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Resumo:
Este artigo explora a natureza multifacetada da interpretação na obra literária, utilizando 'A
Metamorfose' de Franz Kafka como um ponto de partida. Destacando a riqueza da diversidade
interpretativa, o texto destaca o papel central do leitor na atribuição de significado ao texto. Além
disso, ele analisa as diferentes camadas da figura metamorfoseada na narrativa, revelando a
complexidade da obra. Não se limitando apenas à análise textual, o artigo também destaca a relevância
das influências sociais na compreensão da obra, especialmente na interpretação da alegoria da
exploração capitalista representada pelo sofrimento de Gregor Samsa. Assim, a análise proposta não
apenas ressalta a importância da interpretação e da participação ativa do leitor na compreensão da
obra, mas também ressalta o contexto social como elemento vital na interpretação e entendimento da
narrativa de Kafka.
Abstract:
This article explores the multifaceted nature of interpretation in literary works, utilizing Franz Kafka's
'The Metamorphosis' as a starting point. Highlighting the richness of interpretative diversity, the text
emphasizes the central role of the reader in assigning meaning to the text. Furthermore, it delves into
the different layers of the metamorphosed figure in the narrative, revealing the complexity of the work.
Beyond textual analysis, the article also underscores the relevance of social influences in
comprehending the piece, particularly in interpreting the allegory of capitalist exploitation portrayed
through Gregor Samsa's suffering. Thus, the proposed analysis not only emphasizes the importance of
interpretation and the active involvement of the reader in comprehending the work but also
underscores the social context as a vital element in interpreting and understanding Kafka's narrative.
INTRODUÇÃO
família, antes preocupada, passa a enxergá-lo como um peso, simbolizando a transição das
relações familiares de sentimentais para puramente monetárias. Esse rompimento evidencia
como o sistema econômico transforma laços afetivos em transações monetárias. A solidão de
Gregor é agravada pela indiferença da família, ilustrada pela hostilidade do pai, evidenciando
a desconexão emocional e física. Assim, a obra reflete a influência do capitalismo na
desumanização e isolamento do indivíduo, ilustrando a transformação das relações familiares
em meras relações monetárias.
Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras, libertando
um sentido único, de certo modo teológico (que seria a «mensagem» do
Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se
contestam escritas variadas, nenhuma das quais é original: o texto é um
tecido de citações, saldas dos mil focos da cultura. (BARTHES, 2004, p. 3)
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Ricoeur defende a ideia de que os textos não possuem significados fixos ou únicos,
mas sim uma multiplicidade de significados potenciais que são revelados através da
interpretação ativa do leitor. Ele destaca a importância dos contextos culturais, sociais e
históricos na interpretação de um texto, argumentando que a compreensão não é apenas
influenciada pelas intenções do autor, mas também pelas experiências e perspectivas do leitor.
Paul Ricoeur argumenta que a compreensão não é apenas um método estático, mas
uma característica inata do ser humano, carregando consigo diversas capacidades
interpretativas. Essa teoria hermenêutica revela um vínculo intrínseco com a obra kafkiana,
notável por sua profundidade simbólica e ambiguidade, proporcionando um terreno fértil para
a aplicação desses princípios.
Quando a teoria de Ricoeur é aplicada à novela de Kafka, torna-se evidente que os
princípios da hermenêutica se encaixam naturalmente e oferecem uma estrutura sólida para a
interpretação do texto, visto que os conceitos hermenêuticos de Ricoeur se baseiam na ideia
de que a compreensão não é um processo simples de decodificação textual, mas sim um ato
interpretativo que envolve a interação entre o texto e o leitor, em que este último desempenha
um papel ativo na atribuição de significados à obra. Além disso, a obra de Kafka é
reconhecida por sua profundidade simbólica e pela complexidade dos temas abordados,
incluindo a ambiguidade presente na história de Gregor Samsa após sua transformação em um
inseto. A transformação de Gregor Samsa em um inseto é apenas o ponto de partida para uma
série de interpretações possíveis. Essa condição metamórfica, que simbolicamente pode
representar diversas facetas da condição humana, como alienação, isolamento, desumanização
ou até mesmo a busca por identidade, proporciona um terreno fértil para a aplicação dos
princípios hermenêuticos de Ricoeur.
A complexidade psicológica dos personagens, especialmente a maneira como Gregor
lida com sua nova condição, suas tentativas de manter alguma normalidade apesar da
transformação radical, convida os leitores a explorar e a atribuir múltiplos significados à
narrativa, ressaltando a pertinência e a aplicabilidade dos conceitos hermenêuticos de Ricoeur
na interpretação desta obra.
Ricoeur destaca a importância da interação entre o texto e o leitor na construção de
significados. Ao longo da história de Gregor Samsa e sua metamorfose, a teoria hermenêutica
de Ricoeur se manifesta como uma ferramenta vital para a compreensão das nuances
psicológicas, sociais e existenciais presentes na obra, reforçando a ideia de que a compreensão
é um processo contínuo e dinâmico, impulsionado pela interação entre o texto e o leitor.
