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UFU – UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

ILEEL – INSTITUTO DE LETRAS E LINGUÍSTICA


Disciplina: Teoria Literária: Tradição e
Contemporaneidade
Professora Dr. Elzimar Fernanda Nunes Ribeiro

Interpretações em Transformação: A Metamorfose de Kafka e a Leitura Plural na


Sociedade Capitalista

Larissa Mota de Camargos Lima

Resumo:
Este artigo explora a natureza multifacetada da interpretação na obra literária, utilizando 'A
Metamorfose' de Franz Kafka como um ponto de partida. Destacando a riqueza da diversidade
interpretativa, o texto destaca o papel central do leitor na atribuição de significado ao texto. Além
disso, ele analisa as diferentes camadas da figura metamorfoseada na narrativa, revelando a
complexidade da obra. Não se limitando apenas à análise textual, o artigo também destaca a relevância
das influências sociais na compreensão da obra, especialmente na interpretação da alegoria da
exploração capitalista representada pelo sofrimento de Gregor Samsa. Assim, a análise proposta não
apenas ressalta a importância da interpretação e da participação ativa do leitor na compreensão da
obra, mas também ressalta o contexto social como elemento vital na interpretação e entendimento da
narrativa de Kafka.

Palavras-chave: Metamorfose. Interpretações. Literatura Social. Hermenêutica.

Abstract:

This article explores the multifaceted nature of interpretation in literary works, utilizing Franz Kafka's
'The Metamorphosis' as a starting point. Highlighting the richness of interpretative diversity, the text
emphasizes the central role of the reader in assigning meaning to the text. Furthermore, it delves into
the different layers of the metamorphosed figure in the narrative, revealing the complexity of the work.
Beyond textual analysis, the article also underscores the relevance of social influences in
comprehending the piece, particularly in interpreting the allegory of capitalist exploitation portrayed
through Gregor Samsa's suffering. Thus, the proposed analysis not only emphasizes the importance of
interpretation and the active involvement of the reader in comprehending the work but also
underscores the social context as a vital element in interpreting and understanding Kafka's narrative.

Keywords: Metamorphosis. Interpretations. Social Literature. Hermeneutics.


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“Numa manhã, ao despertar de sonhos


inquietantes, Gregor Samsa deu por si na
cama transformado num gigantesco inseto.”
A metamorfose, Kafka

INTRODUÇÃO

A compreensão vai além de um simples método; para Paul Ricoeur, é uma


característica inerente ao ser humano. Cada indivíduo carrega consigo um amplo espectro de
interpretações diante do mundo, desdobrando-se em uma diversidade de significados à
medida que os contextos se delineiam. Essas interpretações complexas e interligadas
emergem no tecido do discurso, onde o leitor se torna uma peça fundamental na atribuição de
sentido ao texto. Roland Barthes, em sua obra seminal 'A Morte do Autor', descreve o texto
como um mosaico intricado de informações provenientes de diversas fontes culturais,
enfatizando que é a linguagem que serve de sustentáculo ao sujeito, e alguns textos, como
exemplifica a obra 'A Metamorfose' de Franz Kafka, permitem uma maior possibilidade
dessas interpretações baseadas em contextos distintos.
Neste contexto, mergulharemos na análise da obra 'A Metamorfose' de Franz Kafka,
desvelando sua notável habilidade em possibilitar uma diversidade de interpretações e
destacando a importância vital do papel do leitor nesse processo interpretativo. Exploraremos
as diferentes camadas que compõem a figura metamorfoseada. Este artigo não apenas visa
evidenciar a relevância da interpretação e do leitor, mas também enfatiza o papel crucial da
sociedade e suas convenções sistêmicas para a compreensão intrincada da obra literária de
Kafka.
Na narrativa de Franz Kafka, é inegável o sublime sofrimento enfrentado pelo
protagonista Gregor Samsa ao perceber seu atraso para o trabalho e sua inaptidão para ir à
firma após sua metamorfose. Esse sofrimento não apenas ecoa pela incapacidade de
desempenhar suas funções laborais e gerar renda, mas também ressoa como uma poderosa
alegoria da exploração capitalista, onde Gregor se torna a personificação desse sistema
opressor, desumanizando-o progressivamente.
Gregor Samsa, inicialmente, é o sustentáculo financeiro da família, sacrifica suas
aspirações pessoais em prol do bem-estar familiar. Seu papel como principal provedor é
moldado pela exploração capitalista, refletindo a visão de Marx e Engels sobre a
transformação das liberdades individuais em meras mercadorias. Após sua metamorfose, ele
perde valor como trabalhador, revelando a desvalorização do indivíduo na sociedade. A
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família, antes preocupada, passa a enxergá-lo como um peso, simbolizando a transição das
relações familiares de sentimentais para puramente monetárias. Esse rompimento evidencia
como o sistema econômico transforma laços afetivos em transações monetárias. A solidão de
Gregor é agravada pela indiferença da família, ilustrada pela hostilidade do pai, evidenciando
a desconexão emocional e física. Assim, a obra reflete a influência do capitalismo na
desumanização e isolamento do indivíduo, ilustrando a transformação das relações familiares
em meras relações monetárias.

