Você está na página 1de 24

Capítulo

A nova questão constitucional*

1. Crise do constitucionalismo moderno?

Nos últimos anos, urna serie de escândalos públicos chamou


atenção para a "nova questão constitucional h Violações de direitos
humanos por empresas multinacionais; decisões controversas da
Organização Mundial do Comércio que, em nome do livre comércio
global, ameaçam a proteção ao meio ambiente e à saúde; doping es­
portivo; corrupção na medicina e na ciência; ameaças à liberdade de
expressão por intermediários privados na internet, interferências
ínassivas na esfera privada decorrentes da coleta e retenção de dados
por organizações privadas; e, com força especial, a liberação de riscos
catastróficos nos mercados financeiros mundiais - todos esses fenô­
menos levantam não apenas problemas políticos e jurídicos de re­
gulação, mas também problemas constitucionais em sentido estrito.
No plano de fundo desses escândalos situa-se o elemento constitu­
tivo fundamental das dinâmicas sociais, e não uma mera questão dc
implementação de "policies" de regulação estatal. Em comparação
com as questões constitucionais dos séculos XVIII e XIX, os proble-

* Tradução de Flávio Beicker Barbosa de Oliveira. ,


1 Walter Mattli e Ngaire Woods analisam em que medida o "efeito protesto"
dessas polêmicas provoca, inicialmente, um debate público global e, em
seguida, reações políticas. Cf. "In whose benefit? Explaining regulatory
change in global politics", in: MATTLI, Walter; e WOODS, Ngaire (Orgs.),
The politics of global regulation, Princeton, 2009, p. 1-43.

23

Scanned with CamScanner


m as que se colocam atualm ente são distintos, m as não menos graves
Se naquela época tratava-se da liberação das energias do poder
político do Estado Nacional e, sim ultaneam ente, da limitação efetiva
das m esm as em um Estado de D ireito; na nova questão constitucio­
nal, trata-se de liberar energias sociais compíetam ente diferentes
especialm ente perceptíveis na econom ia (mas tam bém na ciência é
tecnologia, na m edicina e nos novos m eios de comunicação em
m assa), bem com o restringir seus efeitos destrutivos de maneira
efetiva2. Hoje, essas energias são descarregadas - tanto produtiva
quanto destrutivam ente - em espaços sociais para além do Estado
Nacional. O s escândalos acim a m encionados extrapolam as frontei­
ras do Estado N acional em duplo sentido. Constitucionalism o além
do Estado Nacional quer dizer duas coisas: os problemas constitu­
cionais se situam fora das fronteiras do Estado Nacional, em proces­
sos políticos transnacionais; e, sim ultaneam ente, fora do setor polí­
tico institucionalizado, nos setores "privados" da sociedade mundial.

1.1. Constituição do Estado Nacional versus Constituição


Global

Com esses escândalos, acirra-se hoje um debate que diagnos­


tica uma crise do constitu cion alism o m oderno e afirm a que os
responsáveis por ela seriam a transnacionalização e a privatização
do Político. A ssim , discutem -se os prós e os contras de um consti­
tucionalismo transnacional, cujo status não é claro: se doutrina de
direito constitucional, teoria sociológica, program a político ou uto­
pia social. Em linhas gerais e estilizadas, as frentes do debate podem
ser descritas da seguinte form a: um lado do debate busca apontar
para a derrocada do constitucionalism o m oderno3. Sua forma his-

2 Philip Allott, "The emerging universal legal system", International law


Forum du Droit International 3 (2001), p. 12-17 (aqui, p. 16), chega ao pon­
to de caracterizar as novas questões constitucionais como o "desafio
central para a filosofia internacional no século XXI".
3 Cf., por todos, Dieter Grimm, "The achievement of constitutionalism and
its prospects in a changed world", in: DOBNER, Petra; e LOUGHLIN,
Martin (Orgs.), The twilight of constitutionalism?, Oxford, 2010, p. 3-22;

24

Scanned with CamScanner


tórica plenam ente desenvolvida seria encontrada nas constituições
políticas do Estado N acional. A tualm ente, entretanto, seus funda­
m entos sofreriam com a erosão causada, por um lado, pela unifica­
ção europeia e pelo surgim ento de regim es transnacionais; e, por
outro, pelo deslocam ento dos processos políticos de poder para as
mãos de atores coletivos privados. Não haveria, em espaços trans­
nacionais, form as substitutivas correspondentes às constituições
nacionais. Devido aos déficits crônicos da política transnacional - no
que diz respeito à inexistência de um dem os, de homogeneidade
cultural, m itos políticos fundantes, esfera pública e partidos políticos
- elas estariam até m esm o fora de questão nesse âmbito transna-
donal. Esta dupla crise do constitucionalism o som ente poderia ser
enfrentada - se é que isso é possível - por meio da renacionalização
e repolitização - ou seja, na medida em que as instituições consti­
tucionais nacionais e estatais (tribunais constitucionais nacionais,
parlam entos e esfera pública) fossem com pletam ente reabilitadas
em seus plenos direitos.
Em contrapartida a esta história de declínio, o lado oposto do
debate aponta para a necessid ad e de se elaborar, com intenção
com pensatória, um a constituição para toda a sociedade m undial4.

Martin Loughlin, "W hat is constitutionalism? , in: DOBKER, I etra e


LOUGHLIN, Martin (orgs.), The twilight of constitutionalism?, Oxford,
9nin n 47.70 (aqui n 63 ess.); Charles Fried, "Constitutionalism, pnva-
S i n and g . o b S o n ”, Cardoro 21 (2000), p. 1.091
aL
Cf nnr todos Jürgen Habermas, "Hat die Konstitutionalisierung des
C hance?", in: HABERMAS, Jürgen (Org.) Der
gespaltene W esten, Frankfurt, 2004, p. 113-193; Otfned Hoffe, K°mghc
Völker': Zu Kants kosmopolitischer Rechts- und Friedenstheone, Frankfurt,
2001 p 237. Para o direito intemacional, ct. Jochen A. Frowein, Korafr-
tatiorn isierung des Völkerrechts", in: DICKE, Klaus fl/. (Orgs. , Völker­
recht und internationales Privatrecht in einem sich globalisierenden m ter-
nationalen System: Auswirkungen der Entstaatlichung transnahonaler
Rechtsziehungen, Heidelberg, 2000, p. 427-447; Erika de W et, The inter­
national constitutional order", The International and Comparative Law
Quarterly 55 (2006), p. 5 1-76; Anne Peters, "Com pensatory constitutiona-
U ,_ . (he function and potential of fundamental international norm s and
structures" Leiden Journal o f InternationalLaw 19 (2006), p. 5 7 9 -6 1 0 .

