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REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO PROCESSUAL - RBDPro


Diretores
Lúcio Delfino
Fernando Rossi

Conselho Editorial
Alexandre Freitas Câmara Eduardo da Fonseca Costa José Roberto dos Santos Bedaque
Ana Paula Chiovitti Eduardo Talamini José Rogerio Cruz e Tucci
Antonio Carlos Marcato Ernane Fidélis dos Santos Jurandir Sebastião
Antonio Gidi Evaldo Marco Antônio Lídia Prata Ciabotti
Luiz Eduardo R. Mourão
A. João D’Amico Fredie Didier Jr.
Luiz Fernando Valladão Nogueira
Araken de Assis Glauco Gumerato Ramos Luiz Fux
Aristoteles Atheniense Gil Ferreira de Mesquita Luiz Guilherme Marinoni
Arruda Alvim Humberto Theodoro Júnior Luiz Rodrigues Wambier
Carlos Alberto Carmona Jefferson Carús Guedes Marcelo Abelha
Carlos Henrique Bezerra Leite J.E. Carreira Alvim Marcelo Lima Guerra
Cassio Scarpinella Bueno J.J. Calmon de Passos (in memoriam) Maria Elizabeth de Castro Lopes
Chedid Georges Abdulmassih João Batista Lopes Mariângela Guerreiro Milhoranza
João Delfino Ovídio A. Baptista da Silva (in memoriam)
Claudiovir Delfino
Petrônio Calmon Filho
Daniel Mitidiero Jorge Henrique Mattar
Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias
Darci Guimarães Ribeiro José Alfredo de Oliveira Baracho (in memoriam) Sérgio Cruz Arenhart
Djanira Maria Radamés de Sá José Carlos Barbosa Moreira Sérgio Gilberto Porto
Donaldo Armelin José Maria Rosa Tesheiner Teresa Arruda Alvim Wambier
Eduardo Arruda Alvim José Miguel Garcia Medina Teori A. Zavascki
Conselho de Redação
André Menezes Delfino José Henrique Mouta Luiz Gustavo de Freitas Pinto
Bruno Campos Silva Leonardo Vitório Salge Marcus Vinícios Correa Maia
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Helmo Marques Borges Luciana Fragoso Maia Ricardo Delfino
Hugo Leonardo Teixeira Luciano Lamano Richard Crisóstomo Borges Maciel
Jarbas de Freitas Peixoto Luciano Roberto Del Duque Rodrigo Corrêa Vaz de Carvalho
José Carlos de Araujo Almeida Filho Luiz Arthur de Paiva Corrêa Wanderson de Freitas Peixoto
Yves Cássius Silva
Conselho Internacional
Alvaro Pérez Ragone (Chile) Miguel Teixeira de Sousa (Portugal) Juan Montero Aroca (Espanha)
Edoardo Ricci (Itália) Paula Costa e Silva (Portugal)

R454 Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. ano 15,


n. 59, jul./set. 2007. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

Trimestral
ISSN 0100-2589

Publicada do n. 1, jan./mar. 1975 ao n. 14, abr./jun.1978
pela Vitória Artes Gráfica, Uberaba/MG.
Publicada do n. 15, jul./set. 1978 ao n. 58, abr./ jun. 1988
pela Editora Forense, Rio de Janeiro/RJ.
Publicação interrompida em 1988 e retomada pela
Editora Fórum em 2007.

1. Direito processual. I. Fórum.

CDD: 347.8 CDU: 347.9

© 2010 Editora Fórum Ltda.


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Impressa no Brasil / Printed in Brazil


Distribuída em todo o Território Nacional
Sumário

Editorial .......................................................................................................................................................................... 9

DOUTRINA

Artigos

O princípio da oralidade e o sistema recursal nos Juizados Especiais


Alexandre Freitas Câmara ......................................................................................................................................13
1 Introdução....................................................................................................................................................13
2 O Princípio da oralidade e os Juizados Especiais Cíveis...............................................................13
3 O sistema recursal dos Juizados Especiais Cíveis...........................................................................16
4 O princípio da oralidade e a apelação nos Juizados Especiais Cíveis......................................18
5 Conclusão.....................................................................................................................................................21

Variáveis acerca do cabimento de intervenção de terceiros no mandado de


segurança
José Henrique Mouta Araújo ...............................................................................................................................23
1 Colocação do tema....................................................................................................................................23
2 Partes no mandado de segurança.......................................................................................................23
3 Litisconsórcio, assistência e amicus curiæ no mandado de segurança:
variações sobre o tema............................................................................................................................27
3.1 O beneficiado pelo ato impugnado. Sua posição do mandado de segurança...................27
3.2 A assistência e amicus curiæ no mandado de segurança...........................................................29

Direito Processual e democracia


André Del Negri ........................................................................................................................................................35
1 Abertura temática......................................................................................................................................35
2 Falando de decisão e totalitarismo......................................................................................................36
2.1 Teorias do Processo e totalitarismo.....................................................................................................37
3 Direito Processual como espaço-discursivo assegurador de garantias
constitucionalmente fundamentais....................................................................................................41
Referências...................................................................................................................................................42

O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto


de Novo CPC
Felipe Scripes Wladeck ...........................................................................................................................................45
1 Introdução....................................................................................................................................................46
1.1 Definição de causa de pedir...................................................................................................................47
1.2 Importância da exata definição do conteúdo da causa de pedir.............................................48
1.3 O objeto dos próximos itens..................................................................................................................50
2 As duas teorias clássicas a respeito do conteúdo da causa de pedir......................................50
2.1 A teoria da individuação (ou individualização)...............................................................................50
2.1.1 A causa de pedir nas demandas autodeterminadas.....................................................................51
2.1.2 A causa de pedir nas demandas heterodeterminadas.................................................................54
2.2 A teoria da substanciação.......................................................................................................................55
2.3 Distanciamento/aproximação entre as teorias da substanciação e da individuação.........56
2.3.1 Distanciamento entre as teorias da substanciação e da individuação em se
tratando de direitos autodeterminados.........................................................................................56
2.3.2 Consenso entre as teorias da substanciação e da individuação em se
tratando de direitos heterodeterminados.....................................................................................57
2.3.3 Consenso entre as teorias da substanciação e da individuação também
quanto ao conteúdo da causa de pedir passiva..........................................................................57
2.4 Os resultados práticos da adoção de cada uma das teorias....................................................58
3 Fixação de conceitos (à luz do direito processual civil brasileiro).........................................62
3.1 Fundamentação jurídica (causa de pedir próxima ou imediata) e fundamentação
fática (causa de pedir remota ou mediata)....................................................................................63
3.2 Fundamento legal...................................................................................................................................63
3.3 Nomen juris (qualificação jurídica do fato)....................................................................................65
3.4 Ainda sobre a causa de pedir remota (fundamentação fática)..............................................66
3.4.1 Fatos principais (essenciais, jurídicos ou jurígenos) e fatos secundários
(acessórios ou simples).........................................................................................................................67
3.4.2 Fatos constitutivos e fatos violadores ou ameaçadores do direito – E a causa
de pedir passiva nas ações necessárias...........................................................................................70
3.4.2.1 Causa de pedir ativa e causa de pedir remota ativa...................................................................74
3.4.2.2 Conteúdo da causa de pedir passiva: consenso entre as teorias da individuação
e da substanciação.................................................................................................................................75
3.4.3 Causas de pedir remota simples, composta e complexa.........................................................75
4 O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro.....................................................77
4.1 Ressalva inicial: a definição do conteúdo da causa de pedir consiste em
questão de política legislativa............................................................................................................77
4.2 O art. 282, inciso III, do CPC traz regra “tradicional” na legislação brasileira
(os Códigos de Processo Civil estaduais e o art. 158, inciso III, do CPC
de 1939)......................................................................................................................................................78
4.3 Composição mista da causa de pedir..............................................................................................79
4.3.1 Necessidade de expor os fatos principais e a fundamentação jurídica na inicial,
de forma clara e precisa........................................................................................................................79
4.3.2 A inépcia da inicial na falta da causa de pedir..............................................................................81
4.4 Elementos que não integram a causa de pedir............................................................................82
4.5 Restrições legais à causa de pedir.....................................................................................................83
4.6 Estabilização da causa de pedir.........................................................................................................84
4.6.1 As restrições do art. 264, caput, do CPC se aplicam apenas aos fundamentos
de fato.........................................................................................................................................................84
4.6.2 O art. 264, caput, do CPC não se aplica em relação a fatos “secundários”..........................86
4.6.3 Os limites do parágrafo único do art. 264 do CPC......................................................................86
4.6.4 Síntese sobre os arts. 264 e 294 do CPC.........................................................................................87
4.6.5 A adequada compreensão do art. 462 do CPC no contexto das regras sobre
estabilização da demanda...................................................................................................................88
4.6.6 A excepcional admissão da alteração da causa de pedir (remota) fora dos
limites dos arts. 264 e 294 do CPC....................................................................................................89
4.7 A opção do legislador brasileiro pela regra da eventualidade...............................................91
4.8 Qual, então, a teoria adotada no processo civil brasileiro quanto ao conteúdo
da causa de pedir?..................................................................................................................................92
4.8.1 No processo civil brasileiro não se adota a teoria da “individuação”....................................92
4.8.2 A maioria absoluta da doutrina entende que o CPC encampa a teoria da
“substanciação”........................................................................................................................................92
5 As regras do Projeto de Novo CPC a respeito da causa de pedir...........................................96
6 Considerações finais........................................................................................................................... 103
A presunção judicial no Estado Democrático de Direito: uma análise crítica
do artigo 335 do Código de Processo Civil
Henrique Yukio Pereira de Souza ..................................................................................................................... 107
1 Introdução................................................................................................................................................. 107
2 Os paradigmas constitucionais modernos e as teorias processuais.................................... 108
3 A prova........................................................................................................................................................ 115
4 Sistemas de avaliação da prova......................................................................................................... 116
5 Presunção.................................................................................................................................................. 117
6 Breve histórico da presunção............................................................................................................. 118
7 Classificação das presunções.............................................................................................................. 119
8 Regras de experiência comum e regras de experiência técnica............................................ 120
9 Análise do artigo 335 do CPC à luz da teoria neoinstitucionalista do processo
e do Estado Democrático de Direito................................................................................................ 121
10 Considerações finais.............................................................................................................................. 123
Referências................................................................................................................................................ 124

Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo: uma avaliação das críticas


neoinstitucionalistas à teoria da instrumentalidade do processo
Alexandre Araújo Costa, Henrique Araújo Costa ....................................................................................... 127
1 Introdução................................................................................................................................................. 127
2 A instrumentalidade do processo de Dinamarco........................................................................ 128
3 O neoinstitucionalismo de Rosemiro.............................................................................................. 136
4 Conclusão.................................................................................................................................................. 139
Referências................................................................................................................................................ 140

Assistência simples e coisa julgada material – A “justiça da decisão” do


artigo 55 do Código de Processo Civil brasileiro
Alexandre Paulichi Chiovitti .............................................................................................................................. 143

A teoria dos distintos planos da ordem jurídica


Artur Luis Pereira Torres ...................................................................................................................................... 155
Introito........................................................................................................................................................ 155
1 Noções introdutórias............................................................................................................................. 156
2 Plano do direito material...................................................................................................................... 158
2.1 Direito subjetivo material.................................................................................................................... 158
2.2 Pretensão material.................................................................................................................................. 160
2.3 Ação material............................................................................................................................................ 161
3 Plano do Direito Processual................................................................................................................. 163
3.1 Direito à tutela Jurídica do Estado.................................................................................................... 163
3.2 Da pretensão à tutela jurídica............................................................................................................ 164
3.3 Da ação processual................................................................................................................................. 165
Considerações finais.............................................................................................................................. 169
Referências................................................................................................................................................ 170

A utilização da ação rescisória para a desconstituição de decisão


fundamentada em prova obtida por meio ilícito
Michel Ferro e Silva ............................................................................................................................................... 173
Introdução................................................................................................................................................. 173
1 A ação rescisória como remédio processual contra decisões judiciais alcançadas
pela coisa julgada................................................................................................................................... 174
2 Hipóteses de cabimento – A taxatividade do art. 485, do CPC.............................................. 175
3 Prova falsa X Prova obtida por meio ilícito.................................................................................... 177
4 Ação rescisória de decisão fundamentada em prova obtida por meio
ilícito?.......................................................................................................................................................... 180
Conclusão.................................................................................................................................................. 186
Referências................................................................................................................................................ 187

Colhendo frutos da árvore venenosa: formação e uso dos precedentes


no Brasil e nos EUA
Ricardo Augusto de Araújo Teixeira ................................................................................................................ 189
1 Introdução................................................................................................................................................. 189
2 Força e contextualização do precedente: exigências metodológicas e
estruturais.................................................................................................................................................. 192
3 Estudo de caso: os frutos da árvore venenosa na Suprema Corte........................................ 198
4 Estudo de caso: os frutos da árvore venenosa no STF............................................................... 201
5 Manejo inadequado: o risco da importação de institutos jurídicos..................................... 205
6 Conclusão.................................................................................................................................................. 210
Referências................................................................................................................................................ 211

A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão prospectiva da


formação de um sistema processual sincrético, multifuncional e aberto à
justiça do caso concreto
Maria Soledade Soares Cruzes .......................................................................................................................... 215
1 Introdução................................................................................................................................................. 215
2 Premissas teóricas................................................................................................................................... 216
3 Alonomia dos processos de conhecimento e de execução..................................................... 219
4 Alonomia do processo cautelar em face do principal............................................................... 225
5 A sistematização do processo civil brasileiro................................................................................ 229
5.1 O reconhecimento do sincretismo como princípio.................................................................... 230
5.2 A multifuncionalidade como critério organizacional................................................................ 232
5.3 A abertura à justiça do caso concreto............................................................................................. 233
5.4 Considerações pontuais sobre as propostas do Anteprojeto do novo Código
de Processo Civil...................................................................................................................................... 235
6 Considerações finais.............................................................................................................................. 237
Referências................................................................................................................................................ 238

O agravo de instrumento e a inaplicabilidade do §4º do art. 515 do CPC no


caso de defeito de formação por falta das peças facultativas
Gilberto Gomes Bruschi ...................................................................................................................................... 243

Parecer

Condenação de advogado a litigância de má-fé: cariz autoritário da decisão


e atentado ao devido processo legal
Lúcio Delfino ........................................................................................................................................................... 251
1 A consulta.................................................................................................................................................. 251
2 O parecer.................................................................................................................................................... 252
2.1 Interesse e objeto recursal................................................................................................................... 252
2.2 O autoritarismo da condenação de advogado à litigância de má-fé................................... 253
3 Respostas aos quesitos......................................................................................................................... 260
NOTAS E COMENTÁRIOS

Apresentação – Professor José Joaquim Gomes Canotilho


Sérgio Tiveron ......................................................................................................................................................... 263

RESENHA

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de


Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.
André Del Negri ..................................................................................................................................................... 269

BRITO, Lúcio Eduardo de. A ação popular como instrumento de invalidação da


sentença lesiva ao patrimônio público. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
Lúcio Delfino ........................................................................................................................................................... 273

ATHENIENSE, Alexandre. Comentários à Lei 11.419/06 e as práticas processuais por


meio eletrônico nos tribunais brasileiros. Curitiba: Juruá, 2010.
Dnieper Chagas de Assis ..................................................................................................................................... 275

DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 14. ed. São Paulo:
Atlas, 2010. 1442 p.
Gil Ferreira de Mesquita ...................................................................................................................................... 277

MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ, Anselmo Prieto; BRUSCHI, Gilberto Gomes


(Coord.). Temas atuais das tutelas individuais e coletivas: estudos em homenagem ao
Professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2010.
Marcelo José Magalhães Bonicio ..................................................................................................................... 279

Índice ......................................................................................................................................................................... 283

Instruções de publicação para os autores .................................................................................................... 287


Editorial

A Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro completa três


anos após o seu despertar de um sono que superou quase duas décadas.
A cada edição vem se consolidando como importante veículo de difusão
de conhecimentos, nivelada entre os mais conceituados periódicos
nacionais em circulação.
A história da RBDPro se liga à publicação do Código de Processo
Civil de 1973. Surgiu justamente com o propósito de ampliar as discus­
sões acerca daquela então recentemente publicada legislação, mais um
espaço destinado àqueles que, de um modo ou de outro, debruçavam-
se no estudo, sempre renovado, do direito processual civil. Curioso per­
ceber, nesta perspectiva, que seu renascimento é quase coincidente com a
elaboração de um novíssimo Projeto de Código de Processo Civil (Projeto
nº 166/2010), já em discussão no Senado Federal, e que vem despertando o
interesse de toda comunidade jurídica. Certamente que a RBDPro também
servirá de palco para fomentar o debate de mais esta proposta legislativa
e, destarte, contribuir, de maneira intensa, com o seu aperfeiçoamento.
Esta edição traz doze ensaios doutrinários, com temas variados,
mas com certa preponderância à teoria geral do processo (princípio da orali­
dade, direito processual e democracia, presunções judiciais, debate en­
volvendo instrumentalismo e neoinstitucionalismo, teoria dos planos da
ordem jurídica, entre outros). Dela participam Alexandre Freitas Câmara,
José Henrique Mouta Araújo, André Del Negri, Felipe Scripes Wladeck,
Henrique Yukio Pereira de Souza, Alexandre Araújo Costa, Henrique
Araújo Costa, Alexandre Paulichi Chiovitti, Artur Luis Pereira Torres,
Michel Ferro e Silva, Ricardo Augusto de Araújo Teixeira, Maria Soledade
Soares Cruzes e Gilberto Gomes Bruschi. A devida referência deve ser feita,
ademais, ao interessante texto elaborado pelo Professor Sérgio Tiveron
para apresentar o constitucionalista mundialmente famoso, Doutor
José Joaquim Gomes Canotilho, em evento recentemente realizado na
cidade de Uberaba, MG. Na seção “Parecer”, Lúcio Delfino apresenta
trabalho em defesa de advogado condenado à litigância de má-fé,
evidenciando o cariz autoritário de decisão que, além de prejudicar aquele
que não é parte no processo, mostra-se, por variadas razões, descompassada
com o modelo constitucional do processo. Finalmente, algumas resenhas são

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 70, p. 9-10, abr./jun. 2010
ofertadas como orientação de leitura, todas concernentes a importantes
obras jurídicas disponibilizadas há pouco no mercado.
Esperamos que também esta edição agrade a todos.

Os Diretores

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 70, p. 9-10, abr./jun. 2010
DOUTRINA
Artigos
O princípio da oralidade e o sistema recursal nos Juizados Especiais 13

O princípio da oralidade e o sistema


recursal nos Juizados Especiais
Alexandre Freitas Câmara
Desembargador no TJRJ. Professor de direito processual civil na EMERJ (Escola da Magistratura
do Estado do Rio de Janeiro). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto
Ibero-Americano de Derecho Procesal e da International Association of Procedural Law.

Palavras-chave: Princípio da oralidade. Juizados Especiais Cíveis. Lei nº


9.099/1995.
Sumário: 1 Introdução – 2 O Princípio da oralidade e os Juizados Especiais
Cíveis – 3 O sistema recursal dos Juizados Especiais Cíveis – 4 O princípio
da oralidade e a apelação nos Juizados Especiais Cíveis – 5 Conclusão

1 Introdução
Tenho, desde sempre, afirmado minha convicção no sentido de
que todo o sistema dos Juizados Especiais Cíveis deve ser compreen­dido
a partir dos princípios elencados no art. 2º da Lei nº 9.099/1995. Isto
vale, evidentemente, para todos os institutos tratados no sistema dos
Juizados Especiais, sejam eles estaduais ou federais, versando a causa
neles deduzida sobre direito privado ou direito público.
Consequência direta disso é que os princípios referidos se apli­­­cam,
também, ao sistema recursal estabelecido para os Juizados Especiais
Cíveis. O que se pretende, com este ensaio, é demonstrar que, como con­
sequência inexorável disso, não podem as Turmas Recursais, no exercício
de sua competência recursal, reexaminar provas, limitando-se a devolu­
ção operada às questões de direito, em razão da absoluta necessidade
de respeito ao princípio da oralidade.

2 O Princípio da oralidade e os Juizados Especiais Cíveis


Um dos princípios mencionados no art. 2º da Lei nº 9.099/1995 é
o da oralidade. Dentre todos aqueles princípios, este sempre me pareceu
o mais relevante na determinação do modo como o processo deve se
desenvolver perante esses órgãos jurisdicionais.
Digo isto porque os outros princípios, como o da informalidade e
simplicidade e o da economia processual exercem, no sistema dos Juizados
Especiais Cíveis, em minha opinião, apenas uma (e relevantíssima)
função: atuam como vetores hermenêuticos, indicando a direção correta
a ser seguida pelo intérprete das disposições das três leis que compõem

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 13-21, out./dez. 2010
14 Alexandre Freitas Câmara

aquilo que venho, sistematicamente, chamando de Estatuto dos Juizados


Especiais. Assim, por exemplo, o princípio da economia processual permite
ao intérprete compreender porque, no sistema dos Juizados Espe­ ciais
Cíveis, a citação por oficial de justiça se faz independentemente da
expedição de mandado; do mesmo modo, o princípio da celeridade per­
mite ao intérprete saber a razão pela qual existem os prazos recur­ sais,
nos processos que tramitam perante Juizados, costumeiramente são
menores do que os estabelecidos para os processos que tramitam perante
os juízos comuns.
O princípio da oralidade, porém, não obstante exercer também
essa função, estabelece a técnica a ser observada no processo que tramita
perante um Juizado Especial.
Para que se possa compreender melhor como se dá essa fixação
da técnica, porém, impende ter uma noção mais precisa do que seja
o princípio da oralidade.
Impõe-se ter claro, em primeiro lugar, que a expressão processo oral
não designa um sistema processual no qual seja proibida — ou impos­
sível — a utilização da escrita. Oralidade (assim como escritura) designa
um “modelo processual”, em que são observados alguns postulados.
A maior ou menor adesão a estes postulados é que permitirá afirmar
que um determinado sistema processual é oral ou escrito.
Os postulados que compõem a oralidade processual são cinco
preva­­­­lên­­­cia da palavra falada sobre a escrita; imediatidade entre o juiz e as
fontes de prova; identidade física do juiz; concentração dos atos processuais em
audiên­­­­cia e irrecorribilidade em separado das decisões interlocutórias.
Ao incluir o princípio da oralidade entre os princípios nortea­­­ -
dores do sistema dos Juizados Especiais Cíveis, a Lei nº 9.099/1995
impõe, pois, antes de tudo, que no processo que ali tramita prevaleça
a palavra falada sobre a escrita. Daí decorrem, então, fenômenos como
a possibilidade de ajuizamento oral da demanda (com sua redução a
escrito pela secretaria do Juizado, que pode se valer de fichas ou formulá­-
rios impressos); o oferecimento oral da resposta; a possibilidade de
oposição oral de embargos de declaração; o requerimento verbal de
execução da sentença. Não se elimina, por óbvio, a palavra escrita. Mas
a palavra oral deve, ao menos em tese, prevalecer.1

Digo em tese porque, como sabem todos os que têm experiência prática nos Juizados Especiais Cíveis, raramente
1

os atos das partes são orais. Petições iniciais, contestações, embargos declaratórios, requerimentos executivos,
tudo isso se costuma fazer por escrito, como se fossem destinados aos juízos comuns.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 13-21, out./dez. 2010
O princípio da oralidade e o sistema recursal nos Juizados Especiais 15

No processo oral dos Juizados Especiais Cíveis deve-se observar,


também, a necessidade de contato imediato entre o juiz e aqueles que
prestam depoimento (sejam as partes, sejam as testemunhas), deve haver
um contato imediato. Às partes se deve assegurar, assim, o direito a um
day in the Court.2 De outro lado, é fundamental que o juiz tenha contato
imediato com a testemunha, de forma a poder mais bem avaliar o con­
teúdo de seu depoimento. No processo que tramita nos Juizados Espe­-
ciais Cíveis (e, registre-se, também no processo que tramita perante os
juízos comuns) o direito brasileiro estabelece que os depoimentos são
tomados perante o juiz, o que permite afirmar a plena observância
desse postulado.
De nada adiantaria, porém, esse contato imediato entre o juiz e as
fontes da prova oral se não se observasse, também, a identidade física
do juiz que colhe essa prova oral. Por conta disso é que o juiz que preside
a audiência de instrução e julgamento e colhe a prova oral fica vin­ cu­­
-
lado ao processo para o fim de proferir sentença.
Aqui é fundamental observar que não se aplica ao processo dos
Juizados Especiais Cíveis o disposto no art. 132 do Código de Processo
Civil, que afasta a vinculação do juiz que encerrou a colheita da prova
oral. Nos Juizados Especiais Cíveis, o juiz só deixa de estar vinculado se
deixa o próprio exercício da magistratura. Isto, porém, não deveria ser
um problema, já que, nos termos do disposto no art. 28 da Lei nº 9.099/
1995, na audiência de instrução e julgamento serão ouvidas as partes,
colhida toda a prova e, em seguida, proferida a sentença. Ora, se a sentença
será proferida na própria audiência em que a prova oral é produzida, não
há, evidentemente, qualquer problema em se estabelecer um sistema de
total vinculação do juiz ao processo, sem previsão de qualquer exceção.3

2
Trata-se do direito, costumeiramente reconhecido nos sistemas jurídicos de origem anglo-saxônica, a um “dia
perante o Tribunal”. Não posso, porém, deixar de registrar que a tendência, mundialmente observada, de
uso de novas tecnologias no processo judicial pode levar a que as audiências se realizem através da técnica
da videoconferência, o que reduziria bastante essa garantia. Não obstante a inexorabilidade do uso das
novas técnicas, penso que se deve receber com cuidado algumas inovações, sob pena de se provocar uma
“desumanização” do processo, com o fim do contato pessoal, substituído por contatos virtuais.
3
Tudo isso, porém, se diz apenas em tese. É que, na prática, houve um total desvirtuamento do sistema. Os
juízes que atuam nos Juizados Especiais Cíveis, inexplicavelmente, não proferem suas sentenças na audiência.
Levam os autos conclusos para sentença, aplicando uma regra contida no Código de Processo Civil que permite
ao juiz proferir a sentença no prazo de dez dias após o encerramento da audiência. Esta regra, contida no
CPC, tem caráter geral, e não pode prevalecer sobre os precisos e claros termos do que consta no já citado art.
28 da Lei nº 9.099/1995. A prática está, como dito, inteiramente desvirtuada. Não só as sentenças não são
proferidas desde logo, como determina a lei, mas — para piorar ainda mais — ainda se designam “audiências
de leitura de sentença”. Essas audiências – que são, a rigor, falsas audiências, pois não se realizam na verdade,
com as partes tão somente comparecendo à secretaria do Juizado para tomar conhecimento do teor da decisão
— além de tudo, contrariam ainda um outro princípio, o da celeridade processual, também estabelecido no
art. 2º da lei entre os que norteiam o processo nos Juizados Especiais Cíveis.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 13-21, out./dez. 2010
16 Alexandre Freitas Câmara

Para que tudo isso funcione bem, impõe-se, ainda, a observância


do postulado segundo o qual os atos processuais devem ser concentrados
em uma audiência ou, no caso de haver necessidade de realização de
mais de uma delas, estas deverão realizar-se com o menor intervalo de
tempo possível. Isto é fundamental diante do fato de que, prevalecendo
a palavra falada sobre a escrita, é preciso criar mecanismos que auxiliem
o juiz a decidir enquanto ainda preserva em sua memória os fatos prin­
cipais ocorridos durante a tramitação do processo. Este é o postulado
que legitima a conversão da sessão de conciliação em audiência de
instrução e julgamento, sempre que de tal conversão não resulte prejuízo
para a defesa.

3 O sistema recursal dos Juizados Especiais Cíveis


O sistema de recursos dos processos que tramitam perante os
Juizados Especiais Cíveis é, como não poderia deixar de ser, mais
simples do que o do processo que tramita perante os juízos comuns. Em
linhas gerais, e simplificadamente, costuma-se afirmar que esse sistema
só contém três recursos: “recurso inominado”, embargos de declaração
e recurso extraordinário.
A rigor, porém, o sistema recursal dos Juizados é ainda um pouco
mais complexo (e completo) do que isso. Na verdade, os recursos cabí­
veis nos processos que tramitam perante os Juizados Especiais Cíveis
são os seguintes: apelação, agravo, embargos de declaração, recurso
extraordinário e embargos de divergência. É preciso, porém, explicar um
pouco melhor o que acaba de ser dito.
Em primeiro lugar, a Lei nº 9.099/1995 prevê o cabimento de re­curso
contra a sentença. A prática forense consagrou o uso da denominação
“recurso inominado” para este recurso. Sempre afirmei, porém,4 que na
verdade o que se tem aí é a apelação. É preciso insistir nesse ponto: a
lei dos Juizados Especiais Cíveis não criou um novo recurso contra as
sentenças. O que ela fez foi afirmar que contra a sentença é cabível a
interposição de recurso. E este recurso só pode ser o cabível contra as
sentenças em geral: apelação.

Isso consta — como todas as minhas outras opiniões anteriormente manifestadas sobre Juizados Especiais
4

Cíveis — do livro em que faço uma exposição sistemática do microssistema processual dos Juizados. Cf., pois,
Alexandre Freitas Câmara. Juizados especiais cíveis estaduais, federais e da Fazenda Pública: uma abordagem
crítica. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Passim.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 13-21, out./dez. 2010
O princípio da oralidade e o sistema recursal nos Juizados Especiais 17

Não impressiona o fato de ser o recurso cabível nos Juizados


Especiais Cíveis em dez dias, e não em quinze (como se dá no sistema
do Código de Processo Civil). Basta dizer que — tratando dos Juizados
Criminais — a própria Lei nº 9.099/1995 admite o cabimento de apelação
em dez dias (art. 82, §1º). Também não impressiona o fato de o recurso
não ser julgado pelo Tribunal de Apelações, mas pela Turma Recursal.
O mesmo se passa nos Juizados Criminais, e nessa sede a lei é expressa
em afirmar que o recurso é o de apelação (art. 82, caput).
Poder-se-ia perguntar por que o legislador não chamou expres­
samente esse recurso de apelação. Esta, porém, é uma daquelas perguntas
para as quais não há respostas adequadas. Ao intérprete do sistema,
porém, isso não pode interessar (ainda mais pelo fato de que o legislador
tampouco deu ao recurso qualquer outro nome). O importante é o
exame da essência do instituto, e não pode haver dúvidas de que o recurso
cabível contra sentença é — receba da lei expressamente esse nome ou
não — a apelação.
Afirmei ser cabível também nos Juizados Especiais Cíveis o recurso
de agravo. Isto precisa ser mais bem esclarecido.
Ao determinar a incidência do princípio da oralidade no processo
dos Juizados Especiais Cíveis, a Lei nº 9.099/1995 estabeleceu que nesse
microssistema processual seriam irrecorríveis as decisões interlocutó­­ -
rias. Ocorre que, posteriormente, a lei que regulou os Juizados Fede­rais
(Lei nº 10.259/2001) foi expressa em afirmar, em seu art. 5º, o cabimento
de recurso contra a decisão acerca do cabimento ou não de tutela de
urgência.
Sempre sustentei a necessidade de se tratar as diversas leis que
tratam de Juizados Especiais como se compusessem um só microssis­tema.
Tenho sempre afirmado que essas leis, juntas, compõem o Estatuto dos
Juizados Especiais, ideia que acabou por ser acolhida expressamente pelo
legislador quando da elaboração da lei que rege os Juizados Especiais
da Fazenda Pública (que fala de um sistema dos Juizados).
Admitida a existência desse microssistema composto pelas três leis
que regem o processo nos Juizados Especiais, é de se admitir, também,
o constante diálogo entre esses três diplomas legislativos. É o que, em
doutrina, convencionou-se chamar de diálogo das fontes.
Assim sendo, a partir do momento em que uma dessas leis admite
o cabimento de agravo contra um determinado tipo específico de

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 13-21, out./dez. 2010
18 Alexandre Freitas Câmara

decisão interlocutória, essa possibilidade se espalha pelas outras leis que


integram o Estatuto dos Juizados Especiais.5
É preciso, pois, admitir o cabimento de agravo (que será inter­
posto por instrumento) contra a decisão que defere ou indefere tutelas de
urgência (cautelares ou antecipatórias de tutela). E, por não haver nas
leis que compõem o Estatuto dos Juizados Especiais qualquer disposição
acerca da forma como esse agravo será interposto, aplicar-se-ão, em
caráter subsidiário, as regras do Código de Processo Civil acerca dessa
espécie recursal.
Além da apelação e do agravo, o microssistema processual dos
Juizados Especiais admite a oposição de embargos de declaração contra
decisões obscuras, contraditórias ou omissas.6 Estes são cabíveis, sempre,
no prazo de cinco dias, podendo ser opostos por escrito ou oralmente.
O oferecimento de embargos de declaração tempestivos contra sent­ença
suspende o prazo para a interposição de apelação, por qualquer das
partes.7 Já quando interpostos contra acórdão, os embargos de decla­ -
ração interrompem o prazo para oferecimento de outros recursos.8
Contra acórdãos das Turmas Recursais admite-se — desde que
preenchidos todos os requisitos, inclusive os específicos, como o pre­
questionamento e a repercussão geral da questão constitucional — o
recurso extraordinário, a ser julgado pelo STF. E da decisão proferida
pelo STF pode, desde que preenchidos os requisitos de sua admissibili­
dade, ser interposto o recurso de embargos de divergência.9

4 O princípio da oralidade e a apelação nos Juizados Especiais Cíveis


De um modo geral, a determinação contida na lei no sentido de
que se reja o processo dos Juizados Especiais Cíveis pelo princípio da

5
Não posso, aqui, deixar de observar que deveria ter havido, também, a previsão de cabimento de agravo contra
(algumas, pelo menos) decisões interlocutórias proferidas in executivis. A inadmissibilidade do agravo contra
essas decisões — como, e.g., a que determina a penhora de um bem ou a que defere sua adjudicação leva
ao uso — em tese inadequado, mas absolutamente justificável na prática forense, do mandado de segurança
como sucedâneo recursal.
6
Duas observações precisam ser feitas neste ponto. A primeira é a de que também nos Juizados Especiais Cíveis
se deve admitir a oposição de embargos de declaração contra decisões interlocutórias. A segunda é que se deve
reputar como não escrita a afirmação, contida na Lei nº 9.099/95, de que os embargos de declaração seriam
cabíveis quando na decisão houver dúvida. Isto se diz porque a dúvida é, na verdade, um estado subjetivo
daquele que lê o teor da decisão, provocado por obscuridade, contradição ou omissão em seu texto.
7
Suspende, e não interrompe, diferentemente do que se dá no sistema do Código de Processo Civil.
8
Assim já decidiu o STF: AI no AgR nº 451078/RJ, rel. Min. Eros Grau, j. em 31.08.2004.
9
Deixo, aqui, por serem absolutamente irrelevantes para a compreensão do que se pretende sustentar neste
ensaio, de apresentar quaisquer considerações sobre o cabimento — evidente, diga-se — de agravo contra a
decisão que, na origem, deixa de admitir o recurso extraordinário interposto.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 13-21, out./dez. 2010
O princípio da oralidade e o sistema recursal nos Juizados Especiais 19

oralidade não produz qualquer consequência sobre o modo como se


desenvolvem os recursos. Exceções a isso, porém, encontram-se no trato
da apelação e do agravo. Este estudo fica centrado na influência que o
princípio da oralidade exercerá sobre o funcionamento da apelação
nos Juizados Especiais Cíveis, mas o leitor atento saberá determinar as
consequências que, mutatis mutandis, se operarão sobre o agravo.
É costume afirmar-se, em sede de doutrina, que a apelação é o recurso
por excelência.10 É que a apelação é o recurso que permite observar-se,
de forma plena, o princípio do duplo grau de jurisdição, provocando
um reexame completo da causa, tanto no que diz respeito à matéria de
direito quanto no que concerne à matéria de fato.11
Pois é exatamente este raciocínio que tem levado a que se sustente,
a meu ver de modo equivocado, que na apelação cabível nos processos
dos Juizados Especiais Cíveis é possível às Turmas Recursais o reexame
das questões de fato e de direito.
É preciso dizer, antes de tudo, que é perfeitamente possível
admitir-se a previsão, em um sistema processual, do cabimento de apelação
apenas para que se provoque o reexame de matéria de direito, subme­
tida a análise das questões de fato a um único grau de jurisdição.12 Além
disso, é sempre preciso ter claro que o reexame das questões de fato pelo
órgão competente para conhecer do recurso pressupõe, necessariamente,
que este tenha à sua disposição as mesmas condições para atuar que
o órgão originariamente competente para a causa. Sobre o tema, vale
mencionar importante lição doutrinária: “A possibilidade de o tribunal
de recurso conhecer de matéria de facto (além de, claro está, apreciar
matéria de direito) pressupõe que a esse tribunal são garantidas, pelo
menos, as mesmas condições que estão asseguradas ao tribunal recorrido.

10
Esta frase já se tornou um verdadeiro lugar-comum. É a mesma empregada, entre outros, por Flávio Cheim Jorge
(Apelação cível: teoria geral e admissibilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 51). Também outros
doutrinadores brasileiros a empregam, como se vê, por exemplo, em José Carlos Barbosa Moreira (Comentários
ao Código de Processo Civil. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. v. 5, p. 409). Na doutrina estrangeira mais
autorizada, a mesma frase pode ser lida, e.g., em Loïc Cadiet e Emmanuel Jeland (Droit judiciaire privé. 5. ed.
Paris: LexisNexis, 2006. p. 507) (“voie de recours ordinaire par excellence”).
11
Neste sentido, Luigi Paolo Comoglio, Corrado Ferri e Michele Taruffo (Lezioni sul processo civile. 4. ed. Bolonha:
Il Mulino, 2006. v. 1, p. 612).
12
Este é o sistema tradicionalmente adotado nos ordenamentos anglo-saxônicos, como já apontava Cappelletti
em seu célebre “parecer iconoclástico”. Cf., pois, Mauro Cappelletti (Dictamen iconoclástico sobre la reforma
del proceso civil italiano. In: CAPPELLETTI, Mauro. Proceso, ideologías, sociedad. Trad. esp. de Santiago Sentís
Melendo e Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: EJEA, 1974. p. 279-280). Impõe-se observar, porém, que no
moderno direito processual inglês tem-se admitido, ainda que em casos excepcionais, que a Court of Appeal
reexamine o material probatório ou até colha novas provas. Sobre o ponto, Neil Andews (O moderno processo
civil. Trad. bras. orientada e revista por Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
p. 194-197).

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 13-21, out./dez. 2010
20 Alexandre Freitas Câmara

O problema assume especial acuidade no que se refere à oralidade e


imediação, pois que — dir-se-á com alguma razão —, se estas contribuem
decisivamente para o bom julgamento da causa (em especial, no que se
refere à apreciação da matéria de facto), parece contraditório com a função
dos tribunais de recurso retirar-lhes os benefícios delas decorrentes”.13
Em um sistema processual como o estabelecido pelo Código de
Processo Civil, em que a oralidade não é o modelo de processo adotado,14
não há maiores problemas na admissão de um novo juízo sobre os fatos
a ser realizado pelo tribunal recursal. Afinal, todo o reexame dos fatos
empreendido pelo tribunal de apelação se faz sobre escritos (aí incluído
o termo dos depoimentos tomados no juízo inferior).15
O mesmo não se dá, todavia, em um sistema de oralidade pro­­ -
ces­sual, como é o dos Juizados Especiais Cíveis. Neste sistema, a Turma
Recursal, ao julgar a apelação, fica necessariamente vinculada aos prin­
cípios norteadores do processo nos Juizados, estabelecidos pelo art. 2º
da Lei nº 9.099/1995.
Assim sendo, é de se considerar que no desenvolvimento do pro­
cedimento recursal, fica a Turma vinculada aos postulados que compõem
o princípio da oralidade. Dessa afirmação é que se extrai a impossibili­
dade de que a Turma Recursal reexamine questões de fato. É que, ao fazê-
lo, a Turma Recursal terá apreciado e valorado provas que não colheu,
notadamente (ainda que não exclusivamente) as provas orais. Afinal, caso
valore as provas produzidas pelo Juizado de origem, a Turma Recursal
incidirá no equívoco de desconsiderar o postulado que impõe, em um
processo oral, a imediatidade entre o juiz e as fontes de prova.

13
SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2. ed. Lisboa: Lex, 1997. p. 399.
14
Venho já há bastante tempo sustentando que no sistema do Código de Processo Civil o que se adotou foi um
modelo de “processo escrito mitigado”. Sobre o ponto, seja permitido fazer referência ao que está escrito
em Alexandre Freitas Câmara (A oralidade e o processo civil brasileiro. In: CÂMARA, Freitas. Escritos de direito
processual: primeira série. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 22-29). Voltei ao tema, posteriormente, em
Alexandre Freitas Câmara (A oralidade e o processo civil brasileiro: estado atual da questão. In: CÂMARA,
Freitas. Escritos de direito processual: terceira série. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 60-66).
15
Na qualidade de integrante de um tribunal de segunda instância, não posso deixar de registrar aqui a dificuldade,
que muitas vezes tenho, de valorar as provas que foram produzidas oralmente, já que não tive contato imediato
com os depoentes. Aqui, porém, é preciso registrar o fato de que a adoção de novas tecnologias, com a
gravação em arquivos audiovisuais das audiências, certamente modificará o modo como as Cortes Recursais
se relacionam com a prova. Observou o ponto o processualista norte-americano Paul Carrington (Technology
and civil litigation in the United States in the twenty-first century. In: KENGYEL, Miklós (Coord.). Electronic
Justice: Present and Future. COLLOQUIUM OF THE INTERNATIONAL ASSOCIATION OF PROCEDURAL LAW.
Pécs: University of Pécs Faculty of Law, 2010. p. 164), que narra um caso em que a Suprema Corte dos EUA,
em um julgamento ocorrido em 2007, contrariando seu papel tradicional de revisora das questões de direito,
reexaminou provas em um processo em que se tratava de responsabilidade civil pelos danos decorrentes de um
acidente de trânsito que foi inteiramente filmado através de uma câmera que estava em um dos automóveis
envolvidos.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 13-21, out./dez. 2010
O princípio da oralidade e o sistema recursal nos Juizados Especiais 21

Isto se diz porque, num sistema de processo oral, precisa-se ter


sempre presente a ideia de que o juiz do fato é o juiz que colhe a prova. E se
é assim, não se pode admitir que, em grau recursal, haja uma nova valo­-
ração da prova, sob pena de se comprometer todo o sistema.

5 Conclusão
De tudo quanto se expôs, a única conclusão possível é esta: a prática
já consagrada, de permitir à Turma Recursal o reexame integral da
matéria em sede de apelação, inclusive quanto à matéria de fato, contraria
o disposto no art. 2º da Lei nº 9.099/1995, revelando-se incompatível
com o modelo processual inspirado na oralidade que se construiu para
os Juizados Especiais Cíveis. Pode-se concordar ou não com a opção do
legislador; pode-se considerar que esta leva a resultados melhores ou
piores do que os que seriam alcançados com a adoção de outro sistema.
O que não se pode é, simplesmente, desconsiderar-se a escolha conscien­
temente feita pelo Estatuto dos Juizados Especiais, tratando-se o processo
que tramita perante estes tão importantes órgãos jurisdicionais como
se fossem processos ordinários, desses que tramitam nos juízos comuns,
regidos pelo Código de Processo Civil. Essa desconsideração pela escolha
do legislador é perniciosa e deve, por isso, ser a todo custo combatida.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

CÂMARA, Alexandre Freitas. O princípio da oralidade e o sistema recursal nos juizados


especiais. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72,
p. 13-21, out./dez. 2010.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 13-21, out./dez. 2010
Variáveis acerca do cabimento de intervenção de terceiros no mandado de segurança 23

Variáveis acerca do cabimento de


intervenção de terceiros no mandado
de segurança
José Henrique Mouta Araújo
Pós-doutor (Universidade de Lisboa). Doutor e mestre em direito (Universidade Federal do Pará).
Professor titular da UNAMA, CESUPA e FACI. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual.
Procurador do Estado do Pará. Advogado.

Palavras-chave: Mandado de segurança. Litisconsórcio. Assistência. Amicus


curiae.
Sumário: 1 Colocação do tema – 2 Partes no mandado de segurança – 3
Litisconsórcio, assistência e amicus curiæ no mandado de segurança: variações
sobre o tema – 3.1 O beneficiado pelo ato impugnado. Sua posição do
mandado de segurança – 3.2 A assistência e amicus curiæ no mandado de
segurança

1 Colocação do tema
No presente ensaio, procura-se enfrentar aspectos ligados ao
cabi­
mento de intervenção de terceiros no mandado de segurança, em
decorrência da especialidade procedimental.
Consoante previsão do art. 1º da LMS, é cabível o mandamus para
defender direito líquido e certo1 contra ato de autoridade. Contudo,
alguns problemas práticos podem advir da conceituação, como: a) a auto­
ridade coatora é ré no mandado de segurança? b) é admitida pelo siste­
ma a presença, como sujeito passivo, de pessoa física ou jurídica alheia a
qualquer conotação pública? c) é admissível intervenção de assistente e
de amicus curiae no mandado de segurança?
São indagações que ainda não restam totalmente resolvidas em
sede doutrinária e jurisprudencial, mesmo com a promulgação da nova
Lei do Mandado de Segurança (Lei nº 12.016/09) e merecem aprofun­
damento neste trabalho.

2 Partes no mandado de segurança


O primeiro aspecto a ser enfrentado, e que já desafia a doutrina
especializada, diz respeito ao conceito de parte no mandado de segurança,

Em outro trabalho, já se enfrentou o problema da conceituação do direito líquido e certo no mandado de


1

segurança, inclusive no que respeita ao processo de formação de coisa julgada material. Sobre o assunto, ver
meu “Aspectos envolvendo o direito líquido e certo, a decadência e a coisa julgada no mandado de segurança”
(Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 16, jul. 2004).

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 23-34, out./dez. 2010
24 José Henrique Mouta Araújo

ex vi art. 5º, LXIX da CF/88 c/c art. 1º da nova Lei do Mandado de


Segurança (LMS).
No que respeita ao polo ativo do MS, ganha força a discussão da
natureza da legitimidade: ordinária ou extraordinária.
Destarte, o art. 1º da LMS consagra a possibilidade de impetração
por quem sofre ou teme sofrer violação a direito seu.
No caso do mandado de segurança coletivo, há a permissão de legi­
timidade aos entes coletivos, como associações e sindicatos, que atuam
em regra na qualidade de legitimados extraordinários (art. 21 da LMS).
Contudo, em que pese pouco utilizada na prática forense, há hi­
pótese de legitimidade extraordinária (substituição processual) ligada ao
direito individual, prevista no art. 3º da LMS.
Destarte, como bem aponta Mantovanni Colares Cavalcante: “há
situações, contudo, em que é prevista a substituição processual, o que
ocorre no caso de omissão do primeiro interessado na proteção de direito
líquido e certo, bem como na conjuntura do mandado de segurança
coletivo”.2
Realmente, prevê o art. 3º da LMS importante instrumento de
defesa de interesse do legitimado ordinário quando este, notificado,
deixa de impetrar seu mandamus.3 Assim, é possível identificar a possibi­
lidade de impetração pelo interessado decorrente, apenas em decorrência
da omissão do legitimado prioritário, comprovada pelo não atendi­­ -
mento à notificação em prazo razoável. 4

Cassio Scarpinella Bueno conclui, ao comentar o art. 3º da antiga


Lei do Mandado de Segurança, que: “nessas condições, a hipótese é de
verdadeira substituição processual, espécie de legitimidade extraordinária,
porque o titular do direito originário deixa de poder impetrar seu próprio
mandado de segurança, ficando adstrito ao que for decidido naquele
impetrado pelo terceiro. Certamente que pode pretender intervir no feito
pendente, quando deverá fazê-lo na qualidade de assistente litisconsorcial
(CPC, art. 54), uma vez que a sentença produzirá efeitos diretamente em
sua própria esfera jurídica”.5
2
Mandado de segurança. São Paulo: Dialética, 2002. p. 57.
3
Referida legitimidade é extraordinária, na modalidade substituição processual, e apenas pode ser discutida
judicialmente em razão da inércia do primeiro legitimado. Já decidiu o STF que se trata de legitimação decorrente
de inação do substituto (RTJ 152/493. In: NEGRÃO, Theotônio. Código de Processo Civil e legislação processual
em vigor. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 1676).
4
Está tramitando o Projeto de Lei da Câmara nº 125/2006, que pretende alterar a legislação referente ao mandado
de segurança. No que respeita ao aspecto ora em comento, o projeto pretende fixar o prazo de 30 (trinta) dias
para a manifestação do titular do direito líquido e certo, quando notificado judicialmente (art. 3º).
5
Mandado de segurança. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 40.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 23-34, out./dez. 2010
Variáveis acerca do cabimento de intervenção de terceiros no mandado de segurança 25

Assim, no mandado de segurança há a presença do impetrante,


atuando na qualidade de legitimado ordinário ou mesmo extraordinário,
impugnando ato praticado ou na iminência de sê-lo, pela autoridade
coatora.
De outra banda, cumpre enfrentar questão controvertida: quem é o
sujeito passivo no mandado de segurança: a autoridade coatora ou a pessoa
jurídica de direito público?
As reformas advindas da Lei nº 12.016/09 ampliam esta discus­ -
são. Pela análise da nova lei, a participação do representante judicial da
pes­ soa jurídica foi ampliada, eis que: a) recebe cópia da petição inicial
(art. 6º), b) toma ciência do despacho da inicial (art. 7º, II) e da própria
decisão que conceder o mandado (art. 13). O art. 14, §2º, estende à auto­
ridade coatora o direito de recorrer. Contudo, a ampliação da participação
do representante judicial da pessoa jurídica (aliada a legitimidade recur­
sal da autoridade coatora), inclusive em condutas que anteriormente
eram dirigidas apenas à autoridade coatora, é na condição de parte ou
de litisconsorte?
A atuação do representante judicial da pessoa jurídica e da própria
autoridade coatora permite a provocação acerca do papel de cada um
no mandado de segurança. A autoridade, v.g., é parte ou mera infor­
mante? De acordo com as lições de Hely Lopes Meirelles: “o impetrado é
a autoridade coatora, e não a pessoa jurídica ou o órgão a que pertence e
ao qual seu ato é imputado em razão do ofício. Nada impede, entretanto,
que a entidade interessada ingresse no mandado a qualquer tempo,
como simples assistente do coator, recebendo a causa no estado em que
se encontra, ou, dentro do prazo para as informações, entre como litis­
consorte do impetrado, nos termos do art. 19 da Lei n. 1.533/51”.6
Contudo, há críticas ao posicionamento de que há formação de
litisconsórcio ou mesmo de assistência entre a autoridade coatora e a
pessoa jurídica de direito público, bem como ao que entende ser a própria
autoridade coatora ré no mandamus.
Destarte, Lúcia Valle Figueiredo assevera que: “o sujeito passivo
do mandado de segurança será, sempre, a pessoa jurídica que deverá
suportar os encargos da decisão do mandado de segurança. Destarte,

Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, ‘habeas data’, ação direta
6

de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade e argüição de descumprimento de preceito


fundamental. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 57-58.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 23-34, out./dez. 2010
26 José Henrique Mouta Araújo

sujeitos passivos serão sempre União, Estados, Municípios ou delegados


de serviço público, sejam dirigentes de estatais ou concessionárias de
serviço”.7
Toda a consequência decorrente da decisão que concede a segurança
não é suportada pela pessoa física da autoridade que àquela altura pra­ti­
cou o ato impugnado, mas sim pela pessoa jurídica de direito público.8 9
Portanto, parece mais razoável o entendimento de que a autori­
dade coatora não é ré no procedimento do mandado de segurança, mas
mera informante, não sendo qualificadas as informações como peça de
defesa, mas meio de prova.10 Sendo informante, não deve ser qualificada
como litisconsorte,11 nem como parte e nem mesmo como assistente
litisconsorcial passivo.12
Outrossim, a legitimidade recursal é da pessoa jurídica de direito
público, podendo a autoridade coatora também apresentar recurso, mas

7
Mandado de segurança. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 23.
8
O STF já decidiu: “Mandado de segurança: legitimação passiva da pessoa de direito público ou assemelhada, à
qual seja imputável o ato coator, cabendo à autoridade coatora o papel de seu representante processual, posto
que de identificação necessária: conseqüente possibilidade de sanar-se o erro do impetrante na identificação
da autoridade coatora, mediante emenda da inicial, para o que se determina a intimação da parte: voto médio
do relator para o acórdão” (Rcl nº 367/DF. Rel. Min. Marco Aurélio. Rel. Acórdão Min. Sepúlveda Pertence. J.
em 04.02.1993. Tribunal Pleno. DJ, p. 00004, 06 mar. 1998, Ement. vol -01901-01, p-00001).
9
Também aduzindo que é a pessoa jurídica de direito público quem irá suportar os efeitos decorrentes da ação,
ver obra clássica de Sérgio Ferraz intitulada Mandado de segurança (individual e coletivo): aspectos polêmicos.
3. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 52.
10
Nesse particular, há duas passagens de ensaio de Fredie Didier Júnior que merecem transcrição: “a participação
da autoridade coatora restringe-se a prestar informações e completar a citação, comunicando ao réu a
existência da demanda contra ele proposta. Empós, sai do processo. No momento da prolação da sentença,
por exemplo, já é pessoa totalmente estranha ao feito, fato que a qualifica, neste momento, como terceiro”.
E, em seguida, defende corretamente que: “a participação da autoridade coatora, ao que nos parece, pode
ser visualizada muito melhor de acordo com a teoria geral da prova: trata-se de colheita de prova, por escrito,
feita em momento procedimental anterior ao da apresentação da defesa” (Natureza jurídica das informações
da autoridade coatora no mandado de segurança. In: BUENO, Cassio Scarpinella; ALVIM, Eduardo Arruda;
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002. p. 370, 371).
11
Por outro lado, em caso de dúvida objetiva, é possível a impetração contra mais de uma autoridade coatora.
Neste caso, se ambas forem vinculadas à mesma pessoa jurídica de direito público, ainda assim é incabível
falar-se em litisconsórcio passivo, mas sim em mais de um presentante cujos atos estão sendo impugnados.
A contrario sensu, há precedente indicando tratar-se de litisconsórcio passivo, senão vejamos: “Mandado de
segurança. Impetração contra duas autoridades – Determinação pelo Juiz para que os impetrantes escolham
uma autoridade para permanecer no pólo passivo – Litisconsórcio passivo que pode permanecer, com exame
da matéria por ocasião da sentença – Decisão reformada – Recurso dos autores provido. Possível o litisconsórcio
passivo em mandado de segurança, podendo ser dirimida a dúvida sobre a efetiva autoridade coatora por ocasião
da sentença” (TJSP. AI 110.813-5 – SP, 1ª CDPu., v.u., j. 30.3.99, Rel. Luís Ganzerla. CD/APMP. In: REMÉDIO,
José Antonio. O mandado de segurança na jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 491).
12
“Acolhida a tese de que o sujeito passivo é a pessoa jurídica, não é admissível o ingresso da autoridade como
assistente litisconsorcial, porque ela não é titular de qualquer relação jurídica com o adversário do assistido. Por
outras palavras, a autoridade a quem se atribui a prática do ato integra a pessoa jurídica (parte passiva), não
tendo, pois, qualidade para agir nem como parte, nem como assistente” (LOPES, João Batista. Sujeito passivo
no mandado de segurança. In: BUENO, Cassio Scarpinella; ALVIM, Eduardo Arruda; WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança. São Paulo: Revista dos Tribunias, 2002.
p. 418).

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 23-34, out./dez. 2010
Variáveis acerca do cabimento de intervenção de terceiros no mandado de segurança 27

na qualidade de terceiro interessado13 evitando, quem sabe, eventual


procedimento administrativo em decorrência da sentença judicial ou
mesmo ação de regresso a ser proposta pelo poder público, ou mesmo
alguma consequência impeditiva de promoção. Logo, a permissão re­
cursal prevista na nova LMS (art. 14, §2º), é na condição de terceiro e por
meio de advogado contratado.

3 Litisconsórcio, assistência e amicus curiæ no mandado de segurança


variações sobre o tema
Além das situações já enfrentadas, ainda restam alguns pontos
geradores de polêmica no procedimento do mandado de segurança e
que merecem novos argumentos neste ensaio, senão vejamos.

3.1 O beneficiado pelo ato impugnado. Sua posição do mandado de


segurança
Questão a ser enfrentada no momento refere-se ao papel do terceiro
eventualmente atingido pelo mandado de segurança.
É muito comum, na prática forense, encontrarmos situações que
dizem respeito a servidor público nomeado, cujo concurso é objeto de
impugnação judicial, ou da empresa vencedora da licitação impugnada
judicialmente por outra licitante.
Nesses casos, considerando que o writ é impetrado visando dis­cu­
tir ato de autoridade (art. 1º LMS), qual será a posição processual desses
sujeitos eventualmente atingidos pela decisão judicial: são terceiros total­mente
alheios ao procedimento mandamental, assistentes ou litisconsortes
passivos necessários?
Ora, considerando que não há litisconsórcio entre a autoridade
coatora e a pessoa jurídica de direito público, o litisconsórcio previsto no
art. 24 da LMS por certo envolve hipóteses como as indicadas acima,
em que um terceiro poderá ser atingido pelo julgado.
Logo, nos casos em que o ato impugnado gera direito a terceiros,
estes devem ser citados na qualidade de litisconsortes passivos necessários,
inclusive atendendo ao disposto na Súmula nº 631 do STF.14
13
No mesmo sentido, entende Fredie Didier Jr.: “podemos afirmar que a autoridade coatora somente tem
legitimidade recursal enquanto terceira juridicamente interessada, jamais como parte; nesta condição, apenas
a pessoa jurídica de direito público” (Recurso de terceiro: juízo de admissibilidade. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002. p. 133).
14
“Questão de suma importância teórica e prática é a da existência ou não de ‘litisconsórcio necessário’ no
mandado de segurança, quando a sentença tiver eficácia direta quanto à situação jurídica de outras pessoas. É o

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 23-34, out./dez. 2010
28 José Henrique Mouta Araújo

Aliás, analisando o art. 19 da antiga LMS (Lei nº 1.533/51), ensinou


Celso Agrícola Barbi: “ora, nos casos freqüentes em que o mandado de
segurança é requerido contra nomeação ou promoção de funcionário,
ou concessão de serviço público a outrem, a demanda implica anular
a nomeação ou promoção, ou cancelar a concessão, vale dizer, extinguir
a relação jurídica existente entre o Poder Público e o funcionário, ou
concessionário. Parece-nos fora de dúvida que, nas hipóteses figuradas,
há exemplos típicos de litisconsórcio ‘necessário’, sendo, portanto, indis­
pensável a participação daqueles interessados como réus, sem o que a
sentença será ineficaz”.15
Não se deve olvidar que se trata de litisconsórcio necessário simples
(ex vi do art. 47 do CPC), considerando que a decisão poderá ou não
ser uniforme em relação aos réus. Logo, torna-se obrigatória a citação
de todos os beneficiados, sob pena de comprometer a legalidade do
procedimento.
De outra banda, dependendo do caso concreto, a necessidade de
citação de todos os que podem ser atingidos pela decisão a ser concedida
no mandado de segurança poderá significar o próprio comprometi­
mento da celeridade buscada neste procedimento especial. Necessário
mencionar duas situações hipotéticas e abstratas que contribuem para
este argumento: caso um Município pretenda discutir a sua cota decor­
rente do fundo de participação (FPM), impetrando mandado de segu­
rança contra o Estado, em tese devem ser citados todos os demais entes
municipais, considerando que o aumento da quota do impetrante poderá
atingir o percentual dos demais. Também pode ser mencionada como
exemplo a impetração do writ por candidato visando impugnar a legali­
dade ou a ordem de classificação de determinado concurso público,
onde os candidatos eventualmente atingidos pela decisão devem ser
citados como litisconsortes necessários.16

que se dá, por exemplo, no mandado requerido por funcionário que perdeu o cargo, ou deixou de ser nomeado
ou promovido, se o cargo pretendido já estiver ocupado por outrem. Igualmente, no mandado requerido contra
a concessão de serviço público a outrem, hipótese em que o deferimento implica cancelar a concessão” (BARBI,
Celso Agrícola. Do mandado de segurança. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 126).
15
Do mandado de segurança. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 129.
16
Sobre a necessidade de citação dos demais candidatos (inclusive os aprovados e já empossados) como
litisconsortes necessários em mandado de segurança, o STJ já decidiu: “Embargos de declaração em recurso
em mandado de segurança. Ausência de citação de litisconsortes necessários — art. 47 CPC. Nulidade.
Provimento. Efeitos modificativos. Tendo o recurso sido provido para, concedendo a ordem como requerida,
anular-se o discutido item do edital que conferia pontos diferenciados aos diversos candidatos, e certo que os
demais candidatos aprovados (alguns até mesmo já empossados) que se beneficiaram com os referidos pontos.
Deveriam ter sido citados para integrarem a lide como litisconsortes necessários, já que a concessão da ordem
culminou por afetá-los. Tal ponto fora colocado pelo estado em suas contra-razões, e omisso no julgado.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 23-34, out./dez. 2010
Variáveis acerca do cabimento de intervenção de terceiros no mandado de segurança 29

Como nos casos em questão há formação de litisconsórcio passivo


necessário, não será possível sequer limitar o número de demandados.
Por outro lado, as inúmeras citações, contestações (sem falar nos recur­
sos) e demais atos processuais poderão comprometer a celeridade bus­
cada no procedimento, inclusive com incidentes processuais por vezes
insuperáveis.17
Logo, em que pese ser o mandamus impetrado contra ato advindo
do poder público, nada impede que figure no polo passivo um parti­ -
cular, desde que sua esfera jurídica seja atingida.18

3.2 A assistência e amicus curiæ no mandado de segurança


Outro aspecto a ser enfrentado refere-se ao cabimento de assis­­
-
tên­cia e de intervenção como amicus curiæ no mandado de segurança.
As questões a serem enfrentadas são as seguintes: a) o art. 24 da LMS
engloba também as hipóteses de assistência? b) a permissão da inter­ -
venção do assistente poderá gerar atraso ou mesmo tumulto procedi­
mental, comprometendo a celeridade buscada no writ? c) É cabível a
atuação de amicus curiæ?
A temática envolvendo as duas primeiras indagações não é nova,
havendo precedentes em sentido contrário à assistência no mandamus.19

Embargos conhecidos e providos para, dando efeito modificativo ao “decisum”, anular o processo a partir
da sentença de 1º Grau inclusive, com o fim de proceder-se a citação dos litisconsortes passivos necessários”
(EDcl no RMS 7.940/MG – 5ª Turma. Rel. Min. Ministro José Arnaldo da Fonseca. J. em 10.06.1997. DJ, p.
36278, 12 ago. 1997). Ainda sobre a necessidade de citação dos demais candidatos, ver: RMS nº 2.339/BA
– 5ª Turma. Relator Min. Felix Fischer. J. em 10.03.1998. DJ, p. 131, 11 maio 1998; e RESP. nº 11.369 – 5ª
Turma. Rel. Min. Felix Fischer. J. em 15.03.2001. DJ, 02 abr. 2001.
17
Como o tempo decorrido para a citação de todos os municípios ou todos os candidatos do concurso
— mantendo-se os exemplos anteriormente apresentados.
18
Vejamos a jurisprudência do STJ: “Recurso especial em mandado de segurança. Licitação. Homologação e
adjudicação. Prova da contratação. Dispensa. Perda de objeto. 1. No processo de mandado de segurança, é
obrigatória a citação da pessoa em favor de quem foi praticado o ato impugnado, em razão de ser litisconsorte
necessário, uma vez que a anulação do mencionado ato interferirá na sua esfera jurídica, violando seu direito.
2. A extinção do processo ante a falta da citação somente poderá ser decretada se a parte intimada para
providenciar a citação, nos termos do art. 47, parágrafo único do Código de Processo Civil, quedar-se inerte.
3. Recursos especiais parcialmente providos” (REsp. nº 493.679/RS – 2ª Turma. Relator Ministro João Otávio
de Noronha. J. em 16.11.2004. DJ, 17 dez. 2004). “Recurso ordinário. Processual. Mandado de segurança.
Litisconsórcio passivo necessário. Aplicabilidade. Decisão que afeta situação jurídica de terceiros. Citação.
Prazo para defesa. Art. 225, VI. Ausência. Nulidade da citação. Matéria de ordem pública. No caso em que a
anulação do ato inquinado de violar direito líquido e certo implica em prejuízo para terceiros; ou o contrário,
a manutenção do ato implica em vantagem para aqueles, fica demonstrada a necessidade de se instaurar
litisconsórcio. Não há, em mandado de segurança, regra específica, diversa da regra geral do art. 46 e seg. do
CPC, para se apurar a necessidade do litisconsórcio. A citação há que conter, expresso, o prazo para defesa
(art. 225, IV, do CPC), sob pena de nulidade. Recurso ordinário provido em parte” (RMS nº 14.106/MS. 6ª
Turma. Rel. Ministro Paulo Medina. J. em 09.12.2003. DJ, p. 363, 02 fev. 2004).
19
“1. Intervenção de terceiro. Assistência. Mandado de segurança. Inadmissibilidade. Preliminar acolhida.
Inteligência do art. 19 da Lei nº 1.533/51. Não se admite assistência em processo de mandado de segurança.
2. Legitimidade para a causa. Passiva. Caracterização. Mandado de segurança. Impetração preventiva contra
nomeação de juiz de Tribunal Regional do Trabalho. Ato administrativo complexo. Presidente da República.

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30 José Henrique Mouta Araújo

Também em sede doutrinária há posicionamentos contrários à


admissão de assistência no mandado de segurança. Carlos Alberto Menezes
Direito, após citar argumentos pró e contra o cabimento da assistência,
conclui que “a lei 6.071/74, alterando a redação do art. 19 da lei especial,
sem meias-palavras, não alcançou a assistência limitando-se a determinar
a aplicação ao processo do mandado de segurança dos artigos do Código
de Processo Civil que regulam o litisconsórcio. Desse modo, na linha do
precedente do Supremo Tribunal Federal,20 entendo não ser admissível o
assistente em mandado de segurança”.21

Litisconsorte passivo necessário. Competência do STF. Preliminar rejeitada. Aplicação dos arts. 46, I, e 47, caput,
do CPC, e do art. 102, I, ‘d’, da CF. O Presidente da República é litisconsorte passivo necessário em mandado de
segurança contra nomeação de juiz de Tribunal Regional do Trabalho, sendo a causa de competência do Supremo
Tribunal Federal. 3. Mandado de segurança. Caráter preventivo. Impetração contra iminente nomeação de juiz
para Tribunal Regional do Trabalho. Ato administrativo complexo. Decreto ainda não assinado pelo Presidente
da República. Decadência não consumada. Preliminar repelida. Em se tratando de mandado de segurança
preventivo contra iminente nomeação de juiz para Tribunal Regional do Trabalho, que é ato administrativo
complexo, cuja perfeição se dá apenas com o decreto do Presidente da República, só com a edição desse
principia a correr o prazo de decadência para impetração. 4. Magistrado. Promoção por merecimento. Vaga
única em Tribunal Regional Federal. Lista tríplice. Composição. Escolha entre três únicos juízes que cumprem
todos os requisitos constitucionais. Indicação de dois outros que não pertencem à primeira quinta parte da lista
de antiguidade. Recomposição dessa quinta parte na votação do segundo e terceiro nomes. Inadmissibilidade.
Não ocorrência de recusa, nem de impossibilidade do exercício do poder de escolha. Ofensa a direito líquido
e certo de juiz remanescente da primeira votação. Nulidade parcial da lista encaminhada ao Presidente da
República. Mandado de segurança concedido, em parte, para decretá-la. Inteligência do art. 93, II, ‘b’ e ‘d’,
da CF, e da interpretação fixada na ADI nº 581-DF. Ofende direito líquido e certo de magistrado que, sendo
um dos três únicos juízes com plenas condições constitucionais de promoção por merecimento, é preterido,
sem recusa em procedimento próprio e específico, por outros dois que não pertencem à primeira quinta parte
da lista de antiguidade, na composição de lista tríplice para o preenchimento de uma única vaga” (MS nº
24.414/DF – Relator Min. Cezar Peluso. J. 03.09.2003 – Tribunal Pleno. DJ, p. 00009, 21 nov. 2003. Ement.
vol 2133-03, p 00440). “Processual civil. Mandado de segurança. Concessão de serviço público. Interesse na
causa alegado pela união federal. Pedido de assistência (inadmissibilidade). Mostra-se correto o entendimento
firmado pelo v. Acórdão recorrido no sentido do descabimento de assistência no mandado de segurança,
tendo em vista o que dispõe o art. 19 da lei n. 1533/51, na redação dada pela lei n. 6701/74, que restringiu
a intervenção de terceiros no procedimento do writ ao instituto do litisconsórcio. Sendo parte ilegítima para
recorrer, como assistente, considera-se inexistente o recurso extraordinário interposto pela união federal. RE
não conhecido” (RE nº 111.778/SP. Relator Min. Célio Borja. J. em 08.09.1987. 2ª Turma. DJ, p. 23814, 30 out.
1987, Ement. vol-01480-03, p. 00646). “Processual civil. Mandado de segurança. Assistência. 1. A assistência
não cabe em mandado de segurança, por: a) o art. 19, da Lei 1533, referir-se, exclusivamente, à admissão de
litisconsórcio; b) o CPC, em face das dicções dos arts. 19 e 20, da Lei 1533, não é supletivo da lei que regula o
procedimento do mandado de segurança; c) a lei prevê procedimento específico para o mandado de segurança,
não cabendo ao intérprete ampliá-lo; d) a admissão de assistência em mandado de segurança cria obstáculo
para a consecução da celeridade imposta para o seu curso. 2. Precedentes jurisprudenciais pela não admissão:
RTJ 123/722/STF-RT 626/242; RDA 170/132; RSTJ 85/364; STJ RT 732/186; TFR – MAS 106.842, DJU 19.12.85,
AI 90.01.11636-1, DJU 24.9.90, P. 22.063, TRF – 1ª R; REO EM MS 8.851, DJU 12.9.95, P. 59.865 TRF 2ª R,
AI 94.04. 10.202.4, DJU 29.6.94, TRF – 4ª R; AI 44.240, DJU 19.11.82, p. 16.182, TFR; AI 90.01.024378,
DJU 1.10.90, P. 22.817, TRF, 1ª Reg. 3. Posição contrária de Sérgio Ferraz, Alfredo Buzaid e Hely Lopes, além
dos precedentes seguintes: AI 43.009, DJU 14.10.82, P. 10361, TFR; MS 90.01.03405-5, P. 22.060, TRF, 1ª
Região; AI 89.01.22703-7, DJU 12.2.90, P. 1726, TRF, 1ª Região; RE 78.620, RTJ 72/220; REsp 39.937-8,
DJU 5.6.95, P. 16.635, STJ. 4. Apanhado jurisprudencial da obra de Theotônio Negrão (Código de Processo
Civil....... 31ª edição) e de Sérgio Ferraz (Mandado de Segurança – aspectos polêmicos). 5. Agravo regimental
improvido” (AgRg no MS nº 5.690/DF. Rel. Min. Ministro José Delgado. 1ª seção. J. em 13.06.2001. DJ, p. 232,
24 set. 2001).
20
O precedente citado foi o acórdão lavrado pela 2ª Turma do STF, com o voto condutor do Ministro Célio Borja,
disponível em RTJ 123/722.
21
Manual do mandado de segurança. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 117.

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Variáveis acerca do cabimento de intervenção de terceiros no mandado de segurança 31

Antes de manifestar opinião favorável à assistência, mister afirmar


que referido instituto não provoca, sempre e sempre, tumulto no anda­
mento processual; ou, pelo menos, não gera maior ou menor tumulto
do que o havido em decorrência da determinação da citação dos litis­
consortes necessários.22
Ora, consoante já exposto, a citação de vários litisconsortes pas­
sivos também pode gerar atraso na tramitação do feito e nem por isso
é dispensável tal conduta, sob pena de gerar vício processual.
Realmente, a assistência é admitida em todos os tipos de procedi­
mentos (comum —sumário e ordinário, e especial), não se encontrando
razões para a interpretação restritiva ao art. 24 da LMS.23 E mais, não se
pode deixar de ratificar que a autoridade coatora, caso apresente recurso,
atuará na qualidade de terceiro,24 pelo que será espécie de assistência em
sede recursal.25 26
A rigor, não há maior delonga no andamento processual ao se aceitar
a assistência,27 inclusive em sede recursal. O incidente que poderá ocorrer,
22
Sérgio Ferraz também refuta os argumentos contrários à aceitação da assistência no mandado de segurança,
aduzindo que: “I – muito mais que a assistência, o litisconsórcio, sim, é suscetível de dilargar o rito da ação, e
nem assim foi aqui excluído. II – ademais disso, como realça o art. 50 do CPC, a assistência tem lugar em todos
os tipos de procedimento e todos os graus de jurisdição — sem exceção. E por sobre tudo isso paira a moldura
constitucional do mandado de segurança, que esteia sempre os parâmetros mais amplos, de realização dessa
garantia fundamental” (Mandado de segurança e acesso à justiça. In: BUENO, Cassio Scarpinella; ALVIM, Eduardo
Arruda; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 769).
23
Hely Lopes Meirelles defende que: “quanto ao assistente — já o dissemos —, pode ingressar nos autos a qualquer
tempo, com aquiescência das partes, recebendo o processo no estado em que estiver e manifestando-se sempre
na linha do assistido, pois não é parte na ação e não pode inovar a lide. Pode apenas reforçar a postulação
da parte a que assiste. Não se confunda, portanto, assistente com o litisconsorte, pois cada um tem situação
processual diferente na demanda” (Mandado de segurança, cit., p. 67). Também Cassio Scarpinella Bueno
manifesta-se sobre o cabimento da assistência no mandado de segurança, ao comentar o art. 19 da LMS. De
acordo com suas lições: “como quer que seja, muito menos pela literalidade do dispositivo e muito mais pela
natural aplicação subsidiária do Código de Processo Civil a toda e qualquer legislação processual extravagante
naquilo que não conflitar com sua especialidade, também o instituto da assistência tem aplicação no mandado
de segurança” (Mandado de segurança, cit., p. 150).
24
Humberto Theodoro Júnior também defende que: “o recurso do terceiro interessado apresenta-se como forma
ou modalidade de ‘intervenção de terceiro’ na fase recursal. Equivale à assistência, para todos os efeitos, inclusive
de competência” (Curso de direito processual civil. 40. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. 1, p. 507). Já
Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Ney expressamente defendem, nos comentários ao art. 499, §1º, do
CPC, que: “a norma regula, portanto, a legitimidade e o interesse recursal do terceiro prejudicado. O terceiro
prejudicado não é assistente” (Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante
em vigor. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 831).
25
Este recurso será fundado no art. 499, §1º, do CPC. In casu, a autoridade coatora recorre não na qualidade
de parte, mas de terceiro prejudicado, considerando que em decorrência da decisão no mandado de
segurança alguma consequência administrativa (v.g., instauração de processo disciplinar visando à apuração
da responsabilidade administrativa decorrente do mesmo ato objeto do mandamus) ou mesmo judicial (v.g.,
ação de regresso) pode lhe ser imputada.
26
Tal raciocínio não se aplica ao litisconsorte necessário não citado, que poderá recorrer (ou mesmo impetrar
outro MS) visando à declaração de nulidade processual, como já mencionado anteriormente.
27
No mesmo sentido, defende Athos Gusmão Carneiro: “não há, destarte, data venia, como sustentar o
entendimento de que a assistência seria instituto menos compatível com a natureza do mandado de segurança,
prejudicando sua simplicidade procedimental. Ao contrário, sem prejuízo da desejável rapidez em sua tramitação,

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32 José Henrique Mouta Araújo

mas que não deve ser considerado óbice a esta modalidade interventiva,
é o indeferimento do requerimento de assistência e eventual recurso
por parte do interessado (art. 51 do CPC).
Conclui-se observando que, se é admitida a assistência em sede
recursal (inclusive o recurso da própria autoridade coatora), não se vis­
lumbra óbice para admissão desta modalidade interventiva durante o
próprio procedimento originário do mandamus.
Destarte, ocorrendo hipótese enquadrável no art. 50 do CPC,
deve-se admitir o cabimento de assistência,28 não apenas durante o
seu procedimento originário, mas também em sede de recurso, pela
autoridade coatora,29 ou pelo assistente que intervém no feito desde (ou
a partir) da impetração.
Outro aspecto também complexo refere-se ao cabimento de in­
tervenção do amicus curiæ no mandado de segurança.
Como é sabido, esta forma de intervenção passou a ser mais
difundida na legislação brasileira a partir das alterações ocorridas na Lei
nº 6.385/1976, decorrentes da Lei nº 6.616/1978, passando a admitir
a intervenção da Comissão de Valores Mobiliários em processos indivi­ -
duais. Ela também é prevista nas ações de controle de constitucionali­ -
dade, nos incidentes de formação de Súmula Vinculante, de repercussão
geral, de recursos especiais repetitivos e mesmo nas hipóteses previstas
no art. 5º, parágrafo único, da Lei nº 9.469/97.

a aceitação da assistência virá, como o litisconsórcio, a ampliar a eficiência do writ como moderno instrumento
de busca da justiça” (Mandado de segurança: assistência e amicus curiae, cit., p. 218).
28
Edmir Netto de Araújo defende que: “é admissível também no mandado de segurança a figura da assistência
de órgão ou entidade, ou de interessado, para auxiliar o impetrado ou o impetrante, a qualquer tempo, em
princípio sem a extensão dos efeitos da sentença a esse interveniente. Naturalmente, para a admissão do
assistente, deve ser comprovado o legítimo interesse, mesmo que indireto, na decisão da lide” (Mandado de
segurança e autoridade coatora. São Paulo: LTr, 2000. p. 70).
29
Registra-se julgado de 1974 em que o STF entendeu o cabimento de assistência da pessoa jurídica de direito
público ao seu funcionário apontado como autoridade coatora. Esta é a decisão: “Mandado de segurança.
– Assistência. Pode a pessoa jurídica de direito público interior como assistente de seu funcionário, apontado
como coator em mandado de segurança. Recurso extraordinário conhecido e provido” (RE nº 78.620/GB
– Guanabara. Relator Min. Rodrigues Alckmin. J. em 20.09.1974. 1ª Turma. DJ, 11 out. 1974). Já no âmbito
do Superior Tribunal de Justiça, em precedente mais recente, admitiu a intervenção assistencial da pessoa
jurídica de direito público: “Mandado de segurança – Processual civil – Assistência – Legitimidade para apelar
– lei 1.533/51 (art. 19). 1. Embora regido por lei especial, ao processo do mandado de segurança aplicam-
se os dispositivos do Código de Processo Civil versando o litisconsórcio e a assistência (art. 19, lei 1.533/51;
arts. 46 a 55, CPC). A pessoa jurídica de direito público pode intervir como assistente. 2. A legitimidade para
recorrer cabe a pessoa jurídica de direito público e não a autoridade coatora. No caso, a fazenda estadual
não tem a representação judicial da pessoa jurídica de direito público, representada pela procuradoria geral
do estado. 3. Admissão da fazenda estadual, como assistente, sem obediência ao incidental procedimento de
impugnação (art. 51, CPC), viciando o processamento da sua apelação e do conseqüente recurso especial. 4.
Recurso não conhecido” (REsp. nº 39.937/.SP – 1ª Turma. Rel. Ministro Milton Luiz Pereira. J. em 17.05.1995.
DJ, p. 16635, 05 jun. 1995).

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 23-34, out./dez. 2010
Variáveis acerca do cabimento de intervenção de terceiros no mandado de segurança 33

Contudo, em sede de mandado de segurança o assunto não detém


unanimidade. O STF já decidiu que:

Agravo regimental. Suspensão de segurança. Assistência. Amicus curiae. Desca­


bimento. 1. Consolidação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no
sentido de não ser admissível assistência em mandado de segurança, porquanto
o art. 19 da Lei 1.533/51, na redação dada pela Lei 6.071/74, restringiu a
intervenção de terceiros no procedimento do writ ao instituto do litisconsórcio.
2. Descabimento de assistência em suspensão de segurança, que é apenas uma
medida de contracautela, sob pena de desvirtuamento do arcabouço normativo
que disciplina e norteia o instituto da suspensão (Leis 4.348/64, 8.437/92 e
9.494/97). 3. Pedido de participação em suspensão na qualidade de amicus curiae
que não foi objeto da decisão ora agravada, além de ser manifestamente incabível.
4. Agravo regimental improvido. (SS-AgR-segundo/RJ – Rel. Min. Ellen Gracie.
DJE, 19 jun. 2008, public. 20.06.2008, Ement. vol-02324-02, p-00234)

Não se pode negar que a especialidade do procedimento pode


significar entrave à aceitação das formas de intervenção de terceiros.
Contudo, assim como se defende cabível assistência no mandado de segu­
rança, também não se vislumbra qualquer impedimento à aceitação do
amicus curiae, levando em conta seu papel jurídico e o interesse público
que normalmente fundamenta seu pedido de intervenção.
Ademais, acredita-se que não haverá grande tumulto processual na
sua admissão.30 Talvez, em algum caso concreto, haja a necessidade de
limitação de intervenção, mas não a sua total proibição.
Contudo, deve o magistrado ter a cautela de analisar a pretensão
daquele que pretende intervir: se visa esclarecer ponto crucial dos debates
ou ampliar a dilação probatória, o que é vedado em sede mandamental,
há de ser indeferida a intervenção, exatamente pela restrição cognitiva
do procedimento. Por outro lado, se pretende efetivamente esclarecer
aspecto relevante da discussão, não se vislumbra qualquer impedimento;31
30
Athos Gusmão Carneiro também observa que: “embora forte corrente jurisprudencial ainda considere incabível
qualquer modalidade de intervenção de terceiro na ação de mandado de segurança, as mais ponderáveis razões
jurídicas e pragmáticas indicam, neste momento em que o Direito busca a eficiência no processo, capacitando-
o à justa resolução da lide com base em um contraditório amplo, a necessidade de abandonar a orientação
restritiva e, assim, permitir que o terceiro interessado, máxime um Sindicato, possa intervir no processo do
mandamus quer como assistente litisconsorcial, quer em assistência simples, quer, quiçá, se a demanda versar
matéria de interesse público, na qualidade de amicus ciriae” (Mandado de segurança: assistência e amicus
curiae. Revista de Processo, São Paulo, n. 112, p. 219, 2003).
31
Cassio Scarpinella Bueno ensina que: “se o intuito da pessoa jurídica for o de expandir a convicção judicial com
base na necessária produção de provas, certamente seu ingresso será indeferido. Não por se tratar da intervenção
de um terceiro ou de um amicus ciriae, entretanto. Mas, bem diferentemente, porque o procedimento especial
do mandado de segurança não comporta dilação probatória. No entanto, caso o ingresso da pessoa jurídica
de direito público justifique-se apenas para o esclarecimento de questão de fato ou de direito já posta no
mandado de segurança e que não enseja qualquer dilação probatória, não há por que negar, com base nesse

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 23-34, out./dez. 2010
34 José Henrique Mouta Araújo

pelo contrário, deve-se prestigiar esta modalidade de intervenção e de


esclarecimento de aspectos afetos à especialidade do interveniente.
Enfim, trata-se de análise situacional. O caso concreto irá indicar
a possibilidade ou não de intervenção do amicus curiae, não parecendo
razoável vedar abstratamente esta modalidade de intervenção no
procedimento mandamental.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

ARAÚJO, José Henrique Mouta. Variáveis acerca do cabimento de intervenção de terceiros


no mandado de segurança. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo
Horizonte, ano 18, n. 72, p. 23-34, out./dez. 2010.

fundamento ao menos, a intervenção” (Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São
Paulo: Saraiva, 2006. p. 601).

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 23-34, out./dez. 2010
Direito Processual e democracia 35

Direito Processual e democracia1


André Del Negri
Professor de Teoria da Constituição e Direito Constitucional.

