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Redimensionando
a Independência*
Maria Fernanda Bicalho**

MALERBA, Jurandir (org.). A Independência brasileira: novas dimensões. Rio


de Janeiro: Editora FGV, 2006.

Em meio aos preparativos para te apresentados no seminário New


a comemoração dos 200 anos da vinda Approaches to Brazilian Independence,
da corte portuguesa para o Brasil, em 2003, na Universidade de Oxford,
surge no mercado editorial a A Inde- são o resultado de pesquisas de uma
pendência brasileira: novas dimensões. nova geração de historiadores sobre
Organizado por Jurandir Malerba, o tema. Seu subtítulo (Novas di-
o livro é um convite à reflexão sobre mensões) visa tanto sublinhar o valor
um momento crucial da nossa histó- de uma obra que marcou época –
ria. Há muito a historiografia sobre organizada, em 1972, por Carlos
o período colonial vem sendo revista Guilherme Mota –, quanto distanciar-
por novas teses que compartilham se de seus pressupostos e métodos de
perspectivas inovadoras e dialogam abordagem histórica.
com o que há de mais recente no O instigante artigo de Jorge
meio historiográfico internacional. Pedreira, Economia e política na expli-
Os artigos da coletânea, originalmen- cação da Independência do Brasil, abre

*
Resenha recebida em dezembro de 2006 e aprovada na mesma data.
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Professora Adjunta do Departamento de História da UFF. E-mail: mfbicalho@uol.com.br.

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a primeira parte do livro. Ao discutir trói a idéia de uma relação de causa


os argumentos de uma historiografia e efeito entre as inconfidências do
“clássica” sobre o tema, contesta as final do século XVIII e o processo
interpretações de Fernando Novais de independência, afirmando que, se
e de Carlos Guilherme Mota, base- ela existiu, se deveu à sua apropriação
adas na crise do antigo sistema colo- e releitura pelos agentes da emancipa-
nial, uma vez que, segundo o autor, ção. Furtado retoma, com argúcia, as
o império luso-brasileiro conheceu antes citadas teses estruturais sobre
uma notável expansão comercial em a independência, incapazes, a seu
sua fase final. O conceito de vulne- ver, de dar conta de processos que
rabilidade – já utilizado por Valentim só podem ser compreendidos à luz
Alexandre em Os sentidos do império da crítica documental. Contrapõe-se
– aplica-se, segundo Pedreira, para à argumentação de Kenneth Ma-
designar aquela conjuntura complexa xwell de que a Inconfidência Mineira
e mutante, pois nada indicava que revelou aspectos nacionalistas e re-
o sistema colonial estivesse conde- volucionários, sugerindo que ela teria
nado à desintegração. Analisa as con- sido antes um “motim de acomoda-
vulsões políticas que abalaram Portu- ção” nos moldes do Antido Regime
gal, a transmigração do rei e da corte português. Analisa as trajetórias de
para o Brasil, a abertura dos portos, três homens que nela se envolveram,
o tratado de 1810, o isolamento do foram condenados e reabsorvidos na
grupo mercantil no Reino. Tais fato- estrutura político-administrativa da
res teriam gerado um conjunto impre- monarquia e do império. Ao deter-se
ciso de idéias, assim como projetos de nas devassas – instrumeno de gestão
“regeneração nacional”. A análise do política e documento esclarecedor da
espaço de convergência entre os inte- estrutura de poder luso-brasileira –,
resses dos corpos mercantis de Lisboa conclui que a relativa impunidade da
e do Porto e as perspectivas políticas maior parte dos sediciosos e sua plena
de uma importante facção das cortes reinserção nos levam à compreensão
constituintes levam-no a concluir que, dos limites das sedições e, ao mesmo
apesar da relevância das questões eco- tempo, permitem-nos entrever sua
nômicas, a dinâmica que desembocou ressignificação a partir de 1821-1822.
na secessão do Brasil teve um caráter Kirsten Schultz, ao analisar
essencialmente político. a transferência da corte portugue-
Em As múltiplas utilidades das sa para o Rio de Janeiro a partir do
revoltas, João Pinto Furtado descons- enquadramento teórico da “era das

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revoluções” – baseando-se nas teses e a representação da corte, baseando-


