jo 1:18; 3:33–36;
5:17, 18, 19–32; 6:29, 38, 57; 7:29; 8:16, 19, 28, 29, 42, 54, 55; 10:15,
30, 33, 37, 38; 12:45; 13:31. Sem dúvida que Filipe e outros tinham
João (William Hendriksen) 662
ouvido alguns destes ensinos! Por isso Jesus lança uma terna
recriminação quando diz, “há tanto tempo que estou convosco (note-se o
plural), e não me tens (note-se o singular) conhecido?” O plural vós
refere-se a todos os discípulos presentes no Cenáculo (ou seja, os Onze,
visto que Judas tinha saído); o singular tens refere-se só a Filipe. Note-se
também o verbo, a respeito do qual, veja-se a nota 311, e a referência
que aí se indica. A classe de reconhecimento que Jesus tem em mente é
de caráter espiritual. Equivale a ver pela fé o Pai no Filho; porque Jesus
prossegue: Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai?
À luz do abundante ensino do Senhor a respeito deste tema (veja-se
comentário no versículo 9 acima), a observação “como dizes tu: Mostra-
nos o Pai?” não necessita mais comentários.
Os três perfeitos (_γνωκας; _ωρακώς; _ώρακε respectivamente: não
aprendeste a reconhecer-me; aquele que viu; viu) mostram que uma vez
que se conseguiu este conhecimento ou visão espiritual, isto tem
permanentes resultados. Toda a passagem indica que a revelação
redentora além de Cristo é impossível. No Filho temos a revelação final
de Deus. Assim como é certo que quem viu o Filho viu o Pai, também é
certo que quem não viu o Filho não viu o Pai. O que faltava aos
discípulos, entretanto, não era uma fé genuína como tal senão fé genuína
em toda plenitude. Tinham visto, mas, devido à sua própria
pecaminosidade, não tinham visto com a suficiente clareza. Por isso
Jesus continua, dirigindo-se primeiro só a Filipe:
10. Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? Esta
passagem mostra que todo conhecimento com relação aos fatos da
redenção se baseia numa fé cristã genuína. Assim é como se consegue
um sólido fundamento para uma verdadeira epistemologia cristã. A
razão não pode penetrar nestes mistérios. O monoteísmo judeu nega-se a
aceitar a possibilidade de que a essência divina se possa manifestar em
mais de uma pessoa divina. Só a fé cristã o fará.
A expressão “Eu estou no Pai e que o Pai está em mim” tem sentido
unicamente se o Pai e o Filho são um em essência, ou seja, em todos seus
João (William Hendriksen) 663
atributos divinos. O Pai e o Filho (também o Espírito, mencionado em Jo
14:16, 17, 26) não existem à parte como indivíduos ou entidades, como o
fazem os indivíduos humanos, e sim um no outro e um por meio do
outro, como momentos de uma só vida divina autoconsciente. 312
Os judeus não cometeram o erro de pensar que quando Jesus fez
afirmações deste caráter (veja-se também Jo 5:17; 10:30) referia-se
somente à unidade moral ou harmonia ética. Entenderam claramente que
o que se pretendia era nada menos que igualdade essencial com Deus
(veja-se sobre Jo 1:1).
No entanto, a trindade ontológica se reflete na econômica: As
palavras que eu vos digo (observe-se a mudança de singular a plural) não
as digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas
obras.
Sempre que Jesus fala, o Pai age por meio de Suas palavras. Toda
palavra de Jesus é obra do Pai! Isto, entretanto, não quer dizer que o Pai
aja como um ventríloquo que fala através de um boneco. Pelo contrário,
o Filho expressa a mente do Pai porque ela é também Sua própria mente.
Neste sentido, quando o Filho fala, realizam-se as obras redentoras do
Pai, entretanto, as obras do Pai não se limitam às palavras do Filho.
Também incluem seus milagres ou sinais. Estes servem para confirmar a
fé, fortalecê-la, ajudar a solidificá-la. Em consequência Jesus diz:
11. Crede-me que estou no Pai, e o Pai, em mim; crede ao menos por
causa das mesmas obras.
Os discípulos vacilavam na fé (Jo 14:1), fé que nunca havia sido
forte (Jo 14:7). Mas o que exista de fé em seus corações deve manter-se
e fortalecer-se, sobretudo agora, que o Mestre está prestes a partir. Por
isso Jesus exorta de novo a seus discípulos a crer (ou, como também se
poderia traduzir o original seguir crendo) que Ele está no Pai, e o Pai
nEle (veja-se no versículo 10). Insiste com eles a aceitarem a palavra de

312
Veja-se J. Orr, The Christian View of God and the World, terceira edição, Nova York, 1897, p.
268. Também H. Bavinck, The Doctrine of God, Grand Rapids, Mich., 1951, pp. 255–334. Cf. L.
Berkhof, Teologia Sistemática, Grand Rapids, Mich., 1969, pp. 98–106.
João (William Hendriksen) 664
‘Jesus ao pé da letra! Esta é sempre a classe mais elevada de fé. Mas se
isto é difícil para eles, que creiam por causa das mesmas obras. Estas
obras têm valor de evidência.
A respeito disso, veja-se Jo 9:31–33; 10:37, 38; 11:39–44; 20:30,
31: cf. At. 2:22; 4:31; 2Co. 12:12.

JO 14:12–24

14:12. Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim
fará também as obras que eu faço e outras maiores fará, porque eu vou
para junto do Pai.
Quanto às palavras de solene introdução veja-se sobre Jo 1:51. Os
discípulos não devem temer que a ausência física de Cristo signifique
perda de poder para realizar milagres. Do céu Jesus prosseguirá lhes
subministrando este poder. Aqui dá-se uma gloriosa promessa a todo
aquele que continua crendo nEle (veja-se sobre Jo 1:8; 3:16; 8:30, 31a
quanto ao significado do verbo πιστεύω, e de seu gerúndio seguido de
ε_ς). Tal pessoa fará as obras que Jesus faz, e isto não apesar do fato de
que vai ao Pai mas devido a esse fato. A própria partida do Senhor
beneficiará os discípulos. Em Jo 14:16ss. se explica como pode ser
verdade isto. Como consequência desta partida os discípulos realizarão
não só as obras que Jesus tinha estado fazendo (milagres no âmbito
físico), mas inclusive obras maiores que estas, ou seja, milagres no
âmbito espiritual. Veja-se sobre Jo 5:20, 21, 24. As obras de Cristo
tinham consistido em grande medida em milagres no âmbito físico,
realizados principalmente entre os judeus. Quando fala agora a respeito
de obras maiores, com toda probabilidade pensa nas quais têm relação
com a conversão dos gentios. Tais obras eram de um caráter mais
elevado e mais amplo em alcance. O fato de Jesus estar na verdade
pensando nesta grande tarefa, parece vir do fato de que Se havia referido
a ela apenas uns dias antes (Jo 12:23–32) e também concretamente
durante esta mesma noite (Jo 17:20).
João (William Hendriksen) 665
A conversão dos (escolhidos de Deus dentre os) gentios, o trabalho
de Pedro em casa de Cornélio e de Paulo em todas as suas viagens
missionárias não poderiam ter sido realizadas antes da morte e ascensão
de Cristo pela simples razão de que nesse tempo o Espírito Santo ainda
não tinha sido derramado. Por esta mesma razão seguia existindo o muro
de separação. Tudo isto ia mudar agora, quer dizer, com relação à morte,
ressurreição, ascensão e coroação de Cristo. Em consequência, Jesus
pode dizer, “maiores (obras) fará, porque eu vou para junto do Pai”.
Antes de deixar esta passagem é necessário fazer duas observações
adicionais:
(1) Que ninguém diga que a obra da conversão não se pode nunca
atribuir em algum sentido ao homem. Cf. Tg. 5:20 - “Aquele que
converte o pecador do seu caminho errado”. Veja-se também Pv. 11:30 e
Dn. 12:3. Naturalmente que esta é uma forma muito relativa de falar. O
verdadeiro Autor da conversão sempre é o próprio Deus, mas Ele utiliza
o homem como agente. Os discípulos se consideram como ceifeiros
(veja-se sobre Jo 4:35–38).
(2) Certamente vale a pena observar que, segundo este grande dito
de nosso Senhor, as obras maiores são as espirituais. Os milagres no
âmbito físico estão subordinados aos (milagres) no âmbito espiritual:
aqueles servem para provar o caráter genuíno destes. Acaso Jesus, por
meio desta mesma comparação, que situa o espiritual muito acima do
físico, sugere que os milagres no âmbito físico irão pouco a pouco
desaparecendo quando já não forem necessários?
13, 14. E tudo quanto pedirdes em meu nome, isso farei, a fim de que
o Pai seja glorificado no Filho. Se me pedirdes alguma coisa em meu
nome, eu o farei. 313
A palavra todo abrange muito. Refere-se tanto às obras grandes
como às obras ainda maiores (do versículo 12). Em consequência, nesta
passagem fica de relevo a relação destas obras com a oração. Jesus

313
III A 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 666
ensina muito claramente que existe esta conexão. No livro de Atos os
milagres em ambos os âmbitos relacionam-se vez após vez com a oração
(At. 1:14 seguido dos grandes milagres de cap. Jo 2; 4:31; 6:6, 7; 9:40,
41; 10:4, 9; 12:5; 13:3; 16:25–34). 314
No entanto, só são respondidas as orações que se fazem em nome de
Cristo. Tais orações, por certo, não são egoístas, e sim buscam o
interesse do reino de Deus. Procedem da fé, estão de acordo com a
vontade de Deus — sempre supõem o «Não se faça a nossa vontade, e
sim a Tua» —, são para Sua glória. A oração em nome de Cristo é uma
oração que harmoniza com tudo o que Cristo revelou com relação a Si
mesmo. Seu nome é Sua autorrevelação em Suas obras; aqui
particularmente, Sua autorrevelação na esfera da redenção.
Não é difícil ver que tal oração sempre e com toda certeza terá
resposta, porque aquele que a pronuncia nunca deseja nada que Cristo
não deseje. E quando se responde tal oração, o Pai, que permanece
sempre no Filho, fará Suas obras. Por isso, o Pai será glorificado no
Filho. Os atributos esplendorosos de Deus brilharão em toda sua beleza
nestas obras e por meio delas.
Não é só que o crente recebe o que pede — quer dizer, se pede em
nome de Cristo, com o qua se cumprem todas as condições para que a
oração seja respondida —, mas que o próprio Cristo em pessoa
concederá esta humilde petição de seu discípulo; observe-se as palavras,
“Eu o farei”. Quanto ao significado do verbo pedir e seu sinônimo, veja-
se sobre Jo 11:22, e mais abaixo, sobre Jo 14:16.
Devido à índole extraordinária da promessa que o versículo 13
contém, é agora repetido no versículo seguinte. No entanto, há uma
diferença, porque agora diz aos discípulos que devem não só orar em
nome de Cristo, mas também a Cristo, “se me pedirdes alguma coisa em
meu nome”, etc. Em consequência, se forem tomados juntos os dois
versículos vemos que Cristo aqui Se apresenta a Si mesmo como:

314
Por isso, não posso estar de acordo com Lenski que nega enfaticamente isso; op. cit., pp. 966, 967.
João (William Hendriksen) 667
a. Aquele em cujo nome deve oferecer-se a oração.
b. O objeto da oração.
c. Aquele que ouve a oração.
15. Se me amais, guardareis os meus mandamentos. 315
Não estamos de acordo com os comentaristas que afirmam que não
há relação entre isto e o que precede. Nesta mesma noite — talvez fazia
uma hora ou mais — Jesus tinha proclamado Seu “novo mandamento”
(preceito); veja-se sobre Jo 13:34. Em Jo 14:1 e 14:11 foram
acrescentados preceitos similares. Além disso, acaso o contexto imediato
(versículos 12 e 14) não implica claramente que o Senhor deseja que
Seus discípulos continuem crendo nEle, orando em Seu nome, e
dirigindo suas orações a Ele? Não são estas afirmações preceitos
implícitos?
Mas elas devem ser observadas para ser uma bênção. Na frase
condicional “Se me amais, guardareis os meus mandamentos”, há três
palavras que preponderam: amar (_γαπάω), guardar (τηρέω), e
mandamentos (_ντολ_). Quanto à primeira, veja-se em Jo 21:15–17;
quanto à segunda, em Jo 8:51; e quanto à terceira, em Jo 13:34.
Resumindo os resultados do estudo destas palavras, pode-se
parafrasear a oração assim:
«Se me amardes com amor que seja inteligente e concreto,
aceitareis, obedecereis e guardareis as normas que estabeleci para regular
vossas atitudes internas e vossa conduta externa”.
A passagem implica que de certa perspectiva o amor precede a
obediência. Por isso, com relação a isso, veja-se o que se disse com
relação à ordem dos elementos na experiência cristã, veja-se sobre Jo
7:17, 18.
16. E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, a fim de que
esteja para sempre convosco. Os que observam os preceitos de Cristo
receberão uma grande bênção. Jesus, como mediador, fará uma petição

315
III B 2; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 668
para o bem deles. Preferimos a tradução “rogarei” à mais imprecisa
“orarei”. Como Jesus acaba de usar o verbo pedir ao falar das orações
dos discípulos (veja-se nos versículos 13 e 14), e agora passa ao verbo
rogar quando pensa em Sua própria oração em benefício deles, é óbvio
que a mudança de verbos foi intencional. Os discípulos não estão no
mesmo nível com o Filho unigênito de Deus. Eles devem implorar; Ele
tem o direito de pedir sobre a base de igualdade. No Novo Testamento
utiliza-se apenas uma vez (1Jo. 5:16) o termo rogar (_ρωτάω) com
relação às petições que o homem dirige a Deus, e essa única exceção se
explica facilmente. Por outro lado, ao falar de Suas próprias orações,
Jesus sempre utiliza rogar, nunca pedir (α_τέω). Veja-se também sobre
Jo 11:22.
Jesus promete que em resposta a este Seu rogo o Pai dará aos
discípulos outro Ajudador. No seguinte versículo este Ajudador é
chamado o Espírito da verdade.
A passagem indica claramente que o Espírito Santo não é só um
poder senão uma pessoa, bem como o Pai e o Filho. É outro Ajudador,
não um Ajudador diferente. A palavra outro indica um como Eu que
ocupará meu lugar, e fará meu trabalho. Em consequência, se Jesus é
uma pessoa, o Espírito Santo também deve ser uma pessoa. Além disso,
com frequência são-lhe atribuídos atributos pessoais (Jo 14:26; 15:26;
At. 15:28; Rm. 8:26; 1Co. 12:11; 1Tm. 4:1; Ap. 22:17). Sua relação com
o Pai e o Filho é descrito de tal natureza que se estes são pessoas,
também Ele deve sê-lo (Mt. 28:19; 1Co. 12:4–6; 2Co. 13–14; 1Pe. 1:1,
2).
Pela mesma razão, se Jesus é divino, também o Espírito deve ser
divino. Isto também é ensinado em todo o Novo Testamento, por não
dizer nada do Antigo. Assim, são dados a Ele nomes divinos (At. 5:4;
28:25; Heb. 10:15, 16); são-lhe atribuídos propriedades divinas; tais
como eternidade, onipresença, onipotência, onisciência (1Co. 2:10;
12:4–6: Heb. 9:14); e dEle se afirmam obras divinas (Mt. 12:18; Lc.
4:18; Jo 4:16; 1Co. 12:2–11; 2Ts. 2:13; 1Pe. 1:12). Passagens como Mt.
João (William Hendriksen) 669
28:19 e 2Co. 13:14 indicam claramente que as três pessoas são
completamente iguais. Todas possuem a mesma essência divina.
Segundo a passagem que estamos estudando, o Pai é quem dá o
Espírito Santo em resposta ao rogo do Filho. Procede tanto do Pai como
do Filho. O Pai o dá; o Filho o envia (Jo 15:26). É o Espírito do Pai; é
também o Espírito de Cristo (Mt. 10:20; Rm. 8:9; 1Co. 2:11, 12; e Gl.
4:6). O Espírito Santo é a pessoa em quem o Pai e o Filho Se encontram
entre Si. Além disso, aqui bem como em outras passagens, a trindade
econômica descansa sobre a ontologia: a manifestação do Espírito no dia
do Pentecostes, à qual se refere esta passagem, descansa em sua
processão eterna. Ambas são obras do Pai e do Filho.
O Espírito aqui é chamado outro Paracleto (παράκλητος). O termo
indica que é uma pessoa a que é chamado (neste caso, para os
discípulos) a fim de que ajude. A este respeito deveriam evitar-se
segundo nosso parecer, dois erros:
(1) O fato de que por sua origem a palavra seja adjetivo verbal
derivado da forma passiva (perfeita) do verbo παρακαλέω não deve
interpretar-se no sentido de que em consequência a palavra resultante
conserva sempre um significado passivo. Uma coisa é a derivação das
palavras, e outra a história de seu significado no uso concreto (tema de
estudo da ciência da semântica). Por certo que há relação entre as duas,
mas d modo algum são a mesma coisa. O contexto deve decidir. Em João
o que se sublinha é a ideia ativa, como o indicam todas as referências a
ele (veja-se parágrafo seguinte). O Paracleto faz certas coisas para os
discípulos (e, naturalmente, para a igreja).
(2) O significado da palavra não deve ser muito restringida. O
Espírito Santo é Ajudador em muitos aspectos: consola, efetivamente e
como o tema principal do capítulo 14 é o consolo, é provável que Jesus
tivesse isto em mente mais que qualquer outra coisa. Mas o Espírito
também (e em íntima relação com a obra de comunicar consolo) ensina,
guia à verdade (Jo 16:13, 14); faz lembrar aos discípulos o ensino de
Cristo (Jo 14:26); e habita neles como fonte de inspiração e vida (Jo
João (William Hendriksen) 670
14:17). O Pai e o Filho chamam o Espírito para que vá aos discípulos a
fim de consolar, admoestar, ensinar e guiar; em outras palavras, a fim de
que em qualquer condição o Paracleto proporcione a ajuda que for
necessária. Por isso, não conhecemos melhor tradução que a do termo
Ajudador. 316
Em 1 João 2:1 chama-se ao próprio Jesus Cristo de Paracleto. É o
Ajudador no sentido de Advogado ou Intercessor diante do Pai a favor
dos crentes que cometem pecado.
O sentido de Jo 14:16 é, em consequência, este: em lugar de
empobrecer-se, os discípulos de fato vão tornar-se mais ricos.
Naturalmente, um ajudador vai embora, mas Ele o faz com o propósito
de enviar a outro. Além disso, o primeiro Ajudador, embora fisicamente
ausente, continuará sendo Ajudador. Será seu Ajudador no céu. O outro
será seu Ajudador na terra.
O primeiro intercede pelos discípulos. Além disso, este segundo
Ajudador, uma vez que chegar (no Pentecostes), nunca se apartará da
igreja em nenhum sentido. Por isso, o Pentecostes nunca se repete (Veja-
se no seguinte versículo a distinção entre as preposições utilizadas nos
versículos 16 e 17 sobre a à relação do Espírito Santo com a igreja.)
17. O Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque
não no vê, nem o conhece.
O Paracleto é chamado aqui Espírito da verdade (genitivo
qualitativo). Isto, segundo Jo 16:13, significa que Ele, sendo a verdade
em pessoa, guia o seu povo para esse âmbito da verdade que se encarna
em Cristo e Sua redenção.

316
Podem-se consultar as seguintes obras para uma exposição atualizada do termo παράκλητος:
Deissmann, A., Light from the Ancient East, quarta edição, Nova York, 1922, p. 336. Goodspeed, E.
J., Problems of New Testament Translation, Chicago, 1945, pp. 110, 111. Johnston, G., artigo “Spirit,
Holy Spirit” em A Theological Word Book of the Bible, compilado por A. Richardson, Nova York,
1952, p. 245. Moulton, J. H., e Milligan, G., The Vocabulary of the Greek New Testament Illustrated
from the Papyri and Other Non-Literary Sources, Londres, Nova York, Toronto, segunda edição,
1915; a anotação correspondente a esta palavra. Sasse, H., “Der Paraklet im Joh. Evang.”, ZNTW, 24
(1925), 261. Snaith, H., “The Meaning of ‘The Paraclete’ ”, ExT, 57, Número 2 (Nov. 1945), 47ss.
João (William Hendriksen) 671
Dado o fato de que o mundo (κόσμος; veja-se nota 26
provavelmente com o significado de 6) segue a mentira de Satanás (veja-
se sobre Jo 8:44, 45; 14:30), carece de um órgão de discernimento
espiritual (não recebe o Espírito e Suas ações, 1Co. 2:12–14) e não
reconhece o Espírito (Mt. 12:22–37; At. 2:12–17), atribuindo as
influências da terceira pessoa da Santíssima Trindade a “Belzebu” ou a
“vinho novo” não pode (veja-se sobre Jo 3:3, 5) recebê-Lo. (Quanto ao
significado de θεωρέω, veja-se nota 33; e quanto a γινώσκω veja-se
sobre Jo 1:10, 31; 3:11: 8:28).
Vós o conheceis, porque ele habita convosco e estará em vós. Note-se
a diferença nos verbos e preposições (segundo o que provavelmente seja
a melhor versão):
Jo 14:16. “para que esteja com ou em meio de vós (μεθ_ _μ_ν)”.
Jo 14:17. “porque habita convosco a seu lado (παρ_ _μ_ν)”.
Jo 14:17. “estará em (dentro de) vós (_ν _μ_ν)”.
A interpretação destas cláusulas não é fácil. Como se disse antes,
terei que seguir lendo e relendo (veja-se sobre Jo 1:4). A não ser que se
faça assim, poderia chegar-se facilmente à seguinte explicação.
«Agora mesmo o Espírito Santo já habita no coração do Salvador
cheio do Espírito, e por isso em (ao lado de) eles. Como resultado disso,
inclusive agora pelo menos em princípio e em momentos de clareza
espiritual, reconhecem o Paracleto. Porém, mais tarde o Espírito
estabelecerá uma relação ainda mais íntima. O fato de sempre ter estado
com eles (παρά), no dia do Pentecostes, deveria estar no meio deles ou
com eles (μετά) e dentro (_ν) deles.
Embora tal interpretação seja tentadora, tem seus problemas,
sobretudo à vista do versículo 23 (RSV): “e viremos para ele e faremos
nossa morada com ele”. Aqui a relação “com ele” atribui-se
concretamente à dispensação do Espírito (observe-se a íntima conexão
entre o versículo 23 e os versículos 25, 26). Em consequência, não há
justificação para distinguir totalmente entre a atual relação com eles e a
relação futura no meio deles ou dentro deles. Tampouco está justificado
João (William Hendriksen) 672
o atribuir um significado muito restringido à preposição “com” (παρά),
como se indicasse necessariamente uma relação menos íntima. Quanto
ao verdadeiro significado de παρά em tais contextos veja-se sobre o
versículo 23.
Diante desta dificuldade alguns comentaristas interpretaram a
passagem que estudamos (Jo 14:17) como se Jesus quisesse dizer: «Já
agora tendes o Espírito no coração. Mais tarde, no Pentecostes, sabereis
mais a respeito dele”. Mas isto equivale a subestimar o significado do
Pentecostes.
Embora estejamos de acordo em que há diferença no significado
das preposições, provavelmente é muito melhor buscar a solução na
direção da seguinte paráfrase:
«O Pai lhes dará outro Ajudador (versículo 16), a fim de que esteja
convosco para sempre, o Espírito da verdade, que o mundo não pode
receber porque nem O vê nem O conhece. Vós, pelo contrário, uma vez
que o Espírito tiver chegado, vós O conhecereis porque habitará
convosco (no sentido explicado mais abaixo com relação ao versículo
23) e estará dentro de vós» (versículo 17). Esta leitura de um tempo
presente como se fosse futuro está totalmente justificada no contexto.
Jesus simplesmente Se projeta para o futuro tendo claramente utilizado o
tempo futuro no versículo 16 (“dará”, e cf. “para que”). Com o tempo
futuro já presente em Sua mente, pode utilizar agora o tempo presente
“vós o conheceis, porque ele habita convosco”, quando nós utilizaríamos
o futuro. O fato de que está pensando neste tempo futuro fica claro
novamente pelo uso do tempo futuro na cláusula seguinte: “E estará em
vós” (se a versão de N. N. do texto é correta).
No dia do Pentecostes, portanto, o Espírito Santo deveria habitar em
meio de, com, e em os discípulos. Entraria pessoalmente na igreja, que se
converteria em seu templo, sua morada permanente (veja-se sobre Jo
7:39; cf. 1Co. 3:16; 2Co. 6:16; Ef. 2:21). Como resultado, a igreja
descartaria as roupas infantis e se tornaria espiritualmente adulta.
converter-se-ia numa nação de profetas, um reino de sacerdotes, o corpo
João (William Hendriksen) 673
de Cristo (cf. 1Pe. 2:9; J1. 2:28; 1Co. 12:7ss.; Ef. 1:22, 23; 2:21, 22;
5:23–33). Como segundo resultado, nesse dia a igreja chegaria a ser
internacional. A parede divisória, o muro de separação entre os judeus e
gentios seria partido e estaria destinado a partir-se cada vez mais (Is.
54:2, 3; At. 2:9–11).
18. Não vos deixarei órfãos, voltarei para vós outros.
O que Jesus quer dizer é: «Minha partida não será como a de um
Pai cujos filhos ficam órfãos quando ele morre. Eu mesmo volto para vós
no Espírito”. O Espírito revela a Cristo, glorifica-O, aplica Seus méritos
aos corações dos crentes, torna eficazes Seus ensinos na vida deles. Em
consequência, quando o Espírito é derramado, Cristo verdadeiramente
volta.
Aqui no versículo 18 a referência não é primordialmente à segunda
vinda, e sim à volta de Cristo no Espírito no Pentecostes. Razões para
adotar esta posição:
a. O contexto precedente imediato refere-se ao derramamento do
Espírito.
b. Também o contexto seguinte imediato.
c. Só assim se pode explicar que os discípulos não fiquem órfãos.
d. Na consumação dos tempos Jesus virá ao mundo além de vir à
igreja. No Espírito, derramado no Pentecostes, escolhe como habitação
somente a igreja.
e. Um dos resultados da vinda à que aqui se faz referência no
versículo 18 é que os discípulos conhecerão que “eu estou no Pai e vós
em mim, e eu em vós”. O conhecimento da íntima união dos crentes com
Cristo foi fruto do Pentecostes: Rm. 6:3–11; 8:1; 12:5; 16:2, 3, 7, 11, 12,
13; 1Co. 1:30; 4:10, 15, 17; 7:39; 9:1; 11:11; 15:31, 58; 16:19, etc.
Por outro lado, também é verdade que a morada de Cristo através
do Espírito em Sua igreja é protótipo da morada de Deus no coração de
Seu povo (no céu e em última instância) no universo restaurado. Note-se
o seguinte:
João (William Hendriksen) 674
a. Neste mesmo contexto as palavras do versículo 23 (RSV): “e
viremos para ele e faremos nossa morada com ele”. têm seu eco em Ap.
21:3, onde se alude à comunhão perfeita de Deus com Seu povo no novo
céu e nova terra.
b. A expressão “naquele dia” (versículo 20) refere-se com
frequência a um longo período de tempo no qual um evento tipifica o
outro (ainda futuro).
c. O escorço profético, segundo o qual grandes eventos parecem
juntar-se como se fossem vistos de uma só olhada, não é incomum na
Escritura. Assim a primeira e segunda vinda de Cristo são vistas juntas
em Ml. 3:1, 2. A destruição de Jerusalém e o fim do mundo aparecem
juntos (e aquela é vista como prenúncio do segundo) no discurso
escatológico de Cristo (Mt. 24 e 25; Mc. 13; Lc. 21). De modo que,
também aqui nos vv. 18–21 a volta de Cristo no Espírito contém em suas
vísceras a promessa do retorno que a igreja ainda espera.
19. Ainda por um pouco, e o mundo não me verá mais; vós, porém,
me vereis; porque eu vivo, vós também vivereis.
Quanto ao significado da expressão “ainda por um pouco” veja-se
também sobre Jo 7:33; 12:35; 13:33; e 16:16–19. Note-se, contudo, que
a conotação desta expressão tem o caráter de culminação: o “ainda por
um pouco” reduz-se cada vez mais. Agora já não é meio ano, nem sequer
uns poucos dias. Agora é a noite entre a quinta-feira e a sexta-feira. na
sexta-feira Jesus morrerá na cruz. Depois disso o mundo (κόσμος
definido pelo próprio Jesus no versículo 24 no sentido daqueles que não
O amam; veja-se nota 26, significado (6)) já não O verá. Nem sequer
fisicamente poderão observá-Lo. no entanto, no Espírito os discípulos
realmente observarão a Jesus. (O verbo é θεωρέω; veja-se nota 33),
porque esse Espírito, a partir do Pentecostes, fará penetrar nos corações
destes homens e de seus seguidores os ensinos de Cristo referentes a Si
mesmo, de modo que o que o Senhor do céu faça na terra dia após dia
desfilará à sua vista (note-se o verbo mais uma vez).
João (William Hendriksen) 675
Agora, a fim de ver Jesus em Sua tarefa de levar a cabo Seu
programa triunfal na igreja por meio do Espírito, o homem deve estar
espiritualmente vivo. Os discípulos poderão ver ou observar a Jesus
porque estarão vivos. Viverão porque Cristo vive. Cristo, que é em Sua
própria pessoa o caminho, a verdade e a vida, é sempre a causa da vida
espiritual deles. Sim, sempre, porque é imutável; mas no que a eles se
refere, esta vida florescerá mais abundantemente no dia do Pentecostes
como também depois; em consequência, com relação a eles se utiliza o
tempo futuro: vós também vivereis.
20. Naquele dia, vós conhecereis que eu estou em meu Pai, e vós, em
mim, e eu, em vós.
Na nova dispensação, começando a partir do derramamento do
Espírito Santo, os discípulos (e aqueles que depois aceitarem a Cristo
com fé viva) reconhecerão e aceitarão com alegria a intimidade da
relação que existe entre o Pai e o Filho (como se viu em conexão com o
versículo 18). Então, também compreenderão que esta união é por sua
vez o modelo da relação entre Cristo e Seus seguidores. Por certo que
estas duas relações não são idênticas. Entre o Pai e o Filho há
basicamente (como a raiz da unidade na operação externa) uma unidade
de essência. Esta unidade é absoluta, incapaz de crescimento. Por outro
lado, entre o Filho e os crentes há uma unidade ética e espiritual. Nós O
amamos porque nos amou primeiro. Esta unidade pode crescer. No
entanto, diante do fato de que Cristo por meio do Espírito vive realmente
no coração dos crentes, aquela é verdadeiramente modelo desta.
A relação entre Cristo e os crentes é tão íntima que enquanto que
Ele é a videira, eles são os ramos. Ele é o pastor; eles as ovelhas. São
membros do corpo do qual Ele é a cabeça (veja-se sobre Jo 10:11, 14;
15:5; cf. 1Co. 12:27). Uma das passagens mais atrativas com relação a
isto é certamente Ap. 3:21, o qual mostra não só a intimidade e a ternura
da relação entre Cristo e os crentes, mas também indica, como o faz a
passagem que estamos examinando (Jo 14:20), que esta relação é reflexo
da união permanente e ontológica entre o Pai e o Filho. — Esta predição
João (William Hendriksen) 676
tem um cumprimento antecipado e final, como se viu com relação ao
versículo 18 (veja-se mais acima).
21. Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que
me ama.
O reconhecimento prazeroso e obediente da soberania de Cristo —
e em consequência, a observância (veja-se Jo 8:51) de Seus preceitos
(veja-se sobre Jo 13:34) — é a prova de discipulado genuíno. A estrutura
gramatical da frase é tal que se pode voltá-la ao reverso e conservar a
verdade, agora vista de um ângulo oposto: «Aquele que me ama, tem
meus mandamentos e os guarda». Também se pode formular assim: o
versículo 21, tal como está (com “aquele que tem os meus
mandamentos” como sujeito e “aquele que me ama” como predicado) é o
anverso do versículo 15 (“Se me amais, guardareis os meus
mandamentos”). Mas por que Jesus, tendo falado da dispensação do
Espírito nos versículos 16–20, volta ao pensamento do versículo 15, a
saber, à observância de Seus preceitos (os de Cristo)? Provavelmente
porque sem o Espírito, não é possível nenhuma observância dos
preceitos. Note-se que a simples posse destes preceitos não é suficiente.
A pessoa deve tê-los e guardá-los. Cf. Mt. 7:24; Tg. 2:14–26.
Agora, aquele que constantemente guarda os preceitos que tem
como posse permanente, ele (ele só, o pronome _κε_νος é enfático)
mostra com isso que ama constantemente ao Senhor Jesus Cristo (note-
se os três particípios presentes). Quanto ao significado da palavra que se
traduz por ama (em _κε_νός _στιν _ _γαπ_ν με; literalmente, “esse é
aquele que me está amando”) remetemos à explicação deste verbo e de
seu principal sinônimo com relação a Jo 21:15–17.
E aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o
amarei e me manifestarei a ele. Note-se o tempo futuro. Mas acaso o
amor do Pai não precede o nosso? Não é verdade que todo nosso amor
não é mais que a resposta ao Seu amor? Não somente é certo, mas isso é
exatamente o que o apóstolo João lembrava do ensino de Jesus (1Jo.
4:19). Mas por que não pode o amor de Deus tanto preceder como seguir
João (William Hendriksen) 677
ao nosso? Isto é exatamente o que faz, e isto é o belo do primeiro, ao
preceder o nosso amor, cria em nós o desejo intenso de guardar os
preceitos de Cristo; logo, ao seguir o nosso amor, recompensa-nos por
guardá-los. Nada poderia ser jamais tão maravilhoso como um arranjo
assim. Quanto a um comentário do amor do Pai pelo Seu povo veja-se
Rm. 8:28–32. Note-se também que nesse famoso capítulo Paulo muda de
ênfase, de modo que tendo falado do amor de Deus (nos versículos
indicados), imediatamente passa a enfocar a atenção no amor de Cristo
(Rm. 8:35–37). Conclui indicando que na realidade os dois são uma só
coisa (embora as duas pessoas divinas permanecem sempre distintas) de
modo que podem sintetizar-se na bela expressão “amor de Deus, que está
em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm. 8:39).
Assim também, Jesus aqui, tendo mencionado o amor do Pai,
imediatamente acrescenta, “e eu também o amarei”. Este amor
inteligente e que tem propósito determinado é feito manifesto pelo
Espírito. A expressão, “e me manifestarei a ele” realiza-se vez após vez
na vida dos crentes (veja-se sobre Jo 15:26; 16:13, 14; cf. 1Co. 2:10, 11;
12:3–7), de modo que possam dizer, “Mas o Senhor esteve a meu lado e
me deu forças” (2Tm. 4:17, 18). Veja-se também Sl. 23 e Ap. 3:20. Esta
manifestação de Cristo ao crente é sempre no Espírito e por meio da
Palavra.
22. Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: Donde procede, Senhor, que 317
estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?
O Judas que interrompe o Senhor não foi o homem que acabava de
sair da casa (Jo 13:30), a saber, não foi o Iscariotes (veja-se sobre Jo
6:71).318 Isto é acrescentado para maior clareza e para proteger a

317
A respeito de ὅτι; veja-se IV da Introdução.
318
Convém distinguir cuidadosamente entre os sete homens mencionados no Novo Testamento que
levam este nome (Judas). a. um irmão de Jesus, o escritor da carta canônica (Mt. 13:55; Mc. 6:3; Jd.
1). b. um antepassado de Jesus (Lc. 3:30). c. um galileu que promoveu a rebelião nos dias do
recenseamento (At. 5:37). d. um com quem Paulo hospedou-se em Damasco, cuja casa estava na rua
chamada Direita (At. 9:11). e. Judas Barsabás (At. 15:22ss.). f. Judas Iscariotes, o traidor. g. o Judas
mencionado em nossa passagem, que era também um dos Doze.
João (William Hendriksen) 678
memória de “Judas, o Grande” (veja-se I da Introdução). Pelo contrário,
era Judas, aquele que se menciona três vezes, o chamado Lebeu, cujo
apelido era Tadeu (provavelmente valente, coração de leão). Era “Judas,
irmão de Tiago” (Lc. 6:16; cf. At. 1:13). Nas quatro listas dos apóstolos
este Judas vem logo depois de Simão (o Zelote), pelo que alguns
deduziram que os dois eram irmãos ou amigos íntimos. (Note-se a
grande similitude entre estes discípulos tal como os pintou Da Vinci em
sua Última Ceia.) Embora nos escritos apócrifos seu nome apareça
muitas vezes, o Novo Testamento não refere nenhum outro incidente
com relação a ele mais que o aqui descrito.
Como ocorre com frequência no quarto Evangelho (veja-se sobre Jo
3:4; 4:11, 15, 33; 6:52; 8:22, 57; 11:12; 13:9) também neste caso um
ouvinte toma uma palavra ou expressão que Jesus utilizou, e a interpreta
ml. O ouvinte baseia sua pergunta nesta má interpretação.
A expressão concreta a que Judas deu a interpretação errada foi:
“Ainda por um pouco, e o mundo não me verá mais ... e me manifestarei
a ele (quer dizer, ao que me ama)” (Jo 14:19, 21). Jesus tinha falado
claramente a respeito de uma manifestação no Espírito, e por
conseguinte de índole espiritual. Judas, contudo, pensou provavelmente
numa manifestação pública por meio de poderosos milagres ou por meio
de uma espécie de teofania messiânica, como no dia do juízo vindouro
(cf. Jo 5:27–29). Abrigava ainda a esperança de que obras poderosas
feitas em público convenceriam o mundo? (A pergunta de Judas nos
lembra muito o conselho dado pelos irmãos de Jesus; veja-se sobre Jo
7:3, 4). Além disso, o fato de que algumas semanas depois, no exato
momento em que Jesus estava prestes a subir ao céu, os discípulos ainda
sonhavam com grandezas terrestres e nacionalistas (At. 1:6) faz-nos
pensar que o que Judas quis dizer aqui em Jo 14:22 foi: «Senhor, o que
pois passou que (em outras palavras, por que), en una forma dramática,
vais manifestar teu grande poder só a nós, e não também ao povo em
geral? Acaso esta última forma não seria muito melhor e mais efetiva?”
Quanto ao significado de κόσμος aqui veja-se nota 26 significado (3).
João (William Hendriksen) 679
Não cremos que a pergunta de Judas fosse apenas teórica, como se
dissesse: «Como é possível, no abstrato, que Te reveles de tal forma que
só Teus discípulos possam ver-Te?» O momento era muito grave para
perguntas puramente especulativas. “Manifesta-te a Ti mesmo — Teu
grande poder — ao mundo. Talvez seja tarde demais, faze uma grande
impressão, sai à luz. Ganha aplausos. Desbanca a oposição». Parece ter
havido algo desse espírito em Judas. De algum modo sente-se insatisfeito
pelas palavras ditas por Jesus (Jo 14:19, 21).
Já que basicamente o erro de Judas referia-se ao caráter da
prometida manifestação de Cristo, Jesus, embora ao que parece limitou-
Se a prosseguir o pensamento interrompido no versículo 21, dá outra
explicação deste conceito nas palavras dos versículos 23 e 24:
23. Respondeu-lhe Jesus: Se alguém me ama, guardará a minha
palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nossa morada
com ele [RSV]. 319
Quanto ao significado da primeira parte desta frase condicional
veja-se sobre o versículo 15. Aí se usou o plural, aqui o singular. A
forma da frase e o uso do singular enfatizam a responsabilidade que cada
discípulo tem de perguntar-se a si mesmo se pessoalmente ama a Jesus.
O termo minha palavra aqui no versículo 23 é explicado com meus
mandamentos no versículo 15.
Este amor, que tem a Jesus por objeto, recebe uma rica recompensa:
“meu Pai (note-se meu, e veja-se sobre Jo 1:14) o amará”, etc. A
pergunta “qual amor vem primeiro?” foi respondida com relação ao
versículo 21b. Note-se que a expressão ativa “e meu Pai o amará”,
corresponde à passiva “será amado por meu Pai” no versículo 21; por
isso, veja-se também sobre esse versículo.
E viremos para ele e faremos nossa morada com ele. No Espírito
(veja-se no contexto anterior) tanto o Pai como o Filho virão a (πρός,

319
III B 2; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 680
face a face com; veja-se sobre Jo 1:1) aquele que ama ao Senhor, e farão
Sua morada com (παρά: junto a) ele.
Esta presença é muito real. Pode-se sentir sua ação. O Espírito
convencerá do pecado, guiará ao arrependimento cotidiano, dará
segurança de salvação, comunicará a paz de Deus que ultrapassa todo
entendimento, admoestará, consolará; tudo isso com relação à Palavra.
Dessa forma Cristo prometeu manifestar-Se aos discípulos, mas não ao
mundo (veja-se sobre Jo 14:21, 22).
A cláusula, “e faremos nossa morada com ele”, (morada é μονή;
veja-se sobre Jo 14:2) indica uma relação muito estreita e íntima. O Pai e
o Filho, no Espírito e por meio dEle, estão sempre junto a (παρά) aqueles
que amam a seu Senhor, dispostos a consolar, a alentar, e a dar toda a
ajuda necessária. 320 Já se mostrou que a promessa desta vinda, embora se
refira primordialmente ao Pentecostes e à presente dispensação, recebe
seu cumprimento final no retorno de Cristo e no novo céu e nova terra
(veja-se sobre Jo 14:18).

320
É recompensante o estudo minucioso do uso de παρά no Evangelho de João. O significado da raiz é
ao lado de ou junto a (cf. nosso paralelo). Embora no Novo Testamento seja encontrado com
frequência com o acusativo (como era de esperar-se), nunca se encontra com esse caso em nenhum
dos escritos de João. Seguido do ablativo pode indicar agente (Jo 1:6), num contexto em que agência e
origem estão intimamente relacionados; mas usualmente denota origem, fonte. De modo que, Jesus é
o filho unigênito do (lado de) Pai, de quem recebeu instruções, ouviu palavras etc. (Jo 1:14; 5:44;
8:40; 9:16, 33; 15:15, 26). Veja-se também Jo 1:41; 4:9, 52; 5:34, 41; 6:45, 46; 7:29, 51; 8:26, 38;
10:18; 16:27; 17:7, 8. Com o locativo encontra-se nas seguintes passagens: Jo 1:40; 4:40; 8:38
(primeira cláusula); 14:17, 23, 25; 17:5; e 19:25. Exceto em Jo 19:25 (“estavam junto ou perto da cruz
de Jesus”) a palavra que segue à preposição indica uma pessoa (ou pessoas). Esta construção (com
locativo) provavelmente aproxima-se muito mais ao sentido original e etimológico da preposição: ao
lado de (ou junto a). No entanto, é evidente que não deve tomar-se isto muito literalmente: ao lado de,
graças à uma transição fácil, converte-se em na companhia de, em casa de (Jo 1:40); na presença de,
entre (cf. apud em latim, Jo 4:40; 8:38; 14:25; 17:5). Parece provável, frente ao contexto, que a ideia
de utilidade vai implícita no uso desta preposição em Jo 14:17 e 14:23. O Espírito Santo é o Paracleto
(note-se a preposição παρά agora de forma composta), o Ajudador, chamado ao lado dos discípulos
para ajudá-los em todas as formas possíveis. Permanece junto a eles, e por meio dEle, em gloriosa
união mística, tanto o Pai como o Filho fazem Sua morada junto a eles, dispostos sempre a ajudar e a
revelar seu amor. Não objetamos de forma alguma à tradução de παρά como com se entender-se neste
sentido. Veja-se também Gram. N. T., pp. 612–616.
João (William Hendriksen) 681
24. Quem não me ama não guarda as minhas palavras; e a palavra
que estais ouvindo não é minha, mas do Pai, que me enviou.
Quanto ao significado desta passagem veja-se sobre Jo 14:15, 21, e
23. Jesus mostrou repetidas vezes que as duas proposições que seguem
são certas: (a) Quem me ama guarda as minhas palavras. (b) Quem
guarda as minhas palavras me ama. Segue-se logicamente que “Quem
não me ama não guarda as minhas palavras”. Estas palavras podem-se
tomar de forma separada, como outros tantos mandamentos. Também
podem considerar-se como uma unidade: a palavra de Cristo, seu ensino,
como a norma de doutrina e vida. Note-se que aqui no versículo 24
temos primeiro o plural, logo o singular.
A última parte do versículo explicou-se com relação a Jo 7:16, que
contém o mesmo pensamento. Rejeitar os preceitos de Cristo é algo
muito sério, porque: (a) Tal pessoa não rejeita a palavra de um simples
homem mas de Deus (Pai e Filho são um em essência; veja-se sobre Jo
10:30). (b) O Senhor não Se manifestará em Seu amor a uma pessoa
assim (veja-se sobre Jo 14:21, 23).

JO 14:25–31

14:25, 26. Estas coisas vos tenho dito enquanto estava ainda
convosco. Mas o Ajudador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em
Meu nome, Ele vos ensinará todas as coisas, e vos lembrará todas as
coisas que Eu vos disse [NKJV].
Jesus parece demorar-se com Seus discípulos o máximo possível.
Parece despedir-Se deles vez após vez; no entanto, vez após vez fica um
pouco mais. Há um tom de despedida nas palavras, “Estas coisas vos
tenho dito enquanto estava ainda convosco”. No entanto, o Mestre Se
demora. Cf. Jo 14:31; 15:11; 16:1, 4, 25, 33. Estas coisas, em vista de
enquanto estava ainda convosco, que sem dúvida é muito geral, não se
pode restringir às palavras pronunciadas nessa noite, e sim obviamente
indicam todo o seu ensino até esse preciso momento. Agora Jesus
João (William Hendriksen) 682
distingue (note-se que não apresenta um contraste; δε deveria traduzir-se
aqui além de ou e ou agora não mas ou mas) entre seu próprio ensino
durante os dias de sua humilhação, por um lado, e Seu próprio ensino por
meio do Espírito na glória de Sua exaltação, por outro. A ideia central
dos versículos 25 e 26 pode ser sintetizado assim:
«Enquanto habitava fisicamente convosco vos comuniquei certos
ensinos que depois de minha separação física de vós esclarecerei mais
por meio do Espírito (cf. 1Co. 2:13). Além disso, então vos ensinarei
tudo o que precisais saber para realizar a obra de testemunho que vos foi
atribuída».
Note-se os nomes dados à terceira pessoa da Trindade: o Ajudador
(παράκλητος); veja-se sobre Jo 14:16; o Espírito Santo, santo porque,
não só está completamente livre de pecado e possui todos os atributos
morais em grau infinito — o que, certamente, é verdade também com
relação ao Pai e ao Filho —, mas também porque Ele 321 é quem leva a
parte principal na obra de fazer santos a outros (santificação). Também é
descrito como Aquele “a quem o Pai enviará em meu nome (o de
Cristo)”. Cf. At. 2:33. O envio do Espírito Santo e também Sua obra na
terra harmonizam por completo com o nome de Cristo, a saber, com Sua
autorrevelação na esfera da redenção. A comparação entre Jo 14:26, “a
quem o Pai enviará em Meu nome”, e Jo 15:26, “a quem Eu vos enviarei
do Pai”, esclarece completamente que o envio histórico do Espírito Santo
no dia do Pentecostes (veja-se At. 2) atribui-se tanto ao Pai como ao
Filho. Acaso esta efusão histórica não implica que também a processão
eterna, supra histórica, do Espírito deve considerar-se como uma ação na
qual cooperam o Pai e o Filho?
Note-se que a promessa contém dois elementos, e que com toda
probabilidade o primeiro todas as coisas (πάντα) abrange mais que o

321
Observe-se “o Espírito Santo, a quem”. enfatiza-se aqui o fato de que o Espírito Santo seja uma
pessoa, porque embora πνεῦμα seja neutro, o pronome masculino ἐκεῖνος utiliza-se para introduzir
Suas atividades. Além disso, somos informados que este espírito ensina, lembra, testifica, vem,
convence, guia, fala, ouve, prediz, etc. Todas estas atividades são pessoais.
João (William Hendriksen) 683
segundo. Primeiro, o Espírito lhes ensinará todas as coisas necessárias
(não só para sua própria salvação, mas também aqui em concreto, para a
obra de testemunho (cf. Mt. 10:10; 1Jo. 2:27). Isto inclui certas coisas
que Jesus não tinha ensinado concretamente durante os dias de Sua
humilhação, as quais omitiu por uma razão muito prudente (veja-se sobre
Jo 16:12). Em segundo lugar, o Espírito lhes lembrará tudo o que Ele
mesmo lhes havia dito. Como já se indicou, por meio de ambos Jesus
Cristo cumpre Seu ofício profético, primeiro na terra, logo do céu.
Os dois todas as coisas podem considerar-se como círculos
concêntricos, porque também por meio da lembrança do antigo (“vos
lembrará todas as coisas que Eu vos disse”), o Espírito ensinará o novo.
Deve ter-se em mente que entre o tempo em que Jesus pronunciou estas
palavras e o momento em que foi derramado o Espírito Santo ocorreram
os seguintes eventos significativos: a crucificação, ressurreição,
ascensão, e coroação de Cristo. À luz destes grandes acontecimentos a
obra do Espírito Santo de lembrar aos discípulos os antigos ensinos de
Jesus implicaria naturalmente um novo ensino, ou se preferir-se,
implicaria numa compreensão mais profunda daquilo que, quando se
ouviu pela primeira vez, quase não se havia entendido. Como prova
oferecemos as seguintes passagens: Jo 2:22; 12:16. Inclusive então,
certamente, a direção especial do Espírito foi necessária para lhes fazer
compreender o significado exato das palavras de Cristo à luz de Sua
expiação e glorificação.
27. Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como a dá o
mundo.
Por meio de todas as palavras de consolo que precedem ao
versículo 27 Jesus trata de comunicar paz aos corações dos discípulos. É
como se Jesus dissesse: “Esta paz é tanto um legado que deixo (_φίημι)
como um tesouro que dou (δίδωμι)”. Certo que Jesus dá esta paz com
Sua morte expiatória na cruz, com a qual produz a reconciliação. No
entanto, dizer que a palavra paz tal como se usa aqui no versículo 27 é
puramente objetiva e não tem nada que ver com o sentimento subjetivo
João (William Hendriksen) 684
no coração do crente é ir longe demais. Que a paz neste caso indica
ausência de um sentimento turbador e atemorizador fica claro pelas
palavras que seguem imediatamente, ou seja, Não se turbe o vosso
coração, nem se atemorize. Como se disse repetidas vezes neste
comentário, a fim de determinar o significado das palavras, frases e
cláusulas, deve continuar-se lendo. Isto se aplica também neste caso.
Mas também o que antecede tem importância para determinar o
significado. À luz de todo o capítulo cremos que a palavra paz aqui em
Jo 14:27 indica aquela ausência de inquietação espiritual e aquela
segurança de salvação e da presença amorosa de Deus sob toda
circunstância que resulta do exercício da fé em Deus e em Seu Filho (Jo
14:1) e da contemplação de Suas misericordiosas promessas (veja-se
especialmente Jo 14:1, 2, 3, 12–14, 16–21, 25, 26). É a paz da qual Paulo
fala em Fp. 4:6, 7. Quando Jesus diz “Não vo-la dou como a dá o
mundo”, o contexto esclarece que o que quer dizer é «dou minha paz»,
que o mundo nunca pode dar, por mais que diga “a paz seja contigo”, ou
“vá em paz”. O contraste está no próprio dom e não só na forma em que
se comunica este dom. O mundo pode dar prazer externo, descanso físico
e deleite, honra, riqueza; mas nunca essa segurança íntima que é o
reflexo da sorriso de Deus no coração de Seu filho.
Quanto ao significado de, “Não se turbe o vosso coração, nem se
atemorize”, veja-se em Jo 14:1. Quando a paz que Cristo comunica (e
que ganhou para nós mediante Sua expiação) entra no coração, fica
excluída a ansiedade. “Nem se atemorize”. É o único caso em que se usa
este verbo no Novo Testamento (mas veja-se 2Tm. 1:7 quanto ao
substantivo). Encontra-se em Aristóteles, nos papiros, e com muita
frequência na LXX. Significa ser covarde, tímido ou temeroso. Diferente
de φόβος, que se utiliza com frequência num bom sentido (temor
piedoso), δειλία com o que se relaciona o verbo δειλίαω, nunca se utiliza
num sentido bom.
João (William Hendriksen) 685
28, 29. Ouvistes que eu vos disse: vou e volto para junto de vós. Se
me amásseis, alegrar-vos-íeis de que eu vá para o Pai, 322 pois o Pai é
maior do que eu. Disse-vos agora, antes que aconteça, para que, 323
quando acontecer, vós creiais.
Jesus tinha estado dizendo várias vezes “vou” (veja-se Jo 14:2, 3,
12) e também, “venho a vós” (veja-se Jo 14:3, 18, 19, 21, 23). Se os
discípulos tivessem progredido mais em seu amor pelo Mestre, não
teriam estado tão cheios de temores angustiantes. Alegraram-se no fato
de que esta partida do Senhor era, afinal de contas, para que fosse ao
Pai. Embora, por certo, como Filho unigênito era totalmente igual ao Pai
quanto à essência (Jo 10:30), no entanto, como Mediador entre Deus e o
homem, homem Ele mesmo, era inferior. Por isso, quando como
recompensa por Seu trabalho, o Varão de Dores dirige Seu caminho para
Aquele que era maior que Ele — porque Deus sempre é maior que o
homem — isso constitui uma grande recompensa. Cf. também 2Co. 8:9;
Fp. 2:8–11; Hb. 12:2.
Quanto ao significado de Jo 14:29 veja-se sobre Jo 13:19. Aqui no
versículo 29 a aplicação é um pouco diferente. A cláusula, “quando
acontecer”, refere-se agora à ida de Cristo (morte, ressurreição,
ascensão) e volta (no Espírito no Pentecostes; com relação à igreja em
geral, isto tem outra aplicação com relação à Parousia).
Em seus pensamentos e reflexões os discípulos se concentraram
muito em si mesmos. Se tivessem amado suficientemente a Jesus, teriam
se dado conta de que esta partida ia trazer-lhe glória. Vendo isto, teriam
se alegrado.
30. Muitíssimas coisas tinham sucedido nesta noite. O Mestre e
Seus discípulos tinham estado no Cenáculo durante muito tempo, talvez
várias horas. O lavamento dos pés dos discípulos, a ceia pascal, as
predições com relação a Judas, Pedro e os Onze, a instituição da Ceia do

322
II C; veja-se IV da Introdução.
323
Ou a fim de que (resultado); a respeito de ἴνα veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 686
Senhor, as palavras do capítulo 14, tudo isso (e talvez muito mais que
não foi referido) pertence à primeira parte da noite da traição.
E agora quase chegou o momento de sair da habitação, como Jesus
talvez indica ao dizer, Já não falarei muito convosco. O próprio fato, no
entanto, de que diga, “não falarei muito convosco”, implica que ainda
restam algumas coisas por discutir, quer seja no Cenáculo ou no caminho
ao Getsêmani. A razão pela qual resta pouco tempo para seguir
conversando dá-se na cláusula, porque aí vem o príncipe do mundo
(quanto ao significado deste título veja-se em Jo 12:31). Jesus estava
consciente dos passos de Judas, dos soldados romanos, da polícia do
templo, dos membros do Sinédrio, todos eles inspirados por Satanás.
Nestes momentos começavam a pôr-se em movimento e estavam a
caminho para capturar a Jesus. Naturalmente, não tinham nenhum direito
a fazê-lo. Aproximavam-se com espadas e porretes (Lc. 22:52), com
“lanternas e tochas, e com armas” (Jo 18:3), como se o seu objetivo fosse
buscar e capturar um criminoso perigoso. E — quanto a este significado
de καί veja-se sobre Jo 1:5b —, ele nada tem em mim, diz Jesus; na
realidade, nada absolutamente, porque nEle não havia culpa. Veja-se em
Jo 18:38; cf. Is. 53:9. Diante disto, vai resistir Jesus esta tentativa de
capturá-lo? A resposta dá-se no versículo seguinte:
31. Contudo, assim procedo para que o mundo saiba que eu amo o
Pai e que faço como o Pai me ordenou. 324 Jesus diz aqui que não resistirá,

324
Há pouca diferença entre seguir a pontuação como aparece no texto de N. N. (que também
preferimos), de modo que, “Levantai-vos, vamo-nos daqui”, converte-se numa frase separada, e o que
outros preferem (veja-se o aparato textual em N. N.), quer dizer, colocar uma vírgula ou ponto e
vírgula depois de “me ordenou”, com o qual todo o versículo 31 forma uma frase. Em ambos os casos
a passagem todo encerra um pensamento central: «não fujamos, mas saiamos para encontrar-nos com
os representantes de Satanás, porque ao fazê-lo assim desejo mostrar ao mundo que amo o Pai».
Poderia objetar-se que a conjunção καί exige que todo o versículo se leia como uma só frase, e que do
contrário não teria sentido, pois ficaria mais ou menos como segue: “mas para que o mundo conheça
que amo ao Pai, e (καί) como o Pai me ordenou, assim faço …” Isto exigiria uma conclusão, que os
que favorecem esta posição encontram nas palavras “Levantai-vos, vamo-nos daqui”. Objeções:
a. A transição da primeira pessoa (“amo, faço”) à segunda (“levantai-vos”) não é normal num
contexto assim. Esperar-se-ia a primeira pessoa (quer seja no singular ou em plural), e não a segunda.
João (William Hendriksen) 687
mas que sairá corajosamente a encontrar-se com os representantes de
Satanás. Ele o fará porque entrega sua vida voluntariamente (Jo 10:11).
Isto estava de acordo com o mandato do Pai (veja-se sobre Jo 10:18). E o
mundo o vai ver. Muito no profundo de seu coração estes homens ímpios
saberão que esta conduta de Jesus — tão estranha e pouco frequente, sair
corajosamente a entregar-se aos aprisionadores — procede do fato de
que ama ao Pai, como tantas vezes afirmou. Saberão, mas, certamente,
nunca o admitirão!
De acordo com esta decisão expressa — ou seja, sair ao encontro do
inimigo — Jesus acrescenta: Levantai-vos, vamo-nos daqui. Este
mandamento conduziu a controvérsias intermináveis entre os intérpretes.
A dificuldade está no fato de que segundo Jo 18:1 Jesus e Seus
discípulos na realidade não saíram senão até depois de que houveram
dito as palavras dos capítulos 15, 16 e 17. As soluções que consideramos
menos prováveis estão na nota. 325 Mas é esta dificuldade tão grande? Por

b. Esta interpretação parece basear-se na ideia errônea de que καί deve significar e, e que todos os
καί do grego devem traduzir-se ao português. Mas isto não é assim. Onde o grego está influenciado
pelo hebraico ou pelo arameu devemos estar sempre alerta diante dos καί que devem traduzir-se por
uma conjunção diferente de e (o que se costuma ser assim inclusive prescindindo da influência
semítica) ou devem deixar-se sem traduzir. O não reconhecer isto conduziu a muitas conclusões
erradas, por exemplo, na interpretação de Rm. 9:23 (note-se o καί no começo desse versículo). Em Jo.
14:31, preferimos ou traduzir kaí como mesmo assim, ou omiti-lo completamente.
325
Mencionamos as seguintes:
(1) O que Jesus quer dizer aqui em Jo 14:31 é: «levantai-vos, saiamos do Cenáculo (ou: da casa)».
Saiu imediatamente. As palavras dos capítulos 15 e 16 foram ditas fora. Também a oração do capítulo
17 foi pronunciada fora. O pequeno grupo deteve-se no caminho.
Objeção: em nenhuma parte encontramos menção alguma desta suposta parada no caminho. E se
não se detiveram em algum lugar, é difícil ver como se pôde dizer a oração enquanto caminhavam.
Sem dúvida, é muito mais natural presumir que o ensino de todos estes capítulos (14–17) pertence ao
Cenáculo.
(2) O significado é: «levantai-vos, retiremo-nos da mesa».
Objeção: Embora não pretendamos que esta explicação seja impossível, contudo, pareceria que o
retirar-se da mesa já está implícito na indicação, “Levantai-vos”.
(3) O grego deformou o original escrito em aramaico, que tinha “para que o mundo conheça que
amo ao Pai, e que como o Pai me mandou assim faço, levantar-me-ei e sairei”.
Objeção: Não faz falta falar de tradução errônea. Além disso, “levantar-me-ei e sairei”, está fora
de lugar quando todo o grupo está prestes a levantar-se e sair.— Aderimo-nos ao texto grego.
João (William Hendriksen) 688
que não atribuir a estas palavras seu significado mais natural, e as
interpretar como equivalentes a um mandato de que os discípulos se
levantem de suas liteiras, junto com uma exortação que significa, “e
saiamos daqui, quer dizer, deste Cenáculo; ou seja, desta casa”? Isto
tampouco implicaria que o pequeno grupo sai imediatamente da casa!
Quantas vezes não sucede inclusive entre nós os ocidentais que entre a
exortação, “vamo-nos”, e a saída de fato transcorra um período de dez
minutos? Muito se pode dizer durante esses dez minutos. Agora, deve
ter-se em mente o seguinte:
a. Neste mesmo contexto Jesus implica claramente que ainda há
coisas que deseja dizer aos discípulos (Jo 14:30).
b. Falando com calma e premeditação, sem nenhuma tentativa de
apressar-se, Jesus pode ter pronunciado o conteúdo dos capítulos 15, 16
e 17 num período de dez minutos. Quando um grupo esteve junto por
várias horas, o que são dez minutos?
c. Além disso, não se deve excluir a possibilidade de um arranjo
temático (em lugar de um estritamente cronológico). De modo que, o
capítulo 15 “Eu sou a videira verdadeira”, pode ter sido dito um pouco
antes, com relação à instituição da Ceia do Senhor (o beber do “fruto da
videira”). Neste caso o escritor original, João, simplesmente inseriu o
material do capítulo 15 porque falou-se nessa noite. Em Lucas ocorre
muitas vezes a distribuição temática (em lugar da cronológica).
A distribuição de João é mais cronológica, mas não se deve excluir
totalmente a possibilidade de uma distribuição meramente temática.
Cremos, por conseguinte, que o capítulo 15 falou-se ou durante a
instituição da Ceia do Senhor ou muito pouco depois (mas com uma
clara referência à mesma).

(4) Houve uma colocação errônea. Assim, p. ex., T. Nicklin, “A Suggested Dislocation in the Text
of St. John XIV–XVI”, ExT, 44 (maio, 1933), 8. Objeção: Não há nada no texto, tal como chegou a
nós, que prove um deslocamento literal. No entanto, um acerto temático sim é possível.
João (William Hendriksen) 689
Em consequência, procederemos sob o suposto de que o conteúdo
dos capítulos 14–17 forma uma unidade, e que tudo isso foi falado nessa
noite no Cenáculo.

Síntese do capítulo 14
O Filho de Deus instrui meigamente a Seus discípulos. Uma
palavra de consolo.

Reconhecemos dez causas de consolo, que se podem resumir assim:

I. Versículo 1. Continuais confiando em Deus; continuai também


confiando em Mim. (Isto implica: seguirei saindo ao passo de todas as
suas necessidades. Que vossos corações não sigam turbados).

II. Versículo 2. Minha partida é com o propósito de preparar tudo


em vista de uma bendita reunião na casa do Pai com Suas muitas
mansões.

III. Versículo 3. Voltarei e vos tomarei junto a mim. Então estareis


sempre onde eu estiver.

IV. Versículos 4–11. Embora desaparecerá Minha presença visível,


serei sempre para vós o (único) caminho ao Pai (“o caminho e a verdade
e a vida”).

V. Versículos 12–14. Como consequência de Minha ida ao Pai não


só fareis obras grandes mas também maiores. Qualquer coisa que
pedirdes em Meu nome, Eu o farei.
João (William Hendriksen) 690
VI. Versículos 15–17. Minha partida física é com o propósito de
vos enviar outro Ajudador que nunca vos deixará, ou seja, o Espírito da
verdade. O Pai vos dará isso em resposta ao Meu rogo.

VII. Versículos 18–24. Nesse outro Ajudador Eu mesmo voltarei


(espiritualmente) a vós, quer dizer a todos os que Me amam, não ao
mundo.

VIII. Versículos 25, 26. Este outro Ajudador, o Espírito Santo, vos
ensinará todas as coisas, e vos lembrará tudo o que Eu mesmo vos disse.

IX. Versículo 27. Deixo como o presente maior de todos (presente


maior que qualquer que o mundo possa jamais dar) a Minha paz.

X. Versículo 28. Vou ao Pai. Se me amais o suficiente, isto vos


encherá de alegria.

Os versículos 29–31 (veja-se os comentários acima) constituem a


conclusão de todo o capítulo.
João (William Hendriksen) 691
JOÃO 15
Pontos básicos com relação à alegoria da videira e os ramos

Podemos começar repetindo o que se disse com relação à alegoria


do Bom Pastor: “os comentaristas diferem muito na interpretação desta
sublime alegoria”.
Provavelmente é melhor ler de uma sentada estes versículos, do
princípio até o fim, várias vezes, antes de tentar qualquer explicação. Os
primeiros versículos não se podem entender bem a não ser que se vejam
à luz de tudo o que segue e, acrescentaríamos, de tudo o que precedeu
durante esta mesma noite. Em consequência, para que não percamos de
vista o bosque (o espírito geral da alegoria) ao estudar as árvores
(passagens independentes), consideramos aconselhável dar uma “olhada
ao tudo”. Só então, ao continuar lendo, esclarece-se o significado de
cada uma das passagens.

I. A ocasião desta alegoria.


O fato de que antes de Seu julgamento e crucificação fosse esta a
última oportunidade que Jesus teve de advertir os discípulos que não
fossem como Judas mas que permanecessem na fé, que manifestassem
em sua vida não a obra de Satanás mas os frutos do Espírito Santo, e o
fato adicional de que a fertilidade da videira (planta muito comum na
Palestina dessa época) sugeria facilmente o dar frutos espirituais,
explica por que Jesus pronunciou esta alegoria. Além disso, a ilustração
não era totalmente nova ou estranha. Era natural que o israelita,
conhecedor do Antigo Testamento, associasse a fertilidade tanto natural
como espiritual com a ideia da videira (Sl. 80:8, 14; 128:3; Is. 5:1–7; Ez.
17:8; Jl. 2:22; Zc. 8:12; Ml. 3:11). Também era bem conhecido que às
vezes as videiras não davam o fruto desejado, bem como a aplicação
João (William Hendriksen) 692
desta verdade ao dar frutos espirituais (Is. 5:4; Jr. 2:21). Tudo isso deve
ter-se em mente em qualquer tentativa de interpretar João 15:1–11.
No entanto, é quase seguro que houve uma razão adicional para
utilizar esta alegoria. 326 Sua principal metáfora provavelmente foi
sugerida pelo “fruto da videira” ao qual Jesus Se referiu ao instituir a
Ceia do Senhor. Veja-se sobre Jo 15:1.

II. Seu significado básico.


Deveria colocar-se a ênfase onde realmente corresponde. Embora
Jesus fale a respeito de várias coisas, tais como a videira verdadeira, o
agricultor, os ramos, dar fruto, o cortar e queimar os ramos estéreis, etc.,
no entanto há uma lição principal:
Assim como um ramo dá fruto só se permanecer na videira, assim
também os crentes produzirão fruto espiritual só se permanecerem em
Cristo. Em consequência, o mandato que subjaz a toda a seção é
Permanecei em Mim para que deis fruto abundante. Fica claro que esta
é, de fato, a ideia principal pela frequência com que ocorrem as palavras
dar fruto e permanecer.

III. Os dois grupos que se indicam.


A. Estes dois grupos são (metaforicamente):
1. Ramos que dão fruto (Jo 15:2b, 5, 8).
2. Ramos que não dão fruto (Jo 15:2a, 6).
B. São tratados como segue:
1. Os ramos que dão fruto são purificados (Jo 15:2b).
2. Os ramos que não dão fruto são cortados, deixados secar,
recolhem-se, jogam-se no fogo, e se queimam (Jo 15:2a, 6).
C. A quem se representa com estes dois grupos?

326
A. T. Robertson, Word Pictures in the New Testament, New York and London, 1932, Vol. V., p.
257.
João (William Hendriksen) 693
Repetidas vezes no quarto Evangelho aqueles a quem se proclamam
as boas novas e que, em consequência, em certo sentido, “têm a luz”, são
divididos em dois grupos: a. os que aceitam a mensagem; e b. os que o
rejeitam (veja-se sobre Jo 1:9; 12:35, 36).
Temos aqui algo semelhante? Os antecedentes históricos
certamente apontam nessa direção. Judas tinha saído. sua relação com
Jesus tinha sido (só externamente, na aparência) muito íntima (veja-se
sobre Jo 13:18). Mas agora Judas estava a caminho da destruição. Não
pareceria natural então que, ao falar de ramos que não dão fruto, são
cortados, deixam-se secar, recolhem-se, jogam-se no fogo, e se
queimam, Jesus pensasse em homens que, como Judas, uma vez
estiveram em íntima relação com Ele e, contudo, O tinham abandonado,
e estavam a caminho da sua destruição eterna? E também não pareceria
natural que, ao falar de ramos que dão fruto, pensasse nos outros
discípulos, e em geral, em todos aqueles que ao permanecer nEle
produziriam muito fruto espiritual?
Esta conclusão com relação ao significado das duas metáforas
(ramos que dão fruto, ramos que não dão fruto) fortalece-se muito com
uma passagem idêntica que se encontra em dois relatos, que descrevem
os eventos desta mesma noite. Aqui no capítulo 15 não se explica esta
passagem; mas no capítulo 13, onde também se encontra, se acrescenta
a explicação. A passagem à qual nos referimos é:
“Vós estais limpos” (_με_ς καθαροί _στε Jo 13:10; 15:3).
Em Jo 13:10, 11 se amplia isto como segue:“ Ora, vós estais
limpos, mas não todos. Pois ele sabia quem era o traidor. Foi por isso
que disse: Nem todos estais limpos.”. — Isto pareceria resolver a questão
referente à identidade dos dois grupos. O grupo a. (ramos que dão fruto e
são purificados) representa a todos aqueles que não só entram em íntimo
contato com Cristo e o evangelho, mas também (pela graça soberana de
Deus e através da fé), O aceitam. O grupo b. (ramos que não dão fruto e
são cortados e queimados) representa a todos os outros que estiveram em
contato íntimo com Cristo e o evangelho.
João (William Hendriksen) 694
Os dois grupos têm em comum o contato íntimo com Cristo e o
evangelho. Falando nos termos da metáfora, ambos os grupos de ramos
estavam na videira (veja-se, contudo, nota 331). É fácil de ver que o fato
se tivesse estado na videira (ou, deixando de lado a metáfora, em Cristo)
não se refere necessariamente à união espiritual e salvadora com Cristo.
Nem todos os que estão na aliança são da aliança. Nem todos os que
foram batizados em Moisés se salvaram (1Co. 10:1–5). Fica claro então
que, ao falar dos homens que em outro tempo tinham estado nEle, mas
que logo se apartaram, Jesus tinha em mente não uma possibilidade
puramente hipotética mas sim uma situação repetida na vida real. Isto se
confirma em Jo 15:6 - “Se alguém não permanecer em mim, será lançado
fora, à semelhança do ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o
queimam”; onde os verbos no indicativo mostram que se supõe que estas
coisas de fato sucedem. Em nenhum sentido passagens como Jo 15:2 e
15:6 sugerem que se pode cair da graça, como se os que numa ocasião
realmente foram salvos finalmente perecessem. Esta alegoria ensina
claramente que os ramos que se cortam e queimam representam a
pessoas que nunca produziram fruto, nem sequer quando estavam “em”
Cristo. Em consequência, nunca foram verdadeiros crentes; e em seu
caso a relação com a videira, embora estreita, foi puramente externa. Em
consequência, não há nada aqui (em Jo 15:1–11) que esteja em conflito
de forma alguma com Jo 10:28 (veja-se sobre essa passagem). Os
verdadeiros crentes do capítulo 15 estão representados pelos ramos que,
permanecendo sempre na videira, dão fruto, mais fruto, muito fruto.
Estes nunca perecem!
João (William Hendriksen) 695
JO 15:1–11

15:1. Eu sou a videira verdadeira. Tenha-se em mente que isso foi


dito durante na noite da ceia pascal; mais concretamente, quer seja
durante a instituição da Ceia do Senhor ou muito pouco depois. Essa
noite viu-se na mesa (entre outras coisas) o cordeiro, o pão, e o fruto da
videira, ou seja, o vinho. Nesta mesma habitação esteve presente
Alguém sem o qual estas coisas tinham pouco significado real (exceto
histórico). Não puderam os discípulos ver isto? No entanto, quanto ao
cordeiro, não havia dito o Batista, apontando a Cristo “Eis o Cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo?” Assim também, Jesus agora pede a
estes homens que prescindam dos símbolos puramente físicos do pão e o
vinho para ver nEle a realidade, o cumprimento, o grande Antítipo.
Tendo tomado na mão uma parte de pão disse, “Isto é o meu corpo …
fazei isto em memória de mim” (Lc. 22:19; 1Co. 11:24). E com relação
ao fruto da videira disse: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue.
Fazei isto todas as vezes que a beberdes, em memória de mim … eu sou
a videira verdadeira” (1Co. 11:25 e Jo 15:1, a passagem que agora se
estuda). Neste sentido veja-se também Mt. 26:29; 14:25; Lc. 22:18, que
mostram claramente que, durante a instituição da Ceia do Senhor Jesus
falou a respeito do “fruto da videira”. 327
Nem a videira da qual o vinho da comunhão foi tomado, nem
tampouco Israel (que nas moedas do período macabeu representava-se

327
Muitos expositores não veem conexão nenhuma entre Lc. 22:14–19 e Jo 15:1–11. No entanto, os
que dentre eles creem que as palavras de João 15 se disseram durante a noite da Ceia do Senhor — a
mesma ceia com relação à qual Jesus falou a respeito de fruto da videira e a respeito “do cálice da
nova aliança no meu sangue” — terão dificuldade em explicar por que concebem no entanto a
exposição “eu sou a videira verdadeira” como sem relação alguma com o sacramento recém-
instituído. Esta concepção que separa totalmente o que quase com certeza deve ir junto, parece pouco
realista. Por outro lado, deve admitir-se que quem busca prova absoluta de que a exposição de João
15 tem relação com a Ceia do Senhor, não a encontrará. Temos apresentado a que cremos ser, pelas
razões dadas, a reconstrução mais provável. Estamos indecisos com relação à pergunta: “Falou-se a
alegoria de Jo. 15:1–11 durante a instituição da Ceia do Senhor ou um pouco depois, quer dizer:
imediatamente depois das palavras do capítulo 14?” De qualquer maneira não há muita diferença.
João (William Hendriksen) 696
com uma videira) era a videira verdadeira, e sim o próprio Cristo,
presente com os discípulos nessa noite memorável. Conseguem os ramos
sua unidade na videira? São sustentados pela videira? Devem sua
capacidade de dar fruto à videira? Assim também — só que num grau
muito mais elevado — encontra a igreja sua unidade, vida e fecundidade
em Cristo. Devemos enfatizar a expressão “num grau muito mais
elevado”. De não fazê-lo assim, não somos justos com a lição que Jesus
sublinha neste grande EU SOU. Ele disse: “Eu (ou eu mesmo) sou a
videira, a verdadeira”. Naturalmente, a unidade que a videira terrestre
comunica aos ramos é muito íntima e orgânica. Se não fosse assim, esta
metáfora não poderia ter sido empregada. Mas a unidade dos crentes
entre si e com Cristo é muito mais gloriosa. São o corpo do qual Ele é a
cabeça. Esta unidade é moral, mística e espiritual. É uma união baseada
no amor. Além disso, a vida que o ramo recebe de seu progenitor, a
videira, é muito valorizada pelo proprietário da vinha, visto que sem ela
não pode haver colheita. Mas, afinal de contas, esta vida equivale
simplesmente ao sustento físico. não é mais que uma sombra tênue
comparada com a vida eterna que Jesus, por meio de Sua morte, dá a
todos os que O aceitam com fé verdadeira. E assim também a
fecundidade da videira, que opera de modo que seus ramos produzam
muitos cachos vistosos que penduram ao sol, embora seja realmente
magnífica, não é nada em comparação com a fecundidade permanente
com que o Filho de Deus adorna àqueles que O amam; porque os frutos
de seu Espírito são amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade,
fé, mansidão, domínio próprio (Gl. 5:22, 23; veja-se também em Jo.
15:16). Sim, realmente, Jesus tem o direito de dizer:

“Eu sou a videira, a verdadeira, (ou genuína).


