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Filosofia 10º ano

Introdução
Tema: Ética
1. Ética (Kantiana)

Agi corretamente? Aquilo que fiz foi uma boa ação? Fui imoral? O que devo fazer? Estas
perguntas são exemplos do que, por vezes, questionamos quando agimos, já todos
questionamos o que deveríamos ter feito, se aquilo que fizemos foi uma boa ação, mas
também já nos arrependemos de ações passadas, porque consideramos que erramos.
Estas questões são investigadas na Filosofia Moral ou Ética, e têm que ver com a
moralidade das nossas ações.
Em Ética temos duas principais linhas de pensamento que nos permitem compreender o
que devemos fazer ou o que é uma ação moralmente correta e incorreta, são elas as
éticas deontológicas e as éticas consequencialistas/utilitaristas. As primeiras defendem
que a moralidade das nossas ações depende do dever e da sua universalidade, enquanto
que as segundas afirmam que a moralidade da nossa ação depende das circunstâncias e
consequências.
As éticas deontológicas, como o caso da ética de Immanuel Kant (1724-1804), defendem
que a moralidade das nossas ações depende de um dever universal (exemplo: todos
devemos dizer a verdade, porque o nosso dever é dizer a verdade, independentemente
das consequências), ou seja, só se a nossa intenção for cumprir o dever moral é que é
moralmente correta.
Assim, a moralidade de uma ação apenas se encontra na intenção do agente que pratica
a ação, porque só a intenção indica que o agente quis agir bem ou mal, visto que, se as
consequências de uma ação não dependem unicamente da pessoa que a pratica, então
não pode responsabilizar-se completamente pelas consequências das suas ações. Isto é,
há situações em que intencionamos ajudar alguém, mas se a consequência da nossa ação
não for positiva, não significa que não tínhamos praticado uma boa ação.
Estudaremos, em específico, a ética deontológica de Immanuel Kant desenvolvida na
Crítica da Razão Prática e na Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

2. Ética kantiana
Desde logo, Kant argumenta que só é possível agir moralmente se o agente, isto é,
aquele que pratica a ação, é capaz de agir, é racional e livre para agir. Isto significa agir

