Você está na página 1de 276

89

REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO PROCESSUAL – RBDPRO


Diretores
Lúcio Delfino
Fernando F. Rossi

Conselho Editorial José Miguel Garcia Medina Luciana Cristina Minaré Pereira
José Roberto dos Santos Bedaque Luciana Fragoso Maia
Alexandre Freitas Câmara José Rogerio Cruz e Tucci Luciano Lamano
Alexandre Reis Siqueira Freire Jurandir Sebastião Luciano Roberto Del Duque
Ana Paula Chiovitti Lídia Prata Ciabotti Luiz Arthur de Paiva Corrêa
Antonio Carlos Marcato Luciano Borges Camargos Luiz Gustavo de Freitas Pinto
Antonio Gidi Luiz Eduardo R. Mourão Marcus Vinícios Correa Maia
A. João D’Amico Luiz Fernando Valladão Nogueira Paulo Leonardo Vilela Cardoso
Araken de Assis Luiz Fux Richard Crisóstomo Borges Maciel
Aristoteles Atheniense Luiz Guilherme Marinoni Rodrigo Corrêa Vaz de Carvalho
Arlete Inês Aurelli Luiz Rodrigues Wambier Wanderson de Freitas Peixoto
Arruda Alvim Marcelo Abelha Rodrigues Yves Cássius Silva
Bruno Garcia Redondo Marcelo Lima Guerra
Carlos Alberto Carmona Maria Elizabeth de Castro Lopes Conselho Internacional
Carlos Henrique Bezerra Leite Mariângela Guerreiro Milhoranza
Cassio Scarpinella Bueno Paulo Magalhães Nasser Adolfo Alvarado Velloso (Argentina)
Chedid Georges Abdulmassih Petrônio Calmon Filho Alvaro Pérez Ragone (Chile)
Claudiovir Delfino Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias Gustavo Calvinho (Argentina)
Daniel Mitidiero Sérgio Cruz Arenhart Hugo Jaime Botto Oakley (Chile)
Darci Guimarães Ribeiro Sérgio Gilberto Porto Juan Montero Aroca (Espanha)
Dierle Nunes Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro Miguel Teixeira de Sousa (Portugal)
Djanira Maria Radamés de Sá Teresa Arruda Alvim Wambier Paula Costa e Silva (Portugal)
Donaldo Armelin Teori A. Zavascki Virginia Pardo (Espanha)
Eduardo Arruda Alvim
Eduardo José da Fonseca Costa Conselho de Redação Pareceristas ad hoc
Eduardo Talamini
Ernane Fidélis dos Santos André Menezes Delfino André Del Negri
Evaldo Marco Antônio Bruno Campos Silva Andrea Queiroz Fabri
Fredie Didier Jr. Bruno Garcia Redondo Carlos Gustavo Rodrigues Del Prá
Glauco Gumerato Ramos Carlos Eduardo do Nascimento Dnieper Chagas de Assis
Gil Ferreira de Mesquita Eduardo Carvalho Azank Abdu Marcelo Nogueira
Humberto Theodoro Júnior Frederico Paropat de Souza Mônica Cecilio Rodrigues
Jefferson Carús Guedes Helmo Marques Borges Murillo Sapia Gutier
J.E. Carreira Alvim Hugo Leonardo Teixeira Ricardo Herzl
João Batista Lopes Jarbas de Freitas Peixoto Roberta Toledo Campos
João Delfino José Carlos de Araujo Almeida Filho Rubens Correia Junior
Jorge Henrique Mattar José Henrique Mouta Sérgio Henrique Tiveron Juliano
José Carlos Barbosa Moreira Leonardo Vitório Salge Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro
José Maria Rosa Tesheiner Leone Trida Sene

© 2015 Editora Fórum Ltda.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico,
inclusive através de processos xerográficos, de fotocópias ou de gravação, sem permissão por escrito do possuidor dos direitos de cópias (Lei
nº 9.610, de 19.02.1998).

Luís Cláudio Rodrigues Ferreira


Presidente e Editor

Av. Afonso Pena, 2770 – 16º andar – Funcionários – CEP 30130-007 – Belo Horizonte/MG – Brasil – Tel.: 0800 704 3737
www.editoraforum.com.br / E-mail: editoraforum@editoraforum.com.br

R454 Revista Brasileira de Direito Processual : RBDPro. Impressa no Brasil / Printed in Brazil / Distribuída em todo o
– ano 15, n. 59, (jul./set. 2007)- . – Belo Território Nacional
Horizonte: Fórum, 2007-
Os conceitos e opiniões expressas nos trabalhos assinados são de
Trimestral responsabilidade exclusiva de seus autores.
ISSN 0100-2589
Esta revista está catalogada em:
Publicada do n. 1, jan./mar. 1975 ao n. 14, abr./
jun.1978 pela Vitória Artes Gráfica, Uberaba/MG. • RVBI (Rede Virtual de Bibliotecas – Congresso Nacional)
Publicada do n. 15, jul./set. 1978 ao n. 58, abr./ • Ulrich’s Periodicals Directory
jun. 1988 pela Editora Forense, Rio de Janeiro/RJ. • Library of Congress (Biblioteca do Congresso dos EUA)
Publicação interrompida em 1988 e retomada
pela Editora Fórum em 2007. Supervisão editorial: Leonardo Eustáquio Siqueira Araújo
Revisão: Érico Nunes Barboza
1. Direito processual. I. Fórum. Capa: Igor Jamur
Projeto gráfico: Walter Santos
CDD: 347.8 Diagramação: Luiz Pimenta
CDU: 347.9
Sumário

DOUTRINA
ARTIGOS

Editorial .............................................................................................................7

O desenvolvimento do processo cooperativo e a submissão da coisa julgada material


ao interesse das partes. O controle proporcional da jurisdição
Adriano C. Cordeiro................................................................................................................ 13
1 Introdução................................................................................................................ 13
2 Premissas acerca do direito fundamental à colaboração no processo............................ 15
3 A colaboração no processo e os pressupostos sociais, lógicos e éticos ....................... 17
4 Cooperação e vontade das partes, proporcionalidade e controle da jurisdição................ 19
5 Conclusões ............................................................................................................. 27
Referências.............................................................................................................. 28

Institutos fundamentais do processo civil: jurisdição, ação e processo


Arlete Inês Aurelli.................................................................................................................. 31
1 Considerações introdutórias...................................................................................... 31
2 Digressão sobre os institutos fundamentais da Teoria Geral do Processo:
jurisdição, ação e processo....................................................................................... 33
2.1 Jurisdição................................................................................................................. 33
2.2 Ação........................................................................................................................ 36
2.3 Processo.................................................................................................................. 43
3 Conclusão................................................................................................................ 45
Referências.............................................................................................................. 45

O direito fundamental à saúde e a judicialização no Brasil. A saúde como direito


humano e sua tutela processual
Murillo Sapia Gutier. Rubens Correia Junior, Carla A. Arena Ventura ........................................ 47
1 Introdução................................................................................................................ 47
2 A fundamentalidade do direito à saúde na Constituição brasileira................................. 49
3 A dignidade humana, os direitos sociais e a saúde...................................................... 51
4 O porquê da judicialização......................................................................................... 54
5 O direito fundamental à saúde na perspectiva do Supremo Tribunal Federal.................. 57
6 A judicialização da saúde frente à responsabilização do Estado.................................... 58
7 Tutela processual coletiva do direito à saúde.............................................................. 58
8 Considerações finais................................................................................................. 61
Referências.............................................................................................................. 62

O fenômeno processual de acordo com os planos material, pré-processual


e processual do direito: breves considerações do tema a partir (e além) do
pensamento de Pontes de Miranda
Roberto P. Campos Gouveia Filho, Gabriela Expósito Miranda.................................................. 65
1 Introdução................................................................................................................ 65
2 Da formação dos fatos jurídicos à constituição das relações jurídicas........................... 66
3 O plano material a partir dos elementos da relação jurídica.......................................... 70
3.1 Considerações iniciais............................................................................................... 70
3.2 Direito, pretensão e ação: síntese dos elementos principais das relações jurídicas........ 70
4 O plano pré-processual.............................................................................................. 73
4.1 Considerações iniciais sobre a pré-processualidade .................................................... 73
4.2 Pretensão e pretensões à tutela jurídica: da generalidade às especificidades ............... 74
4.3 O direito ao remédio jurídico processual..................................................................... 77
5 O plano processual................................................................................................... 78
5.1 Considerações iniciais .............................................................................................. 78
5.2 O remédio jurídico processual.................................................................................... 79
5.3 A ação processual.................................................................................................... 81
6 Conclusão................................................................................................................ 85
Referências.............................................................................................................. 85

Jurisdição ambiental e teoria da decisão: uma leitura a partir de Ovídio Baptista


e John Rawls
Jeferson Dytz Marin, Mateus Lopes da Silva........................................................................... 89
1 Considerações iniciais............................................................................................... 89
2 O direito do Estado liberal.......................................................................................... 90
3 Incerteza e verossimilhança....................................................................................... 96
4 Justiça administrativa no Brasil.................................................................................. 99
4.1 Proposta de justiça administrativa ambiental............................................................. 102
5 Conclusão.............................................................................................................. 103
Referências............................................................................................................ 104

O direito à distinção no sistema processual civil brasileiro: perspectivas à luz do


projeto de novo Código de Processo Civil
Lorena Miranda Santos Barreiros.......................................................................................... 107
1 Introdução.............................................................................................................. 107
2 Precedentes judiciais no Brasil: aspectos culturais que interferem na construção
de uma teoria dos precedentes para o direito brasileiro............................................. 108
3 O direito à distinção................................................................................................ 111
3.1 Direito à distinção: fundamentos constitucionais no sistema brasileiro....................... 112
3.1.1 Devido processo legal............................................................................................. 112
3.1.2 Igualdade............................................................................................................... 112
3.1.3 Contraditório........................................................................................................... 113
3.1.4 Fundamentação das decisões judiciais..................................................................... 114
3.2 Conteúdo jurídico do direito à distinção..................................................................... 115
3.2.1 Sujeitos ativo e passivo do direito à distinção .......................................................... 115
3.2.2 Explicitação de um conteúdo jurídico mínimo do direito à distinção (deveres do
magistrado) e procedimentos para a sua realização prática........................................ 117
4 De lege ferenda: o direito à distinção no Projeto de Novo Código de Processo Civil
(PNCPC)................................................................................................................. 119
5 Conclusão.............................................................................................................. 122
Referências............................................................................................................ 124

Assunção de competência (artigo 555, §1º, do Código de Processo Civil, e


artigo 959 do NCPCP)
Luciana da Silva Paggiatto Camacho.................................................................................... 127
1 Introdução.............................................................................................................. 127
2 Da nomenclatura “incidente de assunção de competência”........................................ 129
3 Do cabimento......................................................................................................... 129
4 Da iniciativa para propositura do incidente de assunção de competência.................... 132
5 Matérias que ensejam uma pulverização de demandas no Poder Judiciário.................. 133
6 Assunção de competência no Novo Código de Processo Civil Projetado....................... 134
7 Conclusão.............................................................................................................. 137
Referências............................................................................................................ 138

Memória, prova testemunhal e reconhecimento pessoal no processo penal


Marcio Muniz Nascimento, Yuri Felix.................................................................................... 139
1 Introdução.............................................................................................................. 139
2 Breve contexto histórico sobre o estudo do fenômeno das falsas memórias................ 140
3 Taxonomia e teorias explicativas das falsas memórias.............................................. 142
4 Problemáticas das falsas memórias no processo penal: a prova testemunhal e o
reconhecimento de pessoas.................................................................................... 145
4.1 Prova testemunhal ................................................................................................. 145
4.2 Reconhecimento pessoal......................................................................................... 148
5 Formas de redução de danos................................................................................... 150
6 Considerações finais............................................................................................... 152
Referências............................................................................................................ 153

Intervenção de terceiro negociada: possibilidade aberta pelo Novo Código de


Processo Civil
Marina França Santos.......................................................................................................... 155
1 Introdução.............................................................................................................. 155
2 A intervenção de terceiros no Novo Código de Processo Civil...................................... 156
3 O negócio processual no novo CPC........................................................................... 161
4 A intervenção de terceiros negociada........................................................................ 162
5 Conclusão.............................................................................................................. 165
Referências............................................................................................................ 166

A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes


Maurício Antonio Tamer....................................................................................................... 169
1 Introdução.............................................................................................................. 169
2 Histórico................................................................................................................ 170
3 Objeto.................................................................................................................... 172
4 Competência.......................................................................................................... 178
5 Legitimidade........................................................................................................... 182
6 Litispendência e coisa julgada................................................................................. 185
6.1 Generalidades........................................................................................................ 185
6.2 A coisa julgada e os efeitos decorrentes de tal qualidade........................................... 186
6.3 A limitação territorial do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública....................................... 187
7 Liquidação e execução............................................................................................ 190
8 Direito estrangeiro.................................................................................................. 191
8.1 Inglaterra............................................................................................................... 191
8.2 Estados Unidos...................................................................................................... 191
8.3 Itália...................................................................................................................... 192
8.4 Alemanha............................................................................................................... 193
8.5 Outros países......................................................................................................... 193
9 Conclusão.............................................................................................................. 194
Referências............................................................................................................ 195

Artigo 41-A da Lei nº 9.504/97: a possibilidade de concessão de efeito suspensivo


aos recursos contrários à sentença que cassa mandato eletivo
Olívia Guimarães Ribeiro, Renato de Almeida Paes Leme....................................................... 197
1 Introdução ............................................................................................................. 198
2 Direito eleitoral, democracia e cidadania................................................................... 199
3 Princípios fundamentais do direito eleitoral............................................................... 200
4 Da ilicitude na captação de sufrágio......................................................................... 202
4.1 Distinção entre abuso do poder econômico e captação ilícita de sufrágio.................... 202
4.2 Aspectos históricos da captação ilícita de sufrágio.................................................... 204
4.3 Captação ilícita de sufrágio e o artigo 41-A da Lei 9.504/97...................................... 204
5 Recursos eleitorais e o efeito suspensivo................................................................. 207
5.1 Ponderações sobre o artigo 257 do Código Eleitoral.................................................. 209
5.2 O entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca da possibilidade de aplicação de
efeito suspensivo à decisão proferida nos moldes do artigo 41-A da Lei 9.504/97...... 213
5.3 Observância aos ditames e princípios constitucionais................................................ 217
5.4 Possíveis consequências resultantes da não concessão do efeito suspensivo à
decisão proferida nos termos do artigo 41-A da Lei 9.504/97.................................... 218
6 Ação cautelar como instrumento de concessão excepcional de efeito suspensivo
aos recursos na justiça eleitoral............................................................................... 220
7 Os efeitos jurídicos da ação de captação ilícita de sufrágio com o advento da nova
alínea “j” da Lei Complementar 64/1990..................................................................222
8 A atribuição do efeito suspensivo aos recursos previstos no artigo 41-A da
Lei 9.504/97 na visão da jurisprudência brasileira.................................................... 223
8.1 Julgamentos contrários à atribuição do efeito suspensivo.......................................... 223
8.2 Decisões favoráveis à concessão do efeito suspensivo.............................................. 226
9 Considerações finais............................................................................................... 228
Referências............................................................................................................ 229

Súmulas vinculantes e súmulas impeditivas de recursos: mecanismos para


concretizar o princípio da razoável duração do processo
Tatiana Alvim Pufal.............................................................................................................. 233
1 Introdução ............................................................................................................. 233
2 Direito fundamental à razoável duração do processo.................................................. 235
2.1 Princípio constitucional da razoável duração do processo........................................... 235
2.2 Dimensões da efetividade ...................................................................................... 241
3 Súmulas vinculantes e súmulas impeditivas de recursos .......................................... 243
3.1 Súmula vinculante e a razoável duração do processo ................................................ 244
3.2 Súmula impeditiva de recursos e a razoável duração do processo............................... 250
4 Considerações finais .............................................................................................. 257
Referências............................................................................................................ 258

RESENHA
CALMON DE PASSOS, J. J. A ação no direito processual civil brasileiro. Salvador:
Editora JusPodivm, 2014.
Diogo Bacha e Silva............................................................................................................. 265

TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro:


Forense, 2012.
Igor Pinheiro de Sant’Anna................................................................................................... 269

PEREIRA, Paula Pessoa. Legitimidade dos precedentes: universabilidades das


decisões do STJ. São Paulo: RT, 2014
Ravi Peixoto........................................................................................................................ 273

Instruções para autores ....................................................................................................... 275


Editorial

Em cerimônia histórica, a presidente Dilma Rousseff sancionou, dia 16 de


março de 2015, o novo Código de Processo Civil, dando início à esperada temporada
de vacatio legis. Apenas sete dispositivos receberam veto (arts. 35, 333, 515, X,
895, parágrafo 3º, 937, VII, 1.015, XII e 1.055). Foi aproximadamente cinco anos
de tramitação no Congresso Nacional, um feito que mobilizou juristas, profissionais
do direito e entidades de classe em todo o Brasil. Para enfatizar a vertente demo­
crática que animou a elaboração da codificação e o desejo político-ideológico de sua
apro­vação, mencione-se apenas a realização de uma centena de audiências públicas
em todo o país para discutir as várias propostas do projeto e o recebimento pelos
par­la­men­tares de, aproximadamente, 80 mil e-mails com sugestões e críticas. Uma
tarefa árdua, sem dúvida, pela sua extensão e complexidade. Até para os mais dis­­­
tantes do pro­cesso legislativo, são notórias as dificuldades enfrentadas por aqueles
diretamente envolvidos na empreitada de aprovar uma das mais importantes
legislações brasileiras.
Não obstante as mídias falada e escrita pronunciarem-se entusiasticamente,
ligando o novo CPC ao ideal de celeridade, para os que lidam no dia a dia do foro,
evidentemente que a solução dos problemas da justiça brasileira não virá pelas
mãos de uma única legislação e, simplesmente, porque há questões maiores, de
cunho político-estrutural, cujas respostas merecem uma linha de ataque diversa e
diversificada. Mas nem por isso o novo CPC deixa de fazer tentativas para afrontar
o manancial de litigiosidade que assola o Judiciário. Três delas direcionadas a esse
objetivo merecem destaque: i) criou-se o instituto de resolução de demandas repe­
titivas (IRDR) destinado a nivelar e acelerar julgamentos de casos semelhantes;
ii) aproximou-se ainda mais o sistema brasileiro do common law, confiando vigor
expressivo aos precedentes judiciais; e iii) a exortação ao modelo multiportas na
expectativa de se criar um novo conceito na mente dos brasileiros, fazendo-os crer
que, além da jurisdição, há outros mecanismos de solução de conflitos tão eficientes,
e não raro mais eficientes, que ela própria, seja pela rapidez com a qual operam, seja
porque mais apropriados à resolução de litígios com específicas particularidades.
Mas o que de melhor se constata do novo CPC é a sua preocupação com a
legitimação e qualidade das decisões judiciais. Não por outra razão, os princípios
do contraditório e da fundamentação, o último a controlar a observação do primeiro,
ganharam consistência substancial e prometem transformar a prática forense ao
impor que os resultados oriundos da atividade jurisdicional sejam frutos da partici­
pação conjunta de todos os atores processuais, e não algo oriundo da reflexão iso­
lada do julgador, valendo frisar como reforço o decaimento, que veio em boa hora, do

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 7-10, jan./mar. 2015 7
EDITORIAL

princípio do livre convencimento motivado e a obrigatoriedade do respeito à coerência


e integridade do direito. Estabeleceu-se, para tanto, um ambiente legal de trabalho
comparticipativo, com fases lógicas e encadeadas direcionadas a dar primazia ao
julgamento de mérito, seja qual for o grau de jurisdição, em afronta a técnicas criadas
pelos tribunais, sem qualquer base legal, obstativas do conhecimento de recursos
com fundamento em questões meramente formais e das quais, muitas vezes, sequer
o jurisdicionado ou seu patrono são responsáveis (jurisprudência defensiva).
Naturalmente que um empreendimento assim demandará compromisso por
parte de todos profissionais do direito que enfrentam, em sua lida diária, as peculia­
ridades do processo civil, obrigando-os a levar a sério as coisas do foro e a usar com
responsabilidade as facilidades reprodutivas que a tecnologia atual possibilita. Mais
que isso, é algo a demonstrar que, para além de uma eficiência fria, a legislação,
que, hoje, já é realidade, está comprometida prioritariamente com ideais qualitativos
e democráticos. E é ótimo que seja assim, prova de que, sobretudo na Câmara dos
Deputados, o projeto sofreu profundo amadurecimento, cabendo mencionar o sério
trabalho realizado pela comissão de juristas formada naquela casa, entre os quais
figuraram os festejados juristas Fredie Didier Jr., Alexandre Câmara, Luiz Hernique
Volpe Camargo, Dierle Nunes, Lenio Streck, José Manoel Arruda Alvim, Teresa Arruda
Alvim Wambier, Leonardo Carneiro da Cunha, entre tantos outros.
O CPC-2015 não é perfeito e tampouco panaceia para todos os males. Mas
nele se verifica espírito de avanço e melhora na qualidade da prestação jurisdicio­nal.
Cabe a nós o dever ético de torná-lo efetivo naquilo que traz de positivo. E o que é
ruim, a doutrina está aí justamente para realizar seu papel: denunciar problemas e
procurar superá-los, construindo manancial teórico hábil para possibilitar o aprimo­
ramento do texto legis­lativo e, também, sugerir caminhos ajustados à sua própria
aplicação prática.
A luta está apenas começando!

Apresentamos a nova edição da Revista Brasileira de Direito Processual


– RBDPro:
1 O desenvolvimento do processo cooperativo e a submissão da coisa julgada
material ao interesse das partes. O controle proporcional da jurisdição. Adriano Cordeiro
examina temas em torno do processo cooperativo e a coisa julgada, promovendo
ainda o debate da ponderação do exercício da jurisdição diante de experiências do
direito comparado.
2 Institutos fundamentais do processo civil: jurisdição, ação e processo. A
ilustrada processualista paulista Arlete Inês Aurelli responde em seu artigo alguns
pontos defendidos pelo professor Glauco Gumerato Ramos em palestra proferida
no Congresso de Direito Processual de Uberaba (publicada na RBDPro nº 88), dando
ensejo a um debate bastante interessante a envolver os institutos fundamentais do
processo civil, ação, processo e jurisdição.
8 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 7-10, jan./mar. 2015
EDITORIAL

3 O direito fundamental à saúde e a judicialização no Brasil. A saúde como


direito humano e sua tutela processual. Murillo Sapia Gutier, Rubens Correia Junior
e Carla A. Arena Ventura tecem considerações sobre o direito fundamental à saúde e
a sua tutela processual.
4 O fenômeno processual de acordo com os planos material, pré-processual
e processual do direito: breves considerações do tema a partir (e além) do pensamento
de Pontes de Miranda. A ideia do artigo é apresentar dados necessários para o estudo
do fenômeno processual a partir da Teoria Geral do Direito. Para tanto, os auto­res
Roberto P. Campos Gouveia Filho e Gabriela Expósito Miranda, utilizando da teoria
do fato jurídico de Pontes de Miranda, dividem o mundo em três planos dife­rentes de
análise: o material, o pré-processual e o processual.
5 Jurisdição ambiental e teoria da decisão: uma leitura a partir de Ovídio Baptista
e John Rawls. O texto, da lavra dos autores Jeferson Dytz Marin e Mateus Lopes da
Silva, através de uma análise histórica e filosófica do pensamento jurídico moderno
e pós-moderno, aborda questões que confrontam a degradação ambiental atual com
o projeto político liberal, conferindo duras críticas às teorias meramente normativas,
demonstrando que questões ambientais reclamam uma postura questionadora da
ciência jurídica.
6 O direito à distinção no sistema processual civil brasileiro: perspectivas à
luz do projeto de novo Código de Processo Civil. O texto da lavra de Lorena Miranda
Santos Barreiros tem, como objetivo central, a análise e definição dos contornos do
direito à distinção no sistema processual brasileiro, examinando a influência de deter­
minados aspectos culturais na construção dos precedentes para, depois, questionar
sobre a conformação atual desse direito, com indicação de seus fundamentos cons­
titucionais, comparando os dispositivos do novo CPC com o direito em estudo.
7 Assunção de competência. O artigo escrito pela advogada Luciana da Silva
Paggiatto Camacho discorre sobre a assunção de competência no novo CPC, a impor­
tância do tema na uniformidade das decisões e a celeridade processual.
8 Memória, prova testemunhal e reconhecimento pessoal no processo penal.
Marcio Muniz Nascimento e Yuri Felix desenvolvem reflexões a respeito do uso da
memória no processo penal, sobretudo porque esta ingressa no jogo do processo
como material probatório.
9 Intervenção de terceiros negociada: possibilidade aberta pelo novo Código
de Processo Civil. A autora Marina França Santos destaca em seu artigo a cláusula
aberta do negócio processual, uma das grandes novidades trazidas pelo projeto do
novo CPC, por meio da qual propõe o aprofundamento da participação das partes no
processo, principalmente a intervenção de terceiros negociada.
10 A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes. O artigo escrito
por Maurício Antonio Tamer trata da importância da ação civil pública como mecanismo
de proteção de direitos transindividuais, abordando questões como objeto da ação,

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 7-10, jan./mar. 2015 9
EDITORIAL

a competência para seu processamento, a legitimidade e, ainda, questões outras,


como coisa julgada e litispendência, um assunto bastante instigante.
11 Art. 41-A da Lei 9.504/97: a possibilidade de concessão do efeito suspensivo
aos recursos contrários à sentença que cassa mandato eletivo. Olívia Guimarães
Ribeiro e Renato de Almeida Paes Leme buscam demonstrar a possibilidade de
concessão do efeito suspensivo aos recursos contrários à sentença que cassa o
mandato eletivo. Isso porque, no âmbito do Direito Eleitoral, os recursos, em regra,
não possuem efeito suspensivo, como destaca o art. 257 do Código Eleitoral. No
artigo, os autores demonstram a inclinação da doutrina e jurisprudência no sentido
de validar, pelo menos no decorrer da ação, a vontade popular nos casos em que há
cassação do mandato eletivo em decorrência da captação ilícita de sufrágio.
12 Súmulas vinculantes e súmulas impeditivas de recursos: mecanismos para
concretizar o princípio da razoável duração do processo. O artigo trabalha a utilização
de súmulas como forma de concretizar o princípio da razoável duração do processo.
Tatiana Alvim Pufal discorre sobre a reforma legislativa criada com escopo de con-
ferir maior celeridade à prestação jurisdicional através da Emenda Constitucional
45/2004, e a aplicação das súmulas vinculantes e impeditivas como mecanismos
de efetividade.

Esperamos que a revista agrade a todos.


Boa leitura!
Lúcio Delfino
Fernando Rossi

10 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 7-10, jan./mar. 2015
DOUTRINA Artigos
O desenvolvimento do processo
cooperativo e a submissão da coisa
julgada material ao interesse das
partes. O controle proporcional da
jurisdição

Adriano C. Cordeiro
Advogado. Professor de Direito Processual Civil da Unipar, campus Cascavel-PR, nos cursos
de graduação e especialização. Mestre em Direito Processual e Cidadania pela UNIPAR/
Universidade Paranaense. Especialista em Filosofia do Direito pela Universidade do
Oeste do Paraná – UNIOESTE. Doutorando em Direito Processual Civil pela UFPR. E-mail:
<adrianocordeiroadv@msn.com>. Site: <www.cordeiro.adv.br>.

Resumo: O presente artigo examina temas em torno do processo cooperativo enfocando também a coisa
julgada e a vontade das partes frente ao princípio da proporcionalidade na justiça civil. Analisa a sistemática
atual das regras de procedimento permeando a versatilidade das decisões a partir do diálogo das partes
com o juiz, inclusive no novo CPC. Promove o debate ainda da ponderação do exercício da jurisdição diante
de experiências do direito inglês, francês e alemão.
Palavras-chave: Coisa julgada. Processo cooperativo. Cooperação das partes. Princípio da proporcionalidade.
Controle da jurisdição.