25

Scanned with CamScanner


T am bém aqui, a globalização e a privatização sãn m
pela crise do Estado N acional, bem como se constate
cim en to das in stitu ições constitucionais nacionais Um n^nfraque'
titu c io n a lis m o d em o crático , contudo, poderia p r o d u T e fe ito s
co m p en saton os, caso lograsse êxito em sujeitar as infrenes d £
ca s do capitalism o global aos freios do poder domesticante de pro
cesso s políticos instaurados em nível mundial. Um ambicioso direi
to in tern acio n al público constitucionalizado, uma esfera pública
m undial deliberativa, um a política doméstica mundial instituciona­
lizada, u m sistem a transnacional de negociações entre atores cole­
tivos globais e u m a restrição constitucional do poder social no
processo político global abririam perspectivas promissoras para a
concretização, na sociedade mundial, de novas formas de instituições
erigidas sob o prism a da dem ocracia e do Estado de Direito.

1.2. Impulsos da sociologia da constituição

A constituição é algo de fato muito im portante para ser aban­


donada aos cuidados apenas dos constitucionalistas e dos filósofos
políticos. Em oposição a estas duas abordagens, será assinalada,
aqui, u m a terceira posição - que certam ente não pode ser chamada
de interm ediária. Ela coloca em dúvida as premissas das outras duas
abordagens e, consequentem ente, formula a nova questão constitu­
cio n al de m odo diferente. O m ais im portante, possivelmente, é
superar a centralidade ocupada, nas duas posições, pelo Estado e
pela Política. Um a teoria sociológica do constitucionalism o socialNT,
negligenciada no debate constitucional até o momento, pode con­
tribuir para tanto. Essa teoria se sustenta sobre quatro variantes
d istintas da teoria sociológica. Em primeiro lugar, lança mão das
teorias gerais da diferenciação social, as quais fazem da constituição
interna (innere Verfassung) dos sistem as sociais parciais um proble­
m a central5. A dem ais, a teoria sociológica do constitucionalismo

NT Ver nota de tradução no prefácio de Teubner.


5 As teorias sociológicas gerais da diferenciação social, na tradição de Emí-
le Durkheim, Georg Simmel, Max Weber, Talcott Parsons, Pierre Bourdieu

Scanned with CamScanner


tam bém se assen ta sobre um a sociologia especial - a recém -insti-
tuída sociologia da constituição6 - assim como sobre a teoria do
private governm ent' e, finalmente/ sobre o conceito de constitucio­
nalism o social8. U m a teoria sociológica da constituição promete,
adem ais, ligar an álises histórico-em píricas do fenôm eno constitu­
cional com perspectivas norm ativas9.

Com seu auxílio, o Direito se torna sensível à articulação polifô-


nica da autonomia social, a qual eíe certamente não somente li­
berta, mas também constitucionaliza, na medida em que respon­
sab ilid ad es (do am b ien te) p assam a ser su sten tad as nas
autonomias (sistêmicas)10.

O que torna a sociologia constitucional singular? Ela não pos­


tula a questão constitucional apenas em relação à política e ao di­
reito, m as tam bém a todos os âm bitos da sociedade:
A tese segundo a qual as sociedades contemporâneas conhecem
uma ordem constitucional inform al, que não é centrada no Estado
- nem normativa nem faticam ente e que contém estruturas ju rí-

e Niklas Luhmann conferem outro sentido à pergunta: pode a constituição


estatal servir como constituição de toda a sociedade ou cada âmbito social
parcial dispõe de constituições próprias?
6 Programaticamente, Chris Thornhill, A sociology of constitutions: constitutions
and state legitimacy in historical-sociological perspective, Cambridge, 2011;
Chris Thornhill, "Re-conceiving rights revolutions: the persistence of a
sociological deficit in theories of rights", Zeitschrift fu r Rechtssoziologie 31
(2010), p. 177-208; Chris Thornhill, "Towards a historical sociology of
constitutional legitimacy", Theory and society 37 (2008), p. 161-197.
7 A teoria do private government foi especialmente desenvolvida por Philip
Selznick, Law, society and industrial justice, New York, 1969.
8 O conceito de societal constitutionalism (em oposição a um estrito political
constitutionalism) foi desenvolvido por David Sciulli, Theory of societal cons­
titutionalism: foundations of a non-marxistic critical theory, Cambridge, 1992.
9 Cf. Thornhill, "Towards a historical sociology", p, 163 e ss.
10 2f. Dan Wielsch, "Iustitia Mediatrix: Zur Methode einer soziologischen
iurisprudenz", in: CALLIESS, Gralf Peter et al. (Orgs.), Soziologische ]u-
isprudenz: Festschriftfü r Günther Teubnerzum 65. Geburtstag Berlim, 2009,
x 395-414 (aqui, p. 397).
5
■ .• '-

'A-'AsV'--;'v í
27 •‘

Scanned with CamScanner


------ '" ' • , . - • . '*••-'*

dicas polivalentes e hierarquicam ente orientadas parece ocupar


posição de destaque no legado do projeto sociológico original de
desenvolver um a concepção com plexa, não n aturalizad a e pós-
-ontológica da sociedade e de suas norm as11.
Com isso, a sociologia constitucional m odifica radicalm ente a
form ulação do problema. Ela coloca a questão da constitucionaliza-
ção não apenas para o direito internacional público e para o mundo
dos Estados que fazem parte da política internacional, m as também
para outros sistem as parciais autônom os da sociedade mundial,
sobretudo para o da econom ia global, m as tam bém para a ciência e
tecnologia, sistem a educacional, novos m eios de com unicação em
m assa e serviços de saúde. Será que um constitucionalism o social
disporia de potencial suficiente para, além de lim itar a tendência
expansionista do sistem a político, tam bém conter as não m enos
problem áticas inclinações expansionistas dos inúm eros sistem as
sociais parciais que atualm ente am eaçam a integridade individual
e institucional? Poderiam as constituições com bater de m aneira
efetiva as dinâm icas centrífugas dos sistem as parciais na sociedade
m undial, contribuindo, dessa forma, para a integração social - esta
entendida, aqui, como completam ente distinta da noção clássica de
"integração pela constituição"? A s m encionadas teorias sociológicas
podem oferecer novo impulso para essas questões que se colocam
com renovada urgência diante das atuais tendências globalizantes
e privatizantes12. Elas questionam as prem issas fundam entais do

11 Chris Thomhiíl, "Constitutional law from the perspective õf power: a


response to Günther Teubner", Social and Legal Studies 19 (2011), p. 244­
247 (aqui, p. 244).
12 Para os primeiros passos em direção a um constitucionalismo social global,
de acordo com o qual inúmeros sistemas sociais parciais desenvolvem
constituições próprias no espaço transnacional, ultrapassando os limites
do Estado nação, cf. Günther Teubner, "Globale privatregimes: N eo-
- Spontan es Recht und duale Sozialverfassungen der Weltgesellschaft", in:
SIMON, Dieter; e WEISS, Manfred (orgs.), Z ur Autonomie dês Individuums.
Liber Amicorum Spiros Simitis, Baden-Baden, 2000, p. 4 3 7 -4 5 3 ; Günther
Teubner, "Globale Zivilverfassungen: Alternativen zur staatszentrierten
Verfassungstheorie", Zeitschrift f ü r ausländisches öffentliches Recht und

■v a S 28 'A . vv;/^

Scanned with CamScanner


debate atual travado sobre constituições transnacionais, substituin­
do-as por outras. Com isso, identificam -se novos tipos de questões
e formulam-se outras espécies de consequências práticas13.

