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Prefácio

A variante moderna do conto surgiu na Itália medieval paralelamente à


afirmação do vernáculo como língua literária. A primeira coleção, compilada no
século XIII por um escritor florentino de nome desconhecido sob o título de
Novellino o Le Cento Novelle Antiche, contém muitas histórias conhecidas
enxertadas em obras antigas e medievais: aqui elas reaparecem transportadas
para o ambiente local, refletindo costumes da época, escritas num italiano
incipiente e desadornado. Note-se que a palavra novela indicava narrativas
curtas, muitas das quais não passavam de anedotas, antes esboços de contos do
que contos propriamente ditos.
O gênero obteria sua forma definitiva nas mãos de Boccacio, que lhe o
realismo, dando-lhe estrutura literária, variedade picante e não raro, conteúdo
filosófico. A fórmula boccaciana dominaria o gênero por séculos, nas obras dos
discípulos italianos do mestre, tais como Bandello, Firenzuola e Sacchetti, e
também nas de muitos autores de outros países da Europa.
Esgotado o veio, haveria um período de estagnação até o fim do século
XIX, quando se observa uma como que renascença nos contos regionalistas de
Verga, Deledda e outros; e, graças ao gênio de Pirandello, surge um novo tipo, o
da narrativa ao mesmo tempo regionalista e metafisica. Assinale-se a existência,
lateralmente, de uma corrente humorística filosofante, representada por
Fogazzaro e Panzini, assim como, mais tarde, da tendência futurista e absurda
nas obras de Botempelli e Buzzati. Outros autores, mais recentes, refletem
menos uma inspiração local do que as tendências gerais da literatura européia.

Giovanni Boccaccio (1313-1375) não foi apenas, como pensam muitos, o


narrador ousado de escabrosas histórias de amor, e sim um grande e típico
representante do espírito da Renascença.
De família rica, filho de pai florentino e mãe parisiense, nasceu em Paris e
passou os anos mais belos da ociosa mocidade na corte napolitana, namorando a
filha do rei Roberto. Verificada a sua incapacidade para as profissões práticas, o
pai deixou-o seguir os seus pendores artísticos.
A obra mais famosa de Boccaccio, o Decameron, reúne cem histórias que,
segundo a introdução, dez pessoas da alta sociedade florentina teriam contado
umas às outras durante os dez dias que passaram numa casa de campo para
esperar o fim da epidemia de peste de 1348. O maior valor do conjunto reside no
admirável quadro da época e do ambiente. As personagens, refletindo as
concepções do tempo, pouco se preocupam com as leis morais; nem por isso o
autor deixa de retratá-las com simpatia, contanto que obedeçam às leis do
instinto, e despede as flechas da sua ironia contra os hipócritas, especialmente os
eclesiásticos, que negam tais leis em público e as seguem às ocultas. Muitas
histórias nada têm de licencioso; a dos três anéis, por exemplo, é uma curiosa
apologia da liberdade religiosa.
Autor de muitas obras de erudição latinas, hoje de todo esquecidas (mas das
quais esperava a sua imortalidade), Boccaccio escreve um italiano visivelmente
influenciado pelos longos e complexos períodos de Cícero; mas os diálogos
conferem-lhe ao estilo colorido e vivacidade.

II

Franco Sacchetti (1335?-1400), que conheceu pessoalmente Boccaccio, é um


de seus muitos discípulos. Mercador quando moço, foi várias vezes embaixador
da sua cidade. Escreveu baladas, madrigais, sonetos, uma epopéia burlesca, e O
Livro das Trezentas Novelas (das quais se conservaram 223), historietas
cômicas, baseadas quase todas em fatos reais, seguidas de reflexões morais
cheias de bom-senso e que não impedem o próprio autor de rir dos tolos
enganados, nem dos intrujões castigados. A coletânea, escrita num estilo menos
alatinado e menos retórico do que o do Decameron, oferece dos costumes da
época uma imagem menos colorida, porém mais fiel.

III

Nicolò Macchiavelli (1469-1527), ilustre diplomata florentino, é sobretudo


conhecido como o autor de O Príncipe, tratado de política inspirado na longa
observação das atividades de César Bórgia, e no qual analisa a natureza humana
com o olhar frio de um cientista completamente desprovido de ilusões. Este
estudo impiedoso do ofício de homem de Estado respira o mesmo pessimismo
que encontramos nas demais obras do “Secretário Florentino” (Discursos Acerca
da Primeira Década de Tito Lívio, Histórias Florentinas e a comédia
Mandrágora).
A história de Belfagor representa, em toda a carreira literária de Maquiavel, o
único momento de riso. Aqui a sátira, brincalhona e sem amargor, é dirigida
contra as mulheres mandonas, dando forma chistosa a um dos lugares-comuns da
literatura de todos os tempos.

IV

Matteo Bandello (1485-1561), dominicano, agente diplomático da França,


freqüentador das cortes dos Sforzas, dos d’Este, dos Gonzagas, preceptor de
princesas, correspondente da rainha de Navarra, acabou a movimentada
existência como bispo de Agen. Aproveitou a sinecura para preparar a edição
completa de suas novelas, algo licenciosas.
Discípulo de Boccaccio, abandona o sistema de enquadrar as histórias numa
narrativa inicial. Em vez disto, antepõe a cada conto uma longa dedicatória onde
relata as circunstâncias (todas inventadas) em que lhe foi narrado o caso.
Estilista medíocre, interessa especialmente pelos temas de forte dramaticidade,
que fazem de seu volume um armazém de assuntos, a que recorreram
Shakespeare, Byron, Musset e muitos outros.

Agnólo Firenzuola (1493-1543) pôde, graças a alguns benefícios


eclesiásticos que conservou após ser dispensado dos votos monacais, devotar-se
inteiramente ao culto das letras. Comediógrafo e gramático, autor de diálogos e
de epístolas, sobrevive, no entanto, graças à sua obra de contista, na qual segue
as tradições do conterrâneo e mestre Boccaccio.
Foi sob a influência direta do Decameron que Firenzuola começou a escrever
as Conversações de Amor (inacabadas), em que três casais reunidos numa casa
de campo se divertem contando histórias. Censurado por alguns pela falta de
originalidade, por outros pela licenciosidade excessiva (pouco manifesta, aliás,
na história que traduzimos), é, todavia, considerado prosador terso e elegante.

VI
Giovanni Verga (1840-1924), romancista e contista da Sicília, é tido por
muitos como discípulo de Zola. Mas a compassiva solidariedade de Verga pouco
se aproxima do intuito científico-social do naturalista francês. Além disso, o
“verismo” do autor siciliano tem caráter preponderantemente regionalista e
campesino, tanto em seus romances — Os Malavoglia, Mastro Don Gesualdo —
como nos contos de A Vida dos Campos, ao passo que Zola representava de
preferência a existência do proletariado urbano. Estilista de grande concisão,
sabe Verga conferir extraordinária força sugestiva mesmo a narrativas de poucas
páginas.

VII

Antonio Fogazzaro (1842-1911), vicentino, hoje um tanto esquecido, foi, em


sua época, romancista muito lido e comentado. Em seus romances — Daniele
Cortis, Pequeno Mundo Antigo, Pequeno Mundo Moderno — se revela um
observador de primeira ordem, um esplêndido miniaturista, mas faltam-lhe
imaginação e capacidade de síntese. O romance O Santo, em que o autor pregou,
aliás com sensível moderação, uma reforma da Igreja, levantou muita celeuma e
foi posto do Index pela Santa Sé.
Bom contista, teve Fogazzaro a idéia não muito feliz de reunir seus contos em
volume intercalando-lhes uns intermezzos poéticos de gosto contestável, e aos
quais talvez se deva não haver a coletânea Fedele alcançado todo o êxito que
mereceriam narrativas como “Pereat Rochus” ou a reproduzida neste volume.

VIII

Massimo Bontempelli (1878 - ), professor do ensino secundário até que se


consagrou totalmente à literatura, membro da Academia Italiana, senador em
1948, foi sucessivamente adepto de várias correntes artísticas — o realismo, o
futurismo, o “novecentismo” —, chegando, por fim, a um “realismo mágico"
todo seu. Romancista de O Filho de Duas Mães e de Vida e Morte de Adria e de
Seus Filhos, ambos de tendência suprarealista, nos volumes de contos que
sucessivamente publicou — Sócrates Moderno, Outras Narrativas, Sete Sábios,
A Vida Intensa, A Vida Operosa — tende cada vez mais para um misto de
erudição, humor negro e vanguardismo experimentalista.



IX

Luigi Pirandello (1867-1936), siciliano, formou-se em Filologia Românica


nas Universidades de Roma e de Bonn, e durante anos militou no magistério
secundário.
Colaborando acessoriamente em revistas, como crítico. Um revés de fortuna o
obrigou a intensificar a atividade literária. Alcançou algum êxito em 1904, com
o romance O Falecido Matias Pascal, mas só em 1921 conseguiu projetar-se
definitivamente com a peça Seis Personagens em Busca de um Autor,
representada, discutida e imitada no mundo inteiro. Esta peça e outras —
Henrique IV, Assim Ê Se Vos Parece, O Homem, a Besta e a Virtude, A Cada um
a Sua Verdade, etc. — tornaram-no famoso como renovador do teatro moderno,
e foi como tal que obteve o Prêmio Nobel em 1934.
Só após o triunfo pleno do teatro pirandelliano começou a ser reunida em
volumes a imensa produção novelesca do autor: são 15 volumes subordinados ao
titulo coletivo Contos Para um Ano, e neles encontramos as primeiras variantes
de muitas tragédias e comédias de Pirandello. Os contos apresentam o escritor
como adepto de um regionalismo realista e satírico e, ao mesmo tempo, como o
introdutor de toda uma problemática metafísica no gênero da narrativa. O
conjunto apresenta uma. visão antinômica profundamente pessimista do mundo e
do destino humano.

Grazia Deledda (1871-1936), nasceu em Nuro, cidadezinha da Sardenha, de


que o pai foi prefeito, e lá permaneceu até a idade de vinte e cinco anos. Depois
do casamento transferiu-se para Roma, levando consigo a lembrança viva da sua
terra estranha, arcaica e pitoresca, onde ainda sobreviviam intactas formas
devida patriarcais, tradições medievais, preconceitos e superstições de toda
espécie. Era, numa palavra, um universo eminentemente poético, que a arte de
Grazia Deledda revelaria aos leitores da Itália, e, após a concessão do Prêmio
Nobel, em 1926. do mundo inteiro.
Essa arte, essencialmente instintiva e de grande originalidade. patenteia-se em
seus romances Caniços ao Vento, A Mãe, Cinza, etc., e em várias coletâneas de
contos, onde revive a sociedade primitiva da ilha: fidalgos decaídos, servos fiéis,
camponeses miseráveis, usurários, feirantes. pastores, cantadores cegos, curas de
aldeia, feiticeiros, mulheres sofredoras e dedicadas — pobres almas perseguidas
pela má sorte ou transtornadas pela paixão, resignadamente submissas ao
destino.



XI

Alfredo Panzini (1863-1939) é um dos últimos representantes literários de


burguesia liberal italiana. Levou uma vida pacata de professor e cronista. No
romance O Padrão Sou Eu registra, com saudade e sem ilusões, o
desaparecimento da sua classe. Em seus demais romances —A Lanterna de
Diógenes, Eu Procuro Esposa, A Virgem sem Virgindade — e em seus
numerosos contos, apresenta-se tradicionalista, de um humanismo ordenado,
hostil aos progressos da técnica, que escravizam e estandardizam os homens.
Sua vasta erudição, perceptível, através das muitas referências, livrescas de seus
escritos, seria prejudicial se não fosse temperada pelos toques leves de um
humorismo e de uma ironia bem pessoais. De um estilo altamente matizado,
cheio de intenções, Panzini é autor para as elites, o último dos clássicos italianos.

XII

Giuseppe Antonio Borgese (1882-1952), ensaísta, critico, romancista,


ensinava Estética na Universidade de Milão, quando, havendo recusado o
juramento de fidelidade exigido pelo regime fascista, teve de se exilar de seu
país. De 1936 em diante foi professor de Literatura Italiana na Universidade de
Califórnia. Em 1938 naturalizou-se norte-americano. Reintegrado na sua cátedra
de Milão, morreu em Fiesole anos após.
Para o gênero do conto Borgese trouxe um tom novo. Em suas narrativas,
reunidas nas coletâneas A Cidade Desconhecida, O Sol não Tramontou, As
Beldades, não é a ação, quase sempre tênue e insignificante, mas a atmosfera,
geralmente de sonho ou mesmo de pesadelo, que importa. Gosta de deixar
inacabadas as suas histórias, dando ao leitor uma sensação pungente de tristeza.

XIII
Corrado Álvaro (1895-1956) principiou a carreira literária com um volume
de versos de guerra, seguido do romance Vinte Anos (1930). No mesmo ano
publicou a novela por muitos considerada sua obra-prima, Gente de Aspromonte,
onde narra a pobre existência dos pastores da Calábria, que vivem em comunhão
com a natureza. Correspondente estrangeiro de vários jornais, trouxe da Turquia
um delicioso livro de viagem, e da Rússia um romance, O Homem É Forte,
crítica velada de todos os regimes de força, inclusive do fascista.
Seus contos, de extraordinária densidade, prendem pela força poética de um
estilo conciso e sugestivo.

XIV

Giuseppe Marotta (1902-1963) é, ao lado de Giovanni Guareschi, o


humorista mais popular da Itália. Seus livros — Os Alunos do Sol, Pedras e
Nuvens, São Januário Nunca Diz Não e o mais famoso de todos, O Ouro de
Nápoles (que forneceu o script para o filme do mesmo título) — contêm
pequenas composições de um gênero peculiar, meio-termo entre crônica e conto,
nas quais se apresenta quase sempre um tipo curioso de Nápoles, cidade do
escritor, retratado com ironia e ternura. É característica dessas narrativas a
tendência para não concluir, como se por esse meio quisesse o autor dar a
entender que, mais que o enredo, lhe importam as personagens e a sua atmosfera
sentimental.

XV

Dino Buzzati (1906 - ), redator do Corriere delia Sera e, sem contestação,


um dos grandes prosadores da Itália moderna, representa, no conto italiano, a
corrente do supra-realismo. Suas narrativas, reunidas em O Deserto dos
Tártaros, A Invasão dos Ursos na Sicília, Naquele Momento Exato, Sessenta
Contos (Prêmio Strega de 1958), grotescas e surpreendentes, cheias de um
humour lúgubre bem pessoal, quase sempre carregadas de significação
simbólica, exprimem de maneira contundente as inquietações da nossa época.



Contos Italianos

Giovanni Boccaccio
O Judeu Melquisedec e o Conto dos Três Anéis

Saladino, cujo valor foi tal que não somente o fez subir de homem humilde a
sultão da Babilônia, como também lhe permitiu alcançar muitas vitórias sobre os
reis sarracenos e cristãos, tendo gastado todo o seu tesouro em diversas guerras e
em grandíssimas magnificências, e precisando, em razão de certo acidente
inesperado, de boa quantidade de dinheiro, sem saber de onde pudesse obtê-la
tão prontamente como queria, lembrou-se de um judeu rico, de nome
Melquisedec, que usurava em Alexandria, e achou que este, se quisesse ajudá-lo,
tinha com quê. Era, porém, tão avaro, que por sua vontade nunca o teria feito;
por outro lado, o sultão não queria forçá-lo. Portanto,premido como estava pela
necessidade, deu tratos à imaginação para obrigar o judeu a prestar-lhe o serviço
e resolveu, enfim, recorrer à força, encobrindo-a, todavia, de algum pretexto.
Mandou então chamá-lo. Recebendo-o com familiaridade, fê-lo sentar e
disselhe:
— Homem galante, ouvi dizer a várias pessoas que és sapientíssimo, e muito
entendedor das coisas de Deus. Por isso gostaria muito de saber qual das três
Leis consideras a verdadeira: a judaica, a sarracena ou a cristã.
O judeu, que era, na realidade, homem sapiente, entendeu muito bem que
Saladino procurava atrapalhá-lo nas palavras para depois armar uma briga;
compreendeu que não podia colocar nenhuma das três Leis acima das duas
outras sem que o sultão conseguisse o seu intuito. Devia dar uma resposta com
que não se pudesse comprometer. Aguçando o espírito, encontrou prontamente o
que havia de dizer, e falou assim:
— Senhor, a pergunta que acabais de me fazer é realmente bela. Para dizer-
vos o que me parece a respeito, convém que vos conte uma historieta e que vós a
ouçais. Se não me engano, lembra-me ter ouvido várias vezes a história de um
homem poderoso e rico de outrora que, entre outras jóias de alto valor, possuía,
em seu tesouro, um anel mui precioso e belo. Em homenagem ao valor e à
beleza deste objeto, queria deixá-lo perpetuamente com seus descendentes.
Ordenou, pois, que aquele de seus filhos em cujas mãos se encontrasse o anel
como legado do pai se considerasse seu herdeiro, devendo ser honrado e
reverenciado pelos irmãos como o chefe da família. O filho a quem ele deixou a
jóia procedeu de maneira igual com seus descendentes, e assim o anel andou de
mão em mão por muitas gerações. Finalmente chegou às mãos de um membro da
família que tinha três filhos belos e virtuosos, todos muito obedientes ao pai,
razão pela qual os amava igualmente a todos os três. E cada um dos filhos (os
quais todos conheciam a tradição da jóia), desejando tornar-se o mais honrado
entre os seus, rogava como melhor podia ao pai, já idoso, que no momento da
morte lhe deixasse o anel. O bom homem, que os amava no mesmo grau, não
sabia resolver a qual deles deixar a jóia. Tendo-a prometido a cada um, queria no
entanto satisfazê-los a todos. Mandou então fazer, secretamente, por um bom
artífice, dois outros anéis tão parecidos com o primeiro que a própria pessoa que
os encomendara mal sabia qual fosse o verdadeiro. Chegando a hora da morte,
deu secretamente um a cada um dos filhos. Morto o pai, cada um quis entrar na
posse da herança e da honra, negando o mesmo direito aos dois outros. Para
comprovar que procedia com razão, cada um exibiu, nessa altura, o próprio anel.
Mas, sendo os anéis tão semelhantes um ao outro que não se podia saber qual
fosse o verdadeiro, a questão sobre qual seria o herdeiro legítimo do pai ficou
em pendência e ainda está pendente. Pois é este o caso, Senhor, das três Leis
dadas por Deus aos três povos, a respeito das quais me fizeste a pergunta. Cada
um deles crê possuir a herança de Deus, a sua Lei verdadeira e os seus
mandamentos; mas quem os possui de verdade, isso é ainda uma questão para
ser resolvida, como a dos anéis.
Saladino reconheceu que Melquisedec se saíra otimamente do laço que lhe
havia armado; deliberou então revelar-lhe abertamente a sua necessidade, para
ver se ele o queria socorrer. Assim fez, descobrindo-lhe o que se preparara para
fazer se ele não lhe tivesse respondido com (anta discrição. O judeu pôs
espontaneamente à disposição de Saladino toda a quantia de que precisava. Este
mais tarde lhe pagou tudo; além disso, deu-lhe valiosíssimos presentes e
considerou-o sempre seu amigo, mantendo-o junto a si num cargo elevado e
honrado.



















A Fidalga
Apaixonada e o seu
Confessor
Em esta nossa cidade, mais
cheia de enganos que de amor e fé, não faz ainda muito tempo viveu uma fidalga
ornada de beleza e bons costumes, a quem a natureza deu, como a poucas, alma
altiva e engenho sutil. O seu nome, como qualquer outro que pertença a esta
novela, embora o saiba, prefiro não o revelar, pois vivem ainda pessoas que com
isso ficariam aborrecidíssimas, quando o caso seria para se morrer de riso.
Apesar de sua alta linhagem, ela casou-se com um artífice tecelão. Nunca,
porém, conseguiu livrar-se de um sentimento de desprezo em relação ao marido,
porque, pensava, nenhum homem de baixa condição, por mais rico que fosse, era
digno de pretender a mão de uma fidalga. Como se convencesse de que, com
todas as suas riquezas, o marido não ia além de tecer uma mescla, urdir uma tela
ou discutir sobre o fio com as tecelãs, resolveu fugir-lhe aos abraços, sempre que
possível, e procurar, para sua satisfação, um homem mais digno dela.
Apaixonou-se por um homem na verdade excelente, um fidalgo em toda a força
da idade, e chegou ao ponto de não poder fechar os olhos de noite quando pelo
dia não o tinha visto. Mas o gentil-homem, como não percebesse nada, não lhe
deu nenhuma atenção; e a mulher, temendo os perigos que de tal ato pudessem
decorrer, não se atrevia a mandar-lhe recado por meio nem de carta nem de
criada.
Verificou, entretanto, que o objeto dos seus votos se dava muito com certo
frade, tido por todos, em razão de sua vida santíssima, embora bem gordo e
redondo, como clérigo de muito valor, e achou que este seria ótimo
intermediário entre ela e o jovem. Depois de refletir bastante sobre como deveria
proceder, foi, numa hora conveniente, à igreja onde o frade oficiava, mandou-o
chamar e pediu-lhe que a ouvisse em confissão.
O frade, que logo viu tratar-se de uma fidalga, atendeu-a com muito gosto, e
ela depois de confessada disse:
— Devo recorrer a vós, padre meu, para que me ajudeis e me aconselheis no
assunto que ides ouvir. Bem sei que conheceis meus pais e meu marido. Este me
ama ainda mais que à própria vida, nem posso nada desejar que logo dele o não
obtenha, permitindo-lhe a sua riqueza satisfazer-me em tudo Por isso eu também
o amo mais do que a mim própria; e, se cometesse, ou simplesmente pensasse,
alguma coisa contra a sua honra ou prazer, nenhuma mulher criminosa seria
mais digna do fogo do que eu. Ora, um homem, cujo nome ignoro, mas que me
parece pessoa de bem e, se não me engano, dá-se muito convosco, belo e grande
de aparência, que traja roupa castanha muito bem-feita, está-me assediando, sem
dúvida por não conhecer a minha maneira de pensar a respeito de tal assunto.
Não posso pôr a cabeça aporta ou à janela, nem sair de casa, sem que ele me
apareça logo: admiro até que agora não esteja aqui. Seus modos me aborrecem
muito, pois são modos assim que muitas vezes comprometem a mulheres as mais
honestas. Deliberei mandar-lhe dizer isto por meus irmãos, mas depois mudei de
idéia, pois os homens transmitem às vezes os recados de maneira que provocam
respostas ásperas, de onde nascem outras palavras, das quais se passam às vias
de fato. Para evitar todo e qualquer escândalo, calei-me e decidi falar convosco
antes de com qualquer outra pessoa, em parte porque pareceis ser amigo dele,
em parte porque vos convém censurar atos dessa espécie, não somente a amigos,
como também a estranhos. Assim, peço-vos, pelo amor de Deus, que o
admoesteis e o convideis a não perseverar em seus intuitos. Haverá outras
mulheres, talvez muitas, dispostas a dar-lhe atenção e gostar de seus olhares e
galanteios:; por mim, dão-me apenas um profundo desgosto, pois de modo
nenhum quero ocupar-me de tal matéria.
Disse, e baixou a cabeça como quem quisesse chorar.
O santo frade identificara logo o homem a quem a mulher se referia, e
cumulou-a de elogios por suas honestas disposições. Acreditando firmemente em
tudo o que acabara de ouvir, prometeu fazer o necessário para ela se ver livre do
enfado dos cortejos. Depois, sabendo-a muito rica, entrou a exaltar ante ela as
obras de caridade e esmola, e comunicou-lhe as suas necessidades; mas a mulher
interrompeu-o:
— Peço-vos ainda, pelo amor de Deus, que, se ele procurar negar o fato, lhe
digais que fui eu mesma que vos contei tudo e me queixei do seu procedimento.
Acabada a confissão e recebida a penitência, a mulher lembrou-se das
observações do frade acerca da esmola, encheu-lhe escondidamente a mão de
dinheiro, e pediu-lhe que dissesse missa por alma dos seus mortos; depois do
quê, despediu-se e foi para casa.
Pouco depois o fidalgo veio ter com o amigo, segundo costumava. Durante
certo tempo conversaram disto e daquilo, até que o frade o chamou à parte e com
muita cortesia lhe censurou os intuitos e a perseguição que estava movendo
contra a senhora que o acabara de visitar. O fidalgo estranhou bastante a
acusação, pois nunca tinha olhado para a mulher e até raramente passava em
frente à casa dela. Procurou desculpar-se, mas o amigo não o deixou falar:
— Não finjas estranheza, nem percas palavras em negar, porque nada
conseguirás. Não foi por nenhum vizinho que eu vim a saber do caso: ela
mesmíssima esteve aqui ainda agora, contou-me tudo e queixou-se amargamente
de ti. Essas brincadeiras não são mais para a tua idade; por outro lado, posso
afirmar-te que, se já encontrei mulher enfastiada com tais inépcias, foi aquela.
Peço-te, pois, por tua honra e para sua consolação, que fiques em teu lugar e a
deixes em paz.
O fidalgo, bem mais esperto do que o santo frade, compreendeu sem muita
demora a sagacidade da mulher. Fingiu vergonha e prometeu que nunca mais se
meteria com a vida dela; mas, apenas deixou o frade, correu logo a passar diante
da casa da mulher. No vão de uma pequena janela, esta esperava o momento de
vê-lo passar, e tão alegre e gentil se mostrou, que ele para logo considerou como
interpretara bem as palavras do frade. Desse dia em diante passou mais
freqüentemente por aquela rua, embora muito cauteloso e fingindo outros
quefazeres; e fazia-o com muito gosto seu e máximo prazer da dama.
Esta, percebendo, ao cabo de algum tempo, que não agradava menos ao
fidalgo do que ele a ela, concebeu o desejo de o acender ainda mais e, ao mesmo
tempo, certificá-lo do amor que por ele sentia. Voltou um dia à igreja a ter com o
santo frade, e, prostrando-se-lhe aos pés, pôs-se a chorar. Comovido, o clérigo
perguntou-lhe que tinha.



— Meu pai — disselhe a mulher — o que eu tenho, devo-o, ainda, ao vosso
amaldiçoado amigo do qual há poucos dias me queixei. Parece que ele nasceu
para minha grandíssima provação e para me fazer cometer coisas tais que nunca
mais eu possa ter alegria nem me atreva a pôr-me aos vossos pés.
— Como! — exclamou o frade — então não se absteve de te incomodar?
— Certamente não; pelo contrário. Desde o dia em que estive aqui, talvez se
zangasse por eu ter falado, pois, por uma vez que passava anteriormente pela
minha porta, passa agora sete vezes. Oxalá se contentasse com isso. Mas é tão
ousado e despudorado que ainda ontem se atreveu a mandar-me a casa uma
mulher com recados e galanteios, e, como se eu precisasse disto, enviou-me um
cinto e uma bolsa. Estou de tal modo ofendida que, não fora o meu receio do
pecado e minha afeição a vós, teria feito o diabo; mas contive-me e resolvi não
dizer nem fazer nada antes de vos falar. Já tinha devolvido a tal bolsa e o cinto à
mulherzinha que os trouxera, e despedira-a asperamente, quando me ocorreu que
talvez ela acabasse conservando-os e pretendendo que eu os aceitara. Sei que
essas mulheres às vezes procedem assim. Fi-la voltar, e encolerizada arranquei-
lhe os dois objetos da mão: ei-los aqui; trouxe-os para que lhos devolvais,
dizendo-lhe que não preciso de seus brindes. Graças a meu marido, tenho tantos
cintos e tantas bolsas que quase me afogo neles. E, se doravante ele não se
abstiver de tais práticas, com vossa licença hei de dizer tudo a meu marido e a
meus irmãos, aconteça o que acontecer; porque prefiro que ele receba maus-
tratos a que seja eu censurada por causa dele, ouvistes?
Com isto, sempre chorando tirou de sob a capa uma preciosa e bela bolsa e um
cinto de grande valor, e atirou-o ao regaço do frade. Este, acreditando em tudo o
que a mulher contara, tomou-os muito perturbado, e disse:
— Não me admira, ó minha filhinha. ver-te irritada com tais coisas, e, longe
de censurar-te, louvo-te muito por seguires em tudo o meus conselhos.
Repreendi o homem outro dia, e ele me fez grandes promessas, mas parece não
as cumprir; mas deixa estar, que hei de esquentar-lhe os ouvidos de tal maneira
que nunca mais te dará incômodo. Com a bênção de Deus, por enquanto não te
deixes vencer pela cólera a ponto de contar o caso a um dos teus, pois grandes
males poderiam disso resultar. Nem temas que nunca te possa ser levantada
alguma censura por esse motivo: eu serei sempre, perante Deus e os homens,
testemunha firmíssima da tua honestidade.
A mulher fingiu reconfortar-se um pouco e, conhecendo bem a cobiça dos
homens, deixou escapar estas palavras:
— Meu pai, nestas últimas noites têm-me aparecido em sonho vários defuntos
meus. Parece que estão sofrendo bastante, e não me pedem outra coisa senão
esmolas. Especialmente a pobrezinha da mamãe pareceu-me aflitíssima e tão
desgraçada que me dá pena. Deve sofrer muito de me ver atribulada por esse
inimigo de Deus. Gostaria imenso que dissésseis por suas almas quarenta missas
de São Gregário e algumas daquelas vossas orações, para que Deus as tire
daquele horrível fogo.
Assim falando, pôs-lhe na mão um florim, que o santo frade alegremente
recebeu, confirmando a mulher em sua devoção com boas palavras e muitos
belos exemplos e deixando-a partir com sua bênção.
Sem a menor idéia de que zombavam dele, mandou chamar o amigo. Este, mal
entrou, vendo-o perturbado, logo adivinhou que teria notícias da mulher, e
aguardou que o frade falasse. O frade repetiu-lhe as palavras da sua penitente,
admoestou-o em tom irado e injurioso, e lançou-lhe em rosto o pretenso crime.
Como o fidalgo ainda não percebia aonde o frade queria chegar, protestou
molemente, para não provocar dúvidas se por acaso a mulher lhe tivesse
entregado os presentes. Porém o frade, irritadíssimo, exclamou:
— Ousas negar, homem perverso? Ei-los; foi ela mesma quem mos trouxe, a
chorar: reconheces os teus presentes?
O fidalgo fingiu-se muito envergonhado:
— Pois sim, reconheço-os, e confesso-vos ter procedido mal; e, sabendo das
vossas disposições, juro-vos que nunca mais vos aborrecereis com este assunto.
Houve muitas palavras ainda; no fim, o frade simplório entregou a bolsa e o
cinto ao amigo, admoestando-o vivamente e pedindo-lhe deixasse de cuidar de
tais coisas, e só o despediu depois de novas promessas.
Apenas saiu da casa do frade, o fidalgo, certo agora do amor da mulher e
alegre com o belo presente, passou em frente à casa dela e cautelosamente lhe
mostrou ter um e outro objeto, o que causou grande prazer à fidalga,
contentíssima de ver tão bem encaminhado o seu desígnio.
Agora ela não aguardou mais outra coisa senão uma ausência do marido para
acabar a sua obra. Um dia aconteceu dever este viajar a Gênova: de manhã
montou a cavalo e foi-se embora. No dia seguinte, a mulher foi ter com o santo
frade, e depois de muitas lamentações disselhe, chorando:
— Meu pai, sabei que eu não posso mais agüentar. Outro dia vos prometi nada
fazer sem vos informar previamente. Pois, para verdes, quantas razões tenho de
queixar-me e chorar, sabei o que o vosso amigo, ou antes aquele diabo do
Inferno, me fez hoje antes do amanhecer. Tendo sabido, não sei por que má
sorte, que meu marido partira ontem de manhã para Gênova, hoje de manhãzinha
introduziu-se no meu jardim, subiu a uma árvore e atingiu assim a janela de meu
quarto; já a tinha aberto e ia entrando, quando eu, subitamente desperta, me
levantei em sobressalto e pus-me a gritar. Mas ele implorou-me por Deus e por
vosso respeito que não fizesse barulho. Atendi-o, então, e calei-me, mas nem por
isso deixei de correr à janela, nuazinha como estava, para dar-lhe com o batente
na cara. O maldito homem retirou-se, afinal: pelo menos não o ouvi mais. Vede
se é coisa que se faça ou que se agüente; por mim, acho que já sofri bastante por
afeição a vós, e não pretendo sofrer mais.
Ao ouvir estas palavras, o frade tomou-se o homem mais perturbado deste
mundo, nem sabia que dizer; limitou-se a perguntar várias vezes se estava bem
certa de que o intrujão era o seu amigo.
— Oxalá não pudesse ainda distingui-lo de outro! — exclamou a mulher. —
Foi ele mesmo, sem a menor dúvida, e, se porventura o negasse, não haveríeis de
o crer.
— Minha filhinha — replicou o frade — outra coisa não posso dizer senão
que foi grande atrevimento e ação bem feia. Por tua parte, fizeste o que devias
fazer, mandando-o embora. Mas, já que Deus te livrou da vergonha, peço-te
seguires mais uma vez o meu conselho, como já por duas vezes o fizeste. Sem te
queixares a nenhum de teus parentes, deixa o caso comigo; quero ver se
contenho esse demônio desenfreado que eu considerava um santo. Se posso
conseguir que desista de sua bestialidade, tanto melhor; se não, dar-lhe-ei
licença, com a minha bênção, para fazeres com ele o que a alma te sugerir.
— Está certo — respondeu ela — desta vez ainda não quero desobedecer-vos;
mas vede que ele não me incomode mais, porque — eu vo-lo afirmo — nunca
mais voltarei aqui por este assunto.
Sem dizer nada mais, como estonteada, partiu.
Apenas linha saído, chegou o fidalgo. Chamado à parte pelo frade, ouviu deste
a maior grosseria que jamais se disse a um homem e viu-se qualificar de desleal,
perjuro e traidor. Como já em duas ocasiões precedentes havia compreendido o
que queriam dizer as censuras do amigo, prestou-lhes muita atenção e procurou
induzi-lo a falar, por meio de respostas evasivas, perguntando até:
— Por que tanta cólera, ó mestre? Acaso crucifiquei a Jesus Cristo?
— Olhai o despudorado! Escutai o que ele diz! Dir-se-ia que se passou um
ano, ou mais, depois de suas últimas torpezas, e já não se lembra de nada. Já
esqueceste a injúria feita inda agora a uma pessoa? Onde estiveste pouco antes
do levantar do Sol?
— Não sei bem onde estive — respondeu o fidalgo. — De qualquer maneira,
vós o soubestes bem cedo.
— Ora se soube! Naturalmente acreditaste que, por estar-lhe ausente o marido,
a fidalga te devesse receber imediatamente nos braços! Sim senhor, és um
homem honesto, e tornaste-te andarilho noturno, ladrão que penetra em jardins
alheios e trepa às árvores para assaltar casas. Acreditaste, então, vencer pela
surpresa a santidade daquela mulher? Foi por isso que subiste à árvore até a sua
janela? Nada neste mundo lhe desagrada tanto como tu; nem tu deves agradar a
ti mesmo. Sem lembrar todas as demonstrações de desagrado que ela te deu,
realmente aproveitaste muito bem as minhas admoestações! Pois escuta uma
coisa: se ela até hoje se calou a respeito de tuas façanhas, não foi por amor a ti,
mas unicamente por atenção a meus pedidos; mas de agora em diante não mais
há de calar, pois eu lhe dei licença de fazer o que entender, se mais uma vez lhe
desagradares. Que farás se ela contar tudo aos irmãos?
O fidalgo, tendo entendido suficientemente o que lhe era mister saber,
tranqüilizou o frade como melhor pôde por meio de muitas e grandes promessas,
e deixou-o.
Na mesma noite, antes do amanhecer, estava já no jardim. Trepando à árvore,
achou a janela aberta. Penetrou no quarto e com impaciência lançou-se nos
braços de sua bela amante. Esta, tendo-o esperado com o mais intenso desejo,
recebeu-o com alegria e disse:
— Muito obrigada ao padre-mestre que tão bem te ensinou o caminho para
vires aqui.
E depois, trocando prazeres, conversando e divertindo-se muito com a
ingenuidade do frade tolo, e zombando de mesclas, cardas e pentes, começaram
a brincar com grande deleite. Depois combinaram seu negocio de maneira que,
sem mais recorrer ao frade, pudessem encontrar-se novamente e passar com
igual alegria muitas noites, o que Deus, por sua santa misericórdia, queira
conceder quanto antes a mim e a todas as almas cristãs que isto desejam.

Franco Sacchetti
O Cego Engenhoso


Bem mais avisado andou um cego de Orvieto, de olhos de Argos, ao reaver os
cem florins que lhe foram tirados, sem que tivesse de recorrer a qualquer juiz,
chamar advogados como árbitros ou invocar leis e decretos. Era este um homem
que já pudera ver; chamava-se Cola e fora barbeiro; perdera a luz dos olhos por
volta dos trinta anos, e, não podendo sustentar-se (por ser pobre) com os
proventos daquela profissão ou de outra qualquer, viu-se obrigado a esmolar,
postando-se ao pé da igreja de Orvieto, onde os demais moradores da cidade lhe
faziam a caridade pelo amor de Deus, de tal sorte que, ao cabo de não muito
longo tempo juntou cem florins, que secretamente guardava consigo numa bolsa.
Como continuasse a juntar muito mais dinheiro do que antes conseguira com a
tesoura e a navalha, ocorreu-lhe certa manhã, julgando ter ficado sozinho na
igreja depois de haverem todos saídos, esconder-se atrás do portão e colocar a
bolsa com os cem florins debaixo de um ladrilho do pavimento, que verificou
estar deslocado. Fez, pois, como resolvera, sem pensar que alguém que houvesse
ficado na igreja o pudesse observar.
Permanecera porém na igreja, por acaso, certo Juccio, merceeiro que fazia
suas devoções a S. João Crisóstomo, e, enquanto o adorava, viu Cola ciscar no
chão sem compreender por quê. Esperou a saída do cego, e logo depois dirigiu-
se ao portão, onde viu um ladrilho deslocado, e, levantando-o com a faca à
maneira de alavanca avistou a bolsa. Apanhou-a apressadamente, repôs o
ladrilho no lugar e com as supraditas moedas tornou a casa com a intenção de
nunca falar no caso a ninguém.
Antes que passassem três dias, teve o cego vontade de saber se o seu pecúlio
estava onde o soterrara; aproveitou uma oportunidade e foi ao ladrilho, debaixo
do qual escondera o seu tesouro; levantando-o à procura da bolsa e não a
encontrando, por um triz não desmaiou; mesmo assim recolocou o ladrilho no
lugar, e, melancólico, voltou à casa. Ali, refletindo em como num instante
perdera o que adquirira em muito tempo e aos poucos, ocorreu-lhe uma idéia
arguta, como sói acontecer aos cegos; chamou o filhinho, de nove anos de idade,
e disselhe:
— Vem, e leva-me à igreja.
O menino foi atender ao pai; mas, antes de saírem, este o chamou à parte e
disse:
— Vem cá, meu filho; virás comigo à igreja. Não me deixes: sentar-te-ás a
meu lado, à entrada, e olharás bem para todos os que passarem, homens e
mulheres, e observarás se não passa ninguém que me olhe mais que os outros, ou
ria de mim, ou faça algum gesto na minha direção, e repararás quem é Saberás
fazê-lo?
— Sim, meu pai — respondeu o menino.
Instruído, o menino dirigiu-se com o pai cego à igreja, e postaram-se os dois à
entrada. Atento às ordens do pai, o menino passou a manhã a observar os que
entravam e notou que o tal Juccio, ao passar por eles, fitara o pai com um
sorriso. Chegada a hora do almoço, o cego, antes de subir as escadas da casa,
interrogou o filho:
— Filhinho, nada viste daquilo que eu te disse?
— Pai — respondeu o menino —, não vi ninguém que te fitasse a rir senão
uma única pessoa.
— Quem foi? — perguntou o pai.
— Não sei como se chama — respondeu o menino — mas sei que é merceeiro
e tem loja perto dos Frades Menores.
— Serias capaz de me levar à loja dele e dizer quando o avistas? — volveu o
pai.
O menino respondeu afirmativamente, e o cego sem a menor demora,
disselhe:
— Então leva-me até lá, e, se o vires, avisa-me; e, quando eu falar com ele,
fica de lado e aguarda-me.
O menino conduziu o pai até à mercearia e avistando o merceeiro, advertiu-o
da presença deste. O cego, ao ouvi-lo conversar com os fregueses, adivinhou que
era Juccio, a quem conhecera antes de perder a visão. Abordando-o, disselhe que
desejava falar com ele em particular. O outro, meio desconfiado, levou-o para o
fundo da loja e perguntou:
— Cola, que boas novas me trazes?
— Irmão — respondeu Cola —, venho procurar-te com grande confiança e
grande amor. Como sabes, muito tempo faz que perdi a vista, e, sendo pobre e de
numerosa família, fui obrigado a viver de esmolas; e, pela graça de Deus e pela
bondade tua e dos outros orvietenses, cheguei a ter duzentos florins, dos quais
guardo cem à minha disposição em determinado lugar e entreguei outros cem a
parentes meus que mos devolverão daqui a oito dias. Portanto, se encontrasses
meio de aceitar esses duzentos florins e de me dar por amor de Nosso Senhor a
parte de lucro que te pareça necessário para meu sustento e o de meus filhos,
ficaria mui satisfeito, porque não há nesta cidade ninguém em quem tenha mais
confiança. Não quero que se faça qualquer contrato a respeito desse negócio,
nem que se diga nada a ninguém. Pelo contrário, peço-te, seja qual for a tua
decisão, que nunca reveles nada daquilo que acabo de te dizer; pois se
soubessem que eu tenho esse dinheiro, todas as esmolas que recebo, viriam a
faltar.
Ouvindo-o, Juccio considerou que poderia apoderar-se de mais cem florins e
respondeu-lhe com abundância de palavras. Prometeu que manteria o segredo e
pediu-lhe que voltasse no dia seguinte para receber a resposta. Foi-se o cego e
Juccio, aproveitando a primeira oportunidade, correu à igreja com a bolsa, em
que ainda não tinha tocado, e recolocou-a debaixo do ladrilho de onde a tirara.
Tinha pensado que os cem florins que Cola dissera ter à sua disposição eram
aqueles, e recolocou-os para que não falhasse a outra parte do negócio. Por sua
vez, Cola, ao ouvir Juccio prometer a sua resposta para o dia seguinte, supôs que
este, para ter os outros cem florins, era capaz de repor os primeiros antes de
responder-lhe. No mesmo dia tomou à igreja e, certo de não ser visto por
ninguém, levantou o ladrilho e, depois de procurar debaixo dele, encontrou a dita
bolsa. Retirou-a, repôs o ladrilho de qualquer maneira e voltou à casa, passando
uma noite feliz. No dia seguinte foi ter com Juccio. Este, ao vê-lo de longe, foi
ao seu encontro e perguntou:
— Aonde vai o meu Cola?
— Venho falar contigo — respondeu o cego.
Conduzindo-o ao fundo da loja, o merceeiro assim falou:
— A grande confiança que tens em mim faz que me esforce para resolver o
teu caso. Vê se me trazes os duzentos florins, e daqui a oito dias vou investi-los
numa compra de carne salgada e de queijo-cavalo da qual espero tirar bom lucro
para ti.
— Deus queira — respondeu Cola. — Vou ver se te trago hoje mesmo os cem
florins, e talvez o resto também; depois me darás o lucro que quiseres.
— Vai com Deus — disse Juccio — e torna quanto antes, pois resolvi fazer
essa compra porque Mestre Gomes está juntando muitos soldados para a Igreja e
julga-se que terão aqui o seu quartel-general e os soldados gostam muito
daquelas duas coisas. Vai, pois, torna já, que eu penso que ambos sairemos
muito bem do negócio.
Cola foi-se, mas não com a intenção que lhe supunha Juccio, porque desta vez
o cego levara vantagem a quem tinha vista. Chegando o dia seguinte, veio Cola
ter de novo com o merceeiro com expressão muito triste. Este, ao vê-la, foi ao
seu encontro cheio de sorrisos e disse:
— Muito bom dia, Cola.
— Nem queria tanto — Cola respondeu. — Já me contentava com um dia
como todos os demais.
— Que quer dizer isto?
— Quer dizer, nada feito — respondeu o cego — pois os cem florins que
escondi em certo lugar, já não os encontro: devem ter sido roubados; quanto aos
parentes a quem confiei os outros cem, divididos em partes, um diz que já não os
tem, outro, coisa muito pior, de sorte que não me resta senão cerrar os punhos,
tamanha a dor que sinto.
— Que má sorte a minha! — exclamou Juccio. — Quando julgava ganhar,
vou perder cem florins ou mais; e o pior é que quase já fiz a encomenda, e, se o
homem que me vendeu a mercadoria quiser que o negócio vá à frente, nem sei
como vou pagar-lhe.
— Lamento-o por ti — replicou o cego — mas ainda mais por mim, que fico
de tal forma que nem sei como vou viver, e terei de recomeçar a juntar um
capitalzinho. Mas, se Deus me fizer ainda a graça de me dar alguma coisa, nunca
mais o esconderei em buracos, nem o confiarei a ninguém, nem que seja meu
pai.
Ao ouvi-lo, Juccio pensou que talvez pudesse obter ainda alguma coisa em
compensação dos cem florins que lhe parecia ter perdido, e disselhe:
— Esses cem florins que estão com os teus parentes, se os pudesses reaver e
trazer-me, eu daria um jeito de conseguir outros cem, para que o negócio possa
ser feito; bem poderia acontecer que, sendo bom o lucro, tu te visses com
duzentos na bolsa.
— Meu caro Juccio — disselhe o cego —, se eu quisesse falar publicamente
dos cem florins que estão com os meus parentes, acusá-los-ia e obteria justiça;
mas não o quero fazer, pois, logo que se soubesse da coisa, eu perderia as
esmolas. Assim, pois, dou-os por perdidos, a não ser que Deus inspire melhor os
meus parentes. Nada deves, portanto, esperar de mim, já que a sorte dispôs desta
maneira. Mas aconteça o que acontecer, por mim vendo a tua boa disposição
para tornar-me rico considero recebido o bem que me quiseste fazer, como se
estivesse com os duzentos florins na bolsa, pois tu não tiveste culpa em não se
haver realizado o negócio. Farei, porém, uma coisa: mandarei um amigo meu
fazer uma feitiçaria para ver se me diz quem fez o furto; e, se alcançar algum
resultado, a ti voltarei. Fica com Deus, que eu não vou passar a noite aqui.
— Muito bem — disse Juccio. — Vai, e esforça-te de todos os modos para ver
se consegues encontrar e reaver o teu tesouro; e, se o alcançares, sabes onde
encontrar-me, caso necessites de alguma coisa. Acalma-te o mais que puderes e
vai com Deus.
Acabou assim o negócio do queijo-cavalo e da carne salgada, que não se
realizou; e o cego recuperou o seu bem, e disto se alegrou consigo mesmo por
muito tempo, dizendo: — “Por Santa Luzia, esse Juccio foi mais cego do que
eu.” E dizia realmente a verdade, pois pegara o vidente com o anzol, atirando-lhe
à guisa de isca cem florins para reaver outros cem.


