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© 2020, IELT – NOVA FCSH


IELT – Instituto de Estudos de Literatura e Tradição
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa

Título As mãos precárias


Estudos sobre Raduan Nassar
© Editores Carlos F. Clamote Carreto
Madalena Vaz Pinto
I.S.B.N.: 978­‑989­‑8968­‑03­‑6

Paginação ACDPRINT
Design da capa ACDPRINT
Edição Maio de 2020

O IELT é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto UID/ELT/00657/2013.
AS MÃOS PRECÁRIAS

ESTUDOS
SOBRE
RADUAN NASSAR

Carlos F. Clamote Carreto


Madalena Vaz Pinto
(editores)

IELT
Lisboa
2020
O respeito pelo Acordo Ortográfico atualmente em vigor
é da única responsabilidade dos autores de cada artigo.
8 Índice geral

Índice geral

Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Carlos F. Clamote Carreto
Madalena Vaz Pinto

Raduan e o arcaísmo da lavoura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19


António Vieira

Raduan Nassar: a (in)felicidade pela literatura ou pela agricultura (e pecuária). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29


Arnaldo Saraiva

Ímpeto e atropelo: ficção da palavra em Raduan Nassar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33


Clara Rowland
Voz. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
Jorro e silêncio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
Cólera e intervalo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
Paralipse . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

Literatura e utopia: Raduan Nassar, o belo e o bom.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45


Gilda Oswaldo Cruz
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 9

A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira. . . . . . . . . . . 57


Joana Matos Frias

O silêncio eloquente de um ventre seco. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77


Maria José Lemos
Um conto­‑carta­‑manifesto: entre luz e escuridão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
Ceticismo e cinismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82
Relações intra e intertextuais: uma questão de indiferença. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
Atingir o miolo propulsor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

Tinha paixão, tinha um copo de cólera? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103


Pedro Eiras
Tinha paixão? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
Três livros e um silêncio.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105
Dos contos a Um Copo de Cólera.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
Lavoura Arcaica.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

Notas biobibliográficas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127


AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 11

Apresentação

Carlos F. Clamote Carreto


Instituto de Estudos de Literatura e Tradição | NOVA FCSH

Madalena Vaz Pinto


UERJ ­‑ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Alguma vez te passou pela cabeça, um instante curto que fosse,


suspender o tampo do cesto de roupas no banheiro? alguma
vez te ocorreu afundar as mãos precárias e trazer com cuidado
cada peça ali jogada? era o pedaço de cada um que eu trazia
nelas quando afundava minhas mãos no cesto, ninguém
ouviu melhor o grito de cada um, eu te asseguro, as coisas
exasperadas da família deitadas no silêncio recatado das peças
íntimas ali largadas, mas bastava ver, bastava suspender o
tampo e afundar as mãos pra conhecer a ambivalência do uso.

Raduan Nassar (2016: 13)

No prólogo de um intrigante conto da Idade Média (Le Lai de l’ombre) que nos fala
de reflexos, de sombras, de projeções e de imagens distorcidas do Outro a partir
das quais se constrói, no entanto, paradoxalmente, o amor, e no qual Jean Renart,
conhecido poeta francês do século XIII, parodia e desconstrói sistematicamente os
fundamentos da retórica e do imaginário cortês, lemos que mais vale contar com
12 Apresentação

uma boa fortuna do que com amigos e familiares. Com efeito, estes vão e vêm. E
também morrem, dispersando­‑se então a riqueza e as falsas ilusões depositadas
num simulacro de felicidade. É a sorte que, entre contingência e movimento cal‑
culado dos astros, rege o nosso destino e provavelmente os destinos da própria
escrita poética que só assim, conclui o autor, escapa às águas tumultuosas do alto
mar para chegar às margens tranquilas delimitadas pela aritmética do conto.

Contrariando, no entanto, a cínica provocação de Jean Renart, a publicação deste


conjunto de estudos sobre Raduan Nassar deve­‑se tanto ao acaso como à amizade.
A sua breve história começa durante um almoço entre um dos editores deste volume
(Carlos Carreto) e António Vieira em torno de assuntos comuns relacionados com
o conselho de redação da revista Sigila. Revue transdisciplinaire franco­‑portugaise
sur le secret. O teor exato da conversa perdeu­‑se no esquecimento, bem como a
misteriosa correspondência que acabou por ligar secretamente entre si coisas tão
díspares (provavelmente a sorte ou o acaso). Foi, no entanto, nessa altura que o
António Vieira confidenciou o seu desejo de organizar um evento para celebrar, ou
tão simplesmente assinalar, o facto de Raduan Nassar – escritor, por ventura, ainda
relativamente pouco conhecido em Portugal – ter sido distinguido com o Prémio
Camões em 2016. Surgiu então a possibilidade de se organizar um despretensioso
encontro na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa com a ajuda do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição no qual vários
docentes e investigadores se dedicam precisamente ao estudo da literatura brasi‑
leira. Coincidentemente, nessa mesma altura, Masé Lemos e Madalena Vaz Pinto (a
outra editora desta coletânea), ambas docentes de universidades do Rio de Janeiro,
pensavam como a atribuição do Prêmio Camões a Raduan Nassar se apresentava
como uma ocasião propícia de maior divulgação de sua obra em Portugal. Foi a
aproximação entre estes desejos, articulada via contacto com António Vieira, que
contribuiu para que este encontro acabasse por vir a ter uma marca luso­‑brasileira.

Entre os primeiros contactos e a concretização da Jornada de Estudos sobre


Raduan Nassar, a 22 de fevereiro de 2017, o tempo foi inexoravelmente passando.
Contudo, as controvérsias que acompanharam a entrega do prémio ao escritor a 17
de fevereiro desse mesmo ano no Museu Lasar Segall, em São Paulo, na sequên‑
cia do discurso eminentemente político de Raduan denunciando («Não há como
ficar calado!») os múltiplos, gritantes e aterradores sinais irrompendo desse Brasil
que vivia «tempos sombrios, muito sombrios», voltaram a dar ao encontro em
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 13

preparação, entre acaso e providência, toda a sua atualidade. A riqueza das comu‑
nicações apresentadas durante a Jornada e os estimulantes debates que as acom‑
panharam deixaram em todos nós memórias duradouras, mas não menos volúveis
e sujeitas à inelutável lei do esquecimento. Daí que, desde logo, tenha surgido a
ideia de publicar os resultados do encontro. Não tanto como impulso arquivístico
(por mais importante e valioso que este seja) ou dever de memória, mas tão sim‑
plesmente como forma de prolongar o diálogo, sempre necessário e inacabado,
em torno de Raduan Nassar, do fenómeno narrativo, da Literatura.

«Alguma vez te ocorreu afundar as mãos precárias [no cesto de roupas no


banheiro] e trazer com cuidado cada peça ali jogada?», pergunta o narrado no iní‑
cio de Lavoura arcaica?1. Desejo secreto ao mesmo tempo familiar e estranho, nos
limiares do inconfessável, no qual não deixa de ecoar a natureza arcaica do gesto
poético, através dessa mão precária que inspirou o título e que cuidadosamente vai
recuperando e reinventando, em cada texto, fragmentos da vida íntima e de toda
uma tradição jogados, entre o acaso e a intensão programática, no vasto arquivo
da memória poética. À imagem desse «grito de exaltação» arrancada pela dança
frenética, vertiginosa e contagiante de Ana – personagem quase camusiana que
traz, também ela, a peste no corpo ­– dança que se torna cântico «entoado em linha
estranha» oferecido para «consumo sacramental»; à imagem igualmente do dis‑
curso obcecante do pai de Lavoura arcaica cuja palavra é «pedra angular» em que
constantemente tropeçamos, «que nos esfola» a cada instante através da sua «sin‑
taxe própria, dura e enrijecida pelo sol e pela chuva» (p. 46), a literatura emerge, na
escrita de Raduan Nassar, como esse insólito lugar que, por mais incómodo, estra‑
nho e desestabilizador que seja, nos traz constantemente de regresso a casa onde,
entre o instante e o tempo «sem começo nem fim» da eternidade (tempo que é a
negação da própria narrativa enquanto mythos), encontramos sempre uma nova
Penélope – como a mãe de André – a «destecer a renda trabalhada a vida inteira»
(p. 41).

O conjunto de ensaios que agora se publica não ambiciona ser nem uma homena‑
gem, nem, tão pouco, uma tardia, desnecessária e já anacrónica legitimação de um
merecido prémio. Trata­‑se apenas de partilhar a alegria breve que traz a reflexão

1
Ver passagem em epígrafe.
14 Apresentação

e o diálogo em torno da inquietante escrita de Raduan Nassar, tão límpida como


visceral, tão rigorosa como profundamente telúrica.

Na maioria dos textos, como se verá, o reconhecimento do valor da obra será rea‑
firmado a par do enigma que constituiu o seu repentino cessar. Resta saber se se
trata, de facto, de um fim repentino, ou mesmo de um fim. As posições divergem.
Arrisca­‑se, por vezes, a hipótese de uma continuidade – as mesmas mãos, afinal
– entre texto e terra, entre labor textual e os cuidados da lavoura. Lacónicas res‑
postas do autor ao longo de todos estes anos, não explicam. Ficamos com os tex‑
tos e as conjeturas, apresentados em seguida segundo as ligações que entre si se
estabelecem.

No seu ensaio, António Vieira começa por destacar o que nele desde logo o mar‑
cou na leitura de Lavoura Arcaica e que se repetiu vinte anos depois, na ocasião da
escrita deste texto: a constatação de estar diante de uma nova linguagem, fron‑
teira indecisa entre prosa e poesia, aspeto reiterado na leitura dos outros textos de
Raduan Nassar. No que toca a este romance, afirma, é possível verificar um modo
particular de construção textual ­‑ substituição de pontos finais por pontos e vír‑
gula ou de interrogação ­‑, o que contribui para o adensamento dos parágrafos.
Neles, o leitor tem acesso às atmosferas interiores de homens expostos ao assé‑
dio das paixões, numa combinação entre rememoração, júbilo, desejo e culpa, e
pode pressentir a tragédia que se aproxima. Tal potência não permite ao leitor ficar
incólume. Ele percorre a narrativa por seus passos, entregando­‑se mais ou menos
aos acontecimentos, ao sentir mais empatia ou recusa, preso dessa forma na rede
do texto que percorre. O mesmo encantamento repetir­‑se­‑ia nos outros textos do
autor, aumentando a perplexidade com a recusa de o escritor voltar à literatura ou
sequer dela falar. Sobre esse acontecimento, António Vieira arrisca uma possibili‑
dade: a proximidade excessiva entre o vivido e o narrado.

O mesmo impacto com a linguagem é referido por Arnaldo Saraiva ao ler seu pri‑
meiro romance, Lavoura Arcaica. Este romance surpreendia por se tratar do pri‑
meiro livro de um autor no qual, curiosamente, não se reconheciam as fragilidades
discursivas, os clichés ou as modernices forçadas próprias de muitos romances de
estreia. Mas Lavoura arcaica surpreendia ainda pela temática, parábola familiar
retomada e desconstruída, ambientada no espaço rural, na contramão do romance
urbano, social e político em voga então no Brasil. Estudioso da literatura brasileira
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 15

e leitor de Raduan Nassar desde sua estreia, Arnaldo Saraiva, como a maioria da
crítica, atribui o mesmo valor aos textos seguintes e adensa o enigma do abandono
por um viés curioso: a recusa em continuar a escrever contamina necessariamente
o que foi escrito, obriga os leitores desta obra a pôr sob suspeita noções estabele‑
cidas e consensuais sobre a autoria, a obra, o engajamento e o lugar da literatura.

O ensaio de Gilda Oswaldo Cruz constitui um testemunho valioso. Nele, a autora


revela um aspeto pouco conhecido da obra de Raduan Nassar: as circunstâncias da
publicação do seu primeiro romance. Foi em 1974. Raduan chegara à José Olympio
levado por António Olavo Pereira, irmão do seu fundador. Nessa casa editorial,
eram então publicados os livros dos mais importantes autores da prosa, da poesia,
da ensaística e da sociologia brasileira. Gilda ocupava aí, desde 1973, o lugar de
secretária do Conselho Editorial, e foi portanto, a ela, que foram entregues os ori‑
ginais datilografados de Lavoura Arcaica. Como assinala no seu artigo, o encanta‑
mento com a força do texto, sua musicalidade e a descoberta daquela voz tão pos‑
sante foram imediatos. A continuação do seu relato surpreende: não obstante a sua
recomendação entusiástica e a de António Olavo, a publicação seria condicionada
ao financiamento por parte do autor. Raduan, contrariado e humilhado, aceitou a
proposta e, com a ajuda dos seus irmãos, Lavoura Arcaica foi publicada em 1975.
O resto da história é conhecida: poucos textos mais e a dedicação à lavoura. Mas
parecem existir alguns sinais destoantes neste discurso consensual. Um deles, des‑
crito pela autora, foi o interesse de Raduan em acompanhar e contribuir para os
ajustes finais do filme Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho (2001); depois
disso, mais recentemente, a aceitação do Prémio Camões e seu comparecimento à
cerimónia (além do discurso marcante em defesa do governo PT). Faz sentido, por‑
tanto, a afirmação de Gilda Oswaldo Cruz: «Raduan não deixou jamais de pastorear
os destinos de sua obra».

É precisamente sobre a complexidade destes sinais destoantes e as suas implica‑


ções na receção da obra nassariana que se detém Joana Matos Frias. Se o maior
deles foi sem dúvida o abandono precoce de uma obra acolhida com louvor pela
crítica, também a forma particular de Raduan Nassar se relacionar com o campo
literário e seus rituais enquanto autor, contribui, desde sempre, para a criação de
uma atmosfera peculiar em torno da sua obra: presença rara em lançamentos;
recusa em autografar suas obras; comparecimento contrariado a entrevistas; etc. É
possível ler tais sinais como forma de resistência à exposição excessiva promovida
16 Apresentação

pelo mercado editorial. Porém, como mostra a autora, o efeito desse desejo de fuga
é paradoxal e perverso: consiste na hiperbolização da figura do autor sobre a obra
que se verifica pela sobrevalorização dos paratextos, principalmente os epitextos
– correspondência, depoimentos, entrevistas, conversas. A palavra do autor empí‑
rico sobrepõe­‑se à do autor textual, ou, dito de outra forma, ocorre a restituição da
aura por via da recuperação de um vínculo singular entre o valor de existência e o
valor de exposição.

Se é consensual reconhecer a tensão existente entre dizer e calar na trajetória auto‑


ral de Raduan Nassar, cabe verificar se há representações dela no interior do pró‑
prio texto nassariano. É o que o ensaio de Clara Rowland parece confirmar, quando
afirma que, na obra de Raduan, os limites são constantemente erguidos e tam‑
bém continuamente transpostos, como atestam as figuras das formigas em Um
copo de cólera ou do filho pródigo em Lavoura arcaica. Na prosa de Raduan Nassar,
afirma Clara Rowland, assiste­‑se ao contraste entre a palavra retida e a palavra
pronunciada, a palavra ouvida ou não ouvida. Hipóteses de elocução são formu‑
ladas, inscritas no texto, entre aspas, e em seguida recusadas, ou porque desvia‑
das para outras possibilidades, ou porque invalidadas pelo próprio narrador, tanto
por censura como por correção. Assiste­‑se, deste modo, à recorrência da paralipse,
figura que consiste num discurso em estado intervalar que se descreve como não
dizendo o que, entretanto, diz. E que, feito de frases censuradas, descartadas, aban‑
donadas, impronunciadas, configura­‑se paradoxalmente em jorro, esporro, transe,
delírio, ou seja, num fluxo verbal que se sugere colérico, incontido e incontrolável.

Talvez para Raduan, propõe Masé Lemos, a escrita se apresente como contingên‑
cia entre a possibilidade de dizer e de não dizer. Ao reler, no seu artigo, o conto
Ventre seco, espécie de carta­‑manifesto, a autora chama a atenção para o que já aí
se percebe: uma escrita que provoca, incomoda e inverte as posições dominantes.
Essa provocação vai ser mantida nos textos seguintes de Raduan Nassar, inclusive
no diálogo que a sua obra estabeleceu com outros autores ‑­ Joyce, Thomas Mann,
Fernando Pessoa (via o heterónimo Ricardo Reis). Qual o tema que aí se destaca? O
da indiferença, não só como um motivo dentro da obra, mas também como pos‑
tura do artista diante da obra e da vida. A obra nassariana aproxima­‑se deste modo
do cinismo; o cinismo dos grandes indiferentes que visa construir uma filosofia que
promova a liberdade absoluta e, assumindo um tom provocador, faz o pensamento
efetivamente pensar. «Ele», de Um copo de cólera, ou o narrador de Um ventre seco,
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 17

discorrem sobre a irredutibilidade da verdade, do poder do ethos, de sua relação


irreversível, da impossibilidade de os pensar sem relação fundamental uns com os
outros. O cinismo efetua assim a dramatização e a passagem do limite pela ence‑
nação da vida. Seria então possível, pergunta, pensar que Raduan Nassar atingiu a
pura potência ao exercer a liberdade de querer não mais querer?

Pedro Eiras inicia seu texto, situado nos limiares entre o registo poético e o ensaís‑
tico, com uma confissão em forma de pergunta: por que estou apaixonado por
Um copo de cólera? Porque se trata de um texto furioso, que enfurece, que não se
apresenta como representação, mas afeto. E que esconde, no aparente episódio
das formigas que ignoram uma vedação e a ultrapassam desordenadamente um
juízo amplo e devastador. Tudo aí é exposto e avaliado: cada gesto, palavra, ideo‑
logia, moral, consciente e inconsciente. Mas a fúria não se limita ao Um copo de
cólera. A força argumentativa e o jogo performativo cínico dos textos de Raduan
Nassar, afirma o autor, criam uma perigosa intensidade em que tudo detém valor
e em que todos os valores acabam arruinados. Um copo de cólera, Lavoura arcaica,
Ventre seco. O que cabe ao leitor ler nestes textos? Que partido tomar? O coração
vacila. A escolha, inevitável, apresenta­‑se sempre absurda. Terá o autor sucumbido
à ira de seus textos? Como continuar a escrever depois deles? O silêncio parece ter
sido a resposta.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 19

Raduan e o arcaísmo da lavoura

António Vieira

Relida Lavoura arcaica, quase vinte anos após a primeira leitura, novas visibilidades
me advêm deste texto. Da primeira vez, atendera sobretudo à linguagem, tão cati‑
vante que se sobrepôs ao conteúdo; eis que passei à visualização da narrativa, fase
por fase, ao longo do seu desenrolar. Como se reescrevesse para mim, transcreven‑
do­‑o em imagens, num filme ideal, o drama que nos é contado. Revivi a história com
os meus próprios recursos; olhei­‑a, segui­‑a de fora, como se não estivesse implicado.

Mas como ler este texto e permanecer incólume? A exterioridade da leitura é rela‑
tiva: o leitor, ao refazer com os seus próprios passos os passos da narrativa, sempre se
entrega mais ou menos aos acontecimentos que da leitura absorve e às personagens
que nela andam em jogo, oferecendo­‑se ora em projecção e identificação, ora em
denegação e recusa, e assim se prende emotivamente na rede da escrita que percorre.

Diz­‑se geralmente que este livro está escrito numa ‘linguagem bíblica’. Afirmação
equívoca, ou pelo menos imprecisa. Quantas escritas dentro da escrita bíblica, quan‑
tos estilos e géneros encadeados! Para além da objecção de Nietzsche, de grande
“fraude literária” decorrente da junção, da fusão de dois livros incompatíveis, imiscí‑
veis, incomensuráveis – o Velho e o Novo Testamento – obtendo, a partir daí, o Livro...

Recordo­‑me de uma vez, em casa de Raduan, quando se falava do declínio irreparável


da linguagem que grassa numa sociedade ignóbil, ele ter falado da Bíblia como fonte
e alimento de linguagem literária: livro que contém sementes de ficção, de sapiência
20 Raduan e o arcaísmo da lavoura

e poesia, e mesmo de tragédia. E contou o episódio da morte de Saúl, contido nos


livros de Samuel e das Crónicas, quando os presságios encaminham o rei, pelos seus
próprios passos, para uma morte já decidida pela potestade. Ao rematar a histó‑
ria, repetiu a resposta profética de Samuel, convocado do Xéol, à pergunta do rei:
“Amanhã morrerás!” – e, ao dizê­‑lo, a sua mão abateu­‑se sonoramente sobre a mesa.

A Lavoura inventa uma linguagem prodigiosa, que nos leva de volta aos deuses do
deserto, essas divindades patriarcais, impiedosas, ciumentas e castigadoras, que nasce‑
ram nos desertos pedregosos da Ásia mediterrânica e partiram a conquistar o mundo1.
A linguagem solene que inspiraram, suspensa de advertências, éditos e profecias,
reencontrâmo­‑la de algum modo no arcaísmo desta lavoura (a escrita literária lança,
também, as suas sementes à folha lavrada): nos longos parágrafos que amontoam
exortações e argumentos; na veemência, por vezes na violência, da palavra proferida; e
no segredo, no indizível que ronda e paira e tarda em ser mostrado. E acode­‑me a frase
do romance, “me senti num momento profeta da minha própria história” (p. 91)2.

O processo de escrita é conhecido: o escritor substitui os pontos finais por pontos


e vírgula, ou por pontos interrogativos, e alonga inimaginavelmente os parágrafos,
acumulando sentenças e acrescentando ênfase à ideia enunciada. O polissíndeto,
curiosa figura sintáctica que usa sucessivas conjunções coordenativas, prolonga a
tensão da ideia e faz crescer passo a passo a expectativa do leitor, perante o qual se
adia e se agrava a solução de quanto está en jogo. “O polissíndeto – escrevem Celso
Cunha e Lindley Cintra (1986: 623) na sua famosa Gramática – passa a ser o recurso
característico do chamado estilo bíblico.” Ora, o caudal dos dizeres, misturado e ali‑
mentado pela matéria das imagens rememoradas, forma um rio torrencial. Eis que
os episódios numerados do romance se oferecem como colunas dóricas, espessas,
sólidas e sem falha. Mergulhemos nesse magma, percorramos esses blocos densos
de texto, e logo nos condenaremos a viver um tempo de acção suspensa e adiada.

1
Há um lapso na epígrafe da segunda parte, O retorno (p. 147), que consiste numa citação do Alcorão.
Trata­‑se, com efeito, da sura IV (conforme à ordenação definitiva dada a este livro sagrado por Abu Bakr,
o primeiro califa, que ficou depositário das suas folhas esparsas); mas o versículo não é o 24, antes o 27,
que diz: “Não deves seduzir a tua mãe, as tuas filhas, as tuas irmãs, etc.”; e nele foi elidida parte do seu
conteúdo, pois que conclui: “Mas, se acontecer, Deus é misericordioso”.
2
Todas as referências se reportam à edição completa da obra de Raduan Nassar (2016), figurando o
número das páginas entre parêntesis.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 21

Estes episódios­‑parágrafos entrançam rememoração, desejo, júbilo e culpa. O que


ressoa neles é uma confrontação entre obstinadas exortações morais, às vezes
objurgações, e a vontade violenta de transgredir. Alternam tempos de aquiescên‑
cia e tempos de revolta. Nesta oscilação, nesta ambivalência, pode o leitor adivi‑
nhar desde o início uma sombra de fatalidade. E ouvimos ressoar estas vozes escri‑
tas, às quais temos de emprestar um tom e um timbre. Ao indicar as zonas mais
sombrias que dominam e arrastam os humanos, o texto assume uma dimensão
de advertência e de admoestação que, no limite, soa quase profética. E a memória
surge, compacta, como nas auras de certos epilépticos, chamadas panorama fit, em
que num instante, vivido como uma eternidade, deflagram e desfilam imagens que
resumem o essencial da vida já vivida. Esta aura precede e anuncia o acesso. Ora, o
protagonista­‑narrador declara­‑se “epiléptico”, fala da iminência dos seus ataques, e
parece colher deles a matéria dionisíaca da narrativa.

Tudo aqui é ao invés da máxima de Apolo inscrita no templo, em Delfos: Nada em


excesso. Embora por vezes surja o desejo apolíneo, invocado como um bálsamo e
pedido como uma cura: “o mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio.” (p. 58).
Ou: “aquele que exorbita no uso do tempo, precipitando­‑se de modo afoito, cheio
de pressa e ansiedade, não será jamais recompensado, pois só a justa medida do
tempo dá a justa natureza das coisas” (p. 57). E este texto confessional parte de um
nó obscuro de culpa, anunciado logo na epígrafe de Jorge de Lima: “Que culpa
temos nós dessa planta da infância, da sua sedução, do seu viço e constância?” A
trama do romance visa clarificar o duplo enigma que aqui se enuncia: por um lado,
saber de onde provém essa culpa perdida no passado; por outro, desvendar por‑
que permanece viçosa na memória, e porque nos acompanha, assombra e inspira.

A parábola do filho pródigo, explicitamente reconhecida, e que contém dentro


dela a parábola interior do faminto (narrada no episódio 13, e depois retomada),
cruza­‑se, na Lavoura, com o poderoso mito de Édipo, modificado na ligação e na
função dos seus mitemas, como é próprio de qualquer mito. – “Dir­‑se­‑ia que os
universos mitológicos se destinam a ser pulverizados uma vez formados, para que
novos universos nasçam dos seus detritos.”3 É um Édipo alterado e transposto do

3
Franz Boas, citado por Claude Lévi­‑Strauss (1958: 227).
22 Raduan e o arcaísmo da lavoura

espaço luminoso da Grécia para uma cultura mediterrânica e patriarcal, ela própria
mudada para estas terras novas do ocidente antárctico.

Atentemos: Édipo sai de Corinto para se prevenir do incesto previsto pelos oráculos;
André foge de casa com o mesmo propósito. A doença (a peste) grassa na cidade, e
há que procurar o culpado e varrer a impureza; a doença (a epilepsia) habita André e
manifesta­‑se nele, tornando­‑o impuro. Édipo chega a Tebas – ou seja, a casa – e con‑
suma os actos anunciados; André volta a casa e reencontra Ana. Édipo seduz a mãe,
André a irmã. Jocasta, sabendo do acontecido, dá­‑se à morte; o pai, informado do que
acontecia, dá a morte a Ana. Na inconfidência dos pastores (de Corinto e de Tebas)
desvenda­‑se o fio todo do enigma; na inconfidência do irmão, Pedro, deslinda­‑se a
trama que expõe a verdade e desencadeia a punição. Com Édipo, e por ele, o pai é
morto (estamos na Grécia); o pai de André (estamos agora com os deuses do deserto)
inflige a morte à mulher impura. Édipo não quer ver, e por isso se cega; André emu‑
dece perante o culminar da tragédia e, com a sua mudez, a Lavoura arcaica se fecha
e se conclui. – “A morte – vem explicar a voz distante e branca do antropólogo – deve
ser integrada na vida para que a agricultura seja possível” (Lévi­‑Strauss, 1958: 245).

Grande veemência e grande fúria neste texto. A divindade do deserto, temível e vinga‑
dora, é interiorizada e incorporada aqui pelo homem velho, que transmigra de gera‑
ção em geração, e é assumida sucessivamente pelas figuras do avô, do pai e do irmão
mais velho, que enfim trai a confidência e leva o pai a perpetrar o ‘crime de honra’,
trazendo ao romance um clarão de tragédia. Ao longo deste livro há um culto, uma
devoção, e por fim uma rejeição, deste homem velho exemplar, austero e castigador,
que incarna a tradição e profere o seu discurso de intolerância e de rancor sob o véu
da ternura e da benignidade. O seu paradigma é o do “ancião cujo asseio mineral do
pensamento não se perturba nunca com as convulsões da natureza; nenhum entre
nós há de apagar da memória a formosa senilidade dos seus traços.” (p. 62). Ele é este
avô tutelar, cujo fatalismo culmina na conclusão universal: Maktub!, está escrito! Mas a
figura do homem velho é sucessivamente idolatrada e recriminada, o narrador oscila
entre um desejo extremo de identificação e um impulso incontido de destruição.

Toda a substância desta escrita ondula pela fronteira indecisa e misteriosa entre
prosa e poesia, e este livro pode ler­‑se como coisa vária: saga familiar, mito drama‑
tizado e romanceado, elegia da violência, ode à natureza, advertência profética,
longo poema erótico. É um cristal de extrema coesão e perfeito talhe, e acontece
que vemos por ele diversamente, conforme à face tocada pelo sol que lhe incide.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 23

Raduan exprime com mestria certos momentos que anunciam, e ainda assim enco‑
brem, o desastre iminente, e se contêm num tempo interior represado. Já no seu
conto O velho, um dos componentes de Safrinha, escrita em 1958, é dito: “E há em
tudo um clima silencioso de espera” (p. 383). E noutro conto, Mãozinhas de seda,
alguém afirma: “Cultivei por muito tempo uma convicção: a maior aventura humana
é dizer o que se pensa” (p. 353). Estão, pois, em jogo a veracidade e o segredo, e sobre‑
tudo a veracidade do segredo. Mas há um tormento que acompanha e anima este
livro. As palavras “tumultuado”, “turbulento” e “faminto” percorrem­‑no e dominam­
‑no, em intensidade e repetição. O grande deus Diónisos triunfa desta escrita.

O mais inquietante no romance é a atenção exclusiva e absorvente prestada à família,


fora da qual ninguém existe e nada acontece. No céu do narrador, a família é a única
constelação: posição rígida dos lugares à mesa; desmoronamento da casa quando
um dos filhos foge; rituais inúmeros, sempre movidos por um desígnio de sofrimento
e pureza. É este huis clos, no seu fechamento absoluto, que traz o desespero e arrasta
à danação. E toda a narrativa está presa do passado familiar como de um íman: “Senti
a força poderosa da família desabando sobre mim como um aguaceiro” (p. 13).

Mas enquanto o escritor nos transmite o adensar das atmosferas interiores de


homens expostos ao assédio das paixões, fala­‑nos da presença intacta da natureza.
Às vezes, a natureza ilumina as metáforas para decifrar a experiência interior; ou as
imagens da natureza são transpostas para os sentimentos humanos e combinam­
‑se com as mímicas humanas que os exprimem, numa perfeita amálgama: “meu
sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um
pomo” (p. 16); “e logo um vento brando há de devolver o gesto soberano dos Teus
cabelos, havendo júbilo e louçania nesta expansão” (p. 108); “este pó primevo (...)
irrompendo numa terra fofa e imaginosa” (p. 54); “debaixo de um céu arcaico (...) só
então nos entregaremos ao silêncio, vasto e circunspecto” (132).

