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Regina Zilbennan
Doutora em Letras pela Universidade de Heidelberg
Professora da Pontiftcia Universidade Católica - AS

ESTETICA N

DA RECEP AO ~

E HISTORIA
DA LITERATURA
DlreçAo
Benjamin Abdala Junior
Samlra Youssef Campedelll
PreparaçAo de texto
Ivany Plcasso Batista
Coordenaçlo de Composição
(Produ9lo/Paglnaçlo tm vldlo)
Neide Hlroml Toyota
Dirce Ribeiro de Araújo
Edição de arte (miolo)
Milton Takeda
Divina Rocha Corte
Capa
Ary Normanha

ISBN 85 08 O~~ 2

1989
Todos os direitos reservados
Editora Atlca S.A. - Rua Barão de Iguape, 110
Tel.: (PABX) 278·9322 - Caixa Postal 8656
End. Telegráfico "Bomllvro" - São Paulo
Sumário

Apresentação 5
1. A estética da recepção no horizonte dos
anos 60 8
J auss e Gadamer 11
2. Paralelas que se encontram em algum lugar
da teoria 13
A sociologia da leitura 16
O estruturalismo tcheco 19
O Reader-Response Criticism 24
3. Projetando a nova história da literatura 29
Os métodos da história da literatura 30
Quatro premissas 33
Programa de ação 37
4. Da teoria à prática 41
Resgate de Ifigênia _ -
5. Experiência estética _
Os padrões de interação _ 1
Experiência estética e vanguarda 53
Poíesis, aisthesis e katharsis 54
Katharsis e identificação 57
Tipologia do herói 59
6. Hermenêutica literária 62
Efeito e recepção 63
Compreensão, interpretação e aplicação 66
Proposta metodológica 70
7. Helena: um caso de leitura 74
o retrospecto 76
Leis sociais e aparência 79
Leitor e sociedade 83
A recepção 88
Revisão da obra inicial 93
8. Fim do percurso? Encruzilhadas 99
Críticas e dissensões 103
Pequeno balanço final 108
9. Vocabulário crítico 112
10. Bibliografia comentada 115

1
Apresentação


Vinte anos após Hans Robert Jauss ter exposto a conferência
depois considerada o manifesto da estética da recepção, pode pare-
cer tardia a tentativa de familiarizar o leitor brasileiro com essa ver-
\ tente da teoria da literatura. Ou então testemunhar indiretamente que,
I no Brasil, o último grito sempre chega atrasado, depois de a moda
ter se esgotado em seu lugar de origem.
Não é essa a perspectiva do livro que aqui começa, nem de sua
apresentação. Oferecer a estética da recepção como um novo figuri-
no ou esperar que ela encontre seguidores e adeptos entre nós, sedu-
zidos por suas promessas e já saturados de alguma outra corrente
crítica ou filosófica, é não apenas ter uma visão frívola da teoria da
literatura ou do intelectual brasileiro; significa também colaborar para
a alienação e dependência culturais, de que aquela frivolidade é um
dos sintomas. Por outro lado, pensar que, sem essas justificativas,
não se explica a introdução de correntes do pensamento contemporâ-
neo ao estudioso no campo das idéias parece igualmente tomar em
bem pequena conta nosso ambiente cultural.
Por isso, talvez seja mais justo e frutífero apoiar a apresenta-
ção da estética da recepção tão-somente na relevância de uas
1 na dimensão que foram assumindo durante os ano 70 obre
6 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

. duas Alemanhas e no respeito que despertou nos países onde os li-


vros de Jauss foram traduzidos. No Brasil a indiferença não foi tão
grande como as afirmações anteriores parecem dar a entender: em
1979, Luiz Costa Lima organizou uma coletânea contendo ensaios
importantes dos membros da Escola de Constança, tais como, além
de Jauss, K. Stierle e W. Iser e ainda H. U. Gumbrecht, que então
já não podia ser tão facilmente incorporado ao grupo; e isto no mes-
mo ano em que era lançada a tradução francesa e três anos antes das
edições americanas, depois, contudo, das publicações portuguesa e
espanhola, do livro de Jauss (v. bibliografia ao final). Todavia, quan-
do a antologia apareceu, outras tendências teóricas, vinculadas so-
bretudo aos trabalhos de M. Bakhtin, W. Benjamin e J. Lacan,
estavam igualmente sendo divulgadas, atraindo o intelectual brasilei-
ro e, ao mesmo tempo, diversificando as opções de investigação, en-
quanto se encerrava o ciclo estruturalista, tão marcante e quase
hegemônico durante a década de 70.
Os anos 80, por seu turno, estão sendo assinalados, no Brasil,
por uma ampla discussão em torno à leitura, encarada sob múltipla
perspectiva, em resposta, de um lado, à crise de ensino, denunciada
em várias instâncias, inclusive a pública e federal, de outro, à neces-
sidade coletiva de rever e submeter a novo crivo um passado - re-
cente ou distante - até agora mascarado por dissimulações, falsidades
ou enganos.
Ler assume hoje um significado tanto literal, sendo, nesse caso,
um problema -l'1 escola, quanto metafórico, envolvendo a sociedade
(ou, ao menos, seus setores mais esclarecidos) que busca encontrar
sua identidade pesquisando as manifestações da cultura. Sob este du-
plo enfoque, uma teoria que reflete sobre o leitor, a experiência esté-
tica, as possibilidades de interpretação e, paralelamente, suas reper-
cussões no ensino e no meio talvez tenha o que transmitir ao estudio-
so, alargando o alcance de suas investigações.
Por sua vez, no âmbito exclusivo da teoria da literatura, a esté-
tica da recepção oferece um leque de sugestões sobretudo à história
da literatura, onde J auss ancora suas principais teses, por equivaler
ao leito sobre o qual deve fluir a ciência literária. Suplementarmente,
ela colabora com a literatura comparada, a crítica literária e o ensino
da literatura, todos estes, campos aplicados da teoria da literatura,
portanto, da história da literatura, pois, como se disse e voltar-se-á
a examinar, Jauss promove a integração dessas duas disciplinas. Co-
mo também essas áreas estão sendo objeto de revisão e reavaliação
APRESENTAÇÃO 7

nos últimos tempos, a explicitação da metodologia recepcional talvez


possa fornecer subsídios à discussão e dar consistência a seus funda-
mentos filosóficos.
Refletindo sobre a história, a estética da recepção é igualmente
um acontecimento histórico; por isso, nosso ponto de partida é o es-
tabelecimento de suas coordenadas temporais, a que se segue o escla-
recimento de seus parentescos intelectuais. As teses de Jauss são
expostas a partir do terceiro capítulo e, embora se acompanhem sua
seqüência e desdobramento através dos ensaios que foram sendo pu-
blicados principalmente entre 1967 e 1982, o objetivo não é verificar
a evolução de seu pensamento. Como se verá, o Autor vai ampliando
a área de abrangência de suas idéias à medida que novas questões vão
aparecendo; coerente com a lógica da pergunta e da resposta, base
de sua metodologia, o próprio texto induz a novas interrogações que
ele busca resolver alargando o campo de operação.
Esta exposição sublinha os temas relacionados à história da li-
teratura, por esta ocupar posição central no pensamento de Jauss;
e enfatiza o trabalho deste pensador, por ele desempenhar papel de
destaque no desenvolvimento da Escola de Constança. Por causa da
primeira decisão, fomos obrigadas a cortar ou reduzir vários tópicos
igualmente relevantes no conjunto de suas concepções; por causa da
segunda, autores de grande penetração intelectual, como W. Iser e
K. Stierle, não são examinados como mereceriam: do primeiro,
apresentam-se apenas as idéias relativas às noções de leitor implícito
e estrutura de apelo do texto; do segundo, menciona-se tão-somente
a orientação de suas pesquisas. '
Este roteiro decorreu ainda de uma terceira decisão: a de esbo-
çar a análise de um texto ficcional, Helena, de Machado de Assis,
segundo a metodologia proposta por Jauss. Mesmo correndo o risco
da infidelidade aos princípios desse, a tentativa justifica-se: à primei-
ra vista, o exemplo prático parece esclarecer melhor o significado das
premissas teóricas; além disso, Jauss insiste em que a hermenêutica
literária incorpore a etapa da aplicação. O exame de Helena respon-
de a essa exigência, ao mesmo tempo testando os pressupostos que
o fundamentam.
Sendo uma teoria sobre a leitura, a estética da recepção é, a partir
daqui, lida e interpretada. Com os perigos, as conseqüências e o pra-
zer que essa tarefa subentende.

Belmont, Providence e New York I IlOv. 6-rn .


1
A estética da recepção no
horizonte dos anos 60

Em 1975, Hans Robert Jauss fez uma exposição durante o con-


gresso bienal dos romanistas alemães em que, historiando o apareci-
mento da estética da recepção, situou o movimento no quadro dos
acontecimentos políticos e intelectuais da década de 60. 1 Este perío-
do caracterizou-se, efetivamente, por transformações que afetaram
a vida universitária, em particular, e a sociedade ocidental, de modo
amplo, com conseqüências visíveis em vários setores, um deles sendo
o das investigações literárias.
Talvez o traço mais marcante dessa década tenha sido a revela-
ção do "poder jovem", a juventude vindo a constituir uma força po-
lítica até então desconhecida, de um lado, por rapidamente converter
seu inconformismo em revolta, de outro, por atuar independentemente
dos partidos existentes ou das ideologias de esquerda ou direita her-
dadas das gerações anteriores. Além disso, sua forma de agir provo-
cou efeitos imediatos: mudou profundamente os padrões de compor-
tamento e conferiu direções inusitadas à vida cultural. As conseqüên-
cias foram, às vezes, radicais; porém, não conseguiram modi-

I Cf. Hans Robert , Der Leser aIs lnstanz eincr neuen Geschichte
.IALSS, der Litera-
tur. Poetica, 6 (3-4) : 325-44, 1975.
A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO NO HORIZONTE DOS ANOS 60 9

ficar a estrutura da sociedade capitalista que, talvez com rapidez equi-


valente, soube absorver o choque e impedir que a revolução cultural
se alastrasse a ponto de comprometer os fundamentos do sistema em
vigor.
A universidade foi uma das instituições mais atingidas, pois a
revolta começou dentro de seus muros, entre os estudantes, que se
revelaram líderes ativos. Os cursos foram questionados a fundo, de
que resultaram novos currículos e propostas originais para a educa-
ção superior. Não por coincidência a conferência com que Jauss abriu
o ano acadêmico de 1967 ocorreu na Universidade de Constança, prin-
cipal fruto da reforma educacional na Alemanha durante a segunda
metade da década 2, é conhecida como "Provocação" e começa pela
recusa vigorosa dos métodos de ensino da história da literatura, con-
siderados tradicionais e, por isso, desinteressantes.
A análise de Jauss leva-o a denunciar a fossilização da história
da literatura, cuja metodologia estava presa a padrões herdados do
idealismo ou do positivismo do século XIX. Somente pela superação
dessas orientações seria possível promover uma nova teoria da litera-
tura, fundada no "inesgotável reconhecimento da hístoricidade" 3 da
arte, elemento decisivo para a compreensão de seu significado no con-
junto da vida social; não mais, portanto, na omissão da história. In-
diretamente ele está acusando as correntes a- ou anti-históricas vigentes
nos estudos literários alemães, resultantes das influências diversas re-
cebidas desde o final da guerra.
Com efeito, ele investe, nem sempre de modo direto, contra o
panorama intelectual contemporâneo seu, cujas linhas metodológi-
cas, se eram divergentes entre si, tinham em comum o fato de a histó-
ria não entrar propriamente em consideração quando se tratava da
análise de um texto literário. A observação vale, por exemplo, para
a obra de Ernst Robert Curtius, Literatura européia e Idade Média
latina, publicada em 1948. O livro, que causou grande impacto nos
meios universitários, propunha o estudo dos topoi presentes e cons-
tantes em textos de diferentes épocas, sem, todavia, relacioná-lo

2 Sobre as relações entre as revoltas estudantis e a reforma universitária, em e peoal


a que determinou a criação da Universidade de Constança, cf. J,\l;SS, Hans Ro -:
& NESSELHAUF, Herbert, Hrsg. Gebremste Reform; Ein Kapitel deutscher H ~ -' .
geschichte. Universitàt Konstanz 1966 - 1976. Konstanz, Universitar verlag n.~ .••.......-••.•••
GMBH, 1977.
.1 JAUSS, Hans Robert. Der Leser ... , cit., p. 325.
10 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

ao momento histórico, nem refletir sobre as alterações sofridas em


virtude de mudanças contextuais, sejam estas as novas normas literá-
rias de um certo período ou as diferentes expectativas do público.
A observação vale também como crítica aos estudos filológicos,
ao New Criticism e à estilística, de grande penetração na universida-
de alemã durante os anos 50; e principalmente a dois manuais de am-
pla circulação nos meios acadêmicos na mesma época: o de Wolfgang
Kayser, Análise e interpretação da obra literária; e o de Emil Staiger,
A arte da interpretação [Die Kunst der Interpretation], partidários
convictos dos métodos imanentes e intratextuais quando da análise
da ficção e da poesia.
Com a chegada dos anos 60, novas propostas metodológicas se
apresentaram, sendo o estruturalismo a que mais prestígio conquis-
tou no meio universitário. Simultânea à sua ascensão, e muitas vezes
por causa dela, aconteceu a nova primazia conferida à lingüística, al-
çada a paradigma da ciência literária que, centrada de modo crescen-
te na expressividade da linguagem, fornecia novas armas à análise
imanente do texto. Na conferência, o diálogo de Jauss com o estru-
turalismo é mais evidente, embora o ataque direcione-se especialmente
a seu precursor, o formalismo russo, não porque este seja em princí-
pio contrário à história, mas porque, quando tentou formular a ques-
tão, conforme pode ser acompanhado nas pesquisas de I. Tinianov,
fê-lo, segundo o palestrante, de maneira equivocada e insatisfatória.
Como nos casos anteriores, a referência de Jauss não é direta;
nem mostra-se radical, pois ele conserva, principalmente nessa apre-
sentação inaugural da estética da recepção, várias dívidas para com
o estruturalismo, sobretudo a ala representada pelo Círculo Lingüís-
tico de Praga, e o formalismo russo. O que não se verifica, contudo,
é qualquer afinidade com a vertente francesa do movimento, então
em evidência, porque nessa exacerba-se o aspecto julgado inaceitável
por Jauss: a afirmação da autonomia absoluta do texto, que se so-
brepõe ao sujeito por contar com uma estrutura auto-suficiente, cujo
sentido advém tão-somente de sua organização interna. Devido a is-
to, é a estrutura o único objeto a ser descrito pelo estudioso da litera-
tura, jamais, porém, interpretado, circunstância em que interfeririam
os valores pessoais do crítico; e esses precisam ser evitados, para a
teoria da literatura comportar-se efetivamente como uma ciência.
Sob este aspecto, a estética da recepção apresenta-se como uma
teoria em que a investigação muda de foco: do texto enquanto estru-
tura imutável, ele passa para o leitor, o "Terceiro Estado", confor-
A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO NO HORIZONTE DOS ANOS 60 11

me Jauss o designa 4, seguidamente marginalizado, porém não me-


nos importante, já que é condição da vitalidade da literatura enquan-
to instituição social. .
Essa transferência, por sua vez, explica-se historicamente: é con-
temporânea às revoltas estudantis, ao mesmo tempo representando
uma resposta a elas. O sujeito da história parecia mudar, sem coinci-
dir com a classe tradicionalmente qualificada de revolucionária, o pro-
letariado, segundo a formulação marxista. O modelo de descrição do
funcionamento da sociedade e da luta de classes revelava-se incapaz
de explicitar o fenômeno, justificando a desconfiança de Jauss para
com o marxismo, desconfiança transportada aos outros ensaios em
que discute essa corrente do pensamento. Parecia ser a hora para uma
substituição de paradigma, que ele acredita ter acontecido, conforme
um texto seu publicado um pouco mais tarde. 5

Jauss e Gadamer A meta principal da estética da recepção


em seus começos, a saber, a reabilitação
da história, por conseqüência, da historicidade, da literatura, segun-
do um ângulo diferente do materialismo dialético, é uma proposta
que, se por um lado encontra sua explicação no panorama político
dos anos 60, por outro enraíza-se no ambiente intelectual do mesmo
período. Em 1961, Hans Georg Gadamer, ex-professor de J auss na
Universidade de Heidelberg, publica sua obra até hoje mais renoma-
da: Verdade e método [Wahrheit und Methode] , em que procura in-
fundir nova direção à hermenêutica, ao atribuir-lhe o papel de
intérprete da história. Retomando conceitos da fenomenologia, co-
mo o de horizonte de expectativa, resgatando as noções de prejuízo
e tradição e elaborando sua própria terminologia, como a concepção
de "consciência da história dos .efeitos" [Wirkungsgeschichtebewusst-
sein], Gadamer ofereceu ao pensamento alemão a possibilidade de
uma reflexão filosófica que, prosseguindo as investigações de Schleier-
macher e Dilthey no século XIX, e Heidegger, no século XX, reno-

4 Idem, ibidem, p. 325.


5 Cf. Idem. Páradigrnawechsel in der Literaturwissenschaft. Linguistische Berichte, J
: 44-56, 1969. V. também: Idem. Der Lcser ... , cit.; Idem. Esthétique de la réception
et communication littéraire. Critique, 37 (413) : 1116-80, oct. 1981.
12 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

vava O estatuto da hermenêutica e possibilitava a (re)visão da histó-


ria sem ter de percorrer a trilha, talvez já por demais batida, do
marxismo.
Jauss, com seu programa de reabilitar metodologicamente os
estudos de história da literatura, transformando-a no fundamento para
a formulação de uma teoria da literaturaeqüidistante do estrutura-
lismo e do marxismo, encontra em Gadamer um de seus principais
guias e modelos. Como o mestre, recupera a história como base do
conhecimento do texto; e, igual ao outro, pesquisa seu caminho por
uma via que permite trazer de volta o intérprete ou o leitor, sua defe-
sa predileta na luta intelectual contra as correntes teóricas indesejadas.
Se a crítica ao estruturalismo poderia colocar Jauss na esquer-
da dos estudos literários, a rejeição do marxismo e os debates com
os intelectuais da Alemanha Oriental impedem situá-lo nesse pólo do
espectro ideológico. Henry Schmidt considera-o uma "alternativa li-
beral" 6, atributo que se confirma quando se aprofunda a análise de
suas propostas metodológicas. A classificação significa igualmente
que, em Jauss, está presente a recusa de todo dogmatismo: sua mo-
delagem teórica permanece sob constante vigilância e aberta às novas
tendências ou às correções que se fizerem necessárias. Significa igual-
mente a suspeita diante de sistemas fechados e fórmulas acabadas,
que se revelavam esgotadas quando a estética da recepção promovia
sua estréia no cenário acadêmico europeu.
Também sob este aspecto é ela um produto característico de uma
década de transformações que, se nào alterou radicalmente estrutu-
ras poderosas do capitalismo ocidental, foi responsável por uma con-
quista básica: a noção de que os sistemas não explicam tudo, portan-
to, de que o novo pode emergir de lugares inesperados, exigindo que
se esteja não só atento para a novidade, mas que se mantenham os
sentidos em forma para perceber, compreender e interpretar da me-
lhor maneira possível sua ocorrência. Talvez o mérito principal da
estética da recepção resida em que traz embutida essa concepção, pro-
curando extrair dela uma metodologia para conhecer a literatura. Nes-
sa medida, parece ter muito para ensinar ao leitor, encarado como
o principal elo do processo literário.

(, SCHMIDT, Henry J. Text-adequate concretizations and real readers. Reception Theory


and its aplications. New German Critique, 6 (2) : 157-69, Primavera de 1979. p. 158.
2
Paralelas que se encontram em
algum lugar da teoria'

A crltlca dirigida para a audiência não é um


campo, mas vários, não uma simples trilha
multo batida, mas uma variedade de encruzl-
Ihadas, pistas seguidamente divergentes que
cobrem uma vasta área da paisagem da crítt-
ca segundo um padrão cuja complexidade de-
sencoraja os bravos e confunde os fracos de
coração.
Susan Suleiman

Assim como se situa num ponto da cadeia dos acontecimentos


históricos e intelectuais da década de 60, com projeções notáveis no
decênio seguinte, quando se assiste à disseminação, discussão e alar-
gamento de suas teses, a estética da recepção se coloca em certo lugar
da teoria da literatura, desde o qual contempla seus precursores, as
influências recebidas, as linhas que simultânea mas diversamente pes-
quisam objeto similar, seus adversários intelectuais. A caracterização
dos elementos comuns e divergentes significa, pois, localizá-la no cam-
po do pensamento, importante para determinar a originalidade de suas
idéias, as dívidas pagas a outras correntes teóricas, sua posição na
história da inteligência do século XX.
14 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

o elemento comum partilhado por essas linhas é o princípio sin-


tetizado por Hannelore Link: "A literatura é um caso especial de
comunicação". 1 Ele parece vago demais, porém é suficiente para ex-
cluir três das quatro correntes da moderna teoria da literatura que
Peter Uwe Hohendahl opõe à estética da recepção:
1. A teoria crítica - Associada principalmente às pesquisas de
Theodor W. Adorno nas áreas de estética e filosofia, a teoria crítica
recusa-se a analisar o impacto da obra, considerada objeto indepen-
dente dos constrangimentos sociais. Escreve Hohendahl: "O leitor,
espectador ou ouvinte não aparece como uma categoria independen-
te determinando a obra, porque Adorno nunca questiona o ato her-
menêutico da interpretação. A competência daquele é tomada como
certa; o recebedor é sempre uma construção ideal que, assim, não pode
violar o texto. Se não for esse o caso - como nas relações entre a
vanguarda e a massa - então a culpa por essa incompatibilidade re-
cai sobre o público". 2
2. O New Criticism - Em grande evidência nos Estados Uni-
dos e Inglaterra durante as décadas de 30 e 40, com projeções na crí-
tica atual, o New Criticism postula que a obra de arte literária é
autônoma, cabendo considerar, quando da análise e interpretação,
unicamente seus elementos internos. Hohendahl resume a principal
divergência com a Escola de Constança: "Os estudos sobre o leitor
são classificados como extrínsecos, em contraste com a abordagem
intrínseca, que focaliza o fenômeno estético-literário em si mesmo"
(p. 33).
3. A fenomenologia - Roman Ingarden, em A obra de arte Ii-
terâria, faz questão de ace~tuar que o leitor, bem como o autor, são
instâncias exteriores que não interferem na natureza do texto; logo,
não devem ser objetos da descrição a que se propõe nesse livro.
Contudo, é importante observar que R. Ingarden utiliza o con-
ceito de concretização, referindo-se à atividade do leitor, responsável
pelo preenchimento dos pontos de indeterminação próprios ao estra-
to dos objetos apresentados. Segundo ele, essa circunstância não con-
fere maior relevância ao destinatário, nem restringe a autonomia da

1 l1NK, Hannelore. Rezeptionsforschung, Eine Einführung in Methode und Proble-


me. Stuttgart, Kohlhammer, 1980, p. 15.
2 HOHENDAHL, Peter Uwe. Introduction to Reception Aesthetics. New German Criti-
que, 4 (1) : 29-63, Inverno de 1977. p. 32. As citações retiradas deste ensaio são indica-
das pelo número da página onde se encontram, colocado entre parênteses.
PARALELAS QUE SE ENCONTRAM EM ALGUM LUGAR DA TEORIA 15

obra. Por outro lado, fundado nessa constatação, Wolfgang Iser, co-
lega de J auss e importante elemento na constituição da constelação
teórica da estética da recepção, sugere que o texto possui uma estru-
tura de apelo [Appelstruktur]. Por causa desta, o leitor converte-se
numa peça essencial da obra, que só pode ser compreendida enquan-
to uma modalidade de comunicação.
Desta maneira, se a fenomenologia associada às pesquisas de
Ingarden é avessa a uma teoria da literatura que considere o leitor
um fator básico do processo artístico, seus desdobramentos vieram
a se opor à origem, ainda que não contradigam as idéias principais,
conforme se observa no trabalho de Iser. Eis por que Susan Sulei-
man inclui a fenomenologia entre as variedades da por ela designada
crítica dirigida para a Audiência [Audience-oriented Criticism], no
ensaio de abertura à coletânea The Reader in the Text.
Hohendahl cita ainda o historicismo enquanto proposta que di-
verge da estética da recepção, embora a esse não se possa aplicar o
princípio formulado por H. Link. Como, segundo o Autor, a atuali-
zação, conceito importante para Jauss, por significar a possibilidade
de a obra do passado ser percebida dentro do horizonte contemporâ-
neo por efeito da leitura, "é blasfêmia para o historicismo que visa
à identificação [da obra] com um dado período histórico" (p. 30),
ele exclui essa corrente do campo da recepção.
Este, porém, tem condições de acolher muitos outros hóspedes
além dos membros da Escola de Constança. Em sua resenha, S. Su-
leiman, elencando as tendências da crítica que lidam com o recebe-
dor enquanto peça importante da teoria, alude: à retórica, à semiologia
e ao estruturalismo, na medida em que se preocupam com o processo
de decodificação do texto pelo destinatário; à psicanálise e à herme-
nêutica, por lidarem com a questão da interpretação; e à sociologia
da literatura que, mesmo num autor à primeira vista alheio ao tópi-
co, como Lucien Goldmann, analisa a interação da obra com o
público.
De certo modo, nessas correntes do pensamento está presente
o princípio de que a literatura constitui um caso especial de comuni-
cação, em oposição às teses relacionadas por Hohendhal. Todavia,
nem sempre o leitor, o processo da leitura ou a experiência estética
são considerados elementos centrais para o conhecimento e interpre-
tação da obra literária. Esses são igualmente critérios para melhor
delimitar o campo da recepção, levando a uma gradual aproxima ão
dele, Um deles está presente, por exemplo, na Poética, de Aris . -
16 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

les, para quem a catarse enquanto experiência vivida pelo espectador


ou ouvinte é condição fundamental para definir a qualidade de uma
obra, assegurando a superioridade da tragédia sobre a epopéia e jus-
tificando um ou outro faux pas de Eurípedes. Isto pode tornar Aris-
tóteles um precursor remoto da estética da recepção, segundo comenta
Harald Weinrich; ou, por outro raciocínio, coloca Jauss, que recu-
pera o conceito de catarse para a teoria da literatura, importante por
permitir-lhe analisar as relações entre a arte de vanguarda e o espec-
tador contemporâneo e melhor fundamentar sua polêmica com Ador-
no, na tradição do pensamento aristotélico.
Porém, aqueles elementos estão ausentes de O que é a literatu-
ra, de Jean-Paul Sartre, que propõe uma sociologia do leitor, ao dis-
cutir as relações entre o romancista e a sociedade burguesa, desdobrada
posteriormente por historiadores da literatura como Arnold Hauser,
na História social da literatura e da arte, ou Ian Watt, em The rise
of the novel [O aparecimento do romance]. E do ensaio de Arthur
Nisin, La Iittérature et le lecteur [A literatura e o leitor], que, apesar
do título, atribuiu ao leitor apenas a responsabilidade pela animação
do texto, cuja permanência no tempo está assegurada por sempre pos-
sibilitar sua presentificação ou leitura. Por estes aspectos, os autores
citados são excluídos do campo teórico que se busca delimitar.
Tomando, pois, como critérios diretores a noção geral de lite-
ratura como forma de comunicação e os conceitos especiais de leitor
enquanto entidade coletiva a quem o texto se dirige, leitura como ato
resultante dessa troca e experiência estética como seu efeito no desti-
natário, três grandes campos intelectuais se apresentam, que, ao lado
das teses dos professores da Universidade de Constança, compõem
o ramo da teoria da literatura centralmente preocupado com as ques-
tões relativas à recepção.

A sociologia da leitura A sociologia da leitura aparece ini-


cialmente como um segmento da
sociologia do saber, quando L. L. Schücking publica, em 1923, o li-
vro Die Soziologie der literarischen Geschmacksbildung. A obra, cu-
jo título poderia ser traduzido por A sociologia da formação do gosto
literário, foi reeditada em 1931 e, em 1944, publicada na Inglaterra,
com o nome mais simples de The sociology of literary toste [A socio-
logia do gosto literário], com o qual se popularizou.
PARALELAS QUE SE ENCONTRAM EM ALGUM LUGAR DA TEORIA 17

Seu objetivo é estudar o público enquanto fator ativo do proces-


so literário, já que as mudanças de gosto e preferências interferem não
apenas na circulação, e portanto na fama, dos textos, mas também
em sua produção. Conforme explica, os criadores por muito tempo
sofreram a influência dos interesses dos grupos no poder que os sus-
tentavam financeiramente. Com as mudanças ocorridas depois do sé-
culo XVIII, uma delas sendo a consolidação do público burguês, dá-se
a emancipação do escritor; porém, este não pode fugir demasiadamente
do gosto dominante, que é sobretudo o da camada dirigente. Além dis-
to, a sociedade dispõe de mecanismos que facilitam ou inibem a difu-
são de uma obra ou de um autor; analisa então as agências formadoras
do gosto, relacionadas acima de tudo à crítica literária e à escola, con-
cluindo que esta desempenha o papel mais determinante.
Lançado no início dos anos 20, quando a teoria da literatura
ensaiava as primeiras rupturas com os modelos idealista e positivista
herdados do século XIX, o livro de Schücking tem índole premonitó-
ria: antecipa pesquisas sociológicas desenvolvidas mais tarde na In-
glaterra, onde fertilizou os trabalhos de Robert Altick, Richard
Hoggart e Q. D. Leavis, voltados ao estudo das leituras populares
e à literatura de massa; e colabora com aquele rompimento: investi-
gando as preferências do público e sua intervenção no processo cria-
tivo do artista, contestou a crença de que a arte é uma entidade
autônoma e indiferente aos fenômenos sociais e históricos. Por isso,
sua crítica mais aguda é ao conceito de espírito de época, definido
por Hegel como uma unidade que a arte pode expressar fielmente.
Segundo Schücking, não existe o espírito de época, porque não há
essa unidade; nem a arte poderia manifestá-lo, porque ela mesma se
segmenta em resposta às aspirações dos grupos diferentes a que se
destina. Nas suas palavras, "não há isto de um espírito de época, e
sim, pode-se dizer, uma série de espíritos de época. Sempre será pre-
ciso distinguir grupos inteiramente diferentes, com ideais inversos de
vida e sociedade. Com qual desses grupos se relaciona mais estreita-
mente a arte predominante depende de várias circunstâncias, e é ne-
cessário viver nas nuvens para atribuí-lo a fatores puramente ideais". J
Sem dúvida a perspectiva de Schücking é redutora, conforme
aponta Hohendahl, ao fazer a história da literatura desaguar na hi -

J SCHÜCKING, L. L. The sociology of literary taste. Chicago, The Univer sity of


cago press, 1966. p. 8.
18 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

tória das mudanças de gosto. Todavia, seu estudo inaugurou um


campo de investigações em que o público era pensado como elemen-
to ativo; e, criticando o reducionismo idealista, cooperou para a for-
mulação de uma história da literatura fundada na concretude dos fatos
sociais.
Conforme se adiantou, o livro de Schücking se associou às pes-
quisas de orientação sociológica promovidas na Inglaterra, de que re-
sultaram estudos sobre a formação do público leitor, as preferências
de leitura das camadas populares e a literatura de massa. Temas si-
milares aparecem nos trabalhos de Robert Escarpit e do grupo vincu-
lado a ele, conhecido como Escola de Bordéus.
R. Escarpit identifica seus estudos à sociologia da literatura,
título da obra que escreveu em 1958. Diferenciando sua perspec-
tiva das demais interessadas no mesmo tópico, como a sociologia da
literatura praticada na União Soviética, que encara a obra como tes-
temunho político e ideológico, e a de G. Lukács e seu discípulo,
Lucien Goldmann, que compreendem a ficção como modo de repre-
sentar as estruturas sociais, o Autor delimita sua área de atuação: o
consumo dos textos, isto é, o momento em que eles se convertem em
leitura.
Com este fim, investiga principalmente os mecanismos de dis-
tribuição e circulação do veículo da literatura: o livro. Considera a
situação social do escritor, identifica os diferentes circuitos percorri-
dos pelos textos e examina por que a cultura se biparte em erudita
e de massa. Em outras publicações, discute tópicos relacionados a es-
ses: as políticas de popularização do livro e da lêltura, a interferência
do mercado na produção e difusão de uma obrei; o tempo de perma-
nência de uma criação artística no horizonte do consumo do presente
ou a duração do prestígio de um autor.
Em suas análises prevalece a ótica empírica, sendo o patrimô-
nio literário considerado vivo enquanto efetivamente absorvido por
seus virtuais destinatários. Escarpit não interpreta textos, nem emite
juízos de valor; como Schücking, seu enfoque sociológico não pro-
cura encontrar contrapartida na estética, o que restringe
•. sua contri-
buição à teoria da literatura. Todavia, a sociologia da leitura não tem
sua importância diminuída por essa causa; suas pesquisas permitem
compreender o fato literário no cotidiano de sua existência, caracte;
rizado por sua circulação e consumo. Sob este aspecto, o leitor de-
PARALELASQUESE ENCONTRAMEMALGUMLUGARDATEORIA 19

sempenha papel relevante no conjunto de suas idéias, pertencendo de


direito ao campo intelectual aqui descrito. 4

o estruturalismo Fundado em 1926 e estreando suas teses em


tcheco 1929, durante o I Congresso de Filologia Es-
lava, o Círculo Lingüístico de Praga traba-
lhou no início à sombra do formalismo russo, de quem herdou idéias
e colaboradores, como Roman J akobson, Sergei Karcevsky e Piotr
Bogatyrev. 5 Na metade da década seguinte, o grupo deu um salto
na direção da semiótica, com o que foi paulatinamente superando os
vínculos com o movimento precedente. 6 Porém, como este, de certa
maneira, já apelava à ação do destinatário enquanto sujeito da per-
cepção para dar suporte a seus princípios básicos, o estruturalismo
tcheco contou desde o começo com uma teoria sobre a atividade do
leitor - embora esse substantivo raramente apareça - e sobre as
transformações históricas por que passa a literatura.
Com efeito, seja na sua fase inicial, quando os ensaios de Victor
Chklovsky procuravam sacudir o modelo dominante na poética e esté-
tica ensinado nas universidades de Moscou e São Petersburgo (hoje
Leningrado), na condição de ponta-de-lança teórico do futurismo; se-
ja nos anos 20, sob a liderança menos agressiva de Iuri Tinianov, o
formalismo elaborou alguns conceitos que descrevem o fato literário
na sua relação com o leitor. É o que ocorre à" noção de estranhamen-
to, concebida como o efeito necessariamente provocado pela arte, quan-
do esta possui qualidade. Vale dizer, um bom produto artístico mobiliza
vários artifícios, visando motivar um choque no destinatário: somente
quando se dá de modo tenso a relação entre o sujeito da percepção
e o objeto estético, este pode ser considerado de valor.

