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CARLOS A.

BACCELLI
pelo espirito
INÁCIO FERREIRA
Revisão: Fausto De Vito e Maria de Lourdes S. Moitinho

Capa: Luciana Silveira - Imagem

Projeto Gráfico:
Editora Vitória Ltda.
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FICHA CATALOGRÁFICA PREPARADA


NA EDITORA
Ferreira, Inácio (Espírito)
Infinitas Moradas / Pelo espírito Inácio Ferreira ;
[psicografado por] Carlos A. Baccelli. - Uberaba, MG
: Liv. Espírita Edições "Pedro e Paulo", 2003.
304p. ; 14x21 cm.

ISBN 85-88429-11-X

1. Obras psicografadas. 2. Espiritismo.


I. Baccelli, Carlos A. II. Título
CDD-133.93

Copyright 2003 by ©
LIVRARIA ESPÍRITA EDIÇÕES "PEDRO E PAULO"
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Telefax (0xx34) 3322-4873
38035-230 - Uberaba, MG

Os direitos autorais deste livro foram doados às obras assistenciais


do Lar Espírita "Pedro e Paulo", Uberaba-MG.

1ª Edição - Do 1º ao 5º milheiro
Outubro/2003

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
"Não se turbe o vosso coração. Credes em Deus, crede
também em mim. — Há muitas moradas na casa de meu pai.
Se assim não fosse, eu vo-lo teria dito, pois vou preparar-vos
o lugar. E depois que eu me for, e vos aparelhar o lugar, virei
outra vez e tomar-vos-ei para mim, para que lá onde estiver,
estejais vós também. " (João, XIV: 1-3)

São infinitas as moradas do Pai, no Universo, Dimen-


sões físicas e extra-físicas, que povoamos. Aprofundando,
no entanto, no significado das palavras do Mestre, anotadas
pelo evangelista, constatamos que, igualmente, são infinitos
os planos de morada que, em nossos espíritos, oferecemos ao
Senhor da Vida.
Descendo da Incomensurável Altura, Jesus não pregou
a Boa Nova apenas para os habitantes do orbe terrestre... Em
todas as D i m e n s õ e s que o c i r c u n d a m , e n c a r n a d o s e
desencarnados escutaram-lhe a Voz compassiva e mansa.
Tanto aos que se domiciliavam nas chamadas regiões
subcrostais, quanto aos que se situavam para além da Crosta,
o Verbo Divino, inflamado de Amor, ecoou em todas as lati-
tudes siderais, exortando-nos ao conhecimento da Verdade
que liberta.
O que o Senhor nos quis dizer, quando afirmou: "...pois
vou preparar-vos o lugar"? Ousamos entender que o trabalho
de implantação do Reino de Deus não se limita à evange-
lização do ser encarnado, mas, sim, em essência, a todos os
espíritos que se vinculam à evolução planetária.
Assim, nesta obra despretensiosa de nossa lavra,
tencionamos mostrar que, de fato, são também infinitas as
moradas psicológicas que concedemos a Ele, moradas que,
infelizmente, ainda não estão convenientemente preparadas,
para que Ele venha habitar em definitivo conosco.
C o l o n i z a d o r E s p i r i t u a l da Terra e das E s f e r a s
extrafisicas que com ela interagem psiquicamente, de maneira
incessante, desde as suas entranhas obscuras à Cúpula
Transcendente, Jesus Cristo é, sobretudo, o Excelso Colo-
nizador de nossas almas; porém, "Ele estava no mundo; e o
mundo foi feito por meio dele; e o mundo não o conheceu."
(João, I: 10)
Até quando a Humanidade continuará a ignorá-lo, e o
homem prosseguirá opondo-lhe sistemática resistência, sem
compreender que é suave o seu jugo, e leve o seu fardo?
Quando, verdadeiramente, haveremos de aceitá-lo na
condição de Senhor e Mestre, que nos ama e conhece, muito
antes mesmo que possamos amá-lo e conhecê-lo?!...

Inácio Ferreira

Uberaba-MG, 29 de agosto de 2003


Capítulo 1 11
2 19
3 27
4 35
5 42
6 49
7 56
8 63
9 70
10 77
11 84
12 91
13 98
14 105
15 112
16 119
17 126
18 133
19 140
20 147
21 154
22 161
23 168
24 175
25 183
26 190
27 198
28 205
29 212
30 219
31 227
32 234
33 241
34 248
35 256
36 264
37 271
38 278
39 285
40 292
1

Q u e b r a n d o a rotina cotidiana nas atividades do


Hospital sob a nossa responsabilidade na Vida Maior,
do qual já t i v e m o s o p o r t u n i d a d e de dar notícias aos
irmãos que ainda mourejam na carne, o amigo Odilon
Fernandes aparecera para mais um dos nossos agradáveis
e proveitosos diálogos.
C o m o seu sorriso característico, após abraçar-me,
perguntou, acomodando-se numa poltrona como se
fôssemos ainda dois mortais:
— Então, Inácio?...como é que você vem sentindo
a repercussão do seu novo trabalho literário entre os
companheiros da Terra?
— N ã o estou por lá para receber as críticas direta-
mente... Por este motivo, de certa forma, a minha posição

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é cômoda. Lamento apenas pelo instrumento mediúnico,
que fica exposto a tantas opiniões desencontradas...
— N ã o tem experimentado um certo desânimo?
— Você s a b e , m e s m o p a r a n ó s , os q u e a g o r a
enxergamos a Verdade por outro ângulo, não é fácil; às
vezes, sinto-me, sim, de espírito abatido, mas logo passa...
E uma oportunidade para que também exercitemos
humildade, não é?
— Sem dúvida - respondeu, procurando encorajar-
me. — O que importa é que prossigamos cumprindo o
dever, não contando com outra aprovação que não seja a
da própria consciência. Sempre nos depararemos c o m
opositores de nossas idéias...
— A este respeito, Odilon, estou calejado; aliás,
nós, os espíritas, estamos calejados... A nossa luta pela
Doutrina, dos Dois Lados da Vida, tem sido intensa. N ã o
basta morrer, para que as ilusões nos abandonem; se assim
fosse, as coisas seriam bem m e n o s complicadas...
Indo, no entanto, ao â m a g o da questão, c o m o se o
psiquiatra fosse ele e não eu, o abnegado companheiro
comentou:
— M a s a crítica dos confrades é a que mais nos
incomoda, concorda?
— Plenamente, pois, em maioria, não são fraternas
e escondem outros interesses... Perdoe-me, Odilon, mas
v o c ê me c o n h e c e b e m : e s t a r r e c e - m e a estreiteza de
raciocínio de tanta gente... O que eu lhes tenho dito, em
minhas obras, não são nem dez por cento do que gostaria.

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Eu não me intimido, mas a pressão sobre o médium, que,
diga-se de passagem, freqüentava a minha casa desde a
juventude, chega a ser impiedosa...
— E l e terá q u e a p r e n d e r a lidar c o m isso e...
continuar produzindo. A Verdade, se se apresentasse de
chofre para a Humanidade, seria repudiada de imediato.
Os que a ela resistem, voluntária ou involuntariamente,
dosam-lhe a revelação, dando tempo para que os cérebros
melhor se ajustem... N ã o nos adianta semear sobre a gleba
que ainda não sofreu a ação do arado. Por esse motivo,
I n á c i o , J e s u s nos falou por p a r á b o l a s , que até hoje
estudamos em seu significado...
— E m b o r a dê margem a diferentes interpretações,
a Verdade, em sua essência, é sempre a mesma.
— Poucos, porém, entendem assim - elucidou o
Mentor.
— Os próprios Espíritos Superiores, em "O Livro
dos Espíritos", não deixaram de ser reticentes em muitas
questões...
— Correto e, por esse motivo, alguns vivem falando
em atualizar Allan Kardec.
— O q u e , na m i n h a m o d e s t a o p i n i ã o , é u m a
blasfêmia!
— "O Livro dos Espíritos", simbolizando toda a
Codificação, representou e representa um avanço
extraordinário. M a s , para a época, seria excesso de luz
para os olhos...

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— Os h o m e n s c l a m a m por n o v i d a d e , t o d a v i a ,
quando ela surge... Os espíritas me p a r e c e m herdeiros
da ortodoxia dos católicos! E s p e r o que ninguém
interprete por ferinas as minhas palavras... Afinal, Odilon,
estamos simplesmente conversando - dois mortos que
têm se atrevido a continuar dando sinal de vida aos vivos
da Terra!...
— E não se esqueça de acrescentar, Inácio, que nem
tampouco é sua intenção fazer a própria defesa - a sua
ou a do médium, do qual ambos temos nos prevalecido
em nossos contatos...
— B e m lembrado, pois, caso contrário, esta nossa
conversa despretensiosa também irá render-nos críticas...
Ante o silêncio do companheiro, voltei a falar:
— Sinceramente, eu não entendo c o m o a existência
dos seres d e m e n t a i s p o s s a continuar g e r a n d o tantas
polêmicas...
— Você tem razão, pois, diante da evolução de Jesus
Cristo, nós não passamos de uns deles - observou Odilon
com sabedoria. — O nosso presente está mais próximo
do nosso passado que do nosso futuro! M a l saímos das
cavernas e já nos achamos os " d o n o s " das estrelas...
— Eu sempre me achei muito parecido, inclusive
no físico, com um elemental...
Rindo gostosamente, o amigo ponderou:
— Ora, não exagere!
— Estou falando sério... De tanto conviver com os
m e u s gatos, fui adquirindo u m a e x p r e s s ã o felina; às

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vezes, eu me olhava no espelho e não me reconhecia em
minha estranha metamorfose: meio gente, meio bicho!...
Em muitas ocasiões, os meus bichanos me pareciam mais
sinceros, apesar do egoísmo que caracteriza a espécie,
do que os seres humanos que me rodeavam.
— I n á c i o , n ã o r e s t a d ú v i d a de q u e , e n t r e um
elemental e um anjo, estamos mais perto do primeiro
que do segundo... A jornada evolutiva que temos pela
frente está apenas começando.
— Os elementais são seres de transição, indispensá-
veis ao princípio inteligente a caminho da racionalidade.
— Se os h o m e n s soubessem a metade da metade
dos mistérios que os envolvem...
— Enlouqueceriam! - emendei com convicção. —
M e s m o os que se consideram mais lúcidos, enlouque-
ceriam!... Se, em confronto com a realidade que deixamos
no m u n d o , andamos meio aparvalhados por aqui, no piso
q u e nos é i m e d i a t a m e n t e superior, i m a g i n e m o s nas
infinitas d i m e n s õ e s em que a Vida se d e s d o b r a ? ! O
h o m e m faz pouco da Inteligência Divina...
— A Imaginação do Criador não tem limites!... E
natural que a criatura encarnada coloque determinadas
informações sob quarentena, mas que não as negue a
priori.
— Os e l e m e n t a i s - c o n t i n u e i - c o n t a m - s e aos
milhares... Na Antigüidade, submissos aos espíritos de
m a i o r e v o l u ç ã o que e r a m a d o r a d o s n a c o n d i ç ã o d e
deuses, executavam-lhes a vontade, promovendo os mais

15
variados fenômenos de natureza física; assumiam, com
facilidade, a forma de animais e de plantas e se tornavam
visíveis aos olhos h u m a n o s , d a n d o origem à c r e n ç a
oriunda dos poderes da magia...
— E sempre foram bons ou maus, de acordo com a
índole de cada um.
— Conforme igualmente acontece conosco, que
somos seres humanizados em luta contra tendências e
inclinações de ordem inferior.
— Temos os d e m e n t a i s do fogo, os da água, os da
terra e os do ar...
— Os quatro principais elementos constitutivos da
Natureza!... - exclamei. — Eu não consigo entender,
Odilon, c o m o a presença deles, ao redor dos homens,
não seja detectada pelos médiuns videntes... A que você
atribui semelhante causa?
— N ã o podemos generalizar, pois alguns poucos
clarividentes conseguem, sim, detectá-los. O problema
do que se vê e do que se ouve mediunicamente vai além
da simples percepção.
— C o m o assim?...
— Também está afeto a certa predisposição íntima,
ou seja: ao que se crê, ao que se compreende e ao que se
aceita... Toda a Verdade está aí, ao alcance de quem c o m
ela consiga sintonizar-se.
— Integral ou parcialmente, não é?
— No nosso caso, Inácio, sempre mais parcial-
mente...

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— Incrível! Quer dizer que mediunidade...
— Depende da formação do médium. Os médiuns
católicos enxergam anjos e demônios; os espíritas vislum-
bram criaturas iluminadas ou trevosas, que simplesmente
p e r d e r a m o corpo... Em m e d i u n i d a d e , não p o d e m o s
desconsiderar a questão da interpretação, mais ligada ao
médium que ao espírito comunicante.
— C o m você, a gente sempre aprende algo novo
sobre mediunidade, Odilon.
— Ora, Inácio, voltemos a falar sério.
— Por este m e s m o princípio, então, é que os nossos
médiuns não registram a presença de animais desencar-
nados? - indaguei, curioso.
— Perfeitamente.
— Caso contrário...
— Caso contrário, os perceberiam psiquicamente
com a mesma naturalidade com que podem nos perceber.
— Poderiam ver, por exemplo, o espírito de um
pássaro?
— O princípio inteligente de um pássaro, você quer
dizer... É claro! Por que não?
— De um cão ou de um gato, no exato m o m e n t o
em que estivesse deixando o corpo?...
— Em que o estivesse deixando ou retomando e
m e s m o ainda na Erraticidade...
— Na Erraticidade?...
— O m u n d o n a t u r a l de t o d o s nós, os que nos
liberamos da forma física que nos revestia.

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— Há quem não aceite a tese de sobrevivência dos
animais...
— Há gente para todo tipo de crença e crença para
todo tipo de gente, Inácio! - respondeu Odilon com bom
humor.
— Dentro do Espiritismo? - insisti.
— Eu não vejo em que o espírita que não estuda e
não se entrega à reflexão seja diferente dos outros; ele
não pode se esquecer de que, em termos de fé e de razão,
a sua capacidade de crer não extrapola a sua capacidade
de racionar, e vice-versa.

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— E vice-versa?! - questionei, revelando a m i n h a
dificuldade de compreensão.
— Sempre haverá lugar para a transcendência no
Universo - respondeu Odilon. — O espírito, por mais
elevado, j a m a i s abdicará da fé...
— Quer dizer que a razão não logrará se opor à fé
completamente?
— Pelo menos, na atual consciência que p o s s u o
das coisas, é o que consigo deduzir... Sempre restará à
criatura um ponto de interrogação, na solução de todos
os enigmas da Criação. Observe, Inácio, o que acontece
conosco: quanto mais sabemos da Vida, mais há para
sabermos...
— A desencarnação descerrou-me perspectivas
extraordinárias...

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— Por este motivo, às vezes carecemos de nos
conter em nossos relatos aos irmãos encarnados que,
efetivamente, não estejam preparados para o
conhecimento maior que nos favorece fora do corpo.
— Quase tudo, para eles, funciona matemati-
c a m e n t e , i n c l u s i v e as leis e s p i r i t u a i s q u e r e g e m a
existência...
— E não é b e m assim, pois, se a Doutrina n o s
elucidou a respeito de algumas delas, nada sabemos das
inúmeras particularidades em que se estruturam; eis que
quase todo artigo de lei é composto de diversos pará-
grafos concisos...
— A Reencarnação, por exemplo! - falei, desejoso
de ouvir o M e n t o r sobre um t e m a específico. — Em
maioria, os que a admitem imaginam que toda volta do
espírito ao corpo obedeça a certa preparação...
— Infelizmente, ainda não estamos organizados
para tanto-...
— E não contamos com mérito suficiente.
— Também, Inácio. C o m o você não ignora, raros
são os espíritos que retornam à liça na carne, depois de
proveitoso estágio em Regiões Superiores...
— Raros os que podem escolher, não é?
— N ã o convém que desanimemos os que pensam
de maneira contrária...
— Os q u e p e n s a m q u e , a p ó s a m o r t e , s e r ã o
recepcionados por uma equipe espiritual e transformados
de improviso naquilo que nunca se esforçaram para ser...

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— N ã o c o n t a m o s c o m gente e s p e c i a l i z a d a em
número suficiente. C o m o haveríamos de dar cobertura a
todos?...
— Em todo o mundo?...
— Aqueles que não nos aceitam os préstimos e
alimentam outras aspirações...
— O r i u n d o s de outras c o n c e p ç õ e s religiosas e
f i l o s ó f i c a s e q u e n ã o q u e r e m n e m o u v i r falar em
Reencarnação...
— Exatamente! Deixaram o corpo, mas levarão um
bom tempo para melhor se situarem deste Outro Lado...
M e s m o que quiséssemos, Inácio, não conseguiríamos
mobilizá-los. A Lei Divina não violenta consciências...
— Tudo obedece a notável espírito de seqüência.
— Além-túmulo, somos esperados, principalmente,
por nossas próprias obras!
— Por aquilo que fazemos de nós, no espaço e no
tempo!
— A maior população de desencarnados - acentuou
Odilon - vive presa à psicosfera do planeta...
— E reencarna à revelia...
— Pela força das circunstâncias!
— Deixe-me tentar compreender melhor...
— Um espírito d e i x a o c o r p o i n c o n s c i e n t e do
fenômeno. Sem ascendentes espirituais que movimentem
recursos em seu benefício, não consegue se ausentar dos
interesses que lhe são imediatos.
— E não poderíamos interferir?

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— Teoricamente, sim, mas, na prática, nem sempre
funciona.
— Por quê?
— Pela condição mental em que esse h o m e m que
" m o r r e u " se coloca... Resgatá-lo sem o mínimo esforço,
para tanto, de sua parte equivaleria tratar de um doente
que não deseja melhorar. Você, c o m o médico, conseguiria
fazê-lo?
— M u i t o dificilmente...
— Prossigamos, então. O espírito a que estamos
nos referindo não concebe a realidade da Vida Espiritual
e t e m e seguir caminho... A i n d a , em contato c o m os
familiares e amigos encarnados, ele não se sente de todo
d e s a m p a r a d o , c o n t i n u a n d o , por a s s i m dizer, a lhes
receber as emanações aconchegantes da natureza física
e moral: é lembrado por eles, que não se lhe mostram
hostis e, na maioria das vezes, não reagem, tendo-o por
um comensal desencarnado...
— Para mim, foi mais fácil deixar o corpo do que
deixar a m i n h a casa...
— É que nós não deixamos o corpo, Inácio: é ele
que nos deixa!...
— E por quanto t e m p o o espírito referido pode
permanecer assim?
— Por um tempo indefinido; às vezes, até a próxima
encarnação, que, de fato, não costuma estar longe para
ele...
— Quer dizer que ele pode reencarnar...

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— Q u a n d o consegue fazê-lo no seio da m e s m a
família, é u m a dádiva, pois pode acontecer que ele se
desgarre...
— E vá para o n d e ? - indaguei, interessado na
trajetória do espírito fictício que Odilon t o m a r a para
exemplo.
— Para a casa vizinha ou...
— Para u m a outra cidade ou país?
— Sim, por que não?! Todos s o m o s de D e u s e
integramos a m e s m a família humana.
— Em resumo...
— ...em resumo, quando o espírito não se conduz
ou não é conduzido a colônias espirituais, onde lhe será
possível relativo despertar, as Leis cuidam para que o
seu processo evolutivo não se interrompa.
— Tudo se lhe constitui em aprendizado?
— Maturação psíquica, Inácio!
— E os vínculos afetivos com a família consan-
guínea?...
— O verdadeiro vínculo afetivo não se desfaz, mas
entre a vontade e a necessidade, prevalece a necessidade.
— A necessidade de?...
— De crescer, de evoluir. Se fôssemos agir tão-
somente pela própria vontade...
— Por este motivo?...
— O livre-arbítrio do h o m e m é relativo, mas a
Vontade de Deus é absoluta!
— É o cajado nas mãos do pastor, que tange as
ovelhas para o redil...

23
— Muito bem colocado!
— E esse espírito, que supostamente reencarnará
por força das circunstâncias, será h o m e m ou mulher?
— Não importa.
— A ele, talvez importe...
— O espírito de mediana evolução não consegue
se impor às leis da genética, m o r m e n t e a q u e l e cuja
inconsciência não lhe permite influenciar, pelo poder da
mente, a formação do novo corpo.
— Funcionará a Lei do Carma?...
— C o m o produto final de seus méritos e carências.
— A c o n t e c e r á o q u e a c o n t e c e no c a m p o da
reprodução animal?
— Mais ou menos, pois no caso em pauta ainda
precisamos de levar em consideração a condição cármica
dos futuros genitores... Os animais não têm carma.
— Por que, então, sofreriam? - perguntei.
— A dor física que experimentam serve-lhes de
estímulo ao psiquismo em expansão.
— Já no h o m e m , a dor física é conseqüência de dor
moral?...
— Quase sempre.
— M e u Deus, quanta coisa! - exclamei, pensativo.
— Pois é, Inácio, e nós nada sabemos.
— Vivemos pela Misericórdia de D e u s !
— N ã o fosse por ela que, primeiro, nos deu Jesus
e, depois, Allan Kardec, tatearíamos completamente às
escuras.

24
— A g e n t e fica com medo... C o m o nos prevenirmos
das conseqüências de nossa ignorância, se tão longe nos
encontramos da luz da Verdade? Estaríamos irremedia-
velmente expostos ao turbilhão que nos arrasta?...
— Esta resposta é relativamente simples, meu
amigo - ponderou Odilon, aliviando os meus anseios.
— Tratemos de amar os nossos semelhantes e, assim,
geraremos apenas efeitos que nos sejam positivos. O
lavrador que menos conhece a respeito de semeadura e
colheita, sabe que a qualidade da semente lançada à terra
é fator determinante na hora da ceifa.
— Jesus Cristo resumiu todo o conhecimento da
Lei e dos profetas no Amor!...
— Para amar, ninguém carece de ser erudito. O
A m o r a Deus e ao próximo é a síntese de todas as virtudes
e o alicerce seguro de todas as conquistas do espírito.
— O A m o r nos defende...
— E n o s a d v o g a a c a u s a p e r a n t e as L e i s do
Universo!
— Supre o nosso desconhecimento da Verdade?
— É evidente que não, mas nos preserva de longos
equívocos no erro; antecipa-nos, intuitivamente, o que a
Verdade, em última análise, tem para nos dizer...
— Q u e m a m a faz o essencial?
— N ã o fosse pela nossa capacidade de amar, com
certeza jamais nos ergueríamos do chão de nossas
próprias mazelas! Antes de aprendermos a amar, não
saberíamos o que fazer com a Verdade.

25
— Por esse motivo, Jesus veio ensinar o A m o r à
Humanidade antes que quase nada soubéssemos...
— E prometeu-nos, para o t e m p o oportuno, a vinda
do Paracleto!
— O Espiritismo!...
— Cujas primeiras letras, que lhe constituem o
d i v i n o a l f a b e t o d e infinitas r e v e l a ç õ e s , m a l a i n d a
aprendemos a soletrar!...

26
3

A conversa com Odilon sempre se faz repleta de


p r e c i o s o s e n s i n a m e n t o s . N o intuito d e aprender, e u
continuava a motivá-lo a falar sobre os assuntos que mais
de perto me interessavam.
— Eu não supunha - comentei com o Instrutor, que
me privilegiava com a sua visita - que os nossos contatos
com o m u n d o , através dos instrumentos mediúnicos à
nossa disposição, fossem eivados de tantas dificuldades...
Em nossas sessões no Sanatório, as coisas, neste sentido,
me pareciam b e m mais simples. Se os companheiros
encarnados soubessem quanto temos que nos esforçar,
mormente quando planejamos desenvolver um trabalho
que exige maior e m p e n h o e devotamento do médium!...
— E tempo, Inácio - elucidou, sentindo-se à
vontade para discorrer a respeito do t e m a em que se

27
especializara. — Hoje em dia, com as exigências da vida
moderna, os homens, de maneira geral, estão cada vez
mais se absorvendo nas ocupações de natureza material...
Falta aos médiuns aquele necessário recolhimento, para
que a sintonia se facilite.
— E a verdade é que igualmente não temos tempo
para nos postarmos j u n t o a eles, esperando que se nos
façam mais receptivos ao pensamento...
— Sem d i s c i p l i n a de a m b a s as p a r t e s , nós, os
espíritos e os m é d i u n s , não lograremos levar avante
qualquer tarefa de maior significado espiritual; se eles
carecem de se nos adequar, necessitamos de nos
adequarmos a eles, submetendo-nos à disponibilidade
de uns e de outros... Por esse motivo, falamos tanto em
parceria mediúnica. Raramente, porém, nos deparamos
com um medianeiro disposto a colaborar, sacrificando,
inclusive, a sua participação na vida social, e não exigindo
de nós outros, para si m e s m o , provas cabais de sobre-
vivência.
— Você tocou num ponto fundamental... É assim
m e s m o : via de regra, muitos de nossos cooperadores
encarnados, no c a m p o da mediunidade, condicionam a
sua perseverança no exercício de suas funções à certeza
que tenham de nossa presença junto a eles...
— Este é um dos mais pesados obstáculos a serem
removidos, no serviço do intercâmbio. Por esse motivo,
com a maioria deles não podemos contar senão
esporadicamente, ou seja, quando se vêem n u m a fase

28
melhor de crença, sem se anularem com tantos
questionamentos.
— Os nossos irmãos médiuns precisavam de ser
mais compromissados conosco...
— Não conosco, Inácio - esclareceu Odilon,
corrigindo-me -, mas com a Causa! Na verdade, poucos
são os que c o l o c a m a Causa acima de suas próprias
exigências.
— Muitos irmãos do nosso Plano, com os quais
t e n h o d i a l o g a d o , a q u i , nas a t i v i d a d e s d o h o s p i t a l ,
m o s t r a m - s e frustrados... A l e g a m q u e , p o r v e z e s , se
cansam de esperar pelo concurso espontâneo dos media-
neiros com os quais poderiam mais facilmente se
afinizar...
— Isto já aconteceu comigo, mais de u m a vez. Em
determinada oportunidade, compareci a cinco reuniões
consecutivas, aguardando a presença de certo m é d i u m
que vivia na expectativa de que pudesse contactar-me...
— E ele não foi?... - perguntei.
— Não!
— Q u e pena! Perdeu u m a oportunidade de ouro...
— E claro que não estamos a censurá-los, mas os
médiuns inconstantes jamais nos transmitirão a confiança
d e q u e n e c e s s i t a m o s p a r a que p l a n e j e m o s a l g o d e
proveitoso por seu intermédio. E, de nossa parte, não
podemos fazer-lhes qualquer exigência...
— Você está certo. Há pouco tempo atrás, em visita
à u m a casa espírita, aproximei-me de dois companheiros

29
que se entregavam a animada conversação. Um deles,
c o m o se estivesse se justificando para m i m , dizia ao
outro: — "Os espíritos não têm mais as nossas preocu-
pações; não têm contas a pagar, filhos para criar... É
diferente! O mundo atual nos cumula de exigências. Por
exemplo, eu queria ver um médium c o m o Chico Xavier
p r o d u z i r o que ele produziu se c o m e ç a s s e nas suas
atividades agora..." O segundo, endossando as palavras
do primeiro, completava: — "É verdade. Em 1927, na
cidade de Pedro Leopoldo, que então não passava de
pequena vila, não se tinha nada para fazer... N ó s estamos
na época do computador, da televisão, do automóvel;
como iremos fazer face às nossas despesas, se não nos
desdobrarmos? Os espíritos carecem de nos compreender,
pois, afinal, estamos fazendo o máximo..."
Odilon sorriu e observou:
— Eu já ouvi isto da parte de muitos de nossos
irmãos, que se não o disseram de maneira explícita, pelo
menos pensaram, esquecidos de que toda época é
assinalada pelas dificuldades que lhe são próprias. E,
depois, longe de nós a pretensão de contar com um Chico
Xavier em nossas humílimas tarefas.
— As a r t i m a n h a s dos espíritos o b s e s s o r e s que
concorrem conosco são inimagináveis... O que eles não
fazem para obstruir a capacidade de trabalho do médium!
Os sofismas que articulam...
— E, não raro, acabam conseguindo o que querem,
induzindo os médiuns a cruzarem os braços.

30
— E um médium de braços cruzados é pior do que
u m a estátua de bronze!...
— Inamovível!...
— A continuar assim - perguntei -, é de se temer
pelo futuro da mediunidade, não? C o m o é que faremos?
P o r outro lado, noto que a maioria dos m é d i u n s que
perseveram, principalmente no campo da produção
literária, é incentivada por escusos interesses...
— Sempre, no entanto, Inácio, o Cristo contará com
o i d e a l i s m o de a l g u n s p o u c o s . C o l e t i v a m e n t e , a
Humanidade, da qual evidentemente fazemos parte, ainda
não merece um número maior de missionários despo-
jados. Em conjunto com os nossos irmãos que mourejam
no corpo de carne, estamos trabalhando no sentido de
atrair para a Terra espíritos de mais alta envergadura.
— Criando ambiente propício que lhes favoreça a
reencarnação...
— A semelhança do h o m e m que não se cansa de
lavrar a gleba, na expectativa da colheita ideal. E, c o m o
v o c ê não d e s c o n h e c e , para que esses espíritos reen-
carnem, inclusive, é necessário se contar com uma melhor
organização genética do corpo que lhes constituirá a
transitória veste que envergarão...
— Notadamente, na estrutura do cérebro...
— Sem um veículo físico à altura, o corpo lhes será
u m a dupla prisão.
— C o m o é complexo todo esse mecanismo!
Meditando por instantes, voltei a indagar:

31
— E os ascendentes espirituais, não falariam mais
alto?
- É evidente que sim, no entanto, c o m o se tirar
algo de onde nada se d i s p õ e ? Em termos de heredi-
tariedade, o a p e r f e i ç o a m e n t o espiritual se reflete no
corpo. Para que o Cristo se corporificasse no Planeta, o
patrimônio genético da raça de que descende teve que se
depurar...
— Seria correto deduzir-se que, por esta causa, um
espírito que seja m ú s i c o , por e x e m p l o , p r o c u r e , ao
renascer, uma família de músicos?
— Na maioria das vezes, p o r é m toda regra t e m
exceções. Existem casos que, aparentemente, contrariam
as Leis conhecidas por nós... A descendência de Sócrates,
o notável filósofo grego, nada tinha a ver c o m a sua
grandeza de espírito; o pai de Mozart era um artista
considerado medíocre...
— Quanta coisa ainda não sabemos, não é?! Quando
encarnado, apesar de toda a minha formação acadêmica
e espírita, dificilmente eu teria cabeça para o que você
está expondo com tanta simplicidade, Odilon!...
— Eu também nunca pude me aprofundar muito
em determinadas questões de nossa Doutrina - redarguiu,
com modéstia, aquele que consideramos por nosso
Instrutor na Vida Maior.
— Se a maioria ainda não entende o m e c a n i s m o da
Reencarnação...

32
— N i c o d e m o s , I n á c i o , o d o u t o r da lei, é um
exemplo clássico; o Cristo lhe disse: "Se quando eu vos
tenho falado das coisas terrenas, ainda assim não me
credes, como creríeis, se eu vos falasse das celestiais?"
D e u s faz as coisas de maneira correta. Os nossos irmãos
encarnados solicitam da Espiritualidade novas revela-
ções; imaginemos, no entanto, se pudéssemos lhes contar,
em detalhes, tudo o que já sabemos e que, em relação ao
que sabem, não é tanto assim...
— Seríamos rotulados de embusteiros.
— Veja a discussão que se criou em torno do seu
" N a Próxima Dimensão"...
— Simplesmente porque fiz afirmativas que fogem
ao habitual; a minha intenção foi a de exortar os nossos
companheiros a deixarem o lugar-comum...
— Existem alimentos que o estômago pede mais
tempo a fim de ser digerido.
— Ao que escrevi na referida obra, você sabe que
muito faltou acrescentar, pois o cérebro mediúnico não
se me mostrou totalmente receptivo.
— Você t o c o u n u m p o n t o f u n d a m e n t a l : até a
mediunidade tem as suas restrições, ou seja, limites que
n ã o p o d e m ser u l t r a p a s s a d o s ; a S a b e d o r i a D i v i n a
programou o cérebro h u m a n o para não receber além do
que possa assimilar... A luz, quando excessiva, ao invés
de coadjuvar-nos a visão, induz-nos à cegueira!

33
— N o t o que, quando me é possível o contato com
este ou aquele medianeiro, na maioria das vezes, eu me
sinto de enxada nas mãos tentando cavar sobre a pedra...
— O mesmo acontece c o m os Espíritos Superiores
em relação a nós, na D i m e n s ã o Espiritual que p o v o a m o s .
Tudo o que se nos situa p a r a a l é m da c o m p r e e n s ã o
imediata nos parece absurdo!

34
4

— Quando Galileu Galilei teve a ousadia de afirmar,


contrariando a erronia então admitida pela Igreja, que é
a Terra que gira em torno do Sol...
— Foi a m e a ç a d o c o m a fogueira e, se n ã o se
retratasse, teria sido queimado vivo.
— Ainda bem que Allan Kardec viveu na França!...
— A Inquisição o teria alcançado, caso, por
exemplo, ele tivesse vivido na Espanha ou em Portugal...
— Em Barcelona, os seus livros foram incinerados
em praça pública.
— Até poucos anos atrás - lembrei -, o Clero nos
combatia abertamente; nós, os espíritas, éramos adeptos
de uma seita satânica...
— Você não se esquece, não é, Inácio? - inquiriu
Odilon, pousando-me a destra sobre o ombro.

35
— É certo que não me l e v a r a m à fogueira da
execração pública, mas quase... C h a m u s c a r a m - m e o
espírito!
Neste ponto de nosso proveitoso diálogo, vieram
se juntar a nós Manoel Roberto e Paulino Garcia, que se
encontravam nas dependências do hospital.
— Olá, Dr. Inácio! - saudou-me o j o v e m Paulino,
estendendo-me a m ã o . — C o m o é que o senhor tem
passado?
— O senhor tem passado muito bem - respondi,
descontraindo.
— E s t á v a m o s a q u i f a l a n d o de R e e n c a r n a ç ã o ,
Mediunidade e outros assuntos - observou Odilon.
— Viemos interrompê-los? - perguntou M a n o e l
Roberto, preocupado.
— Q u e nada! - acentuei. — Vocês deveriam é ter
c h e g a d o um p o u c o antes e a p r o v e i t a d o o que estou
aproveitando.
— E s t á v a m o s , Doutor, P a u l i n o e eu, visitando
aquele paciente que chegou por último...
— O A., não é?
— O A. está internado aqui? - indagou Odilon,
surpreso. — Eu soube que ele havia desencarnado, mas
imaginei...
— ...que ele tivesse sido a m p a r a d o pelos seus
a m i g o s . . . É o que seria natural q u e a c o n t e c e s s e , no
entanto ele parece m e s m o ser um dos meus carmas.
— C o m o foi que o fato se deu?

36
— A sua própria mãe, uma senhora muito distinta e
sua antiga colaboradora, é que o trouxe. Ele deixou o
corpo quase em estado de completa demência...
— E ele, Inácio, que o combatia tanto!...
— Q u e me distinguiu com o título de "Inimigo n.°
1" da Igreja, em Uberaba... Creia, Odilon, que a sua
surpresa não é maior do que a minha. Estou verdadei-
ramente estarrecido, pois essa é a última coisa que eu
poderia esperar...
— Ele está consciente?
— N ã o , não está; ele pensa que está efetuando um
retiro espiritual. Por diversas vezes, já me perguntou que
seminário é este...
— E não o reconhece? - indagou Odilon.
— Disse apenas que a m i n h a fisionomia não lhe é
m u i t o e s t r a n h a e, em n o m e da c a r i d a d e , eu não me
identifiquei. Ele está muito trêmulo e cansado; ao vê-lo
naquela situação, conduzido c o m o se fosse u m a criança
pela mãe, eu me comovi profundamente... N ã o sei que
ligação existe entre nós!
— O que eu não entendo, Dr. Inácio - aparteou
Manoel, que acompanhara toda a nossa luta com ele -, é
c o m o pode ser abandonado assim, depois de servir à
Igreja por tantos anos...
— Dos Dois Lados da Vida, a Igreja vem perdendo
espaço - comentei. — A crise que v e m acometendo essa
instituição milenar é sem p r e c e d e n t e s na História; o
domínio, que antes dela se estendia do nosso Plano para

37
a Terra, e vice-versa, tem se fragilizado quase em todo o
m u n d o . Os a p ó s t o l o s que a m a n t i n h a m de pé estão
d e s a p a r e c e n d o e aos novos sacerdotes falta o indis-
pensável idealismo; escândalos de ordem moral parecem
estar precipitando os acontecimentos...
— Deste Outro L a d o - observou Odilon -, por
motivos que agora não nos compete enumerar, muitos
religiosos têm debandado...
— N ã o e n c o n t r a r a m o C é u q u e a s u a fé lhes
prometia! Creio que este seja o principal motivo. Alguns,
no entanto, ainda resistem, na tentativa de estender a sua
hegemonia nas regiões de além-túmulo...
— É inútil, pois, para aqueles que constatam por si
mesmos as realidades da Vida Imperecível, a doutrina
católica é retrógrada... O esvaziamento de seus templos
é inevitável, o que, de certa forma, não p o d e m o s deixar
de lamentar.
— Por quê? - foi a vez de Paulino perguntar.
— Porque a verdade é que o m u n d o ainda não está
espiritualmente preparado para viver sem a tutela da
Igreja... Se a ciência materialista lhe ocupasse o vácuo
seria um desastre para a H u m a n i d a d e .
— E o Espiritismo? - tornou o inteligente j o v e m a
indagar ao Instrutor.
— O Espiritismo, na revivescência do Evangelho
de Jesus, é uma doutrina que tão-somente agora começa
a vicejar, e igualmente não estaríamos preparados para
u m a responsabilidade de t a m a n h a envergadura. Se o

38
nosso M o v i m e n t o no Brasil tem se caracterizado por
tantas disputas internas, não p o d e m o s prever o que
aconteceria, se, de um momento para outro, a Doutrina
Espírita fosse aclamada pelos h o m e n s c o m o Verdade
absoluta; a luta pelo poder nos enlouqueceria e have-
ríamos, em tempo bem mais curto, de repetir os erros
das religiões tradicionais...
Ante as justas ponderações de Odilon, pesado
silêncio se fez na sala em que c o n v e r s á v a m o s , m a s ,
retomando a palavra, ele continuou:
— O Espiritismo, em sua feição religiosa, jamais
se imporá sobre as demais crenças, que simplesmente se
lhe adaptarão aos fundamentos de caráter filosófico e
científico. A Verdade transcende quaisquer rótulos, sejam
eles quais forem. O Espiritismo sempre existiu e sempre
existirá, sem que necessariamente tenha que se formalizar
e disputar qualquer espécie de supremacia.
— Isto significa que não devemos nos empenhar
em sua propagação? - interroguei.
— " N i n g u é m , pois, acende uma luzerna e a cobre
com alguma vasilha ou a põe debaixo da cama; põe-na,
sim, sobre um candeeiro, para que vejam a luz os que
entram. Porque não há coisa encoberta que não haja de
ser manifestada; n e m escondida que não haja de saber-
se e fazer-se pública" - ensinou-nos o Mestre. Difundir
o que é bom e verdadeiro é dever que nos compete, toda-
via, a pretexto disso, não podemos violentar consciências,
impondo aos outros o nosso modo de crer. Semeemos,

39
na convicção de que a semente da melhor espécie, a fim
de florescer e produzir frutos, se subordina às condições
da gleba que Deus oferece ao pomicultor.
Após ligeira pausa, querendo saber um pouco mais
sobre A., Odilon perguntou-me:
— Mas o espírito de nosso irmão não foi reclamado
por n e n h u m representante da Igreja? Estou, deveras,
estranhando...
— A princípio, antigos c o m p a n h e i r o s desencar-
nados intentaram fazê-lo, mas a senhora sua mãe, que se
sente responsável pela vocação religiosa dele e sempre
o assistiu, defendeu-o, pois, caso contrário, não sabemos
em que situação ele deveria estar agora. Tendo deixado
o corpo muitos anos antes do filho sacerdote, em que
pese as suas respeitáveis ligações com a Igreja, ela tomou
consciência de si m e s m a e v e m lutando para trilhar um
novo caminho...
— Raros são os espíritos capazes de reconsiderar a
sua crença religiosa no A l é m - T ú m u l o ; a maioria persiste
em suas convicções e, assim, não se predispõe mental-
mente a nenhuma mudança...
— Temos aqui, no Hospital, u m a mostra disso:
católicos, evangélicos e m e s m o materialistas internados
conosco relutam em aceitar as evidências; talvez, apenas
neste aspecto, os espíritas despojados da v e s t i m e n t a
física, principalmente aqueles que não se esforçaram o
suficiente para serem coerentes, levem vantagem sobre
os adeptos das demais religiões...

40
— Os espíritas desencarnam de olhos abertos, não
é? - questionou Manoel Roberto, aparteando.
— Para a realidade externa, sim, mas para a
realidade íntima, nem tanto! - respondi.
— Os materialistas também relutam?... - indagou-
me Paulino.
Tomando a palavra, foi Odilon que respondeu:
— Na Terra quanto na Vida Espiritual, poucos são
os que se revelam dispostos a assumir as conseqüências
dos próprios equívocos. Muitos se sustentam no erro,
c o m o único propósito de não admitirem a culpa, e,
c o n s e q ü e n t e m e n t e , n ã o se p r e d i s p õ e m à n e c e s s á r i a
corrigenda.
— M a s , no que se refere aos que foram materia-
listas, eu não entendo, pois, afinal de contas...
— Paulino - redarguiu o Mentor -, você ainda não
viu nada, m e u filho! Espíritos existem que se arraigam
em seus pontos de vista por séculos e séculos; entram e
saem do corpo incontáveis vezes, sem experimentarem
a m e n o r transformação... Deste Outro L a d o , formam
extensas c o m u n i d a d e s , organizam-se e i m p e d e m - n o s
qualquer ação esclarecedora, barrando-nos a entrada às
portas de suas cidades. Um exemplo típico acontece com
a comunidade islâmica dos países do Oriente, sem falar
no Norte da África: os muçulmanos constituem maioria
esmagadora. O espaço espiritual que o c u p a m chega a
ser impenetrável para nós outros, em nossos anseios de
levar até eles qualquer esclarecimento que não se coadune
com as palavras do Corão.

41
— É impressionante! - exclamou o j o v e m ao qual
eu tanto já, igualmente, me afeiçoara.
— Se a s s i m n ã o f o s s e , P a u l i n o , b a s t a r i a a
d e s e n c a r n a ç ã o p a r a q u e t o d a s as n o s s a s ilusões se
desfizessem e, então, a c h a m a d a morte faria instan-
taneamente por nós o que a Vida não o tem logrado, senão
muito devagar... Conforme estamos informados, o
despertar espiritual da H u m a n i d a d e se dará indivíduo a
indivíduo - nada de conversões coletivas à Verdade. A
porta de ascensão à Luz aos que emergem das sombras,
é por demais estreita! Aliás, o Cristo já nos advertira a
respeito.
N e s t e m o m e n t o , f a z e n d o - s e anunciar, u m a das
enfermeiras que cooperam conosco no Hospital, veio
chamar-me:

42
— Dr. Inácio, o Sr. A. despertou. Está acometido
de nova crise nervosa e deseja vê-lo. Diz que aqui não é
um seminário e que foi enganado...
— Odilon, Paulino e Manoel, venham comigo -
convidei. — Estávamos falando nele, que nos deve ter
"ouvido"... A sensibilidade mediúnica não é privilégio
dos espíritas!
Caminhando por extenso corredor, chegamos aos
aposentos do ilustre paciente, que se mostrava agitado.
— Ainda bem que você veio - foi logo dizendo, ao
me avistar. — Exijo u m a explicação. Você sabe quem eu
sou?! Se isto aqui for um hospital, quero que me dêem
alta... Eu já estou me sentindo melhor; aquilo foi um mal-
estar passageiro... Basta de medicamentos! Onde é que
está aquela mulher que insiste em se dizer minha mãe?...
Ora, a minha santa mãezinha está no Céu! Ela j a m a i s
faria u m a coisa desta c o m i g o ! . . . Isto aqui não é um
seminário e está me parecendo muito mais um hospício.
Por acaso, vocês me internaram à revelia? Saibam que
eu sou um clérigo muito influente...
— Acalme-se, meu irmão - respondi, tentando fazer
com que ele se sentasse na cama. — N ã o há motivo algum
para que você se exalte... Assim que se recuperar, nós o
liberaremos. Realmente, aqui não se trata de n e n h u m
seminário...
— Eu sabia! Eu sabia! Fui, então, m e s m o enga-
nado!... Mas que hospital é este, em que não vejo sequer
um crucifixo na parede?! Aonde foi aquela mulher que

43
me trouxe?! Por que t r a m a r a m assim contra m i m ? ! . . .
Estou velho, mas não perdi a lucidez. De onde será que
eu o conheço? Desde que aqui cheguei, venho tentando
me lembrar... Os seus traços fisionômicos não me são
estranhos.
— O que importa agora é que estamos cuidando de
você - esclareci, sensibilizado. — N ã o se preocupe com
quem eu seja ou com que eu tenha sido... A senhora que
o confiou aos nossos cuidados voltará em breve.
— Você não me parece um padre e nem t a m p o u c o
um médico...
— De fato, eu nunca tive a menor vocação para o
sacerdócio; a minha convicção religiosa é outra...
— N ã o me diga que é espírita!...
— E, se eu o for, m e u irmão, que diferença fará?
— T o d a a d i f e r e n ç a q u e v o c ê s e j a c a p a z de
imaginar... Eu sempre os combati e, para mim, seria o
pior castigo, já no fim da vida, ter que suportá-los. O
E s p i r i t i s m o é u m a seita h e r é t i c a , q u e se o p õ e aos
princípios da Santa Madre Igreja!... O seu fundador, Allan
K a r d e c , foi um agente de Satanás sob o disfarce de
h o m e m de bem. C o m p u l s e i toda a sua obra e p o s s o
afirmar, de cátedra, que se trata de um plano das Trevas
p a r a d e s e s t a b i l i z a r a Igreja. N ó s , os c a t ó l i c o s , n ã o
p o d e m o s s e r t ã o tolerantes assim; se necessário for, que,
em defesa de n o s s a fé, r e a v i v e m o s as fogueiras da
Inquisição!...
— Mantenha-se tranqüilo - voltei a pedir, notando
que o arcebispo desencarnado, lívido, c o m e ç a v a a se

44
transfigurar. N ã o vamos polemizar... Agora, o que deve
nos interessar é a sua saúde.
— N ã o vamos polemizar?! - retrucou, cambaleante.
— Quer dizer, então, que você admite ser seguidor do
Espiritismo? Que absurdo, meu Deus! C o m o é que se
atrevem a colocar as m ã o s sobre m i m ? Eu b e m que
desconfiava: n e n h u m a reverência à minha autoridade,
nenhum respeito à minha posição... Você sabe há quantos
anos eu sirvo a Igreja? Há mais de 70!... Onde é que
estão os meus auxiliares? O P. é muito amigo; por favor,
p r o v i d e n c i e m p a r a que e u p o s s a v ê - l o . . . A h , e u o s
processarei! Que casa é esta a que fui conduzido contra
a minha vontade?...
— Temos por você a consideração que, na condição
de cristãos, nos cabe ter por todos os nossos irmãos em
H u m a n i d a d e - respondi, auxiliando-o a escorar-se na
cama.
— N ã o coloque as m ã o s em mim! - respondeu,
encolhendo-se. — Os espíritas não são cristãos, nunca o
foram e nunca hão de ser!... N e m são filhos de D e u s !
Trata-se de um seqüestro, não é? Pois bem, estipulem o
preço da minha liberdade e... tenho certeza... de que os
meus amigos...
A. não conseguiu concluir a resposta. Extrema-
mente exausto, começou a experimentar leve convulsão
e a transpirar de maneira abundante. Manoel Roberto,
sempre atento, aproximou-se e cooperou para que eu o
acomodasse devidamente.