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com autonomia, o que por estas condições só se aplica ao ser humano, visto que só ele é
racional e livre (autonomia – agente autónomo).
Pelo contrário, um agente que apenas age por necessidade, por imposição ou
inconscientemente, e que, por isso, não pode ser responsável pela sua ação, age de
forma heterónoma, logo a sua ação não tem valor moral, porque não lhe pode ser
imputada responsabilidade (heteronomia – agente heterónomo).
Mas Kant acrescenta mais uma situação em que as nossas ações não são livres e, por
isso, não têm valor moral, é a situação em que agimos movidos pelas nossas emoções ou
sentimentos. Isto é, se agirmos pela emoção da raiva ou pelo sentimento de pena, não
estamos em total controlo das nossas ações, estamos apenas a seguir as nossas
inclinações, em vez de agirmos racionalmente.
É importante referir a importância da racionalidade nas ações morais, porque vejamos,
o que nos distingue dos outros animais é a nossa racionalidade, o que permite dizer que
somos livres e que os outros animais irracionais não o são, porque agem apenas segundo
os instintos ou emoções.
Se somos livres porque somos racionais, então só é possível agir livremente quando a
nossa ação é puramente racional, isto é, que não é movida pelas nossas inclinações
(instintos, emoções e sentimentos). Neste sentido, só uma ação que toma um princípio
racional é que pode ter valor moral.
Quando Kant fala em princípio racional está-se a referir ao dever, isto é, quando agimos
segundo uma lei moral - e, por isso, racional - que orienta a nossa ação, e não por uma
inclinação ou pelas consequências da nossa ação.
Este conceito de dever em Kant permite distinguir três tipos de ação:
1) ações contrárias ao dever, por exemplo quando fazemos mal a alguém movidos pela
vingança;
2) ações conforme o dever, por exemplo quando ajudamos alguém só porque sentimos
pena dessa pessoa;
3) ações por dever, por exemplo quando ajudamos alguém porque consideramos que é o
nosso e o dever de todos se ajudarem mutuamente.
A ação contrária ao dever é uma ação imoral, visto que não é uma ação que não se segue
de um princípio racional e tem a intenção de provocar o mal no outro;
A ação conforme o dever é uma ação amoral, ou seja, não tem conteúdo moral, porque
apesar de ser uma ação movida por “boas intenções”, é orientada pelas inclinações e
não por uma intenção desinteressada, isto é, uma intenção que não tenha outros
interesses do que simplesmente agir de forma correta;
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A ação por dever é a única ação moral e racional, visto que não depende das inclinações
e age segundo um princípio moral e racional que não depende das consequências da
ação.
Como, então, identificamos que agimos moralmente, isto é, que agimos por dever?
Kant dirá que depende exclusivamente da nossa intenção em cumprir a lei moral, isto é,
quando agimos exclusivamente por dever, respeitando a lei moral sem tomar em
consideração as consequências da ação ou das inclinações de quem age.
Esta intenção ética ou este querer sem outra intenção que não cumprir a lei moral, é o
que Kant denomina de vontade boa, isto é, quando a nossa vontade para agir é apenas e
só cumprir a lei moral. Ou seja, quando a nossa vontade na ação moral é determinada
pela nossa razão (autónoma) e não por princípios externos, como as inclinações.
A questão que agora se levanta é o que Kant considera ser a lei moral. O que é então a
lei moral? Uma lei, por definição, é uma regra que se aplica a todos independentemente
das circunstâncias. Uma lei moral será, pois, uma regra que consiste em orientar as
nossas ações com um fim ético e universal ao mesmo tempo que nos permite distinguir
uma ação moralmente correta de uma ação moralmente errada.
A lei moral, sendo racional e universal, serve como único princípio à nossa vontade e
expressa-se através de uma fórmula denominada imperativo categórico em oposição ao
imperativo hipotético.
O imperativo hipotético formula uma regra que deve ser comprida para atingir um certo
fim ou produzir uma certa consequência, por exemplo, devo dizer a verdade se quero
ser socialmente aceite ou devo cumprir uma promessa para não ser recriminado.
Enquanto que o imperativo categórico representa uma máxima que é válida para todas
as situações independentemente das consequências que a ação possa produzir, por
exemplo deve-se dizer a verdade ou cumprir uma promessa, não por causa das
consequências, mas porque são ações que em si estão corretas.
Por essa razão, será o imperativo categórico a representar a lei moral, como sendo o
princípio ou máxima que devemos cumprir para que as nossas ações sejam consideradas
moralmente corretas.
Se, como já dissemos, o imperativo categórico é universal, não depende das inclinações
e é aplicável a todos os seres racionais como princípio das suas ações, então podemos
defini-lo como o imperativo que afirma: age apenas segundo uma máxima tal que possas
ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.
Nesta primeira formulação do imperativo categórico é afirmado que a nossa ação
só é boa se a máxima dessa ação for universalizável. Isto é, o princípio que orienta a
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nossa ação deve ser aplicável a todos os seres racionais como uma lei universal. Significa
isto que se eu ajudar uma pessoa porque considero que todos devem ajudar aqueles que
mais precisam e, por isso, quereria que todos agissem cumprindo a máxima “deves
ajudar todos aqueles que precisam de ajuda”, então a minha ação pode ser considera
boa devido ao cumprimento da lei moral, ou seja, da minha vontade boa.
Mas imaginemos outra situação: o vosso colega não teve tempo para estudar para o teste
e vocês, porque são amigos dele, permitem que ele copie por vocês. Acham que esta
seria uma boa ação? É certo que o estão a ajudar, mas a máxima da vossa ação aqui seria
“devo ajudar a copiar sempre que uma pessoa não tenha estudado”. Acham que
poderiam tornar esta máxima numa lei universal? Concordariam que todos deveriam
poder copiar quando não estudaram? A resposta parece ser negativa, e como o
imperativo categórico não admite exceções, porque é universal, então não podemos
considerar que a máxima que corresponde ao ato de copiar um teste, que seria o mesmo
que mentir ou falsear, não pode ser considera uma boa ação, mesmo que tenha tido a
finalidade de ajudar o outro.
Assim, para facilmente identificarmos uma boa ação, ou seja, ações por dever, devemos
sempre perguntar: Quero que a máxima da minha ação se torne uma lei universal? Se a
resposta for negativa, então é porque a nossa ação será imoral, se a resposta for positiva
então é porque a nossa ação é boa, independentemente das consequências.
É a partir desta ideia de querer que a máxima da nossa ação se torne numa lei universal,
que Kant apresenta a segunda formulação ou variável do imperativo categórico
como sendo age de tal forma que a tua vontade se possa encarar a si mesma, em
simultâneo, como um legislador universal através de suas máximas.
Analisando os princípios em Kant, as máximas e os imperativos categóricos podemos
compreender:
“ A teoria ética de Kant oferece-nos um princípio da moral que deve poder ser aplicado
a todas as questões morais. Kant enuncia-o de diferentes maneiras com o objectivo de
esclarecer as suas implicações. Partiremos de um caso simples, de senso comum, para
esclarecer essas diferentes formulações:
O Silva reparou que uma pessoa que saía da sua pequena loja deixou cair uma nota de 50
€. Apanhou-a e... que fez?
Avaliemos três decisões possíveis de Silva
1. Ficou com os 50 €.
2. Devolveu os 50 € para ficar bem visto e ganhar reputação de honesto.
3. Devolveu os 50 € pelo simples facto de pertencerem ao cliente.
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O princípio do desinteresse
A acção 1 é claramente imoral. O Silva ficou com os 50 € devido ao seu interesse.
Quanto à acção 2, o senso comum diria que é hipócrita ou interesseira, pois o Silva
devolveu os 50 € apenas porque isso é do seu interesse. De facto, o princípio da decisão
em 2 foi o mesmo que em 1 — o interesse. Pôr o seu interesse acima de tudo, como
princípio das acções, é imoral. Assim, só a acção 3 é moralmente correcta, já que o Silva
ultrapassou os seus interesses e agiu de forma desinteressada.
O nosso juízo sobre cada uma das possíveis decisões do Silva foi guiado pelo princípio do
desinteresse:
“Age desinteressadamente”.
A teoria de Kant não impede que a pessoa satisfaça os seus interesses — afinal também
era do interesse do Silva decidir o que fazer com os 50 € e, apesar de não ter sido esse o
motivo da acção 3, também ganhou a consideração do cliente. O acto deve ser
desinteressado mas se, além disso, satisfizer interesses, tanto melhor para o agente; se
contrariar interesses, paciência.
O princípio da imparcialidade
Podemos enunciar o princípio do desinteresse de outra maneira: “Decide com
imparcialidade”.
Aprovamos moralmente as decisões e as acções quando o sujeito, como no caso 3,
decide como um juiz imparcial. Nos casos 1 e 2 Silva permitiu que os seus interesses lhe
roubassem a imparcialidade.
É provável que Kant, neste aspecto, se afaste um pouco do senso comum. O senso
comum pode pensar que a “imparcialidade” será considerar igualmente “cada um dos
interesses envolvidos” ou, então, ajuizar sobre cada caso atendendo ao “interesse de
todos”. Mas os “interesses das partes envolvidas” podem ser igualmente imorais. Quanto
ao “interesse de todos” pode nem existir (afinal é típico os interesses estarem em
conflito...) e, se existir, será, como todos os interesses, contingente, caprichoso como a
humanidade, e a moral não pode estar sujeita a caprichos. “Imparcialidade”, para Kant,
significa decidir independentemente de quaisquer interesses. De facto, Kant pensava,
em parte de acordo com o senso comum, que o progresso moral também ajuda à
felicidade e aos interesses mais dignos das pessoas. Mas ele sabe que a harmonia entre a
moral e a felicidade não é certa e que se a acção moral gerar felicidade será por
acréscimo ou efeito secundário.

