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A bondade, seja em termos morais, estéticos ou sociais, não se faz presente nos textos góticos. É
o vício que lhe interessa: os protagonistas são egoístas ou maus; as tramas envolvem decadência
ou crime. Seus efeitos, estéticos e sociais, são repletos de características negativas – não há
beleza, nem demonstrações de harmonia ou proporção. Deformados, obscuros, feios, lúgubres e
completamente avessos aos efeitos do amor, da afeição ou dos prazeres nobres, os textos góticos
inscrevem a repulsa, o ódio, o medo, a aversão e o terror. (BOTTING, 2014, p. 2. Tradução
minha.)
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Faça-se a ressalva que o próprio Alencar bebeu nas fontes góticas (cf. SÁ, 2010), e sua visão de mundo foi se
tornando cada vez mais sombria. Compare-se, a esse propósito, o desfecho utópico, mítico, de O Guarani (1857) com o
epílogo distópico, aporético, de O sertanejo (1875).
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estético. Tome-se, como exemplo, o que diz Roberto de Souza Causo, um dos principais estudiosos
da ficção especulativa brasileira, sobre Noite na Taverna e Macário:
(...) a carência da cor local (...) é um fato a apontar para uma postura detectável de negação da
realidade brasileira, e de qualquer intenção de agir sobre ela (IBID., p. 109).
Para a crítica e a historiografia do século XIX e da primeira metade do século XX, os temas
“mórbidos”, “crepusculares”, “lúgubres” e “macabros” (cf. OLIVEIRA, 2010) por elas
identificados na obra de Azevedo tinham uma causa e uma consequência claras: sua personalidade
sorumbática e sua alienação das questões pungentes da realidade nacional, respectivamente. João
Adolfo Hansen (1998, p. 9) notou que os dois “protocolos de leitura” que a crítica aplica a Álvares
de Azevedo, o político e o biográfico, expurgam sua obra ou pelo ponto de vista nacionalista –
“modismo, importação de ideias, ornamento oco, artificialismo que não reflete o próprio do lugar”
(IBID., p. 10) – ou pelo moralista – sem a mediação das convenções literárias com as quais sua obra
dialoga, o escritor ora é visto como “uma recalcada casta diva, ora um depravado Don Juan”
(IBID.).
O nexo causal entre vida e obra encontrado tanto pela crítica de orientação política quanto
pela de orientação biografista legou um vasto material de análises psicológicas e
pseudopsicanalíticas do homem Manuel Antônio Álvares de Azevedo 3 , mas pouco ajudou a
compreender a prosa do escritor Álvares de Azevedo. Quando muito, tais orientações mostram
como as narrativas do autor falham em contemplar as expectativas de arte da maior parte da crítica
literária brasileira, e raramente as avaliam como pertencentes a uma outra tradição estética.
O caso de Álvares de Azevedo serve para ilustrar como o Gótico, seja porque foi
compreendido como sintoma de distúrbios psicológicos de seus cultivadores, ou como algo
estrangeiro e alheio à realidade brasileira, foi posto à margem pelos Estudos Literários no Brasil.
Contudo, por ser a tradição gótica não apenas um estilo artístico, mas também uma visão de mundo
muito afinada com a modernidade, foi absorvida por poéticas afins à ideologia do nacionalismo em
literatura. Nesse sentido, a história do Gótico no Brasil tem muitos paralelos com a que ocorreu nos
EUA. A ausência, no continente americano, dos elementos que forneceram o pano de fundo inicial
do gótico europeu – a arquitetura medieval, as ruínas, o longo passado comum (do colonizador
branco, dos escravos negros, dos povos nativos) –, fez parecer que o gótico nada tinha a ver com a
escrita norte-americana, que lutava por se distanciar dos interesses e tradições da literatura da
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O artigo “Amor e medo”, de Mario de Andrade, é o corolário desse tipo de orientação crítica.
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metrópole (cf. GROOM, 2012, p. 112). Do mesmo modo, no gótico de Álvares de Azevedo, que
escrevia na alvorada pós-colonial de nossa literatura, o débito cultural com os países europeus é
inconteste. Mas uma outra sociedade se formava, uma outra geografia, outros conflitos e desafios,
dando forma a uma nova cultura: “As especificidades americanas representaram uma oportunidade
para um novo tipo de literatura, uma nova espécie de Gótico” (IBID., p. 114).
