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Alexandre Herculano e a escrita da História no conto “A Abóboda”1

Ana Nemi
Departamento de História EFLCH/UNIFESP

Este texto investiga os sentidos conferidos à Idade Média no século XIX e seu
papel na escrita da História, concentrando-se especialmente na Península Ibérica.
Neste sentido, destacou-se o conto “A Abóboda”, do historiador português Alexandre
Herculano (1810-1877), no qual o autor pretendeu contar aos portugueses sobre as
formas de legitimação da governação na virada do século XIV para o XV, no
entardecer da Idade Média, com a intenção de orientar a legitimação da governação
decimonônica portuguesa.

O século XIX, ou o maldito século, como se costuma figurá-lo, assistiu ao


desencantamento do mundo das rotinas, das convenções e das reencenações
cotidianas que havia marcado o mundo do chamado Antigo Regime. Os novos tempos
que se desenhavam indicavam vivências de transformação até então pouco
conhecidas, de possibilidades de construção sobre a realidade experienciada, de
expectativas acerca do mundo que se poderia construir, do contrato que se poderia
pactuar.2 Superadas as barreiras que confinavam a crítica ao âmbito privado da vida,
havia que encetar a ação pública e apontar os caminhos para um novo regime. 3 Na
Península Ibérica tal experiência veio marcada pela invasão napoleônica: a ausência
do Rei, a liderança popular na luta contra os invasores franceses e a possibilidade de
elaborar uma Constituição de caráter liberal e, em algum sentido, democrático, foram
acontecimentos que colocavam o mundo, literal e dramaticamente, de ponta cabeça. A
derrota de Napoleão trazia a possibilidade de construir uma nova nação para
1
O texto em questão teve uma primeira versão apresentada em simpósio da ANPUH, quando se
discutiu as especificidades ibéricas na elaboração da escrita da História. Aqui, o argumento é
desenvolvido a partir das proposições do português Alexandre Herculano. Cf. NEMI, Ana.
“Decadência e singularidade na Historiografia ibérica”, In: Anais do XIX Encontro Regional de
História da ANPUH – Poder, violência e exclusão na Teoria da História e na Historiografia. S. P.:
DH/FFLCH/FAPESP, 2008.
2
GRESPAN, Jorge L. S. A Revolução francesa e o Iluminismo. S. P.: Contexto, 2003; LEDESMA,
Manuel P. “La invención de la ciudadania moderna”, In: MARTÍN, Ó. (Coord.) Ciudadanos – El
nacimiento de la política en España (1808-1869). Madri: Fundación Pablo Iglesias, 2012.
3
KOSELLECK, R. Crítica e crise. R. J.: EDURJ/Contraponto, 1999.

1
portugueses e espanhóis também. Aos letrados da época coube a tarefa de preservar
certo “sentido de continuidade histórica” em meio ao turbilhão e às convulsões
sociais. À História caberia encontrar o caminho para a legitimação do Liberalismo na
Península, para o seu enraizamento, aos historiadores caberia inventariar e conhecer a
História nacional.4 Entre arquivos, museus e escolas que se deveria fundar, pode-se
afirmar um profundo desejo de fundar novas sociabilidades que pudessem substituir
aquelas vencidas pelos processos revolucionários da virada do século XVIII para o
XIX.5 Aos historiadores coube, também, repensar as experiências pré-capitalistas, e
entre estas destaca-se aqui a experiência medieval, e encontrar um sentido para a
História nacional que estabelecesse os nexos entre passado, presente e futuro. Trata-
se, especialmente, de pensar as relações entre razão e tradição 6, entre as luzes e as
brumas7, de observar as possibilidades de “civilizar” os “bárbaros”, de considerar se
os processos revolucionários indicavam a libertação dos homens dos grilhões da
opressão ou a construção de novas formas de opressão saídas da lógica capitalista de
produção. Se tais relações e questões marcaram o debate dos letrados na instigante
virada do século XVIII para o XIX, entrado o século XIX eram radicalizadas e
pautadas pelos novos atores sociais que cobravam seu lugar nos espaços públicos que
então se formavam e desenvolviam, nas tertúlias e praças, nos folhetos e nas reuniões,
permitidas ou não. Perscrutando as muitas dimensões que o movimento romântico
assumiu do ponto de vista político, entre o conservadorismo, a utopia passadista e a
proposta revolucionária8, cabe destacar neste texto, o papel da escrita da História na
conformação e enraizamento de um novo regime.
Ao longo do século XIX e entrado o XX, autores como Alexandre Herculano,
Almeida Garrett (1799-1854) e Oliveira Martins (1845-1894), em Portugal, e Joaquín
Costa (1846-1911), Ramón Menéndez Pidal (1869-1968) e José Ortega y Gasset
(1883-1955), na Espanha, enfrentaram o desafio de indicar as possibilidades ibéricas
no mundo contemporâneo. Mas nas duas nações peninsulares o nacionalismo cultural
da experiência alemã, em defesa da continuidade e da tradição como fundamentos da
constituição da soberania nacional, encontrou mais adeptos do que as teses herdeiras
4
MATOS, Sérgio C. Historiografia e memória nacional. Lisboa: Colibri, 1998.
5
SALIBA, Elias T. As utopias românticas. S. P.: Estação Liberdade, 2003.
6
GRESPAN, Jorge. “O Esclarecimento: ruptura ou tradição”, In: Revista de História, São Paulo, DH-
FFLCH/USP, 1997, número 136, pp.101-105.
7
NEMI, Ana, “A Guerra Civil espanhola e suas raízes decimonônicas: A nação entre as luzes e as
brumas”, In: MEIHY, José Carlos S. B. Guerra Civil espanhola – 70 anos depois. S. P.: EDUSP, 2011,
pp. 49-79.
8
LOWY, Michel. Romantismo e messianismo. S. P.: Perspectiva/EDUSP, 1990.