de R. R. Palmer e J. Godechot –, se nos estudos de Balandier, Renato
avança pouco historiograficamente, Janine Ribeiro, Huizinga e Peter
contradizendo alguns dos argumen- Burke. Porém, ao descrever a hierar-
tos inovadores dos dois artigos antes quia social e estamental que regia
citados. Schultz carrega nos conceitos aquela sociedade, utiliza conceitos
de revolução e contra-revolução para alheios ao seu vocabulário, como “as
dar conta dos movimentos europeus classes superiores residentes”, ou
e suas implicações na América. Dialo- a “burguesia residente no Rio de
ga timidamente com a historiografia, Janeiro”. Em suas considerações fi-
tanto portuguesa, quanto brasileira, nais, volta a deixar o leitor intrigado
e suas recentes teses sobre o poder, diante da afirmação de que “se a
a autoridade e a política. Ao discutir Revolução liberal de 1820 encami-
a nova gramática constitucional – nhou o sistema português rumo ao
“em oposição à linguagem cavilosa do constitucionalismo, o Brasil experi-
antigo regime” (grifo meu) –, desco- mentou ainda muitos anos de monar-
bre novos sentidos de velhas palavras. quia absolutista”, sem discutir como
Ao defender que a transferência da ela coexistiu com o regime liberal e
corte alterou as percepções do império constitucional pós-independência.
português e forçou administradores Em Apelos constitucionais
reais a reconhecerem a necessidade nas cortes constituintes de Lisboa
de uma opinião pública na afirmação (1821-1822), Márcia Regina Berbel
da legitimidade monárquica no exílio, revisita as posições e os discursos
contribui, enfim, para novas dimensões de deputados brasileiros nas cortes
históricas e historiográficas. portuguesas no intuito de compre-
De homens e títulos: a lógica ender aspectos da experiência e do
das interações sociais e a formação pensamento político nos primórdios
das elites no Brasil às vésperas da In- do liberalismo. Em vez de analisar
dependência, assinado por Jurandir a reunião das cortes como prenún-
Malerba, analisa as tramas que ligaram cio das independências na América
a coroa e a aristrocracia portuguesas – como fez grande parte da histo-
aos “homens fortes” – comerciantes riografia tradicional –, percebe-as
de grosso trato – no Rio de Janeiro. como tentativas de manutenção da
Suas estratégias de ascensão inscre- unidade das distintas partes do im-
viam-se na gramática do Antigo Re- pério, com seus diversos e por vezes
gime. O autor analisa os cerimoniais confrontantes projetos.

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Questões de poder na fundação Costa – editor da Gazeta do Rio de Ja-


do Brasil: o governo dos homens e de si neiro – na formação da opinião pública
(c. 1780-1830), de Iara Lis Schiavinatto, e da consciência dos jornalistas da
recua no tempo e avança no recente independência. A cultura impressa,
debate histórico-historiográfico acer- assim como a educação, constituíam-
ca das práticas políticas de Antigo se, segundo a autora, em chave de
Regime nos dois lados do Atlânti- uma conduta política racional que
co. A partir dos conceitos de centro asseguraria o bom funcionamento do
e localidades, discute o sentimento de novo governo liberal.
pertencimento, a elaboração de uma Lilia Moritz Schwarcz analisa
identidade coletiva, a noção contratu- a dimensão simbólica e cultural
al do direito público português e os que, ao lado de medidas pragmáti-
laços políticos que ligavam vassalos cas, perpassou e enformou a legiti-
e soberano. Seu objeto de análise, mação política no período posterior
tecido com maestria, é a redefinição à independência. Em Pagando caro
das identidades coletivas e políticas e correndo atrás do prejuízo, debruça-
quando da fundação do Brasil como se sobre as festas e o alto preço pago
corpo político autônomo. Sua abor- pela Biblioteca Real, trazida para
dagem envolve o debate a respei- o Rio de Janeiro com a corte. Ao
to do governo de si e dos homens, constar em segundo lugar no côm-
a correspondente liturgia política, puto das negociações do montante
os protocolos de convivência social a ser pago para o reconhecimento da
e a produção de identidades indivi- Independência, a simbologia de sua
duais e compartilhadas. permanência no Brasil é mais que evi-
Em Insultos impressos: o nasci- dente. Como afirma Schwarcz, “nada
mento da imprensa no Brasil, Isabel como um grande acervo de livros para
Lustosa, ao retomar e aprofundar assentar o império, no sentido de
argumentos presentes em vários lhe auferir uma legitimidade ilustra-
outros artigos da coletânea, analisa da, que o igualava às demais nações
o papel desempenhado pela imprensa européias. Aí estava um país recém-
na difusão, no debate e na legitimação independente, mas que já acumulava
de uma gama de projetos de ordem, saberes seculares...”.
participação e soberania em meio O interessantíssimo estudo de
à disputa entre as diferentes facções Hendrik Kraay, Muralhas da indepen-
políticas nos anos de 1821 a 1823. dência e liberdade do Brasil: a participa-
Discute a importância de Hipólito da ção popular nas lutas políticas (Bahia,

