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AS GRANDES DOUTRINAS DA GRAÇA


Um curso de teologia reformada

LEANDRO LIMA
Volumes 3 e 4

SOTERIOLOGIA
PNEUMATOLOGIA
ECLESIOLOGIA
ESCATOLOGIA

AGATHOS 2018
2

© Leandro Lima

Projeto Gráfico
Editora Agathos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

Lima, Leandro Antonio de, 1975-


As Grandes Doutrinas da Graça, Vol 3 e 4
São Paulo : Agathos, 2018.
Inclui Bibliografia

1. TEOLOGIA. 2. EXPOSIÇÃO BÍBLICA. 3. MISSÕES TEOLOGIA CURSOS.


4. BÍBLIA ESTUDO E ENSINO. 5. BÍBLIA COMENTÁRIOS. 6. FÉ 7. RELIGIÃO. i.Título.

2018
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998.
Agathos Editora
www.institutoreformado.com.br
contato@institutoreformado.com.br
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Sumário

SOTERIOLOGIA 04
1. A SALVAÇÃO PELA GRAÇA 05
2. A UNIÃO MÍSTICA 12
3. O CHAMADO 20
4. A REGENERAÇÃO 31
5. A CONVERSÃO 39
6. JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ 47
7. SANTIFICAÇÃO: DEFINIÇÃO E PROPÓSITO 55
8. MEIOS DE SANTIFICAÇÃO 61
9. A BÊNÇÃO DA PERSEVERANÇA 67

PNEUMATOLOGIA 74
10. A PESSOA DO ESPÍRITO SANTO 75
11. O ESPÍRITO E O ANTIGO TESTAMENTO 83
12. O BATISMO COM O ESPÍRITO 89
13. A PLENITUDE DO ESPÍRITO 97
14. OS DONS DO ESPÍRITO - DEFINIÇÕES 106
15. OS DONS DO ESPÍRITO: DESCRIÇÃO 113
16. O PECADO CONTRA O ESPÍRITO 121

ECLESIOLOGIA 126
17. A IGREJA VERDADEIRA 127
18. UNIDADE E DIVERSIDADE DA IGREJA 133
19. OS SACRAMENTOS — O BATISMO 141
20. OS SACRAMENTOS — A SANTA CEIA 147
21. ADORAÇÃO — PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS 153
22. ADORAÇÃO — DISTORÇÕES 159
23. O CULTO — REQUISITOS 165
24. O CULTO — ELEMENTOS 172

ESCATOLOGIA 179
25. ESPERANÇA ESCATOLÓGICA 180
26. SINAIS DO FIM DOS TEMPOS 186
27. A ÚLTIMA OPORTUNIDADE DO MAL 195
28. A SEGUNDA VINDA DE CRISTO 203
29. O MILÊNIO 209
30. A RESSURREIÇÃO FINAL 220
31. O DIA DO JUÍZO 226
32. O DESTINO ETERNO DOS HOMENS 232

BIBLIOGRAFIA 240
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SOTERIOLOGIA
A DOUTRINA DA SALVAÇÃO
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A SALVAÇÃO PELA GRAÇA

INTRODUÇÃO constantemente pensar no que aconteceria se


Deus nos chamasse hoje.
Se perguntarmos a alguma pessoa a respeito de
sua salvação pessoal, possivelmente a pessoa se Tudo o que o homem tem construído neste mun-
sentirá um pouco desnorteada, e talvez devolva do tende a apontar apenas para este mundo mes-
a pergunta: “Salvo do quê?”. Nesses tempos mo- mo. A vida aqui tem sido considerada o início e o
dernos, as pessoas perderam a noção da necessi- fim de toda existência. Até mesmo a pregação em
dade e da importância da salvação. Vivem numa muitas igrejas dos nossos dias tem colaborado
rotina de trabalho, estudos, diversões, etc., e nem para isso. Enfatiza-se a necessidade de vitórias,
lhes passa pela cabeça a interrogação: “O que prosperidade e conquistas neste mundo, o que
será de mim depois dessa vida?”. O mundo por- leva naturalmente ao pensamento de que a vida
vir perdeu o interesse para a maioria das pessoas. presente é a única que importa.

Se na Idade Média as pessoas chegavam até a É impressionante a transposição de temas que o


“comprar” um lugar no céu (indulgências), tal movimento evangélico moderno tem feito em re-
lação aos temas tradicionais da pregação bíblica.
era a preocupação delas com a salvação de suas
Na pregação evangélica histórica, o verdadeiro
almas, hoje, a maioria das pessoas nem acredita
problema do homem é o pecado, e para resolvê-
no céu ou no Inferno, ou pelo menos, na prática,
-lo, ele precisa se arrepender, crer em Jesus, iniciar
não demonstra preocupação. Outras, por outro
o processo de santificação através de uma vida de
lado, pensam que um Deus de amor não as joga-
renúncia, esperando o momento final, quando
ria no Inferno e por isso vivem despreocupada-
entrará no reino celestial e será, então, revestido
mente. A alienação das pessoas a respeito desse
da perfeição. Na pregação moderna, ou talvez de-
assunto é algo muito perigoso. Frequentemente
vêssemos até dizer, pós-moderna, o problema do
ficamos sabendo de pessoas que foram levadas
homem é a falta de prosperidade (doença, dívida,
de forma tão imprevista... Todos nós deveríamos desentendimentos, etc.). A solução é reconhecer
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essa situação desesperante, procurar uma deter- “o salário do pecado é a morte” (Rm 5.12; 6.23), e
minada igreja, e tomar parte em algum ritual de Lorraine Boettner interpreta:
quebra de maldição, ou de garantia do sucesso. A
partir daí ele iniciará um processo de apropriação A sentença que foi imposta como resultado do pecado
de bênçãos, no qual terá que ter atitudes de re- de Adão, inclui mais do que a decomposição do corpo. A
núncia, fazendo generosas doações para a igreja, palavra ‘morte’, usada nas Escrituras com referência às
até que alcance a plena prosperidade. consequências do pecado, inclui toda espécie de mal que
é infligido como castigo desse pecado (...) significa, pois,
Isso leva as pessoas a não terem mais consciência a miséria eterna do Inferno e, ainda, o antegozo dessas
de que necessitam de salvação. Sentem-se seguras misérias já nos males sofridos nesta vida.1
em meio ao sistema de vida que este mundo tem
oferecido. Não têm consciência de que, se só esse O pecado, portanto, deixou o ser humano num
mundo existe, a vida vale muito pouco e não há estado de absoluta miséria espiritual. Isso torna
diferença entre ser justo ou ser perverso ou entre todos os homens dependentes única e exclusiva-
o bem e o mal, e nem mesmo, entre ser próspero mente da salvação de Deus. E de fato, desde o iní-
ou miserável, pois como diz Paulo: “se a nossa es- cio foi Deus quem tomou a iniciativa para salvar
perança em Cristo se limita apenas a esta vida, so- o homem. Deus agiu e age para salvar o homem
mos os mais infelizes de todos os homens” (1Co baseado exclusivamente em sua graça, por isso
15.19) e, portanto, seríamos miseráveis de qual- dizemos que somos salvos pela graça. Todos os
quer jeito. Fala-se muito, hoje em dia, em “teo- homens se encontram em um mesmo estado, o
logia” da prosperidade. Mas, à luz do que Paulo decaído. Cometer um pecado ou um milhão não
escreve no texto acima, não deveria ser chamada faz diferença quanto à condenação do Inferno,
de “teologia da infelicidade”? pois quem quebra um mandamento da lei, que-
brou todos (Tg 2.10). Mas, a notícia maravilhosa
é que todos poderão ser salvos, Deus não faz dis-
tinção entre pecadores. Ele não escolhe os mais
A SALVAÇÃO DO SENHOR bonzinhos. A fé salvadora em Jesus Cristo garan-
te a salvação para todos os que creem.
A Escritura ensina a universalidade do pecado. Após
a queda de Adão o ser humano mergulhou no Antes mesmo do Éden, Deus já havia decidido
pecado e jamais conseguiu e nem desejou se li- sobre a forma como salvaria os homens. Na elei-
vrar dele. Jesus descreveu o homem que comete ção, ainda na eternidade, Deus visualizou a obra
pecado como um escravo do pecado (Jo 8.34), da salvação. O próximo passo para a salvação, de-
pois além de não querer, o homem nada pode fa- pois da eleição, foi a Encarnação. Deus não ficou
zer para deixar de pecar. Após a queda, a nature- esperando que nos movêssemos para ele, até por-
za humana se corrompeu total e intensamente, e que, nunca faríamos isso, ele veio atrás de nós. O
a contaminação se estendeu a todas as áreas da Conselho da Trindade determinou que a Segun-
vida. Entre as principais consequências do peca- da Pessoa seria o Mediador, aquele que satisfaria
do está a quebra da comunhão com Deus. O pe- a justiça divina e daria vazão à misericórdia divi-
cado gerou a separação entre o homem pecador na (1Pe 1.2). O Mediador se tornaria um homem
e o Deus Santo (Is 59.2). A Escritura ensina tam- sem, contudo, perder sua divindade. Jesus Cristo
bém que a universalidade do pecado trouxe como
justo pagamento a morte de todos. Paulo diz que 1 Loraine Boettner. Imortalidade, p. 13
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cumpriu o propósito divino de salvar o homem, põem, buscam caminhos alternativos. Nunca
ainda que Satanás tenha feito todas as tentativas faltaram heresias na história da igreja que ofere-
para impedi-lo.2 Apesar da gravidade do pecado cessem um caminho mais curto para o céu, uma
humano e de suas consequências, Jesus venceu, espécie de “atalho”. Se, por um lado há os que
e a salvação foi providenciada. Cristo fez aquilo pregam a salvação pelo legalismo, há por outro,
que Adão não pôde fazer, e assim, a maldição de alguns que têm pavimentado a estrada estreita
Adão foi vencida e destruída pela graça de Cristo. que Jesus ensinou, a ponto de torná-la até razoa-
A vida de Cristo derrotou a morte de Adão. velmente confortável, quando não extremamente
fácil.
O ponto central da salvação que Deus conquistou
para nós consiste na morte de Jesus, muito em- Na Idade Média, foi criado um sistema que “fa-
bora a morte do Senhor não seja o único evento cilitava” bastante a salvação dos pecadores, era
redentivo. Precisamos entender que Jesus viveu, o sistema das indulgências. No catolicismo me-
morreu e ressuscitou para nossa salvação. Sua dieval, para se obter o perdão dos pecados era
vida nos salva, porque ele obedeceu inteiramente preciso seguir uma certa ordem. Primeiramen-
a Deus fazendo aquilo que Adão não tinha feito. te, uma pessoa precisava se arrepender de seus
Através de sua vida de obediência ele conquistou pecados, depois fazer uma confissão perante um
a justiça que derrama sobre nós. Sua morte nos sacerdote, e por fim, cumprir a penitência, que
salva, porque é a punição que nós deveríamos re- era uma espécie de reparação pelo erro cometido
ceber pelos pecados, mas que ele recebeu em nos- e que dependia da gravidade da falta. Entretan-
so lugar, quando assumiu a nossa culpa e pagou a to, o perdão se estendia apenas às consequências
nossa dívida. Sua ressurreição nos salva, porque eternas do pecado, ou seja, a única coisa que ele
através dela podemos também viver em novida- conseguia era libertar o culpado do inferno. A
de de vida. Além disso, a ressurreição é base para absolvição não eliminava as consequências terre-
nossa transformação e para a ressurreição futura nas dos pecados, isso dizia respeito ao sofrimen-
de nosso corpo. E a subida de Cristo ao céu ga- to que alguém poderia receber como retribuição
rante que ele continue aplicando sua obra salva- por seus erros. Acreditava-se que, aqueles que
dora, tendo agora o governo dos céus e da terra não recebessem todas essas consequências nessa
(Mt 28.18, Ef 1.20-22). vida, receberiam no Purgatório. Assim, o Purga-
tório era um local intermediário entre o céu e o
inferno, onde aqueles que não haviam sido maus
o suficiente para irem para o inferno, e nem bons
UM ATALHO PARA O CÉU o bastante para irem diretamente para o céu, fi-
cavam algum tempo até terem sofrido ou “pur-
A salvação é pela graça, mas os homens têm tido gado” seus pecados. A absolvição sacerdotal não
dificuldades em entender o que isso realmente eliminava as penas do Purgatório, no entanto,
significa. A maioria das pessoas continua pen- era ensinado que a igreja tinha poder sobre essas
sando que precisa conquistar a salvação. Mas aí, penas, e que o Papa poderia liberar alguém do
diante das dificuldades que elas mesmas se im- Purgatório. Acreditava-se que havia uma espécie
de depósito de “méritos” conquistados por Cris-
2 Com isso não queremos dizer que Satanás quis
impedir que Jesus morresse na Cruz. Satanás tentou impe-
to e pelos “Santos”, e que o Papa como depositá-
dir a redenção, mas nem ele sabia exatamente como Jesus rio desses tesouros, poderia conceder um pouco
faria isso.
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dele para os que necessitassem. As indulgências próximo que existe, ou desejarem comprar a coisa
foram usadas nas Cruzadas, em que os soldados mais gratuita dessa vida. Mas, foi isso o que acon-
lutavam em troca da remissão e pecados para si e teceu no período das Indulgências e acontece até
para seus familiares.3 hoje. Entretanto, o fato de a salvação ser de graça,
não significa que ela é fácil. Ainda é o velho ca-
As Indulgências foram um dos principais moti- minho estreito ensinado por Jesus, porém, talvez,
vos para o início da própria Reforma Protestan- seja justamente o fato de ele ser tão simples, que
o torna aparentemente tão difícil para as pessoas.
te do Século 16. Foi contra elas, especialmente,
que Martinho Lutero fixou suas 95 teses na porta
da Catedral do Castelo de Wittenberg em 31 de
ESFORÇOS INÚTEIS
Outubro de 1517. Naqueles dias, um Arcebispo
chamado Albrecht, endividado com alguns no- O sistema de Indulgências, bem como todos os
bres, conseguiu do Papa o direito de vender in- sistemas antigos ou modernos que tentam encon-
dulgências na Alemanha. Ele enviou um domini- trar atalhos para o céu somente existem por cau-
cano chamado Teztel, que ficou conhecido como sa da falta de entendimento de como funciona a
um dos mais hábeis vendedores de indulgências. salvação, e de qual é a natureza do Evangelho. A
Esse homem andava pelas ruas das cidades anun- igreja da Idade Média não entendia ou não que-
ciando que, na medida em que a moeda caía em ria entender que a salvação é pela graça. Em meio
seu cofre, e se ouvia o tilintar, a alma em favor de às trevas daqueles tempos, Lutero encontrou na
quem se havia comprado a indulgência saía do carta aos Romanos a resposta para todas as suas
Purgatório. Também eram vendidas indulgên- angústias. Ele redescobriu a salvação pela graça,
cias para pessoas vivas que desejassem garantir e teve início a Reforma Protestante. Em Roma-
que depois de mortas seriam salvas. Emitia-se nos, Paulo diz que o Evangelho é a manifestação
até mesmo certificados de garantia, que eram da Justiça de Deus: “A justiça de Deus se revela
guardados como uma espécie de passaporte para no Evangelho”(Rm 1.17). Justiça essa que Lute-
o céu. As pessoas da época pensavam que esta- ro, antes da conversão, tanto temia, pois apesar
vam aproveitando uma excelente oportunidade de tentar cumprir rigorosamente todos os rituais
de garantir o céu. Não é por acaso que multidões prescritos pela igreja, jamais se sentia perdoado, e
se arrastavam atrás dos vendedores de indulgên- nunca conseguia encontrar paz de espírito.
cias, afinal, comprar com uma quantia de dinhei-
ro algo que não tem preço, na visão do povo era Quando Lutero entendeu que essa justiça, Deus
um excelente negócio. Para a igreja Romana, era não exige de nós, ao contrário, ele exige de si
melhor ainda. mesmo, a paz inundou o coração do monge, pois
Nada poderia ser mais irônico do que o fato de as compreendeu que “o justo viverá por fé” (Rm
pessoas tentarem um atalho para o caminho mais 1.17). Em Romanos 3.21 Paulo diz: “Mas agora,
sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemu-
3 A prática das “Indulgências” é bem antiga na Igre- nhada pela lei e pelos profetas”. Há um imenso
ja romana; ninguém sabe ao certo quando teve o seu início. contraste nessa declaração, é o contraste entre a
Schaff diz que até cerca de 1150, a estrutura sacramental total depravação do ser humano que é incapaz de
das indulgências não estava completamente desenvolvida. agradar a Deus, e a provisão que o próprio Deus
(D.S. Schaff. Nossa Crença e a de Nossos Pais, p. 329). Em
novembro de 1095, pela primeira vez, foi prometida a in- tem preparado para o homem e que tem se mani-
dulgência plenária pelo papa Urbano II (1088-1099), no festado no Evangelho.
Sínodo de Clermont na França, a todos aqueles que parti-
cipassem por pura devoção da Primeira Cruzada em Jeru- Aqueles que desejam conquistar sua salvação
salém.
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através das boas obras deveriam desistir en- fé. Diríamos então que a fé faz parte do “pacote”
quanto é tempo, pois Paulo diz que “ninguém da salvação que recebemos como um presente de
será justificado diante dele por obras da lei” (Rm Deus. Como diz McGregor Wright,
3.20; Ver Gl 2.16). Portanto, a salvação não pode
ser conquistada pelo simples obedecer da lei de A salvação é um dom, e o pecador não contribui com
Deus, pelo motivo de que esse não é o caminho nada, tendo apenas as mãos vazias estendidas para re-
proposto por Deus, até porque, ninguém jamais cebê-la. Mesmo esse simples ato de fé em si mesmo é da
conseguiria cumprir plenamente a lei (Ver Rm iniciativa divina, e não pela autogeração humana. A fé
3.10; Ver Tg 2.10). A salvação é um presente de salvadora é em si mesma, um dom, não uma capacidade
Deus. Ao contrário do que pensavam as pessoas natural pela qual simplesmente decidimos concentrar em
da Idade Média, e muitas ainda hoje, justiça não Cristo como um objeto de nossa confiança.4
se compra, nem se conquista, justiça se ganha.
Paulo diz que a Justiça que se manifestou não Portanto, devemos eliminar de nossa mente toda
é qualquer justiça, algo como uma auto-justi- ideia de que, de alguma forma, colaboramos para
ficação humana, mas é a “Justiça de Deus”, que o processo da salvação. Nosso dinheiro não pode
é concedida “mediante a fé”. Aqui está o único comprar a salvação, e nossas boas obras são tão
requisito exigido do homem para que seja salvo. inúteis quanto. Quem não for salvo pela graça,
Quando o carcereiro desesperado jogou-se aos não será salvo de maneira alguma. Lutero e a
pés de Paulo e Silas suplicando como poderia ser Reforma entenderam que o homem não precisa
salvo, eles lhe responderam de forma simples: se tornar justo para poder alcançar a vida eter-
“Crê no Senhor Jesus, e serás salvo, tu e a tua na, pois isso, ele jamais conseguiria, uma vez que
casa” (At 16.29-31). Na mais famosa declaração ninguém jamais cumpriu a lei de Deus (Rm 3.10,
sobre a salvação mediante a fé, Paulo diz “por- 20, Gl 3.11), mas que baseado na justiça de Cristo,
que pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto Deus pode e efetivamente declara o homem como
não vem de vós, é dom de Deus” (Ef 2.8). justo quando ele crê. Esse ato de declarar é algo
completamente gratuito, pois o homem nada fez
Se alguém ainda estiver pensando que tem al- para merecer isso, uma vez que tudo provêm da
gum mérito em sua salvação, os textos acima obra e dos méritos do Senhor Jesus Cristo.
devem eliminar essa ideia. Alguém poderia di-
zer: “Mas a fé sou eu quem sente, logo isso é um
mérito meu, algo como uma obra minha”. Essa O SIGNIFICADO DA SALVAÇÃO
declaração está errada, não fazemos uma troca
com Deus. Não oferecemos a ele nossa fé, e em A fim de entendermos melhor o que é salvação,
troca ele nos dá a Salvação. Tudo o que acontece podemos listar algumas características práticas
com relação a nossa salvação é regido pela pala- dela em nossa vida.
vra “graça”, que é um sinônimo de “gratuito”. Al-
guém pode me oferecer algo valiosíssimo e me Ter vida verdadeira
dizer que não preciso pagar nada, mas se eu lhe
oferecer um centavo e ele aceitar, já não é mais A Escritura descreve as pessoas que ainda não en-
de graça. Pode ser muito barato, mas não é de contraram a salvação como estando mortas espi-
graça. Para ser de graça, não se pode dar nada ritualmente por causa dos pecados. O estado de
em troca. Paulo deixa bem claro que a salvação morte aponta para a completa alienação da vida
é totalmente pela graça na expressão: “Isso não espiritual a que estão submetidos todos os não-
vem de vós, é dom de Deus”. Ele está se referin-
do a todo o conjunto da salvação que inclui a 4 R. C. McGregor Wright. A Soberania Banida, p.
102
10

-convertidos. Eles estão mortos e não têm cons- vés da fé e do arrependimento”.5 Quase que pode-
ciência de que estão mortos. Um não convertido mos resumir a salvação como sendo: libertação
não tem qualquer sensibilidade para a vida espi- do pecado. A verdade é que só precisamos de sal-
ritual, pois Paulo diz que “o homem natural não vação, porque um dia o pecado entrou no mundo.
aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe Chafer fala de sermos livres do pecado em três
são loucura; e não pode entendê-las, porque elas tempos, passado, presente e futuro6. Pensando
se discernem espiritualmente” (1Co 2.14). A ra- nisso, podemos dizer que nossos pecados passa-
zão pela qual as pessoas não se importam com a dos são perdoados na cruz de Cristo, no presente
vida eterna é porque estão mortas espiritualmen- nossos pecados atuais continuam sendo perdoa-
te. Salvação significa receber a vida verdadeira. dos e, além disso, através da atuação de Deus em
Isso significa que uma pessoa só começa a viver nossa vida, somos ininterruptamente livrados do
realmente a partir do dia em que se converte. Por poder do pecado; e quanto aos pecados futuros,
melhor que tenha sido sua vida antes, ela percebe também são perdoados na cruz de Cristo. Um
que não passava de morte. dia, seremos definitivamente livres da presença e
de qualquer influência do pecado.
Receber perdão completo
Ser livre da ira vindoura
Muitos sabem qual é a experiência de ter uma dí-
vida alta e não ter condições de pagá-la. Vivemos João Batista advertiu as multidões que vinham
num país em que quase é impossível não se en- para ser batizadas no rio Jordão de que não po-
volver em dívidas. A instabilidade da economia, deriam escapar facilmente da “ira vindoura”. Pau-
os juros altíssimos e o salário, cada vez mais mí- lo também falou sobre um “dia da ira” de Deus,
nimo, podem surpreender a qualquer um. Mas, quando o seu justo juízo seria revelado (Rm
existe uma dívida muito pior: A nossa dívida com 2.5), e o Apocalipse descreve em cores dramáti-
Deus. Cada ação nossa, cada pecado, tudo está re- cas aquele dia (Ap 6.12-17). Salvação, portanto,
gistrado diante de Deus, e Cristo disse que dare- consiste em ser livre da ira vindoura. Paulo diz
mos conta de cada palavra frívola que dissermos em 1Tessaloniscenses que os crentes, a partir do
nesse mundo (Mt 12.36). No livro do Apocalipse, momento em que ouviram a Palavra e se conver-
na descrição do juízo final, é dito que livros são teram, podiam servir ao Deus vivo e esperar dos
abertos, são os livros que contêm cada ato que céus a vinda de Jesus, que livra da ira vindoura
os homens praticaram, pois tudo foi registrado (1Ts 1.8-10). Naquele dia, todos os verdadeiros
(Ap 20.11-12). Todos esses pecados formam uma crentes serão poupados da manifestação final
grande dívida espiritual e ela será cobrada. Mas, da ira de Deus que está determinada sobre esse
quando Cristo entregou a vida dele na cruz, pa- mundo. Essa promessa já havia sido dada ao povo
gou toda a dívida do seu povo. de Deus, ainda no Antigo Testamento: “Eles serão
para mim particular tesouro, naquele dia que pre-
Ser salvo, portanto, significa ser completamente pararei, diz o senhor dos Exércitos; poupá-los-ei
perdoado por causa da cruz. Através do arrepen- como um homem poupa a seu filho que o serve.
dimento e da fé podemos receber o perdão com- Então, vereis outra vez a diferença entre o justo e
pleto, esse perdão é obra de Deus, como Bavinck o perverso, entre o que serve a Deus e o que não o
assevera: “De fato o perdão de pecados é realiza- serve” (Ml 3.17-18).
do definitiva e perfeitamente em Deus, mas nos é
dado e apropriado por nós em nossas vidas atra-
5 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática,
p. 462.
11

Vitória completa diz que quem tem o Filho tem a vida, quem não
tem o Filho de Deus não tem a vida (1Jo 5.12).
Quando Cristo morreu, houve um despojamento, A vida eterna não é um dom do futuro, pois, se-
mas não foi Jesus quem foi despojado, e sim, o gundo a Bí­blia, é algo que os crentes já desfrutam
inimigo. Despojar é uma linguagem militar e sig- agora. A Bíblia não diz que os crentes terão a vida
nifica saquear o acampamento vencido. Paulo diz eterna, mas que já a têm (Jo 3.36).
que, quando Cristo foi crucificado, ele removeu o
escrito de dívida que era contra nós, e “despojan- CONCLUSÃO
do os principados e as potestades, publicamente
os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz” Portanto, a salvação é a maior necessidade do
(Cl 2.14-15). A grande força do inimigo era esse ser humano, e nenhuma outra atividade nesse
documento, uma espécie de “prova” contra nossos mundo deveria ser mais importante do que nos
pecados. O diabo (acusador) nos acusava diante preocupar com a salvação de nossas almas. Não
de Deus, mas agora já não há documento que nos fomos feitos para morrer, pois Deus nos fez para
acuse, e portanto, Satanás perdeu sua arma, per- a eternidade. Em Jesus Cristo, Deus tem conce-
deu seus trunfos, foi derrotado e humilhado pela dido gratuita­mente salvação a todo aquele que
vitória de Cristo. Os crentes em Cristo desfrutam crê. Essa salvação é o maior presente que alguém
de uma vitória completa sobre as forças malig- pode receber.
nas, por isso Paulo escreve aos Romanos: “Quem
intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Pregar sobre salvação pela graça mediante a fé,
Deus quem os justifica. Quem os condenará?” dentro dos moldes bíblicos, pode ser muito im-
(8.33-34). Cristo derrotou nosso inimigo e nos dá popular nos dias atuais. Algumas pessoas não
sua vitória. Nada mais o diabo poderá fazer con- estão interessadas no assunto, enquan­to outras
tra nossas vidas, pois temos a salvação de Cristo, e entendem que devem conquistar a salvação para
por essa razão, já somos mais que vencedores por elas mesmas. Querem poder dizer: eu sou salvo,
causa de Jesus (Rm 8.37; Rm 16.20). porque eu faço isso. É muito difícil para o ser
humano reconhecer sua completa incapacidade
Vida Eterna e descansar em Cristo. Por isso, a salvação é ao
mesmo tem­po a coisa mais fácil e a mais difícil
Acima de tudo, salvação significa receber a vida de ser obtida. A salvação é o assunto mais impor­
eterna. Não fomos criados para morrer, a morte tante a ser considerado por pessoas decaídas. Ela
entrou em nossa existência por causa do pecado. deveria ocupar a nossa mente, os nossos púlpitos,
De certa forma, toda a ação redentora de Deus as nossas conversas com amigos e até os momen-
tem o objetivo de retirar a morte de sua criação. tos de insônia. Mais do que bons conselhos sobre
Por isso, Paulo diz que a morte é o último ini- como viver melhor, sobre como ser próspero ou
migo a ser derro­tado, e que Cristo a derrotará ter saúde, as pessoas precisam aprender sobre a
na ressurreição final (1Co 15.26). Nenhum texto salvação, pois ninguém vive para sempre, e mui-
é mais cla­ro em demonstrar a salvação pela gra- tos só se darão conta da importância desse assun-
ça, re­presentando a vida eterna do que Romanos to quando for tarde demais.
6.23: “Porque o salário do pecado é a morte, mas
o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cris-
to Jesus, nosso Senhor’’. A morte é conseqüência
(pagamento) do pecado, mas Deus tem dado um
presente ao ser humano, a vida eterna em Cristo
Jesus. Em Jesus está a vida eterna, por isso João
12

A UNIÃO MÍSTICA

INTRODUÇÃO ele é a salvação que precisamos. Por isso ele mes-


mo disse: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a
Os cristãos, frequentemente, pensam em Cristo vida” (Jo 14.6). Note que ele não disse: “Eu sei
mais como um salvador fora deles do que um o caminho, sigam-no”, nem mesmo: “Meu ensi-
salvador que habita neles.1 Geralmente passa des- no é a verdade, obedeçam-no”, ou: “Eu sei como
percebido o profundo e magnífico ensino que ter vida”. Jesus demonstrou que, ele próprio, em
existe por detrás da expressão “em Cristo”, que si mesmo, é o caminho, a verdade e a vida. So-
é tão comum na Escritura. Podemos dizer que a mente podemos desfrutar dessas coisas nele, por
união com Cristo é simplesmente a verdade cen- isso, Jesus sempre usou a expressão “Eu sou” em
tral de toda a doutrina da salvação. Nossa salva- seus ensinos. Ele disse: “Eu sou o pão da vida”
ção depende absolutamente de nossa união com (Jo 6.48), “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8.12), “Eu
Cristo, pois esse foi o método escolhido por Deus sou o bom pastor” (Jo 10.11), “Eu sou a ressur-
para nos salvar. Somos salvos porque fomos feitos reição” (Jo 11.25), “Eu sou a videira verdadeira”
“um com Cristo” e permanecemos salvos apenas (Jo 15.1). Com isso, ele sempre quis apontar para
porque permanecemos unidos com Cristo. seu caráter singular, pois a salvação não é ter algo
de Jesus, mas ter o próprio Jesus. Salvação e Jesus
Esse, sem dúvida, é o ponto distintivo do cristia- Cristo são sinônimos.
nismo em relação a todas as demais religiões que
Tudo na salvação depende inteiramente de Jesus,
existem no mundo. Todas as religiões apontam
por isso a Bíblia não diz que ser salvo significa
para alguma coisa que precisa ser feita ou preen-
imitar a Jesus, mas “receber” a Jesus e continuar
chida pelo fiel, a Bíblia, porém, aponta para uma
“andando” em Jesus. João disse de forma inequí-
pessoa: Jesus de Nazaré. Ela não aponta apenas
voca: “Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está
para os ensinos dele, mas para ele próprio, pois
no seu Filho. Aquele que tem o Filho tem a vida;
1 Ver Augustus H. Strong. Teologia Sistemática, vol. aquele que não tem o Filho de Deus não tem a
2, p. 497. vida” (1Jo 5.11-12). Salvação é ter Jesus. Salvação
13

é o que Paulo disse ao Colossenses: “Como rece- Deus olhasse para nós e visse Jesus. A isso os teó-
bestes Cristo Jesus, o Senhor, assim andai nele, logos chamam de “união mística”, porque é uma
nele radicados, e edificados, e confirmados na fé, união efetivada pelo Espírito Santo de maneira
tal como fostes instruídos, crescendo em ações de misteriosa e sobrenatural, que nos faz ser “um
graças” (Cl 2.6-7). Cada passo de um convertido com Jesus”.2
é em Jesus Cristo, desde o ato de recebê-lo, como
o desenvolvimento espiritual que deve ser nele. O
entendimento de Paulo sobre este assunto é tão
pleno que ele diz que “viver é Cristo” (Fp 1.21). EM CRISTO: NA ETERNIDADE

O ideal de um cristão, portanto, é poder dizer A salvação como “união com Cristo” começa ain-
como Paulo: “Logo, já não sou eu quem vive, da na eternidade. Já estudamos sobre a doutrina
mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20). Estar unido a da eleição, agora precisamos entender que a base
Cristo significa que Deus não nos vê de forma in- para a eleição é a união com Cristo. Segundo a Bí-
dependente de Jesus, significa que a nossa vida é blia, Deus nos escolheu em Cristo. Anthony Hoe-
enxertada em Cristo, ou que Cristo foi “formado” kema diz: “Enquanto pensamos sobre o escopo e
dentro de nós (Gl 4.19). Assim, passamos a fazer a abrangência de nossa união com Cristo, precisa-
parte de tudo o que Cristo é, como se mergu- mos ver essa união como estendida por todo o ca-
lhássemos nele. Paulo fala que somos ramos que minho, de eternidade a eternidade”.3 Nossa histó-
foram enxertados na Oliveira. Antes éramos “oli- ria de união com Cristo não começa no momento
veira brava”, mas agora fomos enxertados e pas- em que fomos convertidos, pois muito antes de
samos a desfrutar do sustento da raiz e da seiva Deus criar o mundo, ele já havia planejado nossa
da Oliveira (Rm 11.17). Com certeza Paulo está salvação e disposto que ela seria em Cristo. Paulo
lembrando das palavras do próprio Jesus: “Eu sou diz: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus
a videira, vós, os ramos. Quem permanece em Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de
mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo,
mim nada podeis fazer” (Jo 15.5). Não poderia assim como nos escolheu nele antes da fundação
haver uma expressão mais perfeita sobre a nos- do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis
sa inteira dependência de Jesus Cristo do que a perante ele” (Ef 1.3-4). Todas as bênçãos celestiais
relação entre um ramo e a oliveira. Estar unido com que temos sido abençoados sobrevêm a nós
a Cristo é vida, é salvação, separado dele, somos nele, ou seja, “em Cristo”.
ramos que secam e morrem (Jo 15.6).
Deus nos escolheu para salvação, não porque viu
A doutrina da “união com Cristo” significa que, algum mérito em nós que o motivasse a fazer isso,
em tudo o que é necessário para nossa salvação, mas baseado na predeterminada união com Cris-
Deus nos tornou um com Jesus. Como nosso re- to. Isso significa que nossa eleição jamais poderá
presentante diante de Deus, ele viveu uma vida de ser vista à parte de Cristo. A união entre Cristo
obediência que passa a ser nossa, morreu pelos
pecados de modo que podemos dizer que tam- 2 Ver Louis Bekhof. Teologia Sistemática, p. 449.
Ainda que tudo isso deva ser visto de uma perspectiva
bém morremos, ressuscitou e nos fez ressusci- puramente espiritual, pois Cristo e o crente permanecem
tar com ele. Tornamo-nos participantes de toda como pessoas distintas, suas personalidades não se fundi-
a vida e obra de Jesus, de modo que, é como se ram
3 Anthony Hoekema. Salvos Pela Graça, p. 62.
14

e o seu povo foi planejada por Deus desde toda a Aqui é necessário o entendimento de outro as-
eternidade. Deus nunca escolheu alguém por si sunto, diz respeito à nossa união natural com
mesmo, ele nunca olhou qualquer um dos elei- Adão. Adão foi o representante da humanidade
tos de forma independente. Ele viu cada eleito em no teste que Deus o submeteu ainda no jardim do
Cristo, ou seja, na obra que Cristo realizaria pelo Éden. A escolha que Adão fizesse afetaria toda a
eleito.4 Por isso, Jesus é chamado de o “Cordeiro sua descendência, pois ele era o cabeça dela. Adão
que foi morto desde a fundação do mundo” (Ap escolheu a rebelião e a consequência é que toda
13.8). E em 1Pedro 1.18-20 está escrito: “Sabendo a sua descendência foi envolvida nessa rebelião.
que não foi mediante coisas corruptíveis, como De nada adianta as pessoas culparem Adão por
prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil sua escolha, pois, diante de Deus, nós estávamos
procedimento que vossos pais vos legaram, mas em Adão. Por isso Paulo declara: “Portanto, as-
pelo precioso sangue, como de cordeiro sem de- sim como por um só homem entrou o pecado no
feito e sem mácula, o sangue de Cristo, conheci- mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a
do, com efeito, antes da fundação do mundo, po- morte passou a todos os homens, porque todos
rém manifestado no fim dos tempos, por amor de pecaram” (Rm 5.12). E Paulo diz em 1Coríntios
vós”. Desde toda a eternidade Deus já havia es- 15.22 que “em Adão, todos morrem”, pois todos
colhido um povo em Cristo e decretado que esse os homens já nascem com essa realidade de estar
Cristo morresse pelo povo escolhido.5 É impos- em Adão. Porém, Deus resolveu mandar um se-
sível separar a eleição da morte de Cristo, somos gundo Adão, um novo representante para o seu
eleitos em Cristo. povo: Jesus Cristo.

Da mesma forma como fomos incluídos por na-


tureza nas atitudes de Adão, de modo que, suas
EM CRISTO: MORTE, RESSURREIÇÃO E atitudes podem ser consideradas como “nossas
ASCENSÃO atitudes”, também espiritualmente somos incluí-
dos em Cristo, de modo que as atitudes de Cris-
Se fomos escolhidos em Cristo para sermos sal- to passam a ser “nossas atitudes”. É assim que a
vos antes da fundação do mundo (união federal), Escritura diz, por exemplo, que morremos e res-
Deus enviou Jesus para ser nosso substituto em suscitamos com Cristo. Paulo diz: “Fomos, pois,
vida, e assim nos incluiu em Cristo durante seu sepultados com ele na morte pelo batismo; para
ministério nesse mundo, a isso chamamos “união que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mor-
de vida realizada objetivamente em Cristo”. tos pela glória do Pai, assim também andemos nós
em novidade de vida. Porque, se fomos unidos
com ele na semelhança da sua morte, certamente,
o seremos também na semelhança da sua ressur-
4 Isso é chamado de “união federal” de Cristo com
aqueles que foram escolhidos no Conselho da Redenção, reição, sabendo isto: que foi crucificado com ele o
em que o pecado do povo foi imputado a Cristo e a justiça nosso velho homem” (Rm 6.4-6). Como diz Hor-
de Cristo imputada ao povo (Ver Louis Berkhof. Teologia ton, “é importante perceber que Cristo não vem
Sistemática, p. 450).
para melhorar o antigo eu, guiar e redirecioná-lo
5 Também por isso o infralapsarianismo faz mais para uma vida melhor; ele vem para nos matar, a
sentido, pois vê o decreto da eleição como logicamente (não
cronologicamente) posterior ao decreto para permissão da
fim de nos ressuscitar em novidade de vida”.6
queda e conjunto ao decreto da vinda de Jesus para a reden-
ção. 6 Michael Horton. “União com Cristo”. Em Cristo o
15

A morte de Jesus é a nossa morte e a ressurreição respeito aos diversos elementos que compõe a
de Jesus é a nossa ressurreição, porque, tanto na salvação. Todos esses aspectos são realizados “em
morte, quanto na ressurreição de Cristo, estáva- Cristo” e dependem de nossa união com Cristo.
mos nele. E não somente nisso, mas até mesmo Como disse Calvino, “nós devemos entender que
na ascensão, pois em Cristo já estamos assentados enquanto Jesus permanecer exterior a nós, e esti-
nos lugares celestiais (Ef 2.6). Após a ressurreição,
vermos separados dele, tudo o que ele sofreu e fez
Jesus ascendeu aos céus e agora ele está assentado para a salvação da raça humana permanece inútil
à destra de Deus. Nossa união mística com Cris- e sem qualquer valor para nós”.9 John Gerstner usa
to nos faz estar lá com ele, pois de algum modo a ilustração do casamento para demonstrar como
estamos assentados com Cristo nos lugares celes- os benefícios de Cristo chegam até nós por causa
tiais. A igreja unida a Cristo foi, como diz Ber- de nossa união com ele: “Sendo a igreja casada
khof, “crucificada com Cristo, morreu com ele, com Cristo, tudo que é dele passa a ser de sua es-
nele ressurgiu dos mortos e foi levada a sentar-se posa, o crente. Uma esposa torna-se co-herdeira
com ele nos lugares celestiais”.7 de tudo que pertence ao esposo simplesmente por
ser sua esposa, por sua união com ele pelo casa-
Devemos sempre lembrar que a “união mística” mento”.10 Todas as bênçãos espirituais de Cristo
é misteriosa, pois estamos falando de algo sobre- são nossas em nossa união com ele, pois “para ser
natural, que não pode ser completamente racio- aceito diante de Deus, para ser livre de toda cul-
nalizado ou explicado. Hodge tem palavras muito pa e punição e para desfrutar da glória de Deus e
próprias para isso: da vida eterna, nós temos que ter Cristo, não algo
dele, mas o próprio Cristo”.11
É-nos suficiente saber que Cristo e seu povo
são realmente um. São tão verdadeiramente um Regeneração em Cristo
como a cabeça e os membros do mesmo corpo,
e pela mesma razão; são envolvidos e animados A regeneração é também chamada de novo nas-
pelo mesmo Espírito. Não se trata meramente de cimento e deve ser entendida como o ato divino
uma união de sentimentos, ideias e interesses. pelo qual ele traz alguém à vida pela união com
Esta é só a consequência da união vital na qual as Cristo. Assim, alguém que estava espiritualmente
Escrituras põem tanta ênfase.8 morto passa a estar espiritualmente vivo. Paulo
diz: “Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por
De fato, a união do crente com Cristo é uma causa do grande amor com que nos amou, e es-
união vital. Cristo e seu povo compartilham da tando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida
mesma vida. juntamente com Cristo” (Ef 2.4-5). Esse ato de dar
vida ao que estava morto é o que entendemos por
EM CRISTO: TODO PROCESSO DA SAL- regeneração ou novo nascimento. Note que isso
VAÇÃO acontece, nas palavras do Apóstolo, “juntamente
com Cristo”. Estávamos espiritualmente mortos,
No próximo capítulo falaremos sobre uma espé- mas num dado momento, Deus fez com que nos
cie de “ordem” ou “caminho” da salvação. Isso diz
9 João Calvino. As Institutas, III.1.1
Senhor. Ed. Michael Horton, p. 106.
10 John H. Gerstner. “A Natureza da Fé Justificadora”.
7 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 450. Em Justificação Pela Fé Somente, p. 33
8 Charles Hodge.Teologia Sistemática, p. 1004. 11 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 499
16

tornássemos espiritualmente vivos ao compar- que clama: Aba, Pai!” (Gl 4.4-6). Fomos predes-
tilharmos a vida de Cristo. A regeneração é em tinados para sermos filhos na eternidade, e Deus
Cristo e é uma espécie de ressurreição espiritual. concretizou isso dentro do tempo. Somos filhos
em Cristo, porque temos o Espírito de Cristo em
Justificação em Cristo nós. Isso nos faz também herdeiros, como Pau-
lo declara: “Ora, se somos filhos, somos também
Justificação é o ato divino pelo qual ele coloca so- herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com
bre o crente a justiça de Cristo. Desse modo, o pe- Cristo; se com ele sofremos, também com ele se-
cador passa a ser declarado justo diante de Deus. remos glorificados” (Rm 8.17). Somos filhos e
Paulo diz: “Aquele que não conheceu pecado, ele herdeiros “em Cristo”.
o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos fei-
tos justiça de Deus” (2Co 5.21). A expressão “nele” Santificação em Cristo
do texto é muito enfática. Em Cristo fomos feitos
justos. Nossa justificação depende inteiramente Santificação é a atividade do Espírito pela qual
de nossa união com Cristo (Ver Fp 3.8-9). Como o crente é renovado, dia a dia, em conformida-
diz Michael Horton, “somente Cristo possuía em de com a imagem de Deus. É o abandonar dos
si mesmo, em sua essência tanto quanto em suas pecados para viver em pureza. Em 1Coríntios
ações, a justiça que Deus requer da humanidade. 1.30 Paulo diz: “Mas vós sois dele, em Cristo Je-
Portanto, somente por meio da união com Cristo sus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabe-
pode o crente gozar da identidade de pertencer a doria, e justiça, e santificação, e redenção”. Além
Deus”.12 Ou como diz Bavinck, “a justiça que nos da justiça que temos em Cristo, o texto diz que
justifica, portanto, não deve ser separada da pes- Cristo é nossa santificação. A santificação não é
soa de Cristo”,13 embora sempre deve ser lembra- algo que conseguimos por nós mesmos, como
do que Deus nos imputa sua justiça livremente, e muitos pensam. A santificação, embora inclua
não com base em alguma condição existente. nossos esforços, somente pode ser encontrada em
Cristo. Jesus deixou bem claro que dependería-
Adoção em Cristo mos dele para podermos fazer alguma coisa. Ele
disse: “Permanecei em mim, e eu permanecerei
A adoção diz respeito à atitude divina pela qual em vós. Como não pode o ramo produzir fruto
ele nos adota, como filhos, através de Cristo Je- de si mesmo, se não permanecer na videira, as-
sus. Isso já estava predestinado, pois Paulo diz sim, nem vós o podeis dar, se não permanecerdes
que Deus “nos predestinou para ele, para a ado- em mim (Jo 15.4). Em Cristo podemos ser santos,
ção de filhos, por meio de Jesus Cristo” (Ef 1.5). portanto, Robert Strimple está certo ao dizer que,
Mas, como Paulo declara: “Vindo, porém, a ple- “a verdadeira união do crente (embora profunda-
nitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido mente misteriosa) com Cristo produz, não ape-
de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que nas a justificação, mas também a santificação”.14
estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a E muito antes, Calvino já disse: “Devido ao ca-
adoção de filhos. E, porque vós sois filhos, enviou ráter de Deus, que é santo, esta união traz como
Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, ingrediente fundamental a santificação, que é o
seu vínculo: “Quando ouvimos menção de nossa
12 Michael Horton. “União com Cristo”. Em Cristo o
Senhor, p. 105-106.
14 Robert B. Strimple. “O Arrependimento em Ro-
13 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática. p. 499 manos”. Em Cristo o Senhor, p. 62.
17

união com Deus, lembremo-nos de que santidade criatura; as coisas antigas já passaram; eis que
deve ser-lhe o vínculo.”15 se fizeram novas” (2Co 5.17). A nova vida que
o crente desfruta depois da conversão não tem
Perseverança em Cristo origem ou desenvolvimento em si mesma, ela de-
pende exclusivamente de estar unida com Cristo.
Perseverança é a virtude de permanecer fiel até Paulo diz: “Se alguém está em Cristo é nova cria-
ao fim, capacitado pelo Espírito Santo. Podemos tura”. Em Cristo, por causa de sua ressurreição, o
perseverar até o fim, porque estamos em Cristo. crente pode desfrutar de uma vida de ressurreição
Paulo diz: “Porque eu estou bem certo de que também, de modo que as coisas antigas somente
nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os ficam para trás porque foram anuladas na cruz
principados, nem as coisas do presente, nem do de Cristo. Como Paulo declarou, nós morremos
porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a pro- com Cristo, ou seja, nossa velha vida acabou em
fundidade, nem qualquer outra criatura poderá Cristo. A razão de nossa existência hoje já não é a
separar-nos do amor de Deus, que está em Cris- vida da carne e dos pensamentos humanos, mas
to Jesus, nosso Senhor” (Rm 8.38-39). Durante a vida do Espírito que nos é dada em Cristo. Ba-
todo o capítulo 8 de Romanos Paulo está tratando vinck diz que os crentes que foram crucificados
sobre as dificuldades da vida presente. Parte de para o mundo, e não vivem mais em si mesmos,
seu argumento é que devemos permanecer fiéis mas naquele que morreu e ressuscitou por eles,
mesmo em meio às tribulações, porque elas não “receberam um novo referencial para todo o seu
podem nos separar do amor de Deus. Todas as di- pensamento e ação, pois eles têm sua vida, movi-
ficuldades desta vida não poderão nos separar do mento e existência em Cristo”.17
amor de Deus que está em Cristo Jesus. Em Cristo
Jesus encontramos o amor de Deus que não vai Estar em Cristo é, portanto, a base fundamental
permitir que sejamos perdidos, pois desse amor, de nossa existência como cristãos. Não existimos
nada poderá nos separar. mais independentemente, existimos nele, como
se nossa existência e a dele se tornassem uma só.
Nossa salvação, em todos os sentidos, depende Por isso Paulo disse: “Já não sou eu quem vive,
inteiramente de nossa união com Cristo. Eleitos mas Cristo vive em mim; e esse viver que, ago-
em Cristo, regenerados, justificados, santificados ra, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus,
e guardados em Cristo. A doutrina da “união com que me amou e a si mesmo se entregou por mim”
Cristo” é “a roda que une os aros da salvação e os (Gl 2.20). Essa é uma das expressões mais ricas
mantém em perspectiva apropriada”.16 das Escrituras. Paulo diz que Cristo está vivendo
através dele, ou seja, aquela razão ou princípio
que faz com que a vida continue a se desenvolver,
EM CRISTO: VIDA CRISTÃ tenha sentido e propósito, já não parte mais dele,
é Cristo.
A excelência de nossa vida cristã também depen-
de inteiramente de nossa união com Cristo. Paulo Nesse sentido devemos considerar também, uma
diz: “E, assim, se alguém está em Cristo, é nova das doutrinas mais repudiadas pelo mundo e pela
pregação moderna: a doutrina do sofrimento.
15 João Calvino, As Institutas, III.6.2 Hoje os crentes querem ser prósperos, querem ser
16 Michael Horton. “União com Cristo”. Em Cristo o
Senhor, p. 108. 17 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 469
18

senhores, querem ser respeitados e admirados, em que sois coparticipantes dos sofrimentos de
mas o Senhor dos crentes foi humilhado, escar- Cristo, para que também, na revelação de sua gló-
necido, crucificado e morto. O sofrimento é um ria, vos alegreis exultando. Se, pelo nome de Cris-
ingrediente indispensável da vida cristã autênti- to, sois injuriados, bem-aventurados sois, porque
ca, pois todo crente verdadeiro sofre. O simples sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus”
fato de ainda estarmos na carne, apesar de termos (1Pe 4.13-14).
sido regenerados pelo Espírito, cria um confli-
to em nós que causa sofrimento. Lutar contra o Todo o sofrimento que os cristãos tiverem que
pecado é uma tarefa bastante dolorosa, e quando enfrentar nessa vida, e que não forem em decor-
pecamos, sofremos ainda mais. Jesus descreveu a rência de seus próprios pecados, são para a glória
vida de discípulo como uma tarefa diária de “car- de Deus e motivos de regozijos. A nossa união
regar a cruz” (Lc 9.23; Mt 16.24). Ele ensinou que com Cristo nos leva também a sofrer como ele so-
para segui-lo, precisamos renunciar a muitas coi- freu, e isso é uma bênção para nós, para o nosso
sas, como nossos desejos, riquezas, honras, e até crescimento espiritual. O sofrimento nos faz mais
a própria vida (Lc 14.26). De todas essas coisas parecidos com ele, nos faz mais submissos e mais
Jesus abriu mão por nós, e agora devemos fazer o dependentes da vontade de Deus.
mesmo por ele. Nossa união com Cristo é bênção
para nós até mesmo na medida em que participa- Outra consequência de nossa união com Cristo é
mos dos sofrimentos de Cristo. Paulo tinha esse a comunhão com os irmãos. Na igreja se fala mui-
entendimento, em muitas passagens ele falou so- to no fato de que os crentes devem ter comunhão
bre isso. Devemos lembrar que Paulo sofreu mui- uns com os outros, mas nem sempre fica claro
to por causa do Evangelho. O próprio Jesus, ao qual é a base disso. Muitos não entendem por que
comissioná-lo, disse que ele teria que sofrer pelo devem ter amizade mais com pessoas da igreja do
seu nome (At 9.16). Em quase todos os lugares que com pessoas do mundo. A base da comunhão
por onde passou, Paulo enfrentou perseguições, da igreja é a união mística. A Bíblia descreve a
afrontas, dores físicas e sofrimentos espirituais igreja como um corpo, e esse corpo tem uma ca-
(2Co 11.24-29). Ele entendia que sua vida de so- beça: Cristo. Paulo diz que, pela ascensão, Cristo
frimento nada mais era do que uma benção de foi exaltado ao posto supremo do universo, sendo
poder imitar a Cristo, por isso dizia que seu alvo que Deus “pôs todas as coisas debaixo dos pés, e
era: “Ser achado nele, não tendo justiça própria, para ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu à
que procede de lei, senão a que é mediante a fé igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele
em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada que a tudo enche em todas as coisas” (Ef 1.22-23,
na fé; para o conhecer, e o poder da sua ressur- ver Cl 1.18).
reição, e a comunhão dos seus sofrimentos, con-
formando-me com ele na sua morte” (Fp 3.9-10). A função do Cabeça da Igreja é unir cada vez
Ele desejava experimentar cada vez mais a comu- mais os membros no corpo para que todos cres-
nhão com Cristo no sofrimento, e por essa razão, çam juntamente. Paulo fala extensivamente so-
dizia se regozijar: “Agora, me regozijo nos meus bre isso em Efésios 4. Ele diz que Jesus, ao subir
sofrimentos por vós; e preencho o que resta das à destra de Deus, concedeu dons aos homens e
aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu esses dons foram dados para o aperfeiçoamento
corpo, que é a igreja” (Cl 1.24). Pedro tinha esse dos santos, para o desempenho do serviço divi-
mesmo entendimento: “Alegrai-vos na medida no, para a edificação do corpo de Cristo (Ef 4.12).
A ordem da edificação da igreja como corpo de
19

Cristo é a seguinte: “Mas, seguindo a verdade em


amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabe-
ça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e
consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a
justa cooperação de cada parte, efetua o seu pró-
prio aumento para a edificação de si mesmo em
amor” (Ef 4.15-16). Entre cada membro do corpo
de Cristo está a Cabeça, e todo relacionamento
precisa ser mediado por ela. Do que se percebe
do texto, a comunhão entre os irmãos é essencial
para o crescimento de cada um e do corpo como
um todo.

CONCLUSÃO

Por isso dissemos que o cristianismo não é uma


religião, mas uma pessoa, uma única pessoa: Je-
sus Cristo. Para efeitos de salvação, é como se só
Cristo existisse. Deus não olha para nossas obras,
olha para as obras de Cristo. Deus não olha para
nossos pecados, olha para a justiça de Cristo.
Quando Deus nos olha, ele vê Cristo. Todos nós
agora fazemos parte dessa pessoa maravilhosa.
Jesus vive nos crentes, ele é a vida dos crentes. Vi-
ver o cristianismo não é questão apenas de fazer
o que Cristo mandou ou seguir o exemplo dele, é
questão de ter o Filho (1Jo 5.12), de estar nele (Jo
15.5). Cristo é o tesouro maior que temos. Nada
se compara aos benefícios que temos nele. A pior
situação que alguém pode enfrentar é a de estar
“sem Cristo”. O Apóstolo Paulo fala que os crentes
de Éfeso, antes de conhecerem a verdade, estavam
“sem Cristo, separados da comunidade de Israel e
estranhos às alianças da promessa, não tendo es-
perança e sem Deus no mundo” (Ef 2.12). Estar
“sem Cristo” é não dispor de nenhuma das bên-
çãos de Deus. Em unidade com Cristo, dispomos
de uma nova identidade, a identidade de Jesus. O
Cristianismo não é uma religião, é uma pessoa:
Jesus Cristo.
20

O CHAMADO

INTRODUÇÃO der por que alguns vivem para Deus, enquanto


outros sempre fogem dele. O próprio Jesus disse:
Por que as pessoas reagem de formas diferentes “muitos são chamados, mas poucos, escolhidos”
quando ouvem a pregação do Evangelho? Muitas (Mt 22.14).
vezes duas pessoas assistem a um mesmo estu-
do bíblico, entretanto uma diz: “é isso o que eu
quero”, enquanto que a outra diz: “isso não me
interessa”. Da mesma forma, dois meninos cres- CHAMADO GERAL
cem juntos numa mesma casa, recebem a mes-
ma educação cristã, porém, um ama a Deus e o Deus estabeleceu que o modo como a salvação
outro não. Como essas coisas são possíveis? Por que ele providenciou chegaria às pessoas seria
que tanta diferença entre as respostas das pessoas através da pregação (1Co 1.21; Rm 10.17). Por-
ao chamado do Evangelho? O que faz com que tanto, a pregação do Evangelho é a primeira coi-
uma pessoa aceite a salvação, e a outra fuja dela? sa que precisamos analisar antes de falar sobre
Alguém acha maravilhoso participar de um cul- os aspectos da salvação. Jesus ordenou que pre-
to, estudar a Bíblia e orar, enquanto outro nem gássemos o Evangelho a toda criatura, porém,
sequer consegue se imaginar fazendo estas coisas. a questão que nos surge é: De que maneira ele
Devemos entender essas diferenças à luz do que deve ser pregado, e quais serão os resultados des-
a Bíblia chama de chamado eficaz, ou graça ir- sa proclamação? Uma outra questão que precisa
resistível. Deus chama algumas pessoas de forma ser esclarecida é: Se acreditarmos que Deus tem
que elas não conseguem fugir, e o outro lado da escolhido antes da fundação do mundo os que
moeda é que alguns, Deus não chama da mesma serão salvos, qual é a razão de pregar o Evange-
forma. Existem dois tipos de chamados divinos: o lho? E ainda: Se as igrejas de tradição reformada
chamado geral e o chamado eficaz. Entender bem insistem que Jesus morreu apenas pelo seu povo,
essa diferença é a questão chave para responder qual é a base para oferecer essa salvação a todas
às perguntas acima, e em última instância, enten- as pessoas sem distinção? Nesse momento, me-
21

ditaremos sobre o método, o conteúdo, o alvo e a vir, e o rei mandou insistir com eles: “Dizei aos
intenção do chamado geral, que é o chamado do convidados: Eis que já preparei o meu banquete;
Evangelho. os meus bois e cevados já foram abatidos, e tudo
está pronto; vinde para as bodas. Eles, porém, não
O chamado evangélico: o método se importaram e se foram, um para o seu campo,
outro para o seu negócio; e os outros, agarrando
Jesus contou uma parábola que nos ajuda a en- os servos, os maltrataram e mataram” (Mt 22.4-
tender a maneira correta de pregar o Evangelho. 6). O que se percebe no texto é um alto teor de
Jesus disse: “O reino dos céus é semelhante a um apelo. A pregação evangelística deve ser extrema-
rei que celebrou as bodas de seu filho. Então, en- mente apelativa, como o próprio Jesus demons-
viou os seus servos a chamar os convidados para trou quando disse: “Vinde a mim, todos os que
as bodas” (Mt 22.2-3). Jesus contou essa parábo- estais cansados e sobrecarregados, e eu vos alivia-
la com a intenção de apontar aos judeus de sua rei” (Mt 11.28); ou quando disse: “Se alguém tem
época o terrível erro que estavam cometendo e as sede, venha a mim e beba” (Jo 7.37). As pessoas
consequências que sobreviriam por rejeitarem o precisam ouvir esse chamado urgente e dramá-
convite da salvação. Na parábola, o rei mandou tico para que se arrependam dos seus pecados e
os servos chamarem os convidados. Isso é uma confiem em Cristo.
referência aos judeus, pois eles já haviam sido
convidados para a festa e agora estava chegando à Em uma parábola bastante semelhante, que Je-
convocação final. Eles foram convidados duran- sus contou noutra ocasião, fica ainda mais clara
te todo o tempo do Antigo Testamento pela lei e a ideia de convocação como pregação evangélica.
pelos Profetas, agora chegava o momento de cele- Um homem havia convidado seus amigos para a
brarem as bodas do Filho de Deus, pois o Messias festa, mas um a um, todos se recusaram a vir, in-
prometido, que há tanto tempo esperavam, havia ventando desculpas. Então o homem disse: “Sai
chegado. A palavra “chamar” pode ser traduzida depressa para as ruas e becos da cidade e traze
também como convocar. A pregação do Evange- para aqui os pobres, os aleijados, os cegos e os
lho não é a apresentação de uma possibilidade, coxos” (Lc 14.21). A ideia é a mesma de Mateus,
e sim uma ordem para vir. Nada no texto suge- Jesus quer dizer que a festa não deixará de acon-
re a ideia de que devemos dizer às pessoas: “Meu tecer porque aqueles que foram previamente con-
amigo hoje tens a escolha, vida ou morte o que vidados (judeus) se recusaram a participar. Aqui
vais aceitar?”. O Evangelho não oferece a vida ou ele manda “trazer” outros para preencher o lugar.
a morte, o Evangelho convoca as pessoas para a Isso é muito mais do que um simples convite em
vida, quem não aceita já está na morte. Hoekema que duas opções são oferecidas. Lucas continua
diz: “O convite do Evangelho não é algo que deixa narrando a parábola, e ficamos sabendo que ain-
a pessoa livre para aceitar ou declinar, como al- da havia lugar, então o homem disse: “Sai pelos
guém que é convidado para o futebol, mas é uma caminhos e atalhos e obriga a todos a entrar, para
ordem do soberano Senhor de toda a criação que que fique cheia a minha casa” (Lc 14.23). Não res-
manda que venhamos a ele para salvação – uma ta dúvida, portanto, de que a pregação evangélica
ordem que não pode ser ignorada a custo de uma é uma convocação formal, um apelo convincente
eterna perdição”.1 Os que haviam sido previa- para que as pessoas abandonem a velha vida e as-
mente convidados para as bodas se recusaram a sumam um compromisso com Cristo. A apresen-
tação do Evangelho não pode ser feita de maneira
1 Antony Hoekema. Salvos Pela Graça, p. 76
22

desinteressada, mas deve ser cheia de fervor, con- obra redentora de Cristo Jesus.
vicção e urgência, afinal o que está em questão é
a eternidade. Jesus não iludia seus potenciais discípulos com
promessas fantasiosas, ao contrário, ele fazia
O chamado evangélico: o conteúdo questão de deixar bem claro que haveria muitas
dificuldades em segui-lo. Certo dia, três candida-
Mas, qual deve ser o conteúdo da pregação do tos a discípulos foram entrevistados por Jesus. O
Evangelho? Noutra ocasião Jesus disse que os dis- primeiro disse: “Seguir-te-ei para onde quer que
cípulos deveriam ir por todo o mundo e “fazer fores” (Lc 9.57). Era um jovem escriba. Jesus per-
discípulos” (Mt 28.19). Originalmente, a palavra cebeu nele algum motivo secreto para segui-lo, e,
“discípulo” combina pelo menos dois significa- portanto, respondeu: “As raposas têm seus covis,
dos: Crer e aprender. Contextualmente, portanto, e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem
Cristo quis dizer que aqueles que creem nele le- não tem onde reclinar a cabeça” (Lc 9.58). Era
vam uma vida de constante obediência e apren- como se ele dissesse: Pense bem, andar comigo
dizado. Fazer discípulos é praticamente o mesmo não significa estar livre de dificuldades, ao con-
que fazer alunos. Um aluno é alguém que está dis- trário, pois será necessário dormir muitas noites
posto a aprender, e há muito o que aprender, pois ao relento e se privar, até, do conforto de um lar.
apesar do Evangelho ser simples, ele tem muito O segundo candidato recebeu um convite do pró-
conteúdo. prio Jesus: “A outro disse Jesus: Segue-me! ele, po-
rém, respondeu: Permite-me ir primeiro sepultar
Hoje em dia, percebemos que a apresentação do meu pai. Mas Jesus insistiu: Deixa aos mortos o
Evangelho é algo sem profundidade e sem alicer- sepultar os seus próprios mortos. Tu, porém, vai
ces bíblicos. O conteúdo da proclamação evange- e prega o reino de Deus” (Lc 9.59-60). Aquele
lística no Brasil, em geral, está muito diluído. Os jovem tinha outra prioridade em sua vida e não
programas evangélicos de rádio e televisão apre- estava preparado para fazer de Jesus a sua priori-
sentam um Evangelho fácil e até humanamente dade e, portanto, não estava apto para o discipu-
atrativo. O que mais vemos são pregadores ofe- lado. O terceiro candidato também se ofereceu,
recendo soluções para todos os problemas, e o mas com uma ressalva: “Outro lhe disse: Seguir-
que praticamente não se vê é a proclamação das -te-ei, Senhor; mas deixa-me primeiro despedir-
boas novas da morte e da ressurreição de Cristo. -me dos de casa. Mas Jesus lhe replicou: Ninguém
Em meio às ofertas de prosperidade, o conteúdo que, tendo posto a mão no arado, olha para trás
profundo e revolucionário do Evangelho tem sido é apto para o reino de Deus” (Lc 9.61-62). De al-
esquecido ou diluído. Quando olhamos para a gum modo Jesus percebeu que aquele jovem esta-
maneira como os discípulos do Senhor pregavam va vacilante em sua decisão de segui-lo. Somente
o Evangelho, observamos que eles tinham um uma decisão integral por Jesus habilita alguém
grande conteúdo para passar. Podemos perceber ao discipulado. Esses três exemplos demonstram
claramente que os discípulos não apresentavam a claramente que Jesus nunca prometeu facilidades,
Jesus como “a solução para todos os seus proble- pois sua preocupação principal não era com o nú-
mas”, mas como o Salvador crucificado e ressusci- mero dos discípulos, mas com a qualidade deles.
tado, poderoso para dar a vida eterna a todos os O conteúdo de sua mensagem exigia desafio, re-
que se achegarem a ele com fé. Portanto, pregar núncia e submissão, conforme ele costumava di-
o Evangelho não significa falar qualquer coisa co- zer: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se
movedora, agradável ou atrativa, mas anunciar a
23

negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me” (Lc não significa que todas serão salvas, mas que ele
9.23). Com isso, percebe-se que a mensagem de deseja que todas ouçam esse chamado. No final
Jesus era bem diferente da mensagem dos tele-e- da parábola Jesus explicou como isso funcionava:
vangelistas modernos e também das pregações de “Porque muitos são chamados, mas poucos, os
autoajuda que se vê em tantos púlpitos. escolhidos” (Mt 22.14). O chamado do Evangelho
é direcionado a um número muito grande de pes-
Jesus disse ainda que deveríamos ensiná-los a soas, porém, a resposta correta a esse chamado
“guardar todas as coisas” que ele ensinou (Mt será obtida apenas dos escolhidos, cujo número é
28.20). Portanto, a missão da igreja não é apenas bem menor. O próprio Jesus disse: “Vinde a mim
converter alguém, mas ensiná-lo, e esse ensino todos...” (Mt 11.28). O convite do Evangelho não
não deve ser qualquer ensino, e sim o ensino de é direcionado apenas aos eleitos, mas a todos.
Jesus. A pessoa deve ser chamada a uma vida de Apesar de que, somente os que entenderem que
obediência à Palavra de Deus. Como discipula- estão cansados e sobrecarregados e se dispuserem
dores, devemos ser como Paulo que jamais dei- a ir a Cristo para serem aliviados, é que obterão
xou de “anunciar todo o desígnio de Deus” (At os benefícios do Evangelho. Tanto a ideia de con-
20.27). Jesus disse: “Se alguém me ama, guardará vocação quanto de oferta universal pode ser vista
a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos em Atos 17.30: “Ora, não levou Deus em conta
para ele e faremos nele morada. Quem não me os tempos da ignorância; agora porém, notifica
ama não guarda as minhas palavras; e a palavra aos homens que todos, em toda parte, se arrepen-
que estais ouvindo não é minha, mas do Pai, que dam”. Numa linguagem que no português lembra
me enviou” (Jo 14.23-24). O objetivo do discipu- a atuação dos guardas de trânsito, os homens são
lado é fazer crentes fiéis ao Senhor, crentes que “notificados” a se arrependerem. Todos são con-
estejam dispostos a guardar as coisas ensinadas. vocados para isso.
Um discípulo deve ser ensinado a crer em Jesus,
bem como a obedecer a Jesus, pois não há como O argumento de que “se Deus tem escolhido os
receber a Cristo como Salvador sem que também que serão salvos, então o Evangelho não precisa
seja Senhor da nossa vida. Portanto, o conteúdo ser pregado”, denota falta de entendimento da Pa-
da pregação evangélica deve se concentrar nos lavra de Deus. Ninguém tem a capacidade de sa-
atos redentivos de Jesus, especialmente sua mor- ber quem são os eleitos, não poderíamos selecio-
te e ressurreição, deve chamar as pessoas para o ná-los para que ouçam a pregação do Evangelho.
arrependimento e fé, e para uma vida de compro- A eleição não deve ser levada em consideração no
misso com Deus e sua Palavra. quesito para quem pregar, e sim a ordem de Jesus
de que o Evangelho seja pregado a toda criatura.
O chamado evangélico: o alvo Por outro lado, a eleição fará diferença no resul-
tado, pois é a garantia de que nossa pregação não
Quem deve ser chamado? Segundo a Bíblia, to- será infrutífera, pois os escolhidos responderão
das as pessoas. Mas, e como fica a questão da ao chamado do Evangelho.
eleição? Qual é a razão de chamar a todos? A
razão de chamar a todos é a de obedecer a uma Será que as pessoas que não ouviram a pregação
ordem de Jesus. Ele disse que o Evangelho deve- do Evangelho serão desculpadas? A Bíblia diz que
ria ser pregado a toda criatura (Mc 16.15). Perce- só há um modo das pessoas serem salvas: crendo
bemos das parábolas analisadas acima que Deus em Jesus. Pedro foi muito claro em seu sermão: “E
tem um chamado geral para todas as pessoas. Isso
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não há salvação em nenhum outro; porque abai- condenação das pessoas. Assim, Deus teria deter-
xo do céu não existe nenhum outro nome, dado minado a pregação do Evangelho a toda a criatura
entre os homens, pelo qual importa que sejamos para ter provas condenatórias contra aqueles que
salvos” (At 4.12). De fato, segundo a Palavra de se recusassem a crer no Evangelho. Precisamos
Deus, a famosa expressão popular “todos os ca- reconhecer que a Escritura realmente ensina que
minhos levam a Deus” está absolutamente erra- não crer no Evangelho acarreta em condenação
da. Há um só Deus e um só caminho que leva a (Mt 11.21-24; Hb 10.29), porém, ela não parece
esse Deus único, e esse caminho é Jesus. Portanto, ensinar que Deus quer que o Evangelho seja pre-
se alguém quiser ser salvo precisa receber Jesus gado para ter motivos para condenar os homens.
como Senhor e Salvador de sua vida. Disso de- Deus não precisa encontrar motivos para conde-
corre que, se os pagãos morrerem sem Cristo es- nar os homens, ele já os tem de sobra.
tarão para sempre condenados. Mas, alguém dirá:
“É justo que sejam condenados aqueles que nada Não há razão para crer que a oferta do Evange-
ouviram sobre Jesus?” É justamente aqui que en- lho por parte de Deus não seja sincera. Paulo fala
tra a responsabilidade da igreja de fazer o Evan- em 2Coríntios 5.20 de seu papel de embaixador
gelho conhecido em todas as nações. Entretanto, divino: “De sorte que somos embaixadores em
ainda que a igreja não consiga fazer o Evangelho nome de Cristo, como se Deus exortasse por nos-
conhecido a todos os indivíduos do mundo, de so intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos
qualquer modo, a Bíblia diz: “Todos os que pe- que vos reconcilieis com Deus”. O papel de um
caram sem lei também sem lei perecerão; e todos embaixador é representar o seu chefe de estado
os que com lei pecaram mediante lei serão julga- no país onde se encontra. Naquele país, o embai-
dos” (Rm 2.11). Paulo fala que, mesmo as pessoas xador é a voz do presidente ou do primeiro-mi-
que não conhecem a Palavra de Deus, possuem nistro. Quando o embaixador se dirige a alguém,
uma lei gravada dentro delas. Além disso, como está falando e representando a vontade do seu so-
está escrito em Romanos 1.18-20, Deus tem se re- berano. Paulo está dizendo, portanto, que como
velado pela natureza, através das coisas criadas, pregador, está fazendo justamente isso, deixando
tornando os homens indesculpáveis. Sem querer Deus exortar através dele para que todos se re-
discutir se Deus tem outros métodos de fazer o conciliem com Deus. A oferta de Paulo é sincera,
Evangelho conhecido, como, por exemplo, atra- e a oferta do Deus a quem Paulo representa tam-
vés de anjos, ou de visões, a verdade é que o mé- bém é sincera.
todo comum é a proclamação do Evangelho por
parte de seus discípulos. O alvo continua sendo o Pedro, no capítulo 3 de sua segunda epístola, dá
mundo, e a igreja não pode se desviar desse alvo. uma resposta àquelas pessoas que diziam que
Cristo estava demorando e que não estava cum-
O chamado evangélico: a intenção prindo sua promessa de voltar logo. Pedro dis-
se: “Não retarda o Senhor a sua promessa, como
Para muitos, se existe uma predestinação, então, a alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é
oferta divina do Evangelho não é sincera, pois, longânimo para convosco, não querendo que ne-
por que Deus convidaria sinceramente para sal- nhum pereça, senão que todos cheguem ao arre-
vação alguém que ele não escolheu? Em resposta, pendimento” (2Pe 3.9). Embora muitos autores
se poderia dizer que a oferta do Evangelho por reformados se inclinem a pensar que, no texto,
parte de Deus não visa a salvação, mas apenas a Deus deseja que todos os eleitos sejam salvos,
25

pesa a evidência de que a palavra “eleitos” sempre ocultas e das quais Ele não concede pleno conhecimento
terá que ser acrescentada ao texto. Calvino prefe- sejam esquadrinhadas dessa forma pelos homens. Tam-
ria não considerá-la, como vemos em seu comen- bém não é certo sujeitar a sabedoria de Deus ao critério
tário do texto: humano e pretender que este penetre a Sua infinidade
eterna. Pois Ele quer que a Sua altíssima sabedoria seja
Tão maravilhoso é seu amor pela humanidade, que ele mais adorada que compreendida (a fim de que seja ad-
poderia salvar a todos, e que ele mesmo está preparado mirada pelo que é). Os mistérios da vontade de Deus que
para dar salvação ao perdido. A ordem é para ser no- Ele achou bom comunicar-nos, Ele nos testificou em Sua
ticiada, que Deus está pronto para receber todos ao ar- Palavra. Ora, Ele achou bom comunicar-nos tudo o que
rependimento, então que nenhum se perca (...) Pode ser viu que era do nosso interesse e que nos seria proveitoso.3
perguntado aqui: se Deus não quer que ninguém pereça,
por que então muitos perecem? Para isso, minha respos- Jesus deixou bem claro o desejo divino de salvar
ta é que não há menção, aqui, sobre o decreto secreto de as pessoas, mesmo as não eleitas. Momentos an-
Deus pelo qual os ímpios são condenados à sua própria tes de sua paixão, ele lamentou sobre Jerusalém:
ruína, mas somente de sua própria vontade como feita “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e
conhecida para nós no Evangelho. Pois, ali, Deus estende apedrejas os que te foram enviados! Quantas ve-
a mão sem distinção a todos, mas só segura, de forma a zes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha
conduzi-los a si, aqueles que ele escolheu antes da funda- ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós
ção do mundo.2 não o quisestes!” (Mt 23.37). A expressão de Jesus
é comovente. Ele disse: quantas vezes eu quis, e
Como é uma característica marcante de Calvino, vós não o quisestes. Não era o Senhor que não
ele não admite pensar na ideia de que a oferta do desejava a salvação do povo de Jerusalém, era o
Evangelho não seja universal, ou que não seja sin- próprio povo, e Jesus lamentou sinceramente essa
cera da parte de Deus. Embora entendendo que rejeição. Numa demonstração de carinho, ele dis-
Deus tem, em seu secreto conselho, o número se que desejava ajuntar as pessoas de Jerusalém a
exato dos que serão salvos, ainda assim, pela evi- fim de protegê-las e cuidar delas, como a galinha
dência escriturística, o reformador entende que ajunta os pintinhos debaixo de suas asas. Não po-
Deus misericordiosamente oferece o Evangelho deria haver uma declaração mais terna e sincera
sinceramente a todos. Ele prefere o paradoxo an- da parte do Senhor, a respeito de seu desejo e sua
tes a repudiar a oferta sincera do Evangelho. O sá- oferta de salvação a todos.
bio reformador de Genebra ainda declarou sobre
essa questão: Deus declarou ainda no Antigo Testamento a res-
peito do caminho errado que o povo de Israel es-
Quando os homens quiserem fazer pesquisa sobre a pre- tava tomando ao rejeitar sua oferta de salvação:
destinação, é preciso que se lembrem de entrar no san- “Dize-lhes: Tão certo como eu vivo, diz o senhor
tuário da sabedoria divina. Nessa questão, se a pessoa Deus, não tenho prazer na morte do perverso,
estiver cheia de si e se intrometer com excessiva autocon- mas em que o perverso se converta do seu ca-
fiança e ousadia, jamais irá satisfazer a sua curiosida- minho e viva. Convertei-vos, convertei-vos dos
de. Entrará num labirinto do qual nunca achará saída. vossos maus caminhos; pois por que haveis de
Porque não é certo que as coisas que Deus quis manter morrer, ó casa de Israel?” (Ez 33.11). Essa é uma
declaração enfática da parte de Deus a respeito de
2 John Calvin. Commentary on the Second Espistle
of Peter, 2Pe 3.9. 3 João Calvino. As Institutas, (1541), III.8.
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seu desejo de que todos se convertam. Sua oferta maravilhosa mensagem apenas para si mesmos.
de salvação é sincera, pois ele não tem qualquer A missão de pregar o Evangelho não é comissio-
prazer na morte do perverso, seu prazer é vê-lo se namento especial dado a alguns indivíduos, mas
convertendo e vivendo. Não dá para afirmar que um modo de vida de cada cristão verdadeiro. O
todas as pessoas de Israel naquele tempo fossem discípulo de Cristo deve fazer tudo quanto seja
eleitas, pois isso seria um absurdo e algo frontal-possível, pessoalmente, ou pela oração, para que
mente contrário à Escritura. outras pessoas venham a conhecer a Cristo, pois
“se negligenciamos este dever, onde está a nos-
Portanto, devemos sustentar duas verdades jun- sa fé? Onde está o nosso amor cristão? Se uma
tamente: Deus escolheu um grupo para salvação, pessoa não tem o desejo de fazer o Evangelho
mas deseja sinceramente que todos sejam salvos. conhecido no mundo inteiro, bem se pode ques-
São duas verdades que, na nossa mente, parecem tionar se essa pessoa conhece mesmo o valor do
irreconciliáveis, porque nossas mentes são finitas Evangelho”.5
e limitadas, mas são duas verdades “verdadeiras”.
Apesar de muitos não admitirem que isso seja
possível, por acharem uma contradição lógica,
como diz Hoekema, “não podemos prender Deus CHAMADO EFICAZ
na prisão da lógica humana”.4 Há duas outras so-
luções racionais para a questão, mas ambas são Jesus disse: “Muitos são chamados, mas poucos,
anti-bíblicas. A primeira é dizer que Deus deseja escolhidos” (Mt 22.14). Agora precisamos medi-
que todos sejam salvos e não escolheu ninguém. tar na segunda parte desse versículo, e passare-
Esse é o caminho de Armínio e dos arminianos, mos a falar sobre o que os teólogos têm chamado
porém, nos deixa com um Deus sem uma coroa. de Graça Irresistível, ou Vocação Eficaz. É verda-
A outra é dizer que Deus escolheu os eleitos e de que muitos não gostam do termo “irresistível”,
não deseja a salvação de mais ninguém, mas isso exatamente porque pensam que pode dar a ideia
contraria os textos bíblicos analisados acima. Em de que o Espírito Santo força as pessoas a se con-
respeito à Bíblia e a Soberania de Deus, devemos verterem. A doutrina da Graça Irresistível nos
manter o paradoxo bíblico de que Deus oferece fala da forma como Deus chama as pessoas para
sinceramente a salvação a todos, embora tenha a salvação e aplica a obra de Cristo na vida delas.
escolhido para salvação apenas os eleitos. Segundo essa doutrina, somente as pessoas que
foram chamadas eficazmente serão salvas. Quan-
Não poderíamos terminar esse assunto sem pen- do falamos, por exemplo, em “Chamado Eficaz”,
sar na responsabilidade que pesa sobre nós, pois estamos justamente querendo fazer diferenciação
pregar o Evangelho não é uma opção, mas uma com o chamado geral do Evangelho, como foi
obrigação de todo crente. Cristo não chamou visto acima. Todas as pessoas são chamadas para
apenas algumas pessoas para desempenharem o ouvir o Evangelho, mas nem todas são chamadas
papel de evangelizar o mundo, ele chamou cada eficazmente, de forma que o aceitarão.
crente. Todo novo convertido é chamado a teste-
munhar de Jesus diante dos homens. De tal for- A doutrina da “Graça Irresistível” fundamenta-se
ma a vida dos discípulos deve ser influenciada na Palavra de Deus e nas doutrinas que já foram
pelo Evangelho que eles não consigam guardar a
5 J. C. Ryle. Meditações no Evangelho de Mateus, p.
4 Antony Hoekema. Salvos Pela Graça, p. 86. 261.
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estudadas, como da pecaminosidade humana dade ruim e sua profissão era bastante desonrosa,
(morte espiritual), da eleição incondicional e da pois os publicanos eram os odiosos cobradores
expiação limitada. A pecaminosidade humana, de impostos da época e Zaqueu era o chefe de-
também chamada de “Depravação Total”, nos fala les. O emprego de publicano era muito próspero,
da impossibilidade do homem de responder posi- alguém poderia enriquecer com extrema facilida-
tivamente ao chamado de Deus. Mas a eleição diz de cobrando impostos. Roma dominava a nação
que alguns desses foram escolhidos para serem israelita, e para arrecadar impostos da nação do-
salvos. A expiação limitada diz que Cristo morreu minada, indicava pessoas do próprio povo para
por esses, e por isso, eles precisam ser chamados cobrar impostos dos patrícios. Roma fixava um
de forma eficaz, para que recebam a salvação pre- valor determinado de impostos que lhe pertencia,
parada para eles. e o que fosse cobrado acima podia ficar com os
cobradores. Para mantê-los satisfeitos, Roma fa-
O chamado gracioso zia vista grossa para as frequentes extorsões. Mas,
quem diria, Zaqueu começou a interessar-se por
A origem da formulação da doutrina da Graça Ir- Jesus. De onde veio esse interesse? E o interesse
resistível ou Vocação Eficaz pode ser encontrada aumentou a tal ponto que ele se sujeitou a subir
em Agostinho. Hodge diz: “Segundo a doutrina numa árvore para ver o Senhor passando. Entre-
agostianiana, a eficácia da graça divina na reden- tanto, não foi Zaqueu quem se ofereceu a Jesus,
ção não depende de sua congruidade, nem da mas Jesus quem parou diante da árvore em que
cooperação ativa, nem da não-resistência passiva Zaqueu estava e lhe chamou pelo nome. Isso é um
de seu sujeito, mas de sua natureza e do propósito “chamado eficaz”. O Espírito Santo trabalhou na
de Deus. É o exercício do “grande poder de Deus”, vida de Zaqueu, convencendo-o a receber a Cris-
que ordena e é feito”.6 Essa definição clássica da to. Quem fez a decisão de receber Cristo em sua
doutrina aponta para a onipotência divina, e de casa foi o próprio Zaqueu, mas ele não consegui-
fato, essa é a grande base da doutrina. ria se o Espírito Santo não estivesse trabalhando
em sua vida, e se Jesus não o chamasse eficazmen-
O chamado eficaz é a aplicação da obra de Cristo te. Provavelmente havia pessoas bem “melhores”
em nossas vidas. Ele é um chamado absolutamen- do que Zaqueu naquela cidade, mesmo naquela
te gracioso, pois ninguém faz nada para merecer rua e quem sabe até naquela árvore, mas a ver-
esse chamado. Não somos chamados porque Deus dade é que Jesus escolheu chamar Zaqueu. Não
viu algo de bom em nós, mas tão somente porque sabemos o que motivou o amor de Jesus por Za-
seu amor condescendeu em nos chamar. Quando queu, apenas sabemos que esse amor existiu.
dizemos que o chamado eficaz é gracioso, esta-
mos dizendo que não havia nada em nós, absolu- O chamado persuasivo
tamente nada, que motivasse Deus a nos chamar.
A história de Zaqueu é bastante instrutiva nesse Algumas pessoas são contra a doutrina da graça
sentido. Em Lucas 19.1-10 ficamos sabendo da irresistível ou do chamado eficaz, porque dizem
conversão de Zaqueu. Algumas coisas nessa pas- que se for dessa forma, então, o Espírito Santo
sagem são muito interessantes para serem ana- violenta a vontade de uma pessoa obrigando-a a
lisadas. Zaqueu não era o tipo de pessoa que se aceitar algo que ela não quer. Esse é um enten-
esperava que se convertesse. Ele morava numa ci- dimento equivocado, pois no chamado eficaz, o
Espírito Santo não violenta a vontade de uma pes-
6 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 990.
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soa, antes a persuade. Por natureza nós somos in- convence-nos a aceitar o chamado de Deus. Deus
dispostos a aceitar a salvação de Deus, a verdade é não violenta a vontade do homem para que aceite
que não queremos nenhum relacionamento com a salvação, Deus muda sua vontade e sua disposi-
ele. Nosso desejo é fugir da sua presença como ção amorosamente.
nossos primeiros pais fizeram, quando sucumbi-
ram à tentação e comeram do fruto proibido. A Como diz Bavinck, “a vocação interna (eficaz)
queda lançou o homem num estado de “morte es- consiste geralmente no fato de que ela restaura
piritual”, ou seja, o homem foi separado de Deus. o vínculo de relacionamento entre Deus e o ho-
E nesse estado, não tem vontade ou disposição de mem, de forma que o homem possa ouvir a Pala-
voltar para Deus, ele está de fato “morto em seus vra de Deus e entendê-la”.8 O próximo passo será
delitos e pecados” (Ef 2.1). Um morto não conse- responder a essa Palavra com a conversão. Foi
gue voltar à vida por suas próprias forças, e por isso o que aconteceu na vida de Zaqueu. O Espí-
isso, por natureza todos os homens são surdos ao rito Santo estava trabalhando na vida de Zaqueu
chamado divino. Cristo disse que era necessário mesmo antes dele conhecer a Jesus. E a obra do
“nascer de novo” para poder ver o reino de Deus Espírito se completou na vida de Zaqueu quando
(Jo 3.3). Primeiramente a expressão “nascer de ele ouviu Jesus chamá-lo pelo nome. Naquele mo-
novo” significa “nascer do alto”. O fato é que nós mento a vontade de Zaqueu foi mudada, e ele foi
não causamos ou iniciamos nossa regeneração, persuadido a descer da árvore e receber Jesus em
nós não nascemos de novo porque cremos, ao sua casa. Jesus disse: “Ninguém pode vir a mim
contrário, nós cremos porque Deus nos fez nas- se o Pai, que me enviou, não o trouxer” (Jo 6.44).
cer de novo, até porque, todo nascimento é um Há uma incapacidade inerente no ser humano de
acontecimento passivo. responder ao chamado da Palavra. Por natureza,
temos a mesma propensão a responder ao cha-
Voltemos a falar sobre esse ato de persuadir que mado da Palavra como tem o rato de responder
é obra do Espírito Santo quando nos chama efi- ao chamado do gato. É somente quando a graça
cazmente. Por natureza, o pecado tem intoxicado de Deus vem junto com a pregação da Palavra,
todo o nosso ser, e nós não podemos agradar a que nossa indisposição é removida. O problema
Deus de jeito algum. O pecado impede que possa- conosco não é que não podemos fazer uma de-
mos tomar uma decisão de servir a Deus e nos faz cisão por Cristo; o verdadeiro problema é que
tomar decisões pecaminosas. Quando o Espírito possuímos uma natureza que é oposta a Deus.
Santo desce e age em nós, colocando novos dese- Nós rejeitamos a Cristo por nossa própria livre
jos, mudando nossa disposição íntima, nós pode- vontade, porque nossa vontade naturalmente não
mos voltar para Deus. Negar ou aceitar Cristo são deseja Cristo. E se aceitamos a Cristo, foi porque
ambas decisões nossas, a diferença é que uma é Deus mudou nossa natureza e então nossa von-
sob a influência da carne e a outra é sob a influên- tade pôde responder livremente à graça de Deus.
cia do Espírito Santo.7 O ponto principal dessa Strong diz que “a operação de Deus não é um
argumentação é que o Espírito Santo não violen- constrangimento externo sobre a vontade huma-
ta nossa vontade, ele influencia e amorosamente na, mas que concorda com as leis da nossa cons-
tituição mental”.9 Isso nos impede de pensar em

7 Ver Michael Horton. As Doutrinas da Maravilho-


8 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 462.
sa Graça, p. 137. Algumas abordagens do restante desse
estudo podem ser encontradas no capítulo “Graça Embria- 9 Augustus H. Strong. Teologia Sistemática, vol. 2 p.
gante”, desse mesmo livro. 493
29

coerção, pois se fosse coerção, não seria “vocação”. suas vidas de forma despreocupada, debochando
dos fiéis, de repente se descobrem orando, lendo
A eficácia do chamado a Bíblia, e adorando o Senhor, e com uma alegria
que certamente não pode ser explicada. Deus tem
Quando Zaqueu saiu aquela manhã, determi- muitos meios para chamar eficazmente uma pes-
nado a ver quem era Jesus, não imaginava o que soa. Ele é o único que pode trazer as pessoas até
aconteceria na sua vida. Ele não imaginava que Jesus, e não falha em sua tarefa (Jo 6.44). Como
horas mais tarde seria uma pessoa completamen- disse McGregor Wright, “os muitos meios para o
te diferente. Praticamente todo mundo foi toma- fim de salvar cada um dos eleitos são tão eficazes
do de surpresa aquele dia, pois todos devem ter que terminam sempre em resultados bem-sucedi-
se espantado quando Jesus disse: “Hoje me con- dos. Os meios são infalíveis porque Deus é infa-
vém ficar em tua casa”. A casa de Zaqueu não era lível”.10 Aqui é interessante, mais uma vez, relem-
uma casa comum, era a casa de um rico cobrador brar a distinção entre a vocação do Evangelho e a
de impostos. Quantas pessoas teriam sido explo- vocação eficaz. O simples chamado do Evangelho
radas dentro daquelas quatro paredes. Quantos não possui o poder necessário para converter al-
banquetes imorais haviam sido dados pelo anfi- guém. Como diz Bavinck, “independente do real
trião. Mas, Jesus estava decidido a entrar naquele poder e mérito dessa vocação externa, ela não é
lugar, e ele não daria apenas uma passadinha, pois suficiente para mudar o coração do homem e efe-
disse “hoje me convém ficar em tua casa”. Espiri- tivamente movê-lo à aceitação do Evangelho”.11
tualmente, Jesus nunca mais sairia de lá. Quanta É claro que Bavinck não acha que a insuficiência
transformação aconteceu na vida de Zaqueu em esteja no Evangelho em si, mas no homem que
apenas uma noite. O texto diz que: “Entrementes não tem condições de responder, e que precisa de
Zaqueu se levantou e disse ao Senhor: Senhor, re- uma obra da graça para despertá-lo e fazer com
solvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, que seu interior seja mudado. Essa obra da gra-
se nalguma cousa tenho defraudado alguém, res- ça é a vocação eficaz. Nas lendas dos navegantes,
tituo quatro vezes mais” (v. 8). Não foram pala- fala-se do canto das sereias. Aquela música atraía
vras da boca para fora, a transformação que ocor- os marinheiros. Sempre houve muitas músicas no
reu na vida de Zaqueu quando Jesus o encontrou mundo, mas somente aquela música fazia com
foi uma transformação radical. Uma transforma- que seguissem a melodia. Há muitos tipos de pre-
ção que atingiu a raiz de sua vida, o centro de sua gação, mas somente a pregação que vem acompa-
vontade: o coração. Agora suas palavras não eram nhada pela graça irresistível leva as pessoas a uma
mais obscenas, ou cheias de extorsão, pois seu co- verdadeira decisão por Cristo.
ração havia sido transformado. Seus lábios não
proferiam mais impiedade, porque seu coração
estava limpo dessas coisas, e agora estava cheio de
Jesus (Mt 12.34). CONCLUSÃO

Esta transformação maravilhosa é o que acontece Concluímos, portanto, que o motivo pelo qual as
na vida de todo aquele que Cristo chama. É por isso pessoas respondem de formas diferentes ao cha-
que pessoas que perseguiam o Evangelho, como
o Apóstolo Paulo, se transformaram em ardentes 10 R. C. McGregor Wright. A Soberania Banida, p.
pregadores. É por isso também que muitos que 143.
não tinham qualquer interesse em Deus, e viviam 11 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 458.
30

mado do Evangelho é porque umas são capacita-


das por Deus para aceitarem, enquanto que ou-
tras não. Por inclinação natural, nenhum homem
está disposto a se converter. Se a conversão ocor-
re, é porque antes dela, Deus já trabalhou no co-
ração do homem, persuadindo-o, mudando sua
vontade e fazendo-o inclinado a aceitar a obra da
graça divina. É somente depois dessa obra no co-
ração do ser humano que ele poderá, livremente,
responder com fé à mensagem da graça, e mesmo
essa fé não pode ser considerada uma obra sua,
pois a Escritura diz que ela é um “dom de Deus”
(Ef 2.8). O chamado do Evangelho e a vocação
eficaz explicam por que muitos são chamados,
mas poucos, escolhidos.
31

A REGENERAÇÃO

INTRODUÇÃO No estudo anterior falamos sobre a vocação efi-


caz. Num certo sentido, vocação eficaz e regene-
Para que uma pessoa seja salva, a primeira coisa ração são sinônimas. Antony Hoekema, seguindo
que deve acontecer dentro dela é a regeneração. muitos outros teólogos reformados, entende que
Segundo a Escritura, os crentes foram escolhi- regeneração e vocação eficaz são a mesma coisa.2
dos em Cristo antes da fundação do mundo e são Realmente, se não são exatamente a mesma coisa,
chamados pela pregação do Evangelho, mas, até são coisas difíceis de distinguir. A regeneração dá
que Deus lhes abra o entendimento, eles são ce- vida e possibilita a conversão, conduzindo a uma
gos para Deus, pois estão mortos para a vida de vida de santificação. A vocação eficaz é um cha-
Deus. Por isso, é preciso que Deus realize uma mado irresistível a uma vida de comunhão com
obra neles antes mesmo da conversão. Essa obra é Cristo. Talvez a diferença seja que quando fala-
chamada de regeneração. Através dela, nos torna- mos em vocação eficaz estamos focalizando mais
mos vivos para Deus, e somos habilitados à con- no chamado divino, e quando falamos em rege-
versão. Na Bíblia, a palavra regeneração pode ser neração estamos falando de algo que acontece
entendida como a implantação da vida espiritual dentro do homem.3 Porém, as duas coisas devem
naqueles que estavam espiritualmente mortos. É ser vistas como lados de uma mesma moeda. As
um ato exclusivo de Deus. Essa vida implantada, palavras de Berkhof podem nos ajudar a enten-
de acordo com a Escritura, se manifestará em ar- der:
rependimento e fé, produzindo transformação na
pessoa (Jo 3.3; Tg 1.18; 1Pe 1.23).1 A regeneração, no sentido mais estrito da palavra, isto é,
como nova geração, tem lugar na vida subconsciente do

2 Antony Hoekema. Salvos Pela Graça, p. 111.


1 A Escritura fala ainda de regeneração num sentido 3 Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 473.
mais amplo, indicando a restauração final da criação, que Berkhof diz que a regeneração age de dentro, enquanto que
acontecerá na Segunda Vinda de Jesus (Mt 19.28). a vocação age de fora.
32

homem, e independe por completo de qualquer atitude sentido da palavra, e o ponto em que ela passa a
que ele possa assumir com referência a ela. A vocação, ser conversão.5 Portanto, uma possível sequência
por outro lado, dirige-se à consciência e implica certa dis- seria a seguinte: vocação do Evangelho – regene-
posição da vida consciente. Isto decorre do fato de que a ração – vocação eficaz – conversão.6 Porém, essa
regeneração age de dentro, enquanto que a vocação age sequência deve ser vista apenas como distinção
de fora.4 teológica e não necessariamente cronológica.

