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CONTEMPORÂNEAS
Bloco 3
Resolução CPV Vestibular FGV
14/11/2022
PROVA OBJETIVA
Resolução:
O romance “Memórias de um sargento de milícias” se apresenta
como uma obra de ficção. Mas esse aspecto ficcional nem de
longe compromete seu alcance enquanto obra capaz de revelar
aspectos da sociedade figurada pela narrativa. Ao contrário, o
aspecto “crônica de costumes”, assumido pela obra, tem sido um
consenso entre os críticos. Antônio Cândido, no célebre ensaio
que escreve sobre o romance, aponta o aspecto dialético da
sociedade brasileira, conforme figurada pela obra: dois campos,
aparentemente opostos, marcam a estrutura dessa sociedade.
De um lado, o campo da ordem, a que se associa, por exemplo,
a personagem Major Vidigal. Ou mesmo o meirinho (oficial de
justiça) Leonardo, pai de Leonardinho. No campo oposto, o
que se insinua seria o polo da desordem, a que se associaria, a
princípio, o próprio Leonardo (Filho), por suas configurações de
personagem malandro. Mas essa relação entre campos opostos
é de interpenetração. Nesse sentido, aspectos que, a princípio,
se associariam a um polo, frequentemente se vinculam a polos
opostos. Esse é o caso, por exemplo, do próprio Major Vidigal,
quando, afastando-se de um comportamento ordeiro (que seria
de se esperar, no caso de um policial), deixa-se seduzir pelas
palavras de Maria Regalada, ex-amante, para, arbitrariamente,
agir de modo a beneficiar um figura associada à delinquência (no
caso, Leonardinho). Essas situações, ficcionais, refletem aspectos
estruturais da sociedade brasileira, o que atesta o que foi indicado
pela questão: as interrelações entre a vida literária e a vida social.
Resolução:
A tensão entre classes sociais – em cuja percepção fundamenta-
se uma das bases do pensamento marxista – pode ser observada
nas mais diversas obras que compõem a lista de obras da prova de
Artes e Questões contemporâneas. Em Memórias de um sargento
de milícias, romance em que grande parte das personagens se
associa às classes médias que habitavam o Rio de Janeiro das
primeiras décadas do século XIX, as tensões decorrentes das
relações de força travadas no âmbito da escravidão se manifestam.
Em Cabra marcado para morrer, a luta de classes se manifesta
entre os latifundiários e os camponeses. Em Babel, são evidentes
as oposições entre as personagens americanas, brancas e ricas,
e os meninos pobres de Marrocos. Ou a família de mexicanos
que celebram um casamento. Em Vidas secas, Fabiano, vaqueiro
pobre, se opõe as seus patrões.
Resolução:
O documentário de Eduardo Coutinho expõe, com clareza, o
complexo processo que envolve a apropriação fundiária no país,
bem como seus perversos desdobramentos. Nesse sentido, o
filme aborda o caso do assassinato de João Pedro Teixeira, líder
camponês, cometido a mando de latifundiários, em 1962. Ao
assassinato, seguiu-se o esfacelamento do núcleo familiar do
camponês: a maior parte dos filhos perdeu o contato com a mãe,
Elisabeth Teixeira – figura central do filme. Além disso, o filme dá
conta da ação dos militares na região em que vivia o camponês,
no período seguinte ao golpe militar de 1964: pessoas foram
perseguidas, torturadas, violentadas das mais diversas maneiras.
Justamente nesse período, Eduardo Coutinho estava na região,
realizando uma versão cinematográfica do caso de João Pedro
Teixeira. Com a ação dos militares, os membros da equipe de
filmagem se viram obrigados a fugir, o que acabou por inviablizar
a realização do filme. No início da década de 1980, cerca de 17
anos depois, Eduardo Coutinho, de posse de alguns trechos já
rodados do filme que pretendia fazer, voltou à região, exibindo
trechos dos filmes para os moradores, que eram, aliás, parte
integrante do elenco do filme, já naquela época intitulado “Cabra
marcado para morrer”. A exibição desses trechos gerou cenas
memoráveis, também registradas por Coutinho. A emoção das
pessoas, a surpresa de se verem em um filme rodado quase 20 anos
antes, desencadeou um poderoso processo de autodescoberta,
individual e coletiva. É nesse sentido que o documentário trabalha
pela preservação da memória. Mas esse trabalho vai além. Os
desdobramentos do filme darão conta da investigação de Coutinho,
acessando Elisabeth Teixeira e trabalhando para que, em função
da realização do filme, a família pudesse recompor seus laços,
severamente destroçados pela ação violenta do Estado Brasileiro.
Trabalhar pela recuperação e preservação da memória não parece
ser, contudo, um atributo exclusivo desse filme. O cinema, e as
artes, de uma maneira geral, sempre pode se produzir como algo
capaz de ir além do mero entretenimento, perfazendo-se como
instrumento vital para a preservação das memórias, individuais
ou coletivas.
Resolução:
O título da canção “O mundo é um moinho” apresenta uma
metáfora reveladora. Associar o mundo a um moinho faz saltar
aos olhos a característica violenta, demolidora, devastadora,
da sociedade. Pois é isso o que um moinho faz: mói, devasta,
violenta. A canção se apresenta como uma cuidadosa advertência,
realizada pelo eu lírico, que se dirige a uma personagem feminina
decidida a se expandir pelo mundo, procurando seu caminho.
“Malandragem”, por sua vez, apresenta-se como uma canção
em que o eu cancional declara sua própria inocência perante um
mundo que, à semelhança da sociedade figurada pela canção
“o mundo é um moinho”, apresenta-se como uma realidade
problemática, violenta, devastadora. É nesse sentido que o título
pode ser pensado: malandragem seria a astúcia, a esperteza
que se deve cultivar em um mundo opressivo. Esse seria um
ponto de conexão entre as duas obras: nas duas canções, o
atributo de malandragem, astúcia, consta como fator necessário
nos casos em que se pretenda garantir uma autopreservação.
Malandragem, que, nos dois casos, parece faltar à personagem.
Outra semelhança reside no desejo de vivacidade aparentemente
nutrido pelas duas personagens. Isso está presente tanto no caso
de uma mulher que decide transcender os limites do cuidado
familiar para “ganhar mundo” quanto no caso de uma pessoa que
dirige seu carro e “muda uma planta de lugar”. Uma diferença,
estrutural: na canção de Cartola, o eu cancional dirige as palavras
a uma interlocutor, a quem lança uma advertência. Nesse sentido,
os verbos tendem a se conjugar na segunda pessoa. Na canção
de Cazuza e Frejat, o eu cancional produz declarações sobre si,
com verbos na primeira pessoa.
Resolução:
A música “O mundo é um moinho”, de Cartola, aborda a história
de uma mulher que “anuncia a hora de partida”. A partir daí, o
narrador inicia uma série de advertências sobre o mundo que
“vai triturar teus sonhos”. Ou seja, a partir da ótica kantiana,
podemos pensar na música como uma mulher que está saindo
da menoridade (“mal começaste a conhecer a vida”; “sem saber
mesmo o rumo que irás tomar”) e começando o processo de
maioridade, mesmo com as observações colocadas pelo narrador.
Mas, como lembra Kant, isso não importa, uma vez que a saída da
menoridade, da qual ele próprio é culpado, é resultado da falta
de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de
outrem. Sapere aude!