Resumo: Este artigo busca demonstrar que, apesar de a teoria da relação


processual de Oscar von Bülow ter sobrevivido ao fascismo, nazismo e
à ditadura brasileira, estaria em completo desacordo por não conseguir
adaptar-se à Democracia e às denúncias crítico-reflexivas da teoria neo­
institucio­nalista do processo, a ponto de perder a velha forma de violência
pela proposta de sujeição das partes processuais ao decisionismo verticalista
de um Estado totalitário.
Palavras-chave: Decisão. Estado totalitário.
Sumário: 1 Abertura temática – 2 Falando de decisão e totalitarismo – 2.1
Teorias do Processo e totalitarismo – 3 Direito Processual como espaço-
discursivo assegurador de garantias constitucionalmente fundamentais
– Referências

1 Abertura temática
Decisão e totalitarismo — os dois maiores assuntos impregnados de
tirania ao longo da história da humanidade — nunca foram esquecidos.
Ao contrário, foram (e ainda são) objetos de vários estudos e pesquisas.
Do ponto de vista historiográfico, há versões básicas de como a magis­
tratura usou e abusou do discurso de autoridade. Embora a acusação
pareça excessiva, o acúmulo de fatos, em detrimento da análise, não deixa
dúvida de que a magistratura apoiou-se em algumas teorias autoritárias.
Como diz Elpídio Nunes, “há de haver uma forte justificativa histórica
para que, em pleno século XXI, ainda visualizemos a jurisdição como
um espírito divino, que desceu a Terra e aqui se incorporou na pessoa
do juiz.”2
Todo esse leque temático está cada vez mais visível a partir da
teoria da relação processual, de Oscar von Bülow, que trouxe à tona um
retrato de como o Direito Processual pode ser usado nas ditaduras para
atingir os seus fins. Contudo, a comentada teoria ainda é revitalizada na

1
Dedico este artigo ao Prof. Dr. Rosemiro Pereira Leal, a quem devo tanto em matéria de aprendizado, porque
me fez descobrir o alcance do compartilhamento decisório do qual já fiz uso tão fecundo nas minhas pesquisas
no recinto do Direito Constitucional. Certamente, as minhas produções teóricas não teriam se tornado reais
sem essa grande referência que é a teoria neoinstitucionalista do processo. Presta-se homenagem também
a André Leal, que desempenhou um papel de primeiro plano em importante tese de doutoramento, o que
permitiu sepultar, de vez, a teoria da relação jurídica bülowiana.
2
NUNES, Elpídio Donizetti. Jurisdição, judicação e tutela legal na teoria do processo contemporâneo. In: LEAL,
Rosemiro Pereira. Estudos continuados de teoria do processo. Porto Alegre: Síntese, 2001. v. 2, p. 237.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 35-43, out./dez. 2010
36 André Del Negri

contemporaneidade. Como se vê, em terreno tão mal desbastado, não


é fortuito que as ervas daninhas voltem a crescer, para desespero dos
democratas. Por isso, a importância de estudos que lidem com teorias
processuais com esteio constitucional-democrático. Com relação a isso,
não temos do que duvidar.

2 Falando de decisão e totalitarismo


Se contemporaneamente o poder emana do povo (parágrafo único
do art. 1º CB/88), sabe-se que no início de Roma o poder emanava dos
deuses. Com o passar do tempo, esse direito romano (impróprio) escor­
reu entre as teorias, livros, decisões. Muitos injetaram essas alegorias no
ensino jurídico, dando origem a inflamações dolorosas, desfigurantes,
difíceis de debelar. Às vezes, é impressionante a atualidade de Roma
no Direito atual.
De todas as distorções teórico-jurídicas, a mais pérfida é a que ligou
a magistratura ao autoritarismo. Se fosse possível juntar todas as fases
da magistratura, desde a conhecida “legis actiones”, etapa onde o juiz,
no ato de decidir, tinha a livre convicção em medida plena, passando
pelo período do procedimento “per formulas”, onde o juiz “era esco­lhido,
como nas ‘legis actiones’, pelas partes, de comum acordo,”3 teríamos um
diagnóstico virulento que até a imaginação mais tacanha seria capaz de
repudiar. Apesar da diversidade de etapas, o ato de decidir (monarcal
e tirânico) tem em comum dois pontos: a função jurisdicional como
forma sucessora de um sacerdócio e a jurisdição dos juízes romanos como
um misto de atribuições administrativas e legislativas. Em ambiente
tão hostil, a indivisibilidade do poder, em Roma, fez com que as funções
estatais fossem postas na pessoa do magistrado, que tinha a faculdade
de legislar através dos editos.4
O autoritarismo é tão velho quanto a humanidade. Sempre existiu
uma minoria de homens aptos a julgar os outros. No feudalismo tudo
gravitava em torno da figura de um barão, que em linguagem-consciência-
existência era, ao mesmo tempo, juiz e legislador. Por sua vez, a expressão
due process (herança da Magna Charta Libertatum outorgada por João
Sem Terra, em 1215, e da Carta de Henrique III, de 1225, na Grã-
Bretanha), tinha como objetivo proteger privilégios, que, aliás, por muito

3
VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 18.
4
CRUZ E TUCCI, José Rogério; AZEVEDO, Luiz Carlos de. Lições de história do processo civil romano. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1996.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 35-43, out./dez. 2010
Direito Processual e democracia 37

tempo, foram confundidos com liberdades. São essas considerações, a


nosso ver, que interessam ao estudo do Direito Processual e Democracia.

2.1 Teorias do Processo e totalitarismo


A linha de passe do feudalismo para o Estado Liberal (Estado
burguês) trouxe pouca modificação. É sabido que a revolta contra a
tirania do monarca fez eclodir a Revolução Francesa, que resultou na
famosa Déclaration. Num cenário de ideias tão proeminentes, várias teo­-
rias surgiram a partir do seguinte refrão: “o Estado deve respeitar a
liberdade do particular”.
Merece reflexão o caráter individualista dessa época porque fez
nascer a história do direito privado,5 o que possibilitou o surgimento de
teorias processuais como a do processo como contrato (1800) e a do processo
como quase-contrato (1850). Por não destacarem a autonomia do direito
processual fora do ramo do direito privado, ambas são consideradas
“replicadoras”. Retoma-se, aqui, a linha de raciocínio de Franz Wieaker,6
“que os poderes das partes sobre a matéria do processo (princípio do
dispositivo) correspondiam ao ideal da autonomia privada no domí­ nio
do direito substantivo, nomeadamente à liberdade contratual”. Além
do mais, essas teorias do processo (contrato e quase-contrato) eram in­
suficientes para explicar a atuação de dominação dos juízes frente às
partes processuais, vistas, apenas, como destinatárias (espectadores),
jamais protagonistas.
Num outro giro, a teoria do processo, como relação jurídica,
desenvolvida por Oscar von Bülow, em 1868,7 destacou a autonomia do
direito processual em relação ao direito material. Não é demais advertir
que Bülow resgatou a teoria de Búlgaro do século XI ( judicium est actum
trium personarum: judiciaus, actoris et rei). A teoria bülowiana construiu-
se sobre a ideia de “um enlace normativo entre duas pessoas, das quais
uma pode exigir da outra o cumprimento de um dever jurídico”.8 Ora,
é lançar os olhos à história e perceber, com Franz Wieaker, que “o enlace
normativo entre duas pessoas” tem acentuada carga privatística, mas,
agora, com o acréscimo de mais um elemento, o Estado-Juiz. Alguns

5
WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980.
6
WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980. p. 532.
7
BÜLOW, Oscar von. La teoría de las excepciones procesales y los presupuetos procesales. Buenos Aires: Ediciones
Jurídicas Europa-América, 1964.
8
GONÇALVES. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: AIDE, 1992. p. 73-74.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 35-43, out./dez. 2010
38 André Del Negri

alunos de Bülow representaram essa teoria por meio de gráficos. A


representação triangular de Wach propagou-se fugazmente. De acordo
com essa representação, a relação jurídico-processual é idealizada por
um triângulo que liga o Estado-juiz às partes; na parte superior figura
o juiz, e, na base do triângulo, autor e réu em situação de sujeição.
André Leal, em tese de doutoramento9 de extraordinária impor­
tância sobre o paradoxo de Bülow (pesquisa depois publicada com o nome
de “Instrumentalidade do processo em crise”),10 concluiu que é somente
com a leitura de Gesetz und Richteramt (Lei e Magistratura), livro de 1885,
que se compreendem amplamente as cogitações de Bülow. Ao tratar do
tema, o referido professor afirma que “o Processo de Bülow fora conce­
bido não como meio de controle judicial, mas como técnica de atuação
de juízes ao reforço de convicções nacionais alemãs”.11 Dada, entretanto,
sua disposição, como visto, acrescenta-se, com apoio no trabalho do citado
processualista mineiro, que, além de sugestão teórica e acadê­­ mica, a
obra tinha objetivos de codificação processual civil para a Confederação
Alemã do Norte (CPC para a Prússia), o que daria fundamento teórico
de aumentar o poder do Estado, dos juízes e dos tribunais.12
Salienta-se que essas distinções e definições não são apenas
questões de interesse acadêmico. É cada vez mais importante compre­
endermos quais foram as teorias utilizadas pelas ditaduras no campo
do direito processual.
Figure-se que, a partir de 1917-19, o mundo começou a reescrever
as suas Constituições. Fundou-se o Estado Social ao suposto de estimular
o crescimento e o desenvolvimento das inúmeras atividades públicas
(saúde, educação, cultura, família, previdência social...). Cabe uma nova
observação: nesse paradigma o juiz era o guardião do Direito e o Judi­
ciário passou a assumir um dos papéis centrais na sociedade, ao lado do
Executivo. Destaque-se que isso levou “ao entendimento de que ao juiz,
representando um Estado preocupado com o bem-estar coletivo, caberia

9
LEAL, André Cordeiro. Processo e jurisdição no Estado democrático de direito: reconstrução da jurisdição a partir
do direito processual democrático. 2006. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade
Mineira de Direito – PUC, Belo Horizonte, 2006.
10
LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008 (Faculdade
de Ciências Humanas – FUMEC).
11
LEAL, André Cordeiro. Processo e jurisdição no Estado democrático de direito: reconstrução da jurisdição a
partir do direito processual democrático, f. 18. Cf. LEAL. Instrumentalidade do processo em crise.
12
LEAL, André Cordeiro. Processo e jurisdição no Estado democrático de direito: reconstrução da jurisdição a partir
do direito processual democrático. 2006. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade
Mineira de Direito – PUC, Belo Horizonte, 2006. f. 32.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 35-43, out./dez. 2010
Direito Processual e democracia 39

impor seu conhecimento e senso de justiça para corrigir as agruras dos


desequilíbrios sociais, ainda que tal implicasse inobservância dos textos
legais”13 (de novo a referência a André Leal). E já se ajunta o surgimento
das ditaduras, em que o fortalecimento dos poderes dos juízes se adian­
tava em colocar nas mãos do magistrado a ideia de processo como instrumento
da jurisdição. Não se dá entre nós que os problemas amenizaram. O que
se dá, ao reverso, é que o processo centrado na pessoa física do juiz trouxe
contradição institucional gravíssima. Confiado ao magistrado, o processo
adquire perigosa carga ideológica (paz social, bem comum, fins sociais,
bom senso, justiça pública...). A partir daí, as lacunas da lei passam a ser
colmatadas pelo juiz que cria o direito, o que coloca as partes processuais
na condição de meros espectadores e o decididor a elevar-se a um grau
de magnanimidade apenas inferior ao dos anjos.
É sabido que esses acontecimentos chegaram ao Brasil. Tradicio­
nalmente se aponta a Constituição imperial e sua precária organização
judiciária (magistratura vinculada aos latifundiários) como a origem
dos problemas. Retenha-se, inclusive, que pouco se resolveu com o advento
da República (1889). O fato é que os problemas ainda continuaram, mesmo
com o primeiro Código de Processo Civil Brasileiro em 1939, o qual foi
organizado em meio ao sistema autoritário do Estado Novo (1937-45).
Posta essa referência, adicione-se outra: a passagem do Código de
1939 para o de 1973 (de autoria de Alfredo Buzaid, discípulo da escola
alemã do processo como instrumento da jurisdição do Estado-juiz), teorica­mente
nada inova. Abra-se um parêntese: o CPC de 1973 foi legislado na vigên­
cia do AI-5 que, em linhas gerais, foi um instrumento que revogou boa
parte dos direitos civis e políticos no Brasil, e, como é sabido, atrocidades
foram cometidas, uma vez que pessoas que se rebelaram contra a ordem
estabelecida sofreram perseguições; foram torturadas, mortas...
Depois de submeter essa noção teórica ao crivo da crítica científica,
André Leal14 esclarece que a teoria de Bülow foi, na verdade, uma
técnica que reforçou as convicções nacionais alemãs no período nazista
(valores sociais e políticos da nação). Vê-se, pois, a origem nociva dessa
teoria arbitrária de poder (processo como instrumento a serviço do Estado)
que o Brasil se influenciou. Sabemos que as teorias são abandonadas ou
13
LEAL, André. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2002. p. 28.
14
LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008 (Faculdade
de Ciências Humanas – FUMEC).

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 35-43, out./dez. 2010
40 André Del Negri

radicalmente transformadas após refutações, dando origem a outras


teorias menos equivocadas, que continuarão sendo submetidas a novas
avaliações críticas (Karl Popper).15 Assim, a teoria da relação jurídica
hoje teria pouca importância, se não tivesse alguns empedernidos admi­
radores, inclusive no Brasil. O ponto alto dessas conjecturas veio com o
italiano Elio Fazzalari,16 que abriu as portas da ciência processual para
o mundo com a forma singular que tratou o contraditório no estudo do
processo. Neste ponto de sua análise, só há processo quando no segmento
de formação de um provimento existe contraditório. Sua conclusão, por­
tanto, é bastante contundente ao colocar que “processo” é o procedimento
realizado em contraditório entre as partes. Em contrapartida, o provimento
final (sentença) ao ser preparado pelas “partes”, afasta a posição domi­
nante do juiz como propunham as antigas teorias de relação entre pes­
soas (contrato, quase-contrato, relação jurídica...). Assim, depois da
diferença fazzalariana entre processo (espécie de procedimento realizado
em contraditório entre as partes em simétrica paridade) e procedimento
(estrutura técnica de atos jurídicos sequenciais, segundo modelo legal,
“numa relação espácio-temporal,”17 em que o primeiro ato é pressu­posto
do ato seguinte, e, este, por sua vez, é considerado extensão do ato ante­
cedente até o provimento final), o Direito Processual nunca mais foi o
mesmo, pois Fazzalari utiliza as garantias fundamentais (contraditório
e simétrica paridade) como fatores diferenciais (o que outras Escolas,
até então, não tinham conseguido). Tem de aplaudir mais um destaque
fazzalariano: note-se que o procedimento ao se desenvolver “numa relação
espácio-temporal” privilegia o instituto jurídico da preclusão, outra pedra
de toque do procedimento.
Os esforços do processualista italiano, até aí empreendidos, des­
tacaram verdadeiras revoluções conceituais no âmbito do Direito Pro­
cessual. Porém, no momento mesmo em que explicita esse afastamento
da figura do juiz na preparação do provimento final, Fazzalari cai num
paradoxo:

... Os provimentos jurisdicionais em sentido estrito consistem em “ordens” que


o juiz dirige às partes e que produzem diretamente efeito em seu patrimônio
(...). Assim, o provimento (jurisdicional) civil de “condenação” é uma “ordem”,

15
POPPER, Karl. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.
16
FAZZALARI, Elio. Processo-teoria generale. In: Novissimo digesto italiano. Turim: Uter, 1966. v. 13, p. 1072.
“[...] quando no segmento de formação de um provimento, existe contraditório [...]” (Tradução livre).
17
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 94.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 35-43, out./dez. 2010
Direito Processual e democracia 41

dirigida pelo juiz a um dos litigantes, para que este dê ou faça algo em prol
do outro.18 (grifei)

Por isso é que André Leal vai dizer que o paradoxo de Bülow foi
parcialmente superado por Fazzalari, uma vez que o eixo da jurisdição,
para o processualista italiano, ainda está centrado na figura do julgador
(Estado-juiz/poder dos juízes), o que resgata resquícios das “represe­ n­
-
ta­­
ções gráficas da relação jurídica de Bülow propostas por Wach e
Hellwing”.19 Em consequência, depois de submeter a referida teoria ao
crivo da crítica científica, André Leal respalda-se na teoria neoinstituciona­
lista do processo, de Rosemiro Leal,20 a qual mostra-se mais adequada ao
Direito Democrático.

3 Direito Processual como espaço-discursivo assegurador de garantias


constitucionalmente fundamentais
As sociedades totalitárias são avessas ao debate. Silenciam o discurso
dos atores sociais, tanto quanto. Em face dessa não possibilidade de
manifestar opinião, o outro é anulado. Por isso, a importância de estudos
que buscam a emancipação dos indivíduos num contexto que privilegie
a pluralidade de vozes e de visões de mundo. Daí a importância da teoria
da democracia, das soluções legítimas para os problemas sociais, da “inclu­
são do outro,” da contestação da racionalidade, das “sociedades abertas”,
de uma razão dialogal, e não subjetiva, de decisões compartilhadas e
não solitárias. É dessa forma que o princípio do discurso se transforma
em democracia, e eu não gostaria de encerrar esse tópico sem fazer
alusão clara à importância da teoria neoinstitucionalista do processo na
democracia. Aí está o ponto.
Em meio a esse arrazoado de argumentos, aquilo que foi validado em
parlamento deve ser legitimado pelo estudo crítico. É nessa possibilidade
de levantamento do discurso de pretensão de verdade, veracidade e
correção normativa, que poderemos trabalhar a legitimidade do Direito,
a democratização dele.

18
FAZZALARI, Elio. Istituzioni de diritto processuale, p. 364. “I provvedmenti giurisdizionali consistono in
‘comandi’ Che il giudice rivolge alle parti e Che svolgono direttamente efficacia nel loro patrimônio [...] Cosi,
il provvedimento (giurisdizionale) civile di ‘codanna’ é um ‘comando’, rivolto dal giudice ad uno dei litiganti,
perché questi dia o faccia alcunché a favore dell’altro.”
19
LEAL, André Cordeiro. Processo e jurisdição no Estado democrático de direito: reconstrução da jurisdição a partir
do Direito Processual Democrático. 2006. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade
Mineira de Direito – PUC, Belo Horizonte, 2006. f. 96.
20
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 35-43, out./dez. 2010
42 André Del Negri

Para tanto, a partir do momento em que o projeto de construção


de uma sociedade democrática passa por uma revisitação-fiscaliza­ ção
permanente, como forma de integração social (Habermas), o princípio
21

do discurso necessariamente tem que ser assegurado pelo Direito, em


especial, no nosso estudo, pelo Direto Processual Constitucional (recinto
que garante a isonomia argumentativa ampla e simultânea).

Résumé: Cet article cherche démontrer que malgré de la théorie de la


relation processive de Oscar von Bülow avoir survécu au fascisme, nazisme
et a la dictature brésilienne, serait dans complète désaccord ne pas réussir
a s’adapter a la Démocratie et aux dénonciations des crítico-reflexivas de la
théorie neo-institucionalist de la procédure, a tel point que perdre la vieille
forme de violence par la proposition de sujétion des parties processives la
decisionism verticalist d’un État totalitaire.
Mots clef: Décision. État totalitaire.

Referências

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Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1964.
CRUZ E TUCCI, José Rogério; AZEVEDO, Luiz Carlos de. Lições de história do processo civil
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GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: AIDE,
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HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro:
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LEAL, André. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual democrático.
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contemporâneo. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Estudos continuados de teoria do processo. Porto
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POPPER, Karl. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Belo Horizonte:
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VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

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Direito Processual e democracia 43

WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1980.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


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NEGRI, André Del. Direito processual e democracia. Revista Brasileira de Direito Processual
– RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 35-43, out./dez. 2010.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 35-43, out./dez. 2010
O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 45

O conteúdo da causa de pedir no


processo civil brasileiro e o Projeto
de Novo CPC
Felipe Scripes Wladeck
Advogado em Curitiba e São Paulo. Mestrando em Direito Processual Civil pela USP. Membro do
Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

Resumo: O estudo versa sobre o conteúdo da causa de pedir no direito


processual civil brasileiro. Demonstra-se que o CPC adota a “teoria da
substanciação”, ao estabelecer a necessidade de o autor indicar os fatos
constitutivos do direito alegado (seja qual for a sua natureza, “relativo” ou
“absoluto”) já na inicial e, ademais, ao prever limitações para a modificação
desses fatos no curso do processo. Essa conclusão não será afetada caso o
Projeto de Novo CPC (Projeto de Lei do Senado nº 166/2010) venha a ser
aprovado e sancionado tal como apresentado ao Congresso Nacional.
Palavras-chave: Conteúdo da causa de pedir. Direito processual civil brasileiro.
Teoria da substanciação e teoria da individuação. Projeto de Novo CPC.
Sumário: 1 Introdução – 1.1 Definição de causa de pedir – 1.2 Importância
da exata definição do conteúdo da causa de pedir – 1.3 O objeto dos
próximos itens – 2 As duas teorias clássicas a respeito do conteúdo da
causa de pedir – 2.1 A teoria da individuação (ou individualização) – 2.1.1
A causa de pedir nas demandas autodeterminadas – 2.1.2 A causa de
pedir nas demandas heterodeterminadas – 2.2 A teoria da substanciação
– 2.3 Distanciamento/aproximação entre as teorias da substanciação e da
individuação – 2.3.1 Distanciamento entre as teorias da substanciação e da
individuação em se tratando de direitos autodeterminados – 2.3.2 Consenso
entre as teorias da substanciação e da individuação em se tratando de direitos
heterodeterminados – 2.3.3 Consenso entre as teorias da substanciação e da
individuação também quanto ao conteúdo da causa de pedir passiva – 2.4
Os resultados práticos da adoção de cada uma das teorias – 3 Fixação de
conceitos (à luz do direito processual civil brasileiro) – 3.1 Fundamentação
jurídica (causa de pedir próxima ou imediata) e fundamentação fática
(causa de pedir remota ou mediata) – 3.2 Fundamento legal – 3.3 Nomen
juris (qualificação jurídica do fato) – 3.4 Ainda sobre a causa de pedir
remota (fundamentação fática) – 3.4.1 Fatos principais (essenciais, jurídicos
ou jurígenos) e fatos secundários (acessórios ou simples) – 3.4.2 Fatos
constitutivos e fatos violadores ou ameaçadores do direito – E a causa de
pedir passiva nas ações necessárias – 3.4.2.1 Causa de pedir ativa e causa de
pedir remota ativa – 3.4.2.2 Conteúdo da causa de pedir passiva: consenso
entre as teorias da individuação e da substanciação – 3.4.3 Causas de pedir
remota simples, composta e complexa – 4 O conteúdo da causa de pedir
no processo civil brasileiro – 4.1 Ressalva inicial: a definição do conteúdo
da causa de pedir consiste em questão de política legislativa – 4.2 O art.
282, inciso III, do CPC traz regra “tradicional” na legislação brasileira (os
Códigos de Processo Civil estaduais e o art. 158, inciso III, do CPC de 1939) –

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46 Felipe Scripes Wladeck

4.3 Composição mista da causa de pedir – 4.3.1 Necessidade de expor os


fatos principais e a fundamentação jurídica na inicial, de forma clara e precisa
– 4.3.2 A inépcia da inicial na falta da causa de pedir – 4.4 Elementos que
não integram a causa de pedir – 4.5 Restrições legais à causa de pedir – 4.6
Estabilização da causa de pedir – 4.6.1 As restrições do art. 264, caput, do
CPC se aplicam apenas aos fundamentos de fato – 4.6.2 O art. 264, caput,
do CPC não se aplica em relação a fatos “secundários” – 4.6.3 Os limites do
parágrafo único do art. 264 do CPC – 4.6.4 Síntese sobre os arts. 264 e 294
do CPC – 4.6.5 A adequada compreensão do art. 462 do CPC no contexto
das regras sobre estabilização da demanda – 4.6.6 A excepcional admissão
da alteração da causa de pedir (remota) fora dos limites dos arts. 264 e 294
do CPC – 4.7 A opção do legislador brasileiro pela regra da eventualidade
– 4.8 Qual, então, a teoria adotada no processo civil brasileiro quanto ao
conteúdo da causa de pedir? – 4.8.1 No processo civil brasileiro não se adota
a teoria da “individuação” – 4.8.2 A maioria absoluta da doutrina entende
que o CPC encampa a teoria da “substanciação” – 5 As regras do Projeto de
Novo CPC a respeito da causa de pedir – 6 Considerações finais

1 Introdução
Segundo conhecida lição de Enrico Tullio Liebman,1 difundida
entre os processualistas brasileiros por Cândido Rangel Dinamarco:
“Toda demanda deduzida em juízo como ato inicial de um processo traz
em si a soma de duas pretensões, ou seja, de duas aspirações que o de­
mandante apresenta ao juiz em busca de reconhecimento e satisfação.”2
De um lado, há a pretensão ao bem da vida, que é anterior ao
processo jurisdicional. Este é justamente a via de que o interessado
dispõe para pedir o reconhecimento e satisfação de seu direito sobre o
bem, nos casos em que tal reconhecimento e satisfação não se deram
extrajudicialmente ou, então, nos casos em que apenas podem se dar
judicialmente (casos de “jurisdição necessária”, conforme exposto na nota
6 e item 3.4.2). Tal pretensão ao bem da vida, trazida ao processo para
o fim de ser reconhecida e satisfeita, é o que se chama de mérito da causa.
De outro lado, há a pretensão a um provimento jurisdicional
a respeito da pretensão ao bem da vida, i.e., a pretensão a uma provi­-
dên­cia do juiz que tenha o condão de garantir o acesso do interessado
ao bem da vida. A apreciação dessa pretensão antecede logicamente a
apreciação da pretensão ao bem da vida, ou seja, antecede o julgamento
do mérito da causa.

LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Tradução e notas de Cândido Rangel Dinamarco. 3.
1

ed. São Paulo: Malheiros, 2005. v. 1, p. 251.


DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de sentença. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 38.
2

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 47

O sujeito que vai a juízo deve, portanto, ter, primeiramente,


direito a um julgamento de mérito. Tal direito existirá desde que preen­
chidos determinados requisitos definidos pelo legislador. Trata-se dos
chamados “pressupostos de admissibilidade do julgamento de mérito”,
que compreendem basicamente as condições da ação e os pressupostos
processuais — incluindo os pressupostos de desenvolvimento válido e
regular do processo.
O direito a um julgamento sobre o mérito não se confunde com
o direito a um julgamento de mérito favorável. Para que o demandante
possa ter sua pretensão ao bem da vida reconhecida e satisfeita, ou
seja, para que receba um julgamento de mérito favorável, não lhe basta
preencher os pressupostos de admissibilidade do julgamento de mérito.
É preciso que ele detenha (e comprove deter) direito sobre o próprio bem
da vida descrito na inicial.
Evidencia-se, assim, o caráter bifronte de toda demanda inicial de
processo jurisdicional, “... por resolver-se na dedução das duas pretensões
e pedido de satisfação de ambas, a saber: a) satisfação da pretensão ao
julgamento do mérito, pela simples prolação do provimento jurisdicio­
nal pretendido, sendo esse o chamado pedido imediato; b) satisfação
da pretensão ao bem da vida, mediante a outorga da tutela jurisdicional
querida pelo demandante (procedência da demanda — pedido mediato).”3
A mesma lição pode ser encontrada, v.g., na obra de Giovanni Verde,
Crisanto Mandrioli, Girolamo Monteleone e Aldo Attardi.4

1.1 Definição de causa de pedir


Como se disse, para a efetiva obtenção da tutela jurisdicional,
não basta simplesmente afirmar uma determinada pretensão. É impres­
cindível que o demandante demonstre ter — em face do demandado,
parte da relação de direito material trazida a juízo — direito ao bem
da vida sobre o qual recai a pretensão deduzida. Cabe-lhe, outrossim,
demonstrar que a tutela jurisdicional faz-se cogente ao reconhecimento
e satisfação dessa sua pretensão — seja em razão da resistência a ela

Ibid., p. 39-40.
3

VERDE, Giovanni. Profili del processo civile: parte generale. 2. ed. Napoli: Jovene, 1988. v. 1, p. 134; MANDRIOLI,
4

Crisanto. Corso di diritto processuale civile: nozioni introduttive e disposizioni generali. Torino: G. Giappichelli,
2000. (Editio minor). v. 1, p. 102-103; MONTELEONE, Girolamo. Diritto processuale civile. 3. ed. Padova:
Cedam, 2002. p. 191-192; ATTARDI, Aldo. Diritto processuale civile: parte generale. Padova: Cedam, 1994. v.
1, p. 124.

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48 Felipe Scripes Wladeck

oposta pelo demandado no plano extrajudicial, seja em razão da mera


impossibilidade (decorrente da lei) de atuá-la espontaneamente.5 6
Trata-se das razões ou fundamentos do pedido, que compõem a causa
de pedir. Portanto, em fórmula simples e direta, a causa de pedir consiste
no motivo pelo qual o demandante traz a juízo a sua pretensão a determinado bem
da vida, para que seja reconhecida e satisfeita mediante um provimento judicial.
Nas palavras de José Rogério Cruz e Tucci, causa de pedir é o “... meio
pelo qual o demandante introduz o seu direito subjetivo (substancial)
no processo” em busca de sua efetivação.7

1.2 Importância da exata definição do conteúdo da causa de pedir


Ao lado do pedido, a causa de pedir delimita, sob o prisma objetivo,
o âmbito da atuação jurisdicional. Conforme ensina José Roberto dos
Santos Bedaque: “... em face de regras infraconstitucionais, provocada a
atividade jurisdicional, o provimento deve ater-se aos limites da deman­
da, segundo determinam outras normas processuais e que correspon­­dem
ao chamado princípio da correlação, da congruência ou da adstrição
(CPC, arts. 128, 459 e 460). À luz desses dispositivos, portanto, está o
juiz objetivamente limitado aos elementos da demanda deduzidos pelo
autor na inicial. O pedido formulado e os motivos deduzidos pelo autor
representam o âmbito de atuação do julgador. Não pode ele conceder
mais ou coisa diversa da pretendida, nem apresentar razões diferentes
daquelas apresentadas. (...) Tais regras decorrem diretamente do prin­­cípio
da demanda e da inércia da jurisdição. Na medida em que se admitisse

5
Quando uma das partes da relação de direito material resiste a pretensão da outra a determinado bem da vida,
tem-se o que Francesco Carnelutti chamou de “lide” [CARNELUTTI, Francesco. Lezioni di diritto processuale civile.
Pádua: Cedam, 1986. (Ed. fac-símile da edição de 1926). v. 1, p. 130]. Sendo vedada, como regra, a autotutela
no ordenamento brasileiro, o recurso ao Poder Judiciário torna-se necessário para solucionar a lide.
6
Já quando o reconhecimento e satisfação da pretensão simplesmente não podem se dar espontaneamente,
exigindo-se para tanto a tutela jurisdicional, tem-se a chamada “jurisdição necessária”: apenas o Judiciário pode
dizer quem tem o direito. Ou seja, nos casos de jurisdição necessária, a atuação do direito material depende
da intervenção judicial. Pouco importa se existe ou não resistência de uma das partes em face da pretensão
da outra ao bem da vida. O concurso do Judiciário será sempre necessário para satisfazer a pretensão, por
força de lei. Veja-se o caso de anulação de casamento. De nada adianta os cônjuges estarem de acordo com
a anulação do casamento. Somente o Judiciário pode dizer se existe o vício ou não e, havendo, “anular”
o casamento. Mas note-se que a necessariedade da intervenção judicial é absolutamente excepcional no
ordenamento pátrio — e isso não apenas no âmbito das relações de direito privado, mas também nas de
direito público. De um modo geral, os estados de insatisfação e crises de direito material podem ser eliminados
independentemente da intervenção judicial. Nesse sentido: TALAMINI, Eduardo. A (in)disponibilidade do
interesse público: conseqüências processuais (composições em juízo, prerrogativas processuais, arbitragem e
ação monitória). Revista de Processo, São Paulo, n. 128, p. 61-62, out. 2005.
7
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p.
130. No mesmo sentido: BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material
sobre o processo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 115.

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 49

ao juiz conceder ao autor mais do que fora pedido, ou por razões diversas
das deduzidas na inicial, estar-se-ia possibilitando a tutela jurisdicional
de ofício. Tudo o que excedesse os limites objetivos da demanda impli­
caria atuação sem provocação.”8
Vê-se, pois, que a fixação dos limites objetivos da atuação jurisdicional exige
a exata compreensão do conteúdo da causa de pedir. A depender da confi­guração
que se lhe atribua — e é ao legislador que compete tal tarefa — aqueles
referidos limites serão mais ou menos estreitos. Assim, entendendo-se
que os fatos constitutivos do direito alegado integram a causa de pedir,
a atuação jurisdicional não poderá basear-se em outros além daqueles
oportunamente descritos pelo demandante. De outra parte, se os fatos
constitutivos do direito forem tidos como não integrantes da causa de
pedir, o julgador não ficará preso àqueles descritos pelo demandante,
podendo inclusive se amparar em outros dos quais tenha tomado
conhecimento de ofício.
Depois, a exata definição do conteúdo da causa de pedir revela-
se importante também quando se pensa no exercício do contraditório e
da ampla defesa por parte do demandado. Caso se repute que a causa
de pedir (ativa)9 resume-se à pura e simples afirmação do direito sobre
um dado bem da vida, não incluindo os respectivos fatos constitutivos,
o demandado tende a ter maiores dificuldades para se defender: não
havendo um momento preclusivo para o demandante alegar os fatos
constitutivos do seu pretenso direito, o demandado terá de estar sempre
preparado para se manifestar a respeito de inovações que em relação a
eles aquele eventualmente venha a realizar. Por outro lado, caso se enten­
da que os fatos constitutivos do pretenso direito também integram a
causa de pedir, o demandante haverá de decliná-los até determinado
momento processual, sob pena de preclusão. Ou seja, a livre alteração dos
fatos constitutivos não será admitida, a fim de que a causa de pedir possa se estabi­
lizar. Ademais, apenas em relação aos fatos constitutivos oportuna­mente
alegados é que o demandado haverá de se defender. O julgador sequer
poderá conhecer de outros além daqueles tempestivamente indicados
pelo demandante.
A compreensão da causa petendi permite, outrossim, resolver diversas
questões de ordem processual, entre as quais, a da coisa julgada, a da
8
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Os elementos objetivos da demanda examinados à luz do contraditório.
In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos Santos et al. (Coord.). Causa de pedir e pedido
no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 24-25.
9
Sobre o conceito de causa de pedir ativa, vide o item 2.3.3.

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50 Felipe Scripes Wladeck

litispendência, a da conexão e a da continência. Em semelhante sentido,


Verde consigna: “La questione [do conteúdo da causa de pedir] non è
concettuale e costituisce uno dei nodi fondamentali della disciplina
del processo, giacché da essa dipende la soluzione dei problemi relativi
alla identificazione della domanda e a quelli collegati della litispendenza,
delle modificazioni successive, della corrispondenza tra il chiesto e il pronunciato
e dei limiti oggettivi del giudicato” (com grifos no original).10

1.3 O objeto dos próximos itens


A seguir, no item 2, serão sintetizados os postulados das duas
teorias clássicas desenvolvidas a respeito do conteúdo da causa de pedir,
quais sejam, a teoria da substanciação e a teoria da individuação. Depois,
no item 3, serão fixados conceitos e classificações fundamentais para a
adequada compreensão do tema. No item 4, tentar-se-á identificar qual
daquelas duas teorias foi adotada no direito processual civil brasileiro
— ou, então, se aqui se adota uma teoria híbrida. Por fim, no item 5,
objetiva-se verificar se o Projeto de Lei do Senado nº 166/2010 (Projeto
de Novo CPC) afetará, caso aprovado e sancionado tal como apresen­
tado ao Congresso Nacional, as conclusões que podem se extrair da atual
disciplina legal acerca do conteúdo da causa de pedir no processo civil
brasileiro.

2 As duas teorias clássicas a respeito do conteúdo da causa de pedir


Como observa Monteleone, a causa de pedir “... è l’elemento più
incerto e controverso della domanda giudiziale”.11 São duas as teorias
consagradas na doutrina a respeito do seu conteúdo, quais sejam, a da
individuação (ou da individualização) e a da substanciação.

2.1 A teoria da individuação (ou individualização)


De acordo com Mandrioli, nem sempre a identificação de um
direito faz-se a partir de seus fatos constitutivos. “Poiché, in realtà, talora
più fatti possono cospirare nel costituire un solo diritto e poiché, d’altra

10
VERDE, op. cit., p. 135. No mesmo sentido: VIANA, Juvêncio Vasconcelos. A causa de pedir nas ações de
execução. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos Santos (Coord.). Causa de pedir e
pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 91.
11
MONTELEONE, op. cit., p. 192. A doutrina parece, aliás, estar assente quanto a isso. A mesma conclusão pode
ser encontrada, por exemplo, nas obras dos seguintes autores: LEONEL, Ricardo de Barros. A causa petendi
nas ações coletivas. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos Santos (Coord.). Causa de
pedir e pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 128; VIANA,
op. cit., p. 91.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 51

parte, la causa petendi consiste (...) nel diritto (sostanziale affermato),


può accadere che il riferimento a fatti diversi non basti per implicare la
diversità della causa petendi e quindi dell’azione. Ne deriva che il criterio
orientatore per stabilire se il riferimento a fatti diversi implica diversità della causa
petendi (e quindi dell’azione) sta nel verificare, con un’indagine, che è di diritto
sostanziale, se il fatto diverso fonda un diritto diverso, oppure lo stesso diritto”
(com grifos no original).12
Os adeptos da teoria da individuação diferenciam os direitos em
“autodeterminados” e “heterodeterminados”. A seu ver, a configuração
do conteúdo da causa de pedir variará conforme a demanda verse a res­
peito daqueles ou destes.

2.1.1 A causa de pedir nas demandas autodeterminadas


Direitos autodeterminados, segundo os adeptos da teoria da indivi­
duação, são aqueles que, em um determinado momento, podem existir com um
mesmo conteúdo e entre as mesmas partes por uma única vez. Correspondem,
de um modo geral, aos direitos absolutos.
Um exemplo de direito autodeterminado é o de propriedade. Como
escreve Mandrioli, “... il diritto di proprietà su una cosa sarà sempre
lo stesso e non potrà esistere che più di una volta, sia che sia sorto per
compravendita, sia che sia sorto per donazione o successione, o per due
o più ragioni distinte: res amplius quam semel mea esse non potest.”13
Daí a razão pela qual se afirma que os direitos autodetermi­nados,
como o seu próprio nome indica, “... s’individuano sulla base della sola
indicazione del loro contenuto, anche indipendentemente dal fatto
genetico.”14 Ou seja, sua identificação prescinde da indicação dos res­
pectivos fatos constitutivos. O direito individualiza-se pela simples indi­
cação de seu conteúdo — i.e., do bem da vida a que se refere.
A causa de pedir (ativa, vale dizer)15 nas demandas autodeter­­
minadas corresponde, portanto, ao direito (autodeterminado) afir­
mado sobre um dado bem da vida, não incluindo os respectivos fatos

12
MANDRIOLI, op. cit., p. 106.
13
Ibid., p. 107.
14
MONTESANO, Luigi; ARIETA, Giovanni. Diritto processuale civile. 3. ed. Torino: Giappichelli, 1999. v. 1, p.
176. Em semelhantes termos: LEONEL, op. cit., p. 129; OLIVEIRA, Bruno Silveira de. Conexidade e efetividade
processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 43.
15
Como se verá mais adiante, no item 2.3.3, a causa de pedir se divide em ativa e passiva. As divergências que
existem entre as teorias da substanciação e da individuação estão restritas ao conteúdo da causa de pedir
ativa. Para ambas, o conteúdo da causa de pedir passiva compõe-se pelos fatos violadores ou ameaçadores
do direito alegado, seja qual for a natureza do direito alegado — entendimento este que merece ressalvas,
para que se possa explicar o conteúdo da causa de pedir passiva nas ações necessárias (vide o item 3.4.2).

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constitutivos. A especificação destes não é necessária para a identificação


do direito que fundamenta a pretensão. A identificação do direito se dá
pela simples indicação de seu conteúdo (i.e., para a individualização do
direito, basta a especificação do bem que é seu objeto).
Por conseguinte, o demandante não tem o ônus, sob pena de pre­
clusão, de indicar na inicial da ação autodeterminada o fato constitutivo
do direito cujo reconhecimento ou satisfação pretende obter em juízo.
Tal indicação pode ser realizada no curso do processo. Ademais disso,
não viola o princípio da estabilização da demanda a alteração do fato
constitutivo no curso do processo, pois tal alteração — sempre segundo
os adeptos da teoria da individuação — não torna diverso o direito no
qual se ampara a pretensão.
Em contrapartida a isso tudo, na medida em que os fatos constitu­­-
tivos do direito autodeterminado não são relevantes para a sua identifi­
cação, não basta alterá-los para que se tenha uma nova causa de pedir e,
assim, torne-se possível formular, em nova ação contra o mesmo réu de
ação anterior, o mesmo pedido nesta antes formulado. A simples alte­ -
ração dos fatos constitutivos não é capaz de afastar o óbice da coisa
julgada ou da litispendência, conforme a sentença da ação anterior já
tenha transitado em julgado ou não.
Mas a alteração do fato violador ou ameaçador (do qual se tratará
mais adiante) ou, então, a invocação de um fato constitutivo posterior
ao encerramento do processo permite o ajuizamento de nova ação entre as
mesmas partes e versando sobre o mesmo objeto. É o que expõe Mandrioli:
“... il giudicato sulla proprietà copre tutti i possibili fatti genetici del
diritto di proprietà (sucessione, compravendita ecc.). Conseguentemente,
se, ad esempio, la mia domanda di rivendica a titolo di compravendita è
stata respinta e su tale pronuncia è sceso il giudicato, non posso esercitare
la rivendica a titolo di usucapione o di sucessione, salvo naturalmente
che si tratti di fatti sucessivi al giudicato (dopo il giudicato che ha respinto
la mia rivendica, ho comperato la cosa e perciò posso nuovamente
rivendicarla) o di diversità di causa petendi passiva (...). Con riguardo a
queste situazioni, si suole infatti richiamarsi alla regola che il giudicato
copre il dedotto e il deducibile, ma non ciò che non era ancora deducibile. D’altra
parte, tutti i possibili fatti genetici sono deducibili senza che ne consegua
mutamento della domanda” (com grifo no original).16 Também nesse

MANDRIOLI, op. cit., p. 107.


16

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 53

sentido, Giuseppe Chiovenda: “... negada a propriedade no primeiro


processo, não desaparece a exceção da coisa julgada só pelo fato de que
no novo processo se alegue outro título (a menos que, entende-se, seja
um título posterior ao julgado).”17
O reconhecimento, pelos adeptos da teoria da individuação, de que
a invocação de fato constitutivo posterior ao trânsito em julgado da sentença
de improcedência afasta o óbice da coisa julgada não significa que, para
eles, sejam os fatos constitutivos relevantes para a identificação da demanda.
O afastamento daquele óbice se poria, isso sim, porque a invocação de
um título posterior serviria como prova de um direito que teria passado a
existir apenas e tão somente após o encerramento do processo anterior.18
Vê-se, portanto, que, muito embora não integrem a causa de pedir,
os fatos constitutivos do direito alegado não são, para a teoria da indi­
viduação, irrelevantes no âmbito das ações autodeterminadas. Consistem
em condições de êxito da demanda: o demandante que deixa de demonstrar
que detém a titularidade do direito no qual ampara a sua pretensão não
a terá reconhecida e satisfeita — isso não impedirá, porém, que, depois
de encerrado o processo, ele venha a adquirir a titularidade do direito
e, assim, possa ter a sua pretensão ao bem da vida reconhecida e satisfeita
em um novo e subsequente processo contra o mesmo demandado; já
aquele que se desincumbe de tal ônus (de provar a titularidade do direito
alegado) tem chances de sagrar-se vencedor no processo, desde que
presentes os demais elementos para tanto necessários (v.g., a demons­
tração do fato violador ou ameaçador do direito alegado).19
Em suma, como conclui Cruz e Tucci, “... segundo a denominada
teoria da individualização, a alegação dos fatos, nas ações que encerram
um direito absoluto, delineia-se apenas como condição de êxito da
demanda, e não como elemento identificador. E, por isso, a mudança
dos fatos constitutivos não importa, como visto, modificação da causa
petendi e, assim, por via de conseqüência, da demanda, como também a

17
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Paolo Capitanio e anotações de
Enrico Tullio Liebman. 4. ed. Campinas: Bookseller, 2009. p. 438.
18
Bruno Silveira de Oliveira, igualmente, explica que, para os adeptos da teoria da individuação, o fato constitutivo
do direito pode ser alegado na nova demanda desde que “... não pudesse haver sido deduzido ao tempo da
primeira demanda, por se tratar de fato superveniente; que, por seu turno, implicará um direito superveniente
e, destarte, não alcançado pelos limites temporais da coisa julgada” (OLIVEIRA, op. cit., p. 53, nota de rodapé
60, sem grifo no original).
19
Nas palavras de Chiovenda: “Em especial, na ação de reivindicação basta a afirmação de ser proprietário de
determinado objeto a fim de que a identificação seja plena, e não é, com efeito, necessário indicar o fato jurídico
em virtude do qual se tornou proprietário; isso pode ser necessário para provar a existência da relação jurídica
de propriedade, não, porém, para identificar a ação” (CHIOVENDA, op. cit., p. 437, sem grifo no original).

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sentença que decidir sobre uma determinada relação jurídica projetará


a sua eficácia a todos os fatos possíveis de terem sido invocados pelo autor,
‘tornando improponível nova demanda sobre a mesma relação de direito
ainda que fundada em fatos não alegados na primeira’.”20

2.1.2 A causa de pedir nas demandas heterodeterminadas


Direitos heterodeterminados, para a teoria da individuação, são
aqueles que podem existir várias vezes em um mesmo momento, com um mesmo
conteúdo e entre os mesmos sujeitos. Correspondem, de um modo geral,
aos direitos relativos. O direito de crédito pecuniário, por exemplo, é
heterodeterminado. Entre as mesmas partes e num mesmo momento,
pode haver mais de uma relação de crédito pecuniário de um mesmo
valor, cada uma com um específico fundamento (compra e venda,
locação, mútuo etc.).
Logo, para que o direito (heterodeterminado) possa ser identifi­
cado, não basta simplesmente afirmá-lo, especificando o bem que é seu
objeto. Não é suficiente, v.g., que o demandante afirme ser credor de
um determinado montante em face do demandado. É imperioso que
indique a origem do direito de crédito que afirma. Afinal, pode ele ter, em
face do demandado, mais de um direito de crédito versando sobre um
mesmo montante, cada qual originado de um fato específico.
A causa de pedir (ativa) nas demandas heterodeterminadas é,
assim, composta não apenas pela afirmação do direito (dito heterode­
terminado) sobre um determinado bem da vida, mas também pelos fatos
constitutivos desse mesmo direito. Mandrioli, acerca do assunto, escreve:
“In sostanza, nel campo dei diritti relativi (ed in particolare dei diritti
di obbligazione ad una quantità determinata di cose di genere), poiché il
diritto può venire in essere più di una volta tra gli stessi soggetti, ad ogni
fatto costitutivo corrisponde un diverso diritto, e quindi una diversa causa
petendi ed una diversa azione. In questi diritti, la portata individuatrice
dell’azione è polarizzata nella causa petendi, che, almeno tendezialmente,
implica il petitum. D’altra parte, questa funzione polarizzatrice della
causa petendi, incentrata sull’identità del fatto, sussiste anche nei casi in
cui il medesimo fatto è preso in considerazione da norme diverse che
prefigurino, per quel fatto, um medesimo effetto.”21 A mesma lição

CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 120.


20

MANDRIOLI, op. cit., p. 107.


21

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 55

pode ser encontrada nas obras de Monteleone,22 Chiovenda,23 Liebman24


e, na doutrina nacional, de Ricardo de Barros Leonel25 e Oliveira,26
entre outros.
Destarte, o demandante precisa indicar já na petição inicial da
ação heterodeterminada o fato constitutivo do direito que fundamenta
a pretensão cujo reconhecimento e satisfação visa a obter em juízo. Sem
tal indicação, faltará causa de pedir — e, assim, não haverá como julgar
o pedido deduzido.
Ademais disso, a alteração dos fatos constitutivos não pode se dar
com absoluta liberdade no curso do processo, uma vez que sempre
implicará a alteração da causa de pedir.27 O juiz, de sua parte, não pode
conhecer de ofício de fatos constitutivos diversos daqueles referidos pelo
demandante na inicial. Como destaca Verde, “... il potere di intervento
ufficioso del giudice si giustifica unicamente per quei fatti la cui valutazione
non conduce alla diversificazione del diritto preteso.”28
Como contrapartida a todas essas restrições, não incidirá o óbice
da coisa julgada ou da litispendência quando o demandante ajuizar
nova ação invocando fato constitutivo diverso daquele suscitado na ação
anterior, para formular o mesmo pedido em face do mesmo sujeito.
Sendo diverso o fato constitutivo, outro será o direito sub judice — e, assim,
outra será a causa de pedir.
Sobre a causa de pedir passiva nas demandas heterodeterminadas,
vide o item 2.3.3, a seguir. Nele, desenvolve-se a ideia já antecipada na
nota 15, acima.

2.2 A teoria da substanciação


Para os adeptos da teoria da substanciação, a indicação, na inicial,
dos fatos constitutivos do direito afirmado é sempre necessária. Não
fazem eles a distinção entre direitos autodeterminados e direitos hetero­
determinados. Um direito jamais poderia ser precisamente iden­ tificado
sem a indicação dos seus fatos constitutivos.

22
MONTELEONE, op. cit., p. 197-198.
23
CHIOVENDA, op. cit., p. 438.
24
LIEBMAN, op. cit., p. 250.
25
LEONEL, op. cit., p. 131.
26
OLIVEIRA, op. cit., p. 44-46.
27
“Per i diritti eterodeterminati la causa petendi svolge uma funzione di vera e propria polarizzazione, che s’incentra
sull’identificazione del fatto, tale da implicare, almeno tendezialmente, anche il petitum: con la conseguenza
che il mutamento del fatto costitutivo comporta sempre il mutamento del diritto fatto valere” (MONTESANO;
ARIETA, op. cit., p. 176).
28
VERDE, op. cit., p. 136.

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Cruz e Tucci assim sintetiza a teoria da substanciação: “É bem de


ver, pois, que para a teoria da substanciação, a causa de pedir, inclusive
no que tange aos direitos absolutos, corresponde ao fato gerador do
direito. Afloram diferentes as demandas sempre que diversificado for o
fato constitutivo invocado (diverso como acontecimento concreto). Daqui
provém — como lembra Luso Soares — a designação de substanciação:
o que substancia ou fundamenta a ação (a pretensão), igualmente a
individualiza” (com grifos no original).29
Na medida em que integram a causa de pedir (ativa), os fatos
constitutivos do direito afirmado não podem ser livre e irrestritamente
alterados (pelo demandante ou pelo juiz) no curso do processo — sob
pena de violação ao princípio da estabilização da demanda. Como
leciona Verde: “Coerente con l’idea che una domanda è compiutamente
specificata quando siano individuati i fatti concreti sulla cui base si agisce,
è la conseguenza che alle parti spetti tale onere di individuazione e che ciò
che non è contenuto nelle allegazioni delle parti non può essere introdotto
nel processo successivamente e non può formare oggetto di decisione.”30
Em contrapartida, derrotado no processo, o demandante poderá
ajuizar nova ação contra o mesmo demandado para formular o mesmo
pedido já antes formulado, bastando para tanto que alegue fatos cons­
titutivos diversos daqueles suscitados anteriormente. Afinal, a alegação de
novos fatos constitutivos sempre implicará a alteração da causa de pedir.
Diante disso, Verde conclui que: “Il guadagno in termini di certezza
del processo paga un prezzo altissimo in termini di certezza del diritto,
in quanto tutto ciò che non è contenuto nelle allegazioni delle parti
può suffragare nuove ed autonome domande.”31

2.3 Distanciamento/aproximação entre as teorias da substanciação e


da individuação
Como se vê, as teorias da individuação e da substanciação apresentam
diferenças importantes. Mas há, também, semelhanças entre elas.

2.3.1 Distanciamento entre as teorias da substanciação e da individuação


em se tratando de direitos autodeterminados
É precisamente em relação aos chamados “direitos autodetermi­
nados” que divergem as teorias da individuação e da substanciação.

CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 124.


29

VERDE, op. cit., p. 135.


30

Id.
31

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 57

Para aquela, nas demandas autodeterminadas, basta ao deman­­­-


dante, a fim de identificar o direito que embasa a pretensão cujo reco­
nhecimento e satisfação visa a obter em juízo, afirmá-lo, especificando
o bem da vida que é seu objeto. Já para a teoria da substanciação, a indi­
cação dos fatos constitutivos do direito sempre será necessária para a
sua identificação, seja qual for a sua natureza (absoluta ou relativa). Na
verdade, como se disse acima, a teoria da substanciação sequer dife­ren­
cia os direitos em autodeterminados e heterodeterminados, conferindo
a todos o mesmo tratamento.

2.3.2 Consenso entre as teorias da substanciação e da individuação em


se tratando de direitos heterodeterminados
Já em relação aos direitos que os adeptos da teoria da indivi­dua­
ção chamam de heterodeterminados, não existem divergências. Assim
como os adeptos da teoria da substanciação, aqueles entendem que para
a identificação do direito afirmado é imprescindível indicar os respec­ -
tivos fatos constitutivos.
Essa mesma constatação é assim exposta por Oliveira: “... as
demandas heterodeterminadas estão acima das diferenças entre subs­
tanciação e individuação, uma vez que mesmo os seguidores da última
das teorias reconhecem, no caso, a necessidade de demarcação dos fatos
constitutivos para a correta identificação do direito e, conseqüente­mente,
da causa petendi ativa em que ele é deduzido.”32 Em semelhante sentido,
José Frederico Marques.33

2.3.3 Consenso entre as teorias da substanciação e da individuação


também quanto ao conteúdo da causa de pedir passiva
Há, ainda, um outro ponto de consenso entre as duas teorias.
A causa de pedir divide-se em ativa e passiva. A causa de pedir
ativa é composta pelo mínimo de informações necessário para identificar
o direito alegado pelo demandante — para embasar a sua pretensão. A
causa de pedir passiva, por sua vez, é composta pelo mínimo de informações
necessário para demonstrar o interesse de agir do demandante — ou
seja, para demonstrar que para o reconhecimento e a satisfação de sua
pretensão faz-se necessária a tutela jurisdicional.34
32
OLIVEIRA, op. cit., p. 46.
33
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. 2. ed. Campinas: Millennium, 2001. v. 1,
p. 298.
34
OLIVEIRA, op. cit., p. 38.

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Como se expôs acima, de acordo com a teoria da substanciação,


a causa de pedir ativa será sempre composta pela afirmação do direito
sobre determinado bem da vida e a indicação dos respectivos fatos cons­ti­
tutivos (sem os quais o direito jamais pode ser precisamente identificado).
Já para a teoria da individuação, o conteúdo da causa de pedir ativa terá
essa mesma configuração apenas no caso das demandas heterodetermi­
nadas. No caso das demandas autodeterminadas, a causa de pedir ativa
será composta pela simples afirmação do direito sobre um dado bem da
vida — dispensando-se a indicação dos respectivos fatos constitutivos.
Não existe, porém, divergência alguma entre as duas teorias quanto ao
conteúdo da causa de pedir passiva. Para ambas, será esta sempre composta
pelo fato ou conjunto de fatos apto a demonstrar que a tutela jurisdi­
cional é necessária para o reconhecimento e satisfação da pretensão do
demandante. Noutras palavras, a causa de pedir passiva consiste, tanto
para a teoria da individuação quanto para a da substanciação, no fato
ou conjunto de fatos violadores ou ameaçadores do direito que embasa
a pretensão do demandante.35
Nada obstante, é importante destacar, desde logo, que nem sempre
a causa de pedir passiva será “fática”. Ou melhor, nem sempre a necessi­
dade da tutela jurisdicional decorrerá da presença de um fato ou con­ -
junto de fatos violadores ou ameaçadores do direito alegado. Nos casos
de ações necessárias, como se verá mais adiante, a necessidade da inter­
venção jurisdicional decorre da lei, independentemente da existência de
lide entre as partes. Ou seja, a causa de pedir é “jurídica”. Foi por isso, aliás,
que acima se definiu causa de pedir passiva em termos genéricos, como
sendo o “conjunto mínimo de informações” necessário para demonstrar
o interesse de agir do demandante. Trata-se de fórmula apta a compre­
ender inclusive a causa de pedir passiva das chamadas ações necessárias.
Sobre as causas de pedir ativa e passiva, vide ainda o item 3.4.2, a
seguir. Nele, volta-se a tratar de seu conceito.

2.4 Os resultados práticos da adoção de cada uma das teorias


Em síntese, as divergências entre as teorias da individuação e da subs­
tanciação estão restritas ao conteúdo da causa de pedir ativa das demandas que os

Logo, para ambas as teorias, não é possível alterar livremente, no curso do processo, os fatos violadores ou
35

ameaçadores alegados para justificar a necessidade da tutela jurisdicional. A causa de pedir (tanto a ativa
quanto a passiva, seja qual for a sua composição) não pode ser alterada depois de estabilizada a demanda;
e, antes disso, existem limites legais a modificações na causa de pedir. Sobre a estabilização da demanda no
ordenamento jurídico brasileiro, vide o item 4.6, a seguir.

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 59

adeptos daquela primeira chamaram de autodeterminadas.36 São elas, contudo,


suficientes para que os efeitos práticos gerados pela adoção de uma ou
outra teoria sejam bastante diversos.
A seguir, são arroladas as principais consequências práticas que
a adoção de cada uma das teorias gera:
(a) Em um sistema que adote a teoria da individuação, para deli­­ -
mitar a causa de pedir ativa, basta ao demandante, na inicial
da ação autodeterminada, afirmar o direito sobre determinado
bem da vida, sem a necessidade de descrever os fatos que supos­
tamente originam esse mesmo direito.37 Se a ação for hetero­
determinada, também os fatos constitutivos do direito afirmado
deverão ser indicados na inicial.
Num sistema em que se adote a teoria da substanciação, por
outro lado, sempre será necessário indicar na inicial o fato constitutivo
do direito alegado, sob pena de faltar a causa de pedir ativa.38 E isso
independentemente da natureza do direito, i.e., seja ele relativo ou
absoluto.
(b) Para a teoria da substanciação, qualquer alteração em relação
aos fatos constitutivos do direito afirmado implica alteração da
causa de pedir ativa.
Já para a teoria da individuação, a alteração dos fatos constitutivos
do direito apenas implicará a alteração da causa de pedir ativa no caso
das demandas heterodeterminadas. Nas demandas autodeterminadas,
os fatos constitutivos do direito alegado não integram a causa de pedir
— de modo que esta não é afetada pela alteração daqueles.39
(c) Na medida em que para a teoria da substanciação a alteração
dos fatos constitutivos do direito implica a alteração da causa de pedir
ativa, não incidirá o óbice da coisa julgada quando o demandante,
der­rotado num primeiro processo, ajuizar nova ação contra o mesmo

36
Oliveira expõe isso com muita clareza: OLIVEIRA, op. cit., p. 43 et seq.
37
LEONEL, op. cit., p. 134.
38
Ibid., p. 135.
39
“Como, na teoria da substanciação, o que interessa para a identificação da causa petendi ativa são os fatos
constitutivos do direito afirmado pelo autor, então a adução de novas alegações fáticas, como supostas
aquisições de direitos, importará modificação da demanda. Já para a teoria da individuação — sempre,
frisemos, em se tratando de demandas autodeterminadas (pois com relação às heterodeterminadas vimos
que as teorias se equiparam) — a dedução de alegações fáticas diversas daquelas que constam do libelo
não configura, por si só, modificação da causa petendi ativa. Desde que as novas alegações conduzam ao
mesmo direito afirmado pelo autor, não se poderá sustentar haja ocorrido modificação alguma, já que, para
os postulados da individuação, a causa de pedir ativa, por estar compreendida nos limites do direito afirmado,
haverá conservado sua identidade” (OLIVEIRA, op. cit., p. 51-52).

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demandado para o fim de formular a mesma pretensão antes for­mu­lada,


mas sob a alegação de fatos constitutivos diversos — e isso seja qual for a
espécie do direito afirmado.40
Já para a teoria da individuação, como os fatos constitutivos do
pretenso direito, nas ações autodeterminadas, não integram a causa de pedir
ativa, não bastará alterá-los para que o demandante, derrotado num
primeiro processo, possa ajuizar nova ação contra o mesmo demandado
a fim de formular o mesmo pedido antes formulado. Todo e qualquer
fato constitutivo que o demandante tenha deduzido ou pudesse deduzir
no primeiro processo ficará abrangido pela eficácia preclusiva da coisa
julgada nele formada. Oliveira, a esse respeito, leciona: “Como a causa
petendi ativa — na teoria da individuação e em se tratando de demandas
autodeterminadas — reside no direito afirmado e absorve todas as ale­
gações que poderiam ser feitas sobre o modo de constituição daquele,
a eficácia preclusiva da coisa julgada também exibirá, por decorrência,
essa amplitude. Isto é, impedirá a propositura de qualquer demanda
que — versando o mesmo direito, a mesma causa petendi passiva e o mesmo
pedido contidos na primeira — apenas reporte um fato constitutivo não
referido por esta” (com grifos no original).41
(d) Nenhuma das teorias tolera a livre alteração da causa de pedir
no curso do processo.
Portanto, para nenhuma das duas teorias é possível alterar livre­
mente, no curso do processo, o fato ou o conjunto de fatos em que,
segundo seus adeptos, consiste a causa de pedir passiva. Por outro lado,
haverá restrições à alteração dos fatos constitutivos do direito conforme
se entenda estarem eles incluídos ou não no conteúdo da causa de
pedir ativa.
Ordenamentos que adotam a teoria da substanciação impõem
restrições mais ou menos severas para a alteração dos fatos constitutivos

40
Nas palavras de Leonel: “Partindo-se da substanciação da demanda, em sistemas que adotem restrições à sua
alteração após a propositura, qualquer mudança relacionada aos fatos constitutivos leva à modificação proscrita
da causa de pedir. Entretanto, ficam excluídos da eficácia preclusiva da coisa julgada os fatos não alegados
pelo autor, que poderão fundamentar, futuramente, outra demanda a respeito do mesmo direito. Nota-se,
assim, que os fatos constitutivos são imperativos para a identificação da ação, o estabelecimento dos limites
à atuação jurisdicional, à possibilidade de modificação da demanda e para a própria coisa julgada” (LEONEL,
Ricardo de Barros. Causa de pedir e pedido: o direito superveniente. São Paulo: Método, 2006. p. 88).
41
OLIVEIRA, op. cit., p. 53. É que também ensina Leonel: “Já na teoria da individuação da demanda, como esta
se identifica pelo conteúdo do direito deduzido, ficam absorvidos todos os fatos que servem à sustentação
do direito invocado em juízo. Inviabiliza-se que, em ulterior ação, seja formulada a mesma pretensão, com
amparo em fatos já existentes na época da primeira ação, ainda que não alegados” (LEONEL. Causa de pedir...,
p. 88-89).

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 61

do direito afirmado.42 E isso independentemente da natureza do direito.


Afinal, os fatos constitutivos sempre integram a causa de pedir ativa.
Ordenamentos que adotem a teoria da individuação também
impõem restrições para a alteração dos fatos constitutivos quando se
tratar de direitos heterodeterminados. Mas quando se tratar de direitos
auto­determinados, apenas não se permitirá que no curso do processo se
passe a invocar direito diverso do afirmado na petição inicial. Os fatos
constitutivos do direito afirmado, de sua parte, poderão ser alterados
com ampla liberdade, sem prejuízo da estabilidade da demanda — jus­
tamente por não integrarem a causa de pedir.
(e) A ampla liberdade que, nos sistemas que adotam a teoria da
individuação, o demandante tem para, nas demandas autode­
terminadas, alterar os fatos constitutivos do direito afirmado
tende a criar dificuldades para o exercício da ampla defesa por
parte do demandado.
Conforme Leonel, o demandado fica “... à mercê, como que, com
o perdão da expressão, ‘refém’ da excessiva liberdade de imputação por
parte do autor, armado com a possibilidade de suscitar fatos novos no
debate processual a cada momento, conforme a maior ou menor conve­
niência de sua estratégia ofensiva, com evidentes prejuízos ao contradi­
tório e à ampla defesa, pela constante possibilidade de formulação de
surpresas ao demandado.”43
Não havendo esse mesmo grau de liberdade nos sistemas em que
se adote a teoria da substanciação, aquelas dificuldades não se põem
contra o demandado. Os pretensos fatos constitutivos dos quais este terá
de se defender serão apenas e tão somente aqueles oportunamente (via
de regra, na inicial) alegados pelo demandante. Os que tenham sido
intempestivamente alegados simplesmente não poderão ser conside­ ra­
dos pelo julgador no momento da decisão — por isso, o demandado não
precisará se preocupar em se manifestar a seu respeito.
(f ) Diante de tudo isso, conclui-se, com Oliveira, que: “Ao passo
que a teoria da individuação torna o procedimento mais ma­
leável — pelo menos no que tange à possibilidade de as partes

42
Como se demonstrará no item 5, o Projeto de Novo CPC em trâmite no Congresso Nacional propõe a substituição
das regras hoje existentes para a alteração da causa de pedir no curso do processo, a fim de permitir que a sua
alteração ou aditamento possa ser realizado enquanto não proferida a sentença — desde que não caracterizada
a má-fé do demandante e, ademais, a modificação não gere prejuízos ao demandado.
43
LEONEL. A causa..., p. 134.

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62 Felipe Scripes Wladeck

deduzirem novas alegações fáticas no curso do processo, sem


que isso implique modificação da demanda (supondo-se, é
claro, que tais alterações conduzam, todas, à constituição de
um mesmo direito) — a substanciação impõe, nesse particular,
maior rigidez, firmando o contraditório sobre os estritos limites
do quadro fático deduzido até o momento em que ocorrer a
estabilização da demanda.”44
Como contrapartida a essa maior maleabilidade procedimental
verificada em relação às demandas autodeterminadas, nos sistemas que
adotam a teoria da individuação, tende-se a ter processos mais demo­ -
ra­
dos. Nos termos de Leonel: “Conseqüência da individuação é o retar­
damento na solução da demanda — em função da ampla possibilidade
de variação quanto aos fatos constitutivos, com introdução de novas
dedu­ ções pelo autor, desde que inalterado o direito afirmado — com
a contrapartida da obtenção da resposta definitiva para a controvérsia
verificada no direito material. Só a modificação do direito alegado
induziria à alteração proibida da demanda.”45

3 Fixação de conceitos (à luz do direito processual civil brasileiro)


Como se vê, existe divergência no âmbito doutrinário quanto ao
conteúdo da causa de pedir, em especial da causa de pedir ativa das
demandas ditas autodeterminadas.
Para a teoria da individuação, a causa de pedir ativa em tais de­
man­das seria integrada apenas pela afirmação do direito sobre determi­-
nado bem jurídico. Já para a teoria da substanciação, seria integrada
também e necessariamente pelos fatos constitutivos desse mesmo direito,
não pela sua pura e simples afirmação.
Antes de se verificar qual é o tratamento dispensado pelo CPC
brasileiro a este elemento da demanda em que consiste a causa de pedir,
cabe fixar alguns conceitos e classificações básicos consagrados na dou­
trina e na jurisprudência e que concernem diretamente ao tema.46
Procurar-se-á, na medida do possível e do necessário, em vista do
objetivo do presente estudo, apresentar esses conceitos e classificações

OLIVEIRA, op. cit., p. 54-55.


44

LEONEL. Causa de pedir..., p. 89.


45

Ressalve-se que causa de pedir não se confunde com causa excipiendi. Esta consiste nos fundamentos de fato e
46

de direito da defesa do demandado. Ao lado daquela, forma o objeto de conhecimento do juiz (DINAMARCO,
Cândido Rangel. O conceito de mérito em processo civil. In: DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do
processo civil moderno. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. t. I, p. 322-328). No presente trabalho, como indica
o título, o objetivo é tratar apenas e tão somente da causa de pedir.

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 63

com referências ao direito processual civil brasileiro. Entende-se que isso


deve, inclusive, facilitar a sua visualização e compreensão.

3.1 Fundamentação jurídica (causa de pedir próxima ou imediata) e


fundamentação fática (causa de pedir remota ou mediata)
Em poucas palavras, fundamentação fática consiste no fato ou con­­­­-
junto de fatos do qual resulta o direito alegado pelo demandante e,
­
ainda, o seu interesse processual (i.e., a necessidade da tutela jurisdi­-
cional pleiteada). Compreende, assim, tanto os fatos constitutivos do pre­
tenso direito quanto os fatos lesivos ou ameaçadores desse mesmo pretenso
direito. É o que a doutrina convencionou chamar de causa de pedir remota
ou mediata.
Por exemplo, em uma ação em que se reclama a restituição de
uma certa quantia emprestada, o fato constitutivo do suposto direito do
autor (de crédito) é o empréstimo. O fato violador do direito alegado é
o não pagamento da dívida na data do vencimento.
Já a fundamentação jurídica consiste na correlação lógico-jurídica
entre os fatos narrados e o pedido formulado. Em outras palavras,
trata-se da demonstração de que dos fatos descritos na petição inicial
resulta o efeito jurídico que se pretende ver reconhecido com o pedido
final. Trata-se da denominada causa de pedir próxima ou imediata.47
Imaginando-se ainda o caso da ação de restituição de quantia
emprestada: a fundamentação jurídica consiste na demonstração de
que o ordenamento legal dá ao credor o direito de, diante do alegado
inadimplemento, exigir e obter a devolução da quantia emprestada.

3.2 Fundamento legal


Fundamento legal é, nas palavras de José Carlos Barbosa Moreira,
a norma jurídica aplicável ao caso.48
O fundamento legal não se confunde com o fundamento jurídico. A
distinção entre ambos é assim explicada — à luz do direito processual
civil brasileiro — por Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini: “Os
fundamentos jurídicos do pedido não se confundem com fundamentos
legais. A lei não exige que o autor mencione, na petição inicial, os

47
“Aos fundamentos jurídicos do pedido, ou seja, à demonstração de que os fatos jurídicos afirmados pelo autor
levam à conseqüência requisitada, a doutrina denominou causa petendi próxima” (COSTA, Susana Henriques
da. Condições da ação. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 93).
48
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 17.

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64 Felipe Scripes Wladeck

números dos artigos de lei em que baseia o seu pedido. Aliás, nem mesmo
a errônea capitulação legal conduz à inépcia. O que o requisito impõe
é que, expostos os fatos, passe o autor a demonstrar as conseqüências
jurídicas que dos fatos entende resultantes. Ou seja, que a relação jurídica
conflituosa emergiu dos fatos narrados. Portanto, o fundamento jurí­dico
nada mais é do que o nexo de causalidade entre os fatos e o pedido.
Ou, ainda, é a demonstração de que dos fatos apresentados surgiu para
o autor o direito que busca obter no pedido.”49
Na ordem processual civil brasileira, o fundamento legal, distin­
tamente da fundamentação jurídica, não integra a causa de pedir. Não se
exige do demandante, no inciso III do art. 282 do CPC nem em qual­
quer outro dispositivo legal, o enquadramento dos fatos por ele narrados
em uma específica hipótese de incidência normativa ( fattispecie).
Ademais, ao juiz é dado decidir o feito com base em norma diversa
daquela invocada pelas partes — o que se deve ao princípio segundo o
qual iura novit curia. O autor pode, outrossim, invocar, no curso do
processo, norma diversa daquela suscitada na petição inicial. Apenas
se impõe que sejam observados os limites dos fundamentos de fato e dos efeitos
jurídicos pleiteados.
A mesma conclusão é exposta por Chiovenda, no tocante ao
direito processual civil italiano: “... a simples mudança do ponto de vista
jurídico (ou seja, a invocação duma norma diferente no caso em que
um fato possa incidir em diferentes normas de lei) não importa diversi­-
dade de ações; é lícita, portanto, assim à parte como ao juiz.”50
Mas ressalve-se, com Cruz e Tucci, que “... a liberdade outorgada
ao órgão jurisdicional de eleger a norma a ser aplicada, até mesmo inde­
pendentemente de sua invocação pelo interessado, não dispensa a colheita
de prévia manifestação das partes sobre os novos rumos a serem impri­
midos à solução do litígio, em homenagem à regra do contraditório.”51
Nesse mesmo sentido, Bedaque: “Mesmo a liberdade na aplicação da
regra jurídica deve ser examinada à luz do contraditório. O brocardo iura
novit curia significa a possibilidade de o juiz valer-se de norma não invocada
pelas partes, desde que atendidos os limites quanto ao pedido e à causa de
pedir. Isso não significa, todavia, desnecessidade de prévia manifestação

49
WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: teoria geral do processo e
processo de conhecimento. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. v. 1, p. 337.
50
CHIOVENDA, op. cit., p. 435.
51
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 211.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 65

das partes a respeito, mesmo porque muitas vezes o enquadramento


jurídico do fato implica consequências jamais imagi­ nadas pelas partes.
Justificável, portanto, a preocupação com a efetividade do contraditório
inclusive nesta sede. Basta lembrar das relações de consumo, cujos efeitos,
inclusivenoâmbitoprocessual,sãoprofundamentediversosdaquelesdecorrentesde
situações regradas pelo direito das obrigações” (sem grifos no original).52

3.3 Nomen juris (qualificação jurídica do fato)


Nomen juris consiste na qualificação jurídica dada ao fato ou ao con­
junto de fatos em que o demandante apoia a sua pretensão. Por exemplo,
referir-se a “erro” ou “dolo” para designar o vício de consentimento invo­
cado como causa da anulação de um determinado ato jurídico é “quali­-
ficar juridicamente” o fato em que consiste o vício de consentimento.
O nomen juris não integra, na ordem processual civil brasileira, a
causa de pedir. Trata-se, também aqui, de decorrência do iura novit curia.
Assim, tal como o juiz pode aplicar norma jurídica diversa da invocada
pelas partes, a qualificação jurídica por elas dada aos fatos da causa não
o vincula. Ou seja, é-lhe dado revê-la — desde que se limite aos funda­
mentos fáticos e efeitos jurídicos pleiteados pelo autor. Aliás, mesmo o
autor pode alterar a qualificação jurídica inicialmente dada aos fatos
sem que isso afete a estabilidade da demanda.
Mandrioli, referindo-se ao ordenamento italiano, exara lição que se
aplica integralmente ao processo civil brasileiro: “... come si disse allora, in
base al principio jura novit curia, il mutamento della semplice qualificazione
giuridica, o nomen juris, può avvenire ad iniziativa del giudice, senza
che ciò muti l’oggetto del processo (il quale oggetto è determinato con
l’individuazione dei fatti costitutivi), ne deriva che un’azione proposta con
riferimento ad un determinato fatto costitutivo (il giorno tale ti consegnai
quella cosa in forza di un certo accordo con queste e queste modalità) non
cambia per il fatto che quel medesimo accordo, storicamente individuato,
sia qualificato comodato o, per esempio, locazione: e perciò se fosse sceso
il giudicato su un’azione proposta con riferimento a quel fatto costitutivo
ed in applicazione delle norme sul comodato, l’azione che venisse poi
proposta tra gli stessi soggetti per la consegna della medesima cosa, con
riferimento a quel medesimo fatto, ma invocandosi l’applicazione delle

BEDAQUE. Os elementos..., p. 42.


52

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
66 Felipe Scripes Wladeck

norme sulla locazione, sarebbe ancora quella stessa azione che è coperta
dal giudicato, e perciò sarebbe preclusa.”53
É o que também ensina Cruz e Tucci: “Embora o nomen iuris e/ou
o fundamento legal porventura invocado pelo autor possa influenciar
o raciocínio do julgador, não há qualquer impedimento, dada a incidên­
cia do aforismo iura novit curia, a que este requalifique juridicamente
a demanda, emoldurando-a em outro dispositivo de lei: o juiz goza de
absoluta liberdade, dentro dos limites fáticos aportados no processo, na
aplicação do direito, sob o enquadramento jurídico que entender per­
tinente (art. 126). E isto, certamente, ainda que ambos os litigantes este­
jam concordes com a tipificação legal deduzida na peça vestibular”.54
Parece-nos que também a eventual requalificação jurídica dos fatos proce­
dida pelo juiz deve ser submetida ao contraditório das partes. Afinal, como
Cruz e Tucci mesmo observa na passagem acima transcrita, “o raciocínio
do julgador” pode ser eventualmente influenciado pelo fundamento
legal invocado pelo autor e, outrossim, pelo nomen juris dado aos fatos
da causa.

3.4 Ainda sobre a causa de pedir remota (fundamentação fática)


A causa de pedir remota ou mediata é, como se afirmou acima,
composta pelos fatos que fundamentam a pretensão do demandante (i.e.,
o meritum causae)55 e lhe conferem interesse de agir. Compreendido isso,
cabe delimitar o seu conteúdo e expor algumas formas de classificá-lo.
Antes, porém, cabe apenas destacar que a causa de pedir remota
deve ser interpretada restritivamente. Aplica-se-lhe o art. 293 do CPC, por
analogia. Isso significa que toda dúvida fundada e razoável (e invencível)
que o juiz tiver acerca do conteúdo da causa de pedir remota ou mediata
“... deve levá-lo a optar pelo mais estrito e nunca pelo mais amplo.”56
Tal destina-se a evitar que o Poder Judiciário extrapole as intenções
do demandante e que se coloque o demandado na complicada ou
impossível situação de defender-se de fatos incertos, indeterminados ou
obscuros — o que, aliás, seria gravíssimo não apenas por inviabilizar a
ampla defesa, mas também se consideradas as relevantes consequências

53
MANDRIOLI, op. cit., p. 104-105.
54
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 208.
55
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. v. 2,
p. 185 et seq.
56
Ibid., p. 139.

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 67

que o art. 474 gera especialmente para o réu (ver as notas de rodapé
112 e 113).

3.4.1 Fatos principais (essenciais, jurídicos ou jurígenos) e fatos secundários


(acessórios ou simples)
Não são todos os fatos envolvidos na relação de direito material
trazida a juízo que integram a causa de pedir remota. Cabe distinguir
os fatos ditos “principais” dos fatos “secundários”.
Fatos principais (jurídicos ou jurígenos) são aqueles que atribuem
uma configuração mínima e elementar para a causa de pedir, singula­
rizando-a de todas as demais causas teoricamente possíveis para a
pretensão deduzida. Noutras palavras, são os fatos em tese aptos a, por
si sós, produzirem o efeito jurídico buscado pelo demandante, delimi­
tando a sua pretensão.
Fatos secundários, por sua vez, são aqueles que, isoladamente consi­
derados, não têm o condão de gerar consequências jurídicas. Embora
não cogentes para a delimitação da pretensão, são os fatos secundários
(ou circunstanciais) relevantes para a argumentação do demandante ou,
ainda, como “fundamentos indiciários” da existência de fatos principais.57
Apenas os fatos principais compõem a causa petendi e são indis­
pensáveis para o embasamento da pretensão processual.58 Essa consta­
tação é fundamental para que se torne possível definir os limites em
que se admitem alterações em relação aos fatos envolvidos no processo
(e, outrossim, para a definição dos limites objetivos da coisa julgada).
Por um lado, alterações (acréscimos, modificações ou supressões)
em relação a fatos secundários — possíveis até mesmo de ofício (ex vi
dos arts. 131 e 462 do CPC)59 — não implicam mudança da causa de
pedir. Afinal, repita-se, eles não a integram. Nas palavras de Liebman:
“Essas circunstâncias particulares e fatos secundários não são relevantes
em si mesmos, mas apenas na medida em que concorram para compor
um determinado fato jurídico principal; desde que este permaneça o
mesmo, os fatos e circunstâncias podem até variar, sem que com isso se
considere modificada a causa petendi.”60 61
57
DINAMARCO. Instituições..., v. 2, p. 76.
58
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 162-163.
59
BEDAQUE. Os elementos..., p. 38.
60
LIEBMAN, op. cit., p. 249-250. Vide, também: MANDRIOLI, op. cit., p. 105.
61
Nas palavras de Chiovenda: “... nem todo fato deduzido no processo pode ter importância para a determinação
da causa. Entram em jogo, aí, somente os fatos jurídicos, isto é, somente aqueles que podem ter influência

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
68 Felipe Scripes Wladeck

Isso evidentemente não significa que não se deva oportunizar o


contraditório quando houver alteração quanto a fatos secundários, haja
vista a força argumentativa que estes podem conter e, assim, a influência
que podem gerar sobre o convencimento do juiz. Os direitos de ampla defesa
econtraditóriorecomendamfortementequeasalteraçõeseventualmenteprocedidas
quanto a fatos secundários sejam sempre postas em debate. Na verdade, como
ensina Junior Alexandre Moreira Pinto, “... todos os elementos que no
caso concreto poderão representar apoio ao convencimento do juiz e
sustentação de sua posição final, independentemente de sua classifica­ção
como essenciais ou secundários, devem ser introduzidos na demanda e
expostos ao debate. Exige-se o contraditório sobre toda matéria fática
que seja apta a justificar a procedência ou a improcedência da ação.”62
Alterações em relação a fatos principais, por outro lado, implicam
a mudança da causa de pedir, uma vez que eles a integram. Logo, em
respeito aos princípios do contraditório, da ampla defesa, da demanda
e da congruência, não podem essas alterações dar-se livremente. No
processo civil brasileiro, impõe-se a observância, por exemplo, dos arts.
264, caput e parágrafo único, e 321 do CPC (sobre a estabilização da
causa de pedir, vide o item 4.6).
Observe-se, por oportuno, que a diferenciação entre fatos prin­ ci­­
-
pais e acessórios revela-se importante não apenas quando se pensa na causa
de pedir ativa. Também para a delimitação da causa de pedir passiva
(vide o item 3.4.2, a seguir) é ela importante. Vale dizer, integrarão esta
última apenas os fatos essenciais para a identificação da violação ou
ameaça ao pretenso direito do demandante. Os fatos meramente cir­
cunstanciais não, de modo que poderão ser alterados no curso do processo
de modo irrestrito, inclusive de ofício — segundo o ordenamento pátrio,
até a fase de recursos extraordinários lato sensu, quando então a (re)dis­
cussão de questões de fato não será mais permitida.
Ademais, cumpre destacar que a identificação do que seja o fato,
ou núcleo de fatos, essencial não é tarefa simples.63 Deve ser feita no caso
concreto. Um exemplo didático, dado por Talamini, permite visualizar
bem o que deve ser considerado fato principal e o que deve ser taxado

na formação da vontade concreta da lei. Quando se muda o fato simples ou motivo, mas para deduzir-lhe o
mesmo fato jurídico, não há diversidade de ação; não há mudança de demanda; perdura a exceção de coisa
julgada” (CHIOVENDA, op. cit., p. 435).
62
PINTO, Junior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
p. 41.
63
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 77.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 69

como fato secundário: “... na ação de indenização por acidente de trânsito,


a causa de pedir diz respeito à responsabilidade civil extraível do evento
específico narrado (um acidente, em determinado momento e lugar, e
os danos dali advindos). Todos os demais possíveis detalhes (excesso ou
não de velocidade; embriaguez ou não; desatenção ou não de cada um
dos condutores etc.) são fatos secundários, integrados no núcleo essencial.
A coisa julgada que advier com a sentença final de mérito impedirá
que quaisquer de tais fatos, mesmo os que deixaram de ser alegados e
discutidos no processo anterior, sejam depois reapresentados como pre­
tenso fundamento de uma nova ação, entre as mesmas partes, relativa
ao mesmo acidente e para os exatos mesmos fins reparatórios (art. 474).
Estar-se-á diante da mesma causa de pedir.”64
Cite-se, ainda, outro exemplo, não tão “tranquilo” como o anterior.
Em uma ação destinada a obter o desfazimento da relação matrimo­
nial o autor alega que o réu descumpriu dever conjugal ao se envolver
sexualmente com um terceiro, reportando-se a um evento específico.
Suponha-se que a ação seja julgada improcedente. Em seguida, aquele
mesmo autor toma conhecimento de um novo evento (i.e., um evento
superveniente) envolvendo o réu e o terceiro. Caso se entenda que o fato
principal é, genericamente, a alegação de adultério, sendo os eventos
específicos meros fatos secundários, então o novo relacionamento do
réu com terceiro não poderá dar azo a uma nova ação com o mesmo
pedido da anterior.
Nem se diga que a possibilidade de uma nova ação com o mesmo
pedido da anterior se justificaria, nessa hipótese, simplesmente porque
o fato que nela alegado seria superveniente. Ora, ainda que superve­ -
niente, continuaria sendo secundário e, portanto, insuficiente para cons­
tituir nova causa de pedir. O óbice para a nova ação não seria a eficácia
preclusiva da coisa julgada — afinal, por motivos lógicos, o novo evento
jamais poderia ter sido deduzido no processo anterior. Seria precisa­­­ -
mente a coisa julgada formada no processo anterior. As partes seriam
as mesmas no novo processo. O pedido também. E bem assim a causa
de pedir. Nessa ordem de ideias, o réu estaria livre para manter seus
rela­
cionamentos extraconjugais sem que nada pudesse o autor fazer
para encerrar a sociedade matrimonial (ao menos sob a alegação de
adultério).

Ibid., p. 78.
64

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
70 Felipe Scripes Wladeck

Mas é claro que as coisas não se passam desse modo. O absurdo a que
o entendimento acima conduziria deixa patente que, no exemplo
cogitado, cada evento entre o réu e terceiro (seja o terceiro sempre uma mesma
pessoa ou não) deve ser considerado um fato principal, i.e., uma causa de pedir
autônoma. Nada impediria, nesse passo, que na nova ação o autor alegasse
evento de adultério não referido — propositadamente ou não — no
processo anterior, pouco importando se superveniente ou não.
Quando o autor deixa de alegar um episódio específico de adul­ -
tério no processo, quando dele tinha conhecimento, simplesmente
reduz suas chances de obter êxito no feito. Nada o impedirá, porém, de
alegá-lo em processo subsequente. Não caberá falar em litispendência
ou coisa julgada.