Mas, como entender a relação entre vocação do


Evangelho, vocação eficaz, regeneração e conver-
são? Seguiremos aqui a distinção feita por Ber- A ORDEM DA SALVAÇÃO
khof, que é mais ou menos a seguinte:
Essa discussão, necessariamente nos leva a pensar
(1) A vocação externa, o chamado do Evangelho, na ordem como a Salvação é aplicada ao crente.
que ocorre na pregação da Palavra, geralmen- Em teologia fala-se numa “ordem da salvação”
te precede à operação regeneradora do Espírito (no latin ordo salutis). Com isso se pretende esta-
Santo, ou coincide com ela, sendo que, por essa belecer e distinguir os vários elementos que com-
operação, a vida espiritual é produzida na alma põem a salvação. Alguns estudiosos se esforçam
do homem. por estabelecer uma ordem cronológica, isto é,
apontando os aspectos da salvação que se suce-
(2) Em seguida, por uma palavra criadora de
Deus, Deus gera a nova vida, mudando a dispo-
5 Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 473-
sição interna da alma, iluminando a mente, in- 474
citando os sentimentos e renovando a vontade.
6 O Rev. Hermisten compôs o seguinte quadro
É nesse momento que o homem recebe ouvidos comparativo entre os diversos teólogos reformados: Char-
para entender o chamado para salvação de sua les Hodge (1797-1878) 1. Vocação. 2. Regeneração. 3. Fé.
alma. Isso é regeneração no sentido mais estrito 4. Justificação. 5. Santificação. W.G.T. Shedd (1820-1894) 1.
Regeneração. 2. Conversão. 3. Justificação. 4. Santificação.
da palavra.
R.L. Dabney (1820-1898) 1. Vocação Eficaz. 2. Fé. 3. União
com Cristo. 4. Justificação. 5. Arrependimento. 6. Santifi-
(3) A partir do momento que o homem recebe os cação e Boas Obras. 7. Perseverança dos Santos. A.A. Hod-
ouvidos espirituais, o chamamento de Deus pelo ge (1823-1886) 1. Vocação Eficaz. 2. Regeneração. 3. Fé. 4.
União Mística. 5. Arrependimento. 6. Justificação. 7. Ado-
Evangelho é agora ouvido pelo pecador que pode ção. 8. Santificação 9. Perseverança dos Santos. Abraham
recebê-lo e compreendê-lo. O desejo de resistir é Kuyper (1837-1920) 1. Justificação. 2. Regeneração. 3. Vo-
transformado em desejo de obedecer, e o pecador cação. 4. Conversão. 5. Fé. 6. Santificação. Herman Bavinck
se rende à influência persuasiva da Palavra pela (1854-1921) 1. Vocação Cristã/Regeneração. 2. Fé/Arre-
pendimento. 3. Justificação. 4. Santificação/Glorificação.
operação do Espírito Santo. Essa é a Vocação Efi- Louis Berkhof (1873-1957) 1. União Mística. 2. Regenera-
caz. ção/Vocação Eficaz. 3. Conversão: Arrependimento e Fé.
4. Justificação. 5. Santificação. 6. Perseverança dos Santos.
Herman Hoeksema (1886-1965) 1. Regeneração. 2. Voca-
(4) Finalmente, essa vocação eficaz assegura que
ção Eficaz. 3. Fé. 4. Conversão. 5. Justificação. 6. Santifi-
haverá transformação por causa da vida implanta- cação. 7. Perseverança e Preservação. 8. Glorificação. John
da que resulta no novo nascimento. Essa é a con- Murray (1898-1974) 1. Vocação. 2. Regeneração. 3. Fé e Ar-
sumação da obra da regeneração, no mais amplo rependimento. 4. Justificação. 5. Adoção 6. Santificação. 7.
Perseverança. 8. Glorificação. A.H. Strong (1836-1921) 1.
Eleição. 2. Vocação. 3. União com Cristo. 4. Regeneração. 5.
4 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 473 Conversão. 6. Justificação. 7. Santificação. 8. Perseverança.
33

dem um a um. Em geral, a ordem mais aceita no ramente possível uma realidade. Cada elo na cor-
meio reformado é a seguinte: vocação, regenera- rente da redenção é forjado na bigorna de Deus
ção, fé e arrependimento, justificação, santifica- do começo ao fim”.9 A salvação pertence em todos
ção, perseverança e glorificação. É inegável que a os seus aspectos ao Senhor, ele é o dono da roda e
Bíblia apresenta alguma ordem no que se refere a põe em movimento.
à salvação. Com isso, se quer dizer que há coi-
sas que realmente vêm antes do que outras. Por O lugar nas Escrituras em que fica mais claro que
exemplo, antes da pessoa experimentar a fé ela existe uma Ordem da Salvação é Romanos 8.29-
precisa ouvir a Palavra, pois a Escritura diz que “a 30: “Porquanto aos que de antemão conheceu,
fé vem pela pregação” (Rm 10.17). Porém, é um também os predestinou para serem conformes à
erro pensar que exista um esquema fixo que pos- imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o pri-
sa ser estabelecido de forma cronológica. Como mogênito entre muitos irmãos. E aos que predes-
diz Strong a “ordem não é cronológica, mas lógi- tinou, a esses também chamou; e aos que chamou,
ca”.7 Quando pensamos na ordem da salvação, é a esses também justificou; e aos que justificou, a
preciso lembrar das palavras de Berkhof : esses também glorificou” (Rm 8.29-30). Ele esta-
belece uma ligação entre uma sequência de even-
Quando falamos de uma ordo salutis, não nos tos redentivos para demonstrar que Deus já agia
esquecemos de que a ação de aplicar a graça de na vida dos crentes desde o princípio e continua-
Deus ao pecador individual é um processo unitá- rá até o fim, conduzindo-os à salvação completa.
rio, mas simplesmente ressaltamos o fato de que Essa é sua base para continuar a argumentação
é possível distinguir vários movimentos no pro- nos versos seguintes dizendo que “nada poderá
cesso, que a obra de aplicação da redenção segue nos separar do amor desse Deus” (Rm 8.31-39).
uma ordem definida e razoável, e que Deus não
infunde a plenitude da Sua salvação ao pecador Primeiramente ele diz “aos que predestinou, a
num único ato.8 esses também chamou”. A predestinação é o pri-
meiro ato da salvação de alguém. Na predestina-
Essa explicação é muito importante, pois jamais ção Deus escolheu alguns para salvação e deixou
podemos perder de vista que a salvação é uma outros para receberem a punição por seus peca-
obra indivisível. A expressão “processo unitário” dos. O ato de escolha se deu antes da fundação
nos ajuda a entender isso, pois sugestiona que há do mundo. A vocação deve ser identificada com
algum desenvolvimento, mas que é uma coisa só. o momento do chamado divino. Em geral está li-
Além disso, é preciso entender que todo o proces- gada ao ouvir a Palavra de Deus. É o momento
so de salvação é obra de Deus. Ele é o responsá- quando o pecador ouve a pregação do Evangelho
vel pela efetivação de cada aspecto da nossa sal- e responde positivamente a ele. Assim, a predes-
vação. Como diz McGregor Wright “Deus salva. tinação está antes do tempo, e a vocação é o mo-
Deus não faz meramente o suficiente para tornar mento quando a escolha divina se concretizou
a salvação possível, deixando para nós o trabalho através da resposta do homem ao chamado do
de abrir o caminho, ‘para merecer os méritos de Evangelho. Todo predestinado será eficazmente
Cristo’, fazendo a nossa parte, para tornar o me- chamado.

7 Augustus H. Strong. Teologia Sistemática, vol. 2, p.


494.
9 R. C. McGregor Wright. A Soberania Banida, p.
8 Louis Berkhof. Teologia Sitemática, p. 416. 102.
34

Na sequência Paulo diz: “E aos que chamou, a Portanto, nesse texto, ficaram claros os vários as-
esses também justificou”. A justificação deve ser pectos da salvação. Mas ela é uma coisa só, tanto é,
entendida como o ato pelo qual Deus declara jus- que todos os verbos estão no passado. Isso sugere
to o pecador. Isso somente é possível por causa uma ordem inquebrável. Perante Deus, o crente já
dos méritos de Jesus que, com seu sangue, satisfez tem passado por todos esses estágios. O resultado
a justiça divina e resgatou o homem do pecado, dessa ideia é segurança. E segurança é justamente
substituindo-o na cruz. Com base no mérito de o tema de todo o capítulo 8 de Romanos.
Cristo, Deus declara justo, o pecador. No chama-
do à justificação estão inclusos: a regeneração, o O esforço feito acima não é de separar, mas apenas
arrependimento, a fé e o selo ou batismo do Espí- de distinguir as experiências provocadas pelo Es-
rito. É preciso lembrar que não devemos imaginar pírito Santo. Ao longo desse trabalho tomaremos,
uma ordem temporal, pois que todas essas coisas uma a uma, essas várias experiências e as consi-
podem ser simultâneas. A regeneração é a úni- deraremos separadamente, porém, precisamos
ca que tem alguma prioridade, porém, não uma lembrar que elas nunca acontecem separadamen-
prioridade temporal. Como diz Hoekema “mes- te. Falaremos num momento sobre justificação e
mo essa prioridade da regeneração não pode ser noutro sobre santificação, porém, não devemos
entendida como indicando uma ordem cronoló- esquecer que elas sempre acontecem juntamente.
gica ou temporal. A relação entre regeneração e,
digamos, fé é como a que existe entre apertar o Apesar de parecer bem claro que há aspectos
comutador da energia e inundar o quarto de luz – subsequentes na ordem da salvação, que não po-
as duas ações são simultâneas”.10 Assim, ele enten- dem ser separados — pois a salvação é um evento
de que a regeneração tem prioridade causal sobre unitário de Deus — há algo ainda que precisa ser
os outros aspectos do processo da salvação.11 considerado e que revoluciona nosso modo de
pensar a respeito da salvação. Estamos falando do
Na sequência Paulo declara: “E aos que justificou, “conflito” bíblico-teológico do já e do ainda não.
a esses também glorificou”. Essa é a parte final da De certa forma o crente já desfruta de todos os as-
salvação. Da justificação à glorificação precisam pectos da salvação, os quais lhe foram dados ins-
estar incluídas necessariamente a santificação e a tantaneamente. Porém, ao mesmo tempo, muitos
perseverança. Novamente, não como cronologi- desses aspectos só serão plenos na segunda vinda
camente distintas, pois que são simultâneas, mas de Jesus. A santificação é um exemplo disso. Sa-
como essencialmente distintas. Pois de fato em- bemos que ela é algo que precisa ser desenvolvida
bora santificação e perseverança caminhem na e que somente estará plena no dia da ressurrei-
mesma direção, são diferentes. Santificação é o ção. Mas, há um sentido em que já somos santos,
ato de abandonar o pecado e viver para justiça, e pois fomos santificados em Cristo Jesus, por isso,
perseverança é o ato de permanecer firme na gra- o Novo Testamento chama os crentes de santos.
ça de Deus até o fim. O último evento da ordem Eles já são santos, porém ainda não totalmente
da salvação é a glorificação. Isso deve ser enten- santos.
dido como o momento em que Jesus voltar, e os
mortos em Cristo ressuscitarem, incorruptíveis, e
os vivos serem transformados (1Ts 4.16-17).
DESPERTANDO OS MORTOS
10 Antony Hoekema. Salvos Pela Graça, p. 20.
11 Antony Hoekema. Salvos Pela Graça, p. 20. Voltemos agora a tratar sobre a Regeneração e sua
35

prioridade sobre os demais aspectos da Ordem refere ao centro da vontade humana de onde pro-
da Salvação. Para entender a Regeneração, antes cedem os pensamentos e as atitudes (Mt 15.18-
precisamos entender a situação do ser humano 19). É a própria fonte da existência moral do ser
por natureza. Em Efésios 2.1-3, Paulo a descreve humano. Essa fonte está corrupta. Não apenas
da seguinte forma: “Estando vós mortos nos vos- parcialmente corrupta, mas desesperadamente
sos delitos e pecados, nos quais andastes outro- corrupta. Como pode essa fonte ser mudada? Je-
ra, segundo o curso deste mundo, segundo o remias diz que isso é impossível ao homem: “Pode,
príncipe da potestade do ar, do espírito que agora acaso, o etíope mudar a sua pele ou o leopardo,
atua nos filhos da desobediência; entre os quais as suas manchas? Então, poderíeis fazer o bem,
também todos nós andamos outrora, segundo as estando acostumados a fazer o mal” (Jr 13.23).
inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da Assim como o leopardo não consegue mudar sua
carne e dos pensamentos; e éramos, por nature- pele, o ser humano também não consegue mudar
za, filhos da ira, como também os demais”. Várias sua natureza pecaminosa, por isso a regeneração
expressões são importantes no texto para nossa precisa ser uma obra divina. Por natureza, o ser
discussão. Primeiramente precisamos notar a de- humano é oposto a Deus, como o Apóstolo Paulo
claração de que estávamos “mortos”, chamamos declara: “Por isso, o pendor da carne é inimizade
isso de morte espiritual, pois, embora fisicamente contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus,
vivo, espiritualmente o homem está morto. É im- nem mesmo pode estar. Portanto, os que estão na
portante que percebamos que Paulo não diz que carne não podem agradar a Deus” (Rm 8.7-8). É
o ser humano está “doente”, mas morto. “Mortos evidente que o ser humano não consegue dar vida
nos delitos e pecados” se refere à corrupção na- espiritual a si mesmo, como um cadáver também
tural do ser humano, que nasce sob a servidão não pode dar a si mesmo vida biológica. Quando
do pecado e passa toda a vida nessa situação, co- se fala que para ser salvo basta crer, é preciso que
metendo pecado e sendo escravo do pecado (Jo se entenda que ninguém crê por si mesmo, pois
8.34). Em tal estado, o homem é absolutamente “a menos que Deus dê vida, os pecadores nunca
incapaz de mudar a situação e produzir vida em podem verdadeiramente crer. Simplesmente não
si mesmo. Ele não tem forças para dar um passo temos as condições requeridas para isso”.12
em direção a Deus, nem vontade para isso. Ele
não pode se inclinar em direção a Deus porque já Quando falamos em morte espiritual não esta-
está naturalmente inclinado para três coisas: “O mos pensando em inércia ou falta de ação. O ho-
curso deste mundo”, “o príncipe da potestade do mem está continuamente agindo, porém, buscan-
do seus próprios interesses, agindo sempre em
ar” e “as inclinações da carne”. Nesse texto Paulo
demonstra que para salvar os homens, Deus pre- conformidade com sua natureza pecaminosa, co-
metendo pecado e gostando do que faz. Ele busca
cisa dar vida a eles e não apenas oferecer o Evan-
gelho. Se não houver a implantação de vida, pre- seu próprio “bem-estar”, embora, jamais consiga
gar o Evangelho é o mesmo que falar às paredes. isso, pois isso não é possível longe daquele que
o criou. Nessa busca por seu próprio bem-estar
A Escritura tem outras expressões que nos aju- ele é completamente cego para as coisas de Deus
dam a entender o estado de morte espiritual. Je- (2Co 4.4).
remias 17.9 diz: “Enganoso é o coração, mais do
que todas as coisas, e desesperadamente corrup-
to; quem o conhecerá?” O coração na Escritura se 12 R. C. McGregor Wright. A Soberania Banida, p.
114.
36

Então o que é a regeneração? É o ato divino pelo pranto por parte dos parentes e amigos. Jesus se
qual ele implanta vida na pessoa que estava espi- aproximou do túmulo de Lázaro e gritou: “Láza-
ritualmente morta. Hodge define: “Por um con- ro, vem para fora!”, e no mesmo instante, o morto
senso quase universal, a palavra regeneração é não estava mais morto e saiu do túmulo. João re-
empregada hoje para designar não toda a obra lata: “Saiu aquele que estivera morto, tendo os pés
de santificação, nem as primeiras etapas daquela e as mãos ligados com ataduras e o rosto envolto
obra incluída na conversão, mas a mudança ins- num lenço. Então, lhes ordenou Jesus: Desatai-o
tantânea da morte espiritual para a vida espiritual. e deixai-o ir” (Jo 11.44). Aquele homem instanta-
Portanto, regeneração é uma ressurreição espi- neamente voltou à vida. Num instante, pelo po-
ritual: o começo de uma nova vida”.13 A expres- der da Palavra de Deus, ele passou do estado de
são “ressurreição espiritual” é muito própria para morte para um estado de vida. Uma coisa é clara
descrever a regeneração.14 Por um ato exclusivo em relação à regeneração: “Não existe um estado
de Deus, o morto passa a viver espiritualmente. A intermediário entre a vida e a morte. Se a rege-
regeneração é o ato divino de nos dar vida através neração é a vivificação dos que estavam mortos,
de nossa união com Cristo, por causa de seu amor então ela tem de ser tão instantânea quanto a vi-
e de sua misericórdia. vificação de Lázaro”16.

Algo que nos chama a atenção quando lemos o A regeneração é quando Deus coloca a vida espi-
texto de Efésios é que a expressão “nos deu vida” ritual em nós, e assim podemos ouvir o chamado
é uma ação simples realizada no passado (Ef 2.1). e segui-lo. Jesus explicou como isso funciona em
Isto significa que é algo que acontece instanta- outro texto: “Em verdade, em verdade vos digo:
neamente. A regeneração não é um processo, é quem ouve a minha palavra e crê naquele que me
um ato instantâneo de Deus de dar vida a alguém enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas
que estava morto. Os frutos da conversão po- passou da morte para a vida. Em verdade, em ver-
dem aparecer aos poucos, mas a regeneração não dade vos digo que vem a hora e já chegou, em que
acontece aos poucos, ela acontece de uma vez por os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os
todas. Assim como alguém não pode estar “meio que a ouvirem viverão” (Jo 5.24-25). Só Jesus tem
vivo”, também não pode estar “meio regenerado”. essa voz que consegue penetrar nos ouvidos de
Ou está morto ou está vivo, ou está regenerado um morto e fazê-lo viver.
ou não está, “assim como na natureza, na Graça
não ocorre uma transição gradual da morte para
a vida, ou das trevas para a luz”.15 A regeneração é
um ato instantâneo pelo qual Deus concede vida A REGENERAÇÃO E A PALAVRA
ao que estava morto, isso significa que naquele
exato instante ele não está mais morto. O caso de Como acontece a regeneração? Em Atos há um
Lázaro pode ser útil para ilustrarmos essa ideia. registro de um caso que nos ajuda a entender esse
Lázaro estava morto há quatro dias. Seu sepul- assunto. Na cidade de Filipos, Paulo encontrou
tamento incluía uma pedra, a mortalha e muito um local de oração para pregar a Palavra. Lucas
relata: “No sábado, saímos da cidade para junto
do rio, onde nos pareceu haver um lugar de ora-
13 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 1030. ção; e, assentando-nos, falamos às mulheres que
14 Ver João Calvino. Efésios, p. 51, Ef 2.1
15 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 457 16 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 996.
37

para ali tinham concorrido. Certa mulher, cha- que primícias das suas criaturas”. A expressão
mada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora de “gerar” do texto pode ser entendida como todo
púrpura, temente a Deus, nos escutava; o Senhor o processo inicial da salvação, e fica evidente que
lhe abriu o coração para atender às coisas que Deus usa a Palavra da Verdade para realizar isso.
Paulo dizia” (At 16.13-14). Enquanto Lídia ou- Pedro tem uma expressão semelhante: “Pois fos-
via a pregação de Paulo, Deus lhe abriu o coração tes regenerados não de semente corruptível, mas
para atender, ou seja, aceitar as coisas que Paulo de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a
dizia. Isso é regeneração, e geralmente, é assim qual vive e é permanente” (1Pe 1.23). A regenera-
que ela acontece. Enquanto alguém está ouvindo ção acontece “mediante”, ou seja, através da Pala-
a Palavra de Deus, Deus faz sua voz penetrar nos vra de Deus. Não significa que Deus “precise” da
ouvidos mortos e implanta a vida espiritual. En- Palavra para implantar vida nas pessoas, mas que,
tão, surge a fé, pois a fé é um resultado da regene- ordinariamente, é assim que Deus age: enquanto
ração. É preciso que se entenda que a fé é fruto da a Palavra é pregada, o Espírito Santo age na vida
regeneração, não a sua causa.17 Porque o Senhor do ouvinte, fazendo com que ele entenda a Pa-
abriu o coração de Lídia, ela se converteu, e a obra lavra e, então, implanta o princípio de vida que
do Senhor prosperou em Filipos. Isso nos fala da se desenvolverá até se expressar em conversão e
imensa importância da pregação da Palavra, pois mudança de atitude.
é geralmente no momento da pregação da Palavra
que Deus implanta a vida espiritual nas pessoas A importância da pregação, portanto, é muito
(Rm 10.17). grande. Embora alguns questionem sobre o por-
quê de pregar para pessoas que não podem ouvir,
Contudo, é comum duas pessoas ouvirem a mes- respondemos que elas não podem ouvir enquan-
ma mensagem, e apenas uma se converter. A ex- to Deus não lhes abrir os ouvidos. Quando Jesus
plicação convincente para esse episódio só pode curou um paralítico de nascença, lhe deu uma or-
estar em Deus. E nesse sentido, não está nem dem para que se levantasse, tomasse o seu leito
mesmo na Palavra. Já dissemos que, geralmente, e fosse para casa (Mt 9.6). Como aquele homem
Deus regenera alguém enquanto essa pessoa está poderia fazer isso se era paralítico? Justamente
ouvindo a Palavra, contudo não podemos dizer aquela ordem de Jesus era a própria cura. As pa-
que a Palavra pregada seja, estritamente falan- lavras de Jesus carregavam o poder de cura para
do, o instrumento da regeneração. Deus opera a o paralítico. Ouvindo aquelas palavras ele estava
regeneração sem o uso de meios, ela é um “ato instantaneamente recebendo o poder para se le-
da onipotência imediata de Deus”.18 Para efetuar vantar, carregar o leito e ir para casa. Da mesma
a implantação da vida, o Espírito não precisa de forma, conjuntamente à pregação, Deus pode
nada, mas a Palavra geralmente está presente no conceder ao pecador morto a capacidade de viver
momento da regeneração. Até porque, a conver- e deixar seus pecados para trás. Ele concede ao
são, que logicamente segue a regeneração, preci- surdo a capacidade de ouvir falando com ele.
sará da Palavra para que haja fé e arrependimento.
Nesse sentido Tiago fala da regeneração pela Pa- Regeneração também pode ser sinônima de Novo
lavra: “Pois, segundo o seu querer, ele nos gerou Nascimento. Em João 3 está relatado um encon-
pela palavra da verdade, para que fôssemos como tro de Jesus com um importan te líder religioso
da nação judaica chamado Nicodemos. Jesus pre-
17 R. C. Sproul. Sola Gratia, p. 20. gou para Nicodemos: “Em verdade, em verdade
18 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 1007.
38

te digo que, se alguém não nascer de novo, não Regeneração não deve ser confundida com con-
pode ver o reino de Deus” (Jo 3.3). O papel do versão, embora uma não aconteça sem a outra.
ser humano nesse nascimento é totalmente pas- A regeneração é o que possibilita a conversão. A
sivo. Deduzimos isso, tanto porque a expressão conversão é a manifestação visível (em arrepen-
“nascer” no texto é passiva, como porque todo dimento e fé) de que a regeneração aconteceu.
nascimento é passivo. Ninguém pede para nas- Quando dizemos que uma pessoa convertida é
cer. O nascimento que Jesus está se referindo é do uma pessoa regenerada, o que se tem em mente, é
alto, ou seja, do céu, ao contrário do nascimento que para se converter, ela precisa ser regenerada.
natural que é da terra. Mas, mesmo o nascimen-
to terreno é passivo. Os pais, às vezes, decidem A regeneração é um processo sobrenatural de
a hora de alguém nascer, mas quem nasceu não Deus, da qual o homem não consegue participar.
tem qualquer participação na escolha. Assim Ele não consegue produzir e, nem mesmo, veri-
como os pais geram os filhos, algo precisa gerar ficar. McGregor Wright diz que “a regeneração
o crente. Jesus indica quem tem essa responsabi- é um ato instantâneo, acontecendo de um modo
lidade: “Em verdade, em verdade te digo: quem bem profundo, na região subconsciente do mais
não nascer da água e do Espírito não pode entrar íntimo do coração e é, portanto, não-experien-
no reino de Deus” (Jo 3.5). A água pode ser uma cial”.19 De fato, nunca poderemos ter certeza do
referência ao batismo, à pregação ou simplesmen- momento em que ela acontece. Conseguimos ver
te ao sentido de purificação do Antigo Testamen- com alguma precisão quando a conversão ocorre,
to. O Espírito é o agente da regeneração, ele é o pois a conversão se revela em arrependimento e
autor divino do nascimento espiritual. Portanto, fé, e às vezes produz efeitos emocionais. Mas, a
o Novo Nascimento é uma obra divina realizada regeneração é uma experiência impossível de ser
pelo Espírito Santo no interior do crente. Nesse sentida ou percebida. Só saberemos dela depois
sentido de concepção espiritual, o Novo Nasci- que ela já tiver acontecido, pelos frutos que so-
mento é sinônimo de Regeneração. Embora no brevirão. Os frutos se demonstrarão em todo o
sentido de nascer como dar à luz, seja mais sinô- processo da salvação.
nimo de conversão, como veremos depois.
Quando entendemos nosso estado decaído e a si-
tuação de morte espiritual, na qual naturalmente
todos estávamos, podemos perceber a obra ma-
A PRIORIDADE DA REGENERAÇÃO ravilhosa que é a regeneração em nós. Quando
lembramos que muitos de nós fomos relutantes
Devemos entender a regeneração como a pri- em aquiescer ao Evangelho, que fomos rebeldes
meira coisa que acontece no processo em que e quem sabe até perseguidores, vemos quanta
se evidencia a salvação de uma pessoa. Vimos misericórdia Deus demonstrou em abrir nossos
que a origem do processo está na eternidade, na olhos, curar nossa cegueira espiritual e nos fazer
eleição. A regeneração acontece no momento do levantar de nossa morte para uma vida junto dele.
chamado, quando Deus resolve cumprir, na vida Devemos louvar a Deus pelo fato de nos ter dado
de alguém, seu propósito estabelecido na eleição. vida, estando nós mortos espiritualmente. Se ele
Nesse momento, geralmente associado ao ouvir não fizesse isso, estaríamos mortos para sempre.
da pregação da Palavra, Deus implanta um prin-
cípio de vida, que se desenvolverá capacitando 19 R. C. McGregor Wright. A Soberania Banida, p.
a pessoa a responder com arrependimento e fé. 145.
39

A CONVERSÃO

INTRODUÇÃO transformação completa, é abandonar comple-


tamente a antiga vida para começar uma nova.
Quando se fala em conversão nos dias de hoje, Enfatizou que isso somente era possível através
muitos imaginam o ato de “mudar de religião”. da atuação do Espírito. Acima de tudo, demons-
Há uma relutância natural em algumas pessoas trou o significado da conversão que é um passar
quanto a isso. Por outro lado, muitos mudam fa- da morte para a vida, demonstrando arrependi-
cilmente de religião, mas não mudam de vida. É mento e fé. A experiência do Novo Nascimento
aquela velha história que diz que não adianta tirar pode ser aplicada, tanto à regeneração, quanto à
as pessoas de dentro da favela se não tirar a fa- conversão. Numa ilustração, poderíamos dizer
vela de dentro das pessoas. Diz-se que certa vez, que a regeneração é o momento da concepção, e a
um famoso pregador inglês do século 19, chama- conversão é o momento de dar à luz. Nesse texto
do Charles Spurgeon, foi chamado a atenção por podemos ver o que é a conversão na perspectiva
um homem bêbado que estava caído na sarjeta. de Jesus.
O bêbado disse: “Spurgeon, eu sou um dos seus
convertidos”. Meio desconcertado, o pregador Agora trataremos com o que segue a vocação efi-
respondeu: “Realmente você é um dos meus con- caz e a regeneração, que é justamente a conver-
vertidos, pois se você fosse de Jesus, não estaria aí são. É importante ter em mente a distinção teo-
nessa sarjeta”. lógica que existe entre regeneração e conversão.
Regeneração é o que acontece dentro da pessoa,
Em João 3.1-15 há um diálogo entre Jesus e um é o ato divino de dar vida, ou seja, de despertar
importante líder judeu chamado Nicodemos. a pessoa para a realidade espiritual. Conversão
Esse homem procurou Jesus com o intuito de co- deve ser vista como uma consequência da rege-
nhecer melhor o Mestre. Jesus o confrontou, de- neração, pois é o resultado esperado da regenera-
monstrando que, apesar de ser Mestre em Israel, ção. Se a regeneração é uma experiência que não
precisava passar por uma verdadeira experiência pode ser sentida, a conversão, ao contrário, tende
de conversão. Jesus falou que a conversão é uma a ser uma experiência visível. A regeneração é
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algo totalmente independente da vontade do ho- que ele está dando uma “bola fora”, mas que está
mem, mas a conversão é realizada pelo homem, resistindo à ideia de ter que desconsiderar sua
é a resposta humana ao estímulo divino. A con- vida toda até aquele momento. Está se desculpan-
versão é a vontade do homem que se inclina para do, pois acha muito tarde, mas no fundo, acha que
Deus em arrependimento e fé. não precisa e não deve mudar. Isso representa um
apego ao conformismo. Nicodemos acha que já
viveu e experimentou muitas coisas em sua vida e
que todas as experiências pelas quais passou, todo
TRANSFORMAÇÃO COMPLETA o seu aprendizado, todo o seu status, não são coi-
sas que se jogue fora assim tão facilmente. Além
Nicodemos começou a conversa com uma troca disso, ele já foi muito longe em sua trajetória de
de gentilezas. Suas palavras são favoráveis a Je- Mestre em Israel, não está disposto a abandonar
sus, num reconhecimento de sua autoridade (Jo tudo e começar do zero.
3.1-2). Conhecemos bem a história de Nicode-
mos, sabemos de sua importante posição religio- Nascer de novo ou conversão, como o próprio
sa e social em Israel. João nos diz que ele era um nome indica, significa morrer e renascer. É aban-
Mestre, um entendido da lei, mas o que às vezes donar a velha vida e iniciar uma nova. Significa
não percebemos, é que esse encontro com Jesus deixar tudo para trás, especialmente aquilo que,
mudou completamente a vida daquele homem. carnalmente, mais valorizamos. Significa que a
Jesus não se deixou levar pela “conversa mansa” vida se redireciona completamente, pois tudo o
de Nicodemos. Ele parece ter pressa em falar so- que era centralizado no homem, agora passa a ser
bre algo que considera mais importante, do que centralizado em Jesus. Para trás ficam os méritos
uma troca de gentilezas. Jesus tem algo de supre- humanos, a autossuficiência humana e todo tipo
ma importância para a vida de Nicodemos, pois de coisas das quais normalmente nos orgulha-
está interessado na salvação daquele homem. Por mos. Renascer é começar uma nova e diferente
isso, sua afirmação corta o assunto anterior e in- vida.
sere um novo: “Em verdade, em verdade te digo
que, se alguém não nascer de novo, não pode ver
o reino de Deus” (Jo 3.3). Jesus disse que para ver
o Reino de Deus, é necessária uma transformação GENUÍNA EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL
completa. Geralmente nos inclinamos a acreditar
que Nicodemos não tenha entendido as palavras Diante da questão levantada por Nicodemos, so-
de Jesus. É possível que ele não tenha entendido, bre a dificuldade de realizar o que Jesus exigia, o
porém, talvez não devêssemos subestimar Nico- Senhor argumentou que aquela experiência não
demos. Ele era um mestre em Israel, um homem dependeria apenas da vontade de Nicodemos.
acostumado ao uso de metáforas para ilustrar um Havia alguns elementos ainda mais importan-
ponto importante. A maneira como ele responde tes. Jesus disse: “Em verdade, em verdade te digo:
a Jesus, se utilizando igualmente de uma metá- quem não nascer da água e do Espírito não pode
fora, nos indica que estamos no caminho certo. entrar no reino de Deus”. A referência à água e ao
Sua pergunta é retórica: “Como pode um homem Espírito provavelmente sejam figuras do batismo
nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao de João (com água) e do batismo de Jesus (com
ventre materno e nascer segunda vez?” (Jo 3.4). Espírito). Acima de tudo o que prevalece é que o
Se olharmos as coisas por esta ótica, não diríamos Novo Nascimento é uma experiência possível so-
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mente por uma ação do Espírito. Não é o homem conversão. Ele disse: “O que é nascido da carne
quem nasce de novo por si mesmo, ele precisa ser é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito.
gerado pelo Espírito Santo. A conversão ou novo Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer
nascimento é uma genuína experiência espiritual. de novo. O vento sopra onde quer, ouves a sua
As pessoas hoje, como naquele tempo, estão ávi- voz, mas não sabes donde vem, nem para onde
das por experiências espirituais. Querem ver si- vai; assim é todo o que é nascido do Espírito” (Jo
nais, folhas brilhando, revelações, mas não têm 3.6-8). O que está contido nessas palavras é a ideia
tanta aspiração por uma vida realmente transfor- de uma transformação radical da própria essência
mada. Não têm muito desejo de levar uma vida da pessoa. Jesus está falando aqui de coisas que,
santificada, mas desejam muito se dar bem na de certa forma, comprovam a conversão, pois ela
vida. A verdadeira conversão, na perspectiva de precisa necessariamente assumir essa mudança
Jesus, é a experiência mais espiritual que existe. É radical. O nascido da carne é carne, ou seja, sua
uma intervenção direta do poder de Deus sobre a dimensão de vida é a comum de todos os homens.
vida das pessoas que as capacita a abandonar a ve- A aspiração máxima de sua vida é apenas a vida
lha vida. É algo que produz uma real e duradoura da carne. Ele nasceu na carne, vive na carne e
mudança, não só de atitudes, mas de caráter. morre na carne, pois esse é o seu máximo, e não
pode ir além disso. Esse mundo é tudo o que lhe
Jesus falou que o Novo Nascimento é um nasci- resta. Mas, o que é nascido do Espírito é espírito.
mento do Espírito. O Espírito esteve ativo desde Ele não tem mais as características inerentes da
a criação do mundo. No início ele pairava sobre carne, pois recebeu uma nova essência, a espiri-
as águas, e possibilitou o surgimento da vida (Gn tual. Por consequência tem uma nova expectativa
1.1-2). Também foi esse Espírito que envolveu e uma nova existência. O que impulsiona e motiva
Maria com sua sombra, fazendo com que ela con- sua vida não são mais as coisas da carne, sua vida
cebesse o menino Jesus (Lc 1.35). Isso nos ajuda a agora é impulsionada pelo Espírito e pode ser
perceber que, desde o início, a função do Espírito cheia de novidade, frescor e superação. Portanto,
foi fazer surgir a vida. Assim, ele é o que dá vida a mudança de essência que acontece na vida de
ao convertido que estava morto em delitos e peca- um verdadeiro convertido é algo impressionan-
dos (Ef 2.1). Ele o regenera e possibilita que venha te. Toda a sua vida se redireciona. Ele não pensa
a responder com arrependimento e fé. Portanto, mais do mesmo jeito, não age mais do mesmo jei-
o nascimento do Espírito é um ato de criação ou to, nem se quer sente do mesmo jeito. Sua mente,
talvez, seja melhor dizer, de recriação. A Bíblia seu coração e suas atitudes foram profundamen-
diz: “E, assim, se alguém está em Cristo, é nova te transformadas porque Deus irrompeu em sua
criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se vida. A vida divina foi implantada nele, a vida do
fizeram novas” (2Co 5.17). Este imenso poder do Espírito está em seu corpo e alma, de modo que
Espírito Santo que trouxe o mundo à existência, ele não é mais apenas carne.
que fez Jesus ser concebido no ventre da virgem,
é o que age na vida do homem para regenerá-lo,
a fim de convertê-lo. Não existe experiência mais
poderosa do que essa. A conversão é, portanto,
a mais genuína experiência espiritual que existe. ARREPENDIMENTO VERDADEIRO

Jesus tinha mais coisas ainda para falar sobre a Jesus tinha mais uma figura para usar, a fim de
ilustrar o que ele queria dizer por conversão ou
42

novo nascimento. Segundo Jesus, conversão é para sempre. Será que a imagem da serpente de
passar pela experiência da Serpente de Bronze. bronze levantada sobre a haste passou pela mente
Ele disse: “E do modo por que Moisés levantou a de Nicodemos quando, posteriormente, viu o Se-
serpente no deserto, assim importa que o Filho do nhor levantado na cruz? É muito provável.
Homem seja levantado, para que todo o que nele
crê tenha a vida eterna” (Jo 3.14-15). Quando Je- Nascer de novo implica, portanto, primeiramen-
sus falou aquelas palavras, Nicodemos certamen- te em arrependimento. Nicodemos precisava se
te se lembrou da história de Moisés e da serpente colocar no lugar daqueles pecadores que foram
de Bronze. A história está contada no Livro de picados pelas serpentes abrasadoras e se reconhe-
Números (21.4-9). A Escritura diz que depois que cer como um pecador que necessita da graça de
o povo saiu do Egito e andou algum tempo no de- Deus. Aquelas pessoas somente foram curadas
serto, começou a se sentir impaciente e a murmu- quando se arrependeram de sua atitude errada e
rar contra Deus. Eles estavam cansados do maná se voltaram para Deus. O arrependimento é um
e da rotina dura do deserto. Estavam ávidos por dos temas mais importantes e frequentes do Novo
novidades e, inclusive, cogitavam a possibilidade Testamento. João Batista e Jesus começaram seus
de voltar para o Egito. A murmuração do povo ministérios conclamando ao povo que se arre-
desagradou a Deus que mandou serpentes abra- pendesse (Mt 3.2; 4.17).
sadoras. O veneno mortal das serpentes começou
a dizimar o povo. Naquele instante o povo se arre- O arrependimento não é algo essencialmente ne-
pendeu e clamou por socorro. Moisés intercedeu, gativo, como em geral se pensa. No arrependi-
e Deus mandou construir a serpente de bronze, mento verdadeiro está tanto a tristeza pelo peca-
como uma espécie de antídoto contra as picadas. do quando a esperança em relação ao futuro. Para
Assim, quando um israelita picado por uma ser- exemplificar isso, basta que pensemos em dois
pente, olhava para a de bronze, ficava curado. casos bíblicos: O caso de Pedro e o caso de Judas.
Ambos pecaram e traíram o Senhor Jesus. Judas
Jesus queria dizer ao ilustre mestre Nicodemos entregou o Senhor por 30 moedas de prata e Pe-
que ele tinha que entender sua situação deses- dro o negou três vezes. Se pensarmos no ensino
peradora por causa do pecado. Ele não era em bíblico de que, a quem muito é dado muito será
nada diferente dos israelitas daquele episódio. exigido (Lc 12.48; Tg 3.1), poderíamos imaginar
Ele, como todos os demais homens, também ti- que a transgressão de Pedro foi até pior que a de
nha em seu sangue o veneno mortal do pecado. Judas. Mas, vemos uma diferença substancial na
Ele precisava sentir o desespero de morte que é o reação desses dois homens após o ato cometido.
requisito fundamental para a salvação. Em con- De Pedro, a Escritura diz que “chorou amarga-
trapartida, o levantamento do Filho do Homem mente” (Mt 26.75), porém permaneceu junto com
é a solução providencial de Deus, pois basta um os outros discípulos e foi o primeiro a se dirigir ao
olhar de fé e a cura acontece. Jesus crucificado é túmulo, quando havia a suspeita da ressurreição
a cura para as chagas do pecado, mas é preciso o (Lc 24.11-12). Algum tempo depois foi restaura-
reconhecimento desse estado desesperador, para do pelo Senhor (Jo 21.15-17). A reação de Judas
que alguém possa desfrutar do antídoto divino. foi bem diferente, embora ele também tenha sen-
Se Nicodemos continuasse pensando que era tido algum pesar pelo que cometeu, Mateus diz:
muito tarde para mudar de vida, se pensasse que “Então, Judas, o que o traiu, vendo que Jesus fora
era bom demais para recomeçar, estaria perdido condenado, tocado de remorso, devolveu as trinta
43

moedas de prata aos principais sacerdotes e aos esses três elementos devem ser encontrados no
anciãos, dizendo: Pequei, traindo sangue inocen- arrependimento: os aspectos intelectual, emo-
te. Eles, porém, responderam: Que nos importa? cional e volitivo. O aspecto intelectual envolve o
Isso é contigo. Então, Judas, atirando para o san- conhecimento da santidade e da justiça de Deus e
tuário as moedas de prata, retirou-se e foi enfor- das próprias faltas, conduzindo ao entendimento
car-se” (Mt 27.35). Ele sentiu remorso pelo que de que, sem o arrependimento, não se pode sub-
fez, que é uma sensação de pesar pelo ato come- sistir na presença de Deus. O aspecto emocional
tido. representa a tristeza sincera por causa do pecado
em si, não somente pelas consequências dele, mas
Ele teve consciência de que pecou e até mesmo pelo que ele representa diante de Deus, como algo
admitiu isso. Até fez algo para consertar o ocorri- ofensivo a Deus. O aspecto volitivo tem a ver com
do, pois devolveu o dinheiro, mas o fato é que não a devida reação que se espera da pessoa, que é o
tinha esperança de perdão, não tinha esperança afastamento do pecado, numa mudança interior
em relação ao futuro, e por isso, enforcou-se. O e exterior.
arrependimento de Pedro é verdadeiro, porque
tem esperança de perdão; o de Judas é falso, pois
é desesperado. Isso se encaixa com as palavras de
Bavinck: FÉ SALVADORA

A verdadeira conversão e arrependimento não consistem O outro aspecto fundamental da conversão ou


de tal remorso que se desgosta com as consequências do novo nascimento é a fé. Os israelitas que haviam
pecado, mas consistem de um quebrantamento interno sido picados pelas serpentes precisavam olhar
do coração (Sl 51.19; At 2.37), de uma tristeza causada para a serpente de Bronze para serem curados.
pelo pecado em si mesmo, por causa de seu conflito com Aquela era uma atitude de fé, pois eles precisa-
a vontade de Deus e pela provocação da ira de Deus por vam acreditar que olhando para a serpente de
ele causada, e de um sincero arrependimento e ódio ao bronze seriam curados, ou seja, eles precisavam
pecado.1 acreditar na provisão de Deus. Ao mesmo tempo,
a situação lhes dava consciência de que nenhu-
Quem quiser nascer de novo, precisa experimen- ma outra solução era possível, exceto a que Deus
tar o verdadeiro arrependimento — que realmen- estava providenciando. Jesus falou sobre essa ne-
te sofre-se pelo pecado cometido — mas tem es- cessidade de crer na provisão de Deus, quando
perança de restauração. Isso pôde ser visto na vida continuou: “Porque Deus amou ao mundo de tal
dos israelitas que pecaram, eles receberam a pu- maneira que deu o seu Filho unigênito, para que
nição, mas buscaram em Moisés alguma solução todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida
para o pecado deles. O arrependimento, segundo eterna” (Jo 3.16). Deus providenciou uma salva-
a definição de Hoekema é o “retorno conscien- ção para a humanidade, mas a humanidade não
te da pessoa regenerada, para longe do pecado será salva enquanto não crer nessa provisão. Por
e para perto de Deus, numa completa mudança essa razão, a fé é absolutamente necessária para a
de vida, manifestando-se numa nova maneira de
pensamento, sentimento e vontade”.2 Geralmente
vino dizia: “Arrependimento significa que nos retiramos de
nós mesmos e nos convertemos a Deus, e, tendo abandona-
1 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 479.
do a nossa primeira forma de pensar e de querer, assumi-
2 Antony Hoekema. Salvos Pela Graça, p. 133. Cal- mos uma nova.” (João Calvino. As Institutas, (1541), II.5).
44

salvação (Rm 3.28; Hb 11.6; Jo 6.29; Rm 10.9; Ef da fé. O terceiro tipo é a fé salvífica ou salvadora.
2.8). De certo modo essa é a única que pode realmente
ser chamada de “fé”. Hoekema define fé salvado-
Segundo a definição de Hodge, há três tipos de fé: ra como “uma resposta ao chamado de Deus pela
fé morta ou especulativa, fé temporal e fé salvífi- aceitação de Cristo pela pessoa toda – isto é, com
ca.3 Fé morta é uma expressão de Tiago que diz “a convicção firme da verdade do Evangelho e com
fé sem obras é morta” (Tg 2.26). Devemos enten- dependência confiante em Deus, em Cristo, para
der esse tipo de fé como uma certeza sobre fatos a salvação, junto com compromisso autêntico
da salvação, mas que não produz real mudança com Cristo e seu serviço”.6 É o ato de olhar para
de vida. É uma fé que consiste em um mero as- Jesus e saber, lá no fundo do ser que ele é o único
sentimento intelectual oriundo de uma tradição e suficiente salvador e se entregar a ele para viver
familiar, ou mesmo de um convencimento por nele.
causa das evidências divinas da Bíblia, mas como
diz Hodge, é uma fé “perfeitamente compatível Geralmente se pensa que a fé verdadeira envolve
com uma vida mundana ou perversa”.4 Alguém três conceitos: conhecimento, aceitação e con-
que tem esse tipo de fé nunca sente a necessidade fiança. Não existe fé verdadeira sem conhecimen-
de mudar de vida. Tanto é assim que Tiago diz to, pois para que alguém creia em Jesus, precisa
que essa fé pode ser encontrada até nos demô- ter conhecimento de Jesus. Pregar o Evangelho é
nios, pois eles acreditam na existência de Deus, e anunciar fatos com respeito à vida, morte e res-
até tremem por isso, mas não mudam de condi- surreição de Jesus, ou seja, é dar conhecimento às
ção (Tg 2.19). Por fé temporal, devemos entender pessoas sobre quem é Jesus e o que ele realizou.
a impressão que o Evangelho causa em algumas As pessoas precisam ter conhecimento disso para
pessoas, de modo a deixa-las interessadas por al- que possam verdadeiramente crer (Rm 10.13-17).
gum tempo, mas que, como Jesus disse na pará- Inclusive existe a necessidade de um conhecimen-
bola, “não têm raiz em si mesmo, sendo, antes, to mínimo para que alguém possa crer e ser salvo.
de pouca duração” (Mt 13.21). Calvino entendia O mínimo que alguém deve conhecer é sua situa-
que essa fé não poderia ser verdadeira, embora ção pecaminosa, sua incapacidade de se salvar
fosse chamada de fé pela Escritura, mas era fruto por si mesmo, o fato de que Cristo morreu pelos
do próprio coração do homem. Ele disse: “Tem o pecados, e a certeza de que, crendo nele pode ser
coração do homem tantos resquícios de vaidade, perdoado e salvo. Como diz Hodge, com isso não
tantos esconderijos de mentira, está coberto de se pretende dizer que os mistérios, ou verdades
tão vã hipocrisia, que muitas vezes se engana a si que não se podem compreender, não possam ser
mesmo”.5 Essa fé não passa de um auto-conven- objetos apropriados da fé, o que está em questão
cimento e, ainda que produza algumas transfor- não é o entendimento completo de algo, mas o
mações na vida da pessoa, não são transforma- conhecimento desse algo, pois “só podemos crer
ções duradouras. Porém, a princípio, uma pessoa no que conhecemos, ou seja, no que inteligente-
assim pode parecer realmente convertida, mas a mente aprendemos”.7 O aspecto de aceitar refere-
longo prazo, não aparecerão os frutos duradouros -se à necessidade de concordar com os ensinos da
Escritura a respeito do pecado e da forma como
Deus decidiu salvar o homem, concordando que
3 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 1077.
4 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 1077. 6 Antony Hoekema. Salvos Pela Graça, p. 147.
5 João Calvino. Institutas, III.2.10. 7 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 1089.
45

esse é o único meio de salvação e aceitando para fé ou na natureza da fé, mas no objeto da fé”.10
si. O aspecto da confiança envolve a certeza de
que, a partir do momento que se aceitou a Cristo,
a salvação está garantida. Significa descansar na
obra consumada de Cristo e aceitar o que ele fez CONCLUSÃO
como tendo sido feito por nós, e absolutamente
suficiente para nossa salvação. Portanto, o significado da conversão segundo Je-
sus é uma transformação completa realizada pelo
Como o arrependimento, a fé igualmente é obra Espírito, que muda a essência das pessoas, mani-
de Deus e obra do homem. É obra de Deus por- festando vida onde havia morte, produzindo ver-
que ele é o doador da fé (Ef 2.8; Fp 1.29). Ele a dadeiro arrependimento e verdadeira fé.11 Quem
concede aos eleitos (At 13.48), que a recebem passa por essa experiência dá uma verdadeira
pela operação do Espírito Santo (1Co 12.3). Jesus guinada na existência. Não simplesmente o fato
é chamado de “o autor” e “o consumador da fé” de mudar de religião, ou seguir preceitos ensina-
(Hb 12.2). Ao mesmo tempo é tarefa do homem dos pelos homens, mas é ser transformado pelo
porque é o homem quem deve ter fé. Deus exige Espírito, para uma nova e superior vida. Por isso,
isso do homem (Mc 1.15; Jo 14.1). Porém, deve a conversão é, sem sombra de dúvida, a experiên-
ser entendido que a fé não é realmente uma obra, cia mais espetacular que pode existir. Quanto a
ela é o “primeiro resultado identificável” da rege- Nicodemos, embora no início tenha resistido às
neração,8 ou como diz Hodge, “o primeiro exer- palavras de Jesus, sabemos que o seguiu depois
cício consciente da alma renovada é a fé; assim (Jo 19.39).
como o primeiro exercício consciente de um cego
de nascença, cujos olhos tenham sido abertos, é Cabe aqui uma palavra final para muitos que
ver”.9 talvez se sintam como Nicodemos. Talvez já se-
jam mestres da doutrina, mas, percebem que são
Ainda deve ser entendido que, o que salva real- inexperientes em relação à graça. Ainda não têm
mente não é a fé, mas Cristo. A fé é simplesmente experimentado essa vida como algo que é mais
o instrumento para receber o benefício de Cristo. do que a carne. O que Jesus falou para Nicode-
Não era o “olhar” dos israelitas para a serpente de mos vale também neste caso. É preciso desistir
bronze que salvava, mas o poder que Deus loca-
lizou naquela serpente de bronze. Ela era a provi- 10 Citado por Kin Riddlebarger. “O que é Fé?” Em
Cristo Senhor. Ed. Michael Horton, p. 99. Veja também a
são salvadora de Deus para o povo, assim como
exposição exegética de Joel R. Beeke no artigo “A Relação
Cristo é a provisão salvadora para nós. Como diz da Fé com a Justificação” a análise da expressão “pela fé”. Ele
Warfield, “o poder salvador da fé reside, então, argumenta que exegeticamente jamais poderia se localizar
não em si mesma, mas no Poderoso Salvador em na fé o poder de salvação, mas no objeto da fé, que é Cristo.
Em Justificação Pela Fé Somente, p. 51. Nessa mesma obra,
quem ela repousa... Não é estritamente falando, John Gerstner no artigo “A Natureza da Fé Justificadora”
nem mesmo a fé em Cristo que salva, mas Cristo diz: “Assim, a Bíblia está nos ensinando que a fé que salva
que salva por meio da fé. O poder salvador reside não é uma obra. Ela não tem valor espiritual em si. Mais
exclusivamente, não no ato da fé ou na atitude da precisamente, a verdadeira igreja cristã não ensina justifica-
ção pela fé. Ela ensina a justificação por Cristo”. (p. 87-88).
11 Bavinck diz: “Assim como, pelo lado da mente, a fé
8 R. C. McGregor Wright. A Soberania Banida, p.
é o fruto da regeneração, assim também, pelo lado da von-
144.
tade, o arrependimento é a expressão da nova vida”. Her-
9 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 1057. mann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 475.
46

de tudo. Enquanto nos apegarmos às nossas con-


quistas, nada teremos de Deus. É preciso cair aos
pés do Salvador e clamar por misericórdia, como
os israelitas picados pelas serpentes fizeram. É
preciso levantar os olhos com fé, e contemplar o
Salvador crucificado, que é o antídoto para todas
as nossas chagas.
47

JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ

INTRODUÇÃO cria que a justificação baseava-se na obra que o


Espírito Santo realizava dentro das pessoas, ca-
Lutero conta que um príncipe alemão chamado pacitando a viver uma vida piedosa que pudesse
Duque George, ao confortar seu agonizante filho ser aceita por Deus. Isso, de várias maneiras está
Duque John, falou-lhe sobre a doutrina da justifi- sendo enfatizado hoje novamente. As pessoas re-
cação. “Filho, você deve olhar somente para Cristo lutam em aceitar que Deus justifique uma pessoa
e para os méritos dele e esquecer completamente que continua pecadora. Nesse estudo veremos
as suas obras”. A esposa do Duque John, ao ouvir que só poderemos dizer que deixamos de pecar
isso, perguntou para o sogro: “Pai, porque essas se diminuirmos drasticamente, à luz dos fari-
verdades não são pregadas publicamente?” Ele seus, o conceito de pecado. Se o pecado é real-
respondeu “Porque elas só devem ser faladas para mente como a Bíblia o explica, então, será difícil
pessoas que estão morrendo, e não para aquelas nos vermos livres dele nessa vida. Mas, a grande
que estão bem”.1 O motivo: Confiança excessiva notícia do Evangelho é que, embora continue-
na graça pode ser uma atitude perigosa. Nos dias mos pecadores, em Cristo também somos justos
de hoje, muitas pessoas continuam tendo medo e podemos viver uma vida livre das pressões e da
de que, se os outros confiarem na graça de Deus, angustiante sensação de não cumprir a lei. Mas,
irão se desleixar em sua vida de fé e prática, mas novamente para surpresa de muitos, esse conceito
não nos leva a uma vida de libertinagem, ao con-
isso é um grande erro.
trário, de compromisso.
A doutrina da justificação pela fé somente anda
Ao contrário do que se pensa, na igreja medie-
meio esquecida no nosso evangelismo moderno,
val se ensinava que as pessoas seriam salvas pela
pois há uma grande ênfase no conceito medieval
graça, mas não uma graça que as tornava instan-
da justificação. Na Idade Média, a igreja católica
taneamente aceitáveis diante de Deus, e sim uma
1 Ver Michael Horton. As Doutrinas da Maravilho- graça que operava no interior das pessoas trans-
sa Graça, p. 153. formando-as para serem aceitáveis. Obviamente,
48

a Reforma Protestante não via as coisas dessa for- ficação como um ato da livre graça de Deus, por
ma. A grande questão da Reforma não foi “como meio do qual ele perdoa todos os nossos pecados
eu posso ser uma pessoa melhor?”, e sim “como e nos aceita como justos a seus olhos, com base
pode uma pessoa má como eu, ser aceita por um na justiça de Cristo a nós imputada e recebida
Deus justo e santo?” pela fé. No entendimento reformado, não sere-
mos aceitos por Deus porque, de alguma forma,
Romanos 3.21-28 é um dos textos que melhor ex- conseguiremos alcançar a santidade perfeita, mas
põem a doutrina da justificação pela fé. Aliás, o porque, embora continuemos pecadores, Deus
livro de Romanos é o livro que contém a melhor declarou-nos justos. Portanto, pela fé, somos
exposição desta doutrina em toda a bíblia. Até es- justos diante de Deus, ainda que continuemos
crever estas palavras, Paulo já havia declarado que pecadores. A graça não é um poder introduzido
Deus odeia o pecado e não o deixa sem punição em nós para nos ajudar a nos tornarmos bons, é
(Rm 1.18-32). Também deixou claro que todas as Deus nos aceitar como bons, embora ainda seja-
pessoas, com lei ou sem lei, quer judeus, quer es- mos maus. Como diz Hodge “Deus não declara
trangeiros pecam (Rm 2.1-3.8). De fato, para ele que o ímpio é santo; ele declara que, não obstante
“não há justo, nem sequer um” (Rm 3.10). Diante sua pecaminosidade e indignidade pessoal, ele é
disso, ficou claro que ninguém poderá ser justifi- aceito como justo com base no que Cristo fez por
cado diante de Deus pelo cumprimento da lei, em ele”.2 Estamos falando aqui de termos jurídicos,
primeiro lugar porque ninguém cumpre a lei, e ou seja, da maneira como uma pessoa é aceita
em segundo lugar, porque salvar ou justificar, não num tribunal, no caso, o tribunal de Deus, pois,
é a função da lei. A lei quer apenas apontar o pe- como diz Sproul, compreende o assunto do julga-
cado (Rm 3.19-20). Por isso a justiça de Deus, não mento diante do supremo tribunal de Deus.3
a justiça condenatória, mas a salvadora, se mani-
festou pela graça através da obra de Cristo, que Como já dissemos, a igreja romana também con-
justifica todos os pecadores que creem (Rm 3.21- cordava que a salvação era pela graça, entretanto
24). Dessa forma, Deus pode salvar os pecadores, esta era uma graça transformadora, ou seja, sua
tornando-se um justificador e, ainda assim, per- função era tornar as pessoas dignas do reino dos
manece justo (Rm 3.26). Deus não poderia justi- céus. A graça, segundo Roma, transforma injus-
ficar um pecador e continuar sendo justo à parte tos em justos, impuros em puros, desobedientes
da obra de Cristo, pois sem a obra de Cristo Deus em obedientes. Dependendo de como alguém
precisaria condenar o pecador. O que Deus fez se apropriava e fazia uso dessa graça, no enten-
foi condenar a Cristo, e assim pode absolver os dimento de Roma, poderia ser realmente aceito
pecadores e continuar sendo justo. O resultado é por Deus. Mas, a Reforma não podia aceitar isso,
que não sobram motivos para homem algum se pois mesmo em um bom dia, um cristão comum
orgulhar da salvação, pois não fomos nós quem a é também ruim, e comete muitas falhas. Apesar
conquistamos, antes a herdamos pela fé, indepen- disso, o cristão não precisa viver cada dia aterro-
dentemente das obras da lei (Rm 3.27-28). rizado esperando a condenação, pois ele foi de-
clarado justo por Deus e, por isso, vive cada dia
como se tivesse satisfeito todos os requerimentos

DECLARADOS JUSTOS 2 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 1115.


3 Ver R. C. Sproul. “A Natureza Forense da Justifica-
A Confissão de Fé de Westminster define justi- ção”. Em Justificação Pela Fé Somente, p. 27.
49

da lei de Deus. O conceito reformado de justi- porque são revestidos da Justiça de Cristo, pois
ficação recebe o nome de justificação forense, “Cristo nos dá sua justiça diante do tribunal de
que tem a ver com o ato declarativo de Deus em Deus”,8 e “assim nós podemos permanecer em
relação a nós. Sproul define da seguinte manei- Sua presença como se nós não tivéssemos pecado,
ra: “A visão reformada da justificação forense se como se nós tivéssemos alcançado a obediência
fundamenta no princípio de que, pela imputa- que Cristo alcançou para nós”.9
ção da justiça de Cristo, o pecador é agora feito
formalmente, mas não materialmente, justo aos Somos declarados justos, porém, ainda somos
olhos de Deus”.4 Somos justos e somos pecadores, pecadores. Pela falta de entendimento desse pon-
uma coisa “no papel”, outra na prática. Por impu- to, muitas igrejas contemporâneas se aproximam
tação, segundo Hodge, devemos entender o ato bastante da igreja medieval. Muitos crentes mo-
de “adscrever, contar a, pôr na conta de alguém”,5 dernos são ensinados que podem amar a Deus
ou seja, o crente é justo, mas ainda é pecador, perfeitamente e que podem ser justos nesse mun-
ou, como Lutero dizia: “Simultaneamente justo e do, assim como Cristo é justo. Como na igreja
pecador”. A igreja Romana desde o Concílio de medieval, a graça é novamente taxada como uma
Trento rejeita essa noção forense de justificação assistência do Espírito Santo, a fim de nos ajudar
como sendo uma “ficção legal”.6 Roma não conse- a viver a “vida cristã vitoriosa”, o que nos garanti-
gue aceitar que uma pessoa possa ser justa e peca- rá a salvação. É claro que esse ensino não é bíbli-
dora ao mesmo tempo. Para a igreja Romana, ou co e é uma volta ao catolicismo. Não precisamos
ela é justa ou é pecadora, mas é óbvio que Roma cumprir os requerimentos da lei para sermos sal-
mantém essa afirmação às custas do Evangelho vos, até porque, ninguém os conseguiria cumprir
revelado pela Palavra de Deus. Como diz Sproul plenamente. E se quiséssemos ser salvos pela lei
“o Evangelho da Bíblia se mantém ou cai median- teríamos que cumpri-la integralmente, pois Deus
te o conceito de imputação”.7 Afinal de contas, a não está disposto a nos aceitar com apenas parte
Bíblia é muito clara ao afirmar que Deus declara do cumprimento da lei. Nesse sentido não temos
o homem justo, embora ele continue pecador. A escolha, ou cumprimos toda a lei ou morremos
Escritura diz que “Abraão creu em Deus, e isso como culpados. Mas, há um outro caminho: a
lhe foi imputado para justiça” (Rm 4.3), e Paulo justiça de Cristo. Não alcançamos a salvação por-
continua: “Ora, ao que trabalha, o salário não é que a graça nos capacitou a cumprir a lei, somos
considerado como favor, e sim como dívida. Mas, salvos porque Deus decidiu nos salvar mediante
ao que não trabalha, porém crê naquele que justi- a morte de seu Filho, pois “todos pecaram e care-
fica o ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça” cem da glória de Deus, sendo justificados gratui-
(Rm 4.4-5). Claramente a justiça que Abraão, e tamente, por sua graça, mediante a redenção que
todos os crentes, recebem é uma justiça forense, há em Cristo Jesus” (Rm 3.23-24). Antes de con-
ou seja, declarativa. Eles são declarados justos tinuarmos a falar sobre justificação, precisamos
considerar mais um pouco sobre a Lei de Deus.
4 Ver R. C. Sproul. “A Natureza Forense da Justifica-
ção”. Em Justificação Pela Fé Somente, p. 33 O PAPEL DA LEI
5 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 1133.
6 Ver R. C. Sproul. “A Natureza Forense da Justifica-
ção”. Em Justificação Pela Fé Somente, p. 37. 8 Ver R. C. Sproul. “A Natureza Forense da Justifica-
ção”. Em Justificação Pela Fé Somente, p. 38.
7 Ver R. C. Sproul. “A Natureza Forense da Justifica-
ção”. Em Justificação Pela Fé Somente, p. 37. 9 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 500.
50

Uma das grandes dúvidas dos crentes hoje é: Para Entretanto, o grande problema que o Novo Testa-
que serve a lei? Uma vez que fomos justificados mento faz questão de combater é a noção de que
pela graça de Cristo mediante a fé (Rm 3.21), ha- a lei salva. Para o Novo Testamento Cristo salva,
verá qualquer necessidade ainda de obedecê-la? e somente ele, por isso Paulo diz: “Ora, sabemos
Se Paulo fala que o “fim da lei é Cristo”, então que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o
devemos entender que Cristo aboliu a lei? diz para que se cale toda boca, e todo o mundo
seja culpável perante Deus, visto que ninguém
O fato de haver tanta discussão hoje em dia so- será justificado diante dele por obras da lei, em
bre o uso da lei não é novidade. Desde o início razão de que pela lei vem o pleno conhecimento
os cristãos tiveram esse tipo de dificuldade. O do pecado” (Rm 3.19-20). Paulo está apontando
primeiro Concílio da História da igreja, acon- para o fato de que, a função da lei, não é, nem
tecido em Jerusalém e relatado em Atos 15, foi nunca foi, salvar. Por isso, escrevendo aos Gála-
justamente por esse motivo. Quando os gentios tas ele diz: “De maneira que a lei nos serviu de
começaram a se converter ao Evangelho um pro- aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôs-
blema teológico surgiu no meio da igreja: Deve- semos justificados por fé. Mas, tendo vindo a fé,
riam eles se submeterem aos requisitos da lei de já não permanecemos subordinados ao aio” (Gl
Moisés, especificamente a circuncisão? Devido 3.24-25). A função da lei é nos levar a Cristo. Por
a divergência de entendimento, reuniram-se isso Paulo argumenta que Cristo tornou os cren-
em Jerusalém os apóstolos e os presbíteros para tes livres, e se eles quiserem basear sua salvação
examinar a questão (At 15.6). Depois de muita na obediência à lei, estarão se tornando escravos
discussão, chegaram à conclusão de que não era e se metendo debaixo de um jugo que ninguém
certo impor sobre os gentios convertidos todo jamais suportou (Gl 2.16). Por esse motivo Paulo
o peso da lei Judaica. A circuncisão foi abolida, fala com drasticidade: “Eu, Paulo, vos digo que,
e apenas algumas normas cerimoniais foram se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos
mantidas para dar bom testemunho perante os aproveitará” (Gl 5.2). Se quisessem ser salvos pela
demais judeus (At 15.20-21).10 Nada se falou so- lei, estariam pondo de lado o sacrifício de Cristo,
bre a questão dos mandamentos, por exemplo, consequentemente teriam que guardar toda a lei e
porque essas não eram questões de que se ti- não tropeçar em nenhum ponto (Tg 2.10). Nesse
vesse dúvida. Os mandamentos morais de Deus sentido realmente era a lei ou Cristo, pois, no sen-
estavam lá para serem obedecidos. O Concílio tido de salvação, Cristo é o “fim da lei para justiça
de Atos 15 se pronunciou sobre uma situação de todo o que crê” (Rm 10.4).
específica de uma época específica. Era muito
importante que os gentios convertidos dessem Como uma “preparação para a salvação” a lei tem
um bom testemunho perante os judeus, por isso seu primeiro uso identificado na teologia refor-
aquelas exigências cerimoniais foram mantidas. mada. Mas há mais dois. O segundo uso é o da
Seria um erro querer aplicar aquelas coisas para lei como fator de contenção. Esse é chamado de
os dias de hoje. “uso político ou civil”.11 Nesse sentido a lei atende
ao propósito de restringir o pecado e promover
a justiça. Essa lei age como refreadora do pecado
dos homens. Ela inspira a formação das próprias
10 Mesmo o abster-se de “relações sexuais ilícitas”
(v. 29) tinha um fim cerimonial, apontando para algumas
leis gerais que regem a maioria das nações do
espécies de uniões conjugais proibidas, como a de parentes
próximos (Lv 18.1-30). 11 João Calvino. As Institutas, (1541), IV.16
51

mundo, e age no interior das pessoas, sob a forma bíblico de como funciona a salvação. O Apóstolo
da “consciência” impedindo que os homens pe- Paulo diz: “Pela graça sois salvos, mediante a fé,
quem tanto quanto poderiam pecar (Rm 2.15). O e isso não vem de vós é dom de Deus” (Ef 2.8).
terceiro uso da lei, do modo como é entendido na Qual é a função então das obras? O mesmo texto
teologia reformada, é como “instrumento de san- diz que a salvação é dom de Deus e “não de obras,
tificação”. Nesse sentido ela seria a norma de vida para que ninguém se glorie” — e acrescenta: “pois
para os crentes, um fator de contribuição para a somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para
santificação. É claro que em nada ela contribui- boas obras, as quais Deus de antemão preparou
ria para a salvação, mas quem já está salvo pode para que andássemos nelas” (Ef 2.9-10). Então,
fazer uso da lei de Deus para se aperfeiçoar cada não somos salvos por causa das boas obras, antes
vez mais no caminho da santidade. A lei foi dada, por causa da graça de Deus, mediante a fé na obra
desde o início, para revelar o caráter e a vontade redentora de Cristo, mas somos salvos para boas
de Deus. Sem dúvida esse é um uso legítimo da obras, e por isso elas são importantes, porque são
lei, mas, nesse caso não devemos pensar apenas demonstrações de que somos salvos. São os frutos
nos dez mandamentos e sim na lei moral como da regeneração e da verdadeira conversão.
um todo, incluindo os escritos dos profetas, as pa-
lavras de Jesus e os ensinos dos apóstolos.

O que precisa ficar claro desses três usos propos- JUSTIFICADOS PELA FÉ SOMENTE
tos para a lei é que nada disso tem a ver com a sal-
vação. A salvação é um dom de Deus. A lei serve Como estudamos anteriormente, a fé é o instru-
ou para conduzir a Cristo, ou para ajudar quem já mento pelo qual podemos ser justificados, mas
está em Cristo, mas, a justificação é pela fé. nossa justiça é Cristo. Bavinck faz um bom re-
sumo da justiça da fé: “Em resumo, a justiça que
Em conexão com o assunto da lei sempre está a Deus revela no Evangelho consiste em uma con-
questão das obras. Uma tendência que sempre cessão de uma justiça de fé que, como tal, está
existiu dentro do cristianismo provém de grupos em posição diametralmente oposta à justiça das
que ensinam a necessidade de observar certos ri- obras da lei, à justiça do próprio homem. Essa é a
tos, cerimônias, costumes ou abstinências como justiça de Deus através da fé em Cristo”.12
meio de se alcançar a salvação. O homem nun-
ca esteve satisfeito em confiar somente na graça Isso equivale a dizer que as obras da lei jamais po-
para a salvação e, por isso, sempre tentou arran- deriam nos justificar, e que há uma justiça dife-
jar meios de dar uma “ajudinha” a Deus. Assim, rente, uma justiça de fé e não das obras.
é ensinado que é preciso crer em Jesus, mas além
disso, se submeter a uma forma especial de batis- Já vimos que a descoberta de Lutero a respeito da
mo onde a água é o que mais conta. Ou que pre- justificação pela fé não foi algo tão novo assim,
cisa vestir-se de um determinado jeito, não comer porque em parte a igreja romana já admitia isso.
certos alimentos, guardar esse ou aquele dia, etc. Entretanto, Lutero e Calvino insistiam que a gra-
Tudo é colocado como sendo uma contribuição ça era algo mais do que simplesmente um poder
para a salvação. O que mais se ouve é: Não faça capacitador ou transformador, pois nunca pode-
isso, não faça aquilo, e a religião se torna legalista ríamos ser tão internamente transformados pelo
ao extremo. Isso se deve à falta de entendimento
12 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 496.
52

Espírito Santo nesta vida a ponto de poder viver conseguíssemos isso, ainda assim, precisaríamos
sem pecado. Por isso, a justificação pela trans- ser julgados pelas más, porque as boas ações não
formação interna não é o caminho da salvação. podem encobrir as más. De fato, um assassino
Deus requer seu melhor e não o nosso. Ele agiu não pode ser absolvido apenas porque fez uma
para trazer esse melhor, e isso se deu na pessoa oferta para um orfanato. Nós precisamos de algo
de Jesus, em sua vida, morte e ressurreição que que cubra nossos débitos, e não apenas isso, mas
são a base da nossa justificação. A fé na obra de que ainda nos dê crédito diante de Deus. Pois
Cristo garante nossa justificação diante de Deus, para sermos salvos, Deus exige isso de nós: por
pois “justificação está relacionada com uma ação um lado, absoluta ausência de débitos ou peca-
jurídica e legal, um veredicto pronunciado pelo dos, e por outro, uma completa justiça, santida-
Juiz celestial sobre o pecador que, segundo a nor- de e perfeição como o próprio Deus é. Ou seja,
ma da lei, é ímpio, mas que pela fé aceitou a jus- para sermos salvos, precisamos nunca pecar e
tiça dada por Deus em Cristo. Julgado pela fé ele ainda amar a Deus e ao próximo de uma forma
é justo”.13 perfeita por toda a vida. É claro que ninguém ja-
mais conseguiu ou conseguirá isso. E podemos
É verdade que há uma graça derramada sobre até dizer que, por causa do Evangelho, Deus não
nossas vidas que nos capacita a viver uma vida espera isso realmente de nós. Não de nós, porque
de obediência, chamamos isso de “santificação” esta justiça, tanto de forma negativa (ausência de
(Conceito que ainda estudaremos neste trabalho). débitos), como de forma positiva (abundância de
Entretanto, no sentido exato, não é essa graça que créditos), pode vir a nós através de Cristo Jesus.
nos salva, não porque seja uma graça fraca, mas Ele não só morreu por nós, como também viveu
porque nós nunca poderemos erradicar nossa na- uma vida santa em nosso lugar. Sua morte quita
tureza pecaminosa de forma completa enquanto nossa dívida e sua vida de obediência nos provê
ainda estivermos nesse corpo. Paulo disse: “Bem de justiça suficiente para poder agradar a Deus.
sabemos que a lei é espiritual; eu, todavia, sou Em Adão, todos morremos, mas em Cristo, todos
carnal, vendido à escravidão do pecado. Porque somos justificados. Este é o resumo do Evange-
nem mesmo compreendo o meu próprio modo lho: “Pois todos pecaram e carecem da glória de
de agir, pois não faço o que prefiro, e, sim, o que Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua
detesto” (Rm 7.14-15). Por causa disso, como graça, mediante a redenção que há em Cristo Je-
afirmavam os Reformadores, nós precisamos de sus” (Rm 3.23-24). Note a expressão “que há em”.
uma graça externa, ou seja, uma graça que está Há uma redenção em Cristo Jesus, assim como há
fora de nós. uma condenação em Adão.

Precisamos reconhecer nossa falência espiritual, Um aspecto fundamental no entendimento da


pois nossa conta está totalmente negativa. Somos justificação pela fé é o caráter instrumental da
pecadores desde o nascimento e por toda a vida fé. A salvação é pela graça, por causa de Cristo.
continuamos pecando. Por nossas forças, e mes- A fé é apenas o instrumento. Nesse sentido não
mo capacitados pelo Espírito Santo, nunca con- podemos dizer que a salvação é pela fé, mas pela
seguiremos reverter esse quadro, ou seja, nunca instrumentalidade da fé. Isso não faz da fé um
conseguiremos que nossas boas ações superem fim em si mesma. Um outro aspecto importan-
o montante de nossas más ações. E, mesmo que te da justificação pela fé somente, diz respeito à
natureza da fé. Seria a fé uma pequena obra? De
13 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 503.
53

acordo com a Escritura a fé é um dom de Deus. união com Cristo. Ele diz que nós fomos unidos
Paulo diz: “Porque pela graça sois salvos, median- com Cristo, tanto em sua morte como em sua
te a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus” (Ef ressurreição (Rm 6.5). Assim, o pecado que nos
2.8). A fé não é algo que pode ser produzido livre- foi imputado por causa da transgressão de Adão
mente de acordo com a vontade da pessoa. A fé é foi carregado por Cristo, e a justiça de Cristo foi
um dom de Deus concedido pelo Espírito Santo. imputada em nós, através da fé, que é o único re-
Para entendermos o que é fé, precisamos enten- quisito para que essa justificação venha sobre nós.
der o que é salvação. Salvação é Jesus Cristo em Pela fé nós somos batizados na vida de obediên-
nós. Sua justiça, seus méritos, sua vida em nós. cia, morte sacrifical e ressurreição vitoriosa de
Portanto, salvação é estarmos unidos com Cris- Cristo. Diante de Deus isto é tão real que, embora
to. Essa união é fé. É quando abandonamos tudo ainda sejamos pecadores, possuímos uma nova e
o que temos e confiamos inteiramente em Cris- completa identidade no céu. Segundo Paulo, não
to e somente nele. E por fim, e isto foi a própria podemos continuar vivendo no pecado pelo sim-
essência do sola fide dos reformadores, devemos ples fato de que já morremos para ele. Num resu-
considerar a suficiência da fé. No entendimento mo: Não podemos mais ser o que já deixamos de
dos reformadores, a fé, que é um dom de Deus, é ser. Deus nos declarou justos, somos aceitos dessa
o único instrumento para que a justificação nos forma, agora, essa justiça terá que se manifestar
seja imputada. Roma dizia que era uma mistura em nossa vida, até porque, Cristo é a nossa jus-
de fé e obras, evangélicos legalistas dizem que é a tiça e ele está em nós. De fato, “pela justificação
fé mais ordenanças específicas, evangélicos neo- de Cristo os crentes passam legalmente a ter vida;
-pentecostais dizem que é a fé mais a contribui- pela santificação são tornados espiritualmente vi-
ção, mas devemos dizer: É só a fé. As obras de vos; pela primeira recebem o direito à glória; pela
qualquer natureza não passam de um fruto da fé. segunda são tornados dignos da glória”.14
Um fruto é uma consequência e não um requisito.
A mesma fé que, por um lado credita em nossas
vidas a justiça de Cristo, também derrama sobre
nossas vidas o fruto daquela justiça. A fé que jus-
O PECADO E A VIDA CRISTÃ tifica – que é a fé somente em Cristo como Salva-
dor – inevitavelmente produz obras. Diretamente
Uma pergunta que normalmente surge, quando de Adão, nós pecamos porque somos pecadores;
tratamos da justificação que nos faz ser simulta- entretanto, por causa de Cristo, nós fazemos coi-
neamente justos e pecadores, é: “Se somos e se- sas justas, porque somos justos em Cristo. O fruto
remos pecadores por toda a nossa vida, e se de do Espírito é o resultado da regeneração operada
qualquer forma continuaremos justificados, qual pelo Espírito em nossas vidas, por causa de nossa
é a vantagem de termos uma vida piedosa?” Paulo união com Cristo. Nele fomos justificados, nele
bem previa que essa pergunta poderia surgir após estamos sendo santificados, neles seremos glo-
ter explicado como funcionava a justificação. Ele rificados. Somos livres em Cristo para obedecer
disse: “Que diremos, pois? Permaneceremos no a Deus, pois como diz Bavinck, “o crente que é
pecado, para que seja a graça mais abundante? De justificado em Cristo é a mais livre de todas as
modo nenhum! Como viveremos ainda no peca-
do, nós os que para ele morremos?” (Rm 6.1-2).
A explicação lógica do Apóstolo para esta questão 14 George Whitefield. Cristo: Sabedoria, Justiça, San-
decorre, mais uma vez, do entendimento de nossa tificação, Redenção, p. 8
54

criaturas do mundo. Pelo menos deveria ser”.15

A graça de Deus que nos salva não é uma graça


que muda nossas vidas com o intento de sermos
aceitos diante de Deus. Essa graça nos justifica
instantaneamente, agora, no tempo presente, pois
a justificação ocorre no início da salvação e não no
fim dela. Por isso não precisa ser relegada apenas
às pessoas moribundas, mas a todos quantos se
aproximam de Cristo. Todos precisam saber que
em Cristo são aceitos por Deus. Deus vê em seus
eleitos a justiça de Cristo. Eles, por causa disso,
não possuem qualquer dívida, e ainda por cima,
possuem uma inesgotável linha de crédito diante
de Deus. Mas, é verdade que continuam pecando,
pois sua natureza pecaminosa ainda não foi erra-
dicada, entretanto, já podem realizar boas obras,
pois em Cristo possuem uma nova natureza. Não
há risco de que abusem dessa graça e vivam no
pecado, pois se fizessem isso, estariam demons-
trando claramente que jamais conheceram verda-
deiramente a graça de Deus.

15 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 514


55

SANTIFICAÇÃO: DEFINIÇÃO
E PROPÓSITO

INTRODUÇÃO maneira pela qual, dia após dia, Deus vai retiran-
do o apego do pecado em nossa vida até aquele
Desde que Adão fez sua escolha, a humanida- dia, quando na glorificação, seremos definitiva-
de mergulhou no abismo do pecado. O pecado, mente livres dele. Viver em santidade é viver na
como transgressão da vontade de Deus, é a coisa contramão do mundo.
mais comum na raça humana inteira. A Escritu-
ra diz: “Todos pecaram” (Rm 3.23). O pecado é O Catecismo Maior de Westminster define a san-
um imenso rolo compressor que nivela todos os tificação como sendo:
seres humanos, quer sejam pobres, ricos, pretos,
brancos, famosos ou desconhecidos. É a realida- Uma obra da graça de Deus, pela qual os que Deus es-
de mais presente e mais forte deste mundo. colheu antes da fundação do mundo, para serem santos,
são, nesta vida, pela poderosa operação de seu Espírito
O pecado é o grande agente destruidor da vida, e pela aplicação da morte e ressurreição de Cristo, ple-
do bem e da existência. Deus criou o homem sem namente renovados, segundo a imagem de Deus, tendo
pecado, isso significa que a realização do ser hu- as sementes do arrependimento que conduz à vida, e de
mano depende de uma extinção do pecado. En- todas as outras graças salvíficas implantadas em seus co-
quanto o pecado habitar a nossa carne, nunca rações, e tendo essas graças de tal forma dinamizadas,
conseguiremos desenvolver plenamente a nossa aumentadas e fortalecidas, assim eles morrem cada vez
humanidade. Desde que esse vírus maligno en- mais para o pecado e ressuscitam para a novidade de vi-
trou em nosso sistema, nunca mais pudemos ser da.1
aquilo para que fomos feitos.
Essa definição é completa e aborda todos os as-
Quando falamos em santificação, estamos nos re- pectos do ensino bíblico sobre santificação. O
ferindo à obra divina, da qual participamos, pela destaque especial foi dado ao poder do Espírito
qual somos libertados da influência do pecado
e possibilitados a viver uma vida para Deus. É a 1 Catecismo Maior de Westminster, Pergunta 75.
56

Santo na obra da santificação, e de fato, é preciso Antes de vermos o ensino bíblico sobre o desen-
muito poder, para que criaturas acostumadas a volvimento de nossa santificação, precisamos
ceder ao pecado consigam vencê-lo. A santidade fazer uma distinção importante. Num sentido, o
é o propósito principal de Deus para os seres hu- crente quando é regenerado e convertido torna-se
manos nesta vida. Como diz Packer, “é um pro- definitivamente santo. Nesse ponto, devemos en-
cesso educacional, planejado e programado por tender “santo” como separado, uma vez que, em
Deus com o propósito de nos refinar, purificar, Cristo, o crente é separado do mundo e passa a
animar, firmar e amadurecer. Por meio dele, Deus pertencer a Deus. Nesse sentido a santificação é
nos leva, progressivamente, à forma moral e espi- um ato instantâneo de Deus, simultâneo à rege-
ritual que ele quer que alcancemos”.2 neração, à conversão e sinônimo da justificação.
Em 1Coríntios 1.2 Paulo fala dos crentes como
A vida de santidade reflete a conformidade ao estando “santificados em Cristo Jesus”. Quando
alto padrão divino estabelecido para o regenera- somos regenerados e respondemos com arrepen-
do. É viver nas alturas da fé. O profeta Isaías falou dimento e fé, Deus nos declara justos, isso é jus-
sobre o Deus que renova as forças: “Faz forte ao tificação. Se somos justos, somos também santos,
cansado e multiplica as forças ao que não tem ne- então, no momento de nossa conversão, diante
nhum vigor. Os jovens se cansam e se fatigam, e os dos olhos de Deus e por causa da justiça e da san-
moços de exaustos caem, mas os que esperam no tidade de Cristo, passamos a ser completamente
senhor renovam as suas forças, sobem com asas santos, pelo menos da ótica do julgamento divino.
como águias, correm e não se cansam, caminham
e não se fatigam” (Is 40.2931). As águias preferem A morte do velho homem
os lugares altos, e somente esse poder divino de
atuação nas nossas vidas pode nos fazer viver nas A santificação definitiva também pode ser vista
alturas, acima dos tropeços da vida terrena. no sentido de que, na conversão, rompemos defi-
nitivamente com o mundo e passamos a perten-
A santificação precisa ser entendida à luz do en- cer integralmente a Deus. Em nossa união com
sino sobre a nossa união com Cristo. A Bíblia diz: Cristo, experimentamos uma santificação que
“Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com significa morte para o pecado e vida para Deus.
Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo As palavras de Paulo nesse sentido em Romanos
vive, assentado à direita de Deus. Pensai nas coi- 6 são: “Assim também vós considerai-vos mortos
sas lá do alto, não as que são aqui da terra; porque para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo
morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente Jesus. (Rm 6.11). A conversão, portanto, é um
com Cristo, em Deus” (Cl 3.1-3). A vida “do alto” rompimento instantâneo e definitivo em relação
é a única aceitável para aqueles que morreram, ao pecado, é um ato de santificação definitiva.
ressuscitaram e subiram com Cristo para os luga-
res celestiais. Hoekema define santificação definitiva como:
“Não só um rompimento com o pecado, mas uma
definitiva e irreversível união com Cristo na sua
SANTIFICAÇÃO DEFINITIVA E PRO- ressurreição – uma ressurreição por meio da qual
GRESSIVA o crente é habilitado a viver em novidade de vida
(Rm 6.4) e por causa da qual ele se tornou uma

2 J. I. Packer. A Redescoberta da Santidade, p. 14.


57

nova criatura (2Co 5.17)”.3 Uma nova criatura, de lar os pensamentos, sentimentos e atos, e confor-
acordo com Paulo, é alguém que “está em Cristo”, mar a alma segundo a imagem de Cristo”.6 Fomos
e que, portanto, “as coisas antigas já passaram; eis santificados em Cristo Jesus, mas o pecado ain-
que se fizeram novas” (2Co 5.17). A partir do mo- da habita em nosso corpo, e por isso, precisamos
mento em que alguém se encontra nessa união vencê-lo. Isso quer dizer que somos santos e pe-
com Cristo, deixou de ser uma “velha criatura”. O cadores ao mesmo tempo? Sim, do mesmo modo
“velho homem” morreu dentro dele, pois as coi- como já dissemos que somos justos e pecadores
sas antigas ficaram para trás. Há uma novidade ao mesmo tempo. Um modo de entender isso é
que permeia toda a vida da pessoa, pois duran- pensar no que Bavinck fala a respeito da diferen-
te toda a vida, o convertido será, diante de Deus, ça entre status e condição.7 Uma vez justificados,
uma nova criatura. Não haverá um momento em dispomos do status de santificados, mas como o
que ele voltará a ser uma “velha criatura”, pois, ele pecado ainda habita em nós, nossa condição ain-
foi santificado e continuará santo diante de Deus da é de pecadores. O ponto é que “quem comete
durante toda a sua vida. Isso é santificação defi- pecado é escravo do pecado” (Jo 8.34), mas o ver-
nitiva.4 dadeiro crente já não é mais escravo do pecado,
pois foi liberto pela verdade de Jesus (Jo 8.32; Rm
A renovação do novo homem 6.14). Mas, o pecado ainda está em nossos mem-
bros, pois de fato, “todos tropeçamos em muitas
Porém, a santificação também é progressiva. O coisas” (Tg 3.2). João diz: “Se dissermos que não
aspecto progressivo deve ser visto como uma temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enga-
demonstração visível da realidade invisível. Já namos, e a verdade não está em nós” (1Jo 1.8).
somos santos em Cristo Jesus, agora precisamos Isso pode levar a uma dúvida: Se somos unidos
evidenciar no dia-a-dia essa realidade de santida- com Cristo, se Cristo é Santo, mas nós continua-
de. mos pecadores, a vida de Cristo dentro de nós
não se corrompe? A resposta é não. Strong está
Hoekema define santificação progressiva como: certo ao afirmar que “a vida de Cristo não se cor-
“A graciosa operação do Espírito Santo, envolven- rompe pela corrupção dos seus membros como o
do nossa participação responsável, pela qual ele raio de luz não se contamina na imundície com a
nos livra da poluição do pecado, renova toda nos- qual ele entra em contato”.8
sa natureza inteira segundo a imagem de Deus,
e habilita-nos a viver de forma a agradá-lo”.5 E Geralmente a Bíblia, nas passagens em que ensi-
Hodge diz: “Portanto, a santificação consiste em na a santificação definitiva, nos conclama à san-
duas coisas: primeira, a eliminação progressiva tificação progressiva, por isso dissemos que san-
dos princípios do mal que ainda infectam nossa tificação é tornar visível uma graça invisível. Em
natureza, e a destruição de seu poder; e, segunda, Romanos 6 Paulo manda os crentes se considera-
o crescimento do princípio espiritual até contro- rem “mortos para o pecado” (Rm 6.11), e em se-
guida ele diz: “Não reine, portanto, o pecado em
3 Anthony Hoekema. Salvos Pela Graça, p. 211.
6 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 1188.
4 Por essa razão a Bíblia chama os crentes de santos
(Sl 16.3; At 9.32; Rm 16.2; 2Co 8.4; Ef 1.1; Cl 1.2; 1Tm 5.10; 7 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 521.
Hb 6.10; Jd 3; Ap 11.18).
8 Augustus H. Strong. Teologia Sistemática, vol. 2, p.
5 Anthony Hoekema. Salvos Pela Graça, p. 199. 506.
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vosso corpo mortal, de maneira que obedeçais às obras, como Paulo deixa bem claro em Efésios
suas paixões; nem ofereçais cada um os membros 2.8-9. Porém, o verso 10 diz que fomos criados
do seu corpo ao pecado, como instrumentos de para boas obras. Deus nos criou, ou melhor, nos
iniquidade; mas oferecei-vos a Deus, como res- recriou para andarmos em boas obras que ele
surretos dentre os mortos, e os vossos membros, mesmo preparou. Somos salvos pela fé, porém,
a Deus, como instrumentos de justiça” (Rm 6.12- essa fé muda a vida das pessoas. Se uma pessoa
13). A realidade da santificação definitiva precisa diz que crê, mas não muda de vida é porque não
se manifestar progressivamente através da vitória crê, afinal, a fé sem obras é morta (Tg 2.26). Ou
sobre o pecado. Como já vimos, em Colossenses como disse Jesus: “Pelos seus frutos os conhece-
3.1-3 Paulo demonstrou claramente a realidade reis. Colhem-se, porventura, uvas dos espinhei-
do crente como morto e ressuscitado em Cristo, ros ou figos dos abrolhos? Assim, toda árvore boa
porém, em seguida ele insiste: “Fazei, pois, mor- produz bons frutos, porém a árvore má produz
rer a vossa natureza terrena: prostituição, impu- frutos maus. Não pode a árvore boa produzir fru-
reza, paixão lasciva, desejo maligno e a avareza, tos maus, nem a árvore má produzir frutos bons”
que é idolatria” (Cl 3.5). Logo adiante ele volta a (Mt 7.16-18). Jesus sempre demonstrou que a rea-
misturar os assuntos: “Agora, porém, despojai- lidade interna se manifesta externamente.
-vos, igualmente, de tudo isto: ira, indignação,
maldade, maledicência, linguagem obscena do Obra de Deus e do homem
vosso falar. Não mintais uns aos outros, uma vez
que vos despistes do velho homem com os seus Deus é o autor da santificação. A Escritura é mui-
feitos e vos revestistes do novo homem que se re- to clara ao afirmar isso: “O mesmo Deus da paz
faz para o pleno conhecimento, segundo a ima- vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e
gem daquele que o criou” (Cl 3.8-10). Os crentes corpo sejam conservados íntegros e irrepreensí-
não devem viver em pecado porque se despiram veis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts
do velho homem. A realidade do velho homem 5.23). Como diz Bavinck, “a santificação, portan-
já não existe mais, o que existe é o novo homem, to, é uma obra de Deus, uma obra tanto de sua
porém, esse novo homem precisa se desenvolver. Justiça, quando de sua Graça. Ele atribui Cristo e
Santificação definitiva é o ato de se despojar do todos os Seus benefícios a nós, e depois ele com-
velho homem, santificação progressiva é essa re- partilha conosco toda a plenitude que está em
novação contínua do novo homem, que se desen- Cristo”.9 Portanto, Deus é o responsável pela san-
volve para alcançar a semelhança de Deus. tificação do homem, por isso Jesus orou ao Pai:
“Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verda-
Podemos falar da santificação definitiva como o de” (Jo 17.17).
aspecto legal pelo qual somos declarados santos, e
da santificação progressiva como o efeito visível, Ao mesmo tempo, porém, a santificação é nossa
pelo qual o crente se torna santo. Nossa salvação responsabilidade. Primariamente é um dom di-
depende do aspecto legal, porém, o aspecto legal vino, secundariamente é nossa obrigação. A Bí-
não acontece sem que se desenvolva o aspecto vi- blia nos manda aperfeiçoar a santidade: “Tendo,
sível. Nesse ponto é válida a discussão sobre as pois, ó amados, tais promessas, purifiquemo-nos
“boas obras”. Evidentemente não somos salvos de toda impureza, tanto da carne como do espíri-
por elas, mas também não somos salvos sem elas. to, aperfeiçoando a nossa santidade no temor de
A salvação é pela graça mediante a fé e não por
9 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 523.
59

Deus” (2Co 7.1). O autor aos Hebreus coloca as posta é: Porque ele é santo (1Pe 1.16). Essa res-
coisas nesses termos: “Segui a paz com todos e a posta simples contém uma verdade imensa.
santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” Primeiramente devemos pensar que é desejo de
(Hb 12.14). É nossa responsabilidade buscar a Deus nos reconduzir à sua imagem e semelhança.
santificação, pois como já demonstramos ante- Sabemos que o homem foi criado à imagem e se-
riormente, ela é necessária porque demonstra melhança de Deus (Gn 1.26), e que após a queda,
que realmente houve conversão. Se alguém não essa imagem se deturpou. Deus deseja, a partir de
foi santificado, não foi convertido, e portanto, sua obra redentora, santificar-nos a tal ponto que
não pode ser salvo. essa imagem seja inteiramente restaurada em nós.
É verdade que essa tarefa só estará plenamente
Em Filipenses 2.12-13, encontramos os dois as- realizada na vida do mundo porvir. Porém, ain-
pectos da santificação (obra divina e obra huma- da nessa vida, pela influência do Espírito San-
na): “Assim, pois, amados meus, como sempre to, podemos experimentar uma renovação que
obedecestes, não só na minha presença, porém, gradualmente nos transforma e nos assemelha a
muito mais agora, na minha ausência, desenvol- Cristo. Paulo disse que esse, inclusive, era o obje-
vei a vossa salvação com temor e tremor; por- tivo pelo qual Deus concedeu dons aos homens:
que Deus é quem efetua em vós tanto o querer “E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, ou-
como o realizar, segundo a sua boa vontade”. Os tros para profetas, outros para evangelistas e ou-
crentes são chamados à continuar obedecendo e tros para pastores e mestres, com vistas ao aper-
desenvolvendo a salvação com temor e tremor. feiçoamento dos santos para o desempenho do
A expressão “desenvolver a salvação” só pode se seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo,
referir ao aspecto da santificação. Eles devem de- Até que todos cheguemos à unidade da fé e do
senvolver algo que já receberam. Já foram santifi- pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita
cados, mas agora precisam evidenciar a santida- varonilidade, à medida da estatura da plenitude
de. O aspecto de temor e tremor aponta para a de Cristo” (Ef 4.11-13). Deus concedeu dons à sua
diligência com que essa tarefa deve ser encarada. igreja para que os membros do corpo de Cristo
Um crente deve fazer todos os esforços necessá- cresçam a ponto de chegarem à semelhança má-
rios para viver em santidade. Ao mesmo tempo xima com Jesus.
em que aponta para isso, Paulo também explica a
origem divina da santificação, dizendo que Deus Tornar os crentes semelhantes a Jesus era algo que
opera tanto o querer quanto o realizar. O “querer” já estava incluído na própria eleição, como pode-
é a vontade, e o “realizar” é a materialização da mos ver de Romanos 8.29: “Porquanto aos que de
vontade. Esses dois aspectos somente acontecem antemão conheceu, também os predestinou para
porque Deus os possibilitou através de sua opera- serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de
ção, portanto, santificação é obra de Deus e obra que ele seja o primogênito entre muitos irmãos”.
do homem. E em 2Coríntios 3.18, encontramos a declaração
de que “Todos nós, com o rosto desvendado, con-
templando, como por espelho, a glória do Senhor,
somos transformados, de glória em glória, na sua
O PROPÓSITO DIVINO NA SANTIFICA- própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito”. A
ÇÃO ideia de imagem é justamente a ideia de reflexo.
Podemos dizer que Adão e Eva antes da queda re-
Por que Deus deseja que sejamos santos? A res-
60

fletiam perfeitamente o criador. Agora, pelo pro-


cesso da santificação, somos transformados de
glória em glória, para refletirmos cada vez mais e
melhor a imagem do Senhor.

Deus deseja que sejamos santos porque isso tem a


ver com seu supremo propósito para esse mundo.
Deus tem um propósito estabelecido para esse
mundo que inclui a eliminação do pecado, a ex-
tinção da morte e a recriação dos céus e da terra.
Ou seja, Deus deseja que uma nova era se instale.
A Bíblia a chama de “a era vindoura”, ou “mun-
do vindouro” (Lc 20.35; Ef 1.21; Hb 6.5). O que
sabemos é que nesse lugar habitará plenamente
a santidade. E nós já estamos experimentando
na vida aqui o status daquele mundo futuro. Já
experimentamos a realidade daquele novo mun-
do ainda dentro desse velho mundo, assim como
já experimentamos a realidade do novo homem
dentro de um corpo velho. Santificar-se é viver a
vida da era vindoura, é viver para o que realmen-
te fomos chamados. Santificação é viver muito
acima da mediocridade deste mundo, é viver nas
alturas da fé.
61

MEIOS DE SANTIFICAÇÃO

INTRODUÇÃO quando a lei, ou qualquer outra regulamentação,


é usada no sentido de “usos e costumes”, se torna
Precisamos agora pensar nos instrumentos que instrumento que desvia a atenção das pessoas da
podem nos ajudar a aperfeiçoar a nossa santifi- centralidade do Senhor Jesus; nesse sentido é algo
cação. Inicialmente falaremos dos falsos meios, que não provém de Deus, e por mais que tenha
aqueles que o homem usa de forma deturpada. uma aparência de piedade, religiosidade ou boa
intenção, deve ser considerado algo mundano,
perverso e demoníaco.

FALSOS MEIOS DE SANTIFICAÇÃO Nesse sentido o Apóstolo Paulo enfrentou sérios


problemas com os cristãos da cidade de Colossos.
Na teologia reformada se estabelece que a Lei Parece que os crentes de Colossos estavam sendo
pode ser usada na santificação. Este é o chama- assediados por algumas pessoas que estavam se
do “Terceiro Uso da Lei”. Ela como a expressão esquecendo da centralidade absoluta de Cristo.
máxima da revelação da vontade de Deus pode Paulo fala dessas pessoas como tendo “raciocí-
realmente nos ajudar no processo de santificação. nios falazes” (Cl 2.4), e como sendo portadoras
Mas, se ela for usada do modo errado, ao invés de de uma filosofia cheia de vãs sutilezas, que era
ajudar atrapalhará. “segundo a tradição dos homens, conforme os
rudimentos do mundo e não segundo Cristo” (Cl
Distorcendo a lei 2.8). Da carta aos Colossenses, entendemos que
estas pessoas ensinavam que os crentes deveriam
Como os fariseus do tempo de Jesus, também nos observar certas práticas, sem as quais, não seriam
dias de hoje as pessoas usam a lei no sentido de salvos. Entre as muitas coisas exigidas estava a
usos e costumes. Na teologia reformada a lei tem abstinência de alimentos, a participação em ce-
seu uso na santificação, como um meio de reve- rimônias religiosas, a observação do Sábado (Cl
lar a vontade de Deus para a nossa vida. Porém, 2.16), e muitas outras práticas que Paulo não rela-
62

ta detalhadamente (Cl 2.21). tumam julgar os outros. Essas pessoas colocam


ênfase numa série de regulamentações nas quais
O grande problema dessas práticas é que elas não a observância rígida é absolutamente necessária
tinham valor algum (Cl 2.23), e ainda desviavam a para a salvação, ou pelo menos para a plenitude
atenção das pessoas da centralidade e da suficiên- da vida cristã. Quando o texto fala em comida,
cia de Cristo para a salvação. Transformavam-se bebida, dia de festa, lua nova ou sábados, está se
em obras humanas que queriam complementar a reportando principalmente as práticas do Antigo
Obra de Cristo. Por isso o Apóstolo Paulo expli- Testamento, em que havia regulamentações para
cou aos colossenses o valor infinito e suficiente todas essas coisas. É provável que, em Colossos,
da Pessoa e da Obra de Cristo. Ele diz que Jesus “é houvesse uma mistura entre práticas do Antigo
a imagem do Deus invisível” (Cl 1.15), em quem Testamento e novas práticas ascéticas, as quais
“reside toda plenitude” (Cl 1.19), e onde “todos os falsos mestres estavam querendo obrigar os co-
tesouros da sabedoria e do conhecimento estão lossenses a obedecer.
ocultos” (Cl 2.3). Assim, o Apóstolo incentiva os
cristãos de Colossos a permanecerem em Cristo Segundo a argumentação de Paulo, as coisas do
(Cl 2.6), e não se deixar enredar pelas mentiras e Antigo Testamento eram apenas sombras da rea-
invenções dos homens. E principalmente não se lidade que já existe e que é Cristo. Assim não ha-
deixar desviar da pessoa de Jesus como “único” via motivos para ordenanças com respeito a co-
e “suficiente” Salvador. Cristo é suficiente para a mida, uma vez que o Pão da Vida já havia vindo
salvação e para a santificação. (Jo 6.35.48). Não havia necessidade da observân-
cia da páscoa como meio para o aperfeiçoamento
Sombras passageiras espiritual porque “Cristo nosso cordeiro pascal
já foi imolado” (1Cor 5.7). Nem mesmo havia
Paulo dá os motivos pelos quais os costumes que motivo para se impor sobre os novos converti-
os colossenses eram incentivados a praticar, não dos a observância do sábado judeu, pois aquele
tinham qualquer valor. Primeiramente, ele diz que veio trazer o descanso definitivo já veio (Mt
que eram apenas sombras (Cl 2.17). Nesse ponto 11.28-29, Hb 4.8,14). A sombra, ou seja, aquelas
ele está falando da utilização dos rituais do Anti- práticas do Antigo Testamento queriam apenas
go Testamento. Qual é a utilidade da sombra? Ela apontar para Cristo, mas agora já se podia ver o
dá uma vaga ideia de como o objeto que a reflete próprio “corpo de Cristo” (vs. 17), e por isso elas
é. Por exemplo, quando alguém está se aproxi- já não tinham mais razão de ser. E, como disse
mando e não podemos vê-lo, mas apenas a sua Hendriksen “se isto era verdade em relação às re-
sombra, podemos ter uma ideia de quem é. Neste gulamentações do Antigo Testamento, certamen-
caso a sombra é útil. Mas, quando podemos ver te o era muito mais no que tange às regulamen-
a própria pessoa, que importância tem a som- tação humanas, de caráter ascético que estavam
bra? Assim eram os ritos e cerimônias do Antigo sendo sobrepostas, acrescentadas e em alguns
Testamento. Eram sombras de Jesus, oferecendo casos até substitutivas da lei de Deus”.1 Tudo isso
uma noção para os crentes daquela dispensação, era um grande erro porque, ao ser enfatizada a
sobre como seria o Messias e qual seria a sua obra. necessidade dessas coisas, a plena suficiência de
Mas, agora que Cristo já veio, por que voltaría- Cristo estava sendo negada.
mos a observar as sombras? Paulo diz: “Ninguém
vos julgue por causa de...”. As pessoas que acham 1 William Hendriksen. Colossenses e Filemom, p.
necessária a observação de certas práticas cos- 158.
63

Falta de base bíblica cimento espiritual que procede de Deus.

