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Juiz ou Deus?

O imaginário social na
sociedade órfã

André Karam Trindade


Doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela Università degli Studi di Roma Tre, em Roma, Itália.
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Guanambi (FG/BA).
Coordenador do SerTão – Núcleo Baiano de Direito e Literatura (DGP/CNPq). Presidente da
Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL). Produtor Executivo do Programa de Televisão Direito
& Literatura (TV JUSTIÇA). Advogado. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/0020455190187187>.
E-mail: <andre@rdl.org.br>.

Henriete Karam
Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Guanambi (FG/
BA). Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS.
Pesquisadora do SerTão – Núcleo Baiano de Direito e Literatura (DGP/CNPq). Diretora
da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL). Psicanalista. Lattes: <http://lattes.cnpq.
br/2731124187247021>. E-mail: <henriete@rdl.org.br>.

Dieter Axt
Mestrando em Direito Público (UNISINOS). Assistente Editorial da ANAMORPHOSIS – Revista
Internacional em Direito e Literatura. Membro da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL).
Lattes: <http://lattes.cnpq.br/1582390811392545>. E-mail: <dieter@rdl.org.br>.

Resumo: O presente artigo insere-se no campo dos estudos do Direito na literatura (Law in literature). Tendo
como corpus o romance A balada de Adam Henry, de Ian McEwan, adota como pressuposto a noção de
“modelos de juiz”, proposta originalmente por François Ost, e aborda a representação do juiz no imaginário
das sociedades contemporâneas. Para tanto, examina as articulações entre a literatura e os discursos e
práticas sociais. Em seguida, oferece a análise de Fiona Maye, protagonista da narrativa, destacando os
elementos que remetem à construção de um novo modelo de juiz. Discute, ainda, o papel conferido ao
poder Judiciário nas atuais democracias constitucionais, a partir dos aportes teóricos de Antoine Garapon
e de Ingeborg Maus. Conclui, por fim, que a protagonista do romance de McEwan inaugura um novo
paradigma da representação do juiz na literatura ocidental, a partir do qual é possível problematizar a
imagem do juiz inscrita na sociedade brasileira.
Palavras-chave: A balada de Adam Henry. Direito na literatura. Ian McEwan. Modelos de juiz. Sociedade
órfã.

Sumário: 1 Introdução – 2 A literatura e a (des)construção do imaginário social – 3 Fiona Maye: novo


modelo de juiz? – 4 A ascensão do Poder Judiciário na sociedade órfã – 5 Conclusão – Referências

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1 Introdução
“Juiz não é Deus”. Essa insistente negativa – que, presente no dia a dia dos
brasileiros, parece indicar a tentativa de anular a ideia contrária que povoa seu ima-
ginário social – custou caro a uma agente de trânsito na cidade do Rio de Janeiro em
2011. Ao realizar procedimentos de rotina numa blitz, ela parou um juiz, que dirigia
sem carteira de habilitação, com o carro sem placa e também sem documentos.
Houve discussão. A agente de trânsito teria lançado mão da irônica frase porque o
juiz pretendia receber tratamento diferenciado em razão da função. Ele deu-lhe voz
de prisão, por desacato. Não satisfeito, o juiz ingressou com ação de reparação de
danos que resultou na condenação da agente de trânsito à indenização no valor de
R$5 mil por danos morais. O Tribunal de Justiça confirmou a sentença, constando no
acórdão: “Em defesa da própria função pública que desempenha, nada mais restou
ao magistrado, a não ser determinar a prisão da recorrente, que desafiou a própria
magistratura e tudo o que ela representa”.
O fato de que juízes não são deuses é, imagina-se, do conhecimento de todos,
apesar de certos rituais e símbolos apontarem em direção contrária. Todavia, con-
forme sinaliza L. Streck (2016), há uma questão subjacente que exige reflexão: se
juízes não são deuses, por que isso precisa ser dito a todo momento? Como se vê,
a necessidade recorrente de negar a dimensão de divindade conferida aos juízes –
ao menos desde o medievo – revela que tal condição ainda se encontra fortemente
enraizada no imaginário das sociedades contemporâneas, que associa a atividade de
julgar a uma função divina.
O presente artigo retoma essa problemática, inserindo-se no campo dos estu-
dos do Direito na literatura (Law in literature),1 cuja premissa compartilhada é de que
certas narrativas literárias são mais importantes para a compreensão dos fenômenos
jurídicos e sociais do que grande parte dos tratados e manuais, como aduzem A. K.
Trindade e R. Gubert (2008).
Assim, com base na noção de “modelos de juiz”, proposta originalmente por
F. Ost (1983; 1991), o estudo aborda a representação do juiz no imaginário social,
tendo como corpus o romance A balada de Adam Henry, de Ian McEwan, publicado
em 2014, e adaptado para o cinema em 2017.
Para tanto, inicialmente, examina as articulações entre a literatura e os discur-
sos e práticas sociais. Em seguida, oferece a análise de Fiona Maye, protagonista da
narrativa, destacando os elementos que remetem à construção de um novo modelo
de juiz. Discute, ainda, o papel conferido ao poder Judiciário nas atuais democracias
constitucionais, a partir dos aportes teóricos de A. Garapon (1996) e de I. Maus

1
Essa ainda é a corrente dos estudos de Direito e Literatura mais significativa no contexto acadêmico brasileiro
(TRINDADE; BERNSTS, 2017).

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(2000). Conclui, por fim, que a protagonista do romance de McEwan inaugura um


novo paradigma da representação do juiz na literatura ocidental, a partir do qual é
possível problematizar a imagem do juiz inscrita na sociedade brasileira.

2 A literatura e a (des)construção do imaginário social


A literatura, enquanto manifestação artístico-cultural, desempenha papel de
destaque nos estudos do imaginário social, e isso se deve justamente à sua nature-
za, assinalada há muito por Aristóteles,2 de representação do possível, na qual está
implicada a capacidade do texto literário de nos oferecer tanto múltiplas leituras e
interpretações do real quanto a compreensão do sistema simbólico erigido na busca
de atribuição de sentido às experiências humanas.
Desse modo, as narrativas literárias possibilitam elucidar as articulações entre
discursos e práticas sociais, bem como as bases ideológicas e os valores comparti-
lhados em determinada cultura, o que inclui os papéis sociais e os mecanismos das
instituições nela estabelecidos e vigentes (OST, 2005).
É nesse contexto que, conforme propõem L. Streck e A. Trindade (2015), tem se
mostrado extremamente valioso e profícuo problematizar a representação do juiz no
imaginário social por meio da leitura e do debate de textos literários (AMAYA, 2016;
FÁBREGA PONCE, 2013; LAMY, 2001).
Da extensa lista de obras da literatura ocidental em que a figura do juiz se faz
proeminente,3 interessa-nos refletir sobre a representação da juíza que protagoniza
o romance A balada de Adam Henry,4 de McEwan, e nos propusemos a investigar
em que medida essa representação literária do magistrado reforça ou problematiza
aquela que, predominantemente, vigora no imaginário social contemporâneo.
Essa dupla possibilidade – de consolidação e de problematização –, visto que
tais alternativas não são excludentes, relaciona-se com o fato de as obras literárias
remeterem à visão de mundo da época e da cultura em que são produzidas e resulta
do modo como nelas se encontram imbricados elementos de automatização e ele-
mentos de estranhamento, ou seja, os textos literários tanto incorporam a tradição
cultural quanto fundam novas compreensões do humano.

