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acontecimento

materiais são, por excelência, susceptíveis de acessível a esse mundo possível. Nesse caso,
interagir causalmente com outros objectos, ◊p é verdadeira, mas Q◊p é falsa porque ◊p não
igualmente concretos, de figurar em eventos é verdadeira em todos os mundos possíveis.
que são causas ou efeitos de outros eventos. Esta noção permite sistematizar as diferen-
Um problema com o parâmetro III é o de que ças entre as várias lógicas modais. Se definir-
determinados pontos de vista atribuem certos mos a acessibilidade entre o mundo actual e os
poderes causais, designadamente aqueles que outros mundos possíveis como reflexiva, obte-
são requeridos para efeitos de explicação cien- mos o sistema T; se a definirmos como reflexi-
tífica, a objectos abstractos como propriedades. va e transitiva, obtemos S4; se a definirmos
Esta objecção milita contra a necessidade do como reflexiva e simétrica obtemos B; se a
parâmetro III, não contra a sua suficiência. Ver definirmos como reflexiva, transitiva e simétri-
também PROPRIEDADE, NOMINALISMO. JB ca, obtemos S5. A acessibilidade é uma noção
puramente lógica e não epistémica. Ver tam-
Armstrong, D. 1977. A World of States of Affairs. bém LÓGICA MODAL, SISTEMAS DE; FÓRMULA DE
Cambridge: Cambridge University Press. BARCAN. DM
Quine, W. V. O. 1948. Sobre o que Há. Trad. J. Bran-
quinho in Existência e Linguagem. Lisboa: Pre- Forbes, G. 1985. The Metaphysics of Modality. Ox-
sença, 1990. ford: Clarendon Press.
Kripke, S. 1963. Semantical Considerations on Mo-
absurdo, redução ao Ver REDUCTIO AD ABSUR- dal Logic. Acta Philosophica Fennica 16: 83–94.
DUM. Reimpresso em Leonard Linsky, org., Reference
and Modality. Oxford: Oxford University Press,
absurdo, símbolo do Ver SÍMBOLO DO ABSUR- 1971.
DO.
acidental, propriedade Ver PROPRIEDADE
acessibilidade (ou possibilidade relativa) ESSENCIAL / ACIDENTAL.
Noção central da semântica dos mundos possí-
veis de Saul Kripke. A ideia intuitiva é que acidente Ver PROPRIEDADE ESSENCIAL / ACI-
nem tudo o que é possível em termos absolutos DENTAL.
é possível relativamente a toda e qualquer cir-
cunstância; ou seja, uma dada proposição pode acidente, falácia do Ver FALÁCIA DO ACIDENTE.
ser possível mas não ser necessário que seja
possível. Por exemplo, é possível viajar mais acontecimento Um acontecimento (ou evento)
depressa do que o som, dadas as leis da física. é algo que ocorre, toma lugar, ou acontece,
Mas talvez nos mundos possíveis com leis da numa determinada região do espaço ao longo
física diferentes não seja possível viajar mais de um determinado período de tempo. Deste
depressa do que o som. modo, exemplos de acontecimentos são a erup-
A acessibilidade, ou possibilidade relativa, é ção do Etna, a corrida de Rosa Mota quando
uma relação entre mundos possíveis. Um mun- venceu a maratona olímpica, a dor de barriga
do w' é acessível a partir de um mundo w (ou de Jorge Sampaio, a irritação de Soares quando
um mundo w' é possível relativamente a w) um jornalista lhe fez uma pergunta, a Batalha
quando qualquer proposição verdadeira em w' de Aljubarrota, o naufrágio do Titanic, o casa-
é possível em w. Intuitivamente, w vê w'. mento de Édipo com Jocasta, o assassínio de
Assim, seja p «Alguns objectos viajam mais Júlio César por Bruto, a partida de xadrez entre
depressa do que o som». Esta é uma verdade Kasparov e o computador Deep Blue, etc. Os
no mundo actual. Mas se p não for possível acontecimentos tanto podem ser instantâneos
noutro mundo possível, o mundo actual não é ou de curta duração, como é o caso do meu

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acontecimento

presente erguer do braço direito para chamar apenas no sentido de acontecimento-exemplar.