2
das experiências revolucionárias que prescindiam da tradição e supunham a ruptura
para a constituição da nação livre e soberana. Procedia-se, desta forma, a uma
aproximação temporal entre a experiência de uma tradição política medieval, que se
pretendia perscrutar, e a possibilidade de constitucionalização das liberdades
emanadas da noção de soberania nacional.9 É no âmbito desses debates que se
movimenta Alexandre Herculano; os contos que escreveu, e aqui nos ocuparemos de
um deles, “A Abóboda”, pretendiam contar a História de Portugal aos portugueses e
sobrelevar liberdades e soberanias pactuadas no período medieval tardio português.
O Absolutismo, para o pensamento liberal radical peninsular, era responsável
pela anulação da nobreza e dos municípios, assim como das liberdades medievais
consideradas constitucionais. Para José Ortega y Gasset, por exemplo, a unificação
precoce da Espanha teria impedido o desenvolvimento de uma minoria forte de
senhores a partir da vivência do feudalismo. 10 A absolutização precoce dos poderes do
Estado, no seu entender, abortara a experiência feudal de pluralismo territorial e
condenara a Espanha à invertebração histórica. No mesmo sentido, o português
Almeida Garrett, no texto doutrinário Portugal na balança da Europa, escrito entre
1825 e 1830, procurava encontrar na história da Europa, e não apenas de Portugal, os
caminhos para sustentar a possibilidade de uma experiência constitucional em seu
país.11 Garrett considerava que a luta entre tirania e liberdade sempre existira e que a
humanidade haveria sempre que estar alerta em defesa da liberdade, não se tratava,
pois, de uma dificuldade ibérica ou peninsular, mas de uma urgência da humanidade.
A crise que o autor enxergava nos anos 20 e 30 do XIX não era apenas peninsular,
mas especialmente européia, “uma crise da Europa, de todo o mundo civilizado”. 12
Sua origem? Nos primórdios da primeira modernidade, no momento mesmo da
expansão marítima européia. Esse momento, em que o Ocidente da Europa começava
a civilizar-se, foi, também, o momento em que a liberdade desfalecia diante do
crescimento dos poderes dos papas, imperadores e monarcas.13
9
ANTÓN, España y las Españas. Madri, Alianza Editorial, 1997, p.429. O autor está se referindo
apenas à Espanha, permito-me, no entanto, estender para Portugal o argumento.
10
ORTEGA Y GASSET, José. España invertebrada. Madri: Revista de Occidente en Alianza
Editorial, 2001.
11
GARRETT, Almeida. Portugal na balança da Europa –Do que tem sido e do que ora lhe convém
ser na nova ordem de coisas do mundo civilizado. Lisboa: Livros Horizonte, 2005, p. 13. As fontes que
Garrett utiliza para ancorar suas afirmações são as Crônicas de D. Duarte e D. Afonso V, de Duarte
Nunes Leão, e os textos do relator das Cortes de Cádis reunidos por Robertson. Nos dois casos, Garrett
não cita ano e nem local de edição.
12
GARRETT, Almeida, op. Cit., p. 17.
13
IDEM, p. 22. As fontes que Garrett utiliza para ancorar suas afirmações são as Crônicas de D.
Duarte e D. Afonso V, de Duarte Nunes Leão, e os textos do relator das Cortes de Cádis reunidos por

3
A liberdade é, nesse contexto, o fundamento da civilização e da humanidade, a
ausência dela provocava a crise da Europa e a quebra do equilíbrio entre as suas
nações. As revoluções que assolaram a Europa da virada do século XVIII para o XIX
indicavam, no pensamento de Almeida Garrett, a explosão de uma indignação pública
que buscava a regeneração da civilização por meio da reconquista da liberdade.
Observe-se que, para o autor, a revolução não se pauta pela ruptura, mas pela
retomada da liberdade perdida em meio ao despotismo dos monarcas e do clero
durante a primeira modernidade. A reação popular contra Napoleão Bonaparte
justificava-se, no mesmo sentido, porque o general traíra a causa da liberdade,
prometera a libertação dos povos e acabara impondo novos governos com violência e
supressão das liberdades civis. A derrota francesa, no entanto, não trouxera o império
da lei, da justiça e da liberdade como se esperava, por toda a Europa instalaram-se
governos despóticos. Escrevendo seu Memorando, como Garrett denominou seu
texto, o autor pretendia chamar a atenção dos europeus para a urgência da luta pela
liberdade. A preocupação em indicar o quanto a crise peninsular era também uma
crise européia remete, por sua vez, à preocupação política em demonstrar o papel que
Portugal poderia ainda jogar no equilíbrio europeu. Ecos da experiência da chamada
“decadência”14, da impossibilidade de construir a soberania nacional independente das
alianças com as nações economicamente poderosas da Europa na época
contemporânea. Instrumento de reflexão transformado em categoria de análise
histórica ao longo do século XIX, a idéia de “decadência” 15 permitiu construir uma
axiologia do percurso histórico peninsular e das áreas coloniais sob sua influência.
Neste sentido, o estudo empírico dos objetos da natureza, das experiências humanas e
suas instituições por meio de classificação, descrição e busca de regularidades
singulares, foi o caminho que se propuseram os homens de letras no exercício
demiúrgico de regeneração das nações.
É neste sentido, ainda, que o interesse pelas tradições medievais povoou os
textos dos acadêmicos europeus do século XIX. No caso das nações peninsulares, o
estudo das tradições políticas medievais, conforme sugeriu Almeida Garrett, e
também outros autores como Antero de Quental 91842-1891) e Oliveira Martins,

Robertson. Nos dois casos, Garrett não cita ano e nem local de edição.
14
Para um estudo do tema da “decadência” na historiografia portuguesa: PIRES, António M. B.
Machado. A idéia de decadência na geração de 70. Ponta Delgada: Instituto Universitário dos Açores,
1980. Na Espanha: BERNECKER, Walther L. España entre tradición y modernidad. Madri: Siglo
Veintiuno de España Editores, 1999.
15
HERMAN, Arthur, A idéia de decadência na História ocidental, R. J.: Record, 1999.