2
Ao comparar o registro histórico e a criação literária, Aristóteles defende que: “Não é em metrificar ou não
que diferem o historiador e o poeta; a obra de Heródoto podia ser metrificada; não seria menos uma história
com o metro do que sem ele; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos que podiam
acontecer” (1997, p. 28).
3
A título ilustrativo, pode-se destacar: no drama, a Oresteia (458 a. C.), de Ésquilo, O mercador de Veneza
(1596-1598), de W. Shakespeare, e O círculo de giz caucasiano (1944), de B. Brecht; na lírica, os versos de
O moleiro de Sans-souci (1880), de F. Andrieux; na narrativa, A morte de Ivan Ilitch (1886), de L. Tolstoi, El
juez rural (1924), de P. Prado; À espera dos bárbaros (1980), de J. M. Coetzee, e Portas abertas (1987), de
L. Sciascia.
4
Em seu título original, The Children Act, a explícita referência à legislação inglesa homônima já antecipa
a presença de elementos que possibilitam incluí-lo no rol das narrativas literárias que exploram questões
atinentes ao contexto jurídico. Todas as citações da obra foram retiradas da edição que consta nas Referências,
sendo indicadas pela sigla BAH, e os grifos são todos dos autores deste texto.

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De fato, desde os formalistas russos – sobretudo dos estudos de V. Chklovski


(1971) e J. Tynianov (1971), que empregaram o termo ostranenie para designar o pro-
cesso de estranhamento ou desautomatização da linguagem e das formas literárias
–, os teóricos da literatura têm defendido a concepção da obra literária como produto
histórico.
É, entretanto, a partir dos estudos da Estética da Recepção, especialmente de
H.-R. Jauss (1974), que são incorporadas as noções de desvio estético e de horizonte
de sentido,5 possibilitando, de um lado, preservar o caráter transgressor da literatura
– que, a começar pelo próprio uso da linguagem, concretiza-se em diferentes aspec-
tos e níveis – e, de outro, contemplar tanto o contexto histórico-cultural, que abarca a
inscrição e circulação dos signos, quanto as experiências vividas por cada sujeito no
espaço-tempo da sua própria subjetividade.
Portanto, a questão que se coloca, de imediato, é investigar os elementos im-
plicados na representação da juíza Fiona, protagonista de A balada de Adam Henry, e
analisar em que medida tal representação coaduna-se com a imagem de magistrado
que predomina na tradição jurídica ocidental.

3 Fiona Maye: novo modelo de juiz?


O romance, que abarca poucos meses (de junho até o final do mesmo ano), e
cujos eventos se situam em Londres e em Newcastle, tem como protagonista Fiona
Maye, juíza do Tribunal Superior inglês, e apresenta dois núcleos narrativos: a crise
conjugal vivida por Fiona, que remete à esfera pessoal de sua vida; e sua atuação
profissional, concentrando-se no caso de Adam Henry, um jovem de 17 anos que,
creditando a ela ter-lhe salvo a vida, passa a venerá-la.
Antes de prosseguir, entretanto, cabe explicitar dois aspectos que dizem respei-
to à composição de qualquer narrativa literária, recorrendo a pressupostos advindos
da teoria da literatura e da narratologia.
O primeiro consiste no fato de que toda narrativa – devido à sua própria natureza
estrutural – é composta por uma sucessão de acontecimentos e tem como caracte-
rística a presença de, pelo menos, um evento que, dando origem ao conflito, promove
o desequilíbrio da situação inicial. Enquanto elemento base da intriga, o conflito é
concretizado pelo embate entre o homem e seu entorno – ou seja, entre o protagonis-
ta e as forças antagônicas que a ele se impõem – e pode assumir as mais variadas
formas, pois, além do confronto físico, há os dilemas morais, religiosos, econômicos e

5
O conceito de horizonte, que diz respeito ao papel da cultura na construção de sentido, após ter sido utilizado
por E. Husserl ([s. d.]), encontra-se em H.-G. Gadamer (2003), conjugado à ideia de consciência histórica, e
também em W. Iser (1989), relacionado à implicação das disposições individuais do leitor – os conteúdos da
consciência, as intuições temporalmente condicionadas e a história de suas experiências – na estruturação e
na significação que emergem no processo de leitura.

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sociais, bem como as crises de consciência, tão usuais nos denominados romances
psicológicos,6 que são marcados por conflitos insolúveis e, ao explorarem situações
sem saída, remetem o leitor, muitas vezes, a confrontar-se com o vazio e a angústia
decorrentes da ausência de sentido da existência humana.
Em A balada de Adam Henry, encontramos uma circunstância atípica: o evento
que rompe com o equilíbrio – considerando a alteração radical que promoverá na vida
pessoal de Fiona – situa-se em momento anterior ao do início da narrativa, e o leitor
dele toma conhecimento mediante relato que o narrador oferece da rememoração de
Fiona dos detalhes da recente discussão que tivera com o marido, na qual ele lhe
manifestara o desejo e o propósito de viver uma grande paixão.
De fato, no primeiro parágrafo do romance, após fornecer as coordenadas es-
pacial e temporal e parcas informações sobre a protagonista, o narrador – adotando
o ponto de vista de Fiona – descreve a sala onde ela se encontra, mergulhada em
um ambiente de tranquilidade e de normalidade, que só se evidenciará aparente no
momento em que adentrar em seus pensamentos e lembranças.
Inaugura-se, assim, um procedimento narrativo que será recorrente ao longo do
romance e vincula-se ao segundo aspecto da composição da obra que nos interessa
destacar: o emprego de narrador onisciente e a adoção da focalização interna, possi-
bilitando que se mesclem constantemente, no relato, as ações da protagonista com
as suas percepções, sentimentos e pensamentos.7
A identificação, a análise e a compreensão do modo como tal procedimento
é utilizado em A balada de Adam Henry são de extrema importância na medida em
que, por meio dele, evidencia-se a dupla dimensão da vida da protagonista – íntima,
pessoal e privada, de um lado; profissional, institucional e pública, de outro –, do

6
De fato, a literatura ocidental é marcada pela crescente relevância que o universo psicológico das personagens
adquire nas narrativas. Tal fato, amplamente analisado por G. Lukács (s.d.), resulta na prevalência do conflito
interno, em detrimento do conflito externo, e se relaciona, diretamente, com o uso recorrente do fluxo da
consciência por parte de escritores como Fiódor Dostoiévski, Marcel Proust, James Joyce, Virginia Woolf e
William Faulkner, entre outros.
7
A ocorrência paradigmática talvez seja o trecho em que o narrador intercala, no relato da discussão que
Fiona está tendo com o marido, o fluxo da consciência da protagonista, expondo seus sentimentos ao ver
as fotografias de família com molduras de prata em cima do piano, que lhe fazem evocar as férias de verão
e a necessidade de confirmar a reserva para aquele ano, num castelo cujo folheto promocional destacava a
existência de “uma masmorra com ganchos e argolas de ferro nas paredes” (BAH, p. 29), que, por sua vez, a
faz recordar da “sentença medieval” que ela proferira, há sete semanas e um dia, no difícil caso dos irmãos
siameses, cujos corpos deveriam ser separados para que um deles sobrevivesse: “Durante algum tempo
aquele caso a deixara entorpecida, se importando menos, sentindo menos, se ocupando de seus afazeres
sem contar nada a ninguém. Mas se tornara enjoadiça em matéria de corpos, quase incapaz de olhar o dela ou
o de Jack sem sentir repugnância. Como se abrir sobre isso? Pouco plausível dizer a ele, àquela altura de sua
carreira como magistrada, que determinado caso, entre tantos outros, pudesse tê-la afetado tão intimamente
devido à sua tristeza, a seus detalhes viscerais e ao intenso interesse público. Durante algum tempo, uma
parte dela morrera junto com o pobre Matthew. Tinha sido ela quem havia despachado uma criança do mundo,
quem empregara trinta e quatro páginas elegantemente escritas para justificar sua eliminação. Pouco importa
que, por causa de sua cabeça intumescida e um coração que não se contraía, Matthew estivesse condenado
a morrer” (BAH, p. 35).