Entretanto, neste drama pungente, a ironia, às vezes o sarcasmo, escondem­‑se na com‑


binatória das palavras. Como se o narrador, para se redimir da crueza do seu desven‑
damento perante o leitor, procurasse por momentos o conforto lúdico de brincar com
as palavras e as metáforas. Ouçamo­‑lo, por exemplo, ao falar da mãe: “não aconteceu
mais do que eu ter sido aninhado na palha do teu útero por nove meses” (pp. 68­‑69);
ou, falando do excesso da própria fala: “expondo a textura da minha língua exuberante”
(p. 111). Assim, enquanto nos narra a mágoa e a desdita da sua insubmissão, encanta­
‑nos com as palavras que, em cores vivas, dançam ao fundo da intriga.
24 Raduan e o arcaísmo da lavoura

Como obter esta atmosfera, e criar este espaço literário com a língua portuguesa? Eis o
prodígio que nos encanta. Como recortar, dentro da língua comum e quotidiana, essa
outra língua privada e possante, que permite a quem escreve tornar­‑se um escritor, e
que há­‑de ser uma língua de transgressão? Num ensaio de Michel Foucault encontra‑
mos esta reflexão: “A literatura (...) é a linguagem ao situar­‑se no limite longínquo de si
mesma.”4 E Proust, em Le temps retrouvé, fala “dessa magnífica linguagem, tão diferente
da que continuamos a falar, e em que a emoção desvia o que queríamos dizer e abre
em seu lugar uma frase bem diversa, emergente de um lago desconhecido onde vivem
essas expressões sem relação com o pensamento, e que por isso mesmo o revelam.”5

Ora, cada escritor revisita em sobressalto o seu lago secreto, perdido na sua fantasia,
no fundo dos seus sonhos, senão do seu delírio. Ninguém mais pode aceder a essas
águas privadas, longínquas e inacessíveis, mágicas e poiéticas. O escritor volta vezes
sucessivas à margem silenciosa do seu lago, em viagens repetidas e inconfessáveis,
a buscar a matéria literária. Daquela água se revigora, dela extrai uma forma própria
e única de dizer, de situar as próprias visões e emoções no mais fundo do seu pensa‑
mento, tornando­‑o então trama literária. Do lago azul se alimenta, daquelas névoas e
águas profundas: dele provêm as suas metáforas, o estilo, a maneira própria de estar
em literatura. E essa língua segunda, escavada e esculpida em metamorfose no inte‑
rior da língua comum, é como uma ferramenta artesanal feita à medida, que exprime
o estar­‑no­‑mundo do escritor com as suas singularidades e visibilidades próprias, em
contraste com o alheamento, a opacidade e a trivialidade do olhar e do sentir comuns.

O tempo desta narrativa é um dos seus enigmas. De resto, ao longo de todo o texto
se inscreve e se oferece uma filosofia do tempo: tempo de retenção, feito de esperas,
pausas, descontinuidades e saltos, de paciências e impaciências que explodem como
actos rebeldes. – “A impaciência também tem os seus direitos!”, lê­‑se na página 92. É
um tempo eleático, de Zenão, paradoxalmente imóvel, avançando por saltos. Assim
nos fala o narrador de um “voo célere de um pássaro branco, ocupando em cada ins‑
tante um espaço novo” (p. 91) – tal como a flecha de Zenão, imóvel na sua essência,
mas ocupando no espaço lugares sussessivos, que são tempos.

4
“La littérature (…) c’est le langage se mettant au plus loin de lui­‑même” (Foucault, 2003 : 13).
5
“ (…) ce magnifique langage, si différent de celui que nous parlons d’habitude, et où l’émotion fait dévier
ce que nous voulions dire et épanouir à sa place une phrase tout autre, émergée d’un lac inconnu où vivent
ces expressions sans rapport avec la pensée et qui par cela même la révèlent ” (Proust, 1954 : 166).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 25

O escritor o ilustra constantemente, e de forma muito concisa na imagem da pomba


que encaminha para as suas mãos, atraída pelo trilho de grãos de milho que lhe
estende, sinuoso e captativo, subtil metáfora para a sedução da mulher desejada: “O
tempo se espreguiçava provocadoramente, era um tempo só de esperas” (p. 97). – E
mais adiante: “Eu esperava e aguardava, porque existe o tempo de aguardar e o tempo
de ser ágil” (p. 99). Por isso, “nenhum grão de mais, nenhum grão de menos” (p. 102).

Ficamos na incerteza, nós, leitores, se esse tempo flui deveras ou se é um simulacro.


Porque, na pena de Raduan, há um tempo de fatalidade: “não se profana impune‑
mente ao tempo a substância que só ele pode empregar nas transformações” (p. 59).
Como se fosse perigoso desafiar, por vontade própria, o fluido natural das aparências
que formam o mundo. Contudo, é o alarme do narrador ao exprimir o seu deses‑
pero que nos mostra afinal que a duração existe, e que lhe estamos submetidos e o
tempo golfa com os seus prodígios, depois de tão longamente represado. Essa é a
sua astúcia: torna­‑se ímpeto e pulsação vivida do narrador, ao auscultar a memória
e por fim ser assediado pelas suas figuras, em que se desvendam as emoções pos‑
santes que encobrem, e as metamorfoses que desencadeiam, deixando­‑o perplexo:
“que instante, que instante terrível é esse que marca o salto?” (p. 101). E logo adiante,
como a reiterar essa dúvida: “não se questiona na aresta de um instante o destino dos
nossos passos” (p. 105).

Igualmente imóvel me parece ser o tempo que tenho tido de convívio com Raduan.
Visito­‑o quase regularmente uma vez por ano, às vezes de dois em dois anos, sempre
na companhia da Gilda, que de início foi o talismã, o ‘abre­‑te sésamo!’ para o conhe‑
cer. Nunca falamos de literatura – embora seja possível falar de livros, dos seus livros
enquanto objectos­‑livro (o livro na sua singularidade, as edições, o aspecto exterior,
incluindo papel, mancha, tipo de letra, peripécias e mal­‑entendidos da produção).

Assim, permanece atento ao lado sensorial das novas edições da Lavoura, incluindo
o seu aspecto gráfico e o seu destino. E torna­‑se evidente que não se afastou emoti‑
vamente da literatura, que há­‑de ter sido, e deve permanecer, a fibra central da sua
vida. Afastou­‑se, sim, da sua obra criativa, como os dei otiosi da história das religiões
se distanciam dos mundos que criaram, sem desistirem de os observar do alto. E
recordo­‑me de uma vez ter assistido em sua casa à projecção de uma película, então
ainda em fase experimental, sobre a Lavoura, e de ter permanecido toda a tarde e
uma parte da noite a conversar sobre o filme, com ele e com os raros convidados.
26 Raduan e o arcaísmo da lavoura

Sempre falamos, afinal, de outros temas, que reconduzem invariavelmente ao labor


da sua fazenda, ou seja, à agricultura. Raduan teria declarado, numa entrevista à
Folha de São Paulo, em 1984, que renunciava à escrita para se tornar fazendeiro.
Eis como abandonou a lavoura da escrita, onde também há húmus e sementes,
para se refugiar no cultivo dos campos, voltar à intimidade da terra e realizar o seu
projecto altruista de disseminar o conhecimento das artes agrárias e dos segredos
do solo. Afinal, por mais moderna que pretenda ser, toda e qualquer lavoura, na sua
ligação íntima com a terra, conservará sempre um fundo ancestral.

Este projecto perfaz o seu sonho de multiplicar os recursos num país de escassez.
Contou­‑me um dia quanto rejubilou ao ver chegar ao cais do famoso mercado Ver
o Peso, em Belém do Pará, os alimentos abundantes extraídos da Amazónia, os pei‑
xes gigantescos, os frutos inúmeros que davam, disse, para alimentar as multidões
de brasileiros. Nós próprios, a Gilda e eu, presenciámos esse espectáculo, numa
noite inesquecível: os barcos saíam das névoas do rio, carregados desses frutos da
água e da floresta, que iam inundando as praças do mercado; os homens corriam
em todas as direcções, a transportar e a arrumar o que vinha do rio; enquanto os
abutres, alinhados às centenas sobre os telhados, aguardavam imóveis o nascer do
dia, para se regalarem com o butim quando os restos juncassem o chão.

A cada visita, os mesmos gestos familiares de ânimo jocoso, a mesma afabilidade,


os gestos bruscos, as explosões de riso. Raduan é um grande ingénuo, movido por
puro idealismo. E o tempo parece suspenso no cenário daquela pequena casa,
quando desses nossos encontros circanuais, que mais parecem um só encontro
prolongado e pronto a retomar­‑se. É ao olhar da varanda, quando se preparam as
despedidas, que um sinal insidioso me revela o andar do tempo: o vértice de um
cipreste, esguio como um obelisco, ali ondula levemente na brisa e, qual ponteiro
de um relógio cósmico, aflorava há anos sob os nossos pés, tendo­‑se depois nive‑
lado com eles, para se elevar agora acima das nossas cabeças.

De onde provém a recusa peremptória deste escritor de voltar à literatura, falar


dela e sequer nela pensar? Julguei ter decifrado este enigma da primeira vez que li
Lavoura arcaica: pressenti então que o narrado estaria demasiado perto do vivido
e do rememorado, e das suas sombras, de onde a inquietação do autor perante o
perigo de dever olhar de novo o que era interdito, ao invés de Orfeu ao procurar
Eurídice na noite. Se assim foi, pensei, o livro foi escrito em dor e aflição tais que
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 27

qualquer retorno lhe é insuportável. E eis que leio agora o texto de uma entrevista
recente que contém uma confissão: “Nassar – escreve o entrevistador – passou um
ano no seu apartamento de São Paulo a trabalhar doze horas por dia no seu livro,
e a chorar todo o tempo. E acrescentou: Digo às pessoas que já não leio mais, mas
elas nunca me acreditam” (Chacoff, 2017). Ou, para regressar ao romance, “corre‑
mos graves riscos quando falamos” (p. 169).

Nunca me conformei com o silêncio literário de Raduan. Uma coisa é saber­‑se algo,
outra é acreditar. Por isso, sabendo embora que arredava os livros em geral, e os ofere‑
cidos em particular, arrumando­‑os e exilando­‑os depois de agradecer a oferta, nunca
desisti de lhe oferecer os meus volumes que foram aparecendo pelo Brasil. Agora, ao
regressar ao seu romance, com um entendimento mais claro deste homem, desta
escrita e das suas raízes, compreendo a afirmação nele contida, atribuída a André, o
protagonista, e que revejo em Raduan: “ao contrário do que se pensa, sei muito sobre
rebanhos e plantações, mas guardo só comigo toda essa ciência primordial” (p. 127).

Mas há uma zona de sigilo e sombra que convém à poesia e à literatura, e não deve
ser desvendada; ou, conforme a um verso órfico, “há um momento em que devem
cessar os nossos cânticos”.

Bibliografia
Chacoff, Alejandro (2017), “Why Brazil’s greatest writer stopped writing?”, The New Yorker, 21,
disponível em: https://www.newyorker.com/culture/persons­‑of­‑interest/why­‑brazils­
‑greatest­‑writer­‑stopped­‑writing (consultado a 04/04/2019).

Cunha, Celso & Lindley Cintra (1986), Nova gramática do português contemporâneo, Lisboa,
João Sá da Costa.

Foucault, Michel (2003), La Pensée du dehors, Paris, Fata Morgana.

Lévi­‑Strauss, Claude (1958), Anthropologie structurale, Paris, Plon.

Nassar, Raduan (2016), Obra completa, São Paulo, Companhia das Letras.

Proust, Marcel (1954), Le Temps retrouvé, Paris, Gallimard.


AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 29

Raduan Nassar:
a (in)felicidade pela literatura ou pela
agricultura (e pecuária)

Arnaldo Saraiva
Universidade do Porto

Quando em 1975 me chegou às mãos e aos olhos, com dedicatória do autor, o


breve romance Lavoura Arcaica só podia ficar surpreso, intrigado ­‑ e deslumbrado.

Por um lado, não havia nesse livro nenhuma das fragilidades discursivas ou estilís‑
ticas típicas de livros de estreia; por outro lado, ele não fazia concessões a moder‑
nices, a linearidades ou a clichés linguísticos, ideológicos e narrativos comuns ao
romance urbano, social, político ou erótico então em voga no Brasil, projetando até
os seus personagens para um espaço rural e para um tempo antigo sugerido pelo
título (que logo se veria que podia implicar também a terra inteira e a história da
humanidade) e revelando, no tratamento da linguagem como no das emoções, um
empenho radical idêntico ao que revelara, poucos anos antes, o romance e o conto
clariceano; por outro lado ainda, tratava­‑se de um texto escrito num português
admirável, admirável pelo seu léxico exuberante, minucioso e preciso, pela soli‑
dez da sua por vezes enredada sintaxe, pela envolvência dos seus variados ritmos,
pelas suas reverberações poéticas (que até podiam valer­‑se de citações de Novalis,
Walt Whitman e Jorge de Lima), pelo fôlego comedido das suas enumerações e
anáforas, pelas suas elipses subtilíssimas, pelo seu vigoroso metaforismo.
30 Raduan Nassar: a (in)felicidade pela literatura ou pela agricultura (e pecuária)

Nessa altura nem sabia que os pais de Raduan eram emigrantes libaneses, mas
quando o soube não fiquei admirado; é por demais notória a dedicação à língua
portuguesa da parte de alguns que nasceram de pais que a não falavam, fosse a
ucraniana Clarice, o judeu polaco Samuel Rawet, o dinamarquês Per Johns, ou o
libanês de origem Salim Miguel, que com a sua revista Sul serviu a lusofonia antes
de se falar em lusofonia (e que nos deixou, com escandaloso silêncio geral, há
pouco tempo). Mas não podemos esquecer outros filhos de libaneses, como o filó‑
logo e dicionarista António Houaiss e o romancista Milton Hatoun, ou os netos de
sírio­‑libaneses Mário Chamie e Carlos Nejar. Esqueçamos, isso sim, o péssimo poeta
também filho de libaneses Michel Temer, que viria a ocupar a presidência do Brasil,
para tristeza ou ofensa de muitos brasileiros, entre os quais está Raduan Nassar.

Na escassa literatura deste não há nenhum conflito entre as culturas da sua origem
árabe e da sua formação cristã, “coroinha” que até foi. Pode mesmo haver conver‑
gência se atendemos às referências que implicam as tradições milenares, a família
patriarcal, o corpo individual ou relacional, as imposições e os interditos explíci‑
tos ou implícitos. Não por acaso, Lavoura Arcaica até contém, dentro da parábola
bíblica do filho pródigo, a parábola do faminto das Mil e uma Noites. Só que em
ambos os casos estamos perante parábolas desconstruídas ou distorcidas, a moral
codificada que se retirava da parábola é claramente desmoralizada. E o que fica
dessas e de outras parábolas ou alegorias que são como regra os textos de Raduan
é apenas a figuração de uma tensão e de um conflito insanável, na “casa velha” ou
na “casa nova”, entre o indivíduo e a família ou a sociedade, entre o atual e o tradi‑
cional, entre a liberdade e a escravidão (ou a “manipulação” a que alude o conto “O
ventre seco”), entre o poder (político, económico, erótico, ou outro) e a submissão
ou rebelião (que pode levar ao sado­‑masoquismo de Um Copo de Cólera, traduzido
como em nenhuma outra obra de língua portuguesa), ou entre o pensamento e o
sentimento.

No conto “Mãozinhas de seda” o narrador, como de costume na primeira pessoa,


começa por falar na “aventura humana” de “dizer o que se pensa” e por aludir à
“moeda antiga” do bisavô que dava a diplomacia como “a ciência dos sábios” (“tal‑
vez o negócio seja fazer média”), mas acaba por repetir com o bisavô: “Às favas o
que a gente pensa!”. E a saída apontada no conto “Hoje de madrugada” parece ser
a do sonambulismo, como no conto “Aí pelas três da tarde” parece ser a do refúgio
numa rede em que se “goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo”.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 31

A casa familiar, como o quarto de pensão ou o planeta, não é um “templo”, mas só


um lugar de “perdição”. As origens que não se escolheram, mau grado a experiên‑
cia ou os conhecimentos que se adquirem numa viagem mesmo aparentemente
banal como a que faz a “menina a caminho” até à descoberta especular do seu sexo,
não salvam de um destino marcado (“maktub”, está escrito) pelo desaire ou pelo
desastre. Viver é, desde tempos imemoriais, “trabalhar com sofrimento”.

Uma obra como a de Raduan Nassar, tão breve, tão substancial e tão clássica (de
primeira classe), obriga­‑nos a pensar no lugar que ela e o seu autor concedem
à literatura. E a resposta parece clara em ambos os casos: ela não passa de uma
efémera mesmo se brilhante evasão intervalar, ou de um “lamento”. A literatura
não salva nada, salvo a si mesma. Não parece mais importante ou nobre do que a
lavoura antiga e moderna ou do que a criação de coelhos e galinhas. E uma página
literária, de alta semiologia, não é necessariamente mais valiosa do que um pros‑
peto sobre sementes. Assim, a (in)felicidade pela literatura é tão viável como a (in)
felicidade pela agricultura (e pela pecuária).

Lição terrível e exemplar para quantos, verborreicos, ambiciosos, vaidosos, se


entregam ao comércio literário.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 33

Ímpeto e atropelo: ficção da palavra


em Raduan Nassar

Clara Rowland
Universidade Nova de Lisboa
Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (NOVA FCSH)

Voz
Numa sequência da primeira parte do filme Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando
Carvalho (2001), durante a conversa entre as personagens André e Pedro no quarto
da pensão onde o primeiro se refugiou, ouvimos a voz de André em off, sobre um
plano dos dois irmãos imóveis, dizendo: “não se constranja, meu irmão, encontre logo
a voz solene que você procura, (...), pergunte sem demora o que acontece comigo
desde sempre, (...), me desconforme depressa a cara, me quebre contra os olhos a
velha louça lá de casa”. Parece ser a mesma voz que, também em off, tinha, nos planos
anteriores, narrado sobre imagens da infância as rememorações de André, num filme
que faz das variações em torno das várias vozes e da voz narrativa um dos elementos
principais da articulação com o texto literário. Não é, porém, a mesma voz – Daney,
a propósito de Bresson (Daney, 2015: 99­‑100), recordava que há, no cinema, diversas
maneiras de estar “off” – porque em nenhum outro momento do filme a voz fora de
campo se dirige a uma personagem presente em campo sem intersectar, de algum
modo, a imagem, e sem, ao mesmo tempo, enfraquecer a estrutura da destinação
que mantém o discurso directo à margem da imagem.
34 Ímpeto e atropelo: ficção da palavra em Raduan Nassar

É um recurso que o filme não explora, posteriormente, de forma consistente, inte‑


grando­‑o num jogo de variações que elide a particularidade do jogo entre os ele‑
mentos que esta cena constrói. Esse facto, porém, não deveria fazer esquecer que
esta cena identifica, com este gesto, uma tensão estruturante de Lavoura Arcaica e,
como tentarei argumentar, de toda a prosa de Raduan Nassar. Porque o que deter‑
mina que a voz de André possa pairar deste modo acima de um plano que, ainda
assim, interpela, é precisamente o facto de que o que ela diz corresponde, no texto
de Raduan, ao que a personagem nos diz que não chegou a dizer. Vejamos Lavoura
Arcaica:

e foram seus olhos plenos de luz em cima de mim, não tenho dúvida, que me fizeram
envenenado, e foi uma onda curta e quieta que me ameaçou de perto, me levando
impulsivo quase a incitá­‑lo num grito “não se constranja, meu irmão, encontre logo
a voz solene que você procura, uma voz potente de reprimenda, pergunte sem
demora o que acontece comigo desde sempre, componha gestos, me desconforme
depressa a cara, me quebre contra os olhos a velha louça lá de casa”, mas me contive,
achando que exortá­‑lo, além de inútil, seria uma tolice, e, sem dar por isso, caí pen‑
sando nos seus olhos, nos olhos de minha mãe nas horas mais silenciosas da tarde
(Nassar, 1999: 17).

Não é a primeira vez que um “grito impulsivo” acontece no texto de Lavoura Arcaica
sem ser pronunciado. Na página anterior, André, num deslize, pensa em perguntar
por Ana, refreando­‑se: “escorreguei e quase perguntei por Ana, mas isso foi só um
ímpeto cheio de atropelos”, para logo acrescentar “eu poderia isto sim era pergun‑
tar como ele pôde chegar até minha pensão, me descobrindo no casario antigo, ou
ainda, de um jeito ingénuo, procurar conhecer o motivo da sua vinda, mas eu nem
sequer estava pensando nessas coisas” (Idem: 16). Do mesmo modo, pouco depois,
afirma: “ ‘essas coisas nunca suspeitadas nos limites da nossa casa’ eu quase deixei
escapar, mas ainda uma vez achei que teria sido inútil dizer qualquer coisa, na ver‑
dade eu me sentia incapaz de dizer fosse o que fosse” (Idem: 28). Toda a primeira
parte do romance é atravessada por esta estrutura: hipóteses de elocução são for‑
muladas, inscritas no texto, entre aspas, e explicitamente recusadas, ou porque
desviadas para outras possibilidades, ou porque invalidadas pelo próprio narrador,
tanto por censura como por correcção. No lugar delas, o silêncio é mantido, ou
outras coisas são ditas. O mesmo acontece, aliás, ao longo de “O Esporro”, explosão
central de Um Copo de Cólera, em vários momentos. Destaco apenas este:
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 35

não que ela não fosse inteligente, sem dúvida que era, mas não o bastante, só o sufi‑
ciente, e eu poderia atrevido largar às soltas o raciocínio, espremendo até ao bagaço o
grão do seu sarcasmo, mas eu não falei nada, não disse um isto, tranquei minha pala‑
vra, ela não teve o bastante, só o suficiente, eu pensava (Nassar, 1992: 35).

É um exemplo entre muitos da novela breve. E tal como nos primeiros casos que
destaquei, o que se acentua aqui é não apenas a virtualidade daquilo que se afirma
como hipótese de discurso, a que já regressarei, mas é também a construção de
uma situação intervalar: nestes períodos longos, efeitos de circularidade desta‑
cam e isolam, frequentemente, os momentos que estou a identificar. No primeiro
exemplo de Lavoura Arcaica, é a referência aos olhos “plenos de luz” de Pedro
(Nassar, 1999:17) que se reconfigura na memória dos olhos da mãe (“caí pensando
nos seus olhos”) poucas linhas depois da incitação censurada. No exemplo de Um
Copo de Cólera, é o refrão sobre o bastante e o suficiente a emoldurar a hipótese de
discurso no interior de uma repetição. O resultado é o reforço do estado de suspen‑
são em que se encontra já o discurso entre aspas ou descrito como virtual. Porque
o que estes exemplos constróem – e, volto a repeti­‑lo, são justamente exemplos,
casos exemplares de um modo discursivo generalizado nestes romances – é um
discurso inteiramente assente sobre a figura da preterição ou paralipse: um dis‑
curso em estado intervalar, que se descreve como não dizendo o que, entretanto,
diz. E que, feito de frases censuradas, descartadas, abandonadas, impronunciadas,
configura­‑se paradoxalmente em jorro, esporro, transe, delírio, ou seja num fluxo
verbal que se sugere colérico, incontido e incontrolável. É então sobre esta apa‑
rente contradição entre cólera e paralipse, tão significativa numa obra que se pro‑
longa, hoje, na figura do escritor que regressa para dizer que nada mais dirá, que
gostaria de reflectir aqui.

Jorro e silêncio

Duas formulações atribuíveis a Raduan Nassar caracterizam, de forma quase


inversa, a centralidade do jorro da fala exaltada em Lavoura Arcaica e Um Copo
de Cólera. Na longa entrevista que concedeu aos Cadernos de Literatura Brasileira,
Raduan afirma que Lavoura Arcaica teve origem num projecto anterior, um
36 Ímpeto e atropelo: ficção da palavra em Raduan Nassar

projecto de romance “numa linha bem objetiva”, em que o monólogo de uma


personagem delirante, na primeira pessoa, teria crescido desmesuradamente
(Cadernos 1996: 29). E se, na mesma entrevista, afirma ter escrito a primeira ver‑
são de Um Copo de Cólera em quinze dias (Cadernos 1996: 29), na nota final da pri‑
meira edição de Um Copo de Cólera, posteriormente suprimida, antes da famosa
afirmação de que algumas citações de Jorge de Lima, Pessoa e Joyce foram
“enxertadas” no texto – a figura do enxerto, ou da citação encastrada, será impor‑
tante para o meu argumento – encontramos a seguinte descrição: “Um Copo de
Cólera”, escrito em 70 e inédito até aqui, é agora publicado em sua segunda ver‑
são. Mais precisamente, foi ampliado o sexto quadro (O Esporro), em relação à
versão original.”1 Reverso da primeira descrição, esta nota chama a atenção para
quanto há de mediado no crescimento descontrolado, agora a partir do seu inte‑
rior, desse capítulo, que a partir do seu próprio título sugere o fluxo imparável de
um discurso excessivo. Com a figura de uma expansão diferida, e por enxerto, a
cólera em Um Copo de Cólera parece poder crescer a partir dos seus interstícios
e fora da vectorialidade implacável do ataque supostamente espontâneo. Não
estamos longe de uma formulação surpreendente de Lavoura Arcaica, quando no
capítulo sete, depois da sua primeira explosão, André, aquietado, pensa dizer a
Pedro (mais uma vez sem chegar a fazê­‑lo): “não se preocupe, meu irmão, não se
preocupe, que sei como retomar meu acesso” (Nassar, 1999: 47).

Acredito que se trata de um ponto central. O transe explosivo da prosa de Raduan


parece fazer­‑se, ao mesmo tempo, de uma unidade de impulso – o fluxo imprevi‑
sível e, a partir de dada altura, imparável – e de uma estrutura reflexiva, interrom‑
pida e sincopada. Toda a estrutura de Lavoura Arcaica, ponteada por capítulos­
‑intervalo que interrompem sistematicamente a linha narrativa e dialógica

1
Reproduzo a nota na íntegra: “Um copo de cólera”, escrito em 70 e inédito até aqui, é agora publicado
em sua segunda versão. Mais precisamente, foi ampliado o sexto quadro (O esporro), em relação à versão
original. Além disso, o autor enxertou no texto versos de Jorge de Lima (“queima­‑me, língua de fogo”,
“transforma­‑me em tuas brasas” e “fogo (espírito) violento e dulcíssimo”, todos de “Espírito Paráclito”);
versos também de Fernando Pessoa (“caiam cidades, sofram povos, cesse a liberdade e a vida”, “quando
o rei de marfim está em perigo, que importam a carne e o osso das irmãs e das mães e das crianças?” e
“nada (pouco) pesa na alma que lá longe estejam morrendo filhos”, todos de “Ouvi contar que outrora,
quando a Pérsia”); o autor parafraseou ainda uma pequena passagem de “O artista quando jovem”, de
James Joyce (“sabe qual é a minha opinião a teu respeito, comparada comigo mesmo?” ...“essa é a única
diferença, apenas essa”) (Nassar, 1978: 83­‑84).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 37

principal, o sugere. Que a percepção deste jorro como um contínuo se sobre‑


põe à consciência da sua estrutura sincopada, creio que é um facto verificável
na experiência de leitura; que uma se alimenta da outra, com implicações deci‑
sivas para a figuração da palavra na obra de Raduan, é o que gostaria de propor
aqui. Num ensaio publicado muito recentemente na New Yorker (Chacoff 2017),
encontramos a seguinte descrição da obra de Raduan: para Chacoff, na prosa
“maximalista” de Nassar, “excess conveys a sense of insufficiency” [o excesso gera
uma sensação de insuficiência]. A tensão que aqui procuro descrever é, acredito,
determinante para este efeito.

Para tornar mais clara esta contradição, vejamos por um momento a estrutura
“expandida” de Um Copo de Cólera. A novela é curta, e nas edições subsequentes à
primeira desprovida de elementos paratextuais. Dos sete capítulos, cerca de vinte
páginas estão distribuídas por seis, e cinquenta páginas estão concentradas no
longo capítulo “O Esporro”, que se configura, à semelhança do delírio de André na
primeira metade de Lavoura Arcaica, como torrente de palavras, “discurso hemorrá‑
gico” – esporro, justamente. No entanto, à diferença do romance, a forma da novela
assenta inteiramente na unidade desse capítulo que, não sendo central, se apre‑
senta como um centro potencialmente ilimitado, desmesurado e recortado pelos
restantes capítulos que assumem a função de moldura: não preparam, justificam
ou antecipam a explosão – que tem a sua fonte na descoberta das formigas, logo
na abertura do capítulo 6 –, antes a destacam e fazem ressaltar contra, por um
lado, a brevidade do resto do livro, e contra a circularidade imposta pela repetição
especular entre primeiro e último capítulo. A sugestão de uma implosão da forma
da novela, de um desvio irrecuperável no seu desenho inicial, é ao mesmo tempo
criada e desmentida por uma moldura que, isolando a explosão, lhe dá forma e
limite.

É certo que, no interior de “O Esporro”, a noção de moldura é amplamente tra‑


balhada. Desde logo, pela referência ao teatro, fundamental a vários níveis para
a leitura de Um Copo de Cólera. Masé Lemos, num ensaio sobre Lavoura Arcaica,
sugere, a partir da imagem da cerca, comum ao romance a à novela, que “a deli‑
mitação do dentro e do fora é o motor que impulsiona as narrativas nassaria‑
nas” (Lemos, 2012: 187). Gostaria de sugerir que essa delimitação, em Um Copo
de Cólera, é feita inteiramente a partir do modelo do teatro. O embate é descrito
como acontecendo num palco, a partir do qual, para a mulher, uma plateia pode
38 Ímpeto e atropelo: ficção da palavra em Raduan Nassar

ser forjada, enquanto que, para o homem, é de um espectáculo sem plateia que
se trata. Nisto, o narrador amplia os efeitos da cólera sobre a forma: se toda a crise
se constrói em torno da destinação desviada da cólera (“alguém tinha que pagar”,
Nassar, 1992: 43), ou seja em torno do modo como o impulso colérico transita de
pessoa para pessoa (das formigas para a mulher para a caseira para o caseiro para
a mulher que tem o tamanho de uma formiga), o gesto fundamental da novela é
transformar toda a acção num palco sem exterior. Contra o esforço da mulher, que
supostamente construiria nos caseiros o seu público, o narrador, que “precisava
mais do que nunca – para atuar – dos gritos secundários de uma atriz” mas “não
queria balidos de plateia” (Idem: 43), vai “puxar para o palco quem estiver ao seu
alcance” (Idem: 36), dirigindo o discurso colérico para todos os presentes, destina‑
tários do impulso verbal. A novela é, então, o teatro da cólera, nesse gesto acen‑
tuando a importância da destinação: no final da novela, esvaziada a cena, “ator em
carne viva, em absoluta solidão – sem plateia, sem palco, sem luzes, debaixo de um
sol já glorioso e indiferente” (Idem: 79), a cólera anula­‑se a si própria, já sem objecto,
instaurando por fim o silêncio – palco que devora a plateia, dentro sem fora, encon‑
tra na moldura o seu limite e anulação.