4
deveria ser retomado para fundamentar o enraizamento contemporâneo do liberalismo
e, por conseguinte, ancorar as possibilidades de construção de uma soberania
nacional. Republicanos como Teófilo Braga (1843-1924), representante da geração
portuguesa de 1870, dedicaram-se também à recolha e publicação de contos
portugueses. Para as nações de língua alemã, as releituras das tradições medievais
sofreram forte inflexão especialmente no terreno da cultura, mas sua
instrumentalização política também foi inequívoca. Não há dúvida de que as muitas
“sensibilidades românticas do século XIX, adquiriram um papel fundador de ‘raízes’,
que faziam dos países, seres com legitimidade ‘natural’” 16, a perscrutação dessas
sensibilidades originais coube aos historiadores e aos acadêmicos preocupados com os
sentidos, conteúdos e significados possíveis de suas nações no mundo ocidental.
Eram, neste sentido, agentes que agiam sobre a história que viviam e faziam e que
dela se utilizavam quando escreviam e manifestavam, desta forma, suas intenções
políticas.17 O português Alexandre Herculano, que juntamente com Garrett envolveu-
se na legitimação do projeto cartista de D. Pedro IV, é figura importante no processo
português de fazer coincidir o que se considerava ser a existência da nação com a sua
essência “consubstanciada na alma nacional e revelada na cultura popular, nos
monumentos, nos costumes, na memória, enfim, na História”18.
Formado por padres oratorianos e freqüentador dos salões da Marquesa de
Alorna, ao passo que no exílio conhecia e estudava em bibliotecas, familiarizando-se
com as teses de Guizot e Ranke19 e observando o crescimento do público leitor na
Europa, Alexandre Herculano acreditou na tese iluminista da formação de cidadãos
em escolas e a partir da História ensinada. Posicionou-se, assim, publicamente em
favor da possibilidade de “civilizar” os “bárbaros”, as multidões que invadiram a cena

16
COLI, Jorge. "O nacional e o outro”, In: ANDRADE, Mário de. Missão de pesquisas folclóricas. S.
P.: Sesc/SP, Prefeitura da cidade de São Paulo, Centro Cultural São Paulo, 2006, p. 130.
17
KOSELLECK, R. Futuro passado – contribuição á semântica dos tempos históricos. R. J.:
Contraponto, 2006.
18
CATROGA, Fernando, “Alexandre Herculano e o Historicismo Romântico”, In: TORGAL,
MENDES & CATROGA, História da História em Portugal – séculos XIX-XX, volume I, Lisboa:
Temas & Debates, 1998, p. 46.
19
Não é possível, no escopo deste capítulo, aprofundar as aproximações e dissonâncias entre os
historiadores do século XIX, especialmente os românticos da primeira metade do século, com os quais
Herculano seguramente dialogou por meio de suas leituras e de seu trabalho junto à Biblioteca da
Ajuda. Destaco, no entanto, Ranke e Guizot no que diz respeito à historicidade de elementos políticos
de representação e de legitimação dos governos; RANKE, L. Von Pueblos y estados en la historia
moderna. Cidade do México: Fondo de Cultura, 1986; GUIZOT, F. A História da origem do governo
representativo na Europa. R. J.: Topbooks, 2008. Quanto a estudos mais abrangentes sobre o tema
destaco: GOOCH, G. Historia y historiadores en el siglo XIX. Cidade do México: Fondo de Cultura,
1977; GAY, P. O estilo na História. S. P.: Cia das Letras, 1990.

5
pública em meio e após os processos revolucionários. Nosso autor se movimentou
entre a construção da História como disciplina no século XIX, para a qual urgiam
arquivos e documentação catalogada, bibliotecas, monumentos e escolas, e a narrativa
romântica da História, instrumento político e cultural em uma sociedade cujos hábitos
de leitura iam se formando junto a uma imprensa que se tornava verdadeiramente
periódica. Movimentou-se, portanto, entre o estatuto de verdade, pretendido pelos
primeiros narradores da História do século XIX, e o gosto do público que lhe
facultava a liberdade da experiência literária para o ensino da História, por paradoxal
que possa parecer. Em História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em
Portugal, Herculano afirmou que foi levado por suas propensões literárias para os
estudos históricos.20 Ou teriam sido seus desejos de contar aos portugueses sua
História que o teriam levado para as narrativas literárias? Melhor pensar essas duas
dimensões das narrativas de Herculano, histórica e literária, imbricadas em sua ação
pública em favor do liberalismo. Nas duas dimensões, sua atuação junto a arquivos e
bibliotecas em Portugal foi fundamental. Herculano foi Bibliotecário-Mor de Sua
Majestade El-Rei, na Biblioteca da Ajuda em Lisboa, entre 1839 e 1877, como tal
atuava como inspetor das bibliotecas da Ajuda, das Necessidades e do Real Gabinete
de Física. Assim, em meio aos arquivos que organizava e nos quais estudava,
recolhia documentos e mapas, buscava livros extraviados, organizava compras de
coleções por meio de troca ou venda de livros duplicados, catalogava fundos. 21 Dessa
forma, atuando como periodista e bibliotecário, formulou uma teoria da História e
escreveu História para os portugueses, em narrativas históricas e literárias.
Na filosofia da História sugerida por Herculano atuam dois princípios
norteadores, a liberdade e a desigualdade, princípios que circunscrevem e explicam as
institucionalidades possíveis, as escolhas políticas e as representações culturais. No
mesmo sentido, o autor advogava a constante existência de dois ciclos fundadores da
História de Portugal, um de ascensão e outro de decadência. Em diálogo profícuo com
as imbricações possíveis entre Iluminismo e Romantismo, dado que sugere um
“sentido” para a História e, ao mesmo tempo, supõe singularidades que apontam para
o Voltgeist alemão, Herculano construiu uma narrativa sobre a História de Portugal na

20
HERCULANO, A. História da Origem e do Estabelecimento da Inquisição em Portugal.
eBookLibris, disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inquisicao.html. Acesso em Agosto
de 2012.
21
SANTOS, Mariana A. M. Alexandre Herculano e a Biblioteca da Ajuda. Coimbra: Coimbra Editorial
Limitada, 1965, Separata de O Instituto, Volume CXXVII.