Sumário: 1 Introdução – 2 Premissas acerca do direito fundamental à colaboração no processo – 3 A


colaboração no processo e os pressupostos sociais, lógicos e éticos – 4 Cooperação e vontade das partes,
proporcionalidade e controle da jurisdição – 5 Conclusões – Referências

1 Introdução
Antiga, pode-se afirmar, é a ideia de que a coisa julgada reflete uma segurança
jurídica nas relações decididas pelo Poder Judiciário. Sua cultura ligada ao valor de
estabilidade sempre foi ponto de preocupação no estudo do direito processual,1

1
É marcante a presença de Enrico Tullio Liebman no Direito Processual Civil Brasileiro. Inclusive, sobre o tema
coisa julgada, é clara a influência do autor, bem como de uma forma geral em todo o Código de Processo
Civil e, ainda, na formação e desenvolvimento da técnica processual, ciência processual e teorias em geral do
direito processual. A respeito, consultar LEAL, Rosemiro Pereira. Coisa julgada: de Chiovenda a Fazzalari. 1.
ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

Sobre a tese da relativização e demais reflexões acerca da coisa julgada, consultar TALAMINI, Eduardo. Coisa
julgada e sua revisão. 1. ed. São Paulo: RT, 2005; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015 13
Adriano C. Cordeiro

perfazendo, assim, uma noção relacionada com o final das ações decididas por
aquele órgão julgador.
Houve, todavia, certo exagero em torno do instituto, dispensando-se, nesse
tempo, ele­mentos que ponderassem melhor o seu regramento, a exemplo da pro­
porcionalidade, princípio este de enorme significado na doutrina e jurisprudência, res­
ponsável pelo bom senso, equilíbrio e ponderação no sistema jurídico.2
Na atualidade, o cenário em torno deste sempre atual tema do direito proces­
sual, continua ganhando novas cores, a exemplo da junção entre a coisa julgada e
as preclusões dinâmicas por Antônio do Passo Cabral,3 bem como a defendida pelo
italiano Remo Caponi, professor titular da Universidade de Florença, quando discorre
sobre o princípio da proporcionalidade na justiça civil.4
Nele, o autor enaltece a importância do princípio da eficiência e da proporcio­
nalidade na justiça civil, destacando temas como justa composição das controvérsias
em prazo razoável, emprego de recursos e eficiência na gestão das massas.
Nesse pensamento, o autor esclarece que o escopo do processo a ser buscado
na atualidade é a ação para um direito subjetivo da parte, uma vez que a jurisdição
não pode ser concebida apenas como uma função do Estado moderno, mas também
como serviço público.
Nesse somatório de itens que se agregam a essa nova contribuição, apare­
cem fatores legislativos, de recursos e culturais. Identifica ainda que o princípio da
proporcionalidade funciona como bússola conceitual, numa visão de características
próprias da causa e a relação de cada uma dela com as demais, inclusive com a ideia
de conteúdo de um processo cooperativo, pautado no diálogo entre as partes e o juiz.
É assim que surge uma calibragem de modelos e de processamento das
causas, considerando a natureza simples ou complexa da controvérsia, flexibilizando
e adaptando a causa a uma sequência de atos determinados pelo juiz. Essa molda­
gem estabelecida a partir da natureza da demanda é permeada pela proporcionalidade
a partir de um processo cooperativo mediante a proteção dos interesses em jogo.


O dogma da coisa julgada. Hipóteses de relativização. 1. ed. São Paulo: RT; PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa
julgada civil. 4. ed. São Paulo: RT, 2012; KLIPPEL, Rodrigo. A coisa julgada e sua impugnação. 1. ed. Rio de
Janeiro: Lumem Juris, 2008; MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. Coisa julgada. 1. ed. Belo Horizonte: Editora
Fórum, 2008; CALDEIRA, Marcus Flávio Horta. Coisa julgada e crítica à sua relativização. 1. ed. Brasília:
Thesaurus, 2012; AMORIM, José Roberto Neves. Coisa julgada parcial no processo civil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2011; ARAÚJO, José Henrique Mouta. Coisa julgada progressiva & resolução parcial do mérito. 1. ed.
Curitiba: Juruá, 2007; NEVES, Celso. Coisa julgada civil. 1. ed. São Paulo: RT, 1971.
2
Com propriedade, consultar SLERCA, Eduardo. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 1. ed.
Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002. p. 05.
3
Em recente trabalho publicado no Brasil, CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas. 1.
ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2013.
4
CAPONI, Remo. O Princípio da proporcionalidade na justiça civil. Revista de Processo, n. 192, 2011, p. 398-
415. Artigo publicado pelo autor por ocasião da abertura da conferência realizada em Curitiba, Desafios do
Novo Processo Civil e Penal, em homenagem ao professor Luiz Guilherme Marinoni, ocorrido em 21.10.2010,
por iniciativa do Instituto dos Advogados do Paraná, traduzido por Sérgio Cruz Arenhart.

14 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015
O DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO COOPERATIVO E A SUBMISSÃO DA COISA JULGADA MATERIAL AO INTERESSE DAS PARTES...

2 Premissas acerca do direito fundamental à colaboração


no processo
É cada vez mais presente nas discussões do direito processual civil a formação
de um modelo de processo cooperativo. Essa discussão a uma conformação pautada
na colaboração do juiz com as partes organiza e estrutura um modo de trabalho que
privilegie uma logística de conjunto, visando resultados mais práticos e versáteis.
Visto de outro modo, o desenvolvimento da cooperação procura distribuir, de forma
mais racional e equilibrada, o trabalho entre todos os participantes da causa.
Procura ainda interpretar e aplicar a jurisdição a partir de uma concepção mais
pluralista e condizente com as premissas do Estado Constitucional, rejeitando-a como
ponto metodológico do processo civil e privilegiando em seu lugar a própria noção de
processo. Somam-se ainda a cooperação e algumas linhas já conhecidas do universo
processual a exemplo do princípio do dispositivo e do processo inquisitório. De uma
forma ou de outra, as consequências e o desenvolvimento da tradição processual
caminham desse modo para a ideia de colaboração no contexto processual, invocando
também um juiz mais paritário no diálogo e mais assimétrico nas suas decisões.
Enfocando o tema a respeito, observa a doutrina sobre a combinação do processo
cooperativo no Estado constitucional, que:

Da combinação dessas duas faces do Estado Constitucional e de suas


manifestações no tecido processual surge o modelo cooperativo de
processo, calcado na participação e no diálogo que devem pautar os
vín­culos entre as partes e o juiz. Esse modelo de processo pressupõe,
além de determinadas condições sociais, também certas opções lógicas
e éticas para sua cabal conformação.5

São conhecidos da doutrina os modelos isonômicos e assimétricos de processos


civis. O isonômico, concebido a partir de certa mistura entre o indivíduo, a sociedade
e o Estado, projeção esta que acaba permitindo certa relação de paridade entre o
indivíduo e o poder político. A dialética assume, nesse modelo, papel central na
solução de conflitos jurídicos, lembrando que, ao contraditório, é atribuída a função
de tornar viável um diálogo entre as partes. O assimétrico, por sua vez, parte de uma
separação entre indivíduo, sociedade e Estado, com reflexos entre o indivíduo e o
poder público.
Com intenções diversas daquelas apresentadas, é que surge o modelo de
pro­­cesso cooperativo, que procura aditar como ideia inicial o fato de que o Estado
tem o dever básico de criar condições para uma sociedade livre justa e solidária,

5
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: Pressupostos sociais, lógicos e éticos. 2. ed. São Paulo:
RT, 2011. p. 86.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015 15
Adriano C. Cordeiro

calcado ainda na dignidade da pessoa humana pautada, acima de tudo, no diálogo.


Coordenam-se entre indivíduo, sociedade e Estado posições referentes a essa ati­
vidade, buscando também no contraditório um referencial de destaque para a
conversa e cooperação no processo, desenvolvendo, ainda, um modelo de conduta
tanto para as partes como para o órgão julgador.
Ganha também repercussão a boa-fé objetiva na realização de um processo
leal, como, aliás, de longa data, o tema foi lembrado pela doutrina:

Ao aludirmos a boa-fé objetiva, o que quer significar é uma modalidade


de boa-fé objetivada na lei. Esta, necessariamente, também comporta
interpretação, ainda que existam parâmetros ou indicativos úteis a
facilitar a interpretação.6

Todas essas posições somam-se a outras já consagradas, conferindo uma


marca ao processo civil cooperativo, desenvolvendo-se ao longo de todo o formalismo
processual. Pode-se dizer que, desde o início da relação jurídica processual instaurada,
por meio de atos como o ingresso na petição inicial, até o final da demanda em
nível de Tribunal, o clima será de justiça do caso em exame, com prevalência das
premissas do Estado constitucional e ganhos na composição da lide.
É inegável, todavia, que a ideia de colaboração traz consigo debates de conteúdo
cultural na sua aplicação. Esse enfoque é trazido pelo ângulo social, lógico e ético7
na concepção de aparelhar o processo através de um conteúdo organizado em seu
formalismo e continuidade ao longo do procedimento.
Privilegia-se ainda o diálogo judiciário, fomentando a lealdade entre as pessoas
que participam da causa e que colaborem de maneira constante em objetivos defi­
nidos por meio de seus interesses e vontades. O direito passa a promover uma busca
além de uma simples conciliação, fomentando um discurso que promova maior efi­
cácia dos direitos fundamentais.
Todo esse ambiente, vale dizer, cria condições para que a tutela jurisdicional
seja justa e efetiva em parceria com o Estado Constitucional, abandonando, assim,
o velho formalismo do processo, e permitindo um intenso diálogo numa maior
necessidade de cooperação.

6
ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Deveres das partes e dos procuradores, no direito processual civil brasileiro.
São Paulo: Revista de Processo, 1993. n. 69.
7
A respeito da colaboração no processo, conferir SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO,
Daniel. Curso de direito constitucional. 1. ed. São Paulo: RT, 2012; MITIDIERO, Daniel. Colaboração no pro­
cesso Civil: Pressupostos sociais, lógicos e éticos. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. Consultar ainda DIDIER
JÚNIOR, Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil Português. 1. ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010; GRASSI, Lúcio Grassi de. A função legitimadora do princípio da cooperação inter-sub­
jetiva no processo civil brasileiro. São Paulo: Revista de Processo, n. 172, 2009; BARBOSA MOREIRA, José
Carlos. O problema da divisão de trabalho entre juiz e partes: Aspectos terminológicos: Temas de direito
processual. 4. série. São Paulo: Saraiva, 1989.

16 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015
O DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO COOPERATIVO E A SUBMISSÃO DA COISA JULGADA MATERIAL AO INTERESSE DAS PARTES...

Vale ainda enfatizar que a colaboração no processo em seu âmbito de proteção


é um princípio jurídico,8 servindo de ingrediente fundamental na organização de um
processo justo, idôneo e equilibrado. Assim, para que o processo seja organizado
nesse ambiente, é preciso que as posições jurídicas sejam equilibradas ao longo do
procedimento. É fundamental deixar claro, antes de qualquer coisa, a necessidade de
uma nova dimensão de poderes no processo, revisando-se as formas de participação
de cada um dos sujeitos da causa. Em outras palavras, a colaboração visa organizar
a participação de todos de forma mais equilibrada, não propriamente em relação
às partes, que possuem, como se sabe, interesses contrários, mas, sim, de uma
colaboração devida no Estado Constitucional por meio de regras determinadas pelo
juiz na causa.
O processo cooperativo desenha, desse modo, a promoção por iniciativa do juiz
de esclarecimentos, diálogos e prevenções para com os litigantes. O esclarecimento
funciona, por exemplo, como o fato de o tribunal informar junto às partes sobre suas
dúvidas, posições ou pedidos. O de prevenção, no sentido de prevenir acerca do risco
de seus pedidos; e o de consulta, o dever de o órgão judicial consular as partes antes
de decidir sobre qualquer ponto, permitindo maior influência no rumo a ser tomado.
Essa cooperação aparece inclusive de forma intersubjetiva, enfocado como
“trabalho em comum, em conjunto, de magistrados, mandatários judiciais e partes,
visando à obtenção, com brevidade e eficácia, da justa composição do litígio”.9 Desse
modo, o processo deverá se orientar pelo diálogo e comunicação entre os sujeitos
da lide, privilegiando tal perfil em relação a um modelo duelístico.

3 A colaboração no processo e os pressupostos sociais, lógicos


e éticos
Em relação ao ângulo social, procura o Estado constitucional deixar clara a ideia
de que ele não se confunde com o Estado inimigo, deixando seu perfil de abstenção
e passando a um modo mais atual e presente no cumprimento de seus deveres e
missões constitucionais.
Vale dizer, o diálogo, por exemplo, ganha destaque nessa faceta social como
fator de legitimação no Estado constitucional. Ainda nesse modo, o valor partici­pação
contribui na condução desse modelo de conduta, fortalecendo a condução de um
processo isonômico e cooperativo.
Em outras palavras, da combinação desses com outros ingredientes do Estado
constitucional, bem como de suas manifestações, é que surge o processo cooperativo,

8
Sobre o tema, consultar ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
9
GRASSI, Lúcio Grassi de. A função legitimadora do princípio da cooperação inter-subjetiva no processo civil
brasileiro. São Paulo: Revista de Processo, n. 172, 2009. p. 35.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015 17
Adriano C. Cordeiro

valorizando-se, como se viu, a participação e o diálogo na vinculação que existe entre


as partes e o juiz.
Em relação ao ponto de vista lógico, a preocupação do processo cooperativo
implica no reconhecimento da feição problemática do direito, destacando-se seu
perfil argumentativo e com valorização da dialética permeando o tecido normativo
de condições favoráveis ao implemento de resultados, oportunizando às partes a
possi­bilidade de influenciar o juiz da causa por meio de um contraditório mais efetivo,
na intenção da descoberta do direito em toda a extensão do diálogo processual.
A promoção e valorização do diálogo, inclusive, têm por intenção eliminar fatos
e circunstâncias desnecessárias, que, se fossem encaradas pelo prisma do processo
cooperativo, certamente diminuiriam, em muito, boa parte do tempo perdido numa
demanda.
É nesse ambiente que o perfil argumentativo ganha destaque, somando-se a
outros temas já conhecidos do processo, melhorando substancialmente os resul­
tados da causa, dando maior privilégio a temas por vezes esquecidos, como os que
aqui estão sendo lembrados.
Do ponto de vista ético, é correto dizer que o processo cooperativo se pauta na
colaboração na perseguição da verdade, buscando subsídios no princípio da boa-fé,
sugerindo e impondo que seus participantes se contaminem por aquele princípio
destinado a alcançar também o juiz da causa.
Isso pode, inclusive, se manifestar nos deveres de lealdade em juízo, a exemplo
do que existe no artigo 14 do CPC, bem como suas consequências. Sobre isso,
observa a doutrina em alguns grupos de ideias, como “a proibição de criar dolo­
samente posições processuais e o de abuso de poderes processuais extraídos da
cláusula geral contida no artigo 14 do estatuto processual”.10
Discorrendo ainda sobre o processo cooperativo como modelo processual,
enfatiza a doutrina que:

Esse modelo caracteriza-se pelo redimensionamento do princípio do


contraditório, com a inclusão do órgão jurisdicional no rol dos sujeitos
do diálogo processual, e não mais como um mero espectador do duelo
das partes. O contraditório volta a ser valorizado como instrumento
indispensável ao aprimoramento da decisão judicial e não apenas como
uma regra formal que deveria ser observada para que a decisão fosse
válida.11

10
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil: Pressupostos sociais, lógicos e éticos. 2. ed. São Paulo:
RT, 2011. p. 107.
11
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português. 1. ed.
Coimbra: Coimbra Editora, 2010. p. 46.

18 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015
O DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO COOPERATIVO E A SUBMISSÃO DA COISA JULGADA MATERIAL AO INTERESSE DAS PARTES...

4 Cooperação e vontade das partes, proporcionalidade e


controle da jurisdição
Em meio a esse cenário, pode-se dizer que a coisa julgada não ficou esquecida.
Todavia, recebeu tratamento mais suave e proporcional, e não insubstituível ou indis­
pensável, que deva aparecer em todas as circunstâncias e em todos os processos,
custe o que custar. Deixou de ser um efeito automático da atividade jurisdicional para
se tornar um mecanismo de relação adequada entre um ou vários fins determinados.
Aliás, como já assinalou o parâmetro adotado em termos de conceituação, a coisa
julgada é instituto bem diverso da sentença,12 compreendida como a qualidade dos
efeitos daquele instituto. Vejamos:

Nisso consiste, pois, a autoridade da coisa julgada, que se pode definir,


com precisão, como a imutabilidade do comando emergente de uma
sentença. Não se identifica ela simplesmente com a definitividade e
intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário, uma
qualidade, mais intensa e mais profunda, que o reveste o ato em sua
existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato.13

Na visão de Remo Caponi, ganhou um regramento diferenciado a partir do fato de


que determinadas relações jurídicas não transitam em julgado, se assim os litigantes
desejarem. Em outras palavras, a coisa julgada material deve ficar subordinada ao
interesse das partes, aparecendo em determinados momentos, mas em outros não,
segundo a necessidade e intenção dos sujeitos da causa.
A crença de que a sua formação deve sempre ocorrer ultrapassou o interesse
das próprias partes, que ficam presas ao seu comando. A questão cultural trazida
junto com o elemento confiança impediu que a vontade dos litigantes fosse mais bem
preservada.
Aliás, os litigantes nunca foram consultados se desejavam a qualidade dos
seus efeitos. O interesse na sua existência nunca foi objeto de consulta, discus­são
ou, mesmo, controle, não permitindo que o citado instituto fosse a esse respeito
debatido.
É nessa contextualização que a proporcionalidade ganha espaço em toda essa
discussão. Em nome da eficiência, liberdade e interesses, as partes devem optar ou
não pela sua formação. Será da conveniência delas a sua aparição, excluindo certo
radicalismo que o instituto traz consigo, permitindo uma maior liberdade de decisão.

12
Acompanhando também essa distinção, TESHEINER, José Maria. Eficácia da sentença e coisa julgada no
processo civil. 1. ed. São Paulo: RT, 2002.
13
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. 4. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2007.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015 19
Adriano C. Cordeiro

Na justiça proporcional reconhecida como serviço público, a coisa julgada deve


ser solicitada ou não em razão do interesse das partes, deixando para elas o poder
dessa regulação.
Como já se sustentou, determinadas relações jurídicas, a se observar por suas
características, não merecem receber o designativo de coisa julgada, regulando-se, a
partir do interesse das partes, a incidência ou não de sua determinação. Por meio da
proporcionalidade, serão evitados excessos, já que a razoabilidade também guarda
relação com a liberdade e o interesse processual por meio de decisões mais ponde­
radas e abertas. Comentando sobre o tema, observa a doutrina que:

Surgem, então, as normas de conteúdo aberto ou cláusulas gerais, mar­


cadas pela utilização de expressões com significados mais abrangentes
e de conteúdo indeterminado. Abandonou-se em contrapartida, a lingua­
gem jurídica predominante no período positivista, cuja técnica propiciava
uma regulamentação fechada, essencial à tão perseguida segurança
jurídica.14

O destaque sobre a proporcionalidade é visto também na Europa, que, por meio


de várias orientações, esclarece sua feição por uma natureza material ou mesmo
formal, retratado pela doutrina que pondera:

O princípio da proporcionalidade que servirá de contemporizador entre os


direitos fundamentais e o poder estatal, avaliando caso a caso quando
se justifica determinada intervenção. [...] O princípio da proporcionalidade
realmente trata de questões concretas e polarizadas, sempre tendo um
bem, valor ou interesse contraposto a outro.15

Defende-se, assim, a possibilidade de limitar o poder do Estado através do


controle de mérito dos atos administrativos e legislativos, calcado nas finalidades
sociais do direito e exigências do bem comum. Assim, vale lembrar ainda que existem
fenômenos tipicamente processuais que ocorrem quando as partes desejam, a
exemplo da suspensão da causa, art. 265 do CPC. Por que não estender também
essa regra para a coisa julgada material?
Ao contrário do que já se sustentou no passado (Enrico Allorio), a caracterís­
tica mais importante da jurisdição não está na coisa julgada, mas na substituição
das partes16 em se dizer o direito com autoridade, decorrente de um controle feito
pelo próprio Poder Judiciário através de uma impugnação adequada. Aliás, a própria

14
SAMPAIO, Rogério Marrone de Castro. A atuação do juiz no direito processual civil moderno. 1. ed. São Paulo:
Atlas, 2008. p. 109.
15
SLERCA, Eduardo. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 1. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2002. p. 91.
16
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini Grinover; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
geral do processo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 132.

20 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015
O DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO COOPERATIVO E A SUBMISSÃO DA COISA JULGADA MATERIAL AO INTERESSE DAS PARTES...

imutabilidade como valor preso ao conceito da coisa julgada material parece não ser
característica essencial à jurisdição. Sobre isso, escreve Antonio do Passo Cabral:

Neste tópico, e nos que lhe seguem, queremos salientar que o caráter
definitivo das decisões judiciais não é da essência da jurisdição, decor­
rendo de razões de conveniência e política legislativa. E, se a imutabilidade
não é um atributo primordial da atividade jurisdicional, é perfeitamente
possível a existência de decisões judiciais que não sejam inalteráveis.17

Desse modo, é do interesse das partes continuar ajustando dados ou elementos


após o trânsito em julgado de uma sentença final, mas que, atualmente, com o atual
regime, tal não seria permitido. Os litigantes da causa devem ir construindo não só
o contraditório, mas, também, suas regras e procedimentos, segundo suas neces­
sidades do direito material.18 Assim, com a publicização do processo somado aos
termos da democracia deliberativa, observa-se que:

Os procedimentos judiciais passaram a ser compreendidos como uma


sede em que, para fins de produção da norma concreta a ser aplicada ao
caso, os indivíduos devem ser tratados como partícipes ativos do debate
processual, coprodutores da norma da sentença.19

Desse modo, é de se perguntar: i) não seria o caso de se retirar a obrigatoriedade


da formação da coisa julgada, valorizando preferencialmente o interesse das partes?
ii) A existência da coisa julgada material não acabou ao longo do tempo, sendo maior
do que o próprio interesse dos litigantes em obter a sua realização?
Enfocando tais ideias, verifica-se que a proporcionalidade permeará e identifi­
cará excessos acerca do regramento da jurisdição, suavizando o caminho mais con­
veniente ao interesse das partes. Entre a proporcionalidade e o interesse delas,
ocorrerá uma exigência de conformação, tendo como consequência final a exclusão
da coisa julgada dos motivos que a determinam como um efeito natural dentro do
direito processual civil. Conforme ainda Remo Caponi, ao comentar sobre a cognição
no processo civil italiano, ele observa:

Com a previsão de um modelo processual tendencialmente único, inde­


pendente da natureza simples ou complexa da abordagem das contro­
vérsias apresentadas à cognição do juiz, estamos no lado oposto de

17
CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas. 1. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2013.
p. 250.
18
É nesse sentido inclusive que a doutrina paranaense vem procurando se posicionar. A respeito, consultar
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil. 2. ed. v. 5. São Paulo: RT, 2011.
p. 42.
19
CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas. 1. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2013.
p. 316.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015 21
Adriano C. Cordeiro

uma valoração segundo a proporcionalidade do emprego dos recursos


judiciais.20

A calibragem de modelos, segundo essa ideia, espelhado a partir do perfil


europeu, regula, de maneira inédita e inteligente, o processamento das demandas
em razão da controvérsia apresentada ao juízo. O modelo de cooperação é confiado
ao juiz, que, em sintonia com as partes, dirige formalmente a causa.
De forma conveniente, o processo é temperado, a exemplo do que já ocorre
nos processos civis inglês,21 francês,22 ou alemão.23 Em cada um desses sistemas,
essa calibragem já vem sendo adotada com sucesso, conferindo, assim, elasticidade
maior ao sistema, se comparado a modelos mais tradicionais.
A ferramenta da proporcionalidade se soma ao controle da jurisdição, visando
resultados mais satisfatórios, racionais e versáteis, dentro do poder discricionário
que é mantido ao juiz. Nos fundamentos do direito, vale lembrar, deve ser razoável e
proporcional.
O poder decisório do juiz é mantido em colaboração com as partes, que articu­lam
seus interesses, adequando-se ao caráter simples ou complexo do litígio, trabalhando
melhor fatores importantes da causa, como princípios, procedimentos, dilações pro­
batórias e, finalmente, a coisa julgada. Vale o alerta inclusive da ocorrência de nuli­
dade processual, caso não haja consulta às partes acerca dessa temática. O manejo
da proporcionalidade é imposto também ao juiz ordinário, que, a respeito, esclarece
a doutrina:

Há ocasiões em que o legislador ordinário impõe ao juiz, expressamente,


a aplicação do princípio da proporcionalidade. Como exemplo, podemos
citar o art. 620 do Código de Processo Civil, que determina ao juiz o controle
da execução pelo modo menos gravoso ao devedor. [...] Observando
que a novidade do instituto da proporcionalidade estimula indagações,
acompanhadas, por isso mesmo, de sedimentação não definitiva, anote-
se que não nos animamos em concluir, peremptoriamente pela exclusão
dos standarts acima enunciados. Certamente, haverá outras situações a
ensejar ao juiz o manejo desse princípio.24

De outra parte, lembre-se que o anteprojeto do novo Código de Processo Civil


Brasileiro, em trâmite no Congresso Nacional, parece refletir também essa ideia,

20
CAPONI, Remo. O princípio da proporcionalidade na justiça civil. São Paulo: Revista de Processo, n. 192, 2011.
p. 409.
21
Por meio da escolha entre small claim track, fast track, multi track.
22
Controle feito por meio da eleição entre cicuit court, circuit moyen e circuit long.
23
Escolha entre realização de uma primeira audiência imediata antes da audiência principal ou valer-se de um
procedimento preliminar escrito.
24
AGUIRRE, José Eduardo Suppioni de. Aplicação do princípio da proporcionalidade no processo civil. 1. ed. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005. p. 143.

22 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015
O DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO COOPERATIVO E A SUBMISSÃO DA COISA JULGADA MATERIAL AO INTERESSE DAS PARTES...

permitindo que o novo estatuto incorpore tal regramento. Por último, é bom enfatizar-
se que, se as partes desejarem que ocorra a coisa julgada, ela se dará em seu grau
máximo, atribuindo sua segurança, como atualmente ocorre em nosso país.
Podemos contextualizar assim algumas soluções em torno dessas ideias. A
primeira delas seria retirar a obrigatoriedade e exigência da coisa julgada material em
determinadas relações jurídicas. Em outras palavras, isso significa deixar ao interesse
das partes a formação da coisa julgada material, permitindo que os sujeitos da lide
vivenciem, a partir da proporcionalidade, uma demanda mais sofisticada e versátil,
dentro de uma experiência já sinalizada com sucesso pelo direito europeu, de que as
partes decidem se determinados acontecimentos processuais devam ou não ocorrer.
Todo esse pensamento indicará soluções para o problema apresentado, de que
o controle da jurisdição vai sendo temperado diante do direito subjetivo da parte. Deixa
de existir a obrigatoriedade de formação da coisa julgada no processo cooperativo
e valoriza-se mais o interesse dos litigantes, não permitindo que a existência do
instituto seja maior do que a cooperação e os resultados entre as partes.
A coisa julgada, dessa forma, deixa de ser um efeito automático da sentença
ou, como prefere Enrico Tullio Liebman, uma qualidade, para ficar condicionada à
vontade das partes, que, se assim desejarem, permitirão que ela ocorra em toda sua
plenitude. É consequência de tudo isso a exigência do debate prévio pelas partes da
incidência ou não da coisa julgada material aos seus interesses, que, nesse cenário,
passam a ter maior destaque nos padrões atuais.
Torna-se indispensável à consulta dos litigantes sobre a formação ou não
de ingredientes importantes, valorizando a liberdade e destacando a eficiência do
processo, a partir de novas bússolas conceituais, em reforço, inclusive, por meio
daquele processo cooperativo já tratado anteriormente.
É importante ainda ressaltar as categorias em que inicialmente ocorrerão essas
transformações. Serão bons exemplos as relações jurídicas que, a partir da sua natu­
reza, protagonizam causas simples como pequenos litígios civis, ações de cobrança
e aquelas relacionadas ao juizado especial cível, regulados pela Lei nº 9.099/95.
Essa categoria de grupos afetados receberia, dessa forma, gradativamente,
os primeiros efeitos dessa mudança, porque é sobre elas que o debate demonstrará
que o ponto de partida é a codificação da eficiência e da proporcionalidade no pro­
cesso civil. Em seguida, propõe-se a estender os efeitos a outros grupos e pessoas
determinadas. A experiência europeia sobre o tema pode também potencializar o
debate em torno do novo CPC.
Destacar ainda o papel exercido sobre o controle proporcional da jurisdição,
apta a desvendar determinados fenômenos tipicamente processuais, a exemplo de
como ocorre com a formação da coisa julgada material.
Deve-se olhar também para as constatações práticas, retiradas de casos viven­
ciados na justiça brasileira. O exame acurado a partir da experiência real faz concluir

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015 23
Adriano C. Cordeiro

que a existência da coisa julgada não pode ser maior do que a vontade e a cooperação
das partes na sua ocorrência.
Permeando essa ideia, está a proporcionalidade, de especial feição europeia,
que, nesse contexto, identifica determinados excessos. Utilizando-se do direito com­
parado, em especial, do direito italiano, inglês, francês e alemão, objetiva-se controlar
melhor a jurisdição, que tem, por assim dizer, relação direta com a formação daquele
instituto.
Propõe, assim, o alcance além da segurança jurídica, permitindo que o debate
ganhe novas cores, fôlego e sintonia com as atualidades do modelo europeu de
justiça. Registre-se que é correto repensar a coisa julgada, espelhando-se na propor­
cionalidade de meios e equilibrando, de maneira mais suave, as decisões judiciais.
A propósito, a Teoria Geral do Processo compreende que o processo não é apenas
relação jurídica:

Mas o instrumento através do qual a jurisdição tutela os direitos na


dimensão da Constituição. É o modulo legal que legitima a atividade
jurisdicional e, atrelado à participação colabora para a legitimidade da
decisão. É a via que garante o acesso de todos ao poder judiciário e, além
disso, é o conduto para participação popular no poder e na reivindicação
da concretização e da proteção dos direitos fundamentais.25

A doutrina sobre tudo isso também viabiliza o debate, advertindo, a propósito,


Raquel Denize Stumm, que “lei razoável era aquela que pareceria sensata, digna de
aplauso e compreensível aos intérpretes”.26 De sua parte e difundindo a ideia do
prin­cípio da proporcionalidade no processo civil, pondera Gisele Santos Fernandes
Goés que:

A inserção do princípio da proporcionalidade no direito processual civil é


motivada pelo trinômio: acesso á justiça – instrumentalidade – efetividade
do processo. [...] ora, parte-se da premissa que a proporcionalidade
seria um dos elementos constitutivos do acesso à justiça, ao lado da
acessibilidade, operosidade e utilidade.27

Nessas condições, há que se reconhecer o caráter normativo da proporcionali­


dade de meios, obrigando os juízes a tomá-los como fundamento de suas decisões.
Evita-se assim o irracionalismo no exercício da jurisdição, utilizando esse elemento
como fio condutor de controle de determinados acontecimentos processuais.

