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A Obra de Alexis de Tocqueville

“Quem procura na liberdade outra coisa que não seja a própria liberdade, é feito para servir” O Antigo
Regime e a Revolução, I, III, 3.
Ao término da Era das Revoluções, em 1848, as grandes linhas de pensamento (com a notável
exceção de Tocqueville) passam a considerar a economia ou a sociedade como o motor da história.
Augusto Comte, cuja filosofia positiva é ícone de sua época, deixava claro que a ação política não
pode mudar o curso do progresso humano rumo ao estágio positivo, mas apenas acelerá-lo ou
retardá-lo; nesse sentido, é sintomático que, sobre a comunidade política, Comte diga o exato
oposto do que Thomas Paine enfatizou em toda a sua vida: “a humanidade se compõe mais de
mortos do que de vivos”; “os mortos governam cada vez mais os vivos”. Sobre esse assunto, e a
importância de Tocqueville, disse Florenzano:
Com efeito, menos de dez anos separam a proposta de uma nova ciência política (1835) por parte de
Tocqueville, da formulação de Comte de uma nova ciência social, a física social ou sociologia (1842), e da
elaboração de Marx, em parceria com Engels, de uma nova filosofia cientifica, o materialismo histórico (1844).
Se, é verdade que os três (...) quiseram, nas palavras de Jasmin, ‘fundar cientificamente a política’, também é
verdade que Tocqueville, ao contrário do que fizeram Comte e Marx, recusou-se a aceitar o destronamento da
política do centro da história (...).
Sobre isso, aliás, Tocqueville observa que os historiadores democráticos tendem a explicar os
acontecimentos por forças anônimas e mecanismos irresistíveis da necessidade histórica, enquanto que os
historiadores aristocráticos tendem a acentuar o papel dos grandes homens:
“Os historiadores que vivem nos séculos democráticos mostram tendências inteiramente
contrárias. A maior parte deles quase não atribui influência alguma ao indivíduo sobre o destino da
espécie, nem aos cidadãos sobre a sorte do povo. Mas, em troca, atribuem grandes causas gerais aos
pequenos fatos particulares. Essas tendências opostas são explicáveis. Quando os historiadores dos
séculos aristocráticos lançam os olhos para o teatro do mundo, a primeira coisa que nele percebem
é um pequeno número de atores principais, que conduzem toda a peça. Esses grandes personagens,
que se mantêm à frente da cena, detêm sua visão e a fixam: ao passo que se aplicam a revelar os
motivos secretos que fazem com que ajam e falem, esquecem-se do resto. A importância das coisas
que veem alguns homens fazer dá-lhes uma ideia exagerada da influência que pode exercer um
homem e naturalmente os dispõe a crer que é sempre necessário remontar à ação particular de um
indivíduo para explicar os movimentos da multidão (...) Quando, ao contrário, todos os cidadãos são
independentes uns dos outros, e cada um deles é frágil, não se descobre nenhum que exerça um
poder muito grande nem, sobretudo, muito durável, sobre a massa. À primeira vista, os indivíduos
parecem absolutamente impotentes sobre ela e dissera-se que a sociedade marcha sozinha pelo
concurso livre e espontâneo de todos os homens que a compõem. Isso leva naturalmente o espírito
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humano a procurar a razão geral que pode assim atingir a um tempo tantas inteligências e volta-las
simultaneamente para o mesmo lado”.
Este tipo de historiador democrático, assim, tende a tirar dos homens a liberdade de fazer sua
história, e coloca a fatalidade como senhora de nossos destinos; o fatalismo, por conseguinte,
paralisa os homens, os induz à passividade, destrói a dignidade das almas. O historicismo, assim,
é inimigo da liberdade:
“Os historiadores que vivem nos tempos democráticos não recusam, pois, apenas atribuir a
alguns cidadãos o poder de agir sobre o destino do povo; ainda tiram aos próprios povos a faculdade
de modificar a sua própria sorte e os submeterem ora a uma Providência inflexível, ora a uma espécie
de cega fatalidade. Segundo eles, cada nação é invencivelmente ligada, pela sua posição, sua origem,
seus antecedentes, sua natureza, a certo destino, que nem todos os esforços poderiam modificar.
Tornam as gerações solidárias umas às outras e, remontando assim, de época em época, de
acontecimentos necessários em acontecimentos necessários, à origem do mundo, compõem uma
cadeia cerrada e imensa que envolve todo o gênero humano e o prende. Não lhes basta mostrar como
se deram os fatos: comprazem-se ainda em mostrar que não podiam se ter dado de outra forma.
