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RESUMO
O presente artigo tem por objetivo discutir como José Saramago, ao ficcionalizar o contexto sócio histórico,
tanto do século XVIII quanto da contemporaneidade, faz escolhas de modalidades narrativas que
lhepermitem questionar a época representada. Em Memorial do convento (1982), o autor opta pela
metaficção historiográfica para questionar os fatos históricos ocorridos durante o reinado de D. João V e,
em As intermitências da morte (2005), José Saramago faz uso de um gênero híbrido para criticar a
sociedade contemporânea e, ao mesmo tempo, mostrar que, no século XX, uma mesma obra pode
comportar vários subgêneros. Desse modo, a escolha dos gêneros, por José Saramago, desvenda o pensar
saramagueano acerca da sociedade portuguesa e propõe uma reflexão sobre o fazer literário na
contemporaneidade.
ABSTRACT
This article aims to discuss how José Saramago, to fictionalize the socio-historical context of both the
eighteenth century and the contemporary, makes choices of narrative modes that allow you to question
the time represented. In Memorial of the Convent (1982), the author opts for historiographic metafiction
to question the historical events during the reign of King John V, The saramagueano think about the
Portuguese society and proposes a reflection on flashes of death (2005), José Saramago makes use of a
hybrid genre to criticize contemporary society and at the same time show that, in the twentieth century,
the same work may encompass several subgenres. Thus, the choice of genres, by José Saramago,
untraveled contemporary literary writing.
Introdução
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Docente do curso de Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE e Doutoranda no
Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
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O gênero lírico ( forma em que o escritor é mais subjetivo e que ocorre quando
resulta de uma relação intuitiva ou interiorizada do escritor com o mundo);
O gênero narrativo (forma pela qual o escritor cria uma impressão de
objetividadee que se apóia numa dinâmica temporal, com uma sucessão de
acontecimentos e transformação dos fatos contados);
O gênero dramático (forma na qual o escritor se esconde por trás da
representação e da fala das personagens que ele criou). (ABDALA JUNIOR,
1995, p.12),
buscando elevá-los enquanto seres humanos. Com o passar do tempo, essa ideia foi
Devo acrescentar que tenho muitas vezes prazer em ler – quando são bem
feitos e escritos – os romances históricos e que reconheço aos seus autores a
liberdade de fantasia que lhes é devida. Mas naturalmente que, se pedirem a
minha opinião de historiador, não identifico com história as liberdades aí
tomadas. E porque não um setor literário da história-ficção na qual, respeitando
os dados de base da história – costumes, instituições, mentalidades – fosse
possível recriá-las, jogando com o acaso e com o événementiel? (LE GOFF,
1996,p. 50).
escritores românticos valorizam os heróis nacionais, voltando-se para a Idade Média por
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ser o período de formação das nações europeias. O romance Ivanhoé, escrito por Walter
Scott e publicado em 1819, é considerado a primeira obra do novo gênero. Desde então,
Quando Sete –Sóis chegou a Aldegalega estava anoitecendo. Comeu umas sardinhas fritas,
bebeu uma tigela de vinho e, não lhe chegando o dinheiro para a pousada, tão-só, à escassa, para
a passagem amanhã, meteu-se num telheiro, debaixo de uns carros, e aí dormiu, enrolado no
capote, mas com o braço esquerdo de fora e o espigão armado. (SARAMAGO, 1996,p. 38)
Baltasar é o ex-soldado que, agora, luta por sobrevivência e quase não questiona os fatos a sua
volta. A Guerra de Sucessão é apenas mencionada para ambientar o soldado que volta da batalha, fato
comum no século XVIII, em Portugal. O fato histórico que motiva a escrita do romance de José
Saramago não é o relato da guerra, mas sim a construção do Convento de Mafra. O rei D. João V promete
construir o convento na cidade de Mafra, caso seja agraciado com um herdeiro que venha sucedê-lo na
coroa portuguesa. Tal promessa é feita por causa da influência de um frei que garante ter recebido a
revelação de que Deus concederia um filho ao rei se o convento fosse construído, como se pode notar
na passagem do romance:
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Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar
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O discurso do frei tece a manipulação dos fatos, pois ele afirma ter conhecimento o que irá
acontecer, impõe a condição de que o convento deve ser da ordem dos franciscanos, mas não tem
nenhuma explicação plausível para o que diz saber sobre o futuro herdeiro do rei, que resolve acatar a
recomendação de frei António:
Então D. João, o quinto de seu nome, assim assegurado sobre o mérito do empenho, levantou a
voz para que claramente o ouvisse quem estava e o soubessem amanhã cidade e reino, Prometo
pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a
rainha me der um filho no prazo de um ano a contar do dia em que estamos, (SARAMAGO, 1996,
p.. 14).