É tentador associar esta delimitação entre cólera e silêncio que marca o fim do
teatro intervalar de Um Copo de Cólera ao fim da escrita. Como afirma Abel Barros
Baptista: “o abandono permite marcar com o silêncio subsequente um limite que
assinale à palavra colérica esse traço indispensável, porque distintivo: a brevidade”
(Baptista, 2003: 236).

Cólera e intervalo

A exemplaridade da estrutura da novela curta de Raduan Nassar pode, no entanto,


ser revertida, como comecei por sugerir. A própria figura da cerca o sugere: se os
limites, na obra de Raduan, são constantemente erguidos, é também certo que são
continuamente transpostos, como atestam as figuras das formigas ou do filho pró‑
digo. Gostaria de sugerir que uma das formas dessa transgressão das delimitações
estruturadoras reside no modo como o próprio discurso da cólera se faz e desfaz
a si próprio enquanto discurso e palavra dirigida, precisamente através do recurso
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 39

que comecei por descrever. Porque, num sentido muito preciso, o silêncio subse‑
quente à cólera não pode ser desvinculado do silêncio como possibilidade lançada
sobre o discurso pela negação da paralipse: em última análise, na obra de Raduan –
obra ainda em curso, neste sentido – seria sempre possível, ao mesmo tempo, falar
e não falar. Veja­‑se, em Um Copo de Cólera, o arranque da discussão: no regresso do
extermínio das formigas, o narrador encontra a namorada e a caseira separadas,
depois de as ter visto a conversar. Interpelado pela namorada, o narrador percorre,
no seu discurso, ao longo da página, inúmeras hipóteses de resposta, todas afi‑
nal não pronunciadas (“e muitas outras coisas eu poderia contrapor ainda à sua
glosa”), decidido a “trancar” a palavra, a não dizer nada, até que vê dona Mariana,
pergunta por seu Antônio, constrói três hipóteses de resposta (“mais cuidadosa, a
dona Mariana podia inclusive justificar”; “e ela ainda, numa das suas tiradas, podia
até dizer de um jeito asceta”; “e nem que ela tivesse de dizer”, Nassar, 1992: 37)
antes de explodir assim que a caseira abre a boca para falar – sem portanto chegar
a dizer nada – ao fim de dez páginas deste jogo. Ou considere­‑se, de forma atenta,
o “delírio” de André perante o irmão em Lavora Arcaica: no final do terceiro capítulo,
quando sente os primeiros sinais da crise, ocorre a André “aproveitar um resto de
embriaguez que não se deixara espantar com a sua chegada para confessar, quem
sabe piedosamente, ‘é o meu delírio, Pedro, é o meu delírio, se você quer saber’”
(Nassar, 1999: 18). A frase, porém, só será pronunciada no final do capítulo sete,
perante a primeira explosão de André (que pela primeira vez fala, desde a aber‑
tura). Pouco antes, lemos: “afinal, que importância tinha ainda dizer as coisas? O
mundo para mim já estava desvestido, bastava tão só puxar o fôlego do fundo dos
pulmões...” (Idem: 47).

Se a delimitação do dentro e do fora é, como sugeri a partir de Masé Lemos, a


figuração central destas narrativas, é provável que a sua representação mais impor‑
tante seja esta: a do contraste e passagem violenta entre a palavra retida e a pala‑
vra pronunciada, a palavra ouvida ou não ouvida. Assim descritas, as duas novelas
apresentam­‑se como longa encenação do processo explosivo de enunciação, a
partir do qual, expostas, as palavras deverão ser ressignificadas. É por isso parti‑
cularmente perturbadora a imagem, que encontramos em Um Copo de Cólera, das
formigas a invadirem todos os orifícios do narrador:

as malditas insetas me tinham entrado por tudo quanto era olheiro, pela vista, pelas
narinas, pelas orelhas, pelo buraco das orelhas especialmente! e alguém tinha de
40 Ímpeto e atropelo: ficção da palavra em Raduan Nassar

pagar, alguém tem sempre de pagar queira ou não, era esse um dos axiomas da vida,
era esse o suporte espontâneo da cólera” (Nassar, 1992: 43).

É possível aproximá­‑la, em termos de figuração, da representação final da denún‑


cia de Pedro que está na origem do gesto criminoso do pai:

e eu de pé vi meu irmão mais tresloucado ainda ao descobrir o pai, disparando até


ele, agarrando­‑lhe o braço, puxando­‑o num arranco, sacudindo­‑o pelos ombros,
vociferando uma sombria revelação, semeando nas suas ouças uma semente insana
(Nassar, 1999: 192).

A “língua de fogo” do poema de Jorge de Lima, continuamente citada ao longo


do romance, é a primeira imagem do valor cáustico da palavra dita. Lavoura
Arcaica, fundindo palavra e lei na figura do pai, tem aí o seu drama: nesse sen‑
tido, é determinante, mais uma vez, a estrutura intervalar do livro, que coloca
em posições simétricas – no centro e na margem, capítulo quinze e capítulo
trinta, o anti­‑discurso do avô (um arroto silencioso, Maktub) e a discursivi‑
dade prolixa do pai, que fecha o livro. É essa a tensão que marca a figura de
André, ao mesmo tempo paródia do pai e figura tutelada pelo vazio do avô.
Do mesmo modo – embora, é claro, com implicações diferentes – o diálogo
violento entre os amantes de Um Copo de Cólera opõe, no jogo de imagens, os
voos retóricos do homem, soltos e incontroláveis, à tentativa de refreá­‑los da
mulher (“ela disse peremptória, despachando com censura, lacrando meu pro‑
testo, arquivando­‑ o sem consulta, passando enfim no meu feixe de ideias uma
sólida argola de ferro” (Nassar, 1992: 55). A palavra dita é o interdito da obra de
Raduan Nassar.

Paralipse

A paralipse como mecanismo básico dessa tensão deve e não deve inscrever­‑se
nesta lógica, precisamente porque a representa e, ao mesmo tempo, a põe em
causa. Pelo menos de três modos, que gostaria de resumir, aproximando­‑me da
conclusão desta proposta de leitura:
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 41

1. Representa­‑a, oferecendo a estes livros uma figura precisa para a construção


retórica de um jorro represado, retido, que subitamente explode incontrolá‑
vel. A força da palavra assentaria, então, na sua negação, na resistência destes
textos a transpor um limite, de dentro para fora, e na violência com que inevi‑
tavelmente o transpõem. Se o silêncio delimita a cólera, também a impulsiona
e configura.

2. Por outro lado, porém, a paralipse é aqui uma palavra dupla: diz o que não se
disse, mas não o diz àquele com quem não se falou. A distorção da paralipse
é constante ao longo destes textos, e tem o seu melhor exemplo na despe‑
dida entre André e a mãe, no capítulo onze de Lavoura Arcaica: a ladainha das
negações intensifica­‑se, hipóteses de elocução sobrepõem­‑se sem que sejam
formuladas, e nenhum dos dois diz nada. Mas é a Pedro que André conta tudo
isso, é a Pedro que as frases em discurso directo são reportadas – citações
impossíveis de um discurso impronunciado. Do mesmo modo, não é Pedro,
e sim o leitor, quem tem acesso à paralipse do discurso que lhe é dirigido. No
filme de Luiz Fernando Carvalho que comecei por referir, a primeira referência
censurada a Ana é representada por um gesto de André ao espelho: lenta‑
mente, começa a escrever as letras que formam o nome da irmã, para as apa‑
gar antes que sejam vistas por Pedro. É uma representação precisa do efeito
desta paralipse: marca irónica da cena de escrita e de leitura que o discurso
oral, teatralizado, parece submergir. Em rigor, a paralipse suspende o teatro da
cólera, desviando o discurso da sua dramatização e destinação, e englobando,
no mesmo gesto, o público assim interpelado no espaço do palco.

3. Por último, a paralipse corrói a unidade do acesso colérico. Isso acontece,


aliás, também a partir do próprio teatro: a figura do espectáculo sem plateia
como forma delimitada pelo capítulo é construída a partir de dentro, sendo “O
Esporro” atravessado por uma marcação precisa da forma teatral que assume
– primeiro o preâmbulo, depois o bate­‑boca, de súbito, a identificação da
explosão como centro e pela sua auto­‑representação irónica enquanto peça:
“eu só sei que aí a coisa foi suspensa, o circo pegou fogo (no chão do picadeiro
tinha uma máscara)” (Nassar, 1995: 69). O comentário parabático inscrito pelo
narrador no interior do discurso da cólera é reforçado pela própria estrutura
da paralipse, que faz com que o livro esteja, sempre, dentro e fora da cólera,
dentro e fora do delírio: como sugeria Hillis Miller a propósito das “palavras
42 Ímpeto e atropelo: ficção da palavra em Raduan Nassar

que começam por para” (paralipse e parábase, por exemplo), estas não só
estão simultaneamente dos dois lados da linha de separação entre o dentro e
fora, mas também são a própria linha, ligando interior e exterior e permitindo
a saída de um e a entrada do outro, confundindo­‑os2. Se a palavra, negada e
represada, encontra sempre, nestes textos, a sua violenta enunciação, não o
é, por força da paralipse, enquanto expressão violenta da cólera, domínio da
palavra dita sobre a impossibilidade de dizer. A palavra que explode, violenta,
queimando, sobre a estrutura de negação que a continha, é já uma palavra
anulada, contrariada, também ela apenas hipótese, possibilidade entre outras,
errata e exemplo de um modo de dizer (“e me ocorreu também que eu pode‑
ria exortá­‑lo (...), dizendo, por exemplo,” (Nassar, 1999: 76). O excesso, mais
uma vez, gera uma sensação de insuficiência – o silêncio que se segue à cólera
parece devolvê­‑la, apenas, ao silêncio que já trazia inscrito. Como se diz em
Um Copo de Cólera: “que culpa tinham as palavras? existiam, isto sim, eram
soluções imprestáveis” (Nassar, 1992: 52).

Bibliografia
Baptista, Abel Barros (2003), “A lavoura e a fome”, in Coligação de Avulsos. Ensaios de Crítica
Literária, Lisboa, Cotovia, pp. 235­‑240.

Cadernos de Literatura Brasileira nº 2. Raduan Nassar (1996), Rio de Janeiro, Instituto Moreira
Salles.

2
“If words in “para” are one branch of the labyrinth of words in “per”, the branch is itself a miniature
labyrinth. “Para” is a double antithetical prefix signifying at once proximity and distance, similarity and
difference, interiority and exteriority, something inside a domestic economy and at the same time
outside it, something simultaneously this side of a boundary line, threshold, or margin, and also beyond
it, equivalent in status and also secondary or subsidiary, submissive, as of guest to host, slave to master.
A thing in “para”, moreover, is not only simultaneously on both sides of the boundary line between
inside and out. It is also the boundary itself, the screen which is a permeable membrane connecting
inside and outside. It confuses them with one another, allowing the outside in, making the inside out,
dividing them and joining them. It also forms an ambiguous transition between one and the other”
(Miller 2004: 179).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 43

Chacoff, Alejandro (2017), “Why Brazil’s greatest writer stopped writing?”, New Yorker,
21/01/2017.

Daney, Serge (2015), “O órgão e o aspirador (Bresson, o diabo, a voz off e mais algumas)”, in
Clara Rowland, Francisco Frazão e Susana Nascimento Duarte (eds.), O Cinema que Faz
Escrever: textos críticos, Coimbra, Angelus Novus, pp. 91­‑106.

Lemos, Masé (2012), “Lavoura Arcaica ou o trabalho da origem”, in Ana Chiara e Fátima
Cristina Dias Rocha (eds.), Literatura Brasileira em Foco V. Realismos, Rio de Janeiro, Casa
Doze, 2012, pp. 186­‑199.

Miller, J. Hillis (2004), “The Critic as Host”, in Harold Bloom et al. (edd.), Deconstruction and
Criticism, Londres & Nova Iorque, Continuum, 2004, pp. 177­‑204.

Nassar, Raduan (1978), Um Copo de Cólera, 1ª edição, São Paulo, Livraria Cultura.

Nassar, Raduan (1992), Um Copo de Cólera, 5ª edição, São Paulo, Companhia das Letras.

Nassar, Raduan (1999), Lavoura Arcaica, Lisboa, Relógio d’Água.


AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 45

Literatura e utopia:
Raduan Nassar, o belo e o bom.

Gilda Oswaldo Cruz

Em Mãozinhas de seda, Raduan Nassar escreve: “Cultivei por muito tempo uma
convicção: a maior aventura humana é dizer o que se pensa” (Nassar, 2016, p. 353).
Em Lavoura arcaica lê­‑se: “mas que doce amargura dizer as coisas” (Nassar, idem,
p. 54).

Na cerimônia da entrega do prêmio Camões de 2016, em São Paulo, em fevereiro


de 2017, Raduan assim concluiu seu breve discurso contendo críticas severas ao
governo brasileiro:

“Não há como calar.”

Em literatura, Raduan calou­‑se há tempos. Depois do fulgurante romance de


estreia, Lavoura Arcaica, de 1975, e da não menos impactante novela Um copo de
cólera, de 1978, que imediatamente o consagraram como o mais forte prosador
brasileiro de sua geração, Raduan deixou de publicar. Teria, aparentemente, “pen‑
durado a flauta no pinheiro sagrado”, como se dizia na Antiguidade dos poetas
que cessavam o seu canto. Apesar disso, suponho que em nenhum momento
tenha abandonado o seu compromisso original, pois passou a inscrever, agora
46 Literatura e utopia: Raduan Nassar, o belo e o bom.

na terra, a sua convicção platônica de que o belo é indisociável do bom, e de que


na utopia buscada e trabalhada no fazer diário reside uma poiesis comparável à
dos poetas.

Dedicou­‑se a partir da década de 80 a levantar do nada uma grande fazenda loca‑


lizada no município de Buri, com trechos de Mata Atlântica preservada e vastas
áreas de cerrado, e que seria mais tarde (quando seu valor foi avaliado em mais
de 6 milhões de dólares) doada ao Estado e transformada em faculdade pública
de ciências agrícolas, preenchendo um vazio educacional na região. O Campus
Lagoa do Sino, vinculado à Universidade Federal de São Carlos, promove cursos
de Desenvolvimento sustentável territorial, Soberania e segurança alimentar e
Agricultura familiar. Os cursos iniciais de graduação – Engenharia agronómica1,
Engenharia de alimentos  e  Engenharia ambiental – receberam os primeiros 150
alunos em 2014 e contam hoje com 23 docentes.

Como precedentes no mundo das letras, podemos lembrar as escolas e hospitais


para camponeses fundados e financiados por Anton Checov e as iniciativas visio‑
nárias de cooperação e educação que Leo Tolstoi introduziu em sua quinta ances‑
tral de Isnaia Poliana.

Regressando à literatura. No Brasil, onde a dicotomia campo/cidade exibe con‑


trastes gigantescos, seja como escritor/poeta ou lavrador/poeta, Raduan man‑
teve com o mundo da infância, o da paisagem e do trabalho rural, uma relação
tão exclusiva como fecunda. É o seu celeiro de imagens, de experiências funda‑
doras, a origem da sua visão de mundo. Nela a Natureza funciona não apenas
como habitat do homem, mas como realidade onde ele está inserido, para o seu
bem e o seu mal, e da qual nem todo o aparato da cultura o pode separar. E,
assim, vicejam as imagens de fusão ou identificação humana com o mundo natu‑
ral, uma das quais, retornada uma e outra vez como leitmotiv, mostra os pés do
herói metidos na terra, na lama, fundidos com o húmus do qual foi fabricado o
homem adâmico. Citemos:

1
http://www.lagoadosino.ufscar.br/resolveuid/8bec3a76fa4748498c243be75e86d3b0
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 47

tirava as meias e com os pés brancos e limpos ia afastando as folhas secas e alcan‑
çando abaixo delas a camada de espesso húmus, e a minha vontade incontida era de
cavar o chão com as próprias unhas e nessa cova me deitar à superfície e me cobrir
inteiro de terra úmida” (Nassar, idem, p. 34).

Ou: “pés descalços (…) úmidos como se tivessem sido arrancados à terra naquele
instante” (Nassar, idem, p. 11) ; os pés e “seu jeito tímido de raiz tenra.” (Nassar, idem,
p. 12). Ou ainda, a respeito da irmã amada de Lavoura, “meus olhos cheios de amar‑
gura não desgrudavam de minha irmã que tinha as plantas dos pés em fogo impri‑
mindo marcas que queimavam dentro de mim…” (Nassar, idem, p. 35).

Da narrativa torrencial de Lavoura Arcaica podem ser extraídas dezenas de ima‑


gens derivadas da natureza, às quais é investida a função de informar sobre a ação,
os pensamentos, as sensações e as emoções do protagonista, bem mais do que
fornecer pinceladas de cenário. Vejamos mais algumas: “meu verbo foi um princí‑
pio de mundo: musgo, charcos e lodo” (Nassar, idem, p. 90); “a força poderosa da
família como um aguaceiro pesado” (Nassar, idem, p. 13); “as folhas que cobriam a
madeira do corpo” (Nassar, idem, p. 50); “a relva delicada das narinas” (Nassar, idem,
p. 53); “uma cama bem curtida de composto, era de estrume meu travesseiro”; e
“assustando dois cordeiros medrosos escondidos nas suas coxas…Corri sem pressa
seu ventre humoso, tombei a terra” (Nassar, idem, p. 117); “e pensei também na
minha uretra desapertada como um caule de crisântemos”; “nós éramos de terra”.
No final, a mãe da filha sacrificada solta “balidos estrangulados, Pai! Pai!” (Nassar,
idem, p. 195).

O mito de Édipo reaparece em Lavoura Arcaica como um conhecimento do homem


sobre si mesmo, enraízado na realidade biológica e cega dos instintos. A epilep‑
sia do narrador adolescente, com seus súbitos ataques de privação dos sentidos,
remete porventura à auto­‑inflingida cegueira final do herói de Tebas.

Mais adiante, na novela Um copo de cólera, escrita em 1970 e publicada em 1978,


surge de novo a doença, ou seja, uma certa realidade biológica considerada como
circunstância explicativa e determinante de um modo de ver o mundo: “não era
pela profissão, nem ainda pela cabeça, mas pela garganta que se reconhecia a
fibra da reflexão, pelo calibre ranzinza da goela na hora de engolir, um defeito de
anatomia que se encontrava entre os comuns dos mortais na mesma minguada
48 Literatura e utopia: Raduan Nassar, o belo e o bom.

proporção que existia entre os babacas dos intelectuais, vindo pois da enfermidade
– e só daí – a força amarga do pensamento independente” (Nassar, idem, p 36, grifo
meu). Ou ainda, na mesma novela, “fazendo coincidir, necessariamente, enfermi‑
dade e soberania “pra julgar o que digo e o que faço” (Nassar, idem, p. 41).

Lemos na biografia de Raduan Nassar, publicada em wikipedia, que aos quinze


anos de idade o adolescente sofreu uma gravíssima crise epiléptica com sete epi‑
sódios convulsivos em dois dias, o que causou tal comoção na cidadezinha onde
moravam os pais e seus dez filhos que a casa familiar chegou a ser isolada, e o
doente, em vista do alarme da família, transportado à capital do estado por avião­
‑ambulância. Do seu anterior temperamento expansivo e comunicativo pouco
restou após o surto, tornando­‑se a partir daí um jovem introvertido e tímido que
depois de um período de perda parcial de memória só lentamente recobrou as
suas capacidades e pôde retomar os estudos interrompidos.

Na novela Um copo de cólera, escrita três anos antes da criação de Lavoura, mas
publicada posteriormente, vicejam inspiradas imagens provindas do mundo ani‑
mal. Nas cenas amorosas, por exemplo, o narrador se vê transformado em bicho:
“eu cavalo só precisava naquele instante dum tiro de partida” (Nassar, idem,
p. 232); “forjei uma víbora no músculo viscoso da língua” (Nassar, idem, p. 267);
“fosse quando eu em transe, e já soberbamente soerguido da sela do seu ventre”
(Nassar, idem, p. 211), ou, “as penas todas do corpo mobilizadas” (Nassar, idem,
p. 267), ou o reduzido tempo de reação “da tartaruga livre e desenvolta” (Nassar,
idem, p. 272).

Numa entrevista, Raduan Nassar narra que ao escrever essa novela ria­‑se às gar‑
galhadas (em contraste com Lavoura, que segundo ele resultou de nove meses de
trabalho durante dez horas por dia, e em meio a um constante caudal de lágrimas),
o que nos faz pensar em Um copo de cólera como pastoral satírica, um epitalâmio
às avessas, ou mesmo uma caricatura das Bucólicas, de Virgílio. O ligustro, arbusto
ornamental, cuja cerca­‑viva devorada num certo ponto pelas formigas desen‑
cadeia a cólera furibunda do narrador, é uma das espécies vegetais citadas por
Virgílio em seu livro clássico.

A invectiva do eu­‑narrador contra as formigas, culpadas de criar um ponto de


indefensão na armadura vegetal do protagonista, é veemente: “puto com essas
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 49

formigas tão ordeiras, puto com sua exemplar eficiência, puto com essa organi‑
zação de merda que deixava as pragas de lado e me consumia o ligustro da cerca
viva” (Nassar, idem, p. 228).

A mítica Arcádia, as justas entre pastores nas Bucólicas, suas paixões às vezes fatais
por seres de um ou outro sexo, as cruéis rivalidades entre poetas, com a presença
forte do mundo animal e vegetal, são transformadas por Raduan num cenário para­
‑urbano, diluidamente rural, ‑­ “minha casa lá no 27” (Nassar, idem, p. 205) se refere
ao km 27 de alguma estrada da periferia da megalópolis – para o desenvolvimento
de um embate dialogado e crescentemente violento entre um macho “remoto e
frágil” (Nassar, idem, p. 201, epígrafe ), um narciso “fascistão!” (Nassar, idem, p. 262)
de convicções patriarcais, e uma jovem pastora de ideias progressistas e sexuali‑
dade liberada. Embora a construção do protagonista masculino seja impiedosa,
bem cabendo à personagem a designação de porco chauvinista, é curioso que o
autor ilustre com as próprias idiossincrasias as falas do brutal e misantrópico macho
dominador. A jovem e libidinosa “femeazinha livre”, jornalista na cidade grande,
tem falas altivas, embora caricaturalmente ideologizadas, em defesa de sua crença
na possível redenção da humanidade. Tanto pode ser percebida como vítima como
heroína dessa inquietante comédia em torno da guerra dos sexos.

Outra camada interpretativa a Um copo de cólera se oferece, ainda, ao lembrarmos


que a novela foi escrita em 1970, ou seja, na plena vigência da ditadura militar
que governou o Brasil durante 21 anos, dois anos apenas após o Ato Institucional
nº 5 que aboliu no país as garantias constitucionais dos direitos do cidadão. Na
novela, a relação entre indivíduos mimetiza as relações de poder num regime de
força. O precedente literário que conhecemos é o romance inacabado de Ingeborg
Bachmann, O caso Franza (Bachmann, 1978), no qual o arquétipo do fascismo é
encontrado no interior das próprias relações interpessoais. No caso do livro de
Bachmann, é o casamento da protagonista com um médico que a tortura psicolo‑
gicamente até levá­‑la aos limites da destruição física.

Cito nessa matéria as falas das páginas 47 e 48: “a força escrota da autoridade
necessariamente fundamenta toda ‘ordem’, palavra por sinal sagaz que incor‑
pora, a um só tempo, a insuportável voz de comando e o presumível lugar das
coisas” ao que responde a mulher: “força bruta sem rodeios, sem lei que legi‑
time” (Nassar, idem); e ainda a invectiva: “seu gorila” (assim eram chamados os
50 Literatura e utopia: Raduan Nassar, o belo e o bom.

militares no poder). Ao que sucede a réplica do homem: “ao contrário dos bons
samaritanos, não amo o próximo, nem sei o que é isso, não gosto de gente, etc.”
(Nassar, idem), que faz lembrar a famosa declaração do Presidente Figueiredo,
último do período ditatorial: “Prefiro cheiro de cavalo do que cheiro de povo”
(sic).

Outro esteio formador da visão de mundo e do estilo literário de Raduan Nassar


é a religião. Nos seus livros ouvimos os ecos de grandes textos religiosos como
os do Padre Vieira, do Antigo e do Novo Testamento (especialmente, as epístolas
de Paulo), e também do Alcorão. Lemos, nas suas entrevistas, que entre os 10
filhos de seus pais, era ele, o sétimo, entre todos o mais piedoso. Na cidade de
interior paulista onde moravam, o coroinha Raduan despertava diariamente às
cinco e meia da manhã para confessar­‑se, comungar e ouvir missa. Seu pai era
cristão ortodoxo, religião fortemente perseguida no Líbano otomano, e a mãe,
protestante. Para não sofrerem perseguições, batizaram os dez filhos na igreja
católica. Mais tarde a mãe do escritor adotou o credo do marido, e duas das irmãs
de Raduan se casaram na Catedral Ortodoxa de São Paulo. A religião era vivida
na família de maneira profunda: “…o pai quis fazer da casa um templo” (Nassar,
idem, p. 134). Daí, certamente, a volúpia do ímpio vivida pelo herói adolescente
de Lavoura. Já adulto, perdida formalmente a fé, Raduan participou ainda da lei‑
tura integral do Novo Testamento, durante o ano de 1972, em encontros sema‑
nais com os nove irmãos.

Seria admissível pensar que a crença na Utopia social, para Raduan, represente
uma continuação metamorfoseada da sua religiosidade juvenil? Em contraste
com o caso de Arthur Rimbaud, gênio que precocemente “pendurou a flauta
no pinheiro sagrado” e que na primeira juventude chegou a redigir um projeto
de Constituição Comunista (Le Monde, 2017), Raduan manteve a capacidade de
acreditar num possível aprimoramento humano, apesar das dúvidas e reticências
que o seu poderoso intelecto lhe possam suscitar. O desenvolvimento e poste‑
rior doação ao Estado da fazenda Lagoa do Sino é mais uma obra no currículo
do escritor/utopista Raduan Nassar, segundo a nossa tese. Contou­‑me ele uma
vez, com uma de suas gargalhadas jupiterianas, ter reservado para si uma micro­
‑fazenda ao lado da grande que doou, para melhor fiscalizar os usos que dela
farão as autoridades universitárias. Sabe­‑se também que presenteou o capa‑
taz que trabalhou por trinta anos na Lagoa do Sino com boas terras para o seu
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 51

próprio cultivo e condicionou a doação a que o campus mantivesse todo o pes‑


soal anteriormente empregado na Lagoa do Sino.

Cito, para concluir esse tema, trecho de um ensaio publicado no volume Obra
completa de Raduan Nassar, comemorativo do 30º aniversário da Companhia das
Letras, A corrente do esforço humano:

Penso mesmo que não existe nada mais belo e comovente que perseguir utopias.
Só que não será fácil resistir à crença, como não se resiste a uma paixão, de que, em
certo sentido, o homem é uma obra acabada, marcado não só pela experiência pas‑
sada, mas marcado sobretudo – e definitivamente – pela sua dependência absoluta
de valores, coluna vertebral de toda ‘ordem’, e encarnação por excelência das rela‑
ções de poder. Incapaz de dispensá­‑los ao tentar organizar­‑se, é este o seu estigma;
sempre às voltas com valores, vive aí sua grande aventura, mas também sua prisão
(Nassar, idem, p. 417).

Passo agora a dar um testemunho sobre a publicação da primeira edição de


Lavoura Arcaica, na qual desempenhei um pequeno papel e que marcou o início
de uma preciosa amizade com o autor, que se estenderia mais tarde a António
Vieira.

Foi no ano de l974 que Raduan Nassar foi trazido à sede carioca da Editora José
Olympio pela mão de Antonio Olavo Pereira, romancista ele próprio e irmão do
fundador da casa editorial mais importante no país, até então, no campo da litera‑
tura brasileira.

A editora apresentava­‑se como uma empresa familiar com fortes traços patriarcais.
O fundador, deus agora otiosus, José Olympio Pereira, retirara­‑se do comando da
Casa, como a denominava orgulhosamente, e passara a gestão ao filho, Geraldo
Jordão Pereira. Por aquela editora, a partir de sua fundação em 1931, e culminando
nas décadas de 50, 60 e 70 do século 20, foram publicados os livros dos grandes vul‑
tos da prosa, da poesia, da ensaística e da sociologia brasileira. (Sérgio Buarque de
Holanda, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Guimarães Rosa, Carlos Drummond
de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge Amado, Pedro Nava, João Cabral de Mello
Neto, Gilberto Freyre, Antonio Carlos Villaça e um longo etc.), a elite, enfim, da cria‑
ção cultural brasileira. Eclético, habilíssimo na condução de seus contactos sociais
52 Literatura e utopia: Raduan Nassar, o belo e o bom.

e políticos, José Olympio publicara durante a ditadura de Getúlio Vargas (1930­


‑1945) quase simultaneamente um livro do ditador e o de uma de suas vítimas, o
grande romancista alagoano Graciliano Ramos, então perseguido e encarcerado
por sua ‘militância comunista’. A publicação de um livro pela José Olympio outor‑
gava, ainda em 1974, ou seja, em plena ditadura militar – prestígio imediato ao seu
autor.

A editora dispunha de uma sede vistosa de quatro andares no bairro de Botafogo.


Por ali passava regularmente a nata da intelectualidade brasileira, quase todos um
tanto desgostosos com a nova orientação imprimida à Casa pelo filho do funda‑
dor, desinteressado em seguir simplesmente as pegadas paternas. A nova direção
empenhava­‑se antes em traduzir títulos norte­‑americanos de vocação comercial
e introduzir a produção de artigos didáticos, filmes e jogos. Todavia, por questões
contratuais, continuavam a ser publicados ali os livros dos grandes escritores, con‑
siderados como fundos de catálogo rentáveis a longo prazo.

Nesse quadro, ocupava eu a partir de l973 o lugar de secretária do Conselho


Editorial, o qual se reunia mensalmente numa ampla sala do último andar da sede,
cujas paredes estavam forradas até o teto com as obras encadernadas publicadas
pela J.O. desde a fundação. O irmão­‑romancista de José Olympio, António Olavo
Pereira, deslocava­‑se mensalmente da filial de São Paulo, onde trabalhava, para
essas reuniões. A minha função era a de estabelecer a pauta da reunião, anotar as
decisões e verificar o seguimento das providências decorrentes das decisões do
conselho. Assistiam à reunião, além do diretor executivo, filho de J.O., os chefes
dos departamentos comercial, de produção (um coronel do exército, responsável
pouco mais tarde pela censura a um dos originais mais brilhantes dos que por ali
apareceram), jurídico e editorial.