Völkerrecht 63 (2003), p. 1-28 (aqui, p. 5 e ss.); Andreas Fischer-Lescano e


Gunther Teubner, Regime-Kollisionen: Zur Fragmentierung des globalen Rechts,
Frankfurt, 2006, p. 53 e ss. .
No meio tempo, um grande número de pesquisas registrou, com impor­
13
tantes variações particulares, tais fenômenos de constitucionalismo social
transnacional: Gavin W. Anderson, "Counterhegemonic Constitutionalism
Without the State", Social and Legal Studies 20 (2011), (no prelo); Gavin W.
Anderson, "Corporate Constitutionalism: From Above and Below (but
mostly below)", in: The Constitutionalization of the Global Corporate Sphere?
Paper presented at Copenhagen Business School, Copenhagen, September 17­
18 (2009) p 1-14; Hugh Collins, "Flipping Wreck: Lex Mercatona on the
Shoals of lus Cogens", in: GRUNDMANN, Stefan et. al. (orgs.), Contract
Governance, Amsterdam, 2012, (no prelo); Pablo Holmes, "The Rhetoric of
Legal Fragmentation and its Discontents: Evolutionary Dilemmas in the
Constitutional Semantics of Global Law", Utrecht Law Review 7 (2011), p.
113-140 (aqui, p. 121 e ss.); Lars Viellechner, "The Constitution of Trans­
national Governance Arrangements: Karl Polanyi's Double Movement in
the Transformation of Law", in: JOERGES, Christian; e FALKE Josef (orgs.),
Karl Polanyi, Globalisation and the Potential of Law in Transnational Markets,
Oxford, 2011, p. 436-464 (aqui, p. 449 e ss.); Fabian Steinhauer, Medien­
verfassung", Zeitschriftfu r Medien- und Kulturforschung 2 (2011), p. 157-171;
Gralf-Peter Calliess e Peer Zumbansen, Rough Consensus and Running Code:
A Theory of Transnational Private Law, Oxford, 2010, passim; Chris Thornhill,
"Niklas Luhmann and the Sociology of Constitutions , Journal of Classical
Sociology 10 (2010), p. 1-23; Poul F. Kjaer, "The Metamorphosis of the
Functional Synthesis: A Continental European Perspective on Governan­
ce, Law and the Political in the Transnational Space , Wisconsin Lazo Review
(2010), p. 489-534 (aqui, p. 532 e s.); Hans Lindahl, "A-Legality: Postna­
tionalism. and the Question of Legal Boundaries", Modem Law Reviezo 73
(2010), p. 30-56 (aqui, p. 33 e ss.); Riccardo Prandini, "The Morphogenesis
of Constitutionalism", in: DOBNER, Petra; e LOUGHLÏN, Martin (orgs.),
The Twilight of Constitutionalism?, Oxford, 2010, p. 309-326 (aqui, p. 316 e
ss.); in: DOBNER, Petra; e LOUGHLIN, Martin (orgs.), The Twilight of
Constitutionalism?, Oxford, 2010, p. 23-46 (aqui, p. 40 e ss.); Moritz Renner,
Zwingendes transnationales Recht: Zur Struktur der Wirtschaftsverfassung
jenseits des Staates, Baden-Baden, 2011, p. 229 e ss.; Kaarlo Tuori, "The
Many Constitutions of Europe", in: TUORJ, Kaarlo; e SUVI, Sankari (orgs.),

Scanned with CamScanner


The Many Constitutions of Europe, Famham, 2010, p. 3-30; Larry Catá Bac­
ker (2009), Transnational Corporate Constitutionalism?, disponível ein http://
lcbackerblog.blogspot.com/2009/06/gunther-teubner-on-complications-of.
html, acessado em 10.07.2011; Christian Joerges e Florian Rödl, "Zum
Funktionswandel des Kollisionsrechts II: Die kollisionsrechtliche Form
einer legitimen Verfassung der postnationalen Konstellation", in: CAL-
LIESS, Gralf-Peter el al. (orgs.), Soziologische Jurisprudenz; Festschrift für
Günther Teubnerzum 65. Geburtstag, Berlim, 2009, p. 765-778 (aqui, p. 767,
775 e ss.); M ing-Sung Kuo, "Between Fragmentation and Unity: The
Uneasy Relationship Between Global Administrative Law and Global
Constitutionalism", San Diego International Law Journal 10 (2009), p. 439­
467 (aqui, p. 456 e ss.); Dan Wielsch, "Die epistemische Analyse des Rechts;
Von der ökonomischen zur ökologischen Rationalität in der Rechtswisse
nschaft"Juristenzeitung64 (2009), p. 67-76 (aqui, p. 69 e ss.); Ruth Bucha­
nan, "Reconceptualizing Law and Politics in the Transnational Constitu­
tional and Legal Pluralist Approaches", Socio-Legal Review 5 (2008), p.
21-39; David Schneiderman, Constitutionalizing Economic Globalization;
Investment Rules and Democracy's Promise, Cambridge, 2008; Marc Amstutz
et al, "Civil Society Constitutionalism: the Power of Contract Law", India­
na Journal of Global Legal Studies 14 (2007), p. 235-258; Hans-Jürgen Bieling,
"Die Konstitutionalisierung der Weltwirtschaft als Prozess hegemonialer
Verstaatlichung", in: FÍSCHER-LESCANO, Andreas; e BUCKEL, Sonja
(orgs.), Hegemonie gepanzert mit Zwang: Zivilgcsellschaft und Politik im
Staatsverständnis von Antonio Gramsci, Baden-Baden, 2007, p. 143-160;
Hauke Brunkhorst, "Die Legitimationskrise der Weltgesellschaft: Global
Rule of Law, Global Constitutionalism und Weltstaatlichkeit", in: ALBERT,
Mathias; e STICHWEH, Rudolf (orgs.), Wcltstaat und Weltstaatlichkeit,
Wiesbaden, 2007, p. 63-108 (aqui, p. 68 e ss.); Achilles Skordas, "Self­
-Determination of Peoples and Transnational Regimes: A Foundational
Principle of Global Governance", in: TSAGOURIAS, Nicholas (orgs.),
Transnational Constitutionalism: International and European Perspectives,
Cambridge, 2007, p. 207-268; James Tully, "The Imperialism of Modem
Constitutional Democracy", in: WALKER, Neil; e LOUGHLIN, Martin
(Orgs.), The Paradox of Constitutionalism: Constituent Poivcr and Constitutio­
nal Form, Oxford, 2007, p. 315-338 (aqui, p. 328 e ss.); Vagios Karavas,
Digitale Grundrechte: Zur Drittwirkung der Grundrechte im Internet, Baden­
-Baden, 2006, passim; CALLIESS, Gralf-Peter, Grenzüberschreitende Ver­
braucherverträge: Rechtssicherheit und Gerechtigkeit auf dem elektronischen
Weltmarktplatz, Tübingen, 2006, p. 226 e ss., p. 335 e ss.; Reinhart Koselleck,
"Begriffsgeschichtliche Probleme der Verfassungsgeschichtsschreibung",
in: KOSELLECK, Reinhart (Org.), Begriffsgeschichten: Studien zurSemantk
und Pragmatik der politischen und sozialen Sprache, Frankfurt, 2006, p. 365­
401 (aqui, p. 369 e ss.); Harm Schepel, The Constitution of Private Gover-

30

Scanned with CamScanner


Q uais são as prem issas questionáveis que conduzem a discus­
são em torno do constitucionalism o transnacional por um a direção
errada? Elas devem ser substituídas por quais outras prem issas?

