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Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”

Faculdade de Ciências e Letras de Assis

Leitura de Autores Brasileiros Contemporâneos


Professor Dr. João Luís Ceccantini

Giovanna Coelho de Oliveira

METAMORFOSEANDO A LUA CRESCENTE EM AMSTERDÃ:


um olhar analógico para o surreal na obra de Lygia Fagundes Telles e Franz Kafka.

ENSAIO

Assis – SP
2017
Desde os mais remotos tempos, o homem sempre se viu em posição de fascínio em relação a
narrativas míticas. No século XX, o impactado gerado pelo livro “A metamorfose”, escrito por Franz Kafka
faz com que a lógica ceda de vez sua posição para o absurdo, visto que o processo de mutação física sofrida
pelo protagonista aparentemente, não possui uma explicação lógica. Lygia Fagundes Telles, admiradora do
autor tcheco, comenta:

“[...]. O caos estava na forma de apresentação do problema, não na essência. Caos na pele do
homem transformado em inseto, caos nas andanças do inocente transformado em vítima, caos na
superfície, nunca no fundo. Como a loucura é que vestia a lucidez [...]. (TELLES, 1980)”

A literatura contemporânea em geral, exprime a metamorfose física através do gênero fantástica, isto
é, obras recheadas de ambiguidade, que fazem com que o leitor fique imerso em uma certa estranheza e
incerteza, criando um “ponto de interrogação” que o faça questionar a veracidade dos fatos. Segundo
FURTADO (1980), o fantástico pode ser definido a partir da seguinte perspectiva:

“Um texto só se inclui no fantástico quando, para além de fazer surgir a ambiguidade, a mantém ao
longo da intriga, comunicando-a às suas estruturas e levando-a a refletir-se em todos os planos do
discurso (FURTADO, 1980, p. 40).”

Dentro dos referidos parâmetros, verifica-se que o estilo criado pela autora brasileira Lygia Fagundes
Telles se estrutura a partir de relatos fantásticos, mais especificamente, de processos metamórficos. Para
Vera Maria Tietzmann Silva:

“A temática da transformação, nos contos de Lygia Fagundes Telles, não se restringe apenas à
efabulação. O tema da metamorfose, compreendido segundo o modelo ovidiano de efetiva
transformação corporal, ocorre apenas esporadicamente [...]. Contudo, tomado em um sentido mais
abrangente, ele atua como uma espécie de “leitmotiv”, percorrendo a obra toda, seja no desenrolar
dos acontecimentos ou no desenvolver psíquico dos personagens [...]. (SILVA, 1985)”

Ao observar os contos de Lygia Fagundes, o processo de metamorfose física, se faz presente em


poucas obras e, somente o conto “Lua crescente em Amsterdã” faz de fato, referência ao zoomorfismo,
causando dúvida sobre a forma real das personagens, onde se percebe que, desde o início até o fim da
narrativa, o leitor é embalado pela emoção e angústia, gerada devido a relação decadente do jovem casal,
onde a repulsa do amor e as consequências do término do relacionamento são as bases do diálogo das
personagens, como pode ser ilustrado nos seguintes trechos:

“- [...]. Vem querida, ali tem um banco.


- Não me chame mais de querida.
- Está bem, não chamo.
- Não somos mais queridos, não somos mais nada (TELLES, 1998, p. 60; grifo nosso).”
“– Nos sujamos quando acabou o amor. Agora vem, vamos dormir naquele banco. Vem, Ana
(TELLES, 1998, p. 62; grifo nosso).”

“– Estou ouvindo uma música, a gente podia dançar. Se a gente se amasse a gente saía dançando”
(TELLES, 1998, p. 63; grifo nosso).”

Em função da situação angustiante do casal, estes exprimem o desejo de se transformarem em


animais e, é este desejo que cria o paradoxo maior do conto, manifestando diversas vezes aspectos de
zoomórficos:

“– Minhas unhas eram limpas. E agora esta crosta – gemeu ela examinando os dedos em garra
(TELLES, 1998, p. 61; grifo nosso).”

“– Abriu os braços. Tão oco. Leve. Poderia sair voando pelo jardim, pela cidade. - E onde estão os
outros? Para a viagem? Você não disse que era aqui o reino deles? (TELLES, 1998, p. 62; grifo
nosso).”

“– A voz dela também mudara: era como se viesse do fundo de uma caverna fria (TELLES, 1998, p.
63; grifo nosso).”
Portanto, o desfecho é apresentado como uma incógnita: as protagonistas se transformam em
animais ou elas nem ao menos eram humanas? Deixando ao leitor apenas a suspeita quanto à realização da
metamorfose, que atua sobre as personagens principais. Atentando não só para as entrelinhas do texto, mas
também no simbolismo das imagens, é possível vislumbrar uma analogia e/ou influência das obras de Franz
Kafka e, em particular, da novela “A metamorfose”.