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O princípio do dever
Se a pessoa não deve agir por interesse, então deve agir por obrigação, por dever. A
acção 1 foi em tudo contrária ao dever. A acção 2 está em conformidade com o dever,
porque o Silva fez o que deveria ter feito, mas foi feita por interesse e não por dever. Só
a acção 3, a única a ter toda a nossa aprovação moral, foi feita por dever. Assim, o
princípio da moralidade pode ser enunciado deste modo:
“Age apenas por dever e não segundo quaisquer interesses, motivos ou fins”.
Devemos ter em mente que falamos de decisões e acções morais. Se um papel inútil na
minha secretária me incomodar, é do meu interesse deitá-lo para a reciclagem e, ao
fazê- lo, não estou a violar o princípio dos deveres; mas se atirar o papel para o quintal
do vizinho, deixo de cumprir o dever de respeitar as pessoas...
Os deveres morais e as convenções sociais
Os princípios do desinteresse, da imparcialidade e do dever dizem a mesma coisa e
têm as mesmas implicações. Isto permite esclarecer o que são deveres morais:
O dever é uma regra estipulada por uma razão desinteressada, imparcial.
Assim, podemos evitar o erro, bastante difundido, de supor que os deveres morais são
criações ou convenções sociais. Dois argumentos contribuem para este erro. O primeiro
parte do facto de alguns dos “deveres morais” de uma sociedade serem diferentes dos
de outras, para concluir, erradamente, que todos os deveres são convenções sociais. O
segundo argumento parte do facto de muitas vezes cumprirmos os deveres contrariados,
como se fôssemos obrigados por uma autoridade externa, para concluir que não podem
ter origem em nós mas sim numa autoridade externa.
Ora, a teoria kantiana permite distinguir os deveres morais das regras ditadas por
quaisquer autoridades exteriores ao agente. O indivíduo tem na sua razão o critério dos
deveres: pensando desinteressada e imparcialmente ele sabe o que é o dever. O conflito
entre o dever, que é a ordem que damos a nós mesmos (“Sê honesto!” — ordenou o Silva
a si mesmo), e os interesses que nos afastam do dever (“Mas os 50 € davam-me jeito...”
— hesitou o Silva), explica por que o dever parece ter origem numa autoridade exterior
que nos contraria.
O princípio da universalidade
A teoria moral de Kant concilia a ideia de que os deveres morais são criações dos
indivíduos e a ideia de que a moral é universal, comum a todos. Esta ideia pode
surpreender-nos: não é verdade que “cada cabeça, sua sentença”?
A acção correcta é decidida pelo indivíduo quando adopta uma perspectiva universal.
Como? Abstraindo dos seus interesses, a pessoa pensará como qualquer outra que
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também faça abstracção dos seus interesses adoptando, portanto, uma perspectiva
universal.
Regressa ao exemplo dado e verifica que qualquer pessoa que abstrai dos seus interesses
e pensa imparcialmente faz o mesmo: é honesta e devolve os 50 €. Aplica a mesma ideia
a deveres morais comuns como “Cumpre as promessas”, “Paga o que deves”, “Sê leal”,
“Não roubes” e verifica, com Kant, que só o interesse e a parcialidade do agente podem
levar à violação de tais regras ou deveres morais. Eliminada a parcialidade, pensamos
segundo uma perspectiva universal e aprovamo-las. Kant exprimiu esta ideia numa
fórmula conhecida por princípio da universalizabilidade:
“Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se
torne lei universal”. ( 1ª formulação do Imperativo Categórico)
Uma máxima é uma regra que deve valer para certos tipos de acção e será moral ou
imoral consoante esteja ou não de acordo com o princípio moral, que é uma regra que
deve valer para todas as acções. A máxima da acção 1 poderia enunciar-se assim: “Se
isso servir os teus interesses, não devolvas dinheiro ao seu dono”. Poderia o Silva querer
que ela fosse universalmente acatada? Não, porque a obediência universal a tal regra
criaria um estado de coisas terrível em que mesmo os seus interesses acabariam por ser
lesados... Tenta transformar outras violações dos deveres em máximas e pergunta se
podes querer que todos as cumpram. Pode o ladrão querer que todos roubem quando a
oportunidade surge? Podes querer que todos façam promessas sem a intenção de
cumprir?
O princípio da autonomia
Se juntares agora o princípio da universalizabilidade e o esclarecimento da origem dos
deveres, compreenderás a ideia surpreendente de Kant de que nas decisões morais nós
somos legisladores criando regras válidas para todos os seres racionais.
Esta ideia também pode parecer estranha porque nos parece que os deveres não
estiveram à nossa espera para serem criados. Pensamos que são as tradições que
constituem listas de deveres apoiadas em sistemas de punições e recompensas. Mas,
aceitar esta teoria implica afirmar que a acção 3 é impossível porque, nesse caso, o
Silva só poderia agir devido ao seu interesse em evitar punições ou de ser recompensado
e, em consequência, a nossa aprovação moral de 3 não teria sentido. Se aceitarmos os
princípios já expostos, conclui Kant, aceitamos que em cada juízo ou decisão moral, o
sujeito determina o dever. O facto de esses deveres coincidirem com alguns dos deveres
tradicionais explica-se pela universalidade da razão. Kant sublinhou esta ideia de
autonomia do sujeito em outras fórmulas do princípio moral:
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“Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei
universal da natureza”.

“Age [...] de tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa considerar a si
mesma ao mesmo tempo como legisladora universal”. (2ª Formulação do Imperativo
Categórico)
A fórmula da universalizabilidade ainda poderia sugerir que quando decide moralmente,
sujeito escolhe entre máximas que ele não criou mas que já estão disponíveis. A
novidade mais notória destas fórmulas está no facto de acentuarem a autonomia do
sujeito: o sujeito deve obedecer apenas a regras que criou, ao mesmo tempo, para si
mesmo e para todos os seres racionais.
O princípio do respeito pela pessoa
Perguntemos como é que, em cada um dos casos 1, 2 e 3, as pessoas são tratadas.
Em 1, o Silva usou o outro como meio, como se a outra pessoa fosse uma coisa ou
instrumento, para o aumento directo da sua fortuna. Em 2, o Silva usou a outra pessoa
como meio de marketing e propaganda. Nestes dois casos, ao mesmo tempo que usou a
outra pessoa apenas como meio, o Silva usou-se como meio, abdicando da sua
autonomia para favorecer impulsos e interesses que o escravizam. Que quer dizer “usar-
se como meio”? Silva é uma pessoa, um ser autónomo. O que constitui esta pessoalidade
ou autonomia é a capacidade de pensar e decidir por si. Mas nos casos 1 e 2 ele usou
estas capacidades para servir fins ditados pelo interesse. Usar- se como meio é usar a
sua autonomia para a perder.
Em 3, o Silva não tratou a outra pessoa como meio, tratou-a como um fim. Devemos
esclarecer esta ideia.
Se a devolução dos 50 € não visou servir qualquer interesse, então para quê fazê-lo? Qual
é a sua finalidade? A finalidade, já vimos, foi a de cumprir o dever pelo dever. Mas isso,
também já vimos, é, ao mesmo tempo, definir a única legislação adequada a qualquer a
pessoa, ou seja, a todo o ser racional, capaz de ultrapassar interesses para pensar e
decidir por si. Assim, cumprindo o dever que deu a si mesmo, o Silva respeita todos os
seres racionais, incluindo, claro, tanto o próprio Silva como a pessoa do seu cliente. O
mesmo seria dizer que respeitando a pessoa do seu cliente, o Silva respeita-se e respeita
todos os seres racionais, tomando-os como fins da sua acção.
Kant sintetizou o seu pensamento noutra fórmula:

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“Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de
outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio”. (3ª
Formulação do Imperativo Categórico)
Nota que a fórmula não proíbe as pessoas de serem meios umas para as outras, porque
se o proibisse, proibiria qualquer prestação de serviços. A lei moral não proíbe o Silva de
usar os seus clientes para prosperar, mas se enganar nos preços e não devolver o
dinheiro esquecido pelos clientes, está a tratá-los apenas como meios, instrumentos ou
objectos.”
Júlio Sameiro

