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O imaginário social na
sociedade órfã
Henriete Karam
Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Guanambi (FG/
BA). Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS.
Pesquisadora do SerTão – Núcleo Baiano de Direito e Literatura (DGP/CNPq). Diretora
da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL). Psicanalista. Lattes: <http://lattes.cnpq.
br/2731124187247021>. E-mail: <henriete@rdl.org.br>.
Dieter Axt
Mestrando em Direito Público (UNISINOS). Assistente Editorial da ANAMORPHOSIS – Revista
Internacional em Direito e Literatura. Membro da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL).
Lattes: <http://lattes.cnpq.br/1582390811392545>. E-mail: <dieter@rdl.org.br>.
Resumo: O presente artigo insere-se no campo dos estudos do Direito na literatura (Law in literature). Tendo
como corpus o romance A balada de Adam Henry, de Ian McEwan, adota como pressuposto a noção de
“modelos de juiz”, proposta originalmente por François Ost, e aborda a representação do juiz no imaginário
das sociedades contemporâneas. Para tanto, examina as articulações entre a literatura e os discursos e
práticas sociais. Em seguida, oferece a análise de Fiona Maye, protagonista da narrativa, destacando os
elementos que remetem à construção de um novo modelo de juiz. Discute, ainda, o papel conferido ao
poder Judiciário nas atuais democracias constitucionais, a partir dos aportes teóricos de Antoine Garapon
e de Ingeborg Maus. Conclui, por fim, que a protagonista do romance de McEwan inaugura um novo
paradigma da representação do juiz na literatura ocidental, a partir do qual é possível problematizar a
imagem do juiz inscrita na sociedade brasileira.
Palavras-chave: A balada de Adam Henry. Direito na literatura. Ian McEwan. Modelos de juiz. Sociedade
órfã.
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ANDRÉ KARAM TRINDADE, HENRIETE KARAM, DIETER AXT
1 Introdução
“Juiz não é Deus”. Essa insistente negativa – que, presente no dia a dia dos
brasileiros, parece indicar a tentativa de anular a ideia contrária que povoa seu ima-
ginário social – custou caro a uma agente de trânsito na cidade do Rio de Janeiro em
2011. Ao realizar procedimentos de rotina numa blitz, ela parou um juiz, que dirigia
sem carteira de habilitação, com o carro sem placa e também sem documentos.
Houve discussão. A agente de trânsito teria lançado mão da irônica frase porque o
juiz pretendia receber tratamento diferenciado em razão da função. Ele deu-lhe voz
de prisão, por desacato. Não satisfeito, o juiz ingressou com ação de reparação de
danos que resultou na condenação da agente de trânsito à indenização no valor de
R$5 mil por danos morais. O Tribunal de Justiça confirmou a sentença, constando no
acórdão: “Em defesa da própria função pública que desempenha, nada mais restou
ao magistrado, a não ser determinar a prisão da recorrente, que desafiou a própria
magistratura e tudo o que ela representa”.
O fato de que juízes não são deuses é, imagina-se, do conhecimento de todos,
apesar de certos rituais e símbolos apontarem em direção contrária. Todavia, con-
forme sinaliza L. Streck (2016), há uma questão subjacente que exige reflexão: se
juízes não são deuses, por que isso precisa ser dito a todo momento? Como se vê,
a necessidade recorrente de negar a dimensão de divindade conferida aos juízes –
ao menos desde o medievo – revela que tal condição ainda se encontra fortemente
enraizada no imaginário das sociedades contemporâneas, que associa a atividade de
julgar a uma função divina.
O presente artigo retoma essa problemática, inserindo-se no campo dos estu-
dos do Direito na literatura (Law in literature),1 cuja premissa compartilhada é de que
certas narrativas literárias são mais importantes para a compreensão dos fenômenos
jurídicos e sociais do que grande parte dos tratados e manuais, como aduzem A. K.
Trindade e R. Gubert (2008).