Para minha surpresa, percebi que a qualidade literária das obras a serem consi‑
deradas era a menor preocupação daqueles ilustres conselheiros. Os originais, ou
as reedições candidatas a publicação, eram avaliados exclusivamente a partir das
perspectivas de venda de cada um ou da força política ou social dos seus padri‑
nhos fora da editora. Mesmo assim, eu contava com um módico orçamento para
remunerar relatórios de leitura sobre originais inéditos.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 53

Uma tarde, recebi um telefonema de Antonio Olavo. De algum modo, ele perce‑
bera em mim um viés literário. Queria recomendar­‑me expressamente a leitura
dos originais de um escritor paulista até então inédito. Na próxima reunião me
entregaria o pacote e pedia que eu fosse rápida na leitura. Assim o fez e, como
costumava, levei eu para casa os originais por ele tão veementemente recomen‑
dados. E lembro ainda com absoluta clareza o espanto, o encantamento, o cho‑
que ao descobrir a voz possante, o caudal narrativo que inaugurava uma prodi‑
giosa fala que possuía a imediatez emocional da música e que mais tarde seria
conhecida mundo afora. Eram os originais datilografados de Lavoura Arcaica que
eu tinha em mãos.

Antonio Olavo e eu passamos a partir daí a conspirar conjuntamente para a publi‑


cação do romance. Daí a alguns dias apareceu na sede, em sua companhia, o
próprio Raduan Nassar. Vestia­‑se como sempre, ou seja, como um fazendeiro. O
mesmo blusão largo, as mesmas cores puxando para o bege (assim ele compa‑
receu à engravatada cerimônia de entrega do Prêmio Camões), sempre em cores
terrosas. Era de uma monumental timidez.

Falei­‑lhe do meu entusiasmo. Forjou­‑se uma simpatia e uma confiança imedia‑


tas, apesar de seu encabulamento. Apesar dos nossos esforços, de Antonio Olavo
e meus, a Casa condicionou a publicação a que o escritor a financiasse. Foi uma
humilhação a que Raduan se prestou muito contrariado. Seus irmãos adiantaram
a quantia. Recentemente, durante um dos almoços puxados a quibe com os quais
ele nos regala todos os anos, narrou que a Editora lhe ofereceu dali a alguns anos os
restos encalhados da primeira edição de Lavoura, que ele comprou com desconto
e armazenou, com certa negligência, num armário da garagem de sua casa em
Perdizes. Passado certo tempo, verificou que o ‘encalhe’ fora destruído pela umi‑
dade e parcialmente devorado pelas formigas. Mas, entretanto, o seu triunfo che‑
gara, acumulavam­‑se os prêmios literários e as reedições, e ele passaria a ser fes‑
tejado como o escritor maior que é, a cujas obras as melhores editoras do mundo
abrem cobiçosamente as portas.

Quero lembrar ainda outro episódio marcante. Em 2001, Raduan nos chamou,
a António e a mim, para assistir com ele na casa de Perdizes o copião do filme
Lavoura Arcaica, do diretor carioca Luiz Fernando Carvalho. Pudemos perceber,
durante as quase quatro horas de projeção (o filme seria depois reduzido), o
54 Literatura e utopia: Raduan Nassar, o belo e o bom.

prodigioso tino artístico do nosso amigo, ao sinalizar, com rigor artesanal abso‑
luto, os cortes que ainda deveriam ser feitos para que o filme se tornasse – como
aconteceu – também ele uma obra prima. O diretor, para preparar as filmagens,
internara­‑se com todo o elenco durante três meses numa fazenda no interior
de Minas Gerais, onde os atores aprenderam a executar as atividades agrícolas
exibidas no filme e a atriz principal tomou lições de dança para encarnar Ana,
a irmã­‑amada. O próprio Raduan, conhecido por sua aversão a viagens, não se
furtou a ir à fazenda supervisionar os trabalhos. Dessa forma, só aparentemente
afastado da literatura, e de fato socialmente recluso, vendo e recebendo apenas
amigos íntimos e a família, Raduan não deixou jamais de pastorear os destinos de
sua obra, hoje aclamada no Brasil e no mundo ocidental e merecedora do maior
galardão da lusofonia.

Para terminar, quero retomar uma confidência que me fez Raduan há muitos anos.
Revelou­‑me que a responsável pelo enamoramento do adolescente pela língua e
literatura em português era a sua irmã Rosa, professora do ginásio em Catanduva,
onde residia a família. Licenciada em letras clássicas pela USP, helenista premiada,
fora ela a abrir os olhos e os ouvidos do irmão mais jovem para o idioma de Camões.
Pedi a Raduan que me mandasse algum depoimento sobre Rosa Nassar Martins,
tendo recebido em seu lugar o testemunho de uma de suas discípulas, Sylvia Jorge
de Almeida Martins, também ela professora de português. Sobre Rosa, transcrevo
o que escreve Sylvia:

Altiva, rápida, erecta, ela entrava na sala… e seus olhos profundos nos encara‑
vam firmes e enérgicos. Assinalava na lousa algumas das principais ideias que
nos expunha sobre a lígua portuguesa. Sua aula era viva, cativante, fluente. A voz
grave, vibrante, num tom caloroso, contava de outros mundos, de outra gente,
de irmãos de idioma, da cantada força lusitana, do gigantesco berço brasileiro a
aconchegar o linguajar português. (…) E tínhamos de ler, e de saber, e de escrever
e de provar!… Canto hoje a força dentro de mim erguida pelo seu trabalho, Rosa
Nassar (Martins, 2017).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 55

Bibliografia
Bachmann, Ingeborg (1978), “Der Fall Franza”, Werke Dritter Band, Munique, Piper Verlag.

Le Monde (2017), hors série: “Arthur Rimbaud, le génial réfractaire”.

Martins, Sylvia (2017), carta de 20 de Fevereiro.

Nassar, Raduan (2016), Raduan Nassar. Obra completa, São Paulo, Companhia das Letras.
56 Literatura e utopia: Raduan Nassar, o belo e o bom.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 57

A estética do bagaço.
O génio intranquilo e as suas promessas
de abundância debaixo da peneira

Joana Matos Frias


Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

Yet do much less, so much less, Someone says,


(I know his name, no matter)—so much less!
Well, less is more, Lucrezia: I am judged.

Robert Browning
«Andrea del Sarto, called ‘the faultless painter’»

Lede além
do que existe
na impressão.

E daquilo
que está aquém
da expressão.

Jorge de Lima
«Canto VII: Audição de Orfeu»
58 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira

Raduan Nassar é um daqueles autores contemporâneos cujas estra­tégias autorais no


plano extra­‑textual foram decisivas para a leitura, recepção e inter­pretação da obra:

i. em primeiro lugar, por ter produzido uma obra assumidamente escassa –


«minha obra é um livro e meio», comentou em jeito de litotes num dos seus
depoimentos (cf. Meireles, 2016), assim justificando qualificações como a de
«biblio­gra­­fia enxuta», que Leyla Perrone­‑Moisés cedo lhe aplicou na Coló­
quio/Le­tras, ao profetizar que Lavoura Arcaica seria um livro sem sequên­cia
(Perrone­‑Moisés, 1977: 96­‑97);

ii. em segundo lugar, por ter ousado trocar a prática e a criação literárias pela
actividade agrícola, optando assim por viver as Geórgicas ao invés de as ler,
ou melhor, por viver a Lavoura ao invés de a escrever (nos termos do seu que‑
rido Jorge de Lima, «Os bois e os versos indo fluentemente, / ruminações de
tempo, de bagaços»; Lima, 1958: 826);

iii. por último e em síntese, ao apresentar­‑se como a imagem e representação


decisivas da resistência à índole socializadora1, económico­‑financeira e mer­
can­til do campo literário que domina a actualidade.

I. O primeiro destes aspectos tem­‑lhe claramente granjeado um lugar de des­ta­


que no âmbito do enredo da ficção narrativa de língua portuguesa, onde é rarís‑
simo presen­ciar­mos histórias de contenção autoral neste senti­do mini­ma­lista
de less is more, o que o irmana antes a uma elite de escri­tores mais directamente
asso­ciados à poesia, de que se­riam exemplos máxi­mos Cesário Verde e Camilo
Pessanha, na sua qualidade ini­gualável de one hit poets. Tal associação não é
obviamente desprovida de um signifi­cado histórico­‑literário mais consistente,
se reconhecermos nas três obras publicadas de Raduan Nassar (um romance,
uma novela, uma colectânea de contos) o carácter genológico híbrido que
tão insis­tente­mente lhes tem sido atribuído, numa tentativa teórico­‑crítica de

1
Lê­‑se aliás em Lavoura Arcaica, numa passagem de interpretação programática: «­‑ Já disse que
não acredito na discussão dos meus problemas, estou convencido também de que é muito perigoso
quebrar a intimidade, a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo, e não descubro
de onde tira a sua força quando rompe a resistência do casulo; contorce­‑se com certeza, passa por
metamorfoses, e tanto esforço só para expor ao mundo sua fragilidade» (Nassar, 2016: 168).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 59

detectar as matrizes líricas de textos nos quais a prosa tem no ritmo o seu fac‑
tor mais estruturante (penso, muito em par­ti­­cular, no caso Um Copo de Cólera);
por outro lado, porém, qual­quer leitor atento terá ainda condições de compre­
ender que o facto de a totalidade da obra coincidir com a sua própria súmula
(cerca de 400 pequenas páginas muito bem respiradas, na recente edição da
Companhia das Letras) deriva de um entendi­mento muito específico por parte
do Autor da natureza singular das relações entre vita activa e vita contempla‑
tiva, ou entre tempo e duração, que cedo enun­ciou na primeira obra publicada,
Lavoura Arcaica, onde se pode ler em registo de arte poética:

[…] rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o


tempo, aproximando­‑se dele com ternura, não contrariando suas dispo­sições,
não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento
para o seu fluxo, brindando­‑o antes com sabedoria para receber dele os fa­vores
e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem su­premo,
e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve
pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar­‑se com
o que não é; por isso, ninguém em nossa casa há de dar nunca o passo mais
largo que a perna: dar o passo mais largo que a perna é o mesmo que suprimir
o tempo necessário à nossa iniciativa; e ninguém em nossa casa há de colocar
nunca o carro à frente dos bois: colocar o carro à frente dos bois é o mesmo que
retirar a quantidade de tempo que um empreendimento exige; e ninguém ainda
em nossa casa há de começar nunca as coisas pelo teto: começar as coisas pelo
teto é o mesmo que eliminar o tempo que se levaria para erguer os alicerces e
as paredes de uma casa; aquele que exorbita no uso do tempo, precipitando­‑se
de modo afoito, cheio de pressa e ansiedade, não será jamais recompensado,
pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas, não bebendo
do vinho quem esvazia num só gole a taça cheia; mas fica a salvo do malogro
e livre da decepção quem alcançar aquele equilíbrio, é no manejo mágico de
uma balança que está guardada toda a matemática dos sábios, num dos pratos
a massa tosca, modelável, no outro, a quantidade de tempo a exigir de cada um
o requinte do cálculo, o olhar pronto, a intervenção ágil ao mais sutil desnível;
são sábias as mãos rudes do peixeiro pesando sua pesca de cheiro forte: firmes,
controladas, arrancam de dois pratos pendentes, através do cálculo conciso, o
repouso absoluto, a imobilidade e sua perfeição; só chega a este raro resultado
aquele que não deixa que um tremor maligno tome conta de suas mãos, e nem
60 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira

que esse tremor suba corrompendo a santa força dos braços, e nem circule e se
estenda pelas áreas limpas do corpo, e nem intumesça de pestilências a cabeça,
cobrindo os olhos de alvoroço e muitas trevas (Nassar, 2016: 56ss.).

II. Se a solidez da resistência de Raduan Nassar à sociedade do cansaço onde a


acti­­vidade criadora também habita parece violentar os mais instituídos princí­
pios da vida literária que caracteriza os nossos tempos, o facto complementar
de tal falha na produtividade romanesca (e uso aqui ambos os termos propo­
sita­­­damente, lembrando o título de Bruno Vieira Amaral «Raduan Nassar: O
maior escritor brasileiro em inactividade») se ter traduzido numa preferência
pela acti­vidade agrícola (num gesto bem mais radical do que o de Jacinto
agarrado ao seu Dom Quixote em A Cidade e as Serras) veio ainda pro­vo­car um
sismo maior, que em Janeiro de 2017 Alejandro Chacoff resumiu nas páginas
da The New Yorker nos seguintes termos: «Writers who choose not to exercise
their talents can provoke a range of reactions in readers and fellow­‑writers,
from envy to exas­peration to awe. Nassar’s early retirement was received
in Brazil with a sort of fascination tinged by a hint of offense. In de­ciding to
become a farmer—not an idle dweller but the owner of a pro­duc­tive, medium­
‑sized fazenda—he had downgraded the status of literature» (Chacoff, 2017)2.

Ora, o que parece extremamente curioso, do ponto de vista de uma sociologia da


literatura, face a casos como o de Raduan Nassar ou, no panorama português, a
casos similares recentes como o José Miguel Silva ou Herberto Helder (este não
em termos de produção, mas da escusa à vida social que o mercado literário cres‑
centemente quis impor), é que essa tentativa de fuga resulta, quase invariavel­
mente, numa espécie de hiperbolização da figura do Autor sobre a sua Obra, com
efeitos clara­mente muito perversos, como os que levam a que se sobre­va­lorize
desmesu­ra­da­mente qualquer paratexto com que o dito escritor decida presentear

2
Numa entrevista para a revista Veja, no final dos anos 90, o escritor já se questionava: «Abandonei o
curso científico e pulei para o clássico, abandonei um curso de letras na universidade, o curso de direito
no último ano, a empresa familiar assim que meu pai faleceu. Abandonei ainda uma criação de coelhos,
o jornalismo e outras coisas mais. Tudo somado, só levei a pecha de inconstante. Por que só quando
abandonei a literatura eu teria me transformado em personagem fascinante?» (apud Cariello, 2012).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 61

a comu­nidade: peritextos, por um lado, como prefácios & posfácios3, mas muito
em par­ticular todo aquele conjunto de actos enunciativos que Genette classificou
como epi­textos, isto é: correspon­dência, depoimentos, entre­­­vistas, conversas – e
destes, muito em particular, a classe dos epitextos públicos –, cuja especificidade
espacial (ao contrário do peritexto, o epitexto não está material­mente ligado ao
livro e portanto circula num espaço físico e social virtualmente ili­mi­ta­do) tem cla‑
ras repercussões pragmáticas e funcionais, uma vez que atinge um público muito
mais alargado do que o público­‑leitor­‑da­‑obra (cf. Genette, 1987).

Se é certo que este tipo de enun­cia­­­dos, como assinala ainda Genette, se concentra
menos na obra do que na vida do au­tor e na sua relação com o momento histórico
individual e colectivo, parece assim fazer parte do seu protocolo enunciativo uma
espécie de indistinção entre as figuras do au­tor empírico e do autor textual. Em rigor,
o fenómeno acaba por inverter a lógica sub­ja­­­cente ao poema que Herberto Helder
dedicou ao escultor Luis Jiménez, que «morreu es­­ma­gado pela sua obra», levando a
que escritores com estas caracte­rís­ticas provo­quem uma espécie de esmagamento
do texto da Obra sob o poder avassalador do dis­cur­­so do Autor, mesmo quando este
não fala, conforme denuncia um título como o de Nil­za de Campos Becker, «Raduan
Nassar: Da linguagem poética ao silêncio do escri­tor» (2011)4.

Ocorrem­‑me estas considerações preliminares a propósito justamente de uma


entre­vista que Raduan Nassar concedeu (e sublinho a semanticidade do verbo con‑
ceder) aos Cader­nos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles, para integrar
o número que lhe foi dedicado em 1996, há mais de 20 anos, e que ficou conhe‑
cida como «A con­versa». Talvez seja fundamental, num plano imediato, não igno‑
rarmos a natureza media­­da da circunstância interlocutiva, que em grande medida
determina as respostas em função das perguntas colocadas, bem como o facto
de se tratar rigorosamente de uma «conversa» (entretien) e não de uma entre­vista
(interview) dessas em que o entre­vis­­ta­dor parece ser, como aponta Genette, uma

3
N.B. Raduan Nassar tende a reduzir os peritextos ao mínimo: embora mantenha, por exemplo, a Nota
final de Um Copo de Cólera, na qual indica algumas fontes intertextuais, o mesmo não acontece no caso
de Lavoura Arcaica, cuja Nota da 1ª edição – que esclarecia de forma análoga que a célebre parábola do
faminto seria fruto da distorsão de uma das narrativas breves de Mil e Uma Noites – foi posteriormente
suprimida (cf. Rodrigues, 2006).
4
Ou ainda «O silêncio de Raduan», de Otavio Frias Filho, já de 1996.
62 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira

«não­‑pessoa». No introito da «conver­sa» com várias pessoas, qualificada como


«rara» (no total serão umas dez), podemos ler o co­men­tário que se segue:

Para Raduan Nassar, o capítulo menos atraente da literatura sempre foi o do burbu­
rinho literário — noites de autógrafos, debates, assédio da imprensa. Resultado: ele
jamais admitiu autografar suas obras em festas de lançamento, não hesitou em com­
parecer a um encontro de escritores na França só para dizer à plateia que nada tinha a
declarar e descobriu um modo educado de falar aos jornalistas que pode recebê­‑los,
sim, a qualquer hora, desde que a conversa não gire em torno de literatura ou temas
afins. Não é de estranhar, portanto, que sejam raras as entrevistas dadas por Raduan.

Nesta que concedeu aos CADERNOS, o autor de Lavoura Arcaica concordou em que‑


brar duas regras que há anos vinha impondo a si mesmo. A primeira: sempre econô‑
mico em palavras, Raduan se dispôs a uma sabatina de setenta perguntas formuladas
pela equipe da revista e por convidados. A segunda: para responder às questões e
preparar sua participação neste número, ele manteve perto de dez encontros com
Antonio Fernando De Franceschi, diretor dos CADERNOS (em sua casa em São Paulo e
na Fazenda Lagoa do Sino, onde foi fotografado).5

Note­‑se de imediato como as linhas introdutórias, da responsabilidade do editor


ou editores do texto, em tudo configuram a retórica própria do Autor­‑fetiche, essa
que parece reatribuir um valor ritual ao Autor e às suas (raras) palavras, bem como
a quem consegue a proeza de as obter, numa tentativa declarada mas antago­ni­
camente pós­‑moderna de restituição da aura por via da recuperação de um vínculo
singular entre valor de existência e valor de exposição; em rigor, trata­‑se já de uma
súmula de lugares­‑co­muns frequentemente contraditórios, bem flagrantes na pas‑
sagem em destaque: o Autor não dá autógrafos nas sessões de lançamento a que
no entanto vai (decerto contra­­­riado); o Autor diz que não tem nada a declarar num
Encontro de Escritores a que no entanto vai (decerto contrariado); o Autor não dá
entrevistas, mas no entanto dá esta (decerto contrariado)6; o Autor tem regras sagra‑
das que duram há décadas e que no entan­to quebra a título excepcional (decerto

5
Disponível em https://blogdoims.com.br/entrevista­‑com­‑raduan­‑nassar­‑2/.
6
Assim se integrando numa já encorpada linhagem de autores famosos com conhecida aversão a
entrevistas.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 63

contrariado); o Autor é avesso à vida pú­bli­ca e no entanto deixa­‑se foto­grafar em


pose (decerto contrariado). E talvez pudés­semos acrescentar: 1) a notícia «Apesar da
marcante ausência de vida literária há cerca de duas décadas, Nassar recebeu esta
segunda­‑feira a distinção [prémio Camões], com o júri a elogiar a “complexidade das
relações humanas” presente nas suas obras» (Marques/ Pereira, 2016); 2) apesar de
ter abandonado a literatura, em 2016 a Companhia das Letras publicou uma edição
da sua obra completa com a integração de textos inéditos7.

Curiosa e significativamente, no exacto dia em que Raduan Nassar recebeu de facto


o Prémio Camões numa cerimónia que não por acaso se tornou notícia «viral» para
lá do círculo restrito dos meios culturais e literários, na imprensa portuguesa foi
pu­blicado um artigo de opinião com o sugestivo título «O génio calado». O texto, de
António Guerreiro, em nenhum momento alude ao escritor brasileiro, mas podia, já
que nele o crítico procura reconstituir em breves linhas em que consistiria o génio, de
modo a justificar o valor que no panorama mediático português tem atingido l’en‑
tretien infini protagonizado por António Lobo Antunes. Não se trata, obvia­­mente, do
caso de um escritor com obra escassa ou que tenha parado de escrever (mui­to pelo
contrá­rio), mas interessa­‑me muito em particular o juízo irónico que Guer­reiro emite
quando especula sobre as razões que estarão na base de tanta taga­re­lice:

farei uma pergunta ingénua: o que tem o escritor António Lobo Antunes que o torna
um entrevistado apetecível mesmo na época de pousio, fora da circunstância da publi‑
cação de um novo livro? (…). A minha hipótese, que será mais do que engenhosa
(outra vez a etimologia), desdobra­‑se num duplo movimento: 1) nenhum outro escri‑
tor português vivo proporciona aos leitores um confronto tão vivo e tão dramático
com o Génio; 2) quanto mais aumenta a necessidade social de estupidez, mais cresce
o entusiasmo colectivo pelo Génio (e na medida em que é beneficiado por esta lei, o
Génio entende que não deve fazer nada para a contrariar) (Guerreiro, 2017).

7
Cf. Otavio Frias Filho: «O silêncio de Raduan virou uma encantação, um mistério quase policial. Já
teria dito o que tinha a dizer? Dedicava­‑se agora a uma espécie de anti­‑literatura, a fim de denunciar,
pelo mutismo, o embuste das vaidades literárias, da indústria da fama? Descobrira algo que não valia
a pena nem seria possível verter em palavras? É possível, até, que a decisão não fosse uma decisão,
mas de início uma brincadeira, um capricho temporário a que o escritor se viu acorrentado conforme
tomava vulto o mito do silêncio, que já não podia ser quebrado sem o risco de uma desmoralização
provavelmente embaraçosa, talvez irreversível» (Frias Filho, 2000: 175).
64 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira

Se transpusermos, com as reservas necessárias, a proposta de Guerreiro para o


equacio­na­mento da conversa dos Cadernos de Literatura Brasileira com o autor de
Lavoura Arcaica, facilmente com­pre­en­de­remos como ela suscita uma perturbação
da figura do dandy pelas solicitações do hobby (valho­‑me da dicotomia proposta
por Pinson no seu ensaio de 2003), numa clara imposição oriunda da sociedade
do espectáculo e exposta na decorrente civilização do espectáculo (entre Debord
e Vargas Llosa, portanto): «Sob todas as suas formas particulares de informação
ou propaganda, publicidade ou consumo direto do entretenimento», preco­nizava
Guy Debord na época em que Raduan produzia livros mais do que trigo, «o espe‑
táculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. [...] Conside­
rado segundo os seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e
a afir­ma­ção de toda a vida humana, socialmente falando, como simples aparência»
(Debord, 2005: 8; cf. Meizoz, 2016). Trata­‑se assim, na rea­li­dade, de exibir o valor do
epitexto público como um valor de existência que vai ao encon­­­tro do desejo do lei‑
tor: esse desejo de uma figura autoral que, contra­riamente ao que quis Barthes, não
se circunscreve ao texto, à obra, mas precisamente ao que a trans­cen­de, conforme
apontou com toda a pertinência Philippe Lejeune no seu Moi Aussi, ao reconhecer
que todo o leitor tem a tentação – a favor de Sainte­‑Beuve e contra Proust, diríamos
nós – de derivar do texto para uma curiosi­dade sobre o autor que o pacifique da
incerteza engendrada pela leitura, caindo assim inevitavelmente na «ilu­­são bio‑
gráfica» (de que a «falácia intencional» não deixaria de ser uma variante deci­si­va)8.

É desde logo flagrante, por conseguinte, que na conversa aqui em causa nos encon­
tramos bastante longe de uma certa tradição dialogante ou coloquializante da cultura

8
Cf. Philippe Lejeune, «L’image de l’auteur dans les médias» (in 1986: 87ss.): «L’auteur est, par définition,
quelqu’un qui est absent. Il a signé le texte que je lis — il n’est pas là. Mais si ce texte me pose des
questions, il est bien tentant pour moi de dériver en une curiosité sur l’auteur, et en un désir de faire sa
connaissance, l’état de trouble, d’incertitude ou d’éveil engendré par la lecture. C’est ce que j’appellerai
l’illusion biographique: l’auteur apparaît comme la «réponse» à la question que pose le texte. Il en a la
vérité: on aimerait lui demander ce qu’il a voulu dire… Il en est la vérité: son œuvre “s’explique” par sa
vie. Au moment où je produis ma lecture, je vais m’imaginer remonter vers une source qui la garantit, et
m’enfoncer dans un mirage plus ou moins tautologique, puisque le plus souvent la “vie” est reconstruite
à la lumière de l’œuvre qu’elle doit expliquer. Mirage d’autant plus insidieux qu’il n’est pas tout à fait
un mirage: on est souvent encouragé à réagir ainsi par l’auteur lui­‑même, qui tend plus ou moins
directement à se représenter dans son œuvre, ou donne à penser qu’il s’y est représenté. Clef de son
œuvre, l’auteur est en même temps perçu comme un être mystérieux du seul fait qu’il écrit. On rêve sur
sa puissance, qu’on mesure à l’effet ressenti pendant la lecture».
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 65

ocidental, que teria no Banquete de Platão o seu exemplo matricial e mais significativo,
pois o que aqui se encena é da ordem da conversa enquanto epitexto característico
da Moder­nidade, e portanto pró­prio da República das Letras: na descrição de Barthes,
«parte de um jogo social de que ninguém pode escapar ou [...] de um empreendi‑
mento intelectual colaborativo entre escritores e media» (Barthes, 1981: 300; trad.
minha; cf. Meurée e Martens, 2014). O que significa desde logo e em primeira instância
que se colocarão problemas complexos entre a expectativa de autenticidade que a
presença real do autor sugere e a pose ou a postura que por outro lado a presentifica‑
ção de uma situação cénica obrigato­ria­men­te lhe solicita.

Parece assim ficar bastante claro que, a respeitarmos a atitude ético­‑existencial que
Raduan Nassar assumiu desde que o seu nome cumpre uma função­‑autor, as decla­
ra­ções em circunstâncias como as que uma conversa ou uma entrevista pro­movem
resul­tam de um acto enunciativo próprio de um desautor (para usar o conceito na
proposta de Laurent Zimmermann – 2012: 83­‑98) que assumi­damente requer uma
leitura contra­‑autorial (cf. Rabau, 2012: 5­‑18), isto é, uma leitura interpretativa que
considere critica­men­te a natureza intrincada do vínculo entre autoria(lidade) e auto­
ridade, colocando em causa o discurso de autoridade do autor acerca do sentido
que ele reconhece à sua obra9. A verdade é que uma tal leitura invalida até a conhe‑

9
Raduan Nassar pronuncia­‑se muito explicitamente sobre esta questão, ao responder à pergunta
acerca da importância que o empirista Francis Bacon teve na sua formação: «Bacon sacou uma
coisa muito simples, simples como outras grandes sacadas na história. Colocou sob suspeição o que
ele chamava de  idola,  ou ídolos, que, segundo ele, eram entraves para  se  chegar ao conhecimento.
Abreviando as coisas, ele arrolou entre os  idola os juízos de autoridade, ou seja, aquelas afirmações
que vinham acompanhadas com força de verdade só porque tinham sido feitas por pessoas que
gozavam de grande prestígio intelectual. Então, Aristóteles poderia ter dito uma besteira na sua história
natural, mas essa besteira atravessava séculos como verdade só porque tinha sido dita por Aristóteles.
E o que o Bacon pro­punha é que não seria possível fazer ciência sem veri­ficar através da investigação
experimental certas ver­dades, que só passavam por verdades pela autori­dade dos seus autores. Com
essa coisa tão simples m ­ as um simples que pra agüentar a mão é preciso caráter — Bacon alavancou
a virada dos incipientes procedimentos científicos, deu uma contribuição decisiva pra metodologia da
época. Agora, se Bacon podou a praga em áreas passíveis de verificação, em áreas adjacentes, que são
o mundo dos valores, onde não se consegue ultrapassar os limites da opinião, a praga rebrotou, quatro
séculos depois, com uma virulência capaz até de comprometer vidas humanas. Cinco minutos de um
prestigioso jornal de tevê, prestígio para o qual centenas de atores dão o melhor do seu talento, são
capazes de fazer a cabeça de uma população. No compartimento dos valores estéticos, que são uma
titica perto disso, a coisa não é diferente. Nesta área, é raro alguém questionar o que vem embrulhado
de prestígio e autoridade, reverenciam­‑se mitos de modo obsceno, daí que tem gente que fala em
66 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira

cida pas­sagem de Umberto Eco entre a intentio auctoris e a intentio operis, pois ela
pressupõe, aceita e discute a intentio auctoris, sobretudo quando esta é ex­plicitada
nestes mal situa­dos lugares para­­­tex­tuais, assim trasla­dando a blanchotiana «má­
‑fé» da verdade roma­nesca para a verdade auto­bio­grá­fica (Blanchot, 1949: 189ss.;
cf. Decout, 2015). Trata­‑se, portanto, de assumir uma lei­tura que conteste o autor
enquanto auto­‑leitor, e não o autor enquanto criador (cf. De­pretto, 2012: 69­‑82),
como apontou com muita agudeza Maria José Cardoso Lemos num texto de 2003:

Descrever a trajetória de Raduan Nassar é uma tarefa perigosa, pois ele embaralha seus
rastros, quer pelo silêncio, quer pela repetição constante de suas respostas, respostas
sempre pouco esclarecedoras, como que a evitar uma auto­‑reflexão sobre sua obra.
Alguns, irritados com sua postura, pensam até tratar­‑se de uma estratégia de marke‑
ting desse ator/autor que interage com sua pequena obra­‑prima na sua recepção atual,
obra que, parcimoniosamente, vem re­tor­nando sempre ao cenário cultural por meio
de novas publicações, tradu­ções e adaptações cinematográficas (Lemos, 2003: 81).

Vejamos agora sucintamente e a esta luz de que modo Raduan Nassar procede a
uma clara (des)orien­ta­ção dos protocolos interpretativos da sua obra na conversa
de 1996, com base numa estratégia que com toda a finura aceita e rentabiliza o jogo
dos lugares­‑comuns que a construção da figura do autor enigmático neces­saria­
mente agencia. Nesse sentido, as sedes argumentorum de que parte não deixam
de andar em torno do mais antigo desses lugares, o da falsa modéstia, sub­ja­cente
a diversos tópicos, que, no entanto, provoca a aparição subliminar e à contre­‑coeur
dos lugares especiais onde efectivamente a singularidade do autor – na sua condi‑
ção de promessa de filho pródigo da literatura – se desvela.