E meu Pai é o viticultor [TB]. Para Jesus a primeira pessoa da
Trindade é meu Pai, nunca nosso Pai (veja-se sobre Jo 1:14). Aqui o Pai
se representa como aquele que ara a terra (_ γεωργός), ou no caso
João (William Hendriksen) 697
presente aquele que cuida da vinha, concentrando sua atenção nos ramos.
Estes ramos necessitam muito cuidado para poder dar fruto, (o que,
como se demonstrou, é o ponto importante nesta alegoria). Os homens
representados pelos ramos necessitam muito cuidado paternal. Com
relação a isto não se deve esquecer que a purificação é acima de tudo
(embora não exclusivamente; veja-se sobre Jo 13:10) justificação, obra
na qual o Pai leva a responsabilidade primordial. Além disso, foi o Pai
quem deu o Filho (Jo 3:16) a fim de que se pudesse estabelecer o
fundamento legal de toda a obra de purificação. É o Pai quem, em
resposta ao rogo do Filho, envia o Espírito Santo (Jo 14:16). E é o Pai
quem sobressai nesses eventos providenciais da vida com os quais,
quando o Espírito os aplica ao coração, o crente se purifica cada vez
mais.
Não dizemos que Jesus tivesse tudo ou só isto presente quando
disse, “e meu Pai é o viticultor”. Simplesmente queremos dar a entender
que havia razão mais que suficiente para que chamasse o Pai (não o
Filho, nem o Espírito, embora nas obras externas os três cooperam) o
viticultor. Há mais um elemento que não se deve esquecer: também é o
Pai quem elimina os ramos que não dão fruto.
O que está implícito no versículo 1 afirma-se concretamente no
versículo 2:
2. Todo ramo que, estando em mim, não der fruto, ele o corta; e todo
o que dá fruto limpa, para que produza mais fruto ainda.
Assim como aquele que cuida da vinha tira os ramos que não dão
fruto físico, assim também o Pai rejeita aqueles que não dão fruto
espiritual. Quanto à natureza deste fruto veja-se especialmente Gl. 5:22
(citado acima); também Mt. 3:8–10; 7:16–20; 12:33; 13:8; 13:23; Rm.
1:13; 7:4; 2Co. 9:10; Ef. 5:9; Fp. 4:17; Cl. 1:6; Heb. 12:11; 13:15; e Tg.
3:18. Estes frutos são motivos, desejos, atitudes, disposições (virtudes
espirituais), palavras, boas obras, tudo isso nascido da fé, de acordo com
a lei de Deus, e feito para Sua glória.
João (William Hendriksen) 698
Os que dão bom fruto são purificados cada vez mais. Tendo sido
justificados, agora recebem a graça da renovação diária, até que
finalmente (a última etapa é a mais incisiva de todas), completamente
santificados, alcançam as mansões do céu. O propósito nesta limpeza
diária na vida dos filhos de Deus é torná-los ainda mais fecundos.
Aquele que produziu trinta provavelmente pode produzir sessenta ou
inclusive uma centena.
De modo que, todos os que entram em contato com Cristo são
comparados com ramos que estão na videira. Alguns produzem fruto;
outros não. 328 A responsabilidade é totalmente deles.
3. Vós já estais limpos pela palavra que vos tenho falado. Pela fé (Jo
3:16; 12:37; At. 10:43; Rm. 3:22) na palavra (Jo 3:34; 5:47; 12:48; At.
2:41) de Cristo, os onze tinham sido purificados (veja-se sobre Jo 13:10),
ou seja, justificados (Rm. 5:1). Esta graça já a tinham recebido. O
processo de purificação (santificação) gradual continuaria.
4. Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós. No processo de
levar salvação aos corações dos homens Deus sempre é primeiro. Veja-
se sobre Jo 3:3, 5. Com o Seu Espírito invade o coração do pecador.
Deste modo o pecador, que agora chegou a ser, em princípio, um santo,
recebeu poder para permanecer em Cristo. Quanto mais o faz, tanto mais
experimentará a presença amorosa de Cristo (veja-se também sobre Jo
14:21). Essa é a promessa. Daí que as palavras, “permanecei em mim”,

328
Há outra explicação que é gramaticalmente possível, mas que não nos pareceu que podíamos
adotar. Segundo ela deveríamos traduzir o versículo 2 como segue: «Todo ramo que em mim não leva
fruto (em lugar de, “todo ramo em mim que não leva fruto”) ele o tira, e todo aquele que leva fruto
(acrescente-se: em mim), o limpa, para que leve mais fruto». A ideia então seria esta: além dos ramos
que estão na videira, Cristo, há também ramos que são renovos de outras videiras. Estes não
produzem fruto nEle. Veja-se F. W. Grosheide, op. cit., Vol. 11, p. 335. Mas, segundo nosso parecer,
isto complica muito a questão. Se este fosse o significado, então além dos ramos que dão fruto haveria
alguns que não dão esse fruto bom, e estes por sua vez se dividiriam em duas categorias: (a) alguns
não dão fruto bom porque pertencem a uma videira diferente; (b) outros, porque não permanecem na
videira, Cristo. Os versículos 4 e 6 parecem ensinar claramente que a razão (a única razão no que se
refere a esta alegoria) de por que alguns ramos não dão fruto é que não permanecem na videira
(Cristo).
João (William Hendriksen) 699
não constituem uma condição que o homem deva cumprir com seu
próprio poder antes de Cristo realizar Sua parte. Longe disso. É graça
soberana do princípio até o fim, mas a responsabilidade de permanecer
em Cristo coloca-se claramente nos ombros do homem, onde
corresponde. Sem esforço não há salvação. Mas o poder de esforçar-se e
de perseverar é dado por Deus! Nos versículos 7 e 9 se explica o que
significa permanecer em Cristo.
Este preceito, embora foi comunicado só aos onze, de modo algum
está em conflito com a segurança dada em Jo 10:28, no sentido de que as
ovelhas nunca perecerão. Pelo contrário, há uma harmonia preciosa,
porque precisamente por meio da obediência a este “mandamento”
cumpre-se a promessa de Jo 10:28. A exortação, “permanecei em mim”,
concorda com outras muitas dirigidas aos crentes, pondo-os de
sobreaviso contra a apostasia e lhes ordenando que permaneçam na fé.
Estas advertências consideram o problema do ponto de vista do homem.
Estão no âmbito da responsabilidade humana (Cl. 1:23; Hb. 2:1; 3:14;
etc.). É verdade que uma vez que o homem foi verdadeiramente salvo,
permanece salvo para sempre; no entanto, Deus não mantém o homem
no caminho da salvação sem esforço, diligência e vigilância da parte do
homem. E a fortaleza para perseverar na fé desta maneira sempre
procede de Deus, dEle só!
À maneira de ilustração, poderia assinalar-se um incidente da vida
de Paulo. Com relação a uma tempestade e um naufrágio nos quais Paulo
viu-se envolto Deus lhe fez uma promessa concreta, “nenhuma vida se
perderá de entre vós” (At. 27:22). No entanto, Paulo diz o centurião dos
soldados: “Se estes não permanecerem a bordo, vós não podereis salvar-
vos” (At. 27:31). A palavra de advertência não contradizia de modo
algum a certeza de que os homens realmente se salvariam. Os homens
ouviram a advertência e não houve perda de vidas.
Mas sobre a base de Jo 14:21 (observe-se o caráter tão general desta
declaração) e de Jo 17:20 podemos crer que as palavras pronunciadas
nessa noite estiveram dirigidas não só a esses onze, mas também a
João (William Hendriksen) 700
muitos outros que os seguiriam, de fato a todos os que seriam
conduzidos a um contato íntimo com Cristo e o evangelho. E entre estes
haveria muitos que se separariam de Cristo. Em consequência, de
qualquer ponto de vista a advertência era totalmente pertinente e
necessária. Lembre-se que Judas já se apartou!
Como não pode o ramo produzir fruto de si mesmo, se não
permanecer na videira, assim, nem vós o podeis dar, se não
permanecerdes em mim. 329 Não se pode entrar no reino sem o
nascimento do alto (veja-se sobre Jo 3:3, 5). Uma vez no reino, não se
pode produzir fruto a não ser que se permaneça em Cristo, a videira.
Estas são leis que não admitem exceção. Esperar que se possa produzir
fruto se o homem não permanecer em Cristo é mais néscio ainda que
esperar que um ramo que foi separado da videira possa produzir uvas.
Veja-se também versículo 5 (última frase).
5. Eu sou a videira, vós, os ramos. Primeiro se repete Jo 15:1: Jesus
é a videira. Logo, afirma-se expressamente o pensamento que já se
indicava implicitamente em Jo 15:2–4, ou seja, “vós sois os ramos.” A
palavra que se utiliza para ramo significa literalmente ramo da videira ou
raminho da videira (κλ_μα).
Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque
sem mim nada podeis fazer.
Note-se: mais fruto (versículo 2), muito fruto (versículo 5 e 8). Fica
de relevo a vitalidade da videira, Jesus Cristo. Esta videira capacita os
que permanecem nEle para produzir não apenas fruto e sim muito fruto.
Quanto ao caráter deste fruto veja-se sobre Jo 15:1, 2.
Por outro lado, os que não estão com relação a Cristo nada podem
fazer, nada (ο_ … ο_δέν). Isto é válido não só para o bêbado, o ladrão, o

329
A frase condicional composta em Jo 15:4 é III B 1; a frase condicional em Jo 15:6 é III B 3 (com
conclusões: indicativo passivo aoristo gnômico, seguido de terceira pessoa do plural do indicativo
ativo συνάγουσιν; de novo terceira pessoal do plural presente indicativo ativo βάλλουσιν; e terceira
pessoa singular — porque αὐτά é neutro plural — indicativo passivo καίεται). Estes dois (Jo 15:4 e
15:6) deveriam incluir-se de novo nas listas. A frase condicional em Jo 15:7 é III A 3; veja-se a
Introdução.
João (William Hendriksen) 701
assassino, a pessoa imoral, mas também para o poeta, o cientista e o
filósofo que não abraçaram a Cristo com uma fé viva. Nada podem fazer
que seja aceitável diante de Deus. Por que é então que alguns —
inclusive entre os que gostam de passar por cristãos e buscam um cargo
de liderança na igreja — dedicam-se a render as honras mais altas a tais
“estranhos”, como se a pessoa pudesse prescindir de Paulo que de
Platão?
A passagem ensina certamente a incapacidade do homem para fazer
o que é bom diante de Deus. Isto está totalmente de acordo com Rm.
14:23, igual à frase anterior (“quem permanece em mim … esse dá muito
fruto”) está totalmente em harmonia com Fp. 4:13.
Com isso se condena todo tipo de pelagianismo e
semipelagianismo!
6. Se alguém não permanecer em mim, será como o ramo que é
jogado fora e seca. [nota 329] Tais ramos são apanhados, lançados ao fogo
e queimados [NVI]. 330
Notem-se os cinco elementos no castigo do qual rechaça a luz:
a. “Será como o ramos que é jogado fora”. Já está condenado (Jo
3:18). É lançado fora (Jo 6:37).
b. “Seca”. Embora esta pessoa possa seguir nesta vida por um
tempo mais, não tem paz (Is. 48:22), nem alegria (Jl. 1:12: “extinguiu-
se”). É como as “árvores em plena estação dos frutos, destes
desprovidas, duplamente mortas, desarraigadas” (Jd. 12; veja-se também
Is. 40:24; Mc. 4:6; 11:21). O exemplo inesquecível é Judas (Mt. 27:3–5).
c. “Tais ramos são apanhados”. Cf. Mt. 13:30: “No tempo da
colheita, direi aos ceifeiros: ajuntai primeiro o joio, atai-o em feixes para
ser queimado”. Veja-se também Mt. 13:41 e Ap. 14:18.
d. “Lançados ao fogo”. Cf. Mt. 13:41, 42: “Mandará o Filho do
Homem os seus anjos, que ajuntarão do seu reino todos os escândalos e

330
Os dois aoristos gnômicos seguidos de três presentes atemporais, para representar o que sucede
sempre em tais casos, não deveriam causar problema.
João (William Hendriksen) 702
os que praticam a iniquidade e os lançarão na fornalha acesa”. Veja-se
também Mt. 7:19; 13:50; Ap. 20:15.
e. “E queimados”. Cf. Mt. 25:46: “E irão estes para o castigo
eterno”. Que este queimar-se não significa aniquilação resulta claro
também de passagens como Mc. 9:43 (“fogo que não pode ser
apagado”), 48 (“o fogo nunca se apaga”); cf. Ap. 20:10 (“e serão
atormentados de dia e de noite pelos séculos dos séculos” — tal com
relação ao diabo, a besta e o falso profeta, cf. Ap. 20:15).
Quanto ao ensino com relação às últimas coisas no Evangelho de
João veja-se sobre Jo 5:24–30. Note-se a instrutiva mudança do singular
ao plural aqui em Jo 15:6. Primeiro temos o singular: “Se alguém … será
lançado fora … e secará”. Isto põe de relevo a responsabilidade de cada
pessoa que é conduzida a um contato íntimo com Cristo e Seu
evangelho. Se ele rejeitar a luz, chegará o tempo em que terminará todo
trabalho ulterior com ele como pessoa. Será considerado como mais um
entre a massa daqueles que são rejeitados e lançados no inferno. Por isso,
agora temos o plural: “Tais ramos são apanhados”, etc. (A voz ativa no
original de modo que lemos literalmente “e os recolhem e os lançam no
fogo”, deve-se provavelmente à influência aramaica na gramática; veja-
se sobre este tema em IV da Introdução.
7. Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem
em vós, pedireis o que quiserdes, e vos será feito. [nota 329]
Muitos tinham rejeitado as palavras ou declarações (τ_ _ήματα)
pronunciadas por Jesus (Jo 5:18, 38; 6:66; 12:37–43). Estes homens, por
sua vez, eram rejeitados, etc. (versículo 6, anterior). Por outro lado, para
os que permanecem em Cristo há uma grande promessa. Agora repete e
explica o pensamento de permanecer positivamente em Cristo (veja-se Jo
15:4, 5). Aprendemos o que significa obedecer as palavras de Cristo, de
forma que estas cheguem a ser a dinâmica da vida da pessoa, e assumem
o controle completo dela (note-se: aqui não só “permanecerdes em
minhas palavras”, mas também “as minhas palavras permanecerem em
vós”), de modo que a pessoa crê nelas e age de acordo com elas. Na vida
João (William Hendriksen) 703
de tais pessoas cumpre-se a promessa da oração eficaz de Jo 14:13 (veja-
se sobre essa passagem). Note-se:
“Isso (Eu) p farei” (Jo 14:13).
“Ele vo-la concederá” (Jo 16:23). daí que é duplamente seguro que:
“Vos será feito” (assim aqui em Jo 15:7).
É razoável que a pessoa que permanece em Cristo e em cujo
coração as declarações (incluindo os preceitos, certamente) de Cristo têm
controle completo, não pedirá nada que seja contrário à vontade de
Cristo, porque sempre pedirá no espírito de que “não se faça minha
vontade, e sim a tua”, e em harmonia completa com tudo o que Cristo
revelou com relação a Si mesmo (quer dizer, sempre pedirá «em seu
nome»). Por isso, não é difícil entender que uma pessoa assim receberá
tudo o que pedir. Ao mesmo tempo, trata-se de uma gloriosa promessa
que se converte numa realidade ainda mais gloriosa nas vidas de todos os
verdadeiros filhos de Deus, sempre que eles, pela graça soberana de
Deus, estejam verdadeiramente à altura do estipulado na cláusula
condicional.
O permanecer em Cristo produz resultados extraordinários: a.
oração eficaz (Jo 15:7); b. dar muito fruto (Jo 15:8); c. plenitude de
alegria (Jo 15:11). Tendo considerado a., Jesus passa agora a b. (dar
muito fruto).
8. Nisto é glorificado meu Pai, em que 331 deis muito fruto; e assim
vos tornareis meus discípulos. As graças ou frutos espirituais (veja-se
sobre Jo 15:1, 2) que adornam os filhos de Deus refletem o próprio ser
deste. Em consequência, vendo-Se a Si mesmo (Seus atributos
comunicáveis) refletido nas vidas deles, com eles Se glorifica, e isto
sobretudo quando os frutos são abundantes (“muito fruto”). Assim os
que, pela graça de Deus, já são discípulos tornam-se cada vez mais en
discípulos. Não é necessário nem justificável debilitar o sentido do verbo
tornam-se (γενήσεσθε). É preciso um discípulo para tornar-se discípulo.

331
A respeito de ἵνα veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 704
É preciso um filho de Deus para tornar-se filho de Deus. Veja-se sobre
Jo 1:12.
9. Como o Pai me amou, também eu vos amei; permanecei no meu
amor. “Eu vos amei”, diz Jesus. O melhor comentário a respeito disso é
Jo 13:1. Nesta noite sagrada, a mais sagrada de todas, o Senhor lembra
todas as Suas experiências com os discípulos desde o dia em que os
escolheu para o discipulado, e logo mais uma vez considera a eternidade
que “precedeu” à fundação do mundo, quando em Seu beneplácito
soberano (junto com o Pai e o Espírito Santo) tinha-os eleito. Une tudo
isso numa palavra, “Eu vos amei”.
Este amor, além disso, era puro, total, profundo, pessoal,
inteligente, duradouro; por isso, em todos estes aspectos era exatamente
como o amor do Pai pelo Filho. “Como o Pai me amou, também eu vos
amei” (ou simplesmente, “Como o Pai me amou, assim vos amei). O Pai
tinha falado de Seu amor pelo Filho no batismo: “Este é o meu Filho
amado, em quem tenho complacência” (Mt. 3:17), e também com
relação à transfiguração (Mt. 17:5). Para o coração do Filho este amor do
Pai era muito valioso. Por isso o menciona na oração sacerdotal (Jo
17:23, 24). Também aqui vale a comparação, porque Jesus menciona
especificamente que este amor do qual Ele mesmo era o objeto era uma
realidade inclusive “antes da fundação do mundo”.
Como o amor de Cristo pelos discípulos é muito valioso — porque
é como o amor do Pai pelo Filho — por isso os discípulos deveriam
esforçar-se tanto mais para permanecer nele. Quanto à ordem em que o
amor de Deus por nós e nosso amor por Ele se seguem um ao outro,
veja-se sobre Jo 14:21. Quanto à relação recíproca dos elementos na
experiência cristã, veja-se sobre Jo 7:17, 18. “De uma vez por todas
permanecei (note-se μείνατε, imperativo ativo aoristo constativo) neste
meu amor”, diz Jesus. Também aqui (como no versículo 7) temos uma
elucidação do preceito “Permanecei em mim” (versículo 4). Em
harmonia total com o pensamento do versículo 7, Jesus agora reitera
como os discípulos podem continuar em Seu amor:
João (William Hendriksen) 705
10. Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu
amor; 332 assim como também eu tenho guardado os mandamentos de meu
Pai e no seu amor permaneço.
O crente está rodeado de laços de amor, que o atraem cada vez mais
perto do seu Salvador:
a. O amor dEle sempre é primeiro: “Nós o amamos porque ele nos
amou primeiro” (1Jo 4:19, NKJV). Agora começa a agir nosso amor.
Como se manifesta? Resposta:
b. Mostramos nosso amor se guardarmos os Seus preceitos: “Se me
amais, guardareis os meus mandamentos” (Jo 14:15).
c. Este observar Seus mandamentos conduz, por sua vez, a que
permaneçamos em Seu amor: “Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor; assim como também eu tenho guardado os
mandamentos de meu Pai e no seu amor permaneço”. Isto é Jo 15:10, a
passagem que estamos estudando.
Encontramo-nos novamente pois, no ponto de partida, ou seja, na
parada chamada “meu amor”. Quase não é necessário acrescentar que
este amor nunca esteve ausente. Esteve agindo durante cada instante de
nosso exercício de amor. Antecede o nosso amor. Acompanha o nosso
amor. Segue o nosso amor, e no processo de fazê-lo, cria mais amor para
ele em nosso coração, de forma que, por assim dizer, começa outro ciclo
de amor, o qual é ainda melhor que o primeiro. Deste modo, o crente
sente-se atraído sempre mais intimamente a Deus em Cristo. Ele
permanece sempre nesse amor. — Quanto a esse amor é resposta à
nossa obediência (e também do ponto de vista de seu caráter
permanente) é uma réplica ou cópia do amor do Pai pelo Filho: “Assim
como também eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai e no seu
amor permaneço”. Quanto à ideia da obediência perfeita do Filho às
“instruções” do Pai veja-se sobre Jo 8:29; 10:17, 18; 12:49, 50; 14:31;
17:4. O sacrifício voluntário do Filho na terrível morte de cruz é sem

332
IIIA1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 706
dúvida a manifestação mais gloriosa desta obediência. Note-se como
Jesus, lembrando toda Sua vida de obediência, diz “Eu guardei”
(τετήρηκα, isto vai do passado até o presente e indica que a obediência
tem permanente significado), “e permaneço (para sempre)” (μένω).
Quanto a “mandamentos”, veja-se sobre Jo 13:34. Quanto a “guardar”
estes mandamentos, veja-se sobre Jo 8:51. Veja-se também sobre Jo
7:17, 18; 14:21.
11. Tenho-vos dito estas coisas para que a minha alegria esteja em
vós, e a vossa alegria seja completa [RSV]. Estas palavras (Jo 15:1–10),
por meio das quais Jesus disse a Seus discípulos como com a
permanência nEle e o produzir muito fruto obterão a bênção da oração
respondida e permanecerão para sempre em Seu amor, Jesus as
pronunciou a fim de que a alegria dEle possa estar (possa permanecer
permanentemente) neles. Note-se: minha alegria (não a classe de alegria
ou prazer que promete o mundo), e compare-se minha paz (Jo 14:27).
Assim como minha paz significa a paz que Eu dou, assim também minha
alegria é a alegria que eu comunico, alegria espiritual, baseado na
interminável paz com Deus. Jesus quer ver este deleite íntimo, esta
alegria incomparável no coração de Seus discípulos. Necessitavam-no,
porque nesse momento estavam turvados e cheios de pesar (Jo 14:1, 27;
16:6). Além disso, Jesus não estará satisfeito senão até que o cálice de
alegria encheu-se por fim até o mesmo bordo (cf. Jo 16:24; 17:3; 1Jo
1:4). com relação a esta plenitude de alegria espiritual veja-se também
Lc. 2:10; Rm. 14:17; Fp. 2:17, 18; e especialmente 1Pe. 1:6, 8.

JO 15:12–17

15:12. O meu mandamento é este: que vos ameis uns aos outros,
assim como eu vos amei.
Do mandamento “permaneçam em mim” (Jo 15:1–11) Jesus passa
agora ao seguinte, “que vos ameis uns aos outros”. Só quando
permanecemos em Cristo — em Suas palavras, em Seu amor —
João (William Hendriksen) 707
podemos nos amar uns aos outros. Quanto à explicação de Jo 15:12,
veja-se sobre Jo 13:34, onde é chamado um novo mandamento.
13. Ninguém tem maior amor do que este, 333 de dar alguém a sua
vida pelos seus amigos [TB]. Se combinarmos os versículos 12 e 13,
observamos que o pensamento é este: «Deveis continuar amando-se uns
aos outros com o mesmo amor que Eu demonstro quando dou a Minha
vida por todos os que são verdadeiramente Meus amigos”. Cf. 1Jo 3:16.
É certo, naturalmente, que este amor de Cristo não pode ser em
todos os sentidos a pauta para nosso amor de uns aos outros. Quanto ao
seu valor infinito, seu caráter substitutivo, e suas consequências
redentoras extraordinárias, seu ato de amor, pelo qual decidiu dar a vida
por nós, nunca pode ser a pauta para nosso amor aos irmãos. Nestes
aspectos esse amor é completamente único e não se pode copiar. Tentar
copiá-lo com relação a esses detalhes seria blasfêmia. No entanto, há
uma característica deste amor que deveria refletir-se na atitude de um
irmão para com o outro, ou seja, sua natureza abnegada. «Em vosso
amor de um para com o outro deveis estar dispostos a negar-se a si
mesmos”; isto é o que quis dizer Jesus. Que isto é na realidade o que
tinha em mente fica claro por passagens como Jo 13:15 (visto em todo
seu contexto) e Mc. 8:34.
Agora, na vida comum, sem dúvida, não há maior manifestação do
amor abnegado pelos amigos de alguém que este, que alguém esteja
disposto a morrer por eles. Na esfera da redenção Jesus fez precisamente
isso. Morreu pelos Seus amigos. Além disso, morreu por eles quando
eram Seus amigos só no sentido de que Ele os tinha declarado assim. Em
si mesmos e por natureza (à parte da graça de Deus) eram “fracos”,
“ímpios”, “pecadores”, “inimigos” (cf. Rm. 5:6–10). O amigo de Jesus é
quem: a. Ele escolheu dentre o mundo (isto é sempre básico); veja-se
sobre Jo 15:19; e, por conseguinte, b. faz o que Jesus quer que faça; veja-
se sobre Jo 15:14.

333
Quanto a ἵνα veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 708
Por estes amigos Jesus “dá a sua vida”, quer dizer, não só morre
fisicamente pelo bem deles, e sim em lugar deles experimenta os
tormentos do inferno na cruz (morte eterna). O uso da preposição por
(_περ) explicou-se com relação a Jo 10:11.
14 Vós sois meus amigos, se fazeis o que eu vos mando. 334 Esta
afirmação consoladora e tranquilizadora é muito parecida com a do
versículo 10; veja-se sobre esse versículo. Ao fazer constantemente a
vontade de Cristo seus discípulos obtêm para si mesmos a garantia de
que são Seus amigos, quer dizer, de que permanecerão em Seu amor. À
luz da forma em que estes homens manifestaram suas deficiências de
caráter incluso essa mesma noite (veja-se sobre Jo 13:2, 3, 4; cf. Lc.
22:24), era sem dúvida um ato de amor condescendente e extraordinário
aquele que Jesus dissesse, “Vós sois meus amigos”. Deve pôr-se de
relevo a cláusula qualificativa, “se fazeis o que eu vos mando”. Esta
expressão coloca toda a força na responsabilidade humana. O versículo
19 (“eu vos escolhi do mundo”; veja-se também versículo 16) põe de
relevo a eleição divina. A ambas se reconhecem a parte que lhes
corresponde, o que nem sempre sucede nos escritos dos teólogos.
15. Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu
senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu
Pai vos tenho dado a conhecer.
Os discípulos já não são chamados servos (como provavelmente se
implicava Jo 13:16) mas amigos. Quando um superior diz a seu servo 335

334
IIIB1; veja-se da Introdução.
335
Embora os tenha lido, não me convenceram os argumentos de E. J. Goodspeed, quem prefere
escravo a servo como tradução do grego δοῦλος. Admito, naturalmente, que em certos contextos a
tradução escravo é a única adequada (1Co. 7:21, 22; Fm. 16), mas dificilmente é verdade que haja
sempre uma diferença “enorme” entre “escravo” e “servo”, como sustenta Goodspeed. Assim, por
exemplo, em Lc. 7:2 ao “escravo” (δοῦλος) do centurião seu amo o chama “meu rapaz” (ὁ παῖς μου,
versículo 7). Claro que quando o “escravo” é “querido” para o amo (Lc. 7:2), as ideias que usualmente
associamos com o conceito escravo passam a um segundo plano, e “servo” fica uma tradução melhor.
Certamente, no contexto presente tudo o que é preciso é “servo”. O “servo” não é o confidente; o
“amigo” sim o é. Para o argumento de Goodspeed veja-se seu Problems of New Testament Translation
(Problemas na tradução do Novo Testamento), Chicago, 1945, pp. 139–141.
João (William Hendriksen) 709
que faça isto ou aquilo, este não recebe explicações detalhadas quanto ao
porquê e às razões. A situação é diferente no caso de um amigo. O amigo
é o confidente. Para esse então Jesus havia dito aos discípulos tudo o que
tinha ouvido do Pai (veja-se sobre Jo 8:26; cf. 3:11; e observe-se “meu”
Pai; veja-se sobre Jo 1:14, 18); coisas tais como, por que o Pai o tinha
enviado à terra, porque daria Sua vida, porque devia afastar-se da terra, o
que faria ao retornar, e como podia salvar o homem (veja-se passagens
como Jo 3:16; 10:11; 14:2, 3; logo Jo 3:3, 5, 36). Em consequência,
quando se enfatiza a proximidade da comunhão entre o Mestre e Seus
discípulos, já não é apropriado o nome de servos.
Além disso, a tarefa que deve realizar o servo com frequência é
árdua, mas o jugo que Jesus pôs em Seus discípulos era suave, o fardo
era leve (veja-se Mt. 11:25–30), sobretudo em comparação com o fardo
de normas e tradições humanas que recaíam tão pesadamente sobre os
judeus (veja-se Mt. 23:4; At. 15:10). Estes eram servos, inclusive
escravos. Mas os discípulos eram amigos. Nestas palavras de Jesus está
claramente implícito o pensamento de que não está satisfeito com
obediência puramente servil. Seus amigos estão motivados pela amizade
quando fazem o que Ele lhes pede. A obediência é expressão de seu
amor.
16. Não fostes vós que me escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos
escolhi a vós outros e vos designei para que 336 vades e deis fruto, e o vosso
fruto permaneça; a fim de que336 tudo quanto pedirdes ao Pai em meu
nome, ele vo-lo conceda.
Embora os discípulos sejam amigos de Cristo, isto não quer dizer
que estejam no mesmo nível com Ele. Na terra os amigos geralmente se

Continua sendo verdade, naturalmente, que quando se enfatiza não a intimidade da relação e a
confiança mas sim o fato de que Cristo redimiu à pessoa com seu sangue, e por conseguinte a possui,
é totalmente apropriado o termo δοῦλος referido à pessoa resgatada (p. ex. Rm. 1:1). De modo que,
quando se tem em conta o termo apropriado da comparação, parece totalmente correto que, por um
lado, Jesus chame seus discípulos φίλους; no entanto, por outro, Paulo apresenta-se a si mesmo como
δούλος.
336
Quanto a ἵνα em 16a e em 16b veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 710
escolhem entre si, mas a amizade da qual Jesus fala é diferente. É
unilateral em sua origem. Não se produziu por uma aproximação gradual
de ambos os lados, como ocorre com frequência entre os homens, e sim
só Jesus a produziu. As palavras “Não fostes vós que me escolhestes a
mim; pelo contrário, eu vos escolhi a vós”, põem de relevo o caráter
livre, independente e espontâneo do amor de Cristo. O fundamento do
amor por nós nunca está em nós, sempre está nEle, porque inclusive
além de seu amor por nós Deus é amor. É amor em Sua própria essência.
O caráter incondicional e soberano deste amor divino se manifesta
também em passagens como os seguintes:
“Não vos teve o SENHOR afeição, nem vos escolheu porque
fôsseis mais numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de
todos os povos, mas porque o SENHOR vos amava … vos tirou com
mão poderosa” (Dt. 7:7, 8).
“Por amor de mim, por amor de mim, é que faço isto” (Is. 48:11).
“Ó Senhor, ouve; ó Senhor, perdoa; ó Senhor, atende-nos e age; não
te retardes, por amor de ti mesmo, ó Deus meu; porque a tua cidade e o
teu povo são chamados pelo teu nome” (Dn. 9:19).
“Eu curarei a sua infidelidade, eu os amarei gratuitamente” (Os.
14:4, NKJV).
“Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter
Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm. 5:8).
“Assim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para
sermos santos” (não: “porque previu que íamos a ser santos” Ef. 1:4).
“Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus,
mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos
nossos pecados” (1Jo 4:10).
“Nós o amamos, porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4:19, NKJV).
Foi Cristo quem tinha eleito a estes homens para Si dentre o mundo
de trevas (veja-se sobre versículo 19), a fim de que fossem seus
seguidores e como tais dessem fruto, e isto não só por um tempo ou a
momentos mas permanentemente. Para este fim também os tinha eleito;
João (William Hendriksen) 711
quer dizer, tinha-os apartado do mundo e lhes tinha prometido lhes dar as
habilidades requeridas. Como se indicou antes, o dar fruto refere-se à
produção dos efeitos da graça divina, como os mencionados em Gl. 5:22
— amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade,
mansidão, domínio próprio —; Ef. 5:9; Cl. 1:6; Hb. 12:11; e Tg. 3:18.
Mas diante de Jo 4:36 e 12:24, passagens nas quais o termo “frutos”
indica almas salvas pela eternidade, não está naturalmente fora de lugar
assinalar que as boas obras nas quais Jesus pensa mencionam-se não
como fim em si mesmas, e sim como meio para a conversão de outros, e
desta maneira para a glória de Deus, através da vereda indicada em Mt.
5:16 (“para que vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai
que está nos céus”).
Estamos totalmente de acordo com o Dr. F. W. Grosheide que a
eleição da qual fala esta passagem não é para um ofício determinado mas
sim a que corresponde a todo cristão. 337 Todos os crentes são escolhidos
dentre o mundo (versículo 19) para produzir frutos (versículos 2, 4, 5,
8). Embora isto seja um ato que ocorre no tempo, tem sua base na
eleição “antes da fundação do mundo” (Ef. 1:4; cf. Jo. 17:24).
O permanecer em Cristo é recompensado com o dar frutos, e
através do dar frutos, também com a oração respondida. O verdadeiro
discípulo pede frutos, porque estes frutos agradam a Deus. Pede a Deus
que lhe dê o que esteja de acordo com Sua vontade. Pede isso; não como
se ele mesmo (o discípulo) tivesse algum mérito, mas somente sobre a
base dos méritos de Cristo e em total harmonia com Sua revelação (em
consequência, em nome de Cristo). Em consequência, o versículo 16
conclui com as palavras: a fim de que tudo quanto pedirdes ao Pai em
meu nome, ele vo-lo conceda. Aqui dá-se o pensamento de Jo 15:7; veja-
se sobre esse versículo. No versículo 16, no entanto, não encontramos o

337
F. W. Grosheide, op. cit., pp. 352, 353. O fato de que ocorra o mesmo verbo (“escolhidos”) aqui
que em Jo 6:69, 70; 13:18, não implica necessariamente que o significado nestas passagens seja
sempre o mesmo. Em cada caso concreto, o contexto específico deve decidir.
João (William Hendriksen) 712
impessoal “te fará”, e sim o muito pessoal “Ele vo-lo conceda”. O Pai
ama o Filho; por isso, ama àqueles que fazem o que o Filho lhes pede.
17. Isto vos mando: que 338 vos ameis uns aos outros, diz Jesus. O
pensamento do versículo 12 é aqui repetido, mas de uma forma um
pouco diferente. Jesus mostra agora que ao dizer aos discípulos que
permaneçam nEle (versículos 1–11), e especialmente ao lembrar-lhes
Seu grande amor de eleição por eles (o contexto imediato, versículo 16
cf. versículo 9), tinha um grande propósito na mente, ou seja, “para que
vos ameis uns aos outros”.
A lógica é simples e clara. Eu, que por mim mesmo não sou digno
de ser amado, não posso amar a meu irmão, que com frequência
tampouco é muito digno de ser amado (pelo menos tal como eu o vejo), a
não ser que eu constantemente reflita, e permaneça, no amor de Cristo
por mim. Não só O amamos porque ele nos amou primeiro, mas também
nos amamos uns aos outros porque Ele nos amou primeiro. O amor de
uns pelos outros é uma extensão do amor de Cristo por nós. É “o amor
de Deus derramado em nossos corações” com tanta abundância que se
derrama nas vidas de outros. Cf. Rm. 5:5.

JO 15:18–27

15:18. Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós


outros, me odiou a mim. 339
Jesus observou a seus discípulos que permaneçam nele (versículos
1–11), e que se amem uns aos outros (versículos 12–17). Agora os exorta
a que deem testemunho ao mundo (versículos 18–27). Este testemunho

338
Em abstrato é possível considerar a ἵνα como não final (assim, por exemplo, Lenski). Neste caso
teríamos uma simples repetição do versículo 12. Mas deve observar-se que a forma do versículo 17
difere da do versículo 18 num aspecto importante. Apresenta-se como um resumo de tudo o que
precede — note-se τα_τα, “estas coisas” (em contraste singular que antecede tanto em Jo 15:12 como
em Jo 13:34). Depois de tal introdução parece mais natural que ἵνα tenha seu sentido final pleno. O
amor de Cristo por meu é básico para meu amor pelo irmão.
339
IDE; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 713
tem que ser a resposta dos discípulos ao ódio que receberão da parte do
mundo. Por isso, a seção presente se divide em duas partes:
a. Os discípulos odiados pelo mundo (versículos 18–25);
b. Os discípulos (seguindo o exemplo do Espírito Santo, em
consequência) dando testemunho ao mundo (versículos 26, 27).
A primeira destas duas seções pode, por sua vez, subdividir-se
como segue: os versículos 18–23 dão as razões de por que o mundo
odeia os discípulos; os versículos 24 e 25 mostram por que este ódio é
muito pecaminoso e totalmente indesculpável.
Os discípulos são odiados porque não são do mundo e porque
pertencem a Alguém a quem o mundo odeia, ou seja o Cristo.
As palavras, “Se o mundo vos odeia”, não podem querer dizer (no
presente contexto) «suponhamos que o mundo vos odeia, seja ou não
verdade». Pelo contrário, como o versículo 19 indica claramente por sua
própria forma (no original), o ódio do mundo é um fato, não
simplesmente um suposto. Os discípulos tinham experimentado este
ódio. Não podem ter desconhecido o decreto do Sinédrio, referido em Jo
9:22. Além disso, no futuro este ódio para com eles se manifestaria
repetidas vezes e inclusive aumentaria, como o indica o livro de Atos.
Este ódio procede do mundo, o reino do mal, a sociedade de
homens maus que se elevaram contra o Cristo e Seu reino. Veja-se nota
26, significado 6. Nos dias dos apóstolos este mundo cruel e sinistro
estava representado pelos judeus, especialmente por seus líderes.
Para consolar os Seus discípulos, Jesus agora acrescenta, “sabei
que, primeiro do que a vós outros, me odiou a mim”. O que quer dizer é:
“Tende sempre em mente que estais em companhia excelente. Quando o
mundo vos odeia porque Me confessais, isso demonstra que Me
pertenceis e, portanto, experimentais, até certo ponto, o que Eu vim
sempre experimentando”.
O fato de que o mundo tivesse odiado a Jesus, e que este ódio se
manifestou quase desde o começo de Seu ministério público e nunca se
mitigou, é evidente em passagens como: Jo 1:5, 10, 11; 3:11; 5:16, 18,
João (William Hendriksen) 714
43; 6:66; 7:1, 30, 32, 47–52; 8:40, 44, 45, 48, 52, 57, 59; 9:22; 10:31, 33,
39; 11:50, 57; 12:37–43.
19. Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu. 340
Se vocês devessem sua origem espiritual ao mundo; ou seja, se
vocês fossem como o mundo em seu modo de ser seu caráter, o mundo
os amaria, porque quer aos seus. A implicação é: «vocês não sãos de
modo algum do mundo». Quanto ao significado do verbo amar (φιλέω)
veja-se sobre Jo 21:15–17.
Quanto a estilo abreviado, veja-se sobre Jo 5:31. Jesus prossegue:
como, todavia, não sois do mundo, pelo contrário, dele vos escolhi, por
isso, o mundo vos odeia. Agora afirma de forma específica o que já tinha
dado a entender na primeira parte do versículo 19, ou seja, que estes
discípulos (Judas já não estava!) não são do mundo. No entanto, a razão
pela qual não são do mundo não está neles; pelo contrário, é que deste
mundo de trevas o Senhor tinha escolhido estes homens para Si mesmo.
A ação que Jesus tem em mente refere-se não à eternidade mas ao
tempo. Quer seja de forma direta, como em alguns casos, ou de forma
indireta (por exemplo, através de instrumentos como João Batista ou
outros discípulos; veja-se capítulo 1), estes homens tinham sido tirados
do mundo (veja-se sobre versículo 18) para fazer parte do reino dos céus.
O ato que teve lugar no tempo baseava-se num ato ocorrido na
eternidade (Ef. 1:4).
Agora, este ato de amor fez com que esses homens diferissem do
mundo. Em consequência, sua própria existência, forma de vida,
conversação, bem como o dar testemunho (qualquer que fosse o grau em
que se desse) constituíam uma acusação contra o mundo de homens
maus. Além disso, o mundo os tinha perdido.
20. Lembrai-vos da palavra que eu vos disse: não é o servo maior do
que seu senhor.

340
IIA; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 715
Em apoio da afirmação que se acaba de fazer (versículo 19) com
relação à oposição feroz e constante que sofrem os discípulos e que
devem esperar sofrer da parte do mundo, Jesus agora cita suas próprias
palavras anteriores, um dito que tinha sido pronunciado nessa mesma
noite; veja-se sobre Jo 13:16. Conforme o disse na primeira vez o
significado era «o servo não é maior que seu senhor; portanto, não deve
considerar-se isento da obrigação de prestar serviço em espírito de
humildade». Ao repeti-lo agora, quer dizer: «o servo não é maior que seu
senhor; portanto, não deve considerar-se imune à perseguição». Em
ambos os casos estamos diante de litotes (afirmação por meio de
negação), de modo que o significado real é: «se o senhor deve ser
humilde, seu servo deveria certamente ser humilde (Jo 13:16); se o
senhor é perseguido, o servo será certamente perseguido» (Jo 15:20). De
fato esta implicação se expressa com palavras claras: Se me perseguiram
a mim, também perseguirão a vós outros. Quanto à prova do fato de que
o mundo perseguiu a Jesus veja-se sobre Jo 15:18. O princípio
formulado aqui, ou seja que os servos podem esperar o mesmo
tratamento que seus senhores, funciona em duas direções:
desfavoravelmente (perseguição parecida) e favoravelmente (obediência
parecida). Por isso Jesus prossegue: Se guardaram a minha palavra,
também guardarão a vossa.341 «Suponhamos», diz Jesus, por assim dizer,
«que guardaram a minha palavra». O resultado então é invariável:
«também guardarão a de vocês». 342 Quanto ao significado de guardar a
palavra (preceitos) de Cristo, veja-se sobre Jo 8:51.
21. Tudo isto, porém, vos farão por causa do meu nome. 343 Volta a
aparecer o pensamento de forma abreviada. O significado é

341
Ambas as condições pertencem ao grupo I C; veja-se IV da Introdução.
342
Também nesta segunda frase condicional a prótase supõe-se que é um fato, em função da
argumentação, quer dizer, para ilustrar a operação desde o princípio. É, na verdade, totalmente certo
que de fato não é assim. Os que perseguem Cristo e a Seus discípulos de fato não guardam Sua
palavra. Mas o princípio como tal opera em ambas as direções; em consequência, nesta passagem
utiliza-se duas vezes a mesma forma de frase condicional.
343
Ou: “por minha causa”.
João (William Hendriksen) 716
provavelmente: «Mas este fato, que o mundo lhes trata como Me trata
não surpreende, porque lhes farão todas estas coisas por Minha causa”.
«Todas estas coisas», quer dizer, o mencionado antes: eles odiarão
(versículo 18), não lhes quererão (implícito no versículo 19), eles
perseguirão (versículo 20). Far-lhes-ão tudo isso “por causa de meu
nome”, o que, como o indica a comparação com uma passagem paralela,
equivale a “por minha causa”, ou “por mim”. Cf. Mc. 13:9 com Lc.
21:12. O nome de Cristo é o próprio Cristo, tal como Se revela a Si
mesmo. Uma vez que Jesus tenha abandonado a terra, seu nome em
revelação (o evangelho que se centraliza nEle) seguirá nela. O inimigo
odiará este nome e perseguirá os discípulos quando o proclamarem. Que
isto é o que realmente sucedeu, fica claro de uma passagem como At.
4:18: “Chamando-os (a Pedro e João), ordenaram-lhes que
absolutamente não falassem, nem ensinassem em o nome de Jesus”.
E por que estavam tão cheios de amargura por seu nome? A
resposta é: porquanto não conhecem aquele que me enviou. Se o tivessem
conhecido, teriam conhecido a Jesus como o Seu Filho unigênito; em
consequência, não O teriam perseguido. Quanto a Jesus como Enviado
pelo Pai veja-se Jo 3:17, 34; 5:36, 37; 8:18, 27, 29. Esta falta de
conhecimento, além disso, era indesculpável. Deviam ter conhecido
tanto o Pai como o Filho. Note-se o versículo seguinte:
22. Se eu não viera, nem lhes houvera falado, pecado não teriam. 344
O fato de Jesus ter de fato aparecido ao povo da velha aliança e lhes tinha
falado fica claro por todo o quarto Evangelho; veja-se especialmente Jo
1:5, 10, 11; cap. 3; 5:17–47; 6:25–59; 7:16–38; cap. 8; cap. 10; e Jo
12:37–50. Se não o tivesse feito, não teriam sido culpados do grande
pecado de rejeitá-lo. Mas, agora, não têm desculpa do seu pecado.
Qualquer razão que os judeus pudessem ainda alegar como justificação
deste repúdio, é mero pretexto. Sabem muito bem.
23. Quem me odeia odeia também a meu Pai.

344
II C; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 717
Os judeus tinham o costume de pensar que podiam considerar a
Deus como seu Pai (Jo 8:41), enquanto ao mesmo tempo consideravam
Jesus como possuído do demônio (Jo 8:48). Pretendiam que amavam o
Pai, embora evidentemente odiavam o Filho (veja-se sobre Jo 15:18).
Mas, à vista do fato de que o Pai e o Filho são um em essência (Jo
10:30), é impossível tal atitude. Alguém pode imaginar que ama o Pai
enquanto odeia o Filho, mas se engana. Aquele que odeia um
necessariamente odeia o outro. E isto é assim também com relação à
época atual. Os que zombam da expiação por meio de sangue e rejeitam
a morte vicária de Cristo, não amam a Deus.
24. Se eu não tivesse feito entre eles tais obras, quais nenhum outro
fez, pecado não teriam;345 mas, agora, não somente têm eles visto, mas
também odiado, tanto a mim como a meu Pai.
Com relação a Jo 9:16 e 9:33 mostrou-se que os milagres de Jesus
tinham valor comprobatório. Veja-se nessas passagens; veja-se também
no versículo 22 acima, que é parecido. Faz um momento (versículo 22)
Jesus tinha falado a respeito de Suas palavras; agora acrescenta as obras,
quer dizer, sinais. Sem dúvida que o ódio destes judeus era
indesculpável. O pensamento do versículo 24, expresso de forma
completa, seria como segue: «Se não tivesse feito entre eles as obras que
ninguém mais fez, não teriam pecado; mas agora, nestas obras e por
meio delas, viram-Me tanto como a Meu Pai (porque Minhas obras O
revelam, são também Suas obras: Jo 5:17, 36; 10:25; 14:9, 11); no
entanto, apesar disso Me odiaram (e ainda Me odeiam; note-se o tempo
perfeito em ambos os verbos) tanto a mim como (por conseguinte) a
Meu Pai”. Quanto à expressão “meu Pai” (filiação única de Cristo) veja-
se sobre Jo 1:14.
25. Isto, porém, é para que se cumpra a palavra escrita na sua lei:
Odiaram-me sem motivo.

345
IIC; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 718
Quer dizer, em todo este ódio e por meio dele, Deus cumpre Seu
plano de redenção. O ódio dos homens deve produzir a crucificação de
Cristo, a fim de que os homens (Seu povo) possam ser salvos. Mas o
decreto eterno cumpre-se de tal modo que a culpa recai no homem, não
em Deus.
A experiência do salmista chega ao seu cumprimento final:
“Não se alegrem de mim os meus inimigos gratuitos; não pisquem
os olhos os que sem causa me odeiam” (Sl. 35:19).
E também:
“São mais que os cabelos de minha cabeça os que, sem razão, me
odeiam” (Sl. 69:4). 346
O escritor do Sl. 35 outorgou muitos favores aos que agora são seus
inimigos. O sofrimento deles tinha sido seu sofrimento; os pesares deles,
seus pesares. Tinha-os tratado como a irmãos (Sl. 35:13, 14). Mas lhe
haviam devolvido mal por bem. Quanto aos antecedentes do Sl. 69 e o
uso deste salmo no Novo Testamento veja-se sobre Jo 2:17. Segundo o
Sl. 35 os inimigos são aqueles que preferem esquecer favores passados;
segundo o Sl. 69 são os que não podem suportar ser testemunhas do zelo
ardente que Davi manifesta pela causa do Senhor. Sem dúvida, em
ambos os casos o próprio salmista recebe os maus procedimentos. Seus
inimigos o odeiam sem causa. Assim também (só que muito mais!)
quando os inimigos de Cristo O repudiam, apesar de todas as Suas
palavras de graça e milagres de amor, odiavam-No sem causa. Quanto ao
significado da expressão “sua lei” veja-se sobre Jo 10:34.
Agora, qual deve ser a atitude dos discípulos com relação a este
mundo, representado pelos judeus que desafiam a Deus, odeiam a Cristo
e perseguem à igreja? No meio deste mundo devem dar testemunho, bem
como o dá o Espírito:

346
Em ambos os casos a LXX tem ο_ μισο_ντες με δωρεάν (veja-se LXX em 34:19; 68:5). Equivale
em sentido ao original em Jo 15:25, aqui verbo finito (aoristo) em discurso indireto.
João (William Hendriksen) 719
26. Quando vier o Ajudador, a quem Eu vos enviarei da parte do
Pai, o Espírito da verdade, que procede do Pai, Ele dará testemunho de
Mim [NKJV].
Jesus veio falando do ódio que os discípulos terão que suportar da
parte do mundo, que odeia o Pai e o Filho. Em consequência, não
surpreende que com relação a isso volte a consolá-los lembrando-lhes
Sua promessa anterior (veja-se sobre Jo 14:16, 17, 26) com relação à
vinda do Espírito, o Ajudador. O próprio Jesus enviará este Ajudador.
Será enviado da parte do Pai. Em essência, embora com diferença em
ênfase, é o mesmo que dizer: “Eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro
Ajudador” (Jo 14:16, NKJV); “O Ajudador, o Espírito Santo, a quem o
Pai enviará em Meu nome” (Jo 14:26, NKJV). Aqui em Jo 15:26 se
realiza a atividade do Filho no envio do Espírito, e o fato de que este
Espírito procede eternamente do Pai. O envio do Espírito era futuro. O
Pentecostes não tinha chegado ainda. Por isso, utiliza-se o tempo futuro:
“enviarei”. A processão estava ocorrendo no mesmo momento em que
Jesus falava (se o que na realidade transcende o tempo pode considerar-
se da perspectiva temporal); em consequência, utiliza-se o tempo
presente. 347 Se disséssemos «O fato de que Jo 15:26 afirme que o Filho
enviará o Espírito demonstra que o Pai não o envia», estaríamos errados
(veja-se Jo 14:26). Assim também, se disséssemos «O fato de que Jo
14:26 afirme que o Espírito procede do Pai demonstra que não procede
do Filho», erraríamos (veja-se At. 5:9; Rm. 8:9; 2Co. 3:17; Gl. 4:6; Fp.
1:19; 1Pe. 1:11; onde o Espírito é chamado Espírito de Cristo). Afinal de
contas, é tão raro que Jesus, falando como Mediador entre Deus e o
homem, e sendo Ele mesmo homem, falasse, durante seu período de
humilhação, do Espírito como procedente do Pai?
Ao Espírito Santo é chamado aqui o Espírito da verdade, igual a em
Jo 14:17; veja-se essa passagem. Esse Espírito dará testemunho (veja-se

347
Não sem razão este tempo presente em tal conexão foi chamado presente atemporal. A relação
intratrinitária que se indica aqui — a procissão do Espírito — é eterna, quer dizer, transcende o
tempo.
João (William Hendriksen) 720
sobre Jo 1:7, 8). No meio do mundo ímpio dará testemunho contra o
mundo (Jo 16:8, 9). No meio do gênero humano dará testemunho com
relação à necessidade do mesmo. No meio da igreja consolará a igreja.
Não se deve restringir a esfera de Seu testemunho. Sempre que um
verdadeiro servo de Deus dá testemunho contra o mundo, este
testemunho é obra do Espírito. Sempre que um simples crente, com sua
palavra e exemplo, atrai outros a Cristo, também isso é obra do Espírito.
Esse Espírito sempre dá testemunho com relação à Palavra, a Palavra de
Cristo (Jo 14:26; 16:14, 15). Em geral, o mundo que é abertamente hostil
a Cristo não o receberá (Jo 14:17). No entanto, há exceções. Dentre os
que hoje em dia são abertamente hostis alguns serão atraídos. Serão
transferidos do reino das trevas ao da luz eterna. Houve alguma vez um
perseguidor mais violento que Saulo (ou Paulo) de Tarso? O Espírito o ia
mudar (e outros como ele) para que se convertesse em zeloso
missionário de Cristo. Veja-se também em Jo 16:7–11.
Agora, nesta obra de testemunho o Espírito Santo utiliza meios,
como o indica o versículo seguinte.
27. E vós também testemunhareis 348 porque estais comigo desde o
princípio. O verbo que se utiliza no original pode ler-se ou como
presente de indicativo (“estão dando testemunho”) ou como presente de
imperativo (“dai testemunho” ou “continuem dando testemunho,” ou
simplesmente, “deveis dar testemunho”). Em defesa do indicativo têm
sido utilizados os seguintes argumentos:
(1) At. 1:8 (cf. Jo 5:32) ensina que os discípulos de fato estavam
dando testemunho.
(2) A razão que se dá — ou seja, “porque estais 349 comigo desde o
princípio” — soa raro depois de imperativo, “dai testemunho”.
348
Ou: “e vós também estais testificando”.
349
Não se pode deduzir nenhum argumento legítimo (em favor da posição que afirma que a forma do
verbo dar testemunho é indicativa) do fato de que Jesus utilize o tempo presente _στε. Este é
simplesmente o presente de duração, associado com um advérbio de tempo. Indica o que começou no
passado, e continua no presente. A frase deveria traduzir-se, “vós tendes estado comigo desde o
princípio”; não: “estais comigo desde o princípio”.
João (William Hendriksen) 721
Mas poderia responder-se:
(1) At. 1:8 (cf. Jo 5:32) não ensina que os discípulos davam
testemunho nesse então, mas que iam dar testemunho depois que fosse
derramado o Espírito.
(2) Tomado no sentido “deveis dar testemunho, porque estais
dotados para isso, visto que estivestes comigo desde o princípio”, a
lógica da frase, longe de parecer rara, fica muito clara.
Outros argumentos em favor do imperativo são os seguintes:
a. Depois do futuro, “dareis testemunho”, o imperativo “dai
testemunho também”, ou “também deveis vós dar testemunho”, parece
mais natural que o indicativo. O significado parece ser, “Vós deveis
também fazer o que o Espírito vai fazer”.
b. É muito lógico que o preceito, “permanecei em mim” (Jo 15:4),
que indica qual deveria ser a relação dos discípulos com Cristo, e o
preceito “que vos amem uns aos outros” (Jo 15:12), que mostra qual
deve ser sua atitude entre si, vão seguidos de “dai também testemunho”
(Jo 15:27), que descreve seu dever com relação ao mundo perseguidor.
Além disso, num contexto repleto de preceitos, expressos ou implícitos,
num marco que enfatiza tanto o dever dos discípulos (veja-se Jo 15:4, 7,
8, 10, 12, 14, 16, 17, 20) parece muito natural o imperativo.
(3) Muito pouco há no contexto imediato que indique que os
discípulos estivessem já então cumprindo seu dever com relação à obra
de dar testemunho. Pelo contrário, durante essa mesma noite falharam
em dar testemunho; “escandalizaram-se” dele. Por isso, com E. J.
Goodspeed (veja-se sua tradução) tomamos este verbo como imperativo:
“dai também testemunho!”
É verdade que nas testemunhas oculares (os que tinham estado com
Cristo desde o princípio de Seu ministério) recai o dever de dar
testemunho com relação ao que viram. Sem dúvida, a obra do Espírito
Santo de dar testemunho não se limita ao testemunho dos discípulos. No
entanto, este último (o testemunho dos discípulos) é um meio muito
importante mediante o qual o Espírito consegue Seu fim.
João (William Hendriksen) 722
Síntese do Capítulo 15
O Filho de Deus instrui com ternura a seus discípulos. Palavra de
admoestação.

I. “Permanecei em mim” (versículo 1–11): a relação dos crentes


com Cristo.
Na noite em que se instituiu a Ceia do Senhor — o jantar com pão e
vinho — era natural que Jesus falasse a respeito da videira como
símbolo de fecundidade espiritual. Admoestou a Seus discípulos a que
não seguissem o exemplo de Judas (embora o nome deste não se
menciona aqui), mas permanecessem na videira, ou seja, em Cristo, em
Sua palavra e em Seu amor.
Chamou-se a si mesmo a videira verdadeira, descreveu a seu Pai
como o viticultor, e denominou ramos a todos os que entram em contato
íntimo com Ele.
Estes ramos se dividem em dois grupos: os que dão fruto, e os que
não o dan. A fim de dar fruto é absolutamente necessário permanecer na
videira. Os resultados magníficos de permanecer em Cristo são: a.
oração eficaz, b. dar muito fruto para a glória de Deus, e c. plenitude de
alegria. Em tais casos cada ciclo de amor (em que o amor dEle antecede,
acompanha e segue ao amor deles) produz outro, melhor que o anterior.
Os ramos que não dão fruto se lançados fora, deixam-se murchar,
recolhem-se, tornam-se ao fogo, e são queimados.

II. “Amai-vos uns aos outros” (versículo 12–17): a relação dos


crentes entre si.
O amor abnegado de Cristo pelos crentes é a pauta do amor mútuo
entre os crentes. Este amor se manifesta em abnegação, até o extremo de
estar disposto a dar a vida pelos amigos. Jesus estava precisamente
prestes a fazê-lo. Ofereceu a vida por Seus amigos. Já não deviam ser
considedos como servos e sim amigos, porque Ele lhes tinha comunicado
João (William Hendriksen) 723
Seus secretos, e eles estão prazerosos de agradá-lo com o cumprimento
de Seus preceitos. Esta amizade tem suas raízes no amor soberano,
eletivo, a classe de amor que produz frutos e oração eficaz. A fim de
poder amar-se uns aos outros é necessário permanecer nesse amor de
Cristo por Seus amigos e meditar constantemente a respeito do mesmo.

III. “Dai também testemunho” (vv. 18–27): a relação dos crentes


com o mundo, em resposta à atitude do mundo diante dos crentes:
A. “O mundo vos odeia”.
1. As razões deste ódio:
a. Os crentes não são “do mundo”; e
b. Os crentes pertencem a Cristo, a quem o mundo odeia.
2. O caráter indesculpável deste ódio:
Por meio de suas palavras e obras Jesus tinha Se revelado a Si
mesmo e a Seu Pai ao mundo (não no sentido em que Se manifesta ao
coração do crentes, mas sim) até tal ponto que o ódio do mundo era
completamente indesculpável; odiavam-No sem causa. De modo que,
cumpria-se uma antiga profecia.
B. “O Ajudador, o Espírito da verdade, dará testemunho de mim …
e vós deveis dar testemunho também”.
1. O testemunho do Espírito.
Este Ajudador, que procede eternamente o Pai, e a quem Jesus
envia do Pai, dará testemunho com relação ao Filho. Está em condições
de fazê-lo dada Sua relação íntima com o Filho, sendo os dois um em
essência.
2. O testemunho dos discípulos.
Quem poderia estar melhor qualificado para dar testemunho que
uma testemunha ocular? Pelo fato de que desde o começo do ministério
de Cristo estes discípulos foram testemunhas oculares, também eles
devem dar testemunho. O testemunho deles, além disso, servirá de meio
pelo qual o Espírito Santo dá Seu próprio testemunho.
João (William Hendriksen) 724
JOÃO 16
Observações Preliminares a respeito do Capítulo 16
Ninguém que leia com cuidado o capítulo dezesseis deixará de
observar a mudança no caráter do discurso. Há uma transição paulatina
da admoestação à predição. Assim como no capítulo quatorze
preponderava o tom de consolo, e no quinze o de admoestação, assim no
dezesseis prevalece o de predição. Está claramente em primeiro plano o
tempo futuro (ou seus equivalentes em significado), indicando o que
sucederá. Notem-se os seguintes exemplos (versículos 1–14):
“Eles vos expulsarão das sinagogas … vem a hora em que todo o
que vos matar julgará com isso tributar culto a Deus. Isto farão … eu
vo-lo enviarei (ao Ajudador) … Convencerá o mundo. Ele vos guiará a
toda a verdade. Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e
vo-lo há de anunciar”. Assim prossegue até o fim do capítulo; veja-se
versículos 15, 16, 20, 22, 23, 24, 25, 26, 32.
No entanto, entre os capítulos 15 e 16 não há uma divisão brusca ou
mecânica. Pelo contrário, a transição é muito gradual. Repetem-se temas
tratados nos capítulos anteriores, tais como o pesar pela partida de Cristo
(cf. Jo 14:1, 18 com Jo 16:7, 22), e o consolo da oração eficaz (cf. Jo
15:7, 16 com Jo 16:23). Assim também, trata-se o mesmo tema que Jesus
apresentou no final do capítulo 15, ou seja, a perseguição que os
discípulos terão que suportar por parte do mundo. Mas há diferença no
grau de ênfase. Enquanto que no capítulo 15 é dito aos discípulos o que
deveriam fazer, no capítulo 16 Jesus prediz o que vai fazer o Deus triúno
pelos discípulos diante deste espírito de ódio e perseguição. Já se
antecipou algo disso em Jo 15:26. Agora se amplia este tema. O Espírito
Santo convencerá o mundo, e guiará a igreja a toda a verdade. O Filho
dará alegria ao coração dos discípulos (com Sua gloriosa ressurreição e
enviando o Espírito). O Pai continuará amando-os. Por isso é segura a
vitória.
João (William Hendriksen) 725
JO 16:1–15

16:1. Tenho-vos dito estas coisas para que não vos escandalizeis.
Estas coisas — coisas pertencentes ao ódio que os discípulos
experimentariam de parte do mundo (Jo 15:18–27) — Jesus as disse para
prevenir os Seus “amigos”. Se não houvesse predito estas coisas, teriam
sido tomados de surpresa (ou: apanhados; veja-se sobre Jo 6:61). No
meio da feroz perseguição teriam se sentido desalentados e desiludidos
com seu Senhor. Teriam começado a perguntar-se se era realmente
verdade que as rédeas do universo estavam em Suas mãos. Teriam dito,
«Tínhamos esperado tanto dEle, e recebemos tão pouco»; como o que
sucede quando um pássaro cai na armadilha: tinha esperado uma presa
deliciosa, mas ficou totalmente desiludido.
A fim de impedir uma decepção tal que tenderia a minar sua fé, o
Senhor lhes disse todas estas coisas com antecedência, antes de
ocorrerem. Assim saberão que não só a traição de Judas (veja-se sobre Jo
13:19) e a saída de Jesus (veja-se sobre Jo 14:29), mas também o ódio do
mundo estava incluído no plano de Deus para o progresso deles na
salvação (cf. Rm. 8:28).
2. Eles vos expulsarão das sinagogas; sim, vem a hora em que 350
qualquer que vos matar, pensará que presta serviço a Deus [NKJV].
O ódio violento que os hostis judeus centralizariam nos discípulos
seria manifesto em expulsões das sinagogas (veja-se sobre Jo 9:22, 23).
Os seguidores do Nazareno seriam excomungados da vida religiosa e
social de Israel. Seriam separados das esperanças e prerrogativas dos
judeus. Seus antigos amigos os veriam como piores que pagãos.
Perderiam o trabalho, suas famílias os separariam de seu seio, e inclusive
perderiam o privilégio de um enterro honorável. Pior que isto até,
tirariam sua vida. A hora (indefinido, poderia traducir-se: “O tempo”; cf.
Jo 4:21, 23; 5:25, 28; 16:25, 32) aproximava-se quando os homens

350
A respeito de _να veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 726
considerariam que dar morte a um cristão era um ato meritório, uma ação
por meio da qual alguém “presta serviço a Deus”. A forma de raciocinar
poderia ser como segue: «Acaso não nos foi ensinado desde a infância
que há um só Deus verdadeiro, e que só ao devemos adorar? E agora
estes seguidores de Jesus pretendem que Ele também é Deus. Isto é
blasfêmia, e deve castigar-se com a morte”. Imediatamente se pensa em
Paulo, quem logo testificou: “Eu, na verdade, entendia que devia fazer
toda a oposição ao nome de Jesus o Nazareno” (At. 26:9, TB). Era um
princípio que equivalia a um dogma entre os judeus: «Aquele que
derrama o sangue do ímpio é como se oferecesse um sacrifício».
3. Isto farão porque não conhecem o Pai, nem a mim. Os hostis
judeus criaram seu próprio Deus. Ao verdadeiro Deus tal como se revela
em Jesus Cristo, eles não o serviam. Esta falha não se devia à ignorância
desculpável. Podiam ter sabido (veja-se sobre Jo 15:22, 24). Era a
consequência de negar-se a reconhecer (quanto ao significado do verbo
veja-se sobre Jo 1:10) tanto ao que enviava como ao enviado, e isto
apesar de todos os sinais. Naturalmente, quando alguém rejeita o Filho,
rejeita também o Pai, e vice-versa (veja-se sobre Jo 10:30).
4. Ora, estas coisas vos tenho dito para que, quando a hora chegar,
vos recordeis de que eu vo-las disse. Volta-se a repetir o pensamento do
versículo 1. O Mestre cuida de Seus discípulos com amor. Quando
chegar «a dura prova», nunca poderão dizer «O que raro e inesperado!
Porquê não nos advertiu sobre isso?» (Cf. 1Pe. 4:12). Agora que foram
advertidos com antecipação, seu próprio sofrimento (quando chegar)
confirmará sua fé em Jesus. Lembrarão de Suas palavras. Por isso, dirão
então, «Se estão se cumprindo Suas predições com relação às
calamidades, também se cumprirão as relacionadas com a
prosperidade». Jesus prossegue: Não vo-las disse desde o princípio,
porque eu estava convosco. Por certo que tinha havido predições de
perseguição futura (Mt. 5:10–12; 10:16–39). Mas isto (Jo 15:18–16:3) —
o fato de que o mundo odeia os discípulos porque Jesus os escolheu
tirando-os do mundo, que este ódio na realidade dirigia-se contra Jesus e
João (William Hendriksen) 727
contra o Pai, que era totalmente indesculpável e estava enraizado na
condição sinistra do coração, que voluntariamente se negava a
reconhecer o verdadeiro Deus, que se aproximava de fato o tempo em
que os homens considerariam que o dar morte aos seguidores de Cristo
equivalia a um ato de adoração totalmente agradável a Deus — isto, com
essa ênfase e dessa forma direta, nunca tinha sido revelado antes. Não se
encontra “isto” em Mt. 5:10–12, que fala só de perseguição em geral e de
calúnias em particular —, nem tampouco em Mt. 10:16–39, que descreve
as formas externas da perseguição (arresto, flagelação, morte, pôr
motes), mas diz muito pouco com relação à raiz oculta da qual nasce tal
perseguição (só Mt. 10:22, 24, 25, 40; cf. Jo. 15:20, 21). A razão pela
qual Jesus não havia dito isto desde o começo era que não tinha sido
necessário por esse então, porque ainda estava com eles. Enquanto
esteve fisicamente presente, o embate mais forte do ataque dirigia-se
contra Ele, não contra os discípulos. De agora em diante dar-se-ia uma
mudança. Com Jesus já crucificado, o Sinédrio começaria a dirigir sua
ira contra Seus seguidores. Faz lembrar Ap. 12:4, 13, 17: primeiro o
dragão trata de devorar o filho; logo persegue à mulher, enfrenta-se
contra o resto de sua descendência. O livro de Atos mostra que esta
profecia (Jo 15:18–16:4) cumpriu-se em todos os seus detalhes.
5. Mas, agora, vou para junto daquele que me enviou, e nenhum de
vós me pergunta: Para onde vais? Um pouco antes disso, quando Jesus
ainda não tinha explicado o propósito de Sua marcha, tinha havido
muitas perguntas com relação à mesma. Pedro tinha perguntado “Senhor
para onde vais?” (Jo 13:36) e Tomé tinha perguntado algo semelhante
(Jo 14:5). Mas estas perguntas nasciam de uma concepção tosca e literal
da partida de Cristo. Então Jesus tinha dado uma explicação completa.
Tinha indicado com clareza que não Se dirigia a outro lugar na terra
senão que ia para o Pai (Jo 14:28), que Sua volta ao Pai deveria ter
enchido seus corações de alegria (também Jo 14:28), e que de lá enviaria
outro Ajudador, ou seja, o Espírito da verdade (Jo 14:16, 17, 26; 15:26).
Este era o momento adequado para perguntar o que ia significar para Ele
João (William Hendriksen) 728
e para eles essa volta para o Pai. Não houve, porém, perguntas. Nem
sequer houve uma petição de que repetisse a informação tão instrutiva
com relação ao lugar para onde ia. Nesse deixar de fazer perguntas
houve um elemento de egoísmo. Tão profundamente preocupados
estavam estes homens com o pensamento de sua própria perda tão
próxima, que este pesar tinha excluído qualquer consideração. Jesus Se
queixa amargamente: “E nenhum de vós me pergunta: Para onde vais?”
Prossegue:
6. Pelo contrário, porque vos tenho dito estas coisas, a tristeza
encheu o vosso coração.
Jesus tinha falado a respeito de sua partida. Os discípulos se
concentraram no fato desta partida, e no que pensavam que significaria
para eles. Não emprestaram suficiente atenção à natureza desta partida,
e ao que Ele havia dito que isto significaria para eles e para Ele. Por
isso, o pesar apoderou-se de seus corações (cf. Jo 14:1, 27); e isto apesar
de todas as razões que Jesus tinha apresentado para seu consolo (capítulo
14), e apesar da instrução que lhes havia comunicado com relação aos
frutos de permanecer nEle depois de Sua partida física (capítulo 15). Os
discípulos concebem como uma grande perda a partida de seu mestre.
Por isso Jesus continua:
7. Mas Eu lhes digo a verdade: que vos convém que Eu vá; porque se
eu não for, o Ajudador não virá a vós; mas se Eu for, Eu o enviarei a vós
[]NKJV]. 351
Aqui, Jesus expressou claramente o que tinha estado sugerindo
desde muito antes. Acaso não havia dito aos discípulos que Sua partida
seria com o propósito de lhes preparar um lugar (Jo 14:2); de prepará-los
para fazer obras maiores (Jo 14:12); de lhes comunicar conhecimentos
mais abundantes (Jo 14:20); e, na realidade, de atraí-los mais a Si, ou
seja, no Espírito (Jo 14:28)? Acaso não era, pois, muito claro que a
partida do Mestre seria vantajosa para os discípulos? Mais uma vez,

351
Jo 16:7a é III A 3; Jo 16:7b é III A 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 729
enquanto os discípulos veem a Jesus no corpo, são capazes de entender
que sua relação com Ele deve ser de caráter espiritual?
Na verdade, estranhos são os caminhos do Senhor! Cristo e Seu
grande inimigo Caifás dizem ambos o mesmo, ou seja, que é conveniente
que Jesus morra (veja-se sobre Jo 11:50). Naturalmente, o próprio Caifás
não quis dizer o que Cristo quis dizer. A intenção do Espírito, no
entanto, era a mesma em ambos os casos.
A razão fundamental de por que a partida de Cristo significa triunfo
e não tragédia, a razão de por que é uma ajuda e não um obstáculo para
estes homens (e para a Igreja em geral) é esta, que do contrário o
Ajudador (veja-se sobre Jo 14:16), ou seja, o Espírito Santo, não virá a
eles. Jesus não explica por que o Espírito não pode vir a não ser que o
Filho parta da terra para voltar à Sua morada no alto. Provavelmente as
seguintes sugestões assinalam a direção correta: a partida do Filho é pelo
caminho da cruz. Com tal partida obtém a redenção para seu povo.
Agora, o Espírito Santo é aquele cuja missão especial é aplicar os
méritos salvadores de Cristo ao coração e à vida dos crentes (Rm. 8; Gl.
4:4–6). Mas o Espírito não pode aplicar estes méritos se não houver
méritos para aplicar. Em consequência, a não ser que Jesus parta, o
Espírito não pode vir. Do mesmo modo, deve ter-se em mente que o dom
do Espírito Santo é uma recompensa pela obras de Cristo (At. 2:33). Mas
não se dá a recompensa até que se tenha cumprido a missão pela qual se
outorga. Por isso, o Espírito Santo não pode ser enviado até que Jesus
complete Sua tarefa na terra. Não dizemos que Jesus tivesse em mente
estas razões ao dizer “porque se eu não for, o Ajudador não virá a vós;
mas se vou, Eu o enviarei a vós”. Simplesmente não sabemos o que tinha
em mente. A razão por que nós, no entanto, apresentamos umas quantas
sugestões é para mostrar que esta afirmação de Jesus está totalmente em
harmonia com o corpo da revelação que encontramos em outras
passagens do Novo Testamento. Note-se, “enviarei”, aqui e também em
Jo 15:26; mas Jo 14:26: “O Pai o enviará em meu nome”. Há cooperação
perfeita nas obras externas. O Pai envia; o Filho envia; o Espírito vai.
João (William Hendriksen) 730
Além disso, o Espírito é enviado “a vós”. Escolhe como morada a igreja.
No entanto, também o mundo percebe seu influxo:
8. Quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do
juízo.
A ação do Espírito no mundo é descrita nos versículos 8–10.
Através da pregação e as obras dos discípulos (2Tm. 3:16; 4:2; Tt. 1:9,
13; 2:15) esse Espírito, uma vez constituída sua morada no coração dos
crentes (veja-se At. 2; 2Co. 6:16), convencerá 352 o mundo.
Porá publicamente de manifesto a culpa do mundo e o convidará
ao arrependimento. Ele o convencerá com relação a três assuntos:
pecado, justiça, e juízo. O resultado desta operação do Espírito não é
indicado aqui. Por At. 2:22–41; 7:51–57; 9:1–6; 1Co. 14:24; 2Co. 2:15,

352
O verbo convencer é um pouco ambíguo porque pode significar quer seja: (a) provar a
culpabilidade, sem querer dizer que a pessoa cuja culpabilidade é provada esteja disposta a admitir e
confessar sua culpa; ou (b) despertar a consciência de culpa. Sem dúvida, quando o Espírito Santo
convence o mundo por meio da pregação do evangelho, obtêm-se ambos os resultados, mas não em
todas as pessoas a quem se proclama a Palavra. O evangelho demonstra imediatamente que todo
mundo é culpado. No caso de muitos esta culpa chega a consciência, de forma que a sentem. E entre
eles há alguns (escolhidos de Deus) que não só se convencem disso em sua alma, mas também o
admitem abertamente, arrependem-se de fato, e confessando tudo o mal que fizeram, abandonam-se à
misericórdia de Deus em Cristo. Em consequência, o verbo convencer não tem o mesmo significado
para todos. Em geral, o mundo ímpio continua em aberta hostilidade para Deus, Seu Cristo, e Seu
povo (veja-se nota 26, significado 6). Embora tenha posto de manifesto ou demonstrado sua culpa (ou
seja, embora nesse sentido foi convencido), não se arrepende. O termo utilizado no original (_λέγχω) é
pelo menos tão elástico em significado como a palavra convencer. O fato de significar mais que
simplesmente repreender, foi demonstrado por R.C. Trench, op cit., pp. 13–15. No entanto, como seu
resumo não é completo e como parece defender sua posição baseado em alguns (e não em todos os)
usos do termo, o valor de sua apresentação fica um tanto limitado. Nas passagens que menciona, o
verbo implica repreender com bons resultados, a saber, conseguir que se reconheça seu pecado.
A divergência com relação à tradução adequada do termo fica evidente na seguinte enumeração
dos dezessete casos em que se encontra no Novo Testamento (sem incluir Jo. 8:9 e Jd. 22, para os
quais o apoio textual é fraco). RA, a não ser que se indique a versão:
Mt. 18:15, TB - repreendê-lo Ef. 5:11 - reprovai-as Tt. 2:15 - repreende
Lc. 3:19 - repreendido Ef. 5:13 - manifestas Hb. 12:5, TB - repreendido
Jo. 3:20, RC - reprovadas 1Tm. 5:20 - repreende-os Tg. 2:9, TB - condenados o
Jo. 8:46 - convence 2Tm. 4:2 - repreende Jd. 15, TB - convencer
Jo. 16:8 - convencerá Tt. 1:9 - convencer Ap. 3:19 - repreendo
1Co. 14:24 - convencido Tt. 1:13 - repreende-os
João (William Hendriksen) 731
16; Tt. 1:13, sabemos que em alguns casos o resultado será a conversão;
em outros, o endurecimento e o castigo eterno.
9. Do pecado, porque não creem em mim.
Por meio da obra de testemunho, que os apóstolos e seus seguidores
levarão a cabo (Jo 15:27), o Espírito Santo não só porá a descoberto o
pecado do mundo, e sim no caso de alguns, despertará a consciência de
culpa que conduz a verdadeiro arrependimento (cf. 1Jo 3:8). Haverá
pesar genuíno e um ir ao Salvador em busca de refúgio e perdão. Haverá
muitos casos de verdadeira conversão. Embora o mundo em geral
seguirá perseguindo a igreja (At. 7:51ss.), haverá milhões de pessoas que
no curso da história despertarão para o conhecimento de sua culpa.
Como consequência da operação da graça soberana de Deus, homens de
todas as latitudes e nações aceitarão a Jesus como seu Senhor e Salvador.
Quando o Espírito Santo, por meio da pregação do evangelho,
convença aos homens de seu pecado, um número considerável
exclamará, “Irmãos, o que faremos?” (At. 2:37). Sentirão que a essência
de seu pecado (o grande pecado que abrange todos os outros, daqueles
que ouviram o evangelho) é este: não ter aceito a Jesus como seu Senhor
e Salvador, e sim tê-lo rejeitado (veja-se sobre Jo 3:18; 12:37, 48).
Quanto ao significado do verbo πιστεύω veja-se sobre 1:8; 3:16; 8:30,
31a.
10. Da justiça, porque vou para o Pai, e não me vereis mais.
A expressão “convencerá o mundo da justiça” deve explicar-se à
luz do que segue imediatamente: “porque vou para o Pai, e não me vereis
mais”.
O mundo, representado pelos judeus, ia crucificar a Jesus. Haveria
de dizer “Deve morrer” (Jo 19:7); por isso, em nome da justiça ia
entregá-Lo à morte. Proclamava em voz alta que ele era injusto. Tratava-
o como malfeitor (Jo 18:30). Mas a verdade era precisamente o
contrário. Embora o mundo O tenha rejeitado, o Pai O acolheu, acolheu-
O em casa pelo caminho da cruz, a cruz que conduziu à coroa. Os
discípulos já não iam observar Suas atividades diárias como quando
João (William Hendriksen) 732
andava com eles. Ele ia morrer, ia receber Sua recompensa (Fp. 2:9–11).
Por meio da ressurreição o Pai poria o selo de Sua aprovação em Sua
vida e obra (At. 2:22, 23, 33; Rm. 1:4). Ele, o mesmo a quem o mundo
tinha chamado malfeitor, por meio de uma ida vitoriosa ao Pai seria
assinalado como o Justo (Jo 8:46; At. 3:14; 7:52; 2Co. 5:21; 1Pe. 3:18;
1Jo 2:1; e cf. Lc. 23:47). De modo que, o mundo seria convencido da
justiça. E esta convicção resultaria na condenação do mundo (quer dizer,
na condenação de Satanás e de todos os que se negaram a arrepender-se):
11. Do juízo, porque o príncipe deste mundo já está julgado. O
príncipe deste mundo já estava condenado (veja-se sobre Jo 12:31;
14:30; cf. Cl. 2:15). Ao condenar a Cristo (o acolhido pelo Pai!)
condenou-se a si mesmo. No último dia esta sentença se manifestaria a
todo o universo quando “o diabo que os enganava é lançado no lago de
fogo e enxofre” (Ap. 20:10). Em consequência, o mundo, ao seguir o
conselho de Satanás de condenar a Jesus, é condenado.
Resumindo, fica evidente que, através da pregação do evangelho, o
Espírito Santo ajuda a igreja, e que o faz convencendo o mundo com
relação a seu próprio pecado de não crer em Cristo, com relação à
justiça de Cristo, que ao ir ao Pai fica totalmente vindicado, e com
relação ao juízo de Deus pronunciado sobre o príncipe do mundo.
Note-se como esta profecia de Jesus realmente se cumpriu. O
sermão de Pedro o dia do Pentecostes (At. 2) trata exatamente destes três
temas: a. pecado, o pecado de rejeitar a Cristo (“vós o matastes,
crucificando-o por mãos de iníquos”); b. justiça, a justiça de Cristo
(“Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus”); c. e juízo, o juízo dos
hostis a Cristo (“Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus
inimigos por estrado dos teus pés … Salvai-vos desta geração perversa”).
O resultado foi: “Ouvindo eles estas coisas, compungiu-se-lhes o
coração e perguntaram a Pedro e aos demais apóstolos: Que faremos,
irmãos?… havendo um acréscimo naquele dia de quase três mil
pessoas”.
João (William Hendriksen) 733
12. Tenho ainda muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar
agora.
Tendo falado a respeito da obra do Espírito no meio do mundo,
Jesus passa agora a iluminar a mente dos discípulos com relação à
influência do Espírito no seio da igreja. A sede local é tão importante
como o campo missionário. Alguns cometem o erro de recalcar a
importância do segundo enquanto que prestam escassa atenção à
primeira. Mas se qualquer seção da igreja visível não está dirigida rumo
à verdade devido ao fato de que presta ouvidos a heresias, segue práticas
desonestas ou se permite que a governem hábeis manipuladores, como se
pode esperar bênção sobre seu campo missionário? A história da igreja
nos dá exemplos. Como podem os que pensam com leviandade a
respeito do pecado servir como agentes do Espírito Santo na tarefa de
conduzir a outros ao “convencimento” de pecado?
A verdadeira igreja de Deus, no entanto, vê o perigo, e exerce
vigilância incessante. Em seu entusiasmo pela causa gloriosa das
missões não descuida a sede local. E o Espírito Santo utiliza esta
vigilância vinda de Deus, e guia à igreja a toda a verdade, fortalecendo-a,
de forma que possa dar testemunho ao mundo.
Os discípulos necessitavam muito este fortalecimento espiritual.
Imaginemos a cena. Jesus olha com ternura a estes homens. Durante
nesta mesma noite eles tinham revelado seu orgulho pecaminoso (Jo
13:14; Lc. 22:24); em umas poucas horas, iam escandalizar se” dEle (Jo
16:32; Mt. 26:31); agora mesmo, enquanto o Mestre pronunciava estas
palavras de vida e beleza, manifestavam sua lentidão mental (Jo 13:36,
37; 14:8, 9, 22; 16:5, 6). Na realidade, o grande Médico de almas sabia
quão frágeis e carnais eram. Sabia-o e entendia tudo. No entanto, não os
repreende; antes, com amor terno lhes diz: “Tenho ainda muito que vos
dizer, mas vós não o podeis suportar agora”. Veja-se também Mt. 13:12;
1Co. 3:1, 2; Hb. 5:11–14
Não podiam suportar (veja-se sobre Jo 10:31) mais nesses
momentos. Jesus quase tinha concluído o Seu discurso. Em um ou dois
João (William Hendriksen) 734
minutos mais terá acabado. (Jo 16:12–33 é a única coisa que resta; o
capítulo 17 dirige-Se ao Pai, não aos discípulos.) Agora, eles não eram
totalmente culpados por esta incapacidade de suportar mais nesses
momentos. Havia, por exemplo, o simples fato de que os atos redentores
em geral antecedem a plena revelação redentora. Por isso, a doutrina
com relação à cruz não alcança seu pleno desenvolvimento até que Jesus
tiver sido crucificado; o significado pleno da obra do Espírito Santo não
se dá a conhecer até que o Espírito Santo foi derramado; etc. E este fato,
ou seja, que o Espírito Santo não iniciou ainda Sua morada pessoal na
igreja, fazia impossível revelar mais neste momento, durante esta noite.
Quando Jesus afirma agora “Tenho ainda muito que vos dizer”,
mostra claramente que a revelação posterior (que ia depositar-se de
forma escrita em Atos, nas epístolas e no livro de Apocalipse) era sua
própria obra. Em consequência, é um grande erro falar do evangelho de
Paulo como oposto ao evangelho de Cristo.
Além disso, a revelação posterior não contém verdades que sejam
“completamente novas”. Pelo contrário, ao proceder da mesma fonte, é a
mesma verdade antiga, gloriosamente esclarecida e ampliada.
13. Quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda
a verdade.
Jesus não indica o tempo exato em que o Espírito vai vir. Diz:
“Quando”. Embora a palavra para Espírito é neutra no original, o
pronome que se refere a este Espírito se considera como pessoa. Veja-se
também sobre Jo 14:16. Quanto ao significado da expressão “Espírito da
verdade”, veja-se sobre Jo 14:17.
A função do Espírito Santo na igreja se descreve como a de guiar,
literalmente: “ir adiante”. O Espírito não usa armas externas. Não
manipula; guia. Exerce influência na consciência regenerada do filho de
Deus (e aqui, em particular, dos oficiais ou dirigentes), e amplia os temas
que Jesus tinha apresentado durante Sua permanência na terra. De modo
que, guia a toda a verdade, quer dizer, para o corpo inteiro (com ênfase
neste adjetivo) da revelação redentora. O Espírito Santo nunca passa por
João (William Hendriksen) 735
em cima de um tema. Nunca insiste em um ponto de doutrina à custa de
todos os outros. Guia a toda a verdade. Além disso, no desempenho
desta tarefa está em relação íntima com as outras pessoas da Trindade.
Lemos: Porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver
ouvido. O Pai e o Espírito são um em essência. O que o Espírito ouve do
Pai murmura-o no coração dos crentes em e por meio da Palavra. Busca
constantemente as profundidades de Deus. Compreende-as e as revela
aos filhos de Deus (1Co. 2:10, 11). Ao dizer o que ouve, o Espírito é
como o Filho, porque este também fala do que ouviu do (e visto quando
estava com o) Pai (Jo 3:11; 7:16; 8:24; 12:49; 14:10, 24). E vos
anunciará as coisas que hão de vir. O Espírito virá (Jo 16:8); guiará a
toda a verdade (Jo 16:13a); e revelará as coisas que hão de vir (Jo
16:13b). Quanto ao primeiro, veja-se o livro de Atos (sobretudo o
capítulo 2); quanto ao segundo, veja-se as epístolas; quanto ao terceiro,
veja-se o livro de Apocalipse. Não é que estes três aspectos possam
dividir-se tão claramente. As epístolas e o Apocalipse constantemente
dão por sentado a presença do Espírito; as epístolas contêm muita
revelação com relação às coisas que hão de vir (p. ex., 1Co. 15; 2Ts. 2).
Mas em geral é boa a distinção que se fez. Naturalmente, quando o
Espírito declara as coisas que hão de vir, não começa pela enumeração
de uma longa lista de eventos específicos, diários, mas prediz os
princípios subjacentes. 353
14, 15. Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo
há de anunciar. Tudo quanto o Pai tem é meu; por isso é que vos disse que
há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar.
Enquanto o mundo está muito ocupado na obra de rejeitar a Cristo
e de perseguir Sua igreja, o Espírito Santo, através da pregação dos
apóstolos, glorificará a Cristo. Fará com que se proclamem as virtudes
de Cristo, mostrando Seu poder, santidade, amor, etc., e fazendo com
que elas resplandeçam e se manifestem entre as nações. Desta maneira, o
353
Quanto a isto veja-se W. Hendriksen, Más que vencedores, una interpretación del libro de
Apocalipsis, Grand Rapids, Mich., reimpressão T.E.L.L., 1977, pp. 4,5,63.
João (William Hendriksen) 736
Espírito glorificará o Filho. Tomará o que é de Cristo — a própria
essência de Seu ensino com relação ao propósito da redenção, forma de
salvação, etc. — e o ampliará. Tudo o que Cristo fez, faz e fará (pela
igreja) é tema do ensino do Espírito Santo. Jesus tem direito a chamar
seu este ensino baseado nos atos da redenção, porque como afirmou vez
após vez (veja-se versículo 13), recebeu-o do Pai; de modo que pode
dizer, “Tudo quanto o Pai tem é meu”, passagem que recebe um
comentário surpreendente e belo nas palavras de Mt. 11:27:
“Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho,
senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o
Filho o quiser revelar”.
Existe entre as pessoas da Trindade uma relação eterna,
voluntariamente assumida, de amor e amizade, na qual cada um trabalha
pela glória e a honra das outras (Jo 14:13; 16:14; 17:4, 5).