Assim, com base na noção de “modelos de juiz”, proposta originalmente por
F. Ost (1983; 1991), o estudo aborda a representação do juiz no imaginário social,
tendo como corpus o romance A balada de Adam Henry, de Ian McEwan, publicado
em 2014, e adaptado para o cinema em 2017.
Para tanto, inicialmente, examina as articulações entre a literatura e os discur-
sos e práticas sociais. Em seguida, oferece a análise de Fiona Maye, protagonista da
narrativa, destacando os elementos que remetem à construção de um novo modelo
de juiz. Discute, ainda, o papel conferido ao poder Judiciário nas atuais democracias
constitucionais, a partir dos aportes teóricos de A. Garapon (1996) e de I. Maus
1
Essa ainda é a corrente dos estudos de Direito e Literatura mais significativa no contexto acadêmico brasileiro
(TRINDADE; BERNSTS, 2017).
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Ao comparar o registro histórico e a criação literária, Aristóteles defende que: “Não é em metrificar ou não
que diferem o historiador e o poeta; a obra de Heródoto podia ser metrificada; não seria menos uma história
com o metro do que sem ele; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos que podiam
acontecer” (1997, p. 28).
3
A título ilustrativo, pode-se destacar: no drama, a Oresteia (458 a. C.), de Ésquilo, O mercador de Veneza
(1596-1598), de W. Shakespeare, e O círculo de giz caucasiano (1944), de B. Brecht; na lírica, os versos de
O moleiro de Sans-souci (1880), de F. Andrieux; na narrativa, A morte de Ivan Ilitch (1886), de L. Tolstoi, El
juez rural (1924), de P. Prado; À espera dos bárbaros (1980), de J. M. Coetzee, e Portas abertas (1987), de
L. Sciascia.
4
Em seu título original, The Children Act, a explícita referência à legislação inglesa homônima já antecipa
a presença de elementos que possibilitam incluí-lo no rol das narrativas literárias que exploram questões
atinentes ao contexto jurídico. Todas as citações da obra foram retiradas da edição que consta nas Referências,
sendo indicadas pela sigla BAH, e os grifos são todos dos autores deste texto.
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O conceito de horizonte, que diz respeito ao papel da cultura na construção de sentido, após ter sido utilizado
por E. Husserl ([s. d.]), encontra-se em H.-G. Gadamer (2003), conjugado à ideia de consciência histórica, e
também em W. Iser (1989), relacionado à implicação das disposições individuais do leitor – os conteúdos da
consciência, as intuições temporalmente condicionadas e a história de suas experiências – na estruturação e
na significação que emergem no processo de leitura.
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sociais, bem como as crises de consciência, tão usuais nos denominados romances
psicológicos,6 que são marcados por conflitos insolúveis e, ao explorarem situações
sem saída, remetem o leitor, muitas vezes, a confrontar-se com o vazio e a angústia
decorrentes da ausência de sentido da existência humana.
Em A balada de Adam Henry, encontramos uma circunstância atípica: o evento
que rompe com o equilíbrio – considerando a alteração radical que promoverá na vida
pessoal de Fiona – situa-se em momento anterior ao do início da narrativa, e o leitor
dele toma conhecimento mediante relato que o narrador oferece da rememoração de
Fiona dos detalhes da recente discussão que tivera com o marido, na qual ele lhe
manifestara o desejo e o propósito de viver uma grande paixão.
De fato, no primeiro parágrafo do romance, após fornecer as coordenadas es-
pacial e temporal e parcas informações sobre a protagonista, o narrador – adotando
o ponto de vista de Fiona – descreve a sala onde ela se encontra, mergulhada em
um ambiente de tranquilidade e de normalidade, que só se evidenciará aparente no
momento em que adentrar em seus pensamentos e lembranças.
