Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Termo proposto pelo surrealista David Gascoyne em 1935 para descrever a
literatura que assumidamente transgride as convenções. A noção de anti-literatura
aparece também ligada à caracterização do nouveau roman de Alain Robbe-Grillet,
Nathalie Sarraute e Michel Butor, durante a década de 1950. Trata-se de uma
designação generalista para uma forma de literatura inconformista, que pode incluir
todas as formas particulares de expressão, falando-se então em anti-teatro/anti-
drama, anti-poesia ou anti-romance. Dado o seu carácter excessivamente
abrangente, pode-se dizer que todas as formas de vanguarda se apresentam como
anti-literatura. A única condição a respeitar é, portanto, que se seja contra a
norma, contra as tradições, contra as escolas instaladas. Em última instância, o
artista pode inclusive declarar a própria morte da literatura, como o fez o
surrealista português Mário de Cesariny (A Intervenção Surrealista, Ulisseia, Lisboa,
1966, p.281). A declaração é semelhante ao grito anti-literatura de Breton, que
dizia nada ter a ver com a literatura, embora se pudesse servir dela, “como toda a
gente”. O fenómeno de contestação do literário e do que se entende ortodoxamente
por literatura pode ser encontrado em várias estéticas: futurismo, surrealismo,
beat poetry, poesia experimental, poesia fonética, poesia visual, nouveau roman,
teatro do absurdo, etc.
Todas as formas de vanguarda na poesia pretenderam contrariar os cânones
poéticos e as convenções formais e retóricas dominantes. É típico da anti-poesia o
desafio da própria reflexão teórica sobre poesia, o que pode propporcionar anti-
artes poéticas como “Actuação escrita” (1980), de Pedro Oom, que exorta: “Pode-
se escrever sem ortografia / Pode-se escrever sem sintaxe / Pode-se escrever sem
português (…) / Pode-se escrever nada / Pode-se escrever com nada / Pode-se
escrever sem nada // Pode-se não escrever”.
O conceito de anti-romance está ligado a todas as formas experimentais que
rompem com os métodos tradicionais de construção do romance. A primeira vez
que o termo surge, mesmo que ainda à distância do seu sentido actual, é num
texto de Charles Sorel: Le Berger extravagant: an anti-roman (1627), embora seja
costume atribuir a paternidade da expressão a Jean-Paul Sartre, na introdução ao
romance de Nathalie Sarraute: Portrait d’un inconnu (1948) e, consequentemente,
o nouveau roman francês também explorará novas formas de anti-ficção, aliás
reforçadas pelas propostas então emergentes da psicanálise e da fenomenologia.
De notar que um romance naturalista, realista ou neo-realista, por exemplo, não
entrará nesta categoria; obras experimentais como Tristram Shandy (1760-67), de
Laurence Sterne, ou Ulysses (1922), de James Joyce, são dois exemplos já
clássicos de anti-romance. Um mesmo autor pode recrear-se entre os dois limiares
romanescos: Uma Abelha na Chuva é um romance tradicional de Carlos de Oliveira,
mas Finisterra já entrará na categoria de anti-romance. A distinção assegura-se
pela dissimulação do fio da história narrada, pelos constantes recuos e avanços na
acção, pela inclusão de episódios estranhos a essa acção, pelas caracterizações
sumárias das personagens, sem análises psicológicas, pelo trabalho vocabular,
sobretudo quando se trazem para o romance gírias singulares ou muito cerradas,
pela sintaxe revolucionária, pela subversão da estrutura tradicional do romance
(um princípio, um desenvolvimento, um final vários princípios, vários
desenvolvimentos, vários finais, ou simples anulação de qualquer estrutura lógica),
inclusão de hors-texte, desconstrução da página em branco, etc. Estas
características podem ajudar hoje a classificar, sem imposições históricas ou sem
limitações de escola, como anti-romance qualquer obra de ficção que comece por
negar a sua própria natalidade. Um exemplo ousado é o anti-romance de Rayner
Heppenstall Connecting Door (1962), uma descrição passiva de edifícios, ruas e
notações musicais, abolindo qualquer acção e negando ao próprio narrador uma
identidade própria.
O conceito de anti-teatro surge com A Cantora Careca (1950) de Ionesco,
que lhe chamou “antipeça”. Esta forma de expressão dramática caracteriza-se pelo
desafio das convenções teatrais burguesas. De forma radical, pode-se argumentar
que qualquer representação teatral que não seja aceite no Teatro Nacional D. Maria
II, em West End em Londres ou na Broadway pode entrar na categoria de anti-
teatro. Aquilo a quem se convencionou chamar “teatro do absurdo” respeita a
categoria de anti-teatro, assim como o teatro agitprop. Traço decisivo do anti-
teatro é a repulsa pela representação submissa do real, preferindo-se a visão
irónica do mundo e das tradições.
A procura de originalidade na literatura e a criação de uma nova escola são
oportunidades evidentes para fundar uma anti-literatura. É isto que permitiu a
Virginia Woolf escrever o romance The Waves (1931) sem usar a narração; é isto
que permitiu a Fernando Pessoa e seus pares propor o fim da poesia rimada e de
estrutura fixa, por exemplo, em nome de uma nova estética modernista. Não há
anti-literatura sem espanto nem surpresa e, sobretudo, sem a negação de alguma
coisa preexistente.