O segundo argumento de Paulo para a inutilidade O perigo do retrocesso


das práticas legalistas e ascéticas é que elas não
têm base verdadeira (Cl 2.18-19). Não há apoio Paulo ainda argumenta que essas práticas repre-
algum na Escritura para a prática destas exigên- sentam um retrocesso (Cl 2.20-22). Por isso ele
cias. Mas, então, em que se baseiam os defenso- insiste: “Se morrestes com Cristo para os rudi-
res dessas práticas? O Apóstolo Paulo diz: Em mentos do mundo, por que, como se vivêsseis no
falsa humildade, no culto dos anjos, em visões, mundo, vos sujeitai a ordenanças: não manuseies
no vazio da sua mente carnal. Novamente Paulo isso, não proves aquilo, não toques aquiloutro,
diz, “que ninguém vos julgue”, o sentido é, “que segundo os preceitos e doutrinas dos homens?”.
ninguém vos desqualifique”. Ou seja, Paulo quer Se Paulo já havia dito que a própria lei de Deus,
que os crentes não se sintam abatidos quando como um instrumento de acusação, havia sido
alguém lhes diz: “Já que vocês não querem obe- cancelado e encravado na cruz (Cl 2.14), que se
decer ao que nós estamos exigindo, então vocês dirá então desses preceitos, que eram verdadei-
não estão qualificados para o cristianismo, vocês ros “rudimentos do mundo”, coisas pueris, inven-
não são crentes verdadeiros”. O curioso é que eles tadas pelos homens? É como se Paulo dissesse:
argumentam que esses costumes são um sinal de “Vocês já morreram para o mundo, mas agora es-
humildade, mas Paulo diz: Essa humildade é ape- tão querendo voltar para ele? Estão retrocedendo
nas um pretexto, ela é falsa, pois ela quer fazer ao prestar obediência a essas coisas vãs. Quando
você inferior a eles. Um outro argumento usado viviam no mundo vocês eram preocupados em
para convencer os colossenses era o culto dos não fazer isso ou aquilo, querendo agradar aos
anjos. Os anjos eram, na crença dos povos que deuses, pensando que pelas suas próprias forças
moravam próximos dos colossenses, os governa- conseguiriam benefícios. Mas, agora que vocês
dores astrais e operadores de milagres. Assim, o já entenderam que a salvação é pela graça, por
nome dos anjos era usado para tentar convencer causa do sacrifício de Jesus, não tem sentido fi-
os crentes a obedecer àquelas práticas. Um outro car correndo atrás dessas coisas sem valor”. Esse
argumento eram as visões. Diziam que haviam tipo de religião baseada em regras, em costumes,
recebido aquelas ordens em visões, e assim todos em observâncias, é uma religião mundana, uma
deveriam obedecer. Se alguém ousasse contradi- religião terrena, ela não se baseia na Bíblia, mas
zer, diriam: “Mas tivemos tal e tal visão”. Isso se nos costumes dos homens, às vezes sob pretexto
parece muito com o sistema de “revelações”, na de humildade, revelações, etc. O Apóstolo Paulo
moda atualmente entre os evangélicos. Segundo diz: Não retrocedam, não voltem para traz. Sigam
Paulo, na verdade essas pessoas eram “enfatuadas, crendo que apenas Cristo é suficiente para a sal-
sem motivo algum, na sua mente carnal”. Enfa- vação e progresso na fé, pois esta é a verdadeira
tuado quer dizer cheio de si, mas Paulo diz: “cheio religião espiritual.
de si sem motivo algum”. Essa pessoa não é es-
piritual, pois não retém a cabeça (vs.19), ou seja, Sem resultados
não tem nada a ver com Cristo. Seus motivos são
carnais, não são os motivos de Cristo. Em Cristo E por fim, o último argumento de Paulo contra
sim, há crescimento para todo o corpo, somente estas práticas ascéticas e legalistas é que elas não
nele, e através dele pode existir o verdadeiro cres- produzem resultado benéfico algum (Cl 2.23).
Elas em nada colaboram para a santificação. O
64

único resultado que produzem é o de deixar as própria Palavra de Deus. É através da sua Palavra
pessoas orgulhosas, pensando que somente elas que Deus nos santifica. Daí a importância crucial
estão certas, e que todos os que não seguem os da pregação para o crescimento, edificação e san-
seus costumes estão errados. Paulo diz: “Estas tificação do povo de Deus. Por isso, na teologia
cousas com o uso se destroem”. Não há valor al- reformada, a pregação da Palavra é considerada
gum em seguir mandamentos exigidos pelos ho- um meio de graça, ou seja, uma maneira pela qual
mens, pois que não são exigidos pela Palavra de Deus concede sua graça ao seu povo. O salmista
Deus. Como disse Hendriksen: “O ponto de todo já tinha plena consciência da função da Palavra
este ensinamento não é apenas mostrar que tais na área da santificação, pois ele diz: “De que ma-
ordenanças feitas por homens e as doutrinas das neira poderá o jovem guardar puro o seu cami-
quais se derivam são sem valor, mas também e nho? Observando o segundo a tua palavra” (Sl
enfaticamente são piores do que sem valor, isto 119.9). E disse ainda: “Firma os meus passos na
é, são na realidade prejudiciais”.2 Tudo o que es- tua palavra, e não me domine iniquidade alguma”
sas coisas têm é apenas aparência. Elas parecem (Sl 119.133). O conhecimento e a firmeza na Pala-
sabedoria, mas de fato não são. São apenas “cul- vra de Deus conduzem naturalmente à santidade.
to de si mesmas”, ou seja, não visam a glória de Paulo também entendia a plena importância da
Deus, apenas a glória das pessoas. Não passam Palavra para a santificação: “Toda a Escritura é
de um rigor ascético, sem qualquer valor, e não inspirada por Deus e útil para o ensino, para a re-
produzem qualquer efeito contra a sensualidade. preensão, para a correção, para a educação na jus-
Não vão ajudar alguém a ser mais santo. A úni- tiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito
ca vantagem que algo assim teria, uma vez que e perfeitamente habilitado para toda boa obra”
não pode contribuir para a salvação, seria ajudar (2Tm 3.16-17). Tudo o que precisamos a fim de
na santificação, entretanto, a Bíblia diz que elas que sejamos repreendidos, corrigidos, educados
não ajudam nisso, então, realmente são comple- e habilitados está na Palavra de Deus. Tudo o que
tamente sem valor. um crente precisa para ser o mais aperfeiçoado
possível, ele encontra na Bíblia. Ela é o grande
instrumento de santificação que Deus nos deu.

MEIOS INDISPENSÁVEIS DE SANTIFI- A fé


CAÇÃO
Outro meio apropriado para nossa santificação é
No processo de nos santificar, Deus faz uso de al- a fé. Muitos podem pensar que a fé apenas nos
guns meios. Os principais são: A Palavra, a Fé, a conduz à justificação, mas, a verdade é que ela é
Oração e a Disciplina. necessária para nossa santificação também. De
fato, “o Evangelho nada exige de nós além de fé, a
A Palavra de Deus confiança de coração na Graça de Deus em Cris-
to. A fé não apenas nos justifica, mas também nos
O principal meio divino para a nossa santifica- santifica e nos salva”.3 Isso equivale a dizer que
ção é a verdade. Jesus orou: “Santifica-os na ver- santificação não é necessariamente questão de
dade” (Jo 17.17). A verdade, segundo Jesus, é a esforço pessoal, mas de fé. Quanto mais fé, mais
santos, pois quanto mais fé, mais desfrutamos
2 William Hendriksen. Colossenses e Filemom, p.
167-168. 3 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 529.
65

dos benefícios de Cristo. O texto de Atos 26.18 comunicação com Deus que o homem pode ter. É
fala dos crentes como sendo “santificados pela fé” o momento quando o homem tem uma audiência
em Jesus. Embora nesse aspecto, o texto se refira com Deus, e o Todo-Poderoso condescende em
à santificação definitiva que acontece juntamen- lhe ouvir as súplicas. Ela é a chave para o cresci-
te com nossa justificação, também é verdade que mento espiritual e para a santificação. Mas, infe-
pela fé somos santificados diariamente. O mo- lizmente, o modo como as pessoas normalmente
tivo não é difícil de entender. Todo pecado que oram prejudica bastante esse crescimento.
o cristão possa cometer, em última instância, é
por falta de fé. Jesus costumava advertir as pes- Os discípulos temiam orar de forma errada, por
soas com respeito a essa questão de ter fé peque- isso procuraram o mestre e lhe pediram que os
na. Ele disse que se preocupar primordialmente ensinasse a orar. Jesus ensinou: “Portanto, vós
com questões de comida, bebida e vestuário era orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santi-
evidência de fé pequena (Mt 6.25-30). Também ficado seja o teu nome; venha o teu reino; faça-se
em momentos quando eles estavam desesperados a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão
por alguma situação, como quando enfrentavam nosso de cada dia dá-nos hoje; e perdoa-nos as
a tempestade no mar da Galileia, Jesus disse que nossas dívidas, assim como nós temos perdoado
só estavam amendrontados porque eram homens aos nossos devedores; e não nos deixes cair em
de pequena fé (Mt 8.26; 14.31). É difícil pecarmos tentação; mas livra-nos do mal pois teu é o reino,
quando nossa fé e confiança no Senhor estão no o poder e a glória para sempre. Amém!” (Mt 6.9-
nível máximo. Nossa fé no Senhor é o instrumen- 13). Ao contrário do que às vezes se pensa, essa
to pelo qual o Senhor evidencia sua vida em nós. não era uma oração que deveria ser decorada e
Quando Paulo disse que já não era ele quem vi- repetida. É um molde, um modelo eficaz de ora-
via, mas que Cristo vivia nele, complementou: “E ção, ao qual as orações dos crentes devem se con-
esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela formar. Por trás desses princípios está o segredo
fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo do poder espiritual.
se entregou por mim” (Gl 2.20). É pela fé que ex-
perimentamos a mais íntima união com Cristo Classicamente, a oração que Jesus ensinou tem
sido dividida em uma introdução, uma conclu-
que nos habilita a confiar nele, de forma que ele
manifeste sua vida em nós, e consequentemente, são e sete petições. As três primeiras petições dão
toda a prioridade para a glória de Deus. Isso é no
nossa santificação aparecerá, pois ele é santo. Pre-
cisamos sempre nos lembrar de nossa união com mínimo impressionante, posto que, frequente-
Cristo, pois “a morte de Cristo tem poder não mente, nossas orações se ocupam apenas conosco
mesmos. Quando Jesus ensina a orar pela santi-
apenas para justificar, mas também para santifi-
ficação do nome de Deus, pela vinda do Reino
car”.4 Uma pessoa pode se esforçar sobremaneira,
e pela consumação da vontade de Deus para o
mas nunca vencerá o pecado se não tiver suficien-
te fé em Jesus. mundo, está demonstrando que um crente preci-
sa entender que essas coisas são prioridades sobre
A oração todas as demais. É incrível que, praticamente me-
tade da oração se ocupe somente com essas coi-
Um outro aspecto fundamental na santificação é sas. Quando temos acesso às listas de orações nas
a oração. A oração é o momento mais íntimo de igrejas, percebemos que os pedidos que monopo-
lizam essas listas são todos de ordem física, eco-
4 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 522
66

nômica ou familiar. De fato, como os discípulos, A disciplina


precisamos que Jesus nos ensine a orar. Alguns
crentes em suas orações se utilizam de métodos Uma das formas que Deus usa para nos santifi-
estranhos à Palavra de Deus. Fazem muito baru- car é sua disciplina. Hebreus 12.10 diz: “Deus,
lho e não dizem nada. Ou pior, tentam dar ordens porém, nos disciplina para aproveitamento, a
para Deus. Às vezes se ouve algo assim: “Senhor, fim de sermos participantes da sua santidade”.
eu determino que essa benção me seja dada”, “Eu A expressão “disciplina” tem a ver com a provi-
não aceito essa enfermidade”, ou “Eu exijo essa são divina para nosso crescimento, incluindo as
cura”, etc. Enquanto isso, Jesus ensinou a orar: repreensões, a dor e o sofrimento. Deus permite
Seja feita a tua vontade... A quarta petição da ora- que isso nos sobrevenha para que sejamos san-
ção dominical é a que trata das questões físicas. tos como ele é santo (Lv 20.7; 1Pe 1.16). Quando
Há apenas um pedido: “O pão nosso de cada dia enfrentamos lutas, sofrimentos ou momentos de
nos dá hoje”. O pão representa nossas necessida- repreensão, achamos algo doloroso, e ansiamos
des básicas, aquilo que realmente precisamos. O pelo momento quando seremos livres dessas coi-
pedido diário denota absoluta dependência da sas. O autor aos Hebreus entedia isso: “Toda dis-
provisão divina e um reconhecimento disso. Em- ciplina, com efeito, no momento não parece ser
bora Deus esteja interessado em nossas necessi- motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, en-
dades, o fato é que geralmente nossas orações são tretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido
muito desequilibradas, pois há muito para nós e por ela exercitados, fruto de justiça” (Hb 12.11).
pouco para Deus. Por fim, os últimos três pedi- Quando na Igreja, a disciplina é exercida sobre
dos se voltam para as coisas do Espírito. A pri- a vida das pessoas que cometeram faltas graves,
meira preocupação é com o perdão dos pecados, isso pode parecer ofensivo para muitos que estão
uma preocupação que, cada vez mais, a igreja tem poluídos pelo espíri­to moderno liberal, mas sem a
menos. A segunda preocupação é com segurança disciplina, a pessoa terá grandes dificuldades em
espiritual para evitar quedas em tentação. E a úl- se re­cuperar espiritualmente. A ausência da dis­
tima suplica livramentos dos ataques diretos do ciplina demonstra falta de amor, pois o pró­prio
maligno. Esse modelo de oração é vital para uma Deus diz: “Eu repreendo e disciplino a quantos
vida de santidade, pois se preocupa com a glória amo” (Ap 3-19). E o autor aos He­breus lembra:
de Deus em primeiro lugar, e dá mais ênfase ao “Mas, se estais sem correção, de que todos se têm
aspecto espiritual da vida, do que ao aspecto físi- tornado participantes, logo, sois bastardos e não
co. O modo como os crentes têm orado traz pou- filhos” (Hb 12.8). Como Pai amoroso, Deus dis-
co benefício espiritual para eles, pois geralmente, ciplina seus fi­lhos para que mudem de atitudes, e
as preocupações principais são físicas. Como dis- sejam santificados.
se Calvino, nesta Oração, “o Senhor nos deu uma
forma conveniente de orar, na qual compreendeu
brevemente tudo o que convém pedir a Deus, e o
dispôs em poucas petições.”5

5 Calvino, Catecismo de Genebra, Perguntas 255 e


256
67

A BÊNÇÃO DA PERSEVERANÇA

INTRODUÇÃO to, mas uma obra de um arquiteto que planejou


tudo com antecedência, e que tem todo o poder
Os cristãos não tem uma mesma visão com res- e toda a condição para completá-la. Nas palavras
peito à segurança da salvação do crente. Uma de Paulo: “Estou plenamente certo de que aquele
parte acredita que alguém que foi salvo por Cris- que começou boa obra em vós há de completá-la
to será salvo para sempre e jamais perderá essa até ao Dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6).
salvação. Outra parte acha que é possível que al-
guém que se converteu, depois de algum tempo,
se desvie, morra e vá para o Inferno. Esses últimos
entendem que a salvação ou a condenação depen- UM SLOGAN MAL COMPREENDIDO
dem apenas do homem. Ao longo desse trabalho
já vimos o quanto essa posição é falha. Muitos Entre aqueles que creem que a salvação não se
têm medo da Certeza da Salvação (Perseverança perde, desenvolveu-se um slogan para definir
dos Santos) por acharem que a doutrina conduz bem a posição, o slogan diz “uma vez salvo, sem-
as pessoas ao desleixo e a inércia espiritual, mas, pre salvo”. Estamos convictos de que esse slogan
isso só acontece se alguém, de fato, não a enten- é verdadeiro, mas percebemos que ele é, muitas
der bem. Queremos provar a biblicidade da dou- vezes, mal entendido. Ele pode sugerir que uma
trina da Perseverança dos Santos, bem como a vez que alguma pessoa fez uma decisão por Cris-
sua utilidade para a vida cristã. Ela é, ao contrá- to, ela pode viver sua vida irresponsavelmente, e
rio do que se pensa, um grande incentivo para a ao mesmo tempo, plenamente confiante de que
vida de santidade, e de compromisso com Deus, jamais poderá ser condenada. Alguém pode di-
com sua Palavra e com sua obra. Esta maravilhosa zer “eu fiz minha decisão, Cristo é meu Salvador,
doutrina bíblica nos mostra o quanto nosso Deus e todos os meus pecados — passado, presente, e
é confiável, comprometido e poderoso. A obra futuro — estão perdoados e esquecidos. Então,
que ele começou em nossa vida não é uma obra eu não tenho que me preocupar mais com os mo-
qualquer, indefinida, sem previsão de acabamen- mentos de fraqueza”. Um famoso teólogo ameri-
68

cano chamado Robert Godfrey sarcasticamente SELO DE GARANTIA


caracterizou esta tendência dizendo: “Deus ama
perdoar; eu amo pecar, então isso coopera para A partir do próximo capítulo, começaremos a
um bom relacionamento”.1 É claro que isso sim- tratar do Espírito Santo. O Espírito Santo é fun-
plesmente não é bíblico. damental para a nossa salvação, mas uma das
coisas que nem sempre entendemos é que o Es-
Para que uma pessoa seja salva é necessário que pírito Santo tem um papel vital na perseverança.
aconteça um grande evento dentro dela, o qual Primeiramente devemos lembrar o ensino bíblico
Jesus chamou de “novo nascimento” (Jo 3.3). O de que o Espírito é o selo de garantia do crente.
novo nascimento acontece no momento em que Paulo disse aos Efésios: “Em quem também vós,
o Espírito Santo cria uma nova vida em nossa depois que ouvistes a palavra da verdade, o Evan-
alma, e em resposta a isso demonstramos arre- gelho da vossa salvação, tendo nele também crido,
pendimento e fé (conversão). Mas, a salvação é fostes selados com o Santo Espírito da promessa;
ainda mais do que isso. De fato, no instante em o qual é o penhor da nossa herança, ao resgate
que Deus efetuou o novo nascimento em nosso da sua propriedade, em louvor da sua glória” (Ef
ser, somos capacitados a responder com fé à pre- 1.13-14). Quando alguém se converte recebe um
gação do Evangelho e, então, somos instantanea- selo divino. Nos tempos do Novo Testamento se
mente justificados. Entretanto, a salvação é um selavam cartas ou objetos. Lembramos que o tú-
processo, um ato contínuo de Deus em nos tor- mulo de Jesus foi selado (Mt 27.66). A intenção
nar santos. Como vimos, esse processo recebe o em se colocar o selo era demonstrar que tal ob-
nome de santificação. Para que alguém seja salvo, jeto pertencia a alguém, e assim, o objeto deveria
é necessário que esse processo tenha sido iniciado estar sob a proteção máxima. Da mesma forma
em sua vida. Ninguém pode ser justificado sem o selo do Espírito Santo na vida do crente indica
ser também santificado. Isso é um bom resumo que ele pertence a Deus e será protegido de todas
de tudo o que já vimos até aqui sobre salvação. A as ameaças. O selo, de acordo com Paulo, conti-
perseverança nada mais é do que levar esse pro- nuará sobre o crente até o dia da redenção final.
cesso até ao fim. Da mesma forma Paulo usa a palavra “penhor”.
O penhor nos tempos do Novo Testamento era
Portanto para que alguém diga “uma vez salvo, um acordo de negócio onde uma pessoa dava um
sempre salvo” é preciso que tenha sido realmen- primeiro pagamento, algo como uma entrada, a
te salvo. E para ser realmente salvo é preciso que fim de garantir o negócio. E essa entrada era uma
haja uma transformação, e é necessário que a san- garantia de que o restante também seria pago.
tificação fique evidenciada em sua vida. Alguém Assim, pois, o Espírito Santo em nós é a garan-
que não evidencia estas coisas será condenado, tia de que o resto será pago, ou seja, de que Deus
não porque perdeu a salvação, mas porque na ver- completará sua obra em nós até o dia de Cristo
dade, nunca foi salvo. Todo tipo de orgulho que Jesus. Deus não colocaria esse selo se não tivesse
a expressão “uma vez salvo, sempre salvo” possa a intenção firme de completar a obra, portanto,
produzir é incompatível com a humildade que é a o Espírito em nós é a garantia de que Deus nos
marca de quem recebeu a salvação de graça. guardará até ao fim. Deus não colocaria o seu selo
de garantia em nossa vida se não estivesse dispos-
to a nos guardar.
1 Citado por Michael Horton. As Doutrinas da Ma-
ravilhosa Graça, p. 192
69

Por outro lado, o Espírito Santo ativamente pro- processo da salvação. São os vários eventos que
porciona a própria perseverança. No momento compõe a salvação completa. Esses eventos são
da conversão, o crente é batizado com o Espírito interligados. Não faz sentido alguém ser predes-
Santo. A partir desse momento, sua casa já não tinado, chamado, justificado, e depois perdido.
está mais vazia. O Espírito Santo não está aí para Este texto ensina que quando Deus começa algu-
ser ocioso, ele tem uma função. Paulo trata bas- ma coisa, ele termina (Fp 1.6). Como já dissemos
tante sobre isto em Romanos 8. Ele diz que a fun- anteriormente, todos os eventos de Romanos 8.30
ção do Espírito é nos “assistir em nossa fraqueza” estão no passado. Deus vê o crente como já ten-
(Rm 8.26). Paulo está pensando primordialmente do passado espiritualmente por todos os estágios
na oração, mas é óbvio que o Espírito nos ajuda (lembrar do contraste entre o já e o ainda não).
em todas as nossas fraquezas. No caso específico Portanto, é impossível que esta cadeia seja rom-
da oração, é um fato que não sabemos orar como pida. Os crentes predestinados foram objeto do
convém, isto quer dizer que não sabemos orar de amor de Deus desde toda a eternidade. Este amor
acordo com a vontade de Deus. Mas quando ora- não pode ser extinguido.
mos, Deus ouve a voz do Espírito Santo dentro
de nós. Às vezes ele geme, porque alguma coisa Por esta razão, Paulo declara com toda a convic-
não está certa em nós. O Espírito Santo é a grande ção: “Que diremos, pois, à vista destas coisas?
ajuda divina para a nossa vida de Santificação, e Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm
consequentemente, de perseverança. Até porque, 8.31). O que Paulo quer dizer é que se Deus fez
ele é o Espírito Santo. o mais difícil, por que não faria o mais fácil? Se
Jesus já morreu em nosso lugar, por que Deus não
terminaria a obra da salvação em nossas vidas?
Por isto, Paulo entende que nada pode nos sepa-
ELO DE AMOR INQUEBRÁVEL rar do amor de Cristo. Das sete experiências que
Paulo relatou, ele já tinha experimentado seis até
Após falar da atuação do Espírito, Paulo alarga aquele momento e pela sétima foi executado mais
ainda mais o entendimento da nossa segurança. tarde. Como Paulo, somos mais que vencedores
Ele diz: “Sabemos que todas as coisas cooperam em meio a estas coisas, ainda que nem sempre
para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles sejamos livrados delas. E o motivo é o seu amor,
que são chamados segundo o seu propósito” (Rm somos vencedores porque seu amor por nós per-
8.28). A prosperidade e a adversidade, a felicidade manece. Paulo diz: “Nem a morte”: Depois da
e o sofrimento, as intenções maldosas das pessoas morte, estaremos com Deus. “Nem a vida”: Ape-
contra os crentes, os anjos bons e os anjos maus, sar das distrações da vida, podemos estar com
as nações, os governos, a chuva, as montanhas, as Deus. “Nem anjos”: Os anjos bons têm a função
nuvens, as estrelas, etc., tudo o que acontece, ain- de nos ajudar. “Nem principados”: Os anjos maus
da que seja mau a princípio, será transformado tentam, mas não podem nos afastar. “Nem pre-
em bem para aqueles que amam a Deus. sente, nem futuro”: Os acontecimentos não nos
fazem perder o amor de Deus e a salvação. “Nem
Na sequência do texto de Romanos, Paulo diz: “E poderes”: Podem ser poderes de espíritos ou de
aos que predestinou, a esses também chamou; e pessoas, mas não são mais fortes que o amor de
aos que chamou, a esses também justificou; e aos Deus. “Nem altura, nem profundidade”: Acima
que justificou, a esses também glorificou” (Rm ou abaixo, estamos seguros. “Nenhuma outra
8.30). Como já estudamos, há uma ordem no
70

criatura poderá nos separar do seu amor”: Nem o selo do Espírito Santo que funciona como um
nós mesmos. penhor da nossa salvação (Ef 1.13-14). Para que
perdêssemos a salvação teríamos que voltar à an-
Uma vez salvos sempre salvos. Nada pode fazer tiga condição de morte espiritual. Mas, imagine
com que percamos a salvação, pois nada pode nos que tipo de regeneração seria essa que o Espírito
separar do amor de Deus.Nós somos vencedores Santo realizaria na vida de alguém, ressuscitan-
na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na do-o e dando-lhe vida eterna, a qual a pessoa po-
riqueza e na pobreza, na guerra e na paz. Só os deria de alguma forma perder e voltar a morrer.
crentes são mais que vencedores, pois somente Então, não seria de fato vida eterna. Será que nós
eles possuem a obra do Espírito Santo em suas vi- podemos cometer suicídio espiritual? Certamen-
das, somente para eles todas as coisas cooperam te que não, pois Pedro diz que nós temos sido “re-
para o bem, somente eles têm recebido uma sal- generados não de semente corruptível, mas de in-
vação perfeita, e nada nesse mundo poderá fazer corruptível” (1Pd 1.23). A Bíblia fala em “nascer
com que percam isso. de novo”, mas graças a Deus, não fala em “mor-
rer de novo”. Do mesmo modo, a Bíblia diz que
Deus “nos libertou do império das trevas e nos
transportou para o reino do Filho do seu amor”
A VERDADEIRA SEGURANÇA (Cl 1.13). O verbo “libertou” está num tempo
verbal grego que representa uma ação simples e
Muitos acham que depende apenas de si mesmos definitiva realizada no passdo, é uma ação feita
a tarefa de manter a salvação. Para estes bem cabe de uma vez por todas. Fomos libertados desse im-
a repreensão que Paulo fez aos Gálatas: “Sois as- pério amaldiçoado e transportados para o reino
sim insensatos que, tendo começado no Espírito, de Jesus. Se pudéssemos nos converter e nos des-
estejais, agora, vos aperfeiçoando na carne?” (Gl converter a cada momento, é como se ficássemos
3.3). De fato, essas pessoas veem sua salvação em o tempo todo saindo e voltando ao Império das
termos de uma decisão que fizeram, e baseiam a Trevas.
certeza de sua salvação sobre a inconstante areia
da vontade humana. Imagine que vida terrível é Os crentes, através de Jesus foram feitos filhos de
essa. Ter seu destino eterno pendurado no fino Deus (Jo 1.12; Gl 4.6). Se Deus é nosso Pai, e se
cordão da vontade humana, que pode se rom- nós fomos legalmente adotados em sua família
per a qualquer momento, pois a vontade huma- por seu desígnio e vontade, como é que isso pode
na pode seguir um curso num minuto e mudá-lo ser quebrado? Certamente eu posso até viver al-
no seguinte. Mas é bom saber que as coisas não gum tempo longe de minha família, mas seria
precisam ser dessa forma. É bom saber que nos- possível eu dizer um dia para meu pai ou minha
so destino eterno não depende apenas de nossa mãe: Eu decidi que a partir de hoje não sou mais
inconstante vontade. É bom saber que Deus tem filho de vocês? Mãe, você não me deu à luz, e pai,
um programa, um projeto e um interesse todo es- você não me gerou. Ainda que dissesse algo as-
pecial em nossa vida, e que vai executá-lo, e isso sim, não mudaria o fato de que sou filho deles.
depende da vontade dele e não apenas da nossa. Que situação terrível se fosse possível num dia ser
filho de Deus, e no outro, do diabo.
Não devemos jamais buscar a certeza da nossa
salvação em nossas habilidades ou em nossa vida,
mas no selo que Deus pôs sobre as nossas vidas,
71

O CUIDADO DO PASTOR dos nossos, teriam permanecido conosco; toda-


via, eles se foram para que ficasse manifesto que
Os crentes são chamados de ovelhas pela Pala- nenhum deles é dos nossos” (1Jo 2.9). A ovelha
vra de Deus. Uma ovelha possui um pastor e esse verdadeira sempre volta aos braços do seu pastor,
pastor está aí com a função de cuidar da ovelha. ou porque o pastor foi atrás dela (Lc 15.4-6), ou
Ele trabalha para impedir que ela se perca. Cristo porque ela própria percebeu o erro e voltou (Lc
disse: “Eu sou o bom pastor; conheço as minhas 15.11-24). Na parábola do filho pródigo que se
ovelhas, e elas me conhecem a mim... e dou a vida afasta do pai e anda por caminhos tortuosos está
pelas minhas ovelhas” (Jo 10.14-16). Já dissemos muito clara a idéia de que tudo conspira para que
que a função de um pastor é defender e buscar a ele volte à casa do pai. É preciso lembrar que um
ovelha perdida. Cristo havia dito que o mercená- filho verdadeiro sempre volta à casa do pai, pois
rio não fazia isso, pois diante do lobo, o mercená- se ele é filho jamais poderá deixar de ser.
rio fugia. Um pastor verdadeiro não fugiria, antes
enfrentaria o lobo. Cristo é ainda mais do que um
pastor verdadeiro, ele é de fato o “supremo pas-
tor” (1Pd 5.4), pois deu a própria vida pelas suas O DOM DA PERSEVERANÇA
ovelhas. Pensar que ele poderia deixar que algu-
ma delas perecesse é um absurdo. De fato, o pró- A Escritura diz que “todo aquele que perseverar
prio Jesus já declarou: “E a vontade de quem me até o fim será salvo” (Mt 24.13). Berkhof diz que
enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os a Perseverança dos Santos tem o “sentido de que
que me deu” (Jo 6.39). O relacionamento de Cris- aqueles que Deus regenerou e chamou eficaz-
to com suas ovelhas funciona do seguinte modo: mente para um estado de graça não podem cair
“Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, eter- nem total nem definitivamente, mas certamente
namente, e ninguém as arrebatará da minha mão” perseverarão nele até o fim e serão salvos para
(Jo 10.28). A segurança eterna do crente não é toda a eternidade”.2 A perseverança é uma ben-
algo que depende dele próprio, mas do pastor que ção, pois é Deus quem a concede. Mesmo que o
cuida dele. Aqueles que consideram a possibilida- crente peque, ele sempre encontrará o perdão em
de de uma verdadeira ovelha de Cristo se perder Deus. Segundo a Escritura há apenas um pecado
para sempre, desconsideram a capacidade do pas- que não tem perdão, o “pecado contra o Espírito
tor em cuidar de suas ovelhas. Santo”. Jesus disse que quem blasfemasse contra
o Espírito não poderia ser perdoado (Mt 12.31).
É possível que como ovelhas de Cristo, em algum
momento nos afastemos dele, e nos tornemos João também fala de um pecado a respeito do
ovelhas perdidas. Isso será terrível para nós, mas qual não se deve sequer orar: “Se alguém vir a
ele nunca deixará de nos vigiar. Nunca permitirá seu irmão cometer pecado não para morte, pedi-
que nos afastemos para longe do alcance do seu rá, e Deus lhe dará vida, aos que não pecam para
braço. Todos podem ter um momento de fraque- morte. Há pecado para morte, e por esse não digo
za na vida, mas uma coisa é pecar, outra é cometer que rogue” (1Jo 5.16). O pecado que João tem
apostasia. João disse que muitas pessoas haviam em mente só pode ser o pecado contra o Espí-
deixado a igreja em seu tempo, porém, segundo rito Santo, pois é o único que não pode ser per-
o Apóstolo: “Eles saíram de nosso meio; entretan- doado. João continua: “Toda injustiça é pecado,
to, não eram dos nossos; porque, se tivessem sido
2 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p 549.
72

e há pecado não para morte” (1Jo 5.17). Embora de que ela não era regenerada”.3 É preciso perseve-
toda injustiça seja pecado, todos os pecados po- rar até o fim, mas isso não significa que uma pes-
dem ser perdoados, mas, João continua tendo em soa não possa ter certeza da própria salvação. Ela
mente um pecado que não tem perdão, e por isso pode, e sua maior certeza é o testemunho interior
declara: “Sabemos que todo aquele que é nasci- do Espírito Santo. Paulo diz em Romanos 8:16: “O
do de Deus não vive em pecado; antes, Aquele próprio Espírito testifica com o nosso espírito que
que nasceu de Deus o guarda, e o Maligno não somos filhos de Deus”. A certeza de nossa salva-
lhe toca” (1Jo 5.18). Literalmente João disse que ção vem primariamente de dentro, porém, há mais
quem nasceu de Deus não peca. Os tradutores elementos que ajudam, são as evidências ou frutos
da Bíblia entenderam que se traduzissem assim da salvação. Nesse sentido, vida transformada, co-
estariam fazendo a Bíblia se contradizer, e o pró- ração regenerado, constante arrependimento e fé,
prio João, pois ele havia dito antes que os crentes são provas bastante conclusivas a respeito da sal-
pecavam (Ver 1Jo 1.8; 2.1). Por isso, interpreta- vação. Embora exista a possibilidade de que uma
ram o tempo presente do verbo para dar a ideia pessoa seja salva mesmo sem evidenciar os frutos,
de continuidade, o que é correto. O caso, porém, como no caso do ladrão na cruz que nem teve tem-
é que parece que João está falando de um pecado po para isso, nunca devemos nos esquecer da nossa
que, se alguém cometer, estará condenado e longe responsabilidade. Jesus disse: “Aquele, porém, que
até mesmo do alcance da oração. João quer dizer perseverar até o fim, esse será salvo” (Mt 24.13;
que, aqueles que são verdadeiramente nascidos Ver Lc 21.19; Hb 10.36). Do mesmo modo, confiar
de Deus não pecam, ou seja, não cometem esse numa suposta conversão acontecida no passado,
pecado. E a razão não está neles mesmos, mas no mas que não produz resultado no presente, é como
fato de que Deus os guarda e o maligno não pode diz Strong “confiar no valor da apólice do seguro
tocá-los. Isso confirma a ideia de que a nossa de vida para o qual não foram pagos os prêmios
perseverança é um Dom de Deus. Judas diz que por vários anos”.4 É verdade que a apólice pode ser
Deus é aquele que é poderoso para nos guardar paga por causa da graça de Deus, mas desleixo não
de tropeços e para nos apresentar com exultação, combina com graça.
imaculados diante da sua glória (Jd 24).
Não somos fatalistas. Uma vez salvo sempre salvo
Apesar de todo esse ensino sobre a segurança da somente tem valor se alguém se tornou um filho de
nossa salvação, não devemos pensar que não te- Deus. E para ser salvo é preciso que evidencie em
mos nenhuma responsabilidade, e que seremos sua vida os frutos dessa salvação. Devemos confiar
salvos de qualquer jeito, independente de nossas que somos salvos, e enquanto trabalhamos, somos
atitudes. Para que sejamos salvos, precisamos de capacitados, pelo Espírito que está em nós, a per-
perseverança. Foram os puritanos que cunharam manecer fiel. É verdade que o pecado sempre esta-
o termo “perseverança dos santos”. Eles fizeram rá à nossa porta, entretanto, sua graça sempre nos
isso justamente para não deixar a impressão de ajudará, e por mais endurecidos que possamos es-
que alguém poderia estar seguro eternamente tar em certas situações, se formos de fato “ovelhas
de sua salvação se não perseverasse. Uma pessoa do seu pasto”, Jesus não desistirá de nós (Sl 79.13;
precisa perseverar até o fim para que fique evi- Ez 34.31). A certeza da salvação é uma bendita es-
denciado que era de fato salva. Como diz Mc-
Gregor Wright, “uma pessoa que abandona a fé 3 R. C. McGregor Wright. A Soberania Banida, p. 149.
apenas proporciona ao observador a evidência 4 Augustus H. Strong. Teologia Sistemática, vol, 2 p.
631.
73

perança, é algo que, como diz Schaeffer, nos “enche


de alegria, de modo que não tenhamos que ir para
a cama todas as noites repassando os eventos do
dia e perguntando-nos ‘será que eu ainda continuo
salvo, ou será que eu me perdi?”.5 Poderemos re-
passar os eventos para agradecer as bençãos e pe-
dir perdão pelos pecados, e depois, dormir em paz,
seguros na mão poderosa do pastor celeste.

5 Francis Schaeffer. A Obra Consumada de Cristo, p.


232.
74

PNEUMATOLOGIA
A DOUTRINA DO ESPÍRITO
SANTO
75

10

A PESSOA DO ESPÍRITO SANTO

INTRODUÇÃO sopro de vida e de paz que preenche a vida e eleva


o nosso cotidiano. Essa “doce presença” inunda a
Jesus disse: “O vento sopra onde quer, ouves a sua existência do filho de Deus, e o leva a ter um re-
voz, mas não sabes donde vem, nem para onde lacionamento tão íntimo com Deus, quanto uma
vai; assim é todo o que é nascido do Espírito” (Jo criancinha pode ter com seu pai (Rm 8.15).
3.8). Ele destacou a existência do Espírito como
análoga ao vento, demonstrando sua invisibilida-
de, sua imprevisibilidade, e ao mesmo tempo sua
existência real e abençoadora. A palavra vento e a UMA PESSOA ESQUECIDA?
palavra Espírito são exatamente a mesma na lín-
gua grega1, e portanto, Jesus está fazendo um jogo Por outro lado, percebe-se que há muitos enga-
de palavras nesse texto. Quando pensamos no Es- nos a respeito da pessoa e da obra do Espírito
pírito como alguém semelhante ao vento, enten- Santo dentro do cristianismo. Se por séculos, o
demos um pouco sobre quem ele é. Jesus disse: cristianismo pouco falou a respeito do Espírito,2
“O vento sopra onde quer”. Quem pode controlar
2 No início da igreja, a preocupação principal foi
o vento? Também ninguém pode controlar o Es- com a pessoa de Cristo, embora o Espírito Santo tenha rece-
pírito. Em seguida disse: “Ouves a sua voz, mas bido atenção. Durante a Reforma, a obra do Espírito Santo
não sabes de onde vem, nem para onde vai”. De foi enfatizada, especialmente por Calvino, que redescobriu
o papel do Espírito na aplicação da salvação. Mas nos estu-
alguma forma, podemos senti-lo, embora não dos posteriores da Teologia Sistemática, a pessoa e a obra
possamos vê-lo, nem entendê-lo. Todos os crentes do Espírito nem sempre mereceram uma seção própria.
sabem quem é o Espírito Santo. Ninguém precisa Geralmente foi estudado junto com a Trindade ou dentro
descrevê-lo para eles, até porque, ninguém conse- da Soteriologia. Sinclair B. Ferguson, no entanto, entende
que o Espírito Santo não ficou esquecido nos escritos dos
guiria. Todo crente sabe o que é esse maravilhoso grandes teólogos, pois Calvino, Owen, Kuyper e outros se
dedicaram à abordagem da doutrina do Espírito Santo, o
1 No grego é a palavra “pneuma”. No hebraico “rua- que concordamos prontamente (Ver Sinclair B. Ferguson,
ch” é espírito e também é vento. O Espírito Santo, p. 9-10).
76

o século vinte foi um verdadeiro despertar para pessoa da Trindade, têm negado sua personali-
o Espírito. Isso se deu basicamente por causa dos dade. Preferem pensar nele como uma “força” ou
movimentos carismáticos que surgiram no início uma “energia” de Deus, como algo impessoal que
do século e se estenderam em sucessivas reno- Deus emite para realizar seus planos no mundo.
vações até o fim do século vinte. Hoje, as igrejas Embora o Espírito Santo realmente seja aquele
pentecostais e neo-pentecostais são maioria ab- que realiza os planos de Deus no mundo, negar
soluta em vários países do mundo, inclusive no sua personalidade é negar o ensino bíblico.
Brasil. O termo “pentecostal” é uma referência
aos acontecimentos do dia de Pentecostes, quan- Em seguida analisaremos algumas passagens que
do o Espírito Santo desceu sobre os discípulos e demonstram que o Espírito Santo é uma pessoa.
eles passaram a falar em línguas estranhas (At São textos que demonstram que ele tem habilida-
2). Supostos movimentos espirituais têm causa- des próprias de uma personalidade. Como disse
do divisões e esfacelamento em denominações Sproul “uma personalidade inclui inteligência,
cristãs que tinham peso de séculos de existência. vontade, individualidade. Uma pessoa age por in-
Na “onda do Espírito” as pessoas têm tido as mais tenção. Nenhuma força abstrata pode tencionar
diversas e até aberrantes manifestações suposta- fazer qualquer coisa. Boas ou más intenções são
mente espirituais. No outro extremo, muitos cris- limitadas aos poderes de seres pessoais”.3 Todas
tãos evitam todo tipo de manifestação espiritual, essas coisas podem ser vistas nas descrições que a
afastando-se completamente de tudo o que possa Bíblia faz sobre o Espírito Santo. Falar é proprie-
ter conotação carismática, e às vezes, vivem uma dade da personalidade, pois uma força não fala. O
vida de frieza e indiferença em relação às coisas Espírito falou com Filipe, conforme Lucas regis-
de Deus. trou: “Então, disse o Espírito a Filipe: Aproxima-te
desse carro e acompanha-o” (At 8.29). O Espírito
Nesse estudo, consideraremos a personalidade queria que Filipe pregasse o Evangelho ao eunu-
divina do Espírito, o significado de sua vinda, o co, e o levou até ele e ordenou que falasse com
batismo realizado por ele, e a diferença que ele ele. Uma força não faria isso. Da mesma forma,
produz na vida das pessoas. O objetivo é resgatar o Espírito falou com Pedro: “Disse-lhe o Espírito:
o ensino bíblico e o equilíbrio sobre a pessoa e a Estão aí dois homens que te procuram; levanta-te,
obra do Espírito Santo na teoria e na prática da pois, desce e vai com eles, nada duvidando; por-
vida cristã. que eu os enviei” (At 10.19-20). Nesse caso, não
só falou como deu instruções claras e precisas. Da
mesma forma, Paulo e Barnabé foram chamados
pela ordem do Espírito: “Disse o Espírito Santo:
A PERSONALIDADE DO ESPÍRITO Separai-me, agora, Barnabé e Saulo para a obra a
que os tenho chamado” (At 13.2). Aqui ele chama
É impossível entendermos quem é o Espírito San- e demonstra preferência, como também faz nou-
to se não o considerarmos como uma Pessoa. A tra ocasião quando desejam “ir para Bitínia, mas
Escritura demonstra claramente que o Espírito o Espírito de Jesus não o permitiu” (At 16.7). Ter a
Santo é uma pessoa, mas não faltaram hereges capacidade de ensinar também é obra de alguém
na história da igreja que negaram isso. Desde os que tem personalidade. Jesus disse: “Mas o Con-
tempos mais primitivos, pessoas relutantes em
aceitá-lo como Deus, e também como a terceira
3 R. C. Sproul. O Mistério do Espírito Santo, p. 17.
77

solador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará


cia, pois Isaías pergunta: “Quem guiou o Espírito
em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas
do senhor? Ou, como seu conselheiro, o ensinou?
e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito”
Com quem tomou ele conselho, para que lhe des-
(Jo 14.26). Também disse que ele testemunharia:
se compreensão? Quem o instruiu na vereda do
“Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos
juízo, e lhe ensinou sabedoria, e lhe mostrou o
enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade,
caminho de entendimento?”. E Paulo diz que o
que dele procede, esse dará testemunho de mim”
Espírito “a todas as coisas perscruta, até mesmo
(Jo 15.26). Mais à frente, Jesus reiterou: “Quando
as profundezas de Deus” (1Co 2.10). Sua Onipre-
vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará
sença pode ser vista no Salmo 139:7-8 “Para onde
a toda a verdade; porque não falará por si mesmo,
me ausentarei do teu Espírito? Para onde fugirei
mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará
da tua face? Se subo aos céus, lá estás; se faço a
as coisas que hão de vir” (Jo 16.13). Todas essas
minha cama no mais profundo abismo, lá estás
capacidades de ensinar, testemunhar e guiar são
também”. O fato ainda de que o nome do Espírito
coisas exclusivas de uma personalidade. Imaginar
Santo apareça junto com o nome do Pai e com o
que uma força impessoal fosse capaz de realizar
nome do Filho na fórmula batismal (Mt 28.19),
essas coisas não faz sentido.
e na bênção apostólica (2Co 13.13), demonstra a
igualdade entre as três pessoas da Trindade, e nos
O Novo Testamento fala ainda sobre a questão
leva a considerar a divindade do Espírito Santo.
de não pecar contra o Espírito Santo (Mt 12.31),
do perigo de resistir ao Espírito Santo (At 7.51),
De todos, o texto que mais claramente aponta a
e do dever de não entristecer o Espírito Santo (Ef
divindade do Espírito Santo é Atos 5.3-4: “Então,
4.30). Como diz Sproul: “ele nos é apresentado
disse Pedro: Ananias, por que encheu Satanás teu
como uma pessoa a quem podemos agradar ou
coração, para que mentisses ao Espírito Santo, re-
ofender, que pode amar e ser amado e com quem
servando parte do valor do campo? Conservan-
podemos ter comunhão pessoal”.4 Todas essas
do-o, porventura, não seria teu? E, vendido, não
coisas são próprias apenas de uma pessoa. Por-
estaria em teu poder? Como, pois, assentaste no
tanto, o Espírito Santo não é uma força ou uma
coração este desígnio? Não mentiste aos homens,
energia, ele é uma pessoa, uma pessoa divina.
mas a Deus”. Na conhecida história em que Ana-
nias e Safira vendem seu campo, mas resolvem
entregar apenas metade do preço, Pedro disse que
eles estavam mentindo “ao Espírito Santo”, e dessa
A DIVINDADE DO ESPÍRITO
forma, não mentiram aos homens, “mas a Deus”.
Alguns textos poderão nos dar uma breve descri- Se mentir ao Espírito Santo é mentir a Deus, en-
ção do que a Escritura considera ser a divindade tão, o Espírito Santo é Deus.
do Espírito Santo. A divindade do Espírito Santo
fica demonstrada pela Bíblia no fato de que ele
possui atributos divinos. Ele desempenhou papel
A VINDA DO ESPÍRITO
importante na criação (Gn 1.2), e desempenha
na providência (Sl 104.30). Isso nos fala de sua
A vinda do Espírito marcaria uma nova era para
onipotência. Também percebemos sua Onisciên-
o mundo, e especialmente para a igreja. Há muito
4 R. C. Sproul. O Mistério do Espírito Santo, p. 19. tempo Deus vinha anunciando através dos pro-
78

fetas a chegada de uma era espetacular. Essa era servas derramarei o meu Espírito naqueles dias”
foi identificada como um derramamento especial (Jl 2.28-29).
do Espírito Santo. Apesar do Espírito já estar em
atividade durante todo o período do Antigo Tes- Toda a expectativa sobre o derramamento do Es-
tamento, como disse Stott, “mesmo assim, alguns pírito pode ser vista nas palavras de João Batista
profetas predisseram que nos dias do Messias, no início de seu ministério: “Eu vos tenho batiza-
Deus concederia uma difusão liberal do Espíri- do com água; ele, porém, vos batizará com o Espí-
to Santo, nova e diferente, bem como acessível a rito Santo” (Mc 1.8). João Batista anunciou que a
todos”.5 profecia do Antigo Testamento, sobre o derramar
do Espírito Santo, logo se cumpriria na pessoa da-
Isaías profetizou que depois de um tempo de quele a quem ele anunciava, o Senhor Jesus Cristo.
muita destruição para o povo de Israel, onde os E o próprio Senhor, após a sua ressurreição, disse
palácios seriam abandonados, as cidades ficariam aos Apóstolos: “Eis que envio sobre vós a promes-
desertas, as torres seriam destruídas, finalmente, sa de meu Pai; permanecei, pois, na cidade, até
Deus derramaria o “Espírito lá do alto”; então, que do alto sejais revestidos de poder” (Lc 24.49).
toda uma renovação aconteceria (Is 32.14-15). Jerusalém seria o local onde finalmente o Espíri-
Esse derramar do Espírito passou a ser uma das to prometido viria. Bruner enfatiza a importân-
grandes expectativas escatológicas do povo de cia de Jerusalém nesse ponto: “Para receberem o
Deus. Isaías fala ainda: “Porque derramarei água Espírito Santo, os apóstolos são ordenados a não
sobre o sedento e torrentes sobre a terra seca; der- se ausentarem de Jerusalém. Jerusalém, no con-
ramarei o meu Espírito sobre a tua posteridade e ceito de Lucas, será o local do penúltimo evento
a minha bênção, sobre os teus descendentes” (Is da história da salvação antes do último evento: a
44.3). volta de Cristo”.6 Jerusalém é a cidade escolhida
para que a antiga profecia se cumpra, e assim, o
Ezequiel foi ainda mais específico sobre esse Espírito prometido venha sobre o povo escolhido.
derramamento: “Então, aspergirei água pura so-
bre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas Por isso, no dia do Pentecostes, Pedro claramente
imundícias e de todos os vossos ídolos vos puri- entendeu que a promessa havia se cumprido. Per-
ficarei. Dar-vos-ei coração novo e porei dentro cebemos isso por suas palavras: “Mas o que ocor-
de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de re é o que foi dito por intermédio do profeta Joel:
pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que
de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus derramarei do meu Espírito sobre toda a carne”
estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis” (At 2.1617). Sobre essa base, ele teve a coragem
(Ez 36.27). de proclamar à multidão que o ouvia: “Arrepen-
dei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome
E Joel fala da amplitude desse derramamento: “E de Jesus Cristo para remissão dos vossos peca-
acontecerá, depois, que derramarei o meu Espíri- dos, e recebereis o dom do Espírito Santo. Pois
to sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas para vós outros é a promessa, para vossos filhos
profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jo- e para todos os que ainda estão longe, isto é, para
vens terão visões; até sobre os servos e sobre as quantos o Senhor, nosso Deus, chamar” (At 2.38-
39). O perdão dos pecados e o dom do Espírito
5 John Stott. Batismo e Plenitude do Espírito Santo,
p. 17 6 F. D. Bruner. Teologia do Espírito Santo, p. 126
79

eram promessas divinas que haviam acabado de para o povo de Deus do que ter, não um, mas dois
se cumprir naquele dia. A última expressão de “consoladores”.
Pedro de que a promessa era para todos os que
“Deus chamar”, aponta para o aspecto universal Por várias vezes Jesus advertiu seus discípulos de
da promessa do Espírito. Joel já havia dito que o que precisava partir. Um dos motivos principais
derramamento seria sobre todo tipo de pessoas, é que somente após sua partida poderia enviar
incluindo jovens, velhos, homens, mulheres, ser- o outro Consolador (Ver Jo 7.38-39). Enquanto
vos e servas (Jl 2.29). Independente de idade, Jesus não fosse glorificado, o Espírito Santo não
sexo, raça e classe social, o dom incluía todos os poderia ser enviado, por isso Jesus disse aos dis-
que se arrependessem e cressem.7 Agora Pedro cípulos: “Mas eu vos digo a verdade: convém-vos
começa a alargar ainda mais a tenda, pois começa que eu vá, porque, se eu não for, o Consolador
a antever a possibilidade de que outros povos se- não virá para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-
jam incluídos. -lo enviarei” (Jo 16.7). Era necessário que Cristo
subisse aos céus e se assentasse à direita do trono
de Deus, e assim glorificado, enviasse o Espírito
Santo aos discípulos.

O OUTRO CONSOLADOR Era muitíssimo necessário que o Espírito viesse.


Além de substituir Jesus, ele teria funções extras.
Mas, para que o Espírito fosse enviado, Jesus pre- Seria sua função lembrar aos discípulos as coi-
cisaria consumar a sua obra primeiro. Jesus esteve sas que Jesus havia dito (Jo 14.26). Também fazia
com os discípulos por cerca de 3 anos. Ele precisa- parte de sua obra convencer o mundo do peca-
va partir para o santuário celestial onde continua- do da justiça e do juízo (Jo 16.8). Em tudo isto, o
ria sua obra de intercessão pelo seu povo até o úl- Espírito não agiria de forma independente, pois
timo dia, mas os discípulos não ficariam sozinhos sua função era glorificar o próprio Jesus, exaltan-
nesse ínterim, pois Jesus disse: “Eu rogarei ao Pai, do sua pessoa, seu poder e sua obra (Jo 16.14).
e ele vos dará outro Consolador” (Jo 14.16). Jesus Esse é um ponto de máxima importância, pois é
foi o grande consolador de seus discípulos. A pa- comum, nos dias atuais, as pessoas enfatizarem
lavra grega para consolador é parakletos, e signi- mais a pessoa e a obra do Espírito Santo do que
fica literalmente “aquele que está ao lado de”. Mas a do Pai e a do Filho. É verdade que o Espírito
agora, ele precisava partir e não poderia mais per- Santo não foi considerado como devia ao longo
manecer ao lado de seus discípulos. Entretanto, da história da igreja, porém, é um erro querer en-
não deixaria seus discípulos sozinhos, pois man- fatizar a obra do Espírito acima da obra de Jesus.
daria um companheiro para seus amigos: o Espí- A função do Espírito seria a de testemunhar de
rito Santo. A partir daquele momento Jesus seria Jesus. Jesus disse: “Ele me glorificará, porque há
o consolador (parakletos) no céu (1Jo 2.1), inter- de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar”
cedendo por seus discípulos de lá, enquanto que o (Jo 16.14).
Espírito seria o consolador (parakletos) na terra,
também intercedendo e cuidando dos discípulos Lloyd-Jones tem algumas palavras interessantes
aqui (Rm 8.26). Não poderia haver bênção maior nesse sentido: “Ao meu ver, esta é uma das coi-
sas mais espantosas e extraordinárias acerca da
7 Ver John Stott. Batismo e Plenitude do Espírito doutrina bíblica sobre o Espírito Santo. Ele pare-
Santo, p. 20. ce esquivar-se e ocultar-se. Ele está sempre, por
80

assim dizer, focalizando o Filho”.8 De fato, a obra todo o ministério público de Jesus, eles esperaram
do Espírito Santo não é glorificar a si mesmo. Ele pela manifestação física, políticoinstitucional
é como um holofote, sua função é iluminar, mas deste reino. Lembramos que a nação de Israel era
não a si mesmo, e sim a pessoa de Jesus. Ele quer dominada pela poderosa Roma, e frequentemen-
glorificar o Senhor Jesus, nos dando conheci- te apareciam “libertadores” que arrastavam um
mento dele e de seu amor por nós. Por essa razão, pouco de povo para enfrentar de maneira suicida
Lloyd-Jones está certo em afirmar que podemos os poderosos exércitos romanos. A maior espe-
saber o quanto temos do Espírito de acordo com rança de Israel estava na vinda do Messias, o pro-
o quanto consideramos o Senhor Jesus.9 Como as metido desde os tempos mais remotos do Antigo
pessoas não têm olhado para essa obra do Espí- Testamento. Todos esperavam que ele libertasse
rito, e têm focalizado excessivamente nele como a nação da escravidão e a estabelecesse como um
um “fim em si mesmo”, podemos dizer que ele reino próspero diante do qual todos os reinos da
continua esquecido, muito embora as livrarias terra teriam que se prostrar. Os discípulos acredi-
estejam cheias de livros a respeito do poder e da tavam que Jesus fosse o Messias, e portanto, espe-
influência vencedora do Espírito. ravam que ele, de alguma forma tomasse o poder,
assentasse no trono e restabelecesse a monarquia
Jesus disse que o Espírito Santo seria enviado absoluta de Israel. Todas essas esperanças dos dis-
para estar sempre com os discípulos, ou seja, eles cípulos se acabaram com a morte de Jesus, entre-
não poderiam viver sem este Espírito. Isso nos tanto se reacenderam extraordinariamente com a
fala da importância do Espírito Santo para a vida ressurreição.
do crente. Não dá para conceber um crente sem o
Espírito Santo, pois ele é absolutamente vital para Em Atos 1.6, os discípulos se dirigem a Jesus e pe-
que o crente conheça Jesus e receba a salvação. dem: “Senhor, será este o tempo em que restaures
Um crente sem o Espírito Santo em hipótese al- o reino a Israel?”. Jesus respondeu que a eles não
guma pode ser crente verdadeiro, pois a presença seria dado conhecer tempos (cronos) e épocas
do Espírito Santo na vida dos discípulos é a ga- (kairós) que o Senhor havia reservado exclusiva-
rantia de que, de fato, conhecem a Jesus e perten- mente para ele, mas, promete mandar o Espírito
cem a ele (Ver Rm 8.9, Ef 1.13-14). Santo que faria deles testemunhas cheias de poder
em todo o mundo. Ele capacitaria a igreja a de-
sempenhar seu papel no mundo. A igreja seria o
instrumento para o estabelecimento do Reino de
NO PODER DO ESPÍRITO Deus, porém, seria um reino diferente, pelo me-
nos, até a Segunda Vinda de Jesus.
Finalmente, devemos considerar a missão do Es-
pírito Santo. Ele foi enviado para capacitar a igre- Ao dar esta resposta aos discípulos, Jesus estava
ja a fim de desempenhar a tarefa de propagar o lhes ensinando algo muito importante. Em pri-
Reino de Deus. Quando lemos o Novo Testamen- meiro lugar a restauração do reino (se é que ha-
to, percebemos que até o Pentecostes, os discípu- veria alguma restauração da forma como eles es-
los nunca haviam entendido realmente qual era peravam) não era assunto para aquele momento.
a ligação entre Jesus e o reino de Deus. Durante Aproximava-se o instante da partida de Jesus, mas
ele tinha planos grandiosos para seus discípulos,
8 D. M. Lloyd-Jones. Deus o Espírito Santo, p. 31. entretanto eles precisavam entender o caráter do
9 D. M. Lloyd-Jones. Deus o Espírito Santo, p. 31.
81

Reino de Deus que se manifestava naquele mo- Quando falamos em resultado, estamos dizendo
mento. Em várias ocasiões, quando interrogado, que a obra do Reino alcança resultados visíveis.
Jesus explicou que o Reino de Deus já estava no Para exemplificarmos isso, basta lembrarmos que
meio do povo. Entendemos que ele se fazia pre- até o dia do Pentecostes havia 120 pessoas que se
sente na pessoa, na obra e no ensino do Messias. denominavam discípulos, e naquele mesmo dia
Dessa forma o reino poderia estar dentro de cada foram acrescentadas mais três mil (At 2.41). Pou-
um (Lc 17.21). A expansão do reino espiritual era co tempo depois o número subiu para cinco mil
matéria para aquele momento e não de um reino (At 4.4). Deus autenticou a obra deles conferindo
físico. O reino físico ficaria para o futuro, e seria resultados.
a consumação do reino espiritual. Os discípulos
seriam responsáveis pela tarefa de expandir o rei- Nessa mesma perspectiva Jesus disse que a vinda
no espiritual e para garantir que ela teria êxito, do Espírito Santo faria dos discípulos testemu-
lhes seria mandado o Espírito Santo como fonte nhas dele. Quando pensamos numa testemunha
de poder. precisamos ter três coisas em mente. Em primeiro
lugar diz respeito a alguém que presenciou fatos.
Entre os benefícios poderosos que o Espírito San- Uma testemunha é alguém que esteve presente e
to concederia àqueles homens estava o entendi- pôde verificar a exatidão de certos acontecimen-
mento, a ousadia e a garantia de resultados. Basta tos. Os discípulos possuíam essa característica.
comparar a vida deles antes do Pentecostes com a Haviam presenciado tudo o que aconteceu e, por
depois, para ver como isso fez diferença. O enten- mais extraordinário que pudesse parecer, eles ti-
dimento pode ser visto pela mudança que ocorreu nham certeza absoluta de que tudo era verdade.
neles. Eles não entendiam bem como funcionava Em segundo lugar uma testemunha é alguém
a questão do Reino de Deus naquele momento, que fala a respeito daquilo que viu. Alguém que
porém, mais tarde escreveram cartas que foram testemunhou, mas que não manifesta por medo
e continuam sendo o fundamento teológico da ou falta de vontade não é uma testemunha ver-
igreja. Mas não foi apenas entendimento que o dadeira. O Espírito lhes capacitou para testemu-
Espírito Santo concedeu aos discípulos, ele lhes nharem. Porém, em terceiro lugar, e talvez seja a
deu também ousadia. Sabemos que os discípu- maior característica da testemunha, ela sustenta
los eram inconstantes durante a vida de Jesus e seu testemunho até o fim. A própria palavra “tes-
principalmente durante sua prisão e execução. temunho” na língua grega é martyres donde vem
Temiam por suas próprias vidas e preferiam se o significado moderno de mártir. O mártir está
esconder dos sacerdotes a enfrentá-los (Ver Jo disposto a morrer por aquilo que fala. Nada me-
20.19). Entretanto, que mudança poderosa se nos do que isso pode ser chamado de testemunha,
operou na vida daqueles amedrontados discípu- e somente a presença do Espírito Santo poderia
los! Basta dar uma olhada no livro de Atos para habilitar os amedrontados discípulos a se torna-
ver o quanto suas vidas foram transformadas e rem valorosos mártires (testemunhas) do Senhor
com que ousadia falavam sobre Jesus, a ponto de Jesus. Num resumo, para ser testemunha é neces-
não temerem os castigos, as afrontas, ou a pró- sário experimentar, falar e sustentar o testemu-
pria morte (Ver At 2.14-36; 4.1-22; 5.17-42). Po- nho até o fim. O Espírito é a grande testemunha
rém, de nada adiantaria os discípulos receberem de Cristo, e fez os discípulos serem testemunhas
entendimento e ousadia, se o Espírito Santo não também (Jo 15.26-27).
autenticasse a obra deles conferindo resultado.
82

Jesus ampliou grandemente o horizonte dos dis-


cípulos. Eles estavam pensando num reino res-
trito a Israel, mas Jesus disse que pretendia que
este reino se estendesse até aos confins da terra.
E esta expansão seria feita através deles. É certo
que começariam em Jerusalém a nas circunvizi-
nhanças da Judéia, mas depois se estenderiam até
a desprezada Samaria e por fim alcançariam os
lugares mais longínquos da terra. A responsabili-
dade desta obra e a eficácia do Espírito Santo não
foram outorgadas apenas aos discípulos que esta-
vam reunidos naquele dia em Jerusalém, pois se
estendem a todos os crentes até a vinda de Jesus.
Esse mesmo Espírito está presente na vida das
pessoas, regenerando-as, guiando-as à verdade,
dando poder para viverem uma vida fiel, sendo
poderosas testemunhas de Cristo. É muito discu-
tível que o Espírito esteja realmente presente nos
lugares onde há divisões, concorrência espiritual,
aberrações e outras coisas semelhantes que têm
se tornado tão comuns entre os evangélicos. Essas
pessoas deveriam voltar à Palavra de Deus, e de-
senvolver uma vida equilibrada, com um alvo de
santidade e testemunho de Jesus. Por outro lado,
também aqueles que evitam toda manifestação
espiritual deveriam reconsiderar se não estão
perdendo tempo em discussões de importância
secundária, e se, por tanto medo do falso, não es-
tão fechando as portas para o verdadeiro Espírito,
que age onde quer e como quer (Jo 3.8).
83

11

O ESPÍRITO E O ANTIGO
TESTAMENTO

INTRODUÇÃO cio do mundo? Sendo o Espírito Santo a terceira


pessoa da Trindade, não devemos pensar que ele
Desde o Antigo Testamento, sempre houve uma estivesse inativo durante todo esse tempo. Jesus
promessa divina de enviar o Espírito Santo a fim disse aos discípulos que enviaria o Espírito Santo
de iniciar uma era diferente, a Era do Espírito. O (Lc 24.49), e que eles deveriam esperar essa vin-
Espírito viria habitar de forma mais plena e uni- da. Precisamos entender em que sentido a vinda
versal o povo de Deus, que não mais seria limita- do Espírito caracterizaria uma novidade em rela-
do a uma nação, pois englobaria pessoas de todas ção à atuação do Espírito no Antigo Testamento.
as tribos, raças, línguas e nações. O momento
quando aquela promessa fosse cumprida seria
um momento ímpar, um momento único na his-
tória da salvação. O ESPÍRITO E A CRIAÇÃO

Se os profetas anunciaram um tempo especial Logo no início encontrarmos referência ao Es-


quando o Espírito seria derramado, isso signifi- pírito Santo na Bíblia. No segundo versículo do
ca que o Espírito não estava em atuação no An- livro do Gênesis somos informados que “A ter-
tigo Testamento? Quando pensamos no Espírito ra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas
Santo, logo nos lembramos do dia de Pentecostes sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pai-
quando Deus enviou o Espírito do céu, e ele en- rava por sobre as águas” (Gn 1.1-2). O texto de
cheu os discípulos de Jesus e os capacitou para a Gênesis 1.1-2 narra o início da criação de Deus.
tarefa de pregar o Evangelho em todo o mundo. Destacamos nesse texto a atuação da Trindade,
Sabemos que a partir daí a Igreja Cristã começou mas especialmente, atuação do Espírito Santo. O
a se desenvolver, e também que o Novo Testa- Espírito, segundo o texto, pairava sobre as águas.
mento passou a ser proclamado. Mas onde esta- A ideia é que ele estava ali “energizando” ou “in-
va o Espírito Santo durante o tempo do Antigo cubando” a terra. Ele serviu de instrumento pelo
Testamento? Qual foi a atuação dele desde o iní- qual Deus trouxe à existência as coisas que não
84

existiam. Isso nos mostra que o Espírito esteve beleza do seu coração pudesse encontrar reflexo.
em atuação desde o início do mundo. O primeiro Ele quis criar um mundo radiante, cheio de ale-
versículo do Gênesis narra a criação do universo gria, de luz, de propósito, onde cada coisa se en-
do nada: “No princípio, criou Deus os céus e a caixava no seu devido lugar, onde tudo tinha uma
terra”. Por seu imenso poder criador, Deus fez o precisão matemática, e nada, absolutamente nada
mundo passar a existir do nada (Hb 11.3). Mas fosse impróprio, feio, ou inútil. Deus tinha o pla-
quando Deus trouxe a terra à existência, ela não no de colocar nesta terra sua obra prima: o pró-
estava pronta. Ela não era própria para ser habita- prio homem. Ele queria que esse homem tivesse
da, somos informados que seu aspecto era infor- um relacionamento íntimo e pessoal consigo por
me e vazio. É aí que começou a obra do Espírito toda a eternidade. O plano de Deus não incluía o
Santo. A Bíblia diz que ele “pairava por sobre as caos, como Isaías 45.18 declara: “o Senhor criou
águas”. Ele pairava sobre a terra recém-criada que os céus, o único Deus que formou a terra, que
era “sem forma”, “vazia”, e somente habitada pelas a fez e a estabeleceu; que não a fez para ser um
“trevas”. Esses três elementos descrevem o estado caos, mas para ser habitada”.
da terra logo quando Deus a criou. Algo sem for-
ma nos dá uma ideia de algo inacabado e que ain- O projeto era grandioso, mas as dificuldades tam-
da não pode ser identificado. Quando Deus diz bém. Como transformar uma terra caótica, sem
que a terra era sem forma e vazia, está dizendo forma, vazia e coberta de trevas, num belo jardim
que ela não possuía nada daquilo que deveria ter. cheio de vida, luz e paz? A bíblia nos fala que o
Ela estava num caos. Na verdade, algumas bíblias Espírito de Deus começou a realizar esse trabalho
usam aqui a palavra caos para identificar o esta- através de sua atuação “pairando” sobre aquele
do em que a terra estava. As trevas dominavam caos. Alguns dizem que ele estava chocando, ou
a terra. Trevas estão intimamente associadas à incubando alguma coisa, como a galinha faz isso
própria morte. Quando não há luz, não há beleza, com os ovos. É possível que seja isso, mas a ideia
não há vida, não há nada. Assim era a terra no maior, é a ideia de que o poder de Deus estava
início. Não havia desígnio, nem beleza, nem vida presente sobre o caos, pronto, com toda a ener-
– apenas escuridão. Mas Deus não queria que as gia do Espírito de Deus, para transformar aquela
coisas permanecessem daquela forma. Deus tinha situação. Foi através do Espírito Santo que Deus
um plano bem mais brilhante e glorioso para a trouxe à existência o mundo transformado e
sua criação. Quando começou a criar a terra, ele cheio de belezas naturais. Como diz Palmer, o Es-
era como um construtor que está seguindo uma pírito “não criou o mundo, mas extraiu potencia-
planta. No começo, quando os alicerces estão sen- lidades que já estavam no mundo, e ainda inclu-
do levantados, não parece ter muito sentido. Você sive implantou as sementes e germens da vida”1.
olha para certas construções e nem se quer con- Na criação, foi tarefa do Espírito Santo extrair as
segue imaginar o que vai sair daquele monte de potencialidades da terra, por isso, se diz que ele
estacas e de pedras aparentemente desordenados. “pairava” ou “incubava” a terra. Através do Espí-
Se você passar ali tempos depois, parecerá absur- rito todas as belezas e perfeições que vemos nos
do que uma construção tão bela tenha se origina- seis dias da criação foram realizadas. O caos deu
do daquela confusão. Ao criar a terra, Deus tinha lugar à ordem, pois “o Espírito põe a desordem
um propósito. E começou a colocar seu propósito em ordem. Sua presença exclui a possibilidade
em prática. O plano de Deus para aquela terra era
fazer um grande e belíssimo jardim, onde toda a
1 Edwin H. Palmer. El Espiritu Santo. p. 24
85

de caos ou confusão”.2 Desde o início, portanto, as coisas, pelo qual também fez o universo” (Hb
a função do Espírito Santo foi agir em meio ao 1.1-2). Essa ação divina de falar, de revelar a si
caos, implantando o sentido e a ordem. próprio, é feita pelo Espírito Santo. A primeira
vez na Bíblia que vemos o exercício da profecia
Devemos ver também a obra do Espírito naquilo ligada à obra do Espírito Santo foi quando Moisés
que comumente chamamos de Providência, que se sentiu sobrecarregado com a tarefa de liderar
se refere à obra divina pela qual ele mantém, sus- aquele povo grande e numeroso sozinho. A Bí-
tenta e renova todas as coisas. O Salmo 104 fala blia diz que Deus tirou um pouco do Espírito que
sobre essa atribuição divina: “Todos esperam de estava sobre Moisés e colocou sobre um grupo de
ti que lhes dês de comer a seu tempo. Se lhes dás, anciãos do povo. Números 11.25 registra: “Então,
eles o recolhem; se abres a mão, eles se fartam de o senhor desceu na nuvem e lhe falou; e, tiran-
bens. Se ocultas o rosto, eles se perturbam; se lhes do do Espírito que estava sobre ele, o pôs sobre
cortas a respiração, morrem e voltam ao seu pó. aqueles setenta anciãos; quando o Espírito repou-
Envias o teu Espírito, eles são criados, e, assim, sou sobre eles, profetizaram; mas, depois, nunca
renovas a face da terra” (Sl 104.27-30). O Espírito mais”. Assim que o Espírito de Deus repousou
é enviado especificamente para renovar a terra, sobre aqueles homens eles profetizaram. Naque-
recriando seres vivos. Nas palavras de Berkhof, la mesma ocasião, quando Josué se demonstrou
“no Velho Testamento é evidente que a origem enciumado porque dois homens estavam pro-
da vida, sua manutenção e seu desenvolvimento fetizando no arraial, fazendo a tarefa que era de
dependem da operação do Espírito Santo. A reti- Moisés, Moisés disse: “Tens tu ciúmes por mim?
rada do Espírito significa morte”.3 Graças a Deus Tomara todo o povo do senhor fosse profeta, que
por esse Espírito que impõe ordem, desperta a o senhor lhes desse o seu Espírito!” (Nm 11.29;
beleza, renova a vida e desfaz o caos. Cf. 1Sm 10.10; 1Sm 19.20). Para ser Profeta ha-
via a necessidade do Espírito de Deus. Ele atuou
desde o início na revelação de Deus. Em sua ve-
lhice, Davi reconheceu que o Espírito do Senhor
O ESPÍRITO E A REVELAÇÃO falava por seu intermédio, conforme está relatado
em 2Sm 23.1-2: “São estas as últimas palavras de
Uma outra atuação do Espírito desde o início foi Davi: Palavra de Davi, filho de Jessé, palavra do
na Revelação Divina. Por si mesmo, o homem homem que foi exaltado, do ungido do Deus de
nunca poderia ter conhecimento de Deus, sim- Jacó, do mavioso salmista de Israel. O Espírito do
plesmente porque, Deus é tão transcendente ao senhor fala por meu intermédio, e a sua palavra
homem finito, que toda possibilidade de “desco- está na minha língua”. A profecia sobre a inspira-
berta” por parte do homem seria absolutamente ção divina estava, portanto, intimamente ligada à
frustrada. O autor aos Hebreus falando sobre a atuação do Espírito Santo. Por essa razão, é dito
revelação divina diz: “Havendo Deus, outrora, de Zacarias: “O Espírito de Deus se apoderou de
falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos Zacarias, filho do sacerdote Joiada, o qual se pôs
pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou em pé diante do povo e lhes disse: Assim diz Deus:
pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas Por que transgredis os mandamentos do senhor,
de modo que não prosperais? Porque deixastes o
2 R. C. Sproul. O Mistério do Espírito Santo. p. 85- senhor, também ele vos deixará” (2Cr 24.20; Cf.
86
Ne 9.30; Is 59.21; Zc 7.12 ). Nesse texto, percebe-
3 Louis Berkhof. Teologia Sistemática. p. 426.
86

mos que, no momento exato em que o Espírito se eventos passados, apesar das falhas da memória, e
apossa do profeta, ele dirige ao povo a Palavra do apesar dos erros que naturalmente acontecem em
Senhor. O Espírito é o que traz a revelação divina qualquer relato de segunda ou milésima mão”.4 A
para o povo. Bíblia está livre desses erros, e o motivo se deve
exclusivamente à atuação do Espírito Santo.
Na passagem messiânica de Isaías 61:1, encon-
tramos a declaração: “O Espírito do SENHOR
Deus está sobre mim, porque o senhor me un-
giu para pregar boas-novas aos quebrantados, CAPACITAÇÕES ESPECIAIS
enviou-me a curar os quebrantados de coração,
a proclamar libertação aos cativos e a pôr em li- O Espírito Santo atuava nos seres humanos no
berdade os algemados; a apregoar o ano aceitável Antigo Testamento. Uma das tarefas específicas
do senhor e o dia da vingança do nosso Deus; a do Espírito Santo era capacitar o homem a rea-
consolar todos os que choram”. O Messias seria lizar certas tarefas. Assim, um homem chamado
revestido com esse Espírito de revelação que é o Bezalel foi capacitado por Deus a confeccionar
capacitador de quem anuncia as boas novas de os objetos que seriam postos no Tabernáculo.
Deus (Cf. Mq 3.8). Deus disse: “E o enchi do Espírito de Deus, de ha-
bilidade, de inteligência e de conhecimento, em
Devemos também nos lembrar que as Escrituras, todo artifício para elaborar desenhos e trabalhar
que são justamente o registro desses atos de Reve- em ouro, em prata, em bronze, para lapidação
lação de Deus no Antigo Testamento, foram com- de pedras de engaste, para entalho de madeira,
postas sobre a inspiração do Espírito Santo. Por para toda sorte de lavores” (Ex 31.35). Da mes-
essa razão, Paulo diz: “Toda a Escritura é inspira- ma forma, Sansão foi cheio desse Espírito para
da por Deus e útil para o ensino, para a repreen- realizar prodígios, como está relatado em Juízes
são, para a correção, para a educação na justiça” 14:6, quando matou um leão: “Então, o Espírito
(2Tm 3.16). Ele está explicando a Timóteo que do senhor de tal maneira se apossou dele, que ele
deveria permanecer na Palavra ao invés de seguir o rasgou como quem rasga um cabrito, sem nada
as invenções dos homens. A razão é que somente ter na mão”.
a Palavra é inspirada pelo Espírito Santo. E Pe-
dro confirma: “sabendo, primeiramente, isto: que O Espírito também dava “força” num outro sen-
nenhuma profecia da Escritura provém de parti- tido. Os profetas Ageu e Zacarias encorajaram o
cular elucidação; porque nunca jamais qualquer povo na obra da reconstrução de Jerusalém e do
profecia foi dada por vontade humana; entre- templo, falando sobre a presença do Espírito San-
tanto, homens santos falaram da parte de Deus, to. Ageu disse em nome do Senhor: “O meu Espí-
movidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1.20-21). O rito habita no meio de vós; não temais” (Ag 2.5).
Espírito foi o responsável não só pela revelação Esse Espírito era a garantia de que a obra seria
como pelo registro dessa revelação nas páginas da realizada, conforme Zacarias também profetizou:
Bíblia, supervisionando a ação dos homens, para “Esta é a palavra do SENHOR a Zorobabel: Não
que o produto final fosse a pura e perfeita Palavra por força nem por poder, mas pelo meu Espírito,
de Deus. Palmer, acertadamente diz que “devido diz o senhor dos Exércitos” (Zc 4.6). Da mesma
a inspiração do Espírito Santo, está garantida a forma os Juízes e os Reis governaram sobre Is-
exatidão do que se diz nela (Escritura) sobre os
4 Edwin H. Palmer. El Espiritu Santo. p. 53.
87

rael através da unção do Espírito Santo (Ver Nm crentes do Antigo Testamento não tinham o Es-
27.18; Jz 3.10; 1Sm 16.14), que fazia com que ho- pírito, mas isso é uma impossibilidade. A opinião
mens simples pudessem desempenhar ofícios de de Grudem é muito útil nesse ponto: “Ambas as
governantes. Porém, como diz Hodge, passagens devem ser maneiras diferentes de dizer
que a obra mais poderosa, mais plena do Espírito
Todas essas operações são independentes das influências Santo, característica da vida após o Pentecostes,
santificadoras do Espírito. Quando o Espírito veio sobre ainda não havia começado na vida dos discípu-
Sansão ou sobre Saul, não foi com o intuito de torná-los los”.6 Não significa que o Espírito Santo não ha-
santos, mas para dotá-los com extraordinário poder físi- bitasse os crentes no Antigo Testamento (Ver Lc
co e intelectual; e, quando lemos que o Espírito se afastou 1.15; 1.67; 2.26-27; 1Sm 10.6; Is 4.4; 11.2), mas
deles, isso significa que eles foram privados dos dons ex- que ele seria derramado de forma mais abundan-
traordinários.5 te a partir do Pentecostes. Bavinck dá duas razões
porque havia diferença entre o Espírito antes e
Não devemos confundir essas manifestações do depois do Pentecostes:
Espírito com a obra da Conversão.
Em primeiro lugar, pelo fato de que a Velha Dis-
pensação sempre olhava para a frente, para o dia
em que surgiria o Servo do Senhor, sobre quem o
O ESPÍRITO E A CONVERSÃO Espírito repousaria em toda a sua plenitude (...)
Em Segundo lugar, o Velho Testamento prediz
Mas será que isso quer dizer que o Espírito não que, embora houvesse já naquele tempo uma cer-
agia para a salvação das pessoas no Antigo Tes- ta operação do Espírito Santo, que esse Espírito
tamento? A esse respeito, um texto de Jesus é seria derramado sobre toda a carne.7
bastante discutido. Jesus disse certa vez aos Após-
tolos: “E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Não há sentido em pensar que o Espírito não
Consolador, a fim de que esteja para sempre con- agisse nos crentes para salvá-los antes do dia de
vosco, o Espírito da verdade, que o mundo não Pentecostes, pois como diz Stott, “no tempo do
pode receber, porque não no vê, nem o conhece; Antigo Testamento, ele estava incessantemente
vós o conheceis, porque ele habita convosco e es- ativo – na criação e na preservação do universo,
tará em vós” (Jo 14.16-17). Essas palavras de Jesus na providência e na revelação, na regeneração
têm dado margem para muitos imaginarem que de crentes, e na capacitação de pessoas especiais
o Espírito Santo não habitasse dentro dos cren- para tarefas especiais”.8 A regeneração é impossí-
tes no Antigo Testamento, especialmente quan- vel sem a atuação do Espírito Santo, então, se ha-
do consideradas em conjunto com as palavras de via crentes no Antigo Testamento, essas pessoas
Jesus registradas em João 7.38-39: “Quem crer precisavam ter o Espírito. Encontramos no Salmo
em mim, como diz a Escritura, do seu interior 51 uma importante declaração de Davi sobre isso.
fluirão rios de água viva. Isto ele disse com res- Consciente de seu pecado com Bateseba, Davi ora
peito ao Espírito que haviam de receber os que a Deus: “Não me repulses da tua presença, nem
nele cressem; pois o Espírito até aquele momento
não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda 6 Wayne Grudem. Teologia Sistemática, p. 533.
glorificado”. Esses textos parecem indicar que os 7 Hermann Bavinck. Teologia Sistemática, p. 424.
8 John Stott. Batismo e Plenitude do Espírito Santo,
5 Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 395. p. 17.
88

me retires o teu Santo Espírito” (Sl 51.11). Como


diz Lloyd-Jones, “aqui estava um homem sob a ve-
lha dispensação, um homem anterior ao Pentecos-
tes, e orou para que Deus não retirasse dele o Seu
Espírito”.9 Se Davi tinha o Espírito Santo, devemos
também pensar que todos os demais crentes, como
Abraão, Isaque, Jacó, José, etc., tinham o Espírito
Santo, pois como diz Calvino, “tudo o que o Se-
nhor tinha feito e sofrido para adquirir salvação
para o gênero humano pertencia tanto aos crentes
do Antigo Testamento quanto a nós. E, de fato, eles
tinham um mesmo Espírito que nós temos, pelo
qual Deus regenera os Seus para a vida eterna.”10
Mas, há diferença no sentido de que, o derramar
do Espírito era mais restrito. Após o Pentecostes,
vemos um derramar generalizado, especialmente
incluindo outros povos.

9 D. M. Lloyd-Jones. Deus o Espírito Santo, p. 45.


10 João Calvino. As Institutas, (1541), II.7.
89

12

O BATISMO COM O ESPÍRITO

INTRODUÇÃO Babel invertida. Naquele dia, a igreja composta


de todas as nações se reuniu num único corpo.
Como já vimos, o Espírito Santo habitava os cren- Foi por isso que o dom de línguas foi concedido.
tes antes do Pentecostes, porém, ele seria dado de As línguas de todos os povos foram unidas no dia
forma mais plena a partir de então. Jesus disse que do Pentecostes, simbolizando a unidade da igreja
os discípulos já conheciam o Espírito Santo, en- em todas as nações, e não mais apenas dentro dos
quanto que o mundo ainda não o conhecia (v.17). limites de Israel. As línguas haviam sido divididas
Isto é mais uma prova de que eles já possuíam o por ocasião da torre de Babel como um juízo de
Espírito Santo. Mas, já vimos que somente após Deus contra a soberba humana, mas no Pentecos-
a partida de Jesus é que o outro Consolador viria tes foram reunidas demonstrando a unidade do
para assumir definitivamente a função de guiar povo de Deus. No Pentecostes, os discípulos re-
os discípulos a toda a verdade. ceberam o Espírito do Cristo glorificado, e assim
foram batizados no corpo de Cristo, ou seja, na
Para que o derramamento do Espírito aconteces- igreja. A vinda do Espírito Santo no dia do Pen-
se, Jesus precisava ser exaltado através da ascen- tecostes foi para a instituição da igreja do Novo
são. Foi na ascensão, quando se assentou à destra Testamento.
de Deus, que Cristo recebeu o título de “Cabeça
da igreja” (Ef. 1.20-23). Então, somente após sua
ascensão ele pôde mandar o Espírito Santo para
ligar os membros a fim de formar um só corpo. O QUE É SER PENTECOSTAL?
Alguém dirá: Mas, então, não havia igreja no An-
tigo Testamento? Havia, porém não nos mesmos O termo pentecostal está definitivamente incor-
termos do Novo Testamento. No dia do Pentecos- porado ao dicionário da Igreja Cristã. Desde o
tes aconteceu algo novo que jamais havia aconte- início do século 20, quando um grupo de crentes
cido antes. Nesse dia a unidade foi estabelecida. começou a falar em línguas numa missão evangé-
Podemos ver o Pentecostes como uma espécie de lica em Los Angeles, o movimento pentecostal se
90

espalhou pelos quatro cantos do planeta. Hoje es- o Espírito Santo. Qual deveria ser a norma para
tima-se que as igrejas pentecostais e neopentecos- nós hoje? Os 120 que precisaram aguardar até o
tais sejam mais numerosas que as tradicionais. dia determinado, ou os 3 mil que não precisavam
Esse termo “pentecostal” é tirado do episódio mais aguardar a descida do Espírito Santo, uma
que ocorreu no dia de Pentecostes em Jerusalém vez que ele já havia descido? Parece óbvio dizer
quando os discípulos do Senhor Jesus foram ba- que o segundo grupo é padrão, pois também nós
tizados com o Espírito Santo. Os pentecostais di- vivemos na era após a descida do Espírito.
zem que receberam uma experiência igual àquela.
Eles raciocinam: os discípulos eram crentes, mas É preciso fazer uma distinção entre a descida
receberam o batismo depois, e falaram em lín- do Espírito Santo e o dia do Pentecostes. Pode-
guas, então, há uma conversão operada pelo Espí- mos até dizer que, num certo sentido, uma coisa
rito Santo, mas o batismo é uma segunda bênção, nada tem a ver com a outra. O Pentecostes era
uma segunda experiência pós-conversão. Dessa uma festa dos judeus ordenada desde o Antigo
forma, para o pentecostalismo, há duas classes de Testamento. Literalmente, Pentecostes significa
crentes na igreja, os que já chegaram lá e os que quinquagésimo, pois acontecia 50 dias depois da
ainda não conseguiram. Quem já foi batizado faz Páscoa. Também era chamada de festa das sema-
parte da elite dos crentes, enquanto que, quem nas, por acontecer 7 semanas depois da Páscoa.
não foi batizado faz parte de uma categoria infe- Mas, a comemoração mais comum era por causa
rior de crentes. Estes últimos, frequentemente re- das colheitas. A única relação entre o Pentecostes
cebem alguma discriminação por parte dos mais e o Batismo com o Espírito Santo foi que Deus
“adiantados”, e se veem ameaçados pela pergunta resolveu enviar o Espírito Santo naquele dia so-
tradicional: “Você ainda não foi batizado no Espí- bre os discípulos, provavelmente aproveitando a
rito Santo?”. ocasião em que haveria pessoas de várias partes
do mundo em Jerusalém.1 Os judeus celebravam
o Pentecostes como o aniversário da dádiva da lei
no Sinai, dada, segundo criam, no quinquagési-
O PENÚLTIMO EVENTO REDENTIVO mo dia depois do êxodo.2 Aquele foi o momen-
to sublime em que Deus selou a Aliança com a
Os crentes pentecostais e neopentecostais afir- nação de Israel, mas agora no Pentecostes, algo
mam que Atos 2 é a norma para os crentes de de proporções ainda maiores estava acontecendo,
todas as épocas, mas Atos 2.1-4 é a narrativa his- Deus estava selando sua Aliança com a igreja de
tórica a respeito do cumprimento da promessa todos os povos.
de Jesus de enviar o Espírito Santo, selando as
profecias do Antigo Testamento e completando o Atos 2.1-4 tem sua importância não por causa
último evento da história da redenção, antes da da festa do Pentecostes em si, mas pelo fato de
Segunda Vinda. Dois grupos de pessoas foram que Deus cumpriu mais um evento da história da
batizados com o Espírito Santo no capítulo 2 de redenção naquele dia. O nascimento de Jesus foi
Atos. Os 120 discípulos reunidos no cenáculo
e a multidão de 3 mil pessoas que se converte- 1 Por isso, alguns questionam o próprio termo “pen-
tecostal”, dizendo que não faz sentido dentro de uma termi-
ram com a pregação de Pedro. Os 120 já anda- nologia cristã. Pois, se o Espírito Santo tivesse sido enviado
vam com Jesus, e eram convertidos. Os 3 mil não por ocasião da Páscoa, então haveria crentes “pascoais”?
eram crentes, mas se converteram naquele dia e 2 Ver Alan Richardson. Introdução à Teologia do
com certeza também receberam o batismo com Novo Testamento, p. 119
91

o primeiro evento histórico da redenção. O pró- Pentecostes Samaritano?


ximo evento foi sua morte, depois sua ressurrei-
ção, por fim sua ascensão, e então, a descida do Em Atos 8.5-17 está descrita a conversão dos sa-
Espírito Santo. Depois disso, só resta a segunda maritanos.3 Muitos samaritanos haviam crido no
vinda. Portanto, o evento que aconteceu no dia Evangelho através da pregação do evangelista Fi-
de Pentecostes foi o último da histórica atividade lipe, e como consequência foram batizados. Há
salvadora de Jesus. Assim como a morte de Jesus poucas dúvidas de que realmente aquelas pessoas
e sua ressurreição são impossíveis de serem re- haviam se convertido. A única coisa estranha
petidas, também o evento da descida do Espírito é a descida de Pedro e João para lá. Pelo que se
Santo não se repete. Mas, do mesmo modo como sabe não era comum os Apóstolos inspeciona-
os efeitos da morte e da ressurreição de Jesus rem a obra dos evangelistas. Então por que foram
estão presentes em todas as épocas, também os lá? Não é difícil descobrir. Aquela era a primei-
efeitos da descida do Espírito Santo estão presen- ra vez que o Evangelho tinha sido aceito fora de
tes em todas as épocas, e disponíveis a todas as Jerusalém, e Lucas, que escrevia para um grego
pessoas. Sem a descida do Espírito Santo, a obra chamado Teófilo, estava querendo mostrar como
redentora de Jesus não estaria acabada, e sua pro- o Evangelho saiu da exclusividade do ambiente
messa não teria sido cumprida. E mesmo a pro- judeu, sob a supervisão dos apóstolos e com to-
messa do Antigo Testamento do derramamento das as bênçãos do Espírito Santo (Ver At 1.8). A
do Espírito Santo passaria em branco. Tudo, po- ocasião era realmente crucial. Era a primeira vez
rém, se cumpriu no dia do Pentecostes, e como que o Evangelho era pregado fora de Jerusalém, e
cumprimento, podemos dizer que se cumpriu de alcançava justamente os samaritanos. Os samari-
uma vez por todas. Os efeitos da vinda do Es- tanos eram inimigos históricos dos judeus. Será
pírito Santo permanecem na igreja, dessa forma que os crentes judeus iriam aceitá-los? Ou será
não precisamos pedir ao Pai que nos dê o Espí- que a divisão judeus-samaritanos permaneceria
rito Santo, ou que faça o Espírito descer, pois elena igreja? Certamente foi por esse motivo que
já desceu. Pedir que Deus envie o Espírito Santo, Deus reteve o ato do batismo do Espírito Santo,
seria algo semelhante a pedir que Deus faça Jesus e a manifestação visível dele, até que os apósto-
morrer de novo. los pudessem verificar a veracidade do aconteci-
mento. Não foi identificado nenhum problema
com os samaritanos em si. Nenhuma condição
foi oferecida a eles, como orar ou buscar o Espíri-
O EVENTO DO PENTECOSTES SE REPE- to. O problema também não está com Filipe, que
TIU? logo em seguida prega ao eunuco etíope e não foi
necessário que os apóstolos fossem atrás (Ver At
Alguém poderia objetar que, em pelo menos três 8.26-40).4 O problema está no relacionamento
ocasiões, o evento do Pentecostes aparentemente
se repetiu na forma de uma segunda bênção. Isso 3 Os samaritanos eram habitantes de Samaria, uma
teria acontecido com os samaritanos, com os gen- província que no passado era unida a Judá. No Antigo Tes-
tios em Cesaréia, e com os discípulos de João em tamento, o reino de Israel era composto de doze tribos.
Quando o reino se dividiu após o reinado de Salomão, Judá
Éfeso. Será importante analisar estes três aconte- constituiu um reino separado, o reino do sul, enquanto que
cimentos. a maioria das outras tribos formou o reino do norte, que
ficou conhecido como Samaria.
4 Ver F. D. Bruner. Teologia do Espírito Santo, p.
92

entre Jerusalém e Samaria. Está no fato de que modo tão dramático quanto a iniciação samarita-
Deus desejava transpor oficialmente uma inimi- na lhe ensinara, que Deus aceita todos os homens
zade histórica. Deus reteve a manifestação visível à parte da guarda de quaisquer disposições legais,
do Espírito Santo a fim de que os Apóstolos tes- ao dar gratuitamente o dom do Espírito Santo à
tificassem que a fé também estava sendo encon- fé”.5 Nesse caso, não foi preciso esperar, pois um
trada em Samaria, e assim, autenticassem a obra Apóstolo esteve no comando da obra desde o iní-
entre os samaritanos. Deus quis que os Apóstolos cio.
vissem com seus próprios olhos a obra no meio
deles, para que nunca se dissesse que os samari- Algo que geralmente passa despercebido no re-
tanos não haviam sido incluídos oficialmente na lato conectado à conversão da casa de Cornélio
igreja Apostólica. Portanto, não há razão para é o testemunho do Apóstolo Pedro que pode ter
pensar num segundo Pentecostes. Nem o aconte- implicações muito sérias para a doutrina da Se-
cimento samaritano deve ser aceito como norma gunda Bênção. Lucas diz que chegou ao conheci-
para os crentes em todos os tempos, pois sua di- mento dos apóstolos e dos irmãos que estavam na
ferença explica-se perfeitamente por causa da sua Judéia que os gentios haviam recebido a Palavra
situação histórica. de Deus (Ver At 11.1). Quando Pedro chegou em
Jerusalém, os defensores da circuncisão quiseram
O que aconteceu em Cesaréia? saber o porquê de ele ter se relacionado com in-
circuncisos (At 11.2-3). Pedro, então, lhes expli-
No capítulo 10 de Atos é narrada a conversão de cou como desde o princípio fora guiado por Deus,
um gentio (estrangeiro) ao cristianismo, um ho- através da visão do lençol, onde Deus lhe mostrou
mem chamado Cornélio. Deus direcionou Pedro que não deveria fazer acepção de pessoas, pois os
até aquele homem, demonstrando que não fazia gentios também estavam nos planos de Deus (At
acepção de pessoas. Pedro entrou na casa de Cor- 11.4-10). Falou que o Espírito lhe mandou acom-
nélio e começou a pregar o Evangelho. A certa al- panhar os homens que vieram da casa de Corné-
tura da pregação de Pedro, precisamente quando lio a fim de buscá-lo, o qual havia recebido essa
falava sobre a remissão dos pecados através do ordem de um anjo (At 11.11-13). O anjo disse a
nome de Jesus (At 10.43), o Espírito Santo “caiu Cornélio que Pedro lhe diria palavras mediante
sobre todos os que ouviam a palavra” (At 10.44). as quais ele e a casa dele seriam salvos (At 11.14).
Depois dos samaritanos, agora os gentios eram E Pedro relata: “Quando, porém, comecei a falar,
incorporados à igreja. A manifestação visível in- caiu o Espírito Santo sobre eles, como também
tencionava autenticar a conversão deles perante sobre nós, no princípio. Então, me lembrei da pa-
as autoridades da igreja como havia acontecido lavra do Senhor, quando disse: João, na verdade,
em Samaria. Este não é um terceiro Pentecostes, batizou com água, mas vós sereis batizados com
é o batismo do Espírito a que todos os crentes o Espírito Santo. Pois, se Deus lhes concedeu o
têm direito e recebem quando se convertem, exa- mesmo dom que a nós nos outorgou quando cre-
tamente como aqueles homens se converteram e mos no Senhor Jesus, quem era eu para que pu-
receberam o Espírito enquanto ouviam a Palavra. desse resistir a Deus?” (At 11.15-17). Algo nessa
Uma coisa está por demais clara no texto: não declaração de Pedro é de grande importância. Ele
houve segunda benção. Bruner diz que “o propó- diz: “Deus lhes concedeu (aos gentios) o mesmo
sito do episódio de Cornélio é ensinar a igreja, de dom que a nós (apóstolos) nos outorgou quando

137. 5 F. D. Bruner. Teologia do Espírito Santo, 148


93

cremos no Senhor Jesus”. Ele diz que a conversão Os crentes do Novo Testamento olham para trás,
dos gentios foi semelhante à conversão dos Após- para o Messias que já veio, e seus pecados são
tolos. Mas, quando os Apóstolos se converteram? perdoados no sacrifício definitivo de Cristo. De
Como diz Bruner, algum modo, os apóstolos passaram pelas duas
experiências. Foram crentes do Antigo Testa-
Pedro aqui compara a fé dos de Cesaréia com a fé dos mento, e depois crentes do Novo Testamento. De
apóstolos no Pentecoste – ‘quando [nós] cremos’ – então qualquer modo, eles não tiveram uma segunda
aqui temos a informação significante que os apóstolos bênção, pelo menos não como se exige hoje nos
consideravam o Pentecoste como o terminus quo (ponto movimentos carismáticos.
inicial) da sua fé, e, portanto, a data da sua conversão.
Foi somente quando receberam o Espírito que se senti- E quanto aos discípulos de Éfeso?
ram capazes de dizer que acreditavam”.6
Este incidente está descrito em Atos 19.1-7. Pau-
Portanto, nem os Apóstolos receberam realmente lo, em sua terceira viagem missionária, encontrou
uma Segunda Bênção. Eles receberam o Espírito alguns supostos discípulos na cidade de Éfeso.
Santo quando se converteram, assim como todos Paulo logo lhes perguntou se eles haviam rece-
os crentes. Mas será que isso quer dizer que os bido o Espírito Santo quando creram. Isso já é
Apóstolos não eram crentes antes? Como então suficiente para perceber que Paulo vincula o re-
eles foram chamados por Jesus? Uma análise da cebimento do Espírito Santo com o ato de crer. O
vida dos Apóstolos antes e depois do Pentecos- Apóstolo achou que havia algo estranho naqueles
tes revela muitas coisas interessantes. A vida de- homens, e logo a sua suspeita veio a se confirmar.
les mudou radicalmente depois do Pentecostes. Eles responderam: “Espírito Santo? Nem sabe-
Antes eles tinham muita dificuldade em entender mos quem é este?” Eram discípulos de João Batis-
quem era Jesus, não conseguiam aceitar a ideia da ta e não conheciam a verdade plena a respeito de
sua morte, e esperavam que ele fosse um liber- Jesus. Provavelmente foram ensinados por Apo-
tador da nação. Após o Pentecostes se tornaram lo, o qual passou um tempo em Éfeso. O próprio
fiéis defensores do reino de Deus, não físico, mas Apolo precisou ser ensinado a respeito das ver-
espiritual. Entenderam realmente o significado dades fundamentais do Evangelho, pois conhecia
da redenção e se tornaram mártires pela causa. apenas os ensinos de João Batista (Ver At 18.24-
É impossível não perceber a mudança ocorrida 28). É difícil imaginar que aquelas pessoas fossem
após a vinda do Espírito na vida dos Apóstolos. realmente convertidas. Não sabiam que Jesus já
Uma forma de explicar essa diferença decorre tinha se manifestado, e nada sabiam sobre a vin-
do entendimento do momento crucial que esses da do Espírito Santo. Não eram convertidos, mas
homens viviam. Eles viveram entre duas épocas, tornaram-se com a pregação de Paulo e recebe-
pois passaram do Antigo Testamento para o Novo ram o Dom do Espírito Santo no mesmo instante.
Testamento. Geralmente se resume a diferença Portanto, o que aconteceu neste episódio, longe
entre ser “crente do Antigo Testamento” e “crente de ser uma segunda bênção, confirma que o Espí-
do Novo Testamento”, pela expectativa em relação rito Santo é dado no momento da fé.
à vinda de Jesus. Os crentes do Antigo olhavam
para o futuro, para quando o Messias viria, en-
quanto isso ofereciam sacrifícios pelos pecados.

