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Lazarillo de Tormes
GONZÁLEZ, Mario Miguel.

Texto original, publicado posteriormente em:


GONZÁLEZ, Mario Miguel. Leituras da Literatura Espanhola.
São Paulo: Fapesp/ Letra Viva, 2010.

No meio da profusão de novelas de cavalaria publicadas ao longo do século


XVI na Espanha, um pequeno livro irrompe para, mediante uma temática e uma
estrutura completamente opostas, significar o aparecimento de uma nova maneira de
narrar e, especialmente, expor uma visão fortemente crítica da realidade social
imediata. Por esse caráter inovador, Lazarillo de Tormes merece um lugar de especial
relevância na história da literatura, na medida em que é um dos fundamentos da
modernidade literária. Nele temos uma clara amostra da crise dos modelos narrativos
renascentistas; o equilíbrio e idealismo destes vê-se atropelado pela irrupção da
realidade cotidiana trazida pelo narrador de primeira pessoa e exposta mediante o
diálogo. Mas esse diálogo já não é o diálogo retórico transferido pelo narrador
onisciente às personagens, porém o diálogo familiar que faz parte do universo
narrado. Isso permitirá um forte sentido crítico, que denuncia o caráter
ideologicamente marginal do autor anônimo, talvez um erasmista. Esse sentido crítico
se vale do humor, para expor a hipocrisia dominante na sociedade, mediante
constantes paradoxos que culminam na contradição entre o narrador que não quer
enxergar a si mesmo como personagem; isto, após a sua longa trajetória existencial
que lhe permitira denunciar a sociedade de aparências que o rejeitara até ele
conseguir integrar-se nela pelo que parece ser. Esse humor é a forma de expor a
cisão do indivíduo, desse “eu” que pomposamente abre a narrativa e que, de fato, não
existe senão como aparência. É o ponto de vista do protagonista-narrador, ao qual se
contrapõe o ponto de vista do leitor, pela primeira vez explicitamente chamado a
definir o sentido do que lê. Por trás da simples comicidade possível do texto, o leitor
poderá decifrar o maquiavélico jogo do protagonista-narrador. Nele, se Lázaro
consegue escapar ao esquema feudal de uma semi-escravidão, não será para aceitar
os mecanismos em que o trabalho e a especulação o colocariam a caminho de
integrar-se na sociedade. Ele prefere rejeitar esses mecanismos e limitar-se à
exploração das aparências como mecanismo de ascensão social. É um modo de
alienação mediante a criação de um universo fictício, no qual Lázaro vê de si próprio
apenas a imagem que quer ver. Ou seja, mais um caso de narcisismo, que caberia
integrar na galeria de personagens arrolados por Arnold Hauser como manifestações
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da literatura maneirista, na qual, entendemos, cabe incluir a obra em si mesma.


Estando, assim, nas bases da modernidade, Lazarillo de Tormes deve ser entendido
como uma das primeiras manifestações do gênero “romance” e, dentro deste, é o
primeiro romance picaresco.
No entanto, além desses aspectos e das análises e interpretações que o texto
possa merecer, seu aparecimento se configura, para os leitores de hoje, cercado de
enigmas que achamos interessante relacionar.

As primeiras edições
Datam do ano 1554 as quatro edições mais antigas do Lazarillo de Tormes
hoje conhecidas. Nenhuma delas indica o nome do autor. O fato de existirem quatro
textos, publicados no mesmo ano e em quatro diferentes lugares (Medina del Campo,
Burgos, Antuérpia e Alcalá de Henares), tem levado os críticos a entenderem que
houve uma ou duas edições anteriores que seriam a base comum daquelas que
chegaram até os nossos dias.
De cada uma dessas edições conserva-se apenas um exemplar, com exceção
da edição de Antuérpia, da qual são conhecidos seis exemplares. A edição de Medina
del Campo foi casualmente descoberta em meados de 1992. Ao dar-se início à
reforma do sótão de uma antiga casa localizada no centro do povoado de Barcarrota,
na província de Badajoz, região da Extremadura, na Espanha, detrás de uma parede
falsa foi encontrada uma pequena biblioteca formada por onze títulos (dez deles em
nove volumes impressos e o restante num manuscrito), todos eles datados do século
XVI e proibidos à época pela Inquisição. O cuidado com que o seu proprietário
embrulhara os volumes permitira uma boa conservação da maioria dos textos. Um dos
mais bem conservados, felizmente, era uma edição de Lazarillo de Tormes realizada
em Medina del Campo, no ano de 1554, como as outras três mais antigas até hoje
conhecidas e de cuja existência não se tinha notícia antes. Os demais títulos, além de
obras em espanhol, incluíam textos em francês, italiano, latim, grego, hebraico e um
em português: a Oracão da emparedada. Tratava-se, supomos, de exemplares da
biblioteca de um erudito, um humanista, talvez um reformista ou um converso. De fato,
Fernando Serrano Mangas sustenta que o perfil do possuidor dos livros escondidos
em Barcarrota seria o de um criptojudeu, médico e oriundo de Llerena; e comprova
que o proprietário da casa era, efetivamente, um judeu, médico, nascido en Llerena,
de nome Francisco de Peñaranda, que teria emparedado os volumes entre os meses
de janeiro e março de 1557.
A descoberta da edição de Medina del Campo, divulgada em fins de 1995, veio
tornar ainda mais complicado o estabelecimento de um estema que definisse as
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relações entre as quatro edições de 1554 e delas com a princeps. Um dos poucos
estudos que já revisam a situação anterior é o que consta da edição de Félix Carrasco.
O mencionado crítico entende que as edições de Medina e Alcalá são as mais
próximas da princeps e que as de Burgos e Antuérpia decorrem da de Medina. É
importante levar em conta que das duas primeiras consta a data com exatidão: a de
Alcalá seria de 26 de fevereiro de 1554; a de Medina diz ser de 1 o de março do mesmo
ano. Por sua vez, a de Alcalá registra uma advertência: trata-se de uma nova
impressão; ou seja, houve pelo menos uma edição anterior, hoje perdida e, com
relação a ela, pela primeira vez são incluídos acréscimos. De fato, a edição de Alcalá
difere por incluir seis adições, perfazendo um total aproximado de duas mil palavras
que parecem ser de outra mão que não a do autor do texto original.
Com base nos estudos de Francisco Rico , hoje é possível sustentar que o
manuscrito de Lazarillo de Tormes não conteria nem a divisão em “tratados” ou
capítulos em que as edições de 1554 o fragmentam, nem as epígrafes destes. De fato,
os títulos dos tratados não respondem ao conteúdo desses capítulos, como seria de
esperar. Da mesma maneira, a continuidade sintática entre o final do terceiro tratado e
o começo do quarto, bem como entre o final deste último, que é muito breve, e o
começo do quinto permite pensar que o texto era contínuo, no manuscrito. Isto é
importante, na medida em que prescindir da divisão em capítulos permite perceber
que o texto tem uma unidade estrutural muito clara e que não houve, como se pensou
durante muito tempo, capítulos não desenvolvidos pelo autor, e que, assim sendo, não
estamos perante uma obra não concluída por ele.
Quanto ao título da obra, igualmente segundo Rico, é provável que o
manuscrito não tivesse nenhum. As quatro edições de 1554 consagram o que pode ter
sido obra dos impressores: La vida de Lazarillo de Tormes, y de sus fortunas y
adversidades. De fato, exceto em uma única ocasião, ao longo de todo o texto a
personagem é chamada de Lázaro de Tormes . Tudo indicaria que o impressor, como
leitor levado pela idéia inicial de ingenuidade do protagonista, que narra
predominantemente sua infância, entendeu ser mais adequado o diminutivo para
designá-lo na capa. Modernamente, no entanto, o título costuma ser simplificado como
Lazarillo de Tormes.
Além da existência de várias edicões iniciais simultâneas, tudo leva a admitir o
sucesso inicial de Lazarillo de Tormes. De fato, o impacto causado pelo livrinho e a
idéia de que a história admitia uma continuação levaram à publicação, em Antuérpia,
já em 1555, de uma Segunda parte de Lazarillo de Tormes, igualmente anônima,
encadernada junto com o texto inicial. Logo mais, em 1559, a obra seria censurada:
nesse ano, Lazarillo de Tormes foi incluído no Cathalogus librorum qui prohibentur
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(“Catálogo de livros proibidos”), do inquisidor Fernando de Valdés, publicado em


Valladolid. Em função de que o livro continuava a ser lido, apesar da proibição, a obra
foi publicada novamente em 1573, numa versão censurada, conhecida como Lazarillo
castigado, onde, pela mão de Juan López de Velasco, foram suprimidos, na íntegra,
os tratados IV e V e diversas frases avulsas. A partir daí, as edições integrais de
Lazarillo de Tormes só seriam possíveis no estrangeiro: em Milão (1587), Antuérpia
(1595) e Bérgamo (1597). Na Espanha, o texto mutilado pela censura teria deixado de
interessar e teve apenas uma edição (Tarragona, 1586) nos anos imediatamente
seguintes. Em 1599, no entanto, publicava-se em Madri a primeira parte de Guzmán
de Alfarache, de Mateo Alemán, que coincide com Lazarillo de Tormes no seu caráter
de pseudo-autobiografia de um tipo social semelhante a Lázaro, que o próprio Alemán
chama de “pícaro” num dos prólogos à sua obra. Motivado, talvez, pelo enorme
sucesso do livro de Alemán, no mesmo ano, também em Madri, o editor Luis Sánchez
publica novamente Lazarillo de Tormes. Sánchez, logicamente, teve que respeitar a
versão censurada, mas ele próprio acrescentou novos cortes.
Na Espanha, depois de 1554, o texto completo de Lazarillo de Tormes só
voltaria a ser impresso em 1834, em Barcelona, um mês depois de abolida a
Inquisição, após a morte de Fernando VII. A censura inquisitorial proibira também a
Segunda parte anônima que, ao contrário de Lazarillo de Tormes, não pôde ser
impressa na Espanha, sequer com cortes, até o fim da Inquisição; a sua primeira
edição espanhola leva a data de 1844-45.

