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Uma mulher sem rosto. Eis a capa do livro escrito pela pernambucana Martha Batalha
lançado em 2016 (CIA das Letras), que inspirou o filme “A vida invisível” de Karim Aïnouz.
Se me faltava ar ao sair da sala do cinema pela brutalidade do que vi, ao ler o livro respirei,
ainda que em momentos sufocada, a vida como ela é. Ao menos do lugar de onde a vejo.
À Eurídice, como à Guida e a muitas outras mulheres, foi negado se tornar quem
queria ser. Desde que nasceu nos anos 1920, seus pais, portugueses de um bairro de
classe média do Rio de Janeiro, lhe prepararam para ser uma boa esposa e uma boa mãe.
Seus talentos intelectuais e artísticos eram incentivados e orgulhosamente exibidos para
conhecidos desde que não prejudicassem esse fim.
Justamente por ser brilhante em tudo que fazia, era repreendida e mal falada, não só
por homens como seu pai e seu marido, mas por outras mulheres. Todos compartilhavam
do consenso sobre o que uma menina branca de classe média deveria ser, o seu papel
social.
O contraponto de Eurídice era sua irmã Guida. Um espelho em que podia ver o que
acontece com aquelas que romperam mesmo que parcialmente com o roteiro que lhes foi
designado. Na sua busca por atingir modelos de feminilidade e de amor romântico, Guida
optou pela fuga de casa e pagou caro por isso. Deixou de ser filha aos olhos dos pais, se
distanciou da irmã e acabou encontrando em outras mulheres a família que ficou para trás.
Para não ter esse destino errante, sentido como pior que a morte, Eurídice escolheu
ser uma filha, esposa e mãe exemplar. O preço foi a sua voz, que parecia desaparecer
como o rosto da capa. Escondeu tanto suas habilidades que não via mais a si mesma.
Mas para além das protagonistas, a escritora nos apresenta um emaranhado jogo de
visibilidades e invisibilidades de várias vidas, umas mais visíveis a nós leitoras e leitores do
que outras. Muitas personagens gritam em seus silenciamentos as desigualdades de
gênero, classe, moradia e raça, os preconceitos referentes à sexualidade, a violência sexual
fora e dentro de casa, bem como as cicatrizes do abandono parental como prática social
recorrente [1].
Uma das mais emblemáticas é Maria das Dores, a empregada doméstica de Eurídice.
Após resumir que ela sempre trabalhava pensando nos “três filhos que se criavam
sozinhos”, a narradora se detém, explicando em tom irônico:
“Mas esta não é a história de Maria das Dores. Maria das Dores inclusive só aparece
por aqui de vez em quando, na hora de lavar uma louça ou fazer uma cama. Esta é a
história de Eurídice Gusmão, a mulher que poderia ter sido.”
Das Dores vai se revelando em linhas aqui e acolá uma empregada exemplar, que
abaixa a cabeça frente aos desmandos de todos os patrões: pais e filhos, adultos e
crianças. Era tão silenciosa ao deixar rastros de cuidado na casa sem ninguém ver, que se
tornou uma verdadeira testemunha da vida da Eurídice adulta. Invisível ao ponto de ser a
única que sabia dos hábitos mais rotineiros e secretos da patroa – tão escondidos que nem
mesmo a fofoca da vizinhança alcançava.
As violências vividas por Das Dores não são descritas como aquelas vivenciadas por
Eurídice e sua irmã Guida. No caso dessas, o enredo permitiu que o tempo trabalhasse
pacientemente as suas relações consigo mesmas e com seus familiares. Com o tempo,
reinterpretaram eventos, refizeram suas memórias e reviram formas de conviverem com
suas dores e sentimentos ambíguos por figuras que lhes causaram sofrimento [2]
De fato, o filme deu foco aos acontecimentos violentos mais aparentes e reescreveu a
história de Eurídice como um comovente “grito contra o patriarcado”, nas palavras de Karim.
Já Martha foi bem sucedida ao iluminar variadas injustiças e violências em cenas banais
que todos vivenciamos todo santo dia.
Mais importante do que explicar essas diferentes formas de contar a história pelas
suas vivências de gênero – o que está além do meu alcance – gostaria de ressaltar a
importância da descrição minuciosa e paciente de Martha. Embora ela aponte a
invisibilização dessa realidade, conseguiu pintá-la em várias tonalidades e cores,
expressando suas contradições e as violências pouco vistas e visibilizadas mesmo por
quem busca criticar as opressões de gênero [3]. No percurso das variadas formas de
apagamento de seus rostos, as protagonistas redesenham seus traços, emergindo como
autoras da sua história entrelaçada.
