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A Reinvenção do Passado e a

Articulação de Sentidos:
o Novo Romance Histórico Brasileiro

Valter Sillrier

A idéia de nação, enquamo relacionada à concepção de um Estado


organizado em termos políticos, com [romeiras terriroriais bem definidas, data
do século X VIII. Como assinala M. H. Rouanet (1997), é surpreendeme a rapidez
com que essa idéia ganhou [orça e se consolidou, apesar de haver, ainda em fins
do século XIX, muita discussão acerca de sua definição.
A despeito da existência de vários estudos sobre movimemos políticos
nacionalistas, é someme a partir da publicação de Jmagilled cOIIU/llIllities, de
Benedict Anderson, em 1983 (1991), que a ênfase recai sobre o sentimemo de

Nota: Uma versão preliminar deste texto foi apresentada na XXIII Reunião da Anpocs, realizada em
Caxambu em outubro de 1999, no GT Pensamenlo Social nu Brasil. Agradeço os comentários dos presentes
naquela ocasião, em especial de J leloisa Starling, comcnladora da sessão, de Helena Bomeny, Lucia Lippi
Oli\'cira e Ricardo Benzaqucn de Araujo. Agradeço a Vania Bellí os comentários e SUgesUlCS feitos a uma
versão anterior deste ensaio, que fOr3m fundamentais para a elaboração da presente versão. Agradeço também
as sugestões dos parcccristas de Estudos Hist6ricos.

Estudos Históncos, Rio de Janeiro, vol. 14) nO 26, 1000, p.153-164.

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estudos históricos. 2000 - 26

nacionalidade, ou seja, o sentimenro pessoal e cultural de perrencimenro a uma


nação 1 Desde então, diversos aUlOres já analisaram a idéia de nacionalidade
enquanto resultado de lOdo um processo de formação e de construção que se fez,
e conrinua a se fazer, através dos mais variados instrumentos socioculturais. Enrre
esses instrumentos, pode-se apontar como sendo de fundamental imporrância a
escrita em geral e a escrita da história em particular.
Nesse senrido, é imporrante lembrar que no século XIX, pelo menos até
que Leopold Ranke colocasse as bases da "história cienrífica", a literarura e a
história eram consideradas como tendo a mesma função - narrar a experiência e
o aconrecido com o objetivo de orienrar e elevar o homem. Até enrão, ambas
podiam ser associadas a um esforço para subjugar o caos, medianre a edificação
de modelos capazes de assegurar aos homens tanro a orienração como a verdade.
Pode-se surpreender a crise desses modelos, principalmenre em torno da
Revolução Francesa, quando uma nova concepção da história irá emergir e se
firmar, aponrando para a substituição da verdade ética pela verdade dos falOS (cf.
Koselleck, 1985; Veyne, 1981 e 1984; White, 1985). Por volta de 1830, Ranke,
protestando contra a história moralizanre, indicou que a tarefa do hisroriador
consistia em "apenas mostrar como [algo] realmenre se passou" (wie es eigllelich
gewesen). O fato é que "este aforismo não muito profundo teve um êxilO espan­
toso" (Carr, 1976: 12). A separação entre a literatura e os estudos históricos
acenruou-se fundamentalmente desde enrão, tendo como leillllotiv a questão da
2
possibilidade de escrever facrualmenre sobre a realidade observável.
Em torno do final do século XVIII verifica-se uma grande ruptura no
pensamenro europeu que irá afetar profundamenre tanro os posicionamenros
epistemológicos como as formas de saber: trata-se, como indicou Foucault em
As palavras e as coisas, da passagem da ordem clássica à história. A história não
será mais compreendida somenre como "a coleção das sucessões de falO, tais como
puderam ser constiruídas", mas sobretudo como "o modo fundamenral de ser
das empiricidades, aquilo a partir do qual elas se afirmam, se apresenram, se
dispõem e se repartem no espaço do saber para conhecimenros evenruais e para
as ciências possíveis" (Foucault, s.d. [1966]: 231).
O romantismo, desenvolvendo reflexões de pensadores como Vico e
Herder, impôs uma concepção histórica do homem e das suas atividades, trans­
ferindo-os do espaço abstrato e permanente em que a ordem clássica os siruava
para um espaço e um tempo concreros e mUtavelS.
• •