Consideram uma nação que chegou a certo ponto da sua história e afirmam que foi obrigada a seguir
o caminho que a conduziu até ali. Isto é muito mais fácil que mostrar como teria podido fazer para
seguir um melhor caminho”.
A grande contribuição de Tocqueville à sociologia, portanto, é dar primazia não ao fato industrial (como
Comte), nem ao fato capitalista (como Marx), mas ao fato democrático. Por não colocar na estrutura social
ou econômica a primazia sobre o resto, lembra Raymond Aron, talvez Tocqueville não figure em muitos
manuais de sociologia.
Mas o que é, para Tocqueville, democracia? A democracia, para ele, não é apenas um tipo de governo,
mas de sociedade. Democracia, a seus olhos, consiste na igualização das condições. Democrática é a
sociedade na qual não subsistem distinções de ordens e de classes; em que todos os indivíduos são
socialmente iguais – mas não intelectualmente, o que seria absurdo, nem economicamente, o que seria
impossível. A igualdade social, para Tocqueville, significa que não há diferenças hereditárias ou de condições,
todas as profissões, dignidades e honrarias são acessíveis a todos – a riqueza industrial e mercantil, para
Tocqueville, são muito precárias para originar uma estrutura hierárquica durável. Há, portanto, uma tendência
igualitária: diferente de uma sociedade aristocrática, o objetivo de uma sociedade democrática não é o poder
ou a glória, mas a prosperidade e a tranquilidade, o bem estar da maioria das pessoas. Bem-estar,
tranquilidade, prosperidade são os três valores fundamentais da democracia: ela não é, para Tocqueville, a
transfiguração dos destinos do homem (com pensavam alguns), nem tampouco a decomposição da
sociedade (como dizem outros), mas um regime que favorece o bem estar do maior número, muito embora
esse bem estar não tenha o brilho ou a grandeza da antiguidade.
“Se vos parece útil desviar a atividade intelectual e moral do homem para atender às necessidades da
vida material, empregando-a na produção do bem-estar; se a razão vos parece mais útil aos homens do que o
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gênio, se vossa finalidade não é criar virtudes heróicas, mas hábitos tranqüilos; se tendes preferência por ver
vícios em vez de crimes, e se preferir encontrar menos ações grandiosas a fim de encontrar menos ações
hediondas; se, em lugar de agir no seio de uma sociedade brilhante vos parece suficiente viver no meio de uma
sociedade próspera; se, por fim, o objetivo principal do governo não é, segundo vossa opinião, dar a maior força
ou a maior glória possível a todo o corpo da nação, mas sim garantir a cada um dos indivíduos que a compõem
o maior bem-estar, resguardando-o da miséria, neste caso, devereis igualar as condições, para constituir o
governo democrático. Se não há mais tempo de fazer uma escolha, e uma força superior à do homem vos
arrasta, sem consultar vossos desejos, a um dos dois tipos de governo, procurai, pelo menos, extrair dele todo
o bem de que é capaz; conhecendo seus bons instintos, e também suas más inclinações, esforçai-vos por
promover os primeiros e restringir estas últimas” (A democracia na América, I, vol. 1)
A igualdade de condições tornou-se o fato mais importante da sociedade; é uma paixão ardente no
mundo democrático, de modo que, não raro, os homens nas democracias defendem a escravidão em nome
da igualdade, de modo que suportam “a pobreza, a servidão, a barbárie, mas não suportam a aristocracia.” A
todo lado, em todo momento, os homens nas democracias clamam por igualdade. Viver numa democracia é
viver num desconforto constante, com homens e mulheres exigindo igualdade a todo o tempo, em todas as
instâncias.
Nas sociedades democráticas, cada vez mais homens possuem alguma coisa, e, devido à competição,
nunca estão satisfeitos, e cultivam fortemente a inveja; entretanto, ao contrário do que se pode imaginar, esta
sociedade é conservadora, avessa às Revoluções, uma vez que, na torrente revolucionária, a propriedade entra
em perigo: são sociedades mais “querelosas que revolucionárias” (Aron). A propriedade e a difusão de uma
prosperidade média, combinada à educação, é uma boa maneira de conservar a estabilidade. Enquanto o
pobre adere à revolução por não ter nada a perder, ao passo que os ricos, acostumados à opulência, esquecem
das necessidades e tornam-se insensíveis aos seus privilégios, os homens médios, ainda muito próximos da
pobreza, têm grande apreço pelo seu reduzido patrimônio, sobre o qual depositam todos os temores e as
esperanças – esse tipo de homem médio é quem mais ganha força nos regimes democráticos! A democracia
“amam a mudança, mas tem a revolução. (Democracia na América)” Diferente da noção de Comte
(tecnocracia) e Marx (revolução), Tocqueville via, no futuro, um emburguesamento generalizado. Pelo mesmo
motivo, aliás, as sociedades democráticas são avessas à guerra.