Nicolò Macchiavelli
Belfagor

(Novela Agradabilíssima)

Lê-se nas memórias antigas das coisas de Florença uma história referida por
um homem santíssimo, mui respeitado por todos os seus contemporâneos. Certa
vez, absorto em suas orações, graças a elas pôde ver como um número infinito
de almas de míseros mortais que morreram sem a graça de Deus iam para o
Inferno, e como todas ou a maioria delas lamentavam ter-se casado, pois era
esta, e não outra, a causa de tamanha infelicidade. Minos e Radamanto, junto
com os outros juizes infernais, ficaram muito admirados e, não podendo dar
crédito às calúnias que aquelas almas lançavam ao sexo feminino, fizeram disso
um relatório regular a Plutão, tanto mais que a grita aumentava a cada passo.
Plutão deliberou examinar o caso de perto com todos os príncipes do Inferno e,
depois, tomar o partido que fosse julgado mais conveniente para descobrir a
falácia e saber toda a verdade. Convidou-os, pois, ao conselho, e falou nestes
termos:
— Embora eu, meus diletíssimos amigos, por disposição celeste e sorte fatal,
de todo irrevogável, possua este reino e não possa ser submetido a nenhum juízo
nem celeste nem mundano, contudo resolvi consultar-vos. De fato, revelam
grande prudência os mais poderosos, se se curvam eles mesmos às leis e levam
em conta a opinião alheia. Dizei-me como devo proceder num caso que poderia
redundar em infâmia para o nosso império. Todas as almas de homens que
entram em nosso reino pretendem ter sido causa disto a própria mulher, o que
nos parece impossível. Se condenarmos tal afirmação, talvez os levianos nos
acusem de crueldade; se não o fizermos, talvez os injustos nos julguem
demasiado indulgentes e pouco amantes da justiça. Querendo evitar uma e outra
acusação, e não encontrando o meio, decidimos convocar-vos para que nos
ajudeis com vossos conselhos e façais que este reino continue a viver sem
infâmia, como sempre tem vivido.
Cada um daqueles príncipes achava o caso importantíssimo e de grande
monta. Estavam todos de acordo em que era necessário descobrir a verdade, mas
discordavam quanto a maneira de o fazer. Uns julgavam que se devia mandar um
deles ao mundo, outros que vários, para conhecerem ali pessoalmente, sob forma
humana, o que era a verdade. Outros pensavam que não havia necessidade de
tanto incômodo: bastava obrigar várias almas, por meio de diversos tormentos, a
confessá-la. Como, porém, a maior parte se declarasse pela primeira opinião, foi
adotada esta. Ninguém, entretanto, se oferecia espontaneamente a tentar a
empresa; recorreram, pois, à sorte. Esta recaiu sobre Belfagor, arquidiabo, que
anteriormente — antes de cair do céu — era arcanjo.
Belfagor aceitou o encargo com repugnância, mas o poder de Plutão
constrangeu-o a executar o que o conselho resolvera, e teve de consentir nas
condições solenemente aceitas por todos. Tinha sido deliberado, com efeito, que
aquele a quem coubesse a sorte receberia imediatamente cem mil ducados, e
com estes viria a nascer no mundo, a casar-se sob forma humana e viver com a
mulher durante dez anos; depois. Fingindo morrer, voltaria e exporia a seus
superiores, fundado em sua própria experiência, quais são os encargos e os
incômodos do casamento. Fora resolvido também que durante o tempo em
apreço ficaria submetido a todos os achaques e males a que estão sujeitos os
homens, sem excluir a pobreza, a prisão, as doenças e todas as desgraças que aos
mortais ocorrem, salvo se por meio de engano e astúcia conseguisse livrar-se
delas.
Aceitas, pois, as condições e os ducados, Belfagor foi-se ao mundo e,
devidamente provido de cavalos e companheiros, entrou honrosissimamente em
Florença. Escolhera esta cidade, de preferência a todas as outras, para seu
domicílio, por lhe parecer entre todas a mais apta a suportar quem quisesse viver
empregando seu dinheiro em negócios. Fez-se chamar Roderigo de Castela e
alugou casa no bairro de Todos os Santos. Para que não lhe pudessem investigar
os antecedentes, afirmou ter partido de Espanha ainda pequeno; dali Fora à Síria
e a Alepo, onde ganhara tudo o que tinha; de lá, viajara para a Itália a fim de
casar-se num lugar mais humano, mais conforme à vida civilizada e à sua
própria índole.
Era Roderigo um belíssimo rapaz, que aparentava trinta anos. Em poucos dias
demonstrara quantas riquezas tinha e dera provas de sua liberalidade e
humanidade; e logo vários cidadãos nobres, providos de muitas filhas e pouco
dinheiro, ofereceram-lhe seus préstimos. Entre todas, Roderigo escolheu uma
belíssima rapariga chamada Honesta, filha de Américo Donati, que tinha mais
três filhas, quase em idade de casar, e três filhos já adultos. Embora de família
muito nobre e tido em bom conceito em Florença. era Américo bastante pobre,
tendo-se em vista sua numerosa prole e sua nobreza.
Roderigo celebrou núpcias esplêndidas e magníficas, nada omitindo de todas
as coisas que em tais festas se exigem. Pela lei que aceitara ao sair do Inferno,
estava sujeito a todas as paixões humanas; assim, logo entrou a deleitar-se com
as honras e a pompa do mundo, e a gostar de ser louvado entre os homens, coisas
que lhe acarretavam despesa não pequena. Por outro lado, não tardou muito a
apaixonar-se perdidamente por sua Dona Honesta, nem mais podia viver quando
a encontrava triste ou aborrecida por alguma razão.
Trouxera consigo Dona Honesta, para a casa de Roderigo, além da nobreza e
beleza, tanta soberba quanta nem Lúcifer tivera jamais; Roderigo, que
experimentara uma e outra, julgou superior a da mulher. A medida. porém, que
ela percebia o amor que lhe votava o marido, crescia-lhe sobremodo o orgulho.
Pensava que o podia dominar em tudo, dava-lhe ordens sem o menor respeito ou
piedade, e, quando ele lhe negava alguma coisa, não tinha escrúpulos em agredi-
lo com palavras grosseiras e injuriosas, o que causou a Roderigo incrível
aborrecimento. No entanto, o sogro, os irmãos, a parentela, as obrigações do
casamento e principalmente o grande amor que ela lhe inspirava, faziam-no
pacientar. Quero deixar de lado os grandes gastos que tinha para contentá-la,
vestindo-a segundo os novos costumes e as modas recentes, que a nossa cidade
varia por hábito natural; nem lembrarei que, para que ela o deixasse em paz, teve
ele de ajudar o sogro a casar as outras filhas, o que lhe fez despender também
uma importância considerável. Depois disso, desejando manter-se em boa paz
com ela, consentiu em mandar um dos irmãos da mulher para o Levante com
casimiras e outro para o Ocidente com sedas, ao passo que para o terceiro abriu
em Florença uma oficina de ourives, em que gastou a maior parte do dinheiro
que tinha. Além disso, nas festas de Carnaval e de São João, celebradas pela
cidade inteira segundo tradição antiga quando grande número de cidadãos nobres
e ricos se honram uns aos outros com esplêndidos banquetes, Dona Honesta,
para não ficar atrás das outras senhoras, queria que o seu Roderigo superasse a
todos os demais na organização de uma festa. Todas essas coisas, suportava-as
Roderigo pelos motivos já citados; apesar de gravíssimas, nem graves as teria
achado se tivessem introduzido a paz em sua casa, permitindo-lhe aguardar em
sossego o momento de sua própria ruína. Mas foi o contrário que aconteceu, pois
a índole insolente da esposa, além das despesas insuportáveis, carreava-lhe um
sem-número de aborrecimentos. Nenhum criado da casa a agüentava, não digo
por muito tempo, mas nem sequer por alguns dias. Para Roderigo era o mais
duro dos incômodos não possuir um criado que tivesse amor à sua casa. Os
próprios diabos que trouxera consigo como domésticos preferiam voltar aos
fogos do Inferno a viver no mundo às ordens daquela mulher.
Assim continuava Roderigo na sua vida tumultuosa e inquieta. Tendo já
consumido nas despesas desenfreadas o que reservara de dinheiro líquido,
começou a viver à espera das entradas que aguardava do Ocidente e do Levante.
Como ainda tivesse bom crédito, pediu dinheiro emprestado, para não ficar
aquém de sua condição; e já certo número de letras sacadas por ele circulavam
na praça, o que logo foi notado pelas pessoas que trabalham neste ramo de
negócios. Já a situação de Roderigo estava bastante incerta, quando de súbito
chegaram notícias do Levante e do Ocidente: aqui, um dos irmãos de Dona
Honesta perdera no jogo todo o dinheiro de Roderigo; ali, o outro, ao voltar em
um navio carregado de suas mercadorias, que aliás não estavam no seguro,
afogou-se com toda a carga.
Mal foram divulgadas estas novas, os credores de Roderigo reuniram-se.
Julgavam-no um homem liquidado, mas não podiam ainda tomar providências
por não ter expirado o prazo das cobranças; resolveram, pois, mandar observá-lo
habilmente para que num abrir e fechar de olhos não lhes fugisse das mãos. Por
sua parte, Roderigo, não vendo outro remédio e sabendo as obrigações que lhe
impunha o pacto infernal, decidiu fugir de qualquer maneira. Certa manhã
montou a cavalo e saiu da cidade pela porta do Prato, perto da qual morava.
Espalhada a notícia de sua fuga, os credores alarmados recorreram às
autoridades e puseram-se no encalço dele, acompanhados não apenas dos
meirinhos, mas também de muitos populares.
Quando se levantou atrás dele a polvorosa, Roderigo estava apenas a uma
milha de distância da cidade. Vendo-se acuado, saiu da estrada e procurou pôr-se
a salvo nos campos. Mas as numerosas valas que atravessam a região
impediram-no de prosseguir a cavalo, de sorte que abandonou a sua montaria e
continuou a fuga a pé, atravessando um campo sobre outro, abrigado pelas
vinhas e canaviais abundantes. Assim chegou à casa de João Mateus del Bricca,
lavrador de João del Bene. O acaso fê-lo encontrar-se com João Mateus, que
trazia de comer aos bois. O fugitivo recomendou-se a ele, prometendo-lhe que,
se o salvasse de seus inimigos, que o perseguiam para fazê-lo morrer na prisão, o
tornaria rico, coisa de que lhe daria uma prova antes mesmo de sair de sua casa;
se não o fizesse, concordava em que o próprio camponês o entregasse a seus
adversários.
Embora simples aldeão, João Mateus era homem de coragem. Julgava que
nada tinha que perder se tentasse salvá-lo, e prometeu-lhe o seu auxílio. Havia
diante da casa um montão de estrume: foi lá que o escondeu, cobrindo-o de
caniços e raminhos reunidos para fazer fogo.
Mal acabara Roderigo de esconder-se, chegaram os seus perseguidores. Por
mais ameaças que fizessem a João Mateus, não conseguiram levá-lo a confessar
que o vira. Partiram, pois, e, depois de procurá-lo todo aquele dia e mais o
seguinte, retornaram a Florença exaustos.
Cessada a agitação, João Mateus tirou Roderigo do esconderijo e pediu que
cumprisse a promessa, ao que Roderigo lhe disse:
— Irmão meu, tenho para contigo uma grande obrigação e quero cumpri-la de
qualquer modo; e, para que acredites que o posso fazer, dir-te-ei quem sou.
Nisto, revelou a sua identidade, contando em que condições saíra do Inferno e
como se casara. Explicou-lhe, a seguir, como pretendia fazê-lo rico. O seu
projeto,em resumo, era o seguinte: logo que João Mateus ouvisse que alguma
mulher estava espiritada, devia saber que era ele, Roderigo, que se apoderara
dela; nem sairia do corpo da vítima sem que João Mateus viesse tirá-lo: destarte,
o camponês poderia pedir aos parentes da endemoninhada o preço que
entendesse. João Mateus aceitou a proposta, e Roderigo partiu.
Passaram-se poucos dias, e por toda Florença espalhou-se a notícia de que
uma filha de mestre Ambrósio Amadei, casada com Buonaiuto Tebalducci,
estava espiritada. Os parentes não descuravam nenhum dos remédios a que se
recorre em casos semelhantes; assim, puseram-lhe na cabeça o crânio de São
Zenóbio e o manto de São João Gualberto. Roderigo, porém, zombava de tudo
aquilo. E, para dar a entender a todos que o mal da moça era um espírito e não
qualquer imaginação fantástica, falava latim, discutia coisas de filosofia e
descobria os pecados de muitos, desmascarando, entre outros, a um frade que
guardara em sua cela, durante mais de quatro anos, uma mulher vestida à
maneira de fradinho, coisas que enchiam a todos de espanto. Mestre Ambrósio
estava aborrecidíssimo e, tendo experimentado em vão iodos os remédios,
perdera já a esperança de curar a filha, quando João Mateus veio ter com ele,
prometendo-lhe a saúde da filhinha se lhe desse quinhentos florins para comprar
uma propriedade em Peretola. Mestre Ambrósio aceitou a proposta. Então João
Mateus, depois de mandar dizer certo número de missas e executar algumas
cerimônias para embelezar a coisa, achegou-se à moça e segredou-lhe ao ouvido:
— Roderigo, estou aqui a aguardar que me cumpras a promessa.
Ao que Roderigo respondeu:
— Com o maior prazer. Mas isto não chega ainda a tornar-te rico. Eis porque,
apenas saído daqui, entrarei na filha do rei Carlos de Nápoles, e de lá não sairei
sem que me chames. Então exigirás uma propina a teu contento, e depois disso
não deverás mais incomodar-me.
Nisto saiu do corpo da doente, com alegria e admiração de toda Florença.
Não passou muito tempo, e já se espalhava por toda a Itália outro acidente,
ocorrido com a filha do rei Carlos. Como o remédio dos frades não servisse, o
rei, que ouvira falar de João Mateus, mandou-o chamar. Chegando a Nápoles,
este, depois de algumas cerimônias fingidas, curou-a. Entretanto Roderigo, antes
de sair do corpo da princesa, disselhe:
— Olha, João Mateus, cumpri a promessa de te enriquecer. Assim,
desobriguei-me contigo, e não te devo mais coisa alguma. Portanto, andarás
acertado em nunca mais me aparecer, pois, assim como te fiz bem até hoje, de
agora em diante farei mal.
João Mateus voltou a Florença riquíssimo, tendo recebido do rei mais de
cinquenta ducados. Estava resolvido a gozar em sossego a opulência, sem
acreditar que Roderigo pensasse realmente em prejudicá-lo. Bem cedo, porém,
foi desiludido, pela noticia de que uma filha de Luís VII, rei de França, estava
espiritada. Essa notícia perturbou completamente a alma de João Mateus, que
não cessava de pensar na autoridade daquele monarca e nas palavras que lhe
dissera Roderigo. De fato, o rei, como não encontrasse remédio para o mal de
sua filha, e tendo ouvido falar da capacidade de João Mateus, mandou-o chamar,
primeiro simplesmente por um correio; mas, visto que o homem alegava certa
indisposição, viu-se o rei forçado a recorrer à Signoria, a qual obrigou João Mateus
a obedecer.
Desesperado, este foi a Paris, onde começou por explicar ao rei que
efetivamente havia curado, já, certas endemoninhadas, mas que isto não queria
dizer de maneira nenhuma que soubesse ou pudesse curá-las todas, pois há
algumas de natureza tão pérfida que não temem ameaças, nem encantamentos,
nem religião alguma; que todavia estava pronto a fazer o que pudesse, mas pedia
desculpa e perdão se não fosse bem sucedido. Enfastiado, o rei declarou que, se
não lhe curasse a filha, mandaria enforcá-lo. João Mateus viu-se em grandes
apuros, mas fez da fraqueza força: mandou vir a endemoninhada e, achegando-
se-lhe ao ouvido, recomendou-se humildemente a Roderigo, lembrando-lhe o
benefício prestado e como seria ingrato se o abandonasse naquele transe.
— Irra! — exclamou Roderigo. — Então, miserável traidor, ainda tens a
coragem de te apresentar diante de mim? Pensas poder-te gabar de que
enriqueceste com o meu auxílio? Pois hei de mostrar-te, a ti e a todos, que sei
dar e retirar qualquer coisa, a meu talante; e, antes que partas daqui, mandarei
enforcar-te, de qualquer maneira.
Em tais conjunturas, João Mateus, não vendo remédio resolveu tentar a
fortuna por outro meio. Mandou embora a espiritada e disse ao rei:
— Senhor, como declarei a Vossa Majestade, há muitos espíritos tão malignos
que com eles ninguém pode; pois este é um deles. Mas quero fazer uma última
experiência: se for bem sucedido, Vossa Majestade e eu leremos alcançado o
nosso fim; em caso contrário, estarei nas mãos de Vossa Majestade, que saberá
ter comigo a compaixão a que faz jus a minha inocência. Mande Vossa
Majestade erguer na praça de Nossa Senhora um grande estrado, em que caibam
todos os barões e todo o clero desta cidade; mande orná-lo de panos de seda e
ouro e erguer no meio dele um altar. Quero que domingo próximo Vossa
Majestade, com o clero e todos os seus príncipes e barões, se reúnam no estrado,
com pompa real, vestidos de trajes ricos e esplêndidos. Depois de celebrada a
missa. Vossa Majestade fará vir a endemoninhada. Quero, além disto, que num
ângulo da praça haja pelo menos vinte pessoas munidas de trompas, cornetas,
tambores, cornamusas, címbalos, timbales e outros instrumentos de toda espécie.
Quando eu levantar o chapéu, todos deverão tanger os seus instrumentos e
encaminhar-se em direção ao estrado. Estas coisas, junto com certos outros
remédios secretos, julgo farão partir o tal espírito.
O rei ordenou tudo isso. Chegou a manhã de domingo. O estrado estava cheio
de personagens e a praça de povo. Celebrada a missa, a espiritada foi conduzida
ao estrado por dois bispos e muitos senhores. Ao ver tamanho ajuntamento e
tanto aparato, Roderigo ficou quase tonto e disse consigo: — "Que terá
inventado esse miserável traidor? Pensa espantar-me com esta pompa? Não
saberá que estou acostumado a ver as pompas do Céu e as fúrias do Inferno? Hei
de castigá-lo, seja como for.”
Quando depois João Mateus se aproximou dele novamente e lhe pediu que
saísse, ele falou-lhe assim:
— Bela idéia a tua, na verdade! Que pensas alcançar com todo este aparato?
Acreditas escapar assim ao meu poder e à ira do rei? Miserável ladrão, farei
enforcar-te de qualquer maneira!
Como não cessasse de repetir estas palavras, acrescentando-lhes outras menos
injuriosas, João Mateus achou bom não perder mais tempo. Fez o sinal com o
chapéu, ao que todas as pessoas encarregadas de fazer barulho tocaram os seus
instrumentos e com um rumor que ao céu foram-se chegando ao estrado. O
barulho aguçou os ouvidos a Roderigo, o qual, não entendendo o que era aquilo,
assombrado pediu a João Mateus que lho explicasse. Este lhe respondeu mui
perturbado:
— Ai, meu Roderigo, é a tua mulher que vem buscar-te!
Era coisa admirável a alteração produzida na mente de Roderigo pelo nome da
mulher. Tamanho lhe foi o espanto que, sem indagar de si mesmo se era possível
que a mulher ali estivesse, fugiu sem dizer palavra e deixou a princesa livre;
preferiu voltar ao Inferno para dar conta de suas ações a submeter-se outra vez
ao jugo matrimonial, agüentando tantos fastios, despeitos e perigos. Assim
Belfagor, de volta ao Inferno, atestou os males que a esposa traz consigo a uma
casa, ao passo que João Mateus, que se mostrara mais esperto que o Diabo,
regressou a casa contentíssimo.

Matteo Bandello
A Fidalga Virtuosa e os Dois Barões



Eu não sei, Dona Cecília, minha mui amável e honrada senhora, se devo
atender tão levianamente ao vosso pedido de contar uma história, pois não sou
muito prático nessa profissão, em que vários membros desta nobre e distinta
companhia estão muito exercitados. Eles decerto se sairiam de tal encargo muito
melhor e com maior satisfação de todos; e eu teria maior prazer em ouvi-los do
que em falar eu mesmo. Como, porém, desejo que os vossos pedidos corteses
tenham sempre para mim valor de ordens, dir-vos-ei como melhor puder uma
história que me foi contada há poucos anos pelo senhor Miguel de Correggio,
meu tio, quando de volta do reino de Hungria, aonde, por ordem do Duque Luís
Sforza, acompanhara o senhor Dom Hipólito de Este, cardeal de Ferrara, que
viajou para tomar posse do bispado de Estrigônia.
Antes de começar a minha narrativa, devo dizer-vos que Matias Corvino,
como qualquer pessoa pode tê-lo ouvido, foi rei de Hungria. Por ser muito
belicoso e de larga visão, foi, entre todos os reis daquele reino, o mais famoso e
também o mais temido pelos turcos. Entre muitas outras virtudes suas, tanto no
campo das armas como no das letras, possuía a de ser o mais liberal e mais
cortês dos príncipes da época. Teve como esposa Beatriz de Aragão, filhinha do
rei Fernando o Velho, de Nápoles, e irmã da mãe de Afonso, o atual Duque de
Ferrara, senhora excelentíssima, ornada de boas letras e costumes, e de todas as
outras virtudes que possam ter as mulheres de qualquer grau. Tão liberal e cortês
como seu marido o rei Matias, não tinha ela outra preocupação a não ser a de
constantemente honrar e recompensar a todos aqueles que disto lhe pareciam
dignos por alguma virtude. Por isso, à casa destes dois magnânimos príncipes
afluíam homens eminentes em diversas habilidades, e cada um deles era bem
visto e tratado conforme seu grau e merecimento.
Havia naquele tempo um cavaleiro boêmio, vassalo do rei Matias, também rei
da Boêmia. Descendente de família nobilíssima, valente e exercitado no manejo
das armas, enamorou-se de uma jovem mui formosa e nobre, considerada a mais
bela de toda a região. Tinha esta um irmão, o qual, embora fidalgo, era bastante
pobre e muito mal provido dos bens da fortuna. O próprio cavaleiro boêmio não
era muito rico; possuía apenas um castelo, e encontrava dificuldades em levar
uma vida digna de sua situação. Tendo-se enamorado da bela moça, pediu-a a
seu irmão e desposou-a com dote bem pequeno. Não se capacitara, antes, de toda
a sua pobreza, mas bastou levar a mulher a casa para que se lhe abrissem os
olhos. Começou então a compreender como estava mal guarnecido e como lhe
seria difícil prover à sua manutenção com as poucas rendas que lhe dava o
castelo. Era homem gentil e probo, que de maneira nenhuma queria gravar seus
súditos com impostos, extraordinários e se contentava com o censo que eles
costumavam pagar a seus antepassados, e que era bem pouco dinheiro.
Tendo, assim, compreendido que precisava de uma ajuda extraordinária, veio-
lhe à mente, depois de muito discutir consigo mesmo, ir à corte e pôr-se ao
serviço do rei Matias, seu senhor. Ali daria tais provas de suas capacidades e
empregaria tais esforços, que ele e a esposa poderiam, afinal, manter-se
convenientemente.
Sentia, porém, amor tão grande e tão fervente à esposa, que não lhe parecia
possível viver sem ela uma hora, e ainda menos estar demoradamente sem ela na
corte. Mas tampouco lhe agradava a idéia de levá-la consigo e conservá-la a seu
lado por onde a corte andasse. Passava dias a meditar acerca de tudo isso, e no
fim tornou-se muito melancólico. A esposa, jovem prudente e perspicaz, vendo
de que modo vivia o marido, pensou que por alguma razão ele estivesse
descontente com ela, e por isso lhe disse um dia:
— Meu maridinho querido, se soubesse que não vos desagradava, pedir-vos-ia
um favor.
— Pedi o que mais vos agradar — respondeu o cavaleiro. — Hei de cumprir
com prazer o vosso pedido, se isso estiver em minhas mãos, pois desejo tanto
agradar-vos quanto conservar a própria vida.


