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A teoria moral de Kant

Para compreender a abordagem básica que Immanuel Kant (1724-1804)


desenvolveu na sua teoria moral, é útil começar com uma ideia que de certa
forma faz parte do senso comum ― uma ideia que Kant rejeita. Esta é a ideia
de que a razão pode ter apenas um papel "instrumental" ao guiar as acções
das pessoas. A razão não nos diz quais devem ser os nossos objectivos; em
vez disso, diz-nos o que devemos fazer, tendo em conta os objectivos que
temos. Dizer que a razão é puramente instrumental é dizer que é apenas um
instrumento que nos ajuda a atingir os nossos objectivos, tendo os nossos
objectivos sido determinados por algo diferente da razão.
Pode-se aperfeiçoar esta ideia simples vendo as acções como o produto
composto das crenças e dos desejos. Dados os indícios disponíveis, a razão
pode dizer-nos em que acreditar. Contudo, a razão não nos pode dizer o que
querer. Os desejos têm de ter outra fonte:

Hume acerca do papal da razão

David Hume expôs esta ideia acerca da contribuição da razão para as acções
que realizamos. No Tratado da Natureza Humana (1738), diz que "a razão é e
deve ser escrava das paixões". Hume expressa a mesma ideia na passagem
seguinte:
Não é contrário à razão preferir a destruição do mundo a arranhar o meu dedo.
. . . É tão pouco contrário à razão preferir mesmo o meu próprio bem menor
ao maior, e ter uma afeição mais ardente pelo primeiro que pelo segundo
O ponto mais importante da ideia de Hume é que as acções nunca derivam
apenas da razão; têm de ter sempre uma origem não racional.

Kant rejeita a ideia de que a razão seja puramente instrumental

A teoria da moralidade de Kant rejeita esta doutrina humeana. Segundo Kant,


nem sempre é verdade que as acções sejam produzidas pelas crenças e pelos
desejos (gerados de forma não racional) do agente. Quando agimos por
inclinação é isto que acontece. Contudo, quando agimos por dever ― quando
as nossas acções são guiadas por considerações de carácter moral e não pelas
nossas inclinações ― as coisas são completamente diferentes.
Quando agimos, há um objectivo que temos em mente ― um fim em vista ― e
também um meio que usamos para tentar realizar esse objectivo. Hume
pensava que a razão determina os meios, mas não o fim. Kant concorda com
esta ideia quando agimos por inclinação. Mas quando a razão guia as nossas
acções, esta determina tanto fim como os meios.
Kant pensava que a moralidade deriva a sua autoridade apenas da razão. A
razão por si mesma determina se uma acção é certa ou errada,
independentemente dos desejos que as pessoas possam ter. Segundo Kant,
quando agimos moralmente, as nossas acções são guiadas pela razão de uma
forma que a teoria de Hume exclui.

Kant: As regras morais são imperativos categóricos

É óbvio que, como Hume disse, a razão pode mostrar-nos que meios usar
dados os fins que temos. Se quero ser saudável, a razão pode dizer-me que
devo deixar de fumar. Neste caso a razão fornece um imperativo que tem a
forma de um imperativo hipotético: diz que devo deixar de fumar se quero
proteger a minha saúde. Hume pensava que a razão não pode fazer mais do
que isto. Kant, contudo, sustenta que as regras morais têm uma forma
categórica e não hipotética. Um acto que é errado, é errado ― ponto. As
regras morais dizem "Não faças X." Não dizem "Não faças X se o teu objectivo
é G". Kant tentou mostrar que estas regras ― imperativos categóricos ― são
derivadas da razão com tanta certeza quanto o são os imperativos hipotéticos.
As regras morais que tomam a forma de imperativos categóricos descrevem o
que devemos fazer quer queiramos quer não. Têm uma autoridade muito
diferente das nossas inclinações. Por isso, quando agimos moralmente,
pensava Kant, somos guiados pela razão e não pela inclinação. Neste caso, a
razão tem algo mais do que um papel meramente instrumental.

