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As vicissitudes da democracia participativa

no Brasil

Rubens Pinto Lyra

Sumário
1. As fontes geradoras – uma nova sociabili-
dade política. 2. A nova ordem jurídico-institu-
cional. 3. Os obstáculos à expansão da participa-
ção popular: corpoativismo, autoritarismo e
conservadorismo. 4. Rumo à disseminação da
democracia participativa?

1. As fontes geradoras – uma nova


sociabilidade política
Do ponto de vista sociológico, a fonte ge-
radora das práticas participativas que hoje
integram a institucionalidade jurídico-po-
lítica brasileira foi a luta pela redemocrati-
zação, levada a cabo nos anos setenta e que
teve no “novo sindicalismo” e nos movimen-
tos sociais emergentes os seus mais conspí-
cuos protagonistas. Os operários do ABC,
liderados por Luís Inácio Lula da Silva, or-
ganizaram as primeiras greves sob a dita-
dura, visando à melhoria de salários, a di-
reitos trabalhistas e à conquista das liber-
dades sindicais, tendo como forma de orga-
nização a participação direta das bases no
Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito, na processo decisório.
área de política, pela Universidade de Nancy O exemplo dos metalúrgicos do ABC ir-
(França). Professor dos Programas de Pós-Gra- radiou-se para as categorias mais politiza-
duação em Sociologia e em Direito da UFPB. das de trabalhadores, na esfera pública e
Presidente do Conselho Estadual de Direitos privada, em todo o país, gerando uma nova
Humanos da Paraíba (1992-1996) e 1º Vice-Pre-
sociabilidade política lastreada na ação cor-
sidente da Associação Brasileira de Ouvidores
(1995-1997). Autor de diversos livros e artigos porativa e na democracia direta.
sobre a temática de direitos humanos, da de- O incremento dessas lutas contra a ins-
mocracia e do socialismo. titucionalidade ocorreu espontaneamente
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(pois o objetivo não estava previamente ampla mobilização nacional objetivando
traçado), contribuindo, de forma decisi- inserir, no texto constitucional, mecanismos
va, para pôr em cheque a transição “lenta, de democracia direta.
gradual e segura”, substituindo-a por um No caso específico da emenda nº 21, so-
processo que culminou, mediante a pro- bre participação popular, aquelas organi-
mulgação da “Constituição cidadã”, com zações lideraram a coleta de assinaturas em
o pleno reconhecimento institucional do todas as regiões do país. Foi a partir dessa
regime democrático1. emenda que se consolidaram alguns dos
Nesse sentido, a democracia brasileira princípios fundamentais da democracia di-
pode ser considerada como um subproduto reta, como o plebiscito, a iniciativa popular
de lutas corporativas, diferentemente de ou- de lei e o referendo.
tras transições, como, por exemplo, as da Por essas razões, das sete emendas à
Espanha e de Portugal, onde a oposição po- constituição que conseguiram recolher mais
lítica, ainda que impulsionada pelas lutas de 500.000 assinaturas, cinco foram apoia-
sindicais, teve papel crucial na liquidação das por organizações religiosas (Doimo,
do autoritarismo, seja por meio de um pacto 1994: 195).
congregando as “forças vivas da Nação” Afora essas organizações, apenas enti-
(Espanha) ou pela mediação revolucioná- dades ligadas à saúde e à assistência social
ria de militares “progressistas” (Portu- mostraram capacidade de mobilização para
gal). Em ambos os casos, a restauração da viabilizar, primeiro, na Constituição brasi-
democracia constituiu-se no pólo agluti- leira, e depois, na legislação federal, a insti-
nador e na razão de ser da luta contra o tuição de canais de participação da cidada-
autoritarismo. nia na formulação de políticas públicas.
No Brasil, a nova sociabilidade políti- Nesse processo, desempenharam papel
ca gerada pelos embates contra a ditadu- central o Movimento Popular de Saúde
ra produziu, como não podia deixar de (MOPS) – situado na órbita da Igreja – e o
ser, importantes repercussões na esfera Movimento de Reforma Sanitária – formado
jurídico-institucional, materializadas na por profissionais da saúde, funcionários pú-
Constituição de 1988. blicos e professores universitários. A ação
Algumas manifestações dessa nova so- desses movimentos possibilitou a inserção,
ciabilidade concorreram diretamente para no texto constitucional, de garantia de par-
a mobilização social pró-participação po- ticipação da sociedade na formulação da
pular na Constituinte: a ampla difusão da política de saúde e, posteriormente, a criação,
democracia direta no sindicalismo, o “ba- em nível municipal, regional e nacional, de
sismo” particularmente forte nos movimen- Conselhos ligados à área.
tos sociais hegemoneizados pela Igreja Ca- Já no âmbito das políticas relacionadas
tólica, o papel das Organizações Não Go- com a assistência social, alcançou papel de
vernamentais (ONGs) ligadas à promoção destaque o Movimento Nacional dos Meni-
da cidadania e o engajamento crescente de nos de Rua. Atuando como pólo aglutina-
importantes setores da classe média nas dor de um conjunto de entidades empenha-
práticas participacionistas. das na luta pelos direitos da criança e do
É de se observar, todavia, que o corpora- adolescente, o Movimento garantiu, na Cons-
tivismo dominante na sociedade civil orga- tituinte, a participação da cidadania nas
nizada restringiu o ímpeto de participar à ações de governo atinentes à política da
apresentação de emendas constitucionais criança e do adolescente e contribuiu, de
de interesse mais direto para o movimento forma decisiva, para a aprovação do respec-
ou para a organização proponente. tivo Estatuto.
Somente as entidades religiosas, com No âmbito do movimento sindical, a As-
destaque para a Igreja Católica, efetuaram sociação Nacional dos Docentes do Ensino
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Superior (ANDES) foi uma das raras enti- à criança e ao adolescente se especifica
dades a formular uma proposta mais abran- como se dá a participação da população:
gente para o texto constitucional. Tal pro- “por meio de organizações representati-
posta contemplava, entre outros pontos, as vas” (art. 204, 22).
várias modalidades de democracia direta, O Estatuto da Criança e do Adolescente
posteriormente inscritas na Constituição de (ECA), criado pela Lei nº 8.059, de 12 de
1988. Postulava, também, a criação do cargo julho de 1990, dá conteúdo ainda mais pre-
de “Defensor do Povo” (Ombudsman), ciso às inovações introduzidas na Carta
“eleito pelo parlamento mediante a in- Magna em matéria de participação popu-
dicação de candidatos pelas organiza- lar. Assim, nos Conselhos da Criança e do
ções da sociedade civil” (ANDES, Adolescente – cuja instalação, em nível na-
1987:31). cional, estadual e municipal, o ECA torna
Todavia, a aprovação das propostas de obrigatória –, “deverão ter assegurada a pa-
índole não-corporativa teve caráter sobre- ridade entre as organizações representati-
tudo formal, tendo sido votada sem nenhum vas da população e os órgãos do Governo”
debate ou mobilização da categoria, por um (art. 88, I).
plenário sonolento e esvaziado2. Vale salientar que o ECA tornou-se o pri-
meiro diploma legal a consagrar, em nível
2. A nova ordem jurídico-institucional nacional, a democracia participativa pari-
tária, na definição e implementação de uma
A participação direta do cidadão na
política setorial.
gestão pública é princípio consolidado há
Já no caso dos Conselhos Tutelares, im-
quase cinqüenta anos, inscrito na própria
portante órgão previsto no Estatuto acima
Declaração dos Direitos do Homem, na
referido, todos os seus integrantes são re-
qual se lê que
presentantes da sociedade eleitos pelos ci-
“todo homem tem o direito a tomar
dadãos locais para mandato de três anos
parte no governo de seu país direta-
(art. 132).
mente ou por intermédio de represen-
Também na área da saúde, a legislação
tantes livremente escolhidos” (art.
federal introduz, em todo o país, a partici-
XXI, inciso I).
pação da sociedade na gestão pública, me-
Todavia, poucas constituições reprodu-
diante as Conferências de Saúde, órgão de
ziram o conteúdo desse dispositivo, sendo
caráter propositivo, e os Conselhos de Saú-
que a brasileira o fez apenas em 1988:
de, a quem compete
“todo poder emana do povo, que o
“formular estratégias e controlar a
exerce por meio de representantes
execução da política de saúde, in-
eleitos ou diretamente, nos termos
clusive nos aspectos econômicos e
desta Constituição” (art. 1º, pará-
financeiros” (Lei nº 8.142, de 28 de
grafo único).
dezembro de 1990).