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Olhando-me de modo significativo, Odilon
considerou:
— C o m certeza, a sua r e c u p e r a ç ã o exigirá um
tratamento prolongado; afinal de contas, vem concebendo
a Vida da m e s m a forma por mais de sete décadas!...
— Sem dúvida - concordei, enxugando-lhe o suor
do rosto. — Um h o m e m tão culto e inteligente... Que
situação! De que natureza hão de ser os seus sonhos?...
— Dr. Odilon - indagou Paulino, ante o silêncio
que se fizera no quarto o n o s s o irmão em p a u t a
porventura sofria o assédio de algum espírito obsessor?
— O que o leva a formular tal questionamento? -
contra-perguntou o Instrutor.
— O fato de nosso c o m p a n h e i r o , e m b o r a a sua
formação religiosa, não me parecer pessoa imbuída de
bons sentimentos; ele fala c o m certo ressentimento no
coração... Necessitado como se encontra, não me parece
nem um pouco humilde; ao contrário, as suas limitações
não o fizeram perder a arrogância... Ele, em pleno século
2 1 , ainda se refere à Inquisição!...
— Paulino - explicou Odilon -, os espíritos ditos
obsessores sempre se prevalecem de nossos próprios
desequilíbrios, sentindo-se atraídos pelos nossos mais
secretos desejos; a obsessão, c o m o já tivemos opor-
tunidade de estudar, não dispensa o consentimento do
o b s i d i a d o , q u e , n a m a i o r i a das v e z e s , s e c o m p r a z ,
consciente ou inconscientemente, com a presença do
obsessor... É possível, sim, que o nosso irmão, que,

46
infelizmente, não logrou entender o espírito do Evan-
gelho que pregou a vida inteira, tenha oferecido campo
mental para a atuação de diversas entidades infelizes.
— E por que não permaneceram com ele, após o
seu desenlace do corpo? N ã o seria natural que continuas-
sem a vampirizá-lo?...
— Seria, mas, neste sentido, cada caso tem as suas
implicações e não se pode generalizar. Alguns espíritos
obsessores, logo conseguido o que pretendem, deixam o
obsidiado entregue às conseqüências de sua invigilância:
a obsessão persiste com ele, mas os obsessores, não...
A s s e m e l h a m - s e à c é l u l a d o e n t e q u e dá o r i g e m ao
processo tumoral que, uma vez desencadeado, lhe dis-
pensa o estímulo inicial, ou, ainda, ao agente transmissor
de determinada enfermidade que, picando a vítima, a
deixa à mercê da secreção venenosa inoculada.
— E para onde vão?...
— R e t i r a m - s e c o m o seu c a r m a , a c u m u l a n d o
débitos que h a v e r ã o de ressarcir a p r e ç o de muitas
lágrimas, porquanto a Lei Divina em nada se omite. N ã o
lhes valerá fugir à responsabilidade de suas atitudes que,
m e s m o a pretexto de vingança, reclamarão corrigenda.
— Quer dizer que quem cobra um débito...
— ...arrisca-se a contrair outro e, não raro, é o que
acontece, quando t o m a m o s a justiça em nossas próprias
m ã o s . A vítima do mal não necessita, por si m e s m a ,
reivindicar que lhe sejam reparados os supostos prejuízos,
pois, no m o m e n t o aprazado, a Vida se encarregará de
fazê-lo, inclusive com os juros que lhe são devidos.

47
— Paulino - aparteei -, o que o nosso Odilon está
dizendo eu pude constatar inúmeras vezes no Sanatório.
Muitos dos pacientes que nos eram encaminhados
padeciam mais das seqüelas que a obsessão lhes tinha
deixado do que propriamente da ação direta dos
obsessores, que já era inexistente. De quando em quando,
manifestavam-se entidades arrependidas do estrago que
haviam feito à vida de suas vítimas, perguntando-nos o
que fazer para voltar atrás e, de algozes ferrenhos que
haviam sido, ofereciam-se para auxiliá-las a se recom-
p o r e m m e n t a l m e n t e . Um minuto de insanidade pode
engendrar um carma para toda a existência! Esses
espíritos choravam, alegando que não se sentiam com
liberdade para seguir adiante... O drama do obsessor que
reconhece o seu erro e se arrepende é tão comovente
quanto o daquele que ele atirou à sarjeta! Por este motivo,
não nos cabe julgar a quem quer que seja. O n d e não
p o s s a m o s a u x i l i a r de i m e d i a t o , f a ç a m o s s i l ê n c i o e
aguardemos pela Misericórdia Divina, que sempre
concede a todos oportunidade de tomar consciência de
seus equívocos.
— O criminoso, quando volta ao local do crime...
— ...volta, sem que o saiba, na esperança de voltar
no tempo - completei, sem dar a Paulino oportunidade
de concluir a frase. — Por esse motivo, reencarnamos
para trás e nunca para adiante... A r e e n c a r n a ç ã o é
sempre u m a volta ao exato ponto em que tomamos o
caminho errado, na jornada que empreendemos!

48
6

— Interessante a tese da reencarnação para trás,


não é, Dr. Odilon? - interrogou o j o v e m amigo, desejoso
de ouvir a palavra do Mentor.
— O nosso Inácio colocou bem a questão, pois,
sem dúvida, estamos sempre à procura de nós mesmos...
Onde foi que nos desviamos da senda e nos perdemos
no escuro labirinto das próprias mazelas!... Imitamos,
por exemplo, o escritor que, ao revisar os capítulos da
obra que escreveu, alija do seu contexto determinada
página, substituindo-a por outra ou dando-lhe uma nova
redação. Vislumbramos o futuro e voltamos ao passado...
Para o h o m e m na Terra, o futuro é o nosso presente, ou
seja, o Plano Espiritual; o nosso passado, em conse-
qüência, é o presente dos nossos irmãos encarnados...
Vejamos c o m o o Tempo, em sendo absoluto, pode se

49
tornar relativo. Em verdade, o Presente é a menor fração
de tempo à n o s s a disposição, um s i m p l e s " t r a ç o de
Eternidade" a ligar o que fomos ao que devemos ser...
N ã o somos ainda! Estamos em permanente mudança.
Apenas o Futuro, que é Deus, é Imutável; quando, porém,
o alcançarmos, ele se nos constituirá em Eterno Presente...
Após ligeiro interregno, continuou:
— Mas estas são considerações de ordem filosófica,
sem, d i g a m o s , um sentido prático i m e d i a t o à n o s s a
compreensão das coisas. O certo é que, sem quitar-se
com o passado, valendo-se dos minutos à sua disposição
no instante que passa, ninguém verdadeiramente
avançará. Haveremos de prosseguir regressando às
dimensões de t e m p o das quais procedemos com o intuito
de, um dia, atingirmos a dimensão de onde o Cristo veio
para nos ensinar o rumo...
— Odilon - indaguei na sua abalizada opinião,
quantos anos, aproximadamente, estaríamos à frente dos
nossos irmãos encarnados? Sim, porque a esfera espiritual
que habitamos é a matriz do orbe planetário... Fazemos
parte do " m u n d o das idéias", ao qual Platão sabiamente
se referia; em o u t r a s p a l a v r a s , a Terra, dos P l a n o s
Espirituais existentes, a cujo sistema evolutivo os nossos
e s p í r i t o s a i n d a se p r e n d e m , é o m a i s g r o s s e i r o e
materializado...
— Muito difícil precisar, Inácio, mas, num cálculo
aproximado, creio que estamos 50 anos à frente...
— Meio século em nossa dimensão?...

50
— Exatamente, embora, conforme você não ignora
e até teve oportunidade de tratar do assunto em uma de
suas obras mais recentes, existam espíritos despojados
do corpo que vivem há 100, 200 anos atrás, de acordo
com a c r o n o l o g i a terrestre... Estão m e n t a l m e n t e tão
presos ao ontem, que o plasmam, nos mínimos detalhes,
à vida em sua volta. E não exageraremos, se dissermos
que encontraremos gente vivendo no que deveria lhes
ser o futuro, estacionados, por exemplo, no passado da
Idade Média!... Vejamos o caso de nosso A., arcebispo
emérito desencarnado, falando na Santa Inquisição; ele
foi nosso contemporâneo, no entanto...
— E os que p o v o a m as dimensões que nos são
superiores?
— Estão há 100, 200, 500, 1.000 anos e mais à
nossa frente...
— N a s d i v e r s a s D i m e n s õ e s E s p i r i t u a i s , gente
vivendo como o h o m e m vivia primitivamente, e gente
vivendo como o h o m e m viverá...
— Jesus Cristo veio do Futuro, Inácio!...
— Então, os que dizem que Ele era um ET não estão
muito enganados...
— Estão com a conotação que se empresta ao termo,
porém, no aspecto espiritual da questão, atinam
i n t u i t i v a m e n t e c o m a v e r d a d e ; Ele p r ó p r i o o disse,
quando afirmou: — "O meu reino não é deste mundo..."
— Por favor, Dr. Odilon - solicitou Paulino -,
esmiuce mais a questão de estarmos 50 anos à frente de

51
nossos irmãos e n c a r n a d o s . . . Q u e e x e m p l o p r á t i c o o
senhor poderia nos dar neste sentido?
— A tecnologia ligada à computação... Se os nossos
irmãos estudarem detidamente o assunto, concluirão pela
realidade da Reencarnação.
— C o m o assim?...
— É simples - esclareceu o Instrutor -: veja-se a
facilidade com que as crianças aprendem a lidar c o m
toda espécie de engenho eletrônico, principalmente com
o computador... Ora, a memória não é genética e, portanto,
não é hereditária. Os filhos não poderiam ter herdado de
seus pais nenhuma habilidade neste sentido. O n d e foi,
então, que adquiriram cérebro para t a n t o ? N a s vidas
pretéritas? É evidente que não, pois o c o m p u t a d o r é
conquista recente no mundo.
— O d e s e m b a r a ç o das c r i a n ç a s e notável!... -
exclamou Paulino.
— E o dos adultos é d e p l o r á v e l ! . . . - e m e n d e i ,
fazendo-se sorrir. — Lembro-me da dificuldade que eu
tinha com um simples controle remoto!... É c o m o fala o
ditado: "Sabão não espuma em cabeça de burro velho"...
— Os meninos, parece que já " n a s c e m " sabendo...
— Por que, Paulino? Porque o computador surgiu
primeiro por aqui e os meninos que estão reencarnando
agora já tiveram acesso a ele antes, ou seja, não se lhes
constitui em n o v i d a d e n e n h u m a espécie de e n g e n h o
eletrônico. Por assim dizer, quase todos são autodidatas,
de vez que o que ainda é de poucos sobre a Terra, na
dimensão que p o v o a m o s é de quase todos...

52
— De quase todos, sim, mas não de todos, porque
meu ainda não é... - ponderei com um m u x o x o .
— Ora, Inácio, não é, porque você chegou por aqui
e ainda não quis aprender - brincou, Odilon.
— D i z e m que até certos m é d i u n s p s i c ó g r a f o s
aderiram ao computador... C o m o psicografar assim? O
método convencional da escrita mediúnica será
aposentado?
— Em mediunidade - esclareceu o Instrutor -, o
que importa é o pensamento, não importando tanto o meio
de transmissão que pode variar de médium para médium,
s e g u n d o ele se n o s c o l o q u e à d i s p o s i ç ã o . N ã o n o s
e s q u e ç a m o s de q u e , nos p r i m ó r d i o s do i n t e r c â m b i o
m e d i ú n i c o , n o s a l b o r e s da C o d i f i c a ç ã o , o lápis era
adaptado a u m a prancheta. O fenômeno psicográfico
acontecia, então, através da escrita quase direta, com o
médium apenas pousando levemente a m ã o sobre a refe-
rida prancheta, que copiava as mesas que se movimen-
tavam nos salões aristocráticos de Paris; foi preciso um
certo tempo de experiência para que, a partir da sugestão
das E n t i d a d e s E s p i r i t u a i s c o m u n i c a n t e s , o m é d i u m
e m p u n h a s s e o lápis p o r si m e s m o e c o m e ç a s s e a
escrever... Se, porém, Inácio, o computador se aplica ao
caso da psicografia, em termos de mediunidade, a sua
aplicação pára por aí, exceção ainda feita ao esforço de
alguns espíritos que têm se dedicado à c h a m a d a TCI, a
Transcomunicação Instrumental.
— As suas considerações são interessantíssimas,
Odilon; eu nunca havia pensado no fato de o que se

53
conhece sobre a Terra ter a sua origem no que se sabe na
Vida Espiritual...
— São as reminiscências com as quais reencar-
namos. Citando novamente Platão, o fiel discípulo de
Sócrates afirmava que "aprender é recordar"... Sob este
prisma, as invenções e descobertas, em maioria, efetuadas
pelos considerados homens de gênio, nada mais são que
revelações da mediunidade; o estudioso que persevera
em suas pesquisas e reflexões termina por aprender a
idéia, logrando materializá-la em benefício das criaturas...
— Einstein, então, antes de ser um gênio da Física,
era um médium?
— E evidente, Inácio. A formulação matemática de
sua Teoria da Relatividade significou o resultado do seu
e m p e n h o para se lembrar do que já estava arquivado em
sua memória; em determinado m o m e n t o de sua vida,
quando certas circunstâncias se conjugaram, ele conse-
guiu transpor para o papel a idéia que há mais de 10 anos
vinha sendo elaborada em seu cérebro... E lógico, no
entanto, que não podemos generalizar, pois existem sobre
a Terra criações m e r a m e n t e h u m a n a s ; todavia as que
influenciam mais diretamente o progresso procedem do
Mais Alto... Vejamos bem, por outro lado, que, se Einstein
n ã o t i v e s s e se d e b r u ç a d o e x a u s t i v a m e n t e s o b r e as
equações que esboçava, ele nunca haveria de chegar ao
resultado que vem m u d a n d o no h o m e m a sua concepção
do Universo.
— E bom m e s m o que se faça esta ressalva, Odilon
- c o n c o r d e i -, p o i s , do j e i t o que os n o s s o s irmãos

54
encarnados são afeitos à lei do menor esforço... daqui a
pouco vão querer que os desencarnados lhes revelem
t u d o , sem que se d i s p o n h a m a transpirar o m í n i m o
necessário!
— M e s m o que distorçam o que afirmamos, Inácio,
acabarão constatando que mediunidade é sintonia em sua
concepção mais ampla. Sem que o médium algo de si
nos ofereça, quase nada poderemos lhe oferecer. O "...ao
q u e t e m , se lhe d a r á , e t e r á em a b u n d â n c i a . . . ' ' do
ensinamento de Jesus, é um princípio que igualmente se
aplica à mediunidade. Quanto mais o medianeiro
aumentar o leque de seus conhecimentos, mais facilidade
encontraremos na tarefa do intercâmbio.
— Os espíritos poderiam suprir, no todo ou em
parte, a falta de conhecimento dos médiuns? - indaguei.
— Em parte, sim; no todo, não. Todavia, m e s m o
em parte, o obstáculo material e intelectual a vencer seria
muito grande, impedindo a realização de obras de fôlego.
O médium é escolhido c o m o um facilitador e não como
um dificultador, pois, se assim fosse, os espíritos o
dispensariam de vez.

55
7

C o m Odilon, a conversa sempre se tornava


p r o v e i t o s a , p o r é m eu n ã o desejava retê-lo por mais
tempo.
S a i n d o dos a p o s e n t o s d e A., c a m i n h a n d o p o r
extenso corredor, sempre acompanhados de perto por
Paulino e Manoel Roberto, continuamos a tecer
comentários, referindo-nos agora às lutas que o h o m e m
b e m i n t e n c i o n a d o enfrenta n o m u n d o , p a r a n ã o s e
acomodar e não ceder à tentação do desânimo.
— Sinceramente - disse-lhe, escutando os gritos
dos internos que c h a m a v a m por mim, enquanto
seguíamos adiante -, eu não sei que força nos sustentou
na Terra para que não fugíssemos às obrigações de ordem
espiritual... Quase tudo no m u n d o é convite ao desalento
e à descrença, você não concorda? E verificar que a luta

56
não cessa com a morte... Por vezes, tenho a impressão
de que tão-somente saí do corpo; quanto ao mais...
— Inácio, a força que nos sustentava e nos sustenta
é a F o r ç a Divina... C o m p r e e n d o o que v o c ê diz. O
p r o b l e m a é que e s p e r á v a m o s um M u n d o Espiritual
menos humanizado, não é? Estamos equivocados, pois
não é o corpo físico que nos humaniza: nós é que o
h u m a n i z a m o s . . . A verdade é que a nossa única
possibilidade de fazer com que milagres aconteçam à
n o s s a v o l t a é p r o m o v e n d o o milagre da n o s s a
transformação; enquanto não mudarmos em nós, as coisas
não mudarão em torno de nós...
— Vou lhe fazer u m a confissão, Odilon: havia dias
em que eu me sentia profundamente d e p r i m i d o , um
fracassado... Só não desistia de tudo, por causa dos meus
inimigos; eu não queria lhes dar essa alegria e, depois,
além de ser espírita, eu não encontraria nada melhor para
fazer... Eram crises passageiras, mas que, periodicamente,
me assolavam.
— Eu não sou conhecedor do ser humano, mas, a
partir de melhor conhecimento de mim, posso dizer a
você que os nossos aborrecimentos e angústias procedem,
em grande parte, dos nossos conflitos internos - não
estamos satisfeitos com o que somos e sentimos não viver
de forma coerente com as convicções que abraçamos. E,
c o m o não q u e r e m o s , ou não p o d e m o s admitir que o
centro do problema reside em nós, o transferimos para
os outros... De certa maneira, é até providencial que assim

57
seja, pois, caso contrário... Sentimo-nos mais encorajados
a lutar contra os o u t r o s do q u e c o n t r a nós, p o r q u e
sabemos que tal empreendimento nos exigirá renúncia,
e não estamos dispostos a tanto.
— Você, Odilon, é que deveria ter sido o psiquiatra,
e eu, o odontólogo! - exclamei. — Você tem o dom de
entrar no íntimo da gente e desentranhar os nossos mais
secretos pensamentos...
— N ã o é verdade, Inácio; você, c o m o sempre, está
e x a g e r a n d o . . . O c o n h e c i m e n t o e s p í r i t a nos induz à
introspecção e como somos todos iguais...
— Estou convencido de que foi justamente a rotina
do t r a b a l h o que n ã o me d e i x o u cair - afirmei c o m
sinceridade.
— E, não raro, é contra o que mais os homens se
queixam... As obrigações cotidianas que a Vida nos traça
não nos permitem excursionar à distância do caminho
que nos cabe percorrer.
— A Misericórdia Divina está sempre atenta!
— O rebanho é livre, mas, sem o cajado do pastor,
ele se precipitaria no abismo.
— O nosso livre-arbítrio é relativo...
— Absoluta apenas é a Vontade do Criador.
— C o m tanta grandeza acima de nossas cabeças e
nós insistindo em continuar a ver o que temos sob os
pés!... Por mais me esforce, eu não entendo esse pessoal
que deixa o corpo e prossegue na mesma... Não era para
que, deste Outro Lado, tivéssemos hospitais, vales de

58
expiação e nem tampouco regiões trevosas. N e m esses
nossos irmãos com problemas de deformidade no corpo
espiritual, ao ponto de necessitarem praticamente de um
novo nascimento p o r a q u i , c o m a f i n a l i d a d e de
readquirirem a forma h u m a n a , antes de um novo
mergulho na carne.
— É um tema que transcende este, Inácio, sobre o
qual, infelizmente, não devemos nos aprofundar com os
nossos companheiros encarnados que, a bem da verdade,
ainda revelam dificuldade para aceitar a Reencarnação
c o m o ela é... E l e s n ã o e n t e n d e r i a m a " g r a v i d e z "
perispiritual nas regiões inferiores, onde seres que pade-
cem aberrações da forma carecem de um renascimento
c o m o recurso terapêutico. Deixemos que a semente da
idéia floresça naturalmente. Se se " m o r r e " por aqui, por
que também não se renasceria?...
— Ou nasceria, não é?
— Sim, ou nasceria, pois, se os Espíritos Superiores
confirmaram a Allan Kardec que em a Natureza nada dá
saltos, como explicar-se, por exemplo, sem elementos
de transição em nosso P l a n o , a primeira e n c a r n a ç ã o
h u m a n a do princípio espiritual? O corpo h u m a n o não
está apto a receber entidades primárias, sem que o seu
organismo perispiritual tenha, antes, humanizado a forma.
Os primeiros nascimentos acontecem aqui!... Mas, repito,
talvez isto seja muito para a cabeça de quantos ainda
não c o n s e g u i r a m , por si m e s m o s , intuir s e m e l h a n t e
realidade. O assunto tem gerado polêmicas, e não

59
podemos comprometer a tarefa que, apesar dos pesares,
tem produzido frutos de significativa qualidade.
— Talvez eu tenha me excedido...
— N ã o , você não se excedeu: você foi fiel às suas
convicções e ao que lhe tem sido possível constatar...
Teses mais absurdas, c o m o , por exemplo, a do corpo
fluídico do Cristo, têm sido adotadas tranqüilamente por
muitos adeptos da Doutrina. N ã o se preocupe. Voltemos
ao que íamos dizendo. Você mencionava a questão dos
adversários...
— Sim, daqueles que, c o m o A., o antigo arcebispo,
se opunham às nossas singelas atividades espíritas em
Uberaba... Eu ia dizendo que, de certa maneira, eles me
auxiliaram a perseverar e motivavam a inspiração em
meus escritos. Você se lembra, Odilon!
— Os nossos adversários, Inácio, são represen-
tações materializadas de nós m e s m o s ; de costume, eles
nos aborrecem porque se colocam diante de nossos olhos
com a forma com que não queremos nos ver...
— São os nossos "espelhos"...
— E um espelho sempre nos é útil ao retoque da
imagem.
— Retoque da imagem!
— Sem que pudéssemos nos ver em alguém - nas
palavras e críticas de alguém - dificilmente nos veríamos
em nós. O adversário, portanto, só se nos converte em
inimigo quando não queremos saber de identificar as
nossas mazelas; longe, pois, de execrá-los, deveríamos

60
até lhes ser gratos pelo auxílio que nos estendem às
avessas...
— Do jeito como você coloca as coisas, não temos
inimigos...
— E, a rigor, não temos m e s m o ; temos interesses
pessoais contrariados...
— M u i t o s deles, no entanto, alegam que estão
defendendo a Verdade - repliquei.
— Defendendo a verdade de si m e s m o s , e não a
Verdade c o m o patrimônio de todas as criaturas, pois
aquele que realmente a defende jamais violenta
c o n s c i ê n c i a s . O Cristo n u n c a se impôs recorrendo a
métodos de violência...
— M a s expulsou os vendilhões do templo...
— Tomado de justa indignação, o seu verbo divino
os c h i c o t e o u e r e t i r a r a m - s e da p r e s e n ç a de q u e m
supuseram endemoninhado; todavia, ao voltar-lhes as
costas, os que comerciavam c o m a fé tornaram a ocupar
o t e m p l o e dentro dele se e n c o n t r a m até hoje... N ã o
poderão negar mais tarde, quando a Vida começar a lhes
cobrar o pesado tributo de sua leviandade, que não foram
advertidos brandamente e severamente...
— Brandamente e severamente?
— Sim, p o r q u a n t o são m u i t o s os espíritos que
tentam se justificar de seus desmandos, alegando que
não foram advertidos pela Lei Divina com a veemência
necessária. N ã o vemos filhos que, no caminho do vício,
tecem semelhante queixa contra os pais?...

61
— Recorremos a toda espécie de sofismas para fugir
à responsabilidade e transferir a culpa.
Já à porta de saída, Odilon rematou:
— Inácio, não é à toa que cruzamos os nossos passos
com os de determinadas pessoas. A Lei conhece as nossas
fragilidades e procura nos fortalecer nos pontos vulne-
ráveis de nossa personalidade. Temos assim conosco, à
nossa volta, de uma forma ou de outra, os instrumentos
que nos estimulam o crescimento. Por essa razão é que o
nosso velho conhecido veio para aqui...
— Para ser tratado por mim e, ao m e s m o tempo,
me tratar, não é?
— Correto.
— E eu, que me imaginava livre dele para sempre!...
Q u a n d o soube que desencarnara, pensei que fosse se
internar nas trevas e me deixar em paz...
— M a s , meu amigo, se ele não tivesse vindo até
você, você é que teria de ir até ele!
— Então, foi melhor assim, Odilon - concordei,
entendendo o que, discretamente, ficara implícito nas
entrelinhas.

62
8

Despedimo-nos e, ao retirar-se na companhia de


Paulino, Odilon prometeu-me que voltaria na primeira
oportunidade; as atividades do Liceu da Mediunidade
sob a sua coordenação igualmente não lhe permitiam
ausentar-se por muito tempo... A morte, ao contrário do
que se pensa, não nos libera de nossas responsabilidades
e, quase sempre, ao deixarmos o corpo, continuamos a
fazer aquilo que fazíamos, dando seqüência ao nosso
trabalho ou... à nossa leviandade; sim, porque, deste
Outro Lado da Vida, se contam aos milhares os espíritos
ociosos e indiferentes, d e s o c u p a d o s e s e m n e n h u m a
preocupação com o próprio futuro.
Imerso em semelhantes reflexões, caminhava eu
entre as alamedas floridas do bem cuidado jardim do
Hospital e, sem perceber, exclamei em voz alta:

63
— O m u n d o se p a r e c e com u m a " c a i x a de
marimbondos"!...
S e g u i n d o - m e c o m o se fosse a m i n h a p r ó p r i a
sombra, Manoel Roberto interrompeu-me o curso dos
pensamentos, perguntando:
— Como, Doutor?! O que foi que o senhor disse?!...
— Que o m u n d o se parece c o m u m a "caixa de
marimbondos"...
— A propósito de quê?...
— Quando menino, Manoel, a gente, improvisando
u m a tocha acesa na ponta de u m a vara, desalojava tais
"inquilinos" que haviam deliberado construir a sua casa
no alpendre de nossa casa...
— Eu t a m b é m fiz m u i t o i s s o e, em d i v e r s a s
oportunidades, ganhei umas boas ferroadas.
— Ferroaram-te, pouco - caçoei com o c o m p a -
nheiro, que sorriu -; deveriam ter te picado o dobro, como
aconteceu comigo, que, certa vez, fui para a cama com
febre... L e m b r o - m e de que os m a r i m b o n d o s , m e s m o
depois de terem a sua casa incendiada, não desistiam e
os que escapavam logo começavam a construir outra.
— E, de preferência, no m e s m o lugar...
— Se essa questão do apego à vida material acomete
até m e s m o os marimbondos, não é de admirar que os
h o m e n s , ao desencarnarem, sintam dificuldade em se
libertar da psicosfera do Planeta; m e s m o os doentes que
aqui temos v i v e m m e n t a l m e n t e presos ao seu antigo
habitat...

64
— N ó s m e s m o s , se não fizermos um esforço muito
grande...
— ...não nos ausentaremos da Terra! Ainda hoje, já
c o m a n o s s a forma física p u l v e r i z a d a , nos sentimos
divididos...
— Confesso-lhe, Dr. Inácio, que, por vezes, eu me
pergunto se não estarei vivendo um pesadelo... Olho para
o Hospital e tenho a impressão de estar enxergando o
Sanatório à minha frente; os doentes nos apresentam os
m e s m o s dramas e, c o m raras exceções, t o m a m plena
c o n s c i ê n c i a d a r e a l i d a d e . D i a s atrás, u m a p a c i e n t e ,
pedindo para conversar comigo, perguntou-me se temos
certeza de que, de fato, "morremos"... Mostrou-se tão
l ú c i d a e m s e u s a r g u m e n t o s , q u e s e n t i u m frio m e
percorrer a espinha. — " Q u e nada! - disse-me ela. — A
morte não pode ser assim tão parecida com a vida... Para
mim, inclusive o senhor, fomos acometidos por qualquer
distúrbio de natureza psicológica que nos faz pensar que
morremos..."
— Quando, Manoel, atendíamos os nossos irmãos
na desobsessão - você se recorda? -, ouvindo-os discorrer
sobre a sua situação no Além, por vezes eu me sentia
ludibriado e, não fosse pela confiança que depositávamos
em nossos médiuns... Meu Deus! - monologava,
enquanto, concomitantemente, me entregava à tarefa de
esclarecê-los. — Este pessoal já " m o r r e u " e não é capaz
de perceber ao seu derredor a menor mudança... N ã o é
possível! A morte é um acontecimento grande demais,

65
para que possa passar tão despercebido assim pelos que
o protagonizaram!... Hoje, estando morto, é que eu vejo
quanto é complexo morrer...
— O nosso condicionamento mental...
— Morrer significa o ingressar da consciência em
diferente dimensão de t e m p o e, se ela não se encontra
preparada, experimenta u m a vertigem que se assemelha
à que nos acomete nas crises de labirintite...
— N e m me fale em labirintite, Doutor! - redarguiu
Manoel, levando a mão à cabeça.
Permutando tais impressões, fomos dar c o m o pátio
externo do nosocômio, onde os pacientes mais tranqüilos,
préstes a receber alta, c a m i n h a v a m descontraídos em
contato com a N a t u r e z a . Ao avistar-me, p o r é m , u m a
senhora que se tratava conosco a b o r d o u - m e educada-
mente:
— Dr. Inácio, espero que eu não esteja incomo-
d a n d o , p o i s sei q u e o s e n h o r é um h o m e m m u i t o
ocupado...
— Pode falar, minha filha - respondi, solícito.
— O s e n h o r s a b e q u e fui u m a m é d i u m q u e ,
infelizmente, não cumpriu com os seus deveres; o m e u
marido era um h o m e m de posses e tínhamos, sim, u m a
certa vida social... M a s , de repente, contraí um câncer e
desencarnei. Faz já, pelas minhas contas, quatro anos
que estou internada neste hospital, sem notícia alguma
dos meus familiares; nem através do sonho eles v ê m ter
c o m i g o . . . Gostaria de obter do senhor a l g u m a infor-

66
mação. Na semana passada, no dia específico de visitas,
um c o n h e c i d o , q u e v i e r a ver um seu i r m ã o q u e se
e n c o n t r a em t r a t a m e n t o , r e c o n h e c e u - m e e, por alto,
colocou-me a par do que está acontecendo na m i n h a
casa... Desde então, eu venho me sentindo angustiada,
pois n ã o é p o s s í v e l ! O M o r e i r a era um h o m e m tão
sistemático!...
— O que foi, minha irmã, que ele lhe contou?
— Ele me disse que o meu esposo se casou com
u m a de nossas funcionárias e que se indispôs com os
nossos dois únicos filhos...
— E isso a preocupa?
— C o m o não? Afinal de contas, fomos casados por
quase 30 anos e tudo o que ele tem é herança de meu
pai... Terá ele vivido todo esse tempo comigo apenas por
interesse? Eu me recuso a acreditar. Por causa dele, que
era m u i t o p o s s e s s i v o , deixei de freqüentar o centro
espírita e vivia dentro de casa. O meu m u n d o passou a se
resumir a ele e ao m e u casal de filhos... O que o senhor
tem a me dizer?
— Você quer a verdade?
— Quero, porque eu estou me sentindo comple-
tamente perdida... Embora a consciência de já estar morta,
o Moreira continuava a ser o meu ponto de referência
afetivo. Eu não pretendia, deste Outro Lado, me ligar a
ninguém... Ser, no entanto, passada para trás em tão pouco
tempo de viuvez!... Segundo o amigo que esteve conosco
me disse, o Moreira começou a ter um caso com ela assim
que fiquei doente...

67
Virando-me para M a n o e l Roberto, que permanecia
em silêncio, observei:
— Vamos ter que limitar ainda mais as visitas aos
n o s s o s i n t e r n o s . . . C o m o isto a q u i , d e fato, e s t á s e
parecendo com o Sanatório! Fofoca no Além!... Q u e m
diria? Inacreditável! C o m o este nosso vasto m u n d o pode
ser tão pequeno assim?!...
— Olhe, minha irmã - disse-lhe com sinceridade -,
eu não sei da vida do seu marido, ou melhor, do seu ex-
marido...
— Ex-marido, Doutor?...
— Ex-marido, m i n h a filha - enfatizei. — E m b o r a
nós aqui não tenhamos n a d a com a vida particular de
ninguém, esteja vivo ou morto, a seu pedido, poderemos
verificar, mas é bom que, desde já, você vá se acostu-
m a n d o com a idéia...
— Sabe, Doutor, nós não vivíamos b e m : mantí-
n h a m o s as aparências... O preconceito no m u n d o ainda
é muito grande e os nossos filhos sempre freqüentaram
as melhores rodas sociais; não queríamos expô-los... O
senhor entende?
— Entendo, m a s a união assim não p o d e m e s m o
sobreviver e, portanto, não há o que estranhar no que o
amigo lhe disse.
— O senhor pode avaliar c o m o estou me sentindo:
sem marido, sem filhos, s e m casa?...
— Posso.
— Para onde foi a m i n h a vida, Doutor? O que é
que eu tenho agora?...

68
— Você tem a Eternidade e infinitas possibilidades
de recomeçar... Com certeza, se não tivesse desprezado
o s e u c o m p r o m i s s o e s p i r i t u a l , n ã o estaria a g o r a se
sentindo tão frustrada!
— Eu deixei tudo... Era muito difícil conciliar as
coisas. As amigas telefonavam convidando-me para o
clube e, no centro, ficavam na expectativa de que toda
a t i v i d a d e assistencial, e m t e r m o s financeiros, fosse
encabeçada por mim... Q u a n d o adoeci, nenhum m é d i u m
se ofereceu sequer para me transmitir um passe!
Esqueceram-me completamente.
— Você não os havia esquecido primeiro? - inda-
guei, obtendo o silêncio por resposta. — N ã o prossiga,
m i n h a filha, se justificando em seus equívocos. A s s u m a
as suas falhas e deixe que o t e m p o se encarregue dos
outros.
— Eu estou me sentindo tão sozinha! Tenho tanto
amor aos meus filhos!...
— Aos filhos de D e u s , você quer dizer?
— N ã o , aos meus filhos mesmo...
— Que, na verdade, não lhe pertencem.
— Será que a morte me destituiu até do amor dos
meus filhos? Seria ela tão cruel assim?...

69
9
— O amor dos que verdadeiramente a a m a m , você
s e m p r e o t e r á , m i n h a filha. A e s s e r e s p e i t o , fique
tranqüila. No Universo, não existe poder superior ao do
A m o r ! Ele é a única força à qual o próprio Tempo se
submete. Q u e m possui este sentimento divino, dispensa
qualquer outra espécie de propriedade e de nada mais
carece, porquanto ele o repleta de maneira integral.
— Estas suas palavras me confortam, Doutor.
— A você e a mim, que igualmente tudo deixei para
trás. Creio que este sentimento de nada ter e de nada
sermos deste Outro Lado da Vida nos é providencial,
para que, aos poucos, aprendamos a contar apenas e tão-
somente com a nossa capacidade de amar a todos e a
tudo. Por esse motivo, a chamada morte, que não existe,
sucessivas vezes nos despoja, inclusive do corpo que o
h o m e m tem como sendo a sua maior propriedade.

70
— S e r - m e - i a lícita, Dr. I n á c i o , a t e n t a t i v a de
reconstruir a minha felicidade afetiva, ou seja, encontrar
alguém a quem eu possa sinceramente me devotar?
— Por que não?!
— Eu não estaria traindo o Moreira?
— N ã o havia entre vocês dois o que deve existir
entre os que se contentam em viver um para o outro.
Digamos que, na Terra, ambos tenham se ligado pelo
matrimônio em obediência aos interesses de cada um...
— Q u a n d o nos conhecemos, foi amor à primeira
vista...
— Paixão à primeira vista - é o que você deveria
dizer. Se fosse amor, os laços que os uniram não teriam
se rompido; o amor genuíno j a m a i s se desgasta n u m a
relação a dois...
— É curioso: talvez, na verdade, eu tenha apenas
me acostumado com ele... Sinto-o tão distante de m i m !
Não sei se ele sequer tem se lembrado de depositar uma
flor sobre o túmulo, lá onde repousam os meus restos
mortais...
— C o m o tempo, ele refletirá melhor, mormente
se, c o m o imagino, a afeição que ele vem devotando à
referida j o v e m com a qual está vivendo não passe de
mero capricho dos dois.
— Quer dizer que eu posso me sentir livre?
— Esta resposta eu não posso lhe dar; cabe a você
decidir o r u m o que, doravante, a sua vida irá tomar...
Não se sente animada a lutar por ele e a esperá-lo?

71
— Não. Para ser sincera, não. Devo confessar ao
senhor que eu t a m b é m o d e s p o s e i , d i s p u t a n d o - l h e a
preferência c o m as colegas de escola... Éramos todas
jovens e o Moreira, um rapaz muito simpático. Ele estava
quase noivo de u m a amiga, q u a n d o eu engravidei do
nosso primeiro filho e os nossos pais fizeram o nosso
casamento.
— Existem muitas uniões assim sobre a Terra...
— Seriam de natureza cármica, Doutor?
— Um carma, talvez, mais relacionado com o futuro
do que com o passado, que todos os dias estamos a criar
com as nossas atitudes insensatas.
— Eu e o Moreira, então...
— P o d e m n ã o ter v í n c u l o a l g u m referente ao
passado, mas o estabeleceram com referência ao futuro.
— E os nossos filhos, são espíritos vinculados a
nós desde outras eras?
— É possível, mas também não pode ser descartada
a hipótese de serem espíritos que apenas se prevaleceram
da união entre vocês dois para reencarnar...
— C o m alguma afinidade c o n o s c o ?
— C o m u m a afinidade cármica, digamos, a i n d a
raciocinando no terreno da suposição - espíritos cujos
antecedentes espirituais não permitiram optar, ou seja,
programar as suas condições de renascimento...
— Isso acontece?
— C o m maior freqüência do que os casais que se
ligam aleatoriamente possam supor; por aleatoriamente,

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e n t e n d a m o s o vínculo fortuito, às vezes tão-somente
motivado por u m a atração de natureza sexual...
— Eu pensava que toda reencarnação obedecesse a
um certo planejamento das Esferas Superiores...
— N a d a acontece em parte alguma do Universo à
revelia das Leis que nos governam, e, no fundo, tudo se
constitui em experiência para o espírito. Um vínculo que
não existia p o d e , em determinado m o m e n t o , passar a
existir. Quando o espírito, finalmente, desperta para o
amor, ele a m a aqueles que, indistintamente, estejam lhe
compartilhando a experiência; ele não sai à procura de
alguém para amar: ama os que lhe estão ao alcance dos
sentimentos, sem se importar se é ou não a m a d o por eles!
Aí, e n t ã o , c o m e ç a o v í n c u l o e p r i n c i p i a o calvário
redentor de q u e m se torna capaz de sacrificar-se por
aqueles que t o m a sob a tutela do seu coração.
— A m o , sim, os meus filhos, mas o Moreira... Os
meninos o adoram!
— Perceba, Manoel, como são as coisas - disse ao
companheiro, que, sem interferir, observava o diálogo -:
ela a m a os filhos q u e , igualmente, são a m a d o s pelo
marido, ao qual ela não ama e por ele não é amada...
— C o m p l e x o , Doutor, muito complexo!... Quantos
desencontros, não é?
— Você c o n h e c e a l g u m a h i s t ó r i a c o m e n r e d o
semelhante? - argui.
— Dezenas e dezenas, para não dizer centenas e
centenas...

73
— Ou milhares e milhares, não é?
— Qual a razão, Doutor, de tantos desencontros? -
questionou-me o amigo.
— Para resumir? Egoísmo... Estamos sempre
esperando que a iniciativa de amar e c o m p r e e n d e r parta
do outro, esquecidos de que o outro está na m e s m a .
Enquanto for assim...
— Eis o d r a m a do h o m e m !
— Agora, M a n o e l , você veja, com tanto que temos
a fazer em termos evolutivos, a conquistar, por dentro e
por fora de nós m e s m o s , a expandir a n o s s a consciência
em integração com Deus, a nos identificarmos c o m a
Criação Divina, nos determos na marcha que nos
s e n t i m o s c o m p e l i d o s a e m p r e e n d e r , r u m o ao p o r v i r
glorioso que nos aguarda, por causa de problemas de
tamanho microscópico, quais sejam os de ordem afetiva...
— R e d u z i m o s o U n i v e r s o ao n o s s o p r ó p r i o
tamanho!
— Isto! Introjetamo-nos de tal forma, embotando
as p e r c e p ç õ e s , que voltamos a nos identificar c o m a
célula primitiva que deu origem à v i d a o r g â n i c a no
Planeta... Por essa razão, o h o m e m interior não cresce!
Quando nos defrontamos com determinado problema, é
como se nada mais existisse para nós e, sem percebermos,
nos apequenamos.
— Ignoramos o resto...
— Colocamo-nos à margem do dinamismo da Vida
e nos paralisamos no tempo... Quando tal nos sucede,

74
n o s t o r n a m o s refratários às sugestões do p e r d ã o , da
tolerância, da renúncia, que objetivam nos emancipar dos
grilhões a q u e n o s p r e n d e m o s v o l u n t a r i a m e n t e . Os
Espíritos Amigos, desencarnados ou não, bem que tentam
nos influenciar, procurando fazer com que m u d e m o s de
sintonia; mas, quando é assim, somente a dor logra algum
resultado; quem sofre e não dá sinal de m u d a n ç a é porque
ainda não está sofrendo o suficiente...
— Reconheço, Doutor, que nada sou no Além, mas,
pelo menos, já compreendo a minha situação de espírito
fora do corpo e tenho relativa consciência de minhas
necessidades.
— Acredite, Manoel, que isto, para nós outros, já é
muito. C o m estes pensamentos na cabeça é que eu disse
que o m u n d o se p a r e c e com u m a " c a i x a de m a r i m -
bondos", pois os espíritos desencarnam, porém não se
libertam... Se descermos à Terra, c o m o o fizemos mais
de u m a vez, ficaremos estarrecidos com a situação de
promiscuidade psíquica em que os desencarnados vivem
c o m os e n c a r n a d o s . P o u c o s os que, por assim dizer,
conseguem se altear... Neste sentido, a condição daqueles
que vivem em nossas regiões de sofrimento, como, por
e x e m p l o , no U m b r a l , é melhor do que a dos que se
recusam a admitir que não mais integram a comunidade
dos vivos da Terra... Quantos, ainda, não se vinculam
aos seus restos mortais ou montam guarda às portas de
suas antigas propriedades? Quantos não continuam a se
entregar aos prazeres da alimentação e do sexo, trans-

75
figurando-se em vampiros que, por causa de residuos, se
engalfinham uns com os outros? Quantos, deste Outro
Lado, não contraem doenças e c h a g a s em seu corpo
espiritual piores do que aquelas que lhes provocaram o
desenlace físico? Quantos não se d e m e n t a m por tempo
i n d e f i n i d o e se s u b m e t e m às s e v í c i a s de e s p í r i t o s
inescrupulosos e encouraçados?...
— Encouraçados, Doutor?!
— Sim, bestializados e insensíveis; espíritos que,
dentro do desequilíbrio que os caracteriza, evidenciam
certa noção de não sei quê o que lhes possibilita exercer
o p o d e r sobre os d e m a i s ; a s s u m e m u m a p o s i ç ã o de
liderança nas trevas e é tudo quanto aspiram, nela se
comprazendo por t e m p o indefinido... C h e g a m , M a n o e l ,
a lutar entre si, disputando as vítimas de sua preferência.

76
10

N e s t e p o n t o do diálogo, escutei u m a v o z a me
chamar com insistência:
— Dr. Inácio! Dr. Inácio!...
— Você está o u v i n d o , M a n o e l ? - perguntei ao
companheiro.
— N ã o , Doutor, eu não estou ouvindo nada...
— Escutei nitidamente alguém me endereçando um
apelo e nunca fui de ouvir vozes - retruquei, não perdendo
o velho hábito de fazer humor com coisas sérias.
— Q u e m s a b e é a v o z de a l g u m d o s n o s s o s
internos...
— N ã o , tenho certeza de que não; para mim, é a
voz de alguém que ainda se encontra encarnado e, pelo
timbre, é feminino.

77
Naquele instante, a voz, que mais me parecia u m a
súplica, voltou a ecoar nítida aos m e u s ouvidos:
— Dr. Inácio! Dr. Inácio!...
— Manoel, é m e s m o um pedido de socorro que
parte da Terra... Q u e m será?
— Ela não lhe diz mais nada?
Sinalizando silêncio ao amigo, retirei-me para um
canto do jardim e, conforme Odilon já me houvera
instruído, procurei me tornar mais receptivo. C o m o se
fosse um telegrama, redigido da maneira mais sucinta
possível, aquela voz que me evocava a presença se me
fez, então, mais veemente:
— Dr. Inácio, venha me libertar! Sei que estou em
estado terminal... Eu não suporto mais. Por favor, venha!
L e n d o o seu livro, aprendi a ter confiança no senhor...
Estou com medo!...
— M e u D e u s ! - exclamei. — C o m o é grande a
r e s p o n s a b i l i d a d e d o espírito que e s c r e v e u m a o b r a
endereçada aos homens no mundo!... Eu não sou n e n h u m
Espírito Benfeitor! Coitado de mim!...
— Venha, Dr. I n á c i o , v e n h a ! . . . E s t o u s e n t i n d o
muitas dores e sei que não adianta continuar resistindo...
O câncer já se me espalhou por todo o organismo! Eu
quero integrar a sua equipe de trabalho; quero estar c o m
o senhor, com o Dr. Odilon Fernandes, com o I r m ã o
José...
— Manoel, eu preciso ir, no entanto nem sei para
onde... C o m o poderei saber, de que lugar está me partindo
este apelo?...

78
— N ã o será de Uberaba, Doutor?
— N ã o , de Uberaba não é - não me pergunte por
quê, mas tenho certeza de que não...
— Deixe-se, então, Doutor, guiar pela intuição...
— A minha intuição me desnortearia... Eu tenho é
que me deixar guiar pelos meus ouvidos. Venha comigo,
Manoel!
E, pela primeira vez, utilizando sozinho a faculdade
de volitar, comecei a seguir aquela voz que prosseguia,
aflita, a me chamar:
— Dr. Inácio! Dr. Inácio!...
— Se ela, pelo menos, me desse u m a pista...
P a r a m i n h a s u r p r e s a , c o m o se, e m t e r m o s d e
p e r c e p ç ã o p s í q u i c a , a d o n a d a q u e l a v o z fosse m a i s
sensível do que eu, registrei claramente:
— Itatiba, Doutor! Itatiba!...
— Itatiba, Manoel... Onde fica essa cidade?...
— No Estado de São Paulo, Doutor, p r ó x i m o a
Campinas...
— Então, já estivemos lá!...
— Sim, a c o m p a n h a n d o os nossos amigos...
— Apressemos o passo...
Quando, após rápidos segundos, avistamos a
simpática cidade, onde, de fato, estivéramos, t e m p o s
atrás, em atividade espiritual sob a c o o r d e n a ç ã o de
Odilon, u m a casa se nos destacou entre as milhares de
outras e, assim, não nos foi difícil localizá-la.

79
À entrada da referida residência, que estava sendo
guardada por duas entidades do nosso Plano, identifi-
camo-nos:
— Inácio Ferreira e Manoel Roberto da Silva!
— Entrem, Doutor - disse-me u m a delas, guiando-
nos até o quarto. — M a r i a Helena está agonizando...
— Maria Helena!... Então este era o nome da irmã
cuja prece evocativa, a m i m endereçada, me atraíra c o m o
se fosse um ímã.
Vários amigos encarnados rodeavam-lhe o leito em
atitude de oração. Devotado médico segurava-lhe a m ã o ,
ora tomando-lhe o pulso, ora molhando-lhe os lábios
ressequidos e pousando-lhe a destra, que se iluminava,
sobre a fronte.
— Eu sou o esposo dela - disse-nos a entidade que
nos conduzira aos seus aposentos. — A Maria Helena
teve câncer de m a m a e recusou o tratamento quimiote-
rápico; preferiu tratar-se c o m acupuntura e homeopatia...
A quimioterapia, Doutor, traumatizara-a: eu t a m b é m tive
câncer e o tratamento convencional não surtiu qualquer
efeito...
— Na verdade, m e u irmão, o remédio é apenas o
agente da cura... Tudo depende do carma e do mérito.
E x t e n u a d a , M a r i a H e l e n a p e r m a n e c i a d e olhos
semi-cerrados, sem, ainda, atinar com a nossa m o v i -
mentação em torno. Sem grande esforço, pude perceber
que os laços perispiríticos que a p r e n d i a m ao corpo
estavam tênues quanto fios de seda e que, talvez, apenas

80
o seu apego à família e aos amigos a haviam impedido
de consumar o desenlace por si mesma.
Solicitando permissão dos espíritos que mais
diretamente por ela se responsabilizavam, aproximei-me
e chamei-a baixinho:
— Maria Helena! Maria Helena! Desperte, filha...
Sou eu, o Dr. Inácio!
Abrindo, de imediato, os olhos, ela exclamou n u m
i m p u l s o de se abraçar a m i m , c o m o se u m a afeição
adormecida no tempo aflorasse de repente:
— Dr. Inácio! Então, o senhor é real!...
— A t é onde posso saber, sou, filha - respondi,
amparando-lhe a cabeça empastada de suor.
Ela sorriu e respondeu:
— Ah, é o senhor mesmo!...
C o m a respiração ofegante, pediu-me em seguida:
— Leve-me com o senhor... Eu queria ter ficado,
mas...
— N ã o lhe faltará oportunidade de trabalho.
— O senhor promete que me encaminhará? Eu não
gostaria de deixar os amigos, os tantos amigos que fiz na
Doutrina...
— Para quem se dispõe a servir, a morte não é
impedimento algum; ao contrário, deste Outro Lado...
— " D o Outro Lado do Espelho", não é?...
— Sim, onde o reflexo da ilusão é a realidade...
— O senhor me deixa partir em sua companhia?
— M a s , Maria Helena, você tem os seus familiares,
o seu esposo, que a espera com tanta ansiedade...

81
— N ã o tem importância; se o senhor concordar,
ele seguirá comigo... Juntos, trabalharemos - os dois.
Quanto aos meus familiares, eles compreenderão.
O esforço para se comunicar comigo, m e s m o para
um espírito com a sua determinação, fora decisivo: a
dispnéia se acentuou e os esfíncteres se relaxaram... Maria
Helena esgotara todas as suas reservas de tônus vital e o
corpo c o m e ç a v a a se cadaverizar. Confesso-lhes que
aquela era a m i n h a primeira experiência em " d e s e n -
carnar" alguém... C o m o auxílio de M a n o e l Roberto e
do esposo desencarnado de nossa irmã, cuja visão seletiva
do a m b i e n t e não c o n s e g u i r a divisar, p a s s e i a operar
magneticamente à altura dos chacras, d e m o r a n d o - m e à
altura do plexo coronariano e da região frontal, menta-
lizando o seu desligamento, c o m o alguém que procurasse
desfazer um nó, sem provocar a ruptura do barbante.
— C o n f i e , m i n h a filha, confie e ore c o n o s c o ,
agradecendo ao Senhor a bendita oportunidade que lhe
concedeu... Entregue-se, sem receio.
— O s e n h o r me l e v a r á em s u a c o m p a n h i a ? -
perguntou-me, ainda uma vez, com tremenda dificuldade.
— Já que é essa a sua vontade, não se preocupe;
você e o seu companheiro seguirão conosco... Agora,
Maria Helena, adormeça e descanse.
Ela cerrou os olhos em definitivo e, sob as minhas
mãos, sem que eu possa explicar, os derradeiros laços se
desfizeram e o seu espírito liberto destacou-se do corpo
com suavidade.

