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Filosofia – 10º A

2020/2021

DOC. Professor

A ética deontológica (do dever) de Kant

O filósofo alemão Immanuel Kant foi um dos maiores defensores da conceção deontológica da moral. Kant pensava
que a moral consiste num conjunto de regras absolutas que definem o que é permissível ou obrigatório fazer e que
impõem um certo número de barreiras morais à atividade dos agentes, quaisquer que sejam as consequências delas
decorrentes. Respeitar a palavra dada, não cometer homicídio, não mentir, são exemplos de algumas normas
absolutas. Além disso, Kant atribuía a maior importância às intenções com que as ações são praticadas; sem saber
que intenções deram origem a uma ação, não é possível estabelecer o seu valor moral. Por muito benéficas que
sejam as suas consequências, ainda assim uma ação pode não ter valor moral.

Um dos exemplos proferidos por Kant é o seguinte. Suponhamos que dois merceeiros partilham a mesma
política de preços: nenhum deles fixa os preços acima do que é justo cobrara aos clientes. Dir-se-ia, portanto, que
ambos cumprem o seu dever. Mas não é obrigatoriamente assim. Imaginemos que um dos merceeiros não aumenta
os preços apenas porque tem receio de perder clientes. A sua motivação é egoísta: se não sentisse receio de perder
clientes, nada o impediria de praticar preços injustos. Imaginemos ainda que o segundo merceeiro pratica preços
justos por considerar que é essa a sua obrigação. O segundo merceeiro age apenas por dever. Estas ações, embora
tenham a mesma consequência, não têm o mesmo valor moral.

No primeiro caso, a decisão de não aumentar os preços foi motivada pelo interesse pessoal; no segundo
caso, a ação foi praticada por respeito ao dever. Para Kant, uma ação só tem valor moral quando é praticada apenas
por dever; o seu valor depende da intenção com que foi praticada.

Uma ação pode estar em conformidade com o dever e não ter sido praticada por respeito para com o
dever. O merceeiro que fixa os preços justos apenas porque é do seu interesse pessoal fazê-lo neste caso. É possível
agir em conformidade com o dever por razões de interesse pessoal; neste caso, a intenção não é a de respeitar o
dever enquanto tal. O que motiva a decisão não fazer o que está correto porque é esse o seu dever (mas por razões
egoístas) são atitudes diferentes.

Quando é que a intenção tem valor moral ou é boa?

Quando o propósito do agente é cumprir o dever pelo dever, ou seja, uma ação tem genuíno valor moral quando a
sua razão de ser é o cumprimento do dever.

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O segundo comerciante agiu por dever. As ações feitas por dever são ações em que o cumprimento do dever é um
fim em si mesmo (cumprir o dever pelo dever). A vontade que decide agir por dever é a vontade para a qual agir
corretamente é o único motivo na base da decisão.

Kant não admite que se cumpra o dever em virtude das desejáveis consequências que daí possam
resultar. Seria deixar o cumprimento do dever ao sabor das circunstâncias, dos interesses do momento. Isso
implicaria que, quando não tivéssemos vantagem ou interesse em cumprir o dever, não haveria razão alguma para o
fazer.

Ações morais e ações legais

Kant distingue agir por dever (moralidade) de agir conforme ao dever (legalidade). Ações morais são que respeitam
a lei moral e têm vista o cumprimento do dever. Estas ações que respeitam a racionalidade humana respeitam a
autonomia da vontade. As ações legais só respeitam a lei moral por interesse, por inclinação ou por medo, e não
por respeito ao dever. Ou seja, respeitam a lei, mas por razões exteriores à racionalidade humana, e a isto chamou
Kant heteronomia da vontade. Só a vontade boa respeita o dever, e fá-lo com a intenção única de cumprir o dever.
Agir moralmente, segundo Kant, consiste em cumprir o dever pelo dever. É esta a essência da moralidade.

A vontade boa

A boa vontade é o mais elevado bem (o bem supremo) e é condição necessária de todos os outros bens. Uma boa
vontade é uma vontade que age por dever. O que caracteriza a boa vontade é cumprir o dever sem outro motivo ou
razão a não ser fazer o que é correto. Dirá Kant que a boa vontade é a vontade que age com uma única intenção:
cumprir o dever pelo dever.

Em suma, o que é uma boa vontade

 É uma vontade que age de forma moralmente correta.


 É uma vontade que cumpre o dever respeitando absolutamente a lei moral, ou seja, cuja intenção é cumprir
o dever.
 É uma vontade que age segundo regras ou máximas que podem ser seguidas por todos porque não violam
os interesses de ninguém.
 É uma vontade que respeita todo e qualquer ser humano, considerando-o uma pessoa e não uma coisa ou
meio ao serviço deste ou daquele interesse.
 É uma vontade autónoma porque decide cumprir o dever por iniciativa e não por meio de autoridades
externas ou da opinião dos outros.

A lei moral e o imperativo categórico

Mas como sabemos exatamente quais são os nossos deveres? Para Kant, os deveres morais não dependem de
convenções sociais nem de outras imposições externas; são encontrados racionalmente através da aplicação de uma
lei fundamental: o imperativo categórico.

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Um imperativo categórico é uma regra que tem força absoluta e que obriga incondicionalmente (“Faz X!), (“Diz a
verdade!”). Por oposição, os imperativos hipotéticos são obrigações circunstanciais, que nos indicam o que fazer se
tivermos este ou aquele objetivo (“Se queres Y, faz X”), (“Se queres ser respeitado, diz a verdade”), (“Se queres viver
sem angústias, diz a verdade”).