4 Apresentamos a sociologia da leitura em relação a seus pesquisadores pioneiros. Atual-


mente se diversifica nas vertentes que propõem novas alternativas rnetodclógíéas, co-
mo fazem Pierre Bourdieu, Jacques Dubois, Jacques Leenhardt, entre outros, ou
investigam a história da leitura, conduzida por, entre outros, Roger Chartier, Robert
Darnton, Rolf Engelsing.
5 Cf. STEINER, Peter. The roots of structuralist aesthetics. In: , ed. The Pra-
fue School; select writings, 1929-1946. Austin, Univesíty of Texas press, 1982.
Cf. MATEJKA,Ladislav. Literary history in a semiotic framework: Prague School con-
tribution. In: STEINER,Peter; CERVENKA,Miroslav; VROON, R., ed. The structure of
the literary process; Studies dedicated to the memory of Felix Vodicka. Amsterdam,
John Benjamin Publishing Co., 1982. /
20 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

Neste sentido, o formalismo representa uma mudança impor-


tante na concepção vigente de valor estético. Este deixa de ser visto
na perspectiva substancialista, enquanto transfiguração de uma idéia
universal; torna-se elemento móvel, porque a arte precisa manter-se
em permanente renovação para alcançar o desejado efeito de estra-
nhamento. E resulta unicamente da mobilização dos elementos for-
mais de que a obra se compõe, convocando a teoria a preocupar-se
apenas com a natureza da literatura e a romper com as ciências de
que até então vinha dependendo, como a história, a filosofia, a psi-
cologia, por exemplo.
Acreditando que compete à arte desautomatizar os processos per-
ceptivos do indivíduo, mergulhado num mundo de objetos que, por
serem vistos diariamente, acabam ignorados, o formalismo russo le-
gitima os projetos da vanguarda de seu tempo. Simultaneamente não
tem meios de fazer as pesquisas prosperarem, sem reconhecer como
companheiro de viagem o leitor (ou, mais amplamente, o recebedor,
já que as teses de V. Chklovsky não visam apenas à literatura, mas
ao sistema geral das artes). E sem elaborar uma teoria da evolução
literária, tarefa assumida por I. Tinianov nos ensaios sobre esse tema
e sobre a paródia, encarada não como um gênero literário, mas co-
mo o processo mesmo de desfiguramento das formas canônicas, por-
tanto, de desautomatizacão.
\
A evolução literária constitui-se, segundo ele, de desfarniliari-
zações sucessivas, impedindo que os gêneros poéticos e ficcionais
cristalizem-se em formas fixas. Pelo contrário, estão em mutação cons-
tante, ao se oporem uns aos outros como maneira de se individuali-
zarem. Com essa conclusão, Tinianov procura conferir autonomia à
história da literatura, até então, segundo ele, uma colônia ocupada
por disciplinas vizinhas. Porém, não evita seu esvaziamento, ao reduzi-
la à evolução, conforme lembra Jauss, e ao dualismo do princípio
de automatização e desautornatização.
O caráter original de várias teses formalistas não esconde o fa-
to de que, em alguns aspectos, elas parecem simplórias. Se, de um
lado, reconhecem que a obra de arte é uma forma de comunicação
destinada à percepção de um sujeito, de outro, este é reduzido a um
papel passivo, encarado como espaço onde se realizam de modo sur-
preendente os artifícios artísticos não familiares. Quando afirmam
ter a história da literatura um funcionamento autônomo, conferindo-
lhe a independência de que vinha se ressentindo desde o século XIX,
não conseguem fazer o caminho de volta, rearticulando os intercâm-
bios da literatura com a sociedade e a ideologia.
PARALELAS QUE SE ENCONTRAM EM ALGUt\1 l.UGAR DA TEORIA 21

Quando o Círculo Lingüístico de Praga começa a desenvolver


suas pesquisas, ele assume algumas convicções do formalismo, como
a oposição entre a linguagem estandardizada da comunicação prag-
mática e a linguagem poética caracterizada pelos artifícios visando
ao estranhamento do destinatário. Nas Teses de 1929, definem a ex-
pressão poética como um ato individual a ser avaliado quando con-
trastado ao background da tradição artística e da linguagem comu-
nicativa, o que significa o endosso dos princípios formalistas relati-
vos à percepção estética e à evolução da literatura. Porém, já nessa
fase os membros do Círculo se preocupam com o aspecto semântico
das formas de comunicação lingüística, concebidas como resultado
da estrutura: esta é um modo de organização da linguagem, cujos "ele-
mentos individuais não podem ser compreendidos fora de suas cone-
xões com o todo", mas que ali e tão para manifestar um sen-
tido.
Esta condu ão faculta a Jan Mukarovsky, num renomado en-
saio de 1934, po tular a natureza sígnica da obra de arte: na condi-
ção de signo, ela é comunicativa, o que desde logo pressupõe o rece-
bedor. Porém, diferencia-se dos signos empregados na linguagem prá-
tica do cotidiano, por tratar-se de um signo autônomo, cuja signifi-
cação advém da articulação de suas partes, prescindindo da referên-
cia a uma situação externa.
Esta duplicidade - a circunstância de ser concomitantemente
signo autônomo e comunicativo - converte-o em signo estético; co-
mo tal, desempenha uma função estética, diversa da função prática
exercida usualmente pela linguagem verbal. Porém, o signo estético
assim se revela, se o espectador o perceber enquanto objeto estético,
o que determina, agora por outra via de raciocínio, o reconhecimen-
to da importância de sua atividade perceptiva. É o recebedor que trans-
forma a obra, até então mero artefato, em objeto estético, ao deco-
dificar os significados transmitidos por ela. Em outras palavras, a obra
de arte é um signo, porque a significação é um aspecto fundamental
de sua natureza, mas ela só se concretiza quando percebida por uma
consciência, a do sujeito estético.
Ao contrário do formalismo, que introduz o sujeito da percep-
ção no sistema teórico porque necessita dele enquanto sintoma de que

These presented to the First Congress of Slavic Philologist in Prague, 1929. In: STEI.
~ER. reter, cd. Op. cit., p. 16.
21 EST~TICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERA ruRA

as convenções foram desestabilizadas pela arte de vanguarda, a esté-


tica estrutural de Mukarovsky concebe o recebedor como uma cons-
ciência ativa, com papel determinante, ao facultar a passagem da obra
da condição de coisa inerte à de objeto significativo. Além disto, Mu-
karovsky entende o recebedor não como um indivíduo particular, e
sim enquanto consciência coletiva, categoria que, segundo M. Cer-
venka, "é - ao lado da categoria de função - o mais importante
elo de ligação para a passagem da visão imanente da obra de arte pa-
ra a sociológica". 8 Poder-se-ia acrescentar: para a resolução do pro-
blema relativo à formulação de uma nova história da literatura,
vinculada à recepção, de que se encarrega, no início dos anos 40, Fe-
lix Vodicka, seguidor de Mukarovsky.
Este sabe que a percepção da obra de arte não se dá de modo
direto, como acreditaram os formalistas, interpondo-se entre o sujei-
to e o objeto estético um código que possibilita a concretização do
segundo pelo primeiro. A consciência estética participa, portanto, da
criação artística e, como esta, passa por transformações, porque mu-
dam as normas literárias. Eis outra categoria importante no pensa-
mento de Mukarovsky, correspondendo ao código vigente ou, mais
especificamente no campo literário, à poética dominante, que atua
como mediadora quando da percepção da obra por um indivíduo.
As normas são elementos de estabilização do sistema e incluem
, não somente critérios literários, mas ideológicos, morais, sociais etc.
Por seu turno, sua estabilidade é precária, porque nenhuma criação
artística a aceita por inteiro: conforme a lição formalista, um artista
necessariamente elabora procedimentos originais que rompem com
certas normas, embora jamais venham a aboli-las por inteiro.
Da dialética entre aceitação e ruptura das normas constrói-se
a evolução da arte e da literatura, cuja história se confunde com o
conjunto de normas consolidadas no tempo. Também por este aspecto
o conceito de norma é estabilizador, pois ela coincide com a tradição
acumulada; mas trata-se de uma estabilidade relativa, estando sob per-
manente contestação, as violações perpetradas pelos artistas.
O conceito de norma é importante por várias razões: indica o
caráter coletivo da percepção estética, de modo que se configura co-
mo um horizonte que pode ser ou é efetivamente reconstituído pela

s CERVENKA, Miroslav. Die Grundkategorien des Prager literaturwissenschaftlichen


Strukturalismus. In: ~MEGA~, Viktor & SKREB, Zdenko, Hrsg. Zur Kritik titeraturwis-
senschaftlicher Methodologie. Frankfurt, Athenãum, 1973. p. 157.
PARALELAS QUE SE ENCONTRAM EM ALGUM LUGAR DA TEORIA 13

história da literatura; mostra que a literatura é um fenômeno contí-


nuo e, ao mesmo tempo, em permanente transformação, pois a nor-
ma existe para ser violada; e é a condição de existência da estrutura
artística, ao agregar e integrar os diferentes elementos a compor o
texto.
Sob todos esses ângulos, a norma mostra-se um elo de ligação
- o intermediário entre o sujeito e o objeto estético, a obra indivi-
dual e a história, os fatores estruturais de um texto. Contudo, não
éo elemento determinante do valor artístico; este se distingue por opo-
sição, correspondendo ao que, em cada texto em particular, nega as
normas vigentes.
A concepção de valor, de certa maneira, desdobra teses forma-
listas, por equivaler à subversão das convenções dominantes. Entre-
tanto, Mukarovsky vai mais adiante: elabora um' conceito em que o
valor não se confunde com qualquer substância, nem é fixo no tem-
po. É uma espécie de vazio ou possibilidade preenchida por cada obra,
quando ela contesta a rotina literária; e permanece na situação de ne-
gatividade, embora possa se individualizar em criações específicas.
A dialética aceitação/ruptura, própria à história, sobrepõe-se
outra, entre norma e valor, fundamento da estética. Ambas são a ma-
téria de uma ciência da literatura, estando presentes também quando
Felix Vodicka propõe a elaboração de uma nova história da literatu-
ra, apoiada na noção de repercussão ou recepção.
Vodicka parte do conceito de concretização, entendido numa
acepção diferente de Ingarden, que, no início das atividades do Cír-
culo Lingüístico de Praga, foi um de seus membros. Para Ingarden,
a concretização corresponde à realização, por parte do leitor, dos as-
pectos esquematizados, resultantes do modo nem sempre plenamen-
te determinado, mas jamais imperfeito ou incompleto, como o mundo
ficcional se apresenta a ele. Vodicka pensa que a concretização de-
pende antes do código introjetado pelo recebedor, sendo, pois, uma
categoria semiótica e estando sujeita a mudanças, por variar entre épo-
cas, classes, situações diferentes. As formas de concretização de uma
obra num certo período da história determinam sua recepção, que,
assim, pode ser reconstituída, se se tiver acesso às reações do públi-
co. A crítica literária ou as poéticas de uma época consistem no ma-
terial que responde pelos tipos de concretização, e este, pelas normas
estéticas vigentes.
Para Vodicka, essa reconstituição é a principal tarefa da histó-
ria da literatura, voltada agora a investigar o impacto das obras so-
14 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

bre O público. A mudança de enfoque é notável, já que o eixo funda-


mental deixa de ser a relação autor-época-criação, transportando-se
à relação desta, independentemente do período de seu aparecimento,
com a audiência. Ao transferir-se da esfera da produção à do consu-
mo, Vodicka subverte também a concepção de história, já que a vi-
são linear, herança do positivismo do século XIX, não pode ser
sustentada: se as obras vão e vêm no tempo, em resposta a necessida-
des distintas do público de cada época, então parece imprescindível
assumir uma perspectiva dialética que dê conta do problema com
eficácia.
O estruturalismo tcheco, rico em sugestões a respeito da con-
cepção do recebedor como personagem indispensável do processo de
constituição do objeto estético e foco a partir do qual cabe revisar
a história da literatura, quase se converteu por sua própria conta nu-
ma estética da recepção. Como tal, exerce evidente influência sobre
os primeiros textos de Jauss voltados ao tópico. Além disto, soube
refletir sobre a questão do recebedor desde a perspectiva estética, e
não unicamente empírica, elaborando uma teoria sobre o valor e a
história. Seu impacto sobre a ciência literária ocidental a partir dos
anos 60, quando se traduziram suas teses para o inglês, francês e ale-
mão, não foi negligenciável, razão por que vários dos conceitos aqui
expostos reaparecem nas páginas subseqüentes.

o Reade,.-Response Ao contrário das linhas antes descritas,


C,.iticism 9 cujo aparecimento deu-se na década de
20, precedendo e/ou influenciando a es-
tética da recepção, o Reader-Response Criticism é coetâneo dessa e
compartilha com ela algumas de suas teses e integrantes, como Wolf-
gang Iser. Jane Tompkins, na coletânea dedicada ao grupo, situa suas
origens nos anos 20 e 30, associando-o ao New Criticism. No entan-
to, pode-se considerá-lo uma reação a esse último, dividindo com o
desconstrutivismo na mesma ocasião o desejo de romper com a me-
todologia imanente de descrição do texto literário.
Este é um dos aspectos a caracterizar os críticos que podem ser
reunidos sob o teto do Reader-Response Criticism, denominação vaga

9 Conservamos a identificação dessa corrente da crítica em sua língua materna, por


ela não ter ainda tradução para o português.
PARALELAS QUE SE ENCONTRAM EM ALGUM LUGAR DA TEORIA 25

que congrega pós-estruturalistas, como J onathan Culler, e partidá-


rios da abordagem psicanalítica, como Norman Holland, pensadores
menos ou mais arrojados, como, respectivamente, Gerald Prince e
Stanley Fish, e, enfim, norte-americanos na grande maioria, mas tam-
bém europeus, como Iser, seguidamente associado ao grupo. Jane
Tompkins procura definir o princípio comum aos trabalhos desses
ensaístas, assegurando a existência de uma comunidade intelectual re-
lativamente homogênea: "Um poema não pode ser entendido inde-
pendentemente de seus resultados. Seus 'efeitos', psicológicos ou
outros, são essenciais para qualquer descrição acurada de seu senti-
do, já que este não tem existência efetiva fora de sua realização na
mente de um leitor" .10
Se a recusa da metodologia do New Criticism constitui um dos
denominadores comuns, para tanto procurando examinar a obra na
medida da resposta do leitor, outro é a influência do estruturalismo,
que leva Gerald Prince e Michael Riffaterre a tentarem estabelecer,
cada um por seu turno, uma tipologia do leitor. Este, chamado de
narratário por Prince, a fim de colocá-lo em oposição simétrica ao
narrador e em posição contígua ao destinatário, é uma presença basi-
camente textual. Nem Prince, nem Riffaterre, que elabora uma cria-
tura puramente teórica classificada de arquileitor, pensam o leitor real
ou o público consumidor da literatura, de maneira que suas investi-
gações dão-se ainda no âmbito exclusivo do texto.
É quando o Reader-Response Criticism mergulha nas águas do
pós-estruturalismo, como acontece nos ensaios de J. Culler, que se
desloca do domínio descritivo, relacionando os leitores implicados no
tecido textual, para o interpretativo. Culler, seguindo a lição de Ro-
land Barthes e o pensamento francês do final dos anos 60 e início dos
70, estuda os modos como o texto veicula sentidos, isto é, como pode
ser absorvido e compreendido pelo leitor. Este, todavia, não é uma
entidade autônoma, e sim um produto do próprio texto, que, se não
se impõe autonomamente ao destinatário, também não se deixa do-
brar aos arbítrios desse.
Por essa razão, o Reader-Response Criticism não representa uma
ruptura radical com o New Criticism. Segundo J. Tompkins, a certe-

lO TOMPKINS, Jane P. An introduction to Reader-Response Criticism. In: , ed.


Reader-Response Criticism; From formalism to post-structuralism, Baltimore, The Johns
Hopkins University Press, 1980. p. IX.
26 EST~TICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

za de ser o poema uma manifestação superior e auto-suficiente de lin-


guagem permanece de pé, 11 convicção também apontada por Marie
Louise Pratt, para quem a relação entre os doià.movimentos não apre-
senta solução de continuidade. 12 o

O rompimento se acharia antes nas proposições de Louise Ro-


senblatt, cujas pesquisas sobre as relações entre o 'texto e o leitor ini-
ciaram ao final dos anos 30, e de Stanley Fish, " c.ifant terrible da
crítica norte-americana na década de 70.
L. Rosenblatt, numa exposição recente, resume sua tese princi-
pal: ela compreende a leitura como transação [transactioril entre o texto
e o leitor. Trata-se de um processo de mão dupla, segundo o qual "o
texto guia e constrange, mas é também aberto, exigindo a.contribui-
ção do leitor. Este deve recorrer seletivamente à sua experiêricia e sen-
sibilidade para obter os símbolos verbais a partir dos sinais do texto
e dar substância a esses símbolos, organizando-os num sentido que é
visto como correspondendo ao texto". 13 Assim, o significado da'obra ,
depende totalmente dos sentidos que o leitor deposita nela. Também
seu caráter estético depende do destinatário: se este não o vivencia co-
mo obra de arte e busca aí outro tipo de experiência (uma informação,
por exemplo), o texto perde sua qualidade artística. Para L, Rosen-
blatt, "é o leitor que deve adotar predominantemente um ou outro [es-
\
tético ou não-estético) modelo de atividade durante a transação com
o texto" (p. 20), do que advém a classificação deste.
Relativismo similar encontra-se em Stanley Fish, que, num en-
saio publicado em 1970, propõe o que denomina Estilística Afetiva
[Affective Sty/istics]. Seu objetivo é elaborar um método' 'que toma
o leitor, enquanto uma presença ativamente mediadora, totalmente
em consideração". 14 Ao invés de descrever a significação congelada

11 Cf. Idem. The reader in history: the changing shape of literary response. Ibidem.
12 Cf. PRATI, Marie Louisc. Interpretativc strategies/strategic interpretation. On anglo-
american Reader Response Criticism. In: ARAC, Jonathan, ed. Postmodernism and
politics. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1986.
13 ROSENBLATI, Louise M. On the aesthetic as the basic model of the reading processo
In: GARVIN, Harry, ed. Theories of reading, looking and listening. Lewisburg, Buck-
nell University Press; London, Associated University Press, 1981. p. 19. A citação se-
guinte é também retirada deste texto.
14 FISH, Stanley. Literature in the reader: affective stylistics. In: . ls there a text
in this class? The authority of interpretative communities. Cambridge, Harvard Uni-
versity Press, 1980. p. 23. As demais citações retiradas deste texto serão indicadas pelo
número da página onde se encontram, colocado entre parênteses.
PARALELAS QUE SE ENCONTRAM EM ALGUM LUGAR DA TEORIA 17

do texto, Fish busca examinar como o destinatário dá à obra um sen-


tido, entendido como "o que está acontecendo entre as palavras e a
mente do leitor" (p. 28).
Negando que o sentido seja o resultado da leitura de uma obra,
Fish entende-o como aquilo que o leitor elabora enquanto está len-
do. O sentido é, nas suas palavras, um evento, isto é, um processo
a ocorrer durante a leitura, subordinado às transformações por que
passam as operações mentais do leitor. O texto confunde-se à expe-
riência que proporciona e a que o leitor carrega consigo, perdendo
toda a objetividade. Em relação a isto, Fish é enfático, afirmando
ser a objetividade do texto uma ilusão (p. 43).
Privilegiando a experiência de leitura, Fish abole as tipologias
que opõem textos literários e não-literários, já que suas observações
valem para qualquer tipo de material verbal impresso e apto a ser con-
sumido. Além disto, não tem em vista a descrição do texto, e sim a
experiência produzida por ele, um processo que, nas suas palavras,
"não tem ponto final" (p. 67).
Tanto Louisc Rosenblatt, como Stanley Fish resgatam a fi-
gura do leitor; este não é uma construção do texto ou um produ-
to seu. Poder-se-ia mesmo afirmar que invertem a proposição: o tex-
to - isto é, sua natureza (literário ou não) e sentido - é que se mos-
tra produto do leitor. Por outro lado, a ênfase na experiência ou na
transação individual aproxima as teses do relativismo que dificulta
a compreensão dos fenômenos históricos. Em outras palavras, a in-
sistência na comunicação entre cada texto e cada leitor parece redu-
zir o diálogo apenas aos dois. No entanto, certas interpretações
vingaram no tempo e foram depois contestadas, obras subiram e des-
ceram na gangorra dos juízos literários. Como avaliar esta tradição,
que é a história da literatura com sua cauda de críticas, valorações,
classi ficações?
S. Fish discute o tópico em outro ensaio, cujo tema são as in-
terpretações acumuladas em séculos de leitura e análise da obra do
poeta inglês John Milton. Verificando que os estudos sobre esse au-
tor têm a sua própria história, já que variam embora a obra de refe-
rência se mantenha a mesma, Fish conclui serem as comunidades
interpretativas [lnterpretative Communities] as responsáveis pela es-
tabilidade das interpretações. Essas comunidades estabelecem estra-
tégias de interpretação que acabam por orientar a leitura, mesmo a
de um texto ainda não conhecido. Conforme escreve, "estas estraté-
18 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

gias existem antes do ato de ler e, portanto, determinam a forma do


que é lido em vez do contrário". 15
Fish está se referindo ao fato de que, no domínio das letras, as
convenções, transmitidas por aparelhos como a escola, acabam diri-
gindo o modo como o texto é lido e compreendido. Como as conven-
ções são aceitas pela comunidade, as interpretações suscitadas por elas
são igualmente acatadas e respeitadas. Caso contrário, e a reação é
unânime, as convenções mudam; ou então o descontente muda de co-
munidade interpretativa, cria a sua ou acomoda-se à que estiver mais
próxima de suas convicções.
A solução parece inteligente; mas, para Marie Louise Pratt, Fish
comporta-se como Pilatos, lavando as mãos de qualquer responsabi-
lidade. Para ela, "o que está sendo proposto como crítica no novo
programa de Fish não é algo totalitário, nem poder sem responsabili-
dade, e sim algo parecido mais à autoridade sem poder ou responsa-
bilidade, um espaço para ser um expert (um é) sem ser o
Chefe, um espaço em que, como Fish continua tentando argumen-
tar, tudo é um jogo, o que significa que, ao contrário da realidade,
quando tudo está terminado, a gente se levanta e ai para casa, con-
tudo, recebendo misteriosamente um cheque ao sair". 16
Noutra formulação, Fish não explica o principal: como as in-
terpretações se impõem umas sobre as outras ou como as mudanças
acontecem. No fundo, estão presentes relações de poder, infelizmen-
'te deixadas em aberto. A conclusão de Pratt amplia as observações
de William E. Cain, 17 para quem Fish avizinha-se a um tópico de
natureza política, sem enfrentá-lo e deixando seu leitor insatisfeito.
Ainda assim, é nos ensaios de Fish e Rosenblatt que o leitor apa-
rece como entidade real, de carne e osso, cujas experiências são obje-
to de consideração e dados fundamentais para o conhecimento da
natureza do texto. Neles encontra-se também a ruptura com a noção
de auto-suficiência da obra literária, resíduo idealista de que o Reader-
Response Criticism não se libertou. Apesar dos limites, com aqueles
estudiosos uma crítica voltada ao leitor deixa de ser aspiração e pare-
ce converter-se em realidade.

15 Idem. Interpreting lhe Variorum, Ibidem, p. 171.


111 Marie Louise. Interpretative
PRATT, ... , cit., p. 47.
17 Cf. CAIN, WiIliam E. Constraints and politics of the literary theory of Stanley Fish.
In: GARVIN, Harry, ed. Op. cit.
3
Projetando a nova
história da literatura

A forma cientificamente sancionada de hlstó-


ria da literatura é o pior meio que se pode peno
sar para tornar vislvel a historicidade da
literatura,
Hans Robert Jauss

A entrada da estética da recepção no palco da teoria da litera-


tura é assinalada pela conferência ministrada por Jauss na Universi-
dade de Constança, em 13 de abril de 1967, quando ela completava
seu primeiro ano de atividade e iniciava 'novo período letivo. Desde
o título original (' 'O que é e com que fim se estuda história da litera-
tura") ao que veio a ter depois (" A história da literatura como pro-
vocação da ciência literária' ') e passando pelo foco dado ao problema,
o Autor parece tera intenção de polemizar com as concepções vigen-
tes de história da literatura. Investe contra seu ensino e propõe ou-
tros caminhos, assumindo uma atitude radical que confere ao texto
a marca da ruptura e baliza o começo de uma nova era.
Sob este ângulo, a conferência de 67 tem caráter inaugural; por
outro lado, trata-se de uma síntese: da trajetória intelectual do autor
que vinha se dedicando ao estudo da literatura medieval desde a pers-
pectiva da relação dessa tanto com sua época de aparecimento, quanto
lO ESTIITICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

com a posição histórica do intérprete; 1 e do percurso dos grupos que


renovavam a ciência literária nos anos 60, autores das reformas edu-
cacional e intelectual promovidas na ocasião.
Em Constança procurou-se desenvolver uma experiência peda-
gógica original e inovadora; foi onde também se estimularam as tra-
duções e, por conseqüência, o resgate dos textos dos formalistas russos
e estruturalistas tchecos. E entre seus professores formou-se o grupo
qué organizou os encontros interdisciplinares sobre poética e herme-
nêutica, responsável pela atualização da estética e teoria da literatura
alemãs, ao reunir as contribuições de Gadamer às novas investiga-
ções no campo da linguagem.
H. R. Jauss não foi apenas o expositor de uma conferência que
teve repercussões significativas; ele esteve envolvido com esses fatos
na condição de professor numa universidade que capitaneou a refor-
ma curricular do ensino superior ena situação de um dos participan-
tes dos colóquios bienais sobre poética e hermenêutica. A estética da
recepção é o fruto do encontro dessas linhas, que simultaneamente
representa. Parte de uma crítica aguda a uma instituição vigente, mas
em decomposição: o ensino da história da literan ra, cujo descrédito
flagrante é lamentado por Jauss. Todavia, ele não deseja enterrá-la
em definitivo, e sim reabilitá-la sob novo estatuto.

Os métodos da Após a introdução provocativa, o con-


história da literatura ferencista indica que vigoram dois mo-
delos de história da literatura: o pri-
meiro, mais atual, "ordena seu material segundo tendências gerais,
gêneros e o 'resto', para, em seguida; tratar as obras individuais den-
tro dessas rubricas em sucessão cronológica". 2 O outro, que segue
o padrão da Antigüidade, encarnado pelas Vidas paralelas, de Plu-

1 Nos ensaios sobre a literatura medieval, Jauss faz questão de indicar os pontos de
contato entre o trabalho com essa produção e os objetivos da estética da recepção.
Cf. JAUSS, Hans Robert. Littérature médiévale et expérience esthétique. Actualité des
Questions de litlérature de Robert Guiette. Poétique, 3/ : 322-36, set. 1977; e: Idem.
The aIterity and modernity of medievaIliterature. New Literary History, lO (2) : 181-229,
Inverno de 1979.
2 JAUSS, Hans Robert. Literaturgeschichte ais Provokation der Literaturwissenschaft.
In: . Literaturgeschichte aIs Provokation, 4. ed. Frankfurt, Suhrkamp, 1974.
p. 146. Como serão retiradas várias citações desse ensaio, doravante indicaremos, en-
tre: parênteses, apenas o número da página onde elas se encontram.
PROJETANDO A NOVA HISTÓRIA DA LITERATURA 31

tarco, "ordena seu material de modo linear segundo o paradigma de


grandes autores e valoriza-os conforme o esquema de 'vida e obra'"
(p. 146). Em ambos, o problema é similar: não se trata de história,
e sim de uma moldura para uma história, em que a historicidade da
literatura desaparece. Além disto, falta a perspectiva estética, de que
o historiador se abstém, abrigando-se sob o teto do "cânone seguro
das 'obras-primas'" (p. 147). 3
A seguir, examina a filosofia da história do século XIX, na busca
de uma explicação para a insatisfação deixada pela história da litera-
tura. Ela foi responsável pelas histórias nacionais da arte, que, como
afirma em outro ensaio, transferiu para suas fileiras o encadeamento
fornecido pela história geral, que, por sua vez, toma como referência
o que uma nação veio a ser depois. 4
Também o positivismo influenciou a história da literatura, a que
·foi aplicado o princípio da explicação causal, com os seguintes resul-
tados: "deu relevância apenas aos fatores determinantes externos, con-
feriu importância excessiva à investigação das fontes e dissolveu a
propriedade específica da obra de arte numa rede de 'influências' que
podiam ser aumentadas à vontade" (p. 153). O id alismo, como o
da estética de B. Croce, não representou uma opção melhor, já que
preferiu suprimir a história.
Resultou disso o impasse entre a história e a estética, em que
a presença de uma implicava a ausência da outra. Esse problema
transportou-se aos sucessores das duas correntes: "Da tendência po-
sitivista e da idealista saíram a sociologia da literatura e o método
imanente. Ambos aprofundaram o abismo entre a história e a poe-
sia" (p. 154).
O marxismo, de um lado, e o formalismo, de outro, apresen-
tam as mesmas dificuldades. O primeiro é alvo de séria contestação
por parte de J auss, que o acusa de não conceber a história da arte
como um processo independente. Além disto, ao afirmar a função
reprodutora da arte; ele estaria repetindo o conceito platônico de imi-
tatio naturae, de que não se libertou. Por isso, embora elaboradas

J Cf. a respeito dá crítica à historiografia da literatura e em geral, também: JAUSS,


Hans Robert. Geschichte der Kuns! und Historie. In: . Literaturgeschichte ... ,
cit., p. 208-51.
4 Cf. JAUSS, Hans Robert. Oes~hlthte,,'1 cu., p. 209-10. A desconfiança para com as
histórias nacionais da literatura Qpârecé também em: Idem. Goethes und Valérys Faust:
Zur Hermeneutik von Frage und Antwort. Comparative Literature, 28 (3) : 201-32,
Verão de 1976.
32 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA .

à época do Modernismo, as teses marxistas foram incapazes de per-


ceber o caráter concomitantemente inovador e formador daquela ar-
te, que não podia ser explicada pela noção limitante de mímese.
Seu objetivo é alterar esse quadro, propondo uma história da
arte fundada em outros princípios, que incluem a perspectiva do su-
jeito produtor, a do consumidor e sua interação mútua. Apenas esse
enfoque tem meios de superar a abordagem exclusivamente miméti-
ca, ao considerar dialeticamente a função da arte, ao mesmo tempo
formadora e modificadora da percepção.
A última afirmação deixa-o muito perto dos formalistas, já que,
ao invocar a presença do recebedor na elaboração da nova história
da literatura, aborda a questão pelo ângulo da percepção do objeto
estético e das modificações por que passa, tema predileto dos teóri-
cos russos. Porém, Jauss confessa-se insatisfeito com o programa de
Tinianov, baseado na separação entre a literatura, considerada obje-
to autônomo de investigação, e a vida prática. Ao contrário do mar-
xismo, que submeteu a arte à infra-estrutura econômica, os formalistas
a liberaram a ponto de esquecerem a história.
" J auss reconhece uma contribuição importante do pensamento
de Tinianov: a ruptura com o conceito de evolução tomada como fe-
nômeno linear, gradual e contínuo, substituindo essa noção, própria
à historiografia tradicional pela de "processo como mudanças brus-
cas, revoltas de novas escolas e conflitos entre gêneros rivais" (p. 166).
Entretanto, adverte: "Compreender a obra de arte na sua história,
isto é, dentro da História da Literatura definida como sucessão de
sistemas, ainda não equivale a ver a obra de arte na história, isto é,
no horizonte histórico de sua origem, função social e ação no tem-
po" (p. 167).
Além disso, julga ilusório o projeto elaborado por Tinianov,
que acredita ser possível pensar a relação da série literária com as sé-
ries vizinhas, a histórica sendo uma delas e a social, outra: "Se, por
um lado, a evolução histórica pode ser concebida como mudança his-
tórica de sistemas e, por outro, a história pragmática como encadea-
mento progressivo de estados sociais, ao colocar a 'sucessão literária'
e a 'sucessão não literária' numa conexão que abarque a relação en-
tre literatura e história, não se obriga a literatura, abandonando seu
caráter artístico, a ter uma mera função de reprodução ou ilustração?"
(p. 167).
Cabe localizar a solução do impasse em outra instância, cujo
ponto de partida, segundo J auss, depende do reconhecimento e in-
PROJETANDO A NOVA HISTÓRIA DA LITERATURA JJ

corporação da dimensão de recepção e efeito da literatura. Somente


esta sintetiza os dois aspectos imprescindíveis à história da literatura,
dando conta tanto do caráter estético, quanto do papel social da ar-
te, pois ambos se concretizam na relação da obra com o leitor. Para
tanto, porém, cumpre formular um novo conceito de leitor, diverso,
de um lado, da perspectiva marxista, que o vê como parte do mundo
apresentado, de outro, do formalismo, que necessita dele "como su-
jeito da percepção que, seguindo as indicações do texto, tem apenas
de distinguir a forma ou descobrir o procedimento" (p. 168).
A estética da recepção tem meios de resolver o problema, por-
que seu pressuposto é o de que "a vida histórica da obra literária não
pode ser concebida sem a participação ativa de seu destinatário" (p.
169). Com isto, recupera a historicidade da literatura, nascida de seus
intercâmbios com o público; e chega a esse resultado por restabelecer
a relação, rompida pelo historicismo, entre o passado e o presente,
condição imprescindível para a reconciliação entre os aspectos estéti-
co e histórico de um texto. Com tal propósito e a segurança de ter
sanado as dificuldades da história da literatura, responsáveis por sua
decadência, Jauss passa a enumerar seus princípios- teóricos.