6
qual se destacavam um profundo desejo de secularizar e historicizar o
providencialismo, representação recorrente da aventura portuguesa especialmente
emblemada no milagre de Ourique, e um imperativo de ação cívica contra o ultra-
montanismo que via fortalecer-se em meio aos esforços de enraizamento do
liberalismo na península.
O termo “decadência”, pensado no século XIX como categoria capaz de
explicitar a experiência histórica dos povos, adquire aqui grande importância. O
fortalecimento do poder absolutista da monarquia e o estabelecimento das normas
tridentinas na península teriam marcado o início do ciclo moderno de decadência
portuguesa. É esta interpretação da construção das instituições modernas como traição
às liberdades usurpadas pelo poder absoluto e pelo Concílio de Trento que o levou a
militar fortemente pela desamortização dos bens eclesiásticos e pelo casamento civil.
Note-se que Herculano ancora-se nos evangelhos para resgatar um sentido
civilizatório do catolicismo pré-tridentino e advogar uma significação para a liberdade
e a fraternidade de caráter eterno e universal: um humanismo fundamental. Mas
apóia-se, também, em Herder, para afirmar que não existe natureza humana universal,
mas diversidades de experiências, espíritos e povos: uma circunstância diferencial. A
retomada das instituições municipais ibéricas de origem tardo-medieval e sua
adaptação aos ventos ilustrados oitocentistas deveria ser o fundamento das novas
liberdades. O universal seria o sentido da liberdade e da fraternidade que, na sua
interpretação, tinha origem nas municipalidades medievais e poderia ser lido nos
evangelhos. Mas como ele define historicamente essa liberdade desejada e cujo
enraizamento seria instrumento precípuo para o enfrentamento da decadência? É o
que pretendemos discutir a partir do conto “A Abóboda”.
O conto A Abóboda (1401) faz parte de uma série a partir da qual o autor
pretendeu recontar a História de Portugal, para desta forma e de acordo com os
sentidos do Romantismo partilhado por ele, edificar as bases para o entendimento das
possibilidades do enraizamento do Liberalismo na Península. Tratam-se de contos
escritos originalmente para a revista O Panorama, fundada em 1837 pela Sociedade
Propagadora dos Conhecimentos Úteis e dirigida pelo próprio Herculano até 1839.
Em 1851, os contos foram reunidos em livro editado pela Bertrand. O conto do qual
nos ocupamos aqui foi escrito a partir de documentação que o autor levantou junto ao

7
convento da Batalha e publicado em O Panorama em 1839.22 A Abóboda reconta
parte da história da construção da edificação hoje conhecida como Convento da
Batalha (originalmente Convento de Santa Maria da Vitória), ordenada por D. João I
em agradecimento à Virgem Maria pela vitória de Aljubarrota em 1385, e realizada
entre 1386 e 1517. A história, conforme a narrativa de Herculano, sugere os
conteúdos de legitimação da governação de D. João I de Avis em relação aos seus
vassalos e àquilo que Herculano denomina de “povo”. Assim, se de um lado
encontramos o historiador que escreve uma narrativa a partir da documentação
pesquisada e, neste caso, inventariada, de outro lado está o romântico que se permite
narrar livremente em função de suas propensões literárias, mesmo quando afirma as
reflexões de certo autor de antiga crônica que fielmente transcreve como verídica
histórica.
O conto destaca o ano da finalização da construção da abóboda central, uma
cobertura côncava apoiada em contrafortes com naves laterais, e se concentra no
debate sobre os caminhos tomados para sua consecução em função da troca do Mestre
responsável pela edificação. O ano é 1401, quando D. João I visitou o Convento no
dia de Reis, segundo crônicas consultadas pelo autor no referido Convento.
Herculano construiu sua narrativa a partir dos relatos e crônicas sobre o desenho
original, feito por Mestre Affonso Domingues, e os resultados da edificação da
abóboda por Mestre Ouguet, um irlandês que teria substituído o primeiro, acometido
de cegueira. A lenda, no entanto, segundo relatos consultados por Herculano, conta
que foi Mestre Affonso quem concluiu a obra. Isso em função dos registros que o

OLIVEIRA, Larissa C. Alexandre Herculano e a invenção do Portugal Contemporâneo. Guarulhos:


22

EFLCH/UNIFESP, 2012, Monografia.

8
próprio Cego deixou de si nas pedras que compõem a edificação.

A Abóboda do capítulo do Convento da Batalha

A Abóboda divide-se em cinco partes: “O Cego”, na qual Affonso Domingues


é apresentado a partir de um diálogo com o Prior Fr. Lourenço Lamprêa que
informava a próxima chegada do Rei D. João I para o dia de Reis, e também no qual o
Mestre Cego enuncia sua tristeza por ter sido afastado da obra do Convento por ele
originalmente desenhado; “Mestre Ouguet”, na qual o narrador nos descreve a
chegada do Rei e suas qualidades e, também, apresenta o Mestre irlandês que
sucedera Mestre Affonso na construção do Mosteiro e que, em meio às dificuldades
manifestadas para a execução do trabalho, apresenta visão negativa sobre os
portugueses e admite ter feito alterações nos desenhos originais de Mestre Affonso;
“O Auto”, na qual se realiza o Auto de adoração dos reis e se percebe a agitação do
povo e a intempestiva reação de Mestre Ouguet quando a Abóboda do capítulo que
vinha construindo caiu 24 horas após ser finalizada; “Um Rei Cavalleiro”, na qual D.