82
Nesse instante, pude escutar o médico amigo da
família, que velava à sua cabeceira, proclamar:
— Ela partiu!...
O a m b i e n t e era de profunda p a z e n i n g u é m se
entregara ao desespero, facilitando o desprendimento de
nossa irmã, que enfrentara com resignação a prova que
lhe houvera sido reservada.
R e p o u s a n d o ela n o s b r a ç o s d o e s p o s o d e s e n -
carnado, permanecemos no recinto durante mais algumas
horas e, quando o féretro se dispôs a partir, t o m a m o s , os
quatro, outra direção.
— Será, Manoel - perguntei ao companheiro -, que
eu tinha esse direito?
— Que direito, Doutor?...
— Atender assim ao chamado de alguém... Q u e m
sou eu para deliberar sobre a hora da desencarnação de
quem quer que seja? Pelas minhas mãos, já nasceu muita
gente, mas é a primeira vez que participo da morte de
u m a pessoa... Estou me sentindo estranho!...

83
11
— Estou me sentindo estranho, M a n o e l ! E o pior é
que gostei da experiência...
— C o m o assim, Doutor?
— Cooperar para que alguém, quando chega a hora,
se liberte do fardo que nos impõe tantas lutas na Terra...
Sem dúvida, o corpo físico se nos constitui em bendita
o p o r t u n i d a d e . Todavia a quantos p e r i g o s , de espírito
invigilante, nos expomos no m u n d o !
— Deste Outro L a d o , c o n t i n u a m o s a ter corpo,
D o u t o r - l e m b r o u - m e o a m i g o , c o m o se fora a v o z
articulada de minha própria consciência - componente
que, em muitas ocasiões, voluntariamente olvidamos.
— Você tem razão - concordei - e, para nós, o corpo
que envergamos na atualidade não difere tanto daquele
que nos revestia... É que nos h a b i t u a m o s a culpar a
matéria pelas mazelas do espírito!

84
Chegando ao Hospital, a c o m o d a m o s Maria Helena
num quarto em semipenumbra e solicitei ao serviço de
enfermagem que providenciasse u m a música suave em
surdina que lhe facilitasse o sono reparador. Com certeza,
ela deveria dormir por alguns dias, refazendo as energias
exauridas. Raros são os espíritos que, ao deixarem o
corpo, se mostram em condições de agir; quase todos
necessitamos de um período de readaptação mais ou
menos longo às nossas novas condições. O desenlace,
para a maioria, assemelha-se à experiência de alguém
que efetue, por vários dias, u m a viagem de navio e que,
quando chega ao porto, por vezes ainda guarda a
impressão de estar em alto-mar...
Saindo dos aposentos de nossa irmã, que se
desapegara de tudo com tanta facilidade - eis um dos
benefícios da doença que confere ao h o m e m a possibi-
lidade de refletir, antes da chegada da morte -, um dos
nossos auxiliares veio me pedir a atenção para um dos
internos que, havia tempo, esperava para falar comigo.
— Pelo jeito, o senhor anda muito ocupado, não,
Doutor? - disse-me em tom provocador. — Os médicos
c o n t i n u a m tão desatenciosos aqui quanto o eram na
Terra... N a d a m u d o u ! Tenho o u v i d o m u i t o falar e m
mudança... Balela! A morte não faz a justiça que precisava
fazer... O senhor me perdoe o desabafo.
— N ã o tem de quê, meu irmão, pode continuar -
respondi. Eu conhecia tipos c o m o Desidério: s e m p r e
reivindicando, sempre colocando nos outros a culpa pela
própria situação...

85
— O senhor precisa ter t e m p o para me ouvir; em 5,
10 minutos eu não lhe contarei a minha história... Parece-
me que o senhor só tem t e m p o para os outros! Estou
certo ou estou errado? Já lhe mandei recados, escrevi
bilhetes...
— Desidério, nós já conversamos n vezes...
— O senhor me escuta, m a s n ã o me o u v e ! Eu
preciso solucionar o m e u problema... Q u a n d o eu estava
encarnado, todos me evitavam, e aqui está sendo a m e s m a
coisa; até os enfermeiros fogem de mim... O que é que
está h a v e n d o ? Eu não tenho n e n h u m a d o e n ç a conta-
giosa... Ou tenho?...
— Fale, Desidério, fale! - redargui, percebendo que,
para mim, aquela era a dose diária do medicamento que
a Vida me prescrevia à enfermidade da impaciência. —
Sou todo ouvidos. Pode falar...
— Então, vamos nos sentar, m a s , se o senhor ficar
consultando o relógio...
— M e u filho, nesta casa de loucos, assim c o m o eu
e você, temos centenas de pacientes... Eu não posso ficar
escutando-o o dia todo. Fale com o M a n o e l Roberto, é a
m e s m a coisa...
— N ã o , não é; o Manoel Roberto n ã o m a n d a nada
aqui e, depois, eu converso com ele e ele me pede para
conversar com o senhor... Eu sei que aqui tem muita gente,
mas ninguém com um problema igual ao meu... Aqui,
não há quem sofra c o m o eu sofro!
— Então, vamos direto ao assunto, Desidério; pode
falar...

86
— Calma, Doutor; só porque eu não estou pagando
a consulta... Eu não sei quem paga, mas alguém está
pagando por mim; de graça, eu sei que não vai ficar... O
senhor é um h o m e m muito bom, p o r é m precisa deixar
de ser orgulhoso; hoje sou eu, a m a n h ã será o senhor...
— Você está certo, Desidério...
— N ã o , eu n ã o q u e r o q u e o s e n h o r c o n c o r d e
comigo; aliás, eu quero que o senhor me conteste... Eu
não gosto de quem me passe a m ã o na cabeça... Está
vendo? O senhor está me tolerando, mas não está nem
aí... Q u a n d o eu estiver falando, quero que o senhor me
olhe nos olhos...
— Estou olhando, Desidério - disse, fazendo o
possível para não explodir. — Pode falar... Eu estou com
conjuntivite; cheguei ainda há pouco da Terra e, c o m o
sempre, havia muita fumaça lá embaixo...
— O s e n h o r d e v e e s t a r me g o z a n d o , n ã o é?
C o n j u n t i v i t e ? ! F a l e sério c o m i g o , Doutor... O m e u
problema é sério e, como deve saber, envolve muita gente.
— Você precisa de nos ajudar, m e u filho, fazer
alguma coisa para se sentir útil...
— Um h o m e m c o m o eu, sem n e n h u m a saúde?... O
senhor, aqui, só está vendo a casca!... N i n g u é m acredita
em mim, n e m m e s m o o senhor... N ã o vai adiantar falar;
estou perdendo o meu tempo... Mal abro a boca e todo o
mundo me manda trabalhar. Ora, veja os calos nas minhas
mãos!...
— Acalme-se, Desidério! Eu não estou duvidando
de você...

87
— C o m o perdão da má palavra, Doutor, vocês, os
espíritas, não são tão bons quanto parecem...
— N i s s o v o c ê está certo: c o n c o r d o em g ê n e r o ,
número e grau... Você está se tornando um sábio, Desi-
dério!
— Eu bem que podia ser espírita, m a s n i n g u é m me
dá atenção... Eu sou m é d i u m , Doutor! N ã o é obsessão,
não: o que eu tenho é mediunidade m e s m o . . .
— M a s qual é o seu problema?... N ã o faça tantos
rodeios, Desidério. Vá direto ao assunto...
— É tanta coisa, que nem sei por onde começar;
quando vou criando coragem, o senhor me interrompe...
N ã o fale nada, Doutor, só me ouça... Se houver alguma
coisa para falar, fale depois.
— Está bem - respondi, no limite mas eu ainda
tenho que cuidar de um punhado de coisas hoje...
— O senhor considera muito perder um único dia
comigo? N ã o , eu não vou falar... Muito obrigado pela
sua atenção. Fica para outra hora, quando o senhor tiver
mais tempo...
— Desidério, nós estamos aqui c o n v e r s a n d o há
quase meia hora...
— Cronometrou, não é? N ã o estou dizendo?... Aqui
ninguém gosta de m i m ; não sei por que ainda não me
mandaram embora... O senhor, Doutor - me desculpe a
franqueza -, é um h o m e m vaidoso...
— Orgulhoso, vaidoso... Mais o quê, Desidério?
— E irônico t a m b é m . Pronto!

88
— Completou a lista?... Era o que você queria me
dizer?
— N ã o , não era, mas fica sendo. Q u a n d o o senhor
se dispuser a me ouvir com atenção, quem sabe, amanhã,
conversaremos.
— A m a n h ã , eu não posso, Desidério...
— C o m o não podia hoje e como não poderá depois
de amanhã, não é?
— Mas, você não desembuxa, meu filho! - respondi
num impulso.
— Alto lá, D o u t o r ! T a m b é m não precisa de me
desrespeitar assim...
— Desculpe-me. Eu não tive a intenção...
— Pode não ter tido, mas me magoou. Olhe, Doutor,
esta palavra q u e o s e n h o r me disse está me d o e n d o
muito... Toda a vida eu fui pobre, mas se tem u m a coisa
que eu não aceito é ser humilhado.
— Perdoe-me, Desidério!...
— Está b e m , eu vou perdoar, mas fiquei muito
ressentido... Procurei o senhor para falar e, u m a vez mais,
o senhor não me deixou. Vai me ficar devendo...
— Deve ser alto o montante da minha dívida...
— Como?!...
— O que devo a você, Desidério, e a todo o m u n d o
aqui...
— B e m , c o m o já é a segunda vez que o senhor olha
para o relógio, eu vou embora; no entanto, retiro-me
frustrado... N ã o p e n s e q u e s e l i v r a r á d e m i m c o m

89
facilidade. Enquanto eu não conversar c o m o senhor, eu
não lhe darei trégua; afinal de contas, é para isso que foi
designado no cargo que ocupa...
E, estendendo-me a m ã o , disse c o m toda a diplo-
macia:
— Até logo, Doutor. Passe muito bem!...
— Até logo, Desidério!
Assim que ele se retirou, fazendo um esforço imenso
para me controlar, pedi ao j o v e m enfermeiro que me
chamasse, às pressas, o Manoel Roberto ao consultório.

90
12
Antes, porém, que, prevalecendo-me de nossa
intimidade, eu lhe passasse u m a repreensão, M a n o e l
Roberto foi logo se explicando:
— Eu não tenho culpa, Doutor; a maioria dos nossos
internos não quer tratar nada comigo... De há muito, com
a sua anuência, havíamos agendado uma entrevista com
o Desidério.
— A enésima entrevista, você quer dizer... O nosso
amigo é portador de um desequilíbrio crônico e creio
que somente a medida terapêutica de um novo esqueci-
mento no corpo poderá beneficiá-lo.
— O Cláudio t a m b é m está aí fora...
— O C l á u d i o ! - e x c l a m e i , c o m o fazia n u m a
daquelas segundas-feiras no Sanatório, quando os
internos e m m e l h o r e s c o n d i ç õ e s ficavam, a n s i o s o s ,
aguardando a minha chegada. — E o que ele deseja?

91
— O m e s m o de s e m p r e : encontra-se depressivo e
tem se mostrado refratário ao tratamento...
— Faça-o entrar, M a n o e l .
— C o m o é que tem passado, Cláudio? - cumpri-
mentei-o, analisando-o em seu visível abatimento.
— M a i s ou m e n o s - r e s p o n d e u - m e , c o m a voz
embargada.
— Anime-se, h o m e m !
— Eu quero morrer, Doutor...
— M a s você já morreu, Cláudio!...
— Eu não agüento mais...
— N ã o agüenta mais o quê, meu filho? - indaguei,
sinceramente compadecido.
— Esta vida que, para mim, não tem sentido... Eu
já não conseguia enxergar n e n h u m sentido nela quando
estava na Terra, e, agora, muito menos ainda.
— C o m o assim, Cláudio?
— O senhor veja, Doutor: a luta pela Evolução...
Eu não quero evoluir e não pretendo ser coisa alguma.
Desde que eu me entendo por gente, é só problema... Eu
gostaria de não existir!
— N ã o fale assim - argumentei, na tentativa de
melhorar-lhe a a u t o - e s t i m a - ; todos somos filhos de Deus
e fomos criados para a felicidade...
— Felicidade, Doutor! O senhor me desculpe, mas
eu não sei o que é e, a rigor, nunca me deparei com alguém
inteiramente feliz; para continuar v i v e n d o , o h o m e m
mente para si mesmo...

92
— Estamos crescendo, Cláudio... Pela imperfeição
que nos caracteriza, quase todos somos espíritos mais
ou m e n o s insanos. Você está assim p o r q u e se sente
limitado. Acredite! Interesse-se pela alegria e a alegria
haverá de se interessar por você.
— Crescendo para o quê? Qual a finalidade de tanto
esforço?...
— Alcançar a nossa integração com o Criador, nos
realizarmos...
— E o que acontecerá depois? Admitindo c o m o
verdadeira a hipótese a que o senhor se refere, o que
haverá além? O descanso eterno?! Ora, Doutor, isso seria,
antes, a eterna depressão...
— Passaremos a cooperar com Deus na sua Obra,
na c o n d i ç ã o de co-criadores, à s e m e l h a n ç a de Jesus
Cristo...
— Para morrer n u m a cruz?!... Não, Doutor; o senhor
me perdoe, mas esse destino não me interessa; eu não
tenho a menor vocação para o sacrifício... Queria ser
única e tão-somente um h o m e m comum, sem qualquer
obrigação de nada. Por que criou Deus o B e m e o M a l ?
Por que Ele não criou só o Bem?...
— Cláudio, meu filho, se você direcionasse a sua
inteligência no sentido de encontrar respostas para as
questões que transcendem!... No entanto, você só
conversa mediante pontos de interrogação, acrescentando
angústia às suas próprias angústias.

93
Pausando por m o m e n t o s , para abrir u m a j a n e l a e
deixar correr no ambiente a brisa perfumada e fresca
daquela manhã, continuei:
— Eu não tenho as respostas que você deseja...
— E o senhor é um h o m e m sábio... Q u e m , então,
as terá, Doutor? N i n g u é m , não é m e s m o ? O p r o b l e m a é
que a Vida não consegue explicar-se... Por esse motivo,
eu aspiro ao não-ser! D e u s , ou seja lá quem for, não
deveria ter me tirado da inconsciência em que jazia...
Tomar consciência das coisas em torno, significa tão-
somente sofrer! N a d a me interessa do que eu p o s s a ver
ou do que eu possa saber... Por isso, eu queria morrer!
— Você tem vivido muito ocioso... Ao que estamos
informados, desculpe-me a franqueza, mas consta de sua
ficha em nossos arquivos, você desde sempre não tem se
interessado por nenhuma ocupação em que se sinta útil...
— Trabalhar para quê! N ã o é que eu seja ocioso:
simplesmente não vejo motivo para empreender o que o
tempo, inexoravelmente, haverá de destruir...
— Cláudio, mas você está constatando que a morte
é u m a utopia; em verdade, nada desaparece, a não ser
para ressurgir numa forma mais aperfeiçoada... A nossa
condição de seres imortais é irreversível!
— O que é u m a lástima! O senhor me entende,
Doutor: eu j a m a i s cometeria o suicídio!... Ao que me
lembre, nunca atentei contra a minha ou a vida de quem
quer que seja... N ã o , eu j a m a i s faria u m a coisa dessa,
m e s m o porque as conseqüências para m i m haveriam de
ser mais danosas...

94
— Você está doente, m e u filho; todos somos vítimas
de muitas patologias que nos acometem a mente... Admita
sua condição de espírito enfermo e aceite o tratamento
que a Misericórdia Divina está lhe oportunizando nesta
casa.
— Eu não tenho qualquer ânimo para me entregar
à oração... Admito, sim, a existência de um Criador, pois,
afinal de contas, o Universo não poderia ter-se feito por
si m e s m o , mas somos criaturas relegadas à própria sorte...
N i n g u é m se interessa efetivamente por nós!
— Agora, Cláudio, você está faltando com a
v e r d a d e . . . C o m o é q u e p o d e dizer que n i n g u é m se
interessa por você? Quem o trouxe a este Hospital e quem
é responsável pelas suas despesas? Porque, talvez, não
exista amor no seu coração, não duvide da existência do
amor no coração de outras pessoas. N ã o se tome, m e u
filho, c o m o medida dos seus semelhantes...
Aproveitando que o paciente abaixara a cabeça,
continuei a falar:
— Por que razão você acha que as coisas devem
ser c o m o supõe? N ã o negue aos demais, entre os quais
eu me incluo, o direito de pensar de um modo diferente...
O seu estado depressivo encerra um certo conteúdo de
egoísmo, que, no fundo, é auto-suficiência. Você não quer
simplesmente ser mais um: você quer que o Criador o
c u m u l e de privilégios, sem que, para tanto, se t e n h a
disposto a derramar u m a única gota de suor... No fundo,
é c o m o se dissesse assim: "O Senhor me criou; que agora

95
supra todas as minhas necessidades..." Ora, m e u filho,
todas as coisas e todos os seres, desde o verme que se
arrasta no s u b - s o l o , c o n c o r r e m p a r a a g r a n d e z a da
Criação! N ã o seja você uma nota dissonante na magnífica
s i n t o n i a da V i d a ! A b r a c e a h u m i l d a d e e a c e i t e os
Desígnios que, em nosso atual estágio evolutivo, não
p o d e m o s perscrutar. Se nada ainda sabemos do corpo
que habitamos milenarmente, o que p o d e m o s saber do
Universo? Você tem se conservado de braços excessi-
vamente cruzados, recusando-se ao serviço, porque sabe
que servir significa doar-se, e v o c ê não quer se entregar
a ninguém. Desista dessa idéia de morrer e não prossiga
com chantagens emocionais, c o m evidentes prejuízos
para si m e s m o . . . A sua ascensão, Cláudio, pode começar
através de u m a simples vassoura, desde, é claro, que se
decida a empunhá-la!
— M a s eu vivo, Dr. Inácio, no m u n d o das idéias...
— A Vida é u m a idéia que Deus tirou do papel,
m e u filho! Se os filósofos não tivessem apenas espe-
culado a respeito da Verdade, o m u n d o em que vivemos
e nele tornaremos a viver seria b e m melhor... Os que
agem mais e questionam menos são sempre mais felizes
do que aqueles que simplesmente indagam. As respostas
que almejamos, sem exceção de nenhuma, se encontram
dentro de nós. Os grandes luminares da Espiritualidade
t ã o - s o m e n t e nos ensinaram o c a m i n h o que nos cabe
percorrer.

96
O p a c i e n t e , que eu c o n h e c i a de velho, transito-
riamente silenciara em seus argumentos; é possível que,
daí a mais uns 15, 20 dias, ele solicitasse u m a n o v a
audiência comigo e, outra vez, me obrigasse a me superar
em meus argumentos, para não me deixar afetar pelos
seus sofismas.
Ao se preparar para se retirar, como de hábito, ele
repetiu o que sempre me dizia:
— Eu vou pensar!
— P e n s e , m e u filho, m a s , e n q u a n t o p e n s a , dê
ocupação às suas m ã o s . A m e t a d e de nossas dúvidas
concernentes aos enigmas da Vida são respondidas pelo
trabalho.
— E a outra metade, Doutor?
— A outra metade será respondida quando deixar-
mos de simplesmente cumprir o dever de cada dia, para
passarmos a amar aquilo que fazemos.
Interrompendo-nos sob a minha orientação, Manoel
Roberto anunciou a presença de Clementino, que,
igualmente, esperava para falar comigo.
C o m certeza, não de todo satisfeito com o diálogo
que entabuláramos, Cláudio se retirou e Clementino, que
fora m é d i u m no mundo, adentrou o gabinete.

97
13

Antes que retratemos o curioso e elucidativo caso


de Clementino, faz-se mister u m a explicação. Por m a i s
de duas décadas, ele havia sido m é d i u m psicofônico,
t e n d o p a s s a d o por diversos g r u p o s espíritas e m S ã o
Paulo.
Invigilante e lutando c o m várias dificuldades de
ordem material para sobreviver, Clementino chegava a
se prevalecer de seus dotes mediúnicos para sensibilizar
as pessoas em proveito próprio. Ora incorporava os
e s p í r i t o s q u e p o r ele s e m a n i f e s t a v a m , c o m m a i o r
freqüência o I r m ã o Afonso, e n t i d a d e que c o m ele se
compromissara desde vidas anteriores, ora detectava-lhes
a presença através da vidência.
E m o c i o n a l m e n t e afetado, n o s s o i r m ã o , e m s u a
condição de m e d i a n e i r o , vivia de m a n e i r a oscilante,

98
raramente se dando ao trabalho de ler alguma obra que
pudesse esclarecê-lo. Embora sem recursos financeiros,
gostava de se apresentar bem cuidado e ostentava um
g r a n d e anel de ouro e rubi no d e d o a n u l a r da m ã o
esquerda. Tomava aos amigos empréstimos que nunca
conseguia saldar e emitia vários cheques sem fundos.
A verdade é que não se podia contar com ele, o que
os companheiros não podiam deixar de lamentar, visto a
espontaneidade com que caía em transe e transmitia
orientações do espírito que se identificava como Irmão
Afonso.
— Meus cumprimentos, Doutor - disse-me,
a c o m o d a n d o - s e na p o l t r o n a à g u i s a de divã. — Fui
recolhido a este hospital, mas creio que não seja aqui o
meu lugar... É fato que aderi ao Espiritismo, freqüentei
diversos templos, no entanto está havendo um equívoco,
um grande equívoco.
— Pode falar, meu amigo, sou todo ouvidos.
— Sinto-me até e n v e r g o n h a d o , mas o senhor é
médico e é na condição de médico que o procuro. O
senhor vai me entender. Olhe, Doutor, a vida lá embaixo
é duríssima; a gente se vira c o m o pode... Eu não tinha
índole para assaltar ou me entregar de vez à margi-
nalidade. O senhor sabe, as pessoas acreditavam e eu,
para sobreviver, porque não tinha de onde tirar recursos,
dava-lhes o que queriam; as pessoas, conforme o senhor
não ignora, são muito crédulas... Sinceramente, eu não
via nada de mal no que fazia. A minha intenção nunca

99
foi a de ficar rico, pois, se quisesse enriquecer, ao invés
de aderir ao Espiritismo, eu teria fundado u m a igreja
evangélica... O conhecido meu, que ainda deve estar por
lá, está muito bem de situação. Eu não pretendia tanto;
queria tão-somente viver e conseguir arcar com as minhas
despesas, sem que tivesse de me matar no trabalho...
— Continue, não tenha escrúpulos...
— Olhe, Doutor, escrúpulos eu acho que nunca tive
m e s m o . Para resumir, tudo começou assim: compareci,
certa vez, a u m a casa espírita e, na hora da sessão, o
dirigente se aproximou de m i m e me mandou incorporar;
disse que estava v e n d o ao m e u lado um espírito que
pretendia desenvolver um trabalho comigo... J o v e m e
falante, as pessoas simples daquele grupo criaram u m a
expectativa e o certo é que, sem sentir coisíssima alguma,
eu incorporei. Para dizer a verdade ao senhor, eu não me
lembro mais do que disse. Sei apenas que, quando saí
daquele suposto transe, as pessoas estavam abismadas e
teve início u m a certa idolatria de que gostei.
— A sua história, Clementino, se parece com muitas
outras que conheço...
— Deste Outro Lado da Vida ou na Terra?...
— D i g a m o s que dos Dois Lados... M a s , não se
interrompa.
— Um ator em cena! — Eis, Doutor, o que aprendi
a ser. Além de palavras elogiosas, a m i n h a condição de
suposto m é d i u m me rendia economicamente, não muito,
é verdade, porém o suficiente para escapar à indigência

100
e não ter que me submeter a salário irrisório ao final de
cada mês. A entidade espiritual, fruto da minha imagi-
n a ç ã o , tida c o m o um espírito de elevada hierarquia,
transmitia conselhos, tecia considerações em torno de
certas passagens do Evangelho e, com o tempo, começou
a receitar... A carência das pessoas não tem tamanho. Por
m e u intermédio, o Irmão Afonso insinuava que eu, o
m é d i u m , necessitava de ajuda e, em várias ocasiões,
chegaram a fazer listas de doações e rifas para me auxiliar
a pagar o aluguel, a conta da farmácia, coisas assim...
— Entendo.
— De maneira sucinta, é este, Doutor, o m e u drama.
Eu nunca fui médium: nunca vi e nunca ouvi espírito
algum...
— E o Irmão Afonso?
— Foi um nome tomado ao acaso... Quando alguém
suspeitava de que eu estivesse mistificando, m u d a v a de
centro espírita. São Paulo é u m a cidade grande e, ainda
que tivesse vivido um século ou mais, eu não esgotaria
todos os seus recursos e, depois, participava t a m b é m de
muitos grupos particulares, com pessoas de melhor poder
aquisitivo, p o r é m não mais generosas... Q u a n d o estava
quase chegando aos 60 de idade, acometido de um câncer
no pâncreas, c o m o vocês costumam dizer, desencarnei
rapidamente. Todavia, ao sair do corpo, n i n g u é m me
esperava e, a sós com a m i n h a consciência, vaguei por
tempo indeterminado, até que me trouxeram para cá.
— É u m a p e n a - disse-lhe - que v o c ê t i v e s s e
enganado a si m e s m o por tanto tempo...

101
— A mim, n ã o , Doutor, aos outros. Em muitas
ocasiões, quando me recolhia aos m e u s aposentos, eu
não conseguia conter o riso, pensando na ingenuidade
daqueles que aceitavam o fato de eu ser um médium...
Muitos tiveram o que mereciam, pois eram pessoas de
posses e, somente assim, enfiavam a m ã o no bolso; o
senhor sabe, eu precisava viver e, sem n e n h u m a quali-
ficação para ganhar honestamente o pão de cada dia, teria
que trabalhar pesado em troca de alguns vinténs...
— Quer dizer que v o c ê não se arrepende?
— Em parte, pois, afinal de contas, a c a u s a do
Espiritismo é nobre; pude testemunhar o esforço sincero
de muita gente boa no sentido de minorar o padecimento
alheio - eu m e s m o , a l g u m a s p o u c a s v e z e s , de tanto
instarem comigo, os a c o m p a n h a v a nas visitas periódicas
que efetuavam aos doentes. Quis, sim, Doutor, retroceder
em meu intento, mas eu já havia ido longe demais...
— N u n c a lhe passou pela cabeça que o Irmão Afon-
so pudesse ser real? - perguntei, fitando-o compadecido.
— Impossível; escolhi este nome aleatoriamente e,
conforme esclareci, nunca divisei a presença de n e n h u m a
entidade espiritual ao m e u lado... A minha intenção era a
de obter prestígio e dinheiro; em troca, tinha apenas que
pronunciar algumas palavras confortadoras, sem,
inclusive, me preocupar c o m português correto...
Silenciando, pus-me a pensar nos inúmeros casos
que, talvez, se assemelhassem ao de Clementino e, c o m o
eu estivesse demorando a manifestar-me, ajeitando-se

102
na p o l t r o n a , a q u e l e q u e p r a t i c a m e n t e a t r a v e s s a r a a
existência imaginando ser o que, em verdade, havia sido
sem que sequer o suspeitasse, instou comigo:
— Diga-me algo, Doutor... O seu silêncio prolon-
gado pesa-me na consciência qual se eu fora culpado. A
rigor, nunca fiz mal a ninguém; eu simplesmente me
d i s p u n h a a d a r o de q u e as p e s s o a s se r e v e l a v a m
carentes... Para lhe dizer a verdade, em todo esse tempo
de convivência com os espíritas, jamais cruzei com um
médium que me tivesse convencido da autenticidade de
suas faculdades; tenho para c o m i g o que quase todos
lançavam mão do m e s m o expediente...
Fazendo soar discreta campainha, chamei Manoel
Roberto ao gabinete e solicitei ao diligente companheiro
de minha maior estima e consideração:
— Manoel, faça entrar o novo amigo.
Sem n a d a entender, C l e m e n t i n o p r o s s e g u i a n a
expectativa de u m a solução para o seu caso, pleiteando
a sua r e m o ç ã o do n o s s o n o s o c o m i o para u m a outra
instituição em que não se sentisse na condição de um
paciente psiquiátrico.
— Clementino - tomei a iniciativa de lhe dizer, sem
evasivas -, tenho o prazer de lhe apresentar o nosso Irmão
Afonso. O Benfeitor que você "criou" sempre existiu!...
— C o m o ? ! - redarguiu, boquiaberto. — N ã o pode
ser! Vocês estão tentando me enganar... Isto aqui, é, de
fato, u m a casa de loucos!

103
E s t e n d e n d o - l h e a destra c o m visível desaponta-
mento estampado na face, a referida entidade espiritual
lhe inquiriu:
— N e m me tendo, agora, diante de seus olhos, você
não me crê real? Sou eu m e s m o , Clementino, que me
cansei de, por seu próprio intermédio, tentar alertá-lo
inúmeras vezes; sou eu que, de todas as formas, procurei
despertá-lo, para que você não continuasse sendo a maior
vítima de si; sou eu o personagem que você mistificava
e a quem, concentrando-se apenas em seus interesses
mesquinhos, se mostrava completamente insensível...

104
14

— Chega, chega! - bradou Clementino, tentando


tapar os ouvidos com as mãos. — É uma armação; vocês
estão armando contra mim!... C o m certeza, querem me
enlouquecer, para que a minha presença continue a se
justificar neste hospital. N ã o , não é verdade! Eu não sou
médium coisa nenhuma. N u n c a o fui e nunca pretendo
sê-lo... Irmão Afonso é coisa de minha cabeça!...
A p ó s tê-lo deixado desabafar-se, assim que, caindo
extenuado na poltrona, ele se acalmou, considerei:
— Clementino, você sabe que nós não faríamos o
de que nos acusa... Lidando diretamente com a Verdade,
v o c ê a i g n o r o u o t e m p o t o d o . N ã o fuja, a g o r a , ao
indispensável confronto consigo mesmo... N i n g u é m está
aqui para condená-lo e, sequer, repreendê-lo. C o m o você
m e s m o observou, casos semelhantes ao seu existem às

105
centenas... Quantos, efetivamente, não estão à altura da
confiança que lhes é depositada pelo Alto? Quantos fazem
de conta ser o que são?
— Acreditei em sua boa vontade inicial - aparteou
a entidade, emocionada - e, como você não me opôs
maior resistência em termos de sintonia, fiz de tudo para
trabalharmos em regime de parceria; eu não sou nenhum
Benfeitor, Clementino! - reconheço-me, sim, na condição
de espírito extremamente necessitado de servir... Você
era a minha oportunidade de conviver com os pobres
que, em vidas anteriores, marginalizei. Instruído, por
minha vez, por espíritos de elevada hierarquia, eu, por
seu intermédio, tentava reproduzir os ensinamentos que
recebia; mas era sempre para você m e s m o que eu falava
em primeiro lugar... Ter-nos-ia, meu amigo, bastado um
p o u c o d e confiança para q u e , j u n t o s , r e a l i z á s s e m o s
verdadeiros prodígios! No entanto, você sempre estava
de atenção voltada para as suas carências; então, os
nossos planos se frustraram e, com eles, a nossa possibi-
lidade de melhor aproveitamento.
Desconcertado, Clementino ainda tentava dialogar:
— Vivendo no mundo e passando privações, você
não teria feito o m e s m o ?
— N a d a lhe teria faltado, meu irmão - respondi,
endossando os argumentos de Afonso. — O Senhor não
a b a n d o n a n e n h u m de seus servos fiéis. N ã o há quem
necessite recorrer à desonestidade, para que o pão de
cada dia não lhe falte à mesa! O problema do h o m e m é

106
que ele quase nunca se contenta com o necessário... Em
sã consciência, diga-me, você chegou a passar fome
a l g u m a v e z ? N a s raras vezes em que esteve doente,
faltou-lhe o medicamento preciso? Porventura, lembra-
se de ter se confundido com os mendigos que dormem
ao relento? Ora, Clementino, se você, meu irmão, sequer
a s s u m i u c o m p r o m i s s o s de o r d e m familiar que, p e l o
menos, num ato de desespero, o justificassem...
— Eu ainda não estou acreditando... Enganei ou
fui enganado? Por que, então, em termos de mediunidade,
a Espiritualidade não me consentiu maior parcela de
convicção pessoal? Se, por exemplo, eu tivesse visto o
Irmão Afonso apenas u m a vez...
— N ã o se dê, meu amigo, excessivo valor - adver-
ti-o -; não se superestime!... A c a s o você, sem o respaldo
do espírito que o tutelava, se julgaria capaz de manter-se
na ativa durante tanto tempo, orientando q u e m o
procurava com semelhante propósito? Onde é que
encontrava tanta inspiração e tantas idéias para falar de
p ú b l i c o ? F o r a do transe, v o c ê não saberia indicar a
alguém o e n d e r e ç o da própria casa... Q u a n t o s livros
espíritas leu? Ao menos, teria corrido os olhos alguma
vez pelas páginas do " N o v o Testamento"?
— Perdoe-me, Clementino - emendou Afonso, sem
disfarçar o constrangimento -, mas, às vezes, do ponto
de vista psíquico, eu me impunha excessivamente a você;
c o n h e c e n d o as suas limitações, q u a n d o o ensejo me
favorecia, eu me aprofundava no transe... Os nossos

107
irmãos não tinham culpa, se não conseguíamos formar a
parceria ideal, você não acha? Seria j u s t o fazer com que
os necessitados que recorriam a nós pagassem pela nossa
leviandade e insensatez?
— Por que você diz " n o s s a " ? - indagou Clemen-
tino, franzindo o cenho.
— Porque a consciência não me permite isentar-
me inteiramente de culpa; conforme lhe disse, eu não
me considero um Benfeitor...
— Quem é você, afinal?
— Em p a s s a d o recente, creio - que seja este o
momento de o dizer -, eu e você fomos pai e filho e,
infelizmente, eu o abandonei, a você e à sua mãe. Talvez
seja este um dos motivos de sua rejeição...
Não havia muito mais para ser dito. Afonso abraçou-
se a Clementino que, mantendo-se impassível, consentiu
que aquele que lhe fora genitor no pretérito chorasse sobre
o seu ombro.
— Perdoe-me, m e u filho, p e r d o e - m e ! Eu tentei de
todas as formas... Abandonei-o sim, mas porque sua m ã e
me trocou por um h o m e m muito rico que, por sua vez,
nada lhes deixou por herança.
— O que haverá de ser doravante? - balbuciou,
por fim, o m e d i a n e i r o d e s e n c a r n a d o que criara u m a
aversão contra o pai, que tentara se redimir junto ao seu
afeto.
— Q u e m sabe - respondeu Afonso -, p o s s a m o s
vivenciar u m a nova experiência no corpo... Você me
aceitaria, de novo, na condição de pai?

108
C o m o olhar perdido no horizonte, Clementino disse
com certa frieza:
— Eu vou pensar, mas não lhe prometo nada!...
Depois de ter conduzido Clementino e Afonso para
fora, e n c a m i n h a n d o - o s a seus respectivos pavilhões,
Manoel Roberto retornou e, encerrados os atendimentos
p r o g r a m a d o s para aquele período do dia, entramos a
conversar.
— Dr. Inácio - c o m e n t o u c o m i g o o prestimoso
companheiro de tantas lides -, fiquei impressionado com
a revelação de Afonso...
— Em que aspecto? - interroguei, brincando com
um pequeno calidoscopio sobre a mesa que, de acordo
com a incidência de luz, projetava a imagem de um arco-
íris.
— Q u a n d o ele se referia à aversão do médium, ou
seja, à indiferença de Clementino para com a sua presença
espiritual...
— M a n o e l , essas reações são mais freqüentes do
que supomos. Os desencarnados arrependidos de seus
equívocos tentam se aproximar daqueles dos quais, por
um motivo ou por outro, se afastaram nas experiências
que vivenciavam em c o m u m sobre a Terra. Na condição
de espíritos libertos das injunções do corpo material,
conscientes dos erros perpetrados, envidam esforços no
sentido de recuperar o tempo perdido, mas, quando a
parte que se considera prejudicada não se mostra disposta
a perdoar, n a d a feito... A rejeição de um espírito em

109
relação a outro, ao extrapolar, dificulta, inclusive, que se
reaproximem, de livre e espontânea vontade, através dos
laços regenerativos da reencarnação. Por esta razão, os
abortos não provocados para os quais a ciência médica
não encontra n e n h u m a explicação.
— Se os h o m e n s c o m p r e e n d e s s e m o v a l o r do
perdão...
— ...muitos p r o b l e m a s s e r i a m s o l u c i o n a d o s no
nascedouro e, então, não se p r o l o n g a r i a m no t e m p o ,
a r r a s t a n d o - s e , i n d e f i n i d a m e n t e , de u m a e x i s t ê n c i a a
outra. O perdão, no entanto, é u m a atitude que simples-
mente se adia, pois, sem se libertar dos p e s a d o s grilhões
do ressentimento, não há quem consiga avançar. Q u e m
necessita de m a i o r claridade em t o r n o d o s próprios
p a s s o s , há de trabalhar p a r a d i m i n u i r a e x t e n s ã o da
sombra em derredor. Q u a n d o nos c o n v e n c e m o s de tal
realidade, decidimos pela iniciativa de perdoar...
— Ou de pedir perdão...
— Exatamente, c o m o no caso em pauta... Afonso
está e m p e n h a d o em obter o perdão de Clementino...
— ...que, por sua vez, não se mostra muito disposto,
principalmente, após ter se complicado ainda mais...
— ...e que precisa entender que, s e m a prática da
indulgência, ainda mais se complicará. Fora da tolerância
fraternal, não existe caminho para a paz.
— Na opinião do senhor, o que m a i s colaboraria
no sentido de que não nos mostrássemos tão resistentes
ao perdão?

110
— Sem dúvida, Manoel, é a auto-análise. Convém
que, periodicamente, façamos u m a avaliação sincera do
que somos, pois quem se dispõe, sem subterfúgios, a uma
investigação de natureza íntima, concluirá, sem dificul-
dade, que, nas m e s m a s circunstâncias que compeliram
alguém a agir conforme repreende, ele não teria se saído
melhor. Q u e m , de quando em quando, não se exercita,
colocando-se no lugar do outro...
— ...sequer o próprio lugar, dentro da Vida, ocupa
com consciência, não é, Doutor?
— Correto! O caminho é o da humildade, sempre;
a não ser assim, preparemo-nos para recapitular a lição...

111
15

No outro dia, pela manhã, a rotina abençoada do


trabalho me esperava. Sinceramente, eu não sei por que
os homens se queixam tanto da rotina em suas atividades
no m u n d o ! N ã o fosse pelo dever que somos c h a m a d o s a
cumprir, o que haveríamos de fazer? A l é m da morte do
corpo, nos defrontamos c o m a m e s m a necessidade de
continuar trabalhando e, tanto na Terra quanto no M u n d o
Espiritual, q u e m não b u s c a se ocupar p o s i t i v a m e n t e ,
termina por ceder às sugestões das Trevas.
A s tarefas d o H o s p i t a l m e a b s o r v e m c o m p l e -
tamente, pois eu não me limito a dar ordens àqueles que
permanecem sob a minha orientação. Interesso-me por
cada caso em particular e sinto-me responsável pelos
internos de todas as procedências. A p e n a s quando me
encontro em atividade na Crosta é que eu me permito

112
eximir de lidar diretamente com os nossos pacientes; não
q u e me c o n s i d e r e i n d i s p e n s á v e l - g r a ç a s à D e u s ,
contamos c o m u m a equipe, unida e organizada, que
sempre trabalha com a m e s m a intenção de ser útil! Se
faço questão de me envolver diretamente, é porque, de
igual m o d o , me vejo na condição de espírito doente, sem
nenhuma previsão de alta hospitalar...
— Dr. Inácio - falou-me M a n o e l R o b e r t o , que,
incansável na paciência, se dispunha a me assessorar -,
o Antônio está aí fora e deseja falar com o senhor.
I m a g i n a n d o do q u e se tratava, respirei profun-
damente, procurando me munir da necessária calma, e
pedi que o referido paciente entrasse.
— D o u t o r - foi me d i z e n d o l o g o , m a l t e n d o
colocado os pés em meu gabinete -, estou aqui para fazer
uma reclamação...
— Primeiro, Antônio, reagi, tentando conter-lhe o
ímpeto -, nos cumprimentemos c o m o dois bons amigos
que somos... C o m o é que você tem passado?
— B e m , até ontem, e muito mal, de ontem para
cá!...
— Relaxe e se sente, para que possamos conversar
com calma. Ao contrário do que, às vezes, digamos no
mundo, até para a morte existe solução; a Eternidade
está aí, à nossa espera...
— Estou convencido, no entanto, de que existem
problemas piores, quase insolúveis, principalmente
quando querem nos obrigar a aceitar determinada
situação...

113
— Quem está querendo? - perguntei, com o
propósito de convidá-lo ao exercício da reflexão.
— Eles...
— Eles, quem, Antônio? Seja mais claro...
— Aqueles, Doutor, que de Mais Alto determinam;
o senhor sabe a que estou me referindo...
— Os que determinam de Mais Alto p o s s u e m maior
sabedoria...
— N ã o é o que vim aqui discutir com o senhor... O
problema é que eu não aceito - não estou preparado, não
quero e não aceito. Se temos a Eternidade, v a m o s deixar
para depois...
— Deixar para depois, quando?
— Se depender da m i n h a vontade, nunca!
— Por favor, A n t ô n i o , detalhe. Q u e m sabe,
conversando, poderemos equacionar o problema, não é?
— Desse jeito, não! Se eu nem sequer quero vê-lo,
quanto mais renascer na condição de filho dele...
— O renascimento no mundo, em qualquer circuns-
tância que se dê, é sempre u m a bênção! N ã o estamos em
condições de fazer exigências... São as nossas ações,
Antônio, que têm força reivindicatória, não as nossas
palavras...
— Doutor, sem meias palavras como o senhor gosta:
eu tenho nojo daquele homem!... Só de pensar nele, eu
sinto asco. Prefiro nascer sem pai... Eu não sei c o m o
puderam se juntar, assim, duas pessoas tão diferentes:
eu tenho verdadeira v e n e r a ç ã o por Eulália, m a s u m a

114
tremenda rejeição por Ambrósio... Ser filho de Eulália é
tudo o que eu mais queria, no entanto de A m b r ó s i o eu só
quero distância. A nossa aproximação, c o m o pai e filho,
só fará aumentar o ódio que sinto por ele...
— A reencarnação não nos é facultada para que
possamos atender aos nossos caprichos! A Terra é um
educandário...
— D e s c u l p e - m e , m a s o senhor está batendo na
m e s m a tecla. Agora, eu não me sinto preparado;
necessito, Doutor, de maior tempo, para esquecer o que
ele me fez... As feridas que ele me abriu no espírito ainda
não cicatrizaram.
— N ã o i g n o r e as c i r c u n s t â n c i a s q u e e s t ã o se
juntando para a sua vitória; amanhã ou depois, a nossa
Eulália pode não lhe estar mais disponível... O que, em
você, é maior: o amor que sente por ela ou o ódio que
sente por ele?
— Eu não t e n h o r e s p o s t a para esta p e r g u n t a . . .
Aquele sujeito, que pretende ser m e u pai, é asqueroso;
eu não sei c o m o Eulália se submeterá a deixá-lo tocar-
lhe a mão...
— Todos pertencemos a Deus! C o m toda a consi-
deração que você fez por conquistar aqui, digo-lhe que
não somos muito diferentes uns dos outros... Você pode
até não concordar, mas é a verdade.
— Herdar alguma coisa daquele h o m e m , nunca!
Ainda se fosse tão-somente o dinheiro que ele me furtou,
eu aceitaria de bom grado; mas, não, querem me cons-

115
tranger a renascer daquele corpo que abomino... O senhor
já imaginou, Dr. Inácio?! Ponha-se no m e u lugar... Nós
éramos sócios e ele me traiu; furtou-me tudo: dinheiro,
família, felicidade... Fui eu que, praticamente, o tirei da
sarjeta, para ele ficar com tudo que era meu!
— São o u t r o s a g o r a os s e n t i m e n t o s de n o s s o
Ambrósio! Ele está arrependido e disposto a lhe devolver
tudo: dinheiro, família, felicidade...
— Eu não acredito nele: é um mentiroso! Tenho
c e r t e z a de q u e trairá a c o n f i a n ç a de E u l á l i a e n o s
abandonará na primeira oportunidade...
— Vamos dar-lhe um crédito; depois, o m u n d o hoje
é diferente do que o era no passado; as leis que protegem
a família são muito mais rígidas e severas...
— Ele está habituado a corromper consciências...
V ê - s e q u e , por a q u i , n i n g u é m o c o n h e c e c o m o eu;
falsificou-me assinaturas e comprou, inclusive, o meu
advogado... Tornei-me um alcoólatra por causa dele e
fui, m a i s c e d o , ao e n c o n t r o da m o r t e . O q u e e s t ã o
pretendendo de m i m é um absurdo. A m b r ó s i o deveria
estar nas trevas e não, pelo que estou sabendo, prestes a
se casar com Eulália.
— Antônio, às vezes nós nos tornamos piores do
que aqueles que nos prejudicam; de certa forma, quem
não perdoa a agressão não difere muito do agressor...
Q u e m não perdoa age de caso pensado, ao passo que o
ofensor pode ter agido levado por um impulso m o m e n -
tâneo, concorda?

116
— N ã o , no n o s s o caso, n ã o ; ele planejou tudo
meticulosamente... Imagine-se voltando à Terra, indefeso
no berço, à mercê de u m a víbora... Receber nas minhas
faces de criança os beijos paternos daquele h o m e m !
Nunca!... Eu prefiro nascer c o m o u m a excrescência da
Natureza! Herdar da carne dele, daquele ser ignóbil?!
Sentir na minha boca o hálito que pertence a ele?! Ser
acompanhado, em m e u próprio corpo, pelo cheiro dele o
resto da vida?!... N ã o , Doutor, o senhor vai ter que me
ajudar...
Sinceramente, eu j a m a i s me vira às voltas com tais
argumentos. De pé, próximo à porta, M a n o e l Roberto
permanecia em silêncio, na expectativa de que eu pudesse
convencer o Antônio a aceitar a paternidade de Ambrósio,
pois, afinal de contas, Eulália reencarnara confiante na
intervenção do M u n d o Espiritual, para que aquele drama
se solucionasse.
O b s e r v a n d o que eu e m u d e c e r a , A n t ô n i o foi se
sentindo incomodado e, aos poucos, igualmente parou
de falar.
Levantei-me, aproximei-me da janela e pus-me a
observar a movimentação lá fora: dezenas de espíritos
quase em completa demência vagueavam no pátio da
instituição, articulando inaudíveis palavras e gesticulando
a esmo.
— C o m o é, Doutor - voltou o paciente a interpelar-
me, incomodado pelo mutismo a que eu me entregara -, o
que é que o senhor me diz?

117
— M e u filho - respondi, com grande sensação de
impotência no espírito -, eu não tenho nada mais a lhe
dizer. Se você prefere assim... Os que se situam acima
de nós têm melhor visão do futuro; eles não se arriscariam
a que ainda mais nos comprometêssemos, perante a Lei
de Causa e Efeito. Se os nossos Benfeitores endossam o
seu retorno à Terra, nas condições que você não quer
admitir, é porque demonstram ter maior confiança em
você do que você m e s m o ! Lamento que, diante dos seus
argumentos, eu nada mais tenha a acrescentar. Seja como
for, a sua situação atual não se compara à daqueles nossos
irmãos que estão se arrastando lá fora; muitos deles tudo
dariam a fim de receber no m u n d o um corpo qual o que
lhe está sendo oferecido: infelizmente, reencarnarão em
condições de grande precariedade física!...