O autor
Durante muitos anos, a autoria do Lazarillo de Tormes foi tema para enorme
polêmica, na qual cada crítico achou ter encontrado a solução para um dos maiores
enigmas da história da literatura.
Em 1607, o bibliógrafo flamenco Valère André Taxandro, no seu Catalogus
clarorum Hispaniae scriptorum, atribuiu o Lazarillo de Tormes a Diego Hurtado de
Mendoza (1503 – 1575). Essa atribuição foi reiterada em 1608 por Andre Schott em
sua Hispaniae bibliotheca e tem sido a mais aceita por aqueles que desejavam
encontrar, a qualquer preço, o nome de um autor para o Lazarillo de Tormes.
Salientemos que até na primeira "tradução" brasileira do Lazarillo de Tormes ao
português – na verdade uma adaptação realizada em 1939 por Antônio Lages, no Rio
de Janeiro – a obra é atribuída ao mencionado autor.
Não menos de outros sete nomes – dentre os que caberia salientar o de
Sebastián de Horozco (1510 – 1580) – têm sido apontados pelos diversos críticos
como sendo o do autor do Lazarillo de Tormes. No entanto, hoje é unânime a
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aceitação do caráter anônimo do texto. A grande exceção, nos últimos anos, é a


enfática atribuição do Lazarillo de Tormes a Alfonso de Valdés (erasmista, de origem
conversa, nascido na última década do século XV e morto em 1532), sustentada por
Rosa Navarro Durán. Além de dois livros recentes, nos quais argumenta profusamente
em favor dessa autoria, a catedrática da Universidade de Barcelona é autora da
“Introducción” da edição do Lazarillo realizada por Milagros Rodríguez Cáceres, na
qual o autor da obra é, sem mais, identificado como sendo Alfonso de Valdés. Além
disso, a autora determina a data da redação da obra (“Alfonso de Valdés escribió el
Lazarillo en un período comprendido entre finales de 1529 y setiembre de 1532”, diz
ela) e o local da escritura (Itália, Ausburgo ou Regensburg); e entende que o modelo
comum a Lazarillo de Tormes e a Retrato de la Lozana Andaluza (de Francisco
Delicado, Veneza, 1528) é La Celestina (1499?), de Fernando de Rojas. Estas e
diversas outras leituras de Valdés estariam profusamente presentes em Lazarillo de
Tormes, o qual conteria inúmeras coincidências com a obra desse autor. Os
argumentos de Rosa Navarro Durán permitem dizer que Lazarillo de Tormes pode ter
sido escrito por Alfonso de Valdés; daí a afirmar tão exclusivamente a autoria, sem
provas materiais, há um longo percurso. E fica no ar a pergunta sobre a razão que
levou a que a obra ficasse inédita durante os trinta anos que medeiam entre a sua
suposta composição (1532) e a edição provável da princeps perdida (1552?).
Com relação aos motivos do anonimato da obra, Francisco Rico aponta uma
solução que, se não resolve a questão factual – quem foi o escritor, o autor material
do Lazarillo de Tormes? – explicaria o fato de o livro ter sido publicado de forma
anônima, solução esta que resolve o problema com relação ao texto enquanto tal: o
Lazarillo de Tormes foi publicado anonimamente porque, para os seus leitores, quem
conta a sua propria vida é Lázaro de Tormes. Se a grande novidade era que um
desclassificado contasse sua própria história, não teria sentido para a verossimihança
da obra – que pretende apoiar-se numa absoluta aparência de verdade – que um
outro aparecesse na função de "autor" na capa do livro.
Embora admitindo certa lógica na teoria de Rico, advertimos que, no “Prólogo”
da obra, o leitor se depara com um autor, cuja voz se distingue daquela de Lázaro e a
quem caberia atribuir a divulgação do que seria um “manuscrito encontrado”. Esse
autor, que não esconde seu papel, preferiu o anonimato para, assim, ficar livre das
possíveis conseqüências da publicação de uma obra que denunciava mordazmente a
corrupção social da época. Muito mais quando essas denúncias atingiam em cheio o
clero. O fato de a obra vir a ser censurada apenas cinco anos depois das primeiras
edições por nós conhecidas demonstra até que ponto a classe dominante se sentiu
atingida. Logicamente, levamos em conta que a publicação se deu ainda sob Carlos I
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(1517-1556) e a proibição já sob Felipe II (1556-1598), quando a Contra-Reforma se


iniciava. Mas entendemos que os textos censurados no livro já eram representativos
do pensamento heterodoxo – talvez erasmista, quem sabe mesmo um erasmista
decepcionado com o imperador Carlos I – que vinha sendo alvo da perseguição
desde a época do imperador. Assim sendo, entendemos que a motivação realista do
texto leva a um recurso, o anonimato, que serve de proteção para alguém que, mesmo
dentro do sistema, é marginal a ele.

As datas da fábula
Um outro aspecto de Lazarillo de Tormes tem sido objeto de polêmicas. Trata-
se do período histórico em que poderiam ser situados os fatos narrados na obra.
Igualmente, parece-nos pouco relevante o assunto no contexto do nosso estudo,
especialmente porque, seja qual for a data em que o autor pretendesse fixar os fatos
num contexto histórico, é inevitável situá-los principalmente durante o reinado de
Carlos I.
As diversas hipóteses de determinação das datas podem ser reduzidas
principalmente a duas, apoiadas nas referências, no texto, a dois fatos históricos
concretos: a expedição à ilha de Gelves, onde morre o pai de Lázaro, quando este
tinha oito anos de idade, e a entrada do imperador em Toledo, onde reúne as Cortes,
quando Lázaro já estava casado, num passado imediato à redação de suas memórias.
Sabe-se que houve duas expedições a Gelves: a primeira em 1510, que terminou em
derrota cristã; a segunda em 1520 e que significou uma vitória. Por sua vez, o
imperador reuniu as Cortes em Toledo em 1525 e em 1538-1539. Assim sendo,
cabem duas possibilidades: que a ficcional morte do pai de Lázaro deva situar-se em
1510 e que as Cortes referidas sejam as de 1525, hipótese que suporia ter nascido
Lázaro por volta de 1502 e casado aproximadamente aos 23 anos; ou que ambos os
fatos históricos sejam os de 1520 e 1538, o que suporia um Lázaro nascido por volta
de 1512 e casado em torno de 26 anos de idade. Ambas as hipóteses nos parecem
válidas e ambas apontam para o mesmo pano de fundo que o autor quer colocar para
a história da personagem: o apogeu do imperador Carlos e de seu império, cujo
funcionário é, significativamente, o protagonista deste primeiro romance picaresco da
história da literatura.
No entanto, é oportuno mencionar que Rico acha mais lógico que a expedição
a Gelves mencionada no texto seja a de 1510 e que as Cortes aludidas sejam as de
1538-1539, o que destruiria a coerência cronológica que acima apontamos. Porém,
essa possível incoerência reforça nosso ponto de vista: o autor de Lazarillo de Tormes
quis aludir explicitamente ao período histórico imediatamente anterior e diluiu os fatos
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históricos na ficção sem se preocupar com a exatidão. Exatidão que, como Rico
também aponta, não apenas não interessava – pois teria levado a tentativas, por
parte dos leitores, de identificar na realidade as personagens da ficção -, mas era
imprópria ao gênero que o autor anônimo estava criando com Lazarillo de Tormes: o
romance.

O gênero
Sem dúvida, o que mais importa para a história da literatura com relação a
Lazarillo de Tormes é a profunda inovação que a obra significa em termos de
modalidade narrativa. O texto anônimo é uma das raízes do romance. No entanto,
convém levantar as hipóteses a respeito de como os contemporâneos entenderam a
novidade que lhes era colocada nas mãos e que, se diferia – e muito – de quanto
estavam acostumados a ver impresso, não podia deixar de ter um apoio na realidade
cultural imediata.
Foram necessários muitos anos para que nós, leitores atuais de Lazarillo de
Tormes, entendêssemos o que era, talvez, bastante óbvio para o leitor do século XVI:
o livro reproduzia um escrito dirigido a alguém. A razão da existência do texto que, na
obra, corresponde ao narrador-protagonista, Lázaro de Tormes, aparece como sendo
exatamente essa, com o acréscimo de que era dirigido como resposta a uma
solicitação formulada por escrito. Citamos pela nossa edição:

Y pues Vuestra Merced escribe se le escriba y relate el caso muy por


extenso, parescióme no tomalle por el medio, sino del principio, porque se
tenga entera noticia de mi persona; (24).