A lei moral

Outro ingrediente importante na filosofia moral de Kant é a ideia de que as leis


morais e as leis científicas têm algo de profundo em comum. Uma lei científica
é uma generalização que diz o que tem de ser verdade num género específico
de situação. A lei da gravitação universal de Newton diz que a magnitude da
força gravitacional Fg entre dois objectos é proporcional aos produtos das suas
massas (m1 e m2) e inversamente proporcional ao quadrado da distância (r)
entre eles:

Fg = Gm1m2/r2
Isto é, a lei diz que se as massas são m1 e m2 e se a distância é r, então a
força gravitacional tem de ter o valor Gm1m2/r2, onde G é a constante
gravitacional. Há claramente uma diferença entre leis científicas e regras
morais (como "Não causes sofrimento gratuito!"). A lei de Newton não diz o
que os planetas devem fazer; diz o que necessariamente fazem. Se uma lei
científica é verdadeira, então nada no universo lhe desobedece. Por outro lado,
às vezes as pessoas violam as leis morais. As leis morais dizem como as
pessoas devem comportar-se; não dizem o que as pessoas farão de facto. Para
usar vocabulário já introduzido, as leis morais são normativas, enquanto as leis
científicas são descritivas.
Apesar desta diferença, Kant pensava que há uma semelhança profunda entre
elas. As leis científicas são universais ― envolvem todos os fenómenos de um
dado género. Não estão limitadas a certos lugares ou a certos momentos. Além
disso, uma proposição que afirma uma lei não menciona qualquer pessoa,
lugar ou coisa particular. "Todos os amigos de Napoleão falam francês" pode
ser uma generalização verdadeira, mas não pode ser uma lei, uma vez que
menciona um indivíduo específico ― Napoleão. Assinalarei esta característica
das leis científicas dizendo que são "impessoais".
Kant pensava que as leis morais também têm de ser universais e impessoais.
Se é correcto que eu faça uma coisa, então é correcto que, em circunstâncias
similares, qualquer pessoa faça a mesma coisa. Não é possível que Napoleão
tenha o direito de fazer algo apenas porque é Napoleão. As leis morais, como
as científicas, não mencionam pessoas específicas.
Antes de poder descrever a forma como Kant pensava que a razão por si
mesma estipula quais devem ser os nossos princípios morais, preciso de
mencionar mais um elemento da sua filosofia moral. Recorda da lição anterior
que o utilitarismo declara que as características morais de uma acção são
determinadas pelas consequências que a acção teria para a felicidade ou para
a satisfação das preferências das pessoas. Kant não pensa que a moralidade
consista na maximização da felicidade. Em particular, Kant não pensa que as
consequências de uma acção sejam o verdadeiro teste das suas características
morais. Em vez disso, aquilo que Kant considerava central era a "máxima que
a acção encarna".

Kant: O valor moral de um acto deriva da sua máxima, não das suas
consequências

Cada acção pode ser descrita como uma acção de um certo tipo. Se ajudas
alguém, podes pensar nisso como um acto de caridade. Neste caso, podes
estar a agir segundo a máxima de que deves ajudar outros. Em alternativa,
talvez penses que quando ajudas isso é uma forma de fazer com que o
receptor se sinta em dívida para contigo. Aqui a máxima da tua acção pode ser
a de que deves colocar os outros em dívida para contigo. Para veres que valor
moral tem a tua acção, olha para a máxima que tens em mente e que te leva a
fazer o que fazes.
A razão pela qual precisamos de olhar para os motivos do agente, e não para
as consequências das acções, não são difíceis de perceber. Kant descreve um
comerciante que nunca engana os seus clientes. A razão é que receia que se
os enganar, eles deixem de comprar na sua loja. Kant diz que o comerciante
faz o que é correcto, mas não pelas razões correctas. Ele age de acordo com a
moralidade, mas não pela moralidade. Kant diz que para descobrir o valor
moral de uma acção devemos ver por que razão o agente a realiza; as
consequências de uma acção não o revelam.
Se o comerciante age aplicando a máxima "Sê sempre honesto", a sua acção
tem valor moral. Se, contudo, a sua acção é o resultado da máxima "Não
enganes as pessoas se isso te prejudicar financeiramente", a sua acção é
apenas prudencial, não moral. O valor moral deriva dos motivos e os motivos
são dados pela máxima que o agente aplica ao decidir o que fazer.