JO 16:16–24

16:16. Um pouco, e não mais me vereis; outra vez um pouco, e ver-


me-eis.
Jesus esteve falando da obra do Espírito Santo no mundo e na
igreja. A predição que se encontra nos versículos 16–24 refere-se ao
Filho. No entanto, há uma relação muito estreita entre as duas seções.
Jesus volta. Volta no Espírito.
O que Jesus diz nesta passagem a respeito do “um pouco” faz
lembrar Jo 7:33; 12:35; 13:33; e sobretudo Jo 14:19: “Ainda por um
pouco, e o mundo não me verá mais; vós, porém, me vereis; porque eu
vivo, vós também vivereis”.
Mas é notável que tanto aqui em Jo 16:16 como em Jo 14:19 (veja-
se sobre esse versículo) a expressão com relação ao “um pouco” dá-se
num contexto que fala do Espírito Santo. A declaração que se relata em
Jo 14:19 (veja-se sobre esse versículo) está precedido de “Não vos
deixarei órfãos, voltarei para vós”. Ficava de relevo que esta vinda é o
João (William Hendriksen) 737
retorno no Espírito no dia do Pentecostes. E Jo 16:16 (como se mostrou)
está precedido de toda uma seção que apresenta o trabalho do Espírito no
mundo (Jo 16:7–11) e na igreja (Jo 16:12–15). Por isso, parece ser uma
inferência segura que quando Jesus afirma “e de novo um pouco, e me
verão”, tem em mente a dispensação do Espírito durante a qual este
desdobrará de forma poderosa Suas obras na terra, de modo que com o
olho de fé a igreja poderia ver Seu autor, ou seja, o Ajudador prometido,
e no fundo descobriria o Salvador que O tinha enviado. Naturalmente, a
dispensação do Espírito, durante a qual a igreja por meio dEle vê o
Cristo, era resultado direto de que este fora ao Pai, como Jesus disse
claramente. A crucificação, a ressurreição e o derramamento do Espírito
Santo nunca devem ser separados. O próprio Jesus mostrou que estão
inseparavelmente vinculados, de forma que um não significa nada sem o
outro. Ele havia dito “Eu lhes digo a verdade: que vos convém que Eu
vá; porque se eu não for, o Ajudador não virá a vós; mas se Eu for, Eu o
enviarei a vós” (Jo 16:7, NKJV). Daí que não seja totalmente correta a
pergunta: «Quando Jesus diz, ‘de novo um pouco, e me vereis’, pensa
em sua ressurreição corporal ou em seu retorno no Espírito?» No
pensamento (e as palavras!) de Jesus esses dois fatos não estão tão
claramente separados. O Calvário não tem significado à parte da
Ressurreição, e a Ressurreição não tem valor à parte do Pentecostes, que
por sua vez aponta para a vinda no último dia. (Veja-se também o que se
disse com relação ao escorço profético, em conexão com Jo 14:18).
Tendo tudo isto presente parafrasearíamos o versículo 16 assim:
«Ainda um pouco — umas poucas horas mais —, e Me separarei de
vós, porque Me matarão e serei sepultado. Por isso, já não Me vereis
mais. Mas não ficarei longe de vós. Pela ressurreição gloriosa do terceiro
dia, iniciarei a dispensação do Espírito. Ver-me-eis em e por meio das
poderosas obras que Ele realizará na terra”. 354
354
A posição de que “e de novo um pouco, e me vereis”, refira-se à ressurreição física de Cristo, é
defendida, entre outros, por A. T. Robertson (comentando este versículo em Word Pictures, Vol. V, p.
269); C. Bouma (op. cit., p. 199); W. F. Howard (The Interpreter’s Bible, Vol. III, p. 734, embora
João (William Hendriksen) 738
17, 18. Então, alguns dos seus discípulos disseram uns aos outros:
Que vem a ser isto que nos diz: Um pouco, e não mais me vereis, e outra
vez um pouco, e ver-me-eis; e: Vou para o Pai? Diziam, pois: Que vem a
ser esse — um pouco? Não compreendemos o que quer dizer.
Alguns dos 355 discípulos estão confundidos. Não podem entender
como Jesus pode dizer por um lado, “… e de novo um pouco, e me
verão”, como se sua ausência fosse ser muito breve, e por outro lado
pode falar de ir ao Pai de forma que já não o verão mais, como se Sua
partida fosse definitiva e final. Note-se que as palavras, “porque eu vou
para o Pai”, são citadas literalmente da afirmação de Jesus no versículo
10 (cf. também o versículo 5: “Mas, agora, vou para junto daquele que
me enviou”; e Jo 14:12, 28).
Mas embora estes homens estão intrigados, temem lhe pedir a Jesus
que os ajude na dificuldade; talvez porque vez após vez tinha aludido à
ignorância pecaminosa e a mentalidade carnal que se transluziam de suas
perguntas (Jo 13:37, 38; 14:5–10, 22, 23); ou talvez porque acabava de
observar: “Tenho ainda muito que vos dizer, mas vós não o podeis
suportar agora” (Jo 16:12).
De modo que, em voz baixa e com tom reservado, continuavam se
perguntando qual poderia ser o significado deste ‘mashal’ (veja-se sobre
Jo 2:19, 20).
19. Percebendo Jesus que desejavam interrogá-lo.
O evangelista descreve um quadro vívido. Diz que os discípulos
desejavam (tempo imperfeito) lhe fazer uma pergunta, mas não se
atreveram a expressar este desejo. Assinala que Jesus o sabia. Conhecia
tanto seu desejo como sua indecisão. Mas sabia ainda mais que isso. Sua
onisciência penetrava não só os cantos escuros da mente mas também os
recônditos esconderijos do coração. Viu a ainda presente e muito

pense que provavelmente dá-se uma referência remota à Parousia); M. Dods em The Expositor’s
Bible, Vol. I, p. 836. A posição oposta — que se refere ao retorno de Cristo no Espírito — é defendida
muito habilmente por F. W. Grosheide (op. cit., pp. 380–385). Quanto à uma possível distinção no
significado dos dois verbos (observar, ver) veja-se sobre Jo 16:19.
355
A respeito de _κ veja-se também Jo 1:24.
João (William Hendriksen) 739
dolorosa tristeza. Quanto ao conhecimento de Jesus veja-se em Jo 1:42,
47, 48; 2:24, 25; 5:6; 6:64; 16:30; e 21:17. Sabia que a solução do
enigma podia esperar. Certos eventos que logo iam ocorrer se
encarregariam disso. O que os discípulos não entendiam agora, entendê-
lo-ão depois. Mas a necessidade premente do momento era dissipar suas
trevas. Nisso não se devia esperar. Por isso, em Sua terna misericórdia,
toma a iniciativa para ajudar os seus amigos em sua confusão, Indagais
entre vós 356 a respeito disto que vos disse: Um pouco, e não me vereis, e
outra vez um pouco, e ver-me-eis? 357
20. Em verdade, em verdade eu vos digo que 358 chorareis e vos
lamentareis, e o mundo se alegrará; vós ficareis tristes, mas a vossa
tristeza se converterá em alegria.
Quanto às palavras de solene introdução veja-se sobre Jo 1:51. A
fim de que o consolo que comunica seja muito real, Jesus primeiro
descreve aos discípulos a profunda dor deles com relação à morte dEle.
Quanto mais aguda a dor, tanto maior será a alegria que lhe siga. Jesus
prediz que quando Ele for crucificado, o mundo perverso (veja-se nota
26, significado 6) — pense-se sobretudo nos hostis líderes judeus — se
alegrará. Considerará a morte de Jesus como uma “boa jogada”, digna de
celebrar-se. Mas a sua alegria será prematura. Além disso, o pesar dos

356
É possível que a expressão “entre vós” implique uma terna recriminação, como se Jesus queria
dizer, Por que buscam a resposta entre vós? Por que não me perguntais a mim?” Mas isso não se pode
provar.
357
Não se deve considerar impossível que os dois verbos (primeiro θεωρε_τε, logo _ψεσθε) usem-se a
propósito, com uma ligeira distinção em significado no presente contexto atual. Ainda um pouco, e os
discípulos já não observarão a Jesus dia após dia. A morte e sepultura O separarão de sua vista. Mas
depois do segundo pouco o verão, ou seja, como o Salvador ressuscitado que introduz a dispensação
do Espírito. Embora seja verdade que não se pode traçar uma linha divisória clara entre os dois verbos
— qualquer dos dois pode-se utilizar para a visão tanto física como mental e espiritual —, também é
verdade no entanto, que no quarto Evangelho utiliza-se θεωρέω com mais frequência para visão física
(observar sinais, obras, um mendigo, um lobo, ataduras de linho, Jesus de pé) que o futuro do verbo
_ράω, que mais com frequência (talvez sempre em João) refere-se a visão mental e espiritual (pelo
menos uma visão não exclusivamente física). Quanto ao primeiro verbo veja-se Jo 2:23; 6:2; 7:3; 9:8;
10:12; 20:6, 12, 14 (mas também Jo 4:19; 6:40, 62; 8:51; 12:19, 45; 14:17; 17:24); quanto ao segundo
(tempo futuro) veja-se Jo 1:39, 51; 3:36; talvez inclusive Jo 19:37. Veja-se sobre Jo 1:14; nota 33.
358
Quanto a _τι veja-se IV da Introdução, e nota 13.
João (William Hendriksen) 740
discípulos não será permanente. Enquanto durar será, realmente, muito
doloroso. Os amigos de Jesus vão chorar e lamentar-se. Quanto ao
cumprimento desta profecia veja-se sobre Jo 20:11, 15; cf. Mc. 16:10;
Lc. 24:38. Quanto ao significado do verbo traduzido como chorar veja-
se sobre Jo 11:35. No quarto Evangelho esse verbo encontra-se em Jo
11:31, 33; 16:20; 20:11, 13, 15. Quanto ao significado do verbo
traduzido como lamentar-se veja-se Mt. 11:17 (cf. Lc. 7:32): “Entoamos
lamentações, e não pranteastes”, e Lc. 23:27, que fala de “mulheres que
batiam no peito e o lamentavam”. Este pesar, no entanto, se tornará em
alegria.
A ilustração que utiliza Jesus no versículo 21 parece indicar que o
significado da afirmação aqui no versículo 20 não é simplesmente este,
que à dor lhe seguirá a alegria, mas antes, que o próprio acontecimento
que produziria dor esmagadora seria visto depois como razão valiosa
para uma alegria superlativa. À luz da Ressurreição e do Pentecostes, a
fonte de pesar, ou seja, a cruz, converte-se em fonte de exultação, de
forma que Paulo pode exclamar: “Mas longe esteja de mim gloriar-me,
senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl. 6:14; cf. Lc. 24:41, 52,
53).
21. A mulher quando está em trabalho de parto, tem tristeza porque
chegou sua hora; mas depois de ter dado à luz a criança, ela não mais se
lembra da angústia, pela alegria de que tenha nascido um ser humano no
mundo [NKJV].
A ilustração é muito adequada para o caso. Bem como o nascimento
de uma criança, “no mundo” (reino do gênero humano), ao princípio
produz dor e angústia (cf. Gn. 3:16; Is. 26:17), e esse mesmo
acontecimento depois de um pouco produz alegria abundante; assim
também um só acontecimento, ou seja, a morte de Cristo, a princípio
faria com que os discípulos chorassem e se lamentassem, mas diante da
gloriosa ressurreição de Cristo e à luz da interpretação do Espírito Santo,
seria depois a fonte da alegria maior e triunfal da parte dos filhos de
Deus.
João (William Hendriksen) 741
22. Assim também agora vós tendes tristeza; mas outra vez vos verei;
o vosso coração se alegrará, e a vossa alegria ninguém poderá tirar.
Neste momento os discípulos estão afligidos (cf. Jo 14:1, 27; 16:6).
Não podem aceitar a ideia da iminente partida de seu Mestre. No
entanto, Jesus afirma que voltará a vê-los. Esta é a contrapartida do
versículo 19, “Ver-me-eis”. O fato de que este “voltar a ver-se” se refira
a toda a dispensação do Espírito (o fruto da crucificação e ressurreição
de Cristo), e não somente à ressurreição física, fica muito claro pelo fato
de que nos é dito claramente que, “como resultado”, os corações dos
discípulos se alegrarão com uma alegria que ninguém lhes poderá tirar.
Além disso, as palavras iniciais do versículo 23 eliminam qualquer
dúvida a este respeito. Quando Jesus diz “Naquele dia, nada me
perguntareis”, certamente não está pensando apenas num dia de vinte e
quatro horas, aquele em que saiu do sepulcro. O dia do versículo 23 já
durou quase dois mil anos. Por certo que a alegria começaria no mesmo
dia da ressurreição de Cristo, mas esse dia inaugura toda a dispensação
do Espírito (e não deve considerar-se como separado dela). A razão disso
foi explicado em conexão com Jo 16:7.
23. Naquele dia, nada me perguntareis.
A fim de captar o significado desta passagem devemos acima de
tudo relacioná-la com o versículo 19 onde se utiliza o mesmo verbo
perguntar. Veja-se sobre Jo 11:22. Os discípulos se estiveram
perguntando uns aos outros a fim de encontrar uma resposta ao escuro tal
de Cristo quanto a um pouco. Eles se tinham sentido cheios do desejo de
perguntar a Ele, mas não se tinham atrevido a voltar a interrompê-Lo.
Agora, no versículo 23 Jesus afirma que na dispensação do Espírito estes
homens já não estarão desorientados quanto ao que fazer, desejando
fazer perguntas, e não tendo valor para formulá-las. À luz da ressurreição
de Cristo, interpretada pelo Espírito Santo derramado no dia do
Pentecostes e presente na igreja para sempre depois, resultasse
perfeitamente claro o significado de todos estes assuntos. Então estes
homens saberão por que Jesus devia morrer, por que Sua morte foi
João (William Hendriksen) 742
vantajosa para a igreja, como a fonte de pesar se tornou em fonte de
alegria, etc. Pedro já não terá que perguntar “Para onde vais?” (Jo
13:36); nem Tomé “Como podemos saber o caminho?” (Jo 14:5); nem
Filipe, “Mostra-nos o Pai” (Jo 14:8); nem Judas o Maior “Donde
procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo?”
(Jo 14:22); nem nenhum deles: “Que vem a ser esse — um pouco?” (Jo
16:18).
Nesta mesma dispensação do Espírito os discípulos também
receberão resposta às petições que elevem ao Pai. Por isso, Jesus
prossegue: Em verdade, em verdade vos digo: se pedirdes alguma coisa
ao Pai, ele vo-la concederá em meu nome.359 Quanto às palavras de solene
introdução (tão apropriadas porque a predição é tão surpreendente!) veja-
se sobre Jo 1:51. A transição de perguntar (Jo 16:23a) a pedir (aqui em
Jo 16:23b) não é tão abrupta como poderia parecer. Quando se está
muito preocupado por algo, desejando com veemência receber
explicação de um mistério, a solicitude de informação facilmente
converte-se numa petição de um favor.
As palavras desta promessa nos lembram de Jo 14:13, 14; 15:7; e
especialmente Jo 15:16. Veja-se nestas passagens a explicação. Há, no
entanto, uma diferença importante. Agora aprendemos que não só o
pedir é feito em nome de Cristo, mas também o dar. O Pai dará de
acordo com toda Sua revelação redentora que se centraliza no Filho, e
sobre a base de Seu amor pelo Filho e do sacrifício deste. A união dos
crentes com Cristo tem dois resultados práticos: por um lado, os amigos
de Jesus são perseguidos por causa dEle (Jo 15:21); por outro, são
abençoados em nome dEle.
24. Até agora nada tendes pedido em meu nome. Até este momento
os discípulos, em suas orações, dirigiram-se diretamente a Deus, sem
mencionar o nome de Jesus. Não como se a simples menção do nome

359
Pode-se ler como frase condicional (IIIA1), e traduzir-se: “Se pedirdes algo do Pai, ele vo-lo dará
em meu nome”.
João (William Hendriksen) 743
pudesse ajudar. Certamente, quando o crente conclui a oração dizendo,
“Tudo isto o pedimos em nome de Jesus”, não utiliza uma fórmula
mágica. O que quer dizer é: «pedimos tudo isso sobre a base dos méritos
de Cristo e de acordo com Sua revelação redentora». Os discípulos não
baseavam suas petições neste fundamento. Segundo alguns isto era erro
de sua parte, pelo que Jesus agora implicitamente os repreende. Segundo
outros, não tinha havido falta de sua parte, porquanto a obra completa da
redenção ainda não tinha concluído. O texto (Jo 16:24) não resolve este
ponto em nenhuma das duas direções. O ponto principal é este, que de
agora em diante deve haver uma mudança. Por isso Jesus continua: Pedi
e recebereis. «Continuem pedindo», diz. Segundo a afirmação que
precede, quer dizer, “«Continuem pedindo em meu nome». A promessa,
“e recebereis”, é a mesma, em essência, que a que se encontra no Sermão
da Montanha (Mt. 7:7). Qualquer que pedir no espírito da revelação de
Cristo — em consequência, de acordo com a vontade de Deus, para a
extensão de Sua glória, sobre a base dos méritos de Cristo — receberá. E
o propósito que o Senhor tem em mente é este: para que a vossa alegria
seja completa. Por meio da comunhão constante com Deus em oração e
por receber respostas à oração, o que faltava na alegria dos discípulos
ser-lhes-á proporcionado, até que o cálice de alegria esteja cheia até o
bordo.
Deste modo Jesus repete aqui a maravilhosa afirmação feita antes
(Jo 15:11; veja-se sobre essa passagem). O que glorioso Salvador! A
cruz com todas suas agonias está à volta da esquina. Em umas poucas
horas Jesus dará sua vida como resgate por muitos. Sabe o que se
aproxima. Já vê os pregos que perfurarão suas mãos e seus pés. Ouve,
por assim dizê-lo, os gritos e sarcasmos dos líderes, sua risada infernal.
No entanto, seu ardente desejo é este: “para que a vossa alegria seja
completa”. “Que amor — tão divino e tão superior a todo entendimento!
Uma vez mostrado como no futuro o Espírito convencerá o mundo
e guiará a igreja (versículos 7–15), como o Filho, por meio de Sua
ressurreição e no Espírito, vê-los-á de novo, convertendo o pesar em
João (William Hendriksen) 744
alegria (versículos 16–24), Jesus agora indica como o Pai continuará
amando os Seus (versículos 25–27). Note-se que há não menos de oito
referências ao Pai” (“Deus” no versículo 30) neste breve parágrafo
(versículos 25–33).

JO 16:25–33

16:25. Estas coisas vos tenho dito por meio de figuras.


A expressão “estas coisas” refere-se a todas as palavras que Jesus
pronunciou nessa noite memorável, e (à luz do que segue)
provavelmente inclusive a todo Seu ensino prévio. Tinha havido alegoria
após alegoria, mashal após mashal. De fato, inclusive pode-se dizer que
a declaração velada era a própria essência do ensino de Cristo. O
discurso com frequência se centraliza em (ou nasce de) a alegoria. No
corpo de tal discurso há muitas afirmações de suficiente clareza para
eliminar qualquer desculpa para rejeitar a Jesus como o Filho de Deus.
Talvez porque estamos acostumamos com estes mashales com
frequência esquecemos como devem ter turbado aos que os ouviam pela
primeira vez. No entanto, esta desorientação era muito real. Uma reação
comum era: “Como pode ser isto? Como pode ser aquilo?”
Jesus tinha falado a respeito de levantar o templo em três dias,
nascer de novo, água viva que apaga a sede de uma vez por todas, rios de
água que brotam de dentro dos crentes, pessoas que nunca veriam a
morte; também a respeito de si mesmo, como Aquele cuja carne o crente
deve comer e cujo sangue deve beber, como Aquele que foi antes de
Abraão no tempo, como o bom pastor que dá a vida pelos seus; a
respeito de um misterioso traidor (cuja identidade permaneceu oculta
durante um período considerável de tempo); e a respeito de um
enigmático “um pouco”, que seria seguido de outro igualmente
surpreendente “pouco” (veja-se em Jo 2:19; 3:3, 5; 4:10, 14; 6:35, 50,
51, 53–58; 7:37, 38; 8:51, 56, 58; capítulo 10; 13:18; 21; 16:16–19).
João (William Hendriksen) 745
Quanto ao significado do termo alegoria (paroimia) veja-se também
capítulo 10 (Pontos básicos III; e Jo 10:6).
Agora Jesus revela que está prestes a começar uma nova era: Vem a
hora em que não vos falarei por meio de comparações, mas vos falarei
claramente a respeito do Pai.
Nestes momentos Jesus ainda Se vê impedido de falar plena e
abertamente, vê-se detido devido à incapacidade dos ouvintes (Jo 16:12),
devido ao fato de que ainda não tinha dado Sua vida como resgate por
muitos, e devido ao fato adicional de que o Espírito ainda não tinha sido
derramado (Jo 16:13). Até que o Varão de Dores tenha sofrido de fato e
tenha morrido na cruz e até que tenha ressuscitado, não Se pode revelar
plenamente a cruz. O Pai não pode ser revelado plenamente até que o
Ajudador tenha chegado. A revelação do amor do Pai ao entregar o Seu
próprio Filho e ao enviar o Espírito deve permanecer velada por um
tempo. Mas aproxima-se uma grande mudança. Na era do Espírito esta
revelação (embora por necessidade adaptada à mente humana finita) será
clara, livre, aberta, completa. Já não se caracterizará por alegorias.
Esta promessa foi cumprida. Qualquer que passa do ensino de
Jesus, tal como a referem os Evangelhos, ao ensino de Jesus por meio
dos apóstolos, tal como o referem as epístolas, percebe imediatamente
da diferença. Por certo, as epístolas contêm muitos problemas com que
deve enfrentar o intérprete. “Nosso querido irmão Paulo” nem sempre é
fácil de entender (2Pe. 3:15, 16). Mas este ensino é, no entanto, mais
direto e aberto. Já não há agora uma seleção voluntária de palavras com
mais de um significado. A apresentação e explicação didáticas tomam
cada vez mais o lugar da verdade apresentada por meio de afirmações
misteriosas e contradições aparentes. A semente do evangelho
transformou-se na planta totalmente desenvolvida. O ensino com relação
ao plano de redenção do Pai apresenta-se abertamente em passagens
maravilhosas como Rm. 3:21–25; capítulo 5; capítulo 8; Ef. 1:3–14; Fp.
2:9, 10; 1Pe. 1:3–12; 1 Jo. 3; etc. Quanto ao significado da palavra
claramente (παρρησία) veja-se sobre Jo 7:26.
João (William Hendriksen) 746
26, 27. Naquele dia, pedireis em meu nome; e não vos digo que
rogarei ao Pai por vós. Porque o próprio Pai vos ama, visto que me tendes
amado e tendes crido que eu vim da parte de Deus.
Na dispensação do Espírito os discípulos vão fazer o que ainda não
fizeram (Jo 16:24). Vão orar “em nome de Jesus”, quer dizer, de acordo
com Sua revelação redentora e sobre a base de Sua expiação já realizada.
O versículo 26b e o versículo 27 podem-se parafrasear assim:
«E não vos digo que seguirei vos considerando como crianças
pequenas ainda incapazes de orar, de modo que outros tenham que orar
por vós. Pelo contrário, nessa nova era vós mesmos orareis ao Pai; e Ele
vos ouvirá, porque vos ama sempre. A razão de por que vos ama é esta,
que me amastes, com um amor que ainda prossegue, e crestes com uma
fé que jamais acaba, que Eu procedo do Pai (como Seu Filho
unigênito)». Quanto ao significado de “naquele dia” veja-se sobre Jo
16:23. Quanto à distinção no significado dos verbos pedir y rogar veja-
se sobre Jo 11:22. O verbo para amar aqui no versículo 27 é φιλε_. No
entanto, no quarto Evangelho utiliza-se qualquer dos dois verbos (φιλέω
ο _γαπάω) para expressar o amor do Pai pelos discípulos, e o amor dos
discípulos por Jesus. Em tais contextos provavelmente os verbos são
quase idênticos em significado. Veja-se sobre Jo 21:15–17. Indica a
afirmação, “o Pai mesmo vos ama, porque vós me amastes”, que nosso
amor é primeiro, e seu amor posterior? Significa que nosso amor é a
fonte de seu amor? Esta pergunta foi respondida com relação a Jo 7:17,
18; 14:21b; e 15:10; veja-se nessas passagens.
A predição incluída nestes dois versículos não quer dizer que na
dispensação do Espírito vá cessar toda intercessão pelos discípulos.
Longe disso! Essa intercessão do Sumo Sacerdote, Jesus Cristo, nunca
cessará. “Em resumo, toda a comunhão do crente com Deus … bem
como as bênçãos espirituais que devem receber de Deus, como o que o
leva a Deus, pode e deve dar-se só através da mediação do Sumo
Sacerdote que intercede no céu. O Cristo vivo e exaltado continua sendo
João (William Hendriksen) 747
360
como era na terra, o único caminho ao Pai”. Em consequência não
estamos de acordo com R. C. H. Lenski quando afirma que depois de
Pentecostes as petições que dirijam os discípulos ao Pai em nome de
Jesus não necessitarão o apoio e a intercessão de Jesus para que o Pai
as responda. 361
Segundo o vemos, passagens como Jo 14:6; Hb. 7:24, 25; 13:15
ensinam claramente o contrário. O que Jo 16:26, 27 ensina é isto, que na
dispensação do Espírito, os discípulos alcançarão maturidade de forma
que também eles, em nome do Filho, irão ao Pai. Em outras palavras, se
fizer-se a pergunta, “Vai Jesus a orar por eles?”, a resposta é um “não”
concreto se por orar por eles quer dizer rogo apresentado ao Pai para o
bem deles porque eles mesmos não oram e porque o Pai não aceitaria sua
oração embora a oferecessem. Mas a resposta é um claro “sim” se por
orar por eles quer-se indicar a intercessão incessante do Sumo Sacerdote
nos céus pelo Seu povo, sobre a base de Sua expiação.
28. Vim do Pai e entrei no mundo; todavia, deixo o mundo e vou
para o Pai.
Verdadeiramente bela e cheia de majestade é a conclusão da
despedida de Cristo de Seus discípulos. Prevalece o tom vitorioso.
Contemplamos o Filho do homem em plena consciência de Seu triunfo.
Cada uma das palavras transmite exultação pelo cumprimento da tarefa
que Lhe tinha sido atribuída. Cada expressão está cheia de uma
determinação firme de levar a cabo a vontade do Pai. Em princípio a
batalha já foi realizada. Veja-se especialmente o versículo 33: “Eu venci
ao mundo”.
Note-se a íntima conexão entre isto e a passagem anterior. Ali Jesus
afirmou, “tendes crido que eu vim da parte de Deus.” Agora segue
dizendo (segundo o original): “Saí do Pai”, etc.

360
H. H. Meeter, The Heavenly Highpriesthood of Christ, tese doutoral apresentada à Universidade
Livre de Amsterdã, publicada em Grand Rapids, Mich. (sem data), p. 186.
361
R. C. H. Lenski op. cit., p. 1082.
João (William Hendriksen) 748
A passagem sublinha o fato de que a obra da redenção é obra
própria de Cristo. Salvar o seu povo não só foi uma missão que Lhe foi
encarregada. Foi igualmente o resultado de Sua própria escolha livre. Por
isso: “saí … vim … deixo … vou”. É como se Jesus dissesse: «Eu
mesmo faço tudo isso. O Pai não me obriga a fazê-lo. Satanás e o mundo
não podem impedir que o faça”.
A passagem inclui três atos ou movimentos centrais na história da
redenção, mas devido ao fato de que o terceiro é considerado por dois
aspectos temos na realidade quatro partes, nesta forma:
Primeiro, “vim do Pai”. Refere-se à divindade perfeita de Cristo, a
Sua preexistência, S sua saída do céu, como revelação nascida de amor,
para habitar nesta terra amaldiçoada pelo pecado. Cf. 2Co. 8:9. (Aqui
temos o tempo aoristo, uma ação.) Segundo, “Vim ao mundo”. Isto
descreve a encarnação de Cristo e Seu ministério entre os homens. (Aqui
se emprega o tempo perfeito, que indica a ação passada junto com seu
resultado presente.) O termo mundo tem o mesmo significado que no
versículo 21.
Terceiro e quarto: “Deixo o mundo, e vou para o Pai”. Note-se o
tempo presente de ambos os verbos. O caminho do sofrimento,
crucificação e ascensão é, por um lado, uma saída do mundo; por outro,
é um ir ao Pai. Sobre a base desta obediência voluntária que Jesus está
prestes a render, o Pai (no Espírito) promove uma amorosa comunhão
com os Seus.
29, 30. Disseram os seus discípulos: Agora é que falas claramente e
não empregas nenhuma figura. Agora, vemos que sabes todas as coisas e
não precisas de que alguém te pergunte.
Os discípulos estão tão impressionados com a clareza e precisão das
palavras de Cristo e com Seu evidente conhecimento de todo o plano de
Deus, que imaginam que já chegou o momento em que a comunicação
clara, sem trava, completa e livre, tomaria o lugar da comunicação em
alegorias. Nisto estavam errados. No entanto, Jesus não procura corrigi-
los. Corrigir-se-ão a si mesmos quando chegar a hora futura.
João (William Hendriksen) 749
Em geral, contudo, a resposta que dão os discípulos fala bem deles.
Progrediram em conhecimento. Os discursos no Cenáculo não foram em
vão. As experiências nesta “noite como nenhuma outra” deixaram seus
rastros nestes homens. Começaram a refletir sobre o ensino de Jesus. O
resultado é que agora sabem (o verbo indica este conhecimento de
reflexão) que Jesus sabe (o mesmo verbo mas não a mesma razão: Jesus
sabe porque é divino; seu conhecimento é antecedente, não meramente
consequente) todas as coisas (cf. Jo 21:17). Mais uma vez captaram a
visão da divindade de Cristo que resplandece através do véu de Sua
humanidade. Por agora, pelo menos estão convencidos — é o
convencimento da fé; cf. 2Co. 5:1 — de que Jesus é onisciente. Agora a
luz brilha intensamente, mais intensamente, talvez, que antes. Em umas
poucas horas voltará a obscurecer-se. No entanto, a confissão que aqui se
faz subsistirá no reino do subconsciente, até o momento em que o Senhor
ressuscite triunfalmente do sepulcro e (um pouco depois) derrame Seu
Espírito; então tal confissão produzirá o fruto da segurança tranquila e
firme, e este fruto permanecerá para sempre.
A chave para a interpretação das palavras, “não precisas de que
alguém te pergunte” encontra-se na frase imediatamente anterior
(“Agora, vemos que sabes todas as coisas”) e no versículo 19
“Percebendo Jesus que desejavam interrogá-lo”. Ele o sabia embora
nunca Lhe tinham feito alguma pergunta. Tinha lido seus pensamentos
secretos. Sabia exatamente o que se murmuravam um ao outro. De fato,
inclusive antes de que tivesse saído uma palavra de seus lábios, já o tinha
sabido perfeitamente. E tal conhecimento tinha sido “maravilhoso” para
eles (Sl. 139:4). Por isso, o versículo 30a pode-se parafrasear assim:
«Agora entendemos que sabes todas as coisas, e que não necessitas
que ninguém te pergunte para que através de suas perguntas Tu possas
descobrir o que estão pensando. Tu sabias antes de que te fosse
perguntado».
Os discípulos tiram a única conclusão lógica: por isso, cremos que,
de fato, vieste de Deus. Só Deus é onisciente. Jesus é onisciente. Por isso,
João (William Hendriksen) 750
Jesus deve ser Deus. Sendo Deus, deve ter vindo de Deus. Quanto à
última expressão veja-se sobre Jo 14:23, nota 320. Quanto ao
conhecimento de Jesus, veja-se sobre Jo 1:42, 47, 48; 2:24, 25; 5:6; 6:64;
e Jo 21:17.
Esta foi a última confissão que os discípulos fizeram antes da morte
de Cristo. Lembra-nos a anterior confissão de Natanael (Jo 1:49), de
Pedro (Mt. 16:16), e a posterior de Tomé (Jo 20:28).
31, 32. Respondeu-lhes Jesus: Credes agora? Eis que vem a hora e já
é chegada, em que sereis dispersos, cada um para sua casa, e me deixareis
só.
Não faz muita diferença que leiamos, “Agora credes”, ou “Agora
credes?” Segundo o original qualquer das duas traduções é possível. Se
adotar-se a forma de pergunta, poderia significar que Jesus põe em tela
de juízo o caráter genuíno de sua fé. No entanto, há outra possibilidade
que, no contexto presente e diante da afirmação concreta de Jo 17:8
(“verdadeiramente conheceram que saí de ti”), é muito mais provável, ou
seja, que o Senhor, embora aceite sua confissão como tal, deseja pô-los
de sobreaviso contra o excesso de confiança. É como se dissesse: “Creio
que vossa confissão é genuína e que vossa fé é real; mas é algo
plenamente desenvolvido? Alcançou a maturidade? Ficará firme vossa
âncora em meio das tempestades da vida? Estais seguros de que podeis
manter-vos firmes quando o inimigo apresentar-se de repente?» Este,
mais ou menos, é o sentido em que estas palavras costumavam ser
interpretadas. Não encontramos nenhuma razão suficiente para nos
apartar desta explicação comum. Não se ofereceu nada melhor.
Quanto a “Eis que vem a hora” veja-se sobre versículo 25. Quanto à
expressão completa, “Eis que vem a hora e já é chegada”, cf. Jn 5: 25. A
época designada já está ao alcance das mãos. De algum modo ainda é
futura, porque Jesus e os discípulos ainda não cruzaram o arroio (na
realidade, a nosso entender, estão ainda no Cenáculo), e ainda não se
encontraram com o inimigo (Judas e seu grupo). No entanto, em outro
sentido, esta época já chegou, porque a. Judas já está a caminho, e b.
João (William Hendriksen) 751
tanto é verdade que o evento predito ocorrerá que para a mente de Cristo
já está presente. daí que a expressão, “Eis que vem a hora e já é
chegada” descreve a situação exatamente. E como a predição é tão
surpreendente, vai precedida da exclamação, “Eis que” (literalmente,
“Olhai”).
O conteúdo da predição é dupla: a. “em que sereis dispersos, cada
um para sua casa.” Deve comparar-se com isto:
Jo 10:12: “O lobo as arrebata (as ovelhas) e dispersa”. Veja-se
sobre esse versículo.
Mt. 26:31: “Esta noite, todos vós vos escandalizareis comigo;
porque está escrito: Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho ficarão
dispersas”. Isto se disse depois de que Jesus e Seu pequeno grupo saíram
do Cenáculo.
A profecia que se cumpriu quando sucedeu isto (veja-se Mc. 14:27)
encontra-se em Zc. 13:7: “Fere o pastor, e as ovelhas ficarão dispersas;
mas volverei a mão para os pequeninos”. 362

362
O fundo da profecia de Zacarias é o seguinte:
Depois de que o remanescente dos judeus voltou do cativeiro, levantaram o altar para os
holocaustos e lançaram os fundamentos do templo (Ed. 3:1–10). Os samaritanos zelosos e seus aliados
interromperam o trabalho (Ed. 4). Prevaleceu o desalento. Mas no segundo ano de Dario — ou seja,
ao redor do ano 520 a. C. — Ageu incitou à reconstrução do templo. Zacarias se uniu a ele nesta
exortação e predisse a glória futura de Sião; também a chegada, sofrimento, e exaltação do Renovo. O
tema das profecias de Zacarias e a divisão é como segue:
A glória futura de Sião e seu Rei-Pastor
I. As visões (Zc. 1:1–6:8)
II. Uma ação simbólica (Zc. 6:9–15)
III. A resposta à uma pergunta (capítulos 7, 8)
IV. As predições e promessas (capítulos 9–14)
O que nos interessa aqui é sobretudo esta última seção, em conexão com Jo 16:32, “sereis
dispersos”. É pelo menos provável que entre os acontecimentos que se predizem em Zc. 9–14 estejam
os seguintes:
a. Um retorno progressivo ainda maior dos cativos das terras de cativeiro (Zc. 10:8–12).
b. A derrota dos países que circundam Judá num tempo em que a própria Judá será protegida (Zc.
9:1–8).
c. Os triunfos dos macabeus sobre Antíoco Epifânio (Zc. 9:11–17; 12:1–9).
d. A vinda do rei justo, o verdadeiro Pastor (Zc. 9:9); também seu repúdio (Zc. 11; 13:7); veja-se
Mt. 21:5; 26:14–16.
João (William Hendriksen) 752
A expressão “cada um para sua casa” aqui (Jo. 16:32) na frase,
“sereis dispersos, cada um para sua casa” encontra-se também em Jo
1:11 e 19:27. Jesus veio para os Seus (os de Sua casa), e os Seus não O
receberam (veja-se nota 27). João recebeu a Maria “em sua casa” (Jo
19:27). Não vemos razão para nos apartar deste sentido no caso presente.
Quando com relação à detenção de Jesus, os discípulos se dispersaram,
cada um foi para sua casa (neste caso, a seu lugar de residência em
Jerusalém ou perto dela). É certo, naturalmente, que no caso de João e
Pedro a ida à casa viu-se um tanto diferida. No entanto, chegado o
momento Maria Madalena sabe exatamente onde encontrar a Pedro, e
também onde encontrar a João. Cada um deles tinha ido para sua casa
(veja-se sobre Jo 20:2). No entanto, a predição provavelmente implica
mais que isso. Parece indicar que deixaria de haver um esforço unido; a
esperança seria perdida, deter-se-ia o trabalho do reino; e a pesca (no
sentido comum do termo) ocuparia o lugar da pregação (veja-se sobre Jo
21:3).
Agora passamos a b. “E me deixareis só” (literalmente: “E me
deixareis sozinho”, com toda a ênfase no pronome me). Estas palavras
podem considerar-se como o comentário de Cristo à confissão dos
discípulos de há um momento: “Agora entendemos … por isso cremos”
(versículo 30). O Mestre de nenhuma forma nega a presença de uma fé
genuína no coração de Seus amigos (veja-se também sobre Jo 17:7); mas
sublinha o caráter imperfeito dessa fé. A fé perfeita exclui o temor e
“agindo pelo amor” mostra verdadeiro valor no momento crítico. Nunca
retrocede, nunca vacila, nunca falha. Não era assim a fé destes homens.

e. A eleição do remanescente ao longo da Nova Dispensação (Zc. 13:8, 9).


f. O derramamento do Espírito, e as bênçãos da era messiânica, com o desaparecimento total da
dispensação das sombras e cerimônias (a maior parte do capítulo 14).
A predição que se encontra em Jo. 16:32 (a passagem que estamos considerando) tem relação com
d.: o repúdio do Pastor. Há uma considerável diferença de opinião com relação às palavras, “Mas
volverei a mão para os pequeninos”. Alguns consideram isto como profecia de ameaça (a ideia mais
provável, segundo nosso parecer), outros, de prosperidade. Este material de Zacarias, de forma mais
extensa, pode-se ver em W. Hendriksen, Bible Survey, pp. 120; 121; 283–286.
João (William Hendriksen) 753
Além disso, ao dizer, “E me deixarão só”, Jesus enfatiza o que deve
enfatizar-se, o tema de Seu próprio sofrimento. Irá entrando cada vez
mais na região do isolamento. Seus amigos O abandonarão, e no final
Seu Pai nos céus O abandonará. Mas esse ponto culminante de desolação
ainda não chegou. Neste momento Jesus ainda pode dizer: Contudo, não
estou só, porque o Pai está comigo. Este tinha sido Seu consolo o tempo
todo, como se indica claramente em Jo 8:29: “Aquele que me enviou está
comigo, não me deixou só, porque eu faço sempre o que lhe agrada”.
Veja-se sobre essa passagem. (Embora às vezes faz-se também alusão a
Jo 8:16b, no entanto o sentido aí é ligeiramente diferente. Veja-se sobre
esse versículo.)
33. Estas coisas vos tenho dito para que tenhais paz em mim.
“Estas coisas” inclui tudo o que Jesus disse a Seus discípulos nessa
noite. Tinha-lhes falado a respeito de Si mesmo, lhes informando (como
com tanta frequência fez) que tinha vindo do Pai, tinha entrado no
mundo, saía de novo, e estava prestes a voltar para o Pai. Tinha
destacado que alguém que comia em Sua mesa O trairia; que alguém O
negaria três vezes, e isto nada menos que Pedro; que seria objeto de
ódio; que o mundo se alegraria em Sua morte; e que Seus próprios
discípulos O abandonariam no momento de crise. O cumprimento destas
profecias fortaleceria naturalmente sua fé nEle (veja-se sobre Jo 16:1, 4).
E através da fé obteriam a maior de todas a bênçãos, ou seja, a paz. A
natureza desta paz se indicou com relação à explicação de Jo 14:27. É
tanto objetiva (reconciliação com Deus, Rm. 5:1, 2; 2Co. 5:20b) como
subjetiva (a segurança tranquila e reconfortante da justificação e adoção,
Rm. 8:16ss.). À vista do contexto, a ênfase tanto aqui como em Jo 14:27
parece pôr-se no aspecto subjetivo desta paz. Contrasta-se com a
tribulação. Jesus prossegue, No mundo, passais por aflições; mas tende
bom ânimo; eu venci o mundo.
Em Cristo têm paz; no mundo, tribulação (ou angústia; cf. Jo
16:21). O mundo, tal como usa-se aqui o termo, constitui uma antítese
marcada de Cristo. É o mundo que persegue a igreja (veja-se nota 26,
João (William Hendriksen) 754
significado 6). O termo que se traduz corretamente por tribulação tem o
significado básico (tanto em grego como em português) de pressão.
Veja-se Rm. 2:9; cf. também Mt. 24:9; At. 7:11; 11:19; Rm. 2:9; 12:12;
2Co. 1:4, 8; 4:17; 6:4; 7:4; 8:2; 2Ts. 1:6; Ap. 1:9; 2:9, 22; 7:14, etc. O
mundo sempre tenta excluir o verdadeiro crente. Os discípulos podem
esperar tribulação por parte do mundo (cf. Jo 16:2) devido à sua relação
com o Mestre (Jo 15:21). Mas este mesmo princípio — ou seja, que o
que sucede ao Mestre sucederá ao discípulo — também se aplica na
direção oposta: o discípulo pode esperar o triunfo devido à sua relação
com o Mestre. As palavras “Mas tende bom ânimo; eu venci o mundo”,
implicam claramente: «E, portanto, vós, Meus seguidores, também
vencereis».
Digamos que um alpinista e seu guia procuram subir a um penhasco
muito pronunciado. Com a habilidade adquirida em sua longa
experiência em alpinismo o guia vai ascendendo, e grita ao que está no
outro extremo da corda: “Não temas, porque eu o consegui”. Assim
também, a pressão que procede de parte do mundo nunca conseguirá que
os discípulos percam sua segurança, porque Jesus (com quem estão
unidos) chegou ao topo; por isso, também eles chegarão.
Em vista de tudo o que precede neste capítulo — a promessa da
vinda e ação do Espírito, a predição do glorioso retorno do Filho, a
segurança do amor permanente do Pai — não surpreende que o capítulo
conclua com uma nota de triunfo. Havendo já chegado ao fim da vereda,
Jesus pode lançar o olhar para trás e dizer, “Eu venci”. 363 No entanto, o
tempo passado (perfeito, para indicar um resultado permanente) também
indica certeza com relação à batalha pendente. O triunfo é seguro. Jesus
Se havia entregue totalmente. Em consequência, pode falar como se o
363
No quarto Evangelho Jesus utiliza o verbo vencer só uma vez, e precisamente numa citação, de
forma que é realmente Jesus (não João) quem o diz. No livro de Apocalipse este verbo encontra-se
repetidas vezes. De fato o tema desse livro pode chamar-se “Mais que vencedores” veja-se do autor
Más que vencedores, Grand Rapids, Mich., reimpressão T.E.L.L., 1977, pp. 2–4, 108–110. Segundo o
livro de Apocalipse, Jesus tinha vencido, vence, vencerá. Por isso, os que estão com ele também são
vencedores. Esta é essencialmente a mesma ideia que aparece, aqui, em Jo 16:33.
João (William Hendriksen) 755
Calvário já agora ficasse atrás dEle. Veja-se também sobre Jo 12:31;
16:11.
É certamente notável que no exato momento em que o Varão de
Dores conclui Seu último discurso no Cenáculo, precisamente antes de
que se encaminhasse pelo vale das trevas mais profundas, dirija-Se aos
Seus discípulos com estas notáveis palavras. “Tende bom ânimo!” No
Novo Testamento, com uma só exceção, Jesus foi o único que utilizou
esse alentador verbo (θάρσει, θαρσε_τε). Este verbo encontra-se nas
seguintes passagens: Mt. 9:2, 22; 14:27; Mc. 6:50; 10:49 (a única
exceção); Jo. 16:33; e At. 23:11. Sem dúvida que o homem que vence
com Cristo tem razão de sentir-se alegre. E isto inclusive no meio da
tribulação mais ainda, inclusive, devido à tribulação, como se mostra tão
belamente em At. 5:41.

Síntese do Capítulo 16
O Filho de Deus instrui meigamente aos discípulos. Uma palavra
de predição.

I. A perseguição espera os crentes. A vinda e a ação


do Espírito Santo.
A. A perseguição espera os crentes (Jo 16:1–6)
Jesus prediz o que o crente pode esperar, a fim de que quando
chegar a perseguição sua fé se fortaleça em lugar de debilitar-se. O
perseguidor será motivado pelo zelo religioso, imaginando que ao
perseguir os crentes presta serviço a Deus. De fato, nem sequer conhece
a Deus (em Cristo). Por amor a Seus discípulos Jesus diferiu tanto
quanto possível esta predição com relação à tribulação vindoura. Agora
que está preparado para partir (por meio da cruz, a ressurreição, a
ascensão), deve falar-lhes disso, para que não os tome desprevenidos.
Além disso, de agora em diante os ataques já não se dirigirão contra Ele,
e sim contra eles. Embora Jesus explicou o propósito de sua partida em
João (William Hendriksen) 756
termos gerais, os discípulos pareciam mais preocupados a respeito da
partida em si (considerando-o uma perda para si mesmos) que de seu
glorioso objetivo. Jesus queixa-se do fato de que o pesar esmagador da
parte deles excluiu a possibilidade de que Lhe façam outras perguntas.

B. A vinda e a obra do Espírito Santo (Jo 16:7–15)


1. No mundo (versículos 7–11)
A partida de Cristo é pelo bem dos discípulos; porque a não ser que
volte para o Pai, o Ajudador não virá. Este Ajudador convencerá o
mundo. Não procurará destruir o sentido de culpabilidade do homem
(como é a moda hoje em dia — século vinte), e sim despertará a
consciência do pecador com relação à maldade e a atrocidade do pecado.
Por meio da obra que Ele realiza no mundo, através da pregação do
evangelho, fará entender três verdades: o pecado do mundo, a perfeita
justiça de Cristo, e o juízo de Deus.
2. Na igreja (vv. 12–15)
O Espírito Santo virá (veja-se o livro de Atos, especialmente o
capítulo 2); guiará a toda verdade (veja-se as epístolas; o Espírito Santo
nunca age pela metade; sempre proclama tudo o conselho de Deus); e
declarará o futuro (veja-se o livro de Apocalipse). É o próprio Jesus que
fala quando o Espírito fala. Este amplia as verdades que Aquele ensinou
na terra. As pessoas da Santíssima Trindade sempre Se glorificam entre
Si. Devido à ausência de uma fé plenamente desenvolvida e devido ao
fato de que não ocorreram ainda dois grandes acontecimentos na história
da redenção (a ressurreição de Cristo e o derramamento do Espírito), os
discípulos não puderam receber mais ensinos durante esta noite
memorável.

II. A volta do Filho (Jo 16:16–24)


Em pouco tempo — apenas umas poucas horas — os discípulos já
não poderão ver mais o seu Mestre, porque por meio da cruz e o
João (William Hendriksen) 757
sepultamento desaparecerá de sua vista. Mas ao cabo de um pouco mais
— quer dizer, do sepultamento até a ressurreição e o derramamento do
Espírito Santo — os discípulos voltarão a ver o Mestre. Saberão quem é
realmente. O fato da ressurreição lhes abrirá os olhos. A descida do
Espírito completará a obra de esclarecer tudo.
Para os surpreendidos discípulos, aqueles que experimentam grande
dificuldade em explicar as frases a respeito de “um pouco”, Jesus prediz
que a própria causa de Seu grande pesar — ou seja, Sua morte — se
converterá na fonte de sua alegria suprema; assim como o nascimento de
um filho produz dor primeiro e logo alegria. Na dispensação do Espírito
já não se farão perguntas como as que estiveram na mente dos discípulos
durante estas últimas horas (e também antes). Tudo estará claro então. E
todas as petições que sejam para a glória de Deus serão outorgadas sobre
a base da expiação de Cristo. De modo que sua alegria será completa.

III. O amor do Pai (Jo 16:25–33)


O Pai ama os que amam ao Filho. Estes homens aceitaram a Jesus
como Aquele que veio do Pai e volta para o Pai. Confessam sua fé. Jesus
corrige seu excesso de confiança. Diz-lhes que quando chegar a crise ele
O abandonarão; no entanto, o Pai está com Ele.
Com uma afirmação sem paralelo quanto à beleza e estímulo
espiritual Jesus chega ao ponto culminante de Seu discurso. Diz: “Estas
coisas vos tenho dito para que tenhais paz em mim. No mundo, passais
por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo”.
Implicação: «Vós com toda certeza também vencereis».
João (William Hendriksen) 758
JOÃO 17
Observações Preliminares a respeito do Capítulo 17

I. Sua íntima relação com os discursos anteriores.


O mesmo apóstolo João indica esta relação quando combina o
discurso e a oração nas palavras: “Tendo Jesus falado estas coisas,
levantou os olhos ao céu e disse”. A oração pode ver-se como a
consumação dos discursos. Mostra que a base firme e sólida para todas
as razões de consolo, exortação e predições está no céu. Vincula todas as
promessas com o trono de Deus. Aqui tudo é seguro. O capítulo não
contém nem uma frase condicional.

II. Seu caráter único.


É esta oração um modelo para nossas orações? Em certo sentido
sim o é; por exemplo, esta oração indica que o propósito de nossas
petições deveria ser a glória de Deus; também mostra que deveríamos
orar não só por nós mesmos mas também por outros.
No entanto, num sentido ainda mais profundo, esta oração do
grande Sumo Sacerdote, Jesus Cristo, nunca pode ser modelo para
nossas orações. É totalmente única. Desta oração Jesus nunca disse:
“Orai assim”. É única nos seguintes aspectos:
A. Seu Autor é a segunda pessoa da Trindade, que assumiu a
natureza humana (Jo 17:5).
B. Dirige-se ao próprio Pai, santo e justo, de Cristo, a primeira
pessoa da Trindade (Jo 17:1, 5, 11, 21, 24, 25; cf. 1:18; 3:16; 20:17).
C. Não contém nem uma só confissão de pecado; antes, o contrário.
A oração se caracteriza pela consciência do Filho de Sua perfeita
obediência à vontade do Pai (Jo 17:4). Contraste-se isto com a oração
que Jesus ensinou a Seus discípulos que dissessem (Mt. 6:12).
João (William Hendriksen) 759
D. Esta oração contém rogos mais que petições. Veja-se sobre
11:22.

III. Suas partes.


A oração é uma. A missão de Jesus Cristo e de Seus seguidores na
terra, para a glória de Deus, é o tema constante. No entanto, embora a
oração revele uma unidade maravilhosa — uma unidade tão orgânica e
real que os comentaristas não estão de acordo com relação a para onde
termina uma parte e começa a seguinte — discernem-se três
movimentos. Primeiro, Jesus roga por si mesmo (versículos 1–5; segundo
outros: 1–8); em segundo lugar, pelos apóstolos (versículos 6–19;
segundo outros: 9–19); em terceiro lugar, pela Igreja Universal
(versículos 20–26).

JO 17:1–5

17:1. Tendo Jesus falado estas coisas, levantou os olhos ao céu e


disse: Pai, é chegada a hora.
O fato de que Jesus levantasse os olhos ao céu não prova que Ele e
seus discípulos estivessem fora (cf. At. 7:55). Com toda probabilidade o
grupinho estava ainda no Cenáculo (veja-se sobre Jo 4:31). Levantar os
olhos ao céu era a posição comum ao orar, e também muito apropriada,
porquanto Aquele a quem Se dirigia tem Seu trono no céu.
A expressão, “é chegada a hora” mostra mais uma vez que Jesus
está consciente do fato de que para cada episódio no tremendo drama da
redenção (e não só para isto senão para cada episódio que ocorre na
história) há um momento determinado no decreto eterno (veja-se
também sobre Jo 2:4; 7:6, 8, 30; 8:20; 12:23; 13:1). Pelo contexto pode-
se notar que Jesus pensava não só na hora de Sua morte, e sim na da
consumação total de Seu ministério terrestre: morte, ressurreição,
ascensão e coroação, toda sua ida ao Pai. No pensamento de Jesus, vão
João (William Hendriksen) 760
juntos o sofrimento e a glória conseguinte (Jo 12:32; 14:3, 4; 16:20ss.;
cf. Mt. 16:21; 20:19; 26:28, 29). A morte de Cristo foi de tal caráter que
Sua ressurreição, ascensão e coroação deviam segui-la; em
consequência, a hora refere-se aos quatro eventos. Esta não foi a
primeira vez que Jesus Se referiu a tal hora. A diferença era que antes
havia dito que ainda não tinha chegado, pelo contrário agora tinha
chegado (cf. Jo 7:30; 8:20).
Esta hora era o momento de crise. Era a hora em que o Filho do
Homem concluiria Seus trabalhos levando a cabo o sacrifício expiatório
único pelo pecado do gênero humano; a hora de cumprir profecias, tipos
e símbolos; a hora do triunfo sobre o príncipe do mundo; a hora de
descartar a antiga dispensação e iniciar a nova.
Jesus prossegue: Glorifica a teu Filho, para que o Filho te glorifique
a ti. O significado é: «Concede que por meio de minha ida total a ti
(morte, ressurreição, ascensão, coroação) eu possa ser glorificado, e que
você possa ser glorificado por mim». Jesus é glorificado quando se
manifesta o esplendor de Seus atributos. Sem dúvida que na cruz de
Cristo e também na coroa vemos esta glória. Na cruz, vista como a
culminação de toda a obra de redenção pela qual salva a seu povo, o
Filho manifesta sua perfeita obediência, seu amor infinito pelos
pecadores, e seu poder sobre o príncipe deste mundo. Esta obediência,
amor e poder irradiam glória sobre Si mesmo. Também o faz a gratidão
da multidão salva pelo dom de salvação eterna. Que este aspecto da
glória não se esquece fica claro pelo versículo que segue imediatamente:
“…a fim de que ele conceda a vida eterna a todos os que lhe deste”. No
entanto, não só a cruz, vista como a recompensa por Seu sofrimento,
manifesta Sua glória. Pelo versículo 5 fica claro que isto também está na
mente de Cristo. Quanto ao conceito de glória veja-se também Jo 1:14.
Mas por que diz Jesus, “glorifica a teu Filho”? Respondemos,
porque nessa expressão, “teu Filho”, há um rogo maravilhoso. O Pai ama
Aquele que é seu Filho unigênito. Ama-o com amor imensamente terno
e profundo, amor desde a eternidade. Sem dúvida que concederá a
João (William Hendriksen) 761
petição a Seu Filho unigênito! Além disso, sendo o Filho, não era acaso
o legitimo herdeiro? E acaso o Pai não lhe fez essas promessas ao Filho?
(cf. Sl. 2:7ss.; 72:15ss.; 84:4ss.; 110:1ss.; 118:22, 23; 2 S. 7:12–14).
Quando Jesus acrescenta, “para que o Filho te glorifique a ti”,
mostra que Sua oração não é egoísta. Jesus deseja ser glorificado para
que por meio desta glória possa glorificar o Pai. A cruz e a coroa
revelam não só as virtudes do Filho mas também as do Pai. Aqui
adquirem sua plena expressão todos os atributos divinos. Dentre eles
selecionemos um: a justiça do Pai. Se não tivesse sido justo, certamente
não teria entregue o Seu Filho unigênito. Além disso, se não fosse justo,
não teria recompensado o Seu Filho por Seu sofrimento. E também, por
meio dos louvores da multidão salva, o Pai (bem como o Filho) é
glorificado.
2. Assim como lhe conferiste autoridade sobre toda a carne, a fim de
364
que ele conceda a vida eterna a todos os que lhe deste.
Quando o Pai, ao dar ao Filho o poder para salvar o Seu povo e ao
recompensá-Lo por esta tarefa, glorifica-O, esta ação harmoniza com
(note-se o “assim como” inicial) o dom dado ao Filho, o dom de
autoridade sobre toda carne. Isto fica claro pelo fato de que os que se
salvam provêm de toda tribo, língua, povo e nação, como o ensina
invariavelmente o Evangelho de João (ou seja, do próprio Cristo). Veja-
se sobre Jo 1:13, 29; 3:16; 10:16; cf. Ap. 5:9. A expressão toda carne é
um hebraísmo que indica todas as pessoas. Realça a fraqueza do homem,
tal como ele é por natureza. Não só provêm os escolhidos de todas as
nações, mas também a fim de reuni-los Jesus recebeu autoridade sobre
tudo o mundo, sem exceção. Veja-se Mt. 11:27; 28:18. A raça humana é
uma unidade. A fim de salvar a alguns (dentre todas as nações) Aquele
que os salva deve ter absoluta autoridade sobre todos. (Quanto ao
significado do termo carne no Evangelho de João, veja-se também nota

364
A respeito de _να veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 762
32. Quanto ao significado de autoridade; veja-se também sobre Jo 1:12;
10:18.)
O fato de que a meta e desígnio da expiação sejam, contudo,
limitados, fica claro das palavras, “a fim de que ele conceda a vida eterna
a todos os que lhe deste”. Veja-se também sobre Jo 6:37, 39, 44; 10:29.
Jesus pensa em todos os que Lhe foram dados no decreto eterno de
eleição. Quanto ao significado de vida eterna veja-se sobre Jo 1:4; 3:16.
3. E a vida eterna é esta: que 365 te conheçam a ti, o único Deus
verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste.
A vida eterna por meio da qual tanto o Pai como o Filho são
glorificados manifesta-se no verdadeiro conhecimento de quem envia e
do enviado. O versículo 3 não define vida eterna, mas mostra como se
manifesta e quão maravilhosa é. Conhecer o Pai e a Jesus Cristo (porque
ele é o único caminho ao Pai; veja-se sobre Jo 14:6) refere-se não a um
conhecimento meramente abstrato, mas sim a um reconhecimento
prazeroso (veja-se sobre Jo 1:10) de Sua soberania, aceitação alegre de
seu amor, e comunhão íntima com Sua pessoa (através da Escritura, ou
seja, através de Sua palavra a nós; e por meio da oração, quer dizer, por
meio de nossas palavras dirigidas a Ele). Notem-se as palavras, “o único
Deus verdadeiro” (Cf. 1Ts. 1:9), não o produto da imaginação judia, que
tratou de adorar a um Pai que não Se tinha revelado a Si mesmo no
Filho; nem o objeto de adoração pagã, que se dirigia à criatura mais que
ao Criador; mas sim o Pai como revelado no Filho. Quanto ao conceito
“Jesus” como o Enviado do alto, veja-se sobre Jo 3:17, 34; 5:36, 37;
8:18, 27, 29 (cf. 1:5). Note-se também o título completo Jesus Cristo
(como em Jo 1:17). Quando se experimenta a vida eterna, tem-se
comunhão com Deus em seu Filho unigênito, quem como o Cristo ou
Ungido (separado e capacitado para sua tarefa) é Jesus, o Salvador.
4. Eu te glorifiquei na terra, consumando a obra que me confiaste
para fazer.

365
Acerca de _να véase IV de la Introducción.
João (William Hendriksen) 763
Em marcado contraste com o mundo mau, representado nos líderes
judeus, Jesus pode dizer que Ele (o pronome Eu é enfático) glorificou o
Pai. Fazer a vontade do Pai foi seu principal deleite (Jo 4:34; 5:30; 6:38;
8:50). Tinha cumprido a missão que o Pai tinha Lhe atribuído. Tinha
levado a tarefa à meta predestinada. Tinha completado e concluído a
obra (veja-se sobre Jo 4:34). Por certo que, falando historicamente, ainda
não tinha sofrido na cruz, mas tem direito a falar como se também já
tivesse suportado este sofrimento, tão seguro está de que vai suportá-lo.
Deve ter consolado os discípulos ouvir Jesus dizer em oração que o Pai é
glorificado no cumprimento da missão de salvar pecadores. Nesta obra
se manifestam na forma mais radiante todas as suas gloriosas “virtudes”
(cf. 1Pe. 2:9).
5. E, agora, glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu
tive junto de ti, antes que houvesse mundo.
Aqui se volta a tomar o pensamento do versículo 2. Jesus volta a
pedir que o Pai o glorifique. Agora pensa sobretudo na recompensa de
Sua obra mediadora. Anela ir para casa com o Pai. A glória primeira que
tinha sido Seu deleite antes da fundação do mundo (universo organizado;
veja-se nota 26, significado 1) nunca tinha estado ausente de sua mente.
Durante todo Seu ministério de sofrimento, Ele, o Varão de Dores,
desejou voltar a conseguir o que, pelo interesse dos pecadores, havia
voluntariamente deixado de lado (o tranquilo desfrute da presença do
Pai, sem mescla de sofrimento; cf. Fp. 2:7). O que agora pede é «voltar
outra vez à presença do Pai para estar junto a ele». Veja-se sobre Jo 1:1.
Com relação a isto Hb. 12:2 vem imediatamente à mente: “em troca da
alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz”. O significado é que
sofreu a cruz para poder mudá-la pela coroa. 366 Quanto ao significado da
366
Em minha tese doutoral “The Meaning of the Preposition _ντί in tne New Testament” apresentada
ao Seminário Princeton em 1948, demonstrei que o significado de Hb. 12:2 não pode ser: “Em troca
da glória celestial que possuía desde a eternidade, sofreu a cruz” (interpretação que preferem vários
exegetas). Pelo contrário, a alegria da qual Hb. 12:2 fala é concretamente alegria futura, que lhe veio
uma vez concluída a carreira (veja-se Hb. 12:1), e que incluiu o fato de que Cristo se assentasse à
destra do trono de Deus (Hb. 12:2b). Com a vista posta na obtenção desta alegria, Jesus pagou o preço
João (William Hendriksen) 764
preposição παρά na frase “junto a ti” (em sua própria presença) veja-se
sobre Jo 14:23, nota 320. Quase não é necessário acrescentar que neste
desejo de glória futura (Jn 17:5) ou de alegria futura (Hb. 12:2) não
houve nem vestígios de um simples egoísmo (cf. Jo 17:1). Por certo que
tudo o que Deus faz o faz para sua própria glória, e que Jesus é Deus!
Inclusive em sua condição de mediador é a pessoa divina a que
pronuncia suas palavras e realiza suas obras. No entanto, o problema se
resolveu quando lembramos que “Deus é amor”, que (segundo o quarto
Evangelho) as pessoas na Santa Trindade se glorificam uma à outra, e
que a glória e a alegria do Mediador exaltado inclui também este
elemento que “pode salvar perpetuamente aos que por ele se aproximam
a Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (Hb. 7:25). Aqui em Jo
17:5 o Filho espera a glória de alegrar-se na alegria de Seu povo salvo, o
mesmo povo cuja salvação Ele (junto com o Pai e o Espírito) planejou
desde a eternidade, antes que o mundo existisse. Deus sempre Se deleita
em Suas próprias obras. O Filho Se gloria na glória do Pai, e Se alegra na
alegria de todos os redimidos. Quando eles cantam, ele canta. (Cf. Sf.
3:17).

JO 17:6–19

17:6. Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo.