3.4.2 Fatos constitutivos e fatos violadores ou ameaçadores do direito


– E a causa de pedir passiva nas ações necessárias
Acima, quando se conceituou a causa de pedir remota, foi apon­tado
que a integram não apenas os fatos constitutivos do pretenso direito do
demandante, mas também os fatos violadores ou ameaçadores desse mesmo
pretenso direito.
Os fatos constitutivos do direito alegado pelo demandante compõem
o que se chama, na doutrina, de causa de pedir remota ativa. Já os fatos
lesivos ou então ameaçadores ao pretenso direito do demandante corres­
pondem ao que se convencionou chamar de causa de pedir remota passiva.
É a causa de pedir remota passiva que faz surgir, para o autor, o
interesse de agir, pois é ela que provoca a crise de direito que torna neces­
sária a tutela jurisdicional. Nas palavras de Susana Henriques da Costa:
“Dentre os elementos da demanda, o interesse de agir encontra-se inse­-
rido na causa de pedir remota, mais especificamente, na causa de pedir
remota passiva.”65 Eis o que também ensina Mandrioli, “... l’individuazione
del fatto costitutivo dovrà essere integrata con l’individuazione del
fatto lesivo affermato (o, nel caso di accertamento mero, del fatto di
contestazione), poiché, come si ricorderà, è quest’ultimo elemento che
normalmente concreta l’interesse ad agire, che pure costituisce un aspetto
della ragione del domandare e perciò un elemento della causa petendi
(si parla, a questo riguardo, di causa petendi passiva)”.66

COSTA, op. cit., p. 93.


65

MANDRIOLI, op. cit., p. 105.


66

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 71

Para solucionar as crises de adimplemento (quando o bem almejado


consiste numa prestação) existe a tutela condenatória-executiva. Para as
crises de certeza (quando o bem almejado consiste na eliminação de um
estado de incerteza jurídica, objetiva e atual) existe a tutela estritamente
declaratória. E para as chamadas crises de situação jurídica (quando
o bem almejado é a alteração de uma situação jurídica) é adequada a
tutela constitutiva. Nas demandas estritamente declaratórias, nas consti­
tu­­tivas (positivas e negativas) e nas condenatórias-executivas a causa de
pedir passiva é representada pelos fatos geradores, respectivamente,
das crises de certeza,67 situação jurídica e de adimplemento.
Mas destaque-se que nem sempre a causa de pedir passiva é composta
de fatos. Como já se disse no item 2.3.3, a causa de pedir passiva, no caso
das ações necessárias, é estritamente jurídica. Não se costuma dar o devido
destaque a isso na doutrina. Portanto, cumpre esclarecer melhor o que
se está a afirmar.
Quando uma das partes da relação de direito material resiste a
pretensão da outra a determinado bem da vida, tem-se o que o Carnelutti
chamou de “lide”.68 Para alguns autores, apenas haveria jurisdição se a
atividade estatal se referisse a uma suposta lide. A jurisdição seria uma
atividade preordenada a eliminar lides mediante a aplicação do direito
objetivo por um terceiro independente e imparcial — com o que um dos
interesses em conflito (aquele tido por conforme com o direito objetivo)
prevaleceria (com justiça) sobre o outro.
Contudo, essa tese não explica satisfatoriamente o caso das cha­
madas “ações necessárias”,69 para as quais é absolutamente irrelevante
a existência ou não da lide carneluttiana.70 Trata-se de situações em que,
diante da pretensão de um sujeito a um bem da vida, o outro nada pode
eficazmente fazer, nem aceitá-la nem opor-lhe resistência. O consenso ou
dissenso entre as partes é absolutamente irrelevante para o direito, que prevê,

67
Na verdade, como destaca Costa: “Se, por último, busca-se uma tutela declaratória, não há propriamente uma
violação ao direito do autor, mas sim um ato do réu que ponha em dúvida uma situação jurídica de titularidade
deste” (COSTA, op. cit., p. 90).
68
Vide a nota 5, acima.
69
Faz-se referência em especial às ações necessárias de jurisdição contenciosa.
70
Antônio Cláudio da Costa Machado, em estudo sobre a questão, sustenta que jamais haveria a lide carneluttiana
nas ações necessárias. Para o autor, não podendo um sujeito subordinar o seu interesse ao de outro nos casos
de ação necessária, não faria sentido falar em relação a eles em pretensão (compreendida justamente como a
exigência de subordinação do interesse de outrem ao próprio) nem em resistência a pretensão (pois a lei veda
a possibilidade de resistir). Logo, não caberia falar em lide (MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Jurisdição
voluntária, jurisdição e lide. Revista de Processo, São Paulo, n. 37, p. 68-84, jan./mar. 1985).

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
72 Felipe Scripes Wladeck

em qualquer caso, a necessidade da intervenção estatal para a satisfação


da pretensão ao bem da vida.
Alguns autores, entendendo que a jurisdição deve sempre se
referir a lides, tentam explicar o caráter jurisdicional da atividade estatal
desenvolvida nos casos das ações necessárias sob o argumento de que,
em relação a elas, haveria um “contencioso fictício”, em que a resistência
à pretensão do jurisdicionado adviria do próprio Estado: este, por lei,
vedaria a solução consensual, fazendo surgir assim uma pretensa lide.
Nesse sentido, por exemplo, Frederico Marques.71
Mas não nos parece correta tal ficção. A lide é um fenômeno
sociológico. Ou existe no plano dos fatos ou não existe. E, não existindo,
não faz sentido pretender imaginá-la apenas para tentar explicar a natu­
reza jurisdicional da atividade judiciária desenvolvida. Parece mais ade­
quado simplesmente reconhecer que a lide não é essencial para que haja
jurisdição. Com efeito, as situações “conflituosas” que (segundo o siste­ma
da “tripartição dos poderes”) ao Poder Judiciário cabe eliminar não se
limitam àquelas em que haja lide, tal como compreendida por Carnelutti.
O Estado pacifica não apenas quando elimina “lides”, mas quando eli­­­mi­na
qualquer espécie de conflito — concebido este amplamente, como um estado
de insatisfação em relação a determinada pretensão ou interesse.72
Por isso, aliás, tem-se afirmado, modernamente, a natureza juris­
dicional a “jurisdição voluntária”. Quando, por exemplo, dois sujeitos
com filhos menores de idade querem desfazer o vínculo matrimonial
entre eles existente, verifica-se um interesse comum a ser satisfeito. Mas
a lei (por razões políticas, fundadas em valores de especial relevância
para a sociedade) veda que tal dissolução se dê consensualmente. Surge
assim, a despeito de não haver interesses contrapostos, um estado de insa­
tisfação (i.e., um “conflito”, na definição aqui adotada) a ser elimi­ nado
com a assistência do Judiciário, via jurisdição voluntária. Ao eliminar

71
FREDERICO MARQUES, José. Ensaio sobre a jurisdição necessária. Campinas: Millennium, 2000. p. 120-121.
Na referida obra, o autor defende que a jurisdição voluntária teria natureza administrativa, justamente por não
se referir a lides. A seu ver, a jurisdição seria atividade necessariamente desenvolvida em torno de lides. Sendo
assim, apenas a jurisdição contenciosa seria verdadeira jurisdição. Para explicar a natureza jurisdicional das
ações necessárias de jurisdição contenciosa é que Frederico Marques recorre ao argumento de “contencioso
fictício” ou “lide presumida”.
72
Conflito coincide com insatisfação, como fenômeno psíquico decorrente da carência de um bem desejado.
Ou seja, conflito é uma “... situação objetiva caracterizada por uma aspiração e seu estado de não-satisfação,
independentemente de haver ou não interesses contrapostos. De tão amplo, esse conceito abrange os casos
em que inexiste lide (no sentido puro carneluttiano) e não se expõe às criticas dirigidas ao sistema centrado
nesta (além do mais, não é uma idéia colocada ao centro da teoria do processo, à moda de Carnelutti)”
(DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 141,
nota 151).

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 73

tal estado de insatisfação, o Judiciário pacifica pessoas que até então se


encontravam inconformadas — com o que se atinge o escopo social da
jurisdição.
Eis que conclui Costa Machado: “... não há mais lugar para o
fenômeno lide como pressuposto inafastável de jurisdição e processo.
A estreita conceituação que lhe deu Carnelutti há mais de meio século,
e que acatamos sem reservas, não satisfaz mais a exigência de elastici­ -
dade que deve ter o conceito de jurisdição.” Também negam que a
73

atividade jurisdicional deva sempre se referir a uma lide, reconhecendo


inclusive a natureza jurisdicional da “jurisdição voluntária”, os seguintes
autores, entre outros: Cândido Dinamarco,74 Leonardo Greco,75 José
Maria Rosa Tesheiner76 e João Paulo Lucena.77
Bem compreendido isso, fica mais fácil definir o conteúdo da
causa de pedir passiva nas ações necessárias. Não cabendo falar em
“lide presumida”, torna-se desnecessário recorrer ao artifício de que a
causa de pedir passiva seria a “resistência à pretensão advinda do próprio
Estado”. Também não parece adequado afirmar que as demandas neces­
sárias simplesmente não possuem causa de pedir passiva.78 Se a necessidade
da tutela jurisdicional decorre de imposição legal, conclui-se que a causa de
pedir passiva é, nas ações necessárias, estritamente jurídica. É impertinente
falar em fato violador ou ameaçador do direito. A própria lei, proibindo
(por razões de ordem política) que os jurisdicionados resolvam extraju­
dicialmente seus conflitos, torna necessária a tutela jurisdicional.
Assim, na ação de anulação de casamento por vício de vontade,
que é de jurisdição necessária contenciosa, o fato gerador do vício (por
exemplo, erro ou coação, conforme os arts. 1.156 a 1.558 do Código
Civil) consiste na causa de pedir ativa, ou seja, é o fato constitutivo
do direito ao desfazimento da relação conjugal. Já a necessidade da
intervenção judicial para o reconhecimento de tal direito decorrerá
diretamente da lei — não sendo apta a afastá-la a eventual ausência

73
MACHADO, op. cit., p. 68.
74
DINAMARCO, Cândido Rangel. Procedimentos especiais de jurisdição voluntária. In: Fundamentos do processo
civil moderno. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. t. I, p. 380-384.
75
GRECO, Leonardo. Jurisdição voluntária moderna. São Paulo: Dialética, 2003. p. 15-21.
76
TESHEINER, José Maria Rosa. Jurisdição voluntária. Rio de Janeiro: Aide, 1992. p. 40 et seq.
77
LUCENA, João Paulo. Natureza jurídica da jurisdição voluntária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. p.
127-129.
78
Oliveira, tratando das ações constitutivas necessárias, afirma que não possuem elas causa de pedir passiva. A
necessidade da tutela existiria, a seu ver, em abstrato. Decorreria “... da circunstância de o sistema não permitir
ao titular do direito potestativo, senão por meio do processo, a obtenção da alteração jurídica pretendida”
(OLIVEIRA, op. cit., p. 65).

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74 Felipe Scripes Wladeck

de resistência do demandado à pretensão do demandante de obter a


anulação do casamento.
Em suma, o fato ou conjunto de fatos violadores ou ameaçadores
do direito afirmado pelo demandante é o que se chama de causa de
pedir passiva remota. Nem sempre, porém, a causa de pedir passiva
será fática. No caso das ações necessárias, ela é estritamente jurídica: a
própria lei veda que os jurisdicionados cheguem a uma solução extraju­
dicial para o con­flito existente, impondo a necessidade de utilização da
via jurisdicional.

3.4.2.1 Causa de pedir ativa e causa de pedir remota ativa


Como se expôs anteriormente, no item 2.3, as teorias da indivi­
duação e da substanciação divergem, basicamente, em relação ao con­
teúdo da causa de pedir ativa das demandas autodeterminadas.
Para a teoria da individuação, a causa de pedir ativa nas demandas
autodeterminadas seria composta não pelos fatos constitutivos do
suposto direito, mas pela simples afirmação do direito sobre determinado
bem da vida pretendido pelo autor. O direito (dito autodeterminado)
determinar-se-ia pelo seu próprio conteúdo, não necessitando, para ser in­
di­vidualizado, dos seus fatos constitutivos. Trata-se, como se viu, daqueles
direitos que podem existir entre as mesmas partes, com o mesmo con­
teúdo e num determinado momento, apenas uma única vez. É o caso, por
exemplo, do direito de propriedade. Ninguém pode ser proprietário de
um mesmo bem, num mesmo momento, mais de uma vez. Ou se tem a
propriedade do bem ou não. Logo, especificado o bem sobre o qual se
afirma ter a propriedade, individualizado está o direito de propriedade.
Já para a teoria da substanciação, a causa de pedir ativa é composta,
em todo e qualquer caso, também pelos fatos constitutivos do direito
afirmado pelo demandante — mesmo nas demandas que os adeptos da
teoria da individuação qualificam como autodeterminadas.
Por fim, nunca é demais ressaltar que a causa de pedir ativa nas
demandas ditas heterodeterminadas é objeto de consenso entre os adeptos
de ambas as teorias. É assente que a sua identificação sempre depen­­ -
derá da apresentação dos fatos constitutivos do direito alegado, haja
vista que este — justamente por poder existir entre as mesmas partes,
num mesmo momento e com o mesmo conteúdo, por mais de uma vez —
não se permite identificar por si só (i.e., não basta indicar o bem da vida

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 75

a que se refere o direito; além do conteúdo do direito, é preciso indicar


os fatos que lhe dão origem).
Portanto, se consideradas as divergências existentes entre as
teorias da individuação e da substanciação, as expressões “causa de pedir
ativa” e “causa de pedir remota ativa” não podem ser tidas por sinôni­mas.
Causa de pedir remota ativa é o fato ou conjunto de fatos constitutivos
do direito afirmado pelo demandante. Ocorre que, segundo a teoria da
individuação, nem sempre a causa de pedir ativa é integrada pelos fatos
constitutivos do direito (demandas autodeterminadas).
Foi por isso que, no item 2.3.3, emprestou-se o conceito de causa
de pedir ativa de Oliveira, segundo o qual esta consistiria no mínimo de
informações necessário para identificar o direito alegado pelo demandante — e
cuja tutela ele pretende obter. Esse “mínimo necessário” ou seriam os fatos
constitutivos do direito alegado (para a teoria da substanciação e para
a da individuação, em relação às demandas heterodeterminadas) ou
seria a simples afirmação do direito sobre um determinado bem da vida
(para a teoria da individuação, em relação às demandas autodetermi­
nadas).Trata-se, como se vê, de conceito adequado tanto aos postulados da teoria
da substanciação quanto aos da teoria da individuação.

3.4.2.2 Conteúdo da causa de pedir passiva: consenso entre as teorias


da individuação e da substanciação
As duas teorias clássicas consentem quanto ao conteúdo da causa
de pedir passiva — seja das demandas autodeterminadas, seja das
heterodeterminadas. Ambas identificam-na com o fato ou conjunto de
fatos violadores ou ameaçadores do pretenso direito do autor.
Desse modo, tudo o que se disse no item 3.4.2 sobre causa de pedir
passiva aplica-se indistintamente àquelas duas teorias — inclusive a
ressalva a respeito da causa petendi passiva nas ações necessárias.

3.4.3 Causas de pedir remota simples, composta e complexa


A depender de seu conteúdo, a causa de pedir remota pode ser
simples, composta ou complexa.
Simples é a causa de pedir quando “... um único fato jurídico a
integra, como, por exemplo, na ação veiculando pretensão de despejo
fundada na falta de pagamento de aluguel e demais encargos (art. 9º,
inciso III, da Lei 9.245/1991).”79 Observe-se que a “simplicidade” da

CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 167.


79

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76 Felipe Scripes Wladeck

causa de pedir remota, em tal exemplo fornecido por Cruz e Tucci,


refere-se ao seu elemento passivo. Noutras palavras, a causa de pedir
passiva é que é, no exemplo, formada por um único fato — havendo,
ainda, o fato constitutivo do pretenso direito do autor, i.e., a causa de
pedir ativa (no caso imaginado, o contrato de locação tendo por objeto
um determinado imóvel...).
A causa de pedir remota é considerada composta quando existe mais
de um fato jurígeno individuador de uma mesma pretensão. Seria o
caso, por exemplo, da ação de separação judicial fundada no abandono
material do cônjuge e no inadimplemento do dever de coabitação.80
E se entende por complexa a causa de pedir quando existe mais
de um fato “individuando mais de uma pretensão”. Cite-se a seguinte
situação, igualmente imaginada por Cruz e Tucci: “... expõe o autor, em
ação visando à cobrança de verbas decorrentes de relação locatícia já
extinta, que o réu, ex-inquilino, não só inadimpliu alugueres e acessórios,
como, também, efetivou danos ao imóvel.”81
Note-se que, na verdade, nos exemplos dados por Cruz e Tucci,
a causa de pedir dita “composta” e a “complexa” não consistem, cada
uma delas, em uma única causa de pedir integrada por mais de um fato
a embasar, respectivamente, uma só ou diversas pretensões. Rigorosa­
mente, cada um dos fatos individuadores alegados consiste em uma
causa de pedir específica. Quando se somam dois ou mais desses fatos
jurígenos para fundamentar uma mesma pretensão, têm-se duas ou mais
causas de pedir — e não exatamente uma causa de pedir “composta”.
Nesse caso, ocorre o chamado “concurso objetivo (próprio) de direitos
(ou de ações)”. Da mesma forma, quando se somam dois ou mais fatos
jurígenos para fundamentar duas ou mais pretensões, têm-se duas ou
mais causas de pedir e, assim, ações cumuladas — e não exatamente uma
causa de pedir “complexa”.
No lugar da classificação em questão, poder-se-ia pensar em
outra, que dividiria a causa de pedir apenas em simples e composta. Todos
os exemplos acima seriam de causa de pedir simples, pois cada “fato
jurídico” (ou jurígeno) mencionado corresponde a uma causa de pedir
— fundamentando uma ou mais pretensões. Um exemplo de causa de
pedir composta seria o do art. 1.637 c/c art. 1.638, inciso IV, do CC, em
ação que tenha por objeto a extinção do poder familiar do pai ou da
80
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 167.
81
Id.

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 77

mãe. Nessa hipótese, um só episódio de abuso de autoridade não bastaria


para ensejar a perda do poder familiar. Seria a causa de pedir composta
por diversos episódios de abuso de autoridade contra os filhos, que refle­
tiriam a incidência habitual do demandado nas faltas do art. 1.637 e,
assim, dariam azo ao encerramento do poder familiar. A causa de pedir
seria, aqui sim, um conjunto de fatos.
Tomando-se por base a forma de classificação ora proposta,
havendo mais de um fato fundando mais de uma pretensão, não haveria
propriamente uma causa de pedir complexa. Haveria diversas causas
de pedir — simples (se delimitadas, cada uma delas, por um só fato jurí­
geno) e/ou compostas (se formadas, cada uma, por diversos fatos que,
para gerar determinada consequência jurídica, precisam ser conside­ ra­
-
dos de forma conjunta) — fundando diversas pretensões.
Destaque-se, por fim, que tanto a causa de pedir remota passiva
quanto a ativa podem ser classificadas conforme o seu conteúdo.
Partindo-se dos critérios adotados por Cruz e Tucci, em que pesem as
crí­ticas que lhes foram feitas acima, a causa de pedir ativa será “simples”
se apenas um for o fato constitutivo do(s) direito(s) alegado(s) pelo autor.
“Composta”, se dois ou mais forem os fatos constitutivos do único direito
que se pretende ver reconhecido e satisfeito (por exemplo, a pro­ prie­
dade alegada em uma ação reivindicatória pode ter fundamento, simul­
taneamente, em contrato de compra e venda e em usucapião). E “complexa”,
se dois ou mais forem os fatos constitutivos de mais de um direito plei­-
teado em juízo (o que se verificaria, por exemplo, nos casos de cumulação
de pedidos fundados em relações de direito material diversas).

4 O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro


Os conceitos e as classificações acima fixados podem ser aplicados
no estudo do conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro
— aliás, já se procurou demonstrar isso nos itens anteriores. As menções
que lhes forem feitas nos itens a seguir não serão acompanhadas de
nova exposição de seu significado.

4.1 Ressalva inicial: a definição do conteúdo da causa de pedir consiste


em questão de política legislativa
Antes de tudo, cumpre destacar que a definição do conteúdo da
causa de pedir consiste em uma questão de política legislativa. Em última

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78 Felipe Scripes Wladeck

análise, a adoção da teoria da substanciação ou da teoria da individuação


depende da opção ou não, do legislador, pela regra da eventualidade.82
A regra da eventualidade é pressuposto da teoria da substan­
ciação.83 Uma vez definido pelo legislador que (a) o demandante deve
expor já na petição inicial os fundamentos de fato do direito alegado e
os efeitos jurídicos que a partir dos mesmos pretende obter, bem como
(b) estabelecidos limites legais e momentos preclusivos para a alteração
dos fundamentos apresentados no processo, tem-se a adoção da teoria
da substanciação.
A vedação da livre alteração dos fatos e efeitos jurídicos a partir
deles pretendidos consiste no reconhecimento da imprescindibilidade
de tais elementos para a individualização da causa de pedir e da própria
demanda — e, assim, para a delimitação da atividade jurisdicional e a
viabilização do contraditório e da ampla defesa pelo demandado.84
Por outro lado, reputando o legislador que os fatos constitutivos85 do
direito alegado podem ser alterados livremente no curso do processo,
na medida em que não seriam cogentes para delimitar objetivamente a
demanda e a sentença, especialmente em se tratando de direito autode­
terminado, tem-se a adoção da teoria da individuação ou individua­ li­­
-
zação. Ou seja, a adoção da teoria da individuação pressupõe a ausência
de um momento preclusivo para a alegação dos fatos constitutivos
do pretenso direito do demandante — em relação às demandas auto­
determinadas.

4.2 O art. 282, inciso III, do CPC traz regra “tradicional” na legislação
brasileira (os Códigos de Processo Civil estaduais e o art. 158, inciso
III, do CPC de 1939)
Como lembra Cruz e Tucci, no período da “dualidade processual”,
muitos Códigos estaduais continham regra estabelecendo que na inicial
82
BEDAQUE. Os elementos..., p. 29; LEONEL. Causa de pedir..., p. 88; PINTO, Junior Alexandre Moreira. Sistemas
rígidos e flexíveis: estabilização da demanda. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos
Santos (Coord.). Causa de pedir e pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. p. 63-64; VIANA, op. cit., p. 96.
83
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 161.
84
“Como facilmente se percebe, o ônus de afirmar tem a dupla finalidade de (a) oferecer elementos ao adversário
para a efetividade de sua defesa, sabendo o que negar e o que afirmar contrariamente; e (b) delimitar a área
da tutela jurisdicional postulada, não podendo o juiz decidir com fundamento em fatos não alegados (CPC,
arts. 128 e 460)” (SILVA DINAMARCO, Pedro da. Ônus processuais: limites à aplicação das conseqüências
previstas para o seu não-cumprimento. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
Departamento de Direito Processual Civil, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. f. 101).
85
Segundo os adeptos da teoria da individuação, os fatos violadores ou ameaçadores do pretenso direito do
demandante não podem ser livremente alterados. Isso porque, também para eles, esses fatos integram a causa
de pedir passiva. Vide, a respeito, o exposto nos itens 2.3.3 e 2.4, alínea (d).

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 79

dever-se-ia não apenas invocar um direito sobre determinado bem da


vida, mas igualmente expor os fatos geradores e os violadores/ameaça­
dores desse mesmo direito. Cruz e Tucci cita, por exemplo, o Código de
Processo Civil e Comercial do Estado de São Paulo (art. 206, inciso III),
o Código Judiciário de Santa Catarina (art. 593, inciso III) e o Código
de Processo de Pernambuco (art. 174).86
Após o restabelecimento da unidade legislativa em matéria pro­
cessual, o CPC de 1939 veio igualmente a indicar, na linha dos Códigos
estaduais, a necessidade de a inicial expor o(s) fato(s) e o(s) fundamento(s)
jurídico(s) do pedido, acrescentando que essa exposição haveria de se
dar com clareza e precisão, para que o réu pudesse preparar sua defesa
(art. 158, inciso III).
A regra do art. 282, inciso III, do CPC ora em vigor foi nitida­ -
mente inspirada no art. 158, inciso III, do CPC de 1939, ao prever, com
todas as letras, que a petição inicial deve indicar, entre diversos outros
elementos, “...o fato e os fundamentos jurídicos do pedido”.
É possível, assim, dizer que existe uma tradição no direito brasileiro
de exigir que sejam apresentados, já no ato inaugural do processo, os fundamentos
fáticos e os fundamentos jurídicos do pedido. Não basta, assim, alegar o direito
sobre um bem da vida, seja qual for a sua natureza (direito absoluto ou
relativo). Exige-se, em todo caso, a exposição dos fatos que, em tese,
amparam a pretensão processual.

4.3 Composição mista da causa de pedir


Está expresso na lei, portanto, que, no processo civil brasileiro,
integram a causa de pedir não apenas os fundamentos jurídicos (“causa
de pedir próxima”) do pedido, mas também os fatos que o embasam
(causa de pedir remota, ativa e passiva).87 Fala-se, assim, em “composição
mista da causa petendi”.88

4.3.1 Necessidade de expor os fatos principais e a fundamentação jurídica


na inicial, de forma clara e precisa
Os fatos a serem necessariamente expostos na petição inicial são
apenas e tão somente os principais ou jurígenos, assim compreendidos

CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 152.


86

Sobre a causa de pedir passiva nas ações necessárias, vide os itens 2.3.3 e 3.4.2.
87

DINAMARCO. Instituições..., v. 2, p. 131.


88

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
80 Felipe Scripes Wladeck

aqueles que individualmente considerados possuem o condão de gerar


as consequências jurídicas pretendidas pelo demandante — sobre a
diferenciação entre fatos principais e fatos secundários, vide o item
3.4.1, acima.
Embora o art. 282, inciso III, do CPC não tenha mencionado que
os fatos devem ser expostos de forma clara e precisa na petição inicial,
entende-se que tal necessidade se verifica. Esse é o entendimento, por
exemplo, de Carlos Alberto Carmona: “Não consta do dispositivo legal
em apreço a determinação de que a descrição do autor seja clara e pre­
cisa — como exigem expressamente algumas leis sul-americanas de pro­
cesso; não obstante o silêncio do legislador brasileiro, concorda a melhor
doutrina que tais requisitos (clareza e precisão) foram implicitamente
acolhidos pelo nosso sistema, sendo certo, inclusive, que houve proposta
de emenda, ao tempo da aprovação do Código no Congresso Nacional,
que tendia a tornar expressa a exigência de clareza e precisão. A emenda,
porém, não foi aprovada.”89
Também Cassio Scarpinella Bueno destaca a necessidade de clareza
e precisão na exposição dos fatos da causa: “É absolutamente indispen­-
sável que o fato que justifica ou que imponha o ingresso em juízo, pelo
autor, seja descrito minuciosamente e de forma inequívoca, clara e
precisa, na inicial. Até porque é esse fato que revela o interesse de agir, a
possibilidade jurídica do pedido e a própria legitimidade das partes” (com grifos
no original).90
Por fundamento jurídico, como foi exposto anteriormente, com­
preende-se a correlação lógico-jurídica entre os fatos narrados e os efeitos
jurídicos pretendidos. Assim, é preciso que já na inicial se demonstre
haver correlação lógico-jurídica entre os fatos que o autor alega e o
pedido que formula.
A fundamentação jurídica não tem uma forma específica. Pode
ser que da simples afirmação dos fatos e formulação do pedido já fique
clara a correlação lógico-jurídica deduzida pelo demandante. Mas
pode ser, também, que se faça necessário o desenvolvimento de certo tra­
balho argumentativo para a demonstração da compatibilidade entre os
fatos e o pedido.
89
CARMONA, Carlos Alberto. Em torno da petição inicial. Revista de Processo, São Paulo, ano 30, n. 119, p. 20,
jan. 2005.
90
BUENO, Cassio Scarpinella. Comentários ao art. 458 do Código de Processo Civil. In: MARCATO, Antonio Carlos
(Coord.). Código de Processo Civil interpretado. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 895, notas ao art. 282.

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 81

O essencial, enfim, é que o pedido formulado seja, ao menos em


tese, compatível com os fatos narrados — e que tal pretensa compatibili­
dade fique, de um modo ou de outro, clara na petição inicial. O autor
não tem o ônus perfeito de descrever o exato caminho jurídico por
meio do qual, a partir dos fatos narrados, chega-se aos efeitos jurídicos
consubstanciados no pedido.

4.3.2 A inépcia da inicial na falta da causa de pedir


A falta de qualquer dos elementos da causa de pedir (fundamentação
fática e/ou a fundamentação jurídica) torna a petição inicial inepta,
conforme o art. 295, parágrafo único, inciso I, do CPC. Aliás, também
a imprecisão ou obscuridade na fundamentação fática ou jurídica pode
gerar a inépcia da inicial (conforme Scarpinella Bueno91 e Cruz e Tucci).92
E, inepta, a inicial — depois de devidamente observada a regra do art.
284 — deve ser indeferida, ex vi do inciso I do art. 295. O processo, por
conseguinte, extinto sem o julgamento do mérito (inciso I do art. 267).
Ou seja, faltando a clara e precisa demonstração da existência de
correlação lógico-jurídica entre os fatos narrados na inicial e o pedido
formulado (i.e., a fundamentação jurídica), deverá ser determinada
a emenda da inicial. Não emendada no prazo legal, a inicial deve ser
indeferida.93
Da mesma forma, se o autor não narra, com clareza e precisão, os
fatos que embasam seu pedido, a inicial é inepta por falta de funda­
mentação fática. Note-se, porém, que é possível que tal falta não seja
oportunamente notada e o réu, citado, conteste a ação e esclareça os fatos
com base nos quais o autor formula seu pedido. Ocorrendo isso, o
vício restará superado e, assim, não haverá razão para que o processo
não prossiga. É o que defende Bedaque, com amparo nos princípios
da economia processual e ausência de prejuízo. Confira-se: “A título de
exemplo recorre-se à regularidade da petição inicial, apontada como

91
BUENO, op. cit., p. 973, notas ao art. 295.
92
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 172.
93
O art. 295, parágrafo único, inciso II, do CPC estabelece que a inicial será inepta quando da narração dos
fatos não decorrer logicamente a conclusão. Também esse dispositivo compreende a hipótese de falta de
fundamentação jurídica (que nada mais é do que a correlação lógico-jurídica entre os fatos e o pedido). Mas
não só isso. A regra merece ser interpretada de modo mais amplo. Ela exige que a inicial seja um arrazoado
lógico e coerente em todos os seus aspectos. A versão dos fatos apresentada não pode ser contraditória ou
obscura nem conflitar, logicamente, com as diversas conclusões parciais contidas na petição. Trata-se, enfim,
de regra ampla, que visa em última análise a assegurar a compreensibilidade da inicial e a possibilidade do
pleno exercício do contraditório e ampla defesa pelo demandado.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
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pressuposto processual objetivo. Devem ser observados os requisitos do


art. 282 do CPC, entre os quais está a descrição do fato e dos fundamentos
jurídicos do pedido. Não satisfeita esta exigência, e não regularizado
o vício na forma do art. 284, a inicial será indeferida (parágrafo único).
Mas, e se o vício passar despercebido ao julgador e o réu, citado, além
de não argüi-lo, apresentar contestação, esclarecendo os fatos com base
nos quais o autor pretende a tutela jurisdicional? Não há razão para
extinção do processo apenas porque formalmente não atendido deter­
minado requisito de sua validade.”94

4.4 Elementos que não integram a causa de pedir


O art. 282, inciso III, do CPC não faz menção ao nomen juris,
aos fundamentos legais nem aos fatos secundários.
Assim, não se exige que o autor, na inicial, qualifique juridica­mente
os fatos que narra, ou seja, que lhes atribua um nomen juris. Nesse sentido,
escreve Scarpinella Bueno: “... não é necessário que o autor qualifique
juridicamente seu pedido, bastando fornecer, com a maior exatidão pos­
sível, a origem dos fatos que dão origem a seu pedido. É dizer: basta
ao autor afirmar que há um vício que anula contrato que firmou com
o réu, sendo indiferente que indique qual é, concretamente, este vício
(erro, dolo ou coação, por exemplo). Eventuais qualificações jurídicas
constantes da petição inicial devem ser, para o nosso sistema, entendi­das
como meras propostas de qualificação. Não são essenciais e, de resto, não
são vinculativas para o magistrado” (com grifos no original).95
Também não é necessário que o autor indique o dispositivo legal
em que ampara a sua pretensão. Trata-se de decorrência do princípio
segundo o qual iura novit curia. Nada obstante, recomenda-se, em deter­
minados casos, por razões de praticidade, a especificação do fundamento
legal. Nas palavras de Carmona: “O legislador, por óbvio, não exige do
autor o enquadramento legal de seu pedido, até porque pode não haver
lei que funde um determinado pleito. Iura novit curia, diziam os antigos:
o juiz conhece o direito, dizemos nós. Mas o cipoal de leis que estran­­-
gulou o País nas últimas décadas recomenda que os advogados — práticos,
acima de tudo — facilitem a vida dos magistrados quando for necessário

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006.
94

p. 195-196.
BUENO, op. cit., p. 895, notas ao art. 282.
95

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 83

reportar-se a portarias, normas de órgãos reguladores, circulares etc.


(tudo isso incluído no conceito largo de lei).”96
A descrição dos fatos secundários, outrossim, não é cogente para
garantir a processabilidade da demanda. Como leciona Carmona: “Não
se espera que o autor transforme sua peça inicial num longo e inter­
minável relatório, envolvendo todos os fatos circunstanciais que cercam
as partes, por medo de que, deixando de narrar algum detalhe, ainda
que desimportante, fique impedido de fazer prova do que deixou de men­
cionar, caso isto seja necessário para reforçar a convicção do julgador.”97
Com efeito, a alegação dos fatos secundários deve se dar na medida
do necessário para comprovar e reforçar a ocorrência dos fatos principais, estes sim
indispensáveis. Inclusive, muitas vezes apenas após a resposta do réu é que
o autor terá condições de verificar quais fatos secundários são realmente
relevantes para a causa e sobre os quais será necessário produzir prova.
Ou seja, “... a necessidade de confirmação do fato jurídico dependerá
das alegações do réu e das provas que serão produzidas. Cabe ao autor,
em determinada demanda de cobrança, provar que emprestou o nume­-
rário e que este não lhe foi devolvido. O motivo do empréstimo, as ten­
tativas de cobrança amigável, a solicitação do devedor para postergar
o vencimento, as mensagens prometendo pagar o débito em seu venci­
mento, tudo isso não precisa constar da petição inicial, embora possam
tais fatos simples ser objeto de prova (testemunhal, documental) se isso
for necessário para fortalecer a convicção do magistrado sobre a ocor­
rência do fato jurídico, que serve de fundamento ao pedido.”98
Uma vez que não integram a causa de pedir, o nomen juris, o fun­
damento legal e os fatos secundários não estão sujeitos a quaisquer das
restrições postas no CPC para a modificação daquela — como, v.g., as do
art. 264 do CPC. Isso não significa, porém, que não se deva observar as
garantias do contraditório e da ampla defesa, entre outros limites legais,
quando se pretender alterá-los (vide os itens 3.2, 3.3, 3.4.1 e 4.6.5).

4.5 Restrições legais à causa de pedir


Importante observar que pode a lei estabelecer limites quanto
aos fundamentos da ação. Como observa Cruz e Tucci, “... em algu­ -
mas hipóteses, mormente naquelas referentes às espécies de tutela

CARMONA, op. cit., p. 20.


96

Ibid., p. 19.
97

CARMONA, op. cit., p. 19.


98

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84 Felipe Scripes Wladeck

jurisdicional diferenciada, que se afastam do procedimento comum


ordinário, a própria legislação impõe restrições à liberdade de iniciativa
do autor quanto à demarcação da causa petendi.”99
As ações possessórias exemplificam bem isso. A lei impede que o
demandante apresente causa de pedir fundada em domínio, haja vista
a sumariedade da cognição que nelas se impõe. Análoga restrição se
verifica, por exemplo, em relação aos embargos de terceiro.
Podem ser igualmente citados o caso da impugnação ao cumpri­
mento de sentença, o da ação rescisória e o da ação anulatória de sentença
arbitral nacional. O rol de matérias arguíveis em cada uma de tais medi­
das é taxativo, i.e., não pode ser ampliado para além dos limites legais.
Seja como for, em qualquer caso os fatos constitutivos do direito
alegado terão de ser expostos na inicial, sob pena de sua inépcia.100

4.6 Estabilização da causa de pedir


O art. 294 do CPC prevê que: “Antes da citação, o autor poderá
aditar o pedido, correndo à sua conta as custas acrescidas em razão
dessa iniciativa.” Entende-se que também a causa de pedir, embora não
mencionada expressamente no dispositivo, pode ser alterada (e não
apenas simplesmente “aditada”) livremente pelo autor antes da citação
do réu.101
Essa conclusão torna-se inevitável em face do art. 264, que estabe­
lece em seu caput que: “Feita a citação, é defeso ao autor modificar o
pedido ou a causa de pedir, sem o consentimento do réu, mantendo-se
as mesmas partes, salvo as substituições permitidas em lei.” Ou seja,
depois de feita a citação, o demandante apenas pode alterar a causa de
pedir com a concordância do demandado. Antes dela, pelo que se pode
inferir, a alteração independe da concordância de quem quer que seja.

4.6.1 As restrições do art. 264, caput, do CPC se aplicam apenas aos


fundamentos de fato
Considerando-se que a causa de pedir é composta tanto pelos
fundamentos fáticos quanto pelos fundamentos jurídicos, pergunta-se:
99
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 178.
100
Sobre o interessante tema da causa de pedir nas ações rescisórias, vide: MOREIRA, José Carlos Barbosa.
Considerações sobre a causa de pedir na ação rescisória. In: Temas de direito processual. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 1989. p. 210. O autor ensina que cada uma das matérias do art. 485 do CPC funciona como “fato”
em que se fundará a rescisão — subordinando-se todas, portanto, ao regime das quaestiones facti. Tal
entendimento pode ser estendido à ação anulatória de sentença arbitral, haja vista que desempenha ela papel
análogo ao da ação rescisória.
101
LEONEL. Causa de pedir..., p. 225.

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 85

também estes últimos não podem sofrer qualquer modificação, sem o


consentimento do demandado, depois de realizada a citação?
A resposta é negativa. O impedimento do caput do art. 264 do
CPC aplica-se apenas e tão somente aos fatos. Os fatos, juntamente com o
pedido, é que determinam os limites objetivos do julgamento a ser rea­
lizado pelo juiz. Os fundamentos jurídicos não desempenham esse
mesmo papel. Afinal, iura novit curia, podendo o juiz, para decidir a causa,
seguir “caminho” — entre os fatos descritos e o pedido formulado —
diverso daquele esboçado na petição inicial.
Quer dizer, o caminho traçado pelo demandante na inicial para
demonstrar que dos fatos narrados resultam as consequências jurí­ -
dicas consubstanciadas em seu pedido final não passa de uma “proposta”.
Não vincula o juiz, que, por força da máxima segundo a qual ele conhece
o direito, pode partir de outro caminho que reputar mais adequado —
desde que, evidentemente, cinja-se aos limites dos fundamentos de fato expostos
e do pedido formulado pelo demandante (nesse sentido, v.g., Pedro da Silva
Dinamarco102 e Bedaque).103
Ademais, cabe ao demandado se defender dos fatos — e, portanto,
precisa ele conhecê-los suficientemente e a tempo para exercer o seu
direito de defesa de modo adequado. Já as alegações jurídicas formu­ladas
pelo demandante, embora possam ser impugnadas pelo demandado,
compete ao juiz apreciar, dizendo se procedem ou não e declinando as
res­pectivas razões legais. Também por isso, alterar a fundamentação jurí­-
dica no curso do processo não é vedado.
Eis que Silva Dinamarco fala em ônus do demandante “... de afirmar
todos os fatos [sobretudo os principais] de seu interesse a respeito dos
quais tenha conhecimento (CPC, art. 282, inciso III), sob pena de não
mais poder afirmá-los — ao menos naquele processo — após a citação
do demandado, salvo se este consentir (CPC, art. 264).”104
Cândido Dinamarco, sobre essa mesma questão, ensina: “Embora
também os fundamentos jurídicos se reputem incluídos na causa de
pedir e os exija a lei como requisito da petição inicial (art. 282, inciso III),
eles não concorrem para a determinação dos limites do julgamento de
mérito a ser proferido afinal. O que deve permanecer íntegro é a narrativa

SILVA DINAMARCO, op. cit., p. 104.


102

BEDAQUE. Os elementos..., p. 37.


103

SILVA DINAMARCO, op. cit., p. 99.


104

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
86 Felipe Scripes Wladeck

dos fatos, porque fora destes o juiz jamais poderá julgar (art. 128) e é dos
fatos narrados que o réu se defenderá (...). Da causa de pedir, somente
a narrativa dos fatos se estabiliza, até porque, quanto aos fundamentos
jurídicos, o próprio juiz pode trazer outros diferentes dos que o autor
haja alegado (narra mihi factum dabo tibi jus).”105

4.6.2 O art. 264, caput, do CPC não se aplica em relação a fatos


“secundários”
Mas note-se que não são todos os fatos que se sujeitam ao disposto
no art. 264, caput, do CPC. Como se disse anteriormente, os fatos
ditos secundários (que não integram a causa de pedir, tendo função
mera­­mente argumentativa ou indiciária de convencimento) podem ser
“modificados” com ampla margem de liberdade, independentemente de
concordância do réu — mas, ressalve-se, até antes de iniciada a fase de
recursos extraordinários lato sensu (quando o exame de matéria de fato
não será mais permitido) e com a observância das regras dos arts. 462 e 517
do CPC (os quais, é importante dizer, não se referem a fatos integrantes
da causa de pedir). E o juiz tem a possibilidade de tomá-los em conta
sempre que devidamente alegados ou mesmo ex officio, no momento de
proferir a sentença106 — mas jamais sem antes submetê-los a contraditório prévio
(vide o item 3.4.1, acima).
Os fatos essenciais — ou seja, aqueles sem os quais não é possível
delimitar minimamente a pretensão processual, de modo a viabilizar
o seu julgamento — são, assim, os únicos a que se aplica a proibição do
art. 264, caput, do CPC. Apenas e tão somente eles é que não podem ser
modificados sem o consentimento do réu depois de feita a sua citação.

4.6.3 Os limites do parágrafo único do art. 264 do CPC


Em seu parágrafo único, o art. 264 prevê que: “A alteração do
pedido ou da causa de pedir em nenhuma hipótese será permitida após
o saneamento do processo.” Ou seja, nem mesmo com o consentimento
do réu pode o autor alterar a causa de pedir depois de saneado o processo.
Também aqui, por “causa de pedir”, entenda-se, na linha do que se expôs
acima, causa de pedir remota.

DINAMARCO. Instituições..., v. 2, p. 74.


105

“Já os fatos instrumentais, que apenas confirmam os essenciais, sempre podem ser conhecidos de ofício pelo
106

juiz, independentemente de serem supervenientes ou não. Aliás, fatos instrumentais não podem ser deduzidos
como causa de pedir de nova demanda, incidindo sobre eles — e não sobre os essenciais — o art. 474 do
Código de Processo Civil” (SILVA DINAMARCO, op. cit., p. 182).

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 87

Não é demais observar que os fatos meramente circunstanciais


não são atingidos também por tal restrição. Com efeito, na medida
em que não integram a causa de pedir, podem os fatos secundários ser
trazidos ao processo mesmo depois de ultrapassada a fase de sanea­mento
(mas até antes do início da fase de recursos especial e extraordinário)
e ainda que ocorra expressa oposição do réu — observando-se, porém, o
disposto nos arts. 462 e 517 do CPC e, conforme já exposto, as garan­tias
constitucionais da ampla defesa e contraditório (sobre o sentido do art.
462, vide o item 4.6.5).

4.6.4 Síntese sobre os arts. 264 e 294 do CPC


De um modo geral, portanto, pode-se dizer que os arts. 264 e 294
do CPC admitem que a causa de pedir remota seja livremente modificada
antes da citação do réu; que, após a citação, a sua modificação depende
da concordância do réu; e que, saneado o processo, fica vedada qual­quer
alteração da causa de pedir remota. Por outro lado, a fundamentação
jurídica (causa de pedir próxima) e também os fatos secundários (que
não integram a causa de pedir remota) admitem alteração após os
momentos definidos por aqueles dispositivos. Apenas se exige que sejam
pre­­servados os direitos do contraditório e da ampla defesa do deman­dado
e respeitados os limites dos fundamentos de fato e das consequências
jurídicas pretendidas, bem como o disposto nos arts. 462 e 517 do CPC.
Ressalvem-se destas conclusões gerais as alterações que impliquem
a restrição da causa de pedir remota. Conforme Cândido Dinamarco: “As
alterações da demanda, quando restritivas da causa de pedir, podem ser
feitas a qualquer tempo — mesmo depois do saneamento do processo
— mas dependem da anuência do réu.”107 Essa possibilidade decorre do
art. 267, §4º, do CPC — apesar de o dispositivo falar apenas em “desis­-
tência da ação”, dando a impressão de abranger apenas as desistências
quanto ao pedido ou parte dele.
Ainda nas palavras de Cândido Dinamarco: “... ao renunciar a
algum dos fundamentos da demanda, ainda que mantendo íntegro o
pedido, o autor estará possivelmente frustrando a expectativa do réu,
de obter a improcedência da demanda por ambos os fundamentos. Tanto
quanto na desistência em relação ao pedido ou parte dele, a renúncia a
um dos fundamentos cumulados depende também de anuência do réu,

DINAMARCO. Instituições..., v. 2, p. 76.


107

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88 Felipe Scripes Wladeck

porque o fundamento pelo qual se exige esta, no processo de conhecimento,


é precisamente a legitimidade de sua expectativa de vitória na causa.”108
De fato, na medida em que a coisa julgada se põe objetivamente
nos limites do pedido e da causa de pedir, fundamental que eventual
restrição quanto a qualquer delas dependa de expressa concordância do
réu. Se este confiar na rejeição da causa de pedir que se pretende excluir,
deve manter seu interesse em sua apreciação — com o que assegurará que
o mesmo fato não venha a ser invocado em nova ação contra si proposta
pelo mesmo autor para a formulação do mesmo pedido antes deduzido.

4.6.5 A adequada compreensão do art. 462 do CPC no contexto das


regras sobre estabilização da demanda
Por derradeiro, cumpre conciliar a regra do art. 462 do CPC com
as dos arts. 128, 264 e 294.
O art. 462 prescreve que: “Se, depois da propositura da ação,
algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no
julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou
a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença.”
São comuns decisões judiciais afirmando que tal dispositivo excep­
cionaria a regra da estabilização da demanda (prevista nos arts. 264 e
294) e aquela que manda o juiz decidir “a lide nos limites em que foi
proposta” (art. 128). Mesmo os fatos supervenientes que pudessem alte­
rar a causa de pedir haveriam, assim, de ser considerados pelo juiz no
momento do julgamento.
Cândido Dinamarco, embora admita que os estritos termos do
art. 462 parecem conduzir a tal conclusão, entende que outra deve ser
a sua interpretação. Confira-se: “Mas essa impressão deve ser desfeita
diante das supremas razões político-constitucionais que impelem à
estabilização da demanda e à correspondência entre a sentença e esta.
Citado, o réu defender-se-á da alegação dos fatos narrados, mas não
pôde defender-se quanto aos fatos a cujo respeito não fora citado e dos
quais sequer conhecimento teve — agravando-se ainda a situação pelo
teor do art. 462, o qual manda que o juiz os tome em consideração
mesmo de-ofício. Acima do art. 462 do Código de Processo Civil paira a
garantia constitucional do contraditório, que impede aquela interpretação
ainda quando restrita a fatos supervenientes.”109

Id.
108

DINAMARCO. Instituições..., v. 2, p. 75.


109

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 89

Realmente, parece-nos que fatos aptos a modificar a causa de pedir


não podem ser trazidos ao processo pelo demandante (e muito menos
pelo juiz) fora dos limites do art. 264 do CPC, ainda que supervenientes e/ou
cognoscíveis de ofício.110 O parágrafo único desse dispositivo veda qualquer
alteração na causa de pedir posteriormente ao saneamento do processo.
Nessa ordem de ideias, entre os fatos supervenientes relevantes
para o julgamento da causa que podem-devem ser admitidos no processo
na forma do art. 462 estão os seguintes: (i) os secundários — até porque
mesmo quando anteriores ao ajuizamento da ação podem ser trazidos
ao processo, observadas as limitações expostas nos itens 4.6.3 e 4.6.4
deste estudo; (ii) aqueles “... narrados na inicial e ainda não ocorridos, que
venham a ocorrer depois”;111 (iii) os fatos de interesse do réu, em especial
os que a lei admite sejam alegados depois da contestação (como, v.g.,
aqueles do art. 303 do CPC); e (iv) as matérias que o juiz deve conhecer
(até mesmo de ofício) antes de julgar o mérito processual, as quais não
integram a causa petendi (v.g., art. 301, §4º). Note-se que em nenhum de
tais casos o fato superveniente implicará alteração da causa de pedir. Daí a sua
perfeita admissibilidade à luz dos arts. 264 e 294 do CPC.112 113

4.6.6 A excepcional admissão da alteração da causa de pedir (remota)


fora dos limites dos arts. 264 e 294 do CPC
Não se pode, entretanto, descartar de todo a possibilidade de um
fato superveniente apto a alterar a causa de pedir ser trazido ao processo
fora dos limites dos arts. 264 e 294, passando a integrar legitimamente o
objeto de conhecimento do juiz. Se, por exemplo, o demandado, em vez

110
Por exemplo, se o demandante pede a anulação de contrato por motivo de vício de vontade, não pode o juiz
declará-lo nulo por incapacidade absoluta de ofício ou a pedido do autor, com base no art. 462. Embora a
incapacidade absoluta seja matéria passível de ser conhecida até mesmo de ofício, não poderia ser considerada
no processo imaginado, vez que implicaria alteração da causa de pedir — e, também, do pedido (BEDAQUE.
Os elementos..., p. 47-48).
111
DINAMARCO. Instituições..., v. 2, p. 76.
112
Mas nada impede que o fato essencial superveniente (não oportunamente alegado) venha a embasar nova
ação do autor, contra o mesmo réu e com o mesmo pedido. É que nesse caso a causa de pedir será diversa,
de modo que não incidirá o óbice da coisa julgada. Aliás, também um fato essencial já existente ao tempo
do processo anterior e que nele não tenha sido alegado poderá ensejar uma nova ação do autor. A eficácia
preclusiva da coisa julgada (art. 474) não atinge fatos essenciais de interesse do autor que não tenham sido
alegados, i.e., não abrange causas de pedir não deduzidas ou dedutíveis, mas apenas fatos que lhe sejam
acessórios.
113
Quanto à causa excipiendi, o entendimento é diverso. Ao réu é permitido alegar, após a contestação, fatos
supervenientes (ou até mesmo fatos anteriores, desde que justificadamente os desconhecesse nem sejam eles
incompatíveis com os já narrados na contestação) que a alterem e, eventualmente, fulminem a pretensão
do autor (v.g., art. 303 do CPC). Isso se deve ao fato de o art. 474 atingir com maior intensidade a causa
excipiendi, impedindo que o réu obtenha futuramente, com base em qualquer argumento de defesa deduzido
ou que fosse dedutível no processo anterior, decisão oposta à coisa julgada nele formada.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
90 Felipe Scripes Wladeck

de refutar a alegação do fato superveniente pelo demandante, limita-se a


impugná-lo em seu conteúdo, i.e., a discutir a sua procedência, produzindo-
se provas a seu respeito, o juiz poderá-deverá levá-lo em conta na hora
de decidir. Com efeito, desde que tenha havido contraditório pleno a respeito
de tal fato, o que inclui a ampla realização de prova a seu respeito, não haverá
impedimento algum a que o juiz o considere no momento do julgamento.
Esse raciocínio vale, outrossim, em relação a fatos jurígenos
anteriores ao processo e que por algum motivo não tenham sido referidos
na inicial. Também tais fatos, se trazidos ao processo fora dos limites dos
arts. 264 e 294 mas submetidos ao contraditório pleno, poderão-deverão
ser conhecidos pelo juiz. Vale dizer: o réu citado tem o direito de se opor ao
conhecimento do fato. Se já saneado o feito, o fato não deve ser admitido,
mesmo que o réu haja concordado com a sua invocação. Mas se tais limi­tes
são por lapso extrapolados e o fato é integrado ao processo, debatendo
as partes suficientemente a seu respeito, de modo a possibilitar uma
decisão que o abranja, existe não a simples possibilidade, mas verdadeiro
dever do juiz de proferi-la. E isso não apenas em decorrência dos princípios da
instrumentalidade e da economia processual, mas em respeito ao dever correlação,
mesmo: o juiz tem o dever de decidir tudo aquilo e exatamente aquilo que lhe
houver sido legitimamente submetido (arts. 128, 459 e 460 do CPC).
Aplica-se, nesse ponto, a seguinte lição de Bedaque: “... pode
ocorrer que, embora indevidamente, com violação às regras técnicas
sobre preclusão e estabilização da demanda, elemento objetivo seja intro­
duzido no processo após o momento próprio. Se atentarmos para a razão
maior da vedação, lícito será afirmar que, se a matéria foi submetida ao
contraditório e à ampla defesa, concedendo-se às partes todas as opor­
tunidades para produzir prova a respeito, o vício concernente à técnica
processual não constitui óbice à participação. Assegurou-se a efetivação
do contraditório e da ampla defesa. Nessa medida, o vício decorrente
da violação da regra técnica, consistente na adstrição do provimento à
demanda, pode [rectius, deve] ser relevado. Isso porque restou preservado
o escopo desejado pelo legislador ao enunciá-la.”114
Silva Dinamarco endossa esse mesmo entendimento.115 Da mesma
forma, Cruz e Tucci, quando diferencia o que denominou de “causa de
pedir estática ou unifactual” de “causa de pedir dinâmica ou plurifactual”,

BEDAQUE. Os elementos..., p. 35.


114

SILVA DINAMARCO, op. cit., p. 147.


115

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 91

reconhece a possibilidade jurídica da solução imaginada por Bedaque.


Nos seus termos: “Interessante distinção pode ser feita entre causa de pedir
estática ou unifactual e causa de pedir dinâmica ou plurifactual. Aquela decorre
de um único acontecimento relevante para o direito, como, por exemplo,
o inadimplemento de uma prestação prevista no contrato de compra e
venda. A causa de pedir dinâmica, ao contrário, emerge de uma pluralidade
de fatos essenciais, aptos, cada um, a alicerçar uma demanda autônoma.
Ganha relevância esta espécie de causa de pedir quando, no momento
da produção da prova oral, irrompe uma nova situação fática ( fato novo)
diferente daquela afirmada na petição inicial, mas constitutiva do mesmo
direito pretendido pelo autor (exemplo: no divórcio litigioso, a autora
alega adultério e a prova colhida aponta que houve abandono do lar pelo
réu...). A solução, em tal hipótese, depende da verificação, pelo juiz, da
latitude do contraditório. Se o réu teve condição de se defender do fato
novo, surgido na instrução, nenhum prejuízo lhe acarretará, podendo,
portanto, ser julgado procedente o pedido de divórcio com base no
indigitado abandono! O imperativo da economia processual se sobrepõe,
nesta hipótese, à rigidez do dogma da estabilização da demanda” (com
grifos nos original).116
Em síntese, as regras sobre estabilização da causa de pedir (e da
demanda, como um todo) existem para ser observadas. Mas: “O que
mais importa (...) é que o pedido e a causa de pedir sejam submetidos ao
devido processo legal, ainda que sua introdução não tenha observado
as exigências legais.”117 Assim, ainda que aquelas regras não tenham sido
observadas, se tiver havido efetivo contraditório a seu respeito, os fatos jurígenos
novos, introduzidos no processo após a estabilização da demanda, haverão de ser
necessariamente considerados pelo juiz no momento de decidir.

4.7 A opção do legislador brasileiro pela regra da eventualidade


Do exposto nos itens anteriores, denota-se que no sistema proces­
sual civil brasileiro são os fatos narrados que delimitam objetivamente a
demanda e, assim, a sentença. A fundamentação jurídica, embora integre
a causa de pedir, “... não passa de mera proposta ou sugestão endereçada
ao juiz, ao qual compete fazer depois os enquadramentos adequados —
para o que levará em conta a narrativa de fatos contida na petição inicial,

CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 168.


116

BEDAQUE. Os elementos..., p. 35.


117

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
92 Felipe Scripes Wladeck

a prova realizada e sua própria cultura jurídica, podendo inclusive dar


aos fatos narrados e provados uma qualificação jurídica diferente daquela
que o demandante sustentara”.118
E existe um momento preclusivo para a alegação dos fatos que
emba­ sam a pretensão do demandante: todos os fatos jurígenos, ainda
que possam ser contraditórios entre si, devem ser expostos na petição
inicial, estando sua modificação condicionada a severos limites (art. 264
do CPC).
Não existem dúvidas, enfim, de que o legislador brasileiro optou
pela regra da eventualidade.

4.8 Qual, então, a teoria adotada no processo civil brasileiro quanto


ao conteúdo da causa de pedir?
O CPC não diz expressamente a teoria que encampa, se a da
individuação ou se a da substanciação. Mas a partir das regras que contém
acerca da causa de pedir — em especial a do inciso III do art. 282 e a
do art. 264, acima analisadas — permite chegar a uma conclusão.

4.8.1 No processo civil brasileiro não se adota a teoria da “indivi­


duação”
Do que se expôs até aqui, parece claro que não se adota, no pro­-
cesso civil brasileiro, a teoria da individuação. Como se demonstrou, o
CPC fixa momentos preclusivos para a alegação dos fatos que embasam
a pretensão do demandante — tendo-os como cogentes para a identifi­
cação do direito invocado. E isso independentemente da natureza desse
direito — i.e., se absoluto ou relativo.
Trata-se de disciplina nitidamente incompatível com a doutrina
da individuação.

4.8.2 A maioria absoluta da doutrina entende que o CPC encampa a


teoria da “substanciação”
A maioria absoluta dos doutrinadores entende que se adota, no
processo civil brasileiro, a teoria da substanciação.
Cruz e Tucci, em sua obra sobre a causa de pedir, traz citações
de diversos autores nacionais nesse sentido, entre os quais podem ser
destacados: Araken de Assis, Francisco C. Pontes de Miranda, Moacyr

DINAMARCO. Instituições..., v. 2, p. 132.


118

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 93

Amaral Santos, Frederico Marques, José Manuel de Arruda Alvim, José


Joaquim Calmon De Passos, Vicente Greco Filho, Humberto Theodoro
Júnior e Fredie Didier Júnior.119
Todos esses autores reputam que a adoção da teoria da substancia­
ção se deve, por um lado, ao fato de a legislação nacional exigir como
regra geral, para toda e qualquer ação, a exposição, já na petição inicial, não
apenas dos fundamentos jurídicos (a causa de pedir próxima) do pedido,
mas também dos fatos que supostamente originam o direito alegado e
tornam necessária a tutela jurisdicional (causa de pedir remota); e, por
outro, da existência de severos limites para a alteração dos fatos jurí­ -
genos — não é possível alterá-los livremente no curso do processo, nem
que o juiz decida com base em outros que não aqueles oportunamente
deduzidos.
Acrescentem-se, ainda, entre muitos outros autores que endos­
sam esse mesmo entendimento, os já referidos neste trabalho Moreira,
Carmona, Scarpinella Bueno, Talamini, Silva Dinamarco, Cândido
Dinamarco, Viana e Oliveira.
Moreira leciona: “Constitui-se a causa petendi do fato ou do con­
junto de fatos a que o autor atribui a produção do efeito jurídico por ele
visado.”120 Ou seja, não basta especificar na inicial o bem da vida objeto
do direito cujo reconhecimento ou satisfação se pretende. É fundamental
expor o fato ou conjunto dos fatos constitutivos do pretenso direito,
dos decorre o efeito jurídico pretendido.
Carmona, outrossim, consigna: “... sabem todos que o legislador
ancorou nosso ordenamento no princípio da substanciação”.121 Diverso
não é o entendimento de Scarpinella Bueno: “... não há dúvida, em dou­
trina e em jurisprudência, de que o art. 282, inciso III, é prova segura de
que o direito processual brasileiro filiou-se à teoria da substanciação”.122
Talamini, acerca do assunto, escreve: “... o sistema brasileiro é tradi­
cionalmente voltado à teoria da substanciação. Não apenas a causa de
pedir não é constituída por um direito alegado ou uma relação jurídica
invocada, como ainda os fundamentos fáticos assumem papel crucial.”123

119
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 153-155. As mesmas referências podem ser encontradas, quase todas, em outro
trabalho de Cruz e Tucci (CRUZ E TUCCI, José Rogério. Questões práticas de processo civil. São Paulo: Atlas,
1998. p. 22-24).
120
MOREIRA, op. cit., p. 17.
121
CARMONA, op. cit., p. 20.
122
BUENO, op. cit., p. 895, notas ao art. 282.
123
TALAMINI, op. cit., p. 73.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
94 Felipe Scripes Wladeck

De acordo com o processualista paranaense, a distinção entre


direitos heterodeterminados e autodeterminados não vinga no direito
brasileiro: “... mesmo nas ações que versem sobre direito absoluto, a causa
de pedir deve constituir-se pela exposição do(s) fato(s) de que se origina
o direito.”124 Enfim, “... não há o que justifique regime diferenciado para
os direitos absolutos e relativos. A falha da teoria dos direitos autode­
terminados parece residir no seguinte ponto: sem dúvida, não há como
alguém ser várias vezes, simultaneamente, proprietário do mesmo bem.
Porém, são concebíveis fundamentos para a propriedade independen­
tes e simultâneos de um modo tal que, se um não for procedente, outro
pode ser (exemplo: aquisição mediante inscrição imobiliária, usucapião
e sucessão). Portanto, a coisa julgada da sentença de improcedência da
ação sobre direito absoluto não impedirá outra demanda, fundada em
outro pretenso fato constitutivo.”125
Silva Dinamarco também reconhece que o CPC brasileiro adota
a teoria da substanciação, enfatizando a necessidade de o demandante
especificar na inicial, com precisão, os fundamentos de fato do pedido:
“... o direito processual brasileiro adotou a teoria da substanciação, de
modo que cabe ao autor indicar precisamente na petição inicial a causa
petendi próxima e remota, isto é, todo o conjunto de fatos constitutivos e
o fato contrário ao direito.”126
Cândido Dinamarco, de sua parte, conclui: “Vige no sistema
processual brasileiro o sistema da substanciação, pelo qual os fatos nar­
rados influem na delimitação objetiva da demanda e conseqüentemente
da sentença (art. 128) mas os fundamentos jurídicos, não.”127
Viana destaca que: “Não é apenas a redação do art. 282, inciso
III, do CPC que nos conduz a tal conclusão. É que o processo brasileiro,
ainda, adota o princípio da eventualidade, reconhecido como verdadeiro
pressuposto da regra da substanciação.”128 Como bem exara o autor, “...
nossa lei processual civil não faz nenhuma distinção quanto ao tipo de
direito que fundamenta a ação”. Assim, inclusive nas ações versando sobre
direito real, “... a petição inicial somente estará completa se descrever
também o modo ou título de aquisição da propriedade.”129
124
Ibid., p. 74.
125
Ibid., p. 75.
126
SILVA DINAMARCO, op. cit., p. 152.
127
DINAMARCO. Instituições..., v. 2, p. 132. Acerca da possibilidade de o juiz afastar-se da fundamentação jurídica
apontada na inicial, vide o item 4.6, acima. Nele, expôs-se o que Cândido Dinamarco escreve a respeito.
128
VIANA, op. cit., p. 96.
129
Ibid., p. 99.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 95

Entre muitos outros autores, cite-se, ainda, Oliveira: “Em razão de


o Código de Processo Civil exigir, para quaisquer demandas, a narrativa
dos fatos constitutivos do direito afirmado, a maior parte da doutrina
entende que nosso sistema consagrou a teoria da substanciação — opinião
que encampamos.”130
Oliveira nota, inclusive, que existe corrente doutrinária segundo
a qual se adota no Brasil um modelo intermediário, que não refletiria
integralmente os postulados da substanciação.131 José Ignacio Botelho
de Mesquita, que defende tal corrente, assim a sintetizou em conhecido
texto de sua autoria, publicado quando ainda vigente o CPC de 1939:
“É bem verdade que a nossa lei processual exige que conste da petição
inicial a indicação dos fatos constitutivos, mas isto, a meu ver, não leva
à conclusão de que tenhamos aderido àquela corrente doutrinária
[substanciação]. Com efeito, a nossa lei exige igualmente que indiquem
na petição inicial os fundamentos jurídicos do pedido. Estes, evidente­
mente pelas razões já expostas, não são nem a norma da lei, nem
tampouco as deduções jurídicas, salvo quando excepcionalmente a
norma legal sirva, à falta de outros elementos, para individuar o direito
particular feito valer pelo autor no processo. Parece-me que se deva
entender por ‘fundamentos jurídicos do pedido’ a relação jurídica con­
trovertida e o direito do particular dela decorrente. E não vejo nisto
filiação à teoria da substanciação, mas, diversamente, entendo que a
lei pro­cessual brasileira adotou uma posição de grande equilíbrio entre
ambas as correntes conflitantes, dando importância tanto aos fatos
constitutivos como aos elementos de direito, na medida em que sirvam
para individuar a pretensão do autor, como resulta da expressão legal
‘de maneira que o réu possa preparar a sua defesa’, empregada no inciso
III do art. 158 do CPC.” 132 Semelhante é a posição de Milton Paulo
de Carvalho.133
Oliveira, todavia, discorda desse entendimento. Para ele: “Afirmar
que o sistema processual civil brasileiro consagra esta ou aquela teoria
(ou mesmo um modelo intermediário) equivale a dizer — ou consistirá
em uma afirmação sem sentido aparente — que suas normas refletem

130
OLIVEIRA, op. cit., p. 55.
131
OLIVEIRA, op. cit., p. 56.
132
MESQUITA, José Ignacio Botelho de. A causa petendi nas ações reivindicatórias. Revista de Direito Processual
Civil, São Paulo, v. 6, p. 197, 1967.
133
CARVALHO, Milton Paulo. Do pedido no processo civil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1992. p. 92-93.

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96 Felipe Scripes Wladeck

os resultados práticos decorrentes da opção feita.” Sendo assim, a


partir de regras como as dos arts. 282, inciso III, 264 e 294 do CPC,
ter-se-ia necessariamente de concluir que o CPC adota sim a teoria da
substanciação. Afinal, as restrições impostas por aqueles dispositivos
para a modificação das alegações fáticas que fundamentam a demanda
seriam típicas de um sistema que reputa, em qualquer caso, os fatos
indispensáveis para a definição da causa de pedir (não apenas da passiva,
mas também da ativa) e, assim, para a identificação da demanda.134
Acrescente-se a esse argumento o de que a teoria da substanciação
não exclui da causa de pedir os fundamentos jurídicos — compreendidos estes
na forma do item 3.1, acima. Apenas coloca ao seu lado, em posição de
destaque e como indispensáveis, os elementos fáticos — sem os quais
o direito alegado jamais poderia ser adequadamente identificado. Se
assim é, o fato de o ordenamento pátrio ter se referido à necessidade
de apresentação também dos fundamentos jurídicos não permite dizer
que aqui se adotaria uma teoria híbrida. No processo civil brasileiro,
segue-se exatamente o que a teoria da substanciação prega.
De mais a mais, reitere-se que o juiz não fica vinculado aos
fundamentos jurídicos apresentados pelo demandante na inicial. Pode
muito bem deles se afastar, apenas se exigindo que não desvie dos
fatos narrados e das consequências jurídicas visadas pelo demandante.
Isso confirma que os fatos é que — ao lado do pedido — delimitam
sob o prisma objetivo, no ordenamento brasileiro, o âmbito da atuação
jurisdicional, não passando os fundamentos jurídicos de uma proposta
de caminho a ser percorrido pelo juiz para concluir a respeito da pre­
tensão do demandante.

5 As regras do Projeto de Novo CPC a respeito da causa de pedir


Está em trâmite no Congresso Nacional o Projeto de Novo CPC
(Projeto de Lei do Senado nº 166/2010).135 136 Das disposições nele
contidas, interessam, aqui, especificamente as que versam sobre a causa
de pedir. São propostas algumas alterações nas regras sobre o tema,
constantes do CPC em vigor. Cumpre verificar se, uma vez aprovado com
essas alterações, o Projeto será ou não capaz de prejudicar a conclusão

134
OLIVEIRA, op. cit., p. 56-57.
135
Texto do Projeto disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf>.
136
Para acompanhar a tramitação do Projeto no Senado Federal, acessar o seguinte site: <http://www.senado.
gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249>.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 97

acima exposta, de que se adota, no ordenamento jurídico brasileiro, a


teoria da substanciação.
***

O art. 303 do Projeto prevê, entre os requisitos da inicial, “o fato e os


fundamentos jurídicos do pedido” (inciso III). É exatamente o que prevê,
hoje, o art. 282, inciso III, do CPC. Portanto, nada muda nesse ponto.
Quanto aos fatos que deverá o demandante indicar já na inicial:
conforme exposto anteriormente, apenas os “principais” são cogentes,
tanto os que supostamente constituem o direito alegado quanto aqueles
violadores ou ameaçadores desse mesmo direito — lembrando que, no
caso das ações necessárias, a existência de lide é irrelevante, decorrendo
a necessidade da tutela jurisdicional da própria lei.
A falta de indicação dos fatos e fundamentos jurídicos que am­pa­-
­ram a pretensão torna a petição inicial inepta, impondo o seu indeferi­
mento. É o que consigna o art. 315 do Projeto, in verbis: “A petição inicial
será indeferida quando: I – for inepta (...). Parágrafo único. Considera-
se inepta a petição inicial quando: I – lhe faltar pedido ou causa de
pedir; II – da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão”.
Nesses casos, diz o Projeto de Lei, o juiz profere sentença “sem reso­ -
lu­
ção de mérito” (art. 467, inciso I). Essas mesmas regras já existem no
CPC em vigor, no art. 295, inciso I e parágrafo único, incisos I e II (vide,
a esse respeito, o item 4.3.2 e nota 93).
Mas, a exemplo do atual CPC, o Projeto estabelece que o juiz não
pode indeferir a inicial sem antes permitir ao demandante emendá-la
ou completá-la. Nos termos do seu art. 305: “Verificando o juiz que a
petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 303 e 304 ou que apre­
senta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de
mérito, determinará que o autor, no prazo de quinze dias, a emende ou
a complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido. Parágrafo
único. Se o autor não cumprir a diligência, o juiz indeferirá a petição
inicial.” Trata-se de regra semelhante à que se tem no art. 284 do atual
CPC. O dispositivo do Projeto amplia, porém, o prazo para emendar
ou completar a inicial de dez para quinze dias. Ademais, consigna
expressamente que, ao determinar a emenda ou complementação da
inicial, o juiz deve “indicar com precisão o que deve ser corrigido” —
necessidade esta que já hoje se impõe por força do dever de motivação

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
98 Felipe Scripes Wladeck

das decisões judiciais, previsto no art. 165 do CPC e no art. 93, inciso
IX, da Constituição Federal.
***

O art. 313 do Projeto prevê que: “Os pedidos são interpretados


restritivamente, compreendendo-se, entretanto, no principal, os juros
legais, a correção monetária e as verbas de sucumbência.”
O art. 293 do atual CPC contém regra semelhante, apenas sem
referência a “correção monetária” e a “verbas de sucumbência” —
embora, na atual sistemática, estejam esses itens, além de outros mais,
compreendidos no pedido, ainda que não mencionados expressamente
pelo demandante, ex vi dos arts. 20, 219, caput, e 290 do CPC e da Lei
nº 6.899/1981, conhecida como a Lei da Correção Monetária.
Mas não são exatamente esses aspectos que interessam ao presente
trabalho. Importa aqui, precisamente, destacar que também a causa de
pedir (remota) deverá ser interpretada restritivamente, em que pese o
Projeto — na linha do atual CPC — nada ter dito a esse respeito (vide
o item 3.4, acima).
***

Uma alteração relevante a respeito da causa de pedir é a que


decorre do art. 314 do Projeto, o qual expõe: “O autor poderá, enquanto
não proferida a sentença, aditar ou alterar o pedido e a causa de pedir,
desde que o faça de boa-fé e que não importe em prejuízo ao réu, asse­
gurado o contraditório mediante a possibilidade de manifestação deste
no prazo mínimo de quinze dias, facultada a produção de prova suple­
mentar. Parágrafo único. Aplica-se o disposto neste artigo ao pedido
contraposto e à respectiva causa de pedir.”
Os arts. 264 e 294 do CPC, como se viu, preveem que a causa de
pedir (remota) pode ser livremente modificada antes da citação do réu;
que, após a citação, a sua modificação depende da concordância do réu;
e que, saneado o processo, fica vedada qualquer inovação. O art. 314
do Projeto, porém, elimina esses limites. Em seu lugar, estabelece que a
causa de pedir e o pedido podem ser “alterados ou aditados” a qualquer
tempo no processo, “enquanto não proferida a sentença”. Apenas se exige
que a alteração ou aditamento seja feito de boa-fé e não gere prejuízos
ao demandado, que deve inclusive poder se manifestar (no prazo mínimo

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O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 99

de quinze dias)137 a respeito das modificações na causa de pedir e/ou


pedido e, se for o caso, produzir provas suplementares.
Ou seja, segundo o Projeto, as inovações na causa de pedir jamais
dependerão de concordância do réu, sejam realizadas antes ou depois da
sua citação. Ademais, deixa de haver proibição de realizar modificações
depois do saneamento do processo: as modificações serão possíveis
“enquanto não proferida a sentença”. Deve-se entender que, em princípio,
serão admitidas as modificações realizadas até a conclusão dos autos
para a sentença do juiz. Mas não se pode descartar a possibilidade de o
juiz converter o feito em diligência, determinando o exercício do contra­
ditório e da ampla defesa a respeito de modificação na causa de pedir,
se esta houver sido realizada pelo demandante depois de já conclusos os
autos para sentença.138 Se não ficar caracterizada a má-fé do autor139 e
ainda houver tempo para o réu se manifestar e defender-se plenamente,
pode-deve o juiz admitir a alteração ou o aditamento pretendido.
Destaque-se que o art. 314 do Projeto estabelece que a alteração
ou aditamento da causa de pedir (ou do pedido) será possível apenas
se caracterizada a boa-fé do demandante e, cumulativamente, não houver
prejuízos ao réu. Assim, de nada adiantará a boa-fé do demandante
se a modificação pretendida de alguma forma puder dificultar a defesa
do réu.
Trata-se de regra nitidamente inspirada, por um lado, na garantia
do acesso à justiça e no princípio da economia processual e, por outro,
no princípio da segurança jurídica e nas garantias da ampla defesa
e contraditório: dá-se ao autor a possibilidade de “alterar ou aditar” a
causa de pedir (ou o pedido) durante praticamente todo o procedi­mento
perante o juízo a quo — permitindo que o processo em curso seja apro­­-
veitado ao máximo, para uma solução o mais completa e ampla pos­sível
para o conflito existente entre as partes; mas, em contrapartida, criam-
se limites às modificações pretendidas, a fim de preservar o caráter
democrático e dialético do processo, em nome de ditames que são lhe

137
O que significa que o juiz pode, conforme as particularidades do caso, ampliar esse prazo.
138
Imagine-se que o demandante protocola petição requerendo a modificação da causa de pedir quando os
autos já estão “conclusos para sentença”. Se a sentença ainda não houver sido proferida, o juiz, tomando
conhecimento da existência da petição, pode-deve (se presente a boa-fé do demandante e ainda for possível
ao demandado exercer seu direito de defesa) acolher a modificação.
139
Especialmente após a fase de saneamento, não deverão ser admitidas alterações no pedido e/ou na causa
de pedir que não tenham sido realizadas anteriormente por simples desídia do demandante ou, então, de
forma planejada, com o objetivo de causar “surpresa” ao demandado e dificultar a sua defesa.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
100 Felipe Scripes Wladeck

fundamentais e estão, inclusive, albergados na Constituição Federal


(contraditório, ampla defesa...).
Na verdade, a solução prevista no art. 314 do Projeto vem sendo
aceita, excepcionalmente, por parte da doutrina já na atual sistemática.
Conforme se expôs no item 4.6.6, alguns autores defendem que se um
determinado fato jurígeno (ou principal) é inserido no processo fora dos
limites dos arts. 264 e 294 e as partes acabam (por lapso ou não) por
debater suficientemente a seu respeito, de modo a viabilizar uma decisão
que o abranja, passa a existir não a simples possibilidade, mas verda­deiro
dever do juiz considerá-lo ao julgar. O que o art. 314 do Projeto faz, ao
eliminar os limites temporais dos arts. 264 e 294, é tornar regra essa solução
que hoje é admitida por poucos e apenas em situações excepcionais.
***

Outra regra do Projeto que merece destaque é a do art. 467, §4º,


que diz: “Oferecida a contestação, o autor não poderá, sem o consenti­
mento do réu, desistir da ação.” Conforme se expôs no item 4.6.4, o art.
267, §4º, do CPC — do qual o art. 467, §4º, do Projeto é praticamente
uma repetição140 — veda também a restrição da causa de pedir sem a con­
cordância do réu citado. Ou seja, depois de o réu ter sido citado, não
será possível restringir a causa de pedir sem a sua anuência.
O Projeto mantém, portanto, essa mesma disciplina. A restrição
da causa de pedir poderá se dar a qualquer tempo, mesmo depois do
saneamento. Mas sempre dependerá da concordância do réu — quando este
já houver sido citado. As razões para tanto são aquelas expostas no
item 4.6.4. Não cabe repeti-las no presente ponto do trabalho. Aqui,
impende apenas destacar que a concordância do réu será necessária
apenas em casos de restrição, mas não nos demais casos de modificação da
causa de pedir — quando se aplicará a regra do art. 314 do Projeto.
***

O art. 475 do Projeto prevê: “Se, depois da propositura da ação,


algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no
julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou
a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença. Parágrafo

O art. 267, §4º, do CPC utiliza, porém, na sua parte inicial, no lugar de “oferecida a contestação”, a expressão
140

“depois de decorrido o prazo para resposta”.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 101

único. Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes sobre


ele antes de decidir.”
Como se vê, o caput do artigo é exatamente igual ao art. 462 do
atual CPC. A interpretação que lhe deve ser conferida é, portanto, a mesma
que a este é dada. Por economia, reporta-se, nesse tocante, ao exposto no
item 4.6.5, acima. Em suma, o referido dispositivo do Projeto, ao contrá­
rio do que pode parecer, não está a permitir que o juiz, no momento
de sentenciar, leve em consideração, de ofício ou a requerimento da
parte, fatos jurígenos (ou principais) supervenientes ou não oportuna­
mente alegados.
O ideal seria que a redação do dispositivo do Projeto fosse refor­
mulada, para indicar claramente o seu real (e correto) sentido. Isso
implicaria, inclusive, excluir os pretensos sinais de que apenas os fatos
supervenientes ou novos poderiam ser conhecidos no curso do pro­ -
cesso. Afinal, não existe impedimento a que os “fatos secundários” anteriores ao
início do processo sejam-lhe trazidos no seu curso — existem apenas os limites
do art. 517 e aqueles relacionados aos direitos da ampla defesa e do
contraditório.141
O parágrafo único do art. 475 do Projeto, por sua vez, positiva
orientação doutrinária (exposta no item 4.6.6) no sentido de que as
partes devem ter oportunidade de se manifestar a respeito de alterações
realizadas de ofício pelo juiz no panorama fático da causa (fatos ati­ -
nentes à defesa e “fatos secundários” relacionados à demanda). 142
Da
mesma forma, se a alteração for promovida por uma das partes, a outra
deverá ter a oportunidade de se manifestar a seu respeito. Trata-se,
enfim, de mera especificação dos direitos constitucionais do contraditório
e da ampla defesa.
***

Por derradeiro, cumpre fazer referência ao art. 489 do Projeto.


Consigna o dispositivo que: “Transitada em julgado a sentença de mérito,
considerar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e as defesas que

141
O Projeto mantém, inclusive, a regra que consta, hoje, no art. 517 do CPC, que prevê limite para a alegação,
em sede de apelação, de “questões de fato não propostas no juízo inferior” — o que não inclui fatos aptos
a alterar a causa de pedir, aos quais se aplicam as regras dos arts. 264 e 294 do CPC (conforme: MIRANDA,
Gilson Delgado. Comentários aos artigos 274 a 281, 496 a 521 e 530 a 538. In: MARCATO, Antonio Carlos
(Coord.). Código de Processo Civil interpretado. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 1.766, notas ao art. 517).
Confira-se o art. 927 do Projeto (houve apenas uma correção formal, com a eliminação de uma vírgula que,
no art. 517 do CPC, está mal posicionada).
142
Reitere-se: o dispositivo não trata de alterações na causa de pedir.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
102 Felipe Scripes Wladeck

a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido,


ressalvada a hipótese de ação fundada em causa de pedir diversa.”
A regra é semelhante ao art. 474 do CPC vigente. Além de apri­
morar a redação deste artigo, o Projeto acrescenta-lhe a ressalva de que
a “eficácia preclusiva da coisa julgada” não abrange aqueles fatos que
constituam causas de pedir diversas da(s) apresentada(s) no processo
em que proferida a sentença transitada em julgado. Assim, alterada a
causa de pedir, em novo processo contra o mesmo réu e para formular
o mesmo pedido do processo anterior, afasta-se o óbice da coisa julgada.
Logo, não haverá de se falar na sua eficácia preclusiva.
Nada há de novo nisso, em relação ao que se tem no CPC de 1973.
Embora o art. 474 não diga expressamente, não se nega que a eficácia
preclusiva da coisa julgada abrange apenas e tão somente os chamados
“fatos secundários” ou “circunstanciais” referentes ao pedido, além
dos fundamentos fáticos de defesa do réu — os quais são, aliás, atingidos
mais severamente pela regra (vide, a esse respeito, o exposto nas notas
112 e 113, acima).

***
Como se vê, são poucas as mudanças pretendidas com o Projeto
acerca do conteúdo da causa de pedir.
A causa de pedir continuará sendo eminentemente fática, caso as
regras acima venham a ser aprovadas tal como apresentadas ao Con­ -
gresso. A ausência de indicação dos fatos constitutivos do direito alegado
(além dos fatos violadores desse mesmo direito) já na petição inicial
implicará a inépcia desta — a exemplo do que se passa hoje, na sistemá­
tica do CPC. Isso porque os fatos continuarão sendo indispensáveis para
a identificação do direito no qual se funda a pretensão.
Depois, o juiz não poderá decidir com base em fatos jurígenos
(constitutivos e violadores ou ameaçadores do pretenso direito) diversos
daqueles devidamente alegados pelo autor. Com efeito, o art. 475 do
Projeto não permite que o juiz conheça de fatos jurígenos de ofício,
i.e., não permite que ele modifique a causa de pedir remota (ativa ou
a passiva) por conta própria. Apenas o autor é que pode fazê-lo, mas
sempre mediante a observância dos limites legais.
Mudarão, é verdade, os limites legais para a alteração ou adita­ -
mento da causa de pedir (remota). As limitações dos arts. 264 e 294 do

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 103

CPC serão substituídas pelas do art. 314 do Projeto, mais brandas do que
aquelas. Isso não significa, porém, que o princípio da eventualidade
será abandonado ou que os fatos deixarão de ter importância para a
identificação da causa de pedir e da demanda.
O princípio da eventualidade continuará sendo acolhido justa­ -
mente na medida em que continuará havendo limites à modificação
dos fatos constitutivos e, também, dos fatos violadores ou ameaçadores
do direito alegado. Vale dizer: esses fatos deverão ser necessariamente
alegados já na petição inicial. Antes da citação, poderão ser livremente
alterados ou aditados pelo demandante. Depois da citação, porém, os
fatos apenas poderão ser aditados ou alterados pelo demandante se,
além de presente a boa-fé deste, a modificação não for apta a gerar
prejuízos ao direito de defesa do demandado. Ademais, proferida a sen­
tença, simplesmente não haverá mais como modificar os fatos jurígenos: terá
sido ultrapassada a “fase-limite” do processo até a qual modificações
em relação aos fatos jurígenos ou principais são em tese possíveis (“pre­-
clusão por fase do processo”, modalidade de preclusão temporal).
Por todas essas razões, conclui-se que, com a eventual entrada em
vigor do “Novo CPC”, não se deixará de adotar no ordenamento jurí­ -
dico brasileiro a teoria da substanciação. A causa de pedir continuará
sendo integrada pelos fatos constitutivos do direito alegado — além dos
fatos violadores ou ameaçadores.143 Sem que esses fatos tenham sido
devida e oportunamente especificados nos autos, o direito alegado não
estará devidamente identificado e, por conseguinte, o mérito da causa
não poderá ser julgado.