Quatro premissas J auss divide em sete teses seu projeto de


reformulação da história da literatura,
que, assim, passaria da posição de sucursal à de matriz de uma nova
ciência literária. As quatro primeiras têm caráter de premissas, ofe-
recendo as linhas mestras da metodologia explicitada nas três últimas.
A primeira postula que a natureza eminentemente histórica da
literatura se manifesta durante o processo de recepção e efeito de uma
obra, isto é, quando esta se mostra apta à leitura. A relação dialógica
entre o leitor e o texto - este é o fato primordial da história da lite-
ratura, e não o rol elaborado depois de concluídos os eventos artísti-
cos de um período. A possibilidade de a obra se atualizar como
resultado da leitura é o sintoma de que está viva; porém, como as
leituras diferem a cada época, a obra mostra-se mutável, contrária
à sua fixação numa essência sempre igual e alheia ao tempo.
Historicidade coincide com atualização, e esta aponta para o
indivíduo capaz de efetivá-la: o leitor. Jauss altera o foco a partir do
qual se analisam os fenômenos literários; mas, ao mesmo tempo, vê-
se perante um conceito de leitor que arrisca defini-lo enquanto subje-
34 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

tividade variável, dependente de suas experiências pessoais. O perigo


é desenibocar no impressionismo, mas o Autor o evita, ao formular
a segunda tese.
Examinando a experiência literária do leitor, J auss adverte que,
para descrevê-la, não é necessário recorrer à psicologia. Sua análise
volta-se à "recepção e o efeito de uma obra no sistema objetivo de
expectativas que, para cada obra, no momento histórico de seu apa-
recimento, decorre da compreensão prévia do gênero, da forma e da
temática de obras anteriormente conhecidas e da oposição entre lin-
guagem poética e linguagem prática" (p. 173-4).
Como se vê, os elementos necessários para medir a recepção de
um texto encontram-se no interior do sistema literário. Em vez de li-
dar com o leitor real, indivíduo com suas idiossincrasias e particula-
ridades, J auss busca determinar seu virtual "saber prévio" (p. 174).
Para tanto, ele não interroga as pessoas, que só poderiam fornecer
poucas informações, se questionadas hoje, menos ainda em épocas
anteriores. Sua consulta é dirigida às próprias obras; pois, na medida
em que participam de um processo de comunicação e precisam ser
compreendidas, elas apropriam-se de elementos do código vigente.
Por mais renovadora que seja, cada obra' 'não se apresenta como
novidade absoluta num vazio informativo", se não que "predispõe
seu público por meio de indicações, sinais evidentes ou indiretos, mar-
\ cas conhecidas ou avisos implícitos" (p. 175). Dados retirados da poé-
tica do gênero são também sintomas seguros dos modos como ela
espera se relacionar com o público. Logo, a obra predetermina a re-
cepção, oferecendo orientações a seu destinatário. Segundo Jauss, ela
evoca o "horizonte de expectativas e as regras do jogo" familiares
ao leitor, "que são imediatamente alteradas, corrigidas, transforma-
das ou também apenas reproduzidas" (p. 175).
Recorrendo à noção de horizonte, emprestada de Hans George
Gadamer, que, por sua vez, a achara nos escritos de E. Husserl, Jauss
parece ter encontrado o parâmetro objetivo para medir as possibili-
dades de recepção. Cada leitor pode reagir individualmente a um tex-
to, mas a recepção é um fato social- uma medida comum localizada
entre essas reações particulares; este é o horizonte que marca os limi-
tes dentro dos quais uma obra é compreendida em seu tempo e que,
sendo "trans-subjetivo", "condiciona a ação do texto" (p. 176).
Neste ponto, Jauss não está sendo totalmente fiel ao pensamento
de Gadamer. Este entende o horizonte como a perspectiva que abar-
ca e encerra o que pode ser visto a partir de um certo ponto. Jauss,
PROJETANDO A NOVA HISTÓRIA DA LITERATURA 35

por sua vez, e principalmente nessa conferência, assimila ao horizon-


te as características do código estético, conforme os estruturalistas
tchecos o caracterizaram. Por isso, afirma, ainda na segunda tese,
que as obras retomam o horizonte para, depois, contrariá-lo, usando
os exemplos de romances efetivamente renovadores à época de seu
aparecimento, como D. Quixote, de Cervantes, e Jacques, o fatalis-
ta, de Diderot.
A reconstituição do horizonte é matéria para a terceira tese,
sendo que a concretização dessa tarefa possibilita determinar o cará-
ter artístico de uma obra "no modo e no grau de sua ação sobre
um certo público" (p. 177). Por seu intermédio Jauss espera resol-
ver o problema aludido quando da crítica às histórias da literatura:
estas eram unilaterais, porque ou examinavam as relações das obras
com a época, não dando conta de sua natureza artística; ou centravam-
se nesta, esquecendo-se de confrontá-la a seu contexto histórico e
social.
Jauss acredita que o valor decorre da percepção estética que a
obra é capaz de suscitar. Aqui ele está outra vez bastante próximo
de formalistas e estruturalistas, porque concorda em que só é boa a
criação que contraria a percepção usual do sujeito. Situa o valor num
elemento móvel: a distância estética, equivalente ao intervalo entre
a obra e o horizonte de expectativas do público, que pode ser maior
ou menor, mudar com o tempo, desaparecer. E torna-o mensurável,
pois "a distância estética pode ser historicamente objetivada no es-
pectro das reações do público e do juízo da crítica" (p. 177).
De um lado, a noção de valor é, tal como no estruturalismo,
avessa à postura idealista que o deposita num conceito universal fora
do tempo e da história; de outro, Jauss não escapa a uma fórmula
simplista, segundo a qual quanto maior a distância, maior a arte. Is-
to lhe permite opor a arte autêntica à por ele chamada "arte culiná-
ria" ou de mera diversão (p. 178), como a literatura de massa, alheia
ao experimentalismo. Também não deixa de resvalar para o mani-
queísmo comum à abordagem dos produtos da indústria cultural, nesse
ponto solidarizando-se à posição de Adorno e dos teóricos da Escola
de Frankfurt, tão combatidos em vários outros aspectos. E, mais sig-
nificativamente, reitera a visão, neste caso, idealista, de arte autênti-
ca ou superior, de reminiscência, certamente à revelia do Autor,
platônica. Em ensaios subseqüentes, Jauss reformula a noção de dis-
36 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

tância estética, porém a maior parte das características aqui defini-


das permanecem. 5
A quarta tese é mais comprometida com a hermenêutica e co-
meça procurando examinar melhor as relações do texto com a época
de seu aparecimento. Afinal, ele não se depara apenas com um códi-
go artístico consolidado, que contraria enquanto afirma sua identi-
dade e originalidade. Ele responde a necessidades do público com o
qual dialoga, sem o que sua presença não se justifica. Assim, a re-
constituição do horizonte de expectativas diante do qual foi criada
e recebida uma obra possibilita chegar às perguntas a que respondeu,
o que significa descobrir como o leitor da época pode percebê-la e
compreendê-la, recuperando o processo de comunicação que se
instalou.
A reconstituição do horizonte se faz necessária por fornecer as
primeiras indicações relativamente a essa troca entre o texto e o pú-
blico; mas ela oportuniza também a recuperação da história da re-
cepção de que ele foi objeto, fazendo aparecer "a diferença her-
menêutica entre a inteligência passada e atual de uma obra" (p. 183)
e estabelecendo as ligações entre os dois pontos. Valendo-se de outra
categoria de Gadamer, relativa à lógica da pergunta e da resposta co-
mo fundamento do método heurístico, Jauss pode mostrar como as
compreensões variam no tempo. Por responder a novas questões em
épocas distintas o texto explícita sua historicidade, concomitantemente
contrariando a idéia de estar possuído por um "presente atemporal"
(p. 183), com um sentido fixado para sempre.
Para as obras mais antigas, essa reconstituição permite enten-
der a razão de sua importância histórica. Contrapondo o texto ao
"background das obras cujo conhecimento o autor pressupunha ex-
plícita ou implicitamente no público contemporâneo" (p. 184), é pos-
sível verificar que função ele desempenhou e, principalmente, o que
contradisse ou questionou na ocasião. Além disso, o trabalho de re-
construção do passado impede que os juízos do crítico interfiram na
avaliação da obra: esta é considerada na relação com o horizonte den-
tro do qual apareceu, e não a partir das preferências e critérios pes-
soais de quem a estuda.
Por sua vez, esta é uma tarefa hermenêutica, porque coincide
com a recuperação da pergunta do público por meio da análise da

5É o que se verifica no seu último livro, Âsthetische Erfahrung und literarische Her-
meneutik ; publicado em 1982.
PROJETANDO A NOVA HISTÓRIA DA LITERATURA 37

resposta, que é o texto. Jauss cita uma frase de R. G. Collingwood


que corrobora seu programa de ação: "compreende-se o texto, quando
se compreendeu a pergunta a que ele dá a resposta" (p. 185). Toda-
via, escudado em Gadamer, adverte: "a pergunta reconstituída não
pode estar no horizonte original, porque este horizonte histórico já
foi englobado pelo horizonte da nossa atualidade" (p. 185). A "fu-
são de horizontes", e Jauss novamente emprega uma noção cara a
seu mestre, já ocorreu, sendo agora parte integrante da compreen-
são. Jauss cita Gadamer diretamente: "compreender [é] sempre proce-
der ao processo de fusão dos horizontes aparentemente independen-
tes um do outro" (p. 185).
Assim, se se resgata a pergunta original, recupera-se também
a tradição em que o diálogo entre a obra e a audiência se transfor-
mou, por ser alvo de recepções sucessivas. Não se trata, pois, de ten-
tar imitar a perspectiva do passado, objetivo na realidade impraticável;
nem o contrário, de modernizar o significado do texto, o que o fal-
searia. Acontece que esse foi incorporando as interpretações e recep-
ções acumuladas no tempo, equivalentes à "história dos efeitos"
[ Wirkungsgeschichte], aplicando-se aí outro conceito de Gadamer, ou
ao potencial de significados que, nesse percurso, foram trazidos à luz.

Programa de ação Considerando essas teses, Jauss esclare-


ce seu programa metodológico, que in-
vestiga a literatura sob tríplice aspecto: o diacrônico, relativo à re-
cepção das obras literárias ao longo do tempo (tese 5); o sincrônico,
que mostra o sistema de relações da literatura numa dada época e a
sucessão desses sistemas (tese 6); por último, o relacionamento entre
a literatura e a vida prática (tese 7).
A quinta tese explicita o primeiro dos caminhos: para situar uma
obra na "sucessão histórica", é preciso levar em conta a experiência
literária que propiciou, ou seja, a história dos efeitos, mencionada
acima. Uma obra não perde seu poder de ação ao transpor o período
em que apareceu; muitas vezes, sua importância cresce ou diminui
no tempo, determinando a revisão das épocas passadas em relação
à percepção suscitada por ela no presente. Jauss dá o exemplo da ar-
te barroca, que, após as vanguardas modernistas, adquiriu novo sig-
nificado (o livro de W. Benjamin sobre a tragédia do século XVII
é um bom exemplo; outro são as conferências de García Lorca sobre
38 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

a poesia de Gôngora), Portanto, o novo é uma qualidade móvel, com


sentido estético e também histórico, quando provoca o resgate de pe-
ríodos passados. Igualmente a noção de história é afetada, porque
deixa de ser vista como progresso e evolução, segundo a ótica linear
e teleológica herdada dos positivistas. Pelo contrário, ela se faz de
avanços e recuos, reavaliações e retomadas de outras épocas, obri-
gando a história da literatura a manter-se atenta e a repensar sua me-
todologia, que não pode mais limitar-se ao alinhamento unidirecional
e unidimensional dos fatos artísticos.
Conforme a segunda das vias propostas, a tarefa subseqüente
da estética da recepção corresponde ao estabelecimento do sistema
de relações próprio à literatura de um dado momento histórico e à
articulação entre as fases. A literatura, compreendida do ponto de
vista da produção, compõe-se de "uma multiplicidade heterogênea
do não simultâneo" (p. 197), as diferentes obras escritas em períodos
distintos do tempo, constituindo a matéria que a história da literatu-
ra arrola, divide e organiza em seqüência. Todavia, esta operação não
altera o fato básico: para o público, ela aparece como simultaneida-
de: "esta multiplicidade de manifestações literárias - desde o ponto
de vista da estética da recepção - volta a constituir para o público,
que as percebe como obras de sua atualidade e relaciona-as umas com
as outras, a unidade de um horizonte, comum e gerador de significa-
\ dos, expectativas, recordações e antecipações literárias" (p. 197),
Por isso, é preciso proceder à análise do simultâneo, bem como
das mudanças, comparando os cortes e descobrindo os pontos de in-
tersecção, a fim de definir que obras têm caráter articulador, acio-
nando "o processo da 'evolução literária' em seus momentos
formadores e nas rupturas" (p. 199). Estas obras, postas em desta-
que, são as que provocam efeitos, sendo encaradas, pois. também des-
de a perspectiva de sua recepção,
A última tese procura examinar as relações da literatura com
a sociedade. Evitando a posição marxista, que entende a primeira co-
mo reflexo da segunda, Jauss enfatiza a função que exerce, de cunho
formador: a literatura pré-forma a compreensão de mundo do leitor,
repercutindo então em seu comportamento social.
Coerente com as posições anteriores, Jauss pensa que a arte não
existe para confirmar o conhecido, e sim para contrariar expectati-
vas. Partindo deste pressuposto de procedência formalista, ele am-
plia uma pista deixada em aberto pelos russos: se assim é, então a
literatura pode levar o leitor a uma nova percepção de seu universo.
PROJETANDO A NOVA HISTÓRIA DA LITERATURA 39

Nas suas palavras, "a relação entre literatura e leitor pode atualizar-
se tanto no terreno sensorial como estímulo à percepção estética, co-
mo também no terreno ético enquanto exortação à reflexão moral.
A nova obra literária é acolhida e julgada tanto contra o background
de outras formas artísticas, como ante o background da experiência
cotidiana da vida" (p. 203).
A última tese parece fugir aos objetivos de uma história da lite-
ratura. Porém, cumpre lembrar que o Autor compreende essa última
como o fundamento para uma nova ciência literária; conseqüente-
mente, esta também precisa examinar seu objeto desde o ângulo da
ação que provoca. Por isso, sua conclusão é coerente com o projeto
geral, caracterizado pela seguinte aspiração:
o Intervalo entre literatura e história, conhecimento estético e
conhecimento histórico, pode ser ultrapassado, quando a história da
literatura não se limitar a descrever de novo o processo da história ge-
rai através do espelho de suas obras e descobrir, no curso da "evolu-
ção literária", em seu sentido próprio, aquela função educativa e social,
que correspondla à literatura quando esta concorria com outras artes
e poderes sociais para emancipar o homem de suas ataduras naturais,
religiosas e sociais (p. 207).

O texto provocador da estética da recepção e de uma nova his-


tória da literatura apresenta-se rico de intenções, caracterizando a glo-
balidade e abrangência do projeto. Porém, depende, para sua con-
cretização, de pesquisas que confirmem sua viabilidade, providencia-
das por Jauss em ensaios posteriores. Estes permitem compreender
e avaliar o alcance metodológico das teses de 67, bem como resolver
alguns problemas evidenciados na exposição inaugural.
Esta ressente-se sobretudo da influência na época recente da des-
coberta do formalismo russo e do estruturalismo tcheco. Graças a ela,
Jauss assume os méritos e os problemas dos conceitos adotados: su-
pera a acepção essencialista de valor e enfatiza, na dinâmica da his-
tória da literatura, o papel do público, que procura descrever como
elemento ativo e determinante. Porém, formula um conceito de qua-
lidade duvidosa, o de distância estética, que reduz o impacto da obra
de arte a uma medida quantitativa e fixa. Provavelmente J auss per-
cebeu a inconsistência dessa categoria, procurando conferir-lhe mais
solidez pela interpenetração com conceitos provenientes da hermenêu-
tica. Porém, como observou um de seus críticos, 6 isto não impede

6Cf. BÜRGER, Peter. Vermittlung - Rezeption - Funktion; Âsthetische Theorie und


Methodologie der Literaturwissenschaft. Frankfurt, Suhrkamp, 1979.
40 ESTÉTICA DA RECEPçAo E HISTÓRIA DA LITERATURA

a separação das águas, mantendo-se de um lado o conjunto de idéias


formalistas e estruturalistas, de outro as de origem na hermenêutica.
Relativamente ao projeto da estética da recepção propriamente
dita, algumas noções se confundem, como as de recepção e efeito,
este significando às vezes impacto da obra na sociedade e na história,
às vezes resposta do leitor. Nos ensaios subseqüentes, em que ele se
volta de modo crescente para a hermenêutica, as fronteiras concei-
tuais ficam mais nítidas. Além disto, um setor permaneceu insuficien-
temente descrito: o da experiência do leitor, que deveria ser, supõe-se,
a matéria central de uma estética voltada à análise da recepção. Jauss
percebe a lacuna, que procura sanar; antes disso, entretanto, busca
comprovar que seu programa se destina sobretudo ao campo aplica-
do, com teses visando dar a conhecer melhor os produtos artístico'
coletados pela história da literatura.
4
Da teoria à prática

Se por tradição entendemos o processo his-


tórico da práxis artlstica, então ele deve ser
pensado como um movimento que começa
com a recepção, que apreende o passado, trá-
lo de volta a si e dá ao que ela assim transfor-
mou em presente, traduziu ou "transmitiu", o
sentido novo que implica seu esclarecimento
pela atualidade.
Hans Robert Jauss

A leitura de um ensaio como o antes resumido pode dar a en-


tender que J auss produz um trabalho predominantemente teórico. To-
davia, poucos textos seus têm a característica da conferência, que lida
com categorias gerais, e não com a análise específica de criações lite-
rárias. Com efeito, ele se apóia principalmente no estudo de temas
com limite definido, para ampliar e aprofundar as teses sobre histó-
ria da literatura. E, conforme gosta de afirmar, foram as análises da
literatura medieval que lhe forneceram as indicações conceituais or-
ganizadas mais tarde.
Por isso, pode-se encontrar seu método de trabalho antecipado
num ensaio publicado em 1965 e reunido, em 1970, ao livro onde tam-
42 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

bém se acha a versão final da palestra apresentada e editada em 1967.


Com o título de "Tradição literária e consciência atual da moderni-
dade", trata dos sentidos abrigados por este último substantivo ao
longo do tempo. Parte da circunstância de ele se referir à arte con-
temporânea desde que Baudelaire o elevou à condição de "lema pro-
gramático da nova estética", 1 em 1859, embora Chateaubriand já
o tenha empregado dez anos antes, em 1849.
Contudo, Jauss chama a atenção para o fato de o adjetivo mo-
derno ter origem remota, assinalando que o debate entre antigos e
modernos, começa na Antigüidade. A coincidência temporal pode dar
a entender que se trata de uma constante literária, impressão que de-
seja enfaticamente contrariar, pois, segundo ele, o retorno de temas
semelhantes em épocas diferentes não os faz iguais. Conforme escre-
ve, "o sentido de modernus não se esgota no significado atemporal
do topos literário" (p. 14), afirmação que resume duas de suas inten-
ções: posiciona-o contra as tendências da história da literatura que,
por estarem fundadas em noções universais, acabam contraditoria-
mente neutralizando a historicidade da obra de arte com que lidam;
e sugere outro método de trabalho, baseado no -exame do modo co-
mo os conceitos se modificam no tempo, sendo, pois, indicadores da
mutabilidade dos fenômenos.
Porém, a escolha do termo que consiste no assunto do ensaio
não é ocasional: moderno e modernidade são palavras muito caras
à estética da Escola de Frankfurt, estando presentes (nem sempre, co-
mo seria de se esperar, num sentido idêntico) nos textos de Walter
Benjamin e Theodor Adorno, ambos em grande evidência por oca-
sião do aparecimento do texto de Jauss, e de Jürgen Habermas, en-
tão em fase ascendente no panorama intelectual alemão.
Para Curtius, a presença de um tópico formulado dentro da cul-
tura da Antigüidade num autor europeu da Idade Média ou Moder-
na aproxima os dois e ratifica que ambos pertencem a uma mesmà
tradição, tornada, assim, a-histórica. O motivo da rosa, por exem-
plo, aparece na poesia medieval, barroca e contemporânea; esta coin-
cidência coloca os versos comuns numa mesma cadeia, permitindo

I JAUSS, Hans Robert. Literarische Tradition und gegenwãrtiges Bewusstsein. In:


__ o Literaturgeschichte ... , cit., p. 11. As citações serão retiradas desta edição, sendo
indicado, entre parênteses, o número da página onde se encontram. Este estudo foi
publicado originalmente em: STEFFEN, H., Hrsg. Aspekte der Modernitãt. Gõttingen,
Vandenhoek und Ruprecht, 1965.
DA TEORIA A PRÁTICA 43

uma abordagem que reconhece as semelhanças e ignora não apenas


as relações de cada poeta com seu tempo, mas também a dos poetas
de períodos posteriores com o patrimônio do passado. Jauss não aceita
esta concepção, cujas projeções são mais patentes na literatura com-
parada. 2 Seu exame da palavra moderno é, sob este aspecto, exem-
plar: ele verifica seu sentido no século V d. C., quando "tem apenas
o significado técnico da fronteira da atualidade" (p. 16), equivalen-
do ao "agora", e não ao "novo", e as mudanças por que passou.
Na Idade Média, representa o positivo e o desejado, justificando a
modernização dos textos clássicos; na Renascença, transforma-se no
oposto, já que o Humanismo elegera a Antigüidade como paradig-
ma; e no final do século XVII, durante a Querela dos Antigos e Mo-
dernos, os "modernes" é que se consideravam "anciens", pois
compreendiam a história desde uma metáfora biológica: a humani-
dade - ou a sociedade -, tal como o ser humano, experimentou a
juventude (a Antigüidade), a maturidade (a Renascença) e, à época
deles, achava-se na velhice.
Essa concepção de história foi depois combatida e é hoje igno-
rada; porém, vigorou para a geração de Perrault, encetando uma for-
ma de entender o tempo com conseqüências marcantes para o
pensamento contemporâneo. Jauss situa nesse momento de passagem
o aparecimento da visão histórica do tempo, que atribui a cada pe-
ríodo uma particularidade e procura verificar sua própria posição,
concebida como a mais elevada e superior, nessa cadeia de aconteci-
mentos.
Todavia, a noção de moderno não estaciona nesse ponto: reto-
mada pelos românticos, é empregada para contradizer a herança ilu-
minista e desmentir o Classicismo, cujos princípios são frontalmente
rejeitados. A revisão histórica retorna a Baudelaire, para quem a mo-
dernidade é o sintoma mesmo da transitoriedade, portanto, da histo-
ricidade, da arte. Eis por que, segundo Jauss, a estética de Baudelaire
segue uma "tendência anti platônica" (p. 57), que abre caminho para
o novo cânone, característico da arte atual.
A resenha de J auss não apenas contesta a historiografia tradi-
cional, que tem dificuldades para perceber como cada época com-
preendeu os acontecimentos passados, e as teses de Curtius, para quem
a história não conta. Ele deseja igualmente evitar os caminhos esco-

2 Cf. Idem. Goethes und Valérys ...• cit.


44 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

lhidos pela Escola de Frankfurt, indicando como essa acaba por tor-
nar o conceito de modernidade, eminentemente histórico, uma essência
ideal e imutável, um valor absoluto, usado para medir a qualidade
das criações artísticas. A acepção de modernidade empregada por
Adorno e Benjamin também é histórica, fruto das novas circunstân-
cias e, como tal, precisa se alinhar às precursoras, enquanto parte de
uma cadeia de eventos dentro da qual não é melhor, nem pior, supe-
rior, nem inferior.
Embora nesse ensaio Jauss não discuta diretamente as idéias de
Adorno, a rejeição, com argumentos colocados no posfácio do en-
saio aqui resumido, da interpretação dada por Benjamin ao conceito
de moderno em Baudelaire, numa época em que se supunha uma iden-
tidade de pensamento entre os dois teóricos, 3 sugere serem aquelas
um dos alvos do trabalho. Este, por outro lado, é igualmente revela-
dor de seu sistema de investigação, e, enquanto tal, reaparece poste-
riormente em textos de destinação variada. Talvez esse tipo de pes-
quisa seja uma das marcas registradas de Jauss, permitindo conferir
a visão relativista que tem da história. Para ele, não há um ponto
de observação privilegiado: todos, incluindo o próprio ensaísta, per-
tencem ao encadeamento temporal, de onde examinam o presente e
o passado. Jauss responsabiliza-se pela descrição do processo global;
porém, como bom discípulo da hermenêutica e de Gadamer, sabe que
.
\ sua posição também deve ser objeto de reflexão e inserção na história .
A relação do sujeito com seu tempo não é pensada, contudo,
na perspectiva pessoal. Ele a investiga em outro estudo pertencente
ao livro de 1970, cujo tema é a constatação do final de um período
artístico pelos escritores que participam dele. J auss analisa agora os
escritos de H. Heine e Stendhal, artistas separados por várias circuns-
tâncias, mas próximos neste aspecto: foram capazes de perceber o es-
gotamento da estética romântica e dirigir a literatura para um novo
modelo de representação da realidade, apontando para as tendências
peculiares ao Modernismo.
De novo ele se mostra preocupado com a questão da moderni-
dade, procurando situar seu aparecimento dentro de um quadro his-
tórico perfeitamente definido. Neste sentido, talvez o próprio J auss
estivesse reagindo aos acontecimentos dos anos 60, quando se agu-

J Sobre as relações entre Adorno e Benjamin e a recepção deste por aquele, v. Ko-
THE, Flávio R. Adorno & Benjamin; confrontos. São Paulo, Ática, 1978.
DA TEORIA A PRÁTICA 4S

dizam as reflexões sobre a natureza do Modernismo, sentindo-se pouco


confortável com as teses que absolutizavam a modernidade na condi-
ção de categoria definitiva para se pensar a arte. Estas teses eram ve-
rificáveis mesmo em correntes adversárias, como, de um lado, o
estruturalismo (o do Círculo Lingüístico de Praga, cuja produção teó-
rica estava sendo traduzida na ocasião) e o pós-estruturalismo (do gru-
po parisiense Tel Que/) e, de outro, os herdeiros de Hegel e Marx,
como os já citados Adorno, Benjamin e Habermas. No entanto, tal-
vez estivesse reagindo ainda a outro acontecimento do período, na
oportunidade de difícil conscientização: a década assistia ao esgota-
mento das experiências modernistas, objeto agora da consideração
universitária, porém não mais projeto principal dos artistas. Jauss,
como os outros, experimentava o final de um período artístico; mas
talvez se possa afirmar que ele e os demais, ao contrário dos autores
estudados no ensaio, não detectaram tão claramente o fenômeno que
se transcorria ante seus olhos. Provavelmente tenha faltado a todos
o que deu como particularidade do momento histórico-literário exa-
minado:
A ruptura com a primazia de uma estética clássico-humanista,
o retorno à "prosa da vida", associado à dúvida quanto próprio direito
de existência da poesia, a criação de novas formas literárias entre a
poesia e o jornalismo, porém, sobretudo, a abertura da arte à história
atual e ao movimento da época. 4

Resgate de É fácil notar que, nos estudos até agora resumidos,


Ifigênia estão ausentes as análises de textos literários. Es-
tas, por sua vez, podem ser representadas pelo en-
saio dedicado à tragédia de Goethe, Ifigênia em Táuride, que exem-
plifica várias das propostas formuladas antes.
O ponto de partida desse trabalho revela de imediato seu com-
promisso com o enfoque recepcional: deseja entender por que Iflgê-
nia, outrora o "evangelho do Humanismo alemão", 5 converteu-se

4 JAUSS, Hans Robert. Der Ende der Kunstperiode - Aspekte der literarischen Revo-
lution bei Heine, Hugo und Stendhal. In: . Literaturgeschichte ... , cit., p. 142-3.
5 Idem. Racines und Gocthcs Iphigenie. Mit einem Nachwort über die Partialitãt der
Rezeptionsãsthetik Methode. Neue Hefte für Philosophie, 4 : 01-46, 1973. p. 1. Este
ensaio foi rcpublicado, sem alterações, em: W ARNING, Rainer, Hrsg. Rezeptionsãsthe-
tik; Theorie und Praxis. München, Fink, 1975.
46 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

em leitura escolar e obrigatória, considerada desinteressante. Conclui


ter mudado o modo de recepção e consumo de certo produto artísti-
co; e procura verificar que condições históricas e estéticas determina-
ram essa situação, examinando a trajetória percorrida pela obra no
tempo. Dois outros pressupostos reforçam essas premissas metodo-
lógicas: sabe que o texto em pauta perdeu a atualidade; mas não de-
seja resgatar seu "sentido original" (p. 2), porque descrê deste
princípio; prefere antes recuperar as interpretações originais, mais in-
formativas sobre a circulação do texto, e constatar quais sentidos atri-
buídos à tragédia se propagaram, pois permitem entender a tradição
acumulada pela obra.
O resultado da investigação coincide com a reconstituição
do "horizonte da pergunta e da resposta" (p. 4), objetivo princi-
pal da estética da recepção. Alcançado esse patamar, é possível com-
preender as mudanças por que passou a interpretação da obra e pro-
vocou a substituição das suas imagens, até chegar a uma situação que
não mais satisfaz, como a denunciada na abertura do ensaio. Revê
então a história da recepção de Ifigênia e percebe uma alteração
significativa: ao longo do tempo, converteu-se em representante
do classicismo estético e, como tal, foi sufocada uma importante fun-
ção desempenhada por ela à época de seu aparecimento - a de
negação, propondo novos padrões de percepção e motivando a mo-
dificação do horizonte. A respeito, Jauss afirma que "a negativi-
dade original da obra foi transformada em valor consagrado e con-
fiável" (p. 4).
J auss não procura reconstruir o sentido primeiro do drama en-
quanto uma significação única e imutável; visa antes recuperar o im-
pacto causado por ela quando surgiu e verificar as mutações por que
passou. Ao mesmo tempo, afirmando ter Ifigênia representado no
início a negação de um sistema de valores, num evidente transplante
ao iluminismo de conceitos estruturalistas, espera ter descoberto pos-
sibilidades de significação até então inéditas ou reprimidas; por isso,
conclui ser possível libertar a obra do "classicismo arcaizante que a
envolve" (p. 8). No entanto, adverte contra os perigos de se acreditar
que essa ação de resgate coincida com a reconstituição do conteúdo
primordial, a ser evitada: "Na tentativa de redescobrir uma atualida-
de histórica passada por trás da recepção posterior que a encobre,
não se deve esperar que a concretização inicial da obra já inclua aquela
significação a ser outra vez atualizada" (p. 9). Com efeito, as recep-
ções estão condicionadas tanto à estrutura formal e temática do tex-
DA TEORIA A PRÁTICA 47

to, quanto às disposições variadas do público, fator a legitimar mes-


mo as interpretações de que o texto hoje precisa se livrar.
O passo seguinte é a recuperação da atualidade da tragédia de
Goethe. Todavia, coerente com a rejeição das análises imanentes,
Jauss procura ver a obra como resposta a uma situação, estabelecen-
do seu diálogo com outra Ifigênia, a de Racine. Nesta, examina o.s
elementos de tensão e ruptura, decorrentes da leitura do mito clássi-
co feita pelo dramaturgo francês, vale dizer, sua associação com o
modelo consagrado de Eurípedes.
Racine, mergulhado no racionalismo do século XVII e janse-
nista, não poderia endossar o politeísmo do mito primitivo; por isso,
dessacraliza a intriga, transformando seu tema no conflito entre o ar-
bítrio divino e a impotência humana. Goethe, um iluminista, ou se-
ja, experimentando outra modalidade de racionalismo, já não podia
aceitar a versão de Racine, em que persiste a ação de um Deus primi-
tivo restringindo a liberdade individual. Por isso, o texto assume um
sentido emancipador: Ifigênia, escreve Jauss, mostra "a passagem do
homem da dependência mítica à liberdade subjetiva e à maturidade"
(p. 20).
O resgate do texto, sua "salvação" (p. 28), como também o de-
signa, coincide com a apresentação do sentido emancipador ali con-
tido. Este, todavia, teria sido sufocado pela recepção do século XIX,
que o transformou em modelo de Beleza atemporal; o mesmo fato
explicaria por que deixou de ser atraente às novas gerações. Entre-
tanto, J auss não entende o resgate como uma regressão ao início da
história da obra; ele julga ultrapassada a forma da tragédia e, como
esta é um dado fixo, não pode ser reatualizada. Sugere outra medi-
da, mais radical: o sacrifício dessa forma, como condição de revitali-
zar o elemento interessante do texto para as platéias contemporâneas.
Nas suas palavras, "para evitar que esta Ifigênia continue relegada
às 'peças do passado' (Walser), seria necessário abrir mão da harmo-
nia clássica e reintroduzir aí o conflito camuflado entre a humanida-
de e a realidade histórica, com o que a forma clássica fechada é
implodida" (p. 26); só assim ela pode ser novamente encenada. Mais
adiante, ele reitera: "A salvação de Ifigênia só pode acontecer ao preço
do abandono da forma clássica fechada, possível sua tradução num
novo presente desde que apresentada a insatisfação deixada pela so-
lução de Goethe" (p. 28).
A solução parece radical, mas é coerente com o pensamento de
J auss nesse momento, quando ele está refletindo, como se verá a se-
48 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

guir, sobre a natureza produtiva - poética - da experiência estéti-


ca. Além disto, está em consonância com o princípio de que a obra
de arte não consiste num valor imutável: sua temporalidade expressa-se
na aptidão a oferecer novas respostas ao público, e é atrás dessas que
vai o procedimento analítico do ensaísta.
Se, por este lado, seu programa de ação parece bastante inova-
dor, embora inquietante por romper com a atitude sacralizadora pe-
rante os objetos de arte, de outro, ele não deixa de sugerir que sua
interpretação é melhor que as anteriores. Jauss já foi criticado a esse
respeito 6 e sua defesa nunca é suficientemente convincente. Esta cons-
tatação, se relativiza a metodologia proposta, não a diminui, pois es-
tabelece parâmetros inusitados e mais largos para o exame de criações
literárias. Talvez aí esteja uma das contribuições mais originais da
estética da recepção, cuja validade pode ser medida pela análise de
um romance brasileiro: Helena, de Machado de Assis, estudado em
capítulo posterior.