Além dessa norma genérica, vários arti-
gos da Constituição prevêem a participação Por outro lado, as Constituições esta-
da cidadania na gestão pública, seja por duais, por iniciativa de seus legisladores,
meio da participação da comunidade, no tendo em vista o chamado “efeito dominó”,
sistema único de saúde e na seguridade so- estenderam a participação popular a diver-
cial (art. 198, III e art. 194, VII) seja como, no sas outras áreas, notadamente àquela refe-
caso da política agrícola, “com participa- rente ao monitoramento das políticas de
ção efetiva dos diferentes agentes econô- direitos humanos.
micos envolvidos em cada setor de produ- Cabe ainda observar que, mesmo sem am-
ção” (art. 187, caput). Somente nos casos da paro constitucional, outros órgãos da demo-
assistência social e das políticas referentes cracia participativa vêm-se insinuando no
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ordenamento jurídico pátrio. Nesse campo, não com a hostilidade velada – que lhe de-
a principal inovação é a Ouvidoria (Om- dica o “novo sindicalismo” e o “movimento
budsman). Esse instituto de caráter unipes- popular”.
soal vem-se desenvolvendo de forma pouco Trata-se de um aparente paradoxo: as
homogênea, mas alcançando diferentes es- entidades populares e os sindicatos ligados
feras do serviço público, especialmente al- à Central Única dos Trabalhadores (CUT) –
guns municípios (sobretudo no caso do Es- principal central sindical – funcionam (se
tado do Paraná, o primeiro dotado de um bem ou mal, é outra questão) com base em
Ouvidor-Geral), as instituições policiais e mecanismos de deliberação da democracia
as universidades públicas, com destaque direta ou semi-indireta.
para as federais. Por que então não existe entusiasmo
Por outro lado, ainda que não plenamen- em transportar a experiência da democra-
te recepcionadas pelo ordenamento jurídi- cia participativa da esfera privada para a
co vigente, vêm-se desenvolvendo, com di- pública?
ferentes graus de informalidade3, muitas ex- Em primeiro lugar, devido à presença he-
periências de democracia direta ou semi- gemônica do corporativismo nos diferentes
indireta4. arraiais da esquerda brasileira. Um exem-
O exemplo de maior impacto relativo à plo dado por Tarso Genro ilustra de forma
primeira é, de longe, o Orçamento Partici- contundente o que foi dito acima.
pativo, tendo como paradigma, cantado em Genro lembra o episódio das greves sel-
verso e prosa, o da cidade de Porto Alegre. vagens dos trabalhadores da Companhia
O destaque a essa experiência se deve, não Municipal de Transportes Urbanos (CMTC)
somente ao seu caráter original e bem suce- da cidade de São Paulo, no Governo Erun-
dido, mas também ao fato de, no caso em dina, que terminou por inviabilizar aquela
espécie, colocar-se, nas mãos do cidadão co- empresa.
mum – o munícipe (quer dizer, potencial- Para Genro,
mente, de toda a população do Município), “o caso da CMTC é emblemático...
a deliberação última sobre a alocação de Apenas para lembrar a cegueira dos
vultosos recursos financeiros5. valores políticos a que chegaram de-
Quanto à segunda, o melhor exemplo tal- terminados setores operários, é bom
vez seja a democratização levada a cabo, lembrar que os trabalhadores dessa
na prática, pelas universidades públicas, empresa vanguardearam o seu suca-
entre essas as federais, que comentaremos teamento durante o governo Erundi-
adiante. Nessas instituições, os titulares de na. Esse governo defendia a viabili-
funções executivas (Reitor, Diretores de Cen- zação da CMTC como empresa públi-
tros, Chefes e Coordenadores) e deliberati- ca modelo. O sindicalismo jamais co-
vas (Conselheiros integrantes dos Colegia- locou em debate um milímetro sequer
dos Superiores) não são, na prática, esco- do interesse da população, transfor-
lhidos de cima para baixo, como prevê a lei, mando a sua luta corporativa num
mas de baixo para cima, pelos seus docen-
centro de desgaste de um governo que
tes e servidores técnico-administrativos.
precisamente defendia o Estado
como protagonista das atividades
3. Os obstáculos à expansão da essenciais” (Genro: 1995 a:142).
participação popular: corporativismo, Se o interesse público é, para Genro, “a
autoritarismo e conservadorismo medida da aferição da cidadania” e, pode-
Um dos principais óbices à dissemina- ríamos acrescentar, de aferição de uma pos-
ção da democracia participativa no Brasil tura verdadeiramente democrática, grande
relaciona-se com a indiferença – quando parte da esquerda se encontra bastante
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distanciada dele. Na verdade, para essa es- Porém, quinze anos após a consolida-
querda, democracia é compreendida e pra- ção das eleições diretas nas Instituições Fe-
ticada como sendo apenas (ou sobretudo) o derais de Ensino Superior (IFES), o poder
espaço de liberdade que possibilita a luta continua, na prática, concentrado nas mãos
por mais benefícios e direitos para determi- do “executivo” (Reitores e Diretores de
nada categoria6. Centro), apesar de a legislação (por sinal
Ora, a democracia direta na esfera pri- anterior ao processo de democratização
vada não implica qualquer compromisso do país) já atribuir aos Colegiados (Con-
com a res publica, quaisquer limites aos di- selhos Universitários e de Centro) a for-
reitos, qualquer imposição, por parte da so- mulação das políticas a serem implemen-
ciedade, de deveres e responsabilidades. tadas nas Universidades.