Kant rejeitou o consequencialismo

Kant tem seguramente razão quando diz que conhecer os motivos de uma
pessoa é importante para avaliar algumas das propriedades morais de uma
acção. Se desejamos avaliar o carácter moral de um agente, as consequências
da acção podem ser um guia imperfeito. Afinal, uma boa pessoa pode fazer
mal a outras de forma não intencional; e uma pessoa malévola pode beneficiar
outras sem querer. Contudo, é importante ver que isto não implica que as
consequências de uma acção sejam irrelevantes para decidir se se deve
realizá-la. Kant sustenta esta tese: o que torna uma acção certa ou errada não
é as consequências serem prejudiciais ou benéficas. Kant rejeita o
consequencialismo em ética.

O critério de universalizabilidade

Posso agora descrever a ideia de Kant de que a razão (e não o desejo)


determina o que é certo ou errado fazer. Lembra-te de que uma lei moral
(como uma lei científica) deve ser universal. Isto significa que uma acção
moral deve encarnar uma máxima que seja universalizável. Kant diz que para
decidir se é correcto realizar uma acção particular, deves perguntar se podes
querer (pretender) que a máxima do teu acto seja uma lei universal. A
universalizabilidade é a base de todos os imperativos categóricos ― isto é, de
todas injunções morais incondicionadas. Os actos morais podem ser
universalizados; os actos imorais não podem.
É importante perceber o que este teste supostamente envolve. É um erro
pensar que Kant diz que deves perguntar se é bom ou mau que todos façam o
que estás a ponderar. O que importa nas acções imorais não é que se todos as
fizessem seria mau, mas que é impossível que toda a gente as faça (ou é
impossível quereres que toda a gente as faça). Como os exemplos de Kant irão
mostrar, há, digamos, um teste lógico para ver se uma acção é moral.