6 Cf. as minutas do Colóquio ocorrido em Berkeley em 27 de fevereiro de 1983. In:


JAUSS, Hans Robert. The dialogicat and lhe dialetical Neveu de Rameau; How Dide-
rot adopted Socrates and Hegel adopted Diderot. Berkeley, The Center for Herrne-
neutical Studies in Hellenistic and Modern Culture, 1983.
5
Experiência estética

A atitude de prazer, que a arte provoca e pos-


sibilita, é a experiência estética primordial. Ela
não pode ser suprimida; pelo contrário, deve
voltar a ser objeto da reflexão teórica, quan-
do se trata hoje de defender a função social
da arte e da ciência que a serve contra os que
- letrados ou iletrados - suspeitam dela.

Hans Robert Jauss

Na conferência sobre a história da literatura como provocação


para a ciência literária, H. R. Jauss propõe uma inversão metodoló-
gica na abordagem dos fatos artísticos: sugere que o foco deve recair
sobre o leitor ou a recepção, e não exclusivamente sobre o autor e
a produção. Seu conceito de leitor baseia-se em duas categorias: a de
horizonte de expectativa, misto dos códigos vigentes e da soma de ex-
periências sociais acumuladas; e a de emancipação, entendida como
a finalidade e efeito alcançado pela arte, que libera seu destinatário
das percepções usuais e confere-lhe nova visão da realidade.
É lícito concluir que, embora a estética da recepção tenha se di -
seminado amplamente nos estudos literários durante os ano 70 o
leitor não subiu muito de cotação após o projeto de J aus , poi
50 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

tinuou sendo considerado uma função do texto. Por outro lado, a


ênfase dada à potencialidade emancipatória da obra de arte, nesse
e no ensaio sobre Ifigênia, é sinal do empenho em conferir ao leitor
um lugar mais ativo e à literatura uma importância social que ultra-
passe o papel reprodutor, atribuído a ela pelos enfoques marxista e/ou
da sociologia da literatura.
Emancipação é, nessa medida, um bom começo, sendo também
o problema comum vivenciado pelo texto e o leitor: no estudo sobre
Ifigênia, vê-se como J auss está interessado em salvar a tragédia,
liberando-a dos constrangimentos que a converteram num clássico ul-
trapassado, para devolver-lhe sua inclinação original: a de emanci-
par seu destinatário. Sobre este princípio ele funda as investigações
ulteriores sobre a experiência estética, através das quais avança na
direção da descrição do lugar do leitor na teoria da literatura, anteci-
pada, na apresentação anterior, como uma das metas principais de
sua provocação.
Esse princípio aparece no posfácio ao estudo sobre Ifigênia,
quando Jauss, sintetizando os propósitos da estética da recepção, re-
torna ao tópico da última tese, referente à função social da literatu-
ra, entendida a partir do relacionamento dessa com o leitor. Sua
premissa é a de que a arte, não sendo meramente reprodução ou re-
flexo dos eventos sociais, desempenha um papel ativo: ela faz histó-
da, porque participa do processo de "pré-formação e motivação do
comportamento social". 1 Como se comunica com o leitor, passa-lhe
normas, que, enquanto tais, são padrões de atuação. Porque a recep-
ção representa um envolvimento intelectual, sensorial e emotivo com
uma obra, o leitor tende a se identificar com essas normas, transfor-
madas, assim, em modelos de ação.
A função social da arte advém da possibilidade de influenciar
o destinatário, quando veicula normas ou quando as cria. No primei-
ro caso, pode reproduzir padrões vigentes; mas, como, ao fazê-lo,
reforça-os (é o exemplo da literatura de massa), mesmo nessa circuns-
tância ela ultrapassa a condição de reflexo. Além disto, a arte pode
se antecipar à sociedade, como ocorre à produção contemporânea:
esta é caracteristicamente inovadora, rompendo com o código consa-
grado. Por conseqüência, coloca-se à frente da sociedade e exerce com
mais vigor seu caráter emancipatório. Ao se adiantar aos modelos co-

1 JAUSS, Hans Robert. Racines und Goethes ... , cit., p. 43.


EXPERI~NCIA ESTÉTICA SI

letivamente aceitos, assume natureza utópica, apresentando não o que


é, mas o que poderia ser ou ter sido.
A postura é reconhecidamente iluminista, o que é admitido por
J auss em vários ensaios, seja quando enfatiza a função emancipado-
ra e, sob este aspecto, exemplar, da literatura e da história da litera-
tura, 2 seja quando se filia à tradição da estética de Kant, em oposição
à de Hegel. 3 Por sua vez, é desdobrada segundo uma dupla perspec-
tiva: através da descrição de como, na prática, a literatura veicula,
cria ou destrói normas; e do exame da experiência estética, procuran-
do verificar a importância da identificação, elevada ao status de con-
dição primeira para o exercício da função comunicativa por parte de
um produto artístico.

Os padrões de As relações entre a literatura e as normas so-


interacão

ciais são analisadas num ensaio publicado ori-
ginalmente na coletânea organizada em 1975
por R. Warning e reeditado como parte do livro até agora mais am-
bicioso de Jauss: Experiência estética e hermenêutica literária [ As-
thetische Erfahrung und literarische Hermeneutik]. Seu objeto é a
poesia lírica, com o intento não apenas de concretizar premissas -an-
tecipadas em ensaios anteriores, mas também de provar que a lírica
pode ser matéria da sociologia literária, outra maneira de dizer que
essa deve ultrapassar a perspectiva mimética dominante. Por último,
espera ser o estudo útil à sociologia, "que apreciará a oferta vinda
do campo da práxis estética, qual seja, a transmissão, elaboração e
legitimação das normas sociais por meio da literatura". 4
Estas normas podem se encontrar no texto não como uma in-
formação a ser decodificada, e sim como um padrão de interação,
isto é, na situação de regras que envolvem o leitor e dizem o que lhe
compete fazer. Nessa circunstância, a obra literária, mesmo não pro-
gramaticamente, oferece indicações de ação que correspondem ou não

2 Cf. Idem. Geschichte der Kunst..., cit.; também Idem. Racines und Goethes ... , cit.
J Cf. Idem. Âsthetische Erfahrung und literarische Hermeneutik. München, Fink, 1977.
4 Idem. La Douceur du Foyer: Lyrik des Jahres 1857 ais Muster der Vermittlung so-
zialer Normen. In: WARNING, Rainer, Hrsg. Rezeptionsãsthetik; Theorie und Praxis.
München, Fink, 1975. p. 401. As demais citações provêm dessa edição, sendo indica-
da, entre parênteses, a página onde se encontram.
52 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

a comportamentos já existentes. No primeiro caso, elas reforçam e


legitimam modelos em vigor ou possibilitam a aceitação de normas
recentemente aparecidas, atuando sobre o indivíduo mais por in-
fluenciá-lo indiretamente que por transmitir-lhe uma mensagem.
Jauss testa avalidade da hipótese examinando a produção poé-
tica editada em 1857, constatando que, no mesmo ano em que eram
publicadas as obras revolucionárias (e objeto de ação da Justiça) Ma-
dame Bovary, de G. Flaubert, e As flores do mal, de Ch. Baudelaire,
a poesia voltava-se à manifestação de um tema de orientação burgue-
sa e doméstica: o da douceur du foyer, a doçura do lar.
Quatro aspectos são analisados: o padrão situacional básico, que
reforça os papéis familiares (pai, mãe e filho), o espaço interior e o
final do dia, após o trabalho fora; o padrão normativo básico, se-
gundo o qual um paradigma de comportamento, de tipo doméstico,
é comunicado; a presença de um subuniverso, caracterizado por seu
fechamento no lar, que é idealizado e valorizado; e a função de legi-
timação, que é também ideológica, por ser produto de um "interesse
inconfessado" (p. 417). .'
Portanto, os poemas publicados naquele ano veiculam um pa-
drão de interação que, idealizando uma situação característica à bur-
guesia francesa do período de Luís Napoleão, tem um sentido
normativo: eles, de certa maneira, induzem o leitor a repetir o mode-
lo representado ou a, caso esse já se confunda com seu cotidiano,
valorizá-lo sobremaneira. Esta função é também social, mas não re-
produtiva, já que a realidade mostra-se mais ampla que o mundo trans-
parente nos textos.
De um lado, a pesquisa permite-lhe descrever os modos de in-
tercâmbio entre a literatura e a audiência, desdobrada em termos de
influências mútuas, já que o poema retransmite o comportamento bur-
guês ao leitor dessa classe social num nível idealizado e superior. De
outro, o resultado do levantamento coincide com a recuperação de
um horizonte de expectativas, o mesmo contra o qual Baudelaire e
Flaubert se chocaram quando publicaram livros que contradiziam ou
desmentiam essas imagens. Assim, o trabalho responde a um duplo
interesse metodológico: dá continuidade aos estudos relativos à his-
tória da literatura; e inaugura vias de investigação, caracterizadas pela
tentativa de compreender a natureza das relações entre a obra e o lei-
tor e da experiência estética. Este caminho demanda novas especula-
ções, anunciadas outra vez numa conferência.
EXPERlf:NCIA ESTÉTICA 53

Experiência estética A conferência, apresentada em 1972


e vanguarda em Constança, versa sobre a experiên-
cia estética, objeto de novo esforço de
resgate e tema de trabalho que ocupa o Autor durante a década de
70. Sua intenção é salvar a experiência estética de seus detratores e
recuperar a validade do prazer decorrente, negada pelas recentes teo-
rias da literatura, como condição de compreender o sentido e impor-
tância social da arte. Jauss não acredita que o significado de uma
criação artística possa ser alcançado, sem ter sido vivenciado esteti-
camente: não há conhecimento sem prazer, nem a recíproca, levando-o
a formular um par de conceitos que acompanham suas reflexões pos-
teriores: os de fruição compreensiva [verstehendes Geniessen) e com-
preensão fruidora [geniessendes Verstehen), processos que ocorrem
simultaneamente e indicam como só se pode gostar do que se entende
e compreender o que se aprecia.
Ao mesmo tempo, só pelo resgate e valorização da experiência
estética é possível justificar a presença social e continuidade histórica
da arte. Para Jauss, o desprestígio do prazer estético determina a re-
jeição da arte por inteiro, conduta implícita em teo ias que se recu-
sam a aceitar a validade da experiência do leitor ou que a discriminam,
encarando-a tão-somente como efeito da indústria cultural e dos pro-
dutos destinados ao consumo.
Aqui Jauss está atacando as teorias contemporâneas que vêem
de modo negativo a experiência estética; mas está também fazendo
a autocrítica de suas primeiras teses. Com efeito, tanto na Kleine Apo-
logie der iisthetischen 'Erfahrung [Pequena apologia da experiência
estética], como na versão ampliada que veio a constituir o primeiro
volume de Âsthetische Erfahrung und Iiterarische Hermeneutik, ele
confessa que, por um tempo, compartilhou a noção de que a expe-
riência estética não poderia causar prazer. Entretanto, sua oposição
mais contundente é a Adorno, cuja estética da negatividade rejeita
a função comunicacional da arte, qualificada de sintoma de sua mas-
sificação, e valoriza apenas o experirnentalismo.
Jauss não se considera avesso à vanguarda; e, em nenhum dos
ensaios, manifesta qualquer simpatia para com a literatura de massa
ou a arte popular. Recusa, isto sim, a crença de que a criação experi-
mental não deseja comunicar-se com o público; ou de que este não
sinta prazer perante obras originais e avançadas. Seu objetivo não
é pensar outros caminhos para a arte contemporânea, e sim contradi-
zer a interpretação dada ao relacionamento entre o sujeito e o objeto
54 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

estético. Supor que este desempenha uma atividade exclusivamente


negativa, porque o oposto corresponderia a produzir uma arte de con-
sumo, a serviço da classe dominante, não é propor uma estética revo-
lucionária. Pelo contrário, trata-se antes de restaurar a estética
burguesa, que Adorno imagina combater, pela revitalização de um
posicionamento elitista que proclama a necessidade da arte pela arte.
O fato de reafirmar a validade da experiência estética como si-
multaneamente prazer e conhecimento não impede Jauss de atribuir-
lhe função transgressora. Esta nota é importante e alinha-o a forma-
listas e estruturalistas tchecos, já citados, e ao próprio Adorno. O que
os diferencia é a inferência motivada por essa premissa: para Ador-
no, isto significa a permanente negatividade de uma obra perante o
sistema, ao qual pertence o público, o que, se de um lado afiança a
autonomia da criação artística, de outro impede qualquer contato entre
sujeito e objeto. Para Jauss, a circunstância de a obra contrariar um
"sistema de respostas" ou um código atua como um estímulo para
que se intensifique o processo de comunicação: a obra se livra de uma
engrenagem opressora e, na medida em que recebida, apreciada e com-
preendida pelo seu destinatário, convida-o a participar desse univer-
so de liberdade. De novo o conceito de emancipação se faz presente,
desta vez para servir de avalista para a natureza simultaneamente co-
municativa e liberadora da criação artística.
\
Caracterizando a experiência estética, J auss explica por que é
lícito pensá-la como propiciadora da emancipação do sujeito: em pri-
meiro lugar, liberta o ser humano dos constrangimentos e da rotina
cotidiana; estabelece uma distância entre ele e a realidade convertida
em espetáculo; pode preceder a experiência, implicando então a in-
corporação de novas normas, fundamentais para a atuação na e com-
preensão da vida prática; e, enfim é concomitantemente antecipação
utópica, quando projeta vivências futuras, e reconhecimento retros-
pectivo, ao preservar o passado e permitir a redescoberta de aconte-
cimentos enterrados.

Poíesis, aisthesis A natureza eminentemente liberadora da


e katharsis arte, fundindo os papéis transgressor e co-
municativo, se explicita pela experiência es-
tética, composta por três atividades simultâneas e complementares -
a potesis, a aisthesis e a katharsis - cuja concretização depende da
EXPERleNCIA ESTI!TICA SS

principal reação de que é capaz o leitor: a identificação. São estes os


aspectos principais da experiência, cuja caracterização exige de Jauss
uma intensa atividade ensaística.
Sua primeira formulação aparece na segunda tese da Pequena
apologia: "A liberação pela experiência estética pode se realizar em
três planos: a consciência produtora cria um mundo como sua pró-
pria obra; a consciência receptora compreende a possibilidade de re-
novar sua percepção de mundo; enfim - aqui a experiência subjetiva
abre-se à experiência intersubjetiva - a reflexão estética se compro-
mete com um julgamento exigido pela obra, ou identifica-se às nor-
mas de ação, esboçadas ou a serem definidas'L''
O primeiro plano é o da potesis e corresponde ao prazer de se
sentir co-autor da obra. Revisando a história da noção de poíesis no
pensamento ocidental, Jauss conclui que ela se tornou praticamente
uma exigência nas criações do século XX, cujo experimentalismo de-
termina a participação crescente do leitor no seu processo de produ-
ção. Afirmando que a arte de vanguarda depende de certa maneira
da resposta do público, ele oferece nova interpretação à perspectiva
com que Adorno vê a questão: não se trata de afirmar a incompatibi-
lidade entre o sujeito e o objeto estético, e sim aceitar o fato de que,
quanto mais o artista inova, mais ele espera contar com a participa-
ção do público. Invertendo a proposição de Adorno, Jauss soma mais
um ponto para sua argumentação: sem precisar rejeitar o experimen-
talismo da vanguarda, vale-se dele para comprovar a tese relativa à
função comunicacional da arte.
O segundo plano parece mais relacionado à experiência estética
enquanto tal, dizendo respeito ao efeito, provocado pela obra de ar-
te, de renovação da percepção do mundo circundante. Adotando es-
ta posição, Jauss não deseja descobrir um novo sentido para a
aisthesis, procurando, pelo contrário, assimilar a ela as interpreta-
ções vigentes. Concorda com Aristóteles, para quem o prazer estéti-
co decorre do reconhecimento diante do imitado; e afirma que engloba
as noções de "pura visibilidade", de K. Fiedler, "estranhamento"
ou visão renovada, de V. Chklovsky, "contemplação desinteressada" ,
de M. Geiger, e de experiência da "densidade do ser" , de J.-P. Sartre.

5 Idem. Kleine Apologie der âsthetischen Erfahrung. Konstanz, Verlag der Universitãt
Konstanz, 1972. p. 13. As citações seguintes provêm dessa edição, sendo indicado, en-
tre parênteses, o número da página onde se encontram.
56 ESTJ:TICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

Por sua vez, como a poiesis, também a aisthesis justifica a orien-


tação da arte contemporânea. Atribuindo a ela a finalidade de reno-
var a percepção, já que "sempre foi uma das funções da arte descobrir
novos modos de experiência na realidade mutável ou propor alterna-
tivas para ela", 6 J auss concorda em que só criações altamente expe-
rimentais, como as do século XX, podem acordar o sujeito de sua
alienação numa sociedade reificada. Como a percepção diária está
por demais viciada, o espelhamento realista confundir-se-ia com o dé-
jã vu e perderia o efeito; por isso, cumpre investir no diferente, que
não precisa coincidir necessariamente com o novo; pode ser o que per-
maneceu escondido ou reprimido, conforme faz Proust, cuja obra ro-
manesca funda-se na recordação.
Portanto, com a vanguarda a arte recupera seu papel cogniti-
vo, que se amalgama às funções comunicativa ou produtiva, formando
um conjunto destinado a produzir a experiência estética, durante a
qual emerge a visão renovada e mais completa da realidade. Jauss
resume a importância desse plano:

Neste processo, a experiência estética no nível da aisthesis as-


sumiu uma tarefa perante a alienação crescente da existência social
que até então nunca lhe tinha sido atribuída na história da arte: con-
trapor à experiência fragmentada e à linguagem utilitária da "Indús-
tria cultural" a função lingüisticamente crItica e criativa da percepção
\
estética; e diante do pluralismo dos papéis sociais e perspectivas cien-
tíficas, preservar a experiência de mundo aos olhos dos outros e, as-
sim, salvaguardar um horizonte comum que a arte pode manter quan-
do o todo cosmológico desaparece (p. 136).

Ao procurar reabilitar a importância e validade da experiência


estética, Jauss não se preocupa em criar novas acepções para os con-
ceitos, nem quer contrariar as conclusões da teoria da literatura rela-
tivamente ao experimentalismo da vanguarda. Com efeito, seu inten-
to é antes usar os mesmos argumentos dos adversários do prazer es-
tético para provar a força e significação desse. Por isso, suas afirma-
ções não parecem ser originais, e nem têm essa finalidade: trilha um
caminho conhecido para mostrar que ele vai dar em outro ponto.
Todavia, quando trabalha o plano da catarse, tradicionalmente
o conceito mesmo de experiência estética, suas idéias percorrem vias

6 Idem. Âsthetische Erfahrung ... , cit., p. 100. A citações seguintes que provierem de se
livro serão indicadas pelo número da página onde se encontram.
EXPERI~NCIA ESTJ:TICA 57

inesperadas e desembocam numa descrição bastante instigadora da


identificação, importante para a compreensão e análise dos mecanis-
mos de circulação da literatura na sociedade.

Katharsis e Na Pequena apologia, ele define a katharsis co-


identificação mo a concretização de um processo de identifi-
cação que leva o espectador a assumir novas
normas de comportamento social, numa retomada de idéias expostas
anteriormente. Mais tarde, esse conceito se alarga: coincide com o
prazer, afetivo resultante da recepção de uma obra verbal e que moti-
va "tanto uma transformação de suas [do recebedor] convicções,
quanto a liberação de sua mente" (p. 137). A catarse constitui a ex-
periência comunicativa básica da arte, explicitando sua função social,
ao inaugurar ou legitimar normas, ao mesmo tempo que correspon-
de ao ideal da arte autônoma, pois liberta o e: »ectador dos interesses
práticos e dos compromissos cotidianos, oferecendo-lhe uma visão
mais ampla dos eventos e estimulando-o a julgá-los.
A definição de catarse mostra-a como basicamente mobilizado-
ra: o espectador não apenas sente prazer, mas também é motivado
à ação. Esta característica acentua a função comunicativa da arte ver-
ba), que, por seu turno, depende do processo vivido pelo recebedor:
o de identificação. Esta é provocada pela experiência estética e leva
o sujeito à adoção de um modelo.
Porque a arte produz a identificação entre o espectador e os ele-
mentos - o tema, os heróis ou ambos - ali apresentados, ela pode
agir como transmissora de normas. Isto não a torna pedagógica, nem
Jauss está privilegiando os gêneros didáticos: o fato de veicular nor-
mas não a torna educativa. Além disso, como se viu, a arte tende a
romper com as normas conhecidas e antecipar outras, liberando o es-
pectador dos constrangimentos do código dominante. Este é seu ân-
gulo criador, enfatizado pelo ensaísta em vários estudos. Por fim, ele
procura examinar a questão sob o ponto de vista do recebedor, para
quem a identificação estética não coincide com "a adoção passiva de
um padrão idealizado de comportamento". Pelo contrário, ele "po-
de percorrer uma escala inteira de atitudes como o espanto, a admi-
ração, o choque, a compaixão, a simpatia, o choro ou o riso
simpatético, o distanciamento e a reflexão" (p. 138), reações, por sua
vez, que não dependem do arbítrio pessoal, e sim das sugestões emi-
58 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

tidas pela obra, sobretudo pela caracterização do herói, como pro-


põe a seguir.
O resgate da experiência estética, cujo desdobramento passa pe-
los três momentos descritos, conclui com a relevância conferida ao
processo de identificação. Em primeiro lugar, por esse corresponder
à efetiva realização da função comunicativa da arte, dependendo das
reações provocadas pela obra e das respostas produtivas do sujeito
estético. Depois, por lhe permitir a reflexão sobre dois tópicos con-
troversos, um deles explicitado no início da discussão do tema, o ou-
tro deixado em incubação, porém exigindo detalhamento.
Um deles já foi referido: como a obra, sendo comunicativa, não
deixa de recusar padrões dominantes e exercer papel emancipador,
Jauss pode contradizer a visão negativista de Adorno, sem se opor
às tendências experimentais da produção artística contemporânea.
Além disso, passa a dispor de um instrumental teórico para condenar
a indústria cultural, posição mantida desde os primeiros escritos, com
argumentos paralelos aos de Adorno: a cultura de massa não executa
a função liberadora mencionada; porém, lida igualmente com as res-
postas do público, a que, todavia, conduz a uma direção diferente,
pelo visto, menos recomendável.
Fundado no conceito de identificação, Jauss pode se desviar das
teses de Adorno, sem ter de adotar concepção diversa a respeito da
arte de vanguarda, a cultura de massa, a relação entre ambas e a rela-
ção de ambas com o público. Acredita na superioridade da primeira
sobre a segunda; mas atribui sua qualidade ao tipo de processo que
desencadeia: se ambas induzem à identificação, as modalidades des-
ta divergem, bem como seus efeitos, o da arte sendo mais criativo
e produzindo conhecimento, o da cultura de massa sendo repetitivo
e facilitando a manipulação do leitor.
A última tese da Pequena apologia resume a importância con-
ferida à identificação, que, com o respaldo da experiência estética,
é também o critério para a adoção de outro posicionamento perante
a arte de hoje e do passado:

A experiência estética é amputada de suas funçOes primárias,


se for limitada às categorias de emancipação e afirmação, Inovação
e reprodução e se não se estabelecer o equilíbrio entre a negatividade
constitutiva da arte e a identificação enquanto contrapartida estético-
recepcional daquela (p. 51).

Assim como as teses da "Provocação" levaram-no à revisão da


história da literatura, os conceitos de experiência estética e identifi-
EXPERleNCIA ESTeTICA 59

cação determinam um novo enfoque das categorias da teoria da lite-


ratura. J auss não pode aceitar as premissas tradicionais dessa, por-
que estão submetidas à estética da representação. Se a estética da
. recepção deseja apresentar-se como pensamento alternativo, precisa
conter igualmente as peças de reposição, facultando a substituição
integral de um conjunto de idéias por outro.

Tipologia do herói Seu ponto de partida é a categoria de he-


rói, cuja discussão enceta na exposição
apresentada no sexto colóquio do grupo Poetik und Hermeneutik
ocorrido em 1972, com anais publicados em 1975. Posteriormente ele
desdobrou os conceitos então emitidos, reunindo-os ao estudo sobre
a experiência estética e a hermenêutica literária.
No primeiro texto, confirma o objetivo teórico: deseja transfe-
rir "as tipologias tradicionais do herói de categorias de apresentação
para categorias de recepção", em decorrência da mudança de enfo-
que: "o que nos interessa não são os vários tipos por meio dos quais
o herói literário foi apresentado ao longo da história, mas antes os
vários níveis de recepção através dos quais o espectador, o ouvinte
ou o leitor, em períodos anteriores ou ainda hoje, pode se identificar
com ele". 7
A escolha do herói não é aleatória; conforme escreve em Expe-
riência estética e hermenêutica literária, o herói tipifica "o padrão
comunicativo de uma identificação esteticamente mediada" (p. 214).
Os heróis se definem, portanto, não apenas por suas ações, mas pe-
las respostas desencadeadas no público, razão pela qual vêm a cons-
tituir o fio teórico escolhido pelo Autor.
Como no estudo sobre a poesia, Jauss privilegia os padrões de
integração, situados agora não nas normas transmitidas, e sim nas
reações provocadas pelo comportamento das personagens. Estas po-
dem motivar as seguintes modalidades de identificação:
- a associativa, quando a representação se torna uma espécie
de jogo, conforme exemplifica a proposta do Living Theatre, presen-
ça marcante na cena internacional do final dos anos 60;

7 Idem. LeveIs of identification of hero and audience. New Literary History, 5 (2) :
283-317, Inverno de 1974. p. 284.
60 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

- a admirativa, produzida pelo herói que corporifica um ideal


e "dispõe o indivíduo na direção do reconhecimento e adoção de mo-
delos" (p. 232), como o Werther, de Goethe, de grande influência
durante o Romantismo europeu e sul-americano, ou os heróis clássi-
cos da epopéia;
- a simpatética, desencadeada pelo herói quando este se con-
funde com o "homem comum";
- a catártica, própria à tragédia, tendo, pois, um fundo libe-
rador, conforme a lição de Aristóteles; é também a mais típica da ex-
periência estética, por ser o espectador "capaz de destacar-se do
imediato de sua identificação, refletindo sobre o representado e
analisando-o' (p. 245);
- a irônica, compreendida como' 'um nível de recepção estéti-
ca em que uma identificação esperável é apresentada ao espectador
ou leitor só para ser, a seguir, ironizada ou completamente recusa-
da" (p. 250). Por isso, ela leva seu destinatário à reflexão e é deter-
minada por obras como o Romance de Renart, Jacques, o fatalista
ou a ficção do pós-guerra.
Embora coloque estas respostas em pé de igualdade, J auss dei-
xa transparecer sua preferência pelas duas últimas, uma, por equiva-
ler mais completamente à sua concepção de experiência estética, outra,
por ser a reação decorrente de preferências literárias manifestadas em
putros escritos, como o populário medieval citado e o romance de
Diderot, um de seus prediletos, a se julgar por sua produção ensaística.
Por outro lado, as categorias descritas não dão conta de todas
as possibilidades de identificação, porque não esgotam a análise dos
gêneros literários conhecidos. Na primeira versão de Experiência es-
tética e hermenêutica literária, Jauss examina também as reações mo-
tivadas pelos heróis cômicos, capítulo eliminado da edição final da
obra, lançada em 1982.
Ao contrário das análises anteriores, quando Jauss procura re-
ver as relações do texto com a história e as mudanças de recepção,
a descrição dos modelos comunicativos determinados pelos heróis pri-
vilegia o aspecto sincrônico. Ele deseja verificar como o espectador
responde às personagens do passado ou do presente enquanto se de-
senrola o processo de identificação. Porém, percebe-se logo que não
se dirige aos leitores, preferindo ir ao texto na busca do diálogo pro-
piciado pela obra. Pode-se argumentar que mais uma vez J auss esca-
moteia o leitor, a não ser quando o leitor é ele mesmo. Todavia, seu
projeto não tem outro objetivo: frisa seguidamente que seu procedi-
EXPERI~NCIA EST~TICA 61

mento metodológico é sugerido pela hermenêutica literária e, como


tal, visa evidenciar o intercâmbio da obra com o leitor a partir da
lógica da pergunta e da resposta embutida no texto, não no desti-
natário.
A delimitação dessa hermenêutica literária começa nos seus pri-
meiros ensaios; mas assume importância crescente nos últimos anos,
razão por que vem exposta em capítulo próprio.
,

6
Hermenêutica 'literária

A história das interpretações de uma obra de


arte é uma troca de experiências ou, se qui-
sermos, um jogo de perguntas e respostas.

Hans Robert Jauss

Na segunda versão, agora completa, de seu projeto teórico mais


ambicioso, J auss procura examinar não apenas a experiência estéti-
ca, como também a hermenêutica literária, cuja viabilidade científi-
ca deseja implantar. No entanto, embora o título da obra ligue uma
à outra através da conjunção e, a análise dos dois temas não é simul-
tânea, e sim consecutiva: a primeira ocupa uma parte de suas refle-
xões, vindo a público quando lançou a primeira versão do livro;
enquanto que a hermenêutica literária apresenta-se de modo orgâni-
co sobretudo no novo volume dedicado a esses tópicos.
A separação, útil para a explicitação das idéias de Jauss a pro-
pósito de cada um dos temas, não significa que os entenda de modo
estanque. Alguns princípios da hermenêutica literária embasam a des-
crição da experiência estética; e a hermenêutica, a ciência geral da in-
terpretação, fornece-lhe conceitos fundamentais para a revisão teórica
da literatura. Sua presença em primeiro plano nos últimos ensaios de
HERMEN~UTlCA LITERÁRIA 63

Jauss é, pois, conseqüência do desdobramento de pesquisas preceden-


tes. Mesmo assim, ele abre a nova versão de Âsthetische Erfahrung
und literarische Hermeneutik com uma alegoria: a narração, escrita
no século V d. C. por Marcianus Capella, do casamento de Hermes
com Filologia, visando justificar a justaposição dos assuntos em que
seu livro se divide.
Como se viu, alguns conceitos da hermenêutica, extraídos da
obra de Gadamer, Verdade e método, aparecem na conferência de
67: o de horizonte de expectativas, na segunda tese, explica como ter
acesso ao mundo do leitor; a lógica da pergunta e da resposta, na
quarta tese, ajuda a compreender o diálogo entre o texto e sua época
e entre o texto do passado e o leitor do presente, do que resulta a
fusão de horizontes, conceito também emprestado de Gadamer. Igual-
mente formulação sua é o princípio ou consciência da história dos
efeitos, empregado na sexta tese, segundo a qual as repercussões da
obra do passado atuam sobre o sujeito, determinando sua inter-
pretação.
A noção de emancipação, que permite a Jauss ampliar o signi-
ficado do valor estético, entendendo-o não apenas como rompimen-
to de um código imposto de normas, mas também como projeto de
liberação, tem componentes da hermenêutica e das idéias de Gada-
mer. Além disto, o princípio da pergunta e da resposta, definido me-
todologicamente como dialético e filosoficamente como horizonte,
é talvez sua principal arma teórica, acompanhando-o em quase todos
os ensaios, por possibilitar a explicitação tanto do processo de inter-
pretação dos textos, como a natureza dialógica da literatura.