Já o exercício da democracia direta ou Tão ou mais grave: a democratização da
semi-indireta na esfera pública se faz com Universidade para a sociedade, que a finan-
base na aceitação, a priori, de deveres como cia e a quem deve servir, sequer foi intenta-
contrapartida de direitos, devendo as deci- da na grande maioria das IFES, e, onde foi,
sões tomadas terem sempre como referencial tem sido apenas timidamente ensaiada.
o interesse público, por definição restritivo Nenhuma proposta foi, a esse respeito, apre-
em relação aos interesses particularistas sentada pelo movimento docente, que se
desta ou daquela categoria. quer paladino das lutas pela democratiza-
Não obstante, as práticas participativas ção da Universidade brasileira. Na realida-
de índole corporativista podem alcançar a de, pouco ou nada tem sido feito, no que
esfera pública. Mas, ao fazê-lo, limitam o se refere à participação das forças vivas
seu campo de intervenção apenas aos es- da sociedade nas diferentes instâncias
paços institucionais onde o exercício do decisórias das IFES.
poder possa contemplar os seus interesses Em um tal contexto, as propostas para a
específicos. criação de Ouvidorias nas Universidades
O caso da “democratização corporativa” têm-se defrontado – via de regra – com uma
das Instituições Federais de Ensino Superior atitude de indiferença, ou de velada hostili-
(IFES) ilustra, como poucos, o alcance e os dade, dos segmentos universitários que se
limites de certas experiências da democracia dizem comprometidos com a democracia.
participativa na esfera pública. Seria porque o Ombudsman, eleito pelo
Docentes e servidores técnico-adminis- Conselho Universitário (CONSUNI), dispõe
trativos conseguiram, no início dos anos de independência funcional suficiente para
oitenta, por termo ao processo autoritário exercitar sua ação fiscalizadora, sem se do-
de escolha dos dirigentes do ensino su- brar às pressões corporativistas?
perior federal, fazendo com que estes fos- À resistência corporativa à democracia
sem, de fato, eleitos diretamente pela co- participativa se associa uma postura mar-
munidade universitária, ao invés de se- cadamente anti-institucional – em franco de-
rem escolhidos por meio de listas trípli- clínio, mas, até recentemente, hegemônica
ces ou sêxtuplas elaboradas pelos colegiados no seio da esquerda brasileira.
daquelas instituições. Com efeito, prevaleceu, até há alguns
Todavia, deram por encerrada, na práti- anos, a concepção leninista de democracia,
ca, a luta pela democratização da Universi- qualificada pejorativamente de “burguesa”,
dade na medida em que conquistaram para que não admite a possibilidade de, por meio
si o poder institucional. Assim, mesmo tra- da ação institucional, promover-se mudan-
tando-se apenas de democratização do po- ças substanciais de caráter econômico-
der para a corporação, esta foi apresentada social ou político.
como sendo a conquista da democratização Durante um Encontro Nacional do Mo-
tout court da Universidade. vimento Nacional de Direitos Humanos,
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em 1985, Frei Leonardo Boff declarou: A maior resistência à quebra de valores
“Por causa de sua raiz liberal e in- institucionais
dividualista, grande parte da luta pe- “se encontra no interior dos grupos
los direitos humanos até os dias de organizados da sociedade que dese-
hoje se concentra em alguns eixos nham o perfil dominante nos municí-
que interessam mais às classes burgue- pios” (Battini, 1993:33).
sas, como são os direitos à liberdade Mesmo as organizações de classe média
de expressão, liberdade religiosa, li- (OAB, conselhos profissionais, entidades de
berdade de imprensa, liberdade de classe), as próprias Universidades, muitas
propriedade (...)”. ONGs estão longe de considerar a partici-
Se faz, pois, necessário, para Boff, priorizar, pação nos órgãos da cidadania da esfera
entre os direitos humanos, os direitos pública como importante, sobretudo as que
sociais, a partir dos quais seriam definidos objetivam a promoção de interesses de cará-
os outros direitos. ter universal (Conselhos de Direitos Huma-
Seguindo o mesmo diapasão, Frei Betto, nos, de Segurança, de Comunicação, Ouvi-
de regresso de uma viagem à Cuba, em 1986, dorias, etc). A participação nesses órgãos
justifica a ditadura nesse país ao esclarecer seria menos atrativa, pois, na maioria dos
que o critério de valoração de um regime casos, estão longe de oferecer os meios ma-
político, para um cristão, é “se ele traz mais teriais e a projeção social que conferem car-
ou menos vida a seu povo. Porque a questão gos de direção de muitas organizações de
de voto não é o critério fundamental” (Apud representação profissional ou classista.
Oliveira, 1996:87 e 23). Na apresentação de um trabalho intitu-
Vê-se que, com base em tais concepções, lado “Cidadania e Imprensa na Paraíba”,
o estímulo efetivo à democracia participati- referi-me à
va não poderia legitimar a participação na “existência de uma cultura autoritá-
esfera pública institucional e sim a substi- ria de que não escapa nem mesmo a
tuição desta por uma teia organizada de mo- nossa melhor sociedade civil organi-
vimentos a fim de compatibilizar a demo- zada. Assim, o caso Gulliver 7, as
cracia política (cujos procedimentos seriam campanhas ilegais de publicidade
definidos pelos próprios movimentos orga- dos governamentes, as graves res-
nizados) com a democracia social (Doimo, trições à liberdade de imprensa, a
1994:182). utilização descarada de jornais pa-
As dificuldades de expansão dos insti- gos pelo contribuinte - como A
tutos da democracia participativa não se li- União - que apenas expressam a voz
mitam, porém, aos movimentos sociais de
do dono, não chegam a comover en-
índole corporativa e anti-institucional. Na
tidades que, na retórica, se dizem
verdade, as tradições de exercício da cida-
guardiãs e paladinas da democra-
dania no país praticamente inexistem. Por
isso, o interesse pela promoção da demo- cia mas, na prática, parecem mes-
cracia participativa é, em muitos casos, li- mo adeptas do bata que eu gosto”.
mitado, ou mesmo inexistente. E arrematava:
A professora Odária Battini observou “omite-se a sociedade, omitem-se as
que um dos limites impostos ao funciona- autoridades: onde está o Ministério
mento exitoso dos Conselhos da Criança e Público que até hoje não denunciou a
do Adolescente é farra radiofônica contra o regime de-
“a resistência de forças da sociedade mocrático?” (Lyra, 1996a:6).
para essa nova forma de controle so- As questões que afligem a democracia,
cial e para a nova prática decisória assim como a indiferença de muitos setores
em nível local”. organizados perante elas, podem apresentar
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nuanças regionais, mas têm, seguramente, selhos de Direitos Humanos, sendo que so-
dimensão nacional. mente cinco deles são independentes.
Vale referir-se, a esse respeito, a artigo Mesmo com relação aos Conselhos de
do jornalista Marcelo Coelho. Este consi- Saúde, da Criança e do Adolescente e Tute-
dera que lar, cujo funcionamento é, por lei, obrigató-
“o melhor do homem é o espanto. Mas rio, as atitudes de Governadores e Prefeitos
o fato de haver o espanto que só fica são freqüentemente marcadas pela lerdeza,
nisso – no espanto – é o que há de ou mesmo completa inação. Foi necessário
mais espantoso no caso do Brasil”. o Governo Federal ameaçar o não-repasse
Com efeito, Coelho lembra que de verbas à saúde e à assistência social para
“a cultura dominante, autoritária e obrigar os governantes a deixarem de ser
corporativista, faz com que, por exem- omissos na matéria.
plo, não se criem movimentos e não se Algumas pesquisas sobre o funciona-
façam manifestações para rever as re- mento dos Conselhos da Criança e do Ado-
gras da imunidade parlamentar, para lescente revelam que predomina, por parte
protestar contra a tortura ao ar livre de dirigentes dos órgãos de Estado, o peso
em Diadema, para, enfim, reivindicar da tradição de “decisões centralizadas por seg-
reformas reais na constituição. mentos ligados aos poderes constituídos”, pou-
Entretanto, em nome de seus “legítimos ca disposição desses poderes de
interesses, pára-se o trânsito, organizam-se “enfrentar confrontos entre pensa-
passeatas, irrita-se quem não tem nada a ver mentos múltiplos e práticas plurais
com o peixe”. Isso porque, conclui Coelho, que necessariamente se evidenciam
“se perdeu, no meio da briga entre taxistas, nos processos mais abertos, havendo
camelôs ou perueiros, o sentido do que é a preferência por definições em uma
coletivo e público”. esfera mais restrita”.