Responder por escrito a um pedido de maiores detalhes sobre um caso


significava – e significa – escrever uma carta. Lázaro de Tormes escrevia o que devia
ser uma carta. Pelo que nos consta, o primeiro leitor atual a registrar a afinidade de
Lazarillo de Tormes com o gênero epistolar teria sido Claudio Guillén. Diz o crítico:

Es el Lazarillo, en primer lugar, una epístola hablada."(...) "Digo que se


trata de una epístola 'hablada', con términos algo contradictorios, porque
parece que escuchamos, de hurtadillas, la confesión dirigida por Lázaro al
amigo de su protector". (...) "...la confesión pública de Lázaro ... tiene por
oyente no al lector sino a la persona que ha solicitado tal relato." (...) La
redacción del Lazarillo es ante todo un acto de obediencia.

Claudio Guillén, em 1953, já analisara o sentido de confissão de Lazarillo de


Tormes na sua tese de doutoramento.
Fernando Lázaro Carreter retomaria a leitura de Lazarillo de Tormes como
carta, feita por Guillén. Mas com ressalvas. Diz o crítico:
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No sabemos, en cambio, si acierta Guillén al denominarla epístola hablada.


Se trata de una carta, sin más, con algunos precedentes en el género
novelesco, que agigantan la originalidad de nuestro autor.

O "sin más" de Lázaro Carreter nos parece ser excessivamente excludente.


Lazarillo de Tormes contém mais do que uma carta, sem dúvida. Francisco Rico, por
sua vez, sustenta que a impressão de Lazarillo de Tormes coincide exatamente com o
auge da moda da publicação de cartas ou coleções de cartas. É evidente, no entanto,
que, além disso, Lazarillo de Tormes deve ser considerado na perspectiva da inovação
que significa e que Rico acertadamente aponta. Assim, a narrativa de Lázaro não é
uma epístola que possa ser identificada com as muitas outras que, na época, passam
a ser publicadas. Isto porque essa carta carrega o sentido confessional que Guillén
apontara ao considerá-la uma "epístola falada". Assim, preferiríamos entender que o
Lazarillo de Tormes adota elementos formais próprios do que seria uma "epístola
confessional".
Nesse sentido, mesmo admitindo com Antonio Gómez-Moriana semelhanças
estruturais de Lazarillo de Tormes com as autobiografias confessionais, o texto
anônimo vai muito além do modelo destas, do mesmo modo que supera o de uma
simples carta, na medida em que, a partir da fusão de elementos formais de ambos os
gêneros, cria um terceiro: o romance.
O que separará fundamentalmente o romance das cartas ou confissões será o
fato de aquele se inscrever na ficção. O autor do Lazarillo de Tormes , na narração
autobiográfica de Lázaro, se apodera de traços de modelos de narrativas documentais
e acrescenta a estes um sentido de paródia dos textos ficcionais mais difundidos na
primeira metade do século XVI na Espanha: os livros de cavalaria. Isso aparece, por
um lado, mediante traços secundários apontados por Rico: Lázaro "de" Tormes, como
Amadís "de" Gaula, nasce à beira de um rio; o autor utiliza expressões típicas da
linguagem arcaizante dos livros de cavalaria: "de toda su fuerza" (64); "contóme su
hacienda" (132); "dándome relación de su persona valerosa" (140). E no início
anuncia-se a narrativa de "cosas tan señaladas y por ventura nunca oídas ni vistas"
(18). Mas o eixo do relacionamento possível com os livros de cavalaria está na
eliminação do narrador onisciente daqueles e na sua substituição pelo narrador-
protagonista; na criação do leitor moderno; no protagonista que deixa de ser o herói
modelar da ficção de cavalaria para dar lugar ao anti-herói que parodia aquele, ponto
por ponto; no "grosero estilo" (22), diverso do daquele tipo de narrativas,
propositadamente adotado; e na presença de coordenadas históricas e geográficas
imediatas e concretas, das quais sempre careceram os livros de cavalaria.
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A eliminação do narrador onisciente no Lazarillo de Tormes nos coloca, como


diz Américo Castro, no interior da experiência do próprio protagonista. Dessa maneira,
já não estaremos perante a reiteração de um estereótipo narrativo que não pode sofrer
maiores variações, como era o caso do herói dos livros de cavalaria. O texto não mais
será a expressão do que acontece a alguém, mas do homem existindo no que
acontece. E a série de acontecimentos não ficará aberta – como nos livros
mencionados – mas se fecha na conclusão de um processo explicado no universo
existencial do protagonista. O Lazarillo de Tormes já é, assim, um romance. Com
relação a isso levamos em conta os estudos de Francisco Rico, que tão
acertadamente analisa como se processa, no Lazarillo de Tormes, a passagem do
leitor do universo do pseudodocumento ao da ficção, dando-se, assim, origem ao
romance.
Igualmente pertence ao universo do romance a criação de um leitor moderno a
partir do enunciado no "Prólogo" do autor sobre as duas leituras possíveis do texto:

Yo por bien tengo que cosas tan señaladas, y por ventura nunca oídas ni
vistas, vengan a noticia de muchos, y no se entierren en la sepultura del
olvido, pues podría ser que alguno que las lea halle algo que le agrade. Y a
los que no ahondaren tanto los deleite. (18).

Ou seja, o autor deixa aberta a possibilidade de se ler o texto concordando com


ele ("agrade") quanto a um sentido mais profundo, que não seria necessariamente
percebido pelos leitores que, numa leitura menos penetrante, atingissem apenas o
deleite. Coloca-se, assim, a base do leitor moderno – o leitor de romances –
intérprete de textos cuja estrutura fechada, montada com base em relações de
causalidade, envolve sentidos abertos. Neste caso, o leitor deveria, na sua leitura,
avaliar a perspectiva – falsa, talvez – que de si próprio traçava o narrador a partir da
culminação de suas aventuras.

O anti-herói
No contexto da colocação das bases do romance, além da incorporação do
narrador de primeira pessoa à narrativa ficcional, Lazarillo de Tormes significa
fundamentalmente a instauração do anti-herói como protagonista e eixo estrutural de
um texto ficcional narrativo.
Lázaro se mostra anti-heróico à luz dos heróis modelares – modelares no tipo
e na "conduta" – presentes na ficção da época, isto é, nas novelas de cavalaria. O
herói dessas narrações se caracteriza por levar aos extremos mais inverossímeis uma
série de qualidades vistas como positivas pelos seus leitores contemporâneos. O
exercício das virtudes do cavaleiro andante se dá no sentido de projetar benefícios
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para além de si próprio, arriscando simultaneamente tudo aquilo que ele é e possui,
particularmente a própria vida. Lázaro de Tormes é o negativo desse herói, não
apenas porque carece de todas as suas virtudes, mas porque todas as suas ações se
projetam em proveito próprio.
Esse sentido deliberadamente anti-heróico do protagonista não apenas está no
caráter paródico do texto com relação aos livros de cavalaria (que já vimos), mas
também na sua frontal oposição ao valor fundamental da sociedade da época: a
honra. Isso começa pela deliberada exposição de uma genealogia nada honrosa do
protagonista e se desenvolve mediante a exposição de uma existência que culmina
numa clara situação de desonra. A invocação da honra como motivação de sua obra,
feita no "Prólogo" pelo autor, aparece, assim, como de sentido irônico e satírico; muito
mais quando as três categorias sociais ali referidas como movidas pelo impulso de
serem honradas – o soldado, o clérigo e o senhor – sintetizam a totalidade dos pouco
honrados amos de Lázaro, com exceção do Cego.
O protagonista de Lazarillo de Tormes empreende, assim, a derrubada dos
mitos da heroicidade mediante a denúncia do vazio em que se apóia a sociedade que
cultua esses mitos.