O escravismo – e os horrores a ele associados, como o racismo, a tortura, o assassinato, o
estupro – é uma das muitas molduras que a afluência gótica na literatura brasileira compartilha com
a norte-americana. Fernando Monteiro de Barros (2014), em artigo recente, aprofundou essa relação
entre os passados senhoriais dos dois países, ao estudar o espaço gótico da casa-grande em Gilberto
Freyre:
Gilberto Freyre, em sua obra de estreia, salienta as similitudes entre o etos do sul dos Estados
Unidos e o do passado senhorial do Brasil. Em seu prefácio à primeira edição de Casa-grande &
senzala, Freyre assinala que “a todo estudioso da formação patriarcal e da economia
escravocrata do Brasil impõe-se o conhecimento do chamado ‘deep South’” (...), que é o “velho
sul escravocrata” norte-americano, onde se destacam estados como “Louisiana, Alabama,
Mississippi, as Carolinas, Virginia”, que constituem, com efeito, uma “região onde o regime
patriarcal de economia criou quase o mesmo tipo de aristocrata e de casa-grande; quase o
mesmo tipo de escravo e de senzala que no norte do Brasil e em certos trechos do sul”
(BARROS, 2014, p. 5).
A ficção estadunidense, afirmou de modo provocador o crítico Leslie Fiedler (1966, p. 29),
é uma “uma literatura das trevas e do grotesco numa terra de luz e afirmação”. O quanto esta
afirmação é válida para a nossa própria literatura é o que se pretende demonstrar na sequência.
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sutil, por nossa literatura.
Dos muitos elementos comuns entre as poéticas realistas brasileiras e a ficção gótica, há
pelo menos cinco pontos que entendemos serem fundamentais: (i) a construção de espaços
narrativos, exóticos ou familiares, que são descritos como loci horribiles; (ii) a relação
fantasmagórica com o passado, que ressurge para assombrar o presente; (iii) a caracterização de
personagens como monstruosidades, por conta da própria natureza humana ou de psicopatologias;
(iv) o desenvolvimento de enredos que exploram, tanto no plano da diegese quanto no da recepção,
efeitos melodramáticos e emocionais; (v) a utilização contínua de campos semânticos relacionados
à morte, à morbidez e à degeneração física e mental Por conta da limitação espacial do presente
ensaio, será focalizado prioritariamente o primeiro tópico, ainda que os demais acabem sendo
mencionados ao longo da demonstração.
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“natureza torturada” (p. 91). Se o sertão é fonte de sofrimento para quem nele habita, está em
“martírio” (p. 145), vítima dos elementos naturais que o castigam e do próprio homem, esse
“terrível fazedor de desertos” (p. 138):
Atacou a fundo a terra, escarificando-a nas explorações a céu aberto; esterilizou-a com os
lastros das grupiaras; feriu-a a pontaços de alvião; degradou-a corroendo-a com as águas
selvagens das torrentes; e deixou, aqui, ali, em toda a parte, para sempre estéreis, avermelhando
nos ermos com o intenso colorido das argilas revolvidas, onde não medra a planta mais exígua,
as grandes catas, vazias e tristonhas, com a sua feição sugestiva de imensas cidades mortas,
derruídas... (CUNHA, 2002, p. 140)
(...) os jagunços reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos.
Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente
espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos marginais mais
altos, dependuraram os restos de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de
listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas...
A caatinga, mirrada e nua, apareceu repentinamente desabrochando numa florescência
extravagantemente colorida no vermelho forte das divisas, no azul desmaiado dos dólmãs e nos
brilhos vivos das chapas dos talins e estribos oscilantes...
Um pormenor doloroso completou esta encenação cruel: a uma banda avultava, empalado,
erguido num galho seco, de angico, o corpo do coronel Tamarindo.