Quatro exemplos

No livro A Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Kant aplica esta


ideia a quatro exemplos. Descreve primeiro um homem que está cansado da
vida e que pondera suicidar-se. Kant diz que a máxima que o homem está a
considerar é a de terminar com a sua própria vida, se continuar a viver originar
mais sofrimento do que prazer. Kant diz que é
questionável que este princípio do amor próprio possa tornar-se uma lei
universal da natureza. Percebemos imediatamente uma contradição num
sistema da natureza cuja lei fosse destruir a vida por intermédio do sentimento
cuja função específica é a de incitar o aperfeiçoamento da vida. Neste caso não
existiria como natureza; por este motivo, essa máxima não pode ser tratada
como uma lei da natureza, e assim contradiz completamente o princípio
supremo de todo o dever.
Kant está a sugerir que a existência de um mundo em que todas as coisas
vivas decidam cometer suicídio quando as suas vidas prometem mais
sofrimento do que prazer é impossível. Uma vez que um tal mundo não pode
existir, no exemplo de Kant é errado que alguém cometa suicídio. O acto é
errado porque não pode ser universalizado.
O segundo exemplo de Kant diz respeito ao cumprimento de promessas.
Precisas de dinheiro e estás a pensar pedi-lo emprestado. A questão é se te
seria permissível prometer pagar o dinheiro embora não tenhas intenção de o
fazer. Kant defende que a moralidade exige que mantenhas a tua promessa (e
portanto que não peças dinheiro emprestado com pretextos falsos):
Porque a universalidade de uma lei que afirme que quem quer que acredite
que tenha necessidade pode prometer o que lhe apetecer com a intenção de
não cumprir tornaria a própria promessa e o fim a ser realizado por seu
intermédio impossível; ninguém iria acreditar naquilo que lhe tivesse sido
prometido mas limitar-se-ia a rir-se perante essa afirmação como uma
pretensão vã.
Kant está a dizer que o cumprimento das promessas não existiria como
instituição se todos os que fazem promessas o fizessem com a intenção de não
as cumprir. Isto é, a instituição só pode existir porque as pessoas
normalmente são honestas. Uma vez mais, a razão pela qual somos obrigados
a cumprir as nossas promessas é que é impossível um mundo no qual todos
façam promessas com a intenção de não as cumprir. A universalizabilidade é o
teste decisivo.
O terceiro exemplo de Kant procura mostrar que cada um de nós tem a
obrigação de desenvolver as suas capacidades. Por que devemos fazer tudo
para "alargar e melhorar os nossos dons naturais"? Porque não, em vez disso,
escolher uma vida de "ociosidade, prazer e reprodução"? Cada pessoa deve
escolher a primeira, diz Kant, "porque, como ser racional, necessariamente
quer que todas as suas faculdades sejam desenvolvidas, uma vez que lhe são
dadas para todo o tipo de fins possíveis".
O quarto exemplo diz respeito a um homem cuja vida corre bem, mas que vê
outros sofrerem enormemente. Será ele obrigado a ajudar os outros? Kant
admite que a raça humana poderia existir num estado em que alguns vivem
bem enquanto outros sofrem. Mas defende que nenhum agente racional
poderia tencionar (querer) que o mundo fosse assim:
Ora, embora a existência de uma lei universal da natureza conforme a essa
máxima fosse possível, é contudo impossível querer que um tal princípio fosse
tido em toda a parte como uma lei da natureza. Porque uma vontade que
decidisse isto entraria em conflito consigo mesma, uma vez que podem sempre
surgir casos em que precisaria do amor e da simpatia dos outros, e em que se
teria espoliado a si mesma, por uma tal lei da natureza originada pela sua
própria vontade, de toda a esperança da ajuda que deseja.