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1820-1825), traz para o cenário político do Equador. Observa, com a mes-


atores sociais menosprezados pela ma preocupação de Hendrik Kraay,
historiografia. Analisa o protagonismo a emergência de “pretos” e “pardos”
das classes populares e discute não no mundo da política.
apenas como se inseriram e lutaram O último capítulo do livro,
pela autonomia, mas também como Independências americanas na era das
se viam nesse processo. Defende revoluções: conexões, contextos e com-
que a guerra criou novas identidades parações, de Anthony McFarlane,
e proporcionou-lhes uma nova consci- é um ensaio – um tanto generalis-
ência de sua importância para o Esta- ta – de comparação dos movimen-
do. Ao enfocar libertos e escravos da tos de emancipação nas Américas.
Bahia – lugar onde a independência Discute suas semelhanças, diferenças
assumiu um desdobramento singular e conexões. Da mesma forma que
em relação às províncias do centro- Schultz, o quadro teórico de referência
sul –, afirma haver muitos indícios é a “era das revoluções” e suas va-
de um “patriotismo popular” que riantes, a “revolução democrática” ou
interpretava a independência como “revolução atlântica”. Embora dialo-
realização dos homens de cor. gue pouco com a recente historiogra-
Em O avesso da independência: fia brasileira – tão bem representada
Pernambuco (1817-1824), Luiz Geraldo nos capítulos deste livro –, concorda
Santos da Silva coloca em questão com o caráter conservador das “rebe-
tanto a perspectiva nativista de que liões coloniais”. Afirma que, diante
o movimento de 1817 teria signifi- das políticas reformistas – bourbônica
cado uma antecipação da Indepen- e pombalina – da segunda metade
dência, quanto a visão saquarema de do século XVIII, seus protagonistas
que possuía um projeto separatista. “viam-se a si mesmos defendendo
Ao reler documentos elaborados pe- o status quo e não subvertendo-o”.
las juntas provisórias, conclui que Se o livro, no conjunto de seus
o termo “independência”, em vez de artigos, propõe novas abordagens
significar separação absoluta, visava e novos caminhos a serem percorridos
à autonomia provincial, a uma espécie pela pesquisa documental e inter-
de “governo federal”. Recupera, em pretação historiográfica, o primei-
nova chave explicativa, as lutas, os ro capítulo, Esboço crítico da recente
interesses e os projetos de diferentes historiografia sobre a independência do
segmentos das elites pernambuca- Brasil (c. 1980-2002), de autoria de
nas, desde 1817 até a Confederação Jurandir Malerba, remói uma velha

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questão e aborda o que, no cenário tes dos nossos, e assim aparece nos
historiográfico que se propõe a ana- documentos coevos.
lisar, consiste num falso problema. Outras questões pontuais
Malerba reconhece a existência de mereceriam um maior desenvolvi-
uma “vaga revisionista da história mento. Malerba constrói um quadro
de independência”, porém enxerga intitulado Produção historiográfica
em alguns destes trabalhos um viés sobre a independência do Brasil até
nacionalista, o que decorre mais de 2002 e o discute apenas em termos
uma leitura parcial dos estudos refe- quantitativos. Embora afirme que
ridos do que de afirmações e argu- a produção dos últimos 20 anos será
mentos de seus autores. É no mínimo o foco de sua análise (e os últimos 20
intrigante atribuir a Maria de Lourdes anos produziram um total de 66 estu-
Viana Lyra, autora de A utopia do dos), não a interpreta sistematicamen-
poderoso Império, a defesa de uma te, elegendo alguns títulos, deixando
visão que incorpora a construção da outros, igualmente fundamentais, de
identidade nacional já naquele perí- lado, mencionados apenas em nota
odo e, ao contrário, propor, como se de pé de página e de forma genérica.
ela não o tivesse feito em seu livro, Entre eles, os livros de Istvan Iancsó,
que a idéia de império luso-brasileiro Brasil: formação do Estado e da nação;
é mais apropriada do que a de nação. de Cecília Salles de Oliveira, A astú-
Da mesma forma, é difícil aceitar ser cia liberal; de Lúcia Bastos Pereira
a “questão nacional” o argumento das Neves, Corcundas, constitucionais
central no livro de Gladys Sabina e pés-de-chumbo... Não ficam claros
Ribeiro, A liberdade em construção. os critérios que utilizou ao eleger
Para Malerba, “a solução adotada na e contemplar uns e não outros.
obra de reificar sentimentos e estados Em suma, o capítulo em questão mais
(nacionais) atribuindo-lhes maiúscu- se assemelha a um “juízo” do que
las não soluciona satisfatoriamente a um “esboço crítico”. O autor, em
o problema”. Parece não perceber diversas passagens do texto, em vez
que “Causa Nacional” é grafada em de proceder a uma avaliação historio-
maiúscula e entre aspas pela autora, gráfica e crítica da produção – antiga
não como estratégia de reificação e recente – sobre o tema, a julga,
de um sentimento ou de um esta- e às vezes erroneamente. Em defesa
do nacional, e sim porque é termo dos comportamentos diferenciados
utilizado na época, que lhe confere das distintas regiões do Brasil no
seus próprios significados, diferen- processo de independência, afirma,

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por exemplo, que a historiografia disto são, entre tantos outros, os


brasileira ainda a quer entender como artigos que compõem esta coletânea,
entidade una. Não me parece que e que nos oferecem, de fato, novas
seja o caso, e testemunhos eloqüentes dimensões sobre a Independência.

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