Assim, a lei moral deve ser interpretada como se tu quisesses (vontade) que a tua lei
moral fosse uma Lei Universal, ou seja, devemos sempre considerar que as máximas das
nossas ações possam ser legisladoras universais, como se em cada ação carregássemos o
peso da humanidade aos ombros ou como se a cada ação que fizéssemos, devêssemos
sempre pensar se gostaríamos que a máxima pela qual agimos deveria ser uma lei para
toda a humanidade.
Por fim, devemos compreender que o conceito de humanidade é de extrema
importância, visto que só o ser humano, porque racional, é que pode formular leis
morais e cumpri-las, sendo assim, o filósofo apresenta uma terceira formulação sobre a
dignidade da pessoa humana, formulando-a deste modo: age de tal maneira que uses
a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.
Quer isto dizer que não podemos usar as pessoas como um meio para atingir os nossos
fins, porque isto seria tratar os outros como coisas e destituí-las da sua dignidade, ou
seja, considerar que as pessoas são comercializáveis ou negociáveis.
É, pois, a dignidade que se associa à liberdade e racionalidade do ser humano, como a
qualidade que impede que qualquer pessoa seja tratada como um objeto porque, como
afirma, Kant, a pessoa humana tem dignidade porque “está acima de qualquer preço”.

Contudo, podem ser apresentadas algumas objecções à ética deontológica de Kant, tais
como:
1. Uma moral fundamentada somente no sentimento de dever contraria a própria
ocorrência de como o agente se comporta, porque maioritariamente este age por
motivos emocionais ou pelos desejos, e não é por esta razão que poderemos considerar
que a sua ação é imoral;
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2. Apesar do motivo e a intenção ser parte integrante e importante no valor do agente,
não é suficiente para avaliar moralmente a ação, porque, por exemplo, o ato de salvar
uma pessoa não deixaria de ter valor moral se executado por um sentimento de
oportunismo;
3. A elaboração de uma fundamentação sem equacionar o indivíduo concreto contraria a
finalidade da moral, que consiste na reflexão sobre o comportamento moral do ser
humano concreto, e não da sua projeção abstrata ou universal. Ou seja, se não
compreendermos, primeiro, como age naturalmente o ser humano, que Kant ignora,
nunca conseguiremos desenvolver um código moral ou fundamentar uma moral
direcionada para o ser humano, mas somente uma moral para deuses e santos. É por
esta razão que se diz que Kant tem as mãos limpas (uma ética perfeitamente racional),
(mas impossível de se aplicar ao ser humano).
( As objecções que serão estudadas encontram-se na pág. 217 e 218 do manual.)

Introdução
Tema: Ética
1. Ética utilitarista (Stuart Mill)
As éticas consequencialistas, em contraste com as éticas deontológicas, englobam todas
as perspetivas ou teorias éticas que defendem que o critério moral da ação, ou seja, o
que distingue uma boa de uma má ação, são as consequências da ação, e não a intenção
do agente que a pratica.
Uma das teorias consequencialistas mais reconhecidas na Filosofia Moral é a ética
utilitarista de John Stuart Mill (1806 -1873), desenvolvida no livro Utilitarismo, que tem
por objetivo demarcar-se da ética deontológica de Immanuel Kant e apresentar uma
alternativa aos critérios morais que, na ótica kantiana, eram passíveis de ser
apresentados apriorística e universalmente, em contraposição à perspetiva de Mill em
que o valor moral de uma ação só poderia ser compreendido pela consequência empírica
da mesma.
Uma das críticas apontadas à ética kantiana era a sua interpretação errónea ou mesmo
inexistente do comportamento humano, levando-o a desenvolver um critério moral tão
rigoroso e universal que se torna impraticável para compreender e orientar as nossas
ações.
Deste modo, Stuart Mill começará, primeiro, por compreender o comportamento
humano para depois desenvolver uma ética que seja possível e aplicável às nossas ações.

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2. Ética consequencialista/utilitarista (John Stuart Mill)
Com base na experiência e na observação, ou seja, numa ótica empirista, Stuart Mill
interpretará o comportamento humano a partir de uma base naturalista,
compreendendo desde logo que o ser humano, como qualquer outra espécie, age
segundo os seus interesses próprios, isto é, agimos em função daquilo que nos faz bem e
recusamos o que nos faz mal (física e espiritualmente).
Ora, aquilo que “nos faz bem” é o que nos proporciona prazer, ao contrário do que “nos
faz mal” que corresponde à dor ou sofrimento.
Assim, o prazer é uma motivação essencial na ação porque promove um desejo universal
no ser humano, ou seja, o seu bem-estar ou a sua felicidade.
Acontece, então, que agimos tendencialmente para obter prazer com o objetivo de
promover a nossa felicidade, esta é a já conhecida afirmação de que todos queremos ser
felizes ou que o nosso fim é a felicidade.
Contudo, para Stuart Mill, apesar de afirmar que só através dos prazeres é que é possível
alcançar a felicidade, nem todos os prazeres são os mais adequados para a conquistar.
Por exemplo, dificilmente diríamos que levar uma vida baseada em comer e dormir nos
faria feliz, é, pois, necessário compreender que prazeres simplesmente nos satisfazem,
e através de quais é que alcançamos verdadeiramente a felicidade.
Assim, Mill distingue os prazeres que promovem a satisfação e aqueles que promovem a
felicidade, distinguindo, deste modo, a natureza qualitativa dos prazeres, visto que a
quantidade dos mesmos não é suficiente para alcançar a felicidade (O excesso, em
quantidade, de prazeres não nos leva à felicidade, pelo contrário).
Neste sentido, Mill divide os prazeres em inferiores, como aquelas sensações fisicamente
agradáveis (por exemplo, dormir), e prazeres superiores, como os prazeres relacionados
com o intelecto ou o espírito (por exemplo, ler).
Os prazeres inferiores não são suficientes para promover a felicidade humana, mas
apenas possibilitam a nossa satisfação corporal, sendo que dedicar uma vida aos
prazeres do corpo seria ter uma existência igual à dos animais (irracionais).
Contudo, como não temos os mesmos limites que os animais, desejamos prazeres
superiores, isto é, prazeres que dão sentido de dignidade, que nos tornem mais

Mill afirmará que “Vale mais ser um homem insatisfeito do que um porco satisfeito; vale
mais ser Sócrates insatisfeito do que um imbecil satisfeito.”.