Mais recentemente, o conceito encaixa na perfeição no que se tem
convencionado chamar literatura pós-moderna. Alguns dos paradigmas do pós-
modernismo literário servem os pressupostos de qualquer anti-literatura: a rejeição
da representação mimética do real, em troca por uma auto-referencialidade,
paródia ou autocrítica das convenções e formas da literatura institucionalizada; a
rejeição do culto da originalidade, fazendo dar mais valor ao pastiche criativo, à
paráfrase premeditada, ao bricolage, à auto-ironia; a rejeição da linearidade
narrativa e discursiva; a rejeição da introdução de personagens excessivamente
modeladas; a rejeição do sentido imediato, do fio do discurso de fácil apreensão, da
intriga arrumada temporalmente. Muitos são os textos que cumprem estas ou
condições semelhantes. Em breve recolha, a reescrita do Don Quixote que Kathy
Acker no romance com o mesmo nome (1986); as experiências bizarras de James
G. Ballard, que, em Crash (1973), mistura sexo e tecnologia; a estruturação de um
romance como Manual dos Inquisidores (1996), de António Lobo Antunes, cujos
capítulos são tomados alternadamente como “relato” e “comentário”, duas formas
não-literárias por definição; obras como El hacedor (1960) e El libro de los seres
imaginarios (1967), de Jorge Luis Borges, que propositadamente ignoram as
diferenças entre a poesia e a prosa misturando-as; a estrutura elíptica da sintaxe
dos romances de Clarice Lispector - Água Viva (1973) ou A Hora da Estrela (1977);
os muitos pastiches e recriações de Gravity’s Rainbow (1973), de Thomas Pynchon,
que descreve fantasias paranóicas, imagens grotescas e linguagem matemática; a
paródia da vida de Jesus que Fernando Arrabal faz em Le Cimitière des voitures
(1958); as personagens vagamente descritas e a exploração da ambiguidade a
todos os níveis em Mutmassungen über Jakob (1959), de Uwe Johnson.
ANTI-HERÓI; BEAT POETRY; FUTURISMO; LITERATURA DE VANGUARDA;
NOUVEAU ROMAN; POESIA EXPERIMENTAL; POESIA FONÉTICA; POESIA VISUAL;
PÓS-MODERNISMO; SURREALISMO; TEATRO DO ABSURDO
BIB.: Alfred Cismaru: “Alain Robbe Grillet and the Anti-Novel”, Weber Studies: An
Interdisciplinary Humanities Journal, 11, 2 (Ogden, UT (WStu), 1994); E. San Juan,
Jr.: “The Anti-Poetry of Jonathan Swift”, Philological Quarterly, 44 (Iowa City, IA,
1965); Eileen Sypher: “Fabian Anti-Novel: Shaw's The Unsocial Socialist”,
Literature and History, 11, 2 (Manchester, 1985); Elizabeth M. Tilton: “Structural
and Linguistic Patterns in the Seventeenth-Century Novel and Anti-Novel”,
Neophilologus, 62 (Amesterdão, 1978); Hassan El Nouty: “Thêatre et Anti-Thêatre
au dix-neuvième siècle (trois heritiers de Vitet: Musset, Gobineau, Henry Monnier)”,
PMLA: Publications of the Modern Language Association of America, 79 (Nova
Iorque, 1964); Emanuele Licastro: “The Anti-Theatre in Pirandello: The Man with
the Flower in His Mouth”, Romance Notes, 15 (Chapel Hill, NC, 1974); Howard
Quackenbush: “The Anti-Theatre in El suplicante by Sergio Magana”, Latin
American Theatre Review, 13, ii, supl. (Lawrence, KS, 1980); Jacques Scherer:
Theatre et Anti-Theatre au XVIIe siècle (1976); John M. Lipski: “Donoso's Obscene
Bird: Novel and Anti-Novel”, Latin-American Literary Review, 9 (Pittsburgh, PA,
1976); Patrick Brantlinger: “News from Nowhere: Morris' Socialist Anti-Novel”,
Victorian Studies, 19 (1975); Peter Filkins: “The Poetry and Anti-Poetry of Czeslaw
Milosz”, The Iowa Review, 19, 2 (1989); Renee Riese Hubert: “Patterns in the Anti-
Novel”, Forum, 3, 11 (1962); Richard G. Hodgson: “The Parody of Traditional
Narrative Structures in the French Anti-Novel from Charles Sorel to Diderot”,
Neophilologus, 66, 3 (Dordrecht, Holanda, 1982); Ronald Binns: “Beckett, Lowry
and the Anti-Novel”, in Malcolm Bradbury e David Palmer: The Contemporary
English Novel (1979); Teresinka Pereira: “The Anti-Poetry or the Paradoxism in the
Poetry of Dennis Kann”, Poesie India, 25/26 (1994); Thomas Molnar: “Novel and
Anti-Novel“, Modern Age: A Quarterly Review, 12 (Bryn Mawr, PA, 1968); Virgil L.
Lokke: “The American Utopian Anti-Novel”, in Ray B. Browne et al. (eds.): Frontiers
of American Culture (1968); Yitskhok Goldkorn: “Against 'Anti Literature': A
Response to Avrom Shulman”, Zukunft, 78 (Nova Iorque, 1972); William
Freedman: “'Phillis, or, Progress of Love' and 'The Progress of Beauty': Art, Artifice
and Reality in Swift's 'Anti-Poetry' “, Concerning Poetry, 17, 1 (Bellingham, WA
(CP), 1984).
Carlos Ceia