A narrativa da nação que surge nesse momento pode ser encarada, tal
como propõe Homi Bhabha, como "uma poderosa idéia histórica" que emerge
"de tradições do pensamenro político e da linguagem literária." (Bhabha,
199011997: 2). Uma das características marcantes do romanrismo enquanro
movimenro arrístico é sua estreita relação com o nacionalismo. No caso brasileiro,

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A Rc;,wellçiio do Passado c fi Artil:u{rrçtio de Selltidos

a coincidência do surgimento da chamada escola romântica e da independência


política do país reforça essa relação. Como demonstrou Manoel Guimarães, a
escrita da história foi o objetivo primeiro da fundação, em 1838, do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Tratava-se de um projeto que tinha por alvo
"o desenho dos contornos que se quer definir para a Nação brasileira" (Gui­
marães, 1988: 7). Nesse mesmo momento, podemos surpreender o desejo de que
isso se produzisse ao mesmo tempo através da literatura, entendida fundamen­
talmente como fOIlnadora de um "vínculo de nacionalidade". Como apontaram
Mariza Veloso e Angélica Madeira, "a literatura é, nesse momento, a 'expressão
dos Estados nacionais' por excelência, comprometida que estava com o projero
de construção da nacionalidade. Por isso a literatura, sempre pronta a abraçar
causas e ideais, é dotada de uma caráter militante, documenta!." (Veloso e
Madeira, 1999: 71). Em consonância com o ideal positivista comtiano, que iria
assumir importância fundamental no ambiente cultural de fins do século XIX e
das primeiras décadas de nossa República, pode-se afirmar que "o caráter funda­
mentaI de uma época tornava-se mais facilmellle acessível por meio de suas
obras-primas literárias" (Lepenies, 1996: 43). Nesse momento, cabe à ciência
analisar a realidade, enquanro a arte deve embelezá-Ia.
Nesse projero de análise e embelezamelllo, história e literatura vão se
aliar em diferentes momentos e de formas variadas para forjar uma imagem de
unidade, que se supõe necessária à idéia de nacionalidade. O recurso à tradição
histórica irá se mostrar difícil, no que diz respeiro ao Brasil, dada a recente
independência política do país. O romantismo brasileiro irá então privilegiar a
contemplação da natureza, elegendo a natureza tropical como u'aço distintivo do
continente americano (cf. Roauanet, 1991l. JuntO a isso, o índio será eleito
enquanto elemento possível (e passível) de estabelecer o vínculo entre a nossa
natureza tropical e uma forma de vida que será caracterizada como brasileira, ou
seja, anterior à colonização portuguesa. Tal empresa será levada a cabo principal­
3
mente através da história e do romance históric0
Segundo Barbara Foley, citada por Hutcheon (1991: 159), o paradigma
do romance histórico do século XIX pode ser resumido na seguinte formulação:

Os personagens constituem uma descrição microcós­


mica dos tipos sociais representativos; enfrelllam complicações e conlli­
lOS que abrangem importantes tendências no desenvolvimento
histórico; uma ou mais figuras da história do mundo entram no mundo
fictício, dando uma aura de legitimação extra-textual às legitimações e
aos julgamentos do texto; a conclusão reafirma a legitimidade de uma
4
norma que transfOlIlla o cotidiano social e político num debate mora\.

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estmlos históricos. 2000 - 26

A nallativa da nação será realizada em conjunto pela escrita da história


e da literatura. Onde fatos e fontes não puderem ser utilizados, caberá à ficção
preencher as lacunas do nosso passado mediante a criação de tramas ficcionais.
Entretanto, essa realização conjunta nem sempre será pacífica, ou melhor, nem
sempre será realizada mediante o embelezamento ficcional dos dados analisados
pela história. Parafraseando Lepenies, podemos dizer que desde o princípio
literatura e história irão disputar a primazia de fornecer a orientação/interpre­
tação-chave da nacionalidade brasileira, o direito de ser a doutrina de vida
apropriada à sociedade e ao Estado nacional brasileiro.
Nessa competição de interpretações revelar-se-á um duplo drama, deter­
minando não somente a história do surgimento da história e das ciências sociais,
mas também seu desenvolvimento posterior. A hesitação entre uma orientação
cientificista, que poderíamos chamar monológica, pronta para imüar os moldes
das ciências naturais, e uma atitude hermenêutica, dialógica, estabeleceu pontos
de tensão tanto internamente no campo das ciências sociais quanto em sua
interface com a escrita literária. Como assinalou Lepenies (1996: li),

o debate entre uma intelecrualidade literária e uma


intelectualidade das ciências sociais constitui dessa forma pane de um
processo complexo, em cujo decorrer foi-se distinguindo o modo de
produção científico do modo de produção literário; essa separação é
acentuada ideologicamente pela contraposição entre a fria razão e a
culrura dos sentimentos - uma dessas oposições que marcam o conflito
entre a Ilustração e a Contra-Ilustração.