A influência dos líderes religiosos está ligada também à construção da passarola, por Bartolomeu
de Gusmão, uma espécie de protótipo do balão. Frei Bartolomeu Lourenço de Gusmão, embora tenha
nascido no Brasil, fazia parte da corte portuguesa por ser secretário particular de D. João V. Por causa de
suas ideias inovadoras sobre os dogmas católicos e de suas invenções, o frei foi acusado de judaísmo e
perseguido pelo Tribunal da Santa Inquisição. No romance, ele revela o pouco espaço que coube ao
pensamento científico na sociedade portuguesa, pois, na época, a ciência era considerada uma ameaça
aos domínios da Igreja Apostólica Romana. Por força da pressão inquisitorial, depois de pronta a
máquina de voar, frei Bartolomeu enlouquecido foge e abandona involuntariamente seus projetos
científicos.
Temos de fugir, o Santo Ofício anda à minha procura, querem prender-me, [...] Vamos fugir na
máquina, depois como subitamente assustado, murmurou quase inaudivelmente, apontando a
passarola, Vamos fugir nela, Para onde, Não sei, o que é preciso é fugir daqui. Baltasar e Blimunda
olharam-se demoradamente, Estava escrito, disse ele, Vamos disse ela. (SARAMAGO, 1996,p.
193)
A perseguição ao frei não acontece apenas por causa da máquina de voar, embora esse fosse o
motivo principal, mas também por seu modo diferente de pensar a religião. Um de seus sermões, em
que ele discute acerca da trindade de Deus, afirmando que Adão poderia protestar contra o criador que
não lhe deu a chance de arrepender-se, uma vez que, por ter cometido apenas um pecado foi expulso
do paraíso, enquanto às gerações posteriores foi concedida a possibilidade do perdão por meio do
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sacramento. O argumento usado contra o frei era a ideia de que, para construir a passarola, o padre
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Regressou o Padre Bartolomeu Lourenço da Holanda, se sim ou não trouxe o segredo alquímico
do éter, mais tarde o saberemos, ou não tem esse segredo que ver com alquimias de tempos
passados, porventura uma simples palavra bastará para encher as esferas da máquina voadora,
pelo menos Deus não fez mais que falar e tudo com esse poucose criou, assim ensinaram ao
padre no seminário de Belém da Baía, assim lho confirmaram, por outras argumentações e
estudos mais avançados , na Faculdade de Cânones de Coimbra, antes de fazer subirão ar os seus
balões primeiros, (SARAMAGO, 1996, p. 115).
O romance enfatiza a manipulação da Igreja sobre os fatos que ameaçam seu poder. Os
inquisidores, ao invés de aceitarem a possibilidade da criação de uma máquina para voar e, com isso,
discutir com seus fiéis a capacidade inventiva com que Deus dotou o homem, preferem condenar o
padre inventor. No entanto, ao chegar a Mafra, Baltasar e Blimunda são surpreendidos com o fato de
que havia sido organizada uma procissão para agradecer a Deus pela passagem do espírito santo sobre
a construção do convento dos franciscanos:
Issoaqui é a serra do Barregudo, lhes disse um pastor, légua andada, e aquele monte além, muito
grande, é Monte Junto. Levaram dois dias para chegar a Mafra, depois de um largo rodeio, por
fingimento de que vinham de Lisboa. Andava procissão na rua, todos dando graças pelo
prodígioque fora Deus servido fazer, mandando voar por cima das obras da basílica o seu
espírito santo. (SARAMAGO, 1996,p. 207)
E esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e
revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento, que ouço vozes do céu, mas
explicaram-me que era efeito demoníaco, que sei que posso ser santa como os santos o são, ou
ainda melhor, pois não alcanço diferença entremim e eles, mas repreenderam-me de que isso é
presunção insuportável e orgulho monstruoso, desafio a Deus, aqui vou blasfema, herética,
temerária, amordaçada para que me ouçam as temeridades, as heresias, e as blasfémias,
condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola , (SARAMAGO,
1996, p. 53-54)
de uma instituição religiosa preocupada em manter seus privilégios sem importar-se com o modo
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Segundo Arnaut (2011, p.26), o romance fábula tem por característica, além da
ressimplificação da estrutura da narrativa, a presença do cômico, ou seja, “uma mais
englobante comicidade e, por conseguinte, uma maior leveza, tanto na escolha dos
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acontecimentos que são postos à boca de cena das narrativas quando no modo como se
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constrói o relato”.