6 Considerações finais
A teoria da individuação e a teoria da substanciação, como se
expôs, divergem apenas em relação ao conteúdo da causa de pedir ativa
das demandas que os adeptos da primeira chamam de autodeterminadas.
Para teoria da individuação, tal conteúdo seria formado apenas pelo direito
afirmado sobre um dado bem da vida. Para a teoria da substanciação, seria
ele composto também pelos fatos constitutivos do direito afirmado.
Em relação ao conteúdo da causa de pedir ativa das demandas
heterodeterminadas e em relação ao conteúdo da causa de pedir passiva

Sobre a causa de pedir passiva nas demandas necessárias, faz-se remissão, mais uma vez, ao exposto nos
143

itens 2.3.3 e 3.4.2.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
104 Felipe Scripes Wladeck

das demandas auto ou heterodeterminadas existe consenso entre


aquelas duas teorias. Ambas entendem que elementos de fato os integram
(item 2.3).
Embora a diferença entre as teorias seja apenas parcial, os efeitos
práticos da adoção de uma ou outra — e tal opção cabe ao legislador —
são bastante variados, conforme exposto no item 2.4. Trata-se, portanto,
de questão de relevância não meramente teórica, mas sobretudo prática.
No Brasil, conforme demonstrado no item 4.7, adotou-se o prin­
cípio da eventualidade, que, conforme a doutrina sobre o tema, consiste
no pressuposto da teoria da substanciação. E no ordenamento pátrio
não se distinguem direitos autodeterminados e heterodeterminados
para fins de definição do conteúdo da causa de pedir. Em qualquer caso,
a causa de pedir ativa é composta pelos fatos constitutivos do direito — os
quais devem ser expostos na inicial, sob pena de inépcia da mesma.
A circunstância de o CPC exigir que na inicial sejam mencionados
também os fundamentos jurídicos da pretensão processual não permite
dizer que ele adota uma teoria híbrida. Isso não apenas porque a teoria
da substanciação não nega a necessidade de demonstração da corre­
lação lógico-jurídica entre os fatos alegados e o pedido formulado, mas
também porque os fundamentos jurídicos não vinculam o juiz. Vale dizer,
a fun­ damentação jurídica apresentada pelo demandante não passa de
uma proposta de “caminho” (entre os fatos alegados e o pedido) a ser
percorrido pelo juiz para decidir a causa. Uma proposta que não precisa
ser necessariamente adotada, exigindo-se do juiz apenas que não se
afaste dos fatos narrados na inicial e dos efeitos jurídicos pretendidos.
Enfim, conclui-se, com a doutrina majoritária, que se adota, no
Brasil, a teoria da substanciação.
Sem prejuízo dessa conclusão, concorda-se com Leonel quando ele
diz que mais importante do que buscar identificar qual corrente afinal
adotamos é reconhecer que, de acordo com a nossa legislação, “... há
necessidade de indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, a título
da causa, em maior ou menor grau, ou com maior ou menor especifi­ -
ci­dade, de acordo com cada caso concreto, na medida de sua impres­
cindibilidade para a identificação da demanda.”144
Ou seja, “... pode-se afirmar que respeitadas as peculiaridades
de cada caso, em cada espécie de demanda, ou ainda dos direitos
LEONEL. A causa..., p. 140.
144

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010
O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC 105

especificamente deduzidos em juízo, haverá maior ou menor necessidade


dos fatos constitutivos, que de uma forma ou de outra serão sempre necessários,
por expressa opção legislativa, indicada no art. 282 do CPC. A especificação
mínima quanto aos fatos obedecerá a duas premissas básicas, isto é,
devem ser declinados os fatos a ponto de permitir, de forma mínima,
a individualização da demanda, e ainda de sorte a propiciar o exercício
do contraditório e da ampla defesa pelo demandado, na medida em
que este deve ter conhecimento do suporte causal mínimo, para que
possa formular a sua defesa. São os fatos essenciais. Respeitado o con­
teúdo mínimo da demanda, o mais que eventualmente vier a ser deduzido
pelo autor, que poderíamos inclusive inserir na categoria relacionada
aos fatos secundários, seguramente variará em função da maior ou
menor disposição ou convicção probatória, ou ainda em função da
estra­tégia processual adotada com o escopo de obtenção de sucesso na
empreitada judicial” (sem grifo no original).145
Em suma, o fundamental é reconhecer que, por opção do legislador
pátrio, os elementos de fato (não apenas os fatos violadores ou ameaça­
dores do direito afirmado, mas também os fatos constitutivos deste)
integram a causa de pedir (sempre devendo ser declinados, em maior ou
menor grau, a depender do caso concreto, pelo demandante na inicial,
sob pena de sua inépcia) e que isso gera consequências práticas rele­ -
vantes — vide o item 2.4. 146

E não deixará de ser assim caso o Projeto de Novo CPC (de


nº 166/2010, do Senado Federal) venha a ser aprovado com as regras
analisadas no item anterior. Conforme demonstrado, os dispositivos do
Projeto sobre a causa de pedir deixam claro que os fatos constitutivos
do direito continuarão sendo fundamentais para a sua plena identifi­­ -
cação, devendo ser declinados na petição inicial (sob pena de sua inépcia)
e estando sujeitos a limitações diversas para que possam ser alterados
pelo demandante — justamente por serem indispensáveis para a
identificação da demanda.

Abstract: This paper analysis the content of the cause of action in Brazilian
Civil Procedure Law. It shows that the Civil Procedure Code adopts the
“substantiation theory”, by requiring that the plaintiff indicate the facts that
constitute the alleged right (be it “relative” or “absolute” in nature) in the

Id.
145

Está-se a referir justamente às consequências práticas que a adoção da teoria da substanciação implica.
146

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106 Felipe Scripes Wladeck

Statement of Claim and, moreover, by limiting the cases in which these facts
may be changed at later points in the procedure. This conclusion will not be
affected by the New Civil Procedure Code Project (Senate Bill 166/2010), if
it is approved and sanctioned as presented to the National Congress.
Key words: Content of the cause of action. Brazilian civil procedure law.
Substantiation theory and individuation theory. New Civil Procedure Code
Project.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

WLADECK, Felipe Scripes. O conteúdo da causa de pedir no processo civil brasileiro e o


Projeto de Novo CPC. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 18, n. 72, p. 45-106, out./dez. 2010.

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A presunção judicial no Estado Democrático de Direito: uma análise crítica do artigo 335 do Código... 107

A presunção judicial no Estado


Democrático de Direito: uma análise
crítica do artigo 335 do Código de
Processo Civil
Henrique Yukio Pereira de Souza1
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, especialista em Direito Público
pelo CAD (Centro de Atualização em Direito). Pós-graduando do curso de Direito Processual Civil
Aplicado do CEAJUFE (Centro de Estudos Jurídicos da Área Federal).

Resumo: Busca uma reflexão acerca do tema da presunção judicial no Brasil


a partir de uma análise crítica do artigo 335 do Código de Processo Civil. Faz
uma exposição dos paradigmas constitucionais modernos e de suas respec­
tivas teorias sobre o processo. Critica a teoria instrumentalista do processo,
contrapondo-a a uma nova abordagem teórica, adequada às exigências do
Estado Democrático de Direito, chamada de teoria neoinstitucionalista do
processo. Apresenta e analisa os conceitos e as características dos institutos
da prova e da presunção. Apresenta e analisa os termos regras de experiência
comum e regras de experiência técnica. Examina o referido dispositivo legal
diante do paradigma constitucional hodierno.
Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Presunção judicial. Teoria
neoinstitucionalista do processo.
Sumário: 1 Introdução – 2 Os paradigmas constitucionais modernos e
as teorias processuais – 3 A prova – 4 Sistemas de avaliação da prova – 5
Presunção – 6 Breve histórico da presunção – 7 Classificação das presunções
– 8 Regras de experiência comum e regras de experiência técnica – 9 Análise
do artigo 335 do CPC à luz da teoria neoinstitucionalista do processo e do
Estado Democrático de Direito – 10 Considerações finais – Referências

1 Introdução
Ao mesmo tempo em que a presunção iuris é objeto de vários manuais
e textos jurídicos, a presunção simples, não obstante sua relevância
histórica e jurídica, recebe da doutrina pátria um tratamento escasso e
superficial, o que inviabiliza uma abordagem mais rigorosa e atualizada
da matéria, dentro do contexto do Estado Democrático de Direito.
O presente trabalho visa a suprir, ainda que minimamente, a omis­
são que vem sendo perpetrada quanto à presunção judicial, mediante
uma análise crítica do artigo 335 do Código de Processo Civil. Para
tanto, serão expostas as teorias sobre o processo atualmente adotadas
e defendidas no Brasil, bem como os paradigmas constitucionais que

E-mail: <henriqueyukio@gmail.com>.
1

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108 Henrique Yukio Pereira de Souza

serviram de horizonte para tais construções teoréticas. Após, será feita


uma breve explicação acerca da prova e seus sistemas de avaliação, suce­
dida de uma concisa abordagem do instituto da presunção hominis no
ordenamento jurídico brasileiro. Feito isso, será identificado o arcabouço
teórico que sustenta o dispositivo legal analisado, dentro do quadro
conceitual trabalhado.
Pretende-se, neste artigo, demonstrar, com base na teoria neoins­
titucionalista de Rosemiro Pereira Leal, que a autorização concedida ao
juiz pelo art. 335 do CPC para decidir baseado em regras de experiência
é inconstitucional, pois viola princípios processuais expressamente pre­
vistos na Constituição — como o contraditório, a ampla defesa e o devido
processo legal.
Espera-se que esse artigo seja capaz de lançar um enfoque mais
atualizado sobre o art. 335 do CPC, consentâneo com o Estado Democráti­
co de Direito e apto a ensejar novas e frutíferas discussões sobre o tema.

2 Os paradigmas constitucionais modernos e as teorias processuais


Thomas Kuhn, contrariando Karl Popper, disse que as teorias
científicas são construídas a partir do paradigma vigente de sua época e
que o desenvolvimento científico não é linearmente progressivo e pacífico,
mas se dá mediante rupturas, saltos. Sobre o conceito de paradigma,
Menelick de Carvalho Netto, diz:

Tal noção apresenta um duplo aspecto. Por um lado, possibilita explicar o


desenvolvimento científico como um processo que se verifica mediante rup­
turas, através da tematização e explicitação de aspectos centrais dos grandes
esquemas gerais de pré-compreensões e visões de mundo, consubstanciados no
pano-de-fundo naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas
sociais, que a um só tempo tornam possível a linguagem, a comunicação, e
limitam ou condicionam o nosso agir e a nossa percepção de nós mesmos e do
mundo. Por outro, também padece de óbvias simplificações, que só são válidas
na medida em que permitem que se apresentem essas grades seletivas gerais
pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemôni­
cas em determinadas sociedades por certos períodos de tempo e em contextos
determinados. (CARVALHO NETTO, 1999, p. 78)

O paradigma, portanto, consiste num pano de fundo, um referen­


cial do olhar, uma forma de compreensão do mundo que cria a sensação
hegemonicamente compartilhada de segurança, de óbvio. Este horizonte
de sentido possível só perdura enquanto é capaz de oferecer soluções

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A presunção judicial no Estado Democrático de Direito: uma análise crítica do artigo 335 do Código... 109

satisfatórias para os problemas enfrentados pela comunidade científica.


A partir do momento em que um paradigma não consegue mais lançar
luz, de forma convincente, sobre as questões que afligem os cientistas,
ocorre uma cisão, uma verdadeira revolução científica, caracterizada
pelo choque entre dois paradigmas: o obsoleto e um novo que surge,
confrontando o antigo.
O conceito de paradigma também se aplica ao Direito. Marcelo
Andrade de Oliveira Cattoni, seguindo as ideias de Jürgen Habermas,
define os paradigmas jurídicos como as visões exemplares de uma comunidade
jurídica acerca de como o mesmo sistema de direitos e princípios constitucionais
podemserconsideradosnocontextopercebidodeumadadasociedade (OLIVEIRA,
2002, p. 82).
Para fins do presente estudo, serão abordados, de forma sucinta,
os três grandes paradigmas jurídicos da modernidade, quais sejam, o do
Estado de Direito, o do Estado de Bem-Estar Social e o do Estado Demo­
crático de Direito, que se sucedem num processo de superação e subsunção
(CARVALHO NETTO, 1999, p. 79).
No Estado de Direito ou Estado Liberal, surgido no século XVIII,
entendia-se que deveria ser estabelecido o mínimo possível de leis gerais
e abstratas, pois a liberdade estava associada à ideia de fazer tudo aquilo
que a lei não proibisse. Assim, quanto menos leis houvesse, mais livres
seriam as pessoas. Nesta época, a liberdade, bem como a igualdade, eram
meramente formais, não havendo qualquer preocupação no sentido
de materialização efetiva de tais princípios.
O modelo estatal existente era o de um Estado mínimo, estritamente
ligado à legalidade, com um ordenamento jurídico formado por regras
essencialmente negativas e individualistas. Dentro desse contexto, a
atividade jurisdicional era puramente mecânica: o juiz deveria ser uma
mera boca da lei (bouche de la loi), não podia realizar qualquer atividade
interpretativa, mas apenas fazer uma leitura direta dos enunciados,
sempre claros e completos. Havia, nesse tempo, uma mitificação da lei
enquanto expressão máxima da racionalidade humana, uma convicção de
que a figura do legislador era capaz de reduzir todos os conhecimentos e
de prever todos os conflitos humanos num único texto, que dispensaria
qualquer interpretação.
As teorias do processo em voga no Estado Liberal (processo como
contrato ou como um quase-contrato) não têm relevância para os fins

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deste trabalho. A única exceção fica por conta da teoria do alemão


Oskar von Büllow que, em sua obra de 1868 — Teoria dos Pressupostos
Processuais e das Exceções Dilatórias, marco inicial da chamada fase autono­
mista ou conceitual do processo —, trata o processo como uma relação
jurídica angular entre autor, réu e juiz, ocupando este uma posição de
superioridade em relação às partes (GONÇALVES, 1992).
Bülow, influenciado pelas concepções individualistas do Estado
Liberal, trouxe ao processo a figura, já dogmática no Direito Civil, da
relação jurídica, enquanto um vínculo jurídico de direitos e deveres entre
sujeitos. Este liame normativo — dotado de um caráter de imperatividade,
opressão e dominação de um sujeito sobre o outro — tinha como pilar
a ideia de direito subjetivo, tido como um poder absoluto, derivado da
liberdade, de submeter a conduta alheia (GONÇALVES, 1992). Esta visão
do processo teve grande influência sobre a chamada corrente instrumen­
talista, que será exposta a seguir.
Com o fim da Primeira Guerra Mundial, surgiu o paradigma do
Estado Social ou do Estado de Bem-Estar Social, marcado pela ideia de
que os direitos, antes só garantidos formalmente, deveriam ser mate­
rializados. Destarte, houve o surgimento de novos direitos (direitos sociais
e coletivos) bem como a redefinição daqueles já existentes. Em razão
dessa exigência de materialização dos direitos, o Estado deixou de ser
mínimo para se tornar gigantesco, tendo sua área de atuação exponen­
cialmente ampliada.
A sociedade e o Direito se tornaram mais complexos. O juiz
preci­­
sava adotar métodos hermenêuticos mais sofisticados, não podia
mais ficar limitado à insípida subsunção lógica na aplicação da lei —
o silogismo simplista de outrora cedeu lugar a análises sistêmicas, histó­­-
ricas e teleológicas. A mitificação da lei cedeu espaço ao mito da auto­-
ridade. As legislações passaram a conter cláusulas gerais, de conteúdo
indefinido e significado moral, que ampliaram os poderes do juiz, visto
como um tutor da sociedade, um guardião de valores, um tradutor do
bem comum.
Nesse contexto, surgiu no Brasil a teoria instrumentalista do processo
— denominação difundida a partir dos trabalhos de Cândido Rangel
Dinamarco —, elaborada pela Escola Paulista de Processo, que teve como
grande mentor o italiano Enrico Tullio Liebman. Essa teoria predomina
até hoje em grande parte da doutrina brasileira.

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A presunção judicial no Estado Democrático de Direito: uma análise crítica do artigo 335 do Código... 111

Adotando as ideias civilistas de relação jurídica e direito subjetivo


que Bülow aplicou à teoria processual, a corrente instrumentalista con­
ceitua o processo a partir de uma distinção entre este e procedimento,
sendo que esta diferenciação é feita segundo critérios teleológicos.
O procedimento é visto como uma manifestação fenomenológica
do processo, algo puramente formal e desprovido de qualquer finalidade.
Ele se resume a uma mera técnica que organiza racionalmente e dá uma
sequência lógica ao processo. Este, por sua vez, tem como traço essencial
a sua finalidade de exercício do poder, de ser um instrumento para a
atuação da jurisdição e, consequentemente, para que fins metajurídicos
perseguidos pelo Estado (pacificação social, educação para a consciência,
afirmação do poder estatal, dentre outros) possam ser alcançados
(GONÇALVES, 1992).
A metajuridicidade dos escopos processuais, contudo, acabou
conferindo poderes em excesso ao juiz, pois criou uma esfera de atuação
do magistrado que não era possível de ser fiscalizada pela sociedade.
Sobre esse problema, diz Dhenis Cruz Madeira:

Toda e qualquer motivação decisional deve ser extraída do discurso dialógico-


processual. Assim, decisões baseadas na metajuridicidade (v.g., interesse público,
eqüidade, bom senso, adequabilidade, proporcionalidade, justiça, sensibili­-
dade, intuição, experiência) são ilegítimas, porquanto é impossível que os des­
tinatários se reconheçam como co-autores do provimento. A metajuridicidade
cria o espaço infiscalizável do soberano. (MADEIRA, 2008, p. 212)

Finda a Segunda Guerra Mundial, o Estado de Bem-Estar Social


começou a entrar em crise, que se agravou na década de 70. As sociedades
se tornaram ainda mais complexas e inauguraram a era da informação,
caracterizada por um emaranhado de relações cada vez mais fluidas.
Surgiram os chamados direitos de terceira geração — os interesses difusos,
cujos titulares não podiam ser claramente determinados. Os direitos
que já eram conhecidos tiveram seus significados repensados, passando
a ter uma jaez procedimental, ligada ao direito do cidadão de participar,
ainda que por meio de instituições, do debate público constitutivo e con­
formador da sobe­ rania democrática (CARVALHO NETTO, 2004, p. 37).
Dessa forma, passou-se a exigir do Direito uma postura aberta, pluralista
e participativa.
Os problemas e questões surgidas nas nascentes sociedades hiper­
complexas aumentaram ainda mais as expectativas sociais com relação à

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112 Henrique Yukio Pereira de Souza

função jurisdicional. As decisões judiciais precisavam não só desenvolver,


consolidar e reproduzir a certeza do Direito, mas também deveriam
fazê-lo no que toca ao sentimento de Constituição — sentimento de jus­
tiça, ligado à correta e perfeita adequação da decisão às peculiaridades
do caso concreto. Por isso, já não bastava que o julgamento de uma questão
fosse coerente com o tratamento dado anteriormente a casos análogos
e com o sistema jurídico de normas; ele também deveria ser fundado
racionalmente nos fatos, provas e argumentos apresentados em juízo,
de modo que as partes e todos os cidadãos em geral pudessem aceitá-
lo como uma decisão racional (OLIVEIRA, 1997, p. 131). Para atender
a estes desafios, passou-se a exigir do magistrado uma consciência da
importância dos princípios no Direito atual, enxergando-os como normas
e aprendendo a manejá-los de forma adequada.
Dessa maneira, o hodierno Estado Democrático de Direito surgiu
apresentando como seu fundamento o princípio da soberania popular
e defendendo a transformação do status quo, mediante um processo de
efetiva incorporação de todos os cidadãos nos mecanismos de produção,
controle e fiscalização das decisões. Este novo paradigma representou
a adoção da democracia como regime de governo, como princípio basilar
de uma nova ordem constitucional, surgida no Brasil com a Carta de
1988, e disciplinador da organização do Estado, da relação deste com
os indivíduos e destes entre si.
Dentro deste contexto, a corrente instrumentalista se tornou inca­
paz de satisfazer as demandas de um modelo democrático, pluralista e
participativo de Estado. A teoria neoinstitucionalista do processo, criada
por Rosemiro Pereira Leal — com base nas teorias estruturalistas de
Elio Fazzalari e Aroldo Plínio Gonçalves, nas ideias de Karl Popper de
falseabilidade e verificabilidade das teorias científicas, na teoria dis­
cur­
-
siva do Direito de Jürgen Habermas e na teoria constitucionalista do
­
processo de José Alfredo de Oliveira Baracho —, nasceu com a proposta
de apresentar um novo sistema de conceitos, apto a dar ao processo
um tratamento compatível com as exigências do atual paradigma
constitucional.
Diferentemente da abordagem feita pelo espanhol Jaime Guasp
do vocábulo instituição, enquanto conjunto de condutas formado de
forma aleatória por supostas leis naturais da sociologia ou da economia, a
teoria neoinstitucionalista trata o termo em questão como um

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A presunção judicial no Estado Democrático de Direito: uma análise crítica do artigo 335 do Código... 113

[...] conjunto de princípios e institutos jurídicos reunidos ou aproximados


pelo Texto Constitucional com a denominação jurídica de Processo, cuja carac­
terística é assegurar, pelos princípios do contraditório, ampla defesa, isonomia,
direito ao advogado e livre acesso à jurisdicionalidade, o exercício dos direitos
criados e expressos no ordenamento constitucional e infraconstitucio­­nal
por via de procedimentos estabelecidos em modelos legais (devido processo legal)
como instrumentalidade manejável pelos juridicamente legitimados. (LEAL,
2004, p. 94)

Para Rosemiro Pereira Leal, a compreensão dos instrumentalistas


acerca do processo (enquanto meio abstrato, metafísico, de se obter o ato
estatal almejado) fizeram dele um “instituto flutuante, etéreo, ritualístico,
sem qualquer vínculo lógico-jurídico” (LEAL, 2004, p. 99), utilizado a
serviço de um mítico juiz salvador na busca de uma idealizada paz social.
Contrapondo-se aos seguidores da escola processual da relação
jurídica, o procedimento passou a ser visto como uma estrutura técnica
de atos jurídicos sequenciais, que são praticados por sujeitos de direito
e visam a um provimento (ato imperativo emanado do Estado); ele é,
ainda, uma manifestação estrutural do texto da norma, que lhe é ante­-
rior e lhe confere legitimidade, validade e eficácia.
O processo, por sua vez, é tratado como uma instituição consti­
tucionalizada (artigo 5º, LIV, da Constituição da República Federativa)
essencial à democracia, uma espécie de procedimento, cujo traço dis­
tintivo em relação ao gênero consiste na participação, em conjunto,
dos destinatários do provimento na atividade preparatória deste. Os
interessados no ato estatal participam de sua construção de uma forma
especial — em contraditório entre eles —, vez que seus interesses em
relação ao ato final do procedimento são opostos. O contraditório, assim,
deixa de ser compreendido como a mera bilateralidade de audiência
(uma possibilidade de se informar e de reagir a partir das informações
recebidas), para ser entendido como a simétrica paridade de participação
dos destinatários na atividade preparatória do ato estatal, sendo que
esta participação tem que ser levada em consideração pelo juiz no
momento da decisão.
No processo, não existe relação jurídica ou qualquer vínculo
ligando sujeitos. Não lá relação de exigibilidade de um indivíduo com
outro, uma vez que nenhum particular, por si só, tem o poder de se
fazer prevalecer sobre a vontade alheia. Só o Estado, mediante seus
atos imperativos confeccionados em conformidade com procedimentos

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114 Henrique Yukio Pereira de Souza

previamente definidos e regulamentados em lei, pode interferir na esfera


jurídica de uma pessoa. Nesse sentido, diz Rosemiro Pereira Leal:

Um direito que no plano constitucional explicasse o processo como relação jurí­


dica entre juiz, autor e réu (Büllow) confinaria o processo a um recinto prescritivo
de atos jurídicos seqüenciais em que decisões adviriam do exercício da vontade
última e superior de uma razão prática (do bem e do mal) sensibilizada pelo
juiz, porque não estariam, nessa corrente doutrinária, definidos os critérios
dessa relação jurídica de formação das vontades ( juiz, partes, auxiliares
judiciários) para validar (fundamentar) as decisões a serem tomadas e quais
possibilidades jurídicas de intercorrentemente se exercer a fiscalidade pelo
processual controle irrestrito de constitucionalidade (exame de legitimidade)
do direito e da estrutura das condutas procedimentais condutoras das decisões
proferidas, já que o Processo, na teoria do processo como relação jurídica
entre sujeitos, é tido como instrumento de uma sábia jurisdição provedora de
direitos. (LEAL, 2002, p. 168-169)

A dinâmica processual, portanto, não admite posições de superio­


ridade de alguns sujeitos em relação aos outros. Todos os envolvidos na
construção compartilhada do provimento se encontram no mesmo plano
argumentativo. Isso porque, no atual paradigma constitucional, o Direito
possui um caráter aberto, procedimental e participativo, de modo que
os cidadãos não podem se submeter a decisões construídas de forma
solipsista, mas têm direito a participar da formação dos provimentos que
surtirão efeitos em suas esferas jurídicas. Sendo assim, a legitimidade das
decisões estatais está condicionada a esta possibilidade de participação,
ao fato dos indivíduos serem, ao mesmo tempo, destinatários e autores
das normas que regerão suas vidas em sociedade. Uma decisão só é válida,
por conseguinte, se for fruto de uma construção coletiva, mediante um
procedimento discursivo, em contraditório, assegurado mediante os direitos
fun­damentais (BARBOSA, 2004). Nessa mesma linha se encontram os
ensinamentos de Rosemiro Pereira Leal:

A legitimidade do Direito se encontra na possibilidade de que seus conteúdos


fundamentais sejam constantemente reconstruídos, mediante procedimentos
abertos a todos os destinatários de direitos, “de tal sorte que, em função dessa
titularidade fiscalizatória pelo direito-de-ação incondicionado e irrestrito, também,
e simultaneamente, pudessem tais destinatários reconhecer-se autores da
normatividade vigorante. (LEAL, 2002, p. 160)

A teoria neoinstitucionalista enxerga o processo como uma insti­


tuição constitucionalizada e democrática, que deve servir de referência

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A presunção judicial no Estado Democrático de Direito: uma análise crítica do artigo 335 do Código... 115

lógico-jurídica para a estruturação de todos os procedimentos (legislativos,


judiciais e administrativos) — inclusive daqueles que não são realizados
necessariamente em contraditório —, de modo que todos os atos emanados
do Estado possam ser fiscalizados, criticados e construídos a partir de
uma participação dialógico-processual de todos os cidadãos. O processo,
desse modo, é tido como pressuposto democratizante da legitimidade
de toda criação, alteração, postulação e aplicação de direitos.
Diante do exposto, fica evidente o forte comprometimento com o
Direito democrático assumido por esta teoria, que defende a autoinclusão
processual de todos nos direitos fundamentais (LEAL, 2004, p. 96) e relaciona
o processo não com o poder de uma elite de especialistas, mas sim com
a cidadania, com a soberania popular, com a vontade do povo cons­
titucionalizada.

3 A prova
A palavra prova vem do latim probatio, podendo ser traduzida como
verificação, reconhecimento ou confirmação. Segundo Fernando Capez,
a prova é:

[...] o conjunto de atos praticados pelas partes, pelo juiz e por terceiros, des­
tinados a levar ao magistrado a convicção acerca da existência ou inexistência
de um fato, da falsidade ou veracidade de uma afirmação. Trata-se, portanto, de
todo e qualquer meio de percepção empregado pelo homem com a finalidade
de comprovar a verdade de uma alegação. (CAPEZ, 2003, p. 251)

Para Alexandre Freitas Câmara, pode receber a denominação de


prova todo elemento que contribui para a formação da convicção do juiz a respeito
da existência de determinado fato, ou seja, tudo aquilo que for levado aos autos
com o fim de convencer o juiz de que determinado fato ocorreu (CÂMARA, 2007,
p. 409).
Humberto Theodoro Júnior fala que a prova pode ter duas acepções:
uma objetiva, enquanto instrumento usado para demonstrar a existência
de um fato; e outra subjetiva, que é a certeza formada no espírito do
juiz no tocante ao fato, em razão do instrumento da prova (THEODORO
JÚNIOR, 1989).
Defende Rosemiro Pereira Leal que o tratamento dado à prova
pelo CPC vigente não se coaduna com um regime democrático nem com
as exigências da garantia do devido processo constitucional. Divergindo

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116 Henrique Yukio Pereira de Souza

da doutrina tradicional, ele entende a prova da seguinte forma: “Prova


é um instituto criado pela lei para o exercício lógico da demonstração
de existência ou inexistência de pessoa, fato, ato ou situação jurídica”
(LEAL, 2004, p. 275).
As provas, então, passam a ser compreendidas como institutos
jurídicos estruturantes do procedimento e vinculantes da fundamentação
das decisões judiciais. Elas não são mais tidas como pertencentes ao
juiz, mas sim ao juízo, devendo ser valoradas (elementos de prova são
apontados como constantes dos autos) e valorizadas (atribuição do peso
ou relevância do elemento de prova para a solução do litígio) de forma
compartilhada (não apenas pelo magistrado), de acordo com os ditames
do princípio constitucional do devido processo legal.
É importante distinguir a prova de suas bases morfológicas — o
elemento de prova, o meio de prova e o instrumento de prova. O primeiro
é o fato ou coisa em si que se pretende provar; o segundo é o meio que
instrumentaliza o elemento de prova, trazendo-o (de forma discursiva,
dialógica e observando o contraditório) ao procedimento; e o último é
a representação processual do fato ou coisa, ou seja, é o resultado, cons­
truído em conjunto entre os sujeitos do processo, da materialização do
meio de prova.

4 Sistemas de avaliação da prova


A avaliação da prova é comumente estudada a partir de três sis­
temas avaliatórios, que serão objeto de breve abordagem neste artigo.
São eles o sistema legal (ou tarifado), o da livre convicção (ou do livre
convencimento) e o da persuasão racional — também chamado de siste­
ma do livre convencimento motivado, da livre convicção motivada ou
da convicção condicionada (ARANHA, 1987).
O primeiro deles é o mais antigo dos sistemas. Baseado nas
ordálias ( juízos de deus), nele o juiz é subtraído de sua livre convicção,
sendo submetido a regras pré-fixadas no que diz respeito à avaliação das
provas. Estas se encontram em uma tabela, que vincula o julgador e o
obriga a meramente verificar o valor legal da prova, reconhecendo-o em
sua decisão.
Nascido na Roma Antiga, o segundo sistema mencionado confere
ao magistrado plena liberdade na busca da verdade e na apreciação das
provas. O juiz, dessa forma, não se submete a nenhuma regra legal para

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A presunção judicial no Estado Democrático de Direito: uma análise crítica do artigo 335 do Código... 117

avaliar a prova, podendo decidir, inclusive, com base em informações


não constantes dos autos. Além disso, o julgador não era obrigado a
exteriorizar os motivos de suas decisões (ARANHA, 1987).
Atualmente adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, o siste­
ma da persuasão racional é o único adequado ao paradigma do Estado
Democrático de Direito. Nele, o julgador é livre para avaliar as provas,
ou seja, não está vinculado a regras que preestabelecem, independente­
mente do caso concreto, o valor legal de cada prova. Contudo, o juiz só
pode decidir baseado nas provas colhidas, submetidas ao contraditório
e admitidas no processo (presentes nos autos), além de ser obrigado a
fundamentar os provimentos.
De acordo com Rosemiro Pereira, a persuasão racional possui como
requisitos a reserva legal — ao prolatar uma decisão, o convencimento
do juiz deve ter fundamentos na lei — e o duplo grau de jurisdição, que
permite que a decisão judicial seja revista em outro órgão de jurisdição
superior (LEAL, 2004).

5 Presunção
O termo presunção procede do latim ‘praesumptione’, juízo, concepção
anterior a qualquer experiência, ideia inata (ACQUAVIVA, 2000, p. 1.060).
O aspecto filológico se aproxima do sentido jurídico da palavra, defi­
nido por Sergio Carlos Covello como o convencimento antecipado da verdade
provável a respeito de um fato desconhecido, obtida mediante fato conhecido e
conexo (COVELLO, 1983, p. 19). A ideia da probabilidade da verdade
é, para ele, inseparável da noção de presunção, vez que esta parte de um
fato para chegar a outro, que permanece, todavia, insuficientemente conhecido,
e, portanto, sujeito à comprovação diversa (COVELLO, 1983, p. 25).
Para Vicente Greco Filho, a presunção é uma forma de raciocínio do
juiz, o qual, de um fato provado, conclui a existência de outro que é relevante
para produzir a consequência pretendida (GRECO FILHO, 2008, p. 209).
Arruda Alvim estabelece uma relação entre as chamadas provas
indiretas — chamadas por Luiz Guilherme Marinoni de provas indiciárias
— e as presunções, definindo-as em seguida:

A prova tida por indireta ou lógica o é, precisamente, por não se retratar nela
mesma o fato probando; pelo contrário, retrata-se nela, apenas, um outro fato, a
que muitos denominam de fato auxiliar ou fato base, o qual levará à percepção
do fato probando (fato principal).

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118 Henrique Yukio Pereira de Souza

A presunção, tanto a legal, quanto a hominis, situa-se precisamente na esfera


das chamadas provas indiretas, exatamente porque uma e outra demandam
elaboração mental para conduzir o magistrado ao fato probando.
[...]
A presunção, genericamente considerada, constitui-se num processo lógico-
jurídico, admitido pelo sistema para provar determinados fatos, através de cujo
processo, desde que conhecido um determinado fato, admite-se como verda­-
deiro um outro fato, que é desconhecido, e que é (este último) o inserido no
objeto da prova. (ALVIM, 2006, p. 533-535)

Nesse diapasão, Marinoni diz que a presunção é um processo mental,


uma forma de raciocinar, por meio da qual o juiz parte da prova de um fato
indiciário, isto é, da prova indiciária, para, por dedução, chegar a uma conclusão
sobre o fato principal (MARINONI, 2009).
Ernane Fidélis dos Santos defende, de forma minoritária na dou­
trina, que as presunções são consequências previstas pela própria lei de um
fato conhecido (SANTOS, 2003, p. 439). Este conceito, além de não abarcar
uma determinada espécie de presunção, que será examinada em item
posterior deste trabalho, entende a presunção não como um processo
lógico-jurídico, e sim como a conclusão alcançada por tal processo.
Fredie Didier Júnior esclarece que a presunção não é meio de prova,
nem fonte desta. Trata-se de atividade do juiz, ao examinar as provas, ou do legis­
lador, ao criar regras jurídicas a ser aplicadas ( presunções legais) sempre ou quase
sempre, conforme o caso (DIDIER JÚNIOR, 2008, p. 57).
Pode-se concluir, com base nos conceitos acima apresentados, que a
presunção mantém uma ligação muito próxima com o instituto da prova,
vez que é por meio daquela que se pode chegar à provável verdade acerca
de um fato desconhecido a partir de outro fato conhecido, já provado.

6 Breve histórico da presunção


A origem da presunção no Direito está essencialmente ligada à
necessidade de o juiz decidir casos concretos nos quais inexistiam provas
diretas sobre fatos relevantes para a solução do litígio ou em que estas
fossem difíceis de serem produzidas — diante dessas circunstâncias, o
magistrado buscava resolver o conflito mediante um processo lógico,
que lhe permitia supor como provados fatos desconhecidos, antes de
efetivamente comprovados. As presunções, portanto, surgiram de forma
concomitante com a própria função jurisdicional, e sua origem remonta
ao Direito Arcaico Hebraico, Indiano e Persa (COVELLO, 1983).

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 107-126, out./dez. 2010
A presunção judicial no Estado Democrático de Direito: uma análise crítica do artigo 335 do Código... 119

Ao longo da história da humanidade, a presunção sempre foi


objeto de estudos e da prática jurídica, ocupando papel relevante no
antigo Direito Romano, no Direito Medieval, no Direito Canônico, nas
obras jurídicas da Renascença, no movimento de codificação iniciado
com inspirações iluministas e em todos os ordenamentos jurídicos dos
dias atuais (THIBAU, 2007).
No Brasil, o Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850, foi
o primeiro texto normativo a tratar das presunções, que foram depois
disciplinadas por alguns Códigos Estaduais — como os de Minas Gerais,
do Rio de Janeiro e de Pernambuco.
O Código Civil Brasileiro de 1916 previa as presunções entre os
meios probatórios e o Código de Processo Civil de 1939, em seu artigo
252, considerava-as meios aptos a provar os atos de má-fé em geral.
O CCB de 2002 dispõe sobre a presunção em diversas matérias,
desde questões relativas a prazo para o comodato (art. 581) e prorrogação
de locação (art. 574) até assuntos referentes à posse de boa-fé (art. 1.201,
parágrafo único) e à morte (art. 6º).
O CPC de 1973 não possui dispositivo correspondente ao citado
artigo 252 do código revogado, mas determina que os fatos favorecidos
pela presunção legal de existência e de veracidade não dependem de
prova (art. 334, IV) e estabelece, no seu artigo 335, que o magistrado, em
determinados casos, poderá aplicar regras de experiência para resolver os
conflitos que lhe são apresentados em juízo.

7 Classificação das presunções


A regra do artigo 335 do CPC versa sobre a presunção que a dou­trina
convencionou chamar de simples, comum, judicial ou hominis (do homem),
que se contrapõe às presunções legais (iuris). Estas se subdividem em
absolutas (não admitem prova em contrário) e relativas (admitem prova
em sentido oposto), embora haja autores que discordem desta classi­ fi­
-
cação (MOREIRA, 2005; COVELLO, 1983).
As presunções legais são determinadas e limitadas, elaboradas pelo
legislador, impostas como normas e hábeis a inverter o ônus da prova.
As presunções comuns, por sua vez, são ilimitadas e indetermi­
nadas, não expressas em lei, formadas na consciência do juiz, faculta­
tivas e inaptas a inverter o ônus probatório (COVELLO, 1983). Foram
as presunções judiciais que deram origem às presunções legais, quando,

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120 Henrique Yukio Pereira de Souza

a partir do período do Direito Justiniano, passou-se a normatizar as


presunções comuns na busca de uma maior estabilidade jurídica e de uma
diminuição do arbítrio do julgador (THIBAU, 2007).
Como as presunções do homem não são definidas em lei, a dou­
trina é que estabelece os requisitos necessários à sua admissão, quais
sejam: a gravidade (intensidade da convicção); a precisão (deve-se extrair
consequências precisas, claras, do fato); e a concordância — a reunião de
todos os indícios deve conduzir a uma conclusão logicamente possível
(ALVIM, 2006).
As presunções judiciais guardam uma estreita relação com os
indícios, definidos por Ernane Fidélis da seguinte maneira:

Os indícios são fatos e circunstâncias de que se vale o julgador, para chegar


ao conhecimento de outro fato. A pessoa foi vista portando uma tocha de
fogo, poucos momentos antes do início do incêndio. Deduz-se ter sido ela sua
autora. (SANTOS, 2003, p. 439)

O indício é um fato conhecido que indica a existência de outro


fato, ou seja, ele é um fato que sugere, por via de raciocínio, o fato probando,
do qual pode ser causa ou efeito (DIDIER; BRAGA; OLIVEIRA, 2008).
Para percorrer o caminho que vai do indício, passando pelo processo
lógico-jurídico da presunção judicial, ao outro fato, o magistrado, segundo
a doutrina, deve se utilizar das chamadas regras de experiência comum e
regras de experiência técnica.

8 Regras de experiência comum e regras de experiência técnica


As regras de experiência comum e as regras de experiência técnica,
também chamadas de máximas de experiência (DIDIER; BRAGA; OLIVEIRA,
2008), são juízos hipotéticos formados extrajudicial ou extrapro­
cessualmente, dotados de generalidade e abstração. São independentes
do caso concreto e, uma vez formuladas pelo método indutivo, podem
ser aplicadas a casos futuros semelhantes, mediante o raciocínio dedutivo
(GRECO FILHO, 2008, p. 211). A Lei nº 9.099/95, em seu artigo 5º, e a
Lei nº 8.078/90, em seu artigo 6º, VIII, autorizam o magistrado a levar
em consideração as regras de experiência na avaliação das provas.
As regras de experiência comum, de acordo com Ernane Fidélis,
consistem em:

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A presunção judicial no Estado Democrático de Direito: uma análise crítica do artigo 335 do Código... 121

[...] frutos de observações, informadas pelo conhecimento comum de determi­


nado meio social, e, de qualquer forma, dependem de certa atividade intelectual
do julgador, sem nenhuma vinculação com conhecimentos especializados.
Os danos de determinado carro, em acidente de trânsito, tais sejam a localização
e a extensão, mesmo sem parecer especializado, podem permitir que o juiz
deduza, por experiência, que o veículo abalroado estava em excesso de velo­
cidade. Pelo tempo que vai entre a plantação e a colheita, o juiz, às vezes,
estabelece o prazo contratual, presumindo-o, mesmo sem previsão expressa,
nos casos de arrendamento, comodato etc. (SANTOS, 2003, p. 441)

São, portanto, as regras induzidas a partir da observação do que


acontece no cotidiano de um determinado grupo social, em determinadas
circunstâncias.
As regras de experiência técnica, por outro lado, decorrem da
aplicação ou atuação das leis da natureza. Elas não são próprias de pes­soas
especializadas, mas configuram conhecimentos técnicos aos quais todos,
em tese, teriam acesso — caso a regra não seja vulgarmente conhecida,
será necessária a realização de exame pericial (art. 335, CPC).
Para Fredie Didier Júnior, as máximas de experiência possuem
as seguintes funções: apuração dos fatos (a partir dos indícios); valoração
da prova; aplicação de normas (ajuda o magistrado a preencher o con­
teúdo dos conceitos jurídicos indeterminados); e limitação à atuação
judicial — o juiz não pode decidir em desconformidade com as regras
de experiência (2008, p. 56).

9 Análise do artigo 335 do CPC à luz da teoria neoinstitucionalista do


processo e do Estado Democrático de Direito
Como já foi dito em tópico anterior, o artigo 335 do CPC versa
sobre a presunção judicial e as regras de experiência comum e técnica:

Art. 335. Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de


experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente
acontece e ainda as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o
exame pericial. (BRASIL, 2005, p. 1.662)

A redação do dispositivo segue uma perspectiva instrumentalista


do processo, vez que se utiliza de expressões imprecisas, de caráter extra­
jurídico, para conferir maiores poderes a um juiz mitificado. Um dos
principais seguidores da Escola Paulista de Processo, Cândido Rangel
Dinamarco diz, acerca da regra legal acima transcrita:

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122 Henrique Yukio Pereira de Souza

As presunções judiciais são inseridas no sistema do processo civil pelo art. 335
do CPC, que manda o juiz a decidir segundo suas máximas de experiência — que são
a expressão da cultura dos juízes como intérpretes dos valores e da experiência
acumulada pela sociedade em que vivem. Atentos e sensíveis às realidades do
mundo, eles têm o dever de captar pelos sentidos e desenvolver no intelecto
o significado dos fatos que os circundam na vida ordinária, para traduzirem
decisões sensatas aquilo que o homem comum sabe e os conhecimentos que
certas técnicas elementares lhes transmitem. (DINAMARCO, 2003, p. 122)

É certo que o magistrado, como todo intérprete, é um ser histórico


que compreende o mundo e a si mesmo a partir de um pano de fundo,
um paradigma (conforme explicitado em item antecedente), que vai lhe
incutir preconceitos e pré-compreensões. Contudo, mesmo Hans-Georg
Gadamer — um dos pilares da hermenêutica filosófica, que defende
uma forte presença do subjetivismo e do papel criador do intérprete
na compreensão — diz, nas palavras de Ricardo Henrique Carvalho
Salgado, que:

[...] não se pode deixar, porém, puramente ao arbítrio do aplicador a solução


do conflito, porque, com isso, tirar-se-ia do direito uma de suas principais
características que é a de que qualquer decisão jurídica tem-se de basear na
razão e não em meros sentimentos. (SALGADO, 2006, p. 134)

Destarte, a autorização legal concedida ao juiz para decidir segundo


regras de experiência se funda em ideias vagas, tais como as de homem
médio, prudente critério do magistrado, homem de bom senso que atende à
ordem natural das coisas (COVELLO, 1983, p. 100), todas elas integrantes
da crença em uma autoridade julgadora superior, sobre-humana, pura
o suficiente para enxergar a justiça e buscá-la a qualquer custo, não
devendo, por esse motivo, prestar contas de seus atos a ninguém. Essa
visão do magistrado como um tutor da sociedade é típica do modelo pater­
nalista de Estado Social, que é incompatível com as hodiernas concepções
de Estado, Direito, democracia e de processo enquanto uma instituição
constitucionalizada marcada pelo contraditório. Nessa linha, Rosemiro
diz que o julgador não pode assumir o papel paternalista ou do magister em
juízos de desvinculada subjetividade. O juiz não pode, portanto, decidir em face de
uma lei vazia à qual possa emprestar conteúdos de pessoal sabedoria, clarividência
ou magnanimidade (LEAL, 2004, p. 115).
No Estado Democrático de Direito, tanto o juiz quanto as partes
devem participar da construção do provimento no mesmo plano

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A presunção judicial no Estado Democrático de Direito: uma análise crítica do artigo 335 do Código... 123

argumentativo. Não existe posição de superioridade de uns em relação


a outros e não há esferas de atuação judicial obscuras, impassíveis de
serem fiscalizadas pela sociedade.
A adoção de mecanismos como as máximas de experiência — frutos
exclusivos do subjetivismo do julgador, não regulamentadas procedi­
mentalmente, inacessíveis às partes e, por conseguinte, impossíveis de
serem contestadas ou afastadas quando embasarem decisões das quais
os interessados discordam — viola o contraditório que, além de ser o
prin­cípio constitucional (art. 5º, LV, da CRF) que diferencia o processo
do procedimento, é essencial para que seja garantida a imparcialidade
do juiz, a consonância das decisões com um Direito democrático e o
cumprimento do direito fundamental de todos os cidadãos de construí­
rem discursivamente, de forma participativa, os provimentos que afetarão
suas vidas.
Ademais, o uso das regras de experiência previstas no CPC vai de
encontro com o sistema da persuasão racional, que exige que o conven­
cimento do juiz tenha fundamento na lei (reserva legal) e nos fatos ou
circunstâncias trazidas aos autos pelas partes, sob o crivo do contraditó­-
rio. Sobre essa questão, vale citar Dhenis Cruz Madeira:

Justamente por isso, e por não ser mais possível a exigência de uma autoridade
sensível, sábia, intuitiva e experiente, é que tais elementos metajurídicos não
podem ser utilizados como fundamentação do provimento, a não ser que se
queira exigir das partes uma esdrúxula investigação acerca da vida pessoal
do juiz para fins de argumentação processual.
Decerto, um fundamento não extraído da plataforma procedimental, como o
é a experiência ou qualidade individual do magistrado, é imprestável à moti­
vação do provimento, eis que não se oferta à crítica, tornando a decisão ilegí­tima
juridicamente. (MADEIRA, 2008, p. 171-172)

10 Considerações finais
As regras processuais previstas no CPC de 1973 foram elaboradas
num contexto de Estado Social, dentro de uma perspectiva instrumen­
talista do processo.
Com o advento da Constituição de 1988 e do Estado Democrático
de Direito, foi criado um abismo entre o novo ordenamento jurídico
brasileiro e as disposições do Código de Processo Civil, que necessitam,
por esse motivo, de uma releitura, de uma nova abordagem científica
do processo, consonante com o atual paradigma constitucional. Dessa

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124 Henrique Yukio Pereira de Souza

forma, o art. 335, como todos os demais artigos do diploma processual


civil, precisam ser analisados à luz de um Direito aberto à participação,
plural, de caráter procedimental e que demanda a observância de
direitos fundamentais.
Na doutrina brasileira, todavia, continua dominante a visão da
Escola Paulista de Processo. Ainda são poucos os autores que buscam
adequar os institutos processuais ao paradigma constitucional hodierno.
O artigo 335 do CPC, ao autorizar que o juiz utilize as indetermi­
nadas regras de experiência comum e de experiência técnica para avaliar
as provas e formar o seu convencimento quanto aos fatos discutidos no
processo, viola os princípios constitucionais do contraditório, da ampla
defesa, da imparcialidade e do devido processo legal.
No paradigma constitucional adotado pela atual Constituição
Federal, os cidadãos não precisam de tradutores, intérpretes ou interme­
diadores dotados de supostas intuição e sensibilidade extraordinárias,
que lhes permitam decidir sem fundamentar suas decisões e encontrar
uma verdade absoluta mediante uma avaliação solipsista da prova.
No Estado Democrático de Direito, o poder emana do povo, que
deve fiscalizar, de forma irrestrita, todas as formas de manifestação e
aplicação do poder. Somente a fiscalização popular é capaz de conferir
legitimidade democrática aos atos estatais.
Sendo assim, é por meio do processo — procedimento em con­
traditório — que é formalizado o discurso jurídico e garantida a partici­
pação simétrica das partes na fiscalização e construção compartilhada
do provimento.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

SOUZA, Henrique Yukio Pereira de. A presunção judicial no Estado Democrático de Direito:
uma análise crítica do artigo 335 do Código de Processo Civil. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 107-126, out./dez. 2010.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 107-126, out./dez. 2010
Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo: uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas à teoria... 127

Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo:
uma avaliação das críticas
neoinstitucionalistas à teoria da
instrumentalidade do processo
Alexandre Araújo Costa
Professor adjunto da Universidade de Brasília (UnB). Mestre e doutor em direito pela UnB. Coor-
denador do Grupo de Pesquisa Política e Direito.

Henrique Araújo Costa


Mestre e doutorando pela PUC-SP. Bolsista do CNPq.

Resumo: O texto compara duas propostas contemporâneas de abordagem


ao processo civil brasileiro: o Instrumentalismo, de Dinamarco; e o Neoins­
titucionalismo, de Rosemiro Pereira Leal. Contrariando o pensamento
pre­­do­minante atualmente, o Instrumentalismo é aqui exposto como uma
tentativa de superação ideológica do pensamento processual que o antece­deu,
paradoxalmente marcada por uma continuidade teórica acrítica. Quanto ao
Neoinstitucionalismo, destaca-se a possibilidade de que venha a se tornar uma
crítica racional anacrônica ao Instrumentalismo. Isso aconteceria porque as
inovações legislativas impõem ao juiz a aplicação de teses jurídicas fixadas
nas instâncias superiores. Dessa forma, seria bastante limitada a atuação do
julgador instrumentalista, de perfil jurídico mais flexível e maior engajamento
social.
Palavras-chave: Teoria geral do processo. Instrumentalismo. Neoinstitu­
cionalismo. Ativismo judicial. Reformas processuais. Filosofia do processo.
Sumário: 1 Introdução – 2 A instrumentalidade do processo de Dinamarco
– 3 O neoinstitucionalismo de Rosemiro – 4 Conclusão – Referências

1 Introdução
A teoria instrumentalista de Cândido Dinamarco, consolidada
na obra A instrumentalidade do processo, é hoje a concepção dominante
sobre o processo civil nos meios acadêmicos brasileiros.1 Tal perspectiva
teve uma recepção muito positiva quando foi lançada, na década de 1980,
especialmente porque ela era compreendida como um aperfeiçoa­ mento
da corrente então hegemônica, ligada à escola paulista de processo e
centrada nas categorias de ação e jurisdição. A teoria de Dinamarco não
efetuou uma ruptura das categorias tradicionais (que eram familiares
aos processualistas desde a década de 1940 e estão presentes na legis­
lação desde a década de 1970), mas agregou a elas uma dimensão de

Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
1

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 127-141, out./dez. 2010
128 Alexandre Araújo Costa, Henrique Araújo Costa

instrumentalidade que adaptou o discurso processual ao ambiente


democrático que surgia com a derrocada da ditadura militar.
Essa concepção serviu como marco orientador de várias das
refor­mas da legislação processual ocorridas nas últimas duas décadas e
sua posição no cenário da teoria processual consolidou-se de tal forma
que ainda são incomuns as críticas ao instrumentalismo. Por isso mesmo
têm especial relevância a perspectiva neoinstitucional desenvolvida pelo
jurista mineiro Rosemiro Leal, com base nas categorias dos pensadores
alemães Niklas Luhmann e Jürgen Habermas, e consolidada na obra
Teoria processual da decisão jurídica.2 Essa proposta se opõe às visões cen­-
tradas nos conceitos de ação e jurisdição, especialmente à teoria instru­
mentalista de Cândido Dinamarco, corrente que o neoinstitucionalismo
pretende superar.
Como a crítica de Rosemiro não é respondida explicitamente por
Dinamarco e não há até o presente momento um diálogo direto e abran­
gente entre a escola mineira e a escola paulista, torna-se especial­mente
importante a tarefa de realizar um cotejo entre essas duas perspectivas
contrapostas, para que seja possível analisar os pontos de tensão entre
essas correntes e avaliar em que medida as críticas neoinstitucionais
são adequadas.

2 A instrumentalidade do processo de Dinamarco


A instrumentalidade de Dinamarco é uma concepção muito aceita
atualmente,3 cuja proposta, seguindo Abboud e Oliveira, sintetizamos
em três eixos:4

1. Valorização da categoria de jurisdição, com o deslocamento do principal eixo


processual da ação para a jurisdição;
2. Admissão do caráter teleológico do processo, reconhecendo que ele tem
escopos sociais, políticos e jurídicos;
3. Defesa de que o processo não pode ser considerado um fim em si mesmo (sen­
tido negativo da instrumentalidade), e que os juristas devem perseguir os obje­
tivos fixados nos três planos citados (sentido positivo da instrumentalidade).

2
Cf. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002.
3
Cf. DELFINO, Lúcio. Breves reflexões sobre a fungibilidade das tutelas de urgência e seu alcance de incidência.
Revista de Processo, São Paulo, v. 30, n. 122, p. 187-220, abr. 2005; Cf. GELLI, Mario Felippe de Lemos. Reflexões
sobre a instrumentalidade, efetividade e reformas processuais. Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de
Janeiro, v. 1, p. 190-206, 2007.
4
Cf. ABBOUD; OLIVEIRA. O dito e o não-dito..., p. 44.

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Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo: uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas à teoria... 129

Esses deslocamentos foram muito bem recebidos na década de


1980, especialmente com o processo de redemocratização, na medida
em que abria espaço para a construção de uma teoria processual mais
comprometida com as finalidades sociais. Todavia, a releitura da obra
fundamental de Dinamarco, feita quase 25 anos depois da sua primeira
edição, nos dá a impressão de que esse movimento poderia ter atingido
proporções mais transformadoras do que as que efetivamente teve, pois
a instrumentalidade entrou para o imaginário coletivo de uma forma
menos radical do que as teses de Dinamarco possibilitariam, tendo sido
limitada à noção amplamente aceita, de que “o processo não é um fim
em si mesmo”.
Com isso, a proposta de Dinamarco terminou sendo reduzida, no
senso comum dos juristas, à afirmação de uma instrumentalidade das
formas, no sentido de que a interpretação das normas processuais deve
estar mais vinculada ao conteúdo finalístico dos dispositivos que ao res­­-
peito literal às formas estabelecidas. Essa negação de um culto ao for­
malismo vazio passou a servir como uma válvula de escape interpretativa,
que permitia contornar situações em que o respeito às formas conduzisse
a resultados percebidos como absurdas. Com isso, a instrumentalidade do
processo, tal como posteriormente veio a ser o princípio proporcionalidade,
transformou-se em uma categoria teórica que, apesar de sua debilidade
semântica5 (e provavelmente por conta dela), adquiriu relevância como
topos argumentativo na dogmática contemporânea.
Essa compreensão não se choca com as concepções de Dinamarco,
embora a formulação original da instrumentalidade possibilite leituras
mais amplas. Os pressupostos metodológicos presentes na primeira
parte de seu livro estão voltados a estabelecer uma visão interdisciplinar
do processo, promovendo uma interlocução com a ciência política e as
teorias do poder.6 Segundo Dinamarco, “a visão instrumental do pro­
cesso, com repúdio ao seu exame exclusivamente pelo ângulo interno,
constitui abertura do sistema para a infiltração dos valores tutelados na

5
Consideramos debilidade semântica a falta de critérios mais densos que possibilitem a definição do seu campo
denotativo, fazendo com que a aplicação dessa categoria a situações concretas dependa demasiadamente de
juízos de valor implícitos do julgador. Conceitos que têm essa característica podem ser chamados de definições
persuasivas (Cf. WARAT; ROCHA, O direito e sua linguagem...), na medida em que o potencial retórico dos
argumentos que os utilizam pressupõe o reconhecimento dos valores implícitos na argumentação.
6
A ciência política é o objeto de estudo da primeira parte da tese de Dinamarco, que ocupa precisamente até
a página 177. Trata-se de um desenvolvimento detalhado praticamente ignorado pelo restante da doutrina
processual, que tende a atribuir a esse capítulo metodológico uma função meramente protocolar. Na nossa visão,
esse é um valioso legado infelizmente negligenciado (Cf. DINAMARCO. A instrumentalidade do processo).

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130 Alexandre Araújo Costa, Henrique Araújo Costa

ordem político-constitucional e jurídico-material.”7 Reforçando a feição


finalística da instrumentalidade — ou seja, voltada a um uso adequado do
processo — os instrumentalistas “querem um processo de feição humana,
com o juiz atuando com sua sensibilidade para o valor do justo.”8 9 Disso
entendemos que Dinamarco pretende uma abertura do processo a
orientações pautadas axiologicamente em termos práticos.
Ainda nesse sentido, ele afirma que “já não basta aprimorar con­
ceitos e burilar requintes de uma estrutura muito bem engendrada, muito
lógica e coerente em si mesma (...). A nova perspectiva aqui proposta
constitui motivo para a abertura do sistema processual aos influxos do
pensamento publicista e solidarista (...).”10 E adiciona: “como escopo-
síntese da jurisdição no plano social, pode-se então indicar a justiça,
que é afinal expressão do próprio bem comum.”11
Entendemos que esses pressupostos propiciavam uma abertura
interdisciplinar muito maior do que a efetivamente ocorrida, que se
limi­
tou a uma valorização da argumentação teleológica nos casos em
que o formalismo conduzia a absurdos. Embora o texto de Dinamarco
apon­tasse para uma permeabilidade da argumentação jurídica por
outros tipos de discursos (sociais, políticos, éticos), o senso comum dos
juristas se apropriou de suas ideias de um modo muito mais restrito. A
instrumentalidade não se tornou uma categoria que possibilitou novos
diálogos interdisciplinares, mas passou a servir apenas como válvula de
escape que permitiu evitar algumas situações absurdas pontuais. Aplica-
se o formalismo e a literalidade de uma forma geral, sendo ela afastada
apenas nos casos em que o resultado seja tão incompatível com a axio­-
logia dos julgadores que se pode invocar a instrumentalidade para justi­-
ficar um afastamento pontual dos ritos.
É tentador interpretar essa apropriação restrita das ideias pro­
postas por Dinamarco, especialmente da abertura interdisciplinar que
ele propôs, como resultado de um caráter conservador do senso comum.

7
DINAMARCO. A instrumentalidade do processo, p. 381.
8
DINAMARCO. A instrumentalidade do processo, p. 393.
9
Sobre a base axiológica do direito, Dinamarco chega a apresentar traços de jusnaturalismo, ao afirmar em
outro trabalho que: “Há valores que sobrepairam todas as leis — de todos os tempos e lugares — e os povos
todos buscam sua realização plena, embora conscientes de que essa utopia jamais será alcançada e embora
sejam extremamente vagas as palavras com que tais valores se expressam em tempos e em lugares diferentes”
(Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Processo civil comparado. Revista de processo, São Paulo, v. 23, n. 90, p.
47, abr./jun. 1998).
10
DINAMARCO. A instrumentalidade do processo, p. 11.
11
DINAMARCO. A instrumentalidade do processo, p. 190.

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Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo: uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas à teoria... 131

Parece razoável entender que, incapazes de conciliar proposições tão


inovadoras com uma dogmática voltada a garantir a segurança jurídica,
os juristas tenham incorporado a instrumentalidade apenas para viabi­
lizar eventuais afastamentos de um formalismo literal. Porém, esse tipo
de interpretação não leva devidamente em conta uma tensão interna à
própria construção da teoria instrumentalista: ela propõe uma abertura
teleológica muito ampla, mas não estabelece uma crítica das categorias
tradicionais, capaz de substituí-las por conceitos novos, efetivamente
comprometidos com essa nova perspectiva.
Critica-se a ausência de uma perspectiva teleológica na concepção
tradicional, como se esse defeito pudesse ser corrigido por meio do
acréscimo de um novo princípio, e não por meio de uma revisão mais
ampla das categorias envolvidas na teoria processual. Assim, o desenvol­
vimento do instrumentalismo não propiciou uma crítica das bases
conceituais da teoria tradicional, tendo sido mantidas incólumes as
suas categorias fundamentais (ação e jurisdição), bem como a noção de
que o processo é voltado à realização da vontade concreta da lei. A ins­
trumentalidade envolve uma ampliação teleológica dessa vontade concreta,
mas não representa um rompimento com a concepção hermenêutica que
reconhece no juiz uma função eminentemente técnica, e não política.
Esse compromisso com as categorias tradicionais evidencia que
o limitado impacto epistemológico da tese instrumentalista não foi
meramente eventual, pois a própria teoria foi construída sem oferecer
categorias capazes de operar o rompimento com a forma de pensar
tradicional do processualista. Tal como foi apresentada por seu principal
autor, a instrumentalidade não nega à teoria do processo seu caráter
unitário e coerente, o que se infere especialmente pelas obras posterio­
res de Dinamarco, muitas formuladas como glossários, a exemplo de
seu último livro.12 Assim, como afirmam Georges Abboud e Rafael
Tomaz de Oliveira, é preciso “desvelar os vínculos que o pensamento da
instrumentalidade possui com a tradição e até que ponto essa tradição é
aceita acriticamente.”13

Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Vocabulário do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2009.
12

Tal texto diagnostica também “que há nos pressupostos basilares da teoria [da instrumentalidade] uma vinculação
13

— a princípio acrítica — com o modelo de fundamentação das liberdades democráticas que Mauizio Fioravanti
denomina estatalista”. Para os autores, tal doutrina seria responsável pela edificação do Estado Liberal europeu
do séc. XIX (ABBOUD; OLIVEIRA. O dito e o não-dito..., p. 28-29). Cf. FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos
fundamentales: apuntes de historia de las Constituciones. 4. ed. Madrid: Trotta, 2003.

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132 Alexandre Araújo Costa, Henrique Araújo Costa

Exemplo de seu dogmatismo e respeito à tradição italiana é a


filiação completamente chiovendiana de Dinamarco à teoria da jurisdição,
o que se choca com sua postura de sustentação de um uso socialmente
engajado em relação direito material. Afinal, a teoria de Chiovenda pres­
supõe a separação entre direito e processo, em contraste com Carnelutti,
para quem o que vale é a solução do conflito.14 15
Supomos que pesaria demais para Dinarmarco tomar uma posição
divergente de seu mestre Liebman, que por seu turno seguiu seu mestre
Chiovenda em diversas concepções problemáticas, cujas consequências
sofremos até hoje. Basta lembrarmos da teoria eclética da ação, que tenta
compatibilizar o abstracionismo com o concretismo por meio das con­
dições da ação, bem à semelhança da escola de Chiovenda.
Aparentemente seria mais consentânea com a proposta social de
Dinamarco a adoção de um marco teórico que não se baseasse na distin­
ção dos mundos material e processual — que ele mesmo conclui que
deve ser relativizada, embora esse seja um pressuposto da teoria chio­
vendiana por ele utilizado. Ademais, a instrumentalidade não precisaria
negar o papel criativo ao juiz. Bem assim, não haveria motivo para
manter a cons­trução artificial que é a “atuação da vontade concreta da
lei” chio­vendiana, a qual, conforme já destacado, é incompatível com
a flexibilização do binômio direito e processo. A compatibilização bus­
cada pela instrumentalidade propõe “a duplicidade de perspectivas, para
encarar o sistema processual a partir de ângulos externos (seus escopos),
sem prejuízo da introspecção do sistema.”16
Vejamos o que diz Dinamarco, demonstrando seu acoplamento às
teorias mais tradicionais: “Excluída a integração do sistema processual
no valor de criação das situações jurídicas de direito material [ou seja,
negando-se o papel criativo do juiz] e tendo-se por demonstrada a tese
dualista do ordenamento jurídico [direito material x processual], chega-
se com naturalidade ao reconhecimento de que o escopo jurídico da

14
É o próprio Dinamarco quem destaca essa anteposição dualista e monista: “Das posições então assumidas, a mais
puramente jurídica foi a de Chiovenda, ligando o processo à vontade do direito substancial e não lançando as
vistas à realidade subjacente a ele; a de Carnelutti, embora propusesse um resultado jurídico (a composição da
lide), partia de um dado sociológico, que é a lide” (DINAMARCO. A instrumentalidade do processo, p. 215).
15
A mesma linha de mitigação sutil entre os planos do direito e do processo é vista em José Roberto dos Santos
Bedaque, discípulo de Dinamarco: “A relativização do binômio direito-processo não compromete a autonomia da
ciência processual, mas torna necessário rever seus institutos fundamentais, a fim de adaptá-los às necessidades
exteriores” (Cf. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o
processo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 163).
16
DINAMARCO. A instrumentalidade do processo, p. 379.

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Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo: uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas à teoria... 133

jurisdição não é a “composição das lides” [como quer Carnelutti], ou


seja, o estabelecimento da regra que disciplina e dá solução a cada uma
delas em concreto; a regra do caso concreto já existia antes, perfeita e
acabada, interessando agora dar-lhe efetividade, ou seja, promover a
sua atuação [a exemplo do que defende Chiovenda].”17 Inserções nossas
entre colchetes.
E segue o autor com observações que aparentam excessiva vincu­-
lação aos pressupostos chiovendianos. Isso é notado no que concerne a
outro “fantasma” do nosso direito processual, assombrado pela divisão
estanque de tutelas, gerando propostas de difícil compreensão. Vejamos,
por exemplo, que para Dinamarco “os provimentos meramente declara­
tórios, condenatórios ou cautelares, embora não atuem por si mesmos
o direito, constituem instrumentos ativados que ele seja atuado”.18
Ou seja, no pensamento do autor está presente uma distinção
ontológica relacionada às cargas decisórias, segundo a qual somente as
tutelas executivas e constitutivas seriam aptas a prestar integralmente
jurisdição. Dinamarco se esforça sobremaneira para interpretar essa
distinção de uma forma menos estanque, mas não a abandona. Isso
demonstra seu apego às classificações tradicionais; ao mesmo tempo em
que pretende fundar um processo incompatível com o modo de pensar
que dominou o século XIX e a transição para o seguinte. Assim concorda­
mos com Abboud e Oliveira ao sustentarem que “tais transformações que
a teoria [da instrumentalidade] pretende descrever escondem um forte
vínculo com a tradição que elas pretendem superar”.19 20 Mas talvez tenha
sido esse mesmo vínculo que seja responsável pela grande aceitação da
instrumentalidade entre os processualistas atuais.
Outro ponto a ser ressaltado é que a abertura interdisciplinar
proposta por ele terminou sendo bastante centrada em uma visão juridicista
da ciência política. Exemplo disso é que o “poder”, para Dinamarco,

17
DINAMARCO. A instrumentalidade do processo, p. 255.
18
DINAMARCO. A instrumentalidade do processo, p. 255.
19
Em síntese, a partir de Arthur Kaufmann, desenvolvem a relação jurídica como categoria primordial do processo
porque consideram que a jurisdição em Dinamarco assume uma postura autoritária ao concentrar o poder
no Estado, negando os poderes dos cidadãos (Cf. ABBOUD; OLIVEIRA. O dito e o não-dito..., p. 44-54. Cf.
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004).
20
Abboud e Oliveira deixam claro que além de negarem a prevalência do eixo jurisdicional (pois associado ao
poder), elegem a relação jurídica de Kaufmann — e não a pandectista — como eixo que viabilize uma atuação
jurisdicional mais democrática. Nesse propósito citam José Lamego na tentativa de aproximar o processo da
hermenêutica. Os autores parecem cientes de que o desafio atual é muito maior do que escolher como eixo
um dos conceitos da trilogia estrutual, sendo necessário repensar os pontos de partida do próprio processo (Cf.
ABBOUD; OLIVEIRA. O dito e o não-dito..., p. 55. Cf. LAMEGO, José. Hermenêutica e jurisprudência: análise
de uma recepção. Lisboa: Fragmentos, 1990).

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134 Alexandre Araújo Costa, Henrique Araújo Costa

surge como apenas poder de decisão estatal, e não como categoria que
permita uma reflexão mais ampla das relações de dominação dentro de
uma sociedade.21 Por isso, cabe razão a Calmon de Passos quando aponta
que são ignorados pela instrumentalidade elementos “originados pelos
estudos semiológicos, a revalorização do político, a partir dos desen­cantos
existenciais recolhidos da experiência do capitalismo tardio e da derro­
cada do socialismo real, a crise do Estado do bem-estar social (...). Tudo
isso denuncia a existência de um novo paradigma, a pedir seja repen­­ -
sado o que ontem tínhamos como certeza”.
Além dessa desatualidade epistemológica, Calmon de Passos
destaca a reação acadêmica ao pensamento social em relação ao processo,
tendo em conta o desenvolvimento constitucional que passou a valo­rizar
uma participação mais abrangente de todos na produção do direito.
Citando Perez Luño, que sintetiza ideias de Häberle, Denninger e
Wiethölter, Calmon de Passos sustenta que “se na década de cinqüenta
o antiformalismo dos juízes legisladores foi assunto da ordem do dia,
a experiência mostrou o alto custo social e político, em termos de segu­
rança jurídica, dessa formulação que, no fundo, era a de um discurso
antidemocrático (...)”.22 Ele também reforça a necessidade de atualizar o
pensamento do processo, pois não devemos continuar agindo como se o
panorama posto diante de nós fosse o mesmo das décadas de 50 e 60. Diz
que se, ao invés dessa época, Cappelletti fosse um jovem dos dias de hoje,
teorizaria de forma diferente do que fez e que anacronicamente ainda
sustenta o pensamento social do direito.23
Esses elementos indicam que a instrumentalidade não propôs
uma nova teoria geral do processo, mas apenas a incorporação de
argumentos de viés finalístico ao discurso jurídico processual. Essa pro­
posta de apropriação de uma teleologia por uma base conceitual que
lhe é avessa pode ser creditada, ao menos parcialmente, ao caráter
pouco filosófico da própria teoria instrumental. A instrumentalidade, tal
como foi formulada, apresenta-se como uma forma prática de pensar,
sem diálogos mais amplos com a filosofia do direito e a hermenêutica
contemporâneas. Com isso, a instrumentalidade parece mais capaz
21
Embora o autor não ignore a existência de linhas de análise mais comportamentais do poder, como em
Niklas Luhmann (Cf. Legitimação pelo procedimento. Brasília: UnB, 1980) ou em Max Weber (Cf. Economia e
sociedade. Brasilia: UnB, 2004), apresenta uma definição bastante jurídica: “O conceito de poder, avançado
antes (‘capacidade de decidir imperativamente e impor decisões’), pretende constituir uma depuração do
‘decisionismo’ (...)” (DINAMARCO. A instrumentalidade do processo, p. 11).
22
Cf. PASSOS. Instrumentalidade do processo..., p. 58.
23
Cf. PASSOS. Instrumentalidade do processo..., p. 60.

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Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo: uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas à teoria... 135

de propiciar um ativismo judicial de magistrados movidos por suas


convicções éticas e políticas do que de estabelecer uma estrutura con­
ceitual sufi­
ciente para estabelecer uma teoria processual efetivamente
renova­dora. Essa limitação filosófica, bem como o estímulo a um ativismo
judicial relativamente acrítico, gerou algumas críticas muito severas,
como as de Calmon de Passos e Rosemiro Pereira Leal.24
Talvez tenha contribuído para as críticas o fato de que a instru­
mentalidade ganhou um sentido próprio, pois passou ela mesma a fazer
parte do léxico processual, desprendendo-se de seu autor e valendo
mais pelo senso comum do que pela formulação acadêmica que um dia
teve. É certo que, em sua formulação acadêmica, a instrumentalidade
apresentava, ao menos do ponto de vista teórico, um espectro mais amplo
do que o adotado pelo senso comum. Mas, mesmo assim, ainda deixa
a desejar em relação ao que ela poderia ter sido, em termos de capaci­-
dade transformadora da epistemologia processual. Faltou, como ante­
riormente registrado, que as janelas interdisciplinares fossem mais explo­
radas, com conceitos de poder mais contemporâneos e com a proposição
de estruturas conceituais renovadas.
Em síntese, por mais que a popularidade do conceito tenha pro­
piciado a sua falta de precisão semântica, é difícil de saber onde termina
a instrumentalidade de Dinamarco (com todos os seus pressupostos
metodológicos e reverência às teorias tradicionais) e onde começa a ins­­
trumentalidade do senso comum, consistente em uma “muleta” argu­
mentativa voltada à flexibilização procedimental.
Tampouco são precisos os limites da instrumentalidade que poderia
emergir de uma radicalização das aberturas interdisciplinares propostas
inicialmente por Dinamarco, tendo em vista que ele terminou formu­
lando teses um tanto tímidas em comparação com os pressupostos que
ele alinhavou. Talvez isso tenha acontecido porque uma de suas preo­
cupações ainda era combater a suposta neutralidade da ciência, cercando-
se também de pontos de ligação com a teoria processual — aliás utilizando-
se de toda a formulação teórica anterior. Ou seja, pretendeu aliar uma
superação ideológica com uma continuidade teórica.

“A santa cruzada que o prof. Calmon de Passos enceta contra a instrumentalidade é fruto de sua notória
24

desconfiança no Poder Judiciário brasileiro, a quem atribui imensa irresponsabilidade o mais elevado grau
de falta de confiabilidade. Emprega locuções fortes, como ‘a viscosidade da decantada instrumentalidade
transformada em arma na mão de sicários’; fala dos ‘frutos perversos, ou peçonhentos’, gerados por ela e diz
que em nome da instrumentalidade ‘hipertrofiaram o papel do juiz’” (DINAMARCO. A instrumentalidade do
processo, p. 393. Cf. PASSOS. Instrumentalidade do processo..., p. 66).

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 127-141, out./dez. 2010
136 Alexandre Araújo Costa, Henrique Araújo Costa

3 O neoinstitucionalismo de Rosemiro
Algumas das críticas mais elaboradas dirigidas ao instrumenta­lismo
são de autoria da escola mineira, que representa um bom exemplo de
uma corrente não hegemônica que vem desenvolvendo linhas de pesquisa
que entrelaçam processo e hermenêutica com bastante desenvoltura.
Essa oposição entre uma escola mineira e uma escola paulista pode
parecer exagerada a alguns, mas consideramos curioso que sempre
pareça tão culta a comparação entre concepções dominantes em certos
países e famílias jurídicas, e que ao mesmo tempo que sejamos pouco
capazes de reconhecer e dialogar com tendências divergentes dentro
do nosso próprio país. De alguma maneira, esse parece ser é um tabu, no
sentido mais literal da palavra, já que nós equacionamos mediante um
mandamento de silêncio: as várias escolas não podem dialogar.25
Talvez isso seja possível porque praticamente todas nossas escolas
derivam de uma mesma raiz tradicional, fortalecida por uma escolha
legislativa que consagrou uma opção eclética diante da teoria da ação. Ou
talvez cada autor que receba alguma projeção por sua originalidade se
volte a falar somente ao seu círculo, sem se preocupar em dialogar com o
país como um todo, o que pode ser encarado como uma tendência à
presunção. Ou seja, todas as explicações mais evidentes para essa falta
de comunicação as hipóteses apontam para uma situação preponderan­
temente negativa. E por isso mesmo consideramos urgente o estabeleci­
mento de um diálogo mais abrangente entre essas correntes, o que envolve
inicialmente um reconhecimento das posições que elas defendem.
No caso da escola mineira, trata-se de uma iniciativa difícil de ser
entendida como estudo processual no sentido clássico do termo, pois
seus interlocutores encontram-se mais no seio do Instituto de Herme­
nêutica Jurídica (IHJ/MG) do que na comunidade processual como um
todo. Outro fator que dificulta a interlocução desse modo de pensar é
a combinação de uma linguagem demasiadamente hermética com uma
postura pouco cortês com o ramo da instrumentalidade, que goza de
prestígio no restante do país.
A título de exemplo, tomemos a afirmação de Rosemiro de que,
“a aceitar irrefletidamente o ensino de Bülow a Liebman e deste aos
ins­
trumentalistas de hoje, alojando-se aqui os positivistas e neopositi­
vistas, adeptos fatalistas da necessária garantia, interpretação e aplicação

Cf. FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In: Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
25

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Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo: uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas à teoria... 137

do direito em critérios lato e stricto sensu entregues à justiça civil de


portadores natos de saberes oriundos de uma eticidade irretocável e
experiência de vida pacífica e respeitosa, não nos é possível excluir os
escopos metajurídicos processuais da esfera de uma judicância mítico-
clarividente.” Aliás, observações muito duras também foram dirigidas ao
instrumentalismo por Calmon de Passos.26
Segundo Rosemiro “dizer que o juiz é que diz qual é a vontade con­
creta da lei (Chiovenda e seus discípulos) é eternizar a justiça civil por
uma corrente de legisladores cientes de sua inocuidade e já integrantes
culturalmente e desde sempre de uma ‘sociedade’ de dominação legí­ ti­
ma (...).” Estamos aqui no limiar da compreensão de uma crítica sobre
27

o modo de pensar e agir do processualista típico. O que está em xeque


é justamente a visão de mundo que temos e nosso marco teórico incapaz
de trabalhar o direito a partir de uma ótica verdadeiramente constitucio­
nal, pois nossas ferramentas foram forjadas para o direito liberal indi­
vidual. Naturalmente, essa é uma simplificação do pensamento neo­
institucionalista, mas julgamos que é preciso adotar uma forma mais clara
e direta que a narrativa hermética típica dos cultores dessa perspectiva,
do qual um exemplo claro é o seguinte trecho de Rosemiro Leal:

No âmbito dos direitos objetivos-subjetivados (direitos individuais) que alguns


alcançam na isegoria (realidade nua e natural como recinto conflitivo prático
da montagem de um sistema continuado de dominação — no sentido de Weber)
é que, por norma fundacional (direito fundamental posto co-institucionalmente),
é garantida a auto-inclusão do outro desprovido (‘potus’) no sistema de
fruição-objetiva de direitos a habilitá-lo ao exercício da isocrítica (criar, alterar,
atuar normas jurídicas co-munitariamente igualado-munido em dignidade
fundamento) retirando-o do mundo “civil” dos estruturalmente desiguais para
sempre (formas de vida aristotélio-wittgensteineanas).28

Apesar do estilo hermético, convém reconhecer a grande den­ si­­


-
dade epistemológica dos textos de Rosemiro Pereira Leal, que é o autor
mi­neiro de maior destaque no campo da teoria processual e também o
criador da proposta neoinstitucionalista. Além do instrumentalismo,

26
Cf. PASSOS, Calmon de. A crise do Judiciário e as reformas instrumentais: avanços e retrocessos. Revista Síntese
de Direito Civil e Processual Civil, ano 3, jan./fev. 2002.
27
LEAL. Modelos processuais e Constituição democrática, p. 289. Ver também: “Verossimilhança e inequivocidade
na tutela antecipada em processo civil”, artigo consultado no site A priori, em 05.05.10, no endereço: <http://bit.
ly/bRaTfA>. Ainda sobre o pensamento de Rosemiro e seu grupo, consultar: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.).
Estudos continuados de teoria do processo. Porto Alegre: Síntese, 2000-2004. v. I-V.
28
LEAL. Modelos processuais e Constituição democrática, p. 291.

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138 Alexandre Araújo Costa, Henrique Araújo Costa

Rosemiro ataca com igual ferocidade o senso comum firmado em torno


da ideia de um “modelo constitucional de processo”, originalmente pro­
posto pelos italianos Andolina e Vignera,29 por considerar que o processo
constitucional, assim chamado pela doutrina brasileira contemporânea,
não se trata de uma abordagem constitucional ao processo; e sim uma
continuação da sua tradição civilista de abordagem.
A escola neoinstitucionalista propõe uma saída interessante de
superação, tanto do antigo modelo de liberalismo processual com prota­
gonismo das partes; quanto do atual modelo de socialização processual
com protagonismo judicial.30 Embora essa corrente não contextualize
dessa forma, a partir das observações de movimentos críticos em relação
aos desenvolvimentos da década de 70, é possível dizer que Cappelletti
via o Estado prestador como um ponto de chegada da civilização.
Foi essa visão de mundo que impulsionou o instrumentalismo bra­
sileiro na década seguinte, ignorando que o neoliberalismo avançava
contrariamente a passos largos nas grandes potências capitalistas. Todos
os serviços públicos — inclusive a administração da justiça — foram
sacrificados e o Estado diminuiu sua participação, de maneira incompa­
tível com o que a doutrina instrumentalista exige do juiz. E para que o
juiz pudesse prestar o que lhe é exigido, o instrumentalismo brasileiro
propôs que a magistratura fosse autorizada a atuar segundo sua sensibi­
lidade para cumprir sua missão de fazer valer valores constitucionais.
O neoinstitucionalismo nega aos juízes essa liberdade e propõe
uma releitura mais restrita de seus parâmetros de decisão, a partir das
teorias discursivas contemporâneas.31 Ao mesmo tempo, diagnostica
que atualmente no Brasil o judiciário de instâncias superiores se inclina
mais a julgar teses do que casos, o que seria incompatível com sua missão
constitucional.32 Adotar essa tendência a julgamentos abstratos é uma
escolha política relevante, que gera uma judicialização da política de

29
A noção de um modelo constitucional de processo que se funda em um esquema geral de base principiológica
uníssona, ou seja, um modelo único, com tipologia plúrima (BARROS. O modelo constitucional de processo..., p.
334-335. Cf. ANDOLINA, I; VIGNERA, G. Il fondamenti costituzionali della giustizia civile: il modello costituzionale
del processo civile italiano. Torino: G. Giappichelli, 1997).
30
NUNES. Apontamentos iniciais de um processualismo..., p. 350 et seq.
31
“Ao se falar num direito processual da pós-modernidade, almeja-se, com essa expressão, identificar nos textos
positivados o conjunto de normas institucionalizadas pelo modelo jurídico do devido processo constitucional
que, em sua gênese, reúna significância de superação da heteronomia produtiva do direito de tal modo a ensejar
a construção procedimental de uma legalidade que se abre à crítica corretiva ampla e irrestrita. Esse direito
processual assume compromisso teórico com as respostas a serem dadas numa universalidade pós-metafísica
de instalação de comunidades jurídicas autoras, simultaneamente destinatárias, confirmadoras, reconstrutoras e
operadoras do Estado democrático de direito discursivamente instituído” (LEAL. Teoria processual..., p. 28).
32
NUNES. Apontamentos iniciais de um processualismo..., p. 350.

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Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo: uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas à teoria... 139

viés centralizador que termina por exigir do judiciário decisões gerais


e abstratas que ele precisa tomar numa lógica de aplicação de normas
(que ele tem autoridade para realizar) e não de equilíbrio de interesses
(que ele não tem legitimidade para realizar).
Nessa transformação, os juízes ganharam um poder político muito
acentuado, o qual não foi acompanhado por elementos de controle e res­
ponsabilização, já que a linguagem hermética e o discurso pseudotéc­­ -
nico dificultam essas tarefas. Cremos que essa última crítica é muito correta
e revela uma das faces perversas da concentração decisória nas mais
altas instâncias judiciais. Contudo, quanto ao primeiro aspecto relativo à
releitura racional, trata-se de um assunto a ser avaliado detidamente.
De fato, a importação de ideias italianas após a Segunda Guerra
impulsionou o pensamento brasileiro a reagir contra o liberalismo pro­
cessual que dominou esse campo do conhecimento desde sua criação,
ainda no século XIX. Assim, de uma maneira geral, passamos a desejar
— a partir da década de 40, até ser cunhado o instrumentalismo —
um processo que contrastasse com o liberalismo. Ou seja, nossa utopia
passou a ser a construção de um processo oral e conduzido pelo juiz.
Acontece que o constitucionalismo do século XX exigiu que o pro­-
cesso passasse a servir de instrumento democratizante, com participação
mais ampla e não submissa apenas à percepção do juiz. Esse é o gérmen
da constitucionalização do processo que está na ordem do dia, sobre o
qual todos falamos, embora continue a ser condicionado à visão clássica
do processo e sua prática processual arraigada no nosso sistema judicial.
Com certeza é um paradoxo severo. A doutrina dominante diz carregar
a mesma bandeira do processo constitucionalizado; assertiva negada pelo
neoinstitucionalismo, que crê faltar legitimidade a um sistema judicial
centrado na vontade do juiz.

