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SANTIAGO, Silviano.

A aula inaugural de Clarice Lispector: cotidiano, labor e esperança


in O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2004.

Na história da literatura brasileira, Clarice Lispector inaugura tardiamente a


possibilidade de uma ficção que, sem depender do desenvolvimento circunstanciado e
complexo de uma trama novelesca oitocentista, consegue alcançar a condição de excelência
atribuída pelos especialistas. No cânone da literatura brasileira, essa trama novelesca, por
sua vez, aludia direta ou indiretamente a um acontecimento da formação colonial e do
desenvolvimento nacional.
Na boa literatura brasileira anterior à Clarice, ou melhor, na literatura brasileira
assumidamente boa anterior à Clarice, a caracterização e o desenvolvimento dos
personagens e a trama novelesca que os metabolizava eram envolvidos, direta ou
indiretamente, pelo acontecimento e dele refluíam ou a ele confluíam, como afluentes que
ganham significado pelo sentido que lhes é emprestado pelo caudal do rio aonde eles
deságuam. Em outras palavras: o sentido e o valor da trama novelesca não estão
exclusivamente nela, são-lhe conferidos pela crítica literária, devidamente instruída pelo
curso interpretativo da história brasileira no âmbito da civilização ocidental.
A consciência de nacionalidade, afirmava Machado de Assis no mais audacioso
passo anterior ao de Clarice, não está obrigatoriamente na cultura indígena, nos muitos
nomes de flores ou aves do país, não está ainda obrigatoriamente nas obras que tratam de
assunto local. Deduz-se do seu raciocínio, expresso no ensaio "Instinto de Nacionalidade"
(1872), que a obra teatral de Shakespeare estaria para a literatura inglesa assim como as
obras brasileiras com consciência de sua nacionalidade deveriam estar, paradoxalmente, para
Shakespeare. O momento de maturidade para a literatura brasileira seria o da sua entrada no
círculo vicioso da universalidade eurocêntrica.
Nas histórias da literatura brasileira, a trama novelesca que não era passível de ser
absorvida pela auréola interpretativa do acontecimento era jogada na lata de lixo da história
como sentimental ou condenável. Caracterizar algo como sentimental ou condenável
significava querer demonstrar que o compromisso do texto ficcional não era com a
interpretação do acontecimento propriamente dito, mas com certa emoção privada que estava
sendo desnudada pela escrita e, em seguida, entregue em letra impressa ao público. Em
célebre artigo datado de 1943, na verdade resenha do romance "Perto do Coração Selvagem",
hoje na coletânea "Vários Escritos", Antonio Candido afirmava que Clarice "procura criar
um mundo partindo das suas 'próprias emoções', da sua 'própria capacidade de interpretação'
(grifos nossos)". Por isso, continuava ele, a romancista descartava, na caracterização e
desenvolvimento da personagem Joana, um tratamento puramente empírico do
conhecimento, para afirmar que a sua criatura "reputava bem desprezíveis os argumentos
dos sentidos, aos quais sobrepunha a visão mágica da existência". Numa tarefa arqueológica,
o fundamento dito literário da prosa de Clarice -"a visão mágica da existência"- só poderia
ser encontrado na chamada literatura sentimental. Talvez seja por isso que Candido, no já
citado artigo, detectava no romance de estréia da autora o que nele sobressaía, ou seja, um
"tom mais ou menos raro em nossa literatura moderna, já qualificada de 'ingenuamente
naturalista', por um crítico de valor".
Nos anos 40, Clarice Lispector dá as costas ao que tinha sido construído, a duras
penas pelos colonos e os brasileiros, como instinto e/ou consciência de nacionalidade. Dá as
costas à "tradição afortunada", para guardar a expressão a que Afrânio Coutinho deu título
de cidadania a partir da compilação feita por ele de inumeráveis e sucessivos exemplos
tomados da cultura brasileira. Clarice inaugura uma tradição sem fortuna, desafortunada,
feminina e, por ricochete, subalterna. Para que alcançasse a plena condição de excelência,
no auge da "ingenuidade naturalista" dos anos 30 e 40, a proposta subalterna, tardia e
solitária da escrita ficcional de Clarice teve de se travestir, três décadas mais tarde, pelo que
ela negava.
Em vida da autora, seu romance mais famoso acabou sendo "A Hora da Estrela".