Entretanto, o mais poderoso foco de re- Trata-se, em suma, de
sistência à democracia participativa provém “uma prática de definição do proble-
dos políticos no poder, ligados aos “parti- ma da criança e do adolescente de
dos da ordem”. Em todo o país, a maioria natureza pontual e focalista, centra-
dos Governadores mostra-se indiferente ou da nos organismos do poder público,
hostil à criação de Conselhos de Direitos negando os termos da lei” (Battini,
Humanos. Estes, quando já instalados, so- 1993:12).
frem com as restrições impostas pelo Poder Assim, na Paraíba, o Prefeito de Patos,
Executivo8; Poder que consegue, por vezes, uma das principais cidades do Estado, é
desfigurar completamente a proposta de acusado de omissão pela presidente do Con-
criação de um Conselho de Direitos Huma- selho Municipal da Criança e do Adoles-
nos, autônomo em relação ao Executivo, subs- cente por deixar de indicar seus represen-
tituindo-o por um conselho de Governo9. tantes no órgão (O Norte, 14-2-1998).
Mesmo quando o governante admite Pergunta formulada a Battini, após pa-
uma participação importante da sociedade lestra proferida sobre o tema, sintetiza as
civil no Conselho, mantém, apesar disso, um dificuldades dos conselheiros representan-
vínculo de subordinação, por meio da livre tes de entidades da sociedade civil:
escolha, pelo Governador, de seu Presiden- “todo o poder no município fecha as
te, ou por meio de dispositivos legais que portas para o Conselho. Não só a Pre-
reservam esta função para um Secretário de feitura, mas também a Delegacia, o
Estado. O resultado de tudo isso é que, entre Poder Judiciário... Na maioria das ve-
as vinte e sete unidades da Federação, em zes os conselheiros são obrigados a
apenas sete estão em funcionamento Con- ceder à vontade dos dirigentes para
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conseguir trabalhar. O que fazer? Sem- Tudo isso explica que não existam, no
pre chegar e pedir, subordinando-se Brasil, Ouvidorias estaduais ou municipais,
aos mandantes?” (Battini, 1994:16). dotadas de autonomia em relação aos Go-
Já o funcionamento dos conselhos de vernos que fiscalizam; que as que existiam
saúde desvela com essas características, em Campinas e
“a existência de uma cultura centra- em Santos, tenham sido extintas ou desati-
lizada e autoritária das secretarias vadas já que suas críticas e denúncias não
estaduais de saúde e do Ministério da agradaram os administradores de plantão10.
Saúde” (Santos, 1998:3). No que diz respeito às Ouvidorias de Po-
Também, em nível municipal, constata- lícia, a última criada mereceu reportagem
se que muitos prefeitos entendem que do jornal Estado de Minas Gerais, na qual o
“o conselho só tem abuso. É um espa- Presidente do Conselho Estadual de Direi-
ço manipulado pela oposição. Não dá tos Humanos denuncia o fato de o nome do
certo. Não quero que dê certo” (Car- Ouvidor de Polícia do Estado de Minas, in-
valho, 1998:2). dicado, nos termos da lei, pelo Conselho,
Essa predisposição negativa de prefei- encontrar-se, há mais de cem dias, no Gabi-
tos, em nível nacional, é confirmada na Pa- nete do Governador, aguardando nomeação
raíba pela denúncia do Procurador da Re- (Magalhães, 1998).
pública Antonio Edílio Texeira, para quem
“95% dos Conselhos existentes na
4. Rumo à disseminação da democracia
área de saúde só funcionam no papel.
Na prática não existem e isso é muito participativa?
preocupante porque quem deve deci- Transformações recentes vêm contri-
dir sobre a saúde é o Conselho e não o buindo para quebrar as resistências à ex-
prefeito, como ocorre atualmente” pansão dos institutos da democracia parti-
(Correio da Paraíba, 9-5- 1998). cipativa no Brasil. No plano econômico-so-
Com relação às Ouvidorias, é notória a cial, as mudanças no mundo do trabalho,
resistência de parlamentares e Chefes de decorrentes do processo de globalização. Na
Executivo (Governadores e Prefeitos) à sua esfera institucional, a crescente defasagem
criação, sobretudo quando tais Ouvidorias entre o ordenamento jurídico e as institui-
são dotadas de autonomia perante os go- ções do Estado em face das novas realida-
vernos. Temem uma fiscalização indepen- des sociais. No plano político mais geral, a
dente porque não suportam a transparên- queda do Muro de Berlim, com a conseqüente
cia que seria imposta ao funcionamento de valorização da democracia, enquanto regi-
suas administrações. me político e forma de acesso ao poder.
Tomemos o exemplo do gasto com ver- Examinemos, inicialmente, as questões
bas publicitárias. O caráter das licitações, a relacionadas com a esfera econômica e so-
natureza dos contratos, o montante e a des- cial. A globalização é, na verdade, uma
tinação das verbas alocadas à publicidade, faca de dois gumes. Ela encerra elemen-
a função e o objetivo desta (educativo? in- tos potencialmente capazes de conduzir
formativo? propagandístico?), a sua confor- à barbárie, mas também traz em seu bojo
midade com a legislação vigente, tudo seria a possibilidade de viabilizar uma estraté-
objeto de fiscalização, cobrança e debate. gia de mudança radicalmente democráti-
Quando se conhece o clientelismo, o perso- ca e anticorporativa11.
nalismo e o caráter ilegal presentes na pu- Na atual etapa do desenvolvimento ca-
blicidade de inúmeros Governos, compre- pitalista, o proletariado, classe operária tra-
ende-se melhor as resistências de políticos dicional, é profundamente atingido, assu-
conservadores a formas de controle social mindo, no seu lugar, papel de destaque
do serviço público, como as Ouvidorias. os “colarinhos brancos” (organizadores
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técnicos e cientistas do processo produtivo). Dessa sorte, uma nova e decisiva po-
A revolução tecnológica torna o trabalho as- larização substitui a luta de classe tradi-
salariado dos operários qualitativamente cional: a que opõe esse amplo espectro de
menos importante e sua força social dimi- “atores sociais”, acima destacado, a um
nuída; o que conduz o velho proletariado a Estado descomprometido com políticas de
“uma posição cada vez mais ‘concor- integração social.
rencial’, corporativa, entre as diversas Ora, somente políticas regulatórias leva-
categorias de trabalhadores, chaman- das a cabo pelo Estado serão capazes de pro-
do apenas para si um melhor padrão mover, sob a pressão das lutas populares, a
de vida, pois uma revolução verdadei- inserção dos deserdados no sistema produ-
ramente modernizante tornaria ainda tivo. Todavia, em face da incapacidade do
mais supérflua a sua existência”. atual ordenamento jurídico para assegurar
Trata-se, na visão de Genro, de uma classe canais de participação popular e acolher as
“atada a uma forma de produzir superada” demandas dos excluídos, a tarefa prioritá-
sendo “sua situação mais ou menos a mes- ria será a de superar a
ma, do ponto de vista político, do ‘campe- “crescente deslegitimação dos Esta-
sinato’ no capitalismo tardio” (Genro, dos nacionais que, sugados e decom-
1995:125-126)a. postos, antes, pelas suas direções oli-
Enquanto a classe operária se constituía gárquicas e, hoje, pelo ideário neoli-
no pivot da resistência e do combate ao ca- beral, são incapazes de engajar politi-
pitalismo, funcionando como o motor da camente a cidadania para comparti-
mudança, cabia ao Estado apenas reconhe- lhar de uma ousada proposta de mu-
cer e generalizar as conquistas oriundas de danças” (Genro, 1995:2).