um táxi ou de uma elocução por alguém da Outra maneira de classificar acontecimentos
expressão «Arre!», como de longa duração, consiste em distinguir entre acontecimentos
como é o caso da tomada de Constantinopla gerais e acontecimentos particulares. Esta dis-
pelos Turcos. tinção está longe de ser precisa, e o mesmo
A palavra «acontecimento» é, como a pala- acontece com as distinções que se lhe seguem;
vra «palavra», ambígua entre uma interpreta- mas o recurso a ilustrações é suficiente para
ção em que é tomada no sentido daquilo a que dar uma ideia geral daquilo que se pretende.
é usual chamar «acontecimento-tipo», e uma Quando, no contexto de um jogo, por exemplo,
interpretação em que é tomada no sentido do todas as pessoas vestidas de vermelho correm
que é usual chamar «acontecimento-espécime» atrás de uma (pelo menos uma) pessoa vestida
(ver TIPO/ESPÉCIME). Acontecimentos-tipo são de azul, aquilo que temos é um acontecimento
entidades universais, no sentido de repetíveis (puramente) geral; de um modo aproximado,
ou exemplificáveis, e abstractas, no sentido de dizemos que um acontecimento é (puramente)
não localizáveis no espaço-tempo. Aconteci- geral quando a sua descrição não envolve a
mentos-tipo são, por exemplo, a Maratona presença de quaisquer termos singulares, isto é,
Anual de Bóston e o Grande Prémio de Portu- de quaisquer dispositivos de identificação de
gal de F1; ou seja, aquilo que todas as realiza- objectos particulares. Quando, no contexto de
ções da maratona na cidade de Bóston em cada um jogo às escondidas desenrolado em São
ano têm em comum, respectivamente aquilo Bento, por exemplo, Marques Mendes corre
que todas as corridas de bólides de F1 que atrás de António Vitorino, aquilo que temos é
tomam lugar no autódromo do Estoril em cada um acontecimento particular. Por outro lado, é
ano têm em comum. Assim, um tipo de aconte- também possível classificar acontecimentos em
cimento pode ser visto como simplesmente acontecimentos simples e acontecimentos
uma certa classe de acontecimentos específicos complexos. Quando, por exemplo, Carlos e
(ou, se preferirmos, uma certa propriedade de Carolina sobem a colina numa certa ocasião,
acontecimentos específicos); dizer que o Gran- ou quando Pedro ou Paulo disparam sobre
de Prémio de Portugal de F1 vai deixar de ter Gabriel, ou ainda (mais controversamente)
lugar é o mesmo que dizer que, a partir de uma quando Carolina não sobe a colina, aquilo que
certa ocasião futura, a classe de acontecimen- temos são acontecimentos complexos (os
tos específicos identificada com esse aconte- quais, por sinal, são também particulares); de
cimento-tipo deixará de ter mais elementos, um modo aproximado, dizemos que um acon-
pelo menos elementos actuais (ou, se preferir- tecimento é complexo quando a sua descrição
mos, que a propriedade de acontecimentos envolve a presença de pelo menos um operador
específicos com ele identificada deixará de ser frásico ou CONECTIVO (uma frase como «Carlos
exemplificada, pelo menos por acontecimentos e Carolina esmurraram-se» não contém uma
actuais). Acontecimentos-exemplar são por sua referência a um acontecimento complexo nesse
vez entidades particulares, no sentido de irre- sentido, pois a conjunção não ocorre aí como
petíveis ou não exemplificáveis, e concretas, operador frásico). Quando, por exemplo, o
no sentido de datáveis e situáveis no espaço; mais alto espião do mundo (quem quer que
exemplos de acontecimentos-espécime são pois seja) dispara sobre o mais baixo filósofo portu-
uma edição particular, por exemplo, a edição guês (quem quer que seja), aquilo que temos é
de 1995, do Grande Prémio de Portugal de F1 e um acontecimento simples (o qual, por sinal, é
a edição de 1997 da Maratona de Bóston. também um acontecimento geral; supomos,
Naquilo que se segue, e dado que a discussão evidentemente, que descrições definidas em
filosófica sobre acontecimentos procede assim uso ATRIBUTIVO não são dispositivos de refe-
em geral, tomamos o termo «acontecimento» rência singular). No entanto, há quem não