2 . Premissas questionáveis

2,1. Constitucionalismo social como um genuíno problema da


globalização?

A dinâmica jncontrolável dos mercados de capitais globais, o


evidente poder de empresas transnadonais e a dominância de experts
não legitimados, em extensas epistemic communities não informadas
pelo direito, conduzem tanto os adeptos de um constitucionalismo
transnacional quanto seus críticos à equivocada conclusão de que o
déficit constitucional de instituições transnadonais seria, em sua es­
sência, atribuível à globalização14. Responsabiliza-se, assim, a debili­
dade típica da política internacional pelo caos desordenado dos espa­
ços sociais globais. Nesse caso, três fenômenos situam-se no primeiro
plano: (1) a desconstitucionalização do Estado Nacional é desencade­
ada pelo deslocamento de funções de governo para o âmbito transna­
cional, bem como pela assunção de parte dessas funções por atores nao
estatais; (2) efeitos extraterritoriais da atuação dos Estados Nacionais
permitem o surgimento de um Direito que carece de legitimação e
mocrática; e, por fim, (3) a inexistência de mandato democrático para
a çovem ance transnacional15. Para compensar esses déficits, discutem-
-se intervenções político-constitucionais na política transnacional, cujas

Scanned with CamScanner


chances de êxito, no entanto, costum am ser avaliadas de maneira
diametralmente oposta.
Na verdade, não se trata de um novo problema de compensação,
m as de um déficit básico do constitucionalism o da m odernidade. Já
desde os prim órdios do Estado N acional, o constitucionalism o per­
m anece sem resposta diante das questões sobre se e com o a consti­
tuição deve abranger os âm bitos sociais não estatais. A s atividades
econôm icas, científicas, pedagógicas e m édicas, dentre outras ati­
vidades sociais, devem se subm eter às proposições normativas da
constituição estatal? O u devem as instituições sociais desenvolver,
de forma autônoma, suas constituições próprias (Eigenverfasswigen)?
D esde o seu início, a praxis constitucional m oderna oscila entre
esses dois polos. Paralelam ente, à luz de an álises em píricas e pro­
gram as norm ativos, levanta-se a seguinte questão: a que são dire­
cionadas as constituições sociais parciais? À regulação estatal de
âm bitos sociais parciais, à proteção de sua autonom ia, à equiparação
de processos decisórios sociais com os da política, ou, ainda, à po-
litização autônoma de instituições sociais?
Aqui entram em cena as teorias sociológicas m encionadas e, ao
fazê-lo, situam a origem das questões constitucionais em processos
de diferenciação social. A problemática do constitucionalismo social
não se inicia propriamente com o advento da globalização, mas ela já
está presente desde a fragmentação do todo social e autonomização
desses fragmentos no auge do Estado Nacional. H oje, no atual estágio
da globalização, essa problemática foi drasticam ente agravada. Ao se
observar mais de perto as diferentes concepções de constitucionalismo
social, fica clara a razão pela qual, no Estado N acional, as respostas
institucionais perm aneceram em um curioso estado de latência16. Em
vista da força irradiante do Estado e de sua constituição política, as
constituições sociais próprias (gesellschaftliche Eigenverfassung) apare­
ciam sempre sob um a penumbra curiosa - ainda que isso ocorresse
por diversas razões. As constituições estatais do liberalismo ainda
lograram encobrir a questão na sombra das liberdades individuais
protegidas como direitos fundamentais. Em diametral oposição a isso,

16 Este é o tema do segundo capítulo.

- 32

Scanned with CamScanner


os sistem as políticos totalitários do século XX procuraram solapar.por
completo a autonom ia dos âm bitos sociais parciais e fizeram desapa­
recer a questão das constituições sociais autônomas por meio da su­
jeição da totalidade dos setores sociais parciais às pretensões de do­
minação estatal. Por sua vez, os Bstados sociais da segunda metade
do século XX, em virtude de suas pretensões políticas de conformação,
também nunca reconheceram oficialm ente as constituições sociais
autônomas de âm bitos parciais. Ao m esm o tempo, esses Estados
estabeleceram um equilíbrio peculiar entre, de um lado, o constitu­
cionalismo estatal - que estendia, de maneira crescente, as incumbên­
cias da constituição política para outras esferas da sociedade - e, de
outro, o pluralismo constitucional - no qual o Estado, de fato, respei­
tava as constituições sociais próprias.
O problem a de um constitucionalism o social foi criado pela
globalização. Com efeito, ela o m odificou radicalm ente: ela destro,
sua latência. Hoje, em vista da força irradiante da política transna
donal - ainda que de intensidade m uito m enor em com paraçao com
aquela do Estado N acional - , os agudos problem as constitucional
de outros setores da sociedade m undial sao colocados sob os holo
fotes. Responsáveis pela nova problem ática constitucional sao a
fragm entação da sociedade m undial, a desform alizaçao de suas
estruturas undicas, bem como as novas form as de " - e " t o
(Steuerum ) da sociedade m undial e a questionável legitim idade da
„ T g lo b a lg o v e r n a n c e ” . Sobre qual base de legitim ação os regim es
tr a n sa c io n a is regulam esferas inteiras de vida ^ a d e " ando
até mesmo nas especificidades da vida cotidiana. O nde se situa
as fronteiras dos m ercados financeiros globais em sua expansao na
economia real e de outros âm bitos da sociedade? Pode-se pretem ^
que os direitos hum anos e fundam entais sejam validos tam bém em
espaços não estatais da sociedade mundial, especialm ente em face
de organizações transnacionais? D iferentem ente do que pressupõe
o debate atual, com o surgim ento de uma sociedade m undial nao

17 Ignacio de Ia Rasilla dei Moral, "At King Agraman^s


new constitutional times", international journal of
(2011), p. 580-610 (aqui, p. 601 e ss.).

Scanned with CamScanner


em erge um a problem ática constitucional com pletam ente nova. Pelo
contrário, o constitucionalism o social - há tem pos presente na rea­
lidade do Estado N acional - coloca-se atu alm ente diante das ques­
tões sobre se e com o ele deve se m odificar sob as condiçoes da glo­
balidade. A continuidade do problem a está atrelada a diferenciação
funcional da sociedade, que, com a transnacionalizaçao, se estendeu
por todo o mundo. Sua descontinuidade, ao contrario, decorre do
fato de que a sociedade m undial desenvolveu estrutu ras próprias e
acelerou tendências de crescim ento, algo que o Estado N acional
ainda desconhecia.
D iferentem ente de como se colocaria em relação a um a política
jurídica que com pensasse as deficiências de constituições nacionais,
a prem ente questão normativa não é m ais: os setores sociais des-
constitucionalizados da sociedade m undial devem ser constitu cio­
nalizados? Mas, sim: como as experiências adquiridas pelo Estado
Nacional com instituições do constitucionalism o social devem ser
implementadas sob as diferentes condições da globalidade? Em es­
pecial: como definir o papel da política para as constituições tran s-
nacionais parciais no triângulo m ágico formado por política, direito
e âm bito social autônom o? R enú ncia? R eg u lação ? S u p erv isão ?
Complementaridade? D issociação de la politique pela le politique18?