25
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 2. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 478.
26
STUMM, Raquel Denize. Princípio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro. 1. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1995. p. 155.
27
GÓES, Gisele Santos Fernandes. Princípio da proporcionalidade no processo civil. 1. ed. São Paulo: Saraiva,
2004. p. 113.

24 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015
O DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO COOPERATIVO E A SUBMISSÃO DA COISA JULGADA MATERIAL AO INTERESSE DAS PARTES...

Bons exemplos da proporcionalidade podem ser trazidos também por meio


conteúdo jurídico do princípio da igualdade, que Celso Antônio Bandeira de Mello, a
respeito, observa: “A lei não pode tomar tempo ou data como fator de discriminação
entre pessoas a fim de lhes dar tratamentos díspares, sem, com isto, pelejar à arca
partida com o princípio da igualdade”.28
Suzana de Toledo Barros, por sua vez, enfatiza que a proporcionalidade funciona
como “um standard no qual o judiciário se possa apoiar para proceder ao exame da
justiça das leis”.29
Enfocando a proporcionalidade em seu conteúdo prático, Eduardo Slerca
co­menta também sobre a falta de razoabilidade na legítima defesa no Brasil, estabe­
lecendo um comparativo com o estado de necessidade, comentando que “a ressalva
de que não podia de outro modo evitar, que consta do estado de necessidade (art.
24 do Código Penal) e não consta da legítima defesa (art. 25) não pode ser nesta
exigida”.30
Outros exemplos podem ser citados ainda, como o bloqueio de dinheiro imposto
no governo Collor, contrapondo a medida extrema adotada, uma vez que outras
medidas econômicas poderiam ter sido determinadas naquele governo. O Supremo
Tribunal Federal também já enfrentou questões acerca da proporcionalidade, pon­
derando assim:

Assumindo ser irrazoável submeter o suposto pai ao exame compulsório


de DNA quando em ação investigatória de paternidade, concluindo que,
à luz da proporcionalidade, se impõe evitar a afronta à dignidade pessoal
que, nas circunstâncias, a sua participação na perícia substantivaria.31

Comentando esse último caso, acrescenta o mesmo Eduardo Slerca:

Quando a realização do exame de DNA afigura-se realmente vital para


a identificação paterna, será justificável a restrição ao direito à intan­
gibilidade corporal do suposto pai, mas quando existirem outros meios de
prova, suficientes ao esclarecimento da questão, sob o prisma cienti­fico,
a realização do exame representará constrangimento ilegal. Em outras
palavras, o resultado da proporcionalidade irá variar de acordo com as
circunstâncias em que eclodir o conflito entre o direito ao conhecimento
do genitor natural, já que ambos possuem dignidade constitucional.32

28
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2000. p. 33.
29
BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis
restritivas de direitos fundamentais. 1. ed. Brasília: Editora Brasília Jurídica, 1996. p. 23.
30
SLERCA, Eduardo. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 1. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2002. p. 107.
31
HC nº 76.060, rel. Ministro Sepúlveda Pertence, DJ 15.5.1998.
32
SLERCA, Eduardo. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 1. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
2002. p. 129.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015 25
Adriano C. Cordeiro

Importantes ainda nesse particular são as investigações de paternidade e os


exames de DNA, enfrentados também pela doutrina sob o enfoque da proporcio­
nalidade. Com efeito, é conhecida a situação da ação de investigação de paternidade
julgada improcedente em tempos remotos, quando não se conheciam os exames
de DNA, pelo menos os mais precisos. Com o aparecimento dessa técnica e
a pos­si­bilidade de modificação após o trânsito em julgado da anterior sentença,
indaga-se sobre as chances de propositura de nova ação, na qual se produza prova
ante­riormente inviável. Com propriedade e enfrentando a questão sob o prisma da
proporcionalidade, explica a doutrina:

Porém, a questão, na hipótese de ação de investigação de paternidade,


é outra. Aqui, prende-se uma nova ação, sobre os mesmos fatos, mas
sob a alegação de que há uma técnica probatória que surgiu depois do
trânsito em julgado da sentença de improcedência. O problema, assim,
está na justificação da utilização desta técnica probatória diante do
valor da coisa julgada, a tornar estável, indiscutível e imutável a relação
jurídica aperfeiçoada pela sentença.33

Ao avançar um pouco mais, tem-se também uma relação da própria coisa jul­gada
com o princípio da proporcionalidade, valendo destacar que, no dimensionamento da
segurança jurídica, nenhum tipo de desestabilização da paz social vem ocorrendo,
justamente porque os excessos cometidos não integram uma posição abalizada com
o citado princípio. Sobre isso, mais uma vez, enfatiza a doutrina que:

Não podemos imaginar que os tribunais brasileiros, ao utilizarem o


princípio da proporcionalidade em circunstâncias semelhantes àquelas
mencionadas, cometam outros excessos, permitindo que em qualquer
situação garantia da coisa julgada possa ser revista.34

É digna de registro ainda a condução equilibrada do processo em relação ao


juiz. Já se comentou sobre a postura mais dinâmica que o magistrado deve possuir
no ambiente do processo cooperativo. Assim, em termos de instrumento para sua
efetiva atuação, de modo especial, destaca-se o diálogo processual, o maior incen­
tivo às soluções consensuais, a administração judicial e a dedicação do magistrado
na condução do processo muito além daqueles contornos a respeito de vícios pro­
cessuais. Os poderes instrutórios devem inclusive ser contemplados para uma aber­
tura de uma conversação intensa, valorizando, mais do que nunca, outros poderes,
além dos já conhecidos poderes jurisdicionais. Sobre isso, ensina a doutrina:

33
MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada inconstitucional. 2. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 179.
34
BONICIO, Marcelo José Magalhães. Proporcionalidade e processo: A garantia constitucional da proporcionalidade,
a legitimação do processo civil e o controle das decisões judiciais. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 102.

26 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015
O DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO COOPERATIVO E A SUBMISSÃO DA COISA JULGADA MATERIAL AO INTERESSE DAS PARTES...

O anseio por uma postura mais participativa do juiz não se contenta em


vê-lo isolado nas atividades instrutória e saneatória. [...] No entanto, uma
exigência fundamental precisa entremear a condução do processo pelo
julgador à guisa de legitimar suas intervenções: o diálogo pleno entre
todos os participantes do processo. [...] A dedicação do magistrado na
condução do processo, muito além de adstrita ao contorno de vícios
processuais ou utilização de poderes instrutórios, deve ser coroada pela
abertura de uma conversação intensa com as partes. Já é tempo de se
entender que ao magistrado incumbe a direção material do processo,
viabilizada por diálogo aberto em que não se pretende a apropriação do
papel a ser desempenhado pelas partes, mas seu aconselhamento e
orientação quando necessários.35

Desse modo, deve o magistrado procurar interagir mais diretamente com as


partes, fortalecendo o potencial deles, incentivando uma conversa clara, numa
posi­­ção dinâmica em termos como indicações da petição inicial, dúvidas acerca de
legi­ti­midades e advertências sobre pedidos. Confiar ao juiz um papel mais ativo na
condução da instrução do feito; ao contrário do que parecem acreditar alguns, não
implica forçosamente num processo dominado pelo autoritarismo. Sobre isso, escreve
a doutrina que “conservam as partes, ademais, certo poder de influir na configuração
do iter processual. Toca-lhes, por exemplo, prorrogar ou reduzir por acordo, prazos
dilatórios, renunciar prazos, fazer aditar audiências de instrução”.36

5 Conclusões
O direito processual civil caminha a passos largos para o desenvolvimento de
um valor básico, qual seja o do modelo processual cooperativo. Com faceta consti­
tucional, nasce em decorrência do formalismo valorativo, inserindo-se como papel de
complementação entre as partes e o juiz, e não como se imaginaria o absurdo de
serem excludentes.
Partindo de uma verificação social, lógica e ética, organizado por meio da
necessidade de colaboração, reputa-se indispensável que tenham as partes a possi­
bilidade de se pronunciar sobre tudo que pode servir de ponto de apoio para a decisão
da causa, inclusive quanto a um contraditório com influência reflexiva.
A literatura apresenta, nesse parâmetro, um discurso moldado na proporcio­na­
lidade aplicada ao processo civil e a própria coisa julgada, com exemplos concretos
em termos da proporcionalidade, como os artigos 798 e 805, 273, 655 c/c 620, 295,
I, e 460, 332, 515, §3º, 461, 535, 558 e 527, III, todos do Código de Processo Civil.37

35
SILVEIRA, João José Custódio da. O juiz e a condução equilibrada do processo. 1. ed. São Paulo: Saraiva,
2012. p. 77.
36
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A função social do processo civil moderno e o papel do juiz e das partes na
direção e na instrução do processo. São Paulo: Revista de Processo, n. 37, 1985. p. 148.
37
GÓES, Gisele Santos Fernandes. Princípio da proporcionalidade no processo civil. 1. ed. São Paulo: Saraiva,
2004. p. 117.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015 27
Adriano C. Cordeiro

É exigência ainda a promoção de mudanças culturais, afastando-se conceitos e


modelos tradicionais não condizentes com o moderno processo civil e suas cláusulas
abertas. Esses fatores incidem não apenas sobre a qualidade da oferta do serviço
judiciário, mas, também, sobre a qualidade da própria demanda, conferindo respos­
tas mais razoáveis e sofisticadas do sistema judiciário.
O perfil de humanização do direito processual confere à sociedade um eficiente
meio ético de pacificação social, obtido através de uma cooperação entre os sujeitos
da causa, trazendo a verdade real e a boa-fé processual como fatores capazes de
gerar um equacionamento da demanda, tornando o juiz, inclusive, um partícipe da
relação jurídica, e não apenas um representante do órgão estatal.
A coisa julgada e a proporcionalidade podem capacitar também a sintonia para
com o controle da jurisdição, intensificando e aprimorando sofisticados resultados
da atividade processual, oportunizando uma eficiente decisão final.

Abstract: This article examines issues surrounding the cooperative process also focusing on res judicata
and the willingness of the parties against the principle of proportionality in civil justice. Analyzes the current
system of procedural rules permeating the versatility of the decisions from the dialogue of the parties
with the judge, including the new CPC. Promotes debate still weighting the exercise of jurisdiction on the
experiences of the right English, French and German.
Keywords: Res judicata. Cooperative process. Cooperation of the parties The principle of proportionality
Control jurisdiction.

Referências
AGUIRRE, José Eduardo Suppioni de. Aplicação do princípio da proporcionalidade no processo civil.
1. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005.
AMORIM, José Roberto Neves. Coisa julgada parcial no processo civil. 1. ed. Rio de Janeiro: Elsevier,
2011.
ARAÚJO, José Henrique Mouta. Coisa julgada progressiva & resolução parcial do mérito. 1. ed.
Curitiba: Juruá, 2007.
ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil: Procedimentos Especiais. 2. ed. v. 5. São Paulo:
RT, 2011.
ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Deveres das partes e dos procuradores, no direito processual civil
brasileiro. São Paulo: Revista de Processo, n. 69, 1993.
ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A função social do processo civil moderno e o papel do juiz e das
partes na direção e na instrução do processo. São Paulo: Revista de Processo, n. 37, 1985.
______. O problema da divisão de trabalho entre juiz e partes: Aspectos terminológicos: Temas de
direito processual. 4. série. São Paulo: Saraiva, 1989.

28 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015
O DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO COOPERATIVO E A SUBMISSÃO DA COISA JULGADA MATERIAL AO INTERESSE DAS PARTES...

BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das


leis restritivas de direitos fundamentais. 1. ed. Brasília: Editora Brasília Jurídica, 1996.
BONICIO, Marcelo José Magalhães. Proporcionalidade e processo: A garantia constitucional da
proporcionalidade, a legitimação do processo civil e o controle das decisões judiciais. 1. ed. São
Paulo: Atlas, 2006.
CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas. 1. ed. Salvador: Editora JusPodivm,
2013.
CALDEIRA, Marcus Flávio Horta. Coisa julgada e crítica à sua relativização. 1. ed. Brasília: Thesaurus,
2012.
CAPONI, Remo. O princípio da proporcionalidade na justiça civil. São Paulo: Revista de Processo, n.
192, 2011.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini Grinover; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria Geral do Processo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português.
1. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010.
GRASSI, Lúcio Grassi de. A função legitimadora do princípio da cooperação inter-subjetiva no processo
civil brasileiro. São Paulo: Revista de Processo, n. 172, 2009.
GÓES, Gisele Santos Fernandes. Princípio da proporcionalidade no processo civil. 1. ed. São Paulo:
Saraiva, 2004.
KLIPPEL, Rodrigo. A coisa julgada e sua impugnação. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2008.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. 4.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
LEAL, Rosemiro Pereira. Coisa julgada: de Chiovenda a Fazzalari. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: Teoria Geral do Processo. 2. ed. v. 1. São Paulo:
RT, 2007.
______. Curso de processo civil: Procedimentos Especiais. 2. ed. v. 5. São Paulo: RT, 2011.
______. Coisa julgada inconstitucional. 2. ed. São Paulo: RT, 2010.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2000.
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: Pressupostos sociais, lógicos e éticos. 2. ed. São
Paulo: RT, 2011.
MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. Coisa julgada. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008.
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. 1. ed. São Paulo: RT, 1971.
PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada civil. 4. ed. São Paulo: RT, 2012.
SAMPAIO, Rogério Marrone de Castro. A atuação do juiz no direito processual civil moderno. 1. ed.
São Paulo: Atlas, 2008.
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional.
1. ed. São Paulo: RT, 2012.
SILVEIRA, João José Custódio da. O juiz e a condução equilibrada do processo. 1. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012.
SLERCA, Eduardo. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 1. ed. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2002.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015 29
Adriano C. Cordeiro

STUMM, Raquel Denize. O Princípio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro. 1. ed.


Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995.
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. 1. ed. São Paulo: RT, 2005.
TESHEINER, José Maria. Eficácia da sentença e coisa julgada no processo civil. 1. ed. São Paulo:
RT, 2002.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada: Hipóteses
de relativização. 1. ed. São Paulo: RT.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

CORDEIRO, Adriano C. O desenvolvimento do processo cooperativo e a submissão


da coisa julgada material ao interesse das partes: O controle proporcional da
jurisdição. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano
23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015.

30 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 13-30, jan./mar. 2015
Institutos fundamentais do processo
civil: jurisdição, ação e processo

Arlete Inês Aurelli


Mestre e doutora em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Professora de Direito Processual
Civil na PUC-SP. Advogada.

Resumo: O presente texto tem por objetivo demonstrar que o estudo dos institutos fundamentais jurisdição,
ação e processo, tomando como ponto de partida a jurisdição, de forma alguma privilegia a visão autoritária
do Poder Estatal, estando plenamente conforme o Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Jurisdição. Ação. Processo.

Sumário: 1 Considerações introdutórias – 2 Digressão sobre os institutos fundamentais da Teoria Geral do


Processo: jurisdição, ação e processo – 3 Conclusão

1 Considerações introdutórias
O interessante e muito bem fundamentado texto do dileto amigo Glauco
Gumerato,1 originário da palestra que proferiu no Congresso de Direito Processual de
Uberaba, o qual tem por objeto de estudo os conceitos básicos e pilares da Teo­ria
Geral do Processo (no modo de ver do autor: ação, processo e jurisdição) e a inter­
correlação entre eles sob a ótica do Estado Democrático de Direito, nos renderam
ensejo a inquietantes reflexões.
Na verdade, ouso discordar de alguns pontos cruciais que foram levantados no
texto de Glauco Gumerato. Assim, o presente ensaio tem a pretensão de expor minha
visão sobre os institutos fundamentais do processo civil (jurisdição, ação e processo)
e questionar os pontos nevrálgicos trazidos por meu dileto amigo.
Primeiramente, é preciso asseverar que concordamos em gênero, número e
grau quando Glauco afirma que o processo deve ser regido pelos atributos que subs­
tanciam o princípio Republicano e, consequentemente, que possui seu perfil forte­
mente marcado pelas características do Estado Democrático de Direito. De fato, para
realizar o processo, deve-se seguir rigorosamente o método e modelo estabelecido

1
Processo jurisdicional, república e os institutos fundamentais do direito processual, publicado na RBDpro.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015 31
Arlete Inês Aurelli

pela Constituição Federal, notadamente no que tange aos direitos fundamentais e


às garantias constitucionais insertas no seu artigo 5º. Assim, a função jurisdicional
não é realizada a bel-prazer e livre-arbítrio do Estado-Juiz, mas, sim, deve seguir reli­
giosamente as diretrizes previstas na Carta Magna para tal atividade, sendo que a
conformação do próprio processo depende da observância desse método.2
No entanto, isso não significa que, para cumprir a ordem jurídica justa, seja
preciso dar outra dimensão aos institutos fundamentais do processo, como são a
jurisdição, ação e processo. Muito menos que a ordem em que tais institutos são
estudados tenha importância para a manutenção do Estado Democrático de Direito.
Em primeiro lugar, para estudar o processo com fundamento no modelo cons­
titucional acima referido, de forma alguma se faz necessário que se coloque a ação
em primeiro lugar3 como objeto das reflexões, e a jurisdição em último. Na verdade,
é de se indagar se não seria de somenos importância saber qual dos institutos
fundamentais é mais importante ou qual deles deve ser estudado em primeiro lugar.
Isso seria mais ou menos como querer saber “quem nasceu primeiro, o ovo ou a
galinha”. Isso porque tais conceitos são indissociáveis, estão intimamente inter­
ligados e se correlacionam numa linha de interdependência. Podemos dizer que um
precisa do outro para sua própria existência. Justamente por isso que todos os três
institutos pilares da Teoria Geral do Processo são igualmente importantes. Não há
assim que se estabelecer uma ordem no estudo desses institutos. Não há que se
falar que um deles seja o pilar do qual derivam os demais, nem que um seja mais
relevante que outro, como quer Glauco Gumerato.
Portanto, no presente ensaio, pretendemos rebater especificamente os
conceitos trazidos por Glauco Gumerato sobre os institutos fundamentais da Teoria
Geral do Processo e demonstrar que não há ordem de importância a ser estabelecida
entre esses conceitos. E, mais, ainda que houvesse, pensamos que é perfeitamente
adequado colocar a jurisdição em primeiro lugar, à frente da ação e do processo, não
havendo nada de autoritário nisso. Vejamos, pois.

2
Nesse sentido, Cássio Scarpinella Bueno (2012, p. 130) afirma que “Os princípios constitucionais” ocupam-se
especificamente com a conformação do próprio processo, assim entendido o método de atuação do Estado-juiz
e, portanto, método de exercício da função jurisdicional. São eles que fornecem as diretrizes mínimas, mas
fundamentais, do próprio comportamento do Estado-juiz. É esta a razão pela qual, no desenvolvimento deste
trabalho, a menção à expressão “modelo constitucional do processo civil”, sem qualquer ressalva, quer se refe­
rir mais especificamente a este primeiro grupo de normas, o relativo aos “princípios constitucionais do direito
pro­cessual civil” a uma das partes, visto que integram “o modelo constitucional do direito processual civil”.
3

Dinamarco (2013, p. 90 e 93) entende que “observar o sistema processual a partir do instituto da ação é um
hábito metodológico mantido pelos juristas latinos em geral, em continuação ao privatismo dominante durante
milênios de sincretismos, hoje superados. Quando se via no processo um dos meios de exercício dos direitos,
ali então era coerente acreditar que ele fosse feito para o autor, e a jurisdição exercida para a prestação da
tutela a ele. Depois, já proclamada formalmente a autonomia do direito processual, mas não assimilada ainda
a ideia por inteiro, da visão dominante não destoava o pensamento de que ação fosse direito à tutela jurídica
(rechtsschutzanspruch) e se situasse ao centro da constelação de institutos que compõe o direito processual.
Por ser individualista e restrita ao processo civil, desmerece apoio a tendência de se colocar a ação ao centro
da constelação de institutos de direito processual”.

32 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015
Institutos fundamentais do processo civil: jurisdição, ação e processo

2 Digressão sobre os institutos fundamentais da Teoria Geral


do Processo: jurisdição, ação e processo
2.1 Jurisdição
O conceito tradicional de jurisdição envolve três âmbitos de análise, quais sejam
poder, função e atividade, sendo que todos os três coexistem e constituem três lados
da mesma moeda.
A jurisdição vista como poder deve ser entendida como manifestação do Poder
Estatal. Entretanto, não deve ser vista como autoritarismo, porque o poder, neste
caso, nada mais é que exercício da soberania nacional, compatível com o Estado
Demo­crático de Direito e com os ideais republicanos.
De fato, tendo em mente o Estado Democrático de Direito, verificamos que a
jurisdição, como Poder Estatal, serve à manutenção da tripartição de poderes, que
devem ser e são independentes e harmônicos. Como poder, a jurisdição é vista,
ainda, como a capacidade de o Estado-juiz decidir imperativamente no sentido de
que as partes estarão sujeitas inexoravelmente ao que vier a ser decidido sobre
o conflito de interesses que for levado à apreciação, já que acobertado pela coisa
julgada. No entanto, nada há de autoritário nisso. Pelo contrário, busca-se, com isso,
o cumprimento do ideal republicano, servindo à segurança jurídica. É ideal, para o
jurisdicionado, que as decisões do Poder Judiciário sejam imutáveis e imperativas,
principalmente porque se sabe que a jurisdição não se esgota com a decisão sobre o
conflito de interesses, mas, sim, vai além, impondo a satisfação do direito protegido.
Nesse sentido, é ótimo para o sistema que o judiciário tenha o poder de coerção
para que suas decisões sejam efetivamente cumpridas. De nada adianta pacificação,
sem que o direito seja efetiva e concretamente entregue àquele que veio buscar a
proteção do Estado.
Jurisdição também é função, realizada pelo Poder Judiciário como agente paci­
ficador da sociedade. E o Estado realiza essa função não somente através da resolução
dos conflitos de interesses que lhe são submetidos à apreciação, mas também con­
cede aos interessados, mediante o cumprimento de certos requisitos, aquele ato que
faltava para a satisfação do seu direito, seja uma autorização, um alvará ou mesmo
a simples homologação de um acordo. Assim, mesmo nas hipóteses em que nenhum
conflito existe, o Estado proporciona a efetivação do ideal republicano, já que, ao
realizar a função pacificadora, o faz através de um processo justo, ou seja, aquele
realizado mediante a observância do modelo constitucional do processo, em que
todas as garantias e direitos fundamentais tenham sido respeitados. A jurisdição,
pois, contribui em muito para a manutenção do Estado Democrático de Direito. Na
falta dessa observância, o órgão julgador deve ser punido. Portanto, não estamos
frente a um poder absoluto, mas, sim, limitado pela própria Carta Magna. Na verdade,

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015 33
Arlete Inês Aurelli

trata-se de um poder/dever do Estado de prestar a tutela jurisdicional pleiteada


de modo efetivo.
E, como atividade, olhamos a jurisdição sob o ponto de vista do processo em
concreto. Nesse sentido, traduz-se como um conjunto de atos do juiz no processo,
praticados com vistas ao cumprimento da função que lhe é atribuída.
Portanto, jurisdição é poder/dever estatal que presta função de pacificação
social, resolvendo os conflitos de interesses que lhes são submetidos à apreciação ou
rea­li­zando a atividade homologatória que lhe compete, tudo através de um processo
que, em consequência, atua para que o Estado Democrático de Direito seja mantido.
Por ser exercício da soberania nacional, não nos parece que se possa concluir,
como fez Glauco Gumerato, que exista qualquer autoritarismo quando se coloca a
jurisdição como primeiro objeto de estudo. Isso porque, como foi dito anteriormente,
existem limites ao exercício da atividade estatal que são determinados pela própria
Constituição Federal, sendo vedado ao órgão julgador agir com arbitrariedade, excesso
ou abuso de poder. Não há discricionariedade no exercício da jurisdição.
Ao depois, a atividade jurisdicional está limitada pelos direitos e garantias cons­
titucionais, insertas no art. 5º da Constituição Federal. De fato, o princípio do devido
processo legal (inciso LIV, art. 5º, CF), que é a base, o sustentáculo, do qual decorrem
todos os demais princípios processuais constitucionais, limita o agir do Estado por
meio da jurisdição, pois obriga o órgão julgador a ser imparcial, a propiciar direitos
iguais para ambas as partes no processo, a fundamentar suas decisões para que
seja possível o controle pelo jurisdicionado, a oportunizar o contraditório e o direito de
produzir provas das alegações feitas em juízo, enfim, tudo que seja necessário para
garantir o chamado processo justo.4
O equívoco de Glauco Gumerato, nos parece, foi partir da definição de Chiovenda,
para quem jurisdição seria a atuação da vontade concreta da lei em prol do autor
e do réu.5 Ocorre que, contemporaneamente, não basta a ideia de que jurisdição
seria apenas e tão somente o órgão julgador dizer o direito, aplicando a lei ao caso
concreto. Jurisdição envolve conceito bem mais amplo. Na verdade, o Estado tem
verdadeira obrigação de prestar a devida tutela jurisdicional, seja a favor do autor,
seja a favor do réu. Quando se examina conceito de jurisdição como obrigação (dever)
do Estado de prestar a tutela jurisdicional, que seja efetiva, nota-se que não há nada
de autoritário nisso. Muito pelo contrário, o Estado é que se coloca a serviço do
jurisdicionado, de forma a conseguir que o direito buscado por ele lhe seja realmente
entregue. Pelo menos, é o que atualmente se espera da jurisdição.6

4
Nesse sentido, Nelson Nery Jr. (1995, p. 27) salienta que: “Em nosso parecer bastaria a norma constitucional
haver adotado o princípio do dues process of law para que daí decorressem todas as consequências
processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e sentença justa. É por assim dizer o
gênero do qual todos os demais princípios são espécies”.
5
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. v. II. São Paulo: Saraiva, 1965. p. 11.
6
Nesse sentido, Horácio Wanderlei Rodrigues e Eduardo de Avelar Lamy (2012, p. 113) afirmam que: “Na
perspectiva contemporânea, a jurisdição consiste no poder-dever do Estado-juiz de declarar e executar os

34 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015
Institutos fundamentais do processo civil: jurisdição, ação e processo

Assim, não se trata de um Estado autoritário, mas, sim, de um Estado demo­


crático, que tem o poder/dever de prestar a tutela jurisdicional de forma eficiente,
e de um jurisdicionado que tem o poder/direito de exigir que ela, a tutela, lhe seja
concedida, na forma exata, por ele requerida, ou seja, que o direito in natura lhe seja
concedido, não se aceitando mais que o Estado entregue qualquer coisa no lugar ou
que tudo se resolva em perdas e danos. Não basta assim que seja dito o direito –
que seja resolvido o conflito de interesses através de uma decisão. Não! O jurisd­
cionado espera e exige bem mais do que isso: ele deseja a satisfação do direito, de
modo concreto.
Ressalte-se que a obrigação de prestar a tutela jurisdicional perdura durante
todo o processamento do feito, em todas as suas fases, até a execução, sendo que o
órgão julgador tem o dever de cumprir, de zelar pela efetiva prestação da tutela juris­­di­
cional, entregando o direito almejado em concreto. Ultrapassa, pois, a mera obrigação
de compor o conflito de interesses, dizendo o direito, ou a vontade concreta da lei,
como queria Chiovenda. O juiz deve, assim, proporcionar a ambas as partes o direito
de se manifestar, de esclarecer fatos, produzir provas, enfim, pro­porcionar meios
idôneos e eficientes para a obtenção da efetividade da tutela, como, por exemplo,
meios efetivos de localização do devedor, de bens, expedição de ofícios, etc.
Ora, se o Judiciário tem o dever de prestar a tutela jurisdicional entregando o
direito in natura para as partes, estando, pois, a serviço delas, não há como se enten­
der que seja a jurisdição o exercício do autoritarismo, como quer Glauco Gumerato.
Cássio Scarpinella Bueno, nesse sentido, esclarece que “pensar o direito pro­
cessual civil a partir dos resultados úteis que a atuação jurisdicional oferece para o
plano material (externo, pois, ao plano do processo), tal qual reconhecido existente
no plano processual, é importante frisar, é mais que uma necessidade retórica ou
científica, é uma verdadeira imposição: é para isso que se pode cogitar da existência
da ‘função jurisdicional’ em um Estado Democrático de Direito; é para isso que se
justifica seu estudo”.7
Talvez por ser visionário e pensar a jurisdição desse modo atual, no sentido de
que é função que não se limita à mera composição da lide e de aplicar a lei ao caso
concreto, mas, sim, de efetiva entrega da prestação da tutela jurisdicional, é que
Cala­mandrei inseriu a jurisdição como o primeiro argumento de Estudo dos institutos
fun­damentais da Teoria Geral do Processo.
Para Calamandrei, o escopo da função jurisdicional é a atuação do direito obje­
tivo, e não a mera composição da lide, podendo, portanto, existir processo sem lide.

direitos conforme as pretensões que lhe são formuladas, segundo os valores e princípios fundamentais
estabelecidos na Constituição Federal, garantindo o seu respeito efetivo no âmbito dos fatos, na vida dos
litigantes”. É esse o sentido que se deve atribuir ao art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. “A jurisdição
é exercida pelo Estado por meio do Poder Judiciário, e tem por escopo aplicar o direito e garantir a sua eficácia,
em última instância, nos casos concretos, quando provocada”.
7
Curso sistematizado de direito processual civil, v. 1, 6. ed., 2012, p. 387.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015 35
Arlete Inês Aurelli

Ele discorda, portanto, do conceito reducionista da jurisdição e entende que tanto


o processo de cognição quanto o processo de execução estão compreendidos na
função jurisdicional.8
Por outro lado, entendo ser acertado o entendimento de Calamandrei de colocar
a jurisdição como primeiro argumento de estudo. Não vejo nisso nenhum discurso
legitimador do Poder Estatal no sentido de colaborar na construção de concepções
autoritárias para o direito processual.
Na verdade, a colocação da jurisdição como primeiro objeto de estudo se dá
apenas porque é para ela que se dirige o jurisdicionado quando exerce o direito de
ação. De fato, não haveria exercício do direito de ação caso não houvesse jurisdição.
Ora, a jurisdição preexiste à ação. O Poder Judiciário é inerte, não age se não for pro­
vocado. É preciso que seja assim para que o órgão julgador mantenha sua isenção
e, em consequência, o Estado de direito seja também mantido. No entanto, o Poder
Judiciário está lá, de portas abertas, aguardando que o jurisdicionado venha provocar a
sua atuação. E o jurisdicionado o faz através do exercício do direito de ação. Para essa
provocação, o jurisdicionado precisa de uma atividade concreta, que é a distribuição
da petição inicial. Ao fazê-lo, inicia-se o processo. Assim, não há mal algum em dizer
que o processo é instrumento, porque é através dele que o Estado concretiza sua
obrigação de prestar a tutela jurisdicional que lhe foi solicitada pela parte. Na verdade,
o processo precisa se desenvolver perante um órgão jurisdicional para ter existência
jurídica. Não há processo jurisdicional que se desenvolva se não for ofertado perante
a jurisdição, e é justamente por isso que esta é pressuposto processual de existência
daquele. É importante frisar que, para muitos processualistas, a jurisdição seria o
único pressuposto processual de existência do processo.