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acontecimento

queira admitir de forma alguma certos géneros mentos é de grande importância para a filoso-
de acontecimentos complexos, em especial fia, e em particular para a metafísica, porque a
putativos acontecimentos negativos como a relação de causalidade é normalmente conside-
não subida da colina por Carolina. Em todo o rada como uma relação que tem acontecimen-
caso, é ainda possível distinguir entre aconte- tos como relata. Quando, por exemplo, se diz
cimentos actuais e acontecimentos meramente que o gato acordou porque o Manuel bateu
possíveis. Os primeiros são acontecimentos com a porta, ou que o bater da porta pelo
que ou ocorreram, ou estão a ocorrer, ou virão Manuel causou o acordar do gato, é plausível
a ocorrer. Os segundos são acontecimentos que ver a relação causal como uma relação entre
nem ocorreram, nem estão a ocorrer, nem virão dois acontecimentos: um acontecimento que é
a ocorrer; mas que poderiam ter ocorrido, ou uma causa (o bater da porta) e um aconteci-
poderiam estar a ocorrer, ou poderiam vir a mento que é um seu efeito (o acordar do gato).
ocorrer. Suponha-se que nunca atravessei até Para obtermos uma concepção adequada acerca
ao momento, nem virei a atravessar no futuro, da natureza da causalidade, precisamos assim,
o rio Tejo a nado; então a minha travessia do presumivelmente, de dispor de uma noção
Tejo a nado é um exemplo de um acontecimen- apropriada de acontecimento. De particular
to meramente possível. Todavia, mais uma vez, relevância para a actual filosofia da mente é o
há também quem não admita de forma alguma problema da causalidade mental, em especial a
acontecimentos meramente possíveis, e apenas questão da aparente existência de relações cau-
considere como um acontecimento algo que de sais entre, de um lado, acontecimentos mentais
facto ocorreu, está a ocorrer, ou virá a ocorrer; (não observáveis) e, do outro, comportamentos
ou seja, há quem defenda a ideia de que só os e acções (acontecimentos observáveis). Por
factos, isto é, os ESTADOS DE COISAS actuais, exemplo, prima facie existe uma conexão cau-
são acontecimentos. Finalmente, é também sal entre o meu pensamento ocorrente de que
possível dividir os acontecimentos em aconte- vai chover daqui a pouco (um acontecimento
cimentos contingentes e acontecimentos não mental), tomado em conjunto com o meu dese-
contingentes. Um acontecimento contingente é jo ocorrente de não me molhar (outro aconte-
simplesmente um acontecimento que ocorreu, cimento mental), e um determinado aconteci-
mas que poderia não ter ocorrido (se as coisas mento físico, o qual pode ser descrito como
tivessem sido outras); por exemplo, a dor no consistindo em eu ir buscar um impermeável
calcanhar esquerdo que senti ontem à tarde é ao armário; é natural dizer-se que, dada a pre-
um acontecimento contingente: num mundo sença daquele desejo, a ocorrência do pensa-
possível certamente melhor do que este ela não mento em questão é uma causa de um tal com-
existiria. Um acontecimento não contingente é portamento. Outra razão pela qual o tópico dos
simplesmente um acontecimento que, não só acontecimentos é central para a metafísica e
ocorreu, como também não poderia não ter para a filosofia da mente reside no facto de o
ocorrido (por muito diferentes que as coisas PROBLEMA DA MENTE-CORPO ser muitas vezes
tivessem sido); para muitos deterministas, fata- formulado num vocabulário de acontecimen-
listas e pessoas do género, certos factos históri- tos. Em particular, as identidades psicofísicas
cos (por exemplo, a Batalha das Termópilas) defendidas pelo FISICALISMO são frequente-
são acontecimentos não contingentes. De novo, mente formuladas em termos de acontecimen-
há quem não admita de forma alguma aconte- tos e propriedades de acontecimentos: segundo
cimentos não contingentes, pelo menos no que o fisicalismo tipo-tipo, propriedades de aconte-
diz respeito ao caso de acontecimentos sim- cimentos mentais, por exemplo, a propriedade
ples, e quem defenda a ideia de que só os fac- de ser uma dor, são identificadas com proprie-
tos contingentes são acontecimentos. dades de acontecimentos físicos (no cérebro),
Entre outras razões, o tópico dos aconteci- por exemplo, a propriedade de ser um disparar