Hoje, ele pode ser lido -sobretudo se o for com o respaldo da adaptação cinematográfica que
o transformou numa espécie de "vidas secas" do asfalto- como a mais alta traição ao que a
autora tinha inaugurado na literatura brasileira, mas pode também ser dado como uma
gargalhada na cara da tradição afortunada, gargalhada que diz: "Eu também posso fazer o
que vocês fazem, basta mascarar-me com o rosto masculino do narrador Rodrigo S.M. (1)".
Um dos possíveis títulos para esse romance ratifica essa gargalhada: "Saída Discreta pela
Porta dos Fundos". A lucidez zombeteira de Clarice está também neste outro possível título
para o mesmo romance: "História Lacrimogênica de Cordel".
A trama novelesca de Clarice não reflui da, nem conflui para a história literária
escrita em moldes oitocentistas, para a história como entendida naquele contexto. É um rio
que inaugura o seu próprio curso. A literatura é literatura -eis a fórmula mais simples e mais
enigmática para apreender o sentido da aula inaugural de Clarice. É o que também nos
informa, de maneira indireta e metafórica, a epígrafe de "Água Viva", de autoria do crítico
de arte Michel Seuphor: "Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da
figura -o objeto- que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não
lança um mito". A literatura de Clarice, na sua radicalidade inaugural, se alimenta da palavra,
é "um mergulho na matéria da palavra", ou seja, ela está na capacidade que tem a palavra de
se suceder a uma outra palavra, sem a necessidade de buscar um suporte alheio ao corpo das
próprias palavras que se sucedem em espaçamento. Basta-lhe o suporte da sintaxe. Lê-se no
conto "Devaneio e Embriaguez duma Rapariga": "Olhava ao redor, paciente, obediente. Aí,
palavras, objetos do quarto alinhados em ordem de palavras a formarem aquelas frases turvas
e maçantes que quem souber ler lerá". A prosa inaugural de Clarice, escrita de "frases turvas
e maçantes", exige um novo leitor -"quem souber ler lerá".
Roberto Schwarz, em artigo de 1959, hoje na coletânea "A Sereia e o Desconfiado",
é quem melhor traduz tanto as medidas que a teoria do romance tem de tomar, quanto os
ajustes por que a crítica literária deve passar para que o velho leitor da literatura realista se
transformasse no novo leitor, afinado com a prosa inaugural de Clarice Lispector. Toma ele
uma série de precauções analíticas iniciais para reafirmar, no decorrer do artigo, que
permanece um fervoroso admirador da literatura realista. Assim, o elogio emocionado de
"Perto do Coração Selvagem" se faz acompanhar sempre da aspereza e intransigência
luckasiana na notação dos "detalhes críticos". Abstraídos estes, conclui o velho leitor jovem,
o romance de Clarice seria apenas uma "iluminadora reflexão artística sobre a condição
humana". Vale a pena perseguir a ânsia do leitor que, frente ao objeto insólito, quer se
renovar, para em seguida observar como o crítico de formação marxista reganha segurança
à medida que pisa fundo em solo ficcional brasileiro nada propício à repetição do cânone
realista imposto pelo romance oitocentista europeu.
Com a ajuda de observações tomadas ao poeta e ensaísta alemão Gottfried Benn,
Schwarz detecta primeiro que, na arte ficcional contemporânea, o romance vinha sofrendo
um golpe de morte. Observa esse golpe na passagem do modo narrativo oitocentista para o
modo existencial moderno. Diz ele que, no modo existencial, "a construção de engrenagens
literárias mais ou menos complicadas perde (...) a sua importância em face do mergulho às
raízes e fontes de nossa humanidade". No modo existencial, continua ele, estava implícita "a
noção de um substrato humano essencial, alheio à complicação novelesca e muito mais
importante do que ela". As essências, acrescenta com a ajuda de Lukács, são "inenarráveis,
já que não se modificam nem têm gênese".
Não há mais romance, não há mais personagem. Por isso, pergunta Schwarz, ecoando
Gottfried Benn: "Por que inventar pessoas, nomes, relações -logo agora, quando perderam a
sua importância?". O personagem clássico, que emprestava biografia e sentido ao romance,
estava cedendo o lugar a um outro tipo de personagem, que ganhava corpo e voz através da
"iluminação do substrato humano essencial que é alheio à complicação novelesca e muito
mais importante do que ela". Não é de estranhar que o crítico brasileiro venha a cair na
armadilha de gênero que monta com astúcia. Assim sendo, conclui que, para a missão da
literatura como a concebe Clarice, o poema está mais aparelhado do que a história narrada.