Poderia ter-se deixado ficar por aqui, o que, levando em conta as dificuldades
da situação, já seria motivo para agradecer, mas o conhecido impulso de
recomendar tranquilidade às pessoas a propósito de tudo e de nada, de as
manter sossegadas no redil seja como for, esse tropismo que nos políticos, em
particular se são governo, se tornou numa segunda natureza, para não dizer
automatismo, movimento mecânico, levou-o a rematar a conversa da pior
maneira, Como responsável pela pasta da saúde, asseguro a todos quantos me
escutam que não existe qualquer motivo para alarme, Se bem entendi o que
acabo de escutar, observou um jornalista em tom que não queria parecer
demasiado irónico, na opinião do senhor ministro não é alarmante o facto de
ninguém estar a morrer, Exacto, embora por outras palavras, foi isso mesmo o
que eu disse, Senhor ministro, permita-me que lhe recorde que ainda ontem
havia pessoas que morriam e a ninguém lhe passaria pela cabeça que isso fosse
alarmante. É natural, o costume é morrer, e morrer só se torna alarmante
quando as mortes se multiplicam, uma guerra, uma epidemia, por exemplo. Isto
é, quando saem da rotina, Poder-se-á dizer assim, Mas, agora que não se
encontra quem esteja disposto a morrer, é quando o senhor ministro nos vem
pedir que não nos alarmemos, convirá comigo que, pelo menos, é bastante
paradoxal, Foi a força do hábito, reconheço que o termo alarme não deveria ter
sido chamado a este caso, Que outra palavra usaria então o senhor ministro,
faço a pergunta porque, como jornalista consciente das minhas obrigações que
me prezo de ser, me preocupa empregar o termo exacto sempre que possível.
Ligeiramente enfadado com a insistência, o ministro respondeu secamente, Não
uma, mas quatro, Quais, senhor ministro, Não alimentemos falsas esperanças
(SARAMAGO, 2005, p. 16-17).
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As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos, não têm outra
justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como do pão para a
boca. Os delegados das religiões não se deram ao incomodo de protestar. Pelo
contrário, um deles, conceituado integrante do sector católico, disse, Tem razão,
senhor filósofo, é para isso mesmo que nós existimos, para que as pessoas
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levem a vida toda com o medo pendurado ao pescoço e, chegada a sua hora,
acolham a morte como uma libertação, (SARAMAGO,2005, p.36).
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Dizia que qualquer católico, e o senhor não é uma exceção, tem obrigação de
saber, que sem ressurreição não há igreja, além disso, como lhe veio à cabeça
que deus poderá querer o seu próprio fim, afirmá-lo é uma ideia absolutamente
sacrílega, talvez a pior das blasfémias, (SARAMAGO, 2005, p. 18).
paredes caiadas ao longo das quais se arrumam, entre teias de aranha, umas
quantas dúzias de ficheiros com grandes gavetões recheados de verbetes.
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Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair
de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, por isso é que tinha joelhos, e
pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos se escondia, e uns
ombros que tremiam não se sabe porquê, chorai não será, não se pode pedir
tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma
delas que seja sua. Assim como estava, nem visível, nem invisível, nem
esqueleto, nem mulher, levantou-se do chão como um sopro e entrou no quarto.
(SARAMAGO, 2005, p. 153)
A morte, porém, esta que se fez mulher, tira da bolsa uns óculos escuros e com
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eles defende os seus olhos agora humanos dos perigos de uma oftalmia mais do
que provável em quem ainda terá de habituar-se às refulgências de uma manhã
Em qualquer das situações a entrega da carta seria fácil, digamos mesmo que
ultrajantemente fácil, e isto era o que não agradava à morte. o homem não a
conhecia a ela, mas ela conhecia o homem, passara uma noite no mesmo quarto
que ele, ouvira-o tocar, cousas que, quer se queira, quer não, criam laços,
estabelecem uma harmonia, desenham um princípio de relações, dizer-lhe de
chofre, Vai morrer, tem oito dias para vender o violoncelo e encontrar outro
dono para o cão, seria uma brutalidade imprópria da mulher bem-parecida em
que se havia tornado. o seu plano é outro. (SARAMAGO, 2005, p. 188)
violoncelista por duas vezes, mas não entrega a carta, pois está cada dia mais envolvida
por ele. Na última visita que faz ao homem, depois de desentendimentos e pedidos de
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desculpas,pede que ele toque para ela. O músico toca Bach e, ao terminar a música, os
Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha
deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. olhou em redor como se
estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida
entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada
em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. saiu para a cozinha, acendeu
um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar,
reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o
contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de
todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia
destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem
e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu
que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém
morreu. (SARAMAGO, 2005, p. 207)
Por meio da narrativa, seja ela caracterizada por elementos do romance fábula,
reflexões filosóficas ou elementos do realismo mágico, José Saramago discute o quão
necessária é a morte para a humanidade. Segundo Ana Paula Arnaut (2011) e, também,
para Aguiar e Silva (1976), isso acontece porque na contemporaneidade uma mesma
obra pode comportar vários subgêneros, o que torna determinados romances híbridos.
Considerações finais
constatação de que nem tudo o que pertenceu ao passado foi realmente repudiado pela
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nova geração.
REFERÊNCIAS
Página
AGUIAR E SILVA, Vitor Manoel de. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 1976.
ARNAUT, Ana Paula. Novos rumos na ficção de José Saramago: os romances fábula (As
intermitências da morte, A viagem do elefante, Caim). Revista Ipotesi, Juiz de Fora, v.15,
nº 1, p.25-37, jan/jul, 2011
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In:______. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.222-234.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão, Irene Ferreira e Suzana
Ferreira Borges. 4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.