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Humanos no sentido em que nos possibilitam uma existência mais digna do que a
existência só pela sobrevivência, como a nossa dedicação ao conhecimento, ao
sentimento, à imaginação, ao amor, à liberdade, à solidariedade, entre outros.
Importa salientar que a única prova que Mill apresenta para defender esta distinção
entre prazeres inferiores e superiores, é a menção aos juízes competentes (como
Sócrates e Jesus), os quais correspondem aos indivíduos que já experienciaram os dois
tipos de prazeres e sabem distinguir entre aqueles que nos enriquecem espiritualmente
e aqueles que apenas satisfazem as nossas necessidades mais básicas, sendo que as suas
palavras neste assunto servem como argumento de autoridade na distinção dos prazeres.
Contudo, não nos enganemos, o utilitarismo não é uma ética hedonista com perfil
individualista ou egoísta, isto é, a promoção da felicidade não é a do indivíduo em si,
mas do maior número de pessoas, isto é, a felicidade geral.
Como o critério para a moralidade é a aferição das consequências, então estas só podem
estar relacionadas com outros sujeitos concretos. Isto é, se eu disser “Vou ajudar a
humanidade” ou “A minha ação é motivada por um sentimento universal e humanitário”,
o que estou realmente a dizer? É possível ajudar a humanidade, sendo a humanidade um
conceito abstrato? E se o tornarmos concreto, ou seja, considerar que a humanidade
corresponde a todas as pessoas, é possível ajudar ou contribuir para a felicidade de
todas as pessoas? Por experiência e também por condições físicas percebemos que é
impossível.
Então a questão que se deve fazer é: “Quem podemos ajudar? A quem podemos agir
moralmente? Quem podemos alcançar com a nossa ação?”; o que Mill defenderá é que se
não podemos ajudar todas as pessoas, então a regra que devemos tomar na nossa ação e
equacionar na previsão que fazemos do alcance das nossas consequências, é que as
consequências da nossa ação sejam para o maior número de pessoas possíveis, e não
para todas as pessoas (que seria impossível).
Por maior número de pessoas possível Mill quer dizer a nossa sociedade, ou seja, o maior
número de pessoas que se inscreve na nossa circunstância, que está ao nosso alcance,
isto é, a sociedade ou o coletivo em que estamos inseridos.
Por esta razão, a ética utilitarista tem por fim promover a felicidade das pessoas na
sociedade a que pertencemos (princípio da utilidade ou da maior felicidade, ou seja,
aquelas que estão ao alcance das consequências da nossa ação, e não a humanidade
inteira que, para além de ser um conceito abstrato é também uma impossibilidade
física.

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Assim, a perspetiva ética de Mill, ao contrário do imperativo categórico de Kant, é
fundamentada pelo critério moral do princípio da maior felicidade, que afirma que as
nossas ações são boas se promoverem a felicidade do maior número de pessoas, sendo
que as más ações despromovem essa mesma.
Significa então que a sociedade, como o conjunto de indivíduos concretos e passíveis de
serem influenciados pela nossa ação, é que se constitui como o objeto último da
promoção da felicidade geral, o que o levará, mais tarde, a desenvolver a sua perspetiva
política em Sobre a Liberdade, defendendo que a sociedade deve proporcionar que todos
os indivíduos possam procurar, por si, a felicidade ao mesmo tempo que a possam
promover para um bem geral, ou seja, que cada indivíduo possa agir de acordo com o
princípio da utilidade ou da máxima felicidade.
Por causa deste compromisso com a felicidade dos outros, Mill advogará que perante o
sofrimento humano generalizado, e que pode ser derrotada por “obra do cuidado e do
esforço humanos”, deve ser empreendido na sociedade um combate no qual resulte uma
“nobre fruição”, não caindo nem cedendo a uma tentação “meramente egoísta”.

3. Objecções:
Contudo, podemos apresentar algumas críticas à ética utilitarista:
1. Se apenas nos focarmos nas consequências das nossas ações, a ação em si torna-se
irrelevante, o que pode levar a legitimar ações imorais só por causa dos bons
resultados que produz (legitima a ideia de que os meios justificam os
fins);

2. A distinção de prazeres superiores e inferiores não pode ser tão objetiva e


rigorosa como Mill propõe, visto que cada indivíduo tem a sua visão particular
acerca dos prazeres que o fazem feliz ou não.

3. A ética utilitarista tem uma base empirista, isto é, baseia-se na experiência dos
chamados “juízes competentes”, contudo, parte desses casos particulares para
generalizar a ideia de que a felicidade desses juízos é válida para todas as pessoas
(falácia da generalização precipitada).
( As objecções que serão estudadas encontram-se na pág. 229, 230 e 231 do
manual.)

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Tema: Política
1. Justiça como equidade (John Rawls)

A Filosofia Política, a área da Filosofia que estuda os problemas e as conceções políticas,


tais como: Qual a melhor forma de governo? Quais os princípios que devem orientar uma
sociedade justa? O que é uma sociedade justa? Como devem ser distribuídos os bens
produzidos em sociedade? Como podemos conciliar os valores da liberdade e da
igualdade?, entre outras questões abordadas ao longo de uma tradição que se inicia na
República de Platão e atravessa obras como a Política de Aristóteles, o Leviatã de
Thomas Hobbes, o Príncipe de Maquiavel, os Tratados do Governo Civil de John Locke, o
Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau, o Manifesto do Partido Comunista de Karl
Marx e Friedrich Engels, entre outras obras relevantes.
É no seguimento desta longa tradição que John Rawls (1921-2002) escreverá Uma Teoria
da Justiça (1971) para responder a uma específica pergunta: Quais os princípios políticos
que deverão regular uma sociedade justa? Desta pergunta fundamental, Rawls pretende
formular uma conceção de justiça (justiça como equidade) que resolva a
incompatibilidade entre os igualitários e liberais.
Estes princípios de justiça, como elementos formais orientadores das leis, modos de
atuação governamental, distribuição de bens e direitos, entre outros, são específicos da
estrutura básica de uma sociedade justa, visto servirem de base orientadora às
principais instituições políticas e sociais.
A estrutura básica da sociedade são, pois, as principais instituições políticas e sociais,
como o governo, a assembleia, os tribunais, entre outros, e a forma como os direitos e
deveres (básicos) determinam as vantagens provenientes da cooperação social, por
exemplo, quando nos referimos ao acesso a cargos públicos, o acesso a serviços básicos
como a educação ou a saúde ou, ainda, a questões relacionadas com a desigualdade
económica e social.
A relevância da estrutura básica da sociedade na conceção de justiça de Rawls justifica-
se por ser um fator determinante nas metas, aspirações, caráter, oportunidades e a
capacidade de as aproveitar dos cidadãos desde do início das suas vidas, por isso, é
natural que este seja o objeto primário da justiça política.
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Compreendendo, assim, que a conceção de justiça de John Rawls fundamenta os
princípios políticos reguladores da estrutura básica de uma sociedade democrática e que
estes se aplicam a todos os cidadãos livres e iguais, então esta conceção é designada por
justiça como equidade, ou seja, uma conceção de justiça que é acordada por todos em
situação igual e aplicada, também de forma igual, a todos os cidadãos.
A base desta conceção é, pois, um acordo sobre os princípios que as partes (cidadãos)
celebram com o objetivo de orientar as ações das instituições e dos cidadãos numa
sociedade de cooperação.
Este acordo é necessário por duas razões:
1) numa sociedade livre, os cidadãos têm o direito a escolher os princípios pelos quais
essa mesma se deve regular, e não que haja uma imposição de um, alguns ou uma
maioria que imponha uma conceção específica de justiça que seja prejudicial à
liberdade ou à igualdade de direitos;
2) o acordo é, também, necessário, porque cada indivíduo é um ser particular com
valores, caráter e ideias próprias, ou seja, aquilo que Rawls designa como pluralismo

razoável , e nesse sentido não pode existir uma conceção de justiça sem que essa tenha

sido acordada em condições justas por todos os cidadãos.