No momento agônico por que passa a arte do romance no século 20, o modo lírico,
descritivo, se sobrepõe ao modo épico, narrativo. A modalidade de representação simbólico-
descritiva apenas transmite um modo estático e contemplativo de olhar a vida e a
experiência. Vale dizer que, com experimentos similares aos de Clarice, o romance ou tinha
perdido as características fundamentais de gênero, ou tinha entrado em franca decadência.
Assinala em seguida Schwarz que o romance de Clarice relata ao leitor a experiência
de solidão do personagem Joana que, por ser transcrita de modo repetido e idêntico, não é
histórica. Esclarece ele: o romance na verdade "micro-relata os momentos" em que aquela
experiência se manifesta mais plenamente. Nesse sentido, em "Perto do Coração Selvagem",
"enredo e decurso (e portanto o tempo) ficam reduzidos à função de criar uma inútil (sic)
coerência entre momentos, entre os raros momentos essenciais em que o substrato (humano)
transpareceria no mundo empírico". No raciocínio de Schwarz, a armadilha de tempo se
soma à já mencionada armadilha de gênero. "Perto do Coração Selvagem", sem ser romance,
poderia ser poema; sem ser prosa narrativa, poderia ser prosa fragmentada.
Nesse momento do raciocínio, Schwarz é obrigado a confessar que não é partidário
(sic) das colocações de Gottfried Benn, apesar de tê-las avançado desde a primeira linha do
ensaio. Foi levado a acatá-las para poder compreender de maneira adequada -precisa ele-
não a "qualidade" da obra de Clarice, mas a sua "ambição". A generosidade crítica que
Schwarz demonstra para com o texto inaugural de Clarice não visa à análise qualitativa da
obra, ela é antes o pretexto para uma série de reticências valorativas em torno das ambições
de uma obra romanesca na qual os episódios não se ordenam segundo um necessário
princípio temporal. Os episódios soltos da trama novelesca interagem por acúmulo e
insistência. Sua estruturação se dá por um jogo de "contraposições estanques". Dessa forma
é que o leitor Schwarz chega a demonstrar no relato romanesco de Clarice o "desaparecer
do tempo como fonte de modificação".
Schwarz insiste na tecla. Depois de analisada a complexa estrutura temporal do
romance, opta por reafirmar pela inutilidade da instrumentalização das categorias temporais
na organização da trama pela romancista, concluindo, uma vez mais, que "o tempo inexiste
como possibilidade de evolução". E uma vez mais conclui pela nota decepcionante: "Mesmo
o espaço de tempo assim marcado, entretanto, não tem função histórica". E insiste mais
adiante: "O tempo comparece (na estruturação do romance) para melhor se anular".
A materialização do tempo em história, segundo as convenções do romance realista,
leva Schwarz a impor a forma biográfica como único modelo correto para a trama novelesca
de "Perto do Coração Selvagem". Clarice Lispector não tinha dado ouvidos ao crítico, não o
tinha obedecido, por isso compete a ele constatar: "Os momentos psicológicos, construídos
cada qual a partir de seus elementos mínimos, não podem se inserir num desenvolvimento
de cunho histórico e não podem constituir, portanto, uma biografia". O referencial
luckasiano de Schwarz, cerceante da modernidade do projeto de Clarice e da liberdade de
criação do artista, é facilmente comprovável. A propósito, leia-se a síntese feita por Fredric
Jameson, em "Marxismo e Forma", ao expor a valorização da narração em detrimento da
descrição no pensamento de Lukács: "A forma realista de representação, a possibilidade de
narração mesma, está presente somente naqueles momentos históricos em que a vida humana
pode ser apreendida em termos de confrontações e dramas individuais e concretos, nos quais
uma verdade fundamental da vida pode ser contada através da história individual (grifo
nosso)". A "ambição" de Clarice, para retomar a palavra desconfiada do crítico frente à
sereia, afirma-se e se esboroa diante da exigência para a personagem Joana de uma trama
novelesca biográfica, caracteristicamente oitocentista.
Clarice e a História
A ambição de Clarice Lispector é outra, a qualidade da sua obra é outra. Quis ela
inaugurar uma outra concepção de tempo para o romance (vale dizer de história, ou seja, de
transformação e evolução do personagem): a do tempo atomizado e, concomitantemente,
espacializado. Não há dúvida que o "momento", "os raros momentos essenciais" (para
retomar as categorias avançadas por Schwarz) estão dramatizados na ficção de Clarice.