Inaugura-se, assim, um procedimento narrativo que será recorrente ao longo do
romance e vincula-se ao segundo aspecto da composição da obra que nos interessa
destacar: o emprego de narrador onisciente e a adoção da focalização interna, possi-
bilitando que se mesclem constantemente, no relato, as ações da protagonista com
as suas percepções, sentimentos e pensamentos.7
A identificação, a análise e a compreensão do modo como tal procedimento
é utilizado em A balada de Adam Henry são de extrema importância na medida em
que, por meio dele, evidencia-se a dupla dimensão da vida da protagonista – íntima,
pessoal e privada, de um lado; profissional, institucional e pública, de outro –, do
6
De fato, a literatura ocidental é marcada pela crescente relevância que o universo psicológico das personagens
adquire nas narrativas. Tal fato, amplamente analisado por G. Lukács (s.d.), resulta na prevalência do conflito
interno, em detrimento do conflito externo, e se relaciona, diretamente, com o uso recorrente do fluxo da
consciência por parte de escritores como Fiódor Dostoiévski, Marcel Proust, James Joyce, Virginia Woolf e
William Faulkner, entre outros.
7
A ocorrência paradigmática talvez seja o trecho em que o narrador intercala, no relato da discussão que
Fiona está tendo com o marido, o fluxo da consciência da protagonista, expondo seus sentimentos ao ver
as fotografias de família com molduras de prata em cima do piano, que lhe fazem evocar as férias de verão
e a necessidade de confirmar a reserva para aquele ano, num castelo cujo folheto promocional destacava a
existência de “uma masmorra com ganchos e argolas de ferro nas paredes” (BAH, p. 29), que, por sua vez, a
faz recordar da “sentença medieval” que ela proferira, há sete semanas e um dia, no difícil caso dos irmãos
siameses, cujos corpos deveriam ser separados para que um deles sobrevivesse: “Durante algum tempo
aquele caso a deixara entorpecida, se importando menos, sentindo menos, se ocupando de seus afazeres
sem contar nada a ninguém. Mas se tornara enjoadiça em matéria de corpos, quase incapaz de olhar o dela ou
o de Jack sem sentir repugnância. Como se abrir sobre isso? Pouco plausível dizer a ele, àquela altura de sua
carreira como magistrada, que determinado caso, entre tantos outros, pudesse tê-la afetado tão intimamente
devido à sua tristeza, a seus detalhes viscerais e ao intenso interesse público. Durante algum tempo, uma
parte dela morrera junto com o pobre Matthew. Tinha sido ela quem havia despachado uma criança do mundo,
quem empregara trinta e quatro páginas elegantemente escritas para justificar sua eliminação. Pouco importa
que, por causa de sua cabeça intumescida e um coração que não se contraía, Matthew estivesse condenado
a morrer” (BAH, p. 35).
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Afirma o narrador que: “Nos círculos dos magistrados, Fiona Maye, mesmo quando ausente, era elogiada por
sua prosa incisiva, quase irônica, quase entusiasmada, assim como pelo modo conciso com que expunha a
disputa. Durante um almoço, o próprio lorde que presidia o Judiciário havia murmurado a seu companheiro de
mesa: ‘Imparcialidade divina, inteligência diabólica, e ainda é bonita’” (BAH, p. 20).
9
Segundo o narrador, Fiona diversas vezes pensara na possibilidade de ter filhos, sempre adiando a decisão
pela incompatibilidade com sua dedicação e ambições profissionais. Aos quarenta anos cogitou adotar uma
criança, mas a firme decisão tomada no meio da noite era abandonada em meio à correria para o trabalho na
manhã seguinte. Suas dúvidas perduraram durante anos, até que, “Por fim, às nove e meia de uma manhã
no Tribunal Real de Justiça, quando prestou juramento perante o presidente do Judiciário e fez seu voto de
lealdade diante de duzentos colegas de cabeça coberta pela tradicional peruca branca, vestindo com orgulho
uma túnica e sendo objeto de um discurso espirituoso, ela soube que a partida havia terminado, que pertencia
à Justiça como outrora algumas mulheres tinham sido noivas de Jesus Cristo” (BAH, p. 48, grifos nossos).
