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“Quem procura na liberdade outra coisa que não seja a própria liberdade, é feito para servir” O Antigo
Regime e a Revolução, I, III, 3.
Ao término da Era das Revoluções, em 1848, as grandes linhas de pensamento (com a notável
exceção de Tocqueville) passam a considerar a economia ou a sociedade como o motor da história.
Augusto Comte, cuja filosofia positiva é ícone de sua época, deixava claro que a ação política não
pode mudar o curso do progresso humano rumo ao estágio positivo, mas apenas acelerá-lo ou
retardá-lo; nesse sentido, é sintomático que, sobre a comunidade política, Comte diga o exato
oposto do que Thomas Paine enfatizou em toda a sua vida: “a humanidade se compõe mais de
mortos do que de vivos”; “os mortos governam cada vez mais os vivos”. Sobre esse assunto, e a
importância de Tocqueville, disse Florenzano:
Com efeito, menos de dez anos separam a proposta de uma nova ciência política (1835) por parte de
Tocqueville, da formulação de Comte de uma nova ciência social, a física social ou sociologia (1842), e da
elaboração de Marx, em parceria com Engels, de uma nova filosofia cientifica, o materialismo histórico (1844).
Se, é verdade que os três (...) quiseram, nas palavras de Jasmin, ‘fundar cientificamente a política’, também é
verdade que Tocqueville, ao contrário do que fizeram Comte e Marx, recusou-se a aceitar o destronamento da
política do centro da história (...).
Sobre isso, aliás, Tocqueville observa que os historiadores democráticos tendem a explicar os
acontecimentos por forças anônimas e mecanismos irresistíveis da necessidade histórica, enquanto que os
historiadores aristocráticos tendem a acentuar o papel dos grandes homens:
“Os historiadores que vivem nos séculos democráticos mostram tendências inteiramente
contrárias. A maior parte deles quase não atribui influência alguma ao indivíduo sobre o destino da
espécie, nem aos cidadãos sobre a sorte do povo. Mas, em troca, atribuem grandes causas gerais aos
pequenos fatos particulares. Essas tendências opostas são explicáveis. Quando os historiadores dos
séculos aristocráticos lançam os olhos para o teatro do mundo, a primeira coisa que nele percebem
é um pequeno número de atores principais, que conduzem toda a peça. Esses grandes personagens,
que se mantêm à frente da cena, detêm sua visão e a fixam: ao passo que se aplicam a revelar os
motivos secretos que fazem com que ajam e falem, esquecem-se do resto. A importância das coisas
que veem alguns homens fazer dá-lhes uma ideia exagerada da influência que pode exercer um
homem e naturalmente os dispõe a crer que é sempre necessário remontar à ação particular de um
indivíduo para explicar os movimentos da multidão (...) Quando, ao contrário, todos os cidadãos são
independentes uns dos outros, e cada um deles é frágil, não se descobre nenhum que exerça um
poder muito grande nem, sobretudo, muito durável, sobre a massa. À primeira vista, os indivíduos
parecem absolutamente impotentes sobre ela e dissera-se que a sociedade marcha sozinha pelo
concurso livre e espontâneo de todos os homens que a compõem. Isso leva naturalmente o espírito
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humano a procurar a razão geral que pode assim atingir a um tempo tantas inteligências e volta-las
simultaneamente para o mesmo lado”.
Este tipo de historiador democrático, assim, tende a tirar dos homens a liberdade de fazer sua
história, e coloca a fatalidade como senhora de nossos destinos; o fatalismo, por conseguinte,
paralisa os homens, os induz à passividade, destrói a dignidade das almas. O historicismo, assim,
é inimigo da liberdade:
“Os historiadores que vivem nos tempos democráticos não recusam, pois, apenas atribuir a
alguns cidadãos o poder de agir sobre o destino do povo; ainda tiram aos próprios povos a faculdade
de modificar a sua própria sorte e os submeterem ora a uma Providência inflexível, ora a uma espécie
de cega fatalidade. Segundo eles, cada nação é invencivelmente ligada, pela sua posição, sua origem,
seus antecedentes, sua natureza, a certo destino, que nem todos os esforços poderiam modificar.
Tornam as gerações solidárias umas às outras e, remontando assim, de época em época, de
acontecimentos necessários em acontecimentos necessários, à origem do mundo, compõem uma
cadeia cerrada e imensa que envolve todo o gênero humano e o prende. Não lhes basta mostrar como
se deram os fatos: comprazem-se ainda em mostrar que não podiam se ter dado de outra forma.