E no princípio era a falta de Verbo: ao insistirem na escassez da produção literária


de Nassar – quer dizer, no lugar­‑comum de quantidade em negativo –, os seus

Joyce ou em Pound e parece que está dando cria. Aliás, as vacas lá na fazenda são bem mais discretas
em hora tão crítica. Como você vê, o que aconteceu comigo acontece nas melhores famílias. Na minha
adolescência andei em más companhias, trapaceiros e caloteiros, mas de que trago boas lembranças
por terem sugerido posturas para a reflexão. Os trapaceiros atuando no mundo turvo dos valores, o
caloteiro, na linha reta da investigação objetiva, os dois atuando em áreas tão diferentes, mas conver­
gindo, e como!, na cabeça de um jovem que pretendeu um dia fazer literatura com liberdade. Se é que
isso seja possível» (entrev. cit.).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 67

inter­lo­cutores recorrem coerentemente ao exemplum e à imago, de modo que o


questio­na­mento em torno do assunto é feito por um entrevistador que «pede a
história/ que já traz engatilhada», exactamente como o leitor no conhecido poema
de Alexandre O’Neill:

CADERNOS: Fala­‑se muito no “silêncio de Rossini” — moço ainda, e no auge da carreira,


o músico parou de compor. Sabe­‑se que esse silêncio teve momentos de fecundidade,
quando Rossini produziu obras que não quis destinar à divulgação. Estaria o mesmo
acontecendo com você?
Raduan: Não é o meu caso. A coisa está encerrada há mais de vinte anos.
[…]

E segura essa: “Desisti de escrever porque há um excesso de verdade no mundo”, uma


afirmação do Otto Rank, que o Abbate me deu de presente quando aban­donei a lite‑
ratura. (entrev. cit.)

A pergunta de resposta engatilhada, mediante o recurso ao exemplum de Rossini,


vem denunciar o propósito dos entrevistadores de emparelharem o caso­‑Nassar
com o de outros «génios calados», para regressarmos ao conceito de António
Guer­reiro, mas a verdade é que, tal como aconteceu com o músico, essa pergunta
acaba por denunciar um «formidável paradoxo» da recepção, paradoxo esse que
o escritor pro­cura cercear na sua resposta: o que atrairia no artista não seriam as
palavras da obra, mas o silêncio do homem10. Ora, ao distanciar­‑se de tal exemplum,
Raduan Nas­sar contribui para a cons­tru­ção da sua figura de génio original (pouco
próprio dos tempos pós­‑ ou híper­modernos em que vivemos e que Marjorie

10
N.B. Alain Duault (2011): «Vingt ans d’activité, quarante ans de silence: oui, ce qui intrigue d’abord
chez Rossini, ce n’est pas sa musique, c’est son silence. Formidable paradoxe!». A este propósito, parece
particularmente adequado o comentário de Galia Yanoshevsky ao volume Enquête sur les Entretiens
Littéraires: «Ce retour au personnage de l’auteur comme cœur de l’œuvre détourne l’attention vers
des aspects autres que l’œuvre per se. Il s’agit, par exemple, du personnage média­tique de l’écrivain,
ou des images multiples de l’écrivain, comme le signale Butor, et qui font partie d’un mythe, d’une image
flottante de l’écrivain comme homme des médias, et qui correspond à plusieurs modèles de lui (…). Il
s’agit dans certains cas d’une posture qui finit par être confondue avec l’auteur et ses écrits (…). C’est
le cas par exemple chez Duras, plus âgée, dont la parole de l’entretien, à en croire Peeters, devient
oraculaire (…): l’auteur finit par se conformer à son moi médiatique, au point que ses livres eux­‑mêmes
soient contaminés par cette parole vide» (2015).
68 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira

Perloff qualificou como de unoriginal geniuses), naquilo que será uma estratégia
transversal a toda a conversa, especialmente notória nas diversas declarações que
dizem res­peito às supostas ou pressupostas influências e conta­mi­na­ções que a sua
obra evi­dencia, declarações que assentam agora no princípio do lugar­‑comum de
qualidade11.

Com efeito, chega a ser penoso assistir às sucessivas tentativas (frustradas) por
parte dos interlocutores de lhe atribuírem correlações com outras obras, escritores,
críticos ou teóricos:

i. quando questionado sobre as leituras que o marcaram, o Autor afirma preferir «a


vida acontecendo fora dos livros» aos livros (para iluminar a afirmação, contudo,
recorre ao conto de Borges «La busca de Averroes», no qual se pode ler «los frutos
y los pájaros per­tenecen al mundo natural, pero la escritura es un arte. Pasar de
hojas a pájaros es más fácil que de rosas a letras»; cf. Borges, 1986: 137), e, para
desconcerto mais absoluto ainda, confessa que nunca sentiu «muito apego pelos
livros», admitindo que leu alguns livros apenas para pedir «mas não me pergunte
quais que já não me lembro»; ora, é precisa­mente do lugar do leitor em que o
colocam que o autor se pronuncia sobre a sua própria falta de pro­du­tividade
por via de uma analogia perfeitamente iluminadora: «a gente se empan­turrar de
leituras não me parecia muito diferente de se empanturrar numa comi­lan­ça»12;

11
Nas palavras de Raduan Nassar: «As ideias estão no ar. Se assimilei uma e outra no meu trabalho, as tais
conquistas de que você fala, foi cheirando involuntariamente a atmosfera. Por decisão mesmo, sempre
me mantive à distância de toda especulação teorizante ou programática, sobretudo por uma questão de
assepsia, quero dizer, para preservar alguma individualidade da minha voz. Não ia arrogância nisso. Se
tivesse de me pautar pela leitura de manifestos literários, eu jamais teria escrito uma linha» (entrev. cit.).
12
Veja­‑se ainda a descrição que Alexandre Gaioto faz do espaço em que conversa com o escritor: «Na
pequena sala, não há vestígio algum de literatura. Não há livros nas estantes, não há livros espalhados
pelo chão, aquela não parece a casa de um escritor. A fala de Raduan, concisa e lacônica, também não
se parece com a voz de um escritor. Alguns escritores falam por meio da poesia, recorrem a metáforas
paridas na hora, comentam, empolgados, os detalhes do processo criativo de determinadas obras:
vivem e respiram a literatura diariamente. Não é o caso de Raduan. Não há metáforas em suas falas, nem
poesia vazando daquele verbo, mas há o silêncio. Não chega a ser triste nem melancólico, mas é um
pouco desconfiado. Tem contundência aquele silêncio. Tem textura aquele silêncio. É o mesmo silêncio
que enche, aos berros estridentes, a literatura dele. E aproveito que ele está novamente em silêncio para
perguntar sobre seu estilo próprio» (2013).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 69

ii. por outro lado, quando questionado sobre a relação com a teoria e a crítica
suas contemporâneas, nomeadamente as produzidas em torno da própria
obra, Raduan Nassar assume sem qualquer pudor que não se pode pronunciar
sobre o assunto por desconhecer os textos (mesmo os de um dos entrevista‑
dores, José Paulo Paes, que acaba pendurado na sua própria pergunta13);

iii. sucessivamente, por conseguinte, todas as tentativas de associar Raduan a


romancistas brasi­ leiros contemporâneos como Graciliano Ramos, Osman
Lins, Cyro dos Anjos ou Autran Dourado, a tendências vanguardistas como o
futurismo ou neo­‑vanguar­distas como o concretismo, ou a obras narrativas
excepcionais como as de Joyce, Faulkner e algumas do nouveau roman vão
sucitando o mesmo tipo de resposta: «nunca me detive na aproximação de
valores literários», «Confesso que sou o exemplo mais acabado de ignorância
de tudo isso, por consciente desin­teresse», «ignorei ostensivamente aquelas
teorias todas que eram usadas como instrumento de proselitismo», «Era uma
literatura muito civilizada, daí que decididamente não era a minha», num
movimento que mais uma vez compõe uma imagem muito clara:

Suponho que exista em toda obra uma teoria subjacente do autor, podendo ser
apre­endida pelos que eventualmente se interessem por ela. Mas quando um
escritor faz a ex­posição da sua teoria, para suprir de significados uma poética
que não consegue falar por ela mesma, acontece aí um evidente desajuste. A
poética pretende ser revolucionária por desestruturar a linguagem convencio‑
nal, só que seu autor, para explicá­‑la, acaba se so­correndo da mesma linguagem
que usamos pra pedir um copo d’água, o que é o fim da pica­da.

13
«José Paulo Paes: Num artigo que escrevi em 95 no Jornal da Tarde, citei seu Lavoura arcaica como um
dos poucos exemplos de romances brasileiros nos quais se poderia falar em “anfibismo cultural”. Você
concorda com isso?
Raduan: Não sei se entendi bem a pergunta, pois não li o artigo.» (entrev. cit.)
Cf. ainda a resposta a Leyla Perrone­‑Moisés: «Você acha que a crítica literária pode ter alguma influência
nas obras subsequentes de um escritor?
Raduan: Caberia a cada escritor dar a sua resposta. No meu caso, não deu tempo. Quando fiz minha estreia
com o Lavoura, já tinha escrito minha obra completa… Vantagens de quem escreve curto» (idem).
70 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira

Esta passagem é particularmente importante, na justa medida em que revela o


que de mais essencial resulta da estrutura profunda das respostas de Nassar às
per­guntas voyeu­­rísticas dos entrevistadores: se existe na sua obra uma «teoria sub­
jacente do autor», ela será apreendida «pelos que eventualmente se interessem
por ela» (e não por ele, sublinhe­‑se): tudo o resto, é desajuste. Aspecto por demais
evidente se se admitir que, ao contrário do que parece exprimir a relutância do
Autor na conversa em reconhecer diálogos com ou­tros autores, a obra não denun‑
cia qualquer angústia da contaminação ou da influ­ên­cia – ou da castração, como
ele próprio a formula na entrevista: «No ritual da castração, fo­ram sempre os segui‑
dores que deram em oferenda seus próprios testículos» –, por­quan­to toda ela ins‑
creve na sua própria textualidade a matéria dos seus diálogos (recor­de­mos, muito
rapidamente, as epígrafes de Jorge de Lima14, ou as notas finais recons­ti­tui­n­do as
presenças intertextuais de Thomas Mann, de James Joyce, de Almeida Faria, de
Novalis, Whitman ou Fernando Pessoa/ Ricardo Reis, en­tre outros – cf. Lemos, 2004
–, a par da clara convocação citacional de expressões como «humilhados e ofen­
didos»15, de Dostoievsky, ou «som e fúria»16, de Shakespeare relido por Faulkner).
Não esque­ça­mos que o contrato de leitura que a condição espacial espe­­cí­­fica dos
peritextos, por opo­sição aos epitextos, acciona tem como consequências ime­­dia­
tas uma restrição do público receptor ao público que efectivamente lê a obra, bem
como um vínculo mais perma­nente e muito menos efémero à significação do texto
a que material­mente se junta, aspectos muito dignos de nota face a uma figura
autoral como a de Raduan Nassar: trata­‑se na verdade de um conjunto de sinais
não impostos por instâncias externas, em que o autor es­col­he e aponta livremente
os seus pares, e portanto o seu lugar no sistema (cf. Bouju, 2002).

14
Numa entrevista a Augusto Massi e Sabino Filho, o valor decisivo destas epígrafes fica inteira­mente
claro: «mergulhei no Invenção de Orfeu (…), que eu a princípio, e mesmo depois, lia sem entender,
porque ninguém, penso, pode entender aquele poemão no nível lógico. Não entendia mas ao mesmo
tempo entendia demais aquele texto, inclusive no nível lógico» (1984).
15
«Daí que o homem comum assim como os povos periféricos jamais tiveram seus nomes inscritos
como vencedores. Entretanto, quando se entra em uma residência bem posta, é legítimo perguntar,
diante do orgulho do dono da casa, onde estão os anônimos que assentaram os tijolos. Como seria
legítimo perguntar, num giro pelos países desenvolvidos, onde estão os povos, humilhados e ofendidos,
que concorreram para o seu brilho» («A corrente do esforço humano» (1980), in 2016: 410).
16
«sem acesso à razão, ele agora se ressuscita ridiculamente como Lúcifer… há­‑há­‑há… som e fúria…
há­‑há­‑há… você não passa, isto sim, é de um subproduto de paixões obscuras, e toda essa algaravia,
obsessivamente desfiada» (Um Copo de Cólera, in idem: 259).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 71

Mas o que a passagem anteriormente citada ilumina não diz apenas respeito ao
pla­no transtextual da obra de Nassar, ela incide em directo sobre os pontos essen‑
ciais de qualquer reflexão poetológica digna desse qualificativo: i) o problema da
criação, ii) o entendimento específico da linguagem no seu regime literário ou
poético, iii) a natu­reza porosa do vínculo da literatura com o mundo. Ora, no caso
específico de Raduan Nassar, não há como isolar qualquer um destes aspectos sem
considerar de imediato todos os outros:

i. À condição saturnina do Autor e ao brevíssimo e ininterrupto «tempo de des‑


carga» da novela Um Copo de Cólera (quinze dias), próprio de um acto criativo
avesso «a cálculos de raiz qua­drada» e, portanto, mais próximo da «falha do
intelecto» do que da sua festa, corres­pon­deria uma enunciação narrativa (já
presente em Lavoura Arcaica) fundada na embriaguez, no delírio, na textura
da raiva, na explosão, na convulsão e na epilepsia;

ii. Enquanto acto discursivo, essa enunciação entre o melancólico e o colé­rico


(cf. Delmaschio, 2004) nasce daquilo a que André chama uma «fala convulsa»
– «dis­cur­so hemor­rágico» em Um Copo de Cólera –, própria justamente de
narradores­‑per­­so­­­­nagens que, como Benjy Compson em The Sound and the
Fury de William Faulkner, mantêm uma relação somática com a expressão ver‑
bal que assim retorna a um estádio quase inte­gral­mente perfor­mativo que lhe
assegura um valor existencial. Por isso, Ana, a irmã, como Benjy, o irmão:

sabia fazer as coisas, essa minha irmã, esconder primeiro bem escondido sob
a língua a sua peçonha e logo morder o cacho de uva que pendia em bagos
túmidos de saliva enquanto dançava no centro de todos, fazendo a vida mais
turbulenta, tumul­tuando dores, arrancando gritos de exaltação, e logo entoados
em língua estranha começavam a se elevar os versos simples, quase um cântico,
nas vozes dos mais velhos, e um primo menor e mais gaiato, levado na corrente,
pegava duas tampas de panelas fazendo os pratos estridentes, e ao som con‑
tagiante parecia que as garças e os marrecos tivessem voado da lagoa pra se
juntarem a todos ali no bosque (Nassar, 2016: 33­‑34).

Isto porque o entendimento da linguagem por Raduan Nassar é lógico­‑semântico


mas também performativo, conforme evidencia o longo acto ilocutório que rege
Um Copo de Cólera, e aquilo que o narrador descreve como «as unhas que ela
72 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira

punha nas palavras». Ora, é justamente este entendimento do valor absoluto da


linguagem nas suas funções interna (de conhecimento), expressiva, fática e poé‑
tica que se encontra na base de um certo distanciamento assumido por Nassar
face a práticas mais forma­listas da literatura contemporâneas da sua escrita,
nomea­damente as que o Concre­tismo protagonizou e que ele qualifica, ainda na
conversa de 1996, como resultando de uma «estética do bagaço»:

Acho que não adianta forjar uma escora metafísica para aquela postura, como
arrolar a estética disso ou a estética daquilo, porque no fundo o caso daquela
tendência seria mesmo de inaptidão pra reflexão existencial. Agora, a casca das
palavras, da proposta antidiscursiva, como a laranja que se passa num espreme‑
dor, certamente que não excluía resíduos de significados. Fosse então o caso de
forjar uma escora, quando muito se poderia falar na estética do bagaço. Não vai
aí qualquer conotação pejorativa, é só uma tentativa de adequação vocabular.
Entre usar bagaço ou palavras em toda sua acepção possível, cada escritor que
fizesse a sua escolha.17

iii. Em suma, o que o move é o poder que a palavra detém em matéria de re­fle­
xão existencial. Não é com certeza por acaso que Raduan Nassar é mais con­
tem­­porâneo de Glauber Rocha e da sua estética da fome do que da esté­tica
do bagaço concretista: porque também na sua obra não há folclore inter­
ven­cionista, nem clichés sócio­‑económicos, paternalismo ou huma­ni­ta­rismo
fáceis, como se verifica numa certa linhagem neonatu­ralista da ficção brasi‑
leira do século XX, e isso não significa que haja absentismo18.

17
E ainda: «Aliás, só pra completar, acredito que a boa prosa tenha sido sempre poética. Porque existe
também a arte que se constrói com significados, e que se nutre no mundo inesgotável da semântica.
Parte da crítica talvez tenha diminuído o conceito de estilo na literatura ao identificá­‑lo só no nível da
casca. Kafka, que se valeu de um registro realista de linguagem, tem um estilo forte. Dürrenmatt, a
mesma coisa. Alguns dos seus textos nos jogam pro espaço. De Dostoiévski, dizem até que ele escrevia
mal em russo. As leituras que nos acompanham a vida toda foram as dos artistas dos significados.
Poucas vezes eles trabalharam a frase com artifícios visíveis demais, mas são deles as nossas leituras
inesquecíveis» (entrev. cit.).
18
Na síntese de Leyla Perrone­‑Moisés: «A originalidade de Raduan Nassar, com relação a outros
escritores da sua geração, consiste justamente nessa opção por um engajamento político mais amplo
do que o recurso direto aos temas de um momento histórico preciso. Um engajamento no combate aos
abusos do poder, em defesa da liberdade individual, numa forma de linguagem que não faz concessões
à “mensagem”» (1996: 69).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 73

É certo que parece ser insolúvel e interminável o problema que se coloca entre cria‑
ção lite­rária, responsabilidade ético­‑política e exercício da cidadania desen­cadeado
por Platão e combatido por Shelley ou Schiller: em tempos de cólera ou de indigên‑
cia como os nossos, essa questão tende a agudizar­‑se e a ganhar renovados contor‑
nos, como se tornou flagrante na cerimónia de recepção do Prémio Camões, que
veio suscitar a discussão em torno do ethos pré­‑discur­sivo e do ethos discursivo (ainda
que não se tenha feito uso destes conceitos). E o que parece ser mais espantoso é o
facto de o escritor, total­mente ciente da função­‑autor que o seu nome e pessoa cum‑
prem, ter ousado as­sumir um lugar contra­‑autoral, ao encerrar o discurso com o acto
performativo «não há como ficar calado», e assim demons­trando o valor do mundo
sobre o valor da vida – ou da república sobre a república das letras –, exactamente
nos termos em que a sua personagem Zé­‑das­‑palhas, de Menina a Caminho, o fizera
décadas antes, ao repetir o quase refrão «Doutor Getúlio Vargas, o povo brasileiro tá
cansado, cansado, cansado» (Nassar, 2016: 307)19. Eis o poder do tão aclamado silên‑
cio de Raduan Nassar, que com Vinicius de Moraes poderia dizer na sua «Mensagem
à poesia»: «digam­‑lhe que há/ Um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder,
um homem/ Arrependido [...]/ digam­‑lhe que há um grande/ Aumento de abismos na
terra, há súplicas, há vociferações/ [...] peçam­‑lhe que se cale/ Por um momento, que
não me chame/ Porque não posso ir/ Não posso ir/ Não posso» (Moraes, 1981: 233­
‑235). Mas Vinicius foi, Raduan é que não.

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19
Cf. ainda «A corrente do esforço humano» (2016: 417­‑418): «Supondo­‑se que todo homem seja por­ta­
dor de uma exigência ética, não há como estar de acordo com a dominação de uns sobre outros. Penso,
co­mo muitos, que seja possível imaginar caminhos diferentes para as relações entre indivíduos e entre po­
vos, e penso mesmo que não existe nada mais belo e comovente do que perseguir utopias. (…) Se é as­sim,
é também mais ou menos óbvio que, entre os dominados, só os tolos se comprometem com a ‘or­dem’ que
os subjuga. Aos lúcidos, como sugeriu um pensador do século passado, tudo seria permitido».
74 A estética do bagaço. O génio intranquilo e as suas promessas de abundância debaixo da peneira

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AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 77

O silêncio eloquente de um ventre seco

Maria José Lemos


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Eppur se muove

que voz sem entusiasmo


entretanto
seria um dia ouvida?

a Raduan Nassar

Marcos Siscar

Uma pura potência: escrever ou não mais escrever. Mas seria preciso escrever –
potência em ato – para, então, poder não mais escrever. Como observa o filósofo
Avicena, “uma potência perfeita e acabada é aquela de um escriba dominando per‑
feitamente a arte de escrever no momento em que ele não mais escreve”. (apud
Agamben, 1995: 19) Alcançar a pura potência equivaleria ao exercício de liberdade
daquele que pode querer não mais querer. Esta é a posição do escritor Raduan
Nassar, que, após publicar um romance, uma novela e alguns contos, em 1978, para
de escrever.

Em 1970, ele escreve o conto “O ventre seco”, embrião da novela Um copo de cólera,
sua última publicação. Com efeito, seus textos fabricam uma circularidade que cria
78 O silêncio eloquente de um ventre seco

não só uma relação intertextual interna, mas também externa, a partir da idéia de
literatura como re­‑escritura infinita. Seu título, “O ventre seco”, é quase um oxi‑
moro, uma conjunção de contrários, uma potência que se imobiliza, que se cala,
sugerindo a idéia de abstinência.

Mas afinal qual seria a relação da escrita com o silêncio? Da pulsão com a falta de entu‑
siasmo? Do excesso de trabalho, informação, experiência, razão com a indiferença, o
cinismo, o ceticismo? Enfim, qual a relação do fluxo que transborda como a cólera do
copo órfico – com o fluxo contínuo de uma longa linha traçada pelo arado de Édipo?

Talvez para Nassar a folha em branco – rasura tabulae – se apresente como terra
árida, como corpo impenetrável de mulher, que precisa ser perfurada para ser
semeada. Escrita entendida como Lavoura arcaica. Mas finalmente, a semeadura
e a colheita já não mais importam, apenas o corpo branco da folha. A escrita se
apresenta então como contingência entre a possibilidade de dizer e de não dizer,
como um ventre que se quer seco.

Um conto­‑carta­‑manifesto: entre luz e escuridão


O conto se apresenta como uma carta­‑manifesto de uma escritura ainda e sempre
por vir. Escritura que morde, provoca, rompe, incomoda, que inverte as posições
dominantes: tal seria a proposição. Uma escritura feminina, naquilo que a escri‑
tura feminina tem de “minoritário”1. Do homem diante da mulher, para inventar um
outro homem que, abdicando do ato, se tornaria pura potência. Assim o remetente
faz voto de castidade, voto de ignorância, voto de pobreza. Escreve no limite, na
sua fadiga extrema: “estou cansado, estou muito cansado Paula, estou muito, mas
muito, mas muito cansado” (Nassar, 1998: 67).

É uma carta que anuncia a ruptura de um pacto de amor e as novas condições


desta relação amorosa. Uma carta retórica, pois quer persuadir e convencer da

1
Ver esse conceito em Gilles Deleuze, “A literatura e a vida” in Crítica e Clínica.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 79

necessidade de romper este pacto, valendo­‑se de um pathos que atordoa e de um


logos que segue uma lógica sem razão.

O narrador é um quarentão que se diz “obscurantista e conservador” e que enumera


metodicamente, item por item, – paródia formal do método cartesiano –, seus duros
argumentos para romper com sua namorada Paula, “que além de liberada e prati‑
cada, é também versada nas ciências ocultas dos tempos modernos” (idem: 68). A
mulher é colocada, contra o senso comum, no polo da razão, da modernização dos
costumes, guardando contudo uma relação de ambigüidade com a questão afetiva,
enquanto o homem “coração duro, homem maduro” é alguém incapaz de negociar.
Mas, num jogo de claro/escuro (mulher/homem ou vice­‑versa), o narrador revela sua
sombra – sua calada mãe – em contraposição, numa paráfrase direta a Descartes, às
“idéias claras e distintas a respeito de muitas outras coisas” da mulher.

A este jogo de repulsa e atração entre os polos que se invertem continuamente,


é imprescindível acrescentar a leitura feita por Marilena Chauí a propósito de Um
copo de cólera:

Arrastado pela rigorosa lógica da cólera­‑clarividente e cega – ao leitor não é dado


escolher entre os personagens: ou capta a ambigüidade do macho narcisista capaz de
discurso libertário e a fêmea emancipada capaz de medo e ternura, ou não penetra na
medula desse texto, perdendo seu ‘miolo propulsor’ (apud Chalhub, 1997: 128).

Como em Um copo de cólera e também em Lavoura arcaica, trata­‑se de colocar em


questão os limites da Razão. O próprio Nassar, em depoimento ao Cadernos de
Literatura Brasileira, referia­‑se à razão como “uma dama experiente que não resistia
a uma única cantada, viesse de onde viesse [...]. O aporte ético, que tentaram colar
nela desde os tempos antigos, lhe é totalmente estranho. A razão não é seletiva, ela
traça de tudo” (Nassar, 1996: 37). Nassar parece tomar para si o método da dúvida
cartesiana não para superá­‑la, mas para estabelecer a dúvida radical e evitar assim
todo tipo de crença dogmática.

No conto, Descartes é citado sem aspas e parafraseado nos itens 6, 7, 8 e 15, conforme
o estilo próprio das construções textuais de Nassar. O narrador atribui à mulher vários
conceitos desenvolvidos pelo filósofo em seu Discurso do método e nas Meditações,
tratados onde Descartes tenta acabar com a dúvida cética. No item 6, ele acusa a
80 O silêncio eloquente de um ventre seco

mulher de banalizar o afeto ao equipará­‑lo à razão cartesiana, pois, segundo ele,


Paula o teria levado a supor que “o amor em nossos dias, a exemplo do bom senso
em outros tempos, é a coisa mais bem dividida deste mundo” (idem: 64).

O item 7 é quase todo uma paráfrase ou uma paródia do famoso trecho do Discurso
do Método no qual Descartes estabelece a regra da clareza para combater a dúvida
pirrônica, ou seja, “não aceitar nada além do que se apresente à minha mente de
maneira tão clara e distinta que não possa duvidar disto”(apud Popkin, 2000: 275).
No conto ele declara: “Farto também estou das tuas idéias claras e distintas a res‑
peito de muitas outras coisas, [...] ainda fico espantado com este mundo simulado
que não perde essa mania de fingir que está de pé” (idem: 65). O narrador questiona
a idéia cartesiana segundo a qual o acesso à verdade se daria quando uma idéia
se apresentasse clara e distintamente, e, à luz cartesiana, contrapõe a escuridão, o
obscurantismo, procedimento usado por Nassar também em seus outros textos.

Indo ainda mais longe no seu método para afastar todas as dúvidas, Descartes,
na Primeira Meditação, apresenta a hipótese de um “gênio maligno” que perversa‑
mente brincasse com os homens ao simular um mundo fictício, ao distorcer nossas
faculdades. Afinal, como podemos ter certeza sobre as coisas, sobre o mundo real,
sobre a própria existência de um eu que pensa? Assim, ao gênio maligno, polo
da escuridão, Descartes contrapõe a luz de Deus, garantia metafísica de bondade
e de perfeição que não permitiria nem o erro nem a dúvida cética. O narrador,
no item 15, inverte a proposição de Descartes e, à certeza de Paula, contrapõe a
escuridão, o mundo de sombras, no qual vivia sua mãe que a olhava “de um jeito
maligno”, expressão que aparece no conto, ironicamente, entre aspas.

Assim, Descartes levaria a sua dúvida metodológica ao extremo – dubito ergo sum –,
sendo considerado por alguns pensadores como o introdutor do ceticismo no pen‑
samento moderno, uma vez que, finalmente, para Descartes, somente através da
garantia de Deus, haveria possibilidade de acesso ao real. Neste aspecto, Descartes
pode ser considerado um crítico radical que questiona os limites da razão e, em
última análise, um “sceptique malgré lui”, segundo a expressão de Richard Popkin.

Se um germe de crítica aos limites da razão permanece na obra cartesiana, ou seja,


se o próprio Descartes deixou lacunas e pontas que poderiam reverter o seu sis‑
tema, como podem tantos confiar tão cegamente na capacidade deste eu pensante
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 81

enxergar as coisas de maneira clara e distinta? Esta parece ser a pergunta do narra‑
dor, que, em sua radicalidade, passa a duvidar também de suas próprias posições.
O item 8 da carta vai neste sentido, ao dizer que “a razão é mais humilde que certos
racionalistas”, terminando em outra alusão a Descartes: “você pode continuar car‑
reando areia, pedra e tantas barras de ferro, Paula, embora qualquer criança também
saiba que é sobre um chão movediço que você há de erguer teu edifício” (idem: 65).

Raduan Nassar, a propósito de Um copo de cólera, fala sobre esta questão, que é
também pertinente ao conto aqui em pauta:

Talvez o personagem­‑narrador de Um copo de cólera devesse ter informado aos even‑


tuais leitores de seu relato que sua parceira, racionalista radical, beirando quase o
caricato, realmente ignorava o Tratado das Paixões, de Descartes, representante maior
do racionalismo, mas que, nada ingênuo, valorizava o concurso das emoções em sua
teoria do conhecimento. Mas, acho que o personagem­‑narrador da novela, em vez
da citação civilizada, preferiu, curto e grosso, sugerir que o cérebro também ocupa o
lugar do útero. O útero e outras paixões, está claro (Heynemann, 1992).

Em seu tratado sobre As paixões da alma, Descartes tem o propósito de estabelecer


um método para dominar as paixões pela razão. Mas, ao distinguir duas partes na
paixão, uma parte consciente, ligada à alma e uma parte corporal, abre uma lacuna
ao domínio da razão. Assim, as primeiras seriam as paixões em sentido estrito, e se
relacionam apenas com a própria alma – a admiração, o amor, o ódio, o desejo, a
alegria, a tristeza –, enquanto que as segundas seriam aquelas que têm origem no
corpo – as sensações e as afecções. Nas paixões ligadas à alma, dotadas das pro‑
priedades do pensamento, a vontade livre tem capacidade de controlar os impul‑
sos da paixão apresentados nas suas formas essenciais. No que concerne ao corpo,
as paixões deveriam ser domesticadas por uma medicina mecanicista; porém, nas
famosas cartas que trocou com Elisabeth, fica claro a preocupação de Descartes
não só com o corpo, mas com a esfera de união substancial entre corpo e alma,
havendo, assim, necessidade de uma outra medicina, uma ciência infinita.

Descartes irá desenvolver técnicas de dominação de si, parecendo mesclar estoi‑


cismo e epicurismo, uma vez que não trabalhará para desenvolver uma “ciência
infinita” que desse conta de tudo. Neste ponto o corpo se acoplaria à alma, ou vice­
‑versa. Esta lacuna – a esfera das sensações e afecções – em seu sistema é o “miolo
82 O silêncio eloquente de um ventre seco

propulsor”, a medula dos textos nassarianos, um ponto de pura potência, onde a


vontade escapa à razão, quando o cérebro, como disse Nassar, vem ocupar direta‑
mente o corpo: o útero, o ventre.