A mulher pediu-lhe, então, com muita humildade, revelasse o motivo do
descontentamento que se lhe notava no rosto. Tinha a impressão de que ele
estava de mau humor muito mais freqüentemente do que dantes; levava o tempo
a meditar, soltando suspiro e fugindo à companhia de todos aqueles que outrora
tanto lhe agradavam. Ouvidas estas palavras, o cavaleiro ficou pensativo um
momento e depois falou assim:
— Minha caríssima esposa, pois que vos agrada saber o motivo de minhas
cogitações e a razão por que me tornei melancólico, de bom grado vo-los direi.
Todos os pensamentos em que me vedes tão profundamente mergulhado miram
a um fim a saber, encontrar modo e meio para que ambos possamos viver
honradamcnte, como o exige a nossa condição; porque, considerada a qualidade
dos nossos parentes, estamos vivendo em grande pobreza. E o motivo disso é
que vosso pai e o meu gastaram muitos bens que nossos avós lhes deixaram por
herança. É sobre isto que tenho meditado o dia todo, esforçando a imaginação;
mas até agora não me veio à mente senão um recurso, o de me ir à corte de nosso
supremo senhor o rei Matias. que já me conhece das guerras. Não posso deixar
de pensar que dele obterei boa ajuda e conseguirei a sua benevolência. E, de
fato, príncipe liberalíssimo e amigo de todos os homens que o merecem; tratarei,
pois, de proceder de modo que, graças a seu favor e cortesia, possamos viver
mais folgadamente do que agora. Estou tanto mais convencido disto quanto
outrora, estando eu a serviço do voivoda da Transilvânia, contra os turcos, o
conde Cilia já me convidou a entrar ao da casa real. Por outro lado, vejo que
deverei deixar-vos aqui sem a minha companhia, e não posso acostumar minha
alma ao pensamento de me afastar de vós. Não tenho coragem de viver sem vós,
ó meu único amor; pelo contrário, vendo-vos tão moça e bela, sinto infinito
medo de sofrer alguma desonra. Sem dúvida alguma, basta que eu parta para que
os barões e os fidalgos da região empenhem todo o seu esforço em conquistar o
vosso amor. Se tal acontecesse, eu, desonrado, não mais poderia mostrar-me
entre homens de valor. E este o laço que me mantém ligado aqui, sem que me
anime a tomar as providências de que necessitamos.
Acabais de ouvir, pois, minha esposa caríssima, a razão de minhas
preocupações.
A mulher, que era corajosa e valente e amava infinitamente o marido, vendo
que este concluíra o seu raciocínio, impôs ao rosto uma expressão alegre e
respondeu-lhe assim:
— Ulrico (este era o nome do cavaleiro), eu mesma pensei muitas vezes na
grandeza de vossos e de meus antepassados. Vendo que, sem culpa nossa,
ficamos muito longe dela, andava procurando meio de melhorar a nossa
situação. Embora eu seja mulher, e vós outros homens acuseis as mulheres de
serem pouco animosas, lembro-vos que comigo se dá o contrário: tenho o
espírito bem maior e mais cheio de ambição, talvez, do que me convém. Eu
também gostaria de manter-me na condição em que se mantinha minha mãe, ao
que me lembra. Sei, porém, moderar os meus desejos, e sempre estarei contente
com o que vos agradar. Voltando ao caso: ao refletir, como vós, em nossa
situação, ocorreu-me que, como sois moço e valente, não havia coisa melhor do
que entrardes ao serviço de nosso rei. Agora que acabo de ouvir que o rei vos
conheceu na guerra, esta idéia me parece ainda mais acertada. Apraz-me crer que
o rei, que sempre soube apreciar judiciosamente a virtude dos outros, não poderá
deixar de assegurar-vos uma situação boa e conveniente. Não me atrevia a
comunicar-vos este meu pensamento pelo receio de ofender-vos. Mas, agora que
me abristes o caminho, não hesito em vos dar o meu parecer. Fazei, pois, o que
melhor julgardes para vossa honra e proveito. Quanto a mim, posto seja mulher
e, como já disse, de natureza ambiciosa, ávida de parecer honrada entre as outras
e de mostrar-me em público a mais honrada e brilhante de todas, no entanto, já
que a nossa fortuna e tal como vemos, contentar-me-ei de passar todo o tempo
de nossa vida convosco, neste nosso castelo. Não nos falta, graças a Deus, com
que nos mantermos honradamente e nos fazermos servir em tudo o que for
preciso. Contentar-nos-emos com o indispensável e gastaremos a nossa renda
modestamente e com medida. Com dois ou três criados e outras tantas criadas
ficamos à vontade, e até poderemos ter um par de cavalgaduras, levando vida
alegre e tranqüila. Se depois tivermos filhos, quando estiverem -criados e na
idade de servir mandá-los-emos à corte a viver com os outros barões. Se forem
homens dignos, adquirirão honra e bens; se saírem imprestáveis ou velhacos,
pior para eles. Deus bem sabe que o meu maior prazer seria vivermos juntos, na
boa ou na má fortuna, durante todo o tempo que nos resta. Mas conheço também
o vosso espírito, que prefere uma onça de honra a todo o ouro do mundo. Ao
ver-vos de tão mau humor, sempre julguei, entre outros pensamentos que me
ocorriam, ou que não estáveis contente comigo, ou que vos doía o não poderdes
exercitar-vos no ofício das armas e ter um lugar digno de vós entre os demais
cavaleiros. Como vos amo acima de todas as coisas deste mundo, sempre quis
que a vossa vontade fosse a minha; e, enquanto me for concedido viver, hei de
querê-lo, preferindo o vosso bem-estar à minha própria vida. Por isso, se
resolverdes partir ao serviço do rei Matias, suavizarei a dor, que sem dúvida me
há de assaltar em vossa ausência, com a alegria de ver-vos satisfazer um desejo
tão louvável como o vosso. Enganarei os meus pensamentos com a vossa doce
lembrança e com a esperança de vos rever muito mais alegre do que agora sois.
Estais com medo, dizeis, de que eu seja combatida por quem tentar debelar a
minha honestidade e tirar a minha honra com a vossa. Pois asseguro-vos que, a
menos que enlouqueça totalmente, é minha firme resolução morrer antes que
receber a mínima nódoa em minha pudicícia. Disto não posso dar-vos outro
penhor a não ser a minha sincera fé. Se soubésseis quanto a considero firme e
inviolável, sem nenhuma dúvida vos satisfaríeis e nunca vos ocorreria quanto a
ela a menor suspeita. Não sei que outra garantia dar: de qualquer maneira,
podereis julgar do meu procedimento pelas conseqüências dele. Jamais
esquecerei que um dia hei de vos prestar conta de como tiver vivido. No entanto,
aceitarei com infinito contentamento todos os meios e modos que julgardes útil
empregar para vos assegurardes, já que outro desejo não tenho senão o de vos
satisfazer. Mesmo que vos lembreis de me encerrar numa dessas torres de nosso
castelo até o vosso retorno, como eremita ali ficarei com prazer, se tiver a
certeza de com isto vos agradar.
Ouviu o cavaleiro estas palavras da esposa com vivo prazer, e, quando ela
acabou de falar, disselhe:
— Minha queridíssima consorte, muito louvo a grandeza de vosso espírito e
muito me agrada saber que partilhais a minha opinião. Também me dá
inestimável satisfação ouvir que estais firmemente resolvida a conservar a vossa
honra. Só tenho razões para vos exortar a perseverardes neste intento,
recordando-vos incessantemente que a mulher que perde a honra perde, ao
mesmo tempo, tudo quanto pode haver de bom nesta vida, e não merece mais o
nome de senhora. Pois bem, o projeto de que vos acabo de falar, não o realizarei
tão cedo, que é coisa importante. Posso-vos assegurar, porém, que, quando o
realizar, vos deixarei aqui por senhora e dona de tudo. Entretanto refletirei em
nossas necessidades e consultarei amigos e parentes, para depois adotar o partido
que for julgado o melhor. Até então, vivamos com alegria.
Como nenhum outro temor preocupasse o cavaleiro senão o de perder a
mulher, tão delicada, bela e moça, não cessava de pensar num meio que o
pusesse ao abrigo de qualquer surpresa. Ora, pouco tempo depois encontrava-se
ele. sempre com esta preocupação na cabeça, em uma roda de fidalgos.
Conversava-se de várias coisas, e alguém contou um episódio acontecido a um
fidalgo da região, o qual alcançara as boas graças e amor de uma senhora com a
ajuda de um velho polaco, que tinha fama de grande feiticeiro e exercia a
profissão de médico em Cutsiano, cidade da Boêmia, onde há veios de prata e de
outros metais em abundância.
O castelo do cavaleiro não era muito longe de Cutsiano. Pretextando regular
certos negócios seus naquela cidade, para lá seguiu e foi ter com o polaco,
homem muito idoso. Falou com ele demoradamente e, em suma, pediu-lhe que,
assim como ajudara a outro a realizar os seus desejos amorosos, lhe ensinasse a
ele um meio de estar certo de que a mulher não o traía e não o mandava para
Cornoalha. O polaco, que, como acabais de ouvir, era muito entendido em
assuntos de feitiçaria, disselhe:
— Meu filho, tu me pedes uma coisa muito grande, que eu nunca poderia
fazer, pois afora Deus ninguém te pode garantir a castidade de uma mulher.
Todas elas são naturalmente frágeis, muito inclinadas à volúpia, e facilmente
acedem às insistências dos namorados. São bem poucas aquelas que, requestadas
e solicitadas, sabem manter-se firmes. Estas, de fato, merecem toda a
consideração e honra. Mas tenho um segredo com o qual poderei em grande
parte satisfazer ao teu pedido. Valendo-me da minha arte, dentro de poucas horas
vou fazer-te, com certa composição de meu invento, uma pequena imagem de
mulher que continuamente usarás numa caixinha dentro do bolso e que poderás
olhar quantas vezes te ocorrer. Se tua esposa não romper a fé matrimonial, hás
de ver a imagem sempre tão bela e colorida como eu a tiver fabricado, e terás a
impressão de que acaba de sair das mãos do pintor. Se, pelo contrário, ela pensar
em entregar o seu corpo a quem quer que seja, a imagem tornar-se-á pálida; se
ela chegar a juntar-se a alguém, a imagem ficará negra como carvão e exalará
um mau cheiro tão forte que se sentirá em toda a cercania de maneira milagrosa.
Por outro lado, cada vez que for tentada, a imagem revestirá uma cor fulva de
ouro.
Muito agradou ao cavaleiro esse espantoso segredo, ao qual deu o crédito que
se costuma dar às coisas mais certas e verdadeiras, persuadido pelas informações
que ouvia sobre o polaco e a sua arte. Com efeito, os de Cutsiano contavam a
respeito dele os casos mais incríveis. Combinou, pois, o preço, obteve a sua bela
imagem, e voltou ao castelo, muito alegre.
Alguns dias depois, resolveu partir para a corte do glorioso rei Matias e
comunicou à esposa a sua deliberação. Pôs em ordem as coisas de casa, deixou o
governo de tudo à mulher. Preparadas as provisões da viagem, separou-se dela,
embora com muita tristeza e dor, e dirigiu-se a Alba Real, onde se encontravam
o rei Matias e a rainha Beatriz, que o receberam com benevolência.
Não tardou muito que todos na corte lhe criassem grande afeição. O rei, que já
o conhecia, mandou-lhe dar uma tença condigna e entrou a confiar-lhe muitos
negócios, que ele levou a cabo segundo a vontade de Matias. Mandado, depois, a
defender certo lugar infestado pelos turcos às ordens de Mustafá Paxá, conseguiu
repelir os infiéis para dentro de suas fronteiras e assim adquiriu fama de valoroso
soldado e prudente capitão.
Tudo isso aumentou muito a benevolência do rei, que, além do dinheiro e dos
presentes diários, lhe deu em feudo um castelo com boa renda. O cavaleiro,
persuadido de haver tomado excelente resolução ao ficar a serviço do rei,
louvava a Deus por tê-lo inspirado tão bem e alimentava esperanças cada vez
melhores.
O seu contentamento e alegria crescia ainda pelo fato de a imagem da mulher,
cada vez que ele a tirava da preciosa caixinha, estar tão bela e colorida como se
acabasse de sair das mãos do pintor.
Corria a fama na corte de que Ulrico possuía como esposa a mulher mais bela
e atraente da Boêmia e da Hungria. Eis porque certa vez, quando palestravam
numa roda de amigos, um barão húngaro lhe disse:
— Como é possível, senhor Ulrico, que, havendo saído da Boêmia há um ano
e meio, nunca tenhais voltado a ver vossa esposa, a qual, pelo que a fama
apregoa em altos brados, é moça tão formosa? Sem dúvida nenhuma, fazeis
pouco caso dela.
— Pelo contrário — respondeu Ulrico — amo-a como à minha própria vida. O
próprio fato de eu ter passado tanto tempo sem a ver é demonstração não
pequena da sua virtude e da minha fé. A sua virtude faz que ela esteja contente
de me saber ao serviço de meu rei. Assim, basta termos notícias um do outro e
visitarmo-nos por cartas, o que freqüentemente acontece. Por outro lado, a minha
fé e a obrigação que tenho para com o rei nosso senhor, de quem tantos e
tamanhos benefícios tenho recebido, as lutas contínuas que se travam nas
fronteiras com os inimigos de Cristo, fazem que eu subordine ao meu serviço o
amor a minha mulher. Tanto mais desejo que o meu dever para com o rei supere
o amor matrimonial, quanto seguro estou da fidelidade e constância de minha
senhora, sendo que, além de bela, ela é sábia, honestíssima e de ótimos
costumes, e ama-me acima de qualquer coisa neste mundo, não menos que aos
seus próprios olhos.
— Grandes palavras estas, senhor Ulrico — disse o barão húngaro. —
Afirmais estar seguro da fidelidade e pudicícia de vossa mulher, coisa que ela
mesma não poderia garantir. Por algum tempo ela manterá a promessa, nem dará
atenção às solicitações e aos presentes do mundo inteiro; mas lá um dia bastará
um único olhar de mancebo, uma simples palavra, uma lágrima quentinha, para
que se mostre flexível e entregue corpo e alma ao amante. Quem pode, pois,
estar certo de possuir tal segurança? Quem conhece os segredos do coração, que
são impenetráveis? Acho que ninguém, a não ser Deus Nosso Senhor. A mulher
é móbil e volúvel por natureza; é o animal mais ambicioso que pode haver no
mundo. Qual é, dizei-me por Deus, a mulher que não deseje e cobice ser
reqüestada, cortejada, seguida, honrada e amada? Acontece até, muitas vezes,
que aquelas que se julgam as mais espertas e com olhares fingidos pensam
agradar a vários amantes, caem na rede sem o perceber, e nela se emaranham de
forma que não se podem mais desvencilhar, como passarinhos pegados no visgo.
Não creio, senhor Ulrico, que Deus tenha concedido a vossa esposa maior
privilégio do que às outras mulheres, que todas são de carne e osso; não creio
que não possa ser corrompida.
— Eu, porém, estou persuadido ao contrário, e apraz-me pensar que a razão
está comigo. Cada qual sabe de si; o tolo sabe melhor o que possui do que os
seus vizinhos, por mais sábios que estes sejam. Pensai o que quiserdes, pois eu
não vo-lo posso proibir, e deixai-me pensar o que me agrada e me cabe em
mente, pois a minha crença não vos pode aborrecer, nem a vossa descrença me
prejudica. Em assuntos como este é lícito a cada um crer e pensar o que mais lhe
convém.
Muitos outros senhores e cortesãos assistiram a esta prática, e, como sucede
em tais circunstâncias, cada um pensava isto ou aquilo. As opiniões que tinham
sobre o assunto divergiam muitíssimo. Por não serem os homens todos do
mesmo temperamento e por muitos crerem saber mais do que os outros, e
também por se acharem todos tão obstinados em suas quimeras que não se
deixam convencer pela razão, a discussão quase acabou em gritos e tumulto..
A rainha teve notícia do fato. Como lhe desagradasse sobremaneira qualquer
espécie de contenda ou discussão dentro da corte, mandou vir todos os que
tinham participado da palestra e pediu que lhe repetissem exatamente as palavras
de cada um. Depois de ouvido tudo, declarou que realmente em tal assunto todos
podiam ter a opinião que quisessem; mas que era loucura presunçosa e temerária
julgar que todas as mulheres fossem iguais. Admitia-se que atribuir a todos os
homens os mesmos costumes seria erro gravíssimo, visto que todos os dias se
observava o contrário. Pois as diferenças e variações da natureza eram tantas
quantos os cérebros, entre as mulheres como entre os homens; duas irmãs ou
dois irmãos, nascidos do mesmo parto, eram, na maioria dos casos, de caracteres
diversíssimos, e o que agradava a um desagradava ao outro. A rainha concluiu,
portanto, afirmando que estava seguramente convencida de que o cavaleiro
boêmio tinha razão em pensar como pensava a respeito da esposa, pois tivera
tempo de conhecê-la; o procedimento dele era de homem sábio e experimentado.
Há, porém, neste mundo ambições insaciáveis; há homens mais obstinados e
temerários que os outros. Foi este o caso dos dois barões húngaros que tinham o
cérebro acima do barrete. Assim falaram eles à rainha:
— Senhora, tendes razão em defender as mulheres, sendo mulher vós mesma.
Mas. nós estamos convencidos de que, se pudéssemos ir aonde mora essa nova
mulher de mármore e falar com ela, sem a menor dúvida conseguiríamos
romper-lhe o coração adamantino, e ela acabaria por atender ao nosso pedido.
— Não sei o que aconteceria, nem o que faríeis — respondeu o cavaleiro —
mas bem sei que não me engano.
Uma palavra seguiu-se a outra, e as partes acabaram excitando-se. Os dois
barões, firmemente persuadidos de poderem levar a cabo qualquer negócio
destes, insistiram no que antes haviam dito. Juraram apostar tudo quanto
possuíam em bens móveis e imóveis que no prazo de cinco meses conseguiriam
obter da esposa do senhor Ulrico tudo o que desejassem, com a condição de que
o marido se obrigasse a não vê-la nesse ínterim e a não lhe dar qualquer aviso. A
rainha e todos os que assistiam à proposta riram às gargalhadas e zombaram
muito dos dois, os quais afinal disseram:
— Vós pensais, senhora, que estamos brincando; mas tudo o que acabamos de
dizer é sério. Gostariamos muito de ser postos à prova, pois assim se veria quem
está com a razão.
Como a conversação se prolongasse, o rei Matias soube de tudo e veio ter com
a rainha, empenhada em tirar da cabeça dos dois húngaros a sua mania. Apenas o
rei entrou, estes lhe suplicaram convidasse o senhor Ulrico a fazer uma aposta
com eles, pois estavam dispostos a perder todos os seus bens, e a vê-los
outorgados pelo rei ao senhor Ulrico, se não conseguissem realizar o seu intuito.
Pediam também que, se os fatos lhes dessem razão, o senhor Ulrico não
maltratasse a mulher e abandonasse a sua tese falsa, reconhecendo que as
mulheres se prestam por natureza às insistências dos namorados. O cavaleiro
boêmio, além de estar certíssimo da honestidade e fidelidade da esposa,
acreditava, tanto quanto no Evangelho, na prova da imagem. Durante todo o
tempo de sua ausência, não a vira nem pálida nem preta, apenas às vezes
amarelada (quando a mulher era requestada por algum apaixonado), para logo
depois tomar ao brilho de antes. Falou, pois, nestes termos aos dois barões
húngaros.
— Acabais de empenhar-vos numa grandíssima asneira, na qual estou pronto a
seguir-vos, com a condição, porém, de que depois possa fazer de minha esposa o
que me aprouver. Aliás, aposto todos os meus bens da Boêmia contra o que
acabais de oferecer em que jamais conseguireis induzir minha mulher a servir
aos vossos desejos. Obrigo-me, por minha parte, a não dizer palavra de tudo isto
nem a ela nem a mais ninguém.
O assunto foi ainda várias vezes discutido. Quando outra vez se encontraram
em presença do rei e da rainha, o boêmio, irritado com o menosprezo
demonstrado pelos dois húngaros, assim falou:
— Já que os senhores Uladislau e Alberto (eram estes os nomes dos dois
barões) estão dispostos a submeter-se à prova para demonstrar o que proclamam,
— se vós, rei sagrado, e vós, senhora rainha, consentirdes, estou pronto a aceitar
todas as condições que eles oferecem.
— Quanto a nós — responderam os dois húngaros — confirmamos agora tudo
o que já dissemos.
Fez o rei todo o possível para dissuadi-los da aposta, mas os dois húngaros o
molestaram tanto que ele afinal baixou um decreto real ratificando tudo o que
fora combinado entre as partes. Os dois barões pediram cópia do decreto real, e o
boêmio fez a mesma coisa. Nisto os húngaros concertaram seus planos.
Resolveram que o senhor Alberto se aventurasse primeiro; o senhor Uladislau
devia segui-lo ao cabo de mês e meio.
O senhor Alberto partiu, pois, com dois servidores bem equipados, em
direitura ao castelo do cavaleiro boêmio. Ali chegado, hospedou-se numa
estalagem e se informou acerca da castelã. Disseram-lhe que era belíssima e
sobretudo honesta, apaixonada pelo marido como nenhuma outra. O barão não
se apavorou com isso; no dia seguinte, ricamente vestido, foi ao castelo e fez-se
anunciar. A senhora, muito cortês como era, mandou-o entrar e acolheu-o mui
gentilmente. O barão admirou bastante a formosura da castelã, seus encantos e
seus modos polidos e honestos. Uma vez sentados, sem maior demora entrou a
expor que, movido pela fama de sua suprema beleza, viera da corte para vê-la, e
que a achava muito mais bela e graciosa do que se dizia. Assim continuou num
palavrório sem fim, pelo qual logo ela adivinhou o que o visitante buscava e
onde queria aportar a barca. A fim de que o barão chegasse ao porto o mais cedo
possível, fingiu escutar-lhe com interesse as palavras de amor, e até pareceu
animá-lo. O barão, que, ao contrário do que pensava, era homem de pouca
prática e nenhuma esperteza, acabou por confessar, durante a conversação, que
estava fortemente enamorado da fidalga. Mostrou-se esta um pouco aborrecida
com tais palavras, mas não deixou de lhe fazer boa cara, de forma que o húngaro
durante dois ou três dias não cessou de assaltá-la. Não tardando a perceber que
se tratava de um passarinho de pluma nova, resolveu a senhora pregar-lhe uma
peça de que ele não se esquecesse pelo resto da vida. Eis porque, ao cabo de
algum tempo, fingindo que já não podia defender-se de seus ataques, falou-lhe
desta maneira.
— Senhor Alberto, acredito que sois um verdadeiro bruxo, pois me é
impossível deixar de atender aos vossos desejos. Estou pronta a satisfazer-vos,
contanto que meu marido jamais venha a saber de nada; ele me mataria, sem
dúvida. Assim, para que ninguém de casa o veja, vireis amanhã ao castelo, à
hora do jantar, como de costume, e, sem parar aqui nem em parte nenhuma, ireis
imediatamente ao quarto do torreão principal, em cuja porta estão gravadas em
mármore as armas do reino. Chegando ali, fechareis a porta por dentro.
Encontrareis o quarto aberto, e eu entrarei pouco depois de vós. Ali ficaremos à
vontade, sem sermos vistos de ninguém, e poderemos aproveitar o tempo
gozando do nosso amor.
Era esse quarto uma prisão fortíssima, feita; outrora, com o fim de abrigar
algum fidalgo que o castelão não quisesse matar, mas manter aprisionado por
toda a vida. No entanto, o barão, depois de uma resposta que tanto lhe agradava,
julgava-se o homem mais feliz do mundo, e não trocaria a sua sorte por um
reino. Agradeceu do melhor modo, pois, à sua hospedeira, e voltou à estalagem
sem caber em si de contente.
No dia seguinte, à hora marcada, dirigiu-se ao castelo. Não encontrando
ninguém lá, encaminhou-se logo ao quarto, conforme as instruções da castelã.
Estava aberto. Entrou e empurrou a porta, que se fechou por si mesma. Era uma
porta construída de maneira que por dentro so se podia abrir a chave, e, além
disso, tinha por fora uma fechadura forte.
Ao ouvir o ranger da porta, a dama, que estava à espreita, não longe dali, saiu
do esconderijo e, dirigindo-se à entrada do quarto onde o barão acabara de
penetrar, fechou-lhe a porta por fora e levou a chave consigo.
Como foi dito, o quarto era no torreão. Havia nele uma cama bem
arrumadinha. A janela que dava luz era tão alta que só por uma escada se podia
atingi-la. Enfim, tudo bem arranjado para uma prisão honesta. O senhor Alberto
sentou-se, e aguardou, como os judeus esperam o Messias, que a castelã o viesse
visitar, segundo prometera. Enquanto aguardava, forjando mil quimeras, eis que
se abre uma portinhola rasgada na porta, tão pequena que mal se podia passar
por ela o pão e o corpo de vinho que é costume dar aos presos. Pensando fosse a
dona querida que vinha visitá-lo e oferecer-lhe o seu amor, levantou-se. Ouviu
então, pelo buraco da porta, uma voz de mulher:
— Senhor Alberto, a minha ama, D. Bárbara (era este o nome da senhora),
manda-vos dizer o seguinte: Como viestes a sua casa para roubar-lhe a honra,
prendeu-vos aqui como ladrão, tencionando impor-vos a penitência que julgar
oportuna e que merece o vosso crime. Eis porque, enquanto aqui estiverdes, se
quiserdes de beber e comer, será preciso que o ganheis a fiar, como fazem as
mulheres pobres para sustento de sua vida. Quanto mais fiardes, tanto mais e
melhor comida haveis de receber; se não fiardes, jejuareis a pão e água. Ficai
sabendo-o de uma vez por todas, pois nunca mais ouvireis dizer uma palavra
sequer a este respeito.
Assim falando, a mulher fechou a portinhola e voltou à senhora. O barão, que
pensara vir a amores e, para correr mais lesto, não comera quase nada aquela
manhã, tornou-se, depois de tão estranho anúncio, o homem mais aturdido deste
mundo. Como se lhe faltasse terra sob os pés, perdeu os sentidos e sem força e
alento deixou-se cair no chão. Quem o visse naquele momento, tê-lo-ia julgado
mais morto do que vivo. Ficou assim por algum tempo. Quando voltou a si, não
sabia se tinha sonhado ou se era verdade o que a donzela dissera. Mas logo notou
que estava guardado como um passarinho na gaiola, e esteve a pique de
enlouquecer e morrer de despeito e raiva. Depois de muito delirar, e sem saber
que fazer, levou o dia todo a passear no quarto, a tresvariar, a suspirar, a ameaçar
e a praguejar, amaldiçoando o dia e a hora em que lhe ocorrera a idéia estulta de
domar a honestidade da mulher alheia. Vinha-lhe também à mente a perda de
seus bens que daí decorria, pois os apostara perante o rei. Mas o que sobretudo o
afligia era a vergonha, a ignomínia e o vitupério que o caso inevitavelmente lhe
traria quando conhecido na corte — e não podia deixar de sê-lo por todos.
Parecia que lhe apertavam o coração, para lho arrancar, com um par de tenazes
mordentes; e quase desmaiava. Dando voltas furiosas pelo quarto, avistou num
dos cantos uma roca cheia de linho e, pendurado do linho, o fuso. Vencido pela
cólera, agarrou-os para os estraçoar, mas depois, não sei como, conteve-se.
Era hora do jantar. A donzela voltou, abriu a portinhola, cumprimentou-o e
disselhe:
— Senhor Alberto, venho buscar o fio que fiaste, para saber que jantar devo
trazer-vos.
O barão, se já estava furioso, ficou-o muito mais ao ouvir essas palavras, e,
cheio de rancor e revolta, entrou a lançar-lhe os piores insultos de quantos já
foram ditos a mulheres de má vida, injuriando-a sem conter-se, e ameaçando-a
como se tivesse em liberdade, num de seus próprios castelos. Ao que a donzela,
instruída pela sua senhora, respondeu a rir:
— Senhor Alberto, digo-vos, pela minha fé, que procedeis muitíssimo mal
dirigindo-me ameaças e injuriando-me. Todo o vosso delírio aí dentro nada
importa. Deveis saber, aliás, que portador não merece pancada. Minha senhora
quer saber a razão por que viestes aqui, e se alguém está a par de vossa vinda.
Sois obrigado a esclarecê-lo, além de fiar. Estais reduzido a tal situação que, se
supuserdes que podereis sair daqui sem fiar e responder às perguntas, estareis
dando pontapés no vento e triturando água no almofariz. Eis porque tereis de
suportar esta vida com paciência, já que outra coisa não podeis fazer, nem existe
remédio para o vosso caso; nem penseis haver outra solução, pois vos iludireis
completamente. A sentença firme e determinada é esta: não tereis outra coisa
para comer e beber senão um pouco de pão e água, a menos que fieis e reveleis
quem está a par do empreendimento que vos trouxe aqui. Se quiserdes viver,
mostrai-me o fio fiado e contai a coisa como é. Sem isso, aqui ficareis para
sempre.
Ao ver que o barão não tinha fiado nem estava disposto a dizer o que lhe
pediam, fechou a portinhola. O infeliz naquela noite não recebeu nem pão nem
vinho. Diz o provérbio: “Quem se vai deitar sem ceia, toda a noite se meneia”;
com efeito, ele não pôde fechar os olhos durante a noite inteira.
Logo que o senhor Alberto foi confinado no torreão, seus criados e seus
cavalos por ordem de Dona Bárbara, foram presos secreta e habilmente, e
conduzidos, junto com as roupas de seu senhor, a um lugar afastado, onde
ficaram bem providos de mantimentos, nada lhes faltando a não ser a liberdade.
Depois disso foi espalhado o rumor de que o barão tinha voltado para a Hungria.
Tornemos agora ao cavaleiro boêmio. Sabendo que um dos competidores
húngaros partira da corte rumo à Boêmia, continuamente retomava a imagem
encantada para ver se mudava de cor. Cada vez que o húngaro falava à castelã,
durante os três ou quatro dias em que procurara dobrá-la aos seus desejos, o
marido via a imagem tornar-se amarela, para depois voltar à cor antiga.
Verificando que, depois daqueles dias, não havia mais modificação nenhuma,
teve por certo que o barão húngaro fora repelido sem nada conseguir. Tal
convicção o encheu de contentamento, pois lhe dava segurança quanto à
honestidade da esposa. Todavia, não estava ainda completamente seguro nem
descansado, visto não saber se o senhor Uladislau, que ainda não tinha partido,
não acabaria por ter mais sorte do que o companheiro, conquistando o que este
não conseguira.
O barão aprisionada, que nada tinha comido no dia de sua captura, e passara a
noite seguinte em claro, com a vinda da madrugada pôs-se a pensar na sua
situação. Compreendendo que não sairia dali se não obedecesse à senhora, fez da
necessidade virtude e resolveu, para ganhar á vida, revelar a sua convenção e a
do companheiro com o cavaleiro boêmio, e tomar da roca e fiar. Embora nunca
tivesse praticado tal ofício, entrou a fiar como melhor podia, ensinado pela
necessidade. Lançou mão do fuso e foi fiando, ora fino, ora grosso, ora entre fino
e grosso. O fio que saía, de tão malfeito, teria provocado o riso de quem quer
que o visse. Contudo, passou a madrugada inteira a fiar.
À hora do almoço, lá chega a donzela do dia anterior. Abriu a portinhola e
perguntou ao barão que motivo o conduzira à Boêmia e quanto fio tinha fiado.
Cheio de vergonha, ele contou à donzela tudo o que combinara com o senhor
Ulrico, e mostrou-lhe depois um fuso de fio. A donzela disse então, a sorrir:
— O trabalho está andando bem. A fome faz o lobo sair da floresta. Fizestes
muito bem em contar-me tudo e fiar com tanta habilidade. Espero que desse
vosso fio possamos fazer umas camisas para a nossa ama, que lhe servirão de
esfregador cada vez que tiver comichão.
Ditas essas palavras, trouxe ao barão alguns bons pratos e, deixando-o em paz,
foi ter com a senhora, a quem mostrou o fio e narrou toda a história do pacto
entre o senhor Ulrico e os dois barões húngaros.
Conquanto assombrada com o laço que lhe haviam armado, Dona Bárbara
ficou muito contente de que as coisas andassem como andavam: assim o marido
não deixaria de convencer-se da sua integridade e virtude. Antes, porém, de
mandar-lhe qualquer informe, resolveu aguardar a chegada do senhor Uladislau
e dar-lhe o castigo que mereciam os seus conceitos temerários de desonestos.
Admirava muito que os dois barões houvessem tido tamanho atrevimento e tanta
presunção a ponto de arriscarem todos os seus bens numa empresa daquelas sem
saber com que espécie de mulher iam lidar. Deviam ser atrevidos e ingênuos ao
mesmo tempo.
Para não contar passo a passo os acontecimentos miúdos dos dias seguintes, o
que muito prolongaria a nossa história e talvez a tomasse aborrecida, dir-vos-ei
que o barão engaiolado aprendeu em pouco tempo a fiar bem razoavelmente,
consolando-se, destarte, de sua infelicidade. A castelã mandava-lhe pratos
abundantes e finos, mas não consentiu jamais em vir conversar com seu
prisioneiro. Entretanto o senhor Ulrico via e revia diariamente a sua bela
imagem, e a encontrava sempre a mesma, bela e colorida.
Várias pessoas observaram que o cavaleiro boêmio abria a bolsa infinitas
vezes e, tirando dela uma pequena caixa, examinava-lhe com atenção o
conteúdo, para depois fechá-la e recolocá-la na bolsa. Mais de um amigo lhe
perguntou o que significava tudo aquilo, mas ele evitava manifestar-se fosse a
quem fosse. Por outro lado, ninguém conseguiu adivinhar o segredo; de fato, a
quem podia ocorrer semelhante feitiçaria? Além de outras pessoas, até o rei e a
rainha tinham curiosidade de saber o que era que o cavaleiro examinava com
tamanha atenção e tão freqüentemente; não lhes aprouve, porém, interrogá-lo
acerca do assunto.
Já se passara mais de um mês e meio desde que o senhor Alberto partiria da
corte para se tomar castelão e grande fiandeiro. O senhor Uladislau, vendo que o
amigo, apesar do pacto, não lhe enviava nova nem mandado sobre o êxito de sua
tentativa, estava muito incerto e imaginava as coisas mais diversas. Mas acabou
convencendo-se de que o companheiro, levando a bom termo a sua empresa,
colhera o fruto desejado e, imerso no pélago vasto e fundo do prazer, esquecera a
combinação, não cuidando de comunicar-se com ele. Assim, resolveu pôr-se a
caminho e tentar a fortuna. Sem muito adiar a execução de tal projeto, preparou
tudo o que se lhe afigurava necessário para a viagem, e a cavalo, em companhia
de dois criados, partiu para a Boêmia. Ao cabo de vários dias de viagem chegou
ao castelo onde morava a bela e honestíssima senhora. Foi alojar-se à mesma
albergaria onde morara o senhor Alberto, interrogou a todos a respeito deste, e
soube que seguira vários dias antes. Muito admirado de tais notícias, não sabia
que pensar. Pensou em tudo, menos no que era verdade, e deliberou arrostar a
empresa que o fizera partir da Hungria. Ao informar-se das maneiras da senhora,
ouviu o que em toda a região era voz pública e notória a seu respeito, a saber,
que era gentil, sábia, afável e honesta como nenhuma outra.
Por sua vez, Dona Bárbara teve notícia da chegada do barão e, como soubesse
o motivo que o trazia, resolveu consigo mesma pagar-lhe também na moeda a
que fazia jus. O barão não tardou em aparecer no castelo no dia seguinte,
fazendo que vinha da corte do rei Matias e queria ver a senhora e prestar-lhe
homenagem. Foi logo introduzido, e a dona da casa o acolheu com rosto alegre e
afável. Entraram a falar sobre diversas coisas, mostrando-se a senhora muito
jovial e, como se diz, boa companheira, o que fez pensar ao senhor Uladislau
que em breve chegaria ao fim de seu empreendimento. Todavia, não quis, nesta
primeira visita, aludir a nenhum pormenor de sua tentativa, e manteve a
conversação em termos gerais. Tendo ouvido a fama de Dona Bárbara, de sua
beleza, sua graça, sua afabilidade e seus belos costumes, e como os negócios o
chamassem à Boêmia, não queria partir sem vê-la, e agora via que a realidade
superava muito a fama. Entre tais conversas decorreu a primeira visita. Depois o
senhor Uladislau tornou à albergaria.
Mal se retirara o visitante, a castelã resolveu não usar de muitas delongas com
ele. Estava irritadíssima com os dois húngaros que tão presunçosamente se
haviam lançado a tal empresa, como verdadeiros sicários, para lhe roubar e
manchar a honra e pôr-lhe em risco não somente a estima do esposo, mas até a
própria vida. Mandou, pois, preparar-lhe outra cela, contígua àquela em que o
companheiro vivia fiando.
Quando o senhor Uladislau voltou, ela o recebeu muito amistosamente,
fazendo-lhe crer que estava apaixonada por ele. Pouco tempo depois ele também
se encontrava preso. Pela portinhola, a mesma donzela declarou-lhe que, se
queria viver, devia aprender a enovelar: olhasse ao canto do quarto, e encontraria
umas bolas de fio e um tomo de fiar.
— Começai, pois, a enovelar— concluiu — sem perda de tempo.
Quem visse o rosto do barão naquele momento pensaria ver antes uma estátua
de mármore do que um semblante humano. Quase enlouqueceu de raiva, e pouco
lhe faltou para perder os sentidos. Vendo, porém, que não havia outro remédio
para a sua desgraça, passado o primeiro dia começou a enovelar.
A essa altura a castelã libertou os criados do senhor Alberto, e com os do
senhor Uladislau levou-os à porta da prisão de seus patrões para verem como
estes ganhavam a vida. Entregando então aos criados a roupa e os cavalos dos
dois barões, ordenou-lhes que se fossem embora. Ao mesmo tempo enviou ao
marido um mensageiro para relatar-lhe o que ela fizera.
O cavaleiro boêmio, de posse da boa notícia, foi cumprimentar o rei e a
rainha, e em sua presença narrou toda a história dos dois barões húngaros,
segundo lha referiam as cartas da esposa. Cheios de admiração, o rei e a rainha
louvaram sem reservas a sagacidade de Dona Bárbara, atinada e ao mesmo
tempo honestíssima. Quando, depois, o senhor Ulrico reclamou a execução do
pacto, o rei convocou o seu conselho e pediu parecer a todos. Por deliberação do
conselho, foi enviado o grande chanceler do reino com dois conselheiros ao
castelo do cavaleiro boêmio a fim de registrarem tudo o que os dois barões
haviam feito. Partiu a delegação, e prontamente se desempenhou de sua tarefa:
interrogaram a castelã, a donzela e o pessoal do castelo, e depois os próprios
barões, que a dama, alguns dias antes, reunira na mesma cela para que
ganhassem a vida juntos, um fiando e o outro dobando.
Redigido o processo, o grande chanceler voltou à corte, onde o rei Matias,
com a rainha, os principais barões do reino e todos os conselheiros, ventilaram o
caso; depois de longa discussão, em que a rainha tomou o partido de Dona
Bárbara e prestou seu auxílio ao cavaleiro boêmio, o sentenciou que o senhor
Ulrico entrasse na posse perpétua de todos os bens e feudos dos dois barões, para
si e seus herdeiros, e que os dois barões fossem banidos dos reinos de Hungria e
Boêmia, devendo serem açoitados pelo verdugo todas as vezes que lá pusessem
o pé. A sentença foi posta em execução: o cavaleiro boêmio obteve tudo, e os
dois infortunados barões, cientes da sentença fulminada contra eles, viram-se
desterrados dos dois reinos. Muitas pessoas, sobretudo os amigos e parentes dos
dois fidalgos, julgaram a decisão demasiadamente rigorosa e severa. Todavia,
ante a clareza do pacto firmado, todos tiveram de reconhecer que era justa,
devendo, no futuro, servir de exemplo àqueles que, levianos, sem nenhum
fundamento, pretendessem que todas as mulheres são iguais — quando todos os
dias se observa o contrário, pois as mulheres são tão diferentes entre si quanto os
homens.
Quiseram então o rei e a rainha que a valorosa e honesta senhora viesse à
corte, onde foi bondosamente acolhida por eles e olhada por todos com infinita
maravilha. A rainha nomeou-a dama de honor, mandou pagar-lhe farta
remuneração e quis-lhe sempre muito bem. O cavaleiro, acrescido em fazenda e
dignidades, e prestigiado pelo rei, passou longos anos em venturosa paz com sua
belíssima esposa. Não esqueceu o polaco, autor da imagem maravilhosa; ao
contrário, enviou-lhe rico presente de dinheiro e outras coisas.

Agnolo Firenzuola
Um Amigo Fiel


Há muitos anos já, viviam em Florença dois jovens de alta linhagem e grande
riqueza, um chamado Lapo Tornaquinci e outro Niccolò degli Albizi; os quais
desde a infância contraíram amizade tão estreita que parecia não poderem viver
senão juntos: e tendo-se mantido assim a amizade deles por mais de dez anos, o
pai de Nicolau passou desta vida, deixando-lhe uma fortuna de mais de trinta mil
ducados: e acontecendo que por aqueles dias Lapo necessitasse de algumas
centenas de ducados, Nicolau, sem aguardar pedido, não somente lhas pôs à
disposição, mas lhe mostrou com fatos e palavras que podia dispor do seu
patrimônio como ele mesmo. Sinais realmente de um espírito nobre e virtuoso,
de autorizar todas as esperanças, se a sua mocidade excessivamente livre e
naturalmente inclinada ao mal, a fortuna adquirida sem fadiga e as companhias
não muito louváveis não o tivessem mal encaminhado. Por isso, seguindo as
pegadas daqueles que se deitam pobres e acordam ricos, e passaram algum
tempo em aperturas, viu-se rodeado de um grupo de rapazes de vida tão
indecorosa que roubariam o diadema a qualquer santo; estes, acompanhando-o
ora a ceias, ora a jantares, levando-o de banquete a banquete, conduzindo-o de
uma cortesã a outra, faziam-no gastar tanto dinheiro que dava pena. Tendo
notado isto, o amigo mui sisudo e discreto, como aquilo lhe doía até o fundo do
coração, todos os dias ia ter como ele para recordar-lhe o seu interesse, e
censurá-lo pelas más ações, e, numa palavra, prestar todos os serviços a que o
obrigava a estreita amizade existente entre os dois; mas não obtinha resultado
algum, porque mais alcançavam os novos amigos, com os seus desonestos
prazeres e as suas más persuasões do que Lapo com os seus bons ensinamentos.
Percebendo os intentos deste, aqueles falaram tão mal dele a Nicolau, e o
criticaram tanto, que ele entrou a afastar-se do amigo, e acabou por fugi-lo,
mostrando que queria viver à sua maneira. Notando o quê, Lapo, cansado,
retraiu-se, e, como não pudesse fazer outra coisa, deixou-o levar a vida que
queria.
Daí resultou que, tendo o pobre moço continuado a levar a vida que não devia,
dentro em pouco lhe aconteceu o que não esperava. Pois precisamente naquele
tempo vivia em Florença uma viúva jovem, bela e graciosa, de maneiras
agradabilíssimas, a qual, habituada desde antes do matrimônio a dar mais
importância à fortuna que à honra, sem considerar a família de que era nascida e
aquela a que se aliara pelo casamento (que eram ambas de alta nobreza)
facilmente concedia o seu amor a mancebos que não somente eram de bela
aparência, senão que tinham a bolsa cheia; e assim, depois de enviuvar, já
cortara em segredo as asas a mais de um deles, posto se mostrasse a quem não a
conhecia mui de perto uma nova Santa Brígida. Mal que teve notícia da situação
de Nicolau e de sua maneira de viver, logo excogitou um plano em relação a ele.
Havendo encontrado o modo de chegarem a certa familiaridade, começou a lhe
dar mostras de sua paixão sem a dizer; depois, adiantando-se cada vez mais,
tingiu que não mais podia contê-la e pôs-se a solicitar o mancebo dia e noite com
missivas e recados. Não vos direi que Nicolau. a quem os seus amigos davam a
entender que era um novo Gerbino, disto não se haja vangloriado em presença
deles; então, cada qual se apressava a felicitá-lo, a louvar o objeto do seu novo
amor e a pôr a dama nas nuvens, o que freqüentemente lhes rendia gordas ceias e
riquíssimos jantares; e excitaram-no a ponto que ele já se não sentia bem senão
quando estava com ela ou quando nela falava com aqueles velhacos. Fingindo
morrer de amores, soube a dama fazer com que se encontrasse a sós com ele e
fizesse o que já fizera com muitos outros; e, como era bela e maneirosa, segundo
já se disse, e conhecia a arte de enlouquecer um homem melhor do que qualquer
cortesã que tivesse corrido as feiras por vinte anos, — ora com as palavras mais
belas do mundo, ora com as mais ásperas, ora simulando que não mais podia
viver sem o amor de Nicolau, ora inspirando-lhe ciúmes de algum novo amante,
ora forçando-o a pedi-la em casamento, e pouco depois não querendo, ora
repelindo-o, ora chamando-o de volta, ora Ungindo estar grávida dele, tomou seu
escravo a ponto que ele próprio não sabia mais em que mundo estava; e todas as
demais coisas lhe tinham saído da cabeça, os negócios interrompidos, os novos
amigos abandonados juntamente com os velhos; os prazeres, os jogos, os
jantares, tudo passara a depender dela, como os queria e quando os mandava.
A mulher, mal percebeu que o pássaro já não precisava de amansamento,
deixando de lado todos os demais afazeres, só tratou de aparar-lhe as asas, a fim
de que não lhe pudesse fugir; e dentro em pouco de tal modo as tosou que não
somente Lapo, que era amigo de verdade, mas até aqueles companheiros de farra
que o conduziram aquele perigo tiveram dele funda pena; estes consideravam
que tudo quanto a viúva lhe roubava era tirado da bolsa deles próprios. Nem lhes
faltavam razões para isto, porque a perversa mulher, com suas astúcias e artes, o
conduziu finalmente a tal estado que não só não lhes podia dar de jantar nem de
cear, mas não lhe sobrava o suficiente para as próprias necessidades.
Vendo-se reduzido a tal extremo, compreendeu Nicolau como lhe teria sido
melhor prestar ouvidos às rudes admoestações do amigo fiel que ouvir as doces
adulações de seus novos satélites; além disto, conheceu que doloroso fim tinha o
amor das mulheres que se entregam não por zelo amoroso, mas por cobiça de
dinheiro. Com efeito, Lucrécia, pois quero recordar que era este o nome da
viúva, vendo faltarem-lhe os meios e sabendo-o reduzido à última miséria, levou
também a termo o seu simulado amor, e começou a proceder com ele de maneira
que não lhe foi difícil perceber quão pouco o seu fogo aquecia. Mas o que mais
lhe doeu foi descobrir um novo namoro da amante, a qual, tendo ouvido por
aqueles dias que um certo Simão Davizi ficara riquíssimo por morte de seu pai
Néri, começara a apaixonar-se de tal modo pelos bens deste que ficava como
possessa, e se olvidara inteiramente de Nicolau. Moça realmente sagaz, avisada e
feliz, pois alcançara tão bem amansar os próprios olhos e adestrar o próprio
coração que descobria beleza nos outros desde que neles enxergasse o esplendor
do ouro e da prata, e sentia amor ao ouvir o som da moeda.



Ora, Nicolau, vendo irem os seus negócios de mal a pior, e sentindo-se
tratado de modo tão estranho por aquela a quem amava mais que a própria vida,
enquanto a paixão, ou melhor, o furor, em vez de. por tais esquisitices, diminuir,
não fazia senão crescer, e desejando estar com ela como dantes e não
encontrando meio para tal, tomado de cólera e indignação, só e desamparado,
queixando-se dela e de si mesmo, não sabia que fazer. Estava numa situação de
meter dó: os amigos dos bons tempos, que tinham vindo com a riqueza, com a
riqueza se foram; os parentes não queriam vê-lo, os vizinhos zombavam dele, os
estranhos diziam: — “Bem feito!”, os credores perseguiam-no. Lucrécia já não
queria saber dele. Depois de haver ponderado tudo isto muitas vezes de si para
si, caiu em tal desespero que pensou pôr fim a tantas atribulações com alguma
morte estranha; e talvez houvesse levado a cabo a sua idéia, se não se houvesse
lembrado da amizade outrora tão forte entre ele e Lapo; e, convencido de que
neste não se extinguira a lembrança de tamanho afeto, houve por bem, pondo de
lado qualquer outra consideração, ir ter com ele, e, contando-lhe as suas
desgraças, pedir-lhe auxilio pelo amor de Deus; e, sem falar a mais ninguém, foi
ao encontro dele e fez quanto planejara.
Lapo, embora tivesse deixado correr o marfim por não poder fazer outra coisa,
não deixara de sentir compaixão dele; e, vendo, pelas suas palavras, que estava
ainda mais arruinado do que ele pensava, ficou grandemente aflito; e,
percebendo que ele precisava de ajuda e não de conselho, disselhe com bondosas
palavras:
— Meu Nicolau, não quero proceder como aqueles que, depois de terem
advertido o seu amigo sem proveito algum, costumam lembrar-lhe os seus
conselhos; pois parece-me que eles outra coisa não procuram senão louvar-se a
si mesmos e repreender aqueles que não quiseram dar ouvidos a suas
admoestações. Sabes que, quando te vi entrar no caminho que te levou aonde eu
não queria, cumpri com o meu dever de amigo por meio de palavras; agora que a
coisa chegou a um ponto em que as palavras não bastam, não quero falhar no
mesmo ofício com fatos; pelo contrário fazendo conta que contigo errei, quero
partilhar a penitência contigo, ainda que me seja penitência muito agradável ver-
me obrigado a demonstrar as minhas disposições a um amigo. Quão louvável e
digno de encômio tenha sido sempre tal ofício em toda parte, claramente o
mostra o reduzido número dos homens que o praticaram; e, como desejo ser
colocado entre eles, chegarei aos fatos. Vem, pois, comigo.
E, sem dizer mais, tomando-o pela mão, levou-o a seu quarto; e, aberta uma
caixinha onde guardava o seu dinheiro, deu-lhe tal quantia que ele bem pôde
conhecer quanto o amigo o estimava; depois incitou-o com bondosas palavras a
criar ânimo,, fazendo-lhe entender que, gasta aquela quantia, não deixaria de o
socorrer quantas vezes necessitasse.
Depois que lhe fez tão liberal dádiva, dando-lhe assim boa esperança para o
futuro, começou com palavras amigas a criticar-lhe a vida passada e a repreender
habilmente as práticas da mulher; e estas palavras foram ditas com tamanha
gravidade que, posto não lha tirassem do pensamento de uma vez, contudo lhe
puseram no coração certo tédio do que fizera e acenderam nele certa vergonha:
já a amava, pois, contra vontade, e almejava a ocasião de extinguir tamanho
furor. Mas a boa da mulher, que não tardou a saber como Nicolau fora
reaparelhado, julgando que tudo tivesse acontecido em seu beneficio, e não
querendo perder o amante, voltou a persegui-lo com missivas e recados tão
insistentemente que ele se viu forçado a deixá-la reabraçá-lo. Dando-lhe a
entender que ele era mais belo que nunca, e que o amava mais que nunca, e que
tudo o que acontecera entre eles se dera por culpa não dela, mas de parentes e de
não sei que serva de sua casa, e que o excessivo amor que ele sentia por ela,
dado que muitas vezes o amor faz um olho são ver confusamente, o tornara
ciumento do que não era verdade nem ia sê-lo; numa palavra, com tanta
habilidade soube haver-se que o livrou de boa parte daquela quantia. E ter-lhe-ia
tirado todo o resto, se, como quis a sua má sorte, não lhe tivesse ocorrido uma
desgraça.
Certa noite, como Nicolau se encontrasse em casa dela e tivesse adormecido
após os deleites amorosos, Lucrécia, que ainda não dormia, ouviu por certos
sinais que o seu novo amante chegara ao portão; aí, estimulada de sua má
fortuna, que a chamava a responder pelas suas faltas, cogitando que Nicolau
tivesse, como se diz, atado o burro a boa cavilha, veio-lhe à cabeça chegar até ao
portão e divertir-se um pouco com o outro. Assim levantou-se, vestiu à pressa
um roupão qualquer, e calmamente desceu a uma portinha secreta de sua casa, e,
abrindo-a, sem qualquer hesitação, introduziu o amante. Palavra puxa palavra, e
as palavras puxam fatos: fiados no sono de Nicolau, demoraram os dois muito
mais que o necessário. Entretanto Nicolau despertou e, não encontrando
Lucrécia a seu lado, ficou surpreso; chamou-a várias vezes, não teve resposta, e
começou a suspeitar a verdade. Levantou-se depressa, vestiu-se no escuro o
melhor que pôde, e, munido de uma espada, nas pontas dos pés chegou lá onde
os dois estavam; sem que o percebessem, adiantou-se, e, ao vê-los estendidos
sobre uns sacos de farinha, sentiu de repente tamanha ira e furor que, sem pensar
no que fazia, pegou da espada e vibrou-lhes um golpe tão aprazível que a Simão
cortou a cabeça quase inteiramente e à mulher mal feriu num braço; e,
crescendo-lhe a raiva, continuou a golpear até que os viu jazer mortos lado a
lado.
O rumor atraiu todo o pessoal da casa, e entraram a derramar lágrimas sobre a
amorosa moça, e cada qual encontrou o que dizer; neste comenos, Nicolau, que
ainda não se capacitara do que fizera, saiu da casa, e na convicção de haver
realizado uma bela façanha, ainda furioso, correndo com a espada ensangüentada
na mão, dirigiu-se à casa de Lapo, desejoso de ouvir-lhe as congratulações;
senão quando tropeça com a tropa do alcaide, a qual, vendo-o correr daquela
sorte e julgando, como era verdade, que devia ter cometido algum crime,
prendeu-o sem mais nem menos e o levou à prisão, onde sem qualquer esforço
ou tormento confessou como se dera a coisa; e como homicida foi condenado à
morte.
Mas o fiel amigo, considerando que estava na hora de demonstrar a grandeza
da amizade, tanto fez, com a ajuda de parentes e amigos, intercedendo junto aos
juizes, gastando dinheiro, que lhe salvou a vida, comutando a pena em exílio
perpétuo em Barletta, na Apúlia. Nem se deu satisfeito com isto: desterrando-se
voluntariamente, abandonando a sua aprazível e deliciosa pátria, acompanhou-o
a uma terra estranha e áspera, onde graças à sua riqueza o proveu de tudo e
necessário; e, revertendo o espírito desvairado ao estudo esquecido das letras e a
mil outros exercícios louváveis, os dois se tornaram queridíssimos dos príncipes
daquela terra e sobretudo de El-Rei. Estes conseguiram depois, junto às
autoridades florentinas, que Nicolau pudesse morar em Nápoles a seu bel-prazer;
e até o fim da vida lá permaneceram os dois amigos, levando existência muito
honrosa. Havendo Nicolau morrido de súbito, Lapo mandou transportá-lo a
Florença e enterrá-lo em São Pedro Maior em sepultura condigna, com exéquias
pomposas, junto a seus outros parentes. Mas ainda, ordenou que após sua morte
o enterrassem ao pé do amigo, porque nem sequer a morte separasse aqueles
corpos cujas almas, a despeito de tantas ásperas vicissitudes, nunca puderam
separar-se.

Giovanni Verga

A Loba

Era alta, magra, tinha apenas uns seios firmes e vigorosos de morena —
conquanto já não fosse jovem — era pálida como se estivesse sempre atacada de
malária, e naquela palidez dois olhos grandes assim e dois lábios frescos e
vermelhos que comiam a gente.
Na aldeia chamavam-na a Loba, porque nunca estava saciada — de coisa
alguma. As mulheres benziam-se ao vê-la passar, sozinha feita uma cadela, com
aquele andar vadio e suspeito de loba faminta; ela lhes despolpava os filhinhos e
os maridos num abrir e fechar de olhos e trazia-os no rabo da saia só de os fitar
com aqueles olhos de satanás, ainda que eles estivessem diante do altar de S.
Agripina. Felizmente a Loba nunca ia à igreja, nem na Páscoa, nem pelo Natal,
nem para ouvir missa, nem para confessar-se. O P.e Angiolino, de Santa Maria
de Jesus, um verdadeiro servo de Deus, tinha perdido a alma por causa dela.
A Maricchia, coitadinha, menina boa e graciosa, chorava às escondidas,
porque era filha da Loba e ninguém se casaria com ela, embora tivesse o enxoval
no baú, e o seu rico pedaço de terra, como qualquer outra mocinha da aldeia.
Certa vez a Loba se apaixonou por um belo rapaz que regressara pouco antes
do serviço militar e ceifava feno com ela no terreno do tabelião; mas o que se
chama propriamente apaixonar-se, sentir arder a carne sob a camisinha de fustão
e experimentar, ao fitá-lo nos olhos, a sede que se sente nas horas cálidas de
junho, no fundo da planície. Ele, porém, continuava a ceifar tranqüilamente, com
o nariz nos feixes, e dizia-lhe:
— Que é que a senhora quer, Sinhá Pina?
Nos campos imensos, onde só ouvia, quando o sol batia de chapa, o estalar do
vôo dos grilos, a Loba amontoava feixe sobre feixe e gavela sobre gavela, sem
nunca se cansar, sem erguer o corpo um momento, sem encostar os lábios à
garrafa, só para estar sempre no encalço de Nanni, que ceifava ininterruptamente
e lhe perguntava de vez em quando:
— Que é que a senhora quer, Sinhá Pina?
Uma noite ela lho disse, enquanto os homens cabeceavam na eira, exaustos da
longa jornada, e os cães uivavam pela vasta planície negra:
— Eu quero você! Você é bonito como o sol e doce que nem mel. Quero
você!
— Pois eu, por mim, quero a sua filha, que é uma mocinha — disse Nanni a
rir.
A Loba afundou as mãos nos cabelos, coçando as têmporas sem dizer palavra,
e lá se foi; nem apareceu mais na eira. Em outubro, porém, tomou a ver Nanni
quando se extraía o azeite, pois ele trabalhava perto da casa dela e o ranger da
prensa deixava-a sem dormir a noite inteira.
— Pega o saco das azeitonas — disse à filha — e vem comigo.
Nanni estava empurrando com a pá as azeitonas para debaixo da mó e
gritando — “upa!” — à mula para que não parasse.
— Quer a minha filha Maricchia? — perguntou-lhe Sinhá Pina.
— Que é que a senhora dá à sua filha Maricchia? respondeu Nanni.
— Ela tem o que o pai lhe deixou, e além disso lhe dou a minha casa; para
mim basta que vocês me deixem um cantinho na cozinha para eu botar lá um
enxergão.
— Sendo assim, podemos falar nisso pelo Natal — disse Nanni.
Nanni vivia todo untado e sujo do azeite e das azeitonas postas a fermentar, e
Maricchia não o queria de modo algum; porém a mãe agarrou-a pelos cabelos,
ao pé do fogão, e disselhe entre dentes:
— Se não o pegas, eu te mato!
A Loba andava quase doente, e o povo dizia que o diabo quando envelhece se
faz ermitão. Já não vivia para todos os lados, já não se postava na soleira com
aqueles olhos de endemoninhada. O genro, quando ela lhos plantava no rosto,
aqueles olhos, punha-se a rir e puxava os bentinhos de Nossa Senhora para se
persignar. Maricchia ficava em casa amamentando os filhos, enquanto sua mãe
andava pelos campos a trabalhar com os homens, exatamente como um homem,
sachando, cavando com a enxada, cuidando do gado, podando as videiras, fosse
grego ou levante de janeiro ou siroco de agosto, quando os mulos deixavam cair
a cabeça desgovernada e os homens dormiam de bruços, abrigados pela parede,
ao norte. Naquela hora entre véspera e noa em que não sai a passeio mulher boa
Sinhá Pina era o único ente vivo que se via errar pela campina, sobre os seixos
abrasados dos atalhos, entre os restolhos requeimados dos imensos campos que
se perdiam no fundo da paisagem cálida, bem longe, perto do Etna nevoento,
onde o céu pendia, pesado, sobre o horizonte.
— Acorde! — disse a Loba a Nanni, que dormia no vaiado, junto à sebe
poeirenta, a cabeça entre os braços. — Acorde, que eu lhe trouxe o vinho para
lhe refrescar a garganta.
Nanni escancarou os olhos estonteados entre vigília e sono, vendo-a diante de
si direita, pálida, com o colo prepotente e os negros olhos de carvão, e estendeu
os braços, às apalpadelas.
— Não! não sai a passeio mulher boa na hora entre vésperas e noa! —
soluçava Nanni, escondendo o rosto entre as ervas secas do vaiado, bem no
fundo, arrancando os cabelos. — Vá-se embora, vá-se embora! Não volte mais à
eira!
Ela foi-se embora realmente, a Loba, reatando as soberbas tranças, olhando
fixo, ante os seus passos, os restolhos quentes, com os negros olhos de carvão.
Tornou, porém, mais de uma vez à eira, e Nanni não lhe disse nada. E até,
quando ela demorava a chegar, na hora entre vésperas e noa, ele ia ao seu
encontro, ao alto do atalho branco e deserto, com a fronte a suar; e depois
enterrava as mãos nos cabelos e repetia-lhe, todas as vezes:
— Vá-se embora, vá-se embora! Não volte mais à eira!
Maricchia chorava dia e noite, e plantava no rosto da mãe os olhos ardentes de
lágrimas e de ciúmes — feita uma lobinha, ela também — cada vez que a via
voltar dos campos, pálida e muda.
— Criminosa! — dizia-lhe. — Mãe criminosa!
— Cala-te!
— Ladra! ladra!
— Cala-te!
— Irei ao sargento, irei!
— Pois vai!
E ela foi, de verdade, com os filhos ao colo, sem nada temer e sem derramar
uma lágrima, como louca, pois agora ela também amava aquele marido que lhe
haviam dado à força, untado e sujo das azeitonas postas a fermentar.