Consideram uma nação que chegou a certo ponto da sua história e afirmam que foi obrigada a seguir
o caminho que a conduziu até ali. Isto é muito mais fácil que mostrar como teria podido fazer para
seguir um melhor caminho”.
A grande contribuição de Tocqueville à sociologia, portanto, é dar primazia não ao fato industrial (como
Comte), nem ao fato capitalista (como Marx), mas ao fato democrático. Por não colocar na estrutura social
ou econômica a primazia sobre o resto, lembra Raymond Aron, talvez Tocqueville não figure em muitos
manuais de sociologia.
Mas o que é, para Tocqueville, democracia? A democracia, para ele, não é apenas um tipo de governo,
mas de sociedade. Democracia, a seus olhos, consiste na igualização das condições. Democrática é a
sociedade na qual não subsistem distinções de ordens e de classes; em que todos os indivíduos são
socialmente iguais – mas não intelectualmente, o que seria absurdo, nem economicamente, o que seria
impossível. A igualdade social, para Tocqueville, significa que não há diferenças hereditárias ou de condições,
todas as profissões, dignidades e honrarias são acessíveis a todos – a riqueza industrial e mercantil, para
Tocqueville, são muito precárias para originar uma estrutura hierárquica durável. Há, portanto, uma tendência
igualitária: diferente de uma sociedade aristocrática, o objetivo de uma sociedade democrática não é o poder
ou a glória, mas a prosperidade e a tranquilidade, o bem estar da maioria das pessoas. Bem-estar,
tranquilidade, prosperidade são os três valores fundamentais da democracia: ela não é, para Tocqueville, a
transfiguração dos destinos do homem (com pensavam alguns), nem tampouco a decomposição da
sociedade (como dizem outros), mas um regime que favorece o bem estar do maior número, muito embora
esse bem estar não tenha o brilho ou a grandeza da antiguidade.
“Se vos parece útil desviar a atividade intelectual e moral do homem para atender às necessidades da
vida material, empregando-a na produção do bem-estar; se a razão vos parece mais útil aos homens do que o
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gênio, se vossa finalidade não é criar virtudes heróicas, mas hábitos tranqüilos; se tendes preferência por ver
vícios em vez de crimes, e se preferir encontrar menos ações grandiosas a fim de encontrar menos ações
hediondas; se, em lugar de agir no seio de uma sociedade brilhante vos parece suficiente viver no meio de uma
sociedade próspera; se, por fim, o objetivo principal do governo não é, segundo vossa opinião, dar a maior força
ou a maior glória possível a todo o corpo da nação, mas sim garantir a cada um dos indivíduos que a compõem
o maior bem-estar, resguardando-o da miséria, neste caso, devereis igualar as condições, para constituir o
governo democrático. Se não há mais tempo de fazer uma escolha, e uma força superior à do homem vos
arrasta, sem consultar vossos desejos, a um dos dois tipos de governo, procurai, pelo menos, extrair dele todo
o bem de que é capaz; conhecendo seus bons instintos, e também suas más inclinações, esforçai-vos por
promover os primeiros e restringir estas últimas” (A democracia na América, I, vol. 1)
A igualdade de condições tornou-se o fato mais importante da sociedade; é uma paixão ardente no
mundo democrático, de modo que, não raro, os homens nas democracias defendem a escravidão em nome
da igualdade, de modo que suportam “a pobreza, a servidão, a barbárie, mas não suportam a aristocracia.” A
todo lado, em todo momento, os homens nas democracias clamam por igualdade. Viver numa democracia é
viver num desconforto constante, com homens e mulheres exigindo igualdade a todo o tempo, em todas as
instâncias.
Nas sociedades democráticas, cada vez mais homens possuem alguma coisa, e, devido à competição,
nunca estão satisfeitos, e cultivam fortemente a inveja; entretanto, ao contrário do que se pode imaginar, esta
sociedade é conservadora, avessa às Revoluções, uma vez que, na torrente revolucionária, a propriedade entra
em perigo: são sociedades mais “querelosas que revolucionárias” (Aron). A propriedade e a difusão de uma
prosperidade média, combinada à educação, é uma boa maneira de conservar a estabilidade. Enquanto o
pobre adere à revolução por não ter nada a perder, ao passo que os ricos, acostumados à opulência, esquecem
das necessidades e tornam-se insensíveis aos seus privilégios, os homens médios, ainda muito próximos da
pobreza, têm grande apreço pelo seu reduzido patrimônio, sobre o qual depositam todos os temores e as
esperanças – esse tipo de homem médio é quem mais ganha força nos regimes democráticos! A democracia
“amam a mudança, mas tem a revolução. (Democracia na América)” Diferente da noção de Comte
(tecnocracia) e Marx (revolução), Tocqueville via, no futuro, um emburguesamento generalizado. Pelo mesmo
motivo, aliás, as sociedades democráticas são avessas à guerra.