9
João I procura compreender os motivos da queda da Abóboda indagando
responsabilidades de Mestre Ouguet e de Mestre Affonso e conclui pela necessidade
do Cego retomar o seu desenho original e finalizar a Abóboda do capítulo, atitude que
permite a Herculano elaborar os sentidos da liberdade e da soberania historicamente
construídas em Portugal; e, por fim, “O Voto Fatal”, na qual Mestre Affonso retoma
seu lugar na condução da construção da Abóboda e realiza o voto fatal de sua vida,
posto que edificaria a Abóboda e morreria embaixo dela deixando-a forte como até
hoje se encontra.
Destacarei aqui três momentos especialmente interessantes para os objetivos
deste texto, dois relacionados às reações do cego Mestre Affonso Domingues e outro
à descrição da chegada de D. João I ao Convento. Cabe ler alguns dos trechos23:
Na primeira parte, “O Cego”, quando o Prior Fr. Lourenço Lamprêa se
encontra com o Cego, Mestre Affonso Domingues, e procura convencê-lo do apreço
que o Rei D. João I teria por ele após queixas do Cego:

"De merencorio humor estaes hoje:--disse o prior sorrindo.--Nao


so eu vos amo e venero: elrei me fala sempre de vos em suas cartas.
Nao sois cavalleiro de sua casa? E a avultada tenca que vos concedeu
em paga da obra que tracastes, e dirigistes, em quanto Deus vos
concedeu vista, nao prova que nao foi ingrato?"
"Cavalleiro!?"--bradou o velho--"Com sangue comprei essa honra!
Comigo trago a escriptura."--Aqui mestre Affonso, puxando com
a mao tremula as atacas do gibao, abriu-o e mostrou duas largas
cicatrizes no peito.--"Em Aljubarrota foi escripto o documento
a ponta de lanca por mao castelhana: a essa mao devo meu foro,
que nao ao Mestre d'Aviz. Ja la vao quinze annos! Entao ainda
estes olhos viam claro, e ainda para este braco a acha d'armas
era brinco. Elrei nao foi ingrato, dizeis vos, veneravel prior,
porque me concedeu uma tenca!?--Que a guarde em seu thesouro;
porque ainda as portas dos mosteiros e dos castellos dos nobres
se reparte pao por cegos e por aleijados."
(…)
"Pois sabei, reverendo padre,--proseguiu o architecto, atalhando
o impeto erudito do prior,--que este mosteiro, que se ergue diante
de nos, era a minha Divina Comedia, o cantico da minha alma:
concebi-o eu; viveu comigo largos annos, em sonhos e em vigilia:
cada columna, cada mainel, cada fresta, cada arco era uma pagina

23
Os contos estão disponíveis no site da Biblioteca Nacional de Portugal Digital, as citações de “A
Abóboda” encontram-se em: http://www.escolasesc.com.br/public/files/45.pdf. Acesso em Agosto de
2012. Foi mantida a grafia original.

10
de cancao immensa; mas cancao que cumpria se escrevesse em marmore,
porque so o marmore era digno della: os milhares de lavores que
tracei em meu desenho eram milhares de versos; e porque ceguei
arrancaram-me das maos o livro, e nas paginas em branco mandaram
escrever um estrangeiro! Loucos! Se os olhos corporaes estavam
mortos, nao o estavam os do espirito. O estranho a quem deram
meu cargo nao me entendia, e ainda hoje estes dedos descobriram
nessa pedra que o meu alento nao a bafejara. Que direito tinha
o Mestre d'Aviz para sulcar com um golpe do seu montante a face
de um archanjo que eu creara? Que direito tinha para me espremer
o coracao debaixo dos seus capatos de ferro? Dava-lh'o o ouro que
tem dispendido? O ouro! ... Nao! OMeslred'Aviz sabe que o ouro
e vil; so nobre e puro o genio do homem. Enganaram-no: vassallos
houve em Portugal, que enganaram seu rei! Este edificio era meu;
porque o gerei; porque o alimentei com a substancia de minha
alma; porque eu necessitava de me converter todo nestas pedras
pouco a pouco, e de deixar, morrendo, o meu nome a sussurrar
perpetuamente por essas columnas, e por baixo dessas arcarias.
E roubaram-me o filho da minha imaginacao, dando-me uma tenca!...
Com uma tenca paga-se a gloria e a immortalidade? Agradeco-vos,
senhor rei, a merce!... sois em verdade generoso ... mas o nome
de mestre Ouguet enredar-se-ha no meu, ou talvez sumira este
no brilho de sua fama mentida..."

Às tentativas do Prior em convencer o Cego do apreço em que lhe tinha o Rei,


mesmo tendo-lhe afastado da consecução da obra por ele desenhada em função da
cegueira, Mestre Affonso mostra-se mais e mais indignado. À afirmação de que o
apreço do rei se podia provar pela tença que havia sido concedida ao Mestre pelo Rei
em função dos serviços prestados inicialmente na obra e que o tornara cavaleiro da
Casa Real, o Cego afirmava impulsiva e fortemente que comprou a honra com sangue
e que a escritura estava nas cicatrizes do seu peito resultantes das lutas em
Aljubarrota. O foro do Mestre, portanto, fora conseguido em luta, e não por bondade
do Mestre de Avis, e também por isso a tença poderia ser devolvida se ao Cego fosse
também devolvida a honra de finalizar a obra que idealizara, a sua Divina Comédia
que fora entregue a outro, e pior, a um estrangeiro quando só um português poderia
compreender das homenagens e histórias que se riscariam nas pedras do Convento da
Batalha. O Mestre acometido pela cegueira opõe ouro a gênio e nobreza, e Herculano,
por meio de suas palavras, instrui um debate que povoou os textos dos letrados
portugueses no XIX: o heroísmo que pautou a ação dos portugueses na conquista da
independência da nação e do Ultramar teria afastado os portugueses das hostes