TEXTO MULTIFACETADO, LEITOR MULTIFACETADO

No romance emblemático de Franz Kafka, intitulado "A Metamorfose" e publicado em


1915, é delineada a breve narrativa de Gregor Samsa, um caixeiro-viajante que se encontra
imerso na rotina proletária para prover o sustento de sua família. Insatisfeito com a sua
ocupação, ele almeja uma realidade distinta. Num dia corriqueiro, desperta em sua cama, mas
se depara com uma incapacidade abrupta de se erguer. Ao se dar conta do seu atraso e da
impossibilidade de sair da cama, Gregor percebe que foi subitamente transformado em um
inseto. O texto inicialmente não explicita o tipo de inseto ao qual Gregor se metamorfoseou,
provocando a imaginação interpretativa do leitor através das descrições meticulosas do autor.

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos,


encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava
deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a
cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas,
no topo de qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha.
Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o
volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.
(FRANZ KAFKA, 1997, p.4)

A ambiguidade lexical e o jogo de palavras durante a narrativa deixam subentendida


essa transformação, concedendo ao leitor o poder interpretativo, conceito corroborado por
Roland Barthes em sua teoria "A Morte do Autor". Barthes argumenta que a interpretação do
autor é apenas uma dentre muitas possíveis, pois é o leitor que confere sentido ao texto, sendo
a linguagem a voz ativa, não o autor.

Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras, libertando
um sentido único, de certo modo teológico (que seria a «mensagem» do
Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se
contestam escritas variadas, nenhuma das quais é original: o texto é um
tecido de citações, saldas dos mil focos da cultura. (BARTHES, 2004, p. 3)
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Ao manter essa possibilidade aberta para as interpretações, o leitor é capaz de atribuir