Efeito e recepção Entretanto, a presença ou a reapropriação


desses conceitos, ainda que fundamentais,
não bastam para caracterizar o estatuto da hermenêutica literária, ta-
refa empreendida de maneira sistemática desde a primeira edição do
livro citado e em ensaios subseqüentes; nem para articulá-la à expe-
riência estética, sem o que não pertenceria com legitimidade à teoria
da literatura que, orientada agora para a recepção, precisa conter tam-
bém uma metodologia compatível com as novas premissas.
Em vista disso, não se pode entender a hermenêutica literária
fora do quadro da experiência propiciada pela obra de arte, quando
acontece o efeito estético. Este, conforme se viu, compõe-se de dois
64 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

fenômenos simultâneos: a compreensão fruidora e a fruição compreen-


siva. O prazer estético conta de antemão com um componente inte-
lectual, a ser descrito por uma abordagem de tipo hermenêutico.
Todavia, cumpre distinguir entre duas modalidades de relacio-
namento entre o texto e o leitor: de um lado, ao ser consumida, a
obra provoca determinado efeito [Wirkung] sobre o destinatário; de
outro, ela passa por um processo histórico, sendo ao longo do tempo
recebida e interpretada de maneiras diferentes - esta é sua recepção
[Rezeption]. Esta especificação é importante, pois, por intermédio de-
la, Jauss procura esclarecer as diferenças entre a pesquisa que desen-
volve e a de seu colega de universidade, Wolfgang Iser, sem criar um
atrito entre as distintas orientações das investigações respectivas. Re-
conhece a originalidade e importância heurística do trabalho de Iser,
diverso do que desenvolve; mas, ao mesmo tempo, dá a entender que
o projeto dele é englobado pelo seu.
W. Iser examina o que classifica como estrutura de apelo do
texto [Appelstruktur der Texte]. Apoiado nas conclusões de R. In-
garden, para quem o mundo imaginário representado numa obra
mostra-se de modo esquematizado, portanto, incompleto e com pon-
tos de indeterminações ou lacunas, Iser tem condições de confirmar
um dos principais postulados da estética da recepção: a obra literária
é comunicativa desde sua estrutura; logo, depende do leitor para a
constituição de seu sentido. 1 Este não corresponde a nenhum con-
teúdo universal, perene e imutável a ser extraído por um leitor com-
petente; pelo contrário, pode mudar, se o público, a sociedade e a
época forem outros.
Essas afirmações colocam Iser à beira do relativismo, porém,
nesse ponto, ele recua: na realidade, as reações do leitor são prede-
terminadas pelas estruturas de apelo. Estas precisam do leitor para
adquirir sentido, Iser retomando aqui a estética de Mukarovsky quan-
do indica ser o sujeito o responsável pela passagem do artefato artís-
tico à condição de obra de arte. Porém, elas projetam o sentido a
ser ali depositado, provocando os efeitos que coincidem com a con-
cretização desejada.
W. Iser emprega a noção de concretização, encontrada tanto
nos escritos de Ingarden, quanto nos de Vodicka, segundo uma ótica

I ISER, Wolfgang. "Die Appelstruktur der Texte " c "Der Leservorgang ". In: WAR-
NING, Rainer. Op. cito V. também ISER, Wolfgang. Der Akt des Lesens. München,
Fink, 1976.
HERMEN~UTICA LITERÁRIA 65

que paradoxalmente parece não contradizer nenhum dos dois. Como


Vodicka, acredita que a concretização depende dos códigos introje-
tados pelo recebedor; mas não desmente Ingarden, concordando em
que as orientações dadas pelo texto se impõem ao leitor, cujas pre-
disposições não têm força suficiente para alterar ou' afetar a estrutu-
ra básica (e, nesse caso, imutável) de uma obra de arte.
O conceito de leitor implícito, este o título de um livro seu, 2
representa, desta maneira, uma conquista da estética da recepção; po-
rém, tem seus limites metodológicos, pois não ultrapassa o modelo
da análise imanente com a qual parece desejar romper. Mesmo as-
sim, é com ele que J auss opera, embutindo-o à sua visão da história
da literatura e da hermenêutica literária.
Na conferência de 67, anterior à publicação do texto de Iser,
a diferença entre o leitor implícito e o leitor explícito não é mencio-
nada, começando a aparecer em escritos posteriores. No estudo so-
bre Ifigênia, o Autor indica que está empregando a terminologia de
Iser e Vodicka, ao referir-se às noções respectivas de efeito e concre-
tização, por lhe permitirem acentuar que "o sentido da obra de arte
não deve ser entendido mais como substância atemporal, e sim como
totalidade que se constrói historicamente". 3

No retrospecto de 1975, enfatiza a importância de se diferen-


ciarem duas espécies de concretização: a do horizonte implícito de
\
expectativas, proposto pela obra, portanto de cunho intraliterário;
e a "análise das expectativas, normas e papéis extraliterários, origi-
nários da experiência existencial e que pré-orientam o interesse estéti-
co das distintas camadas de leitores". 4 De um lado, situa-se o efeito,
condicionado pela obra que transmite orientações prévias e, de certo
modo, imutáveis, porque o texto conserv.a-se o mesmo, ao leitor; de
outro, a recepção, condicionada pelo leitor, que contribui com suas
vivências pessoais e códigos coletivos para dar vida à obra e dialogar
com ela. Sobre esta base, de mão dupla, acontece a fusão de horizon-
tes, equivalente à concretização do sentido.
Ao primeiro plano corresponde o leitor implícito, de certo mo-
do uma criação ficcional, já que prefigurado pelo texto; ao segundo,

2 Idem. Der implizite Leser; Kommunikationsformen des Romans von Bunyan bis Bec-
kett. München, Fink, 1972.
.1 Cf. JAUSS, Hans Robert. Racines und Goethes ... , cit., p. 3.
4 Idem. Der Leser ...• cit., p. 328. As demais citações provêm desta edição, sendo indi-

cadas pelo número da página onde se encontram.


66 ESTÊTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

o leitor explícito, incluindo elementos de ordem "histórica, social e


até biográfica" (p. 339). Um depende das estruturas objetivas da obra,
o outro, das "condições subjetivas e condicionamentos sociais" (p.
339). Ambos são igualmente importantes, porém cabe:
a) Considerá-los separadamente para maior eficiência metodo-
lógica: "Contrastar o papel do leitor explícito e o do leitor implícito
- em outras palavras, o código de um leitor historicamente determi-
nado e o de seu papel literário predeterminado - é um pré-requisito
indispensável para uma análise hermenêutica da experiência de leitu-
ra" (p. 339).
b) Dar preferência à reconstituição do leitor implícito: "Tão logo
reconstruímos o papel do leitor implícito num texto, podemos, com
muito mais segurança, definir as estruturas de pré-compreensão e, com
isso, também as projeções ideológicas de determinadas camadas de
leitores enquanto um segundo código distinto do primeiro" (p. 339).
Jauss se refere a essas tarefas, quando retoma a questão na aber-
tura da primeira edição de seu livro sobre a experiência estética e a
hermenêutica literária. Esta, entretanto, não estaria completa sem a
inclusão de um outro processo, o de aplicação, indicado agora pelo
Autor e correspondendo à atividade de "medir o efeito atual de uma
obra de arte pela contraposição à história anterior de sua experiência
. e formar o juízo estético a partir de duas instâncias, a do efeito e a
da recepção)). 5

Compreensão, Assim sendo, também a hermc-


interpretação e aplicação .nêutica literária comporta três
etapas: a compreensão, a inter-
pretação e a aplicação. Inicialmente Jauss não emprega essa termi-
nologia, que adota mais tarde por: apresentar melhor articulação con-
ceitual; considerar a recepção o conjunto das três fases, incorporando,
pois, o plano do efeito, descrito por Iser; e mostrar-se mais fiel à her-
menêutica propriamente dita. Utiliza-a ao final desse volume, ao exa-
minar poemas de Charles Baudelaire e Theophile de Vian a partir da
reconstituição de seu horizonte original.

5 ..
Idem. Asthetische Erfahrung ... , cit., p. 9.
HERMEN~UTlCA LITERÁRIA 67

Ainda aqui, porém, Jauss não parece muito seguro a respeito


do modo de integrar a última etapa a seu projeto de constituição da
hermenêutica literária. Se a aplicação é facilmente compreensível nos
casos da teologia e da jurisprudência, quando a interpretação do tex-
to faculta a transferência de seu sentido a' uma situação específica,
o mesmo processo não parece tão nítido no caso da literatura. Os es-
critos seguintes traduzem a busca de uma solução melhor e os resul-
tados obtidos.
Um dos colóquios do grupo Poetik und Hermeneutik versou so-
bre esse tema. Congregando juristas, teólogos, filósofos e críticos li-
terários, procurou examinar as contribuições das hermenêuticas
particulares para a hermenêutica geral; e sobretudo para a consolida-
ção da hermenêutica literária, já que, ao contrário das outras dis-
ciplinas, de tradição sólida, essa se encontra ainda em vias de orga-
nização.
A exposição teórica de J auss enfrentou o tema; denominada
"Para a delimitação e definição de uma hermenêutica literária", trou-
xe à tona as questões consideradas fundamentais para- a estabilização
dessa disciplina. Ele usa como medida o processo hermenêutico, uni-
dade constituída de três atividades intelectuais: a corrrpreensão, a in-
terpretação e a aplicação. Ao mesmo tempo, apoiado nas idéias de
Peter Szondi, acentua a particularidade da hermenêutica literária: a
ela compete refletir sobre as propriedades estéticas dá obra de arte,
aspecto que nào pertence à ordem de preocupações das demais her-
menêuticas.
Todavia, as reflexões não partem desse ponto, e sim das rela-
ções do processo hermenêutico com a obra literária. Reconhecendo
as etapas mencionadas, chama a atençãopara a interpenetração que
acontece entre os diferentes momentos: "na compreensão já está o
início da interpretação e a interpretação é, portanto, a forma explíci-
ta da compreensão". 6 Como a compreensão deflagrá o processo in-
teiro, a explicitação desse começa por aí, fundamentada na lógica da
pergunta e da resposta. -

fiIdem. Zur Abgrenzung und Bestimmung einer literarischen Hermeneutik. In: FUHR·
MANN, Manfred; JAUSS, Hans Robert; PANNENBERG, Wolfahrt, Hrsg. Text und Ap-
plikation; Theologie, J urisprudenz und Literaturwissenschaft im hermeneutischen
Gesprãch. München, Fink, 1981. p. 462. As citações que provierem desse livro serão
indicadas pelo número da página onde se encontra~.
68 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

Na "Provocação", Jauss já recorrera a essa última, para deter-


minar o relacionamento do texto com o momento histórico. Seme-
lhantemente a Gadamer, acredita que a compreensão equivale a
"compreender algo como resposta" (p. 462), afirmação onde subjaz
uma proposição metodológica: se o texto corresponde à resposta,
compreendê-lo significa chegar às perguntas a que respondeu. Jauss
transfere a idéia para o plano histórico, atribuindo à hermenêutica
literária a tarefa de dar a compreender as obras do passado:
A hermenêutica literária conhece essa relação de pergunta e res-
posta a partir de sua prática interpretativa, quando se trata de cornpreen-
der um texto do passado na sua alteridade, ou seja: recuperar a pergunta
para a qual ele, inicialmente, foi a resposta, reconstruindo, a partir dai,
o horizonte existencial de perguntas e respostas, dentro do qual a obra
originalmente se inseriu (p. 468).

Este gesto hermenêutico faz com que o texto, até então mudo,
volte a falar, ou seja, resgata o diálogo original a que ele se propu-
nha. Eis por que a hermenêutica literária, correspondendo ao ques-
tionamento do texto pelo intérprete, depende da experiência estética,
quando se efetiva o intercâmbio produtivo entre o sujeito e o objeto
estético. Assim, não há solução de continuidade entre os dois mo-
mentos; por essa razão, Jauss pode afirmar que a tarefa hermenêuti-
ca, fundada na compreensão, começa pela percepção estética, cujas
possibilidades amplia de maneira crescente. E insistir no caráter dia-
lógico desse processo, aspecto a que se refere com assiduidade e que
consiste no tema da última parte de Experiência estética e hermenêu-
tica literária, em sua edição final.
A compreensão, decorrente da percepção estética, é também o
ponto de partida do processo de leitura, composto de três momentos
sucessivos. A fase seguinte, posterior à da leitura compreensiva, é a
da leitura retrospectiva, quando se dá a interpretação; esta "sempre
pressupõe de antemão a percepção estética enquanto pré-compreen-
são", pois apenas podem ser concretizadas significações que "apare-
ceram ou poderiam ter aparecido ao intérprete como possíveis no
horizonte de sua leitura anterior" (p. 475). Por outro lado, enquanto
a percepção estética é progressiva e vai acompanhando a partitura
do texto, à interpretação é lícito voltar do fim para o começo ou do
todo ao particular, razão pela qual pode ser chamada de retrospectiva.
O terceiro momento é o da leitura histórica, que recupera a re-
cepção de que a obra foi alvo ao longo do tempo. Hermeneuticamen-
HERMEN~UTICA LITERÁRIA 69

te, corresponde à etapa da aplicação, dependendo também da com-


preensão estética, pois só esta explica a importância de uma obra na
história. Por sua vez, como' 'também a compreensão e interpretação
estética necessitam da função controladora da leitura de reconstru-
ção histórica", que "possibilita a compreensão do texto na sua ai te-
ridade" (p. 478), a aplicação revela-se como etapa tão importante
quanto as demais e parte do processo dialógico próprio à hermenêu-
tica literária.
Pela mesma razão, a leitura reconstrutiva leva a "procurar as
perguntas - na maioria das vezes não expressamente articuladas -
para as quais o texto foi uma resposta na época" (p. 478). Isto signi-
fica interpretar o texto literário enquanto resposta tanto para expec-
tativas de tipo formal, quanto para as questões de sentido, decorren-
tes de seu posicionamento diante do mundo e as vivências históricas
de seus primeiros leitores.
A etapa da aplicação é indispensável, porque durante a leitura
reconstrutiva o intérprete verifica seu lugar na cadeia temporal. Esta
circunstância reforça outra propriedade da hermenêutica literária, jus-
tificando por que é urgente a consolidação de sua atividade no terre-
no das ciências humanas: ela possibilita - e depende disso - ao crí-
tico ou ao historiador examinar seus próprios pré-juízos, segundo um
permanente vaivém que delimita a ambição totalitária e abarcante da
interpretação. Esta é outra faceta de sua função de controle, assim
demarcada num texto posterior:

A tarefa hermenêutica comporta dois pontos cruciais. De um la-


do, se a reconstrução da inserção do autor não deve consistir mais na
instância última da compreensão, de outro, ela conserva ao mesmo tem-
po função de controle. Por outro lado, a experiência de leitura do leitor
do passado deve ser superposta à leitura atual do leitor de uma época
posterior, para que se possa esgotar durante a interpretação a diferen-
ça entre o horizonte passado e presente da leitura. -

J auss espera que, pelo exercício da hermenêutica literária, o in-


térprete, no questionamento do texto, deixe-se também interrogar.
A importância desse aspecto não é negligenciável, levando Odo Mar-
quard, no colóquio citado, a atribuir a superioridade da hermenêuti-
ca literária ao fato de que, ao contrário das disciplinas vizinhas, ela

. Idem. Einleitung: Horizontstruktur und Dialogizitãt. In: . Âsthetische Erfah-


rung und iiterarische Hermeneutik . Frankfurt, Suhrkamp, 1984. p. 688.
70 ESTÉTICADA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

pode incluir o sujeito da interpretação no processo de questionamen-


to, balizando suas pretensões e limites. 8

Proposta metodológica Não é durante o colóquio citado


que Jauss apresenta provas práti-
cas de sua proposta metodológica, e sim numa versão posterior e mais
completa do ensaio. Mais uma vez o processo é dividido em três eta-
pas: a primeira corresponde ao horizonte progressivo da experiência
estética, quando reconstitui a apreensão do texto através da leitura
- "a percepção estética é acompanhada in actu e descrita como efei-
to das estruturas poéticas, como também das ainda abertas estrutu-
ras significativas do texto" 9; a segunda, ao "horizonte retrospectivo
da compreensão interpretativa". 10
Esta só começa a operar após a conclusão da primeira fase da
leitura, ao fim da qual o leitor pode reconhecer a forma do texto,
"mas não necessariamente já todo seu significado como uma totali-
dade" (p. 837). Após essa compreensão, é preciso voltar ao início,
"para, desde o conjunto da forma já apreendida, iluminar os deta-
lhes ainda obscuros, esclarecer a série de conjeturas dentro do con-
texto e procurar aspectos do sentido que ainda ficaram em aberto na
sua co.erência de conjunto significativo" (p. 837).
Só então se realiza a leitura reconstrutiva, exemplificada pela
análise de um poema de Baudelaire. Jauss enfatiza a diferença entre
as etapas anteriores e esta, quando intervém o conhecimento históri-
co que localiza o texto na época, as mudanças por que passou e pro-
vocou, o modo como foi assimilado a uma linha de tempo. Nas suas
palavras, esta é sua intenção:

Queremos tornar consciente a distância no tempo, ignorada du-


rante a primeira e a segunda leitura e, por meio do confronto expresso
entre o horizonte de compreensão passado e o atual, deixar claro co-
mo o significado do poema se desdobrou historicamente pela intera-

8 MARQUARD, Odo. Frage nach der Frage, auf die die Hermeneutik die Antwort ist.
In: FUHRMANN, Manfred; JAUSS, Hans Robert; PANNENBERG, Wolfahrt, Hrsg. Op. cit.
9 JAUSS, Hans Robert. Horizontstruktur. ..• cit., p. 702. .
10 Idem. Der poetische Text im Horizontwandel der Lektüre (am Beispiel von Baude-
laires zweiten Spleen-Gedicht). In: . Âsthetische Erfahrung ... , cit., p. 836. As
citações seguintes provêm deste texto.
HERMENeUTICA LITERÁRIA 71

ção de efeito e recepção - até as perguntas que orientam a nossa in-


terpretação para as quais o texto, a seu tempo, ainda não foi necessa-
riamente a resposta. II

Jauss procede à reconstrução do horizonte, verificando quais


normas foram rompidas por Baudelaire. Chega às concretizações pos-
sibilitadas pelo texto, caracterizadas pelo modo negativo com que o
receberam. Persegue então as interpretações motivadas, ao longo do
tempo, pelo poema, entre as quais se acha a sua, que vão conformando
a tradição a condicionar a circulação social da obra. Em outras pala-
vras, que formam a história de seus efeitos, cuja descrição é a condi-
ção para se elucidar os próprios pré-juízos. Como ele escreve, é quando
"se esclarece a própria pré-compreensão, que condiciona o horizon-
te de interpretação do crítico. Pode-se então verificar se aquela com-
preendeu o texto de modo original ou se reproduziu o trabalho dos
precursores". 12
Se, diante de Ifigênia, de Goethe, Jauss revisa a recepção do
texto para, depois, propor sua interpretação da obra, na análise do
"Spleen 11", de Baudelaire, percorre o caminho inverso: da compreen-
são primeira, que é pessoal, chega à recepção, que é coletiva. Por seu
turno, esta não tem caráter aleatório, pelo contrário, acompanha de-
terminado padrão, conforme escreve em outra circunstância: "A his-
tória da recepção de uma obra literária não é a soma arbitrária de
todas as interpretações subjetivas; pelo contrário, existe uma espécie
de lógica histórica, onde entram apenas as interpretações que eu cha-
maria de concretizações, pois elas são aceitas publicamente como for-
madoras de normas". 13
Este segundo trajeto parece mais coerente com os princípios da
estética da recepção, porque, em vez de relativizar a obra, relativiza
as interpretações dadas a ela e impede que se suponha ser certo ar-
ranjo intelectual melhor que outro. Todavia, há um risco a ser evita-
do, pois a afirmação feita por último pode dar a entender que a estética
da recepção consiste numa nova forma de impressionismo.

11 Utilizamos aqui a tradução dada ao trecho de JAUSS,Hans Robert. O texto poéti-


co na mudança do horizonte de leitura. In: LIMA, Luiz Costa, org. Teoria da literatu-
ra em suas fontes. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1984. v. 2, p. 335. Na versão original,
esse excerto encontra-se na p. 846-7.
12 JAUSS,Hans Robert. Einleitung: Horizontstruktur ... , cit., p. 703.
13 Idem. The Dialogical.. .• cit., p. 53.
72 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

A citação precedente já procurava prevenir contra o subjetivis-


mo; e no ensaio sobre Baudelaire, J auss chama a atenção para a pos-
sibilidade de o crítico errar, não por ser considerado ultrapassado -
uma interpretação peculiar a certa época equivale à concretização,
vale dizer, ao horizonte possível de sua compreensão naquelas cir-
cunstâncias, decorrente dos problemas e experiências do período -,
e sim quando o intérprete aborda o texto de modo equivocado. E,
conforme adverte em ensaio bastante anterior, é esse mesmo horizonte
que protege as interpretações novas contra o excesso de arbitrariedade:
A estrutura aberta, caracterizada pelas indeterminações, permi-
te sempre novas interpretações; por outro lado, a transmissão históri-
ca dessas está limitada contra a simples arbitrariedade pelo horizonte
de condições de pergunta e resposta. 14

Outro exemplo de exercício da hermenêutica literária é a análi-


se do romance Le neveu de Rameau, de Diderot. 1S Embora não se
mantenha rigorosamente fiel à seqüência compreensão-interpretação-
aplicação, pois, como no estudo sobre Ifigênia, termina, talvez à re-
velia, por privilegiar sua posição, o trabalho é representativo do mé-
todo. Coerente com os princípios básicos, ele não examina o
significado da obra enquanto um conteúdo cristalizado no texto, pro-
curando vê-la como proposta de recuperação do diálogo socrático.
Este é adotado por Diderot por lhe oportunizar a implosão do siste-
ma filosófico então vigente e restaurar o caráter contrastante - dia-
lógico - das idéias e dos discursos. A seguir, examina como Hegel
retoma Diderot, a partir de quem formula a noção de dialética en-
quanto representação da história. Robert Holub, debatedor no coló-
quio onde a exposição foi originalmente apresentada, resume a análise,
julgando-a representativa do procedimento metodológico de Jauss:
A comunicação do Professor Jauss provê uma ótima ilustração
dessa abordagem. Pois seu ensaio reúne uma seqüência de excelen-
tes observações sobre dois leitores: primeiro, Diderot lendo o diálogo
socrático, depois Hegel lendo Diderot. Se acrescentamos Jauss lendo
Diderot e Hegel, e seus leitores lendo Jauss lendo esses dois autores,
então podemos ter uma idéia das possibilidades infinitas que tal pers-
pectiva nos abre (p. 40).

14 Idem. Geschichte der Kunst ... , cit., p. 241.


15 Este ensaio encontra-se. com outros, no último livro de Jauss, já mencionado. Pre-
ferimos. porém. destacar a versão exposta no colóquio realizado em Berkeley, porque
foi editado na companhia do debate que propiciou, portanto, ao lado do diálogo con-
creto sobre o qual também refletia teoricamente.
HERMEN~UTICA LITERÁRIA 73

Com efeito, a hermenêutica literária, enquanto permanente re-


leitura da história, parece suprimir o centro, pois retira o intérprete
desse lugar privilegiado e não o substitui - melhor: não deseja subs-
tituir - por ninguém. Se for permitida a imagem, troca o círculo her-
menêutico pela espiral das infinitas interpretações, Sob este aspecto,
configura-se como novidade metodológica, já que, se pode apresen-
tar restrições (uma delas sendo a dúvida se, no fundo, Jauss não re-
coloca um sujeito - ele mesmo - nesse centro que parece querer
suprimir), oferece igualmente opções instigantes à teoria da literatu-
ra. O exame de um texto a partir das sugestões até aqui resumidas
pode oportunizar o esclarecimento das idéias expostas e a verificação
das contribuições e limites que particularizam a estética da recepção.
7
Helena: um caso de leitura

Uma obra antiga não sobrevive na tradição his-


tórica da experiência estética por questões
eternas, nem por respostas permanentes, mas
em razão de uma tensão mais ou menos aberta
entre questão e respostas, problema e solu-
ção, que pode suscitar uma compreensão no-
va e determinar a retomada do diálogo do
presente com o passado.

Hans Robert Jauss

Dividida em 28 capítulos, a ação de Helena avança de modo


linear: começa com a morte do Conselheiro Vale e abertura de seu
testamento e conclui com a morte da protagonista, o desespero de
Estácio e o beijo de Camargo em Eugênia, sua filha. Entre um ponto
e outro, transcorrem os dez meses vividos por Helena no Andaraí,
em companhia do irmão, da tia, D. Úrsula, e dos amigos que os visi-
tam, entre os mais íntimos contando-se Camargo e família, Mendon-
ça, por um tempo noivo da heroína, e o Padre Melchior, o conselheiro
religioso e sentimental da maioria das personagens.
Esse desenvolvimento linear não se dá sem conflitos, que, por
seu turno, se desdobram num crescendo de dificuldades. O primeiro
HELENA: UM CASO DE LEITURA 75

núcleo de problemas refere-se ao anúncio da existência dessa filha ile-


gítima do Conselheiro Vale, assunto ventilado por Camargo e sobre
o qual Estácio ouvira falar, sua chegada a Andaraí e conquista da
família: o irmão a aceita antes de conhecê-la, porém D. Úrsula resis-
te por mais tempo.
O assunto do segundo grupo de conflitos é mais complexo: Ca-
margo percebe a crescente influência da moça e a possibilidade de ela
atrapalhar os planos relativos ao matrimônio de Estácio com Eugê-
nia; ao mesmo tempo, Helena, que aparentemente deveria sentir-se
bem no novo lar, confessa a Estácio ser' 'uma pobre alma lançada
num turbilhão". 1 Mais ainda: o rapaz vai protelando o pedido de
casamento e parece querer encerrar-se dentro de casa, entre seus pa-
rentes. Este emaranhado de sentimentos não pode ser solucionado por
si mesmo: intervêm duas personagens, uma diretamente interessada,
que age de modo malévolo - Camargo ameaça Helena de tornar pú-
blico seus passeios matutinos, se ela não empurrar Estácio na direção
do enlace com Eugênia; a outra tem bons propósitos: Melchior con-
clui não ser normal, ou ao menos adequada, a atitude de Estácio e
induz Helena a casar com Mendonça, cujo cerco à moça era evidente
a todos.
O duplo casamento parece uma boa saída para os dilemas amo-
rosos, ocasionados por sentimentos clandestinos e condenados pela
sociedade. Todavia, até esse momento, esses são apenas sugeridos.
A crise eclode e a verdade se revela, quando Estácio é noticiado da
união programada entre a irmã e o amigo. Para esse problema, o do
amor do jovem pela protagonista, não há solução possível que satis-
faça a moral e os bons costumes. A única alternativa é neutralizá-lo,
confrontando-o a uma carga igual e contrária que anule sua potência
negativa. Essa vem por meio de Salvador, de nome tão conveniente:
ele desvela a real filiação de Helena e sua sorte social, desaparecendo
a seguir. A moça, suficientemente enredada em seus problemas indi-
viduais - inautenticidade da situação, ilegitimidade da origem, im-
possibilidade de realização amorosa e, por causa de tudo isso, inca-
pacidade de ser feliz -, não resiste aos dois últimos golpes: a revela-
ção e o desaparecimento de Salvador abatem-na e ela escolhe sua pró-

1 ASSIS, Machado de. Helena. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; Brasília, INL,
1975. v. 2, p. 91. (Edições críticas de obras de Machado de Assis.) As demais citações
do romance serão retiradas desta edição, sendo indicado entre parênteses o número
da página onde se encontram.
76 ESTtTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

pria aniquilação. Se esta morte não pode ser considerada legal ou mo-
\

ralmente um suicídio, destino vetado pelos valores católicos domi-


nantes no livro, é inegável que, embora triste, parece ser a melhor
opção para os conflitos que, nos capítulos finais, afloram com evi-
dente nitidez. Eis por que a antecipa Melchior, cujos vínculos com
\

a Igreja e ilibado comportamento atestamo final decente e recomen-


dável da novela.
O falecimento de Helena reconduz a ação ao início: não apenas
porque o enredo começa e termina com uma morte, mas também por-
que, com o desaparecimento dela, tudo retorna à situação anterior
à abertura do testamento do Conselheiro. Estácio é de novo filho úni-
co, está na posse integral de sua fortuna (divisão profundamente la-
mentada por Camargo e não totalmente aprovada por D. Úrsula) e
pode casar com a prometida da infância, a desfrutável Eugênia. Não
que os efeitos dos acontecimentos não se façam sentir; de fato, tudo
está mudado após a passagem de Helena. Ainda assim.ihá o retorno
ao início, não só porque se recupera a situação por onde a narrativa
começou; também porque esta induz ao retrospecto, o leitor sendo
levado a rever a trajetória ficcional na busca das pistas que provoca-
ram a sorte tão lastimável das personagens.

o retrospecto O texto motiva o retrospecto, obrigando o lei-


tor a interpretar os acontecimentos. Não basta
acompanhar a linearidade cronológica com que os eventos são apre-
sentados: enigmas são plantados durante esse percurso e precisam ser
reexaminados, a fim de se alcançarem o sentido e a coerência do relato.
Este fato, determinante do vaivém da leitura, tem, de imediato,
certa importância, na medida em que Helena foi publicada original-
mente sob a forma de folhetim no jornal O Globo, saindo com regu-
laridade entre agosto e novembro de 1876, só depois, mas no mesmo
ano, sendo editada em livro, pela Garnier. Apesar da destinação pri-
meira, é possível pensar que Machado de Assis programou o texto
desde o início para aquela última forma: não só porque, quando co-
meçou a lançá-la em capítulos em O Globo, já estava com o contrato
assinado com a editora, mas também porque a narrativa parece apre-
sentar um esquema definido e organizado desde a página de abertu-
ra. A ação não avança desconsiderando o que foi apresentado antes;
pelo contrário, as pistas dispostas durante o percurso são retomadas
HELENA: U~1 CASO DE LEITURA 77

e explicadas, deixados em aberto apenas pequenos detalhes. Macha-


do redigiu a intriga com planejamento e determinação, não largando
ao sabor das circunstâncias a resolução da sorte de seus protagonis-
tas. Traçou antes o destino deles, não se comovendo com a retórica
sentimental com que ele mesmo os caracteriza.
Os enigmas plantados ao longo do enredo têm dupla finalida-
de: despertam o interesse do leitor, estando colocados em momentos
estratégicos. Exemplo disso é a confissão de Helena, que diz ter a al-
ma num turbilhão e ativa a curiosidade de Estácio numa cena locali-
zada logo após o passeio a cavalo feito pelos dois, quando tudo parecia
correr a contento, com a jovem diariamente subindo de cotação na
família, na casa e no círculo de relações dos Vale. A alusão aos pas-
seios de Helena, feita por Camargo, é outra dessas iscas lançadas pa-
ra chamar a atenção do destinatário e estimulá-lo a prosseguir a leitura,
num ponto em que tudo parecia calmo, com o narrador sem ter mui-
to mais a contar.
Contudo, aqueles motivam principalmente o retrospecto, fazen-
do ver os acontecimentos de modo diferente. A introdução da casa
de bandeira azul mostra isso: ela aparece quando do primeiro pas-
seio de Helena, ainda na companhia de Estácio. A chegada ao sítio
parece casual, embora a moça se revele na ocasião boa cavaleira, quan-
do, na véspera, tinha convidado o irmão a ensinar-lhe equitação. Apa-
renta também ser sem segundas intenções o desenho da mesma casa,
entregue a Estácio no dia de seu aniversário. Pelo retrospecto, verifica-
se ser falsa a casualidade: Helena planejara visitar Salvador, e a ban-
deira azul era o sinal combinado entre os dois. Este tipo de revisão,
portanto, não se faz necessário apenas para compreender os aconte-
cimentos; ele leva a encará-los de maneira diversa, de que resulta uma
modalidade de desvelamento. .
Aqui a novela joga outra vez com o leitor: se a ele sugere-se que
volte para trás e reconsidere os fatos, obrigando-o ao citado ir e vir,
vale lembrar que é esta justamente a atitude temida por Helena. Suas
alegações, quando deseja abandonar a família, apóiam-se nesta idéia:
revistas, suas ações apresentarão caráter maligno, sendo irrelevante
constatar se, previamente, já continham a intenção negativa credita-
da à jovem. Para ela, se as pessoas - próximas ou distantes - con-
cluírem que ela agiu de má-fé, esta afirmação adquirirá foros de
verdade, não havendo meios de desmenti-la.
O retrospecto é, por si mesmo, contraditório: indesejado pela
protagonista, moça de caráter confessadamente irrepreensível e foco
78 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

da simpatia da obra, é induzido pelo narrador, que, com cuidado,


dissemina mistérios pela intriga, simultaneamente sugerindo que se
volte a eles para melhor entender a ação apresentada. Estabelece-se
o atrito entre a personagem e o enredo, colocando-se no meio o alvo
concomitantemente evitado e concretizado: o desmascaramento.
Desmascaramento é talvez o termo que vincula os principais ato-
res: Helena, embora alegue inocência, teme-o acima de tudo, pois a
revelação de sua identidade coincidirá com a atribuição de cálculo
e interesse às suas atitudes. Embora seu destino seja decidido sempre
em instâncias superiores - o abandono de Salvador por Ângela, a
adoção do Conselheiro, a aceitação dos termos do testamento após
a insistência do pai - é ela quem sofre as conseqüências e precisa
se justificar. Por mais que as ações enumeradas sejam atenuantes,
permanece um resíduo pelo qual é responsável: prestou-se à farsa,
aceitou as condições, agiu de forma dúbia, querendo ou não seduziu
Estácio; além disto, as testemunhas que poderiam defendê-la morre-
ram (Ângela e o Conselheiro) ou desaparecem (Salvador). Não dis-
põe de nenhum álibi e outros depoimentos favoráveis procederiam
dos diretamente interessados, como Esrácio e D. 'Úrsula, carecendo
de força legal. Fica, assim, entregue a si mesma e à sua parcela de
culpa.
Entretanto, o problema não diz respeito apenas à heroína. Nela
\ é apresentado sob lente de aumento um dilema a afligir outros jo-
vens: Eugênia, embora sua frivolidade impeça-a de compreender a
natureza de sua condição social (e dispõe do atenuante não negligen-
ciável de ser filha de um dileto amigo do Conselheiro), e Mendonça.
É por meio dele, antes de ser via Helena.que aparece o drama crucial
das personagens. Também o companheiro de Estácio precisa provar
que seu afeto por Helena é puro c bem intencionado, embora o casa-
mento de ambos - ele, de boa família, mas pobre e sem futuro fora
do funcionalismo público; ela, rica, mas de origem espúria, ainda que
reconhecida pelo pai - não possa ser mais conveniente aos olhos dos
demais e deles mesmos.
A história manipula essa ambivalência: todos agem com a maior
correção, todavia, suas ações não resistem ao crivo da análise retros-
pectiva. Precisam parecer imaculados ao extremo, e só esse exagero
compensa o risco da desconfiança. E ainda assim esta os submete,
porque parte de dentro do próprio enredo, e nem Mendonça escapa,
pois dele é antecipado que só um bom casamento o salvaria do traba-
lho e da mediocridade do Rio de Janeiro.
HELENA: UM CASO DE LEITURA 79