2.2 Ação
Tendo em mira que a jurisdição é o dever do Estado de prestar a tutela jurisdi­
cional, é preciso reconhecer a existência de um direito subjetivo conferido ao juris­
dicionado de exigi-la. Esse direito é a ação, um dos institutos fundamentais e pilares
da Teoria Geral do Processo. A par disso, muitas foram as teorias que tentaram
explicá-la.
No período clássico do direito romano, não havia preocupação com a ação,
a qual era vista como apêndice, acessório do direito material. O monismo, a ideia
de que havia somente um plano que abrangia tanto o direito material como o
processual, prevalecia. Falava-se apenas em ação de direito material. Essa teoria,

8
Calamandrei (1928, p. 9) afirma que: “Ritengo perciò che la teoria modernamente prevalente, dal Wach al
Chiovenda, che pone nell’attuzaione del diritto obiettivo lo scopo caractteristico della funzione giurisdizionale,
sai idônea, meglio di quella che il Carnelutti vorrebe resuscitare, a metere in eveidenza la natura essenzialmente
pubblicistica del processo nei moderni ordinamenti giuridici come strumento per realizzare in concreto la
astratta voluntà dello Stato”.

36 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015
Institutos fundamentais do processo civil: jurisdição, ação e processo

chamada clássica, imanentista ou civilista vigorou durante todo o século XIX, e


sua existência se deve à fase evolutiva do processo, em que este se encontrava
verdadeiramente subordinado ao direito civil, do qual era concebido como apêndice.9
A ação estava ligada ao direito material, ou seja, eram a mesma realidade, apenas
apresentadas sob formas diversas. Decorre dessa teoria o art. 76 do Código Civil de
1916, que previa que a todo direito corresponde uma ação que o assegura. Assim,
entendia-se que não havia ação sem direito, nem direito sem ação, isto é, a ação
segue a natureza do direito. Entretanto, essa teoria não explicava um fenômeno
comum na prática judiciária, que era a ação infundada, ou seja, quando, somente
no final da demanda, verificava-se que o autor não tinha razão, pelo que a ação
era improcedente. Ocorre que, mesmo nessa hipótese, houve direito de ação, ainda
que sem direito material. Também não explicava o fenômeno que ocorre numa ação
declaratória negativa, em que se visa à obtenção de declaração de inexistência de
direito material. Assim, essa teoria foi superada, já que o direito de ação é autônomo
e independe do direito substancial.
A superação da teoria imanentista se originou da polêmica entre Muther e
Windscheid sobre a actio romana. Em decorrência, distinguiu-se nitidamente direito
lesado e ação. Trouxe o direito processual civil como disciplina autônoma do direito
material. Da ação, nascem dois direitos, ambos de natureza pública: o direito do
ofen­dido à tutela jurídica do Estado (dirigido contra o Estado) e o direito do Estado
à eli­minação da lesão contra aquele que a praticou. Assim, ação seria um direito
público subjetivo distinto do direito material. Windscheid acabou por aceitar algumas
ideias de Muther, admitindo um direito de agir exercitável contra o Estado e contra
o devedor. Ambas as teorias passaram a se completar. O grande mérito dessa
teoria foi o reco­nhecimento da existência da ação como direito autônomo, criando,
assim, o caráter dualista do direito de ação.10 Reconhece a legitimidade de um con­
ceito de ação material junto com ação processual,11 mas ainda não se explicava a
ação infundada.
Em 1889, Adolph Wach escreveu o livro Ação Declaratória, definindo ação
como direito autônomo e concreto. Esse doutrinador demonstrou que a ação é um
direito autônomo, no sentido de que não tem, necessariamente, por base, um direito
subjetivo, ameaçado ou violado, como as ações declaratórias. Dizia ele, ainda, que a
ação é exercitável bifronte: é dirigida tanto contra o Estado como contra o adversário.
Assim, seria um direito público subjetivo. Via ação como direito processual. Entretanto,
entendia que a tutela jurisdicional deveria conter-se numa sentença favorável, ou seja,

9
Nesse sentido, CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 24. ed. Atlas. p. 139-140.
10
Conforme Alexandre Câmara, obra citada, p. 140.
11
Conforme OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Pôlemica sobre ação, a tutela jurisdicional na perspectiva das
relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 87.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015 37
Arlete Inês Aurelli

o direito de ação seria concreto.12 Entendia, ainda, que o direito de ação dependia
do cumprimento de requisitos determinados pelo direito processual, quais sejam as
condições da ação e os pressupostos processuais. Entretanto, Wach também não
explicava a existência da ação infundada.
Oskar Von Bülow formulou uma modalidade dessa teoria, entendendo que ação
é o direito a uma sentença justa. Para refutar tal teoria, basta pensar nas ações
julgadas improcedentes: o que seriam, então, os atos processuais praticados até
a sentença? O que teria ocorrido quando a decisão injusta acolhesse pedido infun­
dado do autor? Portanto, o direito de ação não pode depender do direito material. De
qualquer forma, seu entendimento de que a ação nasce com o processo foi um marco
para a discussão sobre ação, uma vez que, a partir daí, é que surgiram as teses
sobre a existência da ação processual.13
Chiovenda, por sua vez, criou a teoria da ação como direito potestativo,14 pela
qual a ação era entendida como um direito autônomo, que não se dirige contra o
Estado, mas, sim, contra o adversário: é um direito de provocar a atividade jurisdi­
cional contra o adversário ou, mais precisamente, em relação ao adversário. Portanto,
não é direito subjetivo. Para ele, ação é um poder, sem obrigação correlata, que
per­tence a quem tem razão contra quem não a tem, visando à atuação da von­tade
concreta da lei. O titular do direito de ação tem o direito que é, ao mesmo tempo,
um poder de produzir em seu favor o efeito de funcionar a atividade jurisdicional do
Estado em relação ao adversário, sem que este nada possa fazer. A ação é o poder
jurídico de realizar a condição necessária para a atuação da vontade da lei. Entende,
também, que o direito de ação é privado ou público, conforme a lei seja de natureza
privada ou pública. Ocorre que essa teoria não difere daquela que vê o direito da ação
como direito a uma sentença favorável. Para ele, a função jurisdicional visa à atuação
da lei. Justamente por isso é que entende que a ação deve ser o primeiro instituto
fundamental, e não a jurisdição. Tanto Chiovenda como Wach, embora se referissem
à autonomia do direito de ação, foram claros ao salientar que, somente na sentença
final, efetivamente, seria possível apreciar a existência ou não do direito de ação,
desde que existente o direito que lhe estava subjacente.15
Em 1877, Degenkolb criou, na Alemanha, (e Plósz, na Hungria), a teoria da ação
como direito abstrato de agir.16 Segundo ele, a teoria do direito de ação independe da

12
Conforme ALVIM, Arruda. Por essa teoria a ação era indissociável do direito subjetivo. In: Tratado de Direito
Processual Civil, v. 1, RT, 2. ed. p. 370.
13
La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Tradución de Miguel Angel Rosas
Lichtschein. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1964.
14
Instituições de direito processual civil, v. 1, 1965, p. 24.
15
Chiovenda (1948, p. 26) afirmava que, por exemplo, “no caso de se pedir uma sentença condenatória, as
condições da ação, normalmente, seriam: a) a existência de lei garantidora do bem pretendido, através da
imposição, ao demandado, de uma prestação; b) a qualidade, ou identidade entre a pessoa do autor e aquela
favorecida pela lei, e a pessoa do demandado com a obrigada por ela; e c) o interesse em conseguir o bem
através da Justiça”.
16
Conforme FREIRE, Rodrigo Cunha Lima. Condições da ação. RT, 2. ed. p. 51.

38 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015
Institutos fundamentais do processo civil: jurisdição, ação e processo

existência efetiva do direito material invocado. Não deixa de haver ação quando uma
sentença justa nega a pretensão do autor ou quando uma sentença injusta a acolhe,
sem que, de fato, existisse o direito material subjacente. Basta que o autor mencione
um interesse seu protegido em abstrato pelo direito. É com referência a esse direito
que o Estado está obrigado a exercer a função jurisdicional, proferindo decisão que
tanto poderá ser favorável como desfavorável. Assim, entendia-se que o Estado seria
o sujeito passivo do direito de ação. Alfredo Rocco foi um dos principais seguidores
dessa teoria, dando-lhe fundamentação própria. Afirma que, quando se solicita a
intervenção do Estado para a tutela de interesses ameaçados ou violados, surge
outro interesse, que é o interesse à tutela daqueles pelo Estado. O interesse tutelado
pelo direito é o principal, e o interesse à tutela deste pelo Estado é o secundário.
Para a existência do direito de ação, basta o interesse primário. Esse direito de ação
é exercido contra o Estado.
A partir da teoria abstrata do direito de ação, Liebman17 criou a teoria eclética,
a qual define a ação como direito subjetivo instrumental, sendo mais que um direito,
um poder ao qual não corresponde a obrigação do Estado, igualmente interessado na
distribuição da Justiça. Dá por exercida a função jurisdicional apenas quando o juiz
pronuncia uma sentença sobre o mérito, de cunho favorável ou desfavorável. Assim,
não importa o conteúdo da decisão de mérito para que tenha se exercido o direito
de ação. Ainda que julgue a ação improcedente, o Estado terá prestado a devida
tute­la jurisdicional. Liebman entende, ainda, que, para ser exercido o direito de ação,
é necessário o implemento de três condições: a possibilidade jurídica do pedido, o
interesse de agir e a legitimidade de parte. Essas condições seriam requisitos de
existência da ação, pelo que deveriam ser objetos de investigação antes do exame
do mérito. Somente se estiverem presentes é que haveria necessidade de o juiz
julgar o mérito.
Assim, essa teoria não aceita a abstração plena. A ação não compete a qual­
quer um, e não possui sentido genérico. Refere-se a uma fattispécie normativa que
será objeto da sentença do juiz, o qual formulará regra jurídica especial, que será lei
entre as partes. Além disso, Liebman entendia que existe um direito de ação cons­
titucional incondicionado, o qual é pressuposto do direito de ação processual, este,
sim, limitado pelas condições da ação.
Portanto, ação é o direito público, abstrato e subjetivo de obter do Poder
Estatal providência jurisdicional, constituída de uma sentença de mérito de qualquer
conteúdo.
Arruda Alvim define ação como “direito constante da lei processual civil, cujo
nascimento depende da manifestação de nossa vontade. Tem por escopo a obtenção

17
Manual de direito processual civil, v. 1, Forense, 1985, p. 151.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015 39
Arlete Inês Aurelli

da prestação jurisdicional do Estado, diante da hipótese fático-jurídica nela formulada,


à aplicação da lei (material)”.18
O direito de ação não requer que realmente o direito pleiteado exista, nem
exige, de plano, um exame aprofundado da existência desse direito pelo juiz. Haverá
direito de ação ainda que ela seja julgada improcedente.19
Num primeiro momento, o direito de ação decorre do próprio texto constitucio­
nal, o qual, no seu artigo 5º, inciso XXXV, permite o livre acesso ao Poder Judiciário,
por qualquer cidadão, estabelecendo que “nenhuma lesão (ou ameaça) de direito
individual será subtraída à apreciação do Poder Judiciário”. É o chamado direito de
petição. Entretanto, é preciso ter em mente que esse é um direito genérico, que todos
possuem ampla e irrestritamente, o qual não se confunde com o direito processual
de ação, do qual estamos tratando. Na verdade, o direito processual de ação é ori­
ginário do direito constitucional de ação, mas este não é objeto do direito processual
civil. De fato, o direito processual de ação, objeto do direito processual civil, não é
amplo e irrestrito, como o assegurado pela Constituição Federal, mas depende do
implemento das condições da ação.
No entanto, mesmo quando as condições da ação não são implementadas, há,
de fato, prestação jurisdicional por parte do Estado, como ocorre, por exemplo, no
caso do indeferimento da inicial. Ora, houve autuação, o juiz analisou liminarmente
a inicial e concluiu pela falta de uma das condições da ação, indeferindo-a, por meio
de sentença. A sentença do juiz, nesse caso, é estritamente processual, já que não
atingiu o mérito, mas não se pode negar que houve exercício da função jurisdicional.
Como solucionar tal questão sem ter que se admitir como válida a teoria concretista?
É preciso analisar a questão tendo em vista o ordenamento jurídico como um todo.
Assim, a sentença terminativa proferida pelo juiz possui efeitos jurídicos que não
podem ser desprezados, embora não sejam tão profundos como os da sentença de
mérito. Em razão disso, claramente se pode concluir pela existência de dois direitos
autônomos e interligados de forma que um decorre do outro. De fato, nas sentenças
terminativas, há o exercício do direito constitucional de ação, que é amplo e irrestrito.
Mas não há o direito processual de ação, que exige, para sua constituição, a presença
das condições da ação.
Arruda Alvim esclarece tal questão, de forma bastante clara, asseverando que:
“E não se poderá dizer que uma decisão, ainda que de caráter processual, não seja
exercício da atividade jurisdicional. Assim, o despacho liminar de indeferimento é

18
Manual de direito processual civil, RT, 6. ed., p. 367-368.
19
Nesse sentido, Eduardo Couture (1993, p. 76) afirmava que: “Toda idea que tienda a asimilar el derecho
a pedir com la justicia de lo pedido, constituye una contradictio in adjeto. El derecho de pedir no requiere
un examen del contenido de la decisón. Si efectivamente existe un derecho lesionado, la resolución será
estimatoria; si no existe, la petición será rechazada en cuanto a su mérito. Pero, en todo caso, la autoridad
deve admitir el pedido en cuanto tal, para su debido examen con arreglo al procedimiento establecido”.

40 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015
Institutos fundamentais do processo civil: jurisdição, ação e processo

decisão jurídica que produz efeitos jurídicos, embora ‘não tão profundos’ quanto os
da sentença de mérito. Neste caso, o autor terá, legitimamente, exercido o seu direito
de ação lastreado no Direito Constitucional que é o próprio direito genérico de ação,
sem que lhe tenha reconhecido o direito de ação no plano do sistema do processo
civil, propriamente dito, justamente por não estarem preenchidas as condições da
ação”.20 E conclui afirmando que existem dois tipos de ação: a ação constitucional,
de natureza genérica e especificada no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Fede­
ral, e a ação processual, que embora seja decorrente da ação constitucional, com ela
não se confunde, sendo regulada no processo.21
Veja-se que, ao se deparar com o direito constitucional de ação, ou seja, o
direito que é assegurado a todo e qualquer cidadão de levar ao Poder Judiciário um
conflito de interesses para ser resolvido, verifica-se que este não é incondicional e
ilimitado. Portanto, jamais poderia depender, para seu implemento, de requisitos,
como as condições da ação. Assim, parece lógico que somente o direito processual
de ação é que sofrerá a limitação imposta pela necessidade de implemento das
condições da ação.
José Miguel Garcia Medina, por sua vez, entende que “ao direito de ação cor­­res­
ponde o dever do Estado de prestar a tutela jurisdicional (status positivo). Para­­­lela­
mente a este direito da parte, há, ainda, o de participar efetivamente do procedi­mento
destinado à entrega da prestação jurisdicional”.22
O direito de ação resulta na instauração de um processo.
Cássio Scarpinella Bueno, representando os processualistas mais contempo­
râneos, entende que ação é o direito subjetivo público de provocar o exercício da
função jurisdicional e de atuar ao longo deste exercício. É exercitada contra o Estado.
A ação não se confunde com o processo, nem com a tutela jurisdicional pedida ou
efetivamente prestada. A ação não é método de atuação do Estado-juiz, nem é o
que será prestado. Por isso, para Cássio, não é a ação que deve ser classificada,
nem é ela que deve ser julgada procedente ou improcedente, mas, sim, o pedido
(para ele, a ação é cabível ou incabível; além disso, afirma que dizer “ação disso ou
daquilo” é expressão idiomática). A ação não deve ser adjetivada. Ação e processo
são categorias que não se modificam. O que se modifica é a tutela jurisdicional. A
ação é o direito de agir para obtenção da tutela jurisdicional.23
Não se deve confundir ação com tutela jurisdicional. Tutela é proteção.
Tutela jurisdicional, conforme Cássio Scarpinella Bueno,24 “é a proteção, a sal­
vaguarda, que o Estado deve prestar naqueles casos em que ele, o próprio Estado,

20
Ob. cit., p. 375.
21
Ob. cit., p. 378.
22
Código de Processo Civil comentado, RT, 2011, p. 29.
23
Curso sistematizado de direito processual civil, v. 1, 6. ed., 2012, p. 387-388 e 395.
24
Curso sistematizado de direito processual civil, v. 1, 6. ed., 2012, p.390.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015 41
Arlete Inês Aurelli

proibiu a autotutela, a justiça pelas próprias mãos. A tutela jurisdicional, nesse


sentido, deve ser entendida como a contrapartida garantida pelo Estado de atribuir
os direitos a seus titulares na exata medida em que tal atribuição se faz necessá­ria
por alguma razão. O que é importante, pois, de se ter em mente, destarte, é que
tutela jurisdicional significa, a um só tempo, o tipo de proteção pedida ao Estado-juiz,
o que a doutrina tradicional usualmente chama de pedido imediato – mas também
de efeitos práticos desta proteção no plano de direito material com vistas a proteger
um determinado bem jurídico (um determinado interesse) que justificou o pedido
de exercício da função jurisdicional (pedido mediato para empregar a nomenclatura
tradicional). Não basta só que o juiz profira, por exemplo, uma sentença que reconheça
a existência de lesão ou de ameaça ao direito do autor. Isso não é suficiente para
que ele entregue, ao jurisdicionado que é titular daquele direito, tutela jurisdicional.
É mister que o que estiver reconhecido na sentença possa surtir efeitos práticos e
palpáveis para fora do processo, isto é, no plano a ele exterior”.
Assim, a tutela jurisdicional deve ser efetiva, concretizada. A sentença de mérito
é apenas uma parcela da tutela jurisdicional. Não basta ao Estado-juiz resolver a lide,
compor o conflito de interesses e declarar o direito, é preciso também que sejam
criadas condições de concretamente protegê-lo.
Cássio entende, por isso, que o que deve ser estudado e classificado não é a
ação, mas a tutela jurisdicional. Para ele, a ação é o agir para obtenção da tutela do
direito no plano material mediante o exercício da função jurisdicional que levará, é
esta a perspectiva, à prestação da tutela jurisdicional. A tutela jurisdicional, contu­do,
não se exaure com o proferimento da sentença de mérito. Ela, a sentença, pode até
corresponder à tutela do direito no plano material, mas não há, necessariamente,
esta correspondência. A sentença é apenas o reconhecimento do direito, mas não
significa tutela do direito no plano material e concreto.25
O instituto ação não pode, pois, ser analisado sob o ponto de vista privado,
como quer Glauco Gumerato, mas, sim, comportar exame sob ângulo eminentemente
publicista. Isso porque mais que um direito, é um poder pertencente a todos os
juris­dicionados de provocar a atuação da jurisdição e de obter o cumprimento efe­tivo
da tutela pleiteada. Como para o exercício da jurisdição o Estado deve observar o
regramento imposto pela própria Constituição Federal, ou seja, o princípio do devido
processo legal, muito doutrinadores entendem que ação seria direito ao processo26
ou, até mesmo, direito ao devido processo legal.27

25
Curso sistematizado de direito processual civil, RT, 2012, p. 390.
26
Conforme Dinamarco, Instituições de direito processual civil, 5. ed., v. II, p. 299.
27
Bedaque (2010, p. 235), nesse sentido, afirma que ação seria o próprio direito ao princípio do devido processo
legal.

42 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015
Institutos fundamentais do processo civil: jurisdição, ação e processo

2.3 Processo
Processo é o instrumento por meio do qual o Estado presta a tutela jurisdicio­
nal. É também uma sucessão encadeada de atos tendentes a um final conclusivo.1
Nesse sentido, a noção de processo se confunde com a de procedimento. Portanto,
para que se possam diferenciar esses conceitos, é preciso aliar a essa noção a de
que o processo corresponde, também, à relação jurídica processual triangular forma­
da entre autor, réu e juiz, na qual cada um terá direitos, deveres, ônus e obrigações.
O processo somente existe caso esses três sujeitos estejam participando dessa
relação. Faltando um deles, não podemos dizer que houve processo, na acepção
jurídica do termo, muito menos que houve processo válido.3
Inicialmente, é preciso asseverar que as teorias privatistas do contrato e quase
contrato estão ultrapassadas, porque é sabido que as partes não têm liberdade de
contratar no processo. Quanto às teorias publicistas, temos as teorias da situação
jurídica, da instituição e da relação jurídica processual.
A primeira entende que processo seria uma expectativa de decisão judicial
futura. Partes não têm direitos e deveres, mas, sim, ônus. Há uma visão dinâmica do
processo. Ocorre que todas essas situações jurídicas são inerentes a uma relação
jurídica processual distinta da relação jurídica de direito material.28
À teoria do processo como instituição, adotada por Jaime Guasp,29 Elizabeth
de Castro Lopes,30 João Batista Lopes31 e Olavo de Oliveira Neto, o qual explica que
o pro­cesso se adapta a três requisitos básicos que caracterizariam a instituição jurí­
dica, quais sejam: a) ter sua estrutura moldada conforme um modelo estabelecido em
lei; b) ter caráter permanente e c) ser imprescindível para obtenção de determinado
desiderato,32 há imposição do Estado.
Para Cássio Scarpinella Bueno, processo é método de atuação do Estado-juiz.
É o mecanismo pelo qual o direito material controvertido tende a ser realizado e
concretizado.33
Bedaque também entende que processo é método de trabalho desenvolvido
pelo Estado para permitir a solução de litigios.34

28
Sobre teoria da situação jurídica, ver GOLDSCHMIDT, James. Direito processual civil. Campinas: Bookseller,
2003. p. 21.
29
Derecho Procesal Civil. 3. ed. T. 1. Madri: Institutos de Estudios Politicos, 1968. p. 22.
30
LOPES, Maria Elizabeth de Castro. O juiz e o princípio dispositivo. São Paulo: Atlas, 2003. p. 210.
31
LOPES, João Batista. Ação Declaratória. São Paulo: RT, 2009. p. 26.
32
O processo como instituição constitucional. In: Panorama Atual das tutelas individual e coletiva. Saraiva,
2011. p. 639 e 638.
33
Curso sistematizado de direito processual civil. RT, 2012. p. 425. Salvatore Satta também entende processo
como método pelo qual a vontade da lei se concretiza.

Para Carnelutti (1936), processo é método para formação ou aplicação do direito com vistas a uma decisão
justa e certa.
34
Efetividade do processo e técnica processual, Malheiros, 3. ed., 2010, p. 73.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015 43
Arlete Inês Aurelli

A teoria da relação jurídica, criada por Bulow, entende que processo seria
relação jurídica processual entabulada entre os sujeitos do processo, juiz, autor e
réu, iniciada a partir do momento em que o autor exerce o direito de ação, de forma
que entre eles existam liames travados ao longo do processo, dos quais decorrem
direitos, deveres, faculdades, obrigações e ônus, tudo isso tendo em vista a obtenção
de uma finalidade.35
Calamandrei localiza no dinamismo da relação jurídica a melhor explicação ao
desenvolvimento do conjunto de atos e faculdades no processo.36
É a teoria mais largamente aceita na doutrina pátria e estrangeira,37 embora
igualmente muito criticada. Marinoni e Mitidiero,38 por exemplo, entendem que há
pouca precisão ideológica no conceito de processo como relação jurídica, o que deixa
o processo civil aos sabores dos detentores do poder. Parece-me que essa crítica não
procede, porquanto o fato de o processo constituir uma relação jurídica processual
entre os três sujeitos acima apontados não impede que seja cumprido um método
de trabalho estabelecido pela Constituição Federal. O princípio do devido processo
legal deverá ser observado em todos os atos do processo. Assim, é evidente que
o processo não poderá ser arbitrário. Araken de Assis, por sua vez, entende que a
noção de relação jurídica processual não esgota o que é o processo. No entanto, se
aliar­mos a noção de relação jurídica processual com a de procedimento, no sentido de
sucessão encadeada de atos, como faz Liebman, teremos a noção exata de processo.
De fato, Liebman entendia que processo é relação jurídica aliada à noção de
procedimento, no que é seguido por Dinamarco, que afirma que a noção de processo
como procedimento em contraditório não é incompatível com a teoria da relação jurí­
dica. Para ele, processo envolve um conceito complexo: pode ser observado do ponto
de vista da relação jurídica e, também, do procedimento.
Falazari rejeita a teoria da relação jurídicia, entendendo que processo é pro­
ce­­dimento em contraditório – é participação. Também comungam do mesmo enten­
dimento Marinoni e Mitidiero.39 Nota-se que as doutrinas modernas reavivam a
importância do procedimento no conceito de processo. De fato, não há como negar
que processo é, realmente, procedimento em contraditório, mas não há nenhum
conflito dessa noção com a de que processo seria relação jurídica, principalmente

35
Mesmo nas hipóteses do artigo 295, IV, combinado com 269, IV e 285-A, em que não há citação do réu, o
processo, como relação jurídica processual, existe, entre autor e juiz. Nesse sentido, Medina (2011, p. 206)
afirma que “o processo forma-se progressivamente: primeiro entre autor e juiz, e, em seguida, com a citação,
passa o réu a fazer parte do processo. Diz-se, assim, que a citação é pressuposto processual de existência do
processo em relação ao réu, já que, antes da citação, ainda que exista processo, a relação processual dar-se-á
apenas entre demandante e juiz”.
36
Il concetto di “lite” nel pensiero di Francisco Carnelutti. In: Rivista di Diritto Processuale Civile, 1928.
37
Curso sistematizado de direito processual civil, RT, 2012, p. 422.
38
Código de Processo Civil comentado, artigo por artigo, RT, 2010, p. 267.
39
Código de Processo Civil comentado, artigo por artigo, RT, 2010, p. 267.