O primeiro romance picaresco


Na época do aparecimento do Lazarillo de Tormes, a palavra "pícaro" servia
em espanhol para designar, talvez, os rapazes que ajudavam nas cozinhas. Estendeu-
se, depois, a todo tipo de desocupado ou subempregado que, sobrevivendo pela
astúcia, atingia facilmente a delinqüência. Em 1599, apareceria a primeira parte do
romance Guzmán de Alfarache, de Mateo Alemán (1547 – post 1613). O protagonista
deste foi imediatamente identificado com os pícaros da vida real e seus leitores
perceberam logo claras analogias entre Guzmán de Alfarache e Lazarillo de Tormes.
Passou-se, assim, a falar em "romances picarescos" para designar estes dois e uma
série de textos publicados na Espanha durante a primeira metade do século XVII. Os
acima mencionados, junto com La vida del Buscón, de Francisco de Quevedo (1580 –
1645), costumam ser vistos como o núcleo desse conjunto clássico espanhol.
O romance picaresco iria se projetar, posteriormente, no restante da Europa,
onde – principalmente na Alemanha, Inglaterra e França – registram-se romances
inspirados no modelo espanhol, publicados durante os séculos XVII e XVIII. Nos
séculos XIX e XX é possível verificar, em diversas literaturas, especialmente ibero-
americanas, o aparecimento de narrativas que, propositadamente ou não, respondem
ao que poderia ser um conceito de romance picaresco.
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Lazarillo de Tormes é o ponto de partida dessa longa série. Tentar definir o que
é um romance picaresco não é tarefa fácil. Um trabalho nesse sentido merecidamente
conhecido é o artigo de Claudio Guillén “Toward a Definition of the Picaresque”. No
entanto, procurando um enunciado mais sintético, propomos entender aqui romance
picaresco como sendo a pseudo-autobiografia de um anti-herói, definido como um
marginal à sociedade, o qual narra suas aventuras que, por sua vez, são a síntese
crítica de um proceso de ascensão social pela trapaça e representam uma sátira da
sociedade contemporânea do pícaro, seu protagonista.
O principal traço formal da picaresca é – ao menos no seu início – o seu
caráter autobiográfico, ou seja, o narrador de primeira pessoa. No entanto, já na
Espanha do século XVII, haverá romances picarescos com narrador de terceira
pessoa, o que nos leva a não impor a autobiografia como conditio sine qua non para o
caráter picaresco de um romance. Em Lazarillo de Tormes , a introdução da primeira
pessoa narrativa significa um dos traços da ruptura com o modelo do narrador
onisciente de terceira, cuja autoridade era fundamental nos livros de cavalaria.
É conveniente levar em conta que Lázaro, e os pícaros clássicos em geral,
apresentam-se como portadores de um projeto pesoal de ascensão social. No entanto,
eles excluem desse projeto o trabalho, já que este, na Espanha dos Áustrias (1517-
1700), aparecia muito mais como um obstáculo à ascensão, visto que a não
dependência do trabalho era requisito para a obtenção de títulos de nobreza. O
"homem de bem" com quem o pícaro aspira a se confundir não pertence ao universo
do trabalho. Pelo contrário, é definido por uma aparência que o separa deste. Assim
sendo, o pícaro procura parecer, o quanto antes, um "homem de bem" e, para tanto,
terá na obtenção da roupa adequada um dos seus alvos mais imediatos.
A realização do projeto ascensional do pícaro não pode ter, então, outro
caminho que o da aventura, que é inseparável da trapaça, aspectos que, mesmo que
minimamente, já constam do processo a que se submete Lázaro.
Assim sendo, os romances picarescos terão sempre um forte sentido de sátira
social. No caso dos romances picarescos espanhóis clássicos, a sátira aponta para os
mecanismos de ascensão social válidos numa sociedade que rejeitava por princípio os
valores básicos da burguesia e na qual o parecer prevalecia nitidamente sobre o ser.

O "Prólogo"
É imprescindível para a compreensão do sentido da obra, determo-nos na
análise do segmento que se tem convencionado chamar de "Prólogo". Mesmo que a
separação do mesmo não constasse no manuscrito, não há dúvida de que qualquer
leitor estabelece um corte entre ele e o que se segue.
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Parece-nos necessário, no entanto, distinguir (como faz Rosa Navarro Durán) o


“Prólogo” como tal, que deve ser atribuído ao autor de Lazarillo de Tormes, daquilo
que pode (ou não) de chamado de “Dedicatória”, a partir da frase ”Suplico a Vuestra
Merced...” (24), onde a voz já não é a do autor, mas a do narrador-protagonista,
Lázaro de Tormes, que logo depois começará a narrar a sua própria vida para realizar
seu propósito de dar completa notícia de sua pessoa.
Assim sendo, há um "Prólogo". E o autor repete motivos habituais em prólogos.
Ele assume uma postura de escritor, pois o leitor tem materialmente um livro entre as
mãos. Como escritor quer ganhar o interesse do público e, assim, lança mão de um
lugar comum nos prólogos, que, com relação à história de Lázaro pareceria irônico:

Yo por bien tengo que cosas tan señaladas, y por ventura nunca oídas ni
vistas, vengan a noticia de muchos, y no se entierren en la sepultura del
olvido, ... (18).

A fórmula se destinaria normalmente a exaltar histórias de ações


extraordinárias. Mas o que vai ser narrado é o menos extraordinário que o leitor do
século XVI pudesse imaginar. Então, não tem sentido. A menos que a leitura seja
outra: Lázaro irá levantar todo o contexto do seu caso, ou seja, uma sociedade podre
que ninguém até então denunciara como ele o fará. O duplo sentido da narração de
Lázaro está já na primeira frase do “Prólogo”. E, como já dissemos acima, o autor
adverte explicitamente quanto à existência, ao longo de toda a história de Lázaro,
desse duplo sentido. A frase segue assim:

...pues podría ser que alguno que las lea halle algo que le agrade. Y a los
que no ahondaren tanto los deleite. (18).

Portanto, há duas possibilidades de leitura do Lazarillo de Tormes: a segunda,


aquela que não aprofunda muito, levará ao deleite; por oposição, a primeira será a
daqueles que estarão à procura das segundas intenções do texto; estes atingirão o
sentido buscado pelo autor.
O "Prólogo" segue com um arrazoado apoiado numa citação de Plínio, o
Jovem – que cita, por sua vez, seu tio Plínio, o Velho – para reforçar, perante o leitor
menos seduzido pela novidade do assunto, a possibilidade de encontrar mais do que
ele poderia supor no texto que tem entre as mãos. Tudo se dirige a conquistar o leitor,
ou seja, tudo parece ser uma atitude de escritor, e não apenas de simples narrador.
De fato, a argumentação justifica a publicação:

Y esto para que ninguna cosa se debería romper ni echar a mal, si muy
detestable no fuese, sino que a todos se comunicase, mayormente siendo
sin perjuicio y pudiendo sacar della algún fruto. (20).
263

A frase seguinte reforça o destino necessariamente público que deve ter um


texto escrito:

… porque, si así no fuese, muy pocos escribirían para uno solo, ...(20).

E o autor explica as razões:

... pues no se hace sin trabajo, y quieren, ya que lo pasan, ser


recompensados, no con dineros, mas con que vean y lean sus obras, y si
hay de qué, se las alaben. (20).

O parágrafo se fecha com a citação de Cícero:

Y a este propósito dice Tulio: 'La honra cría las artes'. (20).

A citação de Cícero contém o elemento – "la honra" – que permitirá


estabelecer uma ponte com o sentido mais profundo da obra, presente no conflito
exposto pelo narrador-protagonista no restante do texto.
A seguir, são enunciados três casos exemplares nos quais "el deseo de
alabanza" funciona como o motor de ações humanas: o primeiro é o do soldado que
se expõe ao perigo; o segundo, o do eclesiástico que, contra a humildade que dele
poderia se esperar, não rejeita os elogios à sua predicação; o terceiro é o do senhor
que recompensa uma louvação hipócrita.
A honra, pois, no sentido de desejo de se ver elogiado, será o motor que
motivou a narração levada agora ao público:

Y todo va desta manera; que considerando yo no ser más santo que mis
vecinos, desta nonada que en este grosero estilo escribo, no me pesara
que hayan parte y se huelguen con ello todos los que en ella algún gusto
hallaren, y vean que vive un hombre con tantas fortunas, peligros y
adversidades. (20-22).

Na explicação de que o autor de Lazarillo de Tormes escreve para ganhar o


elogio de seus leitores devem se apoiar duas conclusões. A primeira é que o autor
quer se diferenciar do narrador da obra, Lázaro de Tormes, já que este contará sua
vida, expondo-a (para o leitor do romance, não necessariamente para o destinatário
explicito de sua carta-confissão) como um caso de desonra.
A segunda conclusão é que, até agora, não temos a menor noção de que
iremos ler uma "carta"; apenas estamos tomando contato com um texto que se
destina, ao ser publicado, ao público; e esse texto irá conter coisas nunca ouvidas
nem vistas.
O autor fecha o “Prólogo” referindo-se a si próprio, ao valor literário de sua obra
e ao leitor dela. A obra é catalogada como “nonada”. Essa desvalorização da sua obra,
264

além de toque de modéstia, combina com o “grosero estilo” em que ele diz ter sido
escrita. Na verdade, o que o autor faz é distinguir a sua obra das nada modestas
narrativas dos livros de cavalaria. Aqui não haverá heróis, pareceria dizer, e, portanto,
o estilo não será o refinado utilizado para narrar as façanhas daqueles, mas o do
relato do cotidiano, sem enfeites.
Quanto ao leitor, reitera-se a advertência do início: nem todos os leitores irão
se divertir com a obra: apenas alguns deles, os que não aprofundarem nela, seria de
supor.
De si próprio, o autor começa declarando que não quer se propor como modelo
de nada pelo fato de ter escrito uma obra na qual denuncia uma série de males da
sociedade: “considerando yo no ser más santo que mis vecinos” (20), diz. E, no final,
traça uma ponte entre si próprio e o narrador-protagonista da história que se inicia logo
depois. Lázaro, com efeito, é o homem que será visto vivendo entre “fortunas, peligros
y adversidades” (22). Mas cabe pensar que, nisso, o autor não se distingue do
protagonista. Cala seu nome, parece-nos, já que sua existência é a de um perseguido,
num contexto social cujas práticas ele não aprova e denuncia em sua obra.