Por mais que tivesse uma origem Aristocrática, para Tocqueville seria insensato querer restaurar a
autoridade e os privilégios da aristocracia que foi destruída pela Revolução. Enquanto, no mundo aristocrático,
a liberdade era garantida, como aponta Montesquieu, pela desigualdade, no mundo democrático a liberdade
deve estar assentada na igualdade de condições. Mas, para haver liberdade – isto é, ausência de
arbitrariedade – é preciso impor limites ao poder; é preciso que haja uma pluralidade de centros de decisão,
de órgãos políticos e administrativos equilibrando-se uns aos outros, é preciso que haja representação. Mas
como, enfim, conciliar liberdade e igualdade? Como construir um governo livre e sólido ao mesmo tempo, que
não caia nem no Terror, nem no despotismo?
Para Tocqueville, toda democracia tende à centralização e ao despotismo; esse é o perigo que deve ser
evitado, qual seja, o despotismo da maioria. Duas explicações para isso podem ser apontadas:

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1ª: primazia do número, a ideia (falsa) de que a maioria tem razão: Tocqueville diz em A Democracia
na América: “a medida que os cidadãos se tornam mais iguais... a disposição para crer na massa aumenta...
Em tempos de igualdade, os homens não têm qualquer fé uns nos outros, por causa da sua semelhança; mas
essa mesma semelhança lhes dá uma confiança quase ilimitada no juízo do público; pois não lhes parece
verossímil que, tendo todos luzes parecidas, a verdade não se encontre do lado do menor número”
TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. São Paulo: Edusp, 1987, capítulo II, p. 18.
2º: apego pelo bem-estar e desvalorização da vida pública – a paixão pelo dinheiro, o gosto pelo
negócio, a vontade de enriquecer-se a qualquer custo, a busca pelos prazeres materiais pode manter os
homens afastados dos negócios públicos e, assim, favorecer o despotismo: “Imaginemos sob quais novos
aspectos o despotismo poderia ser produzido no mundo: vejo uma multidão inumerável de homens
semelhantes e iguais, que nada mais fazem que girar sobre si mesmos em busca de pequenos e vulgares
prazeres com que saciar a alma... Acima deles ergue-se um poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho
de lhes garantir a satisfação dos bens e de velar por sua sorte. É absoluto, minucioso, sistemático, previdente
e brando (A Democracia na América) Como, nas sociedades modernas, "os homens já não estão ligados uns
aos outros por nenhum laço de castas, de classes , de corporações, de famílias, ele são excessivamente
propensos a só se ocupar de seus interesses particulares, sempre muito levados a só pensar em si mesmos
e a se recolher em um individualismo estreito em que qualquer virtude pública é sufocada. O despotismo tira
dos cidadãos qualquer paixão em comum, qualquer necessidade mútua, qualquer obrigação de se
entenderem, qualquer ocasião de agirem juntos; por assim dizer, empareda-os na vida privada. Já tendiam a
apartar-se: ele os isola; esfriavam-se uns para com os outros: ele os congela (...) Nesses tipos de sociedade
só a liberdade pode combater eficazmente os vícios que lhes são naturais e detê-las no declive em que vão
escorregando" (O Antigo Regime e a Revolução) - “a paixão pelo bem-estar é como que a mãe da servidão”.