O sargento mandou chamar Nanni; chegou a ameaçá-lo com as galés e a


força. Nanni pôs-se a soluçar e a arrancar os cabelos; não negou coisa alguma,
não tentou desculpar-se.
— É a tentação! — dizia. — É a tentação do inferno!
Atirou-se aos pés do sargento suplicando-lhe que o mandasse para as galés:
— Pelo amor de Deus, seu sargento tire-me deste inferno! Mande-me matar,
mande-me prender; mas não me deixe vê-la mais, nunca mais!
— Não! — respondeu por sua vez a Loba ao sargento. — Eu reservei um
cantinho na cozinha para dormir lá, quando lhe dei a minha casa como dote. A
casa é minha. Não quero ir embora.
Pouco tempo depois, Nanni recebeu um coice do mulo, e estava nas últimas;
mas o pároco recusou-se a levar-lhe o Senhor se a Loba não saísse de casa. A
Loba foi-se embora, e seu genro pôde então preparar-se para se ir deste mundo
como bom cristão; confessou-se e comungou com tais sinais de arrependimento
e contrição que todos os vizinhos e os curiosos choravam ao pé do leito do
moribundo. E teria sido melhor para ele morrer naquele dia, antes que o diabo
voltasse a atormentá-lo e a meter-se-lhe na alma e no corpo, depois da cura.
— Deixe-me — dizia a Loba — pelo amor de Deus, deixe-me em paz! Eu vi a
morte com estes olhos! A pobrezinha da Maricchia vive num desespero. Agora a
aldeia toda já sabe! Quando não a vejo, é melhor para a senhora e para mim...
E queria arrancar os olhos para não ver os da Loba, que, quando se plantavam
nos seus, lhe faziam perder a alma e o corpo. Não sabia mais o que fazer para se
desvencilhar do bruxedo. Mandou rezar missas pelas almas do purgatório e foi
pedir ajuda ao pároco e ao sargento.
Pela Páscoa foi confessar-se, e perante o público, de rastros, lambeu, numa
extensão de seis palmos, os seixos do adro da igreja, em penitência — e depois,
como a Loba voltasse a tentá-lo:
— Ouça! — disselhe — não venha mais à eira, porque, se voltar a procurar-
me — tão certo como existe Deus — eu a mato!
— Mate-me — respondeu a Loba — pouco me importa; mas sem você não
quero ficar.
Como a avistasse de longe, no meio das sementeiras verdes, ele deixou de
cavar a vinha e foi tirar o machado do olmeiro. A Loba o viu chegar pálido, com
os olhos fora das órbitas, o machado rebrilhando ao sol, e não recuou um passo,
sequer, nem baixou os olhos; continuou a avançar ao encontro dele, com as mãos
cheias de papoulas vermelhas, e devorando-o com os olhos negros.
— Ah! maldita seja a tua alma! — balbuciou Nanni.





Os Órfãos
Os Órfãos

A meninazinha apareceu ao portão, torcendo entre os dedos a ponta do
avental, e disse:
— Aqui estou.
Depois, como ninguém ligasse importância à sua presença, pôs-se a olhar,
hesitante, uma por uma, as comadres que estavam amassando o pão, e retomou:
— Disseram-me: — “Vá à casa de comadre Sidora”. — Venha cá, venha cá
— gritou comadre Sidora, vermelha como um tomate, do quartinho do forno. —
Espere, que lhe faço um bonito pão.
— Se mandaram cá a menina, é que devem estar levando o viático à comadre
Nunzio — observou a Licodiana.
Uma das comadres que ajudavam a amassar o pão virou a cabeça e, enquanto
continuava a trabalhar com os punhos na masseira, os braços nus até os
cotovelos, perguntou à menina:
— Como vai a sua madrasta?
A menina, que não conhecia a comadre, fitou-a com os grandes olhos
escancarados, e depois, voltando a baixar a cabeça e a torcer com agitação a
ponta do avental, articulou baixinho:
— Está de cama.
— Não estão ouvindo que o Senhor está na casa dela? — perguntou a
Licodiana às colegas. — Agora as vizinhas começaram a berrar no portão.
— Quando eu tiver acabado de enformar o pão — disse comadre Sidora —
vou também dar um pulo até lá para ver se não precisam de alguma coisa.
Compadre Meno perde o braço direito, se lhe morre essa segunda mulher.
— Há certas pessoas que não têm sorte com as mulheres, assim como outras
têm azar com os animais. Quantas pegam, tantas perdem. Vejam comadre
Ângela!
— Ontem à noite — acrescentou a Licodiana — vi no portão compadre Meno,
que tinha voltado da vinha antes da ave-maria e estava assoando o nariz com o
lenço.
— Pois olhe — volveu a comadre que estava amassando o pão — ele tem uma
santa mão para matar as mulheres. Em menos de três anos, são agora duas filhas
de compadre Nino que ele devorou, uma depois da outra! Um pouco mais, e
devora também a terceira, e papa tudo o que o compadre Nino tem de seu.
— Mas esta menina é filha de comadre Nunzia, ou da primeira mulher?
— É filha da primeira. Ela lhe queria como se fosse a sua mãe de verdade,
porque a orfãzinha era também sua sobrinha.
A pequenina, ouvindo que estavam falando dela, pôs-se a chorar baixinho
num canto para desafogar o coração, que contivera brincando com o avental.
— Venha cá, venha cá — retomou comadre Sidora.
— O pão está prontinho. Não chore, que a mamãe está no paraíso.
A menina enxugou os olhos com os punhos fechados, tanto mais que comadre
Sidora se aprontava a destampar o forno.
— Pobre comadre Nunzia! — observou uma vizinha chegando ao portão. —
Agora é que vão carregá-la. Os gatos-pingados passaram por aqui agora mesmo.
— Para longe o agouro! que sou filha de Maria! — exclamaram as comadres,
persignando-se.
Comadre Sidora tirou a fogaça do forno, limpou-a da cinza, e estendeu-a bem
quentinha à menina, que a pegou com o avental e se foi afastando devagarinho,
soprando nela.
— Aonde vai? — gritou atrás dela comadre Sidora.
— Fique onde está. Na sua casa está agora o bicho-papão de cara preta, que
rouba as pessoas.
A orfãzinha escutou com grande seriedade, escancarando os olhos. Depois,
volveu com a mesma cantilena teimosa:
— Vou levá-lo a mamãe.
— Mamãe não existe mais. Fique aqui — repetiu uma vizinha. — Coma você
o pão.
Aí a meninazinha se agachou no degrau do portão, toda triste, com a fogaça
nas mãos, sem tocá-la.
— De repente, ao ver chegar o pai, levantou-se alegre e correu-lhe ao
encontro. Compadre Meno entrou sem dizer nada e foi sentar-se num canto com
as mãos a pender entre os joelhos o rosto comprido e os lábios brancos como
papel, pois havia um dia que não punha na boca sequer um pedaço de pão, de tão
desgostoso. Olhava para as comadres como que dizendo: — “Coitado de mim!”
Ao verem-lhe o lenço preto à volta do pescoço, as mulheres foram rodeá-lo,
com as mãos empastadas de farinha, lamentando-o em coro.
— Não me fale nisso, comadre Sidora! — repetiu ele sacudindo a cabeça e
inchando os ombros. — Este espinho não me sai mais do coração! Aquela
mulher era uma verdadeira santa! Sem querer fazer pouco das senhoras, aquela
eu não merecia. Até ontem, ela, que estava passando tão mal, se levantava para
dar comida ao poldro desmamado há pouco tempo. E não queria que eu
chamasse o médico, para não gastar dinheiro com remédios. Outra mulher igual
àquela não encontro mais. Sou eu que o digo! Deixem-me chorar, que tenho
motivos para isso!
E continuava a sacudir a cabeça e a inchar os ombros, como se a sua desgraça
lhe pesasse às costas.
— Quanto a encontrar outra esposa — disse a Licodiana para dar-lhe ânimo
— basta procurar.
— Não, não! — voltava a repetir compadre Meno, cabisbaixo que nem um
mulo. — Outra mulher igual aquela não encontro mais. Desta vez fico viúvo!
Sou eu que o digo!
Comadre Sidora rebateu-o incontinenti:
— Não diga bobagens, que não fica bem! O senhor tem que procurar outra
mulher, quando por mais não fosse, por consideração a esta orfãzinha; se não,
quem cuidará dela, quando o senhor for ao campo? Quer deixá-la no meio da
rua?

— A senhora então que me arranje outra esposa igual àquela! Que não
tomava banho para não sujar a água; e em casa me servia melhor que um criado,
afetuosa e fiel, que não me teria roubado um punhado de favas da caniçada, e
não abria a boca para me dizer: — “O senhor me dê!” Com tudo isso. um belo
dote, tanta coisa de valor! E agora tenho de devolver tudo, porque não tivemos
filhos. Foi agorinha que me disse isto o sacristão, que vinha com a água benta. E
como ela gostava desta pequerrucha, que lhe lembrava a sua pobre irmã! Outra
qualquer que não fosse a sua tia me olhava com maus olhos a esta orfãzinha.
— Se o senhor pegasse a terceira filha de compadre Nino, resolvia os dois
casos, o da órfã e do dote — observou a Licodiana.
— É o que estou dizendo. Mas não me falem nisso, que tenho ainda a boca
amarga como fel.
A comadre Sídora apoiou:
— Não são conversas para agora. Antes, venha comer um bocado, compadre
Meno, que o senhor está todo constrangido.
— Não, não! — repetia compadre Meno. — Não me falem em comida, que
sinto um nó na garganta.
Comadre Sidora pôs-lhe em frente, num banquinho, o pão quente, com as
azeitonas pretas um pedaço de queijo de ovelha e a garrafa de vinho. E o
pobrezinho começou a comer bem devagar continuando a resmungar com o
rosto comprido.
— O pão — observou enternecido — como o fazia a boa alma, ninguém sabe
fazê-lo. Parecia nada menos do que de semolinha! E com um punhado de
funchos selvagens fazia uma sopa da gente lamber os dedos. Agora terei de
comprar o pão no armazém, aquele ladrão de mestre Puddo; e sopas quentes não
encontrarei mais, cada vez que voltar para casa molhado que nem um pinto, e
terei que ir para a cama de estômago frio. Ainda esta noite, enquanto eu a velava,
que tinha trabalhado de enxada a quebrar a terra da encosta, e ouvia-me roncar a
mim mesmo, sentado ao lado da cama, de tão cansado que estava, a boa alma me
dizia:
— “Vá comer duas colheradas. De propósito deixei a sopa esquentando no
fogão.” E pensava sempre em mim na casa, no que havia de fazer, nisto e
naquilo, que não acabava mais de falar e de me fazer as últimas recomendações,
como quem parte para uma longa viagem, que eu a ouvia resmungar
continuamente entre a vigília e o sono. E se foi contente para o outro mundo!
com o crucifixo no peito e as mãos juntas em cima. Não precisa de missas e de
rosários, aquela santa! O dinheiro do padre seria jogado fora.
— Mundo de infelicidade! — exclamou a vizinha. — A comadre Ângela, aqui
perto, está também a morrer-lhe o asno de reumatismo.
— A minha desgraça é maior! — revidou compadre Meno limpando a boca
com as costas da mão. — Não, não me dêem mais decomer, que os bocados
estão-me caindo dentro do estômago como se fossem de chumbo. Coma você,
pobre inocente, você que não entende nada. Agora não terá mais quem lhe dê
banho e quem a penteie. Não terá mais a mamãe para guardá-la debaixo das asas,
como a galinha choca, e você está arruinada como eu. Aquela, eu a tinha
encontrado para você; mas outra madrasta como aquela você nunca mais terá,
minha filha.
A menina, enternecida, alongava outra vez o lábio e tapava os olhos com os
punhos.
— Não, o senhor não pode deixar de fazer isto — retomava comadre Sidora.
— É preciso procurar outra esposa, por consideração a esta orfãzinha que fica aí,
no meio da rua.
— E eu, como é que fico? e o meu poldro? e a minha casa? e as galinhas,
quem vai tomar conta delas? Deixe-me chorar, comadre Sidora! Antes tivesse
morrido eu em vez da boa alma.
— Cale-se, que o senhor não sabe o que está dizendo! e não sabe o que quer
dizer uma casa sem chefe.
— Lá isso é verdade! — observou o compadre Meno, reconfortado.
— Olhe antes a pobre da comadre Ângela! Primeiro, morreu-lhe o marido;
depois, o filhinho grande; e agora, morre-lhe também o asno.
— Se o asno tem reumatismo, teria de ser sangrado debaixo da cilha —
ponderou compadre Meno.
— O senhor, que entende disso, deveria vê-lo — disse a vizinha. — Fará uma
caridade pela alma da sua mulher.
Compadre Meno levantou-se para ir à casa de comadre Ângela, e a orfãzinha
corria atrás dele como um pintinho, agora que não tinha ninguém no mundo.
Comadre Sidora, boa dona de casa, lembrou-lhe:
— E a casa? Como é que o senhor a deixa, agora que não há ninguém dentro?
— Fechei-a à chave; e depois, lá em frente, está a prima Alfia para dar uma
olhada.
O asno da vizinha Ângela estava estendido no meio do quintal, com o focinho
frio e as orelhas pendentes, gesticulando, a espaços, com as quatro patas para o
ar, quando o reumatismo lhe contraía os flancos como um fole. A viúva sentada
adiante num montão de pedras, com as mãos entre os cabelos grisalhos, e os
olhos secos e desesperados, fitava o ar, pálida feita uma defunta.
Compadre Meno pôs-se a dar voltas em torno do bicho, tocando-lhe nas
orelhas, mirando-lhe os olhos apagados, e, como viu que o sangue ainda lhe saía
da veia do ventre, preto, gota a gota, coagulando-se em cima dos pêlos hirtos,
perguntou:
— Já o sangraram?
A viúva fitou-o com os olhos escuros, sem falar, e fez que sim com a cabeça.
— Então não há mais nada que fazer — concluiu compadre Meno.
E ficou a olhar o asno, que se estendia sobre as pedras, rígido, com o pêlo todo
em desalinho tal qual um gato morto.
— É a vontade de Deus, minha irmã! — disselhe para confortá-la. — Estamos
arruinados.
Sentou-se no montão de pedras, ao lado da viúva, com a filhinha entre os
joelhos e os dois continuaram a olhar o pobre animal, que batia o ar com as
patas, de vez em quando, qual um moribundo.
Quando comadre Sidora acabou de tirar o pão do forno, veio, ela também, ao
quintal, com a prima Alfia, que tinha botado o vestido novo e o lenço de seda na
cabeça, para baterem um papo; e disse a compadre Meno, chamando-o à parte:
— Compadre Nino não lhe dará mais a outra filhinha, agora que com o senhor
elas lhe morrem como moscas e ele perde o dote. Depois, a Santa é jovem
demais, e haveria o perigo de ela lhe encher a casa de filhinhos.
— Ainda se fossem homens, vá lá! Mas é de temer que venham mulheres. Sou
tão infeliz!
— Haveria a prima Alfia. Essa já não é moça, e tem alguma coisa de seu: a
casa e um pedaço de vinha.
Compadre Meno lançou os olhos à prima Alfia, que fingia examinar o asno,
com as mãos sobre o ventre, e concluiu:
— Se é assim, poderemos falar nisso. Mas estou tão infeliz!
Comadre Sidora mal o deixou acabar:
— Pense naqueles que são mais infelizes do que o senhor, pense um pouco!
— Não há ninguém mais infeliz do que eu, sou eu que o digo! Outra mulher
igual aquela eu não encontro!
Não a poderei esquecer nunca mais, mesmo que volte a me casar dez vezes! E
esta pobre orfãzinha também não poderá esquecê-la.
— Acalme-se, que a esquecerá. E a menina há de esquecê-la também. Não
esqueceu a verdadeira mãe? Em compensação, veja a vizinha Ângela, agora que
lhe morre o asno! e não possui outro! Esta, sim, que deverá pensar nele a vida
toda.
A prima Alfia viu que era tempo de ela se aproximar também, com o rosto
comprido, e recomeçou os louvores da morta. Ela a acomodara no caixão e
tinha-lhe colocado sobre o rosto um lenço de seda. Com efeito: não era para se
gabar, mas roupa branca não lhe faltava. Aí compadre Meno, enternecido, virou-
se para a vizinha Ângela, que não se mexia, como se fosse de pedra:
— Que é que a senhora está esperando para mandar esfolar o asno? Pelo
menos terá ganhado o dinheiro da pele.

Antonio Fogazzaro
Eden Anto

Certo amigo meu, profundo em Zoologia, está convencido, há muito tempo,
de que o mais velho dos hipopótamos vivos, se andasse erguido nas duas patas
traseiras, se pareceria perfeitamente, pelo menos de costas, com o Dr. Marcòn,
assessor de uma cidadezinha do Polésine, não importa qual, e que de pequeno
tabelião chegou a grande ricaço, não importa como; de forma que seria pura
justiça chamar-lhe hipopótamo de ouro, e não bezerro de ouro. Dois enormes pés
que invadem um o levante, outro o poente; duas pernas divergentes, colossais;
um capote monstruoso; nem vestígio de pescoço, mas duas vastas espáduas
curvas e uma cabeçorra tão afundada entre as duas que a aba do chapéu pousa
sobre o espinhaço; um enorme braço estendido para a frente por cima de uma
bengala curta demais: eis o Dr. Marcòn a posteriori.
Outro dia patinhava ele pelos charcos da praça onde mora, e tinha no andar a
pesada hilaridade de um hipopótamo que fareja água.
— Advogado! — gritou, correndo-lhe atrás, um padreco, ofegante —
advogado! por favor!
Marcòn ia patinhando sempre, sem se voltar. O padre perseguia-o, repetindo:
— “Advogado! advogado Vasco!” — até que o alcançou e o segurou pelo
capote. Só aí o tabelião se voltou, sem parar.
— Desculpe — disse a sorrir, tocando na aba do chapéu — eu não sou o
advogado. As suas ordens.
O outro quedou, estupefato, vendo aquelas costas monstruosas afastarem-se
placidamente.
Visto assim, Marcòn assemelhava-se realmente a Vasco. Apenas, Vasco talvez
fosse um hippopotamus minor que se distinguia do outro pelas pernas
hercúleas e pela cabeçorra um tanto inclinada à esquerda com uma linha de
melancólica mansuetude.
O estranho era, porém, que o Dr. Marcòn chapinhava justamente em direção à
casa do advogado Vasco Quanta inquietude não teria. aparecido na mole serena,
na grande cara rósea e lisa do hippopotamus minor, se houvesse pressentido a
chegada do hippopotamus maior! Ele, porém, homem probo, manso e tímido,
de origem e hábitos senhoris, que lentamente resvalara, aos setenta e oito anos,
sem mancha nem queixa, a uma pobreza ainda escondida, mas terrível, parecia
não pensar, naquele momento, em seu credor Marcòn, nem em qualquer miséria
deste mundo. Estava no seu gabinete, ora escrevendo numa grande folha de
papel azul, ora meditando no frontispício de um volume in-quarto, amarelecido
pelos séculos. Bibliófilo apaixonado, possuía certa cultura clássica, vasta e
imperfeita, estranhamente colorida pelo seu espírito fantasioso, que se comprazia
nos preconceitos mais insólitos, nas aproximações mais inesperadas, nas
induções mais poéticas e mais infensas à gramática. A idade avançada impedia-o
de atender às funções do seu ofício; da família não recebia senão tribulações; dos
velhos amigos, apenas um ou outro livro lhe permanecia vivo e fiel.
Naquele dia a criada tinha saído sem fechar a porta, e o Dr. Marcòn enveredou
sem mais aquela pela escadaria escura e subiu soprando, agarrando-se ao
corrimão, parando a cada três degraus.
— Vejam o bestalhão! — bradou, lá de cima, a voz áspera da Sr.a Vasco. —
Está voltando do café, não é, seu bestalhão? — acrescentou, avançando por
sobre o corrimão o busto magro, o seco rosto bilioso. — De quanto tempo
precisa para içar essa pança? Ai de mim, doutor, desculpe pelo amor de Deus:
pensava que fosse meu marido.
— Não é nada, D.a Carlota — respondeu Marcòn, pacífico. — Estará
passeando aquela outra pança?
D.a Carlota correu a ver; pouco depois voltou, dizendo que Vasco se
encontrava no seu gabinete, e acompanhou o tabelião até lá.
— Zanetto — disse escancarando a porta — olha o doutor... Muito bem, vou-
me embora — acrescentou, ao ver o doutor virar-se para ela com um ar muito
eloqüente.
Nesse ínterim, Zanetto, levando uma das mãos à carapuça, ia-se levantando da
poltrona e fitava com dois olhinhos puerilmente medrosos e dolentes o enorme
visitante, que se lhe plantara à porta com os braços e as pernas abertas, o chapéu
na mão direita, a bengala na esquerda.
— Meus cumprimentos, doutor — disse, humilde. — Queira sentar-se.
O outro limitou-se a dizer:
— Seu criado.
E avançava, procurando com os olhos uma cadeira. O advogado acabou de
levantar-se e, trotando, a curtos passos apressados, com o ventre, os ombros e a
borla da carapuça a tremer, foi buscar duas cadeiras.
Devagarinho deixaram-se cair nelas, Marcòn muito duro, o outro muito
trepidante.
— Dá licença? — perguntou o doutor pondo outra vez o chapéu.
— Ora essa! — respondeu solícito o Sr. Zanetto.
E, estimulado por aquela sombra de cortesia, puxou da caixa de rapé, ofereceu
uma pitada a Marcòn, absorvendo outra por sua parte, depois do quê as duas
personagens, com o queixo afundado na gola, olhos baixos e sobrancelhas
carregadas, limparam a camisa e o casaco com uns piparotes.
Afinai o Dr. Marcòn, depois de varridos com quatro dedos os últimos
grãozinhos de tabaco, levantou o rosto:
— Então?
O pobre Vasco deixou-se reclinar lentamente no espaldar da poltrona e,
abrindo os braços caídos, respondeu, olhando para cima:
— Não posso, não posso mesmo.
Marcòn franziu o cenho e agitou os grossos lábios pendentes:
— Veja bem. O senhor veja bem, pois não ignora as nossas condições.
— Sei, sim, senhor. Mas nada me é possível fazer. O senhor pode agir. Sinto
pela Carlota, que, com a sua ternura por mim, se atormentará, coitadinha,
suponho que eu me atormentaria muito. Pois bem, eu... que posso fazer?
Baixou a voz, fez um gesto solene:
— Eu sou de gelo, todo de gelo, senhor... Agora — acrescentou — dir-lhe-ei
que, sendo de gelo, cupio dissolvi, sim, cupio dissolvi.
O ventre e os ombros agitaram-se-lhe num breve riso amargo.
— Esta é boa, realmente! — prorrompeu Marcòn. — Quer dizer, caro amigo,
que não se importa nem com as dívidas nem com os credores! Por que não faz
alguma coisa, por que não se esforça? E esse seu cunhado, a quem devia
recorrer? E esse filho, que lhe devia mandar dinheiro?
— Pela vontade dele, coitadinho, ele mandava, sim, senhor, porque tem bom
coração; mas é meu filho e, portanto, desgraçado. Como oficial de marinha, deve
embarcar para a África, imagine. Mas não importa; será uma glória da minha
família. Meu filho me escreve uma carta feliz. Isto mesmo: feliz. Uma carta
enternecedora, de herói. Mas por enquanto precisa de um cavalo, imediatamente,
pois os oficiais de marinha poderão ser mandados a terra e o ministro os obriga a
se proverem de cavalos. Não acredita? Mostrar-lhe-ei a carta.
— Mande-lhe um burro — urrou Marcòn — é o que lhe convém!
O pobre advogado, ferido em seu amor paterno e em sua boa fé, contorcia-se
todo, emitindo uns resmungos humildes, uns “por Deus!” de admirado e tímido
ressentimento.
— E o cunhado? — perguntou Marcòn.
— O cunhado... o cunhado... — rezingou Vasco, que tinha um medo horrível
desse parente casmurro. — Para dizer-lhe a verdade, ainda não lhe falei; queria
justamente ir à casa dele esta manhã.
— Queria? Pois vá, vá imediatamente. Ele não mora aqui perto? Eu esperarei.
Vasco, erguendo a carapuça com a mão esquerda, coçou a nuca com a direita;
depois, sendo o medo presente mais poderoso que o futuro, suspirou o seu
costumeiro e obsequioso “com licença” e saiu às apalpadelas, com uma cara
lúgubre.
A Sr.a Vasco ouviu distanciar-se pelas escadas o ritmado bater de seus passos,
gritou — “Sua criada, cavalheiro” — e correu para o gabinete do marido.
— Foi-se embora aquele cachorro? — perguntou, abrindo a porta.
Vendo Marcòn, soltou um grito e fugiu com tanta fúria que este, quando
acabara de voltar para ela a sua massa e a sua grande cara sorridente, já não a
avistou.
Ficou sentado algum tempo a contemplar a porta, depois se levantou e deu
uma volta lenta no gabinete, para olhar o que estivera escrevendo aquele imbecil
do Vasco.
No alto da grande folha de papel azul lia-se:

ÚLTIMA VONTADE

Seguiam-se algumas linhas riscadas por dois grandes traços de pena em forma
de cruz.
“Levado, nesta minha decadente velhice, a dolorosos apertos, não podendo o
meu espírito enfraquecido suportar a angustiosa expectativa de uma miséria tal
que não fosse encoberta nem pelo véu mais sutil de uma dignidade exterior,
convencido de que já não sirvo senão de aflição e incômodo a minha amorosa
esposa, como também a meu diletíssimo filho, eu...”
O escrevedor tinha parado aqui. Depois de um espaço em branco, liam-se
estas palavras:
“Levado, em minha velhice, a lamentáveis aperturas, e confiando em que a
Divina Providência se dignará, como lhe suplico do íntimo do coração, tirar-me
prontamente esta vida demasiado tenaz, penosa para a minha família e quase
insuportável para mim, agradeço a minha virtuosa esposa todo o bem que me
quis e fez, abençôo meu diletíssimo filho e peço a todos que conservem boa
lembrança de mim.
“Se em setenta e oito anos de vida honesta e laboriosa consegui, até certo
ponto, merecer a gratidão de minha cidade natal, espero possa ser atendida a
última vontade que manifesto a meus parentes e amigos, à digna Comissão da
Biblioteca Municipal, ao honrado Conselho. Desejo que o meu precioso
exemplar do Orlando Furioso, publicado por Francesco Rosso di Valenza em 1º
de outubro de 1532, com privilégios de Clemente VII, do doge Gritti e de
Francesco Sforza. passe à nossa Biblioteca. Ê a terceira edição do poema, a
última das que saíram em vida do poeta, julgada já superior a todas as outras
pelo ilustre Apostolo Zeno, que dela possuía um exemplar apostilado pelo
Aretino. Desta edição se conhecem apenas cinco exemplares um dos quais foi
vendido na Inglaterra pelo Conde Garimberti, de Parma, por quatro mil liras.
Três mil liras me ofereceu pelo meu exemplar o livreiro R., de Roma. O
frontispício do volume é desenhado e gravado por Tiziano Vecellio. No centro
da parte inferior está representada uma fênix a erguer-se de uma fogueira com as
asas abertas, e sobre a fênix se vêem duas palavras misteriosas, que muitos
homens doutos procuraram interpretar. EDE NANTO. Penso haver chegado,
depois de longo estudo e meditação, a penetrar-lhes o segredo; peço, pois, caso
possa o volume ser salvo para a Biblioteca, que nele se inclua uma folha com o
meu nome, o desejo aqui expresso e a minha interpretação das duas palavras ar
canas.
“Quis parecer-me que, não tendo os citados vocábulos significação alguma em
nosso idioma, nem em qualquer idioma moderno, nem no do Lácio, convinha
recorrer a uma linguagem mística, da qual agora em vão se procuraria a chave,
ou à sagrada língua da Hélade, bem conveniente ao pintor das Vênus que presta
homenagem ao Homero de Ferrara. Convencido disto, procurei, durante muito
tempo, como deviam ler-se gregamente as duas palavras, e não vislumbrei
solução alguma, até que as dividi deste modo: EDEN ANTO, esclarecendo-se-
me então a origem delas — as vozes gregas , “ardo”, e , “flor” — e o
sentido, que é o seguinte: “ardeu [ou ardia] com flor”, sentido estupendo, quer
seja próprio, concernente à fênix, quer figurado, concernente ao Poeta; e ele há
de parecer maravilhoso de grecismo a todos os que recordam o de Ésquilo.
Talvez alguém possa...”
Terminava aqui o manuscrito; mas, quando o passo do advogado sacudiu a
antecâmara, Marcòn não tinha lido além do período acerca das três mil liras
oferecidas pelo livro e ainda estava contemplando os algarismos com um vago
sorriso afetuoso. Aproximou-se da janela e fingiu olhar para o quintal.
O Sr. Zanetto entrou ofegante, muito mais sepulcral do que quando saíra.
— Então? — perguntou Marcòn.
— Desculpe — respondeu o advogado, sentando-se. — É o que imaginava,
meu caro senhor — acrescentou depois de ter recobrado o fôlego. — Até me
maltratou.
Marcòn também voltou a sentar-se, grave. Seguiu-se um longo silêncio. Cada
um deles olhava direito à frente, um para a porta, outro para a janela.
Veja, são duas mil e quinhentas liras.
— Doutor — disse a criada entrando — trouxe-lhe o café.
O advogado só se mexeu quando viu a bandeja diante de si.
— Traga mais um — pediu em voz baixa.
A criada respondeu que tinha pensado nisso, mas a dona da casa saíra com as
chaves e ela não tinha mais café. Então o pobre homem, acostumado havia
cinquenta anos àquele café da tarde, ofereceu-o com um gesto a Marcòn, que
agradeceu e estendeu as mãos, sorrindo, para a bandeja, apesar dos olhares
oblíquos da criada.
— O doutor quer que vá buscar outro no botequim?
— perguntou esta ao patrão. — Devo sair de qualquer maneira.
— Não, Tonina, não — suspirou Vasco, com doçura.
— Prefiro que faça aqui um pouco de fogo.
A criada pôs-se a fazê-lo, mas talvez pensando em outra coisa, o que levou
Marcòn a dizer-lhe, depois de dois ou três olhares de esguelha e dois ou três
surdos resmungos guturais:
— Ó moça, apresse-se, por favor.
Nesse momento a chama brilhou, a criada levantou-se, tomou a bandeja com
despeito, e foi-se embora, batendo a porta com tal força que Marcòn exclamou:
— Irra!
Voltou depois ao assunto:
— Escute. Naturalmente faço o que me interessa, mas também sou de carne,
tenho coração, e repugna-me chegar a certas medidas com uma pessoa digna
como o senhor. Veja se não há meio para um acordo amigável. O senhor talvez
possua algum objeto precioso, alguma jóia de família, sei lá! prataria...
Vasco fitou-o por algum tempo, introduziu a mão direita na gola da camisa e,
após uma breve busca, tirou uma medalhinha de prata, que mostrou a Marcòn, e
em seguida levantou e abriu os braços, sem dizer palavra.
— E quadros? — perguntou Marcòn.
— Meu Deus! Quadros! O retrato de minha mulher... Bem, sem dúvida um
bom quadro, não o nego. Mas é dela.
— Nada, nada, pelo amor de Deus! — exclamou Marcòn, espantado. — Deixe
estar... Mas, escute — prosseguiu depois de uma pausa: — ou muito me engano,
ou o senhor tinha livros antigos de certo valor.
— Sim, senhor — respondeu Vasco mastigando as palavras, meneando-se e
olhando para toda parte, menos para a cara de seu interlocutor. — Sim, senhor...
porém, nem queira saber... tudo foi embora... vendido... devorado...
— Então... — disse Marcòn, levantando-se.
Volveu os olhos em redor, como para ver onde tinha colocado a bengala, e
fixou-os depois na escrivaninha.
— Que coisa bela é essa que o senhor está lendo? — perguntou a sorrir.
— Oh, nada — balbuciou Vasco, inquieto. — Nada. O senhor está procurando
a bengala?
Sem responder, Marcòn se aproximou da escrivaninha:
— A propósito: este livro, por exemplo, é um livro antigo.
— Não, senhor... isto é, sim, senhor, mas é um livro sem importância, ou, pelo
menos, de pouca importância. E o que nós chamamos “calhamaço”.
— Mas é um Ariosto, pelo que vejo. Grande poeta, caramba! Poderia valer um
dinheirão se não fosse tão sujo. O senhor o ensopou de chocolate?
— Está sujíssimo — disse Vasco, serenando um pouco. — Está mesmo
arruinado, como o senhor vê.
A essa altura Marcòn tirou os olhos de cima do livro e fitou-os no rosto de seu
infeliz devedor, dois olhos reluzentes de maliciosa bonacheirice:
— Quanto pensa que pode valer assim como está?
O advogado Vasco sentiu fugir-lhe o sangue e as pernas. Teve de sentar-se.
— Nem sei — replicou — nem sei bem. O senhor vê: para mim tem um valor
relativo, um valor de estimação.
Parecia-lhe uma boa saída. As rugas de sua fronte, os cantos da boca não
descansavam um momento sequer. Os olhinhos pueris, atentos ao fogo,
apareciam e desapareciam sob o bater das pálpebras.
— Pois bem — disse Marcòn — não lhe disse que tenho bom coração? Vou
fazer uma estupidez agora. Pego o Ariosto, vou para casa e lhe mando a letra de
câmbio.
— Você leu! — exclamou o advogado com a voz sufocada, erguendo-se e
apontando o tabelião com o indicador trêmulo. — Você leu! Mas não levará o
livro, ouviu? Não, senhor; não o levará, absolutamente!
A cabeçorra oscilava-lhe convulsa, e nos olhinhos, sob o bater das pálpebras,
brilhavam duas lágrimas.
— Francamente, Sr. advogado — retrucou Marcòn, tranquilo — sempre
pensei que o senhor era um cavalheiro.
— E não o sou? — exclamou Vasco.
— Pois é — respondeu o tabelião — não sei se um cavalheiro procuraria,
como o senhor, fraudar os credores.
O advogado fitou o adversário com horror e espanto, e recaiu na poltrona.
Dois ou três soluços o abalaram todo.
— Eu não queria fraudar ninguém — disse em voz baixa, sem olhar para
Marcón. — Queria apenas que este livro ficasse aqui até a minha morte. Pensei
que, depois de eu morto e conhecida esta carta, um pouco pelo mérito do livro,
um pouco pela memória deste pobre velho, o Município, os cidadãos ou o
Município e os cidadãos juntos, resgatariam o livro aos credores, e assim ficava
na minha cidade uma lembrança do meu nome e dos poucos estudos que pude
fazer. Mas, se o senhor me acredita capaz de querer fraudar os meus credores,
aqui está o livro, tome-o, leve-o consigo.
— Então não compreende, meu caro advogado — exclamou Marcòn — que é
o senhor que me deve agradecer? Cobrar duas mil e quinhentas liras por um livro
em tal estado!
Nisto, Marcòn pegou do Ariosto:
— Sr. advogado, sempre às suas ordens.

*

Vasco não pôde levantar-se, nem articular uma palavra, nem fazer um aceno
sequer. Quedou-se ali como que imbecilizado e não se mexeu senão ao terceiro
chamado do hippopotamus maior, encalhado à porta com a sua presa.
— Que complicação é essa? — resmungou este fazendo girar inutilmente em
todos os sentidos a maçaneta da porta. — Que negócio é esse? Desculpe, Sr.
advogado. Por favor, Sr. advogado. Sr. advogado, estou chamando!
O hippopotamus minor chegou, titubeante, procurou em vão abrir a porta e
pôs o olho na fechadura para espiar. O outro se debruçava sobre ele, enorme,
palpitante de impaciência.
— Está fechada por fora — murmurou Vasco, reerguendo-se. — Talvez a
criada tenha batido a porta com muita força. Isto agora acontece de vez em
quando.
— Toque — disse Marcòn.
Vasco tocou duas, três, quatro vezes. Ninguém apareceu. Então Marcòn deu
tal puxão à campainha que rebentou o cordão.
— Agora está acabado — suspirou o causídico.
— Chame! — grite! — exclamou o outro.
O pobre homem voltou à porta, encostou nela a testa e procurou fazer sair um
pouco de voz, mas faltava-lhe o fôlego.
— Como quer você que o ouçam? — gritou Marcòn, furioso. — Deixe isso
comigo.
E, deposto o livro, começou a mugir com a sua voz bovina, dando com a
bengala, entre dois gritos, grandes pancadas na porta. Mas a dona da casa estava
no confessionário, falando mal do marido, e a criada na tabacaria, falando mal
do tabelião Marcòn.
Outras saídas não havia. A janela única dava para o quintal. Marcòn abriu-a e
chamou. O quintal estava deserto, ninguém respondeu. O tabelião virou-se para
Vasco, a fungar:
— Nunca me aconteceu uma coisa destas. O senhor está aqui a fitar-me, mas
eu tenho de ir embora — ouviu? — custe o que custar! Tenho negócios.
— Escute — disse o advogado, sempre absorvido pela sua idéia fixa. —
Desculpe. Não seria possível que o senhor me deixasse agora aqui o livro para
eu mandar inserir a minha interpretação? E não seria também possível que o
senhor fizesse que mais dia menos dia o livro acabasse em nossa Biblioteca?
— Não me amole! — gritou Marcòn. — Não me importo absolutamente nem
com interpretações nem com bibliotecas. Guarde para si a sua interpretação. Por
fim, vendo o livro até na América, se for preciso.
A cólera entrou a ferver nas banhas daquele homem pacifico.
— O livro vale quatro mil liras — disse, levantando a voz. — Dê-me pelo
menos quinhentas liras para eu mandar à África, para meu filho!
— Qual quinhentas liras! Qual filho!
Enfurecido, o tabelião postou-se à janela a berrar, sem dar atenção a Vasco, o
qual, tremendo de cólera, lhe berrava às costas:
— Talvez eu seja um imbecil, mas esta porta foi a Providência quem a fechou.
Tomou o Ariosto e, rápido, na ponta dos pés, com um olho na lareira e o outro
nas costas monstruosas, deitou o livro ao fogo. Depois, voltou, pálido como um
cadáver, à sua poltrona, e, fechados os olhos, a cabeça reclinada para trás,
arquejava penosamente. Alguém tocou várias vezes a campainha da antecâmara.
Marcòn, à janela, esforçava-se para chamar o desconhecido visitante, o qual,
como ninguém lhe abrisse, e ouvindo tal vozerio, penetrou no quintal. Era o
mesmo padre que, na praça, tinha tomado Marcòn por Vasco. Olhou para cima,
viu à janela uma cabeçorra e duas enormes espáduas.
— Sr. advogado! — disse cumprimentando. — Pelo menos desta vez tenho
certeza de que vejo o senhor, porque há uma hora...
— Então não vê, D. Simplório — berrou Marcòn — que ainda sou o mesmo
de há uma hora? Não compreende que não podemos abrir? Vá procurar D.a
Carlota ou a criada e diga-lhe que venha imediatamente. Que é que está
esperando ai com a boca aberta? Mexa-se!
O padre parecia esmagado de surpresa, olhava para cima e repetia:
— Mas como? Mas como?
Foram precisos alguns minutos para ele compreender e sair.
Marcòn ficou ainda um pouco à janela, caminhou até à porta, procurando
escutar algum ruído de bom agouro, e outra vez voltou à janela, amaldiçoando
todas as criadas do mundo. Finalmente ouviu vozes na antecâmara, duas irritadas
vozes femininas. D.a Carlota e a Tonina, as quais, em vez de abrirem logo,
brigavam.
— Onde pus o livro, então? — perguntou ele. — Sr. advogado, onde está o
livro?
Vasco abriu os olhos, ergueu uma das mãos estendida, e disse com solenidade:
— Eden Anto.
— Estou perguntando — disse Marcòn — onde está o livro.
Vasco levantou a outra mão, e repetiu:
— Eden Anto.
— Não estou brincando, ouviu? — exclamou Marcòn.
E depois de olhar em redor pelo quarto sem descobrir livro algum, aproximou-
se de Vasco com os dentes cerrados:
— Não façamos comédias! Entregue-me o Ariosto, já e já!
— Então — respondeu o advogado — o senhor quer ter um livro destes, sem
saber grego? O senhor quer a fênix de Ticiano? Eden Anto, meu senhor; ardeu,
ardeu com flor.
Apontou com o indicador o fogo, e continuou:
— Olhe lá. Se quiser a cinza...
Marcòn soltou um grito sufocado, levantou os braços como se lhe faltasse a
respiração, caminhou até à lareira, e, voltando-se de repente para Vasco, deu
dois passos na direção deste com a bengala no ar. Parou, lançou um mugido
surdo, agitando os braços em gesto ameaçador, trotou pelo quarto, deu com o
flanco na porta como uma catapulta e, rebentada a fechadura com um golpe,
investiu pelas escadas entre D.a Carlota e a Tonina.
As duas mulheres pularam no gabinete.
— Que é que houve? — perguntou a Sr.a Vasco.
— Nada — respondeu o marido, ainda trêmulo de comoção. — Apenas, ele
quis roubar-me e eu o enxotei.
— Roubar-te o quê, maltrapilho?
— Oh, nada — disse o pobre Sr. Zanetto sem olhar para a esposa e sacudindo-
se todo num riso forçado. — Um livro.
— Um livro? Então tu tens um livro de valor?
— Puf, puf! — resmungou Vasco, recomeçando a soprar. — Pouca coisa.
Umas centenas de liras... talvez cem... umas cem no máximo... numa palavra,
entre cinqüenta e cem.
— Ah, tabaquista imundo! — exclamou a senhora. — Então tens um livro
destes e não dizes nada, fazendo sofrer a tua mulher e a teu filho! Dá-me esse
livro!
O advogado, atônito, não respondeu.
— Será que lhe deste o livro? — disse a mulher com uma cara e uma voz de
meter medo.
— Não, não, não — respondeu Vasco apressadamente. — Não lhe dei nada.
Mas, se não o dei a ele, terei de dá-lo a outro, pois tudo o que tenho é dos
credores.
A Sr.a Carlota não teria pensado que a burrice humana pudesse chegar a tal
ponto, e examinava o marido com um olhar indefinível, em silêncio. Depois,
rompeu em insultos e invectivas, fulminando tudo em seu redor: o barrigão
estúpido, o lar, a Tonina, que defendia o patrão. Mandou-a retirar-se, e, como ela
se rebelou, agarrou-a pelo braço e empurrou-a até à porta. Assim ambas se
foram, esbravejando, pela antecâmara fora.
Vasco, atordoado desde a primeira investida, já não ouvia nada. Depois de
certo tempo, percebeu que o tinham deixado só, reconheceu sobre a escrivaninha
o seu manuscrito da última vontade, e chorou lágrimas lentas, as mais ardentes,
as mais amargas de sua vida, como que vindas de um profundo e intacto veio, de
onde finalmente brotasse a dor.