Kafka, em seus livros, traz a concepção de metamorfose constantemente empregada ao abordar


assuntos como mudanças (sejam estas físicas, como é observado em “A metamorfose” ou psíquicas),
tolerância às “situações socialmente intoleráveis” e de como encarar a barbaridade que é a existência
humana, fazendo jus ao adjetivo "Kafkiano" – sinônimo de algo encarado como absurdo, surreal – aspectos
estes que revelam o caráter fantástico do conto de Lygia Fagundes.

A habilidade de tornar fatos impossíveis em realidades plausíveis é uma característica essencial do


legado kafkiano, como por exemplo, acordar transformado em um inseto gigante ganha sentido em “A
Metamorfose” – ou ser convertido em pássaro e borboleta em uma viagem para Amsterdã. Isto porque os
contos de Kafka retratam cenas em que o homem se vê enredado numa teia de situações absurdas que mais
parecem um labirinto sem saída; elemento visível em Lua crescente em Amsterdã, onde local em que a
narrativa se desenrola é um jardim, que supostamente, passaria a impressão de uma ordenação vegetal, que
visa promover a harmonia e o belo, entretanto, a forma em que tal palavra é usada, cria a ambiguidade, visto
que a situação degradante e selvagem do casal acaba por promover sua total subversão.

Por isto, a escrita imprecisa e contraditória de ambos literatos faz com que o enigma seja o cerne do
horror, onde os leitores são convidados a conhecer o universo particular das personagens, tal como ocorre
em “Lua crescente em Amsterdã”, no qual, através de situações improváveis, é possível adentrar na
subjetividade das mesmas, sentindo o desespero que os move e modifica, cujo fato também pode ser
observado em “A metamorfose”, onde se faz presente o embate entre os protagonistas, revelando a
incapacidade humana e a sua instabilidade diante a vida, representando seres mergulhados em um universo
aterrador, frio e burocrático.

Trata-se, por isto, de uma interpretação válida a relação entre as duas obras citadas, levando em
conta a crueldade e o estilo meticuloso e intimista com o qual narram, de uma maneira nada comum, eventos
que muitas vezes seriam rotineiros, tal como o encontro de um casal no parque, ou a trajetória de vida de um
caixeiro-viajante, visando sempre o meio-termo entre o bom senso movido pela razão e um intenso tom
sarcástico.

Os aspectos metamórficos contidos nestes dois autores de tendência surrealista, que ultrapassam a
fronteira do real, confrontando seus devidos enredos com verdadeiros enigmas, exaltando de tal maneira, a
metamorfose, trazem um importante raciocínio, onde as ditas transformações – não necessariamente sempre
físicas e de caráter zoomórfico – exprimem uma ideia de valores, que podem ser aplicados nos mais distintos
contextos da vida humana. Sobre o tema, Vera Maria Tietzmann Silva diz:

“Metamorfoseiam-se hoje, mais do que outrora, os valores e os costumes. O bem e o mal, antes tão nítidos,
agora confundem-se (...). Em sua perplexidade podemos ver espelhada um pouco da nossa, também
desnorteados que tantas vezes nos achamos neste mundo de valores ambíguos. (SILVA, 1980)”

Por fim, ao adentrar no tema fantástico e, mais especificamente nas questões metamórficas – quesito
presente desde a antiguidade – observa-se que esta, muitas vezes ambígua e inexplícita, regularmente usada
pela ficção absurda, faz-se recorrente no “corpus” de Lygia Fagundes Telles, dialogando com outros autores
que, juntamente com ela, fazem com que estes recursos ganhem significados reais, concretos e contribuintes
para o entendimento do leitor sobre a constante mutação pela qual o ser humano encontra-se imerso, afinal,
todos são compostos de mudança, como já dizia Camões, em meados de 1500.
 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

TELLES, LYGIA FAGUNDES. Lua crescente em Amsterdã. In: Mistérios. 2. Ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1981. P. 58-64.

KAFKA, FRANZ. A Metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

SILVA, VERA MARIA TIETZMANN. A metamorfose nos contos de Lygia Fagundes Telles. Rio de
Janeiro: Presença, 1985.

FURTADO, FILIPE. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros horizonte, 1980.

CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA: Lygia Fagundes Telles. Instituto Moreira Sales, São
Paulo, n. 5, mar. 1998.

SAMPAIO, AÍLA MARIA LEITE. Os motivos da narrativa fantástica nos contos de Lygia Fagundes
Telles. Revista de humanidades UNIFORM, Fortaleza, v.30, n. 2, 2015. Disponível em: >
http://periodicos.unifor.br/rh/article/view/4784 <. Acesso em 01 dez. 2017

RIBEIRO, JULIANA SEIXAS. Mistérios de Lygia Fagundes Telles: uma leitura sob a óptica do
fantástico. [s/n]. 2008. Disponível em: > http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/270274 <.
Acesso em 01 dez. 2017

CARONE, MODESTO. O PARASITA DA FAMÍLIA: SOBRE A METAMORFOSE DE KAFKA.


Disponível em > http://www.periodicos.usp.br/ls/article/download/23629/25665 <. Acesso em 01. Dez.2017

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