Há uma transição delicada e orgânica entre o rogo por Si mesmo e o
rogo pelos discípulos. O passo de um rogo ao outro é natural e muito
gradual, como as cores do arco-íris que parecem fundir-se onde se
juntam. A glória de Jesus é a salvação de Seus seguidores. De modo que,
ao centralizar a atenção em sua obra em prol deles, o Filho afirma que

da cruz com sua vergonha; como em Hb. 12:16, com a vista posta na obtenção da comida, Esaú
pagamento o preço com seu primogenitura. A preposição tem o mesmo significado em ambos casos.
É certo, naturalmente, que esta alegria futura que era a recompensa por Seu sofrimento, era ao
mesmo tempo (embora não de forma exclusiva) um retorno à condição gloriosa (na presença do Pai)
que Jesus tinha possuído antes que o mundo existisse. Este é o pensamento que se expressa aqui em Jo
17:5.
João (William Hendriksen) 765
manifestou ou deu a conhecer o nome do Pai a eles. Quanto ao
significado do verbo manifestado, veja-se sobre Jo 21:1. O Filho é o
exegeta do Pai (veja-se sobre Jo 1:18). À parte dEle ninguém nunca
chega a conhecer os assuntos espirituais em sua essência e valor íntimos
e reais. O nome do Pai — ou seja, o próprio Pai, na manifestação de
Seus gloriosos atributos na esfera da redenção — não Se aprecia além
das palavras e obras do Filho (veja-se sobre Jo 14:6; cf. Mt. 11:27 e 1Co.
2:14). Este conhecimento com relação ao Pai significa vida eterna (veja-
se sobre Jo 17:3).
Tal nome não foi dado a conhecer todo mundo; só àqueles que no
decreto eterno de eleição o Pai havia dado (daí, logo, atraído) ao Filho
(veja-se sobre Jo 6:37, 39, 44; cf. Jo 17:9, 24). O Pai os tinha eleito do
mundo (veja-se sobre Jo 15:19) como dom para o Filho. Provavelmente
o melhor comentário é aquele que se encontra nos Cânones de Dort
(Primeiro capítulo Doutrinal, Artigo 7): 367
“Agora, a eleição é o propósito imutável de Deus, pelo qual, antes
de serem lançados os fundamentos do mundo, Ele, segundo o libérrimo
beneplácito de sua vontade, por pura graça, escolheu dentre toda a raça
humana, caída por própria culpa de sua integridade antiga em pecado e
destruição, a um certo número de pessoas, nem melhores nem mais
merecedoras que outras mas unidas a elas na miséria comum, para
salvação em Cristo; a quem desde a eternidade tinha nomeado Mediador
e Cabeça de todos os escolhidos e fundamento de salvação; e por
conseguinte decretou dá-los a Ele para que se salvem …”
Jesus prossegue: Eram teus, tu mos confiaste, e eles têm guardado a
tua palavra. Ele pensa em todos os escolhidos, mas neste caso concreto
nos discípulos que estão com Ele no Cenáculo, como mostra o versículo

367
Faz anos formei parte de um comitê ao qual foi atribuída a tarefa de fazer uma nova tradução mais
fiel (quase literal) dos Cânones. O comitê me solicitou que me encarregasse da tradução. Traduzi do
latim tal como aparece em P. Schaff, Creeds of Christendom, Vol. III, pp. 550–580. No transcurso do
tempo parece que o organismo que fez o encargo esqueceu a tarefa. Por isso, esta tradução (embora
completa) permaneceu em meu arquivo privado.
João (William Hendriksen) 766
12. Em virtude do decreto divino estes homens pertenciam ao Pai. Para
que este conselho divino pudesse tornar-se efetivo em suas vidas, tinham
sido dados a Jesus, de forma que por meio de Seu sacrifício expiatório
pudesse salvá-los. O fruto de Seu trabalho é formulado nestas palavras
de terno afeto: e eles têm guardado a tua palavra. Quanto ao significado
de guardar a palavra de Deus (daí, de Cristo), veja-se sobre Jo 8:51.
Deve observar-se que o mesmo Mestre que um momento antes ao
dirigir-se a seus discípulos tinha posto de relevo a fraqueza de sua fé (Jo
16:31, 32), agora ao dirigir-se ao Pai não tem nada que dizer com
relação a esta condição de imperfeição. Como verdadeiro Sumo
Sacerdote, cujo coração está cheio de amor pelos Seus, descreve
simplesmente a “estes homens de pequena fé” — em umas horas todos O
iam abandonar, e um ia negá-Lo! — como os que têm guardado a
palavra do Pai (guardaram Seus preceitos).
Verdadeiramente, “o amor não guarda rancor” (1Co. 13:5).
7, 8. Agora, eles reconhecem que todas as coisas que me tens dado
provêm de ti; porque eu lhes tenho transmitido as palavras que me deste,
e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que saí de ti, e
creram que tu me enviaste.
Como todos os conceitos que se acham nesta sublime passagem já
se encontraram antes, não voltaremos a explicá-los, mas simplesmente
parafrasearemos a totalidade e indicaremos as referências pertinentes. O
que Jesus quis dizer foi isto:
«Como resultado das palavras que Lhes disse e que tinha recebido
de Ti, estes homens chegaram a reconhecer de que tudo o que Me deste
— o esplendor de Tua glória refletida em Mim, as Minhas palavras e as
Minhas obras — provém de Ti. Minhas palavras, que me deste e eu lhes
dei, eles as receberam (creram e guardaram); e reconheceram com
reconhecimento genuíno que procedo de Ti, de Tua presença, de forma
que em toda Minha missão Te represento de fato; sim, creram que Tu me
comissionaste».
João (William Hendriksen) 767
A passagem com referências: “Eles conheceram” (veja-se Jo 1:10)
“que todas as coisas que me tens dado provêm de ti” (veja-se Jo 16:30;
cf. Mt. 11:27); “Porque eu lhes tenho transmitido as palavras que me
deste” (veja-se sobre Jo 3:11, 32; 8:28, 38; 12:49; 14:10); “e eles as
receberam, e verdadeiramente conheceram que saí de ti” (veja-se Jo
1:12; 16:30), “e creram” (veja-se sobre Jo 1:8; 3:16; 8:30, 31a) “que tu
me enviaste” (veja-se sobre Jo 3:17, 34; 5:36, 37; 8:18, 27, 29; 9:7; cf. Jo
1:5).
Note-se também que há muito pouca diferença entre os verbos
conhecer e crer. Embora é verdade que o primeiro verbo sublinha a ideia
de verdadeiro conhecimento, enquanto que o segundo enfatiza a de
confiança, no entanto este conhecimento não é abstrato mas é uma
experiência vital e pessoal; e esta confiança não é simples emoção mas
que se baseia em aceitação prazerosa e genuína de certas verdades
básicas com relação a Deus tal como se revelou em Cristo. Veja-se
também sobre Jo 7:17, 18 (elementos na experiência cristã).
9. É por eles que eu rogo; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que
me deste, porque são teus.
Jesus roga por (περί) os escolhidos, a fim de que se possam aplicar
todos os méritos de Sua redenção aos que Lhe foram dados (veja-se
sobre Jo 6:37, 39, 44; 17:6). Por estes que Lhe foram dados dá Sua vida
(veja-se sobre Jo 10:11, 14); em consequência, também é por eles — e
só por eles — que roga (constantemente). Veja-se também Rm. 8:34
(“intercede por nós”); Hb. 7:25 (“pode também salvar perpetuamente
aos que por ele se aproximam de Deus, vivendo sempre para interceder
por eles”); Hb. 9:24 (“não entrou Cristo no santuário feito de mão, e sim
no mesmo céu para apresentar-se agora por nós diante de Deus”); e 1Jo
2:1 (“temos um advogado diante do Pai, Jesus Cristo, o justo”).
João (William Hendriksen) 768
368
Tudo isto é específico, não universal. No entanto, a oração do
Sumo Sacerdote olhe para além dos homens que estavam no Cenáculo
nessa noite, como fica claro pelos versículos 20 e 21. além disso, é
errôneo dizer (como às vezes se faz) que Jesus orou só pelos crentes.
Antes, orou por todo o Seu povo, também por aqueles que ainda não
criam nEle, mas iam aceitá-Lo com verdadeira fé mais adiante (de novo,
veja-se versículos 20, 21), como resultado da graça soberana.
No entanto, a oração por proteção espiritual, santificação e
glorificação (veja-se sobre Jo 17:11, 15, 17, 24) não se faz por aqueles
que até o fim de sua vida rejeitam o Salvador. As palavras, “não rogo
pelo mundo” são muito claras. Entre o propósito da expiação e o
propósito da oração sumo-sacerdotal de Cristo há harmonia perfeita. E
esta unidade de propósito divino inclui também o decreto. De fato, esse
conselho eterno é a base de tudo o que segue. Por isso, lemos “porque
eles (os que foram lhe dados) são teus (em virtude da eleição desde a
eternidade)”. Nem todos foram dados. Jesus não morreu por todos. Não
orou para que os méritos salvadores da cruz se aplicassem a todos. Aqui
a lógica é perfeita. Lembra-nos «a cadeia inquebrantável» (Rm. 8:29,
30): “Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou
para serem conformes à imagem de seu Filho … E aos que predestinou,
a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e
aos que justificou, a esses também glorificou”. Todos estes — e só estes!
— que foram conhecidos antes e predestinados para salvação chegam
por fim ao céu. (Por outro lado, o evangelho deve proclamar-se a todos;
a morte de Cristo é suficiente para todos; Deus atrai os Seus dentre todas
as nações do mundo; exerce autoridade sobre todos; e é glorificado em
todos.)
10. Ora, todas as minhas coisas são tuas, e as tuas coisas são minhas.

368
Isto não quer dizer necessariamente que Jesus não orou alguma vez em nenhum sentido pelos que
em sua ignorância O afligiram a Ele (tomados como grupo). Acaso não orou por aqueles que o
crucificaram, para que Se detiveram os raios da ira de Deus? Veja-se Lc. 23:34.
João (William Hendriksen) 769
Jesus roga pelos discípulos porque pertencem não só a Ele mas
também ao Pai. É natural esperar que o Pai deve estimar o que Lhe
pertence tanto a Ele como ao Seu amado Filho. Por isso no versículo 9
Jesus diz: “É por eles (ou seja, pelos que me deste deram) … porque são
teus”. Agora acrescenta que esta dupla propriedade abrange tudo o que o
Filho possui.
Note-se que diz não apenas “todas as minhas coisas são tuas” mas
também “e as tuas coisas são minhas”. Esta última afirmação é
surpreendente. Só tem sentido se o Pai e o Filho são um em essência (cf.
Jo 10:30). Porque o fato de que uma criatura diga ao Criador — ou
inclusive que um crente diga a Deus — “todas as minhas coisas são
tuas”, não é maravilhoso. Mas o fato de que alguém subordinado a Deus
acrescente “e as tuas coisas são minhas”, requer explicação. Inclusive
esta última afirmação é verdadeira no sentido de que “todas as coisas
cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm. 8:28; cf. 1Co.
3:21). Mas Jesus tem em mente não só o fato de que todas as coisas
promovem Sua glória, mas também que de fato é amo de tudo e tem
autoridade sobre tudo (cf. Jo 17:2). Aquele que aqui Se dirige ao Pai é o
mesmo que estava junto ao Pai desde a eternidade (Jo 17:5). Todo o
universo inteiro pertence tanto ao Pai como ao Filho. Por isso, o que é de
interesse para um é de interesse para o outro. Por isso Jesus pode orar
com tanto ardor pelos discípulos. Eles são Seus, Sua propriedade. Por
isso os ama. Mas tudo o que é dEle, também é do Pai. Esta propriedade
mútua implica interesse mútuo e este interesse mútuo garante ação
mútua.
É muito difícil — talvez inclusive impossível — fazer alguma
distinção clara neste contexto entre Jesus como Mediador e Jesus como
eterno Filho de Deus. O caráter da propriedade pode diferir (em virtude
de Sua geração e posição eterna todas as coisas pertencem naturalmente
a Jesus como Filho de Deus; em virtude de sua missão, todas as coisas
foram-lhe dadas como Mediador); sua quantidade ou alcance não difere.
Além disso, quer seja que O consideremos como Mediador entre Deus e
João (William Hendriksen) 770
o homem, ou como eterno Filho de Deus, em qualquer caso o ‘Eu’ que
fala é o mesmo. No entanto, quando Jesus acrescenta e, neles, eu sou
glorificado, pensa primordialmente na glória que como Mediador (que
aqui fala como se já tivesse terminado completamente Sua tarefa) obtém
pela salvação de Seus discípulos. As graças que adornam àqueles que
foram tirados das trevas para entrar na luz refletem Seu amor e poder
redentores. Sem dúvida, se Paulo pode chamar a igreja em Filipos
“minha alegria e coroa” (Fp. 4:1), e pode falar dos irmãos em
Tessalônica dizendo “vós sois nossa coroa e alegria” (1Ts. 2:20) — e
isso porque estas congregações manifestam os frutos de seu trabalho—
tanto mais direito tem Jesus a dizer que em todas as coisas — sobretudo,
naquelas que desde toda a eternidade são Suas — é glorificado.
11. Já não estou no mundo, mas eles continuam no mundo, ao passo
que eu vou para junto de ti. Jesus fala aqui como se o Calvário tivesse
passado; tão seguro está do Calvário! Em Seu pensamento já está agora a
caminho para o Pai. Com esta situação ideal como base de Seu rogo,
Jesus menciona o fato de que, com relação à Sua presença visível, deixa
aos discípulos num mundo mau. Por isso, segue com toda naturalidade o
rogo: Pai santo, guarda-os em teu nome, que me deste. O mundo mau
contrasta-se com o Pai santo. O poder deste é, sem dúvida, mais que
suficiente para rebater a influência do primeiro. Sendo santo, o Pai está
acima de toda criatura (cf. Is. 6:3: o Santo é também o glorioso),
sobretudo acima do pecado da criatura. Jesus apela às qualidades morais
e espirituais que caracterizam o Pai, em virtude das quais Ele é a causa
destas qualidades (por tênue que seja sua presença) nos corações dos
crentes. Pede ao Pai que guarde (veja-se também Jo 8:51) a estes
homens, e que mantenha sob Sua supervisão divina tudo o que poderia
prejudicá-los espiritualmente. Pede que sejam guardados no nome do
Pai, Sua revelação por meio de palavras e obras na esfera da redenção, a
mesma revelação que Jesus tinha-lhes irradiado e eles haviam aceito (Jo
17:6, 8). E o propósito deste guardar é: para que eles sejam um, assim
como nós (somos um). O significado desta passagem tão discutida é,
João (William Hendriksen) 771
afinal de contas, bem claro se vista à luz do contexto. Jesus não roga que
algum dia todas as denominações se convertam num grupo imenso (por
excelente que seja a união das igrejas quando se consegue sem o
sacrifício de princípios básicos). Quando ofereceu esta oração, não havia
denominações. Tampouco pede que de uma forma vaga a unidade
essencial (ou ontológica) do Pai e do Filho se possa reproduzir na vida
dos discípulos (embora seja verdade que a união mística entre os crentes
e Cristo procede, e é reflexo, da relação entre as pessoas da santa
Trindade. O significado é, segundo nosso parecer: Jesus pede que os
discípulos sejam constantemente (observe-se o vigor do subjuntivo
presente de duração) um em sua posição frente ao mundo; em outras
palavras, que permaneçam unidos em amor e em defesa da verdade,
assim como o Pai e o Filho são constantemente um … e neste ponto
provavelmente esperaríamos encontrar: “em sua relação frente ao
mundo, em todas suas ações externas”; mas Jesus, sabendo que esta
unidade é inclusive mais profunda, quer dizer … um em essência. Claro
que a lógica exige que o significado seja unidade de cooperação. Pois
bem, isto é o que significa, e ainda mais. Em Deus a unidade de essência
é básica para a unidade de manifestação (a trindade ontológica é a base
da trindade econômica). Aquele que não se indica mas sim unidade em
essência, segue-se de Jo 17:21; veja-se sobre essa passagem; e também
sobre Jo 10:30. 369
12. Quando eu estava com eles, guardava-os no teu nome, 370 que me
deste. Quer dizer, durante todo Seu ministério, por meio do ensino e dos
milagres, Jesus tinha cumprido Sua tarefa como bom pastor das ovelhas.

369
Fizeram-se repetidas tentativas na história da doutrina para separar a trindade econômica de seu
fundamento metafísico. Sobre a base da Escritura todas estas tentativas devem rejeitar-se. Veja-se H.
Bavinck, The Doctrine of God, Grand Rapids, Mich., 1951, pp. 317–321. Veja-se também L. Berkhof,
Teología sistemática, Grand Rapids, Mich., 1969, pp. 101–104.
370
Não vejo por que a versão “os que me deu” deva preferir-se a “aquele que me deu” como se Jesus
se referisse aqui aos discípulos e não ao nome. Estou em desacordo com Lenski e outros neste sentido.
A versão que preferem é muito fraca. Não há fundamento interno que seja de peso suficiente para
deixar de lado as provas textuais. O texto estabelecido tem muito sentido.
João (William Hendriksen) 772
Por isso as havia Ele mesmo guardado dia após dia, constantemente lhes
apresentando tudo o que tinha ouvido do Pai (quanto ao nome do Pai que
lhe tinha sido dado a Jesus; veja-se sobre versículo 11); e protegi-os, e
nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição, para que se cumprisse
a Escritura.
Por meio desta vigilância espiritual constante Jesus tinha guardado
os Seus, protegendo-os contra a apostasia. O resultado tinha sido:
nenhum deles se perdeu. Quando Jesus diz, “nenhum deles se perdeu,
exceto o filho de perdição”, não quer dizer que com exceção de Judas
todos aqueles que o Pai tinha dado ao Filho tinham sido guardados. Não
quer de modo algum sugerir que no caso de Judas tinha fracassado no
desempenho da missão encomendada. Pelo contrário, temos aqui outro
exemplo de expressão abreviada. Veja-se sobre Jo 5:31. De forma mais
completa o que Jesus quer dizer é isto:
«E os guardei, e nenhum pereceu. Mas o filho da perdição, sim,
pereceu. No entanto, longe de indicar que neste caso o plano eterno
fracassou e a profecia ficou sem cumprimento, sucedeu precisamente
para que a Escritura se cumprisse».
O filho da perdição (uma expressão semítica; cf. Mt. 23:15; 2Ts.
2:3) é o totalmente perdido, designado para perdição. Fica claro que Se
referia a Judas, se comparar-se passagens: Jo 6:71; 13:2, 18, 26, 30; 15:2,
6. Certamente, o Pai, ao qual aqui Se dirige, sabia a quem Se referia;
também o Filho; também os leitores do quarto Evangelho. E isso é
suficiente. Não é importante neste contexto determinar se cada um dos
discípulos no Cenáculo compreendeu por fim que este homem era Judas.
Veja-se, contudo, sobre Jo 13:28, 29.
Embora, por um lado, Judas foi totalmente responsável, por outro
lado esta ação estava incluída no decreto divino desde a eternidade, e na
profecia. Veja-se sobre Jo 13:18. Por isso, quando os discípulos ouviram
que Jesus falava com Pai a respeito da realização desta tarefa com
relação a eles, e o cumprimento da profecia inclusive no caso do filho da
perdição, fortaleceram-se na fé, e começaram a notar que nada nem
João (William Hendriksen) 773
ninguém desbarataria o propósito divino. Por isso, Calvino observa tão
acertadamente que aqui foi eliminado o que podia ter causado que
vacilassem os corações fracos. 371 Veja-se também sobre Jo 16:1, 4.
13. Mas, agora, vou para junto de ti e isto falo no mundo para que
eles tenham o meu gozo completo em si mesmos.
Jesus está consciente do fato de que tinha chegado a hora em que
devia separar-se da terra para ir ao Pai. De novo, bem como no versículo
11, o significado não é: «Venho a ti com um rogo», e sim (como também
o indica o contexto imediato): «Saio do mundo; por isso, vou a ti». O
fato de que esta seja a interpretação correta, também se vê quando se
compara esta afirmação com a do versículo 11. Note-se a sequência: “Já
não estou no mundo … Vou para ti”.
Jesus fala estas coisas no mundo (ou, como diríamos, estando ainda
na terra; veja-se nota 26, significado provável 1; veja-se também sobre
Jo 21:25) a fim de que os discípulos possam ter em medida plena a
alegria que comunica. Veja-se sobre Jo 15:11; cf. Jo 14:27.
Certamente, os pensamentos que se expressam no contexto
imediatamente anterior teriam o efeito de encher seu copo de alegria
espiritual até transbordar. Agora podem cantar o equivalente de estrofes
tão queridas ao nosso coração:
“Aos cuidados de meu Pai estou” (Cf. Jo 17:11) e “Quão firme
alicerce se deu à fé, De Deus em sua eterna palavra de amor!” (Cf. Jo
17:12)

371
É difícil entender como certos comentaristas podem inferir deste texto (ou de qualquer outro) a
ideia de que alguma vez também Judas possuiu uma fé genuína. Calvino faz um belo comentário,
sublinhando o fato de que nem a Deus nem à profecia pode culpar-se pelo pecado de Judas. Esse
discípulo não tinha sido compelido a pecar. Pecou porque quis. Diz Calvino:
Excidit Iudas, ut impleretur Scriptura. Caeterum perperam quispiam inde colligeret, defectionem
Iudae Deo potius quam illi esse imputandam: quia necessitas ei ex vaticinio imposita fuerit. Neque
enim rerum eventus ideo vaticiniis ascribi debet, quia illic praedictus fuerit … Fateor quidem nihil
accidere nisi divinitus ordinatum: sed nunc tantum de Scriptura quaestio est, an eius praedictiones et
vaticinia hominibus necessitatem afferant, quoda iam falsum esse monstravi. Nec vero Christi
consilium est, causam exitii ludae in Scripturam transferre, sed tantum offendiculi materiam tollere
voluit, quod infirmas animas concutere poterat (op. cit., pp. 318, 319).
João (William Hendriksen) 774
14. Eu lhes tenho dado a tua palavra, diz Jesus. Ele mesmo deu a
estes homens um dom incomparável e permanente (note-se o tempo), ou
seja, a própria palavra do Pai, Sua mensagem. Veja-se sobre Jo 17:6, 8.
A palavra enche o coração de alegria inefável e enche de glória (veja-se
17:13b). Mas tem outro efeito: E o mundo os odiou, porque eles não são
do mundo, como também eu não sou. Seria totalmente supérfluo explicar
estas palavras. Não há nada novo no que Jesus diz. Tem-se dito antes.
Veja-se sobre Jo 15:19, 20. O elemento novo e consolador é este, que
Jesus havia lhes dito antes o que agora diz ao Pai a respeito deles. O que
alegria deve ter entrado no coração destes homens ao ouvir dizer o
Mestre com relação a eles, “Não são do mundo”. Mas deve ter-se
necessitado todo este consolo para rebater a terrível verdade: “e o mundo
os odiou”. Os homens maus os odeiam não tanto pelo que o discípulo
pensa, diz ou faz (tomado em si mesmo), mas sim é o que (por meio de
sua atitudes, palavras e ações) demonstra ser o que os converte em
perseguidores. O mundo odeia ao discípulo porque é tão totalmente
diferente. Não é “do mundo”, assim como Jesus não pertence (não deve
Seu caráter) ao mundo.
15. Não rogo que 372 os tires do mundo, mas que372 guarde-os do
maligno [TB].
Quanto ao verbo rogar, veja-se sobre Jo 11:22. Na aparência, pôde-
se esperar que a menção do imenso ódio que os discípulos teriam que
suportar de parte do mundo iria seguido de um rogo ao Pai para que os
tirasse do mundo. Mas Jesus Se nega a pedir isso. A razão é que os
discípulos têm um trabalho que realizar. A natureza desta trabalho não se
indica com clareza aqui, nem sequer no versículo 18, a não ser que
tomemos essa passagem em conexão com tudo o que a precede. Indica-
se com clareza, no entanto, em Jo 15:27: “E vós também testemunhareis,
porque estais comigo desde o princípio”. (Veja-se sobre esse versículo).

372
A respeito de _να veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 775
Naturalmente que Jesus não pode agora rogar que sejam tiradas as
testemunhas!
O que sim roga é isto — que o Pai guarde aos discípulos do mal
[]RA], ou do maligno [TB]. Ambas as traduções são admissíveis.
Preferimos a segunda, pelas seguintes razões:
(1) Repetidas vezes, durante esta noite, Jesus falou a respeito de
Satanás, o príncipe deste mundo (Jo 12:31; 13:27; 14:30; 16:11): que
seria expulso; que tinha entrado em Judas; que estava a caminho; e que
tinha sido julgado. Judas tinha caído presa do maligno. Por que resulta
pouco razoável supor então, que Jesus rogasse para que se protegesse a
outros contra as artimanhas de Satanás?
(2) 1Jo 5:18 é, até certo ponto, uma passagem paralela. Aqui o
guardar tem como resultado que o maligno não toque no que nasceu de
Deus.
(3) É quase impossível supor que Jesus, ao falar de guardar os seus
(que são do Pai também), não pensasse na alegoria do pastor que vigia e
protege a suas ovelhas. Em consequência, Jo 10:29 (“ninguém pode
arrebatá-lo da mão do Pai”, TB) vem à mente imediatamente. Agora, o
inimigo ao qual se refere em Jo 10:29 é decididamente pessoal; não é só
o mal em geral, mas sim Satanás, o falso profeta, o perseguidor, etc. Por
isso, também aqui em Jo 17:15 pensamos no maligno, ou seja em
Satanás.
(4) O fato de que atrás de todas as influências sinistras esteja o
próprio Satanás, de modo que seja sobretudo contra ele que o crente
necessite proteção é a ideia prevalente no Novo Testamento (tanto no
ensino de Jesus como no dos apóstolos); veja-se ademais as passagens
enumeradas antes sob (1) e (2), também: Mt. 4:1; 13:19, 38, 39; Jo 8:44;
13:2; At. 5:3; 2Co. 12:7; Ef. 2:2; 4:27; 6:11, 12; 1Ts. 2:18; Tg. 4:7; 1Pe.
5:8; Ap. 12:3; 20:2. 373

373
Não creio que a preposição _κ faça necessário que siga um neutro. Em 1Co. 9:19 o complemento
que segue à preposição é pessoal.
João (William Hendriksen) 776
16. Eles não são do mundo, como também eu não sou.
Aqui se repete o pensamento do versículo 14. Veja-se sobre Jo
15:19, 20. A diferença é que agora já não é uma frase dependente, mas
independente. Literalmente, lemos: “Do mundo não são, como eu não
sou do mundo”. Toda a ênfase fica, pois, nesta expressão com a que
começa e conclui a frase, ou seja, do mundo. Em conexão com o que
antecede podemos agora interpretar todo o rogo como segue: «Concede
que estes discípulos não entrem no território de Satanás, porque não
pertencem de modo algum ao mesmo. Eles são Teus e Meus; não
pertencem ao mundo perverso”.
17. Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade
Aqui está o lado positivo do rogo. É como se Jesus dissesse: «Não
só os guardes do maligno, mas também consagra-os na verdade. Aparta-
os de um e confirma-os na outra”.
No original o adjetivo santo (na expressão Pai santo, versículo 11)
e o verbo santificar derivam-se da mesma raiz. Por isso, combinando
estas duas ideias se poderia traduzir: «Pai santo, santifica-os na
verdade». Dito de forma mais completa o verbo que se utiliza significa
separar do mundo por meio de uma efetiva santificação da vida, de
modo que de mente e coração, de pensamento, palavras e obras, a
pessoa comece a viver cada vez mais de acordo com a lei de Deus.
Esta santificação pode ocorrer só se toda a personalidade estiver
desejosa de ser governada pela verdade; ou seja, pela revelação redentora
de Deus em Cristo, como a norma máxima de vida e doutrina. Esta
verdade está encarnada em Cristo, e só nEle. Ele é a verdade (veja-se
sobre Jo 14:6). No entanto, a palavra do Pai, que tinha sido dada aos
discípulos, deve ser a fonte de verdade para estes homens quando Jesus
já não estiver em pessoa com eles. Essa palavra é verdade. É totalmente
infalível. Sem ela é totalmente impossível a obra de santificação. Jesus
roga, portanto, que o Pai faça com que estes homens, de uma forma cada
vez mais intensa, amem essa palavra, e vivam de acordo com a verdade
João (William Hendriksen) 777
de Deus revelada nesta mensagem que tinham recebido dele, e que Ele,
por sua vez, tinha recebido do Pai.
18. Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao
mundo.
Jesus segue pensando na palavra, a mensagem de redenção em
Cristo para a glória de Deus. Em conexão com isso estabelece uma dupla
comparação; quer dizer, entre o Pai como Aquele que envia e Ele mesmo
como Enviado; e entre Ele mesmo como Enviado e os discípulos como
os que são enviados. As duas comparações se fundem numa ideia, que é
esta: assim como o Pai enviou Jesus ao mundo com uma mensagem,
assim também Jesus enviou os discípulos ao mundo com uma mensagem.
A mensagem, além disso, é a mesma, a da redenção de Cristo.
Ao comparar esta passagem com o versículo 20, fica claro que aqui
no versículo 18, Jesus pensa concretamente no pequeno grupo dos onze a
quem está falando. Tinham sido divinamente comissionados. Tinham
recebido um encargo, uma tarefa com a autoridade de levar o cabo.
Tinham sido feitos apóstolos (termo que tem a mesma raiz que o verbo
que se utiliza neste versículo) de Cristo. Quanto ao termo mundo como
se usa aqui, veja-se nota 26, significado 4 (com toda probabilidade).
19. E por causa deles eu me santifico a mim mesmo, para que
também eles sejam verdadeiramente santificados [Trad. Hendriksen].
Para que os discípulos desempenhem sua tarefa de uma forma digna,
devem consagrar-se a isso voluntariamente. Para isto é básica a
santificação de Cristo por causa deles (para o significado da preposição
veja-se sobre Jo 10:11). Embora o verbo nos versículos 17 e 19 seja o
mesmo, parece haver uma ligeira diferença em significado. Com relação
a Cristo não pode indicar um processo gradual de purificação espiritual
(um morrer ao pecado e um crescer em toda virtude espiritual). Deve
referir-Se a Seu autossacrifício (cf. Jo 1:29), mais concretamente, à Sua
autodedicação à sagrada tarefa para a qual o Pai O havia separado, ou
seja, a tarefa de prestar obediência ativa e passiva, com a qual obteria
para Seu povo (e aqui, em concreto, para Seus discípulos) salvação
João (William Hendriksen) 778
completa, que também inclui a obra do Espírito Santo por meio da qual
são santificados. Veja-se sobre Jo 10:36. Por isso, um ato de santificação
(o do Sumo Sacerdote) tem como fim produzir outro (o dos discípulos).
Jesus Se oferece voluntariamente para que os discípulos possam ser
verdadeiramente (não só ritual ou externamente) santificados e
qualificados para a excelsa tarefa de proclamar o evangelho a um mundo
perdido no pecado; em outras palavras, a fim de que possam ser pessoas
verdadeiramente santificadas (literalmente, “para que eles também
possam ser santificados em verdade”).
O caráter da tarefa atribuída aos discípulos se formula em Jo 15:27
(veja-se sobre essa passagem). Os discípulos devem testificar, de modo
que os que o Pai dá ao Filho possam ser trazidos, e Deus possa receber
toda a glória.

JO 17:20–26

17:20. Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que
vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra.
Nesta, a terceira seção da oração, Jesus roga pela igreja universal.
Inclusive nos versículos anteriores têm encontrado afirmações de caráter
tão geral que, quanto a forma e conteúdo, eram aplicáveis não só aos
onze mas também a outros. Só à luz do contexto geral (sobretudo, à luz
da passagem-chave que agora comentamos, Jo 17:20) consideramos que
se referem (pelo menos principalmente) aos apóstolos. Mas inscritos no
peitoral do grande sumo sacerdote estão os nomes não só dos escolhidos
dentre as tribos de Israel mas também os escolhidos do mundo do
paganismo. Além das ovelhas que saem do redil dos judeus há também
“outras ovelhas” (veja-se sobre Jo 10:16; cf. Jo 3:16). Todas devem
converter-se em um rebanho com um pastor (veja-se sobre Jo 17:21).
Devido ao parecido em fraseologia entre a última afirmação de Jo 10:16
e Jo 17:21a é difícil crer que esta distinção (entre judeus e gentios)
João (William Hendriksen) 779
esteve completamente ausente da mente do Senhor ao pronunciar as
palavras de Jo 17:20.
Mas embora tal distinção possa ter influenciado na forma e sentido
do rogo presente, não é exatamente o que esta passagem quer dizer.
Tampouco é totalmente correto dizer (como faz-se com frequência) que
Jesus distingue entre dois grupos, ou seja, por um lado, os já salvos, e
por outro, os que vão salvar-se por meio de sua palavra. Falando
estritamente, a distinção dá-se entre os onze, por um lado, e por outro,
todos os que são conduzidos à fé genuína em Jesus Cristo por meio da
palavra deles. Alguns já foram “reunidos” por eles (veja-se sobre Jo
4:38). No futuro (e ao longo de toda a nova dispensação) muitos outros
iam converter-se por meio da palavra deles e da palavra dos que iam
segui-los. Os olhos de Jesus passam revista aos séculos, e apura junto ao
Seu coração a todos os Seus verdadeiros seguidores, como se tivessem
sido salvos já nesse mesmo momento. Também aqui, na terceira seção da
oração, o ponto de vista da oração é ideal, vendo os eventos futuros
como se já tivessem sucedido.
Quanto à distinção entre rogar e pedir, veja-se sobre Jo 11:22.
Literalmente Jesus rogou: “Não somente por (note-se a preposição)
estes, mas também pelos que hão de crer em mim pela palavra deles”. A
forma da expressão crer em mim indica que se alude à fé genuína, ao
fruto da graça salvadora (como se mostrou com relação a Jo 8:30, 31a;
veja-se também sobre Jo 1:8; 3:16).
O meio que se usa para produzir a fé é, como sempre, a palavra (a
palavra deles, não como se a tivessem criado, mas porque a ouviram,
aceitaram e pregaram), a mensagem de salvação (oral ou escrita; cf. Ef.
2:20). Quando o Espírito aplica esta Palavra ao coração, a pessoa obtém
a fé para salvação, a fé na pessoa de Jesus Cristo e nos atos da redenção
que se centralizam nele. Cf. At. 4:4; Rm. 10:14, 15.
O conteúdo do rogo pela igreja universal se especifica no seguinte
versículo:
João (William Hendriksen) 780
374
21. Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu,
em ti; que374 também eles sejam um em nós, para que374 o mundo creia
que tu me enviaste [RC].
Ao levar em seu coração a todos os membros da igreja universal,
aos nascidos e os ainda não nascidos, e ao vê-los todos como já
existindo, Jesus roga que espiritualmente todos possam ser (e continuar
sendo) um. Veja-se sobre Jo 17:11. O que no versículo 11 era o propósito
de um rogo aqui é o próprio rogo: a unidade de todos os crentes.
A unidade pela qual Jesus roga não é simplesmente externa. Ele fica
em guarda contra esta interpretação errônea tão comum. Pede que a
unidade de todos os crentes se pareça com a que existe eternamente entre
o Pai e o Filho. Em ambos os casos a unidade é de uma índole
definitivamente espiritual. Por certo que Pai, Filho e Espírito Santo são
um em essência; os crentes, por outro lado, são um em mente, esforço e
propósito. Veja-se também sobre Jo 17:22, 23. Estas duas classes de
unidade não são iguais. Mas há uma similitude. Deus é amor. O que é
certo com relação a cada um dos atributos divinos o é também com
relação ao amor: constitui a própria essência de Deus (1Jo 4:8). Agora, é
justamente no amar-se uns aos outros que se chega a expressar a
unidade de todos os crentes (cf. Jo 13:34; 15:12, 17). Por isso,
entendemos agora como é que Jesus pode dizer “… para que todos
constantemente sejam um; como tu, ó Pai, em mim, e eu em ti”.
Além disso, neste caso estamos diante de algo mais que uma
simples comparação entre a unidade de todos os filhos de Deus, por um
lado, e a unidade das pessoas da Santa Trindade, por outro. Esta não é
simplesmente o modelo; é o fundamento daquela e faz com que aquela
seja possível. Só os que foram nascidos do alto, e estão no Pai e no
Filho, são também espiritualmente um, e oferecem uma frente unida
diante do mundo.

374
Para os três exemplos de _να no versículo 21 veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 781
Agora, esta unidade de todos os crentes a qual, por sua vez, tem sua
raiz em sua unidade com o Pai e o Filho, e que está constituída segundo
(mas que não é idêntica com) a unidade que existe eternamente entre
estas duas pessoas divinas, tem como glorioso propósito “que o mundo
creia que tu me enviaste”. Quando os crentes estão unidos na fé e
apresentam uma frente unida diante do mundo, exercem poder e
influência. Quando se dividem por causa de lutas e dissensões, o mundo
(sentido ético: o gênero humano necessitado de salvação) não saberá a
que ater-se nem tampouco como interpretar seus chamados
“testemunhos”. Os crentes, portanto, deveriam sempre desejar a paz, mas
nunca a paz às custas da verdade, porque a “unidade” que se conseguiu
por meio de tal sacrifício não merece chamar-se assim.
Quando os crentes mostram em sua vida que estiveram com o
Senhor, suas ações e atitudes, que falam mais alto que as palavras,
apontarão para Cristo como a fonte de sua fortaleza moral e espiritual.
De modo que, os de fora, que antes desprezavam a Cristo, começarão a
pensar favoravelmente nEle. Quando o Espírito Santo produz em seu
coração esta nova forma de pensar, estes homens, que até esse momento
pertenciam ao mundo, crerão que os maravilhosos relatos referentes ao
caráter e à missão de Jesus Cristo são realmente verdadeiros. O mundo
crerá então “que tu me enviaste”. Quanto ao significado de Jesus como
Enviado do Pai veja-se sobre Jo 3:17, 34; 5:36, 37; 8:18, 27, 29; 9:7; cf.
Jo 1:5.
22, 23. E eu dei-lhes a glória que a mim me deste, para que sejam
um, como nós somos um. Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam
perfeitos em unidade, e para que o mundo conheça que tu me enviaste a
mim e que tens amado a eles como me tens amado a mim.
Quando os crentes estão em Cristo (cf. “que também eles sejam um
em nós”, versículo 21), então Cristo está neles. Esta é a glória deles.
Com a frase “a glória que me deste” Jesus Se refere ao fato de que o Pai
Se manifestou a Si mesmo no Filho (“tu em mim”, versículo 21). Com as
palavras “eu lhes dei” quer dizer que Ele (ou seja, Jesus) Se manifestou a
João (William Hendriksen) 782
Si mesmo na vida dos crentes. Ele poder dizer, “só Cristo vive sempre
em nós”, é a glória deles.
Os crentes se convertem em partícipes de Cristo, e nesse sentido, da
natureza divina (cf. 1Jo 3:2; 2Co. 3:18; Hb. 12:10; 2Pe. 1:4). A glória
que Jesus dá aos crentes significa que chegaram a ser uma só planta com
Ele; que Ele não pode conceber-se à parte deles; que Ele é a fonte de
todas as bênçãos que eles receberão jamais; e que eles, por sua vez,
desejam e se esforçam seriamente em fazer tudo para agradá-Lo.
Quando Deus habita no Filho, e este (por meio do Espírito) mora
naqueles que têm confiança nEle, então, naturalmente, estes crentes
passam a participar de todas as riquezas que há em Cristo: perdão,
justiça, amor, alegria, conhecimento, sabedoria, etc. E quando todos os
membros da igreja universal se converteram em partícipes destas
bênçãos, a igreja, naturalmente, será uma, como o Pai e o Filho são um
(veja-se sobre versículo 21). E esta é a razão de por que Cristo deu toda
esta glória aos crentes, a saber, “para que eles sejam perfeitos em
unidade” (literalmente, “para que possam ser conduzidos completamente
à unidade”).
A unidade pela qual Cristo roga é mais que uma unidade ética. É
uma unidade tão íntima, tão vital, tão pessoal, que está modelada
segundo e baseada nas relações que existem entre as pessoas da Santa
Trindade; é uma unidade não só de fé, esperança e amor mas de própria
vida. Juntos, os crentes constituem um corpo, do qual Cristo é a Cabeça
excelsa (orgânica e governante). Cf. Ef. 1:22, 23; 4:4–6.
A igreja, unida assim por meio da Palavra e o Espírito, exerce uma
poderosa influência no mundo. Ao falar desta influência, Jesus repete 375
virtualmente as palavras do versículo 21 (veja-se sobre esse versículo), e
logo acrescenta: “…e que tens amado a eles como me tens amado a
mim”. Em consequência, o propósito adicional que Jesus tem em mente

375
Não há diferenças essenciais entre “para que o mundo creia” (versículo 21) e “para que o mundo
conheça” (versículo 23).
João (William Hendriksen) 783
quando pede a unidade é que o mundo o considera como o produto do
amor do Pai, amor que, prescindindo das diferenças nos objetos amados,
é o mesmo que aquele que o Pai tem pelo Filho. Quanto à elaboração da
possível diferença no significado dos verbos que significam amar, veja-
se sobre Jo 21:15–17.
24. Pai, aqueles que me deste quero que, onde eu estiver, também
eles estejam comigo, 376 para que vejam a minha glória que me deste;
porque tu me hás amado antes da criação do mundo.
O que pode igualar a ternura inefável deste último rogo? “Pai (veja-
se sobre Jo 1:14), … desejo … é meu prazer, é meu deleite”. 377 Esta
classe de desejar não é mais fraco que querer. De nada serve objetar à
uma ou outra tradução. 378 O grego θέλω tal como se usa aqui, combina o
elemento deleite do verbo desejar com o elemento de reflexão e
determinação do verbo querer.
O desejo de Jesus é: “aqueles que me deste, … onde eu estou,
também eles estejam comigo”. A tradução estritamente literal seria
“aqueles que me deste, desejo que onde eu estou, também eles estejam
constantemente comigo”. Isto não soa bem. No entanto, esta tradução
mais literal não se deve deixar de lado. Põe de relevo um detalhe, ou

376
Ou, mais literalmente, “Pai, os que me deste, desejo que onde eu estou, também eles estejam
constantemente comigo”.
377
Quanto à distinção em significado entre θέλω, que se usa aqui, e βούλομαι veja-se L. N. T., p. 286.
Segundo essa autoridade o primeiro designa a vontade que procede da inclinação; o segundo, a que é
produto da reflexão. O exemplo clássico das duas palavras usadas uma junto à outra, provavelmente
com essa diferença em significado, é Mt. 1:19. O quarto Evangelho não oferece um número suficiente
de exemplos que permitam uma conclusão concreta. O verbo βούλομαι utiliza-se só uma vez (Jo
18:39). O verbo θέλω encontra-se nas seguintes passagens: Jo 1:44; 3:8; 5:6, 21, 35, 40; 6:11, 21, 67;
7:1, 17, 44; 8:44; 9:27; 12:21; 15:7; 16:19; 17:24; 21:18 (duas vezes), 22, 23. Uma análise cuidadosa
destas passagens pareceria indicar que, se pode estabelecer-se certa distinção, é a que sugere L. N. T.
Cf. também H. Bavinck (op. cit., p. 342) sobre o substantivo βουλή que define como “a vontade de
Deus baseada no desígnio e a reflexão”. Define θέλμα “a vontade de Deus como tal, cf. Ef. 1:11:
desígnio de sua vontade”.
378
Não compartilho a objeção de R. C. H. Lenski. Com frequência se expressa o desejo ou anelo
pessoal por meio do verbo θέλω. Veja-se J. H. Moulton e G. Milligan, op. cit., p. 286, onde se
oferecem numerosos exemplos. Quando F. W. Grosheide, op. cit., p. 431 traduz, ‘Ik begeer’, tem
razão.
João (William Hendriksen) 784
seja, o amor profundo do Sumo sacerdote pelos Seus, vistos primeiro
como um todo (aqueles que), logo de forma separada (eles), como em Jo
17:2, porque no original esta cláusula está colocada no próprio começo
da frase, para maior ênfase.
Este rogo coloca um fundamento para a promessa de Jo 14:3. Quer
dizer, o fundamento sempre esteve aí, mas agora Se revela aos discípulos
no Cenáculo. O Filho roga que o Pai coopere com Ele em levar a termo a
promessa que tinha sido feita aos discípulos, e que agora se estende de
modo que inclua a todos os que Lhe foram dados.
Jesus gosta dessa expressão: os que me deste: veja-se sobre Jo 6:39;
17:2, 9, 11; cf. 6:44. Desde a eternidade tinham lhe sido confiados, a fim
de que a seu tempo fossem a recompensa de Seu sacrifício expiatório.
Em consequência, deseja que todos os que foram lhe dados morem para
sempre em Sua presença imediata, a fim de que possam deleitar-se para
sempre na visão da glória de Deus em Cristo, visão que começa aqui na
terra (2Co. 3:18), e alcança sua culminação no céu.
A glória da qual Cristo fala é a Sua. Chama-a “minha glória que me
deste”. O Filho deseja que todos os crentes O contemplem para sempre
(θεωρ_σιν), quer dizer o esplendor de Seus atributos divinos tal como se
refletem em Sua natureza humana exaltada (embora, naturalmente,
nunca chegam a ser parte dessa natureza humana) e no caráter
transformado, a alegria indescritível, o amor inextinguível, e a paz
perfeita de todos os que entram no descanso que aguarda o povo de
Deus. Esta é a glória que o Pai deu ao Filho.
Esta visão de Deus em Cristo é a felicidade arrebatadora de todo o
povo de Deus. Veja-se Sl. 17:15; 27:4; 90:16; e 1Jo 3:2; cf. também 2Co.
3:18. Ao contemplá-Lo, eles, como prismas perfeitos, refratam a luz que
brota de Seu aspecto glorioso, e mostram Sua beleza deliciosa de
colorido em vidas dedicadas totalmente a Ele. Verdadeiramente, o
luzeiro da nova Jerusalém é o Cordeiro (Ap. 21:23).
Como uma composição musical sublime que, depois de ter
comovido as fibras mais íntimas da alma, finalmente deve terminar numa
João (William Hendriksen) 785
culminação inesquecível, assim o rogo final desta oração
comovedoramente bela do grande Sumo Sacerdote alcança seu zênite de
ternura infinita nas palavras, “…porque tu me hás amado antes da
criação do mundo”.
É natural e totalmente apropriado considerar esta cláusula como
modificadora da imediatamente anterior. 379 Porque o Pai amou o Filho
desde antes da fundação do mundo (ou seja, desde a eternidade) que Lhe
deu sua glória. Cf. 17:5 e Ef. 1:4. Quanto ao verbo amar e seu principal
sinônimo, veja-se sobre Jo 21:15–17 (veja-se o quadro baixo IV do
Síntese do capítulo 21, que mostra o verbo exato que se utiliza em cada
passagem; leia-se também a explicação do significado deste verbo).
25, 26. Pai justo, o mundo não te conheceu; mas eu te conheci, e estes
conheceram que tu me enviaste a mim. E eu lhes fiz conhecer o teu nome e
lho farei conhecer mais, para que o amor com que me tens amado esteja
neles, e eu neles esteja.
Foram concluídos os rogos. O que segue nos versículos 25 e 26
pode considerar-se como o fundamento ou argumento sobre o qual se
baseia o último rogo (e num sentido, toda a oração). Mas é mais que isso.
Respira o espírito de confiança e segurança, a convicção do Filho de que
o Pai o ouvirá.
“Pai justo”. Porque o Pai é justo, certamente aplicará todos os
méritos da redenção do Filho ao coração e a vida dos que Lhe foram
dados.
“Embora o mundo não te reconheceu, no entanto, eu te conheci, e
estes conheceram que tu me enviaste.” [Trad. Hendriksen] 380
O reconhecimento da parte dos discípulos (veja-se sobre Jo 16:30)
do fato de que Jesus era, na realidade, o Enviado pelo Pai (como também
o reconhecimento do Pai por parte do Filho), era tanto mais

379
Veja-se R. C. H. Lenski a respeito de esta passagem, com uma interpretação diferente.
380
Traduzimos καί … καί: “embora … no entanto”. É melhor considerar isto como um semitismo.
Note-se, por exemplo, o uso de ωαω em Jz. 16:15. Veja-se L. Koehler, A Dictionary of the Hebrew
Old Testament in English and German, Leiden, Holanda, e Grand Rapids, Mich., 1951, p. 246.
João (William Hendriksen) 786
surpreendente porque estava em contradição aberta com a oposição
intransigente por parte do mundo mau (para o significado do último
termo veja-se sobre Jo 1:10, 11; e nota 26, significado 6). Quanto à ideia
de Jesus como Enviado do Pai veja-se sobre Jo 3:17, 34; 5:36, 37; 8:18,
27, 29; 9:7; cf. em Jo 1:5.
“Eu te conheci”. Este conhecimento (quanto ao verbo utilizado
veja-se sobre Jo 1:10) é esclarecido na cláusula “Eu lhes fiz conhecer o
teu nome e ainda o farei conhecer”. Veja-se sobre Jo 17:6 para o
significado da primeira cláusula; quanto ao significado da segunda, veja-
se sobre Jo 16:12, 15.
Jesus declarará o nome do Pai (sua revelação na esfera da
redenção), para que o amor infinito com que o Pai amou o Filho possa
“derramar-se” (cf. Rm. 5:5) nos corações dos discípulos (e,
naturalmente, nos corações de todos os crentes). E quando tanto o Filho
como os que confiam nEle sejam compreendidos no mesmo amor (ou
seja, o amor do Pai), o próprio Filho viverá neles. Veja-se também sobre
Jo 17:23: “Eu neles”. Esta é a esperança de glória plenamente
consumada (Cl. 1:27).

Síntese do Capítulo 17
O Filho de Deus confia a Si mesmo e a Seus discípulos ao Amor e
Cuidado do Pai

A oração do Sumo sacerdote


I. Por si mesmo: glorificação (versículos 1–5)
II. Por Seus discípulos imediatos (versículos 6–19):
A. Preservação
B. Santificação
III. Pela igreja em geral (versículos 20–26):
C. Contemplação unida dos discípulos da glória de Cristo, em
amorosa comunhão com ele.
João (William Hendriksen) 787
Embora haja progresso na oração, e embora passe de um tema a
outro tal como se indica, contudo, não há uma divisão clara entre as três
partes. Assim, por exemplo, o versículo 24, que pertence à oração pela
igreja universal, é também um rogo pelo próprio Filho, e pelos discípulos
imediatos. A razão de que não há linhas divisórias é que os interesses de
um são também os do outro: tão íntima é a união entre eles.
Por isso, a melhor (embora não perfeita) forma de representar a
relação das partes entre si é por meio de três círculos concêntricos. A
missão e destino eterno de Jesus Cristo e Seus seguidores é o centro
destes círculos. Jesus roga que, como recompensa pelo cumprimento de
Sua missão, Ele mesmo seja glorificado, e que com relação a isto Seus
discípulos, ao realizar Sua missão, sejam “guardados” e santificados, e,
junto com todos os membros da igreja universal, permaneçam para
sempre em Sua companhia, a fim de que “contemplem” a Sua glória. O
círculo interno (1) representa a petição de Cristo por Si mesmo. O círculo
do meio (2) representa Sua petição por Seus discípulos imediatos, mas
inclui referências constantes a Si mesmo (veja-se versículos 10, 11, 13,
16, 18, 19). Por isso, o círculo do meio (2) é maior que o interno e o
inclui. O círculo externo (3) representa a petição de Cristo pela igreja
universal, mas este é o círculo maior, e inclui os outros dois, como já se
indicou.
Em consequência, chegamos a este diagrama do conteúdo do
capítulo 17:
João (William Hendriksen) 788

Conteúdo do círculo 1 = versículos 1–5; conteúdo do círculo 2 =


versículos 6–19; conteúdo do círculo 3 = versículos 20–26.
O diagrama não é perfeito; por exemplo, como se indicou na
exegese, quando o Filho ora por Si mesmo, não prescinde de Seu povo.
Passamos agora ao exame de um círculo totalmente diferente, que
se refere não à forma (divisão em partes) desta oração, e sim ao seu
conteúdo. Quando o amor segue o curso do ciclo completo, representa
um círculo, como resulta bem claro pelo versículo inicial do capítulo 17:
“glorifica a teu Filho, para que o Filho te glorifique a ti”. A glória que
procede do Pai volta de novo a Ele mesmo, uma vez que completou sua
obra. Veja-se também os versículos 4 e 5 quanto a um círculo
semelhante.
Assim também quando o amor de Deus desce do céu para habitar
no coração dos homens, deveria voltar de novo a Ele na forma de ação
de graças. Ai do homem que, tendo recebido bênçãos do Senhor, não as
devolve em forma de louvor e gratidão! Ai do homem que quebra o
círculo! O primeiro capítulo de Efésios contém três círculos completos.
Procuremos descrevê-los.
Esta ideia do amor que segue o curso do ciclo completo pode-se
representar com o seguinte:
João (William Hendriksen) 789
Diagrama do círculo de bênção e ação de graças:

No capítulo 17 se destaca o seguinte: o Pai, o Filho, e os crentes


(neste momento não distinguiremos entre discípulos imediatos e todos os
outros seguidores de Cristo na igreja universal). No fundo, embora
constantemente presente na mente do Filho ao orar, está o mundo
perverso e seu príncipe ímpio (versículos 9, 16, 25). Os discípulos
devem ser protegidos contra estes.

Agora, em sua oração o Sumo Sacerdote põe de relevo de uma


maneira surpreendente a unidade que caracteriza estes três: o Pai, o
Filho, os crentes, o vínculo que os une, sua íntima comunhão entre si.
Em abstrato há possibilidade de seis relações de amor, da seguinte
forma:

Eu (o Filho) amo a ti (o Pai) Tu (o Pai) amas-me Eles (os crentes) amam-me


Eu os amo (os crentes) Tu os ama Eles te amam
João (William Hendriksen) 790
Agora, é surpreendente que neste capítulo se acham de fato as seis,
embora com frequência, em lugar do termo amor, encontra-se outro
verbo, que mostra como se faz sentir este amor. Se isto se tem em mente,
obtemos o seguinte:

Diagrama do curso do amor:

Eu te amo: “Eu te glorifiquei Tu me amas: “o amor Eles me amam: “(eles)


na terra” (Jo 17:4) com que me amaste” conheceram que saí
(Jn 17:26b) de ti” (Jo 17:8c)

Eu os amo: “Manifestei o teu Tu os ama: “(teu) amor Eles te amam: “e têm


nome aos homens que me neles” (Jo 17:26c) guardado a tua palavra”
deste do mundo (Jo 17:6a) (Jo 17:6d)
João (William Hendriksen) 791
ESBOÇO DOS CAPÍTULOS 18, 19
Tema: Jesus, o Cristo, o Filho de Deus durante o Seu ministério
privado: morre como substituto pelo Seu povo

I. Jo 18:1–11 - A detenção

II. Jo 18:12 – 19:16 - O juízo e a negação

A. diante de Anás (Jo 18:13–17), juízo e negação


1. Jesus é conduzido diante de Anás (Jo 18:13, 14)
2. Primeira negação de Pedro (Jo 18:15–18)
3. Jesus é julgado perante Anás; é enviado a Caifás (Jo 18:19–24)
4. Segunda e terceira negações de Pedro (Jo 18:25–27)

B. Diante de Pilatos (Jo 18:28–19:16), juízo


1. Chamam Jesus malfeitor. Primeira tentativa de Pilatos de evitar a
responsabilidade com relação a Jesus: “Tomai-o vós outros e julgai-o
segundo a vossa lei” (Jo 18:28–32)
2. Examina-se a realeza de Jesus. Segunda tentativa de Pilatos de
evitar a responsabilidade: “É costume entre vós que eu vos solte alguém
por ocasião da Páscoa” (Jo 18:33–40)
3. Jesus é açoitado. Terceira tentativa de fugir do assunto: num
esforço por despertar a compaixão do povo exclama: “Eis o homem!” (Jo
19:1–7)
4. Depois de mais tentativas da parte de Pilatos (de libertar Jesus se
fosse possível fazê-lo sem moléstia para Pilatos!), sucumbe diante da
intimidação, e entrega Jesus para ser crucificado (Jo 19:8–16)
João (William Hendriksen) 792
III. Jo 19:17–37 - A crucificação
A. Jesus leva a cruz; cravado a uma cruz entre dois criminosos
(versículos 17 e 18)
B. A disputa a respeito da inscrição (versículos 19–22)
C. A partilha dos vestes (versículos 23 e 24)
D. As palavras a Maria e a João (versículos 25–27)
E. A sede de Jesus; Sua morte (versículos 28–30)
F. A perfuração de Seu lado (versículos 31–37)

IV. Jo 19:38–42 - A sepultura


João (William Hendriksen) 793
JOÃO 18
JO 18:1–11

18:1. Depois de assim falar, saiu Jesus com seus discípulos para o
outro lado do ribeiro de Cedrom, onde havia um jardim; e aí entrou com
seus discípulos [TB].
Ao concluir a oração Jesus e o pequeno grupo dos onze saiu da casa
(veja-se sobre Jo 14:31). Dirigindo-se para o este, saíram da cidade (que
é provavelmente o que significa aqui em Jo 18:1) cruzando o ribeiro
Cedrom. O vale do Cedrom está localizado entre o muro oriental de
Jerusalém e o monte das Oliveiras. Durante a estação do verão o canal
está seco. Só durante o inverno — e inclusive então só depois de chuvas
fortes — forma-se algo que parece de fato um “ribeiro”. Em
consequência, chama-se (literalmente) “deságue invernal” (um deságue
que flui durante a estação invernal). O próprio nome Cedrom (segundo a
que é provavelmente a melhor versão) significa escuro, turbulento.
Aí foi onde o devoto rei Asa queimou a abominável imagem que
sua perversa mãe tinha erigido (1Rs. 15:13). Sob o mando de outro
piedoso governante, Josias, nestes lugares se queimaram utensílios
idólatras (2Rs. 23:4). E sob o rei Ezequias os levitas tinham levado a este
vale as coisas contaminadas que a anterior administração havia deixado
no templo (2Cr. 29:16; cf. 30:14). Este era “o vale dos cadáveres e da
cinza” (Jr. 31:40).
Mas o acontecimento destacado que tinha ocorrido aí foi a
passagem de Davi por este mesmo ribeiro ao fugir diante de seu rebelde
filho Absalão (2Sm. 15:23). Acaso não foi ele, neste ato de humilhação e
sofrimento, protótipo de Cristo?
Agora, a leste desse ribeiro havia um jardim que em outro lugar
chama-se Getsêmani (lagar de azeite). Parece ter sido um pomar de
oliveiras, com uma prensa para tirar o azeite das olivas. Estava ao pé do
Monte das Oliveiras. O lugar que se indica hoje em dia aos viajantes está
João (William Hendriksen) 794
um pouco a leste da ponte que serve para que a estrada que parte da
ponte de São Estêvão cruze o Cedrom. 381
No entanto, deve sublinhar-se que ninguém sabe a localização exata
do jardim ao qual Jesus Se dirigiu nessa noite. O mesmo se pode dizer
com relação a muitos dos lugares onde Jesus ensinou e realizou milagres.
A localização geral com frequência pode-se determinar muito bem; mas
é outra coisa o lugar exato. Muitas pessoas desejam ardentemente
conhecer o lugar exato! Outros se contentam satisfazendo este anelo,
geralmente “de forma aproximada”.
O relato da agonia que Jesus sofreu neste jardim encontra-se nos
outros Evangelhos. João dá por sentado que os leitores não necessitam
mais informação com relação a esse tema. Tudo o que diz é: “…onde
havia um jardim; e aí entrou com seus discípulos”. O que se acrescenta
com as palavras em itálicos serve para descrever a cena e para mostrar a
tensão da mesma. Ao João escrever isso lembra vivamente o que
sucedeu nessa noite. Ele (e Pedro e Tiago) tinham visto mais que alguns
outros (Mt. 14:33).
2. E Judas, o traidor, também conhecia aquele lugar, porque Jesus
ali estivera 382 muitas vezes com seus discípulos.
Deve considerar-se como possível (cf. Lc. 21:37; 22:39) que Jesus e
Seus discípulos tivessem passado no Getsêmani na noite da terça-feira e
na noite da quarta-feira. Havia talvez aí uma gruta ou uma casinha,
algum lugar para dormir, e era o proprietário do jardim seguidor de
Jesus? Getsêmani era, em todo caso, um lugar habitual de reuniões (note-
se o verbo estivera) para o Mestre e Seus discípulos. Era um lugar
tranquilo de oração e provavelmente de ensino.
E Judas o sabia! Tinha estado aí com Jesus. Era, portanto,
relativamente fácil para ele conduzir um grupo de soldados e um pelotão
de guardas do templo ao lugar onde poderiam encontrar a Jesus. Neste

381
Veja-se W.H.A.B., p. 100; também Viewmaster Travelogue, cinta 4001, do Getsêmani ao Calvário,
cena 1.
382
Literalmente, “reunia-se”.
João (William Hendriksen) 795
mesmo momento Judas estava em caminho. O evangelista o descreve em
vivas cores: Judas, que o traía (TB, v. 1). Veja-se versículo 3.
Não apenas Judas conhecia o lugar, mas Jesus sabia que Judas o
conhecia. No entanto (não deveríamos dizer acaso, “Precisamente por
isso”?), Jesus foi lá. Ao bom pastor não o vão apanhar”. Não, vai
“entregar sua vida” como sacrifício voluntário (ver sobre Jo 10:11). 383
3. Judas, portanto, tendo recebido a coorte e alguns oficiais de
justiça dos principais sacerdotes e dos fariseus, chegou a este lugar com
lanternas, archotes e armas.
A pedido do Sinédrio (cf. Mt. 27:62–66) uma companhia foi
mobilizada, provavelmente da torre de Antônia. Esta fortaleza estava
situada no extremo noroeste da área do templo. Herodes, o Grande a
tinha reparado e fortalecido. Neste castelo o governador romano
mantinha a um certo número de soldados. Durante as festividades
judaicas, quando os patriotas judeus iam em grande quantidade a
Jerusalém e seu entusiasmo era elevado, a guarnição era aumentada, a
fim de estar preparados para qualquer emergência (veja-se Josefo,
Antiguidades XVIII, iV, 3).
Não se conhece o número exato de soldados neste destacamento.
Embora uma companhia ordinariamente consistisse de 600 homens (a
décima parte de uma legião), pareceria que o termo utiliza-se aqui num
sentido menos restringido, como ocorre com frequência com relação a
tais termos (inclusive hoje em dia). Em qualquer caso o grupo deve ter
sido muito grande. Parece muito provável que se tinha obtido de Pilatos,
o governador, permissão para utilizá-lo (cf. Mt. 27:62). Mt. 27:18, 19
prova claramente que Pilatos conhecia o “caso” de Jesus antes que o

383
Calvino viu este ponto. Seu comentário ao respeito é belo: Consilium Evangelistae praecipue
spectandum est in loci indicatione: nam ostendere voluit Christum sponte ad mortem prodiisse. Venit
in locum, quem ludae familiariter notum sciebat. Quorsum id nisi ut sponte se offerat proditori et
hostibus? Nec eum fallebat incogitantia, quum omnium quae instabant praescius esset. Postea etiam
subiicit Ioannes eum obviam progressum esse. Mortem ergo non coactus, sed ultro subiit, ut
voluntarium esset sacrificium: nam sine obedientia nobis expiatio parta non esset (op cit., p. 326).
João (William Hendriksen) 796
acusado fosse de fato conduzido perante dele. Os Sinóticos não
mencionam soldados neste contexto.
Além destes soldados também foram enviados guardas do templo
pelo Sinédrio, que contava entre seus membros a muitos sumos
sacerdotes — o sumo sacerdote de turno, ex-sumos sacerdotes, e
membros de famílias sumo sacerdotais (mas isto não é seguro; outra
interpretação do termo é dada por A. Sizoo, Uit de Wereld v. h. N. T., pp.
70–72) — e fariseus. Como os sumos sacerdotes eram em sua maior
parte saduceus (cf. em Jo 1:24), menciona-se separadamente os fariseus.
Segundo Lc. 22:52 também havia membros do Sinédrio. Haviam
posposto a ceia da Páscoa? Veja-se sobre Jo 18:28.
Os soldados e policiais do templo estavam armados. Iam providos
de tochas e lanternas. Com relação a isto, pense-se nas “lâmpadas” de
azeite que levavam as dez virgens da bem conhecida parábola (Mt. 25:1–
3). João menciona armas. Refere-se provavelmente às espadas que
levavam os soldados, bem como aos porretes que levava a polícia (cf.
Mt. 26:47).
Lanternas e tochas … para buscar a Luz do mundo! E havia lua
cheia! Espadas e porretes … para submeter ao Príncipe da Paz! Era uma
ofensa cruel. Demonstrava quão mal tinha sido interpretada Sua missão.
Para o Varão de Dores, a própria presença deste grupo de rufiões, que O
consideravam como sua presa, significava sofrimento indescritível.
Tinham saído contra Ele como se fosse um criminoso, um ladrão por
exemplo.
Isto significava agonia. Sentiu a ofensa amarga, como fica claro
pelas palavras que pronunciou (Mt. 26:55). Viu a aproximação do poder
das trevas (Lc. 22:53).
Ao descrever o que fizeram os soldados, como O trataram os
guardas, ao falar a respeito de Judas, Pedro, Caifás, Anás, Pilatos, e
outros, o propósito principal deve ser sempre mostrar como cada um
contribuiu para o Seu sofrimento.
João (William Hendriksen) 797
Judas tomou este destacamento de soldados e a este pelotão de
polícia do templo. O significado é que serviu de guia, porque estava
muito familiarizado com o objeto da busca e com as conhecidas rondas
dos últimos. Veja-se sobre Jo 13:27.
4. Sabendo, pois, Jesus todas as coisas que sobre ele haviam de vir,
adiantou-se e perguntou-lhes: A quem buscais?
Nada se ocultava à mente de Jesus. Quanto a este conhecimento de
Jesus veja-se sobre Jo 1:42, 47, 48; 2:24, 25; 5:6; 6:64; 13:1, 3; 21:17. A
agonia do Getsêmani (a oração de que Lhe fosse retirado o cálice, o suor
de sangue, etc.) tinha passado. Agora não resta nada senão decisão
tranquila, majestade sublime. Por isso Jesus saiu. De onde? Não é dada a
resposta; por isso, não se tem certeza. Uns dizem “da porta do jardim”;
“da gruta”; ou “da casa”. Para outros (e nos inclinamos a estar de acordo
com eles) o significado é “dentre as árvores do jardim”; quer dizer, saiu
da escuridão relativa à luz, a campo aberto, adiantando-Se até que esteve
frente ao grupo.
Enquanto fazia isso (ou foi em alguma outra conjuntura; mas nesse
caso, quando?), Judas realizou esse ato que fez com que todas as
gerações posteriores retrocedam de horror à simples menção de seu
nome. Abraçando a Jesus, beijou-o várias vezes, enquanto dizia: “Eu te
saúdo, Rabi” Veja-se Mt. 26:49 (o original). Este era o sinal combinado.
Que ímpio, que diabólico! Para a pior ação que jamais se cometeu Judas
escolheu a noite mais sagrada (a da Páscoa), o lugar mais sagrado (o
santuário das devoções do Mestre), e o símbolo mais sagrado, um beijo!
E também que tremendamente ridículo! Como se Jesus não tivesse
identificado a Si mesmo!
Depois de acabar com Judas, Jesus perguntou ao grupo (em especial
a seus líderes): “A quem buscais?” Estava à plena vista de todos. Dava
Sua vida como resgate em troca de muitos. O dono de ventos e marés
estava também no controle total da situação presente.
5. Responderam-lhe: A Jesus, o Nazareno. [nota 383] A resposta a
deram vários (não só o chefe — versículo 12 —; o verbo está no plural).
João (William Hendriksen) 798
Provavelmente falou-se na linguagem exata da ordem oficial que o grupo
tinha recebido das autoridades. “Jesus, o homem de Nazaré” devia ser o
objeto da busca. 384
Então, Jesus lhes disse: Sou eu. Eram desnecessários todos os beijos
que Judas deu! Veja-se sobre versículo 4 (acima). Aqui vemos a Jesus
como o grande Profeta, dando-Se a conhecer a Si mesmo. No versículo 6
nós O vemos como o Rei dos reis. Nos versículos 7 e 8, como o sumo
sacerdote compassivo, que amorosamente cuida dos deles. Ora, Judas, o
traidor, estava também com eles. Por que João não refere o episódio do
beijo? Era simplesmente porque sabia que os leitores o conheciam
suficientemente bem, visto que o tinham lido nos Sinóticos? Ou era
também porque se estremeceu ao se deter nesta ação tenebrosa? Sim,
Judas, o tesoureiro (deveríamos dizer ex-tesoureiro?), o homem em
quem outros tinham confiado, também ele estava agora junto aos poderes
do príncipe das trevas. Em consequência, não é mais que natural incluí-
lo também no evento que se descreve no seguinte versículo:
6. Quando, pois, Jesus lhes disse: Sou eu, recuaram e caíram por
terra.
Que espetáculo apresenta-se agora! De repente (notem-se os
aoristos), diante da palavra de Jesus (“Sou eu”), os supostos apreensores
perdem o equilíbrio. Retrocedem e caem ao solo. O inesperado da
conduta de Cristo (o fato de que por vontade própria lhes saísse ao
encontro), a forma em que tinha tomado toda a situação em Suas mãos, a
majestade de Sua voz e o olhar de Seus olhos, tudo isso pode ter ajudado
a produzir o efeito que se descreve aqui. No entanto, estes fatores não o
podem explicar. Aqui há outro sinal (veja-se sobre Jo 2:11). Aqui está
Cristo Jesus, o Rei.

384
Quanto à forma do termo o nazareno (no original), e também quanto à historicidade de Nazaré
veja-se W. F. Albright, The Names Nazareth and Nazoraean” em JBL LXV (dezembro, 1946), 397–
401.
João (William Hendriksen) 799
7, 8. Jesus, de novo, lhes perguntou: A quem buscais? Responderam:
A Jesus, o Nazareno. Então, lhes disse Jesus: Já vos declarei que sou eu;
se é a mim, pois, que buscais, deixai ir estes. 385
Note-se o marcado contraste. A conduta mais vil deles foi seguida
da pergunta digna dele: “Jesus, de novo, lhes perguntou”. Veja-se sobre
Jo 11:22. Interroga a estes soldados derrubados. A pergunta foi a mesma
de antes. E também foi a resposta. 386 Mas agora Jesus põe de relevo o
propósito de Sua interrogação. Tendo-os obrigado duas vezes a repetir
suas ordens, Ele, pelo som da voz deles, e pelo conteúdo de suas
respostas, fez-lhes ver que Jesus nazareno e só Ele, deve ser detido. “Se
é a mim que buscais — como naturalmente o fazem — deixai ir (ou:
retirem-se) estes”. O Sumo Sacerdote protege amorosamente os Seus.
9. (Isto sucedeu) para se cumprir a palavra que dissera: Não perdi
nenhum dos que me deste.
À primeira vista, esta passagem parece muito estranha. As palavras
que Jesus pronunciou encontram-se (de uma forma ou outra) em Jo 6:39;
10:28; e 17:12. Veja-se estas passagens. Mas em todas elas refere-se ao
fato de que Jesus protege o bem-estar espiritual dos Seus, conservando-
os, com a vista posta na vida eterna nas mansões celestiais. Como, então,
pode tirar-se de repente a esta declaração seu precioso conteúdo para, ao
que parece, “degradá-lo” até o ponto de fazer parecer que se refere à

385
I D; veja-se IV da Introdução.
386
Tem sido perguntado “Como se pode explicar que estes homens, que um momento antes tinham
recebido uma prova tão notória do poder infinito de Cristo, sejam o suficientemente valentes para
responder da mesma maneira que antes?” A resposta é que isto simplesmente mostra quão
endurecidos tinham os corações. Sem dúvida, há algo de fato nesta solução. Mas é psicologicamente
tão estranho que repetissem o que acabavam de dizer? Não devemos supor que o choque produzido
pelo milagre de Cristo — porque foi um milagre! — foi tão grande que por um momento suas mentes
ficaram perturbadas? Em sua desorientação, quase a única coisa que puderam responder no momento
foi o que já haviam dito imediatamente antes. Além disso, esta expressão “Jesus, o Nazareno”
enraizou-se profundamente em sua consciência, provavelmente devido ao lugar destacado nas ordens
oficiais que tinham recebido. Por isso, passa pela cabeça deles antes que nenhuma outra coisa.
João (William Hendriksen) 800
387
forma em que Jesus ajudou para o escape físico dos discípulos? A
única resposta que nos satisfaz é a que deram Calvino, Lutero, Stalker,
Evans, Lenski e outros. Equivale a dizer: Se os discípulos neste
momento tivessem sido capturados por estes soldados e guardas do
templo, teria resultado uma prova muito dura para sua fé. Não estavam
preparados para esta prova extrema, para esta tortura. Jesus o sabia. Em
consequência, procura que não sejam presos.
Note-se também que aqui se utiliza a mesma fórmula “para se
cumprir a palavra que dissera” com relação a um dito de Jesus que em
outra parte é utilizado com relação aos autores inspirados do Antigo
Testamento. A inferência legítima é certamente que João considerava as
frases de Jesus, por seu caráter infalível, no mesmo nível que os dos
profetas antigos.
10. Por seu orgulho e arrogância Pedro decide não aproveitar-se
imediatamente da oportunidade de segurança física que Jesus tinha
proporcionado. Temos aqui o excessivamente confiante Simão de Jo
13:37; veja-se sobre essa passagem. O que João nos diz nos poucos
versículos seguintes tem paralelo nos Sinóticos (Mt. 26:51–54; Mc.
14:47; Lc. 22:50, 51). Então, Simão Pedro puxou da espada que trazia e
feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha direita; e o nome
do servo era Malco.
Embora este incidente se relata nos quatro Evangelhos, só João
menciona os nomes das duas pessoas que (além do próprio Jesus)
ocupam um lugar mais proeminente no mesmo. Quando João publicou o
seu Evangelho, já não era possível castigar o agressor. Em consequência,
pode-se mencionar seu nome bem como o da pessoa agredida.
O agressor foi Pedro, que aqui menciona-se (e frequentemente no
quarto Evangelho) com o nome completo: Simão Pedro. Veja-se sobre Jo
1:40–42. Encorajado talvez pelo maravilhoso triunfo de Jesus sobre os

387
Quando W. F. Howard, The Interpreter’s Bible p. 758, não faz mais que escrever que a afirmação
que se encontra em Jo 18:9 dificilmente dá todo o valor que corresponde ao pensamento de Jo 6:39 e
Jo 10:28, ele mesmo dificilmente dá todo seu valor à afirmação.
João (William Hendriksen) 801
homens que tinham vindo capturá-lo, e estimulado em grande parte pelo
espetáculo destes soldados e policiais que um momento antes jazeram no
solo e por sua própria jactância anterior que devia comprovar, Simão
tirou da bainha sua espada (μάχαιραν). 388 Era uma faca, com uma folha
de dez ou doze centímetros de longitude, para purificar peixe (como
alguns sugerem), ou talvez que se tinha usado para a comida pascal? É
mais provável que fosse de fato uma espécie de adaga, o tipo de arma
que os soldados também usavam. É difícil crer que em Mt. 26:47 o termo
tivesse um significado (espada), e em Jo 26:51 outro (faca).
O armamento dos discípulos, aqui no olival, consistia em duas
destas espadas (Lc. 22:38). Naturalmente, Pedro levava uma delas! Veja-
se sobre Jo 13:9 e em Jo 13:37, Como poderia ter sido de outra maneira?
Os discípulos tinham perguntado, “feriremos à espada?” (Lc. 22:49). O
impulsivo Simão não pôde esperar a resposta.
Então Pedro, tendo tirado essa espada (quanto ao verbo veja-se
sobre Jo 6:44), caiu sobre o servo (com missão especial) do sumo
sacerdote, e — provavelmente devido ao fato de que o servo saltou
rapidamente para um lado — cortou-lhe a orelha. 389 Tanto João como
Lucas nos informam que foi a orelha direita.
O nome do servo era Malco. Aqui temos o toque da testemunha
ocular. O quarto Evangelho está cheio de tais detalhes. Veja-se I da
Introdução. Com relação a isso também deve ter-se em mente que o
escritor conhecia o sumo sacerdote (Jo 18:15). Portanto, não surpreende
que também conheça o nome de seu servo.
11. Mas Jesus disse a Pedro: Mete a espada na bainha; não beberei,
porventura, o cálice que o Pai me deu?