Podem, por isso, ser compreendidos e interpretados como partículas aparentemente
privilegiadas e imóveis do presente. Nas páginas de abertura de "Água Viva", pergunta a
narradora: "Meu tema é o instante?", para em seguida responder: "Meu tema de vida". E
continua: "Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os
instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos -só me comprometo
com vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim".
No entanto, o momento, os raros momentos essenciais devem ser também e
principalmente compreendidos e interpretados na fatalidade do seu devir, quando
deslinearmente se articulam para se sobrecarregarem de força utópica. Escreve Clarice:
"Estava previamente a amar o homem que um dia ela ia amar". E ainda: "Aquilo que ainda
vai ser depois -é agora". A romancista é alguém que, como está escrito em "Água Viva",
"fabrica o futuro como uma aranha diligente". Clarice inaugura a possibilidade de se escrever
ficção a partir da temporalização espacializada do quase nada cotidiano. É possível fazer boa
literatura, segundo a palavra esclarecedora de Roberto Corrêa dos Santos, desenhando "uma
cartografia de estados, sensações, descobertas". Não se trata de compor -esclareça-se- uma
espécie formal de "confidência", como a romancista seguidamente nos alerta em "Água
Viva".
O rechaço do conceito de tempo como evolução linear, em infinita ascensão, leva
Clarice a rejeitar, como veremos no final, uma concepção de progresso técnica, quantitativa,
e a favorecer uma concepção humanitária, qualitativa de progresso -para usar a dicotomia
levantada por Herbert Marcuse no extraordinário ensaio intitulado "A Idéia de Progresso à
Luz da Psicanálise" (2). Na perspectiva do tempo vivido linearmente, informa Marcuse, só
a experiência do trabalho, tal como definido pela ciência, é humana. Como consequência, "o
tempo cheio, a durée da satisfação, a durée do progresso individual, o tempo como repouso,
só são concebidos de uma forma sobre-humana ou subhumana". Clarice concebe-os
inauguralmente como humanos. Nos seus escritos, a durée da satisfação não coincide com a
felicidade eterna, a que só é possível aceder depois do desaparecimento do homem na terra.
Ela não coincide tampouco com o desejo de eternização do momento instantâneo de
felicidade, sempre julgado como algo de inumano ou anti-humano.
Nesse sentido, torna-se imperioso rever, com a ajuda da própria Clarice, o que a
crítica convencionou chamar de momento. O momento é o "instante-já" do cotidiano. Como
se lê em "Água Viva", "o instante-já é um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga. O
presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no
chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que absorve o instante
presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me
apago, acendo e apago, acendo e apago" (Reparem como os verbos intransitivos acender e
apagar, ao se repetirem, transformam-se em verbos pronominais para, logo em seguida,
voltarem a ser intransitivos. Temos aí a passagem do conceito metaforizado de instante-já
para a experiência subjetiva da personagem e desta para a sua exteriorização objetiva).
Reduzir o atrito da roda do automóvel contra o tempo "biográfico" do personagem
ao movimento do girar da roda sobre ela mesma, do girar em falso por falta de solo concreto
e firme, é necessário e insuficiente. Esse atrito é principalmente a razão para uma viagem do
corpo ao futuro, para moldar a este e deixar-se moldar por ele. A razão para trazer o futuro
para a vida presente, a razão para levar a vida presente para o futuro. A razão de um modelo
para a utopia nossa de todos os dias onde a palavra reconstrói a magia do instante presente
e com vistas ao próprio devir feliz dela.
A essa dupla inserção do corpo "biográfico" no tempo romanesco, momento de
plenitude do corpo, Clarice dá o nome de "beatitude". Como sempre, é preciso tomar cuidado
na compreensão de vocábulo revestido de fortes camadas religiosas. Ao sentido
dicionarizado da palavra beatitude, que fala do gozo da alma em contemplação mística,
Clarice opõe a concretude do cotidiano como lugar da experiência. Esclarece ela: "(Quando
em estado de beatitude), eu não estava de modo algum em meditação, não houve em mim
nenhuma religiosidade. Tinha acabado de tomar café e estava simplesmente vivendo ali
sentada com um cigarro queimando-se no cinzeiro".