4 Conclusão
Nota-se que o diálogo entre Rosemiro de Dinamarco não se travou;
ou quando se deu foi unilateral e passou longe da civilidade. Aliás, pode
ser que esse enfrentamento por seus maiores representantes não acon­­ -
teça nunca porque a visão social do processo tem perdido força e im­
portância. Tanto é que não foi determinante para as últimas reformas
proces­­suais, que modificaram completamente o CPC com uma visão muito
mais pragmática e concentradora de poder nas instâncias superiores.

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140 Alexandre Araújo Costa, Henrique Araújo Costa

Nesse cenário, os poderes do juiz foram restringidos a poderes de


gestão do processo, pois a fixação da tese jurídica já é — e deve passar a
ser cada vez mais — vinculada ao entendimento das instâncias supe­
riores. Isso pode fazer com que a crítica neoinstitucional fique também
ultrapassada no que é contrária à vontade do juiz como orientadora
da jurisdição. Ou seja, ficaria prejudicada a luta da visão racionalista
(mesmo sendo uma racionalidade discursiva) contra a visão axiológico-
social (ainda impulsionada pela mentalidade da década de 70).
Contudo, o neoinstitucionalismo pode se tornar bastante útil caso
redirecione seus esforços para auxiliar o desenvolvimento do processo
fora desse enfrentamento, quem sabe pensando sobre as consequências
da concentração decisória que estamos presenciando. Definitivamente,
esses são rumos contrários à visão instrumental que prega a liberdade
judicial, pois os juízes de primeira instância têm cada vez menos poderes
de julgamento na escolha da tese jurídica a ser aplicada.

Abstract: This essay compares two proposals of contemporary approach


to the Brazilian civil procedure: the Dinamarco’s Instrumentalism, and
the Leal’s Neoinstitutionalism. In contrast with the mainstream nowadays
authors, the Dinamarco’s thesis is exposed here as an ideological attempt
to overcome the so prevailing civil procedure thinking, albeit featured by a
theoretical uncritical continuum. Regarding the Leal’s thesis, it is possible
to become an anachronic and rational criticism towards Instrumentalism.
This would be due to legislative reforms imposing a sort of ‘stare decisis’
doctrine, according to which higher courts could be allowed to issue binding
precedents. Hence, it would quite limit the judges’ possible instrumentalist
performances, whose tend to be more flexible in legal terms and show greater
social engagement.
Key words: Civil procedure. Legal theories. Judicial activism. Procedural
reforms. Jurisprudence. Brazilian law.

Referências

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Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo: uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas à teoria... 141

DINAMARCO, Cândido Rangel. Vocabulário do processo civil. São Paulo: Malheiros, 2009.
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LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002.
NUNES, Dierle José Coelho. Apontamentos iniciais de um processualismo constitucional
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WARAT, Luis Alberto; ROCHA, Leonel Severo. O direito e sua linguagem: 2ª versão. 2. ed.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

COSTA, Alexandre Araújo; COSTA, Henrique Araújo. Instrumentalismo x Neoinstituciona-


lismo: uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas à teoria da instrumentalidade do
processo. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72,
p. 127-141, out./dez. 2010.

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Assistência simples e coisa julgada material – A “justiça da decisão” do artigo 55 do Código de Processo... 143

Assistência simples e coisa julgada


material – A “justiça da decisão”
do artigo 55 do Código de Processo
Civil brasileiro
Alexandre Paulichi Chiovitti
Mestrando em Processo Civil pela PUC-SP. Especialista em Processo Civil. Advogado em São Paulo.

Palavras-chave: Código de Processo Civil brasileiro. Assistência simples.


Justiça da decisão.

A coisa julgada material, ou os efeitos que dela irradiam, é assunto


que sempre desperta o interesse dos juristas brasileiros, seja pela impor­
tância do tema, ou ainda, pelas acirradas discussões que a matéria causa
quando em confronto com outros institutos.
São variados os estudos e as conclusões que envolvem a coisa
jul­
gada material, bem como as dúvidas que o tema desperta, quando
analisado à luz de outros institutos.
Como reconhece a doutrina, a coisa julgada representa uma quali­
dade da sentença que a torna imutável, tendo força de lei nos limites em
que foi proferida, com relação às partes que figuraram na demanda.1 2
Aliás, como reforça o art. 472 do Código de Processo Civil, somente
às partes a coisa julgada material incide, sem beneficiar ou prejudicar
terceiros.
A assistência simples, por sua vez, não é assunto tão corrente no
meio processual. Neste passo, inegável a pouca utilização deste instituto;
talvez fosse possível até mesmo dizer sub-utilização, pelo que se denota
na vida cotidiana forense. Talvez este pouco uso da assistência simples
decorra da forma como atualmente é encarada, ou, ainda, pelas conse­
quências que ensejam.

1
Esta é a lição de THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 39. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2003. v. 1, p. 127.
2
Segundo WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado
de processo civil. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 265: “Trata-se de um instituto que tem em
vista gerar segurança. A segurança, de fato, é um valor que desde sempre tem desempenhado papel de um
dos objetivos do direito. O homem sempre está a procura de segurança e o direito é um instrumento que
se presta, em grande parte, ao atingimento desse desejo humano. Por meio do direito, procura-se tanto a
segurança no que diz respeito ao ordenamento jurídico como um todo, quanto a esta espécie de segurança
que a coisa julgada desempenha seu papel”.

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144 Alexandre Paulichi Chiovitti

Segundo o art. 50 do CPC, dá-se a assistência quando o terceiro, na


pendência de uma causa entre outras pessoas, tendo interesse jurídico
em que a sentença seja favorável a uma das partes, intervém no processo
para prestar-lhe colaboração.3
O assistente simples é o verdadeiro terceiro que ingressa em pro­
cesso alheio. Como reconhece a doutrina nacional, o assistente simples
não é parte em sentido formal, vez que ele nada postula, nem contra
ele é deduzido pedido algum. Ele não traz ao processo de conhecimento
afirmação de direito sua nem contra ele é exercida qualquer pretensão.
Se assim é, a coisa julgada material que recairá sobre a decisão da lide
não atingirá, eis que a lide não lhe diz respeito, não é sua.4 5
Por aí já se vê que o assistente não formula pretensão e tampouco
defesa, e a sua presença no processo não faz nascer uma outra lide para
que o juiz decida juntamente com a lide originária (como ocorre, por
exemplo, na denunciação da lide ou na oposição).6
Sob este prisma, seria mister um estudo sistemático acerca da
incidência dos efeitos da coisa julgada material aos assistentes simples,
instituto que angariou a alcunha de “justiça da decisão”, segundo a
diretriz do art. 55 do Código de Processo Civil. Matéria que pouco chama
a atenção dos processualistas.
E aqui começa o alvo deste nosso estudo: a correspondência entre
a coisa julgada material e a assistência simples; ou, noutras palavras, os
efeitos que da coisa julgada material irradiam ao assistente simples.
A ampla maioria da doutrina nacional entende que, ao assistente
simples recaem efeitos da coisa julgada material. E tais efeitos subsumem-
se, além do dispositivo propriamente dito da decisão, aos fundamentos
de fato e de direito da sentença proferida.7
3
THEODORO JÚNIOR, op. cit., p. 127.
4
ALVIM, Thereza Celina Diniz de Arruda. Da assistência. Revista de Processo, v. 20, n. 79, p. 201, São Paulo,
1995.
5
Ainda nesta ótica: CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de terceiros. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p.
128. Segundo o autor: “Em princípio, é lícito afirmar que na assistência simples não está em causa a relação
jurídica, ou o direito que o assistente se tem como titular. Assim, v. g., na ação de despejo, locador e locatário
questionam sobre a resolução do contrato de locação, não sendo objeto da lide a existência validade, eficácia
ou vigência do contrato de sublocação firmado entre o locatário (réu na ação) e o sublocatário (admitido como
assistente do réu)”.
6
WAMBIER; ALMEIDA; TALAMINI, op. cit., p. 265.
7
Neste sentido: BEDAQUE, José Roberto dos Santos; MARCATO, Antonio Carlos (Coord.). Código de Processo
Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2004. p. 163. Segundo o autor: “Outro não pode ser o significado da
expressão justiça da decisão. Não se referiu o legislador ao dispositivo da sentença, cujo conteúdo é indiferente
ao assistente, à medida que não o atinge diretamente. A justiça desse resultado depende de estarem corretas as
premissas em que o julgador se baseou”. E finaliza nos termos seguintes: “Em última análise, a imutabilidade
da sentença quanto ao assistente não se limita ao dispositivo. Abrange a própria fundamentação”.

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Assistência simples e coisa julgada material – A “justiça da decisão” do artigo 55 do Código de Processo... 145

Assim, em uma determinada demanda, que contou com a par­


ticipação de um assistente simples, quanto às partes principais, a coisa
julgada material jungir-se-ia ao dispositivo da sentença proferida; ao
passo que, ao assistente simples, a coisa julgada iria além, pois estaria
formada tanto em relação à parte dispositiva como também à funda­
mentação da decisão.8
E é sob este entendimento, hoje compreendido e aceito, que
o presente estudo recairá. Para tanto, analisaremos o instituto sob um
outro ângulo.
Como é cediço, o art. 469, I, do Código de Processo Civil, alude
não incidirem os efeitos da coisa julgada material nos motivos, ainda
que importantes, que determinaram o alcance da parte dispositiva
da sentença.9 10 É o que comumente se denomina limites objetivos da
coisa julgada.11
Desta forma, se X propõe contra Y uma ação de despejo, alegando
que o locatário cometeu infração contratual grave, consistente em dani­
ficar o prédio alugado, e este pedido é julgado procedente, somente este
pleito de desocupação é atingido pela força da coisa julgada material;
portanto, se, posteriormente, o mesmo X propõe outra demanda contra
Y, desta vez postulando pelo ressarcimento dos prejuízos, poderá, então,
o órgão judicial rejeitar o pedido e decretar a improcedência deste
pedido indenizatório, entendendo não ter ficado comprovado o fato da
danificação no prédio.12 13

8
Com igual entendimento: ALVIM, Thereza Celina Diniz de Arruda. Da assistência. Revista de Processo,
São Paulo, v. 20, n. 79, p. 203, 1995; NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de
Processo Civil comentado. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 274; e, ainda: WAMBIER, Luiz
Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil.
9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 618.
9
Segundo GRINOVER, Ada Pellegrini. Considerações sobre os limites objetivos e a eficácia preclusiva da coisa
julgada. Revista do Advogado, São Paulo, v. 21, n. 65, p. 76, 2001 “é exata a afirmativa de que a coisa julgada
se restringe à parte dispositiva da sentença. A expressão, entretanto, deve ser entendida em sentido substancial
e não apenas formalístico, de modo que compreenda não apenas a frase final da sentença, mas também
tudo quanto o juiz porventura haja considerado e resolvido acerca do pedido feito pelas partes. Os motivos
são, pois, excluídos, por essa razão, da coisa julgada, mas constituem amiúde indispensável elemento para
determinar o alcance do dispositivo”.
10
No dizer de NERY JÚNIOR; NERY, op. cit., p. 701, “Fazendo-se a correlação entre petição inicial e sentença,
poder-se-ia dizer que a parte final da petição inicial, isto é, o pedido, corresponde à parte final da sentença,
vale dizer, o dispositivo. Assim, o conjunto formado pelo pedido e o dispositivo é alcançado pela coisa julgada
material”.
11
Para ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
geral do processo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 307, “Estabelecer os limites objetivos da coisa
julgada significa responder à pergunta: ‘quais partes da sentença ficam cobertas pela autoridade da coisa
julgada?”.
12
O citado exemplo nos é oferecido por MOREIRA, José Carlos Barbosa. Os limites objetivos da coisa julgada no
sistema do Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 93.
13
A jurisprudência também assentou opinião neste sentido: STJ. REsp nº 182.735/SP. Segunda Turma. Ministro
Castro Filho. DJ, p. 153, 25 jun. 2001. Ementa: “Processo Civil. Coisa Julgada. Artigo 469, I e III, do Código de

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146 Alexandre Paulichi Chiovitti

Portanto, a regra é a seguinte: a coisa julgada material recairá


apenas sobre o dispositivo da sentença, não incidindo sobre os funda­
mentos ou provas ainda que importantes. Isto porque, na lição de Fredie
Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael de Oliveira: “Somente se
sub­mete à coisa julgada material a norma jurídica concreta, contida no
dispositivo da decisão, que julga o pedido (a questão principal, conforme
o art. 468, CPC). A solução das questões na fundamentação (incluindo
análise das provas) não fica indiscutível pela coisa julgada (art. 469,
CPC), pois se trata de decisão sobre questões incidentes”.14
Diante de tais argumentos, seria de se questionar o porquê em
relação ao assistente simples — que detém mero interesse reflexo, jurí­
dico, na decisão judicial vindoura — incidem efeitos mais abrangentes
da coisa julgada material (fundamentação e decisório); ao passo que,
para as partes — que possuem interesses próprios e diretos —, ao con­
trário, não há dita precipitação.
Mediante tal entendimento pode-se chegar à seguinte conclusão:
ao assistente simples seriam imputados maiores reflexos e ônus decor­
rentes da prolação da decisão judicial, embora menor sua vinculação à coisa
litigiosa, do que às próprias partes que a disputam em nome próprio.
Com efeito, se às partes a coisa julgada abrangerá somente o dis­
positivo da sentença, e ao assistente simples a coisa julgada englobará
dispositivo e fundamentação, inegável a maior vinculação deste à decisão
judicial.
Esta conclusão está em franca contradição com o art. 52 do Código
de Processo Civil, o qual alerta que o assistente simples sujeitar-se-á aos
mesmos ônus processuais que o assistido.
Ora, então aquela conclusão acima mencionada, bem como todos
os reflexos do que se tem entendido acerca da “justiça da decisão”, do
art. 55 do Código de Processo Civil, devem ser avaliados.
Ao que parece, há uma antinomia15 entre o art. 55 do CPC e os
arts. 469, I, e 472 do estatuto, uma situação assistemática que carece da
devida atenção.

Processo Civil. Fixação de Verba Honorária. Ausência de Fundamentação. Inocorrência. I – Os limites objetivos
da coisa julgada não abrangem os motivos da decisão nem questões prejudiciais, salvo, quanto a estas, a
propositura de ação declaratória incidental. II – Nas causas em que não há condenação, a fixação dos honorários
se dá consoante apreciação eqüitativa do juiz. Recurso a que se nega provimento”.
14
DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael de. Curso de direito processual civil. 2. ed.
Salvador: JusPodivm, 2008. v. 2, p. 560-561.
15
Definindo o tema, DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 15, aduz que
antinomia é: “um problema que se situa ao nível da estrutura do sistema jurídico (criado pelo jurista), que,

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Assistência simples e coisa julgada material – A “justiça da decisão” do artigo 55 do Código de Processo... 147

O professor Gelson Amaro sintetizou bem a questão: “Dispõe o


artigo 469, I e II, do CPC que não fazem coisa julgada (não se tornam
imutáveis) os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance
da parte dispositiva da sentença e a verdade dos fatos, estabelecida como
fundamento da sentença. Ora, se os motivos e os fundamentos não fazem
coisa julgada (não se tornam imutáveis) entre as partes, com maior razão
não podem ser imutáveis aos assistentes que nem partes são. Seria dar
maior efeito da sentença ao assistente do que às próprias partes. Tal
assertiva, a nosso modesto modo de ver, é ilógica, anti-sistêmica e irreal.
Pensa-se que o processo e a sentença devem vincular mais as partes do
que o assistente e não este mais que aquelas”.16
Particularmente, em nosso modesto modo de enxergar a questão,
pontilhamos da mesma opinião do processualista acima mencionado:
não se deve admitir a vinculação da decisão a quem tenha um menor
interesse na resolução da lide do que às próprias partes, supostamente
maiores interessadas.
Vamos a um exemplo prático. A seguradora pode intervir como
assistente simples na ação movida por terceiro contra um seu segurado,
em virtude de colisão de veículos.17 Outrossim, sabe-se que a seguradora
remanesce isenta da obrigação de pagar a indenização do seguro,
quando o segurado agrava intencionalmente o risco (CC, art. 768), por
exemplo, quando ingere grande quantidade de bebida alcoólica antes
de dirigir.
Destarte, caso a sentença reconheça que a colisão ocorreu por
culpa do segurado, que deu causa ao acidente em vista de seu estado

submetido ao princípio da não-contradição, deverá ser coerente. A coerência lógica do sistema é exigência
fundamental, como já dissemos, do princípio da unidade do sistema jurídico. Por conseguinte, a ciência do
direito deve procurar purgar o sistema de qualquer contradição, indicando os critérios para solução dos conflitos
normativos e tentando harmonizar os textos legais”.
16
SOUZA, Gelson Amaro de. A assistência e a coisa julgada. Revista Jurídica, Porto Alegre, ano 51, n. 310, p.
56, 2003.
17
Neste sentido: TJ/DF. Apelação Cível nº 4.102.596. 1ª Turma Cível. Relator: Des. Edmundo Minervino.
Disponibilização no DJe, p. 4.421, 19 mar. 1997, seção 3. Ementa: “Direito Civil e Processual Civil. Acidente
de Trânsito. Reparação de danos. Admissão da Cia. Seguradora como assistente simples da parte ré. 1. A
prova pericial feita por particular e sob encomenda da parte autora, ao firmar a culpa da ré-apelada, afronta
a conclusão, em sentido contrário, do laudo oficial da Polícia Técnica, bem assim a descrição dos fatos feita
pelas testemunhas. 2. A prova dos autos indica que a apelante, ao ingressar na pista, local do acidente, deixou
de observar as condições de tráfego, oferecendo seu veículo à colisão daquele dirigido pela ré. 3. A decisão
judicial não acolhedora do pedido de denunciação à lide da Cia Seguradora e formulada pela parte ré, não
impossibilita que o magistrado receba-o como o de assistente simples em favor de seu segurado. Recursos
conhecidos e desprovidos. Unânime”.

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148 Alexandre Paulichi Chiovitti

de embriaguez, a seguradora que, de início, poderia ver-se livre do


pagamento,18 19 terá, como regra, agora, de indenizar a parte contrária.
Isto porque, caso a sentença, em sua fundamentação, reconheça a
culpa do segurado, diante de sua embriaguez, bem como no dever de se
indenizarem os danos causados, tais fatos culminarão na obrigação da
seguradora do ressarcimento ao terceiro.
Assim, a seguradora que, num primeiro momento, poderia ver-
se livre da sua obrigação de pagar a indenização do seguro ao terceiro,
pelo agravamento do risco do segurado (embriaguez), ao revés, agora,
ver-se-á jungida ao adimplemento respectivo.
E isto se deve ao fato do art. 55 do Código de Processo Civil ter
sido entendido como impositor da coisa julgada ao assistente simples,
tanto em relação à fundamentação, quanto ao dispositivo da sentença.
Por outro lado, caso a seguradora não interviesse como assistente
simples no feito, poderia ter a escusa de responsabilidade reconhecida
pelo agravamento do risco pelo segurado, em seu favor. Mas, diante
deste seu ingresso, tal hipótese defensiva lhe teria sido negada.20
Não há como se deixar de reconhecer, no exemplo acima citado,
ter sido a seguradora mais vinculada à coisa julgada material que irra­ -
diou da sentença, do que as próprias partes. Estas ficarão adstritas ao
comando da sentença, seja qual for a fundamentação. Já para aquela, a
seguradora, caso não ingressasse na lide como assistente simples, pode­
ria manejar defesa para escusar-se da obrigação indenizatória. Portanto,
contra si foram maléficos os efeitos da sua intromissão no processo.

18
Com efeito, por exemplo, na fase de cumprimento de sentença, a seguradora poderia alegar a inexigibilidade
do título (CPC, art. 475-L, II) ou ilegitimidade de parte (CPC, art. 475-L, IV), aduzindo que a cobertura do
seguro não mais estava em vigor, estando rescindido o contrato pelo agravamento do risco pelo segurado
(CC, art. 768).
19
Assim já reconheceu a jurisprudência: TJ/MG. Apelação Cível nº 1.0024.08.243280-8/001. 10ª Câmara Cível.
Des. Electra Benevides. Publicado em 24.02.2010. Ementa: “Apelação Cível – Ação de Reparação de Danos
– Contrato de Seguro – Acidente de Trânsito – Embriaguez do Segurado – Comprovação – Agravamento de
Risco – Indenização Securitária – Negativa de Cobertura – Licitude – Honorários Advocatícios. O boletim de
ocorrência, mesmo sendo um documento produzido unilateralmente, possui presunção de veracidade e tem
força probante, devendo a parte interessada, em observância ao disposto no artigo 333, II do CPC desconstituir
as informações ali contidas. Não tendo o apelante produzido nenhuma prova contundente com força suficiente
para elidir o seu estado alcoólico certificado pelos policiais que foram testemunhas na lavratura do Auto de
Constatação de Embriaguez, outra conclusão não há senão a de que o recorrente estava dirigindo sob os
efeitos do álcool. O estado etílico do segurado, além de importar em agravamento do risco objeto do contrato,
foi determinante para a ocorrência do acidente, o que afasta o dever da seguradora de efetuar o pagamento
dos valores reclamados. Nos termos do parágrafo 4º, do artigo 20 do Código de Processo Civil, nas causas em
que não houver condenação, os honorários serão fixados consoante apreciação eqüitativa do juiz, atendidas
as normas das alíneas ‘a’, ‘b’ e ‘c’, do parágrafo 3º do mesmo artigo. Recurso provido em parte”.
20
É certo que a seguradora poderá pretender, em pedido independente contra o segurado, em regresso, o que
pagou ao terceiro; porém, com todas as mazelas de ter de ingressar com ação (contratação de advogado,
pagamento de custas, dano emergente do processo), e, ainda, correr o risco de uma decisão conflitante.

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Neste passo, como foi dito anteriormente, seria mister conciliar


as regras do art. 469, I, com a disposição do art. 55, ambos do Código
de Processo Civil, numa interpretação sistemática,21 de modo a viabilizar
esta última norma mencionada no contexto do Código.
Sendo assim, uma primeira sugestão seria flexibilizar o alcance da
primeira parte do art. 472 do Código de Processo Civil,22 que prevê os
limites subjetivos da coisa julgada, de modo a torná-lo apto a englobar
as lides que contam com a interveniência do assistente simples.
A proposta supradelineada, concernente à flexibilização da pri­
meira parte do art. 472 do CPC, de modo a compatibilizar-se com a
regra do art. 55 do mesmo estatuto, seria uma forma de interpretar-se
siste­maticamente esta última regra mencionada, dando-lhe os contornos
positivos e principiológicos da legislação processual civil.23
Desta forma, o art. 55 do CPC funcionaria como uma regra de
extensão do art. 472 do diploma, alargando seu conceito e extensão,
bem como trazendo unidade e coesão ao sistema.24
Isto porque, como foi dito anteriormente, não parece lógico nem
sistemático impor efeitos maiores da decisão judicial a quem detenha
meros interesses reflexos na solução da lide, do que às próprias partes,
supostamente que é quem possui um direito. Não parece que a lógica e
coesão do sistema devam permitir situação como esta, ou como aquela
exemplificada acima.
Aliás, quer parecer mesmo que o art. 55 do CPC complementa o art.
472 do diploma com relação aos assistentes simples, de forma a reconhecer
que esta última não deveria ser vista como uma regra inflexível, mas, ao
contrário, apta a receber novas estruturações e contornos.
21
Cf. FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 60-61: “A
interpretação sistemática deve ser definida como uma operação que consiste em atribuir a melhor significação,
dentre várias possíveis, aos princípios, às normas e aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto,
fixando-lhes o alcance e superando antinomias, a partir da conformação teleológica, tendo em vista solucionar
os casos concretos. Dito de outra forma, a interpretação sistemática, quando compreendida em profundidade,
é aquela que se realiza em consonância com a rede hierarquizada, máxime na Constituição, tecida por
princípios, normas e valores considerados dinamicamente e em conjunto. Assim, ao se aplicar uma norma,
está-se aplicando o sistema inteiro”.
22
“Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando
terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio
necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros”.
23
Leciona MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994.
p. 356, ser dever do aplicador do direito comparar e conciliar as disposições normativas para harmonizar o
sistema, visando deduzir o sentido e o alcance de cada uma destas disposições.
24
Já o dizia REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 275: “Cada artigo
de lei situa-se num capítulo ou num título e seu valor depende de sua colocação sistemática. É preciso, pois,
interpretar as leis segundo seus valores lingüísticos, mas sempre situando-as no conjunto do sistema. Esse
trabalho de compreensão de um preceito, em sua correlação com todos os que com ele articulam logicamente,
denomina-se interpretação lógico-sistemática”.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 143-154, out./dez. 2010
150 Alexandre Paulichi Chiovitti

Uma outra solução seria ter por especial a regra do art. 55 do


Código de Processo Civil frente ao art. 472 do estatuto.
Isto porque o art. 55 do CPC funcionaria como norma legal
espe­cial, dentro do próprio sistema, que traduziria os contornos da
incidência da coisa julgada material, especificamente em relação ao
assistente simples.
Como exemplos de que outras regras podem complementar o
art. 472 do CPC, pode-se citar o art. 103 do Código de Defesa do Con­
sumidor (Lei n.º 8.078/90),25 o qual estende os efeitos da coisa julgada
material nas ações coletivas.
Neste passo, como o art. 103 do Código de Defesa do Consumidor
mostra-se como regra especial, prevalece sobre a regra geral do Código
de Processo Civil. Ora, neste mesmo diapasão, então por que não se
pode considerar que a regra do art. 55 do CPC também é especial em
relação ao art. 472 do diploma, vez que regula a aplicação da coisa jul­­-
gada material aos assistentes simples?
O art. 55 do CPC pode ser visto como lei especial, pois regula a
forma como incidirão os efeitos da coisa julgada material unicamente
em relação ao assistente simples, ou seja, destoando da regra geral do
art. 472 do diploma processual, tido como a regra geral do sistema,
aquela norma viabiliza como deverão ocorrer os efeitos da imutabili­­ -
dade da decisão judicial nestas hipóteses especiais.
Portanto, em nosso sentir, respeitadas as opiniões contrárias, a
regra do art. 472 do Código de Processo Civil deve ser mitigada, de forma
a abranger os assistentes simples que integram a lide, devendo o art. 55
do estatuto servir como complemento daquele entendimento formado
em relação aos limites subjetivos da coisa julgada. Ou, ainda, ser tido o
art. 55 do CPC como uma regra especial frente ao art. 472 do diploma,
uma vez que aquela norma regulamenta a incidência da coisa julgada
material em relação aos assistentes simples.
De qualquer modo, em ambas as hipóteses, com relação ao
assistente simples, a coisa julgada material, à semelhança do que ocorre

Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada: I – erga omnes, exceto se
25

o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá
intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo
único do art. 81; II – ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por
insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do
parágrafo único do art. 81; III – erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas
as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 143-154, out./dez. 2010
Assistência simples e coisa julgada material – A “justiça da decisão” do artigo 55 do Código de Processo... 151

com as partes principais, jungir-se-ia ao dispositivo da sentença, não


alcançando os fundamentos da sentença ou as provas produzidas, ainda
que importantes, nos moldes do art. 469, I, do Código de Processo Civil.
Com tal entendimento estaria resguardado o teor da regra inserta
no art. 52 do Código de Processo Civil, tendo em vista que o assistente
simples sujeitar-se-ia aos mesmos ônus do assistido.
Esta seria a solução, ao menos para nós, que mais se compatibilizaria
com o sistema do Código de Processo Civil, resguardando os interesses
das partes, em especial daqueles que intervém como assistentes simples.
Obviamente, não se pode olvidar das exceções trazidas pelo pará­
grafo único do art. 55 do Código de Processo Civil, que traz hipóteses
em que a “justiça da decisão” não irradiaria efeitos. Estas exceções
funcionam como óbices legais à incidência da coisa julgada material
conquanto aos assistentes simples.
Isto porque, para que a coisa julgada material irradie efeitos
ao assistente, este deverá ter tido a oportunidade de defender aquele
direito do assistido que reflexamente, no futuro, vier a lhe atingir. Deste
modo, se for tolhida a oportunidade de produzir alegações e provas,
ficará evidenciada a ofensa aos constitucionais princípios do contraditório
legal e da ampla defesa, não devendo o assistente simples ver-se jungido
àquela decisão judicial que não contou com sua participação efetiva,
vez que a sentença somente vincula as partes, não beneficiando nem
prejudicando terceiros, à luz do art. 472 do CPC.
Nesse sentido exemplos podem ser citados. Basta imaginarmos a
situação do assistido que reconhece a procedência do pedido (art. 269,
II, do CPC) e impede, com isso, a produção de defesa pelo assistente.
Ou, ainda, no caso de transação (art. 269, III, do CPC). Ou, por fim,
quando o assistido não manifestar interesse na via recursal contra a
sentença que lhe foi desfavorável (impedindo, desse modo, o recurso
do assistido, segundo a jurisprudência dominante). Por pior, pensemos,
ainda, na hipótese de conluio entre assistido e seu adversário em desfavor
do assistente, que culmine com a impossibilidade do assistente deduzir
suas alegações e provas.
Em todos esses exemplos acima mencionados, fica clara a impos­
sibilidade do assistente auxiliar efetivamente o assistido, e, consequen­
temente, defender aquele direito que reflexamente lhe irá repercutir.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 143-154, out./dez. 2010
152 Alexandre Paulichi Chiovitti

Ora, nesses casos, não parece que o assistente deva se submeter aos
efeitos da decisão, pois este não interveio de modo efetivo na demanda.
E, ainda, especificamente no caso de conluio, a situação é agravada,
pois se fossem permitidas essas hipóteses, estar-se-ia prestigiando o
engodo ao revés da boa-fé.
Nesse sentido, inviável a submissão do assistente à justiça da
decisão.
Segundo Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, tais
exceções se configurariam quando o assistente comprovar que, pela ati­
tude do assistido, à qual se encontrava subordinado, ficou limitado e não
pôde produzir provas que teriam sido capazes de modificar o resultado
do processo ou de, pelo menos, influir na sentença.26
Para o professor José Roberto dos Santos Bedaque, em razão de
circunstâncias a ele estranhas e fora de seu controle, foi-lhe obstado o
exercício pleno do contraditório e da ampla defesa. Assim, segue o autor,
se o assistente não teve oportunidade de participação integral, com con­
dições de influir na convicção do juiz, não está ele impedido de discutir
a justiça da decisão.27
Essas exceções legais previstas no parágrafo único do art. 55 do
CPC são doutrinariamente denominadas de exceção de má gestão pro­
cessual (exceptio male gesti processus).
Mister ressaltar que, consoante a exegese legal, será necessário ao
assistente alegar e provar que ficou tolhido no amplo auxílio ao assistido,
de forma que não pode defender aquele direito do assistido que no
futuro lhe atingirá reflexamente.
Nos casos em que o assistido atuar em contradição a esse direito,
v.g. no caso de reconhecimento da procedência da ação, ou de transação,
o assistente não terá maiores problemas na sua dilação probatória, pois
bastará a este colacionar as cópias do processo em que ocorreram esses
atos, para lhe ser possível a rediscussão acerca da justiça da decisão.
O assistente simples não pode se opor à extinção do processo de­
corrente da transação entre as partes. Mas, pode rediscutir, em processo
futuro, a justiça da decisão, alegando uma das matérias do CPC 55 I
e II.28

NERY JÚNIOR; NERY, op. cit., p. 427.


26

BEDAQUE, op. cit., p. 164.


27

NERY JÚNIOR; NERY, op. cit., p. 427.


28

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Assistência simples e coisa julgada material – A “justiça da decisão” do artigo 55 do Código de Processo... 153

Contudo, no caso de conluio, a produção de provas será mais


complicada, e demandará um esforço maior do assistente em abono a
sua tese, pois este terá de comprovar a conciliação fraudulenta, e bem
como seu prejuízo com os efeitos reflexos da decisão.
O adquirente de boa-fé que intervém, na fase da apelação, na ação
de reintegração de posse que tramita entre outras partes, pode depois
opor embargos de terceiro, alegando que houve conluio do autor e do
réu revel. Art. 55, I, do CPC. Recurso conhecido e provido (STJ. REsp
nº 248.288/PR. Quarta Turma. Ministro Ruy Rosado de Aguiar. DJ, p.
153, 19 jun. 2000).
Caso tenha ingressado no processo quando já não mais poderia
praticar atos eficazes, que pudesse efetivamente auxiliar o assistido a
vencer, o assistente pode rediscutir, em processo futuro, a justiça da
decisão.29
Essas hipóteses vêm consagradas, como já se disse, em dois incisos
do artigo 55 do Código de Processo Civil, que rezam, respectivamente,
que o assistente que interveio no processo não se submeterá à justiça da
decisão quando: (i) pelo estado que recebera o processo, ou pelas decla­
rações e atos do assistido, fora impedido de produzir provas suscetíveis
de influir na sentença; e, (ii) desconhecia a existência de alegações ou
de provas, de que o assistido, por dolo ou culpa, não se valeu.

Referências

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v. 20, n. 79, 1995.
ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido
Rangel. Teoria geral do processo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
BEDAQUE, José Roberto dos Santos; MARCATO, Antonio Carlos (Coord.). Código de Processo
Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2004.
CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de terceiros. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael de. Curso de direito
processual civil. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2008. v. 2.
DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Considerações sobre os limites objetivos e a eficácia preclusiva
da coisa julgada. Revista do Advogado, São Paulo, v. 21, n. 65, 2001.

NERY JÚNIOR; NERY, op. cit., p. 427.


29

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 143-154, out./dez. 2010
154 Alexandre Paulichi Chiovitti

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1994.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Os limites objetivos da coisa julgada no sistema do Novo Código
de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1977.
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado.
10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
SOUZA, Gelson Amaro de. A assistência e a coisa julgada. Revista Jurídica, ano 51, n. 310,
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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 39. ed. Rio de Janeiro:
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WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo.
Curso avançado de processo civil. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

CHIOVITTI, Alexandre Paulichi. Assistência simples e coisa julgada material: a “justiça da


decisão” do artigo 55 do Código de Processo Civil brasileiro. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 143-154, out./dez. 2010.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 143-154, out./dez. 2010
A teoria dos distintos planos da ordem jurídica 155

A teoria dos distintos planos da ordem


jurídica
Artur Luis Pereira Torres
Laureado com o diploma Dom Antonio Zattera pela Universidade Católica de Pelotas. Especialista
em Direito Processual Civil e mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul. Professor convidado do PPG lato sensu da Universidade Caxias do Sul (Processo
Civil-UCS). Professor convidado do PPG lato sensu da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (Direito e Processo do Trabalho). Advogado.

Palavras-chave: Direito subjetivo. Plano do direito material. Plano do direito


processual.
Sumário: Introito – 1 Noções introdutórias – 2 Plano do direito material – 2.1
Direito subjetivo material – 2.2 Pretensão material – 2.3 Ação material – 3
Plano do Direito Processual – 3.1 Direito à tutela Jurídica do Estado – 3.2 Da
pretensão à tutela jurídica – 3.3 Da ação processual – Considerações Finais
– Referências

Introito
A exacerbada proliferação do número de textos normativos,
somada à complexidade das modernas relações jurídicas, tem feito sentir
seus efeitos no âmago do aprendizado jurídico. Sem o temor maior
do equívoco, pode-se atribuir a tais fenômenos elevada parcela de res­
ponsabilidade no tangente a atual tendência da “especialização” dos
profissionais da área jurídica.
Ao jurista da atualidade, ou em formação, ao que tudo indica não
mais parece “acessível” investigar a fundo, e com a presteza necessária,
o fenômeno jurídico em sua integralidade em face da interminável
imensidão legislativa hoje vigente.
Não se duvida, portanto, que hodiernamente o estudioso mer­ gu­
-
­­lhe, com todas as suas forças, na busca de conhecimento referente a um
ou outro específico ramo do direito. É esta a realidade contemporânea.
O fenômeno das “especializações”, ainda que a ele se reconheça
notória função positiva, indubitavelmente, acabou por refletir de forma
negativa no âmago de conhecimento das denominadas teorias gerais.
Buscando a perfeição e o máximo detalhamento atinente a um ou
outro ramo do direito tem descurado-se o estudioso de apreender noções
basilares, ou melhor, relega a um segundo plano verdadeiros alicerces
de nosso edifício jurídico.
Assim sendo, o presente estudo tem por escopo maior abordar
lição imprescindível e basilar a todo e qualquer operador do direito, qual

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 155-171, out./dez. 2010
156 Artur Luis Pereira Torres

seja, rememorar tese referente à existência dos distintos planos da ordem


jurídica. Vejamos.

1 Noções introdutórias
Como bem asseverou Pontes de Miranda, por questões de método,
indispensável preparar o terreno revisitando conceitos básicos atinentes
às noções de regra jurídica, hipótese de incidência, fato gerador e
correlatos.1
Por escapar aos objetivos estritos do presente estudo, não se pre­
tende aqui abordar com maior profundidade a denominada e difundida
entre nós teoria do fato jurídico, senão tecer diminutos comentários
para situar o estudioso, possibilitando-lhe melhor reflexão a respeito do
objeto deste estudo.2
Não retrata novidade alguma a constatação de os sistemas jurí­ -
dicos preocuparem-se, em regra, apenas com fatos de relevo, dando às
costas a uma série de ocorrências corriqueiras da vida em sociedade
(ad exemplum, as normas de trato social, ajurídicas). Dentre o vasto elenco
de realidades triviais ocorrentes diuturnamente, o(s) sistema(s) jurídico(s)
elege(m) as de maior relevância para a manutenção da boa convivência
entre os homens, instituindo normas de conduta a serem respeitadas,
via de regra, de forma voluntária pelo jurisdicionado.3 Nesta esteira, e em
especial nos países adstritos ao sistema da civil law, realizado o referido
juízo axiológico, legisla-se a respeito, fazendo nascer norma de caráter
imperativo, geral e abstrato indicativa de um dever ser (lei).
Consoante a lição de José Maria Rosa Tesheiner o “direito não existe
senão para regular o convívio, isto é, para regular relações intersubje­
tivas ou interpessoais”.4 Poder-se-ia afirmar, então, que é neste espe­cífico
contexto que deve aflorar à noção de hipótese de incidência.5

1
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das ações. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. V/226,
§560.
2
A respeito da teoria do fato jurídico, vide, com grande proveito: RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral.
33. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. I, p. 155-346.
3
“Existem fatos irrelevantes ou desinteressantes ao direito: por exemplo, a estrela cadente ou o eclipse do sol.
Outros, no entanto, integram especialmente a disciplina da vida em sociedade” (ASSIS, Araken de. Cumulação
de ações. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 74).
4
TESHEINER, José Maria Rosa. Elementos para uma teoria geral do processo. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 02.
5
Inobstante façamos uso no presente estudo da expressão hipótese de incidência para explicitar a ideia da
existência de um comando pré-constituído, previsto abstratamente e, com intuito informar um dever ser geral,
por óbvio, não ignoramos a acentuada discussão doutrinária a respeito da melhor expressão a ser utilizada
para a explicação do fenômeno. O tema é bastante controvertido, principalmente, na doutrina tributária.
Exemplificativamente, vide: HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário, p. 480; TORRES, Ricardo Lobo.
Curso de direito financeiro e tributário, p. 244-245; ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. São
Paulo: Malheiros, 1992. p. 75, dentre outros.

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A teoria dos distintos planos da ordem jurídica 157

As situações fáticas consideradas de acentuado relevo para


determinada sociedade, por definição, passam a integrar o ordenamento
jurídico, passando a ser consideradas, grosso modo, como fato jurídico
lato sensu.
Esclareça-se, desde já, que simples previsão abstrata de conduta,
de per se, nenhuma consequência jurídica realiza, sendo imprescin­ dível
haver efetivação/ocorrência do dito fato gerador concreto. Em outras
pala­vras, poder-se-ia afirmar que a ideia central consiste em que, ocor­
rendo fato (realizável aquém do mundo jurídico) “selecionado” pelo
ordenamento como relevante para determinada sociedade, a previsão
normativa (imperativa, geral e abstrata) incidirá sobre este, revelando
as consequências jurídicas que dali advirão. Nasce, assim, a denomi­nada
relação jurídica.6
Por óbvio, não se ignora que a sucinta noção apresentada guarda
estrita relação com o sistema dito positivista,7 sendo este apenas um
dentre os vários conhecidos em direito, tendo alcançado seu ápice fora
do contexto hodierno. Ainda assim, para melhor vivenciar o tema é
indispensável que tal estrutura lógica se encontre vivificada na mente
do estudioso.
Esclareça-se, ainda, que o estudo em tela não possui qualquer
pretensão de esgotar o tema, mas tão somente alertar/rememorar o leitor
para a existência de particularidade característica de nosso atual siste­
ma jurídico, qual seja, a dualidade de planos.8 Dito de forma diversa,
pretende-se, aqui, reafirmar o que há muito restou asseverado por Oscar
Bülow, isto é, demonstrar a existência da autonomia entre os planos
do direito material e do direito processual.
Por fim, importa ainda reavivar a noção de que o Estado Moderno,
tendo avocado para si o monopólio da dicção do direito, vedou aos

6
“Em geral se reserva a expressão ‘relação jurídica’ para aquelas relações interpessoais que o direito regula
mediante a atribuição, ao sujeito ativo, de um crédito (direito a uma prestação do devedor) ou de um poder
a que se submete o sujeito passivo (caso dos direitos formativos). Contudo, não deixa de ser regulada pelo
direito a simples relação interpessoal, em que dois sujeitos se defrontam, tendo apenas o mútuo dever de se
respeitarem como seres humanos, em que não há propriamente nem crédito nem poder de um diante do
outro. Respeitando a tradição, falaremos, nesses casos, de relações interpessoais e não de relações jurídicas,
ficando, porém, subentendido que também elas são reguladas pelo direito” (TESHEINER. Elementos para uma
teoria geral do processo, p. 02).
7
A respeito do tema positivismo jurídico, vide: MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 3. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 31-33.
8
“O autor baseia seu comentário inicial no discernimento entre ação material e ação processual. Considera a
primeira como advinda do art. 75 do CC/1916, donde “a todo direito corresponde uma ação, que o assegura”.
Não havendo dispositivo análogo no CC/2002. Já a segunda, entende como o efetivo exercício do direito de
ação, isto é, o direito à tutela judicial do que entender necessário” (FUX, Luiz. Curso de direito processual civil:
processo de conhecimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. v. 1, p. 145).

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158 Artur Luis Pereira Torres

indivíduos, salvo raríssimas exceções (art. 1.210, §1º, CC/2002), o exercício


da autotutela, ou seja, negou-lhes o direito de fazer valer a justiça com
as próprias mãos. Em contraponto, obrigou-se a conceber-lhes direito
diverso, autônomo, então denominado direito de “ação”, albergado em
plano distinto do direito subjetivo material.9
Araken de Assis, sobre o tema, assim manifestou-se:

Parece totalmente inaceitável, em vista deste liame, comprovado, ainda, pela


circunstância de a ação gerar o processo, a deliberada ou negligente confusão
entre os planos. Do direito de acesso à justiça, típico da relação processual, nasce
a ação processual, independente, à toda evidência, do direito material previsto, em
tese ao regulamento do conflito. A medida da referida separação fornece a
chave definitiva do problema.10 (grifos nossos)

Tratemos, então, de elucidar tal apartamento, investigando os ele­


mentos que compõe os distintos planos da ordem jurídica, bem como
de que forma revela-se a “suposta” relação existente entre ambos.11

2 Plano do direito material


2.1 Direito subjetivo material
Riccardo Guastini, sem maiores floreios, compreende plenamente
possível conceituar a figura dos denominados direitos subjetivos como
“uma situação de vantagem conferida a um sujeito por uma norma
jurídica”.12 Já o eterno embaixador brasileiro, por sua vez, com a sapiência
que lhe foi peculiar, afirmou que “o direito subjetivo é a atribuição de um
bem da vida, quando a lei o garante. O que o caracteriza é a subjetividade

9
“Se não se pode privar o cidadão de ver resguardado aquilo que é seu, eis que isso constitui um direito
fundamental do ser humano e elemento basilar para o bom convívio do homem em sociedade, e se também
não se permite que ele possa se valer de força privada para assegurar a manutenção ou obtenção do que
lhe pertence, eis que tal ato compete a um Poder Estatal específico responsável pela distribuição da justiça,
denominado Poder Judiciário, parece evidente que essa atividade própria de efetivar direitos, por esse Poder
(Estado) que avocou, não se constitui faculdade, mas, sim, dever mínimo para a conservação da legitimidade
do sistema imposto” (CARPENA, Márcio Louzada. Da garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional
e o processo contemporâneo. In: PORTO, Sérgio Gilberto (Org.). As garantias do cidadão no processo civil:
relações entre constituição e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 11).
10
ASSIS. Cumulação de ações, p. 73-86.
11
“Direito material é, pois, o conjunto de normas que se destinam a disciplinar as relações jurídicas que se
estabelecem entre os indivíduos para a fruição dos bens da vida e para o comportamento que um deve manter
em face de outro. Para a garantia desse ordenamento jurídico e para regular o processo que solucionará a
divergência surgida entre as partes integrantes dessa relação de direito substancial é que existe e se estrutura
o direito processual. O direito material representa a norma fria, abstrata o impessoal, posta ‘erga omnes’,
por sua vez, o direito processual regulará a atividade do órgão estatal que decidirá a controvérsia tornando a
norma viva, atuante e dirigida a pessoas determinadas. Em resumo, de um lado, a regra jurídica, do outro, o
instrumento de sua justa aplicação” (CUNHA, Mauro; COELHO SILVA, Roberto Geraldo. Guia para estudo da
teoria geral do processo. Porto Alegre: Acadêmica, 1990. p. 26-27).
12
GUASTINI, Ricardo. Dalle fonti alle norme. Torino: G. Giappichelli, 1992. p. 251.

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A teoria dos distintos planos da ordem jurídica 159

combinada com a incidência concreta da lei”.13 Ao mestre, como soi


acontecer, assiste razão. O ordenamento jurídico material, abstratamente,
elenca rol de direitos individualmente/coletivamente considerados no
afã de bem regular a vida em sociedade e dar a cada um o que de direito.
A noção de titularidade de direito subjetivo material, bem compreendida,
revela uma posição de vantagem jurídica de um sobre outro sujeito de
direito.14 Um exemplo pode auxiliar na melhor compreensão do tema.
Um vendedor que transfira a propriedade de determinado bem
que lhe pertença, adquire, em face do comprador, direito subjetivo
de crédito. Da mesma forma que alguém que contrate a prestação de
determinado serviço, mediante paga, possuirá direito subjetivo de ver
realizado o mesmo, em face do prestador contratado.

Um direito subjetivo não é outra coisa senão uma vantagem conferida a um


sujeito (ou de uma outra classe de sujeitos) diante de um outro sujeito (ou de
uma outra classe de direitos) ao qual é imposto um dever (uma obrigação)
correspondente.15

De modo geral a ideia é de fácil compreensão.


Cientificamente falando a noção de direito subjetivo material é
ponto de partida para a explicação do funcionamento lógico e racional
do plano dos direitos materiais, motivo pelo qual reclama maior apro­
fundamento.
Araken de Assis assevera que o direito subjetivo “concede ao titular
uma posição jurídica estática e relativa”.16 No mesmo trilho, Ovídio
Baptista da Silva, contrapondo as noções de direito subjetivo e ação,
refere lição elementar enquadrando a ideia de direito subjetivo material
como “um status, uma categoria jurídica estática, ao contrário da ação
que pode ser esse próprio direito subjetivo em seu momento dinâmico”.17
Na senda destas afirmativas, poder-se-ia concluir que se caracteriza a
noção de direito subjetivo material por ser uma realidade estática, que
pres­cinde, para sua existência, de qualquer agir de seu suposto titular.

13
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2001. t. I, p. 23.
14
“Mediante o preenchimento de um suporte fático, surge para alguém, uma peculiar situação de vantagem,
já designada de direito subjetivo” (ASSIS. Cumulação de ações, p. 76).
15
GUASTINI. Dalle fonti alle norme, p. 252.
16
ASSIS. Cumulação de ações, p. 75.
17
SILVA, Ovídio Baptista da. Direito subjetivo, pretensão de direito material e ação. Revista da Ajuris, n. 29, p.
100, 1983.

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160 Artur Luis Pereira Torres

A simples incidência da norma jurídica sobre respectivo suporte


fático, pré-elencado, afigura-se como condição suficiente para seu
nascimento.18 Por assim dizer, este primeiro passo dentro da complexa
estrutura dos diversos planos jurídicos poderá consolidar-se até mesmo
sem o conhecimento de seu titular, pois que, em regra, tudo se dá em
um plano metafísico.
Por fim, cabe salientar que “é perfeitamente admissível repre­sentar
o direito subjetivo através do verbo ‘ter’”.19 20

2.2 Pretensão material


A expressão pretensão material guarda, ao menos no espectro jurí­-
dico em destaque, estrita correlação com o verbo exigir.
As noções de direito subjetivo material e pretensão, embora não retra­
tem direitos distintos, consoante assevera a melhor doutrina, não se
afiguram realidades baralháveis.21 Uma coisa é a existência do direito,
outra a possibilidade de exigi-lo.
O exemplo do direito de crédito submetido a termo bem retrata
a distinção.22 Considerado o exemplo é possível perceber a existência
de direito subjetivo material (pondo o suposto credor em posição de
vantagem jurídica perante o suposto devedor), ainda que não lhe seja
possível exigir sua satisfação incontinenti. É exatamente nesta senda que
a melhor doutrina tem afirmado o caráter estático do direito subjetivo.23
Ovídio Baptista da Silva ensina que pretensão é a “faculdade de
se poder exigir a satisfação do direito”, não se confundindo com o
direito em si.24

18
ASSIS. Cumulação de ações, p. 75.
19
ASSIS. Cumulação de ações, p. 76.
20
Versando a respeito da gênese dos direitos subjetivos, Guastini afirma que: “(...) um direito subjetivo pode
ser conferido pelas normas mais diversas do ponto de vista da fonte de origem. Por conseguinte, à guisa de
princípio, os direitos subjetivos podem ser classificados conforme a fonte da qual se originam. Por exemplo,
pode-se distinguir entre: direitos subjetivos ‘contratuais’, direitos subjetivos ‘legais’ e direitos subjetivos
‘constitucionais’. Um direito ‘contratual’ é um direito que tem sua fonte no contrato, ou seja, num ato de
autonomia privada. Um direito ‘legal’ é um direito que foi conferido a um sujeito por uma norma legislativa,
ou seja, por uma norma dotada de ‘força de lei’. Um direito constitucional, por sua vez, é um direito que foi
conferido a um sujeito por uma norma constitucional, isto é, por uma norma estabelecida num plano ‘superior’
(se não em outro, sentido axiológico) relativamente à lei” (GUASTINI. Dalle fonti alle norme, p. 251).
21
“Certamente, na normalidade dos casos, há direito subjetivo e, há a respectiva pretensão, que não é outro
direito, mas o próprio direito subjetivo potencializado, dotado desse dinamismo capaz de torná-lo efeito”
(SILVA, Ovídio Baptista da. Direito subjetivo, pretensão de direito material e ação. Revista da Ajuris, n. 29, p.
103, 1983, grifos nossos).
22
“Pode haver direito subjetivo sem que haja, ainda, ou não mais exista, a faculdade normal que se u titular
deveria ter de poder exigir a observância e a realização do próprio direito” (SILVA. Direito subjetivo, pretensão
de direito material e ação, p. 101).
23
SILVA. Direito subjetivo, pretensão de direito material e ação, p. 99.
24
SILVA. Direito subjetivo, pretensão de direito material e ação, p. 102.

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A teoria dos distintos planos da ordem jurídica 161

Na guisa do exemplo, a implementação do termo fará surgir, para


o suposto credor, a denominada pretensão material, potencializando seu
direito de crédito.
Araken de Assis refere que “em vez de permanecer estático, o
direito passa a uma posição dinâmica, pois ‘toda pretensão tem por fito
satisfação’”.25
Trata-se a pretensão material de mera faculdade, de maneira que
poderá esta ser, ou não, efetivamente exercida. É plenamente possível
que o credor, vencido o crédito, não saia de sua inércia. A pretensão,
definitivamente, não reflete um agir. De outra banda e, como em regra
ocorre, o suposto titular do direito subjetivo, já exigível, buscará sua
satisfação perante o suposto obrigado. Assim, o fará através do que
Ovídio Baptista da Silva convencionou denominar premência (verbo
premir), exercendo sua pretensão de direito material.26 27
Ensina-nos Araken de Assis que “ao exercício efetivo da pretensão,
exigindo o titular do direito, de fato, o cumprimento do dever que incum­
be ao sujeito passivo, premindo-o, corresponde um outro estágio do
direito subjetivo (...)”.28 Dá-se, assim, outro passo à frente no dinamismo
das realidades que compõem o plano jurídico material.
Antes de avançar, necessário ter vivo que no estágio do efetivo
exercício da pretensão o titular do direito conta com a necessidade da
realização de ato voluntário por parte do sujeito passivo da relação mate­
rial. Realizando este a conduta a que se encontra obrigado, o direito
subjetivo restará satisfeito. Inexistindo cumprimento espontâneo ou
voluntário da conduta, nasce para o titular do suposto direito subjetivo a
denominada ação material.29

2.3 Ação material


É precisamente neste estágio de desenvolvimento do plano material
que a mera exigência dá lugar ao agir do insatisfeito.30 “Nasce à ação, em
25
ASSIS. Cumulação de ações, p. 76.
26
SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil. Porto Alegre: Fabris, 1987. p. 63.
27
“Se, nessa circunstância, o titular do direito subjetivo exige do obrigado o cumprimento, está a exercer pretensão
de direito material; estará exigindo, forçando o titular do dever jurídico (obrigado lato sensu) à observância da
conduta que o dever lhe impõe. Ainda não estará agindo para a realização” (SILVA. Direito subjetivo, pretensão
de direito material e ação, p. 99).
28
ASSIS. Cumulação de ações, p. 77-78.
29
“Se, todavia, o titular do direito subjetivo exige do obrigado a satisfação e tal exigência foi infrutífera, porque
o sujeito viola o dever jurídico e o infringe, nasce ao titular do direito a ação de direito material, que é o agir
— não mais o simples exigir — para a realização” (SILVA. Direito subjetivo, pretensão de direito material e
ação, p. 103).
30
“De ordinário, ao direito toca, em seqüência à pretensão, a ação, que desborda a fase de exigência, indo além:
‘agir’ inclui atividade para satisfação” (ASSIS. Cumulação de ações, p. 78).

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162 Artur Luis Pereira Torres

benefício do titular do direito, quando o sujeito passivo não satisfaz seu


dever jurídico ou, tratando-se de pretensões que se satisfazem mediante
atos positivos ou negativos, ocorre uma interrupção dessa conduta.”31
32
Em outras palavras, é neste momento que se afigura clara a efetiva
necessidade de agir por parte do sujeito ativo da relação jurídica material
que, agora, o fará, por definição, independentemente da anuência do
suposto sujeito passivo da relação substancial. A ação de direito material
“é o agir para a realização do próprio direito”.33
Segundo Ovídio Baptista:

A distinção fundamental entre os dois conceitos está em que a pretensão


supõe, sempre, a simples exigência por parte do titular do direito subjetivo,
ou interesse, de tal modo que a realização ainda se dê como resultado da ação
do próprio obrigado. Enquanto exijo, em exercício de pretensão, espero o
cumprimento mediante ato voluntário do obrigado, ainda não ajo para a satisfação,
com prescindência de qualquer ato de cumprimento por parte do sujeito
passivo. A partir do momento em que o devedor, premido pela minha exigência,
mesmo assim não cumpre a obrigação, nasce-me a ação. Já agora posso agir para
a satisfação, sem contar mais com ação voluntária do obrigado. (grifos nossos)

Um break, aqui, se faz necessário.


O moderno Estado de Direito, vedando a autotutela, monopolizou
o poder-dever de dicção do direito avocando para si, de forma exclusiva,
a realização da atividade jurisdicional.34 Salvo raríssimas exceções, hodier­
namente, afigura-se vedado o agir privado.35 36 É, pois, este, o momento
de transição do plano material para o plano processual, pois que “se o
estado chamou para si à decisão das questões, a função de justiça, criou
a todos os interessados a pretensão à tutela jurídica, a que corresponde o
seu dever de prestar aos figurantes o que prometera”.37
31
ASSIS. Cumulação de ações, p. 78-79.
32
“(...) a ação é a inflamação do direito ou da pretensão” (PONTES DE MIRANDA. Tratado da ações. v. V/482,
§623).
33
SILVA, Ovídio Baptista da. Direito subjetivo, pretensão de direito material e ação, p. 104.
34
“Vedada em princípio a autodefesa e limitadas a autocomposição e a arbitragem, o Estado moderno reservou
para si o exercício da função jurisdicional, como uma de suas tarefas fundamentais. Cabe-lhe, pois solucionar
os conflitos e controvérsias surgidos na sociedade, de acordo com a norma jurídica reguladora do convívio
entre os membros desta” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO. Teoria geral do processo, p. 249).
35
Vide art. 1.201, §1, primeira parte, CC/2002.
36
“A nota característica do conceito de ação — agir que não depende da anuência do sujeito passivo — mostra
porque os ordenamentos jurídicos admitem-na excepcionalmente. O exercício privado da ação provocaria
tumulto social, um progressivo desfazimento dos laços da vida em sociedade, a negação da paz e do império
da justiça. Por isso, o Estado moderno proíbe-o, em geral, criminalizando-a como exercício arbitrário das
próprias razões, avocando, por decorrência, o monopólio da distribuição da justiça” (ASSIS. Cumulação de
ações, p. 79).
37
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2001. t. I, p. XVII.

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A teoria dos distintos planos da ordem jurídica 163

Antes de transpormo-nos efetivamente ao plano do direito pro­


cessual, por oportuno, diminutos comentários devem ser trazidos à baila.
Sem pôr em xeque as afirmativas doutrinárias que vislumbram neste
específico tópico, de forma poética é bem verdade, o elo entre os distintos
planos da ordem jurídica, necessário alertar o leitor para a possibilidade
de que mesmo inexistindo qualquer relação substancial entre supostos
sujeitos de direito haja o reconhecimento de direito subjetivo em favor
do demandante que faticamente jamais existiu. É preciso ter ciência que
o plano ideal até aqui traçado desconsidera qualquer desvio de conduta
daquele que alega suposta titularidade de direito subjetivo material, pois,
querendo, mesmo estando ciente da inexistência poderá alegá-lo em
juízo e, até mesmo, fazê-lo prosperar.38

3 Plano do Direito Processual


3.1 Direito à tutela Jurídica do Estado
Tendo avocado para si o monopólio da dicção do direito, vedando
à realização da denominada justiça privada, o Estado viu-se compelido
a reconhecer, a todo e qualquer jurisdicionado, um direito subjetivo à tutela
jurídica do Estado.39

Caracterizada a insatisfação de alguma pessoa em razão de uma pretensão


que não pôde ser, ou de qualquer modo não foi, satisfeita, o Estado poderá ser
chamado a desempenhar a sua função jurisdicional.40

Neste momento é fundamental a compreensão de que “este


direito discrepa, inteiramente, do direito subjetivo material porventura
con­tro­vertido em juízo (...)”.41 42 43 Trata-se de direito subjetivo, de
38
Imagine-se, para melhor compreender a afirmativa que, determinado cidadão, mesmo sabendo que aquele
em face de quem demanda não é seu pai biológico, vê seu pleito investigatório julgado procedente com base
em mera presunção iuris tantum, em face da recusa do réu em submeter-se ao indigitado exame de DNA.
Observe-se que, mesmo que no plano material o fato gerador da relação reconhecida em juízo não tenha,
efetivamente, ocorrido, o julgado alcançará o bem da vida solicitado em juízo a quem de direito não era
devido.
39
Vide art. 5º, XXXV, CF/88.
40
CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO. Teoria geral do processo, p. 40.
41
ASSIS. Cumulação de ações, p. 81.
42
“Logo, tanto para o autor como para o réu, a ação é o direito a um pronunciamento Estatal que solucione o
litígio, fazendo desaparecer a incerteza ou a insegurança gerada pelo conflito de interesses, pouco importando
a solução a ser dada pelo Juiz” (THEODORO JR. Humberto. Curso de direito processual civil. 41. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. v. 1, p. 49).
43
“Il 19º secolo há dato impulso allá evoluzione del processo civile, nell’area tedesca, più che qualsiasi periodo
precedente, e cio tanto in sede legislativa quanto in sede scintifica. Per la sciencia processualística possiamo
distinguere quattro indirizzi principali, che abbraciano a atraversano la vasta materia del processo comune e dei
diritti processuali particolari: la scuola giusnaturalista all’inizio del secolo; la scuola storica, che nel terzo decennio si

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164 Artur Luis Pereira Torres

natureza pública,44 45 exercitável não perante o sujeito passivo integrante


da suposta relação jurídica de direito material controvertida, mas frente
ao próprio Estado que impede o particular de agir de per se para satisfazer
seu direito.46 Neste espectro, como no plano do direito material, não
podem ser confundidos os elementos direito subjetivo (à tutela jurídica),
pretensão e ação processual.
Grosso modo é neste momento que se torna límpida a indubi­tável
autonomia existente entre os planos material e processual. Vale, também
para este espectro, a noção de que “ter” um direito (subjetivo e público,
de acesso à tutela estatal) não corresponde a um agir. No plano dos
“direitos”, seja material, seja processual, a situação jurídica, como já
afirmado, corresponde a uma situação de vantagem jurídica de natureza
estática. Encorpa, inexoravelmente, o patrimônio do sujeito de direito
tal estado, sendo, em específico no plano do direito processual, inviável
negar-lhe efetivação.
Em suma, o conteúdo do direito à tutela jurídica estatal resume-se
a possibilidade de seu titular (todo e qualquer sujeito de direito), bater as
portas do Poder Judiciário exigindo-lhe a apreciação do caso concreto,
visando obter o bem da vida que entenda devido.

3.2 Da pretensão à tutela jurídica


No plano do direito processual, a exemplo do que ocorre no plano
material, a pretensão deve ser compreendida como mera faculdade.47 Por
definição, deverá o estudioso entendê-la como a faculdade de exigir a
satisfação de um determinado direito, nada mais.
No gueto do direito material diz-se que a pretensão potencializa
o direito subjetivo sito naquele espectro, qual seja, o direito material

rivolge anche al processo civile; l’indirizzo comparatistico e riformatore che accompagna la produzione legislativa
per tutto il secolo (e qui basterebe menzionare Mittermaier o Leonhardt); e infine il periodo, construttivo della
scienza processualistica, che inizia com Bülow (1868)” (NÖRR, Knut Wolfgang. La scuola storica, il processo
civile e il diritto delle azioni. Rivista di Diritto Processuale, Padova, v. XXXVI, a. 57, p. 23, 1981).
44
“Pode-se dizer que certo direito é um direito subjetivo ‘privado’ quando é conferido a um indivíduo perante
(ou contra) um outro indivíduo privado. Pode-se, ao contrário, que um certo direito é um indivíduo subjetivo
‘público’ quando é conferido a um indivíduo perante o Estado” (GUASTINI. Dalle fonti alle norme, p. 252).
45
A respeito da distinção entre direito subjetivo e direito subjetivo público, vide: FREITAS, Paulo de. Direito
processual subjetivo. São Paulo, 1955. p. 31-32.
46
THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 41. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 1,
p. 48-64.
47
Em sentido contrário, vide: CARPENA, Márcio Louzada. Da garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional
e o processo contemporâneo. In: PORTO, Sérgio Gilberto (Org.). As garantias do cidadão no processo civil:
relações entre constituição e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 11.

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A teoria dos distintos planos da ordem jurídica 165

supostamente existente; aqui, salvo peculiaridades, o raciocínio não


deve ser diferente.48
A pretensão processual, ou, pretensão à tutela jurídica, diz respeito
tão somente ao direito existente no plano processual (potencializa o
direito à tutela jurídica estatal). Assim como o direito subjetivo a preten­
são reflete um status, não um agir.49 O exercício, ou não, da pretensão
processual dependerá de atividade positiva do titular do direito à tutela
jurídica estatal.
Todavia, inegável que ao menos uma dessemelhança, de pronto,
possa ser constatada na comparação da pretensão processual à pretensão
material. Diferentemente do que ocorre no plano do direito material,
isto é, o nascimento de um direito inexigível, o “direito à tutela jurídica”
já “nasce dotado de pretensão”, ou seja, exigível.50 51
Por fim, imperioso admitir que embora inconfundíveis, pelo menos
no campo do direito processual, direito subjetivo (de bater às portas do
Estado para que componha determinada lide) e pretensão caminham
de mãos dadas, vindo ao mundo em idêntico momento.

3.3 Da ação processual


Do efetivo exercício da pretensão à tutela jurídica estatal nasce,
inegavelmente, relação jurídica diversa da supostamente existente no
plano do direito material.52 Reitere-se, pela acentuada importância, que
ambas as relações jurídicas afiguram-se inconfundíveis.53
Ação processual,54 melhor representada pela expressão demanda,
exercida, é responsável pelo nascimento da denominada relação jurídica

48
A primeira particularidade a que nos referimos é a de que, diferentemente do que ocorre no plano material,
no plano processual jamais haverá dúvida em relação à existência do direito à tutela jurídica Estatal. De outra
banda, no plano material, somente em raríssimas situações poder-se-á, efetivamente, identificar de pronto à
existência do direito alegado. Por assim dizer, no plano material a pretensão potencializa suposto direito; no
processual, direito inconteste.
49
SILVA. Direito subjetivo, pretensão de direito material e ação, p. 107.
50
ASSIS. Cumulação de ações, p. 84.
51
Não se ignora, por óbvio, que também no plano do direito material, em determinadas situações exsurgem,
direito subjetivo e pretensão, em momento idêntico. Ad exemplum, refira-se os direitos reais, com destaque
para o direito de propriedade que, a nosso ver, já nasce dotado de pretensão material.
52
“A relação jurídica processual estabelece-se, inicialmente, entre o autor e o juiz. É apenas bilateral nessa fase.
Com a citação do réu, este passa também a integrá-la tornando-a completa e trilateral” (THEODORO JR.,
Humberto. Curso de direito processual civil. 41. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 1, p. 66). Em sentido
oposto: “Desde que citado, o réu ostenta a posição de pólo do verso da relação, porque ela se oferece em
ângulo: dois sujeitos ativos (autor e réu) e um passivo (Estado)” (ASSIS. Cumulação de ações, p. 85).
53
“Constitui conquista definitiva da ciência processual o reconhecimento da autonomia do direito de ação, a
qual se desprende por completo do direito subjetivo material” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO. Teoria geral
do processo, p. 249).
54
“A ação é instrumental, é um direito a serviço de outro direito que é o de natureza material” (FUX, Luiz. Curso
de direito processual civil: processo de conhecimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. v. 1, p. 147).

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de direito processual.55 Esta possui estrutura própria donde, conse­


quentemente, é possível vislumbrar a existência de elementos diversos
quando da comparação com a relação jurídica de cunho material.

O processo é uma relação jurídica. Uma relação jurídica complexa: um autor,


um juiz, um réu. O autor é credor da sentença, isto é, tem direito a prestação
jurisdicional. Nessa relação o juiz se apresenta, tanto em face do autor quanto
do réu, como titular de um poder, o poder jurisdicionai, a que ambos se
submetem.56

As partes, a causa de pedir e o pedido bem representam seus


elementos,57 podendo estes terem, ou não, correlação com os elementos
da suposta relação jurídica material a ser analisada no transcorrer do
processo.58
A “demanda estabelece a relação processual, que tem por sujeito
ativo o autor, e por passivo, o Estado”.59 O agir, aqui, como de fácil per­
cepção, dá-se em face do Estado (representado pela figura do Estado-
Juiz), não em face do suposto sujeito passivo da relação material posta
sub judici. E mais, a demanda conduz a satisfação do direito à prestação
jurisdicional, ou seja, o direito subjetivo público pertencente a todo e
qualquer sujeito de direito oriundo da vedação estatal à realização da
justiça privada. Neste diapasão, independentemente da procedência ou
improcedência do pedido de reconhecimento da relação jurídica material,
o direito de acesso aos Tribunais encontrar-se-á satisfeito.60 61
Por óbvio, não se ignora que o tema concernente à natureza
jurídica da “ação” ocupou por largo período posição nuclear no estudo

55
Referindo-se aos sujeitos nas distintas relações jurídicas José Maria Rosa Tesheiner assevera que “Credor ou
beneficiado é aquele cujo interesse é tutelado pela norma jurídica que a outro imponha um dever, positivo ou
negativo; sujeito ativo do ato é aquele que pratica ou não pratica o ato previsto em norma jurídica mandamental
ou permissiva; sujeito passivo do ato é aquele que lhe sofre os efeitos” (TESHEINER. Elementos para uma teoria
geral do processo, p. 09).
56
TESHEINER. Elementos para uma teoria geral do processo, p. 02.
57
A esse respeito, vide: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro. 25. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2007; THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 41. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2004. v. 1, p. 62.
58
“Existe, portanto, o direito público à jurisdição, provido da pretensão à tutela jurídica, a qual, exercida, põe
o Estado a dever a prestação jurisdicional” (ASSIS, Araken de. Cumulação de ações. 4. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002. p. 85).
59
ASSIS, Araken de. Cumulação de ações. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 85.
60
“Em outras palavras: o exercício da ação não fica vinculado ao resultado do processo” (THEODORO JR.,
Humberto. Curso de direito processual civil. 41. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 1, p. 49).
61
“O que distingue fundamentalmente direito material e direito processual é que este cuida das relações dos
sujeitos processuais, da posição de cada um deles no processo, da forma de se proceder aos atos deste — sem
nada dizer quanto ao bem da vida que é objeto do interesse primário das pessoas (o que entra na órbita do
direito substancial)” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO. Teoria geral do processo, p. 40).

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A teoria dos distintos planos da ordem jurídica 167

da ciência processual, revelando-se de acentuada importância para a


afirmação da autonomia deste ramo jurídico.
As seculares discussões a respeito das teorias imanentista (civilista),
do direito concreto de ação, do direito abstrato de ação, bem como da
teoria adotada entre nós pelo CPC/73, nominada eclética, indubitavel­
mente, ainda hoje rendem apurados questionamentos.62
Ainda que com o cuidado de não esgarçar os limites a que nos
propomos neste escrito, diminutas considerações afiguram-se inevitáveis.
Uma primeira noção do conceito de ação veio à baila por força
da denominada teoria imanentista (civilista), corrente que sustentava a
inexistência de qualquer distinção entre os planos do direito material e
do direito processual, atribuindo o direito de ação tão somente aos efetivos
titulares de direitos subjetivos. Para seus defensores, ação representava
uma reação que a força do direito opunha a ação contrária de terceiro.
Entendia-se totalmente vinculada ao direito substancial, ou melhor, era o
próprio, posto em movimento para afirmação em juízo. Baralhavam-se,
injustificadamente, os distintos planos da ordem jurídica.63

(...) pela escola denominada clássica ou imanentista (ou, ainda, civilista, quando
se trata da ação civil), a ação seria uma qualidade de todo direito ou o próprio
direito reagindo a uma violação. Tal conceito reinou incontrastado, através
de várias conceituações, as quais sempre resultam em três conseqüências
ine­vitáveis: não há ação sem direito; não há direito sem ação; a ação segue a
natureza do direito.64

Uma segunda noção do conceito de ação processual exsurge do


debate realizado entre Windscheid e Mutter, em meados do século XIX,
donde os mesmos controverteram, grosso modo, a respeito da natureza
da actio. Windscheid repugnava a ideia de Klagerecht, afirmando que a
ação era o próprio direito material afirmado pelo pretor, não direito dis­
tinto, inobstante reconhecesse a noção de pretensão (Anspruch) oriunda
da não satisfação do direito subjetivo alegado.

62
A respeito vide: DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2007.
63
“A doutrina clássica da ação, conhecida por ‘teoria civilista’, apenas transportava para o plano processual
a ação de direito material, confundindo a actio romana - que mais significava pretensão de direito material
(WINDSCHEID) — com a ‘ação’ processual. A actio romana — diz KRELLER, Hans. Historia del derecho romano.
1948. p. 86) — é o poder de ‘perseguir’ uma prestação devida num litígio, ‘como caçador persegue a presa’.
Certamente tal espécie de ‘ação’ que é a expressão jurisdicional de um outro direito, assegurado mesmo aos
que não tenham razão” (SILVA. Direito subjetivo, pretensão de direito material e ação, p. 115).
64
CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO. Teoria geral do processo, p. 250.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 155-171, out./dez. 2010
168 Artur Luis Pereira Torres

De outra banda, Mutter, valendo-se da recém-reconhecida classe


dos direitos subjetivos públicos, reconheceu que a ação situava-se em
plano distinto do direito material, muito embora tal reconhecimento só
tenha restado cristalino após os escritos de Oscar Bülow.
Consoante ensina Araken de Assis, “ele redimensionou a Klagerecht,
ou direito de demandar, como direito público, perante o Estado, de obter
tutela jurídica, diversa, seja quanto ao sujeito passivo, aqui o Estado, seja
quanto ao conteúdo”. Ao fim e ao cabo, as doutrinas sustentadas por
ambos “antes se completam do que se repelem”.65 66
A teoria da ação como direito concreto de agir, em suma, resumia-se
a reconhecer direito exercível contra o Estado, mas também contra o
adversário do autor. Dava-se em face do Estado em razão da existência
de um dever de proteção jurídica no caso concreto; em face do réu
porque este estaria sujeito às determinações judiciais. Todavia, mediante
a afirmativa de que a tutela jurisdicional só poderia concretizar-se através
de proteção “concreta, o direito de ação só existiria quando a sentença
fosse favorável”.67
As teorias civilista, do direito concreto e do direito potestativo de
ação restaram renegadas no meio científico em razão de jamais terem
explicado as ações improcedentes e declaratórias negativas, pois que
vinculavam a existência do direito de ação a uma sentença favorável.
Controvertendo com o que até então se tinha dito em doutrina,
urge a denominada teoria abstrata da ação.68 A tese, por assim dizer,
impregnou o direito de ação de total autonomia, desvinculando-lhe da
noção de efetiva correlação com o sucesso sentencial da suposta relação
jurídica material posta ao apresso do Poder Judiciário. Embora não
tenha suficientemente resolvido o problema da natureza da ação, foi, e
ainda é, a teoria que guarda maior fidelidade com a realidade forense
contemporânea.69
65
“Apesar de replicar com veemência, Windscheid acabou por aceitar algumas idéias do adversário, admitindo
um direito de agir, exercível contra o Estado e contra o devedor” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO. Teoria
geral do processo, p. 249).
66
Já Chiovenda, mediador do debate, foi o responsável pela construção da nominada teoria da ação como direito
potestativo, pelo que consta, de mínima aceitação.
67
CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO. Teoria geral do processo, p. 251.
68
Segundo noticia esmagadora parcele doutrinária, enquanto Degenkolb tratava de difundi-la na Alemanha de
1877, no mesmo período, em território Húngaro, por mera coincidência Plósz formulava doutrina idêntica.
69
“Segundo esta linha de pensamento, o direito de ação independe da existência efetiva do direito material
invocado: não deixa de haver ação quando uma sentença justa nega a pretensão do autor, ou quando uma
sentença injusta a acolhe sem que exista na realidade o direito subjetivo material. A demanda ajuizada pode
ser até mesmo temerária, sendo suficiente, para caracterizar o direito de ação, que o autor mencione um

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 155-171, out./dez. 2010
A teoria dos distintos planos da ordem jurídica 169

Por fim, oriunda das reflexões de Enrico Tullio Liebman, tendo


sido adotada formalmente entre nós, ainda que sob severas críticas,
cabe mencionar a existência da denominada teoria eclética da ação. Os
adeptos da tese referenciam posição distintiva entre o direito constitucio­
nal de acesso aos Tribunais e o efetivo direito de ação.
Em suma, seus adeptos consideram que o direito de ação pro­
priamente dito encontra-se adstrito ao adimplemento das nominadas
condições da ação, pena de negativa da existência de actio. Ainda hoje,
embora vigente entre nós, a teoria eclética tem sido objeto de acentuadas
críticas doutrinárias, ao que parece com acentuada razão.70

Considerações finais
Ao fim e ao cabo, o presente ensaio permite concluir que:
A ordem jurídica pátria é composta por dois distintos planos.
Os planos do Direito Material e do Direito Processual não podem ser
confundidos entre si.
Tal noção apresenta-se como lição basilar, não mais podendo
escapar ao conhecimento de todo e qualquer operador do direito.
Enquanto o plano do Direito Material tem por espoco enunciar
regras capazes de permitir a boa convivência dos homens em sociedade,
o plano do Direito Processual presta-se tão somente a traçar regras
concernentes a forma a ser respeitada para a solução das contendas
levadas a juízo.
A incidência de norma de natureza material sob determinado fato
“pré-visto”, faz nascer uma relação jurídica de Direito Material (sujeitos,
objeto, vínculo); as relações de Direito Processual advêm da provocação
de um sujeito de direito ao Estado para que cumpra com seu poder-dever
de dizer/realizar o direito (partes, causa de pedir e pedido).
Tanto no plano Material como no plano Processual não se confun­
dem as noções de Direito subjetivo, pretensão e ação. A noção de Direito
subjetivo reflete a existência de vantagem jurídica de um sobre outro
sujeito de direito, possuindo este natureza estática; a noção de pre­
tensão, bem compreendida, retrata a ideia de potencialização do Direito
subjetivo. O nascimento da pretensão torna o Direito Subjetivo exigível;

interesse seu, protegido em abstrato pelo direito. É com referência a esse direito que o Estado está obrigado
a exercer a função jurisdicional, proferindo uma decisão, que tanto poderá ser favorável como desfavorável”
(CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO. Teoria geral do processo, p. 252).
70
A respeito das críticas, vide: DIDIER JR. Curso de direito processual civil, p. 161-163.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 155-171, out./dez. 2010
170 Artur Luis Pereira Torres

a noção de ação, por sua vez, guarda estrita relação com o verbo agir.
Retrata o momento em que o titular do direito deixa de exigí-lo, passando
efetivamente a agir para vê-lo satisfeito.
No concernente ao elo existente entre os distintos planos, pen­sa­mos
poder ou não existir, pois que a qualquer cidadão, na atual formatação
sistêmica do ordenamento, é possível exercer pretensão processual, esteja
esta vinculada, ou não, a qualquer “suposto” direito material alegado
em juízo.
Dentre as diversas teorias referentes ao direito de ação processual,
pelo menos para o momento, afigura-se mais aproximada da realidade
forense contemporânea tese sustentada pelos defensores da teoria do
direito abstrato de ação, seja por sua competência em explicar o fenômeno
das demandas improcedentes e das ações declaratórias negativas, seja
pelas atuais e convincentes críticas apontadas a teoria adotada formal­
mente pelo CPC/73.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

TORRES, Artur Luis Pereira. A teoria dos distintos planos da ordem jurídica. Revista Brasi-
leira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 155-171, out./dez.
2010.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 155-171, out./dez. 2010
A utilização da ação rescisória para a desconstituição de decisão fundamentada em prova obtida por... 173

A utilização da ação rescisória


para a desconstituição de decisão
fundamentada em prova obtida
por meio ilícito
Michel Ferro e Silva1
Mestre em Direito do Estado (UNAMA). Especialista em Direito Processual (UNAMA). Professor
de Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil do CESUPA (Centro Universitário do Pará),
graduação e especialização, e da FAP (Faculdade do Pará). Membro do Instituto Brasileiro de
Direito Processual (IBDP). Advogado em Belém/PA.

Resumo: Trata o presente artigo da discussão que envolve o cabimento


da ação rescisória para desconstituição de pronunciamento judicial que se
fundamentou em prova obtida por meio ilícito. Para tanto, inicialmente,
faz-se breve lembrete dos requisitos exigidos pela legislação processual
para o cabimento da citada ação e fixa-se a premissa de que tais hipóteses
correspondem a um rol taxativo. Em seguida, são estabelecidos os aspectos
que distinguem a prova falsa das provas obtidas por meio ilícito, concluindo-se
pela impossibilidade de ajuizamento da ação sob o fundamento contido no
art. 485, VI, do CPC. Admite-se, todavia, a propositura da rescisória com base
no art. 485, V, do CPC, objetivando preservar a supremacia da Constituição
e a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Ação rescisória. Desconstituição de decisão judicial. Cabi­
mento. Provas ilícitas. Provas obtidas por meio ilícito.
Sumário: Introdução – 1 A ação rescisória como remédio processual contra
decisões judiciais alcançadas pela coisa julgada – 2 Hipóteses de cabimento
– A taxatividade do art. 485, do CPC – 3 Prova falsa X Prova obtida por meio
ilícito – 4 Ação rescisória de decisão fundamentada em prova obtida por meio
ilícito? – Conclusão – Referências

Introdução
A ação rescisória sempre desempenhou papel relevante no ordena­
mento jurídico nacional.2 É através dela que se propõe ataque à decisão
de mérito transitada em julgado.
Para tanto, deverá haver o preenchimento de alguns requisitos
previstos na legislação processual, dentre os quais merece destaque a
necessidade de que a pretensão do autor da ação se amolde ao menos
a uma das situações previstas no art. 485, do CPC.

E-mail: <mfs@amazon.com.br>.
1

Para uma análise da evolução do instituto da ação rescisória verificar MIRANDA, Pontes de. Tratado da ação
2

rescisória. São Paulo: Bookseller, 2003. p. 113-137.

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174 Michel Ferro e Silva

No presente trabalho buscaremos analisar o cabimento da ação


rescisória para desconstituição da decisão de mérito transitada em jul­
gado que se valeu de prova obtida ilicitamente.
Para a correta compreensão da problemática, partiremos da análise
de algumas situações contidas no rol do art. 485, do CPC, e, igualmente,
dos conceitos de prova falsa e prova obtida por meio ilícito.
Posteriormente, verificaremos a viabilidade da propositura da
ação com fundamento no art. 485, V, do CPC, ou seja, por violar literal
disposição de lei.
Em nossa busca será analisado o entendimento atualizado do Supre­
mo Tribunal Federal e de processualistas de inegável reconhecimento.
Ao fim, esperamos, com este pequeno estudo, contribuir para
a comunidade jurídica com a nossa opinião a respeito de tema tão
relevante.

1 A ação rescisória como remédio processual contra decisões judiciais


alcançadas pela coisa julgada
Ação rescisória é a via processual que tem como propósito descons­
tituir decisão de mérito alcançada pela coisa julgada. Para tanto, seu
autor deverá preencher os requisitos exigidos pela legislação processual,
sendo o primeiro deles a necessidade de esgotamento da esfera recursal.
Com efeito, para a propositura da ação rescisória se mostra neces­
sária a demonstração de que contra a decisão rescindenda não cabe mais
nenhuma espécie recursal, o que não significa, é bom que se diga, que
obrigatoriamente tenha havido pela parte a utilização de todos os recur­
sos admissíveis, não providos pelos órgãos jurisdicionais responsáveis
pelos seus julgamentos. O que se mostra imprescindível é “o fato objetivo
do trânsito em julgado da decisão (de mérito) que se pretende rescindir”,3
não se admitindo a propositura de ação rescisória condicional, ou seja, na
pendência de julgamento de recurso. Nesse particular, é de se lembrar o
disposto no enunciado nº 514 da Súmula do Supremo Tribunal Federal.4
Por outro lado, o autor da rescisória deverá fundamentar o seu
pedido ao menos em uma das hipóteses previstas no art. 485, do CPC.

3
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 5,
p. 365.
4
“Admite-se ação rescisória contra sentença transitada em julgado, ainda que contra ela não se tenham esgotados
todos os recursos”.

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A utilização da ação rescisória para a desconstituição de decisão fundamentada em prova obtida por... 175

Trata-se de rol taxativo, não comportando interpretação “ampliativa ou


analógica”.5
Dentre as situações previstas no art. 485, do CPC, há algumas
que representam vícios processuais e outras que demonstram injustiças
cometidas pela decisão rescindenda. De uma forma ou de outra, o autor
da rescisória deverá especificar em sua petição inicial, sob pena de inde­
ferimento liminar, qual das hipóteses justifica o ataque à coisa julgada e
a consequente desconstituição da decisão.
Finalmente, deverá o requerente observar o prazo de dois anos
para o ajuizamento da ação, conforme previsto no art. 495, do CPC.6
Referido prazo tem sua contagem iniciada com o trânsito em julgado
da decisão que se pretende rescindir. É de natureza decadencial, ou seja,
não se prorroga, suspende ou interrompe.
A rescisória possui natureza jurídica de ação constitutiva negativa,
isto é, objetiva a desconstituição da coisa julgada material anterior. Nesse
ponto, doutrina e jurisprudência não parecem divergir.7 Nela é possível
a cumulação de pedidos: a) o pedido rescindendo, ou seja, a descons­ -
ti­
tuição da coisa julgada; e b) o pedido rescisório, que corresponde à
prolação de nova decisão pelo órgão jurisdicional, na hipótese de aco­
lhimento do primeiro.