No entanto, se sobre eles pende a ameaça de desmascaramento,


ninguém deveria experimentar este problema mais agudamente que
Estácio. Se o jovem, rico e talentoso filho do Conselheiro Vale,. com
fundas raízes na tradição patriarcal luso-brasileira, não precisa temer
por seu passado, nem pelo futuro, antecipado pela carreira política
que começa a trilhar, por outro lado, ele oculta a paixão mais conde-
nável: a atração que sente por Helena, de natureza incestuosa, mas-
carada por um temperamento doméstico e um coração generoso.
É mais fino o processo de ocultação dos sentimentos interiores
de Estácio, uma vez que agora o narrador lida com questões mais com-
plexas. A conveniência social podia ser debatida, ainda que de modo
ameno (e, frise-se, a seu favor), porque não se desviava de seus prin-
'cipais mandamentos; mas era impróprio e pouco agradável revelar
um amor incestuoso. Por isso, enquanto Helena está consciente de
tudo, escondendo de todos, mas não de si mesma, as chaves mais im-
portantes do enredo, Estácio não somente atua de modo inconscien-
te, como não quer admitir a natureza de seu afeto, reprimindo-o co-
mo tal e deslocando-o para o ciúme possessivo com que trata o affair
sentimental da irmã e Mendonça.
O mascaramento é duplo - Estácio, como Helena, esconde a
verdade do leitor; mas, ao contrário dela, esconde-a também de si
mesmo. É necessária a intervenção de uma instância superior, papel
atribuído a Melchior, para ela ser extraída com todas as palavras. Só
então o leitor tem confirmadas suas desconfianças; mas, chegando
a esse estágio, ele pode desconfiar de tudo, de modo que nova ocul-
tação se faz necessária. Mais uma vez a morte de Helena mostra-se
oportuna, pois, com ela, ficam sepultados os segredos - e, mais im-
portante, as suspeitas que deterioram a pureza das intenções e dos
sentimentos, a integridade das pessoas, a harmonia e regularidade do
universo doméstico.
A oscilação, não resolvida, entre encobrimento e revelação, a
primeira vivida na atualidade e a outra constituindo uma sombra a
ameaçar o passado, permite a Machado analisar a índole das regras
sociais, que existem para garantir a aparência de normalidade e pro-
bidez a ser transmitida pelo comportamento das pessoas.

leis sociais e As leis são encaradas desde uma dupla perspec-


" .
aparencra tiva: de um lado, regulam a vida familiar, con-
denando a atração incestuosa que talvez fosse
mais poderosa dentro da estrutura patriarcal da sociedade carioca,
80 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

fechada, imóvel e fundada na dominação de um grande senhor sobre


o clã de parentes, agregados e serventes. 2 Machado trabalha-a em
níveis diferentes, fiel à sua propensão a desdobrar processos no inte-
rior da narrativa, num jogo de espelhos .que intensifica e difunde a
imagem refletida. O mais evidente e menos complexo quando se des-
cobre a verdade diz respeito ao par Estácio-Helena: conforme Mel-
chior denuncia, o rapaz ama a irmã, mas o fato é desculpável, por
decorrer provavelmente da falta de convivência dos dois durante a
infância. A justificativa é dispensável, pois, como eles não são irmãos,
o incesto mostra-se aparente. O escândalo é contornado, mas, até a
verdade aparecer, desafia-se o leitor a engolir a situação, agradável
ao sentimentalismo romântico, insuportável, porém, do ponto de vista
das convenções.
Num segundo plano dá-se ao relação Camargo-Eugênia, já sa-
lientada pela crítica. 3 Camargo, que é também o vilão da intriga, em-
bora, no fundo, não prejudique ninguém, tem um amor possessivo
pela filha, através de quem deseja triunfar socialmente. A causa da
paixão é, ao mesmo tempo, sua atenuante, com o que Machado res-
guarda mais uma vez as aparências.
Todavia, no terceiro nível, a relação incestuosa é menos evidente
e, simultaneamente, mais daninha: Helena e Salvador mantêm um
, relacionamento de amantes, encontrando-se às escondidas e às expen-
sas dos prejuízos que as visitas dela possam lhe carrear. Relativamente
a Salvador, Helena age como Electra, cultuando o pai que fora traí-
do pela mãe; e por ele se sacrifica, morrendo ao perdê-lo. Eis outro
dos agravantes que a condenam à morte, sendo que, de novo, não
conta com uma desculpa à altura do crime.
De outro lado, as leis sociais regulam o casamento; vale dizer,
têm como objeto a outra faceta do amor. Tema legalmente mais au-
torizado e ideologicamente de trânsito mais fácil, nem por isso é me-
nos problemático. Em linhas gerais, Helena apresenta vários ena-

2 Não quer dizer que a obra de Machado espelhe um fato social, pois nem ela tem ca-
ráter de documento, nem o escritor pretende criar dentro dos parâmetros do realismo
fotográfico, condenado por ele em sua crítica literária e teatral. Porém, o tema po-
voou seu imaginário, comparecendo em vários contos e nas novelas em que a trama
amorosa parte de uma paixão entre jovens criados juntos, dentro da mesma casa ou
em casas vizinhas, como mostram A mão e a luva, laiá Garcia, "Casa Velha" e Dom
Casmurro.
J Cf. CALDWELL,Helen. Machado de Assis; The brazilian master and his noveis. Ber-
keley, University of California Press, 1970.
HELENA: UM CASO DE LEITURA 81

morados que não podem casar entre si, já que o afeto mais profundo
e autêntico, entre a heroína e Estácio, sofre dupla proibição: a do
incesto, já referida; e a da diferença social, quando a moça é devolvi-
da à sua classe de origem. O casal ideal está separado de modo irre-
versível; restam os casais possíveis: Estácio e Eugênia; Helena e
Mendonça. Mesmo aqui, e apesar de contarem com o reconhecimen-
to da instituição mais respeitada no romance, a Igreja, representada
por Melchior, há evidente assimetria: Estácio é muito mais rico que
Eugênia; Mendonça é muito mais pobre que Helena. E, se esse ainda
oferece a compensação de ser de "boa família", ao contrário da noi-
va, de origem obscura, Eugênia, da sua parte, traz um dote medío-
cre, de que Camargo está alerta.
Além disto, como o "grande amor" está ausente dessas liga-
ções, o interesse que as alimenta e justifica fica mais explícito. Arru-
mados os pares com a intenção de mostrá-los em equilíbrio, eles
acabam por acentuar as distinções. E revelar não haver noiva à altu-
ra de Estácio, a não ser que Helena fosse mesmo sua irmã. Neste ca-
so, a identidade interior - de sentimentos, virtudes e aspirações -
corresponderia à igualdade exterior; porém, esta solução determina-
ria o retorno do incesto enquanto ameaça, agora mais real, porque
legitimada. Estácio só poderia se apaixonar por Helena, a única em
situação de oferecer-lhe um amor desinteressado, a "alma gêmea"
apta a unir-se à sua. Quando a encontra, descobre que as relações
são mais complexas, não podendo sustentarem-se apenas no plano
espiritual. A última revelação, contudo, é camuflada pelo romance,
para tanto mostrando-se de novo providencial a eliminação de Hele-
na, pela mesma razão sugerida pelo representante da Providência di-
vina, o Padre Melchior.
Lidando com a oscilação entre encobrimento e revelação, He-
lena chega à beira de um tema que poria em causa a organização
da sociedade, suas leis e instituições. Diante do abismo que se abre,
ele recua: ainda assim, não deixa de questionar a aparência, fazen-
do-o por meio do modelo narrativo, de tipo prospectivo/retrospec-
tivo, e do comportamento das personagens, seguidamente preocupa-
das com o que os outros vão pensar e recebendo a confirmação de
que essa atitude se justifica. 4 A última instância da dialética entre a

4 Uma cena à primeira vista injustificada é reveladora desse problema: após ter seu
pedido de casamento aceito por Helena, Mendonça vai ao teatro, onde vê a noiva com
a tia, D. Úrsula. Os dois não se falam, nem a cena é referida mais adiante. É durante
82 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

ocultação e desmascaramento é trabalhada ao nível do discurso nar-


rativo.
Neste, predomina o que se poderia chamar de retóriffi da apa-
rência, segundo a qual o narrador só apresenta o mundo interior u
dos
protagonistas para confirmar que as atitudes deles são corretas, .vale
" , \. I

dizer, quando correspondem ao que gostariam de aparentar. A cena


seguinte à proposta de casamento de Helena, feita por Mendonça,
é elucidativa: o rapaz está em vias de ser denunciado como oportu-
nista por Estácio e mais toda a sociedade carioca. O narrador vem
então em seu socorro, tendo participação intensa no evento, a fim
de abonar e salvaguardar a sinceridade e nobreza do seu compor-
tamento.
Nesse ponto, o narrador está sendo conivente com as aparên-
cias, pois suas palavras visam impedir que se faça mau juízo do ra-
paz; ou que venha à luz o caráter conveniente do matrimônio para
as duas partes. Em outras palavras, quando expõe a interioridade de
Mendonça aos olhos do leitor, quer encobrir a evidência de que con-
sórcios como o de Mendonça e Helena faziam parte do mercado amo-
roso da época, segundo o qual cada um dos parceiros entrava com
sua cota, comprando ou vendendo o corpo que lhe faltava.
O ponto de vista dá novas nuanças à questão: dita uma obra
em que o narrador trabalha de modo onisciente, Helena é, de fato,
um texto em que o foco emana principalmente de Estácio. São pou-
cas as cenas em que o leitor tem acesso ao que Estácio não vê: a ex-
plicação para o comportamento inicialmente hostil de D. Úrsula, o
diálogo entre Helena e Camargo na festa pelo aniversário de Estácio,
c quadro doméstico em casa de Camargo, após o pedido de casamento
de Eugênia.
Da sua parte, Estácio é um' indivíduo cego (não percebe seu amor
por Helena, que reprime ê desloca para o ciúme) e enganado por seu
pai, que o faz admitir uma irmã com quem divide a casa, a herança
e os sentimentos; pela irmã, que não lhe confessa sua verdadeira ori-
gem e acaba por seduzi-lo, sem advertir-lhe para o perigo que corre.
A ele se contrapõem dois homens mais velhos, que enxergam melhor

seu transcorrer que um amigo de Mendonça chama-a de "andorinha viajante" (p. 156),
alcunha relativa a seus passeios matinais. A passagem parece inconseqüente, mas mostra
que, num local pequeno, como o Rio de Janeiro em 1850, todos sabiam da vida alheia
e que julgavam as pessoas de modo malévolo e cínico, como Helena temia. A propósi-
to, v. a análise do boato em Machado de Assis, feita por Helen Caldwell no livro citado.
. .
HELENA: eM CASO DE LEITURA 83

e assumem caráter profético: Camargo, que logo prevê os prejuízos


que o testamento trará; e Melchior, que, desde cedo, entende a atra-
ção mútua experimentada pelos dois jovens e, na cena da revelação,
identifica-se ao adivinho Tirésias, jogando a verdade no rosto do
rapaz.
A associação ao paradigma mítico de Édipo, a que o tema do
incesto induz e a semelhança entre Melchior e Tirésias acentua, é con-
firmada pelo próprio texto nas palavras do padre: "São irmãos e
amam-se. A poesia trágica pode fazer do assunto uma ação teatral;
mas o que a moral e a religião reprovam, não deve achar guarida na
alma de um homem honesto e cristão" (p. 196). O afeto de Estácio
pela mãe é também um tênue indício no começo da história, bem co-
mo seu amor por Helena. Porém, sua cegueira - ou a impossibilida-
de de enxergar - é que o coloca mais perto do herói grego, de que
o adverte o religioso no episódio citado. Este indica igualmente co-
mo Machado percebeu a proximidade com o mito clássico e procu-
rou refreá-Ia, ao confessar os traços comuns e as diferenças entre as
duas obras.
Nem por isso deixou de explorar o paradoxo da ituação narra-
tiva: Estácio, que vê pouco e é facilmente enganável (a começar por
si mesmo) é quem apresenta a história. Ele não pode ter acesso à in-
terioridade de Helena, durante todo o enredo deixada encoberta ao
leitor.
~
Só assim o narrador pode sustentar o mistério, pois invadir
a intimidade da moça, que está cônscia de suas origens e da índole
de seus sentimentos, seria antecipar as revelações guardadas para o
final, quando ela perde o controle da situação.
Por sua vez, como o narrador não adianta nenhuma informa-
ção além daquelas retidas por Estácio, este reproduz no texto a visão
que o leitor tem estando fora dele. Embora disponha de uma situa-
ção mais confortável, o leitor sabe tanto quanto o protagonista; mas,
como se identifica com a sorte de Helena, a vítima trágica das cir-
cunstâncias, sofre em dobro: por Estácio, ignorante e infeliz, e por
ela, que sente na pele, e paga por eles, o erro dos outros.

Leitor e A situação do leitor apresenta algumas particulari-


sociedade dades: da perspectiva do conhecimento, aparenta-se
a Estácio; da emoção, a Helena, com quem compar-
tilha o sofrimento e a infelicidade. Dividido entre os dois protagonis-
84 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

tas, não é nenhum deles, o que lhe possibilita maior distanciamento.


Por causa desta eventualidade, tem meios de julgar os acontecimen-
tos; e, conforme se observou, é induzido a isto, já que a narrativa
atua prospectiva e retrospectivamente ao mesmo tempo. O leitor, fo-
ra dos eventos, pode pesar os fatos e avaliá-los, hipótese que ame-
dronta Helena e que, também por esta via, explica sua morte precoce.
Não apenas por este ângulo o leitor identificar-se-ia com Hele-
na ou Estácio. Considerando o público com que Machado contaria
em qualquer das versões da novela, o leitor pertenceria ao grupo so-
cialmente elevado (como o de Estácio) ou a um setor intermediário,
ainda ralo, composto da classe média ou de brancos livres que sa-
biam ler e trabalhavam como dependentes ou agregados da alta bur-
guesia.
O espectro social dos leitores era bastante reduzido e Machado,
de certa maneira, o reproduz na obra. Porém, esta reprodução é re-
lativa, pois a ação ficcional passa-se entre '1850-1851, os fatos mais
remotos retrocedendo às décadas de 20 e 30, respectivamente quando
o Conselheiro casou e nasceu Estácio, Ângela e Salvador fugiram e
nasceu Helena, enquanto que o texto, na forma de folhetim e, de-
pois, livro, saiu em 1876. Uma geração separa a data de produção
da obra e a dos eventos fictícios, distância temporal ainda rara nos
escritos de Machado.
Talvez tanto a distância, quanto o ano durante o qual transcor-
re a ação, tenham sua razão de ser, já que os historiadores com notá-
vel unanimidade acentuam a importância de 1850 para a trajetória
do Segundo Império. Nesse ano, pressionado pelo governo inglês, o
Brasil obrigou-se a definitivamente proibir o tráfico de escravos afri-
canos. Na ocasião, o país assistia ao crescimento da importância do
café na pauta de exportações, substituindo o açúcar e os demais arti-
gos agrícolas em que se fundava a economia desde o período colo-
nial. Também as fazendas produtoras de café dependiam do braço
escravo; todavia, muitas delas vão aos poucos se organizar sobre ba-
ses mais dinâmicas e adequadas às necessidades do capitalismo mo-
derno, estimulando muito lentamente uma política de imigração de
trabalhadores europeus brancos. Isto ajudará a suportar mais facil-
mente, primeiro, a escassez de escravos no mercado, mais adiante,
a completa abolição do regime servil.
Estes acontecimentos - proibição do comércio de africanos,
reduzindo-o ao tráfico interno que importará pretos do Nordeste, onde
a cultura do açúcar, derrotada pelos cafeicultores e privada de bra-
HELE.\A: L"\I CASO DE LE ITURA 85

ços, decairá mais rapidamente; a mudança de pólo econômico,


aproximando-o geograficamente da capital do país -, somados a ou-
tros, como o início da modernização do Rio de Janeiro e os primei-
ros passos na direção da industrialização, vão modificar bastante a
sociedade carioca. Entre o Rio de Janeiro de Helena-personagem e
o de Helena-livro, as transformações são significativas: a velha so-
ciedade patriarcal, de fortes componentes coloniais, estava sendo subs-
tituída por uma formação social mais diversificada, onde, à tradicional
oligarquia rural, se acrescentavam uma burguesia endinheirada à custa
dos negócios de importação e exportação ou dos novos empreendi-
mentos financeiros, uma classe intelectual mais ativa, que reivindica-
va mudanças políticas, e um grupo intermediário, mas não menos
importante, em que se misturavam imigrantes, funcionários públicos,
comerciantes, jornalistas, professores etc.
A realidade ficcional de Helena não é bem essa: ali representa-
se uma sociedade rigidamente dividida e hierarquizada, com opções
muito restritas de trabalho, ascensão e realização pessoal. De certa
maneira, todos são vítimas dessa estratificação e estreiteza, pois mes-
mo Estácio perde sua oportunidade de ser feliz. Sob este aspecto o
livro esboça uma crítica sutil; ao mesmo tempo, antecipa o final des-
se mundo, já que sua superação está em vias de acontecer quando
a narrativa principia.
\ Talvez esta seja a razão de ele começar e terminar com uma mor-
te que, se reconduz os acontecimentos ao início, confere-lhes agora
faceta diversa. Do início para o final, realiza-se um rito de passagem,
sendo Helena o objeto de sacrifício. Esta circunstância indica que al-
go mudou, pois um ritual prepara a atualidade para o que está por
vir. Deste modo, se ao final a ação retorna ao ponto de partida, sabe-se
que este não é mais o mesmo, tendo-se rompido o ciclo da estagna-
ção, o meio mostrando-se apto a acolher a emergência do novo.
Por sua vez, o responsável em última instância por esse sacrifí-
cio é o Conselheiro, síntese completa do velho mundo colonial, con-
forme sua descrição, na primeira página do romance, sugere:
o conselheiro, posto não figurasse em nenhum grande cargo do
Estado, ocupava elevado lugar na sociedade, pelas relações adquiri-
das, cabedais, educação e tradições de famflia. Seu pai fora magistra-
do no tempo colonial, e figura de certa influência na corte do último
vice-rei. Pelo lado materno descendia de uma das mais distintas tarnl-
lias paulistas (p. 53).
86 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

Ao longo do livro, a noção de que os filhos pagam pelos erros


dos pais é reiterada com alguma insistência. A cena, já mencionada,
entre Estácio e o padre, representa-a bem, o rapaz indiretamente acu-
sando o pai por causar-lhe os problemas sentimentais insolúveis que
está enfrentando. Por esta razão, Helen Caldwell aproxima o jovem
a outro paradigma mítico, vendo-o como reencarnação de Orestes.
Helena, porém, não é menos vítima: primeiramente, da irresponsa-
bilidade de Salvador e Ângela; depois, do testamento do Conselheiro
que, ao causar-lhe a imolação futura, associa a moça a outro modelo
da-mitologia: lfigênia, irmã de Orestes e Electra, sobrinhos da Hele-
na grega de quem herda o nome.
A heroína é, portanto, a vítima principal do enredo enquanto
objeto do referido rito de passagem. Por extensão, é vítima do pro-
cesso de mudança em vias de acontecer. Todavia, sacrifica-se em prol
de uma ordem arcaica, sendo o sacrificador, .0 Conselheiro, repre-
sentante dessa; além disso, seus valores são os que ela deseja conser-
var. Logo, não age na direção da transformação, nem ao menos
contesta o sistema vigente dentro do qual não encontra lugar. Revela-se
personagem altamente conservadora, ao lutar pela manutenção das
aparências; porém, não poderia ser muito diferente, pois estas lhe da-
vam alguma dignidade e asseguravam o respeito próprio e alheio.
Sob este ângulo, a imagem da mudança transmitida pelo livro
tem conotações contraditórias: a pessoa que pode ser seu agente é ex-
purgada da sociedade; o responsável por sua supressão, o Conselhei-
ro, encarna a velha ordem. Se esta apresenta-se em vias de substituição,
a que vem em seu lugar parece conservar os valores do passado e não
desejar subvertê-los.
É também digno de atenção o fato de a história contemporânea
à ação fictícia não ser mencionada na narrativa: não há qualquer re-
ferência aos eventos que agitavam a vida carioca em 1850 e direcio-
nariam o país para nova fase de sua vida. O mundo do Andaraí parece
não enxergar esses acontecimentos, circunstância que amplia a cegueira
de Estácio, indicando ao leitor que, se depender do herói, igualmente
encolherá seu raio de visão.
Vale observar como se opera essa repartição: a história enca-
minhava-se para a superação da organização social herdada da colô-
nia; dentro do universo fechado da narrativa, a marcha daquela não
é percebida, nem mencionada. Talvez por, no fundo, não haver dife-
rença substancial; ou porque o autor tivesse preferido optar pe-
HELENA: UM CASO DE LEITURA 87
r
i

los valores tradicionais, 5 ainda quando vitimavam pessoas tão qua-


lificadas como Helena.
É ela quem corre na direção mais diametralmente oposta à da
história. Esta, coincidindo com a modernização da sociedade, deter-
minará a relativa emancipação da mulher. Helena, porém, ainda não
conta com essa opção: ou permanece na dependência dos Vale ou se
prostitui, como sua mãe, que fez ambas as escolhas. A possibilidade
de emancipação começava a se esboçar para a leitora de Helena, mas
era ainda remota: a mudança não tinha chegado ao ponto de conver-
ter a mulher em força de trabalho fora do lar e do casamento. Ape-
nas poderia ser cogitada, e pode-se supor que Machado tenha desejado
lidar com esse intervalo. Nem Helena, nem a leitora tinham chances
diferentes, mas o autor não aspirava à completa assimilação entre pro-
tagonista e destinatário. Foi observado como o narrador empurra o
leitor a fazer o retrospecto e ver mais que os atores; se não proceder
assim, restringe-se ao ponto de vista de Estácio, através de quem se
apresenta o enredo na sua linearidade. Disto advém o distanciamen-
to, produzido em várias instâncias - a leitura retrospectiva, a mo-
dulação do processo de identificação, deixando o leitor a meio
caminho entre Estácio e Helena, a hipótese de que ele disporia do co-
nhecimento histórico não mencionado, preenchendo também esta la-
cuna - e destinado a alcançar determinado efeito: o alargamento do
horizonte da pura representação ficcional, aumentando as possibili-
dades de compreensão do mundo ali traduzido. Devido a esta sepa-
ração, estabelece-se um pequeno intervalo dentro do qual o assunto
poderia ser objeto de consideração intelectual. Não ainda de ação -
apenas de reflexão, remotamente de indignação, com mais probabili-
dade de lamento e piedade pela falta de sorte da moça.
Machado trabalha com a distância, mas mostra também - ou-
tra maneira de dizer que as alterações não foram profundas - quão
pequena era ela: para a protagonista e para si mesmo, que também
não contradizia as convenções do romance romântico, sua estrutura
narrativa linear, o discurso derramado e o moralismo da solução. Não
que deixe de inovar; mas, ao fazê-lo, tem de recorrer a sutilezas e ar-
tifícios, suficientes, por outro lado, para obrigarem o leitor a repen-
sar o relato e o destino das personagens. Contudo, não vai mais

5 Cf. a respeito SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas; Forma literária e pro-


cesso social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo, Duas Cidades, 1977.
88 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

adiante; se quisesse avançar e assumir outros riscos, teria de exigir


mais da heroína, forçando-a a tomar decisões que fraturassem o uni-
verso fechado em que se encerrara. Mas deixa de fazê-lo não só por-
que, como ela, pode ser considerado moralista e conservador: é que
igualmente seu público não suportaria o-confronto com uma Helena
emancipada. Impossibilidade histórica, não foi ela cogitada também
como utopia - transformando-se em modelo futuro para a mulher
brasileira -, nem como criatura trágica - consciente de seus limi-
tes, mas assumindo-os com radicalidade ou revolta, como as para-
digrnáticas Ifigênia e Electra de quem se avizinha. Pelo contrário,
Helena recua, refugiando-se no único lugar que pensou ter-lhe sobra-
do: o do ideal, que só pode manter se se aniquilar.
Esta decisão tornou o final melodramático e inverossímil: He-
lena luta e, ao mesmo tempo, se deixa abater, abrindo mão da opor-
tunidade de ser um padrão de identificação e revelar alternativas de
conduta. E, se o leitor é levado a refletir sobre o assunto, fica ele con-
comitantemente impedido de questionar os fundamentos das institui-
ções sociais. O livro escolhe o meio-termo e permanece neste ponto.
Sua sorte futura é igualmente reveladora dessas opções, emanando
desde então o sentimento de transitoriedade com que a crítica crista-
lizou sua imagem.

A recepção O estudo e a reflexão sobre a qualidade e impor-


tância da obra de Machado de Assis não poderia
preceder a profissionalização da crítica brasileira. Esta, até o início
da década de 80, vinha sendo exercida em grande parte pelos escrito-
res ou homens de letras que trabalhavam em jornais e se responsabi-
lizavam pelas colunas ou notícias literárias. Machado de Assis, no
período em que trabalhou como redator no Diário do Rio de Janei-
ro, e, antes, como parte da equipe de revistas efêmeras como O Espe-
lho ou O Futuro, desempenhou simultaneamente a função de crítico,
cronista e repórter, acompanhando e relatando o movimento cultu-
ral da época, quando o Romantismo estava no auge.
Todavia, a profissionalização dessa atividade coube à geração
de Sílvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo que, se não era
mais nova que a de Machado, chegou mais tarde ao Rio de Janeiro
e sofreu a influência, sobretudo os dois primeiros, das concepções
ventiladas pela Escola de Recife, cujo chefe, Tobias Barreto, seguia
HELENA: UM CASO DE LEITURA 89

o preceito cientificista emanado do positivismo, determinismo e na-


turalismo, em vias de deitar raízes no pensamento brasileiro.
A institucionalização da crítica dependeu da soma de dois acon-
tecimentos. O primeiro foi a mudança de concepção sobre a ativida-
de crítica, classificada como um fazer científico, fundado em princípios
e fiel a uma metodologia - isto é, a uma técnica independente do
crítico e de validade para além de suas impressões e valores pessoais.
O caráter científico da crítica dava-lhe autonomia e universalidade,
elevando seu estatuto e delimitando uma área de ação. Por isso, o
crítico podia ser considerado um profissional e um técnico: um ex-
pert, dono de uma competência específica, seguidor de uma ortodo-
xia e diverso do leitor vulgar que, por faltarem-lhe os instrumentos,
era incapaz de reelaborar sua compreensão da obra num discurso vá-
lido e digno de ser levado a sério, permanecendo preso às suas emo-
ções imediatas.
O segundo acontecimento relaciona-se às mudanças das condi-
ções de trabalho intelectual, experimentadas desde a década de 70 e
que tomam feição crescentemente moderna após a proclamação da
República. O crítico não poderia ser um profissional com todo o apa-
rato antes descrito, se lhe faltassem os veículos. O aparecimento de
revistas, o aumento do número de jornais e a diversificação do públi-
co leitor, fatos observáveis na última década do século passado, for-
neciarn os meios de o crítico desenvolver sua atividade, facultando
ao especialista o desempenho de seu papel de um modo relativamen-
te próximo a seu ideal.
A recuperação da Revista Brasileira, por José Veríssimo, em
1895, é representativa das novas condições de produção intelectual.
Não apenas se tratava de um meio apropriado para a comunicação
com o público, como se apresentava com a aparência desejada: era
especializada, destinada a uma audiência específica, que encarava a
literatura como objeto elevado, e não mero passatempo. A presença
da Revista Brasileira, ao final do século, é sintoma do novo status
da crítica; e também da diversificação do público e possibilidade de
se estabelecer novo diálogo com esses leitores diferenciados, media-
dos por um veículo próprio e um discurso técnico, para quem a lite-
ratura era alvo de consideração científica.
Talvez tenha sido a obra de Machado de Assis a que se revelou
mais apropriada à nova situação. Quando esta se mostrava madura
para acolher a nova crítica, Machado tinha vários livros publicados,
entre os quais se contavam Memórias póstumas de Brás Cubas e Quin-
90 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

cas Borba, sua trajetória intelectual já percorrera escolas diferentes,


desde a poesia de influência húgoana e condoreira até a indianista,
desde o romance folhetinesco att a prosa paródica ou realista e, tal-
vez o mais importante, apresentava consistência temática e estilística
\

- fatores convidativos para quemdlspunha de instrumental novo e


refinado, mas se ressentia da falta de'uma produção artística à altura.
Por sua vez, o fato de a crítica só ter meios de interpretar Ma-
chado quando a obra dele ia avançada repercute sobre o modo de
a encarar. Também a circunstância de predominar
\
o foco evolucio-
nista, originário do positivismo, teve efeitos determinados e ainda do-
minantes na recepção daquele escritor.
Estes ângulos evidenciam-se no estudo que Araripe Júnior lhe
dedica no número de reinauguração da Revista Brasileira. Desde o
começo ressalta como o escritor foi se modificando ao longo de sua
biografia literária, seguindo uma evolução que .çorrespondeu a um
paulatino aperfeiçoamento. A imagem retirada ct'i\ botânica é repre-
sentativa dessa noção de crescimento contínuo e
uniforme: "ele
ensaiou-se no conto, e é nesse terreno que gradualmente vê-se des-
pontar o broto, de onde rebentaram mais tarde as concepções que
hão de afirmar, no futuro, a sua passagem pelas letras brasileiras". 6
A evolução do artista corresponde à sua 'trajetória intelectual;
,sob este ângulo, "o autor do Quincas Borba foi sucessivamente críti-
co, poeta arcaico, poeta romântico, romancista de salão e contista;
c, por último, afirmou-se escritor humorista de primeira ordem" (p.
8). Por outro lado, permite inseri-lo numa história cultural, que ele
acompanha e reproduz em última instância. Machado, enquanto se
transforma, marcha ao lado das diferentes gerações da literatura bra-
sileira, que, de certo modo, amalgama em sua obra:

Foi assim que Machado de Assis assistiu aos adventos do in-


dianismo de José de Alencar, do neo-romantismo e das tentativas dra-
máticas de Quintino Bocaiúva e Pinheiro Guimarães, da escola
condoreira de Tobias e Castro Alves, do naturalismo personificado na
geração que despontou em 1878, com José do Patroclnlo, Tomás. Fi-
lho, A. Celso Júnior, Assis Brasil, Lúcio de Mendonça, V. de Magalhãe~,
e do parnasianismo representado por O. Bllac, Raimundo Correia e ou,:
tros (p. 8-9).

6 ARARIPEJÚNIOR.Machado de Assis. In: . Obra critica. Org. de Afrânio Cou-


tinho. Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 1963. v. 3. p. 6. As demais citações pro-
vêm igualmente desta edição.
HELENA: UM CASO DE LEITURA 91

É curiosa a descrição de Araripe, pois, sob certo aspecto, trans-


forma a obra analisada numa colagem de informações diversas que
comprometem sua identidade. Esta característica aparece também
na afirmação que pretende enfeixar as peculiaridades da obra de
Machado:
Em sfntese, Machado de Assis significa um poeta clássico-
romântico que, em caminho, matizando a sua Imaginação com a varie-
dade das cores e dos aspectos das opostas paisagens que foi atraves-
sando, descobriu a existência, em sua alma, de uma região excêntrica
e nela firmou as tendas de seu estilo (p. 9).