A mesma imagem do pirilampo, praticamente com o mesmo sentido, aparece nas
"Primeiras Estórias", de Guimarães Rosa, no conto "As Margens da Alegria". Aqui, a
experiência do menino que cresce ao ver a natureza destruída para nela se erguer a cidade
de concreto armado do futuro, o espanto do menino que amadurece ao descobrir no quintal
a beleza diurna do peru que, para servir de sustento para a família, tinha virado uma cabeça
noturna degolada, uma carniça que estava sendo bicada por um igual, a experiência e o
espanto do menino, retomemos, diante do modo como o trabalho do homem transforma a
natureza para constituí-lo como mundo sensível encontra o seu correlato objetivo no piscar
do vaga-lume que vem das trevas da noite.
Como Clarice, Guimarães Rosa busca dramatizar na ficção a situação negativa da
experiência para nela, primeiro, introduzir o valor positivo da vida e para dela, em seguida,
extraí-lo enriquecido e explosivo. Clarice e Rosa sabem, como Ernst Bloch, que "o horror e
as emoções negativas são infinitamente preciosos na medida em que também constituem
modalidades daquele espanto ontológico elementar que é a nossa forma mais concreta de
consciência do futuro latente em nós e nas coisas".
Nos anos 40, surge no horizonte crítico da literatura brasileira uma Clarice Lispector
mais próxima do seu contemporâneo Guimarães Rosa. Surge no horizonte crítico
cosmopolita uma Clarice menos próxima de Lukács, mais próxima de Ernst Bloch, que via
na filosofia, segundo as palavras de Fredric Jameson em "Marxismo e Forma", a
possibilidade de "uma elaboração concreta do espanto (grifo nosso) que sentimos diante do
próprio mundo". E o crítico acrescenta em seguida: "O que espanta (...) não é o ser
propriamente, mas a latência do vir-a-ser em ação, os sinais e a prefiguração do ser futuro".
Continua Jameson: "O real filosofar (para Bloch) começa em casa, bem abaixo das
abstrações oficiais da tradição metafísica, na própria experiência vivida e nos menores
detalhes, no corpo e em suas sensações, nas próprias fontes da palavra enquanto esta vem a
ser". Escreve em eco Clarice: "Mas por enquanto estou no meio do que grita e pulula". Em
Ernst Bloch e Clarice Lispector a figuração de uma felicidade campesina: "A felicidade finita
da janela iluminada nos campos, no retorno da terra arada, do descanso após o trabalho como
símbolo e figura, a seu modo, da satisfação humana". Retomando Marcuse, a durée da
satisfação é concebida como humana, demasiadamente humana, tanto em Bloch quanto em
Clarice.
Na ficção de Clarice, desejo de apreender, pelas palavras, o espanto do personagem
diante do "acontecimento" e, pelo micro-relato deste, o consequente arrepio ou grito. Desejo
de apreender na sua materialidade viscosa o "é da coisa", como se lê ainda em "Água Viva".
Não se esquecer de que, nesse mesmo livro, a narradora nos diz que "a palavra mais
importante da língua tem uma única letra: é". Desejo de apreender, como veremos a seguir,
o instante-já (a) como experiência imediata do personagem e (b) como objeto da literatura.
Enquanto experiência imediata do personagem, o "é da coisa" pode ser configurado
a posteriori pela noção de acontecimento. De novo, é preciso tomar cuidado na compreensão
do vocábulo. Clarice não rejeita a palavra acontecimento, já que ela está um pouco por toda
parte nos seus textos; ela rejeita é o significado ofertado ao conceito pela historiografia
oitocentista, optando pela desconstrução da sua significação. A visão que o personagem Ana
tem de um cego mascando chicles, no conto "Amor", é dada a posteriori como um
acontecimento. Diz o texto: "(Ana) Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a
sufocava. Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do
acontecimento (grifo nosso) estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil,
perecível..." O acontecimento em Clarice transforma o personagem, fortalecendo o
indivíduo. Ele cria um antes e um depois, valoriza a um (menos hostil, menos perecível) e
ao outro (mais hostil, mais perecível), acarretando uma evolução não-linear, como vimos e
veremos melhor adiante, da experiência solitária na vida do personagem. À fraternidade e
solidariedade dramatizadas na literatura oitocentista, Clarice erige o lugar da solidão como
o laboratório experimental onde se pode melhor trabalhar as injustiças da sociedade
contemporânea, envolvendo os materiais da pesquisa -homens e coisas em estado de palavra-
num clandestino amor.

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