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Quatro dias depois, é esse o caso a ser julgado: Adam Henry, um jovem de 17
anos que tem leucemia e, embora necessite de transfusão de sangue, recusa-se a
realizar o procedimento, pois contraria as crenças religiosas de sua família. Tendo
em vista tratar-se de menor, o hospital em que ele se encontra internado recorre ao
Judiciário a fim de obter a autorização para prestar o devido atendimento ao rapaz.
Ao entrar na sala de audiência, ainda abalada pela partida do marido e frustrada
por ele ainda não ter feito contato, Fiona pondera que “Ali a questão era de vida e
morte [...] Ela não tinha mais uma vida privada, estava pronta para ser absorvida”
(BAH, p. 62-63).
Não há, entretanto, como afastar completamente seu drama pessoal – sua
mágoa e sentimento de estar sendo desprezada e abandonada pelo marido10 – da
inusitada decisão de visitar o rapaz no hospital, hipótese que, anteriormente, já havia
cogitado e descartado:
10
Em um trecho do relato, o narrador oferece a exata dimensão do sentimento de desamparo vivido por Fiona:
“A tristeza e o acúmulo de mágoas pormenorizadas, enquanto a verdadeira raiva ainda estava por vir [...]
abandonada na infância da velhice, quando começava a aprender a engatinhar” (BAH, p. 46).
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[...] tinha a ver ou com uma mulher à beira de um colapso nervoso que
cometia um erro sentimental de avaliação técnica ou com a possibilidade
de salvar ou condenar um rapaz por causa das crenças de sua seita me-
diante a intervenção direta de uma corte laica. Não acreditava que podia
ser as duas coisas. (BAH, p. 87)
O primeiro era o de que, como lhe faltavam três meses para completar
dezoito anos e ele era muito inteligente, conhecendo as consequências
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Em sua decisão, Fiona considera que, embora Adam Henry fosse um jovem com
excepcional capacidade de compreensão para a sua idade e pudesse ter admitida
sua competência para decidir,11 com amparo em voto proferido por Lord Scarman,12
seu entendimento dos riscos que corria era limitado13 e destaca que a sentença que
lhe cabe proferir deve priorizar o bem-estar do menor.
Saliente-se que, embora se trate de uma narrativa literária, a representação
do universo jurídico e de suas práticas é bastante detalhada e precisa. A sentença
proferida por Fiona é devidamente fundamentada, e ela recorre tanto à legislação
quanto a precedentes:
11
Fiona refere que o advogado dos pais de Adam havia evocado, em sua exposição, “a seção 8 da emenda de
1969 à Lei da Família: o consentimento de uma pessoa de dezesseis anos ‘será tão eficaz como o seria se
ele já houvesse alcançado a maioridade’” (BAH, p. 113).
12
Observe-se que a introdução, na narrativa, de seres do mundo empírico configura o que R. Barthes (1971)
denomina “efeitos de real”. A inclusão e ficcionalização de eventos do mundo empírico em A balada de Adam
Henry foi devidamente abordada por C. Escoza (2016). Lord Scarman – um dos diversos juristas ingleses
referidos ou citados no romance – fez parte da House of Lords e, tendo participado do julgamento do caso
Gillick v. West Norfolk, em 1895, destacou em seu voto que: “o direito dos pais de determinar se o menor de
dezesseis anos será sujeito ou não a um tratamento médico termina se e quando a criança atinge inteligência
e discernimento suficientes que a tornem capaz de compreender por completo o que lhe é proposto” (Gillick
v. West Norfolk and Wisbech Area Health Authority and another. Disponível em: <http://www.cirp.org/library/
legal/UKlaw/gillickvwestnorfolk1985>).
13
Em seu julgamento, Fiona avalia: “Ele tem uma capacidade de compreensão excepcional para um jovem de
dezessete anos. Mas creio que possui um entendimento limitado da provação que deve confrontar, do pavor
que o invadiria à medida que seu sofrimento e sua impotência aumentassem. Na verdade, ele tem uma noção
romântica do que seja sofrer” (BAH, p. 113).