11
industriais, mais racionalistas e voltadas para o mercado? Em A Abóboda o autor nos
apresenta um português, Mestre Affonso, que parece conduzir a narrativa com seus
ditos e suas ações, mas é o narrador do texto quem nos descreve os portugueses que se
sentiam parte da obra que vinha sendo edificada, conforme o próximo trecho
destacado, e deixando dúvida sobre qual a dimensão do Voltgeist português que
Herculano pretendia sobrelevar. A construção da nação e sua legitimação na história
passada é projeto político de governos e grupos políticos do século XIX. Artesãos
estrangeiros nesta Idade Média tardia eram bem mais comuns do que o conflito
fabulado por Herculano permite afirmar. O Mestre Cego talvez de fato tenha se
incomodado com sua substituição e se preocupado em gravar seu nome nas pedras do
Convento, mas talvez não porque se considerava português no sentido atribuído ao
termo pelo século XIX.
Na segunda parte do conto, “Mestre Ouguet”, o narrador nos apresenta os
sussurros do “povo” avisando da chegada do Rei, ao mesmo tempo em que nos
permite entrever seu entendimento sobre a ação deste povo:

“Foi o caso: quando a cavalgada, de que fizemos mencao no fim


do antecedente capitulo, vinha descendo a encosta sobranceira a
planicie do mosteiro, entre o povo que estava dentro da igreja,
impaciente ja pela demora do auto, comecou-se a espalhar um sussurro,
que cada vez crescia mais: o motivo delle nao era facil sabe-lo:
nenhuma novidade occorrera; ninguem tinha entrado ou saido. De
repente toda aquella multidao se agitou, remoinhou pela igreja,
e principiou a borbulhar pelo portal fora, como por bico de funil
o liquido deitado de alto. Tinham sabido que elrei chegava, e
todos queriam ve-lo descalvagar, porque D. Joao I, plebeu por
heranca materna, nobre por ser filho do D. Pedro I, rei eleito
por uma revolucao, e confirmado por cincoenta victorias, era o
mais popular, o mais amado, e o mais acatado de todos os reis
da Europa. Vinha montado em uma possante mula, e assim mesmo em
outras os fidalgos e cavalleiros de sua casa. Trazia vestida sobre
a cota uma jornea de veludo carmesim, monteira preta, e nebri em
punho, em maneira de cacada. Chegando a porta do mosteiro, onde
o esperava ja Fr. Lourenco com parte da communidade, apeou-se de
um salto, e com rosto risonho e a mao no barrete, agradeceu sua
cortezia e amor aos populares, que gritavam apinhados a roda delle:
--"viva D. Joao I de Portugal: morram os castelhanos!"--grito
absurdo, mas semelhante aos vivas de todos os tempos; porque o
povo, bem como o tigre, mistura sempre com o rugido de amor o
bramido que revela a sua indole sanguinaria.”

12
Uma multidão que se movimenta e parece falar, a se espalhar em conjuntos
que se complementam e ocupam espaços sem, no entanto, que se definam sujeitos,
mas o que provoca tamanha movimentação a ponto do transbordamento da Igreja é a
chegada do Rei: plebeu por herança materna, portanto, na construção de Herculano,
talvez alguém bem próximo destas gentes sem rosto que se movimentam na cena
narrada; mas nobre também, o que lhe faculta o exercício da mesma nobreza em
guerra e certamente justifica seus feitos em armas. Trata-se de Rei eleito, ungido,
portanto, pela vontade deste povo que se movimenta na cena, ou seria dos nobres que
em vassalagem com ele lutaram em Aljubarrota? Herculano parece querer apontar
alguma circularidade entre poderes dos nobres e legitimidade em nome da nação: é o
Rei mais amado, mais popular e mais acatado, além de tudo confirmado por cinqüenta
vitórias. Conteúdos de legitimação da Monarquia Medieval que Herculano parecia
querer trazer para o século XIX, momento em que as críticas à Monarquia Bragantina
foram especialmente radicais.24 Mas observe-e que o mesmo povo que é chamado a
legitimar a ação pública do Rei D. João I, o primeiro Mestre de Avis, é também
aquele cujo caráter tempera amor e índole sanguinária. Desta forma, a violência da
nobreza e dos vassalos ungidos pelo Rei justifica-se e é aceitável, a do povo não. É
possível, desta forma, supor uma leitura das liberdades tardo-medievais construídas
nas relações de vassalagem que podem supor violência a partir da ação guerreira da
nobreza, mas jamais do povo, cujo lugar na hierarquia social parece manter-se
circunscrito, considerando-se o desejo do nosso autor de propor um liberalismo
histórico para Portugal a partir das histórias narradas nos seus contos.
Na quarta parte, “Um Rei Cavalleiro”, o Rei manda chamar o Cego Mestre
Affonso, após conversar com homens de sua Corte e do Mosteiro sobre a queda da
Abóboda do capítulo, e lhe solicita que retome os trabalhos dos quais havia sido
afastado por cegueira.

"Dom donzel, onde e que esta elrei?"--dizia Affonso Domingues ao


pagem, caminhando com passos incertos ao longo do vasto aposento.
D. Joao I, que ouvira a pergunta, respondeu em vez do pagem:
"Agora nenhum rei esta aqui, mas sim o Mestre d'Aviz, o vosso
antigo capitao, nobre cavalleiro de Aljubarrota."
"Beijo-vos as maos, senhor rei, por vos lembrardes ainda de um
Destaco e agradeço aqui os debates conduzidos em conjunto com a colega medievalista Neri de
24

Barros em curso de pós-graduação ministrado junto ao IFCH/UNICAMP.