6 F. D. Bruner. Teologia do Espírito Santo, 151.


94

A QUESTÃO DA NORMA toda a oposição. A intenção de Lucas não era nar-


rar cada evento como sendo a norma para a igreja
Precisamos ainda dizer uma palavra a respeito de em todas as épocas, mas através do todo, mostrar
quão normativos para formulações doutrinárias como uma igreja verdadeira é vitoriosa pelo po-
são os escritos históricos como, por exemplo, o der do Espírito Santo.
livro de Atos. Lucas, ao narrar os acontecimen-
tos daqueles dias, não estava querendo dizer que
tudo aquilo seria norma para todos os tempos.
Ele simplesmente estava narrando as coisas como TODOS BATIZADOS EM UM ESPÍRITO
aconteceram e do modo como tudo podia ser vis-
to. Se tudo o que Lucas escreveu em Atos fosse Podemos ver os ensinos normativos sobre o batis-
norma, então, precisaríamos lançar sortes quan- mo com o Espírito Santo registrados nos escritos
do escolhêssemos um novo pastor (Ver At 1.26), do Apóstolo Paulo, pois em muitos textos Pau-
e se alguém mentisse para o pastor na entrega dos lo trata doutrinariamente dessas questões. Em
dízimos cairia morto no chão (Ver At 5.1-10). 1Coríntios 12.13 o Apóstolo fez uma declaração
Precisamos entender que certas coisas que a Es- muito importante para a consideração desse as-
critura relata como tendo acontecido a outros não sunto: “Pois, em um só Espírito, todos nós fomos
precisa necessariamente acontecer conosco. Mas, batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos,
há coisas, por exemplo, que a Escritura afirma quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado
explicitamente como sendo para todos. Entretan- beber de um só Espírito”. Para entendermos bem
to, essas coisas podem ser encontradas mais nas o que Paulo está querendo dizer nesse versículo,
cartas, nos sermões de Jesus, ou nas formulações precisamos considerar todo o capítulo 12 de 1Co-
doutrinárias da Bíblia, e não nas descrições dos ríntios, pois nesse capítulo, Paulo concentra seu
eventos históricos. Portanto, é norma para nós ensino a respeito dos dons espirituais. Seu ponto
aquilo que a Bíblia nos ensina diretamente ou de alto é que embora os dons sejam variados, se ma-
forma proposicional, e não aquilo que ela nar- nifestando de várias formas, há apenas um origi-
ra sem fazer qualquer comentário a respeito. nador deles que é o Espírito Santo. Paulo diz: “Ora
Sempre que a Bíblia narra uma história sem fazer os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo”
qualquer comentário, devemos ir às outras partes (v.4). Entre os versos 8-10 ele exemplifica alguns
da Bíblia que ensinam diretamente para entender dons que podem ser dados à igreja visando a edi-
o significado daquele evento. Caso contrário, pro- ficação, entretanto enfatiza: “Um só e o mesmo
vavelmente estaremos usando a Palavra de Deus Espírito realiza todas estas cousas, distribuindo-
de forma errada. Portanto não é possível, a partir -as como lhe apraz, a cada um, individualmente”
do acontecimento de Atos 2, dizer que é a norma (v.11). Ou seja, ele está querendo demonstrar a
para todas as épocas. Até porque, poucos insis- unidade da igreja em meio à diversidade de dons,
tiriam na necessidade das línguas de fogo ou no exatamente porque todos esses dons são concedi-
som do vento impetuoso. Tudo o que Lucas co- dos pelo mesmo Espírito. É isso que ele enfatiza
locou no livro de Atos estava dentro de seu pla- no verso 13 ao dizer algo como: “Somos diferen-
no de demonstrar o crescimento da igreja desde tes tanto em serviços, como em dons e até mes-
Jerusalém até Roma, mostrando que esta igreja mo em raça, mas numa coisa todos nós crentes
impulsionada pelo Espírito Santo não podia ser somos iguais: todos fomos batizados pelo mes-
detida, e seu crescimento continuaria apesar de mo Espírito, portanto somos um mesmo corpo”.
Certamente a referência do Apóstolo ao batismo
95

nesse texto nada tem a ver com o batismo com buscar, porque é entendimento comum dos escri-
água, e nem mesmo com o que aconteceu no dia tores bíblicos que todos os crentes já foram bati-
de Pentecostes, pois nem Paulo nem os coríntios zados. Devemos considerar seriamente que seria
estavam presentes naquele dia. Mas, então, quan- um grande lapso esquecer de mandar os crentes
do Paulo e todos os crentes da cidade de Corinto buscarem esse batismo, se de fato ele devesse ser
foram batizados? Nenhuma outra resposta pode buscado. Mas, não há qualquer método, ordem,
ser coerente a não ser: No dia da conversão deles. ou mesmo sugestão para buscar ou receber o ba-
Não havia duas classes de crentes dentro da igreja tismo com o Espírito Santo. O motivo é simples:
de Corinto. Todos os que pertenciam ao corpo de Ninguém pede ou busca algo que já possui.
Cristo foram batizados com o Espírito Santo.
A força do “todos”
A força do “nós”
Voltando a Primeira Coríntios, Paulo enfatiza que
Na língua original em que o Novo Testamento foi todos já puderam beber do mesmo Espírito (1Co
escrito, há uma grande ênfase na palavra “nós”. 12.13). Note a conexão entre beber em 1Coríntios
Paulo poderia ter escrito o mesmo texto sem usá- 12.13 e o que foi dito em João 7.37-38: “No últi-
-la, e o significado seria entendido, mas ele fez mo dia, o grande dia da festa, levantou-se Jesus
questão de dizer “todos nós fomos batizados em e exclamou: Se alguém tem sede, venha a mim e
um só Espírito”. Com essa expressão, ele não ad- beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura,
mite exceções. Todos os verdadeiros crentes fo- do seu interior fluirão rios de água viva. Isto ele
ram batizados com o Espírito Santo. disse com respeito ao Espírito que haviam de re-
ceber os que nele cressem”. Quem fosse até Jesus e
E esse não é o único lugar em que isso fica cla- bebesse receberia o Espírito Santo quando cres-
ro. Em Romanos 8.9 Paulo escreveu igualmente se. Todos os que creram já beberam do Espírito
“Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, Santo, ou seja, já foram batizados. Isso demonstra
se, de fato, o Espírito de Deus habita em vós. E, que as palavras de Jesus não são um desafio para
se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal que os incrédulos busquem o Espírito Santo. Elas
não é dele”. O texto é claro: Se alguém não tem o são um desafio para que os incrédulos busquem
Espírito de Cristo, não pertence a Cristo. Paulo Jesus. Se eles têm sede, Jesus mata a sede, e o que
não diz que se alguém não tem o Espírito é crente João e Paulo nos acrescentam é que Jesus mata a
de segunda classe, mas que não é de Cristo, ou sede das pessoas com o Espírito.
seja, não é crente. Não há duas classes de crentes
dentro de uma igreja, todos os verdadeiros cren- A força do “um”
tes foram batizados com o Espírito Santo, se al-
guém ainda não foi batizado, não é crente, não Do mesmo modo que a palavra “todos” traz gran-
pode fazer parte da igreja, não pertence ao corpo de ênfase sobre o batismo como uma experiência
de Cristo, e ainda precisa se converter. Um outro comum de todos os crentes, também a palavra
dado que precisa ser comentado é que nenhum “um” fala de uma experiência única. O ponto cen-
escritor do Novo Testamento, em lugar algum, tral de Paulo em 1Coríntios 12.13 é que o batismo
manda que o batismo do Espírito Santo seja bus- com o Espírito Santo faz a igreja ser um Corpo.
cado. Não há um único texto que exorta qualquer Se houvesse diferentes batismos com o Espírito
cristão a buscar a experiência do batismo com o Santo, poderia haver mais que uma igreja. E Pau-
Espírito Santo depois da conversão. Não se manda lo está usando exatamente a doutrina do batismo
96

com o Espírito Santo para demonstrar a unidade de crentes dentro da igreja, pois todos os crentes
de todos os crentes no mesmo corpo, ainda que já foram batizados no mesmo Espírito.
sejam membros diferentes, individuais e com
funções próprias. Logo para Paulo, o batismo
com o Espírito Santo era um fator unificador na
igreja e, em hipótese alguma, um fator diferen- CONCLUSÃO: BUSCANDO O QUE JÁ
ciador. Ou seja, em total oposição à noção atual TEM?
de que existem duas classes de crentes separados
pelo batismo com o Espírito Santo, na visão de Uma grande confusão tem sido causada nas igre-
Paulo, há uma única classe, unida justamente jas por líderes que ensinam a necessidade de uma
pelo batismo. O batismo une ao invés de separar. segunda obra da graça. Por todos os lados pode-
Não existe uma elite e uma periferia espiritual mos ver a frustração e o desapontamento na vida
na igreja. Existe um corpo, que embora possua de muitos que ainda não conseguiram chegar a
muitos membros, inclusive com funções diferen- esta segunda bênção. O problema é que, quan-
tes, tem por princípio que nenhum é superior ou do alguém acha que precisa buscar algo que não
inferior. Todos têm a sua importância dentro do tem, certamente deixa de dar importância ao que
corpo (Ver 12.14-26), no qual foram ligados pelo já tem. Ora todos os crentes já possuem a obra
Batismo do Espírito. da graça em suas vidas e também os meios para
alcançar a verdadeira santidade, mas literalmen-
Jesus batizou em um único Espírito todos os te abandonam o pássaro na mão para perseguir
crentes num único corpo, quer judeus, quer gre- os que estão voando. Deixam de valorizar o que
gos, quer escravos quer livres. Nada poderia ser Deus já lhes deu para buscar aquilo que não exis-
mais enfático. De fato não há classes distintas de te. Desta forma, rejeitam o maior dom que Jesus
crentes. Num Espírito foi estabelecida uma só nos deu, que foi a vinda do “outro” Consolador.
igreja. Não há crentes parciais, assim como não
há membros parciais do corpo de Cristo. Gála-
tas 3.26-28 afirma: “Pois todos vós sois filhos de
Deus mediante a fé em Cristo Jesus; porque to-
dos quantos fostes batizados em Cristo de Cris-
to vos revestistes. Destarte, não pode haver ju-
deu nem grego; nem escravo nem liberto; nem
homem nem mulher; porque todos vós sois um
em Cristo Jesus”. Todos os crentes em Cristo se
tornaram membros plenos de seu corpo, que é a
igreja, no exato momento em que foram salvos,
pois “há somente um corpo e um Espírito, como
também fostes chamados numa só esperança da
vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um só
batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é so-
bre todos, age por meio de todos e está em todos”
(Ef 4-4-6). Graças a Deus porque a igreja dele não
está dividida. Não há divisões ou classes distintas
97

13

A PLENITUDE DO ESPÍRITO

INTRODUÇÃO to Santo, e a um agir do Espírito sobre a vida do


crente que pode ser aumentado ou diminuído ao
A Plenitude do Espírito Santo é a vida idealizada longo da vida. Chamamos o enchimento do Es-
por Deus para todos os crentes, ela é o segredo pírito de Plenitude do Espírito. De acordo com
do sucesso espiritual e a garantia da vida de san- a Bíblia, essa plenitude deveria ser a vida cristã
tidade. Quando Deus criou o homem à sua ima- normal, mas o pecado causa o esvaziamento es-
gem, idealizou um relacionamento íntimo com piritual. Esse esvaziamento, ainda que não seja
ele. Esse relacionamento se quebrou por causa definitivo, faz com que não tenhamos forças para
do pecado, mas em Jesus Cristo o homem é res- resistir ao mal e nem vontade de servir ao Senhor.
taurado ao relacionamento pessoal com Deus, no Em contrapartida, Deus nos coloca a opção con-
nível mais elevado que poderia existir: passa a ser tínua desse enchimento, e isso significa que pode-
habitação do Espírito de Deus. Assim, o homem mos ser cheios tantas vezes quantas precisarmos,
pode desfrutar do maior benefício que poderia e de fato, sempre precisamos. Ao contrário do Ba-
ser imaginado. E é só dessa forma que o homem tismo do Espírito que é uma obra realizada por
pode se sentir plenamente realizado e feliz. Sem Deus, independente de nossa própria vontade, a
essa plenitude, embora convertidos, podemos ser Bíblia nos ensina a orar e buscar a plenitude do
bem pouco diferentes da maioria dos homens Espírito Santo.
que vivem nesse mundo. A plenitude nos torna
pessoas verdadeiramente diferentes.

Muitas vezes, as pessoas confundem Batismo do UMA OBRA CONTINUAMENTE NECES-


Espírito com Plenitude do Espírito. Como já vi- SÁRIA
mos no estudo anterior, o Batismo é uma obra
única que acontece no momento da conversão Ser cheio ou pleno do Espírito Santo deve ser a
e que nunca mais se repete. Porém, o Batismo maior busca do cristão nessa vida. A plenitude do
dá direito a um enchimento contínuo do Espíri- Espírito é uma obra diferente das demais obras do
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Espírito por ser condicional, experimental e repe- para fazer curas, sinais e prodígios por intermédio
tida. O batismo, a regeneração e o selo do Espírito do nome do teu santo Servo Jesus” (At 4.29-30).
são coisas não experimentais, ocorrem no mo- Lucas relata a resposta de Deus à oração da igreja:
men to da conversão, e de uma vez por todas. O “Tendo eles orado, tremeu o lugar onde estavam
“enchimento” do Espírito, ao contrário, pode ser reunidos; todos ficaram cheios do Espírito Santo
experimentado e repetido muitas vezes. Como e, com intrepidez, anunciavam a palavra de Deus”
diz Stott, “quando falamos do batismo do Espí- (At 4.31). Eles já haviam sido batizados com o Es-
rito estamos nos referindo a uma concessão de- pírito, mas precisaram de um novo enchimento
finitiva; quando falamos da plenitude do Espírito do Espírito para poder realizar a obra de Deus e
estamos reconhecendo que é preciso apropriar-se enfrentar os desafios ainda maiores que surgiram.
contínua e crescentemente deste dom”.1 Portan-
to, reconhecer que o batismo é uma experiência Quem, quando e como
da qual não participamos, não faz de nós pessoas
inativas, pois temos a responsabilidade da pleni- Em Efésios 5.18 Paulo diz: “E não vos embria-
tude do Espírito. Isso leva ao entendimento de gueis com vinho, no qual há dissolução, mas en-
que é possível que alguém que foi batizado com o chei-vos do Espírito”. A primeira coisa que nota-
Espírito se esvazie desse Espírito e precise encher- mos no texto é a expressão: “Enchei-vos”. O verbo
-se novamente. Não significa que ele será batiza- está no imperativo, o que significa que é uma or-
do outra vez, pois o batismo é único, nem mesmo dem que deve ser obedecida. Como diz Stott, “a
que ficará “totalmente” vazio desse Espírito, pois plenitude do Espírito Santo não é opcional, mas
Deus nunca retira totalmente o Espírito dos rege- obrigatória para o cristão”.2 Temos a obrigação e
nerados. a responsabilidade de sermos cheios do Espírito.
Outro aspecto importante é que o verbo está no
Cheios novamente plural, o que indica que a ordem é direcionada a
todos os crentes, assim, todos têm a obrigação de
No dia do Pentecostes, os discípulos receberam serem cheios do Espírito Santo. Não existe uma
o batismo com o Espírito Santo e também rece- classe de crentes que tenha esse privilégio, pois
beram a plenitude do Espírito. O batismo nunca todos podem e devem ser cheios. Além disso, o
mais se repetiu, mas a plenitude sim. Em Atos 4 verbo está na voz passiva, o que demonstra que
está registrado o momento em que a igreja en- a ação de encher é do Espírito e não nossa. Uma
frentou a primeira perseguição. Os sacerdotes boa tradução poderia ser: “Deixai o Espírito vos
prenderam os apóstolos e os lançaram na prisão encher”. Mas isso não significa que sejamos passi-
(At 4.1-3). Após interrogá-los, exigiram que não vos, pois a nossa participação é significativa, cabe
falassem mais no nome de Jesus (At 4.18), e lhes a nós buscarmos esse enchimento. E por fim, e
fizeram ameaças (At 4.21). Quando foram soltos, talvez mais importante de tudo, a ordem está no
os crentes se reuniram e começaram a orar. Na tempo presente, o que representa uma ação contí-
oração, clamaram pela Soberania de Deus, e pedi- nua, e isso significa que devemos estar continua-
ram: “Agora, Senhor, olha para as suas ameaças e mente sendo cheios do Espírito Santo. Hoekema
concede aos teus servos que anunciem com toda a observa que, “o imperativo presente ensina-nos
intrepidez a tua palavra, enquanto estendes a mão que ninguém pode, jamais, reivindicar ter sido

1 John Stott. Batismo e Plenitude do Espírito Santo, 2 John Stott. Batismo e Plenitude do Espírito Santo,
p. 35. p. 44.
99

cheio do Espírito de uma vez por todas. Estar sen- co, não há qualquer empecilho prático para que a
do continuamente cheio do Espírito é, de fato, o nossa sede seja saciada agora mesmo. Mas, é pre-
desafio de uma vida toda e o desafio de cada dia.”3 ciso ter sede...

Já dissemos que o enchimento do Espírito é algo Por que ser cheio?


que, por um lado é passivo, pois o Espírito nos
enche, e por outro ativo, pois temos a responsabi- Devemos pensar ainda no “porquê” de sermos
lidade de buscar esse enchimento. Algo que ainda cheios do Espírito. Basicamente são duas razões:
precisa ficar claro é como podemos ser cheios. Je- maturidade e serviço. O enchimento do Espírito
sus nos dá a resposta: “Se alguém tem sede, venha Santo representa a maturidade cristã. Quando so-
a mim e beba. Quem crer em mim, como diz a Es- mos convertidos, a Bíblia diz que passamos pela
critura, do seu interior fluirão rios de água viva. experiência de um “novo nascimento”. Estenden-
Isto ele disse com respeito ao Espírito que haviam do a analogia, podemos dizer que no momento
de receber os que nele cressem; pois o Espírito até da conversão somos “crianças” ou mesmo “bebês”
aquele momento não fora dado, porque Jesus não em Cristo. Louis Berkhof usa uma figura para
havia sido ainda glorificado” (Jo 7.37-39). Jesus ilustrar a nossa nova condição: “Uma criança re-
aproveitou um ritual da Festa dos Tabernáculos cém-nascida é, salvo exceções, perfeita em suas
para ilustrar algo de imenso valor para as pessoas. partes, mas não está no grau de desenvolvimento
No ritual, um sacerdote saía com uma procissão ao qual foi destinada. Justamente assim, o novo
e trazia num jarro de ouro um pouco de água homem é perfeito em suas partes, mas, na pre-
da piscina de Siloé. Aquela água seria derrama- sente vida, continua imperfeito no grau de desen-
da no altar, e provavelmente simbolizasse o pró- volvimento espiritual”.4 O fato é que precisamos
prio derramamento futuro do Espírito Santo, que crescer. Esse crescimento vem pelo enchimento
Ezequiel e os profetas haviam anunciado (Is 44.3; do Espírito Santo. Certa ocasião Paulo teve que
Ez 39.29; Jl 2.28). Talvez, Jesus tenha observado dizer aos Coríntios: “Eu, porém, irmãos, não vos
aquele ritual, e, então, aproveitando o momento, pude falar como a espirituais, e sim como a car-
se levantou e falou de uma água melhor. Ele já ha- nais, como a crianças em Cristo” (1Co 3.1). Paulo
via oferecido essa água à mulher samaritana ao havia detectado uma série de problemas dentro
lado do poço de Jacó (Jo 4.10-15). Aquela água da igreja de Corinto. Aquela igreja estava cheia
que podia matar a sede dos sedentos era o Espí- de divisões, orgulho espiritual, fornicação e uso
rito Santo. Jesus nos explica aqui como essa água impróprio dos dons espirituais. Essas atitudes
pode ser conseguida. Ele diz: “Quem tem sede ve- demonstravam que os crentes de Corinto eram
nha a mim e beba”, ou seja, o que é necessário é crianças em Cristo. Paulo fez uma distinção entre
tão somente, ir a Jesus e beber. O método divino alguém “espiritual” e alguém “carnal”, ou “crian-
pelo qual podemos ser cheios do Espírito Santo é ça”. Infelizmente essa distinção existe. Devemos
o mais simples de todos: basta ter sede, ir a Jesus pensar que o espiritual é aquele que, através da
e beber. Jesus é o responsável por nos encher do plenitude do Espírito, experimenta o verdadeiro
Espírito, isso pode ser feito a qualquer momento, crescimento em fé, esperança e amor, enquanto
em qualquer lugar, e em qualquer situação. Uma que o carnal, é aquele cujo reservatório quase
vez que o Deus Onipresente está sempre conos- sempre está muito baixo.

3 A. A. Hoekema. Salvos pela Graça, p. 58.


4 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 541.
100

O enchimento do Espírito nos faz ser espirituais, ameaças e então, com mais intrepidez, anunciou
ou seja, maduros na fé. A falta desse enchimento o Evangelho (At 4.31-32). Antes disso, Pedro já
nos torna débeis e presa fácil do mundo, da car- estava cheio do Espírito Santo quando encarou o
ne e do diabo. Porém, não devemos entender a Sinédrio que o julgava (At 4.8). Estevão também
expressão “carnal” no sentido de um crente de se- estava cheio do Espírito Santo no momento em
gunda classe, alguém dividido entre a carne e o que foi martirizado (At 7.55). E Paulo, quando
Espírito. Os crentes verdadeiros deixaram de ser repreendeu Elimas o mágico, estava novamente
carnais nesse sentido, pois são novas criaturas, e cheio do Espírito (At 13.9). Tudo isso nos aponta
não podem ser meio novas e meio velhas. Paulo para a imensa necessidade de ser cheio do Espíri-
deixou bem claro que o verdadeiro crente é aquele to Santo para realizar o serviço na obra de Deus,
que já “crucificou” ou “se despojou” do velho ho- e nos lembra que o sucesso nessa obra não é “por
mem (Rm 6.6; Cl 3.9). O crente verdadeiro, nesse força, nem por poder, mas pelo meu Espírito” (Zc
sentido, não está na carne, mas no Espírito (Rm 4.6). É impossível realizar a obra de Deus sem
8.8-9). Carne aqui deve ser entendida como a ve- esse enchimento do Espírito, mas, a grande notí-
lha natureza pecaminosa herdada de Adão. Não é cia é que podemos ser cheios a qualquer momen-
a carne no sentido de corpo humano, mas carne to. Quem tem sede, beba.
no sentido de escravidão do pecado. Mas apesar
de estar no Espírito, muitas vezes os crentes têm
atitudes carnais e cedem à tentação da carne, pois
ainda estão na carne, no sentido de “corpo carnal A ILUMINAÇÃO DO ESPÍRITO
decaído” (Fp 1.22,24).
Uma vida cheia do Espírito Santo, além de ter
Além da maturidade, o enchimento do Espírito como característica a produção do “fruto do Es-
Santo é necessário para o serviço cristão. Nesse pírito”, será também uma vida dirigida pelo Espí-
ponto, é importante atentarmos para o fato de rito. Uma das principais obras do Espírito dentro
que, desde o Antigo Testamento, o Espírito capa- dos crentes é a iluminação. Iluminação refere-
citava pessoas para funções especiais na obra de -se basicamente à atuação do Espírito Santo em
Deus, como Bezalel, Sansão, Davi e outros. Lem- capacitar os homens a entenderem a Palavra de
bramos também que João Batista foi cheio do Es- Deus. A iluminação não provê informações ou
pírito Santo desde o ventre materno para realizar revelações além daquelas encontradas na Bíblia,
a tarefa de ser o precursor de Cristo (Lc 1.15-17). a iluminação esclarece a Bíblia para nós. O Es-
Os diáconos escolhidos em Atos 6, para servir as pírito Santo nos convence da verdade da Palavra
mesas, também eram cheios do Espírito Santo (At de Deus, e então, nos ajuda a entender e a aplicar
6.3-5). Barnabé que serviu junto com Paulo era essa verdade em nossa vida. Sem essa iluminação
homem cheio do Espírito Santo (At 11.24). Paulo do Espírito jamais poderíamos entender a Pala-
não poderia ser diferente, somos informados que, vra de Deus. Calvino diz, “a carne não é capaz de
quando ele ficou cheio do Espírito Santo, imedia- tão alta sabedoria como é compreender a Deus e
tamente começou a pregar que Jesus era o Filho o que a Deus pertence, sem ser iluminada pelo
de Deus (At 9.17, 20). E houve momentos em Espírito Santo”.5 A Escritura já é luz por si mesma
que, muitos desses foram novamente enchidos, (Sl 119.105), porém, precisamos de uma luz adi-
de acordo com as necessidades da ocasião. Como cional, porque por natureza, estamos em trevas.
já vimos, a igreja ficou cheia do Espírito após as
5 João Calvino. Institutas, II.2.19
101

Sproul diz: “O mesmo Espírito Santo que inspira coração do que ao ouvido.”8
a Palavra, age para iluminar a Palavra em nosso
benefício. Ele derrama luz sobre a luz original”.6 A mesma ideia pode ser encontrada em 2Corin-
tios 4. Paulo diz que rejeitava as formas astuciosas
Palmer diz: “Para adquirir conhecimento verda- de pregação, mantendo a integridade da Palavra
deiro não basta, pois, possuir a clara revelação de Deus (2Co 4.2). Ou seja, sua pregação con-
de Deus; o homem precisa também poder ver. E sistia na exposição precisa da Palavra de Deus, e
precisamente aqui é onde entra o Espírito Santo. não em recursos de oratória ou sabedoria secular.
Dá ao homem não somente um livro infalível, Entretanto, nem todos estavam crendo na men-
mas também olhos para que o possa ler”.7 Paulo sagem da graça, e Paulo sabe o porquê: “Mas, se
deixa isso bem claro em sua primeira carta aos o nosso Evangelho ainda está encoberto, é para
Coríntios. Ele diz: “Mas, como está escrito: Nem os que se perdem que está encoberto, nos quais o
olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais deus deste século cegou o entendimento dos in-
penetrou em coração humano o que Deus tem crédulos, para que lhes não resplandeça a luz do
preparado para aqueles que o amam” (1Co 2.9). Evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem
Ao contrário do que geralmente se supõe, Paulo de Deus” (2Co 4.3-4). Aqui está a explicação sobre
não está falando aqui do paraíso, mas do Evan- por que a maioria das pessoas simplesmente não
gelho de Cristo. Esse Evangelho foi revelado pelo consegue entender o Evangelho. A razão é que es-
Espírito, conforme ele declara: “Mas Deus no-lo tão cegas, pois Satanás as cegou. Elas não conse-
revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas guem entender o Evangelho da Palavra de Deus
as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de porque lhes falta um dispositivo interno chamado
Deus” (1Co 2.10). Segundo esse texto, o Espírito entendimento ou iluminação. Suas mentes estão
nos revela aquilo que está na mente de Deus. Ele obscurecidas (Ef 4.17-18) e só podem crer se fo-
“perscruta”, no sentido de iluminar ou tornar cla- rem iluminadas (2Co 4.6). Essa tarefa de iluminar
ro para nós, aquilo que está na mente de Deus. O pertence ao Espírito Santo.
que os olhos humanos não conseguem contem-
plar, o Espírito revela, “para que conheçamos o Quando o Espírito Santo age na vida de uma pes-
que por Deus nos foi dado gratuitamente” (1Co soa incrédula, ele abre os olhos e os ouvidos es-
2.12). Obviamente, ele está se referindo à salvação pirituais dessa pessoa, a fim de que consiga ver
pela graça. Porém, “o homem natural não acei- e ouvir a revelação de Deus na Escritura. Dessa
ta as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são forma, a pessoa passa a ter convicção de seus pe-
loucura; e não pode entendê-las, porque elas se cados e entenderá que a salvação somente é possí-
discernem espiritualmente” (1Co 2.14). Aqui está vel na pessoa de Cristo. Mas a obra da iluminação
a declaração de que o homem natural, ou seja, o não é só isso. Durante toda a vida, o crente terá
homem não convertido não consegue aceitar e à disposição essa obra iluminadora do Espírito
entender essas coisas do Espírito. Falta-lhe a ilu- Santo que lhe ajudará a entender a Escritura e a
minação do Espírito, e, como diz Spurgeon: “nós discernir a vontade de Deus. Esse fator de ilumi-
nunca conheceremos nada enquanto não formos nação é de imensa ajuda para que desenvolvamos
ensinados pelo Espírito Santo, que fala mais ao uma vida de sabedoria e obediência à sua vonta-
de. Uma das coisas que Paulo mais desejava para
6 R. C. Sproul. Verdades Essenciais da Fé Cristã, Vol seus filhos espirituais era esse fator de ilumina-
2, p. 15.
7 Edwin H. Palmer. El Espiritu Santo, p. 68. 8 C.H. Spurgeon. Firmes na Verdade, p. 72.
102

ção, pois ele disse ao Efésios que orava frequente- o fruto e não necessariamente os dons. Isso nos
mente por isso: “Não cesso de dar graças por vós, lembra as palavras de Jesus: “Não pode a árvore
fazendo menção de vós nas minhas orações, para boa produzir frutos maus, nem a árvore má pro-
que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da duzir frutos bons. Toda árvore que não produz
glória, vos conceda espírito de sabedoria e de re- bom fruto é cortada e lançada ao fogo. Assim,
velação no pleno conhecimento dele, iluminados pois, pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7.18-
os olhos do vosso coração, para saberdes qual é a 20). O próprio Jesus disse que a evidência de “po-
esperança do seu chamamento, qual a riqueza da der” na vida das pessoas não significa necessaria-
glória da sua herança nos santos e qual a suprema mente conversão, pois, conforme ele completou:
grandeza do seu poder para com os que cremos” “Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor,
(Ef 1.16-19). Mediante a iluminação do Espíri- Senhor! Porventura, não temos nós profetizado
to podemos compreender as grandezas de Deus em teu nome, e em teu nome não expelimos de-
para nossa vida e desfrutar delas. Nesse sentido, mônios, e em teu nome não fizemos muitos mila-
João chamava a iluminação de “unção que vem gres? Então, lhes direi explicitamente: nunca vos
do Santo”, a qual é responsável pelo conhecimen- conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a
to que os cristãos têm da verdade (1Jo 2.20-21). iniquidade” (Mt 7.22-23). Para Jesus o critério da
João apela para essa unção a fim de evitar que os verdadeira conversão não é “poder” que alguém
crentes sejam enganados por falsos ensinos. Evi- manifesta, mas a obediência, a vida realmente
dentemente, precisamos dizer mais uma vez, que transformada. Isso nos ensina que, mais do que
esse conhecimento está sempre ligado à Palavra manifestações espirituais, deveríamos buscar a
de Deus, que é a Palavra da Verdade (Jo 17.17). real transformação de vida que se demonstra em
atitudes práticas de obediência à Palavra de Deus,
mediante a plenitude do Espírito.

O FRUTO DO ESPÍRITO Gálatas 5.16-25 é o grande texto da Escritura so-


bre as obras da carne e o fruto do Espírito. Paulo
A maior consequência da plenitude do Espírito faz importantes declarações sobre as duas coisas e
é o desenvolvimento natural do “fruto do Espíri- nos dá o segredo para que o fruto do Espírito seja
to”. Na igreja, os dons do Espírito são muito mais produzido em nós, que, como já vimos, é andar
populares do que o fruto do Espírito. É fácil ver- no Espírito. A palavra “andar” é um hebraísmo
mos as pessoas orando por dons, mas, raramente que significa viver continuamente na prática de
vemos alguém orando pelo fruto. O motivo disso algo. A figura bíblica do “andar” é significativa,
também não é difícil de saber, pois os dons nos pois aponta para a nossa realidade diária de ca-
falam de algo extraordinário, sugerindo poder e minhar, nos deparando com novas e desafiadoras
feitos magníficos. O fruto, por outro lado, fala da situações, para as quais o Espírito nos conduzirá
dura rotina de evidenciar um caráter transforma- de forma segura conforme as Escrituras. Assim, a
do. Por causa disso, como diz Sproul, “os diver- Bíblia diz que Enoque e Noé andaram com Deus
sos frutos do Espírito parecem estar condenados (Gn 5.24, 9.6). Isso denota toda uma vida de de-
à obscuridade, ocultos na sombra dos dons mais dicação e fiel cumprimento aos princípios divi-
preferidos”.9 Porém, segundo a Bíblia, a grande nos. Esse apego contínuo ao Espírito Santo que
evidência de que alguém está cheio do Espírito é está em nós é a garantia de que a carne perderá
a guerra contra o Espírito. Por sua vez, isso indi-
9 R. C. Sproul. O Mistério do Espírito Santo, p. 16.
103

ca que quando não vivemos dessa forma, a carne córdias, dissensões, facções, invejas, bebedices,
ganhará. glutonarias e coisas semelhantes a estas...” (Gl
5.19-21). Evidentemente, essas obras caracteri-
Guerra sem trégua zam a vida de uma pessoa não-regenerada. Não
significa que um crente não possa cair em algum
Uma das realidades mais vívidas do crente é a do desses pecados ocasionalmente, porém, se essas
conflito. Quando nos convertemos, caímos de pa- coisas forem evidências contínuas na vida de al-
raquedas em meio a um imenso combate que já guém, como Jesus disse, isso caracteriza natureza
vem sendo travado há muito tempo, o combate de árvore má, ou seja, ausência de conversão. A
do bem contra o mal, do Reino de Deus contra lista parece falar de pecados que têm relação com
o Império das Trevas. Paulo diz que estamos em o sexo (prostituição, impureza, lascívia), com a
meio a uma guerra que não é contra “o sangue e religião (idolatria, feitiçarias), com relaciona-
a carne, e sim contra os principados e potestades, mentos (inimizades, porfias, ciúmes, iras, discór-
contra os dominadores deste mundo tenebroso, dias, dissensões, facções, invejas), e, por fim, com
contra as forças espirituais do mal, nas regiões ce- os apetites (bebedices, glutonarias). Porém, a lista
lestes” (Ef 6.12). Não há como fugir dessa guerra. não é exaustiva, pois Paulo diz: “E coisas seme-
Uma vez que fomos tirados do Império das Tre- lhantes a essas”. Quatro áreas problemáticas ficam
vas (Cl 1.13), agora todo aquele império é nosso bem enfatizadas: sexo, religião, relacionamentos e
inimigo. Por isso só nos resta vestir a armadura, apetites. São quatro áreas em que a carne gosta de
empunhar a espada e orar até não poder mais (Ef se manifestar. As armas da carne são poderosas,
6.1118). Alguém poderia esperar que a luta fos- elas atuam em todos os nossos pontos mais fra-
se apenas externa, mas o problema é que há uma cos e, como Paulo diz, são conhecidas, na verdade
luta dentro de nós também. Paulo diz: “Porque a são nossas conhecidas íntimas. São as coisas mais
carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra comuns que encontramos no mundo, quando li-
a carne, porque são opostos entre si; para que não gamos a tevê, abrimos o jornal, ou conversamos
façais o que, porventura, seja do vosso querer” informalmente com os amigos. Até mesmo na
(Gl 5.17). Esta é uma batalha terrível. O velho ho- igreja elas podem se manifestar. Mesmo no recan-
mem não quer entregar o terreno de bom grado to de nossa mente, e inclusive até nos sonhos elas
e se arma até aos dentes a fim de resistir ao Espí- tramitam e fazem guerra contra o Espírito. Deus
rito. Como diz Sproul, “embora essa guerra seja engrandeça o seu Espírito dentro de nós!
interna e invisível, há claros sinais externos da
carnificina provocada pela batalha”.10 Ele está se Tríplice relacionamento
referindo especialmente ao que acontece quando
a carne vence, pois aparecem as obras da carne. Em contrapartida, o Fruto do Espírito apresenta
Não devemos ignorar a realidade desse combate, as virtudes da vida cristã autêntica.
e somos chamados para tomar o lado do Espírito
nessa batalha. Stott vê uma tríplice divisão nesse fruto, que é
composto de nove elementos, classificando-o
Paulo diz: “Ora, as obras da carne são conhecidas como: Relacionamento com Deus, relacionamen-
e são: prostituição, impureza, lascívia, idolatria, to com os outros, e relacionamento com nós mes-
feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, dis- mos.11

10 R. C. Sproul. O Mistério do Espírito Santo, p. 164. 11 John Stott. Batismo e Plenitude do Espírito Santo,
104

Em relação a Deus estão o amor, a alegria e a paz. força. É uma característica própria de Deus que
O amor é o único que figura tanto na lista do fru- não usa sua força além do necessário. Alguém be-
to quanto dos dons do Espírito. É o primeiro e o nigno sabe ser bondoso com os que estão errados.
mais importante nas duas listas. Paulo diz que o A bondade tem em Deus o seu próprio padrão,
amor de Deus é derramado em nossos corações pois somente Deus é realmente bom. Quando
pelo Espírito (Rm 5.5). Ele diz que o amor é “do somos convertidos, o Espírito muda nossa essên-
Espírito” (Rm 15.30) e “no Espírito” (Cl 1.8). De cia má, tornando-nos imitadores de Deus. Assim,
certa forma, exibir esse amor é evitar todas as podemos demonstrar bondade uns com os outros
obras da carne (1Co 13.4-7). A alegria do Espí- sem esperar nada em troca.
rito é uma marca fundamental do crente e é uma
das características principais do próprio reino de Em relação a nós mesmos estão fidelidade, man-
Deus (Rm 14.17). Ela está relacionada à posição sidão e domínio próprio. A fidelidade é uma graça
que o crente tem diante de Deus. Não é uma sim- que o convertido recebe. Ele não é fiel aos outros,
ples euforia por alguma conquista pessoal, mas ele é fiel a si mesmo, pois em última instância sua
uma alegria sincera e profunda, oriunda da certe- fidelidade é para com Deus. Sua preocupação não
za da salvação, e que não diminui em meio às difi- é com o que os outros vão pensar, mas sim, com o
culdades e provações da vida (Fp 4.4). A paz que é que Deus pensa dele, e com o que ele pensa de si
fruto do Espírito também é bastante diferente da mesmo. Ele deseja agir coerentemente com o que
“paz” que o mundo almeja. Essa paz não significa recebeu de Deus. Não devemos confundir man-
apenas ausência de conflito. O crente pode estar sidão com fraqueza, pois alguém que tem o po-
em paz mesmo em meio às guerras e tribulações der e até o direito de revidar, mas abre mão disso
da vida, afinal, a vida cristã é uma guerra externa por uma questão de fé, não é um covarde, é um
e interna. Essa paz “excede todo o entendimento” corajoso. E domínio próprio é a virtude do au-
(Fp 4.7). Como diz Stott, amor, alegria e paz são tocontrole. Tem domínio próprio quem recebeu
características fundamentais do cristão, “tudo o o poder de controlar a língua, os apetites e até os
que ele faz é concebido com amor, iniciado com pensamentos.
alegria e executado com paz”.12
Há um só fruto do Espírito
Em relação aos outros estão longanimidade, be-
nignidade e bondade. Um temperamento longâ- Precisamos notar que, apesar de termos listado
nime é caracterizado pela demora em se irritar várias características, há na verdade, apenas um
e por uma ausência completa de “pavio curto”, fruto do Espírito. Ainda que, geralmente falemos
conseguindo suportar as ofensas dos outros e evi- em “frutos do Espírito”, a palavra em Gálatas 5.22
tando o ato de julgar. A característica principal está no singular. Os dons do Espírito são muitos
da longanimidade é a capacidade de esperar. O porque caracterizam a diversidade de membros
crente espera que as coisas mudem a longo pra- no corpo de Cristo e, por conseguinte, ninguém
zo. Ele não deseja tudo para hoje, pois consegue tem todos os dons, mas o fruto não tem essa fun-
esperar o momento certo. A benignidade é uma ção, e por isso, cada crente verdadeiro deve pro-
virtude que tem a ver com o devido controle da duzir todo o fruto do Espírito. Todo crente tem
pelo menos um dom que lhe foi concedido so-
p. 56. beranamente pelo Espírito, além de ter a respon-
12 John Stott. Batismo e Plenitude do Espírito Santo, sabilidade de buscar outros dons (Ver 1Co 12.3),
p. 56.
105

porém, como diz Hoekema, “podemos ser salvos naquele em que habita, contudo, há um proces-
sem muitos dos dons do Espírito, mas não pode- so gradativo de maturidade espiritual. O fruto do
mos ser salvos sem o fruto do Espírito”.13 A uni- Espírito não é algo eventual ou esporádico, mas
dade do fruto do Espírito, portanto, nos diz que gradativo e sistemático. Somos conduzidos dia a
não podemos escolher virtudes, devemos eviden- dia a frutificar no Espírito, pois como diz Hoe-
ciá-las todas. Uma pessoa não pode ser apenas kema: “Se andarmos continuamente no Espírito,
“longânime” sem ser “fiel”. Do mesmo modo não estaremos continuamente abundando no fruto do
pode evidenciar “amor” sem “domínio próprio”. Espírito.”14
A plenitude do fruto do Espírito é a evidência
principal da plenitude do Espírito.

Característica orgânica do fruto CONCLUSÃO

Uma vez que estamos falando de “fruto”, tam- Portanto, a plenitude do Espírito é a vida ideal do
bém devemos pensar em seu crescimento orgâni- crente. Nada menos do que isso deve nos satisfa-
co. Isso nos sugere duas coisas: Primeiro que ele zer. Essa vida está acessível a todos os converti-
precisa crescer e segundo, que cresce em certas dos, pois Jesus continua acessível a todos, dizen-
circunstâncias. Não devemos esperar que uma do: venha e beba. Paulo disse que se andássemos
pessoa recém convertida demonstre o fruto do no Espírito nunca satisfaríamos os desejos da car-
Espírito em sua forma plena, pois ele será de- ne (Gl 5-16). Quando estamos cheios do Espírito,
senvolvido gradualmente. Isso nos leva à segun- o mundo não brilha tanto para nós. Satanás não é
da observação, pois para que algo se desenvolva, tão ameaçador, e nossa carne fica bastante enfra-
precisa ser alimentado. Usando a analogia da na- quecida. Ser cheio do Espírito é a garantia de uma
tureza, sabemos que uma árvore não precisa fazer vida cristã autêntica. Quando deixamos o pecado
força para produzir frutos, ela precisa dispor dos se avultar em nossa vida, perdemos o que temos
elementos necessários, como chuva, boa terra, de mais precioso, que é a comunhão com Deus
sol, etc. Da mesma forma, o crente não produz mediante a plenitude do Espírito dentro de nós.
frutos forçadamente, mas quando dispõe dos ele- A vida do crente deve ser uma vida plena. O fruto
mentos necessários para isso, como a pregação da do Espírito e a iluminação do Espírito devem ser
Palavra, a comunhão entre os irmãos, a oração, a coisas contínuas no processo de aperfeiçoamento.
meditação, etc., essas santas influências do Espíri- Viver abaixo deste padrão é viver uma vida esva-
to Santo produzirão, na vida do crente, o bendito ziada de significado e propósito, e é simplesmente
fruto do Espírito. Esse é o segredo do “andar no trágico.
Espírito”. E quem anda no Espírito tem a garantia
de não satisfazer as concupiscências da carne (Gl
5.16; 25). O segredo do fruto do Espírito é andar
14 A. A. Hoekema. O Cristão Toma Consciência do
no Espírito. Quando vivemos sob as influências
Seu Valor, p. 53.
do Espírito Santo, que nos são oferecidas através
da Palavra de Deus, da oração, da comunhão e da
igreja, o fruto do Espírito crescerá e amadurecerá
naturalmente em nós. O Espírito nunca é estéril

13 Anthony Hoekema. Salvos Pela Graça, p. 51.


106

14

OS DONS DO ESPÍRITO: DEFINIÇÕES

INTRODUÇÃO onde podemos buscar compreensão dos dons do


Espírito são os capítulos 12 a 14 de 1Coríntios.
Deus capacitou sua igreja com poderes extraordi- Paulo trata extensivamente sobre esse assunto
nários para que, em unidade, realizasse sua mis- porque o mau uso dos dons era um dos grandes
são de proclamação e testemunho perante o mun- problemas da igreja de Corinto. Aquela igreja,
do, além de seu próprio crescimento espiritual. A apesar de ter recebido todos os dons espirituais
essa capacitação a Escritura chama de “dons do (1Co 1.7), fazia um mau uso deles. Paulo listou
Espírito Santo”. Tristemente, porém, a questão uma série de distinções e regulamentações para
dos dons do Espírito tem causado divisões dentro esses dons, que interpretadas a partir do contexto
da igreja de Cristo. Concepções muito diferentes histórico, servem de base para a igreja em todos
em relação à natureza e ao uso desses dons cau- os tempos.
sam rupturas, escândalos e confusão em muitas
igrejas. Desse modo, aquilo que Deus deu para
servir, e, por conseguinte, para unir as pessoas,
acaba sendo causa de divisões e escândalos. Essa DEFINIÇÕES A RESPEITO DOS DONS
é uma constatação que não pode ser ignorada,
porém isso não deve impedir que estejamos in- Paulo está muito interessado em que os crentes
teressados e que conheçamos bem o assunto dos de Corinto tenham conhecimento verdadeiro so-
dons espirituais. bre os dons, por isso ele diz: “A respeito dos dons
espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignoran-
De acordo com a Bíblia, os dons do Espírito fo- tes” (1Co 12.1).
ram dados a fim de ajudar a igreja na tarefa de
evangelização e edificação. Eles são as armas mais Essa é uma séria advertência. Ignorância, que li-
poderosas e variadas que Deus deu à sua igreja a teralmente significa falta de entendimento, a res-
fim de capacitá-la para a missão que precisa rea- peito dos dons espirituais pode complicar seria-
lizar nesse mundo. Um dos melhores lugares de mente o ministério e a vida cristã. Paulo deseja
107

que os crentes sejam esclarecidos no que se refere vidade soberana do Espírito na distribuição des-
ao assunto dos dons, e esse também é o nosso es- ses dons. Paulo diz: “A manifestação do Espírito
forço nesse momento. O primeiro princípio que é concedida a cada um visando a um fim pro-
aprendemos sobre os dons espirituais, portanto, veitoso” (1Co 12.7). O dom espiritual não é algo
é que devemos ser esclarecidos e não ignorantes que conquistamos, mas algo que nos é dado por
quanto a eles. O melhor lugar para sermos escla- causa de um objetivo. Logo adiante Paulo con-
recidos é a Palavra de Deus, devemos, portanto, clui: “Mas um só e o mesmo Espírito realiza to-
estudá-la. das estas coisas, distribuindo-as, como lhe apraz,
a cada um, individualmente” (1Co 12.11). Dom
O segundo princípio que está claro no texto é a não é questão de escolha pessoal, pois o Espírito
questão da diversidade dos dons e da unidade distribui a cada um como é do seu desejo. Isso
do Espírito. Paulo diz: “Ora, os dons são diversos, certamente tem a ver com a necessidade da igre-
mas o Espírito é o mesmo” (1Co 12.4). Nesse texto ja. Se os dons são dados visando a um fim pro-
encontramos a base para a unidade e diversidade veitoso, então o Espírito concede soberanamente
da igreja, pois: “A igreja é uma, porque o Espírito os dons mais úteis a um determinado lugar, e a
habita em todos os crentes. A igreja é multiface- um determinado tempo.2
tada, porque o Espírito distribui diferentes dons
aos crentes. De forma que o dom do Espírito (que O próximo princípio que aprendemos do texto
Deus nos dá) cria a unidade da igreja, e os dons é que os dons são distribuídos soberanamente
do Espírito (que o Espírito dá) diversifica o mi- pelo Espírito a cada um. Significa que todos os
nistério da igreja”.1 Essa é uma afirmação muito crentes necessariamente possuem, pelos me-
importante. De fato, todos os crentes são batiza- nos, um dom do Espírito. Isso fica ainda mais
dos com o Espírito Santo, e isso faz deles um cor- óbvio porque Paulo usa o corpo humano como
po (1Co 12.13), ou seja, uma igreja única e unida. uma analogia da igreja. Ele fala da diversidade
Por outro lado, o Espírito que habita em todos os de membros que um corpo possui. Um membro
crentes distribui dons variados, criando a diversi- tem que ter uma função, então ter um dom e ser
dade de membros que, não obstante, pertencem um crente são coisas sinônimas. É impossível fa-
ao mesmo corpo. Nos versos 4-6 (1Co 12) Paulo zer parte do corpo de Cristo sem ser membro
usa três palavras diferentes para os dons, e tam- e, portanto, é impossível ser crente sem ter pelo
bém lista cada uma das três pessoas da Trindade. menos um dom.
A primeira palavra é charismata (v. 4), que signi-
fica “dom da graça de Deus”. A segunda palavra é A próxima asseveração importante é que cada
diakoniai (v. 5) que representa serviço, ou manei- pessoa tem um dom diferente. Isso também pa-
ras de servir. A terceira palavra é energemata (v. rece óbvio a partir da analogia do corpo. O cor-
6) que significa “energias” ou poderes do Espírito. po é composto de vários membros, e Paulo suge-
Isso nos aponta para a origem sobrenatural dos riu que um corpo com apenas um membro seria
dons e impede que pensemos neles como talentos algo monstruoso (1Co 12.17). Ele faz questão de
naturais. listar os dons distinguindo entre pessoa e pes-

O terceiro princípio que o texto nos ensina é a ati-


2 Devemos considerar isso juntamente com a ideia
de buscarmos os melhores dons (1Co 12.31). É nossa fun-
1 John Stott. Batismo e Plenitude do Espírito Santo, ção buscarmos os melhores, mas devemos entender que
p. 64. Deus nos dará o que é melhor.
108

soa: “Porque a um é dada, mediante o Espírito, a de Cristo (Ver 1Co 12.21-25).


palavra da sabedoria; e a outro, segundo o mesmo
Espírito, a palavra do conhecimento; a outro, no O último princípio, que é também o mais im-
mesmo Espírito, a fé; e a outro, no mesmo Espí- portante, é que o uso dos dons deve ser regido
rito, dons de curar; a outro, operações de mila- pelo amor. Por essa razão, após listar os dons e
gres; a outro, profecia; a outro, discernimento de dar explicações sobre eles, Paulo diz: “Entretanto,
espíritos; a um, variedade de línguas; e a outro, procurai, com zelo, os melhores dons. E eu passo
capacidade para interpretá-las” (1Co 12.8-10). a mostrar-vos ainda um caminho sobremodo ex-
Nos dias atuais certas pessoas afirmam que, a não celente” (1Co 12.31). Ele introduz a realidade do
ser que possuamos um dom particular, no caso amor no uso dos dons espirituais, pretendendo
específico, o dom de línguas, não fomos batiza- dizer que sem o amor, por mais espetaculares que
dos com o Espírito Santo. Como diz Lloyd-Jones, sejam os dons, eles de nada servirão (1Co 13.1-3).
“qualquer leitura destes três capítulos (1Co 12-
14) diretamente condena como mentira qualquer
ensino deste tipo”.3
O DOM SUPREMO
O próximo princípio que deve ser aprendido é
que os dons possuem valores variados. Nesse Em muitas congregações existe uma verdadeira
ponto é importante que fique claro que a diferen- guerra entre os crentes para um ser mais “es-
ça de valor é entre os dons, e não entre as pessoas. piritual” do que o outro. Todos querem demons-
Paulo claramente estabelece uma relação de valor trar sua espiritualidade, contando experiências
entre os dons ao dizer: “A uns estabeleceu Deus pessoais e buscando sempre alguma “novidade
na igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo espiritual”. Quando o Apóstolo Paulo listou os
lugar, profetas; em terceiro lugar, mestres; depois, dons mais comuns na igreja de Corinto, ele de-
operadores de milagres; depois, dons de curar, monstrou que nem todos tinham o mesmo dom
socorros, governos, variedades de línguas” (1Co (1Co 12.29-30). No entanto, ele enfatizou que to-
12.28). Interessantemente, o dom que é o mais dos têm a responsabilidade de buscar os melhores
valorizado e buscado por tantas pessoas figura na dons. No entendimento de Paulo, o melhor dom
lista em último lugar. Aliás, o problema da igreja não era o de línguas. Paulo preferia profecia a
de Corinto era justamente que estava dando um línguas, mas entendia que havia algo ainda mais
valor excessivo ao dom de línguas. Por essa razão, importante. Ele diz que o caminho do amor seria
Paulo precisou ensinar que esse dom não era o a experiência mais espiritual que os coríntios po-
mais importante. No capítulo 14 ele diz explicita- deriam ter. Seu entendimento é que, se devemos
mente que o dom de profecia é superior ao dom buscar os melhores dons, há um que sobrepassa
de línguas (1Co 14.5). O que fica claro é que os a todos: o amor – o dom supremo. O capítulo 13
dons sempre funcionam para o bem dos outros. de 1Coríntios geralmente não é bem entendido
Como diz Calvino, “Todas as bênçãos de que go- pelos crentes. É comum vermos ele sendo usado
zamos são depósitos divinos que temos recebido em casamentos ou noivados. Mas a intenção de
com a condição de distribuí-los aos demais.”4 Seja Paulo, ao colocá-lo entre os dois capítulos que
qual for o dom, todos têm valor dentro do corpo tratam sobre os dons espirituais, é justamente de-
monstrar que todos os dons devem ser regidos e
3 D. M. Lloyd-Jones. Deus o Espírito Santo. p. 345. mediados pelo amor, e que sem o amor, os dons
4 João Calvino. A Verdadeira Vida Cristã, p. 36. se tornam coisas nulas e perigosas. Portanto, mais
109

do que buscar dons, Paulo deseja que os crentes O entendimento errôneo desse texto tem levado
busquem o amor, pois dessa forma, não correrão muitos a dizer que as línguas que são faladas hoje
o risco de usarem os dons indevidamente. nas igrejas são “línguas dos anjos”. Como vimos,
Paulo usou a expressão “línguas dos anjos” como
O amor dá valor aos dons um exagero do dom de línguas normal que é “dos
homens”. Ainda deve ser observado que as línguas
O primeiro argumento de Paulo para demons- descritas em Atos 2.5-11 são de povos ou nações
trar que o amor é o dom supremo é que sem ele, desse mundo. Se fosse nos nossos dias seria ale-
os demais dons são totalmente sem valor. Paulo mão, italiano, inglês, russo, japonês, etc. A Bíblia
diz: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e não diz que alguém falou língua de anjos no dia
dos anjos, se não tiver amor, serei como o bron- de Pentecostes, e do mesmo modo, a Bíblia não
ze que soa ou como o címbalo que retine. Ain- diz que o dom de línguas do Pentecostes (nações)
da que eu tenha o dom de profetizar e conheça mudou para um dom angelical. Por fim, ainda te-
todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu ríamos que fazer a seguinte pergunta: mesmo que
tenha tamanha fé, a ponto de transportar mon- houvesse a possibilidade de falar línguas dos an-
tes, se não tiver amor, nada serei. E ainda que eu jos, o texto também fala em línguas dos homens,
distribua todos os meus bens entre os pobres e então, por que ninguém fala nas línguas dos ho-
ainda que entregue o meu próprio corpo para ser mens (outras nações) nos dias de hoje? Por que só
queimado, se não tiver amor, nada disso me apro- se fala na suposta língua dos “anjos”?
veitará” (1Co 13.1-3). Ele diz que, sem o amor,
alguém pode falar todas as línguas existentes, ter Voltando ao aspecto do amor, isso basta para nos
todo o conhecimento, ter uma fé inigualável, ser demonstrar o quanto o amor é fundamental nessa
o mais abnegado dos homens, mas será tudo em questão dos dons. É muito fácil alguém se enso-
vão. Percebemos que ele usa intencionalmente o berbecer quando tem algum dom, e usá-lo para
exagero a fim de demonstrar que o amor é mais benefício de si mesmo, e por essa razão, ainda que
importante, até, do que um dom elevado à catego- tivesse “super-dons”, seriam totalmente inúteis,
ria máxima. Ao todo ele lista cinco dons: línguas, pois estariam sendo usados sem amor. A expres-
profecia, conhecimento, fé e serviço. Mas, ele exa- são que Paulo usa para amor no texto é ágape. To-
gera esses dons ao máximo. Por isso ele compa- dos sabem que isso representa um amor altruísta
ra: “línguas dos homens com línguas dos anjos”; e totalmente desinteressado consigo mesmo em
profecia/conhecimento com todos os mistérios termos de retornos ou vantagens pessoais. Porém,
e toda ciência; Fé com transportar montes; Ser- algo que geralmente as pessoas não sabem é que
viço com distribuir todos os bens e morrer pelo esse amor não diz respeito apenas a um tipo de
próximo. As expressões em itálico representam o sentimento abstrato. Como diz Augustus N. Lo-
exagero que Paulo faz de cada dom. Ele quer dizer pes, “o apóstolo não está falando aqui de emoções,
que ainda que um dom normal fosse elevado à embora elas, sem dúvida, possam estar presentes
categoria máxima, sem amor, ele seria inútil. Po- quando esse amor entra em ação; ele não está fa-
rém, isso não significa que essa categoria máxima lando aqui de sentimentos, mas de um estilo de
dos dons exista realmente. Até porque, ninguém vida, de uma atitude que as pessoas decidem to-
conhece todos os mistérios e toda a ciência, nin- mar para com a vida e para com as outras pessoas
guém realmente move montes, e, portanto, nin- e para com Deus”.5 Essa atitude deve ser de respei-
guém fala em línguas dos anjos.
5 Augustus N. Lopes. O Culto Espiritual, p. 139
110

to e não de superioridade ou menosprezo. 22), exaltação (1Co 6.7), ressentimento (1Co 3.3)
e alegria diante da injustiça (1Co 5.1-3) eram coi-
O amor une os dons sas extremamente comuns naquela comunidade.
O amor era o remédio para a situação trágica em
Em seguida Paulo fala das características desse que eles se encontravam. O fato mais dramático
amor enquanto atitudes. Ele faz uma espécie de é que eles estavam naquele estado devido ao uso
personificação do amor, como se estivesse falan- indevido dos dons espirituais. Todo tipo de com-
do de uma pessoa. Ele diz: “O amor é paciente, petição, exaltação ou benefício próprio desapare-
é benigno” (1Co 13.4). Paciência e benignidade cem quando existe o amor.
são as duas primeiras características do amor
verdadeiro. Calvino diz que “o objetivo primor- O amor “tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo
dial (de Paulo) é mostrar quão necessário ele é suporta” (1Co 13.7). Aqui certamente está o as-
(o amor) na preservação da unidade da igreja”.6 pecto mais altruísta do amor. Ele está disposto a
E de fato, nenhuma qualidade é mais necessária “sofrer tudo”, cuja conotação é aguentar as ofen-
na igreja a fim de manter a unidade do que pa- sas e os ataques. Ele está disposto a “crer em tudo”,
ciência e benignidade. Quando existe amor, as referindo-se provavelmente ao ato de acreditar
pessoas são pacientes em relação às outras, isso nas pessoas, naquilo que elas dizem, em suas pro-
significa que não irão retrucar ou retribuir na messas de mudança ou de inocência. Ele “espera
mesma moeda. Também não esperarão que os tudo”, ou seja, “confia no próximo, espera dele o
outros sejam perfeitos, mas pacientemente espe- melhor”.7 E por fim, “tudo suporta”, no sentido de
rarão que Deus transforme suas vidas. No uso que aguenta todas as cargas, e enfrenta todas as
dos dons espirituais essa característica é necessá- dificuldades. O resumo disso é que o amor sem-
ria, porque quem trabalha esperará que o resul- pre está disposto a sofrer primeiro do que fazer
tado venha no tempo certo. Da mesma forma a os outros sofrerem. Por isso ele é a grande carac-
benignidade levará a pessoa a usar seu dom para terística do próprio Deus (1Jo 4.8). Para salvar os
benefício dos outros, desejando carinhosamente homens, Deus preferiu ele próprio sofrer, assim a
ajudar aos que precisam. Segunda Pessoa encarnou-se e foi sacrificada na
maior prova de amor que esse mundo já viu (Rm
Em seguida Paulo dá uma longa lista sobre coi- 5.8).
sas que o amor não faz. Ele diz: “Amor não arde
em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, O amor permanece para sempre
não se conduz inconvenientemente, não pro-
cura os seus interesses, não se exaspera, não se Paulo ainda tem algo a dizer a fim de demonstrar
ressente do mal; não se alegra com a injustiça, que o amor é o “caminho sobremodo excelente”.
mas regozija-se com a verdade” (1Co 13.4-6). A Seu argumento é que o amor jamais desaparecerá.
solução para todos os problemas que existiam na Ele diz: “O amor jamais acaba; mas, havendo pro-
igreja dos coríntios, e para as nossas, é o amor. fecias, desaparecerão; havendo línguas, cessarão;
Ciúmes (1Co 1.12; 3.3), ufanismo (1Co 3.18), havendo ciência, passará” (1Co 13.8). Os dons
soberba (1Co 3.21; 4.6-8), comportamento in- espirituais, por mais importantes que sejam, são
conveniente (1Co 5.1-13), egoísmo (1Co 11.17- temporários, ou seja, eles cumprem uma função

6 João Calvino. Primeira Coríntios, p. 396 (1Co 7 Charles Hodge. Comentario de I Corintios, p. 250
13.4). (1Co 13.7).
111

determinada por Deus. Quando essa função es- Os dons são como os andaimes na construção de
tiver cumprida, os dons desaparecerão. Mas isso um prédio, enquanto o prédio está em construção
não acontecerá com o amor, pois mesmo depois eles são necessários, mas quando o prédio estiver
da consumação de todas as coisas e do estabele- concluído, podem ser removidos, assim, quando
cimento pleno do Reino de Deus, o amor conti- a igreja estiver pronta, os dons serão retirados,9
nuará existindo e sendo o grande elo entre Deus mas o amor permanecerá para sempre, pois ele é
e os homens, entre os homens e Deus, e entre a própria razão da existência da igreja.
os próprios homens. Paulo cita três dons nesse
contexto. Ele fala do dom de línguas, do dom de Diante das evidências bíblicas e históricas, pode-
profecia, e do dom de conhecimento. Esses três mos dizer que o Dom de Línguas teve um propó-
dons, como todos os demais, um dia deixariam de sito na história da igreja, e Deus o fez desaparecer
existir, mas o amor jamais deixará de existir, por quando esse propósito se cumpriu. Ele foi usado
isso, o amor é mais importante do que todos eles.8 na implantação da igreja e cessou com a era apos-
tólica. Primeira Coríntios é uma das primeiras
8 Há um detalhe que geralmente passa despercebido cartas do Novo Testamento, e é a única que traz
nesse texto, mas que merece consideração da nossa parte. É
a maneira como os três dons listados segundo Paulo chega-
referência ao dom de línguas. Nenhuma outra
rão ao fim. Paulo diz que todos os dons somente irão durar carta fala qualquer coisa sobre línguas, e isso nos
até a vinda do “que é perfeito” (1Co 13.10). A interpretação leva a pensar que, quando foram escritas, prova-
mais plausível dessa expressão deve ser em relação à Segun- velmente o dom já tivesse cessado. Muitos escritos
da Vinda de Jesus. É a perfeição da era vindoura quando os
dons espirituais não serão mais necessários, porém o amor pós-apostólicos dizem que o dom cessou na era
continuará sendo. O que chama a atenção é o tratamento di- apostólica. Se acrescentarmos o fato de que não
ferenciado que Paulo concede aos três dons listados acima. vemos nos dias de hoje as pessoas falando línguas
Ele diz: “Profecias, desaparecerão (grego: katargetesontai)”;
de outros povos, sem que as tenham aprendido,
“línguas, cessarão (grego: pausontai)”; “ciência, passará
(grego: katergetesetai)” (1Co 13.8). Percebe-se que a pala- podemos chegar à conclusão de que o dom de
vra para o modo como as línguas acabariam é diferente da Línguas realmente cessou. De qualquer modo, se
palavra como profecia e conhecimento desapareceriam. Na o dom for visto nos dias de hoje, no caso de al-
verdade, a expressão gramatical é um verbo na voz média,
que em relacão a objetos implica numa ação reflexiva, cuja guém falar numa língua estrangeira sem nunca a
tradução poderia ser: “Cessarão por si mesmas”. E quando ter estudado, e sob a direção do Espírito, teríamos
no verso seguinte ele diz “porque em parte, conhecemos e, que dizer que o dom ainda existe, porém, no mo-
em parte, profetizamos” (13.9), ele não inclui o dom de lín-
mento não temos comprovação disso.
guas. No verso 10, ele diz que “Quando, porém, vier o que
é perfeito, então, o que é em parte (profecia e conhecimen-
to) será aniquilado (grego: katergetesetai, o mesmo verbo Por fim, em defesa da superioridade do amor,
usado para profecia e conhecimento em 13.8, mas não para Paulo faz uma comparação entre a fé, a esperança
línguas)”. O que isso pode sugerir? Pode sugerir que o dom
de línguas não precisaria permanecer até a Segunda Vinda
e o amor. Ele diz: “Agora, pois, permanecem a fé,
de Jesus. Portanto, Paulo pode estar dizendo que os dons a esperança e o amor, estes três; porém o maior
são menos importantes do que o amor porque chegará um destes é o amor” (1Co 13.13). Basta ver quantas
dia quando todos acabarão, e
que o dom de línguas poderia ser o primeiro a cessar, até
entendendo que Paulo está fazendo apenas um jogo de
porque, ele era o objeto principal das discussões naquele
palavras nesse texto, que a voz média não significa reflexi-
momento. Embora esse texto não seja uma palavra final
vo nesse caso, e que se Paulo quisesse dizer que o dom de
para o assunto, não deixa de ser interessante que seja possí-
línguas cessaria antes, poderia ter simplesmente declarado
vel ver no texto uma indicação da cessação das línguas an-
isso. (Ver Augustus N. Lopes. O Culto Espiritual, p. 166-
tes mesmo da vinda de Jesus (Ver John MacArthur Jr. First
167).
Corinthians, (1Co 13.8); e Os Carismáticos, p. 157160). O
Dr. Nicodemos discorda inteiramente dessa interpretação, 9 Ver Augustus N. Lopes. O Culto Espiritual, p. 164
112

vezes a Bíblia fala dessas três virtudes juntas (Rm somente seriam removidos com a vinda de Cristo
5.1-5; Gl 5.5-6; Ef 1.15-18; Cl 1.4-5; 1Ts 1.13; 5.8; (1Co 13.10).10 Além disso, de acordo com a Bíblia,
1Pe 1.21-22), para perceber o quanto são impor- a distribuição dos dons é uma atividade soberana
tantes. Fé é o instrumento pelo qual somos salvos do Espírito, pois “um só e o mesmo Espírito rea-
(Ef 2.8), e sem ela, Deus não pode ser agradado liza todas estas coisas, distribuindo-as, como lhe
(Hb 11.6). A esperança fala da vida de expecta- apraz, a cada um, individualmente” (1Co 12.11).
tiva que o crente deve ter em relação à Segunda Portanto, não devemos limitá-lo, nem dizendo
Vinda de Jesus, estando sempre preparado para que o Espírito não pode mais conceder dons aos
ela. Mas Paulo entende que o amor é ainda maior, homens, nem dizendo que ele tem que conceder
então, é porque sua importância excede o próprio todos os dons aos homens.
entendimento.
Na linha de nossa argumentação neste traba-
Portanto, ser espiritual ao nível máximo é viver e lho, Deus se serviu dos dons para desempenhar
demonstrar o amor de Deus para com os outros funções específicas em épocas específicas. E só
através dos nossos dons. De nada adianta sermos ele sabe quais são as capacitações mais necessá-
agraciados com dons, se o amor não temperá-los. rias para sua igreja ao longo da história. Como
Ao final eles serão coisas bastante indigestas. O os dons foram dados para a edificação da igreja,
amor é o tempero da vida, é o dom supremo, é não faz sentido que Deus os removesse antes de
aquilo que mais devemos desejar e buscar. Ele a igreja estar completamente edificada. Por outro
garantirá que usaremos os outros dons da forma lado, Deus não é obrigado a agir sempre da mes-
devida. ma forma. Assim, entendemos que alguns dons
cessaram e outros não, mas é difícil dizer com
certeza quais são eles, exceto alguns que parecem
bem evidentes. Também é preciso fazer alguma
CESSARAM OU NÃO CESSARAM? distinção entre dom e ofício. Alguns dons foram
oficializados na igreja primitiva, como apóstolos,
Paulo disse que os dons cessariam, mas agora presbíteros e diáconos. O oficial necessariamen-
precisamos pensar em quando isso deve aconte- te tinha o dom, e nalguns casos, eram escolhidos
cer. Para muitos, todos os dons cessaram, e hoje a diretamente por Deus (apótolos), enquanto que
igreja age pela pregação do Evangelho sem sinais noutros, eram escolhidos pelos homens (presbíte-
extraordinários. Essa posição diz que os dons não ros). Entendemos que os ofícios que permanecem
existem mais, mas não diz necessariamente que são aqueles que a igreja escolhe, como é o caso
Deus não realiza milagres. Essa posição pode ser de Presbíteros e Diáconos, e é natural pensar que,
chamada de cessacionista. para que desempenhem esses ofícios, precisam
ter os dons correspondentes.
Outros defendem que todos os dons estão em
plena atividade no mundo, e os mesmos dons
dos Apóstolos, inclusive o de ser um “apóstolo”,
podem ser obtidos pelos crentes. Essa posição é 10 Entender esse “perfeito” de 1Coríntios 13.10 como
sustentada pelos carismáticos pentecostais e neo- sendo o Cânon das Escrituras ou a Maturidade da Igreja
são interpretações forçadas da passagem. Paulo não poderia
pentecostais. Primeiramente precisamos enten- estar falando do fechamento do Cânon, pois isso não faria
der que Paulo disse que, pelo menos alguns dons, qualquer sentido para os coríntios. O sentido óbvio da pas-
sagem é que esse “perfeito” é a vinda de Jesus.
113

15

OS DONS DO ESPÍRITO: DESCRIÇÃO

INTRODUÇÃO dos pessoalmente por Jesus (Lc 9.1), e lhes foram


dados poderes especiais como uma confirmação
Não podemos saber quantos dons espirituais fo- de seu apostolado (2Co 12.12; Mc 16.14-18). As
ram dados, pois a Bíblia não nos diz isso. Sabe- qualificações para o ofício estão listadas em Atos
mos apenas que eles são bastante diversos. Toda 1.21-22, e a principal característica era a de ter
tentativa de fixar um número fracassa, porque o sido testemunha ocular dos feitos de Jesus desde
Espírito concede tantos quantos lhe apraz. A se- o batismo de João até a ascensão. O caso de Paulo
guir listaremos alguns dons que são descritos pela é único. Ele foi um Apóstolo fora do tempo (1Co
Bíblia, porém, como é óbvio, a lista não é exausti- 15.8-9), porém, foi comissionado pessoalmente
va. Talvez seja possível agrupar todos os dons em pelo Senhor (At 26.14-16). Certamente, o dom
dois grandes grupos. Parece que Pedro faz isso ao de Apóstolo não existe mais, pois foi usado por
dizer: “Servi uns aos outros, cada um conforme Deus como “fundamento da igreja” (Ef 2.20). Os
o dom que recebeu, como bons despenseiros da Apóstolos eram portadores da revelação de Deus
multiforme graça de Deus. Se alguém fala, fale de e foram responsáveis pela confecção do Novo
acordo com os oráculos de Deus; se alguém ser- Testamento, e foram nesse sentido, os sucessores
ve, faça-o na força que Deus supre” (1Pe 4.10-11). dos Profetas do Antigo Testamento. Desde que a
Ele diz: “Se alguém fala”, e “se alguém serve”. Pare- igreja foi estabelecida, não havia mais necessida-
ce realmente que todos os dons podem ser agru- de deles, até porque, ninguém mais conseguiria
pados como “dons de fala” e “dons de serviço”. preencher os requisitos de Atos 1.21-22. Apesar
de muitos hoje se auto-denominarem Apóstolos,
Apóstolo (Ef 4.11; 1Co 12.28) não devemos aceitar suas reivindicações, pois
essas pessoas não preenchem os requisitos bíbli-
Duas vezes Paulo disse que os apóstolos ocupa- cos. A igreja primitiva não promoveu a eleição de
vam o primeiro lugar na lista dos dons (Ef 4.11; sucessores para os Apóstolos na medida em que
1Co 12.28). De fato, eles foram o fundamento foram morrendo. A Igreja Católica, por exemplo,
da igreja (Ef 2.20). Os Apóstolos foram chama- baseia suas doutrinas extra bíblicas em sua supos-
114

ta “autoridade apostólica”. Dessa forma doutrinas nava o povo, edificando, exortando e consolando
que não são encontradas na Bíblia, como a imacu- (1Co 14.3). Entretanto, mesmo naquele tempo
lada conceição ou a mediação de Maria, são con- essas profecias deveriam ser amplamente analisa-
sideradas verdadeiras porque os bispos dizem ter das e julgadas (1Co 14.29; 1Ts 5.20-21; 1Jo 4.1),
a mesma inspiração dos apóstolos.1 Se aceitarmos porque sempre havia o risco de falsos profetas
que os evangélicos podem ter novas revelações, aparecerem e falarem coisas de seu próprio cora-
como afirmar que os católicos estão errados? Se ção, para granjear o respeito, a admiração e outras
a Bíblia cede lugar ao subjetivismo pessoal como vantagens pessoais. Portanto, não é possível dizer,
regra, tudo é permitido. Porém, como diz Stott, à luz do Novo Testamento, que esses profetas dis-
“hoje, Deus não ensina mais a igreja através de punham do mesmo status dos Apóstolos.3 Parece
revelação nova, mas pela exposição de sua reve- que a função deles era interpretar o Antigo Tes-
lação que foi completada em Cristo e na Bíblia”.2 tamento, à luz dos acontecimentos mais recentes
envolvendo a vida de Jesus, e também trazer pa-
Profeta (Rm 12.6; Ef 4.11; 1Co 12.28) lavras de conforto e direcionamento para a igreja.
Em alguns casos, anunciavam eventos futuros (At
Após a ascensão de Jesus, principalmente no pe- 11.28; 21.10-11).
ríodo de Atos dos Apóstolos, enquanto o Novo
Testamento ainda não havia sido escrito, Deus se Uma vez que o Cânon se completou, não há mais
revelou através de dois ministérios: O Ministério necessidade de revelação direta da parte de Deus
dos Apóstolos e o Ministério dos Profetas. Es- e, portanto, não há mais necessidade de profecia.
ses profetas devem ser considerados Profetas do Porém, pergunta-se, se não podemos falar em
Novo Testamento, e nesse sentido, distintos dos profecia nos dias de hoje a partir da Palavra de
Profetas do Antigo Testamento, até porque não Deus. Nesse ponto, devemos nos lembrar que a
foram sucessores daqueles, pois essa tarefa coube palavra de Deus é a palavra profética. Ainda de-
aos Apóstolos. Os Profetas do Novo Testamen- vemos nos lembrar que João disse que o “testemu-
to foram um grupo especial que, aparentemente nho de Jesus é o Espírito da Profecia” (Ap 19.10),
falava sob a inspiração do Espírito Santo, e que ou seja, o coração da profecia é anunciar a Jesus.
receberam revelação divina a respeito do Evan- Sempre que pregamos a Palavra e anunciamos Je-
gelho (Ef 3.5). Podemos citar Ágabo (At 11.27- sus, estamos profetizando. A profecia divina con-
28; 21.10-11), Judas, Silas (At 15.32), e outros (At
13.1). Também não há mais Profetas hoje como 3 Wayne Grudem entende que, como os profetas do
não há Apóstolos, pois esses dois ofícios foram Novo Testamento não tinham autoridade equivalente aos
usados por Deus na formação da igreja. Foram Apóstolos, pois eram instrumentos usados por Deus para
revelar sua vontade no meio do povo, mas, não necessaria-
o fundamento da igreja (Ef 2.20), num tempo mente inspirados, então, eles não precisam ter desaparecido
quando a Bíblia ainda não estava completa. Até com o fechamento do Cânon. Grudem entende que hoje
a complementação do cânon, o dom de profecia ainda há profetas que ajudam o povo de Deus a saber a von-
foi importante para a edificação da igreja, pois o tade de Deus para situações particulares, porém, defende
que a Escritura é a regra máxima para julgar essas profecias.
profeta recebia revelação direta de Deus e ensi- Grudem tenta estabelecer um “meio termo” entre a posi-
ção “cessacionista” e a “carismática” (Cf. Wayne Grudem.
O Dom de Profecia). Preferimos pensar que os Profetas do
1 Ver D. M. Lloyd-Jones. Deus o Espírito Santo, p.
NT desapareceram com os Apóstolos, pois eram Ofícios di-
350.
vinos, mas a profecia continua em atuação no mundo, não
2 John Stott. Batismo e Plenitude do Espírito Santo, sendo apenas mediada pela Escritura, mas através da Escri-
p. 75 tura.
115

tinua em atuação no mundo através da Palavra Mestre (Ef 4.11; Rm 12.7; 1Co 12.28)
de Deus, e o Espírito Santo continua iluminando
nossas mentes e corações para que possamos dis- Se um pastor necessariamente precisa ser um
cernir a vontade do Senhor. mestre, aparentemente, um mestre não precisa
ser um pastor. Esse dom seria a habilidade de
Evangelista (Ef 4.11) uma pessoa de tornar clara e aplicar a Palavra de
Deus para os outros, discernindo as profundas
Em Efésios 4.11, Paulo fala do dom de Evangelis- verdades teológicas. Mas, essa pessoa nem sem-
ta. Aparentemente havia uma classe de Evange- pre está envolvida diretamente no trabalho de
listas como a dos Apóstolos e Profetas na igreja. conduzir um rebanho particular, embora é claro
Sabemos que Filipe era um Evangelista (At 21.8), que isso é altamente desejável. Certamente é um
e parece que Timóteo também era (2Tm 4.5). É dom extremamente necessário em todas as épo-
possível, portanto, que naqueles tempos houvesse cas da igreja, pois a igreja sempre necessita enten-
um ofício de Evangelista, o que certamente não der a Palavra de Deus.
há mais hoje. É de se esperar que o dom de evan-
gelizar continue existindo, pois o Senhor nos or- Milagres (1Co 12.10)
denou que evangelizássemos (Mt 28.18-20). Mas
também esse dom deve ser exercido mediante a A Bíblia tem muitas coisas a falar sobre mila-
Palavra de Deus, pois ela é a portadora das “boas gres. Percebemos que eles aconteceram de forma
novas”. De qualquer forma, evangelizar não é algo mais concentrada durante três períodos da histó-
que se possa optar, uma vez que todos têm essa ria: nos dias de Moisés e Josué; Elias, Elizeu e os
responsabilidade. Profetas; Cristo e os Apóstolos. O que essas três
épocas têm em comum é o fato de que concen-
Pastor (Ef 4.11) traram as maiores porções da revelação divina.
Deduzimos, a partir disso, que os milagres foram
Também citado em Efésios 4.11, o dom de pasto- dados para autenticar a mensagem em cada um
rear é uma obra espiritual análoga ao trabalho que dos períodos mencionados acima. No tempo do
o pastor tem de cuidar das ovelhas. Sua função Novo Testamento, os milagres aconteceram para
é conduzir o rebanho, cuidar dele, alimentá-lo e autenticar a mensagem apostólica e assim, conse-
curá-lo (At 20.28; 1Pd 5.2-5). No texto de Efésios, quentemente, apontar a autoridade da Palavra de
Paulo liga a obra do Pastor à do Mestre, isso sig- Deus. Alguns milagres foram execuções diretas
nifica que o pastor deve ter também a habilidade do poder de Deus sobre a vida de pessoas, como
de ensinar. É impossível alguém ser pastor sem no caso do julgamento de Ananias e Safira (At
saber ensinar o rebanho. Esse dom tomava a for- 5.9-11) e do julgamento de Elimas o mágico (At
ma de ofício quando nas igrejas eram escolhidos 13.8-11). Naqueles dias, algumas pessoas tinham
Bispos ou Presbíteros (At 14.23; 1Tm 3.2; Tt 1.5, o dom de milagres, ou seja, podiam realizar mi-
7). Isso nos faz pensar que tanto o dom, quanto o lagres frequentemente. Devemos pensar que nos
ofício permanecem até aos dias de hoje, uma vez dias de hoje ninguém mais tenha esse dom, até
que o oficial não era escolhido diretamente por porque, até onde tenho conhecimento, ninguém
Deus, como os Apóstolos, mas pela igreja, desde realizou as mesmas façanhas que os apóstolos,
que evidenciasse o dom. porém, isso não significa que Deus não faça mi-
lagres.
116

Curas (1Co 12.9). consistia em falar idiomas de outros povos (At


2.6,8,11). Quando judeus estrangeiros estavam
O Dom de Curar é muito parecido com o Dom em Jerusalém no Pentecostes, eles ouviram os
de Milagres, porém, é mais específico. O dom de discípulos proclamando as maravilhas de Deus
curar envolvia a habilidade de uma pessoa para em suas línguas nativas (Ver At 2.8-11). As lín-
curar outras pessoas de qualquer doença. A partir guas de Atos e dos Coríntios são necessariamente
da atividade de Cristo e dos Apóstolos no início as mesmas, pois a Bíblia não dá qualquer evidên-
da pregação evangélica, percebemos que as curas cia de que o dom tenha mudado de Atos 2 para
eram instantâneas (Mc 1.42); completas (Mt 1Coríntios 12-14. O dom de línguas é uma capa-
14.36); permanentes (Mt 14.36); incondicionais cidade de falar idiomas das nações, e é um dom
(Jo 9.25); e ilimitadas (Jo 11.44; At 9.40). Nos dias de menor importância (1Co 12.28). Além disso,
de hoje, apesar de muitas pessoas reivindicarem o nem todos os crentes possuíam esse dom (1Co
dom de cura, as características acima não são en- 12.29-30). Logo, a exigência para que se fale em
contradas. Uma pessoa que tem o dom de curar línguas a fim de comprovar o batismo com o Es-
teoricamente poderia curar sempre. Não parece pírito Santo, como se vê nos dias atuais, é com-
que esse dom esteja em operação nos dias de hoje, pletamente sem sentido e anti-bíblica. Apesar de
pelo menos não dessa forma, porém, certamente que, muitos dos batizados com o Espírito no livro
Deus responde à oração da igreja e cura os enfer- de Atos falaram em línguas, isso não aconteceu
mos. Aparentemente o dom de curar esteve em com todos (Ver At 4.31; 8.17; 9.17-19). Como os
atividade por um período relativamente curto, dons de milagres, o dom de línguas foi usado para
no início da igreja. Naqueles dias, Pedro e Pau- autenticar a mensagem apostólica, e também para
lo curavam e até ressuscitavam mortos (At 9.40). facilitar o entendimento dos estrangeiros. No dia
Seu poder era tanto, que a sombra de Pedro (At do Pentecostes os estrangeiros (judeus estrangei-
5.15-16) e os aventais de Paulo eram instrumen- ros) ouviram os apóstolos falando sobre as gran-
tos de cura e libertação (At 19.12). Porém, anos dezas de Deus e puderam entender em sua pró-
mais tarde, parece que essa operação especial do pria língua nativa. Línguas foram usadas como
Espírito havia cessado, pois Paulo não curou Ti- um sinal para os judeus incrédulos e, nesse senti-
móteo das enfermidades do estômago, antes o do, foram usadas no evangelismo. Paulo diz: “Na
mandou beber um pouco de vinho como remédio lei está escrito: Falarei a este povo por homens de
(1Tm 5.23); e até mesmo deixou um companhei- outras línguas e por lábios de outros povos, e nem
ro doente em Mileto (2Tm 4.20). Isso nos leva a assim me ouvirão, diz o Senhor. De sorte que as
pensar que o dom de curas esteve em atividade línguas constituem um sinal não para os cren-
durante algum tempo, mas que cessou depois. tes, mas para os incrédulos; mas a profecia não é
Deus agiu de forma extraordinária a fim de im- para os incrédulos, e sim para os que creem” (1Co
plantar a igreja, principalmente no início, quan- 14.21-22). Quando um judeu incrédulo entrasse
do a necessidade era premente. Com o passar do na igreja e ouvisse alguém falando numa língua
tempo, deixou as conversões a cargo da pregação, estrangeira, seria um sinal de que Deus estava fa-
esperando que as pessoas cressem mesmo sem zendo uma obra no meio deles (Is 28.11-12). Esse
ver sinais e maravilhas (Jo 20.29; Hb 11.1). sinal poderia levar o judeu a crer no Messias.