Para chegar a este hipotético acordo ou contrato que nos revela os princípios de justiça,
Rawls desenvolve uma experiência mental em que os cidadãos se encontram em
condições equitativas e elaboram um acordo mútuo para a elaboração desses princípios
de justiça.
Rawls propõe que imaginemos uma assembleia de cidadãos que se reúne para selecionar,
a partir de uma lista ordenada de princípios políticos conhecidos, os princípios de justiça
básicos que uma sociedade justa deveria ter. Esta situação hipotética, designada posição
original, é composta de indivíduos livres e iguais, isto é, que se encontram nas mesmas
condições.
Contudo, se elaborássemos um contrato conhecendo a nossa posição social ou os nossos
talentos, procuraríamos celebrar um acordo que fosse favorável à nossa situação ou
àqueles que representamos, ou seja, não seria uma decisão imparcial e neutra e, por
isso, dificilmente chegaríamos a um acordo que fosse aceitável para todos, por exemplo,
um indivíduo rico poderia defender que uma sociedade deveria ter uma mínima
tributação para que os seus rendimentos não fossem afetados, enquanto que um
indivíduo pobre defenderia uma maior tributação para os ricos e que essa parte do seu
rendimento fosse redistribuído para aqueles mais desfavorecidos.

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O pluralismo razoável é um facto das sociedades democráticas pela evidência da
diversidade de doutrinas.

3- Assim, com o objetivo de elaborarmos um acordo sobre os princípios de justiça, Rawls


propõe que nesta posição original, os indivíduos estivessem sob o designado véu de
ignorância, isto é, no momento da discussão e deliberação (hipotética) do contrato,
nenhum dos indivíduos conheceria a sua posição social atual ou futura, os seus talentos
naturais ou artificiais, as suas expectativas, a sua raça ou etnia, o género, a inteligência
ou a força; deste modo, sob um véu de ignorância, a posição original ao abstrair as
contingências, elimina posições vantajosas de negociação e permite que o acordo seja
equitativo e celebrado entre pessoas livres e iguais.
Considerando esta situação equitativa entre partes livres e iguais, é necessário
compreender como podem estas decidir os princípios de justiça que devem regular uma
sociedade justa, ou seja, como poderão esses agentes escolher uma conceção de justiça?
Que raciocínio devem aplicar nessa seleção?
Segundo John Rawls, os agentes deverão adotar uma regra que lhes indique qual a
conceção de justiça que proporcionará uma sociedade mais justa e mais equitativa, isto
é, uma sociedade que não permita um enorme desfasamento entre os mais favorecidos e
os menos favorecidos, visto que se não sabemos o que poderemos vir a ser nessa
sociedade futura, podemos calhar no grupo dos mais desfavorecidos, deveremos, então,
ser precavidos e cautelosos; ao mesmo tempo que essa sociedade não deverá pôr em
causa a liberdade individual de cada um em detrimento de uma igualdade social e
económica entre todos – como mais à frente será esclarecido na apresentação dos
princípios da justiça equitativa.
Deste modo, o que Rawls defende é que devemos aplicar a regra maximin, ou seja,
devemos “identificar o pior resultado de cada alternativa disponível e então adotar a
alternativa cujo pior resultado é melhor do que os piores resultados de todas as outras
alternativas”.
É, pois, uma regra que procura minimizar as possíveis perdas ao selecionar o melhor do
pior das alternativas possíveis ou, noutro, sentido, a maximizar os nossos interesses, ao
forçarmo-nos a escolher aqueles que são, de facto, os nossos interesses fundamentais
quando se trata de configurar a estrutura básica.

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Assim, ignorando as probabilidades do que nos poderá acontecer nessa sociedade e
tendo um certo receio ou aversão aos possíveis resultados negativos, o agente deve
escolher uma sociedade em que os mais desfavorecidos estão em melhores condições
que os mais desfavorecidos de outra sociedade, apesar desta apresentar melhores
condições para aqueles que são mais favorecidos.
Por exemplo, imaginemos que nos são apresentadas três sociedades (S1, S2 e S3) com
três pessoas (P1, P2 e P3), e que a distribuição de bens sociais (riqueza) é feita do
seguinte modo:

Pessoa 1 Pessoa 2 Pessoa 3

Sociedade 1 10 8 2

Sociedade 2 8 6 5

Sociedade 3 9 7 3

Na primeira sociedade, as pessoas 1 e 2 seriam bastantes favorecidas, enquanto a pessoa


3 seria bastante desfavorecida. Contudo, neste momento não existe qualquer problema,
porque esta abissal desigualdade, apesar de ser notória, não significa que tenha havido
uma injustiça. Na sociedade 2, os valores dos bens são quase iguais entre as três
pessoas, sendo que o pior são as pessoas 2 e 3 que apresentam 5 valores. Na sociedade 3
a desigualdade é menor que na sociedade 1, mas o pior das pessoas tem 3 valores de
bens sociais.
A questão para identificar qual sociedade deveria ser escolhida é: Dentro das
alternativas, qual é aquela em que o pior resultado é melhor que o pior das outras
alternativas? Sabendo que na Sociedade 2, o pior corresponde a 5 valores, e na
sociedade 1 corresponde a 2 valores e na sociedade 3 a 3 valores, então pela regra
maximin a sociedade que deverá ser escolhida é a sociedade 2.
Esta escolha tem duas implicações: devemos escolher a situação em que o pior que nos
poderia acontecer é melhor que em outras situações, como se fosse a escolha do melhor
dos piores mundos possíveis; e, sem segundo, implica que estamos a escolher que os
mais desfavorecidos tenham as melhores condições possíveis, mitigando e amenizando as
desigualdades sociais presentes na sociedade
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Formulada, assim, a regra maximin como orientadora deste processo de seleção de
conceções de justiça e sabendo que os agentes escolherão aquela em que os mais
desfavorecidos se encontram em melhor situação, a questão fundamental, atendendo à
conceção de justiça como equidade, é saber quais os princípios que devem determinar,
na estrutura básica da sociedade, os direitos e liberdades básicas e que princípios devem
regular a distribuição de benefícios sociais e económicos na mitigação da desigualdade
social.
O primeiro princípio será o da igual liberdade que afirma que “cada pessoa tem o direito
irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja
compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos”.
Isto é, o princípio que seria primeiramente formulado seria o de assegurar ou garantir a
todos os cidadãos de igual forma as liberdades básicas, como a liberdade de pensamento
e consciência, as liberdades políticas (direito de voto e de participação política), a
liberdade de associação, os direitos e liberdades assentes na integridade (física e
psicológica) da pessoa, os direitos e liberdades associados ao estado de direito, como o
direito à propriedade privada.
O segundo princípio, igualdade equitativa de oportunidades, é deduzido da conceção de
sociedade como sistema de cooperação entre cidadãos e da interpretação de que a
desigualdade económica e social dos cidadãos pode ser um impedimento a que aos mais
desfavorecidos não tenham acesso (prático e concreto) às liberdades básicas formuladas
no primeiro princípio.
Sobre estas duas razões, podemos argumentar que se a sociedade é um sistema de
cooperação, e não um conjunto de pessoas que perseguem os seus interesses pessoais
sem consideração com os interesses dos outros, então será aceitável (moral e
politicamente) que a orientação política de uma sociedade seja a de promover, o quanto
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possível, os interesses de todos, principalmente os bens primários essenciais .