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que resulta sua relevância para a especificidade da representação de magistrado


oferecida na obra.
Assim, se a juíza do Tribunal Superior que atua na Vara de Família “tinha o
poder de afastar uma criança de um pai insensível, e às vezes o fazia” (BAH, p. 14),
“usava peruca e franzia a testa para um advogado do alto de seu trono” (BAH, p. 27)
e era respeitada e admirada pelos colegas,8 a mulher Fiona Maye, com cinquenta e
nove anos, sem filhos,9 estava assistindo seu casamento de mais de três décadas
sucumbir, o envolvimento do marido com outra mulher “Aconteceria, com ou sem a
sua concordância” (BAH, p. 15), e ela “se sentia impotente” (BAH, p. 15), “se sentia
frágil e solitária [...] Onde estava o juiz que iria protegê-la?” (BAH, p. 14).
No contexto da narrativa, a posição de poder decisório sobre a vida dos outros
que Fiona ocupa no âmbito profissional, institucional e público contrasta com a fragili-
dade de que ela se vê acometida em sua vida íntima, pessoal e privada. Tal contraste
se explicita em alguns trechos do romance. Em um deles, a discussão com o marido
interrompera a revisão que Fiona fazia da decisão a ser publicada no dia seguinte – o
caso que envolvia um casal de judeus que estavam se divorciando e disputavam a
educação das filhas –, e o narrador, com fina ironia, declara que as “meninas judias,
Rachel e Nora, teriam de pairar acima e atrás de Fiona como anjos cristãos, aguar-
dando um pouco mais. O deus secular delas também tinha seus problemas” (BAH,
p. 24). Em outro trecho, a ironia provém da própria protagonista, ao refletir a respeito
das disputas corriqueiras sobre guarda de filhos, pensão e partilha de bens que lhe
chegavam às mãos:

Só as grandes fortunas vinham ao Tribunal Superior. A riqueza em geral


não conseguia trazer uma felicidade duradoura. Os pais logo aprendiam
o novo vocabulário e os procedimentos legais aplicáveis às crianças,
pasmos ao se verem combatendo a pessoa que um dia haviam amado.
E, aguardando nos bastidores, meninos e meninas identificados apenas
pelo primeiro nome nos documentos constantes dos processos, peque-
nos Bens e Sarahs, atônitos, se abraçando enquanto os deuses acima
deles batalhavam até o amargo fim, indo da Vara de Família para o Tribu-
nal Superior e de lá para o Tribunal de Recursos. (BAH, p. 11)

8
Afirma o narrador que: “Nos círculos dos magistrados, Fiona Maye, mesmo quando ausente, era elogiada por
sua prosa incisiva, quase irônica, quase entusiasmada, assim como pelo modo conciso com que expunha a
disputa. Durante um almoço, o próprio lorde que presidia o Judiciário havia murmurado a seu companheiro de
mesa: ‘Imparcialidade divina, inteligência diabólica, e ainda é bonita’” (BAH, p. 20).
9
Segundo o narrador, Fiona diversas vezes pensara na possibilidade de ter filhos, sempre adiando a decisão
pela incompatibilidade com sua dedicação e ambições profissionais. Aos quarenta anos cogitou adotar uma
criança, mas a firme decisão tomada no meio da noite era abandonada em meio à correria para o trabalho na
manhã seguinte. Suas dúvidas perduraram durante anos, até que, “Por fim, às nove e meia de uma manhã
no Tribunal Real de Justiça, quando prestou juramento perante o presidente do Judiciário e fez seu voto de
lealdade diante de duzentos colegas de cabeça coberta pela tradicional peruca branca, vestindo com orgulho
uma túnica e sendo objeto de um discurso espirituoso, ela soube que a partida havia terminado, que pertencia
à Justiça como outrora algumas mulheres tinham sido noivas de Jesus Cristo” (BAH, p. 48, grifos nossos).

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Em ambos os casos, as construções discursivas apresentam duplo vetor, reves-


tindo-se de ambiguidade e remetendo à humanidade da pessoa que, pela função que
ocupa, é investida da figura divinizada do magistrado que vigora no imaginário social.
Também é explicitada a duplicidade interna da protagonista, que transparece no
envolvimento de Fiona com seu trabalho, possibilitando, de um lado, a evasão da sua
vida pessoal e o amparo da racionalidade, de outro, fonte de genuína preocupação e
comprometimento com a função que ela desempenha. Quando vê, pela janela, que o
marido havia ido embora de casa no meio da noite, seu pensamento é de que

No outro lado da cidade, um adolescente confrontava a morte em razão


de suas crenças ou da de seus pais. A missão dela não consistia em
salvá-lo, e sim decidir o que era razoável e legal. Gostaria de ver o rapaz,
se afastar por uma ou duas horas do pântano doméstico e do tribunal,
viajar, mergulhar nas complexidades, formular um julgamento baseado
em suas observações. (BAH, p. 39)

Quatro dias depois, é esse o caso a ser julgado: Adam Henry, um jovem de 17
anos que tem leucemia e, embora necessite de transfusão de sangue, recusa-se a
realizar o procedimento, pois contraria as crenças religiosas de sua família. Tendo
em vista tratar-se de menor, o hospital em que ele se encontra internado recorre ao
Judiciário a fim de obter a autorização para prestar o devido atendimento ao rapaz.
Ao entrar na sala de audiência, ainda abalada pela partida do marido e frustrada
por ele ainda não ter feito contato, Fiona pondera que “Ali a questão era de vida e
morte [...] Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida”
(BAH, p. 62-63).
Não há, entretanto, como afastar completamente seu drama pessoal – sua
mágoa e sentimento de estar sendo desprezada e abandonada pelo marido10 – da
inusitada decisão de visitar o rapaz no hospital, hipótese que, anteriormente, já havia
cogitado e descartado:

Atualmente, investigar por conta própria era raríssimo. Lá pela década de


1980, um magistrado ainda podia colocar o adolescente sob a tutela da
corte e encontrar-se com ele em seu gabinete de trabalho, no hospital
ou em casa. Sabe-se lá como, um ideal nobre havia sobrevivido até os
tempos modernos, amassado e enferrujado como uma velha armadura.
Os juízes representavam o monarca e, durante séculos, haviam desem-
penhado o papel de guardiões das crianças da nação. Nos dias de hoje,
assistentes sociais do serviço de apoio e aconselhamento da Vara de Fa-
mília faziam isso e apresentavam um relatório. O velho sistema, vagaroso

10
Em um trecho do relato, o narrador oferece a exata dimensão do sentimento de desamparo vivido por Fiona:
“A tristeza e o acúmulo de mágoas pormenorizadas, enquanto a verdadeira raiva ainda estava por vir [...]
abandonada na infância da velhice, quando começava a aprender a engatinhar” (BAH, p. 46).