44 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015
Institutos fundamentais do processo civil: jurisdição, ação e processo

quando se tem em mente que contraditório é a efetiva cooperação, colaboração entre


os sujeitos do processo.
Em suma, quer se entenda processo como instrumento de satisfação do direito
material, quer se entenda que se trata de um método de trabalho a ser seguido
pela jurisdição, o qual está estabelecido na Constituição Federal, ou mesmo que
seria instituição ou participação/procedimento em contraditório, no meu modo de
ver, isso não tem o condão de desnaturar a visão de processo como relação jurí­dica
processual. E mais, a visão tradicional de processo, como relação jurídica proces­
sual, nada tem de autoritária, nem estatizante; eis que o fato de o processo ser
vol­tado à concretização da jurisdição, como já se asseverou, implica muito mais cum­
primento de um dever estatal de realização da efetividade da tutela pleiteada pelo
jurisdicionado do que exercício de poder.

3 Conclusão
Diante do estudo empreendido, podemos concluir que o fato de se exigir, para
realizar o processo, que seja seguido rigorosamente o método e modelo estabele­cido
pela Constituição Federal, notadamente no que tange aos direitos fundamentais e às
garantias constitucionais insertas no seu artigo 5º, de forma alguma significa que se
tenha que colocar a ação como primeiro objeto de estudo. Muito menos que a ordem
em que se estudem tais institutos tenha importância.
De fato, no presente estudo, frisamos que jurisdição é poder/dever estatal
que presta função de pacificação social, resolvendo os conflitos de interesses que
lhes são submetidos à apreciação ou realizando a atividade homologatória que lhe
compete, tudo através de um processo. Consequentemente, atua para que o Estado
democrático de direito seja mantido.
A jurisdição é poder, mas deve assim ser vista como a capacidade de o
Estado-Juiz decidir imperativamente no sentido de que as partes estarão sujeitas
inexoravelmente ao que vier a ser decidido sobre o conflito de interesses que for
levado à apreciação, já que acobertado pela coisa julgada. No entanto, nada há de
auto­ritário nisso. Pelo contrário, busca-se, com isso, o cumprimento do ideal repu­
blicano, servindo à segurança jurídica.

Referências
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2010.
BULOW, Oskar Von. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Tradución
de Miguel Angel Rosas Lichtschein. Buenos Aires: Ediciones juridicas Europa-America, 1964.
CALAMANDREI, Piero. Il concetto di “lite” nel pensiero di Francisco Carnelutti. In: Rivista di Diritto
Processuale Civile, 1928.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015 45
Arlete Inês Aurelli

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
CARNELUTTI. Sistema di Diritto Processuale Civile. v. 1/345. Padova: Cedam, 1936.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1965.
______. Istituzione de Diritto Processuale Civile. v. 2. Ed. rev. e ampl. Napoli, 1936.
______. Instituciones de derecho procesal civil. Tradução de E. Gómez Orbaneja. 2. ed. v. 1. In: Revista
do Derecho Privado. Madri: 1948, p. 26.
COZZOLINO DE OLIVEIRA, Patrícia Elias. O processo como instituição constitucional. In: Panorama
Atual das tutelas individual e coletiva. Saraiva, 2011.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.
FREIRE, Rodrigo Cunha Lima. Condições da ação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
GOLDSCHMIDT, James. Derecho Procesal Civil. Barcelona: Labor, 1936.
GUASP, Jaime. Derecho Procesal Civil. 3. ed. T. 1. Madri: Institutos de Estudios Politicos, 1968.
GUMERATO, Glauco. Processo Jurisdicional, República e os Institutos Fundamentais do direito
processual. In: Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro.
LAMY, Eduardo de Avelar Lamy; RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Teoria Geral do Processo. São Paulo:
Campus Jurídico, 2012.
LIEBMAN, Enrico Tulio. Manual de Direito Processual Civil. v. I. Tradução e notas de Cândido Rangel
Dinamarco. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
LOPES, João Batista. Ação Declaratória. São Paulo: RT, 2009.
LOPES, Maria Elizabeth de Castro. O juiz e o princípio dispositivo. São Paulo: Atlas, 2003.
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado, artigo por artigo.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
MEDINA, José Miguel Garcia. Código de processo civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011.
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1995
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Polêmica sobre ação, a tutela jurisdicional na perspectiva das
relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
OLIVEIRA NETO, Olavo de. O processo como instituição constitucional. In: Panorama Atual das tutelas
individual e coletiva. Saraiva, 2011.
RODRIGUES, Horácio Wanderlei; LAMY, Eduardo de Avelar Lamy. Teoria Geral do Processo. São Paulo:
Campus Jurídico, 2012.
SCARPINELLA BUENO, Cássio. Curso sistematizado de direito processual civil. v. 1. São Paulo:
Saraiva, 2012.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

AURELLI, Arlete Inês. Institutos fundamentais do processo civil: jurisdição, ação e


processo. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano
23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015.

46 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 31-46, jan./mar. 2015
O direito fundamental à saúde e a
judicialização no Brasil. A saúde como
direito humano e sua tutela processual

Murillo Sapia Gutier


Advogado. Professor de Direito Processual em cursos de graduação e pós-graduação em
Direito. Mestre em Direito pela PUC Minas. Graduado em Direito pela Universidade de
Uberaba.

Rubens Correia Junior


Advogado. Professor de graduação e pós-graduação em Criminologia, Direito Penal, Direito
e Saúde, e Instituições de Controle. Graduado em Direito pela Universidade de Uberaba. É
Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade de Franca, Pós-graduado
em Criminologia pela PUC Minas. Aluno regular do mestrado do Programa de Enfermagem
Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

Carla A. Arena Ventura


Advogada. Professora Associada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade
de São Paulo.

Palavras-chave: Direito à saúde. Direito humano. Judicialização no Brasil.


Sumário: 1 Introdução – 2 A fundamentalidade do direito à saúde na Constituição brasileira – 3 A dignidade
humana, os direitos sociais e a saúde – 4 O porquê da judicialização – 5 O direito fundamental à saúde na
perspectiva do Supremo Tribunal Federal – 6 A judicialização da saúde frente à responsabilização do Estado
– 7 Tutela processual coletiva do direito à saúde – 8 Considerações finais – Referências

1 Introdução
A interseção entre o direito e a saúde nos dias atuais é o resultado formal de
diálogos entre o biológico, o social e o cultural a partir da construção de mecanismos
próprios de interação. Nessa perspectiva, o direito à saúde reflete a dinâmica de inte­
ração social utilizada para a regulação de ações e serviços de interesse das pessoas
com relação à sua saúde.
Assumir que a saúde é um direito fundamental implica considerar as trans­
formações a que têm passado durante as últimas décadas, as concepções do
que é saúde e, em particular, a ampliação do conceito de saúde. (NUNES, 2013).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015 47
MURILLO SAPIA GUTIER, RUBENS CORREIA JUNIOR, CARLA A. ARENA VENTURA

Nesse sentido, os esforços da Organização Mundial da Saúde (OMS) em aumentar


mais efetivamente a implementação do direito à saúde, por meio de programas
diversos, têm conseguido significativo avanço. Entretanto, pode-se ainda afirmar que
há gene­ralizada exclusão social em saúde no globo (SCHRECKER, 2011).
Nesse cenário, a ênfase no sistema de proteção de direitos humanos pode
constituir um direcionamento importante no sentido de diminuição das grandes
lacunas existentes no exercício do direito à saúde na maioria dos países do mundo,
inclusive as nações desenvolvidas. O início desse processo, com certeza, deve envol­
ver a adoção de legislações nacionais para a implementação do direito à saúde
(VENTURA, 2011).
Dessa forma, os governos possuem responsabilidades pela saúde dos seus
povos, a qual só pode ser assumida pelo estabelecimento de medidas sanitárias e
sociais efetivas. O direito à saúde exige a interação entre o Estado e a sociedade,
voltada ao desenvolvimento das condições que permitirão o acesso à saúde (LAFER,
1988).
Dessa forma, quando se vislumbra a incapacidade de se consolidar e democra­
tizar os serviços de saúde, ocorre a judicialização como saída (MACHADO, 2008), e as
dificuldades do Estado em garantir os serviços básicos de saúde ficam evidenciadas
pelo aumento das demandas judiciais nos últimos anos (CHIEFFI, BARATA, 2009).
Os problemas vivenciados no acesso aos serviços de saúde ficam ainda mais
evidentes na assistência farmacêutica, mais especificamente em relação ao acesso
da população aos medicamentos essenciais para doenças como de Crohn, hepatite
viral crônica C, doença renal em estágio final, hipertensão arterial e doença isquêmica
crônica do coração (MESSEDER, OSORIO-DE-CASTRO, LUIZA, 2005).
Com a não concretização das políticas públicas de saúde previstas no artigo
196, tivemos a inserção de grupos da sociedade civil provocando o Judiciário por
meio da cláusula da inafastabilidade do controle jurisdicional, assim como a abertura
constitucional1 para o controle externo por parte do Ministério Público e Defensoria
Pública, que fazem com que haja uma ressignificação do paradigma de cidadania,2
qual seja antes relegado somente à definição pelo Poder Público para uma participa­
ção ativa e direta da sociedade nas políticas públicas (MACHADO, 2008).
No entanto, em uma reflexão sobre a participação ativa dos cidadãos nas
políticas públicas de saúde, salienta-se que o Ministério Público tem dado prevalência
às ações de cunho individual de medicamentos, frente às ações que conduzam neces­
sariamente a uma revisão direta das condutas e políticas públicas (MACHADO, 2008).

1
Por meio da consagração institucional de funções de controle por meio da propositura de ações coletivas.
2
Para fins do presente artigo, adota-se o conceito arendtiano de cidadania, exposto na obra “Origens do
Totalitarismo”, qual seja, cidadania como direito de ter direitos (2013). Piovesan (2014) ressalta que “hoje se
pode afirmar que a realização plena e não apenas parcial dos direitos da cidadania envolve o exercício efetivo
e amplo dos direitos humanos, nacional e internacionalmente assegurados”.

48 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015
O direito fundamental à saúde e a judicialização no Brasil. A saúde como direito humano e sua tutela processual

A judicialização torna-se, portanto, relevante frente à inércia do Estado em


proporcionar e garantir o acesso à saúde a todo cidadão. Outrossim, é impreterível
que se destaque o direito à saúde como um bem coletivo acima dos interesses
individuais e, nesse sentido, a judicialização deve ser ponderada frente à coletivização
das demandas, visando solucionar preferencialmente ameaças ou lesões de massa.
Essa coletivização da judicialização e a consequente garantia dos direitos fun­
da­mentais de todo cidadão passam necessariamente pela reflexão sobre a tutela
processual coletiva do direito à saúde, e como o Supremo Tribunal Federal interpreta
o direito fundamental à saúde, entendendo a busca desses direitos como um impor­
tante passo ao pleno exercício da cidadania. Não obstante, ressalta-se que o excesso
de demandas individuais pode contribuir para que políticas públicas de saúde sejam
obstadas e inibidas para que o poder público cumpra ordens judiciais pontuais.
Nesse contexto, o presente artigo apresenta como objetivo discutir a judiciali­
zação e a sua relação com a efetividade do direito fundamental à saúde. Para tanto,
discorrerá sobre a fundamentalidade do direito à saúde, no contexto constitucional e
internacional de direitos humanos, enfatizando-se que a não implementação desse
direito, em um Estado Constitucional e Democrático, acarreta efeitos indesejá­veis,
justificando a judicialização. Em seguida, serão descritos alguns parâmetros de atua­
ção demarcados pelo Supremo Tribunal Federal acerca da judicialização da saúde,
assim como será enfatizada a importância da tutela coletiva desse imprescindível
direito social.
Para a elaboração do artigo, os autores embasaram-se na análise da literatura
jurídica brasileira e estrangeira, assim como na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal. A abordagem metodológica3 apresenta aspecto essencialmente dogmático,
em que se divide na dimensão analítica, por meio da análise conceitual de inúmeros
pontos fundamentais. Há uma dimensão empírica da dogmática, por meio da aná­lise
do direito vigente no plano interno e internacional, e sua aplicabilidade pela Corte
Suprema Brasileira. O presente artigo, portanto, não se esgotando em si mesmo,
apresenta uma prescrição normativa de soluções, de modo a propiciar uma tentativa
de abertura à discussão e operacionalização acerca da efetividade dos direitos
fundamentais sociais, notadamente a saúde.

2 A fundamentalidade do direito à saúde na Constituição


brasileira
O constitucionalismo contemporâneo consagra os direitos fundamentais como
dimensão substancial da democracia (FERRAJOLI, 2003) e afirma que hodiernamente

3
Acerca das diferenças entre metodologia e abordagem metodológica em Direito, vide SILVA, 2005, p. 25-26.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015 49
MURILLO SAPIA GUTIER, RUBENS CORREIA JUNIOR, CARLA A. ARENA VENTURA

a Constituição não é apenas o “estatuto jurídico do político”, mas, visa resguardar


– proteger e promover – os direitos fundamentais que têm como núcleo axiológico a
dignidade humana (SARLET, 2009; FENSTERSEIFER, 2008).
A dignidade da pessoa humana foi erigida como fundamento da República
Fede­rativa do Brasil (art. 1º, III) e, dentre os objetivos fundamentais enunciados,
ressaltam-se a necessidade de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art.
3º, I); erradicar a pobreza e a marginalização, e reduzir as desigualdades sociais e
regionais (art. 3º, III); e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). O grande
desafio consiste em delimitar o conteúdo jurídico da dignidade humana e relacioná-lo
com os objetivos prescritos na Magna Carta Brasileira, de modo que se erijam os
contornos fundamentais do direito à saúde.
O constitucionalismo decorrente do pós-guerra mudou o paradigma do Estado,
que deixou de ser “legislativo”, para ser considerado Estado Constitucional. Essa
nova realidade constitucional, avessa ao modelo totalitário, aproximou direito e moral.
No modelo contemporâneo de democracia, tracejado por constituições rígidas, para
a configuração de validade formal e substancial das decisões políticas, as leis e
atos normativos devem guardar coerência substancial com os direitos fundamentais
estam­pados no texto constitucional (FERRAJOLI, 2003, p. 230).
O Estado Constitucional Democrático é considerado mais que Estado de Direito,
apresentando uma tripla legitimidade como característica fundamental: a) assenta
na legitimidade do direito; b) dos direitos fundamentais; e c) do processo de for­ma­
ção das leis. Dentre essas perspectivas, a carta de direitos fundamentais presente
na Lei Maior representa o ponto de legitimação para o exercício do poder político
(CANOTILHO, 2002, p. 100).
A afirmação de que o exercício do poder político é legítimo se pautar na efeti­
vidade dos direitos fundamentais é de crucial importância, uma vez que a Constituição
do Brasil estabelece textualmente que a saúde é direito de todos e prescreve que
consiste em dever do poder público implementá-lo (art. 196).
A democracia e os direitos fundamentais são os “fundamentos de legitimidade
e elementos estruturantes do Estado democrático de direito” (BINEMBOJM, 2008,
p. 49), expressando – os direitos fundamentais – a dimensão substancial da demo­
cracia, de modo que “há, entre direitos fundamentais e democracia, uma relação de
interdependência ou reciprocidade” (BINEMBOJM, 2008, p. 50), ou seja, há “íntima e
indissociável vinculação entre os direitos fundamentais e as noções de Constituição
e Estado de Direito” (SARLET, 2009, p. 59). Os direitos fundamentais são, neste
diapasão, “conditio sine qua non do Estado constitucional democrático” (SARLET,
2009, p. 59).
Ao se conjugar direitos fundamentais e democracia em uma relação de reci­
pro­cidade, surge o Estado democrático de direito, “estruturado como conjunto de

50 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015
O direito fundamental à saúde e a judicialização no Brasil. A saúde como direito humano e sua tutela processual

instituições jurídico políticas erigidas sob o fundamento e para a finalidade de proteger


e promover a dignidade da pessoa humana” (BINEMBOJM, 2008, p. 50-51), isto é, a
dignidade humana consiste no epicentro axiológico, razão última de sua própria exis­
tência (FENSTERSEIFER, 2008, p. 32).
Assim sendo, a perspectiva atual do Estado é fundada no princípio da constitu­
cionalidade, em que a Magna Carta é a norma suprema do ordenamento, vinculando o
legislador e as manifestações estatais aos preceitos constitucionais, “estabelecendo
o princípio da reserva da constituição e revigorando a força normativa da constituição”
(SOARES, 2001, p. 304).
O surgimento dos direitos fundamentais tem como pretensão o reconhecimento
de uma multiplicidade de elementos que integram o conceito de dignidade humana,
podendo-se afirmar que apresenta várias dimensões (SARLET, 2008; GUTIER, 2013).
A vida, liberdade, igualdade, solidariedade, reconhecimento e a segurança – social
e jurídica – apresentam-se como núcleos axiológicos da dignidade humana.

3 A dignidade humana, os direitos sociais e a saúde


A dignidade é qualidade intrínseca da pessoa humana e, por ser o núcleo de
fundamentação dos direitos humanos – posto que só existem para promover e prote­ger
a dignidade humana –, é reconhecida, contemporaneamente, sua irrenunciabilidade
e inalienabilidade, posto ser “elemento que qualifica o ser humano como tal e dele
não pode ser destacado” (SARLET, 2009, p. 20).
O reconhecimento jurídico dos direitos sociais passa pela constatação de que
a justiça social é imprescindível para a construção de uma sociedade livre, justa
e solidária, livre de qualquer forma de exclusão. A matriz liberal consagrou direitos
fun­damentais de cunho negativo (status negativus), permeados por direitos de opo­
sição ou resistência contra o Estado (SARLET, 2009, p. 47). Nesse modelo, o núcleo
moral do liberalismo consistiu na “afirmação de valores e direitos básicos atribuíveis
à natureza do ser humano – liberdade, dignidade, vida – que subordina tudo o mais à
sua implementação” (STRECK e MORAIS, 2010, p. 58). Dimoulis e Martins salientam
que os direitos individuais que norteiam este modelo são também conhecidos como
dimensão subjetiva dos direitos fundamentais (2007, p. 67, 117 e 118).4

4
Sob o prisma geracional ou dimensional que divide os direitos fundamentais em eras, o modelo liberal con­
sagrou o que a doutrina chama de direitos fundamentais de primeira dimensão (BONAVIDES, 2002, p. 516).
No que concerne ao “núcleo político-jurídico”, consagrou direitos políticos, salientando, conforme Streck e
Morais (2010, p. 59), o consentimento individual como origem dos poderes estatais e da autoridade política
e a representação do povo por meio do poder legislativo, a quem competia tomar as decisões. No que
tange ao constitucionalismo, elaborou-se um documento formal escrito limitador e divisor do poder político,
prevendo um sistema de freios e contrapesos entre os poderes, bem como consagrou direitos fundamentais
para o indivíduo (Streck e Morais, 2010, p. 59). Especificamente quanto à seara privada, o Direito torna-se
disciplinado pelo Estado por meio de codificação, uma vez que previsto e sistematizado pelo legislador, o que
antes era relegado aos costumes, aos ensinamentos doutrinários ou ao direito canônico, no que concerne

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015 51
MURILLO SAPIA GUTIER, RUBENS CORREIA JUNIOR, CARLA A. ARENA VENTURA

Entretanto, a história mostrou que não basta garantir formalmente a liberdade


e a igualdade aos indivíduos se estes não dispõem de um mínimo existencial. A ideia
de justiça social começou a ser reivindicada a partir da industrialização dos meios
de produção, que acarretou graves problemas sociais, de modo que a mera previsão
de liberdade e igualdade não era suficiente para que os indivíduos fossem, de fato,
livres e iguais (SARLET, 2009, p. 47). O Estado Social de Direito ou Welfare State con­
sagrou direitos de status positivo, ou seja, direitos a prestações por parte do Estado,
de modo que os indivíduos possam “exigir determinada atuação do Estado no intuito
de melhorar as condições de vida” (DIMOULIS e MARTINS, 2007, p. 67).
No prisma internacional, igualmente relevante, no preâmbulo da Constituição
da Organização Mundial da Saúde, houve o reconhecimento expresso na sua base
principiológica de que a saúde constitui um direito fundamental de todos os seres
huma­nos, sem qualquer distinção (VENTURA, 2011),5 constituindo um núcleo hete­
ro­gêneo de posições jurídicas, tal qual afirmadas pela Carta Maior Brasileira, assim
como na ordem jurídica internacional, de modo a contribuir para resguardar um con­
trabalanço das desigualdades fáticas, que ocorre por meio da instituição de direitos
fundamentais que assegurem direito a prestações por parte do Estado (SARLET,
2009).
O grande propósito dos direitos fundamentais sociais consiste na busca pelo
reequilíbrio existente nas múltiplas condições de vida material existentes no seio

ao casamento, família, filiação e sucessões (FACCHINI NETO, 2003, p. 17). Outro viés que se verifica é que
o Direito Privado se impregnou da ideologia burguesa dominante à época, de modo que refletiu os desejos
desta classe socioeconômica, regulando a sociedade civil, assim, sob os valores do liberalismo, delineados
pela propriedade, como valor primordial, e a “liberdade contratual como instituto auxiliar para facilitar as
transferências e a criação de riqueza” (FACCHINI NETO, 2003, p. 18). Explica Facchini Neto que o primado
da segurança jurídica fez com que o direito privado se sobrepusesse ao público, e a técnica legislativa era
representada normativamente por regra jurídica, “contendo fattispecie completa (preceito e consequência
jurídica)”, de modo que princípios expressos e cláusulas gerais eram rarefeitos e “parcimoniosos os conceitos
indeterminados” (2003, p. 21).
5
Conforme Ventura (2011, p. 48), “a Organização Mundial da Saúde (OMS) constitui uma organização universal
e técnica, pois atua diretamente na área da saúde. Integrante do sistema ONU, iniciou funcionamento em
1948, segundo as regras previstas em seu tratado constitutivo. Desse modo, o art. 1º de sua Constituição
prevê que o papel da OMS é possibilitar para todos os povos o melhor nível de saúde possível. No preâmbulo
da Constituição da OMS, os Estados-partes declaram que, em conformidade com a Carta das Nações Unidas,
os seguintes princípios são básicos para a felicidade, relação harmoniosa e segurança de todos os povos:
a) saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de doenças
ou enfermidades; b) o gozo do maior padrão de saúde desejado é um direito fundamental de todos os seres
humanos, sem distinção de raça, religião, opção política e condição econômica e social; c) a saúde de todos
os povos é fundamental para a consecução da paz e segurança e depende da cooperação dos indivíduos e
dos Estados; d) o sucesso de um país na promoção e proteção da saúde é bom para todos os países; e) o
desenvolvimento iníquo em diferentes países para a promoção da saúde e controle de doenças, especialmente
as contagiosas, é um perigo comum; f) o desenvolvimento da saúde da criança é de importância básica; g) a
extensão para todos os povos dos benefícios advindos dos conhecimentos médicos, psicológicos e afins é
essencial para atingir a saúde; h) opinião informada e cooperação ativa do público são de importância crucial
na melhoria da saúde da população; i) governos têm responsabilidade pela saúde de seus povos, que pode
ser garantida apenas por meio da adoção de medidas sociais e de saúde adequadas. Esses princípios são os
grandes pilares que regem o Direito Internacional da Saúde (OMS, 1946) e reforçam a relevância estratégica
da saúde para o desenvolvimento”.

52 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015
O direito fundamental à saúde e a judicialização no Brasil. A saúde como direito humano e sua tutela processual

social, seja individual ou coletivamente. Dessa forma, afirma-se que estão ligadas
com o princípio da igualdade, de viés marcadamente inclusivo (FIGUEIREDO, 2007).
A fundamentalidade do direito social à saúde pode ser explicada por duas
frentes: (a) formal e (b) material. A primeira se justifica pela previsão expressa no
texto constitucional do rol dos direitos sociais (art. 6º), e no capítulo atinente à segu­
ridade social, reconhece o texto constitucional a saúde como direito que anseia pela
consagração de segurança social a todos, indistintamente, fixando ao poder público
o dever geral de proteção (art. 196). O caráter fundamental, na acepção material, é
retratado pela sua correlação essencial para a conservação digna da vida humana,
de modo que é condição fundamental para usufruir dos demais direitos, sejam
fundamentais ou não (FIGUEIREDO, 2007).
Um ponto de especial relevância consiste na possibilidade de controle da
implementação dos direitos sociais, por se enquadrarem nos direitos fundamentais,
por parte do Poder Judiciário e por meio da cláusula de inafastabilidade do controle
jurisdicional estampada no art. 5º, XXXV, da Constituição do Brasil.
Considerando-se que o Estado Constitucional Brasileiro tem por fundamento
a promoção e proteção dos direitos fundamentais e sendo a saúde essencial para
a satisfação de interesses e necessidades fundamentais, conforme ressaltado, o
direito fundamental à saúde é erigido ao centro dos valores reivindicados atualmente
como de validade universal, uma vez que, no seu ponto de convergência, está a
promoção e proteção da vida para propiciar a existência com dignidade. Isso significa
que a afirmação do direito à saúde permeia o imaginário axiológico social como
condição mínima para que as pessoas possam construir sua vida com dignidade,
liberdade e igualdade (HEINTZE, 2009, p. 22).
Nessa perspectiva, o processo de internacionalização dos Direitos Humanos
(dentre eles, o direito à saúde), não passou despercebido pelo Constituinte de 1988,
de modo que houve a identificação da fundamentalidade de tal direito, soerguido ao
patamar constitucional no artigo 196, por meio da constitucionalização de direitos
e deveres em matéria deste imprescindível direito social, em que se reconheceu a
importância de uma especial proteção normativa. Dada a ideia de supremacia das
normas constitucionais, fez com que todo o ordenamento infraconstitucional guarde
compatibilidade com a norma maior. Ao se falar em constitucionalização dos direitos
sociais, notadamente a saúde, “a ideia mestra é a irradiação dos efeitos das normas
(ou valores) constitucionais” (SILVA, 2005, p. 39) para todo o ordenamento jurídico,
vinculando o Legislativo, Executivo e Judiciário.
Como o constitucionalismo contemporâneo é marcado pela valorização dos
princípios jurídicos e, com a ampla concepção de que possuem força normativa e
aplicabilidade plena na solução dos casos, a constitucionalização do direito à saúde,
abriu-se o espaço para o uso da argumentação constitucional para o controle das
omissões dos Poderes Legislativo e Executivo.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015 53
MURILLO SAPIA GUTIER, RUBENS CORREIA JUNIOR, CARLA A. ARENA VENTURA

4 O porquê da judicialização
No modelo de Estado Constitucional contemporâneo, que apresenta estrutu­ras
democráticas, há a afirmação e valorização de princípios jurídicos, que possuem,
como característica primordial, força normativa e aplicabilidade plena na solução dos
casos, notadamente os difíceis,6 valendo-se de métodos abertos para a solução deles,
como a ponderação e teorias da argumentação jurídica como método de solução
(BARROSO, 2009).
Igualmente, apresenta o Estado Democrático como característica marcante a
cons­titucionalização dos direitos, pela previsão de pontos centrais dos diversos ramos
do direito na Magna Carta ou pela irradiação dos seus efeitos para os diversos ramos,
uma vez que é a norma suprema do ordenamento interno, e o corpo normativo infra­
cons­titucional deve guardar consonância com seus postulados (BARROSO, 2009;
GUTIER, 2013).
Outro aspecto importante consiste na aproximação entre direito e moral, que
são estudados como objetos compartilhados, o que culmina com a abertura filosófica
nos embates jurídicos (SARMENTO, 2009, p. 9-10). Guastini (2007, p. 271-293)
elucida, de modo pormenorizado, as condições para a constitucionalização do orde­
namento: 1) previsão de uma constituição rígida; 2) garantia jurisdicional da cons­
tituição; 3) força vinculante da constituição; 4) sobreinterpretação da constituição;
5) aplicação direta da constituição; 6) interpretação das leis conforme a constituição;
7) questões políticas sendo discutidas no âmbito judicial.
Quanto ao primeiro ponto – o da Previsão de uma Constituição Rígida – a
questão primaz acerca da análise de um ordenamento constitucionalizado consiste
na verificação da existência de uma Carta Constitucional escrita, dotada de meca­
nismos rígidos quanto ao poder de reforma, de modo que seja protegida quando
confrontada com a legislação ordinária (FIGUEROA, 2009, p. 458), apresentando, por
oportuno, uma blindagem normativa no processo de mutação formal, se comparado
com o modelo adotado pelas leis ordinárias, em que não pode haver derrogação,
modificação ou ab-rogação, a não ser se houver procedimento especial para tanto
(GUASTINI, 2007, p. 273). Outro fator que decorre da adoção de uma constituição
rígida consiste na previsão escalonada do ordenamento jurídico, isto é, a previsão

6
Partindo do pressuposto corrente na jurisdição constitucional contemporânea que estabelece uma díade hard
cases (casos difíceis) e easy cases (casos simples). Casos difíceis seriam os que envolvem o balanceamento
de bens jurídicos envolvidos e que apresentam alguma ou grande repercussão. BARROSO (2013) ressalta
que “de fato, Kelsen reconheceu que a decisão judicial é um ato político de escolha entre as possibilidades
oferecidas pela moldura da norma. E Hart proclamou que, além dos casos simples, solucionados com base
no texto legal e nos precedentes, existem os “casos difíceis” (hard cases), que envolvem o exercício de discri­
cionariedade judicial”. No item 6.3, ressalta BARROSO (2013) que “os elementos mencionados – ambiguidade
da linguagem, desacordo moral e colisões de normas – recaem em uma categoria geral que tem sido referida
como casos difíceis (hard cases). Nos casos fáceis, a identificação do efeito jurídico decorrente da incidência
da norma sobre os fatos relevantes envolve uma operação simples, de mera subsunção”.