sua luta. Agora, porém, o quadro é outro. O Isso em virtude de o direito do Estado
processo de globalizaçao fragmenta e deses- moderno
trutura as relações sociais, fragilizando as “não conter instituições públicas ca-
relações de trabalho. E faz, também, emer- pazes de abranger esse novo univer-
gir novos sujeitos no processo produtivo, so social, nem no plano interno, nem
nem de longe dotados da organicidade no âmbito do direito internacional”.
própria do antigo proletariado, amplian- As reformas propostas sob o ângulo liberal...
do, concomitantemente, o desemprego e “visam a despontencializar os novos
a exclusão social. e velhos sujeitos, cujos interesses são
Esses novos sujeitos – que têm em co- contraditórios com a ordem neolibe-
mum a precarização das relações de traba-
ral, e suas exigências só podem ser
lho – contam como aliados naturais diver-
contempladas por... um novo tipo de
sas categorias de excluídos da sociedade
capitalista: os subempregados, os sem-em- Estado e uma nova organização
prego, os inempregáveis, os sem-teto, os sem- social, apta para socializar – não para
terra e os antigos lúmpens. Mas conta tam- concentrar os benefícios da terceira re-
bém com o consumidor insatisfeito, o campo- volução tecnológica” (Genro, 1996 a).
nês e o pequeno proprietário desamparados, Dessarte, somente
e com a própria classe operária em declínio. “as lutas que encaminhem as exigên-
A essas forças do mundo da produção cias do Estado, a partir dos velhos e
se somam entidades defensoras dos di- principalmente novos focos de confli-
reitos humanos e do cidadão, grupos cul- tividade, para mudar o Estado, para
turais descontentes, militantes ecológicos controlá-lo a partir da sociedade ci-
e diversos setores engajados na luta con- vil... “só estas lutas que ‘unem’ os dis-
tra a discriminação de mulheres, negros, persos... podem reduzir “o potencial
homossexuais, etc. excludente do corporativismo e pro-
Brasília a. 36 n. 141 jan./mar. 1999 31
por uma nova cidadania, transgres- – nestas condições – por meio de uma
sora dos limites formais da velha ci- dinâmica democrática inovadora, que
dadania burguesa e proponente de incorpora à vida pública todos os que
novas formas de legitimidade”. (Gen- dela quiserem participar” (Genro,
ro, 1996 b). 1997:3).
Essa transgressão aos limites formais da Poderíamos nos perguntar se a força do
“velha cidadania burguesa” será feita me- corporativismo – ainda hegemônico no sin-
diante a construção de um novo espaço pú- dicalismo da esquerda e no “movimento po-
blico, no qual o exercício da democracia pular” – não seria capaz de inviabilizar
direta possa vir a “desconstituir” o orde- esse novo espaço público em construção. E,
namento jurídico-institucional vigente e também, se esse não estaria ameaçado pela
a construir um Estado que garanta a mo- influência ainda marcante de correntes ideo-
bilização transformadora de milhões de lógicas, hostis ou reticentes em relação à ins-
cidadãos. titucionalidade.
Conforme sublinha Tarso Genro, Dificilmente, por três razões básicas:
“esta nova esfera pública, popular... Primeiro, as de ordem sociológica, rela-
já contém elementos novos que apon- cionadas com os rebatimentos do processo
tam diretamente para a construção de de globalização econômica, entre os quais o
uma nova ordem, já que recorrem a declínio da classe operária tradicional, con-
um sistema de pressões que se realiza forme anteriormente exposto. Processo que
incindindo diretamente sobre o Esta- exige, de forma aguda, a intervenção do Es-
do, ao contrário das lutas tradicionais tado (ainda que reformado pela ação do
que opõem, corporativamente, patrões campo popular), como única forma de pro-
e empregados”. ver as demandas dos novos sujeitos que
Trata-se, portanto, de construir uma compõem (ou que gravitam em torno) o
“nova esfera pública (que) recupera mundo do trabalho.
as exclusões e reorganiza, num senti- Segundo, por razões políticas: os impas-
do estrito, os mais poderosos interes- ses e desgastes a que conduziu o corpora-
ses econômicos privados para lhes tivismo contribuíram para uma maior
dar forma de interesses públicos, e aceitação da esfera institucional como
isso de maneira que a eles sejam in- locus de luta política.
corporadas as necessidades da mas- Assim como o fato de o partido mais es-
sa” (Genro, 1995 a:117). treitamente ligado ao movimento popular, o
Na síntese de Genro: Partido dos Trabalhadores – PT, vir assu-
“o projeto é democratizar radicalmen- mindo crescentes responsabilidades nessa
te o Estado atual para criar outro Es- esfera (passando de “estilingue” à “vidra-
tado, com duas esferas de decisão ça”) pesa decisivamente na “caminhada”
combinadas e contraditórias: uma es- do “movimento popular” rumo à plena acei-
fera decisória, oriunda de representa- tação das regras do jogo próprias ao regime
ção política, que já existe; e uma se- democrático vigente.
gunda esfera de decisões, oriunda de Por fim, em nível internacional, a queda
um novo espaço público, originário da do Muro de Berlim repercutiu em todo o
presença direta das organizações da mundo, com a valorização da democracia,
sociedade civil, que deve ser combi- considerada, doravante, como valor estra-
nada com mecanismos universais con- tégico pelos partidos de esquerda12.
sultivos, de referendo e plebiscitários. Dissipadas as ilusões relativas à via in-
O Estado representativo passa a pro- surrecional para o poder, e a um governo de
duzir e a implementar suas políticas “ditadura do proletariado”, sabe-se agora,
32 Revista de Informação Legislativa
ao aludir-se à democracia, que se trata de um nação dos institutos da democracia direta e
regime baseado no pluralismo e na alternân- semi-direta, como o Orçamento Participati-
cia ao poder, devendo esse ser alcançado pela vo e os Conselhos de formulação e fiscaliza-
mediação soberana do sufrágio universal13. ção das políticas públicas.
Tudo isso faz com que o “sentimento de Outro sinal de mudança nas hostes do
recusa ao espaço institucional”, prevalecen- Partido dos Trabalhadores se manifesta em
te no período autoritário, ceda lugar, pro- posições como a do Professor Cristovam
gressivamente, a sua contraparte “dada Buarque, para quem o
pela linguagem dos direitos”, assentada em “caminho [do PT] deve ser o de se li-
práticas que requerem a institucionalidade bertar das amarras do corporativismo
política” (Doimo, 1995:127). e interesses específicos para se tornar
Assim, o sentido arrogante de auto-sufi- um grande partido de massas”,
ciência, a face “expressiva-disruptiva” de necessário à construção de “um projeto al-
importantes setores da esquerda vai sendo ternativo da esquerda” (Buarque, 1998).
substituída por condutas de “seletividade No âmbito da sociedade civil, merece
positiva” em face da institucionalidade. O registro “o reposicionamento institucio-
“paralelismo” que persiste com vigor – a de- nal da OAB”, tornado público pelo seu
mocracia direta praticada no Orçamento novo Presidente nacional, advogado
Participativo de Porto Alegre e alhures – re- Reginaldo Oscar de Castro.
cupera o dinamismo do movimento social Tendo até então ostentado um compor-
para a constituição de um espaço público tamento visceralmente corporativista, a OAB
não-estatal. Este, porém, interage “dialeti- compreende agora que, no debate sobre
camente” com a institucionalidade, sem, questões de interesse público, “ é importan-
aliás, compactuar com o corporativismo e te que todos os segmentos se dispam de seus
com o assembleismo, nem avançar fora dos preconceitos e interesses corporativistas”
limites consentidos pela autoridade legiti- (Nassif, l998).
mada pelo sufrágio universal. Um outro exemplo marcante das mudan-
Dessa sorte, observa-se que a radicali- ças que estão a ocorrer diz respeito ao movi-
dade democrática dos “novos atores sociais” mento dos docentes universitários. Em 1996,
vem desenvolvendo crescente compreensão por ocasião das eleições para a Diretoria da
da importância da res publica, das questões ANDES, surgem propostas, apresentadas
de interesse geral da sociedade, e de seu tra- pela Chapa Três, que pela primeira vez
tamento na esfera institucional, ou em har- discutem “os limites que o privilégio cor-
monia com ela, sem perder de vista a necessi- porativo impõe à construção de um
dade de seu controle pela sociedade. espaço público”14.
