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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

TH 514 - HISTÓRIA CONTEMPORÃNEA I

Prof. Luís Edmundo de Souza Moraes

DENÚNCIA, FICÇÃO E IMPERIALISMO:

CORAÇÃO DAS TREVAS (1904) DE JOSEPH CONRAD.

NATHAN SALGADO LANA

20210008091

RIO DE JANEIRO

2023
INTRODUÇÃO

Coração das trevas (1904),1 de Joseph Conrad, trabalha em seu conteúdo e estrutura narrativa
uma espécie de literatura de transição, preocupada em seu cerne com as tensões evocadas pela divisão
das colônias, o esvaziamento da tradição de Antigo Regime e a corporificação do mundo
constitucional-liberal e do Estado-nação. Tais elementos representados na problemática do modelo
colonial predatório em voga na maior parte da segunda metade do século XIX, além das contradições
que poderiam surgir nas intenções civilizacionais e de projeto de nação dos Estados europeus.

O autor da novela remete à própria experiência em além-mar, com um protagonista de nome


Charlie Marlowe, o qual inicia a aventura colonial a princípio entusiasmado, mas logo se vê num
processo de desencantamento da ideia moral por trás da conquista, desacreditada quando revelada a
face mais cruel da colonização sob a cultura econômica das companhias privadas (Conrad, 2008). É
importante notar que Joseph Conrad é originário de uma Polônia sob a autoridade do Império Russo
e parte para o exílio após atividades insurgentes do pai, um burguês;2 após isso, Conrad passa pela
França e a Inglaterra, bem como a marinha desses dois Estados, por fim radicando-se inglês e dando
início a sua carreira de ficcionista carregado de influências dos seus anos de serviço no mar (ibid., p.
181) Apesar dessa constituição relativamente sem raízes, não há dúvidas de um olhar ocidental ainda
carregado das reduções imperialistas na narrativa conradiana. Há, portanto, uma dupla perspectiva: a
denúncia histórica do imperialismo através da ficção e o uso indiscriminado do essencialismo na
representação dos nativos e da África central em contraposição ao outro europeu. Na sua
ambiguidade, Conrad cria uma novela que, simultaneamente, pode ser identificada na sua crítica ao
Estado Livre do Congo de Leopoldo II da Bélgica (Lunardelli, 2018, p. 110). Entretanto, o escritor
também busca um afastamento da obra da realidade localizada, traçando uma estratégia narrativa
vaga que poderia referir-se a outros cantos “em branco” do mundo (Conrad, 2008, p. 16).3

É esse duplo movimento da obra ficcional de Joseph Conrad que interessa pesquisar. Ou seja,
a forma que os potenciais narrativos, em vista de uma crítica geral ao imperialismo, traçam limites
que, cabe apontar, não lhe são próprios: como a desumanização do outro. Em síntese, quais estratégias
narrativas o autor se utiliza, especialmente em relação a forma que trabalham o elemento nativo para
empreender uma denúncia ao imperialismo (na sua abrangência ou especificidade local)? Além disso,

1
A novela foi inicialmente publicada em três partes no ano de 1899, na Blackwood's Magazine.
2
Seu nome original era Józef Teodor Konrad Korzeniowski (1857-1924). Nasceu em Berditchev, Polônia e
hoje atual Ucrânia.
3
Esta é a forma pela qual o protagonista Marlow se refere a África.
tendo em vista o envolvimento de Conrad nas questões referentes à colonização do Congo belga, bem
como sua experiência anterior no comércio marítimo (inclusive no próprio Rio Congo), torna-se
interessante uma revisão de parte das suas cartas, em vista de compreender as visões extraficcionais
do autor taxadas às massas nativas e sua terra de trevas.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIBLIOGRAFIA

O que certamente há de comum no campo crítico dedicado ao romance Coração das trevas e
ao seu autor, Joseph Conrad, é a interpretação da novela tendo como ponto de partida a experiência
de vida conradiana. Sendo ele um intelectual no exílio em função das disputas nacionais nascentes, a
conquista da terra torna-se matéria de agudo interesse num momento em que os territórios coloniais
eram assunto corrente no imaginário inglês, justamente a cultura de assentamento/aculturação por
parte de Conrad. Mas não só pela representação brutal da colonização, sua ideia moralizante
altamente hipócrita e falsa que o autor irá mover na ficção. A linguagem torna-se objeto privilegiado,
numa narrativa extremamente sombria, ainda que boa parte dos eventos se dê em plena luz do dia, o
que leva, por sua vez, a uma narrativa enquadrada por outra narrativa. A história, contada por um
protagonista já velho e afeito à memória, chega ao leitor através de um indivíduo na plateia (talvez
Conrad). Esses artifícios têm forte ressonância com a forma pela qual se introduz o nativo, a floresta
e a África. Cabe pensar em qual juízo de valor está sendo mobilizado, se do protagonista contador de
histórias, daquele que está ouvindo, ou de ambos. E é a partir desse debate que as críticas a Conrad e
sua novela divergem, pela ambiguidade demonstrada na narrativa e que supostamente seria uma
denúncia ao status quo da qual o próprio não faz parte enquanto expatriado — tampouco da massa
que este mobiliza no papel.

Em 1977, é publicado o trabalho do romancista e crítico literário nigeriano Chinua Achebe na


Massachusetts Review, intitulado An image of Africa: Racism in Conrad’s Heart of Darkness.4 Já
pelo título pode-se concluir a atitude taxativa do autor quanto a novela aqui tratada. Conforme
argumenta, tal obra de arte não poderia ser considerada um cânone da literatura (Achebe, 1977, p.
21). A tese principal tecida nesse breve trabalho discute acerca de uma configuração central para
Conrad em sua ficção, a qual corresponde à construção de uma antítese da Europa. E essa perspectiva
completamente racista, diz Achebe, é narrada por um uso sistemático e antagônico do silêncio e do

4
Uma versão modificada de sua palestra lecionada em 1975 na universidade de mesmo nome da revista.
frenesi por toda a história. Assim, quando o capitão Marlow 5 não está horrorizado com a tensão
constante dos berros, uivos, sons de tambores e danças “falso-ritualísticas”, aspectos característicos
do homem “pré-histórico” que não são possíveis de compreensão (uma radicalização do entendimento
do nativo nas suas representações, as quais funcionam mais como cenário e objeto, o que de fato
permeia todo o romance) (ibid., p. 16-17). Por outro lado, em outros momentos o que sobressai é o
silêncio retumbante e o “mistério inescrutável”. Assim, não há linguagem possível ao outro, apenas
a mudez compensada pela descrição do invasor e sons irreconhecíveis em momentos vistos menos
como humanos e mais como selvagens. “The prehistoric man was cursing us”6 (ibid., p. 17). Nesse
sentido, interessa ressaltar outra preocupação permanente do protagonista sintetizada no fato
desconcertante de que aquelas “almas rudimentares” teriam um parentesco distante com o homem
civilizado, e tal ideia poderia suscitar apenas um sentimento “feio”.

Achebe em seu ensaio crítico torna-se um divisor de águas para as posteriores reflexões sobre
Coração das trevas, quais sejam concordantes no todo ou moderadas no tom. Seguindo essa última
posição, permite-se reconhecer maior espaço à crítica de Conrad, cujas ideias não corroborariam por
completo as de seu personagem Marlow na sua cruzada civilizacional. Porém, na forma como o
romance se apresenta, de uma narrativa em outra narrativa, o nigeriano acredita perder todo o
potencial de emissão de julgamentos por parte do narrador quanto as ideias relatadas por Marlow
(ibid., p. 19-20). Ambos concordariam com “pequenas reservas”, o que é reforçado pela identificação
de carreira entre ator e autor. É possível compreender tais discordâncias, segundo Achebe, como não
prejudiciais ao todo narrativo, por meio de uma espécie de liberalismo corrente à época “nas melhores
mentes” ocidentais (ibid., p. 20). Noutras palavras, quando o protagonista vê o pior do seu
empreendimento colonial, ele apesar disso não questiona o que é essencial: a ideia de igualdade entre
brancos e negros. O mais longe que Conrad e Marlow chegam é nos indícios de um parentesco. Para
Achebe, alguns poderiam argumentar que as intenções de Conrad estão mais focadas na Europa e no
europeu, bem como na sua desintegração moral, do que nos africanos e a África. Uma tentativa de
suavização da crítica quanto ao caráter racista da obra acaba por ser parte do ponto ao qual ele busca
sustentar. Afinal, seria de uma arrogância tremenda o uso de um continente para a desintegração
mental do europeu (ibid., p. 21), e a história tem uma tradição longa nesse quesito junto à literatura,
de tutela, paternalismo, autodescoberta ou mero interesse científico.