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e ineficiente, preservava o toque humano. Agora, menos atrasos, mais


formulários com quadradinhos para serem assinalados, mais coisas a
aceitar na base da confiança. A vida das crianças ficava guardada nas me-
mórias dos computadores, com bastante precisão, mas com muito me-
nos bondade. Visitar o hospital era um capricho sentimental. (BAH, p. 39)

Diante tanto da gravidade quanto da complexidade do caso – tendo em vista


e considerando que Adam, em três meses, completará 18 anos –, Fiona considera
ser importante avaliar se ele tem a exata compreensão de seu estado e das conse-
quências de sua recusa. Ela suspende a audiência, esclarecendo aos presentes sua
intenção: “gostaria de ouvir Adam Henry [...] Ele também precisa saber que não está
nas mãos de uma burocracia impessoal. Vou lhe explicar que caberá a mim a decisão
levando em conta seus melhores interesses” (BAH, p. 85-86). No entanto, a caminho
do hospital, ao refletir sobre sua atitude, só encontra duas justificativas:

[...] tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso que
cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade
de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita me-
diante a intervenção direta de uma corte laica. Não acreditava que podia
ser as duas coisas. (BAH, p. 87)

Em seu encontro com Adam, a duplicidade função-pessoa novamente se mani-


festa. Fiona tenta manter a distância compatível com o caráter de sua visita e com
sua autoridade, mas é impactada pela inocência do jovem. Diante da fragilidade de
seu debilitado corpo, “Sabe-se lá por quê, ela pensou em receitas, frango assado com
manteiga, estragão e limão, berinjelas cozidas com tomates e alho, batatas ligeira-
mente fritas em azeite. Levar aquele menino para casa e alimentá-lo” (BAH, p. 101).
Conversam sobre religião, ela comenta alguns casos jurídicos, ele lê um poe-
ma que escrevera e toca violino: “Ouvir Adam a emocionou, além de surpreendê-la.
Querer tocar violino ou qualquer instrumento era uma demonstração de esperança,
implicava um futuro” (BAH, p. 109). Ela não resiste e, segundo o narrador, “fez uma
proposta muito distante de qualquer coisa que esperava de si própria, correndo o ris-
co de solapar sua autoridade” (BAH, p. 109): pediu que tocasse novamente a música
e o acompanhou cantando. Ao se despedirem, Adam insiste para que ela fique mais
um pouquinho, pede seu e-mail, pergunta se ela iria voltar.
Depois do encontro, Fiona retorna ao tribunal e, dando continuidade à audiên-
cia, passa a apreciar os três argumentos em que se fundam a contestação, oferecida
pelo representante dos pais de Adam, ao pedido apresentado pelas autoridades do
hospital:

O primeiro era o de que, como lhe faltavam três meses para completar
dezoito anos e ele era muito inteligente, conhecendo as consequências

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de sua decisão, Adam devia ser tratado como possuidor da “competên-


cia de Gillick”. Em outras palavras, seria tão capaz de ter suas decisões
reconhecidas quanto qualquer adulto. Em segundo lugar, que a recusa de
tratamento médico constituía um direito humano básico, razão por que a
corte deveria mostrar relutância em intervir. E que, por fim, a fé religiosa
de A era genuína e devia ser respeitada. (BAH, p. 112-113)

Em sua decisão, Fiona considera que, embora Adam Henry fosse um jovem com
excepcional capacidade de compreensão para a sua idade e pudesse ter admitida
sua competência para decidir,11 com amparo em voto proferido por Lord Scarman,12
seu entendimento dos riscos que corria era limitado13 e destaca que a sentença que
lhe cabe proferir deve priorizar o bem-estar do menor.
Saliente-se que, embora se trate de uma narrativa literária, a representação
do universo jurídico e de suas práticas é bastante detalhada e precisa. A sentença
proferida por Fiona é devidamente fundamentada, e ela recorre tanto à legislação
quanto a precedentes:

Entretanto, em última análise não me deixo influenciar pelo fato de que


ele tenha ou não a compreensão absoluta de seu estado. Em vez disso,
sou guiada pela decisão do juiz Ward, como era chamado na época, com
referência ao menor E, em julgamento que também envolveu um adoles-
cente que pertencia às testemunhas de Jeová. Naquela oportunidade, ele
afirmou: “Assim, é o bem-estar da criança que preside a minha decisão,
e cumpre a mim decidir o que dita o bem-estar de E”. Essa observação
foi cristalizada na clara prescrição da Lei da Criança de 1989, que garan-
te nas duas primeiras linhas a primazia do bem-estar do menor. Entendo
bem-estar como englobando felicidade e interesses (BAH, p. 113-114).

Assim, após reconhecer que “É um direito fundamental dos adultos recusa-


rem qualquer tratamento médico” (BAH, p. 114), salientando que “Tratar um adulto
contra sua vontade significa cometer o crime de agressão” (BAH, p. 114), e que “A

11
Fiona refere que o advogado dos pais de Adam havia evocado, em sua exposição, “a seção 8 da emenda de
1969 à Lei da Família: o consentimento de uma pessoa de dezesseis anos ‘será tão eficaz como o seria se
ele já houvesse alcançado a maioridade’” (BAH, p. 113).
12
Observe-se que a introdução, na narrativa, de seres do mundo empírico configura o que R. Barthes (1971)
denomina “efeitos de real”. A inclusão e ficcionalização de eventos do mundo empírico em A balada de Adam
Henry foi devidamente abordada por C. Escoza (2016). Lord Scarman – um dos diversos juristas ingleses
referidos ou citados no romance – fez parte da House of Lords e, tendo participado do julgamento do caso
Gillick v. West Norfolk, em 1895, destacou em seu voto que: “o direito dos pais de determinar se o menor de
dezesseis anos será sujeito ou não a um tratamento médico termina se e quando a criança atinge inteligência
e discernimento suficientes que a tornem capaz de compreender por completo o que lhe é proposto” (Gillick
v. West Norfolk and Wisbech Area Health Authority and another. Disponível em: <http://www.cirp.org/library/
legal/UKlaw/gillickvwestnorfolk1985>).
13
Em seu julgamento, Fiona avalia: “Ele tem uma capacidade de compreensão excepcional para um jovem de
dezessete anos. Mas creio que possui um entendimento limitado da provação que deve confrontar, do pavor
que o invadiria à medida que seu sofrimento e sua impotência aumentassem. Na verdade, ele tem uma noção
romântica do que seja sofrer” (BAH, p. 113).

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está próximo da idade em que pode tomar uma decisão por sua conta e risco” (BAH,
p. 114), Fiona alude ao fato de que Adam “estar preparado para morrer por suas
crenças religiosas demonstra quão profundas elas são” (BAH, p. 114) e examina a
questão relacionando as convicções do jovem à compreensão de mundo da comuni-
dade religiosa em que ele se insere:

Durante toda a infância ele esteve exposto sem interrupção a uma visão
do mundo monocromática e poderosa, a cujo condicionamento não po-
deria escapar. Não promoverá seu bem-estar sofrer uma morte desne-
cessária e agonizante, para assim se transformar num mártir de sua fé.
As testemunhas de Jeová, como outras religiões, têm uma noção nítida
do que nos aguarda após a morte, e as predições deles sobre o fim
dos dias, sua escatologia, são também rígidas e muito detalhadas. Este
tribunal não tem opinião alguma sobre a vida no Além, que, de qualquer
forma, certo dia A descobrirá, ou deixará de descobrir, por conta própria.
Até lá, presumindo uma boa recuperação, o bem-estar dele será mais
bem servido por seu amor pela poesia, por sua recém-descoberta paixão
pelo violino, pelo aproveitamento de sua viva inteligência e pelas mani-
festações de uma natureza brincalhona e afetuosa, por toda a vida e o
amor que se abrem à sua frente. Em suma, entendo que A, seus pais
e os anciãos da igreja tomaram uma decisão que é hostil ao bem-estar
de A, o qual constitui a principal consideração desta corte. Ele precisa
ser protegido de tal decisão. Precisa ser protegido de sua religião e de si
mesmo. (BAH, p. 114-115)

Reafirmando, portanto, a natureza laica do Tribunal e privilegiando o bem-estar


do menor, Fiona autoriza o hospital a realizar todos os procedimentos que seu corpo
médico julgar necessários:

Esta não foi uma questão simples de resolver. Ponderei cuidadosamente


a idade de A, o respeito devido à sua fé e a dignidade do indivíduo conti-
da no direito de recusar tratamento. A meu juízo, sua vida é mais precio-
sa do que essa dignidade. Em consequência, nego a vontade de A e de
seus pais. Minha ordem é que não seja necessário obter a concordância
para a transfusão de sangue. (BAH, p. 115)

Após algumas semanas, quando o marido de Fiona já havia voltado para casa
e eles – apesar dos ressentimentos recíprocos – tentavam reconstruir, lentamente, o
casamento, ela recebe uma carta de Adam e, passados poucos dias, outra. Nelas, o
jovem manifestava sua gratidão e o desejo de encontrá-la, afirmava sentir ciúmes das
dezenas de pessoas cujos casos ela deve ter julgado depois do dele, confessava ter
fantasias maravilhosas e impossíveis14 com ela.

