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A VERDADE DAS MENTIRAS

 O objetivo dessa aula é pensar, a partir de Mario Vargas Llosa, as relações entre
verdade e ficção, não somente nos romances e na literatura, mas das artes e
humanidades de modo geral.
 Para Llosa, essa questão se coloca a partir de sua própria trajetória como
escritor. Vários de seus romances se passam em um pano de fundo histórico ou
mesmo se baseiam em fatos reais. Exemplo disso é Tia Júlia e o Escrivinhador.
O relato ficcional de Llosa incomodou tanto a ponto de Júlia escrever um outro
livro que pretendia relatar o que de verdade havia no romance de Llosa.
 Para a América Latina essa discussão é extremamente relevante, uma vez que a
ficção é um dos aspectos essenciais para a produção das identidades e
imaginários acerca do continente. Como aponta Llosa, a conquista e a
colonização da América são operadas a partir de um esforço ficcional, no qual as
imagens que povoavam a imaginação europeia se plasmaram na interpretação da
realidade da América.
 Nesses termos, para Llosa, os sonhos dos europeus foram transladados para a
América, de modo que o continente passa a ser interpretado como o lugar do
maravilhoso e da utopia. Ao longo do tempo, essa visão será impulsionada pelos
próprios ensaístas latino-americanos, entre o trauma e a utopia.
 Por outro lado, há também uma visão da selvageria americana impulsionada por
artistas anti-espanhois, como Theodor de Bry, que contribuíram para gerar e
lenda negra.
 O problema desse tipo de abordagem é que o romance e ficção, por mais que se
baseiem em fatos reis ou mesmo se utilizem de eventos e fatos históricos, jamais
poderão falar a verdade. Isso ocorre porque o discurso característico das obras
ficcionais é o da realidade transposta em linguagem. Nessa transposição, a
realidade adquire novas tonalidades, sendo expressa não mais a partir de
experiências, mas em palavras.
 Essa definição faz com que Llosa passe a investigar as diferenças entre a escrita
ficcional e as escritas de historiadores e jornalistas. O historiador precisa se ater
ao real. Embora jamais seja capaz de exprimir completamente o real, seus
métodos são controlados e precisam estar conectados as fontes em uma narrativa
ordenada que crie o máximo possível de um efeito de verossimilhança.
 Na ficção, ao contrário, há um outro tipo de aproximação ao real. Para Llosa, o
discurso ficcional aparece como uma releitura do real, no qual há a liberdade de
se adicionar vários aspectos que serão ordenados dentro uma narrativa. Nesse
sentido, a ficção termina por torna a vida circunscrita a um determinado espaço e
tempo que existem somente por meio daquela narrativa.
 Deste modo, a experiência da leitura significa uma imersão nesse universo
específico que se produzi no interior do livro a partir da linguagem, de modo
que, a seu término, ocorre o retorno para o real. Todavia, esse retorno não
produz uma realidade idêntica a anterior. Na medida em que surge do
inconformismo com a vida, a ficção tem a capacidade de produzir novas
possibilidades para a existência humana, ampliando nossas experiências e
redefinindo nossas expectativas.
 Isso significa, na perspectiva de Llosa, que a ficção possui um caráter
essencialmente aberto e contestador. A existência do romance, do modo como
conhecemos hoje, nasce, em sua análise, da própria modernidade. Na medida em
que as sociedades se tornaram cada vez mais laicas, houve um vácuo de
explicações que, em partes, foi preenchido pelas narrativas ficcionais que, a
partir de então, puderam povoar as imaginações.
 Portanto, para o autor, a ficção se conecta decisivamente com a liberdade. A
existência da ficção, ao se diferenciar da história, marca a liberdade humana de
imaginar e produzir outras versões da realidade que podem, eventualmente,
chocar-se contra os fundamentos do poder político. Nesses termos, a supressão
da ficção ou mesmo seu encarceramento nas tramas de uma narrativa histórica
aparecem como sinal de uma experiência totalitária que, incapaz de tolerar a
abertura e pluralidade das sociedades, trabalha para restringir o acesso a ficção.
 Por fim, as verdades das quais falam as ficções não dizem respeito às verdades
produzidas por outras formas de aproximação do real. Tais verdades aparecem
na medida em que aquele universo, ficcional por completo, é capaz de convencer
seus leitores e espectadores.
 A partir disso é possível pensar outras formas de se ler e estudar um romance.
Não se trata de buscar em suas palavras a realidade, mas de compreender como
o autor moldou tal realidade a partir de suas escolhas narrativas e estéticas. É
preciso perceber o romance ou a obra de ficção como um universo em si mesmo
que se relaciona de modo tenso e ambíguo com o real.
 Nesse sentido, é possível que as obras literárias estão duplamente condicionadas
temporalmente. Em primeiro lugar, há o tempo histórico do autor, no qual ele
vivencia suas experiências e há o tempo da obra, no qual essas experiências são
transpostas em linguagem e se tornam ficção. Assim, trata-se de compreender
como os discursos ficcionais mobilizam a realidade e recriam.
 Podemos pensar aqui os casos dos romances naturalistas de Zola e Azevedo.
Embora criam estar produzindo uma análise quase científica a partir da
literatura, tais autores criaram seus universos ficcionais e ordenaram suas
narrativas a partir de um tempo e espaço determinados, nos quais o personagens
desenvolviam suas vidas de acordo com as possibilidades pensadas pelo seu
autor.
 O mesmo processo pode ser aplicado as demais artes, como a pintura e a
fotografia. Aqui vamos analisar dois casos: uma fotografia de Jânio Quadros e o
quadro O grito do Ipiranga de Pedro Américo.

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