um caráter específico à metamorfose de Gregor Samsa. A descrição minuciosa, como a
apresentada na obra, é um convite para que o leitor se conecte intimamente com a condição
grotesca de Gregor. A descrição de seu corpo "duramente armado", seu abdômen "marrom",
nervuras arqueadas e pernas "lastimavelmente finas" incita uma série de interpretações sobre
a natureza específica da metamorfose. Pode-se especular que o termo "inseto" é
intencionalmente vago, permitindo interpretações diversas que variam desde uma
representação simbólica de impotência e alienação até uma metáfora da degradação física e
psicológica.
Essas interpretações diversas são possíveis devido à natureza da literatura como arte
do ruído, não uma comunicação direta, conforme exemplificado por Barthes em sua obra. Ao
analisar "Sarrasine", de Balzac, Barthes evidencia que não há indicações claras de que
Zambinella era uma figura feminina; é o texto e a sua enunciação que possibilitam essa
interpretação. Essa concepção decorre do fato de que o enunciado constitui o sujeito do texto,
e a teoria da linguagem sustenta que o texto é produto do sujeito, não da pessoa. Portanto, na
construção de significados no processo de metamorfose de Samsa, o leitor se revela como um
elemento essencial na interpretação, em consonância com a complexidade e a riqueza
interpretativa presente na narrativa de Kafka.
Ademais, a hermenêutica proposta por Paul Ricoeur desempenha um papel crucial nas
possibilidades interpretativas ao analisar a novela 'A Metamorfose' de Franz Kafka. A teoria
hermenêutica de Ricoeur é um corpo de ideias que se concentra além da compreensão de
textos, obras e símbolos, destacando a interação entre o texto e o leitor na construção de
significados e a importância da interpretação do texto. O filósofo fundamenta sua abordagem
na ideia de que a compreensão não é apenas um ato passivo de decifrar palavras ou conceitos,
mas um processo ativo que envolve a interpretação ativa do leitor. Ele enfatiza que a
compreensão é um fenômeno complexo e dinâmico, moldado pela interação entre o texto e o
leitor, em que ambos influenciam e são influenciados mutuamente na construção do
significado, assim havendo uma relação assimétrica, em que o leitor “fala”.

O texto é mudo. Entre o texto e o leitor, estabelece-se uma relação


assimétrica na qual apenas um dos parceiros fala pelos dois. [...] Por
conseguinte, compreender não é apenas repetir o evento do discurso num
evento semelhante, é gerar um novo acontecimento, que começa com o texto
que que o evento inicial objectivou. (PAUL RICOEUR, 1976, p. 87)
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Ricoeur defende a ideia de que os textos não possuem significados fixos ou únicos,
mas sim uma multiplicidade de significados potenciais que são revelados através da
interpretação ativa do leitor. Ele destaca a importância dos contextos culturais, sociais e
históricos na interpretação de um texto, argumentando que a compreensão não é apenas
influenciada pelas intenções do autor, mas também pelas experiências e perspectivas do leitor.
Paul Ricoeur argumenta que a compreensão não é apenas um método estático, mas
uma característica inata do ser humano, carregando consigo diversas capacidades
interpretativas. Essa teoria hermenêutica revela um vínculo intrínseco com a obra kafkiana,
notável por sua profundidade simbólica e ambiguidade, proporcionando um terreno fértil para
a aplicação desses princípios.
Quando a teoria de Ricoeur é aplicada à novela de Kafka, torna-se evidente que os
princípios da hermenêutica se encaixam naturalmente e oferecem uma estrutura sólida para a
interpretação do texto, visto que os conceitos hermenêuticos de Ricoeur se baseiam na ideia
de que a compreensão não é um processo simples de decodificação textual, mas sim um ato
interpretativo que envolve a interação entre o texto e o leitor, em que este último desempenha
um papel ativo na atribuição de significados à obra. Além disso, a obra de Kafka é
reconhecida por sua profundidade simbólica e pela complexidade dos temas abordados,
incluindo a ambiguidade presente na história de Gregor Samsa após sua transformação em um
inseto. A transformação de Gregor Samsa em um inseto é apenas o ponto de partida para uma
série de interpretações possíveis. Essa condição metamórfica, que simbolicamente pode
representar diversas facetas da condição humana, como alienação, isolamento, desumanização
ou até mesmo a busca por identidade, proporciona um terreno fértil para a aplicação dos
princípios hermenêuticos de Ricoeur.
A complexidade psicológica dos personagens, especialmente a maneira como Gregor
lida com sua nova condição, suas tentativas de manter alguma normalidade apesar da
transformação radical, convida os leitores a explorar e a atribuir múltiplos significados à
narrativa, ressaltando a pertinência e a aplicabilidade dos conceitos hermenêuticos de Ricoeur
na interpretação desta obra.
Ricoeur destaca a importância da interação entre o texto e o leitor na construção de
significados. Ao longo da história de Gregor Samsa e sua metamorfose, a teoria hermenêutica
de Ricoeur se manifesta como uma ferramenta vital para a compreensão das nuances
psicológicas, sociais e existenciais presentes na obra, reforçando a ideia de que a compreensão
é um processo contínuo e dinâmico, impulsionado pela interação entre o texto e o leitor.
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Assim, a teoria hermenêutica possibilita compreender a complexidade das obras literárias,