A “Dedicatória”
Com isso termina o “Prólogo” como tal. Após o parágrafo anterior, o leitor
percebe que há um corte que, até a edição de Milagros Rodríguez Cáceres, ninguém
se atreveu a estabelecer formalmente. Nessa edição o corte é feito com base nas
teorias de Rosa Navarro Durán, a qual, mesmo sem provas materiais, sustenta que,
nas edições conhecidas, faltaria a reprodução de uma folha que, no original, conteria o
argumento da obra, separando o “Prólogo” do que seria uma “Dedicatória” (que
abrangeria desde “Suplico a ”Vuestra Merced...” até o final do habitualmente chamado
“Prólogo”)
Com efeito, já não será o autor do romance quem fala, mas alguém que
depois dirá chamar-se Lázaro de Tormes, protagonista e narrador de primeira pessoa
do relato como tal. E o faz para dirigir-se a alguém, a um destinatário concreto de sua
narrativa, cujo aparecimento nos leva a distinguir o que se seguirá do livro cujos
destinatários são os muitos leitores cuja louvação o autor espera:

Suplico a Vuestra Merced reciba el pobre servicio de mano de quien lo


hiciera más rico, si su poder y deseo se conformaran. (24).

Tradicionalmente, a crítica, embora registrasse o corte brusco que o parágrafo


significa, em geral atribuiu a totalidade do chamado “Prólogo” e o parágrafo que se
inicia à mesma voz, a de Lázaro de Tormes, narrador e “autor” da totalidade do texto e
265

apontou as contradições que assim podem verificar-se. Dissociar este segmento


significa separar a voz do autor da voz do narrador-protagonista, Lázaro de Tormes, e
resolver essas contradições. O fato de que nas primeiras edições conservadas não
exista materialmente essa separação não impede que, na leitura, ela seja levada em
conta. Entendemos que, de fato, não há razão para manter como parte do “Prólogo”
(onde temos a voz do autor) este segmento que, se ainda não pertence à narrativa
autobiográfica como tal, deve ser entendido como o aparecimento da voz do
protagonista-narrador da autobiografia.
A irrupção do "Vuestra Merced" leva o leitor a descobrir que o que segue está
dirigido a alguém real; por conseguinte, trata-se de uma história documental,
elaborada por alguém que a escreve a serviço de outrem. O parágrafo seguinte obriga
o leitor a dar mais um passo na definição da expectativa que o início da leitura
significa:

"Y pues Vuestra Merced escribe se le escriba y relate el caso muy por
extenso, parecióme no tomalle por el medio, sino del principio, porque se
tenga entera noticia de mi persona;" (24).

O texto que segue, portanto, está dirigido a alguém como reposta a um pedido
formulado por escrito. (Registramos, apenas, que Navarro Durán entende que
“Vuestra Merced” seria uma mulher, cujo confessor seria o Arcipreste de San
Salvador). A noção de "carta" está clara, agora, e faz deixar de lado qualquer outra
perspectiva. Mas essa é apenas a motivação externa do texto. Há uma motivação
interna, definida como a referência a um “caso” que o destinatário explícito do texto
(“Vuestra Merced”) solicitara que lhe fosse esclarecido.
Por outro lado, o narrador aproveitará para expor, além de sua história pessoal,
um modo de ver e de entender a sociedade:

… y también porque consideren los que heredaron nobles estados cuán


poco se les debe, pues Fortuna fue con ellos parcial, y cuánto más hicieron
los que, siéndoles contraria, con fuerza y maña remando salieron a buen
puerto. (24).

A sociedade, para Lázaro de Tormes, se divide em dois grupos: "los que


heredaron nobles estados" e "los que, siéndoles [la Fortuna] contraria, con fuerza y
maña remando salieron a buen puerto". O texto quer desmascarar os primeiros para
exaltar os segundos, dentre os quais se encontra o próprio Lázaro. Em princípio,
pareceria tratar-se de uma rejeição da nobreza de sangue e de um elogio da
mentalidade burguesa; no entanto, isso ficará desmentido pela atitude de Lázaro no
fim. Remar, para Lázaro, não será trabalhar, nem especular, mas "arrimarse a los
buenos", como vira sua mãe fazer (28) e como ele próprio faria depois.
266

Um outro aspecto desse "remando" merece nossa consideração: é um remar


"con fuerza y maña". O trabalho e a especulação, respectivamente, pareceriam
ocultar-se sob esses dois apostos. No entanto, na prática, para Lázaro e para os
pícaros, o que existirá será uma "fuerza" que é paródia da violência do conquistador,
versão real do cavaleiro andante, e uma "maña" que é a astúcia, única arma com que
o pícaro conta ab initio.
Devemos levar em conta que quem está falando nesse segmento é o Lázaro
que já não enxerga a si próprio (ou que não quer se enxergar) na seqüência final do
texto. O segmento funciona como um prólogo do “autor” Lázaro à sua autobiografia. E,
nele, o funcionário real acomodado, o homem corrompido ao longo de sua história
pessoal, pode disfarçar de legítimo o tortuoso caminho percorrido para chegar até o
que ele considera "la cumbre de toda buena fortuna", uma fortuna que, com
minúscula, encarna a "vitória" sobre a "Fortuna contraria" deste segundo prólogo.
O importante agora é que o leitor, que começou sendo colocado perante a
narração de uma história, descobre que, em primeiro lugar, essa história tem, além de
um narrador de primeira pessoa, um destinatário explícito, com quem ele passará a
compartilhar as diversas alternativas da mesma, e, em segundo lugar, que essa
história não é senão uma autobiografia, narrada no que parece ser uma longa carta
autêntica. Como Rico demonstra tão bem, inicia-se um longo engano, do qual o leitor
só sairá nos parágrafos finais do texto. No entanto, o leitor cai na armadilha porque
não percebe (especialmente ao não haver uma separação física entre o “Prólogo”
como tal e a “Dedicatória”) a mudança que acontece quando, depois do "Prólogo", o
autor deixa espaço ao assinante de uma carta autobiográfica. O leitor só perceberá o
engano ao constatar, quase no fim da obra, que Lázaro é uma personagem que,
mesmo narrada em primeira pessoa, não vê (ou não quer ver) o que ele, o leitor,
percebe claramente a seu respeito.

A estrutura
Foi corrente durante anos (ou séculos) a afirmação que Lazarillo de Tormes –
e após ele toda a picaresca – se caracterizava pela falta de composição, tendo como
único traço estrutural a seqüência de aventuras.
A noção de que o Lazarillo de Tormes pudesse ter "continuações" – e que
ampara as que começaram a ser publicadas logo após o aparecimento do livro –
prova que os leitores contemporâneos à sua publicação – como muitos outros até os
nossos dias – não viram nele um fecho final e, por conseguinte, não percebiam que o
texto estivesse montado sobre uma estrutura com começo, meio e fim. Talvez para os
leitores do século XVI isso possa explicar-se, na medida em que, ao descobrirem o
267

caráter ficcional do Lazarillo de Tormes, perceberiam também seu caráter paródico


com relação aos textos ficcionais preferidos nesse século. Esses relatos se
caracterizavam pela sua seriação infinita de aventuras, seriação essa apoiada tanto no
caráter plano quanto na invencibilidade do seu protagonista, o cavaleiro andante, que
assim era praticamente imortal na infinita possibilidade de continuar vencendo sempre.
Um outro fato que contribuiu a ver no Lazarillo de Tormes uma seqüência
inorgânica foi, sem dúvida, a incoerente fragmentação em "tratados", que permitia
pensar numa obra inacabada. Hoje, se aceitarmos a tese de Rico, antes mencionada,
no sentido de que a fragmentação em capítulos não foi obra do autor do texto, impõe-
se uma leitura que prescinda dessas divisões, em parte ao menos. Assim sendo, nós
leitores do século XX, cada vez mais, tendemos a perceber que o Lazarillo de Tormes
não é uma seqüência infinita de aventuras.
Dessa maneira, pensamos que, após os chamados "Prólogo" e “Dedicatória”,
temos quatro seqüências narrativas que chamaremos: 1) "Infância" (abrangendo até a
despedida da mãe, que entrega Lázaro ao Cego); 2) "Aprendizado" (abrangendo os
três primeiros amos, e passível de ser subdividida em três sub-seqüências, uma para
cada um deles); 3) "Progressão" (abrangendo do Frade das Mercês até o Capelão); 4)
"Integração" (do Aguazil até o final).
A totalidade do Lazarillo de Tormes pode ser vista como a narração de um
processo em que o protagonista evolui da mais absoluta passividade até o
desenvolvimento de uma atividade – o ofício de pregoeiro; o que significa partir das
origens da personagem para chegar até a defesa pública da sua condição de homem
honrado, cujo corolário é a redação da carta a "Vuestra Merced", isto é, a composição
do texto.
Assim, o máximo da passividade se da ao longo da seqüência "Infância",
quando, ao nascer da personagem, sucede-se a contemplação, o ver acontecer uma
série de episódios (a prisão e desterro do pai, a sua partida para Gelves, onde iria
morrer, o amancebamento da mãe, o nascimento do meio irmão, os furtos de Zaide, a
denúncia e condenação de ambos, o serviço da mãe na estalagem da Solana, a
chegada do cego, a entrega ao mesmo).
A seqüência do "Aprendizado" está marcada pela fome, cujo desaparecimento
marcará também a passagem para a seqüência seguinte, a da "Progressão". Mas, ao
contrário do que o leitor esperaria, ao longo do "Aprendizado" Lázaro não avança na
solução da própria fome; pelo contrário, se com o Cego ele encontra como se
alimentar e, até, como beber vinho, isso se faz bem mais difícil com o Clérigo de
Maqueda, de cuja religiosidade Lázaro poderia esperar melhor tratamento; e, já com o
Escudeiro – cuja aparência leva Lázaro a pensar ter achado a solução definitiva para
268

a fome – o drama não apenas cresce ao máximo, mas Lázaro mal sobrevive, e passa
a sustentar ele próprio o seu amo.
Mas essa inversão crescente das expectativas define exatamente o caráter de
"aprendizado" da seqüência. Lázaro aprende ao longo de uma versão amplificada da
primeira lição de vida que recebera: a do Cego que frustra a sua inocente expectativa
de ouvir um grande barulho dentro do touro de pedra à saída de Salamanca. Naquela
oportunidade, Lázaro chegara à conclusão que marca um dos momentos típicos dos
pícaros clássicos, o da conscientização:

Parecióme que en aquel instante desperté de la simpleza en que, como


niño, dormido estaba. Dije entre mí: 'Verdad dice éste, que me cumple
avivar el ojo y avisar, pues solo soy, y pensar como me sepa valer'. (36).

Mas Lázaro iria levar muitos outros golpes contra diversos touros de pedra
antes de sair da sua simplicidade. A decepção crescente na expectativa de matar a
fome seria um deles. Uma outra inversão nos fatores do aprendizado seria o final do
relacionamento com seus amos. A maturidade seria atingida a partir do Frade das
Mercês, o primeiro de quem Lázaro se desliga conscientemente. Depois, se separará
do Buleiro, rescindirá o contrato verbal com o Capelão e desfará o trato com o Aguazil.
Mas, com os três primeiros amos, a ruptura final da relação é conflitiva, numa inversão
crescente da norma, que acaba no paradoxo: se com o Cego Lázaro provoca a ruptura
violentamente, com o Clérigo será despedido e, com o Escudeiro, chegará ao
inesperado abandono por parte do seu amo, fato que motiva a reflexão final de Lázaro:

Así, como he contado, me dejó mi pobre tercero amo, do acabé de conocer


mi ruin dicha, pues señalándose todo lo que podría contra mí, hacía mis
negocios tan al revés, que los amos, que suelen ser dejados delos mozos,
en mí no fuese ansí, mas que mi amo me dejase y huyese de mí. (146).

Lázaro está no anticlímax da sua trajetória de ascensão social. No entanto,


aprendera não apenas a lidar com a fome, mas a – daí em diante – ser o dono da
situação com relação aos amos.
A seqüência que chamamos "Progressão" significa o caminho para a saída
definitiva desse anticlímax. E se desenvolve através de quatro amos: o Frade das
Mercês, o Buleiro, o Mestre de pintar pandeiros e o Capelão. Apenas o segundo e o
quarto merecem de Lázaro uma narração mais extensa. Não porque os demais sejam
capítulos não desenvolvidos – como a crítica pensou muitas vezes – mas porque a
carta de Lázaro está explicitamente montada sobre uma seleção de momentos que
servem para a melhor compreensão do "caso" que ele deve esclarecer perante o
destinatário da mesma. Assim, por exemplo, Lázaro não se detém em narrar todos os
269

fatos acontecidos na sua relação com o cego; dentre eles, escolhe explicitamente os
que acha mais ilustrativos. Diz concretamente:

Y porque vea Vuestra Merced a cuánto se estendía el ingenio deste astuto


ciego, contaré un caso de muchos que con él me acaecieron, en el cual me
parece dio bien a entender su gran astucia. (48);

Mas, por no ser prolijo, dejo de contar muchas cosas, así graciosas como
de notar, que con este mi primer amo me acaecieron... (52).

Por outro lado, hoje, de acordo com Rico, podemos entender que a
fragmentação do texto que dá ao episódio com o Frade a relevância de ser todo um
"tratado" do livro, não teria sido obra do autor do Lazarillo de Tormes.
O Buleiro e o Capelão são, assim, os dois momentos de maior importância na
seqüência. O primeiro, por ser a mais explícita e relevante amostra de hipocrisia, traço
comum a todos os amos de Lázaro. O segundo porque, mediante sua relação
contratual com Lázaro, leva este a um universo novo, o do mínimo comércio e
iniciativa individual que, se jamais poderia torná-lo rico, fornece-lhe os recursos
indispensáveis para atingir um mínimo degrau de aparências, a partir do que Lázaro
encontrará como integrar-se socialmente, na seqüência final da narrativa.
O início da seqüência "Progressão" está marcado pela ausência do fantasma
da fome. A boa vida do Frade mercedário pareceria ter tido boas repercussões no
estômago do seu criado, que não mais alude à angustiante e crescente falta de
comida. O fim da relação virá por causa dos sapatos rotos e das "otras cosillas que no
digo" (148), a respeito de cujo enigmático sentido não achamos que seja necessário
polemizar aqui.
Após a experiência com o Buleiro, onde não consta a fome – pelo contrário, a
edição de Alcalá acrescenta "aunque me daba bien de comer a costa de los curas y
otros clérigos do iba a predicar" (168) – e após a rápida função de ajudante do Mestre
de pintar pandeiros, Lázaro conhece o Capelão da catedral toledana, o que significa
uma grande inovação: pela primeira vez, Lázaro não é um servo, mas um empregado,
com certa autonomia até. Pela primeira vez, há um contrato, mesmo que verbal, que
será a base da relação. Pela primeira e única vez, também, Lázaro pertence ao
universo do trabalho num mundo vizinho ao da produção (já que o ofício real tem uma
conotação de emprego público que o afasta da relação econômica de mercado). Mas
Lázaro entende que não é esse o caminho mais curto para se firmar definitivamente
do ponto de vista sócio-econômico. Explicitamente, avalia o episódio como um degrau
para atingir outras instâncias:
270

Este fue el primer escalón que yo subí para venir a alcanzar buena vida,
porque mi boca era medida. (170).

Concretamente, o que Lázaro consegue são os recursos para adquirir a


mínima aparência de "homem de bem". Após poupar durante quatro anos, consegue
comprar uma roupa usada e uma espada. E ele próprio associa isso à rejeição do
trabalho:

Desque me vi en hábito de hombre de bien, dije a mi amo se tomase su


asno, que no quería más seguir aquel oficio. (172).

Entendemos essa afirmação de Lázaro como o ponto de partida, na picaresca,


da oposição "pícaro-homem de bem", os dois pólos da escala sócio-econômica cujos
degraus normais (o trabalho, a especulação) não são válidos na Espanha dos
Áustrias, onde o conquistador é o modelo social consagrado como mecanismo de
acumulação de riquezas e ascensão social. Lázaro se define como "homem de bem"
pela sua roupa; o seu modelo, nisto, é o Escudeiro, que a toda hora definia a si
mesmo como "homem de bem", e cuja caricatura neste momento Lázaro vem a ser.
No início da seqüência "Integração", Lázaro, vestido de homem de bem,
espada na cintura, pensa por um instante que aproveitar essa aparência para se
colocar ao serviço da justiça lhe pudesse abrir as portas da boa vida procurada. Mas
logo descobre que isso envolve reais perigos. E o nosso herói parte à procura de
águas mais tranqüilas.
Lázaro faz significativos rodeios para explicar como escapou de vez da vida de
sacrifícios que até então levara. Explica que estava à procura de um modo de viver
mais definitivo, à procura de sossego e pensando na velhice; que contou com o favor
de amigos e senhores; que obteve, assim, o que procurava: "un oficio real, viendo que
no hay nadie que medre, sino los que le tienen" (174), ou seja, o único caminho de
ascensão social que encaixava no seu projeto. E faz outro rodeio para dizer o nome do
ofício real obtido:

Y es que tengo cargo de pregonar los vinos que en esta ciudad se venden,
y en almonedas y cosas perdidas, acompañar los que padecen
persecuciones por justicia y declarar a voces sus delitos: pregonero,
hablando en buen romance. (174).

A descrição prévia do ofício e a ressalva final nos fazem pensar que Lázaro
tem vergonha de declará-lo. Afinal, consta que o ofício de pregoeiro era um dos de
mais baixa categoria, superior apenas em hierarquia ao de carrasco que, junto com
ele, eram os dois únicos a que podiam ser admitidos os cristãos novos.
271

Mas pregoeiro era ofício real, caminho para se arrumar na vida, segundo acaba
de declarar. Se não pelo salário, com certeza pelas relações que ele possibilitaria. Por
exemplo, com o Arcipreste de San Salvador, amigo de “Vuestra Merced”, o
destinatário da carta. A história da ascensão social, que no fundo é muito mais
importante do que a explicação do "caso" invocada no segmento final do "Prólogo",
estava completa.