2 Hipóteses de cabimento – A taxatividade do art. 485, do CPC


Como dito nas linhas acima, o autor da ação rescisória deverá
fundamentar o seu pedido ao menos em uma das hipóteses previstas
no art. 485, do CPC. Em outros dizeres, seu requerimento inicial deverá
se fundamentar numa das situações arroladas no citado dispositivo
legal, sob pena de, não o fazendo, haver o indeferimento liminar da
petição inicial.
É possível, no entanto, a cumulação de pedidos, isto é, a formulação
de requerimento rescisório fundamentado em mais de uma das hipó­
teses estampadas no art. 485, do CPC. In casu, é como se tivesse havido a
propositura de duas ou mais ações rescisórias cumuladas.8 Rejeitando-se
um fundamento, segue-se na análise do outro.9

5
Nesse sentido, v. DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil.
Salvador: JusPodivm, 2007. v. 3, p. 294.
6
O Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil reduz para 01 (um) ano o prazo de ajuizamento da ação.
7
Por todos, conferir, BUENO, op. cit., p. 363.
8
Sobre o assunto, consultar, MIRANDA, op. cit., p. 104-8.
9
BUENO, 2010, p. 375.

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176 Michel Ferro e Silva

Na doutrina predomina o entendimento no sentido de que o rol


previsto no art. 485, do CPC, deva ser visto em numerus clausus,10 sendo
vedada a sua interpretação extensiva ou ampliativa, de maneira que o
pedido rescisório deverá se amoldar a uma das situações previstas na
citada relação, sob pena de reconhecimento pelo órgão jurisdicional de
que o autor é carecedor do direito de ação em razão da impossibilidade
jurídica do pedido apresentado. Nelson Nery Junior lembra que a ação
rescisória é constitucional “desde que exercida nos limites augustos
e taxativos das hipóteses do CPC 485 e do prazo exíguo de dois anos
previsto pelo CPC 495”.11
Das situações tipificadas no art. 485, do CPC, interessa-nos para
o presente estudo, aquelas previstas nos incisos V e VI, cuja análise se
passa a realizar.
No primeiro caso, a ação rescisória poderá ser ajuizada sob o
fundamento de ter havido violação a literal dispositivo de lei. Nesse
particular, deve ser aplicado o entendimento amplo do significado da
expressão “lei”, compreendendo a lei federal, complementar, ordinária,
Constituição da República, leis estaduais, leis municipais, medidas
provisórias, decretos legislativos etc.12 Tereza Arruda Alvim Wambier e
José Miguel Garcia Medina defendem até mesmo a inclusão de prin­ -
­cí­pios jurídicos.13

10
Assim, por todos, NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 678. Sugerindo uma aplicação interpretativa, verificar, WAMBIER,
Tereza Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Relativização da coisa julgada. In: DIDIER JR., Fredie (Coord.).
Relativização da coisa julgada. Salvador: JusPodivm, 2006. p. 343.
11
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
p. 67. Prossegue o ilustre processualista afirmando que: “A CF é o contexto necessário de todas as normas.
Para tanto, é necessário que haja prévia e expressa disposição normativa no sistema autorizando a aplicação
desses institutos de exceção. Permitir que o magistrado, no caso futuro, profira decisão sobre o que fez e o que
não fez coisa julgada, a pretexto de que estaria aplicando o princípio da proporcionalidade, não é profligar-
se tese de vanguarda, como à primeira vista poderia parecer, mas, ao contrário, é admitir-se a incidência do
totalitarismo nazista no processo civil brasileiro”.
12
Como dito, em que pese o texto legal se referir a “violação literal de lei”, tem predominado o entendimento de
que a palavra “lei” deve ser empregada de maneira ampla, sendo sinônimo de norma jurídica. Nesse sentido:
“O texto emprega o vocábulo lei no sentido de norma, ou lei material, e abrange tanto a lei de direito público,
como a de direito privado, a de direito material e a de direito processual” (MARQUES, José Frederico. Manual
de direito processual civil. Campinas: Millennium, 2003. v. 2, p. 547). No mesmo sentido, conferir, DIDIER JR.;
CUNHA, 2007, p. 325.
13
O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 179. Em outra
obra, os citados autores afirmam que: “Concebe-se hoje que o desrespeito a princípios é muito mais nocivo
para o sistema que a ofensa a dispositivos legais. Logo, a conclusão não poderia ser outra se não a de que o
desrespeito a princípios deve entender-se hoje como alcançado pelo art. 485, inc. V do Código de Processo
Civil” (WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Relativização da coisa julgada. In: DIDIER
JR., Fredie (Coord.). Relativização da coisa julgada. Salvador: JusPodivm, 2006. p. 347). Compartilhando com
o entendimento, GERAIGE NETO, Zaiden. Ação rescisória: o lento caminhar do direito escrito, comparado às
rápidas transformações das sociedades contemporâneas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 187.

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A utilização da ação rescisória para a desconstituição de decisão fundamentada em prova obtida por... 177

Dentro desse contexto, não é demais lembrar o conteúdo do


enunciado nº 343 da Súmula do Supremo Tribunal Federal que prevê:
“Não cabe ação rescisória contra ofensa a literal dispositivo de lei, quando
a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação
controvertida nos tribunais”.
O citado enunciado deve ser entendido no sentido de que havendo
controvérsia a respeito da interpretação da norma jurídica que serve
de fundamento para a decisão prolatada, incabível será a propositura
da ação rescisória. Em outras palavras, a rescisão somente terá lugar se
a decisão rescindenda tiver se fundamentado em norma jurídica com
interpretação única pelos tribunais. É necessário que a violação seja
flagrante, inequívoca, evidente, ou seja, qualquer um “terá condições
objetivas de verificar que o julgador errou na interpretação e na conse­
qüente aplicação da lei ao caso concreto”.14
Será também viável a propositura da ação quando a decisão
de mérito transitada em julgado tiver se fundado em prova falsa, cuja
falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou, seja provada na
própria ação rescisória. É importante, no entanto, que a prova falsa tenha
sido determinante para a decisão rescindenda a ponto de inexistindo-
a ser outra a decisão proferida.15 Justifica-se a ação pelo fato de que
a decisão passou a não ter mais fundamentação.16
Para o presente trabalho se mostra fundamental o estabelecimento
das distinções existentes entre a prova falsa e a prova obtida por meio ilícito,
o que será objeto de análise no item seguinte.

3 Prova falsa X Prova obtida por meio ilícito


Como dito, para o correto desenvolvimento do presente, é de
inquestionável relevância o estabelecimento dos conceitos de prova
falsa e prova obtida por meio ilícito a fim de que, com base neles,

14
BUENO, op. cit., 2010, p. 381.
15
“Quer isto dizer que a rescisória, fundada em prova falsa, somente deve ser acolhida, caso se demonstre
a relação de causalidade entre a conclusão a que chegou o juiz e a prova tida como falsa. Se, reconhecida
a falsidade da prova, persiste a sentença, por haver outros elementos que lhe confiram substrato, não há,
então, razão para acolher-se a rescisória ou para julgar-se diferentemente” (DIDIER JR; CUNHA, op. cit, 2007,
p. 330). E, ainda: “É claro que não basta a simples comprovação da prova falsa. Faz-se necessário, também,
que referida prova seja vital para a existência, ou melhor, subsistência da decisão. Isto é, caso referida decisão
possa sobreviver por outro motivo, mesmo sendo comprovada a prova falsa, referido fundamento não poderá
ser utilizado como forma de rescisão. Claro, pois, sob os pontos de vista prático e também jurídico, não há
lógica em se tentar rescindir uma decisão se a mesma se sustenta com legitimidade, independentemente da
existência de eventual prova falsa” (GERAIGE NETO, op. cit., 2009, p. 56).
16
Ibidem, 2007, p. 330.

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178 Michel Ferro e Silva

sejam identificadas suas distinções. Antes, contudo, recordemos alguns


princípios que norteiam a atividade probatória.
Como ponto de partida é importante relembrarmos o chamado
princípio da liberdade da prova ou atipicidade (art. 332, do CPC), que permite
a utilização de qualquer meio de prova, ainda que não previsto em lei,
desde que não ofenda valores consagrados no ordenamento jurídico.
Trata-se de princípio que possui roupagem constitucional, uma vez
que corolário do princípio do contraditório e da ampla defesa.
Com base no princípio da liberdade da prova ou atipicidade, a parte
não fica adstrita à utilização dos meios de provas expressamente pre­ -
vistos em lei, podendo se valer de outros, desde que compatíveis com o
pre­visto na matriz constitucional.17
Por outro lado, importa o registro do que se encontra previsto no
art. 5º, LVI, da Constituição da República, que prevê serem inadmissíveis
no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Assim, a inadmissibi­
lidade da utilização das provas obtidas por meios ilícitos possui status
constitucional, compondo rol das garantias fundamentais e correspon­
dendo a verdadeira cláusula pétrea. É, pois, resultado da preferência dos
direitos fundamentais no ordenamento jurídico, “tornando impossível a
violação de uma liberdade pública para obtenção de qualquer prova”.18
Pois bem, com base no mencionado dispositivo constitucional,
a melhor doutrina entende haver diferenciação entre provas ilícitas e
provas obtidas por meios ilícitos.19 No primeiro caso, a prova em si mesma
considerada, ofende o ordenamento jurídico. É o que acontece com a
tortura ou com a confissão mediante coação. Por outro lado, a prova
obtida por meio ilícito, em si considerada, é admitida, no entanto, a forma
como foi produzida confronta com o previsto no ordenamento jurídico.
É o caso da escuta telefônica não autorizada judicialmente.

17
“Não será por ter sido o legislador omisso a respeito, ou então porque à época em que foi feita a lei se
desconhecia, cientificamente, um meio de prova, que este não deve ser admitido. O que interessa é que o
meio seja jurídico – isto é, não repelido pelo sistema, mas harmônico com este – como também moralmente
lícito” (ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. v. 2, p. 460).
Verificar, ainda, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
v. 3, p. 456-457; DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 53-55.
18
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2007. p. 269. Seguindo a mesma
linha de raciocínio, merece destaque o comentário: “Diversamente, por prova ilícita, ou ilicitamente obtida,
é de se entender a prova colhida com infração a normas ou princípios de direito material — sobretudo de
direito constitucional, porque, como vimos, a problemática da prova ilícita se prende sempre à questão das
liberdades públicas, onde estão assegurados os direitos e garantias atinentes à intimidade, à liberdade, à
dignidade humana” (AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas, ambientais e
gravações clandestinas. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 51).
19
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 2, t. I,
p. 269.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 173-188, out./dez. 2010
A utilização da ação rescisória para a desconstituição de decisão fundamentada em prova obtida por... 179

De toda forma, em face da previsão constitucional, as provas ilícitas


ou obtidas por meio ilícito, não podem servir como fundamentação para o
magistrado. É como se não existissem, não servindo ao convencimento
do órgão julgador.20 Vale ressaltar, no entanto, que diante do caso con­
creto, a citada regra poderá ser mitigada pela utilização do princípio da
proporcionalidade, assunto que ainda será abordado.
A prova falsa, por sua vez, é aquela cujo fato atestado não corres­
ponde à verdade. Pode ser material ou ideológica e pode atingir qualquer
tipo de prova, seja documental, testemunhal ou até mesmo pericial.21
Conforme ressaltado por Alexandre Freitas Câmara, a legislação brasileira
não distingue a falsidade material da ideológica,22 pelo que se mostra
correto o entendimento de que em ambos os casos a ação rescisória
terá cabimento.
Assim, distingue-se a prova falsa da prova obtida por meio ilícito,
justamente pelo fato de que a segunda, em si mesma considerada, é prova
boa, válida, capaz de produzir efeitos e influenciar no convencimento
do magistrado, uma vez que compatível com o ordenamento jurídico
nacional, no entanto, o meio ou a forma pela qual foi obtida contraria
dispositivo constitucional, daí porque deverá ser descartada.
A atipicidade da prova, isto é, a ausência de sua expressa previsão
legal, não pode ser justificativa para que a mesma seja obtida por meio
ilícito. Explicamos melhor. Mesmo nas hipóteses de provas inominadas,
mesmo diante da liberdade de produzi-las, incumbe à parte respeitar o
regramento constitucional, sob pena de não o fazendo, a prova produzida
ter que ser descartada pelo órgão jurisdicional.23 Em outras palavras,
deverá a parte pautar seu comportamento, na busca por provas, naquilo
que não ofenda o ordenamento jurídico nacional, sendo-lhe proibida
a utilização de expedientes não permitidos pelo mesmo.
O estabelecimento dessas conclusões se mostra necessário, como
dito anteriormente, pelo fato de que somente terá cabimento a propo­
situra de ação rescisória com fundamento na falsidade da prova obtida em
processo criminal ou demonstrada no próprio juízo rescindendo.24
20
Nesse sentido, v. BUENO, op. cit, p. 269.
21
DIDIER JR.; CUNHA, op. cit., 2007, p. 330.
22
CÂMARA, Alexandre Freitas. Ação rescisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 91.
23
Em sentido semelhante, v. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de
Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. v. 5, t. 1, p. 354. Conferir, também, DIDIER JR., Fredie;
BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. Salvador: JusPodivm, 2007. v. 2, p.
31-32.
24
Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha lembram que: “Não obstante a literalidade da regra,
também se deve admitir a ação rescisória, quando a falsidade tiver sido apurada em ação declaratória civil

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 173-188, out./dez. 2010
180 Michel Ferro e Silva

Portanto, pela simples análise do disposto no art. 485, VI, do CPC,


aliada à ideia de que a interpretação do rol das hipóteses de cabimento
não deve ser feita de maneira extensiva ou ampliativa, tem-se que, a priori,
não será possível o ajuizamento de ação rescisória cuja finalidade seja
a desconstituição de decisão de mérito fundamentada em prova obtida
por meio ilícito. A matéria, no entanto, necessita de uma atenção maior.

4 Ação rescisória de decisão fundamentada em prova obtida por meio


ilícito?
Neste ponto, restam-nos as indagações: a) seria a rescisória a ação
adequada para desconstituição de decisão fundamentada em prova obtida
por meio ilícito? b) em sendo positiva a resposta, como compatibilizar
o fundamento de eventual ação com o rol taxativo do art. 485, do CPC?
Pelas linhas expostas anteriormente, parece-nos que eventual
ação rescisória que pretenda a desconstituição de provimento judicial
que se valeu de prova obtida por meio ilícito não poderá ter como
fundamento o inciso VI, do art. 485, do CPC. Com efeito, em razão da
distinção existente entre prova falsa e obtida por meio ilícito, descarta-se
a utilização do mencionado dispositivo legal.
Não é demais lembrar que cada uma das hipóteses previstas no
art. 485, do CPC, corresponde às causas de pedir da ação rescisória
e, por via de consequência, devem estar claramente identificadas na
petição inicial,25 sob pena de indeferimento liminar pelo relator.
Descartada a utilização do inciso VI, do art. 485, do CPC, teria
cabimento a rescisória pelo fundamento contido no inciso V, ou seja,
quando o provimento judicial violar literal disposição de lei? Vale
lembrar que a Carta Constitucional impede a utilização de provas obtidas
por meios ilícitos (art. 5º, LVI).
Para a melhor doutrina tem predominado o entendimento de que
o dispositivo em questão deve ser interpretado no sentido de se admitir
a rescisão do provimento judicial transitado em julgado que ofenda
direito em tese,26 ou seja, a interpretação não poderá ser apenas literal,
sendo necessário se buscar a real intenção da norma jurídica.

(CPC, art. 4º, II). Todavia, se a sentença proferida na ação declaratória de autenticidade, houver declarado
autêntico o documento, fica excluída a possibilidade de rescisão com base nesse fundamento, em razão da
eficácia positiva da coisa julgada” (Op. cit., p. 330-331).
25
BUENO, op. cit., 2010, v. 5, p. 375.
26
Nesse sentido, conferir, CÂMARA, 2007, p. 80. O Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil substitui a
antiga expressão por norma jurídica (art. 884, V).

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 173-188, out./dez. 2010
A utilização da ação rescisória para a desconstituição de decisão fundamentada em prova obtida por... 181

Novamente, vale ressaltar o disposto no enunciado nº 343 da


Súmula do Supremo Tribunal Federal que prevê: “Não cabe ação resci­ -
sória contra ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescin­
denda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida
nos tribunais”.
Assim, para que eventual ação rescisória seja acolhida com
fundamento no inciso V, do art. 485, do CPC, se mostra necessário inexistir
na jurisprudência controvérsia a respeito da interpretação do substrato
jurídico servil à decisão transitada em julgado. Em outras palavras,

Violação a literal disposição de lei, conseqüentemente, é violação flagrante,


inequívoca, palmar, evidente. A violação é literal porque qualquer um que analisar
o teor da decisão terá condições objetivas de verificar que o julgador errou na
interpretação e na conseqüente aplicação da lei ao caso concreto.27

Portanto, para o cabimento da ação rescisória com fundamento


no mencionado dispositivo legal, é vital que a interpretação da norma
jurídica ocorra de maneira uniforme. A presença de controvérsia afasta
o cabimento da ação, conforme entendimento consolidado no enunciado
nº 343 da Súmula do Supremo Tribunal Federal.
É sabido que o Texto Constitucional veda a utilização no processo
de provas obtidas por meios ilícitos. Referida regra se aplica tanto no
âmbito do processo penal, como no do processo civil, uma vez que
representa uma garantia constitucional. No entanto, como qualquer ga­
rantia constitucional, a inadmissão de sua utilização é relativa, podendo
ser substituída por outra, o que se faz através da teoria ou princípio da
proporcionalidade.28 A melhor doutrina se inclina nesse sentido:

A teoria da proporcionalidade ou da razoabilidade, também denominada


teoria do balanceamento ou da preponderância dos interesses, consiste, pois,
exatamente, numa construção doutrinária e jurisprudencial que se coloca nos
sistemas de inadmissibilidade da prova obtida ilicitamente, permitindo, em face

27
BUENO, op. cit., 2010, v. 5, p. 381. Vale o registro de que “É ponto incontroverso na doutrina e na jurisprudência
que lei, tal como empregada no dispositivo, constitui expressão ampla, abrangendo tanto a lei estrangeira
como a nacional, tanto a material como a processual, tanto a infraconstitucional como a constitucional. A
expressão lei está, aí, abrangendo a lei complementar, a ordinária, a delegada, a medida provisória, o decreto
e qualquer outro ato de conteúdo normativo. Não abrange, porém, violação a texto de súmula, mesmo se
tratar de súmula vinculante” (DIDIER JR.; CUNHA, op. cit., 2007, p. 325).
28
No mesmo sentido, conferir, SILVA, César Dario Mariano. Provas ilícitas. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 113;
GOÉS, Gisele. Teoria geral da prova. Salvador: JusPodivm, 2005. p. 47-49 e DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, op.
cit., 2007, p. 33. Pela inadmissão das provas obtidas por meio ilícito, v. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de
direito processual civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. v. 1, p. 402.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 173-188, out./dez. 2010
182 Michel Ferro e Silva

de uma vedação probatória, que se proceda a uma escolha, no caso concreto,


entre os valores constitucionalmente relevantes postos em confronto.29

Nelson Nery Junior se posiciona no sentido de que:

A doutrina se manifesta de forma bastante controvertida a respeito, havendo


opiniões, por exemplo, no sentido de admitir-se a prova obtida ilicitamente
como válida e eficaz no processo civil, sem nenhuma ressalva. A nosso ver,
entretanto, não devem ser aceitos extremos: nem a negativa peremptória de
emprestar-se validade e eficácia à prova obtida sem o conhecimento do pro­
tagonista da gravação sub-reptícia, nem a admissão pura e simples de qual­quer
gravação fonográfica ou televisiva. A proposição da doutrina quanto à tese
intermediária é a que mais de coaduna com o que se denomina modernamente
de princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsmaxime), devendo preva­lecer,
destarte, sobre as radicais.30

Assim, parte da doutrina tem se manifestado pela utilização, em


casos excepcionais, das provas obtidas ilicitamente, mesmo no âmbito do
processo civil, adotando-se como fundamento o princípio da proporciona­
lidade. A jurisprudência também não é uniforme a respeito do tema.31

29
AVOLIO, op. cit., 2010, p. 72. Ainda a respeito da teoria da proporcionalidade merece destaque a seguinte
passagem: “A definição geral da proporcionalidade estabelece-se em torno de dois elementos. Um elemento
fixo, constituído pela relação entre dois ou vários parâmetros, e outro elemento variável, representado pelo
grau de ligação que os une. É possível apresentar uma multiplicidade de definições, nas quais o conteúdo
será diferente, sendo que apenas a característica comum permanece na existência de determinada relação. A
concepção comum da proporcionalidade caracteriza-se pela existência de uma relação de correlação” (BARACHO,
José Alfredo de Oliveira. Direito processual constitucional: aspectos contemporâneos. Belo Horizonte: Fórum,
2008. p. 393). E, ainda: “A par dessa vinculação aos direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade
alcança as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais. Nesse contexto, as exigências
do princípio da proporcionalidade representam um método geral para a solução de conflitos entre princípios,
isto é, um conflito entre normas que, ao contrário do conflito entre regras, é resolvido não pela explicitação
de distinto campo de aplicação entre as normas, mas antes e tão-somente pela ponderação do peso relativo
de cada uma das normas em tese aplicáveis e aptas a fundamentar decisões em sentidos opostos. Nessa
última hipótese, aplica-se o princípio da proporcionalidade para estabelecer ponderações entre distintos bens
constitucionais” (MENDES, Gilmar Ferreira. Intervenção federal e princípio da proporcionalidade: o caso dos
precatórios. Texto baseado em voto proferido em 14 de agosto de 2002 nos autos das Intervenções Federais
nºs 2.915 e 2.953, ajuizadas em desfavor do Estado de São Paulo).
30
NERY JUNIOR, op. cit, 2009, p. 260.
31
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tratou do tema, basicamente, sob o enfoque do direito
processual penal. De toda forma, merece destaque a seguinte decisão: “Constitucional e Processual. Mandado
de Segurança. Escuta telefônica com ordem judicial. Réu condenado por formação de quadrilha armada, que
se acha cumprindo pena em penitenciária, não tem como invocar direitos fundamentais próprios do homem
livre para desentranhar prova (decodificação de fita magnética) feita pela polícia. O inciso LVI do art. 5º. da
Constituição, que fala que ‘são inadmissíveis... as provas obtidas por meio ilícito’, não tem conotação absoluta.
Há sempre um substrato ético a orientar o exegeta na busca de valores maiores na construção da sociedade. A
própria Constituição Federal Brasileira, que é dirigente e programática, oferece ao juiz, através da ‘atualização
constitucional’ (VERFASSUNGSAKTUALISIERUNG), base para o entendimento de que a cláusula constitucional
invocada é relativa. A jurisprudência norte-americana, mencionada em precedente do Supremo Tribunal Federal,
não é tranqüila. Sempre invocável o princípio da ‘razoabilidade’ (REASONSABLENESS). O ‘princípio da exclusão
das provas ilicitamente obtidas’ (EXCLUSIONARY RULE) também lá pede temperamentos. Recurso Ordinário
improvido” (RMS nº 6.129/RJ. 6ª Turma. Rel. Min. Adhemar Maciel. J. 06.02.1996. DJ, p. 27492, 12 ago. 1996).
Conferir, ainda: RMS nº 17.482/BA. 5ª Turma. Rel. Min. Felix Fischer. J. 04.03.2004. DJ, 16 ago. 2004; HC nº

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 173-188, out./dez. 2010
A utilização da ação rescisória para a desconstituição de decisão fundamentada em prova obtida por... 183

Diante de uma análise precipitada, não seria incompreensível o


entendimento de que diante da existência de controvérsia na jurispru­
dência a respeito da utilização de provas obtidas ilicitamente no proces­so,
o cabimento da rescisória com fundamento no art. 485, V, do CPC, não
se mostraria possível. É que, em havendo controvérsia, deve prevalecer o
disposto no enunciado nº 343 da Súmula do Supremo Tribunal Federal.
É fato que a ação rescisória não funciona como substitutivo de
recurso excepcional, logo “dissenso na jurisprudência interpretativa da
legislação infraconstitucional não significa violação a disposição de lei, como
prega o art. 485, V, do CPC”.32
Ocorre que tem predominado o entendimento no sentido de que
quando a norma jurídica de interpretação controvertida for de natureza
constitucional, o citado enunciado deve ter sua aplicação afastada.33 É
exatamente o que acontece aqui, uma vez que a discussão envolvendo
a utilização ou não das provas obtidas por meio ilícito possui roupagem
constitucional.
O principal argumento utilizado repousa no fato de que eventual
manutenção de decisões de instâncias ordinárias divergentes da inter­
pretação constitucional implicaria afronta à força normativa da Carta
Magna e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional.
O Supremo Tribunal Federal já enfrentou o assunto diversas vezes,34
merecendo destaque a seguinte decisão, oriunda do Tribunal Pleno:

Ementa – Embargos de Declaração em Recurso Extraordinário. 2. Julgamento


remetido ao Plenário pela Segunda Turma. Conhecimento. 3. É possível
ao Plenário apreciar embargos de declaração opostos contra acórdão prola­
tado por órgão fracionário, quando o processo foi remetido pela Turma ori­
ginalmente competente. Maioria. 4. Ação Rescisória. Matéria constitucional.
Inaplicabilidade da Súmula 343/STF. 5. A manutenção de decisões das
instâncias ordinárias divergentes da interpretação adotada pelo STF revela-
se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima
efetividade da norma constitucional. 6. Cabe ação rescisória por ofensa à literal

93.856/ES. 6ª Turma. Rel. Min. Jane Silva. J. 17.03.2009. DJe, 19 out. 2009; HC nº 14.336/RJ. 5ª Turma. Rel.
Min. Edson Vidigal. J. 28.11.2000. DJ, 18 dez. 2000; HC nº 87.094/SP. 5ª Turma. Rel. Min. Napoleão Nunes
Maia Filho. J. 16.10.2008. DJe, 24 nov. 2008.
32
ARAÚJO, José Henrique Mouta. A verticalização das decisões do STF como instrumento de diminuição do
tempo do processo: uma reengenharia necessária. Disponível em: <www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/
salvador/jose.henrique.mouta.araujo.pdf>. Acesso em: 23 ago. 2010.
33
Nesse sentido, CÂMARA, 2007, p. 86-89; DIDIER JR.; CUNHA, 2007, p. 329 e BUENO, 2010, p. 382-383.
34
Verificar: AI nº 555.806 AgR. Rel. Min. Eros Grau. J. 01.04.2008. DJe, 18 abr. 2008; RE nº 564.781 AgR/ES.
Rel. Min. Ellen Gracie. J. 09.06.2009. DJe, 30 jun. 2009; AR nº 1.409/SC. Rel. Min. Ellen Gracie. J. 26.03.2009.
DJe, 14 maio 2009; RE nº 463.624 AgR-ED-ED/RS. Rel. Min. Joaquim Barbosa. J. 04.08.2009. DJe, 28 ago.
2009; RE nº 500.043 AgR/GO. Rel. Min. Carmen Lucia. J. 26.05.2009. DJe, 26 jun. 2009.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 173-188, out./dez. 2010
184 Michel Ferro e Silva

disposição constitucional, ainda que a decisão rescindenda tenha se baseado


em interpretação controvertida ou seja anterior à orientação fixada pelo
Supremo Tribunal Federal. 7. Embargos de Declaração rejeitados, mantida a
conclusão da Segunda Turma para que o Tribunal a quo aprecie a ação rescisória.
(RE nº 328.812 ED/AM. rel. Min. Gilmar Mendes. J. 06.03.2008. DJe, 02
maio 2008)

Expondo as razões de seu voto, o Min. Gilmar Mendes, relator do


recurso, reafirma a ideia de que a violação à literal disposição de lei con­
templa também a violação às normas constitucionais, o que chamou de
“violação qualificada”.35 Dentro desse contexto, prossegue afirmando
que:

Não é a mesma coisa vedar a rescisória para rever uma interpretação razoável
de lei ordinária que tenha sido fundada por um juiz em confronto com outra
interpretação de outros juízes, e vedar a rescisória para rever uma interpre­-
tação da lei que é contrária àquela fixada pelo Supremo Tribunal Federal em
questão constitucional.

E ainda:

Nesse ponto, penso que é fundamental lembrar que nas decisões proferidas por
esta Corte temos um tipo especialíssimo de concretização da Corte Cons­ti­tucional.
E isto certamente não equivale à aplicação da legislação infraconstitucional.

Com efeito, o impedimento da ação rescisória com fundamento


no art. 485, V, do CPC, provocaria o enfraquecimento das decisões do
Supremo Tribunal Federal, invertendo-se os papéis, uma vez que as deci­
sões das instâncias ordinárias estariam sendo fortalecidas.
José Henrique Mouta Araújo entende que:

A Súmula 343 do STF não encontra assento em matéria constitucional, espe­


cialmente quando se trata de interpretação constitucional deste próprio Tribu­
nal. Logo, ocorrendo violação ao entendimento da Corte, é razoável defender
o cabimento de rescisória, independentemente da existência de eventual
“controvérsia de interpretação” nos demais tribunais nacionais.36

Alexandre Freitas Câmara manifesta-se no sentido de que as deci­


sões em matéria de jurisdição constitucional precisam ser prestigiadas,

Voto obtido em: <http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=524429>. Acesso em:


35

25 ago. 2010.
ARAÚJO, op. cit., p. 2.961.
36

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A utilização da ação rescisória para a desconstituição de decisão fundamentada em prova obtida por... 185

sob pena de ofender-se a força normativa da Constituição. Conclui


afirmando que:

Por conta disso é que, no caso de o provimento judicial de mérito transitado


em julgado ter dado a alguma norma constitucional interpretação que não
é considerada correta pelo STF, deve-se ter por inaplicável o Enunciado n. 343
da Súmula daquela Corte e, assim, será tida por rescindível a decisão.37

Jean Carlos Dias lembra que o efeito imediato da verticalização


das decisões dos Tribunais Superiores é reforçar a importância dos pre­
cedentes e, “ao mesmo tempo, compatibilizar o julgamento dos múltiplos
recursos”.38
Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha já se mani­
festaram no sentido de que na hipótese de o provimento judicial tran­
sitado em julgado ter se utilizado de prova obtida ilicitamente, cabível
será a propositura de ação rescisória com fundamento no inciso V, do
art. 485, do CPC.39 Concordamos com o entendimento adotado pelos
ilustres processualistas. É que, como o assunto possui base constitucional,
a decisão final deverá ser da Corte Suprema a fim de fazer valer a força
normativa de seus julgados. Afinal a melhor interpretação sempre será
a daquela Corte.40
O Supremo Tribunal Federal discutiu a questão envolvendo a
utilização das provas obtidas ilicitamente, basicamente, sob o enfoque
do direito processual penal, o que ratifica ainda mais o entendimento
aqui adotado.41
Com efeito, se após o trânsito em julgado da decisão de mérito,
sobrevier a informação de que a prova foi obtida ilicitamente pelo ven­
cedor, viável será o ajuizamento da ação rescisória para possibilitar a
análise final da matéria em sede de controle incidental pelo Supremo
Tribunal Federal.42

37
CÂMARA, 2007, p. 89.
38
DIAS, Jean Carlos. Análise econômica do processo civil brasileiro. São Paulo: Método, 2009. p. 99.
39
Nesse sentido, v. DIDIER JR; CUNHA, p. 332.
40
ARAÚJO, op. cit., p. 2.962.
41
Verificar RE nº 402.717/PR. 2ª Turma. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 02.12.2008; RHC nº 86.082/RS. 2ª Turma.
Rel. Min. Ellen Gracie. J. 05.08.2008; HC nº 91.350/SP. 2ª Turma. Rel. Min. Ellen Gracie. J. 17.06.2008; HC nº
93.050/RJ. 2ª Turma. Rel. Min. Celso de Melo. J. 10.06.2008; HC nº 89.032/SP. 1ª Turma. Rel. Min. Menezes
Direito. J. 09.10.2007; RHC nº 90.376/RJ. 2ª Turma. Rel. Min. Celso de Mello. J. 03.04.2007.
42
Nesse sentido: “Assim, se somente por meio do controle difuso de constitucionalidade, portanto, anos após as
questões terem sido decididas pelos Tribunais ordinários, é que o Supremo Tribunal Federal veio a apreciá-las,
é a ação rescisória, com fundamento em violação de literal disposição de lei, instrumento adequado para a
superação de decisão divergente” (ARAÚJO, p. 2961).

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 173-188, out./dez. 2010
186 Michel Ferro e Silva

Reforça-se com tal entendimento a ideia de supremacia da Cons­


tituição e o princípio da máxima efetividade da norma constitucional,
evitando-se a manutenção de decisões divergentes oriundas das instân-­
cias ordinárias.
Todavia, ressalta-se de que o cabimento da ação rescisória fica
condicionado a ter sido a prova obtida ilicitamente determinante para
a decisão proferida pelo órgão jurisdicional. Se, no entanto, a decisão
tiver se baseado em mais de um fundamento, entendemos que não haverá
razão de ser para a ação.

Conclusão
Respeitando-se as evidentes limitações inerentes a trabalhos dessa
natureza, as seguintes conclusões foram extraídas:
1. A ação rescisória continua desempenhando relevante papel na
sistemática processual brasileira, permanecendo como instru­
mento apto a desconstituir decisões judiciais alcançadas pela
coisa julgada e que contenham os vícios arrolados no art. 485,
do CPC.
2. O rol do art. 485, do CPC, permanece devendo ser entendido
como taxativo, sendo vedada a sua interpretação extensiva ou
ampliativa, de maneira que o pedido rescisório deverá se amol­
dar a uma das situações previstas na citada relação, sob pena
de reconhecimento pelo órgão jurisdicional de que o autor é
carecedor do direito de ação.
3. Em que pese não estar contemplada expressamente na relação
do art. 485, CPC, se mostra cabível a propositura de ação resci­
sória que objetive desconstituir decisão de mérito passada em
julgado e que se valeu de prova obtida ilicitamente.
4. Referida ação não deverá ser ajuizada com base na hipótese
prevista no art. 485, VI, do CPC, uma vez que é flagrante a
distinção existente entre prova falsa e prova obtida por meio ilícito.
5. Cabível, todavia, com base no art. 485, V, do CPC, isto é, por violar
literal disposição de lei, que no presente caso possui roupagem
constitucional — art. 5º, LVI, da Constituição da República.
6. Em que pese haver divergência a respeito da utilização no pro­
cesso civil das provas obtidas por meios ilícitos, o enunciado nº 343
da Súmula do Supremo Tribunal Federal não pode representar
óbice ao ajuizamento da ação rescisória na situação aqui tratada.

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A utilização da ação rescisória para a desconstituição de decisão fundamentada em prova obtida por... 187

7. Referido entendimento se mostra em perfeita sintonia com as


mais recentes decisões havidas no Supremo Tribunal Federal e
repousa na ideia de que eventual manutenção de decisões de
instâncias ordinárias divergentes da interpretação constitucional
implicaria afronta à força normativa da Carta Magna e ao prin­
cípio da máxima efetividade da norma constitucional.

Abstract: This article is about the discussion that involves the convenience
of the termination claim for the undoing of judicial pronouncement that
is based on evidence obtained by illegal means. For that, at first, it’s made
a brief reminder of the demanded requirements by the process legislation
about the pertinence of this action and it’s established the premise that these
hypotheses corresponds to a precise list. After that, it’s defined the aspects
that distinguish the false evidence from evidence obtained by illegal means,
concluding for the impossibility of filing the action founded on article 485,
V of CPC, with the purpose of preserving the Constitutional supremacy and
the authority of Supreme Court decisions.
Key words: Termination claim. Undoing of judicial pronouncement.
Pertinence. Illegal evidence. Evidence obtained by illegal means.

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SILVA, Michel Ferro e. A utilização da ação rescisória para a desconstituição de decisão


fundamentada em prova obtida por meio ilícito. Revista Brasileira de Direito Processual
– RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 173-188, out./dez. 2010.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 173-188, out./dez. 2010
Colhendo frutos da árvore venenosa: formação e uso dos precedentes no Brasil e nos EUA 189

Colhendo frutos da árvore venenosa:


formação e uso dos precedentes no
Brasil e nos EUA
Ricardo Augusto de Araújo Teixeira
Especialista, Mestre e Doutorando em Direito Público pela PUC Minas. Advogado.

Resumo: Este artigo trata da questão da legitimidade dos atos decisórios


do Judiciário, indagando como seria possível compatibilizar a tomada de
decisões erga omnes naquele Poder com a exigência de concretização do caráter
democrático do Estado de Direito contemporâneo. Para isso, passamos pelo
modelo dos precedentes judiciais norte-americanos, que, tradicionalmente,
se adequam à ideia de legitimidade discursiva ao garantir amplo debate sobre
temas polêmicos. Abordaremos especificamente os precedentes que tratam
da questão das provas ilícitas por derivação e, posteriormente, abordaremos
a forma como tem se dado o uso dos precedentes no Brasil, a fim de
demonstrar como a transposição do referido instituto tem sido complicada,
não preenchendo os requisitos necessários a garantir a legitimação pela via
do discurso.
Palavras-chave: Decisão judicial. Precedentes. Stare Decisis. Teoria discursiva.
Supremo Tribunal Federal.
Sumário: 1 Introdução – 2 Força e contextualização do precedente: exigências
metodológicas e estruturais – 3 Estudo de caso: os frutos da árvore venenosa
na Suprema Corte – 4 Estudo de caso: os frutos da árvore venenosa no STF
– 5 Manejo inadequado: o risco da importação de institutos jurídicos – 6
Conclusão – Referências

A afirmação de que a justiça e a liberdade são em si mesmas melhores


do que a injustiça e a opressão é, cientificamente, inverificável e
inútil.
(Max Horkheimer)

1 Introdução
Nesses tempos de comemoração dos vinte anos da estabilidade
constitucional, o direito processual penal brasileiro tem demonstrado
que ainda há sérias restrições à consolidação do sistema jurídico criado
pela Constituição brasileira.
Enquanto os demais ramos do Direito Público caminham, ainda
que lentamente, sobre os trilhos do processo de redemocratização posto
pelo texto constitucional, os institutos — e aqui queremos nos referir
às leis e às instituições propriamente ditas — da persecução penal têm

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 189-213, out./dez. 2010
190 Ricardo Augusto de Araújo Teixeira

caminhado em círculo, (des)orientados rumo a objetivos elaborados no


âmbito da teoria instrumentalista do processo (DINAMARCO, 2003)
que não mais correspondem ou se adequam ao modelo proposto há
vinte anos.
Daí a colocação no sentido de que

Existe toda uma linha de pensamento teórico centrada nessa proposta. Para
essa base teórica, o processo se volta para sua instrumentalidade, como meio
de pacificação social, objetivando alcançar seus escopos metajurídicos, como
defende Dinamarco. (BARROS, 2008, p. 7)

O resultado dessa incompatibilidade entre o marco jurídico estabe­


lecido em outubro de 1988 e a concepção teórica dominante no país
tem sido uma série de reformas que visam fazer com que o processo
penal seja “eficiente”, sem, no entanto, saber antes o que se entende por
“eficiência”.
Entre as diversas técnicas que têm sido adotadas a fim de se
alcançar tais objetivos, está a vinculação das instâncias inferiores às deci­
sões das cortes superiores do país. Trata-se de metodologia nitidamente
inspirada no sistema dos precedentes judiciais do direito norte-americano,
mitigada, porém, pela inaptidão1 — absolutamente compreensível — dos
nossos magistrados no que diz respeito a produzir decisões de modo a
possibilitar a aplicação da técnica dos precedentes. Importante destacar
desde logo a advertência de que

Não falta quem deposite na absorção de elementos característicos daquela


outra família (Common Law) 2 uma grande esperança de imprimir maior
eficácia ao funcionamento da máquina judiciária e, em termos genéricos, à
atividade de composição de litígios. (BARBOSA MOREIRA, 1998, p. 93)

A ideia central que move a adoção de tal modelo no Brasil parece


ser a de que, uma vez que o sistema permite que a discussão caminhe
por três ou quatro “instâncias”, nada mais prático do que impor desde
logo o pensamento dominante nas instâncias superiores às instâncias infe­
riores, propiciando assim alguma economia processual, ainda que isto
implique restrições aos princípios da ampla defesa e do contraditório.
Nesse sentido a afirmação de que

A este problema voltaremos ao falarmos da estrutura necessária ao uso da técnica dos precedentes judiciais.
1

Nota do autor.
2

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Colhendo frutos da árvore venenosa: formação e uso dos precedentes no Brasil e nos EUA 191

O discurso de produtividade industrial e de rapidez na prolação das


decisões faz com que os provimentos deixem de buscar uma adequação
constitucional (legitimidade), que partiria do julgamento do caso concreto
em suas especificidades. (...) O judiciário fica predisposto a julgar teses
jurídicas e deixa de se preocupar com o julgamento dos casos concretos.
(NUNES, 2008, p. 210)

Podemos concluir que tal posicionamento é absolutamente incom­


patível com o modelo de processo norte-americano, que exige especial
atenção aos detalhes do caso concreto a fim de se determinarem os
fatos relevantes, e é também incompatível com um modelo de processo
em que, por determinação de cláusula constitucional enunciadora de
direito fundamental, se garante aos litigantes em processo administra­ -
tivo e judicial “o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos
a ela inerentes”.
Aqui, é sempre bom lembrar, trabalhamos com a concepção de
contraditório como inicialmente formulada por Aroldo Plínio Gonçalves
(2001, p. 120), qual seja, a de que se trata da “garantia de participação,
em simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos
da sentença”, e desenvolvida até o ponto em que se exige que ele seja
lido como garantia de “bilateralidade da audiência, como simétrica pari­
dade de armas e como garantia de influência” e como garantia de “não
surpresa” (NUNES, 2007, p. 159, 167).3
Neste trabalho iremos então, inicialmente, esclarecer a metodo­ -
logia do sistema de precedentes como utilizada nos Estados Unidos e
debater o problema da metodologia de trabalho em direito comparado
que permeia o tema deste texto.
Em seguida iremos demonstrar como o método do precedente
foi utilizado pela Suprema Corte para criar a vedação das provas ilícitas
por derivação, oportunidade em que explicitaremos as exigências estru­
turais e procedimentais do uso de tal técnica.
Num terceiro momento, iremos observar o desenvolvimento da
mesma vedação pelo Supremo Tribunal Federal, no intuito de demons­ -
trar como o uso do modelo norte-americano tem sido severamente afeta­
do em razão da não observância dos requisitos metodológicos daquele
sistema.

Por todos, cf. NUNES, Dierle José Coelho. O princípio do contraditório: uma garantia de influência e não
3

surpresa. In: DIDIER JR., Fredie; JORDÃO, Eduardo Ferreira. Teoria do processo: panorama doutrinário mundial.
Salvador: JusPodivm, 2007.

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192 Ricardo Augusto de Araújo Teixeira

Por fim, chegaremos ao ponto mais relevante desta discussão, que


é o fato de o sistema de precedentes ser usado aqui para dar legitimi­
dade às decisões judiciais, apesar de não satisfazer as condições que
possibilitam que, na origem, as decisões tomadas a partir dele sejam tidas
como legítimas. Neste momento iremos exemplificar o uso inadequado
desta justificação, a partir da análise da Súmula Vinculante número
onze do STF.
É preciso ter em vista que o que se busca é contribuir para se superar
o paradigma da teoria instrumentalista do processo (DINAMARCO,
2003), tentando adequar os institutos do Direito Processual Penal aos
mecanismos de legitimação adequados ao Estado Democrático de Direito
(HABERMAS, 1995), e não apenas ao Estado de Direito.

2 Força e contextualização do precedente: exigências metodológicas e


estruturais
Stare decisis et non quieta movere (“mantenha-se a decisão e não se
disturbe o que foi decidido”) é a fórmula latina que indica “a política
que requer que as Cortes subordinadas à Corte de segunda instância
que estabeleceu o precedente sigam o precedente e não ‘disturbem um
ponto estabelecido’” (COLE, 1998, p. 71).
Tal política, que tem garantido um considerável nível de previsi­
bilidade e cognoscibilidade no sistema processual norte-americano, vem
fazendo com que cada vez mais países cujos ordenamentos são de tra­
dição romano-germânica produzam reformas legislativas, no intuito de
se apropriar das benesses perceptíveis do sistema sob análise. Maltz
informa que “a justificativa mais comum para a doutrina do Stare Decisis
está na necessidade da certeza no Direito”4 (MALTZ, 1988, p. 368,
tradução livre).
Antes de nos debruçarmos sobre a problemática na transposição
do instituto,5 vamos analisar alguns pontos mais relevantes da tradição
do Stare Decisis, a fim de definir com precisão o objeto de nossos
questionamentos.

No original: “The most commonly heard justification for the doctrine of stare decisis rests on the need for
4

certainty in the law”.


Margaret Fordham nos alerta para o fato de que “o principal desafio que um advogado treinado no sistema de
5

civil law que quer entender o sistema da common law enfrenta diz respeito ao papel e à estrutura da legislação,
e à incrível importância do caso concreto” (FORDHAM, 2006, p. 2, tradução livre). No original: “The main
challenges facing a civil lawyer who wishes to understand and function within a common law system thus
relate to the role and structure of legislation and the overwhelming significance of case law”.

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Colhendo frutos da árvore venenosa: formação e uso dos precedentes no Brasil e nos EUA 193

De início podemos afirmar que o sistema dos precedentes, conforme


adotado desde a fundação6 dos Estados Unidos, tem sua razão de ser no
fato de que a Constituição americana é um texto preponderantemente
principiológico, o que exige e possibilita sua constante readaptação às
novas realidades fáticas que a ela se apresentem.
Nesse sentido a lição de Barbosa Moreira (2001):

Para tanto muito contribuíram fatores como a feição sintética e a lingua­


gem vaga do texto constitucional, com largo uso de conceitos jurídicos
indeterminados; a inexistência de disposições capazes de regular direta­
mente questões características de tempos mais recentes; e o recurso à noção
do substantive due process, que abriu à Corte o exame da própria razoabili­­da­
de das leis, franqueando-lhe o acesso a terreno bem menos delimitado do
ponto de vista técnico, e correlatamente mais exposto ao influxo de opções
políticas e ideológicas. (BARBOSA MOREIRA, 2001, p. 95)

Assim, desde o fim do séc. XVIII o judiciário americano lida com


a tarefa de determinar o conteúdo jurídico dos dispositivos constitucio­
nais, e tem se valido, para isso, do método dos precedentes judiciais, pelo
qual ele estabelece o significado das normas constitucionais num deter­
minado momento. Daí a assertiva que diz que

Um precedente da Suprema Corte, durante o tempo de vida deste precedente


é “lei” porque o precedente determina o que a Constituição significa até que a
Suprema Corte mude o precedente num caso posterior. (COLE, 1988, p. 73)

O elemento central do precedente judicial nos EUA é o holding. Ele


é a norma extraída de um determinado caso concreto, estabelecendo o
princípio aplicável a uma determinada situação, que deve ser bem deli­
mitada, a fim de que se possa determinar no futuro quais casos são sufi­
cientemente análogos para serem regidos pelo precedente estabelecido.
“Casos análogos”, explica Cole (1998), são aqueles “cujos fatos
relevantes para os propósitos da decisão são tão semelhantes aos fatos
relevantes sobre os quais a corte baseou sua decisão num caso preceden­
cial anterior, que o caso anterior vincula” (1998, p. 75).
Desta feita, a parte, quando busca determinar qual caso estabeleceu
o precedente que rege seu caso, deve primeiramente determinar quais os

Por fundação estamos nos referindo ao momento histórico entre a declaração de independência e a promulgação
6

da Constituição.

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194 Ricardo Augusto de Araújo Teixeira

fatos relevantes naquela situação e quais questões de direito devem ser


decididas pela Corte. Uma vez concluída esta fase, passa-se a procurar
quais decisões anteriores tratam daquela mesma situação, “de fato e de
direito”.7 Em seguida, deve-se observar se o caso anterior foi decidido
por maioria de votos — quando estará configurado o precedente vincu­
lante —, ou se foi decidido com dissenso na corte, hipótese em que ele
“será tido como autoridade persuasiva” (COLE, 1998, p. 79).
Outro ponto importante a ser perquirido é a rationale, ou seja, “a
razão dada pela corte para adotar a norma que decide a lide” (MELLO,
2005, p. 183). Trata-se, por assim dizer, da fundamentação da decisão, que
demonstra a lógica entre os fatos do caso concreto e os dispositivos legais
ou os precedentes escolhidos para reger aquela determinada decisão.
Parece fundamental tratarmos agora da forma de superação do
precedente, pois, do exposto até o momento, poderia o leitor se enganar
quanto à maleabilidade do sistema.8
Fato é que a doutrina do Stare Decisis, como aplicada nos EUA,
tem se mostrado apta a balancear a segurança jurídica necessária, com a
necessidade de evolução das normas de uma sociedade complexa como
a americana.
Vale neste ponto colacionar a lição de Charles Cole:

Precedente vinculante nos Estados Unidos não significa, porém, que o prece­
dente de um caso está escrito em pedra. O precedente mudará progressivamente
quando o legislador mudar a lei sobre a qual o precedente se baseia, quando a
evolução cultural do tempo o requerer, quando a filosofia judicial da maioria
da Corte, com autoridade para mudar o precedente aplicável, alterar ou
revogar o precedente anterior, ou quando a Corte recursal com autoridade para
mudar o precedente determinar que cometeu um erro ao estabelecer o pre­
cedente em questão. (COLE, 1998, p. 92)

Ao analisarmos os mecanismos de flexibilidade do sistema, é


possível observar que o precedente pode ser alterado, em linhas gerais,
a partir de três situações, quais sejam, por iniciativa da própria Corte
com autoridade para superar o precedente no todo ou em parte — que

7
Devemos informar que não se ignora a existência de quem afirme categoricamente a impertinência da distinção
entre questões “de fato” e questões “de direito”. Neste sentido, por exemplo, cf. o cap. 7 de MACINTYRE,
Alasdair. Depois da virtude. Bauru, SP: Edusc, 2001. Todavia, pela clareza da imagem que tais expressões têm,
as usaremos sempre que nos pareçam ser didaticamente satisfatórias.
8
A questão da maleabilidade do sistema será novamente abordada na parte final do trabalho, vez que é ponto
central da crítica relativa à aplicação que se tem dado à doutrina do Stare Decisis no Brasil.

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Colhendo frutos da árvore venenosa: formação e uso dos precedentes no Brasil e nos EUA 195

é o que se denomina overrule e override, respectivamente —; pode ainda


ser alterado em razão de mudança legislativa, pois “a legislação pode
direta e abruptamente alterar ou repelir uma definição legal, princípio
ou regra” (RE, 1994, p. 51). E, por fim, o precedente por ser superado se o
magistrado de primeira instância, entendendo que “o precedente ante­rior
tenha sido muito desgastado com o passar do tempo ou por outros casos
precedenciais” (COLE, 1998, p. 92), se recuse a seguir o precedente.
É certo que neste último caso a parte vencida poderá recorrer à
Corte, sustentando a quebra do precedente como “erro decisório da pri­
meira instância” (COLE, 1998, p. 92), todavia, estará aberto o caminho
para se discutir, a partir daquele caso concreto, a força do precedente,
o que poderá resultar, por exemplo, em uma decisão do tipo prospective
overruling, em que, apesar de aplicar o precedente questionado, “acrescenta-
se à decisão a informação de que, para os eventos ocorridos a partir de
então (...), o precedente antigo não mais será aplicado, considerando-se
superado” (MELLO, 2005, p. 189); ou ainda pode ocorrer decisão do
tipo signaling, em que a Corte “aplica-lhe o precedente antigo, mas infor­
ma, sinaliza à comunidade jurídica a intenção de alterá-lo, (...), abrindo
caminho para sua superação” (MELLO, 2005, p. 189).
Pode-se inferir que boa parte, senão toda ela, da durabilidade do
sistema nos EUA decorre de sua capacidade de garantir expectativas,
estabilizando o sistema, ao mesmo tempo que permite que o sistema
evolua, quando as mudanças sociais assim exigirem.
Daí concluirmos, com Edward D. RE, que

É preciso assinalar que stare decisis não é apenas uma doutrina de estabilidade
e uniformidade. Suas restrições e limitações inerentes bem como os fatores
que determinam a inaplicabilidade de decisões anteriores tornam possível
a necessária flexibilidade, indispensável para a mudança e o progresso.
(RE, 1994, p. 51)

Outros aspectos que despontam como absolutamente relevantes no


sistema norte-americano parecem ser a estrutura de disponibilização de
informação, devido treinamento ao manejo dessa informação, bem como
uma cultura de detalhamento nas sentenças dos elementos fáticos do
caso concreto.
Num modelo em que a parte precisa identificar os fatos juridica­
mente relevantes para um caso, a fim de estabelecer qual precedente irá

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196 Ricardo Augusto de Araújo Teixeira

guiar a decisão, a primeira exigência parece dizer respeito à explicitação


dos fatos tidos como decisivos para o julgador.
É preciso que o “relatório” feito pelo juiz seja o mais completo e
detalhado possível, permitindo às pessoas que venham a ter contato com
tal decisão no futuro saber o que exatamente estava sendo decidido, quais
acontecimentos foram tomados como relevantes para aquela decisão,
e qual regra de direito o julgador entendeu ser aplicável àquele caso.
Desse primeiro aspecto podemos inferir que é preciso que o acesso
às decisões seja possibilitado tão logo ela seja prolatada, afinal, a demora
na publicidade da sentença poderia gerar insegurança jurídica, vez que
o interessado não teria como ter certeza de que sua pesquisa indicou, de
fato, o precedente certo para sua questão.
Todavia, estes dois aspectos apontados acima são condicionados
por um terceiro, que é talvez o que tenha mais problemas para ser
transplantado de um ordenamento para outro. Trata-se do treinamento
específico para operar num modelo de precedentes judiciais.
É preciso haver todo um treinamento específico para condicionar
os operadores do sistema a identificar os fatos juridicamente rele­ vantes
num caso concreto, bem como para comparar os aspectos do seu caso com
outros já decididos a fim de identificar casos análogos e determinar qual
precedente vinculante e quais precedentes terão autoridade persuasiva.
Tal condição, por óbvio, não pode ser produzida por uma simples
mudança legislativa, ou orientação de um tribunal superior, mas tem a
ver com a cultura da educação jurídica do país.
Como demonstra Cole (1998):

Pesquisa extensiva e escrita, ocorre durante o curso do estudo para o primeiro


ano de direito nos Estados Unidos, com um volume substancial de tempo
durante o primeiro ano de vivência da faculdade de direito dedicado a reque­rer
que o aluno aprenda a analisar casos, identificar fatos relevantes e questões, e
entender como indicar e utilizar os precedentes dos casos estudados. (COLE,
1998, p. 92)

Percebe-se que o sistema de formação dos operadores do sistema


jurídico nos EUA, por praticamente não ter tido contato com a tradição
romano-germânica desde sua fundação, foi pensado para produzir
pessoas capazes de atuar no sistema do Stare Decisis.
Trata-se de uma tradição de mais de duzentos anos, o que deve ser
tomado como um indício de incomensuráveis dificuldades que devem

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Colhendo frutos da árvore venenosa: formação e uso dos precedentes no Brasil e nos EUA 197

surgir ao se tentar transpor aquele modelo para países que até pouco
tempo não recebiam quase nenhuma influência direta dos ordena­mentos
anglo-saxões.
É preciso não perder de vista que todo projeto que envolva diálogo
entre sistemas jurídicos diversos, cujas raízes históricas também não são
comuns, deve seguir um projeto preestabelecido a fim de não se reduzir
a uma mera comparação de legislações, nem a uma comparação caótica
entre modelos incompatíveis.9
Daí a conclusão de que a melhor metodologia de trabalho em
direito comparado é aquela apontada por Michele Taruffo (2001):

Ao contrário, se reconhece então que a análise comparativa pode ser feita


somente sobre a base de um “projeto cultural” pressuposto e dentro do
tra­­balho de quem efetua a análise. Esta, então, não é mais passiva, neutra
ou indiferente: é, ao contrário, condicionada e orientada seja pela cultura
do comparatista, seja pela finalidade em vista da qual ele desenvolve seu
trabalho. O projeto cultural do estudioso do direito comparado orienta não
apenas suas escolhas (...), mas também o método com o qual a comparação
é realizada.10 (TARUFFO, 2001, p. 28, tradução livre)

E, posteriormente, sugere que:

As coisas podem se configurar diversamente, e a comparação pode se tornar


mais interessante e mais frutífera se se tiver em consideração não apenas
normas específicas, mas modelos processuais. 11 (TARUFFO, 2001, p. 29,
tradução livre)

Estabelecidos os fundamentos deste projeto, vamos para a análise


de casos concretos, a fim de demonstrar como tal modelo funciona na
origem, bem como o modo com que ele tem sido aplicado no Brasil.

9
O melhor exemplo de tal incongruência parece ser o caso da imposição do Consenso Legal de Washington ao
Niger, especialmente no que diz respeito à esfera penal e processual penal. Enquanto para os ocidentais o que
se estava fazendo era modernizar o sistema legal daquele país, para os nativos o que estava acontecendo era
a imposição de um sistema “inconvenientemente remoto, caro, lento, corrupto, que, por fazer as perguntas
erradas, chegava a respostas erradas” (KELLEY, 2007, p. 37).
10
No original: “Al contrario, si riconosce ormani uniformemente Che l’analisi comparatistica si può fare utilmente
soltanto sulla base di um ‘progetto culturale’ presupposto e messo in opera da chi effettua l’analisi. Questa,
quindi, non è mai passiva, neutrale o indifferente: è invece condizionata ed orientata sia dalla cultura própria
Del comparatista, sia dalle finilità in vista delle quali egli svolge il proprio lavoro. Il progetto culturale dello
studioso di diritto comparato orienta non solo le sue scelte (su quali ordinamenti, quali istituti, quali esperienze
mettere a confronto), ma anche il metodo con cui la comparazione viene svolta”.
11
No original: “Le cose possono configurarsi diversamente, e la comparazione può diventare più interessante e
più fruttuosa, se si prendono in consisiderazione non solo norme specifiche (...), ma modellli processuali”.

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3 Estudo de caso: os frutos da árvore venenosa na Suprema Corte


A construção da doutrina dos frutos da árvore venenosa é uma
decorrência direta da vedação das provas ilícitas no processo penal,
que tem início perante a Suprema Corte dos Estados Unidos em 1914,
no caso Weeks v. United States. Neste caso, como já visto em outra opor­
tunidade, a Corte entendeu que, entre outras coisas, a quarta emenda
à Cons­tituição americana vedava o uso das provas ilícitas nos processos
federais.
No julgamento de Silverthorne Lumber Co. v. United States, em 1920, a
Suprema Corte irá começar a discutir o uso, no processo penal, de provas
ilícitas por derivação. Vale ressaltar desde já que a expressão fruits of
the poisonous tree só foi cunhada em 1939, pelo Justice Frankfurter, em
Nardone v. United States (LAFAVE; ISRAEL, 1992, p. 471).
A ideia do instituto é afastar as provas que, embora não sejam elas
mesmas ilícitas, só vieram a ser conhecidas em razão de anterior ilicitude.
O objetivo do instituto “é evitar que a atividade de investigação ultra­
passe os limites constitucionais: em outras palavras, que a polícia cometa
excessos” (BARBOSA MOREIRA, 2001, p. 99).
No referido caso, Frederick Silverthorne e seu filho mantinham
uma marcenaria e foram acusados de sonegar tributos. Sob esta única
acusação eles foram detidos na manhã de 25 de fevereiro de 1919 e
mantidos sob custódia durante horas.
Enquanto estavam detidos, agentes do Departamento de Justiça e
da US Marshal, “sem uma sombra de autoridade”, nas palavras do Justice
Holmes (251 U.S. 385) foram até a empresa e efetuaram uma detalhada
busca nos livros, papéis e documentos que lá encontraram.
Todos os empregados que lá estavam foram conduzidos ou levados
até o escritório do Procurador Distrital dos Estados Unidos naquela
localidade, onde estava também o material apreendido.
Os advogados sustentaram desde logo a violação à regra da
inviolabilidade estabelecida em Weeks v. United States, e obtiveram sucesso
na primeira instância, que determinou a devolução do material.
Todavia, o órgão de acusação, baseado em cópias do que havia sido
apreendido, conseguiu a expedição de intimações para que os acusados
entregassem os documentos originais. Os Silverthorne se recusaram, sob
o argumento de que tal procedimento violaria direitos constitucionais
assegurados.

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A Corte distrital determinou então a prisão de Frederick Silverthorne,


bem como uma multa de duzentos e cinquenta dólares pelo descumpri­
mento da ordem judicial.
A defesa, posteriormente, recorreu à Suprema Corte, alegando a
violação de precedentes (Weeks) pela determinação da Corte distrital.
No voto que conduziu a decisão — que foi majoritária —, o Justice
Holmes apontou que a conduta do tribunal reduzia a quarta emenda
a mera formalidade.12 Ele concluiu o voto condutor afirmando que

A essência de uma decisão proibindo a obtenção de provas de uma certa


maneira é que não apenas a prova obtida por tal modo seja utilizada
diante da Corte naquele momento, mas que tal prova não seja utilizada em
absoluto. Claro que isso não significa que os fatos ali conhecidos se tornam
sagrados e inacessíveis. Se se toma conhecimento deles a partir de uma
fonte independente eles podem ser utilizados como qualquer outro, mas o
conhecimento obtido pela própria conduta errada do governo não permite
que eles sejam utilizados do modo pretendido. (251 U.S. 385, HOLMES,
tradução livre)

Estava então estabelecida a regra da vedação das chamadas provas


ilícitas por derivação.
Cabe sempre lembrar que a descrição pormenorizada dos aconte­
cimentos na formação do precedente, bem como nos casos posteriores,
é “necessária para determinar se a prova está manchada pela violação
constitucional anterior” (LAFAVE; ISRAEL, 1992, p. 471).
A doutrina dos frutos da árvore venenosa viria a ser novamente
discutida em Wong Sun v. United States13 (1963), caso em que três pessoas
foram condenadas pela Corte de Apelação do Nono Circuito pelos crimes
de conspiração e tráfico de heroína.
Os fatos relevantes nesse caso, em linhas gerais, são os seguintes:
na madrugada de 4 de junho de 1959 agentes do “Departamento Federal
de Narcóticos”14 que monitoravam Hom Way havia seis semanas efetua­
ram sua prisão em flagrante pela posse de heroína. Ele informou aos
agentes federais que havia adquirido a droga na noite anterior, de um
certo “Blackie Toy”, numa lavanderia na cidade.

12
“It reduces the Fourth Amendment to a form of words”, no original. 251 U.S. 385.
13
371 U.S. 471.
14
A DEA, Drug Enforcement Administratiton, que é a polícia federal americana especializada no combate ao
tráfico só foi criada em 1973.

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Os agentes se dirigiram ao local, onde James Wah Toy — que seria


o referido Blackie Toy — foi preso. O local, que além de trabalho era
também a residência de Toy, foi revistado no ato da prisão, mas nenhuma
droga foi encontrada.
Informado pelos agentes de que Hom Way o havia delatado como
fornecedor das drogas, Toy contou aos policiais que ele não estava
vendendo drogas, mas sabia que um homem identificado apenas como
Johnny — posteriormente identificado como Johnny Yee — estava. Os
federais então se dirigiram ao endereço dado por Toy, onde Yee foi
preso com uma pequena quantidade de heroína.
Durante o interrogatório pelos policiais, Yee informou que a
droga havia sido fornecida a ele por Toy e um outro chinês, conhecido
apenas como “Sea Dog”, posteriormente identificado como Wong Sun.
Conduzidos por Toy até o local onde Wong Sun morava, os agentes
da “Narcóticos”15 invadiram sua casa e efetuaram a prisão quando ele
ainda dormia. A casa foi revistada, mas nenhuma droga foi encontrada.
Toy, Yee e Wong Sun foram todos acusados pelo crime de tráfico de
heroína e liberados para responder ao processo em liberdade. Em nenhu­
ma das prisões efetuadas até então houve a expedição de mandados de
prisão ou de busca e apreensão.
Ao julgar o caso, a Suprema Corte concluiu que houve uma série
de ilegalidades, e que tais ilegalidades deveriam implicar a exclusão de
uma série de elementos probatórios levados em consideração pela Corte
de Apelação do Nono Circuito.
Entre tais ilegalidades está a prisão de Toy, baseada simplesmente
na informação dada por outro detido, o que viola a garantia constitucio­
nal de que não haverá detenção sem uma “causa provável”. Considerada
a ilegalidade da prisão de Toy, restaria contaminada a prisão de Yee,
bem como a apreensão da heroína com o mesmo.
Sobre a validade da apreensão da heroína de Yee, afirmou o Justice
Brennan que a questão a ser formulada no caso é “se, assumindo a ile­
galidade primária, a evidência questionada seria uma exploração dessa
ilegalidade, ou seria suficientemente distinta dela, a ponto de se livrar
da mancha inicial” (371 U.S. 471, Justice BRENNAN, tradução livre).
Cumpre observar que a Corte cita o precedente Silverthorne Lumber
Co. v. US, porém, ela não aplica fórmula conforme estabelecida naquele

15
Narcotics, no original.

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precedente, trazendo considerações outras para a avaliação da legalidade


das provas, considerações além de sua derivação imediata ou mediata
de uma fonte ilícita. Como observa Wayne LaFave: “a completa exclusão
de todos os frutos seria excessiva à luz de considerações concorrentes
óbvias: que a exclusão de provas contraria o interesse da sociedade em
condenar os culpados” (LAFAVE; ISRAEL, 1992, p. 472).
O desenvolvimento da tese dos frutos da árvore venenosa continua,
já que, como afirmamos no início, o sistema dos precedentes garante
estabilidade e flexibilidade. São particularmente elucidativos neste tema
os casos Nix v. Williams (467 U.S. 431) de 1984 e Murray v. United States (487
U.S. 533) de 1988, que se reportam também ao precedente Silverthorne.
No entanto, em razão dos limites traçados neste trabalho, consi­
deramos já suficientemente demonstrado o funcionamento do modelo
do Stare Decisis nos EUA, vez que, como exposto, precedentes criados em
1914 e 1920 continuam ainda vinculando casos recentes, sem, contudo,
engessar o Judiciário quanto àqueles temas.
Assim, vamos agora analisar como o modelo dos precedentes tem
sido utilizado no Brasil, observando para tanto decisões do Supremo
Tribunal Federal em matéria de vedação às provas ilícitas por derivação
no processo penal.
O primeiro passo é o estudo do leading case sobre o tema, qual seja,
o HC nº 69.912-0 RS, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence.

4 Estudo de caso: os frutos da árvore venenosa no STF


O leading case no Brasil, no que diz respeito à vedação das provas
ilícitas por derivação, traz a discussão acerca da validade de intercep­ -
tação telefônica autorizada judicialmente em momento anterior à edição
da lei que regulamentaria a norma constitucional que exigia a edição
de diploma normativo específico para regular a matéria.
A descrição dos fatos se resume a dois parágrafos, de modo que não
há como estabelecer de forma consistente os “fatos relevantes” para a
decisão, sendo, todavia plenamente possível caracterizar tal HC16 como um
caso em que o tribunal julgou apenas uma tese, e não um caso concreto.

É possível criticar a escolha do habeas corpus como parâmetro de comparação, vez que tradicionalmente se
16

aceita que tal instrumento tem restrições quanto à possibilidade de análise de material probatório. Contudo,
tal crítica, para ser efetivamente válida, teria que passar por três questões: primeiro, o fato de que há uma série
de situações em que nosso Código de Processo prevê recursos apenas para acusação, não deixando a defesa
com outra opção que não o manejo do HC; segundo, o fato de que a questão da celeridade (ou a falta dela)

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No caso, a tese discutida é a da aplicabilidade ou não da norma do


art. 5º, XIII, da Constituição de 1988, e remete, a título de precedente,
ao RHC nº 63.834 de relatoria do Ministro Célio Borja, para sustentar a
não aplicação na matéria do Código de Telecomunicações, a fim de suprir
a exigência constitucional de regulamentação legal do referido inciso.
Cabe observar desde logo que, a despeito de citar um precedente, o
relator do Habeas Corpus não aponta quais os fatos relevantes, ou mesmo
o que se discutia no referido recurso ordinário em habeas corpus.
Os fatos, conforme se vê, são resumidos à informação que houve
prisão em flagrante decorrente de vários meses de investigação, tendo
havido neste período inclusive interceptações telefônicas autorizadas
pelo competente juiz de direito a pedido da autoridade policial. Há
ainda transcrição de partes da sentença, que, todavia, não possibilitam
ao leitor o pleno conhecimento dos fatos juridicamente relevantes, mesmo
porque, segundo o relator, a análise do conteúdo probatório não se
mostra necessária.
A questão juridicamente relevante parece ser até que ponto é pos­­-
sível a utilização de provas diversas da própria degravação da intercep­
tação, mas que só chegaram ao conhecimento das autoridades responsá­
veis pela persecução penal em razão do prévio e ilegal procedimento.
Afirma o ministro relator que:

O caso demanda a aplicação da doutrina que a melhor jurisprudência


americana constituiu sob a denominação de princípio dos “fuits of the
poisonous tree”: é que às provas diversas do próprio conteúdo das conversações
telefônicas interceptadas só se pode chegar, segundo a própria lógica da
sentença, em razão do conhecimento delas, isto é, em consequência de uma
interceptação ilícita de telefonemas. (BRASIL. STF. HC nº 69.912-0. RS.
Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1993)

Entretanto, estabelecendo divergência no julgamento, o Ministro


Carlos Velloso entendeu que a sentença se baseava não apenas nas
provas obtidas em razão da interceptação telefônica. Desta feita, não
cabendo no procedimento do habeas corpus a análise necessária para veri­
ficar se os demais elementos eram suficientes para sustentar a sentença
condenatória, indeferiu o HC.

no manejo dos recursos, dependendo da situação, obrigue a defesa a se valer do HC; terceiro, a questão do
acesso à justiça, vez que apenas o HC, por não exigir capacidade postulatória, possibilita, em várias situações,
que o acusado mesmo — não por opção, mas pela falta dela, ou seja, por não ter defensor técnico — faça
valer a norma constitucional que estabelece que nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito será excluída da
apreciação do Judiciário.

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Colhendo frutos da árvore venenosa: formação e uso dos precedentes no Brasil e nos EUA 203

Ao final prevaleceu a tese divergente, sendo o HC indeferido por


6x5.
Todavia, a defesa impetrou mandado de segurança em razão de
ter participado do processo, como membro do MPF, o filho do Ministro
Néri da Silveira.
No segundo julgamento o STF deferiu o HC, acolhendo a tese da
vedação das provas ilícitas por derivação.
Outro caso em que a questão das provas ilícitas por derivação é
debatida pelo Supremo é o do RHC nº 90.376-RJ, de relatoria do Ministro
Celso de Mello, em que se discute a admissibilidade de provas que só
chegaram ao conhecimento dos órgãos de persecução penal em razão de
uma busca e apreensão não autorizada realizada num quarto de hotel.
A narração das questões de fato relevantes ao caso se limita a
mencionar a referida invasão.
Ao longo da decisão se discutem alguns problemas, como a extensão
do conceito de “casa” para fins de proteção constitucional, bem como
a questão do uso de provas obtidas em razão de uma prova anterior
contaminada.
Vale observar que a palavra “precedentes” aparece diversas vezes
ao longo da decisão, sem, contudo, mencionar em momento algum
qual caso anterior seria esse “precedente”. Ao fim da decisão há uma
menção a “jurisprudência comparada”, sendo citados alguns casos em­
blemáticos da Suprema Corte dos EUA.
É preciso salientar, também, que, apesar de a decisão já ter mais
de um ano, ela ainda não foi publicada na íntegra, de modo que nossas
observações partem tão somente da ementa.
A mais recente manifestação do STF nesta matéria se deu em razão
do HC nº 93.050-6 do Rio de Janeiro, de relatoria do Ministro Celso de
Mello que, contudo, não foi afetado ao pleno.
Trata-se de habeas corpus impetrado em razão de outro HC dene­
gado pelo STJ, em que se sustentou a ilicitude das provas obtidas em
operação conjunta da Receita Federal e da Polícia Federal.
Após um breve relato dos fatos, que se resume a reproduzir o
relatório da primeira instância, o Ministro Celso de Mello passa a discutir
a validade das provas ilícitas diretas e derivadas, e a amplitude do poder
de fiscalização da Receita.
É forçoso notar que em momento algum se discute com profundi­
dade se a ação dos órgãos de fiscalização caracteriza ou não violação aos

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direitos fundamentais, o que seria, ao que tudo indica, a questão mais


relevante para o caso.
A seguinte passagem pode sumarizar o conteúdo da decisão:

Na realidade, o defeito inquinador da validade jurídica da prova penal em


questão, surgido com desrespeito à garantia constitucional da inviolabili­
dade domiciliar, projetou-se, com evidente repercussão causal, sobre os
demais elementos probatórios, que, não obstante produzidos, em momento
superveniente, de modo (aparentemente) legítimo, achavam-se contami­
nados pelo vício da ilicitude de origem, não havendo que se cogitar, desse
modo, na espécie, de fontes autônomas de revelação da prova e que, sem
qualquer relação causal com a prova originariamente ilícita, pudessem dar
suporte independente e legitimador à formulação de um juízo condenató­
rio. (...) A ilicitude da prova, nesse particular contexto, transmitiu-se, por
repercussão, a outros dados probatórios que nela se apoiaram, ou que dela
derivaram, ou que nela encontraram seu fundamento causal. (BRASIL. STF.
2ª Turma. HC nº 93.050-6. RJ. Rel. Min. Celso de Mello, 2008)

Não há na decisão do Supremo, por exemplo, discussão acerca do


fato de que o Superior Tribunal de Justiça entendeu afastada a ilicitude
das provas em razão de haver outra fonte que levou à mesma conclusão,
de modo que a decisão se limita a citar uma série de precedentes para
corroborar a tese da inadmissibilidade das provas ilícitas diretas e por
derivação.
Ora, é de se questionar qual o sentido de se produzir uma decisão
tão volumosa para simplesmente reafirmar uma posição e uma metodo­
logia que estão consolidadas no Supremo desde 1993, ano do julgamento
do leading case na matéria.
Em síntese, podemos concluir que, diversamente do modo de
operação do Stare Decisis nos Estados Unidos, o modelo dos precedentes
no Brasil tem sido utilizado, regra geral, para reafirmar o que está há
tempos consolidado. Enquanto lá o precedente estabiliza ao mesmo tempo
que garante a flexibilidade, aqui ele é utilizado apenas para reafirmar a
longevidade das teses adotadas pelo Supremo.
Tal constatação não poderia ser diferente, vez que se trata de um
modelo muito particular sendo aplicado num país de tradição abso­
lutamente diversa, em que os operadores do sistema, sejam eles advo­
gados, juízes ou membros do Ministério Público simplesmente não têm
conhecimento técnico para lidar com o sistema do Stare Decisis.

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Colhendo frutos da árvore venenosa: formação e uso dos precedentes no Brasil e nos EUA 205

Concluímos, então, que o uso de tal metodologia pode ser justificado


mais pelo grau de legitimação que ela, em tese, daria às decisões judiciais,
já que a referência a precedentes demonstraria que a tese em debate no
tribunal de cúpula tem sido debatida em outras instâncias, contribuindo
para a legitimidade discursiva do sistema.
Tal conclusão, como veremos a seguir, não é verdadeira já que,
diversamente do sistema copiado, aqui as teses são impostas vertical­mente,
sendo, regra geral, fruto de elaboradas discussões entre os ministros do
Supremo Tribunal Federal.
Para sustentar essa colocação, vamos analisar o uso dos precedentes
especificamente a partir da ideia de que eles deveriam colaborar para
a legitimidade discursiva do sistema. Faremos isso a partir da análise
do instituto da súmula vinculante, em especial a de número onze, que
regulamenta o uso de algemas no Brasil.

5 Manejo inadequado: o risco da importação de institutos jurídicos


A legitimidade das decisões tomadas no paradigma do Estado
Democrático de Direito não é compatível com a ideia de legitimação pela
simples legalidade, como ocorria no Estado de Direito:

Em tal Estado, lei e aplicação da lei, legislador e aplicação da lei existem


separados entre si. São as “leis que regem”, e não os indivíduos, as auto­
ridades ou as instâncias superiores. Dito de uma maneira mais clara: as
leis não regem, elas vigem apenas como normas. Domínio e puro poder
simplesmente deixam de existir por completo. Quem exerce poder e domí­
nio, age “com base em uma lei” ou “em nome da lei”. Apenas faz valer, com
legitimidade, uma norma vigente. (...) Um sistema fechado de legalidade
fundamenta a pretensão sobre a obediência, justificando que se elimina
toda e qualquer pretensão sobre a resistência. Nesse caso, a forma especial
de manifestação do Direito é a lei e a justificação específica da coerção estatal
é a legalidade. (SCHMITT, 2007, p. 3)

Nesse novo paradigma em que estamos inseridos, a construção


da ideia de legitimidade das decisões deve necessariamente passar pela
implementação do adjetivo “democrático”, sob pena de estarmos correndo
sem sair do lugar, como na imagem da “síndrome da rainha vermelha”.17

“Exausta com o esforço, ela se frustra quando percebe que não saiu do lugar. No mundo da Rainha vermelha
17

é assim mesmo. Corre-se mais e mais, para não sair do lugar. Aliás, é preciso correr muito para ficar no
mesmo lugar”.
O personagem é de Lewis Carrol, em Alice no país das maravilhas; a imagem a que nos referimos está em
ROLIM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Oxford, Inglaterra: University of
Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006.

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206 Ricardo Augusto de Araújo Teixeira

A concretização da ideia de democracia implica, segundo enten­


demos, que as tomadas de decisões se deem por intermédio do prin­cí­
pio da democracia, conforme construído por Habermas (2003), de modo
que todos os afetados pela decisão tenham tido a oportunidade de se
manifestar sobre o assunto em debate, de modo a se reconhecerem como
coautores da mesma.

A ideia básica é a seguinte: o princípio da democracia resulta da interli­


gação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica. Eu vejo
esse entrelaçamento como uma gênese lógica de direitos, a qual pode ser
reconstruída passo a passo. Ela começa com a aplicação do princípio do
discurso ao direito a liberdades subjetivas de ação em geral — constitutivo
para a forma jurídica enquanto tal — e termina quando acontece a insti­
tu­c ionalização jurídica de condições para um exercício discursivo da
auto­nomia política, a qual pode equiparar retroativamente a autonomia
privada, inicialmente abstrata, com a forma jurídica. Por isso, o princípio
da democracia, só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos. A
gênese lógica desses direitos forma um processo circular, no qual o código
do direito e o mecanismo para a produção do direito legítimo, portanto o
princípio da democracia, se constituem de modo co-originário. (HABERMAS,
2003, p. 158)

A ideia da legitimação das súmulas vinculantes, como se depreende


das exigências para sua edição feitas pela própria Emenda Constitucio­nal
número 45, pode ser remetida à ideia da teoria do discurso, tal como a
compreendemos. Vejamos.
O texto acrescido à Constituição sob a forma do artigo 103-A e
seus parágrafos exige como condições à edição de súmula vinculante
“controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a adminis­
tração pública” e “reiteradas decisões sobre a matéria constitucional”.
Não pode haver controvérsia se não houver prévio debate. Não
há reiteradas decisões sem que tenham existido prévios processos
judiciais. Processo judicial e controvérsia entre órgãos do judiciário e
a Administração Pública pressupõem e resultam em discussão sobre a
matéria controvertida.
Se tais pressuposições que fazemos forem verdadeiras, e assumimos
que são, a possibilidade da elaboração de súmulas vinculantes, tal como
delineada pelo texto constitucional, poderia extrair sua legitimidade da
par­ticipação entre os diversos interessados na matéria a ser sumu­lada, vez
que a eles, no curso dos processos judiciais deveriam ser asseguradas todas

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Colhendo frutos da árvore venenosa: formação e uso dos precedentes no Brasil e nos EUA 207

as garantias que hoje compreendem o contraditório, como expusemos


anteriormente, de forma que ele seja “guindado a elemento normativo
estrutural da comparticipação, assegurando, constitucionalmente, o poli­
centrismo processual” (NUNES, 2008, p. 227). Em outras palavras, a
legitimidade das súmulas adviria do princípio da democracia.
É preciso dizer, desde logo, que não estamos alheios à crítica de
Lenio Streck (2005) quando afirma que

Ninguém ignora que — até no sistema em vigor — ao editarem súmula,


o STF ou o STJ passam a ter o poder maior que o Poder Legislativo.
Com o poder constitucional de vincular o efeito das súmulas e até mesmo
das decisões de mérito do Supremo Tribunal Federal, o Poder Judiciário,
por suas cúpulas, passará a legislar, o que, à evidência, quebrará a harmonia e a
independência que deve haver entre os Poderes da República. (STRECK, 2005,
p. 108)

Nem tampouco àquela formulada por Marcelo Cattoni quando


diz que

Assim, no caso brasileiro, tal jurisprudência de valores tardia pode fazer


o Supremo Tribunal Federal “guardião da moral e dos bons costumes”,
uma espécie de sucessor do Poder Moderador, ou, quem sabe, do Santo
Ofício, a editar um codex e um index de boas maneiras para o Legislativo e
para o Executivo. Ao final, uma postura pode mascarar uma intolerância
extrema e preconceituoso para com os processos políticos e seu tempo, ao
defender uma concepção elitista e autoritária de democracia possível, com a
qual quem perde, mais uma vez, é a cidadania. (CATTONI DE OLIVEIRA,
2009, p. 51)

As críticas elaboradas pelos referidos juristas compartilham da


relevante constatação de que “a linguagem tornou-se apenas mais um ins­
trumento no gigantesco aparelho de produção da sociedade moderna”
(HORKHEIMER, 2002, p. 30), todavia, o cerne do problema, pelo menos
nos parece, é que não é preciso ir tão longe para criticar o instituto da
súmula vinculante. Isto, pois, se nas exigências para a elaboração das
súmulas se remete à ideia de precedentes (prévias decisões judiciais pre­
cedidas, claro, de prévio debate administrativo e judicial), na praxis do
Supremo tal requisito de legitimação do próprio procedimento tem sido
desconsiderado, o que acaba com o único modo possível de legitimação
daquele instituto num contexto de Estado Democrático de Direito.

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A esta conclusão se pode chegar, por exemplo, examinando os


precedentes — indicados pelo próprio STF —, da Súmula Vinculante
número onze, que trata do uso de algemas.
Em nossa concepção, a ideia de precedentes judiciais caminharia
junto à da teoria discursiva, no que diz respeito a legitimar decisões erga
omnes do judiciário, caso as exigências do modelo americano (extensa
fundamentação das decisões, determinação dos fatos relevantes no caso,
identificação do holding e da rationale, etc.) fossem seguidas, bem como
se as garantias que compõem o contraditório (como o compreendemos)
fossem respeitadas.
Todavia, o Supremo elenca como precedentes quatro decisões
apenas, sendo que nas duas primeiras não há discussão sobre fatos, mas
apenas sobre teses, e a última ainda não foi disponibilizada para con­ -
sulta, de forma que a legitimação da referida súmula, hoje, está adstrita
a um único julgado,18 de relatoria da Ministra Cármen Lúcia.
O primeiro precedente informado é o RHC nº 56.465, de 05.10.1978,
que teve como relator o Ministro Cordeiro Guerra.
No que diz respeito à questão do uso de algemas, neste recurso
se questiona o constrangimento ilegal decorrente do uso de algemas
em audiência, o que se descobre da transcrição do parecer do Ministério
Público, que se resume, neste ponto, a “ter assistido algemado a depoimento
teste­
munhal” (BRASIL. STF. RHC nº 54.465. Rel. Min. Cordeiro Guerra,
1978). É essa a descrição do fato relevante.
Sobre ela, o ministro se manifesta nos seguintes termos: “o uso de
algemas não constitui constrangimento ilegal, quando necessário a pre­
servar a segurança das testemunhas e evitar a fuga de presos” (BRASIL.
STF. RHC nº 54.465. Rel. Min. Cordeiro Guerra, 1978).
O recurso teve provimento negado, por unanimidade.
O segundo precedente indicado é o HC nº 71.195, de 04.08.1995,
relatado pelo Ministro Francisco Rezek.
A descrição do fato relevante, no relatório, se resume a apontar que
se “questiona a validade do julgamento pelo fato do réu ter permanecido
algemado em plenário, o que teria influenciado negativamente o con­ -
se­
­ lho de sentença” e que “havia informações de que o réu pretendia
agredir o Juiz Presidente e o Promotor de Justiça, o que motivou o uso
das algemas durante o julgamento”, concluindo com a informação de que

Que, vale dizer, não é do plenário do tribunal, mas da primeira turma.