Nas palavras de Doimo: Os integrantes dessa Chapa entendem que
“Os segmentos de esquerda, antes “somente a crítica política ao modelo
comprometidos com a causa da gran- da sociedade e da Universidade vigen-
de transformação social, não raro pela tes legitima a defesa dos interesses
via do duplo poder, passam a assu- corporativos. Ora, ocorre que “a trans-
mir crescentes compromissos com o formação da ANDES em sindicato
sistema partidário, a reforma do Es- coincidiu com a perda desse referen-
tado e a gestão da coisa pública” cial de origem: a capacidade crítica
(Doimo, 1995:202). reduziu-se a um doutrinarismo mais
Prova disso, em nível partidário, é o pres- ou menos estéril e o corporativismo
tígio de que hoje goza, no PT, um líder radi- assumiu o comando, aliado à noção
calmente anticorporativo como Tarso Gen- mais ou menos obscura de classismo”
ro, e o empenho desse partido na dissemi- (Chapa Três, 1996: 16 e 40).
Brasília a. 36 n. 141 jan./mar. 1999 33
Para combater o corporativismo, impor- sindical, mais notáveis parecem ser os no-
ta fortalecer o espaço público, o que só pode vos ventos que sopram nas ONGs envolvi-
ocorrer “se o próprio Estado for objeto do das com a promoção da cidadania.
controle social mediado pelo interesse pú- Até recentemente, essas ONGs adota-
blico”. Essa transformação, segundo a Cha- vam um comportamento “do contra”, mais
pa Três, “deve ser operada de forma a per- defensivo, de denúncia e de cobrança em
mitir que a sociedade literalmente entre no face da violação dos direitos humanos.
Estado, assumindo aí a lógica que esteve na Doravante, a valorização da democracia,
origem da constituição do Estado, isto é, a com o concomitante declínio da ideologia e
lógica do interesse público” (Chapa Três, das práticas “basistas”, por um lado, e por
1996:16). outro, a pressão de agências financiadoras,
Para que isso ocorra, enfatiza-se a ne- no âmbito da cooperação internacional, no
cessidade de reformas do Poder Judiciário sentido de elaborarem propostas constru-
“no sentido de torná-lo um poder democrá- tivas, conduzem as ONGs a uma mudan-
tico que garanta o princípio de soberania ça substantiva no direcionamento de seus
do cidadão”. Mas essa reforma trabalhos.
“deve ser defendida na perspectiva da A esse respeito, Doimo lembra a Campa-
reforma do próprio Estado, que se con- nha Contra a Fome, de Betinho, a qual, se-
traponha ao Estado-mínimo... e que gundo a Misereor, além de
aprofunde as conquistas democráti- “conscientizar a sociedade brasilei-
cas garantidas pela Constituição” ra, mobilizar a solidariedade e politi-
(Chapa Três, 1996:38-39). zar a questão da fome, atingiu cama-
Nas eleições da ANDES, em maio de das não atingidas pelas organizações
1998, os antigos integrantes da Chapa Três, e conseguiu criar uma instância com-
constituída, na sua maioria, por simpatizan- plementar, o CONSEA – Conselho de
tes do PT, uniram-se a militantes de outros Segurança Alimentar...” (Misereor,
partidos de esquerda (PSB, PC do B, PCB), apud Doimo: 1995:211).
formando a Chapa Dois. A oposição unifica- Na trilha dessas inovações,
da à Diretoria da ANDES mereceu o apoio do “muitas ONGs estão agora empenha-
professor Roberto Romano, por este acreditar das em ‘conquistar direitos de cida-
“ter chegado a hora e a vez dos que se dania e influir na mudança das rela-
preocupam com o movimento no pla- ções entre a sociedade e o Estado, pela
no acadêmico, político-institucional e via conselhista’”.
societário, não se prendendo aos li- Trata-se, em suma, de
mites dos interesses corporativos”
“fortalecer a sociedade civil para que
(Romano, 1998).
ela possa influir nas políticas públi-
A chapa oposicionista derrotou a dire-
cas, ampliando-se os espaços de par-
ção da entidade, pondo fim a uma longa he-
gemonia de posições exacerbadamente cor- ticipação da sociedade para além dos
porativistas no movimento docente. tradicionais formatos de intermedia-
Esse é, com certeza, o exemplo de um mo- ção política” (Doimo, 1995:210).
vimento que começa a pensar “além de seu De fato, é notória a mudança de compor-
próprio umbigo”, convertendo sua energia tamento dessas entidades, especialmente as
sócio-política em ações propositivas que ligadas aos direitos humanos. Ela se expres-
rompem com o espírito refratário à institu- sa em uma revalorização da ação institu-
cionalidade e com a ação reivindicativa cional, ora como parceiras dessa ação, ora
meramente corporativista. tendo o Estado como o único protagonista.
Enquanto as mudanças se desenvolvem, Segundo Gatica, Conselheiro Nacional do
ainda embrionariamente, no movimento Movimento Nacional dos Direitos Humanos
34 Revista de Informação Legislativa
(MNDH), o grande divisor de águas na ques- todas essas teses e, além disso, participado
tão foi o lançamento, pelo Governo Federal, ativamente na criação e no funcionamento
do Plano Nacional dos Direitos Humanos dos diferentes conselhos que incorporam
(Gatica, 1998). A partir daí, as ONGs atuan- representantes da sociedade civil a seus
tes nessa área passaram a desenvolver efe- Colegiados.
tiva parceria com o Governo Federal e, na Exemplos eloqüentes, que, em definiti-
seqüência, com alguns Governos estaduais, vo, ilustram a importância conferida pelas
com vistas à implementação do Programa organizações de direitos humanos à atuação
Nacional de Direitos Humanos. na esfera pública da cidadania, dizem res-
A I Conferência Nacional dos Direitos peito ao fato de que quadros de grande des-
Humanos, convocada para subsidiar o re- taque do MNDH, como Domingos Maria-
ferido Programa, realizou-se nos dias 26 e no e Valéria Brito – esta última Coordena-
27 de abril de 1996. Contou com o apoio e a dora do Conselho Nacional do Movimento
participação de oficiais do MNDH e com a – tenham escolhido essa nova esfera públi-
presença efetiva de dezenas de entidades ca para o exercício de sua militância ao as-
de Direitos Humanos. Uma de suas primei- sumirem, respectivamente, as funções de
ras propostas é de que os Planos Estaduais Ouvidor das Polícias Civil e Militar do Es-
de Direitos Humanos sejam elaborados com tado de São Paulo e de Presidente do Conse-
a participação, no seu órgão gestor, em igual lho Distrital de Defesa dos Direitos da
número, de representantes da sociedade ci- Pessoa Humana.
vil e de órgãos do Estado. Vê-se, pois, que as mudanças em curso
As outras propostas que interessam di- na vida social e política, nacional e interna-
retamente à democracia participativa dizem cional, e, especialmente, as que afetam os
respeito à criação da Ouvidoria-Geral da Re- partidos, sindicatos e movimentos ligados
pública e de Ouvidorias Estaduais; a cria- ao “campo popular” parecem tender, pro-
ção de Conselhos Estaduais e Municipais gressivamente, a sobrepujar os óbices à dis-
de Direitos Humanos, seminação da democracia participativa.