118
16

Percebi que as minhas palavras haviam sensibi-


lizado Antônio e, embora decidido a encerrar a entrevista,
ainda acrescentei:
— A maioria d a q u e l e s que p o d e m o s avistar da
janela regressará ao mundo, só Deus sabe como!
Dementes c o m o muitos deles se encontram, talvez sequer
possam contar com o apoio da família, que se sentirá
tentada a interná-los e a esquecê-los nas instituições que
se dispuserem a acolhê-los; desde crianças, sofrerão
marginalização de toda espécie e, vítimas do preconceito
social, terão, com certeza, aumentado o peso de suas
provas... Raros, Antônio - e dentre eles nós nos encon-
tramos - os que estão em condições de reclamar direitos
a que não fizeram j u s ; por enquanto, você está sendo
convidado a participar do planejamento das lutas que o

119
esperam em um novo e necessário renascimento, mas,
reflita: pode ser que, amanhã, premido pelas circuns-
tâncias, que tanto se alteram na Terra quanto no M u n d o
Espiritual, você não tenha mais qualquer opção...
Sinceramente, caso estivesse em seu lugar, principal-
mente tendo acesso ao próprio currículo espiritual, eu
não hesitaria: aceitaria o oferecimento dos nossos
Benfeitores e me esforçaria para me apassivar a tal ponto,
que o esquecimento do passado em mim sequer existisse
em forma de reminiscência.
Quando terminei de falar, a entidade me olhou de
m a n e i r a significativa e, t o c a d o pelas m i n h a s p o n d e -
rações, perguntou-me:
— O senhor acha que não há perigo? Eu t e n h o
receio de odiar Ambrósio e de agravar ainda mais o nosso
relacionamento. Eu não sei c o m o reagirei ao senti-lo me
tocar... Se, quando eu podia me defender, ele me enganou,
o que não fará comigo se, porventura, me identificar a
presença...
— Ambrósio é apaixonado por Eulália e j a m a i s seria
capaz de algo fazer contra o filho que lhe resumirá todos
os sonhos de ventura! Você será filho único e, portanto,
centralizará todas as atenções de sua futura m ã e z i n h a
e... de seu futuro genitor. É possível que, no c o m e ç o , ele
se sinta um tanto e n c i u m a d o ; i n c o n s c i e n t e m e n t e , é
possível que chegue a cogitar de antiga p r e s e n ç a do
adversário de outras eras j u n t o ao coração da a m a d a ,
t o d a v i a ele t a m b é m estará s o b o a b e n ç o a d o v é u do

120
esquecimento... Entregue-se, confiante, Antônio, e não
deixe escapar a oportunidade de crescimento que a Vida
lhe oferece. Tudo está pronto para recebê-lo, mas, se você
se negar a renascer agora, a imprevisibilidade é que
haverá de nortear-lhe os passos daqui para a frente. Daqui
a mais 10, 20 anos, quem estará disposto a acolhê-lo no
m u n d o na condição de filho? Inclusive, correria o risco
de se comprometer com outro grupo de espíritos,
agravando, assim, as suas provas. E não diga que não
reencarnará, porque, todos, mais dia, menos dia, nos
veremos impelidos pela Lei e, à maneira dos retrógrados
que se sentem incomodados pelo progresso no castelo
de suas arcaicas concepções, nos defrontaremos com a
necessidade de mudar...
A n t ô n i o silenciara c o m p l e t a m e n t e . Q u a n d o , por
fim, o u s o u levantar os olhos na m i n h a d i r e ç ã o ,
questionou-me:
— O senhor tem certeza do que está me dizendo?
Posso confiar?...
— N ã o é preciso, m e u irmão, que eu lhe responda
a tais indagações, pois, na condição de espírito liberto
das injunções da matéria densa, você está constatando a
verdade por si mesmo e, portanto, sabe que será conforme
estou lhe dizendo - não pela força das minhas palavras,
é evidente, mas pelo impositivo da Lei a que estamos
submetidos. O espírito mais recalcitrante acabará por se
render aos irrefutáveis argumentos do Tempo e dobrará
a cerviz diante dos Sábios Desígnios do Criador!

121
Aproximando-se, Manoel Roberto, sem n a d a dizer,
fez com que Antônio compreendesse que carecíamos de
dar seqüência ao atendimento dos casos agendados para
aquela manhã.
— Desculpe-me, Doutor, a exaltação inicial - disse-
me o paciente, preparando-se para se retirar.
— N ã o se p r e o c u p e - redargui, a b r a ç a n d o - o e
acompanhando-o até à porta -; ante a proximidade de
uma nova experiência no corpo, quase todos nos sentimos
assim... É natural. A expectativa da reencarnação é mais
dolorosa do que aquela que nos acomete quando estamos
prestes a desencarnar! Se os nossos irmãos do m u n d o
s o u b e s s e m o e s t a d o d e p r e s s i v o de q u e m u i t o s n o s
sentimos possuídos, quando verificamos que não dá mais
para adiar a hora decisiva do renascimento, haveriam de
se preparar melhor para receber-nos.
A n t e s que o d e v o t a d o assessor fizesse entrar o
próximo paciente, efetuando diminuta pausa para respirar
e tomar um copo d'água - ou será que vocês, os encar-
nados, entenderão por absurda até m e s m o a necessidade
de nós, os considerados mortos, de quando em q u a n d o
molharmos a boca ressequida? -, comentou rapidamente:
— Doutor - observou Manoel -, o que o senhor
disse por último me impressionou... De fato, os nossos
irmãos encarnados deveriam ter maior consciência das
angústias e das aflições que nos assaltam, quando nos é
chegado o instante de vestir o escafandro para um novo
mergulho no mar da vida material...

122
— Infelizmente, poucos são os que pensam assim;
a maioria se preocupa apenas em adaptar o quarto do
futuro recém-nascido, comprar o berço e organizar o seu
enxoval... Raros os que compreendem o que significa
para o espírito o seu regresso ao corpo e a insegurança
que, de hábito, experimenta quem parte rumo ao desco-
nhecido, seguindo por estradas em que o perigo o espreita
a cada passo.
— A situação é quase idêntica àquela que envolve
o processo desencarnatório, não é?
— Na minha opinião, Manoel, reencarnar é pior
que desencarnar.
— Por que, se deste Outro Lado temos a consciência
de que a morte não existe e que, suceda o que nos suceder
no corpo, ressurgiremos redivivos?
— Porque, na maioria das vezes, deste Outro Lado,
reaparecemos, após a morte, na condição de adultos, ao
passo q u e , no c e n á r i o terrestre, nos r e a p r e s e n t a m o s
caracterizados pela fragilidade infantil.
— Eu não havia pensado sob este prisma...
— O espírito, na condição de criança, por mais
elevada seja a sua hierarquia, sempre estará relativamente
exposto às circunstâncias de um m u n d o de provas e
expiações e, se não contar com a imprescindível reta-
guarda espiritual e a zelosa proteção dos seus familiares,
notadamente de pai e mãe, poderá ser vítima do mal que
ainda impera no Planeta.
— C o m o assim, Doutor?

123
— Se se trata de um espírito de mediana evolução,
ainda sem os benefícios do mérito que lhe advogam a
causa, ele poderá, inclusive, comprometer a existência,
do ponto de vista moral, cedendo, por exemplo, à tentação
para o uso de drogas e, indo mais longe, se transforma
em traficante.
— É apavorante!...
— Concordo, mas pode, sim, ocorrer, se o espírito,
em contato com o vício, não tiver se fortalecido contra
ele ou m e s m o recebido orientações que tenha assimilado
no sentido de evitá-lo.
— C o m o é importante o papel da educação!...
— Essencial, Manoel, essencial. As noções que a
criança recebe, desde os seus primeiros meses de vida,
são tão imprescindíveis à sua saúde espiritual, quanto as
v a c i n a s q u e lhe d e f e n d e m o o r g a n i s m o c o n t r a a
poliomielite, a rubéola, o sarampo...
— O exemplo que o senhor citou com as drogas...
— P o d e se estender a todas as outras áreas capazes
de lhe corromper o caráter. Quantas crianças não sofrem
abuso sexual? C o m o haverá de ficar a cabeça de u m a
delas, vítima de pedofilia ou de seguidos espancamentos
dentro de casa?
— Dr. Inácio - perdoe-me a insistência -, mas c o m o
situamos dentro do contexto a problemática das provas?
— As nossas provas, Manoel, não se referem apenas
e tão-somente às conseqüências do passado. Procuremos
ampliar a respeito o horizonte do nosso entendimento.

124
N o s trechos mais perigosos de u m a rodovia, onde há
maior índice de acidentes, existem múltiplos sinais de
advertência, o que não quer dizer que não possamos nos
deparar com imprevisível buraco na pista ou mesmo com
um descuido de nossa parte ao volante do veículo que
conduzimos.
Preocupado com quem estava me aguardando lá
fora, concluiu:
— O espírito, que já fixou em si d e t e r m i n a d o s
valores éticos, não cai, mas aquele que moralmente ainda
não se firmou pode cair. De que valem os conselhos de
um pai aos ouvidos do filho que com eles não se coloca
em sintonia? Por acaso, estaríamos sempre atentos à voz
da consciência, que nos adverte e que, só por si, bastaria
para evitar-nos a queda? O h o m e m não cai porque esteja
à mercê do que é capaz de provocar-lhe a queda, mas,
sim, porque, no uso de seu livre-arbítrio, delibera expor-
se aos perigos do abismo que se lhe escancara.

125
17

Assim que Orlando adentrou o gabinete, foi logo


dizendo:
— Dr. Inácio, eu estou com m e d o de voltar à Terra...
Sei que estou recuperado; o tratamento que recebo tem
sido eficiente, mas temo um novo fracasso... Aqui tudo é
mais simples do que no m u n d o : as afeições são mais
sinceras e s o m o s , uns com outros, naturalmente soli-
dários... A m i n h a última experiência na c o n d i ç ã o de
médium foi muito dolorosa; enfrentei inveja e ciúme dos
companheiros, que me olhavam c o m o se eu fosse um ser
estranho; questionavam a minha vida pessoal e
levantavam suspeitas descaridosas contra mim... Quantas
humilhações padeci, meu Deus!... O m é d i u m é alguém
que vive cercado de pessoas, m a s , no fundo, amarga a
solidão. O senhor conhece de perto o nosso drama. Está

126
se aproximando a hora da minha volta, porém... Outra
vez, o casamento não estará em minhas cogitações e
antevejo as m e s m a s lutas. C o m o poderei vencer, se já
me sinto derrotado por antecipação? Compreenda, eu não
estou me q u e i x a n d o ; a m e d i u n i d a d e é u m a b ê n ç ã o ,
todavia...
Ouvindo-o sem interrupção, assim que o referido
irmão efetuou u m a pausa em sua argumentação inicial,
começamos a dialogar:
— Orlando, se você recuasse agora, seria provável
que a sua situação viesse a se complicar: você não está
p r e p a r a d o p a r a fazer outra coisa... N ã o s e trata d e
i m p o s i ç ã o , m a s de lógica e conveniência. O estágio
realizado por você em nosso Hospital ser-lhe-á muito
útil; sabe, por exemplo, se se desviar do caminho, o que
o espera... A Doutrina avançou muito e, relativamente,
as dificuldades diminuíram. A tarefa missionária que
nosso irmão C h i c o Xavier cumpriu entre os h o m e n s
facilitou as coisas para os médiuns; hoje, desfruta-se de
u m a m a i o r l i b e r d a d e de p e n s a m e n t o e o f a n a t i s m o
religioso vem perdendo força gradativamente...
— No entanto, doutor, ambos não desconhecemos
o fato de que a intolerância maior para com os médiuns
parte dos próprios espíritas; ao invés de palavras de
incentivo, críticas e acusações... De que forma evitar a
tristeza e o d e s â n i m o ? Em v e r d a d e , o E s p i r i t i s m o
progrediu, m a s , em termos de vivência do Evangelho,
nós, os espíritas, ainda d e i x a m o s m u i t o a desejar...

127
Sinceramente, eu estou com m e d o da discriminação; o
senhor talvez não saiba o que é ser vítima da male-
dicência...
— Quem foi que lhe disse que eu não sei? Embora
não tenha sido médium, na acepção da palavra, senti na
pele as calúnias que os adversários da Doutrina urdiam
contra mim...
— Mas, pelo menos, era respeitado pelos irmãos
de crença...
— Respeitavam-me mais, Orlando, pelo meu título
de doutor e pela m i n h a posição social, do que
propriamente por ser espírita; faziam-me, sim, muitos
deles, oposição velada e, aos meus ouvidos, de quando
em quando, chegavam as coisas horrorosas que diziam a
meu respeito... Eu os m a n d a v a às favas e prosseguia
trabalhando; alguns, mais tarde, tive a oportunidade de
"hospedar" nas dependências do Sanatório... O espírita,
sem humildade, padece de u m a espécie de delírio de
grandeza espiritual; considera-se infalível e mais do que
o s outros, m o r m e n t e q u a n d o o c u p a u m a p o s i ç ã o d e
liderança... Quanto iludimos a nós m e s m o s ! Porém, ao
nos sobrevir a desencarnação, quanto nos pesa o
confronto com a realidade!...
— Serei só eu e a minha mãe, que, logo após me
conceber, enviuvará; crescerei ao lado dela, recebendo-
lhe a proteção e protegendo-a, por minha vez... Dividirei
o meu tempo, trabalhando pelo nosso sustento e cuidando
dos afazeres domésticos, já que muito cedo aquela que

128
me acolherá na condição de m ã e sofrerá com a prova da
cegueira... No conhecimento espírita é que encontraremos
consolação. Doutor, eu não me envergonho de mostrar
ao senhor como sou. Poupe-me, no entanto, de maiores
d e t a l h e s ; d e s d e muitas v i d a s , eu v e n h o enfrentando
problemas na esfera sexual e, sempre que reencarno, o
meio em que o meu carma me determina viver facilita a
minha reincidência...
— M e u filho, sobre a Terra, não há espírito algum
que não esteja lutando contra certas tendências; todos
trazemos mazelas que se nos ocultam na personalidade,
e os que não o admitem talvez sejam os mais prejudi-
cados... Caso nos sentíssemos dispensados de lutar contra
inclinações de natureza infeliz, o trabalho de evolução
já teria se completado em nós. N i n g u é m logra vencer-se
de improviso. N ã o raro, transformamo-nos, através dos
nossos equívocos de ordem moral, em instrumentos de
reflexão para os outros. A gravidade do mal está mais
em nos comprazermos nele, do que em praticá-lo; a ele,
por vezes, nos sentimos compelidos pelas circunstâncias,
oriundas do carma e da obsessão. Quantos os que sorvem,
c h o r a n d o , o c o p o de a g u a r d e n t e e q u a n t o s os q u e ,
abominando a si m e s m o s , se fazem toxicômanos?
— Temo pelo suicídio...
— De tudo, seria o pior! Afaste, Orlando, desde já,
de sua cabeça a idéia de autodestruição... Rasteje, chore,
conspurque-se, mas não atente contra Deus em si m e s m o !
B e b a , à ú l t i m a gota, o cálice t r a n s b o r d a n t e de suas
amarguras!...

129
— E n s i n e - m e , Dr. Inácio, a suavizar o p e s o da
cruz... Eu sei que o prazer é a mais fugaz de todas as
sensações! A felicidade não é um estado de satisfação
física...
— Tão-somente na prática sistemática da caridade,
v o c ê e n c o n t r a r á s e g u r o a b r i g o c o n t r a o a s s é d i o da
tentação, que prolifera através da nossa invigilância;
apegue-se, Orlando, às suas atividades espirituais e não
se contente em ser simplesmente m é d i u m dos desen-
carnados... Esforce-se no bem de todos com sinceridade
e descubra a alegria de servir! N ã o responda às agressões
e às injúrias que, com certeza, se lhe constituirão em
repetidos testes de paciência.
— N ã o há, por aqui, n e n h u m tratamento específico
ao qual eu possa me submeter?...
— A aquisição de novos hábitos d e m a n d a tempo...
A não ser pelo seu empenho, o espírito só se transforma
p e l a G r a ç a D i v i n a , d a q u a l n e c e s s i t a m o s n o s fazer
merecedores. Enquanto não recebemos do Alto o que
e s c a p a à possibilidade dos h o m e n s , c o n t i n u e m o s no
processo de nossa reeducação, vertendo suor e lágrimas
na construção das boas obras.
— U m a regressão não poderia me ser útil?
— Identificar o problema, não significa solucioná-
lo e voltar no tempo não apaga as marcas deixadas no
caminho... Sem dúvida, o diagnóstico feito com precisão
orienta o médico no seu plano de tratamento, no entanto
é necessário que o paciente se mostre disposto a cola-

130
borar. E, depois, O r l a n d o , efetuar u m a r e g r e s s ã o de
memória para descobrir o que já sabemos? Na verdade,
o que desejamos é uma renovação que não nos imponha
a necessidade de abrir m ã o do que somos, e isto não
existe! A Terapia de Vidas P a s s a d a s , c o n d u z i d a por
investigadores conscientes, autentica a Reencarnação e,
sem dúvida, corrobora os postulados espíritas, mas não
exime o espírito de corrigenda, ou seja, não o isenta de
retomar a j o r n a d a empreendida no ponto em que
deliberou enveredar por escusos caminhos. Observemos,
ainda, que a lucidez concernente aos nossos erros no
nascedouro, contrariando a sábia Lei do esquecimento,
pode transformar-nos, ao ponto de agravá-los.
— E se eu não encontrar centro espírita que me
abrigue? C o m o farei?...
— Eu já lhe disse: trabalhe c o m o puder e construa
o seu próprio lugar, prestando obediência exclusiva à
consciência. Esforce-se ao m á x i m o para não cair, mas
se, porventura, acontecer, não se a c o m o d e no c h ã o ;
levante-se quantas vezes preciso for e continue servindo...
Um dia, você se reconhecerá mais forte que o vício e
dele se desligará para sempre.
Percebendo que Orlando entrara em pranto convul-
sivo, no propósito de encorajá-lo e descontraí-lo, voltei
a afirmar:
— M e u filho, m a n d e os espíritas moralistas às
favas; ninguém tem nada a ver com a sua vida e nem
com a minha... Jesus Cristo não recriminou Maria de

131
M a g d a l a e nem condenou Saulo de Tarso: os dois dos
maiores vultos do Evangelho nascente foram, respecti-
vamente, u m a mulher adúltera e um h o m e m criminoso!
N ã o se considere um doente sem cura. Quase sempre,
aqueles que estimam rotular os outros j a z e m rotulados
pela Lei. Que ninguém interprete estas minhas palavras
a você c o m o incentivo para que continue sendo o que é:
eu n ã o seria c a p a z de a g i r de f o r m a tão l e v i a n a e
irresponsável, mas se existe algo que eu nunca tolerei e
prossigo não tolerando é a hipocrisia!... A hipocrisia dos
espíritas moralistas ainda há de custar muito caro a eles
m e s m o s ! Você não é pior do que ninguém e, por sua
condição sexual, você não está impedido de ser m é d i u m ,
pois, se assim fosse... B e m , deixemos isso para lá! Eu
quero que você se alegre e enfrente a reencarnação com
coragem. Vá à luta! Seja útil aos semelhantes; o resto é
detalhe que não nos deve embaraçar...
— U m a pessoa c o m o o senhor faz falta sobre a
Terra, Doutor!...
— Ora, Orlando, por lá existe muita gente melhor
do que eu!
— M a s que não dá a cara para bater, c o m o o senhor
sempre fez!...
— Continuo apanhando, m e u filho, mas agora, pelo
m e n o s , estou dividindo a surra!...

132
18

T e r m i n a n d o o s a t e n d i m e n t o s q u e h a v i a m sido
a g e n d a d o s para aquele período do dia, fui ver c o m o
estava a nossa simpática hóspede recém-desencarnada.
Impressionei-me ao vê-la quase completamente refeita,
embora ainda não estivesse apta para deixar o leito.
— Então - perguntei, sentindo-me à vontade -,
como é que a nossa Maria Helena está passando?
— M e l h o r , D o u t o r , m u i t o m e l h o r . . . E s t o u me
sentindo tão leve, que tenho receio de flutuar no quarto;
a impressão é a de que me livrei de um fardo extrema-
mente pesado...
— Logo você se acostumará; nos primeiros dias, é
assim mesmo...
— Por mais que eu tivesse lido sobre a desen-
c a r n a ç ã o , a s e n s a ç ã o e x t r a p o l a as i n f o r m a ç õ e s que

133
possuímos... C o m o nos identificamos com o corpo e, ao
m e s m o tempo, nada temos a ver com ele...
— N ã o imagine, no entanto, que o fenômeno seja o
m e s m o com todos: tudo é uma questão de vida mental,
de conscientização; a grande maioria, pela densidade do
s e u c o r p o e s p i r i t u a l , d e m o r a a se e m a n c i p a r . . . A
e n f e r m i d a d e p r o l o n g a d a , m i n h a filha, t e m a s s u a s
vantagens, tanto quanto a idade avançada, como aconte-
ceu comigo: a gente vai desencarnando aos poucos...
— Eu n ã o senti me d e s t a c a r do c o r p o físico;
imaginei que, quando tal se desse, eu me visse repleta de
filamentos remanescentes...
— Estamos imantados ao corpo, não amarrados;
quando a corrente elétrica que nos atrai para ele cessa de
agir, os circuitos naturalmente se interrompem e, então,
o nosso duplo se desaclopa; os filamentos perispirituais
aos quais você se refere assemelham-se a laços energé-
ticos que se desfazem e, em parte, são reassimilados...
— Reassimilados?...
— Sim, reabsorvidos pelo nosso organismo
perispiritual e como que se cauterizam, instantaneamente,
nos pontos de mais estreita ligação com o corpo
somático... Isso, porém, se dá com os que desencarnam
pelo esgotamento do tônus vital; a operação é variável,
de acordo com as circunstâncias que cercam o desenlace
do indivíduo... Por exemplo, com os que c o m e t e m o
suicídio, os laços perispirituais que m e n c i o n a m o s se
dilaceram, ocasionando um desperdício da energia vital
acumulada.

134
C o n s t a t a n d o que as explicações eram d e m a s i a -
damente técnicas e que, no m o m e n t o , poderiam cansar a
nossa paciente, mudei de assunto:
— O que você está achando do nosso mundo?
— A pergunta do senhor é interessante, Doutor, pois,
e m b o r a ainda esteja a c a m a d a , eu c o m e ç o a senti-lo
através de todos os meus poros... Eu ainda não vi o que
existe lá fora, mas as minhas percepções, que se dila-
taram, c o m o que me identificam com a nova realidade.
— Sempre nova, no entanto, tão velha realidade! A
Vida, minha filha, procede daqui para a Terra, porém,
quando encarnados, a impressão que temos é outra. Por
que será que o m u n d o nos parece mais nosso do que as
regiões espirituais que habitamos além da morte?
— É verdade, Doutor! Será porque a nossa realidade
ainda está alhures? Terei vindo para o que realmente sou
ou terei me esquecido na retaguarda? Creio que, por
instantes, apenas avançamos no tempo, não?...
A lucidez da Maria Helena me impressionava e eu
estava começando a gostar de conversar com ela.
— A desencarnação - acentuei - nos coloca fora
do nosso tempo mental; por esse motivo, nos referimos
ao M u n d o Espiritual c o m o sendo novidade...
— Eu percebia isso, Doutor, quando, através da
m e d i u n i d a d e , os espíritos se c o l o c a v a m em c o n t a t o
conosco: referiam-se à existência além da morte, c o m o
se se desse o inverso, ou seja, a Vida se originando da
Terra para as Dimensões Espirituais...

135
— Por essa razão, a existência no corpo nos parece
a definitiva forma de ser e nos apegamos a ela. N ã o nos
passa pela cabeça a idéia de que a Vida é exportada das
regiões do A l é m para a Terra e não, repito, vice-versa.
Ao contrário, para aqui nos despojarmos das reminis-
cências terrestres, requisitamos um tempo mais ou menos
longo de readaptação.
— Dr. Inácio, e as árvores, os animais?...
— A Natureza, nesta Outra Dimensão, é muito mais
exuberante! As sementes que florescem no m u n d o são
desenvolvidas nos laboratórios do E s p a ç o e, para se
aclimarem no Planeta, sofrem m u t a ç õ e s genéticas; o
m e s m o p o d e m o s dizer com relação aos animais - os
nossos pássaros, por exemplo, v o a m daqui para lá e não
de lá p a r a cá... M u i t o s t ê m e s t r a n h a d o o fato de
afirmarmos em nossas obras que, deste Outro Lado, as
sementes germinam, os pássaros procriam... Ora, então,
teríamos rios e florestas artificiais? Os nossos rios e as
nossas florestas estão repletas de espécies animais que
os homens desconhecem... Sinceramente, eu não sei o
motivo de tamanho espanto! Os nossos irmãos concebem
o M u n d o Espiritual c o m o u m a extensa região deserta,
onde nós, os sobreviventes da morte, certamente fôsse-
mos condenados a morrer de tédio, pouco a pouco.
Neste momento, enquanto falávamos, Manoel
Roberto abriu a porta do quarto e, antes dele, um pequeno
gato angorá adentrou o recinto, c o m e ç a n d o a se enroscar
em minhas pernas.

136
— Dr. I n á c i o - e x c l a m o u M a r i a a H e l e n a ,
maravilhada e surpresa -, um gato! Que lindo!...
— Para onde é que os nossos irmãos encarnados
quereriam que fossem as almas dos animais, após a
morte?
— Eu ouvia dizer que o princípio espiritual neles
existente permanecia n u m a espécie de erraticidade e que
logo reencarnavam...
— N ã o é assim com todos; alguns retomam o corpo
de imediato, mas... que corpo? O princípio espiritual
evolui de espécie em espécie. C o m o será, Maria Helena,
que os "sabem t u d o " do m u n d o (estou me referindo aos
e s p í r i t a s ) e x p l i c a r i a m o fato de um p a p a g a i o , p o r
exemplo, reencarnar c o m o um gato ou um gato reen-
carnar como um macaco? Allan Kardec tratou do assunto
c o m c l a r e z a e, n e g á - l o , e q u i v a l e r i a a n e g a r t o d a a
Doutrina. H o m e n s eruditos c o m o Pitágoras, o grande
matemático, acreditava na palingenesia às avessas... Certa
vez, impediu que alguém continuasse a espancar um cão,
afirmando que nele se encontrava reencarnado um velho
amigo seu! Sabemos que o espírito não retrocede e que,
portanto, a chamada metempsicose é um equívoco de
interpretação.
— Quanta coisa desconhecemos, Doutor!...
— N ã o sabemos sequer, minha filha, o que contém
o universo de u m a simples gota d'água! Bastaria u m a
única célula, em qualquer orbe deserto, para que a vida
humana se reeditasse com as m e s m a s características!...

137
— Quando eu poderei me levantar e dar u m a volta
por aí? Quero respirar, Doutor! Agora que me vi livre
dos tumores que me atacaram os p u l m õ e s , quero
respirar!...
— Um espírito respirar?! Isto é u m a heresia... Fique
sabendo que, por estar morta, você está terminantemente
proibida de respirar... O corpo espiritual é oco por dentro!
Maria Helena sorriu gostosamente e me estendeu
as m ã o s com carinho, sob o percuciente olhar do esposo
que, até então, se conservara em silêncio.
— N ã o tenha ciúmes, m e u amigo! - disse-lhe em
tom de brincadeira, igualmente fazendo-o sorrir. — Eu
já sou um espírito comprometido, e tão comprometido,
que não sei o que vou fazer... Feio c o m o a Necessidade,
eu não sei como desperto tanto interesse assim!
— Dr. Inácio, eu não concordo... O senhor é u m a
simpatia!
— Você é muito gentil, m a s , com certeza, bonito
você não me acha, pois, caso contrário não me agradaria
dizendo que sou apenas simpático...
Deixando-os alegres, despedi-me e, na c o m p a n h i a
d e M a n o e l R o b e r t o , c a m i n h a n d o p e l o c o r r e d o r fui
abordado por um vigilante aflito.
— Doutor! Doutor!...
— O que houve?! Acalme-se!...
— Aquele padre, Doutor...
— Qual deles? Temos tantos por aqui...
— Aquele que se diz Arcebispo...

138
— O A.?!...
— Sim.
— Está aprontando novamente?
— N ã o , muito pior, Doutor: ele fugiu!...
— Fugiu? Como?!...
— C o m e ç o u a conversar com o enfermeiro, que é
novato, e o hipnotizou...
— Francamente! Manoel, estamos desmorali-
zados...
— O senhor sabe quanto ele é ardiloso - respondeu-
me o companheiro, igualmente se sentindo culpado. —
Deveríamos tê-lo isolado...
— Ele sempre combateu o Espiritismo, mas vivia
e s t u d a n d o e praticando hipnose... Parece que c o m a
i n t e n ç ã o de atribuir a m e d i u n i d a d e ao h i p n o t i s m o .
Chegou até a dar espetáculo na televisão... Vamos procu-
rá-lo; ele não pode ter ido longe. A nossa responsabilidade
é grande - comentei, procurando me conter (Ah, se os
tempos agora fossem outros!). — A sua mãe confiou-o à
nossa proteção; ele está doente... M a s como isso pode
ser possível? É inacreditável!
— Ele nos enganou, Doutor - tentou justificar-se o
vigilante -; para mim, o tempo todo ele estava tramando...
N i n g u é m o viu sair.

139
19

P r o c u r a m o s nos a r r e d o r e s , e n a d a ; o a r c e b i s p o
emérito havia, de fato, desaparecido... Todavia, c o m as
pernas frágeis, ele não poderia ter ido longe.
— É no que dá: tentamos ser mais civilizados -
r e s m u n g u e i , após infrutíferas buscas -; se o hospital
possuísse muros c o m o o Sanatório, dificultaríamos as
coisas...
C h a m a n d o às falas o enfermeiro que estava de
plantão, no momento da fuga, ele me explicou:
— O senhor me perdoe, Doutor... N ã o sei o que me
aconteceu. Aquele h o m e m é terrível!...
— Isso eu sei - respondi, concordando -, e melhor
que qualquer um de vocês... Certa vez, ele andou dizendo
q u e iria me h i p n o t i z a r à distância. A falange q u e o
acompanhava...

140
— Q u a n d o entrei no q u a r t o , ele estava de p é ,
próximo à cama, e começou a dizer algumas palavras
confusas, creio que em latim; depois, sorriu para mim de
m o d o até simpático, com o que me prendi a ele, olhou-
me fixamente nos olhos e... fiquei entorpecido.
— Para onde ele poderia ter ido? - perguntou-me
Manoel Roberto. — O perigo é o de que venha a cair nas
garras das entidades que perambulam nos arredores...
— É o que já deve ter acontecido - retruquei. — O
A., ao contrário do que supõe, tem muitos inimigos fora
do corpo. Se um deles o identificar, eu não gostaria de
estar na sua pele; verá que, para ele, a vida aqui dentro,
apesar de tratar-se de um hospital de dementados, é muito
melhor do que lá fora... Quanta tolice, meu Deus! O que
não provoca a rebeldia e o que não faz o preconceito
religioso! O orgulho é um mal terrível... Digo-lhes que,
de minha parte, por maior a birra que tenha de padres - e
tenho m e s m o ! eu não hesitaria em ser acolhido por
eles, em caso de extremíssima necessidade...
Falávamos assim, quando, providencialmente,
Odilon apareceu na companhia de Sebastião Carmelita,
um dos poucos sacerdotes que eu aprendera a respeitar.
— Dr. Inácio, meu amigo! Há quanto tempo! Estava
com saudades...
— Eu t a m b é m , Carmelita; você, Odilon e mais
alguns poucos eram dos amigos que eu mais gostava de
receber em casa...

141
— Ficamos sabendo, Inácio - disse-me Odilon -, a
respeito da fuga empreendida pelo nosso A. e viemos
nos oferecer para ajudá-lo.
— Agradeço muitíssimo, pois estou, deveras,
preocupado; em m i n h a opinião, ele está completamente
perturbado e creio que influenciado por pensamentos que
não lhe concedem trégua...
— Vampirização à distância? - interrogou C a r m e -
lita.
— Sim - respondeu o c o m p a n h e i r o que respei-
távamos na condição de Instrutor na Vida Espiritual -;
vocês sabem que os obsessores de mente poderosa não
necessitam de estar próximos a suas vítimas, principal-
mente quando se tem a sintonia facilitada...
— Vocês desconfiam com quem ele possa estar?
Terá ido ao encontro de antigos colegas?...
— N ã o , é mais fácil que ele tenha caído em poder
de entidades de outra natureza...
— Evangélicos?...
— N ã o , eles não o molestariam a tal ponto...
— Sobram, então, os espíritas, Odilon; ele perseguiu
a m u i t o s d o s n o s s o s . A t é t i v e m o s o p o r t u n i d a d e de
socorrer, financeiramente, a muitos pais de família aos
quais ele fez perder o emprego, lembra-se?...
— Esses nossos confrades igualmente não levariam
tão longe o seu ressentimento.
— E os exus? C o m o auxílio da polícia, ele m a n d o u
fechar terreiros e prender muitos pais-de-santo...

142
— Inácio - redargüiu-me Odilon c o m raras
exceções, os pais-de-santo são criaturas evangelizadas e
as entidades que com eles cooperam não se preocupariam
com a mesquinharia do antigo prelado, que, no momento,
tem contas mais imediatas a ajustar...
— C o m quem?...
— S e g u n d o s o u b e m o s - disse Carmelita -, um
grupo de freiras desencarnadas, com as quais foi exces-
sivamente severo, impondo-lhes punições e sobrecarre-
gando-as, ao se v e r e m fora do corpo e não tendo se
d e p a r a d o com o que ele lhes prometia, de há muito
esperavam lhe colocar as mãos...
— Eu escutava m e s m o certas conversas a respeito;
tratava-se, porventura, de algum abuso sexual...
— N ã o , nesse aspecto, ele era um h o m e m respei-
tador. No e n t a n t o , do p o n t o de v i s t a i n t e l e c t u a l e
emocional, ele as manipulava a seu bel-prazer; todas o
temiam e lhe eram subservientes...
— É possível que as referidas irmãs de caridade
tenham se organizado com o propósito de puni-lo? -
questionei, um tanto céptico.
— Frustrando-se com a desencarnação - respondeu-
me Odilon -, por não encontrar, além da morte, o que a
Igreja lhes prometera, muitas delas, em não conseguindo
se e s q u i v a r da m á g o a e do r e s s e n t i m e n t o , f o r m a m
extensos grupos que reivindicam às autoridades eclesiás-
ticas as promessas não cumpridas... As que lograram se
espiritualizar, prevalecendo-se de sua verdadeira vocação

143
religiosa, não se p r e n d e m ao passado e, inclusive, são
gratas às rígidas disciplinas que lhes possibilitaram a
ascensão, mas o m e s m o não se pode afirmar daquelas
outras que se refugiavam nos mosteiros e nos conventos
com o único propósito de sufocarem as paixões que as
atormentavam...
— Coitadas de nossas irmãs! - exclamou Carmelita.
— Periodicamente, eu me lembro, o antístite jubilado
em questão as visitava e as ameaçava c o m o fogo do
Inferno, tutelando-as com severidade e não c o m a ternura
paternal que lhe cabia; várias vezes, pude ouvi-las em
confissão e, s u t i l m e n t e , t e n t a v a desfazer a n e g a t i v a
impressão que A. lhes deixara nas almas; ele as explorava,
colocando-as para esmolar de porta em porta e enca-
minhar os donativos ao palácio episcopal. Eu m e s m o ,
conforme vocês não desconhecem, tinha os m e u s passos
vigiados de perto pelos seus espias...
— É por este motivo, Carmelita, que v o c ê sempre
me visitava à noite, não é? - indaguei do companheiro.
— Sim, porque, diversas vezes eu fora advertido
p o r ele, q u e , q u a n d o a c o n t e c i a u m a d e n ú n c i a , m e
convocava às pressas à sede do arcebispado e me amea-
çava de destituir de minhas funções clericais, que, a bem
da verdade, estive para deixar e s p o n t a n e a m e n t e , em
várias ocasiões, só não o fazendo por aconselhamento
de amigos, inclusive do senhor mesmo e do nosso Chico
Xavier.
— Você lá nos era mais útil à Causa...

144
— C o m p r e e n d o , sim, a minha função de Gamaliel
perante o Sinédrio, quando tomava a defesa dos cristãos,
embora, dentro da Igreja, a minha palavra não tivesse
peso em favor dos amigos espíritas...
— A sua palavra, Carmelita, talvez não, mas a sua
conduta, sim - observou Odilon -; você sempre foi amado
pela comunidade e poucos faziam o trabalho ao qual se
dedicava com tanta abnegação: visitar os moribundos
em seus leitos de m o r t e e orar c o m os agonizantes,
impondo-lhes as mãos sobre a fronte para que partissem
em paz...
— Eu n ã o p o d e r i a negar, em m i m m e s m o , as
evidências dos fatos, posto que, desde rapazola, registrava
a presença das entidades espirituais à minha volta; vocês
sabem que descendo de u m a família espírita e até hoje
não compreendo c o m o quis ser padre...
Aproveitando a deixa, sentenciei:
— Carmelita, foi c a r m a m e s m o . Q u e m foi que
mandou você atear fogo às obras de Allan Kardec, em
Barcelona?!...
D e s c o n v e r s a n d o , Odilon, que a s s u m i r a natural-
mente a liderança do nosso pequeno grupo, convidou-
nos a partir no propósito de resgatar A., que, aqui entre
nós, não estava sofrendo sem justa razão; eu ouvia dizer
que ele punia as freiras recalcitrantes, mandando tranca-
fiá-las em suas celas a pão e água... As coitadas viviam
apreensivas e, q u a n d o ele a n u n c i a v a a s u a visita a
determinado mosteiro ou convento, era um corre-corre

145
sem fim, para deixar tudo em ordem a fim de agradar ao
Sr. Arcebispo; enquanto, em sua residência oficial, se
d a v a ao luxo de lautos b a n q u e t e s , r e g a d o s a v i n h o s
importados, as pobrezinhas comiam um parco arroz com
feijão...
— Você tem noção - perguntei ao Mentor -, de
onde A. pode se encontrar? Estamos situados numa região
fronteiriça às regiões mais densas do M u n d o Espiritual
e tudo aqui é muito vasto; estamos cercados por aldeias
e cavernas, povoados e abismos, que eu n e m saberia por
onde começar a procurá-lo...
— De acordo, Inácio, c o m as informações que me
c h e g a r a m , o e x - A r c e b i s p o foi v i s t o c a m i n h a n d o na
direção do Vale das Religiosas e, por esse motivo, creio
que ele tenha caído em poder delas. Necessitamos nos
apressar, antes que elas o torturem e lhe arranquem os
olhos...
— A r r a n c a r os o l h o s ? ! . . . - q u e s t i o n o u M a n o e l
Roberto ao m e u lado.
— Sim, elas poderão induzi-lo à cegueira e, neste
caso, nada poderemos fazer.
— Ele ficará cego?...
— C o m os órgãos visuais irreversivelmente lesados,
comprometendo o seu futuro estágio no corpo de carne...
— Isso é possível? - tornou M a n o e l a perguntar.

146
20

— É claro que sim - respondeu Odilon -; por mais


absurdo nos possa parecer, é claro que sim!... O corpo
espiritual é suscetível de ser lesionado tanto quanto o
corpo somático. Deste Outro Lado da Vida, a Medicina
não se restringe a cuidar de mentes enfermas; não nos
e s q u e ç a m o s de q u e o p e r i s p í r i t o n ã o é t o t a l m e n t e
destituído de órgãos internos... Se a vidência praticada
contra o corpo físico pode repercutir no corpo espiritual,
a agressão sofrida por este pode refletir-se no primeiro.
Muitos irmãos encarnados, durante o sono, quando
naturalmente se desprendem do seu veículo grosseiro de
manifestação, podem, nas Dimensões Espirituais, sofrer
determinadas lesões perispirituais que lhes comprometem
seriamente a saúde, inclusive podendo levá-los à
desencarnação em conseqüência.

147
— Posso escrever isso, Odilon? - indaguei.
— Pode.
— É uma provocação... A turma vai chiar!
— Q u e chie, I n á c i o , m a s p e n s e - r e s p o n d e u o
Instrutor com segurança.
— Quer dizer - a t a l h o u M a n o e l - q u e morrer
dormindo...
— ...nem sempre é u m a boa morte, m e u amigo!
M u i t o s dos q u e , p o r e x e m p l o , s o f r e m u m a p a r a d a
cardíaca durante o sono, não foram simplesmente vítimas
de um problema arterial... Em determinadas
circunstâncias, de acordo c o m a Vontade Divina, que se
nos manifesta através da Lei do Carma, se o h o m e m
vaguear a descoberto nos caminhos de além-túmulo e se
deparar com adversários que lhe são ferrenhos...
— Poderão matá-lo?...
— Indiretamente, sim; poderão submetê-lo a
espancamento e desencadear um problema de natureza
irreversível...
— Raciocinando sob o m e s m o prisma - insistiu o
companheiro - , poderão contaminá-lo?
— Poderão... As emoções exacerbadas fazem cair
a resistência do organismo, facilitando a proliferação dos
agentes patogênicos.
— Apenas a proliferação?...
— A proliferação e o contágio.
— E n t ã o , n ã o c o n v é m que n o s a u s e n t e m o s do
corpo, enquanto dormimos - comentou Carmelita, como
se ainda se sentisse um h o m e m inteiro.

148
Odilon sorriu e esclareceu:
— A longas distâncias dele, não! Estando por perto,
na iminência de q u a l q u e r p e r i g o , o r e t o m a m o s c o m
facilidade e nos protegemos. O sistema imunológico do
c o r p o , neste a s p e c t o , nos é mais eficiente que o do
perispírito. Se assim não fosse, os nossos inimigos invi-
síveis nos fariam desencarnar com extrema facilidade...
— A minha cabeça está rodopiando - disse Manoel,
amparando-se em mim.
— A sua c a b e ç a o c a r o d o p i a p o r p o u c a coisa:
rodopiava na Terra, continua rodopiando no A l é m e só
D e u s sabe por quanto tempo há de rodopiar ainda!... -
caçoei sorrindo.
— Doutor, o senhor não vai escrever isto, vai?
— É lógico que vou...
— O pessoal vai chiar...
— M a n o e l , eu não sou Jesus Cristo, m a s faço
minhas as palavras Dele, anotadas por Lucas: " E u vim
trazer fogo à Terra, e o que quero eu senão que ele se
acenda?"
— Inácio, apressemo-nos; o tempo urge - chamou-
me Odilon, acenando para que o acompanhássemos.
Deixando Manoel Roberto e outros auxiliares
t o m a n d o conta do H o s p i t a l , eu, C a r m e l i t a e O d i l o n
começamos a caminhar na direção do Vale das Religiosas,
assim c h a m a d o por se tratar de u m a c o m u n i d a d e
estritamente feminina, dirigida por u m a entidade que se
auto-intitula "Papisa".

149
— Vamos c a m i n h a n d o - sugeriu o M e n t o r - não
nos convém que adentremos o Vale de outra maneira,
pois, assim, as nossas irmãs saberão que não t e m o s nada
a esconder e que estamos indo em missão de paz.
N ã o me é possível dar-lhes u m a idéia de distância,
no entanto, apenas a título de orientação espacial, digo-
lhes q u e s e g u i m o s a p é , d e s l i z a n d o , p o r u n s trinta
quilômetros, até que propriamente c o m e ç a m o s a pisar
em terreno controlado pelas religiosas católicas de várias
nacionalidades mas, em sua maioria, brasileiras, italianas
e portuguesas.
A fim de não c o m p r o m e t e r o conteúdo doutrinário
desta obra, omitirei vários detalhes que, c o m certeza,
muitos haveriam de interpretar por excesso de imagi-
n a ç ã o minha, do m é d i u m ou de nós dois, ao m e s m o
tempo.
Assim que ultrapassamos o perímetro espiritual de
acesso ao Vale, fomos abordados por cinco a m a z o n a s ,
em trajes exíguos, montando fogosos corcéis; apontando-
nos lanças afiladas, u m a delas nos interpelou:
— O que fazem por aqui? Estão perdidos? N ã o
sabem que estão pisando em território proibido?
Adiantando-se, Odilon respondeu:
— Somos do Hospital dos Médiuns e estamos à
procura de um dos nossos pacientes.
— E o que os leva a crer que ele tenha vindo para
cá?
— Amigos que o viram caminhando c o m dificul-
dade...

150
— Trata-se - aparteei - de um h o m e m já velho e
cansado...
— Velhos e cansados, vocês três igualmente nos
parecem - ironizou a amazona.
— M a s , além de velho e cansado, ele está doente...
Fugiu do hospital e...
— Velho, cansado e doente e conseguiu fugir?!
Daqui, que talvez vocês considerem região das trevas,
ninguém foge e quem entra não sai - disse, olhando-nos
de forma lasciva e maledicente.
— Gostaríamos, minha irmã - redarguiu C a r m e -
lita -, de nos entender com a sua líder...
— A "Papisa"?!... Ela é muito ocupada e não perde
tempo com homens. "Minha irmã"?! Q u e m é você, para
me tratar assim?...
— Sou seu irmão, filho de Deus como você, nada
mais, nada menos...
— Viemos francamente e a nossa intenção não é a
de desafiá-las - argumentei -; em nossa instituição, já
abrimos as portas para várias de vocês...
— Desertoras!... Espíritos frágeis e sem determi-
nação; arrepender-se-ão de confiarem n o v a m e n t e nos
homens... Vocês sempre nos enganaram e nos privaram
de nossos direitos. Elas são umas tolas!
— Por favor - solicitou Odilon com humildade -,
levem-nos à sua líder; o que ela nos disser acataremos...
— M e s m o porque - ironizou outra vez a amazona
que, enquanto falava, cavalgava ao nosso derredor - não

151
lhes sobra alternativa... Vocês estão arriscando o pescoço!
A "Papisa" detesta padres: quanto mais hierarquizados,
mais ela os odeia, e a sua preferência é por Bispos e
Cardeais...
— Eu fui p a d r e , m i n h a i r m ã - i d e n t i f i c o u - s e
Sebastião Carmelita -, m a s estes dois a m i g o s não o
foram...
— Você "foi" padre? Está com m e d o de dizer que
continua a sê-lo?...
— N ã o , não se trata disso; é que, com a morte,
finalmente, eu pude me libertar... Contudo, devo dizer-
lhe que continuo com o m e u respeito à Igreja, que nós,
os homens, desvirtuamos.
— Pelo menos, você está sendo honesto: sim, foram
vocês, os homens, que a corromperam... Malditos! Vocês
nos prostituíram a fé!... Dominaram-nos por séculos e
séculos!
— Acalme-se, minha irmã - falou Odilon, perce-
bendo que as guerreiras começavam a se exaltar -; o
Carmelita sempre foi um benfeitor de vocês...
— Você é o...
— Sebastião Bernardes Carmelita, seu criado!
— O Padre Carmelita, de Uberaba?!...
— Ele mesmo, minha irmã, para servi-la.
Os olhos da amazona, de repente, encheram-se de
lágrimas e, sem mais u m a palavra, ordenou-nos:
— Sigam-nos!
Depois de termos caminhado, da m e s m a maneira,
ao que suponho, por mais uns quinze quilômetros, em

152
completo silêncio, fomos conduzidos a u m a cidade que
se espalhava do centro do Vale das Religiosas, esten-
dendo-se até às encostas dos montes íngremes que a
cercavam. As construções mais imponentes, em estilo
gótico, inspiravam-se em motivos religiosos, à feição de
p e q u e n o s m o s t e i r o s m e d i e v a i s e igrejas de p a r e d e s
escurecidas e lúgubres; centenas e centenas de casas
abrigavam em seu interior tão-somente mulheres, valendo
ressaltar que, dentre elas, não observamos u m a criança
sequer ou sequer um h o m e m , excetuando-se alguns de
aparência andrógina, que igualmente e n v e r g a v a m os
hábitos característicos de diversas ordens...
Eu, Odilon e C a r m e l i t a é r a m o s os únicos, c o m
traços fisionômicos acentuadamente masculinizados e,
por esse motivo, nos fazíamos alvo da atenção de todas.
As cinco amazonas que nos ladeavam mantinham
a multidão a considerável distância de nós, m a s , aos
nossos ouvidos, registrávamos palavras obscenas, luxu-
riosas, e, diante dos nossos olhos, muitas se desnu-
davam... Ali, o sexo e a religião pareciam coexistir em
estranho conúbio, na depravação de todos os costumes
permitidos pelo lesbianismo.

153
21

Ressalte-se que, enquanto éramos conduzidos à


presença da líder daquela comunidade de freiras que, após
a morte, haviam se rebelado, notávamos que muitas nos
pareciam ali ser mantidas por coerção ou m e s m o porque
não lhes restava outra alternativa; nem todas nos
agrediam com palavras que não ouso reproduzir e se
conservavam retraídas, com os seus semblantes de cera
parcialmente ocultos sob o véu que lhes cobria o rosto...
Depois de termos atravessado extensa praça
ovalada, a l c a n ç a m o s um prédio que, por seus traços
a r q u i t e t ô n i c o s , m e fez l e m b r a r u m m o s t e i r o , c o m
algumas torres negras que se elevavam à semelhança de
mirantes ou minaretes.
As amazonas se fizeram anunciar e, assim que as
pesadas portas se abriram, fomos encaminhados, sob

154
guarda reforçada, para o interior da construção parca-
mente iluminada. Tínhamos a impressão que, de fato,
voltáramos no tempo, sendo que, pelo poder da mente, é
que aquelas irmãs haviam plasmado as condições de vida
no Vale das Religiosas, ou das Sacerdotisas, conforme a
grande maioria delas gostava de se referir ao próprio
habitat, que distava vários quilômetros do Hospital.
Das paredes esverdeadas e escurecidas, pendiam
c r u c i f i x o s e figuras de m u l h e r e s q u e h a v i a m s i d o
m a r t i r i z a d a s ; c u r i o s a m e n t e , nos crucifixos n u s , n ã o
observávamos sobreposta a imagem do Cristo, c o m o se,
inclusive Ele, aquelas nossas irmãs houvessem banido
do objeto de suas crenças, demonstrando indisfarçável
ressentimento.
C a m i n h a n d o por estreito corredor, c h e g a m o s a
amplo salão, onde, sentada em u m a espécie de trono e
cercada por j o v e n s diaconisas em trajes diáfanos, a líder,
que nos esperava, ordenou que não nos aproximássemos
tanto; pude ainda notar, a dois ou três passos atrás das
"sacerdotisas" que lhe constituíam a guarda particular,
eunucos, que, armados de espada e lança, se colocavam
de prontidão para qualquer emergência...
Em rápidas palavras, a amazona que nos conduzira
fez-lhe profunda reverência e explicou-se:
— "Papisa", encontramo-los à entrada do Vale e,
interrogados, disseram que precisavam vê-la. Estão à
procura de um paciente do hospital que, segundo dizem,
teria fugido e...