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está próximo da idade em que pode tomar uma decisão por sua conta e risco” (BAH,
p. 114), Fiona alude ao fato de que Adam “estar preparado para morrer por suas
crenças religiosas demonstra quão profundas elas são” (BAH, p. 114) e examina a
questão relacionando as convicções do jovem à compreensão de mundo da comuni-
dade religiosa em que ele se insere:
Durante toda a infância ele esteve exposto sem interrupção a uma visão
do mundo monocromática e poderosa, a cujo condicionamento não po-
deria escapar. Não promoverá seu bem-estar sofrer uma morte desne-
cessária e agonizante, para assim se transformar num mártir de sua fé.
As testemunhas de Jeová, como outras religiões, têm uma noção nítida
do que nos aguarda após a morte, e as predições deles sobre o fim
dos dias, sua escatologia, são também rígidas e muito detalhadas. Este
tribunal não tem opinião alguma sobre a vida no Além, que, de qualquer
forma, certo dia A descobrirá, ou deixará de descobrir, por conta própria.
Até lá, presumindo uma boa recuperação, o bem-estar dele será mais
bem servido por seu amor pela poesia, por sua recém-descoberta paixão
pelo violino, pelo aproveitamento de sua viva inteligência e pelas mani-
festações de uma natureza brincalhona e afetuosa, por toda a vida e o
amor que se abrem à sua frente. Em suma, entendo que A, seus pais
e os anciãos da igreja tomaram uma decisão que é hostil ao bem-estar
de A, o qual constitui a principal consideração desta corte. Ele precisa
ser protegido de tal decisão. Precisa ser protegido de sua religião e de si
mesmo. (BAH, p. 114-115)
Após algumas semanas, quando o marido de Fiona já havia voltado para casa
e eles – apesar dos ressentimentos recíprocos – tentavam reconstruir, lentamente, o
casamento, ela recebe uma carta de Adam e, passados poucos dias, outra. Nelas, o
jovem manifestava sua gratidão e o desejo de encontrá-la, afirmava sentir ciúmes das
dezenas de pessoas cujos casos ela deve ter julgado depois do dele, confessava ter
fantasias maravilhosas e impossíveis14 com ela.
14
Numa das cartas, ele escrevera: “penso na senhora o tempo todo e quero mesmo ver a senhora para nos
falarmos outra vez. Sonho acordado sobre nós, fantasias maravilhosas e impossíveis, como a de que vamos
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Quando Fiona viaja a serviço para o nordeste da Inglaterra, Adam a segue até
Newcastle e a procura na residência em que os magistrados do Tribunal Superior se
hospedavam em seu circuito itinerante.
Na conversa entre os dois, evidencia-se que o jovem começara a se afastar da
religião quando, após a transfusão, pôde perceber, na imensa alegria e alívio de seus
pais – a decisão judicial autorizara e impusera o tratamento que sua fé os impedia de
aceitar –, que eles o amavam e que não desejavam que ele morresse.
Adam afirma que era um tremendo idiota – por ter considerado um ato de ex-
tremo heroísmo sacrificar sua vida à vontade de Deus15 – e que ela havia salvo a sua
vida: “A religião de meus pais era um veneno e a senhora foi o antídoto” (BAH, p. 149).
A gratidão do jovem mescla-se, assim, com a devoção. Na leitura do texto, é
fácil constatar que Fiona passa a ocupar o lugar de Deus na vida de Adam, que a ela
são transferidas as expectativas e fantasias do rapaz. Na sentença que ela proferira,
Adam lera a promessa de um futuro: “Toda a vida e o amor que se abrem diante dele”
(BAH, p. 150).
Não à toa, Adam manifesta a Fiona o desejo de morar com ela. Estar sob o mes-
mo teto significaria estar sob a sua proteção e poder compartilhar do mundo dela: “Eu
podia ajudar a senhora a cuidar da casa, prestar serviços na rua. E a senhora podia
me dar livros para ler, sabe como é, tudo o que achar que eu preciso aprender…”
(BAH, p. 152).