como "A Metamorfose", porque enfatiza a natureza interpretativa da leitura.
Um aspecto importante de se analisar é a maneira como Samsa lida com sua nova
condição na narrativa. Apesar de encontrar-se impedido de realizar ações habituais, como se
levantar e se locomover, o personagem persiste em tentar executá-las como antes.

A princípio quis sair da cama com a parte inferior do corpo; mas essa parte
de baixo, que ele aliás ainda não tinha visto e da qual não podia fazer uma
ideia exata, provou ser difícil demais de mover; ela ia tão devagar; e quando
afinal, quase frenético, reunindo todas as suas forças e sem respeitar nada, se
atirou para a frente, bateu com violência nos pés da cama, pois tinha
escolhido a direção errada; a dor ardida que sentiu ensinou-lhe que
justamente a parte inferior do seu corpo era no momento, talvez, a mais
sensível de todas. (FRANZ KAFKA, 1997, p. 09)

Essa reação de Gregor Samsa a sua metamorfose em um inseto, ou seja, a forma como
ele persiste em tentar realizar ações habituais, mesmo após a mudança abrupta que o impede
de executá-las, oferece uma perspectiva intrigante para compreender a complexidade
psicológica e a adaptação do protagonista diante da transformação. A análise hermenêutica
dessa situação revela a complexidade da condição humana diante de mudanças abruptas e
desafiadoras. A resiliência de Samsa em tentar se comportar como antes pode ser vista como
uma forma de enfrentar a adversidade e buscar uma sensação de normalidade, o que ressalta
não apenas a adaptação psicológica do personagem, mas também oferece ao leitor uma lente
para compreender a experiência humana diante de mudanças drásticas e desconcertantes.
Ao interpretar essa ação do personagem, o leitor pode atribuir outras múltiplas
camadas de significado. Outro exemplo seria essa persistência sendo interpretada como uma
tentativa de preservar sua identidade e conexão com sua vida anterior, apesar da nova forma
física. Isso relacionado à teoria hermenêutica de Ricoeur, enfatiza a importância do leitor na
interpretação do texto, pois é através das experiências individuais e da relação pessoal com a
obra que diferentes interpretações emergem.
Essa passagem oferece também ao leitor a oportunidade de se identificar intimamente
com o protagonista por meio da descrição detalhada, como enfatizado por Ricoeur. Essa teoria
hermenêutica enfatiza a natureza dialógica da compreensão, em que o leitor não apenas
recebe passivamente o significado do texto, mas também contribui ativamente para sua
interpretação e atribuição de significado. Ricoeur, portanto, valoriza a interpretação como um
processo criativo e ativo, no qual a interação entre o texto e o leitor desempenha um papel
fundamental na construção dos significados e na compreensão profunda de uma obra.
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A continuidades entre signos, directos e indirectos explica porque é que a


empatia, enquanto transferência de nós mesmos para a vida psíquica de
outrem, é o princípio comum a toda espécie de compreensão, directa ou
indirecta. (PAUL RICOEUR, 1976, p. 85)