155
— D e i x e - o s falar - o r d e n o u a líder, r e v e l a n d o
impaciência na voz. — Q u e m são vocês? Identifiquem-
se. Vocês estão em território proibido.
Tomando a frente, Carmelita se apresentou:
— C h a m o - m e Sebastião B e r n a r d e s Carmelita e
estes são dois amigos, Odilon Fernandes e Inácio Ferreira.
Estamos atrás de um doente...
— Você é padre? - interrompeu a religiosa, indo
direto à identificação.
— Fui, minha irmã; atuei na cidade de Uberaba e
oficiava no Asilo Santo Antônio, além de prestar a minha
humilde colaboração à Santa Casa de Misericórdia e a
várias outras paróquias...
— Foi e não é mais? Ou está com medo do que
possamos fazer a você? Aqui, temos verdadeira aversão
por qualquer homem de saia; os únicos que admitimos
são os eunucos, cuja maioria foi forçada a tal situação
pelos abusos que sofreram e a que se habituaram, ainda
quando adolescentes, nos seminários...
— M i n h a irmã, é possível que você tenha informa-
ções a meu respeito...
L e v a n t a n d o a m ã o direita, " P a p i s a " c o n c e d e u
permissão para que u m a das vestais se aproximasse e
lhe sussurrasse algumas palavras aos ouvidos.
— P e l o m e n o s , v o c ê n ã o é m e n t i r o s o - disse,
c r i s p a n d o as m ã o s e se c o n t e n d o . — O que é q u e
desejam? Recomendo-lhes que sejam breves, antes que
eu mude de idéia e os mande trancar nos calabouços.

156
— O nosso irmão Inácio poderá explicar melhor -
r e s p o n d e u Carmelita, fazendo sinal para que eu me
adiantasse.
— Estamos, minha irmã, à procura de um arcebispo
jubilado muito conhecido nas imediações... Trata-se de
A. G. A.!...
— Aqui nós o conhecemos de velho, e muitas -
acreditem - dariam tudo para arrancar-lhe os olhos...
A q u e l e a p r o v e i t a d o r ! O q u e o faz a c r e d i t a r q u e o
devolveremos a vocês? N ã o acham que deve pagar pelo
que fez? Vocês não sabem como ele manipulava o poder...
— Eu fui um de seus alvos preferenciais - repliquei.
— Na condição de espírita e m a ç o n , padeci diversas
perseguições engendradas por ele... Até o nosso jornal
ele conseguiu fechar!
— Espírita e m a ç o n ? E conseguiu sobreviver?!
— Só não consegui que ele deixasse a carcaça antes
de mim; também, ao que sei, nunca trabalhou e vivia às
expensas da Igreja...
— E por que tal interesse por ele, arriscando-se a
vir até aqui? Se vocês o conhecem c o m o nós, sabem que
não temos motivos para devolvê-lo... Em seus experi-
mentos de hipnotizador, ele utilizava muitas de nós como
cobaias; v o c ê s acreditariam se lhes d i s s é s s e m o s que
fomos nós que o atraímos até aqui? N ã o , não o deixa-
ríamos impune! (Isento-me de reproduzir, neste diálogo,
a seqüência de termos injuriosos e chulos com os quais
''Papisa", a cada frase, o rotulava.)

157
— A Caridade, no entanto...
— A Caridade?! Ora, por favor, não desça o nível
da nossa conversa!... A que caridade você se refere? A d a
compaixão?... Ele era um teólogo prepotente e mentiroso;
enganou-nos o tempo todo; a sua influência sobre nós,
que envergávamos o hábito, bem intencionadas, se fazia
sentir para além do âmbito da própria Arquidiocese; ele
não tinha piedade para conosco... Dizem até que, quando
celebrava nos conventos e nos mosteiros, não escondia
a sua arrogância e as irmãs se enfileiravam para beijar-
lhe o anel... Locupletava-se, encaminhando ao Vaticano
ricas doações, enquanto muitas de nós passávamos fome
e adoecíamos sem remédio... Q u e pai espiritual era esse?
— Ele ignorava a Verdade...
— C o m o são frágeis, meu amigo, os seus
argumentos para defendê-lo! Você o faz sem nenhuma
convicção... C o m o ignora a Verdade, se ele era um dos
m a i o r e s c o l e c i o n a d o r e s de livros e falava vários
idiomas?...
— No entanto - redargui - se pode ser culto, sem
que quase nada se saiba... Acredite, minha irmã...
— Minha irmã, não; chame-me "Papisa"!...
— Acredite, "Papisa", que ele não passava de u m a
criança frustrada...
— N ã o me faça rir... C o m o é m e s m o que você se
chama?
— Inácio!
— Pois não me faça rir, Inácio... Criança frustrada!...

158
— Sim, ele nunca cresceu e n u n c a saiu do seu
mundo minúsculo... Habituou-se a ser bajulado e, mais
por r e c e i o do q u e por r e s p e i t o , t o d a s as p o r t a s da
sociedade se lhe abriam... Ele desfrutava de um falso
prestígio. Quase ninguém ficou sabendo de sua morte e
os sinos das igrejas mal dobraram finados por ele... Na
memória do p o v o e até de seus supostos amigos, já foi
praticamente esquecido!
— E, no entanto, vocês aqui a se lembrarem dele?...
N ã o teriam algo que mais valesse a pena para se ocu-
parem? Deixem-no conosco... Mais tarde, o soltaremos.
Ele já quase não enxergava m e s m o , não é?
— N ã o façam isso!...
— Por que não? Dêem-nos um motivo justo. A Lei
Divina carece de instrumentos que a façam cumprir! Ele
e os seus seguidores viviam nos prometendo o Céu...
Sabem o que e n c o n t r a m o s deste O u t r o L a d o ? N a d a ,
absolutamente nada; apenas o Vazio incomensurável!...
Reunimo-nos e nos apossamos deste vale, onde temos
as nossas próprias leis. N ã o nos recriminem...
E, gargalhando, "Papisa" acrescentava:
— Jesus Cristo, o nosso "noivo", nunca apareceu
por aqui; aliás, ninguém nos fornece notícias Dele!...
Fomos prometidas a um noivo que morreu na cruz e...
desapareceu - deixando-nos sozinhas no altar! Estamos
cansadas de sofrer e de ser enganadas. Deixem-nos em
paz! Somos condenadas a viver e queremos simplesmente
recuperar o tempo perdido. D e u s ? ! Por certo, um Criador

159
existe, mas deixemo-Lo para lá; Deus não se importa em
nada conosco... O que estamos querendo em demasia?
Não queremos coisa alguma com a serpente, apenas com
a maçã... Há algo de errado em se querer viver e ser feliz?
Nós não precisamos de vocês, os homens, que não passam
de uns exploradores: os melhores são péssimos!
— M i n h a irmã, Jesus Cristo...
— "Papisa" - corrigiu-me ela pela segunda vez.
— " P a p i s a " , Jesus Cristo - continuei - foi um
defensor das mulheres... Quem foi que impediu que a
mulher adúltera fosse apedrejada e morta? Q u e m se
compadeceu de Maria de Magdala e a libertou de terrível
obsessão? Q u e m se comoveu ante as lágrimas de Marta
e Maria e ressuscitou Lázaro? Quem, m e s m o agonizando
na cruz, confiou a sua M ã e à proteção de um j o v e m
discípulo?...
— São escritos dos homens para enaltecer os feitos
dos homens - respondeu-me. — Os quatro evangelistas
eram homens e os apóstolos também...
— M a s - prossegui a r g u m e n t a n d o -, foram
piedosas mulheres, dentre elas Joana de Cusa, Rute e
Susana, que cooperaram com a implantação do Evan-
gelho, dando-lhes a necessária cobertura financeira...
— N ã o polemizemos a respeito, pois o m e u tempo
é curto, eu já lhes disse.
E, erguendo o indicador para Odilon, perguntou,
intrigada:
— Q u e m é este que se manteve calado até agora?

160
22

— Odilon Fernandes, senhora! - apresentou-se o


Mentor, dando dois passos adiante e perfilando-se
conosco.
— E você? N ã o tem nada a dizer?
— A p e n a s que, endossando a solicitação dos meus
companheiros, apelaria, minha irmã, para os seus bons
sentimentos, de m o d o a nos permitir que levássemos A.
de volta ao Hospital.
N ã o sei entender, ao certo, a razão de "Papisa" não
ter repreendido Odilon, quando ele, respectivamente, a
tratara de "senhora" e a chamara de "irmã"...
— Conforme não ignora, aquela não foi a primeira
vez que experencíamos na Terra, revestidos pelo invó-
lucro material que deixamos e que, mais cedo ou mais
tarde, retomaremos...

161
— Os s e u s a r g u m e n t o s d i f e r e m d o s de s e u s
amigos...
— D i g a m o s , senhora, que eles t ã o - s o m e n t e os
c o m p l e t a m . A m o r t e n ã o e x i s t e e, a este r e s p e i t o ,
n e n h u m a c o n t e s t a ç ã o se nos faz p o s s í v e l ; o t e m p o
continuará passando e o a m a n h ã não há quem possa
prever... N i n g u é m se opõe, indebitamente, às Leis que
regem os princípios da Vida. Todos seremos compelidos
a inevitável mudança; a nossa vontade própria não se
eternizará...
As primeiras considerações de Odilon, verifiquei
que "Papisa" se desconcertava, entretanto mantinha-se
interessada em continuar ouvindo.
— A p e l a m o s para os sentimentos de quem, um dia,
igualmente, foi m ã e sobre a Terra! A guarda do antigo
prelado em questão foi-nos confiada por sua genitora,
que se sente responsável pela vocação religiosa do filho,
que, em certos aspectos, extrapolou em suas atribuições
e, qual nos acontece, quando mergulhamos no temporário
e s q u e c i m e n t o , c o m e t e u muitos e q u í v o c o s . D e forma
alguma, p o d e m o s julgá-lo; qualquer de nós, caso
ocupássemos a posição de prestígio social e político que
ele ocupou, no cenário do convencionalismo humano,
teria feito o m e s m o ou pior... N ã o p o d e m o s ignorar
semelhante realidade, e não concordar c o m ela seria
superestimar-nos. N ã o a b d i q u e m o s , senhora, do bom
senso que ainda nos resta e admitamos que ainda não
estamos preparados para exercer o poder que, sem espírito

162
de fraternidade, acaba por nos corromper. Quantas vezes,
a o longo d o s s é c u l o s , t e r e m o s c e d i d o m o r a l m e n t e ,
permutando os eternos valores pela ilusão que passa?
Tudo se renova; até a paisagem física que nos rodeia
desaparecerá, para que os elementos que a c o m p õ e m se
reorganizem... Deixamos o corpo de carne e sabemos
que, um dia, haveremos de deixar o corpo espiritual em
que na atualidade nos apresentamos. N ã o perdoar e não
esquecer a ofensas significa tão-somente prolongar o
sofrimento. É inútil resistir!... A Verdade é u m a luz que,
gradativamente, fará com que toda a treva se desintegre.
O nosso irmão A. já tem sido bastante infeliz por si
m e s m o ! Se ainda se conserva arrogante, é porque tem
hesitado em aceitar a culpa... C o n v e n h a m o s que não é
fácil reconsiderar o caminho percorrido e, sobretudo,
predispor-nos a reiniciar a j o r n a d a . Todavia a M i s e -
ricórdia Divina não nos relega às conseqüências funestas
da própria desventura, pois, se assim fosse, a Eternidade
seria p e q u e n a d e m a i s p a r a que c o n s e g u í s s e m o s n o s
reerguer... Em n o m e de nosso Pai, mãos abnegadas se
nos estendem em todos os caminhos e nos auxiliam a
seguir com o fardo que, em outras circunstâncias, nos
esmagaria. N ã o estamos aqui para questioná-las;
certamente, a dor que as transtornou no m u n d o continua
a transtorná-las além da morte; nós as respeitamos e
rogamos ao Senhor para que, por si m e s m a s , decidam
imprimir um novo rumo aos seus passos!...
Por instantes, tive a impressão de que as palavras
de Odilon solapavam aquele império pela base; o poder

163
de convencimento do Instrutor era extraordinário e nós
p r ó p r i o s , eu e o C a r m e l i t a , n o s e n c o n t r á v a m o s
magnetizados pela lógica de seus argumentos. Odilon
falava com tanta beleza e convicção, que, esquecidos da
d e l i c a d e z a d a s i t u a ç ã o , d e s e j á v a m o s o u v i - l o mais...
"Papisa", enredada pela força de suas palavras, mantinha-
se estática; é possível que, aos seus ouvidos, aquelas
verdades tão antigas nunca houvessem ecoado com tanta
nitidez...
Valendo-se do ensejo, Odilon prosseguia:
— Senhora, pedimos-lhe vénia para que A. venha
conosco e se prepare para que, mais tarde, possa expiar
os erros cometidos. N ã o t o m e m o s a justiça em nossas
m ã o s ! N a d a poderemos fazer em benefício dele, caso
delibere não atender a nossa petição e, então, nos veremos
responsabilizados pela sua genitora... C o n f o r m e não
ignora, temos alhures uma comunidade semelhante a esta,
com centenas e centenas de irmãos e irmãs residindo
c o n o s c o e m s i t u a ç ã o d e e x t r e m a p e n ú r i a ; t o d o s são
c a n d i d a t o s à b ê n ç ã o do r e c o m e ç o e, a n t e s q u e se
recoloquem de pé em definitivo, certamente ainda cairão
muitas vezes... Os t e m p o s são outros e, e m b o r a não
pareça, u m a onda de renovação percorre a Terra e, aos
poucos, os h o m e n s despertam para a solidariedade. É
verdade que se contam aos milhares os que se opõem à
vitória do Evangelho, mas, a cada dia, o Senhor faz novos
adeptos para a sua obra de redenção da H u m a n i d a d e ;
ainda existem fome e miséria em toda parte, corrupção e

164
injustiça; a guerra é sempre u m a ameaça pendente sobre
a c a b e ç a d o s h o m e n s , q u e os i n t e r e s s e s i m e d i a t o s
escravizam, mas, em silêncio, o B e m continua prospe-
rando, e milhares de espíritos, fiéis ao Senhor, trabalham
diuturnamente nos alicerces da paz... Onde os esplendores
da Grécia e o poderio de R o m a ? Do muro de Berlim, o
chamado " m u r o da vergonha", nada mais restou, a não
ser u m a m o n t a n h a de escombros. A Igreja Católica, a
grande custo, tenta sobreviver e não evitará as conse-
q ü ê n c i a s de s u a i n d i f e r e n ç a e de s e u s d e s m a n d o s
seculares...
Pausando por m o m e n t o s , o Mentor, sem alterar o
tom de voz e sem se permitir inflamar pela eloqüência,
insistiu:
— Permita-nos, minha irmã, que A. regresse
conosco... N ã o se esqueça de que o tempo urge para todos
nós. Perdoe-nos se, incontável número de vezes, fomos
levianos e irresponsáveis e prevalecemo-nos das prerro-
gativas de nossa condição sexual, transitória, para oprimi-
las e constrangê-las! A Lei nos induzirá ao pagamento
do último ceitil da imensa dívida que contraímos para
com as mulheres!... Muitos de nós outros, os machistas
opressores de ontem, já nos encontramos recorporificados
no Planeta e, agora, na condição feminina, recebemos
volta o que s e m e a m o s , lutando pela independência
do até então considerado sexo frágil; temos sido vítimas
do p r e c o n c e i t o social q u e e s t a b e l e c e m o s e que n o s
compete derruir... Devido a tais conflitos, os estudiosos

165
se estarrecem ante o crescimento da homossexualidade
no m u n d o , p r o c u r a n d o , em v ã o , e x p l i c á - l a à luz da
genética; o problema é que, de maneira geral, o h o m e m
sofre, na a l m a e no c o r p o , o q u e fez sofrer o s e u
s e m e l h a n t e e, e n q u a n t o a c r i a t u r a h u m a n a n ã o se
harmonizar com as Leis da Vida, a tendência do h o m o s -
sexualismo é a de se alastrar.
Ao fim de certo tempo, ante a expectativa de sua
guarda pessoal, " P a p i s a " ergueu-se do trono e Odilon
compreendeu que não convinha se estender.
— Vocês o querem m e s m o de volta? - perguntou-
nos com desdém. — A c h a m que fazemos tanta questão
assim daquele " l i x o " h u m a n o ? Pois bem, vocês o terão;
não havia necessidade que gastassem tanta saliva assim...
E, enquanto ordenava à amazona que nos conduzira
à sua presença que no-lo trouxesse, "Papisa", impaciente,
andando de um lado para o outro, à frente de sua cadeira
gestatória, tentou r e b a t e r os a r g u m e n t o s de O d i l o n ,
dizendo:
— O senhor coloca as suas idéias com muita clareza
e precisão, todavia palavras são palavras; à Filosofia é
permitido especular acerca de tudo... Talvez o senhor
tenha razão, talvez não. De tantas promessas não-
cumpridas, limito-me apenas aos fatos. Respeito o seu
ponto de vista, p o r é m continuamos mais generosas do
que vocês, que, caso se desse o inverso, talvez sequer
nos p e r m i t i s s e m a d e n t r a r a sua instituição para, por
exemplo, trazer de volta ao Vale aquelas que, em nos
ludibriando a vigilância, igualmente fugiram...

166
— A senhora poderá visitar-nos quando quiser -
disse por m i n h a vez. — N e s t e sentido, não faremos
n e n h u m a restrição...
— Quem sabe, futuramente... Dar-me-iam
garantias?
— Garantias?! - perguntei, sem entender.
— De que não me reteriam por lá...
— Jamais faríamos algo semelhante - rebati.
— Lamento, mas tenho as minhas dúvidas, pois
muitas de nós éramos mantidas à força nos mosteiros e
conventos em que vocês nos isolaram do resto do
mundo...
Entrementes, enquanto falávamos, a amazona que
fora buscar A. o introduziu no recinto do amplo salão
em que éramos recebidos em audiência pela Grã-
Sacerdotisa. Ele estava irreconhecível: de mãos atadas
para trás, vestes sujas e rasgadas e completamente cego
- elas o h a v i a m s u b m e t i d o a s e s s õ e s de tortura e...
arrancaram-lhe os olhos!
— Por piedade! Por piedade! N ã o ! - exclamava o
antes orgulhoso sacerdote. — Devolvam os meus óculos;
sem eles, eu não consigo enxergar... Sou míope desde
jovem. Por favor, devolvam os m e u s óculos... N ã o façam
isto comigo. Eu mandarei puni-las; trancá-las-ei em suas
celas e as deixarei a pão e água... Soltem-me! Soltem-
me!

167
23

— Vocês chegaram tarde d e m a i s ! - explicou-se


" P a p i s a " . — N a d a p u d e fazer... N ã o t e n h o controle
absoluto sobre aquelas de nós que são mais rebeldes.
Sustentar-se no p o d e r implica em se fazerem deter-
minadas concessões... De qualquer forma, ele teve o que
merecia.
— Q u e m está falando assim a m e u respeito? -
vociferou o prelado, mal se contendo em sua ira. —
D e s r e s p e i t a r a m - m e ! Ah, m e u D e u s ! Tocaram-me nas
partes mais íntimas e pronunciaram aos meus ouvidos
palavras obscenas... Desrespeitaram-me! Levarei o fato
ao conhecimento do Santo Papa e pedirei autorização a
Sua Santidade para fechar este antro de perdição... O n d e
estão os m e u s óculos? Libertem-me!... N u n c a fui tão
ultrajado assim, nem m e s m o pelos espíritas, os adeptos

168
daquela seita satânica, c o n d e n a d a por Deus, no
Deuteronômio, capítulo 18, versículos 9 a 14!
A situação de A. inspirava-me profunda piedade.
Se o seu desequilíbrio antes era parcial, agora havia se
c o m p l e t a d o : c e g o , c o m as ó r b i t a s v a z i a s e e n s a n -
güentadas, ele se imaginava sem óculos e balbuciava
palavras desconexas...
— R a p t a r a m - m e ! Vocês hão de me pagar...
Hipnotizá-las-ei e vocês verão. O D e m ô n i o as possuiu
de vez... É ao que leva o desejo da carne! Vocês pensam
apenas em sexo... Eu sabia! Loucas e depravadas - eis o
que são. Soltem-me imediatamente! Ah, meu Deus! Estou
e n l o u q u e c e n d o . . . L i m p e m - m e o corpo de s u a saliva
asquerosa! Vocês merecem as fogueiras, que o D e m ô n i o
está de volta e invadiu a Igreja!...
— Acalme-se, A. - disse-lhe, aproximando-me e
oferecendo-lhe o m e u braço para que não se precipitasse
da escadaria. — Acalme-se, que vamos tirá-lo daqui...
— Q u e m é você, que d e m o r o u tanto? N ã o está
v e n d o a m i n h a s i t u a ç ã o . . . Eu s o u um v e l h o e fui
desrespeitado! Elas me tocaram, m e u D e u s , elas me
tocaram!... Estou me sentindo impuro... C o m o haverei
de me apresentar assim diante do Senhor? A h , essas
palavras debochadas aos m e u s ouvidos, ecoando sem
cessar!... Leve-me daqui, mas, primeiro, devolva os meus
óculos... Olhe, eu tenho dinheiro guardado nos cofres do
palácio a r q u i e p i s c o p a l ; l i b e r t e - m e deste p e s a d e l o e
recompensá-lo-ei regiamente; você será um h o m e m rico

169
na Terra e terá lugar garantido no Céu... Eu sou u m a
a u t o r i d a d e e c l e s i á s t i c a e estive p r e s t e s a me tornar
cardeal...
— Tranqüilize-se, m e u irmão! Você virá conosco;
n ã o se p r e o c u p e . . . N o s s a s i r m ã s c o n c e d e r a m - l h e a
liberdade.
— I r m ã s ? ! Mulheres desalmadas e imorais, isto
sim! Conosco?! Você disse conosco? Em quantos vocês
estão? Por que não me desamarram as mãos?... Quem é
a Madre aqui? Ela será responsabilizada por tudo... Eu
fugia de um bando de seqüestradores e caí nas garras de
outros, e não sei qual é o pior! H a v i a m me trancado num
sanatório... Aquela voz, aquela voz tão parecida com a
sua... Q u e m é você? Diga-me, antes que eu enlouqueça
de vez. O que foi que eu fiz? Se morri, por que não estou
no Céu? Quero estar com a minha mãe... Onde está aquela
mulher que dizia ser ela, onde está?
A um sinal de Odilon, Carmelita se aproximou e
amparou-o j u n t o comigo, passando a dialogar com ele:
— Tenha calma, D o m A.! Sou eu, o Padre Sebastião
Carmelita...
—- Sebastião Carmelita, aquele que era amigo dos
espíritas?... Impossível! Você t a m b é m está mentindo para
mim... Eleja morreu!...
— M a s , a morte não existe, m e u irmão; não foi o
que pregamos, a vida inteira?... Tenhamos fé em Jesus
Cristo!
— E em Nossa Senhora!...

170
— Sim, e em Nossa M ã e Santíssima!
— A sua voz é parecida com a do Padre Sebastião,
mas não pode ser... Eu só não o desordenei, porque ele
contava com a proteção e a simpatia de um grupo de
senhoras da Ordem Terceira, mas as denúncias contra
ele eram numerosas. Imagine, dizem até que transmitia
passes nos doentes!... Eu não entendo, não posso
entender. Seja, no entanto, você quem for, tire-me daqui.
Quantos são vocês? Dois, três?...
— Estamos em três...
— E o outro, quem é?
— Sou eu, m e u irmão - identificou-se o Instrutor,
enxugando-lhe a testa suarenta e respingada de sangue -,
Odilon Fernandes.
— Odilon Fernandes?! N ã o , não é possível, eu devo
estar m e s m o louco... Você e um tal de Dr. Inácio Ferreira
eram dois dos m e u s maiores desafetos no c a m p o da
Religião... Eu não acredito! Isto é um absurdo! N ã o minta
para mim; respeite-me, está me ouvindo?...
— Sim, estamos ouvindo, pode falar...
— D ê e m - m e os meus óculos... Ai! Que fizeram com
os meus olhos? Eu não estou enxergando nada... Teriam
sido eles arrancados de minhas órbitas? Que vazio é este
que eu sinto em minhas faces?... Q u e sensação estranha,
meu Deus!...
Com voz pausada, porém firme, Carmelita retomou
o diálogo:
— Vamos, D o m A.; nós o ampararemos!... Primeiro,
s a i a m o s daqui...

171
— D e s a m a r r e m - m e , por favor!
— N ã o temos autorização ainda... A p e n a s quando
sairmos do Vale é que poderemos fazê-lo.
— V a l e ? . . . T e r e i , a c a s o , e m m i n h a fuga, m e
precipitado em algum abismo? Agora, estou c o m e ç a n d o
a entender: eu caí e bati com a cabeça, não é? Os meus
óculos se quebraram e os m e u s olhos se feriram...
— M a i s ou menos, m e u irmão. Vamos andando;
deixe-se conduzir por nós, sem resistência... A sua
mãezinha o espera.
— Eu não consigo entender isso; a minha pobre
m ã e também já morreu!... M e u Deus, devo estar sendo
vítima de um pesadelo! Quero acordar. Por caridade, me
acordem... D i g a m - m e que tudo é mentira, digam-me!
— H u l d a - ordenou a Grã-Sacerdotisa à a m a z o n a
que nos tutelara -, c o n d u z a - o s para fora dos nossos
domínios, antes que eu retenha os quatro aqui conosco!
A n d e rápido, que não quero mais vê-los!...
Sem demora, a amazona, mobilizando as demais
sob o seu comando, fez-nos sair do templo, enquanto
"Papisa" se retirava para os aposentos internos da lúgubre
edificação.
A., amparado por m i m e Carmelita, caminhava às
c e g a s e, a g o r a introspectivo, de q u a n d o em q u a n d o
pronunciava algumas palavras ininteligíveis.
Afastando a multidão, para que nos desse passagem,
Hulda, desde que identificara Carmelita c o m o sendo um
de nós, dava-me a impressão de nos proteger e quase

172
não conseguia disfarçar o seu interesse, temendo que algo
de grave pudesse nos suceder.
A s s i m q u e n o s d i s t a n c i a m o s da p r a ç a e ruelas
principais, seguindo pela m e s m a trilha que nos conduzira
a o Vale, i n s t a d o m e n t a l m e n t e p e l o n o s s o Instrutor,
Carmelita c o m e ç o u a conversar com a amazona que o
tratava com especial deferência.
— Será que já nos c o n h e c e m o s , m i n h a irmã? -
perguntou-lhe o companheiro em tom discreto. — Tenho
a impressão de que já nos vimos, mas eu sempre lidei
com tanta gente, que, sinceramente, não me recordo;
contudo o seu semblante não me é de todo estranho...
Ordenando que as três outras integrantes da guarda
se posicionassem um pouco mais atrás, a fim de não ouvi-
los no diálogo que se desenrolou, Hulda respondeu:
— O senhor não se lembra, Padre?!...
— Estou me esforçando, porém a sua fisionomia
assim rejuvenescida...
— Eu t a m b é m , se o senhor não tivesse se iden-
tificado, não o teria reconhecido...
— Qual era o seu n o m e de religiosa?
— Maria da Consolação!
— N ã o me diga que...
— Sou eu m e s m a , Padre, a irmã cancerosa que o
senhor visitava quase todos os dias em sua cela; graças à
sua assistência e a de algumas freiras piedosas do m o s -
teiro é que eu não deixei o corpo em completa indigên-
cia... O Arcebispo não me foi ver u m a única vez sequer!

173
Se não tivesse sido pelo senhor, até sem remédio eu teria
ficado; nas últimas semanas, as dores no estômago e nas
costas eram terríveis...
— M a s como, minha irmã, você veio parar aqui?
Oramos tantas vezes juntos e...
— Sei que o senhor me falava freqüentemente em
perdão, no entanto, ao me ver fora do corpo, consenti
que a revolta, pelo descaso de que fora vítima, por parte
dos meus superiores, se me apossasse do coração; por
eles, eu teria morrido à mingua de pão e de fé... São uns
hipócritas! Eu m e s m a , de tantas intrigas urdidas contra
o senhor, cheguei a acreditar que fosse verdade tudo que
diziam a seu respeito, até que caí doente e pude ver que
era um h o m e m santo...
— N ã o blasfeme, Maria da Consolação!
— Hulda, P a d r e , Hulda... M a r i a da C o n s o l a ç ã o
morreu já faz um b o m tempo; foi o senhor que me deu a
e x t r e m a - u n ç ã o e, s e g u n d o creio, o ú n i c o h o m e m a
acompanhar o sepultamento do que o câncer permitiu
que do meu corpo restasse...
— Q u e seja, então, conforme prefere - chama-la-
ei Hulda. Por que, porém, não abandona a vida em que
atualmente se encontra?
— Sou uma das favoritas e "Papisa" me perseguiria;
devo-lhe muitos favores...
— N ó s lhe daríamos asilo. Em nossa companhia,
você não tem o que temer e, depois, não se esqueça de
que é livre...

174
24

— O que eu iria fazer? - indagou Hulda, inclinada


a aceitar o inesperado convite de Carmelita. — Eu me
sentiria u m a traidora... "Papisa" arrebatou-me às mãos
d e e s p í r i t o s a p r o v e i t a d o r e s , e m cujo p o d e r c a í r a
inadvertidamente depois da morte; eles me mantinham
p r i s i o n e i r a e s a t i s f a z i a m em m i m os s e u s instintos
bestiais, submetendo-me a constantes sevícias e humi-
lhações... Foi t a m b é m com a ajuda de um deles, pelo
qual eu me apaixonei, que consegui escapar; ele facilitou
as coisas e a nossa líder agiu com presteza. E não me
envergonho de lhe dizer, Padre, que, de vez em vez, nós
nos encontramos às escondidas...
— Se o q u i s e s s e , ele i g u a l m e n t e p o d e r i a vir;
poderíamos contactá-lo depois...

175
— N ó s nos a m a m o s , mas se " P a p i s a " descobrir,
com certeza mandará feri-lo; sinceramente, eu não sei
c o m o vocês conseguiram escapar ilesos...
— É mais um motivo para que venha conosco, pois,
bem informada quanto deve ser, você corre perigo...
— C o m o , no entanto, me livrarei do restante da
escolta? - perguntou a j o v e m , convencida pela capaci-
dade de ponderar do companheiro.
— Simplesmente, mande-a regressar; diga que você
nos acompanhará até às portas da instituição e que deseja
se certificar de que não nos perderemos...
S e g u i n d o a o r i e n t a ç ã o de C a r m e l i t a , q u e a
encorajava, Hulda, que tinha ascendência sobre as demais
integrantes da escolta, ordenou que retornassem, pois,
assim que possível, iria se juntar a elas. M e s m o descon-
fiadas e algo relutantes, as amazonas não discutiram e
Hulda, desfazendo-se de sua montaria, aliou-se a nós e
deliberamos, então, apressar o passo.
A. continuava g e m e n d o e revelava extremo abati-
mento.
— C o m o p o d e ser isso? - p e r g u n t e i a O d i l o n ,
quando já avistávamos os muros do Hospital, aludindo
ao fato de o a n t i g o antístite ter tido os s e u s o l h o s
arrancados.
De maneira sucinta, o Instrutor respondeu-me:
— Inácio, tudo é relativo... A matéria, em seus vários
estados de manifestação, quando se atrita, lesa e é lesada
pela própria matéria. N ã o nos esqueçamos de que o corpo

176
espiritual, apesar de menos denso que o corpo físico,
ainda é constituído de matéria... Em nossa dimensão, por
e x e m p l o , d e n t r o das c o n d i ç õ e s da V i d a q u e n o s é
pertinente, a matéria conserva muitas das propriedades
que a caracterizam - a impenetrabilidade relativa é u m a
d e l a s . C o m o v o c ê n ã o ignora, d e v i d o à sutileza do
perispírito e o estado vibracional dos elementos em que
se estrutura, n o s é d a d o atravessar a m a t é r i a m a i s
compacta e o inverso é verdadeiro: os nossos irmãos
encarnados, q u a n d o , por exemplo, c a m i n h a m o s entre
eles, passam através de nós, tanto quanto passamos por
eles; as nossas dimensões coexistem e se interpenetram...
A matéria, em suas transmutações, pode ocupar o m e s m o
lugar no espaço!
— A., no entanto, permanecerá cego?
— Poderá ficar... A Lei do Carma funciona em todos
os quadrantes da Vida Universal. A nossa Medicina está
muito mais adiantada que a dos nossos irmãos no mundo,
que, dentro de mais algum tempo, estará cogitando, não
do simples transplante de córnea, mas de todo o globo
ocular; se assim é e caminha para ser na Terra, o que os
nossos especialistas na área não poderão fazer por aqui?...
Recordemo-nos, no entanto, repito, que tudo está afeto à
Lei do Mérito, que determina as condições receptoras
do paciente, no que se refere ao capítulo da rejeição, que
não é u m a simples questão de incompatibilidade
orgânica.
— No caso específico dele...

177
— S i n c e r a m e n t e , n ã o sei, todavia, p a r a m e l h o r
analisá-lo, devemos levar em conta que o nosso irmão,
embora as limitações de natureza ocular que o caracte-
rizavam - sofria de miopia crônica -, ainda assim se
prevalecia do poder hipnótico que lhe e m a n a v a dos olhos
enfermos para sugestionar as pobres coitadas que, com
receio de sua autoridade, se lhe a p a s s i v a v a m . Assim
sendo, está fora de nossas cogitações qualquer prognós-
tico; será nosso dever encaminhá-lo a centros especiali-
zados, que cuidarão do p r o b l e m a que nos foge à
competência...
— Ser-nos-ia possível encontrar doadores por aqui?
- insisti, já quando alcançávamos as portas do hospital.
— Doadores propriamente não, embora para
n e n h u m a das q u e s t õ e s q u e v o c ê m e formule e u m e
arrisque a responder com a palavra "impossível"... O que
é que, a rigor, m e s m o nós, Inácio, fora do corpo, sabemos
da Vida e do Universo?
— R e s p o n d e n d o p o r m i m - d i s s e - l h e -, nada,
absolutamente nada... Para mim, c o m todo o conheci-
mento espírita que pude ter e que tenho, a Vida depois
da morte continua a ser um milagre... A cada dia de
M u n d o Espiritual, eu mais me convenço de que nada
sei, ou seja: a vida é nova, mas a ignorância é antiga!
Odilon sorriu e acrescentou:
— Em nossos laboratórios de pesquisa médica, que
não ficam localizados por aqui, os cientistas desencar-
nados conseguem, com quase absoluta precisão,

178
reproduzir, tecnologicamente, determinados órgãos que
nos sobrevivem no corpo espiritual: o globo ocular é um
deles. Deste Outro Lado, os estudos estão muito
avançados neste sentido, e, de certa maneira, é no rastro
deles que estudos efetuados pelos nossos irmãos da Terra
v ê m seguindo; não tenhamos qualquer dúvida: dentro
de pouco tempo, a ciência médica do m u n d o aperfeiçoará
o coração artificial, tanto quanto outros órgãos que hoje
requisitam a presença de doadores...
Ao nos avistar, Manoel Roberto, com outros três
auxiliares, se a p r o x i m o u c o m u m a m a c a e, c o m o A.
estivesse muito agitado, aplicou-lhe u m a máscara que,
liberando certa substância inalante, logo o induziu a
necessário repouso.
— E agora, o que será de m i m ? - indagou Huida a
Carmelita. — Sinto-me envergonhada, desambientada...
R e s p o n d e n d o pelo c o m p a n h e i r o q u e me fixara,
expliquei:
— N ã o se preocupe, minha irmã; você estará em
casa... As nossas irmãs da instituição a orientarão, mas,
primeiro, será necessário que você se submeta a pequeno
estágio nos serviços de enfermagem...
— Estou apreensiva pelo Túlio... Precisará avisá-
lo.
— Providenciaremos para que tal aconteça e, se
ele desejar, poderá vir se juntar a você. Onde é que ele se
encontra?
— N u m a c a m p a m e n t o nos limites do Vale... Os
espíritos, Doutor, depois da m o r t e , se ajeitam c o m o

179
podem; nem todos têm a esperá-los familiares e amigos.
O senhor sabe...
— Sei, m i n h a irmã, e não precisa se explicar. A
única diferença da vida c o m que nos deparamos além-
túmulo entre aquela que deixamos para trás é que ela
continua sem corpo... Quanto ao resto, é quase tudo igual!
— Túlio, desde menino, morou com os seus avós;
os seus pais foram mortos em um assalto e ele, filho único,
escapou por ter se escondido no mato... Q u a n d o os seus
avós paternos morreram, vitimados pela gripe espanhola,
ele ficou sozinho e, a convite do vigário, foi morar na
igreja e ser coroinha... Infelizmente, tinha mais de vinte
anos quando, um dia, subindo num andaime para limpar
o sino da capela, caiu e morreu. N ó s nos a m a m o s e eu
tenho muita pena dele. Túlio é um rapaz bom, mas juntou-
se a um bando de malfeitores, espíritos sem escrúpulos,
que lhe ofereceram proteção.
— Cada espírito com a sua trajetória! - exclamei.
— Se n ã o nos e m p e n h a m o s na c o n q u i s t a d o s reais
valores, onde estivermos, na Terra ou no Além, viveremos
à mercê das circunstâncias. A vida será sempre a vida,
em qualquer parte. N ã o estamos entregues a nós mesmos,
mas, sim, às nossas próprias obras. O protecionismo que
os homens imaginam encontrar depois da morte, sem
que, para tanto, tenham se esforçado, é u m a quimera!
Este é um dos maiores equívocos h u m a n o s . Precisamos
fazer o h o m e m compreender semelhante realidade, com
o propósito de que venha a deixar o corpo mais consciente

180
de si. A maioria fica na expectativa de uma recepção que
nada faz para ter.
— Assim que possível, Hulda - interferiu C a r m e -
l i t a - , cuidarei de Túlio pessoalmente; não nos será difícil
encontrá-lo e, quando souber que você se libertou de
"Papisa", ele virá...
— C o i t a d o ! , eu l e v a v a c o m i d a p a r a e l e . . . Os
integrantes do bando o fazem de escravo e vivem de
a s s a l t a r ; q u a s e t o d a s as n o i t e s , eles descem p a r a
vampirizar os homens e promover arruaças... Túlio os
acompanha, contrariado, mas o que fazer?...
— E os pais, os avós dele? Em espírito, não se
interessaram por ele?...
— Segundo me disse, ele se recorda de que, de
origem italiana, eles viviam se queixando de ter vindo
p a r a o Brasil e p l a n e j a v a m voltar p a r a a r e g i ã o da
C a l á b r i a . . . T ú l i o n u n c a m a i s os viu e n ã o se sente
e s p i r i t u a l m e n t e v i n c u l a d o ao g r u p o familiar q u e o
acolhera; desde que n a s c e u , os seus próprios pais o
c h a m a v a m de " J u d i o " e, coisa curiosa, ele vive à procura
de u m a senhora que, s e g u n d o informações que p ô d e
obter, é da tribo dos caiapós. Ela é quem seria a sua
verdadeira mãe, esposa do tuxana, chefe da aldeia, seu
pai.
— C o m o é que ela se chama? - perguntei com o
coração aos saltos.
— Iaporé!...
C o n f e s s o - l h e s , s e m e x a g e r o , que t i v e q u e m e
escorar em Manoel Roberto, para não desfalecer.

181
— Iaporé? - insisti, não acreditando.
— Sim, ela teria morrido procurando o filho que se
perdeu na mata; de tristeza, nunca mais quis voltar para
a tribo...
— M e u D e u s ! - e x c l a m e i c o m as idéias turbi-
lhonando. — N ã o é possível, Odilon! Deus deve estar
brincando conosco...

182
25

— O nosso Pai nunca brinca, Inácio, com coisas


tão sérias assim... - redarguiu Odilon, com bondade.
Praticamente aos berros, sem que ninguém enten-
desse nada, muito m e n o s Hulda, que, certamente, me
t o m o u por um demente a mais naquele hospital em que
tudo acontecia com tanta velocidade, deixei-os e
caminhei pelos corredores c h a m a n d o com insistência:
— Marta! Marta! Onde é que você está? Apareça...
N ã o demorou que u m a de nossas mais simpáticas
auxiliares, saindo de um dos quartos dos pacientes da
ala feminina, se apresentasse.
— O que foi, Doutor?! - indagou-me, sorridente e
rechonchuda. — Fiz alguma coisa de errado?...
— Venha cá, minha filha - disse, pegando-a pela
mão e conduzindo-a à presença de Hulda.

183
— Eu já pedi ao senhor, mais de u m a vez, que n ã o
me c h a m e de Marta; o m e u nome é Iaporé!...
— É um nome selvagem, Marta! - respondi, sem
perder o hábito de me descontrair.
— Selvagem, mas muito mais poético; c o m b i n a
mais comigo... Eu o prefiro!
— Está bem, Iaporé, não discutamos agora... E s t a
aqui é a nossa irmã Hulda, recém-chegada do Vale das
S a c e r d o t i s a s ; t a l v e z ela t e n h a u m a n o t í c i a q u e l h e
interessa... Há quanto t e m p o o seu filho desapareceu na
floresta?
— O meu pequeno Juari?!... A h ! Doutor, eu já n e m
sei m a i s ; uns 70, 80 anos... Perdi c o m p l e t a m e n t e as
esperanças de encontrá-lo. O senhor se lembra c o m o foi
que vim parar aqui? Louca, Doutor, louca de dor... A
última informação que tive é que ele voltara para a Terra;
assim, c o m o é que eu poderia achá-lo, num outro corpo,
com um outro nome, com outra cor de pele, quem sabe?...
C o m o o senhor me tem ensinado, entreguei o filho às
mãos de Deus e estou aprendendo a viver à m e r c ê da
D i v i n a Misericórdia... A q u i l o foi castigo, por eu ter
abortado u m a vez; ainda menina, o m e u pai me obrigou
a abortar, para que eu pudesse me casar com o cacique
dos caiapós; mas eu a m a v a outro guerreiro, que t i n h a
mais ou menos a minha idade...
— Juari! - exclamou Hulda, tão estupefata quanto
nós. — Túlio me disse que tinha outro nome, mas eu não
sei; incrível, no entanto, a semelhança entre os dois: os

184
olhos negros e amendoados, os cabelos escorridos, a cor
da pele...
— C o m o ? ! - perguntou Iaporé, escorando-se em
mim. — Você conhece o paradeiro do m e u Juari? Diga-
me: c o m o é que ele está? Ah, Doutor! N ã o é possível!
Estou enlouquecendo de novo... Por dezenas de anos, o
meu espírito ficou preso à mata, recusando-se a renascer.
Depois, quando o h o m e m branco chegou, eu me senti
atraída e comecei a esquecer; lembro-me apenas de me
ver m e n i n a nos braços de um h o m e m bondoso, meu pai,
que morreu logo em seguida picado por u m a urutu... E,
então, tudo se repetiu para m i m : mestiça, de novo eu
engravidei e, embora quisesse muito ter aquele filho,
sucumbi, vítima de uma febre desconhecida...
A b r a ç a n d o - s e mais estreitamente à mim, Iaporé,
com o rosto banhado em lágrimas, suplicou:
— Diga-me, minha filha, onde você o viu, e ser-
lhe-ei eternamente agradecida. Quem sabe, a minha prova
esteja chegando ao fim...
— Eu não tenho certeza... É muita coincidência,
mas pode ser que não seja o Túlio!
— Dr. Inácio, por favor, ajude-me! - p e d i a - m e
Iaporé, sabendo que eu não seria capaz de negar.
— L e v e - m e até ele! O meu coração de mãe não se
engana... De súbito, sinto que nunca estive tão perto do
meu filho.
— N ó s nos prepararemos hoje, e amanhã, à noite,
desceremos... Você virá conosco, não, Odilon?
— Sem dúvida, Inácio - respondeu-me o Instrutor.

185
— H u l d a - q u e s t i o n e i -, em q u e c i d a d e eles
costumam agir?
— Eles preferem não se arriscar indo muito longe;
preferencialmente, atuam em Uberaba...
— E n t ã o será mais fácil localizá-los; os nossos
amigos do Sanatório Espírita poderão cooperar conosco...
Pedindo a M a n o e l Roberto que cuidasse de Hulda
e Iaporé, a fim de que descansassem, deliberamos que
no outro dia, ao cair da tarde, eu, Odilon e Carmelita nos
dirigiríamos ao Sanatório, não sendo conveniente, por
m o t i v o s ó b v i o s , q u e I a p o r é n o s a c o m p a n h a s s e . Se,
porventura, Túlio não se tratasse de seu filho Juari, ele
poderia se render a profundo abatimento e comprometer
o seu equilíbrio.
Ficando a sós, eu e Odilon c o m e ç a m o s a conversar,
tecendo comentários em torno da Vida e das situações
que criamos ou que as circunstâncias evolutivas nos
criam.
— Pois é, Odilon - falei, convidando o companheiro
para que nos acomodássemos -, os que vivem lá embaixo,
não fazem idéia dos dramas que se desenrolam aqui em
cima; para a maioria, de modo geral, nós, os que deixamos
o corpo, somos logo encaminhados e não nos perdemos...
— Você está se referindo aos nossos irmãos espí-
ritas, não é?
— Sim, porquanto aqueles que não o são deixam
de se preocupar com os pormenores da Vida além da
morte: os católicos pensam apenas em termos de Céu,
Inferno e Purgatório; os protestantes, no dia do Juízo

186
Final; os materialistas sequer a d m i t e m a hipótese da
sobrevivência; os budistas sonham com o Nirvana... Nós,
os espíritas, é que nos entregamos a maiores conjecturas
de caráter filosófico e, através do intercâmbio com os
mortos, temos acesso à realidade que nos espera, quando
deixamos a carcaça...
— N ã o p o d e m o s , Inácio, exigir q u e os n o s s o s
irmãos de fé, recém-egressos de outras doutrinas reli-
giosas t e n h a m u m raciocínio g e n u i n a m e n t e espírita;
muitos deles, c o m o acontecia conosco quando no corpo,
refletem sob o prisma das influências que receberam por
séculos. Para a maioria, o Plano Espiritual que nos rodeia
ainda tem algo a ver com o Céu que o Catolicismo prega
aos seus adeptos...
— C o m o Céu e com o Inferno, você está querendo
dizer...
— Sim, com ambos.
— Quando, em verdade, talvez a nossa situação
esteja mais para Purgatório... O pessoal deduz,
e q u i v o c a d a m e n t e , que a vida por aqui é b e m menos
complexa; sem dúvida que, sob certos aspectos, é mais
organizada, m o r m e n t e nas D i m e n s õ e s que se situam
acima da nossa, mas, nas vizinhas da Crosta...
— N a s vizinhanças da Crosta a luta continua e, não
raro, de u m a forma muito mais intensa. Por esse motivo,
Inácio, sempre que possível, cabe-nos alertar os compa-
n h e i r o s que n o s p r e s t e m o u v i d o s no m u n d o para a
questão do mérito, que, por assim dizer, é a única moeda

187
corrente com real valor por aqui. Q u e m desencarna c o m
créditos espirituais a seu favor não tem o que temer...
— Em parte a l g u m a - acentuei, concordando - tem
o que temer...
— M a s - prosseguiu o Mentor -, aquele que deixa
o corpo com graves problemas conscienciais terá muitos
embaraços, e os seus Protetores pouco poderão valê-lo.
— Você sabe, Odilon, eu não sou nada ou um p o u c o
mais que coisa a l g u m a e me sinto constrangido q u a n d o
os nossos irmãos encarnados apelam para m i m ; quase
todos os dias, recebo os seus pensamentos em rogativa,
sem que, de imediato, eu algo possa fazer para atendê-
los; eles ignoram que, deste Outro Lado, às vezes, t e m o s
dificuldade até para mudar o passo...
— É bom, no entanto, Inácio, que os nossos irmãos
não façam u m a idéia muito precisa das dificuldades que
enfrentamos...
— Concordo, em parte - respondi -; mas é b o m
também que não se iludam tanto; ao invés de s e m p r e
ficarem na expectativa de que u m a ação nossa os auxilie
na solução dos problemas que lhes são pertinentes, que
arregacem as mangas... Na concepção espírita, o milagre
é fruto do esforço e do mérito; não basta orar, é indis-
pensável agir...
— Vejamos o caso de nossa Iaporé...
— E o de Hulda! Se ela não se encontrasse c o m
Carmelita ou, por outra, se A. não tivesse fugido do
Hospital... C o m o é complexo o m e c a n i s m o da Lei! Em
que circunstâncias, A. a beneficiou; fugindo do hospital,

188
ele foi como que teleguiado ao Vale das Sacerdotisas;
indo, por assim dizer, ao encontro de seus erros, criou
ensejo para que u m a de suas vítimas, através de seu
próprio sofrimento, recebesse amparo. Eu fico maravi-
lhado com tudo, mas não compreendo. As vezes, Odilon,
eu me sinto como u m a marionete, movimentado pela ação
de cordéis intangíveis...
Odilon sorriu e eu continuei.
— A., diante da vastidão do M u n d o Espiritual,
poderia ter t o m a d o qualquer outro caminho; mas, não:
sentiu-se atraído para o Vale, onde recebeu a punição
que lhe foi imposta por nossas irmãs, a quem ele tantas
vezes humilhou; depois de terem se vingado, elas no-lo
entregaram mutilado...
— E a ligação afetiva, Inácio, de Hulda com Túlio...
— Pois então, não é intrigante?! N ã o estamos sendo
dirigidos?... Eu tenho a impressão de que a Lei Divina
se constitui de um milhão de olhos e, por esse motivo,
nada lhe escapa!... A Lei age simplesmente deixando o
h o m e m agir, porque sabe que ele faz e desfaz, faz de
novo e torna a desfazer. A Sabedoria de Deus consiste
em esperar!
Efetuando pequena pausa, prossegui:
— N o s s a irmã Iaporé, que está aqui conosco há
tanto tempo... Q u e força reaproximou mãe e filho? Sem
dúvida, o Poder de D e u s transfigura o mal em b e m !
Assim, na condição de responsável pelo Hospital, eu me
sinto até menos culpado pela fuga de A.; chego a pensar
que Alguém a facilitou...