O que Kant quer mostrar não é que o padrão não pode ser universal, mas que
nenhum agente racional poderia querer que fosse universal.

Avaliação dos exemplos de Kant

Destes exemplos, o primeiro é talvez o mais fraco. A existência de um mundo


em que todas as pessoas com doenças terminais que são vítimas de grande
sofrimento cometam suicídio não é impossível. E também não parece haver
qualquer razão para um agente racional não poder querer que todas as
pessoas se poupem a si mesmas a uma morte atroz e sem sentido.
O segundo exemplo é um pouco mais plausível. A instituição do cumprimento
de promessas parece depender do facto de as pessoas normalmente
acreditarem nas promessas que lhes fazem. Se as pessoas nunca
tencionassem cumprir as suas promessas, poderia a instituição perdurar? Kant
diz que não. Contudo, talvez seja possível imaginar circunstâncias complicadas
em que se evita esta conclusão. Deixo isto como um exercício para o leitor.
Talvez haja também algo a dizer sobre o argumento de Kant acerca do nosso
dever de ajudar os outros. Todos precisamos de algum tipo de ajuda em
alguma altura das nossas vidas. Todos, portanto, desejamos evitar uma
situação em que ninguém nos dê a ajuda de que precisamos. Por isso, não
podemos querer que ninguém nos ajude nunca. Isto significa que é errado
levarmos uma vida em que nos recusemos completamente a ajudar outros.
Uma vez mais, a razão pela qual é errado está em não podermos querer que o
padrão seja universal.
Qual é o argumento de Kant, no seu terceiro exemplo, acerca do dever que
temos de desenvolver as nossas capacidades? Talvez a ideia seja semelhante à
que apresenta na discussão do dever de ajudar os outros. Quero que os outros
desenvolvam capacidades que me possam ser benéficas; por exemplo, quero
que os médicos aperfeiçoem os seus dons, uma vez que um dia irei precisar
deles. Isto significa, contudo, que não posso querer que todos negligenciem o
desenvolvimento das suas capacidades. É suposto seguir-se que tenho o dever
de desenvolver as minhas próprias capacidades.
Realcei anteriormente que o critério de universalizabilidade não pergunta se
seria uma coisa boa que toda a gente realizasse a acção que o agente está a
ponderar. A questão de Kant é se seria possível proceder desse modo, ou se
seria possível querer que todos procedessem desse modo.
Se tivermos isto em mente, é duvidoso que Kant possa atingir as conclusões
que pretende nos seus últimos dois exemplos sem ter em conta as
consequências. É obviamente possível que o mundo seja um lugar em que
ninguém ajude os outros e ninguém desenvolva as suas capacidades. Este é
um estado de coisas lamentável, mas não impossível. E que pensar da
segunda opção de Kant? Poderá um agente racional querer que as pessoas não
ajudem as outras ou desenvolvam as suas capacidades?
Isso depende do que entendemos por "racional". Se racional significa
instrumentalmente racional, então parece não haver aqui qualquer
impossibilidade. Como Hume diz, posso ser totalmente claro ao raciocinar dos
meios para os fins (e assim ser instrumentalmente racional) e continuar a ter
os desejos mais bizarros que possas imaginar. Por outro lado, há um sentido
de "racional" de acordo com o qual um agente racional não quereria que o
mundo fosse um lugar no qual as pessoas não ajudassem as outras ou que não
desenvolvam as suas capacidades. Um agente racional não quereria isto por
causa das consequências que tais comportamentos teriam. Haveria uma
grande quantidade de sofrimento, de alienação e desespero; a vida seria
sombria.
Concluo que não é evidente como Kant pode analisar os seus dois últimos
exemplos do modo que faz sem ter em conta as consequências que se
seguirão da universalização das acções.