Era assombroso... Como um manequim terrivelmente lúgubre, o cadáver desaprumado, braços e
pernas pendidos, oscilando à feição do vento no galho flexível e vergado, aparecia nos ermos
feito uma visão demoníaca. (CUNHA, 2002, p. 492-3)
O narrador euclidiano deixa-se contagiar pela desolação dessa terra transida. Engana-se
quem supõe que os trópicos sejam incompatíveis com o espírito Gótico: “Há, ali, toda a melancolia
dos invernos, com um sol ardente e os ardores do verão!” (p. 125), diz Euclides, citando o – falso –
paradoxo de Saint Hilaire. A ausência e a pletora de luz têm o mesmo valor, com sinais invertidos,
apenas. Afinal, como ele dirá mais adiante: “Naquelas paragens o meio-dia é mais silencioso e
lúgubre que a meia-noite.4” (p. 648)
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Note-se, a esse respeito, o comentário que Euclides faz sobre a suposta cegueira noturna do sertanejo. Se o Gótico do
hemisfério norte foi pródigo em criaturas noturnas, avessas à luz do dia, os habitantes do sertão sofrem de hemeralopia
(p. 235).
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O sertão, nas palavras de Euclides, era um “hiato” (p. 140) das cartografias, a Terra Ignota
(p. 80), a “paragem impressionadora” (p. 87) predestinada a “atravessar absolutamente esquecido os
quatrocentos anos da nossa história” (p. 81). Em termos geopolíticos, o sertão é um além da
fronteira da República:
Viam-se [os soldados] em terra estranha. Outros hábitos. Outros quadros. Outra gente. Outra
língua mesmo, articulada em gíria original e pinturesca. Invadia-os o sentimento exato de
seguirem para uma guerra externa. Sentiam-se fora do Brasil. A separação social completa
dilatava a distância geográfica; criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria.
(CUNHA, 2002, p. 677)
Os sertões, porém, não são exatamente uma terra estrangeira5. Sua singularidade está ligada
ao fato de que o sertão não é apenas um outro lugar, mas, também e sobretudo, uma outra
temporalidade. No plano das figuras e imagens empregadas por Euclides, o deslocamento
temporal trai sua influência gótica nas constantes associações com a Idade Média, nas descrições
dos rochedos que se assemelham a “majestosas ruinarias de castelos” (p. 88) e no vaqueiro
comparado ao “campeador medieval desgarrado em nosso tempo” (p. 213). Mesmo o sertanejo –
ainda que Euclides entenda e aprecie a perfeita adaptação do sertanejo ao ambiente, e não o
considere um degenerado, em comparação com os “mestiços neurastênicos do litoral” (p. 207) – é
um “retrógrado” (p. 203). O próprio Antônio Conselheiro – o “heresiarca do século II em plena
idade moderna” (p. 278), que “reproduz o fácies dos místicos do passado” (p. 275) – é alguém “fora
do nosso tempo” (p. 275).
As metáforas da decadência, da degradação e da degeneração são constantes na literatura
gótica, uma vez que elas concretizam a tensão entre o peso do passado e o vazio misterioso do
futuro que se projetam sobre o homem moderno. Não por acaso, portanto, as ruínas são espaços
narrativos recorrentes, em seu óbvio valor fantasmático, como algo que irrompe do passado para
permanecer existindo, de forma incompleta, no presente. Em Os sertões, a imagética da ruína é
disseminada nos diversos ambientes, como nas descrições das propriedades da própria geografia
local:
(...) a ruína da fazenda: bois espectrais, vivos não se sabe como, caídos sob as árvores mortas,
mal soerguendo o arcabouço murcho sobre as pernas secas, marchando vagarosamente,
cambaleantes; bois mortos há dias e intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não
rompem a bicadas as suas peles esturradas; bois jururus, em roda da clareira de chão entorroado
onde foi a aguada predileta; e, o que mais lhe dói, os que ainda não de todo exaustos o
procuram, e o circundam, confiantes, urrando em longo apelo triste que parece um choro.
(CUNHA, 2002, p. 236. Grifo nosso.)
A serra do Cambaio, cujos morros são comparadas a “necrópoles vastas”: Porque o Cambaio é
uma montanha em ruínas. Surge, disforme, rachando sob o periódico embate de tormentas
súbitas e insolações intensas, disjungida e estalada – num desmoronamento secular e lento.