388
A explicação deste termo e seu sinônimo (ρομφαία) pode-se ver em W. Hendriksen, Más que
Vencedores, Grand Rapids, Mich., reimpressão T.E.L.L., 1977, pp. 117, 121.
389
O diminutivo utilizado no original perdeu algo de sua força diminutiva original. O significado
resultante, pelo menos, não é o lóbulo na parte inferior da orelha, mas a própria orelha. Quanto ao
mesmo diminutivo veja-se Mc. 14:47; outra forma encontra-se em Mt. 26:51; Lc. 22:51.
João (William Hendriksen) 802
Lucas (lembre-se, o doutor Lucas) menciona o fato de que Jesus
tocou a orelha do servo e a curou (Lc. 22:51). Jesus repreende
fortemente o seu voluntarioso discípulo, e lhe diz que embainhe a espada
(cf. Jr. 47:6). As razões desta ordem podem-se sintetizar assim:
(1) A que se dá aqui, “não beberei, porventura, o cálice que o Pai
me deu?” terminou a luta no Getsêmani. Jesus já não pede que o cálice
do sofrimento mais amargo e a morte eterna na cruz passem dEle (cf.
Mt. 26:39). Está totalmente decidido a bebê-lo (naturalmente seu
conteúdo). É o cálice que o Pai (veja-se sobre Jo 1:14) deu-lhe. Em
consequência não deve afugentar-se ao inimigo por meio da espada. O
bom pastor deve oferecer-se voluntariamente. A ação de Simão contradiz
esta determinação. Cf. também Mt. 26:54.
(2) Jesus deve poder dizer a Pilatos: “O meu reino não é deste
mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se
empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas
agora o meu reino não é daqui” (Jo 18:36).
(3) Se tivesse sido o desejo de Jesus defender-se, tinha outros meios
ao Seu dispor, por exemplo, mais de doze legiões de anjos (Mt. 26:53).
A ação precipitada e violenta de Pedro era totalmente desnecessária.
(4) “Todos os que lançarem mão da espada à espada morrerão” (Mt.
26:52).
Antes de entregar-se a este grupo, Jesus aproveita a oportunidade
para pôr de relevo o caráter covarde deste vil assalto, longe do público, e
no meio da noite. Também põe de relevo que Sua entrega é «segundo o
plano». Foi para que se cumprissem as Escrituras (Mt. 26:55, 56). Em
consequência, Sua entrega não foi, na realidade, rendição. Foi vitória!
Assim que maniatam e levam a Jesus, os discípulos se dispersam.
Foi apanhado um dos seguidores do Mestre — não um dos doze—
alguém que rapidamente se havia coberto com um lençol. No entanto,
deixou o lençol nas mãos de seu perseguidor, e fugiu despido. Os
detalhes podem ser vistos em Mt. 26:56; Mc. 14:51, 52.
João (William Hendriksen) 803
Síntese de Jo 18:1–11
O Filho de Deus morre como substituto por Seu povo. A detenção.
Tendo saído da casa, Jesus, na companhia de onze discípulos, cruza
o Cedrom. Isto lembra uma das fugas de Davi diante de Absalão, mas há
esta grande diferença: Jesus controlava completamente a situação. Não
fugia. Toda a Sua atitude era voluntária. Sabia que Judas sairia a seu
encontro aí. Por isso dirigiu-se parã lá!
O grupo dos apreensores consistia nos seguintes:
a. Judas, o guia.
b. O tribuno militar (quiliarca)
c. Os soldados da Torre de Antônia (provavelmente à frente)
d. A polícia do templo (talvez atrás dos soldados)
e. Sumo sacerdotes e anciãos (membros do Sinédrio, talvez muitos).
Veja-se Lc. 22:52. Provavelmente estes se mantiveram a certa distância.
Os soldados levavam espadas, a polícia porretes. Havia tochas e
lanternas.
Como Profeta, Jesus saiu a seu encontro, e Se identificou a Si
mesmo; como Rei, deu ordens, fazendo com que o grupo caísse ao solo;
como Sacerdote, protegeu os Seus. Quando Pedro mostrou, com um ato
de precipitação (cortando a orelha do servo do sumo sacerdote), que não
entendia a natureza do reino de Cristo, Jesus de palavra e obra revelou o
caráter espiritual do mesmo.
Então Jesus permitiu que o capturassem e o maniatassem (veja-se a
seguinte seção).
João (William Hendriksen) 804
JO 18:12–40

18:12. Assim, a escolta, o comandante 390 e os guardas dos judeus


prenderam Jesus, manietaram-no.
Finalmente, o grupo de soldados e guardas do templo (gentios e
judeus; cf. At. 4:27) entram em ação. Menciona-se agora pela primeira
vez o homem que provavelmente mandava todo o grupo (não só os
soldados). Era um quiliarca, literalmente: “comandante de um milhar”;
mas o termo utiliza-se aqui num sentido secundário, para indicar ao
tribuno militar romano que era líder da coorte ou companhia (cf. At.
21:31, 33, 37; 22:24–29; 23:10, 15, 17–19, 22; 24:7, 22; 25:23; veja-se,
no entanto, também Mc. 6:21; Ap. 6:15; 9:18).
Diante de sua ordem alguns dos soldados agora prenderam a Jesus.
O verbo que se utiliza é o termo técnico para fazer uma detenção oficial
(cf. Mt. 26:55; Mc. 14:48). Ao fazê-lo assim, de fato o agarraram e logo
o maniataram. Ficou preso Aquele que tinha vindo ao mundo para trazer
liberdade, e além do qual é absolutamente impossível tê-la (veja-se sobre
8:31–36). Foi preso, porém, a fim de que pudéssemos ser libertados de
nossos pecados.
O fato de que a companhia e seu comandante sejam mencionados
primeiro provavelmente indica que desempenharam o papel principal
nesta ação de prender e amarrar a Jesus. Também é isto o que se teria
esperado.
13. E o conduziram primeiramente a Anás; pois era sogro de Caifás,
sumo sacerdote naquele ano.
Os soldados e a polícia do templo conduziram Jesus, preso, até
Anás. A opinião mais comum (também entre os comentaristas) é que
Jesus foi levado a Anás para um exame preliminar. No entanto, alguém
com a autoridade do Dr. F. W. Grosheide, autor de uma das melhores
obras a respeito do quarto Evangelho, está entre os que disputam esta

390
Literalmente: “e o quiliarca”.
João (William Hendriksen) 805
conclusão. Apresenta seus argumentos em Kommentaar op het Nieuwe
Testament, Vol. II, p. 449 (também p. 454, nota 1). Segundo ele, não
houve algo assim como uma audiência preliminar diante de Anás. O
juízo relatado em Jo 18:19–23 teve lugar diante de Caifás; diante de
Anás não houve exame preliminar. Também esta é a posição de A.
Edersheim, The Life and Times of Jesus, the Messiah, Vol. II, p. 548.
O argumento mais formidável em favor desta posição é aquele que
se deriva da comparação entre os versículos 13, 14 (juntos), e logo 19:
“E o conduziram primeiramente a Anás; pois era sogro de Caifás,
sumo sacerdote naquele ano. Ora, Caifás era quem havia declarado aos
judeus ser conveniente morrer um homem pelo povo” (versículos 13,
14). O que segue refere-se a Simão Pedro, a sua primeira negação
(versículos 15–18). O versículo 19 afirma: “Então, o sumo sacerdote
interrogou a Jesus acerca dos seus discípulos e da sua doutrina”. Cf.
também os versículos 15 e 16: “o sumo sacerdote”.
Quem, pois, foi este sumo sacerdote que interrogou a Jesus? A
resposta certamente pareceria ser «naturalmente Caifás, porque é o
único a quem se chama claramente sumo sacerdote nos versículos
anteriores».
Por conseguinte, não nos surpreende que por esta razão (e por
outras razões, que não são tão fortes, segundo nós), certos comentaristas
estejam a favor da teoria de que não houve uma audiência preliminar
diante de Anás.
Se estamos, porém, em respeitoso desacordo, é porque
consideramos que Jo 18:24 é um obstáculo insuperável para aceitá-lo.
(De passagem, deveria notar-se que não existe nenhuma prova em favor
da ideia, que alguns têm, de que houve um deslocamento do texto, quer
seja aqui no versículo 24 — que alguns colocam imediatamente depois
do versículo 14 — ou em algum outro lugar deste capítulo.)
Supondo, só por argumentar, que o sumo sacerdote (diante de quem
acontecu o juízo relatado nos versículos 19–23) fosse Caifás, que
João (William Hendriksen) 806
significado compreensível pode atribuir-se ao versículo 24, que relata o
que sucedeu no final deste juízo? Lemos:
“Então, Anás o enviou, manietado, à presença de Caifás, o sumo
sacerdote”. Sem dúvida que alguém que esteve diante de Caifás ao longo
dos versículos 19–23, não pode ser agora enviado a Caifás! O versículo
24, segundo o claro significado das palavras, dá por sentado que o juízo
dos versículos 19–23 ocorreu diante de Anás, e que este Anás agora
envia o prisioneiro a Caifás.
Não vemos como seja possível evitar esta conclusão. No entanto,
fizeram-se tentativas disso. Por exemplo, encontra-se, a tradução:
“Agora Anás o tinha enviado preso a Caifás, o sumo sacerdote”. É certo,
naturalmente, que no original às vezes utiliza-se o tempo aoristo
(enviado) onde empregaríamos o mais-que-perfeito (tinha enviado), mas
nesta situação isto é improvável, como se explicará na nota. 391
No entanto, isso ainda nos deixa com o quebra-cabeças de explicar,
como (diante dos versículos 13, 14) pode ser Anás o sumo sacerdote ao
qual se refere o versículo 19? A solução provavelmente não é muito

391
O original tem _πέστειλεν ο_ν α_τόν. A prova textual favorece fortemente ο_ν. Isto pareceria lhe
tirar algo de força à argumentação do Edersheim. Qual é o significado de ο_ν aquí? O Dr. J. R.
Mantey escreveu sua tese doutoral a respeito de esta conjunção: “O significado de ο_ν nos escritos de
João”. O distingue quatro significados: a. inferencial (por conseguinte, portanto) b. continuativo
(agora, então); c. enfático (certamente, na verdade, sobretudo); e d. adversativo (no entanto). Pelo
contexto fica claro que neste caso só são possíveis aqui a. e b., e que das duas b. é a mais natural.
Mas inclusive assim, não se pode tomar a conjunção no sentido de agora (que é uma das
possibilidades continuativas) seguida de tempo perfeito, como se fosse introduzida uma espécie de
ideia em parêntese, uma observação atrasada? Em consequência, não poderia ser adequada, afinal de
contas, a tradução “Agora Anás o tinha enviado …”? Acaso não pôde João ter querido dizer isto: “Há
algo que não esclareci ainda. Em consequência, devo dizê-lo agora” (cf. Grosheide, op. cit., p. 457).
Mas estas observações demoradas no quarto Evangelho, ou vão sem partícula, ou levam δε, como
nos casos seguintes: Jo 1:38; 6:71; 11:2; 11:51; 18:2b; 18:10b; 18:14; 18:18 (no capítulo 18 e
quatro casos); cf. também Jo 4:54.
Em consequência, parecer-nos-ia que a única tradução razoável é a que apoia o autor da tese
doutoral a que nos referimos faz um momento. O Dr. Mantey ofrece la traducción: “Então, Anás o
enviou preso a Caifás, o sumo sacerdote”. Veja-se também H. E. Dana e J. R. Mantey, A Manual
Grammar of the Greek New Testament, Nova York, 1950, p. 254. Existem outras traduções muito
parecidas, como a Almeida Atualizada.
João (William Hendriksen) 807
difícil. Nas quatro referências do Novo Testamento a Anás ele é
chamado duas vezes sumo sacerdote, e este nome se aplica a ele embora
o escritor inspirado tenha sabido muito bem que já não era de fato o
sumo sacerdote. Note-se:
Lc. 3:2: “Sendo sumos sacerdotes Anás e Caifás, veio a palavra de
Deus a João.
At. 4:6: “Como com o sumo sacerdote Anás, Caifás …”
As outras referências do Novo Testamento a Anás são as deste
capítulo: Jo. 18:13, 24. João, quem provavelmente supõe que os leitores
tinham lido os Evangelhos anteriores (veja-se II da Introdução), dá por
sentado que a Anás ainda era chamado sumo sacerdote. Seu principal
pensamento, aqui no versículo 13, é que o grupo conduziu Jesus a Anás.
O resto (no versículo 13 e em todo o versículo 14) é secundário. É
importante, por certo, mas não primordial. Simplesmente dá a razão de
por que Jesus foi conduzido diante de Anás, ou seja, porque era sogro (e
estava em íntima relação) do sumo sacerdote titular desse ano. A isto lhe
segue uma observação à maneira de parêntese a respeito do genro de
Anás. A ideia principal é ainda que Jesus foi conduzido primeiro a Anás.
Que não comece o leitor a pensar que o juízo a respeito do que tem
lido nos outros Evangelhos, ou seja, o juízo diante de Caifás, fosse o
único. Não, primeiro, diz João, Jesus foi conduzido diante de Anás. Em
consequência, espera-se que João diga algo a respeito deste juízo. E
assim o faz nos versículos 19–23.
Quem era este Anás? As fontes principais que se devem ler para
formar-se uma opinião do homem são as seguintes: Lc. 3:2; At. 4:6; Jo.
2:14–16 (cf. Mt. 21:12, 13); 18:13, 24; Josefo, Antiguidades dos judeus,
XVIII, ii, 2; XX, ix, 1, 2; Talmude, Pes. 57a.
Combinando toda esta informação, chega-se ao seguinte quadro:
Anás (ou Ananus, como o chama Josefo; o nome procede do
hebraico Ananias, que significa Jeová é gracioso) tinha sido nomeado
sumo sacerdote por Cirino no ano 15 d.C. Embora deposto, seguiu sendo
por muito tempo a mente governante do Sinédrio. Era o membro
João (William Hendriksen) 808
principal da maquinaria hierárquica judaica. Desde esse tempo houve
“maquinarias” similares. Geralmente para ser o cabeça virtual de uma
delas faz falta ser um hábil manipulador. Assim era Anás. Seguiram-no
no sumo sacerdócio cinco filhos (Eleazar, Jônatas, Teófilo, Matias, e
Ananus), um genro (Caifás), e um neto. Ao ser deposto Anás, foi
sucedido por alguém que não era de sua família, mas quase
imediatamente depois foi nomeado um filho de Anás. Depois de outro
intervalo, tinha sido outorgado o título ao genro (Caifás) de Anás. Ele
era neste momento o sumo sacerdote. Logo o sumo sacerdócio recairia
no segundo filho de Anás; logo no terceiro; depois de outro breve
intervalo, no quarto; e logo, depois de vários anos, no quinto. De modo
que, durante todo o período do ministério de Cristo e por muito tempo
depois, Anás foi o responsável, em grande parte, pelas ações do Sinédrio
judaico. Talvez outra pessoa era o oficial que presidia o Sinédrio, mas
Anás era o homem a ser consultado. Pode-se imaginar como com
frequência um sacerdote iria com um plano ou ideia, ou a mencionaria
pela primeira vez, outro lhe responderia imediatamente, “falaste isso
com Anás?”
Anás era muito orgulhoso, extremamente ambicioso e
fabulosamente rico. Sua família era conhecida por sua avareza. A fonte
principal de sua riqueza parece ter sido uma porção considerável dos
benefícios do preço dos sacrifícios cruentos que se vendiam no Pátio dos
Gentios. Veja-se sobre Jo 2:14. Ele havia convertido a casa de oração em
guarida de ladrões. Inclusive o Talmude afirma: “Ai da família de Anás!
Ai dos assobios de serpente!” (provavelmente os sussurros de Anás e
dos membros de sua família, que procuravam subornar e influir os
juízes).
João acrescenta que Anás era sogro de Caifás! E pelo modo de ser,
os dois eram iguais. Veja-se sobre Jo 11:49, 50 a descrição da natureza
de Caifás. Em consequência, de Anás Jesus podia esperar o mesmo
tratamento que de seu genro. Que Anás consiga algumas prova
preliminares com relação ao caso de Jesus. Provavelmente poderá dar
João (William Hendriksen) 809
alguns bons conselhos ao seu genro. Enquanto isso haverá oportunidade
para reunir os membros do Sinédrio, os mais possíveis nesta hora da
noite.
14. Ora, Caifás era quem havia declarado aos judeus ser conveniente
morrer um homem pelo povo.
A intenção desta observação à maneira de parêntese é esta: Caifás
tinha estado tramando por muito tempo a morte de Cristo. Seu sogro, o
verdadeiro poder atrás do trono, operaria incondicionalmente. De fato,
ele pôde inclusive ter sido o instigador. Com relação a Caifás veja-se
também sobre Jo 11:49, 50.
Aqui o relato deixa por um momento de lado a Jesus conduzido
diante de Anás, e se centraliza em Pedro (veja-se sobre Jo 13:36–38).
15. Simão Pedro e outro discípulo seguiam a Jesus. Sendo este
discípulo conhecido do sumo sacerdote, entrou para o pátio deste com
Jesus.
O relato da negação de Pedro encontra-se nos quatro Evangelhos. É
importante ver como estes diferentes relatos, que têm tantos detalhes
distintos, nunca estão em desacordo, mas sim harmonizam. Deve-se
entender bem um fato. Não só Mt. (26:34), e Mc. (14:30), e Lc. (22:34),
mas também Jo. (13:38) espera concretamente três negações. Em
consequência, quando parece que João não tem nada que corresponda a
essa negação que os outros consideram como a segunda, tende-se a
concluir, ou:
1. Que relata só o que também considera as negações primeira e
terceira, e simplesmente supõe que os leitores (já familiarizados com o
relato das negações nos Sinóticos) não necessitam mais informação a
respeito da segunda negação; ou,
2. Que também refere as três negações, mas as conta de forma
diferente, dividindo em duas negações o que os outros consideram a
terceira negação. Neste caso, o que os outros consideram como a terceira
negação João o conta como a segunda e a terceira.
João (William Hendriksen) 810
Pode-se dizer algo em favor de qualquer destas teorias. A primeira
tem o apoio de Lenski. 392 Talvez seja a correta. Simplesmente não o
sabemos. No entanto, de ter que escolher, inclinar-nos-íamos em favor
da segunda das alternativas, pelas seguintes razões:
a. João referiu o fato de que Jesus predisse três negações (Jo 13:38).
Em consequência, fez com que o leitor espere a descrição destas três
negações, em cumprimento da predição.
b. Nesta expectativa o leitor não se vê defraudado. Note-se como o
quarto Evangelho refere as negações:
“Disse ele: “Não sou” (Jo 18:17).
“Ele negou e disse: Não sou” (Jo 18:25).
“De novo, Pedro o negou” (Jo 18:27). Isto significa, naturalmente,
que Pedro disse de novo, “Não sou”, ou algo parecido.
Não será natural, então, que o leitor veja nestas três — não duas
nem quatro — “Não sou” o cumprimento da predição com relação às
três negações?
Embora se admita que a primeira teoria pode ser a correta, pelas
razões dadas procederemos sob o suposto de que a segunda é a correta.
Quanto ao conteúdo não há contradição de nenhuma classe. Todos os
relatos (quer em João, quer nos Sinóticos) estão totalmente inspirados e
isentos de erro.
Sugerimos a seguinte concordância:
Primeira negação: Mt. 26:58, 69, 70; Mc. 14:54, 66–68; Lc. 22:54–
57; e Jo. 18:15–18.
Segunda negação (segundo Mateus, Marcos, Lucas): Mt. 26:71, 72;
Mc. 14:69, 70a; Lc. 22:58; não em João.
Terceira negação (segundo Mateus, Marcos, e Lucas): Mt. 26:73–
75; Mc. 14:70b–72; Lc. 22:59–62; Jo 18:25 (a segunda negação segundo
o relato de João); Jo 18:26, 27 (a terceira negação, segundo o relato de
João).

392
Veja-se o seu Comentário, p. 1184.
João (William Hendriksen) 811
Quando Jesus predisse que Pedro ia negá-Lo três vezes, sem dúvida
que não quis dizer que Simão diria exatamente três vezes (e não mais),
“não conheço homem”, ou algo parecido. Houve, de fato, três situações
distintas com relação às quais Pedro ia negar o Mestre, três e não mais.
Mas na última vez, enquanto vários falam, um acusador, ou seja, um
parente de Malco, atrai a atenção especial. Em consequência, o escritor
do quarto Evangelho escolhe-o para mencioná-lo de forma separada,
com o que divide a terceira negação (dos outros Evangelhos) em duas
negações.
Poderia perguntar-se «Por que João dá um relato tão detalhado das
negações, quando os anteriores escritores de Evangelhos já as tinham
referido?» A resposta é provavelmente:
(1) Seu Evangelho vai conter um relato da restauração de Pedro.
Por isso, deve relatar-se totalmente a razão da necessidade desta
restauração. Além disso, ninguém deve poder dizer: “Este Evangelho
encobre o pecado de Pedro”.
(2) O discípulo amado provavelmente sentiu que em parte ele era
responsável pela queda de Pedro. Ele foi quem conduziu Pedro ao pátio!
Sendo muito humilde, João deseja que seus leitores saibam, de forma
que não se lance toda a culpa em Pedro.
(3) De todos os apóstolos só João tinha voltado com Pedro ao
palácio do sumo sacerdote. Em consequência, podia subministrar certos
detalhes que os outros não tinham incluído.
Embora todos os apóstolos tenham fugido, dois deles voltaram a
juntar-se para seguir o grupo que conduzia Jesus ao palácio do sumo
sacerdote. Cheio de temor, Pedro seguia (tempo imperfeito) a
considerável distância (Mateus, Marcos, Lucas). Com ele ia alguém ao
que se chama simplesmente outro discípulo. Tratamos de demonstrar
que esta pessoa anônima não era outra que o escritor do quarto
Evangelho (veja-se I da Introdução).
O “outro discípulo” (João) era conhecido — embora não
necessariamente de forma íntima — do sumo sacerdote. Continua sendo
João (William Hendriksen) 812
um mistério como Anás (veja-se sobre v. 13) — e em consequência,
provavelmente também seu genro — conhecesse João. As teorias que se
têm proposto — tais como que João era parente longínquo, ou que no
negócio de seu pai levava-se peixe ao palácio do sumo sacerdote (ideia
de Nono, erudito egípcio, ao redor do ano 400 d.C.) — não são senão
conjeturas. É importante, no entanto, ter em mente o fato como tal (que
João era conhecido do sumo sacerdote). Veja-se também sobre Jo 18:10.
Isto explica, por que, sem dificuldade, João — quem, tendo já a estas
alturas recuperado coragem, tinha reduzido a distância entre si mesmo e
o grupo — entrasse com Jesus no pátio do sumo sacerdote.
Não é seguro se o termo α_λή, tal como se usa aqui (veja-se
também sobre Jo 10:1, 16) indica todo o palácio (significado que,
segundo J. H. Moulton e G. Milligan, op cit., p. 92, carece de apoio nos
papiros) ou refere-se ao pátio aberto ao redor do qual se levantava a casa
ou palácio oriental. Fica claro, no entanto, que pelo menos em Mt. 26:69;
Mc. 14:66; e Lc. 22:55 deve-se referir ao pátio aberto.
Mas onde estava este pátio? Em Mt. 26:57, 59 dá-se claramente a
entender que estava na casa ou palácio de Caifás. Que também estivesse,
no entanto, no palácio ocupado por Anás parece claro se comparar-se
com esta passagem de Mateus, Jo. 18:13, 15, 24. O leitor deveria
comprovar isto por si mesmo a fim de avaliar o problema. Por esta razão,
reproduzimos as duas referências em colunas paralelas:

Mt. 26:57, 58: Jo 18:13, 15, 24:

E os que prenderam Jesus o levaram à E o conduziram primeiramente a Anás;


casa de Caifás, o sumo sacerdote, pois era sogro de Caifás, sumo sacerdote
onde se haviam reunido os escribas e daquele ano. … Simão Pedro e outro
os anciãos. Mas Pedro o seguia de discípulo seguiam a Jesus. Sendo este
longe até ao pátio do sumo sacerdote discípulo conhecido do sumo sacerdote,
e, tendo entrando, assentou-se com os entrou para o pátio deste com Jesus. ...
serventuários, para ver o fim. Então, Anás o enviou, manietado, à
presença de Caifás, o sumo sacerdote.
João (William Hendriksen) 813
Não é muito natural (cf. M. Dods, op cit., p. 848) supor que estes
dois parentes muito próximos (Anás e seu genro), aqueles que, além
disso, eram almas afins — eram da mesma espécie! — vivessem no
mesmo palácio? Apesar de todas as objeções que se levantaram contra
este ponto de vista, ainda cremos que é a solução mais natural.
Provavelmente uma ala do palácio era ocupada por Anás, e a outra por
Caifás. Esta é também a conclusão a que chega A. Sizoo, Uit De Wereld
van het Nieuwe Testament, pp. 81, 82. Deve dar-se por sentado que num
palácio assim, ocupado pelas pessoas mais importantes de toda Judeia,
houvesse, de fato, uma sala suficientemente grande para acolher a um
grande grupo. Podia enviar-se facilmente um prisioneiro de uma ala à
outra através do pátio.
16. Pedro, porém, ficou de fora, junto à porta. Saindo, pois, o outro
discípulo, que era conhecido do sumo sacerdote, falou com a encarregada
da porta e levou a Pedro para dentro.
Parece que Pedro não era conhecido nem do sumo sacerdote nem de
seus servos. Por esta razão, espera fora, embora João já fosse admitido.
O que segue não se pode entender se não se conhece a construção de um
palácio oriental ou de uma casa de pessoas ricas. Este tipo de casa olha
para seu próprio interior; a saber, as habitações estão construídas ao
redor de um pátio aberto. Um passadiço em forma de arco conduz da
pesada porta ou (melhor) portão exterior para o pátio interior. Neste
passadiço há um lugar (em algumas casas uma pequena habitação) para o
porteiro. Às vezes, como no caso presente, o pátio era mais baixo que as
habitações distribuídas ao redor do mesmo (veja-se Mc. 14:66: “Estando
Pedro embaixo no pátio”). Não é completamente impossível que a
habitação a que Jesus tinha sido conduzido fosse uma espécie de galeria,
da qual se podia ver e ouvir o que sucedia no pátio.393 Esta teoria, porém,

393
Assim o sugere A. Sizoo, Uit De Wereld van het Nieuwe Testament, Kampen (segunda edição),
1948, p. 82. Refere-se a Lc. 22:61, que indica que Jesus, tendo ouvido as palavras da terceira negação
de Pedro voltou-se para olhá-lo. (poderia acrescentar-se Mt. 26:58.) — Mas é possível que
João (William Hendriksen) 814
tem seus problemas. Poderia perguntar-se «Acaso as conversações em
alta voz dos homens que estavam no pátio aberto não produziam
moléstias aos sacerdotes que decidiam o juízo?» Uma vez que João foi
admitido pela porteira, procurou que admitissem também a Pedro. João
“falou com a porteira”. Ao que parece, não só o sumo sacerdote mas
também seus servos (esta moça e Malco) conheciam João e João os
conhecia. Por isso, devem ter sabido que era seguidor de Jesus (veja-se
versículo 17). Mas parece que no caso de João não tinha havido um
cumprimento estrito da norma mencionada em Jo 9:22. Provavelmente o
Sinédrio relaxou um pouco, pensando «uma vez que Jesus tenha sido
eliminado, seus discípulos já não se aderirão aos seus ensinos». Sabemos
pelo livro de Atos que quando se demonstrou que isso era uma hipótese
errônea, reatou-se a perseguição com a mesma força.
João, ao procurar o ingresso de Pedro, cometeu um erro trágico,
como o mostram os versículos que seguem:
17. Então, a criada, encarregada da porta, perguntou a Pedro: Não
és tu também um dos discípulos deste homem? Não sou, respondeu ele.
Não se menciona o que sucedeu a João. Provavelmente cruzou o
pátio para entrar na habitação (ou sala de “audiências”) a que tinha sido
conduzido Jesus. Para este então os homens que tinham levado a Jesus
ao palácio do sumo sacerdote e ao salão de “audiências” tinham
concluído sua tarefa. Para eles (provavelmente com poucas exceções, cf.
Jo 18:22) já não era necessário permanecer na presença imediata do
prisioneiro para impedir que escapasse (como se isso tivesse sido alguma
vez necessário!). A maior parte dos soldados provavelmente tinham
retornado à fortaleza Antônia. Os servos do palácio e os guardas do
templo (policiais), tinham entrado (ou voltado a entrar) no grande pátio
onde, devido ao frio, tinham aceso o fogo (Jo 18:18; cf. Mc. 14:54; Lc.
22:55).

precisamente neste momento Jesus fosse conduzido através do pátio, e que por esta razão pudesse
ouvir (e olhar) a Pedro.
João (William Hendriksen) 815
Pedro, uma vez atravessado o passadiço que conduzia do portão até
o pátio, sentiu-se incômodo. Deve ter tido em mente que havia sido ele
quem tinha ferido o servo do sumo sacerdote, arrancando-lhe a orelha.
Veja-se Jo 18:10. Talvez por esta razão não se atreveu a chegar tão longe
como João. Ou pode ter sido por outras razões. De modo que, entrou no
pátio, e se sentou no meio dos servos e guardas (Lc. 22:55).
Pareceria que no mesmo momento que Pedro entrou, a porteira
começou a suspeitar. O próprio fato de que o tivessem admitido a pedido
de João pareceria indicar que Pedro devia ser também discípulo de
Jesus. O não entrar na sala “de audiências” com João, e o nervosismo
geral que caracterizavam todos os seus movimentos e que se podia ler
em seu semblante, confirmaram suas suspeitas. De modo que, prestes a
ser substituída por outra porteira, aproximou-se um pouco mais de
Pedro, e fixou seus olhos nele estudando-o atentamente (Lc. 22:56).
Logo, aproximou-se mais dele e olhando-o de forma penetrante disse-
lhe: “Não és tu também um dos discípulos deste homem?” Deve ter
havido algo de malícia em sua voz, como o parece indicar a própria
forma da pergunta. Formulou-se a pergunta de tal maneira que se
esperava uma resposta negativa. 394 Mas isto é irônico: sabia mais que
isso. Em seu coração estava totalmente convencida de que Pedro era,
realmente, discípulo de Jesus.
Pedro, surpreso pelo inesperado e pela pergunta direta que deve
responder imediatamente, é tomado desprevenido. Apesar de todos os
seus alardes de umas poucas horas antes (veja-se Jo 13:37), agora está
completamente espantado. “Não sou”, responde abruptamente. Não tinha
levado a sério a admoestação relatada em Mt. 26:41 (cf. Mc. 14:38)?

394
Lenski afirma que a pergunta espera uma resposta positiva, op. cit., p. 1173. Mas isto contraria a
norma que ele mesmo aplica aos casos em que se utiliza a partícula μή. C. B. Williams, The New
Testament, A Translation in the Language of the People, Chicago, 1949, traduz corretamente. Isto
harmoniza com A. T. Robertson, Word Pictures, Vol. V, p. 287; F. W. Grosheide, op. cit., p. 453.
João (William Hendriksen) 816
18. Ora, os servos e os guardas estavam ali, tendo acendido um
braseiro, por causa do frio, e aquentavam-se. Pedro estava no meio deles,
aquentando-se também.
A maior parte disso já se explicou com relação ao versículo 17;
veja-se sobre essa passagem. Veja-se também Jo 18:13, nota 398. É
verdade que Mt. 26:69 (Mc. 14:54; Lc. 22:55) descreve a Pedro como
sentado com os policiais, enquanto João diz que estava de pé [NTLH]
com eles. Isto não deve tomar-se como contraditório. Não é razoável
supor que depois de estar sentado por um tempo, levantou-se? Talvez no
momento em que a porteira o estava olhando desde seu lugar no pórtico,
estava sentado; mas quando começou a dirigir-se a ele, levantou-se,
como homem de ação que era. Também devemos supor sem risco algum
que depois da primeira negação permanecesse em pé um pouco,
buscando forma de escapar. Logo se dirigiu para o passadiço. O que
sucedeu aí, (segundo o relato dos Sinóticos, a segunda negação) é
referido em Mt. 26:71, 72 e paralelos. Quando João reinicia o relato da
negação de Pedro encontra-se de novo no pátio, de pé e esquentando-se,
assim como antes (veja-se sobre Jo 18:25).
19. Então, o sumo sacerdote interrogou a Jesus acerca dos seus
discípulos e da sua doutrina.
O sumo sacerdote neste caso é provavelmente Anás (veja-se sobre
versículo 13). Se combinar-se os relatos dos Evangelhos fica claro que
Jesus teve que passar por dois juízos. O primeiro se chamou eclesiástico;
o segundo civil. 395 O primeiro teve três etapas, bem como o segundo.
Podemos distingui-los da seguinte maneira:

395
Esta é a terminologia que empregam vários autores, entre aqueles que estão J. Stalker, The Trial
and Death of Jesus Christ, Nova York, 1894, p. 16. Outros: “Julgado pelos judeus, julgado pelos
gentios”; ou “Diante de Caifás, diante de Pilatos”. Podem-se expor objeções contra cada um destes
titulares.
João (William Hendriksen) 817
1. Juízo “Eclesiástico”
a. Audiência preliminar diante de Anás, enquanto que Pedro, “no
pátio do sumo sacerdote” negava ao Mestre. Quanto à audiência veja-se
Jo. 18:19–24 (parágrafo atual); quanto a esta negação veja-se Jo 18:15–
18. A segunda negação — segunda, segundo a recontagem dos Sinóticos
— não se relata no quarto Evangelho, mas (bem como a primeira) deve
ter ocorrido durante o juízo de Cristo diante de Anás. Transcorreu um
pouco de tempo entre a primeira e segunda negações (Lc. 22:58); entre a
segunda e a terceira (segundo o relato dos Sinóticos), passou perto de
uma hora (Lc. 22:59).
b. Juízo diante de Caifás e “todos os principais sacerdotes e os
anciãos e os escribas” (Mc. 14:53). Teve lugar “na casa do sumo
sacerdote” (Lc. 22:54). Este juízo o relatam Mt. 26:57–68; Mc. 14:53–65
(cf. Lc. 22:54, 63, 64). Durante este juízo ocorreu o que os Sinóticos
consideram como a terceira (segundo João a segunda e a terceira)
negação. O lugar foi, como na primeira negação, “o pátio do sumo
sacerdote” (como fica claro se comparar-se Jo 18:15, 18 com 18:25).
Quanto a esta negação veja-se Mt. 26:73–75; Mc. 14:70b–72; Lc. 22:59–
62; Jo. 18:25 (segundo o relato de João, a segunda negação); 18:26, 27
(segundo o relato de João, a terceira negação). Este juízo diante de
Caifás e os membros do Sinédrio sobre o qual presidia deve ter
concluído ao redor de (ou um pouco antes de) as 3 a.m. da sexta-feira.
c. Juízo diante de Caifás e o Sinédrio (em consequência, o mesmo
corpo que em b. antes) um pouco antes do amanhecer (Lc. 22:66).
Relatam-no Lc. 22:66; cf. Mt. 27:1; Mc. 15:1. 396

396
Há desacordo com relação ao lugar onde celebrou-se. Veja-se S. Greydanus, Het Heiling Evangelie
naar de Beschrijving van Lukas (em Kommentaar op het Nieuwe Testament), Amsterdam, 1941, Vol.
II, p. 1106.
João (William Hendriksen) 818
2. Juízo “Civil”
a. Juízo diante de Pilatos
b. Jesus diante de Herodes (Lc. 23:6–12)
c. Continuação do juízo diante de Pilatos
No quarto Evangelho o juízo diante de Pilatos encontra-se na seção
Jo 18:28–19:16.
Voltando agora para a primeira fase do juízo diante dos judeus, a
qual atribuímos o nome de Audiência preliminar diante de Anás, não
deve evitar nossa atenção o fato que João passa a propósito do relato da
negação ao do juízo, e logo depois de novo ao da negação. Ele o faz para
mostrar que Jesus sofreu intensamente em conexão com ambos. Sofreu
ao ser negado. Sofreu também ao ser julgado, como se fosse um
criminoso. Entre os dois (negação e juízo) havia este contraste: enquanto
que Pedro negou, Jesus confessou a verdade!
Para Ele que é absolutamente sem pecado, o ver-se submetido a um
juízo realizado por homens pecadores foi em si mesmo uma profunda
humilhação. Ser julgado por tais homens, sob tais circunstâncias fez com
que a humilhação fosse imensamente pior. O avaro, luxurioso, vingativo
Anás (veja-se sobre Jo 18:13), o brusco, ardiloso, hipócrita Caifás (ver
em Jo 11:49, 50), o hábil, supersticioso, egoísta Pilatos (veja-se sobre Jo
18:29); e o imoral, ambicioso, superficial Herodes Antipas; estes foram
os seus juízes!
Na realidade, todo o juízo foi uma farsa. Foi um falso juízo. Não
houve intenção alguma de dar a Jesus uma audiência adequada, para que
se pudesse descobrir, em estreita conformidade com as leis da evidência,
se as acusações contra Ele eram ou não justas. Nos anais da
jurisprudência não houve nunca uma paródia de justiça mais escandalosa
que esta. Além disso, a fim de chegar a esta conclusão não é
absolutamente necessário fazer um estudo minucioso de todos os pontos
técnicos com relação à lei judaica desse tempo. Vários autores puseram
de relevo que o juízo de Jesus foi ilegal por várias razões técnicas, tais
João (William Hendriksen) 819
como as seguintes: a. Não se permitia julgar a ninguém com risco da
vida durante a noite. No entanto, Jesus foi julgado e condenado entre as
1–3 horas da madrugada da sexta-feira, b. A detenção de Jesus se
realizou como resultado de um suborno, ou seja, o dinheiro recebido por
Judas, c. Pediu-se a Jesus que Se acusasse a Si mesmo, d. Em casos de
castigo capital, a lei judaica não permitia que a sentença se pronunciasse
senão até o dia seguinte de ter sido culpado o acusado.
Vez após vez se mencionaram estes e outros pontos similares da lei
e se utilizaram como argumentos para demonstrar a ilegalidade de todo o
processo contra Jesus de Nazaré. Também se tentou-se refutá-los, um
por um. 397
Mas para qualquer pessoa imparcial fica evidente imediatamente
que todos estes pontos técnicos não são senão outros tantos detalhes.
Não chegam à essência da questão. O ponto principal não é mais que
este: decidiu-se muito antes que Jesus deveria morrer (veja-se sobre Jo
11:49, 50). E o motivo atrás de esta decisão era a inveja. Os líderes
judeus simplesmente não podiam suportar que eles começavam a perder
sua influência sobre o povo e que Jesus de Nazaré os tivesse acusado e
desmascarado publicamente. Estavam cheios de fúria porque o novo
profeta tinha posto a descoberto seus motivos ocultos, e tinha chamado
antro de ladrões o pátio do templo no qual eles obtinham grande parte de
seus benefícios. Superficialmente, os dignos sumos sacerdotes, anciãos e
escribas poderiam fingir uma aparente indiferença em sua conduta; por
dentro estavam irritados até a vingança, agitados até a violência.
Estavam sedentos de sangue!
Por isso, isto não é um juízo e sim uma trama, e toda a trama é
deles. Eles a idearam, e eles procuram que seja levado a cabo. Os oficiais
deles tomam parte na detenção de Jesus. Eles mesmos estiveram

397
Veja-se com relação a isto J. J. Maclaren, “Jesus Christ, Arrest and Trial of” em I.S.B.E., Vol. III,
pp. 1168–1173; W. Evangs, From the Upper Room to the Empty Tomb, Grand Rapids, Mich., 1934
pp. 149–154; A. C. Bisek, The Trial of Jesus Christ, Chicago, 1925. Este último autor procura refutar
os argumentos que outros utilizaram para provar a ilegalidade do juízo.
João (William Hendriksen) 820
presentes! Eles buscam as testemunhas — claro que falsas testemunhas!
— contra Jesus, para eles poderem levá-Lo à morte (Mt. 26:59). Todos
eles O condenam como merecedor de morte (Mc. 14:67). “Eles (por
meio de seus sequazes) levaram a Jesus preso” (Mc. 15:1). Eles O
entregam a Pilatos (Jo. 18:28). Diante de Pilatos eles agitam o povo para
que liberte Barrabás a fim de que Jesus possa ser destruído (Mt. 27:20).
Eles intimidam a Pilatos, até que este entrega a Jesus para que O
crucifiquem (Jo 19:12, 16). Inclusive quando Jesus pendura na cruz, eles
riem dEle, dizendo: “A outros salvou, a si mesmo não se pode salvar”
(Mc. 15:31).
Em consequência, isto, na realidade, não é um juízo. É um
homicídio! A história da igreja oferece outros tristes exemplos de líderes
condenados por juízes cheios de inveja, que se encarregavam eles
mesmos de instigar as testemunhas (falsas testemunhas, naturalmente), a
fim de poder destruir alguns homens a quem eles (os líderes) odiavam. O
dia do juízo revelará alguns assuntos surpreendentes. Mas entre todas as
zombarias da justiça, nenhuma pode nem sequer comparar-se com essa
na qual o Sumo sacerdote Celestial, Jesus Cristo, apresentou-Se diante
dos sumos sacerdotes terrestres, Anás y Caifás. Para o Santo e sem
mancha, o ser julgado diante de tais ímpios canalhas, isso sim foi
sofrimento! E no pátio estava alguém por quem Ele sofria tudo isso. E
esse homem — Simão Pedro — repetia várias vezes que nunca tinha
ouvido falar de Jesus.
Não surpreende que Anás interrogasse a Jesus primeiro com relação
a seus discípulos, e logo com relação a Seus ensinos. Pelo menos, os
discípulos são mencionados antes do ensino. Isto é exatamente o que se
esperaria de Anás! Estava muito mais interessado no “êxito” de Jesus —
a magnitude de seu séquito? — que na veracidade ou falsidade do que
tinha estado ensinando. Assim é sempre a forma de agir do mundo.
20, 21. Jesus lhe respondeu: Eu falei abertamente ao mundo; eu
sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde todos os judeus se ajuntam,
e nada disse em oculto. Para que me perguntas a mim? Pergunta aos que
João (William Hendriksen) 821
398
ouviram o que é que lhes ensinei; eis que eles sabem o que eu lhes tenho
dito [RC].
Embora Anás tivesse enfatizado o que não devia, ou seja, o êxito
externo (“os discípulos”) do ministério de Cristo, Jesus não diz uma
palavra a respeito disso. Enfatiza o que se deve, ou seja, o ensino; porque
se o ensino é justo, o mestre tem direito a ter discípulos.
As palavras dos versículos 20 e 21 que se enfatizam no original
foram postas aqui em itálicos. Na sinagoga (sobretudo na Galileia) e no
templo (localizado em Jerusalém, na Judeia) Jesus ensinou sempre
abertamente. Embora o Seu ensino fosse apresentado com frequência em
forma de parábolas e alegorias (veja-se sobre Jo 16:25), no entanto,
manteve-se sempre em torno da verdade central. Sua forma de falar tinha
sido aberta, livre de segredos. Todo aquele que desejasse ouvir, quer
fosse na sinagoga ou no templo, era bem recebido. Que contraste entre o
ensino aberto de Jesus e as sessões estritamente executivas e as tramas
secretas do Sinédrio! Quanto ao significado do advérbio publicamente
veja-se também sobre Jo 7:26. Jesus tinha falado ao mundo (o público
em geral; cf. o uso da palavra em Jo 7:4 e em Jo 14:22; e veja-se nota 26,
provavelmente significado 3). Naturalmente, embora a assistência às
reuniões no pátio dos gentios do templo não tinha estado totalmente
restringida aos judeus, no entanto Jesus pensa sobretudo neles; note-se:
“onde se reúnem todos os judeus”. Jesus indica que a informação com
relação ao Seu ensino deveria obter-se dos que a ouviram. É como se
alguém hoje em dia, o ser interrogado, respondesse: «Declino dar
testemunho contra mim mesmo, e exijo que apresentem testemunhas
honestas tal como requer a lei».
22. E, tendo dito isso, um dos criados que ali estavam deu uma
bofetada 399 em Jesus, dizendo: Assim respondes ao sumo sacerdote?
Enquanto Jesus, como prisioneiro, estava de pé com as mãos atadas
diante de Anás, um miserável sequaz, parte da guarda do templo (veja-se
398
Literalmente: “olhai!”
399
Literalmente: “deu em Jesus um golpe”.
João (William Hendriksen) 822
sobre Jo 18:3), tratou de aproveitar a situação para seu próprio
mesquinho proveito. O homem talvez tinha estado pensando numa
promoção! De modo que, deu um golpe no rosto a Jesus (cf. Mq. 5:1).
Ao fazê-lo disse em tom de censura zombadora, “Assim respondes ao
sumo sacerdote?” Se Jesus tivesse sido um homem comum, e se tivesse
sido réu de um crime, não teria merecido tal tratamento. Afinal de
contas, inclusive a pessoa culpada tem seus direitos. Segundo a lei
judaica não tinha obrigação de dar testemunho contra Si mesmo. No
entanto, aqui não se trata de um homem comum, mas do Filho de Deus,
do verdadeiro Sumo Sacerdote. E não era culpado, mas completamente
inocente. Era mais que simplesmente inocente; era santo. O sequaz tinha
tido suficiente oportunidade para descobri-lo. Por isso, sua ação foi
totalmente desprezível. Era a classe de homem que, numa controvérsia,
quer “estar do lado do mais forte”. teve seus seguidores.
23. Replicou-lhe Jesus: Se falei mal, dá testemunho do mal; mas, se
falei bem, por que me feres? 400
Impressiona de uma maneira especial a dignidade e majestade desta
resposta. Se Jesus tivesse dado uma resposta semelhante à que utilizou
Paulo numa situação parecida (At. 23:1–5), não se teria encontrado nada
que objetar. A ação do oficial era totalmente injustificada. Nem sequer
tinha sido ordenado que espancasse a Jesus. É exatamente como o
Senhor o destaca: se houvesse dito algo mal, deveria tê-lo provado por
meio de um testemunho adequado. Mas visto que tinha falado bem, o
golpe no rosto era tanto mais repreensível.
O verbo que se refere à vil ação do oficial provavelmente tem o
sentido comum, coloquial: espancar ou golpear. 401
24. Então, Anás o enviou, manietado, à presença de Caifás, o sumo
sacerdote.
Do ponto de vista de Anás a investigação preliminar não tinha tido
êxito. Não se tinha apresentado nenhuma prova acusadora. A
400
I D, I B; veja-se IV da Introdução.
401
Cf. J. H. Moulton e G. Milligan op cit., p. 142.
João (William Hendriksen) 823
investigação tinha servido simplesmente ao propósito de dar tempo a que
os membros do Sinédrio fossem ao palácio do sumo sacerdote.
Em completa harmonia com os versículos que precedem lemos
agora que Anás enviou Jesus, ainda maniatado, até Caifás; claro que não
a Caifás como pessoa mas a Caifás como presidente do Sinédrio, que
para então já estava preparado para recebê-Lo. Uma maior explicação do
versículo 24 e um comentário a respeito do problema que se suscita com
relação ao versículo 13, podem-se ver em Jo 18:13, sobretudo, nota 398.
Quanto ao lugar onde se celebrou esta reunião do Sinédrio veja-se sobre
Jo 18:15.
25. Lá estava Simão Pedro, aquentando-se. Perguntaram-lhe, pois:
És tu, porventura, um dos discípulos dele?
Enquanto julgavam a Jesus diante de Caifás (ver sobre Jo 18:19), e
Ele Se proclamava a Si mesmo Filho de Deus, afirmação que os que a
ouviram chamavam blasfêmia, e enquanto, como consequência disso,
Jesus Se via submetido a ofensas e injúrias, Seu sofrimento viu-se
agravado pela perversa conduta de Pedro. Esta foi a terceira situação
com relação à qual Pedro negou o seu Senhor. A primeira está relatada
em Jo 18:15–18. João não diz nada com relação à segunda. Segundo
Mateus, Marcos e Lucas, uma vez que o extraviado discípulo tinha sido
apanhado em sua primeira negação, buscou sair do edifício. Chegou até
o pórtico. Aqui as duas porteiras — a que terminava seu serviço e a que
tinha vindo substituí-la — disseram aos que estavam por lá «Também
este estava com Jesus o Nazareno. É um deles». Pelo menos um dos
homens que estavam por ali quis acrescentar algo, e dirigindo-se
diretamente a Pedro, disse-lhe: «Tu é um deles». Desta vez Simão já
estava fora de si de ira. Fez algo que não fez na primeira negação. Com
juramento (Mt. 26:72) negou-o, dizendo com decisão: “Não conheço tal
homem”.
Quando João reassume o relato, Pedro encontra-se de novo no
pátio, de pé, esquentando-se, como antes (durante a primeira negação;
veja-se sobre Jo 18:18). Parece que sua intenção de fugir do palácio não
João (William Hendriksen) 824
tinha tido êxito. Durante a hora que tinha transcorrido desde a segunda
negação a suspeita que se tinha suscitado em torno a ele provavelmente
tinha ido crescendo. Para este então todo mundo tinha ouvido falar disso.
Por isso “eles” lhe disseram.… Mas quem são eles? Evidentemente os
servos e os oficiais, os homens que estavam junto ao fogo com Pedro (cf.
Jo 18:18, 25; Mt. 26:73; Mc. 14:70b).
De modo que lhe disseram: “És tu, porventura, um dos discípulos
dele?” Alguns se mostraram inclusive mais ousados, e afirmaram com
firmeza: “Verdadeiramente, és também um deles, porque o teu modo de
falar o denuncia” (Mt. 26:73; Mc. 14:70b). Alguns falavam com Pedro
(cf. o relato de Mateus e de Marcos); outros falavam a respeito dele (cf.
o relato de Lucas). Isto era suficiente para afetar a qualquer um,
sobretudo a uma pessoa tão emotiva como Simão!
Ele negou e disse: Não sou. “Homem, não compreendo o que dizes”,
disse Pedro a um deles (Lc. 22:60). Aí estava lançando sobre si uma
maldição após outra. Segundo o relato do escritor do quarto Evangelho,
esta foi a segunda negação. Veja-se, porém, sobre Jo 18:15. Como isso
deve ter entristecido o Mestre, muito mais inclusive que a conduta
hipócrita de Caifás e os golpes que recebeu dos guardas.
26, 27. Um dos servos do sumo sacerdote, parente daquele a quem
Pedro tinha decepado a orelha, perguntou: Não te vi eu no jardim com
ele? De novo, Pedro o negou, e, no mesmo instante, cantou o galo..
A terceira negação (conforme parece contar João) foi consequência
da segunda. As duas vão juntas, e pertencem à mesma situação, ou seja,
o momento depois de Simão ter voltado do pórtico e se encontrava de
novo com os guardas e servos, esquentando-se. O incidente específico
referido agora se encontra só no Evangelho de João. Deve ter-se em
mente que o discípulo amado conhecia o sumo sacerdote, e ao que
parece também ao seu servo, cujo nome conhecia (Malco), e à porteira
(ou porteiras). Veja-se sobre Jo 18:10, 15, 16. Por isso, não é
surpreendente que também conhecesse certa pessoa que era parente de
Malco. Essa pessoa tinha estado no jardim durante a detenção. Tinha
João (William Hendriksen) 825
visto o que Pedro fez a Malco. Pelo menos, estava quase seguro de que
era Pedro. Quase, mas não totalmente seguro. Por isso disse a Pedro,
“Não te vi eu no jardim com ele? (ou seja, com Jesus)?” A pergunta se
expõe de tal maneira que se espera uma resposta afirmativa. Poderia
também traduzir-se: «Eu te vi no jardim com ele, não é verdade?» 402
Pedro voltou a negá-Lo. Neste mesmo instante cantou um galo.
Certo que já tinha cantado o galo antes uma vez, ou seja, depois da
primeira negação (Mc. 14:68). Então, contudo, não havia chamado a
atenção. Desta vez, porém, era diferente, porque neste mesmo instante
Pedro notou que alguém o olhava nos olhos (Lc. 22:61). 403 Esse olhar,
tão cheio de dor e, contudo, tão cheio de amor, despertou a memória de
Pedro. De repente lembrou as palavras que Jesus tinha pronunciado ao
predizer as três negações (veja-se sobre Jo 13:38). Saiu e chorou como se
esperaria que Pedro chorasse, amarga e intensamente (Lc. 22:62). Cheio
de profundo sentimento é também a forma em que o diz Marcos: “E,
caindo em si, desatou a chorar” (Mc. 14:72).
28. Depois, levaram Jesus da casa de Caifás para o pretório.
Jesus deve ter sido mantido prisioneiro das três da manhã até a
alvorada. Então, a essa hora tão anterior (veja-se Mc. 15:1) convocou-se
o Sinédrio. A intenção era passar imediatamente Jesus a Pilatos, antes
que as multidões de Jerusalém percebessem o que sucedia. Além disso,
tudo devia concluir antes do sábado! A sessão da alvorada — bastaram
uns poucos minutos! — provavelmente se celebrou para dar impressão
de legalidade ao procedimento corrupto que tinha distinguido a sessão da
noite. Veja-se sobre Jo 18:19. É razoável que uma vez que se teve
pronunciado oficialmente o veredito do Sinédrio, Jesus tivesse que ser
conduzido a Pôncio Pilatos, governador romano. O Sinédrio tinha o

402
Note-se: no jardim. Isto confirma nossa explicação de Jo 18:4. Mostra que a detenção não ocorreu
fora da porta do jardim, e sim dentro. Os que explicaram Jo 18:4 como querendo dizer que Jesus saiu
pelo portão para encontrar-se com o grupo acham-se diante da dificuldade de explicar esta passagem.
403
Como isto resultou possível se comentou com relação a Jo 18:16; veja-se sobretudo a nota.
João (William Hendriksen) 826
direito de decretar a morte, mas não tinha o direito de executar tal
decreto. Para executá-lo, os romanos deviam tomar a decisão.
João reinicia o relato a esta altura. Afirma que Jesus foi conduzido
da casa de Caifás (presidente do Sinédrio) até a residência do
governador. A linguagem utilizada em Lc. 23:7 torna quase impossível
crer que aqui em Jo 18:28 se refira ao palácio de Herodes. João tinha em
mente a fortaleza Antônia, situada no extremo noroeste da área do
templo. Veja-se sobre Jo 18:3. Pilatos tinha habitações nesta fortaleza,
perto da guarnição, como também o indica Mc. 15:16. Era cedo de
manhã. Fica de relevo o anterior da hora. Deveria ter-se em mente isso.
De não ser assim, Jo 19:14 significará uma dificuldade insuperável.
Veja-se sobre essa passagem. Eles não entraram no pretório para não se
contaminarem, mas poderem comer a Páscoa.
O levantar-se ao amanhecer (ou pouco depois), e o estar preparado
para começar a trabalhar numa hora tão cedo, não era algo raro no
mundo antigo, nem sequer da parte de personagens importantes, tais
como Pilatos. Na porta do pretório Jesus foi entregue aos soldados do
governador; porque os “veneráveis” membros do Sinédrio que formavam
parte da comitiva que entregou ao prisioneiro tiveram escrúpulos
religiosos quanto a entrar na residência de um pagão. Não queriam
contaminar-se. Ao que parece consideravam a contaminação ritual como
assunto muito mais grave que sua contaminação moral. Isto era típico
deles. Cf. Lc. 11:39. Desejavam poder “comer a Páscoa”.
Mas como devemos explicar esta última cláusula? Rejeitamos
imediatamente qualquer resposta que possa criar um conflito entre João e
os Sinóticos. Veja-se o comentário com relação a Jo 13:1. Não há
nenhum problema perturbador neste caso. me permitam ser bem
concreto: a. O quarto Evangelho, em completa harmonia com os
Sinóticos, ensina que na quinta-feira de noite Jesus tomou a ceia pascal
com Seus discípulos. b. O quarto Evangelho, em completa harmonia com
os Sinóticos, ensina que Jesus foi crucificado no dia seguinte (assim o
chamaríamos nós), ou seja, na sexta-feira. Até aqui muitos estarão de
João (William Hendriksen) 827
acordo. Dirão: «Isto não afeta o ponto principal». Por isso
acrescentamos: c. O quarto Evangelho, em completa harmonia com os
Sinóticos, considera o dia da crucificação de Cristo como o quinze de
Nisã.
Simplesmente não é verdade que o quarto Evangelho defenda o
ponto de vista de que quando Jesus estava prestes a ser sepultado o povo
ou grande parte do povo ainda não tinha comido a ceia pascal. O que
afirma concretamente Jo 18:28? Só isso: “Para não contaminar-se, e
assim poder comer a Páscoa, eles não entraram no pretório”. Quem são
essas pessoas a quem se refere o pronome eles? Todos? Todos os
saduceus? O texto não diz isso. Tudo o que o texto diz é que eles, ou
seja, os membros do Sinédrio e a polícia do templo não entraram no
palácio do governador. Se tivessem entrado, teriam se poluído. Como?
Devido aos utensílios da casa? Veja-se sobre Jo 4:9. Devido a um
contato muito íntimo com um idólatra? Devido ao contato com levedura?
Ou devido ao contato com um corpo morto? Não o sabemos, mas sem
dúvida num pretório pagão deve ter havido muitíssimas possibilidades de
contaminação, de modo que o judeu ter-se-ia sentido ritualmente impuro
até o extremo de não poder “comer a Páscoa”.
Mas, mais uma vez, o que quer dizer a última frase? A Páscoa,
certamente, já havia passado para praticamente todo mundo. Mas estes
sanedritas e seus servidores têm temor de entrar no pretório para não
contaminar-se; porque neste caso não poderiam “comer a Páscoa”. Aqui
há um pequeno problema. Ao explicar o significado de “comer a Páscoa”
pode-se proceder em dois sentidos. Qualquer dos dois é melhor que
supor uma contradição. Tal suposto não só é pouco são doutrinalmente
mas também está em conflito direto com todo o contexto de João, o qual
harmoniza tão claramente com o contexto dos Sinóticos (como se
demonstrou com relação a Jo 13:1).
O primeiro intento conservador para uma solução é aquela segundo
o qual o termo Páscoa refere-se aqui a toda a festividade de sete dias,
junto com as ofertas festivas que se desfrutavam com relação a isso. A
João (William Hendriksen) 828
expressão, “mas poderem comer a Páscoa”, significaria simplesmente,
«assim poder guardar (ou celebrar) a festa». Com relação a isso alude-se
com frequência a uma passagem como 2Cr. 30:22 (cf. também Êx. 12:3–
5; 16:2). “Comer a festa” significa, então, guardá-la, comer suas
comidas festivas. A alusão especial aqui em Jo 18:28, segundo os que
advogam por esta teoria, é ao Chagigah (comida de sacrifício) que se
desfrutava em (o que chamaríamos) o dia depois da ceia pascal.
Entre as muitas razões que se apresentam em favor desta teoria
estão também estas:
1. Não cria arbitrariamente um conflito entre João e os Sinóticos.
2. O termo Páscoa em outras passagens de João refere-se a toda a
festividade de sete dias; se assim for em outro lugar, por que não aqui?
Veja-se também Lc. 22:1.
3. Esta teoria faz justiça à afirmação a respeito da contaminação
ritual: “para não contaminar-se”. A própria comida de Páscoa era tomada
de noite. Na noite terminaria comumente o período de contaminação. Por
que, então, vacilariam os sanedritas em entrar no pretório cedo pela
manhã, por temor à contaminação, se pensavam em comer o cordeiro
pascal? Estas são as razões. Pode-se encontrar uma defesa detalhada
desta teoria nas seguintes fontes:
A. Edersheim, op. cit., Vol. II, pp. 565–568.
R. C. H. Lenski, op. cit., sobre Jn 18:28.
E sobre tudo, N. Geldenhuys, Commentary on the Gospel of Luke,
Grand Rapids, pp. 649–670. Esta é, talvez a defesa detalhada mais
recente.
Independentemente do que se pense deste ponto de vista, pelo
menos fica claro que “seja qual for seu valor, é pelo menos mais
razoável” que os pontos de vista que criam um conflito onde não o há.
Veja-se I 6d da Introdução.
O leitor que estudou esta afirmação na página citada terá observado
seu caráter prudente. Utilizamos a propósito a expressão “seja qual for
João (William Hendriksen) 829
seu valor,” e “mais razoável que …” Embora esta interpretação seja
muito melhor que as que supõem um conflito, tem seus inconvenientes.
O principal deles é que, afinal de contas, a expressão “comer a
Páscoa” refere-se em outras passagens dos Evangelhos ao comer a ceia
pascal com seu cordeiro pascal. Veja-se Mt. 26:17; Mc. 14:12, 14; Lc.
22:8, 11 e 15. Se tiver este significado em outras passagens do Novo
Testamento, por que não aqui, em Jo 18:28? Além disso, temos muito
pouca informação com relação ao Chagigah.
Não há uma explicação de Jo 18:28 que seja mais simples?
Referimo-nos aqui à teoria que foi defendida de uma forma magistral
pelo Dr. H. Mulder. 404
Em resumo, segundo o Dr. Mulder, o texto simplesmente significa
que os membros do Sinédrio tinham estado tão preocupados com a
detenção e juízo de Jesus que não tinham tido tempo para a comida
pascal. Na quinta-feira de noite estes homens tinham estado esperando a
Judas. Não sabiam quando chegaria. (Nem sequer Judas sabia de
antemão onde ia celebrar Jesus a Última Ceia com Seus discípulos.) Os
sanedritas deviam estar preparados. Eles também queriam participar da
detenção, embora fosse só como espectadores (veja-se Lc. 22:53). Logo
veio o juízo noturno. Tudo isto consumiu tempo, muito tempo. Por isso,
convenceram-se de que no interesse da única missão realmente
importante, ou seja, eliminar a Jesus — veja-se sobre Jo 11:50 — tudo o
mais, inclusive a ceia pascal, podia esperar. Em consequência, quando a
primeira hora da manhã conduziram a Jesus diante de Pilatos, ainda não
tinham participado da comida pascal. Não devem contaminar-se com a
entrada na casa de um pagão. Veja-se At. 10:28; 11:3. Por isso, estes
hipócritas, que consideram a contaminação ritual como muito pior que a
moral (cf. Lc. 11:39), não podem entrar no pretório. Uma vez que Jesus

404
H. Mulder, GThT (1951). Os artigos do Dr. Mulder deveriam traduzir-se. Não encontrei nenhuma
defesa melhor deste ponto de vista específico em nenhum outro lugar.
João (William Hendriksen) 830
está já de fato na cruz (com a zombaria deles!), podem ir comer o
cordeiro!
Têm sido formuladas objeções contra esta teoria; por exemplo,
“Devemos realmente crer que estes legalistas se atreveriam a tardar a
ceia pascal?” “Atrever-se-iam a atrair a i uma maldição nesta noite ao
dedicar-se a todo tipo de atividades que não tinham nada a ver com a
ceia pascal?” “Afinal de contas, não puderam acaso comer a Páscoa
primeiro, e logo ter ido ao jardim para participar da detenção de Jesus?”
Como dissemos no começo, não se resolveu o problema de modo
que tudo fique claro. O ponto principal, no entanto, é este: não há
absolutamente nada aqui que nem sequer de longe sugira uma
contradição entre João e os Sinóticos.
29, 30 Então, Pilatos saiu para lhes falar e lhes disse: Que acusação
trazeis contra este homem? Responderam-lhe: Se este não fosse malfeitor,
não to entregaríamos. 405
Pôncio Pilatos era o quinto governador da porção meridional da
Palestina. Veja-se sobre Jo 4:46. Era “governador” no sentido de
procurador, com autoridade sobre uma província imperial, e como tal
responsável diretamente diante do imperador. Embora tivesse jurisdição
civil, criminal e militar, estava sob a autoridade do legado da Síria.
Pelas fontes que chegaram até nós 406 podemos concluir que não foi
uma pessoa de muito tato. Numa ocasião fez com que os soldados que
estavam sob seu mando levassem emblemas com a imagem do
imperador. Para o judeu isto era sacrílego. Quando ameaçou com a morte
os que foram pedir-lhe que tirasse esses estandartes idólatras, eles
desmascararam a Pilatos, e por fim ele cedeu. Em outra oportunidade
utilizou o tesouro do templo para custear um aqueduto. Quando uma

405
II C; veja-se IV da Introdução.
406
Estas fontes são, acima de tudo, Os Evangelhos; logo Filo, De Legationem ad Caium XXXVIII;
Josefo, Antiguidades XVIII, iii, iv; o mesmo autor, A Guerra judaica II, ix; Tácito, Anais XV, xliv; e
Eusébio, História eclesiástica, I, ix, x; II, ii, vii. Veja-se também G. A. Müller, Pontius Pilatus der
fünfte Prokurator von Judäa, Stuttgart, 1888.
João (William Hendriksen) 831
multidão se queixou e amotinou, ordenou aos soldados que os
reprimissem à força. O incidente que por fim conduziu a que o tirassem
do cargo foi o interpor-se a uma multidão de fanáticos que, sob a
liderança de um falso profeta, estavam prestes a subir ao Monte Gerizim
para encontrar os vasos sagrados que, conforme criam, Moisés tinha
escondido em tal lugar. A cavalaria de Pilatos os atacou, matando a
muitos. Diante da queixa dos samaritanos, Pilatos foi tirado do cargo.
Dirigiu-se a Roma para responder pelas acusações que se tinham
formulado contra ele. Antes de chegar a Roma, o imperador (Tibério)
tinha morrido. Um relato não confirmado, que Eusébio inclui, afirma que
Pilatos “viu-se obrigado a ser seu próprio verdugo”.
Pelos Evangelhos deduzem que era orgulhoso (veja-se sobre Jo
19:10); e cruel (Lc. 13:1). Provavelmente era tão supersticioso quanto
sua esposa (Jo 19:8; cf. Mt. 27:19). Sobretudo, como o indicam todos os
relatos do juízo de Jesus diante dele, era egoísta, visto que buscava ficar
bem diante do imperador. Odiava muito os judeus os quais, segundo ele,
não faziam senão causar-lhe um problema após outro. Não se pode
provar que estivesse totalmente desprovido de qualquer vestígio de
compaixão humana e de qualquer sentido de justiça. De fato, há
passagens que parecem apontar na direção contrária. De qualquer
maneira, embora sua culpa fosse grande, não foi tão grande como a de
Anás e Caifás (Jo 19:11).
Ao comparar todos os relatos dos Evangelhos com relação a este
juízo, tem-se a impressão — que se vai fortalecendo à medida que se
desenvolve o relato — que Pilatos fez todo o possível para não ter nada
a ver com este caso. Não gostava dos judeus; por isso, não queria
agradá-los concedendo o que lhe pediam com relação a Jesus. E por
outro lado, no mais profundo do coração, ele os temia, e temia a
possibilidade de que pudessem usar sua influência contra ele. Até certo
ponto estava disposto a fazer o que a justiça requeria, sobretudo se com
isso pudesse incomodar seus inimigos, os judeus. Mas só até certo ponto.
Quando sua posição vê-se ameaçada, ele cede!
João (William Hendriksen) 832
Jesus, pois, foi levado diante deste governador. Este, provavelmente
informado pelos soldados da guarda que uma delegação do Sinédrio
havia trazido um prisioneiro, e que essa delegação negava-se a entrar no
pretório, saiu ao seu encontro. De pé numa galeria ou alpendre no meio-
fio diante de sua residência (veja-se sobre Jo 19:13), pediu aos dirigentes
judeus que fizessem sua alegação por escrito. “Que acusação trazeis
contra este homem?”, disse. A pergunta era, naturalmente, totalmente
apropriada. A resposta, porém, foi descarada. Responderam: “Se este não
fosse malfeitor, não to entregaríamos”. Era isso uma sugestão aberta.
Queria dizer: «Governador, se souberes o que te convém, deixa de fazer
perguntas. Sabes muito bem que em quase todos os assuntos nós somos o
tribunal supremo em Israel. Deverias confirmar nossa decisão e fazer o
que te pedimos que faça”.
31. Replicou-lhes, pois, Pilatos: Tomai-o vós outros e julgai-o
segundo a vossa lei. Responderam-lhe os judeus: A nós não nos é lícito
matar ninguém.
Pilatos ainda não sabia que os líderes judeus estavam dispostos a
dar morte a Jesus. Pensando que o que eles queriam era infligir um
castigo menor, não consegue compreender por que deveriam incomodá-
lo com este preso. E se nem sequer estão dispostos a apresentar uma
acusação legal, então não quer saber nada do caso. Por isso, quando
agora exclama: “Tomai-o vós outros e julgai-o segundo a vossa lei”, não
quer dar a entender que o preso nem sequer teria sido julgado. Não, o
que quer dizer é: «Fazei-vos cargo do caso vós mesmos”. O verbo que se
utiliza no original tem muitos matizes de significado (ver sobre Jo 3:17),
e pode muito bem indicar (como parece ser o caso aqui), sentenciar,
julgar, condenar.
Que os membros do Sinédrio assim o entenderam, fica claro por sua
resposta: “A nós não nos é lícito matar ninguém”. Com esta resposta
mostraram que tipo de castigo desejavam infligir, nada menos que a pena
capital. Embora, sob a lei romana, tinham direito a ditar semelhante
sentença, de fato não tinham o direito de matar ninguém. (No caso de
João (William Hendriksen) 833
Estêvão, simplesmente tomaram a justiça com as próprias mãos, At.
7:58). Também sabiam, naturalmente, que se Pilatos, o romano, cedia
aos desejos deles, Jesus seria crucificado (não apedrejado nem
enforcado); seria “levantado da terra” (Jo 12:32; cf. Jo 3:14). E isso era
exatamente o que queriam. Isso era também exatamente o que — por
razões totalmente diferentes — o próprio Jesus desejava. Daí que
adiciona-se:
32. (Isto sucedeu) para que se cumprisse a palavra de Jesus,
significando o modo por que havia de morrer. Veja-se sobre Jo 3:14 e
sobre Jo 12:32. Cf. Mt. 20:19. Jesus, segundo sua própria profecia e para
(veja-se IV da Introdução) que esta se cumprisse, deve morrer com a
morte do maldito (Dt. 21:23; Gl. 3:13). Este era o plano de Deus para
nossa salvação.
33. Tornou Pilatos a entrar no pretório, chamou Jesus e perguntou-
lhe: És tu o rei dos judeus?
Chegado aqui, João parece supor que os leitores conhecem os
Evangelhos anteriores, sobretudo o de Lucas. Veja-se II da Introdução.
Segundo Lc. 23:2 vê-se que quando Pilatos recusou sentenciar Jesus sem
que ser devidamente processado, e quando, com sua negativa, obrigou os
membros do Sinédrio a apresentar acusações, estes submeteram três: 1.
Perverte a nação. 2. Proíbe-nos pagar tributo ao imperador. 3. Diz que é
Cristo, o rei.
Na realidade as três acusações eram uma. Equivalia a dizer: «Este
homem é politicamente perigoso. É culpado de alta traição». Note-se
também que disseram que tinham encontrado que esta era na realidade a
situação. Tinham chegado a tal conclusão após tê-lo investigado
devidamente!
Quão gravemente sofreu por uma mentira Ele que estava prestes a
apresentar-se como rei na esfera da verdade (Jo 18:37)! O que
declararam as autoridades judaicas era o extremo oposto da verdade. A
prova pode ver-se em Jo 6:15 e em Jo 12:14, 15. Pilatos, além disso, não
João (William Hendriksen) 834
se deixou enganar. Sabia muito bem qual era a verdadeira razão de por
que os judeus lhe tinham entregue a Jesus (ou seja, inveja, Mt. 27:19).
Mas, naturalmente, o governador simplesmente não se podia
permitir o luxo de fazer caso omisso de tais acusações, não com o
desconfiado Tibério no trono de Roma. Por isso, entrando de novo na
residência (quer dizer, voltando ao lugar de onde tinha saído quando os
soldados de guarda lhe tinham informado da chegada dos judeus e de seu
prisioneiro), chamou Jesus — ordenando a seus soldados que O tirassem
das mãos dos judeus para levá-lo dentro — e lhe disse: “És tu o rei dos
judeus?” (com ênfase no pronome.)
Talvez houve um toque de zombaria nesta pergunta, zombaria não
dirigida a Jesus e sim aos que tinham feito semelhante acusação contra
semelhante prisioneiro. É como se Pilatos dissesse, ao olhar fixamente a
este detento: «É tu o rei dos judeus? Que acusação tão ridícula!» Mas ao
mesmo tempo, fez a pergunta, e exigia uma resposta. No entanto, antes
de poder respondê-la, devia explicar-se.
34. Respondeu Jesus: Vem de ti mesmo esta pergunta ou to disseram
outros a meu respeito?
Esta pergunta era muito oportuna, porque tal como Pilatos fez a
pergunta nem um simples “sim”, nem um simples “não” teria sido
suficiente. “Sim”, interpretou-se no sentido de «Sim, sou, num sentido
político, rei dos judeus». “Não”, poderia ter-se interpretado como, «Não,
não sou o rei dos judeus de forma alguma ». Se a pergunta de Pilatos se
baseia só no que outros (os líderes judeus) haviam dito em sua acusação,
então, naturalmente, a resposta deve ser “não”. Mas se, além das
acusações que se tinham formulado contra Jesus, Pilatos, por iniciativa
própria perguntava se, de fato, Jesus era o rei dos judeus, e se Jesus
podia incorporar seu próprio significado a esta pergunta (como de fato o
faz de forma implícita no versículo 37 paralelo), então a resposta seria,
«sim, de fato». Jesus é o verdadeiro rei dos verdadeiros judeus. Veja-se
sobre Jo 18:37.
João (William Hendriksen) 835
Fala Pilatos como um judeu de mente carnal que não se concentra
em nada que se eleve acima de um reino terrestre? Ou não fala nesse
sentido?
35. Replicou Pilatos: Porventura, sou judeu? A tua própria gente e
os principais sacerdotes é que te entregaram a mim. Que fizeste?
Com gesto desdenhoso e tom de desprezo Pilatos deixa de lado a
sugestão de que talvez tenha formulado a pergunta como o teria feito um
judeu. “Porventura, sou judeu?”, pergunta. Não, Pilatos não via um
revolucionário nesta pessoa de aspecto manso que estava de pé diante
dele. O governador não era tão néscio. Mas, assim prossegue Pilatos, a
pergunta — “¿É tu o rei dos judeus?” — devia ser feita porque «A tua
própria nação, o povo ao qual pertences, e em concreto os sumos
sacerdotes (em representação de todo o Sinédrio) te entregaram a mim.
São eles os que formularam as acusações. Como respondes? Que
fizeste?» Embora Pilatos sabia muito bem que a força que tinha
conduzido a Jesus a sua residência para que fora julgado era a inveja (da
parte dos líderes judeus), não estava seguro de que isto explicasse tudo.
Tinha cometido algum crime o preso? E, sendo assim, qual era?
Assim, pois, preparou-se o caminho para que Cristo explicasse a
natureza de sua realeza:
36. Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo. Se o meu
reino fosse deste mundo, os meus súditos pelejariam, 407 para não ser eu
entregue aos judeus; 408 mas agora o meu reino não é daqui [TB].
A pergunta, “Que fizeste?” não recebe resposta de Jesus. Pilatos
deve examinar as acusações que se formularam contra este prisioneiro.
Estaria sem dúvida “fora de lugar” qualquer coisa que se acrescentasse.
Em sua resposta, portanto, Jesus volta à pergunta de Pilatos referida
no versículo 33: “És tu o rei dos judeus?” Já ficou preparado o caminho
para que se possa responder diretamente esta pergunta. Pilatos indicou
que não é ele e sim a nação judaica e o Sinédrio os que acusaram a Jesus

407
Ou: “teriam pelejado”.
408
II A; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 836
de conspiração política. Agora corresponde a Jesus explicar a natureza
de sua realeza.
A resposta que Jesus dá é tríplice:
Primeiro, mostra que se dá conta de que atrás da pergunta “És tu o
rei dos judeus?” há outra, mais fundamental ainda, ou seja: «És rei em
algum sentido?» A resposta a esta pergunta está implícita no versículo
36, porque quando Jesus diz agora, “Meu reino não é deste mundo”, dá a
entender, naturalmente, que é rei. No versículo 37 é expresso a mesma
resposta: “Tu dizes que eu sou rei”.
Em segundo lugar, Jesus indica o que Seu reino não é, a saber, não
é deste mundo (versículo 36).
Em terceiro lugar, mostra o que Seu reino é, ou seja, é um reino nos
corações e vidas de todos os que ouvem a verdade (versículo 37).
Para começar com o primeiro: “Meu reino”, diz Jesus, com ênfase
em meu. Ele é, pois, rei. Que o termo neste caso significa realeza, não
reino, fica claro pelo fato de que segundo o versículo 37 consiste na
soberania de Cristo nos corações dos que Lhe obedecem. Estamos, pois,
diante de um conceito de domínio espiritual. Quanto ao uso da palavra
nesse sentido “abstrato” veja-se também Lc. 1:33; 22:29; Ap. 12:10. O
termo no sentido de realeza, soberania, tem suas raízes no Antigo
Testamento (Sl. 103:19; 145:13; Dn. 4:3, 25; também — com uma
palavra diferente — Sl. 22:28; Ob. 21; e ainda um termo diferente em
1Cr. 29:11). 409
No entanto, aqui em Jo 18:36, 37, não se refere ao domínio de Deus
(em consequência, tampouco ao domínio da segunda pessoa da
Trindade) sobre todas as Suas criaturas, mas especificamente à realeza
espiritual de Cristo nos corações e vidas de Seus seguidores. Em
segundo lugar, então, a realeza de Jesus não é como uma realeza terrena.

409
Para maior informação aproxima este tema veja-se sobretudo L. Berkhof, Teología sistemática,
Grand Rapids, Mich., 1969, pp. 482–488, 679, 848, 854–857; G. Vos, The Teaching of Jesus
Concerning the Kingdom of God and the Church, N. Y., 1903, pp. 25–37; e H. Ridderbos, De Komst
van het Koninkrijk, Kampen, 1950 (com relação ao tema atual, sobretudo p. 25).
João (William Hendriksen) 837
Não nasce da terra; não se a deu nenhum poder terreno, e é de caráter
totalmente diferente. Assim, por exemplo, não utiliza meios terrestres. Se
a realeza de Cristo tivesse sido de origem e caráter terrenos, teria tido
servidores — como o Sinédrio, por exemplo, o qual dispunha de força
policial, e como Pilatos, quem dispunha de soldados romanos —, e estes
teriam pelejado de forma que não teria sido entregue a … aqui
provavelmente esperamos “os romanos” mas Jesus diz, “os judeus”. Em
lugar de procurar dirigir os judeus em rebelião contra os romanos, Jesus
considera como seus oponentes estes judeus. Acaso não o entregaram a
Pilatos? Se a realeza de Cristo tivesse sido de ordem terrestre, seus
servidores teriam lutado, sob suas próprias ordens, de forma que no
Getsêmani não teria sido entregue aos judeus e a seu perverso Sinédrio.
Mas em lugar de ordenar-lhes que lutassem para O defender, fez
exatamente o contrário (veja-se sobre Jo 18:10, 11).
37. Então, lhe disse Pilatos: Logo, tu és rei? Respondeu Jesus: Tu
dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de
dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha
voz.
E agora, em terceiro lugar, em que consiste, pois, esta realeza?
Pilatos deseja sabê-lo. Embora a acusação contra Jesus, que o
apresentava como sedicioso, não tivesse nascido no coração de Pilatos,
porém, não pode entender como alguém podia falar de sua realeza, se
não era rei terrestre. Pilatos, pois, deseja saber se este prisioneiro é de
fato rei.
Jesus responde dizendo: “Tu dizes que eu sou rei”. Cf. também Mt.
27:11; 26:64; Mc. 15:2; Lc. 23:3. No contexto presente fica muito claro
que com esta resposta Jesus não procura evitar comprometer-se. A
resposta não pode significar « Isto é o que tu dizes, mas eu nunca o
disse». O contexto imediatamente seguinte só dá lugar a uma
interpretação, ou seja, que Jesus ao responder “Tu dizes que eu sou rei”,
quis definitivamente dizer que Pilatos tinha razão ao inferir que o
prisioneiro possuía e reclamava para Si autoridade real. Note-se o que
João (William Hendriksen) 838
segue: “Eu para isso nasci”, etc. Em consequência, o significado é «Eu
sou, na realidade, rei; para isso precisamente nasci».
As palavras “Tu dizes que eu sou rei”, não deveriam soar estranhas
a pessoas que com tanta frequência utilizam a mesmíssima expressão,
“Tu o dizes”. Isto, por certo, quer dizer: «Sim, por certo; é precisamente
como o acabas de dizer».
Jesus, contudo, não era pessoa que, como resultado de certas
circunstâncias — digamos, a morte de um predecessor, ou a revolução
bem-sucedida de um povo contra seus governantes — tivesse chegado a
ser rei. Não, tinha nascido rei; de fato, tinha nascido para o propósito
preciso de ser rei. “Nascido” não só, como qualquer outra pessoa poderia
ter nascido, mas sim “vindo ao mundo” de outro reino, a saber, do céu.
Dos palácios de marfim do céu tinha descido a este mundo de pecado a
fim de assumir a obra mediadora, o ministério salvador. Veja-se sobre Jo
1:9.
Veio, além disso, a fim de dar testemunho competente com relação
ao que Ele mesmo tinha ouvido do Pai quanto à salvação do homem.
Quanto a testemunho e a dar testemunho, veja-se sobre Jo 1:7, 8. Quanto
à ideia de que Jesus veio para dar testemunho do que tinha visto e ouvido
na presença do Pai, veja-se Jo 3:11, 32; 8:28, 38; 12:49; 14:10; cf.
também Jo 17:8.
Tinha vindo, pois, para dar testemunho da verdade com relação à
salvação do homem para a glória de Deus. Veja-se sobre Jo 14:6. Tinha
vindo a destruir o reino da mentira (veja-se sobre Jo 8:44). De forma
muito significativa Jesus acrescenta: “Todo aquele que é da verdade,
ouve a minha voz”. Isto era, naturalmente, um convite implícito para que
também Pilatos ouvisse. Agora, todo aquele, não importa que seja judeu
ou gentio — veja-se sobre Jo 1:29; 3:16, 17; 4:42; 6:33, 51; 8:12; 9:5;
10:16; 11:52; 12:32 — que lhe deve sua origem espiritual ao que é a
verdade, está ansioso por ouvir esta voz da verdade. Quanto ao verbo
escutar (não simplesmente ouvir) veja-se sobre Jo 10:3.
João (William Hendriksen) 839
38. Perguntou-lhe Pilatos: Que é a verdade? Tendo dito isto, voltou
aos judeus e lhes disse: Eu não acho nele crime algum.
Quando Pilatos ouve esta observação a respeito da verdade, encolhe
os ombros. Cético como é, este tema não tem nenhum interesse para ele.
Deve ter-se em mente, neste contexto, que muitos romanos destacados
nessa época tinham deixado de lado todas as crenças pagãs tradicionais
com relação aos deuses. Sem dúvida que poderiam existir deuses, afinal
de contas, e poderiam vingar-se caso fossem ofendidos. Por isso, muitas
dessas pessoas, incluindo as da família de Pilatos (veja-se Mt. 19:7–9;
Mt. 27:9), estavam cheias de temores supersticiosos; mas não existia
neles nenhuma convicção firme nem uma fé profundamente arraigada
com relação a Deus ou a realidades básicas.
Neste marco de cepticismo e cinismo extremos Pilatos exclama:
“Que é a verdade?”, não se dando conta de que a resposta estava diante
dele (veja-se sobre Jo 14:6).
Uma vez dito isso, Pilatos volta ao pórtico para dizer concretamente
aos judeus — a multidão vai aumentando frente ao pretório — “Eu não
acho nele crime algum”. Nem crime, nem razão para acusá-lo! Este
homem Jesus, quem, na opinião de Pilatos, especulava na esfera de
incertezas espirituais, não era pessoa perigosa. O estado nada devia
temer dEle. Se o governador tivesse sido homem honesto, se tivesse
estado disposto a servir a causa da justiça, nesse momento teria posto o
prisioneiro em liberdade. Mas Pilatos não era assim. Quanto ao caráter
de Pilatos veja-se sobre Jo 18:29, 30.
Quando os judeus — pensamos sobretudo nos líderes, o Sinédrio —
ouviram o veredito de Pilatos (“Eu não acho nele crime algum”),
imediatamente acusaram a Jesus de rebelião constante, a qual, segundo
eles, tinha começado na Galileia e continuado até Jerusalém. O resultado
foi que Pilatos — quem, por certo, notava perfeitamente que tinha plena
jurisdição neste caso, porque segundo a acusação a pretendida
insurreição tinha chegado às portas de Jerusalém — o enviou a Herodes.
Foi um gesto cortês. Ao mesmo tempo (e isto ocupava o lugar principal
João (William Hendriksen) 840
na mente de Pilatos), se Herodes estivesse disposto a assumir este caso,
ele (Pilatos) ver-se-ia livre disso. E o desejo veemente de Pilatos era ver-
se livre disso! O relato da apresentação de Jesus diante de Herodes
encontra-se em Lc. 23:5–12. A mutreta falhou. Herodes devolveu o
prisioneiro, vestido com uma túnica à maneira de zombaria. De modo
que de novo Pilatos dirige-se aos membros do Sinédrio, dizendo-lhes que
nem ele nem Herodes encontraram razão para condená-Lo. Mas volta a
transigir. Um medo supersticioso, e talvez um pequeno resto de sentido
de justiça, impedem que Pilatos sentencie a Jesus por ocasião da morte
de cruz. Não está preparado para isso, … quer dizer, ainda não. Por outro
lado, o temor do que os judeus poderiam fazer-lhe, em caso de
acrescentar mais uma ofensa a todas as anteriores, impedem-no a pôr em
liberdade a Jesus. De modo que, seu miserável coração enche-se de
tormento diante destes dois temores. Em consequência, decide agradar os
judeus fazendo açoitar a Jesus; e decide aplacar a voz de sua própria
conscientiza e dos deuses (em caso de que existissem!) não dando a
ordem de crucificar o prisioneiro. Veja-se Lc. 23:13–16.
Os judeus, porém, têm outras ideias. Nestes momentos a multidão
— já para então se concentrou uma multidão — pede a Pilatos que faça o
que costumava fazer no tempo de Páscoa, ou seja, pôr em liberdade um
prisioneiro, a quem eles quisessem (provavelmente, como símbolo e
recordatório da libertação dos antepassados do cativeiro do Egito). Veja-
se Mc. 15:6–8. E é aqui onde continua o relato o quarto Evangelho.
39. Mas é costume entre vós que 410 eu vos solte alguém por ocasião
da páscoa [TB].
Pilatos, por uma vez, está muito disposto a outorgar o privilégio que
pedem os judeus. Vê nisso outra oportunidade de tirar de cima de si a
Jesus. De modo que, como candidatos para ser libertados coloca dois
prisioneiros: Barrabás e Jesus. Veja-se Mt. 27:15–18.