Em resumo: os imperativos categóricos são obrigações ou princípios práticos que prescrevem que uma ação é boa
se, e somente se, for realizada por puro respeito à lei em si mesma. Representam a necessidade prática da ação
como um fim si mesma e não como meio para atingir um fim. Os imperativos categóricos não admitem exceções ou
condições, são obrigações que precisamos de respeitar em todas as circunstâncias, independentemente das
necessidades, desejos ou inclinações particulares. Por fim, ordenam que respeitemos o valor absoluto de cada ser
racional nunca o reduzindo à condição de meio que nós é útil. Em contraste os imperativos hipotéticos são
princípios práticos que prescrevem que uma ação é boa porque é necessária (ou seja, é um meio) para conseguir
algum propósito ou fim. Ou seja, ordenam que se cumpram determinadas ações em concreto para atingir
determinado fim desejado. Por exemplo, «Se queres ser reconhecido, pratica o bem». São particulares e
condicionais.

Kant formula o imperativo categórico de várias formas. Uma dessas formas é conhecida como a fórmula da lei
universal: «Age apenas segundo máximas que possas querer ao mesmo tempo transformar em lei universal». Uma
máxima é um princípio que orienta a ação numa certa ocasião (por exemplo “ajuda os outros” ou “Respeita os
direitos”, por exemplo); dita-nos o que fazer numa certa circunstância. Ora, se seguirmos o imperativo, estaremos a
seguir apenas as máximas que possamos querer universalizar, aquelas regras que possamos desejar que todos
sigam e respeitem. Só estas regras que podemos universalizar constituem os deveres morais. Assim, para
determinar os deveres morais cada um de nós terá de perguntar se pode querer que todos façam o que se prepara
para fazer, se pode racionalmente que todos sigam o princípio de ação que pretende seguir.

Segundo Kant, os deveres morais são obrigações absolutas que não poderemos violar em circunstância alguma.
Entre elas encontram-se a obrigação de não matar, de não mentir, cumprir com a palavra dada, etc.

A segunda formulação do imperativo categórico diz-nos o seguinte: «Age de maneira a usares as pessoas nunca
apenas como um meio mas sempre como um fim em si.»

Que quer isto dizer? Basicamente o seguinte: estamos proibidos de usar as pessoas apenas como instrumentos
para satisfazer as nossas necessidades e interesses; além disso, é nosso dever respeitá-las tendo em conta a sua
condição de seres racionais e autónomos.

Nesta segunda formulação, o imperativo categórico afirma que os seres humanos, enquanto seres capazes de
moralidade, possuem, diz Kant, valor intrínseco (dignidade). Por esta razão, têm de ser tratados sempre como fins
em si mesmos e nunca apenas como meios. Tratar as pessoas como fins e não como meios significa respeitá-las
enquanto semelhantes e ter em consideração a sua racionalidade e liberdade.

As fórmulas do imperativo categórico correspondem, pois, às exigências que a razão nos dá sempre que queremos
agir corretamente. Cada indivíduo, enquanto ser racional, é assim autor das regras morais que impõe a si mesmo. As
normas morais, para serem válidas, devem respeitar as exigências de universalidade (1ª formulação do imperativo
categórico) e do reconhecimento do ser humano, enquanto pessoa, como um fim em si mesmo (2ª formulação).

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Desta forma, Kant afirma a autonomia e a liberdade moral do agente: a moralidade das nossas ações não
depende de nada que nos seja dado do exterior (sociedade, Deus ou outra qualquer entidade), mas do interior. O ser
humano é livre quando a sua vontade se submete às leis da razão.

Por muito difícil que a filosofia moral de Kant possa parecer à primeira vista, a verdade é que ela está na base de
grande parte das nossas conceções atuais de dignidade e de liberdades humanas, nomeadamente no que diz
respeito à nossa noção de Direitos Humanos Universais. Somos mais do que meras criaturas com apetites e
inclinações. Somos seres racionais e autónomos, capazes de raciocinar soberanamente e de escolher livremente e,
por isso, pessoas dignas de respeito e de consideração.

Objeções à ética kantiana

 Uma crítica frequente à ética de Kant diz respeito ao facto de esta estabelecer deveres morais absolutos,
invioláveis em quaisquer circunstâncias. Ora, habitualmente pensamos que mesmo os deveres de não
matar ou de não mentir poderão ser violados se essa for a única forma de impedir um mal
esmagadoramente maior. Imaginemos que tínhamos ao nosso dispor a possibilidade de matar aqueles que,
a 11 de setembro de 2011, desviaram os aviões fazendo-os colidir com as Torres Gémeas e que matá-los era
a única forma de os deter. Provavelmente diríamos que seria nosso dever fazê-lo para evitar as mortes
resultantes dos atentados. De acordo com a proposta de Kant, os nossos deveres morais não podem ser
violados nem em casos como este.
 Outra crítica prende-se com o facto de Kant considerar que os sentimentos como a compaixão ou a
generosidade, se são o que motiva a ação, lhes retiram o valor moral, em vez de lho darem ou de o
aumentarem. Ora, a nossa intuição diz-nos que alguém que age motivado por estes sentimentos –
considerados sentimentos morais – é bom e age bem.

Amândio Pires

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