Araripe não resiste à imagem retórica, tendo esgotado as classi-


ficações possíveis para descrever as facetas diversas do conjunto da
obra. Faltando uma categoria específica, já que Machado parece con-
ter um pouco de cada uma, recorre a uma figura de estilo que infor-
ma pouco. Porém ela denuncia o dilema do crítico entre reconhecer
a originalidade da criação machadiana, examinando-a por si mesma,
ou encaixá-la a um padrão previamente existente utilizado pela histó-
ria da literatura. Ele não pode se limitar ao primeiro, pois recairia
num modelo analítico superado, que dispensa o conhecimento teóri-
co; mas preferir o segundo apagaria a identidade da obra em ques-
tão, não mais se justificando sua abordagem. Ele escolhe o caminho
intermediário: fixa a idéia de que a obra evoluiu, portanto, não fugiu
\

à história, podendo mesmo ser lida e rotulada a partir dessa; e sugere


que, se o artista foi se transformando, é porque passou por fases di-
versas, a posterior melhor que a anterior, razão pela qual esta pode
se explicar por aquela, o passado pelo vir-a-ser do futuro.
Todavia, Araripe não deixa de ver Machado como escritor em-
purrado pela história, mudando sua escrita por se expor a influências
diversas: primeiro, a de Castilhos e do Romantismo, depois a do fo-
lhetim de Octave Feuillet, enfim a da literatura inglesa, especialmen-
te a de Sterne, descoberta que fortaleceu seu verdadeiro talento e ação
inusitada na literatura brasileira e nas letras latinas, avessas por na-
tureza ao humorismo peculiar aos povos anglo-saxônicos.
Encarando a obra como totalidade homogênea, sem cortes, nem
conflitos, Araripe só persegue o fio cronológico, a que caracteriza
como aperfeiçoamento e confere índole evolutiva. O escritor desdo-
bra sua carreira segundo um roteiro ascensional, sem grandes ruptu-
ras, mas, ao mesmo tempo, exposto a influências que, igual a setas,
indicam o rumo a ser seguido. Como este reflete a história da litera-
92 ESTÉTICADA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

tura, atuando secundariamente sobre ela, o percurso em crescendo


significa pouco, pois identifica cada fase em relação ao artista influen-
te, e não em vista dos resultados particulares alcançados.
O ensaio publicado por Magalhães de Azeredo em 1897 reforça
a noção de que Araripe estava traduzindo.o modo como o meio inte-
lectual brasileiro compreendia a obra machadiana. Também Azere-
do enfoca seu mestre a partir da moldura da história da literatura,
usando seus recortes para encaixar a evolução da poesia de Machado:
Poeta, rimando sonhos nas manhãs da adolescência, ele apare-
ce em momento de transição, entre os Ultra-românticos ululantes ou
possessos, fracos herdeiros daquela forte geração que abriu o século,
e os Parnasianos da Musa írnpasslvel. dispostos a lavrar o verso como
matéria preciosa e fria. "

A perspectiva evolucionista retorna, caracterizando o gradua-


lismo com que a arte de Machado se desenvolveu no tempo, até atin-
gir a maturidade de que as Memórias póstumas de Brás Cubas são
o sinal:
Também foi gradualmente que na prosa se desenvolveu a sua
índole de maravilhoso humorista, que no Brás Cubas àtinge o sumo grau
de originalidade e independência. Os germes de tal pendor apenas se
lhe adivinham nos primeiros contos e romances pela preocupação pst-
cológica e moralfstlca; mas ainda os caracteres humanos lhe fornecem
antes recursos dramáticos para o enredo e o desenlace da ação, que
estrmulos para o exerclcio de sua magistral ironia (p. 181).

Mesmo Sílvio Romero, que ataca com violência inusitada e, se-


gundo os comentários da época, vingativa, o escritor, reitera a ótica
que vinha se tornando dominante. Divide a obra de Machado em três
fases, equivalendo às três décadas até então percorridas por ele, e vê
entre essas uma articulação na direção do progresso constante. Com-
preende o momento atual do novelista como a grande fase da matu-
ridade; e estabelece entre as "maneiras" antiga e nova uma conti-
nuidade, asseguradora da unidade da obra. 8

7 AZEREDO, Carlos Magalhãe de. Machado de Assis. In: . Homens e livros. Rio
de Janeiro, Garnier, 1902. p. 179. A citação seguinte provém igualmente desta edição.
Il O ensaio de Sílvio Romero foi publicado em 1897; cf. ROMERO, Sílvio. Machado de
Assis. Rio de Janeiro, Laemmert, 1897. Em 1936, Nelson Rornero promoveu uma edi-
ção condensada do livro, eliminando a maior parte das referências a Tobias Barreto,
com quem Machado é desfavoravelmente comparado. Cf. ROMERO, Sílvio. Machado
de Assis. 2. ed. Rio de Janeiro, Jo é Olympio, 1936. Uma terceira versão, ainda mais
resumida e igualmente patrocinada por Nelson Romero, encontra-se na História da
literatura brasileira, de Sílvio Romero, a partir da 3~ edição desta.
HELENA: UM CASO DE LEITURA 93

Romero, como os demais, compreende o passado em relação


à atualidade; e, embora analise obras individuais, como Falenas e
Americanas, não evita o foco evolucionista, mais forte nele que nos
anteriores, pois associa as fases aos períodos da vida do autor. Po-
rém, não submete os livros ao fluxo da história, nem o oposto, pois
um dos objetivos de sua crítica parece ser o de atestar a irrelevância
do artista para o percurso da literatura brasileira. Descartado o méri-
to, ele sai fora da moldura temporal até então privilegiada, de modo
que a ausência do relacionamento é ainda sintomática de seu empre-
go enquanto critério de avaliação.
A polêmica suscitada por Sílvio Romero levou a crítica brasilei-
ra a se concentrar na obra propriamente dita de Machado de Assis.
Respondendo àquele, os defensores desse - Magalhães de Azeredo
ou Lafayette Rodrigues - vão se voltar às peculiaridades da prosa
e da poesia e destacar as virtudes de seu estilo e pensamento, cujo
pessimismo assume tonalidades de filosofia. Lafayette vai ver em Ma-
chado a representação de um patamar de urbanidade e civilização que
Romero, um "bárbaro", não poderia reconhecer, nem sequer identi-
ficar ou entender. E Azeredo justifica as fases diferentes do escritor
como "maneiras [distintas] do mesmo temperamento". 9
Consolida-se, assim, o modo de descrever a obra já encontrado
etp Araripe: a segmentação em fases, a articulação entre elas, sem
"solução de continuidade" conforme pensam Azeredo e também Ro-
mero, o aperfeiçoamento crescente que representa a passagem de uma
a outra. Porém, é José Veríssimo quem dá o toque final a essa ima-
gem, aceita pelo próprio Machado, conforme indicam sua correspon-
dência e as apresentações às novas edições dos primeiros romances.

Revisão da A análise de Iaiá Garcia, quando do lançamento da


obra inicial segunda edição do livro, reforça e dá consistência
às idéias circulantes sobre a criação machadiana.
Saudando o aparecimento do romance, José Veríssimo atribui-lhe uma
qualidade suplementar: "tem esse livro delicioso e honesto o picante

9 AZEREDO, Carlos de Magalhães. Machado de Assis e Sylvio Romero. In: .Op.


eit., p. 210. V. também PEREIRA, Lafayette Rodrigues (Labieno). Vindiciae; O Sr.
Sylvio Romero critico e philosopho. 3. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1940.
94 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA
,
i

de ser da primeira maneira do autor" .10 Esta, por sua vez, não difere
da segunda em termos de oposição, e sim a precede, antecipando em
ponto menor os valores que, depois, alcançam a plenitude:
Todo o Sr. Machado de Assis está efetivamente nas suas primei-
ras obras; de fato ele não mudou, apenas evolveu. O mais Individuai,
o mais pessoal, o mais "ele" dos nossos escritores, todo o germe des-
sa individualidade que devia atingir em Brás Cubas, em Quincas Bor-
ba, nos Papéis avulsos e em Várias histórias o máximo de virtuosldade,
acha-se nos seus primeiros poemas e nos seus primeiros contos (p. 157).

Eis por que a segunda maneira não é mais que "o desenvolvi-
mento lógico, natural, espontâneo da primeira, ou antes não é senão
a primeira com o romanesco de menos e as tendências críticas de mais"
(p. 157). Veríssimo não está fugindo à regra de seu tempo, apenas
a legitima aos olhos do próprio Machado e de seu público na condi-
ção de seu crítico mais credenciado. Ao mesmo tempo, ratifica a no-
ção evolutiva e ascensional, o que, por tabela, classifica os livros da
"primeira maneira" a partir de sua natureza transitória e, em certa
medida, preparatória, "pré-histórica". A presença de outra imagem
biológica esclarece mais uma vez o modo como cada obra individual
é percebida, alinhada cronologicamente e em relação a determinado
resultado obtido depois:
Nas páginas emocionais de falá Garcia, como dos Contos flumi-
nenses, da Helena e da Ressurreição, e nos seus mesmos versos, se
faz a gestaç40 de Brás Cubas (p. 158, sublinha nossa).

Machado de Assis se torna, nesta medida, prisioneiro de sua pró-


pria cronologia, a que Veríssimo subordina o entendimento dos li-
vros: "Em Iaiâ Garcia esta feição do gênio do escritor, reconhecível
desde os seus primeiros ensaios, que se desenvolverá no Brás Cubas,
no Quincas Borba e nos contos da sua segunda maneira, já é mais
manifesta que na Ressurreição ou na Helena" (p. 159). Mas pode-se
cogitar que o escritor não achou a idéia tão desagradável, pois, tão
logo leu a crítica do amigo, enviou-lhe uma carta com as impressões
que a repartição em maneiras produzia nele:
o que Vocêchama a minha segunda maneira naturalmente me
é mais aceita e cabal que a anterior, mas é doce achar quem se lembre

10 VER1SSIMO, José. Alguns livros de 1895 a 1898. In: . Estudos de literatura bra-
sileira. 1~ série. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, EDUSP, 1976. p. 156. As outras
citações serão também retiradas desta edição.
HELENA: UM CASO DE LEITURA 95

desta, quem a penetre e desculpe, e até chegue a catar nela algumas


ralzes dos meus arbustos de hoje. 11

Aparentemente as imagens retiradas da história natural, freqüen-


tes, como se percebe, davam prazer ao escritor, que, de certo modo,
as havia antecipado, empregando-as nos títulos de seus primeiros li-
vros de poesia, Crisálidas e Palenas. Porém, não as repetirá, embora
reforce, nas edições posteriores dos livros, a concepção relativa à cro-
nologia de produção das obras. Ela aparece, por exemplo, na carta
dirigida a, S~ll editor, Garnier, quando este, comprando os direitos
autorais do conjunto da criação machadiana, providenciava o relan-
J _

çamento dos textos mais antigos, um deles sendo os Contos flumi-


nenses:

Quanto aos Contos fluminenses, remeto-lhe um exemplar, segun-


do vosso pedido, com pequenas correções para a próxima edição. Não
corrigi o estilo, n.ema composição, porque cada livro deve guardar a
marca de seu tempo, e este dos Contos fluminenses é meu primeiro
neste gênero. 12

E retornam principalmente na Advertência à segunda edição de


Helena, o primeiro a ser republicado depois de consolidado o modo
de descrever a trajetória intelectual de Machado de Assis:

\
Esta nova edição de Helena sal com várias emendas de lingua-
gem e outras, que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data
em que o compus e imprimi, diverso do que o tempo me fez depois,
correspondendo assim ao capítulo da história do meu esptrltc, naque-
le ano de 1876.
Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que en-
tão fiz, este me era particularmente prezado.Agora mesmo, que tlá tanto
me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler es-
tas, eco de mocidade e fé Ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhe
tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo (p. 51).

As reedições de Ressurreição, no mesmo ano de 1905, e A mão


e a luva, o último a voltar após o contrato com a Garnier, reiteram
a idéia; Do primeiro, diz que "como outras que vieram depois, e al-

11 ASSIS, Machado de. Correspondência. Coligida e anotada por Fernando Nery. Rio
de Janeiro, São Paulo, W. M. Jackson Inc. Editores, 1937. p. 145.
12 MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E SAÚDE. Exposição Machado de Assis; Centenário do nas-
cimento. 1839-1939. Rio de Janeiro, MES, 1939. p. 200. -
96 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

guns contos e novelas de então, pertence à primeira fase da minha


vida literária"; 13 sobre o segundo previne: "Os trinta e tantos anos
decorridos do aparecimento desta novela à reimpressão que ora se
faz parece que explicam as diferenças de composição e de maneira
do autor. Se este não lhe daria agora a mesma feição, é certo que lha
deu outrora, e, ao cabo, tudo pode servir a definir a mesma
pessoa", 14 reforçando mais uma vez a idéia de que mudou, prova-
velmente melhorou, mas o fez de modo contínuo e progressivo, num
esforço de permanente aperfeiçoamento. Antes mesmo de encerrada
a produção literária, Machado de Assis tinha já fixada e estabelecida
a concepção que descrevia e catalogava sua obra, sendo aceita pelas
gerações seguintes de críticos.
Com isso, Helena, romance onde, como se viu, se internalizam
mais poderosamente as amarras com a cronologia, ficou presa a uma
imagem congelada: submeteu-se ao vir-a-ser do escritor, primeiro por
a crítica compreender a obra de Machado de Assis da frente para trás,
depois por ele a aceitar e referendar nas advertências que abrem o
livro e preparam a leitura da narrativa, predispondo o sentimento do
leitor.
Helena-livro e Helena-personagem protagonizam, assim, um du-
plo ato de submissão. A da segunda transparece na sua decisão: sen-
, do a possibilidade de ruptura do universo fechado representado no
romance, por se tratar da pessoa menos integrada a ele, converte-se
em sua principal defensora e vítima, por paradoxal que sua situação
se torne. Não se revolta, embora sofra todos os prejuízos possíveis,
quando poderia ter se rebelado sem ter de abrir mão das vantagens
conquistadas no início e depois do primeiro segmento da intriga. Ca-
margo, seu único antagonista, percebe como a moça ganhou terreno
e procura refreá-la, apelando para o ponto fraco dela. Talvez nem
precisasse fazê-lo, pois a heroína sucumbe com facilidade às contra-
dições em que sua posição a coloca. Derrotada por sua honestidade
e temperamento, depois pela inautenticidade da situação, transforma-
se no exemplo de uma docilidade sem dúvida desejada por certo seg-
mento social, o de Estácio.
Este, todavia, não mais detinha o poder de modo hegemônico
quando Machado publica o livro. A estas alturas, os republicanos,

13 ASSIS, Machado de. Ressurreição. In: . Obra completa. Org. por Afrânio
Coutinho. Rio de Janeiro, José Aguilar, 1962. v. I, p. 114.
14 Idem. A mão e a luva. Ibidem, p. 196.
HELE.'\'A: U~I CA o DE LEITURA 97

associados aos grupos urbanos emergentes, já contavam com seus pró-


prios clubes e jornais, não precisando fugir para a clandestinidade,
nem temendo as reações políticas que poderiam provocar. Pela mes-
ma razão, Machado não podia localizar a ação da história no presen-
te; tal exemplo de submissão não mais' convencia, sendo aceito,
contudo, como próprio a 1850. E sendo, ao mesmo tempo, reconhe-
cível, porque, no intervalo, as mudanças ocorridas poucas alterações
trouxeram para a situação da mulher. Helena talvez fosse mais dócil
que suas leitoras, já que heroínas machadianas em situação similar,
como Guiomar e laiá Garcia, conseguiram melhorar seu status sem
sacrifícios. Não é, porém, o caso de Estela, esta um pouco mais ve-
lha que a enteada, portanto, mais próxima de Helena, e que, como
Lalau, de "Casa Velha", teve de aceitar um marido pertencente a um
grupo social equivalente ou inferior ao seu.
Por isso, a margem de ação de Helena é ínfima, menor que a
de Estela, por sobre quem não pesa a situação de ilegitimidade filial,
persistente durante todo o relato de Helena. Como a protagonista deste
só pode se sujeitar, torna-se o contra-exemplo da ruptura, desatuali-
zando o romance: faz com que ele se alinhe à cronologia e explique-
se por ela. A crítica e o próprio Machado endossaram essa ótica, e
Helena viu-se prisioneira de uma análise colateral, que a examina em
relação a um outro, com o qual não se assemelha e diante do qual
f~ca inferiorizada.
Emancipar a leitura de Helena é talvez tão importante quanto
liberar a personagem de seus condicionantes sociais e ideológicos. E,
de certo modo, os dois projetos se equivalem, o segundo decorrente
do primeiro: este depende de ser o romance considerado na relação
que estabelece com o leitor, que, se não pode fugir à mediação resul-
tante do lugar do livro na cronologia de Machado de Assis, pode
questioná-lo e resgatar a identidade da obra. Porém, ao fazê-lo, não
deixará igualmente de questionar a protagonista, contrapondo a so-
lução dada pelo escritor em seu tempo e a que seria dada hoje. Hele-
na, na atualidade, parece anacrônica; sua sujeição às classes
dominantes, discutível, talvez inaceitável. Porém, foi o comportamen-
to possível num certo período, e Machado soube traduzi-lo, indepen-
dentemente da coloração sentimental com que o pintou. E se, ao
fazê-lo, o corroborou, não procedeu tão docilmente quanto a heroí-
na: ao mesmo tempo, propôs um jogo entre passado e presente, des-
de a diferença temporal entre época de produção e de representação,
e de identificação e distanciamento, dado o vaivém prospectivo/re-
98 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

trospectivo analisado. Não há por que então deixar de reintroduzir


nesse jogo a perspectiva de um novo presente, o do leitor, intensifi-
cando sua operação. O romance ganha em dinamicidade, sem que
sua estrutura seja afetada; e indica que, se pode não ser atual sua vi-
são, nem aceitável sua ideologia conformista, conservadora e mora-
lista, projeta por meio de suas fissuras a comparação entre a situação
apresentada e a contemporânea, reativando um diálogo que o torna
vivo e interessante.
Limitado pelas opções existenciais feitas pela protagonista, nem
por isso Helena deixa de se comunicar com o leitor, no presente des-
te. Porém, isto pode acontecer se se respeita o passado que incorpora
e manifesta, olhando para trás e para frente ao mesmo tempo, por
cima, todavia, da linha cronológica que o vem imobilizando e emu-
decendo.
8
Fim do percurso?
Encruzilhadas

A leitura de Helena procurou se manter dentro dos limites da


metodologia sugerida por H. R. Jauss nos vários estudos teóricos e
analíticos que fundam e desenvolvem a estética da recepção. Fiel a
seus princípios, a descrição relativa à atividade do l'eitor proveio das
indicações fornecidas pelo texto, sendo a identidade daquele defini-
da a partir das coordenadas desse. O leitor evidencia-se como perten-
cendo ao texto, um componente seu a quem compete acompanhar
a partitura apresentada pelo narrador.
Por outro lado, o leitor é também uma figura histórica: seu ho-
rizonte, delimitado pelas possibilidades de aceitação de uma obra, im-
põe restrições à liberdade de criação do escritor. Este, para assegurar
o trânsito social de sua arte, respeita-o e, até certo ponto, repete-o,
mas também promove rupturas e introduz, no interior desse diálogo,
uma tensão dialética. Por decorrência, entre artista e audiência há
uma relação sui generis, já que, a todo momento, a troca estimulada
pela leitura, que parece colocar dois indivíduos em pé de igualdade,
está em vias de chegar ao atrito e ao rompimento.
A respeito dessa eventualidade, também o texto parece forne-
cer o maior número de informações; porém, sua explicitação não se
completa sem o recurso à história, revitalizando o diálogo da obra
100 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

com seu tempo. Cabe esclarecer, contudo, a peculiaridade desse in-


tercâmbio: a retomada dos fatos históricos não tem a intenção de ex-
plicar o texto, nem este reproduz uma época. A presença deles é
motivada pelo próprio romance e visa considerá-los em relação aos
aspectos enfocados ficcionalmente; deste confronto resulta a recons-
tituição do relacionamento entre o livro e a realidade circundante -
a "vida prática", nas palavras de Jauss. Portanto, o modo como a
obra se apropria dos elementos do cotidiano e reelabora-os artistica-
/

mente indicia seus contatos com a sociedade.


Para a estética da recepção, é irrelevante se a literatura, mesmo
a mais programaticamente realista, reproduziu fielmente o universo
circundante, perspectiva que, no fundo, tem raízes platônicas. Im-
porta antes recuperar o modo como a realidade foi transferida para
a ficção, pois a explicitação desse processo permite definir a resposta
do artista às necessidades e solicitações de seu público. E, como, ao
retomar aquelas expectativas e nível de experiência, ele pode se sujei-
tar a elas, alterá-las, projetar novos comportamentos, o confronto
também o posiciona na época, esclarecendo suas opções, da mais sub-
missa à mais revolucionária. .
Há, pois, entre escritor e audiência, sempre uma assimetria, pro-
vocadora simultaneamente do diálogo e da controvérsia. Por sua cau-
sa, mantém-se constante um intervalo, a ser preenchido por novos
Ieitores que, mesmo em outras épocas e contextos, voltam à ficção
para ali reconhecerem uma realidade a ser questionada ou a questioná-
los. Efetivado esse processo, a obra se atualiza; mas o resultado de-
pende também da postura questionadora de ambos - tanto do pro-
cesso de leitura, quanto da obra, pois, se um dos dois não se dispuser
ao diálogo, acontece o desinteresse e a monotonia. Sua concretiza-
ção progressiva, por outro lado, é sinal principalmente de quão pou-
co reprodutor o texto foi, mostrando-se em condições de se adaptar
a circunstâncias diversas e inusitadas.
A capacidade da obra de desprender-se de seu tempo original
e responder às demandas dos novos leitores é reveladora de sua his-
toricidade. Porém, para ocorrer esse desdobramento futuro, é preci-
so que, desde o começo, ela estabeleça algum tipo de comunicação
com os primeiros destinatários. O vínculo com a época de apareci-
mento antecipa aquela historicidade, que se propaga para o futuro
desde as modalidades iniciais de recepção.
Esta fica registrada principalmente pela crítica- literária, que,
poder-se-ia acrescentar, não parece apenas documentar a circulação
,
FIM DO PERCURSO? ENCRUZILHADAS 101

da obra ao longo de sua trajetória; também ela tem caráter forma-


dor, repercutindo na leitura contemporânea e influenciando a valori-
zação do texto perante o público e a sua localização no fluxo cro-
nológico. Se a crítica documenta a história dos efeitos da obra, res-
ponsabiliza-se igualmente por esses últimos, sob este aspecto corres-
pondendo com mais nitidez ao papel ativo que a estética da recepção
espera conferir ao leitor.
Em Helena parecem se evidenciar essas características: o roman-
ce apresenta-se como partitura a exigir do leitor determinada ativida-
de, pois ele fica preso ao vaivém da intriga, que dissemina enigmas
e suspeitas enquanto o distrai com a representação de cenas domésti-
cas à primeira vista reconhecíveis, embora decoradas com o pincel
sentimental do Romantismo exacerbado. O exercício de reconheci-
mento tem seus matizes: para admitir a situação como válida, ele pre-
cisa enfrentar a retórica da aparência, desmentindo-a e ultrapassando-a
simultaneamente; e então descobrir as semelhanças entre ficção e rea-
lidade, para, logo depois, negar a segunda e preferir a primeira, re-
tornando ao ponto de partida. Neste regresso, a ficção passa a se
confundir com a retórica da aparência, com qualidades que a aproxi-
mam muito da mentira ou da falsificação, ao menos, da dissimulação.
O processo é similar ao que Estácio percorre, evidenciando em
que medida leitor e personagem estão próximos um do outro, vale
dizer, a história (o leitor que segue o percurso sugerido pelo texto é
real, correspondendo ao destinatário virtual do livro) e a fantasia.
Helena não chega a problematizar o tema, mas avizinha-se dele a to-
do momento, o suficiente pelo menos para, se se tomar a segunda
pela primeira, sugerir que a troca é enganadora, embora válida na
perspectiva escapista.
O livro lida com o problema da representação e do reconheci-
mento por dentro e por fora, dando-lhe uma solução hoje conserva-
dora; mas já tinha esta conotação a seu tempo, pois, como se viu,
Helena nega dois presentes concomitantemente: os contemporâneos
à ação e à produção do romance. Quando se atreve a encarar temas
controversos - a política e a escravidão - usa de um expediente que
o libera do encargo de ter de tomar uma posição: faz com que predo-
mine a ótica das personagens. Assim, é Camargo quem traz a políti-
ca para o cenário idílico do Andaraí, referindo-se a ela sob o prisma
da (sua) ambição, o que leva o leitor a preferir a postura neutra, de-
pois apartidária e, enfim, elegantemente saquarema (logo, conserva-
dora) de Estácio. A escravidão aparece no interior do discurso de
101 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

Helena, cuja trajetória é tão infeliz, que induz à conclusão de ser sua
sorte pior que a dos negros.
O romance se arrisca muito pouco do ponto de vista ideológico
e, como prefere endossar os valores patriarcais, ainda que perceba
o encerramento de seu ciclo h -gemônico, parece superado em nossos
dias. A crítica que suscitou só acentua sua superação, legando ao lei-
tor contemporâneo uma tar fa de duplo desentranhamento: do tipo
de leitura que propôs contrastado, por uma parte, as que se efetiva-
ram ao longo do tempo, por outra, ao horizonte presente, diante do
qual Helena se explica enquanto criação do passado, mas eventuali-
dade existencial numa sociedade onde a estratificação persiste ou
ameaça.
O exame do romance de Machado indica ser viável o projeto
de Jauss: é possível, como ele deseja, "devolver à experiência estéti-
ca a função social e comunicacional que fora perdida", 1 razão por
que a estética da recepção foi convertida numa teoria da comunica-
ção literária em seus últimos escritos. 2 Além disto, revela-se proce-
dente, por oportunizar a obras do passado retomar o diálogo com
o leitor, interrompido às vezes por circunstâncias paradoxais, como,
por exemplo, a valorização do autor pelo que veio a produzir depois
ou a utilização de um texto para ilustrar características de uma escola
literária.
O fato de dispor de um escopo teórico e metodológico comple-
to, coerente e exeqüível não confere ao Autor pretensões absolutis-
tas, nem ele deseja abolir, evitar ou negar a contribuição de outros
setores da ciência literária. No posfácio a Ifigênia, Jauss salienta a .
parcialidade inerente à estética da recepção, que corresponde a uma
"reflexão metódica parcial, fértil e interdisciplinar" (p. 31). A inter-
disciplinaridade, verificável quando do' recurso à história na análise
de Helena, justifica o apelo à sociologia, à estética e à hermenêutica
simultaneamente. A parcialidade decorre da posição atual do intér-
prete, antecipadamente exposto' aos efeitos projetados pela obra. Coe-
rente com sua visão da história, segundo a qual se percebem os fatos
na proporção do impacto que provocam, assumindo dimensões dife-
rentes à medida que o tempo passa, Jauss não se deixa seduzir pela
idéia de conferir à estética da recepção a superioridade e a veracidade

1 Hans Robert. Racines und Goethes ... , cit., p. 31. As citações que provierem
JAUSS,
deste ensaio serão indicadas pelo número da página colocado entre parênteses.
2 Idem. Esthétique ... , cit., p. 1116; Idem. The dialogical ... , cit., p. 52.
FIM DO PERCURSO?ENCRUZILHADAS 103

assumidas pelas ciências que critica. Isto o leva a contrapor sua pro-
posta à da teoria crítica, a quem acusa de se auto-atribuir lima "cons-
ciência verdadeira" (p. 38), em franca contradição a seus princípios
originais. A estética da recepção, da sua parte, é mais modesta: não
hostiliza interpretações, nem pretende ser melhor que as precedentes,
se não que procura verificar "a compatibilidade das interpretações
diferentes". 3
Viável ainda que parcial, interdisciplinar e, como se deduz, de-
mocrática, ela não se viu isenta de críticas e contestações; estimulou
também novas pesquisas na direção do estudo do leitor, embora muitas
delas se apresentem como dissidências e fruto da recusa a acompa-
nhar a rota sugerida por Jauss.

Críticas e As objeções dirigidas à teoria recepcional enfocam


dissensões três aspectos: o conceito de leitor, a visão do texto
literário e o alcance do trabalho. O primeiro tema
tem atraído o maior número de críticos, a razão se devendo prova-
velmente ao fato de J auss considerar a principal conquista de suas
teses a reabilitação do papel do leitor para a concepção social, histó-
rica e estética da literatura.
Henry Schmidt considera p conceito empregado por J auss me-
ra "construção teorética", 4 posição a que se consorciam Peter Bür-
ger, Luiz Costa Lima, Susan Suleiman e Robert Holub. O primeiro
afirma que se, de um lado, Jauss reconhece a importância do leitor,
de outro, seu fundamento metodológico, a lógica da pergunta e da
resposta, não supõe a participação do recebedor propriamente dito. 5
Para Costa Lima, Jauss, embora pense que não, trabalha com um
conceito de leitor ideal, 6 perspectiva endossada por Susan Suleiman
(a propósito de W. Iser, cujo conceito de leitor implícito J auss incor-
pora às suas teses), com as seguintes palavras:
O sujeito leitor que emerge dos ensaios [de W. Iser] não é um
lndlvlduo especítlco, historicamente situado, e sim uma mente trans-

3 Idem. Esthétique ... , cit., p. 1119.


4 SCHMIDT, Henry J. Op. cit., p. 59.
5 Cf. BORGER, Peter. Op. cit.
6 Cf. LIMA, Luiz Costa. O leitor demanda (d)a literatura. In: __ , org. A literatu-
ra e o leitor. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
\04 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

histórica cujas atividades são, ao menos formalmente, sempre as


mesmas. 7

R. Holub segue orientação similar: gostaria de que Jauss che-


gasse a um questionamento da noção mesma de sujeito, conforme
procede o desconstrutivismo. Como não o faz, ratifica a "metafísica
da presença" peculiar ao pensamento ocidental, sem romper com a
tradição universalista e de herança platônica que julgava ter ultra-
passado.
O mesmo vale para a noção de texto: tal como o sujeito, esse
consiste numa unidade fixa e imutável, de modo que, se varia no tem-
po, a diversidade é epidérmica, não o afetando internamente. Per-
manece como dado estático, relativizando a ambição de Jauss de ter
submetido tudo ao fluxo da transformação e da historicidade. 8
O terceiro grupo de críticas focaliza o alcance do trabalho, pro-
vindo sobretudo dos que, enquanto contestam Jauss (e Iser, às ve-
zes), apresentam suas propostas de pesquisa alternativa com a re-
cepção. Günther Grimm acusa a estética da recepção de não enca-
rar o ângulo histórico e social de forma mais acentuada. Como res-
posta a esta exigência, formula seu projeto, de tomar o sujeito da
recepção como um ser ativo, capaz de afetar a produção da obra de
arte. Esta, por seu turno, precisa ser avaliada na perspectiva de sua
aceitação pela sociedade, de que resulta a história da recepção, disci-
plina por cuja organização se responsabiliza. Grimm expõe suas in-
tenções:
A história da leitura [Lesergeschlchte] Interroga o sujeito leitor
(quem?), os assuntos de leitura (o quê?) e as razões para a vigência des-
ses (por que quem lê o quê?). A história da recepção [Rezeptionsge-
schichte] enfatiza a análise das modalidades; ela amplia o horizonte
da história da leitura ao pesquisar sobre o modo da recepção (como
por que quem lê o quê?), pois os componentes modais são mais Im-
portantes que os temáticos, que só interessam como função das mo-
dalidades condicionadas ao sujeito. 9

Grimm deseja estudar as maneiras como o texto foi socialmen-


te acolhido - esta é a história das modalidades de sua recepção, di-

7 SULEIMAN, Susan. Introduction: varieties of audience-oriented criticism. In: __


& CROSMAN, Inge. The reader in the text; Essays on audience and interpretation. Prin-
ceton, Princeton University Press, 1980. p. 25.
8 Cf. HOLUB, Robert. Minutas do Colóquio ocorrido em 27 de fevereiro de 1983. In:
Jauss, Hans Robert. The dialogical.. .• cit., p. 38-41.
9 GRIMM. Günther. Rezeptionsgeschichte. München, Fink, 1977. p. 61.
FIM DO PERCURSO? ENCRUZILHADAS 105
r
I

I
ferente das interpretações, objeto da estética da recepção. Para obtê- !
las, cumpre ampliar o raio de consulta: esta não se dirige apenas ao
texto, mas às testemunhas que explicitam sua difusão e às institui-
ções, que dispõem de meios variados para alargar ou inibir o alcance
de uma obra. Espera, assim, chegar a uma postura mais objetiva -
e também menos elitista, por lidar com o material efetivamente cir-
culante e medir o valor da obra desde o impacto social que causou
ou vem causando ao longo do tempo. 10
Hannelore Link propõe uma via intermediária: considerando in-
completas a estética da recepção, centrada nas realizações da obra,
e a história da recepção, que examina o efeito causado pela circula-
ção social do texto sobre a produção de um autor, decide somar as
duas metades. De um lado, cabe observar a influência do público,
mais patente na literatura de massa, bem como seus opostos: a arte
hermética, em que o autor renuncia à comunicação imediata, e a pe-
dagógica, quando a influência é desejada, agora, porém, pelo artis-
ta, que escreve para agir sobre a audiência. De outro, a obra afeta
um universo social, que se oferece como matéria de pesquisa: as in-
fluências exercidas por um criador sobre outros escritores, o merca-
do de que participa, as instituições encarregadas de sua propagação.
H. Link quer igualmente investigar a concretização do texto,
também aqui fundindo dois conceitos precedentes: o de concretiza-
ção enquanto reconstrução da intenção original, escudada em R. In-
garden; e o de concretização como lisibilidade, vale dizer, na condição
de possibilidade de decodificação do texto em cada época, segundo
a definição do estruturalismo tcheco. A reunião destes dois significa-
dos forma a "concretização sintética", que verifica sua realização tan-
to do ângulo do texto, quanto do público e do período histórico. 11
Hans Ulrich Gumbrecht pertenceu por algum tempo à Escola
de Constança, Aluno de Jauss e, depois, professor naquela Universi-
dade, participou do movimento de renovação da ciência literária ale-
mã, embora não tenha colaborado nas primeiras reuniões do grupo
Poetik und Hermencutik.
Seu trabalho de pesquisa, como os anteriormente citados, vai
na direção da história e da sociologia. Apoiado nas teses de outro
professor em Constança, Thomas Luckmann, estuda os modos co-

10 Cf. Idem, ibidem; e Idem, Hrsg. Literatur und Leser; Theorien und Modelle zur
Rezeption literarischcr Werke. Stuttgart, Reklam, 1975.
11 Cf. LINK, Hannelore. Op. cit.
-
106 ESTÉTICA D RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

mo se formam e se constituem os sentidos circulantes na sociedade.