Esse debate irá assumir as mais variadas formas desde então, ora identi­
ficando, ora opondo escritores, críticos, ensaístas, historiadores e sociólogos,
entre outros analistas/intérpretes possíveis do Estado nacional brasileiro.
No que diz respeito à literatura, essa competição irá produzir um veto a
todo tipo de ficção que não estiver atrelada à formação de uma identidade
brasileira. Acompanhar a história desse veto permite mapear a história da
emergência da "racionalidade" política da nação - estratégias textuais, deslo­
camentos metafóricos, subtextos e artifícios figurativos - como uma forma de
narrativa. Essa história, como indica Bhabha (1990/1997: 52), "está sugerida no
ponto de vista de Benedict Anderson sobre o espaço e o tempo da nação moderna
como corporificado na culrura narrativa do romance realista" e permite contestar
"a autoridade tradicional dos objetos nacionais de conhecimento - Tradição,
Povo, Razão de Estado e Alta Culrura, por exemplo- cujo valor pedagógico quase
sempre se apoia em sua representação como conceitos holísticos localizados
dentro de uma narrativa evolucionista de continuidade histórica".

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A Reill"ellçáo tio Passado e a Articulação tIe SClItitlos

Entretanto, essa narrarividade da nação dentro da prática literária


também pode ser acompanhada enquanto multiplicadora das fronteiras culturais
da nação, possibilitando a incorporarão de
novos "povos" em relação ao corpo político, gerando
outrOS locais de significação e produzindo, inevitavelmente, no processo
político, arenas não nomeadas de antagonismo político e forças impre­
visíveis para a representação política. [ . .. ] O que surge como resultado
dessa "significação incompleta" é o fato de as fronteiras e os limites
transformarem-se em entre-lugares através dos quais as significações de
autoridade cultural e política são negociadas (1990/1997: 57).

o 1l0VO rOlllallCC histórico brasileiro

Grande parte dos romances brasileiros publicados durante o período


5
militar iniciado em 1964 tinha como interlocutor privilegiado a ditadura A
abertura política do final da década de 1970 propicia a ampliação da conversa
literária com a multiplicação dos interlocutores. Os romances alegórico-docu­
mentais do período da ditadura vão dando lugar aos romances polifõnicos,
6
especialmente no início da década de 1980.
No livro Em liberdade, ficção de Silviano Santiago publicada em 1981,
podemos encontrar a busca de continuidade do livro de memórias de Graciliano
Ramos, Memórias do cárcere, publicado inacabado após sua morte em 1953, onde
o autor escreve sobre os dez meses e dez dias em que ficou preso (3 de março de
1936 a 13 de janeiro de 1937). Quando morreu Graciliano Ramos, faltava apenas
a escrita de um capítulo dessas memórias, tal como nos informa a nota explicativa
de seu filho, Ricardo Ramos, apresentada ao final do segundo volume. Ricardo
conta uma conversa que teve com o pai sobre esse último capítulo. Gracialiano
lhe dissera ser tarefa de uma semana a redação do capítulo que faltava; "pretendia
escrever das sensações de liberdade, a saída, uns restos de prisão a acompanhá-lo

em ruas quase estranhas": "Um fim literário". E isso que faz Silviano Santiago
em 1981. E muito mais.
Silviano Santiago coloca em diálogo o poeta Cláudio Manuel da Costa
(poeta e rebelde do século XVIII que participou da rebelião de Vila Rica em 1789),
o romancista Graciliano Ramos (na década de 1930), o jornalista Wladimir
Herzog (morto em fins da década de 1970) e ele mesmo. Temos então uma
conversa onde o papel do intelectual brasileiro frente a regimes autoritários e
intolerantes ecoa durante o livro todo. Nesse livro tudo é verídico e tudo é ficção
e, portanto, as relações entre literatura, história e biografia são objeto de constante
questionamento. Tanto no plano geral quanto no mais específico, o romance