410
A respeito de _να, veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 841
Também isto significou sofrimento para Jesus. De forma implícita
era tratado como se já tivesse sido culpado pelo governo romano, que
operava por meio de Pilatos. Mas Pilatos tinha declarado, um momento
antes: «Eu não acho nele nenhum delito … nem tampouco o encontra
Herodes». O sofrimento de Jesus viu-se incrementado com o fato de que
foi proposto como candidato junto a nada menos que Barrabás. Veja-se
sobre Jo 18:40.
Parece muito provável que Pilatos esperava que a multidão
escolhesse a Jesus. Afinal de contas, ainda não tinham desaparecido os
ecos dos hosanas da multidão em honra do profeta da Galileia. Se cinco
dias antes “todo mundo” O aplaudia — e Pilatos não o ignorava; cf. Mt.
27:18; Mc. 15:9, 10 — agora se voltariam contra Ele? (Não é certo que
os que tinham proferido os hosanas fossem somente galileus, e que as
massas que exclamaram “Crucifica-o!” fossem somente as de Jerusalém;
veja-se sobre cap. 12). É evidente que o governador mesmo sugeriu que
o povo escolhesse a Jesus em lugar da Barrabás. Disse: Quereis, pois,
que vos solte o Rei dos Judeus? Do ponto de vista da estratégia, a última
frase foi um erro. Inclusive no meio do intento desesperado de escapar
de toda responsabilidade com relação a Jesus, Pilatos não soube evitar
que se misturasse algo de zombaria com sua séria petição. Este
prisioneiro, maniatado, necessitado (porque assim parecia) … o rei dos
judeus, o único rei que os judeus tinham sabido produzir, rei que seus
próprios líderes procuravam destruir. Que ridículo!
40. Então, gritaram todos, novamente: Não este, mas Barrabás! Ora,
Barrabás era salteador.
A fim de entender o muito resumido relato que apresenta o quarto
Evangelho, sobretudo as palavras do versículo 40, é necessário consultar
a Mt. 27:19–21. Aí se vê que neste preciso momento crítico chegou um
mensageiro para informar a Pilatos a respeito de um sonho que fez sofrer
muito a sua esposa. Enquanto Pilatos ocupava-se desta mensagem de sua
esposa, “os principais sacerdotes e os anciãos persuadiram o povo a que
pedisse Barrabás e fizesse morrer Jesus” (Mt. 27:20). Lembraram estes
João (William Hendriksen) 842
ímpios líderes ao povo que se escolhessem a Jesus estariam fazendo o
jogo a seu mortal inimigo Pilatos? Insistiram muito no fato de que um
momento antes Pilatos zombou deles chamando Jesus o rei dos judeus?
Lembraram-lhes todos os crimes que Pilatos tinha cometido previamente
contra a nação judaica? Intimidaram os que em princípio sentiam-se
inclinados a escolher a Jesus (cf. Jo 7:13; 9:22; 19:38; 20:19)? De
qualquer modo, quando Pilatos volta a apresentar-se para perguntar qual
é a decisão do povo, exclamam: «Liberta Barrabás». Sem dúvida o
gritaram mais de uma vez. João provavelmente dá por sentado que os
leitores já sabiam do primeiro grito pelos Sinóticos (veja-se II da
Introdução), porque escreve, “gritaram todos, novamente”.
O que gritaram foi: “Não este, mas Barrabás!”. Barrabás — que
significa, filho do pai, o que provavelmente indica que era filho de um
rabino — era um famoso ladrão, um bandido (cf. Jo 10:1, 8; Mt. 21:13;
26:55; 27:38, 44; Mc. 11:17; 14:48; 15:27; Lc. 10:30, 36; 19:46; 22:52;
2Co. 11:26). Tinham-no encarcerado por certa insurreição promovida na
cidade e por homicídio (Lc. 23:19). O povo escolheu ele. E esta escolha,
embora totalmente, injustificada e perversa mais do que é possível
expressar em palavras, esteve de acordo com o bondoso decreto e
providência de Deus. Barrabás deve ser libertado a fim de que Jesus
possa ser crucificado, Seu povo salvo, e Deus glorificado.
Veja-se a síntese depois do comentário sobre Jo 19:15, 16.
João (William Hendriksen) 843
JOÃO 19
JO 19:1–16

19:1. Então, por isso, Pilatos tomou a Jesus e mandou açoitá-lo.


Mais uma vez Pilatos, fracassadas as tentativas prévias de evitar seu
evidente dever, trata de transigir. Ordena que levem a açoitar a Jesus (os
dois verbos são, naturalmente, causativos). Os açoites eram uma tortura
odiosa. 411
Os açoites romanos se davam com um cabo curto de madeira ao
qual lhe tinham sujeito várias correias em cujos extremos penduravam
partes de chumbo ou bronze e pedacinhos de osso afiados. Os açoites
eram administrados sobretudo (embora não de forma exclusiva) nas
costas da vítima, despida e dobrada. Às vezes os destroços do corpo
eram tais que ficavam a descoberto veias e artérias profundas — às vezes
inclusive vísceras e órgãos internos —. Tal flagelação, da qual estavam
isentos os cidadãos romanos, com frequência produzia a morte. Ou
precedia à execução, e se ordenava para indicar que a pessoa a que se
administrava estava prestes a ser crucificado.
No entanto, parece que neste caso Pilatos ordenou esta flagelação
não como sinal de uma próxima crucificação, senão para evitar a
necessidade de sentenciar Jesus à cruz. Chegamos a esta conclusão pelas
seguintes razões:
1. A passagem Jo 19:12 mostra claramente que inclusive depois da
flagelação Pilatos tentou insistentemente pôr Jesus em liberdade.
2. Outra passagem, Jo 19:5, parece indicar que o governador
procurava despertar compaixão pelo prisioneiro. Veja-se sobre esse
versículo.

411
Consultem-se as seguintes fontes: Josefo, A Guerra Judaica II, xiv, 8, 9; V, xi, 1. Eusébio, História
eclesiástica IV, xv, 4. Veja-se também no W.D.B., p. 538.
João (William Hendriksen) 844
3. A interpretação que apoiamos harmoniza com as exigências de
uma descrição consequente do caráter das pessoas, tal como se
mencionou antes. Veja-se sobre Jo 4:17, 18. Pilatos buscou
constantemente evitar o tema. Queria desfazer-se de Jesus. Procurou
com todo afinco encontrar a forma de poder, por um lado, evitar dar a
ordem de crucificar a Jesus e, contudo, por outro, evitar a vingança de
Anás, Caifás e companhia.
Pode-se imaginar a Jesus depois dos açoites, coberto de feridas e
hematomas horríveis, de cortes e vergões. Não nos surpreende ler que se
obrigasse a Simão Cireneu a levar a cruz depois de Jesus a ter levado por
um tempo (Jo 19:16, 17; cf. Lc. 23:26). Deve ter-se em mente, porém,
que o sofrimento do Varão de Dores foi não só intenso mas também
vicário; cf. Is. 53:5.
“Mas ele ferido foi por nossas rebeliões, moído por nossos pecados;
o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e por suas pisaduras fomos
curados”.
2, 3. Os soldados, tendo tecido uma coroa de espinhos, puseram-lha
na cabeça e vestiram-no com um manto de púrpura. Chegavam-se a ele e
diziam: Salve, rei dos judeus! E davam-lhe bofetadas. 412
A flagelação foi seguida de uma coroação e saudações zombadoras
no pátio do Pretório (Mc. 15:16). Em algum lugar da vizinhança os
soldados encontraram alguns raminhos espinhosas. Muitos
comentaristas, de acordo com a opinião dos cruzados, mencionam a
Spina Christi ou Palinrus como a planta da qual se tirou a coroa de
tortura, porque seus ramos têm pontas horríveis e as folhas são parecidas
com a hera que se utilizava na coroação de imperadores e generais. Esta
planta ainda cresce na Judeia. No entanto, arqueólogos assinalaram que
poucos países do tamanho da Palestina têm tantas variedades de plantas
espinhosas. Veja-se também passagens bíblicas como Jz. 8:7; Sl. 58:9;
Os. 9:6; Mq. 7:4. Em consequência, a identidade da planta que os

412
Literalmente: “davam-lhe golpes”.
João (William Hendriksen) 845
soldados utilizaram não se pode determinar. Além disso, isso tem pouca
importância. Mais significativo é o fato de que em Gn. 3:18 mencionam-
se espinhos e abrolhos em conexão com a queda de Adão. Por isso, aqui
em Jo 18:2, 3 se descreve a Jesus como levando a maldição que está
sobre a natureza. Leva-a sobre Si para a natureza (e a nós) da mesma
(Rm. 8:20, 21).
Com crueldade ímpia os soldados apertaram esta coroa na cabeça
de Jesus, fazendo com que escorressem por seu rosto, pescoço e corpo
(ainda dolorido pelos açoites) filetes de sangue. Desejavam torturá-Lo.
Também queriam zombar dEle. A coroa de espinhos enchia ambos os
desejos. Faziam mais funda a ofensa amarga e o sofrimento ignominioso
com outro elemento de palhaçada depreciativa: lançaram sobre Jesus o
que provavelmente foi um manto descartado e desbotado de um soldado,
de uma tintura parecida a púrpura real. Puseram em suas mãos um cano,
à maneira de cetro falso (este último detalhe João não o menciona, mas
veja-se Mt. 27:29). Logo iam se aproximando dEle, provavelmente
passando pelo lado, a fim de cumprimentá-Lo zombeteiramente: “Salve,
rei dos judeus”. Ao fazê-lo, seguiam espancando-O.
Dizer que também esta zombaria tinha sido ordenada por Pilatos 413
não está justificado, em nossa opinião. A documentação de que
dispomos não apoia esta interpretação. É Pilatos quem ordena a
flagelação (Jo 19:1). Não parece ter sido responsável da mesma forma
(embora, sim, até certo ponto, porque poderia tê-la podido) pela
zombaria. Onde estava Pilatos enquanto sucedia tudo isso?
Evidentemente em sua residência. Veja-se o seguinte versículo:
4, 5. Outra vez saiu Pilatos e lhes disse: Eis que eu vo-lo apresento,
para que saibais que eu não acho nele crime algum. Saiu, pois, Jesus
trazendo a coroa de espinhos e o manto de púrpura. Disse-lhes Pilatos:
Eis o homem!

413
Assim, por exemplo, Lenski, op. cit., pp. 1226–1228.
João (William Hendriksen) 846
Quando Pilatos volta a apresentar-se diante do público, indica a
razão de por que os leva a Jesus, ou seja, “para que saibais que eu não
acho nele crime algum” (veja-se também Jo 18:38; 19:6 para uma
sentença igual). Naturalmente devia ter posto imediatamente em
liberdade o seu prisioneiro. Porém, mais uma vez vacila. Desta vez,
totalmente em harmonia com todas as suas tentativas anteriores de livrar-
se do caso, procura apelar à compaixão do povo. Põe diante dos olhos do
povo um espetáculo patético: Jesus, coberto de feridas profundas, com
sangue que lhe corria pelo rosto, pescoço e costas; a horrível “coroa”
ainda em Sua cabeça; o manto de púrpura ainda sobre Seus ombros.
Então Pilatos exclama: “Eis o homem!” Não sofreu o suficiente? É
realmente necessário infligir-Lhe mais castigo? E parece Ele um
perigoso revolucionário?
Pode deduzir-se da resposta que deram os sumos sacerdotes e os
oficiais que isto foi na realidade o que Pilatos teve em mente quando
pronunciou estas palavras. Parecem ter sido da opinião de que o que o
governador quis dizer foi: “Faz falta fazer mais contra esta pessoa na
qual não encontrei delito, e que já sofreu tanto, e que de nenhuma forma
parece um revolucionário? Não é isto suficiente?”
6. Ao verem-no, os principais sacerdotes e os seus guardas gritaram:
Crucifica-o! Crucifica-o! Disse-lhes Pilatos: Tomai-o vós outros e
crucificai-o; porque eu não acho nele crime algum.
Quase não tinha concluído Pilatos sua dramática súplica, quando os
mais endurecidos dentre todos, (note-se: não a multidão, e sim) os sumos
sacerdotes e seus oficiais, al ver el objeto de sua brutal inveja,
começaram a gritar, “Crucifica-o! Crucifica-o!” Prorromperam estas
terríveis palavras vez após vez até converter-se num monótono refrão,
num cântico pavoroso e sinistro: “Crucifica-o! … Crucifica-o! …
Crucifica-o! … Crucifica-o! .…”
Totalmente exasperado o governador responde: “Tomai-o vós
outros e crucificai-o; porque eu não acho nele crime algum”.
Naturalmente, Pilatos sabe muito bem que sem sua ordem não podem
João (William Hendriksen) 847
crucificar a Jesus. De uma forma velada lhes lembra sua impotência
política. Odeia estes judeus que lhe causaram tanto transtorno. E ao
mesmo tempo os teme. Do contrário, teria posto em liberdade o
prisioneiro muito antes. Além disso, eles sabem que lhes tem medo!
Vale a pena contar o número de vezes que o governador pronunciou
as palavras, “eu não acho nele crime algum”. No quarto Evangelho
encontra-se em Jo 18:38; 19:4; 19:6. Mas a isto terei que lhe acrescentar:
Mt. 27:23; 27:24; Mc. 15:14; Lc. 23:4; 23:13–15; 23:22. Mesmo quando
se dê lugar às passagens paralelas (duplicados), subsiste o fato de que
Pilatos sublinha e reitera constantemente a verdade de que não há base
para sentenciar a Jesus. E por meio de Pilatos, o próprio Deus declarava
a perfeita inocência de Seu filho. No entanto, uns momentos depois este
mesmo Pilatos vai sentenciar a Jesus para que morra com a morte
maldita da crucificação. “Eu não acho nele crime algum … não acho
nele crime algum … não acho nele crime algum … não acho nele crime
algum … e então o entrega para que o crucifiquem”. Assim diz o relato
sagrado. Mas como pôde um Deus justo permitir semelhante coisa? Há
só uma solução. Encontra-se em Is. 53:6, 8, “O Senhor carregou nele o
pecado de todos nós … porque foi cortado da terra dos viventes e pela
rebelião de meu povo foi ferido”. Cf. Gl. 3:13.
7. Responderam-lhe os judeus: Temos uma lei, e, de conformidade
com a lei, ele deve morrer, porque a si mesmo se fez Filho de Deus.
Os judeus (provavelmente sobre tudo os líderes) percebem muito
bem que Pilatos procura evitar o problema, e tenta lhes devolver a Jesus.
Claro que eles não desejam isso. Em consequência, a base do que agora
dizem é esta: «Depois de um exame cuidadoso encontramo-lo culpado,
quer dizer, culpado se for julgado segundo as normas de nossa própria
lei. De fato, encontramos que merece pena de morte porque é blasfemo
(cf. Lv. 24:16). Repetidas vezes, apesar de ser só homem, chamou-se a si
mesmo Filho de Deus (cf. Jo 3:16; 5:18; 8:53; 10:30, 33, 36; Mt. 26:63).
Em consequência, tu, Pilatos, tem a obrigação de sentenciá-lo à morte».
João (William Hendriksen) 848
É certo — como o indicam claramente as referências dadas — que
Jesus Se declarou repetidas vezes Filho de Deus, Seu unigênito, Seu
Filho num sentido muito único. Veja-se sobre Jo 1:14. Isto era ou a mais
horrível blasfêmia, ou a verdade mais gloriosa. Os membros do Sinédrio,
endurecidos pelo pecado, escolheram malvadamente a primeira
alternativa. Sobre esta base seu conselho o tinha condenado (Mt. 26:63–
66). Por fim, estava ficando bem claro o ponto em discussão. Mas por
que por fim? Por que não tinham apresentado imediatamente esta
acusação, ou seja, no começo do juízo diante do governador?
Provavelmente, porque tinham crido que uma acusação de índole
puramente religiosa teria feito pouca impressão num pagão. Mas agora,
uma vez fracassadas as outras tentativas, e com Pilatos dizendo mais
uma vez, “Eu não acho nele crime algum”, apresentam a única acusação
que era oficial. Talvez neste contexto falaram com tanto orgulho de sua
lei (“Nós temos uma lei”) porque Pilatos lhes tinha lembrado que eram
um povo subjugado (veja-se sobre versículo 6). É como se em resposta
desejam dizer: «Mas acaso o governo romano não nos deixou uma
medida considerável de liberdade para regular nossos próprios assuntos?
Acaso não desfrutamos de um governo local? E acaso não é o teu dever,
Pilatos, respeitar nossas leis em tais assuntos? Nós temos uma lei, e
segundo essa lei deve morrer, porque fez-se a si mesmo Filho de Deus”.
8, 9. Pilatos, ouvindo tal declaração, ainda mais atemorizado ficou, e,
tornando a entrar no pretório, perguntou a Jesus: Donde és tu? Mas
Jesus não lhe deu resposta.
Pilatos estava mais assustado que nunca. Este novo temor se
originava não tanto na determinação tenaz dos judeus de deixar de
obedecer, e sim no elemento de informação que acaba de receber. O que!
Este misterioso prisioneiro filho dos deuses? Era esta, talvez, a razão
pela qual a esposa de Pilatos tinha passado por tais agonias ao sonhar a
respeito dEle? Veja-se Mt. 27:19.
De modo que, turbado no mais profundo da alma diante destas
incertezas supersticiosas, o juiz, com Jesus, volta a entrar na residência.
João (William Hendriksen) 849
“Donde és tu?” pergunta-lhe com ansiedade. Não recebeu resposta, e não
merecia nenhuma. Sem dúvida, alguém que era tão corrupto para ter
ordenado a flagelação de Jesus quase até a morte, mesmo sabendo (como
a tinha afirmado repetidas vezes) que este prisioneiro era inocente, não
merecia resposta. Além disso, se Pilatos tivesse prestado mais atenção às
palavras que Jesus tinha pronunciado antes (Jo 18:36, 37), teria
descoberto a resposta à sua pergunta.
10. Então, Pilatos o advertiu: Não me respondes? Não sabes que
tenho autoridade 414 para te soltar e autoridade416 para te crucificar?
O que Pilatos faz agora é totalmente natural em casos desta
natureza. Deve ter-se em mente que estava tremendo (veja-se sobre Jo
19:8, 9). Por isso, a fim de ocultar seu temor, começa a alardear. Com
indignação exclama, “Não me (note-se a posição deste pronome no
começo mesmo da pergunta) respondes?” Como te atreve? Não te dás
conta de quem sou? E não entendes que “tenho autoridade (veja-se sobre
Jo 1:12; 10:18) para te soltar e autoridade para te crucificar?” Pilatos fala
de soltar antes de crucificar, provavelmente porque soltar a Jesus era
sua intenção principal, isto é, se pudesse ser feito sem que machucasse a
Pilatos; de outra maneira não, naturalmente.
11. Respondeu Jesus: Nenhuma autoridade416 terias sobre 415 se de
cima 416 não te fosse dada. Jesus faz ver a Pilatos o fato de que a suposta
autoridade deste lhe tinha sido delegada. Era uma verdade sagrada, uma
responsabilidade de cujo cumprimento Pilatos era responsável diante de
Deus.
Jesus prossegue: Por isso, quem me entregou a ti maior pecado tem.
Pilatos, na realidade, tinha recebido autoridade para pronunciar a
sentença neste caso. E não notar de que esta autoridade lhe tinha sido
dada e que era responsável diante de Deus pela forma em que a

414
Ou: direito.
415
Provavelmente é melhor traduzir sobre. Não se demonstrou que a preposição que se utiliza no
original deva significar contra em semelhante contexto. Veja-se Gram. N.T., p. 607.
416
II C; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 850
exercesse, tornava-o culpado. Mas Caifás quem, como sumo sacerdote
em funções, tinha condenado por malícia o Justo e O tinha entregue a
Pilatos com a petição de que fosse sentenciado a morrer com a morte
maldita da cruz, não tinha recebido nenhuma autoridade de Deus para
cometer semelhante baixeza. Além disso, Pilatos, embora totalmente
corrupto, não percebia plenamente o que fazia. Mas Caifás agia com
conhecimento e determinação inflexível (veja-se sobre Jo 11:49, 50). Em
consequência, o pecado de Caifás era maior que o pecado de Pilatos. Há
gradação nos pecados (Lc. 12:47, 58). A quem foi dado, muito lhe será
exigido.
12. A partir deste momento, Pilatos procurava soltá-lo, mas os
judeus clamavam: Se soltas a este, não és amigo de César! 417 Todo aquele
que se faz rei é contra César!
Pela resposta de Jesus (versículo 11) um fato ficou claro a Pilatos:
este prisioneiro não era um rebelde. Naturalmente, o governador assim o
tinha sentido desde o princípio; agora tinha certeza disso. Este homem
tinha respeito corta autoridade do Pilatos (veja-se ou versículo 11). Em
consequência, saindo outra vez onde o povo pudesse vê-lo e ouvi-lo,
Pilatos intensifica seus esforços para colocar Jesus em liberdade. O fato
de não ter êxito nestes repetidas tentativas deveu-se à sua própria
fraqueza moral, à sua falta de vontade de fazer o que era justo sem
importar o custo. Quando os judeus começaram por fim a gritar, “Se
soltas a este, não és amigo de César!”, Pilatos cedeu diante dos desejos
deles. Este grito foi aquele que derrotou o governador. Em sua
imaginação febril viu como estava prestes a perder o prestígio, a posição,
as posses, a liberdade, e inclusive a própria vida. A forma em que os
judeus deram este golpe final deve ter sido tão determinante como
qualquer outra coisa em derrotar a Pilatos. Simplesmente disseram: “Se
soltas a este, não és amigo de César!”. 418 Mas Pilatos entendeu

417
III A 2; veja-se IV da Introdução.
418
Quer seja que “amigo do imperador” (amicus Caesaris) — a respeito do que veja-se A. Deissmann,
op. cit., pp. 377, 378 — se aqui se usa como título oficial (como mais adiante, em tempo de
João (William Hendriksen) 851
imediatamente que tal afirmação implicava muito mais do que na
realidade expressava. Implicava: «Então serás inimigo desse imperador
tão suspicaz, Tibério. Nós, naturalmente, enviaremos a queixa contra ti.
Diremos ao imperador que toleras a alta traição contra o governo; que
puseste em liberdade um homem que era culpado de constante rebelião,
e que permitias que o chamassem ‘rei de Israel’ (Jo 12:13; cf. Mc. 11:10;
Lc. 19:38). Nós te acusaremos de ‘tratar com fraqueza os rebeldes’.
Então o que será de ti?»
Esta foi a última gota. Pode imaginar-se a ira que essas palavras
provocaram no coração de Pilatos! Sabia que estes judeus eram
embusteiros, e que não sentiam nenhum amor pelo governo romano nem
por seu imperador. Estava totalmente convencido do fato de que no mais
profundo de seu coração eles mesmos eram totalmente desleais. No
entanto, aqui estavam, ao que parece, profundamente perturbados pela
lealdade política de alguém que nunca nem sequer tinha pronunciado
uma palavra contra o governo romano. Eram uns hipócritas desprezíveis,
mas o tinham encurralado.
13. Entonces Pilato, oyendo esto, llevó fuera a Jesús, y se sentó en el
tribunal en un lugar llamado el Enlosado, y en hebreo Gabata.
Chegou já o momento que toda a história da redenção esteve
esperando. Pilatos decidiu entregar Jesus para que ser crucificado. João,
quem em seu relato da paixão de Cristo mostrou-se com frequência
conciso, torna-se muito detalhista na descrição do que agora ocorreu.
Tirou Jesus (ou: fê-lo tirar). Então, Pilatos se sentou. O significado não é
que sentou a Jesus (ou “fê-lo sentar”) na poltrona do juiz, para seguir a
zombaria. Embora algumas autoridades eminentes (Moffatt, Goodspeed,
Montgomery), apoiem essa tradução, não é necessário dar este

Vespasiano) ou não, não faz muita diferença. O contexto pareceria apontar na direção de um uso não
técnico.
João (William Hendriksen) 852
significado ao verbo utilizado. Além disso, é muito improvável que
Pilatos se degradasse desta maneira a si mesmo e a seu tribunal oficial. 419
Desta vez Pilatos se senta com o propósito de ditar sentença.
Sentou-se em sua poltrona oficial que estava num assoalhado ao que se
chegava por uns degraus (o substantivo tribunal ou sede do juízo —
veja-se especialmente seu sentido original em At. 7:5 — está relacionado
com o verbo caminhar, andar) quanto ao substantivo veja-se também
Mt. 27:19; At. 12:21; 18:12, 16, 17; 25:6, 10, 17; Rm. 14:10 (tribunal de
Deus); 2Co. 5:10 (tribunal de Cristo). O lugar do tribunal era O Meio-fio
de Pedra (em aramaico Gabatá). Talvez esta é a que foi recentemente
escavada na proximidade da Torre de Antônia 420 Veja-se também sobre
Jo 18:28 (a localização do pretório).
14. E era a preparação da Páscoa [RC]. 421
Isto não quer dizer «era a preparação para a páscoa», como se João
queria indicar que Jesus foi sentenciado antes do dia da Páscoa. Esse dia
de preparação (cozinhar os alimentos que se usariam nesse dia, etc.)
precedia os sábados, não as festas. A expressão simplesmente significa
que era a sexta-feira da semana de Páscoa. Veja-se também sobre Jo 13:1
e sobre Jo 18:28. Encontra-se um comentário muito claro em Lc. 23:54
[NVI]: “Era o dia da preparação, e estava para começava o sábado”; e
em Mc. 15:42 [NVI]: “Era o Dia da Preparação, isto é, a véspera do
sábado”. João, em total harmonia com os outros Evangelhos, ensina que
Jesus foi sentenciado e crucificada na sexta-feira, que era o dia de
preparação para o sábado. Neste caso concreto era o dia de preparação
de (pertencente a) a semana de Páscoa.
Cerca da hora sexta. Tem-se escrito muito com relação a esta breve
alusão temporal. Os críticos bíblicos citam esta passagem como prova
positiva de que a Bíblia contém erros e contradições. Acaso Mc. 15:25

419
Veja-se F. M. Derwacter, “The Modern Translators and John 19:13: Is It Sat or Seated?” Classical
Journal, XL (1944–1945), 24–28. É um artigo muito bom.
420
L. H. Vincent, “L’Antonia et le Prétoire,” Revue Biblique, XLII (1933), 83–113.
421
Ou simplesmente, “páscoa-sexta-feira”.
João (William Hendriksen) 853
não afirma que Jesus foi crucificado na “hora terceira”, quer dizer às
nove da manhã? Sem dúvida que foi sentenciado antes de ser
crucificado. No entanto, segundo João (dizem os críticos), a sentença
teve lugar a meio-dia (“a sexta hora”). Mas se mostrou que em outras
passagens o escritor do quarto Evangelho com toda probabilidade
utilizou a forma de calcular o tempo dos romanos. Veja-se sobre Jo
1:39; 4:6; 4:52. Se utilizou nesses lugares, por que não aqui?
Agora, as duas afirmações — a de João, ou seja que Jesus foi
sentenciado como à sexta hora pela manhã; e a de Marcos, que foi
crucificado às nove da manhã, dificilmente se pode dizer que estejam em
conflito irreconciliável entre si. 422 Deveria ter-se presente que João não
diz às seis e sim cerca das seis. Suponhamos que na realidade fosse às
seis e meia. Admitimos que inclusive isso não soluciona a dificuldade,
mas a dificuldade não é grande. Resulta-nos difícil entender como o
juízo diante de Pilatos (na realidade o juízo Pilatos-Herodes-Pilatos) foi
rápido, como tudo se esclareceu tão rapidamente. Por outro lado, não
parece provável que o Sinédrio fez todo o possível para empurrar Pilatos
a que tomar uma decisão? Acaso não é verdade que este augusto corpo
tinha acelerado o caso desde o preciso momento em que Jesus foi feito
prisioneiro? A reunião matinal do Sinédrio deve ter sido muito cedo,
realmente! Talvez tomou só uns minutos, afinal de contas, todos sabiam
de antemão o que se ia decidir. Chegou-se à verdadeira decisão muito
antes.
Uma vez pronunciada a sentença por Pilatos, a pressão tinha
diminuído. Por isso, transcorreram três horas entre a sentença e a
crucificação; ou, digamos duas horas e meia (em caso de que a sentença
se pronunciasse às 6:30 a.m., “cerca da hora sexta”). Não sabemos por
que passou tanto tempo entre os dois eventos.

422
Parece-me que os termos que Lenski utiliza com relação a isto são muito fortes. Admitimos que
subsiste a dificuldade, mas sem dúvida que não é um conflito irreconciliável. Veja-se R. C. H. Lenski,
op. cit., pp. 1249, 1250.
João (William Hendriksen) 854
E disse aos judeus: Eis aqui o vosso rei. Esta exclamação deve ter
sido pronunciada com aguda zombaria. Procedeu de um ressentimento
incontrolável. Judeus, aqui está o vosso rei, acorrentado, debilitado,
indefeso, ensanguentado, sentenciado à uma morte horrível, ao vosso
pedido! Pilatos “o amassa”. Como odeia a esta gente!
15, 16. Eles, porém, clamavam: Fora! Fora! Crucifica-o! Disse-lhes
Pilatos: Hei de crucificar o vosso rei? Responderam os principais
sacerdotes: Não temos rei, senão César! Então, Pilatos o entregou para
ser crucificado.
Os sacerdotes e a multidão sentiram o aguilhão da pergunta
inoportuna. Por isso, em resposta a esta observação desprezível
respondem: “Fora! Fora! Crucifica-o!” O governador insiste mais uma
vez com “Hei de crucificar o vosso rei?” (note-se a ordem das palavras,
fiel ao original.) Com hipocrisia descarada, mas muito evidente, os
sumos sacerdotes respondem: “Não temos rei, senão a César!”.
Em certo sentido, tinham razão. Tendo repudiado sua esperança
messiânica quando disseram, “Fora! Fora! Crucifica-o!”, (esperança que
no caso dos principais sacerdotes, em sua maioria saduceus, nunca tinha
sido fervente), sem dúvida que não têm direito de considerar Jesus como
rei (espiritual, no sentido de Jo 18:36, 37). Ao único que reconhecem
como rei é a Tibério. E inclusive esse reconhecimento é evidentemente
fingido. Esquecem, no entanto, que Deus, como rei do universo, não
terminou com eles. Num sentido certo e terrível, continua sendo seu rei.
Não estão longe os castigos indescritíveis. Continuaram desde então.
Veja-se Rm. 11:25.
Ao confessar sua lealdade incondicional ao imperador, ao mesmo
tempo insinuam a possível deslealdade do governador. É como se
dissessem «nós não temos mais rei que o imperador. Que dizes de ti
mesmo, Pilatos? Onde está tua lealdade?» Pouco se pode duvidar que
tinham isto em mente (veja-se sobre Jo 19:12).
Então Pilatos o entregou a eles; não como se eles — os judeus —
fossem crucificá-Lo, e sim no sentido de que acedeu a seus desejos.
João (William Hendriksen) 855
Humanamente falando, o ciúme tinham triunfado, o ciúme dos líderes.
Desde esse momento, a inveja triunfou com frequência; no entanto, o
que sucedeu aí, é único. Conseguiu castigar o Justo. Mas ao ganhar
(aparentemente!) esta batalha, perdeu a guerra.
Em conexão com Jo 19:15, 16, deveriam ler-se as seguintes
passagens: Lc. 23:24, 25 e Mt. 27:24, 25.

Síntese de Jo 18:12–19:16
O Filho de Deus morre como substituto pelo Seu povo, o juízo e a
negação.
O esquema bastante detalhado que oferecemos antes do capítulo 18
é em si mesmo como uma síntese. Além disso, note-se o seguinte:

A. Diante de Anás, juízo e negação


O verdadeiro sumo sacerdote, Jesus Cristo, é conduzido diante dos
corrompidos sumos sacerdotes, Anás e (um pouco depois) seu genro
Caifás. O primeiro, embora já não fosse o sumo sacerdote oficial e
presidente do Sinédrio, seguia tendo grande influência. Era orgulhoso,
ambicioso, rico.
Enquanto Jesus era inicialmente julgado diante dele, Pedro, guiado
até o palácio por João, despertou as suspeitas da porteira. Aproximando-
se dele, disse-lhe (com malícia na voz): «Certamente você não é também
um dos discípulos deste homem, verdade?» Surpreso diante do
inesperado e da pergunta direta, Pedro foi tomado desprevenido, e apesar
de todas as suas promessas prévias de lealdade, respondeu
decididamente: “Não sou”.
De modo que, como se a humilhação que Jesus estava
experimentando diante de Anás não fosse suficiente, esta aflição se
acrescentou a seu amargo sofrimento, que um de seus principais
discípulos o negasse. A própria audiência preliminar foi uma farsa, como
foi todo o juízo diante dos judeus. Foi uma farsa no sentido de que não
João (William Hendriksen) 856
houve uma tentativa séria de chegar à verdade. Decidiu-se a morte de
Cristo muito antes. A sentença estava prevista! Anás, além disso, estava
mais interessado em descobrir quantos seguiam a Cristo que conhecer
Seu ensino, exceto quanto este ensino pudesse servir ao propósito de lhe
subministrar bases para formular os termos de uma sentença
desfavorável. Pediu a Jesus que testificasse contra Si mesmo. Ao negar-
se a fazê-lo e pedir que se apresentassem testemunhas, um miserável
sequaz o esbofeteou, e lhe fez uma pergunta impertinente. Com
majestade o Senhor defendeu sua própria petição de que se ouvisse a
testemunha. Ainda maniatado, Jesus foi enviado então a Caifás.
Logo, diante de Caifás e do Sinédrio, Jesus fez sua boa confissão, o
qual lhe produziu insultos e ofensas; Pedro, de novo no pátio do qual
tinha procurado fugir, foi interrogado outra vez com perguntas tais
como: “Certamente não és também um deles, verdade?» “Não sou”,
respondeu, mentindo de novo. Então um parente de Malco perguntou,
«Não te vi eu no jardim com Jesus?» Pedro voltou a negá-lo, e
imediatamente cantou o galo.

B. Diante de Pilatos, juízo


A síntese desta seção pode-se encontrar no esboço. No entanto,
convém acrescentar uma elucidação. No esboço chamamos ao gesto de
Pilatos (de que com relação ao costume pascal ficasse em liberdade um
prisioneiro, e que esse prisioneiro fosse Jesus), a segunda tentativa do
governador de evitar a responsabilidade. Foi na realidade a segunda
tentativa quanto ao Evangelho de João. Historicamente foi a terceira,
porque foi precedida da tentativa da parte de Pilatos de que Herodes
assumisse a responsabilidade do caso. Mas isto não se relata no quarto
Evangelho.
A lição principal que se deve aprender com relação ao juízo diante
de Pilatos é que nunca se pode ser neutro diante de Jesus. Sempre se
tomam posições em favor ou contra. A “neutralidade” de Pilatos
João (William Hendriksen) 857
fracassou por completo. Sucumbiu finalmente diante da intimidação, e
entregou a Jesus para que O crucificassem.
Vez após vez Pilatos proclamou a inocência de Cristo. No entanto,
logo O sentenciou! É evidente que Jesus sofreu o castigo não por Seus
pecados mas pelos nossos (Ele não tinha nenhum), e sofreu tudo
voluntariamente. Ao discutir os detalhes da paixão a vista deve
permanecer fixa nEle, Seu sofrimento, Seu amor.

JO 19:17–37

19:17, 18. Tomaram eles, pois, a Jesus; e ele próprio, carregando a


sua cruz, saiu para o lugar chamado Calvário, Gólgota em hebraico, onde
o crucificaram e com ele outros dois, um de cada lado, e Jesus no meio.
O versículo 17 contém tudo o que João tem a dizer a respeito do
sucedido no caminho da amargura. Em Lc. 23:26–32 encontra-se um
relato muito mais completo.
Os soldados tomaram a Jesus e, embora Suas costas estivesse
rasgada com muitas feridas produzidas pela flagelação a que tinha sido
submetido, obrigaram-No a levar Sua própria cruz. Levou-a até onde o
permitiram Suas energias. Logo se obrigou a Simão de Cirene a assumir
a árdua tarefa (Lc. 23:26; cf. Mt. 27:32; Mc. 15:21).
Tem-se escrito muito a respeito da forma da cruz. Parecia-se com a
letra X (a cruz de Santo André), à letra T (a cruz do Santo Antônio), ou à
adaga (a cruz latina)? À luz do fato de que o título (veja-se sobre
versículo 19) escreveu-se sobre a cabeça de Cristo (Mt. 27:37; Lc.
23:38) é quase seguro que têm razão os artistas que adotam a última
destas três possibilidades, a assim chamado tipo adaga ou cruz latina.
Pareceria que toda a cruz (postes vertical e transversal) foi colocada
sobre as costas de Cristo. Pelo menos, nada há no texto que sugira o
contrário. A ideia da presumida vítima que leva ela mesma a cruz a que
será cravada lembra a Isaque, levando a madeira da oferta cruenta (Gn.
João (William Hendriksen) 858
22:6). As palavras “E ele próprio, carregando sua cruz, saiu”, implicam
uma maldição quádrupla:
1. A morte por crucificação considerava-se em si mesma como
maldição (Gl. 3:13); “o que for pendurado no madeiro é maldito de
Deus” (Dt. 21:23, verdade inclusive se for aplicado simplesmente à
pendurada do corpo morto; quanto mais quando se refere a uma pessoa
viva). Que a cruz era um termo de horror, fica claro também pelo
versículo 31 deste capítulo; por 1Co. 1:23; e por Fp. 2:8.
2. Obrigar pessoa sentenciada, neste caso a Jesus, a levar a cruz
aumentava a vergonha.
3. Carregá-la Ele mesmo, significando: carregá-la sozinho embora
fosse pesada e embora seu corpo já tivesse sido submetido a um terrível
castigo, sublinha o fato de que o Servo Sofredor era conduzido a um
isolamento completo.
4. Sair da cidade para ser crucificado (“saiu”) acrescenta ainda
outro elemento à maldição, como se ensina claramente em Hb. 13:12, 13,
sobre a base de Êx. 29:14; Lv. 4:12, 21; 9:11; 16:27; Nm. 19:3.
O lugar onde se realizou a crucificação chamava-se O lugar da
Caveira. Para mantê-lo mais perto possível do sentido (bem como do
significado) do original poderia traduzir-se como: O lugar do Crânio. O
termo grego tomado do aramaico Gólgota significa a caveira. O latim
Calvaria (do qual se deriva nosso Calvário) também significa caveira.
Refere-se a calvus, calva (cf. o alemão kahl, o holandês kaal, que
significa calvo; daí, calva: a cabeça sem corto). 423
Mas por que este lugar chamava-se O lugar da Caveira?
Ofereceram-se várias respostas: a. porque se parecia a uma caveira; b.
porque segundo uma lenda muito difundida (encontrada nos escritos de
Orígenes, Atanásio, e Epifânio) tinha sido descoberta aí a caveira de
Adão; c. porque era um lugar de execução; (intimamente relacionado); d.

423
Cf. Latin Dictionary (Dicionário Latino), de Harper, New York, 1907; termos calvária, calvus, p.
273.
João (William Hendriksen) 859
porque era um lugar onde se encontravam caveiras espalhadas. Algumas
destas teorias são objetáveis à primeira vista. Nem sequer a. (forma de
crânio) é totalmente segura. Epifânio, quem escreveu no quarto século, já
objetava contra esta opinião, dizendo que o lugar não se parecia em nada
a uma caveira. (Mas Cirilo de Alexandria parece indicar que havia certa
semelhança, Conferencias catequéticas, XIII, 39). A melhor resposta é
que não sabemos por que o lugar chamava-se O lugar da Caveira.
Onde estava o Calvário? Alguns que foram a Palestina o localizam
a 230 metros ao NE da porta Damasco. Este é o Calvário de Gordon. A
colina parece-se de fato a uma caveira. Está fora da porta, perto da
estrada. A seus arredores há tumbas escavadas na rocha e jardins.
Segundo alguns, isso quase resolve o assunto. Outros intérpretes, porém,
objetam contra esta teoria, pelas seguintes razões:
1. A forma acalaverada do lugar (órbitas de olhos, topo
arredondado) pode dever-se a escavações artificiais depois do tempo de
Cristo. E embora não fosse assim, como sabemos se o nome O lugar da
Caveira significa lugar em forma de caveira?
2. Este lugar carece do apoio da tradição.
Cerca de meio quilômetro a sudoeste do Calvário de Gordon, e
dentro das muralhas da cidade moderna, está a Igreja do Santo Sepulcro.
Este é o lugar que apoia a tradição mais antiga. Para dar crédito a esta
tradição, deve provar-se primeiro a. que este lugar estava de fato “fora
da porta” no tempo do ministério terrestre de Jesus (Jo 19:17, 18; Hb.
13:12, 13); b. que, no entanto, estava perto dos muros da cidade (Jo
19:20); c. que estava perto de uma estrada ou caminho (Mt. 27:39); e d.
que muito próximo ao mesmo havia um jardim (Jo. 19:41). Até este
momento não se demonstraram todas estas coisas com relação a nenhum
lugar (quer seja o tradicional, ou Calvário de Gordon, ou qualquer
outro). Devido à fisiografia geral de Jerusalém e seus arredores, é,
João (William Hendriksen) 860
contudo, quase certo que nenhum dos dois lugares mais favorecidos pode
estar muito longe do lugar onde o Senhor foi crucificado. 424
Aí, pois, o crucificaram. O pronome implícito refere-se aos
soldados, como fica evidente por Jo 19:23. No original o fato mais
glorioso da história da redenção se expressa com apenas três palavras
(literalmente “onde o crucificaram”). Esta forma de execução existia em
muitas nações antigas, tais como a Macedônia, Pérsia, Síria, Egito e o
Império Romano. (Os judeus utilizavam outros métodos, especialmente a
lapidação.) Roma geralmente (nem sempre) reservava esta forma de
castigo para os escravos e para os réus dos piores crimes.
Não se revelou o que induziu Pilatos a crucificar mais dois com
Jesus, um a cada lado. Talvez foi para ofender os judeus, como se
quisesse dizer: «Assim é vosso rei, do mesmo nível que outros
criminosos comuns». Mas, do ponto de vista divino, era um lugar
honorífico, porque Jesus tinha vindo “ao mundo para salvar aos
pecadores”. Além disso, nesta crucificação entre dois malfeitores (Lc.
23:33) estava-se cumprindo uma profecia, Is. 53:12: “foi contado com os
pecadores”.
Tem-se dito bem que a pessoa crucificada “morria mil mortes”.
Perfuravam-lhe mãos e pés com longos pregos (Jo 20:25; cf. Lc. 24:40).
Entre os horrores que se sofriam enquanto se pendia desta maneira (com
os pés apoiados numa tabuleta, a pouca distância do solo) estavam os
seguintes: forte inflamação, inchaço das feridas na zona dos pregos, dor
insuportável pelos tendões rasgados, desconforto terrível pela posição
tensa do corpo, dor de cabeça constante e sede violenta (Jo 19:28).
No caso de Jesus, no entanto, não se deveria enfatizar a tortura
física que sofreu. Tem-se dito que só os condenados no inferno sabem o
que sofreu Jesus quando morreu na cruz. Num sentido isso é verdade,
porque também eles sofrem a morte eterna. No entanto, deveria
424
Veja-se também a exposição no I.S.B.E., artigo “Gólgota” por E. W. G. Masterman; W. D. B., p.
99, e Lâmina XVII C; e Viewmaster Travelogue, Rolo número 4001, Getsêmani ao Calvário, Cenas
2–7.
João (William Hendriksen) 861
acrescentar-se que eles nunca estiveram no céu. O Filho de Deus, por
outro lado, desceu das regiões de deleite infinito na comunhão mais
íntima possível com Seu Pai (Jo 1:1; 17:5) às profundidades abismais do
inferno. Na cruz exclamou: “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” (Mt. 27:46).
19, 20. Pilatos mandou preparar uma placa e pregá-la na cruz, com a
seguinte inscrição: JESUS NAZARENO, O REI DOS JUDEUS. Muitos
dos judeus leram a placa, pois o lugar em que Jesus foi crucificado ficava
próximo da cidade, e a placa estava escrita em aramaico, latim e grego
[NVI].
Pilatos fez com que se escrevesse um título (Mt. 27:37: causa; Mc.
15:26 e Lc. 23:38: título) sobre a cabeça de Jesus. Com relação a este
título (título, certamente, porque no caso de Jesus não se registrou
nenhum crime) os críticos encontraram outra contradição na Bíblia.
Apontam o fato de que as palavras que o compõem diferem nos quatro
Evangelhos. Mas este argumento é fácil de refutar. Sem dúvida, não foi
necessário que cada um dos autores de Evangelhos escrevessem todas as
palavras. Cada um deles dá a substância, tal como a veem. O título
completo deve ter sido aproximadamente assim: ESTE É JESUS DE
NAZARÉ, O REI DOS JUDIOS. Por isso Mateus diz que a causa escrita
sobre a cabeça de Jesus dizia: ESTE É JESUS O REI DOS JUDEUS
(Mt. 27:37).
Marcos afirma que a inscrição dizia: O REI DOS JUDIOS (Mc.
15:26). A versão que dá Lucas da inscrição diz: ESTE É O REI DOS
JUDEUS (Lc. 23:38). E segundo João, quem esteve presente e deve tê-lo
visto, o título dizia: JESUS NAZARENO, O REI DOS JUDEUS.
Onde, exatamente onde, está a discrepância? Acaso a pessoa que
viu um acidente é mentirosa porque não informa tudo o que ocorreu?
Como o lugar onde Jesus foi crucificado estava perto da cidade (e
havia tantos judeus na cidade e fora dela, aqueles que acudiram a
Jerusalém de todas as direções para assistir à festa de Páscoa), este título
o leram muitos. Além disso, inclusive os que provinham de lugares
João (William Hendriksen) 862
distantes e tinham esquecido o aramaico mas sabiam grego podiam
interpretar o título. Estava escrito em aramaico, que era a língua que
falavam os judeus da Palestina (e outros também), em latim, língua
oficial do governo, e em grego, língua mundial do comércio e a cultura.
O rei dos judeus crucificado a pedido dos judeus; que todo mundo
saiba. Ao rejeitá-Lo, rejeitaram-se a si mesmos. E esta última rejeição
significa “a reconciliação do mundo” (Os escolhidos de Deus de toda a
tribo e nação). Veja-se Rm. 11:15. Por isso, todo mundo deve poder ler
este título. Eis aqui um Salvador que tem significado internacional.
21, 22. Os principais sacerdotes diziam a Pilatos: Não escrevas: Rei
dos judeus, e sim que ele disse: Sou o rei dos judeus. Respondeu Pilatos: O
que escrevi escrevi.
O próprio Deus foi quem em Sua maravilhosa providência tinha
dirigido a mão de Pilatos. Isto não faz de modo algum Deus responsável
pelos motivos de Pilatos ao escrever o título. Nem tampouco significa
que Deus interpretou o título como o fez o governador. Mas as palavras,
como tais, eram, contudo, verdadeiras. Eram verdadeiras porquanto o rei
dos judeus é crucificado para que possa ser o rei de um reino espiritual
(veja-se sobre Jo 18:36, 37) que não reconhece diferenças nacionais nem
raciais, um reino em que os judeus de língua aramaica, os romanos e os
gregos — sim, os escolhidos de toda “tribo, língua, povo e nação” (Ap.
5:9) — são os cidadãos. Veja-se sobre Jo 1:29; 3:16, 17; 4:42; 6:33, 51;
8:12; 9:5; 10:16; 11:52; 12:32.
Para os principais sacerdotes este título é uma ofensa. Com toda
probabilidade Pilatos o tinha planejado como tal. Estes dignitários judeus
chegam ao governador com a exigência: “Não escrevas: Rei dos judeus,
e sim que ele disse: Sou o rei dos judeus”. Para os principais sacerdotes
(e talvez ainda mais para os fariseus membros do Sinédrio) a ideia de
que era crucificado “o Rei dos judeus, a Esperança de Israel”, era um
gole amargo de tomar. Fez-se ainda mais amargo quando refletiram a
respeito do fato de que esta maldição tinha sido pronunciada sobre ele a
pedido deles mesmos. Isto não pode ser. Pilatos deve a todo custo mudar
João (William Hendriksen) 863
o título por uma descrição do crime que Jesus tinha cometido. Acaso não
tinha cometido o crime de proclamar-se rei dos judeus?
Mas desta vez Pilatos não quer ceder. Ainda cheio de ira pela
grande derrota sofrida, pelo menos se apontará uma pequena vitória. Sua
resposta concisa e brusca: “O que escrevi escrevi”.
E parece como se escutássemos a voz de Deus que confirma esta
exata afirmação. Também Ele diz: “O que Eu escrevi, escrevi”.
23, 24. Os soldados, pois, quando crucificaram Jesus, tomaram-lhe
as vestes e fizeram quatro partes, para cada soldado uma parte; e
pegaram também a túnica. A túnica, porém, era sem costura, toda tecida
de alto a baixo. Disseram, pois, uns aos outros: Não a rasguemos, mas
lancemos sortes sobre ela para ver a quem caberá — para se cumprir a
Escritura: Repartiram entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica
lançaram sortes. Assim, pois, o fizeram os soldados.
Como era de costume, as vestes que o condenado tinha usado
dividiam-se entre os que executavam a sentença. Cf. Mt. 27:35; Mc.
15:24; Lc. 23:24. Sobretudo à luz de Mc. 15:24 (“repartiram entre si as
vestes dele, lançando-lhes sorte, para ver o que levaria cada um”)
pareceria que a ideia não é que se dividiu ou partiu um vestido em quatro
partes (ou que vários vestidos se cortaram em partes iguais) — neste
caso, para que lançar sortes? — mas havia quatro objetos de vestir, e que
cada um dos soldados ficou com um. Estes objetos eram de valor
desigual; por isso os soldados (como fica claro nos Sinóticos) lançaram
sortes (dados, talvez). Indicou-se que estes quatro objetos eram: lenço de
cabeça, sandálias, cinturão, e manto.
Mas havia um quinta objeto, ou seja, a túnica inconsútil, “de um só
tecido de alto a baixo”. Esta era o objeto que se usava diretamente sobre
o corpo. De ter havido só quatro objetos, não teria havido problema,
porque os soldados eram quatro; em consequência, uma para cada um.
Mas o que fazer com a quinta? Esse era o problema. Cortar esta túnica e
dar a cada soldado uma parte não teria sido útil para ninguém. Muito
pouco se podia fazer com uma parte de uma túnica. Por isso decidem não
João (William Hendriksen) 864
fazê-lo assim. Em lugar deles decidem que a túnica, de uma só peça (sem
costura. mas tecida de alto a baixo) deve sortear-se embora isto implique
que um dos homens fosse receber mais que os outros. 425
Agora, em tudo isso estava se cumprindo uma profecia, a que se
encontra em Sl. 22:18 (citado exatamente da LXX, Sl. 21:19). É um fato
bem conhecido que Davi sofreu muito pelo reino de Deus. Isto, no
entanto, não significa necessariamente que todas as passagens deste
comovedor salmo se refiram diretamente ao que ele havia literalmente
experimentado, e só indiretamente à cruz e suas agonias. Se referir-se
sempre ao sofrimento de Davi, deveria concluir-se que se utilizou
plenamente a hipérbole; veja-se sobretudo versículos 12–18. Pareceria
mais razoável a ideia de que as desgraças que se descrevem nestes versos
se referem diretamente a Cristo, e se cumpriram só nEle, embora se
anunciassem tenuemente na vida de Davi.
É evidente que a profecia do Sl. 22 refere-se tanto à divisão das
vestes quanto ao sorteio. Alguns comentaristas creem que o substantivo
singular na segunda linha (veste) refere-se exclusivamente à túnica sem
costuras. No entanto, devido ao paralelismo, provavelmente fica melhor
considerar este singular como sinônimo coletivo de vestidos. O
cumprimento da profecia com relação à distribuição das vestes de Cristo
desperta nossa surpresa inclusive sem introduzir nenhum refinamento
excessivo na exegese.
O Dr. J. P. Free em sua excelente obra Archeology and Bible
History, p. 284, chama a atenção a respeito do feito que segundo o
Cônego Liddon há trezentas e trinta e duas profecias distintas no Antigo
Testamento que se cumpriram literalmente em Cristo, e a respeito do
fato adicional de que a probabilidade matemática de que todas estas
profecias se cumpram em um homem está representada pela fração:

425
Josefo menciona de forma especial o fato de que a longa túnica do sumo sacerdote não estava
cosida (para unir assim várias partes), mas era tecida de uma só peça. É evidente, portanto, que esses
objetos, tecidos assim, consideravam-se como muito valiosos. Veja-se Antiguidades dos judeus, III,
vii, 4.
João (William Hendriksen) 865
Não deve passar por alto a implicação evidente a passagem que
estamos estudando. É esta: Jesus levou por nós a maldição da nudez a
fim de livrar-nos da mesma. Cf. Gn. 3:9–11, 21; logo 2Co. 5:4; Ap. 7:13,
14. Sem dúvida que se escolher-se, para mencioná-lo de forma especial,
o que fez Cam a seu pai Noé por seu caráter reprovável, o que os
soldados fizeram a Jesus quando o despiram e logo se repartiram seus
vestidos, por sorteio, deveria nos sobressaltar de horror. Assim o
sugerem as palavras: Assim, pois, o fizeram os soldados. Fizeram o
vergonhoso. No entanto, por meio desta ação vergonhosa cumpriu-se o
plano eterno de Deus (em consequência, também a profecia). Por isso,
detemo-nos com horror … e adoração.
25. E junto à cruz estavam a mãe de Jesus, e a irmã dela, e Maria,
mulher de Clopas, e Maria Madalena.
Dentre as muitas mulheres (Mt. 27:55) que estavam perto (veja-se
14:23, nota 320) — mas não muito perto (veja-se Mt. 27:55; Mc. 15:40;
Lc. 23:49: “longe”) 426 — da cruz de Jesus, João seleciona a quatro para
lhes dar um trato especial.
É interessante comparar a lista de João com listas parecidas em
Mateus e Marcos:
Mt. 27:56 Mc. 15:40 Jo. 19:25
1. Maria Madalena 1. Maria Madalena 1. Sua mãe

2. Maria, a mãe de 2. Maria, a mãe de 2. A irmã de


Tiago e José Tiago o menor e José. sua mãe.

3. A mãe dos 3. Salomé 3. Maria a (esposa


filhos do Zebedeu. provavelmente) de
Cleopas.
4. Maria Madalena.

426
Acaso se mantiveram primeiro longe, e se foram aproximando quando se convenceram de que os
soldados não lhes fariam nada?
João (William Hendriksen) 866
O porquê só se mencionam estas quatro aqui em Jo 19:25, não se
revelou. Não é improvável que tivessem uma relação mais estreita com o
Senhor que as outras mulheres. Assim, por exemplo, menciona-se a mãe
de Jesus, e também a mãe dos filhos de Zebedeu (que eram discípulos de
Jesus, do grupo íntimo dos três). A comparação entre a lista de Mateus e
a de Marcos pareceria indicar que o nome da mãe de Tiago e João era
Salomé.
Não podemos aceitar a teoria 427 segundo a qual João menciona só
três mulheres. Se fosse certa, duas irmãs (a mãe de Jesus e sua tia)
teriam o mesmo nome (Maria). Além disso, nesse caso João, embora não
mencione pelo nome a mãe de Jesus, não só mencionaria pelo nome a
sua irmã, mas também informaria a seus leitores que tinha certa relação
com Cleopas (sendo provavelmente sua esposa). Isto não é nada
razoável. É muito mais provável que seja correta a explicação de que “a
mãe dos filhos de Zebedeu” e “Salomé” e “a irmã de sua mãe” fossem a
mesma pessoa. 428
Poderia ser inclusive que as três listas fossem idênticas, com uma
exceção, ou seja, que João acrescenta a mãe de Jesus (sem mencioná-la
pelo nome). Se isto fosse assim, teríamos a seguinte concordância:

A mãe de Jesus.
Salomé que era sua irmã segundo Marcos, era a mãe de Tiago e do
escritor do quarto Evangelho (veja-se I da Introdução, a última parte).
Maria, a esposa de Cleopas. Se esta concordância for correta, seria
a mãe de Tiago o Menor e de José.
Maria Madalena.
Deve sublinhar-se, porém, que esta concordância, embora não
improvável, não se pode provar.

427
Vejam-se os argumentos em favor desta teoria em Lenski, op. cit., pp. 1266–1270.
428
Ao aceitar a teoria das quatro mulheres estou completamente de acordo com F. W. Grosheide, op.
cit., pp. 499–501; G. T. Purves, art. “Maria” em W. D. B.; y muchos otros.
João (William Hendriksen) 867
Tomando estas quatro na ordem mencionada, e supondo que a
concordância oferecida seja correta, as referências do Novo Testamento
às mesmas são assim:
(1) A mãe de Jesus. Seu nome era Maria. Era a esposa de José.
Encontram-se referências a ela nas seguintes passagens: Mt. 1:16, 18, 20;
2:11; 13:55; Mc. 6:3; Lc. 1:27, 30, 34, 38, 39, 41, 46, 56; 2:5, 16, 19, 34;
Jo. 2:1, 3, 5, 12; 6:42; 19:25, 26, 27; At. 1:14.
Veja-se também sobre Jo 2:1, 2; 2:12; e 6:42.
(2) Salomé. Veja-se Mt. 27:56; Mc. 15:40; 16:1; Jo. 19:25.
(3) Maria, a esposa de Cleopas. Veja-se Mt. 27:56, 61; 28:1; Mc.
15:40, 47; 16:1; Lc. 24:10; Jo 19:25.
(4) Maria Madalena. Veja-se Mt. 27:56, 61; 28:1; Mc. 15:40, 47;
16:1, 9; Lc. 8:2; 24:10; Jo 19:25; 20:1, 2, 11–18.
Embora não se saiba quase nada a respeito de Salomé e Maria, a
esposa de Cleopas, relatou-se mais com relação a Maria Madalena.
Residia em Magadã, situada na margem sudoeste do Mar da Galileia.
Jesus fez um maravilhoso ato de misericórdia ao expulsar dela sete
demônios. Por isso, não surpreende que se convertesse numa muito
agradecida discípula do Senhor. (Incidentalmente, não era a mulher de
má fama, cuja história refere-se em Lc. 7:36–50. Identificar as duas é
injusto para com ela). Era uma das mulheres que, uma vez convertida em
discípula do Senhor, ajudava-O no ministério entregando-Lhe algo de
seus bens. Não nos surpreende encontrá-la junto à cruz, junto ao sepulcro
quando Jesus foi sepultado (junto com Maria, a esposa de Cleopas), e
também junto ao sepulcro ao terceiro dia (junto com Maria, a esposa de
Cleopas, e com Salomé). Pode-se encontrar mais informação a respeito
dela em Jo 20:1, 2, 11–18.
Embora a fé destas mulheres não foi o que tivesse devido ser, seu
amor pelo Senhor fica evidente em todo momento. Pareceria que de todo
o círculo de onze homens só um esteve junto à cruz. Esse foi o apóstolo
João. Mas houve várias mulheres. Tanto elas como sua coragem e amor,
merecem todo elogio.
João (William Hendriksen) 868
26, 27. Vendo Jesus sua mãe e junto a ela o discípulo amado, disse:
Mulher, eis aí teu filho. Depois, disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. Dessa
hora em diante, o discípulo a tomou para casa.
Das sete palavras da cruz João refere três. As sete com suas
referências são as seguintes:
(1) “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc. 23:24).
(2) “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc. 23:43).
(3) “Mulher, eis aí o teu filho! Eis aí tua mãe!” (Jo. 19:26, 27).
(4) “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt. 27:46;
Mc. 15:34).
(5) “Tenho sede” (Jo. 19:28).
(6) “Está consumado!” (Jo. 19:30).
(7) “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!” (Lc. 23:46).
Em consequência, o que aqui temos em Jo 19:26, 27 é a terceira
palavra da cruz. É doloroso para Jesus ver sua mãe no meio daqueles
que O acompanhavam junto à cruz. Sofria pelo sofrimento dela. Junto a
ela estava o apóstolo João. O particípio estava presente, é masculino, e
se refere só a João. Em consequência, poderia parafrasear-se a oração
assim: «Então quando Jesus viu sua mãe, e quando viu o discípulo a
quem junto a ela, disse à sua mãe», etc. Quanto à expressão “discípulo a
quem ele amava” veja-se I da Introdução; também a respeito de Jo
13:23; e quanto ao verbo como distinto de seu sinônimo veja-se Jo
21:15–17. Ninguém entendeu a Jesus melhor que João. Além disso, o
amor do Senhor por ele despertava seu amor. Por isso vemo-lo aqui na
cruz.
Jesus, então, ao notar sua presença, disse à Sua mãe: “Mulher, eis aí
teu filho.” Foi muito bom de Sua parte dizer “Mulher” e não “Mãe”. A
palavra “Mãe” teria cravado a espada mais profundamente na alma de
Maria, a aguda e dolorosa espada da qual tinha falado Simeão (Lc. 2:35).
Aqui na cruz, bem como nas bodas de Caná (veja-se sobre Jo 2:4), foi
muito bom da parte de Jesus sublinhar por meio da palavra mulher que
Maria não devia seguir pensando nEle simplesmente como seu filho;
João (William Hendriksen) 869
porque, quanto mais O vê como tal, tanto mais sofrerá com o sofrimento
dEle. Maria deve começar a ver Jesus como a seu Senhor. Sim, inclusive
então sofrerá, mas será um sofrimento diferente. Então saberá que,
embora indescritivelmente terrível, a agonia dEle é, contudo, gloriosa
devido ao Seu propósito. Então começará a concentrar-se em seu
significado redentor. Em consequência, não mãe e sim mulher. O
sofrimento meramente emotivo de Maria — como qualquer mulher
sofreria pelo filho que é crucificado — deve substituir-se com algo mais
elevado e nobre, ou seja, com a adoração.
Ao dizer, “Mulher eis aí teu filho” Jesus confia Maria aos cuidados
de João, quem como se mostrou (veja-se sobre Jo 19:25), pode ter sido
seu sobrinho, o filho de sua irmã Salomé. Parece que João tinha moradia
em Jerusalém (como Pedro; veja-se sobre Jo 20:2), embora sua
verdadeira casa estava na Galileia. Poderia perguntar-se: «Mas, por que
não se confiou a Maria aos cuidados de algum de seus outros filhos» A
resposta é: provavelmente porque eles ainda não O tinham recebido com
fé viva (veja-se sobre Jo 7:5). E além disso, de quem se poderia esperar
que cuidasse melhor de Maria que o discípulo a quem Jesus amava?
A esse discípulo disse: “Eis aí tua mãe.” João entendeu
imediatamente, e a partir desse momento a acolheu em sua casa.
É verdade que aí está implícita uma lição a respeito da
responsabilidade dos filhos (pense-se em Jesus) com relação a seus pais
(pense-se em Maria). Mas, sem dúvida, não é a lição principal. O
sofrimento de Jesus ao ver Maria sofrer, e sobretudo seu amor
maravilhoso — a preocupação do Salvador por um dos Seus, mais que a
preocupação de um filho por sua mãe — estas são as coisas que
deveriam enfatizar-se.
28. Depois, vendo Jesus que tudo já estava consumado, para se
cumprir a Escritura, disse: Tenho sede!
Depois de ter falado as palavras (1) a (4), Jesus soube que Sua obra
por outros já tinha sido totalmente cumprida. Ao longo de Sua
permanência na terra e sobretudo na cruz tinha sofrido a ira de Deus
João (William Hendriksen) 870
contra o pecado para assim libertar Seu povo do mesmo e lhes conseguir
salvação eterna. A tarefa foi cumprida. Jesus o sabia, porque conhecia
todas as coisas em sua totalidade e uma por uma. Quanto ao
conhecimento de Jesus veja-se também sobre Jo 1:42, 47, 48; 2:24, 25;
5:6; 6:64; 16:30; 21:17.
Em consequência, fixando-se agora em Sua própria necessidade,
disse: “Tenho sede!” Ele disse para que também com relação a esta sede
se cumprisse a profecia. Na vida e morte do Senhor cumpria-se
constantemente a Escritura. Veja-se sobre Jo 19:23, 24. Neste caso se
cumpria a profecia do Sl. 22:15 e do Sl. 69:21b. Quanto ao Sl. 22 como
messiânico veja-se sobre Jo 19:23, 24; quanto ao Sl. 69 veja-se sobre Jo
2:17 e sobre Jo 15:25.
Sugeriu-se que Jesus desejava apagar Sua angustiante sede para
poder prorromper o forte clamor referido em Lc. 23:46 (a sétima palavra;
veja-se sobre Jo 19:26, 27). É possível, mas o texto nada diz a respeito.
Também aqui, como antes, o que se enfatiza é o amor infinito do
Senhor, revelado no fato de estar disposto a uma sede abrasadora para
que pudesse ser para Seu povo fonte eterna de água viva. Quanto ao
sofrimento físico de Jesus, veja-se também sobre Jo 19:18.
Quanto a Jesus como fonte de água viva veja-se sobre Jo 4:10–15; e
sobre Jo 7:37–39.
29, 30. Estava ali um vaso cheio de vinagre. Embeberam de vinagre
uma esponja e, fixando-a num caniço de hissopo, lha chegaram à boca.
Quando, pois, Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado! E,
inclinando a cabeça, rendeu o espírito.
O vaso cheia de vinagre, vinho azedo como aquele que bebiam os
soldados, foi a fonte por meio da qual se acalmou a sede de Jesus.
Inclusive no processo de satisfazer, de algum modo, esta necessidade
física urgente, fez-se zombaria de Jesus. Mas João não conta essa parte
da história. Veja-se Mt. 27:48, 49. Menciona, porém, o fato de que eles
(referindo-se provavelmente ao centurião e a um dos soldados, este
último agindo por ordens do primeiro), tendo submerso uma esponja no
João (William Hendriksen) 871
vaso de vinagre (isto está claramente implícito), puseram-na num
hissopo e “lha chegaram à boca”, de forma que este líquido lhe levasse
certo alívio a seus lábios e garganta ressecados.
Tem-se escrito muito a respeito deste hissopo. Alguns encontram
um erro e quereriam substituir o termo traduzido como hissopo por outro
mais curto e semelhante. (Em lugar de _σσώπ_ preferem _σσ_). 429
Apontam o fato de que o hissopo é uma erva que não tem caule
suficiente para servir de caniço (Mt. 27:48) na qual sujeitar uma esponja.
Em consequência, “corrigem” o texto e utilizam o termo grego mais
breve, que significa garrocha. Mas isto não é certamente necessário. O
hissopo ou pau de hissopo ao qual João se refere pôde ter sido a
mejorena (Origanum maru), cujos caules lenhosos são o suficientemente
fortes e longos para satisfazer todas as exigências. Não foi preciso ser
muito longo para alcançar os lábios de Jesus, porque a cruz
provavelmente não chegava muito acima do nível do terreno.
Uma vez absorvido o vinagre Jesus disse: «tudo terminou» (ou está
consumado). Tal como Jesus o via, completou-se toda a obra da
redenção (tanto a obediência ativa como a passiva, tanto o cumprimento
da lei como o suportar sua maldição). E se alguém objetasse que ainda
não se tinha realizado a sepultura e que também isto (bem como o
descanso no sepulcro até o momento da ressurreição) era parte da
humilhação de Cristo, a resposta seria muito simples: na mente de Cristo
a sepultura é tão certa que pode falar como se também isto se tenha
cumprido. Veja-se também, com relação a isso, sobre Jo 17:4 e sobre Jo
17:11.
Tendo dito isso, Jesus inclinou a cabeça — um momento antes de
fazê-lo pronunciou outra palavra, Lc. 23:46 — e entregou o espírito.
Entregou-o. Ninguém o arrebatou. Entregou a vida.

429
Assim, por exemplo, E. J. Goodspeed, Problems of New Testament Translation, Chicago, 1945, pp.
115, 116. Também Joachim Camerarius, Sylburg, Beza, Boisius, Cobet, Dalman, Howard. Veja-se
também F. Field, Notes on the Translation of the New Testament, Cambridge, 1899, pp. 106ss.
João (William Hendriksen) 872
Veja-se sobre Jo 10:11; também sobre Jo 19:34–37. Quanto ao
significado do termo espírito veja-se sobre Jo 13:21, sobretudo nota 291.
31–33. Então, os judeus, para que no sábado não ficassem os corpos
na cruz, visto como era a preparação, pois era grande o dia daquele
sábado, rogaram a Pilatos que se lhes quebrassem as pernas, e fossem
tirados. Os soldados foram e quebraram as pernas ao primeiro e ao outro
que com ele tinham sido crucificados; chegando-se, porém, a Jesus, como
vissem que já estava morto, não lhe quebraram as pernas.
Às vezes os sanedritas podiam ser muito escrupulosos na
observância dos detalhes da lei cerimonial. Não era certo que a terra se
profanaria estivesse pendurasse toda a noite um corpo de uma cruz?
Veja-se Dt. 21:23. Esta profanação seria pior se os corpos
permanecessem na cruz no sábado. A tarde estava caindo (a tarde da
Preparação, quer dizer, da Sexta-feira; veja-se sobre Jo 19:14, 42);
aproximava-se o ocaso, ou seja, para o sábado. Além disso, este sábado
concreto era «de grande solenidade», porque era o sábado da Páscoa,
festividade de sete dias.
De modo que os judeus (possivelmente os principais sacerdotes)
pediram a Pilatos que fizesse quebrar as pernas dos crucificados, a fim
de que se produzira imediatamente a morte. Então se poderiam tirar os
corpos e tudo teria concluído antes do sábado.
Esta ruptura dos ossos (crurifragium é o nome) por meio de golpes
violentos de martelo ou aço era terrivelmente desumana. Produzia a
morte, que de não ser assim podia demorar para chegar horas e inclusive
dias. Diz o Dr. S. Bergsma num artigo ao que me referirei mais
detalhadamente um pouco mais adiante (veja-se sobre versículos 34–37):
“A comoção que produz semelhante ferida cruel aos ossos pode ser o
golpe de graça que produza a morte”.
Pilatos deu rapidamente a permissão. João viu como os soldados
rompiam os ossos dos dois malfeitores. Também viu que ao notarem que
Jesus já tinha morrido, não lhe quebraram os ossos. É muito provável
que se abstiveram de fazê-lo por ordem do centurião, em quem Jesus
João (William Hendriksen) 873
tinha produzido uma profunda impressão (Lc. 23:47). Não pareceria
provável também que José de Arimateia (veja-se sobre versículo 38) já
tivesse dado a conhecer ao centurião que ia pedir permissão a Pilatos
para baixar o corpo de Jesus?
34–37. Mas um dos soldados lhe abriu o lado com uma lança, e logo
saiu sangue e água. Aquele que isto viu testificou, sendo verdadeiro o seu
testemunho; e ele sabe que diz a verdade, para que também vós creiais. E
isto aconteceu para se cumprir a Escritura: Nenhum dos seus ossos será
quebrado. E outra vez diz a Escritura: Eles verão aquele a quem
traspassaram.
Para garantir que não existisse nem a mais mínima possibilidade de
que ficasse algo de vida no corpo de Jesus, um dos soldados atravessou o
lado de Jesus com uma lança ou espada. Como a espada era sustentada
na mão direita, provavelmente, o mais verossímil é que se abrisse o lado
esquerdo de Jesus. Imediatamente saiu sangue e água.
João amplia este fato, dedicando não menos de quatro versículos ao
mesmo. Deve ter tido um propósito ao fazê-lo assim. É muito provável
que procurasse dizer a seus leitores que Cristo, o Filho de Deus, de fato
morreu (segundo sua natureza humana). A morte de Jesus não foi na
aparência; foi real. O próprio apóstolo havia estado presente e tinha visto
brotar do lado do Senhor o sangue e a água. Que os docetas tomem nota!
Veja-se também II da Introdução.
Mas o que fez com que brotasse sangue e água da abertura
produzida pela espada? Tem-se escrito muito a respeito disso.
Consultem-nos distintos comentários; também o artigo Blood and Water
en I.S.B.E. Segundo este artigo a explicação fisiológica poderia ser esta,
que a morte de Jesus produziu-se pela ruptura do coração como resultado
de uma grande agonia e dor mentais. Uma morte assim seria quase
instantânea, e o sangue que desemboca no pericárdio se coagularia em
grumos vermelhos (sangue) e soro limpo (água). A ferida de espada
permitiria então que saísse esta sangue e água. O artigo menciona os
nomes de vários médicos distinguidos que têm aceito esta teoria.
João (William Hendriksen) 874
Faz uns anos o Dr. Stuart Bergsma, destacado médico de Grand
Rapids, Michigan (ex-missionário-médico em Etiópia — cirurgião do
Hospital Tafari Makkonen, George Memorial Building, Addis Ababa —
logo missionário-médico na Índia; autor de Rainbow Empire, Grand
Rapids, Michigan, 1932; e de Sons of Sheba, Grand Rapids, Michigan,
1933) escreveu um excelente artigo a respeito deste tema. Apareceu em
Março de 1948 em Calvin Forum. O Dr. Bergsma permitiu-me
amavelmente citar seu artigo.
Ele se abstém prudentemente de tirar uma conclusão concreta. O
assunto é muito incerto, e os especialistas em doenças cardíacas (e
sobretudo em ruptura do coração) não parecem estar em completo
acordo. No entanto, do artigo fica claro que o Dr. Bergsma inclina-se um
pouco à teoria do coração quebrado como explicação de que brotasse
sangue e água do lado de Jesus. Ele examinou o problema com típica
meticulosidade e consultou a vários especialistas na matéria. Em seu
artigo cita as fontes (livros e artigos publicados e correspondência
particular).
Antes de entrar em matéria já em detalhe, deveriam eliminar-se
algumas ideias errôneas:
1. A afirmação “Jesus morreu de ruptura do coração” costuma
despertar oposição imediata. Estamos tão acostumados a interpretar tais
frases de forma metafórica. Por exemplo, é provável que digamos com
relação a alguém que foi profundamente ferido em sua vida afetiva:
«Isso lhe destroçou o coração». Agora, é verdade que Jesus não morreu
por desengano. Morreu triunfador. Quando falamos da possibilidade de
que o sangue e água que brotaram do lado de Jesus indiquem uma
ruptura prévia do coração, utilizamos o termo rotura de coração num
sentido estritamente fisiológico.
2. Outro erro que é preciso dissipar é este, que se Jesus morreu de
ruptura de coração, não deu a vida. Neste caso Sua morte não foi um
sacrifício voluntário. Semelhante conclusão é totalmente errônea! Jesus
entregou certamente Sua vida em sacrifício voluntário. Este é o ensino
João (William Hendriksen) 875
claro de toda a Escritura, sobretudo Jo 10:11; veja-se sobre essa
passagem. Mas imaginemos, por um momento, que Jesus, até sabendo
que o tomar sobre si a ira de Deus Lhe destroçaria o coração decide,
contudo, fazê-lo; poderíamos dizer então que Sua morte não foi
voluntária? O caráter voluntário da morte de nosso Senhor certamente
não diminuiria um ápice.
3. Deve eliminar-se outro erro, ou seja, que a lançada produziu a
morte. Isto é totalmente errôneo; porque, o escritor inspirado, antes de
dizer algo a respeito da perfuração do lado de Cristo, já escrevera:
“Quando, pois, Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado! E,
inclinando a cabeça, rendeu o espírito”. O que João escreve com relação
à lançada não foi escrito para descrever o que causou a morte de Cristo,
senão para mostrar que Jesus de fato tinha morrido. Além disso, como
diz o Dr. S. Bergsma em seu artigo: “Pressupor, como fazem alguns, que
a lança perfurou o coração ainda vivo, e explicar desta maneira o sangue
e água, é contrário.… à ciência, porque neste caso teria brotado puro
sangue. Sua morte ia produzir-se na própria crucificação, não na lançada
de um soldado.
Uma vez descartados estes erros passaremos agora a apresentar a
posição do Dr. Bergsma, citando suas palavras:
“Em minha opinião, que sustento humildemente embora não seja
apoiada pelas primeiras quatro autoridades que citei, embora sim pelas
duas últimas, a presença de uma quantidade considerável de soro e
coágulos de sangue — que brotam de uma ferida de lança, como se
descreveu antes, pôde proceder só do coração ou saco pericárdico.
Devemos aceitar em princípio que o corpo de Cristo não estava afetado
por nenhuma enfermidade prévia. Era um perfeito cordeiro de Deus. É
extremamente estranho, quase impossível, dizem as autoridades, que se
rompa o músculo cardíaco normal. Cristo, no entanto, sofreu como
ninguém antes nem depois sofreu. O Sl. 69:20 diz profeticamente, ‘O
opróbrio partiu-me o coração’. O versículo seguinte prossegue, ‘Por
alimento me deram fel e na minha sede me deram a beber vinagre’.
João (William Hendriksen) 876
Tomamos a segunda profecia como cumprida literalmente, mas muitos
opinam que é fantasioso tomar o versículo 20 também de forma literal.
Se o coração de Cristo não se rompeu, é difícil explicar qualquer
acumulação de sangue e água como João descreve. A efusão pericárdica
normal de uns trinta gramas ou menos seria uma simples trivialidade que
ninguém tivesse observado”.
João escreve o que viu. Dá um testemunho autoritativo do que
percebeu com seus próprios olhos. Quanto ao verbo testificar, veja-se
sobre Jo 1:7, 8. Este testemunho é genuíno. “Ele” — provavelmente
referindo-se a Cristo — sabe que João diz a verdade. Diz a verdade com
relação ao sangue e a água (elementos que demonstram que Cristo tinha
tomado de fato a natureza humana, e que havia realmente morrido em
Sua natureza humana) a fim de que os leitores não se sintam
desorientados por heresias docetas, mas continuem crendo. Veja-se
também sobre Jo 20:30, 31.
Não é completamente impossível que o Evangelho de João, tão
simbólico, queira vincular este sangue e água com os efeitos da expiação
de Cristo; 1Jo 5:6 talvez aponta nessa direção. Cf. Jo. 3:5; 7:37–39.
Quando João viu como os soldados se abstiveram de quebrar os
ossos de Cristo, viu nisso o cumprimento das palavras referidas em Êx.
12:46; Nm. 9:12. Não se devia quebrar nenhum osso do cordeiro pascal.
Cristo era o verdadeiro cordeiro pascal. Veja-se sobre Jo 1:29; leia-se
também 1Co. 5:7.
Quando o apóstolo observou a perfuração do lado de Cristo, viu
nisso o cumprimento da profecia de Zc. 2:10. Quanto ao conteúdo geral
das profecias de Zacarias veja-se sobre Jo 12:14, 15. As palavras do
profeta citam-se aqui não segundo a LXX, mas antes, segundo o original
hebraico. A mesma profecia, de forma algo modificada, encontra-se no
Ap. 1:7. Neste caso — aqui em Jo 19:37 — o que se quer dizer
simplesmente é que a lançada cumpriu a profecia.
João (William Hendriksen) 877
Síntese de Jo 19:17–37
O Filho de Deus morre como substituto de Seu povo. A
crucificação.