Os motivos
O sentido proposto para a narração, a partir da menção do "caso" no início da
narrativa, faz do texto de Lazarillo de Tormes uma estrutura fechada pensada a priori e
que não admitiria uma continuação, a não ser que se pensasse em aproveitar a
personagem Lázaro para uma outra história. Mas há ainda outros elementos que
reforçam esse sentido de estrutura apoiada em algo mais do que a simples sucessão
de episódios.
Esses elementos são os “motivos”, cuja reiteração significa um planejamento
de sua retomada para marcar, no mínimo, dois estágios opostos do desenvolvimento
de uma história.
Alguns desses motivos, que chamaríamos de "estruturadores" pelo fato de
serem apresentados no início da narrativa e retomados no fim da mesma, como
acontece com o "caso", reforçam o sentido homogêneo da mesma. Assim, à menção
inicial da Fortuna, na “Dedicatória” (24), como força superior cuja parcialidade teria
sido vencida pelo protagonista, contrapõe-se a menção final de uma outra “buena
fortuna” (182), com minúscula, que não é uma divindade vencida, como se poderia
esperar, mas a sorte favorável que coloca o protagonista no cume após inúmeras
peripécias.
O mecanismo ascencional válido para driblar a fortuna adversa – "arrimarse a
los buenos" – é um outro motivo que aparece colocado no início, como recurso da
mãe de Lázaro (28), e que se repete no final, quando explicitamente os favores de
amigos e senhores (175) são a base do "encumeamento" do protagonista.
Da mesma maneira, se o amancebamento da mãe de Lázaro significa a
solução momentânea de seus problemas de viúva, Lázaro encontrará no
amancebamento consentido de sua mulher a garantia de estabilidade que procurava.
Um motivo tradicionalmente lembrado pelos críticos por sua recorrência é o do
vinho. Com efeito, o vinho é o eixo de um dos episódios com o Cego que, ao curar
com vinho as feridas de Lázaro derivadas de seu apetite por essa bebida, diz-lhe:

– ¿Qué te parece, Lázaro? Lo que te enfermó te sana y te da salud. (46).


272

O vinho será, mais tarde, o meio para Lázaro atingir sua "saúde" definitiva,
quando o apregoar os vinhos do Arcipreste abrir o caminho para sua situação final de
prosperidade. A própria narrativa alude a isso quando Lázaro entende ser o Cego um
verdadeiro profeta ao prognosticar o papel que caberia ao vinho na sua vida. Cabe
salientar que, embora Lázaro confesse estar viciado no vinho, quando o motivo se
repete, no episódio do Escudeiro, Lázaro, querendo passar por educado (“por hacer
del continente”, 104) , nega essa sua preferência.
A situação de Lázaro, no fim, transforma-o de narrador-subscritor de uma carta
em protagonista de uma história que ele mesmo conta, mas na qual não consegue –
ou não quer – enxergar a si próprio, como já vimos.
Não se enxergar constitui-se num dos maiores motivos estruturadores da
narrativa se lembrarmos que seu primeiro amo era um Cego – que, na verdade,
pareceria ver mais do que a maioria. Lázaro, embora tenha aprendido as lições do
Cego, pareceria ter ido perdendo aos poucos sua capacidade de enxergar. E quando
assume a função de narrador de sua história, parece não ver a si próprio. E isso se dá
numa sociedade em que ele mesmo vem nos mostrando a falsidade das aparências.
No final de sua trajetória, Lázaro parece não ver que suas aparências já não enganam.
Ou seja, talvez não queira ver nem o que ele é nem o que parece. O espaço para a
ambigüidade cresce, assim, ao máximo na narrativa de Lázaro.
Esse não perceber a própria situação – de que Lázaro padece no final – está
explicitamente mencionado pelo próprio Lázaro, no início de sua história, quando, na
primeira das suas reflexões narradas, referindo-se à rejeição do seu padrasto negro
pelo filho daquele, seu meio-irmão, diz:

¡Cuántos debe de haber en el mundo que huyen de otros porque no se


veen a sí mismos! (30).

Da mesma maneira, um outro motivo inicial terá repercussões claras no final da


narrativa. Numa reflexão, já não narrada, mas colocada no tempo da enunciação,
Lázaro diz:

No nos maravillemos de un clérigo, ni de un fraile, porque el uno hurta de


los pobres y el otro de casa para sus devotas y para ayuda de otro tanto,
cuando a un pobre esclavo el amor le animaba a esto. (32).

É impossível evitar a lembrança dessa frase quando, no decorrer da história,


Lázaro nos puser perante a série de clérigos e frades corruptos que constituem cinco
dos seus nove amos – ou quatro dos seis dos episódios mais bem desenvolvidos.
Especialmente, a reflexão de Lázaro-narrador reforça no leitor a idéia de que ele já
não é capaz de enxergar a si mesmo, ou não quer fazê-lo, já que o Arcipreste de San
273

Salvador – de quem depende sua prosperidade – é o melhor exemplo de clérigo que


roubaria de sua paróquia para manter sua amancebada ("para sus devotas") e os
possíveis filhos tidos nessa relação ("y para ayuda de otro tanto").
Finalmente, um outro motivo inicial repercute nos parágrafos finais. É o da
justiça que pune a família de Lázaro – o pai, a mãe e até o padrasto -, justiça da qual
Lázaro é agente enquanto pregoeiro no final. Cabe não esquecer que Lázaro soube
eludir o serviço da justiça, quando isso implicava reais perigos, e renuncia a ser
ajudante do Aguazil. Prefere colocar-se como pregoeiro dessa justiça, num posto que,
além de eximi-lo de riscos, facilita-lhe os bons contatos com os mais poderosos.
De menor importância, talvez, quanto à estruturação fechada do texto, é a
presença de outros motivos que chamaríamos de "recorrentes". O mais mencionado
deles é, sem dúvida, o da fome, que, longe de diminuir – conforme indicariam as
aparências dos três primeiros amos de Lázaro – aumenta até chegar ao ponto em que
Lázaro deva alimentar o Escudeiro com as esmolas que obtém. A maior importância
estruturadora do motivo da fome talvez deva se ver em dois fatos: seu
desaparecimento depois do terceiro amo e sua solução definitiva, mediante o pacto
com o Arcipreste, que é fundamental na satisfação que Lázaro sente na hora de redigir
suas memórias.
O motivo da fome está implícito também na reiteração do motivo da garganta
de Lázaro, por ele mesmo considerada culpada da gula e, assim, julgada merecedora
da punição recebida das mãos do Cego. Porém a garganta aparecerá acostumada
com a fome e nada gulosa quando Lázaro chegar às mãos do Escudeiro.
Num outro sentido, a boca de Lázaro é considerada por ele próprio como
“medida” (170), ou seja, apta para anunciar a água que vende, como antecipação do
sucesso que terá como pregoeiro, ponto de partida de sua “buena fortuna” final.
Os três primeiros amos se encontram encadeados pelo motivo da fome e
Lázaro não apenas alude a isso diversas vezes, mas chega a fazer um balanço
comparativo dos três, ao admitir que, ao contrário do Cego e do Clérigo, o Escudeiro é
digno de lástima.
Finalmente, há uma coincidência que merece ser mencionada. No “Prólogo”, a
fim de exemplificar o desejo de louvação subjacente a diversas atitudes humanas, o
autor expõe o caso do bufão cujos hipócritas elogios o senhor premia com uma roupa.
Na narrativa de Lázaro, o Escudeiro se diz disposto a idêntica atitude de falsa
louvação, caso achasse senhor a quem servir. E esse Escudeiro, de quem Lázaro tem
pena e que é a caricatura do fidalgo castelhano tradicional, acabará sendo o modelo
de um Lázaro que já não se enxerga. Isso acontece quando, após quatro anos de
trabalho como aguador, Lázaro consegue poupar o dinheiro necessário para se
274

fantasiar de “homem de bem”. Com espada – mesmo que velha – na cinta, assumirá
a grotesca atitude de renegar o trabalho apenas em função de sua aparência, para
assim ser equivalente ao único amo que mereceu o único sentimento manifestado por
Lázaro: uma pouco valiosa lástima.
Em síntese, entendemos que a reiteração de motivos deixa ver claramente o
propósito de se superar a simples sucessão de acontecimentos como base da
narrativa. O autor de Lazarillo de Tormes preferiu tecer seu texto em torno de um caso
cujas origens deviam ser achadas no longo processo de estruturação daquele que, ao
narrar suas memórias, passaria de objeto de um documento a personagem literária.