*

Entretanto caia o sol, o gabinete tornava-se escuro. Veio a hora do almoço,
mas ninguém chamou o advogado, nem ele pensava nisso. Tomado de frio,
arrastou-se fatigadamente para fechar a janela e depois sentou-se ao pé da
lareira, onde ardiam ainda algumas brasas, comunicando-lhe às pernas uma
suave tepidez e difundindo uma luz tênue sobre a gola da camisa e a fronte. A
cabeça tornava-se-lhe pesada e turva, mas sentia invadir-lhe o espírito estranha
serenidade. Sentia-se melhor, ia-se aquietando à idéia confusa de um bem
próximo. Com inexplicável satisfação, via, ali, na lareira, o seu querido Ariosto
transformado em cinza e brasas, via, e de vez em quando murmurava as palavras
misteriosas: eden anto. Espantava-se ao descobrir, então pela primeira vez,
como se lhe ajustariam também a ele, à sua própria vida, a qual, ante o espírito
abalado, lhe apareceu agora florida e alegre, cheia unicamente de ardente amor
aos seus, à verdade e à justiça. Esta alucinação da memória produziu-lhe ainda
uma dúvida esquisita, matéria também de espanto e de profunda meditação:
como pudera propor-se, por um instante sequer, morrer voluntariamente?
Pensou, pensou, não entendeu e sorriu de si mesmo. Então o seu espírito,
enternecido, passou a considerar a bondade e a grandeza de Deus, e chegou aos
poucos a vislumbrar outra idéia: que a Providência lhe concedia a graça, como
ao seu Ariosto, de se dissolver em luz e calor, tranqüilamente.
Alguém bateu à porta e, não ouvindo resposta, abriu-a devagarinho com um
tímido “dá licença?”
Vasco não se mexeu.
— Dá licença, advogado? — repetiu, entrando, o padre que o procurava havia
tanto tempo.
Julgou que Vasco, de quem via a mole escura, estivesse adormecido.
— Sou D. Clemente — disse em voz alta.
Então, afinal, o advogado murmurou, agitando-se um pouco e procurando, por
hábito obsequioso, levantar-se:
— Às suas ordens.
— À vontade, à vontade, à vontade — apressou-se a dizer D. Clemente.
Sentou-se ao lado dele, emitiu umas frases a respeito do frio, da umidade, dos
prazeres da lareira e da escuridão. Vasco não respondia nunca.
— Permito-me incomodá-lo — disse depois o padre — pois teria de
comunicar-lhe algo acerca daquele famoso frontispício. Há de lembrar-se que,
quando tive a honra de conhecê-lo, falamos de uma edição do Ariosto.
— Eden anto — sussurrou Vasco. — Sim, senhor.
— Justamente, eden anto. Isto é, o senhor lia eden anto, e também o Abade
Bottoni, de Ferrara, leu assim; mas é um equivoco.
— Não, senhor — sussurrou Vasco.
— Desculpe: não há dúvida; não pode haver dúvida. Se o senhor se lembra,
aquele grego me parecia incorretozinho, sim, incorretozinho. Agora acabam de
escrever-me de Roma. É coisa sabidíssima. Os caracteres estão desbotados, veja;
podem induzir em erro. É preciso ler-se F. DE NANTO, abreviatura de
Franciscus de Nanto de Sabaudia, que é o nome do gravador, pois Ticiano fez
apenas o desenho. O mesmo frontispício tem-no a edição romana das cartas do
Cardeal Bessarione contra os turcos.
Vasco ficou silencioso.
— Acendendo a luz... — acrescentou o sacerdote, hesitante — se o senhor
tiver uma lente... poder-se-á ver...
— Não, senhor — balbuciou o advogado.
O outro não ousou insistir, supondo que o velho estivesse tomado de um sono
invencível. Poucos minutos depois, o rápido fogo sem chama que ainda percorria
os negros resquícios do volume pôs em destaque a sua mansa e magoada cara de
menino, decomposta. No limiar da Verdade, a última ilusão dava-lhe o último
calor, a última luz.
Morreu nessa noite.

Massimo Bontempelli


O Colecionador

O Barão Raimundo delia Valle, dos Condes d’Aura, aos quatorze anos cursava
a primeira série ginasial, e colecionava selos, à semelhança dos seus
condiscípulos e em concorrência com eles.
Superou-os bem depressa, porque a viúva sua mãe e o tio, ambos riquíssimos,
reconhecendo que a paixão do rapaz era inocente e instrutiva, porfiavam em lhe
comprar os espécimes mais caros e mais raros.
Assim, decorridos três anos, achou-se Raimundo possuidor de uma das mais
completas coleções filatélicas do mundo, e era freqüentemente citado nas
revistas dessa matéria. E, como ainda se achava no primeiro ano ginasial, a mãe
e o tio pensaram em tirá-lo da escola. Filho único e sobrinho único, para a sua
tenaz e nobre pessoa deviam convergir grandes riquezas; inútil esterilizá-lo com
os estudos próprios dos burgueses e dos humildes.
Aos dezessete anos, portanto, deixou a escola. E, estando quase completa a
coleção de selos, começou a apanhar borboletas. A empresa era menos fácil e
mais delicada; mas, ainda aqui, teve Raimundo o eficaz auxílio dos seus
parentes, a quem essa ocupação parecia agradável, honesta, e não menos
instrutiva do que a outra. Com efeito, Raimundo já se havia aprofundado na
geografia inédita e rara, sabia os nomes de uma porção de países remotos e mal
conhecidos. E, ao passo que a nova coleção ia adornando os seus quartos de
belas estantes e de quadros variegados, enchia-se-lhe o cérebro de nomes e
conhecimentos entomológicos. Dentro em breve, também a coleção de
borboletas era das mais completas e metódicas do gênero; e Raimundo iniciou a
dos ex-libris. Esta o levou a uma quarta: encardenações artísticas de todos os
séculos e todos os países.
Entretanto não descurava outras menores. Ocupava-se ele mesmo das mais
importantes, e os seus secretários eram incumbidos das mais comuns: caixas de
fósforos, leques, floreiras, quebra-luzes, máscaras.
Entregue a estes afazeres chegara Raimundo, Barão delia Valle, dos Condes
d’Aura, aos vinte e três anos de sua idade, quando perdeu a mãe; dois anos
depois morreu-lhe também o tio, e ele teve o pesar de não lhe poder fechar os
olhos, visto que se achava então na Holanda à procura de lâmpadas e candeeiros.
Regressou à Itália para receber a herança, e em pouco tempo ordenou os seus
negócios. Viu-se sozinho no mundo com muita saúde, muita liberdade e. muitos
milhões.
Agora o seu espírito estava irrevogavelmente encaminhado para aquela
vocação invencível, ajudado da riqueza e da vontade pertinaz. Quantas coleções
ideava, tantas empreendia, com o auxílio de especialistas: já não se ocupava com
as coleções de per si, mas unicamente com o conjunto delas, que vinha
assumindo a importância de uma coleção por excelência: a Coleção das
Coleções. Queria que esta fosse também tão completa quanto possível.
Para isto Raimundo comprara e aparelhara um grande palácio. Ele dirigia e
mantinha em ordem o todo; à frente de cada seção achava-se um técnico. Um
dos aposentos era todo reluzente de vitrinas e multicor de asas de borboletas;
outro, severamente estanteado, continha os volumes dos selos, e entre uma
estante e outra, nas paredes, viam-se os mapas geofilatélicos que deviam servir
de guia e de índice; um piano estava povoado de vasos para flores, as paredes
resplandeciam de leques. Um celeiro fora transformado numa espécie de imensa
colméia, cujos inúmeros cubículos encerravam as caixas de fósforos do mundo
inteiro. E assim por diante. Atrás do palácio havia um vastíssimo jardim,
plantado, em canteiros regulares convenientemente divididos e subdivididos, de
roseiras de todas as castas; pois não era um jardim, mas uma coleção de rosas.
No fundo do jardim, as cavalariças tinham-se transmudado em arquivo dos
fichários. Raimundo vigiava cada coisa; os especialistas cuidavam em tomar
sempre mais completa cada coleção; ele estudava novas coleções, mais e mais
raras e difíceis.
A isto os seus amigos chamavam mania, mas não era. A mania é exclusiva,
impede qualquer outro pensamento e qualquer alegria, e amarga a existência.
Raimundo, ao contrário, gozava, sábia e pacatamente, todos os prazeres da vida,
gostava das companhias alegres, de amigos e de amigas, diurnas e noturnas. O
poeta, o homem público, o corredor, nem sempre e necessariamente são
maníacos; aquela é a ocupação principal, entre as outras. Assim Raimundo, que
agora contava trinta anos.
A essa altura a sua arte, não sendo embora mania, produziu novo rumo em sua
vida, até à morte.
Raimundo esperava espiritualizar cada vez mais o tipo das suas coleções:
assim como passara do vulgar selo ao ex-libris ou à borboleta, e da borboleta
morta à flor viva, assim buscava elevar-se mais e mais do plano material ao
espiritual. Experimentava, claramente experimentava a necessidade de algo
absolutamente novo e raro neste sentido, mas ainda não o achara.
A descoberta foi fruto do acaso, como sucede com todas as coisas grandes
deste mundo.
Um dia ocorreu-lhe abrir um volume da coleção de encadernações, a fim de
examinar o estado da costura interna. Até então nunca lhe acontecera abrir esse
livro. Era uma edição do século XVI, de Comino, com encadernação autêntica
de Viviano di Varese, em couro preto, com gravações a fogo; continha a vida de
um capitão do século antecedente.
Os olhos de Raimundo caíram, no princípio de uma página, sobre este
período: “...tíssimo; de fato, ele teve quatro filhos, um natural e três legítimos,
posto que se dissesse que um dos três era adulterino, nascido de uma criada. Era,
portanto...” Mas aqui o Barão Raimundo parou.
Uma idéia súbita e grande despontara-lhe na mente. O velho autor, naquele
período, estava catalogando os filhos do capitão: natural, legítimos, adulterino...
Ora, onde há catálogo, aí pode haver coleção.
A idéia era singular e imensa.
Durante duas noites Raimundo não conseguiu dormir; a visão nova assediava-
o com a insistência das empresas que querem ser levadas a cabo a todo custo.
Passado o primeiro fervor turvo e inquieto da criação, entregou-se calmamente
ao estudo do plano da coleção novíssima: a coleção dos filhos. Não falou nisto a
ninguém; estudou a sério e penetrantemente. Compulsou tratados jurídicos e
códigos, na parte referente a família, herança, paternidade, descendência.
Inteirou-se bem de todas as possíveis variedades jurídicas e naturais na condição
dos filhos. Não tardou a perceber que era necessária muita cautela; apressando-
se na procura de um determinado tipo de filho, corria o risco de fechar o
caminho às outras espécies. Por isso não pôs mãos à obra senão depois de haver
estabelecido bem o seu plano e preparado um breve catálogo, que esgotasse as
variedades possíveis. A princípio, afigurou-se-lhe que à inconsciente coleção do
antigo chefe militar não faltavam mais que dois tipos. A coleção completa devia
ser, pensava, de cinco. Meteu ombros à empresa.
Não lhe foi difícil encontrar uma amiguinha benévola: a filha do jardineiro
que lhe cuidava da coleção das rosas. Após alguns meses mandou-a para um
sítio seu, com uma velha criada incumbida de tratá-la carinhosamente. Nesse
ínterim ele noivou: achar mulher foi-lhe ainda mais fácil. Estava impaciente,
mas adiou as núpcias até o nascimento do filho — número 1: natural — da
jardineira. Era um robusto pimpolho; o começo feliz da nova coleção.
O caso ficou encoberto e não estorvou em nada o matrimônio. Menos de um
ano depois nasceu entre grandes festas um barãozinho delia Valle, dos Condes
d’Aura; o pai venturoso furtou-se aos parabéns para correr a lançar no catálogo
secreto: número 2: legitimo.
Observava comovido as folhinhas ainda em branco, e pensava no futuro.
Ninguém no mundo estava a par de seus planos e do seu propósito, e no seu
coração de artista era tanto maior a alegria. Agora, precisava do filho adulterino.
Avizinhava-se a primavera. Em breve cessaram as chuvas; o barãozinho tinha
um mês, e a baronesa pouco antes se restabelecera de suas fadigas. Raimundo
beijou na testa a mulher e o rebento, e foi passar alguns dias nas suas
propriedades. A jardineira o acolheu com submissa alegria. O colecionador
demorou-se uma semana entre os campos e depois voltou à cidade a esperar
notícias, que logo vieram, e foram boas.
O número dois, na cidade, estava desmamado desde algumas semanas, porque
já contava mais de um ano, e no campo, ao lado do número um, que corria
robustamente pelos prados, nascia o número 3: adulterino. E Raimundo
encheu a terceira folha do catálogo íntimo.
Só faltavam à coleção duas espécies: pelo menos assim pensava ele, por
enquanto.
Mas conseguir aquelas duas espécie era empresa difícil, delicada, ímproba.
Mais de uma vez duvidou Raimundo de si mesmo, da própria idéia, do futuro da
coleção suprema. Entretanto tinha havido aborrecimentos na família: surgiram
rumores malignos a propósito da bela jardineira relegada ao campo, cartas
anônimas, cenas desagradáveis com a esposa. Porém mais do que outra coisa
qualquer, em meio às dissensões externas e manifestas da vida familiar,
atormentava-o a contínua dissensão íntima: a quarta variedade para acrescentar à
coleção. E já não era dissensão da sua íntima consciência: era o trabalho de
encontrar os meios para atingir o novo fim. Não tinha, infelizmente, irmãs. Mas
nisso o ajudou, em parte, o destino. Sua cunhada, a mais velha das irmãs da
mulher, era casada com um homem maduro e áspero, e fazia falarem bastante de
si. Raimundo aproximou-se dela, cercou-a, levou-a a ler Talvez sim, talvez
não, cegou-a, perseguiu-a, seduziu-a. Teve o filho número 4: incestuoso. Uma
cunhada é um pouco menos do que uma irmã; mas a vida é sempre um pouco
menos do que a arte, e cumpre contentarmo-nos com isto. Quatro.
Agora faltava um somente: Raimundo ainda acreditava que não faltasse mais
do que um.
Foram-se-lhe os escrúpulos. Venceu as dificuldades com a astúcia, com a
perseverança e com o dinheiro. A paixão tornara-se mais forte que qualquer
sentimento de humanidade: agora ele não era senão o Colecionador. Abandonou
por alguns meses a mulher, a pretexto de viajar pela Europa. Mas deixou-a na
convivência de ótima sociedade, feminina e masculina, e de alguns sagacíssimos
espiões; recebeu informações freqüentes e precisas: um dia, no quarto mês da
sua viagem, um telegrama triunfal o advertiu: ele foi informado de que em sua
casa acontecera algo de irremediável. Enquanto a mulher, nos primeiros dias da
espantosa notícia, começava a desesperar-se e entrava a meditar expedientes
extremos, Raimundo regressou inesperadamente. No primeiro instante ela receou
que ele, ciente da sua culpa, se apressasse em puni-la. Ele, porém, mostrou-se
alheio de tudo, fingiu reaproximar-se dela. A mulher tranqüilizou-se, e ele
igualmente ficou tranqüilo; e após o número necessário de meses continuou
tranqüilo, por saber com toda a certeza que o segundo filho da mulher não era
seu. Certas coisas são difíceis de contar e se escrevem com vergonha; mas a
verdade é que ele, naquele ditoso dia, não se envergonhou de escrever no seu
livrinho secreto; — número 5: putativo. E triunfou, porque acreditava que a
suprema, laboriosa coleção estivesse completa.
Não estava completa a coleção.
Raimundo achava-se intimamente feliz. Acompanhava, de perto e de longe, o
crescimento dos cinco filhos. Sonhava o dia em que, com alguma razão ou
pretexto, que era necessário encontrar, pudesse vê-los todos reunidos vivendo
em torno dele. Mas, certo dia, um novo caso, inteiramente fortuito, uma nova
leitura, revelou-lhe de súbito a lacuna da sua coleção nova para o mundo e
suprema.
Aconteceu-lhe ler alguns versos do canto VI da Eneida, na tradução de
Annibale Caro:

Não vês ali aquele audaz mancebo
que naquela hasta pura o braço apóia?
A luz há de ser dado antes de todos:
o primeiro dos filhos que, no Lácio,
terá de ti Lavínia...

Arrepiaram-se-lhe os cabelos. Nunca pensara nisto. Releu o passo:

o primeiro dos filhos que, no Lácio
terá de ti Lavínia...

Havia, pois, uma sexta classe, um sexto tipo, uma espécie que ainda faltava à
sua coleção: uma sexta variedade de filho. Mas para o ter...
Então toda a sua obra era inútil? Levara sete anos naquela empresa, dela
fazendo o único objetivo da vida: tinha vencido todos os outros sentimentos,
todos os escrúpulos, todo o senso de dignidade e de humanidade, para que a obra
saísse completa e acabada. E não se achava completa.
Necessitava completá-la, a todo custo. Isso estava nas suas mãos, e era fácil:
precisava de vencer ainda o último sentimento, o mais profundo e mais
elementar: impunha-se um sacrifício supremo.
A idéia obsessora atormentava-o e absorvia-o cada vez mais. Decorreram
alguns meses. A fecunda baronesa preparou-se para dar à casa um novo rebento.
E Raimundo cada vez mais se convencia da necessidade absoluta de fazer o
último sacrifício à paixão, à vocação, ao gênio. Os meses iam passando:
aproximava-se o fim. Raimundo já estava seguro de si, e mentalmente
predispusera tudo. Eram os últimos dias. Certa manhã, a baronesa sentiu as
primeiras dores: chamou-se a parteira.
Raimundo beijou a esposa na testa e foi fechar-se no quarto vizinho. Através
da parede chegavam-lhe aos ouvidos todos os pequenos rumores: os passos das
mulheres que aprestavam as coisas necessárias. Ele também aprontara o que era
preciso. Estava sentado a uma mesinha, com o catálogo secreto aberto diante dos
olhos, na sexta folha, ainda em branco. Aguardava o instante, para ficar certo de
que o nascimento ia ocorrer de modo normal. E por isso cuidara de não fazer
barulho, a fim de não se arriscar a perturbá-lo.
Pronto: é agora; um instante depois seria tarde demais. Ouviu dali o começo
de um grito mais forte, o grito que antecede a libertação. Escreveu rapidamente
na folha — número 6; póstumo — e vibrou uma punhalada no coração.

Luigi Pirandello


Tragédia de Uma Personagem

É antigo hábito meu dar audiência, cada manhã de domingo, às personagens
dos meus futuros contos. Cinco horas, das oito às treze.
Acontece que me encontro sempre em má companhia.
Não sei por que, a essas audiências acorre de ordinário a gente mais
descontente do mundo, ou afligida por males estranhos, ou emaranhada em casos
especiosíssimos, com a qual é realmente penoso lidar.
Escuto a todos com resignação; interrogo-os com boa-vontade, tomo nota dos
nomes e das condições de cada um; levo-lhe em conta os sentimentos e as
aspirações. Devo acrescentar, porém, que, por desgraça minha, não sou fácil de
contentar. Resignação, boa-vontade, muito bem; mas ser embrulhado, lá isso
não. E quero penetrar até o âmago de suas almas por meio de indagação longa e
sutil.
Ora, sucede que mais de um fica desconfiado com certas perguntas minhas,
embirrando e recalcitrando furiosamente, talvez por lhe parecer que eu me
deleite em despi-lo da seriedade com que se me apresenta.
Esforço-me, com paciência e boa vontade, por fazer ver e palpar que a minha
pergunta não é supérflua. É fácil, de fato, a gente querer ser isto ou aquilo; mas
trata-se de saber se podemos ser como desejamos. Onde faltar esta capacidade, a
tal vontade deverá afigurar-se ridícula e vã.
Porém eles não querem convencer-se disto.
Então eu, que sou, no fundo, de bom coração, entro a compadecer-me deles.
Mas será possível a gente compadecer-se de certas desgraças a não ser com a
condição de rir delas?
Pois bem, as personagens dos meus contos vivem espalhando pelo mundo
afora que eu sou um escritor crudelíssimos, sem entranhas. Seria preciso um
crítico de boa-vontade para demonstrar quanta compaixão oculto sob aquele riso.
Mas onde estão hoje em dia os críticos de boa-vontade?

*

Cumpre advertir que, nas audiências, algumas destas personagens se atiram
adiante das outras e impõem-se com tamanha petulância e prepotência que às
vezes me vejo obrigado a livrar-me delas às pressas.
Em seguida, várias se arrependem amargamente dessa fúria e vêm-me pedir
mercê, alegando terem-se emendado de tal defeito ou tal outro. Sorrio e convido-
as pacatamente a expiar por enquanto sua primitiva culpa, aguardando que me
sobre tempo para voltar a elas.
Entre as que ficam atrás a esperar, desbaratadas, umas suspiram, outras se
contristam, outras se cansam e vão bater à porta de algum outro escritor.
Várias vezes me ocorreu encontrar nos contos de confrades determinadas
personagens que primeiro se me apresentaram a mim; como também já me
aconteceu avistar algumas que, não contentes com a maneira como eu as havia
tratado, tentaram fazer melhor figura alhures.
Disso não me queixo, pois em geral me aparecem, por semana, duas ou três
novas personagens. Uma vez ou outra a assuada é tão grande que me vejo
obrigado a atender simultaneamente a mais de uma. A não ser que, em certo
momento, meu espírito, assim dividido e perturbado, se recuse a agüentar esta
sobrecarga e desande a gritar que ou venham devagarinho, com calma, uma de
cada vez, ou então voltem todas três ao limbo!
Lembro-me sempre de um pobre velhinho que esperava a sua vez com
extraordinária tolerância. Era um certo maestro Icílio Saporini, que me chegava
de longe. Expatriara-se para América em 1849, por ocasião da queda da
República Romana, por ter musicado não sei que hino patriótico, e voltava à
Itália quarenta e cinco anos depois, quase octogenário, para morrer.
Cerimonioso, com sua vozinha de mosquito, deixava que todos lhe passassem na
frente. Enfim, um dia, como eu estivesse convalescendo de longa doença, vi-o
penetrar no meu quarto, muito humilde, com um risinho tímido nos lábios:
— Dá licença?... Se não o aborrece...
Como não querido velhinho! Escolhera o momento mais oportuno. Fi-lo
morrer imediatamente, num pequeno conto intitulado “Música Antiga”.

*

Domingo passado, entrei no meu gabinete, para a audiência, um pouco mais
tarde que de costume.
Um longo romance, que me fora mandado de presente e aguardava leitura
havia mais de um mês, mantivera-me acordado até às três da manhã por causa de
todas as considerações que me sugerira uma de suas personagens, a única viva
entre muitas sombras vãs.
Apresentava o livro um pobre homem, certo Dr. Fileno, que acreditava ter
encontrado o remédio mais eficaz para toda espécie de males, uma receita
infalível para se consolar a si mesmo e a todos os homens de toda e qualquer
calamidade, pública ou particular.
Na verdade, antes que remédio ou receita, era um método, o do Dr. Fileno,
que consistia em ler, de manhã à noite, livros de história, e em ver na história
também o presente, já feito coisa muito distante no tempo e assentada nos
arquivos do passado.
Com tal método se livrara de toda pena e fastio, e encontrara — sem ser
preciso morrer — a paz; uma paz austera e serena, embaciada por aquela tristeza
sem pesar que os cemitérios conservariam na face da terra, ainda que todos os
homens tivessem morrido.
Nem por sonho pensava o Dr. Fileno em tirar do passado ensinamentos para o
presente. Sabia que isto seria tempo estupidamente perdido; pois a história é uma
composição ideal de elementos reunidos segundos a natureza, as antipatias, as
simpatias, as aspirações e as opiniões dos historiadores, de forma que não é
possível aplicar essa composição ideal à vida que se movimenta com todos os
seus elementos ainda decompostos e dispersos. Tampouco pensava em tirar do
presente normas ou conclusões para o futuro; fazia precisamente o oposto:
transportava-se idealmente ao futuro para dali olhar o presente, e via este como
passado.
Um exemplo. Morrera-lhe, poucos dias antes, uma filhinha. Um amigo foi vê-
lo para com ele condoer-se da desgraça. Pois bem, encontrou-o já tão consolado
como se a filhinha lhe houvesse morrido mais de cem anos antes.
O seu infortúnio, ainda bem recente, ele simplesmente o afastara no tempo,
repelira-o e acomodara-o no passado. Mas era de ver com quanta altivez e
dignidade o comentava!
Enfim, daquele seu método fizera o Dr. Fileno como que uma longa-mira
invertida. Abria-a, mas não para pôr-se a olhar na direção do futuro, onde tinha a
certeza de que nada viria; persuadia a alma a contentar-se com olhar pela lente
maior, através da menor, assestada sobre o presente, de jeito que todas as coisas
lhe aparecessem logo pequenas e longínquas. E preparava-se, desde vários anos,
para compor um livro que certamente faria época: A Filosofia do Longínquo.
Durante a leitura do romance parecera-me evidente que o autor, empenhado a
fundo em atar artificiosamente uma das tramas mais corriqueiras, não soubera
assumir inteira consciência desta personagem, a qual, contendo em si, ela
sozinha, o germe de uma verdadeira e própria criação, conseguira até certo ponto
soltar-se-lhe das mãos e destacar-se num longo trecho, com vigoroso relevo,
sobre aqueles casos tão vulgares, contados e representados no romance; depois,
improvisadamente, deformado e enfraquecido, deixara-se dobrar a adaptar-se às
exigências de uma solução falsa e insípida.
Ficara muito tempo, no silêncio da noite, com a imagem dessa personagem
diante dos olhos, a cismar. Que pena! Havia nela tanta matéria para uma obra-
prima! Se o próprio autor não a tivesse tão indignamente desconhecido e
descurado, se ela tivesse feito o centro da narração, talvez, todos os elementos
artificiosos de que se valera se houvessem transformado, tornando-se logo vivos,
eles também. E uma grande piedade e um grande desgosto apoderaram-se de
mim ao ver aquela vida tão miseravelmente frustrada.
Ora, essa manhã, ao entrar, atrasado, no meu escritório, notei ali um rebuliço
insólito: o Dr. Fileno introduzira-se entre as minhas personagens expectantes, e
elas, aborrecidas e despeitadas, saltaram-lhe em cima, procurando enxotá-lo,
repeli-lo.




— Alto lá! — gritei. — Que modos são esses, senhores? Dr. Fileno, já gastei
bastante tempo com o senhor.
Que deseja de mim? O senhor não me pertence. Deixe-me, pois, atender em
paz às minhas próprias personagens, e vá-se embora!
No rosto do Dr. Fileno estampou-se uma angústia tão intensa e desesperada
que logo todos os demais (as minhas personagens que ainda o estavam contendo)
empalideceram e se retiraram mortificados.
— Não me enxote, pelo amor de Deus, não me enxote! Conceda-me uma
audiência de cinco minutos apenas, com permissão destes senhores, e deixe-se
persuadir, pelo amor de Deus!
Perplexo e tomado de compaixão, perguntei-lhe:
— Persuadir-me de quê, meu caro doutor? Estou mais que persuadido de que
o senhor merecia cair entre as melhores mãos. Mas que quer que eu faça? Já
estou muito compadecido da sua sorte; isso é bastante.
— É bastante? Não senhor! — explicou o Dr. Fileno com um frêmito de
indignação que lhe abalava todo o ser. — O senhor fala assim porque eu não sou
coisa sua.
Ora, o seu descuido e até o seu desprezo seria muito menos cruel para mim do
que essa comiseração passiva, indigna de uma artista. Desculpe a minha
veemência, mas ninguém sabe melhor do que o senhor que somos seres vivos,
bem mais vivos do que aqueles que respiram e que se vestem, menos reais
talvez, porém decerto mais vivos. Nasce-se para a vida de tantas maneiras, meu
caro senhor! Bem sabe, aliás, que a natureza se utiliza do instrumento da
imaginação humana para prosseguir na sua obra de criação. Quem nasce graças a
essa atividade criadora, com sede no espírito humano, é destinado pela natureza
a uma vida muito superior à de um ser nascido do ventre mortal de uma mulher.
Quem nasce personagem, quem tem a sorte de nascer personagem viva, pode
zombar até da própria morte, pois nunca há de morrer. Morrerá o homem, o
escritor, esse instrumento natural da criação; não, porém a criatura.
Para viver eternamente, esta não deve possuir dotes extraordinários, nem
precisa, de realizar prodígios. Diga-me quem era Sancho Pança! Diga-me quem
era Dom Abôndio! Entretanto eles vivem eternos, porque, germes vivos, tiveram
a sorte de encontrar uma fecunda matriz, uma imaginação que os soubesse criar
e alimentar.
— De acordo, meu caro doutor, tudo isso está certo — respondi-lhe. — Mas
não vejo o que o senhor pode pretender de mim.
— Não o vê? — replicou o Dr. Fileno. — Será que errei o caminho? Que
estarei no mundo da Lua? Mas então, desculpe, que espécie de escritor é o
senhor? Será possível que realmente não compreenda o horror da minha
tragédia? Ter a gente o inestimável privilégio de haver nascido personagem, hoje
em dia, quando a vida material anda tão cheia de nojentas dificuldades que
impedem, deformam e deturpam toda a existência, ter o privilégio de haver
nascido personagem, destinado portanto à imortalidade — sim senhor, à
imortalidade, apesar de toda a minha pequenez — e cair naquelas mãos, perecer
ignobilmente, sufocar naquele mundo artificial onde não posso sequer respirar
ou dar um passo, porque tudo é fingido, falso, combinado, sofisticado! Palavras
e papel, papel e palavras! Um homem, quando se encontra em condições de vida
a que não pode ou não sabe adaptar-se pode a isso escapar, fugir. Mas a coitada
da personagem, essa, não! Ela fica ali como pregada, obrigada a um martírio sem
fim. Ar! Ar! Vida! Olhe só este meu nome: Fileno... pôs-me o nome de Fileno!...
Parece-lhe que eu posso seriamente chamar-me assim? Cretino que ele é, nem o
nome soube dar-me! Fileno, eu! Mais ainda: o autor de A Filosofia do
Longínquo, justamente eu, devia ter um fim tão indigno somente para desfazer
aquela estúpida embrulhada de intrigas! Cabe-me a mim, precisamente a mim,
desposar aquela idiota de Graziela, em vez de deixá-la ao tabelião Negroni! Ora
bolas! Tudo isso são delitos que o autor deveria pagar com lágrimas de sangue.
Que acontecerá entretanto? Nada. O silêncio. Talvez o crítico de um ou outro
jornaleco lhe meta o pau e exclame: — “Coitado desse Dr. Fileno! Este sim, que
era uma personagem boa!” E tudo acabará nisso. Estou condenado à morte, eu, o
autor de A Filosofia do Longínquo, tanto mais irremediavelmente quanto aquele
idiota nem achou meio de me publicar, nem mesmo à minha custa... Claro, senão
como é que eu poderia casar em segundas núpcias com a idiota de Graziela?
Nem me faça pensar nisso. Vamos, meu caro senhor, ponha mãos à obra!
Redima-me, e neste mesmo instante! Faça-me viver, já que compreendeu bem
toda a vitalidade que há em mim!
Fiquei um instante a olhar o rosto do Dr. Fileno depois de ele ter emitido
furiosamente essa proposta, remate de suas longas efusões.
— Tem escrúpulos? — perguntou-me transtornado. — Será possível? Mas se
é a coisa mais legítima que há! É seu direito santo e sagrado lançar mão de mim
e dar-me a vida que aquele imbecil não soube me dar. É seu direito e meu,
ouviu?
— Será seu direito, meu caro — respondi — tão legítimo como o senhor
pensa. Mas coisas assim eu não faço. É inútil insistir. Não as faço, acabou-se.
Recorra a outros.
— A quem? Já eu o senhor mesmo...
— Sei lá! De qualquer maneira, experimente! Talvez não lhe seja difícil
encontrar alguém perfeitamente convencido da legitimidade desse direito... Mas
agora é que me lembro: o senhor é ou não é o autor de A Filosofia do
Longínquo?
— Claro que sou! — explodiu outra vez o Dr. Fileno, dando um passo atrás e
levando as mãos ao peito. — O senhor ousaria pô-lo em dúvida? E claro...
compreendo, é sempre a culpa daquele meu assassino. Contentou-se em frisar de
leve as minhas idéias, não dando delas senão um resumo reduzido, sem entrever
todo o partido que se poderia tirar da minha descoberta, a longa-mira invertida.
Estendi as mãos para deter o meu interlocutor e disse-lhe sorrindo:
— Está certo... mas o senhor mesmo?
— Eu mesmo? Não entendo.
— Estava-se queixando de seu autor... mas se o senhor mesmo não sabe tirar
todo o partido de sua própria teoria! Pois é exatamente isto que eu lhe queria
perguntar: se realmente leva a sua filosofia tão a sério como eu o faço, por que
não a aplica um pouco ao seu próprio caso? Por que procura, agora, entre nós,
um escritor que o entregue à imortalidade? Veja um pouco o que os mais
autorizados críticos afirmam a nosso respeito. Somos e não somos, meu caro
doutor. Se não, queira submeter, comigo, à sua famosa longa-mira invertida,
ainda que por um só instante, os fatos mais notáveis, as questões mais
focalizadas, as obras mais admiradas de nossos dias. Receio que de tudo isto,
através da longa-mira, o senhor não veja mais nada, nem ninguém. Vá, pois,
console-se, ou antes, resigne-se e deixe-me atender às minhas humildes
personagens. Podem ser ruins, podem ser rabugentas — mas, pelo menos, não
têm a sua extravagante ambição.






No Hotel Morreu um Fulano


Cento e cinqüenta quartos, em três andares, no ponto mais populoso da cidade.
Três filas de janelas iguaizinhas, com balaustradas nas sacadas, as vidraças e as
persianas cor de cinza, fechadas, abertas, semi-abertas, encostadas.
A fachada é feia e pouco atraente. Mas, se não houvesse fachada, quem sabe a
impressão curiosa que dariam aquelas cento e cinqüenta caixinhas, umas sobre
as outras em filas de cinqüenta, e as pessoas que nelas se movimentam, ao serem
vistas por fora?
Contudo, o hotel é decente e muito cômodo: elevador, grande número de
garçons ágeis e disciplinados, boas camas, bom passadio, condução própria. As
vezes, um cliente, ou mais de um, se queixa da diária elevada; mas todos
terminam reconhecendo que, se a gente gasta menos em outros hotéis, se sente
pior e não tem a vantagem, tão desejada, de morar no centro da cidade. Pode,
pois, o proprietário não se preocupar com as queixas relativas aos preços e
mandar os insatisfeitos procurarem outro pouso. O hotel está sempre cheio de
clientes, e à chegada do vapor pela manhã e à dos trens o dia todo, muitas
pessoas vão, é certo, procurar outro pouso, mas não por que assim queiram, e
sim por não encontrarem vaga neste.
São na maioria caixeiros viajantes, homens de negócios, provincianos que
vêm resolver algum caso na cidade, tratar de um processo ou consultar um
médico; numa palavra, clientes de passagem, que não ficam mais de três ou
quatro dias; muitos chegam à noite e partem na manhã seguinte.
Muitas maletas; poucas malas.
Há, portanto, um grande movimento, um contínuo vaivém das quatro da
manhã até a meia-noite, o que faz o maitre perder a cabeça. Num momento, tudo
está cheio; um momento depois, três, quatro, cinco quartos vagam: parte o n.° 15
do primeiro andar, o n.° 32 do segundo; o 2, o 20, o 45 do terceiro; enquanto
isso, dois novos fregueses acabam de ser mandados embora. Quem chega tarde é
capaz de encontrar desocupado o melhor quarto do primeiro andar, ao passo que
outro, que chegou um instante antes, teve de se contentar com o n.° 51, do
terceiro. (Há cinqüenta quartos em cada andar; porém cada andar tem um n.° 51,
porque em cada um falta o 17; do 16 pula-se ao 18; e quem se aloja no 18 tem
certeza de evitar qualquer desgraça.)
Há também os fregueses velhos, que chamam os garçons pelo nome, com a
satisfação de não serem para eles, como todos os demais, o simples número do
quarto que ocupam: pessoas sem casa própria, gente que viaja o ano inteiro, com
a maleta sempre na mão, e se sente bem por toda parte, prestes a enfrentar
qualquer eventualidade, sempre segura de si.
Em quase todos os demais se observa uma impaciência frenética, uma
expressão perturbada ou uma consternação carrancuda. Não estão ausentes
apenas de seu país, de sua casa; estão ausentes também de si mesmos. Fora dos
próprios hábitos, longe dos aspectos e dos objetos costumeiros, nos quais
diariamente vêem e apalpam a realidade corriqueira e mesquinha da própria
existência, agora já não se encontram; quase já não se conhecem, porque tudo
neles está como que parado, e suspenso num vácuo que não sabem como
preencher, no qual cada um teme que, de um instante para outro, se lhe possam
apresentar aspectos de coisas desconhecidas ou surgir-lhe pensamentos, desejos
novos, por motivos insignificantes; curiosidades estranhas que lhe façam ver ou
tocar uma realidade diversa, misteriosa, não somente em redor, mas também
dentro dele.
Despertados cedo demais pelos rumores do hotel e da rua em frente, poem-se
a resolver os seus negócios com grande azáfama. Encontram todas as portas
ainda fechadas: o advogado só chegará ao escritório dentro de uma hora: o
médico principia as consultas às nove e meia. Depois, liquidados os afazeres,
tontos, aborrecidos, cansados, voltam a encerrar-se no quarto com o pesadelo das
duas ou três horas que sobram, até a partida do trem; passeiam, fungam,
contemplam a cama, que não os convida a se deitarem; as poltronas, o sofá, que
não os convida a sentarem-se; a janela, que não os convida a olhar para a rua.
Como é estranha aquela cama! Que forma curiosa tem aquele sofá! E aquele
espelho, que horror! De repente, lembram-se de uma incumbência esquecida: o
aparelho de barbear, as ligas para a mulher, a coleira para o cachorro; tocam a
campainha para pedir ao garçom endereços e informações.
— Uma coleira, com a tabuleta assim e assado, para gravar o nome.
— Do cachorro?
— Não, o meu, e o endereço da casa.
Os garçons ouvem cada coisa! A vida toda passa por eles, a vida sem sossego,
movida por tantas vicissitudes, impelida por tantas necessidades... Ainda agora,
há, por exemplo, no n.° 12 do segundo andar, uma pobre senhora de idade,
vestida de luto, que pergunta a todos se a bordo a gente passa mal ou bem. Deve
partir para a América, e nunca viajou. Chegou ontem à noite, caindo de fadiga,
sustentada de um lado por um filho, do outro por uma filha — eles também
vestidos de luto.
Especialmente na segunda-feira, às seis da tarde, o proprietário quer que no
bureau se saiba com exatidão o número de quartos disponíveis. Chega o vapor
de Gênova, com pessoas que da América voltam à pátria, e ao mesmo tempo, do
interior, o trem direto mais repleto de viajantes.
Ontem às seis da tarde, apresentaram-se ao bureau nada menos de quinze
forasteiros, dos quais somente quatro puderam ser acolhidos: a pobre senhora
vestida de luto, com o filho e a filha, no n.° 12 do segundo andar, e, ao lado, no
13, um cavalheiro desembarcado do vapor de Gênova.
No registro do bureau, o mordomo fez as seguintes anotações:
Sr. Pérsico Giovanni, com a mãe e a irmã, procedentes de Vittoria.
Sr. Funardi Rosário, empreiteiro, procedente de Nova Iorque.
A senhora de luto teve de separar-se aflita de outra familiazinha, composta
igualmente de três pessoas, com as quais tinha viajado no trem, e que lhe deram
o endereço do hotel. Magoara-se ainda mais ao saber que elas poderiam ter-se
alojado no quarto ao lado, se o n.° 13, um minuto antes, exatamente um minuto
antes, não tivesse sido alugado ao tal Sr. Funardi, empreiteiro, procedente de
Nova Iorque.
Vendo a velha mãe chorar agarrada ao pescoço da senhora com quem viajara,
o filho tentou interceder junto ao Sr. Funardi para que cedesse o aposento àquela
outra família. Pediu-lhe em inglês, porque ele também, o rapazinho, é um
americano. Voltara dos Estados Unidos com a irmã havia apenas quarenta dias,
por motivo de uma desgraça, a morte de um irmão que sustentava na Sicília a
mãe idosa. Agora esta chora; chorou e sofreu tanto, durante toda a viagem de
trem, a primeira que fez em sessenta e seis anos de vida; arrancou-se com aflição
da casa onde nascera e envelhecera, do túmulo recente do filho, com quem
vivera sozinha por tantos anos, dos objetos mais caros, das recordações da terra
natal; e, vendo-se na iminência de separar-se também da Sicília, agarra-se a
tudo, a todos: assim, a essa senhora com quem viajou. Portanto, se o Sr. Funardi
quisesse...
Não. O Sr. Funardi não quis. Respondeu não, com a cabeça, sem uma palavra,
depois de ouvir o pedido inglês do rapaz; um não bem americano, com as
sobrancelhas franzidas na cara túmida, amarelada, hirta de barba incipiente; e
foi, de elevador, recolher-se ao n.° 13 do segundo andar.
Por mais que o filho e a filha instassem, não houve jeito de induzir a velha
mãe a servir-se, ela também, do elevador. Toda espécie de mecanismo lhe incute
espanto, aterroriza. E pensar que agora deve ir à América, a Nova Iorque!
Atravessar tamanho mar, o Oceano... Os filhos exortam-na a ficar sossegada,
porque a bordo não se passa mal; ela, porém, não se fia; passou tão mal no trem!
E a todos pergunta, de cinco em cinco minutos, se é verdade que a gente não
passa mal a bordo.
Os garçons, as arrumadeiras, os carregadores, para se verem livres dela,
combinaram aconselhá-la a dirigir-se ao cavalheiro do quarto ao lado, mal
desembarcado do vapor de Gênova, de volta da América. Um homem que
passou tantos dias a bordo, que atravessou o Oceano, este, sim, poderá dizer-lhe
melhor do que outro qualquer, se a bordo a gente passa mal ou bem.
Ora, desde manhãzinha — porque os filhos saíram para retirar a bagagem da
estação e fazer algumas compras —, desde manhãzinha, a velha senhora entre
abre a porta baixinho, de cinco em cinco minutos, e passa timidamente a cabeça
para olhar a porta do quarto ao lado, para perguntar ao homem que atravessou o
Oceano se a bordo a gente passa mal ou bem.