Línguas (1Co 12.28) Alguns defendem que hoje existe um dom de lín-
guas extáticas, baseado em 1Coríntios 14.2 que
O livro de Atos estabelece que o Dom de Línguas
117

diz: “Pois quem fala em outra língua não fala a 14.18-19). A comparação é bastante sugestiva.
homens, senão a Deus, visto que ninguém o en-
tende, e em espírito fala mistérios”. Porém, esse O ataque mais frontal ao uso de línguas sem in-
texto diz apenas que a pessoa que está falando em tepretação na igreja é sua afirmação de que, falar
línguas está dizendo algo misterioso para aquele em línguas denigre o Evangelho causando es-
que está ouvindo, porque aquela pessoa não en- cândalo entre os incrédulos (1Co 14.23). Porém,
tende a língua. Não é um mistério para Deus pela como o dom ainda estava em operação naqueles
simples razão de que Deus entende todas as lín- dias, Paulo o regulamenta dizendo: “No caso de
guas. Por isso essa pessoa, ao falar em línguas, falaalguém falar em outra língua, que não sejam mais
somente a Deus e não aos homens. O fato de 1Co- do que dois ou quando muito três, e isto sucessi-
ríntios 14.4 dizer que quem fala em línguas “edi- vamente, e haja quem interprete. Mas, não haven-
fica-se a si mesmo” levou muitos a pensarem que do intérprete, fique calado na igreja, falando con-
esse dom foi dado para benefício próprio. Entre- sigo mesmo e com Deus” (1Co 14.27-28). Esta é
tanto, claramente a Bíblia diz que a edificação da uma ordem que não admite objeção. Em hipótese
igreja deve ser preferida e não a pessoal (14.12; Ef alguma mais do que três pessoas poderiam falar
4.11-12), pois os dons não são para uso próprio. em línguas no culto. Além disso, deveriam falar
uma após a outra, e nunca simultaneamente. E
Paulo diz que falar em línguas na igreja não traz ainda um terceiro requisito era necessário: a ne-
qualquer proveito (1Co 14.6), pois é como se al- cessidade de tradução. Sem tradução, sem lín-
guém tocasse instrumentos sem saber tocar (1Co guas.
14.7-9). Ele diz ainda que quando alguém orava
em outra língua, apenas seu espírito estava par- Interpretação das línguas (1Co 12.10)
ticipando, e isso não era desejável, pois a mente
também precisava ser edificada (1Co 14.14-17). Quando o dom de línguas fosse exercido dentro
Essa última colocação sugere que a pessoa que fa- da igreja, ele necessitava de interpretação, pois
lava em línguas não tinha o entendimento do que não estava sendo usado com estrangeiros e sim
estava dizendo. Pensa-se que isso não se encaixe com compatriotas. Nesse caso a tradução era
com a descrição do Pentecostes, mas não há nada exigida, pois dessa forma, a palavra falada numa
no texto de Atos 2 que sugestione que os discípu- língua estrangeira poderia ser compreendida por
los entendiam o que estavam dizendo. Eram os todos (1Co 14.27-28).
estrangeiros que entendiam, pois ouviram os dis-
cípulos falando em suas línguas maternas. Tam- Discernimento de espíritos (1Co 12.10)
bém deve ser dito que essa é a razão pela qual,
em Atos 2, não havia a necessidade de intérprete, Esse dom foi dado por Deus, especialmente quan-
como Paulo exige em 1Coríntios 14.27-28. Essa do, na igreja primitiva, a revelação era direta da
última ocasião era dentro da igreja, com pessoas parte de Deus através dos profetas. Como havia
da mesma nacionalidade, enquanto que a primei- sempre o perigo de haver falsa profecia, o dom de
ra foi diante de estrangeiros que já conheciam discernimento fazia com que, quando a profecia
aquelas línguas (At 2.8). Por fim, Paulo diz que fa- não viesse de Deus, ela pudesse ser desmascarada
lava em muitos idiomas, porém, preferia falar na (Ver 1Jo 4.1; 1Co 14.29; 1Ts 5.20-21). Uma profe-
igreja, em língua compreensível, cinco palavras cia poderia ter origem carnal e até maligna, por
do que dez mil em língua incompreensível (1Co isso, era necessário o dom de discernimento, evi-
dentemente, subserviente à Palavra de Deus.
118

Serviços (Rm 12.7) A pessoa que tem o dom de exortar é aquela que
tem a habilidade de animar alguém a realizar al-
Em Romanos 12.7, a palavra serviço é diakonia, guma coisa. Esse dom pode ser exercido a fim de
uma palavra que geralmente é traduzida como fazer alguém mudar de conduta (Jd 3), ou conso-
“ministério”. Ela dá a ideia de oferecer algum ser- lar alguém que está numa situação difícil (At 4.36;
viço aos outros a fim de ajudá-los. Dessa forma, 9.27; 15.39).
Timóteo e Erasto serviram Paulo em Éfeso (At
19.22). Paulo também serviu os crentes de Jeru- Contribuição (Rm 12.8)
salém trazendo-lhes ajuda financeira (Rm 15.25).
Isso nos sugere que o dom de serviço tem a ver Esse dom, não tão desejado pelos crentes, refere-
com ajudar os outros em suas necessidades físi- -se ao ato de dar dinheiro. Isso pode ser tanto no
cas. Certamente, esse dom se tornou um ofício da sentido de contribuir com a obra de Deus, como
igreja, pois os Diáconos eram reconhecidos nas ajudar pessoas individualmente que estejam em
igrejas como oficiais, e também escolhidos pela necessidade. Paulo, pessoalmente, organizou
congregação (1Tm 3.12; Fp 1.1). uma campanha de doações para ajudar os crentes
de Jerusalém (1Co 16.2; 2Co 8-9; Fp 4.10-16).
Socorros (1Co 12.28, Rm 12.8)
Administração (Rm 12.8; 1Co 12.28)
A palavra “socorro” denota assistência. O signifi-
cado básico da palavra é ajudar alguém que está Em Romanos Paulo fala de “presidir” e em 1Co-
numa necessidade extrema. Essa ajuda pode ser ríntios de “governar”. Certamente isso se refere
dada a pobres, doentes, viúvas, órfãos, estrangei- à capacidade que Deus dá a algumas pessoas de
ros, viajantes, etc. É possível que, em Romanos, dirigirem eventos e organizações religiosas, con-
esse dom seja chamado de “mostrar misericórdia” duzindo os trabalhos com ordem, disciplina e ob-
(Rm 12.8), pois “os diáconos representam a Cris- jetivo, sob a direção de Deus.
to em seu ofício de misericórdia, e o exercício da
misericórdia está vinculado com o consolo dos Sabedoria (1Co 12.8)
aflitos.”4
Esse é um dos dons mais importantes para a
Fé (1Co 12.9) igreja e deve ser ligado à obra de iluminação do
Espírito Santo. Tem a ver com a capacidade de
Esse dom deve ser diferenciado da fé salvadora discernir os tempos e as épocas, e de agir e falar
que também é um dom. A fé salvadora todos os de forma sábia, de maneira a conduzir as pessoas
crentes têm. O dom extraordinário da fé basi- para o entendimento das Escrituras e, consequen-
camente refere-se a um dom pelo qual a pessoa temente, da vontade de Deus. Também nisso deve
demonstra tanta fé em Deus, que Deus realiza o estar incluída a capacidade de antever problemas
desejo da pessoa (Ver Mt 9.2; At 14.9). Estevão e evitar erros.
exibia esse dom, pois era um homem “cheio de
fé” (At 6.5). Conhecimento (1Co 12.8)

Exortação (Rm 12.8) Difere-se da sabedoria ao ser menos empírico


e ter mais a ver com a análise cuidadosa de um
4 R.B. Kuiper. El Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 141. assunto. Deve ser aquilo que serve de base para
119

o Mestre quando ensina. O dom de Mestre seria para fazer a igreja crescer (ser edificada). O obje-
o dom de ensinar, enquanto que o conhecimento tivo máximo dos benefícios que os dons trazem
seria a capacidade de conseguir o conteúdo para o é levar todos os crentes a serem iguais a Jesus (Ef
ensino. Evidentemente, uma vez que a Bíblia está 4.13). Significativa é a declaração dos versos 15-
completa, esse dom é exercido a partir da Bíblia. 16: “Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos
em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, de quem
O propósito dos dons todo o corpo, bem ajustado e consolidado pelo
auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação
Já vimos que o Espírito Santo concedeu dons vi- de cada parte, efetua o seu próprio aumento para
sando a um fim proveitoso (1Co 12.7). Algo que a edificação de si mesmo em amor”. Novamente é
parece óbvio, mas que nem sempre é devidamen- evocada a imagem de um corpo. Esse corpo tem
te entendido, é que os dons são dados para bene- uma cabeça que o governa, e todos os membros
fícios dos outros. Eles servem para “a edificação realizam funções individuais, fazendo com que o
da igreja” (1Co 14.12). Assim, não temos a menor corpo aumente a si mesmo. Essa é uma ideia es-
indicação de que o Espírito Santo conceda um petacular. Ela sugere que, para o bom andamen-
dom a alguém para benefício da própria pessoa. to da igreja, cada crente deve fazer a sua parte,
Se o Espírito concede um dom a alguém, não é fazendo uso de seu dom. Não é ir longe demais
por causa daquela pessoa em si, e nem para be- imaginar que, como no corpo, se algum órgão
nefício pessoal, mas, por causa da igreja. Por essa deixa de fazer a sua parte, haverá complicações
razão, ninguém deve usar seu dom como bene- para os demais membros, isso também acontece
fício pessoal. Todo tipo de orgulho ou exaltação na igreja. Quando vemos irmãos errarem e caí-
são coisas inconcebíveis no exercício dos dons. rem em pecado, às vezes ficamos irritados com
Quando Paulo explica aos Romanos como devem eles, mas será que nós mesmos não temos alguma
usar seus dons, faz questão de dizer: “Porque, pela parcela de culpa? Anomalias no corpo surgem
graça que me foi dada, digo a cada um dentre vós quando algum órgão não realiza a função que lhe
que não pense de si mesmo além do que convém; é devida, ou seja, nossa omissão pode ser a causa
antes, pense com moderação, segundo a medida da queda de outrem.
da fé que Deus repartiu a cada um” (Rm 12.3). O
dom nunca deveria servir para que alguém se os- Todos os dons do Espírito foram concedidos aos
tentasse perante a congregação. O dom foi dado homens para benefício da obra de Deus. Os dons
por causa da congregação e para benefício dela. são variados e não precisam existir todos ao mes-
mo tempo. Deus usa os dons mais necessários
Essa ideia fica muito clara também em Efésios 4. conforme as épocas exigem, mas acima de tudo,
Paulo fala que, após sua ressurreição e ascensão, o conforme sua soberania determina. Cada crente
Senhor distribuiu dons aos homens, referindo-se tem um dom. Temos, portanto, a responsabilida-
a sua igreja (Ef 4.7-11). O Senhor fez isso “com de de saber qual é o nosso, e usá-lo para benefício
vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o de- dos outros. Se os dons causam divisão ou com-
sempenho do seu serviço, para a edificação do petição, então, das duas uma: Ou eles são falsos,
corpo de Cristo” (Ef 4.12). Três coisas são listadas ou as pessoas estão muito atrasadas na graça. O
como objetivo dos dons nesse versículo: Aperfei- amor é o ponto de equilíbrio entre os dons. A
çoamento, serviço e edificação dos crentes. Ou existência do amor garantirá um exercício ver-
seja, Deus concedeu os dons para eliminar as dadeiro e proveitoso dos dons espirituais para a
imperfeições, para realizar as tarefas da igreja e
120

igreja de Cristo. O amor garante que a poderosa


locomotiva, que são os dons, nunca descarrilhe
dos trilhos.
121

16

O PECADO CONTRA O ESPÍRITO

INTRODUÇÃO deverá ser mais evitada. O caráter divino garante


que ele não tem perdão. Quem blasfemar contra
Todos os pecados são desagradáveis a Deus, mas o Espírito ultrapassou a linha até onde vão a mi-
há um mais que todos. Deus perdoa todos os pe- sericórdia e a paciência divina. Mas qual será essa
cados, mas há um que ele não perdoa: “O pecado atitude humana que Deus considera uma blasfê-
contra o Espírito Santo”. Jesus disse: “Por isso, vos mia contra o Espírito Santo?
declaro: todo pecado e blasfêmia serão perdoados
aos homens; mas a blasfêmia contra o Espírito
não será perdoada. Se alguém proferir alguma
palavra contra o Filho do Homem, ser-lhe-á isso O QUE O PECADO NÃO É
perdoado; mas, se alguém falar contra o Espíri-
to Santo, não lhe será isso perdoado, nem neste Antes de analisarmos o ensino bíblico sobre o que
mundo nem no porvir” (Mt 12.31-32). Segundo caracteriza esse pecado, será interessante fazer-
Marcos, o Senhor chamou esse pecado de “peca- mos algumas observações sobre o que esse peca-
do eterno” (Mc 3.29). João lembra dele ao dizer: do não é. Isto é de suprema importância, porque
“Se alguém vir a seu irmão cometer pecado não há muitos equívocos e temores desnecessários
para morte, pedirá, e Deus lhe dará vida, aos que entre os crentes a respeito do pecado sem perdão.
não pecam para morte. Há pecado para morte, e
por esse não digo que rogue” (1Jo 5.16). Portan- Primeiramente, precisamos dizer que o pecado
to, quem comete esse pecado se coloca além do sem perdão não é necessariamente negar a Cris-
alcance da oração e da graça de Deus. Deus esta- to em alguma ocasião sob pressão. Por mais es-
beleceu uma lei para esse pecado: Quem cometê- tranho que isso possa parecer, o fato de alguém
-lo jamais poderá ser salvo, pois as portas do céu em algum determinado momento, negar a Cris-
estarão definitivamente trancadas para esta pes- to, não caracteriza o pecado imperdoável, pois se
soa. Então, nada pode ser mais terrível do que o fosse assim, pessoas que negaram a Cristo no pas-
risco de cometer esse pecado, e nenhuma atitude sado não poderiam se converter. E temos o caso
122

do próprio Pedro que já era convertido e negou Nem mesmo o suicídio é o pecado imperdoável.
a Jesus, porém, o Senhor o restaurou. Se negar o Por mais que o suicídio seja um pecado sério con-
Senhor fosse o pecado imperdoável, Pedro estaria tra Deus, ele não é o pecado contra o Espírito San-
perdido para sempre. Todos passam por muitas to. Isso quer dizer que um suicida pode ser salvo?
pressões nesta vida, e às vezes cedem à tentação. Se o único pecado que não tem perdão não é o
Deve ser lembrado ainda que qualquer pecado suicídio, então, mesmo o suicídio pode ser per-
é, num certo sentido, um ato de negar a Cristo. doado por Deus. Devemos nos lembrar que tirar
Pelo menos naquele momento não nos importa- a própria vida não é algo tão difícil. Uma pessoa
mos com Cristo, é como se não acreditássemos na pode, num momento extremo de desespero, aten-
existência dele, ou como se não nos importásse- tar contra a própria vida, o que certamente não
mos com o que ele pensa. O pecado sem perdão faria em outra situação. Temos um exemplo bí-
não é um ato isolado de negar a Cristo em nosso blico de um suicida que aparentemente foi salvo.
testemunho ou em nossas palavras, mas de rejei- Trata-se de Sansão. Seu último ato nesse mundo
tá-lo para sempre. foi derrubar uma coluna que destruiu os inimigos
de Israel (Jz 16.27-30), mas, aquele foi um ato sui-
Apesar de Jesus falar que o pecado consiste em cida, pois ele morreu junto. No entanto, Hebreus
“blasfemar contra o Espírito”, não devemos, con- o coloca entre os heróis da fé (Hb 11.32). Em todo
tudo, pensar que isso significa fazer alguma ofen- caso, deve ser dito que o suicídio pode ser o últi-
sa verbal ao Espírito. Às vezes os satanistas são mo ato de alguém que realmente pecou contra o
ensinados a falarem palavras ofensivas ao Espírito Espírito Santo, como é o caso de Judas (Mt 27.5).
Santo, como se assim estivessem cometendo o pe- Porém, nesse caso, o pecado imperdoável foi co-
cado imperdoável. Apesar de que alguém que faz metido antes do suicídio, e não foi o suicídio em
isso pode estar no caminho certo para cometer si.
o pecado, evidentemente o ato em si de ofender
o Espírito não é o pecado imperdoável. Se fosse
assim, os blasfemos jamais se converteriam ao Se-
nhor, e Paulo disse que muitos dos crentes foram O QUE O PECADO É
“maldizentes” antes de se converter (1Co 6.9-11),
sendo ele mesmo, anteriormente, um blasfemo Passemos agora a considerar o que caracteriza o
(1Tm 1.13). pecado contra o Espírito Santo. No contexto em
que Jesus declarou que a blasfêmia contra o Espí-
Somos advertidos na Bíblia a não entristecer o rito não tinha perdão, ocorreram algumas coisas
Espírito (Ef 4.30). O Espírito Santo pode ficar en- bastante sugestivas para nosso entendimento do
tristecido a partir de nossos pecados. Porém, isso assunto. Jesus manifestou a si mesmo para a na-
não é cometer o pecado imperdoável. Os pecados ção da Israel através de seus ensinos (Mt 5-7); e de
que cometemos podem ser perdoados, somente seus milagres (Mt 8-10), de modo que exibiu si-
a blasfêmia contra o Espírito não pode. Vemos nais claros de que era o Messias prometido. Apesar
na Bíblia o exemplo de grandes homens de Deus disso, os líderes religiosos da nação não acredita-
como Abraão, Davi e Moisés que pecaram e cer- vam nele, e foram espreitá-lo a fim de investigá-
tamente entristeceram o Espírito, porém, eles não -lo. Eles objetivavam apanhá-lo em alguma falta
pecaram contra o Espírito Santo, pois foram res- religiosa para que pudessem acusá-lo perante as
taurados e não perderam a salvação. autoridades. Mateus 12.22 narra que foi trazido
até Jesus um homem possesso e ele o curou. Em
123

resposta a isso, a multidão se perguntou: “É este, da da salvação”, percebe-se que não se trata disso.
porventura, o filho de Davi?” (Mt 12.23). A es- Aqui também está uma explicação sobre o pecado
trutura gramatical da pergunta já antecipava uma contra o Espírito. Como sabemos que essas pes-
resposta negativa, ou seja, a multidão não estava soas não eram convertidas? Primeiramente, por-
disposta a acreditar que ele fosse o Messias, pois que não há qualquer referência à conversão delas
já estava influenciada pelos líderes religiosos. Es- na passagem, pois nada se fala sobre regeneração
ses líderes fizeram questão de reprovar a atitude ou novo nascimento. Em segundo lugar porque
de Jesus, conforme Mateus relata: “Mas os fari- na continuação do texto, o autor declara: “Porque
seus, ouvindo isto, murmuravam: Este não expele a terra que absorve a chuva que frequentemente
demônios senão pelo poder de Belzebu, maioral cai sobre ela e produz erva útil para aqueles por
dos demônios” (Mt 12.24). Naquele momento, quem é também cultivada recebe bênção da parte
Jesus respondeu que expulsava demônios pelo de Deus; mas, se produz espinhos e abrolhos, é re-
poder do Espírito Santo (Mt 12.28). Os religiosos jeitada e perto está da maldição; e o seu fim é ser
atribuíram ao diabo a obra que Deus estava reali- queimada” (Hb 6.7-8). Ele está fazendo uma ana-
zando. Foi nesse contexto que Jesus declarou que logia entre a terra que recebe a chuva e as pessoas
a blasfêmia contra o Espírito não seria perdoada. que recebem as influências do Espírito. Existem
Os fariseus tinham testemunhado, visto e expe- pessoas que são como a terra que recebe muita
rimentado o ensino e os milagres de Jesus. Eram chuva, absorve a água e produz bons frutos, en-
evidências fortes demais para serem ignoradas. quanto que há outras pessoas que são como a ter-
O Espírito lhes testemunhava a verdade, mas eles ra que igualmente recebe a chuva, absorve a água,
mais uma vez resistiam ao Espírito (At 7.51). Eles mas produz frutos inúteis. Essa última é amal-
tinham todas as razões para crer, porém, ainda diçoada. Como o texto está falando em frutos,
assim se recusavam. Este pecado não teria per- convém lembrar que Jesus disse que pelos frutos
dão. Portanto, a blasfêmia contra o Espírito Santo poderíamos conhecer as pessoas. Ele disse que a
que os fariseus estavam cometendo foi uma re- árvore boa produz fruto bom e a árvore má pro-
cusa consciente e deliberada em aceitar que Jesus duz fruto mau (Mt 7.16-20). A árvore má é a pes-
fosse o Messias, apesar do poderoso testemunho soa não convertida. Portanto, o autor aos Hebreus
do Espírito Santo. está falando de pessoas não convertidas, pessoas
que receberam muitas bênçãos de Deus, mas que
Em conexão, precisamos considerar o texto de não se converteram, pois não produziram frutos
Hebreu 6.4-6. O texto diz: “É impossível, pois, que verdadeiros. E a terceira razão para crermos nisso
aqueles que uma vez foram iluminados, e prova- é porque o próprio autor continua o texto dizendo
ram o dom celestial, e se tornaram participantes que, em relação aos seus leitores, tinha certeza de
do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de que eles possuíam a salvação (Ver Hb 6.9). Então,
Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, evidentemente estava falando dos “não salvos” até
sim, é impossível outra vez renová-los para arre- aquele momento.
pendimento, visto que, de novo, estão crucifican-
do para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o Essas pessoas que não podiam se arrepender fo-
à ignomínia”. O texto está falando de pessoas que ram pessoas que experimentaram muito da gra-
não podem ser renovadas para o arrependimento, ça de Deus. As expressões “foram iluminadas”,
ou seja, que não podem ser perdoadas. Apesar de “provaram o dom celestial”, “se tornaram partici-
muitos defenderem que esse é um caso de “per- pantes do Espírito Santo”, “provaram a boa pala-
124

vra de Deus”, e “os poderes do mundo vindouro”, qual foi santificado, e ultrajou o Espírito da gra-
por certo se referem à iniciação que essas pessoas ça?”. Nesse texto encontramos a mesma rotina
tiveram na graça de Deus. Há pessoas que fre- do texto anterior: A pessoa conheceu a verda-
quentam a igreja por muito tempo, e, consequen- de – desprezou — jamais será salva — pecado
temente começam a desfrutar dos benefícios que sem perdão. Portanto, o pecado contra o Espírito
Deus reparte naquele lugar. Sentem a influência Santo é uma rebeldia que vai contra todos os fa-
do Espírito Santo, recebem até curas miraculosas, tos, uma indesculpável indisposição contra Deus,
e suas vidas começam a mudar, mas, de repente, apesar de tudo que se viu de Deus e se ouviu dele.
largam tudo e nunca mais voltam. Eram crentes? Como diz Berkhof, “o pecado mesmo consiste,
João diz: “Saíram de nosso meio, entretanto não não em duvidar da verdade, nem numa simples
eram dos nossos, porque se tivessem sido dos negação dela, mas, sim, numa contradição dela
nossos, teriam permanecido conosco” (1Jo 2.19). que vai contra a convicção da mente, a ilumina-
São como a semente da parábola que Jesus con- ção da consciência, e até mesmo contra o vere-
tou. Ela foi semeada, mas o diabo a roubou do dicto do coração”.1 Como no caso dos fariseus, e
coração (Mt 13.19). Talvez, tenha ido ainda mais do próprio Judas Iscariotes, a pessoa tem todos os
longe, pois foi semeada, nasceu logo, porém, não motivos para crer em Jesus, mas ainda assim se
teve raiz e morreu em meio às provações (Mt recusa. Como diz Berkhof:
13.20-21). Ou talvez, foi ainda mais longe, pois
nasceu, cresceu, e parecia que ia vingar, mas os É imperdoável, não porque a sua culpa transcende os mé-
espinhos da fascinação das riquezas e do cuidado ritos de Cristo, ou porque o pecador esteja fora do alcance
desse mundo finalmente a sufocaram (Mt 13.22). do poder renovador do Espírito Santo, mas sim, porque
Nenhuma das sementes sobreviveu para produ- há também no mundo de pecado certas leis e ordenan-
zir frutos. Não houve conversão autêntica em ne- ças estabelecidas por Deus e por ele mantidas. E no caso
nhum dos casos, apesar de haver indícios dela. Do desse pecado particular, a lei é que ele exclui toda a possi-
mesmo modo, as pessoas que o autor aos Hebreus bilidade de arrependimento, cauteriza a consciência, en-
tem em mente no capítulo 6, experimentaram as durece o pecador e, assim, torna imperdoável o pecado.2
influências do Espírito, mas não se converteram
verdadeiramente, e ao renegarem a fé, pecaram Portanto, o pecado contra o Espírito Santo é uma
contra o Espírito Santo. rebeldia completa contra Jesus que somente é
possível depois de conhecê-lo.
Há ainda mais um texto a ser considerado. He-
breus 10.26-29 diz: “Porque, se vivermos delibe-
radamente em pecado, depois de termos recebido
o pleno conhecimento da verdade, já não resta A SEGURANÇA DO VERDADEIRO CREN-
sacrifício pelos pecados; pelo contrário, certa ex- TE
pectação horrível de juízo e fogo vingador pres-
tes a consumir os adversários. Sem misericórdia As considerações acima nos levam indubitavel-
morre pelo depoimento de duas ou três teste- mente a concluir que o crente verdadeiro nunca
munhas quem tiver rejeitado a lei de Moisés. De cometerá o pecado contra o Espírito Santo. De
quanto mais severo castigo julgais vós será con- fato, o crente desfruta da segurança da salvação,
siderado digno aquele que calcou aos pés o Filho
de Deus, e profanou o sangue da aliança com o 1 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 255.
2 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 255.
125

pois Deus o levou até Jesus, e Jesus não deseja de conhecer a verdade e até experimentar mui-
perdê-lo (Jo 6.37-40, 44). Ele é uma ovelha de to do seu poder. Essas pessoas se rebelam contra
Jesus a qual o Senhor diz que ninguém pode ar- Deus e nunca mais voltam e nem desejam voltar
rebatar da sua mão (Jo 10.27-29). Deus lhe pre- para a comunhão com ele. Todos os crentes ver-
parou uma salvação com início meio e fim (Rm dadeiros não precisam temer cometer o pecado
8.29-30). Nada pode separá-lo do amor de Deus contra o Espírito Santo, porque são guardados
(Rm 8.31-39). O Senhor que começou boa obra por Deus. Porém, isso não deve nos levar ao des-
nele vai completá-la (Fp 1.6), confirmá-lo e guar- leixo espiritual, porque é a continuidade e a fir-
dá-lo do maligno (2Ts 3.3). O Senhor guardará o meza da fé que evidenciarão a nossa salvação. As
depósito dele até o último dia (2Tm 1.12), o livra- palavras de Calvino sempre serão consoladoras
rá de toda obra maligna e o levará a salvo para o para os crentes em relação ao pecado sem perdão:
reino celestial (2Tm 4-18). Afinal, ele é guardado “Os eleitos se acham fora do perigo da apostasia
pelo poder de Deus (1Pe 1.5). Essa última expres- final, porquanto o Pai que lhes deu Cristo, seu Fi-
são pode estar ligada à ideia de ser guardado para lho, para que sejam por Ele preservados”.4
não pecar contra o Espírito Santo. João disse que
o crente é guardado para não pecar o pecado para
morte (1Jo 5-17-19). Portanto, o crente nascido
4 João Calvino. Exposição de Hebreus, p. 153, Hb
de Deus não pode cometer o pecado imperdoável
6.4.
porque Deus o guarda e o livra desse mal.

Assim, aquele crente que tem medo de cometer


esse pecado é o que está mais longe de cometê-lo.
Ele precisa apenas continuar vivendo sua vida em
obediência a Palavra e na dependência de Deus,
pois como diz Palmer, “quando uma pessoa rece-
be a Cristo e estuda sua Palavra, pode ter a segu-
rança de que é um filho de Deus, salvo por Jesus e
que nunca se perderá”.3

Não devemos pensar, portanto, que esse pecado


signifique uma perda de salvação. Ele é muito
mais um ato de apostasia. Um apóstata é alguém
que experimentou em alguma medida a fé, mas
que não se firmou nela, e depois de algum tempo
abandona e irremediavelmente não deseja mais
viver com Deus. Essa pessoa nunca foi verdadei-
ramente salva. Esteve muito perto de ser, porém,
não foi. Talvez, como Judas esteve muito perto do
Salvador, mas longe da salvação. O pecado contra
o Espírito Santo é uma rebeldia total contra a ver-
dade, que algumas pessoas demonstram, depois

3 Edwin H . Palmer. El Espiritu Santo, p. 14.


126

ECLESIOLOGIA
A DOUTRINA DA IGREJA
127

17

A IGREJA VERDADEIRA

INTRODUÇÃO Deus pôde fazer com que, do nada, surgisse uma


instituição tão firme e duradoura.
A Igreja Cristã que surgiu em meados do primei-
ro século é a maior e mais duradoura instituição Jesus foi o primeiro a falar sobre este caráter per-
que este mundo já viu. São quase dois mil anos pétuo da igreja. Em resposta à confissão de Pe-
de história e representatividade em todos os paí- dro, Jesus disse: “Também eu te digo que tu és Pe-
ses do mundo. É impressionante como, de um dro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e
pequeno grupo de pescadores da Galileia, em as portas do Inferno não prevalecerão contra ela.
cerca de 40 anos, a igreja estava estabelecida em Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que liga-
todas as principais cidades do Império Romano, res na terra terá sido ligado nos céus; e o que des-
e inclusive na própria capital. Jamais se viu um ligares na terra terá sido desligado nos céus” (Mt
crescimento tão rápido de qualquer outra organi- 16.18-19). As palavras de Pedro, como porta-voz
zação em toda a história, e sem precisar levantar dos discípulos, em reconhecimento do caráter de
uma arma sequer. Evidentemente que há razões Jesus como Messias fizeram com que Jesus dis-
para isso. Como diz Bultmann, “nenhuma comu- sesse a ele (e aos demais apóstolos) que seria o
nhão humana pode subsistir na história sem or- fundamento sobre o que ele construiria sua igreja
dem da vida comunitária”.1 Sem dúvida a ordem (Cf. Ef 2.20).
e a organização da igreja desempenharam papéis
Apesar da origem e do desenvolvimento grandio-
importantes nesse sentido, mas apenas organiza-
so da igreja, hoje vivemos dias difíceis. Com cer-
ção não garante estabilidade. Algo mais deve ser
teza, o cristianismo enfrenta uma de suas piores
encontrado atrás dessa durabilidade. Somente o
crises desde os dias de sua fundação. Se por um
propósito divino pode explicar a perpetuidade
lado o cristianismo nunca foi tão famoso, podero-
da igreja através dos séculos. Somente o poder de
so, e numeroso; por outro lado, nunca foi tão es-
1 Rudolf Bultmann. Teologia do Novo Testamento, facelado e tão descaracterizado como é hoje. Em
p. 534 meio às revoluções e inovações dos movimentos
128

liberais, neo-ortodoxos, pentecostais e neopente- deles com Cristo e com os apóstolos, como o fun-
costais, como saber qual é o rumo a seguir? Diante damento da Igreja (Ef 2.20-21; Ap 21.14). Quan-
das milhares de novas igrejas que surgem a todo do Pedro diz que Jesus não deve enfrentar a cruz,
momento, como saber qual é a igreja verdadeira? ele não é chamado de pedra fundamental, mas
Nesse capítulo, queremos investigar os elementos pedra de tropeço.2
bíblicos que compõem a igreja verdadeira.

DEFINIÇÃO DE IGREJA
PEDRO E A IGREJA
A igreja é o povo que pertence ao Senhor e que
Jesus levou seus discípulos para um lugar deserto, tem sido resgatado pelo sangue de Cristo. Na Bí-
com o objetivo de orientá-los sobre si mesmo. Ao blia são usadas várias imagens e expressões para
perguntar o que as pessoas pensavam dele, levou- definir ou descrever a igreja. Ela é o “Corpo de
-os a pensar em sua própria resposta. Diante da Cristo”, a “família de Deus”, o “povo de Deus”,
pergunta de Jesus, Pedro respondeu que ele era o “os eleitos”, a “noiva de Cristo”, a “companhia dos
Cristo. Aquela, sem dúvida, era a resposta de todo redimidos”, a “comunhão dos santos”, o “novo
o grupo apostólico, e Pedro foi o seu porta-voz. O Israel”, entre outros nomes.3 Nossa palavra por-
nome Pedro faz um trocadilho, no grego, com a tuguesa “igreja” é praticamente uma translitera-
palavra “rocha” (petra). Há quatro principais in- ção do termo grego “ekklesia” que era usado para
terpretações para este jogo de palavras: a) a pedra uma assembleia popular (Ver At 19.32, 39-40).
é a confissão de Pedro (“tu és o Cristo”, v. 16), so- No Novo Testamento, a grande maioria das ocor-
bre a qual a igreja é edificada; b) Jesus mesmo é rências da palavra aparece nas cartas de Paulo (46
a pedra, como Pedro depois testifica (1Pe 2.5-8); vezes de um total de 114). Foi especialmente Pau-
c) Pedro, como representante dos apóstolos, é o lo quem formou esse conceito, embora João o use
fundamento da igreja (Ef 2.20); d) Por sua con- largamente no Apocalipse (20 vezes).
fissão, Pedro representa o tipo de pessoa sobre a
qual a Igreja será edificada. A primeira e segunda Berkhof define o termo igreja do seguinte modo:
possibilidade são frequentemente defendidas, por
indicar que o nome de Pedro é petros e a pedra A palavra serve para denotar a totalidade do corpo, no
é petra. Porém, este significado linguístico não é mundo inteiro, daqueles que professam exteriormente a
decisivo neste contexto. A segunda possibilidade Cristo e se organizam para fins de culto, sob a direção de
é improvável, porque Jesus descrevesse a si mes- oficiais para isso designados. Porém, em seu sentido mais
mo, nesta passagem, não como fundação, mas compreensivo, a palavra se refere a todo corpo de fiéis,
como construtor da igreja. Não fosse pelo abuso quer no céu quer na terra, que se uniram ou se unirão a
dessa passagem pela Igreja Católico-Romana, é Cristo como seu Salvador.4
pouco provável que qualquer dúvida fosse levan-
tada de que a referência é a Pedro. Mas a pedra
fundamental é Pedro como representante dos
apóstolos, e cuja confissão a respeito de Cristo lhe 2 Ver Bíblia de Genebra (Comentário in loco)
foi revelada pelo Pai. Como Pedro mesmo decla- 3 Ver R. C. Sproul. Verdades Essenciais da Fé Cristã,
ra posteriormente (1Pe 2.4-8), todos os crentes se Caderno 3, p. 7.
tornaram “pedras vivas” por causa da associação 4 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p.561
129

Nessa definição há uma distinção entre o aspecto A IGREJA E O ANTIGO TESTAMENTO


local e o aspecto universal da igreja. Há, por cer-
to, também uma distinção entre a igreja visível e a Um problema que sempre existe quando se estu-
igreja invisível. A primeira consiste daqueles que da o surgimento da igreja é seu papel em relação
fizeram uma pública profissão de fé, foram bati- a Israel e às promessas do Antigo Testamento.
zados e arrolados como membros de uma igreja Mesmo na igreja primitiva, o papel da igreja em
organizada. Porém, nem todos os que estão nesta relação às promessas do Antigo Testamento, tal-
igreja fazem parte da igreja de Cristo. Jesus disse vez não tenha ficado tão claro a princípio, mas
que o joio cresceria junto com o trigo (Mt 13.24- aos poucos, a comunidade primitiva começou a
30), e compara a igreja dentro do Reino de Deus entender que as promessas referentes a Israel es-
a uma rede que arrasta toda classe de peixes, os tavam se cumprindo na igreja.
quais não são escolhidos até que estejam na praia.
Nunca será possível encontrar uma igreja visível No início, a igreja era reconhecida como um gru-
que seja totalmente pura, limpa e sem nenhuma po distinto dentro da religião maior que era o ju-
falta. A igreja invisível, no entanto, é totalmente daísmo. Mas logo, as coisas começaram a mudar.
pura, limpa e sem falta. Esta é a igreja como Deus As diferenças em relação ao judaísmo começaram
a vê, a Noiva de Cristo. É composta de todos os a se acentuar e, à medida que o grupo crescia, ha-
eleitos que são verdadeiros crentes, independen- via necessidade de uma organização maior. Foi o
temente de denominação. Na Confissão de Fé de Pentecostes que começou a mostrar que na igreja
Westminster, “a igreja Católica ou Universal, que é que se cumpririam as promessas de Deus, e não
é invisível, consiste do número total dos eleitos no Israel-nação. Como já estudamos, os profetas
que já foram, dos que agora são e dos que ainda tinham previsto um dia quando Deus derramaria
serão reunidos em um só corpo, sob Cristo, seu seu Espírito largamente sobre as pessoas. No An-
Cabeça; ela é a esposa, o corpo, a plenitude da- tigo Testamento, essa “unção” era prerrogativa da-
quele que enche tudo em todas as coisas.”5 queles que desempenhavam os três ofícios como
agentes mediadores: reis, profetas e sacerdotes.
No Novo Testamento, muitos títulos são dados à Mas como Joel anteviu, o derramamento genera-
igreja. Ela é chamada de “A igreja de Deus” (1Co lizado do Espírito resultaria num reavivamento
1.2), “Lavoura de Deus” (1Co 3.9), “Edifício de do espírito profético e da revelação (Jl 2.28-29).7
Deus” (1Co 3.9), “Templo de Deus” (1Co 3.16), Essa promessa do Espírito se cumpriu não na na-
Corpo de Cristo” (Ef 1.22,23), “Coluna e Baluarte ção toda, mas sobre um grupo de homens que
da Verdade” (1Tm 3.15).6 Essas expressões apon- creram que Jesus era o Messias. A ekklesia nas-
tam para o significado e para a missão da igreja. ceu no Pentecostes, quando o Espírito Santo foi
Uma coisa não pode ser vista separada da outra. derramado sobre o pequeno grupo de discípulos
A igreja é uma instituição “comissionada”. judeus de Jesus. Mas o que é mais impressionante
é que esse grupo recebeu o Espírito da maneira
como os profetas, os sacerdotes e os reis recebiam
no Antigo Testamento. A implicação disso é que
agora, a comunidade desempenhará os ofícios
perante a sociedade, profetizando a Palavra de
5 A Confissão de Fé de Westminster, XXV. 1.
6 Ver William MacDonald. Cristo Amou a Igreja,
7 Ver George Eldon Ladd. Teologia do Novo Testa-
p.11-12.
mento, p. 324.
130

Deus, intercedendo pelas pessoas e proclamando Batismo substituiu a circuncisão e a Santa Ceia a
o reino e a soberania de Deus, enquanto demons- celebração da Páscoa. Dessa forma, quando bati-
tra esse reinado nela mesma (Ap 1.6, 1Pe 2.9). Ou zava ou quando participava da ceia, a igreja estava
seja, agora ela é o Israel de Deus (Gl 6.16). demonstrando o cumprimento da Aliança e das
promessas de Deus. Portanto, a igreja do Novo
Pedro interpretou que as promessas de Deus fei- Testamento é a continuação do Israel do Antigo
tas à Abraão estavam se cumprindo na igreja. Ele Testamento.10 A diferença básica é que Israel era
disse aos judeus em seu segundo sermão: “Vós uma “igreja” nacional, e agora a igreja se tornou
sois os filhos dos profetas e da aliança que Deus internacional.
estabeleceu com vossos pais, dizendo a Abraão:
Na tua descendência, serão abençoadas todas
as nações da terra. Tendo Deus ressuscitado o
seu Servo, enviou-o primeiramente a vós outros AS MARCAS DA VERDADEIRA IGREJA
para vos abençoar, no sentido de que cada um
se aparte das suas perversidades” (At 3.25-26). A A própria internacionalização da igreja fez com
igreja cumpre a promessa da Aliança de abençoar que surgissem centenas ou até milhares de deno-
as nações. Do mesmo modo, a igreja cumpre a minações cristãs com práticas bastante contra-
Aliança do governo davídico. Tiago entendeu que ditórias. Diante disso, como saber qual é a igreja
a própria promessa da restauração da influência verdadeira?
do reino de Davi estava se cumprindo na igreja.
No Concílio de Jerusalém, ele citou a profecia Nenhuma igreja está isenta de erros ou pecados,
de Amós 9.11-12, que falava sobre a restauração pois todas são compostas por homens, e homens
do tabernáculo caído de Davi que seria levanta- falham. Porém, é preciso saber identificar entre
do para alcançar as nações com seu governo (At impureza e apostasia. Por essa razão é necessá-
15.13-18). Tiago viu na inclusão dos gentios na rio que saibamos identificar quando uma igreja
igreja o cumprimento dessa profecia, pois através é verdadeira e quando ela é apóstata. Evidente-
da missão da igreja entre os gentios, o governo es- mente que, nesse ponto, estamos falando da igreja
tava se estabelecendo numa área ainda mais am- local, pois a igreja invisível de Cisto é sempre per-
pla, pois havia homens e mulheres da raça gentia feita. Assim, historicamente algumas marcas têm
que se apressavam em render lealdade voluntária sido sugeridas a fim de indicar a verdadeira igre-
e agradecida ao Filho de Davi.8 ja. Classicamente, desde a Reforma, as marcas da
verdadeira igreja são: 1) A pregação da Palavra de
Logo a igreja estava tendo “vida própria” e, ape- Deus. 2) A administração dos sacramentos. 3) A
sar de existir dentro de Israel, já era uma institui- disciplina eclesiástica.
ção à parte. Os dois principais sinais da Antiga
Aliança, a circuncisão e a páscoa, passaram a en- A pregação da Palavra de Deus
contrar substitutos dentro da igreja, mediante o
batismo e a ceia, os chamados “sacramentos”.9 O celebração que realizava milagres (Rudolf Bultmann. Teo-
logia do Novo Testamento, p. 186). O símbolo estava muito
presente tendo em mente o pano de fundo do Antigo Tes-
8 Ver F. F. Bruce. Hechos de Los Apósteles, p. 346. tamento.
9 É impossível concordar com Bultmann que enten- 10 Como diz Berkhof “a igreja do Novo Testamento e
de que no cristianismo primitivo o sacramento de modo a da antiga dispensação são essencialmente uma só” (Louis
algum era um símbolo, mas uma Berkhof. Teologia Sistemática, p. 574).
131

Aqui estará sempre a principal marca diferencia- Administração dos Sacramentos


dora da igreja verdadeira e da apóstata.11 (A ma-
neira como a igreja considera e prega a Palavra é A administração dos sacramentos está intima-
o que há de mais preciso para que possamos iden- mente ligada à pregação autêntica da Palavra. Os
tificar sua fidelidade a Deus.) A verdadeira igreja sacramentos não existem separados da Palavra
honra a Palavra de Deus e a considera sua única de Deus, pois sem a Palavra “os sacramentos não
regra de fé e prática. Ela não usa de recursos adi- são sacramentos”.13 Para a igreja Reformada são
cionais, nem substitui a Palavra por técnicas hu- “meios de graça” em pé de igualdade com a Pala-
manas. Ela se apega à Bíblia como um todo, con- vra de Deus, no sentido de que são instrumentos
siderando o ensino bíblico completo, defendendo de bênçãos semelhantes, ainda que tenham pro-
todas as doutrinas das Escrituras. Isso significa pósitos diferentes.14 A fidelidade aos princípios
que, sempre que as igrejas negam que a Bíblia seja bíblicos quanto ao significado e à forma como
infalível e inerrante, estão falhando em exibir uma os sacramentos devem ser executados diferen-
das marcas de veracidade. Isso também pode ser ciam a igreja verdadeira da falsa. Várias coisas
visto quando doutrinas fundamentais da Palavra podem ser consideradas nesse sentido. Primeira-
de Deus como a Trindade, a divindade de Cristo, mente devemos falar do apego aos sacramentos
a justificação pela fé, ou a expiação, são negadas instituídos pela Palavra de Deus. O acréscimo de
ou distorcidas. E também quando a Palavra não sacramentos não autorizados pela Bíblia indica
ocupa o lugar central que deve ter no culto e na má administração. Da Bíblia somente podemos
vida da igreja. Sempre que a Palavra cede espaço extrair dois sacramentados, a ceia e o batismo.
para o subjetivismo, a principal marca de autenci- Todo tipo de rituais inventados pelos homens e
dade da igreja está sendo violada. Para sabermos sacramentalizados na prática da igreja denotam
se uma igreja é verdadeira, portanto, basta ouvir má administração. Também a administração des-
sua pregação. É lógico que não deveremos esperar ses sacramentos para pessoas que não estão ha-
perfeição em nenhuma igreja quanto à pregação, bilitadas a receberem-no é uma evidência de má
pois sempre haverá erros e imprecisões doutriná- administração. As regulamentações da Palavra
rias mesmo na igreja mais perfeita deste mundo. a respeito de quem deve receber o batismo e de
Porém, há um limite além do qual a igreja não quem pode participar da Ceia devem ser seguidas
poderá ir. Berkhof diz que esse limite estoura e evidenciam a veracidade da igreja.
quando “artigos fundamentais de fé são negados
publicamente, e a doutrina e a vida já não estão A disciplina eclesiástica
sob o domínio da Palavra de Deus”.12 A pregação
correta da Palavra de Deus é a principal marca da Essa prática é necessária para a manutenção da
igreja de Jesus. pureza da igreja. Sempre que uma igreja se des-
cuida da disciplina está admitindo publicamente
que não tem preocupação com a pureza. Apesar
11 Para muitos, a pregação da Palavra é a “única” de que sempre haverá o risco de a disciplina ser
marca da igreja Verdadeira. Embora ela seja a regra para a
Administração dos Sacramentos e para a Disciplina Ecle- 13 João Calvino. As Institutas, (1541), IV.12.
siástica, entendemos que essas duas últimas também são
14 Ver Pierre Ch. Marcel. El Bautismo – Sacramento
marcas. Porém, Sacramentos e Disciplina não existem se-
de Pacto de Gracia, p. 43-44. Geralmente se fala que a Pa-
parados da pregação da Palavra de Deus (Louis Berkhof.
lavra é o instrumento da fé, e os sacramentos instrumentos
Teologia Sistemática, p. 580).
para fortalecer a fé (Ver. R. B. Kuiper. El Cuerpo Glorioso
12 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 581. de Cristo, p. 188).
132

exagerada ou complacente, o fato dela não exis-


tir autoriza o pecado, portanto a igreja que qui-
ser se manter dentro do padrão bíblico deverá
dar atenção conscienciosa ao exercício da disci-
plina. A disciplina mantém a pureza doutrinária
e a santidade dos sacramentos. Quando a igreja
relaxa sua disciplina está minimizando sua esfera
de influência no mundo. A santidade nos torna
relevantes.

Todas essas três marcas precisam estar presentes


numa igreja a fim de que ela possa ser conside-
rada verdadeira e incólume a despeito das pre-
tensões malignas de pervertê-la. Evidentemente,
o grau com que esses elementos aparecerão pode
variar de uma igreja para outra. Por essa razão, na
reforma já se falava em igreja mais pura e menos
pura.

CONCLUSÃO

A igreja verdadeira é a igreja de Deus que existe


desde a fundação do mundo e que, após o Pen-
tecostes, se tornou internacional. Em cada lugar
onde ela se estabeleceu, ela é uma igreja da Pa-
lavra, é uma comunidade de crentes que estão
sendo santificados pela disciplina e atuação do
Espírito. Ela utiliza intensamente os meios de
graça, cumprindo sua tarefa primordial de ado-
rar ao Senhor, além de servir de testemunho para
o mundo e instrumento de salvação. No aspecto
internacional, ela não é uma denominação, em-
bora denominações inteiras possam estar incluí-
das nela, ou às vezes inteiramente excluídas dela.
Nem sempre ela é muito grande ou numerosa, e
às vezes parece realmente que ela fica bem pe-
quenina. Porém, essa igreja é a instituição mais
duradoura e poderosa do planeta. Afinal, dela o
próprio Jesus disse: “Edificarei a minha igreja, e
as portas do Inferno não prevalecerão contra ela”
(Mt 16.18).
133

18

UNIDADE E DIVERSIDADE DA
IGREJA

INTRODUÇÃO UMA SÓ IGREJA

A igreja protestante já nasceu como uma ins- A carta aos Efésios é, provavelmente, a carta que
tituição “internacional”. Ao mesmo tempo em mais fala a respeito da igreja. Paulo diz que Cris-
que Lutero implantava a reforma na Alemanha, to é o cabeça desta igreja e que governa o mun-
Zwinglio e Calvino trabalhavam na Suíça, e a In- do para benefício dela (Ef 1.21-22). Paulo fala da
glaterra era sacudida pela revolução protestante. função da igreja de revelar a multiforme sabedo-
Em cada um desses países se instalou uma igreja ria de Deus até mesmo aos principados e potesta-
que, ao mesmo tempo em que mantinha o caráter des nos lugares celestiais (Ef 3.10). Paulo chama a
protestante, era diversa das demais. Logo surgi- igreja de Cristo de “igreja gloriosa, sem mácula,
ram muitos movimentos dentro de movimentos, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e
como os anabatistas, os pietistas, os metodistas, sem defeito” (Ef 5.27). Fala da união de Cristo e
os arminianos, etc. Nos dias atuais, denomina- da igreja como um grande mistério de Deus (Ef
ções surgem a cada instante e comunidades livres 5.32). No capítulo 4, o assunto de Paulo é a unida-
se desvinculam de outras instituições aumentan- de cristã. Ele fala que os crentes devem demons-
do ainda mais o número de igrejas e a confusão trar unidade em seus relacionamentos, suportan-
a respeito da identidade de cada uma delas. Esse do uns aos outros e esforçando-se para “preservar
caráter fracionário da igreja protestante tem sido a unidade do Espírito no vínculo da paz” (Ef 4.3).
uma das maiores acusações do mundo em rela- Esta unidade precisa ser mantida, pois é a própria
ção à igreja. As pessoas de fora nos perguntam: essência da Igreja.
mas vocês não creem num mesmo Deus? Vocês
não advogam uma fé em conformidade com uma Paulo diz: “Há somente um corpo e um Espírito,
mesma Bíblia? Por que há tantas diferenças e tan- como também fostes chamados numa só esperan-
tas divisões? Por que há igrejas em franca com- ça da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé,
petição e todo tipo de desentendimento entre os um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual
cristãos? é sobre todos, age por meio de todos e está em
134

todos” (Ef 4.4-6). Corpo é certamente uma refe- da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus,
rência à igreja que é o corpo de Cristo. Portanto, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da
há uma só igreja diante dos olhos de Deus. Cristo plenitude de Cristo” (Ef 4.13). Portanto, nesse
morreu por uma igreja apenas, a sua igreja, o seu texto de Efésios encontramos a base para dizer
corpo. A palavra “um” se destaca no texto. Há só que a igreja demonstra, em sua essência, tanto
um corpo ou igreja, porque há só um Espírito que unidade quanto diversidade.
une os membros desta igreja e a estabelece. Há
só uma igreja, porque há só uma esperança para
esta igreja. Há só uma igreja, porque há um só Se-
nhor que morreu para resgatá-la. Há só uma igre- DISTINÇÕES NA IGREJA DE CRISTO
ja, porque há uma só fé pela qual as pessoas são
admitidas a esta igreja. Há só uma igreja, porque Precisamos tratar de certas distinções que exis-
há um só batismo que marca a admissão dessas tem na igreja de Cristo. Essas distinções são bí-
pessoas neste corpo. E acima de tudo, há só uma blicas e apenas colaboram para o bem da Igreja.
igreja porque há só um Deus que é o pai de todos
os que são da igreja, e que é também aquele que Igreja visível e invisível
está sobre todos, age em todos e está em todos.
A primeira distinção que geralmente é notada em
Há uma só igreja porque há somente um Pai, um relação à igreja diz respeito ao seu caráter como
Filho e um Espírito Santo que em última instân- igreja visível e invisível.
cia são um só Deus. Portanto, “dividir a igreja é
tão absurdo como dividir Deus”.1 A igreja de Cristo é ao mesmo tempo visível e in-
visível. Isso não significa que há duas igrejas de
Paulo prossegue dizendo que Deus capacitou esta Cristo, pois visibilidade e invisibilidade são duas
igreja com uma grande diversidade de dons es- características da mesma igreja. Quando dizemos
pirituais para que ela possa cumprir sua função que, por um lado a igreja de Cristo é invisível,
no mundo. A graça foi concedida a cada crente estamos dizendo que a essência desta igreja não
segundo a proporção do dom de Cristo (Ef 4.7), pode ser captada pelo olho humano, pois é uma
ou seja, segundo o que Cristo julgou que cada um essência espiritual. Além disso, ninguém pode
deveria receber. A variedade de dons, dos quais dizer com exatidão quem pertence e quem não
neste texto Paulo cita apenas alguns (Ef 5.11) de- pertence a esta igreja, pois somente Deus tem
monstra que esta igreja “una” é, ao mesmo tempo condições de saber isso. Embora a conversão te-
multi-dotada e, portanto se expressa multifor- nha aspectos visíveis como o arrependimento, a
memente. Sem perder sua unidade essencial, ela regeneração é uma obra invisível que o Espírito
trabalha na diversidade de seus membros dotados realiza no íntimo do crente. Quando uma pessoa
de forma variada para aperfeiçoar os santos, para é unida a Cristo e passa a fazer parte do seu cor-
desempenhar o serviço e para edificar o corpo de po, esta união é mística e absolutamente invisível
Cristo (Ef 4.12). O objetivo final é que cada mem- aos olhos humanos.
bro da igreja alcance a maturidade, conforme
Paulo diz: “Até que todos cheguemos à unidade Por outro lado, temos também a parte visível da
igreja, que é composta pelas pessoas que profes-
sam publicamente a fé em Cristo e se organizam
1 John Stott. A Mensagem de Efésios, p. 107. em igrejas locais ou denominações. É possível que
135

pessoas que façam parte da igreja visível não per- Quando um crente morre, vai habitar no céu. Lá
tençam a igreja invisível. Esta é uma ideia um tan- no céu ele passa a integrar a igreja triunfante, ou
to quanto polêmica e assustadora, mas há muitos seja, a igreja que já triunfou sobre o pecado e so-
que professam a fé em Cristo publicamente sem bre o mal. O seguinte texto parece ser uma descri-
nunca o conhecerem verdadeiramente. Assim, a ção dessa igreja: “Mas tendes chegado ao monte
igreja visível pode apresentar falhas em sua estru- Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial,
tura e em sua apresentação perante o mundo, po- e a incontáveis hostes de anjos, e à universal as-
rém, a igreja invisível é perfeita. Isso em hipótese sembleia e igreja dos primogênitos arrolados nos
alguma significa um “escapismo intelectual” fren- céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos
te aos problemas que a igreja visível muitas vezes justos aperfeiçoados” (Hb 12.22-23).
tem, pois é algo essencial, que Jesus e os Após-
tolos ensinaram a respeito da igreja. Se dissemos Quem ainda não partiu para aquele esta do de
por um lado que pessoas que façam parte da igre- bem-aventurança, faz parte da igreja militante
ja visível podem não pertencer à igreja invisível, que ainda tem que empunhar a espada (palavra)
temos que dizer que o oposto também pode ser contra as forças das trevas. Nesta dispensação a
verdade, ou seja, alguém que faça parte da igreja igreja está em meio a uma guerra santa, não uma
invisível pode não pertencer à igreja visível, em- guerra contra “carne e sangue” (Ef 6.12), não uma
bora isto não constitua a regra, e sim, a exceção. guerra com armas convencionais, mas uma guer-
Pessoas convertidas por missionários em terras ra “contra o mundo hostil em todas as formas em
distantes, ou mesmo em seus leitos de morte, pas- que este se revele, seja na igreja ou fora dela, e
sam a fazer parte da igreja invisível de Cristo sem contra todos os poderes espirituais das trevas”.2
terem se tornado membros da igreja visível. As armas da igreja nesta luta são basicamente
três: a pregação da Palavra de Deus, o testemu-
Às vezes, se fala também em igreja local e univer- nho da fé e a oração. Nesse sentido a batalha da
sal como termos correlatos a visível e invisível. A igreja é tanto ofensiva quanto defensiva, pois ela
igreja universal não é o resultado de todas as con- precisa manter o que já foi conquistado e avançar
gregações locais do mundo. Uma igreja local con- para conquistas maiores. Em meio à batalha, não
siste em cristãos que se reúnem num corpo lo- se pode ignorar que, às vezes a igreja visível duros
cal. Eles podem ser identificados e contados (Rm golpes, no entanto, precisa confiar em seu Senhor,
16.14,15; 1Co 16.19; Cl 4.15). A igreja universal sabendo que ele dirige a história e ao final, garan-
consiste de todos os discípulos de Cristo em todo tirá a vitória para seu povo.
o mundo. Ela não é identificável a partir da ma-
temática humana. Somente Deus pode contar e Quando o crente parte deste mundo, deixa para
identificar os seus (Hb 12:23). trás todas as batalhas e passa a desfrutar do triun-
fo que Cristo concede à sua igreja. Lá “a espada é
Igreja militante e triunfante permutada pelos louros da vitória, os brados de
guerra se transformam em cânticos triunfais, e a
Outra distinção importante que deve ser feita na cruz é substituída pela coroa”.3
igreja de Cristo é que por um lado ela é militante
e por outro triunfante. Esta é a diferença básica
entre a igreja que está na terra e a igreja que está
no céu. 2 Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 569.
3 Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 569.
136

A UNIDADE E A DIVERSIDADE DA IGRE- por diferenças de línguas ou de lugar. No entan-


JA to, precisamos ter consciência que a maior parte
das divisões que tem acontecido em nossos dias
Num certo sentido a igreja é “una”, ou seja “uni- tem outros motivos. São divisões pecaminosas
da”, em outro ela se apresenta, muitas vezes, divi- influenciadas pelo egocentrismo das pessoas, por
dida. Isso nos ajuda a entender a existência das causa de perversões doutrinárias e abusos sacra-
várias denominações, ao mesmo tempo em que mentais. Estas divisões são sérios ataques à unida-
encontramos um ponto de ligação entre elas. de da igreja. Infelizmente o desejo pelo poder leva
Como dissemos no início, a Igreja Protestante já muitos homens a fundarem novas igrejas apenas
nasceu, de certo modo, dividida. A Igreja Cató- para que suas ideias pessoais predominem, e não
lica, ao contrário, se orgulha de uma forte uni- poucas vezes, para se beneficiar financeiramen-
dade institucional. Ela possui uma forte estrutura te com isto. O desapego dos crentes modernos às
clerical ungida pelos cinturões clericais, desde doutrinas bíblicas tem facilitado muito o trabalho
o maior que fica abaixo na pirâmide, formado desses falsos profetas. A unidade da igreja invisí-
pelos sacerdotes e funcionários gerais da igreja, vel é inquebrável, porém da igreja visível não, por
passando pelo cinturão menor de bispos, pelo isso Paulo disse aos Efésios que eles deveriam se
ainda menor de arcebispos, e pelo ainda menor esforçar para preservar a unidade do Espírito no
de cardeais, até chegar ao topo da pirâmide onde vínculo da paz (Ef 4.3).
se encontra o Papa, que é o chefe visível e supre-
mo de todos os que estão abaixo. Apesar de toda Ultimamente, temos visto muitos esforços para
esta unidade visível, a igreja romana se apresenta o estabelecimento de um ecumenismo entre as
bastante esfacelada em divisões internas e grupos igrejas. Esse esforço pode ter dois aspectos con-
de irmandades rivais. Além disso, essa suposta traditórios. Por um lado, é desejável que as igre-
unidade tem produzido externalismo, ritualismo jas tenham diálogo e até mesmo que possa haver
e legalismo. Esta unidade não tem base bíblica e junções de denominações que sustentem os mes-
não tem colaborado para a pureza da igreja. mos princípios. Assim, a unidade externa seria
apenas a demonstração de uma unidade interna.4
A unidade visível da igreja deve ser buscada, não O problema é que, geralmente as aproximações
apenas no sistema administrativo, mas acima de são feitas à guisa de diluição de princípios e em
tudo em sua identidade. O que faz com que a igre- detrimento da verdade bíblica, substituindo-a
ja seja unida é se as marcas da igreja verdadeira pelo subjetivismo e pelo relativismo de confissões
podem ser encontradas. Todas as denominações superficiais. Isto em hipótese alguma é algo de-
cristãs que exercem fielmente a pregação da Pala- sejável.
vra, a administração dos sacramentos e a discipli-
na eclesiástica demonstram verdadeira unidade
embora tenham sistemas separados. Portanto, a OS PRINCIPAIS SISTEMAS
existência de várias denominações não anula a
unidade da igreja. Neste caso, podemos encon- Um dos assuntos mais discutidos com relação
trar unidade na diversidade, quando as marcas a Eclesiologia é a questão do melhor sistema da
da igreja verdadeira são encontradas. Igreja. Há sistemas bem variados sendo prati-
cados pelas igrejas em geral. Os principais são:
Em alguns casos, essas divisões são altamente
recomendáveis, especialmente se são causadas 4 Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p 577.
137

episcopal, congregacional e presbiteriano. Mas a der de governar a Igreja aos bispos, que são os
história demonstra que igrejas se esforçaram para sucessores dos Apóstolos. Os bispos seriam uma
não ter qualquer sistema de governo. É a Bíblia, ordem perpétua. Este talvez seja o sistema mais
entretanto, que demonstra que a igreja precisa ser comum dos nossos dias. Os bispos são escolhidos
organizada. pelos próprios bispos e a comunidade dos crentes
não tem qualquer poder para escolhê-los, nem
O Apóstolo Paulo e seu ajudante Tito haviam per- para opinar sobre os rumos da igreja. No catoli-
manecido na ilha de Creta durante algum tempo, cismo romano o sistema episcopal é levado à sua
e depois de um bem-sucedido trabalho missioná- conclusão lógica que, não apenas tem substituto
rio, igrejas estavam implantadas em várias cida- para os Apóstolos, como para Pedro, considerado
des da ilha. Parece que o Apóstolo Paulo preferia o “príncipe dos Apóstolos”. Assim, o Papa se tor-
o desafio de desbravar a organizar o trabalho. Por nou o chefe da igreja e seus pronunciamentos so-
essa razão, provavelmente sentindo o chamado bre ela são infalíveis. Nas igrejas neopentecostais
para se dirigir a outro lugar, deixou em Creta esse sistema é também levado às últimas conse-
seu ajudante Tito para organizar as coisas. Assim quências quando acima dos bispos surgem “após-
ele escreveu a Tito: “Por esta causa, te deixei em tolos”, ou quando um bispo é o dono da igreja e
Creta, para que pusesses em ordem as coisas res- tem a palavra final sobre tudo. Assim, se um úni-
tantes, bem como, em cada cidade, constituísses co homem está errado ele pode levar toda a igreja
presbíteros, conforme te prescrevi” (Tt 1.5). O para o erro.
fato de Paulo não fazer o trabalho de organização
não significava que ele não devia ser feito. Paulo Os Congregacionais caminham na direção oposta
tinha toda a consciência de que o trabalho preci- dos episcopais. No sistema congregacional o po-
sava ser organizado. Sem organização e liderança der reside inteiramente no povo. É a congregação
local uma Igreja não sobrevive, mesmo que tenha reunida que toma todas as decisões e a igreja lo-
sido plantada por um Apóstolo. O trabalho de cal é independente das demais, sendo uma “igreja
Tito em Creta indica que a Igreja precisa de or- completa”. Essa igreja não tem representantes e
ganização. os pastores são funcionários da igreja local e não
têm o poder de governar, exceto aquele poder que
Os Quacres são os mais conhecidos defensores têm como qualquer outro membro da igreja. O
da rejeição a todo e qualquer sistema de gover- máximo que essas igrejas fazem são “convenções”
no eclesiástico. Os Quacres foram uma reação ao que funcionam como se fossem “federações” de
formalismo da Igreja da Inglaterra e, por enten- igrejas, mas que não têm poder de impor decisões
derem que a organização impede a atuação do Es- sobre igrejas locais, apenas para traçar metas e
pírito, decididamente rejeitaram e chamaram de rumos para todas as igrejas. Essas igrejas acabam
pecaminoso todo sistema de organização. Muitas ficando muito esfaceladas, pois cada uma segue
igrejas e seitas dos nossos dias rejeitam organi- seus próprios princípios. Nem sempre a voz do
zação ou ordem do culto. Nelas não há ministros povo é a voz de Deus.
ordenados e qualquer um pode falar o que quiser
durante o culto. Apesar disso parecer algo “espiri- Os Presbiterianos defendem um sistema de go-
tual”, na maioria das vezes conduz ao misticismo verno representativo. Neste governo, somente
e a todo tipo de confusão doutrinária. Cristo é o chefe da igreja e não o estado, o papa ou
algum líder principal. Neste sistema o poder resi-
Os Episcopais sustentam que Jesus deixou o po-
138

de na congregação como um todo e de uma for- conduzir o trabalho quando Paulo e seus coope-
ma especial nos oficiais que são representantes da radores não pudessem mais estar presentes. Por
igreja. Como servos ordenados eles têm o direito essa razão, deviam ser homens muito fiéis.
de legislar sobre a igreja, porém, de forma a repre-
sentá-la como um todo. Os oficiais são escolhidos Presbítero significa “ancião” e bispo significa
pelo povo, porém, não significa que o poder deles “supervisor” sendo designativos de uma mesma
emane do povo, pois o poder vem de Deus, sendo pessoa, e portanto, sinônimos. De acordo com
a escolha do povo apenas confirmação da escolha a Bíblia, os presbíteros deveriam ser escolhidos
divina. Um conselho administra a igreja local e pela igreja local (At 14.23), e, portanto, não eram
cede seu poder a conselhos superiores que ad- ofícios extraordinários, mas ordinários.
ministram a igreja como um todo. Esse sistema
evita que um homem só decida sobre tudo e, ao Os presbíteros participaram com os apóstolos no
mesmo tempo, evita que um número muito gran- primeiro concílio da igreja realizado em Jerusa-
de tenha que decidir e seja deste modo, facilmen- lém e registrado em Atos 15. Neste concílio, tive-
te influenciado. O sistema representativo é o sis- ram a mesma autoridade dos apóstolos (At 16.4).
tema que se vê em Atos 15. É também o sistema
da maioria das nações livres do mundo. Paulo explicou aos Presbíteros de Éfeso que eles
eram “Bispos” cuja função era “atender por todo o
Ainda se deve lembrar dos nacionalistas e dos rebanho” e pastorear a igreja de Deus” (At 20.28).
erastianos que, por defenderem um sistema na- No contexto, significa cuidar especialmente da
cional de igreja, acabam entregando o poder ao doutrina, o que nos faz pensar que poderia haver
Estado que se torna o verdadeiro governante da duas classes de Presbíteros na Igreja, uns que go-
Igreja. vernavam e outros que governavam e ensinavam,
sendo estes últimos os mestres. Paulo destaca a
função do Presbítero que atuava na administra-
ção e no ensino, dizendo que eram merecedores
OS LÍDERES DA IGREJA de honorários dobrados (1Tm 5.17). Pedro se au-
todenominou um “presbítero” e orientou os de-
Inicialmente a igreja primitiva foi governada mais presbíteros a pastorear o rebanho de Deus
pelos Apóstolos e nela atuavam os Profetas e os de forma espontânea e sem interesses particulares
Evangelistas (Ef 4.11). Esses três ofícios eram pois a autoridade do presbítero emana do Supre-
extraordinários e escolhidos diretamente por mo Pastor, o qual deve ser imitado (1Pe 5.1-4).
Deus. Eram pessoas que recebiam algum tipo de
chamado direto de Deus. Quando esses homens Outra classe distinta de oficiais da igreja primiti-
morreram, a igreja continuou sendo administra- va foram os Diáconos. Geralmente se pensa que o
da pelos “pastores e mestres” (Ef 4.11), ou seja, surgimento desta classe se deu em Atos 6, quando
pelos presbíteros ou bispos. um grupo de sete homens foi escolhido para aju-
dar a servir as mesas. Este texto, entretanto, não
Os presbíteros, desde o início, foram os líde- os chama de “diáconos”, mas é provável que esta
res das Igrejas. Eram homens que deviam servir seja realmente a origem deste ofício. Os diáconos
como referência para os demais crentes e para a não são uma classe “inferior” aos presbíteros, mas
sociedade. Por essa razão, esses homens precisa- uma classe com função diferente. Cabe aos diáco-
vam ser escolhidos cuidadosamente. Cabia a eles nos assistir às pessoas nas suas necessidades físi-
139

cas, muito embora, os diáconos também fossem No entanto, entendemos que a metáfora tem um
incumbidos de funções espirituais (Fp 1.1; 1Tm duplo sentido. Por um lado, ela representa a união
3.8,10,12). com Cristo no sentido apenas corporal, pois Cris-
to está presente na Igreja, e assim ela é seu corpo.
Do que foi visto brevemente acima fica óbvio que Nesse caso a metáfora aponta para uma iden-
os oficiais tinham a responsabilidade de ensinar a tificação entre a Igreja e Cristo. Por outro lado,
igreja e governá-la através de concílios locais e re- especialmente nas cartas de Efésios e Colossen-
gionais. Portanto, o governo não estava nas mãos ses, Paulo destaca a função de Jesus como cabeça
do povo diretamente (congregacional), nem nas da Igreja. Nesse sentido ele não está destacando
mãos de um grupo auto escolhido de homens Cristo como parte do corpo, pois Cristo é o corpo
(episcopal), mas sobre um grupo de pessoas que inteiro, porém, ele está destacando a relação de
era escolhido pelo próprio povo. Assim, o sistema submissão que existe por parte da Igreja em rela-
presbiteriano é o que mais se aproxima do ensino ção a Cristo.
do Novo Testamento, muito embora, como diz
Berkhof, “as igrejas reformadas (calvinistas) não Em Efésios 1.22-23, após descrever a “subida” de
têm a pretensão de que o seu sistema de governo Cristo mediante sua ressurreição e ascensão, as-
seja determinado, em todas as minúcias, pela Pa- sentando-se acima de todo principado, e potesta-
lavra de Deus, mas asseveram que os seus princí- de, e poder, Paulo complementa: “E pôs todas as
pios fundamentais são derivados diretamente da coisas debaixo dos pés, e para ser o cabeça sobre
Escritura”.5 todas as coisas, o deu à igreja, a qual é o seu corpo,
a plenitude daquele que a tudo enche em todas as
coisas”. Paulo descreve o senhorio de Cristo sobre
o cosmos visível e invisível, e então, acrescenta a
O “CABEÇA” DA IGREJA relação de cabeça da Igreja que Cristo exerce, fa-
zendo com que todas essas declarações a respeito
Cristo é o único verdadeiro “chefe” da Igreja. O do seu senhorio sobre o cosmos sejam subordina-
Novo Testamento chama Jesus de “cabeça” e a das à declaração a respeito do propósito de Deus
igreja de “corpo”. A interpretação protestante para Cristo em relação à Igreja. Deus fez Cristo
mais tradicional entende que isso é uma metáfora ser o Cabeça da Igreja para que a Igreja seja a ex-
para indicar a comunhão coletiva que o povo de pressão plena de Jesus Cristo no mundo. Portan-
Deus tem com Cristo através do Espírito. to, o governo da igreja é “cristocêntrico”. Somente
Cristo pode governá-la.
Na interpretação católica, entende-se que é uma
ideia real e pessoal, como se a Igreja fosse uma
extensão física do corpo de Cristo. No nosso en-
tendimento a expressão “corpo de Cristo” indica a CONCLUSÃO
relação espiritual que a Igreja desfruta com Cris-
to, uma vez que o Espírito Santo está nela, e este Há uma só igreja diante de Deus, porém, esta
Espírito é o que estabelece a unidade na Igreja en- igreja pode se apresentar de formas variadas sem
tre si, e com relação a Cristo. perder sua unidade. Tristemente, porém, o que
temos visto em nossos dias é uma grande aber-
ração dos princípios bíblicos que estabeleceram a
5 Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 585. igreja. Toda a competição e o proselitismo que há
140

entre as igrejas tem dado uma triste constatação:


que estas igrejas que se apresentam pelo nome de
Cristo estão bem longe de ser a verdadeira igre-
ja de Cristo. Por outro lado, quando há esforços
para unir as igrejas em detrimento da verdade
bíblica, as coisas não ficam melhores. Este não é
um assunto que podemos encerrar aqui. Precisa-
mos continuar orando e buscando no Senhor o
melhor modo de demonstrar visivelmente a uni-
dade e a diversidade da igreja de Cristo perante o
mundo.

O sistema de “concílio” além de ser amplamen-


te bíblico, também é o mais transparente, justo e
sábio. Porém, qualquer sistema sempre pode ser
burlado quando os homens agem de forma im-
própria buscando seus próprios interesses.
141

19

OS SACRAMENTOS: O BATISMO

INTRODUÇÃO vra, os sacramentos e a oração (P. 88). Em nossa


época, muitas são as práticas estranhas à Palavra
Se fizéssemos uma lista de quatro ou cinco pas- de Deus que os crentes empregam, com o intuito
sos para o crescimento espiritual, o que ocuparia de obter maior comunhão e espiritualidade. Em
o topo da lista? Oração, retiro espiritual, estudo contrapartida, os meios de graça que o próprio
bíblico, jejum, devocional, cantar num coral? Jesus instituiu são tidos em baixa consideração. A
Quantos colocariam os sacramentos no topo des- diferença é que certas experiências podem trazer
ta lista?1 Nessa lição abordaremos um assunto
graça para a vida das pessoas, mas não faz delas
que não é muito considerado pela maioria dos
meios de graça em si. A Palavra e os sacramentos
crentes: os Meios de Graça. Meio de Graça repre-
são meios de graça em si, pois sua eficácia depen-
senta uma maneira de se obter a graça de Deus,
de unicamente da atuação do Espírito.3 É sobre
não a graça salvadora, mas a graça sustentadora.
os Sacramentos que queremos tratar agora. Nesta
De forma genérica, considerando que todas as
lição falaremos sobre o Batismo.
coisas contribuem para o bem dos eleitos, pode-
mos dizer que todas as coisas, até mesmo as afli-
Jesus só estabeleceu dois sacramentos: o batismo
ções (Fp 1.27) se constituem em meios de graça
e a ceia. Ambos têm o caráter de ser “meio de gra-
para nós,2 mas nesse ponto estamos falando de
“meios de graça” num sentido mais restrito, aqui- ça”, porque através do que simbolizam e mediante
lo que o Catecismo Menor de Westminster cha- a operação do Espírito Santo, conduzem a graça
ma de “meios exteriores e ordinários pelos quais de Deus para as pessoas. Dissemos que um Sacra-
Cristo nos comunica as bênçãos” ou seja, a Pala- mento é um sinal visível de uma graça invisível.
Encontramos uma referência a isso na circunci-
1 Ver Michael Horton. As Doutrinas da Maravilho- são do Antigo Testamento.
sa Graça, p. 201.
2 Ver Herman Hoeksema. Reformed Dogmatics, 3 Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 609-
632-634. 610.
142

FAMÍLIAS COMO ALVO No Novo Testamento, o interesse de Deus pelas


famílias continua. Quando Pedro pregou um ser-
A circuncisão separava os filhos dos crentes dos mão evangelístico no templo após o dia de Pen-
filhos dos incrédulos e os localizava sob as asas tecostes, ele declarou: “Pois para vós outros é a
protetoras do pacto (Gn 17.10-12). Quando Deus promessa, para vossos filhos e para todos os que
estabeleceu seu pacto com Abraão, ele ordenou: ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor,
“Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim nosso Deus, chamar” (At 2.39). É interessante
e vós e a tua descendência: todo macho entre vós que Pedro destaque a questão da promessa. Ele
será circuncidado. Circuncidareis a carne do vos- próprio identificou a promessa do derramamen-
so prepúcio; será isso por sinal de aliança entre to do Espírito como se cumprindo naquele dia.
mim e vós” (Gn 17.10-11). Deus não trabalha Agora ele fala da promessa de Deus aos filhos em
apenas com indivíduos, mas com famílias. Para termos bem parecidos com aqueles que o próprio
“você e sua casa” é uma frase comum em ambos Deus usou ao estabelecer a Aliança com Abraão.
os testamentos. No caso de Abraão, Deus estabe- A orientação aqui não está no fato de que Deus
leceu um sinal pactual que fizesse separação entre espera que nossos filhos queiram ter um compro-
os filhos dos crentes e os filhos dos incrédulos. misso com ele, mas no fato de que é ele quem os
Note que a circuncisão não apenas representava a chama. O Apóstolo Paulo assegura-nos que um
separação, ela era a separação. Deus ordenou que pai crente pode santificar um filho mesmo que o
os infantes (de oito dias) em Israel fossem circun- outro cônjuge seja incrédulo, pois como ele mes-
cidados. Abraão creu em Deus e por isso foi jus- mo diz: “Doutra sorte, os vossos filhos seriam
tificado. Circuncidar seu filho era uma atitude de impuros; porém, agora, são santos” (1Co 7.14).
fé na promessa de Deus. Por que será que Deus Por que Paulo usa a mesma distinção veterotesta-
não esperou que o filho de Abraão tivesse idade mentária de “puro” e “impuro” para os filhos, se
suficiente para fazer uma decisão por si mesmo? não há diferença entre os filhos dos crentes e os
A resposta é simples: “Porque a salvação não é filhos dos incrédulos? Porque certamente existe
centrada no homem, mas em Deus”.4 O foco não uma distinção. Não se pode negar que todos, para
é a nossa escolha, mas a escolha divina. Deus vem que sejam salvos, precisam crer em Jesus, porém,
para nós e para nossos filhos em amor e graça e é um grande erro tratar de forma igual um filho
coloca sua marca de posse no povo do seu pacto. de crente e um filho do mundo,6 pois a Bíblia de-
Para aqueles que argumentam que a pessoa pre- monstra que há diferença entre eles, e há uma
cisa se arrepender e crer para depois ser batizada, marca que torna essa distinção clara, essa marca é
podemos dizer que é assim para os adultos, pois o batismo. A marca da Aliança é a própria distin-
Deus exigiu isso de Abraão para que fosse cir- ção que existe.
cuncidado, mas Deus não exigiu isso de Isaque.
Isaque foi circuncidado porque era um filho do A igreja Primitiva seguiu fielmente esta orien-
pacto.5 A fé que Abraão demonstrou era suficien- tação bíblica. Os mais antigos documentos pós-
te para que Isaque também recebesse a marca do -apostólicos demonstram uma imutável prática
pacto. do batismo infantil. O que isso significa? Signifi-
ca que os Apóstolos batizavam crianças.7 E o fato
4 Michael Horton. As Doutrinas da Maravilhosa
Graça, p. 208. 6 William Hendriksen. El Pacto de Gracia, p. 27-28.
5 Pierre Ch. Marcel. El Bautismo, Sacramento Del 7 Ao batizar crianças, os Apóstolos estavam inteira-
Pacto de Gracia, p. 216. mente dentro da tradição judaica que batizava os filhos dos
143

de não haver nenhuma indicação no Novo Testa- garante a salvação. Mas é uma atitude de fé consa-
mento de quem deve ser batizado pesa ainda mais grar os filhos ao Senhor e administrar sobre eles
a favor do batismo infantil, pois, então, permane- o símbolo da Aliança. Ao contrário de desagradar
ce a base do Antigo Testamento. Para aqueles que a Deus, essa prática somente o agradaria, pois ele
argumentam que o silêncio do Novo Testamento próprio exigiu essa atitude de fé no fato de Abraão
a respeito das crianças impossibilita que elas se- circuncidar seu filho Isaque. O batismo das crian-
jam batizadas, teríamos que dizer que, se fosse as- ças que são filhas de pais crentes simboliza a reali-
sim, então, as mulheres não poderiam participar dade de que elas são separadas aos olhos de Deus.
da Ceia, pois o Novo Testamento não as autoriza Neste batismo, pais que vivem na aliança se com-
explicitamente. Mas todos entendem por implica- prometem a criar seus filhos conforme a Palavra
ção, que a mulher deve participar, e é esse mesmo do Senhor. Por outro lado, como diz Calvino, “de-
entendimento que leva os reformados a defender vemos temer sempre o perigo que nos ameaça, se
o batismo das crianças. No Antigo Testamento desprezarmos o privilégio de assinalar os nossos
as crianças recebiam o sinal da Aliança com oito filhos com o selo da aliança, de que o Senhor nos
dias (Gn 17.12). Se no Antigo Testamento, os pais castigue por termos renunciado à bênção que nos
não esperavam as crianças crescerem para decidi- é oferecida no Batismo (Gn 17.14).”9
rem por si mesmas se queriam a marca da Alian-
ça, por que deveríamos esperar hoje? Ainda que o Novo Testamento não diga explici-
tamente que as crianças devam ser batizadas, há
É preciso que fique claro, portanto, que a base bons indícios de que isso acontecia. Há relatos de
para batizar as crianças é a doutrina do Pacto da várias “casas” que receberam o batismo através
Graça. Se os pais fazem parte do pacto, então, os dos Apóstolos. Por exemplo, Lídia e toda a sua
filhos também fazem. Porém, isso não significa casa (At 16.15), bem como o carcereiro e todos
que estão automaticamente salvos. Não somos os seus (At 16.33; Ver ainda At 18.8). É verdade
salvos por nascimento, somos salvos por fé. Deus que os textos não dizem explicitamente que havia
não prometeu que cada filho de pais crentes será crianças nas casas, mas negar essa possibilidade
salvo, antes tem prometido perpetuar sua obra de é uma presunção que se aproxima muito do pre-
graça na descendência dos crentes (Ver Gn 17.7; conceito.
Sl 103.17-18; 105.6-11; Is 59.21; At 2.39).8 Sobre
essa base os pais crentes devem batizar seus fi-
lhos, confiando que Deus desenvolverá sua obra ASPERSÃO OU IMERSÃO?
pactual com eles, enquanto eles próprios esfor-
çam-se por ensinar a criança no caminho certo Como estamos considerando a questão do batis-
para que não se desvie quando adulta (Pv 22.6). mo, também precisamos falar sobre o seu modo
Quanto ao argumento de que seria inútil batizar de administração. Só o fato de a Bíblia incluir o
as crianças sem ter certeza de que serão salvas, batismo de crianças, já é um argumento mui-
podemos contra argumentar que não temos cer- to forte a favor da Aspersão. A ideia de afundar
teza se todos os adultos que se batizam são real- um recém-nascido dentro de um rio não é muito
mente salvos. O batismo dos adultos também não aceitável.

prosélitos (Ver Oscar Cullmann. Das Origens do Evangelho A circuncisão era um sinal de limpeza. Uma das
à Formação da Teologia Cristã, p. 131).
8 Ver William Hendriksen. El Pacto de Gracia, p. 29. 9 João Calvino. As Institutas, (1541), III.11
144

razões pelas quais se cortava o prepúcio era por batizado. Mateus relata: “Batizado Jesus, saiu logo
questões higiênicas. Incircunciso na Bíblia equi- da água, e eis que se lhe abriram os céus, e viu o
vale a imundo. O batismo, que é o selo de entra- Espírito de Deus descendo como pomba, vindo
da na igreja cristã, também tem um significado sobre ele” (Mt 3.16). Esse verso tem dado margem
de fazer purificação, por isso é usada a água, pois para bastante discussão sobre a forma de batismo
água nos fala de purificação. com a qual Jesus foi batizado. Para os defensores
do imersionismo não resta dúvidas de que ele foi
A Bíblia fala em dois tipos de batismo. O batismo batizado por imersão. Para surpresa de muitos,
com água e o batismo com o Espírito. É natural o texto nada fala a respeito de imersão. O argu-
pensar que sejam coisas parecidas. O Novo Tes- mento baseado na construção “saiu da água” não
tamento diz que o Espírito desceu sobre as pes- acrescenta nada, pois alguém pode sair da água
soas no dia de Pentecostes (At 2.1-4). E o Antigo sem que, com isso, precisasse estar inteiramente
Testamento conecta o derramamento do Espírito imergido nela. Bastaria estar com os pés dentro
a um derramamento de água: “Então, aspergirei da água e a frase já seria válida. Igualmente em
água pura sobre vós, e ficareis purificados; de relação ao argumento de que a palavra batismo
todas as vossas imundícias e de todos os vossos somente significa “afundar”, pode ser dito que
ídolos vos purificarei. Dar-vos-ei coração novo e ela também significa “aspergir”, como a maioria
porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós dos léxicos tem indicado. O mesmo se percebe
o coração de pedra e vos darei coração de carne. da tradução da palavra batismo da língua grega
Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que an- que é traduzida em alguns versículos para o por-
deis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos tuguês como lavar ou mesmo aspergir (Mc 7.4;
e os observeis” (Ez 36.25-27). Portanto, Batismo Lc 11.38).11 Mas certamente o que mais impres-
na Bíblia é derramamento. Se o Espírito é “asper- siona no episódio do batismo de João é a decisão
gido” sobre os crentes por que a água não poderia dos fariseus em se submeter ao batismo de João
ser? (Mt 3.7). A seita dos fariseus era famosa por sua
rigidez com relação à obediência do Antigo Tes-
No Antigo Testamento, as cerimônias de purifi- tamento. Os fariseus estavam sempre procuran-
cação com água eram por aspersão.10 Números do algum motivo para acusar Jesus de quebrar a
8.7 diz: “Assim lhes farás, para os purificar: asper- lei. Levantavam questões como curar no Sábado,
ge sobre eles a água da expiação”. Há descrições comer sem lavar as mãos, ou pagar impostos. É
minuciosas sobre como deveria ser a cerimônia curioso que eles nada tinham para acusar João
de purificação: “Um homem limpo tomará hisso- quanto ao seu batismo. Isso parece ter pouco sig-
po, e o molhará naquela água, e a aspergirá sobre nificado, porém, quando pensamos que todas as
aquela tenda, e sobre todo utensílio, e sobre as cerimônias de purificação do Antigo Testamen-
pessoas que ali estiverem” (Nm 19.18). Quando to eram por aspersão, é significativo que eles não
João Batista começou a batizar no Jordão, ele cha- acusem João de estar rompendo com a tradição
mou a atenção dos estudiosos do Antigo Testa- do Antigo Testamento. O motivo deve ser porque,
mento. As multidões se dirigiam ao Jordão para na verdade, ele não estava rompendo com aque-
serem batizadas, e até mesmo os religiosos se sub-
metiam ao batismo de João. O próprio Jesus foi
11 Esses textos falam de batismos como abluções, que
eram rituais de purificação. Eles praticavam esses rituais em
10 Conferir uma excelente argumentação, nesse sen- copos, jarros, vasos de metal e camas. A ideia de afundar
tido, em: Charles Hodge. De la insígnia cristiana, p. 10-23. uma cama num rio parece estranha.
145

les preceitos. Ou seja, ele batizava por aspersão. atravessaram com pé enxuto. Não há qualquer re-
Se João estivesse inventando um ritual de puri- ferência à imersão nesses textos, antes como diz
ficação por imersão, que era estranho ao Antigo Landes, “não se pode dizer que os hebreus foram
Testamento, os fariseus não perderiam tempo em imersos na nuvem e no mar, dos egípcios sim, po-
acusá-lo. de-se dizer que foram imersos no mar e até mes-
mo submersos, para não mais sair”.13
Há casos bíblicos de batismo em que a ideia de
imersão fica ainda mais difícil de ser mantida. Em O texto mais usado pelos imersionistas é o da
Atos 2 cerca de três mil pessoas se converteram passagem do batismo do eunuco realizado por
e foram batizadas dentro da cidade de Jerusalém Filipe: “Então, mandou parar o carro, ambos des-
(At 2.41). Daria bastante trabalho batizar todas ceram à água, e Filipe batizou o eunuco. Quando
elas num único dia, e num local onde não há rios. saíram da água, o Espírito do Senhor arrebatou a
É bem mais plausível a ideia de que os apóstolos, Filipe, não o vendo mais o eunuco; e este foi se-
a exemplo do Antigo Testamento, utilizassem ra- guindo o seu caminho, cheio de júbilo”. Mas será
mos de árvores e aspergissem a água sobre as pes- que esse texto diz explicitamente que Filipe afun-
soas. O batismo de Paulo, que segundo a Bíblia, dou o eunuco na água? Ele simplesmente diz que
foi realizado dentro de casa, é outro fator compli- Filipe batizou o eunuco dentro do rio, mas não
cador para a ideia da imersão. Inclusive a Bíblia diz que Filipe o afundou. “Descer à água e sair
diz que ele “levantou-se e foi batizado” (At 9.18), da água” não exigem um “afundar na água”, até
o que sugere que foi batizado de pé, mas isso so- porque ambos fizeram isso, e não parece que os
mente é possível em caso de aspersão ou efusão. batizadores mergulhassem juntos com os batiza-
Outro caso está em Atos 16, quando o carcereiro dos.14 Significa apenas que Filipe usou a água do
convertido e toda a sua família foram batizados rio para batizar o eunuco.
de noite, provavelmente dentro da prisão, ou na
casa deles (At 16.33). É muito difícil sustentar o Geralmente os imersionistas usam os termos bí-
modo por imersão nesses casos.12 blicos que falam da morte e da ressurreição de
Cristo como um batismo para os crentes, para di-
Pedro compara o batismo com a experiência do zer que é preciso afundar na água para ressurgir
dilúvio quando oito pessoas foram salvas das para uma nova vida. Os textos usados são: Ro-
águas (1Pd 3.20-21). Essas pessoas em hipótese manos 6.3-4: “Ou, porventura, ignorais que todos
alguma foram imersas. E Paulo o compara com nós que fomos batizados em Cristo Jesus fomos
a experiência dos israelitas no deserto quando batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados
foram “todos batizados, assim na nuvem, como com ele na morte pelo batismo; para que, como
no mar” (1Co 10.2). A nuvem era a presença de Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela gló-
Deus que guiava e seguia os filhos de Israel (Ex ria do Pai, assim também andemos nós em novi-
33.8-11), e o mar era o Mar Vermelho o qual eles dade de vida”. E também Colossenses 2.12: “Tendo

13 Philippe Landes. Estudos Sobre o Batismo – O


12 Philppe Landes demonstra como os Pais da igre-
modo de Administrá-lo, p. 67.
ja entendiam que a palavra batizar poderia significar “der-
ramar água”. Ele lista diversos textos da patrística para 14 A preposição grega “eis” que Lucas usa para dizer
comprovar isso. Os pais da igreja falam sobre pessoas que que Filipe e o eunuco desceram à água, de acordo com vá-
recebiam o batismo em seus leitos (Ver. Philippe Landes. rias outras vezes em que ela é usada no Novo Testamento,
Estudos Sobre o Batismo – O modo de Administrá-lo, p. não significa necessariamente “para dentro de”, como no
84-90). sentido de afundar (At 16.16; Lc 8.26; Jo 7.8).
146

sido sepultados, juntamente com ele, no batismo, do povo de Deus, e de que se submete à Aliança
no qual igualmente fostes ressuscitados mediante de Deus. Ela está confirmando o pacto com Deus
a fé no poder de Deus que o ressuscitou dentre os e, desse modo, atraindo bênçãos para sua vida e
mortos”. Porém, a ideia de um “sepultamento” nas para a sua casa.
águas não parece estar contemplada nestes textos.
Antes, o que eles realmente mostram é a realida- Nos dias de hoje, quando muitos, seguindo fal-
de espíritual simbolizada pelo batismo, ou seja, osos ensinos rejeitam o batismo que receberam, e
vão atrás de seitas, heresias e movimentos “espi-
ato de ser unido a Cristo (união mística). Até por-
que, o sepultamento de Jesus não se parece com rituais”, estão renegando a Aliança de Deus, estão
um afundamento nas águas. Jesus mesmo falou quebrando o pacto. Quando Deus estabeleceu o
a respeito desse batismo que ele teria que passar:pacto com Abraão, ele disse: “Eu sou o Deus To-
“Tenho, porém, um batismo com o qual hei de ser do-Poderoso (...) Estabelecerei a minha aliança
batizado; e quanto me angustio até que o mesmo entre mim e ti e a tua descendência no decurso
se realize!” (Lc 12.50). Quando Tiago e João pedi-das suas gerações, aliança perpétua, para ser o teu
ram que Jesus os colocasse nos primeiros lugares Deus e da tua descendência. (...) Esta é a minha
no seu reino, Jesus lhes respondeu: “Não sabeis o aliança, que guardareis entre mim e vós e a tua
que pedis. Podeis vós beber o cálice que eu bebo descendência: todo macho entre vós será circun-
ou receber o batismo com que eu sou batizado?” cidado. Circuncidareis a carne do vosso prepúcio;
(Mc 10.38). Evidentemente Jesus estava falando será isso por sinal de aliança entre mim e vós. O
de sua morte. Naquele momento, os discípulos que tem oito dias será circuncidado entre vós.(...)
responderam: “Podemos”. E então Jesus retrucou: O incircunciso, que não for circuncidado na car-
“Bebereis o cálice que eu bebo e recebereis o ba- ne do prepúcio, essa vida será eliminada do seu
tismo com que eu sou batizado” (Mc 10.39). Tia- povo; quebrou a minha aliança” (Gn 17. 1-2, 7, 9,
go realmente foi morto, mas João não. Porém, os 10 -12 , 14). Deus se apresentou como o El Sha-
dois foram batizados na morte e na ressurreição day (Todo-poderoso), cuja tradução literal é: “O
de Jesus. Isso se deu através da união mística e Deus que é suficiente”. Ele chamou Abraão para
também da vida de consagração e sofrimento e andar na presença dele, o que era um privilégio
que os discípulos se submeteram. Portanto, não sem igual. Deus chamou Abraão e ordenou que
há nada na Bíblia que diga que o batismo com ele fosse “perfeito” (heb: Tamim). Essa expressão
água é o passar da morte para a vida, até porque, não significa necessariamente ausência de defei-
isso é algo próprio da regeneração e não do batis-tos, mas plenitude, integridade, vida completa.
mo. Senão, teríamos que dizer, como os católicos, Evidentemente que isso seria uma consequência
que é o batismo que salva. de andar na presença do “Deus que é suficiente”.
Deus estabeleceu a Aliança que era um pacto de
fidelidade. A promessa de Deus foi: Te abençoa-
rei, serei o teu Deus. O que Abraão deveria fazer
O BATISMO E A ALIANÇA era guardar a Aliança. Ele deveria ter uma atitude
de fé ao marcar sua descendência. Caso não fizes-
Mas em que sentido o batismo colabora para a se isso, estaria quebrando a Aliança de Deus. Hoje
espiritualidade? Ele é um exercício de fé. Quando quando as pessoas renegam o batismo ou não o
uma pessoa se submete ao batismo, ou quando desejam, não estariam quebrando a Aliança de
conduz seus filhos para serem batizados, ela está Deus?
fazendo uma declaração solene de que faz parte
147

20

OS SACRAMENTOS: A SANTA CEIA

INTRODUÇÃO Casamento não foram instituições de Jesus, não


desfrutam de caráter perpétuo, nem estão estri-
Na Idade Média, os cristãos possuíam muitas téc- tamente ligados ao Evangelho como a Ceia e o
nicas não-bíblicas para aprimorar o crescimento Batismo estão. Portanto, a Reforma não aceitou
espiritual. Uma das mais praticadas era a cha- essas cerimônias como sacramentos.
mada Penitência. A Penitência é um sacramento
para a igreja Romana. Ela era chamada de uma Entre os crentes também existem muitos “sacra-
“tábua depois do naufrágio”. Significava o retorno mentos evangélicos” sem base bíblica. Existem
do homem para Deus. A Penitência era cumprida práticas estranhas como “fogueiras para queimar
quando um homem mostrava sinais externos de pecados”, passar sal grosso ao redor da casa, amar-
sofrimento pelo pecado, confessava verbalmente
rar uma fita de libertação no braço, ungir objetos
para um sacerdote, era absolvido por ele, e en-
com óleo, e até o apelo final do culto, quando uma
tão, fazia satisfação por seus pecados de acordo
pessoa repete uma oração e, instantaneamente, se
com o julgamento do sacerdote. Este sacramento
torna perdoada e aceita. O que percebemos é que
era requerido, segundo Roma, porque de acordo
com o livre arbítrio, a graça pode ser possuída e essas práticas evangélicas acabam virando um fim
também pode ser perdida. Por isso, a Penitência em si mesmas, são maneiras de atrair a atenção
podia ser repetida várias vezes. Cumprida a peni- das pessoas, visam apenas “segurar” o crente na
tência, um católico deveria se sentir absolvido de igreja. Nesses tempos modernos, é sempre preci-
seus pecados. Ao todo são sete sacramentos para so inventar uma novidade para trazer mais pes-
Roma: Batismo, Eucaristia, Crisma, Penitência, soas ou manter as que já se achegaram à igreja. Os
Ordem (Sacerdócio), Unção dos Enfermos e Ca- participantes das igrejas se parecem muito com
samento. Todos esses seriam instituições divinas clientes enjoados. Eles querem sempre alguma
que promovem a obra da graça de Deus na vida “comida” diferente.
das pessoas. No entendimento Reformado, Cris-
ma, Penitência, Ordem, Unção dos Enfermos e
148

GRAÇA QUE RENOVA A Santa Ceia é a garantia de que somos um povo


continuamente perdoado e alimentado.2
O outro sinal visível de uma graça invisível no
Antigo Testamento era a Páscoa. Aquela festa era
um memorial da libertação israelita do cativeiro
egípcio. No momento da saída do Egito, o sangue A CEIA DE JESUS
aspergido nas portas marcava aqueles que confia-
vam em Deus, sendo que na casa onde a marca Os evangelistas relatam a última ceia do Senhor
não existia, o primogênito era morto pelo anjo. Jesus com seus discípulos. Jesus sabia que aquela
Neste caso, o símbolo visível tornava-se intima- seria sua última noite em que poderia estar a sós
mente e inseparavelmente ligado com a salvação com seus amigos e escolheu aquela ocasião para
significada e selada. conceder um dom maravilhoso à sua igreja antes
de sua partida.
Já estudamos que na justificação Deus imputa sua
graça em nós, de forma que somos declarados jus- A primeira coisa que percebemos na maneira
tos, embora ainda sejamos pecadores. Já falamos, como o Senhor dirigiu aquela reunião foi sua dis-
que nesse momento começa o processo da santi- posição de que todos participassem daquele mo-
ficação, que é o ato de Deus derramar sua graça mento. Ele ordenou que seus discípulos “comes-
sobre nós, uma graça que irá nos transformar, a sem e bebessem”. Em outra ocasião ele já havia
ponto de mudar completamente a nossa vida. A declarado: “Em verdade, em verdade vos digo: se
Santa Ceia é um instrumento de graça porque não comerdes a carne do Filho do Homem e não
nos sustenta e renova nossas forças espirituais. beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós
Se ficarmos bastante tempo sem alimentos, nos mesmos. Quem comer a minha carne e beber o
sentiremos fracos e logo adoeceremos. Quando meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscita-
nos alimentamos, permanecemos fortes, e mais, rei no último dia” (Jo 6.53-54). Obviamente Jesus
imunes a doenças. A Ceia é o nosso alimento não estava ensinando naquela ocasião nenhum
espiritual, participar dela é garantia de sustento tipo de canibalismo, ele falava de ter um relacio-
e renovação espiritual. Por isso, nossa visão da namento com ele, um relacionamento tão íntimo
Santa Comunhão é muito diferente da visão da que só poderia ser possível se participássemos
igreja romana. Para ela a comunhão possui graça dele, se ele estivesse dentro de nós. Naquela noite,
salvadora, ou seja, se alguém cometeu um peca- na última ceia, em palavras memoráveis, ele orde-
do mortal, através da comunhão pode receber o nou que seu povo participasse da união com ele,
perdão e ser salvo novamente. Entretanto, cremos que é a maneira como todas as bênçãos de Deus
que a graça que encontramos na comunhão não vêm sobre nós.
é a graça que nos salva, mas a que confirma que
somos salvos. A Santa Ceia não é uma cerimônia O significado daquela cerimônia está intima-
importante apenas porque simboliza algo grande, mente ligado à obra de Jesus. Jesus disse: “Tomai,
mas porque é algo grande.1 Através dela, o Se-
nhor nos alimenta espiritualmente, pois oferece 2 João Calvino. As Institutas, (1541), IV.12, O Re-
seu corpo e sangue como um alimento espiritual. formador diz ainda: “O Batismo é um só e jamais deve ser
repetido, mas a Ceia é distribuída muitas vezes, a fim de que
aqueles que uma vez foram recebidos e inseridos na igreja
1 Ver Michael Horton. As Doutrinas da Maravilho- entendam que são continuamente alimentados e refeitos ou
sa Graça, p. 215. renovados por Jesus Cristo.”
149

comei; isto é o meu corpo. A seguir, tomou um denção para o seu povo. O pão e o vinho simbo-
cálice e, tendo dado graças, o deu aos discípulos, lizavam o seu sacrifício. Deve ser dito que apenas
dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu simbolizavam, eles não eram em si um sacrifício,
sangue, o sangue da nova aliança, derramado em pois, o sacrifício de Jesus é único e não pode ser
favor de muitos, para remissão de pecados” (Mt repetido (Hb 10.14). Jesus destacou também o as-
26.2628). Poucas expressões têm sido mais con- pecto do sangue ser o “sangue da aliança”. Desde
troversas na história do que a expressão de Jesus o início do mundo Deus estabeleceu uma Aliança
“isto é o meu corpo” e “isto é o meu sangue”. In- com seu povo. Por várias vezes Deus renovou essa
felizmente aquilo que foi dito para unir os cren- Aliança ao longo das gerações. Um dos elementos
tes, até o dia de hoje continua separando. Jesus centrais dessa Aliança era justamente o sangue. O
não estava querendo dizer que aquele pedaço de sangue simbolizava a expiação, a forma como os
pão e aquele pouco de vinho eram fisicamente pecados podiam ser perdoados (Hb 9.22). Quan-
o corpo e o sangue dele, pois do mesmo modo, do Jesus disse que o sangue dele era o sangue da
muitas vezes ele disse que era “uma porta”, “a luz”, Aliança apontou para a forma como as pessoas
“o caminho”, e nem por isso estava dizendo que foram salvas desde o início. Os sacrifícios ofereci-
fisicamente era aquelas coisas. Ele escolheu dois dos no Antigo Testamento eram apenas sombras
elementos para simbolizarem aquilo que, atra- do sacrifício de Jesus e só tinham valor porque
vés de seu corpo e de seu sangue, realizaria pelo no plano de Deus, chegaria o momento quando
mundo.3 O seu corpo seria crucificado e o seu Jesus viria e derramaria seu sangue para cumprir
sangue derramado para poder providenciar re- a Aliança.

3 Especialmente durante a Reforma, a questão da O objetivo da ceia é para fins de memória e bên-
Ceia foi bastante discutida. Roma defendia a Transubstan-
ção. O aspecto memorial do seu sacrifício pode
ciação que foi definida no Quarto Concílio Lateranense em
1215. Significa que a substância do pão e do vinho era mi- ser percebido pela expressão que Paulo usa em
raculosamente transformada na substância do corpo e do sua primeira carta aos Coríntios: “Fazei isto, to-
sangue do Senhor, de modo que já não deveriam ser vistos das as vezes que o beberdes, em memória de mim.
como pão e vinho, embora parecessem ser. Lutero criou ou-
tra teoria que ficou conhecida como Consubstanciação. Os Porque, todas as vezes que comerdes este pão e
Luteranos defendiam uma espécie de comunicação de atri- beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor,
butos entre a natureza divina e a natureza humana de Jesus. até que ele venha” (1Co 11.25-26). Devemos en-
Assim, a natureza divina comunicou à natureza humana de
tender essas palavras à luz do que o próprio Jesus
Jesus o atributo da Onipresença. Dessa forma, Jesus teria se
tornado fisicamente Onipresente. Isso é chamado de ubi- disse: “E digo-vos que, desta hora em diante, não
quidade do corpo de Cristo. Essa foi a forma que Lutero beberei deste fruto da videira, até aquele dia em
encontrou para defender a presença física de Jesus na Ceia que o hei de beber, novo, convosco no reino de
baseado na expressão: “Isto é o meu corpo”. Uma vez que,
segundo as ideias de Lutero, Jesus se tornou fisicamente
meu Pai” (Mt 26.29). O memorial da Santa Ceia
onipresente por causa da comunicação de atributos, então, nos aponta para o passado e para o futuro. Para o
no momento da Ceia, o corpo físico de Jesus está “consubs- passado se referindo à obra que o Senhor realizou
tanciado” com os elementos do pão e do vinho. Zuínglio na cruz ao oferecer o seu corpo e o seu sangue
negou que o Cristo glorificado esteja presente na Ceia do
Senhor, apelando apenas para a questão memorial da Ceia. como sacrifício que perdoa definitivamente os
Calvino concordou com Zuínglio no sentido de simbologia, nossos pecados. Mas a Santa Ceia também apon-
mas entendia que Cristo, por meio do Espírito, concede aos ta para o futuro, como uma espécie de proclama-
adoradores um verdadeiro gozo de sua presença pessoal,
atraindo-os à comunhão com ele no céu, de forma gloriosa
ção e expectativa do retorno de Jesus. Ele disse
e bem real, não obstante indescritível (Ver J. I. Packer. Teo- que só voltaria a participar dessa Ceia quando do
logia Concisa, p. 202.).
150

seu retorno. E Paulo, com certeza tendo isso em visão distorcida do sacramento. Assim, eles esta-
mente, disse que, ao participar da ceia, anuncia- vam atraindo para si a Ira Divina, pois comiam
mos a morte do Senhor até que ele venha. Mas a o pão e bebiam o vinho sem discernimento. O
Ceia não é apenas memorial, ela é também meio “Cálice da Salvação” tornou-se para eles como as
de graça. Quando participamos dela, estamos es- águas do Mar Vermelho para os Egípcios, um cá-
piritualmente unidos ao Senhor, e através dessa lice de Ira.5
união, Deus nos concede suas bênçãos.

QUEM DEVE PARTICIPAR DA CEIA?


O CÁLICE DA IRA E O CÁLICE DA SAL-
VAÇÃO Isso nos conduz a uma questão importante:
Quem deve participar da Ceia? Em 1Coríntios
A Páscoa é para a Ceia do Senhor o que a circun- 11, Paulo estabelece os requisitos. Ele diz que a
cisão é para o batismo. Os judeus comemoravam Ceia pode ser um ajuntamento não para melhor
a Páscoa como o dia da libertação. Eles comiam e sim para pior, de acordo com o comportamento
pão e vinho na Páscoa lembrando-se que seus das pessoas (1Co 11.17). No caso dos Coríntios,
antepassados haviam comido o pão da aflição e as divisões internas acarretavam uma participa-
bebido o cálice da ira no Egito, mas que eles, pela ção hipócrita na Ceia, o que se tornava uma mal-
libertação divina estavam livres daquilo, e po- dição (1Co 11.18). Tal era a situação de irregula-
diam comer o pão e beber o vinho em paz e segu- ridade, que Paulo diz que aquela cerimonia nem
rança. É isto que fazemos na Ceia. Levantamos o poderia ser chamada de “Ceia do Senhor” (1Co
cálice que simboliza nossa salvação, mas devemos 11.20). Os exageros eram marcantes no momen-
lembrar que alguém pagou o preço dela. A Santa to da cerimônia, quando alguns comiam demais
Comunhão é um símbolo e um selo de que a Ira e até se embriagavam (1Co 11.21). Em seguida
de Deus passou sobre nós. Cristo experimentou Paulo restabelece os elementos fundamentais
o cálice da Ira de Deus, e por isso nós podemos da Ceia. Ele diz: “Porque eu recebi do Senhor o
beber o cálice da salvação. Ele bebeu o cálice da que também vos entreguei: que o Senhor Jesus,
ira divina, e como resultado, nós podemos matar na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo
nossa sede no cálice da salvação.4 dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu cor-
po, que é dado por vós; fazei isto em memória de
Mas, há o perigo de que as pessoas bebam um mim. Por semelhante modo, depois de haver cea-
cálice pelo outro. Paulo, pensando nas próprias do, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é
palavras da instituição da Ceia, acrescenta: “Por a nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as
isso, aquele que comer o pão ou beber o cálice vezes que o beberdes, em memória de mim” (1Co
do Senhor, indignamente, será réu do corpo e do 11.23-25). Por causa da seriedade da instituição,
sangue do Senhor” (1Co 11.27). Ou seja, a comu- sendo o próprio Jesus o Instituidor, e pelo signifi-
nhão pode ser tornada em sacrilégio, como os cado da cerimônia, Paulo argumenta que “aque-
coríntios estavam fazendo com todas as suas divi- le que comer o pão ou beber o cálice do Senhor,
sões e orgulho, demonstrando que possuíam uma indignamente, será réu do corpo e do sangue do

4 Ver Michael Horton. As Doutrinas da Maravilho- 5 Ver Michael Horton. As Doutrinas da Maravilho-
sa Graça, p. 216. sa Graça, p. 218.
151

Senhor” (1Co 11.27). Por causa disso, todos de- CONCLUSÃO


veriam fazer um autoexame antes de participar
da Ceia (1Co 11.28). Não fazer esse autoexame É necessário que resgatemos a centralidade e a
implicaria em estar sujeito ao Juízo de Deus (1Co importância dos Sacramentos instituídos por
11.29). Este é o significado da expressão “discer- nosso Senhor em nossa vida pessoal e na vida de
nimento”. A pessoa que participa da Ceia precisa nossa igreja. Cristo pretendeu que o Batismo e a
entender sua situação pecaminosa e a necessida- Santa Ceia fossem elementos poderosos coloca-
de absoluta do sacrifício de Jesus para sua salva- dos à nossa disposição para nosso crescimento.
ção, que está simbolizado nos elementos da San- Ao invés de ficarmos inventando técnicas não-bí-
ta Ceia. Participar da Ceia sem estes requisitos blicas para crescermos na graça, deveríamos nos
é garantia de fraqueza, doença e até morte (1Co aprofundar mais no conhecimento daquilo que o
11.30). Isso claramente exclui da Ceia os incré- próprio Cristo nos ordenou que fizéssemos, a fim
dulos e todos aqueles que não estão sinceramente de que nossa fé fosse fortalecida, nossa esperança
arrependidos de suas faltas. renovada e nosso amor encorajado. Os sacramen-
tos são meios de graça para nosso crescimento
A partir desse ensino de Paulo, a participação das espiritual. Por isso, devemos tomar cuidado para
crianças na Ceia também não se justifica. Deve ser nunca nos privarmos daquilo que ele providen-
entendido que Paulo não está tratando da questão ciou para nossas vidas. Muitos crentes não veem
das crianças nesse texto, ele está falando sobre os qualquer coisa interessante ao participar da ceia,
abusos da igreja de Corinto. Mas se ele diz que é ou quando assistem a batismos, pois os consi-
preciso discernimento, então esse princípio pode deram rituais destituídos de sentido. Poucos se
ser aplicado a todos. Se alguém argumentar que, preparam antes de tomar do pão e do vinho, e a
então, não poderíamos batizar as crianças, deve maioria não faz uso do discernimento. Não ad-
ser lembrado que para o batismo não se exige mira, que a situação em muitos lugares seja pare-
discernimento. A criança só deverá participar da cida com a de Corinto, havendo também muitos
Ceia, a partir do momento em que puder fazer fracos e doentes e não poucos que dormem (1Co
uma autoanálise e entender a importância do sa- 11.30).
crifício de Jesus. Ela só pode participar depois que
souber distinguir apropriadamente entre os ele- Por fim, devemos eliminar nossas próprias listas
mentos utilizados na Ceia do Senhor e o pão e o de “meios de graça”. O que o Senhor providenciou
vinho comuns, reconhecendo aqueles elementos para nós é suficiente. Não de­vemos ser como pes-
como símbolos do corpo e do sangue de Cristo.6 soas que nunca estão satisfeitas com nada, pois o
O argumento de que as crianças participavam da alimento espiritual que Deus proporcionou para
Páscoa não torna a participação das crianças au- nós deve ser suficiente para saciar nossas neces-
tomática na Ceia. Para participar da Páscoa não sidades espirituais. Ele pode ser simples, mas é o
havia exigência de pleno entendimento do que se alimento que realmente sustenta. Todos os novos
está fazendo, como é o caso da Ceia. e sofisticados “sacramentos”, que têm sido inven-
tados pelos homens são, afinal, alimentos preju-
diciais à nossa saúde espiritual. Participar deles
pode trazer prazer ou euforia a princípio, mas
em longo prazo, os efeitos colaterais e as doen-
ças sérias aparecerão. Negligenciar os verdadei-
6 Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 663.
152

ros meios de graça que Deus nos concedeu é uma


atitude trágica. Deus exige de nós, os crentes, “o
uso diligente de todos os meios exteriores pelos
quais Cristo nos comunica as bênçãos da salva-
ção”.7 Portanto, não deixemos de ler, meditar e
viver a Palavra de Deus. Cultivemos a prática sin-
cera, fervorosa e submissa da oração, participan-
do consciente, alegre e piedosamente do culto e
da Santa Ceia, extirpando toda “rotina” ou senso
de obrigação.