O narrador
Já dissemos acima que uma das inovações de Lazarillo de Tormes consistiu na
incorporação do narrador de primeira pessoa à literatura moderna. O fato tem diversas
implicações que, entendemos, merecem a nossa análise.
O narrador de primeira pessoa significa a eliminação do narrador de terceira.
Quebra-se, assim, uma hegemonia permanente na literatura até então.
Em segundo lugar, o narrador de Lazarillo de Tormes é um “narrador-
protagonista”. Assim sendo, o canal de comunicação dos fatos ao leitor será,
exclusivamente, o das suas palavras, pensamentos e sentimentos. O ângulo de
percepção dos acontecimentos será fixo e central. E o distanciamento do leitor com
relação aos fatos tenderá, em princípio, a ser mínimo; crescerá quando o narrador
relatar o que lhe narraram. Mas haverá uma distorção nessa intermediação do
narrador-protagonista no momento em que o leitor sentir que o narrador fica
condicionado radicalmente pela percepção errada do protagonista e que ele, leitor,
pode deduzir o que o protagonista não percebe. Isso acontece claramente no final da
história. E é exatamente o que elimina o mero caráter informativo da suposta carta e
coloca o leitor em cheio no universo do romance, em função da ambigüidade
estabelecida no discurso.
A ambigüidade do discurso significa a construção do leitor moderno, que deixa
de ser o receptor passivo, com direito apenas a diversos graus e tipos de emoção
derivada da leitura de uma mensagem predominantemente unívoca. Quando o leitor
de Lazarillo de Tormes descobre que a personagem está enganando a si mesma e
que pretende transferir-lhe esse engano, necessariamente faz uma revisão de toda
sua leitura do texto, porque percebe que Lázaro estende seu caráter pícaro – sua
astúcia trapaceira – à sua ação como narrador. Se quem narra é um pícaro, é
fundamental que o leitor desconfie de suas informações e interpretações. Há, então,
275

um espaço para a ambigüidade entre o narrador e o protagonista, que o leitor deve


preencher criticamente.
A ambigüidade de Lazarillo de Tormes decorre – olhando de outro ângulo –
de um distanciamento que é criado, à medida que a narração avança, entre a visão
que o leitor implícito tem dos fatos narrados e a visão do leitor explícito (“Vuestra
Merced”). Se ao autor da obra cabe atribuir a forte denúncia que sua obra significa,
parte dela está na própria “explicação” do caso, feita pelo narrador Lázaro de Tormes
perante “Vuestra Merced”. Mas a separação tende a passar despercebida para o leitor
real. O narrador volta-se para o tempo inicial da história e, a partir dele, avança na
direção da retomada do presente da enunciação. Mas, como há interferências do
narrador-intruso, que são antecipações desse tempo, a máscara do pícaro pode
começar a cair antes para o leitor implícito; com isso, abre-se um distanciamento
crescente entre a leitura deste e a que faria “Vuestra Merced”. Esse distanciamento
chega ao máximo quando o leitor implícito – o leitor do romance – não pode aceitar
as explicações finais de Lázaro sobre o “ménage à trois”, que, formalmente ao menos,
devem ser válidas para o destinatário da carta. O leitor do romance descobre, assim, o
sentido de denúncia do texto, que não pode ser atribuído à carta, especialmente
quando lemos que “Vuestra Merced” pertence ao mesmo segmento social corrompido,
graças à referência à relação de amizade que o vincula ao Arcipreste de San
Salvador.
Um outro aspecto a ser considerado é o da relação do discurso do narrador
com os tempos da enunciação e do enunciado. O passado narrativo supõe, em
Lazarillo de Tormes, uma identificação do narrador com o tempo do enunciado; já o
presente verbal significa a consideração explícita dos fatos através da ótica do
narrador, que é o protagonista já maduro. A análise das diferenças e relações entre
ambos os discursos poderá servir-nos para entender melhor o que separa ou aproxima
o protagonista do narrador e, assim, entender melhor a personagem. Com efeito, essa
deve ser analisada, em última instância, a partir de sua última ação, a de narrar.
Na ação de narrar, em Lazarillo de Tormes, o ponto de vista aparece colocado
permanentemente no protagonista. No entanto, o narrador não expressa esse ponto
de vista como simultâneo ao tempo do enunciado, mas como pertencente ao tempo da
enunciação. O narrador, assim, narra a inocência inicial de Lázaro (que levou a que o
livro fosse chamado, talvez por um leitor e não pelo autor, La vida de Lazarillo de
Tormes, num diminutivo que o final não justifica), mas não é inocente.
Ao mesmo tempo, o narrador já é a personagem na sua fase última de
evolução. Essa evolução o levou a um grau de alienação que faz com que ele não seja
capaz de se julgar criticamente.
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Dessa maneira, é possível distinguir, no discurso de Lazarillo de Tormes, três


tipos de frases:
a) aquelas relativas ao passado narrado por Lázaro, identificadas no tempo do
enunciado;
b) aquelas que são citações do pensamento de Lázaro-personagem, que, na
edição aqui utilizada, vão sistematicamente colocadas entre aspas e que pertencem
igualmente ao tempo do enunciado;
c) aquelas que – no tempo presente – referem-se claramente ao tempo da
enunciação. Fora numerosos verba dicendi ou similares, que servem apenas para
introduzir seqüências que correspondem ao tipo “a”, as frases do tipo “c” merecem
especial atenção, porque nelas aparecem as contradições que nos permitem separar a
personagem literária do autor da suposta “carta”.
Uma sumária análise desses três tipos de frases nos permite chegar às
conclusões que se seguem.
As frases do tipo “b” indicam a capacidade do protagonista de refletir
criticamente, registrada pelo narrador. E é sintomático que esse protagonista deixe
relativamente cedo de refletir criticamente sobre sua realidade imediata: a última
citação do pensamento de Lázaro-protagonista se refere ao Buleiro: “¡Cuántas destas
deben hacer estos burladores entre la inocente gente!” (125). Isso significa que, na
medida em que Lázaro-protagonista se aproxima de ser Lázaro-narrador, perde sua
capacidade de reflexão crítica.
Por outro lado, as frases do tipo “c” se acumulam no momento em que a
narrativa chega ao tempo da enunciação, isto é, já no final da narração,quando fica
clara a dissociação que transforma o até então narrador-protagonista de um fato
documental numa personagem literária.
Muitas das frases do tipo “c”, que poderiam caracterizar o pensamento crítico
do narrador, contrariam exatamente a situação final do protagonista no tempo da
enunciação. E servem para aprofundar a sua noção de alienação e revelar o caráter
literário do texto – quando se referem aos fatos imediatos ao tempo da enunciação,
ou seja, ao caso – ou, às vezes, para deixar que se perceba, numa releitura do texto,
quão incapaz é o narrador-protagonista de se ver criticamente – quando se referem a
fatos anteriores.

O sentido crítico
Da análise anterior decorre claramente que Lázaro não é apenas o
protagonista de uma história pessoal de ascensão social até certo ponto inusitada, se
levarmos em conta o imobilismo social pregado durante séculos pelas classes
277

dominantes e ainda muito forte na Espanha do século XVI. É muito mais o agente da
denúncia do preço a ser pago por essa ascensão.
Lázaro começa sendo a criança que simplesmente vê os fatos acontecerem.
Muito cedo, no entanto, ele era ainda capaz de analisar alguns desses fatos. Assim, a
primeira das suas reflexões registradas pelo narrador vê a contradição do meio-irmão
negro que se assusta da cor escura do seu pai:

'¡Cuantos debe de haber en el mundo que huyen de otros porque no se


veen a sÍ mismos!'. (30).

Mas essa mesma reflexão serve para que constatemos que, no final de sua
história, Lázaro é capaz de lembrá-la ao escrever, mas não de perceber que, na sua
situação final, pode-lhe ser aplicada integralmente. O que nos coloca perante a
constatação de que alguma coisa de mais grave deve ter acontecido ao longo da
história de Lázaro.
O acontecido é, sem mais, a perda dessa precoce capacidade crítica – ou, ao
menos, da capacidade de formular o pensamento crítico – porque a ascensão de
Lázaro culmina numa integração nos estratos inferiores da classe dominante; o que
exige silenciar essa capacidade.
Asim sendo, nesse processo de alienação de Lázaro reside o sentido crítico
mais forte do romance. Porque, ao longo da sua trajetória, Lázaro se depara com
seres que, fundamentalmente, negam nas suas ações o que parecem ser. E o grande
aprendizado de Lázaro, inicialmente destinado a simplesmente sobreviver, evolui para
idêntica salvação do parecer. O seu próprio relato não será, em última instância,
senão um gesto destinado a justificar perante “Vuestra Merced” o seu caráter de
“homem de bem” que, na verdade, não tem mais apoio que o daqueles com quem
aprendeu a fingir.
Assim, no conjunto, não é a denúncia mais grave aquela da hipocrisia dos
homens vinculados à Igreja, alvo principal, sem dúvida, da crítica; nem a caricatura da
honra realizada com base no Escudeiro. O mais grave é a incapacidade de Lázaro de
ver a si próprio como membro do mesmo universo corrompido que denuncia; a sua
incapacidade de perceber que o Arcipreste que agora o protege é tão corrupto como
todos os eclesiásticos anteriores; ou que ele próprio não é senão caricatura da
caricatura que era o Escudeiro.
Por outro lado, parece-nos pertinente a conexão feita por Rodríguez-Puértolas.
Acontece que o protagonista do Lazarillo de Tormes é um funcionário do Império,
talvez o menor de todos, mas faz parte da estrutura que encarna a ideologia
sustentadora dessa sociedade de aparências. Nela, o indivíduo é massacrado, como é
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massacrado o eu de Lázaro que, quando enunciado no início do texto, já não tem


outra função, a não ser a de apoio para uma sociedade alienante e um Estado todo-
poderoso. A vizinhanza entre a história de Lázaro e esse Estado fica explícita quando
o texto se fecha com a menção da entrada do Imperador em Toledo e das festas
havidas na ocasião. Não se trata de pretender com isso datar os fatos, mas de situar
uma história aparentemente insignificante no contexto que lhe dá um último sentido.

BIBLIOGRAFIA

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