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acontecimento

de um dado neurónio; segundo o fisicalismo num determinado género de inferência para a


exemplar-exemplar, acontecimentos mentais melhor explicação, Davidson e outros argumen-
específicos, por exemplo, a dor de dentes que tam em seguida que a melhor maneira (senão
uma pessoa sente numa certa altura, são identi- mesmo a única!) de acomodar a validade intuiti-
ficados com acontecimentos físicos específi- va de inferências daquele tipo é atribuir a uma
cos, por exemplo, o disparar de um dado neu- frase como «Schiffer caiu aparatosamente na
rónio no cérebro dessa pessoa nessa ocasião. cozinha» a forma lógica de uma quantificação
Os tópicos centrais da filosofia dos aconte- existencial sobre acontecimentos do seguinte
cimentos, um segmento importante da metafí- género (ignoro certas complicações irrelevan-
sica, são os seguintes (os quais não são certa- tes): ∃e (e é uma queda ∧ e foi dada por Schiffer
mente independentes entre si): ∧ e foi aparatosa ∧ e ocorreu na casa de banho).
A variável e toma valores num domínio de acon-
a) O problema da existência: Existem de facto tecimentos (no sentido de acontecimentos-
acontecimentos? Será que precisamos de admitir exemplar), e a modificação adverbial é interpre-
tal categoria de entidades na nossa ontologia? tada como consistindo em predicados de aconte-
b) O problema da identidade: Quine ensinou-nos que cimentos. Através de lógica elementar, segue-se
não há entidade sem identidade. O que são então a conclusão ∃e (e é uma queda ∧ e foi dada por
acontecimentos? Como é que se individualizam e Schiffer), a qual é (simplificadamente) a regi-
contam acontecimentos? Em particular, quando é mentação da frase «Schiffer caiu». A segunda
que temos um acontecimento e não dois? pretensão consiste simplesmente na aplicação do
critério de COMPROMISSO ONTOLÓGICO de Quine,
Em relação à questão da existência, uma e na constatação de que, de maneira a que as
conhecida linha de argumentação introduzida afirmações daquele género possam ser verdadei-
por Davidson (1980) pretende estabelecer a ras, é necessário que entidades como aconteci-
necessidade da admissão de acontecimentos na mentos estejam entre os valores das variáveis
nossa ontologia a partir de observações acerca quantificadas. Por conseguinte, existem aconte-
da forma lógica correcta para um determinado cimentos; ou antes, o nosso esquema conceptual
fragmento de frases de uma língua natural. A (a «teoria» incorporada na nossa linguagem) diz
ideia é pois a de que uma porção importante do que há acontecimentos.
nosso esquema conceptual estaria comprometida Apesar deste género de argumento ser bas-
com a existência de acontecimentos. As frases tante influente, há quem não se deixe impressio-
em questão são paradigmaticamente frases que nar. Com efeito, pode-se simplesmente ser cép-
contêm verbos de acção. Tome-se para o efeito a tico em relação a quaisquer inferências que pre-
frase «Claudia Schiffer caiu aparatosamente na tendam ir de considerações linguísticas, de
cozinha». Suponha-se, o que é bem razoável, observações acerca da forma lógica de certas
que muitas frases deste género (incluindo esta) frases, para conclusões metafísicas; em especial,
são verdadeiras. Então, grosso modo, há duas pode-se ser em geral céptico em relação à dou-
pretensões que são avançadas a seu respeito. A trina davidsoniana de que uma identificação das
primeira é a de que a forma lógica destas frases propriedades centrais da linguagem nos dá uma
é aquela propriedade das frases que é inter alia identificação das características centrais da rea-
responsável pelo seu papel inferencial, pela sua lidade. Por outro lado, e mais modestamente, é
posição numa certa estrutura de inferências váli- sempre possível objectar à análise lógica parti-
das. Assim, a forma lógica da frase «Claudia cular proposta para frases com verbos de acção e
Schiffer caiu aparatosamente na cozinha» tem resistir assim à inferência associada para a
de ser tal que seja em virtude dela que, por melhor explicação; ou pode-se simplesmente
exemplo, a frase seguinte é uma sua consequên- rejeitar o próprio critério de EXISTÊNCIA de Qui-
cia lógica: «Claudia Schiffer caiu». Com base ne. Todas estas linhas de oposição são, natural-