7 Catecismo Menor de Westminster, Perg. 85.


153

21

ADORAÇÃO: PRINCÍPIOS
FUNDAMENTAIS

INTRODUÇÃO povo é a igreja. A maior função da igreja nesse


mundo é adorar a Deus. Todas as demais coisas
Em meio ao excesso de ativismos da igreja dos dias devem ser subservientes a esse princípio básico.
atuais, parece haver uma despreocupação com Por isso, o culto, como expressão solene dessa
relação ao propósito primordial da existência da adoração, tem uma importância tremenda, pois é
igreja. Talvez muitos até se perguntem sobre qual uma resposta obediente ao convite, ou melhor, à
é esse propósito. Para muitos, a igreja funciona própria ordem de Deus, a qual ele expressou em
como um grande pronto-socorro, e desde que as sua Palavra Escrita, na criação e, até mesmo, den-
pessoas estejam sendo socorridas, as demais coi- tro de cada um dos seres humanos criados, cujos
sas, inclusive a adoração, ficam em segundo pla- sentimentos mais íntimos anelam por Deus.
no, ou até são completamente ignoradas. Os cul-
tos modernos têm sido apenas instrumentos para É pelo culto que a igreja vive, “é nele que pulsa
que as pessoas consigam bênçãos para sua vida. a vida da igreja”.1 Isso nos sugere a importância
Do início ao fim, das músicas à pregação, tudo com que devemos tratar esse assunto. Em primei-
gira em torno do tema: como obter as bênçãos de ro lugar porque o culto é a Deus, e ele é digno de
Deus. As pessoas têm dado muito mais impor- toda a nossa reverência; e em segundo lugar, por-
tância a seus desejos pessoais do que à glória de que o culto afeta consistentemente as pessoas que
Deus. Esses têm sido os verdadeiros deuses que participam dele. Por isso, precisamos ter cuidado,
estão ditando as regras no culto e no modo de ser pois Spurgeon estava certo ao dizer que:
da igreja dos nossos dias.
Muitos gostariam de unir igreja e palco, baralho e oração,
danças e ordenanças. (...) Quando a antiga fé desaparece
e o entusiasmo pelo Evangelho é extinto, não é surpresa
DEUS QUER SER ADORADO
1 J. J. Von Allmen. O Culto Cristão – Teologia e Prá-
Deus estabeleceu um povo para adorá-lo, e este tica, p. 60.
154

que as pessoas busquem outras coisas que lhes tragam O fato é que Deus não tem nenhuma necessida-
satisfação. Na falta de pão, se alimentam com cinzas; re- de (Sl 50.12-13), mas ele quer toda a vida, todo
jeitando o caminho do Senhor, seguem avidamente pelo o corpo, e todo o ser (Rm 12.1-2). E por isso ele
caminho da tolice.2 quer ser adorado.

Quando se perde o verdadeiro significado da


igreja e da adoração, é natural que as coisas fi-
quem misturadas, e que aquilo que deveria ser se- DEUS CHAMA O HOMEM PARA A ADO-
cundário, ou mesmo inexistente, assuma formas RAÇÃO
agigantadas, enquanto que, o que realmente im-
porta fique esquecido. O que Spurgeon dizia que Deus chama o homem para adoração de duas
era desejo de alguns fazer, ainda no século xix, já formas: primeiro pelo desejo íntimo que colocou
é uma plena realidade no início do século xxi. quando o criou, e segundo quando o renova espi-
ritualmente.
O tema adoração desenvolve-se por toda a Bíblia
e culmina no Apocalipse, de forma escatológica, Quando Satanás tentou fazer com que Jesus o
nessa ocasião a igreja é descrita como uma comu- adorasse, recebeu a seguinte resposta: “Ao Senhor
nidade adoradora, porém, agora na presença do teu Deus adorarás, e somente a ele prestarás cul-
seu Senhor (Ap 19.1-8). Por isso, podemos con- to” (Mt 4.10 – Dt 6.13). Adoração é uma ordem,
cluir que a adoração é algo central para a vida, um mandamento divino. O próprio Jesus disse à
tanto na terra, quanto no céu (Ap 4.8-11; 7.9-17; mulher samaritana que Deus “procura” verdadei-
15.2-4, etc.). Evidente que adoração é um estilo ros adoradores que o adorem em Espírito e em
de vida, é algo que sobre passa as dimensões do Verdade (Jo 4.23). Deus deseja ser adorado por-
culto, envolvendo uma postura constante em re- que isto faz parte de sua própria essência e por
lação a Deus. Embora muitas das abordagens ex- isso ele nos chama para essa tarefa sublime.
postas nesse capítulo sejam próprias da adoração
no sentido mais extenso da palavra, é o culto que Quando Deus nos chama para adorá-lo, não é,
é nossa preocupação fundamental. como seria nos homens uma verdadeira megalo-
mania, mas o reconhecimento preciso de que ele
Em geral, podemos dizer que “adoração” envolve é, de uma maneira simples, pura e verdadeira, o
uma postura de reverência e homenagem que é Soberano do Universo, digno de toda a adoração.
dada para Deus. O conceito de adoração é expres- Quando dizemos que ele é digno, não é simples-
so pelo tema: “servir”. Isto, é claro, envolve muito mente porque ele fez algo por merecer, mas, por-
mais do que algo que toma uma forma meramen- que é digno em sua própria essência. De maneira
te externa. Para verdadeiramente honrar a Deus que quando o homem não adora a Deus comete
é necessário obediência às suas leis. Está claro na um gravíssimo pecado, porque tudo no Universo
Escritura que, muito mais do que simplesmente conspira para que Deus seja adorado. Quando o
aparecer diante de Deus com sacrifícios ou ofer- homem se aproxima de Deus, mas sua única preo-
tas, Deus quer que seu povo se apresente puro (Sl cupação é consigo mesmo, comete um dos piores
15; 24.3-4) e obediente (Is 1.11-17; Am 5.21-22). pecados possíveis. De certo modo, está adorando
a si mesmo, está adorando a criatura em lugar do
2 2 Citado por John F. MacArthur, Jr. Com criador.
Vergonha do Evangelho, p.73.
155

O desejo de Adoração está presente em todos os presença (Sl 24.4).


homens, mas o homem tem distorcido esse sen-
timento. É um fato comprovado que esse desejo
não precisa ser adquirido. Isto tem sido suficien-
temente evidenciado pela Antropologia, Socio- DEUS DITA AS REGRAS NA ADORAÇÃO
logia, Arqueologia, Filosofia, etc. Não há uma só
cultura no mundo, em todas as épocas, que não Embora o homem tenha um desejo inato de ado-
tenha vestígios de religiosidade. rar, devido à queda, não tem a menor condição de
oferecer uma adoração aceitável a Deus, portanto
Calvino notou que Cícero já havia afirmado: “Não é necessário que Deus dite as regras para sua pró-
há povo tão bárbaro, não há gente tão brutal e sel- pria adoração. Não é somente a idolatria que irri-
vagem, que não tenha arraigada em si a convicção ta a Deus, a própria adoração ao Deus verdadeiro
de que há Deus”.3 E de fato, o culto como conse- feita com uma atitude errada não pode agradá-
quência desta religiosidade é a atividade humana -lo. Uma das características dos cultos pagãos na
mais universal que existe. Este instinto religioso antiguidade era o sacrifício humano. Deus não
deve-se à natureza comum do homem como cria- poderia aceitar esse tipo de sacrifício, mesmo em
tura de Deus. Deus deixou no homem o desejo de honra da sua divindade. Entretanto, existem coi-
adoração, porque o próprio Deus deseja ser ado- sas muito mais sutis do que sacrifícios humanos
rado. Como disse Agostinho: “Criaste-nos para que precisam ser consideradas, a fim de que não
Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto seja oferecido “fogo estranho”, na presença do Se-
não repousa em Vós”.4 Mas, muito antes de Agos- nhor, como fizeram Nadabe e Abiú (Lv 10.1-2).
tinho, Salomão, o sábio rei de Israel, já havia dito: Aqueles dois insensatos foram punidos, em pri-
“Tudo fez Deus formoso em seu devido tempo; meiro lugar por desobediência porque o Senhor
também pôs a eternidade no coração do homem, não havia ordenado o que eles fizeram, e em se-
sem que este possa descobrir as obras que Deus gundo lugar, conforme o contexto nos sugere (vs.
fez desde o princípio” (Ec 3.11). Ou seja, há algo 3), porque careciam de santidade.
dentro do homem que o dispõe a buscar o eter-
no. Porém, por causa do pecado, o homem tem Ofertas inaceitáveis
fracassado completamente em todas as tentativas
de adoração, e tem transformado essa adoração Encontramos muitos exemplos nas Escrituras que
em idolatria. Por isso, o desejo natural de adorar nos advertem quanto ao perigo de oferecer uma
não é suficiente, pois é uma tentativa decaída e adoração distorcida. É o caso de todo o primei-
separada de Cristo, a qual Deus não pode acei- ro capítulo de Isaías, quando o povo desobede-
tar (Jo 14.6; At 4.12; Hb 10.19-22). Dessa forma, é cia abertamente a Deus, entretanto, continuava a
preciso que haja um novo chamado de Deus para oferecer sacrifícios e ofertas. Deus disse que aqui-
adoração, capacitando o homem para isso, justi- lo era “abominável”, porque não podia “suportar
ficando-o, através dos méritos de Jesus, e purifi- iniquidade associada ao ajuntamento solene” (Is
cando-o, para que tenha “mãos limpas e coração 1.13). Ele ainda chamou as solenidades do povo
puro” e assim possa permanecer diante da sua de “aborrecíveis” (vs. 14), e os conclamou ao arre-
pendimento e correção de vida (vs. 16-20).
3 João Calvino. Institutas, I.3.1.
4 St. Augustine. The Confessions of Saint Augustin,
Em Malaquias 1.7-10 Deus reprovou a qualidade
I. 1. das ofertas porque o povo não dava o melhor que
156

podia, e por isso, repreendeu-os severamente: “Eu de Deus.


não tenho prazer em vós, diz o Senhor dos Exér-
citos, nem aceitarei da vossa mão a vossa oferta” Por essa razão, a conversão é um pré-requisito
(vs. 10). indispensável para a verdadeira adoração. Todos
os que se achegam a Deus precisam ser, antes,
Em Amós, Deus exigiu justiça e não sacrifícios procurados por ele e justificados pelo sangue de
(Am 5.21-27). Ele disse: “Aborreço, desprezo as Jesus, e assim, habilitados a comparecer diante de
vossas festas, e com as vossas assembleias solenes sua face gloriosa. O fato é que “nenhum homem
não tenho nenhum prazer... afasta de mim o es- jamais buscaria ao Deus vivo se o Deus vivo pri-
trépito dos teus cânticos; porque não ouvirei as meiro não buscasse o homem”.6 Por isso, Deus
melodias das tuas liras, antes corra o juízo...” (vs. tem a primazia na adoração, porque ele chama e
21-23). define os termos dela.

Em Oséias 6.6 está escrito: “Pois misericórdia Regras claras


quero, e não sacrifício, e o conhecimento de Deus
mais do que holocaustos”. Deus dita as regras da adoração, e o lugar onde
estas regras estão claras é a Escritura. Podemos
Paulo acusou os Coríntios de se ajuntarem “não dizer que a igreja tem autoridade para estabelecer
para melhor e sim para pior” (1Co 11.17). Assim, a ordem da adoração, mas não tem a liberdade de
o que foi estabelecido para ser bênção, pela ati- introduzir novos elementos além dos quais Deus
tude errada dos participantes, transformava-se tem ordenado. Como está escrito em Deuteronô-
numa verdadeira maldição. mio 4.2: “Nada acrescentareis à palavra que vos
mando, nem diminuireis dela, para que guardeis
Dessas passagens entendemos que não basta ao os mandamentos do Senhor vosso Deus, que eu
homem querer adorar ao Deus verdadeiro, se não vos mando.” O texto de Deuteronômio 12.32,
está disposto a seguir as orientações divinas sobre também adverte: “Tudo o que eu te ordeno, ob-
a adoração. servarás; nada lhe acrescentarás nem diminuirás”.

Se o culto é a resposta do homem a Deus, então, Como MacArthur observou, tanto o texto ante-
está claro que Deus é quem dá o primeiro passo. rior, quanto este de Deuteronômio “aparecem no
Na verdade, o homem nunca seria capaz de fazê- contexto de leis dadas para regulamentar o culto
-lo por si só, por causa de sua situação decaída. e limitam todas as formas de culto a que é expres-
Embora em todos os homens exista um senso da samente ordenada na lei”.7 O culto, portanto, deve
divindade, como por um “instinto natural,”5 este se derivar de elementos que estão na Palavra de
“senso” não o habilita a prestar um culto aceitável, Deus, nada pode ser acrescentado, nem diminuí-
antes o homem, de uma forma corrompida pelo do.
pecado, produzirá sempre deuses falsos para si
(Rm 1.23). Por isso Deus precisa capacitá-lo atra- Aqui, nos deparamos com um problema sério.
vés de seu Espírito Santo, suprindo suas falhas, Como atrairemos pessoas para o culto? Para mui-
pois que em seu estado decaído nem mesmo po-
deria sobreviver por um só instante na presença 6 R. B. Kuiper. El Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 325.
7 John MacArtur, Jr. Redescobrindo o Ministério
5 João Calvino. Institutas, I.3.1. Pastoral, p. 268.
157

tos isso deve ser feito tornando-o agradável para 29.43). Entretanto, é na Nova Dispensação que o
aqueles que participarem dele. Evidentemente povo de Deus tem muito maior acesso à presença
que nada na Bíblia contraria a ideia de que o cul- de Deus. No tabernáculo e no templo, somente
to seja agradável, mas, a questão mais importante uma vez ao ano, no dia da expiação, o sumo-sa-
é: Quem realmente deve ser agradado? É quem cerdote podia entrar no Santo dos Santos, que era
presta o culto, ou aquele a quem o culto é dirigi- o lugar em que estava a presença de Deus. Mas,
do? É claro que é aquele a quem o culto é dirigi- quando Cristo morreu na cruz do Calvário, o véu
do. Para tornar o culto mais agradável para quem que separava o Santo dos Santos, do Santo Lugar
dele participa, muitos têm introduzido elementos se rasgou ao meio (Mt 27.51), demonstrando que
oriundos do mundo. Precisamos entender que o agora, os crentes purificados pela expiação que há
gosto pessoal não é o critério final para o culto, no sangue de Jesus têm o privilégio de, a qualquer
embora seja um dos instrumentos, mas o crité- hora, entrar na presença do Santo Deus (Ver Hb
rio final é a Palavra de Deus. Ela é a norma que 10.19-22). Ou seja, a igreja pode ter a certeza de
Deus nos deu para que o culto seja conforme a que, quando se reúne em nome de Cristo não está
sua vontade. vivendo de ilusões,8 pois Cristo está presente.

DEUS QUER ESTAR JUNTO COM SEU CONCLUSÃO


POVO
A. W. Tozer, há muitos anos atrás chamou o cul-
O culto é um encontro entre o Senhor e o seu to de “a joia perdida da igreja”.9 Parece que, até
povo. Logo, não pode haver culto sem a presença hoje, essa joia ainda não foi achada. Muitas coi-
do Senhor. A certeza dessa presença nutre o ado- sas em nossos tempos modernos têm sido enfa-
rador de todo o respeito e dedicação. Foi o pró- tizadas, mas o verdadeiro culto está meio fora de
prio Jesus quem prometeu Sua presença. Quando moda. Vivemos no tempo das chamadas “células
estabeleceu a Ceia, ele disse: “Isto é o meu corpo”, bíblicas”, que em si, são um bom meio de pregar o
de maneira que a teologia reformada entendeu Evangelho, mas que, quando mal dirigidas, con-
que ele estaria espiritualmente presente durante a duzem as pessoas a pensar que o culto público
ministração da Ceia. Ele disse aos discípulos que comunitário não é necessário.
estaria com eles até o fim do mundo (Mt 28.20).
Ele prometeu, de forma ainda mais significativa, Também vivemos nos tempos das inovações, no
sua presença quando dois ou três se reunissem tempo das “escolhas”, e cada um escolhe o tipo de
em seu nome (Mt 18.20). Apesar de essa última igreja que lhe seja conveniente, de acordo com a
promessa ter sido num contexto de disciplina, melhor oferta. Nos últimos anos aconteceu uma
por que não poderia se estender ao culto? grande mudança na sociedade que afetou a igre-
ja. O mundo passou da “Era da Exposição”, em
Desde o Antigo Testamento, a presença de Deus que as pessoas comuns se reuniam com o fim de
era a grande esperança de Israel. O tabernáculo dialogar, ponderar e trocar ideias, para a “Era do
da antiga dispensação foi conhecido como taber-
náculo de reunião. Porque Deus mesmo havia 8 Ver J. J. Von Allmen. O Culto Cristão, p. 26.
dito: “Ali me reunirei com os filhos de Israel; e 9 Ver John F. MacArthur, Jr. Redescobrindo o Mi-
o lugar será santificado com minha glória” (Ex nistério Pastoral, p. 277.
158

Show Business”, na qual o que importa é o entre-


tenimento. A dramatização, os filmes e a televisão
colocaram o Show Business no centro de nossa
vida. Nesse “Show” a verdade é irrelevante, o que
realmente importa é se estamos sendo ou não en-
tretidos.10 Deus já não é o centro, e sua Palavra
já não é mais autoridade máxima. A presença de
Deus está esquecida. Essa presença é o bem maior
que alguém pode receber. Quando as pessoas vão
às igrejas com a intenção de apenas obter algum
benefício particular e se esquecem que adorar
a Deus na beleza da sua santidade é a razão do
culto (Sl 29.2), não estão apenas desagradando a
Deus, estão também perdendo a melhor de todas
as bênçãos.

10 1Ver John F. MacArthur, Jr. Com Vergonha do


Evangelho, p.73ss.
159

22

ADORAÇÃO: DISTORÇÕES

INTRODUÇÃO em absoluto, agradar a Deus. Portanto, apenas


boa intenção não é suficiente.
Um dos grandes problemas no que concerne ao
culto é a idolatria, ou seja, o desvio da adoração
de Deus, para qualquer outra coisa que não o ver-
dadeiro Deus. Porém, mesmo quando o verdadei- DISTORCENDO ELEMENTOS LEGÍTI-
ro Deus é adorado, podem existir problemas que MOS
tornam essa adoração desagradável e mesmo ina-
ceitável para Deus. Isto é o que podemos chamar Um perigo sempre presente é o de usar elemen-
de “cultuar de forma errada o Deus verdadeiro”. tos que em si são aprovados, de forma corrupta. É
a tendência de corromper o uso de alguma coisa
Há muitos exemplos bíblicos que elucidam bem que por si mesma é legal, mas que por causa do
este ponto. Quando Moisés estava no alto do uso, se torna pecaminosa. Por exemplo, podemos
monte Sinai, na presença de Deus (Ex 32), o povo citar o uso supersticioso da estola sacerdotal por
já cansado de esperar por ele, resolveu fazer para Gideão como nos diz o texto de Juízes 8.27: “Fez
si dois bezerros de ouro. Então, Deus ordenou a Gideão uma estola sacerdotal, e a pôs na sua cida-
Moisés: “Vai desce; porque o teu povo, que fizeste de, em Ofra; e todo o Israel se prostituiu ali após
sair do Egito, se corrompeu, e depressa se desviou dela; a qual veio a ser um laço para Gideão e à
do caminho que lhes havia eu ordenado; fizeram sua casa”. O princípio usado por Gideão era váli-
para si um bezerro fundido, e o adoraram, e lhe do, pois ele mandou que todos entregassem suas
sacrificaram, e dizem: São estes, ó Israel, os teus argolas de ouro, que identificavam-nos como is-
deuses, que te tiraram da terra do Egito” (Ex 32.7- maelitas, para fazer uma estola (Jz 9.24). Essa es-
8). Na verdade, talvez a única coisa que o povo tola havia sido ordenada pelo próprio Deus em
queria era adorar o Deus que lhes havia tirado Êxodo 39.1-31, entretanto, tinha um lugar espe-
do Egito, mas fizeram isso de uma forma errada, cífico no culto e deveria ser usada pelo sacerdo-
fundindo um bezerro de ouro, o que não poderia, te. O que Gideão fez foi usar um princípio lícito
160

de forma ilícita. Também temos o caso do culto à mas falso de cultuar a Deus. Ele diz que é “cultuar
serpente de 2Reis 18.4. A Serpente foi construída o Deus verdadeiro com atitude interior errada”.3
por Moisés por ordem do próprio Deus, como um Esta é a forma de culto falso mais difícil de ser
antídoto contra as picadas das serpentes enviadas identificada. MacArthur diz o seguinte: “Mesmo
como juízo contra o povo (Nm 21.9). Entretan- com a eliminação de todos os deuses falsos, de to-
to, os israelitas passaram a lhe queimar incenso das as imagens do Deus verdadeiro e de todos os
chamando-a de Neustã.1 Essa atitude foi algo de- modos individuais concebidos, o culto ainda será
plorável diante de Deus. Por isso, na adoração é inaceitável se a atitude do coração não for corre-
necessário cuidado para que coisas legítimas não ta”.4 O culto, ou a adoração é a expressão máxima
sejam usadas de maneira ilegítima. de fé por parte do crente. Por isso, o culto que não
é oferecido de todo o coração só pode ser abomi-
Outro caso de distorção pode ser visto na seita nável para o Senhor.
dos fariseus. Os fariseus eram homens religiosa-
mente rigorosos. Eles se preocupavam em guar- O Senhor condenou o povo de Israel pela boca do
dar as tradições aprendidas dos antepassados, profeta Isaías: “Este povo só se aproxima de mim,
bem como a viver uma vida fiel aos princípios da e com a sua boca e com os seus lábios me honra,
Torá. Entretanto, muitas vezes tentavam cultuar a mas o seu coração está longe de mim e o seu te-
Deus, por meio de um sistema que eles mesmos mor para comigo consiste só em mandamentos
haviam concebido. Isto é o que MacArtur chama de homens que maquinalmente aprendeu...” (Is
de “cultuar à nossa própria maneira o Deus Ver- 29.13). Quando o que está nos lábios não está no
dadeiro”.2 Quando cultuamos a Deus à nossa pró- coração, nossas palavras são vazias, e Deus não
pria maneira, sem levar em conta o que ele tem pode aceitar, ainda que a aparência exterior seja
ordenado, tão somente por causa de costumes correta. A palavra “temor”, no texto, pode ser to-
ou tradições, e ainda forçamos os outros a que se mada em sentido de adoração, ou seja, uma ado-
submetam aos nossos gostos pessoais, certamen- ração que consiste somente em mandamentos
te o desagradamos e não podemos esperar outra aprendidos maquinalmente, que não podem de
coisa de nosso culto, a não ser que Deus o consi- maneira alguma agradar a Deus.
dere uma abominação.
Deus quer toda a nossa vida diante dele. Se qui-
sermos viver segundo a lei dele, deveremos amá-
-lo “de todo coração, de toda alma, com todas as
O PROBLEMA DA FALTA DE SINCERIDA- forças e com todo o entendimento” (Lc 10.27).
DE Essas características precisam estar presentes na
adoração. Entretanto, a sinceridade é como já foi
John MacArtur Jr. ainda cita um outro tipo sutil, dito, uma das coisas mais difíceis de ser identi-
ficada. Tanto os adoradores verdadeiros quanto
1 É difícil saber o significado preciso de Neustã. os falsos possuem uma mesma aparência e uma
Pode ser “deus de bronze” conforme definição do BDB mesma confissão externa, mas a diferença está
(The Abridged BrownDriver-Briggs Hebrew-English Lexi-
con of the Old Testament, Richard Whitaker Editor, ver-
bete “Neustã”), ou uma coisa de bronze segundo o Strong 3 John MacArtur, Jr. Redescobrindo o Ministério
(Enhanced Strong’s Lexicon, verbete “Neustã”.) Pastoral, p. 268.
2 John MacArtur, Jr. Redescobrindo o Ministério 4 John MacArtur, Jr. Redescobrindo o Ministério
Pastoral, p. 268. Pastoral, p. 268.
161

no interior. E Deus é o único que conhece o inte- trazer a Arca para Jerusalém. O principal erro de
rior. Por isso, a sinceridade profunda de coração, Davi foi copiar a “inovação” dos filisteus e trans-
aliada a um conhecimento claro e submisso da portar a Arca em um carro de boi. A Arca devia
Palavra de Deus são coisas necessárias para que, ser transportada pelos levitas, isso estava claro
em nosso culto, não adoremos o verdadeiro Deus na Bíblia (1Cr 15.15), mas Davi deve ter acha-
com uma atitude íntima errada. do mais prático e interessante trazer a Arca num
carro novo. Ao copiar os filisteus, Davi trouxe a
tragédia para perto de si. Copiar as técnicas dos
ímpios nunca foi uma atitude sábia ao povo de
DEUS REJEITA INFLUÊNCIAS SECULA- Deus. Deus não só advertiu ao povo de Israel para
RES que não copiasse os pagãos, como ordenou que
destruísse todos os lugares de culto pagão (Dt 7.5;
Muitos autores têm percebido que há influências 12.2-3). É claro que isso é uma ordem que deve
filosóficas e seculares no culto cristão dos nossos ser entendida dentro do seu contexto, mas que,
dias. A postura dos crentes tem sido influenciada de qualquer modo, deixa claro que o caminho do
por essas correntes de pensamento, embora tal- crente passa longe do caminho do mundo em ter-
vez, muitos nem saibam disso.5 mos de adoração.

Antes de considerarmos mais detalhadamente es- Por mais que as técnicas mundanas pareçam
sas influências, será interessante lembrarmos de ajudar a igreja a crescer, ou tornem o culto mais
um exemplo bíblico que mostra como é terrível agradável para os homens, elas não garantem a
quando a adoração aceita influências seculares. bênção de Deus, ao contrário. Vamos considerar
Estamos falando do caso de Davi e Uzá. No livro agora as principais influências seculares que po-
de 1Samuel, está registrado um dos acontecimen- dem ser identificadas no culto dos nossos dias.
tos mais impressionantes de todo o Antigo Tes-
tamento. Davi, após ter conquistado Jerusalém, O Existencialismo
resolveu trazer para sua cidade a Arca da Aliança.
Colocaram a Arca num carro novo e trouxeram- O Existencialismo é um sistema filosófico que se
-na da casa de Abinadabe, sendo que Uzá e Aiô opõe ao racionalismo, rejeitando o poder da ra-
eram os responsáveis pelo transporte. A certa al- zão para determinar a conduta humana. Para o
tura, o texto diz: “Quando chegaram à eira de Na- existencialismo, a vida não tem significado em si
com, estendeu Uzá a mão à arca de Deus, e a se- mesma, mas depende da maneira como a vontade
gurou, porque os bois tropeçaram. Então a ira do humana age a fim de atingir algum significado.
Senhor se acendeu contra Uzá, e Deus o feriu ali O homem ocupa lugar central, sendo o único res-
por esta irreverência; e morreu ali junto à arca de ponsável pelo seu futuro. Há muitas divergências
Deus”. (1Sm 6.6-7) Ao ver isso, Davi ficou muito sobre quem começou com o princípio do exis-
amedrontado (6.9) e desistiu temporariamente de tencialismo. Uns atribuem a Heidegger, outros a
Kierkegaard. O certo é que esses dois junto com
5 Valdeci dos Santos aponta quatro correntes filosó- Nietsche e Sartre, são os grandes expoentes dessa
ficas que têm influenciado grandemente a postura dos cren- filosofia, apesar de diferenças consideráveis que
tes na adoração: O existencialismo, o humanismo, o deísmo há entre eles. Entre os teólogos, os mais indica-
e o pragmatismo. Ver: Valdeci dos Santos. Refletindo Sobre
a Adoração e o Culto Cristão. Revista Fides Reformata, p. dos são Barth e Bultmann, que foram bastante in-
141-143. fluenciados pelo existencialismo e encontraram
162

nele uma resposta para o frio liberalismo racional é “egocentrismo”, ou seja, tudo deve ser centrali-
do século xix. É muito difícil fazer uma avaliação zado no homem e em seus desejos. Este é o modo
precisa do sistema, por causa de sua complexida- pelo qual o humanismo tem influenciado o culto
de, entretanto uma de suas características prin- cristão, fazendo com que o homem tenha toda a
cipais certamente é a ênfase nos sentimentos, ou importância e, portanto, tudo deve estar voltado
seja, no que traz satisfação pessoal. Essa ênfase no para ele. As pessoas esperam que cada parte do
emocionalismo, sem sombra de dúvida, produz culto satisfaça algum desejo particular seu. O que
uma influência tremenda dentro do movimento importa é a busca pela felicidade e o que menos
evangélico e, mais especialmente na liturgia, em tem importância é a santidade. O sentir-se bem
que a busca pelo “sentir-se bem” norteia toda a é elevado à mais alta categoria, enquanto que o
ordem do culto. As pessoas procuram o culto a comprometimento desce à mais baixa. A lei da
fim de conseguirem “algo” para elas mesmas. Aci- satisfação pessoal predomina, e cada indivíduo
ma de tudo desejam se “sentir bem”.6 O movi- pensa mais em si mesmo do que no grupo, e
mento neopentecostal encaixa-se nesta categoria, muito menos em Deus. Se Deus existe, ele tem a
principalmente por causa de sua ênfase na “teolo- obrigação de satisfazer aos nossos desejos, pois é
gia” da prosperidade, na qual um poder mágico é como se Deus existisse por nossa causa e não nós
atribuído aos rituais. A partir dessa concepção, o por causa dele. O culto humanista dos nossos dias
culto se torna um instrumento de “autoajuda”, de não pensa primeiro em Deus, ou em como ele de-
“auto aceitação” e mesmo de “auto reconciliação”. seja ser adorado, mas no homem, e em como ele
O futuro tem pouca importância, o que impor- pode se sentir melhor no culto.
ta é o presente que precisa ser vivido plenamen-
te, pois como diz o existencialismo, “aproveite a O Pragmatismo
vida”. O céu ou o Inferno perdem a importância, o
que importa é ser abençoado aqui, e o culto deve O Pragmatismo ensina que pensamentos, ideias
servir a esses propósitos. e ações só têm valor em termos de consequências
práticas. Assim, não há qualquer conjunto fixo
O Humanismo teórico de valores. Todos os valores são testados
de acordo com o seu resultado prático. Assim, a
O Humanismo é um sistema de pensamento no verdade não é fixa, nem imutável, mas depende
qual o homem e os seus interesses ocupam o cen- da circunstância, sendo determinada pela sua
tro. O homem é o alvo de toda a existência, é a praticidade em termos de resultados. Em alguns
medida padrão de todas as coisas, como já afir- casos, o pragmatismo cai num “utilitarismo”, que
mava Protágoras. Assim, todas as decisões éticas consiste na busca do útil, no sentido do que traz
e práticas dependem do homem, e não de Deus.7 prazer. Uma das características fundamentais do
O homem é o único objeto digno de adoração, pragmatismo é o relativismo, ou seja, que a ver-
pois cada um tem um “deus dentro de si”. Uma dade de alguém não precisa ser, necessariamen-
palavra que pode ser sinônima de “humanismo” te, a verdade de outrem. O que funciona em cada
caso é a verdade naquela situação. A liturgia cristã
6 Não significa que, para que o culto seja verdadeiro, sente-se influenciada pelos conceitos pragmáti-
tenhamos que “nos sentir mal”. Apenas, o ponto a ser enten-
dido aqui é o da prioridade. A prioridade do culto não é o cos, principalmente em se tratando de suas for-
“sentir-se bem”, mas o “adorar a Deus”. mas. Se algo “funciona” é verdadeiro. Se a igreja
7 Ver R. N. Champlin e J. M. Bentes. Enciclopédia enche, o meio utilizado é validado, sem importar
de Bíblia Teologia e Filosofia, Vol. 3, p. 178.
163

se é biblicamente lícito ou não. Não é a vontade O Racionalismo


de Deus quem decide o que deve ser feito. As Es-
crituras não são o princípio regulador, mas, o que Os sistemas filosóficos citados acima são todos
do ponto de vista humano funciona. Daí o uso de anti-racionalistas, mas isso não significa que o ra-
amuletos, rituais de origem ocultista e todo tipo cionalismo filosófico seja a melhor solução para
de práticas estranhas, que foram introduzidas no o culto. De certa forma o culto que oferecemos a
culto brasileiro. Essas coisas sempre atraíram os Deus é um culto racional (Rm 12.1), pois existe
brasileiros. Os inteligentes líderes de várias de- uma necessidade indiscutível de se usar a mente
nominações, tendo entendido isso, se utilizam no culto. Somente o culto inteligente, como disse
largamente dessas práticas. E de fato, têm colhi- Stott “é aceitável a Deus”.8 Entretanto, o que deno-
do muitos frutos, não em termos de conversões minamos aqui de racionalismo se caracteriza pela
verdadeiras, mas na forma de adeptos, e princi- crença de que é possível obter a verdade contando
palmente, de contribuintes ou associados. unicamente com a razão. Neste caso, a razão é a
mais poderosa ferramenta para tomarmos conhe-
O Hedonismo cimento da verdade religiosa. Assim, os princí-
pios do racionalismo são, muitas vezes, aplicados
A expressão “hedonismo” vem da palavra grega no culto cristão, quando se exclui toda possibili-
“hedone”, que quer dizer “prazer”, ou “deleite”. dade de manifestação sobrenatural, ou mesmo de
Nesse sistema, o principal, ou mesmo único alvo sentimentos e sensações que contrariem a razão.
da vida humana é a obtenção do prazer, paralela- Muitos dos cultos cristãos são tão racionalistas,
mente à tentativa de evitar a dor ou o sofrimento. que não deixam espaço para a presença de Deus.
Assim, todos os recursos são lançados para que a
dor seja evitada e o prazer, que representa ou é o
alvo da felicidade, seja alcançado. Existe uma re-
lação direta entre esta forma de pensar e a prática CONCLUSÃO
comum em muitas liturgias. O prazer e o sentir-se
bem são almejados. Muitas igrejas são decoradas A verdade é que nossas liturgias estão cheias de
como se fossem o céu, todo tipo de enfeite sugere existencialismo, humanismo, pragmatismo, hedo-
paz e tranquilidade, e todo tipo de sensação ruim, nismo, racionalismo e diversas outras distorções
como por exemplo, a tristeza pelo pecado, é to- advindas do secularismo. A igreja tem copiado o
talmente expurgada, tanto do ambiente como da mundo em quase tudo. Copiamos as músicas, as
mensagem. A vitória e a realização pessoal são vestes, o linguajar, as práticas, etc. É impressio-
os ingredientes apelativos desse tipo de culto. O nante como estamos longe do padrão estabeleci-
hedonismo se manifesta também na falsa asseve- do por Jesus. Ele disse que deveríamos ser “sal”
ração teológica de que o crente não pode passar e “luz” (Mt 5.13-14). A principal característica
por dificuldades, não pode ter doenças, pois essas desses dois elementos é que eles influenciam o
coisas são ruins, causam dor, e os crentes são mais ambiente onde estão. Isso faz parte da própria
que vencedores em Cristo e, por isso, merecem essência deles. Mas hoje a igreja influencia bem
uma vida melhor. Nada que possa levar as pessoas menos o mundo do que é influenciada por ele. O
a se sentirem mal deve ser evocado. Não se fala resultado de tudo isso é óbvio: Não há adoração.
em pecado ou santidade de vida. E quando não há adoração, estamos sozinhos no

8 John R. W. Stott. Crer é Também Pensar, p. 30.


164

templo. E como o templo fica vazio quando Deus


não está lá com sua presença santa e abençoado-
ra, ainda que milhares de pessoas estejam naquele
lugar. Perdemos a presença de Deus, e todos os
benefícios dela, como a capacidade de nutrir, edi-
ficar, desafiar e iluminar os membros da igreja,
no que diz respeito à espiritualidade. São incalcu-
láveis as bênçãos que perdemos e o prejuízo espi-
ritual que sofremos quando oferecemos um culto
distorcido, influenciado pelo secularismo.
165

23

O CULTO: REQUISITOS

INTRODUÇÃO hinos tradicionais ao som do Órgão. Em algumas


há teatros, coreografias, apresentações, danças;
Nos dois estudos anteriores falamos de questões em outras, nem sequer se pode dizer “boa noite”.
teológicas sobre o culto. Agora queremos enfati- Diante de todas essas diferenças, surge a pergun-
zar aspectos práticos sobre o culto cristão. O obje- ta: Qual é o modelo de culto que agrada a Deus?
tivo é entender quais são os requisitos, elementos
e características indispensáveis do culto. É fácil Antes de tratar dos elementos do culto propria-
perceber que esse é um assunto no qual há muitas mente ditos, trataremos de alguns conceitos que
dúvidas. Dificilmente encontramos duas igrejas tomam a forma de requisitos para o culto. Ou
que tenham exatamente a mesma formulação li- seja, são coisas que Deus requer do adorador para
túrgica, ainda que pertençam a uma mesma de- que este possa ser aceito. São os requisitos básicos
nominação. Em muitas igrejas o culto é uma ceri- para o culto. Sem eles, o culto não será aceito, in-
mônia cheia de pompa e ritual, em outras a marca dependentemente de sua ordem. Não pretende-
principal é a simplicidade e a curta duração. Em mos listar todos os requisitos indispensáveis, ape-
algumas igrejas parece não haver qualquer ordem nas aqueles que entendemos ser os mais urgentes
para o culto, pois do início ao fim, tudo segue na para a presente época.
base do improviso, procurando estar sob a “dire-
ção do Espírito”. Em outras, há uma rígida pres-
crição litúrgica, e nada pode ser mudado, sendo
que, às vezes, já está preparado há semanas ou A NECESSIDADE DE SANTIDADE
meses. Algumas igrejas se caracterizam pelo cha-
mado “louvorzão”, em que a música e os cânticos O primeiro requisito é a santidade. No Antigo
emotivos se estendem pela maior parte do culto, Testamento, a questão da santidade como pré-
e a pregação ocupa um espaço bastante reduzi- -requisito fundamental à adoração se expressa
do. Em outras, a pregação domina o culto intei- principalmente a partir da questão do termo “im-
ramente, e o máximo que se faz é cantar poucos puro”. A impureza desqualificava o adorador para
166

se encontrar com Deus, significando que ele não um culto aceitável.2 Definitivamente, Deus não
estava preparado para se apresentar diante do Se- está disposto a aceitar “iniquidade associada ao
nhor.1 É interessante que muitas práticas, no caso ajuntamento solene” (Is 1.13).
de Israel, deixavam o povo “impuro”. E muitas
dessas práticas eram inevitáveis, como, por exem-
plo, cuidar dos mortos, dar à luz, etc. Entretanto,
A NECESSIDADE DA MEDIAÇÃO DE JE-
nem por isso, as pessoas tinham desculpas para
SUS CRISTO
se aproximarem diante de Deus. Deus queria que
o povo entendesse que ele é completamente di-
O tema da santidade nos leva naturalmente a
ferente dos homens, e exige santidade de quem
pensar no Mediador. Nunca alcançaremos o pa-
se aproxime dele, uma santidade maior do que
drão de santidade exigido, embora isso não deva
aquela baseada nas intenções. O povo precisava
nos levar a desleixar da busca. Deus mesmo pro-
entender a exigência de Santidade por dois mo-
videnciou um Mediador. A condição decaída
tivos. Como já foi dito, em primeiro lugar, para
do homem é tal que não pode permanecer nem
que o povo entendesse que não poderia se apro-
um instante sequer na presença de Deus, sem
ximar de forma irreverente ou presunçosa diante
alguém que lhe intermedeie.3 Deus estabeleceu
do Senhor. E em segundo lugar, para que Israel
a Jesus Cristo como o único Mediador entre si
entendesse que era um povo completamente dife-
e os homens (1Tm 2.5). Jesus é o Mediador por-
rente de todas as outras nações. Porque somente
que representa tanto a Deus quanto aos próprios
um povo separado para Deus, poderia praticar a
homens, uma vez que em sua pessoa convivem,
adoração ao Deus Santo.
tanto a natureza humana em sua perfeição, quan-
to a divina. Somos aceitos por Deus “em Jesus” e
Assim, não há como chegarmos à sua presença
não podemos, portanto, nos apresentar diante de
se nossos motivos e também nossos atos externos
Deus “sem Jesus”.
não são santos e puros. Não adianta argumen-
tarmos que a única coisa importante é a atitude
Um dos textos que melhor expressam a mediação
interna do coração, pois Deus exige santidade
de Jesus com respeito ao culto está em Hebreus
completa. Portanto, nossa postura deve ser santa,
13.15-21. O verso 15 diz: “Por meio de Jesus, pois,
tanto quanto nossos pensamentos, toda a nossa
ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de louvor,
vida deve ser santa. A santidade de Deus precisa
que é o fruto dos lábios que confessam o seu
nos afetar de tal modo que não nos apresentemos
nome”. E os versos 20-21 dizem: “Ora, o Deus da
diante dele descuidadamente, mas que sejamos
paz, que tornou a trazer dentre os mortos a
tomados de tal reverência, a ponto mesmo de
Jesus, nosso Senhor, o grande Pastor das ovelhas,
confessar como Jó: “Eu te conhecia só de ouvir,
pelo sangue da eterna aliança, vos aperfeiçoe em
mas agora os meus olhos te veem. Por isso me
todo o bem, para cumprirdes a sua vontade, ope-
abomino, e me arrependo no pó e na cinza” (Jó
rando em vós o que é agradável diante dele, por
42.56). Diante da santidade de Deus e de nossa
Jesus Cristo, a quem seja a glória para todo o
ondição pecaminosa não nos resta outra atitude
sempre. Amém!”. O ensino implícito na passagem
a não ser demonstrar toda reverência e suplicar
sua graça, a fim de que nos habilite a lhe prestar
2 Ver Dwight L. Moody. Prevailing Prayer: What
Hinderes It?, p. 14-15.
1 Ver Walter C. Kaiser, Jr. Teologia do Antigo Testa-
mento, p. 121. 3 Ver João Calvino. Institutas, II.6.1-2.
167

é bem perceptível: O verdadeiro culto precisa ser quanto durante o momento da adoração pública.
oferecido a Deus através de Jesus Cristo, pois é É preciso que os homens se apercebam da neces-
somente através de Cristo que algo pode ser agra- sidade que têm de se achegar até a presença de
dável a Deus. Deus e dos benefícios recebidos através disso. É
certo que Deus quer ser louvado, entretanto, ele
A mesma ideia do texto acima se encontra em não é o maior beneficiado na adoração, uma vez
1Pedro 2.5: “Também vós mesmos, como pedras que não acrescentamos nada que já não possua.
que vivem, sois edificados casa espiritual para ser- Nós somos grandemente beneficiados, porque re-
des sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifí- cebemos coisas que necessitamos em grandíssima
cios espirituais agradáveis a Deus por intermédio escala. Por isso, as pessoas honram a Deus, quan-
de Jesus Cristo”. O próprio termo sacerdote impli- do chegam para a adoração famintos e em atitude
ca em oferecer culto, logo encontramos no texto a de expectativa, cônscios de sua necessidade, espe-
obrigatoriedade do culto. A função do sacerdote rando o agir de Deus. Como afirmou John Owen:
é oferecer sacrifícios, entretanto, já não há sacri-
fício a ser oferecido, uma vez que Jesus ofereceu Pretender aproximar-se de Deus, mas não com a expec-
um sacrifício completo, mas resta algo que pode tativa de receber boas e grandes coisas da parte dEle, é
ser agradável a Deus, que são os sacrifícios espi- desprezar a Deus (...) Muitos daqueles que melhor pro-
rituais oferecidos por intermédio de Jesus Cris- fessam a religião são por demais negligentes a essa ques-
to. Por isso, nem toda adoração é aceitável diante tão. Não anelam, nem suspiram, no homem interior, por
de Deus, somente aquela que é através de Jesus. renovadas promessas do amor de Deus; não consideram
Nosso culto, que em si mesmo não teria qualquer sobre o quanto carecem disso... não preparam as suas
valor, se torna algo grandioso e sublime, quando mentes para receber tal bênção, nem se achegam com a
mediado por Jesus Cristo. expectativa de que elas lhes serão comunicadas; não fi-
xam corretamente a sua fé sobre essa verdade, a saber,
que essas santas administrações e deveres foram deter-
minados por Deus, antes de qualquer coisa, como o ca-
A NECESSIDADE DE PREPARO minho e o meio de transmitir o seu amor e o senso desse
amor às nossas almas. Daí origina-se a mornidão, a frie-
Como entendemos que a adoração não é uma za e a indiferença para com os deveres da santa adora-
atividade meramente subjetiva ou especulativa, ção, que vão aumentando entre nós.5
mas um encontro real de Deus com o seu povo,
e como entendemos a singularidade do caráter de Lloyd-Jones tem entendido muito bem o espírito
Deus, o preparo se torna algo essencial para o cul- de nossa época, uma vez que as pessoas não se
to. Como disse o Dr. Van Groningen: “É necessá- preparam para o culto, e assim:
rio separar tempo para cultuar a Deus. Expressar
amor toma tempo. Expressar devoção toma tem- Não há nada vital na religião e na adoração de tais pes-
po. É necessário tempo para expressar adoração soas. Elas nada esperam, nada recebem, e nada acontece
e para nos colocarmos sob completa submissão a com elas. Vão à casa de Deus, não com o propósito de
Deus, como é expresso em vários atos de adora- terem um encontro com Deus, não com o desejo de espe-
ção”.4 Esse tempo precisa ser separado tanto antes, rarem nEle, isso nem passa por suas mentes, nem entra

4 Harriet e Gerard Van Groningen. A Família da 5 Citado por J. I. Packer. Entre os Gigantes de
Aliança, p. 215. Deus, p. 274.
168

comunhão. E se não houver comunhão entre os


em seus corações que algo possa acontecer num culto. Di-
zem: É que sempre fazemos isso no Domingo de manhã. membros e a Cabeça, e também em relação aos
próprios membros entre si, não há culto. A co-
É nosso costume. É nosso hábito. É uma coisa certa a fa-
zer. Mas a ideia de que Deus possa subitamente visitar munhão dos crentes na Bíblia é acentuada pelo
uso da expressão “um ao outro”. Por causa da co-
Seu povo e descer sobre ele, a emoção de estar na presença
de Deus e sentir Sua proximidade, e Seu poder, nunca munhão em Cristo, Paulo incentiva os crentes a
entra em sua imaginação. aceitar “um ao outro” (Rm 15.7), amar “um ao
outro” (Ef. 4.2, 15, 16; 5.2), não julgar “um ao ou-
E ele continua, agora advertindo seus leitores: tro” (Rm 14.3,13), a edificar “um ao outro” (Rm
14.19).8 Sem dúvida o culto é vertical, pois ele é
Devemos examinar-nos a nós mesmos. Será que vamos prestado a Deus e não às pessoas, mas sem uma
à casa de Deus esperando que algo aconteça? Ou será vida de comunhão e serviço feito “uns aos outros”,
que vamos simplesmente para ouvir um sermão, cantar a adoração não vai subir muito alto.
nossos hinos, e encontrar amigos? Com que frequência
pensamos em termos de nos reunirmos para encontrar Em Romanos 15.1-7 encontramos a seguinte ad-
com Deus, para adorá-lo, estar em Sua presença e escu- moestação de Paulo: Ora, nós que somos fortes
tar o que ele tem a nos dizer? Não estamos correndo o devemos suportar as debilidades dos fracos e não
incrível risco de nos contentarmos simplesmente porque nos agradar a nós mesmos. Portanto, cada um de
nossas crenças são corretas? Nossas crenças podem ser nós agrade ao próximo no que é bom para edifi-
corretas, e ainda assim podemos perder a vida, a parte cação. Porque também Cristo não se agradou a si
vital, o poder, aquilo que realmente faz da adoração o mesmo; antes, como está escrito: ‘As injúrias dos
que ela deve ser algo no Espírito e na verdade6. que te ultrajavam caíram sobre mim’. Pois tudo
quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino
Isso realmente pode acontecer. As coisas podem foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela con-
se tornar tão rotineiras a ponto de Domingo após solação das Escrituras, tenhamos esperança. Ora,
Domingo estarmos na igreja, mas nada acontecer o Deus da paciência e da consolação vos conceda
conosco. Não há preparo, não há expectativa, e o mesmo sentir de uns para com os outros, se-
não há bênção.7 gundo Cristo Jesus, para que concordemente e a
uma voz glorifiqueis ao Deus e Pai de nosso Se-
nhor Jesus Cristo. Portanto, acolhei-vos uns aos
outros, como também Cristo nos acolheu para a
A NECESSIDADE DE COMUNHÃO glória de Deus.

O Culto Público é apresentado pela igreja como Embora o texto não esteja falando especificamen-
Corpo de Cristo. A característica marcante do te do culto público, fala de algo necessário para
corpo é que se constitui de membros que fazem que Deus seja glorificado: o culto deve ser unís-
parte um do outro, e que são todos submissos à sono. Como MacArtur afirma: “É somente quan-
Cabeça, que é Cristo. Logo, tudo no culto envolve do seu povo está ‘em acordo’ na adoração dEle,
e com ‘uma voz’ que verdadeiramente glorifica
6 D. M. Lloyd-Jones. Avivamento, p. 75-76.
7 Bênção aqui não é no sentido moderno de receber 8 Ver Paul Enns. “Fellowship” em The Moody Han-
algum benefício físico de Deus. A bênção aqui é a própria dbook of Theology. Ver Também: J. D. Douglas. O Novo
presença de Deus. Dicionário da Bíblia, Volume único, p. 310.
169

o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo”.9 Por A NECESSIDADE DE ESPIRITUALIDADE


isso, entendemos que a comunhão com Deus, e
com os irmãos é fundamental para que um culto Jesus disse: “Deus é Espírito, e importa que seus
seja aceitável a Deus. adoradores o adorem em Espírito e em Verdade”.
(Jo 4.24). Por isso, todo “formalismo” no sentido
pejorativo da palavra é condenado na adoração.
Cultuar a Deus de forma rotineira, apenas por-
A NECESSIDADE DE HUMILDADE que se tornou um costume, não é adoração de
maneira alguma, antes é uma abominação diante
Na presença do “Alto e Sublime que habita a Eter- do Senhor. Por ser espiritual, a adoração glorifica
nidade, e cujo nome é Santo” (Is 57.15), outra ca- grandemente a Deus porque realmente reconhece
racterística não poderia ser mais própria do que quem ele é. Por isso, o que importa no culto não
humildade por parte dos que se achegam a ele. são meramente as fórmulas, mas o verdadeiro
Essa característica é muito própria pelo “senso de conteúdo da adoração que é segundo a Bíblia e
grandeza” que os adoradores devem ter em re- que glorifica a Deus de todo o coração e com toda
lação ao Adorado, sabendo que ele ultrapassa o a alma. Talvez, quando Jesus disse que a adoração
próprio entendimento. Entretanto, há algo mais era em “Espírito”, possivelmente estivesse se refe-
que deve nos conduzir à devida humildade na rindo ao próprio Espírito Santo. O Espírito capa-
presença do “altíssimo”, que é o conhecimento de cita a igreja a adorar de uma forma espontânea.
nossa situação miserável se estivermos separados Kuiper coloca algo no mínimo interessante em
de Jesus Cristo. Que direito temos de entrar em seu livro sobre eclesiologia: “O Espírito já ope-
sua presença? Quais são as nossas credenciais? rava na igreja da antiga dispensação, entretanto,
Não nos apresentamos diante de Deus confiados na nova dispensação foi derramado como nunca
em nossos próprios méritos, mas no nome dele, antes. É por isso que, por um lado, o Novo Tes-
pelo sangue dele que nos incentiva a ter “intrepi- tamento contém muito menos detalhes acerca da
dez para entrar no Santo dos Santos” (Hb 10.19). adoração coletiva que o Velho Testamento”.10 O
O adorador precisa ter consciência disso. Distan- autor entende que isso acontece porque o Espí-
ciados da graça de Cristo, que nos habilita, não rito Santo nos ajuda nesta função, e a Bíblia diz:
podemos oferecer adoração a Deus. Por isso, a “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade”
humildade é essencial no culto. Na verdade, nada (2Cor 3.17). Mas se a adoração é “em Espírito”
temos para oferecer que ele não nos tenha dado. também é “em Verdade”, ou seja, o princípio re-
Nesse ponto, algo interessante deve ser dito a res- gulador do culto é nada menos do que a Verdade.
peito das ofertas. Quando o povo de Deus oferece Isso além de significar o elemento de sinceridade
seus dízimos ao Senhor, na verdade está apenas que é requerido dos adoradores, também signifi-
devolvendo uma parte daquilo que o próprio ca que a adoração deve estar em ordem com o que
Deus já lhe concedeu. Quando oferecemos nosso o próprio Deus tem prescrito.
louvor a Deus, não temos do que nos orgulhar,
pois estamos apenas cumprindo a função que é
nossa. A NECESSIDADE DE FORMOSURA

Sem dúvida, a partir dos tempos do Novo Testa-

9 John F. MacArthur Jr. Romanos (15:6). 10 R. B. Kuiper. El Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 334.
170

mento, o que menos importa na adoração pública ração.


é o local. A preocupação é com a qualidade des-
sa adoração. O nome de Deus já foi adorado de
modo perfeitamente satisfatório nas catacumbas
pela igreja primitiva, e em outros lugares igual- A NECESSIDADE DE REGOZIJO
mente provisórios ao longo dos séculos. Na ado-
ração pública não há espaço para arte por amor à Alegria é uma das marcas da verdadeira adora-
arte. Todo ornamento que cause distração deveria ção. É claro que pode haver cultos especiais de
ser evitado na igreja. Nunca deve um sentido de humilhação e confissão de pecados, principal-
satisfação estética, obtida pelo ritmo de instru- mente em tempos de calamidades e guerras, en-
mentos, ou pela entonação perfeita de algum co- tretanto, mesmo nesses momentos, a igreja não
ral, ou ainda por qualquer outro recurso estético pode deixar de demonstrar sua alegria. A alegria
como uma luz colorida que se infiltra por algum do cristão é independente das circunstâncias ex-
vitral, ser confundido com o verdadeiro espíri- ternas. Essa alegria se baseia apenas no Senhor
to de Adoração. Porém, isso não significa que se (Fp 4.4). Há um texto bíblico que ilustra bem essa
deva excluir da igreja todo e qualquer objeto que questão de alegria incondicional. Em Atos 16, na
seja belo, ou ornamentado, ou mesmo simbólico. cidade de Filipos, Paulo e Silas foram aprisiona-
Os santuários do Antigo Testamento e seus mobi- dos, açoitados e lançados no cárcere. Com os pés
liários foram feitos segundo o modelo dado pelo presos no tronco, “por volta da meia-noite, ora-
próprio Deus (Nm 8.4), e eles eram belíssimos vam e cantavam louvores a Deus” (At 16.25). Eles
sem dúvida, como também eram belas as roupas sabiam louvar a Deus mesmo em meio a tanto so-
dos sacerdotes. Por isso, entendemos que o lugar frimento. Essa ideia bíblica com respeito à alegria
e os acessórios de adoração da igreja Cristã, de é o próprio espírito da adoração que realmente
acordo com as possibilidades, devem ser belos, agrada a Deus. Não o adoramos apenas quando
entretanto, este belo se caracteriza pela sua dig- tudo está bem. O adoramos pelo que ele é, e pelo
nidade, sensibilidade e simplicidade. Mas, o que que nós somos por sua graça. No momento do
queremos enfatizar em termos de “formosura” culto, não nos aproximamos de um Deus irado,
não é o aspecto estético visível da adoração. Es- mas de um Deus gracioso. Somos como um filho
tamos falando de sua beleza inerente. A Escritura que se aproxima de um pai e não como um cri-
ordena ao povo de Deus para adorá-lo “na beleza minoso diante do juiz, pois todos os nossos peca-
da sua santidade” (Sl 29.2). O salmista diz: “Uma dos foram levados por Jesus. A consciência dessas
coisa peço ao senhor, e a buscarei: que eu possa coisas deve nos acompanhar durante o culto. O
morar na Casa do senhor todos os dias da minha reconhecimento sincero disso torna alegre nos-
vida, para contemplar a beleza do senhor e medi- so espírito, enche-nos de gozo, e Deus se agrada
tar no seu templo” (Sl 27.4). Ele reconhece toda a grandemente dessa disposição. No culto, como
formosura divina, pois “Glória e majestade estão disse Karl Barth, a igreja “troca sua roupa de tra-
diante dele, força e formosura, no seu santuário” balho pela roupa de festa”.11 No momento da ado-
(Sl 96.6). A adoração é formosa por causa da for- ração pública, todas estas coisas precisam estar
mosura daquele que é adorado. Quando a igreja patentes em nossas mentes, e o desejo de adorar
entende a santidade de Deus, entende a obra di- ao Senhor com alegria precisa permear toda a co-
vina de restauração ao ser humano decaído, está
preparada para contemplar a formosura da ado- 11 Citado por John H. Leith. A Tradição Reformada,
p. 289-290.
171

munidade. Como disse o psicólogo cristão Larry que não haja espaço para o Espírito se manifes-
Crabb “os portadores da imagem (de Deus) preci- tar. Assim, o culto se torna tão somente uma obra
sam mudar de uma forma que os capacite a uma humana. Mas o culto que agrada a Deus e que faz
alegria de Deus, mais profunda, mais adoradora, diferença na vida das pessoas precisa ter muito
mais íntima...”12 Certamente, todo benefício será mais do que simplesmente a participação huma-
nosso, e Deus se agradará do nosso louvor, como na. O Espírito precisa ter liberdade para agir em
de um aroma suave. nosso culto. Porém, isso não significa que o Espí-
rito vai trazer confusão, pois a decência e a ordem
são igualmente características do culto verdadei-
ro. O Espírito não vai produzir coisas indecentes
CONCLUSÃO — EQUILÍBRIO e desordenadas no culto, até porque, Deus não é
Deus de confusão, mas de paz (1Co 14.33). Se em
Para que o culto seja aceito por Deus, ele preci- nossos cultos o Espírito agir e a Palavra for res-
sa ter as características que a Bíblia diz que ele peitada, tudo será agradável ao Senhor e profun-
tem. Porém, a Bíblia não deixou claro como deve damente edificante para os homens. Abusos não
funcionar cada detalhe. No Antigo Testamento ocorrerão, nem irracionalidade, por outro lado,
isso estava muito claro, pois os rituais realizados haverá o verdadeiro fervor e a devoção que são
no templo estavam prescritos detalhadamente. O próprios de redimidos.
fato de Deus não prescrever como deve ser o cul-
to no Novo Testamento já indica que ele deseja
algo muito simples. Todo tipo de ritualismo ou
excesso deve ser deixado de lado.

Deve-se privilegiar a clareza, a espiritualidade,


a alegria e a reverência. O fato de que as igrejas
tenham liturgias diferentes umas das outras não
significa que apenas uma esteja certa. Porém, os
princípios básicos devem ser seguidos. O Novo
Testamento ensina uma tensão que deve ser man-
tida para que a adoração seja bíblica. Há duas
passagens que devem ser consideradas conjun-
tamente. A primeira é: “Não apagueis o Espírito”
(1Ts 5.19). A segunda é: “Tudo, porém, seja feito
com decência e ordem” (1Co 14.40). Pelo con-
texto das passagens, percebe-se que Paulo está
tratando sobre o culto. A tensão entre esses dois
conceitos pode nos levar ao tão desejado equilí-
brio na adoração. Primeiramente, devemos tomar
cuidado para não apagar o Espírito. Há o perigo
de que estejamos tão no controle da adoração,

12 Larry Crabb. Como Compreender as Pessoas, p.


142.
172

24

O CULTO: ELEMENTOS

INTRODUÇÃO ção espiritual (1Tm 4.6). Entre todas as atividades


realizadas no culto, o ensino, ou a pregação da
Agora devemos pensar nos elementos que são Palavra é a mais necessária. Em todas as ativida-
indispensáveis ao culto verdadeiro. Precisamos des do culto, como louvor, oração e ordenanças,
buscar isso na Palavra de Deus, porém, o Novo é certo que Deus vem ao encontro do seu povo
Testamento não nos fornece um modelo especí- que se reúne em nome do Seu Filho, mas, de um
fico de liturgia em que possamos identificar os modo especial, isso acontece durante a pregação.
elementos que compõem uma liturgia bíblica. Os puritanos defendiam que, “a pregação na igre-
Entretanto, a partir do estudo de diversos textos ja é a suprema ministração do Espírito”.1
da Palavra de Deus, podemos chegar a quatro
elementos que são comuns, ou básicos na litur- Entretanto, é necessário que o expositor da Pa-
gia bíblica. São eles: Instrução, Oração, Louvor, e lavra de Deus seja fiel ao que a Palavra ensina.
Santa Ceia. Precisamos ainda considerar as atitu- Além da obra iluminadora do Espírito Santo,
des através de gestos e posturas que são descritas faz-se necessário o conhecimento das línguas
pela Bíblia na adoração. originais e das ferramentas hermenêuticas que
abrem o horizonte bíblico do intérprete, de ma-
neira que ele tenha todas as condições de extrair
o verdadeiro significado bíblico, a fim de repas-
INSTRUÇÃO sá-lo e aplicá-lo aos seus ouvintes. Infelizmente
no mundo moderno, a pregação tem perdido o
Desde o começo, a instrução foi um elemento vi- fascínio que exercia no passado.2 Muitos a con-
tal para a vida da igreja Cristã. Deus havia dado sideram ultrapassada, especialmente depois do
as Escrituras com o propósito de ensinar o povo invento da televisão e da multimídia. O número
e trazê-lo à maturidade (2Tm 3.16-17). O ensino
é um antídoto contra a falsa doutrina (1Tm 1.3), 1 J. I. Packer. Entre os Gigantes de Deus, p. 274-275.
produz amor entre os crentes (1Tm 1.4) e nutri- 2 Ver John Stott. Eu Creio na Pregação, p. 51.
173

de bons pregadores diminui cada vez mais, jun- tuído por Jesus (Mt 6.9-13; Lc 11.2-4). Essa ora-
tamente com o espaço reservado para a pregação ção enfatiza o relacionamento entre nós e Deus
no culto. As pessoas têm esquecido que o método (Pai nosso), preocupa-se com a glória de Deus
divino é salvar as pessoas pela loucura da “prega- em primeiro lugar (nome, reino, vontade), reser-
ção” (1Co 1.21). Deveriam ouvir as palavras de va espaço para necessidades físicas (pão de cada
MacArthur: “Não ousemos menosprezar o prin- dia), contempla nossas necessidades espirituais
cipal instrumento de evangelismo: a proclamação (perdão, tentação, mal), e reconhece a absolu-
direta e cristocêntrica da genuína Palavra de ta soberania de Deus (reino, poder e glória para
Deus. Aqueles que trocam a Palavra por entrete- sempre...). Um culto autêntico não omite qual-
nimento ou artifícios descobrirão que não pos- quer uma dessas questões em seus momentos de
suem um meio eficaz de alcançar as pessoas com oração, e procura manter o equilíbrio entre pe-
a verdade de Cristo (...) Os que desejam colocar a tições e agradecimento. Portanto, a oração deve
dramatização, a música e outros meios mais sutis ter um papel preponderante na adoração, sendo o
no lugar da pregação deveriam levar em conta o meio pelo qual agradecemos, pedimos, intercede-
seguinte: Deus, intencionalmente, escolheu uma mos, e exaltamos o nome do Senhor.
mensagem e uma metodologia que a sabedoria
deste mundo considera como loucura”3

LOUVOR

ORAÇÃO Tudo o que se faz no culto é um louvor ao Senhor.


Porém, podemos identificar na Bíblia o louvor
John Bunyan, com excelência definiu oração como “cantar ao Senhor” (Ver Ne 12.46; Jó 35.10;
como: “Derramar de modo sincero, consciente Sl 40.3; Sl 66.2,8; Sl 100.4; Sl 106.12; Sl 147.1; Sl
e afetuoso o coração e alma diante de Deus, por 149.1; Is 42.10). O louvor, no sentido de cantar
meio de Cristo, no poder e ajuda do Espírito San- ao Senhor, é uma das maiores características que
to, buscando as coisas que Deus tem prometido, enfatizam a piedade na bíblia. Já muito cedo en-
ou que sejam conforme a sua Palavra, para o bem contramos os cânticos de Moisés (Ex 15.1-19).
da igreja, com fiel submissão a sua vontade”.4 A Entretanto, é atribuída a Davi a sistematização do
oração é uma das práticas mais comuns e en- “louvor” em Israel. O Livro das Crônicas nos dá
fatizadas pela Bíblia. Jesus orou muitas vezes du- detalhes da instituição do serviço levítico no tem-
rante seu ministério (Mc 1.35; Lc 3.21–22; 5.16; plo dedicado à música (1Cr 23.1-26.32 principal-
6.12; 9.18ss; 21.37ss.; 22.39ss; Jo 17, etc.). A igreja
mente 23.5,30 e o cap. 6).
primitiva adotou o modelo de Jesus (At 1.14, 24;
2.42, 46; 5.20–21, 42; 6.4, 6; 10.9; 12.5ss.; 16.25; Além disso, Davi compôs muitos Salmos, e foi se-
20.7ss). guido por Asafe, pelos Filhos de Coré, Hemam,
Jedutum e outros. No Novo Testamento encontra-
A oração dominical foi o modelo de oração insti- mos muitos fragmentos de hinos que descrevem a
redenção em Cristo (Lc 1.46-55, 68-79; 2.13ss; Ef
3 John F. MacArthur Jr. Com Vergonha do Evange-
1.3-14; Cl 1.18-20; Ap 5.9-14; 7.10-12). Também
lho, p. 117-118, 130. há cânticos que falam do Ser de Deus e de sua
4 John Bunyan e Thomas Goodwin. La Oración, p. vinda (Ap 4.8), bem como de sua obra criadora
5. (Cl 1.15-17; Ap 4.11). Portanto, fica claro que os
174

crentes na Bíblia gostavam muito de cantar. ções, pois todos têm que ter algo em comum: o
louvor de Deus. Mas o que chama a atenção em
Os principais textos encontrados no Novo Testa- ambos os textos é o ambiente alegre em que es-
mento para cânticos são Colossenses 3.16: “Habite tas canções são entoadas. O texto de Efésios vem
ricamente em vós a palavra de Cristo; instruí-vos logo após a admoestação para não se embriagar
e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedo- com vinho. O vinho produzia alguma alegria,
ria, louvando a Deus, com salmos e hinos e cânti- mas era uma alegria falsa que conduzia a ruína.
cos espirituais, com gratidão em vossos corações”; Ao contrário, os crentes devem encher-se do Es-
e seu paralelo em Efésios 5.19: “Falando entre vós pírito, cuja alegria é verdadeira e incomparável. É
com salmos, entoando e louvando de coração ao algo bastante evidente que os cânticos espirituais
Senhor, com hinos e cânticos espirituais”. Por- são deleitosos tanto para quem canta, quanto para
tanto, é ponto pacífico que o Novo Testamento Deus que os ouve, desde que sigam as orientações
apoia o uso de canções na igreja. Entretanto, que da Palavra.
tipo de canções? Existirá alguma diferença entre
“salmos e hinos e cânticos espirituais”? Quando Algo interessante de se observar é a expressão
pensamos em “salmos” é natural que nos lembre- empregada no texto de Efésios 5.19: “falando en-
mos do saltério do Antigo Testamento. Quanto a tre vós, com salmos”. Essa expressão “entre vós”,
hinos, a palavra só aparece nestes textos (Efésios decorre do pronome reflexivo grego que significa
e Colossenses). Entretanto, as características de literalmente “uns aos outros”.7 Stott, comentando
um hino bem podem ser as de um Salmo. Exis- esta expressão, afirma:
tem hinos que não pertencem ao saltério, como
por exemplo, o “magnificat” de Lucas 1.46-55, e Sempre que os cristãos se reúnem, gostam muito de can-
o “Benedictus” de Lucas 1.68-79. Mesmo partes tar tanto a Deus quanto uns aos outros. Às vezes canta-
das cartas de Paulo podem conter fragmentos de mos em antífona, conforme os judeus faziam no templo
hinos, como já vimos anteriormente. A palavra e na sinagoga, e como também faziam os cristãos. Além
“cânticos” refere-se a “um poema escrito para ser disso, alguns dos salmos que cantamos são, na realidade,
cantado”.5 Assim sendo, é provável que, quando não adoração a Deus, mas, sim, a mútua exortação.8
Paulo se refere a esses três términos, ele está, em
alguma medida, diferenciando-os. Salmos são Há muitos exemplos disso nos Salmos do Antigo
principalmente os Salmos do Antigo Testamento. Testamento. Como por exemplo, o Salmo 95 que é
um convite à Adoração: “Vinde, cantemos ao Se-
Hinos são principalmente os cânticos do Novo nhor, com júbilo, celebremos o Rochedo da nossa
Testamento que louvam a Deus e a Cristo; e os salvação. Saiamos ao seu encontro com ações de
Cânticos Espirituais são qualquer outro tipo de graça, vitoriemo-lo com Salmos” (Ver Salmo 96).9
canção sagrada que trate de temas que não estão
relacionados com louvor direto à Deus ou a Cris-
p. 126-128.
to.6 Porém, não devemos exagerar nessas distin-
7 Ver William Hendriksen. Efésios, p. 263.
5 William Hendriksen. Colossenses e Filemon, 8 John R. W. Stott. A Mensagem de Efésios, p. 153-
p. 189ss. 154.
6 Ver Richard C. Trench. Synonyms of The New Tes- 9 Alguns hinos da igreja também têm essa atitude,
tament, p. LXXVIII. E também William Hendriksen. Colo- como por exemplo, o hino 19 do Novo Cântico que diz
senses e Filemon, p. 189. Para uma abordagem mais recente “vinde ó remidos, filhos de Deus, cantai louvores que al-
deste assunto ver Ralph P. Martin. Colossenses e Filemon, cancem os céus”.
175

O que queremos enfatizar por último não é a sempre. Ele diz: “Nisto, porém, que vos prescrevo,
existência dos cânticos na liturgia, mas a sua qua- não vos louvo, porquanto vos ajuntais, não para
lidade no que se refere a biblicidade. O texto de melhor; e sim para pior” (1Co 11.17). E no verso
Colossenses diz: “Habite ricamente em vós a pa- 20 ele acrescenta: “Quando, pois, vos reunis no
lavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mu- mesmo lugar, não é a ceia do Senhor que comeis”.
tuamente em toda sabedoria, louvando a Deus...”. A pressuposição básica era de que sempre que se
O pré-requisito para o louvor é o conhecimento reuniam, participavam da Ceia.
da Palavra, porque somente quando se conhece
a Palavra é que se pode louvar a Deus como ele O relato mais completo e antigo que temos de
quer ser louvado. Todo cântico que é composto uma reunião cristã foi feito por Justino, no Se-
sem fundamentar-se na Palavra de Deus pode ter gundo Século, e nos mostra que a Ceia era servida
arte, simetria ou profissionalismo, mas certamen- dominicalmente:
te não é adoração, e, por conseguinte, não tem lu-
gar no culto. Isso vale tanto para corais como paraNo dia que se chama sol, celebra-se uma reunião de todos
os populares “conjuntos” ou “grupos” de louvor. os que moram nas cidades ou nos campos, e aí se leem,
O mais importante não é se a música é tocada e enquanto o tempo permite, as Memórias dos Apóstolos
dirigida por um organista apenas ou por um con- ou os escritos dos profetas. Quando o leitor termina, o
junto de duzentas vozes, o que importa é se há presidente faz uma exortação e convite para imitarmos
consagração, se há santidade, e se há biblicidade. esses belos exemplos. Em seguida, levantamo-nos todos
juntos e elevamos as preces. Depois de terminadas, como
já dissemos, oferece-se pão, vinho e água, e o presidente,
conforme suas forças, faz igualmente subir a Deus suas
SANTA CEIA preces e ações de graças e todo povo exclama, dizendo:
Amém! Vem depois a distribuição e participação feita a
Da igreja primitiva nos vêm o ensino de que eles cada um dos alimentos consagrados pela ação de graças
“perseveravam na doutrina dos Apóstolos e na e seu envio aos seus ausentes pelos diáconos.12
comunhão, no partir do pão e nas orações” (At
2.42). No grego, o artigo definido precede o subs- Calvino cria que a Ceia deveria ser celebrada pelo
tantivo “pão” o que indica que os cristãos parti- menos uma vez por semana. Ele escreve em sua
cipavam de “o pão” separado para o sacramento obra magna: “Deixando, pois, de lado todo este
da comunhão (Ver 20.11; 1Co 10.16)”.10 Isso sig- sem fim de cerimônias e pompas, a Santa Ceia
nifica que a ceia era celebrada regularmente. Em poderia ser administrada santamente, com fre-
Trôade, os cristãos estavam reunidos no primei- quência, ou ao menos uma vez na semana...”.13
ro dia da semana com o fim de partir o pão (At Porém sabemos que ele não fez disso uma regra,
20.7), sendo que o texto parece demonstrar um tanto que, por decisão do Consistório de Gene-
vínculo quase automático entre o “dia do Senhor” bra, a Ceia não pôde ser realizada dominicalmen-
e o “partir do Pão”.11 Na Primeira Carta aos Co- te, mas apenas quatro vezes ao ano: no Natal, na
ríntios, quando Paulo os admoesta sobre os cui- Páscoa, no Pentecostes e no primeiro Domingo
dados que eles deveriam ter com respeito à Ceia de setembro.14 Calvino se submeteu à decisão do
do Senhor, ele dá a entender que eles faziam isso
12 Justino de Roma. I Apologia, p. 67
10 Simon J. Kistemaker. Hechos, p. 118. 13 João Calvino. Institutas, IV.27.43.
11 Ver J. J. Von Allmen. O Culto Cristão, p. 175ss. 14 Ver J. J. Von Allmen. O Culto Cristão, p. 177ss
176

Concílio, porém, tanto Lutero como a Igreja An- não até o chão.
glicana mantiveram a Santa Ceia todos os domin-
gos. Por isso, a Santa Ceia poderia fazer parte de 3) Ajoelhar-se. Foi um substituto do “pros-
todos os cultos públicos da igreja. De qualquer trar-se”, sendo uma atitude comum na adoração,
modo, realizada uma vez por mês, a Ceia deve frequentemente mencionada no Antigo e no Novo
ser um momento muito especial de comunhão Testamento (1Rs 8.54; Sl 95.6; Is 54.23; Lc 22.41;
com Deus, e de renovação de forças espirituais. At 7.60; Ef 3.14). Salomão se ajoelhou diante do
Ela tem seu lugar no culto como o momento mais altar na ocasião da dedicação do templo. Esdras
especial, pois através de uma cerimônia bastante ajoelhou-se e dirigiu-se ao Senhor em oração (Ed
simples, o Senhor demonstra a nós suas insondá- 9.5). Daniel ajoelhava-se e orava três vezes ao dia
veis riquezas e nos transmite sua graça. (Dn 6.10).

4) Permanecer em pé. Essa foi a mais usual


postura na oração. Especialmente na adoração
GESTOS E POSTURAS pública. Abraão “permaneceu diante do Senhor”
quando intercedeu por Sodoma (Gn 18.22, tam-
Gestos e posturas não são elementos essenciais ao bém 1Sm 1.26; Lc 18.11). Salomão “permaneceu”
culto como os elementos expostos acima. Porém, em oração diante do Senhor quando da dedica-
eles sempre fizeram parte do culto desde o Antigo ção do templo (1Rs 8.22). Numerosas alusões à
Testamento, e, portanto, devem ser considerados. oração no Novo Testamento provam que “per-
A cultura do homem oriental sempre foi rica em manecer” foi uma postura comum nos tempos
gestos pelos quais os sentimentos são expressos e bíblicos (Mt 6.5; Mc 11.25; Lc 18.11). Em geral,
a força é acrescentada às palavras. Disto nós te- entende-se que essa expressão significa “ficar em
mos abundante testemunho na Bíblia. Neste mo- pé”.
mento nos interessam os gestos e posturas ligados
diretamente com a adoração pública. 5) Levantar as mãos. Movimentos de mãos
e outras partes do corpo, conscientes ou não, ex-
1) Prostrar-se. Denotava, entre os orientais, pressam atitudes, ou sentimentos. A Bíblia em-
uma expressão comum de humildade e profun- prega palavras e frases para possibilitar que os
da reverência diante de um superior ou benfeitor. leitores visualizem gestos, posturas e expressões
Foi usada na adoração ao Senhor (Gn 17.3; Nm faciais. É durante a oração que a Bíblia mais evi-
16.45). E foi a mais intensa maneira de mostrar dencia o uso de gestos. E o gesto mais comum é o
ênfase em uma petição. Moisés e Arão frequen- de “estender as mãos” e levantá-las como que em
temente se colocavam nesta postura (Nm 14.5; direção ao Senhor. Salomão “estendeu as mãos
16.4, 45). para o céu” para orar quando da dedicação do
templo (1R 8,22, 38, 54). Esdras se pôs “de joelhos
2) Curvar-se. Eleazar curvou-se diante do e ergueu as mãos para o Senhor” (Ed 9.29, 5. Ver
Senhor, quando encontrou a esposa escolhida Jó 11.13; Sl 44.20; Is. 1.15; Jr 4.31; Sl 28.2; 134.2).
para Isaque (Gn 24.26). Os hebreus ao deixarem
o Egito foram convidados a se curvar diante do 6) Bater palmas. Muitas passagens nas Es-
Senhor (Ex 11.8). Isaías diz: Todo joelho se “do- crituras falam sobre “bater palmas”. Vamos tentar
brará” para Deus (Is 45.23). Essa parece uma pos- enquadrá-las por tópicos, conforme o significado:
tura intermediária. É um abaixar do corpo, mas 1) Ira: “Então, a ira de Balaque se acendeu contra
177

Balaão, e bateu ele as suas palmas” (Nm 24.10; Ver


Vermelho (Ex 15.20). As mulheres saíram “can-
Ez 21.14; 21.17). 2) Desprezo: “Com desprezo, tando e dançando com tambores e com instru-
bate ele palmas” (Jó 34.37; Ver Lm 2.15; Na 3.19).
mentos de música” após a vitória de Davi e Saul
3) Desaprovação: “Assim diz o senhor Deus: Bate sobre os filisteus (1Sm 18.6). As mulheres “dan-
as palmas, bate com o pé e dize: Ah! Por todas asçavam nas rodas” em Juízes 21.19-21 quando os
terríveis abominações da casa de Israel!” (Ez 6.11;
benjamitas escolhiam suas esposas. Com respeito
22.13). 4) Aprovação: “Tal proceder é estultícia a homens, há somente o caso de Davi que dança-
deles; assim mesmo os seus seguidores aplaudem va diante da Arca da Aliança, quando finalmente
o que eles dizem.” (Sl 49:13). 5) Exaltação: “Então,
a trouxe para Jerusalém (2Sm 6.14). Alguns Sal-
Joiada fez sair o filho do rei, pôs-lhe a coroa e lhe
mos falam em dançar como um ato de louvar ao
deu o Livro do Testemunho; eles o constituíram Senhor. O Salmo 87 falando sobre a glória de Je-
rei, e o ungiram, e bateram palmas, e gritaram: rusalém, fala do louvor dos cantores: “Todos os
Viva o rei!” (2Rs 11.12; Is 55.12; Ez 25.6). Júbi-
cantores, saltando de júbilo, entoarão: Todas as
lo: “Batei palmas, todos os povos; celebrai a Deus
minhas fontes são em ti” (Sl 87.7). Outros salmos
com vozes de júbilo” (Sl 47.1; 98.8). Assim perce-
mandam dar louvor ao Senhor através de dança:
bemos que não há um significado uniforme para “Louvai-o com adufes e danças; louvai-o com ins-
“bater palmas” na Bíblia. Ela tanto pode signifi-trumentos de cordas e com flautas” (Sl 150.4).16
car aprovação como reprovação, pois depende da Deve ser dito que os Salmos 148, 149 e 150 estão
atitude íntima de quem está praticando. No con- falando que tudo deve louvar ao Senhor. E de fato,
texto de adoração, talvez a única passagem que tudo o que existe, de algum modo é para o louvor
pudesse ser usada é o Salmo 47.1 que manda to- do Senhor, mas nem tudo cabe no culto solene. A
dos os povos baterem palmas e celebrarem a Deus partir desses Salmos, não é possível argumentar
com vozes de júbilo. Esse Salmo é chamado de que as danças devam fazer parte do culto públi-
um salmo de entronização, em que Israel e as na- co. No Novo Testamento há poucas referências
ções estrangeiras são chamadas a cantar louvores a danças, entretanto, sabe-se que era algo muito
ao reinado de Deus.15 Nesse texto, bater palmas écomum na vida do povo (Lc 15.25), a ponto de
uma atitude de louvor, porém, não dá para dizer fazer parte de jogos infantis (Mt 11.17; Lc 7.32).17
com certeza se é para acompanhar a música com Dança na Bíblia, exceto no caso de Herodíades,
palmas, embora as duas coisas estejam juntas no tem pouco relacionamento com a sensualidade,
mesmo verso, e também no Salmo 98: “Os rios sendo mais associada com alegria devido a cir-
batam palmas, e juntos cantem de júbilo os mon- cunstâncias favoráveis, ou por gratidão a Deus.
tes, na presença do senhor, porque ele vem julgarSabemos que a situação de nossos dias é oposta,
a terra” (Sl 98.8-9). pois é praticamente impossível dissociar sensua-
lidade de dança, e, portanto, é difícil estabelecer
7) Danças. No Antigo Testamento há refe- relação entre “dança” e “culto”.
rências ocasionais a danças como motivo exclusi-
vo de diversão e comemoração com significação
religiosa. Grupos de mulheres dançavam em oca-
siões de celebração nacional. Miriã e um grupo 16 O Salmo 149.3 também fala em louvar com “dan-
ças”, mas a Edição Revista e Atualizada traduziu como
de mulheres dançaram depois da travessia do Mar “flauta”. Ver Leslie C. Allen. Word Biblical Commentary,
Volume 21: Psalms 101-150, (Sl 147).
15 Peter C. Craigie. Word Biblical Commentary, Vo- 17 Ver J. D. Douglas. O Novo Dicionário da
lume 19: Psalms 1-50, (Sl 41.1). Bíblia, p. 386.
178

8) Tocar Instrumentos. A música em Israel volvidos e, muitas vezes, é difícil identificar quan-
teve um grande desenvolvimento depois do esta- do nós mesmos estamos querendo ser bíblicos, ou
belecimento da monarquia. Com a construção do apenas defendendo nossas preferências pessoais.
templo apareceu a “música profissional” para os Por isso, o critério do amor se faz necessário. João
rituais religiosos (1Rs 1.34; 10.2; 39-40). Davi foi Calvino percebeu isso muito bem:
um grande compositor de cânticos (1Sm 16.16-
18), e um inventor de instrumentos (Am 6.5). Como o Senhor na Escritura tem reunido fielmente, e tem
A estrutura de alguns Salmos nos dá uma ideia declarado plenamente todo o conjunto da verdadeira jus-
de como a música vocal tinha sua performance. tiça e de seu culto divino, e todo o necessário para a salva-
Percebe-se a existência de refrãos e aclamações ção, com respeito a essas coisas, somente ele é o Mestre a
(Aleluia), divisões em estrofes, e sobretudo a quem se deve escutar. Mas, como ele não quis prescrever
comum divisão de paralelismo poético, respon- em particular o que devemos seguir na disciplina e nas
sorial e antífona. Muitos desses Salmos foram cerimônias – porque sabia muito bem que isto depende
feitos para serem cantados ao som de instru- da condição dos tempos, e que uma só forma não convém
mentos selecionados. Muito do que é conhecido a todos – é preciso acolhermos aqui as regras gerais que
sobre os instrumentos da Bíblia vem da própria ele deu, para que em conformidade com elas, se regule e
evidência literal dela, embora haja também mui- ordene tudo quanto exigir a necessidade da igreja, no to-
tas evidências arqueológicas. Esses são alguns cante à ordem e ao decoro. Finalmente, como não deixou
instrumentos citados pela Escritura: Trombeta, expressa nenhuma coisa, por não se tratar de algo ne-
Cítara, Flauta (Dn 3.5,7.10; Sl 150.3-5); Címbalo cessário para nossa salvação, e porque devem adaptar-se
Sonoro e Retumbante (Sl 150.5); Suave Arpa (Sl diversamente para edificação da igreja conforme os cos-
81); Instrumentos de cordas (Sl 150.4); Harpa (Sl tumes de cada nação, convém, segundo exigir a utilidade
150.3); Saltério (Sl 81.2); Tamboril (Sl 81.2); Lira da igreja, mu­dar e abolir as passadas, e ordenar outras
(Is 5.12), etc. Portanto, não há nada que impeça novas. Admito que não devemos nos apressar a fazer mu-
o uso de instrumentos variados no louvor do Se- danças temerariamente a cada passo e sem motivo sério.
nhor, porém, não se deve pensar que o simples O amor decidirá perfeitamente o que prejudica e o que
fato de haver instrumentos é suficiente para que edifica; se permitirmos que ele governe, tudo irá bem’.18
haja verdadeiro louvor. Devemos lembrar que o
verdadeiro louvor não precisa de instrumentos, O amor visa a edificação e não a divisão, o amor
nem de muitos gestos, mas simplesmente de um não busca o proveito próprio (1Cor 13-5), antes o
coração sincero, afinal, Jesus disse que Deus pode bem comum. Dessa forma, em questões que não
tirar um “perfeito louvor da boca de pequeninos são essenciais, que não estão explícitas na Bíblia, e
e crianças de peito” (Mt 21.16). que não envolvem a majestade de Deus ou o pró-
prio caráter do cristão, como Calvino sugere, não
precisamos ser excessivamente rígidos. Calvino,
no estabelecimento da Ordem do Culto, realmen-
CONCLUSÃO te não foi dogmático, pois entendia que muitos
detalhes poderiam ser modificados a critério da
Nessa questão dos elementos do culto, a igreja congregação, mas jamais esteve disposto a tolerar
precisa colocar em prática o exercício do amor abusos.19
cristão que ajuda a solucionar as divergências que
não são tão importantes. Divergências sempre 18 João Calvino. lnstitutas, IV.10.30.
surgirão enquanto gostos pessoais estiverem en- 19 João Calvino. lnstitutas, IV.17.43.
179

ESCATOLOGIA
A DOUTRINA DAS ÚLTIMAS
COISAS
180

25

ESPERANÇA ESCATOLÓGICA

INTRODUÇÃO to que alguém está em Cristo, “é nova criatura; as


coisas antigas já passaram; eis que se fizeram no-
Quando adentramos as páginas do Novo Tes- vas” (2Co 5.17), ou seja, a nova criação de Deus
tamento precisamos ter em mente que estamos já está presente nesse mundo na pessoa de seus
vendo o cumprimento de grande parte da espe- cidadãos renovados. Os “novos céus e nova terra”
rança escatológica de Israel. A simples existência ainda não foram criados, mas os habitantes desse
do Novo Testamento já é uma confirmação de lugar já foram. Os crentes nascidos de novo não
que Deus cumpriu grande parte de suas promes- são mais desse mundo (Jo 15.19), pois devem vi-
sas feitas no Antigo Testamento. Todos aqueles ver aqui como peregrinos e forasteiros (1Pe 2.11).
aspectos estudados anteriormente já alcançaram, Eles são cidadãos da pátria celestial (Fp 3.20; Hb
em alguma medida, um grau de cumprimento. O 11.16), e sua nação fica no mundo vindouro.
descendente prometido já veio, pois o dragão não
conseguiu impedir o nascimento e a manifesta- Desse modo, percebemos que todos os elementos
ção do Filho. A Nova Aliança foi estabelecida e escatológicos que configuravam a Esperança de
o corpo e o sangue do Senhor a simbolizam (Mt Israel encontram, em algum grau, cumprimento
26.28). Israel, como remanescente, estava sendo no Novo Testamento. Porém, faltam detalhes de
restaurado desde aqueles dias (Rm 11.5). O Es- todos eles. Nesse ponto precisamos nos lembrar
pírito foi derramado no dia do Pentecostes (At de um dos conceitos mais importantes da esca-
2.1-4). O Reino de Deus estava estabelecido entre tologia, que é a tensão entre o já e o ainda não.
os homens (Lc 17.21). Parece apenas que o “dia Toda a nossa vida cristã se desenvolve à luz des-
do Senhor” e os “novos céus e nova terra” ainda sa tensão. De todas as bênçãos conquistadas por
não tinham chegado. Entretanto, Pedro disse que Jesus, por um lado podemos dizer que já dispo-
a profecia de Joel que falava dos “últimos dias” mos delas, porém, por outro, que ainda não total-
havia se cumprido no dia de Pentecostes (At 2.16- mente. Assim já somos salvos, porém ainda não
21), ou seja, os “últimos dias” já estavam sendo desfrutamos da salvação completa no sentido de
inaugurados. E Paulo diz que, a partir do momen- ter um novo e perfeito corpo. Da mesma forma
181

já somos santos (Ef 1.11), porém, ainda não to- Belém (Mt 2.4-6; Mq 5.2). Sua fuga para o Egito
talmente santificados. Pensando em escatologia, (Mt 2.14-15; Os 11.1). Sua pregação (Mt 4.13-16;
de fato todas as promessas de Deus feitas a Israel Is 9.1-2). Seu ministério de cura (Mt 8.16-17; Is
já foram cumpridas na pessoa e obra de Jesus e 53.4). Sua rejeição por parte de seu povo (Jo 1.11;
da igreja, porém, ainda não totalmente, porque os Is 53.3). Sua entrada triunfal em Jerusalém (Mt
planos completos de Deus para a igreja não foram 21.4-5; Zc 9.9). Sua venda por trinta moedas de
de todo realizados. prata (Mt 26.15; Zc 11.12). Sua crucificação (Jo
19.34; Zc 12.10). Suas roupas sendo sorteadas
A escatologia do Novo Testamento é construída, pelos soldados (Mc 15.24; Sl 22.18). Seu sepul-
portanto, sobre a escatologia do Antigo Testa- tamento no túmulo de um rico (Mt 27.57-60; Is
mento. Por essa razão, livros como o Apocalipse 53.9). Sua ressurreição (At 2.24-32; Sl 16.10). Sua
possuem uma imensa base no Antigo Testamento, ascensão (At 1.9; Sl 68.18).1
e nem sequer podem ser entendidos sem aqueles.
A escatologia do Novo Testamento não surge do Mas há muitas outras evidências de que o Novo
nada, ela assume a escatologia do Antigo Testa- Testamento inaugura os últimos dias. A prega-
mento, entendendo que boa parte das predições ção de Jesus no início do seu ministério (e tam-
escatológicas antigas já foram cumpridas, porém, bém João Batista) já apontava para a instalação
olha para o futuro para a consumação do plano dessa nova era. Mateus relata que: “Passou Jesus
de Deus para o Israel na igreja. a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está
próximo o reino dos céus” (Mt 4.17). E Marcos
relata semelhantemente as palavras de Jesus: “O
tempo está cumprido, e o reino de Deus está pró-
OS ÚLTIMOS DIAS ximo; arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc
1.15). Devemos pensar que as expressões “reino
O Antigo Testamento é repleto de profecias so- dos céus” e “reino de Deus” são sinônimas nos
bre os últimos dias. Na esperança de Israel, se- Evangelhos. Ladd diz que “a maior parte da es-
ria nesses dias que Deus restauraria a nação à catologia de Jesus, conforme registrada pelos Si-
posição idealizada. Segundo o entendimento do nópticos, tem a ver com os eventos relacionados à
Novo Testamento, esses “últimos dias” se inicia- vinda do Reino de Deus escatológico”.2 E de fato,
ram com a vinda de Jesus, quando se consolidou como vimos acima, o estabelecimento do Reino
o plano da redenção. (At 2.16-21; Jl 2.28-32). Por- de Deus era uma das expectativas escatológicas
tanto, o mundo começou a viver os “últimos dias” de Israel. Jesus disse que, em sua pessoa, o Reino
ainda nos tempos do Novo Testamento. Percebe- de Deus estava sendo estabelecido, e portanto, o
mos que os escritores do Novo Testamento fre- tempo do fim já estava presente com a sua vinda.
quentemente fazem alusão a profecias do Antigo Paulo tinha esse mesmo entendimento. Ele escre-
Testamento que encontraram cumprimento na veu aos Gálatas: “Vindo, porém, a plenitude do
manifestação de Jesus e da igreja. Essas profecias tempo, Deus enviou seu Filho” (Gl 4.4). Por “ple-
eram geralmente de caráter escatológico, quando nitude do tempo” Paulo refere-se ao momento
foram proferidas pelos profetas do Antigo Testa- escatológico que foi a vinda de Jesus. O autor aos
mento. Entre os eventos que são identificados no
Novo Testamento como profecias do Antigo Tes- 1 Ver Anthony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 25.
tamento podemos citar: O nascimento virginal 2 George E. Ladd. Teologia do Novo Testamento, p.
de Jesus (Mt 1.20-23; Is 7.14). Seu nascimento em 184.
182

Hebreus concorda com esta ideia, pois diz que Je- der que segundo o Novo Testamento, “os últimos
sus “ao se cumprirem os tempos, se manifestou dias” já começaram, porém nem tudo está cum-
uma vez por todas, para aniquilar, pelo sacrifício prido, ainda falta o “último” desses “últimos dias”.
de si mesmo, o pecado” (Hb 9.26). E Pedro evoca A expressão “ultimo dia” não pode ser encontrada
a mesma ideia: “Pelo precioso sangue, como de no Antigo Testamento, pois ela é própria do Novo
cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Testamento. Jesus disse: “E a vontade de quem me
Cristo, conhecido, com efeito, antes da fundação enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os
do mundo, porém manifestado no fim dos tem- que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei
pos, por amor de vós (1Pe 1.19-20). A vinda de no último dia” (Jo 6:39). Nessa passagem, Jesus
Jesus e sua manifestação é a chegada do “fim dos une o último dia à ressurreição (Ver Jo 11.24). Em
tempos”. Paulo usa ainda a expressão “fim dos outra passagem, ele ligou o último dia ao julga-
séculos” para a era que se iniciou no Novo Tes- mento: “Quem me rejeita e não recebe as minhas
tamento. Ele diz: “De nós outros sobre quem os palavras tem quem o julgue; a própria palavra que
fins dos séculos têm chegado” (1Co 10.11). João tenho proferido, essa o julgará no último dia” (Jo
utiliza outra expressão para indicar o momento 12:48). O “último dia” será o último deste mun-
escatológico vivido, ele fala sobre a última hora: do como o conhecemos, mas será o primeiro do
“Filhinhos, já é a última hora; e, como ouvistes mundo porvir. Sobre este “mundo porvir”, a Bí-
que vem o anticristo, também, agora, muitos an- blia usa expressões como “mundo vindouro” ou
ticristos têm surgido; pelo que conhecemos que é “era vindoura”. Em Efésios Paulo fala do “século
a última hora” (1Jo 2.18). Todas essas expressões vindouro” como um tempo da demonstração do
apontam para a mesma realidade: o caráter de poder e da glória de Deus (Ef 1.21; 2.7). Sobre a
cumprimento escatológico do Novo Testamento “era vindoura”, Jesus diz que somente os “dignos”
em relação ao plano de Deus fixado no Antigo a alcançarão (Lc 20.35).
Testamento. Os últimos dias começaram com a
vinda de Jesus. O último dia deve ser entendido ainda em termos
de consumação do que já foi inaugurado. Nesse
sentido, Jesus ordenou que seus discípulos pre-
gassem o Evangelho em todo o mundo, garan-
O ÚLTIMO DIA tindo-lhes que estaria com eles “todos os dias até
à consumação do século” (Mt 28.20). Essa con-
O entendimento de que o Novo Testamento já é sumação do século é o último dia, o momento
um cumprimento escatológico do Antigo Testa- quando Deus completará sua obra. Jesus também
mento levou alguns estudiosos a falarem sobre descreveu esse momento como uma ceifa: “A cei-
uma “escatologia realizada”. Porém, como diz fa é a consumação do século, e os ceifeiros são
Hoekema, é preferível falar numa “escatologia os anjos” (Mt 13.39). Ele se referia ao momento
inaugurada”,3 pois ela não está totalmente rea- quando os santos seriam separados dos ímpios
lizada, H. Berkhof diz que “o Novo Testamento (Mt 24.3).
nada sabe de uma escatologia futurista ou de uma
escatologia realizada, senão de uma escatologia Podemos resumir essa questão da seguinte ma-
em realização.”4 Nesse ponto, é necessário enten- neira:

3 Ver Anthony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 28.


4 Hendrikus Berkhof. La Doctrina del Espíritu San- to, p. 118
183

A escatologia do Novo Testamento, portanto, olha para o penhor do Espírito são elementos escatológicos
trás, para a vinda de Cristo, que tinha sido predita pe- presentes na vida do crente.
los profetas do Velho Testamento, e afirma: nós estamos
agora nos últimos dias. Mas a escatologia neotestamen- O autor aos Hebreus diz que certos “poderes do
tária também olha para frente, para uma consumação mundo vindouro” já podiam ser experimentados
final ainda por vir, e por isso também diz: o último dia agora no presente. Ele diz que algumas pessoas
ainda não está chegando; a era final ainda não chegou.5 haviam sido iluminadas, tinham provado o dom
celestial, se tornado participantes do Espírito San-
Num resumo: Já, mas ainda não. to, provado a boa palavra de Deus e os poderes do
mundo vindouro (Hb 6.4-5). É interessante que
os poderes do mundo vindouro estão conecta-
dos à manifestação do Espírito Santo. A atuação
O ESPÍRITO ESCATOLÓGICO do Espírito na igreja hoje é uma antecipação do
mundo vindouro. Falando sobre o entendimento
Um outro aspecto muito importante ligado à es- de Paulo sobre o Espírito, Geerhardus Vos diz que
catologia do Novo Testamento é a vinda do Es- “o Pneuma (Espírito) era, na mente do Apóstolo,
pírito Santo. Já vimos que o Antigo Testamento antes de tudo, o elemento da esfera escatológica
tinha uma expectativa grande em relação ao ou celestial que caracteriza o modo de vida e exis-
derramamento do Espírito (Is 32.15-17; 44.2-4; tência no mundo porvir e, consequentemente, da-
Jl 2.28-31), e Pedro disse que isso se cumpriu no quela forma antecipada na qual o mundo porvir é
Pentecostes (At 2.16-17). Jesus também falou que mesmo agora realizado”.6 Aqui é muito instrutivo
a manifestação do Espírito de Deus caracteriza- entendermos o ensino de Paulo no capítulo 8 de
va a chegada do próprio Reino de Deus. Quando Romanos. Paulo diz que o crente em Cristo pas-
acusado de expulsar demônios pelo poder dos sou a fazer parte de uma nova realidade: “A vida
próprios demônios, Jesus se defendeu: “Se, po- no Espírito”. Por causa disso ele foi justificado,
rém, eu expulso demônios pelo Espírito de Deus, não pode mais ser condenado, e o preceito da lei
certamente é chegado o reino de Deus sobre vós” já se cumpriu nele (Rm 8.1-4). Daí sua insistência
(Mt 12.28). O poder do Espírito Santo como ca- para que os crentes vivam uma vida “no Espíri-
pacitador já se demonstrava na pessoa de Jesus, to”, uma vez que não são mais devedores à carne
o que evidenciava a chegada do Reino de Deus, (Rm 8.5-13). No versículo 14, Paulo introduz um
segundo a expectativa do Antigo Testamento. detalhe de máxima importância em termos de es-
catologia: “Pois todos os que são guiados pelo Es-
A Escritura descreve dois significados do Espíri- pírito de Deus são filhos de Deus”. E ele continua:
to que nos dão uma ideia escatológica. O Espírito “Porque não recebestes o espírito de escravidão,
é chamado de “selo” e “penhor” (Ef 1.13-14; 2Co para viverdes, outra vez, atemorizados, mas rece-
1.22; 5.5). Essas expressões indicam que o Espí- bestes o espírito de adoção, baseados no qual cla-
rito é uma espécie de “garantia” divina de que mamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com
completará a obra começada na vida dos crentes. o nosso espírito que somos filhos de Deus” (Rm
O selo é uma marca de propriedade e de invio- 8.15-16). É a habitação do Espírito em nós que
labilidade. O penhor é uma espécie de depósito configura nossa “adoção” como filhos de Deus. É
antecipado que garante o arremate final. O selo e
6 Citado por Anthony Hoekema. A Bíblia e o
5 Anthony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 30. Futuro, p. 79.
184

o testemunho interno desse mesmo Espírito que pecado (Rm 8.12), nos auxilia em nossas fraque-
nos dá a certeza de nossa filiação. Em seguida, zas (Rm 8.26-27), e nos aponta para uma realida-
Paulo continua de forma lógica: “Ora, se somos de muito superior, quando a colheita for efetuada.
filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Calvino tem palavras muito edificantes sobre esse
Deus e coerdeiros com Cristo” (Rm 8.17). Um assunto para os crentes: “Ele deseja que se ergam
filho é logicamente também um herdeiro. A ha- pela expectativa da bem-aventurança futura e su-
bitação do Espírito em nós faz com que sejamos perem todos os seus atuais sofrimentos, tendo sua
herdeiros de Deus. Isso se parece bastante com a mente posta acima de sua imediata condição, de
ideia de “selo” e “penhor” que já citamos. Porém, maneira que não considerem o que são agora, e,
Paulo tem mais coisas a dizer: “Porque para mim sim, o que serão depois”.9 A habitação do Espírito
tenho por certo que os sofrimentos do tempo pre- no crente é uma realidade escatológica, é o poder
sente não podem ser comparados com a glória do futuro que irrompeu no presente.
a ser revelada em nós” (Rm 8.18). Esse versículo
aponta para o fato de que, apesar de sermos her- Não poderíamos deixar de considerar ainda a
deiros, ainda não recebemos a herança, pois ain- questão do elemento capacitador. Como vimos,
da vivemos num tempo de sofrimento, e a glória o Espírito no Antigo Testamento representava
permanece no futuro. Dos versos 19-22 ele fala primordialmente capacitação divina sobre a vida
que toda a criação deseja experimentar essa gló- das pessoas. Após a ressurreição, Jesus ordenou
ria, e que ela não está satisfeita com a atual situa- a seus discípulos: “Eis que envio sobre vós a pro-
ção, e então, continua: “E não somente ela, mas messa de meu Pai; permanecei, pois, na cidade,
também nós, que temos as primícias do Espírito, até que do alto sejais revestidos de poder” (Lc
igualmente gememos em nosso íntimo, aguar- 24.49). Em Atos, o próprio Lucas descreve outra
dando a adoção de filhos, a redenção do nosso vez esse evento, com palavras ainda mais especí-
corpo” (Rm 8.23). Digno de nota nesse verso é a ficas: “Recebereis poder, ao descer sobre vós o Es-
expressão “primícias”. No Antigo Testamento ela pírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto
significava os primeiros frutos do campo ou dos em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria
rebanhos que eram oferecidos a Deus (Dt 18.4; e até aos confins da terra” (At 1.8). Este mesmo
26.2; Nm 10.35-37).7 Comentando esse versículo Espírito é dado a todos aqueles que se convertem
Dunn conclui: “Novamente a clara nota escato- e passam a pertencer a Cristo (Rm 8.9). Assim,
lógica não pode ser ignorada: a colheita final (Is o poder de Deus para o cumprimento da missão
27:12; Joel 3:13; Mt 3:12//Lc 3:17; Gl 6:8) inicia- divina de expandir o Reino de Deus é concedido a
da pela ressurreição (1Co 15:20, 23) de Cristo já cada crente. Quando desenvolvemos a nossa mis-
está a caminho”.8 Ou seja, Jesus ressuscitou dos são como igreja, pregando a Palavra de Deus, ba-
mortos e sua ressurreição é reconhecida como “as tizando ou celebrando a Santa Ceia estamos pro-
primícias” (1Co 15.20). Assim, nós que ainda não clamando uma mensagem escatológica e vivendo
ressuscitamos corporalmente, desfrutamos das no presente algo do Escaton.
primícias porque o Espírito está em nós e nos dá
uma pequena demonstração do que será a vida da
ressurreição. Nessa vida, ele nos ajuda a vencer o

7 Anthony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 83.


8 James D. G. Dunn. Word Biblical Commentary,
Volume 38a: Romans 1-8, (Rm 8.23). 9 João Calvino. Romanos, p. 287 (Rm 8.23).
185

CONCLUSÃO

A esperança escatológica é a base da nossa fé. A


Bíblia é um livro de escatologia do início ao fim.
Infelizmente, nos dias atuais, as pessoas têm se
esquecido de quão maravilhosa é essa esperança.
O secularismo e o materialismo que invadiram as
igrejas impedem a maioria das pessoas de pensar
no futuro, de ansiar pela libertação final. Esta-
mos estabelecidos demais nessa terra, a ponto de
esquecermos que somos “estrangeiros e peregri-
nos” aqui (1Pe 2.11). Por outro lado, para muitos
escatologia é realmente apenas um apêndice no
estudo da teologia. É apenas uma tentativa espe-
culativa de olhar para os eventos do futuro, como
se fosse possível “adivinhar” o que vai acontecer
depois. A escatologia bíblica sugere muito mais
do que isso. A esperança do futuro se manifes-
ta poderosamente no presente, de maneira que o
“porvir” já pode ser experimentado, em alguma
medida, agora.
186

26

SINAIS DO FIM DOS TEMPOS

INTRODUÇÃO não estavam mais dispostos a ouvir falar sobre o


assunto. Do mesmo modo, Jesus prometeu voltar
uma segunda vez, e deixou certos sinais que aju-
Por séculos os israelitas aguardaram a vinda de dam a identificar quando esta vinda estará pró-
um libertador. A cada geração que se levantava, xima. Já faz muito tempo que estes sinais foram
acentuava-se a expectativa pela chegada do Mes- anunciados. Muitos já não creem neles, outros já
sias. Em meio às tribulações, às perseguições e se cansaram de esperar. Por esta razão Jesus dis-
opressão dos inimigos, o povo de Deus levantava
se que sua vinda será como a do ladrão na noite.
suas mãos para
Como a sua primeira, a segunda vinda também
pegará muitos de surpresa. Outros, porém, sim-
o alto e implorava que o Grande Rei viesse para li-
plesmente não estão interessados nela, pois se
vrá-los de todos os seus algozes. Os profetas, por-
ta-vozes de Deus, anunciavam a vinda deste sal- sentem confortáveis nesse mundo. Um dia será
vador, apresentando indícios ao povo sobre onde, preciso dizer novamente: “De repente, ele veio”.
como e quando ele finalmente nasceria. Poucas
coisas foram tão anunciadas como a vinda do Re- Deus resolveu deixar algumas marcas no mundo
dentor. De repente ele veio. Mas por que naquele que servissem como indicadores de que a segun-
dia em Belém tão poucas pessoas compareceram? da vinda de seu Filho estaria próxima. Estes sinais
Herodes e os religiosos até mesmo sabiam o local não têm a pretensão de indicar com exatidão o
do nascimento, pois anunciaram aos magos (Ver dia da vinda de Jesus, mas apenas fornecer recur-
Mt 2.3-5). Será que os estudiosos da lei tinham sos aos homens, para que consigam discernir a
coisas mais importantes para fazer do que ir con- época em que estão vivendo, e a proximidade da
ferir o nascimento do Messias? Na verdade, o fato vinda do Senhor. São sinais para os fiéis, somente
é que não criam mais nos sinais. Estavam cansa- para os fiéis, para que renovem suas esperanças.
dos de esperar. Talvez já tivessem visto tantos se
fazerem passar pelo Messias, que simplesmente
187

DISCERNINDO OS TEMPOS mento; mas aquele que vem depois de mim é mais
poderoso do que eu, cujas sandálias não sou dig-
Num certo dia, os fariseus e saduceus — curiosa-
no de levar. Ele vos batizará com o Espírito Santo
mente unidos com o fim de tentarem ao Senhor
e com fogo. A sua pá, ele a tem na mão e limpará
— se aproximaram de Jesus e lhe pediram que
completamente a sua eira; recolherá o seu trigo
lhes mostrasse um sinal vindo do céu (Mt 16.1).
no celeiro, mas queimará a palha em fogo inex-
Eles não acreditavam que Jesus fosse um enviado
tinguível” (Mt 3.11-12). Mas, quando Jesus se ma-
de Deus, e por isso, estavam exigindo que Jesus
nifestou, esta atividade julgadora aparentemente
lhes desse uma prova, um sinal de sua autoridade.
não entrou em atuação, por isso, o próprio Batista,
Parece que haviam formulado uma maneira de
da prisão, mandou seus discípulos perguntarem a
desmascarar falsos profetas. Quando estivessem
Jesus: “És tu aquele que estava para vir ou have-
na dúvida, simplesmente exigiam uma compro-
mos de esperar outro?” (Mt 11.3). Provavelmente
vação do profeta, um sinal de sua autenticidade.
João Batista não conseguia entender o porquê de
A resposta de Jesus foi a seguinte: “Chegada a
Jesus não estabelecer imediatamente o Juízo. Je-
tarde, dizeis: Haverá bom tempo, porque o céu
sus respondeu: “Ide e anunciai a João o que estais
está avermelhado; e, pela manhã: Hoje, haverá
ouvindo e vendo: os cegos veem, os coxos andam,
tempestade, porque o céu está de um vermelho
os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os
sombrio. Sabeis, na verdade, discernir o aspecto
mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo
do céu e não podeis discernir os sinais dos tem-
pregado o Evangelho. E bem-aventurado é aquele
pos?” (Mt 16.2-3). Jesus chamou a atenção para
que não achar em mim motivo de tropeço” (Mt
uma deficiência deles. Jesus disse: Vocês conse-
11.4-6). João havia invertido os eventos que acon-
guem olhar para o “tempo” e saber se vai chover
teceriam nas duas vindas de Jesus. Sua primeira
ou fazer sol pelo aspecto dele, mas vocês não
vinda não foi para julgar o mundo, mas para ofe-
conseguem olhar para o outro “tempo” (kairós) e
recer e providenciar a salvação ao mundo. O juízo
perceber que vários sinais já foram dados, e que
é a atividade da segunda vinda.
demonstram a importância dessa época que estão
vivendo. Desde o Antigo Testamento Deus havia Portanto, os sinais dos tempos não são coisas re-
prometido a vinda do Messias, e que vários sinais servadas somente para o fim. No fim os sinais
acompanhariam essa vinda. Jesus quis demons- deverão aumentar grandemente, mas em todas as
trar aos fariseus que os sinais dos tempos já esta-épocas, os homens devem estar atentos para en-
vam presentes, mas eles se recusavam a ver. Por tender o que Deus está fazendo no mundo. Por
certo, eles sabiam da multiplicação dos pães e dos essa razão, Paulo diz aos Romanos: “E digo isto
diversos milagres realizados por Jesus. Ao que a vós outros que conheceis o tempo: já é hora de
parece, eles queriam insinuar que aqueles feitos vos despertardes do sono; porque a nossa salvação
eram obras do inferno (como dos magos do Egito está, agora, mais perto do que quando no princí-
que enfrentaram a Moisés). pio cremos. Vai alta a noite, e vem chegando o
dia. Deixemos, pois, as obras das trevas e revista-
Até mesmo João Batista teve dificuldade de ver os
mo-nos das armas da luz” (Rm 13.11-12). Quem
sinais. O grande profeta do Jordão havia anuncia-
conhece o tempo deve viver conforme a vonta-
do que, quando Jesus se manifestasse, iria exercer
de do Senhor. A vinda de Jesus trouxe um novo
uma atividade julgadora sobre a nação. Ele pro-
tempo para este mundo. Ele foi a Luz que veio ao
clamou: “Eu vos batizo com água, para arrependi-
mundo, como João explicou (Jo 1.9). Sua partida
188

não nos deixou no escuro, porque a Luz da Vida vissem certas coisas acontecerem, deveriam ficar
está dentro de nós. E sua Segunda Vinda é como o de sobreaviso, porque o Senhor poderia voltar a
amanhecer, como se pudéssemos olhar para o ho- qualquer momento.
rizonte e já ver a luz inundando as trevas da noite.
O mundo ainda está em trevas, mas lá ao longe já Com relação à expressão de Jesus de que tudo
podemos ver a luz surgindo, pois Jesus está vol- aconteceria “naquela geração”, muitas dificulda-
tando. Logo o Sol vai nascer e as trevas não mais des têm surgido. Aqueles que se esforçam por
existirão. Se somos filhos da luz, devemos viver achar contradições na Escritura veem aqui um
em conformidade com isso, rejeitando as obras prato cheio para suas especulações. Ousam afir-
das trevas e revestindo-nos do que é próprio da mar que Jesus se enganou, pois pensava que o
luz. Não somos mais criaturas da escuridão, e reino se consumaria logo.1 Por outro lado, Ma-
por isso, a escuridão não deve nos atrair e nem cArthur e os pré-milenistas não hesitam em afir-
devemos mais viver da maneira como é próprio mar que a palavra “geração” se refere ao povo de
da escuridão (Rm 13.13-14). A luz escatológica Israel, assim o povo, ou geração de Israel conti-
já começa a brilhar no horizonte. Cada geração nuaria existindo até o fim.2 Essa é uma interpreta-
precisa estar preparada para ver esta luz. Ela é a ção confessional, mas parece ser um tanto quanto
garantia de que as coisas não são o que parecem artificial. Apesar do fato de Jesus ter anunciado
ser. É a garantia de que as trevas não dominarão coisas que extrapolam em muito à destruição do
o mundo para sempre. E é a garantia de que um templo, devendo realmente serem consideradas
dia todo o mal será finalmente extirpado, e que a próprias de sua Segunda Vinda, não há razão para
luz do Senhor resplandecerá em cada vida, e em não interpretar o verso 34 como uma referência à
toda a criação. Discernir os tempos é a qualidade destruição de Jerusalém, que aconteceu cerca de
suprema de pessoas que desejam viver e agradar 40 anos depois que ele proferiu aquelas palavras.3
a Deus. Aqueles eventos evocavam o maior de todos os
eventos, que seria a Segunda Vinda de Jesus. A
destruição de Jerusalém simbolizava a destruição
do mundo. Portanto, geração seria uma referên-
AS CATEGORIAS DE SINAIS

Portanto, os sinais dos tempos são indicações di-


1 Bultmann e Goppelt não hesitam em dizer que Je-
vinas para que a vinda de Jesus não nos pegue de sus se equivocou, pois esses anúncios nunca teriam se con-
surpresa. Jesus disse: cretizado. (Ver Leonhard Goppelt. Teologia do Novo Testa-
mento, p. 92). Esses estudiosos não estão preocupados com
Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando a veracidade histórica das expressões de Jesus, para eles o
que importa é a mensagem. J. Jeremias também entende
já os seus ramos se renovam e as folhas brotam, que Jesus esperava a manifestação final do reino como imi-
sabeis que está próximo o verão. Assim também nente. Mas entende que Jesus acreditava que Deus poderia
vós: quando virdes todas estas coisas, sabei que adiar essa vinda ou antecipá-la, em resposta à oração das
pessoas (Ver J. Jeremias. Teologia do Novo Testamento, p.
está próximo, às portas. Em verdade vos digo que
218-219).
não passará esta geração sem que tudo isto acon-
2 John F. MacArthur, Jr. The MacArthur New Testa-
teça. Passará o céu e a terra, porém as minhas pa- ment Commentary, Matthew, (Mt 24.34). Embora MacAr-
lavras não passarão (Mt 24.32-35). thur admita que devam ser considerados também os gen-
tios vivos na vinda de Jesus.
Ou seja, Jesus disse a seus discípulos que quando 3 Ver Adolf Pohl. Evangelho de Marcos, p. 379.
189

cia àquela geração.4 apostasia, portanto, isso nos leva a crer que essa
pregação talvez não redunde em grandes efeitos,
Quando olhamos todos os tipos de sinais que es- no sentido de conversões em massa. De qualquer
tão profetizados pela Bíblia, podemos organizá- forma servirá de testemunho para o mundo, pois
-los em três espécies. deixará os homens rebeldes ainda mais indescul-
páveis.
Sinais que demonstram a graça de Deus
O outro grande sinal da graça de Deus como evi-
Os sinais que demonstram a graça de Deus são denciando o fim dos tempos é a restauração de
dois: a pregação do Evangelho e a conversão da Israel. Paulo trata sobre este assunto nos capítulos
plenitude de Israel. Jesus disse: “E será pregado 9-11 de Romanos. O texto central para a discussão
este Evangelho do reino por todo o mundo, para é Romanos 11.25-26: “Porque não quero, irmãos,
testemunho a todas as nações. Então, virá o fim” que ignoreis este mistério (para que não sejais
(Mt 24.14). A pregação do Evangelho a todos os presumidos em vós mesmos): que veio endure-
povos, portanto, é uma condição que precisa ser cimento em parte a Israel, até que haja entrado a
preenchida para que Jesus retorne. Duas questões plenitude dos gentios. E, assim, todo o Israel será
que precisam ser consideradas em conexão com salvo, como está escrito: Virá de Sião o Libertador
esta ideia referem-se à maneira como a pregação e ele apartará de Jacó as impiedades”. Por causa
precisa ser feita, bem como sua eficácia. Não sa- dessa promessa e de muitas outras do Antigo Tes-
bemos se Jesus quer dizer que todas as nações or- tamento, muitos esperam um momento final em
ganizadas do mundo precisam ouvir o Evangelho, que a nação de Israel se converterá totalmente a
ou se todas as etnias do mundo (entendendo que Cristo. Os defensores de uma corrente teológica
há muitas etnias dentro de uma única nação). De chamada dispensacionalismo acreditam que após
qualquer forma, este sinal não foi posto para aju- a vinda de Cristo e o arrebatamento da igreja,
dar a datar a vinda de Jesus, ele funciona muito Deus voltará sua atenção novamente para Israel.
mais como um incentivo à própria pregação do O povo de Israel, naquele momento, se converte-
Evangelho. Quanto mais pregamos o Evangelho rá a Cristo que reinará de Jerusalém sobre o mun-
no mundo, é como se estivéssemos “apressan- do durante mil anos. Há muitos outros estudio-
do” a vinda de Jesus (2Pe 3.12), pois estaremos sos que, embora não sejam dispensacionalistas,
demonstrando um desejo intenso de que ele ve- aguardam que Deus conceda uma chance futura
nha, envolvendo a ideia de diligenciar com zelo, para a nação de Israel.
solicitude, urgência, etc. Isso revela uma pressa
prazerosa daquilo que terá de ocorrer. Não é que Antes de qualquer coisa, é evidente que Deus
adiantaremos o dia da vinda, pois esse dia está pode conceder uma chance especial a Israel se
marcado por Deus, mas para nós, ele ficará cada ele quiser, porém, entendemos que Paulo não está
vez mais perto. falando sobre isso em Romanos 11. Desde o ca-
pítulo 9 Paulo está tentando explicar porque nem
Importante também é a eficácia dessa pregação. todos os israelitas se converteram a Cristo. Pare-
Jesus diz que ela serve de testemunho para o cia estranho aos estrangeiros que se converteram,
mundo. No contexto, Jesus estava falando sobre o fato de os judeus permanecerem em oposição
ao Senhor Jesus. A resposta de Paulo é: “E não
4 Ver Donald A. Hagner. Word Biblical Commen- pensemos que a palavra de Deus haja falhado,
tary, Volume 33b: Matthew 14-28, (Mt 24.34).
190

porque nem todos os de Israel são, de fato, israe- da videira e foram quebrados pela incredulidade
litas; nem por serem descendentes de Abraão são (11.20), e no lugar daqueles ramos os gentios que
todos seus filhos” (Rm 9.6-7). Paulo está dizen- eram “oliveira brava” foram enxertados. Mas, isso
do que ser um verdadeiro israelita não significa de acordo com Paulo, não significa que os ramos
necessariamente ser descendente de Abraão. Ele naturais não poderiam mais ser enxertados: “Eles
demonstra que depende da escolha divina, pois também, se não permanecerem na incredulidade,
entre dois descendentes de Abraão, que foram serão enxertados; pois Deus é poderoso para os
Esaú e Jacó, Deus escolheu a Jacó (Rm 9.8-13), enxertar de novo. Pois, se foste cortado da que,
portanto, o verdadeiro israelita é aquele que Deus por natureza, era oliveira brava e contra a natu-
escolhe. Deus deixou claro que apenas uma parte reza, enxertado em boa oliveira, quanto mais não
da nação de Israel seria salva: “Mas, relativamente serão enxertados na sua própria oliveira aqueles
a Israel, dele clama Isaías: Ainda que o número que são ramos naturais!” (Rm 11.23-24).
dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o
remanescente é que será salvo” (Rm 9.27). Um Deus pode normalmente enxertá-los novamente,
remanescente de Israel em cada época é que se- mas para isso, precisam deixar de lado a incre-
ria salvo e não toda a nação de Israel. E Paulo diz dulidade. Isso nos mostra que a salvação para os
que isso já estava acontecendo naquele momento: judeus é exatamente a mesma que para os gen-
“Pergunto, pois: terá Deus, porventura, rejeitado tios: é pela fé. Nem poderia ser diferente, afinal
o seu povo? De modo nenhum! Porque eu tam- a Oliveira onde todos os ramos são enxertados é
bém sou israelita da descendência de Abraão, da a mesma. É após falar sobre isso que Paulo diz
tribo de Benjamim” (Rm 11.1). O próprio Pau- que Israel foi endurecido em parte, até que haja
lo era um descendente de Israel e um salvo, pois entrado a plenitude dos gentios, e assim, todo Is-
Deus estava mantendo o seu remanescente, con- rael será salvo (Rm 11.25-26). A melhor maneira
forme as próprias palavras do Apóstolo: “Assim, de entender isso é que todo o Israel, no sentido
pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevi- de todos os eleitos de Israel serão salvos no fim.
ve um remanescente segundo a eleição da graça” Esse no fim, não significa depois que os gentios se
(Rm 11.5). Existiam eleitos em Israel naqueles converterem. Paulo não diz que os gentios se con-
dias que continuavam sendo salvos. Paulo explica verterão e depois todo o Israel será salvo, mas que
que Deus estava permitindo um endurecimento a Deus endureceu Israel para que os gentios fossem
Israel a fim de possibilitar que os gentios (estran- enxertados “e assim” ou seja, dessa maneira, todo
geiros) fossem aceitos na família da fé. Ele argu- Israel será salvo. Seria estranho pensar que Deus
menta: “Pergunto, pois: porventura, tropeçaram concedesse uma chance especial exclusiva para os
para que caíssem? De modo nenhum! Mas, pela habitantes de Israel que estiverem vivos na vinda
sua transgressão, veio a salvação aos gentios, para de Jesus, em detrimento de todos os demais que
pô-los em ciúmes” (Rm 11.11). Por essa razão, os viveram antes. Do mesmo modo, não parece justo
gentios não deveriam se vangloriar: “Se, porém, identificar apenas os israelitas vivos na vinda de
alguns dos ramos foram quebrados, e tu, sendo Jesus como sendo “todo o Israel”. Eles serão ape-
oliveira brava, foste enxertado em meio deles e te nas um fragmento do Israel de Deus. Além disso,
tornaste participante da raiz e da seiva da oliveira, se Deus juntará a plenitude dos gentios durante
não te glories contra os ramos; porém, se te gloria- todo esse tempo, por que a plenitude de Israel não
res, sabe que não és tu que sustentas a raiz, mas a pode seguir paralela? Parece melhor, portanto,
raiz, a ti” (Rm 11.17-18). Os israelitas eram ramos entender que “todo o Israel” significa não todos
191

os descendentes físicos de Israel que estarão vivos das (v. 13). Portanto, Jesus fala de uma mescla de
na vinda de Jesus, mas todos os eleitos de Israel falsos cristos, falsos profetas, perseguições sobre
em todos os tempos. É a soma de todos os rema- os cristãos verdadeiros e apostasia de cristãos no-
nescentes de Israel. minais. Mas, nesse ponto, Jesus está falando do
fim dos tempos ou da destruição de Jerusalém?
Sinais que demonstram oposição à Deus Das duas coisas. Devemos lembrar que os discí-
pulos lhe perguntaram sobre as duas coisas. De
Outra categoria de sinais que anunciam a Vin- certa forma, tudo o que Jesus disse se cumpre par-
da de Jesus são aqueles associados a algum tipo cialmente na destruição de Jerusalém que aconte-
de oposição a Deus. São eles: tribulação (perse- ceu cerca de 40 anos depois de ele proferido essas
guição), apostasia e a aparição do Anticristo. O palavras. Mas, a destruição de Jerusalém prefigu-
Anticristo será estudado mais à frente. rava uma destruição ainda maior, o fim do mun-
do. Portanto, quando olhamos as explicações de
Tribulação e apostasia são coisas que podem ser Jesus precisamos nos lembrar dos dois eventos.
encontradas simultaneamente. Na verdade, ge-
ralmente é a tribulação que leva à apostasia. No Com relação à destruição do templo, Jesus diz
sermão escatológico do Capítulo 24 de Mateus, que uma grande profanação a antecederia (Mt
encontramos uma descrição impressionante des- 24.15). Quando os habitantes de Jerusalém e da
ses dois sinais. O referido sermão contém as ex- Judéia vissem a profanação, deveriam fugir para
plicações de Jesus sobre o fim dessa Era e sobre a os montes, sem se preocupar em voltar para pe-
destruição de Jerusalém. Jesus começou a dar ex- gar alguma coisa (Mt 24.16-18). Provavelmente,
plicações numa ocasião quando os discípulos lhe aquela foi uma referência ao momento quando
mostraram a imponência do templo, e Jesus disse o general romano Tito invadiu Jerusalém e pro-
que o templo não duraria muito tempo (Mt 24.1- fanou o Templo. A referência às grávidas, ao In-
2). Aquilo assustou os discípulos que viram na- verno e ao Sábado deve ser entendida em relação
quele acontecimento a consumação do século, o à fuga. A fuga deveria acontecer a toda pressa e
verdadeiro fim do mundo, por isso pediram quais uma grávida teria dificuldade de correr. A mes-
seriam os sinais que antecederiam aquele evento ma dificuldade se daria no inverno. E no Sábado,
catastrófico (Mt 24.3). Jesus disse que, primeira- o judeu nem podia correr (Mt 24.19-20). Porém,
mente, deveriam estar preparados para não serem tudo isso também prefigura o fim do mundo,
enganados, pois muitos tentariam se fazer passar quando, mais do que nunca, haverá profanações,
pelo Cristo: “Vede que ninguém vos engane. Por- perseguições e apostasias.
que virão muitos em meu nome, dizendo: Eu sou
o Cristo, e enganarão a muitos” (Mt 24.4-5). De- Jesus continua falando sobre os sinais futuros e
pois falou da perseguição e da Apostasia que afli- diz que haveria um tempo de tribulação ímpar na
gira os cristãos: “Então, sereis atribulados, e vos história, e que aqueles dias seriam abreviados por
matarão. Sereis odiados de todas as nações, por causa dos escolhidos, pois, caso contrário, eles
causa do meu nome. Nesse tempo, muitos hão de mesmos correriam riscos (Mt 24.21-22). A “gran-
se escandalizar, trair e odiar uns aos outros; le- de tribulação” certamente deve se referir à tribu-
vantar-se-ão muitos falsos profetas e enganarão a lação dos últimos dias, cuja perseguição por parte
muitos. E, por se multiplicar a iniquidade, o amor dos inimigos de Deus será mais terrível do que
se esfriará de quase todos” (Mt 24.9-12). Por isso, nunca. E novamente ele fala sobre a necessida-
a necessidade de perseverança era a maior de to-
192

de de estar atento para não ser enganado. Ele diz: cataclismos da natureza e as pragas destruidoras.
“Então, se alguém vos disser: Eis aqui o Cristo!
Ou: Ei-lo ali! Não acrediteis; porque surgirão fal- Jesus disse: “E, certamente, ouvireis falar de guer-
sos cristos e falsos profetas operando grandes si- ras e rumores de guerras; vede, não vos assusteis,
nais e prodígios para enganar, se possível, os pró- porque é necessário assim acontecer, mas ainda
prios eleitos. Vede que vo-lo tenho predito” (Mt não é o fim. Porquanto se levantará nação contra
24.23-25). Jesus tinha plena consciência de que nação, reino contra reino, e haverá fomes e ter-
os poderes malignos fariam de tudo para impedir remotos em vários lugares; porém tudo isto é o
que as pessoas fossem salvas pela aproximação da princípio das dores” (Mt 24.6-8). Lucas acrescen-
manifestação final do Reino de Deus. Eles fariam ta alguns detalhes a mais: “Quando ouvirdes falar
isso falsificando essa manifestação. A falsificação de guerras e revoluções, não vos assusteis; pois é
não é sem motivo. À medida que Satanás conse- necessário que primeiro aconteçam estas coisas,
gue fisgar uma pessoa com falsos ensinos, ela está mas o fim não será logo. Então, lhes disse: Levan-
totalmente perdida, e o pior é que acha que está tar-se-á nação contra nação, e reino, contra reino;
salva (1Tm 3.1; 2Tm 4.1). Então, não procurará haverá grandes terremotos, epidemias e fome em
refúgio, pois acha que já está refugiada. Aparen- vários lugares, coisas espantosas e também gran-
temente, enquanto parte do mundo estaria sen- des sinais do céu” (Lc 21.9.11). Todas essas mani-
do enganada por falsos sinais, outra parte esta- festações indicam o juízo de Deus sobre o mundo
ria vivendo despreocupadamente. Mais à frente pecaminoso. Guerras, fome, doenças, terremotos,
Jesus diz: “Pois assim como foi nos dias de Noé, etc., são coisas que acontecem porque o pecado
também será a vinda do Filho do Homem. Por- entrou no mundo, como uma maldição divina
quanto, assim como nos dias anteriores ao dilúvio (Gn 3.17). Essas coisas sempre aconteceram, po-
comiam e bebiam, casavam e davam-se em casa- rém, nos últimos tempos, haverá uma acentua-
mento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e ção. A acentuação desses acontecimentos é um
não o perceberam, senão quando veio o dilúvio sinal da Vinda de Jesus.
e os levou a todos, assim será também a vinda do
Filho do Homem” (Mt 24.37-39). Os dias que an- Essa terceira classe de sinais é a que tem deixado
tecederam o dilúvio foram os piores que já exis-os estudiosos da Bíblia mais inquietos nos últi-
tiram. Deus entregou aquelas pessoas ao pecado. mos tempos. A intensificação das guerras e revo-
Elas se tornaram totalmente alienadas de Deus. Aluções em todo o mundo, a proliferação das pestes
e doenças incuráveis, a fome que assola mais da
única preocupação delas era com as coisas do dia-
-a-dia, que praticavam em aberta rebelião contrametade da população mundial, e os eventos ca-
Deus, como se pode ver dos casamentos mistos tastróficos da natureza, muitos deles provocados
daquele tempo (Gn 6.1). Jesus disse que o mesmo pela própria irresponsabilidade do homem, têm
tipo de alienação haveria antes de sua vinda. testemunhado que o mundo está vivendo real-
mente o “princípio das dores” de que Jesus falou.
Sinais que demonstram o julgamento divino Mas, esses sinais não devem nos deixar atemori-
zados, pois Jesus mesmo disse que não devíamos
Um outro importante grupo de sinais que indi- nos assustar. Como diz Hoekema, “não devemos
cam a vinda iminente de Jesus diz respeito aos ficar atemorizados, mas devemos aceitá-los como
que demonstram o julgamento divino sobre o dores do nascimento de um mundo melhor”5
mundo. Nessa classe se encontram as guerras, os
5 Anthony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 217.
193

(Ver Rm 8.22). Num sentido a geração atual tem tou a parábola dos talentos, falando de um homem
sido privilegiada em ver tantos sinais, embora em que se ausentou do país, e que distribuiu dinhei-
si, esses sinais sejam negativos. Mas eles demons- ro para alguns servos. A um deu cinco talentos, a
tram que a luz já está brilhando no horizonte. outro dois, e a outro um. Jesus enfatiza que cada
um ganhou segundo a sua própria capacidade (v.
15). O que recebeu cinco talentos fez negócios e
ganhou mais cinco. O que recebeu dois ganhou
A RESPONSABILIDADE DE VIGIAR mais dois. Mas, o que recebeu um, com medo de
perder o dinheiro, resolveu enterrá-lo. Quando o
Como dissemos, Jesus não apontou sinais para senhor voltou, cada servo foi apresentar as contas
assustar, e sim para que estivéssemos prepara- diante do Senhor. Os dois primeiros receberam
dos. Jesus contou várias parábolas ao final de seu elogios do Senhor, pois administraram sabiamen-
sermão escatológico, no livro de Mateus, que nos te o que haviam recebido, fazendo uso dos bens
ajudam a entender a necessidade de olhar para os do Senhor. Porém, o que recebeu um talento ape-
sinais e ficar em vigilância. Ele diz que dois pode- nas, entregou o mesmo dinheiro, argumentando
rão estar juntos no campo, mas um ser levado por que agiu assim porque ficou com medo de perder
Deus e o outro abandonado (Mt 24.40). Também o dinheiro, pois sabia do rigor com que o senhor
duas mulheres poderão estar juntas moendo e só tratava essas questões de dinheiro. Jesus chamou
uma ser levada (Mt 24.41). Proximidade física aquele servo de mau e negligente (v. 26). Como
não adiantará nada naquele dia, é preciso vigilân- consequência perdeu até aquele talento que re-
cia. Como ninguém sabe em qual dia o Senhor cebeu, o qual foi acrescido ao que tinha dez. E o
vem, todos devem vigiar (Mt 24.42), como um servo inútil foi lançado fora, nas trevas (v. 30). Do
pai de família que não sabe quando o ladrão vem, mesmo modo que as virgens néscias ficaram de
e, portanto, deve vigiar sempre (Mt 24.43). fora porque não tinham azeite, este servo ficou de
fora porque não administrou dignamente o que
Em seguida, Jesus contou duas parábolas para havia recebido de Deus. Quem não vigiar pode
ilustrar ainda mais a necessidade de vigilância. realmente ficar de fora.
Fala do servo que, pensando que o seu senhor
demoraria, começou a se aproveitar da situação. Nós que vivemos dois mil anos depois da vinda
Porém, quando ele menos imaginasse, o senhor de Jesus, não temos nenhuma dúvida de que ele
viria e o puniria (Mt 24.45-51). E fala também já veio uma vez aqui. Sua primeira vinda é um
das virgens que esperavam o noivo. Cinco delas fato histórico para nós. Mas muitos do Antigo
levaram azeite suficiente para as lâmpadas e cin- Testamento viveram e morreram na expectativa
co não. As cinco que levaram puderam entrar na da vinda do Messias. Muitos desistiram de espe-
festa das bodas, mas as cinco que não levaram, rar, mas, de repente ele veio. Entre os que espe-
ficaram de fora (Mt 25.1-12). E Jesus arremata: ravam estavam os magos e os pastores. Especial-
“Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora” mente Ana e Simeão são exemplos de pessoas que
(Mt 25.13). continuavam a esperar a consolação de Israel (Lc
2.25-38). Os dois estavam no templo naquele dia
Um outro aspecto importante que Jesus enfatizou quando o Senhor, ainda bebê, foi finalmente leva-
em relação a estar preparado para sua vinda, foi a do ao templo. Certamente eram observadores de
necessidade de administrar responsavelmente os sinais. Igualmente eram os magos que seguiram
bens concedidos por ele (Mt 25.14-30). Jesus con-
194

a estrela, e os pastores que obedeceram às ordens


do anjo. Mas o que os sinais têm produzido em
nossa vida? Será que somos observadores de si-
nais? Ou será que somos como os fariseus que sa-
biam quando ia chover, mas não conseguiam ver
o óbvio? Será que estamos vendo a luz despontar
no horizonte? E que transformações isso tem pro-
duzido em nossa vida? Os sinais não foram pos-
tos para causar medo ou suscitar especulações,
mas para vigiar.
195

27

A ÚLTIMA OPORTUNIDADE DO MAL

INTRODUÇÃO A manifestação do Anticristo é um dos si-


nais mais decisivos em relação à Vinda de
Poucos assuntos têm despertado mais a curio- Cristo, pois ela antecede imediatamente a vinda
sidade das pessoas do que a manifestação do de Jesus. Faz parte daquele grupo de sinais que
Anticristo. A Besta do Apocalipse figura entre indicam oposição contra Deus, e ao momento da
as personagens mais enigmáticas e polêmicas apostasia que já foi estudado no capítulo anterior.
da história. O número da Besta já fez com que A palavra “Anticristo” aparece quatro vezes na Bí-
Holywood ganhasse muitos milhões de dólares blia, todas nos escritos de João. Mas João não é
em produções fantasiosas e especulativas. Pou-
o único a falar sobre o Anticristo. Paulo advertiu
cas pessoas não se sentem atraídas por estas
os crentes de Tessalônica que não deviam esperar
coisas. Mas afinal quem é o Anticristo? Será ele
a vinda do Senhor antes do aparecimento de um
uma pessoa ou uma instituição? O que ele re-
certo “homem da iniquidade” (2Ts 2.3). Jesus fa-
presenta para os planos do maligno? E por que
lou sobre o “abominável da desolação” assentado
Deus permitirá sua manifestação? Estudar so-
bre o Anticristo é tomar conhecimento sobre os no lugar santo (Mt 24.15). O profeta Daniel falou
planos de guerra do grande inimigo de Deus. É sobre um “chifre pequeno” que se estabeleceria e
como se estivéssemos numa guerra e tivéssemos falaria insolências (Dn 7.8), e de um príncipe, que
acesso aos planos secretos do inimigo. Por um há de vir, que destruirá a cidade e o santuário (Dn
lado ficamos impressionados com todo o mal 9.26). Falou ainda de um rei que se levantará e se
que ele tem planejado contra o povo de Deus, engrandecerá sobre todo deus, e contra o Deus dos
e por outro, nos enchemos de coragem, pois já deuses falará coisas incríveis (Dn 11.36-37). Por-
não seremos pegos de surpresa. Acima de tudo, tanto, a vinda deste personagem maligno é bastan-
estudar sobre o Anticristo nos leva a perceber te prevista na Escritura.
a misericórdia, a graça e o poder do Senhor Je-
sus Cristo, que destruirá este inimigo com a sua
vinda.
196

A CONSUMAÇÃO DO MAL detido a manifestação do Anticristo. Poucos tex-


tos têm dado mais elementos para discussão do
Paulo explicou: “Irmãos, no que diz respeito à vin- que este.1 A nossa opinião é a mesma de Calvi-
da de nosso Senhor Jesus Cristo e à nossa reunião no:2 O que detém a manifestação do Anticristo é
com ele, nós vos exortamos a que não vos demo- a pregação do Evangelho em todo o mundo.3 O
vais da vossa mente, com facilidade, nem vos per- próprio Jesus disse que ela precisaria acontecer
turbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer antes do fim (Mt 24.14). Juntamente com a pre-
por epístola, como se procedesse de nós, supondo gação do Evangelho está a atuação da graça co-
tenha chegado o Dia do Senhor. Ninguém, de ne- mum de Deus restringindo a plena manifestação
nhum modo, vos engane, porque isto não acon- do mal. Quando Deus entender que o mundo já
tecerá sem que primeiro venha a apostasia e seja ouviu suficientemente o Evangelho e levantar a
revelado o homem da iniquidade, o filho da per- barreira da graça comum, este mundo será entre-
dição” (2Ts 2.1-3). A manifestação deste inimigo gue ao poder de Satanás. De certo modo, isto já
de Deus é a consumação da Apostasia que carac- vem acontecendo aos poucos.
terizará os dias que antecederão a volta de Jesus.
A grande tribulação que redundará em extrema Paulo descreve ainda que o inimigo terá à sua dis-
perseguição aos cristãos dará vazão à apostasia, posição todo o poder do Diabo para enganar as
pois os crentes nominais e mesmo aqueles que pessoas:
por interesse pessoal se infiltraram na igreja de
Cristo, abandonarão a fé que professaram. Estes Ora, o aparecimento do iníquo é segundo a eficá-
certamente seguirão o Anticristo, deixando rece- cia de Satanás, com todo poder, e sinais, e prodí-
ber a marca do seu nome. Neste tempo, haverá gios da mentira, e com todo engano de injustiça
necessidade de perseverança como nunca hou- aos que perecem, porque não acolheram o amor
ve, pois o homem da iniquidade, segundo Paulo, da verdade para serem salvos. É por este motivo,
“se opõe e se levanta contra tudo que se chama pois, que Deus lhes manda a operação do erro,
Deus ou é objeto de culto, a ponto de assentar-se para darem crédito à mentira, a fim de serem
no santuário de Deus, ostentando-se como se fos-
se o próprio Deus” (2Ts 2.4). Ele não só persegue
1 Hendriksen sustenta que é o “poder do governo
os seguidores de Deus, como se fará passar por
humano bem ordenado” (Ver William Hendriksen. 1 e 2
Deus. Neste sentido ele é Anticristo, pois “anti” Tessalonicenses, p. 268). Bruce simpatiza com a opinião
pode significar tanto algo contrário, como con- tradicional: Império Romano. (Ver F. F. Bruce. Word Bibli-
corrente. Ele tanto se levanta contra Deus, como cal Commentary, Volume 45: 1 & 2 Thessalonians, 2Ts 2.6
“Excursus on Antichrist”).
se faz passar por Deus. Desde os dias do Apósto-
lo Paulo, o mundo já vem sendo preparado pelas 2 John Calvin. Commentary on the Second Epistle
to the Tessalonians, 2Ts 2.6. Marshal também sustenta esta
forças malignas, para a manifestação do grande ideia (Ver I. Howard Marshall. 1 e 2 Tessaloniscenses, p.
inimigo do povo de Deus. Paulo já dizia: “Com 234-235).
efeito, o mistério da iniquidade já opera e aguar- 3 Cullmann critica as duas posições tradicionais
da somente que seja afastado aquele que agora o que defendem que “o que o detém” seria o Império Roma-
detém; então, será, de fato, revelado o iníquo, a no ou um Anjo advindo das ideias mitológicas. Para ele, o
que detém a vinda do Anticristo é a pregação do Evangelho
quem o Senhor Jesus matará com o sopro de sua aos gentios na pessoa do próprio apóstolo Paulo (Ver Oscar
boca e o destruirá pela manifestação de sua vin- Cullmann. Das Origens do Evangelho à Formação da Teo-
da” (2Ts 2.8-9). Paulo diz que alguma coisa tem logia Cristã,
p. 61-92).
197

julgados todos quantos não deram crédito à ver- censão pôs fim ao poder do Diabo, lhe tirando o
dade; antes, pelo contrário, deleitaram-se com a status de acusador (Rm 8.33). Quando o Dragão
injustiça (2Ts 2.9-12). perdeu seu lugar de acusador por causa da obra
de Cristo, só lhe restou a chance de perseguir di-
Os milagres realizados pelo destruidor são sus- retamente a igreja. Note a ira com que ele desceu,
tentados pelo próprio Satanás, mas as pessoas sabendo que seu tempo é curto (12.12). Mas, a
acreditarão que sejam de origem divina. perseguição do Dragão é frustrada pela proteção
divina. A mulher, que representa a igreja, é man-
Portanto, a vinda do Anticristo é a consumação tida longe do alcance do Dragão (1Jo 5.18). Ela
das operações do mal em todos os tempos. O fato é sustentada por Deus, como Israel foi no deser-
de ele aparecer apenas no fim do mundo apon- to com o maná (Palavra de Deus), por 1260 dias.
ta para uma realidade assustadora. Este mundo Este tempo refere-se ao tempo completo da dis-
não progredirá até atingir graus de perfeição pensação cristã.5 De várias formas o Dragão tenta
como muitos pensam, mas regredirá até os pa- perseguir a igreja. Ele lança uma torrente de men-
drões mais baixos do mal que podem existir. Este tiras, de perseguições, de desilusões, de falsida-
mundo piorará até estar pronto para a vinda do des religiosas e filosóficas, de utopias políticas, de
filho da perdição. Isto nos faz entender que “dias dogmas quase científicos; mas a verdadeira igreja
melhores não virão”. Ao mesmo tempo, é possível vence todas essas coisas e permanece fiel, graças à
ver nas movimentações globais que privilegiam o proteção divina. As pessoas mundanas, por outro
materialismo e destroem os pilares da família e lado, engolem o rio inteiro.
do cristianismo, esforços monumentais para pre-
parar o mundo para a vinda do Anticristo. A primeira besta

Como se viu fracassado em seu propósito de im-


pedir a vinda do descendente, o Dragão foi perse-
O DRAGÃO E SEUS ALIADOS guir os descendentes da mulher individualmente,
ou seja, os crentes individuais. Para isso ele foi
O livro do Apocalipse é o livro que contém mais buscar ajuda, chamando a besta do mar e a besta
informações sobre o Anticristo. No capítulo 12, da terra.6 O Dragão se colocou em pé sobre a areia
João descreve uma batalha no céu. Dois exércitos do mar e chamou uma besta (Ap 12.17). Lenta-
lutam, e a luta é a mesma de sempre: o mal con- mente foi surgindo do mar um monstro horrível.
tra o bem. O bem vence e o mal, perde seu posto Primeiro apareceram os chifres, depois o corpo
naquele lugar onde o destino dos homens é esta- todo. Ela se parece com um leopardo, mas tem
belecido e dirigido. Quando ocorreu esta batalha? pés de urso e boca de leão (Ap 13.2). Esses são
Na exaltação de Cristo, quando ele venceu seus
inimigos, colocando-os debaixo de seus pés (Ef ca, a grande vitória de Cristo sobre os principados e potes-
1.20-22).4 Cristo por sua morte, ressurreição e as- tades.
5 As expressões “um tempo, tempos e metade de
um tempo”, “1260 dias”, “três anos e meio” referem-se a um
4 Muitos estudiosos entendem que essa é uma ba-
mesmo período de tempo. É a dispensação cristã inteira
talha mítica, a semelhança de várias batalhas entre anjos
desde a primeira até a segunda vinda. É um período muito
e demônios das literaturas primitivas (Ver David E. Aune.
longo, em que Satanás persegue a igreja.
Word Biblical Commentary, Volume 52b: Revelation 6-16,
(Ap 12.7-9). É preferível pensar que esteja descrevendo, em 6 Ver William Hendriksen. Mais que Vencedores, p.
termos simbólicos, como é próprio da literatura apocalípti- 175-181.
198

exatamente os três animais vistos por Daniel no (2Co 11.14). Ela simboliza todos os falsos pro-
capítulo 7. Quem eram aqueles animais, segun- fetas em cada nova época que a igreja vive. Eles
do Daniel? Eram impérios mundiais. Talvez aqui vêm disfarçados como ovelhas, mas interiormen-
esteja a pista para entender o que significam no te são lobos vorazes (Mt 7.15). Cristo disse: “Le-
Apocalipse. Note que a besta surge do mar. O mar vantar-se-ão muitos falsos profetas e enganarão
na Bíblia representa as nações e seus governan- a muitos” (Mt 24.11). A segunda besta é a falsa
tes (Is 17.12; Ap 17.15). Portanto, esta primeira religião que, de mãos dadas com o Estado, des-
besta deve ser o poder político. É o domínio, seja via as pessoas do Deus verdadeiro. As duas bes-
através da democracia ou da ditadura, é a forma tas trabalham em perfeita cooperação, e serão os
com que Satanás usurpadoramente controla este dois grandes instrumentos do Dragão. Elas são a
mundo, sendo de fato o seu príncipe (Mt 4.8-9). sustentação do ministério maligno do “homem
Esta besta assume diferentes formas ao longo da da iniquidade”. Através do poder político e da re-
história: Babilônia, Assíria, Medo Pérsia, Grécia- ligião, o Anticristo vai controlar toda a terra. Elas
-Macedônia, Roma, Igreja Romana, Alemanha, estão unidas e em alguns casos até aparentemente
União Soviética, Estados Unidos, Comunidade uma contra a outra, mas o objetivo é sempre o
Europeia, China, etc., pois todas são apenas ex- mesmo: enganar. Nos dias de João isto já aconte-
pressões de seu poder. Sua ferida mortal também cia. O sacerdote pagão defendia e dava seu apoio
é fácil de entender, pois os impérios se levantam ao poder secular do estado em sua perseguição
e caem, e sempre existe um novo império domi- aos crentes. Os sacerdotes defendiam que “César
nando o mundo. Por outro lado, essa ferida pode era Senhor”, e recorriam até mesmo a embustes e
se referir também a um Império que foi destruído pseudomilagres para enganar as pessoas, a fim de
no passado e que pode voltar a dominar no futu- que adorassem a estátua do Imperador.7 Mas, se-
ro. No caso mais imediato, representava a perse- jam falsos ou verdadeiros os sinais, a intenção é a
guição de Nero que havia se suicidado, mas que mesma: “Enganar, se possível, os próprios eleitos”
voltava com toda força com Domiciano. Entre- (Mt 24.24).
tanto, cremos que a descrição mais ampla se apli-
ca ao próprio Anticristo. O tempo de perseguição O número da besta
infligido pela besta é quarenta e dois meses, que,
simbolicamente, representam o período inteiro O número da besta tem sido a fonte das maio-
da dispensação cristã. Nesse período os governos res especulações ao longo da história. Alguns
anticristãos blasfemam contra Deus e oprimem a somam as letras de Nero, do papa, ou de algum
igreja. A igreja deve suportar com paciência esta outro líder político para chegar ao 666. Outros
perseguição, sabendo que no fim, Cristo lhe asse- dizem que é o símbolo da maçonaria, da moeda
gurará a vitória. americana, etc. Embora seja verdade que a soma
do número das letras do título Nero Cezar seja
A segunda besta 666, e neste sentido, Nero realmente representa-
va o domínio da Besta nos tempos do Apóstolo
A segunda besta, que surge da terra, é uma imita- João (pois já nos tempos primitivos, não ser um
ção do Cordeiro de Deus (Ap 13.11-18). Em tudo adorador de César podia trazer sérios prejuízos
ela se parece com algo bom, mas intimamente é para os crentes), a verdade é que a marca da bes-
um agente do diabo. Portanto, a segunda besta é
a mentira de Satanás com aparência de verdade 7 Ver William Hendriksen. Mais que Vencedores, p.
178.
199

ta sempre aparece junto com ela, e sempre esteve mais próximo possível do verdadeiro. E por que o
no mundo. Assim como o Apocalipse relata que fato de alguém não possuir este número o impe-
os crentes foram selados com a marca de Deus de de comprar ou vender alguma coisa? Antes de
(Ap 7.3), os ímpios são marcados com a marca do responder a essa pergunta, é preciso notar que o
diabo. Esta marca é uma marca de propriedade, texto não diz que o crente não poderá desenvol-
e todas as vezes que aparece no Apocalipse está ver nenhum meio de sobrevivência. Será que nem
conectada com o ato de adorar a besta (Ap 14.11; plantar e colher será possível? E fazer negócios de
Ap 20.4). Como diz Hendriksen, “devemos lem- compra e venda entre os próprios crentes? Possi-
brar que não somente gado, mas também escra- velmente todas essas perguntas estejam erradas,
vos eram estigmatizados ou marcados. A marca exatamente porque seguem a linha de raciocínio
significava que o escravo pertencia a seu senhor”.8 errada. Mas a solução pode ser mais simples do
Então, ter a marca significa pertencer e adorar a que se imagina. O que o texto está querendo di-
besta, ou seja, ser um escravo dela. A marca é pos- zer é que vai ficar cada vez mais difícil um crente
ta na mão direita e na fronte. A fronte simboliza a sobreviver honestamente neste mundo. Se ele não
mente, o intelecto da pessoa, enquanto que a mão faz parte do sistema, se ele não sonega, suborna,
representa sua atividade física, sua ocupação, seu usa pesos e medidas falsos, e outros meios ilícitos
trabalho. Isso quer dizer que tanto a mente como que todos praticam, pode acabar ficando sem lu-
as atitudes de alguém que possui a marca da besta cros, pois todos estão fazendo isso. Além do mais,
são dirigidas para a besta e não para Deus. Não é se ele se recusa a fazer trabalhos ilícitos para os
preciso que seja uma marca literal, assim como patrões, pode perder o emprego. E tudo vai piorar
a marca do batismo também não é literal. Uma grandemente nos últimos dias. O crente que qui-
marca literal seria fácil de ser identificada e tal- ser permanecer fiel terá que se recusar a aceitar a
vez não surpreendesse ninguém. É provável que marca do mundo (Ap 14.9-12).
a marca da besta seja muito mais discreta e su-
til. No nosso entendimento, a marca da besta em Porém, além dessas considerações, não devemos
toda a história é o secularismo e a falsa religião descartar a possibilidade de haver uma marca fí-
que dominam a vida das pessoas. Ou seja, é o sica imposta pelo governo do Anticristo. A igreja
mundo como ele é. A pessoa que tem a marca da deve ficar atenta a tudo o que acontecer. Mas não
besta é um filho deste mundo, que vive de acor- precisa se assustar com tudo o que circula pela
do com o padrão, ou a forma deste mundo (Rm internet ou é escrito em livros, que aponta para
12.2). Essa pessoa está contente com sua manei- uma marca visível. Se permanecermos na Escri-
ra mundana de viver. Quanto ao significado do tura não seremos enganados.
número 666, podemos sugerir muitas hipóteses,
como, por exemplo, o fato de o homem ter sido Quem é o Anticristo?
criado no sexto dia. Sete seria o número divino,
e o seis apenas um abaixo, ou seja, é quase sete. De certo modo, a Besta e o Anticristo não são o
O homem parece ser assim mesmo, ele sempre mesmo personagem. Até porque há duas bestas
“quase chega lá”. E por que três seis? Talvez por- e só um Anticristo. As bestas são o sistema que
que se três setes seriam o máximo da perfeição, Satanás usa para perseguir a igreja, seja através do
três seis são o máximo da imperfeição, ou o falso Estado ou da falsa religião que dita as regras para
a mentalidade mundana. A besta sempre esteve
8 William Hendriksen. Mais que Vencedores, p. em atuação neste mundo, porém, no fim dos tem-
181. pos, sua atuação será mais poderosa do que nun-
200

ca. Mas, e onde se encaixa o Anticristo? Talvez princípio não passa de especulação.
ele esteja conectado com a cabeça ferida da besta
que se levanta, ou seja, ele surge dela. De qualquer Apocalipse 17.12-14 fala ainda de “dez reis”: “Os
forma, ele será apenas o chefe do sistema que já dez chifres que viste são dez reis, os quais ainda
existe (Ver 2Ts 2.1-12; 1Jo 2.18). Podemos até di- não receberam reino, mas recebem autoridade
zer que ele será uma espécie de personalização da como reis, com a besta, durante uma hora. Têm
Besta em sua forma mais poderosa e destrutiva esses um só pensamento e oferecem à besta o po-
que jamais houve, e não haverá. der e a autoridade que possuem. Pelejarão eles
contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, pois é
Já dissemos que a Besta simboliza todos os im- o Senhor dos senhores e o Rei dos reis; vencerão
périos mundiais anticristãos, e João descreve-a também os chamados, eleitos e fiéis que se acham
como sendo aquela que “era e não é” (Ap 17.8). com ele”. Os dez reis simbolizam todos os reis que
Pense na antiga Babilônia de Nimrod, na Assíria, se aliarão à Besta e ao Anticristo para lutar con-
na Babilônia de Nabucodonosor, na Medo-Pérsia, tra o Cordeiro, mas serão derrotados. O mundo
no império Greco macedônio. O que aconteceu estará do lado do Anticristo e perderá com ele. A
com estes impérios? Eram e já não são. Mas su- derrota será na batalha do Armagedom.
bitamente eles aparecem de novo, na figura do
Império Romano, e causam grande admiração
nos homens. Mas nenhum deles dura para sem-
pre, pois quando um novo império se levanta “ca- A BATALHA DO ARMAGEDOM
minha para a destruição” (Ap 17.11). Há novos
impérios hoje no mundo, e de certa forma, são O Anticristo voltará toda sua força para perseguir
apenas ressurreições de impérios anteriores. Mais os santos de Deus. Ele é a consumação do mal e
cedo ou mais tarde todos caminham para des- tentará, de todas as formas, destruir o povo de
truição. Apocalipse 17.9 fala de sete reis. O texto Deus. Ele usará de todos os métodos para fazê-
diz: “Dos quais caíram cinco, um existe, e o outro -los negar ao seu Senhor. Quando se manifestar
ainda não chegou; e, quando chegar, tem de durar será o tempo de provação mais tenebroso que a
pouco. E a besta, que era e não é, também é ele, igreja já enfrentou em todas as eras. O tempo da
o oitavo rei, e procede dos sete, e caminha para perseguição é limitado, e até mesmo “abreviado”,
a destruição” (Ap 17.10-11). Quem são estes cin- pois Jesus disse: “Nesse tempo haverá grande tri-
co reis que já caíram? Talvez seja uma referência bulação, como desde o princípio do mundo até
à Babilônia Antiga, Assíria, Babilônia Moderna, agora não tem havido e nem haverá jamais. Não
Medo-Pérsia e Greco Macedônia. Quem seria o tivessem aqueles dias sido abreviados, ninguém
rei que ainda vivia naquele tempo? Roma. O sé- seria salvo; mas, por causa dos escolhidos, tais
timo, portanto, seria um reino posterior a Roma. dias serão abreviados” (Mt 24.21-22). O que abre-
Talvez sejam todos os reinos entre Roma e o An- via esses dias é a própria vinda do Senhor Jesus.
ticristo, personificado no papado, na Otan, na No momento da sua vinda ele destruirá o iníquo
URSS, USA, etc. De qualquer modo, o Anticristo com o sopro de sua boca e pela manifestação da
é o oitavo rei. Neste sentido ele é a personaliza- sua vinda (2Ts 2.8).
ção da besta, pois é uma das cabeças dela. O mais
impressionante é que o Anticristo será uma das Segundo o Apocalipse, o Anticristo será destruí-
cabeças que já existia. Qual? Qualquer resposta a do na batalha do Armagedom. A palavra “Ar-
magedom” vem do livro de Juízes capítulos 4 e
201

5. Naquele tempo, o povo de Deus era pequeno momento o Anticristo será aniquilado, sem de-
diante dos inimigos, mas na batalha que ocorreu mora ou resistência, o Senhor simplesmente o es-
no monte do Megido os inimigos de Israel foram magará e libertará o seu povo.
derrotados. Portanto, o Armagedom é o símbolo
de todas as batalhas, nas quais os crentes são infe-
riores aos seus inimigos, mas recebem livramento
do Senhor. Quando seu povo é oprimido Deus A ÚLTIMA TENTATIVA DO MAL
intervém para libertá-lo e derrotar os inimigos.
A maior destas batalhas acontecerá no momen- Uma das questões que nos propusemos a respon-
to da Vinda de Cristo. Quando seu povo estiver der neste estudo diz respeito ao porquê de Deus
experimentando o auge da perseguição, o Senhor permitir a manifestação do Anticristo. Como já
descerá do céu para livrá-los (Êx 3.7-8). Apoca- vimos, a Bíblia diz que algo o impede de se mani-
lipse 16.12-16 descreve um ajuntamento de reis e festar. Paulo explicou: “Com efeito, o mistério da
de exércitos sobre a liderança do Anticristo. Eles iniquidade já opera e aguarda somente que seja
se reúnem para lutar contra o Senhor e se ajun- afastado aquele que agora o detém; então, será,
tam no lugar chamado Armagedom. A batalha de fato, revelado o iníquo, a quem o Senhor Je-
do Armagedom é melhor descrita em Apocalipse sus matará com o sopro de sua boca e o destrui-
19.11-21 e 20.7-15. No capítulo 19 João vê o céu rá pela manifestação de sua vinda” (2Ts 2.7-8). O
aberto e o Senhor Jesus montado no cavalo bran- “mistério da iniquidade” que já opera, refere-se
co descendo, seguido de todos os exércitos ce- ao movimento do mal no mundo. São os planos
lestes (Ap 19.11-14). Um anjo chama as aves dos do maligno, os quais ele vem executando desde o
céus para um banquete (Ap 19.17-18). Na terra, o início da criação, numa tentativa insana de vencer
Anticristo e seus aliados estão congregados, espe- a batalha contra Deus. São planos misteriosos ou
rando pela batalha (Ap 19.19). Entretanto, a ba- secretos, pois os homens não têm acesso a eles. O
talha é muito rápida. O inimigo é esmagado sem inimigo age na espreita, oculto nas trevas, espa-
qualquer esforço por parte do Senhor. O Anticris- lhando sua influência nefasta em toda a humani-
to é lançado no Lago de Fogo, os homens que o dade. Ele escraviza os poderosos e os miseráveis,
seguiram são mortos, e as aves têm seu banquete faz com que todos sigam o curso do mundo que
(Ap 19.20-21). ele mesmo estabeleceu (Ef 2.2). Mas apesar de
todo o mal que ele provoca, o fato é que ele não
A certeza que temos é que o grande inimigo do provoca todo o mal que podia provocar. E a ra-
povo de Deus, o Anticristo, cairá na vinda de Je- zão disto é que algo o impede de agir livremente.9
sus. Porém, durante o tempo que Deus lhe con- É nesse sentido que os Amilenistas entendem o
ceder para realizar seus planos malignos, ele será aprisionamento de Satanás em Apocalipse 20.1-
praticamente invencível. A igreja não poderá re- 3. E também as próprias palavras de Jesus sobre
sistir ao seu poder, pois está escrito que terá po- sua atividade de “amarrar o valente” (Mc 3.27).
der para lutar contra os santos e os vencer (Ap
13.7). Mas quando a situação parecer insustentá- 9 Diversas teorias têm sido apontadas para explicar
vel para o povo de Deus, de repente se verá um a enigmática expressão de Paulo “aquele que agora o de-
sinal no céu, e como um relâmpago que sai do tém”. A missão de Paulo, O Espírito Santo, o Império Roma-
no, são algumas delas (Ver F. F. Bruce. Word Biblical Com-
oriente e vai até o ocidente, o Senhor voltará com mentary, Volume 45: 1 & 2 Thessalonians, (2Ts 2.7). É mais
forte clangor de trombeta (Mt 24.27-30). Naquele provável que seja o ato divino de restringir o mal, que será
liberado quando Satanás for solto da prisão dos mil anos.
202

Deus não tem deixado o inimigo agir livremente


no mundo, mas parece que pouco tempo antes da
vinda de Jesus, ele finalmente terá esta oportuni-
dade. A vinda do Anticristo consumará todas as
atividades malignas neste mundo. Será, num sen-
tido, a última e a maior chance do mal.

Deus permitirá que este inimigo finalmente se


manifeste, numa espécie de encarnação maligna,
para que fique bem claro que Deus é soberano. A
manifestação do inimigo, ao invés de destruir os
planos de Deus, na verdade segue os planos de
Deus. E está nestes planos que ele seja destruído
no momento da vinda de Jesus.

CONCLUSÃO

Concluindo, não sabemos quando o Anticristo


se manifestará, mas bem pode ser que já esteja
às portas. Todas estas transformações mundiais
que têm acontecido no campo da economia, da
tecnologia, da política, da religião e da moral,
sugestionam que o mundo está sendo preparado
para a vinda deste homem. Estritamente falando,
talvez este seja o único dos sinais que apontam a
vinda de Jesus que ainda não se cumpriu. Mas ao
que tudo indica, não deve estar muito longe. De-
vemos ficar atentos, porém, não há motivos para
sobressaltos, nem para atitudes desesperadas.
Não devemos acreditar em tudo o que a imagi-
nação das pessoas diz sobre o Anticristo ou sobre
a marca da Besta. Confiantes em Deus, atentos, e
diligentemente estudando sua Palavra, devemos
viver em paz neste mundo, pois o Senhor não
permitirá que sejamos tentados além das nossas
forças (1Co 10.13).
203

28

A SEGUNDA VINDA DE CRISTO

INTRODUÇÃO povo dos seus inimigos e de todo o sofrimento


e mal que, este mundo oferece. Mas, hoje se diz
Parece que o cristianismo dos dias atuais não que quando alguém se converte, poderá ter uma
se interessa muito pela volta do Senhor. Antiga- boa casa, carros, um bom emprego, casa na praia,
mente, a igreja tinha uma expectativa pela vinda etc. Hoje se diz que quando alguém se converte,
gloriosa do Senhor Jesus. Os hinos, os corinhos não terá mais problemas de saúde, nem familiar
e a pregação daqueles dias eram permeados por ou emocional. Sofrimento e mal eram palavras
expressões que apontavam para a vinda do Se- comuns dos cristãos da igreja primitiva, mas não
nhor em poder e grande glória. Por que será que são palavras da igreja do século xxi. E por isso, a
o cristianismo de hoje praticamente não se inte- pregação de hoje não tem mais espaço para a Se-
ressa mais pela vinda de Jesus? Pela mesma razão gunda Vinda de Cristo, e por esta razão, boa parte
por que não se importa muito com o céu. Anti- dos cristãos vive como se Jesus não fosse voltar.
gamente a pregação do Evangelho dizia mais ou
menos o seguinte: creia em Jesus e você será livre Para os cristãos autênticos, entretanto, o evento
do Inferno e poderá ir para o céu. Mas a prega- mais esperado continua sendo a Segunda Vinda
ção de hoje diz: aceite Jesus e você será próspero, de Jesus. O cristão verdadeiro sabe que esse mun-
não terá mais doenças, e Deus fará todo tipo de do sempre será um lugar traiçoeiro e perigoso
milagres por você. O foco de antigamente era o para alguém que deseja ser fiel, por essa razão, a
céu, o de hoje é a terra. Antigamente Deus livrava glória dos reinos desse mundo já não brilha tanto
do Inferno, hoje livra do fracasso, da falência, da aos seus olhos (Mt 4.8-9). Não que o crente seja
enfermidade, etc. Em meio a isso tudo, a Segunda alguém que não gosta dessa vida. Essa vida é um
Vinda de Jesus tem perdido o interesse. dom de Deus, e um crente experimenta alegria
verdadeira aqui (sempre – Fp 4.4,11), mas o cris-
A Bíblia descreve a Segunda Vinda como a gran- tão verdadeiro sabe que momentos de calmaria
de libertação dos cristãos. Em meio à tribulação e logo podem virar tempestades, e por isso, sua
à perseguição, o Senhor voltará para livrar o seu esperança maior está naquele dia, quando todas
204

as promessas divinas se cumprirão. Naquele dia habitantes da terra, inclusive a parte não-salva da
a suprema justiça de Deus se manifestará neste igreja. Depois dos sete anos o Senhor voltará com
mundo. A Bíblia nos orienta a direcionar toda a sua igreja, Israel se converterá e Deus estabelecerá
esperança, expectativa e a razão de nossas exis- o milênio.1 O maior argumento contra essa ideia
tências para aquele dia fantástico quando Cristo é o simples fato de que as passagens da Escritura
voltar. Naquele dia, os verdadeiros crentes exulta- que descrevem a tribulação, não dizem que a igre-
rão, pois o Senhor virá livrá-los de todas as suas ja será livre dela. Como já vimos, quando Jesus
tribulações. A tribulação é justamente o que ante- anunciou a grande tribulação, disse que ela seria
cederá a Segunda Vinda de Jesus. abreviada por causa dos eleitos. Então, certamen-
te eles estarão no meio dela. Paulo diz aos cren-
tes de Tessalônica que não deviam esperar a vin-
A GRANDE TRIBULAÇÃO da de Jesus antes do aparecimento do Anticristo
(1Ts 2.1-3). De que adiantaria Paulo lhes avisar
Jesus disse que os últimos dias seriam tempos de sobre isso, se não houvesse chance deles estarem
grande tribulação. Há um sentido em que a tribu- na terra quando o Anticristo aparecesse? Na ver-
lação marca todos os períodos da igreja. Sempre dade a tribulação existirá por causa da igreja. Por
há provações, perseguições e dificuldades a serem que haveria tribulação para incrédulos ou cristãos
vencidas pelos crentes, porém, o Senhor falou de nominais? A tribulação serve para amadurecer a
uma “grande tribulação” em Mateus 24.21-22: fé. Ela será conduzida por Satanás e o Anticristo,
“Porque nesse tempo haverá grande tribulação, mas Deus a permitirá para provar o seu povo, po-
como desde o princípio do mundo até agora não rém, não os deixará cair. A tribulação não durará
tem havido e nem haverá jamais. Não tivessem muito, pois a vinda do Senhor a abreviará. Se não
aqueles dias sido abreviados, ninguém seria sal- fosse abreviada, ninguém a suportaria. Isso nos
vo; mas, por causa dos escolhidos, tais dias serão fala da intensidade única e espantosa desta tribu-
abreviados”. A tribulação que Jesus descreve é lação final.
extraordinária, pois sua intensidade é superior a
todos os outros momentos de tribulação na his- A grande tribulação mesclará perseguições com
tória. Ao mesmo tempo, a tribulação é abrevia- derramamento da ira de Deus. É evidente que a
da, ou seja, interrompida. O que interrompe essa ira de Deus não atingirá a igreja de Cristo. O sé-
tribulação? A vinda de Cristo para resgatar seu timo capítulo do Apocalipse diz que os servos de
povo. Deus são marcados em suas frontes, para que a
Ira de Deus não caia sobre eles (Ap 7.1-3). Po-
Alguns estudiosos pré-milenistas acreditam que a rém, como diz Hoekema, “proteção da ira de Deus
igreja será arrebatada antes da tribulação. Segun- não implica em libertação da ira do homem”.2 O
do esse entendimento, Jesus virá nas nuvens e ar- Anticristo colocará todas as suas forças contra o
rebatará sua igreja. Após o arrebatamento da igre- povo de Deus e conseguirá levar muitos à morte,
ja, haverá sete anos de tribulação na terra, que são enquanto outros provavelmente apostatarão da fé
identificados com a septuagésima semana de Da- para não serem perseguidos. Quando isso acon-
niel (Dn 9.27). Durante esses sete anos, Deus per-
mitirá o aparecimento do Anticristo, e todo tipo 1 Ver Paul Enns. The Moody Handbook of Theo-
de perseguição aos cristãos nominais e à nação logy, Tópico: “Dispensational Premillennialism”. Ver tam-
de Israel. Também haverá juízos terríveis sobre os bém: Antony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 221-222.
2 Antony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 228.
205

tecer, devemos nos lembrar das palavras de Jesus: evento único, mas, muitos crentes têm imagi-
“Aquele, porém, que perseverar até ao fim, esse nado que haverá mais de uma vinda do Senhor.
será salvo” (Mt 24.13). Como já dissemos, especialmente aqueles que
creem na existência literal do milênio (pré-tri-
Portanto, a Bíblia dá razões suficientes para que bulacionistas), pensam em mais de uma vinda.
esperemos a Vinda do Senhor. Ele virá nos livrar Segundo estes, a primeira vinda do Senhor será
de todas as nossas tribulações. Aqueles cristãos para seu povo. Depois de sete anos, ele virá com
que pensam que a vida cristã pode ser um mar o seu povo para a batalha contra os ímpios e o
de tranquilidade, devido a todo tipo de “triun- estabelecimento do Reino. Alguns chegam a dizer
falismo” das pregações modernas, deveriam se que no fim do milênio haverá outra vinda do Se-
preocupar um pouco mais, pois a Bíblia diz que, nhor para destruir o Diabo.3 A Bíblia, porém fala
“todos quantos querem viver piedosamente em de uma única vinda de Cristo a qual será visível a
Cristo Jesus, serão perseguidos” (2Tm 3.12). todos os homens (Ap 1.7). Esta vinda será, tanto
para os seus santos, como com seus santos, porém
num único evento. Ele vem para seus santos, pois
A VINDA INCONFUNDÍVEL DE JESUS vem resgatá-los da tribulação. Porém, ele tam-
bém vem com os seus santos (1Ts 3.13), porque,
A Bíblia diz que a vinda de Jesus será inconfun- conforme Paulo diz em 1Tessaloniscenses 4.14, o
dível. Jesus falou que haveria um tempo de tri- Senhor trará os que dormem com ele na sua vin-
bulação ímpar na história, e que aqueles dias se- da. Então, isso significa que Jesus trará com ele
riam abreviados por causa dos escolhidos, pois, aqueles que tiverem morrido e os fará ressuscitar
caso contrário, eles mesmos correriam riscos (Mt no momento do arrebatamento. Por essa razão,
24.21-22). Aparentemente a tribulação será terrí- Paulo disse que os mortos em Cristo ressuscitarão
vel pela tentativa maligna de enganar os crentes. primeiro (1Ts 4.13-17).
Por isso Jesus fala sobre a necessidade de estar
atento para não ser enganado. Ele diz: “Então, se Acima de tudo é preciso destacar que a segunda
alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! Ou: Ei-lo vinda de Jesus será uma vinda em glória e poder.
ali! Não acrediteis; porque surgirão falsos cristos Quando aqui esteve pela primeira vez, Jesus foi o
e falsos profetas operando grandes sinais e pro- humilde carpinteiro de Nazaré que sofreu pelos
dígios para enganar, se possível, os próprios elei- pecados dos homens. Na segunda vinda, como
tos. Vede que vo-lo tenho predito” (Mt 24.23-25). ele próprio disse, retornará “sobre as nuvens do
O inimigo sempre tentará falsificar as coisas de céu com poder e muita glória” (Mt 24.30). João
Deus para seduzir as pessoas. Talvez ele tente fal- anteviu profeticamente essa volta. Uma de suas
sificar a própria vinda de Jesus. Porém, Jesus disse descrições mais impressionantes está no capítulo
que sua vinda seria inconfundível: “Porque, assim 19 de Apocalipse. Ele diz:
como o relâmpago sai do oriente e se mostra até
no ocidente, assim há de ser a vinda do Filho do Vi o céu aberto, e eis um cavalo branco. O seu ca-
Homem” (Mt 24.27). Jesus não voltará de forma valeiro se chama Fiel e Verdadeiro e julga e peleja
particular ou privada, sua vinda será totalmente
pública, de forma que todo olho o verá (Ap 1.7).
3 Alguns pré-milenistas têm acreditado numa única
vinda de Cristo, e nesse ponto estão em conformidade com
A Bíblia descreve a vinda do Senhor como um a Escritura. Ver Louis Berkhof. Teologia
Sistemática, p. 701-702.
206

com justiça. Os seus olhos são chama de fogo; na da campina, lembrou-se Deus de Abraão e tirou
sua cabeça, há muitos diademas; tem um nome a Ló do meio das ruínas, quando subverteu as ci-
escrito que ninguém conhece, senão ele mesmo. dades em que Ló habitara” (Gn 19.29). Esse ato
Está vestido com um manto tinto de sangue, e o de Deus de se lembrar de seu povo e retirá-lo é o
seu nome se chama o Verbo de Deus; e seguiam- próprio espírito do arrebatamento. De certa for-
-no os exércitos que há no céu, montando cavalos ma, a mesma coisa aconteceu quando o povo de
brancos, com vestiduras de linho finíssimo, bran- Israel foi tirado do Egito. O Senhor mesmo disse
co e puro. Sai da sua boca uma espada afiada, para a Moisés: “Certamente, vi a aflição do meu povo,
com ela ferir as nações; e ele mesmo as regerá com que está no Egito, e ouvi o seu clamor por causa
cetro de ferro e, pessoalmente, pisa o lagar do vi- dos seus exatores. Conheço-lhe o sofrimento; por
nho do furor da ira do Deus Todo-Poderoso. Tem isso, desci a fim de livrá-lo da mão dos egípcios e
no seu manto e na sua coxa um nome inscrito: para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e
reis dos reis e senhor dos senhores (Ap 19.11-16). ampla, terra que mana leite e mel” (Ex 3.7-8).

João está descrevendo a vinda vitoriosa do Se- Deus realizou várias pragas no Egito, e no meio
nhor quando ele destruirá todos os seus inimigos. da última praga, retirou seu povo com mão pode-
Naquele dia as forças do mal serão destruídas e o rosa, fazendo-o atravessar o Mar Vermelho. De-
Senhor estabelecerá seu reino eterno. O seu povo pois, seus inimigos foram todos destruídos (Ex
será definitivamente livre de todo pecado, de todo 12-14). Algo semelhante acontecerá no fim.
sofrimento e de todo mal.
A eleição e o arrebatamento

O ARREBATAMENTO DO POVO DE DEUS Jesus disse que o arrebatamento aconteceria no


momento exato de sua vinda: “Então, aparece-
Duas questões são importantes nesse ponto: O rá no céu o sinal do Filho do Homem; todos os
que é o arrebatamento e quando ele acontecerá? povos da terra se lamentarão e verão o Filho do
Arrebatamento é um ato de socorro divino pelo Homem vindo sobre as nuvens do céu, com po-
qual ele retira seus filhos de algum lugar, após der e muita glória. E ele enviará os seus anjos,
algum tempo de provação, e antes de executar com grande clangor de trombeta, os quais reuni-
seu Juízo sobre seus inimigos. Arrebatamento é rão os seus escolhidos, dos quatro ventos, de uma
sinônimo de resgate ou livramento especial. Há a outra extremidade dos céus” (Mt 24.30-31). O
muitas passagens na Bíblia que apontam para o arrebatamento que acontecerá no momento da
arrebatamento. Mesmo no Antigo Testamento já Segunda Vinda será exclusivo para os escolhidos.
podemos ter alguma ideia disso. Quando Deus Ele volta a dizer: “Então, dois estarão no campo,
decidiu destruir Sodoma e Gomorra por cau- um será tomado, e deixado o outro; duas estarão
sa da malícia delas, havia uma família que Deus trabalhando num moinho, uma será tomada, e
não queria que fosse destruída. Era a família de deixada a outra” (Mt 24.40-41). A absoluta esco-
Ló, o sobrinho de Abraão. Por essa razão Deus lha divina norteará os anjos no momento de reti-
enviou dois anjos do céu para retirar a referida rar da terra aqueles que pertencem a Deus, como
família, antes de mandar os flagelos da destrui- os anjos retiraram Ló antes que Deus destruísse
ção (Gn 19.1-29). O último verso desta conhecida Sodoma. O amor e a fidelidade de Deus em re-
história diz: “Ao tempo que destruía as cidades lação aos seus escolhidos não permitirá que eles
207

sejam destruídos juntamente com os ímpios. A colheita e a vindima

O arrebatamento das duas testemunhas No capítulo 14 de Apocalipse há outra descrição


do Arrebatamento. A partir do verso 13 começa
No livro do Apocalipse, o arrebatamento também a descrição de uma colheita. Primeiro os mor-
está descrito de forma simbólica. Há pelo me- tos sobem à presença de Deus acompanhados de
nos três descrições dele. A primeira no capítulo suas obras. Depois há a visão da ceifa. O próprio
11, que fala das duas testemunhas de Deus (Ap Senhor Jesus recolhe os seus escolhidos que são
11.3-14). Durante todo o tempo da angústia Deus guardados no seu celeiro (Ap 14.14-16; Ver Mt
possui duas testemunhas para o mundo. Elas pro- 3.12). Esta é mais uma descrição do arrebatamen-
fetizam vestidas de pano de saco. São como João to. Simbolicamente Deus recolhe seu povo como
Batista pregando o arrependimento no deserto. trigo para o celeiro. E por fim vem a vindima (Ap
Quem são estas duas testemunhas? Somente po- 14.17-20). Isto se refere à destruição dos ímpios.
dem representar a igreja. O Candeeiro já foi apli- As uvas serão esmagadas no lagar da ira de Deus.
cado à igreja em Apocalipse 1.20. Mas por que o É a consumação de todos os indescritíveis flagelos
número 2? Talvez porque os discípulos deveriam que cairão sobre o mundo ímpio, mas a igreja já
ir de dois em dois (Lc 10.1). De qualquer forma, partiu, a noiva já está segura nos braços de seu
estas testemunhas são invencíveis e intocáveis, esposo.
mas somente até que apareça a Besta. Elas têm
poder, como Elias, de orar e fazer os céus se fecha- As bodas do Cordeiro
rem. A Bíblia fala muito sobre o poder da oração
dos crentes, mediada pela intercessão de Cristo e No capítulo 19, novamente o Apocalipse descreve
do Espírito. Mas, a Besta destruirá essas testemu- o arrebatamento. Um coro de “Aleluias” anuncia
nhas, ou seja, a Besta vai derrotar a igreja. E será que chegaram as bodas do Cordeiro (Ap 19.1-9).
uma derrota visível, pois as pessoas se alegrarão Para entender bem o que isso significa é neces-
por causa desta derrota. Sodoma, Egito, Jerusa- sário um pouco de conhecimento do sistema de
lém, representam o mundo em sua perversão, es- casamento judaico.4 Primeiro vinham os espon-
cravidão e perseguição. Especialmente Sodoma e sais. Era o contrato de casamento propriamente
o Egito são lugares de onde Deus retirou seu povo dito. Desde esse dia o noivo e a noiva eram legal-
no momento máximo de tribulação. Mas, quan- mente marido e mulher, porém, ainda não viviam
do tudo parecia que estava perdido para a igreja, juntos. Depois vinha o intervalo. Neste período
um espírito de vida da parte de Deus fez ela se o noivo pagava ao pai da noiva o dote dela, se
levantar. É inimaginável o terror que toma conta ainda não tivesse pago. Então, vinha a procissão,
das pessoas. No fim das contas a igreja estava com que era quando a noiva se preparava para o noivo,
a verdade, seu testemunho triunfou, mas, agora vestindo-se da melhor maneira. Também o noivo
é muito tarde para o mundo. O mundo somen- se preparava para a noiva. O noivo ia até o lar da
te pode contemplar a igreja subindo: “E as duas noiva, a recebia e a conduzia até o novo lar, ou ao
testemunhas ouviram grande voz vinda do céu, lar dos pais dele. Por fim chegavam as bodas que
dizendo-lhes: Subi para aqui. E subiram ao céu incluía a ceia nupcial. Cristo desposou a igreja,
numa nuvem, e os seus inimigos as contempla- ela é sua noiva. O dote ele pagou com seu próprio
ram” (Ap 11.12).
4 Ver William Hendriksen. Mais que Vencedores, p.
211-213.
208

sangue. O intervalo foi o período entre a primeira Nenhuma distração nesta vida deveria nos fazer
e a segunda vinda. Agora chegou a hora das bo- esquecer daquele dia glorioso. Toda a nossa ex-
das, ou seja, do momento do encontro. Ele vem pectativa e oração devem se concentrar neste dia.
buscar sua noiva. O dia do livramento final trará todo o bálsamo de
Deus sobre nossas vidas. Aquele dia será um dia
O grande encontro de imensa alegria para o povo de Deus. Porém, a
vinda de Jesus realmente pegará a muitos de sur-
A melhor passagem da Escritura que descreve o presa. Especialmente aqueles que estiverem vi-
arrebatamento é 1Tessaloniscenses 4.13-17. Paulo vendo apenas para o presente. As virgens néscias
está falando sobre a situação dos mortos em Cris- tinham ido ao encontro de Jesus sem o óleo para
to. Alguns pensam que eles estão perdidos, mas as lamparinas (Mt 25.1-13). Havia de dez virgens,
Paulo afirma que não, pois Deus, no dia da vinda cinco sábias e cinco néscias. Todas estavam espe-
de Cristo ressuscitará os mortos em Cristo “pri- rando a vinda do noivo. Elas eram bastante pa-
meiro”. Note que esse primeiro não significa que recidas entre si, exceto por uma diferença básica:
será uma ressurreição antes da ressurreição dos cinco estavam realmente preparadas e cinco não.
ímpios. Os ímpios nem são citados nesse texto, É incrível pensar que aquelas cinco pudessem ir
mas a palavra primeiro é colocada aí por causa ao encontro do noivo com lamparinas, mas sem
da situação dos crentes que estiverem vivos na óleo. Duas razões aqui são possíveis para esse
segunda vinda. Paulo fala: os mortos em Cristo deslize fatal. Ou não estavam dispostas a esperar
ressuscitarão primeiro e então nós seremos ar- muito, ou estavam desatentas no momento de se
rebatados juntamente com eles, para encontrar preparar. Mas o que estaria distraindo a atenção
o Senhor nos ares. Quando Paulo descreve esse daquelas jovens? O que fez com que se esqueces­
“encontro nos ares”, ele usa a linguagem de sua sem do principal? E o que tem feito com que o
época que descreve o encontro ou as boas vindas povo de Deus se esqueça do principal? Por que a
oficiais concedidas a um dignitário recém chega- Vinda de Jesus não é mais esperada e celebrada?
do a alguma cidade.5 É o mesmo que os romanos Uma historinha pode ser útil para encerrarmos
fizeram quando foram encontrar Paulo a alguns esse assunto: Uma mulher entrou numa caverna
quilômetros fora da cidade (At 28.15 onde a mes- cheia de tesouros com uma criança no colo. Lá
ma frase é empregada). Em geral, a caravana de dentro uma voz lhe disse: “Você tem poucos mi-
boas vindas ia até o encontro do dignitário para nutos, leve tudo o que puder, mas não se esqueça
escoltá-lo de volta à cidade. Dessa forma, cremos do principal. Ela pensou sobre o que seria a coisa
que o arrebatamento será um encontro com o Se- mais preciosa lá dentro. Rapidamente carregou
nhor nos ares, uma forma de retirar o seu povo todo o ouro que pôde, escolhendo as peças maio-
do mundo, em seguida os últimos flagelos cairão, res, e saiu precipitadamente quando a porta esta-
e depois os crentes voltarão com o Senhor para a va se fechando. Então, notou que tinha deixado a
batalha do Armagedom. criança lá dentro.

CONCLUSÃO - NÃO SE ESQUEÇA DO


PRINCIPAL

5 Ver F. F. Bruce. Word Biblical Commentary, 2


Thessalonians, (1Ts 4.17).
209

29

O MILÊNIO

INTRODUÇÃO

No momento da vinda de Jesus, ele estabelece- CORRENTES MILENISTAS


rá um reino de mil anos ou o reino eterno? Esse
assunto divide os cristãos evangélicos. Nenhum Há basicamente quatro posições em relação ao
assunto é tão controvertido em teologia quanto milênio. São elas: Amilenismo, Pós-Milenismo,
o Milênio, e nenhum texto causa mais discussão Pré-Milenismo Histórico e Pré-Milenismo Dis-
do que Apocalipse 20.1-10. Entraremos nessa pensacionalista. O termo “Amilenismo”, como diz
discussão acalorada, porém, não querendo aqui Hoekema, “não é muito feliz”,1 porque sugere que
imprimir uma posição intransigente, e até qua- não exista um Milênio. Os amilenistas acreditam
se fanática, sobre um assunto que diz respeito ao no milênio de Apocalipse 20, porém, não acham
futuro, e sobre o qual ninguém tem certeza ab- que diga respeito a um reino de mil anos literais
soluta. Há tanta controvérsia sobre esse assunto que Cristo estabelecerá na terra depois da sua
que, talvez, não consigamos achar duas pessoas vinda. O Amilenismo entende que o milênio de
que pensem exatamente igual sobre a questão. Apocalipse 20 já está em atividade nesse momen-
Há tanta especulação também, que faz com que to, pois começou com a primeira vinda de Jesus
seja um dos assuntos mais ingratos a se tratar em e terminará na segunda vinda com a instauração
escatologia. Trataremos do assunto como precisa dos novos céus e nova terra. Por isso, para o Ami-
ser tratado, ou seja, abordando as principais vi- lenismo, o Milênio não é literal, mas espiritual. O
sões e emitindo algumas opiniões sobre cada uma Pós-Milenismo defende que o Milênio também é
delas e, até mesmo assumindo, uma posição. No antes da segunda vinda, porém, acha que será um
entanto, entendemos que é um assunto que não tempo de prosperidade e paz advinda da prega-
deveria dividir os cristãos. No final, todos creem ção do Evangelho em todo o mundo. Para o Pós-
que Jesus virá e estabelecerá um reino eterno. -Milenismo, o mundo se tornará gradativamente
A esperança deste reino não deve diminuir, quer
exista um reino intermediário, quer não. 1 Antony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 223
210

um lugar muito bom, onde o mal será reduzido sete anos de tribulação para o estabelecimento
ao mínimo e as nações cooperarão entre si, cris- do Milênio. No Dispensacionalismo há um trata-
tianizando o mundo todo. No final desta era glo- mento diferente entre a igreja e Israel. Mesmo no
riosa, Satanás será solto, e então, Jesus voltará e o Milênio estes dois grupos serão distinguidos. O
destruirá. O Pré-Milenismo Histórico interpreta Dispensacionalismo entende que a igreja é uma
literalmente o texto de Apocalipse 20.1-10 e en- espécie de parêntesis na história de Deus com Is-
tende que o Milênio será estabelecido na segunda rael. Na primeira vinda de Jesus, o Evangelho foi
vinda de Jesus, e será um reino de mil anos sobre oferecido aos judeus, mas como eles o rejeitaram,
a terra, o Senhor regerá as nações com cetro de Deus o ofereceu aos gentios e formou a igreja,
ferro, minimizará o mal existente e estabelecerá porém no fim, voltará a tratar com Israel. Uma
uma era de ouro, reinando a partir de Jerusalém. das características principais do Pré-Milenismo,
Ao final do Milênio Satanás será solto e conven- seja Histórico ou Dispensacionalista é a interpre-
cerá as nações a fazerem guerra contra Jerusa- tação literal das passagens do Antigo Testamento
lém. Então, descerá fogo do céu e consumirá as sobre a restauração de Israel, e também do livro
nações rebeldes. Em seguida o Senhor estabele- do Apocalipse.
cerá o Juízo e o tempo eterno. O Pré-Milenismo
Dispensacionalista se parece com o Pré-Milenis- O seguinte quadro nos ajuda a entender as dife-
mo Histórico em sua expectativa por um milênio renças entre esses quatro sistemas: 2
futuro e literal, porém, se difere em detalhes es-
pecíficos. O Dispensacionalismo distingue, pelo Todas as quatro posições acima têm encontrado
menos, duas vindas de Jesus, a primeira para o
arrebatamento dos salvos, e a segunda depois de 2 O quadro foi retirado de Paul Enns. The Moody
Handbook of Theology, Tópico: “Amillennialism”.

Amilenismo Pós-Milenismo Pré-M.Histórico Pré-M.Dispens.


Segunda Vinda Evento simples, Evento simples, Arrebatamento Segunda vinda em
nenhuma distin- nenhuma distin- e segunda vin- duas fases. Cris-
ção entre arreba- ção entre arreba- da simultâneos. to retorna para
tamento e segun- tamento e segun- Cristo retorna buscar sua igreja
da vinda. Início da vinda. Início para estabelecer o e para estabelecer
do estado eterno. do estado eterno. Milênio. o Milênio após 7
anos.
Ressurreição Ressurreição geral Ressurreição geral Ressurreição de Três ressurreições:
de crentes e incré- de crentes e incré- crentes no início crentes na segun-
dulos na segunda dulos na segunda do Milênio e de da vinda, judeus
vinda. vinda. incrédulos ao depois dos sete
final. anos, incrédulos
ao final do Milê-
nio.
Julgamento Julgamento geral Julgamento geral Julgamento na Julgamento na
de todas as pes- de todas as pes- segunda vinda e vinda, depois da
soas. soas. depois do Milê- tribulação e de-
nio. pois do Milênio.
211

Amilenismo Pós-Milenismo Pré-M.Histórico Pré-M.Dispens.