2.2. O vazio constitucional do transnacionai?

O debate atual é m arcado, tam bém por outra perspectiva, por


falsos pressupostos tabulas rasas, segu n d o os quais não haveria
norm as constitucionais nos âm bitos sociais parciais - nem no E sta­
do N acional, nem, m uito m enos, no espaço tran sn acionai. Em bora
o constitucionalism o m oderno ten h a conseguido se estabelecer em
quase todos Estados Nacionais, ele estaria sendo enfraquecido, com o
é costum e dizer, pela transferência de atividades do Estado N acional
para organizações, regim es e redes tran sn acionais. N esses âm bitos,
contudo, reinaria um vazio constitucional. É p red sa m en te p eran te

Scanned with CamScanner


esse pano de fundo de um espaço aparentem ente desconstitucio-
nalizado da globalidade que se inicia o debate sobre se o constitu­
cionalism o está próxim o de seu fim ou vivência um renascimento.
A constatação de que esse vazio constitucional do espaço trans-
nacional se tiata de urna falácia pode ser corroborada empiricamen­
te. A nálises das ciências sociais de um "novo constitucionalismo"
assim como as pesquisas desenvolvidas há tempos por economistas
e estudiosos do direito econôm ico sobre as instituições emergentes
de um a constituição econôm ica mundial, e também os estudos de
direito internacional sobre a crescente relevância de normas consti­
tucionais no âm bito transnacional apontam exata mente para a dire­
ção oposta àquela da tese de um vazio constitucional. Atualmente,
já se estabeleceram no espaço transnacional instituições constitucio­
nais de um a densidade im pressionante19. Poucos são aqueles que
negam, hoje, que a U nião Europeia - a despeito do fracassado refe­
rendo constitucional - dispõe de estruturas constitucionais indepen­
dentes20. Do m esm o modo, organizações internacionais, regimes
transnacionais e suas redes não apenas foram juridificadas fortemen-

Sobre o constitucionalismo global já existente, do ponto de vista do direi­


to internacional, cf. Jan Klabbers, "Setting the Scene", in: KLABBERS, Jan
eta]. (Org.), The Constitutionalization of International Law, Oxford, 2009, p.
1-44 (aqui, p. 3); sobre o "novo constitucionalismo", cf. Schneiderman,
Constitutionalizing economic globalization, p. 328 e ss.; sobre a constitui­
ção econômica mundial, da perspectiva do ordem liberal: Peter Behrens
"Weltwirtschaftsverfassung", Jahrbuch fiir Neue Politische Ökonomie 19
(2000), p. 5-27. .
Sobre este debate, ainda pouco evidente, cf. Neil Walker, "Post-Constituent
Constitutionalism: The Case of the European Union , in: LOUGHLIN,
Martin; e WALKER, Neil (orgs.), The Paradox of
turnt Power and Constitutional Form, Oxford, 2008, p. 247-268; WEILER,
Joseph H.; e WIND, Marlene (orgs.), European Constitutionalism Beyond the
State, Cambridge, 2003. No presente trabalho, este debate nao sera apro­
fundado, uma vez que, de certo modo, a constituição europeia representa
somente uma espécie de prolongamento das constituições dos Estados;
Nacionais O que há de verdadeiramente novo se passa em âmbito global,.
no qual surgem não apenas mais unificações territoriais, mas estruturas
funcionais próprias. Cf. o capítulo terceiro.

Scanned with CamScanner


te no período, como tam bém se encontram em um processo de
constitucionalização. Eles se tornaram parte de um a ordem consti­
tucional mundial - muito embora ela seja que extrem am ente frag­
m entada e não tenha alcançado o m esmo nível de densidade das
constituições nacionais. As instituições globais advindas dos acordos
internacionais da década de 1940 (Carta de Havana, GATT e Bretton
W oods), as novas instituições criadas pelo Consenso de Washington
(FMI, Banco Mundial e OMC) e o debate público recentem ente de­
flagrado em torno de uma "constituição global do mercado financei­
ro" falam a língua de uma constituição mundial da sociedade (Ge-
sellschaftsverfasung) já existente e em radical transformação.
Diante disso, a nova questão constitucional precisa ser refor­
mulada uma segunda vez. Como será visto em m aiores detalhes no
próximo capítulo, não apenas constituições próprias (Eigenverfas-
sungen) já foram desenvolvidas por âmbitos sociais parciais dentro
dos Estados Nacionais, como tam bém já se fazem presentes, há
muito tempo, verdadeiros ordenamentos constitucionais no espaço
transnacional, conforme será discutido no terceiro capítulo. Desta
perspectiva, não está em jogo a construção ab ovo de uma nova
constituição em uma globalidade desconstitucionalizada, mas sim
a reforma fundamental de uma ordem constitucional transnacional
que já existe. A nova realidade constitucional apenas fica encoberta
pelo fato de que, no plano transnacional, um sujeito constitucional
equivalente ao Estado Nacional não pode ser prontam ente identifi­
cado. Um Estado mundial como novo sujeito constitucional é uma
utopia - e das piores. Immanueí Kant já sabia disso. Q uais então
seriam então os novos sujeitos constitucionais sob as condições da
globalidade?21 O sistema de política internacional? O direito inter­
nacional público? Organizações internacionais? Regim es transna-
cionais? Redes globais? Novas formas de agremiações, configurações
ou agrupamentos? A questão relevante para o direito constitucional
é se tais configurações são, de fato, constitucionalizáveis. A respos­
ta a isso tudo depende de verificar se tais instituições não estatais
apresentam analogias viáveis para o pouvoir constituant do Estado

21 Este é o questionamento do capítulo terceiro

36

Scanned with CamScanner


Nacional, para a autoconstituição de um a coletividade, para o pro­
cesso dem ocrático de tom ada de decisão e para ò aspecto organiza­
cional de u m a constitu ição política em sentido estrito.

2.3. Limitação da governança transnacional a processos


políticos?