3º: a mediocridade da maioria e suas correntes uniformes de opinião, que podem sufocar a
liberdade de opinião e imprensa: Tocqueville em A Democracia na América: “Na América, a maioria
traça um círculo formidável em volta do pensamento. Dentro dos seus limites, o escritor é livre; mas
infeliz daquele que ousar ultrapassá-los. [...] Sob o governo absoluto de um só, o despotismo, para
chegar à alma, atingia grosseiramente o corpo, e a alma escapando a tais golpes, elevava-se gloriosa
acima dele; mas, nas repúblicas democráticas, de modo nenhum é assim que procede a tirania; deixa
o corpo e vai diretamente à alma. O senhor não diz mais: pensareis como eu ou morrereis. Diz apenas:
Sois livres de não pensar como eu; vossa vida, vossos bens, tudo vos fica; mas, desde hoje, sois um
estranho entre nós. Conservareis os vossos privilégios na vida cívica, mas eles tornar-se-ão inúteis,
pois, se objetais à escolha de vossos concidadãos, eles não o admitirão de vós, em nenhum caso, e
se não pedis a não ser a sua estima, eles fingirão ainda recusá-la a vós. Ficareis entre os homens,
mas perdereis o direito à humanidade. Quando vos aproximardes de vossos semelhantes, eles fugirão
de vós, como se fôsseis impuros; e aqueles que acreditam na vossa inocência, mesmo estes vos
abandonarão, pois também deles se há de fugir. Ide em paz, deixo-vos a vida, mas deixo-a pior que a
morte”

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Uma democracia, nesse sentido, pode ser despótica ou liberal. Em A Democracia na América,
Tocqueville investiga quais as causas que tornam a democracia americana liberal. A sociedade americana,
em primeiro lugar, estabeleceu-se com imigrantes vindos da Europa, sem estados vizinhos; o mínimo de riscos
militares, portanto, combinada com o mínimo de obrigações diplomáticas. Paralelamente, a abundância de
terra impediu a formação de uma aristocracia, esta fundada, em regra, na escassez de terra. (parte 1 -
Situação acidental)
Junto a isso, Tocqueville elogia o sistema federativo, com o qual os Estados Unidos conciliou as
vantagens dos pequenos (respeito aos hábitos, circunstâncias e costumes locais) e grandes estados (força
e defesa):
Se não existissem grandes nações, só pequenas, a humanidade seguramente seria mais livre e feliz;
contudo, não se pode fazer com que não haja grandes nações. Isto introduz no mundo um novo elemento de
prosperidade nacional, que é a força. Que importa se um povo apresenta imagem de bem-estar e liberdade, se
está exposto todos os dias à pilhagem ou conquista? Que importa se é industrial ou comerciante, se um outro
domina os mares, impondo sua lei sobre todos os mercados? As nações pequenas são muitas vezes miseráveis,
não por serem pequenas, mas porque são fracas; as grandes são prósperas, não por serem grandes, mas por
serem fortes. Portanto, a força é muitas vezes uma das primeiras condições de felicidade e até mesmo de
existência das nações. Disto decorre que, a menos que haja circunstâncias particulares, as pequenas nações
terminam sempre por serem anexadas pela violência às grandes; ou então se voltam voluntariamente para essa
união. Não conheço condição mais deplorável do que a de um povo que não pode bastar-se, nem defender-se.
O sistema federativo foi criado para juntar as vantagens diferentes que resultam da grande e da pequena
extensão das nações. Basta lançar os olhos sobre os Estados Unidos da América para perceber todos os
benefícios que lhes traz a ado ção de tal sistema. Entre as grandes nações centralizadas, o legislador está
obrigado a atribuir às leis um caráter uniforme, que não comporta a diversidade dos lugares e dos costumes;
como nunca está instruído a respeito dos casos particulares, só pode proceder por meio de regras gerais. Os
homens são obrigados, assim, a se curvar às necessidades da legislação, pois esta não sabe como se acomodar
às necessidades e aos costumes dos homens, o que corresponde a uma causa importante de dificuldades e de
miséria. Este inconveniente não existe nas confederações. (O. C., 1.1, vol. l,pp. 164-165.)
A Constituição norte-americana, assim, freou o despotismo e a concentração de poder (perigo inerente
à democracia) ao evitar a centralização, dividir o legislativo em duas assembleias e garantir a pluralidade de
partidos que, aliás, não são animados por convicções ideológicas (como os partidos franceses), mas alinham-
se aos interesses, inclinando-se para a discussão pragmática dos problemas enfrentados pela sociedade. A
liberdade de imprensa, da mesma forma, concorre pela liberdade; em frase que lembra a fórmula de Churchill,
para ele só há um regime pior do que a liberdade de imprensa, que é a supressão desta. (parte 2 - leis)
Outro fator essencial para a liberdade americana são seus hábitos e costumes: a tese de Tocqueville
(secundando a célebre formulação de Montesquieu, segundo a qual "eles [os ingleses] foram os que mais
progrediram de todos os povos do mundo em três coisas importantes: na religião, no comércio e na
liberdade") é que haveria uma íntima ligação entre o espírito de liberdade e o espírito de religião, responsáveis
por moldar o caráter mais profundo da cultura norte-americana, que ele tratou em sua obra. Isso se devia ao
fato de os puritanos rejeitarem a religião dogmática e impositiva e recusarem-se a aceitar a autoridade do
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Papa e de qualquer supremacia religiosa, do mesmo modo que pregavam o respeito ao próximo e às leis. A
fé, para Tocqueville, cria uma disciplina moral saudável à democracia. Enquanto os franceses estariam
dilacerados pela oposição entre a Igreja e a democracia, a religião e a liberdade, a religião, nos Estados Unidos,
vê na liberdade civil não seu oposto, mas sua realização.