Essa mesma crítica ao liberalismo conciliador da Europa com seus territórios coloniais
aparecem em dois outros trabalhos que dialogam com Achebe. Talvez o mais famoso deles é a crítica

5
Este personagem, pelo qual sabemos a história, é quem dirige um vapor no Rio (qual rio?) rumo ao “coração
das trevas”.
6
“O homem pré-histórico estava nos amaldiçoando” (tradução livre).
literária e histórica feita por Edward Said, em seu livro Cultura e imperialismo, no qual o autor recusa
a separação do estudo do romance dos assuntos imperiais. Para o intelectual palestino, a metrópole e
a periferia estariam unidas por uma “estrutura de atitudes e referências ”, a qual possibilita, molda e
confirma a ideia de império e a ideia de uma contraparte lógica tal qual uma propriedade além-mar
(Said, 2011, p. 119).. Nesse livro, a tese saidiana se apresenta como força de reflexão comparativa de
duas histórias distintas porém entrelaçadas, da dominação e do dominado (ibid., p. 75).

Joseph Conrad e seu Coração das trevas são a expressão desse entrelugar, cujo poder de
observação se materializa no que Said chama de uma “distância irônica”, um indivíduo que não está
em sincronia com a máquina imperial (ibid., p. 64-65). Na sua análise, Edward Said recusa a posição
de Achebe, e acredita que Conrad, por conta de seu lugar cultural enquanto um expatriado, poderia
ter visto a colonização e a ideia moral de civilização num lugar de trevas; porém, ao mesmo tempo,
o autor, localizado no seu tempo, não seria capaz de pensar numa história própria dos nativos na
África, na ideia de que eles poderiam ser livres; há um acordo tácito quanto ao fenômeno imperial,
visto como inevitável (ibid., p. 72). Tal perspectiva se aproxima da crítica de Achebe, notadamente
nos limites da ficção conradiana concernente a igualdade entre brancos e negros, contudo, o que o
nigeriano chama de um sentimento de mal estar liberal, para Said, um dito intelectual no exílio, é uma
posição limiar capaz de criar uma grande consciência do que se está fazendo enquanto crítico ao
imperialismo. E dificilmente Said recusaria o lugar de Conrad no cânon literário.

Já Luisa Moratelli em O Coração das Trevas: Imperialismo, alteridade e a crítica romântica