No entanto, é necessário ser cauteloso ao interpretar uma obra, especialmente quando


ela oferece várias possibilidades de significado. Ricoeur, ao mencionar a amplitude da
interpretação, enfatiza que é importante não exceder os limites do texto ao buscar
significados. Isso significa que ao interpretar, é importante permanecer dentro das fronteiras
estabelecidas pela própria obra, não estendendo as interpretações além do que o texto
realmente sugere ou permite.
Ao mencionar "interpretar dentro das possibilidades interpretativas", Ricoeur sugere
que a interpretação deve ser fundamentada nas pistas, sugestões e nuances oferecidas pelo
próprio texto. Isso evita a extrapolação de significados que não têm base na narrativa original,
mantendo a fidelidade à obra em si. A comparação com a referência ostensiva na linguagem
falada reforça essa ideia. Assim como na linguagem oral, em que apontamos ou referenciamos
algo para garantir que o ouvinte compreenda, Ricoeur sugere que a interpretação deve se
apoiar no texto, utilizando o que está claramente disponível na obra para evitar interpretações
distorcidas ou excessivamente abrangentes.

O sentido de um texto não está por detrás do texto, mas à sua frente. Não é
algo de oculto, mas algo descoberto. [...] Compreender um texto é seguir o
seu movimento do sentido para a referência: do que ele diz para aquilo que
fala. (PAUL RICOEUR, 1976, p. 99)

O papel do narrador na obra "A Metamorfose" é crucial ao descrever detalhadamente a


transformação de Gregor Samsa. Ao apresentar minuciosamente características como patas
finas e abdômen marrom, o narrador oferece elementos para a imaginação do leitor, levando-o
a conjecturar sobre a identidade do inseto no qual o protagonista se metamorfoseou. Enquanto
o narrador delimita as interpretações ao sugerir vários insetos com essas características, ele
também amplia as possibilidades ao não restringir explicitamente a um único tipo específico.
A abundância de detalhes na narrativa proporciona ao leitor uma experiência sensorial
rica, permitindo que ele mergulhe na complexidade da transformação de Samsa. Essa imersão
desencadeia a participação ativa do leitor, que, seguindo a ideia de Paul Ricoeur, se torna
coautor do sentido da narrativa ao aplicar sua própria criatividade e interpretação na
construção do significado. A liberdade concedida ao leitor para imaginar e atribuir sentido ao
fenômeno da metamorfose é essencial para a experiência interpretativa, destacando o papel
interativo entre texto e leitor na construção do significado da obra.
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Nesse processo, o papel mediador desempenhado pela análise estrutural


constitui na justificação da abordagem objectiva e a rectificação da
abordagem subjectiva do texto. (PAUL RICOEUR, 1976, p. 99)

A interação entre a teoria hermenêutica de Paul Ricoeur e a narrativa de "A


Metamorfose" de Franz Kafka revela a profundidade da experiência interpretativa na leitura
literária. A abundância de elementos sensoriais na narrativa permite uma imersão única na
complexidade da metamorfose, conduzindo o leitor a uma participação ativa na construção do
significado. Ricoeur enfatiza o leitor como coautor do sentido da narrativa, aplicando sua
criatividade e interpretação pessoal para atribuir significados à obra. Essa dinâmica revela a
natureza subjetiva e enriquecedora da leitura, onde a liberdade interpretativa permite ao leitor
explorar, compreender e atribuir sentido ao texto de maneira pessoal. Assim, a combinação da
teoria hermenêutica com a narrativa complexa de Kafka destaca a importância do leitor como
agente ativo na construção e compreensão do significado de uma obra literária.

CAPITALISMO E A SOLIDÃO

Na obra, Gregor Samsa emerge como o primogênito encarregado de prover


financeiramente sua família, desempenhando o papel de caixeiro-viajante e direcionando a
maior parte de seus rendimentos para amparar pai, mãe e irmã mais nova. O desenrolar da
narrativa revela que Gregor se encontra preso a um emprego que não lhe traz satisfação,
mantendo-se nele unicamente para quitar as dívidas parentais. Esta postura evidencia um
protagonista que prioriza o bem-estar familiar em detrimento de suas próprias aspirações.