189
26
— Alguém, Odilon - dei seqüência a m e u s
comentários -, com q u e m eu n ã o p o s s o discutir... É
complicado. Deveríamos ser mais rigorosos na vigilância,
m a s a n o s s a invigilância d e s e n c a d e o u u m a série de
acontecimentos positivos.
— Q u a n d o agimos bem intencionados, Inácio, e
erramos, a Lei possibilita que n o s reabilitemos através
do próprio erro cometido, sem as complicações do c a r m a
que se posterga indefinidamente.
— Eu tenho quase certeza - falei - que o n a m o r a d o
de Hulda é o filho de Iaporé. E, coisa espantosa: A., que
v o c ê c o n h e c e u tão b e m q u a n t o eu, em suas críticas
distorcidas ao Espiritismo, vivia dizendo que a n o s s a
crença era tão primitiva quanto as práticas indígenas, que
os nossos centros não passavam de terreiros de feitiçaria
e os médiuns nada mais eram do que modernos pajés...

190
— No que - disse Odilon -, ele não estava de todo
enganado...
— Enganado ele nunca esteve - comentei -; ele
agia m e s m o era de má-fé, como até hoje muitos fazem
questão, perante a opinião pública, de confundir
Espiritismo com cultos afro-brasileiros que, na realidade,
têm muito mais a ver com o Catolicismo do que com
qualquer outra crença.
— Em que você está pensando, Inácio? - perguntou-
me Odilon, ao perceber que eu me entregara a longo
devaneio.
— Foi u m a idéia tola que me passou pela cabeça -
respondi -; eu estava imaginando que, daqui a alguns
anos, A. talvez reencarne c o m o filho de Hulda e Juari e,
c o n s e q ü e n t e m e n t e , s e faça n e t o d e I a p o r é . . . S e r i a
perfeito!
— Ora, Inácio! - repreendeu-me o Instrutor. —
Deixe de querer fazer o papel de Deus!
— Desculpe-me; foi um pensamento que eu não
pude evitar: A., filho de u m a ex-freira e de um rapaz que
caiu do andaime da igreja e neto de u m a caiapó!... É
uma pena!...
— O quê, m e u caro, é u m a pena?...
— Seria perfeito, mas eles não merecem tanto -
respondi com as m ã o s espalmadas erguidas, dando o
assunto por encerrado.
Despedimo-nos e, confesso-lhes, eu estava exausto,
necessitando de alguns minutos de repouso. Conversei

191
rapidamente com M a n o e l Roberto e pedi que a vigilância
nos arredores do nosocômio fosse reforçada, pois, embora
não acreditasse muito, a verdade é que " P a p i s a " poderia
partir para o revide; afinal de contas, por c o n v e n c e r m o s
H u l d a a nos a c o m p a n h a r , ela poderia interpretar que
tivéssemos traído a sua confiança e, a essa altura, já
deveria estar se recriminando por ter c o n c o r d a d o que
saíssemos ilesos...
Os breves instantes em que me entreguei ao sono,
foram marcados por terrível pesadelo: sugestionado, com
certeza, pela conversa que mantivera com Odilon,
p a s m e m vocês, eu me via reencarnado na condição de
filho de Hulda e Juari, neto de Iaporé e... irmão de A.,
com a responsabilidade de servir de guia na Terra para
aquele meu irmão cego! Acordando, sobressaltado,
esfreguei os olhos, para me certificar de que se tratara
apenas de um pesadelo, tomei um gole d ' á g u a e abri a
porta do quarto, chamando por Manoel Roberto, que logo
apareceu.
— O que foi, Doutor? - perguntou-me o devotado
amigo.
— N a d a - respondi ainda atordoado -; eu só queria
ter certeza...
— Certeza de quê, Doutor?
— De que ainda estou por aqui...
— Eu não estou entendendo...
— É melhor que não entenda!
?!

192
— Do jeito que andam as coisas na Terra e sobrando
espíritos aqui, a qualquer hora a gente reencarna e não
fica nem sabendo: quando acordar chorando no berço,
não se pode fazer mais nada...
— O senhor tem cada uma! - disse Manoel,
habituado às minhas esquisitices.
A m a n h ã p a s s o u d e p r e s s a e, à tarde, O d i l o n e
Carmelita apareceram para a excursão que efetuaríamos
à Crosta, com o objetivo de encontrarmos Túlio. Antes,
p o r é m , de partirmos, estivemos c o m Iaporé e Hulda,
sendo que a j o v e m retirou u m a pulseira do braço e me
entregou, dizendo:
— Doutor, se vocês, porventura, o encontrarem,
mostrem a ele esta pulseira... É possível que, inicialmente,
Túlio não acredite nos seus argumentos. Tenham cuidado,
pois o bando c o m o qual ele anda é p e r i g o s o ! Eu o
conheço bem...
— Dr. Inácio - suplicou-me Iaporé -, por favor,
traga o meu filho de volta para mim!... Pelo que Hulda
me contou detalhadamente, é ele mesmo; até um pequeno
sinal de n a s c e n ç a que Túlio carrega no o m b r o é
semelhante ao do m e u Juari... Traga-o, Doutor, de volta
para mim!
T r a n q ü i l i z a n d o as d u a s , t o m a m o s a d i r e ç ã o da
Crosta, porém, sempre que o fazíamos, não era
aleatoriamente, porquanto são inúmeras as estradas de
acesso ao orbe, sendo que a maioria oferece relativo
perigo aos que por elas transitam, descuidados; à medida

193
que nos aproximamos da psicosfera planetária, cresce o
contingente de espíritos fora do corpo que, constituindo
u m a espécie de erraticidade, v a g u e i a m sem definição e,
quais se fossem salteadores, p e r m a n e c e m à espreita. E
lógico que não p o d e m o s generalizar, m a s a p e n a s os
incautos peregrinam nos caminhos de além-túmulo sem
a devida cautela, pois estariam se arriscando a cair nas
garras de grupos que se organizam c o m a finalidade de
resistirem aos impositivos da renovação.
Assim, não nos foi difícil, u m a vez mais, chegarmos
ao Sanatório, onde fomos saudados p o r u m a p e q u e n a e
a n ô n i m a equipe de servidores espirituais de plantão,
oferecendo retaguarda ao trabalho que os nossos irmãos
encarnados ali prosseguem realizando j u n t o aos doentes.
E n q u a n t o O d i l o n e C a r m e l i t a c o l h i a m as infor-
m a ç õ e s n e c e s s á r i a s , deliberei c a m i n h a r p e l o pátio e
pavilhões, recordando, por instantes, o cenário de tantas
lutas que, agora, se d e s d o b r a v a m no M u n d o Espiritual;
enganam-se os que i m a g i n a m que, a p ó s a sua desen-
carnação, conseguirão m u d a r de atividade facilmente -
quase sempre, q u a n d o morremos, c o n t i n u a m o s a nos
ocupar do que antes nos o c u p á v a m o s , procurando nos
empenhar no melhor cumprimento do dever e reparando
possíveis equívocos profissionais... E muito raro que,
antes que u m a nova existência no corpo nos beneficie,
logremos uma mudança radical em nossos hábitos,
principalmente naqueles que, por a s s i m dizer, se nos

194
transformaram em carma. A Medicina, para mim, havia,
sem dúvida, se constituído num carma; por mais que eu
tivesse feito, a consciência ainda me efetuava cobranças:
eu deveria ter sido mais paciente e atencioso com os meus
clientes, mais h u m a n o e fraterno, enfim, ter dado um
pouco mais de mim aos que me procuravam, depositando
em m e u s esforços a sua derradeira esperança... Por mais
que os amigos remanescentes na carne me contestem,
digo-lhes que eu me sentia, sim, um profissional relapso;
d ó i - m e na c o n s c i ê n c i a l e m b r a r que c a d a v e z q u e o
telefone tilintava em casa, chamando-me ao Sanatório
para ver determinado interno em crise, eu, agastado,
respondia que não, deixando para a manhã do outro dia...
Q u a n t o m a i s lúcidos nos t o r n a m o s na Vida, m a i s a
consciência se nos refina em seus processos silenciosos
de cobrança pelos nossos erros. Isto é, digo-o em alto e
bom som, inevitável! Os maus profissionais, os que não
revelam vocação para o ofício, os que não se esmeram à
perfeição no d e s e m p e n h o de suas obrigações, os que
malbaratam o tempo, os que apenas pensam no ganho
material, tratando os outros c o m o objeto de suas
ambições - todos esses e os demais que deixo de citar,
para que a lista não se torne extensa, responderão, a par
de seus equívocos morais na convivência pessoal c o m
as criaturas, responderão! N ã o comparecerão, é claro,
diante de nenhum tribunal constituído onde possam ser
formalmente acusados de omissão e leviandade, m a s

195
experimentarão, em si m e s m o s , a tristeza decorrente das
c o n s e q ü ê n c i a s do fracasso e, então, a fim de q u e se
pacifiquem interiormente, se candidatarão a um n o v o
aprendizado, a que, por outro lado, deverão fazer j u s .
Sim, porquanto, muitas vezes, haverão de suspirar pela
oportunidade perdida... De quantos médicos, por
e x e m p l o , sei n o M a i s A l é m q u e , p o r s u a i r r e s p o n -
s a b i l i d a d e profissional e n t r e o s h o m e n s , c o m o q u e
desaprenderam a profissão, perdendo a capacidade de
diagnosticar um simples resfriado! Confusos intelec-
tualmente, não mais c o n s e g u e m efetuar u m a a n a m n e s e ,
c o m o se estivessem a punir a si próprios, pelo esqueci-
mento dos conhecimentos adquiridos, devido à sua
conduta insensível diante dos sofredores. Ah, o c a r m a
das profissões! - sem dúvida, que forma um capítulo à
parte e, no futuro, merecerá acurados estudos por parte
dos nossos irmãos espiritistas que haverão, cada vez mais,
de se aprofundar nas nuances da Vida Espiritual.
Imerso em semelhantes reflexões, Odilon e C a r m e -
lita me surpreenderam, quando, se entendendo c o m os
companheiros desencarnados em estágio no Sanatório,
vieram ao m e u encontro c o m as informações de que
necessitávamos: diversos grupos de arruaceiros fora do
corpo praticavam vandalismo pela cidade, em sintonia
natural com dezenas e dezenas de irmãos encarnados, a
maioria j o v e n s de hábitos noturnos, entregues às drogas,
ao álcool e aos prazeres do sexo.

196
As características fornecidas por nós fizeram com
que as suspeitas recaíssem sobre um grupo nas
imediações do Parque "Fernando Costa", onde muitas
casas de espetáculo e boates funcionavam na clandes-
tinidade. Sem maiores delongas, r u m a m o s para lá e nos
pusemos a observar, ressaltando que, praticamente, não
éramos percebidos pelas entidades que iam e vinham...

197
27
A m o v i m e n t a ç ã o noturna era intensa; o relógio
assinalava mais de meia-noite e diversos irmãos e irmãs
em trajes exíguos se ofereciam nas esquinas aos carros
que passavam com lentidão; entidades de formas bizarras
exerciam o vampirismo sem qualquer empecilho, naquele
q u a d r o v i v o em m i n i a t u r a de S o d o m a e G o m o r r a . . .
Todavia, vale ressaltar, registrávamos t a m b é m a presença
de d i v e r s a s o u t r a s , de p a i s e m ã e s d e s e n c a r n a d o s ,
insistindo junto aos filhos, que pareciam não ouvi-los,
no sentido de que voltassem para casa e deixassem aquela
vida de devassidão que, a p o u c o e pouco, os conduziria
ao inevitável abismo.
T o m a n d o - n o s , talvez, por espíritos de categoria
superior, um pai a c e r c o u - s e de n ó s e, c o m aflição
e s t a m p a d a em sua face espiritual, s u p l i c o u - n o s , em
lágrimas:

198
— Ajudem-me, por quem são! O meu filho é aquele
que está travestido na esquina... Valham-me, por
caridade! Eu me sinto culpado da situação lastimável
em que ele presentemente se encontra, pois abandonei-
os a ele, quando ainda n ã o havia completado 5 anos de
idade, e à m i n h a esposa, que troquei por u m a outra
mulher... O meu Renato agora está com 21 anos e vejam
em que situação! Criado sem o meu carinho e proteção
de pai, não passava de um adolescente, quando começou
a se prostituir por dinheiro fácil... Ah, m e u D e u s , eu
enlouqueço!
E o pobre genitor prosseguia descrevendo o seu
drama:
— Depois que os abandonei, a mãe dele se ligou a
um h o m e m sem escrúpulos, que se fez seu amante e foi
ele quem molestou sexualmente o meu filho... O Júnior
se transformou num travesti e, praticamente, todas as
noites, vem fazer ponto nas imediações... A m ã e dele
hoje está com outro e n e m se importa; culpa-me por tudo
q u e l h e s a c o n t e c e u e eu me s i n t o c o m p l e t a m e n t e
arrasado!
— Tentaremos ajudá-lo, meu irmão - disse
Carmelita, refletindo na voz todo o pesar que igualmente
se me apossara do espírito, diante daquele triste relato.
— Pediremos a intercessão de amigos nossos e veremos
o que nos será possível fazer. Confie em D e u s !
— Eu nem sequer me atrevo a falar no nome de
Deus! - replicou aquele pai, transtornado. — Eu não sou

199
capaz de erguer os olhos para o Céu!... Cavei c o m as
próprias mãos a vala do sofrimento em que me encontro...
A mulher por quem deixei a minha casa me traiu com
outro e, então, comecei a beber - bebi tanto que, um dia,
um carro me atropelou e tive diversas fraturas expostas;
u m a i n f e c ç ã o h o s p i t a l a r m e m a t o u , quer d i z e r , m e
expulsou do corpo e me reduziu ao trapo que v o c ê s estão
vendo... Eu sou o grande e único culpado! Sinceramente,
eu tenho a impressão de que o Júnior quer se vingar de
m i m , p o r q u e , além de ter o m e u n o m e , ele é o m e u
retrato... Coitado do meu filho! O que será que o espera?
Todos os dias, homens e mulheres contaminados pelo
vírus da A I D S estão por aqui, se oferecendo u n s aos
outros... O m e u filho precisa mudar de vida. Se alguma
coisa pior vier acontecer a ele, que forças eu terei para
reagir? As vezes, eu penso em desaparecer para sempre,
mas algo me prende aqui... N ã o há u m a noite sequer em
que não lute, para defender o Júnior das entidades que
desejam dele se servir c o m o pasto de seus instintos
bestiais - quase toda noite é a m e s m a luta e, confesso, o
m e s m o fracasso, pois ele acaba cedendo aos vícios que
o degradam...
Levando as mãos à cabeça e arregalando os olhos,
de espanto, o infeliz genitor gritou:
— Vejam! Vejam! Um carro está p a r a n d o . . . Por
favor! N ã o deixem, não d e i x e m ! Eu c o n h e ç o aquele
h o m e m : está doente e vai contaminar o m e u filho... Ele
já fez várias tentativas, oferecendo-lhe dinheiro. Ajudem-

200
me, por caridade! N ã o deixem o Júnior entrar naquele
carro.
A g i n d o c o m presteza, Odilon a p r o x i m o u - s e do
rapaz, que se insinuava requebrando e agitando os braços
com coquetismo, e, quando o motorista o abordou na
calçada, dirigindo-lhe palavras melífluas, pousou-lhe a
destra sobre a fronte.
— C o m o é, vamos dar u m a volta? - indagou-lhe o
sedutor, cuja face eu não pude e não fiz questão de divisar
no a u t o m ó v e l . — Na s e m a n a p a s s a d a , v o c ê m a r c o u
comigo e me deixou na mão...
Em luta consigo m e s m o , o rapaz, que temia que a
noite se escoasse para ele sem nenhum programa, estava
prestes a anuir ao convite, quando Odilon entrou em prece
e a m ã o direita se lhe iluminou sobre a cabeça do filho
daquele homem, que a tudo assistia trêmulo e impassível.
— " S e n h o r Jesus - rogou o Mentor em rápidas
p a l a v r a s -, s u p l i c a m o s a tua intercessão! Q u e a t u a
misericórdia se faça em nosso favor neste instante...
Compadece-te, Mestre, de nossa indigência! Vem em
nosso auxílio e sê a nossa Providência!..."
No exato instante, o j o v e m , que me parecia incli-
nado a ceder, revelou-se indisposto e, apalpando a testa,
desculpou-se:
— De repente, estou com febre... Creio que vou
para casa. Deve ter sido a chuva de ontem à noite. Q u e m
sabe, outro dia...

201
C o m receio de insistir e, d e s c o n h e c e n d o que ele
m e s m o fosse soro positivo, o condutor do veículo
acelerou e saiu resmungando baixinho:
— C o m esse nunca m a i s ! Febre repentina?...
Promíscuo do jeito que é, d e v e estar com HIV. Escapei
na tangente...
E, enquanto o rapaz, c o m arrepios de frio, t o m a v a
o r u m o de c a s a , a q u e l e p o b r e p a i , a t u r d i d o c o m a
sublimidade do fenômeno que presenciara, ajoelhou-se
na calçada e se entregou a convulsivo pranto.
— Q u e palhaçada é essa aí?! - ecoou u m a voz, feito
u m a sombra que emergisse da escuridão. — Qual é o
motivo de tanto choro? A l g u m maricas por perto?...
As g a r g a l h a d a s , o b a n d o c o n s t i t u í d o de q u a t r o
integrantes se aproximou e p u d e m o s , então, identificar
a fisionomia de cada um; à e x c e ç ã o do mais j o v e m que,
de início, adivinhei tratar-se de Túlio, os outros três se
a p r e s e n t a v a m c o m a fácies d e f o r m a d a , m a i s se
assemelhando a animais do que a seres h u m a n o s . De fato
- permitam-me a observação -, nossos irmãos encarnados
estão longe de conceber a influência da mente e da vida
moral dos desencarnados sobre o veículo perispiritual;
aqueles três h o m e n s , que c o a g i a m um rapaz a a c o m -
panhá-los, preservavam a forma humana, no entanto os
s e u s c o r p o s i n c h a d o s e r e p l e t o s de p r o t u b e r â n c i a s
estranhas, lhes haviam transformado a fisionomia por
completo, principalmente à altura da face, das m ã o s e
dos órgãos genitais.

202
Um deles, o que me pareceu liderar o grupo, em
tom desafiador perguntou-nos, deixando exalar incomo-
dativo odor:
— O que é que vocês pretendem? Estragar-nos a
noite?... O que fazem por aqui? Porventura, não sabem
que somos os donos do pedaço?...
E n q u a n t o Odilon e C a r m e l i t a se o c u p a v a m de
Júnior e de seu pai, avancei dois passos e, sem perder
Túlio de vista, comecei a falar com a entidade:
— M e u irmão, estamos simplesmente de passagem;
nada pessoal contra quem quer que seja...
— É bom m e s m o - respondeu, ofegante -, pois,
ultimamente, os iluminados v ê m tentando interferir na
área; o campo aqui é nosso e exigimos respeito... N ã o
fomos nós que o transformamos em região de caça...
— C o m o você percebe, eu e os meus companheiros
estamos longe da condição a que você se refere; estamos
apenas tentando colaborar com um pai desesperado e
um j o v e m doente...
— Esse aí é um caso perdido: desistam!... N ó s o
conhecemos de velho e amanhã estará de volta - disse,
apontando para o travesti que, acometido de súbito mal-
estar, começara a descer a avenida, cambaleante.
— Para Deus, nenhum de nós é caso perdido, meu
irmão.
— Você está m e n t i n d o p a r a m i m - vociferou a
entidade, avaliando a possibilidade de me agredir. — N ã o
me venha com a m e s m a ladainha; é assim que vocês

203
começam: c o m o quem não quer nada... N ã o faça pouco
da minha inteligência!
— Qual o motivo de você se irritar assim com tanta
facilidade? Sente-se ofendido por ser tratado de maneira
digna? Eu não disse nenhuma impropriedade, pois, diante
de Deus, todos somos irmãos...
— Eu não acredito em D e u s e, portanto, não me
c o n s i d e r o seu irmão... D e u s , c a s o existisse, a n d a r i a
sempre muito ocupado para preocupar-se com os v e r m e s
que somos; vocês não p a s s a m de uns sonhadores...
Juntem-se a nós e terão todos os seus problemas resol-
vidos; garanto-lhes que, pelo menos, deixarão de se afligir
com tantas conjecturas, todas inúteis. O que vale é o
momento e o prazer que dele p o s s a m o s extrair; o resto é
sofrimento voluntário...
— Porém, - redargui - se me permite, a sua apa-
rência e a de seus outros dois companheiros...
— Estamos assim porque queremos; qual a dife-
rença entre ser um homem e um animal, se o essencial
nos é preservado?...
— Q u e m é o j o v e m que os a c o m p a n h a ? - a r r i s q u e i .
— Um aprendiz; um pouco tímido, mas logo entrará
na "nossa"... Por quê? - indagou-me c o m insolência. —
Está interessado nele?... Poderemos negociar...

204
28

— É que ele me lembra alguém que conheço... -


respondi, ignorando a insinuação.
— O r a - t o r n o u a e n t i d a d e c o m ironia -, n ã o
desconverse; estou m e s m o querendo me livrar dele e
poderemos combinar o preço...
— Seria interessante, m e u irmão, que procurás-
semos manter o nível...
— A que nível você se refere? Entre nós, não existe
outra ética que não seja a do gostou, pagou, levou... Onde
é que você pensa que está: nas nuvens?!... Ao que me
consta, não estou vendo um par de asas nas suas costas,
nem das de seus dois a m i g o s . Repito: adote a nossa
filosofia de vida e deixe de se amargurar... Seja realista -
e pronto!

205
— Você parece não perceber no que está se trans-
formando, não é? - parti para a ofensiva, já que ele me
convidava a ser realista.
— C o m o a s s i m ? ! Está me provocando?...
— N ã o é m i n h a intenção provocá-lo, mas sinto-me
no dever de adverti-lo.
— Advertir-me?... A h , ah, ah!...
— Sim, pois a degradação que agora lhe atinge o
corpo, não demorará a lhe alcançar a mente: em outras
palavras, você está prestes a perder o controle...
— C o m que autoridade faz semelhante prognóstico
a meu respeito, h e m ?
— C o m a de m é d i c o p s i q u i a t r a - r e s p o n d i ,
deixando-o sem ação. — E você sabe o que o espera,
não sabe?...
— Isso j a m a i s acontecerá... É um blefe; você n ã o é
médico coisa nenhuma.
— É evidente que não ando c o m o m e u d i p l o m a
debaixo do braço, mas, se eu lhe disser o m e u nome...
— N ã o há quem eu não conheça em U b e r a b a , a
menos que seja um ilustre d e s c o n h e c i d o , o q u e ,
certamente, sendo médico conforme afirma, não será o
seu caso.
— C h a m o - m e Inácio Ferreira, m e u amigo!
— Inácio Ferreira, o do Sanatório?...
— Exatamente, e os dois amigos que estão c o m i g o
são Odilon Fernandes e Sebastião Carmelita.
— Sebastião Carmelita, o padre?

206
— Sim, e Odilon, espírita convicto e fundador do
"Instituto de Cegos"...
— Dr. Odilon! - exclamou a entidade, visivelmente
confusa. — O m e u neto m o r o u no "Instituto"... Será
verdade o que me diz? Por aqui, todos mentem...
— Se v o c ê quiser c o m p r o v a r , a c o m p a n h e - n o s ;
poderemos, por exemplo, efetuar u m a rápida visita ao
Sanatório - lá existe um antigo retrato meu na parede...
— N ã o , não, de forma alguma - apressou-se em
dizer. — N ã o passarei nem por perto... Trata-se de u m a
t r a m a p a r a m e prender, não é ? E u b e m que a n d a v a
desconfiado... Diga-me o que quer e seguirei meu
caminho.
— Viemos - esclareci sem rodeios - buscar o rapaz
que está com vocês.
— O Túlio?...
— Ele m e s m o , e o fazemos em nome de sua mãe e
de Hulda, sua namorada.
— M i n h a m ã e e H u l d a ? ! - questionou o j o v e m
tomado de espanto, quebrando o próprio silêncio em que
se mantinha.
— É no que dá se apaixonar e se envolver; nós o
avisamos, não foi? - atalhou a entidade, dando mostras
de querer se livrar dele o mais depressa possível.
— Eu nada sei a respeito de minha mãe, mas como
é que o senhor sabe de Hulda? Juramos não dizer nada a
ninguém...
— É porque ela m e s m a nos contou sobre vocês dois;
Hulda não mais se encontra sob a tutela de "Papisa": nós

207
a libertamos e, agora, ela está em c o m p a n h i a de sua mãe.
Iaporé.
— Iaporé, m i n h a mãe?...
— Sim, eu nunca vi mãe e filho se parecerem tanto...
— Dê-me u m a prova de que não estou sendo
enganado de novo...
Então, enfiando a m ã o no bolso do j a l e c o , retirei a
pulseira de contas que Hulda me pedira para mostrar a
Túlio.
— A sua n a m o r a d a pediu-me que eu lhe entregasse
isto - falei, e s t e n d e n d o - a ao rapaz q u e , de pronto, a
reconheceu.
— Fui eu que lhe dei esta pulseira, na última vez
que nos vimos... M a s c o m o foi que vocês a conseguiram?
— E l a m e s m a n o - l a e n t r e g o u , m e u filho, p a r a
ajudar-nos a c o n v e n c ê - l o de que e s t a m o s falando a
verdade. Venha c o n o s c o !
— Eu n ã o e s t o u e n t e n d e n d o . . . É p r a t i c a m e n t e
impossível escapar do Vale das Religiosas; várias vezes,
tentei convencer H u l d a a fugir, m a s ela t e m i a que, caso
fôssemos pegos, " P a p i s a " nos m a n d a s s e furar os olhos...
— O impossível, meu filho, n ã o existe; tudo vai
passando e há de passar... Apenas o B e m permanece; tudo
mais é sombra que desaparece... Jamais descreia do poder
renovador do T e m p o !
N e s s e ínterim, O d i l o n e C a r m e l i t a , após t e r e m
cuidado de Júnior e seu pai, providenciando para que
outros companheiros da Vida M a i o r se encarregassem

208
diretamente do caso, se aproximaram e, com a simples
presença deles, as três entidades que subjugavam Túlio
instintivamente recuaram.
— Irei, sim, com vocês, que já estou cansado de
não ter ninguém... Iaporé! Seria, porventura, a minha mãe
u m a índia? Será que é por este motivo que muitos acham
os meus traços parecidos com os de um indígena?...
— O seu coração é que haverá de dizê-lo; simples-
m e n t e , v e n h a c o n o s c o - disse-lhe, a p a r t a n d o - o , em
definitivo, da companhia dos espíritos que o dominavam.
Posicionando-se a certa distância c o m os outros
dois, a entidade com a qual eu dialogara, obtemperou:
— Você, Túlio, nunca foi m e s m o de nada... Vá com
eles, que não há de nos fazer falta alguma; logo, haverão
de propor a você um novo corpo no mundo... É sempre
assim: eles querem nos dirigir... M a s comigo, não!
— E por que não, meu irmão? - considerou Odilon,
entrando no assunto. — Você e os seus amigos estão
doentes, muito doentes...
E, c o m u m a p e r c e p ç ã o que ainda me faltava, o
Instrutor ponderou:
— Vejo, ao derredor do cérebro de cada um de
vocês, parasitando-os, estranhos corpúsculos ovóides...
Sabem do que se trata?
— N ã o , não! É mentira sua! - gritou o espírito,
n e g a n d o ser v í t i m a d o q u e t a l v e z m a i s t e m i a . —
Corpúsculos ovóides, não! Eu não permitiria que eles
me vampirizassem... Estão me sugando? É mentira! É
mentira!... Você está querendo nos atemorizar...

209
— Eu não lançaria m ã o de semelhante subterfúgio,
m e u irmão, para c o n v e n c ê - l o s a mudar. Estou sendo
s i n c e r o ; v o c ê e os s e u s a m i g o s e s t ã o s o b p r o f u n d a
hipnose, sendo vampirizados por entidades que se lhes
emaranham nos pensamentos... A continuar o processo
obsessivo em andamento, em breve, haverão, igualmente,
de perder a forma em que se expressam e, então...
— Afastem-se de nós! Afastem-se! - c o m e ç o u a
gritar, passando as m ã o s nos cabelos, arrancando-os, no
que era imitado pelos companheiros, que saíram correndo
no meio da noite, abandonando-o.
— Venha conosco; você necessita de tratamento
urgente...
— Quantos são, quantos são, diga-me? Estas
lêndeas! Socorro, que agora as sinto infestando todo o
meu corpo! Socorro!...
C o m o se, naquele instante, os corpos ovóides se
t a n g i b i l i z a s s e m , eu e o C a r m e l i t a t a m b é m p u d e m o s
enxergá-los numa visão estarrecedora: quase u m a dezena
deles lhes parasitava a região do cérebro e a dos órgãos
genitais, corpúsculos escuros e entumecidos, que apenas
me p a r e c i a m se a l i m e n t a r e respirar, s e m n e n h u m a
atividade sensória ou intelectual em registro.
N ã o sopitando a curiosidade, observei:
— Odilon, eu nunca os tinha visto assim, em tão
grande número infestando u m a única pessoa e n e m tão
unidos... Estou, deveras, espantado!
— Inácio, são irmãos nossos que se degradaram a
tal ponto... A cadeia obsessiva, para se alimentar a si

210
mesma, estabelece u m a sintonia que apenas não continua
nas mentes que não lhe oferecem conexão; a obsessão é
o processo mediúnico funcionando às avessas... O mal,
q u a n t o o b e m , t a m b é m v i v e em r e g i m e de interde-
pendência; na m e s m a proporção em que a luz se alimenta
de luz, a sombra se alimenta de sombra, o urubu se nutre
do cadáver em decomposição, o colibri, do néctar das
flores...
— Embora, do ponto de vista teórico, eu saiba da
existência dos corpúsculos em foco, e isso desde quando
m e e n c o n t r a v a n o m u n d o , lidando com o s t e m a s d a
obsessão e compulsando respeitável literatura a respeito,
do ponto de vista prático custa-me crer...
— Do ponto de vista prático, custa-nos crer em
muita coisa - sentenciou Odilon.
— Que destino lhes estará reservado? - inquiri ao
companheiro. — Poderão reencarnar nas condições em
que se encontram? C o m o haverão de readquirir a forma
h u m a n a ? Haverá ventre materno preparado para recebê-
los?
— Inácio, o assunto comporta muitas divagações;
d i g a m o s , n o e n t a n t o , q u e c a d a caso r e q u e r s o l u ç ã o
específica. Alguns deles, através de tratamento intensivo
e especializado, conseguem retomar a forma, parcial ou
totalmente; outros, porém...

211
29

— Outros, porém?...
— ...renascem ou tentam renascer em condições
precárias, submetendo-se a longos tratamentos no c a m p o
celular, em expiações dolorosas; readquirem a forma em
diversos ensaios reencarnatórios, sendo sucessivamente
abortados para que, gradativamente, descondicionem a
mente... Conforme dissemos, o assunto é delicado e não
poderíamos abordá-lo em tão sucintas palavras.
— M a s - insisti em derradeira pergunta -, apenas
em contato mais estreito c o m a matéria é que haverão de
se curar?
Odilon olhou-me, pensativo, e respondeu:
— N ã o , mas a organização celular, com base nas
leis da hereditariedade, c o m o que lhes constrangeriam o
corpo espiritual a se modelar; o perispírito, sem dúvida,

212
é a matriz em que o corpo físico se estrutura, no entanto,
em determinados casos, o inverso é verdadeiro; a mente
dos genitores, notadamente a da m ã e , p e n s a n d o c o m
insistência no futuro filho, c o l a b o r a p a r a q u e , tanto
quanto possível, o corpo se lhe plasme saudável. Os
gregos recomendavam que as suas mulheres grávidas, a
fim de que os seus rebentos nascessem belos e fortes,
durante todo o seu período de gravidez, procurassem
contemplar quadros que as induzissem a mentalizar a
beleza, convictos de que tal providência concorreria para
que tivessem filhos semelhantes a Apolo...
N ã o m a i s nos seria p o s s í v e l p r o s s e g u i r c o m o
d i á l o g o e s c l a r e c e d o r , q u e n o s fora m o t i v a d o p e l a s
circunstâncias; a entidade vampirizada que, agora, rolava
no c h ã o , a se debater, n e c e s s i t a v a de ser r e c o l h i d a .
P e d i n d o a C a r m e l i t a q u e t o m a s s e as p r o v i d ê n c i a s
cabíveis, contactando algum grupo socorrista mais
próximo, nos voltamos para Túlio, que se entretinha com
a pulseira de Hulda nas m ã o s , e o convidamos a nos
seguir.
— Eu não sei como agradecer-lhes - disse-nos ele.
— N ã o nos agradeça, meu filho - redargui -; nada
fizemos além de nossa própria obrigação; esse é o nosso
trabalho...
— No entanto, se não fosse por vocês...
— Se não fosse pela Misericórdia Divina, todos
haveríamos de estar na m e s m a situação.

213
— O que acontecerá com o A m a r o ? - eis o n o m e
do espírito cuja remoção para o hospital estava sendo
providenciada.
— M a i s tarde o examinaremos...
— Eu não enxergava aqueles corpúsculos vivendo
em seu corpo... Será que t a m b é m não fui contaminado?
— Mais um pouco e, com certeza, não escaparia.
— Sinto-me exaurido...
— É natural, pois, sendo v o c ê mais j o v e m , A m a r o
e seus dois companheiros lhe sugavam as forças.
— Eles me olhavam de maneira tão estranha...
— A l i m e n t a v a m - s e de v o c ê , t a n t o q u a n t o se
alimentavam de suas vítimas encarnadas - a c u m u l a v a m
e, ao m e s m o tempo, consumiam energia, gastando-a c o m
exclusividade na busca do prazer.
— O que acontecerá aos outros dois?
— Quanto mais persistirem na situação em que se
encontram, mais se lhes agravará o quadro; todavia, no
m o m e n t o justo, haverá q u e m os socorra.
— Por favor, fale-me de m i n h a m ã e ; eu não me
recordo de sua face...
— Iaporé é u m a de nossas melhores enfermeiras
no hospital; vocês se parecem muito um com o outro e,
desde o tempo em que foram m ã e e filho, em recuada
existência entre os índios caiapós, a semelhança entre
ambos é notável.
Sem nos darmos conta, estávamos já às portas do
Hospital, mas, ainda a certa distância, pude avistar Iaporé
e Huida, que nos aguardavam a chegada.

214
O reencontro entre m ã e e filho foi emocionante.
C o m lágrimas nos olhos, Iaporé avançou na direção de
Túlio, que, ficando sem ação, se deixava abraçar e beijar
p o r ela, q u e lhe a l i s a v a o s l o n g o s c a b e l o s n e g r o s ,
semelhantes aos dela, dizendo com voz entrecortada:
— Juari!... Você é o m e u pequeno Juari! Há quanto
tempo, meu Deus!... Por onde você andou, meu filho?...
E acariciava-lhe o rosto, aconchegando-se ao peito
do rapaz, o qual não sabia o que dizer.
— Fale, m e u filho, diga alguma coisa para a sua
mãe... Desde que se perdeu na mata, eu nunca mais fui
feliz! Você me reconhece, não é? Abrace-me!...
— Senhora - disse Túlio, por fim -, perdoe-me,
mas eu não sei... A face de todos os que, um dia, eu possa
ter a m a d o se me apagou da memória... Eu não me lembro
de nada! Somos, sim, parecidos, mas será o bastante para
que eu tenha a certeza?...
— O m e u c o r a ç ã o de m ã e não se e n g a n a r i a -
respondeu Iaporé com firmeza -; a onça pintada é capaz
de identificar a sua cria, entre dezenas de outros filhotes,
simplesmente pelo cheiro... Eu sinto em você, Juari, o
meu próprio cheiro, e saberia quem é, ainda que estivesse
cega!
E, descendo a blusa à altura do ombro esquerdo,
exibiu u m a cicatriz que, curiosamente tinha a forma de
um pássaro...
— Hulda me falou, m e u filho, que você tem um
sinal de nascença igual a este; a Vontade de Deus, que

215
nos separou, marcou-nos para que j a m a i s nos perdês-
semos um do outro, para sempre!... Mostre-me, por favor,
o seu ombro.
E n t ã o Túlio, ou melhor, Juari, c o m duas lágrimas
que, de súbito, lhe rolaram na face morena, desabotoou
a c a m i s a e m o s t r o u , e x a t a m e n t e no m e s m o lugar, a
pequena cicatriz que fazia lembrar um pássaro com as
asas abertas...
— M i n h a m ã e ! - e x c l a m o u o j o v e m , n ã o mais
contendo a emoção. — Iaporé, m i n h a mãe!... Agora, eu
posso dizer que eu t a m b é m tenho mãe!... Hulda, venha
cá! Q u e felicidade!... C o m o D e u s é b o m !
Sentindo que o m o m e n t o era o de nos afastarmos,
eu e Odilon nos retiramos para o m e u gabinete e nos
p u s e m o s a conversar, descontraidamente.
— Missão cumprida, Odilon.
— Parcialmente cumprida, Inácio...
— De fato; se os nossos irmãos na Terra soubessem
o que significa desencarnar...
— Saberão na prática o que já s a b e m na teoria.
— Sabem parcialmente, Odilon - foi a minha vez
de observar.
— Correto, Inácio.
— N ã o , eles não sabem - com raras exceções, eles
não sabem... A grande maioria, ao deixar o corpo, espera
ser recebida por u m a comissão de recepção e encami-
nhada aos Paramos Superiores; m e s m o p a r a os espíritas,
o M u n d o Espiritual é ainda um grande " N o s s o Lar"...

216
— Talvez m e s m o eles não estejam preparados para
pensar de outro m o d o .
— Mas você não acha, Odilon, que já seria tempo?...
Afinal de contas, muitos de nossos confrades
reencarnaram na condição de espíritas pela segunda vez
e, quiçá, pela terceira!
— Todavia, a a s s i m i l a ç ã o da Verdade é lenta;
vejamos quanto tempo u m a mãe e um filho levaram para
se reencontrar...
— Um simples episódio...
— D o s Dois Lados da Vida, quantos não existirão
semelhantes?
— Q u a n t o s interesses diversificados e q u a n t o s
anseios pessoais!...
— Q u e m tem um problema a solucionar, Inácio,
seja ele qual for, não consegue pensar muito fora de seu
próprio âmbito, concorda? O Universo se lhe resume
naquele ponto microscópico...
— Concordo, Odilon; eu me cansei de ver isso no
Sanatório e, agora, aqui, no Hospital dos Médiuns.
— Toda experiência é válida, mas cada espírito
requisita um t e m p o para fixar a lição: uns a p r e n d e m
depressa; outros com vagareza...
— E somos feitos da m e s m a "massa"...
— Iaporé, Juari e Hulda, muito p r o v a v e l m e n t e ,
reencarnarão em breve...
— E A m a r o , no estado em que se encontra?
— Ele também é filho de Deus e está a caminho da
Perfeição...

217
— E os corpos ovóides, espíritos que, após terem
conquistado a láurea da razão, se degradaram a tal ponto?
— C o m o se a borboleta voltasse a ser lagarta... N ã o
retrogradaram, p o r é m - é bom, Inácio, que se destaque.
— Eclipsaram-se mentalmente; embotaram-se...
— Embriões que se recusam a ser crianças e, depois
de sê-lo, " q u e r e m " empreender a viagem de volta...
— C o m receio da luta, aspiram ao não-ser...
— U m a segunda morte em nível primitivo...
— ...que lhes exigirá um segundo nascimento!
— Sim, deste ou do outro Lado da Vida...
— Poderão, então, Odilon, "renascer" aqui, antes
de renascerem na Terra?
O Instrutor meditou, meditou e respondeu, por fim.
— Você não desiste, não é, Inácio? É um assunto
que pode gerar tanta controvérsia entre os nossos
irmãos!...
— Podem ou não podem? - insisti, respeitosamente.
— P o d e m e, digo-lhe mais, em muitos casos há
necessidade de que assim seja!...

218
30

— Odilon - solicitei -, fale-me mais a respeito.


— A Terra não é o único laboratório em que o
princípio inteligente realiza a sua evolução; nas dimen-
sões espirituais, ele igualmente se elabora e se expande,
alternando experiências em contato com a matéria que,
simplesmente, varia de densidade; o soma é filho da Terra,
mas o espírito, em si, não o é... Antes de mergulhar nos
domínios da vida material, o princípio intelectual se gerou
nas regiões do C o s m o e, então, quando o orbe estava,
finalmente, preparado, eis que ele se manifesta sobre o
palco multimilenar da Evolução, adquirindo forma e
estruturando-se, a partir dos elementos unicelulares em
que se expressará... O espírito, portanto, se reveste de
vários corpos espirituais para a j o r n a d a mística que
empreende, dos quais, para o ser encarnado, o corpo

219
humano é a sua representação mais grosseira. A c h a m a d a
mônoda espiritual, ou seja, o espírito em sua essência
mais pura, involui para evoluir, ou seja, a p ó s quase
identificar-se com a matéria, ela, a m ô n a d a , se espiri-
tualiza, sutilizando-se através dos corpos que lhe servem
de veículo; digo quase identificar-se porque o espírito,
em sua própria natureza, j a m a i s se c o n f u n d e c o m a
matéria...
Digo-lhes, com sinceridade, que eu estava tendo
que me esforçar p a r a a c o m p a n h a r os r a c i o c í n i o s do
Instrutor, que p r o s s e g u i a tentando me explicar o que
transcende o poder das palavras:
— R e s u m i n d o , Inácio, o espírito, ao se distanciar
do seu ponto de origem, ou seja, D e u s , se reveste de
muitos corpos, e, depois, ao Dele se reaproximar, através
dos degraus da experiência reencarnatória, que t a m b é m
acontece em vários níveis, despe-se g r a d a t i v a m e n t e ,
s u p e r a n d o todas as limitações. C h e g a m o s , agora, ao
ponto que desejo abordar c o m referência aos ovóides,
q u e , em ú l t i m a a n á l i s e , são espíritos quase em sua
identidade original, destituídos de c o r p o físico e de
perispírito...
— De perispírito t a m b é m ? - perguntei.
— Dos 7 veículos de manifestação do espírito, os
mais expressivos são, em ordem evolutiva decrescente:
corpo mental, corpo espiritual, ou perispírito, e corpo
físico... O espírito, quando se sublima, atingindo o estágio
de espírito puro, é a p e n a s energia, s e m c o n t o r n o de

220
q u a l q u e r espécie e natureza. A b r i n d o um p a r ê n t e s e ,
vejamos a que o Cristo se submeteu para ganhar forma
entre nós... Isso, porém, acontece quando o ser ascende
de forma consciente, integrando-se a criatura c o m o
Criador; todavia, q u a n d o a criatura se degrada e "se
suicida" moralmente, ela, ao invés de ascender, desce
para além dos limites que lhe preservam a individualidade
e e s t a c i o n a no corpo mental, c o m o se e s t i v e s s e
involuindo para dentro de si mesma. Vejamos se melhor
m e faço e n t e n d e r : i m a g i n e m o s , n u m a e s c a l a , sete
estágios, um ascendente: de + 1 a + 7, - 7 a - 1...
E, com um pincel luminoso, Odilon representou
sobre u m a folha o seguinte gráfico:

Involução

— E o Criador, onde o situaríamos? - indaguei.

221
— Deus é a transcendência, Inácio: a transcendência
imanente; está em tudo, mas não é tudo!... D e u s é um ser
à parte, que sempre estará além de nossas cogitações...
Pausando por m o m e n t o s , Odilon continuou:
— Voltemos ao que interessa, pois, caso contrário,
nos perderemos. Em nossa representação gráfica, o +7
significa o grau de maior pureza alcançado pelo espírito
e o -7 o de maior impureza: subindo, o h o m e m se converte
em anjo; descendo, o h o m e m r e t o m a os estágios
primitivos... Mas voltamos a repetir: não existe retrocesso
evolutivo; conquista é conquista... Esses corpos ovóides
" p e r d e r a m " a forma, m a s não a experiência adquirida,
que se recolheu neles e permanece em estado latente:
eles " s a b e m " pensar, são capazes de sentir e m u i t o s
revelam considerável conhecimento... Estão sofrendo de
u m a espécie de autismo espiritual.
— O assunto é m e s m o c o m p l e x o - admiti -; um
simples gráfico está me fazendo a cabeça rodopiar. E
estes + 1 , -1?...
— Representam os pontos onde começa a funcionar
o livre-arbítrio; é onde o h o m e m decide o destino... Por
exemplo, do +2 para o + 1 , o h o m e m não pode cair; mas
do -1 para o -2, sim, e sucessivamente...
— E do +1 para o -1?...
— Do hoje cair para o ontem, você quer dizer?
— Sim, mais ou menos isso...
— Depende, pois, se o hoje estiver mais próximo
do ontem do que do amanhã, s e m p r e haverá o risco...

222
— Há, porém - indaguei -, necessidade de que o
espírito desça tanto? Explico-me melhor: no processo
de involução, é da Lei que o espírito se rebaixe a tais
níveis, se degradando até quase a ou, m e s m o , a perder o
que conquistou? Por exemplo, do +1 ao -11...
— Há necessidade de que o espírito suba, ou seja,
de que realize a sua evolução, que é uma fatalidade divina;
descer está afeto ao seu livre-arbítrio; subir, à Lei do
Determinismo...
— Quer dizer que, quanto mais descei...

?!
— Quanto mais se distancia do Ilimitado, mais
limitação; quanto mais se distancia da limitação, mais se
aproxima do Ilimitado; em outras palavras: quanto mais
matéria, menos espírito; quanto mais espírito, m e n o s
matéria...
— E por que estes 7 níveis, para + e para -? Puro
convencionalismo ou capricho do Criador?
— Inácio, estamos longe de obter respostas para
todas as perguntas; o que sabemos é u m a parcela ínfima
do que nos compete saber... Há, inclusive, quem fale em
11 ou mais níveis. Seja c o m o for, o que importa é o
seguinte: estamos a caminho e naturalmente sujeitos a
desagradáveis acidentes de percurso... O h o m e m ainda
há de morrer e de nascer incontável número de vezes, e

223
não tão-somente sobre a Terra. N ã o façamos da Evolução
u m a idéia tão simplista.
— A medida, então, que o espírito avança...
— ...o seu universo íntimo se lhe expande, pois o
universo que ele traz por dentro é maior do que aquele
que povoa externamente.
Em m e u cérebro, as perguntas não cessaram; eu
estava entendendo, mas...
— Sei o que v o c ê quer saber agora - d i s s e - m e
Odilon sorrindo.
— Leu o meu p e n s a m e n t o ?
— Auscultei-o - r e s p o n d e u o M e n t o r , q u e
prosseguiu. — Você quer saber se foi Deus quem criou
os 7 níveis inferiores, não é? C o m o a Perfeição Absoluta
poderia ter criado a imperfeição... Dentro da Obra Divina,
a imperfeição é o traço do h o m e m ; sendo co-criador, o
espírito projeta à sua volta as exteriorizações de sua
mente... O que é de Deus é eterno; o que é do h o m e m é
transitório... Na Terra, o h o m e m transforma a matéria
com as suas m ã o s , apêndices de sua vontade; nas regiões
espirituais, m e n o s ou m a i s m a t e r i a l i z a d a s , o ser
desencarnado opera através da força da mente...
— A exceção do que acontece na Terra, o espírito,
em outras dimensões existenciais, não constrói c o m as
mãos?
— Tudo é relativo; nas d i m e n s õ e s superiores, o
processo é sutil, ao passo que, nas inferiores, não difere
muito do que ocorre no orbe.

224
— Os espíritos constroem com as m ã o s ?
— Por que não construiriam, se ainda não sabem
lidar c o m a p r ó p r i a força m e n t a l ? P a r a o m a l , as
edificações n a s c e m e s p o n t â n e a s , m a s , p a r a o b e m ,
quando se querem construções sólidas e duradouras, há
de se ter u m a m e n t e vigorosa... O U n i v e r s o é u m a
c o n s t r u ç ã o d a M e n t e D i v i n a . A s r e g i õ e s espirituais
inferiores - o U m b r a l , por exemplo - são projeções de
milhares de mentes em sintonia; nada que é criação do
espírito h u m a n o é real...
— C o m o assim?
— Tende a desaparecer, Inácio.
— As invenções e os engenhos humanos...
— Ensaios, para que, exercitando-se na condição
de co-criador, um dia, daqui a milênios s e m data, a
criatura se integre no Criador.
— E confunda-se com Ele?
— Jamais; o filho, embora possa vir t a m b é m a ser
pai, sempre será descendente... A fonte que chega ao mar
origina-se dele m e s m o ; a semente não passa de u m a cópia
da árvore que a produziu...
N ã o dispúnhamos de mais tempo. As explicações
do Instrutor v i n h a m , de certa forma, ao encontro de
minhas reflexões em torno da Vida. De um nível evolutivo
a outro, quantos dramas, quantas experiências!... Quão
longo, de fato, era o c a m i n h o ! Antes, p o r é m , de nos
retirarmos, para s u b m e t e r m o s A m a r o a um primeiro
exame, arrisquei u m a nova pergunta:

225
— Odilon, c o m o encurtamos o caminho, que, de
t ã o e x t e n s o e c o m p l e x o , c h e g a a d e s a n i m a r ? Ou é
inevitável que c u m p r a m o s todos os estágios?...