Se, na visita que fizera a Adam no hospital, Fiona – diante da fragilidade física
do rapaz – havia sentido um súbito desejo de levá-lo para casa e alimentá-lo; o mes-
mo não corre agora. Ela recusa e lhe diz que deve ir embora, mas, ao se despedirem,
eles se beijam:
Pretendia lhe dar um beijo no rosto, mas, como ergueu o corpo e Adam
se curvou um pouco, seus rostos se aproximaram, ele girou a cabeça e
os lábios deles se tocaram. Ela poderia ter recuado, ter dado um passo
atrás, se afastando dele. Em vez disso, se demorou, inerme diante
daquele momento. A sensação de pele contra pele anulou qualquer
fazer uma viagem de volta ao mundo juntos num navio, em camarotes vizinhos, e que passeamos o dia todo
pelo convés conversando” (BAH, p. 129).
15
Ele tomara consciência de que sua recusa a se submeter à transfusão de sangue, embora ele acreditasse
ser guiada pela obediência a Deus, resultava do sentimento de estar vivendo uma maravilhosa aventura, de
que “ia morrer gloriosamente e ser adorado” (BAH, p. 148). Adam constatara a satisfação que seu precário
estado de saúde e a expectativa de seu sacrifício à vontade divina então lhe proporcionavam: “Sempre que os
médicos e as enfermeiras tentavam me dissuadir, eu me sentia nobre e heroico, dizendo para me deixarem
em paz. Eu era bom e puro. Adorava que eles não conseguissem entender como eu era profundo. Eu realmente
me achava o tal. Gostava de ver o orgulho dos meus pais e dos anciãos” (BAH, p. 147). Ele confessa que,
quando estava no hospital, certa vez, “À noite, quando não tinha ninguém por perto, ensaiei fazer um vídeo,
como esses homens-bomba. Ia fazer no meu celular. Queria que fosse reproduzido nos noticiários de televisão
e no meu funeral. Acabei chorando no escuro, imaginando meu caixão sendo levado diante dos meus pais, dos
meus colegas e professores, de toda a congregação, as flores, as coroas, a música triste, todos chorando,
todos orgulhosos de mim e me amando. Sinceramente, eu era um idiota” (BAH, p. 147-148).
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Esse casto beijo será para Fiona fonte de autorrecriminações. O narrador infor-
ma que, não sendo propensa a impulsos irrefletidos, ela não conseguia compreender
seu próprio comportamento: “Deu-se conta de que havia muito mais a confrontar em
sua mistura de sentimentos confusos,16 porém, no momento, era o horror do que
podia ter ocorrido, a transgressão ridícula e vergonhosa da ética profissional, que
ocupavam sua mente” (BAH, p. 157). No entanto, ela não se arrepende da recusa.
Aliás, pouco mais de um mês depois, ao receber um poema do jovem, intitulado A
balada de Adam Henry, Fiona suspeita que “Ele voltaria a escrever, apareceria à sua
porta, ela precisaria enxotá-lo de novo” (BAH, p. 165).
As autorrecriminações voltam quando, após algumas semanas, ela recebe a
notícia de que Adam havia morrido, mas são de outra natureza. Fiona se sente culpa-
da pela morte do rapaz: “os pensamentos chegaram sob a forma de duas perguntas
insistentes. Por que você não me disse? Por que não pediu minha ajuda? A resposta
veio em sua própria voz imaginada. ‘Fiz isso’” (BAH, p. 184).
Extremamente abalada pela ideia de que a morte de Adam fora uma espécie de
suicídio,17 ela relembra os versos da Balada, revê a imagem do jovem no hospital e
constata que, se ao proferir sua decisão, “com a autoridade e dignidade de sua posi-
ção, ela lhe havia oferecido, em vez da morte, toda a vida e o amor que se abriam dian-
te dele. E proteção contra sua religião” (BAH, p. 191), também era verdade que “Sem
fé, como o mundo deve ter lhe parecido ilimitado, belo e aterrador!” (BAH, p. 191).