“a serem compostos majoritariamente A essas mudanças estruturais deve-se
por representantes da sociedade civil, acrescentar as exigências crescentes, por
indicados por entidades de defesa dos parte de setores sempre mais expressivos da
direitos humanos”; sociedade, no sentido de assegurar maior
a criação do Conselho Nacional de Justiça, controle social em relação à res publica e mais
como órgão de controle do Judiciário e do respeito aos direitos do cidadão.
Ministério Público, “a ser composto majori- Recentes episódios, que trouxeram estre-
tariamente por entidades não-governamen- pitosamente à tona a barbárie policial e a
tais”; a criação de Conselhos de Direitos da “falta de assepsia” de setores ponderáveis
Criança e do Adolescente e Tutelares e, do establishment político, deram um novo e
finalmente, a inesperado alento às forças sociais que lu-
“criação de Ouvidorias de Polícia, tam para tornar efetivo o fortalecimento da
como representantes da sociedade ci- cidadania.
vil, nos Estados, com autonomia e A aprovação, em um átimo, da lei que
independência para desenvolver criminaliza a tortura, que se arrastava há
suas funções de investigação e fis- anos nas comissões do Congresso Nacio-
calização das irregularidades come- nal, mostra o quanto pesam manifestações
tidas por agentes” (Relatório, 1996: da sociedade na produção de uma normati-
6,8,9,10 e 11)15. vidade jurídica renovadora.
Nas Conferências de Direitos Humanos, Por outro lado – da parte do Governo – o
as ONGs atuantes na área têm apoiado lançamento do Plano Nacional de Direitos
Brasília a. 36 n. 141 jan./mar. 1999 35
Humanos, a despeito de seus limites, e do DEPOIMENTO de Oscar Gatica, João Pessoa, 10
limitado engajamento do Presidente da Re- maio 1998.
DOIMO, Ana Maria. A vez e a voz do popular. Rio de
pública na sua implementação, gera uma Janeiro: ANPOCS - Relume - Dumará, 1995,
dinâmica de participação, de cobrança e de 355 p.
pressão. Essa dinâmica contribui, ainda que ESTATUTO da Criança e do Adolescente, Rio de
de forma “molecular”, para sedimentar uma Janeiro, IBM, Brasil, s/d. 56 p.
cultura de cidadania e coloca em situação FREDERICO, Celso. Crise do socialismo e movimento
operário. São Paulo: Cortez, 1994. 94 p.
de desconforto governos municipais e es- GENRO, Tarso. Utopia possível. Porto Alegre: Artes
taduais resistentes às mudanças, obrigan- e Ofícios, 1995 a.
do esses governos a cessarem a sua opo- _____. O enigma do México. Folha de São Paulo. São
sição aos institutos de defesa do cidadão, Paulo, 25 fev. 1995 b
inscritos no Plano. _____. O novo espaço público. Folha de São Paulo,
São Paulo, jun. 1996 a.
De tal forma que, a médio e a longo pra- _____. Entre a solidão e a solidariedade. Socie-
zo, na hipótese de consolidação da demo- dade contemporânea sob o risco de extinção.
cracia no Brasil, a questão que se coloca não Folha de São Paulo. São Paulo, 14 abr. 1996 b.
é tanto de saber se a democracia participati- _____. Uma estratégia socialista. Publicação interna
va se ampliará, e sim de se definir qual das do Partido dos Trabalhadores, s.d. 1977.
GIDDENS, Anthony. Para além da esquerda e da di-
suas modalidades irá prevalecer – a “seleti-
reita. São Paulo: Editora UNESP, 196 p.
va” ou a “de massa” – e o peso que, confor- LEI federal nº 8.142, de 28 dez. 1990.
me o caso, terão os institutos da democracia LYRA, Rubens Pinto. Uma plataforma constitucional
direta no processo participativo, sob a égi- unitária para o movimento sindical. João Pessoa:
de do Estado reformado16 . Ed. Universitária, 1987. 23 p.
_____. Análise crítica das manifestações vanguardistas
e corporativistas do movimento docente. 40a. Reu-
nião Anual da SBPC. Resumo publicado no su-
Bibliografia plemento Ciência e Cultura. Vol. 40, nº 7, jul.
1988.
ANDES, Plataforma dos docentes do ensino supe- _____. Cidadania e imprensa na Paraíba. João Pessoa:
rior para a Constituinte. Brasília: Cadernos FUNAPE/Ed. Universitária, 1996 a, 173 p.
ANDES, n. 4, maio 1987. 31 p. _____. A nova esfera pública da cidadania. João Pes-
BATTINI, Odária. Cidadania e participação po- soa: Ed. Universitária, 1996 b. 222 p.
pular. Revista da Universidade Estadual de Lon- _____. Ouvidorias públicas: as ouvidorias univer-
drina, set. 1993. sitárias. Revista da Ouvidoria Geral do Paraná,
_____. O processo de reestruturação dos Conse- Curitiba, ano 1, n. 1, jan-jun. p. 44-58, 1997.
lhos Municipais da Criança e do Adolescente. KAUTSKY, Karl. A ditadura do proletariado: Lenin: a
Revista da Universidade Estadual de Londrina, dez. revolução proletária e o renegado Kautsky. São
1994. Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 195
BUARQUE, Cristovam. Um projeto de esquerda. MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. “A Ouvi-
Correio da Paraíba, João Pessoa, 5 maio 1998. doria de Polícia de Minas”. Estado de Minas,
CARVALHO, Gilson. Controle social: o mundo Belo Horizonte, 26 fev 1998.
sob a visão do dono. Pontos de vista. Edição OLIVEIRA, Luciano. Imagens da democracia. Recife:
Especial. Brasília, Conselho Nacional da Saú- Pindorama, 1996. p. 153
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COELHO, Marcelo. Então é isso? Ah, é isso? Ah Paulo, S. Paulo, 13-dez. l997.
Então é isso! Folha de São Paulo, São Paulo, 4 NASSIF, Luís. “A OAB e a reforma do Judiciário”.
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CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Bra- ORSI demite ouvidor público. Diário do Povo, Cam-
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lia, 1996. 57 p. João Pessoa, 14 fev. 1998. Estadual. Reporta-
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dão. 10 dez. 1948. IN: Revista OAB-RJ. Rio de PROCURADOR cobra criação de conselhos. Correio
Janeiro, p. 121-126, n. 19, out./nov./dez. 1982. da Paraíba, João Pessoa, 9 maio. 1998.

36 Revista de Informação Legislativa


RELATÓRIO da I Conferência Nacional de Direitos uma ou mais pessoas (Reitor, Ombudsman, etc),
Humanos. Brasília: Comissão de Direitos Huma- ou pelos representantes, em órgãos colegiados, da
nos da Câmara dos Deputados, 1996 (mimeo.). entidade que integra.
RELATÓRIO da II Conferência Nacional de 5
Um opúsculo intitulado Orçamento Participa-
Direitos Humanos. Brasília: Câmara dos tivo - a experiência de Porto Alegre - de autoria de
Deputados. Centro de Documentação e Infor- Tarso Genro e Ubiratan de Souza, com análises e
mação. 1988, p. 230 informações detalhadas sobre a matéria, foi recente-
REVISTA Ciência e Cultura, vol. 43, n. 7, jul. 1988. mente publicado pela Fundação Perseu Abramo.