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estlldos históricos. 2000 - 26

coloca em questão a discussão sobre identidade e fragmentação, nas duas dimen­


sões de identidade, a identidade coletiva de um país, o Brasil, e a identidade
pessoal do autor, do personagem e do próprio leitor em vários lugares e em vários
momentos.
Em liberdade é publicado no momento da anistia política (1979), quando
podemos começar a acompanhar a multiplicação e a proliferação das vozes a favor
da democratização no país. Nesse momento, como observa Silviano em texto de
1997, irá se processar uma grande modificação no estatuto dos estudos literários
e culturais no Brasil.7 Na virada da década de 1970 para a de 1980, "a arte brasileira
deixa de ser literária e sociológica para ter uma dominante cultural e antro­
pológica". A arte aparece, ainda nas palavras de Silviano (1997: 2),

não mais como manifestação exclusiva das belles teares,


mas como fenômeno multicultural que estava servindo para criar novas
e plurais identidades sociais. Caíam por terra tanto a imagem falsa de um
Brasil-nação integrado, imposta pelos militares através do controle da
mídia eletrônica, quanto a coesão fraterna das esquerdas, conquistada
nas trincheiras. A arte abandonava o palco privilegiado do livro para se
dar no cotidiano da Vida.

Nesse sentido, como assinala !talo Moriconi (1997), pode-se identificar


tanto a proliferação da busca da identidade mediante o resgate da cultura popular
em trabalhos acadêmicos, quanto a multiplicação das vozes na arena político-cul­
tural através das manifestações dos movimentos negros, de mulheres, gays, ou,
ainda, através da poesia marginal. Na imiscibilidade das vozes e na identidade
plural temos a marca da pós-modernidade. Temos assim que

o pós-moderno serviria para identificar práticas de­


mocratizantes, descentradoras, desierarquizantes, em contraste com os
modernismos canônicos e os vanguardismos unívocos, assim como
aponta para uma cotidianização da política e da estética em contraste
com uma consciência da História pautada pela evolução do Estado
nacional (Moriconi, 1997: 19).

Acompanhando as modificações que vêm se processando na narrativi­


dade da nação podemos perceber as alterações na forma como essa nova identi­
dade nacional é expressa na literatura brasileira contemporãnea. Como assinala
Renato Cordeiro Gomes (1996: 123), "duas linhas parecem se intensificar na
prosa de ficção dos anos 90, dando prosseguimento a tendências que despontaram
nos anos 80: o romance histórico e o romance urbano, ambos ligados ao momento
de crise, para dramatizar o presente precário".

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A Reilll'wçtio do Pfl.<Sflr/O C fi ArticlIlflftio de Sel/tir/os

Boca do IIlJemo, de Ana Miranda, publicado em 1989, é o primeiro de


8
uma série de romances-históricos que serão publicados a partir de entã0
Ganhador do Prêmio Jabuti de revelação em 1990, foi editado e reimpresso várias
vezes no Brasil e no exterior, tendo-se tornado, durante a década de 1990, parte
da bibliografia recomendada para o estudo do barroco brasileiro tanto em escolas
como em universidades. Ambientada na Bahia, no século XVII, a narrativa assim
se inicia: "Numa suave região cortada por rios límpidos, de céu sempre azul,
terras férteis, florestas de árvores frondosas, a cidade parecia ser a imagem do
Paraíso. Era, no entanto, onde os demônios aliciavam almas para povoarem o
Inferno" (Miranda, 1989: 12).
O assassinato do alcaide-mor emerge como desencadeado r de uma
perseguição que será empreendida pelos ocupantes do poder estabelecido aos
supostos culpados, tendo como contraponto os atos, os ditos e os escritos do padre
Antônio Vieira e de Gregório de Matos, o Boca do Inferno. Pouco a pouco, o
pulsar da vida nessa cidade colonial brasileira nos serã revelado. Como nos
confidencia no início da narrativa Gregório de Matos, nessa cidade, "anti­
gamente, havia muito respeito. Hoje, até dentro da praça, nas barbas da infantaria,
nas bochechas dos granachas, na frente da forca, fazem assaltos à vista" (Miranda,
1989: 13). Lentamente, a vida social, política e econômica irã surgir de forma
viva e densa, revelando, jUnto à tensa disputa, novas vozes presentes em um
cotidiano de trabalho, prazeres, sofrimento, felicidade, religiosidade, sensuali­
dade, prostiruição, conchavos e falcatruas.
O romance histórico, nos diz Gomes (1996: 124),
afasta o olhar do complexo presente do País e volta-se
para o passado, a fim de detectar aí mitos, heróis, traços característicos,
que nos ajudem a ver-nos hoje. [ . . . ] Resgatar pela memória o que o
esquecimento apagou parece ser a pedra de toque desses romances que,
pós-modernamente, desconfiam das utopias e dos mitos gerados pelo
progresso. [ . . . ] [Entretanto,] não se trata de reconstruir as ilusôes perdi­
das, mas recolher do passado algumas peças que possam ser reinventadas.
[ . . . ] História e memória imbricam-se. Os relatos eXlfaem um momento
do passado, para perrubar a sua tranqüilidade, para redimi-Io, desrecal­
cando-o arravés da lembrança.
Reinvenção que rima com ficção, que ganha força na medida em que a
história como ciência também se transfolllloU. Como assinala Linda Hutcheon
(1991: 158),
a metaficção historiogrãfica demonstra que a ficção é
historicamente condicionada e a história é discursivamente estruturada,
e, nesse processo, consegue ampliar o debate sobre as implicaçôes