na obra de Joseph Conrad recorre ao conceito do romantismo enquanto tendência histórica para
localizar a produção literária aqui estudada (2020, p. 54). Tendo como base a constituição de Joseph
Conrad e o modo como ele se posiciona em sua crítica ficcional. Ao citar Michael Lowy e Robert
Sayre, Revolta e Melancolia, a historiadora define o fenômeno do romantismo — múltiplo e extenso
nas suas figurações — como uma estrutura mental coletiva, pela qual se desenha uma crítica à
modernidade e à civilização capitalista (ibid., p. 55). Há um caráter nostálgico, sensível às mudanças
e também, de certa forma, uma autocrítica, tendo em vista o envolvimento dos seus críticos na própria
sociedade burguesa, capitalista e industrial em ascensão. Este fenômeno é amplo e não se restringe à
literatura, o que resulta numa dificuldade de definição e, portanto, tensionam os autores a realizar
uma tipologia weberiana (ibid., p. 56). Sinteticamente, o Romantismo de Conrad seria o Resignado
(idem). Nele, a modernidade é um fato, cabe aceitá-la e conviver com ela, mas é claro que isso não a
isenta de críticas nem de anseios reformistas. Por esse caminho, Luisa Moratelli traça sua visão numa
amálgama mais ou menos concordante com os dois autores anteriores, trazendo uma tipologia que
define de forma mais específica a crítica de Achebe e dialoga com o ideal exiliar saidiano. A autora
privilegia a visão ambígua de Conrad, enquadrado por ela como “um homem de seu tempo”,
“imperialista e anti-imperialista” simultaneamente, no qual o reconhecimento das mazelas coloniais
não o impediu de construir um romance a partir de concepções racistas, uma vez que, inserido nesse
contexto, não entendia a raça como questão central ao imperialismo (ibid., p. 63). Essa última
afirmação, cabe apontar, a aproxima mais de Achebe do que de Said. No entanto, é duvidoso que o
romancista nigeriano definiria Conrad como “anti-imperialista” tal qual a visão saidiana.7

No artigo A África e os africanos em Heart of Darkness (Coração das Trevas), os professores


Roberto Carlos de Assis e Célia Maria Magalhães, da área de linguística aplicada, consolidaram de
forma sistemática o registro padronizado dos termos recorrentes destinados aos nativos na descrição
narrativa de Conrad, além dos sentidos que eles empregavam. De forma resumida, uma
“despersonalização” e objetificação dos nativos. Fazendo o uso de ferramentas textuais, os autores
demonstraram de forma exaustiva uma estratégia narrativa conradiana em que os nativos muitas das
vezes são postos em cena aos bandos, sem voz, nomes, sequer cargos ou profissões (ao contrário dos
europeus), e frequentemente são tomados pela parte de um todo — destaca-se o rosto, os olhos e
ossos negros (Assis; Magalhães, 2007., p. 416). Além disso, as personagens negras quando interagem
o fazem através de gritos, aplausos, aparecem os pés, corpos, peitos nus e membros humanos em
movimento. Estão recorrentemente sofrendo ação externa e não afetam a narrativa, de modo que não
sentem ou mesmo falam (ibid., p. 418, 422). Os autores, ao identificarem tais padrões no romance,
concluem alinhados com as considerações de Chinua Achebe em seu trabalho de 1977 e
disponibilizam um corpo quantitativo e qualitativo para o que já estava presente de forma menos
sistemática no campo crítico de Conrad e Coração das trevas. Aqui, nenhuma discussão sobre a
ambiguidade do autor e seu potencial analítico e subversivo do sistema imperialista é mencionado.

A versão consultada de Coração das trevas neste projeto é a da Companhia das Letras,
publicada em 2008 e traduzida por Sérgio Flaskman. Nela, encontra-se uma excelente, ampla e
detalhada abordagem do romance de Conrad pelo historiador Luiz Felipe de Alencastro, em um
posfácio.8 Demonstrando um satisfatório conhecimento do campo crítico acerca do autor e sua obra,
Alencastro empreende paralelos entre ficção e realidade para expressar sua visão acerca do romance
relativa às grandes questões que envolviam Conrad, o imperialismo, o Congo, a África e os nativos.
Por exemplo, a notoriedade do público da revista em que Conrad se lança, pela qual o assunto da
questão colonial era bem conhecida; o processo de partilha e exploração da África com o estratagema
de Leopoldo II; até mesmo as conexões com a história do Brasil setecentista e oitocentista e seu
processo de colonialismo interno (Alencastro In. Conrad, 2008, p. 159-161; 164-165).