Se não me contivesse, por causa dos meus pais, teria pedido demissão há
muito tempo; teria me postado diante do chefe e dito o que penso do fundo
do coração. Ele iria cair da sua banca! Também, é estranho o modo como
toma assento nela e fala de cima para baixo com o funcionário — que além
do mais precisa se aproximar bastante por causa da surdez do chefe. Bem,
ainda não renunciei por completo à esperança: assim que juntar o dinheiro
para lhe pagar a dívida dos meus pais — deve demorar ainda de cinco a seis
anos — vou fazer isso sem falta (FRANZ KAFKA, 1997, p. 06-07)

Essa relação complexa de Gregor com o trabalho e a família se molda em meio à


realidade da exploração capitalista, um modelo econômico arraigado há anos, que impõe uma
carga significativa sobre os indivíduos, exigindo que sustentem não apenas a si mesmos, mas
também suas famílias. A posição de Gregor como principal provedor do lar o mergulha em
um dilema entre suas responsabilidades familiares e seu próprio bem-estar. Sua submissão a
um emprego que repudia não está associada à sua realização pessoal, mas sim ao fardo das
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dívidas familiares. Esta dinâmica não só ressalta a responsabilidade que ele assume por seus
entes, mas também evidencia como o sistema capitalista explora essa devoção e sacrifício
pessoal em prol do sustento financeiro familiar.
O sacrifício de Gregor Samsa, em sua dedicação exclusiva ao sustento da família, ecoa
a ideia de Marx e Engels expressa no "Manifesto do Partido Comunista". Segundo eles, a
burguesia, classe dominante na sociedade capitalista, usurpa a liberdade individual ao
transformar o valor pessoal das pessoas em mera mercadoria, subjugando-as ao valor de troca.
Essa visão denota uma crítica contundente à transformação das liberdades individuais,
conquistadas ao longo do tempo e garantidas, em uma única e implacável liberdade: a
liberdade de comércio.

Ela [a burguesia] transformou o valor pessoal em valor de troca, e no lugar


das inúmeras liberdades adquiridas e garantidas, estabeleceu uma única e
implacável liberdade – a liberdade de comércio. (MARX, ENGELS, 2010,
p.217)

Assim, no contexto da obra de Kafka, o protagonista Gregor Samsa é vítima dessa


dinâmica, vendo sua liberdade pessoal e suas aspirações individuais subjugadas em prol da
sobrevivência financeira de sua família, refletindo uma realidade onde a liberdade individual é
suprimida em favor dos interesses econômicos impostos pela sociedade capitalista. Além
disso, conforme o trabalhador se torna apenas uma engrenagem no sistema, há uma perda de
identidade pessoal e identificação com o produto final, sendo ele apenas um componente que
vende sua força de trabalho por meio de um contrato, enquanto o patrão a adquire, relegando-
o a uma existência baseada em funções essenciais: trabalhar, comer, dormir e reproduzir-se.
Assim, o trabalhador passa a viver seu trabalho e Samsa executa esse papel,

Esse moço não tem outra coisa na cabeça a não ser a firma. Eu quase me
irrito por ele nunca sair à noite; agora esteve oito dias na cidade, mas passou
todas as noites em casa. Fica sentado à mesa conosco e lê em silêncio o
jornal ou estuda horários de viagem. É uma distração para ele ocupar-se de
trabalhos de carpintaria. (FRANZ KAFKA, 1997, p. 13)

Essa desconexão do labor humano o distancia da própria humanidade e da convivência


com outros seres. Assim, a alienação no capitalismo se torna integral, afastando o trabalhador
não só de seu ofício, mas também de sua essência humana e da interação com os demais
indivíduos. Essa situação de Gregor, é vista por Marx e Engels, em seu manifesto, que
pontuam que o trabalho do proletariado, devido ao uso extensivo da maquinaria e à
especialização laboral, perdeu sua autonomia, tornando-se uma simples extensão das
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máquinas, demandando apenas tarefas simples, monótonas e de fácil aprendizado. Essa


fragmentação das atividades laborais contribui para a alienação do trabalhador, do próprio
trabalho e de suas capacidades humanas mais fundamentais.