À primeira luz pálida, derramada pela janela grande do fundo do corredor


sórdido, viu duas longas filas de sapatos, e um lado e de outro, um par diante de
cada porta. Viu crescer cada vez mais o número de vagas nas duas filas;
surpreendeu mais de um braço a estender-se de uma porta e retirar o par de
sapatos que lá estava. Agora todos os pares já foram retirados. Só aquele da
porta ao lado, precisamente o do homem que atravessou o Oceano e a quem ela
tem tamanha vontade de perguntar se a gente passa mal a bordo ou não, ei-lo
ainda ali.
Nove horas. Nove e quinze; nove e meia; dez: aqueles sapatos continuam no
mesmo lugar. Sozinhos, o único par deixado em todo o corredor, atrás daquela
porta, ao lado, a única ainda fechada.
Houve tanto barulho naquele corredor, tanta gente passou, garçons,
arrumadeiras, carregadores; todos ou quase todos os forasteiros saíram dos seus
quartos; muitos voltaram; todas as campainhas tiniram, continuam a tinir de vez
em quando, e o zumbido surdo do elevador não pára um instante, subindo e
descendo, de um andar para outro, deste para o térreo; e aquele senhor não
acorda. São quase onze horas: aquele par de sapatos continua ali, em frente da
porta. Ali.
A velha senhora já não se contém. Ao ver passar um garçom, chama-o e
indica-lhe aqueles sapatos.
— Será que está ainda dormindo?
— Ora — responde o garçom, encolhendo os ombros — deve estar cansado...
Também, depois de uma viagem daquelas!
E vai embora.
A velha senhora faz um gesto como para dizer: — “Hem!” — e retira-se da
porta. Pouco depois volta a abri-la e a contemplar com. estranho temor aqueles
sapatos.
Deve ter viajado muito, realmente, aquele homem; devem ter andado um
bocado aqueles sapatos: dois pobres sapatões enormes, deformados, de tacão
torto, com os elásticos dos dois lados esbeiçados, estourados: quem sabe quanta
fadiga, quanto esforço, quanto cansaço, por quantos caminhos...
A velha senhora sente-se quase tentada a bater com os nós dos dedos naquela
porta. Volta a recolher-se ao seu quarto. Os filhos tardam a regressar. A sua
impaciência cresce cada vez mais. Talvez fossem mesmo ver, como lhe tinham
prometido, se o mar estava tranqüilo.
Pois é; mas como se pode ver de terra se o mar está tranqüilo? O mar
longínquo, o mar que não acaba mais, o Oceano... Vão-lhe dizer que está
tranqüilo. Como acreditar? Somente ele, o cavalheiro do quarto ao lado, poderia
dizer a verdade. Apura o ouvido; encosta-o à parede para ver se alcança perceber
algum barulho vindo dali. Nada. Silêncio, Mas já é quase meio-dia: será possível
que o homem ainda esteja dormindo?
Eis o toque da campainha chamando para o almoço. I)e todas as portas do
corredor saem pessoas que descem ao refeitório. Ela torna à porta para observar
se aqueles dois sapatos ainda expostos ali impressionam alguém. Absolutamente:
todos passam sem reparar. Vem um garçom chamá-la: os filhos, chegados agora
mesmo, esperam-na embaixo, no refeitório. E a velha senhora desce com o
garçom.
Agora já não se vê ninguém no corredor; todos os quartos se acham vazios; e
o par de sapatos fica ali em expectativa, no meio da solidão e do silêncio, ante
aquela porta sempre fechada.
Parecem estar de castigo.
Feitos para andar, e deixados ali sem serventia, tão gastos depois de haverem
servido tanto, parecem envergonhados, como que pedindo que os levem
piedosamente dali ou os retirem afinal.
Voltando do almoço, depois de mais ou menos uma hora, todos os forasteiros,
em virtude da indicação cheia de espanto e medo da velha senhora, param,
finalmente, a observá-los com curiosidade. Lembram-se do americano, chegado
na véspera. Quem o viu? Desembarcou do vapor de Gênova. Talvez não tivesse
dormido bem durante a noite... Talvez tivesse passado mal a bordo... Vem da
América. Se enjoou, quem sabe quantas noites lerá passado sem dormir?
Quererá refazer-se, dormindo um dia inteiro. Mas como? no meio de um ruído
daqueles... Já é uma hora...
E cresce a curiosidade em torno daquele par de calçados diante da porta
fechada. Mas todos, instintivamente, se mantêm um pouco afastados, em
semicírculo. Um garçom corre a chamar o maitre; este manda chamar o
proprietário; e os dois, primeiro um, depois o outro, batem à porta. Ninguém
responde. Tentam abrir a porta. Está fechada por dentro. Tornam a bater, com
mais força. Silêncio ainda. Não há mais dúvida. É preciso avisar quanto antes a
polícia: felizmente, há uma delegacia a dois passos dali. Vem um delegado com
dois guardas e um ferreiro; arromba-se a porta: os guardas proíbem a entrada aos
curiosos do hotel.
O homem que atravessou o Oceano está morto, numa cama de hotel, na
primeira noite que pôs os pés em terra. Morreu dormindo, com uma das mãos
debaixo do rosto, como uma criança! Talvez de síncope.
Tantos vivos, todos os que a vida sem sossego reúne aqui por um dia, trazidos
pelas vicissitudes mais opostas, empurrados pelas necessidades mais diversas, se
aglomeram diante de uma celazinha de colméia em que uma vida parou de
improviso! A notícia espalhou-se por todo o hotel. Acodem os de cima, os de
baixo; querem ver, querem saber, quem morreu e como...
— Não se entra!
Estão lá dentro o pretor e um médico-legista. Através da fenda da porta, daqui
do canto — vejam! — entrevê-se o cadáver sobre o leito — vejam o rosto... xi!
como está branco! Com uma das mãos debaixo do rosto, parece dormir... como
uma criança... Quem é? Como se chama? Não se sabe nada. Sabe-se apenas que
voltou da América, de Nova Iorque. Com que destino? Esperado por quem? Não
se sabe nada. Nenhuma indicação nas cartas encontradas nos seus bolsos e na
maleta. Empreiteiro — mas de quê? Na carteira, apenas sessenta e cinco liras, e
uns cobre numa bolsa de níqueis no bolso do colete. Um dos guardas vem
colocar na coberta de mármore da cômoda aqueles pobres sapatos de tacão torto
que não andarão mais.
Aos poucos, para se livrarem do tropel, todos começam a dispersar-se,
retomam aos seus aposentos, em cima, no terceiro embaixo, no primeiro andar;
outros vão tratar de seus negócios, desempenhar as suas incumbências.
Só a velha senhora que desejava saber se a bordo a gente passava mal
permanece ali em frente à porta, apesar da insistência com que os filhos a
querem afastar; permanece ali, aterrada, a chorar por aquele homem que morreu
depois de haver atravessado o Oceano, que ela também deverá atravessar daqui a
pouco.
Embaixo, entre as pragas e imprecações dos cocheiros e dos carregadores que
entram e saem incessantemente, fecharam o portão do hotel em sinal de luto,
deixando aberta apenas a portinhola.
— Fechado? Por quê?
— Eh! Nada. No hotel morreu um fulano.

Grazia Deledda

Um Homem e Uma Mulher


Não se sabe como, espalhou-se o boato, semelhante a todos os boatos, de que
aquela velha dava dinheiro aos moços.
Falava-se nisto, naquela noite de outono, até na casa do cantoneiro da estrada
de Santa Marga, a oito quilômetros do lugar onde morava a tal mulher. £
verdade, porém, que todos os boatos dos arredores eram trazidos à casa do
cantoneiro e de lá voltavam a sair como os camundongos que viajam nos navios,
nos carros dos camponeses que transportavam carvão e casca de azinheira ao
mar, nas diligências, e até nos cavalos dos simples viajantes.
Tinha a mulher do cantoneiro uma espécie de botequim, onde todos os
viandantes paravam e onde se jogavam cartas; e precisamente nessa noite dois
homens, enquanto jogavam, falavam na velha que dava dinheiro aos jovens.
— E se dá dinheiro, quer dizer que dinheiro não lhe falta. Talvez o empreste,
ou dê de esmola — observou comadre Marga (todos assim chamavam à mulher
do cantoneiro, conquanto o seu verdadeiro nome fosse outro). — Eu, se tivesse
dinheiro para dar, daria aos moços, não aos velhos. Para o lixo os velhos, se
ainda precisarem de ajuda; quer dizer que não prestaram. É preciso ajudar é aos
moços.
Os dois riam, mostrando os dentes ao baralho. Essa comadre Marga, agachada
ali, no cantinho da porta, com a roupa de lã preta esfrangalhada que o tempo e a
sujeira por um triz não haviam reduzido ao primitivo estado de velo, era ainda,
deveras, como uma ovelha inocente, e não compreendia nada acerca do mundo e
dos homens.
— Pois então, comadre Marga, a senhora, que é velha, me ajuda, que eu sou
moço. Me dê pelo menos sessenta escudos que eu vou à América fazer fortuna.
Vamos, mexa-se, me arrume estes sessenta escudos.
Mas uma joelhada do companheiro debaixo da mesa fez que o jogador
levantasse os olhos. No canto oposto da saleta avistou, deitado numa esteira de
juncos brancos brilhantes na sombra, vestido de uma velha calça azul, e com um
barrete de pala, o filho de comadre Marga e do cantoneiro.
Estava dormindo, embora mal tivesse caído a noite, como aliás dormia
sempre, mesmo de dia, quando não era obrigado a ajudar o pai; dormia, mas era
um moço que nem sequer no sono se deixava ofender nem permitia que se lhe
ofendesse o parente mais remoto.
Os dois homens acabaram, pois, a partida, continuando a palestrar entre si,
sem dirigir outras indiretas maliciosas a comadre Marga. Esta cochilava também,
e só sacudia o corpo para receber as moedas, que, saídos os fregueses, botou
numa panela no pano alto da chaminé.
Os olhos de cristal negro do filho brilharam, abrindo-se e voltando a fechar-se,
ali na sombra do cantinho. Levantou a cabeça, e logo a abaixou, resmungando
como em sonho:
— Seria tempo de acabar com este negócio.
A mãe não lhe deu atenção, habituada que estava a ouvi-lo murmurar
freqüentemente durante o sono. Deixou a porta semi-aberta e foi deitar-se no
quartinho contíguo, ao lado do marido, que dormia também e roncava; pelo seu
modo de roncar sentia-se que era bom e estava cansado.
O filho, no seu canto, reabriu os olhos: mexeu as mãos e cruzou-as no peito;
via um tição que se apagava na chaminé, no meio da sombra da saleta preta,
como as brasas a cair como as pétalas de uma flor vermelha que se desfolha; e
pela fresta da porta sentia entrar o ar da noite, com um cheiro misto de estábulo e
de mato fresco, e ouvia um ruminar de bois ali perto e um murmúrio longínquo
de água.
Ouvira, em seu meio-sono, toda a conversa dos dois homens, e agora
ruminava-a de si para si, como o boi ruminava ali fora nas trevas do alpendre,
enquanto o sono ainda o acalentava com aquela voz de água distante na suave
noite de agosto. Ainda ouvia a voz do mais moço, clara e quente.
— “Quem me contou foi aquele
moço de Sorgono que lá esteve com
os demais pedreiros para construir a
casa. A casa é da dona. Ela é casada
em segundas núpcias. O primeiro
marido era rico e velho, e ela, jovem e
pobre: ele era ciumento que nem um
cachorro, e pão-duro, e a fechava a
chave, e a fazia sofrer fome por vinte
anos. Depois que ele morreu, a dona,
já quase velha, casou com um moço
pobre, mas este não lhe bastou, e de
repente começou a pegar outros
amigos. O marido surrava-a, e ela —
que havia mesmo de fazer? — jogou-
o fora de casa, e, como ele continuava
a importuná-la e a ameaçava de
morte, mudou de terra e veio morar aqui, abriu uma loja de tecidos e mandou
construir uma casa. Pois bem: enquanto mandava construir aquela casa, no
último verão, ia ver a obra todos os dias; e olhava para as paredes, mas olhava
também para os pedreiros, os mais moços, e estes lhe caíam nos braços um
depois do outro, do alto dos andaimes, como frutos da árvore. Dizem as más-
línguas que a casa lhe custou um bocado de ouro. O mais bonito é que quanto
mais envelhece mais os quer moços, aquela danada. Agora habita na casa nova
que tem em todo o redor uma varanda de ferro com pomos dourados, e a sua loja
de tecidos, que dá só sobre a praça, é como as lojas das cidades grandes, com o
nome e o sobrenome, Onofria Dau, escritos numa tabuleta de ferro, tal qual a
que se vê no crucifixo.”
Levantou-se num sobressalto, acendeu a lâmpada e foi examinar a panela na
chaminé, inclinando-a um pouco para enxergar-lhe o fundo, e cheirando as
moedas como se fossem comida; e as moedas de cobre pareciam deveras favas
cozidas, com algumas liras de prata brancas ao meio, outras tantas favas frescas.
Permaneceu assim um tempinho, imóvel e suspenso, contando o dinheiro com
os olhos; depois, como quem tira a panela do fogo, pegou-a pelas asas, abriu a
porta com o pé, andou até o campo e, ajoelhando-se, derramou as moedas num
lenço que puxara do bolso: embrulhou-as e amarrou bem amarradas as pontas do
lenço. Em seguida, pôs-se a caminho.
Ia segurando o embrulho nas mãos, dura e pesada como uma bola de ferro.
Caminhava reto pela estrada clara, entre os campos escuros, sob as rodinhas de
ouro do Carro dos Sete Irmãos. O lugar era lá, na frente. Parecia-lhe ver uma
cruz, no horizonte de um negro valoroso borrifado de estrelas, uma cruz com o
letreiro: Onofria Dau.
Aquele rumor longínquo de água, o ruído do capim arrancado por algum
cavalo no pasto, o cheiro da grama úmida da noite, acompanhavam-no.
— “Se é mesmo verdade” — pensava — “agora são oito e meia, e neste passo
chego lá às dez. Cobro vinte escudos, ah, nem um centésimo a menos, e vou
direitinho ao porto, e embarco. Irei a qualquer parte do mundo, à Córsega ou à
África, mas aqui não ficarei mais. Não quero ser cantoneiro, passar o dia inteiro
a espalhar saibro pela estrada para a viagem dos outros e mudar os cavalos da
diligência e ficar sempre ali, no mesmo lugar, como um burro,e girar a mó. Meu
pai que fique o tempo que quiser: eu, não. E, se não conseguir o negócio, volto e
reponho as moedas na panela. Vai em boa hora, Ghisparru Loddo; vai andando!”
Ia andando; fazia planos excelentes, e sentia-se quase alegre passando o
embrulho de uma mão para a (mira, como se fosse uma laranja. Se o negócio não
saísse certo, não ficaria com um soldo sequer; todas as moedas retornariam à
panela logo que estivesse de volta, daí a três horas; se, pelo contrário, tudo lhe
saísse bem, mal chegado ao lugar desconhecido para onde se encaminhava,
escreveria à mãe, pedindo-lhe desculpa e remetendo-lhe o primeiro dinheiro que
ganhasse.
Mas, no fundo tinha plena consciência do que planejava e conhecia a razão
que o impelia; sabia muito bem que era um mandrião e que o pai já não esperava
nada dele; mas procurava justificar-se a seus próprios olhos.
— Tu és um mandrião, e por isso mesmo deves mudar de vida, ir para onde
tem trabalho que te convenha. Anda, Ghisparru Loddo!”
Andava, andava: não podia errar o caminho; um passo atrás do outro, na
direção do alvo, como na vida um passo atrás do outro, na direção da morte; e, à
medida que avançava distinguia cada vez mais nítida, de um preto cerrado sobre
o preto líquido do horizonte, a linha das colinas rochosas sobre a região, e até
julgava divisar ao fundo da estrada a casa da mulher, com uma varanda de ferro
ao derredor.
Mas, à proporção que se aproximava, vinham-lhe dúvidas acerca do bom êxito
do empreendimento. Começou a pensar na mulher, que ele não conhecia,
robusta, gorda, os grandes seios a recair sobre o ventre, e sobre o laço da
camisola de olhos negros algo turvos, uma sombra de bigode acima do grosso
lábio saliente; numa palavra uma dessas velhas abastadas como ele conhecera
tantas, como ainda as vira no último domingo de setembro na festa de Santo
Elia, mulheres que ainda gostam de se divertir, embora não o mostrem, e que,
afinal de contas, não desagradam demasiadamente aos homens. A ele, pelo
menos, não desagradavam porque todas as mulheres, pensando bem, lindas ou
feias, velhas ou moças para ele eram iguais.
Entrou na aldeia deserta. Um cachorro latia no silêncio profundo; numa
janelinha térrea brilhava uma luz; ao passar por ela, olhou, e viu uma mulher
doente numa caminha de madeira e uma menina a vigiá-la.
Não compreendeu por que os seus pensamentos haviam mudado de cor;
retomando o caminho, sentiu-se um pouco, perdido, como se, depois daquela
luzinha de que se aproximara, as trevas à sua frente se tivessem tornado mais
densas.
Mas outras janelas e outros portões iluminados aclaravam trechos do caminho
até onde a praça se alargava; assim, chegado ao fundo, divisou claramente a casa
de Onofria Dau. Lá estava, diante dele, destacando-se das colinas do fundo,
acinzentada, com o colar de tomates da varanda; lá estava fechada, silenciosa e
firme como a realidade.
E ele sentiu o coração pulsar com angústia. Parecia-lhe ter chegado como que
à fonte de um rio contra a corrente; lá eslava ele, firme e forte também, decidido
a vencer, mas a corrente se lhe arremessava de encontro, e na verdade o coração
tremia-lhe de medo.
Atravessou a praça e bateu no portão de Onofria Dau, debaixo da tabuleta
Pelas conversas dos viandantes sabia que a mulher, para viver à vontade, não
tinha sequer uma criada; teve, pois, a certeza de entrevê-la na figura escura que
apareceu na varanda perguntando-lhe quem era e o que queria.
— Sou Ghisparru Loddo, o filho do cantoneiro de Santa Marga: abra, preciso
comprar agora mesmo um cobertor de lã, porque minha mãe está com
pneumonia.
Teve ganas de rir-se dessa imprevista mentira infantil; mas conteve-se ao ver a
silhueta retirar-se e ao ouvir, logo depois, passos no interior da casa.
— “Não deve ser verdade que está só” — pensou; — “não abriria o portão tão
prontamente. Poderiam até matá-la. Poderia matá-la e roubá-la eu mesmo, como
foi morta e roubada na outra noite a cunhada do Dr. Lecis.”
Sentiu de novo pulsar o coração, e um tumulto de pensamentos a emaranhar-
se-lhe no espírito; leve suor umedeceu-lhe a palma da mão. Porém, mal se abriu
o portão e apareceu uma alta e linda mulher, com um rosto branco e reluzente de
madona circundado da auréola preta da fita, de olhos azuis amendoados que
refletiam a chamazinha do lume que segurava na mão, sentiu fugir-lhe, com a
sombra, o terror do mal; percebeu logo que não ia matar, que não ia vender-se.
Nem sequer teve a coragem de perguntar-lhe se era ela Onofria Dau: viu
apenas que o pavimento da entrada era branco e reluzente como o rosto dela e
esfregou os pés no limiar, cuidoso de não levar consigo para dentro nem mesmo
a poeira da estrada.
Ela se apartou sem falar; chegando à porta da loja, ao pé da escada, no fundo
do corredor do vestíbulo, estendeu o lume a Ghisparru:
— Não o levo comigo, porque num instante se põe fogo à casa: fique aqui, por
obséquio: já lhe trago o cobertor.
Ele parou ali, com o lume numa das mãos e o próprio embrulho na outra; da
porta que a mulher abrira sentia chegar um cheiro de fazenda nova e de sabão
perfumado, e via-se trepar ligeira num banquinho a retirar da estante um pacote
azul; depois, viu-a descer, abrir o pacote em cima de um banco e trazer para fora
o cobertor amarelo de listras vermelhas.
— Veja se este lhe serve. Ponha a luz na escada. Como foi mesmo que sua
mãe pegou aquela pneumonia num tempo quente destes?
— Sei lá! Pegou como se pega qualquer doença — disse ele sério, convencido
de que a mãe, doente e acamada, precisava transpirar para livrar-se da
pneumonia.
Ela deixou cair o cobertor, desdobrando-o de braços abertos para mostrá-lo
bem; e fixou-o nos olhos a ver se estava satisfeito; e ele teve a impressão de que
ela lhe sorria com os dentes brancos e fortes entre os lábios vermelhos; que o
guardava e lhe sorria para agradar-lhe.
— Toque-a, pese-a, é lã fina. Largue essa luz.
Ele colocou o lume e o embrulho no terceiro degrau da escada, e pegou do
cobertor por uma das pontas, pesou-o com a mão, depois ajudou a dobrá-lo, em
silêncio.
A sua sombra e a da mulher, na parede, imitaram-nos grotescamente.
— Então, serve?
— Serve. Quanto é?
— Seriam vinte e duas liras, mas a você, por ser esse o motivo, eu dou por
vinte. Chamou o médico? Vou reembrulhá-lo de novo para você.
As últimas palavras vinham de dentro da loja: ela já repusera o cobertor na
grande folha azul sobre o banco e estava refazendo jeitosamente o pacote. O
homem retomou o próprio embrulho; ao curvar-se pareceu-lhe que todo o sangue
lhe subiu à cabeça: à perturbação de havia pouco sentiu suceder uma raiva
profunda; não queria ser ludibriado dessa maneira; não queria perder assim,
tolamente, o dinheiro ganho soldo a soldo pela mãe; prometera a si mesmo não
desperdiçá-lo, não, por Deus, e não o desperdiçaria. Depois sentiu-se triste:
pareceu-lhe ter sido traído pelo destino, pela mulher que não era velha e não
comprava os homens, mas, pelo contrário, vendia-lhes o seu sorriso e pelas
pessoas que a caluniavam; afinal foi impelido pelo desejo de se precipitar sobre
ela, de pegá-la ou, pelo menos, de bater nela com o seu embrulho: mal, porém
deu um passo dentro da loja viu um homem sem dúvida um criado, deitado ao
longo da parede, entre a porta e o banco. Recuou de súbito, como um ladrão.
Com o medo a raiva arrefeceu. Queria pelo menos fugir, salvar o seu dinheiro,
mas a vergonha, por sua vez vencia o medo. A mulher estava de novo à sua
frente e lhe alcançava o pacote azul.
Então ele quis defender pelo menos aquilo que podia defender por direito, e
mais alguma coisa, se pudesse.
— Você terá de dá-lo por doze liras; não vale mais do que isso. (Arrependeu-
se logo por não ter dito dez.)
Ela fitou-o zangada, envelhecida de repente:
— Está louco, meu filho! Um cobertor que me custa vinte liras, dá-lo por
doze?
Fixou-a bem nos olhos de perto, separado dela somente pelo muro dos
embrulhos; sim, estava velha. E agora ele tentou sorrir, e lisonjeá-la com os
olhos; de chofre voltou a lembrar-se de todos os seus projetos perversos.
— Se você puder, está bem, Onofria Dau; se não, paciência. Lamento ter
incomodado você a esta hora... mas me disseram... me disseram...
Fitou-a nas pupilas, queria insinuar-lhe a sua idéia com o olhar. Já não tinha
vergonha, nem medo do homem ali dentro; bastava que Onofria compreendesse.
Mas Onofria não compreendia, nem queria compreender. Compreendia apenas
que devia vender o cobertor e contentar-se com um lucro honesto; inclinou um
pouco a cabeça pensativa, até apoiar a face no pacote e tentou um último olhar
de lisonja, mas já sem esperança.
— Dará pelo menos dezesseis liras; acredite, perco quatro liras no negócio,
mas, já que você veio a esta hora por causa da mãe doente... tome, vá!
— Não posso — disse ele afastando-se.
E julgava escapar com o seu embrulho; ela porém, seguiu-o com o pacote, que
lhe pôs nos braços à força.
— Pois bem: como e para sua mãe doente, tome lá, pelo preço que oferece.
Ele teve vontade de gritar; não fez por causa do homem ali dentro. Afinal de
contas, não estava jogando fora o dinheiro da mãe; um cobertor de lã sempre é
um cobertor de lã.
Curvou-se pois sobre o pavimento branco, assim como se curvava sobre a
grama preta do prado, desatou o embrulho e catou as liras de prata: eram
precisamente doze. E estendeu-as zangado à mulher, na cavidade da mão, sem
olhar para ela; e ela também pôs no chão o próprio pacote, para contar o
dinheiro, enquanto ele reatava o lenço.

Alfredo Panzini


O Rato de Biblioteca

No fim do outono de 19..., o Professor Fulai, pertencente ao estado-maior da
alta cultura, encontrava-se algo preocupado.
O Sr. Sigismundo Fulai era ainda um homem imponente de saúde perfeita,
tinha dentes perfeitos que sorriam com graça e complacência. A sua cabeça,
sempre erguida, embora contivesse uma biblioteca (ao passo que outra não
menos bem ordenada, existia no sobrado de sua casa do lado do jardim),
bamboleava harmoniosamente. Tinha a voz calma e suave, o rosto barbeado;
seus sapatos rangiam elegantes, por obra de Batista, sempre luzidios:
Batista (e não o Batista) era o nome de seu criado, o qual dava a sua
contribuição para as fichas espanando-as e chegara a conhecer os livros da
biblioteca pela encadernação.

*

Ora, por motivos, até agora ignorados, no fim do outono daquele ano, os
camundongos invadiram a biblioteca; a do sobrado, do lado do jardim. O caso
era inquietante.
Ferozes, inaferráveis, aqueles malvados camundongos perpetraram estragos
notáveis. Assim, por exemplo, fora roído uma incunábulo, o Ars Moriendi, com
raríssimas xilogravuras de Lourenço Coster de Harlem. Havia, além disso, um
camundongo faceto que se lembrara de aninhar-se dentro do armário do quarto
de dormir do Sr. Professor, e da meia-noite ao amanhecer continuava num
trincar tão tenaz que, a julgar pelo ruído, devia ser um bichão como o grande
Malvado. Durava a noite toda aquele rumor dilacerante e, se por acaso cessava,
isto só acontecia por um requinte de crueldade: mal o Sr. Professor entrava a
adormecer, o ruído recomeçava.
— Que acha você, Batista, desta minha conjetura: será o mesmo camundongo
que estragou as xilogravuras do Coster?
Odiava muito aquele camundongo, quase como odiava aqueles fracassados
que o chamavam a ele rato de biblioteca; o Professor Pulai era de fato amável,
sem dúvida, mas um pouco venenoso. Porque, se ele passava o tempo nas
bibliotecas e nos arquivos — como o químico o passa no seu gabinete e o
astrônomo no seu observatório — daí não se conclua que ele fosse como um
daqueles nossos humanistas desgrenhados, os quais, segundo se dizia, se
empenhavam em ressuscitar os mortos. Fulai era, antes, homem de sociedade,
nem sequer isento de amáveis argúcias com as damas; quando muito, conseguia
adormecer os vivos.

*

— Batista — dizia ao seu fiel criado, — esta invasão de camundongos é
inquietante. Quanto ao armário, ali deve haver nada menos que um enorme mus
decumanus.
— Senhor professor — dizia Batista —, a gata da vizinha deu à luz. Eu ganhei
dois dos galinhos, que ainda vivem de leite. Espere alguns dias e verá que o
chpiro do gato bastará para expelir os camundongos.
— Você acha?
— Com toda a certeza. Nesse ínterim arranjarei umas ratoeiras.
— Egregiamente pensado! — exclamou o professor.
Batista armou algumas ratoeiras, duas na biblioteca e uma no armário, e
proveu as três de boa isca.
Ora, uma noite, o Sr. Professor, percebe que aquele ruído horrível cessou de
repente; logo depois ouve outro ruído menor, diferente e curioso.
— Chegaste! — exclamou dantescamente o Sr. Professor.
Põe as pernas fora da cama, enfia os chinelos, acende a luz, abre afinal o
armário e encontra um pequeno quid caudato, que se revolvia vertiginosamente
dentro da ratoeira.
Era o malvado camundongo! Seria possível que fosse ele só, ele tão
pequenino, o autor de todo aquele barulho? Pois foi ele só, aquele
camundongozinho, porque, mal apagada a lâmpada, não se ouviu mais nenhum
rumor.
— “Apolo Esminteu não te salvará” — pensou o Sr. Professor, e quis dormir;
mas já era de manhã e as vidraças coavam a luz lívida do dia outonal. Ah,
possuir um inimigo dentro de uma gaiola — seja homem ou camundongo — e
poder atormentá-lo sem nenhum perigo, é coisa de enlouquecer a gente. O
Professor levantou-se da cama, pegou da ratoeira e pôs-se a examinar o seu
inimigo à luz do dia.
O ratinho recorreu a preces e disse-lhe: “Ó Professor, em nome de teu Deus,
não sejas tão cruel assim!”
Mas o Professor, tomando de uma espátula pontiaguda, passou-a duas ou três
vezes por entre as grades da ratoeira, sem colher, porém, o seu inimigo, o que
lhe proporcionou despeito:
— Espera e verás nova brincadeira!
E abrasou a espátula na chama de uma vela; mas, embora soubesse de cor e
salteado todos os duelos de Ranaldo e de Ferraguto, nem dessa vez conseguiu
espetar o camundongozinho.
Todavia, por sua má sorte, o camundongo tinha uma cauda, a qual se estendia
fora da ratoeira. O Professor, que, entretanto, se esquentara naquela escaramuça,
compreendeu logo a vantagem que se podia tirar daquela cauda, e, embora com
nojo, agarrou-a, puxou-a e imobilizou o ratinho, o qual, também inteligente, se
agitava furioso com a parte do corpo não imobilizada, para se defender melhor;
e, ao mesmo tempo, rilhava e descobria o aparelho, formidável em sua pequenez,
dos dentes pontiagudos. Quanto às duas pupilas, esses dois preguinhos negros,
relampejavam a raiva desesperada. Porém o Professor, contrariamente aos
cavaleiros antigos que por honra de cavaleiro golpeavam de frente, golpeou por
detrás, por ser isto mais fácil. O ferro abrasado penetrou, e nesse instante um
estrido lacerante saiu do camundongo. Ele se abateu, batendo convulsamente os
pequenos dentes. Houve soluços espaçados no corpinho que se inchava e se
comprimia; depois os soluços cessaram.
A essa altura o Sr. Professor teve a idéia de,matar um camundongo morto.
Mas “com ele ser vilão foi cortesia”
Retirou o camundongo da ratoeira e, suspendendo-o pelo rabo, deixou-lhe cair
a cabecinha pontiaguda, orelhuda, de bigode feroz, sobre a chama da vela.
Foi então que o camundongo demonstrou ao Professor que não é de todo
fantasia o que se lê acerca dos cavaleiros antigos, os quais, por mais que os
martelassem, nunca ficavam bem mortos.
Ao contato da chama, o camundongo sobressaltou-se, revirou-se. O Professor
apressou-se em soltar a cauda; mais relampejante, porém, foi o movimento do
camundongo, e o Professor, por um horrível instante, teve a visão, e também a
sensação do abominável camundongo suspenso, pelos dentes, do seu dedo
polegar.
— Batista, terá você ácido bórico? — ressoou esta frase insólita no corredor
silencioso.
Batista, quando o amo o chamava, tinha ordem de levar-lhe o café que ele
servia na cama, e de não falar senão a respeito de algum especial acontecimento
meteorológico, ocorrido durante a noite.
Ora, naquela manhã Batista, ao acudir, viu o amo já levantado, de cuecas cor-
de-rosa, perto da janela ocupado em escrutar o próprio polegar.
Não, ele não tinha ácido bórico.
— Pois bem, vá à farmácia mais próxima e peça algum desinfetante poderoso.
Batista desapareceu e voltou pouco depois, mas desolado: o farmacêutico não
podia fornecer desinfetantes poderosos sem receita médica. Podia dar era
lisofórmio; e Batista voltava, de fato, com uma lata que continha o tal lisofórmio,
antisséptico poderoso, de cheiro agradável, não venenoso; destrói tinha, sarna,
baratas, lesmas, segundo vinha anunciado no rótulo. O Sr. Professor trabalhou,
com muita paciência, em torno do dedo polegar, com uma boa dose daquele
desinfetante, até que Batista tomou a liberdade de advertir ao amo que, se
desejava assistir à inauguração do Sanatório, era tempo de começar a vestir-se.
Naquele dia, com efeito, às dez da manhã, se inaugurava o Sanatório regional
de tuberculosos, com a presença de um chefe de gabinete assim como de todas
as personalidades representativas da cidade e da região, de cartola e redingote. O
Prof. Fulai representava a alta cultura, e por isso também tinha de comparecer. O
Senador X viera especialmente de Nápoles para pronunciar um discurso. Uma
dúzia de automóveis impacientes transferiram aquelas cartolas e aqueles
redingotes através do cinzento da campina despojada, a doze quilômetros da
cidade, onde, numa situação que todos julgavam “oh, esplêndida!”, surgia o
Sanatório. Depois as cartolas e os redingotes pretos giraram em longa fila pelos
corredores de obcecante brancura; admiraram o grande solário voltado para o
sul, exclamaram muitas exclamativas admirações que significavam: “Como
estarão bem aqui os senhores tuberculosos!” Depois o Senador X esboçou um
quadro grandioso da tuberculose ou peste branca. Apresentou dados estatísticos
impressionantes, junto aos quais as estatísticas de mortos das grandes batalhas
eram coisa bem leve; depois entrou na parte polêmica, relativa à cura da
enfermidade em apreço, e esta segunda parte entusiasmou o público de médicos.
No entanto, o Prof. Fulai estava possuído de insólita agitação. Aquelas
estatísticas de mortos, aquelas pirâmides de mortos, aquele edifício branco onde
haviam de morar os condenados à morte, produziam-lhe um surgimento de
imagens fúnebres. Via o solário povoado de filas de tuberculosos imóveis; a
floresta funerária de pinheiros; a esfera incansável do Sol que os enfermos
saudarão sem saber se voltarão a vê-la. Aquela festiva polêmica dos senhores
médicos parecia-lhe uma monstruosidade, uma lacerante contradição.
Em condições normais o Prof. Fulai não teria percebido nada de tudo aquilo:
ele não morreria na guerra, nem de tuberculose: portanto a coisa não dizia
respeito. Quando muito, morreria como Francesco Petrarca, com um códice na
mão, por efeito de um sopro suave, como se apaga uma vela.
Naquele dia, porém, não se encontrava em condições normais, e percebia
coisas que ordinariamente não se percebem. Parecia-lhe sentir uma dor no dedo
polegar.
Que estranha agitação crescente! Até que afinal acabou a lúgubre conferência:
afinal ele pode mexer-se! Vê que todos aqueles redingotes exultam; todos vão
cumprimentar o orador. Mas Fulai olha o Sol que, da baixa cúpula do céu, rompe
a bruma do outono e se pro jeta sobre a grande coroa negra dos pinheiros, sobre
o edifício branco.

Ao voltar, no automóvel, encontrou-se frente a frente com o Comendador G,
diretor do laboratório farmacológico da Universidade. O Comendador G
comentava, muito afervorado, com um seu colega, o discurso do Senador X:
— Extraordinário! Não é verdade, professor (virava-se para Fulai) que mesmo
do ponto de vista literário foi um discurso esplêndido?
Mas a presença daquele farmacologista e bacteriologista suscitara no
Professor Fulai uma vontade espasmódica de consultá-lo sobre micróbios: como
infetam o organismo, como se deve proceder à desinfecção, à cauterização em
caso de mordeduras; sobre a eficácia do lisofórmio.
— Ah, o lisofórmio?
Os médicos, todos os três, deram uma risada irônica a respeito do lisofórmio:
— É muito eficaz, comercialmente.
— Bem, e a cauterização? — perguntou Fulai.
— Não acredito que tal praxe seja recomendável — respondeu o ilustre
farmacologista. — Há vírus que, apenas trinta horas depois de inoculados, já
passaram irremissivelmente aos centros...
— Mas desculpe. Comendador, eu li que o fluxo sanguíneo se move com
lentidão maior — tomou Fulai a liberdade de observar.
— Mas nem todos os vírus, meu caro senhor, se propagam através do sangue.
O vírus rábico, por exemplo, propaga-se através dos nervos e não através do
sangue. As mordeduras nas partes descobertas, como o rosto ou as pontas dos
dedos, riquíssimos em filamentos nervosos, permitem a invasão dos centros em
menos de trinta horas. Oh, meu Deus! não posso fazer aqui no automóvel todo
um tratado de bacteriologia...
O Professor Fulai parou de falar: não por efeito daquelas palavras, isto é, que
“o vírus rábico se propaga através dos nervos”, mas em virtude de um choque
gélido, imobilizador. Daquele choque — como da nuvem negra de céu — se
desencadeou um ciclone. Era uma idéia única, crescida de improviso,
desmedidamente; monstruosa idéia que lhe andava à roda vertiginosamente na
caixa craniana, como o camundongo na ratoeira: girava desarraizando, atraindo
após si todas as idéias da vida habitual. “Pára!” — dizia Fulai. Horrível tortura
invisível! Não podia parar. Não existiam mais freios na caixa craniana.
Em casa, o ótimo Batista preparara o habitual, higiênico e delicado almoço;
mas a sopa esfriava, e três vezes ele suavemente batera à porta, dizendo:
— Senhor Professor, está na mesa.
O Professor, porém, tinha as pupilas fixas sobre um dicionariozinho onde
estava escrito:
Raiva (Rabies): doença virulenta, comum ao homem e a certos animais, cães,
lobos, gatos, etc., e que se manifesta por sintomas nervosos, depois por sintomas
de depressão, e termina com a morte.
— Batista! — ouviu-se a si mesmo chamar a Batista com voz insólita — será
que você encontrou um ratinho morto no meu quarto?
— Sim, Sr. Professor.
— E onde está?
— Está no depósito de lixo.
— Pois bem, esse ratinho, é preciso encontrá-lo no depósito de lixo e entregá-
lo a mim — disse com um estremecimento — e se você não o conseguir, chame
um perito.
Depois de meia hora de trabalho no meio da imundície, Batista encontrou-o.
— Está certo. Não quero vê-lo: ponha-o numa caixinha.
Pouco tempo depois, saía um homem apressadamente de casa. Levava a
própria morte no bolso do paletó.

*

O baixo edifício vermelho, novo, onde estava escrito em grandes caracteres:
Instituto Anti-rábico, surgia no meio de um jardinzinho, um pouco além da
antiga barreira alfandegária.
Fulai tocou a campainha a um portãozinho meio aberto. Apareceu uma gorda
moça de braços nus, e toda envolta numa comprida bata branca.
— O Dr. R. está?
— Está, mas não sei se poderá recebê-lo.
— A senhora entregue-lhe isto.
E deu-lhe o cartão de visita.
A moça desapareceu: o Professor permaneceu sozinho no quarto branco, nu,
sufocante de calor e de cheiro de éter: no meio, sobre uma folha de vidro, erguia-
se um aparelho, e dentro deste via-se preso um coelho, vivo, esfolado, deitando
sangue pelo topo do crânio. Fulai teve arrepios.
— Faça o favor de entrar — disse a mulher.
E voltou a ocupar-se com o coelho.
Ao entrar no gabinete contíguo, o Professor viu o jovem e elegante Dr. R., que
se levantava da escrivaninha e dizia:
— A que devo a honra, Sr. Professor?
O Professor mostrou, num sorriso, todos os dentes brancos. Quis falar
permanecendo em pé. Estava tomado de grande nervosismo.
— Um caso estranho, ilustre doutor, um caso de romance, ou mesmo de
novela fantástica. (Justamente aquele, de todos os gêneros literários, a que o
Professor votava o maior desprezo.)
Foi-lhe preciso contar tudo, e tudo estava justificadíssimo quando se pensa
que os camundongos lhe tinham roído aquele precioso incunábulo da Ars
Moriendi com as xilogravuras de Lourenço Coster de Harlem.
— Está certo, mas desculpe — disse o doutor, que, embora muito jovem,
falava, ou ao Sr. Professor parecia falar, com odiosa meticulosidade açucarada,
exatamente, como ele, Fulai, costumava falar — como foi mesmo que aquele
camundongo chegou a mordê-lo?
— Eu, julgando-o morto, peguei-o pelo apêndice caudal.
— Mas o senhor não devia, desculpe, pegá-lo pela cauda! Em outras palavras:
o senhor atormentou o animal...
Era mortificante que um homem tão grande devesse confessar o ter
atormentado um bicho tão pequeno, mas, como no espírito do Professor
estivesse pregada a terrível suspeita de que os maus tratos podiam ter provocado
no camundongo o desenvolvimento da raiva, foi forçado a confessá-lo.
— Realmente, é crença do vulgo — disse o doutorzinho — que os maus
tratos, a sede, a abstinência sexual podem gerar a raiva. Mas essa opinião não
está credenciada.
— Como é, então? — perguntou o Professor, que, pela primeira vez na vida,
se viu misturado ao vulgo.
— Então a raiva é produzida por transmissão, isto é. por enxerto. Seria, pois,
necessário supor que o camundongo em apreço tenha sido, por sua vez, mordido
por um gato já infectado, o que é pouco verossímil.
— Mas não é inverossímil.
— Não é inverossímil — confirmou o doutorzinho com exasperada
serenidade; entretanto era a serenidade uma das virtudes mais apreciadas por
Fulai.
— Bem, mas a primeira origem do vírus rábico?...
— perguntou Fulai.
E aquelas duas palavras, vírus rábico, davam-lhe tal constrangimento que não
as podia proferir: parava espantado ante aquelas duas palavras como diante de
um abismo.
— Quanto à origem — disse o doutorzinho com um sorriso de lábios sigilados
— o senhor a conhece melhor do que eu: Felix qui potuit rerum cognoscere
causam, como diz Lucrécio.
A citação era triplamente inexata, mas a Fulai — nesse dia — não lhe
importava absolutamente.
— Assim sendo, doutor, nada impede que eu seja levado a crer que a raiva se
possa desenvolver nos animais irracionais também sob a ação de uma tortura
física...
— Pode acreditar nisso também, se lhe aprouver...
— Se me aprouver... Desculpe; pelo contrário, desagrada-me; mas, como não
é inteiramente irrazoável, dado o ponto obscuro da origem deste mal, por isso
vim ao senhor para ter uma prova indiscutível, uma prova de gabinete...
— Pois não, se lhe aprouver; mas é preciso um resultado bacterioscópico.
— Enxertar um coelho como aquele que vi lá fora?
— perguntou o Professor novamente abismado no seu louco terror.