13
velho homem de armas, que para nada presta hoje. Vede o que de mim
mandaes; porque de vossa ordem aqui me trouxe este bom donzel."
"Queria ver-vos e falar-vos; que de coracao vos estimo, honrado
e sabedor architecto do mosteiro de Sancta Maria."
"Architecto do mosteiro de Sancta Maria, ja o nao sou; vossa
merce me tirou esse encargo: sabedor, nunca o fui, pelo menos
muitos assim o creem, e alguns o dizem: dos titulos que me daes
so me cabe hoje o de honrado; que esse, merce de Deus, e meu, e
fora infamia rouba-lo a quem ja nao pode pegar em um montante
para defende-lo."
"Sei, meu bom cavalleiro, que estaes mui torvado comigo por dar
a outrem o cargo de mestre das obras do mosteiro: n'isso cria
eu fazer-vos assignalada merce. Mas venhamos ao ponto: sabeis
que a abobada do capitulo desabou hontem a noite?"
"Sabia-o, senhor, antes do caso succeder."
"Como e isso possivel?!"
"Porque todos os dias perguntava a alguns desses poucos obreiros
portugueses que ahi restam, como ia a feitura da casa capitular:
no desenho della pozera eu todo o cabedal de meu fraco ingenho,
e este aposento era a obra prima de minha imaginacao: por elles
soube que a traca primitiva fora alterada, e que a junctura das
pedras era feita por modo diverso do que eu tinha apontado:
prophetisei-lhes entao o que havia de acontecer. E--accrescentou
o velho com um sorriso amargo--muito fez ja o meu successor em
por tal arte lhe por o remate, que nao desabasse antes das vinte
e quatro horas."
"E tinheis vos por certo que se vossa traca se houvera seguido,
essa desmesurada abobada nao viria a terra?"
"Se estes olhos nao tivessem feito com que eu fosse posto de
banda como uma carta de testamento antiga, que se atira, por
inutil, para o fundo de uma arca, a pedra do fecho dessa abobada
nao teria de vir esmigalhar-se no pavimento antes de sobre ella
pesarem muitos seculos; mas os de vosso conselho julgaram que
um cego para nada podia prestar."
"Pois se ousaes levar a cabo vosso desenho, eu ordeno que o facaes,
e desde ja vos nomeio de novo mestre das obras do mosteiro, e
David Ouguet vos obedecera."
"Senhor rei--disse o cego, erguendo a fronte, que ate alli tivera
curvada:--vos tendes um sceptro e uma espada; tendes cavalleiros
e besteiros; tendes ouro e poder: Portugal e vosso, e tudo quanto
elle contem, salvo a liberdade de vossos vassallos: nesta nada
mandaes. Nao!... vos digo eu: nao serei quem torne a erguer essa
derrocada abobada! Os vossos conselheiros julgaram-me incapaz
d'isso: agora elles que a alevantem."
As faces de D. Joao I tingiram-se do rubor do despeito.
"Lembrae-vos, cavalleiro,--disse elle--de que falaes com D. Joao

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I."
"Cuja coroa--acudiu o cego--lhe foi posta na cabeca por lancas,
entre as quaes reluzia o ferro da que eu brandia. D. Joao I e
assaz nobre e generoso, para nao se esquecer de que nessas lancas
estava escripto:--os vassallos portuguezes sao livres."
"Mas--tornou elrei--os vassallos que desobedecem aos mandados
daquelle em cuja casa tem acostamento[3], podem ser privados
de sua moradia..."
"Se dizeis isso pela que me destes, tirae-m'a; que nao vo-la pedi
eu. Nao morrerei de fome; que um velho soldado de Aljubarrota
achara sempre quem lhe esmole uma mealha; e quando haja de morrer
a mingua de todo humano soccorro, bem pouco importa isso a quem ve
arrancarem-lhe, nas bordas da sepultura, aquillo por que trabalhou
toda a vida, um nome honrado e glorioso."
Dizendo isto, o velho levou a manga do gibao aos olhos bacos,
e embebeu nella uma lagryma mal sustida. Elrei sentiu a piedade
coar-lhe no coracao comprimido de despeito, e dilatar-lh'o
suavemente. Uma das dores d'alma, que em vez de a lacerar a consolam,
e sem duvida a compaixao.
"Vamos, bom cavalleiro,--disse elrei pondo-se em pe--nao haja
entre nos doestos. O architecto do mosteiro do Sancta Maria vale
bem o seu fundador! Houve um dia em que nos ambos fomos pelejadores:
eu tornei celebre o meu nome, a consciencia m'o diz, entre os
principes do mundo, porque segui avante por campos de batalha;
ella vos dira tambem que a vossa fama sera perpetua, havendo
trocado a espada pela penna, com que tracastes o desenho do grande
monumento da independencia e da gloria desta terra. Rei dos homens
do acceso imaginar, nao desprezeis o rei dos melhores cavalleiros,
os cavalleiros portuguezes! Tambem vos fostes um delles; e
negar-vos-heis a proseguir na edificacao desta memoria, desta
tradicao de marmore, que ha-de recordar aos vindouros a historia
de nossos feitos?”