Tribulação Experimentada na Experimentada na Experimentada na Igreja é arreba-
presente era. presente era. presente era. tada antes da
tribulação.
Milênio Não literal. Cren- A presente era en- Milênio futuro Milênio futuro
tes reinam com trará no Milênio após a Vinda de após a Vinda de
Cristo no céu e pelo progresso Jesus. Reino mile- Jesus. Reino mile-
sobre a terra até a dos povos me- nar literal sobre as nar literal sobre as
Segunda Vinda. diante o evange- nações do mundo. nações do mundo.
lho.
Israel e a igreja Igreja é Israel no Igreja é Israel no Igreja é Israel no Completa distin-
Novo Testamento. Novo Testamento. Novo Testamen- ção entre Israel e
Nenhuma distin- Nenhuma distin- to, porém, Deus igreja. Deus tem
ção entre Israel e ção entre Israel e tratará com Israel um programa
igreja. igreja. separadamente. para cada um dos
grupos.
Defensores L. Berkhof Charles Hodge G. E. Ladd L. S. Chafer
A. Hoekema B. Warfield M. J. Erickson J. D. Pentecost
W. Hendriksen W. G. T Shedd A. Reese J. F. Walvoord
G. C. berkouwer L. Boetnner

defensores capacitados, e qual é a verdadeira é O APRISIONAMENTO DE SATANÁS


uma coisa que só saberemos depois da vinda de
Jesus. De qualquer forma, o que pode ser dito O texto de Apocalipse 20.1-3 descreve o aprisio-
brevemente sobre cada uma delas é que o Pós- namento de Satanás. O texto diz: “Então, vi descer
-Milenismo que esteve muito em voga nos sécu- do céu um anjo; tinha na mão a chave do abismo
los passados, depois das guerras mundiais e do e uma grande corrente. Ele segurou o dragão, a
avanço da fome e das doenças pelo mundo, caiu antiga serpente, que é o diabo, Satanás, e o pren-
em descrédito, uma vez que a sonhada prosperi- deu por mil anos; lançou-o no abismo, fechou-o
dade parece estar muito longe. O Pré-Milenismo e pôs selo sobre ele, para que não mais enganasse
Dispensacionalista é bastante recente, e bastan- as nações até se completarem os mil anos. Depois
te complicado de se explicar. O maior problema disto, é necessário que ele seja solto pouco tem-
dele é a distinção radical que faz entre Israel e po”. Primeiramente devemos lembrar que esse
igreja, dividindo a volta de Jesus e a ressurreição texto foi escrito para cristãos no primeiro sécu-
em duas ou três etapas. O Pré-Milenismo Histó- lo. O que significava para eles? Significava que as
rico é mais sóbrio em sua visão, entendendo que coisas não eram como pareciam ser. Enquanto os
haverá apenas uma vinda de Jesus. O problema cristãos morriam diariamente nos circos e anfi-
desse sistema é o excesso de literalismo. O Amile- teatros romanos, parecia realmente que Satanás
nismo é, na nossa opinião, o que faz mais justiça estava vencendo, mas João escreve para mostrar
ao ensino bíblico. que as coisas não são bem assim, elas não são o
que parecem ser.
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O valente amarrado3 Apocalipse 20.3 é que ele não pode mais enganar
as nações, portanto, o amilenismo entende que
Para entendermos o significado de Apocalipse Apocalipse 20.1-3 narra, não uma prisão futura
20.1-3, precisamos voltar ao início do ministério de Satanás, mas a restrição que Deus impôs a ele
de Jesus. Os fariseus acusavam Jesus de expulsar com a primeira vinda de Jesus. Foi graças a esse
demônios com o poder do próprio Satanás, por aprisionamento que alguns simples galileus do
isso Jesus respondeu: “Como pode alguém entrar primeiro século, em algumas décadas, consegui-
na casa do valente e roubar-lhe os bens sem pri- ram levar o Evangelho a todo o mundo civilizado.
meiro amarrá-lo? E, então, lhe saqueará a casa” Hoje, não há um único país que não tenha algum
(Mt 12.29). A palavra “amarrar” aqui é exatamen- missionário e muitos convertidos ao cristianismo.
te a mesma na língua grega usada em Apocalipse A Bíblia já foi traduzida em mais de mil línguas.
20.2 para “segurar”. Esta tarefa de “amarrar” ou Portanto, o milênio do Apocalipse 20 é a realida-
“segurar” Satanás começou na primeira vinda de de do mundo atual. Ele começou com a primeira
Cristo. Quando Jesus enviou os 70 discípulos para vinda de Cristo. Os 1000 anos do capítulo 20 cor-
pregar o Evangelho, eles voltaram radiantes por- respondem aos 1260 dias das outras partes do li-
que até os demônios lhes eram submissos, então vro, ou seja, o total de anos da dispensação cristã,
Jesus disse: “Eu via a Satanás caindo do céu como e é apenas um número simbólico.
um relâmpago” (Lc 10.17-18). Note que a queda
de Satanás é associada à pregação do Evangelho. Alguém pode dizer: mas como Satanás está
Do mesmo modo, quando alguns gregos vieram amarrado se o mundo está desse jeito? Ele está
para conversar com Jesus, ele disse: “Chegou o amarrado, mas não completamente impossibili-
momento de ser julgado este mundo, e agora o tado de atuar. O que ele não pode fazer, segundo
seu príncipe será expulso. E eu, quando for le- Apocalipse 20.3 é enganar as nações. É dito que
vantado da terra, atrairei todos a mim mesmo” após o fim do Milênio ele reúne as nações para
(Jo 12.31-32). É preciso notar que a palavra “ex- pelejar contra a igreja (Ap 20.8). No tempo pre-
pulsar” no texto grego é exatamente a mesma de sente, ele não consegue fazer esse tipo de movi-
Apocalipse 20.3 e é traduzida como “lançou”. O mentação de nações contra o povo de Deus,5 até
mais importante, porém, é que com a morte de porque, há nações que ainda são cristãs. Além
Cristo e a expulsão de Satanás, Jesus disse que disso, deve ser verificado que nosso Senhor e os
atrairia a si todos os homens. Não apenas judeus, Apóstolos empregaram palavras ainda mais for-
mas também gregos, romanos, chineses, portu- tes do que “prender” ou “expulsar” para descrever
gueses, brasileiros, etc. Até a primeira vinda de a derrota de Satanás que já aconteceu. Além dos
Jesus, apenas Israel conhecia o Senhor, sendo que textos que já vimos acima, podemos citar He-
Satanás prendia as demais nações em ignorância breus 2.14: “Visto, pois, que os filhos têm partici-
praticamente absoluta. Mas, com a vinda do Se- pação comum de carne e sangue, destes também
nhor, o poder do diabo foi drasticamente limita- ele (Jesus), igualmente, participou, para que, por
do e ele agora já não pode mais enganar as nações, sua morte, destruísse aquele que tem o poder da
pois não pode impedir a pregação do Evangelho morte, a saber, o diabo”. Esse texto está dizendo
em toda a terra.4 A única restrição ao Diabo em que Jesus destruiu Satanás com sua morte. Essa é
uma expressão bem mais forte do que “prender”
3 A exposição a seguir segue em linhas gerais
William Hendriksen. Mais Que Vencedores, p. 217-225.
5 Ver W. J. Grier. O Maior de Todos os Aconteci-
4 Ver Simon Kistemaker. Apocalipse, p. 673-674. mentos, p. 126-127.
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ou “lançar no abismo”. Diante desse texto, alguém como foi realmente essa derrota.
pode negar que Satanás já está destruído? Mas
então como ele continua agindo? Ele está destruí- Não podemos entender Apocalipse 20-22 como
do porque já não tem qualquer chance de vitória. sendo uma continuação do capítulo 19. Prova-
Colossenses 2.15 também deixa bem claro que velmente a maneira mais correta de interpretar
Satanás está totalmente derrotado: “E, despojan- o Apocalipse é entendendo que são descritas sete
do os principados e as potestades, publicamente seções paralelas. É como se João contasse a mes-
os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz”. A ma história pelo menos sete vezes, porém, cada
linguagem desse texto é militar. Paulo está com- vez, ele acrescenta detalhes que não estavam nas
parando o que Jesus fez com Satanás e suas hos- descrições anteriores. É somente no último ciclo,
tes, com o que os exércitos romanos faziam com ou seja, quando ele reconta a história pela última
os vencidos. Naquele tempo, quando um exército vez, que ela fica completa. A divisão que Hen-
vencia o outro, os perdedores eram despojados driksen propõe é a seguinte: A Primeira Seção:
de todos os seus bens, e às vezes até das próprias “Cristo no meio dos sete candeeiros” (Ap 1-3). A
roupas. Em seguida eram amarrados e obrigados Segunda Seção: “A Visão do céu e dos Sete Selos”
a desfilar pelas ruas, numa humilhação pública. (Ap 4.1-7.17). A Terceira Seção: “As Sete Trombe-
Jesus despojou Satanás e o humilhou perante tas” (Ap 8-11). A Quarta Seção: “O Dragão Perse-
todos com sua morte e ressurreição. Portanto, a guidor” (Ap 12.2-14.20). A Quinta Seção: “As Sete
expressão “prendeu por mil anos” pode significar Taças” (Ap 15.1-16.21). A Sexta Seção: “A queda
perfeitamente a obra que Jesus realizou na cruz da Babilônia” (Ap 17.1-19.21). A Sétima Seção: “A
contra Satanás. Grande Consumação” (Ap 20.1-22.21).6 De fato
no capítulo 20 se inicia uma nova seção que vai
Sequência não-cronológica descrever outra vez a dispensação cristã como um
todo, desde a primeira vinda de Jesus até sua se-
Os Pré-Milenistas interpretam o texto de Apo- gunda vinda e o juízo final, como fizeram todas as
calipse 20 como acontecendo depois da volta de seis seções ou ciclos anteriores. Repare que a se-
Jesus, porque entendem que o capítulo 20 segue gunda vinda de Cristo e o julgamento do mundo
cronologicamente o capítulo 19. Porém, o Apoca- haviam sido anunciados em todas as seis seções
lipse não é um livro que deva ser lido em ordem anteriores. Veja como o sexto selo na segunda se-
cronológica. Narrando coisas que dizem respeito ção descreve o fim do mundo em cores vívidas
ao fim, João freqüentemente volta aos primórdios (6.12-17). Da mesma forma na sétima trombeta
do Evangelho a fim de dar o entendimento global da terceira seção, a consumação de todas as coisas
da batalha do mal contra o bem. Ao chegarmos é claramente descrita (11.15-19). E este aconteci-
no capítulo 20 do Apocalipse, já fomos informa- mento é também descrito em 14.14-20 no final
dos sobre como praticamente todos os inimigos da quarta seção, com o acréscimo de detalhes de
de Cristo encontrarão o seu fim. Mas ainda resta como será a separação entre os crentes e os ím-
um, o pior de todos, Satanás. Sua derrota já foi pios. Note que neste texto os crentes são ceifados
decretada e anunciada (12.12), mas não foi ainda e recolhidos no celeiro, enquanto que os ímpios
explicada, pois João deixou esta explicação para são pisados como se fossem uvas. Assim também
o final. João já disse que Satanás perdeu seu lu- o sétimo flagelo da quinta seção descreve o fim
gar no céu, após a batalha com Miguel (Ap 12). O
que ele está fazendo no capítulo 20 é demonstrar 6 Ver William Hendriksen. Mais Que Vencedores, p.
26-35.
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de tudo, mas aqui é pela primeira vez descrita 11.7-14; 13.7. Um 20.7-10. Um período
uma batalha antes do fim, a batalha do Arma- período muito curto muito curto da mais
gedom (16.12-21). Mas, a explicação mais clara da mais severa perse- severa persegui-
desta batalha está no final da sexta seção quando guição. este é o pouco ção: Satanás dirige
o cavaleiro montado no cavalo branco desce para tempo de Satanás: a o exército de Gogue
destruir os exércitos do diabo e dos seus aliados. mais terrível e tam- e Magogue contra a
Portanto, João está recontando, pela sétima e últi- bém a final manifes- igreja. esta é a batalha
ma vez, como é a derrota do mal. tação do poder perse- do Armagedom.
guidor do Anticristo.
É muito difícil que Apocalipse 20 seja uma des- 11.17-18; 14.14-18. A 20.11. A única e
crição do que acontece depois de Apocalipse 19, única e tão-somen- tão-somente segunda
pois no capítulo 19 já aconteceu a consumação. te segunda vinda de vinda de Cristo para
Os ímpios foram vindimados na batalha do Ar- Cristo para juízo. juízo.
magedom e os homens rebeldes foram mortos
(19.21). No capítulo 20 a história é recontada a
TRONOS NO CÉU
fim de explicar como será destruído o último ini-
migo, Satanás, e assim, todos os detalhes se com-
Em seguida, Apocalipse 20.4-6 narra um reina-
pletam.
do milenar. Aqueles que seguem uma abordagem
cronológica do capítulo 20, dizem que todos estes
Em defesa dessa posição Hendriksen mostra o acontecimentos seguem o 19. Então, na segunda
paralelo que há entre os capítulos 11-14 e 20-22:7 vinda de Jesus, Satanás seria preso, e, em seguida,
haveria a primeira ressurreição e os crentes rei-
Apocalipse 11 a 14 Apocalipse 20 nariam com Cristo por mil anos na terra. Depois
12.5-12. Em conexão 20.1-3. Satanás é atado destes mil anos haveria a segunda ressurreição
com o nascimento, e lançado no abismo; somente dos ímpios para o juízo. Nossa dificul-
morte, ascensão e seu poder sobre as dade com essa interpretação já foi descrita acima.
coroação de Cristo, nações é reprimido. Não cremos que o capítulo 20 seja uma sequência
Satanás é lançado do Ao invés de nações do 19, mas que recomeça um novo ciclo. Vimos
céu. Suas acusações conquistarem a igreja, que a derrota e a prisão de Satanás já aconteceram
perderam toda apa- esta é que começa a na primeira vinda de Jesus.
rência de verdade. conquistar as nações.
14.2-6; 12.14-18. 20.2. Mas, há uma dificuldade ainda maior em pensar
Um longo período Um longo período de que o milênio começa com a ressurreição dos
de poder e constante poder exercido pela crentes. João não diz que vê corpos reinando com
testemunho por parte igreja. Satanás tem Cristo na terra, mas “almas” (Ap 20.4). Ele diz
da igreja, que é susten- estado amarrado. ele que viu tronos, e sentados nestes tronos aqueles
tada “longe da face da permanece amarrado que têm a autoridade de julgar. Quem estão as-
serpente”. A influência por mil anos, ou seja, sentados nestes tronos? São as almas que João viu.
do diabo é restringida a dispensação cristã O texto grego não contém a expressão “vi ainda”,
inteira. como se fosse um grupo diferente daquele que
está assentado nos tronos. Diz simplesmente: “E
as almas dos decapitados por causa do testemu-
7 William Hendriksen. Mais Que Vencedores, p. nho de Jesus e da Palavra de Deus, tantos quan-
218. tos não adoraram a besta, nem tão pouco a sua
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imagem, e não receberam a marca na fronte e na as que João viu no céu (decapitados como Paulo e
mão; e viveram e reinaram com Cristo durante os João Batista) ascenderam espiritualmente ao céu
mil anos” (Ap 20.4). Note que estas almas estão (primeira ressurreição), e ressuscitarão fisica-
“vivendo” com Cristo e reinando por mil anos. mente na vinda de Jesus. As pessoas que morrem
A expressão “e viveram” (no grego ezesan) não sem Cristo não vão ao céu (não têm parte na pri-
significa necessariamente “e ressuscitaram”, até meira ressurreição), mas ressuscitarão na vinda
porque a palavra grega “ressuscitaram” é outra de Jesus para o grande julgamento.
(anastásei). O texto nos diz que as almas dos que
morreram estão “vivendo” e reinando com Cristo
por mil anos, que é o tempo inteiro da dispensa- A SITUAÇÃO DOS MORTOS
ção cristã, desde a primeira vinda de Cristo até
a segunda vinda. Além disso, estes tronos certa- Um argumento que reforça esta interpretação
mente devem estar no céu, pois como diz W. J. vem de outras partes do livro de Apocalipse. De-
Grier, “sempre que se faz referência a tronos, no vemos sempre lembrar que João está escrevendo
Apocalipse, quer se trate do de Cristo, quer dos de para cristãos do primeiro século. Aqueles cristãos
Seu povo, são localizados no céu”.8 (Ver Ap 4.4). estavam sofrendo grandes perseguições. Muitos
E como diz Kistemaker, “o vocabulário de tro- já haviam morrido por causa do Evangelho. Era
nos, juízo e almas representa uma cena celestial”.9 natural que a igreja se perguntasse: O que acon-
Quando João diz que os restantes dos mortos não teceu com os cristãos que foram martirizados?
reviveram “até que se completassem os mil anos” Deus não vai fazer nada para vingá-los? Em prati-
e chama o acontecimento de “viver” de primei- camente todas as seções, João dá informações so-
ra ressurreição, ele não está dizendo que isso vai bre esses mortos. No capítulo 6, ele diz que viu as
acontecer depois do milênio. Aliás, a palavra “re- almas daqueles que tinham sido mortos por causa
viveram” é a mesma usada para “viveram” no ver- da palavra de Deus e por causa do testemunho
so anterior. O que João quer dizer é que os mortos que sustentavam. Essas almas estavam debaixo
sem Cristo continuaram mortos física e espiritu- do altar de Deus, e clamavam por vingança. Foi
almente, e depois do milênio vão ressuscitar, mas lhes dito que deviam esperar, vestidas de vestidu-
para entrar na morte eterna. Portanto, a primeira ras brancas, até que se completasse o número dos
ressurreição aqui é o “viver” com Cristo no céu. mártires (Ver Ap 6.9-11). No capítulo 7, João dá
Os ímpios não vão “viver” com Cristo no céu até mais informações sobre os mártires. Ele diz que
o dia da ressurreição final. Aquele que tem par- “se acham diante do trono de Deus e o servem
te na primeira ressurreição (espiritual) vai para o de dia e de noite no seu santuário. E aquele que
céu e não precisa temer a segunda morte que é o se assenta no trono estenderá sobre eles o seu ta-
Lago de Fogo. Nem seria preciso falar algo assim bernáculo. Jamais terão fome, nunca mais terão
se os cristãos já estivessem com seu novo corpo sede, não cairá sobre eles o sol, nem ardor algum,
aqui na terra. Num resumo: “Os que pertencem a pois o Cordeiro que se encontra no meio do trono
Cristo morrem uma vez, porém ressurgem duas os apascentará e os guiará para as fontes da água
vezes (espiritual e fisicamente), enquanto os que o da vida. E Deus lhes enxugará dos olhos toda lá-
têm rejeitado ressurgem uma vez, porém morrem grima” (Ap 7.15-17). Ou seja, João está tentando
duas vezes (física e espiritualmente)”.10 As pesso- consolar os amigos e parentes das vítimas, dizen-
do que elas estão numa posição privilegiada. No
8 W. J. Grier. O Maior de Todos os Acontecimentos,
capítulo 14, João diz que os mortos no Senhor
p. 128. são “bem-aventurados”, podem descansar de suas
fadigas, pois suas obras os acompanham (Ap
9 Simon Kistemaker. Apocalipse, p. 675.
14.13). No capítulo 20, ele torna a ver as almas
10 Simon Kistemaker. Apocalipse, p. 680.
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destes mártires, e agora, acrescenta que além de um? (Ap 3.1; 4.5). Será que Jesus é literalmente
estarem num estado de bem-aventurança, estão um Cordeiro que tem sete chifres e sete olhos?
reinando com Cristo e serão os próprios juízes (Ap 5.6). Será que correu sangue pela morte dos
de seus algozes (Ap 20.4). Portanto, na sequência ímpios por 1600 estádios (296 Km)? (Ap 14.20).
lógica do Apocalipse, esse texto não está falando Será que a Nova Jerusalém possui 12000 estádios
coisa alguma sobre um reino literal e terreno de (2219 Km)? (Ap 21.16). Evidentemente que nin-
Cristo sobre a terra durante mil anos, mas da situ- guém interpreta estes números literalmente, pois
ação dos mortos em Cristo no céu, durante todo o são claramente simbólicos. Mas, então por que o
tempo da dispensação cristã. número 1000 teria que ser literal em Apocalipse
20.3-4.
Como já vimos, aqueles que reinam com Cristo
por mil anos não são pessoas ressuscitadas fisica- Ainda deve ser considerado que a existência de
mente, mas almas que reinam no céu. Nesse pon- um milênio literal somente pode ser deduzida do
to, há mais uma dificuldade para a interpretação texto de Apocalipse 20.1-4. Nenhum outro lugar
pré-milenista que é o fato de que o texto localiza na Escritura fala em algo parecido. E como já vi-
apenas dois grupos de pessoas que reinam com mos, Apocalipse 20.14 não precisa ser interpre-
Cristo, e são os “decapitados por causa do teste- tado literalmente. No restante das Escrituras não
munho de Jesus e os que não adoraram a besta”. existe a menor indicação de um milênio interme-
Cadê o resto dos crentes mortos? Além disso, o diário entre a era atual e a era eterna. Jesus, nas
texto está falando apenas dos que morreram, e se parábolas (Mt 13.24-30, 36-43, 47-50; Lc 19.11-
eles ressuscitaram fisicamente, onde estão os vivos 27; Mt 25.14-30), e na descrição do julgamento
que serão transformados? Eles não participam do em Mateus 25, não falou de um reino intermedi-
milênio? Como diz Hoekema, “não há nada dito ário depois da sua vinda. Ele disse que sua vinda
aqui acerca de crentes que não morreram, mas traria o julgamento e o estado final dos homens.
ainda estavam vivos quando Cristo retornou”.11 A mesma ideia pode ser vista em toda a Bíblia.
Mas quando lembramos que João está querendo Sempre que o Novo Testamento fala do futuro
explicar justamente a situação dos mártires, toda não diz que haverá um reino para Israel na Se-
dificuldade desaparece. gunda Vinda de Jesus, mas que quando Jesus vol-
tar, será estabelecido o Novo céu e a nova terra
(2Pe 3.1-13).

NÚMEROS NÃO LITERAIS

A interpretação literal dos mil anos no texto não se A ÚLTIMA BATALHA


justifica facilmente. Qualquer pré-milenista sabe,
por exemplo, que a corrente que prende Satanás Em Apocalipse 20.7-10 há a descrição da rebelião
não é física, é espiritual. Portanto, ninguém inter- final, quando Satanás reúne as nações para pele-
preta isso literalmente. Então, por que o número jarem contra o Senhor. Que batalha é essa, se no
1000 deve ser interpretado literalmente? Além capítulo 19 os inimigos de Cristo já foram destru-
disso, porque nessa passagem esse número deve ídos? Que nações são essas cujo número é como
ser interpretado de forma literal, se todos os ou- a areia do mar, se os homens já foram mortos em
tros números do Apocalipse não são? Por exem- Apocalipse 19.21? Na verdade, não são batalhas
plo, será que há sete Espíritos Santos, ou apenas diferentes, mas duas descrições da mesma bata-
lha. É dito que, no fim do milênio, Satanás será
solto. Solto de quê? De sua prisão que o incapa-
11 Anthony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 244.
217

citava de enganar as nações, a fim de reuni-las ra da promessa. Pensam que isso precisa se cum-
contra a igreja de Deus. Note que ele vai seduzir prir literalmente. Nesse sentido, veem o retorno
as nações nos quatro cantos da terra. Que esta é a de Israel para a Palestina após a Segunda Grande
batalha do Armagedom podemos inferir por cau- Guerra, como um indício do cumprimento his-
sa da referência a Gogue e Magogue. Gogue era tórico das profecias. A intepretação amilenista
o príncipe de Magogue. É dito em Ezequiel 38.2 entende que estas profecias se cumpriram literal-
que Gogue também é príncipe de Rôs, Meseque e mente na volta de Israel do cativeiro da Babilônia,
Tubal. Essas três regiões ficavam em algum lugar ou se cumprem espiritualmente na igreja que é o
onde hoje é a Turquia. E todo este território foi Israel no Novo Testamento, ou ainda se cumprem
conquistado depois de Ezequiel pelos selêucidas, no Novo céu e nova terra. Não há a necessidade
principalmente nos tempos de Antíoco Epifânes de um reino milenar para que elas se cumpram.
o mais cruel inimigo dos judeus, que foi gover-
nador da Síria. Este homem foi o mais perfeito Primeiramente, devemos entender que interpre-
tipo do Anticristo no Antigo Testamento. Portan- tar literalmente todas as profecias do Antigo Tes-
to, a referência a Gogue, nesta última batalha, é tamento pode conduzir a absurdos. Como nota
uma referência novamente às forças do Anticristo W. J. Grier, “a própria profecia do Velho Testa-
que tentarão pelejar contra o Cordeiro. João não mento contém uma advertência contra tal litera-
descreve a derrota do Anticristo aqui, porque já lismo. Deus disse que falaria aos profetas do An-
a descreveu antes, e agora ele está interessado em tigo Testamento em sonhos e visões e em palavras
descrever a derrota do Dragão, que na mesma ba- obscuras (Nm 12.6-8; Os 12.10)”.12 Por exemplo,
talha do Armagedom na única vinda de Cristo, quando Ezequiel diz que o povo retornará à sua
foi também aprisionado no lago de fogo. O fato terra, diz que Davi reinará sobre os que voltarem
de João dizer que a besta e o falso profeta já esta- (Ez 37.24). Se isso for interpretado de forma lite-
vam no lago de fogo (Ap 20.10) significa apenas ral, Davi precisaria reencarnar para reinar sobre
que ele já havia narrado este acontecimento antes, Israel. E além disso, o que não pode ser esquecido
até porque a besta e o falso profeta são o governo é que muitas profecias proferidas à nação de Isra-
e a religião anticristã de Satanás. João deixou para el eram condicionais. Por exemplo, quando Deus
narrar no fim, a maneira como o Dragão será des- chamou o povo de Israel do Egito lhes prometeu
truído. uma nova terra, porém, devido à desobediência
deles, foram privados desse benefício (Nm 14.23).
Com relação ao próprio reino eterno da descen-
dência de Davi, a promessa era condicional. Davi
O CUMPRIMENTO DAS PROFECIAS DO entendeu isso, pois disse em seu leito de morte ao
A.T. seu filho Salomão:

Talvez a maior razão porque os pré-milenistas Eu vou pelo caminho de todos os mortais. Cora-
insistem num reino literal e terreno de mil anos gem, pois, e sê homem! Guarda os preceitos do
seja por causa de sua visão das profecias do An- senhor, teu Deus, para andares nos seus cami-
tigo Testamento. Como já dissemos, não há qual- nhos, para guardares os seus estatutos, e os seus
quer texto que fale em mil anos de reino, mas os mandamentos, e os seus juízos, e os seus teste-
pré-milenistas olham para as profecias de Isaías, munhos, como está escrito na lei de Moisés, para
Ezequiel, Amós, Zacarias e outros, que falam so- que prosperes em tudo quanto fizeres e por onde
bre um futuro glorioso para Israel, e imaginam quer que fores; para que o senhor confirme a pa-
que isto acontecerá numa volta futura de Israel
das várias nações ao redor do mundo, para a ter- 12 W. J. Grier. O Maior de Todos os Acontecimentos,
p. 36.
218

lavra que falou de mim, dizendo: Se teus filhos


guardarem o seu caminho, para andarem perante Outro texto bastante usado para a defesa do Mi-
a minha face fielmente, de todo o seu coração e lênio é o capítulo 11 de Isaías. O texto diz que um
de toda a sua alma, nunca te faltará sucessor ao rebento de Jessé será levantado (vs. 1), o qual terá
trono de Israel (1Rs 2.2-4). sabedoria para reconduzir o povo (vs. 2-5). Neste
tempo, “o lobo habitará com o cordeiro, e o leo-
Do mesmo modo, as promessas de Deus de pros- pardo se deitará junto ao cabrito; o bezerro, o leão
peridade para a nação de Israel estavam condi- novo e o animal cevado andarão juntos, e um pe-
cionadas à obediência. Uma vez que a nação não quenino os guiará (...) A criança de peito brincará
permaneceu em obediência, Deus não se viu sobre a toca da áspide, e o já desmamado meterá
obrigado a cumprir todas as promessas. a mão na cova do basilisco. Não se fará mal nem
dano algum em todo o meu santo monte, porque
Ao considerar algumas das principais profecias a terra se encherá do conhecimento do senhor,
do Antigo Testamento, as quais são geralmente como as águas cobrem o mar” (vs. 6-9). Essa tam-
usadas para a defesa de um Milênio literal e ter- bém não é uma descrição do Milênio. Ela se pa-
restre, podemos perceber que elas não exigem um rece bastante com a outra descrição que já vimos
cumprimento literal num Milênio. Uma das prin- acima no capítulo 65, e que Isaías disse pertencer
cipais passagens do Antigo Testamento usadas à nova terra e aos novos céus. Isaías está falando
para defender o Milênio é Isaías 65.17-25. Neste de um tempo de perfeição, em que a terra se en-
texto Isaías fala da restauração de todas as coisas: cherá do conhecimento do Senhor. Isso é muito
“Não haverá mais nela criança para viver poucos superior ao que teria que acontecer no Milênio
dias, nem velho que não cumpra os seus; porque quando ainda haveria povos dispostos a se rebela-
morrer aos cem anos é morrer ainda jovem, e rem contra o Senhor. Dos versos 10-16 Isaías fala
quem pecar só aos cem anos será amaldiçoado” da restauração de Israel. Não podemos entender
(Is 65.20). Diz que: “A longevidade do meu povo esta passagem sem lembrar que o povo de Israel
será como a da árvore, e os meus eleitos desfru- foi levado cativo para a Assíria e o povo de Judá
tarão de todo as obras das suas próprias mãos” para a Babilônia. Isaías diz que o povo voltaria
(Is 65.22). E diz que naquele tempo: “O lobo e o para sua terra. Isso de fato se cumpriu 70 anos
cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha depois do cativeiro, quando o povo retornou do
como o boi; pó será a comida da serpente. Não se Exílio. O verso 16 diz: “Haverá caminho plano
fará mal nem dano algum em todo o meu santo para o restante do seu povo, que for deixado, da
monte, diz o senhor” (Is 65.25). Os pré-milenis- Assíria, como o houve para Israel no dia em que
tas dizem que esta descrição não pode se referir subiu da terra do Egito”. Este verso teve um cum-
ao tempo eterno, porque há referência à morte e primento literal no dia em que Israel voltou do
ao pecado. Porém deve ser entendido que Isaías cativeiro. É evidente que a profecia vai além disso,
usa figuras de coisas que os homens podem en- mas por que pensar num Milênio intermediário,
tender, mas está falando dos “novos céus e nova se a profecia pode se referir em linguagem figu-
terra”, conforme ele deixa bem claro no verso 17. rada aos novos céus e nova terra? Como diz Ho-
E o Apocalipse diz que os novos céus e nova ter- ekema, “na há razão obrigatória para entender-
ra compõem o estado final do universo e não o mos este tipo de passagens do Velho Testamento,
Milênio. Isaías descreve os tempos eternos em de modo a descrever um reino milenar futuro”.13
linguagem que as pessoas daquele tempo podiam Essas profecias se cumprem no retorno de Israel
entender. Ele usa expressões que indicam longe- do cativeiro, na primeira vinda de Jesus, ou final-
vidade e prosperidade em linguagem que deve ser
entendida figurada e não literalmente.
13 Antony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 274.
219

mente descrevem a nova terra que será estabele- na terra? Finalmente, é muito estranha a ideia de
cida na segunda vinda de Jesus.14 haver salvação depois da vinda do Senhor. Como
serão salvos os ímpios durante o milênio? Eles te-
O próprio Novo Testamento interpreta profecias rão que ouvir o Evangelho e crer? A Bíblia diz que
que descrevem a restauração de Israel como não fé é acreditar no que não pode ser visto (Hb 11.1),
literais. Um exemplo basta para perceber isso. mas naquele momento todos verão Jesus reinan-
Amós 9.11-12 diz: “Naquele dia, levantarei o ta- do dum trono terreno em Jerusalém. Isso seria in-
bernáculo caído de Davi, repararei as suas bre- justo, se considerarmos que todos os demais que
chas; e, levantando-o das suas ruínas, restaurá-lo- viveram antes do milênio tiveram que crer com
-ei como fora nos dias da antiguidade; para que bem menos evidência. Embora não possamos ser
possuam o restante de Edom e todas as nações dogmáticos, porque o Senhor conduzirá a histó-
que são chamadas pelo meu nome, diz o senhor, ria segundo seu propósito, essas observações de-
que faz estas coisas”. Em Atos 15.14-18 temos a monstram que a existência de um Milênio literal
interpretação do cumprimento figurado desta traz mais complicações do que soluções.
profecia. Tiago entende que se cumpriu quando
Deus incluiu os gentios na comunidade do povo Concluindo, percebemos que há evidências de
de Deus. Portanto, se o próprio Novo Testamento sobra para não interpretar o texto de Apocalipse
demonstra que as profecias do Antigo Testamen- 20.1-10 de forma literal. Mas insistimos na tese de
to não precisam ser cumpridas literalmente, por que esse assunto não deve dividir os cristãos. Ter
que nós deveríamos insistir nisso? expectativas diferentes em relação à segunda vin-
da é melhor do que não ter expectativa alguma. O
que importa é que ele virá, e que haverá pessoas
o aguardando. Quer, naquele momento, ele inau-
DIFICULDADES ADICIONAIS gure o milênio, quer inaugure o tempo eterno, de
qualquer maneira, estaremos para sempre juntos
Falar num milênio terreno envolve algumas con- com o Senhor.
tradições adicionais: Por que razão, depois dos
crentes terem ressuscitado, ainda teriam que vi-
ver mil anos numa terra imperfeita? De certa for-
ma, as coisas não seriam muito diferentes do que
são hoje. Somos convertidos e desejamos uma
nova era, porém ainda temos que sofrer com este
mundo decaído. Imagine pessoas já ressuscitadas
ainda tendo que viver numa terra decaída. Ou-
tra coisa estranha é a ideia de que haverá pessoas
com corpo glorificado vivendo junto com pesso-
as sem corpo glorificado. Que tipo de relaciona-
mento poderia existir entre essas pessoas. Umas
morrem, outras são eternas. E como podem as
nações se rebelarem contra o Senhor depois do
milênio na soltura de Satanás? Não terá adianta-
do nada os mil anos de prosperidade do Senhor

14 Outras passagens que podem ser interpretadas


nesse sentido, sem sugerir a idéia do Milênio são: Jr 23.3-8;
Ez 34.12-13; Ez 36.24; Zc 8.7-8; Am 9.14-15, etc.
220

30

A RESSURREIÇÃO FINAL

INTRODUÇÃO alcançará a plenitude. Por esta razão, a ressurrei-


ção é tão importante.
A ressurreição dos mortos é uma doutrina tipi-
camente cristã. Nenhuma outra religião acha que
ela seja necessária. Mas para o cristianismo ela é
essencial. Todas as outras religiões imaginam que O DIA DA RESSURREIÇÃO
a felicidade do homem se completa quando este
se vê livre do corpo. Desde os tempos mais pri- Classicamente, se tem acreditado que a ressur-
mitivos, o homem tem acreditado que a matéria é reição acontecerá no último dia, no momento
má. Assim, o corpo como invólucro da alma, se- da Segunda Vinda de Jesus. Naquele dia ressus-
ria um elemento aprisionador e negativo. A Bíblia citarão os justos e também os ímpios. Portanto,
contraria essa noção. Segundo o ensino bíblico, o haverá apenas uma ressurreição. Aqueles que
homem não foi criado para viver sem corpo. O defendem um reino de mil anos depois da vinda
corpo do homem se tornou corrupto por causa de Jesus acreditam que haverá pelo menos duas
do pecado, mas a solução não é a alma se livrar ressurreições. A primeira ressurreição acontecerá
do corpo, até porque a alma também se corrom- na vinda de Jesus e será a ressurreição exclusiva
peu por causa do pecado. Tanto o corpo quanto dos crentes. Após mil anos de reino, acontecerá
a alma precisam ser restaurados. Deus inicia essa a segunda ressurreição, que será a ressurreição
obra de restauração na conversão, quando colo- dos ímpios para o Juízo Final. Esta é uma inter-
ca o Espírito dentro do homem, e cria uma nova pretação literalista baseada no texto de Apoca-
vida. Nesse sentido, a conversão pode ser chama- lipse 20.4-5: “Vi ainda as almas dos decapitados
da de ressurreição espiritual (Rm 6.13). Porém, por causa do testemunho de Jesus, bem como
a renovação total do corpo e da alma acontecerá por causa da palavra de Deus, tantos quantos não
na ressurreição física, que está marcada para o adoraram a besta, nem tampouco a sua imagem,
último dia. Enquanto o homem não estiver res- e não receberam a marca na fronte e na mão; e
taurado, tanto no corpo, quanto na alma, ele não viveram e reinaram com Cristo durante mil anos.
221

Os restantes dos mortos não reviveram até que se fora. Não haveria sentido em dizer que já não há
completassem os mil anos. Esta é a primeira res- risco para aqueles que ressuscitaram fisicamente,
surreição”. Quando esse texto é interpretado lite- afinal, eles já teriam ressuscitado, mas há sentido
ralmente, parece realmente ensinar que há duas em garantir que aqueles que estão no céu, mas que
ressurreições físicas, uma antes do milênio (dos ainda não ressuscitaram fisicamente, ou seja, que
salvos) e outra depois do milênio (dos perdidos). estão sem corpos, terão seus corpos novamente.
Primeiramente precisamos dizer que as coisas
podem realmente ser dessa forma. Deus é sobe- Além do mais, se existe uma ressurreição física
rano sobre o futuro e pode estabelecer as coisas diferente para os crentes e para os ímpios, e se há
como ele quiser. Porém, nos parece que esta pas- um reino literal de mil anos na terra, então, have-
sagem não deve ser interpretada literalmente. E o rá duas ressurreições de crentes também, e talvez
motivo é simples: todo o livro do Apocalipse não até três. Terá que haver uma ressurreição na vinda
deve ser interpretado literalmente. O Apocalipse de Cristo, outra ressurreição depois dos sete anos
é um livro repleto de símbolos, e, muitas vezes, de tribulação (para os que defendem o pré-tribu-
buscar o sentido literal de sua simbologia conduz lacionismo),1 e outra ressurreição após o milênio,
a inconvenientes. Parece-nos que não devemos pois possivelmente pessoas se converterão no
pensar que o texto esteja falando em ressurreição milênio. E como essas pessoas não foram trans-
física. É nossa convicção, como já demonstramos formadas na vinda do Senhor, terão que morrer e
no capítulo anterior, que o texto está falando de ressuscitar. E ainda precisaria haver a ressurreição
uma ressurreição espiritual. O verso 4 diz “vi as dos ímpios. E isso já parece ressurreição demais.
almas”. Ele não diz “vi pessoas com corpos”. Essas
almas viveram e reinaram com Cristo durante mil
anos. A palavra “viveram” (grego: ezesan) nesse
texto não significa “ressuscitaram”, mas simples- UMA SÓ RESSURREIÇÃO
mente “continuaram vivendo”. O texto diz ainda
que o restante dos mortos não viveu, ou seja, con- Mas o fato é que o ensino bíblico não faz distin-
tinuaram mortos. O texto não diz que eles não ção entre várias ressurreições. Desde o Antigo
ressuscitaram. É nosso entendimento que o texto Testamento, a Bíblia deixa bem claro que haverá
está falando daquelas pessoas que morrem e suas apenas uma ressurreição que acontecerá no últi-
almas vivem com Cristo e reinam com ele duran- mo dia. Daniel disse: “Muitos dos que dormem
te mil anos. Esse tempo deve ser entendido como no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eter-
todo o tempo da dispensação cristã antes da Vin- na, e outros para vergonha e horror eterno” (Dn
da de Jesus. Devemos lembrar que João está fa- 12.2). Não há qualquer indicação de duas ressur-
lando de coisas que ele viu no céu, quando para lá reições nesse texto, que é o mais importante do
subiu numa visão (Ap 4.1). O verso 5 chama isso Antigo Testamento sobre a ressurreição. Ele sim-
de “primeira ressurreição” não porque há uma plesmente diz que haverá um dia quando os mor-
“segunda ressurreição”, somente para os ímpios, tos ressuscitarão. A diferença não é a ressurreição
mas porque há uma “segunda ressurreição” física em si, mas o destino dos homens. Os crentes irão
para os crentes (e também para os ímpios, mas para a vida eterna, enquanto que os ímpios para
para eles será a primeira). Mas quem já passou
1 O pré-milenismo dispensacionalista defende que
pela primeira ressurreição, ou seja, se converteu e após o arrebatamento da igreja haverá 7 anos de tribulação
foi para o céu, não corre qualquer risco de ficar de na terra, quando judeus e gentios se converterão. Se alguns
deles tiverem morrido nesse período, terão que ressuscitar.
222

a vergonha e horror eterno. A mesma ideia pode Jesus, trará, em sua companhia, os que dormem”
ser vista no capítulo 5 de João. Jesus disse: “Não (4.14). Os mortos em Cristo ressuscitarão na vin-
vos maravilheis disto, porque vem a hora em que da de Jesus, esta é a garantia que eles têm. Em
todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua seguida ele fala sobre a diferença que acontecerá
voz e sairão: os que tiverem feito o bem, para a entre os mortos e os vivos na segunda vinda de
ressurreição da vida; e os que tiverem praticado Jesus:
o mal, para a ressurreição do juízo” (Jo 5.28-29).
Jesus não diz que haverá duas ressurreições em Ora, ainda vos declaramos, por palavra do Se-
momentos diferentes. Ele diz que virá a hora (sin- nhor, isto: nós, os vivos, os que ficarmos até à vin-
gular) em que todos os que estão mortos ouvirão da do Senhor, de modo algum precederemos os
a voz do Senhor e sairão. Porém, uns irão para a que dormem. Porquanto o Senhor mesmo, dada
vida eterna e outros para o Juízo. Jesus não faz a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo,
qualquer distinção temporal, neste texto, entre e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus,
a ressurreição dos salvos e a dos perdidos. Em e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; de-
outros textos, Jesus deixou bem claro que a res- pois, nós, os vivos, os que ficarmos, seremos arre-
surreição acontecerá no último dia (Jo 6.39. 40, batados juntamente com eles, entre nuvens, para
44, 54). Esse “último dia” precisa ser identificado o encontro do Senhor nos ares, e, assim, estare-
com o momento final, quando o Senhor voltar mos para sempre com o Senhor (4.15-17).
do céu. No livro de Atos, também encontramos
que haverá apenas uma ressurreição, tanto de jus- Paulo fala de uma prioridade dos crentes mortos,
tos como de ímpios. Quando Paulo se defendeu em relação aos que estiverem vivos na segunda
diante do governador Felix, tocou propositada- vinda. Ele diz que os mortos ressuscitarão pri-
mente na questão da ressurreição, por saber que meiro. Evidentemente, a dúvida dos crentes de
parte dos religiosos acreditava nela. Ele resume Tessalônica era se os crentes mortos teriam a
sua teologia dizendo: “Porém confesso-te que, mesma vantagem dos vivos na vinda de Jesus.
segundo o Caminho, a que chamam seita, assim Paulo escreve para demonstrar que os mortos te-
eu sirvo ao Deus de nossos pais, acreditando em rão os mesmos privilégios.2 No momento em que
todas as coisas que estejam de acordo com a lei o Senhor voltar e a voz do céu chamar os mortos,
e nos escritos dos profetas, tendo esperança em eles ressuscitarão e serão arrebatados primeiro,
Deus, como também estes a têm, de que haverá depois os vivos os seguirão. O texto não diz que
ressurreição, tanto de justos como de injustos” eles serão arrebatados primeiro do que os ímpios
(At 24.14-15). Ele não fala em ressurreições, mas mortos. Paulo nada fala sobre a ressurreição dos
de uma ressurreição, onde tanto os justos como ímpios nesse texto, porque esse não é seu assunto
os injustos ressuscitarão. no momento.3 Mas, assim como Jesus disse que
quando os mortos ouvissem sua voz sairiam do
Em 1Tessaloniscenses 4.13-17, o Apóstolo Paulo
aborda o tema da ressurreição e da volta do Se- 2 F. F. Bruce. Word Biblical Commentary, Volume
nhor de forma mais direta. Ele diz que os cren- 45: 1 & 2 Thessalonians, (1Ts 4.15).
tes não devem ser ignorantes em relação ao que 3 Assim como ele não disse nada em 1Coríntios
acontecerá com os que já morreram em Cristo 15.23, quandoe descreve apenas a ressurreição dos salvos.
Ele está falando para a igreja, e não quis entrar em detalhes
(4.13). Ele diz: “Pois, se cremos que Jesus mor- sobre a ressurreição dos ímpios. Mas, pelo simples fato de
reu e ressuscitou, assim também Deus, mediante não falar sobre, não significa que a ressurreição dos ímpios
acontecerá num outro momento.
223

túmulo, uns para a vida eterna e outros para a foram julgados, segundo as suas obras, conforme
condenação (Jo 5.28-29), podemos entender que, o que se achava escrito nos livros. Deu o mar os
no mesmo momento, quando os crentes ouvirem mortos que nele estavam. A morte e o além entre-
a voz do Senhor e ressuscitem para o arrebata- garam os mortos que neles havia. E foram julga-
mento, os ímpios também ouvirão a voz e ressus- dos, um por um, segundo as suas obras.
citarão para a condenação.
O texto, em linguagem simbólica, descreve o mo-
Em 2Tessaloniscenses, Paulo também falou so- mento do julgamento de todos os homens que já
bre a manifestação futura do Senhor, trazendo ao morreram. Os mortos são vistos, tanto os grandes
mesmo tempo alívio para os crentes e juízo para como os pequenos. Vieram do mar, do estado de
os ímpios. Ele diz: morte e do Hades, ou seja, todos os mortos esta-
rão lá. A intenção do texto é demonstrar que no
E a vós outros, que sois atribulados, alívio jun- juízo todas as pessoas estarão presentes, tanto os
tamente conosco, quando do céu se manifestar o salvos como os condenados. Mas há duas pers-
Senhor Jesus com os anjos do seu poder, em cha- pectivas de Juízo, uma pelas obras, por causa dos
ma de fogo, tomando vingança contra os que não livros que foram abertos, e outra pela questão da
conhecem a Deus e contra os que não obedecem inscrição no Livro da Vida. O texto diz que, quem
ao Evangelho de nosso Senhor Jesus. Estes sofre- não foi achado inscrito no livro da Vida foi lan-
rão penalidade de eterna destruição, banidos da çado no lago de fogo. Se somente estivessem ali
face do Senhor e da glória do seu poder, quan- os perdidos, não haveria necessidade nenhuma
do vier para ser glorificado nos seus santos e ser de se abrir o Livro da Vida, pois bastariam os li-
admirado em todos os que creram, naquele dia vros das obras. Além do mais, pareceria estranho
(porquanto foi crido entre vós o nosso testemu- que no Juízo Final estivessem apenas os perdidos.
nho). (2Ts 1.7-10). Embora os salvos não sejam julgados no sentido
de definir o destino eterno neste julgamento, pois
Os dois eventos, a salvação dos crentes e o ba- isto já aconteceu em vida (Jo 3.18), eles são julga-
nimento dos ímpios acontecerá no momento dos por suas atitudes, que lhes garantirá galardão.
da vinda de Jesus. Esta ideia está muito clara no Quanto aos ímpios, a necessidade da ressurrei-
texto, tanto pelo sentido contextual quanto pelo ção deles, como o Apocalipse demonstra, é por
gramatical. Como diz Berkhof, “se não for este o questão de justiça, pois a morte deve, em sua
caso, a língua terá perdido seu sentido”.4 máxima extensão, e com todo o seu peso, ser im-
posta sobre os ímpios.5 Todos os mortos estarão
Apocalipse 20.11-15 descreve a ressurreição dos no Juízo daquele dia. Portanto, haverá apenas um
mortos: dia para a ressurreição, e naquele dia, os salvos
ressuscitarão para a vida eterna, e os ímpios para
Vi um grande trono branco e aquele que nele se a destruição eterna.
assenta, de cuja presença fugiram a terra e o céu, e
não se achou lugar para eles. Vi também os mor-
tos, os grandes e os pequenos, postos em pé dian-
te do trono. Então, se abriram livros. Ainda ou- COMO SERÁ O CORPO DA RESSURREI-
tro livro, o Livro da Vida, foi aberto. E os mortos ÇÃO

4 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 730. 5 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 729.
224

Uma das maiores dúvidas acerca da ressurreição do homem, quando estiver de posse de um cor-
diz respeito ao tipo de corpo que terão os ressus- po apto para uma alma regenerada. Num certo
citados.6 O texto de 1Coríntios 15.36-38 é o mais sentido, seremos mais privilegiados do que Adão
esclarecedor sobre este assunto: “O que semeias antes da queda. Paulo trata sobre isto também no
não nasce, se primeiro não morrer; e, quando se- capítulo 15 de 1Coríntios. Ele diz que “o primei-
meias, não semeias o corpo que há de ser, mas ro homem, Adão, foi feito alma vivente. O último
o simples grão, como de trigo ou de qualquer Adão, porém, é espírito vivificante” (1Co 15.45).
outra semente. Mas Deus lhe dá corpo como lhe O que quer que isso signifique, o certo é que ha-
aprouve dar e a cada uma das sementes, o seu verá uma vantagem do corpo futuro em relação
corpo apropriado” (1Co 15.36-38). Nosso novo aquele antes da queda. Por mais perfeito que fosse
corpo será, num certo sentido, idêntico ao atual o corpo de Adão, ainda assim estava na categoria
e, noutro sentido, totalmente diferente. Haverá de “corpo terrestre”, mas o corpo futuro será um
tanto continuidade como novidade no novo cor- “corpo celestial” (1Co 15.40). Nesse sentido, terá
po. Haverá continuidade porque será um corpo muito mais glória do que o anterior (1Co 15.41).
a partir deste, assim como a planta nasce a partir Paulo diz que “o primeiro homem, formado da
da semente, mas, haverá novidade, porque assim terra, é terreno; o segundo homem é do céu” (1Co
como a planta que nasce é imensamente superior 15.48). Haverá, portanto, uma superioridade to-
à semente, assim também o nosso novo corpo tal mesmo em relação ao corpo do Adão antes da
será superior ao que temos agora. Aquele será um queda. Com relação ao atual, então, será incom-
corpo perfeito, sem as fraquezas e limitações pró- parável.
prias do atual. Devemos lembrar que nosso corpo
será igual ao corpo ressuscitado de Jesus. Seremos
homens plenos como Jesus é, embora devamos
lembrar que nunca seremos Deus, como ele é. A RESSURREIÇÃO E A VIDA CRISTÃ

Precisamos de um novo corpo. Nosso coração re- A doutrina da ressurreição era especialmente im-
generado encontra muita dificuldade em relação portante para a igreja primitiva. Uma das heresias
ao corpo atual, pois o corpo que temos agora é, na mais destruidoras, desde o início do cristianismo,
melhor das hipóteses, instrumento ineficaz para foi o gnosticismo. Para essa heresia toda a matéria
expressar os desejos e propósitos do coração re- é má e apenas o espírito é bom. Então, a melhor
generado. Como Jesus disse: “O espírito na verda- coisa que pode acontecer para nosso espírito é se
de está pronto, mas a carne é fraca” (Mt 26.41).7 livrar do corpo. É claro que essa ideia, embora
Todos os dons de Deus, e todas as maravilhas bastante popular, não é bíblica. A Bíblia ensina
da regeneração acabam, como que, brecadas por a importância de nosso corpo. Não fomos feitos
causa da qualidade inferior do nosso corpo atual. para vivermos sem ele. E a grande boa nova do
Por outro lado, dá para imaginar como será a vida Evangelho é que na ressurreição seremos unidos
a ele outra vez. Nosso espírito não foi feito para
viver sem um corpo, isso demonstra o quanto o
6 Já abordamos este tópico no capítulo sobre a res- “ser humano” em corpo e alma é importante para
surreição de Cristo.
Deus. Ter um corpo não é algo que testemunhe
7 Hendriksen entende que a expressão “espírito” contra nós. O problema conosco não é o corpo
que Jesus usou (gr. Psyke), indica a entidade invisível do
homem considerado em sua relação com Deus (William em si, mas o pecado que habita em nosso corpo.
Hendriksen. Mateo, p. 964). Os Puritanos davam grande ênfase à ressurrei-
225

ção, e eles levavam este mundo a sério. Insistiam


que tanto nossa alma quanto nosso corpo foram
redimidos juntos, embora ainda continuem de-
caídos. Mas, nossos membros físicos são tão dig-
nos quanto nossa alma. Talvez por isso, a Bíblia
insista: “Oferecei-vos a Deus, como ressurretos
dentre os mortos, e os vossos membros, a Deus,
como instrumentos de justiça” (Rm 6.13). Pode-
mos agradar a Deus espiritualmente e corporal-
mente, pois se Jesus está em nós, a redenção tem
nos alcançado integralmente. Se os corpos são tão
importantes, então, devemos zelar por eles. Nesse
mundo temos padrões de beleza muito diferen-
tes. Alguns são considerados mais belos do que os
outros, e muitos sofrem por causa disso. A ressur-
reição nos garante que, um dia, essas diferenças
não mais existirão, pelo simples fato de que todos
os salvos terão um corpo perfeito.

O corpo é muito importante. Isso deve nos in-


fluenciar também no evangelismo, pois não de-
vemos ter preocupação apenas com a alma das
pessoas, mas devemos pregar o Evangelho para
o ser humano como um todo, preocupados com
a salvação da alma e com a preservação do corpo.
226

31

O DIA DO JUÍZO

INTRODUÇÃO era recompensado em vida e o perverso punido,


e ponto final.1 Quando viram o estado calamito-
Pela maneira como as pessoas vivem, parece que so de Jó, não tiveram dúvidas: toda aquela justi-
não há muita vantagem em ser honesto neste ça e retidão que Jó demonstrava anteriormente,
mundo. Parece que os ímpios são até mais felizes era pura aparência. Se Jó estava sendo punido,
do que os crentes. Ao contrário dos filmes e no- então, não era tão justo como parecia. Daí, resol-
velas que sempre mostram um final feliz, na vida veram “ajudá-lo”. Para eles a tarefa era muito sim-
cotidiana, os assassinos ficam fora da prisão, os ples: bastava convencer Jó de seus pecados, então
traficantes moram em mansões, os golpistas do ele se arrependeria e lhe seria devolvida a saúde e
INSS não devolvem o dinheiro, e os fraudulentos a prosperidade. Essa é uma visão muito simplista
fogem com altas quantias para o exterior. Mas os da vida, mas é a visão da maioria das pessoas. O
pais de família mal conseguem comprar o leite fato é que há mais coisas entre o céu a terra do
para os filhos, os trabalhadores honestos deixam que as consequências imediatas dos nossos atos.
grande parte do pequeno salário para o governo É impossível que uma pessoa receba todo o mal
por causa dos impostos, e as pessoas de bem são que merece em vida, ou mesmo o bem. Por essa
atingidas por balas perdidas. Da perspectiva hu- razão, é preciso que haja um “Juízo Final”.
mana, está muito difícil ver a diferença entre o
justo e o perverso, conforme Malaquias dizia (Ml Há pelo menos 50 referências ao Juízo Final no
3.18), exceto que o perverso parece que sempre Novo Testamento. Isso já é suficiente para de-
leva vantagem. monstrar que esse é um dos temas mais impor-
tantes da Bíblia. Segundo a Escritura haverá um
Jó era um homem atribulado. Além da doença, dia quando Deus se assentará no tribunal e jul-
das perdas familiares, dos prejuízos materiais,
1 Em alguma medida essa ideia está certa. Deus re-
ainda tinha que aguentar seus amigos lhe impor-
almente pune o mal e recompensa o bem nessa vida, porém,
tunando. Os amigos de Jó eram adeptos de uma de forma alguma em termos absolutos (Ver Louis Berkhof.
teologia extremamente simplista. Para eles, o justo Teologia Sistemática, p. 735).
227

gará todas as pessoas e tudo o que foi feito neste zer” (Lc 25.45). É interessante que condenação
mundo. A existência desse dia de Juízo é a única ou salvação dependem daquilo que as pessoas
certeza que temos de que vale a pena servir ao tiverem feito em relação a Jesus. Ele é a base da
Senhor. salvação. Agir de forma positiva em relação a ele
garante salvação, agir de forma negativa garante
condenação. Acima de tudo, Jesus quis demons-
trar a necessidade de vida autêntica. Ele mostrou
OVELHAS SEPARADAS DOS CABRITOS de forma muito clara, ao longo de seu ministério,
qual era o tipo de discípulo que o agradava. Não
No final de seu sermão profético, Jesus falou so- era aquele que se importava apenas com aparên-
bre o momento quando haverá a grande separa- cias, pois ele queria decisão de vida. Decisão que
ção dos salvos e dos condenados (Mt 25.31-46). envolvesse profunda mudança de caráter. Um dis-
Ele disse que o Filho do Homem virá na sua cípulo deve se parecer ao máximo com o Mestre.
majestade acompanhado de todos os anjos e se
assentará no trono da glória (v. 31). Esta é uma Do texto acima, fica bastante evidente que, no
imagem bem diferente daquela que os homens se mesmo julgamento, estarão salvos e perdidos.
acostumaram a ver em Jesus. O humilde carpin- Na verdade, o objetivo desse julgamento é justa-
teiro de Nazaré voltará envolto em glória, majes- mente demonstrar a diferença de destino que há
tade e autoridade. Todas as nações serão reunidas entre estes dois grupos. No dia do Juízo, que está
diante dele, que passará a fazer separação, como descrito em Apocalipse 20, o qual em seguida es-
se separa ovelhas de cabritos (v. 32). As ovelhas tudaremos, todas as pessoas, inclusive os crentes,
ficarão à sua direita e os cabritos à esquerda (v. estarão. O fato de já estarmos salvos por Cristo,
33). Até aqui não ficou claro qual o motivo da não retira a necessidade de comparecer perante
separação, então, em seguida, Jesus esclarece que o Juízo. Por outro lado, não significa que haja al-
as ovelhas são benditas e podem entrar no Reino gum risco de condenação para os que estão em
que está preparado desde a fundação do mun- Cristo Jesus (1Jo 4.17). Paulo diz que nós, os cren-
do (v. 34). A razão, segundo ele, é porque: “Tive tes teremos que comparecer perante o tribunal
fome, e me destes de comer, tive sede, e me destes de Cristo (2Co 5.10). Da mesma forma, Hebreus
de beber, era forasteiro, e me hospedastes; estava 10.30 diz que Deus julgará seu povo. E Romanos
nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, 14.10 diz que compareceremos perante o tribunal
e fostes ver-me” (Mt 25.35-36). Naquele momen- de Deus. Tudo isso deve ser identificado com o
to, as ovelhas surpresas dirão: “Senhor, quando mesmo dia do Juízo. O grande Juiz daquele dia,
foi que te vimos com fome e te demos de comer? também já está designado: Jesus Cristo. Ele con-
Ou com sede e te demos de beber?” (Mt 25.37). quistou o direito de julgar por sua obra de reden-
Jesus lhes responde: “Em verdade vos afirmo que, ção (Jo 5.27; At 10.42; Fp 2.10; 2Tm 4.1).
sempre que o fizestes a um destes meus pequeni-
nos irmãos, a mim o fizestes” (Lc 25.40). Chegou
a vez dos cabritos. Eles estão postados à esquerda
e recebem a ordem de se afastar. Só lhes resta a
perdição. A razão é porque agiram justamente no A INSEGURANÇA DOS ÍMPIOS
sentido oposto dos primeiros: “Em verdade vos
digo que, sempre que o deixastes de fazer a um Como já dissemos, frequentemente temos a im-
destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fa- pressão de que os ímpios não são punidos neste
228

mundo. Parece que eles geralmente acabam im- esta conclusão, se analisar os fatos apenas da pers-
punes apesar de seus crimes. A prosperidade dos pectiva humana.
ímpios é o tema do Salmo 73.2 O salmista começa
o Salmo declarando a bondade de Deus: “Com As coisas só começaram a mudar para o salmis-
efeito Deus é bom para com Israel, para com os ta quando ele foi até o santuário de Deus e, nas
de coração reto” (Sl 73.1). Parece, entretanto, que próprias palavras dele, atinou “com o fim deles”
nem sempre ele teve toda esta convicção, pois diz (Sl 73.17). Ele se lembrou que Deus tem um juí-
no verso seguinte: “Quanto a mim, porém, quase zo sobre todos os homens e entendeu que o fim
me resvalaram os pés; pouco faltou para que se dos ímpios está sempre à porta: “Tu certamente
desviassem os meus passos” (Sl 73.2). O motivo os pões em lugares escorregadios e os fazes cair
desse “quase desvio” não foi outro senão indig- na destruição.
nação diante da prosperidade dos perversos. Ele
declara: “Pois eu invejava os arrogantes, ao ver Como ficam de súbito assolados, totalmente ani-
a prosperidade dos perversos. Para eles não há quilados de terror! Como ao sonho, quando se
preocupações, o seu corpo é sadio e nédio. Não acorda, assim, ó Senhor, ao despertares, despre-
partilham das canseiras dos mortais, nem são zarás a imagem deles” (Sl 73.18-20). O salmista
afligidos como os outros homens” (Sl 73.3-5). O entendeu o quanto a posição de um ímpio é in-
salmista não conseguia entender como poderia segura. A qualquer momento poderia se abater
ser possível que pessoas tão más prosperassem e sobre ele a calamidade e não teria em quem se re-
se safassem de toda maldade que cometiam, in- fugiar. A qualquer momento poderia ser tragado
clusive a de falar contra Deus. Nada os atingia, pela morte e todas as suas esperanças teriam se
por isso ele derrama sua indignação: “Eis que são dissipado. Portanto, a prosperidade e a segurança
estes os ímpios; e, sempre tranquilos, aumentam dele eram totalmente ilusórias. O salmista enten-
suas riquezas” (Sl 73.12). A indignação do sal- deu que os ímpios não tinham qualquer seguran-
mista diante da prosperidade impune dos ímpios ça, pois a qualquer momento, Deus poderia lhes
se tornava ainda maior, porque ele próprio era pedir a conta (Lc 12.15-21).
continuamente afligido, por mais que se esforças-
se em ser justo e honesto. Ele diz: “Com efeito, Por outro lado, ele começou a ver sua própria si-
inutilmente conservei puro o coração e lavei as tuação com outros olhos. É verdade que passava
mãos na inocência. Pois de contínuo sou afligido por aflições, mas tinha algo que os prósperos ím-
e cada manhã, castigado” (Sl 73.13-14). Esta é a pios não tinham: “Todavia, estou sempre conti-
expressão de alguém que não tem mais esperan- go, tu me seguras pela minha mão direita. Tu me
ça. Ele diz: foi tudo inútil, de nada adiantou eu guias com o teu conselho e depois me recebes na
me esforçar por viver uma vida reta, pois isso só glória. Quem mais tenho eu no céu? Não há outro
me trouxe ainda mais desgraças, mas os ímpios, em quem eu me compraza na terra. Ainda que a
estão sempre seguros. Com uma dor lancinante, minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus
o salmista chegou à conclusão de que não existia é a fortaleza do meu coração e a minha herança
justiça. É inegável que qualquer um pode chegar a para sempre” (Sl 73.23-26). A convicção de um
Deus no céu que faz a diferença também na terra,
encheu o coração daquele homem de esperança.
2 Uma excelente exposição sobre o tema no Salmo A alegria voltou ao seu coração. A confiança no
73 pode ser encontrada em: D. M. Lloyd-Jones. Por que
Prosperam os Ímpios? São Paulo: Publicações Evangélicas Juiz que sabe julgar retamente sempre foi a marca
Selecionadas, 1983. dos verdadeiros crentes (Sl 50.6; 96.10).
229

O GRANDE JULGAMENTO a ele. Em seguida João vê os que serão julgados.


Além dos mortos, é possível que os próprios de-
O fim dos ímpios acontecerá, segundo a Bíblia, mônios sejam julgados nesse momento. Inclusive,
no dia do Juízo Final. A Justiça de Deus garan- a Bíblia diz que os crentes terão alguma participa-
te que todos terão um julgamento justo. O Juízo ção nesse ato de julgar os demônios (1Co 6.2-3),
Final vai deixar bem claro o quanto Deus é justo, porém, não sabemos como isso se dará.4 Os que
quando todos os ímpios forem condenados por serão julgados estão todos em pé diante do trono.
suas obras. O livro do Apocalipse contém a mais Essa é a posição de ouvir a sentença. Neste julga-
impressionante descrição do Juízo do último dia: mento não são necessárias acusações ou defesas,
pois tudo está descrito nos livros que são abertos.
Vi um grande trono branco e aquele que nele Ou seja, a verdade está diante de todos. Ninguém
se assenta, de cuja presença fugiram a terra e o pode fugir dos fatos. Deus tem todas as provas de
céu, e não se achou lugar para eles. Vi também todos os crimes, dos menores aos maiores, em seu
os mortos, os grandes e os pequenos, postos em arquivo celestial, e no dia do juízo, tudo isso virá
pé diante do trono. Então, se abriram livros. Ain- a lume. Imagine o assassino vendo seus crimes,
da outro livro, o Livro da Vida, foi aberto. E os “um por um”, e ouvindo suas próprias palavras
mortos foram julgados, segundo as suas obras, de blasfêmias e ofensas, agora porém, diante do
conforme o que se achava escrito nos livros. Deu Todo-Poderoso. Este será o mais horripilante fil-
o mar os mortos que nele estavam. A morte e o me de terror, pois cada ímpio assistirá ao filme
além entregaram os mortos que neles havia. E fo- de sua própria vida. Mas os crentes também ve-
ram julgados, um por um, segundo as suas obras. rão. Seus pecados secretos serão expostos naquele
Então, a morte e o Inferno foram lançados para momento. Embora sejam, como diz Bekhof, “pe-
dentro do lago de fogo. Esta é a segunda morte, o cados perdoados”,5 como disse Jesus, teremos que
lago de fogo. E, se alguém não foi achado inscrito dar conta de cada palavra frívola naquele dia (Mt
no Livro da Vida, esse foi lançado para dentro do 12.36).
lago de fogo (Ap 20.11-15).
As obras, porém, não são a base da salvação ou da
Esse é um texto impressionante, como diz Kiste- condenação de ninguém. O que decide é o nome
maker, “em cinco versículos, João desvenda o fim estar ou não inscrito no livro da vida, conforme
do tempo cósmico e, assim, encerra a História do o texto assegura: “E, se alguém não foi achado
mundo”.3 Vários detalhes dessa descrição simbóli- inscrito no livro da vida, esse foi lançado para
ca são importantes para nós. O Trono Branco re- dentro do lago do fogo” (Ap 20.15). Além do as-
presenta a justiça e a santidade de Deus. É um tro- pecto da eleição, aqui deve ser lembrada a obra
no imparcial. Ele não está comprometido, como da redenção. Todos os homens são pecadores e
muitas vezes as cadeiras de juízes desse mundo automaticamente condenados, mas o Senhor pro-
estão, com os interesses dos poderosos. Ninguém videnciou uma salvação para todo aquele que crê.
poderá acusar esse trono de favorecer uns em de- O Senhor Jesus Cristo assumiu o pecado do ser
trimento dos outros. Absoluta justiça prevalecerá humano e foi condenado no lugar de todo aquele
no juízo. O aspecto do Juiz supremo assentado que crê. Assim, as pessoas que creem são as que
no trono é suficiente para percebermos que ele
não pode ser coagido, pois ninguém pode resistir 4 Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 737-
738.
3 Simon Kistemaker. Apocalipse, p. 685. 5 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 738.
230

têm o nome escrito no Livro da Vida. No dia do pria lei da consciência que Deus imprimiu em seu
Juízo Final, o Livro da Vida é aberto e quem tem coração (Rm 2.12-16).
o nome inscrito vai habitar os novos céus e a nova
terra. Quem não tem o nome inscrito, será lan-
çado no Lago de Fogo que é o Inferno definitivo.
Todos já chegam com o destino eterno determi- CONCLUSÃO
nado no Juízo Final, pois já houve um pré-julga-
mento em vida, quando aceitaram ou recusaram a O dia do Juízo será o dia da manifestação supre-
salvação em Jesus Cristo. A Bíblia deixa isto bem ma da Justiça de Deus. Naquele dia as ovelhas se-
claro: “Quem nele crê não é julgado; o que não rão separadas dos cabritos, os ímpios receberão a
crê já está julgado, porquanto não crê no nome do pena devida por seus pecados, e os salvos desfru-
unigênito Filho de Deus” (Jo 3.18). Isto quer dizer tarão da eterna bem-aventurança por terem con-
que o Julgamento Final é mais uma questão de fiado no Senhor e dependido inteiramente dele.
pôr as coisas em pratos limpos, do que propria- Naquele dia ficará muito evidente a diferença “en-
mente de decidir sobre a salvação das pessoas. O tre o justo e o perverso, entre o que serve a Deus
Juízo Final é absolutamente necessário por uma e o que não o serve” (Ml 3.18). Na verdade, quan-
questão de justiça. É o momento sublime, quando do Malaquias escreveu esse texto, Deus mesmo
a ordem do universo será restaurada, e todo mal já havia demonstrado o porquê dessa diferença.
punido de forma pública e definitiva. O povo de Israel estava questionando o Senhor.
Eles diziam: “Inútil é servir a Deus; que nos apro-
Há uma função para as obras nesse Juízo: recom- veitou termos cuidado em guardar os seus pre-
pensa ou punição. Isso vale tanto para os salvos ceitos e em andar de luto diante do senhor dos
como para os perdidos. A Bíblia ensina que as Exércitos? Ora, pois, nós reputamos por felizes
obras dão galardão aos salvos, ou seja, quan- os soberbos; também os que cometem impieda-
to mais as pessoas viverem segundo a vontade de prosperam, sim, eles tentam ao senhor e esca-
de Deus nessa vida, mais recompensa terão no pam” (Ml 3.14-15). Como se percebe, a questão
céu (Mt 5.12; 6.1; Mc 9.41; 1Co 3.14; 2Jo 1.8; Ap da justiça sempre foi uma grande dúvida dos fiéis.
11.18; 22.12). E se há um galardão para os salvos, Mas a resposta do Senhor é muito clara: “Eles se-
é possível que haja um “galardão às avessas” para rão para mim particular tesouro, naquele dia que
os perdidos. Talvez o que está escrito nos livros prepararei, diz o senhor dos Exércitos; poupá-
abertos não só justifique a condenação dos ím- -los-ei como um homem poupa a seu filho que
pios, como também implique em diferentes ní- o serve. Então, vereis outra vez a diferença entre
veis de condenação (Lc 12.47-48), embora todos o justo e o perverso, entre o que serve a Deus e o
sejam lançados no mesmo Lago de Fogo e de lá que não o serve” (Ml 3.17-18). No dia do grande
jamais saiam. Ainda deve ser dito que o padrão julgamento, aqueles que temem ao Senhor, serão
para o julgamento final não será igual para todos. tratados como “tesouro particular”, como verda-
Embora a entrada no céu dependa unicamente deiros “filhos”. Os ímpios não desfrutarão deste
da fé em Jesus Cristo, a Bíblia deixa claro que as benefício. Se hoje a diferença pende para o lado
pessoas que receberam mais benefícios de Deus dos ímpios, pois não vemos os ímpios sendo pu-
serão mais exigidas (Lc 12.48; Mt 11.22). As pes- nidos como deviam, naquele dia as coisas serão
soas que não conheceram a Bíblia serão julgadas muito diferentes. Por outro lado, isso é um con-
segundo o padrão da revelação natural, e da pró- solo para aquelas pessoas que sofrem injustamen-
te. Não devem se angustiar quando os “amigos de
231

Jó” tentarem lhe colocar para baixo dizendo que


“se você está mal é porque está em pecado”. Essa
forma simplista de ver a vida ignora que a Bíblia
não diz “a aqui se faz aqui se paga”, mas “o que se
planta, se colhe”, ainda que a colheita não seja de
todo realizada nessa vida, para bem ou para mal
(Sl 126.5-6; Pv 22.8).
232

32

O DESTINO ETERNO
DOS HOMENS

INTRODUÇÃO cia bastante diferente da atual. É possível que o


próprio conceito de tempo não exista mais, não
Tudo o que foi estudado até aqui, nos conduz para pelo menos, como o conhecemos hoje. Todos os
este ponto final e essencial da nossa esperança. A homens existirão eternamente, porém, o destino
certeza de um “destino eterno” é o que dá valia a dos perdidos e o destino dos salvos serão muito
tudo o que foi estudado até esse momento. Todas diferentes.
as doutrinas consideradas acima são importantes
e verdadeiras, porque conduzem à consideração
do destino eterno. Se a nossa existência se resu-
misse apenas a esta vida, seríamos, nas palavras O DESTINO DOS PERDIDOS
do Apóstolo Paulo, “os mais infelizes de todos os
homens” (1Co 15.19). Toda a nossa teologia, es- O Lago de Fogo é o destino final dos perdidos
perança e fé seriam fúteis, e sem nenhum sentido, (Ap 20.15). Este lugar aparece somente no déci-
se a única coisa que nos restasse fosse esta vida. mo nono capítulo do Apocalipse. É interessante
Seria sem sentido falar em revelação, em sobera- que, só no final da Bíblia, a existência deste lugar
nia de Deus, em expiação de Cristo, em salvação, foi explicada. O Lago de Fogo deve ser identifi-
igreja, ou escatologia, se a vida atual fosse a única cado com o lugar de punição definitivo de todos
forma de existência a que estivéssemos confina- os ímpios. É dito que a própria morte e o Infer-
dos. no são, depois do Juízo, lançados para dentro do
Lago de Fogo. Há uma diferença entre o Inferno
O destino eterno se refere ao estado de existência e o Lago de Fogo. O Inferno existe hoje, mas deve
que os seres humanos experimentarão depois da ser considerado como um lugar transitório. As
ressurreição dos mortos e do juízo final. Por isso, almas dos ímpios são atormentadas no Inferno,
de certa forma, somente aí começará a eternida- porém, estão lá sem corpo. No dia da ressurrei-
de para os homens, e só então todos terão plena ção, mesmo os ímpios terão que ressuscitar para
consciência disso. Será uma forma de existên- o Juízo, e então, com corpos serão lançados para
233

dentro do Lago de Fogo. Portanto, num sentido, surgem dos movimentos de teologia liberal, que
o Lago de Fogo é ainda pior que o Inferno atual. desconsideram a Inspiração e a Inerrância das Es-
Podemos considerá-lo como o Inferno definitivo. crituras. Somente se o pecado do homem não fos-
se tão terrível como a Bíblia o descreve, e somente
Tentativas de diminuir o Julgamento de Deus se o sacrifício de Jesus fosse algo sem valor, é que
o universalismo soteriológico poderia ser viável.
Uma questão que normalmente surge com res-
peito à punição dos ímpios é a duração dela. A re- Existe também a crença no extincionismo da
pugnância de muitos pela ideia de uma eternida- alma. Como o próprio nome sugere, os perdidos
de de punição os conduziu naturalmente a pensar seriam aniquilados, ou seja, reduzidos a um es-
que o estado de punição não pode ser eterno. Esta tado de não-existência. Essa posição é diferente
ideia não é nova. A doutrina católica do Purgató- do universalismo porque não defende a salvação
rio já é uma tentativa de minimizar os efeitos do dos ímpios, mas diz que o Inferno não é eterno.
Julgamento Divino. O Purgatório seria um lugar Após a morte e o julgamento, os ímpios serão lan-
intermediário entre o céu e o Inferno para onde çados no Inferno onde serão queimados, ou seja,
a maioria das pessoas iria após a morte. Assim, destruídos. Os defensores dessa ideia questionam
apenas um número pequeno iria para o Inferno. como o fogo poderia queimar algo eternamente,
Conforme a doutrina católica, todos os que estão pois em algum momento teria que se consumir.
no Purgatório têm chances de “purgar” seus pe- Portanto, a partir de algum momento, as almas
cados e pagar por seus crimes, podendo, depois deixariam de existir. Admite-se a possibilidade
de algum tempo, se dirigir ao céu. A partir dessa de que haja variação de um perdido para o outro,
perspectiva, provavelmente um número bem pe- em termos de sofrimento que antecipa a extinção,
queno, ao final, seria eternamente perdido. mas no fim, todos os ímpios simplesmente dei-
xarão de existir. Um argumento que geralmen-
Uma outra forma de diminuir o julgamento de te é usado para defender essa posição é que não
Deus é o universalismo soteriológico. Esta é a poderia haver felicidade verdadeira no céu, se os
ideia de que, no fim das contas, todos serão salvos. habitantes do paraíso soubessem que existe um
Os universalistas acreditam que a existência de Inferno cheio de pessoas sofrendo eternamente.
um Inferno seria algo incompatível com o amor Os mais famosos defensores do aniquilamento
e a bondade de Deus. Sendo assim, Deus, em seu são as Testemunhas de Jeová, mas muitos teólo-
imenso poder, achará alguma forma de salvar a gos simpatizam com essa ideia.
todos os homens. Na história da igreja, houve até
defensores de que o próprio Diabo e seus anjos O Castigo Eterno
serão de alguma forma salvos no fim.1 Alguns
universalistas até concordam que pode haver al- Como já dissemos em outros capítulos, devemos
gum tempo de punição para os ímpios, mas que deixar o futuro nas mãos de Deus. Não cabe a nós
no fim, todos serão salvos. É evidente que, para determinar como deverá ser o futuro. Se Deus
manter esta posição, a Bíblia terá que ser deixa- quiser aniquilar os ímpios, ele o fará, e não caberá
da de lado, por esta razão, tais ideias geralmente a nenhum de nós qualquer questionamento. Po-
rém, da perspectiva da interpretação bíblica tra-
dicional, parece muito difícil sustentar a doutrina
1 Hoekema cita o pai da igreja Orígenes (185-254)
como defensor dessa posição.Ver Antony Hoekema. A Bí- do aniquilamento. Por mais que esse seja um as-
blia e o Futuro, p. 355. sunto difícil, e que talvez, todos nós até desejás-
234

semos que houvesse um aniquilamento, o fato é 44). Por três vezes Jesus fala desse fogo inextin-
que, a menos que estejamos interpretando erro- guível e desse verme que corrói e nunca morre.
neamente os textos bíblicos, os ímpios realmente Ele está retratando o sofrimento interior, pelo
passarão a eternidade sendo punidos no Inferno. verme, e exterior pelo fogo. Ambos os sofrimen-
tos, segundo Jesus, são eternos. É possível que as
Há um número muito grande de passagens bíbli- expressões usadas pela Bíblia, como fogo, verme,
cas que falam sobre o Inferno. Há, pelo menos, trevas, etc., não devam ser entendidas literalmen-
50 textos da Escritura que falam diretamente do te. Pode ser uma maneira de expressar em língua
Inferno ou da Punição que os ímpios receberão. compreensível coisas incompreensíveis para o
Nesse momento, nossa intenção é nos concen- homem. Porém, o elemento de duração está bem
trarmos nos textos que falam sobre a duração des- claro nos textos: é eterno.
ta punição. Em Mateus 18.8, Jesus fala sobre um
“fogo eterno”. Ele diz: “Portanto, se a tua mão ou Um dos textos bíblicos mais claros sobre a puni-
o teu pé te faz tropeçar, corta-o e lança-o fora de ção eterna é 2Tessaloniscenses 1.9: “Estes sofre-
ti; melhor é entrares na vida manco ou aleijado do rão penalidade de eterna destruição, banidos da
que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado face do Senhor e da glória do seu poder”. Paulo
no fogo eterno”. A imagem de um fogo queiman- está, evidentemente falando sobre os ímpios, e
do eternamente conduz necessariamente à ideia sobre o que eles enfrentarão na Segunda Vinda
de que o lugar de punição dos ímpios é eterno. de Jesus. A penalidade deles será “eterna destrui-
Não haveria razão para o fogo ser eterno se em ção”, sendo banidos da face do Senhor. A própria
algum momento, os ímpios simplesmente deixas- expressão “banidos” sugere continuar existindo,
sem de existir. No capítulo 25 de Mateus, Jesus mas “longe de”. Eles existirão eternamente bani-
volta a falar sobre esse assunto. Ele fala sobre a dos da face do Senhor em destruição eterna. O
ocasião do Julgamento Final, quando separará as Apocalipse descreve um outro aspecto deste so-
ovelhas dos cabritos: “Então, o Rei dirá também frimento eterno: “Também esse beberá do vinho
aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos da cólera de Deus, preparado, sem mistura, do
de mim, malditos, para o fogo eterno, prepara- cálice da sua ira, e será atormentado com fogo e
do para o diabo e seus anjos” (Mt 25.41). Logo à enxofre, diante dos santos anjos e na presença do
frente, ele explica o que significa este estado: “E Cordeiro. A fumaça do seu tormento sobe pelos
irão estes para o castigo eterno, porém os justos, séculos dos séculos, e não têm descanso algum,
para a vida eterna” (Mt 25.46). Jesus chama o cas- nem de dia nem de noite, os adoradores da bes-
tigo dos ímpios de “eterno”, e o compara com a ta e da sua imagem e quem quer que receba a
recompensa dos salvos que é a vida “eterna”. Se o marca do seu nome. (Ap 14.10-11). Parece haver
castigo dos ímpios não for eterno, então, a vida uma contradição desse texto em relação ao an-
dos salvos também pode não ser eterna. No Evan- terior, mas eles estão apenas enfatizando facetas
gelho de Marcos, temos algumas expressões ain- diferentes do sofrimento dos ímpios. Eles estarão
da mais fortes de Jesus sobre o estado de eterna ao mesmo tempo “banidos da face do Senhor”
punição dos ímpios. Ele diz: “E, se tua mão te faz e “atormentados na presença do Senhor”. O ba-
tropeçar, corta-a; pois é melhor entrares maneta nimento se refere à impossibilidade de acessar o
na vida do que, tendo as duas mãos, ires para o favor divino. Por outro lado, terão que encarar a
Inferno, para o fogo inextinguível onde não lhes face de Ira do Cordeiro, porque são merecedores
morre o verme, nem o fogo se apaga” (Mc 9.43- da condenação. Para entendermos este contraste
235

entre o abandono e a presença de Deus, devemos todos os que morrerem sem Cristo, quer estejam
nos lembrar do que aconteceu com Jesus na Cruz. do nosso lado, quer estejam no outro lado do
O próprio Jesus confessa que sofreu um abando- mundo, passarão a eternidade nesse lugar hor-
no de Deus (Mt 27.46). rendo de punição, nosso coração deveria se co-
mover a tentar resgatar alguns do fogo (Jd 22-23).
Então, num sentido Deus abandonou seu Filho na Devemos nos lembrar também, que Deus pode
cruz, pois virou seu rosto para Jesus, isso significa exigir de nós o sangue alheio. Paulo entendia que
que não mais o sustentou com sua graça. Porém, Deus poderia cobrar dele, caso se recusasse a pre-
noutro sentido, o olhar de Deus permaneceu so- gar o Evangelho, por isso, depois de passar três
bre Jesus, mas era o olhar de Ira. Da mesma for- anos pregando aos Efésios, pôde dizer: “Portanto,
ma, os perdidos não estarão na presença de Deus, eu vos protesto, no dia de hoje, que estou limpo
entendendo-se essa presença como favor, mas do sangue de todos; porque jamais deixei de vos
estarão na presença de Deus, entendendo-se essa anunciar todo o desígnio de Deus” (At 20.25-27).
presença como ira. Com relação à duração da pe- Ele entendia as coisas da seguinte maneira: “Se
nalidade que virá aos que se submetem à marca anuncio o evangelho, não tenho de que me glo-
da Besta, o texto diz que a fumaça do seu tormen- riar, pois sobre mim pesa essa obrigação; porque
to sobe pelos séculos dos séculos, e não têm des- ai de mim se não pregar o evangelho!” (1Co 9.16).
canso algum nem de dia nem de noite. Respeitan-
do o simbolismo da passagem, a duração eterna Isto nos faz lembrar da história do Antigo Testa-
da punição está muito evidente. Qualquer outra mento sobre o Atalaia descrito em Ezequiel 33. O
interpretação teria que forçar o sentido natural do Atalaia era uma espécie de vigia que se colocava
texto. Portanto, diante desses textos bíblicos, ficana torre para observar a aproximação de inimi-
muito difícil sustentar ideias como “universalis- gos. Se o Atalaia visse inimigos se aproximando
mo” ou “aniquilamento”. e desse o aviso, caso as pessoas não se importas-
sem e acabassem morrendo, o Atalaia estava livre,
O Inferno e o Cristão pois havia cumprido seu papel. Porém, se visse o
inimigo se aproximando e não desse o aviso, ele
Qual deve ser a postura do cristão ao considerar teria que pagar pelo sangue dos que morressem
a doutrina do Inferno? Primeiramente, ele não (Ez 33.1-9). A doutrina do Inferno fala ao cristão
precisa temer o Inferno. O Inferno foi feito para o de suas responsabilidades.
diabo e seus anjos (Mt 25.41), e os homens maus
irão para lá como consequência de seus pecados Finalmente, diante do ensino bíblico de que tanto
e por sua recusa em aceitar a salvação que Deus os homens como os demônios serão punidos no
providenciou. Inferno, não pode prevalecer o conceito popular
de que o Diabo é o chefe do Inferno. O Diabo
Devemos considerar que o conhecimento da nem se quer está no Inferno agora. Seu lugar é a
existência do Inferno deve conduzir o crente ver- terra (Ef 6.12; Ap 12.9,12). Satanás será lançado
dadeiro ao trabalho. Como diz Hoekema, “para no Lago de Fogo, para ser eternamente punido
nosso empreendimento missionário, a doutrina juntamente com todos os seus anjos, após a vinda
do Inferno deveria nos impulsionar a um zelo e de Jesus. Ele não irá para lá a fim de mandar, mas
urgência maiores”.2 E de fato, se percebemos que para sofrer, e de todos, certamente, será o que
mais sofrerá. Por outro lado, o crente verdadeiro
2 Antony Hoekema. A Bíblia e o Futuro, p. 365.
236

jamais irá para este lugar. Se o Senhor Jesus so- terra; e não haverá lembrança das coisas passadas,
freu a penalidade do crente, e se o crente confia jamais haverá memória delas” (Is 65.17). E João
de todo coração nesta obra de Jesus e tem experi- viu numa visão o cumprimento dessa promessa:
mentado a transformação do Espírito, pode tran- “Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e
quilizar a sua alma. a primeira terra passaram, e o mar já não existe”
(Ap 21.1). Após todos os cataclismos finais, quan-
do Deus exercer sua justiça sobre o mundo de-
caído, e julgar todas as pessoas, ele renovará toda
O DESTINO DOS SALVOS a sua criação, incluindo a terra e o céu. Esta é a
grande expectativa do povo de Deus.
Depois do Grande Dia do Juízo, de acordo com a
Palavra de Deus, os salvos habitarão a nova terra A Renovação da terra
que será conjuntamente recriada com os novos
céus. No estado atual, as almas das pessoas que Deus sempre se importou com a terra. O relato
morreram em Cristo estão na presença de Deus, da criação diz: “No princípio, criou Deus os céus
desfrutando o paraíso no céu, porém essas almas e a terra. A terra, porém...” (Gn 1.1-2). Daí para a
estão lá sem seus corpos. Por isso, o Paraíso hoje frente, a terra ocupa o centro das atenções. Des-
é chamado de lugar de descanso. As almas dos de o início, a preocupação principal do Espírito
salvos devem descansar até o último dia, quando Santo foi revelar como a terra surgiu, e poucos
ressuscitarão (Ap 6.11; 14.13). Após a ressurrei- detalhes foram dados a respeito do céu. No plano
ção, quando as almas dos salvos se unirem a seus de Deus, a terra foi o lugar idealizado para a ha-
novos corpos, os redimidos serão conduzidos a bitação dos homens. Desde o começo, Deus pla-
um novo estado de existência mais pleno (1Co nejou que a terra fosse o lugar onde o ser humano
15.35-49). se realizaria: “Também disse Deus: “Façamos o
homem à nossa imagem, conforme a nossa seme-
A Bíblia diz que haverá uma grande renovação lhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar,
que acontecerá no futuro. Jesus falou que na sua sobre as aves dos céus, sobre os animais domés-
vinda aconteceria a “regeneração” (Mt 19.28). ticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis
Isso certamente se refere ao momento quando que rastejam pela terra” (Gn 1.26). Foi somente
Deus renovar os céus e a terra. Pedro disse que quando o homem transgrediu a ordem de Deus,
Jesus ficaria nos céus “até aos tempos da restaura- que Deus amaldiçoou a terra: “E a Adão disse:
ção de todas as coisas, de que Deus falou por boca Visto que atendeste a voz de tua mulher e comeste
dos seus santos profetas desde a antiguidade” (At da árvore que eu te ordenara não comesses, mal-
3.21). Assim, as profecias do Antigo Testamento dita é a terra por tua causa; em fadigas obterás
se cumprirão quando Deus renovar a terra. E Pe- dela o sustento durante os dias de tua vida” (Gn
dro fala novamente que na vinda do Dia de Deus, 3.17). Porém, sempre esteve no plano de Deus
os céus incendiados, serão desfeitos, e os elemen- restaurar a terra. Por esta razão, Jesus foi enviado
tos abrasados se derreterão (2Pe 3.12). E ele com- a este mundo. Ele veio aqui para retirar a mal-
plementa: “Nós, porém, segundo a sua promessa, dição. Não é sem motivo que João Batista tenha
esperamos novos céus e nova terra, nos quais ha- chamado Jesus de “o Cordeiro de Deus que tira o
bita justiça” (2Pe 3.13). Tanto a terra como os céus pecado do mundo” (Jo 1.29). Evidentemente que
serão renovados. Em Isaías 65 o Senhor já havia Jesus não tira os pecados de todas as pessoas do
prometido: “Pois eis que eu crio novos céus e nova
237

mundo, pois a Bíblia não ensina o universalismo, cumpridas, se o futuro reservasse para nós apenas
porém, Jesus tira o pecado do mundo (grego: cos- um estado incorpóreo de existência, em algum
mos), porque veio aqui para eliminar os efeitos lugar celestial. Mas, como o futuro é concreto e
do pecado sobre este mundo. Ele assumiu a antiga terreno, as expectativas do Antigo Testamento se
maldição, pois fez-se maldito ao ser pendurado cumprirão. Às vezes falam de montes produzin-
num madeiro (Gl 3.13). O sacrifício de Jesus não do mosto e leite (Jl 3.18), bem como de pessoas
apenas salva os pecadores, mas é a fonte da res- morrendo jovens aos 100 anos de idade (Is 65.20).
tauração da própria terra amaldiçoada pelo pe- Evidentemente que são símbolos de prosperidade
cado. Por isso, Paulo fala da expectativa da cria- e de paz que estarão presentes na nova terra, não
ção: “A ardente expectativa da criação aguarda a apenas por mil anos, mas para sempre. Quando o
revelação dos filhos de Deus. Pois a criação está Senhor renovar a terra, então, os justos habitarão
sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por nela, para se cumprir o que Jesus disse: “Bem-a-
causa daquele que a sujeitou, na esperança de que venturados os mansos, porque herdarão a terra”
a própria criação será redimida do cativeiro da (Mt 5.5). Especialmente a questão do trabalho
corrupção, para a liberdade da glória dos filhos deverá ter importância na nova terra. Quando
de Deus. Porque sabemos que toda a criação, a Deus criou o homem o colocou numa esfera de
um só tempo, geme e suporta angústias até agora. três relacionamentos: Havia a responsabilidade
E não somente ela, mas também nós, que temos espiritual, a responsabilidade social e a responsa-
as primícias do Espírito, igualmente gememos em bilidade cultural. Desde o início, o plano de Deus
nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a para o ser humano incluía o trabalho, a família,
redenção do nosso corpo” (Rm 8.19-23). Por cau- o lazer e, acima de tudo, o culto. Talvez não haja
sa da redenção de Cristo, há uma redenção tam- razão para excluirmos nenhum destes elementos
bém para a Criação. Quando os filhos de Deus na nova terra. No plano espiritual, Deus estabele-
receberem seus corpos novos, a terra também ceu o Sábado para o culto, e deixou sua imagem
terá sua renovação. Nessa terra, a maldição será impressa no homem para que houvesse um rela-
totalmente retirada, pois João diz: “Nunca mais cionamento verdadeiro e íntimo entre o criador e
haverá qualquer maldição. Nela, estará o trono de a criatura. No plano social Deus fez a mulher para
Deus e do Cordeiro. Os seus servos o servirão” o homem constituir família, e assim houvesse um
(Ap 22.3). relacionamento de ajuda e complementação. No
plano cultural Deus colocou o cosmos inteiro à
Quando João diz que, na nova terra o mar já não disposição do homem, a fim de que exploras-
existe (Ap 21.1), não sabemos se isso é literal ou se responsavelmente todas as suas riquezas. No
simbólico, mas possivelmente seja simbólico. O ambiente desses relacionamentos o ser humano
mar pode representar os distúrbios que assolam o experimentaria sua completa realização. Portan-
mundo. A não-existência do mar seria um estado to, se o trabalho, desde o início, esteve no plano
de total tranquilidade. A nova terra será caracte- de Deus, não há razão para pensar que não esteja
rizada pela paz e pela prosperidade. Nela, certa- no futuro. Certamente não seremos desocupados
mente se cumprirão todas as promessas do Antigo flutuando de nuvem em nuvem. Porém, certa-
Testamento que ainda não se cumpriram, sobre a mente não será um trabalho que traga canseiras e
prosperidade do povo de Deus. Se não houvesse frustrações, pois isto acontece por causa do peca-
a nova terra, possivelmente estas profecias fica- do (Gn 3.17-19), e lá, não haverá pecado.
riam sem cumprimento. Elas não poderiam ser
238

A Renovação dos céus (Ap 21.22-23). A presença plena de Deus na terra


mostra que os céus têm vindo à terra. Terra e céus
Segundo a Bíblia, não apenas a terra passará por passaram a estar interligados. Nenhuma imagem
um processo de renovação, pois o próprio céu poderia ser mais forte, nesse sentido, do que a
será renovado. É difícil não perguntar sobre o que descreve o próprio trono de Deus na terra:
“porquê” da renovação do céu. A Bíblia terá que “Nela, estará o trono de Deus e do Cordeiro. Os
dar a resposta. A Bíblia diz que o sacrifício de Je- seus servos o servirão, contemplarão a sua face, e
sus fez reconciliação de coisas na terra e no céu (Cl na sua fronte está o nome dele. Então, já não ha-
1.20). De alguma forma, aparentemente o pecado verá noite, nem precisam eles de luz de candeia,
deixou seus efeitos até mesmo no céu. Precisamos nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará
lembrar que a rebelião de Satanás aconteceu no sobre eles, e reinarão pelos séculos dos séculos”
céu e ele convenceu muitos dos anjos de Deus a (Ap 22.3-5). O Antigo Testamento é muito enfá-
segui-lo em sua luta contra Deus. Até a ascensão tico em descrever que o Trono de Deus está no
de Cristo, Satanás continuou tendo algum acesso céu. Em Isaías 66.1, o próprio Deus diz: “O céu é o
à presença de Deus (Jó 1.6; Ap 12.7-9). É possível meu trono, e a terra, o estrado dos meus pés”. Na
que a renovação dos céus tenha algo a ver com recriação, a terra deixará de ser apenas o “estrado”
o desejo de Deus de não deixar nenhum registro para ser a Sala do Trono. Por essa razão, esses dois
do pecado. Deus quer sua Criação inteiramente lugares estarão definitivamente unidos, não have-
renovada, e isso inclui tanto o céu quanto a terra. rá mais separação entre a habitação dos homens
e a habitação de Deus. Portanto, os habitantes
Mas, certamente, a principal razão para a reno- da nova terra serão também habitantes dos no-
vação do próprio céu tem a ver com a disposição vos céus. A terra e o céu serão uma só coisa, o lar
de Deus de estar perto do ser humano. Quando de Deus e dos homens. Essas imagens, como diz
João viu os novos céus e a nova terra, viu descen- Pohl, “significam a comunhão perfeita entre Deus
do do céu a cidade santa, a nova Jerusalém, que e o ser humano, ou que o ser humano, sem qual-
descia do céu, da parte de Deus, ataviada como quer perturbação, está em casa junto com Deus”.3
noiva adornada para o seu esposo (Ap 21.2). Seja
qual for o significado dessa cena, fala-nos do rela- Um elemento que precisa ser considerado é se os
cionamento pessoal que Deus deseja manter com novos céus e nova terra serão totalmente diferen-
seu povo, pois uma voz vinda do trono exclamou: tes dos atuais ou se haverá alguma continuidade.
“Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus Provavelmente haverá tanto continuidade como
habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e novidade. Como já falamos em um estudo ante-
Deus mesmo estará com eles” (Ap 21.3). Nos no- rior sobre o corpo da ressurreição que será tanto
vos céus e nova terra, não haverá separação entre um corpo novo como uma continuação do atual,
o céu, a habitação de Deus (1Rs 8.30, Is 66.1), e também o novo universo será uma continuação
a terra, a habitação dos homens. Na nova terra, do atual, mas ao mesmo tempo será novo. Será
não haverá a necessidade de santuários, confor- um lugar de prazeres indescritíveis, onde os san-
me João diz: “Nela, não vi santuário, porque o seu tos viverão uma vida cheia de significado e reali-
santuário é o Senhor, o Deus Todo-Poderoso, e o zação. Poderão usar suas vidas eternas, livres de
Cordeiro. A cidade não precisa nem do sol, nem qualquer imperfeição, servindo-se de suas imen-
da lua, para lhe darem claridade, pois a glória de sas capacidades, para glorificar eternamente ao
Deus a iluminou, e o Cordeiro é a sua lâmpada”
3 Adolf Pohl. Apocalipse de João II, p. 279.
239

Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. E participarão se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque
dos eternos propósitos de Deus para o mundo haveremos de vê-lo como ele é” (1Jo 3.2). Pode-
vindouro. remos ver a plena presença de Deus na face de
Cristo. Esta, sem dúvida, será nossa maior recom-
Quanto à questão das lembranças, há um senti- pensa.
do em que não mais nos lembraremos das coisas
ruins. Isaías disse que nos “novos céus e nova ter- No futuro, quando adentrarmos a nova terra e o
ra” não haveria lembrança das coisas passadas e novo céu, desfrutaremos de todas as bênçãos de
nem memória delas (Ver Is 65.17). Evidentemen- Deus em sua plenitude. Não haverá qualquer se-
te que, se alguma coisa pode nos fazer infelizes, paração entre a terra e o céu, e consequentemen-
esta coisa não existirá no paraíso restaurado. No te, nenhuma separação entre o homem e Deus.
entanto, não devemos pensar que esqueceremos Todos os crentes ressuscitados ou transforma-
de tudo. Será que poderíamos esquecer da pró- dos adentrarão as portas da eternidade e viverão
pria redenção? Como esquecer que Cristo mor- sempre a glorificar a Deus e ao Cordeiro. Essa é
reu pelos nossos pecados? Deus nunca apagará de a nossa grande e bendita esperança. Quando esti-
nossa memória o fracasso da declaração de inde- vermos lá, poderemos louvar a Deus infinitamen-
pendência do homem, para que o homem sempre te pela Revelação, pela Criação, pela Redenção, e
se alegre em depender de Deus. Também é certo até pela Queda, que nos fez conhecer mais da sua
que reconheceremos uns aos outros, pois o pró- Graça. Porém, ao mesmo tempo em que olhamos
prio Jesus disse que Abraão, Isaque e Jacó pode- para o futuro e nos enchemos de esperança, pre-
riam ser reconhecidos no reino de Deus (Ver Lc cisamos viver plenamente o presente. Para dar a
13.28). Mas nada poderá nos fazer sofrer, porque razão da esperança não basta apenas ter conhe-
lá não há mais qualquer tipo de sofrimento (Ver cimento intelectual das coisas que aqui foram es-
Ap 21.4). tudadas, é preciso praticar, pois toda a nossa vida
precisa ser transformada pela Esperança. Como
Cabe ainda uma palavra sobre a recompensa dos disse Calvino: “A esperança não é mais do que o
justos. Segundo a Bíblia, os justos desfrutarão da alimento e a força da fé”.5
Vida Eterna. Porém, a eternidade não é a carac-
terística única desta vida, pois, no sentido tem-
poral, mesmo os ímpios viverão eternamente no
Inferno. É a qualidade dessa vida eterna que se
destaca. Os santos desfrutarão da presença eter-
na e benéfica de Deus, experimentando a vida em
sua plenitude, “sem nenhuma das imperfeições e
dos distúrbios da presente vida”.4 Uma das prin-
cipais bem-aventuranças dos habitantes do futuro
universo é que verão a Deus. Jesus disse: “Bem-
-aventurados os limpos de coração, porque verão
a Deus” (Mt 5.8). E João diz: “Amados, agora, so-
mos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o
que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele
5 Calvino. As lnstitutas, 1.2.43.
4 Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 743.
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