Devido ao uso extensivo da maquinaria e à divisão do trabalho, o trabalho


dos proletários perdeu todo o seu caráter autônomo e, consequentemente,
todo o encanto para o trabalhador. Ele torna-se um mero apêndice da
máquina e exige-se dele apenas a operação mais simples, mais monótona e
mais fácil de aprender (MARX, ENGELS, 2010, p.218)

Ao se entregar ao sistema capitalista de maneira tão total que perde sua


identidade, também perde sua singularidade e capacidade de reflexão, resultando em uma
solidão profunda. Ele se torna um reflexo da inadequação de suas ações às exigências de sua
própria alma, sendo sufocado pelas demandas do sistema que o envolve.
Diante disso, percebemos que há uma relação complexa entre a descrição de Gregor
Samsa na obra e a perspectiva de Lukács que ressalta que a verdadeira tragédia não reside
apenas na ausência de sofrimento ou na sensação de segurança, mas sim na conformidade das
ações com as exigências intrínsecas da alma. Quando a alma não reconhece qualquer abismo
interior que a atraia ou a eleve a alturas inacessíveis, quando a divindade que rege o mundo
está próxima aos homens, mesmo incompreendida, todas as ações são meramente um traje
bem-talhado da alma.
Aqui, há um contraste marcante entre a condição de Gregor, preso em uma
metamorfose que o separa de sua própria essência, e a visão de Lukács sobre a integridade das
ações em relação às necessidades intrínsecas da alma. A solidão e a perda de identidade de
Gregor Samsa destacam como a falta de harmonia entre suas ações e sua essência interior
resulta em um sofrimento profundo, enquanto Lukács aponta para a plenitude e a grandeza
que surgem quando as ações estão alinhadas com a alma. Lukács afirma que o homem não se
sente solitário sozinho devido às suas relações sociais,

Pois o homem não se acha solitário, como único portador da


substancialidade, em meio a figurações reflexivas: suas relações com as
demais figurações e as estruturas que daí resultam são, por assim dizer,
substanciais como ele próprio ou mais verdadeiramente plenas de substância,
porque mais universais, mais "filosóficas", mais próximas e aparentadas à
pátria original: amor, família, Estado. (LUKÁCS, 2009, p.29)

A afirmação de Lukács sobre o homem não se sentir solitário como único portador da
substancialidade destaca a importância das relações sociais e estruturas coletivas, como amor,
família e Estado, que são consideradas "substanciais" e "plenas de substância". No entanto, a
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metamorfose de Gregor Samsa o afasta progressivamente dessas relações, levando-o a uma


situação de isolamento e solidão.
Após sua metamorfose, Gregor perde completamente seu valor como trabalhador, o
que o torna desimportante aos olhos da família, uma vez que ele não pode mais gerar renda.
Essa desvalorização do indivíduo, associada à ideia proposta no Manifesto do Partido
Comunista, onde o valor de um indivíduo é medido pela sua capacidade de produzir capital,
contribui significativamente para a solidão vivenciada por Gregor, conforme discutido por
Lukács.
A família de Gregor, inicialmente preocupada com sua condição metamorfoseada,
gradualmente o marginaliza, passando a vê-lo como um estorvo ou um fardo a ser suportado.
Antes considerado um provedor, com um papel definido, ele perde essa função e,
consequentemente, sua utilidade para a família. O afastamento emocional se torna mais
evidente à medida que a família deixa de vê-lo como uma pessoa que contribui
financeiramente.
A falta de utilidade de Gregor após a metamorfose é explicitada quando seu pai
demonstra hostilidade ao lançar um objeto com força em sua direção. Essa atitude, carregada
de agressividade e desinteresse, destaca a desconexão e o distanciamento de Gregor em
relação à sua família, sublinhando a profunda solidão que passa a experimentar após sua
transformação. Sua presença já não é mais vista como uma contribuição à família, mas sim
como um fardo a ser carregado. Essa rejeição intensifica sua solidão e evidencia a
incompatibilidade cada vez maior entre ele e o círculo familiar, agravando sua condição de
isolamento emocional e físico.