Fiona reconhece a sua parcela de responsabilidade pela morte do jovem e se
culpa por haver falhado com ele:
16
Embora não haja elementos mais explícitos no texto, seria possível relacionar tais sentimentos confusos com
a satisfação de ser objeto do amor de um rapaz de 18 anos, sobretudo considerando o recente caso que o
marido tivera com uma mulher mais jovem.
17
Segundo o relato: “Algumas semanas atrás sua leucemia voltou e ele foi levado para o hospital. Recusou a
transfusão que queriam lhe dar. Foi sua decisão. Já tinha dezoito anos e ninguém pôde fazer nada. Com a
recusa, seus pulmões se encheram de sangue e ele morreu” (BAH, p. 190).
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Ver nota 16.
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Uma obra importante que aborda o tema da consciência dos juízes, contrapondo sua função social à imagem
divinizada, foi organizada por J.-M. Carbasse e L. Depambour-Tarride (2010).
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Recorde-se, aqui, a metáfora de Montesquieu, para quem o juiz era a boca-da-lei; ou, ainda, de Thomas
Jefferson, para quem os juízes deveriam ser como simples máquinas.
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É nesse contexto que, para A. Garapon, o juiz torna-se o último guardião das
promessas seja na esfera individual ou política. No entanto, há de se atentar para
o fato de que o apelo incessante ao controle judicial e o entusiasmo ingênuo com a
sua onipotência podem ser prejudiciais à própria democracia, pois, ao mesmo tempo
em que a justiça se mostra por ela impulsionada, corre o risco de contribuir para seu
colapso, tendo em vista que a concessão de controles diversos ao juiz pode colocar
em xeque a própria liberdade democrática.
Tal desafio só poderá ser vencido, segundo Garapon (1996, p. 25), “se a justiça
constituir uma forte referência coletiva, tanto para as deliberações públicas quanto
para os indivíduos, sem ameaçar os valores democráticos”. Isso implicaria, contudo,
a obrigatória revisão das relações entre juízes e comunidade política, superando a
construção imaginária em que a sociedade como um todo – nela incluídos os mem-
bros do Judiciário – coloca os tribunais na posição de autoridade clerical e, até mes-
mo, paternal.
Já I. Maus, no artigo intitulado “O judiciário como superego da sociedade”
(2000), aborda a expansão do controle normativo protagonizado pelo Poder Judiciário
– a partir da leitura que H. Marcuse oferece dos limites da aplicação do conceito
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JUIZ OU DEUS? O IMAGINÁRIO SOCIAL NA SOCIEDADE ÓRFÃ
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ANDRÉ KARAM TRINDADE, HENRIETE KARAM, DIETER AXT
5 Conclusão
“Às vezes é preciso uma vanguarda iluminista que empurre a história”,21 disse
o ministro Roberto Barroso, em alusão ao papel do Supremo Tribunal Federal diante
21
A polêmica frase foi proferida pelo ministro Roberto Barroso, em seu voto, durante o julgamento da Ação Direta
de Inconstitucionalidade nº 4.650, que discutia a constitucionalidade ou não das doações de empresas nas
campanhas eleitorais.
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JUIZ OU DEUS? O IMAGINÁRIO SOCIAL NA SOCIEDADE ÓRFÃ
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For this purpose, examines the links between literature and the discourses and the social practices. Next,
offers an analysis of Fiona Maye, main character of the narrative, highlighting the elements that lead to
the construction of a new model of judge. The article also discusses the role conferred to the Judiciary in
the current constitutional democracies, from the theoretical contributions of Antoine Garapon and Ingeborg
Maus. Concludes, finally, that the protagonist of the novel of McEwan inaugurates a new paradigm of the
representation of the judge in the western literature, from which it is possible to problematize the image of
the judge registered in the Brazilian society.
Keywords: Ian McEwan. Law in literature. Models of judges. Orphan society. The Children Act.
Palabras claves: Derecho en la literatura. Ian McEwan. La Ley del menor. Modelos de jueces. Sociedad
huérfana.
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