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acontecimento

mente, possíveis. Mas não se segue, naturalmen- que seja àquele acontecimento). Grosso modo,
te, que elas sejam plausíveis; e o certo é que, o princípio de individuação de acontecimentos
tanto na filosofia da mente e da linguagem como aqui sugerido é o seguinte: e e e' são o mesmo
na semântica linguística e em outras disciplinas, acontecimento (acontecimento-exemplar) se, e
a introdução de acontecimentos tem-se revelado só se, e e e' ocupam exactamente a mesma
extremamente vantajosa do ponto de vista teóri- região do espaço durante exactamente o mes-
co (Parsons 1990). mo período de tempo. Uma vantagem deste
Quanto ao problema da identidade, a ques- ponto de vista é a de que, assim concebidos, os
tão de saber que género de coisas são aconte- acontecimentos são entidades adequadas para
cimentos, é possível distinguir na recente filo- desempenhar o papel de relata da relação de
sofia dos acontecimentos dois pontos de vista causalidade; pois é natural ver esta relação
principais. Num desses pontos de vista, subs- como uma relação entre particulares concretos
crito por Davidson e outros, os acontecimentos no mundo. Mas este ponto de vista tem sido
são particulares concretos, entidades no espa- criticado com base no facto de discriminar
ço-tempo, semelhantes em muitos aspectos a entre acontecimentos de uma maneira que não
objectos materiais. Assim, um e o mesmo é suficientemente fina. Suponha-se que numa
acontecimento pode ser identificado através de certa ocasião espirro, e que, simultaneamente,
uma diversidade de descrições. Considere-se, ergo o braço direito. Em seguida, um táxi pára
por exemplo, aquilo que aconteceu no senado para eu entrar. É o meu espirro o mesmo acon-
romano, durante os idos de Março, e que tecimento do que o meu erguer do braço direi-
envolveu Bruto e César. O acontecimento em to? Se sim, então, supondo que ter certos efei-
questão tanto pode ser identificado através da tos (bem como ter certas causas) é uma carac-
descrição definida «O assassínio de César por terística de cada acontecimento, seríamos obri-
Bruto» como através da descrição «O esfa- gados a dizer que o meu espirro causou a para-
quear de César no peito por Bruto»; estas des- gem do táxi. Ora, isto não parece estar correc-
crições de acontecimentos, bem como outras to. Presumivelmente, diríamos que o táxi parou
descrições apropriadas, são correferenciais, porque ergui o braço, mas não diríamos que o
designam o mesmo acontecimento (no sentido táxi parou porque espirrei. E, supondo que
de acontecimento-exemplar, claro). E isto quando o táxi pára alguém diz «Santinho!»,
acontece de um modo análogo ao modo pelo diríamos que esta elocução teve lugar porque
qual um e o mesmo objecto material, por espirrei e não porque ergui o braço.
exemplo, Vénus, pode ser identificado através Num ponto de vista diferente, subscrito por
do uso de um género de descrições correferen- Jaegwon Kim e outros, os acontecimentos são
ciais («A Estrela da Manhã», «A Estrela da particulares abstractos, entidades mais seme-
Tarde», etc.) A ideia geral é a de que a identi- lhantes a PROPOSIÇÕES do que a objectos mate-
dade de um acontecimento, aquilo que um riais. Uma posição habitual nesse sentido con-
acontecimento é, é determinado pela posição siste em identificar acontecimentos com esta-
particular que o acontecimento ocupa no espa- dos de coisas, ou seja, com exemplificações de
ço e pelo intervalo particular de tempo ao lon- ATRIBUTOS por sequências de objectos em oca-
go do qual ocorre; ou seja, a propriedade de ter siões dadas. No caso mais simples, o caso de
uma determinada localização espácio-temporal acontecimentos como a subida da colina por
é uma propriedade constitutiva de cada aconte- Carolina numa certa altura, um acontecimento
cimento. Considere-se, por exemplo, o meu seria simplesmente identificado com a exem-
presente erguer do braço esquerdo; então qual- plificação de uma propriedade, a propriedade
quer erguer do meu braço esquerdo que ocorra de subir a colina, por um indivíduo, Carolina,
numa ocasião diferente é um acontecimento numa ocasião. Na notação de conjuntos, é
diferente (por muito qualitativamente idêntico habitual representar estados de coisas como n-