Aliás, sendo a conciliação entre igualdade e liberdade o pólen da liberdade americana, é na
desigualdade que reside o perigo fundamental de guerra civil, que Tocqueville previu com maestria: embora
os aborígenes, devido a sua inferioridade numérica e técnica, estejam incapacitados de liderar uma guerra, o
homem negro, em grande número, haveria de se levantar pela igualdade garantida aos homens brancos: “o
preconceito dos brancos contra os negros parece tornar-se mais forte à medida que destrói a escravidão”:
“se um dia a América passar por grandes revoluções, serão provocadas pela presença dos negros no solo
dos Estados Unidos: isto é, não será a igualdade de condições, mas, pelo contrário, a sua desigualdade que
as fará nascer”. (parte 3 - costumes)

Em contraste ao mundo norte-americano, cabe a pergunta: por que a democracia francesa não é liberal,
isto é, embora seja democrática, por que ela encontra tantas dificuldades na consolidação de uma ordem de
liberdade? É para responder a pergunta inversa de A Democracia na América que Tocqueville escreve O Antigo
Regime e a Revolução. A Revolução Francesa agiu à maneira das religiões, considerando o homem de maneira
abstrata, em sentido inverso ao federalismo norte-americano, e propondo a salvação e a universalidade:
A Revolução Francesa funcionara, com relação a este mundo, precisamente do mesmo modo como a
revolução religiosa agindo com vistas ao outro. Ela considerou o cidadão de um modo abstrato, fora de todas
as sociedades particulares, assim como a religião considera o homem, em geral, independentemente do país e
do tempo. Não procurou somente saber qual era o direito particular do cidadão francês, mas quais eram os
deveres e direitos gerais dos homens em matéria política. Foi assim, remontando sempre ao que tinha de menos
particular, e por assim dizer, mais natural, em matéria de estado social e de governo, que pôde tomar-se
compreensível para todos, e pôde ser imitada em cem lugares ao mesmo tempo. (O. C., t. II, vol. l,p. 89.)
A união entre espírito religioso e espírito de liberdade, presentes nos Estados Unidos, estavam
absolutamente ausentes na França – o iluminismo francês, patentemente anticlerical, continha o mesmo
caráter de abstração/metafísica/amor pelos princípios da própria revolução Francesa, o que é fruto do
absolutismo, que deixou os franceses inexperientes para qualquer prática política. Em outras palavras, os
homens de letras se perderam em teorias abstratas porque não participavam na prática do governo, e,
portanto, ignoravam seus problemas reais. Nas palavras de Aron, “inexperientes em problemas reais de
governo, e ébrios de ideologia”:
Os escritores não deram apenas suas ideias ao povo que a fez (a Revolução); deram-lhe seu
temperamento e seu humor. Sob sua longa disciplina, à falta de quaisquer outros líderes, no meio da ignorância
profunda em que se vivia no cotidiano, toda a nação, ao lê-los, terminava por contrair seus instintos, sua
inclinação espiritual, o gosto e até os cacoetes próprios aos que escrevem. De sorte que, quando ela começou
a atuar, transportou para a política todos os hábitos da literatura. Quando se estuda a história da nossa
Revolução, vê-se que ela foi conduzida precisamente no mesmo espírito que a fez produzir tantos livros
abstratos sobre o governo. Vemos a mesma atração pelas teorias gerais, os sistemas completos de legislação
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e a simetria exata nas leis; o mesmo desprezo pelos fatos reais; a mesma confiança na teoria; o mesmo gosto
pelo original, o engenhoso e o novo nas instituições; a mesma vontade de refazer de uma só vez toda a
Constituição seguindo as regras da lógica e segundo um plano único, em vez de procurar emendá-la nas suas
várias partes. Um espetáculo assustador! De fato, o que é qualidade num escritor é, às vezes, vício num
estadista; as mesmas coisas que fizeram muitas vezes belos livros podem conduzir a grandes revoluções. (O.
