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A RELAÇÃO ENTRE A HISTÓRIA E A LITERATURA

O texto de José Saramago traz uma proposta de romance histórico, no qual o texto

questiona as relações existentes entre a história e a literatura, mostrando que a primeira lida com

a verdade (pretensa) dos fatos objetivos, enquanto o texto literário - resultante de um processo

de criação ficcional - é capaz de mostrar a realidade de uma maneira mais rica, múltipla e

complexa.

É importante observar que, a narração e o diálogo entre os personagens se mesclam,

sem sinais visíveis de diferenciação, a não ser o uso de maiúsculas no corpo do texto, que indica

que alguém está falando e também que o romance, a rigor, se compõe de três histórias do Cerco

de Lisboa (levado a cabo por D. Afonso Henriques em 1147 contra os mouros que dominavam a

cidade desde o século VIII): a do historiador, a do revisor e protagonista Raimundo da Silva, e a

do próprio narrador da obra.

Já no plano temporal, temos a evocação do passado histórico, sob vários ângulos, e a

do presente em Lisboa (fins do ano de 1980).

Na verdade, o desencadeamento da ação narrativa começa pelo NÃO que o modesto

revisor de uma editora lisboeta (Raimundo) insere em um trabalho historiográfico, modificando

radicalmente o sentido da frase: "Os cruzados NÃO ajudaram os portugueses no cerco da

cidade." Este NÃO significará para Raimundo um gesto de rebelião não só contra o texto, mas

contra sua própria vida medíocre, abrindo-lhe a possibilidade de escrever uma outra versão do

Cerco de Lisboa e também aproximar-se de Maria Sara, a diretora editorial, por quem havia se

apaixonado.

Em sua narrativa pessoal do Cerco de Lisboa, Raimundo cria personagens que, de

alguma forma, traduzem suas próprias fantasias, em especial o amor por Maria Sara. Por isso é

que surge em seu texto a dupla amorosa Mogueime (soldado português, espécie de alter-ego do

revisor) e Ouroana, que é concubina ("barregã") e vive sob a proteção de um cruzado alemão

(Henrique). Além de expor indiretamente sua subjetividade, Raimundo - através da ficção - põe

em evidência indivíduos que representam as classes populares, totalmente ausentes do texto

historiográfico, e com isso comprova que a literatura tem um poder de revelação do passado tão

(ou mais) significativo que o da história.


Se a Literatura e a História são, simultaneamente, práticas sociais e atividades

interpretativas, então uma das formulações que a função tempo assume no romance será a

do romance de cunho historiográfico, concebendo a arte romanesca como o espaço

privilegiado no qual se desenvolve a relação entre fato e ficção, promovendo o

entrecruzamento dos níveis temporais narrativos como lugares do discurso e como

formulações dotadas de uma radicalidade formal e temática.

Se no romance histórico convencional encontramos um apego ou inclinação a criar

um discurso estritamente “realista” em relação ao universo histórico, procurando construir

uma atmosfera imaginativa a mais próxima possível do que teria efetivamente acontecido

em termos históricos, já, em Saramago, detecta-se uma liberdade inventiva dialogando com

a História, mas que não se deixa aprisionar, pois não exprime uma correspondência tal e

qual entre o enunciado ficcional e o dado histórico , ou seja, o autor “move-se”

desagregando a ordem e construindo outras ordens possíveis.

Trazendo um significado, pode-se considerar que, basicamente a ficção

contemporânea e o romance saramaguiano ao apropriar-se de figuras, imagens, eventos e

acontecimentos oriundos do universo histórico, realiza muito mais do que um simples

resgate.

Pode-se dizer que, a narrativa não se impõe como “um” discurso sobre a História,

mas como espaço privilegiado de convivência de discursos, de vozes e de referências sobre

o passado, os quais trazem o selo da pluralidade.


Na relação entre a história e a literatura es tabelece-se, assim, a confecção de um discurso

artístico que se relaciona, se aproxima e dialoga com o enunciado histórico, mas que abraça a

possibilidade de dizer ou de falar dessa História de uma outra maneira, com uma ampla

dose de liberdade e de inventividade.

Na esteira dessa produtividade, o texto gerado perverte a ordem preconizada pelo

discurso histórico que lhe impulsionou a ação e dá à ficção uma ordem outra, mas

igualmente possível permitindo ao leitor entende-la como uma Ficção que afirma-se como

jogo, envolvendo o autor, o leitor e o universo que o presidiu, como um exercício lúdico, ela

pode adotar uma independência mais ampla em relação ao real, subvertendo-o,

modificando-o de acordo com as intencionalidades escriturais.


Márcia Regina Alves da Cruz

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