Por mais que tivesse uma origem Aristocrática, para Tocqueville seria insensato querer restaurar a
autoridade e os privilégios da aristocracia que foi destruída pela Revolução. Enquanto, no mundo aristocrático,
a liberdade era garantida, como aponta Montesquieu, pela desigualdade, no mundo democrático a liberdade
deve estar assentada na igualdade de condições. Mas, para haver liberdade – isto é, ausência de
arbitrariedade – é preciso impor limites ao poder; é preciso que haja uma pluralidade de centros de decisão,
de órgãos políticos e administrativos equilibrando-se uns aos outros, é preciso que haja representação. Mas
como, enfim, conciliar liberdade e igualdade? Como construir um governo livre e sólido ao mesmo tempo, que
não caia nem no Terror, nem no despotismo?
Para Tocqueville, toda democracia tende à centralização e ao despotismo; esse é o perigo que deve ser
evitado, qual seja, o despotismo da maioria. Duas explicações para isso podem ser apontadas:
Em contraste ao mundo norte-americano, cabe a pergunta: por que a democracia francesa não é liberal,
isto é, embora seja democrática, por que ela encontra tantas dificuldades na consolidação de uma ordem de
liberdade? É para responder a pergunta inversa de A Democracia na América que Tocqueville escreve O Antigo
Regime e a Revolução. A Revolução Francesa agiu à maneira das religiões, considerando o homem de maneira
abstrata, em sentido inverso ao federalismo norte-americano, e propondo a salvação e a universalidade:
A Revolução Francesa funcionara, com relação a este mundo, precisamente do mesmo modo como a
revolução religiosa agindo com vistas ao outro. Ela considerou o cidadão de um modo abstrato, fora de todas
as sociedades particulares, assim como a religião considera o homem, em geral, independentemente do país e
do tempo. Não procurou somente saber qual era o direito particular do cidadão francês, mas quais eram os
deveres e direitos gerais dos homens em matéria política. Foi assim, remontando sempre ao que tinha de menos
particular, e por assim dizer, mais natural, em matéria de estado social e de governo, que pôde tomar-se
compreensível para todos, e pôde ser imitada em cem lugares ao mesmo tempo. (O. C., t. II, vol. l,p. 89.)
A união entre espírito religioso e espírito de liberdade, presentes nos Estados Unidos, estavam
absolutamente ausentes na França – o iluminismo francês, patentemente anticlerical, continha o mesmo
caráter de abstração/metafísica/amor pelos princípios da própria revolução Francesa, o que é fruto do
absolutismo, que deixou os franceses inexperientes para qualquer prática política. Em outras palavras, os
homens de letras se perderam em teorias abstratas porque não participavam na prática do governo, e,
portanto, ignoravam seus problemas reais. Nas palavras de Aron, “inexperientes em problemas reais de
governo, e ébrios de ideologia”:
Os escritores não deram apenas suas ideias ao povo que a fez (a Revolução); deram-lhe seu
temperamento e seu humor. Sob sua longa disciplina, à falta de quaisquer outros líderes, no meio da ignorância
profunda em que se vivia no cotidiano, toda a nação, ao lê-los, terminava por contrair seus instintos, sua
inclinação espiritual, o gosto e até os cacoetes próprios aos que escrevem. De sorte que, quando ela começou
a atuar, transportou para a política todos os hábitos da literatura. Quando se estuda a história da nossa
Revolução, vê-se que ela foi conduzida precisamente no mesmo espírito que a fez produzir tantos livros
abstratos sobre o governo. Vemos a mesma atração pelas teorias gerais, os sistemas completos de legislação
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e a simetria exata nas leis; o mesmo desprezo pelos fatos reais; a mesma confiança na teoria; o mesmo gosto
pelo original, o engenhoso e o novo nas instituições; a mesma vontade de refazer de uma só vez toda a
Constituição seguindo as regras da lógica e segundo um plano único, em vez de procurar emendá-la nas suas
várias partes. Um espetáculo assustador! De fato, o que é qualidade num escritor é, às vezes, vício num
estadista; as mesmas coisas que fizeram muitas vezes belos livros podem conduzir a grandes revoluções. (O.