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“A Rua do Ouvidor valia por um desvio da caatinga” (p. 501), diz Euclides, desencantado pela barbárie travestida de
ideal civilizatório republicano.
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(IBID., p. 391. Grifo nosso.)
Queimadas, povoado desde o começo deste século, mas em plena decadência, fez-me um
acampamento ruidoso. O casario pobre, desajeitadamente arrumado aos lados da praça irregular,
fundamente arada pelos enxurros – um claro no matagal bravio que o rodeia – e, principalmente,
a monotonia das chapadas que se desatam em volta, entre os morros desnudos, dão-lhe um ar
tristonho completando-lhe o aspecto de vilarejo morto, em franco descambar para tapera em
ruínas. (CUNHA, 2002, p. 675. Grifo nosso.)
[Canudos] Estava, porém, em plena decadência quando [Antônio Conselheiro] lá chegou
aquele em 1893; tijupares em abandono; vazios os pousos; e, no alto de um esporão da Favela,
destelhada, reduzida às paredes exteriores, a antiga vivenda senhoril, em ruínas... (IBID., p.
290. Grifo nosso.)
A urbs monstruosa, de barro, definia bem a civitas sinistra do erro. O povoado novo surgia,
dentro de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia velho. (IBID., p. 291. Grifo nosso.)
O caso de Canudos é exemplar, pois, para Euclides, a ruína é o modo de ser do povoado,
que se tornou inexpugnável quando arruinado pelos canhões: era essa a sua “trágica originalidade:
intacto – era fragílimo; feito escombros – formidável” (p. 469). A ruína, como símbolo da
decadência, não aponta apenas para a degradação das construções humanas, mas do próprio
homem. Em Os sertões, a visão gótica da decadência transcende o indivíduo: “pobreza repugnante,
traduzido de certo modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça” (p. 292).
Um bom exemplo da decadência gótica dos espaços arquitetônicos de Os sertões é a
descrição da igreja que Antônio Conselheiro faz construir em Canudos. Euclides, que chama a
construção de “o templo monstruoso dos jagunços” (p. 755), vê nela o símbolo maior dos
insurrectos, “arx monstruosa, erigida como se fosse o molde monumental da seita combatente” (p.
306). A associação com a arquitetura medieval não é uma questão interpretativa, pois está expressa
no texto euclidiano:
Defrontando o antigo, o novo templo erguia-se no outro extremo da praça. Era retangular, e
vasto, e pesado. As paredes mestras, espessas, recordavam muralhas de reduto. Durante muito
tempo teria esta feição anômala, antes que as duas torres muito altas, com ousadias de um
gótico rude e imperfeito, o transfigurassem. (CUNHA, 2002, p. 306)
Delineara-a o próprio Conselheiro. Velho arquiteto de igrejas, requintara no monumento que lhe
cerraria a carreira. Levantava, volvida para o levante, aquela fachada estupenda, sem módulos,
sem proporções, sem regras; de estilo indecifrável; mascarada de frisos grosseiros e volutas
impossíveis cabriolando num delírio de curvas incorretas; rasgada de ogivas horrorosas,
esburacada de troneiras; informe e brutal, feito a testada de um hipogeu desenterrado; como se
tentasse objetivar, a pedra e cal, a própria desordem do espírito delirante. (CUNHA, 2002, p.
307)
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6
As descrições que Euclides faz de alguns dos habitantes de Canudos – “vivandeiras-bruxas, de rosto escaveirado” (p.
637), “Uma megera assustadora, bruxa rebarbativa” (p. 775); “velhas espectrais” (p. 774) – e, principalmente, de
Antônio Conselheiro – “o anacoreta sombrio (...) face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso” (p. 266) e “a sua
fisionomia estranha: face morta, rígida como uma máscara, sem olhar e sem risos; pálpebras descidas dentro de órbitas
profundas; e o seu entrajar singularíssimo; e o seu aspecto repugnante, de desenterrado, dentro do camisolão comprido,
feito uma mortalha preta” (p. 272) – poderiam facilmente ser analisadas a partir das contemporâneas teorias da
monstruosidade (Ver COHEN, 1996).
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