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a medida “contou com expressa concordância do advogado de defesa”


(BRASIL. STF. HC nº 71.195. Rel. Min. Francisco Rezek, 1995).
Em seu voto, o relator se limita a afirmar que “foi a medida justi­
ficada à vista da necessidade de garantir segurança ao juiz presidente e ao
promotor de justiça” (BRASIL. STF. HC nº 71.195. Rel. Min. Francisco
Rezek, 1995).
O habeas corpus foi indeferido, por unanimidade.
Há, por fim, o HC nº 89.429, de 22.08.2006, relatado pela Ministra
Cármen Lúcia, que destoa da prática do Tribunal ao fazer relato com
considerável detalhamento, embora ainda não se detalhe aos julgados
da Suprema Corte, que, como vimos, chegam a narrar detalhes das
operações policiais.
Expõe como relevantes os fatos de o paciente ser conselheiro do
Tri­bunal de Contas do Estado de Rondônia, de o paciente ter sido alge­-
mado em casa e assim exposto à imprensa, e de a prisão ter se dado em
razão de mandado expedido pelo Superior Tribunal de Justiça. Informa
ainda que o ponto central a ser debatido é a utilização de algemas no
caso de pessoas detidas que não oferecem a mínima oposição à atuação
policial, e que o pedido principal é que se determine que a Polícia Federal
não utilize algemas na condução do paciente, vez que ele não se opôs à
atuação dos agentes policiais.
A ministra se põe então a expor uma pesquisa feita em relação ao
tratamento legislativo do uso de algemas desde as primeiras legislações
a viger no Brasil, antes mesmo de ter se tornado “Brasil”, até os dias
de hoje. Passa também pela análise de alguns julgados do STJ sobre o
assunto para concluir da seguinte maneira:

No caso agora apreciado, não constato qualquer indício ou prova de reação


violenta ou inaceitação das providências policiais por parte do ora Paciente.
Não verifico, pois, qualquer motivo para que as autoridades tidas como
coatoras façam uso das algemas na condução do Paciente, ficando ressalvadas
as hipóteses excepcionais permitidas em lei. (BRASIL. STF. HC nº 89.429.
Rel. Min. Cármen Lúcia, 2006, grifei)

O habeas corpus foi concedido.


O último precedente mencionado pelo Supremo, como dito, ainda
não foi disponibilizado.
Não estamos teorizando, estamos vivendo a Síndrome da Rainha
Vermelha, e como a Alice de Lewis Carrol, corremos, muito, e permanecemos

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 189-213, out./dez. 2010
210 Ricardo Augusto de Araújo Teixeira

no mesmo lugar. A conclusão a que chegamos aqui, e parece ser a única


possível diante dos precedentes enunciados, é que a Administração
Pública, passados vinte anos, ainda não consegue, por si só, fazer valer a
Cons­tituição quando externa seus atos em sede de persecução penal.
Resta-nos levantar a questão: como pode um debate restrito a
tão poucos interessados dar legitimidade, num contexto democrático,
frise-se, a uma súmula que deveria vincular todos os juízes, tribunais e
órgãos da Administração Pública do país.

6 Conclusão
A legitimidade das decisões judiciais, em razão do destaque
que a atuação do Judiciário vem tendo, deve ser posta no centro do
debate da questão da legitimidade da tomada de decisão em contextos
democráticos.
Já que, diversamente dos demais Poderes constituídos, o Judiciário
não tem qualquer respaldo popular direto, é preciso pensar um modo
pelo qual as decisões judiciais não sejam legitimadas tão somente de
modo indireto, em razão de sua “obediência” à lei, mesmo porque a lei,
como se adverte desde o giro-linguístico, nada mais é que linguagem, não
tendo, imanente em si, valor.
Pudemos observar que existe uma nova base teórica, ainda em
construção, mas com traços já consolidados, em que a questão da legi­
timidade das decisões assume uma feição nova, apta a concretizar o agora
sempre presente adjetivo “democrático”.
É preciso ter, contudo, coerência, no método e na técnica, de forma
que a expressão “ordenamento jurídico” não seja simplesmente um termo
genérico que significa tão somente “conjunto” ao invés de “sistema”.
Analisamos, portanto, o uso do Stare Decisis nos EUA, modelo que
serve de base para algumas das recentes modificações do processo bra­
sileiro, e observamos que ele exige uma série de requisitos de ordem
estrutural e educacional para ser implementado.
Passamos à análise de como tal modelo tem sido aplicado no Brasil,
a partir da observação das decisões do Supremo Tribunal Federal no
que diz respeito a provas ilícitas por derivação, e finalizamos analisando
a elaboração da Súmula Vinculante número onze, para concluir que se
trata, na verdade, do uso equivocado de um modelo.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 189-213, out./dez. 2010
Colhendo frutos da árvore venenosa: formação e uso dos precedentes no Brasil e nos EUA 211

Conclui-se que é preciso levar o postulado da igualdade, entendido


como a possibilidade da diferença, para a base do sistema jurídico,
permitindo a todos que contribuam com sua individual percepção da rea­
lidade para a construção de um Direito que não é compreendido como
imposto ou dado, mas como construído, como um sistema coerente,
enfim, como a consolidação no mundo jurídico da ideia de pluralidade,
ou de unidade na diversidade.

Abstract: This paper deals with the issue of legitimacy of the decisions from
the Judiciary, questioning how could it be possible to harmonize taking
erga omnes decisions with demands of concreting the democratic character
of contemporary State. For that purpose, we’ve gone through the model of
judicial precedents from the US, which, traditionally, are compatible with
the idea of discursive legitimacy by granting extensive debate about crucial
issues. We’ll deal specifically with precedents within the Fruits of the Poisonous
Tree Doctrine, and, afterward, we deal with how the use of precedents is taking
place in Brazil, in order to display how the transposition of that institute is
been complex, not filling the needs in order to grant legitimacy through
the discursive way.
Key words: Judicial decision. Precedents. Stare Decisis. Discursive theory.
Federal Supreme Court.

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Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 189-213, out./dez. 2010.

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A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão prospectiva da formação de um sistema processual... 215

A sistematização do processo civil


brasileiro: uma visão prospectiva
da formação de um sistema processual
sincrético, multifuncional e aberto
à justiça do caso concreto
Maria Soledade Soares Cruzes1
Bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Pós-Graduada em
“Direito Processual: Grandes Transformações” pela Universidade da Amazônia/Rede Luiz Flávio
Gomes. Mestranda em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisadora-
Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). Professora licenciada
da Faculdade de Tecnologia e Ciências (Unidade de Vitória da Conquista – BA). Coordenadora e
vice-líder licenciada do grupo de pesquisa “Direitos Fundamentais e Efetividade Processual” do
curso de Direito da FTC / Vitória da Conquista – BA.

Resumo: A “sistematização do processo civil brasileiro” é um fenômeno


que nega, paulatinamente, a autonomia dos processos de conhecimento,
execução e cautelar, reconhecendo a inevitável alonomia entre eles. Nota-
se, numa visão prospectiva, a formação de um sistema processual sincrético,
composto das funções de conhecimento, execução e de urgência, e aberto à
justiça do caso concreto.
Palavras-chave: Processo civil. Brasil. Autonomia. Alonomia. Sistema­
tização.
Sumário: 1 Introdução – 2 Premissas teóricas – 3 Alonomia dos processos
de conhecimento e de execução – 4 Alonomia do processo cautelar em
face do principal – 5 A sistematização do processo civil brasileiro – 5.1 O
reconhecimento do sincretismo como princípio – 5.2 A multifuncionalidade
como critério organizacional – 5.3 A abertura à justiça do caso concreto –
5.4 Considerações pontuais sobre as propostas do Anteprojeto do novo
Código de Processo Civil – 6 Considerações finais – Referências

1 Introdução
O que espera um cidadão que bate às portas do Poder Judiciário
clamando por uma solução justa ao caso concreto que apresenta? Poder-
se-ia responder: que o Estado-Juiz conheça e resolva o conflito, num só
processo, satisfazendo o direito do autor (se julgado procedente o pedido),
e prestando medidas acautelatórias quando a urgência assim o exigir.
Ocorre que essa não foi a sistemática adotada pelo processo civil
brasileiro, que, em regra, exige uma multiplicidade de processos para
solucionar uma única lide. E é exatamente por conta desse espectro que

E-mail: <msolesc@hotmail.com>.
1

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 215-241, out./dez. 2010
216 Maria Soledade Soares Cruzes

o assola, que se propõe o presente estudo, com o objetivo principal de


investigar a realidade jurídica da autonomia processual, contrapondo-a ao
fenômeno da alonomia, e traçando uma visão prospectiva da formação de
um sistema sincrético, multifuncional e aberto à justiça do caso concreto.
No primeiro tópico, à luz do direito constitucional processual e,
principalmente, sob os pilares do devido processo legal e do acesso à jus­
tiça, serão apontadas algumas premissas teóricas que figurarão como ver­
dadeiras molas propulsoras para o desenvolvimento do tema.
No segundo, será abordada a alonomia dos processos de conhe­
cimento e de execução, em contraposição à sua autonomia, destacando
seu paradoxo histórico, seus fundamentos, e observando, prospectiva­
mente, a execução de títulos judiciais e extrajudiciais.
No tópico seguinte, será investigada a alonomia do processo cautelar
em face do processo principal, desenrolando-se uma análise crítica de
sua estrutura fundamental, e pontuando a introdução da tutela anteci­
pada no ordenamento jurídico pátrio, principalmente no que tange à
fungibilidade das medidas de urgência.
Por fim, como decorrência lógica dos tópicos anteriores, no último
será desenvolvido um panorama da sistematização do processo civil
brasileiro, analisando a viabilidade de reconhecimento do sincretismo
como princípio derivado do devido processo legal; e apontando, numa
visão prospectiva, como características do sistema, a multifuncionali­
dade e a abertura à justiça do caso concreto. Nesse último tópico serão
tecidas, ainda, breves considerações pontuais sobre as propostas gerais
do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil.

2 Premissas teóricas
Antes de adentrar especificamente ao tema proposto, torna-se
necessário delinear algumas premissas teóricas que nortearão o seu
desen­ volvimento, destacando-se a forte tendência do direito processual
civil brasileiro contemporâneo em permitir, cada vez mais, que as regras
e princípios constitucionais iluminem a elaboração e aplicação de suas
normas, na medida em que confere a mais ampla força normativa à
Constituição Federal de 1988.
Neste contexto, é preciso, inicialmente, estabelecer uma noção de
direito constitucional processual, em contraposição ao direito processual
constitucional. É que, à luz dos ensinamentos de J. J. Canotilho (2003,

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A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão prospectiva da formação de um sistema processual... 217

p. 965-967), não se deve confundir os referidos conceitos, sendo que


por direito processual constitucional “entende-se o conjunto de regras
e princípios positivados na Constituição e noutras fontes do direito
(leis, tratados) que regulam os procedimentos juridicamente ordenados
à solução de questões de natureza jurídico-constitucional pelo Tribunal
Constitucional”. Já o direito constitucional processual “tem como objecto
o estudo dos princípios e regras de natureza processual positivados na
Constituição”, abrangendo normas constitucionais atinentes ao processo
penal, administrativo e civil.
Diante disso, a exemplo do corte epistemológico desenvolvido
por Nery Júnior (2004, p. 29), não se tratará aqui do direito processual
cons­ titucional, mas sim da parte do direito constitucional processual
que abarca os princípios do processo civil insculpidos na Constituição
Federal de 1988. Nesse âmbito, o doutrinador eleva o devido processo
legal ao status de verdadeiro postulado constitucional fundamental do
processo civil brasileiro, entendendo-o como a base sobre a qual todos
os outros princípios se sustentam (NERY JÚNIOR, 2004, p. 60).2
No mesmo sentido, Wilson Alves de Souza (2006, p. 117), em
sua tese de pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra, na qual
discutiu a temática “Acesso à justiça e responsabilidade civil do Estado
por sua denegação: estudo comparativo entre o direito brasileiro e o direito
português”, destaca a amplitude do princípio do processo devido em
direito, afirmando tratar-se de um princípio “derivante” (ou “irradiante”),
na medida em que dele decorrem todos os demais princípios pro­ ces­
-
suais, como os “da ampla defesa, da publicidade, do contraditório,
­­
do direito à produção da prova por meios lícitos, da celeridade, da

É preciso esclarecer, contudo, que Humberto Ávila (2007, p. 135, grifo nosso), ao distinguir “postulado
2

normativo” de “sobreprincípios” situa o devido processo legal nesta segunda categoria, asseverando que: “O
qualificativo de normas de segundo grau, porém, não deve levar à conclusão de que os postulados normativos
funcionam como qualquer norma que fundamenta a aplicação de outras normas, a exemplo do que ocorre
no caso dos sobreprincípios, como o princípio do Estado de Direito ou do devido processo legal. Isso porque
esses sobreprincípios situam-se no próprio nível das normas que são objeto de aplicação, e não no nível das
normas que estruturam a aplicação de outras. Além disso, os sobreprincípios funcionam como fundamento,
formal e material, para a instituição e atribuição de sentido às normas hierarquicamente inferiores, ao passo
que os postulados normativos funcionam como estrutura para a aplicação de outras normas”. Já o professor
Ricardo Maurício Soares (2008, p. 67), em obra dedicada especificamente ao estudo do devido processo legal
(sob uma visão pós-moderna), situa-o como “cláusula principiológica, prevista pela Constituição, irradiando-se
para a disciplina de todas as modalidades de processo (jurisdicional, legislativo, administrativo, negocial), como
modelo normativo de inegável inspiração pós-positivista”. De qualquer modo, o que se pode inferir dessas
afirmações é que, independente da classificação como “princípio geral”, “postulado”, “sobreprincípio” ou
“cláusula geral principiológica”, transparece como ponto pacífico o papel irradiante, derivante ou sustentador,
do devido processo legal no que tange aos outros princípios que regem o processo.

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218 Maria Soledade Soares Cruzes

fundamentação das decisões, do processo em tempo razoável, da eficácia


das decisões, etc”.
Ademais, o professor, ao tratar da distinção entre o devido processo
legal em sentido material e em sentido formal, esclarece que, anali­ -
sados isoladamente, esses enfoques são insuficientes, de modo que pro­
cesso e mérito devem formar um todo, como exigência da garantia do
mais amplo acesso à justiça (SOUZA, 2006, p. 118-119). É exatamente
com este espírito de conciliação entre estas duas exigências funda­men­
tais de um Estado Democrático de Direito que se pretende desenvolver
o presente trabalho.3
No que tange especificamente ao acesso à justiça, cumpre aclarar
duas premissas que se mostram interessantes para a proposta. A pri­
meira consiste na advertência feita por Mauro Cappelletti e Bryant Garth
(1988, p. 76) que, apontando para a necessidade de reforma dos proce­
dimentos judiciais em geral como meio de ampliação do acesso à justiça,
criticam a tendência à maior concentração na busca por meios alterna­
tivos de solução de conflitos, em detrimento da necessária modificação
da estrutura do processo judicial estatal. Concordando com essa ressalva,
faz-se necessário esclarecer que a ideia não é repudiar à referida busca,
mas destacar a necessidade de melhoria do processo exercido pelo Poder
Judiciário em um Estado Democrático de Direito, que, por ter chamado
para si esta função, não deve esquivar-se de cumpri-la de modo efetivo.4
A segunda premissa norteadora a ser observada dentro dos parâ­
metros do acesso à justiça é o posicionamento crítico que se deve cons­-
truir diante da necessidade de reformas processuais ditadas essencial­ -
mente pela imposição de celeridade ao processo. Esse ponto foi apro­
priadamente destacado por Boaventura Santos (2008, p. 24), em sua obra
“Para uma Revolução Democrática da Justiça”:

As reformas são orientadas, quase exclusivamente, pela ideia de rapidez. Isto


é, pela necessidade de uma justiça célere. Sou, naturalmente, a favor de uma
justiça rápida. A celeridade de resposta do sistema judicial à procura que lhe é

3
Neste diapasão, torna-se oportuno pontuar que: “Se é indispensável uma porta de entrada, necessário
igualmente é que exista uma porta de saída, quer dizer, de nada adiantaria garantir-se o direito de postulação
a um juiz sem um devido processo em direito, isto é, sem um processo provido de garantias processuais”
(SOUZA, 2006, p. 20). E lembrar que, também sobre a correlação necessária entre os dois pilares do processo
também se manifesta J. J. Gomes Canotilho (2003, p. 494-495).
4
Wilson Alves de Souza (2010) também enfrenta este tema, em artigo específico, no qual critica a exaltação
da solução conciliatória dos conflitos (principalmente antes do acesso inicial à jurisdição, mas também nos
processos entregues ao Estado-Juiz), como se fosse “uma panacéia destinada a curar as graves deficiências
estruturais do Judiciário brasileiro”.

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A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão prospectiva da formação de um sistema processual... 219

dirigida é também um componente essencial da sua qualidade. No Observatório


Permanente da Justiça Portuguesa temos vários estudos onde analisamos a
morosidade, as suas causas e as suas tipologias. Mas, é evidente que, do ponto
de vista de uma revolução democrática da justiça, não basta a rapidez. É
necessária, acima de tudo, uma justiça cidadã.

Com efeito, refletindo sobre as reformas processuais brasileiras,


advindas após a Emenda Constitucional nº 45/2004, arremata o referido
doutrinador: “deve-se ter em mente que, nalguns casos, uma justiça
rápida pode ser uma má justiça. E, portanto, não podemos transformar
a justiça rápida num fim em si mesmo” (SANTOS, 2008, p. 27).5
Diante disso, é de se esclarecer que a ideia de sistematização do
processo civil brasileiro (que será abaixo delineada) tem, indubitavel­
mente, como um de seus parâmetros a conferência de maior celeridade
processual. Contudo, não se trata de uma medida desenfreada. É neces­
sário contrabalancear celeridade com efetividade. Um processo, para ser
efetivo, necessita, não raro, de um tempo razoável para se concretizar.
Ou seja, almeja-se que, com a sistematização, o processo judicial não
mais se envolva em entraves e procrastinações, mas que também não
seja atropelado pela exigência de rapidez desarrazoada.
Resta estabelecido, assim, o sentido que impulsiona o desenvolvi­
mento da presente proposta: sob os pilares do devido processo legal e
do acesso à justiça, deve-se garantir a adequação da técnica processual
à prestação da tutela jurisdicional de modo efetivo, atendendo, em
tempo razoável, às necessidades da vida (sob a ótica individual e social).

3 Alonomia dos processos de conhecimento e de execução


Ao analisar o processo civil brasileiro à luz das premissas acima
delineadas, nota-se que sua clássica repartição em espécies autônomas
não tem se adequado aos parâmetros contemporâneos do direito cons­
titucional processual.
Mais do que isso, pode ser visualizada como uma verdadeira
afronta à unidade da jurisdição e à trilogia “jurisdição, ação e processo”,

Neste sentido, é preciso fazer uma reflexão crítica sobre a clássica afirmação de Rui Barbosa (2004, p. 53),
5

segundo a qual “a justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. Com efeito, Carlos
Alberto de Oliveira (2003, p.122, grifo nosso), ao desenvolver o instigante tema “Do formalismo no Processo
Civil”, enfatiza que “o processo só tem sentido quando atinge a sua principal finalidade em tempo relativamente
proporcional às dificuldades da causa, ou na medida em que se acomode à função reclamada em juízo”. Por
fim, Michele Taruffo (1999, p. 315) situa toda esta problemática na crise de funcionalidade da lei processual,
que apresenta como uma de suas manifestações a tentativa de conciliação da rapidez com a efetividade.

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220 Maria Soledade Soares Cruzes

que enquadra este último como a atividade por meio da qual se exerce a
função jurisdicional, em decorrência do direito de ação. Assim, sob uma
perspectiva lógica, sendo a jurisdição e a ação reconhecidamente unas,
o processo também deveria ser sistematizado.6
É exatamente sob esse fundamento que surge a ideia da alonomia
processual. Ora, alonomia é exatamente o antônimo de autonomia.
Diz-se “alônomo” o “organismo que é dirigido por estímulos provenientes
do exterior” (SILVA et al. 1979, v. 1, p. 100). Transpondo este conceito
para o âmbito jurídico, a alonomia processual seria, então, o reconheci­
mento da ineficiência dos processos que, embora ditos autônomos, neces­
sitam, em regra, um do outro para cumprir o seu desiderato de resolução
justa e efetiva do caso concreto apresentado ao Estado, no exercício de
seu poder jurisdicional.
Historicamente, a primeira das repartições do processo em espé­
cies autônomas foi entre “conhecimento” e “execução”. Como bem
relata Theodoro Júnior (1987, passim), desde os primórdios do processo
civil romano já se exigia ação e processo autônomos para a execução da
sentença condenatória proferida.
Contudo, no direito germânico, que passou a prevalecer após
a queda do Império Romano, embora individualista, iniciando-se pela
execução, não havia separação entre as atividades executiva e cognitiva,
sendo elas exercidas em um só processo.
Do confronto do direito germânico com o romano, surgiu, ainda
na Idade Média, o direito comum ou intermédio, que conciliava os
aspectos positivos desses sistemas e também não aceitava a necessidade
de uma nova ação para que se chegasse à execução de uma sentença.

Fazia-se, assim, uma distinção até aquele tempo não aventada pelos doutos,
que era a existente entre a função cognitiva e função executiva dentro da juris­dição
e MARTINO DE FANO concebia, então, a idéia de officium iudicius, que iria
ser reconhecida por todos os escritores do direito comum.
[...] Para o direito medieval, o officium iudicis, que provocou a dispensa da actio
iudicati nas execuções de sentença, compreendia “todas as atividades que o juiz
devia exercer naturalmente, em virtude de seu ofício” (THEODORO JÚNIOR, 1987,
p. 136, grifo nosso).

Sobre essa sistemática tradicional, Alexandre Câmara (2007a, p. 231) reconhece que: “Não nos parece,
6

todavia, seja este o sistema adequado de lege ferenda. A unicidade da jurisdição é inequívoca. [...]. Ora, em
sendo única a atividade jurisdicional, não parece razoável afirmar a necessidade de dois [quiçá três] processos
distintos para que a tutela jurisdicional plena possa ser prestada”.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 215-241, out./dez. 2010
A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão prospectiva da formação de um sistema processual... 221

Ocorre que, após a Idade Média, o surgimento dos títulos de


crédito, aos quais foi reconhecida a eficácia executiva, impôs a necessá­
ria diferenciação de dois procedimentos executivos: 1 – o processo único
para as sentenças condenatórias; 2 – o processo executivo contencioso
autônomo para os títulos executivos extrajudiciais.
Não obstante, as necessidades comerciais do século XVIII fizeram
com que as execuções calcadas em títulos extrajudiciais alcançassem
maior volume e relevância econômica do que as de sentenças condena­
tórias; até que, em determinado momento, todo o processo executivo se
unificou, com exigida autonomia.
Ou seja, em decorrência da expansão de um instituto, o processo
abdicou ao seu avanço. Com efeito, não fosse por esse paradoxo histó­
rico, a dicotomia entre processos de conhecimento e de execução jamais
teria sido adotada em moldes tão estanques pelo direito processual civil
brasileiro. Mas, apesar das vozes que se levantaram,7 ela foi abraçada
pelo legislador pátrio e, consequentemente, estudada pela doutrina, sob
os seguintes fundamentos:

a) nem todo processo de conhecimento tem como conseqüência uma execução


forçada: o cumprimento voluntário da condenação, por exemplo, torna im­
possível a execução forçada; e as sentenças declaratórias e constitutivas não
comportam realização coativa em processo executivo;
b) nem toda execução forçada tem como pressuposto uma sentença condenatória
obtida em anterior processo de conhecimento, haja vista a possibilidade de
baseá-la em títulos extrajudiciais;
c) os processos de cognição e execução podem correr ao mesmo tempo,
paralelamente, como se passa na hipótese de execução provisória. (THEODORO
JÚNIOR, 2004, v. 2, p. 09)

No que tange ao primeiro fundamento, cumpre destacar que o


conhecimento é a expressão da atividade jurisdicional por excelência.
Não é possível “jurisdizer” sem conhecer. Celso Neves (1997, p. 205)
asse­
vera que o conceito de jurisdição não abarca outros processos que
não o de conhecimento. E Sérgio Bermudes (2002, p. 94) afirma que “as
duas outras espécies, autônomas embora, são tributárias dele”.

A adoção não se deu de forma pacífica e tampouco unânime. Antonio Campos (1977, p. 311) — pouco tempo
7

após a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 1973 — registra que, entre os que doutrinaram no
sentido de ser a execução fase do processo estavam Gabriel de Rezende, Costa Carvalho e outros, apoiados
no pensamento de Eduardo Couture.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 215-241, out./dez. 2010
222 Maria Soledade Soares Cruzes

Ora, se são “tributárias” e sendo inegável a interdependência,


certamente não há de se falar em autonomia. Mas, antes de analisar os
argumentos nos quais ela se sustenta, há de se averiguar a tradicional
clas­sificação das ações de cognição em declaratórias, constitutivas e con­
denatórias, cujo critério distintivo, segundo Enrico Liebman (2003, p. 157),
“é dado pelo efeito característico próprio da sentença correspondente a
cada categoria de ação”. Segundo essa classificação, a tutela condenatória
é a única que necessita de um novo processo para cumprir seu deside­-
rato, qual seja, o cumprimento de um comando que imponha uma pres­
tação a ser cumprida pelo réu, indo além da mera declaração do direito.
Já a declaratória e a constitutiva formariam, a priori, a ideia de um pro­
cesso de conhecimento puro, encerrando-se numa só fase.
Isto posto, pode-se questionar: seria essa noção de processo de
conhecimento puro um fundamento plausível para a conservação da
autonomia entre os processos de conhecimento e de execução, configu­
rando, assim, um entrave ao avanço da alonomia processual? Não, con­
siderando o processo como um desenrolar de fases, nota-se que, se a
jurisdição cumpriu o seu desiderato já na primeira fase (a cognitiva),
apenas não há necessidade de uma segunda etapa (a execução). E, não é
porque ela não se faz necessária, que se deva repartir o processo em espé­
cies, encharcando-o de formalismos exacerbados e de estéreis repetições
que apenas comprometem a celeridade e o acesso à justa e efetiva pres­
tação jurisdicional.
Isso fica ainda mais claro quando se observa o processo como um
conjunto de funções/atividades a serem exercidas pelo Estado, na pres­
tação jurisdicional. Bem, assim sendo, o juiz há de se valer apenas das
funções/atividades que sejam realmente necessárias à resolução do caso
concreto. Se forçosa é a utilização de apenas uma, ótimo, a prestação
jurisdicional será mais célere e eficiente.
Além disso, é imprescindível observar que os outros argumentos
que sustentam a referida relação de autonomia também podem ser
postos em prova ante à nova realidade jurídica do direito processual civil
brasileiro, em especial no que tange à evolução que se deu no campo das
sentenças condenatórias decorrentes do juízo cível. Foi este exatamente
o objeto de estudo do professor Theodoro Júnior, ao desenvolver como
tese para o seu doutoramento em Direito Constitucional na Faculdade
de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, o tema “A execução
de sentença e a garantia do devido processo legal”, do qual concluiu:

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 215-241, out./dez. 2010
A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão prospectiva da formação de um sistema processual... 223

[...] Houve, historicamente, longos períodos do direito processual em que


essa dicotomia entre o conhecimento e a execução inexistiu, mesmo entre os
povos que hoje a consagram. [...]. Aqui mesmo, dentro de nosso sistema proces­
sual, grande é o número de procedimentos especiais que fogem do padrão
dicotômico, para adotar o unitário (despejo, possessório, depósito, etc.); e o
mais interessante é que são eles os que melhor desempenham a função de,
rápida e adequadamente, compor os litígios deduzidos em juízo. Por que não
generalizar o sistema? (THEODORO JÚNIOR, 1987, p. 256, grifo nosso)

Em 1994, o legislativo brasileiro, atento à inquietude dos proces­


sualistas, que clamavam por uma maior efetividade do processo, deu o
considerável passo inicial rumo à convocada generalização. A primeira
grande reforma do Código de Processo Civil de 1973 introduziu, em seu
art. 461, a tutela específica das obrigações de fazer e não fazer, rompendo-se
com um dogma, na medida em que permitiu que o devedor inadimplente,
a partir de então, passasse a poder sofrer a sanção no próprio processo
de conhecimento, independentemente de uma nova relação processual.
Tais inovações trouxeram consigo a previsão de duas espécies de
ações que não se enquadram na repartição clássica já referida: as man­
damentais e as executivas lato sensu. Elas se configuram como verdadeiros
pontos de interseção que dispensam processo executivo ex intervallo
para a garantia do efetivo provimento jurisdicional.
Além da bem-sucedida modificação de 1994, foi promulgada, em
2002, a Lei nº 10.444, um dos instrumentos representativos da segunda
grande reforma do Código de Processo Civil, que estendeu a aplaudida
tutela específica das obrigações de fazer e não fazer às obrigações de
dar, introduzindo o art. 461-A no referido diploma processual.
Posteriormente, essa tendência abolicionista do processo de exe­
cu­ção deu mais um passo significativo com a publicação da Lei nº
11.232/2005 que alterou o CPC, retirando, definitivamente, a liquidação
e a execução da sentença cível do Livro II do Código (que trata de tal
processo) e as incorporando ao Livro I, que diz respeito ao processo de
conhecimento. Desse modo, a liquidação de sentença foi reduzida a um
“mero incidente procedimental” (SHIMURA, 2005, p. 242-243), e foi
alterada toda a sistemática dos provimentos condenatórios, com o fito
de “tornar a execução de sentença como mera fase, subseqüente à fase
do conhecimento, amalgamando num único processo as duas atividades,
cognitiva e satisfativa”.

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224 Maria Soledade Soares Cruzes

Com essas relevantes alterações estruturais, o conceito de sentença,


que já despertava intermináveis discussões doutrinárias e jurispruden­
ciais, por conta da antiga redação do §1º do art. 162 do CPC, passou
a ser ainda mais debatido. Sem adentrar especificamente nesta celeuma,
acata-se, no presente estudo, o entendimento de Alexandre Câmara
(2006, p. 24), segundo o qual, “a sentença do direito processual civil
bra­sileiro continua a ser o que sempre foi: o ato do juiz que põe fim ao
ofício de julgar, resolvendo ou não o mérito da causa”. Assim, a um único
processo, uma única sentença.
Feita essa consideração conceitual e conhecida a nova realidade
alônoma das sentenças condenatórias provenientes do juízo cível, ques­
tiona-se: Os demais títulos executivos judiciais (previstos no novel art.
475-N do CPC) e os extrajudiciais (situados no art. 585 do mesmo código)
seriam exceções, ou entraves, para o avanço da alonomia processual?
Seguindo as novidades acima delineadas, Sérgio Shimura (2005,
p. 245, grifo do autor) dividiu os títulos executivos judiciais em dois
grupos distintos, o dos provenientes de um juízo cível de primeiro grau e
o dos que dele não provêm:

De conseguinte, dá-se a fusão de dois processos em uma única relação proces­


sual (sincretismo processual), pelo menos quando o título executivo judicial se
consubstanciar em sentença condenatória proferida no processo civil, sentença
homologatória de conciliação, transação ou acordo extrajudicial, e o formal
ou certidão de partilha.
Quer dizer, continuará havendo processo autônomo de execução quando o
título executivo judicial for sentença penal condenatória transitada em julgado,
sentença arbitral ou sentença estrangeira, homologada pelo Supremo Tribunal
Federal [leia-se: Superior Tribunal de Justiça, em face da modificação trazida
pela EC nº 45/2004], caso em que se exige, como ainda hoje vigora, ordem
de citação do devedor, no juízo cível, para liquidação ou execução, dependendo
da hipótese.

Como se pode observar, segundo a atual sistemática do CPC, já se


pode qualificar como parcialmente autônomo o processo executivo cal­
cado em título executivo judicial, uma vez que a autonomia se restringe às
hipóteses previstas nos incisos II, IV e VI do art. 475-N daquele código.
Já os títulos executivos extrajudiciais, apesar de terem sido sub­
metidos a uma plausível reformulação pela Lei nº 11.382/2006 (que
sim­
plificou, consideravelmente, o seu procedimento) permaneceram

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A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão prospectiva da formação de um sistema processual... 225

como fundamento da autonomia do processo, regulando-se pelo Livro


II do CPC.
Esclarecidas essas premissas, é chegado o momento de responder
ao questionamento posto: não, numa visão prospectiva, os títulos extra­
judiciais e os judiciais que ainda necessitam de processo autônomo
não configuram nem exceções e nem entraves ao avanço da alonomia
processual. É que, em regra, o processo se inicia com o conhecimento e
deságua na execução. São suas duas fases tradicionais. Sendo, entre­tanto,
dispensada a primeira fase, há de se instituir outra espécie de processo?
Não, isto não se coaduna com a ideia de um processo único. Seria, sim,
apenas um “ultrapassar de fases”, ou seja, não havendo necessidade da
primeira, passa-se diretamente à segunda.
Em síntese, seja analisando o processo como uma sucessão de fases,
seja optando por analisá-lo em funções, é possível observar que os pontos
fundamentais da argumentação no que tange à bipartição em processos
em conhecimento e execução são incompatíveis com as necessidades do
processo civil brasileiro contemporâneo. Numa visão prospectiva (ou
seja, que faz ver adiante), constata-se que a alonomia processual já existe,
vem adquirindo forças paulatinamente e pode avançar.8

4 Alonomia do processo cautelar em face do principal


Bem, afora a bipartição acima analisada, o direito processual civil
brasileiro reconheceu, ainda, um terceiro gênero, o processo cautelar,
concebido com a finalidade de garantir o seguro e efetivo desenrolar
do processo principal, assegurando a utilidade do seu resultado.
Como bem relata Celso Neves (1997, p. 205-206), diferente do que
se deu com os processos de conhecimento e de execução que passaram

É exatamente neste sentido que caminha Glauco Ramos (2006, p. 119-120): “Ora, qual a funcionalidade
8

atual do Livro II (processo de execução) se a tendência dos tribunais brasileiros é no sentido de aceitar ação
condenatória mesmo que o respectivo autor já disponha de título extrajudicial — o que obviamente ocorre pelo
fato de o CPC nada impor em sentido contrário —, e se atualmente o sistema processual positivo tem meios de
tornar mais efetiva a tutela jurisdicional executiva pelos caminhos do art. 461 e 461-A? Resposta: não há no
sistema nada que impeça o portador de título executivo extrajudicial de valer-se de uma ação que viabilizará
a tutela jurisdicional satisfativa, e mais efetiva, nos termos do art. 461 ou do art. 461-A do CPC, inclusive em
relação à prestação pecuniária, que obviamente não deixa de ser uma obrigação de entrega (obrigação de dar
coisa certa, no caso, dinheiro). [...] penso que as técnicas de tutela jurisdicional atualmente previstas no Livro I
podem ser utilizadas sem que seja necessária a utilização do procedimento da execução contra devedor solvente
prevista”. Como se pode observar, o autor derruba com maestria os entraves apresentados neste estudo, ao
entender que, além da Lei nº 11.232/2005 ter acabado com o processo de execução calcado em qualquer
título executivo judicial, o Livro II, que estaria reservado aos extrajudiciais, deve ser definitivamente abolido do
CPC. Mostra-se, assim, como perfeitamente compatível com o sistema atual a aplicação das técnicas do Livro
I aos títulos executivos extrajudiciais.

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226 Maria Soledade Soares Cruzes

por uma verdadeira evolução, a espécie processual estudada neste tópico


demonstra-se enfraquecida desde a sua essência.
A verdade é que o processo cautelar configura um acessório, um
apêndice dos demais processos, tendo sido, equivocadamente, erigido
ao cargo de tertium genus. Ele não vive por si, estando sempre na depen­
dência da propositura de outra relação processual, no seio da qual pode­
ria ser desenvolvido, seja em sua abertura, seja de forma incidental,
sem a necessidade de um novo processo.
Nesse diapasão, cumpre ressaltar que, embora não se compartilhe,
no presente estudo, da ideia de um processo repartido em espécies, se os
processualistas optaram por dividi-lo, exigência, no mínimo lógica, seria
que ele figurasse, no dizer de Alexandre Câmara (2007, v. 3, p. 01), como
um “segundo gênero” (e não como “terceiro”), visto que se relaciona com
um “processo principal” (conhecimento e execução postos em conjunto).
Mas, apesar dos seus percalços teóricos, as medidas cautelares se
expandiram de tal forma que os tribunais passaram a se deparar com dis­
torções como as “ações cautelares satisfativas”, com fundamento no art.
798 (poder geral de cautela). É que a doutrina e os tribunais haviam
atribuído à tutela cautelar a natureza de não satisfatividade e o procedi­
mento ordinário era dotado de uma complexidade que não o tornava
capaz de efetivamente satisfazer os direitos do jurisdicionado. Ou seja,
havia uma nuvem cinzenta a ser preenchida: a das “medidas sumárias
satisfativas” (MARINONI, 2002, p. 119).9
Foi assim que, para cessar os questionamentos, a reforma do Código
de Processo Civil de 1994 (arts. 273 e 461) criou a possibilidade da ante­
cipação da tutela no próprio processo de cognição ou de execução,

9
Interessante notar que Piero Calamandrei (2000, p. 77-78), em sua “Introdução ao Estudo Sistemático do
Procedimento Cautelar”, ao analisar a extensão do poder geral de cautela a casos não previstos no ordenamento
jurídico italiano da década de 30 (época em que sua obra foi publicada), acabou ilustrando um exemplo
típico de medida satisfativa: “[...]. O proprietário de um clube noturno de Paris tinha dado o encargo a um
pintor de decorar a sala de baile com afrescos, que representassem danças de sátiros e ninfas; e o pintor,
para aumentar o interesse pela decoração mural, tinha pensado em poder dar aos personagens, que nessas
fotografias figuravam em vestes superlativamente primitivas, os semblantes, facilmente reconhecíveis, de
letrados e artistas muito conhecidos nos clubes mundanos. Na noite da inauguração uma atriz, que fazia
parte da multidão dos convidados, teve a surpresa de reconhecer-se em uma ninfa que dançava em vestes
extremamente sucintas; e visto que ela considerasse que essa representação fosse ofensiva para o seu decoro,
iniciou contra o proprietário do local uma ação civil, para condená-lo a apagar a figura ultrajante e a ressarcir os
danos; e nesse meio tempo pediu que, nas moras do julgamento, lhe fosse estabelecido cobrir provisoriamente
aquele pedaço de afresco, que reproduzia a sua imagem em pose impudica”. Segundo o autor, na Itália a
melhor solução para o caso relatado seria uma medida cautelar que, embora não prevista expressamente
no ordenamento jurídico, configuraria exercício do poder geral de cautela. Contudo, não foi este o caminho
seguido pela doutrina brasileira que, em sua maioria, insurgiu-se contra a possibilidade de concessão de uma
medida sumária satisfativa, com base no art. 798 do Código de Processo Civil (supracitado).

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A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão prospectiva da formação de um sistema processual... 227

buscando-se, desse modo, ampliar a cobertura das tutelas de urgência


e estabelecer objetos distintos a serem assegurados pela cautelar e pela
antecipação de tutela. Segundo Luiz Guilherme Marinoni (2002, p. 124),
a primeira teria por fim assegurar a viabilidade da realização de um
direito, não podendo, entretanto, realizá-lo; haveria de servir, sempre,
como objeto de referibilidade a um direito acautelado. A outra, por
sua vez, ainda que calcada em um juízo de aparência, seria “satisfativa
sumária”, ou seja, satisfaria diretamente o direito pleiteado.
Contudo, embora plausível tal tentativa, a distinção no cotidiano
forense não se revelou tão simples. Não obstante, a introdução, pela Lei
nº 10.444/2002 (CPC, art. 273, §7º), da fungibilidade entre as medidas
urgentes, permitiu que a cautelar passasse a poder ser concedida a título
de tutela antecipada, no bojo do próprio processo de conhecimento,
pondo um ponto final na questão.
Resta observar que Cândido Dinamarco (2003, p. 92) entende que
a fungibilidade, prevista na lei apenas como concessão de tutela cau­te­lar
a título de tutela antecipada, é de “mão dupla”, permitindo também a
concessão de tutela antecipada a título de tutela cautelar. Já Didier Jr.,
Cheim Jorge e Abelha Rodrigues (2003, p. 90) entendem que “não está
permitida a fungibilidade ‘progressiva’: de providência cautelar para
medida antecipatória, esta mais rigorosa do que aquela”.
Mesclando os dois posicionamentos, entende-se como possível a
fungibilidade progressiva ou de “mão dupla” desde que seja inserida na
perspectiva de um sistema processual unificado. Ou seja, desde que não
gere um processo cautelar autônomo para discutir tutela antecipada.
É neste contexto que surgem os seguintes questionamentos: “Pro­
cesso Cautelar: ainda é útil?” (DIDIER JR., 2005); “é o fim do processo
cautelar?” (DIDIER JR.; JORGE; RODRIGUES, 2003, p. 87). Ana­ lisando
o ordenamento jurídico brasileiro vigente poder-se-ia afirmar que, se não
é o fim, é ao menos um grande indicativo; uma verdadeira demons­
tração de que é viável a sobrevivência do processo civil brasileiro sem a
necessidade de um processo cautelar autônomo.
Mas, esses doutrinadores entendem que ainda restaram alguns
resquícios da autonomia do processo cautelar:

Pelo que ora visualizamos, restarão ao processo cautelar autônomo duas únicas
utilidades: a) como ação cautelar incidental (art. 800 do CPC), tendo em vista a
necessária estabilização da demanda acautelada (arts. 264 e 294 do CPC), que já

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fora ajuizada, e também como forma de não tumultuar o processo com o novo
requerimento; b) nas hipóteses em que a ação cautelar é daquelas que dispensam
o ajuizamento da ação principal, exatamente porque não se trata de medida
cautelar (exibição – arts. 844 e 845 do CPC; caução – arts. 826 a 838 do CPC),
ou porque não se trata de medida cautelar constritiva (produção antecipada
de provas, ar ts. 846 a 851 do CPC). (DIDIER JR.; JORGE; RODRIGUES,
2003, p. 87-88)

Além disso, eles apontam como solução para o primeiro resquício


“a criação de dispositivo normativo que expressamente autorize a for­
mulação ulterior de pedido cautelar, nos mesmos autos da demanda de
conhecimento” (DIDIER JR.; JORGE; RODRIGUES, 2003, p. 88).
Analisando tal empecilho, há de se observar que o exercício da
função jurisdicional de urgência, não satisfativa, não há de tumultuar
o andamento do processo, e nem, muito menos, o das demais funções.
Pelo contrário, as partes poderão resolver o motivo da urgência dentro
de uma mesma relação processual. Então, o que seria mais benéfico aos
jurisdicionados: a instituição de uma nova relação processual (com todos
os percalços a ela não inerentes) ou a discussão de uma questão incidental
como uma função/atividade do magistrado (sendo, assim, garantida a
celeridade que a urgência pugna)? Certamente, a segunda opção.
Desse modo, afirma-se que a visão prospectiva do processo em
funções, já é, por si, capaz de solucionar esse primeiro empecilho, sem a
necessidade da criação de um novo instituto, e nem de uma nova relação
processual.
No que tange ao segundo resquício, o que aparenta tratar-se de
um processo cautelar puro, é, na verdade, medida satisfativa, havendo
de se falar, com mais propriedade, em tutela antecipada. Visualizando-se
o processo em fases, observa-se que se a tutela jurisdicional é satisfeita
em uma mera antecipação de tutela, ótimo: o processo há de ser encer­
rado em uma só fase.
Nesse sentido, as partes não precisarão se submeter às mazelas
do processo, seja no exercício da função jurisdicional de conhecimento,
seja de execução, bastando o regular desempenho de apenas uma função
pelo juiz.
Seguindo esses passos, Alexandre Câmara (2007, v. 3, p. 33, grifo
nosso) inseriu no volume de sua obra destinado aos processos cautelares
o tópico “Desnecessidade do processo cautelar como figura autônoma”,

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 215-241, out./dez. 2010
A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão prospectiva da formação de um sistema processual... 229

no qual tece importantes observações que se coadunam com as ideias


explanadas no presente estudo:10

Não se pode deixar de dizer, em um capítulo dedicado a tecer considerações


gerais sobre o processo cautelar, que este é um tipo de processo cuja existência
autônoma já não mais se justifica. Não se pense, porém, que estejamos aqui a pregar a
abolição da tutela jurisdicional cautelar. Esta é, e será sempre indispensável para
a efetividade do sistema processual. O que não se pode mais aceitar (ao menos
de lege ferenda) é a necessidade de um processo autônomo de natureza cau­-
telar, para que tal modalidade de tutela jurisdicional seja prestada.
É — ao menos em tese — perfeitamente aceitável que a tutela jurisdicional cautelar seja
prestada incidentemente ao processo cuja efetividade se queira assegurar. [...].

Ora, uma primeira observação que se deve destacar nesta passagem


é que negar a autonomia dos processos não significa abolir a referida
tutela, mas sim, reconhecer que ela não precisa se desenvolver em um
processo apartado.
E à guisa de conclusão do presente tópico, outra observação, é
que o doutrinador compartilha do posicionamento aqui exposto de
que é realmente possível avançar (“pelo menos em tese”) no que tange à
alonomia do processo cautelar em relação ao processo principal.

5 A sistematização do processo civil brasileiro


Ao analisar a autonomia dos processos, em sua atual conjuntura,
ante as reformas e perspectivas, observa-se um reconhecimento pontual
e prospectivo da alonomia processual que aponta para uma nova reali­
dade do processo civil pátrio: sua sistematização.
Com efeito, o que se tem notado, no presente estudo, é que a siste­
matização é um fenômeno concreto, resistente, paulatino, e que traduz
uma antiga insatisfação com a proliferação de petições iniciais, custas,
impugnações, provas, recursos, demonstrando que não é isto que busca
o jurisdicionado quando bate às portas do Poder Judiciário brasileiro.
Enfim, trata-se, no apropriado dizer de Glauco Ramos (2006, p. 112)
de um “movimento de ruptura”.11

10
Neste sentido Glauco Ramos (2006, p. 114, grifo nosso) infere que “atualmente o ‘processo’ cautelar (Livro
III) carece de funcionalidade, sendo que o atual perfil das tutelas de urgência acabou por causar a primeira
grande fratura na estrutura tripartida do processo. O processo civil brasileiro não perderia em nada se uma
eventual lei de Reforma simplesmente derrogasse o CPC no tocante aos dispositivos de seu Livro III”.
11
Nas ideias de Teori Zavascki (2000, p. 09), trata-se do reconhecimento da relatividade da segmentação do
processo em espécies: “Tutela de conhecimento, tutela executiva e tutela cautelar constituem, nos moldes
clássicos acima reproduzidos, as três espécies de tutela jurisdicional e com base nelas é que também o legislador

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230 Maria Soledade Soares Cruzes

Alexandre Câmara (2007, v. 3, p. 33, grifo nosso) reconhece-


se como um dos pioneiros na luta pela reformulação do processo civil
brasileiro. Suas previsões acerca do processo serviram, indubitavelmente,
de instrumento de estímulo para o desempenho da presente pesquisa.

Há, aliás, no moderno direito processual brasileiro uma tendência à unificação


doprocesso,passando-seaumsistemaemqueasatividadesprocessuaisdeconhecimentoe
de execução se desenvolvem no mesmo processo (com a execução imediata da sentença,
dispensada a instauração de processo executivo autônomo quando o título
executivo seja uma sentença condenatória). Não podemos deixar de lembrar,
aliás, que estas Lições foram das primeiras obras (não a primeira, certamente,
mas uma das primeiras) em que se sustentou, na doutrina brasileira, a necessi­
dade de abolição do processo de execução de sentença como figura autônoma.
Por coerência ideológica, parece-nos necessário, pois, que defendamos aqui
também a abolição do processo cautelar autônomo.12

Em síntese, a verdade é que o processo civil brasileiro vem pas­sando


por uma fase de sistematização, de modo a garantir o célere e eficaz
acesso à ordem jurídica justa, restando flexibilizados, assim, os dogmas
processuais de outrora. Afinal, o jurisdicionado, quando bate às portas do
Poder Judiciário, não almeja uma tutela incompleta do seu direito.

5.1 O reconhecimento do sincretismo como princípio


Falando-se em sistematização do processo civil brasileiro, é preciso
observar alguns aspectos da obra “Pensamento sistemático e conceito de
sistema na ciência do Direito” de Claus-Wilhelm Canaris, segundo o qual
a ordem e a unidade são noções essenciais para a construção do conceito

brasileiro de 1973 formulou a estrutura do sistema processual civil: a cada espécie de tutela correspondem
‘processo’, ‘ações’ e ‘procedimentos’, com seus princípios e normas próprias e separados em Livros específicos.
Está longe de ser absoluta, entretanto, em nosso sistema, a segmentação da tutela jurisdicional, consideradas
as espécies clássicas acima elencadas”.
12
Neste sentido, Didier Jr, Cheim Jorge e Abelha Rodrigues (2003, p. 86-87, grifo nosso) reconhecem que: “O
processo de conhecimento, que com a Reforma de 1994 já havia recebido grandes doses de efetivação e
asseguração (a própria antecipação da tutela, que possui funções executiva e de segurança), com essa nova
mudança atingiu a quase-plenitude do sincretismo das funções jurisdicionais: na própria relação jurídica
processual com função cognitiva, podem ser alcançadas a tutela cautelar e a tutela executiva. Observando-se
o quadro de mudanças legislativas, notadamente no que diz respeito ao incremento da tutela diferenciada
das obrigações de dar coisa distinta de dinheiro, fazer e não fazer pode-se tranqüilamente identificar uma
tendência inexorável de nossa legislação: a unificação dos ‘processos’. Com o claro objetivo de acabar com a
vetusta exigência de que, para cada função jurisdicional, uma relação jurídica processual própria, transforma-
se a relação jurídica processual de conhecimento, que passa a ter a característica da “multifuncionalidade”.
Aplausos”. Deve-se esclarecer que a afirmação dos doutrinadores refere-se a momento anterior à entrada em
vigor da Lei nº 11.232/2005 (que alterou definitivamente a sistemática da execução de sentença condenatória
proferida no cível, atingindo também a obrigação de pagar quantia certa). Contudo, não obstante esta ressalva,
nota-se que, já naquela época, os autores identificaram o fenômeno da sistematização (ou, no dizer deles,
“unificação”) do processo civil brasileiro.

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A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão prospectiva da formação de um sistema processual... 231

de sistema e estão contidas no próprio objeto, na própria ideia de Direito.


Neste sentido, os princípios gerais são vistos como instrumentos de
viabilidade da unificação do sistema.
Mas, esclarece Claus-Wilhelm Canaris (2002, p. 79) que nem todos
os princípios podem ser considerados como “portadores de unidade” e,
com isso, como “sistematizadores”. Assim, é preciso identificar no pro­
cesso civil brasileiro quais são os seus princípios gerais. Ora, à luz do
que se observou no segundo tópico deste trabalho, a ideia de um sistema
processual unificado deve ser regida sob os pilares do acesso à justiça e
do devido processo legal.
Isto posto, surge um questionamento: diante da sistematização
do processo civil brasileiro, a doutrina brasileira passou a identificar a
existência do que se convencionou chamar de processos “sincréticos”
como aqueles que envolvem duas ou três das espécies anteriormente tidas
como autônomas; é possível caracterizar o sincretismo do processo civil
brasileiro como princípio, derivado do devido processo legal?
José Miguel Medina (2004, p. 295, grifo do autor) entende que
sim. Ele reconhece o sincretismo como princípio contrapondo-o ao da
autonomia, traçando, inicialmente, uma noção geral sobre os princípios
no ordenamento jurídico:

[...] é comum que o ordenamento jurídico preveja exceções a um princípio


jurídico. A evolução de um sistema jurídico, no entanto, pode determinar que
exceções eventualmente existentes num ordenamento jurídico se desenvolvam
fecundamente, de modo a se poder considerar, diante de tal fenômeno, não se
estar mais diante de meras exceções, senão de um novo princípio jurídico.
Obviamente, não se pode confundir a situação apontada, decorrente em especial
da evolução das instituições jurídicas, com a descoberta de um princípio que
estava latente no ordenamento jurídico. Trata-se, neste caso, de identificar um
princípio como já existente, mas que não irradia – ou irradiava – efeitos. Isto
é, não era fecundo.

Sobre essas observações, é necessário fazer alguns esclarecimentos.


É que elas se coadunam, designadamente, com uma das características
apontadas por Canaris (2002, p. 88-92), para os princípios, em sua função
sistematizadora, qual seja: “Os princípios não valem sem excepção e
podem entrar em oposição ou em contradição entre si”.
Ora, como se pode observar, José Miguel Medina parte desse pres­
suposto para afirmar que quando a exceção — que é possível pelo que

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232 Maria Soledade Soares Cruzes

afirma Canaris —, adquire forças de regra, deixando de ser caracterizada


como uma mera exceção, é o momento de reconhecer “um novo princípio
jurídico”, como foi o caso do sincretismo:

Demonstra-se, pela quantidade de fenômenos relacionados ao sincretismo entre


cognição e execução, a fecundidade deste princípio, que, hoje, não pode ser
reconhecido apenas como mera exceção ao princípio da autonomia, mas, sim,
como efetivo princípio jurídico. (MEDINA, 2004, p. 301)

Priva-se, neste instante, de um aprofundamento nas considerações


de José Miguel Medina acerca da conjuntura que envolve os processos
de conhecimento e de execução, até porque a obra mencionada é ante­
rior à Lei nº 11.232/2005 e, além disso, já se desenvolveu a alonomia
dos referidos processos no terceiro tópico deste trabalho.
Mas, é preciso notar que uma vez reconhecida a aplicação do
princípio do sincretismo no sistema jurídico brasileiro, ela não deverá
se restringir à relação conhecimento-execução, devendo abarcar também
a função cautelar.
Além disso, deve-se ponderar que, na contemporaneidade, sua
aplicação divide espaço com o princípio da autonomia e sem pretensão
de exclusividade. Contudo, numa visão prospectiva, nota-se que o avanço
da sistematização do processo civil pátrio, acarretará um fortaleci­
mento
do princípio do sincretismo, que deve predominar na ideia de sistema
abaixo vislumbrada.

5.2 A multifuncionalidade como critério organizacional


A questão não se resume ao reconhecimento do sincretismo
enquanto princípio. Envolve, essencialmente, a busca por uma forma
de organização do sistema. Assim, na investigação de uma solução ideal,
duas opções (ou critérios organizacionais) parecem, inicialmente, viáveis:
1) a multiplicação de fases; 2) a multifuncionalidade.
A primeira consiste na concepção de um processo único, desen­
volvido num desenrolar de fases (o conhecimento, a execução e a cognição
sumária urgente), na busca da justa solução para a lide apresentada ao
Estado-juiz. Este critério resolveria, facilmente, a questão da repartição
do processo, no que tange às argumentações acerca dos processos de
conhecimento, execução e cautelar puros.13

Argumentações já refutadas nos tópicos anteriores deste estudo.


13

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A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão prospectiva da formação de um sistema processual... 233

Mas, quando se dá uma miscigenação de fases, quebrando a


linearidade natural do processo, melhor se faz recorrer à sua visão como
um conjunto de funções jurisdicionais a serem exercidas pelo Estado-
juiz a fim de que se garanta ao jurisdicionado um devido processo legal.
Nessa visão, o juiz há de exercer suas funções apenas quando necessárias
à resolução da lide, sejam elas concomitantes, antecedentes ou únicas
(bastando-se por si mesmas).
A multifuncionalidade, como critério organizacional, satisfaz,
assim, a todo e qualquer questionamento contrário à reunião dos pro­
cessos tidos como autônomos na atual conjuntura processual brasileira. E
o que se entende como viável para uma possível implantação desta ideia
no direito processual civil é algo que se coadune com a noção de: função
de cognição (ou conhecimento), de execução e de urgência.
Esta última, como se observou no quarto tópico deste estudo, não
se mantém apenas no sentido da “cautelaridade”, uma vez que há de
abranger, também, a antecipação da tutela jurisdicional. As outras duas,
por sua vez, permanecem com a mesma nomenclatura em que foram
concebidas.
Por fim, e à guisa de conclusão do presente tópico, faz-se mister
esclarecer que, em que pese não seja o melhor critério para a resolução
de algumas celeumas em torno da autonomia dos processos, o critério
de desenrolar de fases deve ser utilizado subsidiariamente, como reforço
da multifuncionalidade.

5.3 A abertura à justiça do caso concreto


Outra característica que se aponta, numa visão prospectiva da
formação do sistema processual, é a sua inevitável abertura à justiça do
caso concreto.
É que um dos princípios que rege o processo civil contempo­râneo
é o da instrumentalidade segundo o qual “o processo deve cumprir seus
escopos jurídicos, sociais e políticos garantindo: pleno acesso ao Judi­­­
-
ciá­
rio, utilidade dos procedimentos e efetiva busca da justiça no caso
concreto” (PORTANOVA, 2003, p. 48). Ou seja, o processo deve restabe­
lecer a paz social, e não, qualificar atritos.14

Esse princípio é aprofundado por Cândido Dinamarco (2008), em sua obra intitulada “A instrumentalidade
14

do processo” e, na linguagem quase poética de Carlos Maximiliano (1997, p. 101, grifo nosso), se expressa
da seguinte forma: “Não basta a elaboração lógica dos materiais jurídicos que se encontram num processo,
para atingir o ideal de justiça baseada nos preceitos codificados. Força é compreender bem os fatos e ser

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234 Maria Soledade Soares Cruzes

Acoplado a esse princípio, situa-se o da “efetividade” (ou da


“supremacia do interesse social no processo”), segundo o qual o processo
civil deve corresponder aos anseios da sociedade, como um todo mis­
cigenado e “impregnado de justiça social” (PORTANOVA, 2003, p. 54).15
E isso se coaduna com as observações de Ricardo Maurício Soares
(2008, p. 27) acerca da necessidade de valorização da retórica no pro­cesso,
que deve ser concebido como um local democrático no qual os sujeitos
processuais exercitam uma racionalidade comunicativa, cooperando
para a busca de um ato decisório mais justo.
Neste diapasão, Chaïm Perelman (2004, p. 91), em sua obra “Lógica
Jurídica”, apresenta críticas salutares à escola da exegese (e sua concep­
ção analítica e dedutiva do direito) e à escola funcional ou sociológica
(que interpreta os textos legais consoante a vontade do legislador),
desenvolvendo a Nova Retórica, como meio de inserção dos juízos de
valor por intermédio da argumentação. Com efeito, o autor, ao analisar
o raciocínio judiciário depois de 1945, assevera que:

[...] o sistema jurídico não é um sistema fechado, isolado do contexto cultural


e social no qual se insere, pelo contrário, sofre constantemente seu influxo.
O direito jurisprudencial elabora-se por ocasião dos conflitos que o juiz deve
arbitrar, encontrando-lhes soluções convincentes e satisfatórias em direito
porque juridicamente bem motivadas. E toda nova legislação não faz mais
que responder a uma necessidade do meio político, econômico e social.
Essa dialética, implicada pela busca de uma solução convincente, instauradora
da paz judiciária, por ser ao mesmo tempo razoável e conforme ao direito,
coloca o poder judiciário numa relação nova diante do poder legislativo. Nem
inteiramente subordinado, nem simplesmente oposto ao poder legislativo,
constitui um aspecto complementar indispensável seu, que lhe impõe uma
tarefa não apenas jurídica, mas também política, a de harmonizar a ordem

inspirado pelo nobre interesse pelos destinos humanos; compenetrar-se dos sofrimentos e aspirações, e lhes
não oferecer uma pedra de simples raciocínio, e sim, o pão de amparadora simpatia”.
15
Neste sentido, pondera Glauco Ramos (2006, p. 111-112): “[...] processo é atividade de poder representada
na relação processual — rectius, num único ‘processo’ — seja realizada ora atividade cognitiva, ou atividade
executiva, ou atividade cautelar, o que variará de acordo com o momento procedimental e com a tutela
jurisdicional pretendida e adequada ao caso concreto”. E também merece destaque o pensamento de Luiz
Guilherme Marinoni (2009, p. 04): “El proceso civil nada más es una técnica que sirve para la tutela de los
derechos. Como técnica que es, debe estar en constante evolución, procurando siempre adaptarse a las
modificaciones que transforman la sustancia con que debe estar en contacto. Así, una vez que la sociedad y los
derechos a ella inherentes se alteran en todo momento, el cultor de la técnica procesal, o mejor, el legislador
y su interprete, no pueden ignorar la ardua tarea que tienen en manos, vale decir, el deber de elaborar un
proceso que realmente proteja a los ciudadanos y sus derechos.Desde el momento en que fue inventada la
rueda, el hombre a procurado elaborar técnicas para atender la vida social cada vez de forma más adecuada.
El proceso civil debe ser visto en esta perspectiva; solamente el interprete de la norma procesal que desconoce
la sociedad y sus derechos puede generar tesis que no respondan a la necesidad de un proceso que sea el
reflejo del principio constitucional de la efectividad, de las garantías de justicia contenidas en la Constitución
y de la propia naturaleza del derecho material.”

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A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão prospectiva da formação de um sistema processual... 235

jurídica de origem legislativa com as idéias dominantes sobre o que é justo e


equitativo em dado meio. É por essa razão que a aplicação do direito, a passa­
gem da regra abstrata ao caso concreto, não é um simples processo dedutivo,
mas uma adaptação constante dos dispositivos legais aos valores em conflito
nas controvérsias judiciais. (PERELMAN, 2004, p. 115-116)

Ora, isso se aplica perfeitamente à visão prospectiva da formação


de um sistema processual, na medida em que sua abertura à justiça do
caso concreto deve ser calcada em uma lógica discursiva e democrática
que não se restrinja à mera aplicação do texto normativo.16
Trata-se, em síntese conclusiva, e à luz das palavras de Ovídio
Baptista da Silva (2009, p. 04) de impor uma “busca permanente em
favor da ‘justiça do caso’ — porque a justiça jamais é abstrata —, contra a
‘justiça da regra’, quer dizer, contra a fria e falsa justiça da lei”.
Enfim, a ideia de sistema aqui proposta deve ser construída sob
o pilar do devido processo legal e de forma inevitavelmente aberta, ou
seja, como instrumento de acessibilidade à justiça do caso concreto.

5.4 Considerações pontuais sobre as propostas do Anteprojeto do novo


Código de Processo Civil
Antes do término do presente estudo, torna-se necessário salientar
que o Senado Federal encarregou uma Comissão de Juristas, da elabo­ -
ração do Anteprojeto de um novo Código de Processo Civil, cujo resul­
tado final lhe foi apresentado no dia 08 de junho de 2010. A comissão,
presidida pelo ministro Luiz Fux, disponibilizou à comunidade uma
síntese do conteúdo proposto para cada livro do novo código no site do
Senado Federal.
Tomando por base esse documento, que apresenta as “Propo­­ si­
ções convertidas em disposições legais no Anteprojeto do Novo Código
de Processo Civil” (SENADO FEDERAL, 2010), passa-se a tecer breves
considerações pontuais relacionadas às ideias pontuadas nos tópicos
anteriores.

Neste momento, remete-se às ideias de Jürgen Habermas (2003, p. 142): “E ‘discurso racional’ é toda a tentativa
16

de entendimento sobre pretensões de validade problemáticas, na medida em que ele se realiza sob condições da
comunicação que permitem o movimento livre de temas e contribuições, informações e argumentos no interior
de um espaço público constituído através de obrigações ilocucionárias. Indiretamente a expressão refere-se
também a negociações, na medida em que estas são reguladas através de procedimentos fundamentados
discursivamente”. Ademais, neste contexto de racionalidade, cumpre destacar que Josep Aguiló (1997) situa
a necessidade de independência e imparcialidade dos juízes, correlacionando com a argumentação jurídica
no processo. Ou seja, um processo democrático exige um juiz imparcial e comprometido em garantir a justiça
do caso concreto.

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Uma primeira consideração diz respeito ao fato de que na parte


geral serão inseridos os princípios gerais do processo civil brasileiro à
luz do contexto constitucional. Ora, tal proposta se vê totalmente con­
dizente com as premissas teóricas fixadas no segundo tópico do presente
estudo, que se calcou no Direito Constitucional Processual, em especial,
nas máximas do devido processo legal e do acesso à justiça.
Nesse contexto, é interessante observar que, em que pese a atenção
conferida pelo anteprojeto ao instituto da conciliação, nota-se uma espe­
cial preocupação com a efetividade do processo judicial, o que se traduz
em uma não transferência da responsabilidade estatal em garantir ao
cidadão que bate às portas do Poder Judiciário o mais amplo acesso
à ordem jurídica justa, e se coaduna com as reflexões apontadas no
segundo tópico desse estudo no que tange à primeira premissa inerente
ao acesso à justiça.
Outra observação, que também foi aqui sugerida, é a eliminação
do livro do processo cautelar, que se vê substituído pelas disposições
gerais acerca da tutela de urgência. Acoplada a essa proposta, deve-se
notar que segundo o referido documento, a tutela de urgência ou de
evidência será promovida perante o juiz da causa e, “quando antecedentes,
ao juízo competente para conhecer do pedido principal, iniciando-se, a
partir de então, a formação do processo sincrético, sem necessidade de
promoção de outra ação principal” (SENADO FEDERAL, 2010, p. 01).
Essas duas propostas podem ser traduzidas no reconhecimento
da completa alonomia do processo cautelar em relação ao principal, na
medida em que é dispensada a multiplicidade de processos em nome
de um processo sincrético.
No tocante ao processo de execução, nota-se que a proposta envolve
um prosseguimento nas alterações já mencionadas no terceiro tópico
do presente estudo, e que se coaduna com uma necessidade de organi­
zação das mudanças já realizadas.
Contudo, deve-se perceber que ainda permanece a ideia de um
processo autônomo no que tange aos títulos executivos extrajudiciais,
para os quais ainda será reservado um livro específico no novo código.
Por tudo quanto exposto, e sem pretensão de esgotar a temática
proposta neste último tópico, o que se pode observar, em síntese, é que a
comissão de juristas pretende calcar largos passos rumo à sistematização do
processo civil brasileiro e ao fortalecimento do princípio do sincretismo.

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A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão prospectiva da formação de um sistema processual... 237

Além disso, não se pode deixar de ressaltar, ainda com base nas
proposições gerais sob comento, que há um intuito expresso em ampliar
os poderes do juiz conferindo-lhe a possibilidade de adequar as fases e
atos processuais às peculiaridades do conflito, buscando, desse modo,
garantir a maior efetividade possível ao bem jurídico tutelado, e desde
que observados o contraditório e a ampla defesa.
Ora, essa proposta, além de retomar a alusão à necessidade de
obediência aos princípios processuais constitucionalmente garantidos,
traduz-se, em especial, numa clara abertura do sistema processual à
justiça do caso concreto. Em outros termos, e para concluir, o espírito
do anteprojeto parece se coadunar com a mola propulsora das ideias
expostas neste trabalho, qual seja, a luta por um processo civil mais
efetivo e que possibilite o alcance da mais amparadora justiça.

6 Considerações finais
Em face do exposto, pode-se sintetizar que:
- Figuraram como premissas estruturantes do presente estudo os
pilares do devido processo legal e do acesso à justiça, no sentido
de garantir a adequação da técnica processual à prestação da
tutela jurisdicional de modo efetivo, e de atender, em tempo ra­
zoável, às necessidades da vida (sob a ótica individual e social).
- Alonomia processual é o reconhecimento da ineficiência dos
processos que, embora ditos autônomos, necessitam, em regra,
um do outro para cumprir o seu desiderato de resolução justa
e efetiva do caso concreto apresentado ao Estado, no exercício
de seu poder jurisdicional.
- A ideia de um “processo de conhecimento puro” não é empeci­lho
para o avanço da alonomia dos processos de conhecimento e de
execução, seja na visão do processo como um desenrolar de fases,
seja como um conjunto de funções/atividades a serem exer­cidas
pelo Estado, na prestação jurisdicional.
- Trata-se do mesmo raciocínio a ser utilizado no que tange ao
processo executivo puro, mas identificando-se, neste caso, um
mero “ultrapassar de fases”.
- A introdução da tutela antecipada no ordenamento jurídico pátrio
e a fungibilidade das medidas de urgência enfraqueceram ainda
mais o processo cautelar, que já era essencialmente combalido.

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- Reconhece-se, como derivação do devido processo legal, o


princípio do sincretismo no processo civil brasileiro que, na
con­ juntura contemporânea, divide espaço com o princípio da
autonomia, sem pretensão de exclusividade.
- Mas, numa visão prospectiva, nota-se que o avanço da siste­
matização do processo civil pátrio acarretará um fortalecimento
deste princípio, que deve predominar na ideia de sistema aqui
vislumbrada.
- Ainda numa visão prospectiva, aponta-se a multifuncionalidade
como critério organizacional do sistema processual sincrético,
que miscigena as funções de urgência, cognição e execução.
- Ademais, dirige-se para a formação de um sistema aberto, con­
truído sob o pilar do devido processo legal, como instrumento
de acessibilidade à justiça do caso concreto, e calcado sob a dis­
cursividade racional e democrática.
- Por fim, nota-se que a comissão de juristas encarregada da ela­
boração do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil pre­
tende calcar largos passos rumo à sistematização do processo
civil brasileiro e ao fortalecimento do princípio do sincretismo,
ao mesmo tempo que reforça os princípios constitucionais
processuais e abre o sistema à justiça do caso concreto.

The Systematization of the Brazilian Civil Procedure: a Prospective Vision


of Formation of a Procedural System Syncretic, Multifunctional and Open
to the Justice of the Case
Abstract: The “systematization of the brazilian civil procedure” is a pheno­
menon that denies, gradually, the autonomy of knowledge, implementation
and measure procedures, recognizing the inevitable dependence between
them. Note, a prospective view, the formation of a syncretic procedural system,
composed of the functions of knowledge, implementation and urgency, and
open to the justice of the case.
Key words: Civil procedure. Brazil. Autonomy. Dependence. Systema­
tization.

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A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão prospectiva da formação de um sistema processual... 241

THEODORO JÚNIOR, Humberto. A execução de sentença e a garantia do devido processo


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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


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CRUZES, Maria Soledade Soares. A sistematização do processo civil brasileiro: uma visão
prospectiva da formação de um sistema processual sincrético, multifuncional e aberto à
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ano 18, n. 72, p. 215-241, out./dez. 2010.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 215-241, out./dez. 2010
O agravo de instrumento e a inaplicabilidade do §4º do art. 515 do CPC no caso de defeito de formação... 243

O agravo de instrumento e a
inaplicabilidade do §4º do art. 515 do
CPC no caso de defeito de formação por
falta das peças facultativas
Gilberto Gomes Bruschi
Advogado. Doutor e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Professor na faculdade de direito da
Universidade São Judas Tadeu. Professor convidado nos cursos de pós-graduação lato sensu em
direito processual civil da EPD, da UNISANTA, do CESUSC, do Complexo Jurídico Damásio de Jesus,
da FADITU e da PUC/RJ. Sócio efetivo do IBDP.

Palavras-chave: Agravo de instrumento. Art. 515 do CPC.

Um tema que merece ser examinado é a possibilidade ou não de


aplicação do §4º do art. 515, em sede de agravo incompleto em relação
ao traslado das peças para a formação do instrumento.
Duas são as soluções existentes na doutrina:
(i) o entendimento de que o recurso deve ser conhecido, por ser
possível viabilizar ao agravante a correção do vício, devendo ser
intimado para complementar o traslado, suprindo o vício; ou
(ii) a inadmissibilidade do agravo de instrumento por defeito de for­­-
mação, nos termos do art. 557 do CPC, mercê da ausência do
traslado das peças obrigatórias e das necessárias ao perfeito
conhecimento do órgão ad quem.
Em nossa opinião, a corrente de que o agravo não pode ser conhe­
cido em decorrência da falta de traslado das peças necessárias à perfeita
compreensão da causa de pedir do recurso, por não haver possibilidade
de intimação ao agravante para viabilizar a complementação do ins­
trumento, deve prevalecer.
Mas antes de explicarmos as razões pelas quais chegamos a esse
entendimento, é nosso dever explanar acerca da fundamentação de
relevante parcela da doutrina em sentido contrário.
Para os que assim entendem o art. 525, II, do CPC apenas faculta
ao agravante instruir o recurso com outras peças extraídas dos autos do
processo que considerar necessárias para a convicção dos desembargadores,
além daquelas elencadas como obrigatórias,1 não podendo ensejar o não
recebimento do recurso na hipótese de não serem trasladadas.
No mesmo sentido: DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil. 3. ed. São Paulo:
1

Malheiros, 1996. n. 134-G, p. 189: “Faltando alguma das peças essenciais, o recurso estará mal-interposto e

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 243-247, out./dez. 2010
244 Gilberto Gomes Bruschi

Na eventualidade de o órgão ad quem entender primordial a


presença de outras peças não carreadas ao agravo deve determinar a
conversão do julgamento em diligência para que seja providenciada a
respectiva juntada, ou ainda, aplicar o disposto no art. 515, §4º, do CPC,
determinando a intimação do agravante para que possa complemen­ tar
o instrumento, mas “de maneira alguma se justifica a pura e simples
2

negação de conhecimento ao recurso”.3


Leonardo José Carneiro da Cunha4 é mais radical e defende a
possibilidade de sanação do defeito de formação do instrumento até
mesmo quando a peça faltante for uma daquelas arroladas no inciso I
do art. 525 do CPC, ou seja, das peças obrigatórias e, assim, fundamenta
sua opinião:

Tal entendimento não deve mais persistir diante do §4º do art. 515 do CPC, que
se aplica ao agravo de instrumento. Ausente uma peça obrigatória do agravo
de instrumento, deve o relator, em vez de já lhe negar seguimento, determinar
a intimação do agravante para que providencie o complemento do traslado,
fazendo juntar aos autos do agravo a cópia que faltava. Cumprida a diligência,
prossegue-se no julgamento do agravo. Não cumprida, deve, então, ser-lhe
negado seguimento.
À evidência, a falta, no instrumento do agravo, de alguma peça obrigatória ou de
qualquer outra reputada essencial ou necessária à compreensão da controvérsia
não deve gerar a imediata inadmissibilidade do recurso, devendo, bem ao revés,
ser convertido o julgamento em diligência, com a determinação de intimação
do agravante para que supra a falha, complementando o recurso para trasladar
a cópia ausente.5

dele não conhecerá o tribunal (falta o requisito da regularidade formal, que é pressuposto de admissibilidade
de qualquer recurso). Mas ao agravante faculta-se incluir cópias de quaisquer peças dos autos do processo
— o que ele fará, naturalmente, mediante sua própria avaliação da conveniência de trazer cada uma delas
com vista ao sucesso do recurso. A falta de alguma peça do processo, ainda que não-essencial, poderá até
dificultar o improvimento do agravo, mas dificilmente lhe obstará à admissibilidade”.
2
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 5, n.
3.2.2, p. 163, de onde destacamos: “À falta de exigência legal para a sua juntada, contudo — e o art. 525, II,
está longe de exigi-la —, melhor interpretação é aquela que impõe ao órgão julgador do agravo de instrumento,
monocrático ou colegiado, que permita ao agravante, antes do julgamento, a juntada posterior das ‘peças
essenciais’, para que se aproveite, otimizando-o, o ato processual recursal tal qual praticado” (...) “Trata-se de
diretriz interpretativa que se afina ao §4º do 515 e que, por isto mesmo, não pode ser desconsiderada quando
do enfrentamento da questão”.
3
MOREIRA, Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. v. 5,
n. 275, p. 509, 510. No mesmo sentido: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de
conhecimento. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. n. 2.6.4, p. 549.
4
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Sanação de defeitos processuais no âmbito recursal (o §4º do art. 515 do
CPC). In: MEDINA, José Miguel Garcia; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; CERQUEIRA, Luís Otávio Sequeira
de; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel (Coord.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais: estudos em
homenagem à Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 768.
5
Em sentido contrário: TJRS, Ag. nº 70019271493, 10ª Câm. Cível, rel. Des. Paulo Roberto Lessa Franz, decisão
monocrática, j. 12.04.2007, de onde destacamos: “Por fim, tratando-se de agravo de instrumento, ressalto
que não se mostra possível aplicar o disposto no art. 13 e no art. 515, §4º, ambos do Código de Processo
Civil, não havendo como intimar a parte para regularizar sua representação processual”.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 243-247, out./dez. 2010
O agravo de instrumento e a inaplicabilidade do §4º do art. 515 do CPC no caso de defeito de formação... 245

Vistas as razões da primeira corrente, que respeitamos, expli­ que­


-
mos nosso posicionamento.
Em virtude de o agravo pela modalidade instrumentada ser pro­
cessado fora dos autos do processo de onde emanou a decisão interlocu­
tória agravada, há a necessidade de se formar o instrumento com toda a
documentação para que o órgão ad quem possa realizar, com segurança,
os juízos de admissibilidade e de mérito do recurso.
O inciso I do art. 525 faz menção às seguintes peças obrigatórias:
cópia da decisão agravada; cópia da certidão da respectiva intimação;
e cópia das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do
agravado.
Cumpre, nesse passo, estabelecermos, de forma sucinta, qual a
razão que se entende primordial à juntada das peças obrigatórias.
O relator do tribunal ad quem poderá verificar o cumprimento
dos requisitos de admissibilidade do agravo somente se tiver elementos
para tanto — daí a necessidade de formar o instrumento com as peças
indicadas pela lei.
A cópia da decisão agravada serve para que se faça a verificação do
cabimento do recurso e do interesse recursal, bem como da regula­ri­dade
formal — para saber se o recurso atacou ou não a decisão recorrida.
A cópia da certidão de intimação da decisão agravada serve para
aferir a tempestividade do recurso, pois o início da contagem de prazo
para a interposição do recurso se dá no primeiro dia útil subsequente
ao da intimação da decisão agravada.
A juntada da cópia da procuração tem como finalidade a verifi­­cação
da capacidade postulatória do agravante e do agravado e, ainda, para
viabilizar a intimação do advogado do agravado para a apresentação
de resposta.
Além das peças obrigatórias, o inciso II do art. 525 torna possível
a juntada, por parte do agravante, de outras peças que entender úteis
e necessárias, com a finalidade de possibilitar ao julgador a plenitude
do conhecimento das questões que são objeto do agravo.6
A regular formação do instrumento é ônus do agravante, para
possibilitar ao julgador conhecer o completo e exato conteúdo da matéria

Cf. NERY JUNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 390.
6

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 243-247, out./dez. 2010
246 Gilberto Gomes Bruschi

decidida em primeiro grau, não admitindo que haja conversão do


julgamento em diligência7 ou, ainda, emenda ao recurso interposto.8
Por tal motivo entendemos que agravo não poderá ser conhecido
em virtude de sua irregularidade formal se ocorrer formação defi­ ciente
do instrumento pela falta de peças obrigatórias e/ou peças necessárias
ao deslinde da controvérsia.9 10
Devemos concordar que a redação dada ao art. 525, II, do CPC
(“facultativamente, com outras peças que o agravante entender úteis”),
pode, realmente induzir a erro, como, aliás, assevera Araken de Assis:11

Facultativamente, aduz o art. 525, II, o agravante anexará à petição de agravo


outras peças que entender úteis. O advérbio é enganoso. Há peças que, a despeito
de não se revelarem obrigatórias, mostram-se essenciais à compreensão da
controvérsia equacionada no provimento impugnado. Em conseqüência, grava
o recorrente o ônus de aquilatar o requisito da utilidade. (...) O relator negará
seguimento ao agravo de instrumento desprovido das peças facultativas, mas
imprescindíveis para o seu julgamento, a teor do art. 557, caput, ou o órgão
fracionário dele não conhecerá oportunamente.

7
TJMG, AgIn nº 1.0231.08.125019-4/002, 12ª Câm. Cível, rel. Des. Saldanha da Fonseca, j. 04.03.2009: “Agravo
interno – Agravo de instrumento – Decisão monocrática – Não conhecimento do recurso – Ausência de peça
essencial. – O contrato de arrendamento mercantil é peça essencial à análise do pedido liminar de reintegração
de posse. A ausência de peça essencial à compreensão da matéria impõe o não conhecimento do agravo de
instrumento, ante a impossibilidade de conversão do julgamento em diligência”.
8
Cf. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Os agravos no CPC brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
n. 4.3.1, p. 280, 281.
9
NEGRÃO, Theotonio; GOUVÊA, José Roberto Ferreira. Código de Processo Civil e legislação processual em
vigor. 41. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. nota 6 ao art. 525, p. 725, 726: “A Corte Especial do STJ decidiu que,
além das cópias obrigatórias referidas no inc. I do art. 525, ‘a ausência da peça essencial ou relevante para a
compreensão da controvérsia afeta a compreensão do agravo, impondo seu não-conhecimento’ (STJ – Corte
Especial, ED no REsp. 449.486, rel. Min. Menezes Direito, j. 2.06.04, rejeitaram os embs., cinco votos vencidos,
DJU, p. 155, 6 set. 04). ‘Na sistemática atual, cumpre à parte o dever de apresentar as peças obrigatórias
e facultativas — de natureza necessária, essencial ou útil —, quando da formação do agravo para o seu
perfeito entendimento, sob pena de não conhecimento do recurso’ (RSTJ 157/138; no mesmo sentido: RT
736/304, 837/241, JTJ 182/211). Ainda relativamente às referidas peças, a que se refere o art. 525-II do CPC,
‘não é possível que o relator converta o julgamento em diligência para facultar à parte a complementação do
instrumento, pois cabe a ela o dever de fazê-lo no momento da interposição do recurso’ (STJ – Corte Especial,
ED no REsp 509.394, rel. Min. Eliana Calmon, j. 18.8.04, negaram provimento, três votos vencidos, DJU, p.
157, 4 abr. 05,)” (grifos no original).
10
Cf. PINTO, Nelson Luiz. Manual dos recursos cíveis. 3. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 147.
No mesmo sentido: ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. n.
51.1.2., p. 518: “Atribuiu-se ao agravante, no art. 525, o ônus de formar o instrumento de modo a permitir
a exata compreensão da controvérsia e o respectivo julgamento no tribunal. Traçam-se rígidas diretrizes
para atingir esse escopo. Desapareceu a possibilidade de converter o agravo em diligência, apresentando-se
insuficientemente instruído, constante da redação originária do art. 557, caput, segunda parte, explicável no
regime que incumbia o escrivão da extração, da conferência e do concerto (sic) do traslado e desconhecia
os meios contemporâneos de reprodução das peças. Na disciplina em vigor, existem tão-só dois termos de
alternativa: ou o agravo se encontra cabalmente instruído e é admissível; ou, ao invés, falta alguma peça nos
traslados e o recurso é inadmissível. Não é dado ao agravante, outrossim, corrigir eventual omissão após a
interposição do agravo de instrumento. Em tal hipótese, ocorre preclusão consumativa; ao relator, percebendo
a deficiência, cabe tirar a conclusão necessária: julgará inadmissível o recurso (art. 557, caput)”.
11
Ibid, n. 51.1.2., p. 521.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 243-247, out./dez. 2010
O agravo de instrumento e a inaplicabilidade do §4º do art. 515 do CPC no caso de defeito de formação... 247

Tal afirmação poderia gerar uma indagação: Como penalizar o recorrente


com o não conhecimento do agravo por formação deficiente do instrumento,
uma vez que pela literalidade da lei somente as peças previstas no art. 525, I, do
CPC são obrigatórias e as demais facultativas?
Para responder a tal pergunta convém elaborarmos dois exemplos.
Imaginemos um agravo de instrumento interposto contra uma
decisão interlocutória que indeferiu o pedido de antecipação dos efeitos
da tutela formulado pelo autor em razão de não se verificar presente a
prova inequívoca dos fatos ou o perigo de dano.
Indeferido o pedido pelo juiz, o autor deverá formar o instru­
mento com as peças obrigatórias e, para que o relator tenha condições
de analisar o erro ou o acerto da decisão, as cópias da documentação
que fun­damentou o pedido de antecipação de tutela.
Em outro exemplo ocorre no caso de um agravo de instrumento
interposto contra decisão interlocutória que indefere pedido de denun­
ciação da lide com base no art. 70, III, do CPC (obrigação de indenizar em
ação de regresso decorrente de lei ou do contrato). Na hipótese, o relator
não terá a exata compreensão da controvérsia e, consequentemente,
condições de analisar a correção da decisão agravada, se o instrumento
não for formado com a cópia do contrato do qual exsurge a obrigação
de indenizar em ação de regresso (além das peças obrigatórias).
Assim, a formação deficiente do instrumento, seja pela falta de
peça obrigatória ou pela falta de qualquer outra peça necessária para
que os julgadores tenham a compreensão dos fatos, enseja o não conhe­
cimento do recurso por irregularidade formal, não se admitindo, por­
tanto, a incidência do art. 515, §4º, do CPC.12

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

BRUSCHI, Gilberto Gomes. O agravo de instrumento e a inaplicabilidade do §4º do art.


515 do CPC no caso de defeito de formação por falta das peças facultativas. Revista
Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 243-247,
out./dez. 2010.

Esse é o entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça, em que se afastou a aplicação do §4º do art. 515
12

do CPC, embora por decisão monocrática: Ag. nº 1.153.060/RS, 3ª T., rel. Min. Sidnei Beneti, j. 20.08.2009,
DJe, 28 ago. 2009; Ag. nº 1.100.349/PR, 4ª T., rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 13.05.2009, DJe, 26 maio
2009.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 243-247, out./dez. 2010
DOUTRINA
Parecer
Condenação de advogado a litigância de má-fé: cariz autoritário da decisão e atentado ao devido processo... 251

Condenação de advogado a litigância


de má-fé: cariz autoritário da decisão e
atentado ao devido processo legal
Lúcio Delfino
Advogado. Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Professor convidado de cursos de pós-graduação em direito processual civil. Membro do Instituto
Brasileiro de Direito Processual. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, da Academia
Brasileira de Direito Processual Civil e do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Diretor da Revista
Brasileira de Direito Processual – RBDPro.