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estlldos históricos. 2000 - 26

ideológicas da conjunção foucaulliana entre poder e conhecimento -


para os leirores e para a própria história corno disciplina.
Ao problematizar quase tudo que parecia sustentar o romance histórico,
a metaficção historiográfica desestabiliza as noções admitidas de história e ficção.
9
Nas palavras de Gracil(v)iano:
Quero repensar, sem preconceitos, toda a trama urdida
por isso a que chamamos de tradição histórica. Tenho mais interesse­
para dizer a verdade - em repensar os fatos que os bons historiadores
colheram, do que os seus escritos. Proporei, com o conto, urna nova
interpretação da ação dos homens, tentando elucidar o raciocínio e a
motivação que se encontram por detrás dos atos e palavras. O trabalho
da imaginação entra nesse momento (Santiago, 1981: 209).
Corno assinala Hutcheon (1991: 160), "subjetividade, intertextualidade,
referência, ideologia, estão por trás das relações problematizadas entre a história
e a ficção no pós-modernismo." Hutcheon reescreve o paradigma do romance
histórico do século XIX, que já ci ta mos anteriormente, colocando entre colchetes
as mudanças radicais da pós-modernidade. Ternos então que na metaficção
historiográfica
os personagens [nunca) constituem urna descrição mi­
croscósmica dos tipos sociais representativos; enfrentam complicações
e conflitos que abrangem importantes tendências [não) no desen­
volvimento histórico [não importa qual o sentido disso, mas na trama
narrativa, muitas vezes atribuível a outros intertextos);uma ou mais
figuras da história do mundo entram no mundo fictício, dando urna aura
de legitimização extra-textual às generalizações e aos julgamentos do
texto [que são imediatamente atacados e questionados pela revelação da
verdadeira identidade intertextual, e não extra-textual, das fontes dessa
legitimação); a conclusão [nunca1 reafirma [mas contesta1 a legi timidade
de urna norma que transforma o confiito social e político num debate
moral (1991:159).
A questão da narratividade assume nesse diálogo entre história e litera­
tura um papel fundamental, pois o processo de narrarivização veio a ser conside­
rado corno uma forma essencial de compreensão humana, de imposição do
sentido e de coerência formal ao caos dos acontecimentos (cf White, 1978 e Mink,
-

1978). E a narrativa que traduz o saber em termos de expressão. Assim sendo,


tanto na historiografia corno nos romances, as convenções da narrativa não são
reStrições mas condições que permitem a possibilidade de atribuição de sentido.
Ao contrário do romance alegórico-documental que nos anos da ditadura aspi-

260
A Rcillllellçtlo do Passado e a Articulaçtlo de SeI/lidos

rava a contar a verdade, os romances polifônicos que vêm proliferando desde o


final da década de 1970 procuram perguntar de quem é a verdade que se conta.
Em um texto que se volta para os aspectos lingüísticos da tradução,
Roman Jakobson (1977: 72) irá chamar a atenção para o fato de que
se fosse preciso traduzir a fórmula tradicional Tradlllore­
lradilore por 'o tradutor é um traidor', privaríamos o epigrama rimado
italiano de um pouco de seu valor paranomástico. Donde uma atitude
cognitiva que nos obriga a mudar esse aforismo numa proposição mais
explícita e a responder às perguntas: tradutor de que mensagens? traidor
de que valores?
A reinvenção do passado mediante a articulação de sentidos capazes de
explicar o país e o modo como indivíduos distintos passam a se sentir parte
integrante de um grupo de iguais (sentimento de nacionalidade? de perten­
cimento?) tem tido cada vez mais aceitação junto ao público leitor. Entenderessas
narrativas positivamente significa tanto apreendê-las enquanto vozes legítimas
na produção das fronteiras e dos entre-lugares (espaços de negociação de dife­
renças e identidades) culturais da nação, como reconhecer que, dessa forma, se
pode continuar a reinventar, de uma outra maneira, o Brasil e os Brasileiros.