quando nesse momento alguma coisa, atirada de leve, voou bem ao seu lado
e rolou diante dele. Era uma maçã; a segunda passou voando logo em
seguida por ele; Gregor ficou paralisado de susto; continuar correndo era
inútil, pois o pai tinha decidido bombardeá-lo. Da fruteira em cima do bufê
ele havia enchido os bolsos de maçãs e, por enquanto sem mirar direito, as
atirava uma a uma. As pequenas maçãs vermelhas rolavam como que
eletrizadas pelo chão e batiam umas nas outras. Uma maçã atirada sem força
raspou as costas de Gregor mas escorregou sem causar danos. Uma que logo
se seguiu, pelo contrário, literalmente penetrou nas costas dele; Gregor quis
continuar se arrastando, como se a dor surpreendente e inacreditável pudesse
passar com a mudança de lugar; mas ele se sentia como se estivesse pregado
no chão e esticou o corpo numa total confusão de todos os sentidos.
(FRANZ KAFKA, 1997, p. 42-43)

Essa observação é crucial ao analisarmos as interações sociais na novela de Kafka. A


harmonia inicial na família Samsa é rapidamente rompida quando Gregor deixa de ser um
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provedor, alinhando-se com a ideia do Manifesto do Partido Comunista. As relações


familiares, como mostra a obra, são despidas de sua natureza sentimental e se transformam
em puras relações monetárias. A dinâmica entre o burguês e o proletário, conforme
exemplificado na novela, espelha a concepção apresentada no manifesto, onde a burguesia
redefine e reduz as relações familiares a um simples intercâmbio monetário. O rompimento
dessa harmonia, com a mudança de status de Gregor, demonstra como a sociedade, em meio à
influência do sistema econômico, transforma os laços afetivos em meras relações
transacionais, dando ênfase ao aspecto monetário em detrimento do vínculo emocional e
humano.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Geane Tavares. Trabalho alienado da sociedade capitalista na obra metamorfose


de Franz Kafka. 2014. 33f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras) -
Universidade Estadual da Paraíba, Catolé do Rocha, 2014. Disponível em:
http://dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/handle/123456789/6444. Acesso em: 17 dez. 2023

BARTHES, Roland. A morte do autor. O rumor da língua, v. 2, n. 1, p. 57-64, 2004.

CORVACHO, Suely. Metamorfose de Kafka e a alienação no capitalismo. Disponível em:


https://esquerdaonline.com.br/2016/10/04/metamorfose-de-kafka-e-a-alienacao-no-
capitalismo/. Acesso em: 17 dez. 2023.

DA SILVA, João Gilberto Turbiani. Sobre o homem cindido: uma leitura da Teoria do
romance, de György Lukács. 2014. Tese de Doutorado. Universidade Federal de São Paulo.

KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução e posfácio Modesto Carone. São Paulo:


Companhia das Letras, 1997

LESSA, Sérgio. Lukács e a ontologia: uma introdução. Disponível em:


http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/02/Revista-Outubro-Edic%CC%A7a
%CC%83o-5-Artigo-06.pdf. Acesso em: 17 dez. 2023.

LUKÁCS, Georg; LUKÁCS, György. Teoria do romance. Editora 34, 2009.

MARX, Karl Heinrich; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Germinal:


marxismo e educação em debate, v. 2, n. 2, p. 215-240, 2010.

RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação, trad. Arthur Mourão, Edições 70, 1976.

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