C, t. II, vol. 1, p. 200.)
O self-government típico da nação americana deu a eles conhecimento sobre as práticas e vicissitudes
dos governos; os franceses, vivendo sob regimes absolutistas, encontraram o gosto da ideologia (com ideias
genéricas e amplas) na falta de prática com assuntos públicos. Diz Aron: “os estudantes jovens cultivam tanto
mais as teorias em matéria política quanto menos experiência têm da atividade política.”
Tocqueville diz: “falo de classes: só elas devem ocupar a história” – ele pensa a Revolução Francesa a
partir dos principais grupos sociais do país, qual seja, nobreza, burguesia, campesinato e, secundariamente,
operariado.
Com a Revolução, o governo central, por mais que fosse democrático, acabou com as autonomias
locais, centralizou a cobrança de impostos, uniformizou as leis, aumentou imensamente o número de
servidores públicos, em suma, aumentou o aparelho estatal. Por isso, Alexis de Tocqueville defende que a
Revolução Francesa aperfeiçoou a centralização iniciada pelo absolutismo e criou uma nova nobreza, a
burocracia, e um novo absolutismo, o democrático, no qual o centro comanda tudo, as partes da nação são
ceifadas e nossa individualidade reprimida. Não é a toda que, terminada a Revolução, ascende o governo
centralizado de Bonaparte.
Assim, numa França administrada pelo centro e na qual os mesmos regulamentos se aplicavam a todo
o território, os cidadãos não gozavam de liberdade para discutir seus assuntos; os costumes, o que é
igualmente perigoso para a liberdade, seguiam a mesma tendência de uniformização, de modo que os
franceses, cada vez mais, tinha as mesmas ideias, os mesmos hábitos, os mesmos gostos, os mesmos
prazeres e a mesma linguagem, uniformização esta promovida em longo prazo pelo governo central
absolutista. Uniformidade e separação – no mundo, a França era a um só tempo o país mais democrático
(isto é, com maior igualdade de condições) e com mens liberdade política. Os governos democráticos, embora
mais frágeis, são incrivelmente mais atuantes que os governos ditos absolutistas.
Obs - pobreza: para Tocqueville, “o homem, como todos os seres organizados, sente uma paixão
natural pela ociosidade. Ele tem, contudo, dois motivos que o induzem ao trabalho: a necessidade de viver e
o desejo de melhorar as condições de existência. A experiência tem provado que a maior parte dos homens
não pode ser suficientemente estimulada ao trabalho senão pelo primeiro desses motivos e que o segundo
somente motiva uma minoria. uma instituição caritativa, aberta indiscriminadamente a todos aqueles que
sentem necessidade, ou uma lei que dê a todos os pobres, qualquer que seja a origem de sua pobreza, um
direito ao auxílio público, destrói o primeiro estímulo e somente deixa intacto o segundo” (Ouvres, A
Democracia Liberal em Alexis de Tocqueville, p. 51)
“Estou profundamente convencido de que qualquer sistema regular, permanente, administrativo, cuja
finalidade seja assistir as necessidades do pobre, fará nascerem mais misérias do que as que pode sanar,
depravará a população que deseja assistir e consolar, reduzirá com o tempo os ricos simplesmente ao papel
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de funcionários dos pobres, acabará com as fontes de poupança, parará a acumulação de capitais, deterá o
progresso do comércio, entorpecerá a atividade e a indústria humanas e terminará por conduzir a uma
revolução violenta no Estado, quando o número dos que recebem esmola for quase do tamanho dos que a
pagam e quando o indigente, não conseguindo tirar dos ricos empobrecidos o necessário para satisfazer suas
necessidades, achará mais fácil espolia-los de uma vez por todas de seus bens do que solicitar os seus
auxílios” (p. 57)
Obs 2 – modéstia epistemológica liberal: se é verdade que o absolutismo é, em política, irmão gêmeo
do dogmatismo em filosofia, também podemos afirmar que a modéstia epistemológica é pressuposto do
liberalismo. Não pode haver autêntica defesa da liberdade e da tolerância ali onde se professam verdades
intocáveis no que tange À concepção do homem e do mundo. “sempre considerei a metafísica e todas as
ciências puramente teóricas, que de nada servem na realidade da vida, como um tormento voluntário que o
homem consentia em se impor” (p. 85)

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