Ao lado desses dois enganos muito difundidos - que os Estados


Nacionais ainda não conheceriam constituições parciais da socie­
dade civil e que um vazio constitucional reinaria nos espaços trans-
nacionais - , ad iciona-se outro equívoco, com base no qual o debate
atual subestim a a rad ical idade de um a constitucionalização so cia l
Em princípio, a dem anda por um a constitu ição som ente decorreria
do desenvolvim ento, na socied ad e m undial, de form as próprias
de g overn an ce política que se d iferenciam de governm ent, ou seja,
das tradicionais práticas governam entais do Estado Nacional. G o­
vernance é definida com o o resultado de intervenções sociais, polí­
ticas e adm inistrativas, nas quais atores públicos e privados solu­
cion am p rob lem as s o c ia is 22. O en red a m en to das b u ro cracias
especializadas de diferentes Estados nacionais com atores da socie­
dade mundial, empresas transnacionais, conglomerados economicos,
organizações não governam entais e regim es híbridos é encarada
como a nova problemática da governança global a ser superada por
meio de instituições constitucionais23. Com isso, a lim itação cons­
titucional do poder político encontra-se em prim eiro plano, cuja
particularidade consiste no fato de ela ser socializada parcialmente.
Sem dúvida, essa socialização da dom inação política constitui

Scanned with CamScanner


um dos elem entos centrais da govern an ce global, m as ainda assim a
análise é demasiada superficial. O problema é m enosprezado quan­
do se pensa em lim itar as novas constelações de poder da gover­
nança global, que tam bém incluem atores privados, tão somente
com norm as constitucionais. Aqui, torn a-se novam ente perceptível
a estreita visão das teorias político-jurídicas da constituição, as quais,
tam bém nas relações transnacionais, focalizam apenas fenômenos
da política (no sentido estrito de uma política institucionalizada).
D o ponto de vista sociológico, ao contrário, fica claro que o verda­
deiro problema é a fundação constitutiva (Konstituierung) de âmbi­
tos de ação autônomos na sociedade m undial —justam ente fora da
política internacional - e que é n ecessário debater o papel das
norm as de direito constitucional nesse processes4. Som ente quando
se vai além dos processos políticos transnacionais, em sentido es­
trito, e se deixa claro que os atores sociais não apenas participam de
processos políticos de poder de global govern an ce, m as tam bém es­
tabelecem por conta própria regim es globais autônom os fora do
âmbito da política institucionalizada - que, por sua vez, podem
converter-se facilmente em atores políticos, passando a influir na
política é que se tornam visíveis os problem as de um constitucio­
nalismo social em sentido estrito na sociedade m undial.
Com isso, as diferenças entre constituições sociais setoriais e
a constituição política passam para o prim eiro plano. Isso porque a
constitucionalização da global govern an ce ainda é compreendida

24 A transposição, para os regimes sociais autônomos, de uma visão atrelada


apenas ao sistema político fica clara na sábia tipologia da governança
global criada por Rosenau. Em sua primeira tipologia, os atores sociais -
empresas multinacionais, ONGs, mercados, grupos informais da elite e
esferas públicas parciais - ainda ficam reduzidos à sua participação na
dominação política. Cf. James Rosenau, "Change, Complexity, and Go­
vernance in Globalizing Space", in: PIERRE, Jon (Org.), Debating Gover­
nance, Oxford, 2000, p. 167-200. Em sua segunda tipologia, os ordenam en­
tos sociais independentes aparecem em lugar de destaque. Cf. James
Rosenau, Strong Demand, Huge Supply: Governance in an Emerging
Epoch", in; BACHE, Ian; e FLINDERS, M atthew (Org.), Multilevel Gover­
nance, Oxford, 2004, p. 3 1 -4 8 (aqui, p. 41).

38

Scanned with CamScanner


com o a con stitu ição dos processos políticos transnacionais em sen­
tido estrito. Em contraposição a isso, a analise sociológica dos sis­
tem as p arciais globais (econom ia, ciência, cultura e meios de comu­
nicação em m assa) e n co n tra -se diante de questões muito mais
difíceis: os sistem as parciais globais apresentam atualmente uma
dinâm ica de crescim en to descontrolado que precisa ser submetida
a lim itações constitu cion ais? Existem , nesses setores, formas aná­
logas de autolim itação de tais dinâm icas expansivas, especialm en­
te em relação à separação política dos poderes? De modo ainda mais
fundam ental, coloca-se a pergunta: até que ponto devem ser gene­
ralizados os princípios da constituição política a fim de contornar
as arm adilhas do nacionalism o m etodológico? E como esses prin­
cípios devem ser reespecificados para atender às particularidades
de uma instituição social na globalidade25?
Tal m étod o sociológ ico de generalização e reespecificação
trabalhar deve en fren tar a seguinte questão: é possível identificar,
em âmbitos transnacionais pardais, um equivalente às constituições
dos Estados N acionais, no que diz respeito às suas funções, arenas,
processos e estruturas26?
Constituições transnacionais de setores parciais não se empe­
nham na busca por um equilíbrio estável; mas antes perseguem o
padrão caótico de um "desequilíbrio dinâm ico" entre desenvolvimen­
tos contraditórios - quer dizer, entre autonomização e limitação da

Sobre a relação entre globalização e especialização (aqui entendida ena opo­


sição ao fenômeno da analogia, que ora trabalha com relações vagas de se­
melhança, ora generaliza em excesso uma base analógica, mas nao busca
espedalizá-la suficientemente), cf. Talcott Parsons e CharlesAdcerman The
concept of'social sistem' as a theoretical device , In: DIRENZO, Gordon J.
(Ore.), Concepts, theory and explanation in the behavioral sciences, New Yor ,
1966, p. 19-40. Sobre a especialização de direitos fundamentais politicos para
assegurar-lhes aplicabilidade às organizações econômicas, cf. Jens Schierbeck,
"Operational Measures for Identifying and Implementing Human R jg f e
Issues in Corporate Operations", in: HIDE, Asbjom etal (Or^ J iw m n R it fit s
and the Oil Industry, Antwerpen, 2000, p. 161-177 (aqrn, p. 168). C'A/v.;-- o
■’ji-: '/'AAV
O capítulo quarto se ocupará dessa questão.
' T a T;;
' - .’.O«'
___■P
39

Scanned with CamScanner


lógica funcional de sistem as parciais27. Até o momento, os novos
ordenamentos constitucionais globais estabeleceram, em essência
apenas regras constitutivas, que conferem suporte normativo para á
liberação de racionalidades sistêmicas distintas em âmbito global
Atualmente, entretanto, torna-se cada vez mais evidente a demanda
por uma reorientação. Após longas experiências históricas com as
tendências expansionistas dos sistemas funcionais parciais globali­
zados, bem como após os choques causados por crises endógenas
surgem m ovimentos contrários, que - após conflitos sociais violentos
-p a ssa m a formular regras limitativas para contraporem-se às tendên­
cias autodestrutivas e impedir danos aos ambientes social, humano
e natural. De fato, já desde o início da globalização, o problema cons­
titucional "vertical" foi objeto de disputas políticas, como a necessi­
dade de impor, em relação aos Estados Nacionais, limites aos novos
regimes globais. Mas, com isso, ainda não foi de modo algum desve­
lado o grave problema constitucional "horizontal" qual seja

se a autonomia dos sistemas funcionais não poderia resultar em


uma sobrecarga recíproca que perpasse os limites da capacidade
adaptativa estrutural dos sistemas funcionais chegando até em
sua própria diferenciação28.