54 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015
O direito fundamental à saúde e a judicialização no Brasil. A saúde como direito humano e sua tutela processual

de níveis hierárquicos entre as normas, de modo que a Constituição seja alçada ao


patamar superior (GUASTINI, 2007, p. 273).
No que tange à garantia jurisdicional da Constituição, impende ressaltar que, não
obstante vislumbrar uma carta de direitos fundamentais promovendo e protegendo
as múltiplas dimensões da dignidade humana, um ordenamento constitucionalizado
deve prever um sistema de garantias igualmente fundamentais, instituindo um aparato
estatal contramajoritário, que visa justamente salvaguardar e declarar o conteúdo
essencial dos direitos, fundamentais ou não, e este é um ponto fundamental para
a compreensão da judicialização, uma vez que a própria Carta Maior deve ter no
seu arcabouço institucional mecanismos de controle de conformidade constitucional
das leis e dos atos normativos (GUASTINI, 2007, p. 274; FIGUEROA, 2009, p. 458;
GUTIER, 2013).
A força vinculante da Constituição, igualmente enfatizada, implica que, no Estado
Constitucionalizado, o texto da Carta Magna seja considerado como “verdadeira
norma jurídica e não como simples declaração programática” (FIGUEROA, 2009,
p. 459), e este aspecto é crucial para se interpretar o artigo 196, que aduz que “saúde
é direito de todos e dever do Estado”. Nesse sentido, é imperioso ressaltar que tal
previsão apresenta consequências jurídicas, uma vez que um aspecto essencial do
constitucionalismo contemporâneo consiste na “compreensão de que a Constitui­ção
é um conjunto de normas vinculantes” (GUASTINI, 2007, p. 275).
Isto significa, nessa ordem de ideias, que as normas constitucionais, sem
exceção, independentemente do conteúdo ou estrutura, são dotadas de aplicabili­­
dade e obrigam seus destinatários, não sendo simples programas políticos ou relação
de recomendações aos poderes e aos particulares (CARBONELL, 2009, p. 203). Alie-
se a tal característica o disposto no artigo 5º, §1º, que estabelece peremptoriamente
a aplicação imediata dos direitos e garantias fundamentais previstas no texto cons­
titucional, o que enseja, em outros termos, a aplicação direta do conteúdo jurídico
exposto no texto constitucional.
Outra característica apontada por Carbonell (2009) e Guastini (2007) consiste
na denominada sobreinterpretação da Constituição. Essa perspectiva consiste em
que os intérpretes, sejam quais forem (juízes, órgãos estatais ou juristas), não podem
valer-se da interpretação literal da Constituição, mas, sim, da sua interpretação
exten­siva, uma vez que a Magna Carta é finita e não abarca todos os aspectos da
vida política e social. O texto constitucional abrange uma parte apenas dos aspectos
essen­ciais e, mesmo em questões ligadas à saúde, não contemplou todas as esferas
de atuação, de modo que é necessária a interpretação extensiva acerca do con­teúdo
essencial dos direitos individuais e coletivos, e deveres estatais de tutela.
Em casos de “falhas normativas” (GUASTINI, 2007), deve-se valer da sobrein­
terpretação do texto maior, de modo a evitar lacunas, construindo normas implícitas

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015 55
MURILLO SAPIA GUTIER, RUBENS CORREIA JUNIOR, CARLA A. ARENA VENTURA

para suprir as omissões, sempre no sentido da melhor promoção e proteção dos


direitos fundamentais em apreço.
Com relação à interpretação das leis conforme a Constituição, trata-se de método
de interpretação da lei e dos atos normativos, e não da Constituição (CARBONELL,
2009, p. 205; GUASTINI, 2007). Uma perspectiva interessante é a de não tratar
apenas do binômio constitucionalidade (compatibilidade) ou inconstitucionalidade
(incompatibilidade) das normas, sendo possível o uso de sentenças intermediárias,
interpretativas ou manipulativas, que podem ser redutoras, aditivas ou substantivas
na concretização dos direitos fundamentais, que apresentam, como característica,
a delimitação do sentido das normas constitucionais, outorgando ao Tribunal Cons­
titucional tal perspectiva de atuação.
Quanto ao último ponto, tendo em vista o patente cunho moral e político dos
princípios constitucionais, a Constituição disciplina as relações políticas, uma vez que
a regência das relações de poder do Estado é minuciosamente tratada na Carta Maior
(FIGUEROA, 2009, p. 459; CAMBI, 2009). Outro aspecto relevante consiste, no caso
brasileiro, ao que a doutrina processualista enuncia de princípio da universalidade de
jurisdição, esculpido no artigo 5º, XXXV, que diz que “a lei não excluirá da apreciação
do Judiciário, lesão ou ameaça a Direito”, de modo que toda lesão ou ameaça possa
ser discutida no Judiciário. A denominada judicialização da política, consiste, por
oportuno, na apreciação, pelo Poder Judiciário, do cumprimento ou não dos direitos
e deveres constitucionais por via do direito de ação.
Deveras, com a constitucionalização do Direito – fruto do constitucionalismo
contemporâneo –, tivemos, com a afirmação dos direitos humanos no texto consti­
tucional, operando-se uma verdadeira ressignificação do que vem a ser uma Cons­
tituição, direitos e deveres fundamentais. Tal perspectiva refletiu no trato político e
na desconsideração histórica dos direitos, e nunca é demais recordar que a própria
Magna Carta é, hodiernamente, “a maior de todas as criações políticas” (CAMBI,
2009, p. 211).
A função contramajoritária da jurisdição constitucional consiste em não deixar
nas mãos de uma maioria parlamentar os ditames prescritos no texto constitucional.
Parcela da doutrina apresenta essa função como sendo o deslocamento do poder de
dar a última palavra acerca da interpretação da Constituição das mãos do Executivo
e Legislativo, para o Judiciário, no contexto do Estado contemporâneo, democrático
e constitucional (CAMBI, 2009; BARROSO, 2009). O ponto central das chamadas
“political questions” consiste na disciplina jurídico-política no texto maior, bem como
a incumbência atribuída ao aparato jurisdicional em “examinar a argumentação
política que está subjacente às normas jurídicas” (FIGUEROA, 2009, p. 459).
Assim sendo, no Estado Constitucional, há a abertura institucional judiciária,
que assume a função de garantia das lesões ou ameaças a Direitos (artigo 5º, XXXV),

56 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015
O direito fundamental à saúde e a judicialização no Brasil. A saúde como direito humano e sua tutela processual

tendo sido o Supremo Tribunal Federal erigido como o guardião da Constituição (art.
102, caput), ou seja, o intérprete autorizado pela Constituinte a proferir o conteúdo
essencial dos direitos constitucionais, fundamentais ou não.

5 O direito fundamental à saúde na perspectiva do Supremo


Tribunal Federal
O Supremo Tribunal Federal assentou que a saúde é direito público subjetivo
assegurado a todas as pessoas, identificado na perspectiva individual, assim como
na dimensão coletiva de proteção da saúde (MENDES, 2012).
Há precedentes na Corte Suprema de que deve haver a implementação de
políticas públicas que visem promover, proteger e recuperar a saúde por meio de polí­
ticas sociais e econômicas, salientando, ainda, que não há direito absoluto a todo e
qualquer procedimento (STF – Recurso Extraordinário nº 271.286 – Relator Ministro
Celso de Mello).
O julgamento em apreço é tratado pela doutrina como leading case (MENDES,
2012) ­– apesar de o Supremo Tribunal Federal ter inúmeros outros –, e ressaltou que o
conteúdo essencial do direito à saúde abrange: (a) serviços de saúde; (b) assistência
farmacêutica e (c) serviço médico hospitalar. Essa conclusão é fundamental para
delimitar a significação jurídica a que todos fazem jus, assim como demarcar aquilo
que ocupa o conteúdo do dever fundamental estatal, que deve ser efetivado na
perspectiva individual por meio de ações específicas, assim como – e principalmente
– por meio da instituição de políticas públicas visando à redução de risco de doenças
e outros agravos, que compreendem a dimensão coletiva.
Há um acórdão paradigma do Supremo Tribunal Federal que ressalta a funda­
mentalidade do direito à saúde, e que, ao se falar da saúde, enfatizou que se trata
de “direito público subjetivo”, “prerrogativa jurídica indissociável assegurada a todas
as pessoas”, “bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve
velar, de maneira responsável, o Poder Público” (AgRg-RE nº 271.286/RS, Relator
Ministro Celso de Mello).
No que tange à possibilidade de judicialização da saúde, o julgado em apreço
ressaltou que “o Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação
no plano da organização federativa, não pode mostrar-se indiferente ao proble­ma da
saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em
grave comportamento inconstitucional”. Outro ponto fundamental consiste na afir­
mação categórica do Ministro Relator que a interpretação do direito fundamental à
saúde – de sua implementação – “não pode converter-se em promessa constitucio­nal
inconsequente” sob pena de o Poder Público fraudar e frustrar as justas expectativas
coletivas, tratando-se – a não concretização do direito à saúde – em “infidelidade

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015 57
MURILLO SAPIA GUTIER, RUBENS CORREIA JUNIOR, CARLA A. ARENA VENTURA

governamental”, “gesto irresponsável”, uma vez que o artigo 196 consagra um


“impostergável dever” (AgRg-RE nº 271.286/RS, Relator Ministro Celso de Mello).

6 A judicialização da saúde frente à responsabilização do Estado


Consoante ressaltado, a constitucionalização do direito à saúde não pode ficar
relegada à discricionariedade do Poder Público, sob pena de termos uma previsão
simbólica desse fundamental direito social. Contudo, como um processo recente, o
tema da judicialização da saúde é, ainda, de difícil conceituação (OLIVEIRA, 2010).
Para limitar e definir o tema, é necessário fazer referência ao trabalho pioneiro
dos autores Tate e Vallinder (1995), que edificaram o conceito de judicialização no
artigo The Global Expansion of Judicial Power. Neste trabalho, tais autores afirmam
que a judicialização é um processo de transferência e convergência das decisões
sobre direitos do cidadão em todos os âmbitos para as cortes legais (VALLINDER,
1995). Nesse contexto, observa-se a ampliação da participação do Poder Judiciário
nos processos decisórios, nas relações sociais e políticas, em especial na saúde.
Representa a implementação do direito constitucional à saúde por intermédio do
Poder Judiciário (VALLINDER, 1995).
Resta saber como se efetiva tal interferência e ingerência por parte do Poder
Judiciário e, principalmente, se a judicialização contribui e patrocina uma assimetria
de direitos em nossa sociedade, ou, pelo contrário, se contribui para a inclusão de
grupos marginais ao sistema de direitos e garantias fundamentais (MACHADO, 2008).
Essa expansão das possibilidades de representação do cidadão é sintetizada
por Burgos e Viana (2002) como a junção entre a cidadania política e uma cidadania
social que culmina com a pluralização da soberania, uma vez que o cidadão não tem
mais apenas a possibilidade de representação indireta e eleitoral, mas pode agir e
decidir diretamente em seu próprio nome, generalizando-se a representação.
Se for feita uma análise fria do acórdão paradigma descrito no item anterior –
(AgRg-RE) nº 271.286/RS –, parece-nos que, dos trechos em destaque, o Supremo
Tribunal Federal adotou o entendimento de que, se houver a omissão do Poder Público
quanto à implementação do direito à saúde, esta negligência é reprovável, e o censor7
das omissões, tutor da sociedade órfã, é o Poder Judiciário.

7 Tutela processual coletiva do direito à saúde


No que tange à tutela processual coletiva dos direitos, na década de 1980
tivemos no Brasil um movimento de estabelecimento e afirmação do acesso à justiça,

7
Conforme o Dicionário Eletrônico Houaiss, censor, na antiga Roma, era o “magistrado que recenseava a popu-
lação, cuidava da arrecadação dos impostos e era responsável pela manutenção dos bons costumes”.

58 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015
O direito fundamental à saúde e a judicialização no Brasil. A saúde como direito humano e sua tutela processual

que teve o condão de criar mecanismos processuais próprios para propiciar a defesa
em juízo dos direitos coletivos, entendidos, grosso modo, como direitos pertencentes
a toda a sociedade (GUEDES, 2011),8 sendo que, ao pertencer a toda a coletividade,
são designados de transindividuais ou metaindividuais (MARINONI; ARENHART, 2012).
A perspectiva estatal no controle jurisdicional de lesões ou ameaças a Direitos
retratada no artigo 5º, XXXV, da Constituição do Brasil passa pela análise de três
condições, que são descritas pelos elementos: (a) interesse; (b) legitimação para agir;
(c) possibilidade jurídica do pedido. O sistema brasileiro de tutela processual coletiva9
(CDC e LACP), diferentemente do sistema individualista do Código de Processo Civil,
atribui a legitimação para agir a determinados entes,10 que representam os interesses
e aspirações coletivas, agindo como interlocutores sociais perante o Judiciário na
solução de conflitos de “massa” que afetam a coletividade.
Hodiernamente, o grau de desenvolvimento demonstrado pela sociedade per­
mite dizer que, pela sofisticação e complexidade, vivemos em uma sociedade de
massa e de risco (BECK, 1998), “em que os problemas tendem a se coletivizar,
exigindo soluções também coletivas” (BELINETTI, p. 666). Tal configuração buscou
igualmente prever mecanismos jurisdicionais para a tutela coletiva dos direitos de
entes com legitimidade para interceder junto ao judiciário na solução de ameaças
ou lesões de massa, uma vez que as atividades desenvolvidas no seio industrial-
social-político podem acarretar um risco para o bem-estar da coletividade, de modo
que esses riscos devem ser levados em consideração na tomada das decisões,
políticas, administrativas ou jurídicas.
Como mostram traços distintos das ações individuais previstas no CPC, as
ações coletivas apresentam estrutura e postulados diferenciados. Pode-se apontar
que a primeira grande diferença consiste no princípio do interesse jurisdicional do
conhecimento do mérito, que afirma que o juiz deve fazer o máximo possível para
julgar o mérito, ou seja, somente em último caso é possível a sua extinção em reso­
lução do conflito coletivo de interesses (ALMEIDA, 2007). Outro vetor fundamental
consiste na prioridade na tramitação, que significa que deve dar-se preferência na
tramitação das ações coletivas em detrimento de uma ação individual.

8
Para fins do presente trabalho, não serão feitas digressões sobre as categorias de direitos coletivos delineada
no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), que aduz os direitos coletivos em subcategorias, como
direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos, consolidando, no senário brasileiro.
O denominado CDC consiste, segundo a doutrina pacífica, em microssistema de defesa coletiva dos direitos,
juntamente com a Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.437/85).
9
Para fins do presente trabalho, adotar-se-á a nomenclatura CDC para a Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do
Consumidor) e LACP para a Lei 7.437/85 (Lei da Ação Civil Pública).
10
Descritos no art. 5º da LACP, como o Ministério Público, a Defensoria Pública, a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios, autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista e a associa-
ção que, concomitantemente, esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil e inclua,
entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre
concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015 59
MURILLO SAPIA GUTIER, RUBENS CORREIA JUNIOR, CARLA A. ARENA VENTURA

Salientam os processualistas que a ação coletiva é marcada pelo princípio da


indisponibilidade mitigada (que pode ser extraído do art. 9º da Lei da Ação Popular –
Lei nº 4.717/65),11 de modo que é não é possível, ao autor de uma ação coletiva, a
desistência ou o abandono da causa (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2013), o que, somente
pode ser feito se houver motivação própria (art. 5º, §3º, da LACP). Igualmente, a
obrigatoriedade da execução coletiva (arts. 16, da LAP, e 15, da LACP) é princípio
informativo da tutela coletiva, que ressalta que o autor é obrigado a executar a sen­
tença proferida em ação coletiva no prazo de 60 (sessenta) dias, senão o Ministério
Público o fará, se este não for o autor da ação (ALMEIDA, 2007).
Outro ponto estrutural relevante consiste na ênfase ao máximo benefício da tutela
jurisdicional coletiva (art. 103, §3º, do CDC), que tem por postulado a perspectiva de
que, se a sentença que soluciona litígio coletivo for julgada procedente, beneficiará
todos (efeito erga omnes), ao passo que se for improcedente, não prejudicará os
afetados, de modo que não haverá perda do direito à ação individual (ALMEIDA, 2007).
Um ponto estrutural relevante do sistema processual coletivo consiste no prin­
cípio do ativismo judicial ou da máxima efetividade do processo coletivo, que ressalta
que, dada a relevância dos bens jurídicos envolvidos – de índole transindividual –,
autoriza-se, nestes processos, ao magistrado em poder, produzir provas de ofício
(art. 130 do CPC), assim como lhe assiste a possibilidade de autorizar a modificação
do pedido ou da causa de pedir, mesmo depois do saneamento do processo
(ALMEIDA, 2007).
É possível descrever ainda o princípio da atipicidade ou não taxatividade do
processo coletivo (art. 83 do CDC), que permite aos legitimados propor todo e qual­
quer tipo de ação para a tutela coletiva dos direitos, mesmo que não previstas como
coletivas (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2013).
Dentre os legitimados para interpor ações coletivas perante o Poder Judiciário,
a Defensoria Pública foi criada para prestar assistência jurídica integral e gratuita
aos necessitados e, a par de sua missão institucionalmente constitucionalizada (art.
134), apresenta o problema estrutural de não ter sido instituída em todos os Estados-
membros da Federação, o que acarreta no não atendimento ao mais sensível grupo
de pessoas: os hipossuficientes economicamente. Outro viés relevante consiste
no fato de que, mesmo instituída na maioria dos Estados, cerca de metade das
Comarcas não são atendidas pela Defensoria Pública (WANG, 2009).
Obtempera Wang (2009) que o Ministério Público apresenta participação dimi­
nuta na propositura de ações coletivas, tendo como causa de pedir direitos à saúde,
de modo que o mais usual ainda consiste na tutela individual, e não a coletiva,
afirmando que o Judiciário brasileiro apresenta uma resistência à tutela judicial
coletiva, se cotejado com as individuais.

11
Doravante denominada de LAP.

60 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015
O direito fundamental à saúde e a judicialização no Brasil. A saúde como direito humano e sua tutela processual

Ainda, as organizações não governamentais – constituídas como associações


–, igualmente têm se mostrado ativas na salvaguarda do direito à saúde, valendo-
se do Judiciário para propor ações visando à obtenção de medicamentos (WANG,
2009), e, por vezes, atuando de forma pontual na proteção contra algumas doenças,
como a DST/AIDS, que conta com mais de 500 ONGs com este âmbito de atuação,
intentando ações judiciais visando proporcionar medicamentos para seu combate e
prevenção. Entretanto, conforme Wang (2009), trata-se de uma atuação mitigada e
específica, não correspondendo aos anseios de outros setores da população.

8 Considerações finais
Como ressaltado, os modelos internacional de direitos humanos e constitucio­
nal de direitos fundamentais enalteceram a valorização do direito à saúde como
princípio jurídico basilar e, com a ampla concepção de que possui, força normativa e
aplicabilidade para assegurar o mínimo existencial e propiciar melhoria na qualidade
de vida a todos, sem distinção. Na solução dos casos, a constitucionalização do
direito à saúde abriu o espaço para o uso da argumentação constitucional para o
controle das omissões dos Poderes Legislativo e Executivo.
Diferentemente de outras áreas, não se valeu de métodos abertos para a
solução dos casos, uma vez que afirmou peremptoriamente que a “saúde é direito
de todos e dever do Estado”, de modo a propiciar mais do que um caráter declara­
tório de direitos fundamentais, afirmando que, ao Estado, foi imposto um verdadeiro
dever fundamental de implementar este direito social.
Um ordenamento constitucionalizado não apenas declara direitos e deveres,
mas, também, prevê um sistema de garantias, isto é, a Magna Carta é dotada de
mecanismos de controle de conformidade constitucional das leis e dos atos comis­
sivos e omissivos do Poder Público. Para tanto, a válvula de controle das omissões
estatais – e não apenas provenientes do Estado – vem delineada pelo princípio da
universalidade de jurisdição, esculpido no artigo 5º, XXXV, que diz que “a lei não
excluirá da apreciação do Judiciário, lesão ou ameaça a Direito”.
Há, então, a afirmação de que a judicialização da política – por vezes, em tom
pejorativo – nada mais consiste que a apreciação, pelo Poder Judiciário, do cum­
primento dos direitos e deveres constitucionais por via do direito de ação. A ideia é
relativamente simples, mas sem ser simplista: como se atribuiu ao Estado o dever
fundamental de manter o conteúdo essencial da qualidade de vida das pessoas,
a partir do momento em que se verifica a omissão, nascerá, para quem estiver na
iminência de sofrer lesão ou ameaça, o direito de provocar o Judiciário para tutelar o
bem jurídico “saúde”.
O Supremo Tribunal Federal ressaltou a fundamentalidade do direito à saúde e
a responsabilidade do Estado pela integralidade da implementação, uma vez que a

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015 61
MURILLO SAPIA GUTIER, RUBENS CORREIA JUNIOR, CARLA A. ARENA VENTURA

saúde é considerada, para este tribunal, como verdadeiro dever fundamental. O não
cumprimento dos compromissos ligados à saúde são considerados como frustração
de expectativas coletivas legítimas dos cidadãos, assumindo, a Suprema Corte,
como a postura de censor das promessas estatais não cumpridas, julgando a con­
veniência de sua implementação – individual e coletiva –, convertendo-se, contem­
poraneamente, não apenas em guardião da Constituição, mas como guardião das
promessas (so)negadas aos cidadãos.

Referências
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das ações constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
BARROSO, L. R. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gra­
tuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. 2009. Disponível em: <http://www.
lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2009.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais
e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais
e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidos, 1998
BELLINETTI, Luiz Fernando. Definição de interesses difusos, coletivos em sentido estrito e individuais
homogêneos. In: Luiz Guilherme Marinoni. (Org.). Estudos de Direito Processual Civil. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 666-671.
BINEMBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e
constitucionalismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
BOROWSKI, Martin. La estructura de los derechos fundamentales. Bogotá: Universidad Externado
de Colombia, 2003.
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas
e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra:
Almedina, 2002.
CAPPELETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1993. 134 p.
CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo: elementos para uma definición. In: MOREIRA, Eduardo
Ribeiro; PUGLIESI, Márcio. 20 anos da Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 2009.
CARVALHO, E. R. Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova
abordagem. Revista de Sociologia Política, Curitiba, n. p. 115-126, 2004.
CHIEFFI, A. L.; BARATA, R. B. Judicialização da política pública de assistência farmacêutica e equidade.
Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 8, p. 1.839-1.849, ago. 2009.
DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil. v. 4. Processo Coletivo.
Salvador: Editora JusPodivm, 2013.
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007.

62 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015
O direito fundamental à saúde e a judicialização no Brasil. A saúde como direito humano e sua tutela processual

FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado.


In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003.
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da
dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2008.
FERRAJOLI, Luigi. Sobre La definición de “democracia”. In: Isonomía: Revista de Teoría y Filosofía del
Derecho, número 19 (octubre 2003), páginas 228-240. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.
com/obra/sobre-la-definicin-de-democracia-una-discusin-con-michelangelo-bovero-0/>. Acesso em:
12 out. 2012.
FIGUEIREDO, Mariana Filchtner. Direito Fundamental à Saúde: parâmetros para sua eficácia e
efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
FIGUEROA, Alfonso García. A teoria do direito em tempos de constitucionalismo. In: MOREIRA, Eduardo
Ribeiro; PUGLIESI, Márcio. 20 anos da Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 2009.
GOUVÊA, Marcos Masilli. O Direito ao fornecimento estatal de medicamentos. Revista Forense, Rio
de Janeiro, v. 370, p. 103-134, 2003.
GUASTINI, Riccardo. A constitucionalização do ordenamento jurídico e a experiência italiana. In:
SARMENTO, Daniel Antonio de Moraes (Org.); SOUZA NETO, Cláudio Pereira (Org.). A Constitucionalização
do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
GUEDES, Clarissa Diniz. Legitimidade ativa e representatividade na Ação Civil Pública. Rio de Janeiro:
GZ Editora, 2011.
GUTIER, Murillo Sapia. Direito à diversidade: entraves do Estado Moderno Uniformizador. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2013.
HEINTZE, Hans-Joachim. Introdução ao Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos.
In: PETERKE, Sven (Org.); RAMOS, André de Carvalho et al. Manual prático de direitos humanos
internacionais. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2009.
MACHADO, F. R. S. Contribuições ao debate da judicialização da saúde no Brasil. Revista de Direito
Sanitário, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 73-91, jul./out. 2008.
MACIEL, Débora Alves; KOERNER, Andrei. Sentidos da judicialização da política: duas análises. n. 57.
São Paulo: Lua Nova, 2003. p. 113-134.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Procedimentos especiais. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012.
MARQUES. S. B. Judicialização do Direito à Saúde. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 9, n.
2 p. 65-72, jul./out. 2008.
MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
MESSEDER, Ana Márcia; OSORIO-DE-CASTRO, Cláudia Garcia Serpa; LUIZA, Vera Lúcia. Mandados
judiciais como ferramenta para garantia do acesso a medicamentos no setor público: a experiência do
Estado do Rio de Janeiro. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 525-534, 2005.
OLIVEIRA, José Antonio Diniz de. Demandas jurídicas por coberturas assistenciais: estudo de caso.
2010. Dissertação (Mestrado em Serviços de Saúde Pública). Faculdade de Saúde Pública, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6135/
tde-22102010-135054/>. Acesso em: 22 abr. 2013.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dimensões da dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais
na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015 63
MURILLO SAPIA GUTIER, RUBENS CORREIA JUNIOR, CARLA A. ARENA VENTURA

SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil. In: Direitos fundamentais e Estado


Constitucional: estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009.
SCHRECKER, T. et al. Advancing health equity in the global marketplace: how human rights can help.
Social Science & Medicine, Oxford, v. 71, p. 1.520-1.526, 2010.
SILVA, Virgílio Afonso. A constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações entre
particulares. São Paulo: Malheiros, 2005.
SOARES, Mario Lúcio Quintão. Teoria do Estado: o substrato clássico e os novos paradigmas como
pré-compreensão para o direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
TATE, C. Neal. Why the Expansion of Judicial Power?. In: TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjorn (Org.).
The global expansion of judicial power. New York, London: New York University Press, 1995. p. 27-37
VALLINDER, Torbjorn. When the courts go marching. In: TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjorn (Org.). The
global expansion of judicial power. New York, London: New York University Press, 1995. p. 13-26.
VENTURA, Carla Aparecida Arena. Saúde mental e direitos humanos: o processo de construção da
cidadania das pessoas portadoras de transtornos mentais. Ribeirão Preto, 2011. (Tese de Livre
Docência, apresentada à Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP. Área de concentração:
Enfermagem Psiquiátrica).
VIANNA, Luiz Jorge Werneck; BURGOS, Marcelo Baumann. Revolução processual do direito e democracia
progressiva. In: VIANNA, Luiz Jorge Werneck. (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo
Horizonte: UFMG, 2002. p. 337-491.
VIANNA, Luiz Jorge Werneck; MELO, Manuel Palácios Cunha; CARVALHO, Maria Alice Rezende de;
BURGOS, Marcelo Baumann. Corpo e alma da magistratura brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1997.
336 p.
WANG. Daniel Wei Liang. Poder Judiciário e participação democrática nas políticas públicas de saúde.
São Paulo, 2009. Dissertação (Mestrado). Universidade de São Paulo. Programa de Pós-Graduação
em Direito do Estado.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

GUTIER, Murillo Sapia; CORREIA JUNIOR, Rubens; VENTURA, Carla A. Arena. O direito
fundamental à saúde e a judicialização no Brasil: A saúde como direito humano
e sua tutela processual. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo
Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015.