14
Numa das cartas, ele escrevera: “penso na senhora o tempo todo e quero mesmo ver a senhora para nos
falarmos outra vez. Sonho acordado sobre nós, fantasias maravilhosas e impossíveis, como a de que vamos

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JUIZ OU DEUS? O IMAGINÁRIO SOCIAL NA SOCIEDADE ÓRFÃ

Quando Fiona viaja a serviço para o nordeste da Inglaterra, Adam a segue até
Newcastle e a procura na residência em que os magistrados do Tribunal Superior se
hospedavam em seu circuito itinerante.
Na conversa entre os dois, evidencia-se que o jovem começara a se afastar da
religião quando, após a transfusão, pôde perceber, na imensa alegria e alívio de seus
pais – a decisão judicial autorizara e impusera o tratamento que sua fé os impedia de
aceitar –, que eles o amavam e que não desejavam que ele morresse.
Adam afirma que era um tremendo idiota – por ter considerado um ato de ex-
tremo heroísmo sacrificar sua vida à vontade de Deus15 – e que ela havia salvo a sua
vida: “A religião de meus pais era um veneno e a senhora foi o antídoto” (BAH, p. 149).
A gratidão do jovem mescla-se, assim, com a devoção. Na leitura do texto, é
fácil constatar que Fiona passa a ocupar o lugar de Deus na vida de Adam, que a ela
são transferidas as expectativas e fantasias do rapaz. Na sentença que ela proferira,
Adam lera a promessa de um futuro: “Toda a vida e o amor que se abrem diante dele”
(BAH, p. 150).
Não à toa, Adam manifesta a Fiona o desejo de morar com ela. Estar sob o mes-
mo teto significaria estar sob a sua proteção e poder compartilhar do mundo dela: “Eu
podia ajudar a senhora a cuidar da casa, prestar serviços na rua. E a senhora podia
me dar livros para ler, sabe como é, tudo o que achar que eu preciso aprender…”
(BAH, p. 152).
Se, na visita que fizera a Adam no hospital, Fiona – diante da fragilidade física
do rapaz – havia sentido um súbito desejo de levá-lo para casa e alimentá-lo; o mes-
mo não corre agora. Ela recusa e lhe diz que deve ir embora, mas, ao se despedirem,
eles se beijam:

Pretendia lhe dar um beijo no rosto, mas, como ergueu o corpo e Adam
se curvou um pouco, seus rostos se aproximaram, ele girou a cabeça e
os lábios deles se tocaram. Ela poderia ter recuado, ter dado um passo
atrás, se afastando dele. Em vez disso, se demorou, inerme diante
daquele momento. A sensação de pele contra pele anulou qualquer

fazer uma viagem de volta ao mundo juntos num navio, em camarotes vizinhos, e que passeamos o dia todo
pelo convés conversando” (BAH, p. 129).
15
Ele tomara consciência de que sua recusa a se submeter à transfusão de sangue, embora ele acreditasse
ser guiada pela obediência a Deus, resultava do sentimento de estar vivendo uma maravilhosa aventura, de
que “ia morrer gloriosamente e ser adorado” (BAH, p. 148). Adam constatara a satisfação que seu precário
estado de saúde e a expectativa de seu sacrifício à vontade divina então lhe proporcionavam: “Sempre que os
médicos e as enfermeiras tentavam me dissuadir, eu me sentia nobre e heroico, dizendo para me deixarem
em paz. Eu era bom e puro. Adorava que eles não conseguissem entender como eu era profundo. Eu realmente
me achava o tal. Gostava de ver o orgulho dos meus pais e dos anciãos” (BAH, p. 147). Ele confessa que,
quando estava no hospital, certa vez, “À noite, quando não tinha ninguém por perto, ensaiei fazer um vídeo,
como esses homens-bomba. Ia fazer no meu celular. Queria que fosse reproduzido nos noticiários de televisão
e no meu funeral. Acabei chorando no escuro, imaginando meu caixão sendo levado diante dos meus pais, dos
meus colegas e professores, de toda a congregação, as flores, as coroas, a música triste, todos chorando,
todos orgulhosos de mim e me amando. Sinceramente, eu era um idiota” (BAH, p. 147-148).

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possibilidade de escolha. Caso fosse possível dar um beijo casto na


boca, foi isso que ela fez. Um contato fugaz, porém mais do que a mera
sugestão de um beijo, mais do que uma mãe daria no filho adulto. Durou
dois segundos, quem sabe três. Tempo suficiente para sentir, na maciez
e elasticidade dos lábios dele, todos os anos, toda a vida que a separava
de Adam. (BAH, p. 154-155)

Esse casto beijo será para Fiona fonte de autorrecriminações. O narrador infor-
ma que, não sendo propensa a impulsos irrefletidos, ela não conseguia compreender
seu próprio comportamento: “Deu-se conta de que havia muito mais a confrontar em
sua mistura de sentimentos confusos,16 porém, no momento, era o horror do que
podia ter ocorrido, a transgressão ridícula e vergonhosa da ética profissional, que
ocupavam sua mente” (BAH, p. 157). No entanto, ela não se arrepende da recusa.
Aliás, pouco mais de um mês depois, ao receber um poema do jovem, intitulado A
balada de Adam Henry, Fiona suspeita que “Ele voltaria a escrever, apareceria à sua
porta, ela precisaria enxotá-lo de novo” (BAH, p. 165).
As autorrecriminações voltam quando, após algumas semanas, ela recebe a
notícia de que Adam havia morrido, mas são de outra natureza. Fiona se sente culpa-
da pela morte do rapaz: “os pensamentos chegaram sob a forma de duas perguntas
insistentes. Por que você não me disse? Por que não pediu minha ajuda? A resposta
veio em sua própria voz imaginada. ‘Fiz isso’” (BAH, p. 184).
Extremamente abalada pela ideia de que a morte de Adam fora uma espécie de
suicídio,17 ela relembra os versos da Balada, revê a imagem do jovem no hospital e
constata que, se ao proferir sua decisão, “com a autoridade e dignidade de sua posi-
ção, ela lhe havia oferecido, em vez da morte, toda a vida e o amor que se abriam dian-
te dele. E proteção contra sua religião” (BAH, p. 191), também era verdade que “Sem
fé, como o mundo deve ter lhe parecido ilimitado, belo e aterrador!” (BAH, p. 191).
Fiona reconhece a sua parcela de responsabilidade pela morte do jovem e se
culpa por haver falhado com ele:

Adam a tinha procurado e ela não ofereceu nada no lugar da religião,


nenhuma proteção, embora a lei fosse clara ao determinar que sua
principal preocupação devia ser o bem-estar dele. Quantas páginas em
quantos julgamentos ela já não devotara a esse propósito? Bem-estar,
felicidade, um conceito social. Nenhuma criança é uma ilha. Ela pensava
que suas responsabilidades terminavam na porta do tribunal. Mas como
seria possível? Adam tratou de encontrá-la, querendo o que todo mundo

16
Embora não haja elementos mais explícitos no texto, seria possível relacionar tais sentimentos confusos com
a satisfação de ser objeto do amor de um rapaz de 18 anos, sobretudo considerando o recente caso que o
marido tivera com uma mulher mais jovem.
17
Segundo o relato: “Algumas semanas atrás sua leucemia voltou e ele foi levado para o hospital. Recusou a
transfusão que queriam lhe dar. Foi sua decisão. Já tinha dezoito anos e ninguém pôde fazer nada. Com a
recusa, seus pulmões se encheram de sangue e ele morreu” (BAH, p. 190).