Essa cegueira em relação às externalidades negativas de siste­


mas em expansão, bem como aos seus potenciais autodestrutivos,

27 O duplo movimento" histórico entre expansão de mercados e sua limi­


tação é analisado por Karl Polanyi em The Great Transformation: Politische
. und Ökonomische Urspriinge von Gesellschaßen und Wirtschaftssystemen, Frank­
furt 1995 [19441, p -106 e ss., p. 182 e ss. De forma generalizada - não apenas
para a economia, mas também para diversos âmbitos sociais parciais —, o
argumento aparece como relação entre concessão de autonomia e proibi­
ção jurídica, em razão de experiências negativas. Cf. Rudolf Wiethölter,
"Recht-Fertigungen eines Gesellschafts-Rechts", in: JOERGES, Christian;
e TEUBNER, Gunther (Org.), Rechtsverfassungsrecht: Recht-Fertigungztois-
dien Privatrechtsdogmatik und Gesellschaftstheorie, Baden-Baden. 2003, p.
1-21 (aqui, p. 20).
28 Niklas Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft, Frankfurt, 1997, p. 1.087.
Sobre encargos mútuos dos regimes transnacionais e as reações político-
-jundicas a eles, cf., em maiores detalhes, Fischer-Lescano e Teubner,
Regime-Kollisionen, p. 25 e ss., p. 57 e ss. ' . . ■ . rí i 7 c rí : rí

Scanned with CamScanner


m ostrou-se na crise do mercado de capitais. A constituição global
do mercado de capitais, anteriorm ente válida, não foi simplesmen­
te o produto de um processo evolutivo cego, no qual mercados se
globalizaram por conta própria. Ao contrário, isso se deu com par­
ticipação ativa da política c do direito. Em função da desconstrução
de barreiras nacionais e de uma política explícita de dcsrcgulação,
estabeleceu-se um a constituição global do mercado financeiro -
politicamente desejada e juridicam ente estabilizada - que liberou
dinâmicas incontroladas. No entanto, a simultânea normatização
de regras limitativas, em substituição às regulações nacionais, não
integrava a agenda política, tendo sido combatida por anos como
contraproducente. A penas hoje, em decorrência da experiência de
uma quase catástrofe, é que parecem engrenados os processosde
aprendizado coletivo que buscam encontrar, no futuro, limitações
constitucionais à atividade financeira, em nível global.
Wolfgang Streeck argumenta que isso não teria qualquer chan­
ce de êxito, uma vez que regras estatais ou internacionais são, de
fato, recorrentemente contornadas de modo efetivo e que qualquer
regulação exan te seria impossível, tendo em vista essa estratégia de
burla29. Tal pessim ism o compulsivo, contudo, não é melhor que seu
oposto, o otim ism o compulsivo. Em vez disso, deve-se tentar per­
seguir a dinâmica evolutiva das quase catástrofes que está operan­
do aqui. Na realidade, a regulação político-jurídica evolui de acordo
com o preceito: feitta Ia Icggc, trovato VingannoNT, embora seja igual­
mente válido o á ítã â o fa tto Vinganno, trovata Ia Icgge. A lei produz sua
própria burla, da mesma forma como a burla da lei produz novas
leis. Aqui, sentem -se os efeitos de um processo evolutivo de apren­
dizado que trabalha em ambas as direções, mas que apenas opera
de modo postfactum . Dessa forma, parece que as adaptações recí­
procas são menos realizadas de acordo com o modelo de um pro­
cesso de aprendizado racionalmente orientado, do que seguindo o

29 Wolfgang Streeck, Re-Forming Capitalism: Institutional Change in the German


Political Economy, Oxford, 2009, p. 236 e ss.
NT Todas as inserções no texto original em língua não alemã (Latim, Italiano,
Francês, Inglês) foram mantidas sem tradução; conforme o original.

41

Scanned with CamScanner


padrão hitting the bottom - conform e se diz no m undo das drogas30.
N esse contexto, m odifica-se tam bém a agenda de um consti­
tucionalism o transnacional: não é questão de constru ir a partir do
zero, m as, sim, de reform ar os fundam entos de um a ordem consti­
tucional já existente. Particularm ente urgente é a lim itação de ex~
ternalidades negativas das dinâm icas sociais liberadas (também)
por regras constitucionais político-jurídicas. E aqui, em especial a
constituição financeira global e as constituições de em presas trans-
nacionais são deslocadas para o centro das atenções constitucionais.

2.4. Redução da eficácia horizontal dos direitos fundamentais


aos deveres de proteção do Estado?

Não apenas o debate sobre g lobal govern an ce, m as tam bém


aqueloutro relativo à eficácia dos direitos fund am entais dentro dos
espaços sociais da globalidade, pecam pelo fato de perm anecerem
centrados no Estado, ainda que já trabalhem com tend ências de
socialização. O s escândalos acim a expostos de violações de direitos
humanos por empresas transnacionais são habitualm ente tratados
como um problema de "eficácia h orizon tal" (D rittwirkung) de direi­
tos fundamentais estatais. O riginalm ente direcionadas ao Estado,
as garantias dos direitos fundam entais tam bém podem ser eficazes
contra violações por parte de "terceiros" - atores privados tran sn a­
cionais - na medida em que, conform e a doutrina atualm ente do­
minante, forem im postos deveres de proteção à comunidade inter­
nacional de Estados31.

30
31
-■-

Scanned with CamScanner


Em vários aspectos, esse pensam ento acaba perdendo de vista
a problemática dos direitos fundam entais em contextos sociais. Em
razão da fixação no Estado, ele "coloca o carro na frente dos bois",
por assim dizer. Esse pensam ento não considera impor deveres aos
atores privados transnacionais que violam direitos fundamentais;
ao contrário, ele sustenta que apenas a comunidade de Estados é
que está obrigada a coibir violações de direitos fundamentais per­
petradas por tais atores. Com isso, contorna-se intencionalmente a
sensível questão acerca da vinculação dos agentes privados aos di­
reitos fundam entais. Isso é feito como se esta fosse uma questão de
poder político dos Estados de definir se os direitos fundamentais
valem nos espaços sociais e como eles devem ser protegidos. O mais
significativo equívoco do Estado-centrism o consiste em tratar a
eficácia horizontal dos direitos fundam entais como um problema
de poder social, o que os leva a perder de vista a verdadeira função
da eficácia horizontal, qual seja limitar, por meios jurídicos, as ten­
dências expansionistas dos sistemas sociais parciais - que não se
m anifestam apenas no meio do poder (.M achtmedium).
Caso se abandone essa fixação no Estado, pode-se vislumbrar
a dificuldade real dos direitos fundamentais no meio social. Q uan­
do o desafio é, por meios constitucionais, limitar as tendências ex­
pansionistas conformadas na lógica própria de cada sistema social
parcial, então não se pode continuar defendendo que os direitos
fundamentais são direcionados somente ao Estado, nem que eles
podem ser imputados a atores individuais, nem que são voltados
exclusivamente para fenômenos sociais de poder, ou, ainda, que
consistem em espaços de autonomia protegidos por meio de direitos
subjetivos. É possível, aqui, desenvolver uma perspectiva segundo . ; ■. ,
a qual os direitos fundamentais teriam eficácia contra os próprios
meios de comunicação social, em vez de contra os atores sociais?
Tratar-se-ia, então, de proteger não apenas os direitos fundamentais
de indivíduos, mas também os de instituições sociais, contra meios ^
sociais (gesellschaftlichen M edien) expansivos? Deve a eficácia social cy;
■ -
________________ ________________

(2006), p. 598-625; Gavin W. Anderson, Coristitutional Rights after Globali- ' ' ,
zation, Oxford, 2005, p. 126 ess.