— Podemos agir também de maneira mais acurada — disse o doutorzinho,
complacentemente, alisando a barbicha. — Podemos proceder ao exame
histológico: verificar se no cérebro se encontram os chamados “corpos de
Negri”. Mas seria preciso termos o material de perícia...
— O camundongo?
— É claro; mas bem conservado. Se a putrefação invadiu mais ou menos o
objeto de exame, a prova já não se apresenta segura.
— O fato verificou-se hoje, pela manhã...
— Ah, então tudo está ótimo.
Que sensação estranha lhe deu aquele adjetivo ótimo num caso tão trágico!
Ah, os insensíveis homens da ciência! No entanto, ele, Fulai, se alegrava da
própria insensibilidade ao dissecar com a crítica as almas dos mortos.
O Professor estendeu o horrível invólucro. O doutor desembrulhou-o, retirou o
camundongo, examinou-o com chistosa curiosidade.
— Dir-se-ia que foi também chamuscado — disse esquadrinhando com olhos
indagadores, de baixo para cima, o Prof. Fulai.
— Foi o criado.
— Ah, bem. Então passe ou mande alguém aqui amanhã, e poderemos dar-lhe
a resposta que o senhor deseja.

*

No dia seguinte, o doutorzinho, chegando com plácido atraso ao Instituto,
encontrou o Professor a caminhar de um lado para outro diante da entrada.
Balbuciava, curvado, e tinha grandes olheiras; as pupilas estavam luzidias, o
rubor do rosto, malsão; balbuciava, como disse, convulsivamente.
— Mas o senhor, desculpe — disse o doutorzinho — parece-me um pouco
agitado.
— Sim, algo agitado — disse Fulai, forçando um sorriso.
— Não me admira: é um caso dos mais freqüentes. Temos aqui em
tratamento, hoje, quarenta e cinco pessoas, mordidas, todas elas, por cães
reconhecidos como hidrófobos; no entanto chegam aqui alegres, indiferentes...
— Alegres, indiferentes? — repetiu automaticamente o Professor.
— Isto mesmo. Pois a maior parte delas é gente do campo, que possui a
felicidade de não pensar. Mas chega aqui o indivíduo que pensa e então
aparecem os fenômenos mais estranhos de auto-sugestão. Medo completamente
infundado! Imagine: em três mil pessoas tratadas neste Instituto, as estatísticas
registram apenas dois insucessos, isto é, uma mortandade de zero vírgula zero
sessenta e seis por cento.
— E se eu fosse o terceiro insucesso? — perguntou Fulai, a quem só
interessava o seu próprio caso.
— O seu caso? Muito bem!
— O senhor viu?
— Veremos agora: assim o senhor mesmo verá.
A moça gorducha, de braços nus e bata branca, estava tratando de outro
coelho; foi à estante, e tirou de lá um pequeno vidro. Depois o doutor e Fulai
foram juntos ao gabinete.
— Vamos a ver, vamos a ver.
O doutorzinho entrou, pendurou a capa, pôs o cigarro no cinzeiro,
desembrulhou um instrumento brilhante, um microscópio: adaptou-o, virou-o,
olhou.
Estava espantosamente calmo aquele homenzinho.
— Pois então? Pois então? Pois então?
— Como lhe dizia ontem, nada; resultado negativo.
Havia vinte e quatro horas o Prof. Fulai encontrava-se num estado difícil de
descrever: de vez em quando, aquela idéia louca e turbinosa na caixa craniana;
depois, todos os órgãos como que imobilizados, tolhidos, freados, sem mais
funcionar, os órgãos da respiração, da digestão; ao passo que o órgão do coração
desandava perdidamente como um cavalo que tomou as rédeas ao cavaleiro, e as
pupilas escancaradas a ponto de não o deixarem dormir. Estado bem deplorável!
Pois bem, quando o doutorzinho disse: resultado negativo, pareceu-lhe que a
idéia louca que girava no cérebro se sumira como por efeito de magia, assim
como desaparece um morcego — que é uma espécie de horrível camundongo —
do teto de um quarto, onde penetrou e onde gira vertiginosamente. Ao mesmo
tempo, teve a impressão de que os órgãos, depois de tolhidos, voltaram a abrir-se
e acolher o oxigênio, a alegria de viver.
Mas foi apenas um momento, pois, por sua má sorte, ocorreu-lhe perguntar:
— Matematicamente?
A essa pergunta o rosto do doutor concentrou-se com alguma gravidade, com
grande terror de Fulai, que o observava.
O doutorzinho, embora noutro ramo do humano saber, era adepto do mesmo
método que seguia o Prof. Fulai em suas pesquisas de arquivo: não afirmava
nada sem ter em mão o documento.
— Pois bem — disse gravemente o doutorzinho — o exame histológico
negativo não é suficiente. Convém enxertar uma cobaia ou um coelho, ter a
paciência de esperar de um mínimo de vinte dias a um máximo de quatro meses
— sim senhor, quatro meses — e depois podemos dizer matematicamente.
Desculpe, professor, mas o senhor quer saber do que nós, vivemos no meio da
coisa.
Acendeu-me uma leve discussão entre os dois cientistas: um estudara os
papéis, os pergaminhos, os códices, os papiros; o outro estudara as peças
anatômicas, os nervos, os parênquimas, os diversos cocos de cadeia, de lança, de
bastão, de vírgula, e trabalhara com o microscópio; mas nenhum dos dois
estudara aquele grande animal que é o homem; não o tinham observado com os
olhos mais apropriados, quer dizer, os olhos simples, os olhos puros, aqueles que
Deus deu; por isso a discussão entre os dois cientistas foi um tanto asperazinha.
— Mas, ilustre professor — disse o doutorzinho — eu lhe digo: “Tenha
confiança!” O senhor, porém, quer o documento matemático, e eu não lho posso
fornecer, ninguém lho pode fornecer senão daqui a quatro meses, exatamente
assim...
Exatamente naquele instante a moça de braços nus trazia um coelho negro
dependurado pelas orelhas. Uma espécie de crisma sangrento e mortal lhe era
marcado entre as duas orelhas. O coelho foi colocado pela moça numa gaiola de
fortes grades de ferro, onde se mexeu, vivamente, e até se pôs logo a comer. O
doutor colou na gaiola um rótulo com a data: 28 de novembro de 19.., e disse:
— Se o senhor voltar daqui a oito dias, verá que este coelho não se mexe mais,
não come mais. Se, ao contrário colocarmos na gaiola outro coelho, enxertado
com o cérebro do seu camundongo, daqui a quatro meses há de encontrá-lo ainda
vivo e alegre, como este aqui está agora. Estou convencidíssimo disto; mas
matematicamente, desculpe, matematicamente, eu, como cientista, não o posso
dizer, e o senhor não pode exigi-lo.
— Uma vez que é assim — disse o Prof. Fulai — façamos a prova
matemática; assim, eu ficarei também mais tranqüilo...
— Ótimo, e eu mandarei enxertar um lindo coelho — disse o doutorzinho.
— Agradeço-lhe a gentileza e peço-lhe que me desculpe, se me expressei com
alguma vivacidade.
O doutorzinho acompanhou o Professor até o portãozinho de serviço e ali
esperou que ele transpusesse a cancela do jardim. No momento em que a atingiu,
o Professor voltou-se e fez um belo cumprimento com o chapéu; do limiar, o
doutorzinho fez, por sua vez, outra bela mesura, e o portãozinho fechou-se
devagar.

*

O Prof. Fulai caminhou, a princípio, rapidamente. Era na avenida circular: dos
grandes plátanos caíam no chão as folhas, secas, amarelas.
Pela primeira vez Fulai reparou nas folhas secas que se desprendiam dos
plátanos, e um verso, como o cavalheiro da morte, embargou-lhe o passo no
meio da Avenida.
Era um verso de Homero:

Por que indagas da minha linhagem?
Como a das folhas, tal é a estirpe dos homens...

Ele, Fulai, conhecia a questão homérica, mas só naquele dia achou que
Homero tinha um conteúdo diverso da questão homérica. Homero, com os seus
olhos apagados, impedia-lhe a passagem. Estranho! Homero, que nunca existiu,
impedir-lhe a passagem!

Por que indagas da minha linhagem?
Como a das folhas, tal é a estirpe dos homens.

“Todos sem nome, então? Todos como a folhas, então? As folha, as folhas!
Monte de estrume tornavam-se as folhas; depois outras folhas novas, como diz
Homero”,

E as renova
A frondejante selva na primavera.

“Mas eu estou bem como estou; não quero renovar-me, eu!” E lembrou-se dos
antigos monges que, já em vida, abriam mão do seu nome. Todos sem nome,
como as folhas. O próprio Dante, quando bateu à porta do mosteiro, não deu o
nome.

*

Em casa, porém, o Prof. Fulai era esperado.
O jovem Prof. Leviatã, homenzinho bem proporcionado quanto à aparência,
mas de inteligência enorme, era a sua planta espiritual; tinha sido mandado a
Madrid, de onde trouxera três variantes de um Códice; tinha estado em Berlim,
onde enriquecera a propedêutica dantesca com uma contribuição Sobre o Trisavô
de Dante, Dante’s Urgrossmutter. Leviatã diferia de Fulai talvez nisto: Fulai,
nos volumões poderosos, arrastava sempre atrás de si o paludamento das
elegâncias do cinquecento ao passo que Leviatã procedia cientifica e
perfeitamente como um ostrogodo.
Leviatã estava trabalhando nesse momento, em colaboração com Fulai, em
preencher, pelo estudo das relações existentes entre Nietzsche e Giacomo
Leopardi, uma verdadeira lacuna.
Naquele dia, porém, Fulai não leve vontade de colaborar; pelo contrário,
sentia imenso desgosto, mais do que se houvesse mergulhado no Dugento.
Nietzsche e Leopardi ficavam, era verdade, na superfície do tempo; mas só então
ele percebeu que aqueles dois moços formavam um grupo trágico no amplexo da
morte.
— Trataremos disso outro dia, meu caro Leviatã.
— Parece que não se sente bem, ilustre mestre... — disse a voz suave de
Leviatã.
— Com efeito, um pouco de hemicrânia.
— Vê-se-lhe nos olhos, ilustre mestre.
— Luzidios, talvez?
— Atrever-me-ia a dizer — respondeu Leviatã — brilhantes e cintilantes.
— Brilhantes e cintilantes?
Leviatã tinha ido embora, e Fulai encontrou-se sozinho com esta pergunta
desesperada: “Que coisa devo eu fazer?”
O seu pulso dava noventa e sete pulsações por minuto; e não podia estar
parado, e linha um peso no cérebro, qual se ali houvessem posto um contrapeso
de chumbo que mantivesse à força escancaradas as pupilas, como nas cabeças de
porcelana das bonecas se põe um contrapeso de chumbo para manter
escancaradas as pupilas. — “Bem, vamos à Biblioteca!" Mas depois, quando se
encontrou na esquina da Rua B e viu escrito em bronze Biblioteca Nacional, teve
medo. A idéia de estudar dava-lhe uma aversão profunda, como a um aluno
negligente. Mas se até então lhe era coisa tão agradável! A sua mesa verde, na
grande sala da Biblioteca, com todos aqueles volumes, volumões, volumezinhos,
era religiosamente respeitada. Era aquele o seu reino, e quando lá entrava todos
curvavam a cabeça.
O seu sapato rangia fidalgamente no tapete; de vez em quando feria-lhe os
ouvidos um murmúrio lisonjeiro: “Esse é Fulai.” Sobre a sua mesa os
distribuidores, camareiros silenciosos, depunham incunábulos, códices de papel
e de pergaminho. Mas naquele dia Fulai olhou com terror para os códices de
papel e pergaminho.
Tinha a impressão de vestir o escafandro para descer e uma profundidade de
dez, de quinze metros, dez, quinze séculos no oceano do tempo defunto: no
Dugento! Via todos os mortos das idades mortas, vivos: como o mergulhador vê
os gigantescos cadáveres dentro de uma embarcação naufragada.
Mas até aquele dia Fulai, no tempo que foi, só tinha visto mortos! Agora,
passava a ver vivos. Desviou a vista dos livros com asco.
Volveu os olhos em torno de si com os óculos de ouro.
Viu os estudiosos de sempre, viu os jovens estudantes que estudavam,
devotos, segundo as indicações dele. O estudante A estava curvado sobre a sua
tese de doutoramento acerca das Histórias de Alfonso del Barbicone; o estudante
B (um padreco) cotejava com delicadeza as epístolas latinas que durante algum
tempo não eram de Dante, mas agora tornavam a ser de Dante; a estudante C
languescia sobre os áureos tratados Da Veterinária.
A Fulai, porém, não davam a impressão de verdadeiros estudantes, mas sim de
toupeiras. Escavavam cunículos no fundo dos séculos para chegar a roer
cátedras.
A estudante C, vendo o mestre com os olhos erguidos, ousou levantar-se,
ousou aproximar-se, ousou perguntar se era preferível dizer gli itali petti ou gli
italici petti.
Fulai não respondeu; examinou-a com olhos turvos e perguntou:
— A senhora ainda é virgem?
— Oh, professor!
E a coitadinha voltara à sua mesa.
— Tragam-me, tragam-me um texto — tinha dito Fulai ao distribuidor —
sobre a raiva canina.
E o distribuidor voltou trazendo-lhe um livro encadernado em pergaminho:
Dissertação físico-médica do Senhor Boissier de Sauvage, médico conselheiro
do Rei de França, acerca da natureza e causa da Raiva, na qual se procura quais
possam ser os Preservativos e Remédios da mesma, acrescentando-se um
tratadozinho sobre os animais venenosos da Itália, do francês para o italiano
vertida e comentada, com licença dos superiores.
— Mas quem lhe disse que me trouxessem tais velharias? — exclamou o Prof.
Fulai.
E como o Prof. Fulai nunca falava tumido ore, o distribuidor espantou-se e
todos ergueram a cabeça ao ouvir increpações no salão reservado.
— Senhor comendador, não se enraiveça — cochichou o distribuidor.
Fulai não disse palavra; abriu o velho volume, e seus olhos caíram sobre este
capítulo: Abertura dos cadáveres. O cérebro e a medula espinhal mais secos que
de costume, o coração seco.
leve arrepios. Virou a página, e leu: O veneno da raiva produz seus maiores
efeitos no esôfago...
Talvez o esôfago...
Sentiu apertar-se-lhe o esôfago; e saiu da Biblioteca com passo diferente do
habitual.
"Vamos ao tea-room". A esta hora, no tea-room se encontravam a Condessa
Bosis com a Senadora D., a tomar chá com petits-fours, ou “bolachinhas", como
corrigia o Prof. Fulai. Mas a idéia de ter de permanecer ali naquele salãozinho
obcecante de estuques e de ouro, estilo Lui Kenz (dizia a Condessa; Luís
Décimo-Quinto, corrigia Fulai), era-lhe penosa, como fazer de escafandrista na
Biblioteca. Aquele reluzir de espelhos e de estuques dava-lhe terror: sentia que
não poderia engolir as bolachinhas ou petits-fours (que, de agora em diante, não
lhe importava como se chamassem) por feito do esôfago.
Ele, Fulai, voltou agora a dar consigo mesmo a caminhar apressadamente pela
grande avenida deserta dos plátanos, fora da cidade. Mas nem Leviatã, nem a
Condessa, nem a Biblioteca Nacional eram as coisas em que pensava. A coisa
em que pensava, a única em que pensava, em que não podia deixar de pensar, era
aquela idéia turbinosa de estar hidrófobo. — “Eu sou um professor hidrófobo”.
— “Mas é loucura pensar assim!” — dizia e mandava dizer à sua razão, parando
de vez em quando. Mas a idéia turbinosa não parava. Era como um demônio
espantosamente lógico, que lhe punha diante do espírito todos os casos das
possibilidades, enquanto lhe dizia: “Seja desta ou daquela morte, não te parece
que se deva morrer, Prof. Fulai?”
Diante dele a fila dupla dos grandes troncos dos plátanos perdia-se no fundo
gris da noite cadente, sem luz vesperal. Divisavam-se, no outro lado, as luzes da
cidade, já longínquas, como uma auréola de alvura, um revérbero das luzes
elétricas. Ele estava bem longe da cidade: — “Corri até aqui como um cão
errante” — pensou; e esta comparação, que formulara inconscientemente,
inspirou-lhe enorme repulsa. Quis retroceder; mas tinha medo das luzes elétricas
da cidade como da escuridão entre os plátanos. Uma luzinha brilhava na frente.
Talvez fosse a casinha dos guardas-fiscais. Chegaria até lá. Falaria com os
guardas. Mas a luz se tornava cada vez mais longínqua: era um fanal que se
movia vagarosamente. Lembrou-se, então, de que aquela avenida levava ao
cemitério. Fanal, feral, feralis, ferale! Raiz: bar, fero, eu levo, féretro! Horrível
mistura filológica! Lembrou-se dos que não podem mais dormir na própria cama
e vão dormir voluntariamente sob aqueles ciprestes. Fez meia-volta e pôs-se a
correr desesperadamente cin direção à cidade.

*

— Mas o senhor está todo molhado, Sr. Professor; o senhor saiu sem guarda-
chuva — disse Batista, quando o amo voltou ao apartamento.
— Realmente, esqueci o guarda-chuva; tire a mesa, Batista, pois eu já almocei
em casa do senador. Queria telefonar-lhe, caro Batista, mas depois me esqueci.
Desculpe, caro Batista.
Era a primeira vez que Batista ouvia caro antes de Batista. Seria que ele não
estava sentindo-se bem?
— O senhor não se sente hem, Professor?
Sim, Fulai era senhor, sultão até; até na Itália, país devoto das liberdades,
exercia a tirania, lá onde só a liberdade é um bem: sobre a inteligência! Ai de
quem não fosse inteligente da inteligência de Fulai! Fulai cortar-lhe-ia o
caminho suave e clandestinamente, mas inexoravelmente. Sim, Fulai era mesmo
senhor! Mas naquela noite a palavra senhor causou-lhe estranheza.
— Batista, está acesa a lâmpada do meu quarto de dormir?
Mas aquela palavra lâmpada, lampás — lampados, evocou-lhe no espírito a
parábola das sete virgens sábias e das sete virgens loucas. Elas o esperavam no
limiar, com as lâmpadas erguidas, porque nós não sabemos nem a hora nem o
dia. Então toda a literatura era lúgubre? Ele nunca dera por isso.

Apagou a lâmpada; mas as trevas não eram menos desagradáveis que a luz. —
“Bem, vejamos: que é que eu tenho? Medo! De que tenho medo? De morrer.”
Nem sequer morrer como Francesco Petrarca, com um livro em mão, já lhe
agradava agora. E, depois, Petrarca tinha setenta anos, e, depois, ele era outra
coisa: ele acreditava numa coisa que não é a morte, na Maria Virgem “que
acolha meu último suspiro em paz”. Aliás, como era lúgubre também esse poeta!
— “Quando eu tiver chegado aos setenta anos, falaremos nisto. Pensar que
ontem de manhã eu estava tão tranquilo, tão feliz! Que foi que me levou a mexer
com aquele maldito camundongo? O Prof. Fulai tinha muita vontade de dar
pancadas na sua pessoa. “Sobretudo, não deves ter medo!” — disse: e acendeu a
luz, e pulou da cama, e apontava o dedo contra si mesmo, no meio da noite, em
trajes noturnos contra si mesmo, refletido no meio do grande espelho. Mas
aquele gesto pareceu-lhe doído. Erebust et Terror estavam na sua frente. Lá
estava a brilhante garrafa no criado-mudo. Parecia-lhe que não podia beber.
Fulai invocou Logos e Bulê, a Razão e a Vontade, contra Erebus et Terror. Mas
a Razão andava à volta como um escaravelho ao qual foi arrancada uma asa; e
Balê, a Vontade, estava ferida.
“Quando vier o Sol — disse a Razão a Fulai, que já não se agüentava de
cansaço — então, talvez, Erebus et Terror, os dois monstros, desapareçam.”
Veio, por fim, a luz do Sol. A Razão pôde tomar conta da praça. Mas havia
duas olheiras enormes sob as pupilas do Prof. Fulai a darem testemunho da
horrível noite que passara.

*

Uma força estranha empurrava o Prof. Fulai em direção do Instituto Anti-
rábico. Era uma coisa absurda, grotesca, mas ele já não tinha pudor para
esconder a própria miséria. Aquele coelho! O mundo inteiro, para ele, era aquele
coelho! Idéia obsessiva: quem sabe como ia aquele coelho?
— Como vai o meu coelho?
— Muito bem, ilustre professor — respondeu o doutorzinho.
— O senhor crê que ele não morrerá? Quero dizer, por morte hidrófoba.
— Nunca.
— Eu me sinto muito mal, doutor.
E contou-lhe a sua noite insone.
— Terrores de literatos — disse o doutorzinho.
Na realidade, Fulai era cientista e não literato; o doutorzinho não distinguia as
duas funções, bem distintas, de crítica e de arte. Mas nesse dia não reparou nisso.
O doutorzinho estava alegre:
— Ilustre professor, acha-se aqui, no gabinete, justamente o Prof. X. Vou-lhe
contar o seu caso, mando-o examinar. Aguarde um instante.
O alegre doutorzinho nem sequer aguardou a resposta: deixou Fulai no meio
da antecâmara.
O Professor X era diretor da clínica universitária: um Padre Eterno ele
também, um homem que sabia por que fendas entravam Erebus et Terror no
cérebro, um homem que domesticava a Vontade e a Razão, um homem que
conhecia bem o cérebro como ele, Fulai, conhecia bem o Dugento. Dois ilustres,
portanto, dois Padres Eternos, que se tinham cumprimentado de longe mais de
uma vez. Fulai nunca pensara que viria a cair sob a jurisdição daquele homem.
Se houvesse tido vontade, Fulai teria fugido. Porém não tinha mais vontade.
— Ilustre professor, venha — disse o doutorzinho.
Fulai acompanhou-o.
O Prof. X estava lá. Fulai sentiu-se envolver na canície viril daquele homem.
Ouviu-o falar com suavíssimo sorriso. Um bálsamo de palavras.
Fulai nunca dirigira a palavra aos literatos e poetas, mortos e vivos, com
tamanha doçura.
As palavras surpreenderam-no também.
— Caro colega — disse ele — o nosso doutor (e apontava o doutorzinho) peca
pelo entusiasmo dos neófitos. Permito-me falar assim porque ele foi meu aluno.
Vive fechado dentro do laboratório e tem a ilusão de ver os homens, quando
estes, na realidade, ficam bem longe. Na verdade, só vê cobaias e coelhos. O
experimentador não tira da natureza o que ele quer. Mais modestamente: o
experimentador imita a natureza o melhor que pode. Ora, as doenças das pessoas
são totalmente diversas das experiências que nós tentamos. É a natureza que nos
impõe as doenças, e nós, para tentar imitá-la, devemos primeiro saber um
pouquinho em que consistem e a que leis obedecem. Decerto tais leis existem,
mas são difíceis de conhecer e nos impõem, a nós médicos, a maior modéstia de
pretensões. Subtilitas naturae subtilitatem argumentandi multis partibus superat.
Digo isto para explicar-lhe que aquele matematicamente que o meu amigo
pronunciou ontem era exato para os coelhos, mas pouco exato para o homem.
Ciências perfeitas não existem. Mas ao primeiro erro daquele malfadado
matematicamente veio acrescentar-se um segundo: ele não devia consentir em
mandar enxertar o coelho. O coelho enxertado foi como a porta pela qual entrou
o vírus rábico, mas o terror do vírus rábico, no senhor; o qual terror, aliás, é uma
doença não menos real do que a raiva canina. Pelo contrário, hoje que, graças às
imortais observações de Pasteur, a raiva pode ser curada, acredite que o medo é
mal muito mais temível... Ah, o senhor está sorrindo, professor?
Fulai sorria: tinha a impressão de estar bem.
— Porém, há mais: se na suspeita tivesse havido uma única sombra de
possibilidade, o meu amigo doutor podia propor-lhe logo, e com a precaução
máxima, o tratamento de Pasteur. P6r que não o fez? Por um raciocínio
instintivo pelo qual ele estava convencido de que no caso do senhor não existe
infecção.
Assim falou o grande mestre encanecido.
Mas naquele momento Fulai já não se sentia mal, ou pelo menos tinha esta
impressão. Certo, sofrerá um mal horrível, e contou a imensa estupefação que
ainda permanecia nele, de ver como, através de um arranhãozinho, se houvera
mesmo arranhão, causado pelo dente de um camundongo, pudera entrar-lhe no
cérebro idéia tão espantosa. Qual é a habitação, no cérebro, de idéia tão
espantosa? E como pode uma idéia fazer estremecer um homem? impedir-lhe
toda espécie de outra atenção? tomar-lhe negro o Sol? tolher-lhe a vontade? o
sono? o sorriso?
E Fulai contou ainda:
— Dantes o meu cérebro era como uma paisagem suíça, todo lindo, todo
arrumadinho. Mas agora se tornou uma paisagem sobre a qual já passou o
furacão, a tempestade, a guerra, a morte. A idéia de morrer enraivecido revolveu
tudo, e de um modo indecente para o homem respeitável que eu julgo ainda ser.
Certamente a morte por hidrofobia deve ser horrível, e eu a excluí, valendo-me
aproximadamente do raciocínio que o senhor acaba de expor. A idéia afasta-se
um pouco, e depois volta. Torna com a insistência do antigo demônio, no
espírito dos ascetas de outros tempos. Diz: — “Dá licença?” E já entrou. —
“Olha — diz-me — que o próprio Morgante, que era um gigante, morreu em
conseqüência da mordedura de um camarãozinho. ” “Mas aquilo, digo eu, é uma
fábula de Luigi Pulci.” — “Sim, está certo; mas não te recordas daquela bela
narrativa, publicada há tantos anos no “Jornal da Noite”, de um senhor
americano que morreu hidrófobo por efeito da carícia de um seu cachorrinho?”
— “Mas isso é um num milhão.” — “Sim, tens razão: provavelmente não
morrerás hidrófobo. Admite, porém, Fulai, que de qualquer maneira deves
morrer, desta ou daquela morte!” E esta idéia se aninhou agora no meu cérebro e
não quer mais sair de lá.
“Mas há coisa pior: todos os meus livros plácidos me incutem uma idéia
espantosa do tempo. Dante é um abismo e amedronta-me. Os códices do
Dugento incutem-me terror.
“Vejo o tempo materialmente; vejo-o em forma de um abismo sem fundo.
Está diante de mim a espantosa etimologia: tempo, isto é, o caminho sem fim, o
eterno que absorve tudo. Os homens imaginaram certas divisões elegantes do
tempo, isto é, os evos, as horas, as olimpíadas, as calendas os meses; como em
certos edifícios se colocam diafragmas para preservar de vertigem quem olha
para baixo; mas na realidade, é uma continuidade só, e o abismo permanece.
Estes versos de Leopardi, que dantes eu lia com indiferença:

E lembra-me o eterno
E as mortas estações

— dão-me agora uma sensação de arrepio. Como conseguia aquele menino
que era Leopardi escrever essas coisas espantosas sem ter morrido?
“Era um grande louco ou um grande sábio? Era Leopardi fisiológico ou era
patológico? E fisiológico o ser e o não ser? Se não fosse esta minha língua
branca e este meu pulso desarranjado, diria que é fisiológico o não ser. Aquele
coelho! A minha vida é aquele coelho!
O grande velho sorriu. Que prazer dava a Fulai aquele sorrir, embora
representasse uma zombaria de suas palavras!
— Caro colega — disse — a nossa ciência terapêutica vai pouco além de um
purgante e de um calmante. Bem que eu gostaria de violentar certas leis da
natureza; no entanto, como o mais modesto dos sanitaristas, tenho apenas à
minha disposição um calmante ou um purgante. Mas, no seu caso especial,
temos um remédio à sua disposição: visite de vez em quando o seu coelho. Uma
vez que o nosso amigo cometeu o erro de mandá-lo enxertar, faça a penitência
de mandar-lhe visitá-lo.
— E sempre o encontrarei de boa saúde?
— Matematicamente.

*

Fulai voltou para casa quase aos pulos. O doutor tirara-lhe um peso das costas.
Como quando ele dizia — “Mamãe, Mamãe, vem!” E viu a mãe, no tempo
longínquo, quando ele era ainda criancinha; e a sua pobre mãe queria-lhe tanto,
curava-o de suas mágoas, mágoas miúdas, mágoas dóceis. Expelia-as de vez.
Assim fizera também o médico encanecido. A bondade! Estranha palavra!
Uma palavra que as mães dizem aos meninos, e depois desaparece.
— Sim, caro Batista; hoje estou melhor, com efeito, e noto que esta sopinha
está um pouco leve.
— Posso fazer-lhe, senhor professor, um bifezinho sauté, ou, como o senhor
prefere, “guisado”.
— Bravo, Batista: um bifezinho, guisado ou sauté, que dá no mesmo; e uma
gotinha de Barolo. Você sabe, Batista que este Barolo está muito bem
conservado? Você é um criado-modelo, Batista, um homem bom, não é verdade,
Batista? Batista você também deve saborear este excelente Barolo.
— “Professor — disse uma xilogravura de mestre Lourenço Coster que
ilustrava aquele precioso incunábulo sobre Ars Moriendi — não vamos fazer
uma meditaçãozinha?”
— “Ao diabo! — respondeu Fulai. — Eu quero é entregar-me à louca
alegria.”

*

De manhã Fulai acordou; dormira muito, mas sem pesadelos.
A constipação resolvera-se um pouco, e Batista, a esse respeito, compartiu a
satisfação do seu amo, tomando até a liberdade de observar:
— Quando o senhor estiver com a evacuação em regra, estará como dantes.

*
Sim, a escura cúpula de chumbo que lhe cobria o cérebro vinha com efeito
rasgando-se, e o céu aparecia. No entanto permanecia uma estranha oscilação de
idéias. Tentou ler, mas não podia estudar, não podia fixar as coisas. A sua
cabeça, antigamente, assemelhava-se a um fichário ordenadíssimo,
tranqüilíssimo. Agora, pelo contrário, cada ficha se carregava de sua significação
profunda; ao lado de cada ficha havia um homem já vivido no tempo: lá estava o
seu cansaço, a sua obra: e todas aquelas obras infinitas formavam um peso
enorme, e todo aquele peso formava uma espantosa leveza: Vanitas!
Mas o pensamento de Fulai corria para lá, para o Instituto Anti-rábico, onde se
achava o coelho.
Para sentir-se bem, precisava ver o coelho.
O doutorzinho não estava: só estava a moça de avental branco e braços nus.
— Acabamos precisamente de enxertar um lindo coelho branco — disse ela.
— O senhor verá como é vivaz, como devora.
— Ah, sim? E vivaz mesmo? Está comendo mesmo?
Parecia-lhe, sim, senhor, voltar a sentir-se melhor depois de ouvir aquilo.
Desceram a uma espécie de subterrâneo.
— Santo Deus! Que é aquela coisa sangrenta, ali? — perguntou Fulai,
atemorizado.
— A cabeça de um cachorro, senhor. Diariamente recebemos tantas! O senhor
é sensível demais.
— Sim, eu sou muito sensível.
— Ei-lo — disse a mulher, abrindo uma portinha.
Era um quarto cinzento, gélido, cheio de gaiolas de ferro pelos cantos. Em
cada gaiola havia um coelho ou uma cobaia; todos, todas com aquele crisma
sangrante no crânio.
— Eis aqui, senhor, neste está começando — disse ela.
— O quê? Começando o quê?
— A paralisia. Está vendo?
E através das grades, com um bastãozinho, levantava o bichinho deitado; este,
porém, não conseguia manter-se ereto, e recaía pesadamente.
— Este outro começará amanhã — prosseguiu a moça metodicamente.
— Mas se está comendo!
— Está comendo, mas o senhor não vê que não corre mais? Vamos, fora com
este!
(Havia numa das gaiolas um coelho esticado, que servia de assoalho para
outro, acaçapado em cima dele.)
— Não, não! — disse Fulai. — Aquele outro vivo pode sair. Então a senhora
não tem medo de ser mordida?
— Estou habituada — disse ela, introduzindo o braço na gaiola, de onde
retirou aquela coisa esticada e desgrenhada, jogando-a num montão de serradura.
Aquela mulher pareceu-lhe mais corajosa do que Marfisa, do que Camila.
— E o meu coelho?
— É este o seu coelho.
— Ah, o meu coelho — disse Fulai, distraído até então por todos aqueles
instrumentos de vida e de morte. — O meu coelho! Meu Deus! Mas se está lá no
fundo, acocorado como os demais! — exclamou arrepiado.
— Sim, mas o senhor não vê que belos olhos, que lindo pêlo liso? Veja só!
Pipim! É o mais belo da coelheira, e nós o chamamos Pipim!
Mal tocado pelo bastãozinho, o coelhinho, mexeu-se com muita vivacidade.
— Está comendo! — exclamou Fulai, muito admirado e feliz.
— Olhe: acabou o farelo.
Fulai respirava. Via o seu coelho com as orelhas fitas, ao passo que todos os
demais as tinham torcidas, encolhidas, inteiramente desgrenhados, horríveis,
imóveis.
— Morrem assim?
— Assim.
— Agora estão tranqüilos.
— Ora — disse a moça —, as cobaias mordem até umas às outras. Olhe, olhe
aquelas duas que estão mordendo as barras!
— E os homens fazem a mesma coisa? A senhora já viu algum?
— Ah, sim. É uma coisa horrível. Muitas vezes é preciso prendê-los. Eles
mesmos dizem: — “Vá-se embota! Agora vou morder!”
Fulai sentia como que um laço no pescoço. Queria fugir e queria saber.
Perguntou:
— E verdade que eles têm medo da água?
A moça replicou, sábia e tranqüila:
— Sim, senhor, muitas vezes basta um rumor de torneira aberta, uma corrente
de ar, para dar as convulsões.
Pelo seu gosto, Fulai nunca mais sairia daquele lugar lúgubre. Queria saber
tantas coisas!
— Todos os cães que chegam aqui são hidrófobos?
— Sim, quase todos. Veja, aliás, as cobaias e os coelhos: estes vão responder-
lhe.
— Mas o meu, não, não é verdade?
— É claro, todos, menos o seu.
— Ainda bem! Agora será que aos outros, às pessoas que estão fazendo o
tratamento, vocês dizem que o coelho morreu ou está mal?
— Não dizemos nada. A maioria, aliás, são camponeses ou meninos, que não
sabem.
— E se alguém sabe? E se alguém quer ver?
— Não o mandamos entrar aqui, absolutamente. O senhor entra porque tem a
autorização do professor.
— E os que realmente estão doentes, ficam mesmo curados com o tratamento
Pasteur?
— Menos aqueles que morrem, todos ficam curados.
Fulai deu uma lauta gorjeta à mulher:
— A senhora veja se pode colocar o meu coelho num quarto mais bonito, com
um pouco de sol... Compreende, nesta escuridão, nesta espécie de adega, poderia
apanhar alguma indisposição de outra ordem, e isso me incomodaria bastante.
Hei de recompensá-la muito bem se a senhora tratar o meu coelho com toda a
consideração.

*

De manhã Batista teve ordem de deixar correr a água pela torneira:
— Ora, não me faz nenhuma impressão. Não tenho mesmo nada!
Também beber Barolo pelo cristal lúcido não lhe fazia impressão:
— Ótimo! Mas é realmente vergonhoso que um homem que sempre teve
coragem sinta agora tamanho medo. Vamos, confronta o teu caso — dizia
consigo — com o de Dante! Todos contra ele — se o encontrassem, queimavam-
no vivo e sem remissão — e ele contra todos; e ele a arremessar ao Inferno os
seus inimigos naquelas chamas cantantes, sem receio de nenhum processo por
difamação; e depois vai sozinho em busca do eterno, do nirvana, do absoluto, de
Deus, ele, só, e navega pelo oceano espiritual, com todas as velas desfraldadas:

“Ó vós que estais num pequenino barco.
....................................................................................
Retornai a rever as vossas praias!”

E parecia-lhe que Dante o mandava de volta, a ele e aos seus Leviatãs.
— “Agora vai tu, que és sábio e valente — disse Fulai a Dante —, vai à
procura de Deus. Por mim, ainda prefiro ficar aqui."
Oh, andava melhor, muito melhor o Professor Fulai; e quanto mais passava o
tempo, melhor ele andava. Quando, depois, passaram finalmente aqueles oitenta
dias, andava otimamente. Tornara-se um homem normal como dantes: talvez um
pouco mais cuidadoso de sua pessoa, de sua pele, da limpeza, da higiene; mas.
quanto ao resto, em nada mudara. A biblioteca, a de dentro da cabeça, já não lhe
pesava como uma coroa de chumbo; as fichas tinham-se tornado leves como
folhas mal agitadas pelo zéfiro.
Talvez Batista, interrogado, pudesse responder que o senhor professor se
fizera até um pouquinho mais pedante.
— Mas, Batista — dizia Fulai com a sua voz de falsete —, você sabe que
aqueles dois gato sujam muito dentro de casa? E aquele coelho, então!
Porque Fulai, espírito reconhecido, quisera recompensar Pipim, o coelho, pela
cortesia de não ter nunca adoecido naqueles oitenta dias de paixão que Fulai
sofrerá.
Por isso, arrancara-o à morte certa de laboratório, acolhera-o em casa; mas
sujava, como sujava dentro de casa aquele estúpido Pipim, dos redondos olhos
vermelhos!
— Caro Leviatã — dizia Fulai ao autor da propedêutica Dante’s
Urgrossmutter —, acredite que não é preciso muito para a gente se tomar como
Leopardi. É uma história que lhe contarei.

*

Mas sujava, sujava, aquele estúpido Pipim de olhos vermelhos.