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JUIZ OU DEUS? O IMAGINÁRIO SOCIAL NA SOCIEDADE ÓRFÃ

quer, e que só pessoas de mente aberta, e não o sobrenatural, podiam


dar: um sentido para a vida. (BAH, p. 192)

Seguindo indicações presentes no texto, a outra parcela poderia ser creditada


à vulnerabilidade e à idealização de sacrifício e de dor18 promovidas pela criação
religiosa que Adam tivera. Ao visitá-lo no hospital, Fiona tem a informação de que
a Congregação do rapaz “era encorajada a manter seus filhos tão distantes quanto
possível de pessoas de fora” (BAH, p. 102) e, observando o quanto ele era diferente
dos adolescentes da família dela, que, independente do sexo, “bem cedo se tinham
protegido com uma dura e reluzente camada de esperteza mundana. A postura exa-
gerada que assumiam era de certa forma encantadora, uma ponte necessária para a
vida adulta” (BAH, p. 102-103), constata que “A falta de traquejo de Adam inspirava
carinho, mas o deixava vulnerável” (BAH, p. 103).
Já no encontro em Newcastle, o narrador por pouco não antecipa o destino do
rapaz, ao referir à percepção de Fiona a respeito do reduzido universo em que Adam
crescera e dos possíveis efeitos de sua criação: “todas as horas de sua infância e
juventude dedicadas a orações, hinos, sermões e as diversas restrições que jamais
conheceria, a comunidade fechada, mas amorosa que o sustentara até quase matá-
-lo” (BAH, p. 149).
De todo modo, o fato de Fiona assumir uma parcela da responsabilidade pela
morte de Adam – o que não implica, em nenhuma medida, considerar que ela tenha
cometido qualquer erro de julgamento na sentença que havia proferido ou que sua
decisão não tenha sido juridicamente correta – só reafirma a dupla dimensão exis-
tencial da protagonista, essencial na problematização das construções imaginárias
que vinculam o juiz à divindade. Mas esse é apenas um dos elementos que opera na
configuração do caráter inovador da representação de juiz oferecida na narrativa de I.
McEwan – sendo o primeiro, evidentemente, o fato de o magistrado ser uma mulher;
e o mais significativo, sua atuação, reiterada diversas vezes ao longo do texto, no
sentido de preservar a autonomia do Direito frente à moral e à religião.

4 A ascensão do Poder Judiciário na sociedade órfã


A balada de Adam Henry é, literal e figurativamente, um “espelho para os ju-
ristas”, segundo J. Gaakeer (2015). Isso porque sua protagonista ofereceria uma
base para a autorreflexão dos juízes sobre seu comportamento e o controle das suas
emoções, dentro e fora das Cortes, com ênfase na exigência de equilíbrio entre as
personas pública e privada.

18
Ver nota 16.

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ANDRÉ KARAM TRINDADE, HENRIETE KARAM, DIETER AXT

Na mesma linha, ao abordar a natureza do julgamento, R. Ferguson (2016, p.


89) recorre ao romance de McEwan por considerar singular o modo como o escritor
desnuda a figura do juiz em toda a sua ambiguidade, revelando os custos ocultos
implicados na função judicial e as dificuldades decorrentes e impostas no exercício
da função.
Impossível não recordar, aqui, a clássica lição de E. Kantorowicz (1957) acerca
da doutrina dos dois corpos do rei, ao examinar a evolução do pensamento político-
-jurídico medieval rumo à secularização. Para ele, o rei era titular de um corpo natural
(Body natural), que podia se enfraquecer, contrair doenças e vir a falecer; e de um cor-
po político (Body politic), que possuía conotação divina e autoridade político-religiosa
e que fornecia o pressuposto de continuidade à estrutura teológico-política.
Tal concepção possibilita compreender a dupla dimensão atribuída a toda autori-
dade, seja ela política, religiosa ou jurídica. A doutrina dos dois corpos do rei explicita
essa imbricação – simultânea – entre a esfera pública e a esfera privada, o espiritual
e o secular, o sagrado e o profano. A partir dessa distinção, é possível afirmar,
metaforicamente, que todo juiz possui um corpo jurídico-político, que lhe exige julgar
conforme o Direito, e um corpo civil, que lhe restaura a subjetividade.
Nada disso, entretanto, é compreendido pelo cidadão comum, leigo. As formu-
lações teóricas desenvolvidas no campo do Direito não têm o condão de, por si só,
promover alterações nas construções imaginárias que, erigidas e solidificadas na
cultura, moldam a representação de juiz, conferindo-lhe condição divina.
Portanto, mais do que qualquer análise de viés psicológico ou comportamental
de Fiona – que possibilita caracterizar sua condição humana –, considerando o objeti-
vo do presente estudo, interessa investigar em que medida esse romance de McEwan
permite problematizar as representações de juiz da tradição ocidental e, como conse-
quência, a construção imaginária do papel messiânico atribuído aos tribunais.19
Isso se deve, como se sabe, à expansão do Poder Judiciário – ocorrida após
a Segunda Guerra Mundial, e impulsionada pelo advento das cartas constitucionais
contemporâneas –, que foi guindado à condição de fiador dos direitos fundamentais
e do regime democrático.
Assim, os tribunais passam a ocupar lugar de destaque na arquitetura do
Estado Constitucional de Direito. Um dos efeitos desse protagonismo é, precisamen-
te, o fenômeno da judicialização da política, com o qual se verifica a transferência dos
processos decisórios que pertenciam às esferas dos poderes Executivo e Legislativo
para a esfera do Judiciário, de maneira que os juízes são, cada vez mais, chamados
a intervir em questões controversas de natureza política.

19
Uma obra importante que aborda o tema da consciência dos juízes, contrapondo sua função social à imagem
divinizada, foi organizada por J.-M. Carbasse e L. Depambour-Tarride (2010).

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JUIZ OU DEUS? O IMAGINÁRIO SOCIAL NA SOCIEDADE ÓRFÃ

Com o constitucionalismo do segundo pós-guerra, houve uma profunda modi-


ficação do papel do juiz, que antes se limitava a aplicar mecanicamente o Direito,20
com base na noção rousseauniana de volonté générale sobre a qual se fundara a
Revolução Francesa. Ao contrário do modelo jacobino – para o qual o Direito reduzia-
-se à lei, enquanto a democracia consistia na submissão à vontade da maioria –,
o paradigma do Estado Constitucional submete o exame da validade das normas
jurídicas aos juízes e tribunais, em face da produção de um Direito ilegítimo durante
os regimes totalitários.
Nesse contexto, em que a jurisdição constitucional se torna peça fundamental
da engrenagem das atuais democracias, é que os olhares se voltam para os juízes. A
análise de tais questões – que norteiam a leitura proposta aqui de elementos presen-
tes no romance de McEwan – será desenvolvida a partir dos aportes teóricos de dois
autores: A. Garapon, que apresenta a já clássica figura do juiz como último guardião
das promessas constitucionais, e I. Maus, que introduz a conhecida tese do Judiciário
como superego da sociedade órfã.
Em sua clássica obra O guardador de promessa (1996), A. Garapon oferece
uma análise do poder crescente que, a partir do final do século XX, a justiça passa
a exercer sobre a vida coletiva. Ele identifica o aumento quantitativo e qualitativo da
busca pela justiça como um dos efeitos da crise geral que assola a sociedade moder-
na, relacionando-o a um fenômeno social mais amplo, em que a perda de referências
e de valores surge como um sintoma do declínio da família, do desaparecimento da
religião como ícone moral e da falência das instituições tradicionais:

Estas últimas décadas viram os contenciosos explodir e as jurisdições


crescer e multiplicar-se, ao mesmo tempo que a sua autoridade tem di-
versificado e afirmado cada dia um pouco mais. O juiz manifesta-se num
número de setores da vida social cada vez mais vasto. Antes de mais, na
vida política, onde se viu desenvolver, um pouco por todo o mundo, aquilo
que os americanos chamam um ativismo jurisdicional (judicial activism).
O juiz é, doravante, considerado como o árbitro dos bons costumes e
até mesmo da moralidade política: a atualidade quotidiana oferece-nos
múltiplos exemplos que não são exclusivos de uma só família política.
[...] Assistiu-se ao importante papel do juiz na vida moral, onde lhe são
submetidas, nomeadamente em matéria de bioética, questões sobre as
quais é praticamente impossível tomar uma decisão. [...] O juiz torna-se
igualmente um referente para o indivíduo perdido, isolado, desenraizado
que as nossas sociedades geram e que procura no confronto com a lei a
última referência. (GARAPON, 1996, p. 20)

20
Recorde-se, aqui, a metáfora de Montesquieu, para quem o juiz era a boca-da-lei; ou, ainda, de Thomas
Jefferson, para quem os juízes deveriam ser como simples máquinas.

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ANDRÉ KARAM TRINDADE, HENRIETE KARAM, DIETER AXT

Por outro lado, a vigorosa ascensão do Judiciário se dá na medida em que,


diante da insatisfação social com as instâncias políticas, a justiça transforma-se no
“último refúgio para um ideal democrático desencantado” (GARAPON, 1996, p. 22),
sendo os outros fatores que colaboram para essa guinada judiciária da vida política,
o enfraquecimento do Estado – resultante da globalização da economia – e o agigan-
tamento dos meios de comunicação e das redes sociais.
Assim, a inflação na demanda pela justiça, que decorreria da transferência da
função de autoridade aos juízes, revela-se também uma demanda moral, ou seja,
trata-se da procura por uma instância que estipule o bem e o mal e que tenha auto-
ridade para “fixar a injustiça na memória coletiva” (GARAPON, 1996, p. 22). Todavia,
isso só é possível porque:

A idealização atual da justiça considera de boa vontade o juiz como es-


tando desligado de toda a dependência nacional, subjetiva ou política. Os
limites da função de julgar são raramente apercebidos e denunciados, e
um novo dogma da infalibilidade judicial instala-se insidiosamente em
nome do aprofundamento da democracia. Incapazes de fundamentar a
sua legitimidade, justificamos a preeminência do juiz com uma necessi-
dade antropológica que requereria em todas as sociedades o exercício da
função de um terceiro para resolver seus conflitos. O juiz seria o terceiro,
cuja palavra é considerada soberana, quer dizer, última e incontestável.
O juiz é assim naturalizado por uma antropologia que aparece em socor-
ro de uma teoria do direito incapaz de fundamentar a sua legitimidade.
(GARAPON, 1996, p. 259-260)

É nesse contexto que, para A. Garapon, o juiz torna-se o último guardião das
promessas seja na esfera individual ou política. No entanto, há de se atentar para
o fato de que o apelo incessante ao controle judicial e o entusiasmo ingênuo com a
sua onipotência podem ser prejudiciais à própria democracia, pois, ao mesmo tempo
em que a justiça se mostra por ela impulsionada, corre o risco de contribuir para seu
colapso, tendo em vista que a concessão de controles diversos ao juiz pode colocar
em xeque a própria liberdade democrática.
Tal desafio só poderá ser vencido, segundo Garapon (1996, p. 25), “se a justiça
constituir uma forte referência coletiva, tanto para as deliberações públicas quanto
para os indivíduos, sem ameaçar os valores democráticos”. Isso implicaria, contudo,
a obrigatória revisão das relações entre juízes e comunidade política, superando a
construção imaginária em que a sociedade como um todo – nela incluídos os mem-
bros do Judiciário – coloca os tribunais na posição de autoridade clerical e, até mes-
mo, paternal.
Já I. Maus, no artigo intitulado “O judiciário como superego da sociedade”
(2000), aborda a expansão do controle normativo protagonizado pelo Poder Judiciário
– a partir da leitura que H. Marcuse oferece dos limites da aplicação do conceito

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JUIZ OU DEUS? O IMAGINÁRIO SOCIAL NA SOCIEDADE ÓRFÃ

psicanalítico de imago paterna à sociedade contemporânea – e emprega a expressão


sociedade órfã para referir o contexto social decorrente da perda de importância da
figura paterna – seja no âmbito do sujeito ou da sociedade – e sua substituição pelas
diretrizes sociais, que adquirem relevância no processo de construção da consciência
individual.
Segundo a cientista política alemã, a sociedade órfã caracteriza-se pelo para-
doxo de que seus membros, uma vez libertos da figura simbólica paterna, tornam-se
reféns do infantilismo em razão de uma precária consciência das relações sociais de
dependência em que se encontram inseridos.
Nesse contexto, I. Maus alerta que, com o esvaziamento da função simbólica
desempenhada pelo pai, suas características são naturalmente deslocadas para a
Justiça, que ascende à qualidade de administradora da moral pública. Logo,

Não se trata simplesmente da ampliação das funções do Judiciário, com


o aumento do poder da interpretação, a crescente disposição para li-
tigar ou, em especial, a consolidação do controle jurisdicional sobre o
legislador, principalmente no continente europeu após as duas guerras
mundiais. Acompanha essa evolução uma representação da Justiça por
parte da população que ganha contornos de veneração religiosa. (MAUS,
2000, p. 185)

Em sua análise, Maus explora o poder Judiciário norte-americano como modelo


privilegiado da reestruturação da figura do pai, referindo, por exemplo, a expressiva
quantidade de obras que abordam a biografia dos juízes da Suprema Corte e relacio-
nando-a com a construção imaginária de que sua jurisprudência resulta da singular
personalidade dos magistrados que escreveram a história constitucional. Assim, a
idealização dos juízes, alçados à condição de “profetas” ou “deuses do Olimpo do
direito” (MAUS, 2000, p. 185), reeditaria – a nosso ver – a idolotria dos Founding
Fathers que marca a cultura estadunidense.
Na medida em que os indivíduos incorporam, inconscientemente, a ideia do
poder Judiciário como superego da sociedade, observa-se um retrocesso civilizató-
rio, que diz respeito ao processo de emancipação social. Afinal, ao menos desde o
Iluminismo, a autoridade tende a ser dissociada da imagem paterna e passa a ser
concebida como resultante do exercício da soberania do povo.
Nada mais óbvio, portanto, que o Legislativo – assentado nos ideais de igual-
dade e de paridade – não reúna as condições necessárias para que fossem nele
depositadas as expectativas relativas à função interditora do pai. Aliás, como bem
destaca I. Maus, é interessante observar que as exigências de justiça social e de
proteção ambiental, por exemplo, não adquirem relevância na disputa eleitoral ao
passo que são insistentemente reivindicadas às cortes constitucionais. Isso porque:

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ANDRÉ KARAM TRINDADE, HENRIETE KARAM, DIETER AXT

A expectativa de que a Justiça possa funcionar como instância moral


não se manifesta somente em pressuposições de cláusulas legais, mas
também na permanência de uma certa confiança popular. Mesmo quem
procura evitar ao máximo a precipitada interferência paterna nos conflitos
que ocorrem nos aposentos infantis, seguindo critérios antiautoritários
de educação, favorece, com maior obviedade, àquela mesma estrutura
autoritária quando se trata da condução de conflitos sociais. A Justiça
aparece então como uma instituição que, sob a perspectiva de um tercei-
ro neutro, auxilia as partes envolvidas em conflitos de interesses e situa-
ções concretas, por meio de uma decisão objetiva, imparcial e, portanto,
justa. (MAUS, 2000, p. 190)