43

Scanned with CamScanner


d os d ireitos fu n d am en tais ser im p lem en tad a por m eio de organiza,
ção e p roced im en to, em vez de por m eio de d ireitos subjetivos?

Todavia, tam b ém n o esp aço tra n sn a c io n a l, o d ebate acerca da


eficácia h o rizo n tal - ou em face de terceiros (D rittw irkung) - não
p od e se restrin g ir a fu n ção de d efesa (A bw ch fu tiktioii) dos direitos
fu n d am en tais - agora, porém , con tra form as de coação social, Ele
ta m b ém deve abordar o papel civil ativo dos d ireitos fundam entais,
ou seja, aquilo que e m a n ifesto em co n stitu içõ es estatais na forma
de d ireitos individuais de p articip ação n os p rocessos de formação
do poder - o que, en tretan to, ainda é pou co co n h ecid o n os âmbitos
so ciais parciais. U m a teoria da eficacia h o rizo n tal que seja sociolo­
gicam ente orientada não con segu e fu gir a e ssa s p erg u n tas e preci­
sa enxergar os direitos fu nd am entais com o com p on en tes estruturais
de diversos sistem as sociais parciais com p letam en te distintos. Essa
teoria se coloca diante do desafio de d elin ear os direitos civis de ação
não apenas no m eio de poder (M ach tm ed iw n ) da política, m as tam­
bém nos m eios de com unicação de ou tros sistem as sociais32.

2.5. Unidade de uma constituição m undial cosm opolita?

U m derradeiro problem a do d ebate con stitu cion al diz respeito


a um preconceito u n itarista do conceito de constitu ição, o que tem
reflexos na sua aplicação à sociedade m u nd ial. Tanto o direito inter­
nacional público com o a filosofia política cu ltiv am a questionável
í
ideia segundo a qual a con stitu cion alização do direito internacional
estaria em condições de criar u m a ordem co n stitu cio n al cosmopo­
lita, um a constituição unificada para toda a socied ade m undial33. É

32 Isso é discutido no quinto capítulo (tópico 3).


33 Bardo Fassbender, '"We the Peoples of the United Nations': Constituent
Power and Constitutional form in International Law", in: WALKER, Neil;
e LOUGHLIN, Martin (Orgs.), The Paradox o f Constitutionalism: Constituent
Power and Constitutional Form , Oxford, 2007, p. 269-290 (aqui, p. 281 e äs.);
Otfried Höffe, "Vision Weltrepublik: Eine philosophische Antwort auf die
Globalisierung", in: RULOFF, Dieter et a l (Org.), Welche Weltordnung?'
Zürich, 2005, p. 33-53. - .'■• '

44

Scanned with CamScanner


verdade que propostas de um Estado m undial, enquanto substrato
de uma constituição unificada, são refutadas com o sendo irrealistas;
mas em seu lugar a "com unidade in ternacional" é elevada a ponto
de referência de um direito constitucional m undial em ergente, dei­
xando de ser vista com o mera com unidade de Estados soberanos,
conform e ocorre n o direito in tern acion al público tradicional, e
passando a ser com preendida como reunião de atores políticos e
sociais e, tam bém , com unidade jurídica dos indivíduos34. A consti-
tu cion alização do direito in tern acion al é concebida, até onde é
possível, em paralelo ao direito constitucional do Estado Nacional:
hierarquia de norm as constitucionais face às norm as jurídicas ordi­
nárias, todo o globo terrestre como âm bito de validade uniforme,
extensão aos âm bitos nacionais, culturais e sociais35.
Em contraste, tam bém aqui as análises sociológicas, m ais uma
vez, assinalam a profunda fragm entação da sociedade m undial, o
que traz dificuldades severas para tal constitucionalism o unitarísta.
No debate corrente, a fragm entação é vista, quando muito, como
um déficit que precisa ser superado, m as não com o demanda para
que sejam redefinidos os problem as constitucionais da sociedade
m undial, abrindo o cam inho para novas soluções. N este ponto, a
alternativa é: caso a fragm entação da sociedade não deva, em prin­
cípio, ser superada, então não é possível prender-se à ideia de um a
constituição global unificada. No lugar disso, a atenção passa a se
concentrar sobre os conflitos fundam entais existentes entre os frag­
m entos constitucionais. Mas, nesse caso, um direito constitucional
dotado de amplo alcance apenas pode funcionar, quando muito,
com o direito constitucional global de colisões, e não como direito
unificado36. O s pressupostos sociais que ainda possibilitam ao E sta-

34 Uma análise fundamental das distintas variantes de uma constituição


mundial cosmopolita é oferecida por Rasilla dei Moral, "At King Agramant's
' Camp",- ■, ,
35 Uma crítica abrangente das "ilusões constitucionais" em tomo de um Es­
tado mundial é encontrada em Andreas Fischer-Lescano, Globalverfassung:
Die Geltungsbegründung der Menschenrechte, Weilerswist, 2005, p. 247 e ss.
36 Para os primeiros passos nessa direção, cf. Fischer-Lescano e Teubner,
Regime-Kollisionen, p. 57 e ss.

Scanned with CamScanner


do N acional estabelecer a unidade de sua constituição não se en­
contram , em princípio, presentes em espaços transnacionais.
A lém disso, um constitucionalism o transnacional também
precisará conform ar-se com as condições de um a sociedade mun­
dial duplam ente frag m en tad a37. Aqui, não é apenas decisivo que, em
um a prim eira fragmentação do mundo, os setores modernos da
sociedade mundial dotados de atuação autônom a insistam, com
p ersistên cia, em constituições próprias que concorram com as
constituições dos Estados Nacionais. A ntes, é a segunda fragmen­
tação do mundo em diferentes culturas regionais, assentadas sobre
diretrizes de organização social fundam entalm ente diferentes, que
torna completamente ilusória a identificação de padrões unificados
de um a constituição mundial. Q uando se pretende manter fiel à
ideia de uma "constituição mundial", a fórmula apenas pode ser a
interligação das constituições próprias dos fragm entos globais - das
nações, dos regimes transnacionais, das culturas regionais - umas
com as outras, formando um direito constitu cion al de colisões
('Verfassungskollisionsrecht)38.

37 Sobre a reação do direito transnacional à dupla fragmentação da socieda­


de mundial, cf. Günther Teubner e Peter Korth, "Zwei Arten des Rechts­
Pluralismus: Normkollisionen in der doppelten Fragmentierung der
Weltgesellschaft", in: KÖTTER, Matthias; e SCHUPPERT, Gunnar Folke
d P i ^ 0rrt^a^ve Pluralität ordnen: Rechtsbegriffe, Normenkollisiotwn und
^ 1 3 7 l& T m KonteXtÉn dies' und jenseits des Staates, Baden-Baden, 2009,

38 Este é o tema do sexto capítulo. 2:

Scanned with CamScanner

Você também pode gostar