Pode soar ainda mais profético para leitoras e leitores pós-pandemia da COVID-19 as
páginas que rememoram a gripe espanhola, que matou entre 30 a 50 mil pessoas no país
em 1918 – dessas, cerca de 15 mil foram no Rio, onde mais de 60% da população foi
hospitalizada. Semelhante ao que vemos hoje, autoridades também chamavam a gripe
espanhola de “gripezinha” ou de “limpa-velhos” (!!!).
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[1] As histórias do livro são marcadas por diferentes formas de distância afetiva da figura
paterna e pelo papel das mães no cuidado dos filhos. No artigo “O tempo do cuidado:
batalhas femininas por autonomia e mobilidade” (2018), a antropóloga Camila
Fernandes mostrou como pais naturalizavam o abandono de seus filhos até com piadas,
visto ainda ser uma prática em grande medida aceita e justificada socialmente. Já as mães
que deixaram seus filhos aos cuidados dos outros costumavam carregar uma culpa
avassaladora, pois eram julgadas a partir do “mito da mãe sacrificial, sempre paciente e
presente, aquela que tudo deve dar e nada receber”, enquanto “a prática masculina da
‘distância’ repousa […] na ideia de que o tempo feminino é um bem ilimitado, uma fonte de
recursos disponível ao extrativismo predatório.” (p.320). Nos casos que observou, a
invisibilização do tempo despendido no cuidado das crianças e idosos pelo Estado e pelas
famílias limitou a autonomia e mobilidade de quem cuida. Em sua tese de doutorado
“Figuras da causação: sexualidade feminina, reprodução e acusações no discurso
popular e nas políticas de Estado” (2017), Camila Fernandes analisou discursos que
julgam mães por não cumprirem seu papel social. Além disso, etnografou “casas de
cuidado” nas favelas do Rio de Janeiro, uma realidade próxima ao que aparece na trajetória
errante de Guida Gusmão, abandonada grávida pelo marido.
[2] Me baseio em Veena Das, antropóloga que pesquisou como as violências étnica e de
gênero da Partição da Índia em 1949 (evento que levou à criação do Paquistão) foram
inscritas nos corpos femininos e nas suas relações. No artigo “Fronteiras, violência e o
trabalho do tempo: alguns temas wittgensteinianos” (1999), Veena Das demonstrou
como: “A habilidade de ‘falar a violência’ encontra-se nos recessos dessa cultura de
encenar e de contar histórias, no interior dos domínios da família e do parentesco. O tempo
não é algo meramente representado, mas um agente que ‘trabalha’ nas relações,
permitindo que sejam reinterpretadas, reescritas, modificadas, no embate entre vários
autores pela autoria das histórias nas quais coletividades são criadas ou recriadas.” (p.37).
[3] A tese da antropóloga Marcela Centelhas “Nas águas das políticas: as mulheres, as
cisternas e o curso da vida no agreste pernambucano” (2019) me inspirou a refletir
sobre o contraste entre a narrativa do filme e do livro. Ao tratar dos jogos de invisibilidades e
visibilidades dos usos da água por mulheres pobres, negras e sertanejas, Marcela
Centelhas argumentou que olhar não só para os aspectos mais dramáticos e aparentes
dessa relação (“escassez”, “crise”), mas para suas trivialidades do dia a dia permite
desfazer a dicotomia usual entre casa e rua, privado e público. Denúncias à invisibilidade do
trabalho doméstico dessas mulheres muitas vezes acabaram por invisibilizar a potência dos
modos de realização de suas atividades cotidianas que, longe de se restringirem à
domesticidade e à família, incidem em todos os âmbitos da vida: do trabalho “na rua” à
participação político-eleitoral e elaboração de políticas públicas. Daí a importância política e
analítica de compreender os significados conferidos pelas próprias mulheres ao curso de
suas vidas e não partir de presunções sobre o que é ou não valorizado e visibilizado. Para
saber mais, assista ao debate do Núcleo de Estudos e Extensão em Desenvolvimento e
Território (NEDET), no qual explicou as linhas gerais de sua pesquisa.
[4] A historiadora Adriana da Costa Goulart descreveu em detalhes o horror que tomou as
ruas do Rio de Janeiro com a gripe espanhola em seu artigo para o dossiê “A gripe
espanhola no Brasil” (2005). Como hoje, as mortes incidiram sobretudo entre a população
mais vulnerável com acesso precário a saneamento básico.