A questão torna-se mais clara pela segunda razão, ou seja, quando a desigualdade social
não advém do mérito pessoal do indivíduo, mas quando é proporcionada pelo contexto
socioeconómico ou pelas características desses mesmo que não são da sua
responsabilidade ou mérito.
Quer isto dizer que quando nascemos, nascemos em determinadas condições, boas ou
más, que não são da nossa responsabilidade e, logo à partida, prejudicam ou beneficiam
o nosso sucesso pessoal sem que tenhamos tido qualquer participação voluntária neste
sentido.

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Os bens primários essenciais são as condições sociais necessárias para que os cidadãos
se consigam desenvolver de forma adequada e possam exercer as suas faculdades
morais, isto é, bens que os cidadãos necessitam como pessoas livres e iguais numa vida
plena, como os direitos e liberdades básicas, as liberdades de movimento e de livre
escolha, os poderes e prerrogativas de cargos e posições sociais, a renda e riqueza,
perspetivadas como necessárias para atingir objetivos pessoais, e as bases sociais de
autorrespeito. A esta aleatoriedade de condições e características, Rawls designa de
lotaria natural e, por não ter uma justificação moralmente válida, deve então ser
objetivo de uma sociedade diminuir estas desigualdades de forma a que todos possam
ter as mesmas oportunidades na persecução dos seus interesses pessoais.
Deste modo, o princípio de igualdade equitativa de oportunidades afirma que as
desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas segundo duas condições:
1) “devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de
igualdade equitativa de oportunidades” e
2) “têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (princípio
de diferença)”.
A primeira condição exige que todos deverão ter acesso aos cargos públicos e posições
sociais, isto é, que não haja uma discriminação de acesso que tenha por base a pessoa
em si, e, ainda, que todos deverão ter uma chance ou oportunidade equitativa de acesso
a esses cargos, por exemplo, aqueles que têm o mesmo nível de talento e a mesma
disposição para o usar, deverão ter as mesmas perspetivas de sucesso,
independentemente da sua classe social.
A segunda condição correspondente à justiça redistributiva, denominada princípio de
diferença, exige que a desigualdade, ao existir, deve beneficiar ao máximo os membros
menos favorecidos, de modo a criar condições para que tenham as mesmas
oportunidades de sucesso e não fiquem determinados pelas suas características
particulares ou pelas condições sociais e económicas em que nasceram (lotaria natural)
e pelas quais não têm nenhuma responsabilidade, ou seja, se o indivíduo não é
responsável pelas suas condições iniciais, então não deve ser afetado arbitrariamente
por algo que não é da sua responsabilidade.
Deste modo, por exemplo, o Estado deverá assegurar que o Ensino seja acessível a
todos, de modo a promover a mobilidade social e a minimizar os efeitos da lotaria
natural.

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Estes dois princípios, acima mencionados, vinculam-se ao debate da tradição política
sobre a relação e, possível conciliação, entre liberdade e igualdade, em que a primazia
do primeiro sobre o segundo fundamenta as posições liberais e libertárias (como é o caso
de Rawls e Nozick, respetivamente), e quando se atribui maior importância e prioridade
da igualdade em detrimento da liberdade, encontramos a conceção igualitarista de, por
exemplo, Karl Marx.
Neste sentido, Rawls, posicionando-se no liberalismo social, advoga o primado da
liberdade sobre a igualdade, ou na sua terminologia, a prioridade do primeiro princípio
sobre o segundo, visto que a garantia das liberdades individuais seriam a primeira das
exigências num hipotético contrato social, visto que os cidadãos se encontram em
sociedade primeiro como indivíduos e, depois, como coletivo. Assim, por exemplo,
segundo este primado, não podem ser negadas a certos grupos as liberdades políticas
pela justificação de que estas poderiam obstaculizar o crescimento económico da
sociedade.
Em resumo, Rawls a partir da experiência mental da posição original e do véu da
ignorância, em que imagina pessoas em igual condição a elaborarem um contrato sobre
os princípios políticos que deverão orientar a estrutura básica de uma sociedade justa,
deduz dois princípios: o princípio da igual liberdade, que afirma que todos deverão ter
os mesmos direitos e deveres, e o princípio equitativo de oportunidades, que afirma que
todos deverão ter as mesmas oportunidades de acesso a cargos públicos e que a
desigualdade económica, ao existir, deverá beneficiar os mais desfavorecidos, ou seja, a
redistribuição de riqueza deverá beneficiar os mais prejudicados na lotaria natural
(princípio da diferença).