G. A. Borgese


A Campainha

Mãe e filha não o disseram nunca uma à outra; cada uma, quando percebia
ter aquele pensamento no coração, sentia a ardência de um pecado mortal.
Aquele sentimento: "Aqui em casa tem-se um pouco de calma desde que ele foi
embora.”
Em voz alta, as poucas vezes que era preciso nomeá-lo, chamavam-no “teu
pai”, ou “papai”. Em silêncio, quando o lembravam, não lhe davam nem nome
nem parentesco, era simplesmente "ele”: o patrão, o do “aqui quem manda sou
eu”. A imaginação das duas engrandecia-o e a morte dava-lhe relevo como a um
retrato de guerreiro. Fora, contudo, um homem como tantos outros, com as suas
virtudezinhas feitas de hábitos e os seus viciozinhos feitos de manias; um
homem que talvez pudesse merecer destino algo mais brilhante, mas que decerto
não estava à altura daquele a que pensava dever aspirar. Dera-lhe na veneta
possuir, como costumava dizer, o gênio do comando: entretanto, na política, não
fora além do conselho provincial (do qual se demitira por nojo); e quanto à
guerra, palavras dele, tinha nascido “tarde demais para Garibaldi, e cedo demais
para Cadorna”. De modo que, contrariado no seu instinto, desabafava em sua
casa, da qual fez uma clausura, onde era juiz, carcereiro e padre eterno.
Prussianizara a família, porque então a Prússia estava na moda; fazia-a “andar na
linha”, e o dizia, mesmo sem oportunidade:
— Aqui se anda na linha.
— Então isto aqui não é uma família: é um bonde — assim tentou uma vez
rebatê-lo, com espanto da mãe, a filha adolescente.
Foi a sua primeira tentativa de revolta, mas terminou com um cachação.
Tinha de suportar, entre outras coisas, aquele nome de Hertha que o pai lhe
tinha imposto porque nascera no tempo do wagnerismo e das sagas nórdicas;
alguns decênios antes, tê-la-ia chamado Aída. Sentia-se apertada como numa
couraça dentro de nome pretensioso; a ela, meiga e morena, convinha-lhe tanto
menos quanto, ainda criança, lhe fora difícil colocar aqueles dois agás nos seus
lugares, e mais tarde, no curso normal, o professor de Ciências, ao mandá-la à
pedra nunca deixava de observar: — "Ed ecco quasi al cominciar del’erta...”
Este jogo de palavras, ou outro análogo, é que lhe forneceu a deixa para a
segunda tentativa de insurreição, que foi também a última. Como o pai a
chamasse estrepitosamente, berrando Hertha para cá e Hertha para lá, atreveu-se
a responder uma noite, do outro quarto, com cadência sarcástica:
— Alerta sentinela! Estou alerta!
Scguiu-se um instante de silêncio, depois do qual o pai apareceu na soleira, de
chinelos, mas terrível, com os olhos gélidos e profundos, e disselhe:
— Será melhor guardares essas graçolas para os da tua laia!... Eh, eh!
Ela curvou a cabeça num movimento brusco, que por pouco não lhe fez. cair a
trança sobre a fronte, e nunca mais repetiu a tentativa.
O irmão, um ano mais novo do que ela. mordia calado o freio, calculando
mentalmente toda manhã quanto tempo lhe faltava ainda para a maioridade.
Depois, aproveitou-se da guerra para emancipar-se um pouco antes da época
normal, e morreu na trincheira. Não tinha nascido nem tarde demais, nem cedo
demais; nascera no momento exato para a guerra.
Mas, ao contrário do que as duas mulheres pensaram nos primeiros dias, a
desgraça não abrandou o velho. A dor exacerbou-o, o orgulho de ter dado um
filho à pátria exaltou-o. Sentia-se maior, e a falta do filho, que de súdito podia
tornar-se adversário, permitia-lhe desenfrear-se.
É verdade que eram antes palavras e gestos miúdos do que fatos: olhadelas em
redor, murros na mesa, gritos retumbantes, arremessos de guardanapo; avarezas
minuciosas, revisões de contas, intransigências pedantescas na limpeza e na
ordem. Eram, sobretudo, bazófias.
— Eu em minha casa — dizia aos conhecidos — estabeleci o regime de terror.
Aqui não há anarquia.
E invocava o testamento da mulher e da filha, presentes:
— Eh, digam vocês.
Elas anuíam com um sorriso equívoco que a ele devia parecer de sujeição e
aos estranhos de compadecimento benévolo. Ao menor sinal de contradição
levantava a questão da autoridade:
— Afinal, quem é que manda aqui dentro?
— É você, está claro — respondia a mulher encolhendo-se. — Quem manda é
o marido.
A quem podia observá-la de fora parecia uma tirania mais pitoresca do que
trágica, um espetáculo mais para rir do que para tremer, esse homem que exibia
duas ovelhinhas como se fossem tigres amansados. Mas para das que a sofriam
era diferente; e as lagrimas envenenavam-se pela humilhação e pela monotonia.
Depois que ele morreu, a casa a princípio pareceu vasta demais e vazia, exata
mente como todas as manhas quando ele saía batendo com a porta. Os ruídos
subiam da rua mais claros e vibrantes, e elas ficavam como que à espreita. Aos
poucos, com o tempo a voz delas tornou-se mais franca, as conversas mais
descansadas, surgiu até a possibilidade de sorrir, de crer num futuro. Aquele
homem tripudiara durante tantos anos e de tantas maneiras sobre as suas vidas
que saudaram com espanto, como a um milagre, o brotar da pálida e débil
plantinha que é a felicidade.
E Hertha noivou. Tinha quase trinta anos. Vivo o pai, nunca teria pensado em
aventura tão extraordinária. Os casais e os homens que encontrava na rua ou via
da sua janela eram, então, criaturas de outra sociedade ou de outro mundo, que a
gente apenas podia olhar. Escolher ou aceitar alguém, ir-se embora com ele, ou
simplesmente querer-lhe bem em segredo, ter-lhe-ia parecido uma revolta
flagrante. O pai diria não em qualquer caso, se não por outro motivo, por espírito
de contradição, e para não ver reduzido à metade o número de seus súditos.
O noivo era um bom rapaz, também de seus trinta anos, um pouquinho
redondo, de cara e de corpo, mas sem nada ridículo. O bigode preto à americana,
bem cuidado, emprestava-lhe certo relevo à fisionomia e os óculos que sempre
usava davam-lhe um ar de simpática timidez, atenuando o não-sei-quê de vulgar
de um rosto demasiadamente florido.
O que o caracterizava era uma grande delicadeza, até exagerada, e o cuidado
de não falar alto demais e de dizer com circunspecção coisas sempre gentis.
Quando, à tardinha, vinha visitar a noiva e a futura sogra, a quem já chamava
obsequiosamente “mamãe”, reconhecia-se logo aquela maneira toda sua de tocar
o botão exatamente o tempo necessário para acionar o maquinismo sem fazê-lo
vibrar forte, mas, pelo contrário, fazendo-o cantar literalmente como uma
campainhazinha de prata.
Exatamente o oposto de como outrora voltava o pai e patrão. Ainda nos
últimos anos, quando nada mais tinha que fazer, saía de casa por volta das onze,
após o seu lanche de ovos e leite, e ficava fora o dia todo. Por algum tempo, na
casa repentinamente tornada grande, as duas mulheres permaneciam trepidantes
e paralisadas, como as galinhas quando o milhafre mal acaba de retomar vôo;
depois acalmavam-se, punham-se a viver. As apreensões começavam com o
aproximar-se do crepúsculo, porque não se podia prever exatamente o instante
do perigo. O pai, depois de entrar no pátio, erguia a cabeça em direção às janelas
do apartamento e chamava: — “Ó gente!” Quando a gente estava noutra parte da
casa e não ouvia, ele subia numa pressa tumultuosa os poucos degraus e tocava a
campainha; não a elétrica: puxava aos arrancos a outra, a campainha de badalo
com o cordão verde retorcido, que tinha guardado para esse fim e para o caso de
as pilhas da outra ficarem gastas, tocava a rebate, e as rajadas do repique
invadiam os quartos como águas de um maremoto. Era então um salva-se-quem-
puder; todas — mãe, filha, empregada arrumando coisas, tirando o livro da
escrivaninha, correndo para todos os lados, e esbarrando umas nas outras como
os cordeiros quando o cão pula no meio do rebanho; a mãe, que, à força de se
encolher diante do marido e de usar xales, parecia transformada em um novelo
de lã preta, curvada sobre o chão a apanhar os fiapos e os trapinhos de fazenda
caídos da cesta de costura. Entretanto ele tirara a chave do bolso e se dignara de
abrir sozinho a porta; e aparecia na soleira, o rosto de um vermelho de telha, os
olhos de um cinzento de raio, verdadeiro deus vingador.
Mas o noivo, esse tocava a campainha como um anjo que trouxesse a
anunciação; e trazia pelo menos um embrulho de guloseimas ou um ramo de
flores. Dava-se bem com todos e com tudo, e não tinha objeções; agradava-lhe
até a penugem sobre o lábio superior de Hertha. Ela, quando já estavam bastante
íntimos, contou-lhe que certa vez metera na cabeça tirá-la, e já tinha começado a
untá-la com uma pomada sulfurosa; mas, aterrada com aquele fedor de coisa
podre e com a idéia de que o pai, ao voltar, pudesse percebê-lo, jogara fora o
pote, enxaguara o rosto, chamara a mãe a socorrê-la, lavaram o soalho com
petróleo, destamparam frascos de sais aromáticos. Um dia de pânico; e safaram-
se a custo.
Assim, a penugem ficara.
— Desagrada-lhe?
— Ora essa! — respondeu o noivo. — É até um mimo.
Chegou o dia das núpcias. De manhã, mãe e filha, vestidas para a cerimônia,
aguardam o noivo. Sentadas uma ao lado da outra, esforçam-se em pensar que o
finado também estaria satisfeito, e, para se animarem a acreditá-lo, dizem-no.
Hertha está pálida e graciosa.
Súbito, a campainha de badalo, ensurdecedora, repica três vezes seguidas,
como naqueles tempos. As duas empalidecem, esperando quase a volta “dele” a
proibir, a imprecar.
Mas é o noivo.
— Que é que há? — pergunta antes de cumprimentar. — A campainha elétrica
está enguiçada? Experimentei-a três vezes.
— As pilhas devem estar gastas — diz a mãe —, teremos de botar sal. É
preciso ver isso.
Mas Hertha não consegue voltar a si. Está sobressaltada, com os olhos
vermelhos.
— Que é que há? — torna a perguntar o noivo. — Choradeira? Mau agouro?
A sua voz é descontente.
Mas emenda-se logo; acaricia-lhe o ombro com uma das mãos, e, dirigindo-se
à mãe, diz:
— Coitadinha!
Porém à noiva a palavra soa como de compaixão, não de amor. De chofre
parece-lhe impossível ser amada; dentro de dez anos, de pouco tempo, já não
estará bastante jovem para ele. O vestido branco, o véu, a coma vão-lhe mal,
como aquele nome pretensioso, com dois agás que lhe impingiram. Sentindo as
faces estremecerem de angústia, vem-lhe a impressão de que a penugem de cima
do lábio cresceu e se transformou num bigode preto, mais comprido que o dele.

Uma pausa insuportável. Ele está de pé diante dela. Como o tight nupcial lhe
modela o corpo, vê-se que é gorducho. Deve ser um pouco vaidoso e egoísta. Se
ele não a ama, ela não o ama tampouco. Não vão querer-se bem. Passarão pouco
tempo juntos.
Os tenebrosos pressentimentos oprimem-na: a plantinha da felicidade
murchou. Surge-lhe na memória um pensamento lido num livro: quem não teve
uma infância feliz, nunca poderá conhecer a ventura. Tem vontade de
enternecer-se e de chorar; mas ninguém a compreende.
Outro repique violento, como se fosse de naufrágio. E o primeiro convidado
que chega.
Hertha grita à mãe, num estouro:
— A senhora poderia mandar, pelo menos, que deixassem a porta aberta!
É assim que fala à mãe, e a sua própria voz lhe ressoa em redor, quando acaba
a frase. Percebe que foi autoritária e violenta como teria sido o finado;
compreende que é filha dele, que lhe guarda o sangue, turvo e triste nas veias.



Corrado Álvaro


Romantismo

A menina gritava que queria brincar sempre com o menino com quem fora
surpreendida atrás de uma moita. Não convinha que na sua idade, já moça feita,
corresse pelos campos feito um poldro; ela, porém, não se conformava em não
ser mais uma criança, e era vista por toda a parte onde os rapazes se juntavam.
Não, não podia apartar-se dele, porque ele sabia contar tantas coisas em que
ninguém pensa; queria conversar com ele dia e noite, pela vida fora. O pai dessa
menina era um homem da Alta Itália que se transplantara para a nossa região
depois de longa vagabundagem através da Itália Meridional. Devia pertencer a
uma grande família, pelo menos o nome o indicava. Ainda muito moço, fugira
para seguir Garibaldi, e depois, em vez de voltar para a sua tetra, acabou
fixando-se na nossa. Essa primeira parte da sua vida era um mistério. Depois, de
uma mulher do lugar teve aquela menina, sem desposar a mãe. A filha parecia-se
com ele, e ninguém se espantava de vê-la tão disposta a fazer correrias. Queria
ficar junto com o rapaz? Que ficasse. Começaram a brincar à porta de casa, e já
ambos estavam crescidos, e de vez em quando sumiam nos campos; voltavam
ofegantes ao meio-dia, com o sentimento que daquela hora tem os animais
domésticos e os meninos.
— Ah, que raça de noivos e de casados! — dizia a mãe, que era uma pobre
escrava, sempre a cuidar dos ovos, dos coelhos, da cabra, da grama, que nunca
se sentava numa cadeira, que dormia ao pé do fogão no quarto contíguo ao do
seu homem. Os dois jovens casaram como por brincadeira; o marido começou a
trabalhar, mas nem por isso os dois deixavam de brincar quando lhes sobrava
tempo, e não era difícil vê-los altercando, à noitinha, por dois soldos jogados ao
pé do muro.
Uma tarde a filha apresentou-se em casa para perguntar à mãe:
— Que história de filha ilegítima é essa? É verdade que eu sou uma delas? É
uma coisa de que devo ter vergonha?
A mãe tremia. Ela prosseguiu:
— Ao menos a senhora me explique o que eu devo saber.
Foi nesse momento que a moça se tornou mulher. Entrou a freqüentar a casa
mais amiúde, e a ajudar a mãe.
— Então a senhora não é casada com ele?
— Eu? Oh, não! Ele é de uma grande família, e nunca me quis dar o seu
nome. Eu me chamo sempre Padella.
— Mas será que ele lhe queria bem?
— Sei lá! Quem pode saber b que os homens têm na cabeça? Há trinta anos
que nada mais sabe da sua gente, nem procura saber. Por mim, não lhe perguntei
nada. Ele fala tão pouco!
— Sim, mas ele lhe quis bem?
— Não sei. Será que não se nota que eu já fui bonita? Pois fui, e quis bem a
ele. O destino nos juntou, e juntos ficamos. Agora que você não está conosco,
ficamos mais distantes um do outro. Quem é que diz uma palavra sequer? Ele
pensa sempre, não se sabe em quê.
— E nunca lhe fez uma carícia?
A jovem continuou explicando que o caso com o marido dela era diferente,
que eram felizes, que mesmo durante o sono se procuravam sem querer. Às
vezes sonhavam que estavam brincando e se punham a brincar dormindo.
— Crianças! — exclamava a mãe.
Mas cobria o rosto com as mãos, como que lembrando-se de algo que lhe fazia
mal.
— Nunca soube como são essas coisas. Quando ele veio, tão alto, com aqueles
olhos, aquelas maneiras, fui-me embora com ele. Que importa? Tratou-me como
a um pobre bicho. Que importa? Ah, vocês se querem bem? Mesmo dormindo?
E procurava sorrir.
O velho chegava à casa como de costume, na hora do costume. A filha:
— Que foi que o senhor fez de minha mãe? Por que é que eu nunca soube de
nada? Por que não tem sido bom com ela? Por que é que minha mãe não tem
sido feliz? E, olhe-lhe, sou feliz.
O velho olhou para sua mulher como se a avistasse pela primeira vez e lhe
parecesse impossível que ela sofresse por qualquer coisa.
A filha acrescentou:
— Ela também é uma pobre criatura de Deus.
A mãe, com os olhos secos, repetia francamente:
— Eu também sou uma pobre criatura de Deus — como se o dissesse a si só,
mas estivesse a escutá-lo o mundo inteiro, os mortos e os vivos, as pessoas
longínquas e o céu, e como se ela, que sempre se considerara tão pequena, se
tivesse tornado grande. — Toda a vida em silêncio, sem dizer outra coisa a não
ser as frases de todos os dias. Nunca falamos um com o outro, nunca ninguém
me disse nada, como se fala com as pessoas. Eu é que às vezes falava com os
bichos, com as galinhas e com os coelhos: era com quem eu falava.
Disse estas coisas e pensou-as, e a sua vida, a distância, não lhe pareceu senão
uma longa alternativa de trabalho e de sonos pesados, as galinhas chocando, os
pintinhos saltando como crianças, a cabra que devia pastar e que ela arrastava
pelo campo atrás de si como se fosse um cachorro. E daquelas coisas todas
dependia a vida deles. Pela primeira vez teve a impressão de haver sido infeliz
sem nunca o suspeitar, como acontece aos meninos pobres quando ganham um
presentezinho. Percebia obscuramente como todo o seu eu se tinha vergado e
conformado às necessidades e aos afazeres cotidianos, e no fundo da sua
memória não havia outra coisa, quando não pensava, senão o barregar das
cabras, os pios dos pintos, o estridular das cigarras que a atordoavam quando ia a
respigar atrás das sombras dos ceifeiros. Agora, parecia-lhe que ia morrer se não
lhe dissessem uma boa palavra, ela que nunca reparara naquilo.
— Está ouvindo — perguntou, dirigindo-se ao marido — que eles se abraçam
enquanto dormem? Que brincam dormindo? Quem já viu um casal, assim?
Ele sorriu? Queria sorrir.
— Pois é, eu direi... — começou ele. — Direi...
Porém hesitava. Mergulhou no passado como num mar, falou como quem se
confessa. Nunca ele conseguira tirar do coração uma figura de mulher a quem
amara quando rapazinho, lá longe, na sua cidade. Dessa mulher agora que o
confessava a alguém, percebia que desde muito já não gostava, quase não se
lembrava das suas feições, recordava-lhe apenas o nome, e talvez já não amasse
senão aquele nome. Como se chamava? Palmira, não era um belo nome? Talvez
nem sequer fosse um belo nome. Mas a ele tinha parecido belíssimo, e, quando o
lembrava, revia-lhe o olhar. Tinha olhos pretos. Era loura? Sim, era loura. Mas
não me interrompam com estas perguntas. Amara-a quando adolescente, depois
já em plena mocidade, e ela era, para ele, a sua terra. A sua terra era próspera,
rica, com montes e rios, bosques e fontes, cidades populosas, mulheres
amorosas. Partira como voluntário com Garibaldi; voltou, encontrou-a noiva;
tornou a partir, queria esquecê-la. Aonde ir? Então era costume a gente ir-se
embora para esquecer, estava escrito assim nos romances também. Completara
vinte anos no dia em que atravessara o estreito de Messina com o seu general. A
juventude não era para ele senão aquela terra, lá, a terra com os laranjais que
tinha à sua frente, e a vista do Aspromonte tal qual um gigante que lhe volta
irritado as costas. Resolvera que nunca tornaria a ver a moça. Se não se houvesse
obstinado em ficar longe dela, talvez se tivesse curado ao revê-la casada.
Percebera-o tarde demais; porém, quando o percebeu, já não podia mover-se
com as suas roupas muito desusadas. Se a pudesse rever, na certa se curaria.
Agora aquela figura desaparecera-lhe da memória, e dela só permanecia um
nome, e a cor da adolescência. Inicialmente aquele sacrifício lhe agradara,
achara belo anular-se daquela maneira. Amava-a, ainda? Não era possível.
Ficara-lhe como um profundo rancor, e a surpresa de encontrar-se no fim da
vida, sim, no fim, sem dar por isso, por aquele desgosto de mocidade. Era como
se houvesse resvalado de grande altitude e se encontrasse no fundo sem lembrar-
se do trajeto. E agora? Eis como se perde a vida, eis como a gente se esquece de
si mesma. Dizia e resmungava essas coisas, sentado, com as mãos nos joelhos
trêmulos, como um réu; mas entendiam-no apenas o suficiente para se apiedarem
daquele amor.
— E agora, vá deitar-se. Está na hora. Eis a sua xícara de leite. Vá dormir.
Como sempre, ela acendeu-lhe a luz, preparou-lhe a cama, tirou-lhe os
sapatos. Mas, naquela noite, que aparência nova tinha o mundo para ela!
Estranhamente lhe voltava, com aquele verão, a lembrança de muitos verões
antigos, e as luzes do horizonte, onde o mar ainda as mantinha, eram as luzes da
sua juventude. O mundo apresentava-se-lhe novo e intacto, embora nada tivesse
mudado, nem sequer da mesma, e os rumores difusos da estrada, o bater das
portas, risadas, choro de crianças, pisadas, chamados, desenvolviam-se tal qual
uma música conhecida de um mundo que principia para nós. Uma impressão de
felicidade chovia sobre todas as coisas. Por que estava hoje tão livre e leve?
— Desgraçado — dizia à filhinha — desgraçado, pobre infeliz. Aqui entre nós
a coisa é bem diferente: ama a quem te ama, e responde a quem te chama.
E a todas as razões que a faziam olhar aquele homem como um ser
privilegiado acrescia mais essa.
Daí em diante falavam de vez em quando de Palmira, como de um sonho
comum, pois nada mais tinham em comum. Que é que poderiam dizer sobre o
terem-se amado, encontrado um dia no bosque, ele com um fuzil no ombro, ela
ocupada a apanhar bolotas? Entretanto Palmira estava longe, tinha sido loura,
ainda o era, pois que permanecia jovem e querida na lembrança. Casara-se?
Ninguém o sabia. Ele não tivera mais notícias dela, e percorrera uma região após
outra precisamente para que ela lhe perdesse as pegadas. Talvez ela se lembrasse
ainda dele e pensasse que ele se perdera por ela. Ou julgaria, talvez, que
encontrara um amor melhor? Foi nessa comunidade de confidências e
pensamentos que a mulher lhe pousou a cabeça nos joelhos e ele distraidamente
lhe alisou os cabelos grisalhos.
— Eu também fui bonita, não é verdade?
Ele disse:
— Eu já não sou o mesmo de antigamente. Parece-me que nasci uma segunda
vez aqui, e às vezes tenho a impressão de estar sonhando. Aliás, para que sofrer?
Quem percebe que nós sofremos?
— Oh, eu fui feliz sem saber de nada, contente de servir você. Agora que sei,
tenho pena, mas antes, quem pensava nisso? Tinha outras coisas que fazer.
Um dia chegou uma carta para o forasteiro, coisa extraordinária, pois nunca
recebia cartas. Devia ter feito uma longa viagem: estava coberta de selos, de
indicações, de correções e de endereços. Dir-se-ia que tudo quanto tinha para
dizer o trazia escrito no envelope, e que dentro não havia nada mais, como os
pensamentos velhos que acabam vindo à tona e sendo revelados. Mas o
forasteiro não estava lá para recebê-la; tinha morrido.
A carta permaneceu por muitos anos em mãos da viúva, como uma relíquia.
Essa carta, que se arrastara por tantos anos atrás do destinatário, permanecia
fechada, como se não tivera sido escrita. Só mais tarde alguém a abriu e a leu.
Rezava assim: “Espero que esta carta consiga encontrá-lo. Onde está você? Não
se lembra de mim? Responda. Temo que esteja longe demais. Pelo amor de
Deus, responda-me. Tenho de lhe dizer coisas decisivas para a minha vida e para
a sua. Se não responder, quer dizer que está perdido para sempre. Que há de ser
de mim? Palmira.” E abaixo da assinatura: “Venha, venha!” A caligrafia e a tinta
tiveram o tempo de envelhecer e de amarelar-se, a data tornara-se remota, de
havia trinta e cinco anos. Aliás, a pessoa que por acaso a abriu, nada entendeu de
tudo aquilo.
Giuseppe Marotta
Trinta Anos, Leiam-se Trinta


Esta afinal é a história de um homem do meu país; sorriam dela com algum
respeito.
Aconteceu em Nápoles pelo fim do mês de julho, na antiga e melancólica Rua
Foria, onde há uma altíssima palmeira rodeada de banquinhos de feno. Os
meninos de D. Xavier Petrillo estavam precisamente dando (ratos à bola para
arrancar um deles, renunciando por enquanto às tentativas de atacá-lo com os
dentes, quando assistiram a uma cena que os deixou consternados.
Abriu-se de repente o portãozinho da casa deles, e por ele saiu D. Xavier,
virando as costas à rua. Estava mais infeliz e mais desgrenhado que de costume,
mas as suas pupilas chamejavam. Voltado para a soleira, esboçava gestos
estranhos, cautelosos e, no entanto, autoritários, como para guiar os carregadores
de um armário pesado. Em vez disso, quem apontou da penumbra do corredor
foi D. Carmine Javarone, irreconhecível. Uma mansuetude inexplicável, um
pudor desanimado humilhavam-lhe a maciça silhueta. Passou cabisbaixo por
entre os curiosos que se vinham agrupando, e dirigiu-se para um ponto qualquer.
E D. Xavier? Tudo o que se pode dizer a seu respeito é que se assemelhava a
um daroês. Pulava. Gania. Pegava fogo. Acendera-se uma tocha em D. Xavier;
ergueu-se nas pontas dos pés como uma Vitória, abanou os braços na direção do
homem que se afastava, e bradou:
— Às suas ordens! Volte a honrar-nos, D. Carmine, não nos desdenhe... Para
o artigo que o senhor sabe... uma apoplexiazinha ou uma bela paralisia... o
senhor terá de se dirigir à premiada firma Petrillo.
D. Xavier voltou para casa sem dar aos curiosos a menor explicação. Mas de
repente reapareceu na janela, com uma tampa de panela em cada unia das mãos.
Sempre demonstrando uma felicidade secreta, enigmática, batia as tampas uma
contra a outra. A calçada encheu-se de gente, e na primeira fila estavam os
pequenos Petrillos, não menos espantados do que outro qualquer, não menos do
que qualquer pessoa que espera, paciente, um epílogo razoável. A Sr.a Petrillo,
segundo supunham, tinha ido à missa.
Havia trinta anos D. Xavier vivia na submissão. Os dois se conheceram na
escola primária. Petrillo Xavier foi sempre tímido e macilento, e naquela manhã
estava agonizando acima de um problema indecifrável. "Um camponês deve
semear um campo de 249 metros quadrados, etc. Por quantos dias trabalhará e de
quantos grãos precisará esse tal camponês?" Ia acabar o prazo da entrega,
quando do banco vizinho Javarone Carmine piscou um olho e lhe estendeu uma
folha com a cola.
A saída, tornaram-se amigos, Javarone,já gozava de uma voz prepotente de
homem.
— Vi que você tem um bonito canivete. I)ê-me — disselhe simplesmente.
Petrillo obedeceu, traspassado por um pavor primordial que se esforçava para
dizer-lhe: estás adjudicado, Xavier; isto não é o confisco de um episódio
insignificante da tua vida, mas sim um definitivo decreto de anexação.
Aliás, mesmo na escravidão a adolescência e a juventude são épocas belas de
viver; é a maturidade que realmente nos adapta à mortificação e à dor. Dom
Carmine deu para esposa ao amigo uma moça de quem se tinha cansado; piscou
um olho e estendeu-lhe Carolina, como fizera vinte anos antes com a cola.
Foi uma boa idéia, que ao mesmo D. Carmine permitiu desposar uma beleza
de Borgo Loreto e de passear de carro ao lado dela, durante cinco anos, rumo a
Camaldoli e rumo a Posillipo. A loja da Rua do Conservatório pagava as
despesas. Cumpre saber que D. Xavier era um habilíssimo fabricante de
instrumentos de música. Pela morte de um tio, herdara alguns milhares de liras;
D. Carmine soube disso e resolveu investir o dinheiro num negócio de venda de
mandolinas fabricadas pelo amigo. “Naturalmente serei sócio da firma” —
prometeu-lhe em tom de solene gratidão; mas depois limitou-se a pagar-lhe o
salário todo sábado como a um operário.























Por longos meses D. Xavier
cultivou projetos de rebelião, mas eis o
que sucedeu na noite em que lhe
pareceu ter enfeixado energia para
ousar.
Petrillo e Javarone fecharam a loja e
puseram-se a caminho entre os
insulsos vaivéns de um caprichoso
vento de março. De súbito, D. Xavier
estacou e disse:
— Carmine, este abuso deve acabar.
O outro ia responder-lhe, quando atrás deles se abriu a porta de uma taberna
de onde saíram uns rapazes. O vento se desencadeava; desorientados pela poeira
levantada, eles empurraram D. Carmine com maus modos. Houve uma troca
rápida de insultos; depois, um murro de D. Carmine derribou o mais agressivo
dos antagonistas. Aos outros, sacudia-os pacientemente das costas (enquanto o
seu rosto não exprimia senão um vago desapontamento, um leve fastio),
golpeava-os e atirava-os de lado sem se apressar. D. Xavier encostara-se no
muro e tremia. Afinal retomaram o caminho.
— Que é que estavas dizendo? — perguntou Javarone Carmine, escovando
distraidamente uma das mangas.
— Nada — respondeu Petrillo Xavier, bebendo o amargo vento de março.
Alguns meses depois morreu a mulher de D. Carmine. O viúvo adotou a
família do amigo. Tinha o seu lugar à mesa todos os dias; D. Carolina
telefonava-lhe de manhã para a loja a fim de saber o que deviam comer, e à noite
os três pequenos Petrillos pediam a D. Carmine licença para tocar-lhe os
músculos ou executar saltos difíceis em sua honra. Quando estava bem-disposto,
D. Carmine exortava-os a gostarem também do pai. A Sr.a Petrillo azafamava-se
imperscrutável. Que sobrava nela do amor que outrora D. Carmine lhe tinha
inspirado? Remendava-lhe a roupa branca, passava-lhe os temos, alcançava-lhe
o prato transbordante; mas à noite, quando o marido acordava de sobressalto, a
soluçar, D. Carolina pegava aquela pobre cabeça grisalha e, como se lhe
propinasse um antídoto, ansiosamente a apertava ao próprio peito nu.
O domingo era o pior dia. Alegando uma hipersensibilidade especial, D.
Carmine quisera que as visitas piedosas à defunta Sr.a Javarone fossem efetuadas
por D. Xavier às oito da manhã de cada domingo. Para isso o amigo devia vestir-
se de preto e encher os bolsos de lamparinas; de mais a mais, levava muito a
sério a obrigação de recitar um número exorbitante de orações. Estava
convencido de que D. Carmine o mandava vigiar; uma única vez, verificando
que a ruazinha estava deserta, pulou uma dezena inteira de rosário. Voltando, viu
chegar o amigo. Com um olhar místico, estendia-lhe, por assim dizer, notícias da
Sr.a Javarone; depois, à espera do almoço, falavam de negócios. À tarde, amigos
Importantes de D. Carmine vinham jogar cartas com ele; D. Carolina mantinha-
se de prontidão para servir o eu fé ou os licores; D. Xavier esculpia na madeira
uma nova mandolina e o seu coração também se desfazia em maravalhas. Um
domingo em que os meninos o aborreciam, escapou-lhe um “Carmine, manda-os
calar a boca”; que importa se depois, no quarto contíguo, se esbofeteou
ferozmente?
Foi quando chegou aquele domingo inaudito pelo fim do mês de junho, e eis
os fatos na sua extraordinária simplicidade. Eram oito da manhã, e D. Xavier
preparava-se para ir ao cemitério. Os meninos, na rua, procuravam arrancar um
banquinho; a Sr.a Petrillo tinha ido à missa. De repente a porta escancarou-se e
apareceu D. Carmine. Estava palidíssimo e vacilava; deixou-se cair numa
cadeira, recomendando-se aos santos.
— Xavier, amigo, estou condenado — cochichou.
Contou que, ao sair de casa, fora colhido por uma vertigem. Queria apenas
pedir um conselho numa farmácia, mas um médico que por acaso lá se
encontrava oferecera-se a examiná-lo. D. Carmine soluçou e concluiu:
— Será possível, meu caro Xavier? Trata-se de uma gravíssima doença
cardíaca. Basta o menor esforço, a menor emoção...
D. Xavier dera uns passos para trás, apoiara-se na mesinha, e estremecia.
Olhava para o amigo como se olha para um palácio demolido; tocava a mesinha
como a garupa de um cavalo em que fosse pular. Sorriu, sussurrou:
— A menor emoção, Carmine... mas será verdade?
E com as duas mãos levantou uma pilha de pratos que estava na mesinha.
Ao fragor imprevisto, D. Carmine sobressaltou-se e tornou a cair. Perdera os
sentidos. Quando voltou a abrir os olhos, D. Xavier segurava nas mãos outra
pilha de pratos.
— Fora daqui — disse.
E o resto é sabido.
Agora D. Xavier está na janela, com uma tampa de panela em cada uma das
mãos. Talvez tenha consciência de estar produzindo um barulho inconcebível,
seja como for, o seu rosto amarelo exprime uma secreta, íntima felicidade.
Afinal chega D. Carolina Petrillo, de volta da missa. É o momento. D. Xavier se
debruça perigosamente no peitoril, e com uma voz irreal, com uma inadmissível
voz empalhada de pássaro, cheia de rancor e de dor, estrila:
— Problema! Um camponês deve semear um campo de 249 metros
quadrados... compreenderam? Adiante-se, Carolina Perillo, estas são as minhas
testemunhas. Petrillo Xavier, presente! Javarone Carmine, ausente por motivo
justificado! Não sei se explico bem... trinta anos, escrevam-se trinta! D. Carolina
minha, que foi que aconteceu hoje, neste domingo de Deus? Fomos indultados!
Nos casos do meu país há sempre a cauda de um diabo que aponta e ri.
Durante um ano ou um pouco menos D. Carmine não foi mais visto em todo o
bairro da Estrela. Embora a loja da Rua do Conservatório tivesse sido montada
exclusivamente com o seu próprio dinheiro e com o seu próprio trabalho, D.
Xavier mandara a seu ex-déspota todo sábado uma pequena importância. D.
Carmine jazia perenemente numa espreguiçadeira da sua casa, à espera da morte.
Mas quem chegou foi outro médico, chamado pela compaixão dos vizinhos, ou
então por aquele diabo chispante e sorridente de quem falei. À pergunta —
“Quem é o imbecil que deve ter confundido os sintomas de uma simples
indigestão com os de um irreparável desarranjo cardíaco?” — O paciente
respondeu que faria tudo o possível para que o nome em apreço figurasse no dia
seguinte em todos os jornais.
Com poucos dias D. Carmine voltou a encontrar a saúde que não perdera
nunca, e sobretudo o instinto e o prazer da violência. Naquele massudo indivíduo
ocultava-se também um certo amor ao espetáculo. Para reaparecer na Rua Foria
escolheu um domingo de sol, à hora do almoço. Vestia um temo novo berrante e
usava uma flor na lapela. Vinha precedido de dois carregadores, que depuseram
na soleira do refeitório a sua carga e disseram:
— Carmine mora aqui? "Esta é a sua mala.
Os Petrillos estavam à mesa.
— Que quer dizer isto? — perguntou D. Xavier, pondo-se em pé, no que todos
o imitaram.
— Trago-lhe as minhas notícias — respondeu D. Carmine entrando, e encarou
o amigo nos olhos.
D. Xavier acariciava a toalha.
— As suas notícias não nos interessam — disse.
E empunhou uma cadeira.
Não pensem que lhes queira contar uma briga. O certo é que um ano é muito
tempo na vida de um homem que, tendo sido indultado, como ele mesmo
declara, reencontrou a sua família e o seu pão e as suas paredes. Muita coisa
deve estar escrita neste momento nos olhos de Xavier Petrillo, como no mármore
de uma lápide: seja como for, ele está empunhando uma cadeira, e a sua família
está reunida atrás dele, e a mulher e os filhos parecem empunhar cada qual uma
cadeira. A toalha é de uma brancura casta, o caldo fumega na sopeira, cintila o
vinho na garrafa, imperceptivelmente avança sobre a mesa um raio de sol que
tem a cor da côdea do pão; tudo adquire, enquanto se aguarda a fúria de D.
Carmine Javarone, uma substância votiva.
Ou melhor, o que há agora na casa dos Petrillos é dignidade; e se eu fosse D.
Carmine Javarone, voltaria as costas e iria embora.

Dino Buzzati

A de Hidrogênio

O telefone despertou-me. Fosse pela interrupção brusca do sono, ou pelo
silêncio plúmbeo que reinava em torno, pareceu-me que o som da campainha
vibrava mais longo que de costume, um som de mau agouro, ressentido.
Acendi a luz, fui atender de pijama. Fazia frio. Vi que os móveis estavam
imersos profundamente na noite (aquele sentido misterioso cheio de
presságios!); acordando, colhi-os de surpresa. Numa palavra, compreendi
imediatamente que era uma das grandes noites que raramente acontecem, noites
profundíssimas, em que, à revelia do mundo, o destino dá um passo.
— Alô, alô — era uma voz conhecida, do outro lado, mas que eu, naquele
entorpecimento, não identificava. — É você?... Bem, então... diga-me... gostaria
de saber...
Era um amigo, na certa, mas eu ainda não o havia identificado. (Que mania
odiosa essa de não dizer logo o nome!)
Interrompi-o, sem ter-lhe sequer pesado as palavras: — Você não me podia
telefonar amanhã? Sabe que horas são?
— Cinco e um quarto — respondeu-me.
E calou-se demoradamente, como se já tivesse falado demais. Em verdade,
nunca eu me embrenhara, desperto, em tão remotas profundezas da noite, e isso
me causava certa excitação.
— Mas que é? Que aconteceu?
— Nada, nada — respondeu-me ele como que atrapalhado. — Andavam
dizendo... mas não tem importância, não tem mesmo... Desculpe...
E desligou.
Por que me telefonara àquela hora? Aliás, quem era? Um amigo, um
conhecido, na certa, mas quem exatamente? Não conseguia identificá-lo.
Dispunha-me a voltar à cama, quando o telefone tocou pela segunda vez. Um
tilintar ainda mais áspero e peremptório. Era outra pessoa, não a de pouco antes,
senti-o logo.
— É você?... Melhor assim.
Uma senhora. Desta vez reconheci a voz: era Luísa, uma boa menina,
secretária de um advogado que desde anos eu não via. O ter ouvido a minha voz,
percebia-se. dera-lhe um alívio imenso. Mas por quê? E, sobretudo, como se
lembrava ela de dar sinal de vida depois de tanto tempo, no auge da noite, com
um chamado tão neurastênico?
— Mas que é? — perguntei, tornando-me impaciente. — Posso sabê-lo?
— Oh! — respondeu Luísa em tom débil. — Graças a Deus! Tive um sonho,
sabe, um sonho horrível... Acordei com o coração batendo... Não pude deixar
de...
— Mas que é? Você é a segunda pessoa esta noite. Que é que há, pelo amor de
Deus?
— Perdoe-me, perdoe-me... Você sabe como eu sou apreensiva... Vá dormir,
vá, não quero que se resfrie... Até amanhã.
A comunicação foi interrompida.
Fiquei ali, com o fone na mão, no silêncio, e os móveis, embora a luz elétrica
os iluminasse da maneira mais normal, tinham um aspecto esquisito, como quem
está querendo dizer uma coisa, mas se detém deixando-a encerrada em si, sem
que possamos sabê-lo. Provavelmente era um simples efeito da noite: na
verdade, só lhe conhecemos uma parte mínima, o resto é imenso, inexplorado, e
as raras vezes que aí entramos tudo nos mete medo.
Paz e silêncio, no entanto, lá isso não faltava: era o sono quase sepulcral das
casas, muito mais profundo e mudo que o silêncio do campo. Mas por que me
haviam telefonado aquelas duas pessoas? Chegara-lhes alguma notícia que me
dizia respeito? A notícia de alguma desgraça? Pressentimentos, talvez, sonhos
premonitórios?
Bobagens. Afundei-me na cama, voltando a encontrar com alegria o lugar
aquecido. Apaguei a luz. Estendi-me de bruços, à minha maneira habitual.
Nisto, tocou a campainha da porta, demoradamente duas vezes seguidas. O
ruído me entrou mesmo na espinha, subindo pela coluna vertebral. Algo, pois,
me havia acontecido, ou ia acontecer-me, e devia ser alguma coisa infausta, por
verificar-se a hora tão insólita, sem dúvida algum fato doloroso ou torpe.
Sentia o ribombar do meu coração. Voltei a acender a luz do quarto, mas por
precaução não acendí a do corredor: podiam ver-me através de alguma fenda
minúscula da porta de entrada.
— Quem é? — perguntei, procurando entonação enérgica.
Mas a voz saiu tremente, afônica, ridícula.
— Quem é? — gritei pela segunda vez.
Com infinita cautela, sempre na escuridão, aproximei-me da porta e,
curvando-me, pus um olho num orifício quase imperceptível, pelo qual, porém,
se podia olhar para fora. O patamar estava deserto, e não se entreviam sombras
em movimento. Havia, sobre as escadas, a fraca, avarenta, desesperada luz de
sempre, pela qual os homens, ao voltarem a casa de noite, sentem o peso da vida.
— Quem é? — perguntei pela terceira vez.
Nada.
Foi quando se ouviu um rumor. Não vinha do outro lado da porta, do patamar
ou do próximo lance de escadas, mas sim de baixo, provavelmente da adega, e
fazia vibrar o edifício inteiro. Era como se arrastassem uma coisa pesadíssima
por uma passagem estreita, com penoso esforço. O ruído indicava precisamente
um atrito, e havia nele também — misericórdia de Deus! — um longo e
atrocíssimo estalido, como quando uma trave entra a fender-se ou um alicate está
arrancando um dente.
Não podia compreender o que fosse aquilo, mas soube imediatamente que era
a coisa pela qual pouco tempo antes me haviam telefonado e a campainha da
porta retinira, numa cavidade tão obscura e misteriosa da noite!

O ruído repetia-se em longos arrancos dilacerantes, cada vez mais forte,


como se estivesse subindo. Ao mesmo tempo, percebi um rumor humano, denso
mas extremamente baixo, vindo das escadas. Não podia resistir. Devagar fiz
correr o ferrolho e entreabri o batente. Olhei para fora.
A escada, da qual se viam dois lances, estava abarrotada. De penhoar e
pijama, alguns até descalços, os moradores tinham saído de seus apartamentos e,
apoiados ao corrimão, olhavam para baixo com ansiedade. Notei a palidez
mortal dos rostos, a imobilidade dos membros, que pareciam paralisados pelo
terror.
— Psiu, psiu — fiz, da porta entreaberta, não ousando sair de pijama, como
estava. A Sr.a Arunda, do quinto andar (ainda linha os papelotes no cabelo),
volveu a cabeça para mim com expressão de censura.
— Que há? — cochichei.
(Mas por que não falava em voz alta, se todos estavam acordados?)
— Psiu — fez ela baixinho.
Tinha um tom de absoluta desolação. Imaginei um doente a quem o médico
diagnosticou um câncer.
— A atômica! — disse ela, acenando com o indicador em direção ao andar
térreo.
— Como, a atômica?
— Acaba de chegar... Estão trazendo-a para dentro... Para nós, sim, para nós...
Venha vê-la daqui.
Embora me sentisse envergonhado, saí sobre o patamar e, abrindo caminho
entre dois sujeitos que nunca tinha visto, olhei para baixo. Tive a impressão de
avistar uma coisa preta, uma espécie de caixote imenso em redor do qual alguns
homens de macacão azul se mexiam com cordas e alavancas.
— É aquela? — perguntei.
— Claro, onde é que o senhor quer que esteja? — respondeu um indivíduo
perto de mim.
E, como para remediar a própria grosseria, acrescentou :
— É a drogênia, sabe?
Ouviu-se um risinho seco, isento de alegria:
— Qual drogênia, qual nada! É a de hidrogênio, sim senhor. Cachorros
danados, mandaram-nos o último tipo! Entre bilhões de homens que há no
mundo, mandaram-no precisamente a nós, a nós da Rua São Julião n.° 8!
Passado o primeiro espanto gélido, o rumor das pessoas tornava-se entretanto
mais rápido e nutrido. Distinguia vozes, soluços reprimidos de mulheres, pragas,
suspiros. Um homem dos seus trinta anos chorava sem moderação, batendo
fortemente com o pé direito num degrau.

*


— É uma injustiça — gemia. — Eu me encontro aqui por acaso!... Estou de
passagem... Não tenho nada que ver com isso!... Estava de partida marcada para
amanhã!
Aquela choradeira era insuportável.
— Pois eu, amanhã — disselhe com rudeza um cinqüentão, talvez o advogado
do oitavo andar — devia comer lasanha! Lasanha, ouviu? E terei que dispensá-
la, não há por onde.
Uma senhora tinha perdido a cabeça. Agarrou-me por um dos pulsos e o
sacudia.
— Olhe-os, olhe-os! — disseme com voz baixa apontando os dois meninos
que a seguiam. — Olhe estes dois anjinhos! Acha possível uma coisa destas?
Toda esta história não estará clamando a vingança de Deus?
Não sabia o que dizer. Sentia frio.
De baixo veio um fragor lúgubre. Os homens deviam ter conseguido fazer
avançar o caixote um bom trecho. Volvi de novo os olhos para baixo. O odioso
objeto entrara no halo de uma lâmpada. Era coberto de um verniz azul-escuro e
trazia uma porção de legendas e etiquetas. Para ver melhor, os moradores se
debruçavam por sobre o corrimão, em risco de precipitar-se. Ouviam-se vozes
confusas:
— E quando vai estourar? Ainda esta noite?
— Mário-o-o! Mário-o-o! Você o acordou, Mário?
— Gisa, você tem a bolsa de água quente?
— Meus filhos... meus filhos!
— Você lhe telefonou? Pois vá-lhe telefonar! Você verá que ele pode fazer
alguma coisa...
— É um absurdo, sim senhor, sermos somente nós...
— Quem lhe diz que somos apenas nós? Como pode sabê-lo?
— Beppe, Beppe, aperte-me, suplico-lhe, aperte-me!
Em seguida, preces, ave-marias, ladainhas. Uma mocinha segurava na mão
uma vela de cera apagada.
Mas, repentinamente, lá de baixo uma notícia começou a serpear escada
acima. Notei-o pela troca excitada de vozes que vinham subindo. Uma notícia
boa, a concluir pelo tom mais vivo que o aspecto de todos assumira de súbito.
— Que é que há? — perguntavam, impacientes, vozes dos andares de cima.
Afinal, em fragmentos, um eco chegou até nós outros, os do sexto andar.
— Tem um endereço e um nome — diziam.
— Um nome?
— Sim. o nome de quem deve receber a atômica...
— É pessoal, compreendeu? Não é para o edifício todo, não senhor; é para
uma pessoa só.
Pareciam enlouquecidos, riam, abraçavam-se e beijavam-se.
Mas surgiu uma dúvida, e o entusiasmo arrefeceu. Cada um pensou em si,
ouviram-se diálogos aflitos, a escada era toda um só vozerio frenético.
— Qual é o nome?
— Ainda não conseguiram lê-lo...
— Mas sim, dá para ler... é um nome estrangeiro...
Todos pensamos no Dr. Stratz, o dentista da sobreloja.
— Não, não... é italiano...
— Como é? Como é?
— Começa por T...
— Não... não... por B, como Bérgamo...
— E depois? Qual é a segunda letra? U? Você disse u, de Udine?
As pessoas fitavam-me. Raramente vi rostos humanos transtornados por uma
felicidade tão selvagem. Um deles não soube resistir e soltou uma gargalhada
que terminou numa tosse cavernosa. Era o velho Mercalli, aquele dos leilões de
tapetes. Compreendi. O caixote com o inferno dentro era para mim, um presente
individual, só para mim. E os outros estavam salvos.
Que é que se havia de fazer? Retirei-me em direção à porta. Os demais
moradores me observavam! Com que alegria me observavam! Embaixo, os
estertores do caixote, que faziam subir aos poucos pela escada, misturavam-se
aos acordes inesperados de uma sanfona. Estavam tocando La Vie en Rose.

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