64 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 47-64, jan./mar. 2015
O fenômeno processual de acordo com
os planos material, pré-processual
e processual do direito: breves
considerações do tema a partir (e além)
do pensamento de Pontes de Miranda

Roberto P. Campos Gouveia Filho


Mestre em Direito Processual pela Universidade Católica de Pernambuco. Professor de Direito
Processual Civil na mesma IES. Membro da Associação Norte e Nordeste de Professores de
Processo (ANNEP). Advogado.

Gabriela Expósito Miranda


Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Advogada.

Resumo: Este texto tem por premissa lançar as bases necessárias à compreensão do fenômeno processual
a partir da ideia, lançada por Pontes de Miranda, da existência de planos material, pré-processual e
processual do direito. Parte-se de conceitos fornecidos pela Teoria Geral do Direito, como direito e
pretensão, e opera-se o desenvolvimento deles em tais planos, de acordo com particularidade de cada um.
Palavras-chave: Teoria Geral do Direito. Plano material. Plano pré-processual. Plano processual.

Sumário: 1 Introdução – 2 Da formação dos fatos jurídicos à constituição das relações jurídicas – 3
Direito, pretensão e ação: plano material – 4 O plano pré-processual – 5 O plano processual – 6 Conclusão
– Referências

1 Introdução
A ideia do presente artigo é apresentar os dados necessários para o estudo
do fenômeno processual a partir da Teoria Geral do Direito, ciência esta que, como
cediço, tem por objeto os conceitos fundamentais aplicáveis a quaisquer ramos do
direito positivo. Para tanto, utilizar-se-á a teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda
e os conceitos por ela oferecidos, como: suporte fático, incidência, fato jurídico,
relação jurídica, situações jurídicas ativas e passivas.
Na esteira do pensamento do mesmo autor, divide-se o mundo em três planos
de análise: material, pré-processual e processual. Em cada um, há fatos jurídicos e
efeitos deles: as situações jurídicas.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015 65
ROBERTO P. CAMPOS GOUVEIA FILHO, GABRIELA EXPÓSITO MIRANDA

O parâmetro de estudo é, portanto, o processo, entendido como fenômeno do


mundo jurídico. É, por ele, e somente, que se pode falar em direito (em sentido
obje­tivo) material, pré-processual e processual. Com isso, não se nega, tal como
os pro­sélitos da unidade do ordenamento jurídico (Salvatore Satta,1 em especial), a
exis­­tência de direitos antes de proferida uma sentença num processo jurisdicional.
Direitos há antes do processo, e isso parece ser algo inegável; no entanto, fora
do processo, todo direito é simplesmente ele mesmo, sem a necessidade de adje­
tivações. O direito ganha a qualidade de material quando contraposto a outro, dito,
acima de tudo, processual. Isso, sem dúvida, só é possível se tivermos como refe­
rencial um processo determinado.
Para além da análise do direito material e do direito processual, descreve-se, a
partir do pensamento de Pontes de Miranda, o que vem a ser o direito pré-processual,
justificando-se a importância do estudo dele.
Enfim, trata-se de um texto cujo objetivo central é fornecer as bases mínimas
para outros estudos que venham a aprofundar os diversos temas aqui tratados.
Um alerta faz-se necessário. O trabalho não é atrelado à literalidade do pensa­
mento de Pontes de Miranda. A noção de ação processual, ao final desenvolvida, por
exemplo, difere de algumas passagens da obra do jurista alagoano, ao menos no
sentido literal do texto.
Assume-se, com isso, o risco de interpretar o pensamento do jurista alagoano,
tirando dele conclusões próprias.

2 Da formação dos fatos jurídicos à constituição das relações


jurídicas
“Nada mais reprovável, em método, começar-se a falar dos direitos, das pre­
tensões, das ações e das exceções, antes de se falar da regra jurídica, do suporte
fático, da incidência da regra jurídica, da entrada do suporte fático no mundo jurídico,
do fato jurídico”.2 No trecho supracitado, Pontes de Miranda frisa a necessidade do
estudo do fato jurídico para, posteriormente, adentrar na análise dos direitos-deveres,
das pretensões-obrigações etc. Tem-se, com isso, a base da teoria do fato jurídico
ponteana.
Em verdade, ela é a própria Teoria Geral do Direito desenvolvida por Pontes de
Miranda.3 É possível, sem dúvida, criticar as premissas dela, por, e.g., não servirem

1
Nesse sentido, ver SATTA, Salvatore. Direito Processual Civil. T. 1. Trad. Luiz Autuori. Rio de Janeiro: Borsoi,
1970. p. 61-64.
2
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 2. ed. T. 5. Rio de Janeiro: Borsoi,
1955. p. 22.
3
Nesse sentido, aplicando as premissas da teoria em análise à lei, algo que, ao menos de modo sistemático,
não foi feito por Pontes de Miranda, ver NEVES, Marcelo. Teoria da Inconstitucionalidade das Leis. São Paulo:
Saraiva, 1988. p. 41-42.

66 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015
O FENÔMENO PROCESSUAL DE ACORDO COM OS PLANOS MATERIAL, PRÉ-PROCESSUAL E PROCESSUAL DO DIREITO: BREVES...

para sustentar o direito como fenômeno linguístico; no entanto, não há como negar
que, por ela, o citado jurista pretende explicar a totalidade do fenômeno jurídico em
sua dimensão normativa: “a noção fundamental do direito é a de fato jurídico; depois,
a de relação jurídica”,4 diz ele, algo que, sem dúvida, sintetiza a premissa acima.
Dito isso, pode-se prosseguir.
Para entender a teoria ponteana, é importante ressaltar que existem fatos rele­
vantes para o direito, e outros não.5 A partir da valoração, a comunidade jurídica6 cria
a norma cristalizando os fatos entendidos como relevantes.
Desse modo, feita a valoração, a norma, devidamente textualizada, descreve
uma hipótese (suporte fático): um fato ou um complexo de fatos devidamente valo­
rados. Concretizada a hipótese, a norma incide sobre o suporte fático, gerando, com
isso, o fato jurídico.7 Este é, pois, formado pela incidência da norma sobre o suporte
fático concretizado, o qual o texto da norma previamente estabelece.
Ressalte-se que suporte fático é fenômeno concernente ao mundo dos fatos,
não se podendo, apenas com ele, falar em mundo jurídico. Trata-se, enfim, de um
fato – conduta ou evento8 – relevante para o direito, em virtude da valoração feita no
âmbito da dimensão política,9 momento de construção da norma jurídica abstrata.10
Composto o suporte fático suficiente,11 haverá a incidência da norma jurídica

4
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 3. ed. T. 1. Rio de Janeiro: Borsoi,
1970. p. XVI.
5
A distinção entre fatos que são ou não relevantes para o direito é a base para a determinação do mundo dos
fatos e do mundo jurídico, sendo este composto apenas por fatos jurídicos. Mundo jurídico que, estando num
plano lógico, é criação do pensamento humano. Nesse sentido, ver MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do
Fato Jurídico: plano da existência. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 39-41.
6
Expressão utilizada por Marcos Bernardes de Mello para designar o grupo social que tem o poder de ditar
normas jurídicas (op. ult. cit., p. 38).
7
Idem, p. 43. Ainda, VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4. ed. São Paulo: RT, 2000. p.
144-145.
8
O evento e a conduta são espécies do gênero fatos. A segunda pode ser definida como fatos decorrentes do
agir humano, comissivos ou omissivos, são os chamados atos; aquele, como puro fato estranho à interferên-
cia humana. Nesse sentido, ver MELLO, Marcos Bernardes de, op. cit., p. 38.
9
O fenômeno jurídico pode ser dividido em três dimensões: a política, a normativa e a sociológica. A dimensão
política é aquela onde a comunidade jurídica valora os fatos provenientes da relação intersubjetiva entre as
pessoas e, assim, edita normas baseadas em tais fatos, imputando-lhes consequências jurídicas. A dimensão
normativa leva em consideração o direito como comandos e suas expressões normativas. Nela, predomina o
viés dogmático. Por fim, a dimensão sociológica relaciona a norma jurídica à sua efetivação no mundo social.
Nesse sentido, ver MELLO, Marcos Bernardes de, op. cit., p. 44-46.
10
Idem, p. 73.
11
O suporte fático pode ser formado por elementos nucleares, complementares e integrativos. Os nucleares são
fatos essenciais à incidência da norma jurídica, e a presença destes elementos é pressuposto de qualquer
fato jurídico. Há um fato central, o cerne do suporte fático, e, além dele, outros componentes do núcleo do
suporte fático, chamados de elementos completantes, que possuem uma ligação direta com a existência do
suporte fático. Já os elementos complementares não compõem o núcleo do suporte fático, referindo-se à
perfeição de seus elementos, podem ser complementares em relação aos sujeitos, ao objeto ou à forma, e
constituem pressupostos de validade e eficácia dos atos jurídicos. Por fim, têm-se os elementos integrativos,
que não estão vinculados aos planos da existência, validade e eficácia; sem estes elementos, o fato existirá,
será válido e produzirá efeitos, entretanto, sua presença possibilitará a ele uma eficácia adicional. O registro
do acordo de transmissão da propriedade e o lançamento tributário são bons exemplos de elementos integra-
tivos. No primeiro caso, a transmissão da propriedade é possibilitada pela integração do registro ao acordo; no

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015 67
ROBERTO P. CAMPOS GOUVEIA FILHO, GABRIELA EXPÓSITO MIRANDA

surgindo o fato jurídico.12 A principal função da incidência é, pois, juridicizar o suporte


fático.
Pontes de Miranda divide o mundo do direito em três planos: existência, validade
e eficácia.13 Com a concreção do suporte fático e, consequentemente, a incidência
da norma, tem-se o plano da existência do fato jurídico (semelhante a suporte fático
juridicizado pela incidência).
Passa-se, com isso, à análise do outros planos: validade e eficácia. O primeiro
é contingencial, pois não ocorre para todos os tipos de fatos jurídicos, limitando-se
aos atos jurídicos lícitos; o segundo, por sua vez, é geral.
Mesmo para os fatos jurídicos que têm o plano da validade em sua vida, a
validade não é condição absoluta para seu ingresso no plano da eficácia.14 Há atos
inválidos que geram efeitos, como, por exemplo, o casamento nulo putativo. Existir,
valer e produzir efeitos são situações distintas relacionadas aos fatos jurídicos. A
existência, porém, é base para as outras duas situações.15
Diante disso, pode-se dizer que somente fatos jurídicos geram eficácia jurídica,16
sendo esta entendida como “o conjunto de efeitos que as normas jurídicas imputam
a fatos jurídicos, desde as situações jurídicas mais simples, como as qualificações e
as qualidades, às mais complexas relações jurídicas”.17
As espécies de efeitos existentes no mundo jurídico são chamadas de categorias
eficaciais, variando desde situações jurídicas das mais simples, como ter capacidade
jurídica, até as mais complexas relações jurídicas,18 como a relação processual.

segundo, o crédito tributário torna-se exigível com o lançamento. Ao citar a expressão suporte fático suficiente,
supõe-se a presença dos elementos nucleares: cerne e completantes. Os elementos complementares e inte-
grativos não dizem respeito à suficiência do suporte fático, e, sim, à sua perfeição ou, como já dito, à validade
e à eficácia do ato jurídico. Ver, sobre o todo, MELLO, Marcos Bernardes de, op. cit., p. 85-99.
12
Idem, p. 108.
13
Marcelo Neves, dantes citado, no que tange às normas jurídicas, utiliza o termo pertinência no lugar do termo
existência, empregado por Pontes de Miranda e seguido por Marcos Bernardes de Mello. Isso se deve ao
fato de o autor pernambucano não colocar, ao contrário de Pontes de Miranda, as normas jurídicas no plano
do ser, mas, sim, como componentes de um sistema nomoempírico prescritivo (o ordenamento jurídico), no
plano do dever ser, constituindo estruturas de significação deôntica (op. cit., p. 42). Rigorosamente, o termo
utilizado por Marcelo Neves melhor define também os fatos jurídicos como um todo, pois, em virtude do fato de
a causalidade jurídica ser de tipo imputacional, o inexistente para o direito pode ter toda relevância em outros
sistemas do mundo fático. O termo pertinência diz que tal fato é componente do mundo jurídico. Caso ele
não tenha pertinência, ele será estranho ao mundo do direito, sem que, com isso, ele seja inexistente como
um todo, porquanto possa ser pertinente a outros sistemas. Todavia, utilizar-se-á o termo existência neste
trabalho pelo fato de seu emprego ser universalmente consagrado.
14
MELLO, Marcos Bernardes de. Da Ação como Objeto Litigioso no Processo Civil. In: COSTA, Eduardo José da
Fonseca; MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (coords.). Teoria Quinária da
Ação. Salvador: JusPODIVM, 2010. p. 369.
15
MELLO, Marcos Bernardes de, op. ult. cit., p. 372.
16
Eficácia jurídica é o que se produz no mundo como decorrência dos fatos jurídicos. (PONTES DE MIRANDA,
Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. T. 1. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954. p. 4). (Grifos do original).
17
Idem, p. 374.
18
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da eficácia. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
p. 43.

68 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015
O FENÔMENO PROCESSUAL DE ACORDO COM OS PLANOS MATERIAL, PRÉ-PROCESSUAL E PROCESSUAL DO DIREITO: BREVES...

Neste trabalho, adotar-se-á a classificação das situações jurídicas de Marcos


Bernardes de Mello.19
Desse modo, pode-se entender o termo situação jurídica em dois sentidos, a
saber: lato e estrito. No primeiro, denota-se qualquer consequência que se produz
no mundo jurídico decorrente de um fato jurídico. Aqui, o termo engloba todas as
cate­gorias eficaciais. Já em sentido estrito, a mesma expressão serve para designar
todas as situações jurídicas que não sejam relações jurídicas, já que seus efeitos só
atingem uma esfera jurídica.20
Além disso, pode-se classificar as situações jurídicas em simples21 e complexa,
esta, por sua vez, divide-se em unilateral e bilateral ou relação jurídica,22 sendo a
última a mais importante categoria eficacial.23 24
A complexidade da relação jurídica, diferenciadora das demais espécies de
situação jurídica, está no fato de ela envolver a esfera jurídica de mais de um sujeito.
A pluralidade de sujeitos é, portanto, pressuposto essencial da relação jurídica.25
Afasta-se, assim, a possibilidade de existência de relação jurídica que não enlace
mais de um sujeito de direito. Não é aceitável, desse modo, o entendimento acerca
da possibilidade de um indivíduo manter relação jurídica com ele mesmo. O chamado
dever consigo mesmo existe em planos não jurídicos,26 jamais no âmbito de uma
relação jurídica.

19
Não se pode deixar de referendar a existência de tantos outros conceitos para o termo situação jurídica. Não
há como, do mesmo modo, negar que há outras classificações além da acima adotada. A proposta de Marcos
Bernardes de Mello é, neste trabalho, seguida não só por entender a situação jurídica como a eficácia dos
fatos jurídicos, a partir da concepção ponteana em torno deste, como também, e principalmente, por alocar a
relação jurídica entre as situações jurídicas possíveis. Para um estudo mais detalhado do instituto, com defi-
nições e classificações não necessariamente uniformes, ver BONNECASE, Julien. Introducción al Estudio del
Derecho. Trad. Jorge Guerrero. 2. ed. Bogotá: Editorial Temis, 2000. p. 49-50; GOLDSCHIMDT, James. Teoría
General del Proceso. Barcelona: Labor, 1936. p. 55; ENNECCERUS, Ludwig; NIPPERDEY, Hans Carl. Tratado
de Derecho Civil: parte general. v. 1. T. 1. Trad. Blas Pérez González e José Alguer. Barcelona: Bosch, 1953. p.
314-315, nota 3; CARNELUTTI, Francesco. Teoria Geral do Direito. Trad. A. Rodrigues Queiró e Artur Anselmo
de Castro. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural Edições, 2006. p. 283; BETTI, Emílio. Teoria General del Negocio
Jurídico. Trad. A. Martin Perez. 2. ed. Madri: Editorial Revista de Derecho Privado, 1959. p. 4; ASCENÇÃO, José
de Oliveira. Introdução à ciência do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 7-8; RÁO, Vicente. O Direito
e a Vida dos Direitos. 2. ed. v. 2, t. 2. São Paulo: Resenha Universitária, 1978. p. 272; GOMES, Orlando.
Introdução ao Direito Civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 123; GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica
Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992. p. 86; e, principalmente, CASTRO, Torquato.
Teoria da Situação Jurídica em Direito Privado Nacional: estrutura, causa e título legitimário do sujeito. São
Paulo: Saraiva, 1985. p. 50 e segs.
20
Idem, p. 94-95.
21
A situação jurídica simples é aquela que atinge a esfera jurídica de apenas um sujeito e tem como conteúdo
atribuir uma qualidade ou qualificação no mundo jurídico. Nesse sentido, ver MELLO, Marcos Bernardes de,
op. ult. cit., p. 104.
22
Idem, p. 99.
23
Idem, p. 95.
24
Adota-se, neste trabalho, a seguinte definição de relação jurídica: “toda relação intersubjetiva sobre a qual
a norma jurídica incidiu, juridicizando-a, bem como aquela que nasce, já dentro do mundo do direito, como
decorrência de fato jurídico”. Idem, p. 188.
25
Há quem defenda a possibilidade de relação jurídica entre objetos de direito como a relação que se dá entre
o bem principal e o bem acessório. Nesse sentido, ver, CASTRO JR., Torquato. A Pragmática das Nulidades e
a Teoria do Ato Jurídico Inexistente. São Paulo: Noeses, 2009. p. 21.
26
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da eficácia, op. cit., p. 195.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015 69
ROBERTO P. CAMPOS GOUVEIA FILHO, GABRIELA EXPÓSITO MIRANDA

Outro pressuposto para existência da relação jurídica é o objeto. Não há relação


jurídica sem objeto, o qual poderá ser coisa (objeto corpóreo), bens imateriais ou
promessa de prestação comissiva ou omissiva.27
O último pressuposto indispensável para a formação da relação jurídica é a
correspectividade entre as situações jurídicas que a compõem: direito-dever etc. O
tema será pormenorizado em item abaixo.
Enfim, a relação jurídica pode ser entendida como um conjunto cujo principal
elemento é o direito subjetivo,28 que é, pois, elemento da relação: dela, ele exsurge;
constituindo ela o invólucro dele.
Dito isso, passe-se à análise dos elementos da relação jurídica nos três planos
citados no título deste item.

3 O plano material a partir dos elementos da relação jurídica


3.1 Considerações iniciais
Em apertada síntese, serão delimitados neste item os elementos mais impor­
tantes de uma relação jurídica, a saber: direito, pretensão e ação. A ideia, aqui, é o
estudo de tais elementos em sua pureza, ou seja, antes de serem afirmados numa
demanda judicial, passando a compor o objeto de um processo.
Em rigor, todavia, não são apenas as relações jurídicas materiais que podem
ser compostas por tais elementos: direitos e pretensões, ao menos, podem compor
relações jurídicas pré-processuais e processuais. A premissa deste trabalho é, inclu­
sive, analisar o processo como parâmetro de distinção entre os planos material,
pré-processual e processual do direito.
Neste momento, no entanto, deve-se focar apenas as relações jurídicas num
instante em que estejam indiferentes a um processo, como se este sequer existisse.
Rigorosamente, em tal momento, não só elas, como também, e principalmente,
o plano que as engloba não deveriam ser adjetivados de materiais. Utiliza-se o
adjetivo, contudo, para fins didáticos.

3.2 Direito, pretensão e ação: síntese dos elementos principais


das relações jurídicas
De relações jurídicas, como já dito, podem surgir direitos subjetivos.29 Acima de
tudo, enseja-se um acréscimo na esfera jurídica do alguém, acarretando, em conse­
quência, uma limitação na esfera de outrem.30 O direito é, pois, vantagem auferida pela

27
Idem, p. 197.
28
Analogamente, ASSIS, Araken de. Cumulação de Ações. 4. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 39-40.
29
Ressalte-se que é possível a existência de direitos subjetivos sem relação jurídica formada, como ocorre com
o direito potestativo gerado pela oferta aos destinatários dela.
30
NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria da Ação de Direito Material. Salvador: JusPodivm, 2008. p. 115.

70 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015
O FENÔMENO PROCESSUAL DE ACORDO COM OS PLANOS MATERIAL, PRÉ-PROCESSUAL E PROCESSUAL DO DIREITO: BREVES...

incidência da norma.31 Direito subjetivo, como qualquer situação jurídica, é um dado


estático no mundo jurídico.32 Tê-lo significa titularizá-lo, sem que, neces­sariamente,
seja ele exercido.33
A correspectividade do direito é o dever. Como necessariamente há de havê-la,
sempre existirá, numa relação jurídica, ao menos dois sujeitos.
Os direitos subjetivos são integrados por poderes. Dentre estes, tem-se o poder
de exigir: a pretensão.34
A partir do momento em que a prestação – objeto do direito – for exigível, con­
substancia-se a pretensão,35 caracterizada por ser o grau de exigibilidade do direito.36
Considera-se a pretensão, pois, como um plus em relação ao direito subjetivo.37
No polo contrário à pretensão, encontra-se a obrigação. Dessa forma, sem
pretensão, o direito não obriga o sujeito passivo. A pretensão, tanto no que tange
à sua existência quanto em relação ao seu exercício e à sua observância, situa-
se no âmbito da licitude. Portanto, como será pormenorizado adiante, não se pode
condicionar a pretensão ao descumprimento do direito a quem ela se vincula.
Com o descumprimento da prestação devida,38 surge a ação,39 40 que, em

31
Nesse sentido, PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, op. cit., t. 5, p. 225-226.
32
Desse modo, ASSIS, Araken de, op. cit., p. 75.
33
Por óbvio, o não exercício de uma situação jurídica, como o direito ou, especialmente, a pretensão, pode
ser um dado de todo relevante para o direito positivo, pois pode ser elemento componente de suporte fático
de fatos jurídicos dos mais diversos, como do ato/fato jurídico da prescrição ou o da preclusão pelo não
exercício (temporal). Direito, pretensão e ação são situações jurídicas, estão no plano da eficácia, portanto.
Daí dizer serem estáticos, no sentido de apenas titularizados por alguém. O exercício deles, sempre por um
ato (semelhantemente ao agir humano, conduta), seja ou não jurídico, os dinamiciza, fazendo com que seu
conteúdo repercuta. O não exercício da situação jurídica é estático em relação a ela, porquanto, como dito,
o conteúdo de tal direito não repercutirá. Tudo, enfim, é um problema de referencial: em relação ao seu
conteúdo, o não exercício da situação jurídica é estático; em relação a suportes fáticos de fatos jurídicos como
a prescrição, dinâmico.
34
Assim, NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa, op. cit., p. 107.
35
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Direito Subjetivo, Pretensão de Direito Material e Ação. In: MACHADO, Fábio
Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (orgs.). Polêmica sobre a Ação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
p. 17.
36
GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos; PEREIRA, Mateus Costa. Ação Material e Tutela Cautelar. In: COSTA,
Eduardo José da Fonseca; MOURAO, Luiz Eduardo Ribeiro; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (coords.).
Teoria Quinária da Ação. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 563.
37
NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa, op. cit., p. 116.
38
Nem sempre a ação surge de um ilícito (violação). Muitas ações de jurisdição voluntária, como a de arrecadação
de bens do ausente ou a de arrecadação de coisas vagas, bem denotam isso. Ação é, acima de tudo, um
poder de satisfação.
39
GOUVEIA FILHO; PEREIRA, op. cit., p. 563.
40
O termo ação não é de sentido unívoco. Sobre o tema, em importante síntese, ver GRECO, Leonardo. A Teoria
da Ação no Processo Civil. São Paulo: Dialética, 2003. p. 9-16. Neste trabalho, por exemplo, adotar-se-á, ao
menos, dois sentidos para o termo: um material e outro processual. Tal dualidade foi, durante bom tempo,
solenemente ignorada pela doutrina, não obstante à monumental obra de Pontes de Miranda. Recentemente,
o tema voltou à discussão na processualística brasileira, destacando-se os trabalhos de Carlos Alberto Alvaro
de Oliveira e de Ovídio Baptista da Silva. O primeiro, defendendo a inutilidade da distinção; o segundo, a total
importância (ver, nesse sentido, acima de tudo, a síntese de MITIDIERO, Daniel. Polêmica sobre a Teoria
Dualista da Ação: Ação de Direito Material: “Ação” Processual: uma resposta a Guilherme Rizzo Amaral. In:
AMARAL, Guilherme Rizzo; MACHADO, Fabio Cardoso (orgs.). Polêmica sobre a Ação. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006, p. 129-139.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015 71
ROBERTO P. CAMPOS GOUVEIA FILHO, GABRIELA EXPÓSITO MIRANDA

regra,41 é o grau de impositividade do direito subjetivo.42 Com a ação, o sujeito ativo


da relação jurídica não necessita da cooperação do sujeito passivo para a satisfação
de seu direito, já que, em virtude dela, poderá impô-lo ao sujeito passivo.43 No que
tange à pretensão, todavia, o agir do sujeito passivo da relação é relevante. Nesse
caso, ele, como obrigado ao cumprimento da prestação prometida, há de fazê-lo nos
moldes devidos, em momento oportuno; ao não o fazer, o sujeito ativo passa a ter o
poder de satisfação: a ação.
Vale frisar que, embora titular da ação, o sujeito ativo poderá ou não exercê-
la. Caso não exercida, a ação permanece como potencialidade, sentido estático do
termo. Com o exercício, ter-se-á a ação em sentido dinâmico.
Ressalte-se que a ausência de previsão da ação não exclui a pretensão, ou
seja, não há necessariamente uma ação para toda pretensão. Uma dívida de jogo, por
exemplo, é ligada a direitos subjetivos e a pretensões que não podem ser impostos
por ação.44
Há várias classificações das ações. Dentre todas,45 a mais importante é aquela
que tem por critério sua eficácia preponderante. Aqui se fala em ações declaratórias,
constitutivas, condenatórias, mandamentais e executivas. As sentenças que as reco­
nhecem incorporam, com a devida coloração processual, tais eficácias.
Não é objeto deste artigo destrinchar a classificação quinária das ações,
analisando, criteriosamente, cada espécie eficacial. Muito menos, pormenorizar as
nuances do famoso teorema ponteano da constante quinze. O relevante – e, aqui,
deixa-se registrado – são as premissas de que a eficácia sentencial (fala-se das
sentenças de procedência, que julgam procedente a ação processualizada) emana
do direito material (não se está por dizer, com isso, serem elas limitadas a ele) e de
que não há sentença de uma única eficácia. É errado, assim, falar, por exemplo, em
sentença meramente declaratória.46

41
Há casos em que a ação não é ligada a qualquer direito, sendo apenas, portanto, um poder de imposição de
algo a alguém. É o que ocorre, por exemplo, com a ação declaratória negativa. Ação, em sentido mais amplo,
é poder para a satisfação de algo, independentemente da existência de um direito que lhe seja subjacente ou,
na forma exposta acima, de ocorrência de um ilícito. Ação, como dito alhures, é poder para satisfação de algo.
42
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da eficácia, op. cit., p. 203.
43
GOUVEIA FILHO; PEREIRA, op. cit., p. 563.
44
MELLO, Marcos Bernardes de. Da Ação como Objeto Litigioso no Processo Civil, op. cit., p. 379-380.
45
Outras classificações das ações são possíveis. Num trabalho deveras original, Eduardo José da Fonseca Costa
relaciona a classificação das ações com as vertentes da semiótica: sintática, semântica e pragmática. No
pensamento do autor, pode-se classificar as ações sintaticamente – relacionando uma ação a outra – ao falar
em ação principal e ação acessória, em ação antecedente e ação incidente; uma classificação semântica – ou
seja, a partir do objeto – é possível quando, por exemplo, se faz alusão à ação real e à ação pessoal, à ação
de conhecimento e à ação de execução; por fim, uma classificação pragmática – relação do termo com seus
utentes – seria possível a partir da importância prática exercida pela ação (pragmática acional). Nesse caso,
no entender do autor em comento, a classficação ponteana, seguida neste trabalho, tem viés pragmático
acional. Sobre todo o dito, ver: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Teoria Trinária vs Teoria Quinária: crônica de
um diálogo de surdos. COSTA, Eduardo José da Fonseca; MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro; NOGUEIRA, Pedro
Henrique Pedrosa (coords.). Teoria Quinária da Ação, op. cit., p. 195-204. (p. 196-7, em especial).
46
Não há sentença meramente declaratória. A sentença de força ou eficácia preponderante declaratória sempre
vem enxertada de uma eficácia mandamental, de modo implícito. Tal eficácia mandamental é o preceito

72 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015
O FENÔMENO PROCESSUAL DE ACORDO COM OS PLANOS MATERIAL, PRÉ-PROCESSUAL E PROCESSUAL DO DIREITO: BREVES...