Em primeiro lugar é de se destacar o início da conversa a partir dos laços


presentes em Aljubarrota: não se tratava do Rei conversando com o Cego, mas o
Mestre de Avis, era o antigo capitão que queria falar ao arquiteto de Santa Maria.
Indagado sobre se sabia que a abóboda do capítulo havia caído na noite anterior,
mestre Affonso é certeiro: sabia-o com antecedência porque fora informado de que
Mestre Ouguett alterara seus desenhos primitivos e vinha juntando as pedras de
maneira diferente daquela sugerida pelo Cego. Ante a certeza do Cego de que o
cumprimento do seu desenho original garantiria que a abóboda não cairia, o Rei lhe
ordena que leve a cabo seu desenho, mas Mestre Affonso lhe ressalva a ordem: o Rei

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podia ter cetro, espada, ouro, poder, cavaleiros e besteiros, mas a liberdades dos
vassalos ele não tinha e nela não podia mandar. Que aqueles que o consideraram
incapaz erguessem a abóboda. Mas nesse momento, o Mestre de Avis invocou sua
soberania Real para lembrar ao cavaleiro cego com quem falava. O Cego não
titubeou: a Coroa que ostentava D. João I fora-lhe posta pelas lanças dos que lutaram
com ele, inclusive a sua, onde vinha escrito: os vassalos portuguezes são livres. Ora,
em que se fundamenta tal liberdade de se negar ao serviço solicitado pelo Rei? Nas
batalhas travadas em conjunto, não há dúvida, batalhas conduzidas pela nobreza dos
portugueses que, dessa forma, construíram uma noção de vassalagem em liberdade
baseada em soberanias recíprocas entre os que lutam e se legitimam mutuamente. A
liberdade erigida em guerra, nesta lógica, fundamenta o compromisso entre o Mestre
de Avis e Mestre Affonso, mas invocando a lealdade, que é também um dos pilares do
compromisso, o Rei conseguiu convencer o Cego a reassumir a construção da
Abóboda. Ressalte-se: apenas a autoridade do Rei não seria suficiente neste contexto.
Mas e o povo que se movimenta na Igreja? Esse não participa do pacto de vassalagem
e das liberdades conquistadas neles, sua índole sanguinolenta é de outra cepa e não
lhe autoriza o pertencimento. Ecos, na elaboração de uma narrativa literária que
pretende contar uma História de Portugal aos portugueses, dos pavores que as
multidões em cena provocavam após os processos revolucionários da virada do XVIII
para o XIX: quando desencadeadas as forças populares nos espaços públicos, os
resultados eram sempre imprevisíveis. Herculano pretendeu, pela educação, controlar
os ímpetos sanguinários do povo. Pensou, para isso, que as liberdades construídas a
partir de soberanias recíprocas, que poderiam chegar às camadas populares pela
educação, teriam papel fundador para Portugal a partir de suas próprias tradições. Um
acontecimento, um lugar, um povo, uma ideia de Monarquia e legitimidade do poder
Real: em “A Abóboda” Herculano nos apresenta uma Idade Média tardia unívoca e
coerente com a construção do que autor pretendia pudesse ser o Portugal
Contemporâneo.
Poder-se-ia afirmar, a partir do exposto, que a liberdade pretendida e proposta
por Herculano é conteúdo da essência do homem e que teria encontrado
institucionalidade no período pré-Trento e nas soberanias pactuadas conforme o conto
narra? Ou se trata de uma liberdade que, fundada na experiência histórica, teria por
pressuposto a variedade? Sem dúvida, a perscrutação dos sentidos históricos da
liberdade dos portugueses nos arquivos levou-o às soberanias pactuadas na época

16
tardo-medieval e à crítica dos processos universalizantes de enraizamento do
liberalismo, mas também, fiel ao seu liberalismo doutrinário, não deixou de
considerar sentidos para a História e de, por isso, apontar o ciclo decadente da
História vivido pelo Portugal decimonônico. 25 Para revertê-lo havia que procurar no
seio da sociedade a razão pública, as realizações coletivas expressas no tempo e
fundamentar novas sociabilidades, mas novas exatamente na medida em que se
propõem legitimadas pela História, pelas tradições construídas e transfiguradas no
tempo longo.
Herculano considerava a possibilidade de tradução contemporânea para as
liberdades medievais perdidas por meio de cooperativas que pudessem harmonizar
capital e trabalho. Assim, a leitura dos conteúdos de liberdade e fraternidade
constantes nos evangelhos e nas instituições medievais assumem, no seu pensamento,
sentido modernizador e não arcaizante como se poderia supor a princípio. O autor
sabia que à derrota econômica da Igreja em 1834, em função das ações de Mouzinho
da Silveira (1780-1848), não se seguira uma derrota político-ideológica e é contra a
possibilidade de sobrevivência institucional da Igreja tridentina, pelo poder simbólico
que ainda exercia entre os portugueses, que pretendeu, também, narrar a origem e o
estabelecimento da Inquisição em Portugal. Ecos, na escrita da História, dos difíceis
caminhos do liberalismo peninsular em seu ideal romântico 26 de reconstruir os
sentidos da História e o espírito dos povos peninsulares. As imbricações que
Herculano opera, no conto aqui discutido, entre as noções de liberdade e soberania
apontam figurações e possibilidades para o liberalismo português distintas daquelas
saídas do processo revolucionário francês. São figurações e possibilidades que
supõem a negação do ciclo decadentista da História nacional que teria se estendido
desde os primórdios da primeira modernidade ao maldito século XIX. O conto, neste
sentido, seria um artefato elaborado, a partir do desejo do autor, de encontrar as
tradições que marcariam a história de Portugal. Uma operação historiográfica que
sublima gravemente três séculos de História e o presente vivido por meio da
idealização da época tardo-medieval portuguesa e da busca de um futuro que era
ainda pouco claro aos olhos coevos das primeiras décadas da contemporaneidade.

25
PIRES, António M. B. M. A ideia de decadência na geração de 70. Ponta Delgada; Inatituto
Universitário dos Açores, 1980; MEDINA, J. Herculano e a geração de 70. Lisboa: Terra Livre, 1977.
26
MARQUES, Wilton J. “A missão do vate, diálogos e influências”, especialmente o trecho
“Alexandre Herculano & Gonçalves Dias”, In: Gonçalves Dias – O poeta na contramão. São Carlos:
EDFSCAR, 2010.

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Mas talvez ainda o seja hoje, se se considerar a patogênese do mundo contemporâneo,
sempre a transformar os espaços da política em crise que busca o futuro ideal e não
estabelecido quando a crítica se transfigura em governação.27

27
KOSELLECK, R. Crítica e crise, op. cit.

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