A ação social não se vincula apenas ao comportamento e à divisão
da sociedade em classes; relaciona-se também a uma ordem de con-
cepções que dão consistência, unidade e identidade à vida em grupo.
A literatura participa ativamente desse mecanismo, pois tem papel
formador; portanto, pode-se, a partir dela, reconstituir o conhecimen-
to coletivo, o saber circulante, responsável pela significação e rele-
vâncias das idéias e atitudes no conjunto das atividades sociais. 12
Nestas propostas, bem como em outras, 13 é fácil notar como
a persp ctiva histórica e/ou sociológica predomina sobre a estética,
quando da detern inação da recepção. Além disto, concebe-se o lei-
tor antes como entidade coletiva, e não individual, conseqüência ló-
gica do foco escolhido .. A ausência do ângulo estético também se
justifica: tanto Grimm, como Gumbrecht, embora desde premissas
diversas, vêem o valor como resultado, cambiante no tempo, da rede
de idéias vigentes.
Todavia, parece não ser injusto afirmar que não conseguem re-
solver teoricamente um tema caro a J auss, de certo modo margina-
lizando-o: o da experiência estética, que resgata o' leitor enquanto
indivíduo e impede sua diluição nas idas e vindas das influências e
ideologias dominantes.
Uma das polêmicas mais intensas provocadas por Jauss e a es-
tética da recepção durante os anos 70 foi com o marxismo, sobretu-
do com seus representantes na Alemanha Oriental. Seu principal
interlocutor foi Manfred Naumann, que,em 1973, publicou o livro
Gesetlschaft - Literatur - Lesen [Sociedade - Literatura - Leitu-
ra]. Sua tese funda-se na noção de Rezeptionsvorgabe, termo que se
refere ao processo, determinado pela obra, de esta antecipar ou pre-
figurar sua recepção. Jauss rejeita a proposta de Naumann, a quem
acusa de ainda estar preso à estética da representação e adotar os con-

12 Cf. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Sobre os interesses cognitivos, terminologia básica


e métodos de uma ciência da literatura fundada na teoria da ação. In: LIMA, Luiz Cos-
ta, org. Op. cit.
13 As pesquisas sobre leitura contam também com uma vertente onde predomina a pers-
pectiva empírica, investigando, por meio de entrevistas dirigidas diretamente a leitores
reais. o comportamento e a preferência do público. Cf. por exemplo VIEHOFF, Rei-
nhold. Über eiu Versuch, den Erwartungshorizont zeitgenõssischer Literaturkritik em-
pirisch zu objektivieren. Zeitschrift für Literaturwissenschaft und Linguistik, 6 (21)
: 96-124, 1976. E Zimmelmann, Bernhard. Der Leser ais Produzent: Zur Problematik
,,--- der rezeptionsãsthetischen Methoden. Zeitschrift jür Literaturwissenschajt und Lin-
guistik, 4 (15) : 12-26, 1974.
FIM DO PERCURSO? ENCRUZILHADAS 107

ceitos de efeito e recepção tão-somente para injetar sangue novo num


tema esgotado em meio às suas contradições. 14
Robert Weimann representa, melhor que Naumann, as pesqui-
sas realizadas na República Democrática da Alemanha orientadas para
a recepção. Situa a esta última no campo da história da liter tura,
neste ponto irmanando-se ao professor de Constança; mas acentua
que, se é importante estudar as circunstâncias de leitura, não se deve
abandonar as circunstâncias de produção: "A estrutura da literatura
correlaciona-se com sua função na sociedade, e esta correlação preci-
sa ser estudada em termos de 'gênese' (ou Entstehungsgeschichte) e
'impacto' (Wirkungsgeschichte)". IS
Segundo Weimann, o processo literário tem duas faces: o da
escrita, compreendido quando associado ao momento da criação do
texto, que é afetada pelo contexto da época e sociedade vivido pelo
escritor; e o da leitura. O primeiro é importante, porque determina
o aparecimento da obra; mas tem seus limites, por se restringir àque-
le período de tempo. Enquanto o segundo não tem balizas, assegu-
rando, além disto, a vitalidade daquela: "A estrutura nasce no
processo genético, mas vive no processo de leitura -e interpretação:
ela é afetada pelas perspectivas sociais e individuais de seus leitores
e críticos" (p. 8).
Weimann extrai dessa circunstância a por ele denominada "dia-
lética da significação, passada e do sentido presente", que explica a
t relação entre a gênese e a recepção (ou efeito) da obra. Por isso, se
aceita o estudo da recepção, não abre mão do exame das origens lite-
rárias, possível tão-somente dentro de uma estética da representação.
O trecho transcrito a seguir sintetiza este objetivo, nascido da conci-
liação de duas tendências, cuja incompatibilidade congênita não é
questionada pelo Autor:
Enfatizar apenas a DarstellungsSsthetik [estética da representa-
ção] leva a um tratamento formalizado ou absoluto da estrutura e abs-
trai a obra da história de seus leitores e o processo de sua comunicação
e sobrevivência no presente. Enfatizar apenas a RezeptlonsSsthetlk [es-
tética da recepção] leva a um gênero pluralista de relativismo que abs-

14 Cf. JAUSS, Hans Robert. Zur Fortsetzung des Dialogs zwischen "bürgerlicher" und
"materialistischer" Rezeptionsãsthetik. In: WARNING. Rainer, Hrsg. Op. cit.
15 WEIMANN, Robert. Structure and society in Iiterary history; Studies in the history
and theory of historical criticism. Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1984.
Esta é a versão ampliada da edição publicada originalmente em 1976. As demais cita-
ções provêm igualmente dessa edição.
108 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

trai a obra da história de sua criação; Ignora o fato de que a estrutura


da obra (embora afetada e permanentemente redefinida por leitores e
crftlcos) é dada historicamente. É neste sentido que estrutura e fun-
ção, assim como gênese e recepção, podem ser vistas como objetos
complementares da crftlca histórica (p. 13).

Pequeno Nascida como contestação e autoclassificando-


balanço final se de "provocação", a estética da recepção não
poderia ficar à margem de críticas e polêmicas.
Com as limitações que seus críticos apontaram - a principal delas,
relativa à natureza literária do conceito de leitor, é todavia confirma-
da com um objetivo desejado por J auss 16 -, ela tem igualmente seus
méritos, contribuindo para o alargamento das fronteiras da teoria da
literatura, cuja indiferença para com o leitor, se talvez não pudesse
ser considerada tão grande quanto pretendia Jauss, era, ainda assim,
evidente.
Enquanto conjunto de idéias, a estética da recepção apresenta
coerência de concepções e organização interna, introduz uma termi-
nologia, ainda que importe boa parte do vocabulário da hermenêuti-
ca, e explicita sua metodologia. Reconhece alguns de seus limites e,
ao mesmo tempo, procura ampliar sua abrangência, incorporando
concepções que permitem esclarecer sobretudo as relações entre a li-
teratura e a vida prática. Sob este aspecto, cumpre mencionar, ainda
que de passagem, a contribuição de W. Iser, mencionado a propósito
da estrutura de apelo do texto e do conceito de leitor implícito, e K.
Stierle, que refletem sobre a função da ficção e do imaginário que
embasam, mas ao mesmo tempo são fertilizadas por elas, as análises
de Jauss sobre o lugar da literatura na existência individual. 17
Assim, se, por um lado, a estética da recepção motiva polêmi-
cas, dissidências e pesquisas que contrariam alguns de seus princípios,
por outro, ela não se reduz ao autor aqui colocado em primeiro pla-
no. As idéias de Iser e Stierle, localizadas no campo específico da teoria
da literatura, indicam seus desdobramentos internos e conferem-lhe
consistência, mostrando ainda não procederem de um único pensa-

16 Cf. JAUSS, Hans Robert. Âsthetische Erfahrung ... , cit., p. 696.


17 Cf. ISER, Wolfgang. Obras citadas; STIERLE, Karlheinz. Text ais Handlung. Mün-
chen, Fink, 1975; e JAUSS, Hans Robert. Die kommunikative Funktion des Fiktiven.
In: . Âsthetische Erfahrung ... , cit.
FIM DO PERCURSO? ENCRUZILHADAS 109

dor, isolado dos demais. Pelo contrário, o caráter coletivo e solidá-


rio dessa produção intelectual se evidencia tão logo se constata que
J auss via de regra antecipa suas pesquisas nos colóquios patrocina-
dos pelo grupo Poetik und Hermeneutik. Esta circunstância indica
suplementarmente estarem elas fundadas no diálogo e na discussão
pública, coerente com o princípio da pergunta e da resposta, segui-
damente reiterado pelo Autor.
O papel dessas idéias, por sua vez, transcende o grupo e o local
onde apareceram. Sua contribuição para a história da literatura pode
ser avaliada a partir das revisões dos autores do passado. Além dis-
so, parece concretizar o objetivo a que se propõe, reabilitando a his-
toricidade da literatura, não por torná-la outra vez dependente da
história, e sim por associá-la à experiência estética que deflagra. Ao
contrário dos predecessores, e mesmo de seus críticos, J auss não pro-
cura somar funções diferentes, e sim mostrar como na primeira, a
histórica, encontra-se a segunda, a estética, e vice-versa.
Igualmente importante é sua contribuição para a literatura com-
parada, que subordina à história da literatura, por es~aconsistir a base
de sua ciência da literatura. Este vínculo funda-se na natureza histó-
rica da obra de arte, foco que ilumina todas as demais questões. Pela
mesma razão, critica a teoria da intertextualidade que, como a litera-
tura comparada de outras décadas, renuncia à visão histórica e sepa-
\
ra a literatura da vida social:
Supõe-se um diálogo idealista entre texto e texto, num universo
onde tudo é texto e cada texto, tão-somente a soma de outros textos,
como se um texto pudesse falar a qualquer época, sem a interferência
dos leitores. 18

Desde o início apostando no caráter histórico da literatura, Jauss


vale-se dele para embasar suas teses, afirmar a identidade de sua teo-
ria e, sobretudo, superar a tendência metafísica que a poética carrega
desde suas origens. Um de seus críticos, R. Holub, reconhece esta vir-
tude, }lJ e ela não é negligenciável: apoiado na história, Jauss sabe
que os conceitos são transitórios e que é uma ambição fadada ao fra-
casso acreditar que as significações são objetivas e transmitidas de
uma vez para sempre. Sabe que esta afirmação pode ser virada con-

18 JAUSS, Hans Robert. The Dialogicai ... , cit., p. 61.


1'1 Cf. HOLUB, Robert. Reception theory; a criticai introduction. London, Methuen,
1984.
110 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

tra ele, mas previne-se: seus princípios contêm a convicção de que tu-
do é relativo, e se não dispomos de balizas para medir esta relativida-
de arriscamos a absolutizar o que precisa ser compreendido dentro
das devidas proporções.
Esta postura é, em si mesma, uma lição; todavia, as idéias que
reveste podem igualmente ser transportadas para o c isino, passagen
não de todo arbitrária, pois foi a falência de um modelo pedagógico
que estimulou o Autor a repensar a ciência literária.
Sua crítica à história da literatura permanece válida, pois o mo-
delo tradicional descrito ainda vigora na escola. Porém, a proposta
de mudança de foco gera conseqüências suplementares: colocar o lei-
tor sob o spot da atenção teórica significa trazer o professor e o alu-
no para esse centro. São eles que desempenham a função de inter-
locutores diante da obra literária, representando o interesse provin-
do do presente e o novo horizonte a questionar a obra pelo confron-
to estabelecido entre os dois tempos em que ela se situa, conforme
o jogo de ubiqüidade de que só a arte é capaz.
A valorização da experiência estética, que confere ao leitor um
papel produtivo e resulta da identificação desse com o texto lido, en-
fatiza a idéia de que uma obra só pode ser julgada do ponto de vista
do relacionamento com seu destinatário. Os valores não estão prefi-
xados, o leitor não tem de reconhecer uma essência acabada que pree-
xiste e prescinde de seu julgamento. Pela leitura ele é mobilizado a
emitir um juízo, fruto de sua vivência do mundo ficcional e do co-
nhecimento transmitido. Ignorar a experiência aí depositada quiva-
le a negar a literatura enquanto fato social, neutralizando tudo que
ela tem condições de proporcionar.
Porque ela produz efeitos, Jauss pode atribuir-lhe índole for-
madora. Quando age sobre o leitor, convida-o a participar de um ho-
rizonte que, pela simples razão de provir de um outro, difere do seu.
É solidária e diferente ao mesmo tempo, sintetizando nesse aspecto
o significado das relações sociais. Quando se soma a isto o fato de
que uma obra de época diversa reatualiza a experiência do passado,
de outra maneira inacessível, compreende-se em que medida a litera-
tura também possibilita um relacionamento histórico e temporal pra-
ticável apenas dessa maneira. Eis por que Jauss sublinha seguidamente
a natureza emancipatória da arte literária: ela, de algum modo, ar-
ranca o indivíduo de sua solidão e amplia suas perspectivas, este alar-
gamento do horizonte dando-lhe a dimensão primeira do que pode
vir a ser.
FIM DO PERCURSO? ENCRUZILHADAS 111

A educação contém igualmente essa utopia liberadora, de mo-


do que pode concretizá-la através da literatura, sem ter de contrariar
sua natureza, nem a da arte. Para tanto, basta deixar obras e leitores
falarem. Como o ensino não tem se comportado desta maneira, vem
desmentindo a função iluminista que traz .das origens. A denúncia
de Jauss atinge, sob este aspecto, outros alvos, além dos inicialmente
apontados; mas seu projeto pode igualmente obter resultados para
além das fronteiras da literatura, indicando em que medida tem cu-
nho social e está comprometido com o presente. Se as lições anterio-
res ainda não forem suficientes, esta última por si só afiança a validade
de todo o trajeto.
9
Vocabulário crítico

Concretização: conceito utilizado por W. Iser, que o retoma de R.


Ingarden e F. Vodicka, define a atividade do leitor, de preenchi-
mento das lacunas ou vazios de um texto, deflagrando o processo
de comunicação próprio à literatura.
Distância estética: corresponde ao intervalo entre uma criação artís-
tica renovadora e os códigos estéticos vigentes; quanto maior a dis-
tância, maior a originalidade e o valor da obra, menor também
a probabilidade de o público aceitá-la e entendê-la.
Efeito: equivale à resposta ou reação motivada pelo texto no leitor;
pode significar igualmente o impacto causado no sistema estético
ou histórico de um dado período.
Emancipação: uma obra renovadora, ao desafiar um código vigente,
oferece ao leitor novas dimensões existenciais. Nesta medida, libera-
os dos limites cotidianos e da dominação dos aparelhos institucio-
nais. A estética da recepção, ao resgatar a natureza emancipatória
de uma obra, também a emancipa ou salva-a dos laços constran-
gedores da história da literatura tradicional.
Estrutura de apelo: segundo W. Iser, apoiado em R. Ingarden, um
texto literário não é uma composição fechada; pelo contrário, con-
VOCABULÁRIO CRITICO 113

térn lacunas e pontos de indeterminação, que exigem a concretiza-


ção (v.) do leitor e exercem certo efeito (v.) sobre ele.
Experiência estética: fruto do relacionamento da obra e o leitor, é o
aspecto fundamental de uma teoria fundada na recepção. Com-
põe-se de três etapas, Inter-relacionadas:' a potesis, pois o recebe-
dor participa da produção do texto; a -eisthesis, quando este alarga
o conhecimento que o destinatário tem do mundo; e a katharsis,
durante a qual ocorre o processo de identificação (v.) que afeta
as possibilidades existenciais do leitor.
Fusão de horizontes: conceito emprestado de Gadamer, significa o
processo mesmo de intercâmbio do leitor com a obra literária do
passado; esta, integrada na origem a um horizonte, vai se apro-
priando dos horizontes dos novos contextos temporais onde circu-
la. Portanto, não apenas cada leitor contribui com seu horizonte,
como recebe da obra os horizontes a que ela já se amalgamou com
o decorrer da história.
Hermenêutica literária: ramo da hermenêutica cuja organização me-
todológica é exigida e providenciada por H. R. Jauss. Supõe três
etapas: a de compreensão do texto, decorrente da percepção esté-
tica e associada à experiência primeira de leitura; a de interpreta-
ção, quando o sentido do texto é reconstituído no horizonte da
experiência
\
do leitor; e a de aplicação, quando as interpretações
prévias são trabalhadas e medida a história de seus efeitos (v.).
História dos efeitos: H. G. Gadamer refere-se à consciência da histó-
ria dos efeitos, que dá conta do impacto dos eventos passados (his-
tóricos) sobre o presente e confunde-se à tradição. H. R. Jauss
transporta-a à hermenêutica literária, que, na etapa da aplicação,
registra o impacto de uma obra sobre o público leitor e o sistema
literário.
Horizonte de expectativas: R. Holub assim define esta noção: "siste-
ma intersubjetivo ou estrutura de espera, um 'sistema de referên-
cias' ou um esquema mental que um indivíduo hipotético pode
trazer a qualquer texto". (Reception Theory, p. 59.) Uma das ta-
refas da estética da recepção é a reconstrução desse horizonte, a
fim de esclarecer o relacionamento da obra com o público.
Identificação: equivale à resposta do leitor quando da experiência es-
tética e tem um significado tanto intelectual, quanto afetivo. Por
isso, uma obra pode atuar sobre a audiência, oferecendo-lhe pa-
f
,
114 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

drões de identificação e também emancipando-a (v. emancipa-


ção).
Leitor: segundo H. R. Jauss, consiste no foco a partir do qual cum-
pre examinar a literatura, a estética da recepção sendo o resultado
dessa virada. Ele distingue entre o leitor implícito, noção importa-
da das idéias de W. Iser, discernido a partir das estruturas objeti-
vas do texto, e o leitor explícito, indivíduo histórico que acolhe
positiva ou negativamente uma criação artístíca; sendo, pois, res-
ponsável pela recepção (v.) propriamente dita dessa.
Lógica da pergunta e da resposta: trata-se da principal categoria me-
todológica de Jauss, importada da hermenêutica, e Gadamer. Pos-
sibilita a interpretação do texto e a reconstituição do diálogo deste
com seu público original e subseqüente. Seu ponto de partida é a
afirmação de R. G. Collingwood, segundo o qual se compreende
um texto quando se compreende a pergunta de que ele foi a
resposta.
Recepção: refere-se à acolhida alcançada por uma obra à época de
seu aparecimento e ao longo da história. Em certo sentido, dá conta
de sua vitalidade, verificável por sua capacidade de manter-se em
diálogo com o público.
10
Bibliografia comentada

I. Obras de Hans Robert Jauss (seleção)

Livros

Literaturgeschichte ais Provokation. Frankfurt, Suhrkamp, 1970.


Contém a versão definitiva da conferência apresentada e pri-
meiramente publicada em 1967: "Literaturgeschichte aIs Pro-
vokation der Literaturwissenschaft" [A história da literatura co-
mo provocação da ciência literária]. Constam do livro também
os seguintes ensaios: "Literarische Tradition und gegenwârti-
ges Bewus tsein der Modernitãt" [Tradição literária e consciência
atual da modernidade]; "Schlegels und Schillers Replik auf die
'Que. ..elle des Anciens et des Modernes' " [A resposta de Schle-
gel e Schiller à "Querelle des Anciens et des Mod -rnes"]: "Das
Endc d\::' .' unstpc.í'iv\.~\; _.. Aspekte der literarischen Revolution
b i Hei e, 1ug : r '·1 St EÚ11~!" [O fim do período artístico -
Aspectos da revolução literária em Heine, H ugo e StendhaI];
"Geschichte der Kunst und Historie" [História da arte e narra-
tiva histórica].
116 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

Traduções
em língua portuguesa:
A história literária como desafio à ciência literária. In: JAUSS,
Hans Robert. História literária como desafio à ciência literária.
Literatura medieval e teoria dos gêneros. Porto, Livros Zero,
1974. Contém apenas a tradução da conferência.
em espanhol:
La historia literaria como provocación de la ciencia literaria. In:
GUMBRECHT, Hans Ulrich et alii. La actual ciencia Iiteraria ale-
mana. Salamanca, Anaya, 1971. Contém apenas a tradução da
conferência.
La literatura como provocación. Barcelona, Península, 1976.
Dos textos que compõem a edição alemã original, só não tem
a tradução do ensaio sobre Schlegel e Schiller.
em francês:
Pour une esthétique de la réception. Paris, Gallimard, 1978.
Contém a tradução da conferência e dos ensaios: "Tradição li-
terária ... " e "História da arte e... ".
em inglês:
Towards an aesthetic of reception. Minneapolis, University of
Minnesota Press, 1982. Traz a tradução da conferência e do en-
saio "História da arte e... ".

Kleine Apologie der Âsthetischen Erfahrung, Konstanz, Verlag der


Universitât Konstanz GMBH, 1972.
Trata-se da conferência apresentada em 1972, em que reivindi-
ca a retomada dos estudos sobre a importância e o lugar da ex-
periência estética no contexto da teoria da literatura e da estética.

Tradução
Petite apologie de l'expérience esthétique. In: JAUSS,Hans Ro-
bert. Pour une esthétique de la réception. Paris, Gallimard, 1978.

Âsthetische Erfahrung und literarische Hermeneutik. Frankfurt, Suhr-


kamp, 1977.
Constitui o primeiro volume dedicado ao estudo da experiência
estética e a hermenêutica literária. Desenvolve as teses apresenta-
BIBLIOGRAFIA COMENTADA 117

das na publicação anterior, ainda não se aprofundando na ques-


tão da hermenêutica literária.

Traduções
em língua portuguesa:
LIMA,Luiz Costa, org. A literatura e o leitor. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1979. Contém a tradução do Prefácio e do Capítu-
lo A3.
em francês:
Pour une esthétique de la réception. Paris, Gallimard, 1978.
Contém a tradução do Capítulo E, La doceur du foyer, sobre
a poesia lírica francesa publicada em 1857.
Poétique, 39: este número da revista é todo dedicado à estética
da recepção, contendo a tradução do Capítulo A3 da obra de
Jauss.
em inglês:
Aesthetic experience and Iiterary hermeneutics. Minneapolis,
University of Minnesota Press, 1982. Trata-se-da tradução in-
tegral do volume de Jauss.

Âsthetische Erfahrung und Iiterarische Hermeneutik. Frankfurt, Suhr-


, kamp, 1982.
Trata-se da edição definitiva do estudo sobre a experiência es-
tética e a hermenêutica literária. Contém quase todos os ensaios
pertencentes ao primeiro volume e mais os estudos teóricos e
analíticos que fundam a hermenêutica literária e aplicam suas
principais noções. .
Além das traduções citadas anteriormente, citam-se as seguintes:
em língua portuguesa:
O texto poético na mudança de horizonte de leitura. In: LIMA,
Luiz Costa, org. Teoria da literatura em suas fontes. 2. ed. Rio
de Janeiro, Francisco Alves, 1984. v. 2.
em francês:
Pour une esthétique de la réception. Paris, Gallimard, 1978. Tra-
dução do ensaio sobre as Ifigênias de Racine e Goethe.
Vários. Problems actuels de la lecture. Paris, Edition Clancier-
Guinaud, 1982. Tradução parcial do ensaio sobre o texto poéti-
co na mudança de horizonte de leitura.
118 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

em inglês:
Towards an aesthetic of reception. Minneapolis, University of
Minnesota Press, 1982. Contém a tradução integral do ensaio
sobre o texto poético na mudança de horizonte de leitura.
The identity of the poetic text in the changing horizon of un-
derstanding. In: VALDÉS,Mario J. & MILLER, Owen, ed. Iden-
tity of the literary texto Toronto, University of Toronto Press,
1985. Trata-se da tradução do texto introdutório à terceira par-
te de Âsthetische Erfahrung und Iiterarische Hermeneutik (edi-
ção definitiva de 1982), cujo título original é "Horizontstruktur
und Dialogizitãt".

Ensaios não íncluídos em livros ou versões originais de en-


saios depois lncluldos em livros

Paradigmawechsel in der Literaturwissenschaft. Ltnguistische Berich-


te, 1 (3) : 44-56, 1969.

LeveIs of identification of hero and audience. New Literary History,


5 (2) : 283-317, Inverno de 1974.
Tradução da exposição feita no colóquio sobre' 'Negativitãt und
Identifikation" [Negatividade e identificação], patrocinado pe-
lo grupo Poetik und Hermeneutik. Foi publicado com altera-
ções no primeiro volume de Âsthetische Erfahrung und
Iiterarische Hermeneutik e assim conservado na edição definiti-
va desse estudo.

Der Leser ais Instanzeiner neuen Geschichte der Literatur. Poetica,


7 : 325-44, 1975.
Está parcialmente traduzido em: VALDÉS,Mario J. & MILLER,
Owen J., ed. Interpretations of narrative. Toronto, University
of Toronto Press, 1978.

Goethes und Valérys Faust - Zur Hermeneutik von Frage und Ant-
wort. Comparative Literature, 28 (3) : 201-32, Verão de 1976.
Está traduzido em: JAUSS, Hans Robert. Towards an aesthetic
of reception. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1982.
BIBLIOGRAFIA COMENTADA 119

Publicado com cortes nas observações de ordem metodológica


em: JAUSS, Hans Robert. Âsthetische Erfahrung und literari-
sche Hermeneutik.

Esthétique de la réception et communication littéraire, Critique, 37


(413) : 1116~80, oct. 1981.
Tradução do ensaio "Rezeptionsãsthetik und literarische Kom-
munikation", publicado originalmente em: SUND, H. & TIMMER-
MANN,M., Hrsg. Auf den Weg gebracht; Idee und Wirklichkeit
der Gründung der UniversitãtKonstanz. Konstanz, Verlag der
U niversitãt Konstanz, 1979.

Zur Abgrenzung und Bestimmung einer literarischen Hermeneutik.


In: FUHRMANN,Manfred; JAUSS, Hans Robert; PANNENBERG,'Wol-
fahrt, Hrsg. Text und Applikation; Theologie, Jurisprudenz und Li-
teraturwissenschaft im hermeneutischen Gesprãch. München, Fink,
1981.
Traduzido parcialmente em: HERNADI, Paul, ed. What is criti-
cism? Bloomington, Indiana University Press, 1981. Repu-
blicado com alterações na versão definitiva de Âsthetische Er-
fahrung und literarische Hermeneutik.

The dialogical and the dialetical Neveu de Rameau; How Diderot


adopted Socrates and Hegel adopted Diderot. Berkeley, The Center
for Hermeneutical Studies in Hellenistic and Modern Culture, 1983.
Este ensaio também se encontrana versão final de Ãsthetische
Erfahrung und literarische Hermeneutik.

II. Outras vertentes relacionadas à estética da


recepção

A sociologia da leitura

ESCARPIT,Robert. Sociologie de la littérature. Paris, PUF, 1978. (1.


ed.: 1958).
120 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

Com este livro, Escarpit procura lançar as bases de uma socio-


logia da literatura voltada ao exame da circulação social da lite-
ratura e suas relações com o público leitor.

___ et alii. Le littéraire et le social; Éléments pour une sociologie


de la littérature. Paris, Flammarion, 1970.
Além dos ensaios de Escarpit, esta coletânea reúne a produção
de outros membros da Escola de Bordéus, examinando as rela-
ções entre a literatura e o público leitor.

SCHÜCKING, L. L. The sociology of /iterary toste. Chicago, The Uni-


versity of Chicago Press, 1966.
Publicado originalmente em alemão, foi com a versão em in-
glês que L. L. Schücking popularizou suas idéias relativas à im-
portância do gosto literário para a difusão e repercussão de uma
obra de arte.

o estruturalismo tcheco

EIKHENBAUM, B. et alii. Teoria da literatura; Formalistas russos. Por-


\
to Alegre, Globo, 1970.
Reúne os ensaios mais conhecidos dos formalistas, incluindo os
de V. Chklovsky e I. Tinianov, respectivamente, sobre a arte
como procedimento e a evolução literária.

MUKAROVSKI, Jan. Escritos de estética y semiótica deI arte. Barcelo-


na, Gustavo Gili, 1977.
Coletânea bastante representativa do pensamento do principal
membro do Círculo Lingüístico de Praga. Inclui a tradução do
ensaio "Função, norma e valor estético como fatos sociais".

TOLEDO,Dionísio, org. Circulo Lingüistico de Praga; estruturalismo


e semiologia. Porto Alegre, Globo, 1978.
Nesta coletânea estão traduzidos os ensaios de Mukarovski, so-
bre a arte como fato semiológico, e de Vodicka, sobre a histó-
ria das repercussões de uma obra literária, importantes para a
BIBLIOGRAFIA COMENTADA 121

compreensão da visão sociológica e histórica do estruturalismo


tcheco.

o Reader-Response Crltlcism

FISH,Stanley. Is there a text in this c/ass? The authority of interpre-


tative communities. Cambridge, Harvard University Press, 1980.
Reúne os ensaios publicados pelo Autor durante a década de
70, expondo suas teses relativas à estilística afetiva e a atuação
das comunidades interpretativas.

TOMPKINS, Jane P., ed. Reader-Response Criticism; From formalism


to post-structuralism. BaItimore, The Johns Hopkins University Press,
1980.
Contém os principais ensaios de S. Fish, G. Prince e M. Rifa-
terre que fundam e caracterizam o Reader-Response Criticism.
São dignos de nota igualmente os dois textos produzidos pela
organizadora, avaliando a corrente crítica em questão.

Wolfgang Iser e a estética do efeito [Wirkungsãsthetik1

Livros

Der implizite Leser; Kommunikationsformen des Romans von Bun-


yan bis Beckett. München, Fink, 1972.
W. Iser, a partir da noção de leitor implícito, examina obras
da literatura inglesa, do século XVII ao XX, concentrando-se
principalmente na ficção romanesca.

Tradução
The implied reader; Patterns of communication in prose fiction
from Bunyan to Beckett. Baltimore, The Johns Hopkins Uni-
versity Press, 1974.

Der Akt des Lesens. München, Fink, 1976.

-- É a obra mais importante de Iser, em que aprofunda sua con-


cepção relativa à estrutura comunicacional dos textos literários
122 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA
•••
I
e fundamenta a teoria do efeito estético produzido pela arte em I
seu destinatário.

Traduções
em língua portuguesa:
LIMA,Luiz Costa, org. A literatura e o leitor. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1979. Contém a tradução parcial da quarta secção
do livro, relativa à interação entre o texto e o leitor.
em inglês:
The act of reading; a theory of aesthetic response. Baltimore,
The Johns Hopkins University Press, 1980. Trata-se da tradu-
ção integral da edição alemã.

Ensaios (seleç§o)

Die Appelstruktur der Texte. In: WARNING,


Rainer, Hrsg. Rezeptions-
ãsthetik; Theorie und Praxis. München, Fink, 1975.

Der Lesevorgang. In: WARNING,Rainer, Hrsg. Op. cit.


Traduzido, com o título de: The reading process: A phenome-
nological approach. In: ISER,Wolfgang. The implied ... , cit. E
também em: TOMPKINS,J ane P., ed. Op. cit.

Die Wirklichkeit der Fiktion. In: WARNING,Rainer, Hrsg. Op. cit.


Traduzido para o inglês, com o título de "The reality of fie-
tion", no volume VII de New Literary History, publicado no
outono de 1975. Em francês, com o título de "La fiction en ef-
fet", foi editado no número já mencionado da revista Poétique.

111.Sobre a estética da recepção e vertentes


associadas

BÜRGER,Peter. Vermittlung - Rezeption - Funktion. Ãsthetische


Theorie und Methodologie der Literaturwissenschaft. Frankfurt,
Suhrkamp, 1979. .
BIBLIOGRAFIA COMENTADA 123

DE MAN, Paul. Introduction. In: JAUSS,Hans Robert. Towards an aes-


thetic of reception. Minneapolis, University of Minnesota Press,
1982.
GADAMER,Hans Georg. Verdad y método ..SaIamanca, Sígueme, 1979.
GARVIN,Harry, ed. Theories of reading, /ooking and /istening. Lewis-
burg, Bucknell University Press; London, Associated University
Press, 1981.
GODZICH,Wlad. Introduction. In: JAUSS,Hans Robert. Aesthetic expe-
rience and literary hermeneutics. Minneapolis, University of Min-
nesota Press, 1982.
"

GRIMM,Günther. Rezeptionsgeschichte. München, Fink, 1977.


___ , Hrsg. Literatur und Leser; Theorien und Modelle zur Rezep-
tion literarischer Werke. Stuttgart, Reklam, 1975.
HOHENDAHL,Peter Uwe. Introduction to Reception Aesthetics. New
German Critique, 4 (1) : 29-63, Inverno de 1977.
HOLUB,Robert. Reception theory; A criticai introduction. London, Me-
thuen, 1984.
LIMA, Luiz Costa. O leitor demanda (d)a literatura. In: , org.
A literatura e o leitor. Rio de Janeiro, paz e Terra, 1979.
_, , org. Teoria da literatura em suas fontes. 2. ed. Rio de Janeiro,
Francisco Alves, 1984. 2 V.
LINK, Hannelore. Rezeptionsforschung; Eine Einführung in Methode
und Probleme. Stuttgart, Kohlhammer, 1980.
ROTHE,Arnold. O papel do leitor na crítica aIemã contemporânea. Le-
tras de Hoje, 13 (39) : 7-18, mar. 1980.
SCHMIDT,Henry J. Text-adequate concretizations and real readers; Re-
ception theory and its applications. New German Critique, 6 (2) .
: 157-69, Primavera de 1979.
SEGERS,Rien T. Readers, text and author; Some implications of Rezep-
tionsãsthetik. Yearbookfor Comparative and General Literature,
24 : 15-23, 1975.
___ o An interview with Hans Robert Jauss. New Literary History,
11 (1) : 83-95, Outono, 1979.
STAROBINSKY,
Jean. Preface. In: JAUSS,Hans Robert. Pour une esthéti-
uue de la réception. Paris, Gallimard, 1978.
124 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E HISTÓRIA DA LITERATURA

SULElMAN, Susan & CROSMAN, Inge. The reader in lhe text; Essays on
audience and interpretation. Princeton, Princeton University Press,
1980.
WARNING, Rainer. Rezeptionsásthetik; Theorie und Praxis. München,
Fink, 1975.
WEINRICH, Harald. Para una historia literaria dellector. In: GUMBRECHT,
Hans Ulrich et alii, La actual ciencia /iteraria alemana. Salaman-
ca, Anaya, 1971.
\

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