Um problema para o critério de universalizabilidade

Há um problema geral que diz respeito a todos os exemplos de Kant - na


realidade, à própria ideia de critério de universalizabilidade. Recorda-te uma
ideia simples da lição sobre o funcionalismo (Lição 22): Um espécime
exemplifica muitos tipos. Isto significa que uma dada acção particular pode ser
descrita em termos de muitas propriedades diferentes. Kant parece presumir
que há apenas uma máxima incorporada em cada acção, de modo que
podemos testar a moralidade do acto examinando a universalizabilidade desta
máxima. Mas há muitas máximas que podem levar a uma dada acção;
algumas podem ser universalizadas enquanto outras não.
Voltemos ao exemplo de Kant do cumprimento de promessas para vermos este
problema. Um homem tem de decidir se pede dinheiro emprestado
prometendo pagar, embora não tenha qualquer intenção de cumprir a sua
promessa. O que significaria todos comportarem-se deste modo? Uma forma
de descrever esta acção é dizer que ela decorre da máxima "Faz uma
promessa mesmo que tenciones quebrá-la". Kant afirma que é impossível
universalizá-la porque a proposição seguinte é uma contradição:

Toda a gente faz promessas, mesmo que ninguém tencione cumprir as


promessas que faz.

Contudo, podemos também descrever a acção do homem como decorrendo de


uma máxima diferente: "Não faças uma promessa a menos que tenciones
cumpri-la, excepto quando estás numa situação de vida ou de morte e a tua
intenção de quebrar a promessa não seja evidente para outros". Universalizar
esta máxima não leva a contradições, uma vez que o mundo poderia
perfeitamente ser da maneira seguinte:
Todos fazem promessas e em geral esperam cumprir
as promessas que fazem. A excepção ocorre quando há uma
enorme vantagem pessoal em fazer uma promessa sem a intenção
de a cumprir e a intenção de quebrar a promessa não é evidente para os
outros.
Longe de ser impossível, a generalização acima parece descrever de forma
bastante correcta o mundo em que na realidade vivemos.
Deves ter em conta uma semelhança entre o problema que Kant enfrenta e um
problema que o utilitarismo das regras encontrou na lição anterior. "O que
aconteceria se toda a gente fizesse isto?" é a questão que o utilitarista das
regras julga ser importante para avaliar as propriedades morais de uma acção.
A questão de Kant é diferente; ele pergunta "Podem todos fazer isto?" ou
"Posso querer que todos façam isto?" Embora as questões sejam diferentes, o
facto de haver múltiplas formas de descrever uma acção dá origem a
problemas semelhantes.
O critério de universalizabilidade pode parecer plausível se levarmos a sério a
analogia entre leis morais e leis científicas. Ambas devem ser universais e
impessoais. Mas outra comparação destas duas ideias pode diminuir a
plausibilidade de que algo como critério de universalizabilidade de Kant possa
vir a funcionar.
As leis científicas devem ser universais, mas ninguém pensa que a verdadeira
explicação de um fenómeno específico possa ser derivada a priori. A razão por
si só não pode dizer-me porque a Terra se move numa órbita elíptica em torno
do Sol, mesmo que eu assuma que a explicação deste facto tem de ser
verdadeira para todos os sistemas planetários semelhantes. Por outro lado,
Kant sustenta que o que está certo fazer numa situação específica é ditado
pelo requisito racional da universalizabilidade.
Evidentemente, um facto importante acerca da moralidade é que se é correcto
para mim fazer uma acção particular, então é correcto para qualquer pessoa
numa situação idêntica fazê-lo também. Esta é a ideia de que as leis morais ―
os princípios gerais que ditam o que está correcto fazer ― são universais e
impessoais. O problema está em que este requisito não é suficiente para
revelar quais as generalizações morais verdadeiras. Se fosse, a analogia entre
as leis científicas e as leis morais teriam implicações diferentes das que Kant
tentou desenvolver.

Kant: As pessoas são fins em si mesmos

Kant acreditava que uma consequência importante do seu teste da


universalizabilidade é que devemos tratar as pessoas como fins em si mesmos
e não como meros meios. Por esta razão, entendia que não devemos tratar as
pessoas como meios para fins que elas não poderiam aceitar racionalmente .
Kant acreditava que este princípio proíbe a escravatura. O mesmo pode ser
verdade para a punição de alguém por um crime que não cometeu, mesmo
que fazê-lo apazigúe uma multidão perigosa. A teoria kantiana parece fornecer
bases mais sólidas do que o utilitarismo para a ideia de que os indivíduos têm
direitos que não podem ser anulados por considerações de utilidade. Na teoria
de Kant não é a maximização da felicidade que importa. É suposto que a razão
por si mesma estipule princípios de equidade, imparcialidade e justiça.
Embora Kant anteceda os utilitaristas, a sua teoria parece feita para corrigir os
defeitos do utilitarismo. A ideia de direitos é uma correcção plausível da ideia
de que todos os aspectos da vida individual têm de passar o teste da
maximização da felicidade de todos. Apesar disso, há dificuldades lógicas de
monta na teoria de Kant. E o absolutismo de algumas das suas teses parece
estar em completo desacordo com convicções morais de senso comum que
estão fortemente arreigadas. Será de todo plausível pensar que as promessas
devem sempre ser cumpridas ― que nunca devemos dizer uma mentira ―
sejam quais forem as consequências? Para além de mostrar os defeitos nos
argumentos que pretendem justificar estas injunções, também devemos acima
de tudo mostrar que estas exigências morais não precisam de receber uma
justificação incondicional.
Se o critério de universalizabilidade é incapaz de fornecer um meio de decidir
quais as acções que são correctas e se os juízos morais de Kant acerca do
cumprimento de promessas, do suicídio, e de outras acções são implausíveis, o
que é que tem valor na sua teoria ética? Muitos filósofos consideram a
descrição que Kant faz do ponto de vista moral como uma das suas supremas
e duradouras contribuições. Os desejos e as preferências podem levar-nos a
agir e estas acções podem produzir diferentes misturas de prazer e de
sofrimento. Esta sequência de acontecimentos, contudo, dá-se entre criaturas
― talvez vacas e cães ― que nenhum esforço da imaginação permite afirmar
terem uma moralidade. O que é que, então, distingue as acções motivadas
pela moralidade das acções com origem na inclinação, quer sejam
benevolentes quer sejam malevolentes?
A resposta de Kant é que a acção moral tem por base princípios com um tipo
especial de garantia racional. A linguagem vulgar talvez seja neste caso um
pouco enganadora, uma vez que podemos falar de desejar agir moralmente
como se isso estivesse em pé de igualdade com o desejo por prazer ou por
lucro. Mas Kant não pensava que determinar o nosso dever fosse uma
inclinação entre muitas outras. Ele via a moralidade e a inclinação como
existindo em esferas completamente diferentes. Para identificar qual é a coisa
moral a fazer, devemos pôr de lado as nossas inclinações. Fixando a nossa
atenção em leis universais e impessoais, podemos esperar diminuir o grau em
que o interesse próprio distorce os nossos juízos acerca do que devemos fazer.