Ementa: Advogado condenado à litigância de má-fé.


Interesse recursal. Autoritarismo inerente à decisão
que condena advo­gado à litigância de má-fé, em con­
trariedade ao regime democrático e aos princípios
cons­titucionais da indispensabilidade do advogado, do
contraditório e da ampla defesa.

Resumo: Este parecer demonstra a arbitrariedade de decisão que condena


advogado ao pagamento de multa por litigância de má-fé. Defende-se que
pronunciamentos de tal natureza são atentatórios ao regime democrático,
além de contrariarem o modelo constitucional do processo.
Palavras-chave: Condenação. Advogado. Litigância de má-fé. Multa.
Decisão judicial. Arbitrariedade. Regime democrático. Modelo constitucio­
nal do processo. Contraditório. Ampla defesa. Direito fundamental a um
advogado.
Sumário: 1 A consulta – 2 O parecer – 2.1 Interesse e objeto recursal – 2.2 O
autoritarismo da condenação de advogado à litigância de má-fé – 3 Respostas
aos quesitos

1 A consulta
Honra-me a brilhante Dra. XXX ao apresentar-me consulta a res­
peito de questão de seu particular interesse. É procuradora da sociedade
empresária TFIL, e em favor dela atua numa “reclamação trabalhista”
promovida por LAMA. Concluída a instrução processual e proferida a
sentença, viu-se, a própria consulente, condenada, com exclusividade,
à litigância de má-fé.
Ouvi toda a narrativa, incluindo as possíveis razões pelas quais o
Juiz a quo assim procedeu. Também tive acesso à sentença e a li atenta­
mente. Concluído o relato, foi-me solicitado responder aos seguintes
quesitos:

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 251-260, out./dez. 2010
252 Lúcio Delfino

1. Teria a consulente interesse em interpor recurso ordinário?


2. É aceitável, em pleno Estado Democrático de Direito, a condenação à sanção de
litigância de má-fé dirigida àqueles que atuam no processo como advogados?

Bem examinada a consulta e o próprio teor da sentença, sinto-me


habilitado a responder aos questionamentos, e o faço por meio do seguinte
parecer.

2 O parecer
2.1 Interesse e objeto recursal
É a consulente advogada constituída pela demandada, TFIL,
em processo cuja tramitação se dá na “Justiça do Trabalho”. Proferida
a sen­ tença que colocaria termo àquela fase procedimental (cognitiva),
e ali pronunciada condenação direcionada à consulente (CPC, arts. 14,
caput, 18, §1º, e 125, II), é nada menos que evidente o seu interesse em
desafiá-la mediante o competente recurso ordinário. Obviamente que
a decisão jurisdicional a inseriu em situação desfavorável. Perceba-se,
neste rumo, que o Código de Processo Civil autoriza, de modo expresso,
a interposição de recurso também pelo terceiro interessado, desde que
demonstre o nexo de interdependência entre o seu interesse de intervir
e a relação jurídica submetida à apreciação judicial (CPC, art. 499, §1º).
Não bastassem esses argumentos, a própria sentença espanca
quaisquer dúvidas que poderiam restar. Afinal, ali mesmo em seu bojo,
cuidou o Juiz a quo de esclarecer que ela, a consulente, possui interesse
recursal próprio e específico, diverso daquele reservado a sua cliente.
Confira-se:

A condenação não se dirige à terceira reclamada, TFIL., mas, tão somente, à


sua procuradora. E, sendo assim, desde já, até mesmo com vistas a se evitar
futuros questionamentos, esclareço que a procuradora passa, neste momento,
a possuir interesse recursal próprio e específico, diverso de seu cliente. É que
a penalidade atinge, apenas, o patrimônio jurídico da advogada, que, por esta
razão, detém o direito de recorrer. Tal direito perpassa, inclusive, pela obri­
gatoriedade de efetuar o depósito recursal, já que destinado a suportar, ainda
que parcialmente, eventual execução (que, no caso, será limitado a R$1.020,00, já
que sua responsabilidade é restrita a este montante, como acima calculado).

Inequívoco, portanto, o interesse da consulente em desafiar a decisão


mediante o competente recurso ordinário, maneira pela qual intentará
apontar o equívoco da exegese que levou à sua condenação.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 251-260, out./dez. 2010
Condenação de advogado a litigância de má-fé: cariz autoritário da decisão e atentado ao devido processo... 253

2.2 O autoritarismo da condenação de advogado à litigância de má-fé


Pela motivação da decisão em exame constata-se a tentativa de se
demonstrar a legitimidade do uso do poder jurisdicional para penalizar
também advogados, quando, no exercício de sua atividade profissional,
assumem, na visão subjetiva do juiz, postura atentatória à dignidade da
jurisdição. Ou seja, a sentença fundamenta a possibilidade de condena­ção
em litigância de má-fé extensiva a advogados, e assim fazendo, adiante-
se a conclusão, escora-se em corrente doutrinária de cariz altamente
autoritário, com a devida vênia insustentável na contemporaneidade.
Na visão do Juiz sentenciante é real, de tal sorte, a possibilidade
de se penalizar advogados pela litigância de má-fé. Aponta, de início, o
art. 14 do Código de Processo Civil, que dispõe ser dever das partes, e de
todos aqueles que de qualquer forma participam do processo, proceder
com lealdade e boa-fé. Aduz que a nova redação do referido art. 14,
conferida pela Lei nº 10.358/01,1 é norma posterior à regra constante do
art. 32, parágrafo único, da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia),2 e,
por conseguinte, a primeira (norma posterior) teria revogado a última
no particular. Conforme se lê, na mesma decisão, cumpre ao juiz repri­ -
mir qualquer ato contrário à dignidade da justiça, nos termos do art. 125,
II, do Código de Processo Civil, sendo, nesta ótica, plenamente possível,
por força da interpretação conjunta do art. 14, caput, e art. 18, §1º, ambos
também do aludido Diploma Processual, a condenação de advogados
à multa por litigância de má-fé.
A decisão, contudo, não se sustenta, ainda que a análise se man­
tivesse maniatada ao Estatuto Processual em vigor. Afinal, suficiente para
desconstruir em absoluto os fundamentos e dispositivo da sentença,
uma exegese fria, presa à literalidade da lei. Talvez por deslize, a verdade

1
Esta a redação atual do art. 14 do Código de Processo Civil: “Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles
que de qualquer forma participam do processo: I – expor os fatos em juízo conforme a verdade; II – proceder
com lealdade e boa-fé; III – não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de
fundamento; IV – não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa
do direito; V – cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de
provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se
sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato
atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais
cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não
superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em
julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado.”
2
Esta a redação do art. 32 da Lei nº 8.906/94: “Art. 32. O advogado é responsável pelos atos que, no exercício
profissional, praticar com dolo ou culpa. Parágrafo único. Em caso de lide temerária, o advogado será
solidariamente responsável com seu cliente, desde que coligado com este para lesar a parte contrária, o que
será apurado em ação própria.”

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é que a cognição judicial não considerou o que dispõe o parágrafo único


do art. 14 do Código de Processo Civil. O raciocínio desenvolvido ao
longo da sentença é, por assim dizer, truncado, uma vez que despreza
inteiramente norma vigente indispensável à análise e solução da questão
em concreto.
Esclareça-se sem rodeios: o Código de Processo Civil, não obstante
autorizar o juiz a aplicar multa por ato atentatório ao exercício da
jurisdição, ressalva aos advogados sujeição exclusiva aos estatutos da
Ordem dos Advogados do Brasil (CPC, art. 14, parágrafo único). Trata-
se, evidentemente, de dispositivo alinhado ao direito fundamental a um
advogado, atualizado, portanto, com valores que norteiam o Estado Demo­
crático de Direito.3 Ainda que por uma leitura desatenta do dispositivo
em epígrafe, constata-se facilmente seu escopo de proteção à advocacia,
de modo que não é lícita a condenação judicial de advogados ao paga­
mento de multas e indenizações por ato atentatório ao exercício da
jurisdição. O art. 14, parágrafo único, do Código de Processo Civil, ao
tratar “dos deveres das partes e dos seus procuradores”, impõe, enfim,
genuína obrigação de não fazer ao juiz, pois estabelece, insista-se nisso,
que os advogados sujeitam-se exclusivamente aos estatutos da Ordem dos
Advogados do Brasil. A verdade é que o advogado, mesmo atuando em
manifesta má-fé e contrariamente aos ditames que alicerçam a digni­ -
dade da justiça, não pode ser penalizado pessoalmente pelo juiz nos
autos do processo em que funciona profissionalmente.
De outro lado, o art. 18, §1º, do Código de Processo Civil4 não tem
o alcance pretendido pelo Juiz sentenciante. Afinal, esse dispositivo

3
Se num Estado Democrático de Direito toda a atividade estatal há de ser controlada, é nada menos que lógica
a necessidade de um advogado no processo judicial. E assim idealmente deve ser, ao menos segundo impõe a
Constituição quando afirma que o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por
seus atos e manifestações no exercício profissional (CF/88, art. 133). Por meio deste comando, o constituinte
originário apenas instituiu outra importante garantia ao cidadão, especialmente ao jurisdicionado, àquele
que efetivamente haverá de lidar com a autoridade judiciária. Instituiu o direito fundamental a um advogado.
Confira-se, a respeito disso, a lição de Rosemiro Pereira Leal: “Assim, por imperativo constitucional, o pressuposto
subjetivo de admissibilidade concernente à capacidade postulatória, para a existência legítima de processo,
ação e jurisdição, não pode sofrer, no direito brasileiro, restrição, dispensabilidade, flexibilização ou adoção
facultativa, porque os procedimentos jurisdicionais estão sob o regime de normas fundamentais que implicam
o controle da jurisdição pelo advogado (CR/88, art. 133) e que somente se faz pela presença indeclinável do
advogado na construção dos procedimentos jurisdicionais (litigiosos ou não).” E arremata: “O que se extrai do
art. 133 da CR/88 é que, muito mais que o retórico controle do judiciário, há que se restabelecer, de imediato,
por consectário constitucional, com pronta revogação ou declaração de inconstitucionalidade de leis adversas,
o controle da atividade jurisdicional pelo advogado” (LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria da defesa no processo
civil. In: LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões
jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 47-48).
4
Esta a redação do art. 18 do Código de Processo Civil: “Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento,
condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a

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Condenação de advogado a litigância de má-fé: cariz autoritário da decisão e atentado ao devido processo... 255

refere-se aos litigantes de má-fé, unicamente às partes que agem de


maneira contrária à dignidade da justiça, em desrespeito aos parâmetros
constantes do art. 17 do aludido Diploma Processual.5 Não é o dispo­ -
sitivo, destarte, direcionado a punir advogados. Supérfluo afirmar que o
advogado não se confunde com a parte (tampouco com terceiro) para quem
presta serviços; só por isso imponderado sujeitá-lo à condenação por
litigância de má-fé quando no exercício da atividade advocatícia.
Não há, noutro ângulo, colisão alguma entre o art. 14 do Código
de Processo Civil e o art. 32, parágrafo único, do Estatuto da Advocacia,
como quer fazer crer a fundamentação entalhada na sentença. Às vezes,
persista-se nesta ideia, tivesse o Juiz a quo considerado o teor do pará­­-
grafo único do art. 14, o raciocínio tomaria rumo diverso. O aludido
art. 32 se presta não a estabelecer penalidade por litigância de má-fé
ao advogado que atua temerariamente, mas, sim, a regular sua respon­
sabilidade civil profissional, a ser apurada em processo próprio, mediante
o exercício do contraditório e da ampla defesa, em conformidade com o
modelo constitucional do processo. Tanto assim, que o parágrafo único do
art. 32 é expresso ao dispor: “Em caso de lide temerária, o advogado
será solidariamente responsável com seu cliente, desde que coligado
com este para lesar a parte contrária, o que será apurado em ação própria”
(sem grifo no original). Os arts. 14 do Código de Processo Civil e 32 do
Estatuto da Advocacia refletem, afinal, realidades diversas: o primeiro
trata de uma multa de natureza processual, a qual jamais há de ser apli­-
cada ao advogado, por expressa ressalva legal; o último, por sua vez,
disciplina hipótese que envolve a responsabilidade civil do advogado quando
atua temerariamente, a ser devidamente avaliada em processo próprio.6
Seria, contudo, suficiente o bom senso para afastar a interpretação
em que se assenta a sentença. Bastaria, enfim, a percepção de que o
advogado há de exercer com liberdade a sua profissão, sem receios de

indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas
que efetuou. §1º Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção
do seu respectivo interesse na causa, ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.
§2º O valor da indenização será desde logo fixado pelo juiz, em quantia não superior a 20% (vinte por cento)
sobre o valor da causa, ou liquidado por arbitramento.”
5
Este o teor do art. 17 do Código de Processo Civil: “Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que: I – deduzir
pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; II – alterar a verdade dos fatos; III
– usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV – opuser resistência injustificada ao andamento do
processo; V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI – provocar incidentes
manifestamente infundados; VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.”
6
Neste sentido: CORRÊA, Orlando de Assis. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados
do Brasil – OAB. Rio de Janeiro: Aide, 1997; NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Comentários ao Estatuto da Advocacia
e da OAB. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

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retaliações ou de punições por parte de autoridades estatais — e o juiz


é uma autoridade estatal.7 Inexiste realmente hierarquia, tampouco sub­
ordinação, entre advogados e magistrados, e a lei assim se pronuncia
de modo expresso e inequívoco (Lei nº 8.906/94, art. 6º). Liberdade e
independência são, deste modo, condições irrespondíveis para o ade­
quado exercício da advocacia. Nem é preciso reafirmar que essas ideias
são seguras revelações de um comando maior, previsto na Constituição,
o qual coloca o advogado como figura indispensável à administração
da justiça, inviolável em seus atos e manifestações no exercício da pro­
fissão, sempre nos limites da lei (CF/88, art. 133) — um verdadeiro direito
fundamental ao advogado, como já mencionado em outra oportunidade.
É, sem dúvida, dever do magistrado agir com o propósito de velar
pela dignidade da justiça, atuando com o rigor devido sempre que ne­
cessário, pois é ele quem efetivamente dirige o processo. Daí por que
algum poder de comando lhe é conferido, até mesmo contra advogados,
e isso, repita-se, até por dever legal, tanto que lhe é dado adverti-los,
cassar-lhes a palavra, determinar sejam riscadas expressões injuriosas
apresentadas por eles nos autos, oficiar a Ordem dos Advogados do
Brasil, valer-se do poder de polícia em audiências, etc. Entretanto, diante
da especial relação travada entre juiz e advogado, ante o nobre e
indispensável ideal que alicerça a existência dessa mesma relação — a
pacificação e a transformação social segundo os moldes constitucionais —, tal
poder, certamente, possui limites absolutamente necessários. E um deles
aufere-se justamente pela reta interpretação dos arts. 14, 16, 17 e 18
do Código de Processo Civil, a qual conduz o intérprete à única solução
plau­ sível ao sistema normativo brasileiro: é vedado ao magistrado con­
denar o patrono da parte em sanções ou indenizações fundadas na
litigância de má-fé, sobretudo nos mesmos autos do processo em que
supostamente fora praticada a conduta ilícita.
Sublinhe-se, de outra banda, que entendimento diverso repudia
não apenas o princípio constitucional da indispensabilidade do advogado,
mas além disso se contrapõe abertamente a outros direitos também de

É digna de citação a advertência de Antônio Cláudio Mariz de Oliveira: “(...) nós advogados, como poucos,
7

estamos preparados para o contraditório, para a divergência, para a oposição. Somos, pois, talhados para o
exercício da Democracia. Aliás, é no regime democrático, e só com ele, que a advocacia encontra campo fértil
para o seu pleno desenvolvimento em busca do integral cumprimento de sua missão. Na verdade, sem liberdade,
o exercício da profissão torna-se praticamente impossível, a não ser para pugnarmos pelo seu restabelecimento.
Nessa exata medida, a vigência plena das garantias democráticas é condição para o desempenho da advocacia”
(OLIVEIRA, Antônio Cláudio Mariz de. Combate à criminalidade e as prerrogativas profissionais. Revista do
Advogado, São Paulo, n. 93, p. 14-18, set. 2007).

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Condenação de advogado a litigância de má-fé: cariz autoritário da decisão e atentado ao devido processo... 257

natureza fundamental. Desnecessário dizer que a jurisdição é atividade


estatal legitimada no ambiente processual, segundo parâmetros hau­ -
ridos da própria Constituição. Por isso que todo pronunciamento juris­
dicional deve curvar-se ao devido processo legal, do qual são consectários
a ampla defesa e o contraditório.8 Bastante coerente, por este ângulo, racio­-
cínio que rotula de arbitrária decisão de natureza condenatória, pro­ fe-
rida em desatenção ao esquema mínimo constitucionalmente positivado (devido
processo legal), sobretudo porque invasiva à esfera patrimonial daquele
que sequer integra a relação jurídica processual — afinal, o advogado não
é parte, repita-se uma vez mais —, e, desde modo, não teve ensejada
a possibilidade, em procedimento próprio, instaurado segundo as
diretrizes processuais e constitucionais vigentes, de ser ouvido e de se
defender da questão suscitada em seu desfavor de maneira oficiosa pelo
Juiz sentenciante.9
Em recente julgado, aliás, o Superior Tribunal de Justiça foi preciso
a respeito do que aqui se defende:

Responde por litigância de má-fé (arts. 17 e 18) quem causar dano com sua
conduta processual, que, nos termos do art. 16, somente podem ser as partes,

8
Advoga-se o entendimento de que ao juiz não é lícito aplicar multa por litigância de má-fé sequer às partes, sem
antes instaurar o contraditório e conferir-lhes direito à ampla defesa. Neste rumo, as lições preciosas de Gelson
Amaro de Souza: “Não está o juiz autorizado a aplicar multa por litigância de má-fé às partes sem o devido
respeito ao contraditório e à ampla defesa. Em se tratando de regime, que se pretende viver e conviver com um
Estado de Direito, não se pode pretender condenar alguém, sem que lhe seja concedida antes, oportunidade
de defesa. Em todo processo ou procedimento, administrativo ou judicial, deve-se respeitar os princípios do
devido procedimento legal, do contraditório e da ampla defesa. Hoje, até mesmo para os procedimentos
particulares exige-se o atendimento do devido procedimento legal. É o que acontece em casos de expulsão
de aluno de escola, exclusão de sócio de sociedade, exclusão de plano de saúde, etc. Em todos eles, exige-se
o devido procedimento legal, para a aplicação da punição. Se, até mesmo para os procedimentos particulares
se exige o devido procedimento legal, com maior razão é de se exigi-lo para o procedimento judicial em que
se enfrenta a questão relacionada à litigância de má-fé. Somente se poderá falar em atendimento do devido
procedimento legal, quando se proporcionar ao interessado o contraditório e o direito à ampla defesa, garantias
estas asseguradas constitucionalmente. Sem o atendimento do devido procedimento legal, do contraditório
e da ampla defesa, não se pode falar em aplicação de punição ao litigante de má-fé. Ninguém poderá ser
condenado, sem ser ouvido. Este é princípio universal de direito que deve ser respeitado por todos os povos
e, mais precisamente por aqueles que se pretendem viver em um Estado Democrático de Direito. Não se pode
condenar alguém a cumprir qualquer sanção por litigância de má-fé, sem que antes lhe sejam assegurados o
contraditório, o direito de defesa e o devido procedimento legal” (SOUZA, Gelson Amaro. Litigância de má-
fé e o direito de defesa. Revista Bonijuris, 550, p. 5-11, 2009). Ainda mais grave é condenar à litigância de
má-fé aquele (advogado) que não é parte processual e atua no processo profissionalmente, não em busca da
satisfação de seus próprios interesses, mas na defesa dos direitos do seu constituinte.
9
Obviamente que está o juiz autorizado, em dadas hipóteses, a suscitar oficiosamente questões que extrapolam
aquelas que as partes vêm debatendo ao longo do processo. É o que se dá com as chamadas questões de
ordem pública. Mas é erro crasso, infelizmente difundido na praxe forense, identificar o agir oficioso do juiz
com um agir alheio ao contraditório. O juiz pode (e deve) suscitar questões de ordem pública oficiosamente
em algumas circunstâncias, mas ao fazê-lo é também seu dever instaurar o contraditório e ouvir as partes,
dar-lhes condições de exercer amplamente seus direitos à ação e à ampla defesa. A Constituição Federal, ao
estabelecer o contraditório e a ampla defesa, não os excepciona nas hipóteses em que o juiz, diante de questão
de ordem pública, está autorizado a agir oficiosamente.

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assim entendidas como autor, réu ou interveniente em sentido amplo. Com


efeito, todos que de qualquer forma participam do processo têm o dever de agir
com lealdade e boa-fé (art. 14, do CPC). Porém, em caso de má-fé, somente os
litigantes, estes entendidos tal como o fez Pontes de Miranda, estarão sujeitos
à multa e indenização a que se refere o art. 18, do CPC. Os danos causados
pela conduta do advogado deverão ser aferidos em ação própria para esta fina­
lidade, sendo vedado ao magistrado, nos próprios autos do processo em que
fora praticada a conduta de má-fé ou temerária, condenar o patrono da parte
nas penas a que se refere o art. 18, do Código de Processo Civil.10

Destaquem-se, ainda, as seguintes ementas, reflexos de decisões


proferidas pelo Tribunal Superior do Trabalho:

Litigância de má-fé. Condenação solidária do advogado. Na forma do disposto


no art. 32 da Lei nº 8.906/94, o advogado é responsável pelos atos que, no exer­
cício profissional, praticar com dolo ou culpa, acrescendo o seu parágrafo único
que, em caso de lide temerária, o advogado será solidariamente responsável
com seu cliente, desde que coligado com este para lesar a parte contrária,
mediante apuração em ação própria. Assim, incabível a condenação do advo­-
gado nos próprios autos em que constatada a litigância de má-fé da parte,
devendo a má-fé do patrono ser apurada mediante ação própria ajuizada
perante o juízo competente.11

Recurso de revista. Processo de execução. Responsabilidade soli­


dária do advogado. Lide temerária. A condenação solidária do advogado
em caso de lide temerária depende de apuração em ação própria, em
que será analisado se estava coligado com seu cliente para lesar a parte
contrária. Incabível, portanto, sua condenação nos mesmos autos em
que constatada sua responsabilidade (art. 32, parágrafo único, da Lei
nº 8.906/94). Recurso de revista a que se dá provimento.12

Portanto, a sentença que ora se examina traduz-se mesmo num ato estatal des­
pótico, especialmente por contrariar, de maneira frontal, o regime constitucional,

10
Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 140.578-SP. Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em
20.11.2008. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 1º jun. 2009.
11
Tribunal Superior do Trabalho. RR nº 808.822/2001.0. Rel. Juiz Vieira de Mello Filho, Primeira Turma. DJU, p.
932, 19 dez. 2002.
12
Tribunal Superior do Trabalho. RR nº 520763. Rel. Min. Gelson de Azevedo, Quinta Turma. DJU, 03 dez. 2004.
Também elucidativa a ementa adiante recortada, relativa a julgado do Tribunal Regional do Trabalho, 3ª Região:
“Litigância de má-fé. Co-responsabilidade solidária do advogado. Não há supedâneo jurídico para a condenação
solidária do advogado por litigância de má-fé na própria ação em que constatada a conduta antijurídica do
constituinte. Inteligência do parágrafo único do art. 32 da Lei nº 8.906/94 e do parágrafo único do art. 14
do CPC, por sujeitar-se o profissional do direito ao próprio estatuto profissional. Não prevalece, ademais, a
responsabilidade solidária destituída de lei ou de contrato” (Tribunal Regional do Trabalho. Terceira Região.
RO nº 2746/03. Rel. Juíza Emilia Facchini, Sexta Turma. DJMG, p. 12, 08 maio 2003).

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Condenação de advogado a litigância de má-fé: cariz autoritário da decisão e atentado ao devido processo... 259

disparatada que é com os valores que alicerçam o Estado Democrático de


Direito. É o arbítrio, infelizmente, seu fundamento maior, já que direcionada a
punir uma advogada, em atropelo às suas prerrogativas profissionais,13 talhadas
precisamente para lhe permitir o livre exercício do seu ofício. Não bastasse, é
decisão fabricada pela inteligência solitária do juiz, com desdém às garantias
da ampla defesa e do contraditório, cujo respeito é exigência para a própria
legitimação da atividade jurisdicional e do seu resultado. A condenação, assim
sendo, escamoteia ideologia atentatória aos valores democráticos, além de
seu inegável caráter intimidatório, que afronta — ainda que indiretamente
— a todos aqueles que exercem a advocacia, atividade na qual a liberdade e a
independência são predicados essenciais para o satisfatório desempenho na
defesa dos cidadãos.14

13
Sobre as prerrogativas do advogado e sua indispensabilidade ao exercício da profissão, leciona Braz Martins
Neto: “É no Estatuto da Advocacia que encontramos as disposições que normatizam as prerrogativas. Veja-
se que ao definir a indispensabilidade na administração da justiça, o Estatuto prevê que o Advogado presta
serviço público e exerce função social, e que, no seu mister, é inviolável por seus atos e manifestações. É, pois,
necessário, para que possa exercer livremente sua atividade profissional, que tenha instrumentos vigorosos
para o desempenho intransigente da defesa de seu constituinte. Não se trata de conferir ao advogado
privilégios, de conotação tipicamente corporativa, mas, isto sim, de lhe dar meios de atuação, em que não
haja lugar para a hesitação ou temor na defesa intransigente dos direitos de seu cliente.” E conclui, logo à frente:
“A inviolabilidade do escritório, dos arquivos, dos dados de correspondências e comunicações, inclusive
telefônicas, garante ao cliente a privacidade na relação com aquele que recebe a incumbência de tratar
de seus interesses, tanto na esfera negocial quanto nas lides forenses. A proteção, portanto, não é para o
Advogado,mas, sim, para o seu constituinte, que nele deposita confiança, munindo-o de informações sigilosas,
necessárias para a adequada e eficaz atuação de seu defensor, que não é o titular do segredo, mas, tão só,
o mais fiel depositário dele” (MARTINS NETO, Braz. Ética e prerrogativas. Revista do Advogado, São Paulo,
n. 93, p. 19-22, set. 2007).
14
A posição defendida neste parecer é a adotada também pelo Supremo Tribunal Federal. Ao julgar a ADIn
nº 2.652/DF, entendeu a Corte, estendendo os efeitos do art. 14 do Código de Processo Civil igualmente
aos advogados públicos, o seguinte: “Com efeito, seria mesmo um absurdo concluir que o legislador tenha
pretendido excluir da ressalva os advogados sujeitos a outros regimes jurídicos, além daquele instituído pelo
Estatuto da OAB, como ocorre, por exemplo, com os profissionais da advocacia que a exercem na condição
de servidores públicos. Embora submetidos à legislação específica que regula tal exercício, também devem
observância ao regime próprio do ente público contratante. Nem por isso, entretanto, deixam de gozar das
prerrogativas, direitos e deveres dos advogados, estando sujeitos à disciplina própria da profissão (Estatuto
da OAB, arts. 3º, §1º; e 18). Na verdade afigura-se-me claro que a expressão ‘que se sujeitam exclusivamente
aos estatutos da OAB’ revela a intenção de justificar a razão pela qual a multa prevista no dispositivo não
se aplica aos advogados. Contudo, a norma, que apresenta inequívoco cunho moralizador relacionado à
conduta processual das partes e de todos aqueles que participam do processo, estabeleceu, em seu inciso V, a
obrigatoriedade de que todos cumpram as decisões judiciais sem criar embaraço. Previu, por outro lado, uma
multa pela inobservância do preceito, sanção essa inaplicável aos advogados, por estarem esses submetidos,
no campo disciplinar, apenas aos Estatutos da OAB (Lei 8906/94, artigo 70), com observância à garantia
constitucional de inviolabilidade dos atos do advogado no exercício de sua profissão (CF, artigo 133)” (Supremo
Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.652-6/DF, Tribunal Pleno. Rel. Min. Maurício Corrêa,
julgado em 08.05.2003. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>). Mais recentemente, ao julgar reclamação,
promovida por um procurador federal, o Supremo Tribunal Federal manteve a mesma rota: “Tem-se, pois, que os
Procuradores Federais — advogados de entes estatais — estão incluídos na ressalva do parágrafo único do art.
14 do CPC, não sendo possível, assim, fixar-lhes multa em razão de descumprimento do dever disposto no art.
14, V, do CPC.” E mais: “Sem discutir o acerto ou desacerto da condenação por litigância de má-fé — prevista
no art. 17, V, do CPC —, imposta pela autoridade reclamada, cumpre esclarecer que a condenação pessoal do
Procurador do Instituto Nacional do Seguro Social ao pagamento de multa processual é inadequada porque,
no caso vertente, ele não figura como parte ou interveniente na Ação 2006.38.00.744462-0. A despeito de
terem sido apontados como fundamento legal para a condenação do Procurador os arts. 17, V, e 18 do CPC,
está patente a aplicação do art. 14, V, e parágrafo único, do CPC, de forma transversa, reflexa e contrária ao
que decidido na ação-paradigma” (Supremo Tribunal Federal. Rcl. nº 5.133/MG, Tribunal Pleno. Rel. Ministra
Cármen Lúcia. julgado em 20.05.2009. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>).

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 251-260, out./dez. 2010
260 Lúcio Delfino

3 Respostas aos quesitos


1. Teria a consulente interesse em interpor recurso ordinário?
Resposta: É induvidoso o interesse recursal da consulente. Além de
a própria sentença já o caracterizar, é expresso o Código de Processo Civil
ao estabelecer ser lícita a interposição de recurso também pelo terceiro
interessado, desde que demonstre o nexo de interdependência entre o
seu interesse de intervir e a relação jurídica submetida à apreciação judi­
cial (CPC, art. 499, §1º).
2. É aceitável, em pleno Estado Democrático de Direito, a condenação
à sanção de litigância de má-fé dirigida àqueles que atuam no processo como
advogados?
Resposta: Inaceitável a condenação por litigância de má-fé a adv­o­
ga­dos no regime democrático brasileiro. Decisão judicial que siga orien­
tação diversa certamente ulcera a própria Constituição Federal, sobre­tudo
os princípios da indispensabilidade do advogado, do contraditório e da
ampla defesa.
Este o parecer, salvo melhor juízo.
Junho de 2009.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

DELFINO, Lúcio. Condenação de advogado a litigância de má-fé: cariz autoritário da decisão


e atentado ao devido processo legal. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro,
Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 251-260, out./dez. 2010. Parecer.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 251-260, out./dez. 2010
NOTAS E COMENTÁRIOS
Apresentação – Professor José Joaquim Gomes Canotilho 263

Apresentação – Professor José Joaquim


Gomes Canotilho1
Sérgio Tiveron
Mestre em Direito do Estado Democrático de Direito pela Universidade de Franca. Pós-graduado
em direito processual civil pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU); (UNIFRAN). Professor
de direito processual civil na Universidade de Uberaba (UNIUBE), nos cursos de graduação e pós-
graduação. Advogado.

O palestrante de hoje dispensa comentários, pois é de todos


bastante conhecido.
Receba, pois, caro Mestre, estas palavras como acolhida e recepção
de uma gente simples que muito agradece a sua honrosa presença em
solo uberabense.
O Professor José Joaquim Gomes Canotilho, catedrático da Uni­
versidade de Coimbra, foi regente de várias disciplinas da Seção de
Jurídico-Políticas, tendo atualmente a seu cargo a disciplina de Direito
Constitucional nas Licenciaturas em Direito e Administração Pública.
Foi defensor oficioso junto de tribunais militares durante três anos.
Foi Vice-Reitor da Universidade de Coimbra e Vice-Presidente do
Conselho Diretivo da Faculdade de Direito.
Fez a sua preparação para o doutoramento em Freiburg e Heidelberg,
na Alemanha.
Exerceu funções de Conselheiro do Estado de Portugal.
É autor de um vasto número de obras jurídicas, destacando-se
Constituição dirigente e vinculação do legislador; Direito constitucional e teoria
da Constituição; Constituição da República Portuguesa anotada; Proteção do
ambiente e direito da propriedade; Direitos humanos, estrangeiros, comunidades
emigrantes e minorias; Proteção do ambiente e direito da propriedade (Crítica
da jurisprudência ambiental); em alemão, Peter Häberle: Ein “Principe”
auf dam Gebiet des Verfassungsrechts, entre outros, além de inúmeros
artigos, palestras proferidas, capítulos de livros e entrevistas.

Nota dos Diretores da Revista: Trata-se de texto, de autoria do Professor Sérgio Tiveron, elaborado a fim de
1

apresentar, a uma plateia de aproximadamente 800 pessoas, o constitucionalista mundialmente conhecido,


Doutor José Joaquim Gomes Canotilho (Portugal), em sua passagem, na data de 14.09.2010, pela cidade de
Uberaba, MG. Proferiu, na ocasião, palestra, em evento organizado pela Faculdade Presidente Antônio Carlos
de Uberaba (FUPAC/UNIPAC), sob a iniciativa e organização do coordenador do Curso de Direito desta mesma
instituição, Professor Mestre Carlos Eduardo Nascimento. Colaboraram, igualmente, com a realização do evento
a Universidade de Uberaba (UNIUBE), a Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e Editora e Livraria
Lemos e Cruz.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 263-265, out./dez. 2010
264 Sérgio Tiveron

É crítico do ativismo judicial, inclusive mediante súmulas, promovido


pelo Supremo Tribunal Federal, que propõe novas definições para a
Cons­ tituição brasileira, situação que afirma “sem sentido” para o cons­
titucionalismo europeu. Por isso, descarta a possibilidade de os juízes fazerem
qualquer revolução nesse sentido, como que substituindo a política e os
políticos, que deveriam regular por normas o que a Constituição Dirigente já
previamente acertara.
De modo coerente advertiu empresários paulistas que preten­diam,
em evidente elitismo, a revisão da Constituição, afastando o povo de participar
ativa e diretamente dessa proposta.
Mesmo que a tenha por “complexa”, o Prof. Canotilho considera
elogiável a Constituição brasileira, que, segundo ele, é exemplo de “um grito
de liberdade” por ocupar o centro vital da comunidade jurídico-política
brasileira como texto democrático, aberto, plural. Eventual desencanto
com as normas constitucionais deve ser debitado aos agentes concretos da vida
do país, pois “os problemas estão nas ruas”, não nos artigos da Constituição.
Entende que o Judiciário deva ser o “garantidor do Estado Demo­
crático de Direito”, embora ainda funcione no país de forma antiquada,
por isso que uma medida que trate de medicamentos, por exemplo,
não soluciona o problema da saúde no país. As necessárias transformações
não prescindem da política e dos políticos, que não podem ser simplesmente
tratados como inimigos da sociedade.
Acredita que o esforço a se fazer no campo da cidadania ainda é o da
distribuição das riquezas e da justiça para evitar destinos trágicos.
Professor Canotilho,
É-nos de grande honra a sua presença entre os uberabenses.
O grande Popper (Em busca de um mundo melhor) acreditava que
todo vivente busca um mundo melhor. Homens, animais, plantas e organismos
unicelulares são sempre ativos, pois tentam melhorar sua situação, ou, então, evitar
suapiora...Todoorganismoestáconstantementeocupadoemresolverproblemas.E
osproblemassurgemdasavaliaçõesdeseuestadoedeseuentorno,queesseorganismo
procura melhorar. A tentativa de solução frequentemente se revela errônea, conduz
aumpioramento.Então,seguem-seoutrastentativasdesolução,outrosmovimentos
deexperimentação.Assim,avidatrazaomundoalgocompletamentenovo,algoque
antes não havia: problemas e buscas ativas de solução; avaliações; valores; tentativa
eerro.Todoorganismotambémtrabalhanamanutençãodesuascondiçõesinternas
de vida e de sua individualidade, o que os biólogos chamam de “homeostasia”, que

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 263-265, out./dez. 2010
Apresentação – Professor José Joaquim Gomes Canotilho 265

também é agitação interna, correção de erros. A homeostasia tem de ser imperfeita;


deve restringir a si mesma; se fosse perfeita, isso significaria a morte do organismo,
ou, pelo menos, a suspensão temporária de todas as funções vitais. A atividade,
a agitação, a busca são essenciais para a vida, para a eterna agitação, a eterna
imperfeição; para o eterno buscar, esperar, valorar, encontrar, descobrir, melhorar,
aprender e criar valores; mas também para o eterno errar, a criação de desvalores.
Nós próprios nos criamos pela invenção da linguagem especificamente humana.
Para Darwin, o uso e o desenvolvimento da linguagem humana “reagiram sobre
o espírito”. Seus enunciados podem representar um estado de coisas, podem ser
objetivamente verdadeiros ou falsos. Isso gera a busca pela verdade objetiva, pelo
conhecimento humano. A busca da verdade pertence, por certo, ao que a vida criou
de melhor e mais vultoso em sua busca por um mundo melhor.
Obrigado, Prof. Canotilho, por nos ensinar tudo isso; pelo êxito da
busca por um mundo melhor ao longo de sua produtiva carreira acadê­
mica, como pensador do Direito e da Política. Obrigado por nos ensinar
a pensar a produção de uma vida melhor, para redução das incertezas,
das iniquidades, da pobreza e dos sofrimentos evitáveis. Obrigado por nos
fazer acreditar numa via possível, uma saída pelas “armas necessárias”,
que devemos usar para combater, com “legitimidade”, sem pôr abaixo as
leis ou suspender o Estado de Direito, caminho, como V. Sa. bem afirmou,
“mais pedregoso a curto prazo, porém de solução mais duradoura”.
Que o Direito Constitucional continue sendo, pela elegância da
pena de sua caneta, “o cadinho de testabilidade e experimentação das
respostas dos homens aos problemas da cidade”.
Bem-vindo a Uberaba! Sinta-se em casa!

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 263-265, out./dez. 2010
RESENHA
Resenha 269

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado


Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

Resenha: A resenha pretende trazer breves considerações sobre o recente


livro de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, no qual se discute o impor­
tante tema das fundamentações das decisões judiciais e a eficiência e
adequação do serviço público jurisdicional por força da recomendação
constitucional.

Contemporaneamente, a discussão acerca do Direito Processual


ganhou um papel de relevo no Brasil depois da Constituição de 1988.
Pensado criticamente por alguns e dogmaticamente por muitos outros,
o Direito Processual passou a ser um dos pontos centrais no debate em
torno da questão da legitimidade das decisões judiciais.
Pertencente à corrente contemporânea de escritores que trazem
o Processo Constitucional como instituição que se encarrega de produzir,
interpretar, aplicar e modificar as leis, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias
segue a linha de pesquisa que trabalha o Direito Processual na constru­ção
do Estado Constitucional e Democrático.
A sua obra sob título Processo Constitucional e Estado Democrático de
Direito traz novidades e crescimento científico porque provoca um estudo
de Direito Processual voltado contra o status quo, o tradicionalismo, pois
ao eliminar e problematizar a crítica na busca de conhecimento o livro
rompe com as teorias processuais dogmáticas.
Embora a maior parte dos escritores focalize o “Processo Consti­
tucional” só na vertente do Judiciário, o livro não deslembra de estudar
o “Processo Constitucional” também no âmbito Legislativo, igualmente
importante porque é o Processo Legislativo que vai se ocupar da própria
construção do Direito.
Por conseguinte, a obra publiciza uma organização didática de
temas que abrem oportunidade às novas gerações de praticar uma “Ciência
Discursiva do Direito Processual” que mostra a deterioração das decisões
judiciais encaminhadas sob critérios outros dissociados da reserva legal
do Processo, porque marcadas pela “arbitrariedade, pela discricionariedade,
pelo subjetivismo, pelo messianismo, pela sensibilidade e pelas
individualidades carismáticas (...)”.1

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte:
1

Del Rey, 2010. p. 120.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 269-271, out./dez. 2010
270 André Del Negri

Roubando a fala do autor, que o digam os profissionais e pensadores


ao se depararem com decisões jurisdicionais fundamentadas, por
exemplo, nos critérios enigmáticos e irresponsáveis do “justo razoável”, do
“ideal de justiça”, do “livre arbítrio do juiz”, do “processo justo”, da “interpretação
mais razoável”, da“decisão mantida pelos seus próprios e jurídicos fundamentos”,
além de tantas outras esquisitas e irresponsáveis “fundamentações”.
Aqui se faz necessário um comentário altamente relevante: salta aos
olhos a coragem do autor. Realmente é uma literatura enfrentativa. Essa
capacidade de desconstrução não se restringe a um só ponto. Basta abrir
o livro em qualquer capítulo para constatar inúmeras críticas à exis­tên­cia
jurídica formalizada. Penso que o mais forte em Brêtas é a capacidade
de transmitir sinceridade ao texto. Suas grandes armas para isso: estudo,
pesquisa e uma experiência de mais de três décadas na advocacia. Dessa
forma, o(a) leitor(a) se depara com um livro bem escrito e lastreado em
rica bibliografia que o coloca muito além do lugar-comum. Por isso a
obra nos obriga a fazer uma reflexão o tempo todo e a repensar certos
comportamentos do Judiciário brasileiro na contemporaneidade.
Aqui outro destaque. O Processo ensinado no livro não é aquele
visto pelo ângulo ultrapassado de mero “calhamaço de papéis,” como
vem ocorrendo, de forma lamentável, não poucas vezes, na realidade
forense. E mais: o autor não trabalha a jurisdição como atividade solitária
dos juízes. Fica claro que a leitura que o autor tem de Processo é a de uma
instituição garantidora de democracia, de cidadania e de provimentos
finais compartilhados. Eis a relevância para impedir que os juízes
selecionem as questões que decidirão no Processo, segundo seus par­
ti­
culares sentimentos de justiça, não mediados por uma estrutura argu­
mentativa preparatória da decisão. É contra esse quadro mirrado que o
livro se insurge.
Alcançado este ponto, não posso dispensar a recapitulação de
outro: Merece toda atenção a responsabilidade do Estado brasileiro pela
função jurisdicional, uma vez que o serviço judiciário é um setor de fun­
cionamento do Estado e que tem o comprometimento constitucional de
prestar serviço público adequado e eficiente, como todos os outros ser­-
viços públicos. Assim, o povo tem não só o direito fundamental à juris­
dição, como, também, o direito a um serviço público prestado dentro
de um prazo sem dilações indevidas, ou seja, dentro dos prazos fixados
pelo próprio Estado nas normas de direito processual que edita.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 269-271, out./dez. 2010
Resenha 271

Aí, o livro denuncia o apequenamento do discurso de dominação,


o Estado-juiz como autor solitário da sentença, o conhecimento pres­
suposto, os efeitos perversos da demora na prestação jurisdicional, a
irracionalidade de teorias que veem os cidadãos como dóceis expecta­
dores, o advogado como mero técnico do procedimento ou artigo de
luxo. Dessa forma, o terreno intelectual está bem preparado para o argu­
mento de que é possível acreditarmos numa via possível.
São essas novas interfaces científicas que trazem fartas esperanças
a quem leciona em Universidades ou milita na sofrida prática do foro.
Por isso o livro do professor Ronaldo Brêtas eleva-se em valioso eixo da
docência contemporânea do Processo Constitucional.

André Del Negri


Professor de Direito Constitucional e Teoria da Constituição na Faculdade de Direito do Triângulo
Mineiro da Universidade de Uberaba (MG). Mestre em Direito Constitucional pela UFMG.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de


Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. Resenha de: NEGRI, André Del. Revista Brasileira de
Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 269-271, out./dez. 2010.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 269-271, out./dez. 2010
Resenha 273

BRITO, Lúcio Eduardo de. A ação popular como instrumento de invalidação


da sentença lesiva ao patrimônio público. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

Dr. Lúcio Eduardo de Brito é bacharel em Direito pela Faculdade


Milton Campos, pós-graduado em direito público pela Faculdade de
Direito Oeste de Minas, mestre em direito pela Universidade do Estado
de Minas Gerais. Foi Assessor Judiciário e Diretor I do Tribunal de Justiça
Militar do Estado de Minas Gerais (1988-1993), exercendo também o
cargo de Assessor Jurídico do Presidente daquele mesmo Tribunal (1993).
Ex-Promotor de Justiça (1993), atualmente é Juiz de Direito, titular da
1ª Vara Cível da Comarca de Uberaba, MG. Foi professor de Filosofia do
Direito, Direito Civil (Obrigações e Contratos) e Prática Forense, na Facul­
dade de Direito da Universidade do Estado de Minas Gerais (2000-2002)
e também na Faculdade de Direito da Universidade de Uberaba, MG.
A obra ora resenhada, lançada este ano na ocasião do Congresso
de Direito Processual de Uberaba – 4ª edição (informações no site: <www.
cepaj.org.br>), é intitulada A ação popular como instrumento de invalidação
da sentença lesiva ao patrimônio público. Representa a versão comercial
da dissertação mediante a qual Dr. Lúcio de Brito obteve seu título de
Mestre em Direito, trabalho defendido com o seu brilho costumeiro,
perante seleta banca de avaliadores — Professores Humberto Theodoro
Júnior, Mario Lúcio Quintão e Luis Carlos Figueira (orientador) —,
formada pela Universidade do Estado de Minas Gerais, e que lhe rendeu
aprovação com nota máxima.
A ousada tese advogada pelo autor tem, como ponto central, o pro­
pósito de demonstrar que também o ato jurisdicional lesivo ao patrimô­
nio público pode e deve ser invalidado judicialmente por intermédio
da ação popular, cuja legitimidade é aberta a qualquer cidadão. Em prol
do exercício pleno da democracia, Dr. Lúcio de Brito defende, enfim,
que a concretização dos direitos fundamentais sonegados à sociedade
em função da prática de atos inconstitucionais, inclusive àqueles de
natureza jurisdicional, admite invalidação mediante o uso da ação popular,
evidenciando, para tanto, que também os representantes do Judiciário
praticam atos contrários à Constituição e, deste modo, lesivos à coisa
pública. Para tanto, o autor adota, como um dos pilares de sustentação
da tese, a teoria da relativização da coisa julgada inconstitucional, vale dizer,
elucida que este instituto já não detém o prestígio de outrora e que, em
pleno Estado Democrático de Direito, merece, em hipóteses excepcionais,
ser descaracterizado como dogma, e assim sofrer alguma flexibilização,

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 273-274, out./dez. 2010
274 Lúcio Delfino

ainda que por procedimentos jurisdicionais alheios àquele instaurado


pelo exercício de ação rescisória.
Mas a obra é muito mais que seu ponto central. Encontra-se nela
viva fonte de pesquisa, notadamente porque o autor dedica capítulos
específicos ao exame histórico da ação popular, sem se contentar em
manter-se preso somente ao direito brasileiro, indo adiante para trazer
preciosos apontamentos colhidos também do direito alienígena. Traça,
de outro lado, um perfil atual desse remédio constitucional e examina
sua natureza, objeto e condições, além de enfrentar inúmeros e controver­
tidos temas, que nem sempre recebem da doutrina a merecida atenção.
Não bastasse, mais prestígio há de ser conferido ao trabalho tendo-
se em vista que foi prefaciado por ninguém menos que o maior processua­
lista brasileiro da atualidade, Professor Humberto Theodoro Júnior.
Aliás, dele são as palavras, registradas já nas primeiras páginas do livro:

Pode-se até discordar da amplitude que o ensaio tenha dado à possibilidade


de negativa de eficácia à sentença inconstitucional por lesão injurídica ao patri­
mônio público. Mas é inegável o valor da tese e seus múltiplos aspectos jurídicos,
políticos e sociais, valorizados pela excelência da pesquisa e dos argumentos
dispensados ao complexo e atualíssimo tema da sentença inconstitucional, bem
como à história e ao papel da ação popular no Estado Democrático de Direito.
Nela se encontra um trabalho valioso cientificamente, que, qualquer que seja
o posicionamento jurídico do leitor, funcionará como um apelo veemente a
meditar sobre um dos problemas mais atuais e prementes enfrentado pelo direito
processual em sua conexão com a esfera constitucional. Vale a pena acompanhar
o pensamento e o raciocínio do autor, não só pela agradável leitura do texto,
mas principalmente pelo seu valioso conteúdo.

Portanto, felicito o autor, Dr. Lúcio Eduardo de Brito, pela excelência


de sua obra, e também a Editora Fórum por mais esta importantíssima
contribuição oferecida à comunidade jurídica.

Lúcio Delfino
Advogado. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro do
Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais.
Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

BRITO, Lúcio Eduardo de. A ação popular como instrumento de invalidação da sentença
lesiva ao patrimônio público. Belo Horizonte: Fórum, 2010. Resenha de: DELFINO,
Lúcio. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72,
p. 273-274, out./dez. 2010.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 273-274, out./dez. 2010
Resenha 275

ATHENIENSE, Alexandre. Comentários à Lei 11.419/06 e as práticas


processuais por meio eletrônico nos tribunais brasileiros. Curitiba: Juruá, 2010.

O advogado especialista em Direito e Tecnologia da Informação


Alexandre Atheniense é o autor do livro Comentários à Lei 11.419/06 e as
práticas processuais por meio eletrônico nos tribunais brasileiros.
O livro é resultado de uma pesquisa acadêmica inédita, e do relato
da experiência vivenciada como Presidente da Comissão de Tecnologia
da Informação da OAB Federal, onde o autor atuou como representante
da entidade no Congresso Nacional durante a tramitação do projeto de
lei e perante o Conselho Nacional de Justiça na Comissão de Regula­
mentação da Lei do Processo Eletrônico.
A obra apresenta uma compilação das pesquisas desenvolvidas
junto a todos os tribunais brasileiros que estão no processo de transição do
papel para o documento digital, de modo a instituir que as várias regras
processuais relativas à tramitação dos autos sejam praticadas a distância.
Esta Lei autorizou que cada tribunal tivesse autonomia para regu­
lamentar suas funcionalidades a partir da elaboração de normas de
organização judiciária, o que acarretou a criação de inúmeras práticas
pro­cessuais por meio eletrônico em cada Tribunal, que ora se encontram
compiladas nesta obra.
O objetivo do livro é propiciar aos leitores uma visão ampla e
contextualizada sobre como é possível praticar diversos atos processuais
nos 92 tribunais brasileiros por meio eletrônico sem o eventual deslo­
camento presencial, bem como os comentários por artigo da Lei do
Processo Eletrônico — Lei nº 11.419/2006.
Essa evolução já bate a nossa porta. Os tribunais superiores já
estão totalmente integrados com essa nova realidade, bem como alguns
tribunais regionais federais. Muito em breve, o processo eletrônico será
uma realidade também nos tribunais estaduais.
Assim, esse estudo revela-se um verdadeiro manual de instruções
para o profissional que busca entender o mundo virtualizado do processo
e acompanhar a inevitável transformação procedimental em relação aos
atos processuais.
Todo o trabalho foi coordenado e escrito por Alexandre Atheniense
e contou com a colaboração de diversos pesquisadores que conseguiram

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 275-276, out./dez. 2010
276 Dnieper Chagas de Assis

compilar e comentar todas as normas de organização judiciária existentes


no Brasil referentes às práticas processuais por meio eletrônico.

Dnieper Chagas de Assis


Graduado em Direito pela Universidade de Uberaba. Pós-graduado em Ciências Penais pela Uni-
versidade Anhanguera – UNIDERP. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG)
e da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). E-mail: <dnieper@dnieper.adv.br>.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

ATHENIENSE, Alexandre. Comentários à Lei 11.419/06 e as práticas processuais por meio


eletrônico nos tribunais brasileiros. Curitiba: Juruá, 2010. Resenha de: ASSIS, Dnieper
Chagas de. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18,
n. 72, p. 275-276, out./dez. 2010.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 275-276, out./dez. 2010
Resenha 277

DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 14. ed. São
Paulo: Atlas, 2010. 1442 p.

O primeiro contato que tive com a obra do Prof. Elpídio Donizetti


foi em junho de 1999, quando ministrava aulas numa instituição do inte­-
rior goiano. Ao falar sobre o tema “citação ficta no procedimento moni­
tório”, mencionei que poucos autores tratavam do tema, quando uma
aluna me mostrou a primeira edição do Curso didático, ainda publicado
pela Del Rey. Alguns dias depois recebi um exemplar devidamente auto­
grafado, porque a aluna em questão era sobrinha do então juiz de direito,
hoje desembargador do TJMG.
Desde então a obra só cresceu. Não somente em quantidade de pági­
nas (a primeira edição tinha 592), mas especialmente em profundidade.
Como livro didático, enfrenta tarefa difícil: cuidar num só volume
da extensa matéria de direito processual civil em linguagem acessível
para o aluno da graduação, cuidando por outro lado de manter a pro­
fundidade científica necessária para sustentar os posicionamentos confli­
tantes da doutrina e jurisprudência. Faz isso com absoluta clareza, sem
receio de inovar ou adotar posicionamentos por vezes minoritários.
A obra está dividida em cinco partes, acompanhando a sequência do
CPC: Parte I – Teoria Geral do Direito Processual Civil, Parte II – Processo
de Conhecimento, Parte III – Processo de Execução, Parte IV – Processo
Cautelar e Parte V – Procedimentos Especiais.
O texto, como dito acima, é claro e enfrenta questões polêmicas,
trazendo no rodapé das páginas as fontes doutrinárias e jurispruden­ciais
utilizadas pelo autor e que servem de indicativo ao leitor para leituras
complementares. Mas não abusa dessas informações que podem tornar
o texto confuso e cansativo.
O livro também é dotado de atrativos importantes ao final dos
capítulos, contemplando “quadros esquemáticos” (totalizando 98) que
sintetizam a abordagem feita e servirão para consultas rápidas. Além
disso, o autor seleciona “jurisprudência temática” relativa ao assunto do
capítulo e questões objetivas de concursos para as importantes carreiras
jurídicas (juiz do trabalho, juiz federal, juiz de direito, promotor de
justiça, defensor público e OAB). Nessas questões o autor não se limita
a indicar a alternativa a ser assinalada, mas apresenta justificativa para
a escolha.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 277-278, out./dez. 2010
278 Gil Ferreira de Mesquita

Embora um livro de processo civil em volume único possa carregar


alguma desconfiança em torno de sua qualidade, não é o caso desse
Curso didático, pois reúne características essenciais para ser adotado em
universidades de todo o país, sem deixar de atender os alunos naquilo
que lhes é mais importante nos bancos da graduação.

Gil Ferreira de Mesquita


Mestre em Direito Público pela Universidade de Franca (UNIFRAN). Professor do Centro Universitário
do Triângulo (UNITRI) e da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro do Instituto Brasileiro
de Direito Processual (IBDP) e do Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG). Advogado.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
1442 p. Resenha de: MESQUITA, Gil Ferreira de. Revista Brasileira de Direito Processual
– RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 277-278, out./dez. 2010.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 277-278, out./dez. 2010
Resenha 279

MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ, Anselmo Prieto; BRUSCHI,


Gilberto Gomes (Coord.). Temas atuais das tutelas individuais e coletivas:
estudos em homenagem ao Professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva,
2010.

O pluralismo de ideias que pode ser encontrado nos diversos


artigos reunidos neste livro, que é dedicado ao Professor e Desembargador
Sérgio Shimura, espelha bem o estágio de transição pelo qual o direito
processual civil brasileiro está passando atualmente.
O próprio título da obra (Temas atuais das tutelas individuais e
coletivas: estudos em homenagem ao Professor Sérgio Shimura) já indica a
necessidade de uma atenta leitura de todos os textos nela inseridos.
Foram reunidos trabalhos de um seleto grupo de estudiosos do
processo civil, abordando temas preponderantemente de processo de
conhecimento, divididos em 56 magníficos artigos, dispostos em ordem
alfabética pelo nome dos autores, da seguinte maneira: 1. Alberto Camiña
Moreira – A dúvida registrária e o recurso especial. 2. Alexandre David
Malfatti – Ônus da prova no âmbito da publicidade – disciplina no código
de defesa do consumidor. 3. André Gustavo Salvador Kauffman – Panorama
da prova na jurisprudência do TJSP. 4. Anselmo Prieto Alvarez e César
Cipriano de Fazio – Causas de pedir nas ações de despejo e seus aspectos
processuais. 5. Antonio Carlos Matteis de Arruda – Ação de prestação de
contas. 6. Antonio Notariano Junior – Da irregularidade de representação e
seus efeitos em face do terceiro. 7. Arlete Inês Aurelli – Legitimidade como
condição para o exercício da ação de mandado de segurança, conforme
a Lei 12.016/2009. 8. Arruda Alvim – Instrumentos constitucionais
direcionados à proteção dos direitos coletivos – ação civil pública e ação
popular. 9. Arthur Luis Mendonça Rollo – Inquérito Civil e Termo de Ajuste
de Conduta. Limites à atuação do Ministério Público. 10. Bruno Freire e
Silva – A Lei 12.016/09 e a utilização da ação anulatória diante da nova
sistemática do mandado de segurança coletivo. 11. Bruno Garcia Redondo
– Ônus da prova e distribuição dinâmica: lineamentos atuais. 12. Cassio
Scarpinella Bueno – O mandado de segurança coletivo na Lei 12.016/2009.
13. Celso Antonio Pacheco Fiorillo – Mandado de segurança coletivo
ambiental e a Lei 12.016/09. 14. Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida –
Tutela específica antecipatória, pedidos incontroversos e efetividade do
processo coletivo ambiental. 15. Denis Donoso – Juízo de admissibilidade

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 279-282, out./dez. 2010
280 Marcelo José Magalhães Bonicio

da petição inicial – aspectos práticos e polêmicos do nascedouro da


relação processual. 16. Eduardo Arruda Alvim e Angélica Arruda Alvim
– Coisa julgada no mandado de segurança coletivo e a Lei 12.016/09.
17. Eduardo de Avelar Lamy – Definindo a jurisdição e o foro competentes
nos contratos de transporte marítimo. 18. Eduardo Talamini – Ações
autônomas de defesa do executado. 19. Eurico Ferraresi – Carga valorativa
da prova produzida no inquérito civil. 20. Fabiano Carvalho – Prescrição,
decadência, sentença de mérito e coisa julgada. 21. Fátima Nancy Andrighi
– Reflexões acerca da representatividade adequada nas ações coletivas
passivas. 22. Felice Balzano e Welder Queiroz dos Santos – A legitimidade ativa
e os limites subjetivos da coisa julgada na ação reivindicatória de bem em
condomínio: uma análise processual do artigo 1.314 do Código Civil. 23.
Fernando da Fonseca Gajardoni – A competência constitucional dos Estados
em matéria de procedimento (art. 24, XI, da CF): ponto de partida para a
releitura de alguns problemas do processo civil brasileiro. 24. Flávio Cheim
Jorge e Marcelo Abelha Rodrigues – Apontamentos sobre a tempestividade
recursal: Fluência e ciência inequívoca; recurso interposto antes da
intimação; interrupção do prazo por força da interposição de embargos de
declaração. 25. Flávio Luiz Yarshell – Brevíssimas considerações acerca da
extensão da cláusula compromissória. 26. Fredie Didier Jr. – Litisconsórcio
necessário ativo (?). 27. Gelson Amaro de Souza – Coisa julgada e execução
individual na ação coletiva. 28. Gilberto Gomes Bruschi – O princípio da
congruência entre o pedido e a sentença e os vícios decorrentes de sua
não observância. 29. Glauco Gumerato Ramos e Denise de Paula Andrade –
Arresto (ou embargo) cautelar na perspectiva do processo sincrético em
grau máximo. 30. Gustavo Santana Nogueira – O controle de legalidade das
decisões dos Juizados Especiais Cíveis pelo Superior Tribunal de Justiça.
31. João Batista Lopes e Maria Elizabeth de Castro Lopes – O juiz, as regras
sobre o ônus da prova e a teoria das cargas dinâmicas. 32. João Batista
Amorim de Vilhena Nunes – Cumulação de demandas, tutela antecipada,
decisão parcial de mérito e sua execução. 33. José Horácio Cintra Gonçalves
Pereira – Ação de despejo por falta de pagamento. 34. José Roberto Neves
Amorim – Estabilização da coisa julgada na tutela antecipada. 35. Leonardo
José Carneiro da Cunha – Anotações sobre o mandado de segurança na
Lei 12.016/2009. 36. Luis Guilherme Aidar Bondioli – Breves notas sobre
a litigância de má-fé no processo civil brasileiro. 37. Luiz Manoel Gomes
Junior e Rogério Favreto – Anotações sobre o projeto da nova lei da ação civil

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 279-282, out./dez. 2010
Resenha 281

pública – análise histórica e as suas principais inovações. 38. Luiz Rodrigues


Wambier e Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos – Recursos especiais repetitivos:
a disciplina proposta no Projeto de Lei 166 de 2010 (novo CPC). 39. Márcia
Conceição Alves Dinamarco – O princípio da proporcionalidade como meio
para solucionar as questões do litisconsórcio necessário ativo. 40. Marcos
Destefenni – Ativismo judicial e ações coletivas. A suspensão de segurança e
o ativismo negativo. 41. Mirna Cianci e Rita Quartieri – A tutela antecipada
exauriente – uma leitura constitucional. 42. Mônica Bonetti Couto – Embargos
declaratórios e o prazo para interposição dos recursos excepcionais: o
problema do efeito interruptivo (art. 538, CPC) e a Súmula 418/STJ. 43.
Nathaly Campitelli Roque – As diretrizes da proteção jurídica da criança e do
adolescente. 44. Nelson Finotti Silva – A Fazenda Pública como autora nos
Juizados Especiais da Fazenda Pública. 45. Olavo de Oliveira Neto e Patrícia
Elias Cozzolino de Oliveira – O processo como instituição constitucional.
46. Pedro Miranda de Oliveira – A natureza jurídica da reclamação: Ação
constitucional de conhecimento originária dos tribunais superiores.
47. Renata Giovanoni Di Mauro – O princípio da fungibilidade na cognição
dos embargos de declaração interpostos perante os tribunais superiores.
48. Ricardo de Barros Leonel – Ação rescisória e improbidade administra­
tiva. 49. Rita Dias Nolasco – Os esforços para alcançar a efetividade no
processo de conhecimento – processo sincrético. 50. Rizzatto Nunes – Acesso
à Justiça: a assistência judiciária e a assistência jurídica – uma confusão a
ser solvida. 51. Rodolpho Vannucci e Geraldo Fonseca de Barros Neto – A não
obrigatoriedade da denunciação da lide. 52. Rodrigo D’Orio D. de Oliveira
– Da indispensabilidade e inviolabilidade do advogado e sua penalização
na litigância de má-fé. 53. Rogério Licastro Torres de Mello – Apelação de
sentença de improcedência e de rejeição de embargos de terceiro: duplo
efeito ou apenas efeito devolutivo? 54. Teresa Arruda Alvim Wambier –
Anotações sobre o Projeto de Lei nº 166/2010, para um novo Código de
Processo Civil. 55. Vítor José de Mello Monteiro – O princípio constitucional
do contraditório e a concessão de liminares “inaudita altera parte”. 56.
William Santos Ferreira – O ônus da prova na fraude à execução: a boa-fé
objetiva e as premissas de uma sociedade justa e solidária.
Com o elenco de autores e temas abordados fica claro ao leitor,
mesmo àquele que não se dedica exclusivamente ao estudo do direito
processual civil, que se trata de uma leitura bastante enriquecedora.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 279-282, out./dez. 2010
282 Marcelo José Magalhães Bonicio

Além disso, é fato que todos os autores são processualistas reco­


nhecidos e respeitados, o que, por si só, já indica que a obra não passará
despercebida aos olhos dos estudiosos em geral.
Não poderia ser diferente, pois a missão de prestar uma justa
homenagem a um dos mais admirados e respeitados juristas da atuali­
dade exigia, sem sombra de dúvida, uma obra como esta, coordenada
pelos ilustres processualistas Gilberto Gomes Bruschi, Alberto Camiña
Moreira e Anselmo Prieto Alvarez, que a Editora Saraiva apresenta ao
exigente público.

Marcelo José Magalhães Bonicio


Professor doutor da Universidade de São Paulo. Membro do IBDP. Procurador do Estado de
São Paulo.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ, Anselmo Prieto; BRUSCHI, Gilberto Gomes (Coord.).
Temas atuais das tutelas individuais e coletivas: estudos em homenagem ao Professor
Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2010. Resenha de: BONICIO, Marcelo José Magalhães.
Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72,
p. 279-282, out./dez. 2010.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 279-282, out./dez. 2010
Índice 283

Índice
página página

Doutrina e Resenha página página

Autor MESQUITA, Gil Ferreira de


- Resenha: DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de
ARAÚJO, José Henrique Mouta direito processual civil. 14. ed. São Paulo: Atlas,
- Artigo: Variáveis acerca do cabimento de intervenção 2010. 1442 p.........................................................................277
de terceiros no mandado de segurança....................... 23
NEGRI, André Del
ASSIS, Dnieper Chagas de - Resenha: DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Pro­
- Resenha: ATHENIENSE, Alexandre. Comentários à cesso Constitucional e Estado Democrático de
Lei 11.419/06 e as práticas processuais por meio Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.........................269
eletrônico nos tribunais brasileiros. Curitiba: Juruá,
2010.........................................................................................275 SILVA, Michel Ferro e
- Artigo: A utilização da ação rescisória para a des­
BONICIO, Marcelo José Magalhães constituição de decisão fundamentada em prova
- Resenha: MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ, obtida por meio ilícito......................................................173
Anselmo Prieto; BRUSCHI, Gilberto Gomes (Coord.).
Temas atuais das tutelas individuais e coletivas: SOUZA, Henrique Yukio Pereira de
estudos em homenagem ao Professor Sérgio - Artigo: A presunção judicial no Estado Democrático
Shimura. São Paulo: Saraiva, 2010.................................279 de Direito: uma análise crítica do artigo 335 do
Código de Processo Civil..................................................107
BRUSCHI, Gilberto Gomes
- Artigo: O agravo de instrumento e a inaplicabili­ - TEIXEIRA, Ricardo Augusto de Araújo
dade do §4º do art. 515 do CPC no caso de defeito - Artigo: Colhendo frutos da árvore venenosa:
de formação por falta das peças facultativas...........243 formação e uso dos precedentes no Brasil e nos
EUA...........................................................................................189
CÂMARA, Alexandre Freitas
- Artigo: O princípio da oralidade e o sistema recursal TIVERON, Sérgio
nos Juizados Especiais........................................................ 13 - Notas e comentários: Apresentação – Professor José
Joaquim Gomes Canotilho..............................................263
CHIOVITTI, Alexandre Paulichi
- Artigo: Assistência simples e coisa julgada material TORRES, Artur Luis Pereira
– A “justiça da decisão” do artigo 55 do Código de - Artigo: A teoria dos distintos planos da ordem
Processo Civil brasileiro....................................................143 jurídica....................................................................................155

COSTA, Alexandre Araújo WLADECK, Felipe Scripes


- Artigo: Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo: - Artigo: O conteúdo da causa de pedir no processo
uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas à civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC........................ 45
teoria da instrumentalidade do processo..................127
Título
COSTA, Henrique Araújo
- Artigo: Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo: AGRAVO de instrumento e a inaplicabilidade do §4º
uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas à do art. 515 do CPC no caso de defeito de formação
teoria da instrumentalidade do processo..................127 por falta das peças facultativas, O
- Artigo de: Gilberto Gomes Bruschi................................243
CRUZES, Maria Soledade Soares
- Artigo: A sistematização do processo civil brasileiro: APRESENTAÇÃO – Professor José Joaquim Gomes
uma visão prospectiva da formação de um sistema Canotilho
processual sincrético, multifuncional e aberto à - Notas e comentários de: Sérgio Tiveron......................263
justiça do caso concreto...................................................215
ASSISTÊNCIA simples e coisa julgada material
DEL NEGRI, André – A “justiça da decisão” do artigo 55 do Código
- Artigo: Direito Processual e democracia...................... 35 de Processo Civil brasileiro
- Artigo de: Alexandre Paulichi Chiovitti........................143
DELFINO, Lúcio
- Parecer: Condenação de advogado a litigância de ATHENIENSE, Alexandre. Comentários à Lei 11.419/06
má-fé: cariz autoritário da decisão e atentado ao e as práticas processuais por meio eletrônico nos
devido processo legal.......................................................251 tribunais brasileiros. Curitiba: Juruá, 2010.
- Resenha de: Dnieper Chagas de Assis..........................275
DELFINO, Lúcio
- Resenha: BRITO, Lúcio Eduardo de. A ação popular BRITO, Lúcio Eduardo de. A ação popular como instru­
como instrumento de invalidação da sentença lesiva mento de invalidação da sentença lesiva ao patrimô­
ao patrimônio público. Belo Horizonte: Fórum, nio público. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
2010.........................................................................................273 - Resenha de: Lúcio Delfino................................................273

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 283-286, out./dez. 2010
284 Índice

página página

COLHENDO frutos da árvore venenosa: formação e Assunto


uso dos precedentes no Brasil e nos EUA
- Artigo de: Ricardo Augusto de Araújo Teixeira.........189 A
AÇÃO RESCISÓRIA
CONDENAÇÃO de advogado a litigância de má-fé: - Ver: A utilização da ação rescisória para a des­
cariz autoritário da decisão e atentado ao devido constituição de decisão fundamentada em prova
processo legal obtida por meio ilícito. Artigo de: Michel Ferro e
- Parecer de: Lúcio Delfino..................................................251 Silva..........................................................................................173

CONTEÚDO da causa de pedir no processo civil bra­ ADVOGADO


sileiro e o Projeto de Novo CPC, O - Ver: Condenação de advogado a litigância de má-fé:
- Artigo de: Felipe Scripes Wladeck.................................... 45 cariz autoritário da decisão e atentado ao devido
processo legal. Parecer de: Lúcio Delfino...................251
DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Cons­
titucional e Estado Democrático de Direito. Belo AGRAVO DE INSTRUMENTO
Horizonte: Del Rey, 2010. - Ver: O agravo de instrumento e a inaplicabilidade
- Resenha de: André Del Negri...........................................269 do §4º do art. 515 do CPC no caso de defeito de
formação por falta das peças facultativas. Artigo
DIREITO Processual e democracia de: Gilberto Gomes Bruschi............................................243
- Artigo de: André Del Negri................................................. 35
ALONOMIA
DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito proces­ - Ver: A sistematização do processo civil brasileiro:
sual civil. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2010. 1442 p. uma visão prospectiva da formação de um sistema
- Resenha de: Gil Ferreira de Mesquita...........................277 processual sincrético, multifuncional e aberto à
justiça do caso concreto. Artigo de: Maria Soledade
Soares Cruzes.......................................................................215
INSTRUMENTALISMO x Neoinstitucionalismo: uma
avaliação das críticas neoinstitucionalistas à teoria
AMICUS CURIAE
da instrumentalidade do processo
- Ver: Variáveis acerca do cabimento de intervenção
- Artigo de: Alexandre Araújo Costa; Henrique Araújo
de terceiros no mandado de segurança. Artigo de:
Costa........................................................................................127
José Henrique Mouta Araújo............................................ 23
MOREIRA, Alberto Camiña; ALVAREZ, Anselmo Prieto;
AMPLA DEFESA
BRUSCHI, Gilberto Gomes (Coord.). Temas atuais - Ver: Condenação de advogado a litigância de má-fé:
das tutelas individuais e coletivas: estudos em home­ cariz autoritário da decisão e atentado ao devido
nagem ao Professor Sérgio Shimura. São Paulo: processo legal. Parecer de: Lúcio Delfino...................251
Saraiva, 2010.
- Resenha de: Marcelo José Magalhães Bonicio..........279 ARBITRARIEDADE
- Ver: Condenação de advogado a litigância de má-fé:
PRESUNÇÃO judicial no Estado Democrático de cariz autoritário da decisão e atentado ao devido
Direito: uma análise crítica do artigo 335 do Código processo legal. Parecer de: Lúcio Delfino...................251
de Processo Civil, A
- Artigo de: Henrique Yukio Pereira de Souza..............107 ART. 515 DO CPC
- Ver: O agravo de instrumento e a inaplicabilidade
PRINCÍPIO da oralidade e o sistema recursal nos do §4º do art. 515 do CPC no caso de defeito de
Juizados Especiais, O formação por falta das peças facultativas. Artigo de:
- Artigo de: Alexandre Freitas Câmara.............................. 13 Gilberto Gomes Bruschi...................................................243

SISTEMATIZAÇÃO do processo civil brasileiro: uma ASSISTÊNCIA


visão prospectiva da formação de um sistema pro­ - Ver: Variáveis acerca do cabimento de intervenção
cessual sincrético, multifuncional e aberto à justiça do de terceiros no mandado de segurança. Artigo de:
caso concreto, A José Henrique Mouta Araújo............................................ 23
- Artigo de: Maria Soledade Soares Cruzes...................215
ASSISTÊNCIA SIMPLES
TEORIA dos distintos planos da ordem jurídica, A - Ver: Assistência simples e coisa julgada material
- Artigo de: Artur Luis Pereira Torres................................155 – A “justiça da decisão” do artigo 55 do Código
de Processo Civil brasileiro. Artigo de: Alexandre
UTILIZAÇÃO da ação rescisória para a desconstituição Paulichi Chiovitti.................................................................143
de decisão fundamentada em prova obtida por meio
ilícito, A ATIVISMO JUDICIAL
- Artigo de: Michel Ferro e Silva........................................173 - Ver: Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo:
uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas à
VARIÁVEIS acerca do cabimento de intervenção de teoria da instrumentalidade do processo. Artigo
terceiros no mandado de segurança de: Alexandre Araújo Costa; Henrique Araújo
- Artigo de: José Henrique Mouta Araújo........................ 23 Costa........................................................................................127

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 283-286, out./dez. 2010
Índice 285

página página

AUTONOMIA DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO


- Ver: A sistematização do processo civil brasileiro: - Ver: O conteúdo da causa de pedir no processo
uma visão prospectiva da formação de um sistema civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC. Artigo de:
processual sincrético, multifuncional e aberto à Felipe Scripes Wladeck....................................................... 45
justiça do caso concreto. Artigo de: Maria Soledade
Soares Cruzes.......................................................................215 DIREITO SUBJETIVO
- Ver: A teoria dos distintos planos da ordem jurídica.
B Artigo de: Artur Luis Pereira Torres...............................155
BRASIL
- Ver: A sistematização do processo civil brasileiro: E
uma visão prospectiva da formação de um sistema ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
processual sincrético, multifuncional e aberto à - Ver: A presunção judicial no Estado Democrático
justiça do caso concreto. Artigo de: Maria Soledade de Direito: uma análise crítica do artigo 335 do
Soares Cruzes.......................................................................215 Código de Processo Civil. Artigo de: Henrique Yukio
Pereira de Souza..................................................................107
C
CABIMENTO
ESTADO TOTALITÁRIO
- Ver: A utilização da ação rescisória para a descons­
- Ver: Direito Processual e democracia. Artigo de:
tituição de decisão fundamentada em prova obtida
André Del Negri..................................................................... 35
por meio ilícito. Artigo de: Michel Ferro e Silva.......173

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO F


- Ver: Assistência simples e coisa julgada material FILOSOFIA DO PROCESSO
– A “justiça da decisão” do artigo 55 do Código - Ver: Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo:
de Processo Civil brasileiro. Artigo de: Alexandre uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas
Paulichi Chiovitti.................................................................143 à teoria da instrumentalidade do processo. Artigo
de: Alexandre Araújo Costa; Henrique Araújo
CONDENAÇÃO Costa........................................................................................127
- Ver: Condenação de advogado a litigância de má-fé:
cariz autoritário da decisão e atentado ao devido I
processo legal. Parecer de: Lúcio Delfino...................251 INSTRUMENTALISMO
- Ver: Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo:
CONTEÚDO DA CAUSA DE PEDIR uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas
- Ver: O conteúdo da causa de pedir no processo à teoria da instrumentalidade do processo. Artigo
civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC. Artigo de: de: Alexandre Araújo Costa; Henrique Araújo
Felipe Scripes Wladeck....................................................... 45 Costa........................................................................................127

CONTRADITÓRIO J
- Ver: Condenação de advogado a litigância de má-fé: JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS
cariz autoritário da decisão e atentado ao devido pro­ - Ver: O princípio da oralidade e o sistema recursal
cesso legal. Parecer de: Lúcio Delfino............................251 nos Juizados Especiais. Artigo de: Alexandre Freitas
Câmara...................................................................................... 13
D
DECISÃO JUDICIAL JUSTIÇA DA DECISÃO
- Ver: Colhendo frutos da árvore venenosa: formação - Ver: Assistência simples e coisa julgada material
e uso dos precedentes no Brasil e nos EUA. Artigo – A “justiça da decisão” do artigo 55 do Código
de: Ricardo Augusto de Araújo Teixeira......................189 de Processo Civil brasileiro. Artigo de: Alexandre
- Ver: Condenação de advogado a litigância de má-fé: Paulichi Chiovitti.................................................................143
cariz autoritário da decisão e atentado ao devido
processo legal. Parecer de: Lúcio Delfino...................251 L
LEI Nº 9.099/1995
DECISÃO - Ver: O princípio da oralidade e o sistema recursal
- Ver: Direito Processual e democracia. Artigo de: nos Juizados Especiais. Artigo de: Alexandre Freitas
André Del Negri..................................................................... 35 Câmara...................................................................................... 13
DESCONSTITUIÇÃO DE DECISÃO JUDICIAL
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
- Ver: A utilização da ação rescisória para a des­
constituição de decisão fundamentada em prova - Ver: Condenação de advogado a litigância de má-fé:
obtida por meio ilícito. Artigo de: Michel Ferro e cariz autoritário da decisão e atentado ao devido
Silva..........................................................................................173 processo legal. Parecer de: Lúcio Delfino...................251

DIREITO FUNDAMENTAL A UM ADVOGADO LITISCONSÓRCIO


- Ver: Condenação de advogado a litigância de má-fé: - Ver: Variáveis acerca do cabimento de intervenção
cariz autoritário da decisão e atentado ao devido de terceiros no mandado de segurança. Artigo de:
processo legal. Parecer de: Lúcio Delfino...................251 José Henrique Mouta Araújo............................................ 23

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 283-286, out./dez. 2010
286 Índice

página página

M PROVAS ILÍCITAS
MANDADO DE SEGURANÇA - Ver: A utilização da ação rescisória para a des­cons-
- Ver: Variáveis acerca do cabimento de intervenção tituição de decisão fundamentada em prova obtida
de terceiros no mandado de segurança. Artigo de: por meio ilícito. Artigo de: Michel Ferro e Silva.......173
José Henrique Mouta Araújo............................................ 23
PROVAS OBTIDAS POR MEIO ILÍCITO
MODELO CONSTITUCIONAL DO PROCESSO - Ver: A utilização da ação rescisória para a descons­
- Ver: Condenação de advogado a litigância de má-fé: tituição de decisão fundamentada em prova obtida
cariz autoritário da decisão e atentado ao devido por meio ilícito. Artigo de: Michel Ferro e Silva.......173
processo legal. Parecer de: Lúcio Delfino...................251
R
MULTA REFORMAS PROCESSUAIS
- Ver: Condenação de advogado a litigância de má-fé: - Ver: Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo:
cariz autoritário da decisão e atentado ao devido uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas
processo legal. Parecer de: Lúcio Delfino...................251 à teoria da instrumentalidade do processo. Artigo
de: Alexandre Araújo Costa; Henrique Araújo
N Costa........................................................................................127
NEOINSTITUCIONALISMO
- Ver: Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo: REGIME DEMOCRÁTICO
uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas - Ver: Condenação de advogado a litigância de má-
à teoria da instrumentalidade do processo. Artigo fé: cariz autoritário da decisão e atentado ao devido
de: Alexandre Araújo Costa; Henrique Araújo processo legal. Parecer de: Lúcio Delfino...................251
Costa........................................................................................127
S
P SISTEMATIZAÇÃO
PLANO DO DIREITO MATERIAL - Ver: A sistematização do processo civil brasileiro:
- Ver: A teoria dos distintos planos da ordem jurídica. uma visão prospectiva da formação de um siste­
Artigo de: Artur Luis Pereira Torres...............................155 ma processual sincrético, multifuncional e aberto à
justiça do caso concreto. Artigo de: Maria Soledade
PLANO DO DIREITO PROCESSUAL Soares Cruzes.......................................................................215
- Ver: A teoria dos distintos planos da ordem jurídica.
Artigo de: Artur Luis Pereira Torres...............................155 STARE DECISIS
- Ver: Colhendo frutos da árvore venenosa: formação
PRECEDENTES e uso dos precedentes no Brasil e nos EUA. Artigo
- Ver: Colhendo frutos da árvore venenosa: formação de: Ricardo Augusto de Araújo Teixeira......................189
e uso dos precedentes no Brasil e nos EUA. Artigo
de: Ricardo Augusto de Araújo Teixeira......................189 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
- Ver: Colhendo frutos da árvore venenosa: for­mação
PRESUNÇÃO JUDICIAL e uso dos precedentes no Brasil e nos EUA. Artigo
- Ver: A presunção judicial no Estado Democrático de: Ricardo Augusto de Araújo Teixeira......................189
de Direito: uma análise crítica do artigo 335 do
Código de Processo Civil. Artigo de: Henrique Yukio T
Pereira de Souza..................................................................107 TEORIA DA SUBSTANCIAÇÃO E TEORIA DA
INDIVIDUAÇÃO
PRINCÍPIO DA ORALIDADE - Ver: O conteúdo da causa de pedir no processo
- Ver: O princípio da oralidade e o sistema recursal civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC. Artigo de:
nos Juizados Especiais. Artigo de: Alexandre Freitas Felipe Scripes Wladeck....................................................... 45
Câmara...................................................................................... 13
TEORIA DISCURSIVA
PROCESSO CIVIL - Ver: Colhendo frutos da árvore venenosa: formação
- Ver: A sistematização do processo civil brasileiro: e uso dos precedentes no Brasil e nos EUA. Artigo
uma visão prospectiva da formação de um sistema de: Ricardo Augusto de Araújo Teixeira......................189
processual sincrético, multifuncional e aberto à
justiça do caso concreto. Artigo de: Maria Soledade TEORIA GERAL DO PROCESSO
Soares Cruzes.......................................................................215 - Ver: Instrumentalismo x Neoinstitucionalismo:
uma avaliação das críticas neoinstitucionalistas
PROFESSOR JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO à teoria da instrumentalidade do processo. Artigo
- Ver: Apresentação – Professor José Joaquim de: Alexandre Araújo Costa; Henrique Araújo
Gomes Canotilho. Notas e comentários de: Sérgio Costa........................................................................................127
Tiveron....................................................................................263
TEORIA NEOINSTITUCIONALISTA DO PROCESSO
PROJETO DE NOVO CPC - Ver: A presunção judicial no Estado Democrático
- Ver: O conteúdo da causa de pedir no processo de Direito: uma análise crítica do artigo 335 do
civil brasileiro e o Projeto de Novo CPC. Artigo de: Código de Processo Civil. Artigo de: Henrique Yukio
Felipe Scripes Wladeck....................................................... 45 Pereira de Souza..................................................................107

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 283-286, out./dez. 2010
Instruções de publicação para os autores 287

Instruções de publicação para os autores

Os trabalhos para publicação na Revista Brasileira de Direito


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periodicidade trimestral, deverão ser encaminhados, no formato
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New Roman, tamanho 12, espaçamento entre linhas de 1,5. Os parágrafos
devem ser justificados. O tamanho do papel deve ser A4 e as margens
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ainda, estar acompanhados dos seguintes dados: nome do autor, sua
qualificação acadêmica e profissional, endereço, telefone e e-mail.
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adequada a uma publicação editorial científica. A escrita deve obedecer
às novas regras ortográficas em vigor desde a promulgação do ACORDO
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de 2009. As citações de textos anteriores ao ACORDO devem respeitar a
ortografia original.
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contendo: título do artigo (na língua do texto e em inglês), nome do autor,
filiação institucional, qualificação (mestrado, doutorado, cargos etc.),
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Abstract), palavras-chave, no máximo 5 (na língua do texto e em inglês –
Key words), sumário do artigo, epígrafe (se houver), texto do artigo,
referências. O Autor deverá fazer constar, no final do artigo, a data e o
local em que foi escrito o trabalho de sua autoria.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 287-288, out./dez. 2010
288 Instruções de publicação para os autores

Recomenda-se que todo destaque que se queira dar ao texto seja


feito com o uso de itálico e não por meio do negrito e do sublinhado.
As citações (palavras, expressões, períodos) deverão ser cuidadosamente
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de três linhas) devem constituir um parágrafo independente, com recuo
esquerdo de 2cm (alinhamento justificado), utilizando-se espaçamento
entre linhas simples e tamanho da fonte 10; as citações textuais
curtas (de até três linhas) devem ser inseridas no texto, entre aspas e
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Esta obra foi composta em fontes New


Baskerville e Humnst 777, corpo 9/12 e
impressa em papel Offset 75g (miolo) e
Supremo 250g (capa) pela Gráfica e Editora
O LUTADOR. Belo Horizonte/MG, dezembro
de 2010.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 18, n. 72, p. 287-288, out./dez. 2010

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