226
31

— O A m o r é o caminho que torna tudo mais fácil,


evitando que o espírito, por séculos e séculos, voluteie
em t o r n o de si m e s m o ! - r e s p o n d e u o M e n t o r , c o m
precisão. — O A m o r faz c o m que o espírito cumpra a
sua trajetória em linha retilínea... Por esse motivo, ele
está acima da Verdade. Q u e m sabe amar, sabe o essencial,
p o r q u e a conquista do A m o r implica a c o n q u i s t a da
Sabedoria. O verdadeiro sábio é aquele que a m a e aquele
que verdadeiramente ama é um sábio. Todas essas etapas
evolutivas e outras mais que possam existir existem com
o único objetivo de que o h o m e m aprenda a amar. Q u e m
sabe amar, nada mais tem para saber. Jesus resumiu toda
a Lei e a sabedoria dos profetas, num único mandamento:
" A m a r a Deus sobre todas as coisas e ao próximo c o m o
a si m e s m o " !

227
— E s s a luta toda, O d i l o n , o d r a m a m i l e n a r da
Evolução, é por conta disso?...
— Sim; o A m o r é a s u p r e m a conquista... A q u e l e
que a m a chega a Deus, que o apóstolo João definiu c o m o
sendo A m o r !
— Se assim é, por que não a m a m o s ?
O Orientador sorriu e, enquanto saíamos do m e u
gabinete, redarguiu:
— Esta, Inácio, é a pergunta que eu me tenho feito:
por que não conseguimos amar de vez, conforme Jesus
nos a m o u ? Se o A m o r fosse u m a simples questão de
palavras...
— N ã o basta, no entanto, que se queira?
— Basta que se possa!
Atravessando diversas salas, alcançamos o quarto
em que A m a r o se encontrava recolhido e imobilizado,
pela ação de alguns sedativos. A o s m e u s olhos, ele me
parecia a g o r a m u i t o mais i n c h a d o e d e s f i g u r a d o ; os
corpos ovóides que o vampirizavam, igualmente mais
intumescidos, davam-me a impressão de esferas opacas
que, vez por outra, ensaiavam m o v i m e n t o s a m e b ó i d e s ;
constituíam-se, por assim dizer, em verdadeiras
tumorações no corpo espiritual do paciente.
T o m a n d o os devidos c u i d a d o s , eu e Odilon n o s
aproximamos, esclarecendo que, antes, luzes de cores
variadas foram acesas clareando o a m b i e n t e e, principal-
mente, focando o corpo de A m a r o .
Sinceramente, eu não sei se vou conseguir descrever
o quadro e a inusitada experiência que estávamos prestes

228
a vivenciar. Na região do cérebro, um corpúsculo, pelo
tamanho e pela movimentação, se destacava dos demais
que, estranhamente, pareciam lhe obedecer. A "olhos
n u s " , c o n f o r m e disse a n t e r i o r m e n t e , os ovóides me
pareciam sem atividade sensória ou intelectual de
destaque, c o m o se todas as suas faculdades houvessem
sido suspensas; eles se ligavam ao corpo do paciente
através de um filamento de grosso calibre, por onde, com
certeza, realizavam complexo processo de sucção... A
sua m o v i m e n t a ç ã o pulsátil era insuficiente para q u e
chegássemos a qualquer conclusão a respeito do que se
tratava: quem não os conhecesse j a m a i s diria que fossem
entidades espirituais em estado de c o m p l e t a degra-
dação...
C o m vários enfermeiros a postos, inclusive o nosso
Manoel Roberto, decidimos por examinar o maior deles
q u e , c o m o n o s a d i v i n h a n d o a i n t e n ç ã o , se r e t r a i u ,
acoplando-se ao cérebro de A m a r o .
D e i x a n d o que eu tomasse a iniciativa, Odilon se
mantinha ao m e u lado, qual se, naquele instante, o mais
habilitado fosse eu e não ele.
Pedindo a um dos nossos assistentes que fizesse
determinado aparelho de ausculta se aproximar do leito
- um aparelho de eletroencefalografia ultra-sofisticado,
que, ao m e s m o tempo, nos possibilitava registrar
atividades mínimas de natureza intelectual - adaptei-o
ao crânio do paciente e, após acioná-lo, permanecemos
na expectativa de alguma reação.

229
E n q u a n t o aguardávamos, c o m e n t e i com Odilon:
— Se pudéssemos realizar a ausculta direta, sem
necessidade de recorrermos ao "eletrointelecton"?
— Em outras circunstâncias, talvez - comentou o
Instrutor. — O estado atual de A m a r o não no-lo permite,
pois é c o m o se ele estivesse em coma... Nestes casos, o
detector de pensamentos torna-se imprescindível.
Alguns minutos se passaram, e nada: o aparelho
não conseguia, não captava n e n h u m a atividade intelec-
tual, apenas o ruído de um leve pulsar, semelhante ao
dos batimentos cardíacos.
— Inácio, procure estimulá-lo - aconselhou-me o
c o m p a n h e i r o atento -; s u b m e t a - o a um leve e l e t r o -
choque...
Acatando-lhe a sugestão, c o m u m a vareta eletri-
ficada, muito parecida com u m a l â m p a d a fluorescente,
disparei diminuta carga sobre o ovóide, com o propósito
de " a c o r d á - l o " . Q u a s e q u e , de i m e d i a t o , a e n t i d a d e
começou a gemer, aumentando o r i t m o das pulsações.
Repetindo a operação por mais duas vezes, sem que
A m a r o reagisse, a não ser por leves estremecimentos, o
ovóide, saindo de sua letargia, articulou pensamentos que
o "eletrointelecton" sonorizou:
— A i , ai!-... Q u e m me faz s o f r e r ? D e i x e m - m e
dormir... Que claridade é essa? D e i x e m - m e ! Deixem-me!
N ã o me tirem daqui...
Odilon, olhando-me significativamente, deu-me a
entender que eu deveria falar, pois, imantado ao cérebro

230
de A m a r o c o m o se encontrava, aquele "ser", que era
nosso irmão, poderia ouvir-me.
— A p e n a s queremos ajudá-lo - principiei -; você
precisa se libertar...
— Você, q u e m ? Porventura, sou alguém ou alguma
coisa?... D e i x e m - m e ! Eu não quero...
— Você é um ser humano...
— H u m a n o , humano... Eu não me lembro. Q u e
diferença faz? C o m o e vivo - eis o que me basta e viver
já é muito...
— Você é filho de Deus; não pode continuar assim...
— D e u s ? ! . . . Faz t e m p o q u e d e s i s t i m o s um do
outro... D e i x e m - m e ! Eu só preciso de alguém... Este aqui
e n a d a são a m e s m a c o i s a ; é u m a p e n a q u e , l o g o ,
tenhamos que procurar outro...
— Outro?! Por quê?...
— Porque ele está se tornando um de nós...
— Você precisa despertar!
— Para quê? Para sofrer?!... Acreditem, a incons-
ciência é melhor, já que fomos c o n d e n a d o s a viver
eternamente...
— Há quanto tempo, meu irmão, você está nessa
situação?
— Tempo e espaço inexistem para mim!... Eu nada
sei, nada quero saber... Por favor, não me digam nada.
Deixem-me, e prometo abandoná-lo; procuraremos
outro...
— Mas você já foi um homem...

231
— Sim, certamente, e não me interessa mais sê-
lo...
E a entidade gemia, se debatendo:
— Ai, ai!... Eu não quero olhar para fora de m i m ;
por favor, não me obriguem... A p a g u e m a luz! Eu prefiro
a escuridão...
— Deus está dentro de você, m e u irmão...
— Dentro de m i m ? Deus?!... É u m a piada.
— É inútil continuar se opondo ao determinismo
das Leis que regem os princípios da Vida. N ó s iremos
libertá-lo...
— Libertar-me? Como?!... O que vocês haverão de
fazer comigo? Eu não tenho forma, não tenho nada...
— Você é um ser h u m a n o - repeti.
— Fui!...
— E voltará a sê-lo...
— Mas, para quê? N ã o me interessa ser como vocês;
nem m e s m o o prazer me interessa... D e i x e m - m e em m e u
sono, sem sonhos n e m pesadelos.
— O tempo passará...
— Que passe a Eternidade!...
— Os cirurgiões especializados já foram contac-
tados; eles estão a caminho para desfazer, cirurgicamente,
essa simbiose doentia...
— N ã o , não!... Todos parasitam uns aos outros;
alguém sempre viverá na condição de comensal de um
outro alguém... Os vírus e as bactérias vivem às expensas
alheias: é o que escolhemos ser!...

232
— O que aconteceu a você, meu irmão?
— Eu não sei... Creio que foi o que aconteceu a ele,
o m e u "hospedeiro". A gente vai desistindo de lutar; o
destino é implacável...
— E os outros q u e estão c o m v o c ê ? C o m o se
agruparam?
— F o m o s nos j u n t a n d o .
— Vocês " c o n v e r s a m " entre si?
— Até os vegetais se comunicam...
— Sabem se identificar?
— I n f e l i z m e n t e , algo a i n d a n o s p r e s e r v a a
individualidade; t e m o s um corpo - primitivo, mas o
temos... É o que nos impede o não-ser totalmente.
— Teremos que intervir - considerei -; a m a n h ã de
manhã, os cirurgiões os operarão...
— Ai! O que será de nós... P a s s a r e m o s fome e
ficaremos perdidos.
— N ó s cuidaremos de vocês; necessitam retomar a
forma humana...
— Para quê? Ser adulto e ser criança, sofrer e se
angustiar... Almejamos a impassividade do grão de areia
ou, então, a indiferença das amebas.
— Estão prejudicando o próximo...

233
32

O inusitado diálogo, possibilitado pelo aparelho que


lhe ampliava os pensamentos e os sonorizava, prosseguia,
esclarecedor:
— E ele, não prejudica a n i n g u é m ? F a z e m o s parte
de u m a cadeia alimentar, da qual vocês t a m b é m fazem
parte; a diferença está no cardápio: todos c o m e m , todos
bebem e se satisfazem...
— M e u irmão, há tanto caminho para cima!...
— Preferimos a escuridão do abismo...
N ã o convinha que nos alongássemos. A m a r o c o m e -
çava a se inquietar, debatendo-se no leito. Desligamos o
"eletrointelecton", diminuímos as luzes e saímos da sala,
que, no outro dia, já estaria preparada para a cirurgia de
extirpação daqueles " t u m o r e s " .
— É difícil acreditar, não, Odilon?

234
— Você tem razão, Inácio - concordou o Benfei-
tor -; e, se é difícil para nós, imaginemos para os nossos
irmãos na carne...
— O espírito, quando se prepara para reencarnar,
se restringe assim, em seu corpo espiritual? - perguntei.
— D e p e n d e do seu grau de evolução; espíritos de
uma hierarquia mais elevada sustentam a própria
consciência até praticamente às vésperas de se consumar
o ato reencarnatório; com a maioria, no entanto, assim
que se dá a fecundação do óvulo pelo espermatozóide,
vai se restringindo gradativamente. Se o novo corpo em
formação recapitula os seus estágios evolutivos, o m e s m o
acontece ao espírito...
C o m o permanecesse em silêncio, Odilon indagou-
me:
— Em que você está pensando, Inácio?
— Na pergunta de N i c o d e m o s a Jesus: " C o m o pode
um h o m e m nascer, sendo velho? Porventura pode entrar
no ventre de sua mãe e nascer outra v e z ? " .
— A época, N i c o d e m o s não teria entendido...
— O m u n d o ainda está repleto deles... Ora, mas
não é fácil m e s m o admitir que o espírito se "encolha",
se encapsule, para ligar-se à célula-mãe que lhe dará
origem ao corpo...
— N ã o nos esqueçamos, todavia, de que é graças a
essa ligação que o corpo, sob o c o m a n d o mental do
espírito, toma forma; caso contrário, teríamos células se
reproduzindo desordenadamente.

235
— C o m os Espíritos Superiores?...
— O p r o c e s s o nos escapa, Inácio! - e s c l a r e c e u
Odilon com sinceridade. — N ã o sabemos, por e x e m p l o ,
como se teria dado com Jesus o processo da e n c a r n a ç ã o ;
tenho comigo que a sua M e n t e quase divina t u d o
controlou à distância, pois tinha absoluta autonomia sobre
a matéria...
— M a s nada de corpo fluídico?
— N a d a de corpo fluídico! A teoria em pauta, q u e
tem gerado tanta polêmica entre os espíritas, nasceu do
respeito e da veneração que determinados c o m p a n h e i r o s
do Cristianismo nascente v o t a v a m à figura do Senhor,
incapazes de compreender-lhe os feitos e a atuação neste
m u n d o de outra maneira. A rigor, não haveria m o t i v o
para as infindáveis discussões que têm provocado u m a
cisão no M o v i m e n t o . O corpo do Cristo não era m e s m o
igual ao nosso...
— M a s era de carne e osso?
— Sim, Inácio, e é b o m que o repitamos em alto e
bom som: era de carne e osso! Todavia, sentindo-lhe os
reflexos do espírito, era constituído do que a matéria sobre
a Terra tem de mais puro: ou seja, caso o Senhor n ã o
tivesse encontrado a morte na cruz, provavelmente n ã o
teria morrido de doença, mas,sim, do desgaste a que n ã o
se teria p o u p a d o pela ação do t e m p o .
— Viveria, então, acima da média...
— Teria sido o h o m e m mais longevo do planeta!

236
Despedimo-nos. Odilon ficaria conosco até o outro
dia, mas p r e c i s a v a entrar em contato c o m o Liceu e
equacionar certos problemas.
De volta ao m e u gabinete, fiquei a espiar o desenho
q u e ele i m p r o v i s a r a s o b r e u m a folha, e n t r e g u e a
devaneios, q u a n d o M a n o e l Roberto, aproximando-se,
pediu licença e tomou o papel nas m ã o s .
— Q u e gráfico estranho, Doutor?
— Está de cabeça para baixo - respondi, disposto a
descontrair-me às suas custas.
— O que significa?
— É u m a análise que eu e o Odilon estávamos
fazendo a seu respeito...
— A m e u respeito?...
— Sim; concluímos que você está aqui, no -7: no
último degrau da cadeia evolutiva...
— E o senhor? - perguntou Manoel, entrando no
jogo.
— Segundo as minhas contas, quase no topo; devo
estar aí no +4, +5... Falta-me pouco. Apenas mais alguns
passos e pronto: estarei livre, em definitivo, de vocês...
— Que maravilha!
— Que maravilha, o quê?
— Ficaremos livres do senhor!...
Rimo-nos e entramos a conversar amenidades,
faltando-nos apenas u m a xícara de café quente, daquele
que, por volta das duas da tarde, t o m á v a m o s na cozinha
do Sanatório.

237
— Q u e m diria, hem, M a n o e l , que nos
transferiríamos de mala e cuia para cá?
— Pois é, Doutor, a gente brincava...
— Continua brincando e a Verdade está aí...
— O que nos espera, doravante?
— O de sempre, Manoel: trabalho!
— O senhor se lembra de que c o m e n t á v a m o s que
os espíritos que se comunicavam por D. Modesta somente
sabiam nos mandar trabalhar?... D á v a m o s um duro
danado e eles querendo mais!
— E que esta é a única saída que temos: trabalhamos
ou... trabalhamos!
— N ã o é de espantar que muita gente se rebele...
— Rebeldia, em nosso caso, simplesmente se traduz
por se adiar o esforço de ascensão, ou seja: adiar o suor
inevitável...
— A s i t u a ç ã o de H u l d a , de T ú l i o , de A m a r o e
daqueles ovóides que nem nome têm...
— Fomos instrumentos da Lei p a r a incomodá-los;
assim c o m o outros o são para incomodar-nos; D e u s não
deixa ninguém ficar quieto...
— N e m m e s m o as pedras, não é, D o u t o r ?
— Q u a n d o estão criando limo, u m a m ã o invisível
faz c o m q u e se d e s l o q u e m e se a t r i t e m . A V i d a é
dinamismo... N ã o há quem cruze os braços impunemente.
— Quer dizer, então, que o negócio é trabalhar?
— Sem pausa, Manoel, sem pausa...
— É bom que o senhor pense assim.

238
— Por quê?
— Porque o Matusalém está aí fora...
— O Matusalém, aquele velho?!
— N ã o o da Bíblia, Doutor.
— É - ironizei -, pois eu pensei que fosse; mande-
o entrar... Morri, mas continuo sem saber o que sou: se
médico ou paciente, espírita ou - Deus me livre! - padre
confessor...
Matusalém - permitam-me esclarecer-lhes - é como
c h a m a m o s um dos espíritos mais velhos que conheço no
M u n d o Espiritual - há mais de 300 anos não reencarna e
não há quem o faça mudar de idéia... B e m , pelo menos,
não fazia.
— Olá, m e u velho amigo! - disse, estendendo-lhe
a m ã o . — A que devemos a honra de semelhante visita?
— Eu queria, Doutor, conversar um p o u c o ; acho
que, ultimamente, ando com a cabeça meio fraca...
— O q u e e s t á h a v e n d o ? N ã o me d i g a q u e se
apaixonou!...
— N ã o troce comigo, Doutor; o senhor sabe que
eu sempre vivi isolado - morei muito tempo sozinho,
afastado da civilização...
— Dos vivos e dos mortos, não é?
— Sim; eu não me interesso por gente... Gosto de
viver no meu canto, sem ser incomodado.
— Se você não existisse, M a t u s a l é m , a Criação
Divina seria incompleta. Neste Universo de meu Deus,
tinha que existir um espírito igual a você...

239
— Como?!
— Esqueça. Continue...
— Pois é, Doutor, esse negócio de reencarnar é
complicado, é complicado...
— Dou-lhe inteira razão... R e e n c a r n a r é compli-
cado; desencarnar t a m b é m é.
— Eu não conto o t e m p o , mas d i z e m que há mais
de 300 anos estou por aqui, sem ir à Terra. O senhor
sabe, eu não tenho família e nem outros interesses; para
mim, vivendo está bom... N u n c a fui exigente c o m nada.
Passei um tempão m o r a n d o n u m a c a v e r n a isolada, no
meio do mato; era um lugar agradável e eu fui ficando...
Q u a n d o c o m e ç a v a a j u n t a r gente n u m lugar, eu me
m u d a v a para outro.
— É u m a boa tática...
— Eu n u n c a me interessei por religião alguma:
a d o r o D e u s na N a t u r e z a ! O n d e tem d i n h e i r o e tem
religião, tem briga. O senhor me d e s c u l p e , sei que o
senhor é espírita, mas os espíritas brigam também...
— E muito!
— Agora, no entanto, depois de muito tempo, surgiu
uma tentação no meu caminho... Entrou pelos meus olhos,
Doutor, e tomou conta do meu espírito. Eu já fiz de tudo
para esquecer, mas acho que é coisa mandada...
— Deus é um grande feiticeiro!...
— Doutor, isso é u m a blasfêmia!
— O que aos seus ouvidos pode ser blasfêmia, na
m i n h a boca talvez não seja!

240
33

— Deixe-me contar tudo direitinho. Eu vivo perto


daqui e ninguém se incomoda comigo; os espíritos que
vagueiam sem rumo sabem que nada tenho e muitos deles
até me tomam por louco... De fato, às vezes, eu tenho
reações furiosas... A p e s a r de velho, sou um h o m e m forte
e a minha mão é pesada. Pois bem, tempos atrás, não sei
precisar quando, as coisas começaram a mudar. Quando
fui buscar água na bica, apareceu-me u m a morena que
eu nunca tinha visto por estas bandas...
— U m a morena?! - aparteei, não contendo a imensa
vontade de sorrir e... adivinhando o resto da história.
— Ela puxou conversa comigo e não sei por quê eu
a senti tão indefesa!...
— Eu sei!
— O senhor a conhece?

241
— N ã o , não é o que estou querendo dizer... Prossiga,
Matusalém.
— Doutor, eu nunca me apaixonei, mas... Eu não
sei. A l g u m a coisa de grave aconteceu comigo. A voz dela
soou aos meus ouvidos c o m o se fosse música e... Fiquei
hipnotizado. Ao invés de sair correndo, não: dei prosa
para ela e a coisa foi ficando pior... E o sorriso dela, então?
— Você foi flechado por cupido; atingido mortal-
mente no coração... Para semelhante ferida, não existe
remédio! E morte na certa!...
— Cupido?! N ã o , Doutor, ela se c h a m a Rita, Riti-
nha... Eu não consigo mais tirá-la da cabeça. O que é que
faço? Já nem durmo mais e, se cochilo, eu a vejo em
m e u s sonhos... Ela m o r a nas imediações e é sozinha.
— Vocês se têm visto com freqüência?
— Q u a n d o ela n ã o a p a r e c e lá na bica, eu fico
incomodado, Doutor. O senhor não há de ver que até
com a minha aparência estou me incomodando?!... Antes,
eu p a s s a v a dias e dias sem me banhar... Q u a n d o ela
anunciou que me faria u m a visita na caverna, dei u m a
ajeitada nas minhas coisas e... varri o chão! D i g a - m e : o
que é que eu faço?
— Ah, Matusalém! Se eu soubesse; se eu conhe-
cesse u m a poção mágica contra esse mal, não estaria aqui
cuidando de gente fraca da cabeça...
— M a s o senhor é doutor...
— Prefiro rasgar o m e u diploma a tratar de doença
de paixão...

242
— Paixão?! Deus me livre!...
— N e m Deus pode livrá-lo!
— Agora é que v e m o pior, Doutor... Escute só.
— Ainda há mais?...
— A Ritinha me disse que vai voltar para a Terra,
que precisa reencarnar...
— Coitado!
— Coitada dela, não é?
— N ã o , Matusalém, coitado de você...
— Eu não consigo conceber a idéia de me apartar
daquela menina... Sem ela, eu já não vivo! Eu até remocei,
o senhor não acha?
— A c h o , de fato, acho; as suas imensas rugas estão
desaparecendo... É o amor! O amor é u m a plástica no
espírito e no coração.
— Quero cortar os cabelos, aparar as unhas...
— Usar um perfumezinho...
— Ora, Doutor, o senhor parece que está gostando
do que me aconteceu... Eu vim em busca de solidariedade.
— Pode contar comigo e não me interprete mal. Eu
sei o que é isso...
— Ela me convidou para ir junto...
— À Terra?...
— Sim; disse-me que poderemos nos casar e ter
filhos...
— Prepare as suas malas e boa viagem!
— Doutor, mas há 300 anos que...

243
— Acabou; é o fim, Matusalém... Eu não lhe disse
que Deus é um grande feiticeiro? Se não fosse assim,
você ficaria por aqui...
— A h , com certeza, por mais, no mínimo, 5 0 0 anos
ou os 900 que a Bíblia lhe deu... Aquilo lá embaixo é
loucura, Doutor! D i g a - m e : c o m o é que eu posso deixar
a Rita ir sozinha...
— N ã o pode m e s m o ; ela cairá nas garras de outro...
— Outro?... Q u e outro?! Se alguém encostar a m ã o
nela...
— Você o arrebenta.
— Arrebento!
— Então, o negócio é se preparar... Para q u a n d o
será?
— N ã o sei; é a Rita que está cuidando de tudo...
Disse-me que reencarnaremos na roça, lá no interior de
Minas Gerais, e que seremos primos...
— Assim é mais seguro; n u m a cidade, por exemplo,
c o m o São Paulo ou Rio de Janeiro, eu não aconselho...
— Seria perigoso para m i m , não é?
— Para ela, principalmente: tanta m o ç a d a bonita,
praia, roupa quase n e n h u m a ; você sabe: C u p i d o anda
com a flecha no arco...
— Eu não queria, Doutor, eu não queria! - falou-
me Matusalém, abanando a cabeça.
— Anime-se, h o m e m ! Vocês serão felizes...
— A gente poderia ser feliz por aqui m e s m o . . .
— A Terra é u m a e s c o l a , M a t u s a l é m , e t o d o s
precisamos de aprender o que ela tem para nos ensinar.

244
— O pouco que sei me basta e, depois, eu não queria
compromisso; tenho amigos lá embaixo que se enrolaram
e estão sofrendo muito - esse negócio de m ã e e pai,
irmãos, filhos e sobrinhos...
— E netos, Matusalém!
— Conversei, mas a Ritinha me desarma com o
sorriso dela... Doutor, eu tomo o corpo a qualquer hora!
— Já que o senhor não pode me curar, quer ser o
n o s s o p a d r i n h o ? - p e r g u n t o u - m e , d e p o i s de b r e v e
intervalo.
— C o m toda a honra! Enquanto eu estiver por aqui,
prometo-lhes fazer o que estiver ao m e u alcance.
— Eu tenho medo, Doutor...
— Então, não vá.
— Vou!
— Traga-me a Rita, para que eu possa conhecê-la.
— Ela veio comigo, está aí fora. Posso mandá-la
entrar?
— É claro! - eu estava ansioso para conhecer a
cotovia que, com o seu mavioso canto, havia despertado
aquele urso adormecido, quase u m a lenda no M u n d o
Espiritual.
— Dr. Inácio, que alegria! - cumprimentou-me a
simpaticíssima j o v e m , c o m um lindo sorriso a enfeitar-
lhe o rosto.
— O que foi que você viu nele, minha filha? -
perguntei, provocador.
— Bondade, honestidade, pureza...

245
— Você não acha que é muita coisa?
Sem deixar de sorrir, a m o r e n a me respondeu:
— Os olhos dele t a m b é m me encantaram.
— Olhos castanhos, tão comuns...
— Mostram-lhe a nobreza de caráter.
Definitivamente, n e n h u m a força do Universo sepa-
raria aqueles dois. Matusalém, recebendo tantos elogios
à queima-roupa, estava boquiaberto...
— Ele me disse que você pretende voltar...
— Preciso, Doutor; tenho afeições queridas que já
me antecederam e, depois, o Salém...
— O Salém?...
— Sim, o meu noivo; ele não pode continuar nessa
vida de solidão...
— Concordo.
— A ociosidade faz o espírito estacionar.
— Belo conceito.
— C o m fé em Deus, a gente não tem que ter m e d o .
A l é m da beleza, eu estava admirado com a presença
de espírito daquela j o v e m .
— Trabalharemos honestamente - continuou - e
auxiliaremos o próximo. Seremos o que s o m o s : duas
pessoas comuns, mas cumpriremos o dever.
— O que é suficiente, para que não v e n h a m a ser
tão comuns assim - observei.
— Eu disse ao Salém que a nossa religião será a da
Caridade...
— É o que importa; o resto é acessório...

246
— Eu sei que o senhor é espírita, Doutor - atalhou
o noivo apaixonado -, e admiro muito o Espiritismo, no
entanto...
— N ã o precisa se explicar...
— T a m b é m não seremos católicos ou protestantes
- retomou Rita a palavra -; seremos batizados na Igreja,
porém, depois de nos casarmos...
— Acreditaremos em Jesus Cristo e o seu Evan-
gelho será o nosso roteiro de vida, não é, querida?
— Q u e Ele os abençoe - disse - e os conserve no
caminho, pois os homens estão mais carentes de bons
exemplos que de religião.
— Então, o senhor nos apadrinhará? - indagou-me
a j o v e m que, como eu, era de ir direto ao assunto.
— P o d e m contar comigo; será u m a honra - repeti.
— Ser-lhe-emos eternamente agradecidos -
r e s p o n d e u - m e Rita, levantando-se e estendendo-me a
mão em despedida.
— Matusalém - brinquei, com u m a piscadela para
a minha afilhada, que sorriu -, as rédeas não estarão nas
suas mãos!...
Acompanhei-os até à porta e, quando se retiraram,
pus-me a pensar - mas não muito, para não pirar de vez
- nas intricadas tramas do destino.

247
34

No outro dia, b e m cedo, os cirurgiões chegaram ao


hospital e tudo já estava preparado para a indispensável
intervenção. E u , Odilon e M a n o e l R o b e r t o a c o m p a -
nharíamos o trabalho do Dr. Hélio Angotti, que era nosso
conhecido, e do Dr. Gilberto, que o auxiliaria diretamente.
Trajando-nos de maneira conveniente, adentramos
o centro cirúrgico, onde A m a r o , ainda naquele estado de
prostração, havia sido preparado.
Antes, porém, de dar início à delicada cirurgia, para
remoção dos corpos ovóides que s u g a v a m a energia vital
do paciente, o Dr. Hélio considerou de bom alvitre lançar
mão do "eletrointelecton" e realizar mais u m a ausculta
daquela tumoração viva que se alojara no seu lóbulo
frontal.

248
E u , q u e me e s p e c i a l i z a r a em P s i q u i a t r i a e me
habituara a intervir no m u n d o p s i c o l ó g i c o dos m e u s
pacientes, utilizando a palavra c o m o bisturi, jamais, nem
mesmo na condição de espírita, pudera conceber que algo
semelhante fosse possível, ou seja: cortar os tecidos sutis
do corpo espiritual, tomando o devido cuidado para não
lesioná-los, provocando seqüelas.
Adaptando o aparelho, que os estudiosos da Terra
não demorarão a aperfeiçoar e que haverá de ser de grande
utilidade nos chamados estados de coma, para verificar-
se com maior precisão a atividade intelectiva de quem
se encontre suspeito de morte cerebral, o Dr. Hélio,
aumentando-lhe o volume, passou a registrar:
— Ai, ai! Q u e m me incomoda de novo? Deixem-
me... O que pretendem fazer? N ã o me retirem! N ã o me
retirem!
Com serenidade, mas determinação, o médico
respondeu:
— N ã o se preocupe; você não sentirá dor alguma.
O Dr. Gilberto cuidará da anestesia. Espero que facilite
as coisas... Relaxe.
— O que farão comigo? Eu preciso me alimentar...
Se eu enfraquecer, os outros tomarão conta de mim.
— Você será igualmente tratado; não permitiremos
que um maior mal lhe aconteça...
— E os outros, os que estão comigo formando uma
colônia, vocês os tirarão t a m b é m ? Por que haverei de
ser o primeiro?

249
— É porque você, parasitando o cérebro, está no
comando e n u m a região mais delicada...
— A q u i estou, p o r q u e fui o p r i m e i r o a chegar;
somos muitos, muitos... Vocês não fazem idéia!
— Fazemos sim, meu irmão - redarguiu o Dr. Hélio,
que tomava todas as iniciativas. — Agora, tranqüilize-
se: inale o gás anestésico, inale; relaxe e abra os seus
poros...
O Dr. Gilberto, com extrema habilidade, valendo-
se de uma máscara sobre as narinas de A m a r o , liberava
c o m vagar um gás de cor e s v e r d e a d a , contra o qual
e s t á v a m o s d e v i d a m e n t e p r o t e g i d o s . E m fração d e
segundo, as " c a r n e s " do paciente c o m o que se esparra-
m a r a m na m e s a cirúrgica e aquela artéria de sucção se
afilou consideravelmente.
Esclareço que o ovóide em q u e s t ã o era mais ou
menos do t a m a n h o de u m a laranja, sendo que os demais
não excediam o diâmetro de u m a bola de pingue-pongue
- alguns mais entumecidos, outros m e n o s . Entretanto,
segundo o Dr. Hélio nos esclareceria posteriormente, ele
já tinha se d e p a r a d o c o m corpúsculos g i g a n t e s , do
tamanho quase de u m a melancia.
Com um bisturi que, grosseiramente, compararei a
uma caneta de pena, com u m a luz a laser à guisa de corte,
o cirurgião t r a b a l h o u no c é r e b r o de A m a r o d u r a n t e ,
aproximadamente, trinta minutos, até que, cauterizando
a ferida, deu por concluída, c o m êxito, aquela primeira
parte da operação.

250
Os demais ovóides, notadamente os que haviam se
localizado nos órgãos genitais, praticamente se despren-
deram sob a ação do gás anestésico e por se sentirem
sem " c o m a n d o " .
Então, para mim, o que se passou em seguida foi o
m a i s s u r p r e e n d e n t e : o Dr. G i l b e r t o r e c o l h e u c a d a
corpúsculo, acondicionando-os em recipientes de vidro
eletrificado, isolando-os um a um, como se os encerrasse
em diminutas celas.
— Se n ã o t o m a r m o s s e m e l h a n t e p r o v i d ê n c i a -
explicou -, assim que "despertarem" estarão a parasitar
n o v a s v í t i m a s e p o d e r ã o fazê-las aqui m e s m o , n o
Hospital.
— E a recuperação de A m a r o ? - indaguei.
— Será lenta e dependerá de sua predisposição
íntima; trata-se, sobretudo, de um doente mental.
— As deformações em seu corpo espiritual...
— ...necessitarão ser tratadas, porém, em muitos
casos, o organismo perispiritual, para retomar a plástica
original, depurando-se, requisita um contato estreito com
a matéria, ou seja, um novo nascimento.
— Para que as toxinas se desintegrem?
— Sim, c o m o o a ç ú c a r que se t r a n s f o r m a em
e n e r g i a , a l g u n s e l e m e n t o s t ó x i c o s ao p e r i s p í r i t o se
queimam e m c o n t a t o c o m a s c é l u l a s q u e , a o s e
renovarem, naturalmente os desintegram; o corpo físico
é u m a espécie de escoadouro das imperfeições da alma:
n u m a gota de suor há muito mais que os componentes
químicos que a constituem...

251
— E os ovóides, o que acontecerá a eles?
Tomando a iniciativa, o Dr. Hélio esclareceu:
— N ó s os levaremos conosco e os s u b m e t e r e m o s ,
com o concurso de outros especialistas, a tratamento que
objetiva descondicioná-los; eles se desenvolverão p o r
etapas, como um embrião se desenvolve no ventre
materno...
— Assim, c o m o estão, não poderão reencarnar?
— A m e n o s que aconteça sem a devida supervisão;
muitos deles, ao invés de parasitarem, p o d e m se sentir
atraídos à reencarnação, sem que t e n h a m a m e n o r
consciência do fato.
— E serão crianças normais?
— Do ponto de vista físico, talvez sim, dependendo,
evidentemente, de u m a série de circunstâncias, m a s , do
ponto de vista psicológico...
— N ã o tendem a renascer com defeitos físicos?
— Principalmente nas extremidades...
— E mentalmente?...
— As limitações p o d e m ser múltiplas e variadas;
quase sempre, renascerão na condição de crianças
debilitadas, q u a n d o não sejam abortadas e s p o n t a n e a -
mente...
— Basicamente, c o m o é o tratamento a fim de q u e
se recuperem?
— Depende do nível letárgico em que cada um se
encontre; às vezes, necessitamos de tentar acordá-los
submetendo-os a choques elétricos e sonoros s e q ü e n -

252
ciados, até que respondam e consigam manter conosco
indispensável contato intelectual, ainda que mínimo. A
partir daí, o diálogo se encarregará de "extraí-los de si
m e s m o s " e reorientá-los mentalmente...
— Fetos se desenvolvendo in vitro...
— Digamos que seja a imagem mais aproximada
do que realmente acontece.
— Crianças sendo geradas fora do útero materno?
— Renascendo na Vida Espiritual!
— Isto poderá acontecer na Terra? É possível?
O Dr. Hélio sorriu e observou:
— Daqui a séculos, talvez... Pelo menos teorica-
m e n t e , é p o s s í v e l ; seres h u m a n o s p o d e r ã o , sim, ser
gerados fora do claustro materno...
— C o m o esses ovóides serão alimentados? C o m
u m a papa de hemácias?!... - perguntei, intermediando a
descrença de quem, porventura, correr os olhos por estas
linhas.
— C o m algo similar, Doutor - respondeu tecendo
maiores considerações. — A alimentação desses seres
que se primitivizaram é, basicamente, psíquica, todavia
têm necessidade de absorver princípios vitais modifi-
c a d o s ; nada vive sem de a l g u m a coisa se nutrir... À
medida que evolui, o espírito passa a retirar de si o seu
próprio sustento, sem necessidade de auferir semelhantes
recursos de outra fonte...
— Jesus Cristo disse que o seu alimento era fazer a
Vontade de Deus - ponderei.

253
— Enquanto, porém, não nos nutrimos desse Pão
Divino, temos um cardápio tão variado quanto as causas
que nos m o t i v a m a fome; o h o m e m na Terra n ã o se
alimenta exclusivamente de pão feito de trigo, m a s de
interesses e ideais, desejos e anseios que lhe são perti-
nentes. O corpo respira, o espírito t a m b é m ; estudemos
as necessidades do corpo que nos refletem as necessi-
dades do espírito...
— Os n o s s o s i r m ã o s e n c a r n a d o s - c o m e n t e i -
acham que o corpo não passa de u m a simples represen-
tação grosseira do espírito...
— E um grande equívoco, pois, se os h o m e n s se
detivessem a analisar melhor o corpo e o orbe em que
r e s i d e m , c o m p r e e n d e r i a m m e l h o r o U n i v e r s o e a si
m e s m o s . A Ciência ainda avançará extraordinariamente;
o que está faltando aos cientistas é um p o u c o mais de
senso de observação e se conectarem c o m a intuição.
Por exemplo, não anda longe o tempo em que a Medicina
descobrirá certa similaridade, no que se refere à forma
exterior, dos legumes e dos frutos com os órgãos do corpo
h u m a n o , características indicativas de q u e tais frutos e
legumes são altamente benéficos aos órgãos que lhe
correspondem...
— C o m o no caso do tomate e da próstata?...
— Exatamente - esclareceu o Dr. Hélio Angotti,
ultimando preparativos.
— O corpo n o s " s o l i c i t a " d e t e r m i n a d o tipo de
alimentação...

254
— C o m o s a b e m o s , aos p r ó p r i o s a n i m a i s isto
acontece; a flora e a fauna vivem em regime de interde-
pendência e se sustentam mutuamente... A abelha, ao
extrair o p ó l e n das flores p a r a o fabrico do m e l , as
poliniza.
— Dr. Hélio, estamos prontos -, anunciou o Dr.
Gilberto com os ovóides acondicionados na inculbadeira
psíquica em que seriam transportados.
— Então, v a m o s , que nos convém partir antes que
eles voltem de todo do processo anestésico.

255
35

D e s p e d i m o - n o s e, e n q u a n t o O d i l o n os a c o m p a -
nhava, fiquei a meditar em tudo quanto presenciara e
ouvira, ponderando quanto à conveniência, ou não, de
transmitir aos companheiros encarnados aquelas reve-
lações surpreendentes, das quais, quando no corpo, eu
m e s m o não cogitara.
Lembrei-me de que, tão-somente u m a vez, em u m a
de nossas sessões mediúnicas, um espírito em condições
precaríssimas comunicara-se através de D. Maria M o -
desto Cravo, que, após o transe, o descrevera para m i m .
— Inácio - disse-me ela -, eu o via como se fosse
u m a grande esfera escura, pulsando próximo à m i n h a
cabeça; parecia-me um espírito encouraçado, que só
conseguiu falar por meu intermédio com o auxílio dos
Mentores que lhe serviam de intérprete do p e n s a m e n t o .

256
R e c o r d o - m e , então, que, um tanto céptico, eu lhe
perguntei:
— Era h o m e m ou mulher?
Ao que me respondeu:
— Tudo nele era indefinido, menos o sofrimento.
Q u a n d o eu saía da sala cirúrgica do H o s p i t a l ,
deixando Manoel Roberto cuidando de Amaro, Odilon
vinha ao m e u encontro, com o sorriso de sempre
estampado no rosto.
— Graças a Deus, a tarefa foi coroada de êxito -
disse, com o propósito de me ouvir.
— Estava aqui meditando...
— Eu sei, Inácio.
— O q u e v o c ê a c h a : os n o s s o s i r m ã o s e s t ã o
preparados para alguma notícia a respeito?
— Desde que se limite ao essencial.
— Eu não teria m e s m o condições de abordar o
assunto tecnicamente, com todos os detalhes que
observamos.
— N e m o m é d i u m que temos à disposição estaria
apto.
— C o m receio das possíveis críticas?
— N e m tanto; o problema é de limitação... Todo
assunto novo carece de u m a nova terminologia e de u m a
gama maior de informações. N ã o nos esqueçamos de que
trabalhamos com o material que o médium nos oferece.
— Modesta era portadora de faculdades mediúnicas
extraordinárias!

257
— C o m todo o respeito a ela e aos demais m e d i a -
neiros que conosco colaboram de boa vontade, raros são
os sensitivos que, no m u n d o , se colocam à altura das
realidades da Vida Espiritual, no que tange à sua
revelação aos encarnados.
— E é providencial que assim seja, não, Odilon?
— Há poucos dias, Inácio, fui procurado no L i c e u
por um grupo de espíritos interessados em reviver
m o d e r n a m e n t e , na Terra, a é p o c a das mesas girantes;
queriam o m e u parecer a respeito do assunto, a l e g a n d o
que a H u m a n i d a d e está precisando de u m a sacudida...
— C o n c o r d o ; a H u m a n i d a d e está m e s m o n e c e s -
sitando de u m a sacudida... O que foi que você lhes disse?
— Q u e m sou eu para me opor a qualquer iniciativa
que objetive o bem da coletividade? Essas decisões n ã o
cabem a mim, a você ou a qualquer outro espírito que se
situe em nosso plano de ação. Tudo nos é lícito tentar,
desde que, em nosso próprio prejuízo, não extrapolemos
o bom senso e não recorramos à violência de qualquer
espécie.
— M a s o que respondeu a eles?
— Q u e a iniciativa era louvável e justa, c o m o , de
fato, o é, no entanto que eles haveriam de se deparar
com um obstáculo praticamente intransponível: a falta
de medianeiros para o cometimento proposto! Na
atualidade terrestre, escasseiam médiuns para tanto. Você
não desconhece quanto temos lutado à frente do Liceu,
na preparação de quem melhor sirva aos propósitos da

258
Espiritualidade na Crosta. Eles, inclusive, me questio-
naram acerca de possíveis médiuns reencarnados, dos
quais pudessem se aproximar e dar início aos preparativos
do que pretendem; imaginaram que o Liceu os tivesse
catalogado em seus arquivos - médiuns de efeitos físicos,
com grande capacidade de liberação de ectoplasma; não
estavam interessados em medianeiros comuns, aqueles
dos quais nos valemos cotidianamente na produção de
fenômenos discretos.
— Queriam novos Daniel Dunglas H o m e , Carmine
Mirabelli, E u s a p i a Paladino, Francisco Peixoto Lins,
Florence Cook, Elisabeth d'Espérance...
— Daí para cima...
— O m á x i m o que encontrarão é quem lhes
possibilite atirar pedrinhas em cima do telhado de u m a
casa ou, então, quebrar o pé de u m a cadeira já semides-
truída pelos cupins...
— Veja você: eles estavam querendo algo pare-
cido...
— Sem entrar no mérito da questão, como a divisão
das águas do M a r Vermelho, não é?
— É por aí, Inácio.
— Seria ótimo se t i v é s s e m o s m é d i u n s que nos
auxiliassem a fazer tremer misteriosamente a Caaba, a
pedra sagrada dos m u ç u l m a n o s , ou, ainda, a soar
invisíveis trombetas na Basílica de São Pedro, com os
anjos a proclamarem que os tempos são chegados...

259
— Infelizmente, o h o m e m , por enquanto, prefere
liberar a energia d o s artefatos n u c l e a r e s , d e s t r u i n d o
cidades inteiras e arrasando com p o p u l a ç õ e s .
— Q u a n d o ele descobrir que carrega dentro de si
u m a força mais poderosa que a da fissão nuclear!...
— Falei c o m o referido grupo que, além de todas
a s d i f i c u l d a d e s p a r a s i t u a r m o s u m m é d i u m d e tal
potencial na Terra, lutávamos contra a influência das
Trevas que, ao descobri-lo, não m e d e m esforços para
desvirtuá-lo e que, não raro, o que nos deveria servir
c o m o i n s t r u m e n t o de c r e n ç a p a s s a a ser m o t i v o de
escândalo, c o m p r o m e t e n d o a fé incipiente dos nossos
irmãos e desservindo a causa que a b r a ç a m o s .
— E c o m o reagiram às suas p o n d e r a ç õ e s ?
— D i s s e r a m - m e que nós, os m o r t o s , precisamos
sair do anonimato, que eles estão dispostos a u m a atuação
mais ostensiva j u n t o à H u m a n i d a d e e que iriam recorrer
a centros mais avançados que os n o s s o s .
— Ainda nos ridicularizaram?
— E v i d e n t e m e n t e , Inácio, q u e n ã o se trata de
espíritos comprometidos com a m e n s a g e m de renovação
que o Evangelho nos propõe; estão interessados em impor
a Verdade pela força das circunstâncias...
— Pelos olhos e não pela razão.
— O fenômeno mediúnico, por mais retumbante,
não convence e não m u d a a quem não se sente tocado no
íntimo. As curas que o Cristo realizou não contam entre
os homens, com mais nenhuma testemunha ocular, porém

260
as suas palavras p r o s s e g u e m soando c o m lógica aos
nossos ouvidos e são de tal teor espiritual, que não mais
lhes questionamos a procedência. Inclusive, determinado
pensador chegou a dizer que, se Jesus não tivesse existido,
os autores do Evangelho seriam tão grandes quanto Ele!
— O fenômeno que provoca mudanças é o que nos
induz a refletir e o que se situa para além dos sentidos.
— Por esse motivo, e m b o r a respeitemos os
companheiros que se organizam, no Além-Túmulo, em
m o v i m e n t o s paralelos à proposta do Espiritismo,
interessados na p r o d u ç ã o de f e n ô m e n o s periféricos,
c o n t i n u a r e m o s a insistir na m e n s a g e m e n d e r e ç a d a à
inteligência e ao coração, que enseja ao indivíduo um
renascimento dentro da própria Vida. Muitos irmãos de
ideal nos endereçam cobranças, c o m o se dependessem
única e exclusivamente de nós prodígios mais decisivos
em termos de convencimento aos cépticos; todavia o que
p o d e m o s fazer mais do que temos feito, por exemplo, no
manejo do lápis ou nas singelas atividades mediúnicas
de u m a casa espírita?... Quereríamos prodígios maiores
do que a caridade, em n o m e da fé, p r o p o r c i o n a aos
carentes de m o d o geral, em toda parte, sem que, diante
da bênção materializada, eles se alterem?!
— É verdade - concordei; quantos de nós rece-
bemos, todos os dias graciosamente, recursos que nos
sustentam a existência e nem por isso crescemos em
reverência ao Criador, que nos atende as necessidades
de mil formas diferentes? Qual é o faminto que recebe

261
um pedaço de pão e se transforma? O doente que se
socorre com o medicamento e decide, de imediato, ser
pessoa melhor?...
— Nós mesmos, Inácio, com o que temos visto deste
Outro Lado da Vida, por que não nos fazemos melhores?
Por que continuamos quase os m e s m o s , incapazes de
maior renúncia e devotamente?
— Você está coberto de razão, Odilon.
— É p o r q u e m e s m o a nós, os s o b r e v i v e n t e s da
morte, falta u m a convicção maior concernente ao futuro;
se a morte lograsse nos modificar em a l g u m a coisa, não
p r o s s e g u i r í a m o s r e n a s c e n d o na c o n d i ç ã o de h o m e m -
velho, porque, u m a vez renovados no A l é m , surgiríamos
renovados no palco do m u n d o , e não é o que acontece.
Repetimos a lição u m a , duas, dez vezes, e não a assimi-
lamos, enquanto não nos conscientizamos de que, para
obter promoção, não nos resta alternativa...
— A questão não é só de esquecimento do passado...
— De maneira alguma: a questão é muito mais de
falta de convicção íntima do que de esquecimento do
passado... N i n g u é m olvida o que fixa no espírito. As
nossas conquistas transcendem as diferentes dimensões
de tempo e de espaço. No M u n d o Espiritual, muita gente
ainda continua dormindo...
— Vive dormindo na Terra, d e s e n c a r n a dormindo,
continua dormindo no Além...
— ...e reencarna debaixo de profunda sonolência!
— As suas observações são graves.

262
— E o pior, Inácio, é que sabendo de tudo o que já
sabemos, ainda somos os m e s m o s !
— O que fazer para interrompermos o processo?
— Perseverança no trabalho e determinação íntima,
disciplina austera no cumprimento do dever e abnegação
exaustiva.

263
36

— Na m i n h a modesta opinião - considerei -, o


Espiritismo, com tantas lutas intestinas no Brasil, ainda
não está apto para se apresentar no cenário m u n d i a l ;
faltar-nos-iam condições de liderança, de vez que, na
atualidade, o personalismo grassa entre muitos dos nossos
companheiros...
— De fato, Inácio, você não deixa de ter razão; a
Doutrina é e será sempre a mesma, apesar das arremetidas
das trevas para desfigurá-la...
— Desfigurá-la através de seus supostos adeptos...
— Sim; a verdade é que o M o v i m e n t o Espírita, de
uns tempos a esta parte, está n u m processo autofágico:
os nossos desafetos tradicionais deixaram de se preocupar
tanto conosco...
— Os católicos e os protestantes...

264
— A figura de Chico Xavier, em sua abençoada
tarefa missionária, que extrapolou os limites do exercício
m e d i ú n i c o , c o n q u i s t o u , p a r a a D o u t r i n a , a respeita-
bilidade pública; por assim dizer, ele a popularizou e
estabeleceu u m a certa empatia do povo em geral com os
nossos princípios.
— M a s , ao que estamos sabendo, a sua própria obra
psicográfica vem sofrendo críticas dos que a consideram
excessivamente ecumênica.
— O Espiritismo está cheio de "donos da verdade",
espíritos que, pela reencarnação, imigraram para ele com
a sua intolerância religiosa de antanho.
— E por que aderiram aos nossos postulados? C o m
que intenção se tornaram espíritas?
— A m a i o r i a p a r a c o n t i n u a r na v a n g u a r d a do
conhecimento espiritual disponível no m u n d o ; vaidade
intelectual e anseio de supremacia... Pressentindo o que
a T e r c e i r a R e v e l a ç ã o h a v e r á de r e p r e s e n t a r p a r a a
H u m a n i d a d e , embora sem a veste nupcial, convidaram-
se para a festa e, de todas as formas, disputam os pri-
meiros lugares.
— Combatem, abertamente, o seu aspecto religioso
e o vínculo com o Evangelho...
— Não querem compromisso com a renovação
íntima, olvidando que, sem Jesus Cristo, o Espiritismo
não passará de mais u m a das muitas crenças que pregam
a Reencarnação, a Lei de Causa e Efeito, a Comunica-
bilidade com os Espíritos...