7
Para Said, Conrad conseguia ser tão reacionário quanto anti-imperialista.
8
Posfácio fruto de uma ampliação da versão de um comentário apresentado na Festa Literária Internacional
de Parati, em 2007.
De modo geral, há um privilégio de uma visão crítica de Conrad, tocando muito pouco no
ponto da sua cosmovisão enquanto fatalmente europeu. Há mais aspectos positivos a negativos na
novela segundo a avaliação de Alencastro. A primeira parte dela um manifesto anticolonialista —
essa é a visão dos comentadores segundo o autor do posfácio — e a segunda um tratado de
desregramento social e de questões existenciais (ibid., p. 157-158). É inclusive em função dessa
inquietação que a mente do europeu colapsa com o contato da pré-história cultural representada pelos
nativos da África central. A escravidão e o seu sucessor moderno de exploração por borracha e marfim
na corrida industrial, na visão de Alencastro, só poderiam ser superados pela mudança radical,
suscitada pelo romance no desregramento (lê-se loucura, consequentemente, violência) do chefe
colonialista.9 Cabe apontar que o fim da novela não tem nada de radical, mas uma resignação. E se
talvez a obra fale exatamente do radicalismo na demonstração dos limites da conciliação, continua
sendo duvidosa tal afirmação, haja vista a ideia do processo civilizador como inevitável por Conrad
e que Said já falará em 1993 (obra de 2008 aqui consultada). Logo no início do posfácio, percebe-se
uma mera citação — apesar de elogiosa — relegada à posição crítica de Edward Said (ibid., p. 156),
e um desvio flagrante das questões espinhosas tocadas por Chinua Achebe, isto é, da possibilidade
racista a qual o autor nigeriano supõe. Este sequer é citado, embora seja razoável considerar que os
autores consultados por Alencastro em sua maioria levem em consideração o marco que é o ensaio
de Achebe. Uma questão apontada por Alencastro e que dá outra forma a discussão são as sátiras
feitas por Conrad a respeito do colonialismo francês e belga (ibid., p. 160-161), este último seu alvo
predileto dada a conjuntura histórica e as denúncias que viam a tona. Mas, em outra perspectiva,
apenas suscitam o tipo errado de colonialismo. Não a pilhagem, deve-se focar na ideia que possa ser
erigida por trás da conquista da terra (frase parafraseada que inaugura o manifesto de crítica cultural
saidiano).

Seja um crítico de valor ou apenas a encarnação do imaginário liberal do século XIX, atento
às questões coloniais e a necessidade de um processo civilizatório civilizado, o fato é que a não
individualização do outro está ali presente e tem uma relação significativa com a experiência de
Conrad no comércio transatlântico. Geralmente, tal fato faz com que seus críticos associem o romance
ao Rio Congo, na África central, uma das regiões no itinerário do jovem Conrad; porém, não há
qualquer indício claro e definitivo sobre a localização da aventura colonial no próprio romance, com

9
A aventura de Marlow no fim é um pesadelo na África, daí a virada de chave anticolonialista do personagem.
Kurtz, chefe do “Posto Interior”, desapareceu e aparentemente adoeceu e enlouqueceu. Uma loucura que
envolvia uma espécie de culto ao homem branco por nativos, cabeças cortadas e empaladas e um tratado de
civilização escrito pelo chefe colonial da Companhia que conclamava sombriamente pelo extermínio de todos
os brutos.
pequenas pistas apenas (ibid., p 174).10 Por essa via, faz sentido, por exemplo, nenhum dos nativos
sequer falar algo sobre origem, destino e expectativas. É curioso que nenhum dos personagens que
têm voz (europeus) mencionam particularidades geográficas, políticas e culturais, essenciais para a
exploração efetiva, uma prática muito da incentivada, a de estabelecer “relações” em lugares remotos.
O entendimento deste trabalho vê a ausência da localização geográfica como subsidiária à crítica
geral ao imperialismo e não necessariamente apenas ao Estado Livre do Congo de Leopoldo II da
Bélgica. Paradoxalmente, essa crítica se enfraquece com a impossibilidade de individualização e
localização nativa, o que foi explorado anteriormente por outros autores e agora torna-se matéria
privilegiada de pesquisa no âmbito da história de denúncia à dominação europeia através da ficção.