A. Jesus leva a cruz; cravado à cruz entre dois criminosos.


O Rei dos judeus crucificado entre dois criminosos! Por parte do
governador esta decisão foi tomada provavelmente como ofensa aos
judeus. Mas tem outro aspecto: o Salvador crucificado entre dois
pecadores, um dos quais vai se salvar. Da parte de Deus (e em
cumprimento da profecia) esta decisão foi tomada providencialmente
com o fim de descrever o propósito glorioso da cruz.

B. A disputa a respeito do título.


Embora Pilatos não soubesse, o título foi inspirado! O próprio Deus
o escreveu. Foi inspirado no que se omitiu: não se mencionou nenhum
pecado. Também foi inspirado no que expressou: o Rei dos judeus
crucificado a fim de poder manifestar o Rei tanto de judeus como de
gentios — escolhidos dentre todas as nações —.

C. A partilha dos vestes.


Isto foi um cumprimento maravilhoso da profecia e ao mesmo
tempo nos mostra como Cristo levou a maldição a fim de nos libertar
dela. Quanto à fração descrita na explicação do versículo 24, não garanto
sua fidelidade. Escrevi-o, no entanto, porque estou convencido de que
aponta à verdadeira direção, ou seja, o cumprimento verdadeiramente
surpreendente da profecia com relação a Cristo. Quem pode ouvir uma
interpretação do Messias e não sentir-se impressionado com isso?
João (William Hendriksen) 878
D. As palavras a Maria e a João.
O coração mais amoroso (o de João) manteve-se o mais próximo de
Jesus. Foi-lhe confiado, só a ele, o cuidado de Maria. Isto também revela
a “forma de ser” de Jesus.

E. A sede de Jesus.
O mesmo Evangelho que proclama eloquentemente a divindade de
Cristo, também revela de forma diáfana Sua humanidade. Em Sua
natureza humana — e só nela — sofreu. A natureza divina não podia
sofrer. Entre a exclamação “Tenho sede”, e “Está consumado” passou
muito pouco tempo. Então entregou Seu espírito. A natureza voluntária
desta ação não pode ser suficientemente enfatizada. Por certo, isto não
exclui de forma alguma a ideia de uma causa física que produziu sua
morte física. Mas essa causa física também estava completamente em
Seu poder.

F. A perfuração de seu flanco.


Além do já tal, observe-se o seguinte:
1. A teoria da ruptura do coração (antes da lançada) tem os
seguintes aspectos em seu favor:
a. Toma muito a sério a profecia do Sl. 69:20 (“O opróbrio partiu-
me o coração”), e aceita o mesmo cumprimento literal desta profecia
como se costuma aceitar com relação ao versículo seguinte (“Por
alimento me deram fel e na minha sede me deram a beber vinagre”).
b. Argui-se que esta teoria oferece uma explicação razoável do
fluxo de sangue e água, o que não fazem outras teorias.
c. Esta teoria sublinha a grandeza da agonia mental e espiritual de
Cristo. Normalmente a morte por crucificação não produziria a ruptura
do coração, mas esta morte não era comum. Este Mártir suportou a ira de
Deus contra o pecado. Sofreu a morte eterna, as angústias infernais.
João (William Hendriksen) 879
2. Esta teoria tem as seguintes fraquezas:
a. Não é mais que uma possibilidade. Para elevá-la à categoria de
probabilidade terei que ter mais informação que a que se subministra no
Evangelho. Assim, por exemplo, nem sequer podemos provar que o lado
perfurado fora o esquerdo.
b. Não se dispõe de dados pós-morte com relação a outras pessoas
que morreram crucificadas. Embora os tivéssemos, não poderiam
mostrar o que pôde ter sucedido no caso deste Mártir único.
c. Pôde ter sido produzido um milagre, ou pode haver outra forma
não milagrosa de explicar o fluxo de sangue e água. Simplesmente não o
sabemos.
Como se indicou, o Dr. Bergsma expressou-se com grande e
elogiável cautela. Vale a pena estudar com cuidado seu artigo.
Deveria pôr-se de relevo, mais uma vez, um ponto já sublinhado na
exegese:
O relato inspirado não se interessa em nos mostrar como saiu do
lado de Jesus sangre e água. Só se interessa em revelar o fato em si.
Como resultado, devemos fixar nossa atenção nesse ponto. Do lado de
Jesus brotaram de fato sangre e água. Por isso, era com toda certeza
humano, possuidor de um corpo humano. Sem dúvida, havia morrido.
Seu sangue e Seu Espírito com toda certeza purificarão de pecado.
Cumpriu-se tudo, tanto na omissão do crurifrágio em seu caso como no
broto de sangue e água.

JO 19:38–42

19:38-40. Depois disto, José de Arimatéia, que era discípulo de Jesus,


ainda que ocultamente pelo receio que tinha dos judeus, rogou a Pilatos
lhe permitisse tirar o corpo de Jesus. Pilatos lho permitiu. Então, foi José
de Arimatéia e retirou o corpo de Jesus. E também Nicodemos, aquele
que anteriormente viera ter com Jesus à noite, foi, levando cerca de cem
libras de um composto de mirra e aloés. Tomaram, pois, o corpo de Jesus
João (William Hendriksen) 880
e o envolveram em lençóis com os aromas, como é de uso entre os judeus
na preparação para o sepulcro.
Unimos estes três versículos porque José e Nicodemos agiram de
acordo. Devem de antemão ter ficado de acordo quanto ao que faria cada
um. Em consequência, chegaram totalmente preparados. Por outros
Evangelhos fica claro que estiveram presentes algumas mulheres. Veja-
se, por exemplo, Lc. 23:55.
Depois de haver-se cumprido tudo e de ter determinado que Jesus
estava morto de fato, José de Arimateia se apresentou na cena. Era
homem rico (Mt. 27:57), devoto (Mc. 15:43) e membro do Sinédrio (Lc.
23:51), e que não tinha consentido (talvez por sua ausência durante a
votação?) na trama para condenar e crucificar a Jesus (Lc. 23:51).
Arimateia de onde procedia era provavelmente a antiga Ramataim-
Zofim, situada a um pouco mais de trinta e quatro quilômetros a noroeste
de Jerusalém, ou a vinte e dois quilômetros diretamente desde Joppa.
Tinha sido discípulo de Jesus só de forma secreta. Encheu-se de um
temor pecaminoso; pensando, talvez, que se fizesse algo por Jesus, os
outros membros do Sinédrio o separariam do conselho, e não só de seu
conselho mas também inclusive da sinagoga. Veja-se sobre Jo 7:13;
9:22; e Jo 20:19. Mas agora, como fruto da morte expiatória de Cristo e
de seu amor por ele, este homem de repente se tornou muito valente. Vai
a Pilatos para pedir o corpo de Jesus. Mc. 15:43 põe de relevo a valentia
deste ato. A valentia se manifesta sobretudo em que agiu apesar do fato
de que sabia que seus colegas do Sinédrio se inteirariam disso.
Pilatos, tendo-se assegurado de que Jesus tinha morrido de fato
(Mc. 15:44), concedeu-lhe a petição. Assim, pois, José voltou ao
Calvário e, com a ajuda de outros, baixou o corpo da cruz. Não se
revelou como o fizeram. Deixaremos que os artistas preencham este
vazio.
O que sabemos é que José contou com a cooperação voluntária de
Nicodemos. Quanto a Nicodemos veja-se também sobre Jo 3:1–21 e em
Jo 7:50–52. Enquanto que José proveu os tecidos e seu próprio sepulcro
João (William Hendriksen) 881
novo (Mt. 27:60), Nicodemos proveu as especiarias aromáticas. Trouxe
uma mescla de mirra e aloés. A mirra provavelmente era extraída de
uma pequena árvore de madeira cheirosa, ou seja, o balsamodendron da
Arábia; os aloés de uma árvore grande, o agalocha, cuja madeira contém
resina e proporciona perfume em pó. Nicodemos havia trazido uma
mescla das duas, em quantidade não menor a cem libras. Quanto a esta
medida de peso, veja-se sobre Jo 12:3. Cem libras daquelas equivaliam a
uns trinta e dois quilogramas nossos, contribuição em nada
insignificante.
À medida que se envolvia o corpo, membro por membro, nos
tecidos, iam-se lubrificando-os com a mescla de mirra e aloés. Assim
preparavam os judeus os seus mortos para sepultá-los. Não os
embalsamavam como os egípcios, aqueles que lhes extraíam o cérebro e
as vísceras.
41, 42. No lugar onde Jesus fora crucificado, havia um jardim, e
neste, um sepulcro novo, no qual ninguém tinha sido ainda posto. Ali,
pois, por causa da preparação dos judeus e por estar perto o túmulo,
depositaram o corpo de Jesus.
O corpo de Jesus foi levado a um sepulcro. Como este sepulcro
ocupa um lugar destacado no relato da ressurreição, deve prestar-se
atenção mais que passageira. Enumerados os pontos informativos que a
Escritura (e em certa medida a arqueologia) subministra com relação a
este sepulcro, selecionamos uns poucos livros dentre uma lista de
escritos arqueológicos recentes; veja-se a nota. 430
(1) Sua localização. O sepulcro estava localizado na proximidade
imediata do Calvário: “No lugar onde foi crucificado havia um jardim”.

430
George W. Elderkin, Archeological Paper, VII; Golgotha, Kraneion and the Holy Sepulchre,
Springfield, Mass., 1945; W. H. A. B., p. 99; A. Van Deursen, Bijbels Beeld Woordenboek, Kampen,
1947, pp. 72, 73; E. L. Sukenik, The Earliest Records of Christianity, Resumo especial de The
American Journal of Archeology, Menasha, Wis., outubro-dezembro 1947. Trata-se da descrição de
um sepulcro familiar perto de Jerusalém. O sepulcro se utilizou do século primeiro a.C. até a primeira
metade do primeiro século d.C. A descrição deste sepulcro deveria comparar-se com a informação
bíblica com relação ao sepulcro de Cristo. Há certos pontos de semelhança; também certas diferenças.
João (William Hendriksen) 882
Como não sabemos onde estava o Calvário, tampouco sabemos onde
estava este sepulcro. Veja-se sobre Jo 19:17. Alguns viajantes que viram
o “Sepulcro do Jardim”, num lugar encerrado sob uma colina com forma
de crânio humano, estão convencidos de que este sepulcro, com seu
vestíbulo e a espaçosa câmara sepulcral, com apenas um lugar acabado
para que descansasse um corpo, é aquele que menciona o Evangelho.
Deve admitir-se que em muitos aspectos a descrição deste sepulcro
concorda com a informação que se tira dos relatos dos Evangelhos.
Outros que também viram e investigaram o lugar, não estão totalmente
convencidos, e afirmam que o sepulcro do jardim é provavelmente de
data muito mais recente que o século primeiro d.C. É provavelmente
impossível chegar a alguma conclusão concreta com relação à identidade
do sepulcro em que foi colocado o corpo de Jesus. E por que terei que
considerar que isso é lamentável?
A amável providência proveu um sepulcro próximo. Era o dia
judaico da Preparação. Veja-se sobre Jo 19:14, 31. Em outras palavras,
era sexta-feira. aproximava-se o pôr do sol. Em consequência, a fim de
que tudo pudesse concluir-se antes do sábado, não se podia perder
tempo. Não se podia enterrar o corpo de Jesus num sepulcro afastado. O
tempo não o permitiria.
(2) Sua novidade.
Este sepulcro era novo. Veja-se também sobre Jo 13:34. Era novo
no sentido de que não se tinha usado antes. Nunca tinham entrado nele a
deterioração e a decomposição. Era um lugar adequado para que
descansasse nele o corpo do Senhor. Cf. Sl 16:10.
(3) Seu proprietário. Segundo Mt. 27:60 era o sepulcro do próprio
José. E José era rico. Em consequência, Is. 53:9 vem a seguir à mente
“Com os ricos esteve na sua morte”.
(4) Seu aspecto geral. Este sepulcro não era uma cova natural.
Tinha sido lavrado de pedra sólida (Mc. 15:46). Depois de depositar o
corpo de Jesus, José (com a ajuda de outros, certamente) colocou uma
grande pedra diante da entrada do sepulcro (Mt. 27:60). Esta pedra era
João (William Hendriksen) 883
muito pesada (ou muito grande) (Mc. 16:4). A entrada ao sepulcro era
baixa, como se deduz do fato de que Maria teve que inclinar-se para
olhar em seu interior (Jo 20:11). O mesmo teve que fazer Pedro (Jo 20:5;
Lc. 24:12). Em ambos os extremos do lugar em que se colocava o corpo
a rocha foi deixada o suficientemente grosa para formar uma espécie de
assento (Jo 20:12).
É evidente que a sala de sepultura do sepulcro de José não continha
um nicho (kôk) no qual se introduziu o corpo de Jesus por um dos dois
extremos. Na Palestina há muitos sepulcros desta classe, mas este não
era um desses, porque nesse caso os anjos não poderiam ter estado
sentados à cabeceira e aos pés.
Pareceria que a câmara sepulcral do sepulcro de José tinha não um
banco ou suporte, mas sim um declive — um lugar em que se escavou o
piso um pouco mais fundo — no qual pôde repousar o corpo de Jesus.
Imaginemos, portanto, o sepulcro de José. Tem: (a) uma entrada
baixa à câmara sepulcral; (b.) uma pedra muito pesada (provavelmente
redonda, que se desliza sobre um sulco) diante desta entrada; (c.) um selo
colado à pedra (a pedido dos sanedritas, Mt. 27:66), a saber, uma corda
recoberta de gesso ou cera, sobre o qual se havia impresso um selo; veja-
se artigo “Selo” em I. S. B. E.; (d.) uma câmara sepulcral com relevos
nos quais pessoas podiam sentar-se, e entre eles: (f.) um declive no qual
descansou o corpo de Jesus.
Alguns supõem que havia um pátio a descoberto ou hall,
constituído por um muro semicircular, diante da câmara sepulcral.
Outros o negam. Isto cria diferenças essenciais na interpretação.
Vemos a pedra tão pesada, o selo, o guarda. «Ponham um guarda;
vão assegurar-se o mais que puderem», disse Pilatos aos sanedritas que
foram incomodá-lo no sábado pela manhã. “Ri-se aquele que habita nos
céus; o Senhor zomba deles” (Sl. 2:4). Veja-se o capítulo seguinte
(ressurreição), João 20.
João (William Hendriksen) 884
Síntese de Jo 19:38–42
O Filho de Deus morre como substituto por seu povo. A sepultura.
O enterro de Jesus foi um elemento necessário em sua humilhação.
Por meio disso santificou a tumba para todos os Seus seguidores. Na
sepultura se cumpriu a profecia. (Veja-se a exegese). Os principais
protagonistas foram José de Arimateia e Nicodemos, cuja valentia deve
admirar-se. O sepulcro estava situado no jardim de José, muito próximo
à cruz. Não se pode indicar hoje em dia o lugar exato. Por isso podemos
dar graças a Deus. Por ter conhecido este lugar, provavelmente teria
recebido mais honra que o próprio Cristo.
(Algo desta mentalidade de fato, prevalece inclusive hoje em dia,
com relação aos lugares que se dizem ser autênticos). O sepulcro
dispunha provavelmente de uma entrada baixa, diante da qual se deslizou
uma pesada pedra, a que se lhe tinha posto um selo por ordem de Pilatos
a pedido do Sinédrio; finalmente, havia a espaçosa câmara sepulcral,
provavelmente com um declive para o corpo de Jesus. Neste sepulcro,
devido à sua proximidade, e devido ao fato de que se aproximava no
sábado, foi colocado o corpo de Jesus.
Embora a sepultura seja um elemento na humilhação de Cristo, no
entanto proporciona um brilho antecipado de Sua exaltação: é um
sepulcro novo. Nunca tinha havido na mesma nenhuma deterioração. O
corpo de Jesus não sofreu corrupção. Deus empenhou-se nisso. O
sepulcro pertencia a um homem rico. Era um sepulcro digno de um rei.
Tudo aponta à exaltação.
João (William Hendriksen) 885
ESBOÇO DOS CAPÍTULOS 20 E 21
Tema: Jesus, o Cristo, o Filho de Deus, durante o Seu ministério
privado triunfando gloriosamente: Ressurreição e aparições

I. Jo 20:1–10 - A Visita de Pedro e João ao sepulcro. As provas da


ressurreição dentro do sepulcro

II. Jo 20:11–18 - Aparição a Maria Madalena

III. Jo 20:19–23 - Aparição aos discípulos sem Tomé

IV. Jo 20:24–31 - Aparição aos discípulos, com Tomé presente;


Conclusão: Afirmação do propósito do Evangelho

V. cap. 21 - Aparição no mar de Tiberíades

A. A pesca milagrosa e o café da manhã na praia (versículos 1–14)


B. “Restauração” de Pedro; Predição com relação a Pedro; Correção
de um mal-entendido com relação à afirmação de Jesus de João;
Testemunho final (versículos 15–25).
João (William Hendriksen) 886
JOÃO 20
JO 20:1–10

20:1. No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao sepulcro de


madrugada, sendo ainda escuro, e viu que a pedra estava revolvida.
É domingo pela manhã, o primeiro dia da semana. 431 Sendo ainda
escuro algumas mulheres saem de suas casas (ou abrigos temporais)
“levando os aromas que haviam preparado” (Lc. 24:1). Iam ungir o
corpo (Mc. 16:1). Comparar Jo 12:1–8; contrastar Jo 19:38–40.
Quais eram estas mulheres? Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago
(ou simplesmente “a outra Maria”) mencionam-se pelo nome nos outros
Evangelhos (Mt. 28:1; Mc. 16:1; Lc. 24:10). Marcos acrescenta Salomé
(Mc. 16:1). Lucas acrescenta Joana, e parece indicar que havia outras
(Lc. 24:10; também Lc. 23:55 e 24:1). Veja-se sobre Jo 19:25.
João provavelmente supõe que os leitores conheçam os outros
Evangelhos e fala só de Maria Madalena. Veja-se II da Introdução. No
entanto, implica-se que outras mulheres tinham acompanhado a Maria
(Jo 20:2: “não sabemos”).
Embora fosse ainda escuro quando as mulheres saíram, o sol já
tinha saído para quando chegaram ao sepulcro.
Enquanto saíam cheias de tristeza pela porta de Jerusalém,
preocupava-lhes a enorme pedra (Mc. 16:3) que havia sido colocada à
entrada do sepulcro. Quanto ao aspecto e localização do sepulcro veja-se
sobre Jo 19:41, 42. Mas de repente viram — provavelmente numa volta
da vereda — que a pesada peça já tinha sido revolvida; não, não só

431
A diferença é pouca entre conceber que o plural grego de sabbath refere-se ao dia ou a toda a
semana (o lapso de um dia de descanso ao seguinte). Se quer dizer o primeiro, então a ideia é que este
era o primeiro dia contando a partir do dia de sábado; em consequência, o primeiro dia depois do dia
de sábado. Se quer dizer o segundo, o resultado continua sendo o mesmo: o dia que se indica então
não é o último da semana mas o primeiro. Em qualquer dos dois casos faz-se referência ao domingo.
O substantivo plural utilizado no original pode significar o dia de sábado ou toda a semana.
João (William Hendriksen) 887
revolvida, mas também de fato tirada (tirada de seu canal), de forma que
estava no solo, por grande que fosse!
Em nenhuma parte se afirma que se removeu a laje para que Jesus
pudesse sair do sepulcro. Que o corpo ressurreto do Senhor era tal que
podia sair do sepulcro embora a laje continuasse em seu sítio, parece
estar claramente implícito em Jo 20:26; veja-se sobre esse versículo. No
entanto, a pedra devia ser removida. Era necessário por duas razões: 1. A
fim de indicar que a tumba tinha sido derrotada, que se tinha conseguido
o triunfo. 2. a fim de que Pedro e João pudessem entrar (veja-se sobre Jo
20:6, 8), e que todos pudessem ver que o sepulcro estava vazio.
Enquanto a mãe de Tiago, o Menor, a mãe de Tiago e João, Joana e
as outras mulheres entravam no sepulcro para não encontrar o corpo do
Senhor Jesus (Lc. 24:3), Maria Madalena saiu correndo para obter ajuda
nesta situação tão terrível. Estava convencida de que os inimigos tinham
violado a tumba. Quanto a Maria Madalena, veja-se sobre Jo 19:25.
2. Então, correu e foi ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, a
quem Jesus amava, e disse-lhes: Tiraram do sepulcro o Senhor, e não
sabemos onde o puseram.
Não surpreende absolutamente que Maria, muito alarmada (cf. Mc.
16:8), corresse a Pedro e a João. Estes dois provavelmente eram
considerados os como os principais apóstolos. Com frequência eram
vistos juntos (veja-se sobre Jo 21:7). No entanto, embora do ponto de
vista gramatical é possível que vivessem no mesmo lugar, a interpretação
mais natural do original é que cada um deles tinha sua própria casa em
Jerusalém. Veja-se também Jo 19:27 e 20:10. Ambos se surpreenderiam
muito diante do relatório desconcertante de Maria. João, além disso, era
o discípulo a quem Jesus amava. Quanto ao significado desta expressão
veja-se sobre Jo 13:23, 24; quanto à identidade deste apóstolo veja-se I
da Introdução; e quanto ao verbo (amava; aqui em Jo 20:2 o original
utiliza o verbo menos frequente, como se indica no quadro IV da Síntese
do capítulo 21) veja-se sobre Jo 21:15–17, sobretudo a nota 458.
João (William Hendriksen) 888
Com angústia e cheia de temor Maria exclama: “Levaram o meu
Senhor, e não sei onde o puseram”. Quanto ao estado de ânimo de Maria
veja-se a Síntese do capítulo 20. O sepulcro aberto era para Maria razão
de alarme e desconcerto. Ela pensa, “Os inimigos tornaram a agir.
Mataram o Senhor, e agora aumentam seu crime com a violação do
sepulcro. Agora não resta nem sequer o corpo de Jesus”. É interessante,
porém, que Maria continua chamando Jesus “o Senhor”. Veja-se sobre
Jo 1:38 e em Jo 12:21. Isto indica quando menos que tinha aprendido a
considerá-Lo como seu grande Benfeitor. Isto não surpreende; veja-se
sobre Jo 19:25.
3, 4. Saiu, pois, Pedro e o outro discípulo e foram ao sepulcro.
Ambos corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa do
que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro.
Perplexos diante do relatório de Maria, Pedro e João se põem
imediatamente em caminho para o sepulcro. No princípio são descritos
como simplesmente caminhando; logo como correndo juntos;
finalmente, como ainda correndo, mas João se adiantou a Pedro, pelo
que chega primeiro ao sepulcro. João, agora ancião, lembra a cena como
se acabasse de suceder. Por isto é tão viva a descrição.
Têm sido formuladas duas pergunta. A primeira é: «O que fez com
que estes dois homens passassem de caminhar a correr? Foi, talvez,
alguma mensagem das mulheres que para esse então tinham abandonado
o sepulcro e tinham algo muito surpreendente que dizer aos apóstolos?»
Veja-se Mt. 28:1, 5–8 e paralelos. Não sabemos.
A seguinte pergunta é: «O que fez com que João adiantasse a
Pedro?» A resposta poderia ser: tinha a juventude a seu favor. Mas mais
uma vez, não o sabemos. De nada serve especular.
5. E, abaixando-se, viu os lençóis de linho; todavia, não entrou.
Alguns preferem neste caso uma tradução diferente. Mas a frase
“tendo olhado, viu”, soa mal. Pode-se conceder que o verbo que se
utiliza no original nem sempre e por necessidade significa inclinar-se.
No entanto, quando se emprega em conexão com viu (ou observou), este
João (William Hendriksen) 889
é, sem dúvida, o significado mais natural. A entrada, como em muitos
sepulcros orientais atuais, era provavelmente baixa. Daí que fossem
necessárias duas ações: primeiro, era preciso inclinar-se. Tendo-o feito,
era possível olhar dentro. Não é verdade que o inclinar-se teria feito
impossível ver os tecidos no declive onde se colocou o corpo de Jesus.
Isso teria sido assim só se o lugar para o corpo fosse muito fundo.
Ao inclinar-se João e olhar, viu os lençóis. Veja-se sobre Jo 19:40;
também em Jo 11:44 (onde se utiliza um sinônimo). O significado destes
lençóis que jaziam aí se comenta com relação aos versículos 6 e 7.
João não entrou. Alarmou-se muito. Em sua mente não cabe a mais
mínima ideia de uma ressurreição.
6, 7. Então, Simão Pedro, seguindo-o, chegou e entrou no sepulcro.
Ele também viu os lençóis, e o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus,
e que não estava com os lençóis, mas deixado num lugar à parte.
Está completamente em harmonia com a conduta habitual de Pedro,
que embora João tivesse chegado antes, uma vez chegando ao sepulcro
ele entrou antes que João. Veja-se sobre Jo 13:9.
O que João, olhando para dentro de fora, havia simplesmente
observado, Pedro, uma vez dentro, viu-o. Logicamente viu mais que
João, e o viu com mais clareza. E o que viu era verdadeiramente
maravilhoso. Aí estavam os tecidos colocados com muita ordem, e o
sudário, que tinha envolto a cabeça de Jesus, colocado à parte. Quanto
aos lençóis veja-se sobre Jo 19:40; também sobre Jo 11:44 (o sinônimo).
Quanto ao sudário veja-se sobre Jo 11:44. (Em países onde o clima é
quente inclusive o lenço que usam os vivos chama-se sudário.)
O que significava tudo isto? É necessário sublinhar a estas alturas
que não há que fazer o texto dizer mais que o que de fato contém. Ideias
como, por exemplo, que o sudário estava aí como se não se tivesse tirado
da cabeça, e que os lençóis estavam como se as extremidades de Jesus
estivessem ainda envoltas neles, ou como se o corpo teria sido extraído
deles, são alheias ao texto. Nem sequer sabemos com exatidão onde
estavam os lençóis e o sudário. Nem João nem Lucas (em seu
João (William Hendriksen) 890
Evangelho, Lc. 24:12) dizem nada a respeito disso. O que Lucas põe de
relevo é que aí estavam só os lençóis, o que, por sua vez, não significa
que estivessem misteriosamente suspensos no ar, contra as leis de
gravidade; mas simplesmente indicam que estavam aí sem o corpo.
Os fatos que efetivamente se narram são suficientemente
maravilhosos sem adornos exegéticos. O que indicam é isto: tudo estava
em ordem no sepulcro. O corpo do Senhor já não estava nele. Nenhum
discípulo tinha ido tirá-lo, nem nenhum inimigo tinha estado no sepulcro
para saqueá-lo. Em qualquer dos dois casos os tecidos já não tivessem
estado aí. Poderia ser que o Senhor tirou Ele mesmo os lençóis e o
sudário, procurou uma veste como a que usam os vivos, teria colocado,
com calma e majestade, cada coisa em seu lugar no sepulcro, os lençóis
aqui e o sudário aí (devidamente enrolado ou dobrado separadamente), e
teria saído do sepulcro, gloriosamente vivo?
Não se diz expressamente que Pedro imediatamente tirasse esta
conclusão, ou seja, que Jesus tivesse ressuscitado do sepulcro. Pareceria,
no entanto, que logo chegou a este nível de fé. Alcançou-o um pouco
mais tarde que João, talvez depois de que os dois comentaram o assunto
juntos. Veja-se versículo 9.
8, 9. Então, entrou também o outro discípulo, que chegara primeiro
ao sepulcro, e viu, e creu. Pois ainda não tinham compreendido a
Escritura, que era necessário ressuscitar ele dentre os mortos.
Agora João também entra no sepulcro. Quanto à descrição do
sepulcro, veja-se sobre Jo 19:41, 42. Viu e creu. O que viu? Exatamente
o que Pedro tinha visto. O que creu? Que Jesus havia de fato
ressuscitado dos mortos, e que era o verdadeiro Messias, o Senhor da
glória, o Filho de Deus no sentido mais excelso. Isto não é mais que uma
fé viva que abraça a verdade da ressurreição.
A este respeito alguns comentaristas parecem pensar que o
propósito do texto é enfatizar a fraqueza da fé dos apóstolos, como se o
significado fosse assim: a fé destes homens apenas nem estava acima da
incredulidade, porque precisaram ver antes de estar dispostos a crer. No
João (William Hendriksen) 891
entanto, provavelmente este não é o sentido das palavras. O que querem
dizer é: agora viram e creram. Viram as coisas que o Senhor tinha
disposto de tal forma para promover e fortalecer a fé. Também a
Escritura começava agora a adquirir um novo significado. Antes,
passagens tão belas como Sl. 16:10, 11; Sl. 110:1, 4; Sl. 118:22–24; e Is.
53:11, 12 — passagens que se referiam à ressurreição de Cristo —
tinham significado muito pouco para eles. Agora estas mesmas
passagens começavam a adquirir significado. Agora entendiam que a
gloriosa ressurreição de Cristo era uma necessidade divina. Cf. Lc.
24:26. No Pentecostes e depois, tudo isso se tornaria ainda mais claro.
10. E voltaram os discípulos outra vez para casa. Foi alcançado o
ponto culminante. No coração de João há alegria, e o mesmo sucede (ou
vai suceder logo) no caso de Pedro, como ele mesmo o afirma (1Pe. 1:3).
De modo que vão a suas respectivas casas. Na de João há alguém que
deve ter-se sentido saturada de alegria ao ouvir o relato. Esse “alguém”
era a tia do apóstolo, ou seja, Maria, a mãe de Jesus. Veja-se sobre Jo
19:27; logo sobre Jo 19:25.

JO 20:11–18

20:11, 12. Maria, entretanto, permanecia junto à entrada do túmulo,


chorando. Enquanto chorava, abaixou-se, e olhou para dentro do túmulo,
e viu dois anjos vestidos de branco, sentados onde o corpo de Jesus fora
posto, um à cabeceira e outro aos pés.
O relato agora volta para Maria Madalena. Veja-se sobre Jo 19:25 e
sobre Jo 20:1, 2. É razoável supor que foi um pouco mais lenta em
chegar ao sepulcro que Pedro e João. Há aqueles que pensam que, de
volta ao jardim de José, Maria se encontrou com os dois apóstolos, os
quais lhe contaram o que tinham visto no sepulcro; e que, como
resultado disso, o temor de Maria de que tivessem roubado o corpo de
Jesus se dissipou, de maneira que começou a pensar que o tinham levado
mãos amigas. No entanto, se tivesse tido lugar semelhante reunião,
João (William Hendriksen) 892
seríamos obrigados a concluir que o emocionante convencimento, que se
tinha apoderado dos corações de Pedro e João como consequência do
que tinham visto, fez pouco efeito em Maria. Claro que isto é possível.
No entanto, como não há nada no relato que sugira que os apóstolos
conversassem com Maria depois de ter estado no sepulcro, é melhor
abandonar totalmente a teoria. Provavelmente é seguro afirmar que
Maria voltou sozinha ao sepulcro, e que no caminho não se deteve para
conversar com ninguém.
De modo que, Maria estava fora do sepulcro chorando. Quanto ao
significado deste verbo, veja-se Jo 11:31, 32 (e compare-se com o verbo
utilizado em Jo 11:35; veja-se também sobre esse versículo). Seu
profundo pesar se manifestava num soluço constante, irrefreável. Ao
mesmo tempo que dava rédea solta a seu amargo pesar, inclinou-se para
dar uma olhada ao sepulcro (veja-se sobre versículo 5). Viu dois anjos
sentados, um à cabeceira e o outro aos pés de onde tinha jazido o corpo
de Jesus.
Deve considerar-se como provável que estes dois anjos se
apresentassem em forma de jovens (cf. Mc. 16:5). Suas brancas vestes
indicavam santidade (talvez também alegria e vitória). Simbolizavam o
triunfo da vida sobre a morte, da luz sobre a escuridão, da graça sobre o
pecado. Quanto ao aspecto geral do sepulcro e ao lugar em que estavam
sentados os anjos, veja-se sobre Jo 19:41, 42.
Mas por que apareceriam estes anjos às mulheres e não a Pedro e a
João? Foi porque a fé das mulheres era muito mais fraca que a dos
homens pelo que necessitava o apoio especial do ministério dos anjos?
Sugeriu-se esta resposta, mas nada há no relato que o demonstre.
Poderia, de fato, ir-se em direção contrária e dizer que o aspecto destes
anjos e a mensagem que trouxeram (primeiro às outras mulheres, Mt.
28:5–7; logo a Maria, Jo 20:13) foi uma recompensa especial pelo
ministério muito especial de amor em que se tinham destacado estas
mulheres, incluindo Maria. Mas a melhor resposta é a simples admissão
João (William Hendriksen) 893
de que não sabemos por que os anjos se apareceram às mulheres (no caso
que nos ocupa, a Maria) e não aos homens.
O céu tem um interesse vital pela ressurreição de Cristo. A ausência
de anjos teria sido surpreendente.
13. Então, eles lhe perguntaram: Mulher, por que choras?
Na pergunta que os anjos fazem vai implícita uma mensagem: «Este
é tempo de alegria, não de lágrimas». Não poderíamos acrescentar que a
pergunta é uma expressão de recriminação, formulada com ternura,
como se os anjos quisessem dizer “Foi completamente vão o ensino do
Senhor com relação à Sua próxima morte e ressurreição? Maria, não te
envergonhas de tua incredulidade?”
Mas o pesar e dor se apoderaram da alma de Maria de forma tão
completa que não se assusta, não, nem sequer se surpreende com estes
anjos nem de sua pergunta. Parece sentir-se mais cômoda em sua
presença que, por exemplo, num livro recente 432 “Tiago” o é na presença
de “Gabriel”.
Na mente confusa de Maria fica lugar para só um pensamento, que
o expressa ao responder: Ela lhes respondeu: Porque levaram o meu
Senhor, e não sei onde o puseram.
Também se poderia traduzir assim: «Meu Senhor foi levado», etc.
Note-se: Maria ainda fala de Jesus como de seu Senhor (veja-se sobre Jo
20:2). Ó, se tivesse sabido onde estava o corpo, teria podido cumprir o
propósito que a tinha conduzido ao sepulcro. Além disso, só o estar perto
dEle — embora isso só significasse estar perto de Seu corpo morto —
daria a ela muita satisfação.
14. Tendo dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus em pé, mas não
reconheceu que era Jesus.
Maria tinha estado olhando dentro do sepulcro (Jo 20:11, 12).
Agora se volta para olhar em direção contrária. Por quê? Também nisso
há lugar para teorizar. Eis aqui uns poucos exemplos: a. porque Jesus
432
Arjen Miedema, Talks With Gabriel, (traduzido do holandês por Henry Zylstra), Grand Rapids,
Mich., 1950.
João (William Hendriksen) 894
tinha aparecido de repente, e os anjos que O viram donde estavam no
sepulcro inclinaram-se para adorá-Lo, o que fez com que Maria desse a
volta para ver por que os anjos tinham feito isso; b. porque os anjos, ao
ver Jesus, apontaram para Ele, sugerindo a Maria que olhasse fora do
sepulcro; c. porque Maria ouviu que alguém se aproximava; d. porque os
anjos desapareceram de repente da vista; etc. Seja o que for, o Senhor
não o quis revelar. O importante é que Maria encontra-se agora diante de
Alguém a quem não reconhece. Veja-se sobre o versículo seguinte:
15. Perguntou-lhe Jesus: Mulher, por que choras? A quem
procuras?
Maria volta a ouvir a mesma pergunta que lhe tinham feito um
momento antes: “Mulher, por que choras?” Veja-se sobre o versículo 13.
Observe-se uma correspondência muito estreita entre as palavras do anjo
às mulheres (Mt. 28:5, 7) e as que ouviram dos lábios do próprio Senhor
um pouco mais tarde (Mt. 28:10). No reino perfeito há harmonia
perfeita. Os anjos dizem o que diz o Senhor. E a pergunta foi muito
oportuna e adequada, porque, sem dúvida, este não era o momento
apropriado para chorar! O Estranho acrescenta: “A quem procuras?”
Observe-se a quem, não o quê. Embora na resposta aos anjos Maria
tivesse falado de seu Senhor, não tinha buscado a Ele e sim a Seu
cadáver. Tinha buscado algo, não alguém. Quando Aquele que agora Se
dirige a Maria pergunta “A quem procuras?”, começa a encaminhar os
pensamentos dela em outra direção melhor. Deve começar a buscar uma
pessoa não uma coisa.
Ela, supondo ser ele o jardineiro, respondeu: Senhor, se tu o tiraste,
dize-me onde o puseste, e eu o levarei. 433
Por que pensou Maria que essa pessoa que falou com ela era aquele
que cuidava do jardim de José? Respondemos:
1. Porque, devido à sua incredulidade, não buscava o Salvador
ressuscitado.

433
I D; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 895
2. Talvez, porque Jesus tinha um aspecto diferente de antes (veja-se
Mc. 16:12; cf. Jo 9:3). No entanto, o fato de que o tomasse pelo hortelão
prova que tinha a forma humana comum.
3. Porque no jardim esperava ver o jardineiro ou guardião.
A este suposto jardineiro Maria lhe diz, “Senhor, se tu o tiraste,
dize-me onde o puseste, e eu o levarei”.
“Senhor” neste caso é a tradução correta do original. Veja-se nota
44. Maria agora pede um favor a esta pessoa: se ele, pela razão que for,
trasladou o cadáver, diga por favor a Maria onde o pôs, para que ela o
possa fazer trasladar a algum lugar conveniente onde se possa ocupar
dele? É verdade que Maria de fato diz, “o” pessoal e não “o” coisa, mas
fica claro que está pensando no corpo de Cristo. Inclusive hoje se utiliza
a mesma linguagem (pessoal em lugar de impessoal) com relação aos
funerais.
O versículo 16 provavelmente implica que, tendo dito isso, Maria,
não esperando talvez uma resposta satisfatória, voltou-se, de modo que
se encontrou outra vez olhando para a tumba vazia. Tratando-se, afinal
de contas, de uma mulher desesperada, isso não seria estranho. Esta
interpretação do ocorrido provavelmente é melhor que dar um
significado raro ao gerúndio στραφε_σα (por exemplo, tendo-se
inclinado para frente) conforme se usa nesse versículo.
16. Jesus lhe disse: Maria! [NVI] Com ternura e cordialidade
infinitas, num tom parecido ao dos dias passados, Jesus Se dirige agora a
Maria utilizando uma só palavra, “Maria”. 434 O nome aramaico original
com o qual seus pais e amigos devem ter-se dirigido a ela muitas vezes,
o nome que Jesus sempre tinha utilizado ao falar com ela, é aquele que
se emprega neste caso. Jesus Se dirige a ela em seu nome próprio, em
sua língua materna.
Então, voltando-se para ele, Maria exclamou em aramaico:
“Rabôni!” (que significa “Mestre!”) [NVI]. Quando Maria ouve esta

434
Aqui em Jo 20:16 a forma aramaica — Miriã — tem mais apoio que a grega.
João (William Hendriksen) 896
palavra — sua próprio nome em sua língua materna — dito nessa forma
conhecida como uma só Pessoa jamais a tinha pronunciado, aparta-se
rapidamente do sepulcro para dirigir-se para quem lhe fala (veja-se sobre
versículo 15) e com uma palavra de dramática surpresa, alegre
reconhecimento, e humilde reverência exclama, “Rabôni”. Embora esta
palavra (que originalmente significava meu mestre) tenha um significado
que se aproxima muito (e talvez seja idêntico) ao de “Rabi”, e assim o
traduz João (“Mestre”) pensando em seus leitores da Ásia Menor que
não falavam aramaico, o uso de fato é muito menos comum que Rabi.
Quanto ao uso de Rabi veja-se nota 44. O título Raboni foi dado a uns
poucos “Rabis”, por exemplo, a Gamaliel I e Gamaliel II. Com
frequência era utilizado para referir-se a Deus.
17. Recomendou-lhe Jesus: Não me detenhas; porque ainda não subi
para meu Pai. O que Jesus quis provavelmente dizer foi isto: «Não
creias, Maria que te aferrando a mim com tanta firmeza (cf. Mt. 28:9),
podes conservar-me sempre contigo. Essa comunhão ininterrupta que
anelas deve esperar até que tenha ascendido para sempre ao Pai». Jesus
não se opôs a que O tocassem. Do contrário, como se poderia explicar o
que disse a Tomé? Veja-se sobre Jo 20:27. O que censurou foi a ideia
errada de Maria de que a forma anterior de comunhão ia reatar-se, em
outras palavras, que Jesus fosse voltar a viver em associação diária
visível com Seus discípulos, tanto homens como mulheres. Sem dúvida,
a comunhão se reataria; mas seria muito mais abundante e bendita. Seria
a comunhão do Senhor elevado no Espírito com Sua igreja. 435

435
Esta interpretação bastante comum que se encontra em vários comentários é melhor, segundo meu
parecer, que a que diz que Jesus diz a Maria: “Não me detenhas, tenho pressa; vou para o céu».
Apenas se merecem comentar-se certas ideias parecidas, como por exemplo, que João quis transmitir
o pensamento de que Jesus ia ascender nesse mesmo dia, ou que só transcorreu uma semana entre a
ressurreição e a ascensão. O Evangelho de João ensina claramente três aparições subsequentes; nessa
mesma noite (Jo 20:19–23); outra, uma semana mais tarde (Jo 20:24–29); e uma terceira “depois
disto”, embora não nos seja dito quanto tempo depois (capítulo 21). Quanto a todo o tema da ascensão
de Cristo veja-se também C. Stam, De Hemelvaart Des Heren (A ascensão do Senhor), tese doutoral
apresentada à Universidade Livre de Amsterdã, Kampen, 1950.
João (William Hendriksen) 897
Mas vai ter com os meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e
vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus.
Tanto Maria Madalena como as outras mulheres recebem uma
mensagem que devem transmitir aos onze. Mas enquanto as outras
mulheres devem dizer aos homens o que sucedeu (“ressuscitou dentre os
mortos”) e onde Jesus Se encontrará com eles (“Vai diante de vós a
Galileia; ali o vereis”), Maria deve anunciar-lhes o grande acontecimento
na história da redenção que vai ocorrer (“Subo para meu Pai”, etc.).
Jesus chama agora a Seus discípulos com um nome novo: “irmãos”.
(Cf. Sl. 22:23; 122:8; Heb. 2:11). Uma relação nova — comunhão no
Espírito, prestes a ser derramado — exige um nome novo, um nome
ainda mais íntimo que o belo nome de “amigos”. Os irmãos são de uma
mesma família. Têm muito em comum. Compartilham a mesma herança.
De modo que, todo verdadeiro crente é co-herdeiro com Cristo (Rm.
8:17). De modo que, também, no sentido espiritual, Deus não é o Pai de
todos os homens senão só daqueles que, tendo sido escolhidos desde a
eternidade, aceitaram o Filho com fé viva. Estes — todos estes e só estes
— são irmãos de Cristo.
Quando pensamos no fato de que apenas uns dias antes todos estes
homens “o abandonaram e fugiram”, surpreende-nos ainda mais que
Jesus, com terna misericórdia, queira chamá-los Seus irmãos.
O que Maria deve transmitir-lhes como uma mensagem de Cristo
para eles é: “Subo para meu Pai (está prestes a ocorrer; ocorrerá com
certeza; daí o tempo presente) e vosso Pai, para meu Deus e vosso
Deus”. Jesus distingue, e ao mesmo tempo sublinha a intimidade da
comunhão entre Ele mesmo, Seu Pai, e os discípulos. A distinção é
muito clara pelo fato de que não diz “Subo para nosso Pai”. Sua filiação
difere da deles; por isso diz: “para meu Pai e vosso Pai”. Veja-se sobre Jo
1:14 quanto a esta distinção. Daí também: “para meu Deus e vosso
Deus”. No entanto, também se sublinha a intimidade da comunhão; o
próprio Deus que é Pai de Jesus é também Pai dos discípulos.
João (William Hendriksen) 898
Jesus vai subir a este Deus e Pai. Esta é a mensagem que se deve
comunicar aos discípulos. É também a lição que Maria precisa aprender.
18. Então, saiu Maria Madalena anunciando aos discípulos: Vi o
Senhor! E contava que ele lhe dissera estas coisas.
Não se registrou onde foi o Senhor depois de aparecer a Maria.
Além disso, inclusive é duvidoso que, se estivesse registrado,
poderíamos tê-lo compreendido, porque deve ter-se em mente que o
período de Sua associação diária visível com os discípulos já concluiu.
Simplesmente aparece, agora a este, logo àquele; e não devemos
perguntar «Onde estava entre as aparições?» Sabemos muito pouco a
respeito da natureza do corpo ressuscitado e a respeito de suas idas e
vindas.
O caso de Maria é diferente. Somos informados que fez o que lhe
foi ordenado que fizesse. Maria deve ter sido uma pessoa muito emotiva.
Em certo sentido, lembra a Pedro. Em certo momento vemo-la chorar
muito. Desfaz-se em lágrimas, tanto que inclusive quase não observa a
presença dos anjos. Um momento depois — o momento de
reconhecimento prazeroso, quando o Senhor ressuscitado pronuncia seu
nome — tudo muda. “Raboni”, exclama; e, chegada onde estão os
discípulos, apenas pode conter-se ao lhes dizer “Vi ao Senhor!” (Quanto
a Senhor veja-se sobre Jo 20:2, 13). Agora já não pensava num cadáver.
Não, tratava-se do Senhor vivo, gloriosamente ressuscitado do sepulcro.
Maria comunicou a mensagem, palavra por palavra, exatamente como o
Senhor lhe havia dito que fizesse. E estas palavras devem ter sido muito
preciosas para os discípulos.
João (William Hendriksen) 899
JO 20:19–23

20:19. Ao cair da tarde daquele dia, o primeiro da semana,


trancadas as portas da casa onde estavam os discípulos com medo dos
judeus, veio Jesus, pôs-se no meio e disse-lhes: Paz seja convosco!
Observe-se como se destaca o dia concreto em que Jesus apareceu
aos discípulos sem Tomé. João poderia ter escrito «Quando chegou a
noite do primeiro dia». Mas é muito mais preciso. É evidente que quer
enfatizar que não foi outro senão o primeiro dia da semana. Por isso
começa dizendo: “Ao cair da tarde daquele dia”. À luz do contexto, isso
já indica que se trata do primeiro dia (Jo 20:1). Mas não lhe basta isto.
Por isso prossegue: “o primeiro da semana”.
O Novo Testamento sempre destaca o dia da ressurreição de Cristo
como o principal dos dias da semana. Veja-se Mt. 28:1; Mc. 16:2; Lc.
24:1; Jo 20:1, 19, 26; At. 20:7; 1Co. 16:2; Ap. 1:10.
Quanto ao significado de “o primeiro da semana” veja-se sobre Jo
20:1. Era de noite. À luz de Lc. 24:29, 33, 36, temos direito de concluir
que já não era cedo na noite quando ocorreu o grande acontecimento que
se refere neste parágrafo. De acordo com a maneira de calcular dos
judeus os dias, já não era o primeiro dia da semana. Mas João, embora
judeu, escreve muito depois de Mateus e Marcos, e não parece
preocupar-se com os cômputos judaicos de tempo. Veja-se sobre Jo 1:39.
Com medo dos judeus (ou por medo dos judeus) os discípulos
tinham fechado as portas. Quanto a este medo inspirado pelas
autoridades judaicas (pensamos sobretudo no Sinédrio), veja-se sobre Jo
7:13; 9:22; 14:27; 19:38. Os dirigentes tinham provocado a morte de
Jesus. Iam ser os apóstolos os seguintes no programa de destruição? O
lugar exato em que se reuniram os discípulos, não é indicado. No
entanto, veja-se At. 12:12.
Não é difícil entender o que os tinha reunido. Havia ocorrido tantas
coisas estranhas e experiências maravilhosas nesse dia que era
imprescindível reunir-se. Jesus já apareceu a Maria Madalena, às
João (William Hendriksen) 900
mulheres, a Cleopas e seu companheiro, e a Pedro. Veja-se sobre Jo
21:1. Pedro e João e também as mulheres tinham estado dentro do
sepulcro. O que tinham visto era muito maravilhoso para expressá-lo
com palavras. Na verdade, não nos surpreende que os discípulos
buscassem a companhia mútua nessa noite de domingo.
De repente apareceu Jesus no meio deles. Mas como era possível,
se as portas estavam fechadas? (As portas — plural — refere-se, talvez,
ao portão da casa e à porta da habitação onde se encontravam; mas
também pode indicar as duas folhas do portão da entrada.)
A pergunta a respeito de como foi possível esta repentina aparição
de Jesus recebeu todo tipo de respostas. Algumas delas devem ser
descartadas imediatamente; por exemplo, Jesus Se havia escondido de
antemão na habitação; “introduziu-se sub-repticiamente” com os homens
de Emaús; entrou pela (o equivalente oriental de nossa) janela; desceu
pelo teto; etc. Os que creem que a natureza humana de Jesus possuía
agora as qualidades da natureza divina respondem que esta natureza
humana era agora onipresente. 436 Sentimos muito respeito pela fé e
profissionalismo dos que se inclinam a aceitar esta última opinião. Eles
adoram conosco a Jesus como Filho de Deus, e bem como nós, aceitam
Sua palavra como infalível. Na luta contra o liberalismo de qualquer
classe que seja, chegam a envergonhar a muitos. No entanto, não
podemos aceitar esta solução. Cremos que nem no estado de humilhação
nem no de exaltação as duas naturezas se fundiram ou confundiram
jamais até o ponto de que uma participasse das qualidades da outra.
Cremos que nosso Senhor Jesus Cristo deve ser reconhecido “em duas
naturezas inconfundíveis e imutáveis, assim como indivisíveis e
inseparáveis” (Credo de Calcedônia).
Além disso, cremos que é melhor interpretar literalmente as
palavras “veio Jesus”. Não só se situou de repente no meio deles, mas
também de fato veio e se situou. Se sua natureza humana teria sido

436
Assim, por exemplo, R. C. H. Lenski, op. cit., p. 1340.
João (William Hendriksen) 901
onipresente, não teria sido necessário vir (a não ser que este vir se tome
em sentido metafórico). A pergunta «Mas como foi possível a Jesus, que
não era um simples fantasma mas que tinha corpo real (embora corpo
ressuscitado), vir e pôr-se no meio deles se as portas estavam fechadas?»
A Bíblia não responde. Um dia entenderemos. Dito de outra forma,
poderia afirmar-se: «O corpo ressuscitado tem qualidades diferentes das
do corpo antes da ressurreição» (1Co. 15:42–44; cf. Fp. 3:21). Se bem
que, na verdade, isso não responde a pergunta.
Jesus fala de paz aos surpreendidos discípulos. Disse: “Paz seja
convosco!” Veja-se a explicação sobre Jo 14:27; 16:33; 20:21, 26. Disse-
o como Quem de fato mereceu esta paz para eles.
20. E, dizendo isto, lhes mostrou as mãos e o lado.
Nesta afirmação está implicado muito, muitíssimo:
1. A pessoa que está no meio do pequeno circulo é realmente Jesus.
Não é alguém distinto. Os sinais das mãos (onde tinham estado os
pregos) e a ferida do lado O identificam.
2. Esta pessoa tem um corpo real. Tem mãos. Mostra o lado
(provavelmente o esquerdo). Não é um fantasma. Que tomem nota disto
os docetas. No tempo de João haviam muitos.
3. Não foi só o espírito de Cristo o que tinha ressuscitado — como
o ensinam as liberais — mas também o corpo. Foi na realidade uma
ressurreição corporal.
4. A paz pronunciada aos discípulos — não só pronunciada mas
também de fato dada — era real; tinha sido comprada a grande custo.
Que os discípulos olhem Suas mãos e o lado.
Logo que meditem e adorem.
Alegraram-se, portanto, os discípulos ao verem o Senhor. Lucas
proporciona o melhor comentário a respeito desta passagem de João. Os
discípulos não se alegraram imediatamente. Primeiro, quando O viram
diante deles tão de repente, assustaram-se. Pensaram que estavam vendo
um espírito. Logo Jesus, com terno amor, disse: “Por que estais
perturbados? E por que sobem dúvidas ao vosso coração? Vede as
João (William Hendriksen) 902
minhas mãos e os meus pés, que sou eu mesmo; apalpai-me e verificai,
porque um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho”.
E se alegraram. No entanto, “por não acreditarem eles ainda, por causa
da alegria,” Jesus então lhes disse: “Tendes aqui alguma coisa que
comer?” Deram-lhe parte de um peixe assado. Tomou e o comeu na
presença deles. Jesus então repetiu as palavras que havia lhes dito antes.
Veja-se Lc. 24:36–49. Quando por fim creram, sem lugar a dúvida, foi
porque não podiam fazer outra coisa. Note-se que segundo João aqui em
Jo 20:20 — e tenha-se em mente que João esteve presente quando
sucedeu — os discípulos por fim viram em Jesus o seu Senhor
glorificado. Quanto ao termo Senhor, veja-se sobre Jo 1:38; 12:21; cf.
também Jo 20:2, 13, 18.
21. Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz seja convosco! Assim como
o Pai me enviou, eu também vos envio.
Jesus repete a todos os presentes (os dez, os homens de Emaús, e
outros): “Paz seja convosco!” Quanto ao significado, veja-se sobre Jo
20:19. Não é raro que repetisse esta palavra. Sua repentina aparição tinha
produzido um alarme imediato. Embora este medo já se tenha mitigado
em grande parte, e agora em seu lugar houvesse regozijo, estas palavras
que davam paz aos presentes podiam muito bem repetir-se.
Ao acrescentar “Assim como o Pai”, etc., Jesus diz basicamente o
que havia dito antes. Por isso, veja-se sobre Jo 17:18 para a explicação.
Há, no entanto, uma diferença importante. Na primeira passagem estas
palavras se dirigiram ao Pai (“Assim como tu me enviaste ao mundo,
também eu os enviei ao mundo”); agora se dirigem aos próprios
discípulos (com uma mudança verbal, o que, entretanto, não é muito
importante): “Assim como o Pai me enviou (poderia traduzir-se também
como comissionou), assim também eu vos envio”.
Baseados no fato de que além dos dez havia outras pessoas na
habitação (Lc. 24:33) — os dez tinham acolhido alguns visitantes que
estavam com eles (Lc. 24:33) — alguns tiraram a conclusão que neste
enviar não há nada oficial. Mas embora as palavras foram pronunciadas
João (William Hendriksen) 903
para toda a igreja, não é verdade que a tarefa de proclamar o evangelho
ao mundo é levada a cabo sobretudo, entretanto, por meio dos que foram
especialmente escolhidos? Por meio deles toda a igreja leva a
mensagem de Deus ao mundo. Nem carece dizer que todo crente tem
também um dever importante, ou seja, o de dar testemunho com alegria e
sem cessar.
Que Jesus tem em mente os dez (e num sentido também o apóstolo
ausente, Tomé: por isso, os onze) segue-se também da passagem
parecida ou paralela em Jo 17:18, 20. Note-se: “Assim como tu me
enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo … Não rogo somente
por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por
intermédio da sua palavra”. Poderia parafrasear-se: «Do mesmo modo
que me enviaste ao mundo, envio estes onze ao mundo … Porém, não
rogo somente por estes onze, mas também pelos que hão de crer em Mim
pela palavra deles».
A analogia entre o enviar ao Filho como Mediador e o enviar aos
apóstolos se explicou em conexão com Jo 17:18. A autoridade que
comissiona é a mesma; a mensagem é a mesma (no entanto, há esta
diferença: Jesus, por meio de Sua expiação, torna possível a mensagem;
os apóstolos simplesmente a proclamam); e os homens a quem se
proclama são os mesmos. Daí: “Assim como … também”.
22, 23. E, havendo dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o
Espírito Santo. Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes
perdoados; 437 se lhos retiverdes, são retidos. 438
Tendo lembrado aos discípulos o fato de que Sua ressurreição não
os eximia de modo algum de sua tarefa divinamente ordenada, Jesus
soprou. O melhor texto não diz “soprou sobre eles”, mas simplesmente
“soprou”. Este sopro (cf. em Jo 3:8) teve significado simbólico.
Simbolizou um dom específico do Espírito Santo. Num sentido, este
dom se comunica a toda a igreja. No entanto — veja-se também sobre
437
III A 3; veja-se IV da Introdução.
438
III B 3; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 904
verso 21 — deve ser exercido pelos oficiais, só eles, de forma
corporativa. Este dom particular que se indica nesta passagem é o de
perdoar ou reter os pecados, que neste contexto deve significar declarar
que os pecados de alguém são ou perdoados ou retidos (não perdoados).
Que os apóstolos não podem agir independentemente, ou seja, além
do Espírito que fala na Palavra, é evidente pelo fato de que o dom se
vincula com o Espírito. “Recebei o Espírito Santo … Se perdoardes os
pecados a alguém, são-lhe perdoados”, etc. As absolvições que se dão de
forma arbitrária não recebem confirmação no céu. A igreja, por meio de
seus oficiais, só tem direito a declarar que os pecados são perdoados ou
retidos quando age em harmonia com a Palavra inspirada do Espírito.
Mas quando suas ações estão em harmonia com a Palavra (que
exige que a disciplina se exerça no espírito de amor), então este poder é
muito real, e se aplica a qualquer (seja ele quem for) cujos pecados são
declarados como perdoados ou retidos.
Mas como a igreja só pode declarar o que Deus já tem feito (cf.
Mc. 2:7), lemos: “Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes
perdoados (continuam lhes sendo perdoados); se lhos retiverdes (os
pecados), são-lhe (e continuam sendo; por isso o presente) retidos”. 439
Esta passagem certamente nos lembra Mt. 16:19; 18:18. É evidente
que as passagens de Mateus referem-se à autoridade que a igreja exerce
por meio do ofício apostólico. Pareceria, pois, lógico que aqui em Jo.
20:23 o significado fosse o mesmo. Mas muitos escritores rejeitam com
força qualquer noção de ofício. 440
439
Tem-se escrito muito, sobretudo nos últimos anos, a respeito do significado exato do tempo
perfeito no caso dos dois verbos que aparecem na apódose; por exemplo, W. T. Dayton. Greek Perfect
Tense in Relation to John 20:23, Matt. 16:19, and Matt. 18:18, tese doutoral não publicada
apresentada ao Claustro do Northern Baptist Theological Seminary, Chicago, Ill, 1945; R. A. Baker,
“The Forgiveness of Sin: An Interpretation of Matt. 16:19; 18:18; and John 20:23”, Review and
Expositor, 41 (1944), 224–225; veja-se também H. J. Cadbury, artigo sobre este tema em JBL 58
(Sept. 1939).
440
Lemos afirmações como estas: “O surgimento da lei eclesiástica e da constituição da igreja é uma
apostasia das condições que o próprio Jesus quis e que originalmente implantou” (afirmação de Sohm
citada com permissão de A. Harnack, The Constitution and Law of the Church, Nova York, 1910, p.
João (William Hendriksen) 905
Ofício implica uma tarefa divinamente atribuída com autoridade
(dada a certos homens e não a outros) para que se leve a cabo. Esta
autoridade tem relação com a vida e a doutrina. Que Cristo a estabeleceu
e os apóstolos a exerceram, fica claro por passagens como Mt. 16:18, 19
(acaso a própria ideia de uma chave — para abrir e fechar — não implica
autoridade? E acaso atar e desatar — seja qual for seu significado — não
implicam o mesmo?); 18:18; 28:18; 1Co. 5:3, 4; 2Co. 10:8. Que esta
autoridade se transmitiu por sua mediação a ministros e anciãos de forma
que também estes têm um ofício e estão revestidos de autoridade, fica
claro das seguintes passagens: At. 14:23; 20:28; 1Tm. 1:18; 3:1, 5; 4:14;
5:17; 2Tm. 4:1, 2; Tt. 1:5–9; 3:10; Ap. 2:20.
Esta autoridade — que segundo Jo 20:23 implica o direito de
expulsar da igreja e de restaurar o pecador a sua comunhão — deve
exercer-se no espírito de amor. Tem como propósito “aperfeiçoar aos
santos para a obra do ministério, para a edificação do corpo de Cristo”
(Ef. 4:12); e sua meta máxima pode expressar-se nestas belas palavras:
“até que todos cheguemos à unidade da fé e do conhecimento do Filho
de Deus, a varão perfeito, à medida da estatura da plenitude de Cristo”
(Ef. 4:13).
Os apóstolos, reunidos nesta habitação nesse dia glorioso da
Ressurreição necessitavam este consolo. Por si mesmos eram fracos e
pecaminosos. Isso foi demonstrado repetidas vezes, inclusive durante os

5); “Na Escritura não há rastro de uma comissão formal de autoridade para governar da parte do
próprio Cristo” (F. J. A. Hort, The Christian Ecclesia — Londres, 1897, p. 84); “O apostolado o
fundou o próprio Cristo, não como um ofício eclesiástico, mas sim como um ministério de pregação”
(Carl von Weiszäcker, The Apostolic Age of the Christian Church, Londres, 1894); e “A autoridade do
apostolado era espiritual, ética ou pessoal. Não oficial” (J. C. Lambert, art. “Apóstol” I.S.B.E.).
O. Linton, quem defende a ideia do ofício apostólico, resume as ideias daqueles que se opõem à
mesma como segue: “Alles amtliche wird ängstlischst vermieden. Diese Lehr ist der gerade Gegenpol
zu der Katholischen Ansicht. Nach dieser war der Apostel der von Jesus selbst zur Regierung der
Kirche Bevollmachtigte”. E também: “Jesus habe die Apostel nur zum Predigen and zum Dienst an
der Gemeinde bestellt, nicht zum Regieren über die Kirche”. Assim também C. B. Bavinck, outro
defensor da realidade e originalidade do ofício apostólico, afirma: “Van een ambt moet men maar niet
spreken” (art. “Apostel” Christelijke Encyclopaedie).
João (William Hendriksen) 906
últimos dias. Tinham ainda o direito de chamar-se apóstolos,
representantes oficiais de Cristo, escolhidos para levar Sua mensagem
aos filhos dos homens e para exercer autoridade na companhia dos
crentes? O Salvador ressuscitado pronuncia estas palavras de alento.
Sem autoridade, o caos toma conta de todo!

JO 20:24–31

20:24, 25. Ora, Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava
com eles quando veio Jesus. Disseram-lhe, então, os outros discípulos:
Vimos o Senhor. Mas ele respondeu: Se eu não vir nas suas mãos o sinal
dos cravos, e ali não puser o dedo, e não puser a mão no seu lado, de modo
algum acreditarei. 441
Quanto a Tomé, seu nome e seu modo de ser, ver sobre Jo 11:16;
14:5. celebrou-se uma reunião dos “Doze”. De fato só dez tinham estado
presentes (além de alguns visitantes bem-vindos), mas o pequeno grupo
ainda pode tecnicamente ser chamado “os Doze”, do mesmo modo que
entre nós, quando quinze dos dezessete membros do consistório estão
presentes, sempre falamos dos que estão presentes como “o consistório”.
Além disso, Tomé era um dos doze apóstolos originalmente escolhidos.
Devia ter estado presente. Ao não estar tinha perdido a alegria de ver o
Senhor ressuscitado, e ouvi-Lo falar palavras de paz. Na verdade, não
tinha tido a própria paz. É evidente pelo versículo 25 que não tinha paz.
Sentia-se infeliz, nervoso, inquieto.
Mas os outros discípulos se compadeceram dele. Além disso, da
abundância do coração fala a boca. Por isso os outros discípulos — os
dez (e provavelmente também os dois de Emaús e outros que tinham
estado presentes) — diziam-lhe vez após vez: “Vimos o Senhor”. Veja-
se sobre Jo 20:18. Embora de forma imediata refere-se o texto aos
apóstolos que tinham estado presentes na habitação no dia da

441
III A 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 907
Ressurreição de noite, é muito provável que também outros (que
poderiam ter estado presentes ou não), por exemplo, Maria Madalena e
as outras mulheres, seguissem dando testemunho prazeroso do que
tinham visto. Tinha havido várias “aparições” antes do dia de
Ressurreição de noite. Veja-se sobre Jo 21:1.
Tomé, contudo, seguia teimoso. Era um discípulo muito dedicado.
Também era muito dado ao pessimismo. Por isto o mundo lhe caiu em
cima quando crucificaram a Jesus. Estava entre “os mais dignos de
comiseração de todos os homens” (1Co. 15:19).
Quando os outros seguiram proclamando sua estupenda história a
seus ouvidos, finalmente protestou: “Se eu não vir nas suas mãos o sinal
dos cravos, e ali não puser o dedo, e não puser a mão no seu lado, de
modo algum acreditarei”, quer dizer, «de nenhuma forma crerei que
Jesus é o Senhor ressuscitado».
Tomé está disposto a crer … quer dizer, sob certas condições. E ele
mesmo imporá as condições. A pessoa misteriosa a respeito de quem os
outros vieram dizendo tanto deve reunir certos requisitos que Tomé
formulará; deve submeter-se a certas provas que Tomé aplicará. Ouvir a
respeito dEle (inclusive da parte dos que viram e ouvido) não é
suficiente. Tomé já ouviu muito. Tomé deseja ver. Também deseja
sentir. Deseja ver o sinal dos pregos, e deseja colocar o dedo no lugar
dos pregos. No original há neste caso uma aliteração interessante: as
palavras sinal e lugar são quase idênticas (τύπος e τόπος), algo assim
como imprensa e impressão. Tomé não se sentirá satisfeito com apenas
ver os sinais que os pregos deixaram nas mãos do Crucificado; não, deve
também colocar de fato o dedo nos ocos deixados pelos pregos. E
inclusive isto não bastará. Tomé deve poder colocar a mão na horrível
incisão deixada pela lança. Agora, se o misterioso personagem a respeito
de quem Tomé ouviu tanto satisfizer todas estas exigências, então … e
só então … Tomé crerá; mas se não, definitivamente não (ο_ μή) crerá.
O comentário a respeito dos pregos e a lançada encontra-se em Jo 19:23,
24.
João (William Hendriksen) 908
26-28. Oito dias depois estavam outra vez ali reunidos seus discípulos
e Tomé com eles. Estando as portas trancadas, veio Jesus, pôs-se em pé no
meio deles e disse: Paz seja convosco. Em seguida disse a Tomé: Chega
aqui o teu dedo e olha as minhas mãos; chega também a tua mão e põe-na
no meu lado; não sejas incrédulo, mas crente. Respondeu Tomé: Senhor
meu e Deus meu! [TB]
Quanto à expressão “oito dias depois” veja-se também sobre Jo
12:1. Empregando o método inclusivo de calcular o tempo — o método
segundo o qual, por exemplo, na terça-feira seria o terceiro dia depois do
domingo — João afirma que oito dias depois se repetiu o evento do
domingo precedente. O tempo e o lugar eram, muito provavelmente, os
mesmos. Esperou o Senhor até o domingo de noite com o fim de
estimular Seus discípulos a que observassem esse dia — e não outro —
como o dia de descanso e culto? Pareceria provável.
Desta vez Tomé estava presente. É provavelmente correto dizer que
sua presença nesta ocasião foi o resultado da obra de testemunho a que
se tinham dedicado os outros. Naturalmente, isto não é seguro. Também
é possível que Tomé se unisse ao grupo pela simples razão de que não
tinha outros amigos, nenhum outro lugar para onde ir.

O resto do versículo 26 é quase uma repetição palavra por palavra


do versículo 19. Veja-se sobre esse versículo. Mais uma vez, embora as
portas estivessem fechadas, Jesus de repente apareceu. Chegou. situou-se
no meio do grupo. Falou-lhes (e deu) paz. Logo Se dirigiu a Tomé. Com
um espírito de amável condescendência às condições que Tomé tinha
posto, Jesus admoestou a Seu extraviado discípulo. Com o fim de ver
com que precisão e plenitude se cumpriram as exigências de Tomé,
devemos colocar as palavras de Tomé e as de Jesus umas junto às outras.
Observe-se:
João (William Hendriksen) 909
Exigências de Tomé Ordens de Jesus

1. Se eu não vir em suas mãos o sinal dos Olha as minhas mãos.


cravos,
2. E ali não puser o dedo, Põe aqui o dedo.
3. E não a mão em seu lado, Chega também a sua mão, e põe-na
No meu lado.
4. De modo algum acreditarei. Não sejas incrédulo, mas crente.

Para cada exigência de Tomé há uma ordem de Jesus, embora a


sequência em que se deram as ordens não seja exatamente igual à
utilizada na proposta das exigências.
A forma condescendente em que Jesus tratou Tomé indica
certamente que continua sendo o mesmo Jesus. Seu amor não diminuiu.
Pôde ter reprovado duramente a Tomé, mas o trata com muita doçura.
Tem sido formulada a pergunta «Fez Tomé de fato o que Jesus lhe
ordenou?» Embora não se encontre uma resposta explícita a isto, é
provável que o fizesse. De fato, poderia perguntar-se «Podia fazer outra
coisa?» Acaso não tinha obrigação de fazê-lo? Além disso, temos Lc.
24:39 e sobretudo 1Jo 1:1.
Tendo ouvido as palavras de Jesus — essas palavras que resultavam
tão maravilhosas porque correspondiam em todos os seus detalhes com
as palavras de Tomé —, tendo provavelmente também visto Suas mãos,
e sentido Suas feridas, Tomé exclama: “Senhor meu e Deus meu!” Esta
confissão deve entender-se à luz da experiência imediatamente
precedente de Tomé; melhor ainda, deve entender-se à luz da
autorrevelação imediatamente precedente de Jesus. Jesus Se tinha
revelado como (com relação à Sua natureza divina) onisciente. Neste
sentido exaltado Tomé chama agora a Jesus seu Senhor e seu Deus. O
fato de que pouco antes estava tratando de “senhorear sobre o Senhor”
(pondo condições que devia cumprir), tornou-se submisso. Tomé já não
quer mandar. Em Jesus reconhece o seu Soberano, sim, inclusive o seu
Deus. Para um judeu esta confissão era notável.
João (William Hendriksen) 910
29. Disse-lhe Jesus: Porque me viste, creste? Bem-aventurados os
que não viram e creram.
Não houve nada inadequado nas palavras da confissão que Tomé
pronunciou. Houve, sim, algo inadequado na forma em que chegou a
esse nível de fé. Deveria ter crido sem ter visto. Para proveito daqueles
que iam chegar a crer nEle nos anos vindouros, Jesus diz agora: “Bem-
aventurados os que não viram e creram”. A fé que procede do ver é boa;
mas a fé que procede do ouvir ainda é mais excelente. Esta é a clara lição
das Escrituras em todas as suas partes; veja-se, por exemplo, Mt. 8:5–10;
Jo. 4:48; Rm. 10:14; e 1Pe. 1:8.
30, 31. Na verdade, 442 fez Jesus diante dos discípulos muitos outros
sinais que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram registrados
para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,
tenhais vida em seu nome.
Com a gloriosa confissão de Tomé, “Senhor meu e Deus meu!”, o
escritor obteve seu propósito. Deveria comparar-se esta confissão com a
sublime declaração de Jo 1:1: “No princípio era o Verbo, e o Verbo
estava com Deus, e o Verbo era Deus”. O propósito do evangelista foi o
tempo todo o mesmo: mostrar que Jesus é realmente Deus (ou, se
preferir-se, o Filho de Deus; e por isso, da mesma essência de Deus). A
ressurreição e sobretudo a aparição aos discípulos, incluindo Tomé, teve
o efeito de produzir esta confissão do coração e da boca do «desalentado
e dedicado».
A ressurreição foi o maior sinal de todos. Quanto ao significado do
termo sinal veja-se sobre Jo 2:11. Tinha havido muitos sinais. Foram
realizados na presença dos discípulos, de modo que estes homens
pudessem ser testemunhas qualificadas, quer dizer, para que pudessem
dar testemunho competente com relação ao que eles mesmos tinham
visto, ouvido ou experimentado. Veja-se sobre Jo 1:7, 8. É verdade que
nenhum viu de fato a ressurreição. Mas os discípulos viram o Cristo

442
Veja-se H. E. Dana e J. R. Mantey, A Manual Grammar of the Greek New Testament, Nova York,
1950, p. 255; e cf. a tese do doutorado do Dr. Mantey “The Meaning of ο_ν in John’s Writings”.
João (William Hendriksen) 911
ressuscitado, e isto certamente implicava a realidade da ressurreição.
João não “desmitologiza”. (Contrastar com R. Bultmann).
Além do grande sinal da ressurreição, os sinais que se relatam no
quarto Evangelho são: a transformação da água em vinho, a cura do filho
do cortesão, a cura do homem “seco” na piscina de Betesda, a milagrosa
alimentação de cinco mil, a devolução da vista ao cego de nascença, e a
ressurreição de Lázaro. Mas isto não é tudo de modo algum. Poderia
perguntar-se: «Acaso a purificação do templo não foi um sinal? Acaso a
entrada triunfal em Jerusalém não foi outro sinal?» Além disso, como se
enfatizou com relação a Jo 2:11, o sinal nunca vai sozinho. Não é só
uma obra poderosa. Sempre há algo mais: o milagre introduz certo
ensino com relação a Cristo. Às vezes esse ensino está implícito; com
frequência se expressa por meio de longos discursos. Daí que cheguemos
à conclusão de que do princípio até o fim o quarto Evangelho é um livro
de sinais. Relata as ações maravilhosas de Cristo e seu significado.
Agora, João não relatou todas as ações e ensinos de Cristo. foi
seletivo. Provavelmente deu por sentado que os leitores já tinham
estudado os evangelhos anteriores; veja-se II da Introdução. Além disso,
em algumas destas ações não se revelava de maneira tão clara como em
outras a divindade de Cristo. E finalmente, o relatar todas as ações e
palavras significativas de Jesus teria sido impossível. Mas este último
ponto menciona-se não aqui em Jo 20:30, 31 mas em Jo 21:25. Veja-se
essa passagem.
Qual foi, pois, o propósito de João ao referir os sinais que relata? A
resposta se expressa nas palavras: “Estes, porém, foram registrados para
que creiais que Jesus é o Cristo …” Note-se: para que creiais. Faz
lembrar Cerinto, que procurava minar a fé da igreja na divindade de
Cristo! Deve fortalecer-se essa fé. Deve repelir-se o inimigo. Na última
parte de II da Introdução encontram-se mais comentários a respeito deste
aspecto do propósito de João. Quanto a Jesus o Filho de Deus, veja-se
também sobre Jo 1:1, 14.
João (William Hendriksen) 912
Quando a igreja continua aceitando a Jesus como o divinamente
enviado e qualificado (ou seja, como o divinamente ungido), quer dizer,
como o Cristo, o cumprimento de todas as esperanças e promessas do
Antigo Testamento; quando continua reconhecendo-O como o Filho de
Deus, no sentido mais excelso da palavra, seguirá tendo vida — vida
eterna; veja-se sobre Jo 1:4; 3:16 — em Seu nome, quer dizer, em e por
meio da bendita aceitação de Sua revelação na esfera da redenção.