1. Críticas gerais

Tema: Críticas
Justiça como equidade (John Rawls)
Como aprendemos, John Rawls através da experiência mental da posição original e do
véu de ignorância apresenta dois princípios de justiça: igual liberdade e igualdade
equitativa de oportunidades (incluindo o princípio da diferença).
Contudo, podemos apresentar algumas críticas, principalmente ao princípio da
diferença. O princípio da diferença considera que os mais desfavorecidos devem ser
ajudados pelos mais favorecidos através da redistribuição de riqueza, ou seja, estes
devem pagar mais impostos para que os outros possam ter as mesmas oportunidades.
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Mas esta situação poderá levar a uma desresponsabilização das pessoas mais
desfavorecidas, visto que, independentemente do seu esforço ou mérito, continuarão a
ser apoiadas financeiramente pelo Estado, o que poderá levar a um conformismo, ou
seja, podem deixar de trabalhar ou continuar a receber apoios sem pretenderem
trabalhar.
Em segundo lugar, esta situação pode criar a situação injusta em que aqueles que
trabalham e se esforçam para ter uma vida melhor são obrigados a financiar pessoas que
não se esforçam nem pretendem trabalhar.
Estas duas objeções podem ser mitigadas, por exemplo, aplicando maior rigor na
vigilância do Estado em relação àqueles que de facto merecem apoios e àqueles que
não. Contudo, este mecanismo não é suficiente para garantir de forma clara a justiça da
redistribuição de riqueza nem justificar moralmente a obrigação dos mais favorecidos
terem que, necessariamente, ajudar os mais desfavorecidos.
As objeções mais específicas e inconciliáveis com a teoria da justiça de John Rawls
foram formuladas pelo filósofo libertário Robert Nozick e pelo comunitarista Michael
Sandel, que iremos estudar.

2. Críticas de Robert Nozick


Robert Nozick é, politicamente, um libertário, quer isto dizer que advoga a maximização
dos direitos individuais e a minimização da intervenção do Estado, ou seja, a liberdade
de escolha, de livre mercado, de livre associação, entre outras liberdades individuais,
são prioritárias e invioláveis por outras pessoas ou pela intervenção do Estado e, nesse
sentido, o princípio único e regulador do Estado é o de assegurar que essas mesmas
liberdades individuais não são infringidas por terceiros, principalmente no âmbito da
segurança pessoal e da proteção da propriedade privada, o que caracteriza,
metaforicamente, o modelo deste Estado mínimo como guarda ou vigilante noturno.
Esta posição libertária é, desde logo, explícita no início do seu tratado político
(Anarquia, Estado e Utopia): “Indivíduos têm direitos. E há coisas que nenhuma pessoa
ou grupo podem fazer com os indivíduos (sem lhes violar os direitos). Tão forte e de tão
alcance são esses direitos que colocam a questão do que o Estado e seus servidores
podem, se é que podem, fazer.”
Por causa dos direitos individuais, que são invioláveis, como o direito à liberdade e à
propriedade, já referido no princípio de igual liberdade de John Rawls, Nozick considera
que nenhum outro princípio poderá pôr em causa essas liberdades, como acontece com o
princípio da diferença de Rawls.
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Ora, Nozick explica, se uma pessoa pelo seu esforço adquiriu legitimamente a sua
propriedade, então deverá ter total liberdade de controlar e dispor dela segundo os seus
interesses, e qualquer intervenção do Estado sobre essa mesma só poderá ser
considerada uma violação dos direitos individuais.
A violação de que Nozick nos fala relaciona-se com a tributação (cobrança de impostos),
em que:
1. Cobrar impostos significa retirar, sem autorização, uma parte do trabalho e do esfoço
de uma pessoa, que livremente decidiu trabalhar. Ora, se eu trabalhar 40 horas por
semana e o Estado retirar-me o rendimento de 5 horas através de impostos, não significa
isto que estou a trabalhar gratuitamente 5 horas? Ou, como Nozick diz, que estas 5 horas
são o mesmo que trabalho forçado ou mesmo escravidão, visto que estou a trabalhar
sem receber? A tributação é, como defende o filósofo, uma violação dos nossos direitos
individuais e, por isso, o segundo princípio de Rawls viola o seu primeiro princípio;
2. Para além da injustiça da tributação, Nozick considera que esta situação fica ainda
mais injusta quando têm que ser aqueles que trabalham a pagar mais impostos para

assegurar a existência daqueles que não trabalham. Não só os primeiros estão a ser
punidos por trabalharem, como estão a ser instrumentalizados, ou seja, usados pelo
Estado para fins que lhes são alheios, o que viola, novamente, a liberdade individual
(mesmo que o objetivo seja nobre e solidário, continua a violar o primeiro princípio).
Apresentadas estas duas críticas, Nozick apresenta uma alternativa à teoria de justiça
de Rawls, considerando que, se os impostos são injustos e que a redistribuição de
riqueza não deve punir os que trabalham nem beneficiar aqueles que não trabalham,
então a sociedade deverá ter um Estado que tenha apenas as mínimas competências
(Estado mínimo) para garantir a segurança da sociedade e os impostos, se existirem,
deverão apenas ser cobrados para financiar essa segurança e não para serem
redistribuídos pelos mais desfavorecidos, não violando, deste modo, os direitos
individuais.

3. Críticas de Michael Sandel


No caso de Sandel, o filósofo não discorda dos dois princípios de Rawls e considera- os
fundamentais para uma sociedade justa, contudo, considera que o procedimento
utilizado por Rawls (experiência mental da posição original e do véu de ignorância e a
regra maximin) não nos permite justificar os princípios de uma sociedade justa.

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Primeiro, Sandel considera que nós somos seres profundamente comunitários, isto é, a
nossa identidade, valores, aspirações, entre outras características que nos formam como
pessoas, estão enraizadas na sociedade em que vivemos, nos grupos que frequentemos,
na família que temos, por isso, abstrairmo-nos de todas essas características que nos
fazem humanos impossibilita que cheguemos a um consenso quanto a uma sociedade
justa, como defendeu Rawls na sua experiência mental.
Assim, a forma como devemos chegar a esses princípios só pode ser no diálogo e na
deliberação conjunta com as outras pessoas da nossa sociedade e nunca a partir de uma
reflexão solitária e abstrata ou mesmo nunca a partir de um cálculo matemático, como é
o caso da regra maximin.
Deste modo, o filósofo defende que só através deste diálogo com pessoas reais é possível
chegar a certos consensos fundamentais de uma sociedade justa, tais como:
1. Como somos seres comunitários e sociais, e não isolados do resto do mundo,
desejamos que a nossa sociedade garanta o mínimo de qualidade de vida de todos, nesse
sentido, o filósofo advoga o dever de solidariedade, ou seja, devemos ser solidários e
altruístas em relação aos outros membros da nossa sociedade, tendo como objetivo
apoiar aqueles que são mais desfavorecidos;
2. Por fim, a redistribuição de riqueza para os mais desfavorecidos e a cobrança mais
alta para os mais ricos, que é o segundo princípio de Rawls, não deve ser justificada pela
regra maximin, mas por uma orientação comunitária, isto é, se queremos uma sociedade
justa - e isto significa aumentar o sentido de pertença à nossa comunidade e diminuir a
segregação entre grupos e classes sociais - então o dinheiro dos impostos deverá ser
dirigido para investir em infraestruturas públicas, como as escolas, hospitais, meios de
transporte, entre outras fundamentais para uma sociedade menos desigual e com
igualdade de oportunidades.

Professora Adelaide Marques

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