A carta­‑conto funciona finalmente como encenação de uma briga amorosa que,


segundo Roland Barthes, é um espécie de dialogo não­‑dialético, uma troca orde‑
nada de réplicas onde cada um quer ficar com a última palavra. É o que pretende
o autor da carta: ficar com a última palavra e se retirar de cena. Não querer possuir:
“ não quero te governar ”, nada esperar, não julgar, nada concluir, deixar escorrer o
barulho infinito das palavras – o silêncio.

A carta fragmentada em 15 itens se abre ao movimento. Não se sabe se vai haver


uma resposta a esta carta, uma reconciliação posterior e, desta forma, a carta é um
fragmento fragmentado. A cada item ele adianta a argumentação da mulher (seu
retrato), sua própria réplica e finalmente seu apagamento. A força argumentativa
da carta visa a uma intensidade que acaba por inviabilizar qualquer sentido, a abs‑
tinência chega pelo exagero das palavras, do barulho ensurdecedor da linguagem
que pela vertigem argumentativa chega à exaustão, para encontrar o neutro. O
conformismo não­‑conformista de Nassar provoca este efeito de vertigem que abre
à possibilidade de uma experimentação, através da afetação provocada, que acaba
assim abrindo sempre novas possibilidade de retorno ao estado de pura potência
que o texto oferece ao leitor.

Ceticismo e cinismo

“O ventre seco” foi escrito durante a época da ditadura militar no Brasil, época de
uma literatura engajada, de contracultura, contra a lei – é proibido proibir –, posição
que parece finalmente reforçar a lei, o bem e o mal, a mulher e o homem; época
de uma dialética rigorosa, deixando entreaberta a questão: é possível uma outra
saída? Nem isto nem aquilo, mas talvez, esta é a formula de Pirro que escapa a uma
síntese negativa. A fórmula pirroniana mais importante é “ não mais” [ou mallon],
que permite dizer que uma coisa não é “mais isto” do que aquilo. Ela é análoga ao
I would prefer not to de Bartleby de Melville, fórmula que, segundo Deleuze, abre
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 83

uma zona de indicernibilidade, de indiferenciação, entre o sim e o não, entre o pre‑


ferível e o não preferível, “longe da via das razões” (Deleuze, 1997: 94).

A receita de Pirro se resume em um termo: indiferença. O narrador é o “grande indi‑


ferente”. Aquele que é indiferente em relação às obrigações, aos valores, às promes‑
sas do mundo, aquele que recusa o sectarismo, o fanatismo: “ você deixou escapar
a linha mestra que daria caráter ao teu rabisco. Estou falando de um risco tosco
feito uma corda e que, embora invisível, é facilmente apreensível pelo lápis de
alguns raros retratistas; estou falando da cicatriz sempre presente como estigma
no rosto dos grandes indiferentes ” (Nassar, 1998: 66). Esta indiferença, suspensão
do julgamento, é presente em sua argumentação através de uma lógica sem razão,
é a experiência de uma possibilidade ou de uma potência purificada de toda razão.
Uma indiferença que é proveniente da não­‑diferença das coisas, as quais escapam
a uma dualidade ou a uma igualdade.

Nassar faz a experiência de um novo ceticismo. Como afirma Frédéric Cossutta, “


um ceticismo renovado, ao mesmo tempo modo de inteligibilidade e como remé‑
dio. Com efeito, o ceticismo não é um niilismo, mas seu antídoto. O movimento
pelo qual ele destitui as falsas certezas restaura a possibilidade de pensar e de viver
melhor” (2001: 24). Raduan Nassar, como bom estudante de direito – ele também
cursou filosofia e letras –, certa vez declarou: “ Quanto aos sofistas, meu entrosa‑
mento com eles tinha a ver com a minha prática. Numa discussão, por exemplo,
não ia mais que o tempo de eu sacar qual era a do meu interlocutor pra imediata‑
mente defender a tese contrária” (1996: 38).

Este é o exercício do cético, evidenciar o modus operandi da construção das certe‑


zas, da atividade de pensar. Segundo Cossutta, “ A enunciação cética, porque ela se
relativiza, destrói as doutrinas e as ciências apenas nas suas pretensões unilaterais
a ocupar sozinhas o lugar da certeza. Mantendo este lugar sempre vazio, é possível
fazer aparecer as compossibilidades que nos permitem escolher entre elas” (ibi‑
dem). E o item 12 da carta vai neste sentido: “ é pra contrabalançar tua lucidez que
confesso aqui minha confusão, mas não conclua daí qualquer sugestão de equilí‑
brio ” (Nassar, 1998: 65).

Os conceitos utilizados pelos céticos para analisar o conhecimento ou a ação


humana são assim quase sempre tomados de empréstimo aos dogmáticos e
84 O silêncio eloquente de um ventre seco

deturpados de sua função inicial: “ Está certa aquela tua amiga frenética quando
te diz que sou “ incapaz de curtir gentes maravilhosas ”. Sou incapaz mesmo, não
gosto de “ gentes maravilhosas ”, não gosto de gente, para abreviar minhas prefe‑
rências” (idem: 64).

É preciso então abrir espaços, instaurar o movimento, passar de um ponto a outro,


até a vertigem. A verdade só é possível como instalação rápida do pensamento
que finalmente nunca se fixa, uma vez que “o lugar cético será assim o ponto de
passagem onde toda consistência do saber se faz e se desfaz” (Cossutta, 2001: 24).

Seguindo esta lógica cética, as posições radicais são evidenciadas sem que haja
um posicionamento qualquer. Assim, no quarto item da carta, ele declara: “ não
tenho nada contra este feixe de reivindicações que você carrega, a tua questão
feminista, essa outra do divórcio, e mais aquela do aborto, essas questões todas
que ‘estão varrendo as bestas do caminho’. [….] quero dizer simplesmente que não
tenho nada contra” (Nassar, 1998: 63). Nassar declarou ter lido Alexandra Kollontaï
(1872­‑1952) militante feminista radical, bolchevista, espécie de guia do movimento
feminista do século XX.

O escritor da carta sai de um jogo de oposição: nem colaboração, nem resistência,


mas abstinência: “não tenho nada a impor […] Já cheguei a um acordo perfeito
com o mundo: em troca do seu barulho, dou­‑lhe o meu silêncio” (ibidem: 67). A
questão do silêncio como liberdade de não dizer, como pura potência, se aproxima
da epoché cética, que, segundo Gustavo Bernardo Krause, funcionaria

não exatamente como suspensão do juízo, mas sim como suspensão do assentimento.
Na verdade, o cético, se não para de duvidar, não para de pensar. A epoché implica
antes a afasia, como recusa a se pronunciar categoricamente sobre isto ou aquilo, do
que a recusa a pensar. Esta afasia não subentende incapacidade de falar mas sim rei‑
vindicação do direito ao silêncio, em particular em uma época tão barulhenta e tão
“endoxal”, isto é, tão movida pela obrigação da opinião (2004: 31).

Se nos anos 70 o mundo se constituía de forma binária, o que forçava a tomada


de posição entre um dos dois polos, existindo ainda uma crença na idéia de mar‑
ginalidade ao poder articulada pela posição de um herói sacrificial – seja marginal,
seja herói –, hoje vivemos um momento de descrença total em uma posição de
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 85

resistência heróica. O chamado capitalismo financeiro2, que já se constituía também


nos anos 70, substituindo paulatinamente o chamado sistema fordista, se apropria,
cinicamente, de qualquer crítica feita a ele, incorporando­‑a ao seu sistema flexível.

Raduan Nassar detectou com extrema lucidez a dificuldade de resistência ao poder


pela simples tomada de posição, ou mesmo pelo fato de se colocar em uma posi‑
ção marginal, que acaba por reforçar as ramificações do poder, uma vez que já nada
lhe escapa. Como exercer então a crítica? Como criticar sem já estar tomando uma
posição considerada superior, e se superior, já comprometida em seu poder crí‑
tico? Mas como ainda não assumir uma posição de indiferença no sentido banal do
termo? Ou seja, do cinismo do malandro pós­‑moderno que sem pudor mimetiza
as práticas do poder e passa de uma posição a outra conforme bem lhe aproveite,
acabando, porém, por sua vez, apropriado pelo sistema? Como driblar a Razão?

A literatura de Nassar tenta inventar uma maneira de limpar o mundo do consenso


apaziguador, da impossibilidade de comunicação que vem sempre como clichê,
como imagens midiáticas, para instaurar uma possibilidade de contato, um ponto
comum de convergência na afetação e na sensação proporcionada pelo esvazia‑
mento daquilo que foi fabricado apenas como encenação clicherizada do poder.
Seu trabalho com a linguagem pretende afetar os sentidos através de uma ironia
que se desloca incessantemente3 para não se prender a um ponto, para não ser
socrática e superior, através de uma sátira à razão ao deslocar sempre o polo da
certeza e da crítica para uma outra posição.

A escrita nassariana se forja assim como uma diatribe bem ao gosto dos antigos
cínicos, através de uma argumentação que ataca de maneira violenta e cruel as
instituições, os costumes, a hipocrisia e a razão: o bom senso, que para Descartes é
o atributo melhor compartilhado pelos homens. Seu jogo cínico é radical, daí o fato
de seus personagens lançarem mão dos atos mais extremados: incesto, mastur‑
bação, perversão, profanação, crueldade, cólera, aproximando­‑se assim dos atos

2
Hoje assistimos talvez ao seu desmantelamento.
3
André Rangel Rios entende como “ironia em acontecimento” em seu livro Mediocridade e ironia.
86 O silêncio eloquente de um ventre seco

performáticos dos cínicos gregos para abalarem os costumes e a moral da polis.


Uma argumentação que quer secar a razão ao conduzir seu jogo retórico através
de uma lógica que finalmente esvazia as palavras de qualquer sentido para produ‑
zir o silêncio, o ventre seco.

Relações intra e intertextuais: uma questão de indiferença

O tema da indiferença atravessa os textos nassarianos. Vários personagens, como


André, de Lavoura arcaica, o Ele, de Um copo de cólera, e também o narrador de Um
ventre seco se declaram indiferentes. Mas, além desta repetição temática entre seus
textos, há ainda um intenso diálogo com outros textos.

Pensar a obra nassariana na perspectiva de uma poética da intertextualidade,


como escritura infinita, está relacionada a esta característica presente em seus tex‑
tos, que se estabelecem já como jogo com outros textos e com o leitor. A relação
com a tradição em Nassar se estabelece, entretanto, como uma aporia, como um
reconhecimento ingrato, isto porque esse movimento especular finalmente fabrica
uma espécie de indiferença textual.

De fato, a primeira edição de Lavoura arcaica [1975] e de Um copo de cólera [1978]


continham uma “Nota do Autor”, onde Nassar declarava sua “estratégia de ação”
ao listar textos que citou sem uso de aspas e que parafraseou ou parodiou. Vale
dizer que as listas de Nassar não são exaustivas, são ilusórias, não esgotando total‑
mente seu jogo textual, não só por omitir certas citações e paráfrases, mas também
por não elencar algumas alusões explícitas. As notas mencionam, além da Bíblia,
das Mil e uma noites e do Corão, os autores: Thomas Mann, Novalis, Walt Whitman,
André Gide, James Joyce, Jorge de Lima, Almeida Faria e Fernando Pessoa. Nas edi‑
ções seguintes estas Notas de autor serão suprimidas.

A questão da indiferença, para os céticos [adiaphoria], estaria na aceitação con‑


formista ou não­‑conformista dos limites da ação humana sobre os encadeamen‑
tos da vida, ou seja, da relação com o Destino e, para a obra de Nassar, no sen‑
tido do Maktub. O cético não­‑conformista será aquele que agirá, ou não agirá, de
maneira indiferente a um resultado concreto. Para os cínicos gregos, a indiferença
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 87

se aproxima da apatia, da desafecção, da virtude e da dominação de si4, a partir de


uma volta ao estado natural do homem. Ou seja, o cínico é aquele que é indiferente
às convenções sociais, aos objetos e aos seus desejos, pregando assim a abstinên‑
cia e o exílio – ou seja, a negação –, sem se preocupar, assim como os céticos, com
os resultados de suas ações.

Mas, como a indiferença se presta à ambiguidade, a um uso conformista e anti­


‑conformista, ela também pode ser usada no sentido de ser indiferente aos outros,
salvo a si próprio. Assim, a indiferença, cínica ou cética, acaba por ser um instru‑
mento que revira sobre si mesma, que distorce sua própria lógica e razão, impasse
mostrado pelo célebre diálogo filosófico que é O sobrinho de Rameau, de Diderot,
e, de maneira exacerbada, este mesmo impasse aparece em Um copo de cólera e
em “Um ventre seco”. Para além do jogo entre conformismo e não­‑conformismo,
o que interessa nestes diálogos filosóficos é o fato de performatizarem uma razão
pervertida5 e indomável. Se o capitalismo atual incorpora toda crítica feita a ele,
agindo de maneira cínica, Hegel6, em sua época, também empreendeu esforços
para incorporar, à pretensa Razão, o que ele chamou de razão dilacerada. Assim,
talvez o “miolo propulsor” de um “verdadeiro” cinismo ou ceticismo crítico esteja no
deslizar performático entre as amarras do poder, como método de dúvida.

Nassar estabelece diálogo intenso com outros autores, com James Joyce, Thomas
Mann e Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, sobre o tema da indiferença,
não só como motivo interno à obra, mas como postura do artista face à obra e à
vida. Assim, Raduan reflete sobre a questão da arte pela arte, do artista fechado em
sua torre de marfim indiferente à vida e, por outro lado, questiona também a arte
dita engajada, planfletária, que assolava a literatura brasileira dos anos 70.

O diálogo com Joyce aparece na citação de trechos do romance Retrato do artista


quando jovem (1916) em Um copo de cólera, apesar da declaração um tanto icono‑
clasta de Nassar7 de que nunca teria lido Joyce. A ressonância autobiográfica em

4
Vai neste sentido o pensamento cartesiano exposto no livro As paixões da alma.
5
Conceito desenvolvido por Vladimir Safatle em Cinismo e falência da critica.
6
Segundo análise sobre Hegel de Rubens Rodrigues Torres Filho em “À sombra do Iluminismo” In
Ensaios de filosofia ilustrada.
7
Ver na entrevista com Raduan Nassar realizada pelo Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles.
88 O silêncio eloquente de um ventre seco

Joyce, presente também em Nassar8, é significativa, porém ela nunca vem de forma
direta, é sempre re­‑escritura, bio­‑grafia. A obra de Joyce se divide em diferentes
idades: infância, adolescência, adulta e maturidade. Existe ainda desdobramen‑
tos entre seus textos, relações intra­‑textuais, numa circularidade que reenvia ao
motivo do eterno retorno, como bem sinaliza a primeira frase de Finnegans Wake: a
commodius vicus of recirculation, que mostra a leitura que Joyce empreende da filo‑
sofia dos ciclos de Vico.

Essa concepção da obra de Joyce, na qual cada texto resvala uma poética, nos
parece essencial para compreender a obra de Raduan Nassar – que aparente‑
mente terminou seu projeto literário e que por isso teria parado de escrever. Em
Nassar, estão presentes também os desdobramentos das idades em diferentes eta‑
pas da vida – da infância que aparece em Menina a caminho, que se aproxima de
Dublinenses, até a velhice, com Hoje de madrugada. Pode­‑se perceber ainda em seu
trabalho uma mistura de gêneros e estéticas diversas.

Assim, a pequena e primorosa obra de Raduan Nassar funciona como uma espiral
que perpassa idades. Em Menina a caminho [1961], a narrativa em terceira pessoa,
de pretensões behavioristas, descreve como uma câmera o percurso da menina,
mas sem deixar de travar com a personagem um jogo de focalização que varia o
olhar do narrador com a visão da menina entremeado pelo discurso indireto livre.
André, o adolescente tresmalhado de Lavoura arcaica [1975], retorna adulto no
conto O ventre seco, que torna em Um copo de cólera [1978], e, já velho, volta em
Hoje de madrugada [1970]. Pode­‑se estabelecer uma leitura destes personagens
como compostos concebidos fora de uma ordem cronológica, porque não há con‑
tinuação linear entre eles, mas antes a procura das condições em que uma deter‑
minada variação se apresentou para o sujeito.

A certa altura do romance de Joyce, já para o encaminhamento da parte final,


ocorre uma discussão entre Cranly e Temple. Nassar, na nota do autor que aparece
na primeira edição de Um copo de cólera, explica que “ o autor parafraseou ainda
uma pequena passagem de “ O artista quando jovem ” de James Joyce (“ sabe qual

8
Assim como retirou as Notas de autor das edições subsequentes, retirou também as dedicatórias, ao
pai, no caso de Lavoura arcaica e a Heidrun Brückner e a Modesto Carone em Um copo cólera.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 89

é a minha opinião a teu respeito, comparada comigo mesmo ? ” … ” essa é a única
diferença, apenas essa ”). A nota omite o pedaço que caracterizaria o cinismo de
Temple, que, ao contrário de Cranly, tem consciência e declara, sem hipocrisia, o
fato de ser um escroto. Nassar troca escroto por fascista:

– […] Queres saber qual é a minha opinião a teu respeito, comparado comigo próprio?
– Meu caro senhor – disse Cranly com o maior respeito ‑­ , você é incapaz, está ouvindo
bem? Absolutamente incapaz de ter opinião.
– Está bem, mas sabes o que eu penso de ti e de mim, comparados um com o outro?
– continuou Temple.
[…]
– Confesso que sou um escroto – disse, sacudindo a cabeça com desespero. – Sou e sei
que sou. E admito que sou.
Dixon deu­‑lhe uma palmada no ombro e disse com meiguice:
– E isto te será levado a crédito, Temple!
– Mas este aqui – disse Temple, apontando para Cranly – também é um escroto,
como eu. Só que ele não sabe. Essa é a única diferença. Apenas essa, digo­‑lhes eu.
(Joyce, 2001: 261).

E como eu recuperasse aquela calma (nervosa por dentro) de cada palavra, eu arris‑
quei ainda “só uma pergunta: sabe qual é a minha opinião a teu respeito, comparada
comigo mesmo?” “você é incapaz, absolutamente incapaz de ter opinião” “tudo bem,
mas sabe o que penso de você e de mim, comparados um com o outro?” “desembucha
logo, seu delinquente” “confesso que em certos momentos viro um fascista, viro e sei
que virei, mas você também vira fascista, exatamente como eu, só que você vira e não
sabe que virou; essa é a única diferença, apenas essa; […]” “devo concluir que o nosso
fascista confesso ainda é melhor, se comparado a mim” “pelo contrário, se por um lado
redime, a confissão por outro também pode liberar: mais do que nunca posso agir
como um fascista... (Nassar, 1978: 63­‑64).

Aqui o personagem questiona a postura daquele que se diz superior ao hipócrita


que mente e também a do inconsciente que não reflete sobre suas ações. No tre‑
cho de Joyce fica ressaltado o proveito que se tira da sinceridade. O cínico encar‑
nado pelo personagem nassariano vai além da vantagem da sinceridade, e con‑
fessa descaradamente o proveito maior que tem ao declarar­‑se fascista: assim pode
agir mais livremente.
90 O silêncio eloquente de um ventre seco

O outro trecho que Nassar retirou do Retrato não aparece na nota de autor, e é
de extrema importância no que concerne ao problema do artista face à vida e à
liberdade. Já quase no final do livro, o personagem Stephen Dedalus diz a Cranly
que não irá comungar na Páscoa. Cranly então lhe diz que este fato irá deixar sua
mãe muito triste, e lhe pergunta se os sentimentos maternos não lhe tocam, se
ele não ama sua mãe, e, se ele não é crente, então por que não comungar, apenas
para agradá­‑la? Mas Dedalus deixa claro que é preciso cortar os laços com sua
mãe, que ele não teme a possibilidade de cometer um erro nem o fato de ficar
sozinho.

Neste contexto, Stephen Dedalus fará a célebre declaração que para Maurice
Blanchot é “o tema essencial de Dedalus, e a existência de que a obra de Joyce
é apenas a colocação paradoxal (pois o enigma ali é o equivalente do silêncio)”
(1944: 2­‑3). O romance é a busca do jovem Stephen para se tornar artista, mas não
simplesmente artista enquanto profissão, mas como alguém que tem uma visão
diferente de mundo – é o que Stephen quer alcançar, ele quer se impor e afirmar
uma liberdade sem limites. Mas como explica Blanchot, “A liberdade é a alma do
artista, e esta liberdade é negação perpétua, negação em proveito de uma avi‑
dez que nada pode satisfazer, assim como pressentimento daquilo que não pode
jamais ser alcançado” (ibidem). Vejamos alguns trechos:

[...] Vou te dizer o que farei e o que não farei. Não servirei aquilo em que não acredito
mais, chame­‑se isso o meu lar, a minha pátria, ou a minha igreja: e vou tentar exprimir­
‑me por algum modo de vida ou de arte tão livremente quanto possa, e de modo tão
completo quanto possa, empregando para a minha defesa apenas as armas que eu me
permito usar: silêncio, exílio e sutileza (Joyce, 2001: 279/280).

[…] impossível ordenar o mundo dos valores, ninguém arruma a casa do capeta ; me
recuso pois a pensar naquilo em que não mais acredito, seja o amor, a amizade, a famí‑
lia, a igreja, a humanidade ; me lixo com tudo isso! me apavora ainda a existência, mas
não tenho medo de ficar sozinho, foi consciente que escolhi o exílio, me bastando hoje
o cinismo dos grandes indiferentes… (Nassar, 1978: p. 52).

Pouco se me dá, Paula, se mudam a mão de trânsito, as pedras do calçamento ou o


nome da minha rua, afinal, já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do
seu barulho, dou­‑lhe o meu silêncio (Nassar, 1998: 66).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 91

Assim como o jovem Dedalus, o personagem Ele – e também o de Um ventre


seco – escolhem o exílio, mas um exílio paradoxal uma vez que os personagens
nassarianos se exilam em sua própria casa, mantendo e negando laços afeti‑
vos com sua família e com a tradição. Umberto Eco, no que concerne a relação
paradoxal de Joyce com a tradição, destaca que “se ele perdeu a fé, a religião
não deixa de ser um obsessão para Joyce. Sua ortodoxia primeira reaparece no
conjunto de sua obra, sob a forma de uma mitologia extremamente pessoal e
de uma verdadeira fúria blasfematória que revelam uma permanência afetiva”
(1965: 176).

O cinismo dos grandes indiferentes é construção de uma filosofia que quer promo‑
ver a liberdade absoluta. A vida cínica tem quatro mandamentos que nossos heróis
tentaram seguir: vida não dissimulada, vida independente, vida direita e vida sobe‑
rana. Com finalidade pedagógica, o cinismo se utiliza da provocação, se servindo
até da gozação grosseira, na tentativa de fazer o pensamento efetivamente pensar.
Assim faz Diógenes de Sínope que não hesita em praticar atos indiferentes, assim
faz também o personagem “Ele” de Um copo de cólera ou o narrador de Um ventre
seco que discorrem sobre a irredutibilidade da verdade, do poder do ethos, de sua
relação irreversível, da impossibilidade de os pensar sem relação fundamental uns
com os outros. O cinismo efetua assim a dramatização e a passagem do limite pela
encenação da vida.

Maurice Blanchot defende a tese de que Dedalus “se sente atraído por uma vida
livre, estrangeira às ordens sociais ou religiosas, uma vida difícil mas orgulhosa,
talvez marcada para sempre pelo erro, mas enquanto o espírito pode sonhar de se
exprimir com liberdade absoluta”(ibidem) “ Viver, errar, triunfar, recriar a vida com a
vida!” diz Stephen Dedalus. 

Quanto a Tomas Mann, uma pequena citação de A Montanha mágica, aliás bastante
manipulada, aparece no romance Lavoura arcaica. Mas, além desta obra, é com o
conto Tonio Kröger, que trata da questão do artista na sociedade moderna, que
Nassar trava um diálogo que indiretamente aparece em seus textos. Neste conto,
Mann apresenta o protótipo do artista como um indivíduo afastado da vida e pri‑
sioneiro de seu ofício. Já em Morte em Veneza, a arte é passível de destruir a vida
daquele que lhe dá forma. Thomas Mann estabelece assim a oposição entre arte e
vida nos seus primeiros contos, especialmente em Tonio Kröger.
92 O silêncio eloquente de um ventre seco

Raduan Nassar, a propósito desse “burguês desgarrado” que é Tonio Kröger, se


manifestou justamente contra essa concepção da arte dissociada da vida, da forma
dissociada do conteúdo. Parece mesmo repetir o que dizia Dedalus no supracitado
romance de Joyce:

Confesso que sinto certa dificuldade em dissociar a paixão pelo texto da paixão temá‑
tica, acho que, no fundo, no fundo mesmo, o que importa é vibrar com a vida, me
parece estar aí o ponto de partida da literatura, no que penso inteiramente diferente
daquele personagem de Tonio Kröger, que diz que quem morre pra vida nasce pra
arte. Papo furado (Heynemann: 1992).9

A passagem a que Nassar se refere é aquela onde é narrada a visão artística de


Tonio Kröger, que, mesmo sendo divergente da concepção de Nassar, se aproxima
dela pela via da imoderação que o artista, assim como Flaubert, deve ter em rela‑
ção ao seu trabalho:

Trabalhava não como quem trabalha para viver, mas como alguém que não deseja
outra coisa a não ser trabalhar, pois que não se dá nenhum valor como pessoa e
deseja ser considerado apenas criador, passando de resto despercebido como uma
sombra parda, como um ator sem maquiagem, que não é nada enquanto não tem
papel a representar. Trabalhava em silêncio, trancafiado, invisível, cheio de menos‑
prezo para com aqueles pequenos literatos para quem o talento era um adereço
social e que, pobres ou ricos, se pavoneavam selvagens e esfarrapados, ou ostentando
gravatas exclusivas, convencidos de que levavam uma vida altamente feliz, digna e
artística, ignorando que boas obras só surgem sob pressão de uma vida ruim, que
quem vive não trabalha, e que é preciso estar morto para ser realmente um criador
(Mann, 2000a: 111).

Tonio Kröger era o artista alienado em sua torre de marfim, marginal, estetizante,
submerso pelo jogo de formas e idéias, indiferente ao mundo. Thomas Mann vai
começar a mudar sua concepção estética justamente a partir de A montanha
mágica – obra escolhida por Nassar para estabelecer diálogo direto com Mann –,
que marca o momento de cisão existente na obra de Tomas Mann, quando ocorre

9
Liliane Heynemann, “Do culto das letras ao cultivo da lavoura”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29/08/1992.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 93

uma tomada de posição política mais implicada na relação entre arte e vida pelo
artista.

Questionando, assim, as concepções artísticas de Kröger, e se mantendo a uma


distância irônica, Nassar dialoga com o conto de Mann, o qual trata da indiferença
em face aos acontecimentos da vida, através da postura – ou melhor, da impostura
– de certos personagens seus, sobretudo aquele de Um ventre seco, que exala uma
ironia altiva, fria e castradora. Em Tonio Kröger, pode­‑se ler:

Então, com o tormento e orgulho do conhecimento veio a solidão, pois era­‑lhe impos‑
sível permanecer no círculo dos ingênuos, alegremente inconscientes, e a marca em
sua testa os incomodava (idem: 109).

O tema do estigma, da diferença que traz a indiferença, ou seja, uma posição


distante do mundo e por conseqüência um lugar especial fora da lei comum, é
retomado em Lavoura arcaica pelo personagem André, que se sente diferente,
um louco, um epilético, marcado pela cicatriz do grande indiferente: “vou sentir
na testa a carne áspera do seu beijo austero, bem no lugar onde fica a minha cica‑
triz” (Nassar, 1997: 128). Também o personagem “Ele” de Um copo de cólera se sente
marcado, bem como o narrador de “Um ventre seco”, declara que: “estou falando
da cicatriz sempre presente como estigma no rosto dos grandes indiferentes”
(Nassar, 1998: 66), sendo que a mulher é colocada em certo momento no polo dos
inconscientes e dos ingênuos.

Segundo Tonio Kröger, a maldição que os artistas ressentem começa a aparecer


muito cedo, na adolescência, quando acaba a vida harmoniosa com Deus e o
mundo, e é também quando se começa a se sentir marcado, mergulhado em
uma misteriosa oposição com os outros. Assim, entre o abismo da ironia, a opo‑
sição, o sentimento que os separa dos outros, percebe­‑se o estigma sobre suas
frontes e eles sentem que o mundo todo irá ver essa marca, e é por isso que o
artista é predestinado e maldito, e assim, como um deus, ele é colocado acima
do mundo.

Tonio Kröger prega a calma e uma espécie de serenidade indiferente, visto que é
preciso que o artista se afaste da paixão. Segundo o preceito da “arte pela arte”, o
mais importante seria a forma e não o conteúdo; em princípio ele seria indiferente,
94 O silêncio eloquente de um ventre seco

e se dermos muito valor ao que dizemos, corremos o risco de cair no sentimenta‑


lismo, no patético, sem ironia, e por isso banal.

Em certo momento de sua trajetória Thomas Mann vai se afastar de sua primeira
concepção, e isto se dá na época em a Alemanha se modifica, que o nazismo começa
a aflorar. Mann desenvolve então uma nova sensibilidade artística, virando­‑se para
uma nova articulação com a vida, sem contudo ser atraído para a chamada arte
engajada.

Nassar, como já dito, cita um pequeno pedaço de frase retirada de A montanha


mágica. Esse romance conta a estória de um jovem burguês, Hans Castorp, que um
dia vai a Davos para visitar seu primo Joaquim, que estava tuberculoso. Castorp vai
viver uma experiência perturbadora, sendo colocado à prova, pois dividido entre
um ocidente pretensamente racional, capitalista e democrático, e um oriente qui‑
nhentista, cuja lentidão e passividade, recusa do trabalho e do lucro se misturam a
experiências duvidosas e politicamente perigosas.

O “tecido musical” deste romance integra a abstração inumana dos duelos de


idéias entre os dois “pedagogos” que disputam a alma do jovem alemão médio,
Hans Castorp – Naphta, o dialético obscurantista, e Settembrini, o racionalista
cândido – assim, uma espécie de realismo fantasmagórico se apresenta pela esco‑
lha do espaço onde se passa a trama: um sanatório cosmopolita para burgueses
desocupados. Os debates, os combates funcionam como contrapontos musicais e,
pode­‑se dizer, não é imprescindível para a leitura seguir rigorosamente as idéias de
cada personagem, mas talvez seguir a polifonia e as dissonâncias que estabelecem.