RIDENTI, Marcelo. Professores e ativistas da esfera 6
Celso Frederico considera que o corporativis-
pública. São Paulo: Cortez, 1995. 86 p. mo, “uma persistente orientação política compro-
ROMANO, Roberto. Apoio ao colega Renato de Oli- metendo a ação da esquerda brasileira... manifes-
veira. Carta-aberta, mimeo, maio 1998. ta-se sempre como um comportamento particula-
SANTOS, Nelson Rodrigues. Os Conselhos de Saú- rista, alheio aos interesses gerais” (Frederico, l994:7).
de: balanço atual e algumas questões. Pontos Os principais trabalhos em que formula-
de vista. Edição Especial. Brasília, Conselho Na- mos críticas ao corporativismo dos docentes
cional de Saúde, abr. 1998. universitários são referidos em livro de Marcelo
SILVA, Luiz Inácio Lula da. Vinte anos pela democra- Ridenti, Professores e ativistas da esfera pública
cia. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 maio 1998. (Ridenti, 1994).
7
O “caso Gulliver” diz respeito à tentativa de
homicídio perpetrada no dia 5 de novembro de 1993
pelo então Governador da Paraíba, Ronaldo Cunha
Notas Lima, contra o ex-Governador do mesmo Estado,
Tarcísio Burity. Vários aspectos relativos ao affaire
1
Nas palavras de Silva: “O gesto dos operários Gulliver foram abordados na brochura Cidadania e
metalúrgicos somou-se aos demais movimentos e Imprensa na Paraíba (Lyra, 1995).
acabou desequilibrando a correlação de forças em 8
No caso da Paraíba, meses após a instalação
favor da democracia. O autoritarismo tinha os seus do Conselho Estadual de Direitos Humanos, a sua
dias contados.” (Silva, l998). direção nada havia obtido junto à Secretaria de Jus-
2
Fomos designados, à época da Constituinte, tiça e Cidadania e ao Governo, faltando-lhe sede,
entre os Diretores da ANDES, como o responsável móveis, recursos financeiros e telefone. Somente um
pela Coordenação das atividades da entidade rela- ano após a sua instalação, graças à obstinação dos
cionadas com o processo constituinte. Nessa con- seus dirigentes, foi possível obter condições materi-
dição, elaboramos uma “Plataforma constitucio- ais que tornaram viáveis as suas atividades (Lyra,
nal unitária para o movimento sindical”, o qual 1996:26) b.
jamais dela tomou conhecimento. 9
A resistência dos políticos conservadores à
Na justificativa desse trabalho, aliás encomen- criação de Conselhos Estaduais independentes do
dado pela Diretoria da ANDES, sublinhávamos que Governo determinou, em Sergipe, a rejeição, em
cabia à sociedade civil um imenso papel, que, en- duas legislaturas, do projeto do Deputado Renato
tretanto, só poderia ser cumprido com êxito se a Brandão sobre a questão. O Governo preferiu criar
mobilização nacional transcendesse as fronteiras um Conselho presidido pelo Governador do Esta-
corporativas na formulação de um projeto abran- do e composto de uma maioria de órgãos públicos,
gente. (Cf. Lyra, l987:7) Não tendo existido a mobi- sem contar sequer com a participação de entida-
lização, as propostas de interesse da sociedade so- des de direitos humanos nem dispor do poder de
mente poderiam ter, como efetivamente tiveram, fiscalização (Cf. Lyra, 1996:26-27) b.
caráter restrito. 10
No que se refere à Ouvidoria de Campinas, o
3
Mas também permanecem no domínio da subtítulo de uma manchete de um jornal cam-
informalidade várias Ouvidorias criadas em insti- pineiro sobre a questão esclarece os motivos da ex-
tuições de ensino superior e no sistema Telebrás. tinção do cargo de Ombudsman: Prefeito de Campi-
Aliás, estas últimas funcionam mais como Cen- nas estava contrariado com investigações internas que
trais de Reclamações que propriamente como Ou- poderiam comprometer a Administração (Diário do
vidorias. Umas e outras são exercidas por Asses- Povo, 29-5-1996).
sores, investidos, de fato mas não de direito, nas 11
Partindo de um enfoque bastante diverso,
funções de Ombudsman, ou análogas a estas (Cf. Giddens chega a conclusões próximas de Genro ao
Lyra, l996:l26-l27, l32-133). considerar que o processo de globalização pode
4
Na democracia direta, o cidadão participa, favorecer a luta pela democracia. Nas palavras de
pessoalmente, da formação dos atos de Governo, Giddens: “As pressões pela democratização - que
ou da fiscalização destes, enquanto na semi-indi- sempre enfrentam influências contrárias - são cria-
reta, a sua participação se dá pela mediação de das pelos processos gêmeos de globalização e
Brasília a. 36 n. 141 jan./mar. 1999 37
reflexividade institucional”. Assim “a globalização, SBPC, estudo sobre a questão, sedimentado em
a reflexividade e a destradicionalização criam es- longa militância no movimento, sob o título Análise
paços dialógicos que precisam, de alguma forma, crítica das manifestações corporativistas e vanguardis-
serem preenchidos. Pode haver um engajamento tas do movimento docente (Lyra, 1988:309).
dialógico com esses espaços ... mas eles também 15
O Relatório da II Conferência Nacional de
podem ser ocupados por fundamentalismos” Direitos Humanos, realizada nos dias 13 e 14 de
(1996:149). maio de 1997, assim como as sugestões e os deba-
12
Quase toda a esquerda reconhece, pelo me- tes (ainda não publicados) ocorridos na III Con-
nos na retórica, o que o “renegado Kautsky”, em ferência, levada a efeito nos dias 12 a 15 de maio
plena hegemonia do leninismo, afirmava solitaria- de 1998, não apresentaram novidades na matéria
mente: “consideramos que o socialismo está indis-
(Cf. Relatório, 1998).
soluvelmente ligado à democracia, não há socialis- 16
A democracia participativa “de massa” se
mo sem democracia” (Kautsky, 1979:6).
inspira sobretudo nas teses de Tarso Genro sobre a
13
A condecoração, pelo Ministro da Marinha,
matéria, sendo a sua implementação compatível
Almirante Mario César Pereira, do ex-guerrilheiro
com os Conselhos que formulam políticas públicas
José Genoino e do Deputado do Partido Comunis-
ta do Brasil, Aldo Rebelo, com a Medalha do Mérito ou que as fiscalizam, em cujos colegiados tomam
Tamandaré, “pelos relevantes serviços prestados assento representantes da sociedade organizada.
ao fortalecimento da Marinha”, expressa, em todo A democracia participativa “seletiva” está
o seu simbolismo - mais do que qualquer texto associada às teses do Ministro de Estado da Admi-
analítico -, a evolução experimentada pela es- nistração, Bresser Pereira sobre o tema, centradas
querda brasileira rumo à plena aceitação da ins- na proposta governamental de “organizações
titucionalidade (Folha de São Paulo, 13-12-97). sociais”. Estas funcionariam com a participação
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O movimento docente desenvolve, desde a sua da sociedade tanto na formulação quanto na
gênese, práticas corporativistas, consideravelmente avaliação do seu desempenho. Estariam, porém,
exacerbadas nos últimos dez anos. Todavia, desde subordinadas à racionalidade competitiva e ao
julho de 1998, apresentei, na 40º Reunião Anual da modelo gerencial.

Referências bibliográficas conforme original.


38 Revista de Informação Legislativa

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