Notas

J. Como indica Anderson (1991: 199), 2. Entretanto, como assinalou Hayden


o texlO de E. Renan, O que é uma While (1976), isso se deu apesar de o
Ilação, publicado em 1882, pode ser romance realista e o histOricismo de
apontado como fundamental para se Ranke compartilharem mui las
entender 3 idéia de nacionalidade tal suposições no que diz respeito ao escrever
faclualmenle sobre a realidade observável.
como foi sistematizada no século
XIX. Em uma definição hoje clássica, 3. Como assinalou Karin Volobuef (1999:
diz Renan: "Ora, a essência de uma 309), do pomo de vista de sua prosa [o
"

nação é que todos os individuos romanlismo) brasileiro [ ... ) resumiu em


tenham muito em comum, c seus romances uma viagem exploralória
também que lodos tenham esquecido de seu pais, \'atendo-se, acima de lU do, do
muitas coisas. Nenhum cidadão francês relrato mimélico da realidade nacional e
perscrutando em sua 'investigação' o
sabe se é burgúndio, alano, taifaJe,
espaço lisico [ ... ) e o componeme
visigodo; lOdo cidadão francês precisa
humano",
[cr esquecido São Bartolomeu, os
massacres do Sul no século XVlII" 4. HUlcheon extrai a citação de Barbara
(Renan, 1997: 20). Foley, Tclli"g l/te Inuh: lhe lheory mld

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estudos !ristóricos • 2000 - 26

pracrice of doeu me1l1ary jil.'lioll (ILhaca, New de Anna Paes D'Altro no Brasil holandês
York and London, Cornell Univcrsity emA garça lIIalf",ida;. fundação do Rio
Press, 1986). Grande em O exílio lia terra dos muitos; a
5. Um balanço pioneiro desse período história de Rondon em Piguu ru senhor dos
,

pode ser acompanhado em Sussekind caminhos, e a história de Chica da Silva


(1985). Ver também Silverman (1995) e, em Rei branco, rainha negra). Outras
para uma leitura crítica destes balanços, editoras como a Companhia das Letras, a
Franco (1998). Siciliano, a Rio Fundo e a Rocco vêm
6. Vale lembrar que se pode encontrar desde emão, e com sucesso, investindo
romances polifônicos no período da no gênero. Além disso, não se deve
ditadura, assim como é possível esquecer as várias adapatações feitas para
identificar no período pós-abertura a televisão de romances históricos.
narrativas alegórico-documentais. A AcrediLO que uma investigação da
divisão referida sinaliza tcndencias produção c recepção dessas telenovelas
dominantes.
possa indicar OUlras facetas da grande
7. Apesar da importância de seus receptividade do gênero em questão.
próprios trabalhos nas modificações que
9. Agradeço a Helena Bomeny a
irão se processar, em nenhum momento
indicação do livro Navegar é preciso, vivcr:
deste papar o autor irá fazer qualquer
cscn'tos para Si/viana Samiago, organizado
referência a eles: "mais por decoro do que
por modéstia", por Eneida Maria de Souza e Wandcr
Melo de Miranda (1997). Os textos ali
8. A Editora Lê, de Belo Horizonte, criou
reunidos fazem parte de uma
a coleção Romances da História
homenagem aos 60 anos de Silviano
(abordando o drama da paixão de Marilia
e Dirceu em A barca dos amanlCS; a paixão Santiago. Foi nesse livro que enconlrei a
de Anita Garibaldi em Amor que faz o denominação Gracil(v)iano, criada por
mlwdo girar; a revolução de Bárbara Sérgio Prado Bellei em seu artigo "Em
Heliodora em A dallfa da serpente; a vida liberdade de Gracil(v)iano: o triunfo da
de T iradentes em Eu Tirademes; a história ficção".

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