Raduan Nassar, de fato, apenas tangencia a frase de Mann, mas os desdobramentos


de seu diálogo com o escritor alemão ultrapassam esse pequeno trecho. Pois este
diálogo, como já dito, não se restringe apenas ao Lavoura arcaica, mas se estende a
Um copo de cólera – por exemplo, os títulos dos capítulos “ A chegada ” e ” O café da
manhã ” estão ali repetidos. Mas também em “Um ventre seco” e em “Mãozinhas de
seda” seu diálogo com Mann se faz presente.

A passagem de Mann de que se serviu Nassar faz parte do diálogo entre Naptha,


o jesuíta, e Castorp. O primeiro explica a origem e o funcionamento da franco­
‑maçonaria, após contar a Castorp que seu rival, Settembrini, é maçon:
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 95

Os segredos das lojas têm em comum com os mistérios da nossa Igreja as relações
evidentes com as solenidades ocultas e os excessos sagrados da humanidade mais
remota… Quanto à Igreja, refiro­‑me à ceia, ao ágape, ao consumo sacramental da
carne e do sangue, e no que diz respeito às lojas… (Mann, 2000b, p. 700).

eu poderia dizer com segurança, mas não era a hora de especular sobre os serviços
obscuros da fé, levantar suas partes devassas, o consumo sacramental da carne e do
sangue, investigando a volúpia e os tremores da devoção, […](Nassar, 1997: 26).

Settembrini é franco­‑maçom, burguês liberal, humanista, iluminista, em resumo,


o perfeito clichê de uma ilusão de vida revolucionária. É possível aproximá­‑lo do
personagem Ela de Um copo de cólera, ou de Paula de Um ventre seco, enquanto
que Naphta se aproxima do personagem Ele e também do narrador de Um ven‑
tre seco. Naphta é jesuíta, obscurantista, mas também comunista, romântico, anti­
‑capitalista, reacionário e ao mesmo tempo revolucionário.10 Naphta explica que a
franco­‑maçonaria, então considerada iluminista, no século XVIII era mística, que os
franco­‑maçons eram obscurantistas ligados à alquimia que conduz ao sublime, à
transubstanciação.

Naquele momento, para Naphta, a franco­‑maçonaria se preocupava com a virtude,


a moderação, a pátria, mas sobretudo com os negócios. Ou seja, pela mentalidade
burguesa, ela se transformou em uma espécie de clube, cuja finalidade era ganhar
prosélitos para sua causa. Naphta fala maliciosamente do avô de Settembrini, avan‑
çando argumentos que nos remetem ao personagem “Ele” de Um copo de cólera,
que rejeita o humanismo, (sem contar que tanto “Ele” como Naptha se valem de um
pathos desconcertante), assim como ao narrador de Um ventre seco. O obscuran‑
tista, em sua carta, diz a Paula:

Você tem razão, Paula: não chego sequer a conservador, sou simplesmente um obscu‑
rantista. Mas deixe este obscurantista em paz, afinal, ele nunca se preocupou em fazer
proselitismo (Nassar, 1998: 62).

10
Ver sobre essa questão Michel Löwy, “Lukács e Leon Naphta: o enigma do zauberberg”. In Romantismo
e messianismo, 1990.
96 O silêncio eloquente de um ventre seco

No último capítulo do romance, intitulado “A grande irritação”, a impaciência


domina o sanatório, que parece contaminar­‑se pelos acontecimentos externos.
Finalmente, o jesuíta desafia Settembrini, propondo­‑lhe um duelo, do qual Castorp
será o árbitro. No momento em que o desafia, Naphta declara que Settembrini tem
medo da ideologia escolástica e que vê como crime pedagógico sua maneira de
induzir a juventude na dúvida, mas que a função de um educador é a de semear a
dúvida, porque somente do ceticismo radical, do caos moral, nasceria o absoluto,
revelando, ironicamente, o lado racional do pretenso obscurantista.

A posição de Settembrini não o coloca em uma situação superior a de Naphta:


como se recorda Castorp, na última parte do romance, este era algumas vezes mais
belicoso que Naphta. Durante o duelo, Settembrini atira, voluntariamente, para o
alto, enquanto Naphta atira em sua própria cabeça.

A luta, até ali verbal, se transforma em combate corporal, como ocorre em Lavoura
arcaica e em Um copo de cólera. O duelo, explica Settembrini, é o último estágio; no
fim das contas, só resta aos homens a luta corporal, estágio primitivo da natureza,
retorno à barbárie, precisamente naquele momento crucial da civilização ociden‑
tal, ameaçada pelo perigo de desaparecimento após a Primeira Guerra Mundial e
do surgimento do nazismo e da barbárie perpetuada por este regime totalitário
e o que, no Brasil, no contexto da obra nassariana, podemos talvez relacionar ao
apogeu da ditadura militar.

Outro importante diálogo sobre a questão da indiferença que Nassar estabelece


é com o heterônimo Ricardo Reis, conhecido por seu célebre poema sobre o jogo
de xadrez e o qual será parafraseado em Um copo de cólera. A indiferença de Reis
é forçada, medrosa, calculada. O poeta prega uma vida de contemplação e nada
querer para afastar qualquer possibilidade de tormento ou dor. Como analisa Leyla
Perronne­‑Moysés:

Em Reis, o desejo é mantido no grau zero : “ Nada quero ” [OP, p. 287], que é um “ não
quero querer  ”, lido pela psicanálise como uma forma de desejo. Todos os excessos
pretendem ser aí dominados, principalmente o excesso de ser muitos: “ Vivem em nós
inúmeros […] /Há mais eus do que eu mesmo. / Existo todavia / Indiferente a todos. /
Faço­‑os calar: eu falo. Os impulsos cruzados […]/ Disputam em quem sou. / Ignoro­‑os.
Nada ditam / A quem me sei : eu ‘screvo ” (2001: 119­‑120).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 97

Com efeito, Reis carrega uma idéia de indiferença afetada pela racionalização
face a dor que ele quer evitar. Desta maneira, ele se afasta da vida e mantém uma
postura afastada do mundo, sem a coragem cínica, fingindo a renúncia, a falta
de desejo, como se pudesse simplesmente, contemplando uma vida que passa
inexoravelmente.

Nas Ficções do Interlúdio – Odes de Ricardo Reis, o poeta se dirige a Lídia para
convencê­‑la a ter uma vida contemplativa, nada desejar, pois tudo seria destinado
ao tempo inexorável que passa, irreversível. Nada desejar, aceitar o Destino, eis o
segredo da felicidade.

Em Um copo de cólera, Nassar cita Ricardo Reis:

caiam cidades, sofram povos, cesse liberdade e a vida, quando o rei de marfim está em
perigo, que importa a carne e o osso das irmãs e das mães e das crianças? nada pesa na
alma que lá longe estejam morrendo filhos… ” (Nassar, 1978: 59­‑60).

O enxerto é quase direto de trecho significativo da mais conhecida das Odes de


Ricardo Reis :

Quando o rei de marfim está em perigo,


Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças ?
[...]
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença (apud Perrone­‑Moysés, 2001: 267­‑269).

Eduardo Lourenço comenta que “ é bem difícil conceber cenário mais pós­‑moderno
que o do poema de Reis, o famoso poema dos jogadores de xadrez concentrados
no seu jogo [...] e indiferentes a tudo, salvo à nossa indiferença ” (1986: 53). Contudo
há algo de inquietante em Reis e que se traduz no insistente Maktub árabe, na
98 O silêncio eloquente de um ventre seco

aceitação do Destino, uma espécie de indiferença trágica. É preciso ressaltar a


contradição contida naquilo que recomenda o personagem­‑narrador e a forma
colérica de suas palavras, totalmente diferentes das de Ricardo Reis, nas quais se
percebe a calma correspondente ao que ele defende. Como salienta José Gil em
relação a Reis, existe uma “coincidentia entre as sensações do sujeito que segue o
ritmo dos versos, por isso seus versos são regulares e a distância estóica em relação
à vida”(2000: 43).

A revolta caricatural daquele que pretende se fechar em sua torre de marfim,


indiferente ao que se produz no mundo, exilado em sua casa, característico do
personagem­‑narrador de Um ventre seco, re­‑apropria a carga de uma indiferença
trágica para questionar os limites da ação humana:

Pouco se me dá, Paula, se mudam a mão do trânsito, as pedras do calçamento ou o


nome da minha rua, [...] (Nassar, 1998: 66).

Um tal tomada de posição corresponde a dos cínicos gregos que, atacando as


convenções sociais, denunciam o caráter convencional dos julgamentos de valor,
fonte dos preconceitos. Tendo como alvo o racionalismo que eles consideram
mistificador, os cínicos adotam uma atitude polêmica e um comportamento
excessivo.

No conto “Aí pelas três da tarde” (1972), a indiferença contra as convenções sociais
pretende também atingir um estágio de construção de uma nova visão do mundo,
daí o conselho do narrador deste conto:

Largue­‑se nela como quem se larga na vida, e vá fundo nesse mergulho: cerre as abas
da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé [já não importa em que apoio], goze
a fantasia de se sentir embalado pelo mundo (Nassar, 1998: 73).

Esta imagem de retorno ao ventre se repete em Um copo de cólera, quando Ela


assume a narrativa e o observa como se fosse um grande feto:

[…] deitado de lado, a cabeça quase tocando os joelhos recolhidos, ele dormia, não era
a primeira vez que ele fingia esse sono de menino, e nem seria a primeira vez que me
prestaria aos seus caprichos […]” (Nassar, 1978: 81).
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 99

E, no conto “Um ventre seco”, a sombra do ventre seco da mãe. Exílio radical, tonel
de Diógenes, retorno à origem, ao estado de natureza dos cínicos, ou a uma zona
de indiferenciação?

Atingir o miolo propulsor

Nassar abre diálogo com a chamada literatura do alto modernismo no momento


em que essa está perdendo sua força, quando qualquer resistência se torna
domável. Se a arte é o que resiste, como então resistir? Como criar?

A literatura de Nassar se preocupa menos em re­‑encantar o mundo ou em retor‑


nar a um estágio de natureza original, do que de re­‑modelar o mundo a partir de
outras ilações que não as ditadas pela ordem e pelo progresso do capitalismo
atual, ou ainda, dos discursos midiáticos. A comunicação midiática é tudo menos
o espaço comum, é antes o espectro do comum, de uma linguagem de clichês e
despontecializada. Talvez a força da literatura do modernismo esteja não naquilo
que a liga a uma negatividade do indizível, mas exatamente na sua potência
de comunicar, de criar linhas e espaços comuns diferentes da razão midiática,
nem que para isto tenha­‑se, como sugere Deleuze, que “criar vacúolos de não­
‑comunicação, interruptores, para escapar ao controle”(1992: 217).

A força argumentativa, o jogo performático cínico presente nos textos nassa‑


rianos criam uma intensidade perigosa que oscila entre “vida e morte, loucura
e razão, e essa linha nos arrasta” (idem: 129), mas essa intensidade apaixonada
é dobrada no espaço do silêncio do ventre, de um exílio interior, de uma zona
de indiferenciação, num jogo de reversão contínuo. A herança cínica é utilizada
não para retornar aos gregos, mas para pensar a questão de uma produção
de si calcada num domínio da vontade, vontade também de não querer, de
abstinência quando se achar necessário, sem nenhuma relação com um código
moral.

Assim se apresenta o jogo livre da linguagem como algo novo e comum a ser
conquistado, e não restaurado. A linguagem da infância, como sugere Giorgio
100 O silêncio eloquente de um ventre seco

Agamben11, linguagem do estado fetal, da pura potência, é a linguagem do solo


comum do qual o poder tenta nos privar e que necessita ser criada, conquistada.
Isto para manter a alternativa contingencial entre o poder e o poder não ser, para
atingir o “miolo propulsor”, um ventre seco.

Bibliografia
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les pays lusophones, Paris, Presses de la Sorbonne Nouvelle.

11
Ver seu livro Bartleby ou la création.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 101

__________________ (2003), “Le ventre sec ou la mise en scène du langage amoureux”, in


Anne­‑Marie Quint (ed.), Au fil de La plume – Cahier nº 10 du Centre de recherche sur les
pays lusophones, Paris, Presses de La Sorbonne Nouvelle.
__________________ (2004), Une poétique de l’intertextualité : Raduan Nassar ou la littérature
comme écriture infinie, Tese de doutorado apresentada à Université Paris 3 – Sorbonne
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trada, São Paulo, Iluminuras.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 103

Tinha paixão, tinha um copo de cólera ?


1

Pedro Eiras
Universidade do Porto
Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

Tinha paixão?

li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,


quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
Herberto Helder

Tinha paixão?

Mas quem – eu, ele?

Ele, três livros apenas – que se retire a paixão e nada ficará: papel em branco.

1
Este ensaio foi apresentado no Colóquio Internacional «Tinha Paixão? (literaturas brasileira e
africanas)», organizado por Patrícia Lino e Sunamita Cohen, no dia 25 de Maio de 2011, e é publicado
pela primeira vez neste livro. O colóquio decorreu em vários locais do Porto, e pretendia divulgar
autores das literaturas brasileira e africanas a um público não académico.
104 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?

Mas paixão é cólera, lavoura, caminho. Não simples alegria; muito menos paz. É
fúria, dor, jogo mortal, fogo e depois o silêncio das cinzas.

Dizer assim, publicamente, despudoradamente: eu tenho paixão, estou apaixo‑


nado por Raduan Nassar.

Dizê­‑lo alto e bom som. Não por exibicionismo, perante o mundo. O apaixonado
sente que já não há mundo: ele apenas diz, apenas lê, sozinho.

Estar apaixonado é doloroso, fascinante, terrífico. Não se vai de ânimo leve para o
livro. Entra­‑se a medo. Às vezes, nem sequer se quer ler; mas o apaixonado dá por
si a ler, despossuído, e depois já não pode deixar de ler.

Às vezes, o apaixonado pensa que odeia os livros, estes livros. E esse ódio também
pertence à paixão. Tem tanto medo deles, o apaixonado, que os fecha. Que depois
os abre. Sitia as palavras – ele, o sitiado. (Pouco importa o que ele quer, o que ele
pensa que quer: ele não sabe nada.) Ele é seduzido: o livro o arrebata do mundo.

Antecipo o prazer de ler. Recuso­‑me a ler. Leio. Sei o texto e faço por ignorá­‑lo. Finjo a
minha força, forço a minha indiferença. Como se diz de um actor: é forçado, soa a falso.

Depois perco­‑me no transe, jubiloso, amargo, jubiloso.

Porque a escrita é um ritmo, quer dizer, quer dizer: respiração, pulso, uma taqui‑
cardia sagazmente dominada. O que acontece a um corpo que lê uma frase?
Fenomenologia por explorar. Esse corpo imita a frase que lê: é varado pela mesma
electricidade. (Diz­‑se de Proust que prolongava as frases para adiar a difícil, asmá‑
tica inspiração; é uma pequena explicação fácil; mas o que acontece ao leitor de
Proust, que asma outra recebe ele nos seus pulmões puros, impuríssimos?)

A leitura em transe é prazerdesprazer. Dominada, repito. Porque o leitor sabe: à


terceira página já terá cessado de resistir: imergirá no texto, numa respiração que
não lhe pertence. Ele marca encontro com essa página, numa colisão certa, num
mergulho (suster a respiração, já – e o abraço da água gelada).

A paixão não dá nada. Não rende, não produz, não ilumina nem indica o caminho.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 105

A paixão fragiliza, quebra, queima, destrói.

(Mas damos a vida por uma paixão, e sabemos: é quando damos essa vida que a
vivemos, que ela se torna nossa, perdida e conquistada.)

Na verdade, eu não sei explicar. O que sabe dizer o apaixonado? É evidente que
não sabe falar da sua paixão. Vai somando palavras, não para explicar, mas para
encobrir. O quê? Precisamente, ele desconhece aquilo que encobre.

(O que é? O que subjaz ao meu pensamento, que outros textos, que outras expe‑
riências Lavoura Arcaica evoca em mim, e recalco, e não sei, nunca saberei?)

Àqueles que se aproximem, só posso prometer um vívido sentimento de danação.

Três livros e um silêncio.

Um apaixonado não tem programa. Nem matéria, bibliografia, sumário, relató‑


rio, exame. Nem sequer notas de rodapé, op. cit. Não vou sequer indicar edições,
números de página.

Eu gostaria de apenas ler, não dizer nada. Ficar, o mais possível, rente à escrita.

Se possível, esquecer a biografia.

Na verdade, ela está nos livros, on line, está em todo o lado (sobretudo, no apetite
condicionado dos leitores – não ainda os apaixonados –, em certo voyeurismo fácil).

Em todo o lado a menção da família libanesa, a migração para o Brasil, São Paulo,
Raduan sétimo de dez filhos, nascido em 1935. Em todo o lado os estudos de direito e
filosofia; as profissões abandonadas, as viagens pelos Estados Unidos, pela Alemanha,
pelo Líbano. O regresso. A escrita: o conto “Menina a caminho” em 1960, o romance
Lavoura Arcaica, a novela Um Copo de Cólera e três outros contos entre 1968 e 1974
(há ainda um último conto, “Mãozinhas de seda”, escrito em 1996; mas o autor dirá
que não passa de uma “molecagem”). As publicações: o romance em 1975, a novela
106 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?

em 1978; depois prémios, traduções, a aclamação. E, logo a seguir, o abandono da


literatura: Raduan Nassar assume, numa entrevista, que deixou de escrever. O silên‑
cio. Compra uma fazenda no Estado de São Paulo e dedica­‑se à produção rural.

Três livros, apenas, três livros e um silêncio.

E por quê o silêncio?

Mas isso importa, esse quê?

Eu preferia ignorar, desistir desta pergunta – ficar com os escritos, a sós. Teria muito
com que ficar: textos a interrogar, anos a fio. Mas é mais forte do que eu: pergunto
por quê o silêncio. Minha tentação.

Em raras entrevistas, Raduan Nassar deixa entrever razões, e por vezes a razão do
sem­‑razão.

Interrogado pelos Cadernos de Literatura Brasileira, em 1996, sobre o que o levou a


escrever e a deixar a escrita, responde: “Foi a paixão pela literatura, que certamente tem
a ver com uma história pessoal. Como começa essa paixão e por que acaba, não sei”.

Entrevistado por Mario Sabino em 1997, acrescenta: “Não acredito que se possa
recuperar aquele impulso vital que leva alguém a mergulhar de cabeça numa ativi‑
dade. Depois que se perde isso, a gente tem mais é que cair fora. Não se faz litera‑
tura para valer com paixão requentada.”

O escritor é abandonado pela força que o assaltou. Os demónios tomam os cor‑


pos, deixam os corpos (íncubos, súcubos, legião, daimon, ninguém os domina). A
escrita faz­‑se no trânsito dos demónios, no transe.

Fica a ecoar em mim este espanto do homem abandonado: “não sei”.

Na mesma entrevista de 1997 para a Veja, Raduan Nassar diz ainda:

Eu não me dava conta então de que escrever tem muito a ver com história pessoal,
muito a ver com exorcizar condicionamentos, fantasmas, demônios e sabe­‑se lá mais
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 107

o quê. Nesse sentido, escrever é uma atividade incomparavelmente mais acessível e


eficiente do que um divã de psicanalista. Acho até que parei de escrever porque me
dei alta na auto­‑análise que fazia.

Expõe­‑se, ironiza, graceja. Em que podemos acreditar? O que se diz aqui, que não
seja logo desdito pelo humor? Que exposição não se camufla?

Uma entrevista, lugar de obscuridade: não se pode acreditar numa só palavra, por‑
que cada palavra é ficção (mesmo quando se jura dizer a verdade, toda a verdade,
nada senão a verdade – intrat nesse momento o fantástico demónio da ficção).

São apenas hipóteses provisórias, ainda quando assinadas pelo mesmo nome que
assina os livros.

Talvez a verdade seja muito mais simples. Talvez nem sequer haja mistério neste
abandono da escrita. Alguém escreve, alguém deixa de escrever – por que haveria
mistério aqui?

O mistério, alucinação nossa.

A alucinação não tem limites: de bom grado aceita projecções, teorias da conspira‑
ção, delírios hermenêuticos. Os leitores inventam explicações para o inexplicável;
julgam, rotulam; justificam ou atacam o autor – que deixou a literatura? ou abdi‑
cou? ou a trocou por outra cultura, o cultivo da terra e a criação dos animais? ou
preteriu, esqueceu, foi vencido por, falhou, desprezou, temeu, o quê?

No limite, o leitor odeia (outra paixão) Raduan Nassar (odeia o silêncio, se ama os
livros).

Sobretudo: o leitor explica, explica, explica. Não suporta não interpretar o que não
compreende (é o mecanismo do medo, por definição). Prefere um tribunal inteiro.
Basta espreitar on line: todos os comentários inflamados sobre este escritor que
ousou não escrever mais.

(O mundo não pára de pedir: mais um romance, mais outro romance, quando
publicas o teu próximo romance?, já estás a escrever o teu próximo romance?, oh,
108 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?

entretém­‑me, distrai­‑me com glosas, mais e mais volumes, histórias diluídas nos
muitos tomos das obras completas... Mundo que raramente se suspende na leitura,
na releitura do texto sozinho, na repercussão difícil da mesma palavra ao longo das
décadas, das gerações.)

Na verdade, não há acidente. O silêncio pode ser inexplicável; mas estava previsto
dentro do próprio texto que falava – desde a primeira hora. Releio o conto “O ven‑
tre seco”, escrito em 1970, e ouço: “já cheguei a um acordo perfeito com o mundo:
em troca do seu barulho, dou­‑lhe o meu silêncio.”

Não se pode confundir a voz das personagens com as opiniões do autor, decerto,
decerto. Mas pode­‑se avaliar uma concordância, suspeitar de um contágio.

E mesmo se não se pode acreditar nas entrevistas, mesmo se elas são tão verdadei‑
ras como os romances, as novelas, os contos, também nas entrevistas há concor‑
dância, coerência.

(E há uma coerência da fúria – Lavoura Arcaica é um dos livros mais furiosos que
alguma vez li –, mas também uma coerência do abandono. Raro é, decerto, que um
mesmo autor viva as duas paixões, uma após a outra – e talvez uma prometida no
interior da outra.)

Se contos como “O ventre seco” ou “Aí pelas três da tarde” descrevem uma renúncia
ao mundo, aquele que se encena a si próprio como Raduan Nassar nas entrevistas
lembra também (é Schopenhauer reencarnado?):

Gostar, gostar para valer, eu gosto mesmo é de dormir. Dormir é a melhor coisa deste
mundo. Nem leitura, nem diversão, nem uma boa mesa, nada se compara. Sexo então
é fichinha perto. É um momento de magia quando você, só cansaço, cansaço da
pesada, deita o seu corpo e a sua cabeça numa cama e num travesseiro. Ensaio, prosa,
poesia, modernidade, tudo isso vai para o brejo quando você escorrega gostosamente
da vigília para o sono. É o nirvana!

E o leitor avalia, julga, admira, ou odeia.

Mas Raduan, decerto, não está nem aí.


AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 109

Dos contos a Um Copo de Cólera.

Por que estou apaixonado por Um Copo de Cólera?

A estória, em duas palavras.

Um fazendeiro, uma jornalista: amantes. Ela chega à chácara dele. Indiferença fin‑
gida dele. No quarto, denso erotismo dos dois (na verdade, mais depressa a fanta‑
sia dele) (na verdade, ele – o narrador – insinua a insatisfação dela). Dia seguinte.
O narrador furioso com uma invasão de saúvas, que lhe desfazem uma cerca (a
propriedade privada?); ela estranha tanta fúria; ele reage: começa a descarregar
sobre os trabalhadores da chácara, ali bem à mão, quase sempre calados. Ela res‑
ponde por eles. E começa um longo, longo duelo verbal, barroco, implacável. Até
que ele esbofeteia a jornalista; eclode o gozo erótico de ambos (tudo, então, até
aqui, foi um ritual? uma perversa parada nupcial?). Mas a fúria dele é mais forte
do que o próprio jogo erótico; rompe o pacto, humilha­‑a (como é difícil resumir
Um Copo de Cólera sem trair tudo quanto este texto não explica, não quer expli‑
car): e ela foge. Desespero do narrador sozinho; a nostalgia da infância (não sei
resumir, não se pode resumir). No fim do dia ela regressa, e toma a narração (não
se pode – ).

Eu devia apenas ler.

Ler, transcrever aqui uma frase do tamanho da cólera. Uma única frase de, na minha
edição, trinta e oito páginas.

Não o farei. Cito apenas (começar em voz baixa, como quem surpreende as mediae
res, como quem entra no fluxo vivo desse rio), por exemplo, aqui, o começo do
duelo:

............... e foi então que ela, com a mão ainda na maçaneta, deglutindo o grão per‑
feito do meu chamariz, e desenterrando circunstancialmente uns ares de gente séria
(ela sabia representar o seu papel), entrou de novo espontaneamente em cena, me
dizendo com bastante equilíbrio «eu não entendo como você se transforma, de
repente você vira um fascista» e ela falou isso dum jeito mais ou menos grave, na
linha reta do comentário objetivo, só entortanto, um tantinho mais, as pontas sempre
110 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?

curvas da boca, desenhando enfim na mímica o que a coisa tinha de repulsivo, eu só


sei que essa foi no saco, e não era o meu saco que devia ser atingido, disso eu estava
certo (apesar de tudo), estava solidamente certo de que minha raiva se resgatava na
fonte ...............

– ou, mais adiante, cólera acesíssima, a sequência de um combate infrene (cito lon‑
gamente, cito demasiado, mas sempre com escrúpulo de interromper, de cortar,
onde seria preciso um fôlego só – Joyce pedia um leitor de insónia ideal, seria pre‑
ciso também um leitor de respiração ideal):

............... «fique tranqüila, pilantra, gente como você desempenha uma função» eu
disse com amargura, «fique tranqüilo, sabichão, gente como você também desem‑
penha uma função: cruzando os braços, você seria conivente, mas agora vejo que
isso é muito pouco, como agente é que você há de ser julgado» «não pedi tua opi‑
nião» eu disse me amparando na frase feita, essa muleta ociosa mas capaz de me
exacerbar, compensadoramente, as sobras de musculatura, senti que me explodiam
duas bolhas imensas aqui nos bíceps, enquanto reconquistava – suprema aventura!
– minha consciência ocupada, fazendo coincidir, necessariamente, enfermidade e
soberania «pra julgar o que digo e o que faço tenho os meus próprios tribunais, não
delego isso a terceiros, não reconheço em ninguém – absolutamente em ninguém
– qualidade moral pra medir meus atos» eu disse trocando de repente de retórica
(tinha vibrado o diapasão e pinçado um tom suspeito, mas, como simples instru‑
mentos – inclusive as inefáveis... – e já que tudo depende do contexto, que culpa
tinham as palavras? existiam, isso sim, eram soluções imprestáveis), acabei inver‑
tendo de vez as medidas, tacando três pás de cimento pra cada pá de areia, arga‑
massando o discurso com outra liga, me reservando uma hóstia casta e um soberbo
cálice de vinho enquanto entrava firme e coeso (além de magistral, como ator) na
liturgia duma missa negra ...............

Por que estou apaixonado –?

Há uma primeira razão:

Porque se bebe aqui um copo de cólera. Quer dizer, é um dies irae, um Apocalipse:
um juízo final, ressurreição e condenação de tudo. E por causa de coisa tão pouca
– será? –, umas formigas que rompem uma vedação.
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 111

Mas começamos a compreender que, se puxarmos qualquer ponta solta do mundo,


ele se desfará como um novelo se desembrulha (e ficam as vísceras, indecentes).

Tudo é exposto a juízo: cada gesto, palavra, a distribuição da riqueza, a repartição


da moral, o consciente e o inconsciente. A fúria não conhece fronteiras nem diques,
ela devassa o privado e o colectivo, chama as coisas pelos nomes, como numa vigília
demasiado feroz. Eles – chacareiro, jornalista –, precisamente, não têm medo das pala‑
vras; manejam­‑nas como lâminas. Cristo na Capela Sistina: uma mão no ar, furiosa.

Tudo devém valor, e os valores caem, arruinados.

Juízo final. Quer dizer, pensar com a fúria. É o ponto de vista do pânico, do horror,
de Diónisos. Cheira a enxofre. Ele, ela – estão possuídos por uma coisa maior do
que eles (Clarice: este livro é maior do que eu); mas abrem a boca e, como profetas,
dizem as palavras. São humanos e sobre­‑humanos, por graça de uma sinceridade
que não deveria poder existir.

(A civilização existe para impedir de pronunciar essas palavras; mas tanto Um Copo
de Cólera como Lavoura Arcaica existem para maldizer a civilização.)

Como se pode escrever aí?

E que experiências, que paradoxal sageza, apesar de tudo, se encontra aí?

Que sageza da fúria? Isso não deveria existir. A fúria deveria ser o inverso da sageza
– diz­‑se, diz­‑se.

Aceitar o transe, deixar vir (o “esporro”).

Há ainda uma, pelo menos, segunda razão.

É a frase.

Um Copo de Cólera é feito de sete frases, apenas. E uma dessas frases, repito, ocupa
trinta e oito páginas. Mas quem lê compreende que a frase poderia não terminar
nunca, e de algum modo ela não termina.
112 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?

Então, é impossível parar: o sintagma pede sempre mais uma palavra, o fluxo (é
irrespirável, nenhum fôlego suporta este enunciado, ele exige os colossos, os titãs;
ninguém pode suster este texto, mas ele sustém­‑se, e toma­‑nos).

A frase não termina: porque ninguém pode desfazer simplesmente cada fio do
mundo para ficar com os fios lisos na mão, mas cada fio, se o observarmos com
cuidado, dobra­‑se novamente em argumento e contradição, verdade e ponto de
vista, cólera da cólera, juízo e crítica do juízo. Não termina: dobra para dentro e
arrasta o leitor. Não é o círculo, com seu centro certo, mas a elipse (Severo Sarduy),
infinitamente dilatável, explosiva, sem origem assegurada.

A frase não termina, e não termina de gozar, por tanto adiar o gozo; e é uma frase
erótica, um jogo perverso, uma excitação gozosa que vai de fúria em cólera para
cair de paixão em danação. Tudo é gozo na frase (tudo é denso, barro lírio pau
esperma goela goma vinho – como se o que as duas personagens dizem fosse uma
convulsão da natureza, e a ideia fosse uma explosão da matéria).

Discurso obscuro, portanto.

E escrever sobre ele é escrever contra ele, tentar devassar a obscuridade (mas ele
defende­‑se bem, ah, contra as lâminas analíticas, que nem o beliscam).

Quer dizer, discurso que reivindica o seu lado obscuro (que lado? todo ele é obs‑
curo por igual): o seu lado danado.

Herberto Helder: “Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.”

É preciso saber não simplificar o demoníaco.

Saber que nem tudo pode ser reduzido à mera luz do dia.

Mas que algumas experiências pedem as trevas, até quando estão expostas à mais
forte iluminação.