Síntese do Capítulo 20
O Filho de Deus triunfa gloriosamente. Ressurreição e aparições.

I. A visita de Pedro e João ao sepulcro.


Quando Maria Madalena, muito alarmada porque tinham tirado a
pedra da entrada do sepulcro, correu a pedir ajuda a Pedro e João, estes
homens responderam imediatamente. A fim de formar-se uma ideia
exata de como Pedro e João primeiro se encaminharam para o sepulcro e
logo se puseram a correr, deveria estudar-se o famoso quadro de
Burnand. Os artistas com frequência não levaram em conta os dados da
Bíblia em todos os aspectos. Note-se como neste quadro (o original está
no Museu Luxemburgo, Paris) a ilusão de movimento é produzida pelo
cabelo de João que ondeia para trás, a inclinação para frente do corpo, os
longos cabelos de Pedro que se movem com o vento, etc. É evidente que
“o outro discípulo” aparece já como adiantando-se a Pedro.
Embora João chegasse primeiro, o primeiro a entrar no sepulcro foi
Pedro. Logo também entrou João. A ordem em tudo o que havia no
sepulcro, a ausência do corpo, a lembrança das passagens do Antigo
Testamento que agora viram sob uma nova luz, fizeram com que estes
homens (primeiro João, logo também Pedro) cressem que Jesus tinha de
fato ressuscitado.
João (William Hendriksen) 913
II. A aparição a Maria Madalena.
As lágrimas de Maria, sua conduta aturdida na presença dos anjos
(tão grande era sua dor), sua conversação com os anjos, e por fim sua
conversação com a pessoa que viu como jardineiro, descrevem-se com
muita viveza. Uma palavra “Maria” pronunciada na forma mais
“familiar”, terna e amorosa, mudou tudo para Maria. Ela respondeu,
“Raboni”. Jesus então lhe deu uma lição quanto à forma em que podia
continuar a comunhão com Ele. Ela informou a respeito de sua
experiência aos discípulos.

III. A aparição aos discípulos sem Tomé.


Esta repentina aparição de Jesus com as portas fechadas não se
pode explicar de uma forma tal que a mente humana a possa captar. Não
só demonstrou o Senhor a Sua ressurreição (inclusive mostrando aos
discípulos Seu lado e Suas mãos), mas lhes deu uma bênção muito
necessária, a da paz, paz conseguida pela cruz. Consolou-os também lhes
informando que a palavra deles, como representantes oficiais Seus,
continuaria. Embora todos O tinham abandonado para fugir, continua os
considerando como Seus apóstolos com autoridade para governar a
igreja.

IV. A aparição aos discípulos estando também presente Tomé.


A beleza deste relato vê-se com mais clareza sobretudo neste
detalhe, que Jesus satisfaz todas as exigências de Seu extraviado (mas
dedicado) discípulo. Tomé recebe permissão (inclusive é-lhe ordenado)
que veja e apalpe as feridas do corpo de Cristo. O trato amoroso que
Tomé recebeu fez brotar de seus lábios a gloriosa exclamação (confissão
que teria sido mais gloriosa se Tomé não tivesse posto condições
próprias), “Senhor meu e Deus meu!”
João (William Hendriksen) 914
Com isto o Evangelho voltou a seu ponto de partida, ou seja, a
divindade de Cristo (veja-se sobre Jo 1:1). Daí que (com exceção de um
suplemento, capítulo 21) termine aqui. O propósito do mesmo é
enunciado nos versículos 30, 31 (veja-se a exegese).

Reflexão a respeito da ressurreição de Cristo


Trevas ao meio-dia
Trevas que ocultaram o sol e a lua. Nunca houve dia mais
tenebroso. Jesus de Nazaré pendura da cruz entre dois ladrões.
Escutemos seu clamor:
“Está consumado! … Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”.
Apagaram-se, apagaram-se as luzes, sim todas elas. Olhemos por
uns momentos ao pequeno grupo de seguidores.

Os Onze
Seu Mestre … foi embora. Seu amigo — e que amigo! — partiu.
Seus planos … desbaratados. Suas esperanças … derrubadas. Estão
perplexos, frustrados. Desesperam-se. Como homens cujo barco não
muito sólido encontra-se paralisado em meio de uma geada ártica, com
apenas páramos frios e desérticos por centenas de quilômetros. Gelo,
lamentos, rangidos, ruídos. Voltarão alguma vez para ver seus seres
queridos? Todos os que entram aqui, abandonam toda esperança! Ou,
usando outra metáfora, parecem-se com os condenados à morte,
confinados numa cela tenebrosa e imunda, que sabem que o mais que
podem esperar é a chegada do verdugo. Veja-se Jo 20:19, “estando as
portas fechadas … com medo dos judeus”. Jesus de Nazaré …
Crucificado … esse era o adeus à esperança!
Exagero? Não havia nem sequer um raio de esperança no meio das
nuvens espessas de trevas e desespero? Uma expectativa semiconsciente
de que surgiria dentre a escuridão alguma luz, de que à noite seguiria a
João (William Hendriksen) 915
alvorada, de que … talvez … o Mestre poderia inclusive … ressuscitar?
Leiamos o relato:
“Estes, ouvindo que ele vivia e que fora visto por ela, não
acreditaram”. Mc. 16:11.
“E, indo, eles o anunciaram aos demais, mas também a estes dois
eles não deram crédito”. Mc. 16:13.
“…também as demais (mulheres) … confirmaram estas coisas aos
apóstolos. Tais palavras lhes pareciam um como delírio, e não
acreditaram nelas”. Lc. 24:10, 11.
“Finalmente, apareceu Jesus aos onze, quando estavam à mesa, e
censurou-lhes a incredulidade e dureza de coração, porque não deram
crédito aos que o tinham visto já ressuscitado”. Mc. 16:14.
“Disseram-lhe (a Tomás), então, os outros discípulos: Vimos o
Senhor. Mas ele respondeu: Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos
cravos, e ali não puser o dedo, e não puser a mão no seu lado, de modo
algum acreditarei”.
Nenhum dos Onze esperava que Jesus ressuscitasse do sepulcro.
Esse pensamento era o mais afastado de sua mente. Jesus estava morto.
Foi-se! Nunca voltariam estes dias felizes de comunhão íntima e
associação estreita com o Grande Profeta de Nazaré.

Cleopas e seu companheiro


Estes dois amigos de Jesus voltam para Emaús. É primavera. Mas
não ouvem o canto dos pássaros. Não veem o despertar da natureza. Sob
um céu de chumbo, quase arrastando os pés, prosseguem para seu lar, …
vêm do funeral! Alguém muito querido foi sepultado. Jesus de Nazaré.
“Ora, nós esperávamos que fosse ele quem havia de redimir a Israel”.
«Esperávamos — tempo passado — mas já toda a esperança se esfumou.
A cruz e o sepulcro derrubaram o último brilho de esperança. Pesa sobre
nosso coração um eterno desespero».
João (William Hendriksen) 916
Maria, a mãe do Senhor
Também ela estava no meio do cru inverno. Uma espada penetrava
sua alma, Lc. 2:35, e via Seu próprio filho, Seu primogênito, morrendo
como criminoso. Um sentimento de tristeza esmagadora se apodera de
mim sempre que leio os versos daquele hino antigo que descreve as
lágrimas de Maria:
“Stabat mater dolorosa;
juxta crucem lacrimosa …”
Também para ela a cruz era o adeus à esperança.

As mulheres
Vejamos estas mulheres cheias de tristeza pelas ruas de Jerusalém,
muito cedo, na manhã do domingo. Enquanto os Onze estão cheios de
profundo luto e desespero; Tomé parece como alguém que se surpreende
com um terremoto, com a terra desaparecendo de debaixo dos pés; Pedro
afligido pelo remorso; João cuidando com ternura a mulher de alma
atormentada (Maria); enquanto a noite foi caindo sobre estes Onze, o que
vão fazer estas mulheres? Vão acaso a dar as boas-vindas ao Senhor
ressuscitado? De nenhuma maneira. A cruz derrubou suas esperanças. O
sepulcro as sepultou para sempre. Vão … ungir um corpo morto, o
cadáver de Jesus de Nazaré, seu amigo e ajudador.
Nunca houve um grupo de homens e mulheres mais deprimido,
desenganado, esmagado!
Ao morrer o Mestre, também os discípulos morreram. Suas
esperanças, suas aspirações, seus afetos mais profundos e suas
expectativas mais queridas ficaram sepultados com seu Senhor. Para que
a esperança se reavivasse em seus corações, era preciso resgatar suas
almas das tenazes da morte. Devia haver um novo começo … e isto …
segundo todas as leis da lógica humana … era impossível.
João (William Hendriksen) 917
E então … a gloriosa mensagem de ressurreição.
Um novo começo! Luz nas trevas! A vida triunfou sobre a morte!
Sim, ressuscitou o Senhor! Tudo muda, então. A cruz, instrumento de
desespero, converte-se em objeto de glória. A ressurreição de Jesus
Cristo dentre os mortos é a fonte de viva esperança. Escutemos a
mensagem de alegria, louvor e ação de graças exuberantes. Escutemo-lo
dos lábios de quem tinha experimentado as trevas mais profundas de
desespero e remorso. Diz Pedro:
“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a
sua muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança,
mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos”. [1Ped 1:3]
“Nos regenerou para uma viva esperança”. Agora Pedro pode voltar
a sorrir. Todos podemos voltar a nos sentir felizes. Uma esperança viva,
real, um desejo, além disso uma expectativa, e, o conhecimento de que
nossas vidas aqui não são em vão. Uma esperança não baseada em
lendas ou fantasias, e sim na rocha inamovível da ressurreição de Cristo
da tumba. Os apóstolos proclamam a ressurreição porque não podem
fazer outra coisa A prova foi muito clara!
Ele vive. Por isso vale a pena viver. Por isso, tudo coopera para bem
dos que amam a Deus. Por isso, todos viveremos. Por isso, a maldição
vai ser eliminada do universo e esperamos um novo céu e uma nova
terra. Toda escuridão será dissipada. A esperança vive de novo.
Dos céus velados desce um raio de luz: chega um anjo poderoso e
terrível. Seu aspecto é como relâmpago e suas vestimentas brancas como
a neve. E o anjo diz: “Não temais; porque sei que buscais Jesus, que foi
crucificado. Ele não está aqui; ressuscitou, como tinha dito”. Ressuscitou
… e a esperança reviveu.
João (William Hendriksen) 918
JOÃO 21
Observações preliminares a respeito do Capítulo 21
I. Paternidade literária
Quem escreveu este capítulo? Veja-se o que já se disse com relação
a isso em I da Introdução. Provavelmente não se pode obter uma certeza
absoluta. Se alguém decide crer que o próprio João escreveu de sua mão
(ou pelo menos ditou) o capítulo 21 em sua totalidade (ou com exceção
dos versículos 24 e 25), não encontrará nada na gramática ou
vocabulário que o impeça. 443
443
Ninguém pôde demonstrar, embora tentou-se, que existem diferenças gramaticais de suficiente
importância para demonstrar que este capítulo é de um escritor diferente. O fato, por exemplo, de que
em todo o capítulo não apareça nem uma só vez a partícula _να, que tanto abunda no quarto
Evangelho (no capítulo 17 encontra-se não menos de 19 vezes), significa muito pouco. Se insistir-se
nisso, o capítulo 11 seria um verdadeiro obstáculo, porque nesse capítulo só aparece uma vez.
O vocabulário tampouco decide o assunto. Este permite a qualquer uma das duas teorias: a. que o
escritor foi o próprio João; ou b. que o escritor foi alguém diferente muito relacionado com João. De
mais de cinquenta verbos (e formas verbais) diferentes que se encontram nos versículos 1–23 deste
capitulo vinte e um do Evangelho de João, uma dúzia não aparecem nos primeiros vinte capítulos. (No
entanto, quatro destes doze encontram-se em outra obra do mesmo escritor, o livro de Apocalipse.) Os
verbos aos quais nos referimos são: pescar (versículo 3), poder (versículo 6), perguntar (versículo
12), tomar o desjejum (versículos 12 e 15), apascentar (versículos 15 e 17), rodear (versículo 18), ser
velho (versículo 18), estender (versículo 18); também os seguintes (João 21 e Apocalipse): arrastar
(versículo 8), atrever (versículo 12), pastorear (versículo 16), e voltar-se (versículo 20).
Também, neste Evangelho, de aproximadamente trinta substantivos que se encontram em Jo 21:1–
23 só oito são exclusivos desta seção (não se encontram em nenhuma outra parte do quarto
Evangelho), ou seja, amanhecer (versículo 4), praia (versículo 4), algo de comer (versículo 5), rede
(versículo 6), peixe (versículo 6), roupa de pescador (versículo 7), côvado (versículo 8: “duzentos
côvados”, que equivale a quase cem metros), e cordeiro (versículo 15). Naturalmente, quando se
introduz um novo tema (o único milagre de pesca em João), apresentam-se palavras novas. De
qualquer maneira podem-se esperar algumas. E às vezes pode haver uma palavra com um sentido
novo; p. ex. irmãos (Jo 21:23).
Note-se também as seguintes semelhanças entre os conteúdos dos capítulos 1–20, por um lado, e
Jo 21:1–23, por outro: 1. O capítulo 21 começa com a conhecida frase, “Depois disto” (veja-se Jo
5:1). 2. O mar da Galileia recebe o nome de “mar de Tiberíades” (Jo 21:1) como em Jo 6:1, 3. Os três
discípulos cujos nomes mencionam-se em Jo 21:2 já foram nomeados antes. Veja-se nota 447. No
entanto, aqui pela primeira vez diz-se que Natanael era de Caná da Galileia. 4. Menciona-se aqui o
“discípulo a quem Jesus amava” (Jo 21:7, 20) como em Jo 13:23; 19:26 (cf. Jo 20:2). 5. Há aqui a
João (William Hendriksen) 919
Que nós, contudo, estejamos em favor da teoria de que outro líder
de Éfeso (provavelmente discípulo de João), sob a direção do Espírito
Santo, e com a aprovação total de João, escreveu Jo 21:1–23 (e
provavelmente também o versículo 24 em nome dos anciãos — note-se o
pronome “nós” do versículo 24 que se transforma no “eu” no versículo
25), deve-se às seguintes razões:
1. A conclusão do capítulo 20 (versículos 30 e 31) deixa a
impressão de que o relato (capítulos 1–20) conclui aí.
2. O escritor dos capítulos 1–20 nunca menciona a si mesmo nem
aos membros de sua família imediata pelo nome (cf. Jo 1:35–41; 13:23;
18:15; 19:25–27, 35; 20:2–10), mas quem quer que escrevesse Jo 21:2
menciona “os filhos de Zebedeu” (o pai de Tiago e João).
3. A longa cláusula descritiva que se utiliza aqui em Jo 21:20 para
indicar “o discípulo a quem Jesus amava”, ou seja, “o qual na ceia se
reclinara sobre o peito de Jesus e perguntara: Senhor, quem é o traidor?”
— destaca de forma contrastante com relação à forma velada que utiliza
o escritor dos capítulos 1–20 para referir-se a si mesmo (Jo 1:35; cf.
1:40; 13:23; 19:26; 20:2).

II. Propósito
O capítulo 21 sempre foi parte deste Evangelho. Por que se
acrescentou depois da bela conclusão que se encontra em Jo 20:30, 31?
Alegaram-se várias razões. Como deve ter havido algumas considerações
práticas que deram pé à adição deste suplemento, há provavelmente mais
que um simples elemento de fato nos seguintes propósitos que se
sugeriram:

mesma transição de πλο_ον (Jo 21:6) a πλοιάριον (Jo 21:8) como no capítulo 6 (cf. Jo 6:17–20 com Jo
6:22). 6. As palavras “Veio Jesus, tomou o pão … e, de igual modo, o peixe” (Jo 21:13) lembram Jo
6:11. 7. O versículo 14 — “E já era esta a terceira vez que Jesus se manifestava aos discípulos” — não
tem sentido além de Jo 20:19, 26. 8. Encontramos o conhecido duplo Amém em Jo 21:18. Veja-se
sobre Jo 1:51.
João (William Hendriksen) 920
1. Para provar que o Cristo ressuscitado continua tendo interesse
por Sua igreja, e que Seu poder maravilhoso e terno amor não
decresceram de forma alguma. Veja-se Jo 21:1–14, sobretudo os
versículos 5, 6, e 12. No entanto, acaso Jo 20:19–29 não provam o
mesmo? Sim, mas o capítulo 21 pode-se considerar como uma prova
adicional nesta direção.
2. Para lembrar aos discípulos o fato de que devem ser pescadores,
e isso não só no sentido usual do termo (Jo 21:3), mas também e
sobretudo, de homens (Jo 21:15–17). No entanto, com relação a isso
deve ter-se em mente que aqueles a quem se referem os versículos 15–17
já estão na igreja; além disso, que a metáfora utilizada não é a do
pescador mas a do pastor que cuida de suas ovelhas. Contudo, pode ser
correto o propósito sugerido; porque acaso a reflexão a respeito do
milagre indicado em Jo 21:6 não lembraria o anterior referido em Lc.
5:10 (que os discípulos iam pescar homens)? O trabalho pelo reino deve
reiniciar-se com vigor!
3. Para sublinhar diante da igreja que Pedro tinha sido totalmente
restaurado. É possível que tivessem surgido dúvidas com relação a se
alguém que havia pecado tão gravemente pudesse continuar sendo
depositário da importante tarefa, de tanta responsabilidade, de pastorear
a grei de Jesus Cristo. Este capítulo procura tirar toda dúvida. Veja-se Jo
21:15–17.
4. Para sublinhar mais uma vez a consoladora verdade da
predestinação, ou seja, que o que quer que seja que ocorra em nossa
vida, isso foi sabiamente ordenado pelo Senhor, da mesma maneira que
tinha sido prevista e predita a própria maneira da morte gloriosa de
Pedro. Veja-se Jo 21:18, 19.
5. Para eliminar todo mal-entendido com relação ao dito de Jesus
referente ao “discípulo a quem Jesus amava”, quer dizer, para desterrar o
rumor de que Jesus tivesse querido dizer, “que aquele discípulo não
morreria”. Veja-se Jo 21:20–23.
João (William Hendriksen) 921
6. Para dar oportunidade aos anciãos de Éfeso de apresentar um
testemunho oficial e unido com relação à confiabilidade do referido no
quarto Evangelho. Veja-se Jo 21:24. E finalmente,
7. Para explicar por que tantos outros eventos que tinham chegado a
saber-se durante a estadia terrestre de Cristo não se mencionavam. É
possível que do contrário alguns teriam perguntado, “Por que não se
relatou isto? Por que não se incluiu aquilo?” Veja-se Jo 21:25.

JO 21:1–14

21:1. Depois disto, tornou Jesus a manifestar-se aos discípulos junto


do mar de Tiberíades; e foi assim que ele se manifestou:
Quanto ao significado de “depois disto”, veja-se sobre Jo 5:1. Jesus
Se manifestou a Si mesmo, quer dizer, fez desdobramento de Sua glória.
Não só fez uma aparição física repentina, de forma que os discípulos
pudessem vê-Lo, e sim demonstrou Seu poder e amor permanentes, Sua
majestade divina e terna compaixão divina e humana, visto que estas
qualidades transluziram em Suas palavras e obras nesta ocasião. 444

444
João gosta deste verbo manifestar. Encontro 18 ocasiões em que se usa no quarto Evangelho e a
primeira Carta (Lenski encontra 17, op. cit., p. 1376): Jo 1:31; 2:11; 3:21; 7:4; 9:3; 17:6; 21:1 (duas
vezes); 21:14; 1Jo 1:2 (duas vezes); 2:19; 2:28; 3:2 (duas vezes); 3:5; 3:8; 4:9.
Estes 18 casos podem ser assim classificados:
a. primeira pessoa do singular do aoristo indicativo ativo: Jo 17:6 (manifestei o teu nome).
b. terceira pessoa do singular do aoristo indicativo ativo: 2:11 (Jesus manifestou sua glória); Jo
21:1 (duas vezes: Jesus manifestou-se a si mesmo).
c. terceira pessoa do singular do aoristo indicativo passivo: Jo 21:14 (Jesus foi manifestado, foi
feito manifesto); 1Jo 1:2 (duas vezes: a vida foi manifestada); 1Jo 3:2 a (ainda não se manifestou o
que seremos); 1 Jo. 3:5 (foi manifestado para tirar os pecados); 1Jo 3:8 (para isto foi o Filho de Deus
manifestado para destruir as obras do demônio); 1Jo 3:8 (o amor de Deus manifestou-se com este fim,
para que pudesse destruir as obras do demônio); 1Jo. 4:9 (nisto se manifestou o amor de Deus em nós
que Deus enviou a seu Filho unigênito ao mundo).
d. segunda pessoa do singular do aoristo imperativo ativo: 7:4 (te manifeste a ti mesmo — ou
simplesmente: “te mostre a ti mesmo” — ao mundo).
e. terceira pessoa do singular do aoristo subjuntivo passivo: Jo 1:31 (mas para que pudesse
manifestar-se a Israel); 3:21 (a fim de que pudesse manifestar-se que suas obras as fazia em Deus); 9:3
João (William Hendriksen) 922
À luz do contexto é provável que a expressão “manifestou-se” neste
caso (e em Jo 21:14) deve restringir-se ainda mais. Refere-se aqui à
automanifestação do Senhor Jesus Cristo a Seus discípulos quando Se
apresentou vivo, depois de Sua paixão, com muitas provas durante um
período de quarenta dias (At. 1:3).
O que temos aqui (Jo 21:1–23) é um relato de uma das “aparições”
depois da ressurreição. É a número 7 da lista (veja-se também sobre Jo
21:14).

Aparições
1. A Maria Madalena (Mc. 16:9; Jo. 20:11–18).
2. Às mulheres (Mt. 28:9, 10).
3. A Cleopas e seu companheiro (Lc. 24:13–35).
4. A Simão (Lc. 24:34; 1Co. 15:15).
5. Aos discípulos exceto a Tomé (Jo 20:19–23).
6. Aos discípulos, com Tomé presente (Jo 20:24–29).
Todas elas ocorreram em Jerusalém. Depois que os discípulos
foram a Galileia, obedecendo as instruções que tinham recebido do
Senhor, Jesus Se apareceu de novo:
7. Aos sete junto ao mar de Tiberíades (21:1–14).

(isto sucedeu a fim de que as obras de Deus se manifestassem nele); 1Jo 2:28 (se manifestará … em
sua vinda); 1Jo 3:2b (quando se manifestará, seremos como ele).
f. terceira pessoa do plural do aoristo subjuntivo passivo: 1Jo 2:19 (para que se possam manifestar
que não são de nós). Cf. também Ap. 3:18; 15:4.
Pelo que antecede fica evidente que o verbo usa-se em conexão com: a. o desdobramento da glória
de Deus nas palavras e obras de Jesus em Sua primeira vinda; b. o mesmo, em sua segunda vinda; e c.
mais concretamente, com relação a suas aparições pós-ressurreição. Também utiliza-se d. de uma
maneira mais geral, para indicar a passagem à luz do que estava oculto, a revelação de uma pessoa em
seu verdadeiro caráter (tanto o bem como o mal) (1Jo 2:19; 3:2).
A intenção (que às vezes se faz) de distinguir entre φανερόω e _ποκαλύπτω de uma forma tal que
φανερόω significaria desdobramento público (manifestar-se a si mesmo aos homens em geral)
enquanto _ποκαλύπτω indicaria revelação interna (só aos crentes) exige considerável modificação à
luz das referências dadas antes (nas quais se utiliza o verbo φανερόω). À luz de tais referências
preferimos a definição que demos nesta nota e no texto.
João (William Hendriksen) 923
8. Aos discípulos numa “montanha” na Galileia, onde Jesus fez uma
grande declaração, deu a grande comissão, e proclamou a grande
presença (Mt. 28:16–20). Muitos comentaristas identificam esta aparição
com a número 9.
9. Aos quinhentos (1Co. 15:6).
10. A Tiago, o irmão do Senhor (1Co. 15:17). Não se diz se ocorreu
na Galileia ou na Judeia.
Tendo retornado os discípulos a Jerusalém:
11. Aos onze no monte do Olival, perto de Jerusalém (At. 1:4–11;
cf. Lc. 24:50, 51).
A seguinte aparição que se relata aqui é do Senhor do céu.
12. A Paulo, quando se achava em caminho a Damasco (At. 9:3–7;
22:6–10; 26:12–18; 1Co. 9:1; 15:8).
Pode ter havido outras. Não sabemos quantas (cf. At. 1:3).
Com relação a estas “manifestações” ou “aparições” deveria
observar-se o seguinte:
a. Não nos estamos ocupando aqui com o mundo de irrealidade, de
fantasias, fantasmas, alucinações, sonhos ou visões puramente
subjetivos. Pelo contrário, em todos os casos é o próprio Senhor em
pessoa quem Se manifesta.
b. A expressão manifestou-se utiliza-se aqui em Jo 21:1, 14 a fim de
sublinhar a ideia de que Jesus já não está com os homens como o tinha
estado antes. Aparece de repente. Com a mesma subitaneidade volta a
desaparecer. Mas enquanto está com eles, eles O veem (embora nem
sempre imediatamente) como seu Senhor ressuscitado e glorioso.
As palavras, “foi assim que ele se manifestou”, provavelmente se
acrescentaram devido ao fato de que o relato desta “aparição” específica
é bastante longo e circunstancial.
2. Estavam juntos Simão Pedro, Tomé, chamado Dídimo, Natanael,
que era de Caná da Galiléia, os filhos de Zebedeu e mais dois dos seus
discípulos.
João (William Hendriksen) 924
Não nos surpreende encontrar estes homens juntos na Galileia. O
Senhor tinha prometido encontrar-Se ali com Seus discípulos (Mt. 28:7,
10; Mc. 16:3). Além disso, quatro dos cinco que aqui se indicam tinham
estado também juntos no começo do ministério de Cristo. Referimo-nos
a Simão Pedro, Natanael e os filhos do Zebedeu (João e Tiago). Veja-se
sobre Jo 1:35–51. Nesse tempo também André e Filipe tinham estado
com os mencionados. Eram estes os “mais dois dos seus discípulos” que
voltam agora a aparecer no final do Evangelho? Não sabemos quem
podem ter sido estes outros dois. É quase seguro que eram dos Doze
(veja-se Jo 21:1, “dos seus discípulos”). Que aqui em Jo 21:2 a razão de
que não se mencione pelo nome os outros dois seja “porque ainda não
tinham aparecido por seu nome no corpo do livro (capítulos 1–20)”, é ,
antes, improvável e limitaria as possibilidades a dois dos seguintes três
homens: Mateus, Tiago, o Menor e Simão Zelote. 445 Quanto à inferência
que se pode derivar da menção dos filhos do Zebedeu”, veja-se
Observações preliminares a respeito do capítulo 21, I e II.
3. Disse-lhes Simão Pedro: Vou pescar. Disseram-lhe os outros:
Também nós vamos contigo.
Pedro é o homem de ação. Em geral age antes que João. João
geralmente entende antes que Pedro. Por isso Pedro diz, “saio a pescar”

445
Todos os outros (quer dizer, todos exceto Mateus, Tiago, o Menor e Simão Zelote) foram
mencionados antes pelo nome. Veja-se nossos comentários a respeito das seguintes passagens que
aludem aos discípulos cujos nomes são mencionados ou se sugerem no quarto Evangelho:
A. Mencionados pelo nome:
Simão Pedro: Jo 1:40, 41, 42, 44; 6:8, 68; 13:6, 8, 9, 24, 36, 37; 18:10, 11, 15, 16, 17, 18, 25, 26,
27; 20:2, 3, 7, 11, 15, 16, 17, 20, 21.
André: Jo 1:40, 44: 6:8; 12:22.
Filipe: Jo 1:43, 44, 45, 46; 6:5, 7; 12:21, 22; 14:8, 9.
Natanael (chamado Bartolomeu nos Sinóticos): Jo 1:45, 46, 47, 48, 49; 21:2.
Tomé: Jo 11:16; 14:5; 20:24, 26, 27, 28, 29; 21:2.
Judas, o Maior: Jo 14:22.
Judas, o Traidor: Jo 6:71; 12:4; 13:2, 26, 29; 18:2, 35.
B. Por referência indireta ou velada:
Tiago, o irmão do escritor: Jo 1:41.
João: Jo 1:35, 37, 38, 39; 13:23, 24, 25; 18:15, 16; 19:26, 27; 20:2, 3, 4, 8; 21:7, 20, 23, 24.
João (William Hendriksen) 925
(literalmente). Significa isso que Pedro deixa de lado (ou: já deixou de
lado) a pregação, por considerar que já não vale a pena, dizendo (ou:
tendo dito) adeus à mesma, e voltando (ou: tendo voltado) à sua antiga
ocupação? Alguns dos melhores comentaristas (incluindo F. W.
Grosheide) são deste parecer enquanto outros (p. ex. R. C. H. Lenski)
parecem encontrar ridícula inclusive a ideia. Não existe prova definitiva
em nenhum sentido. É verdade que estes homens deviam ganhar a vida,
e que pelo menos alguns dos mencionados eram (ou tinham sido) por
ofício pescadores (Mt. 4:18, 21). Por outro lado, também é verdade que
Jesus logo vai insistir e a voltar a insistir que Pedro deve ser pastor de
homens. Veja-se, além disso, o que se disse acima sob II, ponto 2. Além
disso, embora Jesus, depois de Sua ressurreição, já Se tinha manifestado
a Pedro, pode não ter ficado totalmente claro para este que o direito de
reiniciar suas atividades espirituais como missionário ou ministro. Em
consequência, a ideia de que Pedro, pelo menos neste momento, tivesse
renunciado a suas atividades relacionadas com o reino e tivesse voltado
ao seu anterior ofício, não se pode descartar de forma total. E acaso Jo
16:32 não implica que nesta decisão de reiniciar suas anteriores
ocupações de forma exclusiva, e de renunciar à ideia de trabalho
intensivo em prol do reino, tinha sido acompanhado por outros? Veja-se
sobre esse versículo.
Os outros seis discípulos estão dispostos a seguir a liderança de
Pedro. De fato, quando disse: “saio a pescar”, talvez quis dizer, “Quem
vai comigo?”
Saíram, e entraram no barco, e, naquela noite, nada apanharam.
Embora estes homens, uma vez a bordo do barco (provavelmente o de
Pedro), escolheram a hora mais adequada para pescar, e embora pelo
menos alguns deles fossem pescadores experimentados, trabalharam toda
a noite sem pescar nada. Voltava-se a repetir a história. Lembraram sua
anterior experiência, a relatada em Lc. 5? E foi seu fracasso de toda a
noite uma revelação do desagrado de Deus por ter deixado de lado o
trabalho do reino? Mas Deus ainda os amava! Em consequência, em Sua
João (William Hendriksen) 926
amorosa providência, seu fracasso total deve servir para pôr de relevo a
grandeza do dom que ia outorgar-lhes.
4. Mas, ao clarear da madrugada, estava Jesus na praia; todavia, os
discípulos não reconheceram que era ele. A expressão “ao clarear da
madrugada” põe de relevo a frustração que estes homens tinham
experimentado durante a longa e aparentemente infrutífera noite. Por
fim, já chegou a alvorada, e ainda não tinham pescado nada. Ao olhar à
praia veem um homem. Era Jesus, porém não O reconheceram. Por que
não? Porque a incredulidade tinha fechado seus olhos? Porque seus olhos
se achavam sobrenaturalmente impedidos de reconhecê-Lo (cf. Lc.
24:16)? Devido à natureza e aspecto de Seu corpo? Não se dá a razão.
Dificilmente pôde ter sido por ter estado longe demais da margem.
Afinal de contas, estavam apenas a uns cem metros (Jo 21:8), a uma
distancia da qual podiam ouvir a voz (Jo 21:5). Talvez neste caso, em
que não se menciona nada que sugira algum fator sobrenatural, a
explicação mais natural é a melhor, que a bruma matutina lhes
impossibilitava identificar a pessoa na praia. Mas não há certeza de que
assim fosse.
5. Perguntou-lhes Jesus: Filhos, tendes aí alguma coisa de comer?
Com muito amor o Senhor da glória Se dirige a estes homens como,
“filhinhos”. * Veja-se sobre Jo 4:46. Veja-se também 1Jo 2:13, 18, onde o
ancião João utiliza a mesma expressão. Quando Jesus acrescentou,
“tendes aí alguma coisa de comer?”, faz a pergunta para centralizar sua
atenção sobre o fato de que a volta deles à sua antiga ocupação foi um
fracasso completo. Eles fracassaram em reconhecer plenamente o plano
de Deus para suas vidas. É como se lhes estivesse dizendo: “Não
pescastes absolutamente nada, não é verdade? Sem Mim nada podeis
fazer. Por favor, aprendei a lição de uma vez por todas. E agora, Eu vou
ensinar-vos onde deveis lançar a rede para apanhar peixes (cf. v. 6). Não

*
A palavra “filhinhos” está no original; a Versão Jünemann a traduz assim. – Nota do Tradutor.
João (William Hendriksen) 927
446
tendes nada para comer, verdade? Por isso Eu preparei o desjejum
para vós” (cf. v. 9).
Como se indicou antes, esta explicação tem a vantagem de estar em
harmonia com o contexto.
5b, 6. Responderam-lhe: Não. Então, lhes disse: Lançai a rede à
direita do barco e achareis. 447
Os cansados discípulos responderam a pergunta do estranho com
uma só palavra: “Não”. — “Lançai a rede à direita (literalmente, “nas
partes direitas”, embora esse seja só um modismo) do barco e achareis
(no sentido de pescar)”, diz o homem na praia. Foi esta ordem a que
abriu os olhos de João, de forma que começou a suspeitar quem poderia
ser esse estranho? Lembrou alguma instrução semelhante durante o
ministério anterior de Cristo (cf. Lc. 5:4)? Houve algo na voz deste
estranho — calma, segurança, autoridade — que impressionou estes
cansados pescadores? De qualquer modo, obedeceram imediatamente:
Assim fizeram e já não podiam puxar a rede, tão grande era a
quantidade de peixes.
Os pescadores experimentados não costumam permitir que uma
pessoa totalmente estranha lhes dê instruções. Poderiam muito bem ter
dito: «Acaso pretendes tu, da margem, a uns cem metros de nós, dizer-
nos onde lançar a rede? Claro que é muito mais fácil que nós nos demos
conta do que sucede na água a ambos os lados do barco que tu o vejas de
tão longe! Além disso, nós somos pescadores. Sabemos o que estamos
fazendo. De modo que, estrangeiro, é melhor que não nos dês nenhum
conselho que não te pedimos». Mas não fizeram nada semelhante. Nem
sequer começaram a objetar, para logo entrar na linha da obediência.
Nem sequer dizem: «Lutamos toda a noite para não pescar nada … mas
confiando em tua palavra lançaremos as redes» (cf. Lc. 5:5). Nada

446
προσφάγιον, um artigo básico de alimentação do gênero peixe, mais que um simples condimento
com o alimento. Cf. o termo utilizado mais adiante no versículo 9 e também sobre Jo 6:9. Quanto aos
dois substantivos προσφάγιον e _ψάριον veja-se J. H. Moulton e G. Milligan, op. cit., pp. 470 e 551.
447
Literalmente: “e encontrareis”.
João (William Hendriksen) 928
absolutamente! Pelo contrário — profundamente impressionados pelo
tom exigente da voz do estranho — obedecem com prontidão militar.
Lançam a rede à direita, e imediatamente capturam tantos peixes que, se
bem estavam se esforçando (note-se a força do imperfeito), não puderam
puxar a rede até o barco.
Era um milagre. Jesus não criou de repente todos esses peixes, mas
fez que no momento adequado este cardume estivesse no lugar preciso
para ser capturado. E o propósito do milagre foi abrir os olhos destes
homens, fazê-los ver que por si mesmos não podiam fazer nada, e
fortalecer sua fé nEle.
7. Aquele discípulo a quem Jesus amava disse a Pedro: É o Senhor!
O que dissemos com relação a Jo 21:3 — «Pedro geralmente age
antes que João. João geralmente entende antes que Pedro» —fica
ilustrado também neste caso. Aquele que tinha captado primeiro o
significado dos lençóis e o sudário (Jo 20:8) foi também o primeiro em
discernir que o estranho da praia era o Senhor. Imediatamente
comunicou a Pedro sua surpreendente descoberta. João e Pedro voltam a
estar juntos, como com tanta frequência ocorreu (veja-se sobre Jo 1:35–
41 — onde está implícita a presença de João — Jo 13:23, 24; 18:15, 16;
20:1–10; depois Jo 21:2, 7 também os versículos 20–22 deste capítulo;
logo At. 3:1–4; 22; 8:14–17; e Gl. 2:9). No reino de Deus o homem de
ação e o homem de visão se complementam mutuamente. Quanto ao
significado de “o discípulo a quem Jesus amava” veja-se sobre Jo 13:23.
Para o verbo (amava) veja-se a nota 458.
Simão Pedro, ouvindo-o dizer isso, vestiu a capa, pois a havia tirado,
e lançou-se ao mar [NVI]. Como era característico dele, Pedro agiu
imediatamente. A ideia de que já levava posta a jaqueta de pescador e
que agora simplesmente a cinge com uma faixa (R. C. H. Lenski, op. cit.,
p. 1381) está em conflito com a cláusula que segue imediatamente, ou
seja, “pois a tinha tirado”. Ao pôr-se a jaqueta e cingi-la com um
cinturão Pedro se preparou para saltar à praia a fim de se encontrar com
seu Senhor. Antes disso, para facilitar os movimentos durante a atarefada
João (William Hendriksen) 929
mas infrutífera noite, ele (e talvez também os outros) esteve trabalhando
só com a roupa interior posta. Sem vacilar Pedro se lança à água, que,
contudo, a esta distância da margem, provavelmente não era muito
profunda. Vai dar as boas-vindas ao seu Senhor. Não voltamos a
encontrá-lo até que volta a subir ao barco (Jo 21:11).
8. Mas os outros discípulos vieram no barquinho puxando a rede
com os peixes; porque não estavam distantes da terra senão quase
duzentos côvados.
Os outros discípulos, menos impulsivos que Pedro, demoraram um
pouco mais em chegar, porque tinham permanecido no barco. 448 De
modo que, chegaram a terra por meio do barco, que deve ter atracado
pouco depois de que Pedro o fizesse — porque a distância era só
como 449 “duzentos côvados” 450 ou uns cem metros. A rede cheia de
peixes tinha sido arrastada atrás do barco.

448
Literalmente, “o barquinho”. No entanto, quando alguém se familiariza muito com certo objeto
através de seu uso constante, refere-se às vezes a ele por meio de um diminutivo, sem que com isso
queira indicar necessariamente que é de tamanho reduzido. Tanto no versículo 8 como no 6 refere-se
ao mesmo barco.
449
Note-se _ς, como em Jo 11:18, onde se explica a expressão.
450
Ao criar o corpo humano e suas proporções o Senhor nos proveu com uma pauta adequada de
medidas, que os antigos utilizaram e até certo ponto seguiu usando-se até nosso tempo. Assim temos:
a. A polegada, do polegar, ou largura deste dedo.
b. O dedo, de uma extensão ao largo de 3/4 de polegada ou 1,9 cm. (Jr. 52:21).
c. Os quatro dedos juntos, distância de quatro vezes 3/4 de polegada quer dizer, três polegadas, ou
7,6 cm. (2Cr. 4:5).
d. O palmo, a distância máxima que abrange a mão estendida, ou três vezes os quatro dedos
juntos; ou seja, nove polegadas, ou 22,9 cm. (Êx. 28:16).
e. O côvado, a longitude do antebraço. A palavra que se utiliza aqui em Jo 21:8 originalmente
significava o antebraço, e adquiriu a conotação secundária de longitude do antebraço. Isto equivale a
dois palmos ou dezoito polegadas, ou 45,7 cm. (meio metro aproximadamente).
f. A braça, a longitude dos braços estendidos horizontalmente. Isto equivale a quatro côvados ou
seis pés, ou 1,83 m. O termo grego _ργυιά deriva-se de uma raiz que significa estender (At. 27:28).
g. O estádio — em grego στάδιον — que equivale a cem braças ou 183 metros (Jo 6:19; 11:18;
Ap. 14:20; 21:16). Era a longitude da carreira olímpica. daí que o termo signifique estádio em 1Co.
9:24.
h. Caminho de um sábado equivale a dois mil côvados ou 914 metros (At. 1:12).
i. O pé indicava originalmente a longitude do pé humano. O pé inglês ou americano da atualidade
(medida de longitude) é maior que o pé médio do homem adulto. Quando não se dispõe uma regra,
João (William Hendriksen) 930
9. Ao saltarem em terra, viram ali umas brasas e, em cima, peixes; e
havia também pão. 451
Ao chegar à margem uma cena agradável acolheu estes discípulos.
Em marcado contraste com sua incapacidade de encontrar-se alimento,
havia um fogo de brasas no qual o homem na praia tinha preparado uma
simples comida de pão e peixe (_ψάριον, aqui como em Jo 6:9, 11, um
acompanhamento para o pão; veja-se também a nota 448 acima).
Pode-se arguir com força em favor da ideia de que aqui no versículo
9 deveríamos traduzir um peixe e um pão em lugar do indefinido “peixe
e pão”, tradução que, deve admitir-se, também é possível. O versículo 13
parece indicar que só houve um pão (note-se o artigo definido) e só um
peixe. Além disso, a surpreendente semelhança entre Jo 21:13 e Jo 6:11
parece implicar que em ambos os casos estamos diante de um milagre de
multiplicação.
10. Disse-lhes Jesus: Trazei alguns dos peixes que acabastes de
apanhar. Jesus não quis dizer: “Trazei alguns dos peixes porque do
contrário não haverá suficiente para comer”. Pelo contrário,
simplesmente desejava que utilizassem os peixes pequenos e guardassem
os grandes, tirando aqueles da rede para desfrutar da vista deles de forma
que pudessem meditar a respeito da grandeza do milagre e de suas
implicações espirituais.
11. Simão Pedro entrou no barco e arrastou a rede para a terra,
cheia de cento e cinqüenta e três grandes peixes; e, não obstante serem
tantos, a rede não se rompeu. No borde do barco Pedro solta a parte
extrema da rede e a arrasta pela água até a margem, onde, provavelmente
com a ajuda dos demais (porque era muito pesada; veja-se o versículo 6

pode-se chegar em forma aproximava desta medida comum de longitude acrescentando um palmo e
uma largura de mão (os quatro dedos juntos).
j. A milha — em grego μίλιον, do latim milia passuum: mil passos — a distância que se cobria
com mil passos duplos (Mt. 5:41).
Como as medidas do corpo humano não são constantes, e também por outras razões, estas não são
exatas e variam em diferentes períodos da história e em países diferentes.
451
Ou “peixes e pão”.
João (William Hendriksen) 931
acima), foi depositada na areia. Uma vez que tiraram os peixes grandes,
contaram-nos. Somaram cento e cinquenta e três. 452 Sem dúvida, foi uma
pesca notável! Uma carga tão grande de peixes pôde muito bem causar a
ruptura da rede (como em Lc. 5:6), mas neste caso o Senhor fez com que
não sucedesse.
12. Disse-lhes Jesus: Vinde, comei. O relato passa de um milagre ao
seguinte, embora no propósito geral os dois são um só. Como os homens
estavam cansados e famintos, Jesus os convidou a comer.
Nenhum dos discípulos ousava (observe-se aqui a força do
imperfeito: nunca chegaram a fazê-lo) perguntar-lhe: Quem és tu?
Porque sabiam que era o Senhor.
Estavam muito cheios de reverência em Sua presença e também
plenamente convencidos na mente com relação à identidade do homem
na praia para tentar de qualquer forma, por meio de perguntas, extrair 453
informação dele quanto a este tema. Sabiam que era o Senhor, o Mestre
ressuscitado e glorioso.
13. Veio Jesus, tomou o pão, e lhes deu, e, de igual modo, o peixe. O
significado desta informação sugeriu-se antes, veja-se sobre versículo 5
acima. É importante ter em mente que o que o Senhor dá a estes homens
não provém dos peixes que eles tinham pescado. O próprio Senhor
preparou o café da manhã, que se multiplicou misteriosamente de forma

452
Entre as interpretações estranhas e, em sua maior parte, alegóricas, desta informação encontrei as
seguintes:
a. Não se contaram os peixes até que estiveram na praia para nos ensinar que o número exato dos
escolhidos continua sendo desconhecido até que cheguemos às margens do céu.
b. Os antigos contaram cento e cinquenta e três variedades de peixes.
c. Há uma alusão velada a Mt. 13:47, 48, e um indício de que se vão salvar todo tipo de pessoas.
d. Alude-se a uma data importante na história da igreja, ou seja, o ano 153 d.C.
e. O total representa a soma de todos os números de 1 a 17. Bem, o que tem que ver isso?
f. Em caracteres hebraicos o equivalente numérico de Simão Jonas é cento e cinquenta e três.
g. O número cento e cinquenta e três representa 100 para os gentios, 50 para os judeus, e 3 para a
Trindade.
453
Note-se o prefixo deste verbo, parecido ao de nossos extrair, examinar. Literalmente o verbo
significa perguntar (a fim de averiguar) a respeito de; inquirir cuidadosamente; cf. o verbo holandês
uitvragen.
João (William Hendriksen) 932
que um pão e um peixe (em ambos os casos o original leva o artigo
definido) converte-se em comida para todos estes homens. Que a
intenção do escritor é transmitir este fato, é fácil de ver se comparar-se
Jo 6:11 (o milagre dos cinco pães e dois peixes) com esta passagem (Jo
21:13):

Jo 6:11 Jo 21:13

“Então, Jesus tomou os pães e,


tendo dado graças, distribuiu-os “Veio Jesus, tomou o pão, e
entre eles; e também igualmente lhes deu, e, de igual modo
os peixes, quanto queriam. o peixe”.

Muito se tem escrito a respeito do fato de que aqui em Jo 21:13 não


se lê, “e tendo dado graças”. Mas era necessário que o evangelista
escrevesse tudo o que aconteceu?
14. E já era esta a terceira vez que Jesus se manifestava aos
discípulos, depois de ressuscitado dentre os mortos.
Quanto ao significado do verbo se manifestava, veja-se sobre Jo
21:1 e também a nota 446.
Jesus não Se manifestou a Seus inimigos (At. 10:41), mas a Seus
amigos. Embora a presente aparição menciona-se como a número 7 na
lista dada com relação ao versículo 1, contudo, se excluirmos de nossa
conta aquelas em que o Senhor Se revelou às mulheres e a pessoas
sozinhas, e contamos só aquelas em que apareceu ao círculo íntimo de
seus discípulos considerado como grupo (embora sem necessidade de
que cada um dos membros estivesse presente), chegamos à conclusão de
que esta foi a terceira manifestação. Que isto é que João tem em mente,
fica claro pela expressão “aos discípulos”. A primeira é relatada em Jo
20:19–23; a segunda em Jo 20:26–29.
João (William Hendriksen) 933
JO 21:15–25

21:15. Depois de terem comido, perguntou Jesus a Simão Pedro:


Simão, filho de João, amas-me mais do que estes outros?
Terminado o desjejum, o Senhor Se dirige agora a Pedro a fim de
restaurá-lo publicamente à sua função ou pelo menos para dar a conhecer
a toda a igreja que tinha sido perdoado e que a ele, assim como a outros,
tinha sido confiado o cuidado da grei de Jesus Cristo.
As circunstâncias devem ter lembrado a Pedro a cena de sua
negação. E se as circunstâncias como tais não o lembraram, o que ia
suceder certamente ia lembrá-lo. Notem-se as seguintes semelhanças:

1. Foi junto a um fogo de brasas que Pedro negou a Seu Mestre (Jo
18:18). Aqui há outro fogo de brasas (Jo 21:9) junto ao qual se pede que
confesse (seu amor) ao Mestre.
2. Três vezes tinha Pedro negado a seu Mestre (Jo 18:17, 25, 27).
Três vezes deve agora reconhecê-Lo como seu Senhor, a quem ama (Jo
21:15–17).
3. A predição com relação à negação tinha sido introduzida com o
solene duplo Amém (Jo 13:38; veja-se sobre Jo 1:51). A predição que
segue imediatamente à confissão de Pedro levou à mesma introdução (Jo
21:18).

Mas demonstrou-se 454 que o parecido é ainda mais preciso. Em


ordem inversa as mesmas três ideias — 1. seguir, 2. cruz, 3. negação —
ocorrem aqui em Jo 21:15–19 como em Jo 13:36–38. Nessa outra
ocasião Jesus havia dito: “Aonde eu vou, não me podes seguir agora”.
Com relação à morte de Pedro numa cruz Jesus havia predito: “Mas
me seguirás depois”. Logo o Mestre havia predito a negação com estas

454
Veja-se o artigo de John Foster, “Denying Oneself”, ExT, 54 (1943), 331.
João (William Hendriksen) 934
palavras: “Em verdade, em verdade te digo: Não cantará o galo até que
me tenhas negado três vezes”.
Em contraste com 3., as três negações, apresentam-se as três
afirmações que Jesus exige de Pedro em resposta a estas perguntas:
“amas-me mais do que estes?… tu me amas?… tu me amas? [original:
tens-me afeto?]” A predição com relação a 2., a morte de Pedro numa
cruz, seguiu um pouco depois nestas palavras: “estenderás as mãos, e
outro te cingirá e te levará para onde não queres (ir)”. E quanto a 1.,
seguir, o mandato, “segue-me”, dá-se quase no final do relato da
restauração de Pedro. Cf. também Mc. 8:34 quanto a estes mesmos três
conceitos.
Há, além disso, outro surpreendente característico de similitude a
respeito do qual nos chama a atenção a passagem que agora se estuda (Jo
21:15). Jesus disse a Pedro: “Simão (o nome que tinha este discípulo
antes de Jesus encontrá-lo; por isso, muito adequado neste caso, para
lembrar-lhe sua conduta tão parecida com a de alguém que não conhece
Jesus), filho de João, amas-me mais do que estes outros?” As palavras,
“co que estes outros” não se referem a coisas como este barco, esta rede,
estes peixes, mas estes homens, que estão aí (veja-se sobre Jo 21:2).
A pergunta era muito apropriada, porque Pedro se jactou: “Embora
todos se escandalizarem de ti, eu nunca me escandalizarei” (Mt. 26:33).
Com uma autoavaliação totalmente injustificada, colocou-se acima dos
outros. Esta confiança em si mesmo tinha produzido sua derrota. Por
isso, na presença destes homens deve ser feita sua confissão agora.
Respondeu-lhe: Sim, Senhor; tu sabes que te tenho afeto [Tradução
de W. Hendriksen].
Em dois aspectos a resposta de Simão difere da pergunta do Senhor:
1. já não se compara com seus companheiros, para prejuízo deles. Seu
‘sim’ (ναί, não ‘sim’ no sentido de ‘Sim, eu te amo mais que os outros’)
refere-se ao fato de que se sente seguro de que em seu coração há algo
parecido ao que Jesus está procurando averiguar; algo parecido, mas não
João (William Hendriksen) 935
o mesmo; por isso, 2. usa outro verbo, com um significado um pouco
diferente. 455
Com decorosa modéstia e agradável desconfiança Pedro, humilhado
pela lembrança de sua queda, não quer utilizar o termo mais elevado para
amor, o verbo que Jesus tinha utilizado. Em lugar do amor de
inteligência e propósito, o amor de devoção total, a respeito do qual
Jesus perguntou, Pedro utiliza o amor subjetivo de afeto. Ao mesmo

455
I. Colocação do Problema
O problema deve formular-se em muito cuidado. O problema não é: “usam-se igualmente às vezes
_γαπάω e φιλέω? Há entre eles uma área em que concordam?” É bem sabido que estes verbos têm
muito em comum e que _γαπάω incursiona muito no terreno de φιλέω. Não estamos de acordo com
quem crê que há “uma grande diferença” (R. C. H. Lenski, op. cit., p. 1393) em significado entre os
dois verbos. Mas embora a área comum seja muito ampla, ainda se expõe o problema: «Há alguma
diferença pelo menos em certos contextos?»
O problema tampouco é este: “Foi possível que estes dois homens (Jesus e Pedro), que
conversavam em aramaico, escolheram sinônimos com diferenças suaves, de tal forma que se pudesse
conservar o matiz exato em significado ao traduzir o relato ao grego; e se encontraram os equivalentes
aramaicos exatos para _γαπάω e φιλέω?” Simplesmente não possuímos o texto aramaico escrito, no
caso de que alguma vez tivesse existido. E não sabemos o suficiente para poder afirmar
categoricamente que de maneira nenhuma puderam ser transmitidos por meio do aramaico desse
tempo distinções tão sutis. Vemo-nos obrigados a proceder sobre a base do texto grego que temos,
convencidos de que é totalmente inspirado; em consequência, exato em todos os sentidos. A questão,
então, é esta: Temos aqui em Jo 21:15–17 os dois verbos _γαπάω e φιλέω de significado idêntico, ou
transmitem os dois verbos, como se empregam aqui, significados que diferem de algum modo, e o
miolo do relato gira em torno desta diferença?”
II. Os que aceitam a primeira alternativa (identidade em significado)
Entre os tradutores que não veem nenhuma diferença e por isso empregam o mesmo verbo sete
vezes em sua tradução de Jo 21:15–17 há os seguintes:
Wycliffe (1380), Tyndale (1534), “Cranmer” (The Great Bible, 1539), Geneva (1557), Rheims
(1582), e A. V. (1611). Há muitas outras versões em inglês, incluindo algumas contemporâneas, que
não mostram nenhuma diferença entre os dois verbos, e nem sequer indicam por meio de uma nota
que o original emprega dois verbos distintos.
A esta lista poderiam acrescentar-se as traduções a muitos outros idiomas.
Quanto ao português não se mostra diferença alguma nas seguintes versões: Bíblia de Jerusalém
(1973), Almeida Atualizada (1999), Nova Versão Internacional (2000).
Entre os expositores há vários que não veem nenhuma diferença entre os dois verbos (W. F.
Howard em Interpreters Bible); há outros que afirmam que os verbos se intercambiam por razões de
eufonia (M. Dodds em Expositor’s Greek Testament, sobre este versículo) ou por razões de estilo (The
Westminster Study Edition of the Holy Bible). Outros expositores (incluindo Calvino) não dizem
absolutamente nada a respeito ou consideram os dois verbos idênticos em seu significado.
João (William Hendriksen) 936
tempo, em lugar de jactar-se, como se estivesse totalmente consciente do
estado de seu próprio coração, situa-se a si mesmo como dependente do
conhecimento penetrante de seu Senhor. Pedro diz: “Tu sabes que te
tenho afeto”. Com relação ao conhecimento que possuía o Senhor veja-
se sobre Jo 2:25; cf. 2Co. 11:31; Gl. 1:20.
A vinculação a Jesus é um requisito absoluto para prestar serviço
em Seu reino. E com terna misericórdia Jesus está disposto a outorgar
este grande privilégio ao que não possui nada melhor que o tipo mais
humilde (embora muito precioso) de amor. Por isso
Ele (Jesus) disse-lhe: Apascenta os meus cordeiros. Quanto ao
significado desta expressão em comparação com os mandatos parecidos
dos versículos 16 e 17, veja-se sobre o versículo 17.
16. Tornou a perguntar-lhe pela segunda vez: Simão, filho de João,
tu me amas?
A segunda pergunta difere da primeira. Aprofunda mais e é mais
dolorosa. É como se Jesus dissesse: «Simão, com teu silêncio com
relação a estes outros indicaste que já não crês que me amas mais que
eles. Mas agora, deixando de lado qualquer comparação,tu me amas
realmente?» Jesus volta a utilizar o mesmo verbo que antes. Volta a
perguntar se Simão O ama com devoção total e com toda sua pessoa (não
só com as emoções mas também com a mente e a vontade).
Pedro lhe respondeu: Sim, Senhor; tu sabes que te tenho afeto
[Tradução de W. Hendriksen]. Pedro responde da mesma maneira que
antes. Ainda não se atreve a afirmar que possui a classe mais elevada de
amor.
Disse-lhe Jesus: Pastoreia as minhas ovelhas. 456 Veja-se sobre
versículo 17.

456
La elección entre πρόβατα y προβάτια en el versículo 16 es casi la misma. N. N. tiene προβάτια en
el texto, pero el aparato critico no muestra que tenga más apoyo que πρόβατα. Como Jesús cambió la
pregunta en cada instancia, parecería mejor la teoría que afirma que también en cada instancia cambió
la forma de su mandato, aunque básicamente el encargo a Pedro sigue siendo el mismo.
João (William Hendriksen) 937
17. Disse-lhe a terceira vez: Simão, filho de João, tu me tens afeto?
[Tradução de W. Hendriksen]. Desta vez Jesus desce ao nível de Pedro,
utilizando o mesmo termo que Pedro tinha usado. O Senhor parece
duvidar de que Simão possuísse sequer o humilde afeto que dizia ter.
Pedro se entristeceu de que lhe dissesse esta terceira vez: Tu me tens
afeto? e lhe respondeu: Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que te tenho afeto
[Tradução de W. Hendriksen].
O fato de que Jesus fizesse agora a pergunta nesta forma entristeceu
a Pedro. Isto é compreensível. Qualquer que se situe mentalmente numa
situação parecida pode entendê-lo imediatamente. Como poderia Pedro
não sentir-se triste quando Jesus parece duvidar inclusive de seu apego
subjetivo, de seu afeto pelo Senhor? Em seu coração Pedro está
convencido de que possui este amor mais humilde. Mas aprendeu a lição.
Não se atreve a recorrer a nada que haja em si mesmo. Mais uma vez
recorre, e agora de forma mais enfática que nunca, à onisciência de seu
Senhor. Diz: “Senhor, tu sabes tudo”. E como Jesus tudo, deve poder
notar o afeto que Pedro tem por Jesus. (O primeiro verbo é ο_δας; o
segundo é γινώσκεις; veja-se sobre Jo 1:10, 31; 3:11; 8:28).
Jesus lhe disse: Apascenta minhas queridas ovelhas [Tradução de W.
Hendriksen].
O que quer dizer Jesus com este tríplice encargo que dá a Pedro?
Não é provável que ao falar de cordeiros (versículo 15), ovelhas
(versículo 16), e queridas ovelhas (ou queridas ovelhinhas; note-se o
diminutivo, mas isto pode não referir-se a idade ou tamanho físico, mas
pode dever-se ao terno afeto de Cristo pelos Seus) tivesse em mente a
três grupos diferentes dentro da igreja; por exemplo, pequenos, adultos,
jovens. A noção de que Jesus Se refere a grupos de idade não é mais
razoável que a crença de que na alegoria do Bom Pastor (capítulo 10)
indicam-se três grupos diferentes de pessoas com os termos ladrões,
estranhos e assalariados.
Antes, se bem que os três termos se refiram à mesma grei do Bom
Pastor, Jesus Cristo, esta grei é considerada sob três diferentes
João (William Hendriksen) 938
perspectivas. Os crentes e seus filhos são vistos, acima de tudo, como
cordeiros, porque são fracos e imaturos, e portanto com necessidade do
alimento fortificante da Palavra; em segundo lugar, como ovelhas,
propensos a desviar-se e dependentes em tudo, e por isso com
necessidade de ser pastoreados (veja-se sobre o capítulo 10); e
finalmente, como queridas ovelhas, imaturos e com necessidade da
nutrição terna e amorosa da Palavra.
É como se o Mestre dissesse a Pedro: «Simão, foste fraco como um
cordeiro, errante como uma ovelha, porém, no meio de tudo, tu, como
querida ovelha foste objeto de Minha terna e amorosa solicitude. Agora,
com o proveito de tuas experiências (devido ao teu sincero pesar),
considera os membros de Minha igreja como teus cordeiros, e alimenta-
os; como tuas ovelhas, e pastoreie-as; sim, como tuas queridas ovelhas, e
ao alimentá-los, ama-os. Não descuides o trabalho com a grei, Simão.
Esta é tua verdadeira missão! Volta para ela!
Assim Pedro foi total e publicamente restaurado. Com relação ao
pastoreio das ovelhas e a tudo o que isso implica, veja-se sobre capítulo
10. O significado metafórico de alimentar — sobretudo, pelo que se
refere à índole do alimento — é explicado nas seguintes passagens: Dt.
8:3; Jó 23:12; Sl. 119:103; Is. 55:1, 2; Jr. 3:15; 15:16; Jo. 6:33–35, 51,
58; 1Co. 3:2; 10:3, 4; 1Pe. 2:2; e Ap. 2:7, 17.
18. Em verdade, em verdade te digo que, quando eras mais moço, tu
te cingias a ti mesmo e andavas por onde querias; quando, porém, fores
velho, estenderás as mãos, e outro te cingirá e te levará para onde não
queres.
Quanto às palavras de solene introdução veja-se sobre Jo 1:51;
também acima, sobre Jo 21:15. Note-se: “Quando foi mais moço …
quando, porém, fores velho”. Isto (junto com o fato de que Pedro morreu
durante o reinado de Nero, e por então já era “velho”) parece indicar que
no ano 30 Pedro era de idade média; mais velho que João mas ainda não
velho. Agora Jesus diz, por assim dizer: “Em teus tempos de juventude,
quantas vezes querias sair, costumavas cingir-te (literalmente, “estavas
João (William Hendriksen) 939
acostumado a pôr-te o cinturão», mas neste caso provavelmente algo
mais amplo: «Costumavas vestir-te para viajar») e ias para onde
querias”. A implicação é que, em geral, Pedro quando jovem fez o que
queria. E nem sempre fez o correto. Bondosamente Jesus não diz que
esta conduta mais ou menos livre e indisciplinada continuava sendo a
característica do homem. Podemos crer que sua experiência de tempos
recentes lhe tinha ensinado uma lição.
Esta descrição da conduta passada desenfreada de Pedro está em
marcado contraste com a predição que segue imediatamente: “Quando,
porém, fores velho, estenderás as mãos, e outro te cingirá e te levará para
onde não queres”. Em sua idade avançada chegará o momento em que,
longe de desfrutar de liberdade de movimentos, Pedro deveria estender
as mãos, de forma que o pudessem rodear com uma soga (ou
possivelmente: de forma que o pudessem cravar a uma cruz; assim o
expressa Tertuliano). Em oposição aos desejos da carne, conduzi-lo-iam
então ao lugar de execução. Com relação a isto é interessante notar que a
expressão “estender as mãos” é utilizada com frequência por autores
gregos e os primeiros pais para indicar a crucificação. 457
19. Disse isto para significar com que gênero de morte Pedro havia
de glorificar a Deus.
A passagem indica claramente que quando isto se escreveu Pedro já
tinha saído do cenário da história. Em sua morte Deus tinha sido
glorificado (expressão que se usa também com relação à própria paixão e
morte de Cristo, Jo 13:31, 32), porque a graça de Deus foi engrandecida
na disposição de seu apóstolo de sofrer o martírio pela causa de Cristo.
A forma da morte de Pedro é relatam pelos pais da igreja assim:
Eusébio: “Mas Pedro parece ter pregado no Ponto e Galácia e
Bitínia e Capadócia e Ásia, aos judeus da Diáspora, e por fim, tendo
chegado a Roma, foi crucificado com a cabeça para baixo, porque assim
pediu ele sofrer” (História Eclesiástica III, /).

457
Veja-se J. H. Bernard, op. cit., pp. 708–710.
João (William Hendriksen) 940
Tertuliano: “Em Roma Nero foi o primeiro que manchou com
sangue esta fé crescente. Logo Pedro é cingido por outro quando o crava
à cruz” (Antídoto contra a picada do escorpião XV). Cf. também
Orígenes, Contra Celso II, xlv).
Depois de assim falar, acrescentou-lhe: Segue-me. O mandato,
“Segue-me”, não teve um significado literal, como se a partir desse
momento Pedro fosse de novo acompanhar a Jesus passo a passo. Deve
ter-se em mente que já tinha terminado a forma anterior visível de
associação diária do Senhor com Seus discípulos. Em consequência, o
que Jesus quis dizer foi: «Sê meu discípulo e apóstolo, e como tal segue-
me em serviço, em sofrimento, e em morte (estando disposto a suportar
aflições e inclusive o martírio por minha causa)». Foi uma chamada
renovada ao discipulado e aos deveres do ofício apostólico (cf. Mt. 4:19,
20).
20. Então, Pedro, voltando-se, viu que também o ia seguindo o
discípulo a quem Jesus amava, o qual na ceia se reclinara sobre o peito de
Jesus e perguntara: Senhor, quem é o traidor?
Jesus Se separa do grupo a fim de que, chegado o momento, possa
desaparecer da vista de forma tão repentina como tinha aparecido. Mas
ao apartar-se, parece que Pedro andou com Ele. Alguns opinam que
Pedro o fez porque tinha tomado de forma literal (veja-se sobre Jo 2:19)
o que Jesus tinha querido que se entendesse metaforicamente (“Segue-
me”). Não há nenhuma prova concreta disso. No entanto, não se pode
descartar com leviandade tal sugestão. O fato de que Jesus vai repetir seu
mandato (“Segue-me”) pode significar que Pedro não tinha
compreendido seu significado (veja-se Jo 21:22).
Tendo caminhado uns passos ao lado de Jesus, Pedro, voltando-se,
observa que alguém os segue. Esse alguém era “o discípulo a quem Jesus
amava, o qual na ceia se reclinara sobre o peito de Jesus e perguntara:
Senhor, quem é o traidor?” Quanto a esta frase descritiva veja-se sobre
Jo 13:23–25, também a nota 458; quanto à luz que arroja esta cláusula
João (William Hendriksen) 941
sobre a genuinidade deste capítulo, veja-se I 3 no princípio deste
capítulo.
Não nos surpreende ver João seguir a Pedro. Com muita frequência
andavam juntos, como se indicou (veja-se sobre 21:7). Eram amigos
íntimos. Um desejava estar onde estivesse o outro.
21. Vendo-o, pois, Pedro perguntou a Jesus: E quanto a este? Por ser
amigo íntimo de João, Pedro está logicamente muito preocupado pelo
futuro de seu colega. Um pouco antes Jesus havia predito como Pedro ia
glorificar a Deus em sua morte como mártir. Ia João acompanhá-lo nesta
experiência? Pedro queria sabê-lo.
Mas embora, se tivéssemos estado presentes, a pergunta poderia ter-
nos parecido totalmente apropriada — prova do interesse amistoso de
Pedro por seu companheiro mais jovem —, os olhos penetrantes do
Senhor afundaram mais no coração e mente do com frequência vacilante
discípulo. Jesus sabia que a mudança repentina que Simão tinha dado à
conversação indicava que o mandato, “Segue-me”, não se tinha gravado,
pelo menos não suficientemente. Daí que,
22. Respondeu-lhe Jesus: Se eu quero que ele permaneça até que eu
venha, que te importa? 458 Quanto a ti, segue-me.
Com estas palavras o Senhor faz penetrar na mente de Pedro o fato
de que essa curiosidade a respeito do futuro de João deve ceder lugar à
obediência ao muito importante mandato do Senhor, “Segue-me …
Alimenta meus cordeiros … Pastoreia minhas ovelhas … Apascenta
minhas queridas ovelhas”. Pedro não deve interessar-se tanto pelo
conselho secreto de Deus (com relação a João) que deixe de prestar
atenção à vontade revelada de Deus. É uma lição que todo crente, em
qualquer época, deveria tomar a sério.
Há um trabalho a fazer. Há almas que alcançar. Há uma tarefa a
cumprir. Que Pedro concentre sua atenção nisso! Há pessoas que sempre
estão fazendo perguntas. Fazem tantas perguntas que não prestam a sua

458
III B 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 942
verdadeira missão na vida a quantidade adequada de interesse e energia.
Há ocasiões em que não se deve fazer perguntas. Tem-se dito bem que
aquele que foi ferido com flecha envenenada e emplumada, não deveria
começar a perguntar: «De que madeira está feita a flecha? De que
pássaro provêm estas penas? Como é a pessoa que a atirou, negro ou
branco, baixo ou alto?” Primeiro deve fazer algo!
23. Então, se tornou corrente entre os irmãos o dito de que aquele
discípulo não morreria.
Aqui somos introduzidos na irmandade cristã primitiva. O termo
irmãos utiliza-se aqui num sentido diferente do que tem em Jo 2:12; 7:3,
5, 10 (e inclusive um pouco diferente de sua conotação em Jo 20:17);
veja-se sobre estas passagens. Aqui se refere aos membros da igreja
primitiva. Constituíam uma família cristã, e como tal consideravam-se
como irmãos. Cf. At. 1:16; 2:29, 37; 6:3; 7:2; 9:30, etc.
Estes “irmãos” interpretaram mal as palavras de Jesus com relação
a João. Também enfatizaram o que Jesus não tinha enfatizado. Na
observação de Jesus a Pedro o importante era a ordem positiva: “Tu,
segue-me”. O resto (“Se eu quero que ele permaneça até que eu venha,
que te importa?”) era secundário. Claro que era uma repreensão
necessária, mas sua intenção era apartar a mente de Pedro da curiosidade
para centralizá-la em sua chamada. Afinal de contas, essa chamada era o
ponto importante! Os irmãos, no entanto, puseram em primeiro lugar o
que tinha sido secundário, e também o interpretaram mal!
Embora o versículo 23 subsistiria embora João tivesse já morrido,
contudo, é verdade que é mais inteligível se for tomado como escrito
durante a vida de João. Depois da morte de João a necessidade prática
de informar do mal-entendido da parte da igreja com relação à palavra
do Mestre a respeito do discípulo amado provavelmente teria
desaparecido. O erro teria sido corrigido pelo próprio fato da saída do
apóstolo do cenário da terra. Com João ainda vivo deve-se corrigir o
erro, a fim de que os crentes possam de novo enfatizar o que deve ser
enfatizado, e não vejam cambalear-se sua fé quando João morrer. Por
João (William Hendriksen) 943
isso lemos: Ora, Jesus não dissera que tal discípulo não morreria, mas:
Se eu quero que ele permaneça até que eu venha, que te importa? 459 Para
o significado disso, veja-se sobre o versículo 22. Note-se que a passagem
citada indica três pessoas: Jesus … Pedro (te) … João (ele); e de novo,
Jesus (eu) … João (ele) … Jesus (eu) … Pedro (ti).
A pergunta agora é, A quem se refere a palavra este na frase
seguinte?
24. Este é o discípulo que dá testemunho a respeito destas coisas e
que as escreveu. “Este” não se pode referir a Jesus, porque não era
discípulo. Deve indicar a Pedro ou a João. Mas Pedro já não dava
testemunho (exceto de forma indireta por meio de suas epístolas e do
testemunho daqueles a quem ele tinha ensinado), como já se viu com
clareza com base em Jo 21:18, 19. Tampouco é possível introduzir agora
a um novo personagem. O pronome “este” refere-se claramente a alguém
que se acaba de mencionar. Só resta João. Essa pessoa deve, portanto,
ser João. Em consequência, a passagem deve significar: «Este discípulo
(João) ainda dá testemunho (utiliza-se o gerúndio: μαρτυρ_ν) e, além
disso, ele é quem escreveu (utiliza-se o particípio aoristo: γράψας o
artigo definido é provavelmente autêntico em ambos os casos) estas
coisas». As duas ideias são distintas; por isso, não «Por meio deste
Evangelho João ainda dá testemunho», e sim «Este discípulo, João, é
aquele que ainda dá testemunho oral; e recentemente escreveu estas
coisas».
O versículo 25 mostra claramente que a expressão “estas coisas”
não se refere ao conteúdo de um só capítulo. Refere-se às muitas coisas
que o apóstolo relatou nos capítulos 1–20. Indiretamente refere-se
inclusive aos fatos referidos no capítulo 21, porque este relato a respeito
de João e Pedro e outros discípulos deve ter-se conseguido do (da
própria boca do) discípulo a quem Jesus amava. Deve ter tido sua
aprovação total a forma em que foi finalmente registrado.

459
III B 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 944
No entanto, também fica claro que outros intervieram na redação do
capítulo 21 (quer seja em tudo, quer em parte), porque a seguinte frase
diz: e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro.
O quarto Evangelho recebe aqui o nome de testemunho. É a
proclamação oficial, por um apóstolo e testemunha ocular, das boas
novas com relação a Jesus, o Filho de Deus. Veja-se também sobre Jo
1:7, 8.
Agora, o que oferece o versículo 24 é uma afirmação de confiança,
uma certificação a respeito de um testemunho. Os autores desta
certificação se expressam com linguagem muito positiva. A ênfase
principal está no adjetivo verdadeiro. Note-se sua posição dianteira na
frase original: “Sabemos que verdadeiro é o seu testemunho”. Tendo
conhecido a João por muito tempo, tendo vivido com ele dia após dia,
tendo ouvido o relato de seus lábios e dos de outros, tendo lido a respeito
disso nos Sinóticos, sobretudo: tendo experimentado o testemunho do
Espírito Santo em seu coração com relação à veracidade e excelência do
conteúdo deste Evangelho, estes homens escrevem como o fazem.
As pessoas que apresentam este testemunho não se identificaram
pelo nome. Com toda probabilidade eram os anciãos da igreja de Éfeso
(ou: os anciãos das igrejas em Éfeso e arredores).
Claro que o quarto Evangelho não necessita esta certificação.
Subsiste por méritos intrínsecos. Leva em si a marca de sua genuinidade.
Mas embora este Evangelho não necessite esta certificação, o círculo de
Cerinto, sim, o necessitava. Ao negar a divindade de Cristo, estava
destruindo o significado de sua expiação e minando a fé da igreja. E esse
círculo de Cerinto continua entre nós. Subsistiu ao longo dos séculos,
apresentando-se de uma forma ou outra. É dever da igreja desconfiar de
Satanás e testificar de forma oficial e não oficial (como instituição e
como organismo).
João (William Hendriksen) 945
25. Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas
elas fossem relatadas uma por uma, creio eu que nem no mundo inteiro
caberiam os livros que seriam escritos. 460
Quanto à razão de ter-se agregado esta passagem, veja-se sobre Jo
20:30. Este versículo final foi chamado hipérbole (exagero retórico).
Tratou-se de diminuir sua importância. Tem-se escrito como a opinião
subjetiva de um escriba. Na realidade, porém, estamos diante de uma
conclusão muito pertinente. Muitos, muitíssimos fatos referentes à
permanência de Cristo na terra tinham sido referidos neste livro. Todos
eles serviam para fortalecer a fé da igreja na divindade e suficiência total
de Jesus. Mas, uma vez concluído o livro, ninguém deve começar a
pensar que o relato é completo no sentido de que se tivesse referido tudo
o que Jesus fez. Como poderia ser jamais possível que alguém pusesse
por escrito o significado pleno de tudo o que Jesus fez, enumerando os
atos um por um, e pondo de relevo a importância de cada palavra e ação
nos quais se manifestou de forma tão gloriosa seu amor (e todas as outras
virtudes divinas)? É literalmente verdadeiro que se fosse empreendido
fazer isso, descobrir-se-ia que “nem no mundo inteiro caberiam os livros
que seriam escritos”, e isto pela simples razão de que nenhum número
finito pode jamais relatar as ações realizadas pelo Amor Infinito.
Escritas a lápis na parede de uma pequena habitação de um asilo se
encontraram estas conhecidas palavras:
“Se fosse tinta todo o mar,
E todo o céu um grande papel,
E cada homem um escritor,
E cada folha um pincel,
Nunca poderiam descrever
O grande amor de Deus,
Que ao homem pôde redimir
De seu pecado atroz”.

460
III B 1; veja-se IV da Introdução.
João (William Hendriksen) 946
Síntese do Capítulo 21
O Filho de Deus triunfa gloriosamente. Ressurreição e aparições.
Aparição no mar de Tiberíades.

Veja-se Observações Preliminares, II. Propósito, que oferece ao


mesmo tempo um sumário ou síntese do conteúdo e significado de todo
este capítulo.
João (William Hendriksen) 947
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