JUSTIFICATIVA

A localização geográfica e cultural, isto é, onde se passa a aventura colonial e em contato com
que nativos, é uma questão importante nos estudos de Coração das trevas. Esta indeterminação
possibilita uma crítica geral através da ficção ao imperialismo. Conforme Alencastro, pistas mais
precisas foram inseridas e depois retiradas da novela por Conrad (ibid., p. 175-176), por isso, vale
considerar uma intencionalidade para tal indeterminação, cujo resultado acaba por reduzir seu efeito
desafiador no reducionismo e protagonismo seletivos dedicados pelo autor — pelos quais os europeus
se sobressaem aos nativos. Assim, torna-se elementar para este estudo aprofundar e centralizar a
dinâmica entre a narrativa feita por Conrad e o fator crítico dessa literatura. Considera-se tal relação
insuficiente nos comentadores aludidos e que aqui será vista como paradoxal.

OBJETIVO GERAL

O objetivo deste estudo busca refletir acerca de um paradoxo crítico no romance conradiano
à luz da relação entre estratégias narrativas-descritivas de representação e a intenção de denúncia
geral ao imperialismo pela ficção.

10
Um deles é o mapa (pouco comum à época) que aparece no romance da África, dividido em cores
correspondentes às nações imperialistas. Marlow revela a intenção de ir até o ponto amarelo, com um rio em
formato de serpente (possivelmente o Rio Congo).
HIPÓTESE

Neste trabalho, espera-se compreender que na sua intenção criativa, Joseph Conrad, ao optar
por camuflar os elementos de localização do romance, considerando o potencial crítico da obra para
as várias situações históricas de apropriação e expropriação, o autor também constrói uma visão que
enfraquece a sua crítica anticolonialista.

TEORIA

Entende-se o estudo proposto a partir da literatura de viagem como testemunho, pelo qual se
estabelece o meio de divulgação das descobertas feitas por exploradores, em sua maioria nos
territórios “exóticos” e coloniais (Bolfarine, 2020, p. 21). Uma definição interessante para este
trabalho evocada por Bolfarine fala a respeito de uma utilidade educadora e de entretenimento da
literatura de viagem (ibid., p. p. 21-22), sendo a primeira central para o elemento de denúncia da
novela de Conrad, apesar da situação precária e insustentável do Congo e da dominação de Leopoldo
II serem elementos bem conhecidos. O romance conradiano, apesar de mera ficção, está
essencialmente conectado com sua experiência de vida no comércio do ultramar, o que leva a outro
elemento dessa literatura: não só educativo, como também traumático — envolvendo as barbáries
não só vistas como representadas/denunciadas por outros autores e gêneros literários (ibid., p. 23).
Daí, o último elemento: o caráter intertextual da literatura de viagem. Passando a ocupar um lugar
proeminente no fim do XIX e início do XX, a literatura de viagem como testemunho implica na
denúncia de uma experiência traumática, no que Bolfarine chama de “o trauma do imperialismo na
ficção” (ibid., p. 22-23). Este conceito de testemunho é central na sua busca pela união com o leitor,
por justiça ao representar o trauma nativo — que também é daquele que presenciou tais horrores nos
territórios coloniais — e, por conseguinte, a busca pela superação e transformação. É claro que nesse
processo o testemunho nativo (pelo menos nessa obra) sequer é mobilizado, o que é irônico e
paradoxal, corroborando as críticas do romance mais como uma desintegração e confronto do branco
com si mesmo do que um enfrentamento concreto da exploração colonial.

FONTES
O trabalho centrará a análise no romance Coração das trevas. Ele reúne elementos imaginados
e outros altamente históricos. O que torna-se essencial para pensar/identificar as escolhas criativas (o
universo vocabular mobilizado) que resultam na descrição do elemento nativo sem individualidade e
como objeto. Essas características, por sua vez, subsidiam a indeterminação cultural e geográfica do
romance, tensionadas com a intenção de crítica geral ao domínio imperial.