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acto compromissivo

tuplos ordenados de n-1 objectos e um atributo é difícil ver como é que, concebidos como par-
(com n maior ou igual a 2); assim, por exem- ticulares abstractos, acontecimentos podem ser
plo, o acontecimento que consistiu no assassí- entidades adequadas para desempenhar o papel
nio de César por Bruto numa certa ocasião t de relata da relação de causalidade. JB
pode ser identificado com o estado de coisas
representado pelo quádruplo ordenado <Bruto, Bennett, J. 1988. Events and Their Names. Oxford:
César, assassinar, t> (em que assassinar é o Blackwell.
atributo diádico de assassinar). Obtemos assim Davidson, D. 1980. Essays on Actions and Events.
um princípio de individuação de acontecimen- Oxford: Oxford University Press.
tos bastante mais fino do que o supra proposto. Horgan, T. 1978. The Case Against Events. Philoso-
Grosso modo, e e e' são o mesmo acontecimen- phical Review LXXXVII: 28–37.
to quando, e somente quando, o mesmo atribu- Kim, J. 1976. Events as Property Exemplifications.
to é exemplificado pelos mesmos objectos na In M. Brand e D. Walton, orgs., Action Theory.
mesma ocasião. Por conseguinte, à luz do prin- Dordrecht: Reidel.
cípio, o casamento de Édipo com Jocasta e o Parsons, T. 1990. Events in the Semantics of English.
casamento de Édipo com a sua mãe constitui- Cambridge, MA: MIT Press.
riam um e um só acontecimento, identificado Strawson, P. F. 1959. Individuals. Londres: Methuen.
através do quádruplo ordenado <Édipo, Jocas-
ta, casar, t> (em que casar é a relação de acto compromissivo Na taxonomia de John
casar). Todavia, em contraste com o ponto de Austin, os actos compromissivos formam uma
vista anterior, a proposta impõe restrições seve- subclasse dos ACTOS DE FALA ilocutórios comu-
ras sobre as descrições que podem ser usadas nicativos. Exemplos típicos são as promessas,
correctamente para identificar um dado aconte- as ofertas e as apostas.
cimento. Por exemplo, o nosso acontecimento
do senado romano já não pode ser indiferente- acto constativo Na taxonomia de John Austin,
mente especificado através das descrições «O os actos constativos formam uma subclasse dos
assassínio de César por Bruto» e «O esfaquear ACTOS DE FALA ilocutórios comunicativos.
de César por Bruto»; ou seja, não temos aqui Exemplos típicos são as asserções, as previsões
um acontecimento, mas dois: um, representado e as respostas.
pelo quádruplo ordenado <Bruto, César, assas-
sinar, t>; o outro, pelo quádruplo <Bruto, acto de fala J. L. Austin, em How to do Things
César, esfaquear, t> (supõe-se, natural e razoa- with Words, analisa os actos que consistem na
velmente, que os atributos diádicos assassinar elocução de certas sequências de palavras
e esfaquear são atributos distintos). Uma van- numa língua natural — os quais são por isso
tagem deste ponto de vista é discriminar onde é usualmente designados de «actos de fala». A
razoável discriminar. Por exemplo, permite teoria dos actos de fala de Austin parte da
distinguir entre o acontecimento que consiste observação de que existem frases nas línguas
no meu espirro e o acontecimento que consiste naturais que, apesar da sua aparência gramati-
no meu erguer do braço esquerdo (proprieda- cal de frases declarativas indicativas, não
des distintas, acontecimentos distintos); logo, o podem ser consideradas como fazendo ASSER-
ponto de vista acomoda a aparente intuição no ÇÕES. Exemplos de tais frases são «Quero con-
sentido de dizer que o segundo acontecimento, vidá-la (a si) para ir ao cinema esta noite», ou
mas não o primeiro, causou a paragem do táxi. «Prometo entregar o material dentro do prazo»
Mas o ponto de vista tem sido criticado com ou ainda «Aposto que o Benfica perde nas
base no facto de, em relação a certos casos, Antas», proferidas por alguém num contexto
discriminar entre acontecimentos de uma conversacional qualquer. O facto de tais frases,
maneira demasiadamente fina. Por outro lado, apesar da sua forma gramatical assertórica, não

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