265
— Você acredita, então, Odilon, que a Doutrina não
esteja pronta para apresentar-se no cenário internacional?
— A Doutrina, Inácio, sempre o esteve e sempre o
estará; a nossa preocupação é c o m os confrades que, não
desejando generalizar, têm viajado pelo m u n d o a serviço
de si m e s m o s e não propriamente da Causa; lá fora, na
Europa e em outros partes, o M o v i m e n t o Espírita é feito
por brasileiros radicados no Exterior...
— Precisamos de mais.
— Sem dúvida; precisamos de um n ú m e r o maior
de obras traduzidas para outros idiomas, principalmente
para o inglês e o castelhano; precisamos de companheiros
c o m p r o m e t i d o s com a vivência do E v a n g e l h o ; preci-
s a m o s , em s u m a , de t r a n s p a r ê n c i a e de d e s i n t e r e s s e
pessoal, o que, convenhamos, v e m sendo muito difícil
de se obter aqui m e s m o , no Brasil.
— Carecemos de repensar o Movimento...
— E, sobretudo, de repensar os nossos interesses
na Doutrina. Dizia o nosso C h i c o X a v i e r e, c o m ele
concordamos, que a Europa necessita de Evangelho...
— E alguns espíritas combatendo o aspecto
religioso da Doutrina!
— Pois, então! C o m o é que haveremos de apre-
sentar o Espiritismo ao m u n d o , p r e o c u p a d o s ú n i c a e
exclusivamente com Filosofia e Ciência? Em t e r m o s
filosóficos e científicos, n a d a t e m o s a a c r e s c e n t a r à
cultura européia e à norte-americana; do ponto de vista
filosófico, muito m e n o s , porquanto doutrinas c o m o o

266
Hinduísmo e o B u d i s m o pregam há séculos e séculos o
que apenas recentemente vimos pregando.
— Ainda agora estamos diante de uma nova
possibilidade de guerra...
— ...que, se acontecer, envolverá muitas nações; a
pretexto de se combater o terrorismo, o que se deseja é o
petróleo... A questão é de política de dominação e, no
fundo, de interesse econômico. Por que não se interessam
os países ricos pelo terrorismo da fome e do analfabe-
tismo?
— Jesus Cristo está esquecido...
— D e r a m - l h e , Inácio, um lugar de destaque no
panteão dos deuses e heróis da Humanidade, e nada mais.
A missão do Espiritismo para o mundo está com o Brasil...
— M a s , se não nos u n i r m o s e, s o b r e t u d o , não
procurarmos seguir os exemplos dos nossos luminares...
— . . . e n c o l h e r e m o s . Em n o s s o país, a D o u t r i n a
conquistou espaço através de confrades que se desta-
caram no c a m p o da Caridade, que sempre foi o nosso
cartão de visitas.
— B e z e r r a de M e n e z e s , E u r í p e d e s Barsanulfo,
Batuíra, Anália Franco, Aura Celeste, Herculano Pires,
Deolindo A m o r i m , Carlos Imbassahy...
— E tantos outros!
— C o m o Chico Xavier...
— Talvez, pelo que realizou no campo da divul-
gação e da vivência do Evangelho, a síntese do esforço
de todos os seus grandes predecessores! Se ele tivesse se
limitado a ser médium, não teria conseguido tanto... A

267
verdade é que já temos médiuns d e m a i s ; p r e c i s a m o s
agora é de verdadeiros espíritas, que não se preocupem
em escrever livros ou fundar centros, quanto devem se
preocupar em ser, em sua vida pessoal, coerentes com a
fé que elegeram por rumo de suas vidas.
— Sem C h i c o , ficamos pobres de pontos de
referência...
— N ã o p o d e m o s pensar assim, I n á c i o ; existem
muitos irmãos e irmãs valorosos trabalhando fora da
mídia e, por assim dizer, são eles, na atualidade, a alma
do M o v i m e n t o ; a imprensa espírita, sempre girando em
torno dos m e s m o s nomes, não lhes destaca o valor: não
exercem a mediunidade ostensivamente, não são notáveis
oradores, não integram o movimento de Unificação, mas
com eles é que iremos encontrar o idealismo autêntico,
o d e s p r e n d i m e n t o , a identificação c o m o espírito do
Senhor; trabalham quase em completo anonimato para
os que os consideram companheiros sem maiores
p r e d i c a d o s , t o d a v i a são eles q u e v i t a l i z a m a C a u s a
Espírita e se constituem em seus alicerces inamovíveis.
— Odilon - perguntei - existe alguma programação
da Espiritualidade, que seja do seu conhecimento, para
substituir-se Chico Xavier?
— É evidente que não; conforme você não ignora,
em Espiritismo não é assim que as coisas funcionam...
— Os nossos irmãos espíritas, então, doravante,
terão que se virar?
— Terão que se virar com o que são, assumindo
eles mesmos a responsabilidade que lhes compete à frente

268
da Doutrina. Para que um espírito da envergadura de
Chico Xavier reencarne, não é tão simples quanto parece:
muitos fatores, dos Dois Lados da Vida, necessitam se
conjugar...
— Melhor, do seu ponto de vista, que, internacio-
nalmente, o Espiritismo não ganhe a projeção que se
deseja?
— Inácio, separemos a Doutrina do Movimento:
Espiritismo é u m a coisa. Movimento Espírita é outra...
O Espiritismo está e sempre esteve pronto para ocupar o
lugar que lhe está reservado no cenário mundial, todavia
tememos que o M o v i m e n t o Espírita induza os menos
avisados a equívocos de interpretação.
— Por favor, seja mais claro.
— O M o v i m e n t o Espírita Brasileiro está eivado de
interesses pessoais, ressalvando-se o idealismo de alguns
poucos que, imbuídos dos melhores propósitos, lutam
por lhe dar correta diretriz; no entanto, m e s m o os que se
fazem exceção à regra, de certa forma têm sido coniventes
a t r a v é s do s i l ê n c i o . Q u a n d o se trata de d e f e n d e r a
Verdade, humildade não é calar!
Efetuando ligeira pausa, o Instrutor prosseguiu:
— Precisamos dar u m a arrumada na "casa"... O
espírita deve assumir a sua responsabilidade e falar o
que pensa, sem se preocupar em agradar ou desagradar a
quem quer que seja. O Espiritismo é u m a doutrina livre
e, a rigor, para sobreviver, o centro espírita não deve
o b e d i ê n c i a a n e n h u m órgão unificador. A p l a u d a m o s

269
menos e reflitamos mais. N ã o percamos contato com as
nossas origens. A intenção de Allan Kardec foi a de
reviver o Cristianismo. N ã o há mensagem mais eloqüente
que a da virtude posta em prática.
Raras vezes, eu ouvira Odilon ser tão incisivo em
sua palavra.
— Esse seu discurso - disse eu a ele - talvez ficasse
melhor em minha boca, que sempre fui considerado em
nosso meio um espírita reacionário.
— R e a c i o n á r i o , por quê? P o r v o c ê dizer o q u e
pensa? N ã o creio que o m o m e n t o seja de omissão. Se os
que nos lerem nos interpretarem mal, paciência. Que os
nossos irmãos saibam que também nós, os considerados
mortos, estamos preocupados com o rumo que as coisas
vêm tomando no Movimento Espírita Brasileiro. "...A
todo aquele, a quem muito foi dado, muito será pedido"!
— C o m o se não bastasse a ação das trevas, ainda
nos vemos às voltas com tantos padres e freiras reencar-
nados na Doutrina - sentenciei, pensativo -; deixaram a
religião antiga, m a s não largaram o hábito...
— D e i x a r hábitos não é m e s m o fácil, Inácio -
retrucou Odilon, dando à minha observação um outro
significado.
Sorrimos os dois e demos por encerrado o diálogo,
abordando assunto tão delicado e complexo sobre o qual
havíamos começado a conversar espontaneamente. No
outro dia, c o n d u z i n d o espíritos e n f e r m o s à Crosta,
tínhamos u m a visita agendada a determinado grupo de
trabalho mediúnico.

270
37

Três e n t i d a d e s s e g u i a m c o n o s c o ; a p r e s e n t a n d o
relativa melhora no hospital, careciam de um contato
m a i s e s t r e i t o c o m as s e n s a ç õ e s q u e a o r g a n i z a ç ã o
mediúnica lhes facultaria; estavam internadas conosco
havia considerável t e m p o , mas ainda não t i n h a m se
d e s a p e g a d o das r e m i n i s c ê n c i a s tristes do m u n d o -
a n s i a v a m p o r regressar ao p a l c o de suas desditas e
desilusões, c o m o se a consciência culpada lhes recla-
masse semelhante providência...
Cada espírito é um universo em si! Muitos pacientes
recebiam alta direta, após algum tempo de tratamento
no nosocômio sob a nossa responsabilidade; outros, no
entanto, reclamavam um complemento terapêutico que,
por vezes, se desdobrava em várias sessões; o comple-
mento a que estamos nos referindo é justamente o das

271
chamadas reuniões mediúnicas de d e s o b s e s s ã o ou de
e n f e r m a g e m espiritual... Os q u e d e i x a r a m o c o r p o ,
acobertando crimes que cometeram ou carregando faltas
que não ousaram confessar, sentem-se compelidos pela
consciência a externar-se publicamente, qual se estives-
sem se desnudando diante de u m a platéia, representando
a coletividade humana, que prejudicaram com os seus
gestos isolados.
N ã o sei se estou conseguindo me fazer entender
conforme desejo, mas este é um dos principais motivos
de as entidades desencarnadas comparecerem, esponta-
neamente ou não, a u m a reunião de desobsessão: antes
de se prepararem para nova existência física no mundo,
a fim de reencarnarem sem tantos complexos de culpa,
que h a v e r i a m de lhes pesar e x c e s s i v a m e n t e , s e n t e m
necessidade de, incorporadas nos médiuns, externarem
de viva voz os s e u s d r a m a s , c o m o se e s t i v e s s e m
suplicando perdão à alma da H u m a n i d a d e .
Dos três espíritos que nos a c o m p a n h a v a m , um, que
depois de ter sido recolhido ao Hospital, ainda não havia
retornado ao cenário terrestre, cometera bárbaro crime,
que a justiça dos homens não punira.
Trêmulo e inseguro, era, repito, c o m o se estivesse
c o m p a r e c e n d o , agora de livre e e s p o n t â n e a vontade,
perante um tribunal para se confessar, pois, se não o
fizesse, o grande remorso que sentia poderia, inclusive,
frustrar-lhe a tentativa de renascer; quando o espírito toma
consciência de seus erros, a repulsa que experimenta por

272
si é tamanha, que, se pudesse, haveria de vomitar a si
mesmo!...
Se os médiuns psicofônicos soubessem avaliar a
importância do seu esforço na tarefa que desenvolvem,
haveriam de ser mais pontuais com o compromisso e
não se permitiriam embaraçar por bagatelas, deixando
de comparecer, com tanta freqüência, ao cumprimento
do dever. Infelizmente, são muitos os medianeiros e
d i r i g e n t e s q u e n ã o e n c a r a m o l a b o r m e d i ú n i c o de
e n f e r m a g e m espiritual c o m a s e r i e d a d e d e v i d a ; há,
inclusive, quem dele faça um teatro, onde lhe é possível
encenar a própria vaidade no palco das conveniências
pessoais... O grupo mediúnico que não abrace o trabalho
c o m r e s p o n s a b i l i d a d e e d i s c i p l i n a fica à m e r c ê de
entidades que o enganam o tempo todo, fazendo-se passar
por espíritos orientadores, mas que, na verdade, exercem
sobre ele um fascínio obsessivo que, fatalmente, lhe
custará caro.
O d i r i g e n t e de u m a tarefa m e d i ú n i c a r e g u l a r ,
lidando c o m m é d i u n s e espíritos, necessita de dar o
e x e m p l o de disciplina e, sobretudo, de vivência dos
postulados espíritas, não se limitando a um conhecimento
teórico da Doutrina; prefere-se, não raro, um dirigente
fraterno e bem intencionado a outro mais erudito, todavia
sem o indispensável idealismo e amor à Causa.
C o m o nosso auxílio, o primeiro comunicante da
noite a p r o x i m o u - s e do m é d i u m e, c o n s u m a n d o - s e o
transe, começou a falar:

273
— A minha cabeça está em fogo... Auxiliem-me,
por caridade! Eu não agüento mais. Que dor é esta, meu
D e u s ? O que aconteceu comigo? Que cenas dantescas!...
N ã o é possível; aquele não sou eu...
Colaborando c o m o doutrinador, ou seja, com o
companheiro encarnado encarregado do diálogo com as
entidades que se manifestassem pelo referido instrumento
mediúnico, Odilon o envolveu, de forma que assistíamos,
por assim dizer, a u m a dupla incorporação, pois que,
igualmente mediunizado pelo nosso Instrutor, o irmão
que se destacou para atender o espírito em sofrimento se
deixava conduzir por ele...
— M e u irmão, tenha calma... E s t a m o s aqui em
nome de Jesus Cristo. Não se desespere; converse
conosco... A Misericórdia Divina não nos desampara.
Confiemos!
O espírito, que gemia e suspirava fundo, sentindo a
necessidade de se abrir com alguém, não mais ocultando
o s e u d r a m a , foi, e n t ã o , d i r e t o ao a s s u n t o q u e o
atormentava:
- Eu sou um criminoso! Matei e tenho as minhas
mãos sujas de sangue... Afastem de m i m esta visão!
— Você está a g o r a n u m outro a m b i e n t e ; t u d o
passou... Fale claramente conosco, para que p o s s a m o s
ajudá-lo. N ã o se prenda ao passado!...
- A q u e l e h o m e m , que me espancava todos os dias,
era meu pai; ele chegava embriagado a casa e batia na
minha mãe; eu entrava no meio e apanhava também...

274
Quando não bebia, ele era um homem bom e trabalhador.
O problema é que o m e u pai bebia sempre e, além de nos
agredir, quebrava todos os móveis... Foi assim que cresci:
com marcas e cicatrizes no corpo e na alma. A minha
m ã e ficou doente e vivia infeliz... U m a tentação foi
tomando conta de m i m e, certa noite, quando ele avançou
sobre nós, eu o esfaqueei seguidas vezes... Sangue - eis
o que, desde então, é só o que vejo!
— Tentemos esquecer e perdoar, m e u irmão; Deus,
em breve, lhe concederá os meios de reparar a falta...
Todos erramos. Você agiu em defesa de sua mãe...
— Sim, mas eu não tinha o direito; antes tivéssemos
fugido de casa... Um filho assassinar o próprio pai! N a d a
justifica o que fiz, no entanto, se isso se repetisse, eu
estaria pronto para fazer tudo de novo... N u n c a mais tive
p a z ! Eu era de m e n o r e n ã o fui p r e s o ; os v i z i n h o s
testemunharam em nosso favor; todavia, passados três
anos daquela tragédia, a minha m ã e morreu de desgosto
e eu fiquei sozinho no mundo... Sabem, então, o que fiz?
Comecei t a m b é m a beber, como se, para me autopunir,
eu quisesse repetir o m e u pai... Que coisa estranha!
— A violência conduz à violência - ponderava o
doutrinador, compadecido. — N ã o podemos, no entanto,
ficar tão-somente lamentando os nossos erros... "O amor
cobre multidão dos pecados"! A morte, como você pode
constatar, não existe; a Vida continua e as oportunidades
de sermos melhores do que somos se nos renovam todos
os dias. O espírito de seu pai há de compreender...

275
— Eu nunca mais o vi e nem sei se quero ver...
Convivi com aquela lembrança e, após enterrar a minha
mãe, bebi até o dia em que Deus resolveu me chamar;
morri c o m p o u c o m a i s de trinta de i d a d e , c a í d o na
sarjeta... A j u s t i ç a n ã o me puniu, m a s o p r e c o n c e i t o
h u m a n o não me perdoou: até as crianças me acusavam,
quando me viam passar, cambaleando: " A q u e l e lá é o
filho que matou o pai..." Depois de algum tempo vagando
fora do corpo, fui recolhido e recebi tratamento, mas
ainda trago a consciência em brasa... A m i n h a vida foi
destruída. Eu queria esquecer!...
— Você esquecerá, meu irmão, e, c o m a graça de
Deus, tudo há de ser diferente. O sofrimento nos transmite
p r e c i o s a s lições. C o m certeza, o espírito de seu pai
igualmente já teve t e m p o suficiente para refletir. Ele agia
dominado pelo álcool e pelos adversários invisíveis que
se a p r o v e i t a v a m de s u a fraqueza. N ã o se sinta s e m
esperança... N i n g u é m cai para permanecer estirado no
chão.
— M a s eu matei e vocês não sabem quanto dói o
remorso... Bebia para tentar esquecer e não esquecia; ele
estava bêbado e o matei covardemente... A n t e s do golpe
fatal que lhe apliquei no coração, ele me olhou c o m o se,
por momentos, tivesse recobrado a lucidez; a m i n h a mãe
gritou, tentando impedir que eu consumasse o crime, mas
eu a empurrei e, com as duas mãos, cravei a faca no peito
dele... Foi exatamente assim. Vocês estão ouvindo? Eu
sou um criminoso, um louco; o filho que t e m a coragem

276
de matar o seu próprio pai é louco - sim, é o que eu
definitivamente sou: um louco!... A loucura é um estado
muito melhor que a dor do remorso!
— E se o seu pai, meu irmão, viesse para lhe pedir
perdão, c o m o você reagiria? - perguntou o doutrinador,
sob a inspiração de Odilon. — E se ele aqui comparecesse
agora, na c o m p a n h i a de sua mãe, que, certamente, já
perdoou a ele, o que você faria? Continuaria a odiá-lo?
— Eu nunca tive ódio dele... Vocês não acham que
seja possível matar alguém sem ódio? Ódio m e s m o eu
tenho é de mim, por ter feito o que fiz. Deveria ter fugido
na companhia de minha mãe e...
Neste instante, alterando o semblante, o espírito,
em pranto convulsivo, gritou:
— N ã o , não é possível... É u m a alucinação! O que
vocês estão fazendo? Eu enlouqueço de vez... Q u e m é
este h o m e m que apareceu perto de mim? De onde é que
ele veio?
— Observe bem, m e u amigo - exortou o confrade,
intuindo o que se passava nos bastidores da reunião. —
N ã o será ele o seu próprio genitor?
— Oh, não!... M i n h a mãe, minha mãe!...

277
38
— É a senhora, m a m ã e ? - p e r g u n t o u o r a p a z ,
dividido entre o passado e o presente. — E este h o m e m ,
quem é? O meu pai?! M a s a senhora lhe perdoou?!...
Está tudo b e m agora? Ele não agride mais a senhora?...
- São eles, sim, m e u irmão, a sua m ã e e o seu pai
- c o n f i r m a v a o d o u t r i n a d o r . — É da L e i q u e n o s
reajustemos... O seu pai está vindo p a r a pedir o seu
p e r d ã o ; faça c o m o a s u a q u e r i d a m ã e z i n h a , que j á
perdoou a ele...
— O senhor me perdoa, papai? - indagou a entidade
pelos lábios do médium, que tinha o rosto banhado em
lágrimas. — Eu fiquei louco... As minhas mãos ainda
hoje e s t ã o sujas de s a n g u e ! P e r d o e - m e , m a m ã e , o
desgosto que lhe causei... Vocês estão dizendo que me
perdoam?! Por que, meu Deus, para acertarmos, devemos
errar tanto?

278
— Estamos enganados - interferiu o doutrinador -: o
mal não é u m a fatalidade... Erramos por invigilância, por
falta de humildade e porque não temos verdadeira fé.
Q u e m se aproxima do bem se distancia do mal; quem
anda sempre na luz evita perder-se nas trevas... Care-
cemos, sim, do perdão uns dos outros, de vez que somos
frágeis e p o d e m o s cometer os maiores absurdos. A sua
m ã e e o seu pai compreenderam; chegou a sua vez de
compreender...
— Compreenderei, mas eu quero que o meu pai me
abrace... O senhor me dá um abraço, papai? Há quanto
tempo não nos abraçamos os três juntos!... Venha, mamãe,
abrace-nos!...
Os nossos companheiros encarnados apenas
puderam imaginar a cena comovedora que presenciamos
deste Outro L a d o : c h o r a n d o , os três espíritos se
estreitaram, sem dizer mais uma única palavra; o médium,
n a t u r a l m e n t e e x a u s t o , p e l o esforço d e s p e n d i d o , foi
saindo gradualmente do transe, enquanto diversos
cooperadores do nosso Plano cuidavam de encaminhar
de volta ao Hospital o j o v e m na c o m p a n h i a de seus
genitores. C o m certeza, ainda haveria muito que ser dito
entre eles, e aquela reaproximação era apenas o início de
um longo processo de reajuste cármico. Ao contrário do
que muitos pensam e q u i v o c a d a m e n t e , ninguém
r e e n c a r n a p a r a pagar o que d e v e , m a s , sim, para se
reeducar, ou seja, se harmonizar com a própria cons-
ciência. Deus nos perdoa sempre; somos nós que não

279
nos perdoamos! Se a Reencarnação, portanto, não fosse
uma Lei Divina, criada pela Misericórdia do Criador, nós,
os espíritos culpados, haveríamos de criá-la em nosso
próprio benefício, concedendo-nos a oportunidade de
"voltar no t e m p o " e refazer o caminho. A idéia de que o
espírito reencarna para quitar antigos débitos é uma força
de expressão, que não deve, evidentemente, ser tomada
no sentido literal. O carma é u m a construção cotidiana e
o destino pode ser traçado e retraçado, sem o que seríamos
governados por um fatalismo absurdo, contrário ao Amor,
sem o qual a própria Vida não teria sentido.
O segundo comunicante naquela noite de bênção
foi um espírito suicida que, aproximando-se da orga-
nização mediúnica da sensitiva que se pôs em condições
de "recebê-lo", assim se expressou:
- Estou aqui para pedir o perdão de vocês; já que
não posso fazê-lo aos meus familiares e àqueles aos quais
prejudiquei diretamente com o m e u gesto impensado,
aqui estou... P e r d o e m - m e ! O suicida é um espalhador da
descrença. Arrependo-me do que fiz, pois, ao invés de
legar bons exemplos à sociedade, que eu sempre recri-
minei, contribuí para que a violência se incrementasse.
Sinto-me culpado e devo, indiretamente, ter incentivado
outros à atividade insensata que abjuro. Quanto mais
depressa os homens me esquecerem, melhor! Cada vez
que alguém me lembra na condição de suicida, cita o
m e u nome ou olha uma simples foto minha, vinculándo-
me à ação infeliz que pratiquei, sinto-me no banco dos

280
réus, qual se escutasse u m a voz a me dizer: "você fez
pior do que aqueles que nada fazem, os indiferentes!
M e l h o r seria s e v o c ê não tivesse m e s m o existido...
Quantos os que estavam à beira do precipício e nele
acabaram se precipitando por sua causa!... De todos os
discursos que c o m b a t e m , no m u n d o , a existência do
Criador, o seu foi o mais eloqüente e continua a ecoar
sobre as mentes incautas. A responsabilidade, pois, que
você assumiu extrapola os limites de sua desventura! A
semente que plantou prosseguirá, por longo tempo, dando
frutos envenenados e carecerá de ser extirpada, pela raiz,
por suas próprias mãos!..."
O dirigente encarnado da reunião, de cabeça baixa,
apenas e m p r e s t a v a os seus ouvidos c o m p l a c e n t e s ao
desabafo do infeliz c o m u n i c a n t e ; n e m s e m p r e , para
"doutrinar", o doutrinador necessita de falar mais que o
doutrinando; o silêncio, aliado à prece e às vibrações de
paz, às vezes é tudo o que a entidade que se expressa
pelo médium mais precisa para se reconfortar... Doutrinar
em desobsessão não é proferir palestras ou reuniões!
— Sei, portanto, o que me espera - continuou o
irmão sofredor - e rogo que orem por m i m ; temo não ter
forças para me reerguer... Teria sido preferível que eu
renascesse sem m ã o s ou impossibilitado, fisicamente, de
consumar o gesto tresloucado, pelo qual responderei. O
meu desespero foi grande demais, mas a minha confiança
deveria ter sido maior. Eu deveria saber que o Criador
jamais deixa a criatura entregue a si totalmente! Ah, se

281
tivesse tido um pouco mais de paciência ou de humildade,
para avaliar as muitas bênçãos com que era
constantemente agraciado!... No entanto, o h o m e m é
insaciável em seu anseio de felicidade, e basta a menor
contrariedade para q u e ele se rebele. E a g o r a ? ! N ã o
pensem que eu tenha sido abandonado na Vida, que não
termina com a morte... N ã o ! O doente não é relegado ao
mal que lhe corrói as entranhas... Tateio, sim, dentro da
noite, em que mergulhei voluntariamente estourando os
miolos, mas existe suficiente luz à m i n h a volta - sempre
existiu! -: eu é que não possuo olhos para vê-la! N ã o sei
dizer se estou cego em conseqüência do que fiz, pelas
feridas que abri em m e u corpo espiritual, ou se estou,
por m e c a n i s m o s que d e s c o n h e ç o , m e a u t o p u n i n d o . . .
Quando será, m e u Deus (será que tenho o direito de fazer
esta pergunta?!), que u m a nova oportunidade me será
concedida? Q u e pais estarão dispostos a me acolher, em
m e u sofrimento? Serei, doravante, causa de prova para
os espíritos necessitados de se redimirem; um fardo a
pesar nos ombros daqueles que me t o m a r e m sob o seu
encargo afetivo... Que alegria conseguirei motivar nos
que me contemplarem no berço? Serei rejeitado?! O m e u
abismo - acreditem - parece não ter fim... Sinto-me em
queda livre, à mercê das circunstâncias a que me arrojei!...
C o n s u l t a n d o o relógio, ante os m i n u t o s que
passavam céleres, o doutrinador aparteou:
— M e u irmão, infelizmente c a r e c e m o s de inter-
r o m p e r o nosso d i á l o g o ; outros c o m p a n h e i r o s ainda

282
necessitam falar, antes do término de nossa reunião...
Assim como você foi trazido à nossa casa esta noite, a
Misericórdia Divina haverá de lhe conduzir os passos,
pois a ele ninguém estende as mãos inutilmente!
— P o r c a r i d a d e , d e i x e m - m e ficar m a i s a l g u n s
minutos; em contato c o m vocês, as minhas vertigens se
amenizam... Perto de vocês, por senti-los tão humanos
quanto eu, expostos ainda às m e s m a s fraquezas que me
acometeram, sinto-me menos envergonhado; aqui, deste
Outro Lado, até os espíritos das trevas sorriem da minha
desdita!... Os n o s s o s Benfeitores a g e m c o m i g o c o m
extrema condescendência; de nada me acusam ou em
alguma coisa me repreendem, mas eu preferiria que, de
fato, me lançassem ao rosto toda a verdade a m e u próprio
respeito...
O e s p í r i t o , em s e u d e p o i m e n t o , n o s c o m o v i a .
A p r o x i m a n d o - m e dele, toquei-o levemente no braço e
disse-lhe:
— N ã o fique assim; nós estamos com você e tudo
faremos para auxiliá-lo... N ã o se recrimine, ao ponto de
eclipsar a esperança, cuja luz nunca se apaga! O futuro
nos pertence... No fundo, somos todos iguais, em nossos
erros e acertos. Em determinadas circunstâncias da Vida,
i g u a l a m o - n o s a o s r é p r o b o s o u aos e s p í r i t o s b e m -
aventurados, dependendo da forma com que manejamos
o nosso livre-arbítrio. Trazemos conosco a grandeza de
D e u s ! Somente a felicidade é eterna... Os que nos atiram
pedras são tão desventurados quanto nós; os que nos

283
julgam lavram sentenças condenatórias para si mesmos...
Disponhamo-nos à corrigenda. Da estrela que brilha no
firmamento ao verme que se arrasta na lama, tudo é obra
de D e u s ! A lagarta a b a n d o n a o c a s u l o , confiante na
B o n d a d e do Criador; o filhote de pássaro deixa o ninho
t u t e l a d o p e l a D i v i n a P r o v i d ê n c i a ; a fonte salta do
penhasco e viaja milhares de quilômetros em direção ao
mar, c o n v i c t a d e q u e n ã o s e p e r d e r á n o c a m i n h o . . .
Encoraje-se, m e u i r m ã o ! As suas c h a g a s , convenien-
temente tratadas, haverão de cicatrizar. É da Lei que os
débeis se fortaleçam e que os culpados se redimam. Todos
s o m o s uns pelos outros. A sua atitude i m p e n s a d a
igualmente pesará sobre a consciência da H u m a n i d a d e ;
se os homens fossem mais solidários, muitas tragédias
seriam evitadas no nascedouro... A culpa de quem errou
se divide com a da nossa omissão, que, na maioria das
vezes, cruzamos os braços, na impassividade.
N ã o dava para prosseguir; a voz se me embargou
na garganta e foi Odilon quem, p e r c e b e n d o a m i n h a
emoção, amparou a entidade, que se retirava do médium.

284
39

O t e r c e i r o c o m u n i c a n t e , em c o n d i ç õ e s de se
expressar na noite, era u m a j o v e m que cometera o aborto.
Antes, porém, que a acompanhemos em suas palavras
através da medianeira que lhe ofereceu sintonia, devo
esclarecer que diversos outros espíritos, indiretamente,
se beneficiavam na reunião em andamento; p e r m a n e -
cendo à margem, eles se colocavam dentro dos diálogos
entabulados e permutavam idéias construtivas com os
auxiliares do nosso Plano ou, simplesmente, choravam,
identificando-se com os dramas narrados.
A anônima j o v e m em questão havia sido u m a freira
que, enamorando-se do jardineiro do convento, mantivera
com ele um relacionamento ilícito. Q u a n d o soube da
gravidez da religiosa, temendo represálias, o rapaz fugiu
ao compromisso e a deixou sozinha. Distante de casa e

285
com receio de ser execrada, sem que ninguém soubesse,
ela praticou o aborto e contraiu u m a infecção que se
generalizou.
Acolhida no hospital sob a nossa responsabilidade,
era acometida por periódicas crises de insanidade e, ao
m e s m o tempo, de ódio pelo co-autor de seu sofrimento.
As vezes, ela parecia nos ouvir, mas, de outras, t o m a d a
de ira, intentava e s c a p a r do H o s p i t a l , a l e g a n d o que
precisava ir atrás de q u e m a lançara naquela situação...
Os espíritos rotulados de obsessores, não raro, foram
v í t i m a s q u e se c o n v e r t e r a m em v e r d u g o s ; a c a u s a
primeira de obsessão diz respeito a problemas de ordem
passional: o amor doentio, a traição afetiva, o sentimento
de posse, o desrespeito moral, o sexo desvairado - tudo
isso engendrando conflitos que descambam para o crime.
— Eu quero os dois - dizia a j o v e m que, à guisa de
véu, trazia um pano esfarrapado sobre a cabeça -; eles
me pertencem... Onde é que estão o m e u marido e o m e u
filho? Aquele h o m e m me engravidou e não me quis, mas
ele é meu... E o meu filho?! N ã o , não, não me acusem de
n a d a . . . Eu n ã o tive c u l p a e n ã o a c e i t o ficar p r e s a .
L a r g u e m - m e ! As favas a Igreja, o convento, a madre
superiora, todos e tudo!... Fiz o que fiz, de tanta repressão.
Manifestando-se através da médium, dava para se
perceber o grau de desequilíbrio da infeliz irmã, que
verberava:
— A consciência está me acusando indevidamente...
Fui enganada em meus sentimentos de mulher. Vocês

286
sabem quantos anos eu tinha? Vinte e um, apenas vinte e
um... Eu o quero! Do meu filho, eu sequer pude ver o
rosto, mas o dele eu conheço bem... Covarde! Antes, me
provocava e me queria; escrevia bilhetes ardentes, que
me deixava ao pé de u m a quaresmeira... Quando eu lhe
contei que estava grávida, ao invés de me assumir, fugiu...
Q u e ódio! Eu não entendo... Onde é que está a Justiça?
Por acaso, sou eu a criminosa? O que vocês queriam?...
Q u e eu fosse expulsa do convento e humilhada? Que
voltasse para casa com um filho na barriga, sem pai?...
N ã o me acusem pelo que fiz! Provoquei, sim, o aborto, e
daí?...
Alternando estados de agressividade e de profunda
apatia, continuava:
— Ai, meu Deus, como sofro! A l g u é m me valha,
por caridade! Dr. Inácio, eu quero um r e m é d i o para
esquecer... C h a m e m , gente, o Dr. Inácio!... Eu sou u m a
freira... Vocês não estão v e n d o o véu sobre a m i n h a
cabeça? D ê e m - m e o m e u filho de volta... Enfrentarei
tudo; arranjarei um emprego de lavadeira... Ele disse que
se casaria comigo, que seria m e u marido... Mentiroso!
Eu não queria o convento; foi um voto que o m e u pai
fez, quando nasci. C o m o é que alguém pode fazer votos
para a gente cumprir? Vocês acham que está certo?!...
C o m o a lógica da dor, por vezes, parece superar a
lógica da fé! N o t a n d o que o doutrinador se encontrava
sem argumentação, revelando certa dificuldade para a
tarefa do esclarecimento, Odilon pousou-lhe a destra à
altura da fronte e o animou a dizer:

287
— Minha irmã - c o m e ç o u tímido -, não queiramos
transferir a responsabilidade de nossos atos; para reparar
as nossas faltas, precisamos admiti-las... A rigor, ninguém
nos obriga a agir conforme não queiramos. Procure se
pacificar interiormente. Depois de termos feito o que
fizemos de errado, o que nos resta fazer, se não rogamos
a Deus forças para o indispensável reajuste? A revolta
apenas nos agrava a situação espiritual, já, por si m e s m a ,
tão complexa! Resignemo-nos, ante as conseqüências de
nossa imaturidade e invigilância...
— Imaturidade e invigilância?... Então, você
t a m b é m me acusa? Isto aqui é um tribunal? Disseram-
me que eu seria ouvida numa casa de caridade...
Porventura, os que aqui nos trouxeram nos e n g a n a r a m ?
— Desculpe-me - ponderou o doutrinador -, mas
você nos disse que tinha apenas 21 anos de idade... O
que u m a jovem, que estava se iniciando na vida religiosa,
poderia saber dos perigos que nos espreitam os menores
movimentos no m u n d o ? ! Quanto à questão da invigi-
lância, quem estará, o t e m p o todo, de sentinela, contra
as arremetidas da tentação? N ã o nos interprete mal...
Q u e m seríamos para condená-la, conscientes de nossas
próprias mazelas e imperfeições? Aqui estamos, m i n h a
irmã, simplesmente para ouvi-la e auxiliá-la c o m a nossa
solidariedade, na difícil tarefa do recomeço; sim, porque,
seja o que for que tenhamos feito nos muitos erros que
cometemos, é da Lei que nos disponhamos à necessária
corrigenda.

288
As palavras sinceras do companheiro pareceram
acalmá-la, e, de novo, se entregou às próprias reminis-
cências:
— Ai, m e u Deus, o que fui fazer de m i m ? ! N ã o me
dói tanto agora o fato de ter engravidado quanto o de ter
expulsado de m e u ventre aquele que, com certeza, faria
a minha tristeza se transformar em alegria... Em qualquer
circunstância, a maturidade é sempre u m a bênção! Que
eu enfrentasse todos os preconceitos e me expusesse a
t o d a s as h u m i l h a ç õ e s , m a s q u e j a m a i s c o m e t e s s e o
aborto! Por que não me inspirei em Maria de N a z a r é ,
que, segundo nos ensinara a Igreja, grávida miraculo-
samente, nada temeu e deu-nos Jesus?...
N ã o d e s e j a n d o entrar no m é r i t o da q u e s t ã o da
gravidez de Maria, que tantas polêmicas têm suscitado
através dos séculos, o doutrinador considerou:
— De tudo o que você está nos dizendo, m i n h a
i r m ã , t a l v e z seja m a i s g r a v e do q u e a s u a d e c i s ã o
precipitada, que, sem dúvida, possui determinadas
atenuantes, levando-se em consideração o desespero que
lhe subtraiu a lucidez, o ódio que, desde então, v e m
a l i m e n t a n d o c o n t r a o p a r c e i r o de s u a d e s v e n t u r a . . .
E s q u e ç a e perdoe. Pior do que você fez ao seu ventre é o
que você pode fazer ao seu coração! Mais cedo ou mais
tarde, ele virá ao seu encontro...
— C o m o - questionou -, se a morte nos separou
por incomensurável distância?!...
— N ã o e x i s t e d i s t â n c i a c a p a z de d e s f a z e r os
compromissos que a s s u m i m o s , principalmente quando

289
nos responsabilizamos pela infelicidade alheia; as conse-
qüências de nossos atos nos a c o m p a n h a m c o m o
projeções obscuras ou luminosas de nós mesmos... N ã o
duvide. Prepare-se, porque, quem sabe, o seu reencontro
com ele esteja mais próximo do que pensa.
E, inspirado por Odilon, acrescentou:
— Ele ainda está na Terra e para a Terra, em breve,
você deverá voltar; e ninguém nasce sozinho, concorda?
— O que está insinuando?
— Os D e s í g n i o s de D e u s são i n s o n d á v e i s . . . A
família é o cadinho purificador do espírito; pais e filhos,
avós e netos, tios e sobrinhos, irmãos e irmãs, na maioria
das vezes, são espíritos necessitados de quitarem débitos
recíprocos. Todos os caminhos, por mais divergentes,
acabam por se cruzar e, na verdade, convergem para o
m e s m o ponto.
— Então, eu o terei de volta?
— Sim, a ele e, provavelmente, ao filho rejeitado;
todavia, para tanto, predisponha-se ao perdão, pois o ódio
cria um c a m p o de repulsão que nos afasta das opor-
tunidades e das bênçãos que almejamos...
— Eu não consigo amar...
— Pelo menos, não odeie! Procure, minha irmã,
pensar na fragilidade do h o m e m que, talvez igualmente
não tenha tido berço...
— Ele me dizia que era órfão...
— Pois então!

290
— Mas não entendo: por que sempre a vítima, no
caso eu, é que deve tomar a iniciativa de perdoar? N ã o
deveria ser o contrário?
— O p e r d ã o q u e p a r t e e s p o n t a n e a m e n t e do
ofendido para o ofensor é mais eficaz, para ambos, do
que o perdão que o ofensor, humilhando-se, solicita ao
ofendido. O p e r d ã o que Jesus nos e n s i n a e que E l e
exemplificou no Calvário não é o que o verdugo solicita
à vítima, mas, sim, o que a vítima oferece ao verdugo,
por reconhecer que, em outras circunstâncias, o algoz
poderia ter sido ele.
E arrematou:
— Esse é o sublime momento, minha irmã, em que
a própria virtude do Perdão se converte em Amor!...
Confesso-lhes que os elevados conceitos sobre a
indulgência, exarados pelo j o v e m confrade, não sensi-
bilizaram apenas o espírito que acabara de se pronunciar
pelos lábios da m é d i u m ; p e l a s e g u n d a vez, n a q u e l a
reunião, os meus olhos se enchiam de lágrimas...

291
40

Os ponteiros do relógio apontavam para o término


da produtiva sessão mediúnica, realizada com extrema
simplicidade, com os nossos irmãos médiuns, apesar de
todas as dificuldades que haviam enfrentado durante o
dia, se e m p e n h a n d o no c u m p r i m e n t o do dever. Sim,
porque nem m e s m o os companheiros de Doutrina mais
convictos fazem uma idéia dos embaraços que os espíritos
adversários de nossa Causa criam, na tentativa de impedir
que os médiuns compareçam à reunião e se coloquem à
disposição da Espiritualidade.
Várias entidades presentes no recinto h a v i a m se
beneficiado e se sentiam mais encorajadas à luta, princi-
palmente tendo a oportunidade de observar o esforço da
e q u i p e e n c a r n a d a , na qual c a d a i n t e g r a n t e , t e n d o a
necessidade de receber, t o m a v a a iniciativa de doar, na

292
expectativa de que o Alto, quando oportuno, lhe suprisse
as carências.
Enquanto o dirigente ultimava preparativos, aguar-
dando, se possível, a palavra de um de nós outros, que
nos sentíamos na obrigação de algo dizer para que nos
soubessem ali, lado a lado, trabalhando com o m e s m o
propósito, diversos auxiliares espirituais cuidavam de
encaminhar os espíritos que, atraídos pela reunião, se
mostravam em condições de seguir conosco; eviden-
temente, nem todos os que se encontravam na instituição,
haviam sido conduzidos por nós: alguns deles chegaram
na companhia dos próprios participantes encarnados e
outros simplesmente haviam entrado, com a permissão
da vigilância espiritual da casa, por terem encontrado a
porta aberta...
— É a primeira vez que entro em um centro espírita
- escutei um dizendo ao auxiliar que o interpelara -; eu
não sabia que era assim... Sou católico, mas de religião
não entendo nada. Morrer, desencarnar... N ã o sei o que
está se passando comigo: eu estava no hospital e, de
repente, tudo m u d o u à minha volta... A minha família
parece que me esqueceu. Tive um p e s a d e l o e me vi
enterrando o m e u próprio corpo; encontrei um conhecido
na rua e ele me falou que o m e u caso seria resolvido
aqui. Tudo isto é muito estranho. Gostei, fui bem tratado,
mas se, de fato, estiver morto, prefiro outra coisa; eu não
quero para m i m essa história de reencarnação...

293
U m a senhora de cabelos longos, saia comprida e
pano amarrado à cabeça, questionava outro de nossos
colaboradores:
- Q u e m é o pastor desta igreja? Fiquei aqui o
tempo todo e não ouvi ninguém falar na Bíblia... Mortos?
Os que morrem ficam dormindo e não andando por aí -
ressuscitam no dia do Juízo Final! O Espírito Santo vem,
mas eu não o vi, nem escutei... A Bíblia proíbe a evocação
dos mortos. Para mim, está tudo errado; sou uma mulher
de p o u c a leitura, no e n t a n t o , a p r e n d i a discernir as
coisas... Vocês me perdoem a franqueza: isto aqui é coisa
do D e m ô n i o ! . . . Vocês d e v e m se converter. Eu t e n h o
pressão alta e, ultimamente, tem me dado um branco na
cabeça... N ã o quero ficar: ninguém me ofendeu, mas aqui
não é o meu lugar... Se o meu pastor descobrir...
Um j o v e m que me pareceu ter sido acidentado era
atendido por u m a de nossas irmãs da equipe socorrista:
— M o ç a - dizia, aflito -, veja o meu estado... Eu
caí com a moto e bati a cabeça; estava sem capacete e
continua sangrando muito... Por favor, chame um médico
e avise a minha família. Eu moro no Bairro Santa Marta,
aqui, em Uberaba. É u m a sensação esquisita: eu não estou
conseguindo sentir o meu corpo... O acidente foi perto
daqui; a minha moto ainda está lá; tem muita gente e eu
saí c o r r e n d o . . . E u n ã o q u e r o m o r r e r ! O u v i m u i t o s
dizendo: "Coitado! Tão j o v e m para morrer assim, tão
estupidamente..." Eu não morri, não! N ã o quero chegar
a casa todo ensangüentado... Que loucura, meu D e u s !

294
Não é possível... Ao m e s m o tempo em que me via no
chão, com um lençol branco me cobrindo, eu me via de
pé... A forte pancada na cabeça me afetou o cérebro; só
pode ser...
Na medida do possível, complementando a tarefa
da d e s o b s e s s ã o , os irmãos e irmãs que c o l a b o r a v a m
conosco naquela noite, em número de quase vinte, agiam
c o m o enfermeiros de um grande hospital, no socorro de
emergência às vítimas de um acidente de graves
conseqüências. Raros, no entanto, os que se revelavam
em condições de compreender; a maioria, infelizmente,
requisitaria um tempo mais longo para a aceitação da
nova realidade existencial a que o fenômeno da morte
nos conduzira a todos; o grau de sonolência, que ainda
persiste nos que são c h a m a d o s a despertar no A l é m -
Túmulo, varia de espírito para espírito...
Acercando-se do médium, Odilon o envolveu e,
concluindo as tarefas mediúnicas da noite, discorreu, em
rápidas palavras, sobre a importância da mediunidade
no auxílio a desencarnados e encarnados.
— " M e u s i r m ã o s - o b s e r v o u o I n s t r u t o r -, a
mediunidade com Jesus é u m a bênção que se reparte entre
os Dois Planos da Vida, que se desdobra em infinitas
dimensões existenciais. Cada espírito se situa em
determinado degrau evolutivo da escada que nos conduz
aos Paramos Divinos e, por isso m e s m o , edifica ao redor
de si a paisagem em que se movimenta, c o m o reflexo de
s u a c o n d i ç ã o interior; d e n t r o do U n i v e r s o Infinito,

295
existem, portanto, infinitas moradas, com características
e peculiaridades que nos escapam à percepção, porque
não conseguimos enxergar a realidade para a qual o nosso
entendimento não esteja apto... Desencontrando-se na
Vida, que não sofre solução de continuidade com a morte,
sem ponto de referência que os norteie com segurança
em seus novos caminhos, os espíritos desalojados do
corpo físico necessitam de ouvir u m a voz que os oriente
e os auxilie a se situarem, a fim de que não prossigam
v a g a n d o sem r u m o , expostos ao próprio d e s p r e p a r o .
Infelizmente, contam-se, sim, aos milhares, os desen-
carnados que, em se deparando com as verdades de Além-
T ú m u l o , revelam-se p e r p l e x o s : r e l a t i v a m e n t e , detêm
muitas informações em torno da existência material, mas
pouco sabem de si m e s m o s ; em raras oportunidades, por
exemplo, se detiveram a pensar no que os esperava,
q u a n d o a m o r t e lhes e c l i p s a s s e os s e n t i d o s físicos,
limitadas lentes c o m que se habituaram a enxergar a Vida
em suas múltiplas e variadas manifestações. A desen-
carnação não é, ao contrário do que a maioria imagina,
u m a transição assim tão simples: fácil sair do corpo;
difícil, extremamente difícil, desligar a mente dos quadros
que persistem em condicioná-la... N e m todos, após o
fenômeno da morte, tomam imediata consciência de si;
espíritos existem que p e n s a m c o m t a m a n h a determi-
nação, que passam a gravitar em torno da esfera particular
de suas próprias criações mentais, acreditando que o seu
m o d o de sobrevivência seja o que impera para todos os

296
que atravessam as fronteiras da morte; à margem de suas
c o n c e p ç õ e s e q u i v o c a d a s a respeito da imortalidade,
p o d e m estacionar por dezenas de anos ou séculos, até
que a Lei Divina logre emancipá-los das ilusões em que
se lhe resume o pensamento..."
E, efetuando breve interregno, continuou:
— " P o d e m , sem dúvida, lhes parecer pouco ou até
insignificantes os resultados de u m a reunião mediúnica
semelhante a esta, todavia, tanto para nós quanto para
vocês, os minutos que aqui passamos em estreito contato
são de s u m a i m p o r t â n c i a à l u c i d e z q u e a l m e j a m o s
alcançar, com a finalidade de que se nos ampliem a visão
e a sensibilidade dos fatos da existência. N ã o e s m o -
reçamos, pois, em nosso esforço conjunto. Superemos
quaisquer embaraços que nos impeçam de cumprir com
o dever. A Vida tem o tamanho do espírito que, no corpo
ou fora dele, se põe a mensurá-la com o metro intelectual
e moral de suas possibilidades. Para os que possuem u m a
visão infinita, ela é infinita; para os que n a d a v ê e m além
de seus interesses, ela se reduz drasticamente... O h o m e m
carece de compreender que a sua permanência no corpo
não significa mais do que breve estágio e, por sua vez, o
desencarnado necessita saber que a morte não representa
mais que um simples passo além da j o r n a d a ascensional,
constituída de i n u m e r á v e i s e t a p a s . Se, em essência,
somos todos iguais, diferimos por fora e sequer fazemos
idéia da riqueza imaginativa da Criação Divina, dentro
da qual não p a s s a m o s de tão-somente um detalhe. N ã o

297
nos t o m e m o s p o r m e d i d a a b s o l u t a do q u e existe no
Universo, nós que não somos mais que meras caricaturas
da realidade. A Vida é infinita em suas manifestações e o
espírito em suas possibilidades existenciais. O legítimo
exercício mediúnico transcende o que, de hábito, se lhe
atribui. Em sintonia conosco, os médiuns ampliam muito
mais que a sua capacidade receptiva, porque, de certa
forma, m e d i u n i d a d e s i g n i f i c a n o s apossarmos das
informações e - por que não dizer? - das experiências
que uns e outros temos adquirido; mediunidade é vivência
compartilhada!... O médium que persevera no labor está
matriculado num dos cursos mais avançados de iniciação
espiritual existentes na Terra! Que o Senhor os proteja e
guarde sempre - são os nossos votos sinceros."
Quando Odilon terminou, o ambiente estava imerso
em suave luz, de q u e , em v ã o , p r o c u r e i d e s c o b r i r a
origem. Dos Dois Lados da Vida, havia profundo
silêncio! Os espíritos exaltados haviam se acalmado e
outros, como acontecia conosco, permaneciam
introspectivos, mergulhados n u m a atmosfera de paz.

298

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