Agregue-se, ainda, que o poder Judiciário assumiria a condição de censor – le-


gitimado e ilimitado – dos excessos do Legislativo, considerado como mera instância
de tensões sociais. Além do conhecimento jurídico, a Justiça demanda “um senso
de clareza que lhe possibilite organizar a síntese social, distante de disputas partidá-
rias, e garantir a unidade do direito, independentemente de interesses envolvidos na
produção legislativa” (MAUS, 2000, p. 195-196). Assim, segundo a autora citada, ao
Judiciário é confiada a tarefa de harmonizar a heterogeneidade social, de tal modo
que “o juiz torna-se o próprio juiz da lei [...], investindo-se como sacerdote-mor de
uma nova divindade: a do direito suprapositivo e não-escrito” (MAUS, 2000, p. 196).
Para finalizar, retomando os elementos destacados na análise do romance à
luz das formulações teóricas aqui apresentadas, é possível reconhecer, a partir das
expectativas que o jovem Adam deposita na juíza Fiona, a atribuição de um papel
que extrapola a função jurisdicional. A percepção de que ela salavara sua vida vem
acompanhada da desilusão com seus pais – resultante da incapacidade de, apesar
da ameaça de morte que pairava sobre ele e do amor que por ele sentiam, abdicarem
de suas convicções religiosas – e da renúncia à crença em Deus. Assim, Fiona passa
a ocupar, a um só tempo, a posição paterna e divina.
É nesse contexto que Adam Henry – destacada sua condição de infantilidade e
de desamparo, bem como sua falta de autonomia para gerir a própria vida – adquire o
estatuto de representante do indivíduo que conformaria a sociedade órfã e cujo imag-
inário se encontra atravessado pela aposta no papel redentor do poder Judiciário.

5 Conclusão
“Às vezes é preciso uma vanguarda iluminista que empurre a história”,21 disse
o ministro Roberto Barroso, em alusão ao papel do Supremo Tribunal Federal diante

21
A polêmica frase foi proferida pelo ministro Roberto Barroso, em seu voto, durante o julgamento da Ação Direta
de Inconstitucionalidade nº 4.650, que discutia a constitucionalidade ou não das doações de empresas nas
campanhas eleitorais.

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JUIZ OU DEUS? O IMAGINÁRIO SOCIAL NA SOCIEDADE ÓRFÃ

da inércia do Congresso Nacional, no que diz respeito à promoção de certos avanços


civiliatórios.
Após o ministro Joaquim Barbosa ser escolhido pelo povo brasileiro como o
salvador da pátria, em razão de sua postura durante o julgamento do mensalão, o juiz
Sérgio Moro assumiu o posto de herói nacional e vem empilhando capas de revistas
em que é eleito o “brasileiro do ano”, por causa de seu trabalho à frente da conhecida
operação lava jato.
Mais recentemente, em um evento do Conselho Nacional de Justiça, ao se
manifestar contra movimentos que buscam enfraquecer a figura do juiz, o ministro
Luiz Fux afirmou que “só o Judiciário pode salvar o Brasil do naufrágio”.
Não é necessário adentrar no mérito de cada um desses acontecimentos para se
concluir que, no Brasil, não faltam exemplos do imaginário social construído – interna
e externamente – em torno do papel messiânico atribuído ao poder Judiciário, fundado
na crença subjacente de uma superioridade da consciência ética e moral dos juízes.
Tudo isso reforça, na verdade, o argumento central do presente artigo: a rep-
resentação do juiz no imaginário das sociedades contemporâneas, em especial a
sociedade brasileira, segue marcado por um caráter transcendental. É justamente
isso o que o romance de McEwan problematiza de maneira absolutamente singular.
A representação de juiz que encontramos em A balada de Adam Henry é construí-
da a partir de elementos narrativos de diferentes níveis. Do ponto de vista composi-
cional, tem-se o emprego de narrador onisciente e a adoção da focalização interna,
o que possibilita tanto que os eventos sejam narrados privilegiando a perspectiva da
protagonista, sem que a alteridade e a confiabilidade da instância narrativa sejam
ameaçadas, quanto favorece ao leitor a compreensão do mundo interior da protago-
nista, seus dramas pessoais e suas motivações.
Constituem-se, assim, os dois núcleos temáticos da narrativa – a crise conjugal
que Fiona está vivendo e a sua atuação como magistrada –, que evidenciam a dupla
dimensão da vida da protagonista: íntima, pessoal e privada, de um lado; profissio-
nal, institucional e pública, de outro.
Essa dupla dimensão, que constitui uma das peculiaridades centrais na re-
presentação de juiz que McEwan oferece em sua narrativa, mostra-se essencial na
construção da intriga, pois é a confluência das dimensões pública e privada da vida
de Fiona, bem como a dificuldade de Adam de reconhecer tal duplicidade, que exige
do leitor problematizar a construção imaginária do juiz vigente na sociedade.

Judge or God? The social imaginary in the orphan society


Abstract: The current article is part of the study of law in literature. Having as corpus the novel The Children
Act, by Ian McEwan, adopts as a presupposition the notion of “judge models”, originally proposed by
François Ost, and deal with the representation of the judge in the imaginary of contemporary societies.

R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 15, n. 22, p. 13-34, jul./dez. 2017 31
ANDRÉ KARAM TRINDADE, HENRIETE KARAM, DIETER AXT

For this purpose, examines the links between literature and the discourses and the social practices. Next,
offers an analysis of Fiona Maye, main character of the narrative, highlighting the elements that lead to
the construction of a new model of judge. The article also discusses the role conferred to the Judiciary in
the current constitutional democracies, from the theoretical contributions of Antoine Garapon and Ingeborg
Maus. Concludes, finally, that the protagonist of the novel of McEwan inaugurates a new paradigm of the
representation of the judge in the western literature, from which it is possible to problematize the image of
the judge registered in the Brazilian society.

Keywords: Ian McEwan. Law in literature. Models of judges. Orphan society. The Children Act.

¿Juez o Dios? El imaginario social en la sociedad huérfana


Resumen: El presente artículo se inscribe en el campo de los estudios del Derecho en la literatura (Law
in literature). La Ley del menor, de Ian McEwan, adopta como presupuesto la noción de “modelos de
juez”, propuesta originalmente por François Ost, y aborda la representación del juez en el imaginario de
las sociedades contemporáneas. Para ello, examina las articulaciones entre la literatura y los discursos
y prácticas sociales. A continuación, ofrece el análisis de Fiona Maye, protagonista de la narrativa,
destacando los elementos que remiten a la construcción de un nuevo modelo de juez. Discute, además,
el papel conferido al poder Judicial en las actuales democracias constitucionales, a partir de los aportes
teóricos de Antonio Garapon y de Ingeborg Maus. Concluye, por fin, que la protagonista de la novela de
McEwan inaugura un nuevo paradigma de la representación del juez en la literatura occidental, a partir del
cual es posible problematizar la imagen del juez inscrita en la sociedad brasileña.

Palabras claves: Derecho en la literatura. Ian McEwan. La Ley del menor. Modelos de jueces. Sociedad
huérfana.

Referências
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entre la literatura y el derecho. Valencia: Tirant lo Blanch, 2016. p. 85-112.
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Bruna. São Paulo: Cultrix, 1997. p. 17-52.
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BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução de Fábio de Souza Andrade. São Paulo: CosacNaify,
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Ian Mcewan. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 2, n. 2, p. 433-457,
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32 R. do Instituto de Hermenêutica Jur. – RIHJ | Belo Horizonte, ano 15, n. 22, p. 13-34, jul./dez. 2017

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