C, t. II, vol. 1, p. 200.)
O self-government típico da nação americana deu a eles conhecimento sobre as práticas e vicissitudes
dos governos; os franceses, vivendo sob regimes absolutistas, encontraram o gosto da ideologia (com ideias
genéricas e amplas) na falta de prática com assuntos públicos. Diz Aron: “os estudantes jovens cultivam tanto
mais as teorias em matéria política quanto menos experiência têm da atividade política.”
Tocqueville diz: “falo de classes: só elas devem ocupar a história” – ele pensa a Revolução Francesa a
partir dos principais grupos sociais do país, qual seja, nobreza, burguesia, campesinato e, secundariamente,
operariado.
Com a Revolução, o governo central, por mais que fosse democrático, acabou com as autonomias
locais, centralizou a cobrança de impostos, uniformizou as leis, aumentou imensamente o número de
servidores públicos, em suma, aumentou o aparelho estatal. Por isso, Alexis de Tocqueville defende que a
Revolução Francesa aperfeiçoou a centralização iniciada pelo absolutismo e criou uma nova nobreza, a
burocracia, e um novo absolutismo, o democrático, no qual o centro comanda tudo, as partes da nação são
ceifadas e nossa individualidade reprimida. Não é a toda que, terminada a Revolução, ascende o governo
centralizado de Bonaparte.
Assim, numa França administrada pelo centro e na qual os mesmos regulamentos se aplicavam a todo
o território, os cidadãos não gozavam de liberdade para discutir seus assuntos; os costumes, o que é
igualmente perigoso para a liberdade, seguiam a mesma tendência de uniformização, de modo que os
franceses, cada vez mais, tinha as mesmas ideias, os mesmos hábitos, os mesmos gostos, os mesmos
prazeres e a mesma linguagem, uniformização esta promovida em longo prazo pelo governo central
absolutista. Uniformidade e separação – no mundo, a França era a um só tempo o país mais democrático
(isto é, com maior igualdade de condições) e com mens liberdade política. Os governos democráticos, embora
mais frágeis, são incrivelmente mais atuantes que os governos ditos absolutistas.
Obs - pobreza: para Tocqueville, “o homem, como todos os seres organizados, sente uma paixão
natural pela ociosidade. Ele tem, contudo, dois motivos que o induzem ao trabalho: a necessidade de viver e
o desejo de melhorar as condições de existência. A experiência tem provado que a maior parte dos homens
não pode ser suficientemente estimulada ao trabalho senão pelo primeiro desses motivos e que o segundo
somente motiva uma minoria. uma instituição caritativa, aberta indiscriminadamente a todos aqueles que
sentem necessidade, ou uma lei que dê a todos os pobres, qualquer que seja a origem de sua pobreza, um
direito ao auxílio público, destrói o primeiro estímulo e somente deixa intacto o segundo” (Ouvres, A
Democracia Liberal em Alexis de Tocqueville, p. 51)
“Estou profundamente convencido de que qualquer sistema regular, permanente, administrativo, cuja
finalidade seja assistir as necessidades do pobre, fará nascerem mais misérias do que as que pode sanar,
depravará a população que deseja assistir e consolar, reduzirá com o tempo os ricos simplesmente ao papel
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de funcionários dos pobres, acabará com as fontes de poupança, parará a acumulação de capitais, deterá o
progresso do comércio, entorpecerá a atividade e a indústria humanas e terminará por conduzir a uma
revolução violenta no Estado, quando o número dos que recebem esmola for quase do tamanho dos que a
pagam e quando o indigente, não conseguindo tirar dos ricos empobrecidos o necessário para satisfazer suas
necessidades, achará mais fácil espolia-los de uma vez por todas de seus bens do que solicitar os seus
auxílios” (p. 57)
Obs 2 – modéstia epistemológica liberal: se é verdade que o absolutismo é, em política, irmão gêmeo
do dogmatismo em filosofia, também podemos afirmar que a modéstia epistemológica é pressuposto do
liberalismo. Não pode haver autêntica defesa da liberdade e da tolerância ali onde se professam verdades
intocáveis no que tange À concepção do homem e do mundo. “sempre considerei a metafísica e todas as
ciências puramente teóricas, que de nada servem na realidade da vida, como um tormento voluntário que o
homem consentia em se impor” (p. 85)