Discurso difícil, por ser um discurso tão generoso. Nem sempre o silêncio é miste‑
rioso, e o laconismo, obscuro. Aqui, sentimos que o caroço da cólera nos escapa
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 113

porque as palavras se multiplicam; e quanto mais descascam esse fruto, mais afinal
o encobrem: porque quanto mais se diz, mais as palavras adiam – o quê? O que
haveria para dizer, para ler, sob as palavras?

O quê, sob, senão aquilo que as palavras anunciam sem mostrar? Que veredicto
sob o juízo?

Não há veredicto.

Apenas o juízo que promete, promete –

(a frase que não termina)

É preciso suspeitar então do narrador, todos os narradores: eles mentem, a própria


verdade é uma mentira pessoal. E tanto mais que a verdade aqui é dupla – a dele,
a dela.

Estranho juízo final: ele tem duas bocas, duas verdades, a verdade é esquizo – como
em Lavoura Arcaica, clivada entre o pai e o filho.

(Um Apocalipse em que o Pai e o Filho discordassem no julgamento das culpas?


Nunca tal se viu, não há retábulo assim.)

Uma das verdades (portanto, meia­ ‑verdade; portanto, que verdade é esta?)
reivindica­‑se fascista. É uma acusação dela, primeiro. Depois, um orgulho dele.

Fascismo, misantropia, egoísmo, todos os demónios.

Por quê esta obsessão em tornar­‑se odioso?

Por quê a fúria absoluta em Lavoura Arcaica, a incapacidade de suportar que as


coisas sejam assim, mas, em torno, a descrença absoluta numa mudança?

Por exemplo, em Um Copo de Cólera: “a verdade é que me enchiam o saco essas


disputas todas entre filhos arrependidos da pequena burguesia, competindo inge‑
nuamente em generosidade com a maciez das suas botas, extraindo deste cotejo
114 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?

uns fumos de virtude libertária, desta purga ela gostava, tanto quanto se purgava
ao desancar a classe média”.

Ou no conto “O ventre seco”: “não tenho nada contra esse feixe de reivindica‑
ções que você carrega, a tua questão feminista (...), quero dizer simplemente
que não tenho nada a ver com tudo isso. Quer saber mais? Acho graça no ruído
de jovens como você. Que falam tanto em liberdade? É preciso saber ouvir os
gemidos da juventude: em geral, vocês reclamam é pela ausência de uma auto‑
ridade forte”.

Ou de novo em Um Copo de Cólera: “num mundo espatafúrdio – definitivamente


fora de foco – cedo ou tarde tudo acaba se reduzindo a um ponto de vista, e você,
que vive paparicando as ciências humanas, nem suspeita que paparica uma piada:
impossível ordenar o mundo dos valores, ninguém arruma a casa do capeta”.

(E o leitor odeia.)

(Talvez.)

É a danação. O texto define o mundo numa perspectiva gnóstica: a casa do capeta.


Ou um ritual de exorcismos para os revoltados dormirem bem. E os chacareiros
melhor ainda. Mesmo o juízo final não altera nada, é esporro deitado na terra, que
não fecunda. Exercícios, ciclos: excitação, fantasia, o sexo que desponta e se esgota
– começa e acaba Um Copo de Cólera com a mesma cena, apenas um pouco mais
de desgaste. Ri­‑se alto o capeta.

Suspeitas de gnose.

Na entrevista concedida a Mario Sabino: “Afinal, este mundo não foi criado por um
deus bondoso, o deus bondoso só reina de fachada – um mundo como o nosso só
pode ser obra exclusiva do capeta.”

E em Lavoura Arcaica: “não passando o teu Deus bondoso (antes discriminador,


piolhento e vingativo) de um vassalo, de um subalterno, de um promulgador de
tábuas insuficiente, incapaz de perceber que suas leis são a lenha resinosa que ali‑
menta a constância do Fogo Eterno!”
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 115

Mas tudo é duplo, e sob cada palavra dita é preciso ler pelo menos uma palavra
escondida (serve uma para mascarar a outra, serve o excesso para esconder o
escasso).

Porque – mas não quero desfazer por completo (não quero? não posso – não sabe‑
ria) a progressiva revelação, ou desengano, do leitor chegado às últimas páginas,
onde o texto e o ritual se desfazem a si próprios, mostram o avesso frágil do bor‑
dado perverso – porque, dizia, todo o livro (a cólera, o esporro) se constrói sobre
este comentário entredentes, dele, sobre ela: “como se [ela] dissesse «eu não tive o
bastante, mas tive o suficiente» (que era o que ela me dizia sempre)”.

Porque – mas não é bem isto, nunca é bem isto, enquanto escrevo sobre Raduan
Nassar – toda a fúria, indiferença, saúvas, danação e palavra de ordem do fascismo,
tudo isso esconde este terror masculino – digamos assim, abreviemos –, a ferida
narcísica, uma misoginia que esconde a misofobia. E foi, sob o homem cínico, um
homem apavorado que falou sempre, sob a palavra do juízo uma palavra de horror.
Porque nem toda a fantasia, nem todos os actos eróticos deste homem estavam à
altura do desejo – e sob o desejo a memória da infância, o abandono, a crueza do
corpo.

Que pode então o capeta, senão chorar?

Lavoura Arcaica.

Cólera, desistência, gnosticismo, danação.

Duelo, ritual, ruínas, parada nupcial.

Fim dos tempos – e, num romance, os tempos arcaicos do início, tempos da inven‑
ção da moral e da interrogação da moral.

Lavoura Arcaica é quase o inverso, o avesso de Um Copo de Cólera. Porque onde


aqui se colhem os frutos da ira, Lavoura Arcaica semeia, ou incendeia os campos.
116 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?

Uma mesma fúria, porém, no início, no fim de tudo. Os mesmos duelos, em dife‑
rentes bocas.

As mesmas ruínas.

Resumo (sempre o mesmo mal­‑estar, o mesmo escrúpulo): é, digamos, a estória do


filho pródigo.

Primeira parte, “A Partida”. Estamos no quarto de pensão em que se refugia André,


o fugitivo. Chega o irmão Pedro, o primogénito, em nome da família. Vem buscar
o elemento tresmalhado. E começa o diálogo, cruzado com memórias da infância;
tudo o que se diz é duelo. Assim: a memória dos sermões do pai Iohána; a lógica
da família (linha paterna contra linha materna, ordem e desordem); o pai e o avô (a
sabedoria do discurso, do sintagma, da frase, e a sabedoria da simples palavra fata‑
lista, Maktub – “Está escrito” –, do avô); a revelação: André não suporta a verdade do
pai; a revelação: André é epiléptico; a revelação: André ama a sua irmã Ana. É esta
a razão maior da fuga? Depois de fazerem amor, Ana teve medo, refugiou­‑se na
capela da família; e André, rechaçado, abandonou a casa, a fazenda. Agora Pedro
sabe tudo: a revolta, a epilepsia, o incesto. Não poderá suportar este espólio.

Segunda parte, “O Retorno” (a abrir com uma epígrafe do Corão: “Vos são interdita‑
das: / vossas mães, vossas filhas, vossas irmãs”). Pedro traz André de volta à fazenda.
André reencontra as irmãs (mas não Ana, que se refugiou na capela), a mãe, o pai, e
o irmão mais novo, Lula, que lhe anuncia a própria decisão de fugir de casa. André
fala com o pai; e é um debate de fúria e dor, mas as palavras ditas apenas adiam
as palavras que seria preciso dizer, as interditas; André submete­‑se e Iohána não
percebe que nada compreende. Diálogo impossível, inútil. No dia seguinte, como
quer o arquétipo, há a festa da família para comemorar o regresso do filho pródigo.
Música, dança, como numa das memórias da infância. Mas Ana surge, a dançar,
frenética, escandalosa. E Pedro revela o incesto a Iohána, e Iohána enlouquecido
esfaqueia a sua filha Ana, e a família diz o nome do pai e a mãe geme na sua língua
mediterrânica, a língua arcaica.

Não é, então, a estória do filho pródigo.

O que ler? O que citar, senão tudo?


AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 117

Citar o pai. O tom do pai, o ritmo, a sapiência; esta memória de um sermão do pai à
mesa da família, a família que ouve, calada; este início de ensinamento (poderia vir
de um livro veterotestamentário). Diz o pai:

O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o


tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo
nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico
que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo;
onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga:
existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos
sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos
de um artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros
móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra que
fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa,
na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam
pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o
homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso,
que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu,
piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando­‑se dele com ternura, não
contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua
corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando­‑o antes com sabedoria para rece‑
ber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste
bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que
se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar­‑se com
o que não é ...............

E interrompo a voz da verdade.

Mas apenas para lhe contrapor, sem demora, a voz furiosa do filho, André, reve‑
lando a Pedro a sua paixão maldita – e ouso transcrever uma frase, única, inteira,
que é um capítulo todo de Lavoura Arcaica:

“Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome” explodi de repente num momento alto,
expelindo num só jato violento meu carnegão maduro e pestilento, “era Ana a minha
enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio,
meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos” gritei de boca escancarada,
118 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?

expondo a textura da minha língua exuberante, indiferente ao guardião escondido


entre meus dentes, espargindo coágulos de sangue, liberando a palavra de nojo tran‑
cada sempre em silêncio, “era eu o irmão acometido, eu, o irmão exasperado, eu, o
irmão de cheiro virulento, eu, que tinha na pele a gosma de tantas lesmas, a baba
derramada do demo, e ácaros nos meus poros, e confusas formigas nas minhas axilas,
e profusas drosófilas festejando meu corpo imundo; me traga logo, Pedro, me traga
logo a bacia dos nossos banhos de meninos, a água morna, o sabão de cinza, a bucha
crespa, a toalha branca e felpuda, me enrole nela, me enrole nos teus braços, enxugue
meus cabelos transtornados, corra depois com tua mão grave a minha nuca, compo‑
nha depressa este ritual de ternura, é isso o que te compete, a você, Pedro, a você
que abriu primeiro a mãe, a você que foi brindado com a santidade da primogenitura”
eu disse espumando e dolorido, me escorregando na lascívia de uma saliva escusa, e
embora caído numa sanha de possesso vi que meu irmão, assombrado pelo impacto
do meu vento, cobria o rosto com as mãos, era impossível adivinhar que ríctus lhe trin‑
cava o tijolo requeimado da cara, que faísca de pedra lhe partia quem sabe os olhos,
estava claro que ele tateava à procura de um bordão, buscava com certeza a terra
sólida e dura, eu podia até escutar seus gemidos gritando por socorro, mas vendo­‑lhe
a postura profundamente súbita e quieta (era o meu pai) me ocorreu também que
era talvez num exercício de paciência que ele se recolhia, consultando no escuro os
textos dos mais velhos, a página nobre e ancestral, a palma chamando à calma, mas na
corrente do meu transe já não contava a sua dor misturada ao respeito pela letrados
antigos, eu tinha de gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a sabedoria
do pai, que a minha enfermidade me era mais conforme que a saúde da família, que os
meus remédios não foram jamais inscritos nos compêndios, mas que existia uma outra
medicina (a minha!), e que fora de mim eu não reconhecia qualquer ciência, e que era
tudo só uma questão de perspectiva, e o que valia era o meu e só o meu ponto de vista,
e que era um requinte de saciados testar a virtude da paciência com a fome de tercei‑
ros, e dizer tudo isso num acesso verbal, espasmódico, obsessivo, virando a mesa dos
sermões num revertério, destruindo travas, ferrolhos e amarras, tirando não obstante
o nível, atento ao prumo, erguendo um outro equilíbrio, e pondo força, subindo sem‑
pre em altura, retesando sobretudo meus músculos clandestinos, redescobrindo sem
demora em mim todo o animal, cascos, mandíbulas e esporas, deixando que um sebo
oleoso cobrisse minha escultura enquanto eu cavalgasse fazendo minhas crinas voa‑
rem como se fossem plumas, amassando com minhas patas sagitárias o ventre mole
deste mundo, consumindo neste pasto um grão de trigo e uma gorda fatia de cólera
embebida em vinho, eu, o epilético, o possuído, o tomado, eu, o faminto, arrolando na
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 119

minha fala convulsa a alma de uma chama, um pano de verônica e o espirro de tanta
lama, misturando no caldo deste fluxo o nome salgado da irmã, o nome pervertido de
Ana, retirando da fímbria das palavras ternas o sumo do meu punhal, me exaltando
de carne estremecida na volúpia urgente de uma confissão (que tremores, quantos
sóis, que estertores!) até que meu corpo lasso num momento tombasse docemente
de exaustão.

Transcrevo gordas fatias de texto, embebidas em fúria, a fúria que não pertence
apenas a cada palavra, mas se inflama na extensão da frase (à terceira página, já
escrevi, o leitor terá cessado de resistir). Um capítulo é uma só pedra, a sofrer por
inteiro. E um gozo, um grão, uma coisa incómoda que é preciso colher toda, a esgo‑
tar, a encarnar.

O sopro é de pedra. Cada palavra magoa. O corpo é tenso, faca, como o de um


camponês em João Cabral, e também sonho duro, intempestivo, como em Jorge
de Lima.

E a opacidade terrível destas frases, a dureza das coisas – bastam algumas


linhas: fome jato, carnegão maduro e pestilento, respiro lâmina arrepio sopro,
o assédio impertinente dos meus testículos – tudo aquilo que se diz, que se
expõe e se estende à luz – não deixa de incutir em nós, leitores, a impressão
do obscuro, do inacessível, daquilo que nunca poderemos ver sob tanta luz,
formas, explosões.

Por que me comove Lavoura Arcaica, por que me apaixona?

Não sei.

Talvez pela sua fúria.

(E a fúria pode comover? Sim, pode. Chego a perguntar­‑me, com surpresa, se em


todos os autores que me apaixonam não haverá sempre uma semente dessa cólera,
dessa incapacidade de aceitar a ordem do mundo. E então a fúria torna­‑se amor.)

Provar o sabor da fúria de cada autor. O timbre, o ritmo inconfundível. Como te


enfureces, a que sabe a tua fúria?
120 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?

Porque há algo de insuportável na ordem. Uma violência calada, aceite, invisível,


mas não inexistente.

Sobre a ordem, derramar um copo de cólera.

Deixar vir a danação.

Felizmente, “Toda ordem traz uma semente de desordem”.

E do mesmo modo, “na minha doença existe uma poderosa semente de saúde”.

Por que me apaixono? Porque eu sou André. (E André é andrós, o homem, todos
os homens.)

Porque eu sou, eu serei o pai, Iohána. As palavras dele, o elogio do tempo, que
é também submissão e exorcismo (ritual de apaziguamento, não vá a ordem do
mundo estalar), reconheço­‑as em mim.

Porque eu sou Pedro.

Porque eu sou Ana.

Porque eu sou dividido e múltiplo, sou o silêncio e a fala.

Porque, se eu não fosse todos (os justos, os danados), Lavoura Arcaica seria ilegível
para mim.

(E é preciso supor também que, para alguns leitores, Lavoura Arcaica será ilegível.
Mas esse é o preço da leitura: quem se perde num livro deve perder­‑se também um
pouco a si próprio.)

Porque eu encarno todas as vozes, sem excepção.

E faço minhas as dúvidas e inquietações de todas as vozes. Porque acredito na ino‑


cência dessas dúvidas, inquietações. Elas parecem recuar toda a noite dos tempos:
como se Lavoura Arcaica fizesse tábua rasa da civilização para questionar, no rés
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 121

da terra, o nascimento da moral (Nietzsche teria lido Raduan Nassar). Dir­‑se­‑ia que
tudo está por decidir, nestas páginas que desafiam o tempo, o incesto, as insti‑
tuições, o juízo. E quando o texto diz agora, é preciso ler: no início dos tempos,
na reinvenção dos tempos por este instante que eu, André, tomo em mãos. Mas
também: no fim dos tempos, no abandono da casa, no cancelamento de tudo o
que foi construído.

O leitor sente que este texto é muito antigo: não foi escrito na década de ’70, não
pertence ao século XX, de algum modo ele nem sequer pertence à História, se
coloca a História em questão, se a História depende de Lavoura Arcaica e corre o
risco de nem resistir ao inquérito. Este texto, dir­‑se­‑ia, fala de um lugar há muito
tempo esquecido.

Está a moral ainda em exame; é o tempo da origem, de cada vez que André ques‑
tiona a origem.

Por isso sentimos – talvez não hipotextos, estritamente falando, mas – familiari‑
dade com textos fundadores. Lavoura Arcaica tem a materialidade do paraíso da
Génese, e o tempo conferido aos homens do Eclesiastes, e a provação dos justos
de Job. Porque, de algum modo, esses livros estão ainda por escrever, no futuro de
Lavoura Arcaica, se o bem e o mal ainda não foram definidos.

A moral, uma matéria cálida.

Mas olhar de frente a moral leva à danação.

Leva à danação reivindicar o erro, a queda, o pecado – uma comovente vontade


de impureza.

Um Copo de Cólera: “assumo, pois, o mal inteiro, já que há tanto de divino na mal‑
dade, quanto de divino na santidade; e depois, pilantra, se não posso ser amado,
me contento fartamente em ser odiado”.

É raro encontrarmos uma escrita que (se) amaldiçoa.

Raro, um escritor exigir a sua própria danação.


122 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?

E se tudo está em questão na inventada noite dos tempos, toda a linguagem


tem de ser assumida e criada de novo. Não se pode desafiar a moral sem sub‑
meter a interrogatório a linguagem transparente que a cristalizou (transpa‑
rente porque se tornou invisível; e escrever é tornar outra vez opaca a moeda
das palavras).

Por isso Raduan Nassar vive um frente a frente com a linguagem, um corpo a corpo
com o pensamento e a memória. Isto é, assume uma solidão absoluta. Deleuze
diria também: literatura menor, língua menor – aquela que se faz com as matérias
de todos os dias, mas um pouco desviadas, um pouco desajustadas.

(Um pouco desajustadas: um pouco como na parábola que Benjamin transmite a


Bloch, sobre o reino messiânico, e que Agamben recorda em A Comunidade que
Vem: para atingir o reino messiânico, apenas é preciso deslocar ligeiramente cada
coisa do mundo; mas esta ligeira deslocação é o mais difícil; e, acrescento, ela tanto
pode conduzir à salvação quanto ao inferno.)

Só na solidão absoluta (André foge da casa, da família, dos sermões: da linguagem),


se pode inventar outra vez a língua; e só então nasce realmente aquele que diz, e
nasce do seu dizer.

Assim André, em Lavoura Arcaica: “Misturo coisas quando falo, não desconheço
esses desvios, são as palavras que me empurram, mas estou lúcido, pai, sei onde
me contradigo, piso quem sabe em falso, pode até parecer que exorbito, e se há
farelo nisso tudo, posso assegurar, pai, que tem também aí muito grão inteiro.
Mesmo confundindo, nunca me perco, distingo pro meu uso os fios do que estou
dizendo.”

Assim se assume a linguagem in statu nascendi. E há grão nela, mas só quem atra‑
vessa a danação sabe encontrá­‑lo; é uma iniciação dolorosa, exige a travessia da
morte.

Para nós, que lemos, que ficamos aquém – como Iohána –, é um texto duplo, pelo
menos: porque tem grão e tem farelo, porque este texto se excede e é mais do que
ele mesmo, e ao mesmo tempo se encobre e é menos do que ele mesmo, porque
– sobretudo – ele inclui o seu segredo e afirma que inclui o seu segredo e nunca se
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 123

desmascara mesmo quando diz que está mascarado (e essa é a última máscara, e
Iohána nunca poderá ouvir André).

Texto duplo, portanto. Ou críptico. Ou secreto, íntimo.

André tem de inventar outra vez a linguagem porque não há intimidade na lingua‑
gem de todos, nem liberdade na casa da família. Não basta fugir de quatro pare‑
des nem assinar uma confissão com palavras recicladas. Ninguém é verdadeiro a
repetir uma verdade. É preciso inventá­‑la pela primeira vez. Tábua rasa, origem dos
tempos, sagração de cada palavra nova.

Por isso, é apenas mais uma versão do “filho pródigo”, já conhecemos a matriz. Mas
não pode ser: um filho pródigo não pode ser mais um (se for, ele não é pródigo,
apenas repete um programa esgotado, um rótulo).

Ele precisa de inventar­‑se como o primeiro homem.

E nós, leitores? Que nos cabe ler aqui?

E mesmo: que partido tomar? Porque não basta encarnar cada personagem: em
duelos morais, é inevitável escolhermos o nosso campo (as nossas armas).

É inevitável defendermos André contra Iohána; ou o pai contra o filho.

É inevitável, mas o coração vacila. A escolha é absurda.

Seguimos, por exemplo, André. A nossa empatia, a nossa compaixão, estão com
ele. Nem sequer somos nós que escolhemos; simplesmente, acontece assim
(quem sabe o que dirige a atenção de um leitor? decerto não o próprio leitor;
decerto o leitor é o último a saber por que razão se comove, se enfurece; ele,
o leitor, está demasiado perdido nas malhas do texto, ler é uma experiência de
cegueira).

Mas suspeitamos: e se o pai tiver razão? Iohána nem sequer sabe do incesto, por
ora; e vamos dar como adquirido que o incesto é o pecado maior, o interdito de
todas as civilizações, que tudo soçobra depois desse atentado à exogamia. Mas o
124 Tinha paixão, tinha um copo de cólera?

pai já tem muitos argumentos a opor ao filho, a começar pela sua própria incom‑
preensão de um discurso que se encripta – o que há para compreender nas pala‑
vras loucas de André?

Como seguir o pai?

Como seguir o filho?

Se ambos têm razão, se nenhum?

Mas então sobressalta­‑se o leitor. Porque, se ambos têm razão, se nenhum, então
talvez pai e filho sejam a mesma figura. Talvez ambos procurem e lutem por uma
verdade absoluta; e pouco importa afinal que a verdade de um seja apolínea e a de
outro dionisíaca, pouco ou nada importa quem segue a ordem ou a desordem, e
depois encontra a semente do seu contrário na lavoura laboriosa que encetou, que
interessa o caminho se é o mesmo o destino?

Impossível o diálogo, e não apenas porque o sermão é monolítico, porque o bal‑


bucio é críptico, mas também porque nenhum dos dois colossos (mesmo com
cólera, mesmo com lágrimas) alguma vez cederá do seu absoluto, da própria
vontade de absoluto, porque as vozes opostas descrêem de figuras como o com‑
promisso, a perspectiva, a ironia ou o humor. Todo o duelo é verdadeiro e mortal,
conquista­‑se a verdade toda ou nenhuma. E o que sustenta os dois colossos, o
que assegura a boa­‑fé de ambos e os torna comoventes – é também aquilo que
os deve perder.

Pois ninguém pode acusar Iohána de falsidade.

Nem André de subterfúgios.

São ambos verdadeiros, e isso os perde.

Como na tragédia antiga: admiramos a força de cada personagem, seguimos­‑lhes


a crença, a coragem, a radical coerência, mas sabemos:

são verdadeiros, são insolentes, e vão morrer.


AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 125

E nós, que lemos, nós, que tomamos partido e escolhemos o nosso lado, que supor‑
tamos André ou Iohána, que nos apiedamos de Pedro ou de Ana, ou da mãe, ou de
Lula, o mais novo da família, nós, que recebemos as verdades e a boa­‑fé de cada
personagem, vemos, nas últimas páginas do livro, cair, um a um, cada elemento
da família condenada. E todos têm culpa, mas ninguém tem culpa, e lemos: “era
sua dor que supurava (pobre irmão!)”, e lemos: “mas era o próprio patriarca, ferido
nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina (pobre pai!), era o guia, era a
tábua solene, era a lei que se incendiava”.

Lemos: pobre André tomado pela paixão e pela cólera, e também pobre mãe inde‑
fesa, pobre irmão mais novo a sonhar fuga e rebeldia. Lemos a piedade derramada
sobre todos, justos, injustos, que importa? o narrador distribui por cada qual crime
e castigo, sofrimento e absurdo, uma só força trágica vara a razão de todos.

Impossível culpar o pai. Impossível culpar o filho.

(E sofremos, como sofremos em tempos com Aquiles e Pátroclo e Heitor e Príamo.


Com Édipo e Polinices e Antígona.

Porque a desgraça atinge todos, e nenhum sacrifício, nenhum messias poderia


expiar uma culpa tão arcaica que já ninguém sabe dizer de onde vem. Ela ecoa,
ecoa –)

............... e foram inúteis todos os socorros, e recusando qualquer consolo, andando


entre aqueles grupos comprimidos em murmúrio como se vagasse entre escombros,
a mãe passou a carpir em sua própria língua, puxando um lamento milenar que corre
ainda hoje a costa pobre do Mediterrâneo: tinha cal, tinha sal, tinha naquele verbo
áspero a dor arenosa do deserto.

O silêncio.

(Como, depois, voltar a escrever?)


AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 127

Notas biobibliográficas

António Vieira (Lisboa, 1941). Médico, psiquiatra e biólogo evolucionista, ensinou psico‑
patologia, etologia e evolução humana. Desenvolveu um modelo da origem e evolução
da linguagem. Deixou a Universidade para trabalhar em literatura, tendo publicado so‑
bretudo ficção e ensaio. Pertence ao Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de
Lisboa e à comissão de redação da revista Sigila. 

Arnaldo Saraiva (Casegas, 1939). Licenciado pela Faculdade de Letras de Lisboa, ensinou


literatura brasileira, portuguesa e francesa na  Universidade do Porto, onde se douto‑
rou e de que é hoje Professor Emérito, tendo ensinado também nas Universidades da
Califórnia (Santa Bárbara), de Paris (Sorbonne Nouvelle) e Católica (Porto). É autor de uma
extensa bibliografia ­‑ poesia, crónica, tradução, mas sobretudo ensaio e crítica, com es‑
pecial incidência sobre os modernismos brasileiro e português, Fernando Pessoa, litera‑
turas «orais e marginais», literatura brasileira e relações culturais entre Portugal e o Brasil.
Entre as suas publicações ensaísticas principais contam-se: O Modernismo Brasileiro e
o Modernismo Português (1986), Fernando Pessoa, Poeta-Tradutor de Poetas? (1996) –
ambos com edições em Portugal e no Brasil –, Literatura Marginalizada (2 vols., 1975 e
1980), Dar a Ver e a se Ver no Extremo – O Poeta e a Poesia de João Cabral de Melo Neto
(2014), Os Órfãos do Orpheu (2015).

Carlos F. Clamote Carreto (Saint­‑Étienne, 1968) é Professor Associado no Departamento de


Línguas, Culturas e Literaturas Modernas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa, investigador integrado do Instituto de Estudos de
Literatura e Tradição e investigador convidado do Litt&Arts (Universidade de Grenoble
Alpes). Codirige a revista eletrónica Cadernos do CEIL. Revista Multidisciplinar de Estudos
sobre o Imaginário e integra a comissão de redação da revista luso­‑francesa Sigila.
128 Notas biobibliográficas

Doutorado em literatura francesa, a sua investigação cruza a teoria e a hermenêutica


literárias, os estudos medievais e os estudos sobre o imaginário, tendo­‑se centrado nas
relações dinâmicas entre as mutações culturais e ideológicas dos séculos XII e XIII e as
práticas narrativas cultivadas durante este período. O seu ensaio Contez, vous qui savez
de nombre… Imaginaire marchand et économie du récit au Moyen Âge foi publicado em
2014 pelas edições Honoré Champion (Paris).

Clara Rowland (Coimbra, 1978)  é Professora Associada no Departamento de Estudos


Portugueses da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa e investigadora do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição. Desenvolve o
seu trabalho nas áreas da Literatura Brasileira, da Literatura Comparada e dos Estudos
Interartes. As suas publicações na área dos Estudos Brasileiros incluem ensaios so‑
bre Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Bernardo Carvalho, Manuel Bandeira e Carlos
Drummond de Andrade, entre outros. O seu livro A Forma do meio. Livro e narração na
obra de João Guimarães Rosa foi publicado em 2011 pela Editora da Unicamp.

Gilda Oswaldo Cruz (Rio de Janeiro, 1938). Pianista. Atividade editorial no Brasil entre
1973­‑1984.  Dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros (MRE) em Barcelona entre 1984­
‑1990. Tem publicado artigos, contos, resenhas, traduções, um romance (Na sombra do
herói, Topbooks, 2010) e uma fábula para a juventude  (O caso do amendoim roubado,
Jaguatirica, 2017). Dedica­‑se atualmente a preparar concertos de divulgação da música
de Cláudio Santoro (1919­‑1989), no ano de seu centenário. Vive e trabalha em Lisboa.

Joana Matos Frias (Porto, 1973) é Professora Auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade
do Porto e membro do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Tem lecionado
Literatura Brasileira Moderna e Contemporânea e publicado diversos estudos sobre lite‑
ratura brasileira dos séculos XIX­‑XXI, com destaque para o livro O Erro de Hamlet: Poesia
e dialética em Murilo Mendes (Rio de Janeiro, 7Letras, 2001), para os ensaios coligidos no
volume Repto, Rapto (alguns ensaios) (Porto: Afrontamento, 2014), e para a antologia de
Ana Cristina Cesar Um Beijo que Tivesse um Blue (V. N. de Famalicão: Quasi, 2006).

Madalena Vaz Pinto (Lisboa, 1960). Doutora em Letras pela PUC/Rio, é atualmente Professora
Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na Faculdade de Formação de
Professores em São Gonçalo. Consagra a sua investigação à literatura portuguesa, prin‑
cipalmente aos autores modernos e contemporâneos, tendo publicado vários artigos
em livros e revistas especializadas na área. É organizadora do livro Gonçalo M. Tavares:
AS MÃOS PRECÁRIAS – ESTUDOS SOBRE RADUAN NASSAR 129

ensaios, aproximações, entrevista (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2018). É editora da re‑
vista Convergência Lusíada do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro.

Masé Lemos (Belo Horizonte, 1963) é professora da Escola de Letras da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO. Doutora em Letras pela Universidade Sorbonne
Nouvelle ­‑ Paris 3 (2004) com tese sobre a obra de Raduan Nassar, Une poétique de l’in‑
tertextualité, é investigadora do Centre de Recherche Sur les Pays Lusophones ‑­ CREPAL
­‑ Paris 3. Pesquisa atualmente a poesia contemporânea brasileira, portuguesa e francesa,
desenvolvendo estudos acerca das relações entre poesia, prosa e outras artes. Publicou
diversos ensaios e livros. Coorganizou o livro Poesia e interfaces: operações, composições,
plasticidades (7Letras, 2017). 

Pedro Eiras (Porto, 1975) é professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto


e investigador no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Desde 2005, pu‑
blicou diversos livros de ensaios sobre literatura, estudos interartísticos e questões de
ética; entre outros: Esquecer Fausto, Tentações, Os Ícones de Andrei, Constelações 1 e 2.
Presentemente, dedica­‑se a pesquisas sobre o imaginário do fim do mundo.

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