Questões de Revisão

1. Por que razão sustenta Hume que toda a acção tem uma causa "não
racional"? E por que rejeita isto Kant?
2. Kant acreditava em que há semelhanças importantes entre as leis científicas
e as leis morais. Quais são estas semelhanças?
3. O que significa dizer que o utilitarismo é uma teoria consequencialista,
enquanto a teoria de Kant não?
4. O que afirma o critério da universalizabilidade de Kant? Diz que não deves
realizar uma acção se o mundo fosse um lugar pior se toda a gente fizesse o
mesmo?
5. Como tenta Kant mostrar que a obrigação de cumprir as promessas se
segue do critério de universalizabilidade? É bem sucedido?
6. Estás num barco que se inclina perigosamente para um dos lados por que
todos os passageiros estão do lado direito. Ponderas se será boa ideia
moveres-te para a esquerda. Perguntas a ti mesmo, "o que aconteceria se
todos fizessem isto?" Esta questão contém uma ambiguidade. Qual é? Como é
que esta ambiguidade é relevante para avaliar o critério de universalizabilidade
de Kant?

Problemas para Promover a Reflexão

1. Kant acredita que o dever de tratar os outros como fins em si mesmos, não
como meios, se segue do critério de universalizabilidade. Tenta construir um
argumento que mostre como isto pode ser verdade. Kant tem razão ao pensar
que estes dois princípios estão estreitamente relacionados?
2. Kant pensava que a lei moral constrange a forma como as pessoas vivem,
mas que não determina cada um e todos os seus detalhes. Isto é, para Kant,
uma pessoa é livre de procurar os seus objectivos e projectos privados desde
que estes não violem qualquer imperativo categórico. Estes projectos
particulares são moralmente permissíveis, não moralmente obrigatórios.
O utilitarismo, por oposição, entende que a moralidade determina cada e todos
os aspectos da vida de uma pessoa. Cada acção que uma pessoa realize tem
de ser avaliada em termos do Princípio da Maior Felicidade. Um projecto
privado é permissível apenas se promove o maior bem para o maior número
de pessoas. Estes actos não são meramente permissíveis, mas obrigatórios.
Constrói um exemplo concreto em que estas características das duas teorias as
levem a fazer juízos opostos sobre se um acto é moralmente permissível. Aos
teus olhos, qual é a teoria mais plausível naquilo que diz sobre o teu exemplo?
33. A ética de Kant teve uma influência poderosa na filosofia política de John
Rawls. Em Uma Teoria da Justiça (Editorial Presença, 2001), Rawls defende
que as regras de justiça correctas para uma sociedade são as que todas as
pessoas escolheriam se 1) tivessem interesse próprio, e 2) não conhecessem
vários detalhes (como as suas capacidades, sexo, raça e os projectos que
desejam levar a cabo). Os únicos factos que as pessoas conhecem nesta
situação hipotética são factos gerais acerca da psicologia e da vida humanas. A
ideia de Rawls é em parte uma tentativa de captar a ideia de Kant de que as
inclinações pessoais devem ser postas de lado se queremos ver o que são as
nossas obrigações. Que princípios de conduta pensas que as pessoas
escolheriam nesta situação hipotética?

Tradução de Álvaro Nunes


Revisão de Pedro Galvão

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