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A princípio quis sair da cama com a parte inferior do corpo; mas essa parte
de baixo, que ele aliás ainda não tinha visto e da qual não podia fazer uma
ideia exata, provou ser difícil demais de mover; ela ia tão devagar; e quando
afinal, quase frenético, reunindo todas as suas forças e sem respeitar nada, se
atirou para a frente, bateu com violência nos pés da cama, pois tinha
escolhido a direção errada; a dor ardida que sentiu ensinou-lhe que
justamente a parte inferior do seu corpo era no momento, talvez, a mais
sensível de todas. (FRANZ KAFKA, 1997, p. 09)
Essa reação de Gregor Samsa a sua metamorfose em um inseto, ou seja, a forma como
ele persiste em tentar realizar ações habituais, mesmo após a mudança abrupta que o impede
de executá-las, oferece uma perspectiva intrigante para compreender a complexidade
psicológica e a adaptação do protagonista diante da transformação. A análise hermenêutica
dessa situação revela a complexidade da condição humana diante de mudanças abruptas e
desafiadoras. A resiliência de Samsa em tentar se comportar como antes pode ser vista como
uma forma de enfrentar a adversidade e buscar uma sensação de normalidade, o que ressalta
não apenas a adaptação psicológica do personagem, mas também oferece ao leitor uma lente
para compreender a experiência humana diante de mudanças drásticas e desconcertantes.
Ao interpretar essa ação do personagem, o leitor pode atribuir outras múltiplas
camadas de significado. Outro exemplo seria essa persistência sendo interpretada como uma
tentativa de preservar sua identidade e conexão com sua vida anterior, apesar da nova forma
física. Isso relacionado à teoria hermenêutica de Ricoeur, enfatiza a importância do leitor na
interpretação do texto, pois é através das experiências individuais e da relação pessoal com a
obra que diferentes interpretações emergem.
Essa passagem oferece também ao leitor a oportunidade de se identificar intimamente
com o protagonista por meio da descrição detalhada, como enfatizado por Ricoeur. Essa teoria
hermenêutica enfatiza a natureza dialógica da compreensão, em que o leitor não apenas
recebe passivamente o significado do texto, mas também contribui ativamente para sua
interpretação e atribuição de significado. Ricoeur, portanto, valoriza a interpretação como um
processo criativo e ativo, no qual a interação entre o texto e o leitor desempenha um papel
fundamental na construção dos significados e na compreensão profunda de uma obra.
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O sentido de um texto não está por detrás do texto, mas à sua frente. Não é
algo de oculto, mas algo descoberto. [...] Compreender um texto é seguir o
seu movimento do sentido para a referência: do que ele diz para aquilo que
fala. (PAUL RICOEUR, 1976, p. 99)
CAPITALISMO E A SOLIDÃO
Se não me contivesse, por causa dos meus pais, teria pedido demissão há
muito tempo; teria me postado diante do chefe e dito o que penso do fundo
do coração. Ele iria cair da sua banca! Também, é estranho o modo como
toma assento nela e fala de cima para baixo com o funcionário — que além
do mais precisa se aproximar bastante por causa da surdez do chefe. Bem,
ainda não renunciei por completo à esperança: assim que juntar o dinheiro
para lhe pagar a dívida dos meus pais — deve demorar ainda de cinco a seis
anos — vou fazer isso sem falta (FRANZ KAFKA, 1997, p. 06-07)
dívidas familiares. Esta dinâmica não só ressalta a responsabilidade que ele assume por seus
entes, mas também evidencia como o sistema capitalista explora essa devoção e sacrifício
pessoal em prol do sustento financeiro familiar.
O sacrifício de Gregor Samsa, em sua dedicação exclusiva ao sustento da família, ecoa
a ideia de Marx e Engels expressa no "Manifesto do Partido Comunista". Segundo eles, a
burguesia, classe dominante na sociedade capitalista, usurpa a liberdade individual ao
transformar o valor pessoal das pessoas em mera mercadoria, subjugando-as ao valor de troca.
Essa visão denota uma crítica contundente à transformação das liberdades individuais,
conquistadas ao longo do tempo e garantidas, em uma única e implacável liberdade: a
liberdade de comércio.
Esse moço não tem outra coisa na cabeça a não ser a firma. Eu quase me
irrito por ele nunca sair à noite; agora esteve oito dias na cidade, mas passou
todas as noites em casa. Fica sentado à mesa conosco e lê em silêncio o
jornal ou estuda horários de viagem. É uma distração para ele ocupar-se de
trabalhos de carpintaria. (FRANZ KAFKA, 1997, p. 13)
A afirmação de Lukács sobre o homem não se sentir solitário como único portador da
substancialidade destaca a importância das relações sociais e estruturas coletivas, como amor,
família e Estado, que são consideradas "substanciais" e "plenas de substância". No entanto, a
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quando nesse momento alguma coisa, atirada de leve, voou bem ao seu lado
e rolou diante dele. Era uma maçã; a segunda passou voando logo em
seguida por ele; Gregor ficou paralisado de susto; continuar correndo era
inútil, pois o pai tinha decidido bombardeá-lo. Da fruteira em cima do bufê
ele havia enchido os bolsos de maçãs e, por enquanto sem mirar direito, as
atirava uma a uma. As pequenas maçãs vermelhas rolavam como que
eletrizadas pelo chão e batiam umas nas outras. Uma maçã atirada sem força
raspou as costas de Gregor mas escorregou sem causar danos. Uma que logo
se seguiu, pelo contrário, literalmente penetrou nas costas dele; Gregor quis
continuar se arrastando, como se a dor surpreendente e inacreditável pudesse
passar com a mudança de lugar; mas ele se sentia como se estivesse pregado
no chão e esticou o corpo numa total confusão de todos os sentidos.
(FRANZ KAFKA, 1997, p. 42-43)
REFERÊNCIAS
DA SILVA, João Gilberto Turbiani. Sobre o homem cindido: uma leitura da Teoria do
romance, de György Lukács. 2014. Tese de Doutorado. Universidade Federal de São Paulo.
RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação, trad. Arthur Mourão, Edições 70, 1976.