Por outro lado, embora a novela informe e atualize uma experiência concreta de Conrad, cabe
apontar que sua viagem ao Congo foi incipiente quando comparada a trajetória de seu protagonista
(Bolfarine, 2020, p. 25), o que aponta para uma maior pesquisa do autor a outros relatos e fontes de
informação. Logo, interessa acessar o volume de cartas de Conrad concernente à correspondência
entre ele e Roger Casement (1864-1916),11 autor da denúncia a Leopoldo por meio da produção do
Relatório do Congo (1904). Além das menções de Conrad a Casement em outras correspondências.
Segundo Reid, em The lives of Roger Casement, Casement teria influenciado as visões de Conrad
para seu romance (Reid apud Bolfarine, 2020, p. 25), consequentemente, interessa rastrear essa fonte
de descrição dos nativos, da floresta, do rio e de outros elementos históricos.

METODOLOGIA

Em primeiro lugar, espera-se trabalhar o romance focado em três situações de encontro entre
a expedição e o nativo. A saber, o choque do protagonista com o trabalho forçado na construção de
ferrovias; o conflito armado com nativos num dos pontos do Rio; e a apresentação Kurtz, chefe do
Posto Interior, que adoeceu e enlouqueceu, surgindo numa dinâmica de veneração com os nativos que
o carregam feito um rei moribundo. Tais recortes possuem a intenção de identificar a forma
representativa dos nativos, pensando na escolha de palavras e os efeitos delas no âmbito do que
poderia informar ou não acerca da localização geográfica e cultural da história. Quanto à
correspondência entre Conrad e Casement e sobre Casement, interessa comparar a visão descrita no
romance com o que era discutido acerca da questão do Estado Livre do Congo, novamente a partir da
escolha de palavras, recursos visuais a partir de literaturas comentadas ou sugeridas, e a identificação
dos juízos de valores que possam remeter à condição política (se sequer é cogitada) do nativo.

11
De origem irlandesa, tornou-se cônsul britânico e investigou e produziu relatórios de denúncia acerca da
exploração nativa na extração de borracha no Congo belga e na região amazônica de Putamayo. Morreu
enforcado em 1916 por traição, em decorrência de envolvimento na luta nacionalista da Irlanda.
BIBLIOGRAFIA

FONTES

CONRAD, Joseph. Coração das trevas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.
KARL, Frederick; DAVIES, Laurence. The collected letters of Joseph Conrad. Vol. 1. Cambridge UP:
Londres, 1983.
__________ The collected letters of Joseph Conrad. Vol. 2. Cambridge UP: Londres, 1986.
__________ The collected letters of Joseph Conrad. Vol. 3. Cambridge UP: Londres, 1988.
__________ The collected letters of Joseph Conrad. Vol. 4. Cambridge UP: Londres, 1992.
__________ The collected letters of Joseph Conrad. Vol. 5. Cambridge UP: Londres, 1998.

REFERÊNCIAS

ALENCASTRO, Luis Felipe de. “Posfácio” In. CONRAD, Joseph. Coração das trevas. São Paulo:
Companhia de Bolso, 2008. p. 155-179.
ASSIS, Roberto Carlos de; MAGALHÃES, Célia Maria. A África e os africanos em Heart Of Darkness
(Coração das Trevas). In. 33rd International Sistemic Functional Congress. Proceedings of the 33rd
International Systemic Functional Congress. São Paulo: PUC-SP, 2007. p. 404-427.
ACHEBE, Chinua. An Image of Africa: Racism in Conrad’s Heart of Darkness. The Massachusetts Review,
v. 57, n. 1, spring 2016 [1977], p. 14-27.
BOLFARINE, Mariana. Roger Casement e o Congo belga: o trauma do imperialismo na ficção, Revista Porto
das Letras, Tocantins, v. 6, n. 4, p. 15-32, 2020.
LUNARDELLI, Diego. Terror, Marfim e Borracha: imperialismo e resistência no Estado Livre do Congo
(1879-1908), Revista Eletrônica Discente História.com, v. 5, n. 10, p. 100-116, 2018.
MORATELLI, Luisa P. O Coração das Trevas: Imperialismo, alteridade e a crítica romântica na obra de Joseph
Conrad, Epígrafe, São Paulo, v. 8, n. 8, p. 46-64, 2020.
SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. Tradução Denise Bottmann. 1° ed. São Paulo: Companhia de
Bolso, 2011.

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