Por fim, a relação jurídica pode ter seu conteúdo eficacial preenchido por outra
situação jurídica: a exceção.47 Exceção é uma posição jurídica ativa atribuída ao titular
da situação do acionado. Como posição jurídica ativa, ela tem um espectro contrário:
a situação do excepto. Especificamente, exceção é direito negativo (contra-direito)
que apenas encobre a eficácia do direito,48 da pretensão, da ação de direito material
ou de outra exceção. Tem por características, portanto: ser situação jurídica, compon­
do, pois, o plano da eficácia, necessitando, para repercutir seus efeitos, ser exercida
em moldes fixados; ter eficácia neutralizante da situação jurídica a quem se opõe, e
não extintiva.49

4 O plano pré-processual
4.1 Considerações iniciais sobre a pré-processualidade
Sinteticamente, entende-se por material todo direito que, quando processuali­
zado, passa a compor o objeto de um processo. É material, assim, o direito que, por

do Estado-juiz dirigido a todos para que não atentem, no plano real, contra a certeza jurídica gerada pela
declaração judicial. Caso o façam, é possível pleitear a execução indireta da sentença por intermédio de
técnicas coercitivas. Um caso talvez ajude na compreensão. Suponha-se a existência de uma sentença
declaratória da inexistência de uma dívida. Suponha-se, além disso, que a “dívida”, declarada inexistente,
esteja representada por um título, o qual vem a ser protestado. Ora, no caso, o protesto é fato do mundo
real que atenta contra a eficácia mandamental da sentença declaratória, de modo que o prejudicado pode,
de logo, pleitear a execução indireta da sentença. Não precisa, por óbvio, propor qualquer ação pela qual
possa se discutir, de modo definitivo ou provisório, a dívida já declarada inexistente. Nesse sentido, a
chamada cautelar inominada de sustação de protesto, medida muito comum como preparatória da ação
declaratória em questão, é, na verdade, uma técnica que possibilita a antecipação da eficácia mandamental
da futura e provável sentença declaratória de inexistência da dívida consubstanciada no título protestado. O
uso de tal técnica como ação cautelar inominada deu-se pelo fato de, até 1994, como cediço, não termos,
genericamente, a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela satisfativa do direito. Sobre a eficácia
imediata mandamental da sentença de força declaratória, ver PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.
Tratado das Ações. T. 2. São Paulo: RT, 1970. p. 62-63 e, especialmente, 77-79.
47
Sobre o tema, DIDIER JR., Fredie. Teoria das exceções: a exceção e as exceções. In: Revista de Processo. São
Paulo: RT, 2004, n. 116.
48
A exceção é direito negativo; mas, no negar, não nega a existência, nem a validade, nem desfaz, nem co-
elimina atos de realização da pretensão (compensação), – só encobre a eficácia do direito, pretensão, ação ou
exceção”. (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral. 3. ed. T. 6. Rio
de Janeiro: Borsoi, 1970. p. 10). Há quem fale que as exceções, quando acolhidas, podem extinguir direitos.
Nesse sentido, MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia, op. cit., p. 184-185.
49
Não se pode confundir as exceções com as objeções. Objeção é fato extinto de direito: “O excipiente recusa-
se a satisfazer a pretensão porque a eficácia desta é encoberta. Não objeta, não alega fato extintivo ou
modificativo, ou que teria impedido o nascimento do direito do demandante. Nas objeções não há alegações
de direitos, mas de fatos”. (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 2. ed. t.
22. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958. p. 28-29). Tal distinção tem total relevância em termos processuais. Quando
o réu se defende alegando exceção, ele afirma ter, no plano material, situação jurídica contra o autor, de modo
que passa a ser, no processo, autor de tal afirmação, devendo esta, quando analisada, ser julgada procedente
ou improcedente, tal como deve sê-lo a afirmação do autor feita contra o réu. Com as objeções, isso não
ocorre, pois, ao afirmá-las, o réu não diz ter situação jurídica material contra o autor, mas, afirmando o fato,
nega, e tão só, ter o autor direito contra ele. Por exemplo, na ação reivindicatória, o réu diz que o autor não
é proprietário, pois ele, réu, adquiriu a propriedade do bem por usucapião. Em suma, enquanto na exceção
afirma-se situação jurídica ativa; na objeção, nega-se tão somente a situação afirmada.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015 73
ROBERTO P. CAMPOS GOUVEIA FILHO, GABRIELA EXPÓSITO MIRANDA

intermédio de um processo judicial, é levado à apreciação jurisdicional. Logicamente,


só se pode iniciar o processo judicial, entendido aqui, como relação processual
(eficácia do fato jurídico processual), se, e somente se, tiver direito a tal processo e
à tutela jurisdicional que por ele se pretende. Processo iniciado por alguém não titular
do direito a ele é ato jurídico ineficaz, ou seja, não gerador de relação processual e
todo seu conteúdo eficacial. O direito ao processo e o direito à tutela jurisdicional por
ele perseguida são, portanto, direitos existentes num plano intermediário: o plano
pré-processual.
A razão de serem classificados como pré-processuais se dá pelo fato de não
serem, ao menos num primeiro momento, objeto do processo judicial, porquanto
não sejam eles levados à apreciação judicial, nem constituírem eficácia da relação
pro­cessual, pois, como dito, pelo simples fato de serem pressupostos para sua
formação, a ela antecedem. A pré-processualidade, desse modo, parece nítida se
se considerar que tais direitos são preparatórios da formação da relação processual.
Portanto, a noção de pré-processualidade só pode ser mensurada a partir de tal
perspectiva: algo estranho ao objeto do processo judicial e necessário à formação
da relação jurídica processual.
Outra ressalva importante é relativa ao fato de que o direito objetivo pré-pro­
cessual independe de grau hierárquico da lei que o preveja. Tanto pode haver direito
pré-processual em nível constitucional, como em nível infraconstitucional. Nesse
sentido, é válido frisar que o direito constitucional estabelece normas jurídicas mate­
riais, pré-processuais e processuais.50
Abaixo, tratar-se-á das mais importantes situações jurídicas pré-processuais.

4.2 Pretensão e pretensões à tutela jurídica: da generalidade


às especificidades
Por conta do monopólio estatal da jurisdição, na maior parte dos casos, o
exercício da ação material encontra-se deveras limitado. Pode-se dizer que, ao menos
num primeiro momento, a ação material é efetivada por intermédio do Estado, na
sua porção Estado-juiz.51

50
As norma jurídicas que estabelecem as ações constitucionais (ADIN, ADC, ADPF etc.), no que tange à eficácia
destas, são, por exemplo, normas de direito material, pois tratam de algo que, quando processualizado,
comporá o objeto do julgamento. Já as normas que tratam do acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CRFB), no que
se refere, ao menos, às pretensões à tutela jurídica, são normas de direito pré-processual. Por sua vez, a
norma que estabelece a necessidade de o processo judicial desenvolver-se validamente, vertente do devido
processo legal, é processual. Isso, ressalte-se, tanto no segundo caso quanto no último, é relativo, porquanto,
a depender do referencial, por poderem compor o objeto do julgamento de um determinado processo (ser
causa de pedir de um recurso, por exemplo), são enquadrados como direito material.
51
Ver, para tanto, ASSIS, Araken de, op. cit., p. 79; ABREU, Leonardo Santana de Abreu. Direito, Ação e Tutela
Jurisdicional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 121.

74 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015
O FENÔMENO PROCESSUAL DE ACORDO COM OS PLANOS MATERIAL, PRÉ-PROCESSUAL E PROCESSUAL DO DIREITO: BREVES...

O Estado detém o monopólio da jurisdição desde que impossibilitou aos homens


a realização da justiça de mão própria.52 Em contrapartida, o Estado, ao menos no
ordenamento pátrio, atribui a todos o direito de instá-lo a solucionar situações das
mais diversas, litigiosas ou não.53
Por haver essa limitação, existe, em favor dos sujeitos, a pretensão à tutela
jurídica, ligada ao direito, titularizado por cada um contra o Estado, à tutela jurisdi­cional.
Desse modo, para melhor designar o instituto, deve-se utilizar o termo preten­
são à tutela jurídica, e não apenas direito à tutela jurisdicional, pois este último, base
sobre a qual repousa a primeira, já nasce dotado de exigibilidade. Assim, ao se fazer
alusão à pretensão, o direito a ela ligado é implicitamente mencionado. Além disso,
a exigibilidade não é do direito em si, mas, sim, da tutela, uma vez ser ela o objeto
da promessa de prestação feita pelo Estado no momento em que limitou o exercício
pleno da ação material.
Costuma-se denominar a pretensão à tutela jurídica de direito de ação. E é este,
como cediço, o objeto das mais conhecidas teorias sobre a natureza da ação, muito
embora, algumas delas, não o tenham propriamente como base.54

52
Nesse sentido, PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das Ações. T. 1. São Paulo: RT, 1970.
p. 231.
53
Válido tecer breves comentários acerca da pretensão à tutela jurídica nos processos de jurisdição voluntária.
Em determinadas situações, os sujeitos de direito são autorizados, quando necessário, a solucionar seus
conflitos, sendo necessária a homologação das vontades por parte do Estado; é o que se chama de jurisdição
voluntária. Nesse tipo de jurisdição, não há de se falar em conflito propriamente dito, e, sim, em tutela de
interesses. A doutrina diverge acerca da natureza jurídica da jurisdição voluntária enquanto alguns defendem
que não há, de fato, jurisdição, mas ato da administração pública protegendo interesses privados. Embora,
possa-se dizer, minoritária, importante parcela da doutrina sustenta a natureza jurisdicional da jurisdição
voluntária. Para tanto, ver, com argumentos similares aos ora defendidos, por todos, PONTES DE MIRANDA,
Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. T. 16. Rio de Janeiro: Forense, 1977. p. 5-6;
SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de Processo Civil. 8. ed. v. 1. t. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 31-34;
GRECO, Leonardo. Jurisdição Voluntária Moderna. São Paulo: Dialética, 2003. p. 19-21.
54
Diversas teorias foram criadas acerca da ação. Defendida por Friedrich Carl von Savigny, a primeira teoria
acerca do tema, a teoria civilista, afirma que a ação é inerente ao direito material, sendo a ação o próprio
direito material violado. Ela exsurge, pois, da lesão. Em seguida, historicamente, tem-se a famosa polêmica
Windscheid x Muther, pela qual duas importantes noções foram consolidadas: a de pretensão (pelo
primeiro) e a de direito à tutela jurisdicional (pelo segundo). Nos fins do século XIX (mais especificamente,
em 1885), surge a teoria concreta defendida, inicialmente, pelo alemão Adolf Wach e, posteriormente, pelo
italiano Giuseppe Chiovenda, os quais, a seus modos, entendiam que o direito de ação era dependente
da procedência do pedido. Houve, principalmente com Wach, a diferenciação plena do direito de ação e do
direito material. Em contrapartida, sendo historicamente anterior, tem-se a teoria abstrata da ação, pela qual
se propugna a desvinculação do direito de ação da sentença de procedência do pedido. São prosélitos de
tal ideia, principalmente, Alexander Plosz, Heinrich Degenkolb, num primeiro momento, e, em seguida, por
Alfredo Rocco. Por fim, tem-se a teoria eclética, defendida pelo italiano Enrico Tullio Liebman. Para tal teoria,
o direito de ação nem está vinculado a uma sentença procedente, nem é completamente independente do
direito material; trata-se de um direito a uma sentença de mérito, independentemente de ser favorável ou não.
Sobre o tema, ver, dentre outros, WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER, Theodor. Polemica sobre la “Actio”. Trad.
Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: E.J.E.A, 1974, passim; WACH, Adolf. La Pretención de Declaración. Trad.
Juan M. Semon. Buenos Aires: E.J.E.A, s.a, p. 19 e segs.; CHIOVENDA, Giuseppe. La Acción en el Sistema de
los Derechos: Ensayos de Derecho Procesal Civil. T. 1. Trad. Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: E.J.E.A,
1949. p. 7 e segs.; LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. 3. ed. v. 1. Trad. Cândido
Rangel Dinamarco. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 197-203; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.
Tratado das Ações. T. 1. São Paulo: RT, 1970. p. 271-278; PASSOS, José Joaquim Calmon de. A Ação no

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015 75
ROBERTO P. CAMPOS GOUVEIA FILHO, GABRIELA EXPÓSITO MIRANDA

Um aspecto fundamental da pretensão em análise é seu viés pré-processual, já


que a relação Estado-Sujeito de Direito, erigida a partir da limitação feita pelo primeiro
ao exercício da ação material, se dá anteriormente ao próprio processo, pré-existindo,
pois, a ele.55 A pretensão à tutela jurídica tanto é devida ao autor quanto ao réu.56
Por fim, é importante distinguir a pretensão à tutela jurídica da pretensão a
uma sentença favorável do Estado.57 A primeira, como já dito, é aquela titularizada
(ao menos no sistema de direito positivo brasileiro) por qualquer sujeito de direito a
fim de obter do Estado-juiz uma resposta a uma provocação feita a ele;58 o segundo
decorre da relação processual, a partir da demonstração feita ao juiz por algumas
das partes acerca da justeza de seus fundamentos.59 Colocar a sentença favorável
como conteúdo da pretensão à tutela jurídica é retornar à concepção civilista da
ação. Portanto, vincular a pretensão à tutela jurídica a uma ação (no sentido material)
é retirar dela sua autonomia (demonstrada por Theodor Muther,60 no momento inicial,
e por Adolf Wach,61 em definitivo) e abstração (sustentada, não necessariamente
com os mesmos fundamentos, por Alexander Plòsz, Heinrich Degenkolb, Ludovico
Mortara, Alfredo Rocco, Eduardo J. Couture,62 dentre tantos outros). É indispensável,
pois, para entender o regramento dado pelo ordenamento jurídico-positivo ao instituto,
caracterizá-lo como público, autônomo e abstrato.
Isso não significa, contudo, a impossibilidade de haver, no plano pré-processual,
situações jurídicas estritamente ligadas às situações jurídicas situadas no plano
material.
Pode-se dizer que, paralelamente à ideia de pretensão à tutela jurídica, nos
moldes acima delineados, há, no plano pré-processual, pretensões específicas
à tute­la jurídica contra o Estado-juiz, vinculadas a cada tipo de direito, pretensão
e ação mate­riais passíveis de processualização. Por exemplo, paralela à ação de

Direito Processual Civil Brasileiro. Salvador: Impressa Oficial, 1960. p. 7 e segs.; SILVA, Ovídio Baptista da;
GOMES, Fábio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil. 3. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 90 e segs.
55
Assim, MELLO, Marcos Bernardes de. Da Ação como Objeto Litigioso no Processo Civil, op. cit., p. 393.
56
Nesse sentido, ver PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Relação Jurídica Processual. In: SANTOS, J. M.
Carvalho (org.). Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, s.a. p. 92.
57
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, op. ult. cit., p. 8.
58
Fale-se, acima, em obtenção de uma resposta a uma provocação feita ao Estado-juiz, porquanto tal expressão
sirva para abranger qualquer tipo de manifestação por parte dele acerca da demanda lhe dirigida, até mesmo
a declaração de inexistência da pretensão à tutela jurídica, por não ser o autor, por exemplo, dotado de
capacidade de ser parte.
59
Vale ressaltar que, para que haja a titularidade e o exercício da pretensão à tutela jurídica, não há de existir
necessariamente uma lide. Um exemplo disso é a existência da pretensão à tutela jurídica nos casos de
jurisdição voluntária. Nesse sentido, ver PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código
de Processo Civil, t. 16, op. cit., p. 6-7.
60
MUTHER, Theodor. Sobre La Doctrina de la Actio Romana, del Derecho de Accionar Actual, de la Litiscontestatio
y de la Sucesión Singular en las Obligaciones. Polemica sobre la “Actio”. Trad. Tomás A. Banzhaf. Buenos
Aires: E.J.E.A, 1974. p. 236 e segs.
61
WACH, Adolf. op. cit., p. 19 e segs.
62
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. 3. ed. Buenos Aires: Depalma, 1976. p. 67
e segs.

76 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015
O FENÔMENO PROCESSUAL DE ACORDO COM OS PLANOS MATERIAL, PRÉ-PROCESSUAL E PROCESSUAL DO DIREITO: BREVES...

reintegração de posse, há a pretensão à tutela jurisdicional reintegratória, esta


servindo de instrumento para aquela.
Dessa forma, sem maiores problemas, afirma-se que, havendo no plano mate­
rial situação jurídica processualizável (ações, em regra), há, no plano pré-processual,
situações jurídicas a ela correlatas.
As pretensões específicas à tutela jurídica têm a ver com cada tipo de tutela
jurisdicional existente: certificatória, modificatória, inibitória, reintegratória, assegu­
ratória e ressarcitória.63
A pretensão à obtenção de tais tutelas existe no plano pré-processual, não
como pretensão à tutela jurídica genérica, mas, sim, correlacionada à existência de
situações jurídicas materiais das mais diversas, passíveis de serem atingidas por
fatos jurídicos ilícitos, sejam situações jurídicas, como direitos, sejam, até mesmo,
situações de tuteláveis pelo direito, como a posse.

4.3 O direito ao remédio jurídico processual


O exercício da pretensão à tutela jurídica se dá por intermédio dos remédios
processuais, que se costumam denominar, na processualística, de demanda.64
Em rigor, remédio jurídico processual é o meio instrumental pelo qual os sujeitos
postulam a prestação jurisdicional.65
Sendo o remédio processual um ato de exercício, ele tem por pressuposto o
próprio direito a ele. Tal direito é ligado, desde seu nascedouro, a uma pretensão:
relativa ao uso dele. Ao titularizá-lo, portanto, titulariza-se pretensão a exigir do
Estado-juiz o não óbice (prestação negativa) ao seu uso.
De plano, deve-se firmar a diferenciação do direito ao remédio jurídico proces­
sual e da pretensão a ele correlata da pretensão à tutela jurídica. Trata-se de situa­
ções jurídicas distintas, ambas situadas no plano pré-processual: a segunda, como
visto acima, tem como objeto a tutela jurisdicional; os primeiros, com os meios para
obtenção dela.
É necessário reforçar que, tal como a pretensão à tutela jurídica, o direito ao
remédio processual e a pretensão a ele correlata têm, no Estado-juiz, seu sujeito
passivo, ou seja, este último é o obrigado da relação jurídica deles continente. Rela­
ção jurídica de direito pré-processual, ressalta-se.
Contrariamente ao dito, Leonardo Santana de Abreu, dos poucos autores a
analisar o tema dos remédios processuais, utiliza, ao que parece, como sinônimas,

63
Classifica as tutelas no modo posto acima: MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil. São Paulo: RT,
2009. p. 144-145.
64
Nesse sentido, ver MELLO, Marcos Bernardes de. Da ação como Objeto Litigioso no Processo Civil, op. cit.,
p. 393.
65
Desse modo, PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. T.
1. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 88.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015 77
ROBERTO P. CAMPOS GOUVEIA FILHO, GABRIELA EXPÓSITO MIRANDA

as noções de direito à tutela jurisdicional e direito ao remédio jurídico processual: “O


direito ao remédio jurídico processual ou o direito à prestação jurisdicional constitui
aspecto fundamental da estrutura do Estado moderno e, portanto, está elevado à
categoria de direito fundamental constitucional”.66
Equivoca-se o autor ao igualar a pretensão à tutela jurisdicional com o direito ao
remédio jurídico processual, já que, além do afirmado acima, este serve à efetivação
dela, sendo eles, apenas por isso, situações jurídicas distintas. Enquanto a pretensão
à tutela jurídica configura-se como o poder, correlato à obrigação do Estado, de exigir
a tutela jurisdicional, o remédio jurídico processual – objeto do direito a ele – é meio
para prestação dela por parte do Estado. Muito embora pré-processuais são, como
visto, situações jurídicas distintas.
Abaixo, a noção de remédio processual será mais bem delineada e suas
implicações práticas serão problematizadas.

5 O plano processual
5.1 Considerações iniciais
A análise dada aos direitos, pretensões, ações e seus correspectivos passivos
nos planos acima – material e pré-processual – teve por base a simples possibili­dade
de alguém titularizá-los. Seu sentido estático, portanto. É chegado o momento de
estudá-los dinamicamente a partir do exercício de alguns deles e da afirmação de
outros. Tem-se, para tanto, o plano processual. Dele, em termos de Teoria Geral do
Direito, dois conceitos são relevantes para este trabalho: remédio processual e ação
processual.
Isso não quer dizer, no entanto, que inexistam, no plano processual, direitos-
deveres, pretensões-obrigações etc. Negar a existência de tais situações jurídicas
no plano referido seria negar a própria existência da relação processual, gerada pela
admissibilidade do remédio processual utilizado.67
Exemplificando-se apenas do ponto de vista das partes, sem atentar ao próprio
poder do Estado-juiz, pode-se dizer que há, no plano processual, entre outros: pre­
tensão ao julgamento favorável, na hipótese de a parte ter razão; pretensão ao re­
médio recursal, no caso de a parte vir, mesmo que minimamente, a sucumbir (art.
499, caput, CPC); pretensão à admissibilidade da produção de alguma prova, nas
hipóteses em que o meio probatório é admissível.

66
ABREU, Leonardo Santana, op. cit., p.122.
67
A relação processual propriamente dita surge quando o Estado-juiz admite a demanda determinando a cita­
ção do réu, esta que, quando realizada validamente, angulariza a relação processual formada. Antes da
admissibilidade da demanda, o Estado-juiz atua no plano pré-processual, de modo que o dever dele de
analisar a demanda é dever pré-processual. Sobre o tema, ver PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.
Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. T. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. XXVI-XXVII.

78 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015
O FENÔMENO PROCESSUAL DE ACORDO COM OS PLANOS MATERIAL, PRÉ-PROCESSUAL E PROCESSUAL DO DIREITO: BREVES...

Tais situações jurídicas são, indubitavelmente, processuais, pois componentes


da relação processual. Este trabalho tem por premissa o estudo dos planos material,
pré-processual e processual do direito a partir da proposição fato jurídico–relação
jurídica e dos efeitos desta última. A análise, contudo, de cada situação jurídica
componente da relação processual demandaria um estudo próprio. Eis a razão de,
abaixo, limitar-se o objeto do plano processual aos exercícios e às afirmações de
situações jurídicas existentes nos planos anteriores.
Nos itens seguintes, concentrar-se-á a análise no remédio processual e na ação
processual.68

5.2 O remédio jurídico processual


Como delineado, o direito ao remédio processual é direito ao meio hábil à
prestação da tutela jurisdicional. Não se trata, em verdade, de um único direito,
mas, sim, de um plexo de acordo com cada tipo procedimental. Há, desse modo,
a possi­bilidade de ser titular do direito ao remédio processual ordinário (procedi­
mento ordi­nário), e, também, de direitos a remédios processuais específicos, como o
direito ao mandado de segurança, por exemplo.
É importante estabelecer a relação existente entre demanda e remédio pro­
cessual. Em sentido estrito, o termo remédio processual serve para designar o próprio
procedimento: meio dado para a prestação da tutela jurisdicional, sendo a demanda
apenas o primeiro ato de sua cadeia. Aqui, demanda é, pois, elemento do conjunto
remédio jurídico processual. Num sentido mais amplo, valendo-se de uma metoní­
mia, pode-se usar o termo remédio processual como sinônimo do ato demandado.
Abaixo, utilizar-se-á o termo nos dois sentidos.
Antes de prosseguir, válido refrisar que o direito ao remédio processual e a
pretensão a ele correlata se situam no plano pré-processual, pois antes de iniciar
qual­quer processo, e para a própria eficácia do ato jurídico processual, há de titularizá-
los. Veja-se, por exemplo, o caso emblemático do mandado de segurança: ou se tem,
antes do início do processo, o direito a ele, de modo que a marcha procedimental
pode prosseguir, ou não se tem, algo que enseja, por ineficácia do ato processual, a
inadmissibilidade do procedimento.
Com o exercício das situações jurídicas existentes no plano pré-processual,
direito e pretensão à tutela jurídica e direito ao remédio processual adequado ao

68
Seria possível, no mínimo, pormenorizar também o problema em torno das exceções substanciais proces­
sualizadas. Em rigor, todavia, toda a lógica a ser empregada para a ação processual serve a elas, como
serve, igualmente, a qualquer outra situação jurídica ativa alegável pelo réu no processo. Este artigo, é bom
frisar mais uma vez, não tem por intuito esgotar a análise dos institutos nele mencionados. Pelo contrário,
pretende-se apenas lançar bases para outros estudos, daí o termo “breves considerações” lançado no título.
Assim, para evitar repetições desnecessárias, remete-se para as notas 49 e 50, nas quais o problema da
processualização das exceções substanciais foi tratado.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015 79
ROBERTO P. CAMPOS GOUVEIA FILHO, GABRIELA EXPÓSITO MIRANDA

caso, pode-se falar em processo. Aqui, situa-se o remédio jurídico processual. Este,
sendo exercício de situação jurídica, entra na classe dos atos.69
Sintetizando, nos moldes da teoria do fato jurídico seguida neste trabalho, pode-
se dizer que o direito ao remédio processual (plano da eficácia) se situa no plano
pré-processual pelo simples fato de anteceder ao processo. Não se pode exercer
um direito sem se ter tal direito: ao demandar, exerce-se, além de tudo, o direito
pré-processual ao remédio jurídico processual; já o exercício dele, por intermédio da
demanda (a qual, igualmente, serve de base para o exercício da pretensão à tutela
jurídica), é fato jurídico (plano da existência) que dá ensejo à formação do processo:
procedimento e relação processual.
Diferenciar o direito ao remédio processual, e a pretensão a ele vinculada, e
as diversas ações materiais existentes é fundamental, porquanto, dentre outras
coisas, é possível que haja preclusão70 ou, conforme o caso, prescrição de um sem
que o outro seja atingido. Exemplos nos são dados pelo direito positivo, seguem
alguns: primeiramente, ocorrido o transcurso no prazo do art. 23, Lei nº 12.016/09,
extingue-se o direito (e, consequentemente, a pretensão) ao remédio processual
man­dado de segurança, sem que, com isso, se perca a ação material mandamental
processualizável, algo que deverá ser feito por outra via; do mesmo modo, ultrapassado
o prazo do art. 924 do CPC, perde-se o direito ao remédio processual específico dado
às ações possessórias de reintegração e manutenção, e não se perde – a própria
literalidade do dispositivo denota isso – a ação material, a qual, no plano material,
permanece possessória e, por isso, sumária; por fim, ocorrida a prescrição pre­vista
no art. 59 da Lei nº 7.357/85 (Lei do Cheque), resta prescrita a ação executiva
que exsurge do cheque (o título cambiariforme perde a executividade) e precluso o
direito ao remédio processual executivo, surgindo, com isso, nos moldes do art. 61

69
Válido frisar que o exercício de uma situação jurídica pode se caracterizar com um simples ato-fato jurídico,
como no pagamento de uma obrigação ou, até mesmo, se caracterizar como um ato irrelevante para o direito,
como a plantação de uma árvore em um imóvel pertencente ao proprietário. Dessa forma, nota-se que nem
todo exercício de situação jurídica é ato jurídico.
70
O termo preclusão acima colocado guarda sinonímia com o termo decadência utilizado, hoje, largamente pelos
juristas dos diversos ramos do direito positivo, em especial o direito privado. A razão pela opção do termo
preclusão no lugar do habitual decadência deve-se ao equívoco etimológico do último: “o direito cai; não decai”,
diz Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado. 3. ed. T. 6. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. p. 135). Decair é
verbo que denota processo. Em linguagem comum, ao se dizer, por exemplo, estar uma determinada empresa
em decadência, é porque ela está em processo (ou, numa etapa final deste, na iminência) de ultimação. Tal
realidade, por certo, não acontece com o direito sujeito a prazos “decadenciais”: ocorrido o ato-fato jurídico,
o direito é extinto inexoravelmente. A opção pelo uso do termo preclusão, espécie do gênero caducidade
(semelhante à perda de situações jurídicas ativas, como, e em especial, o direito), na esteira de Pontes de
Miranda, que o utiliza em toda sua obra, deve-se ao fato de que o instituto é presente em todos os ramos do
direito positivo, algo que o faz objeto, portanto, da Teoria Geral do Direito, e não restrito ao direito processual,
como pretendem alguns a partir de Giuseppe Chiovenda (nesse sentido, ver Instituições de Direito Processual
Civil. Trad. J. Guimarães Menegale. 2. ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1969. p. 372). Isso não quer dizer,
todavia, que, no processo, as preclusões, em regra, fiquem dentro dos lindes dele: eficácia endoprocessual
da preclusão. Conclui-se afirmando que preclusões existem dentro e fora do processo, extinguindo situações
jurídicas ativas processuais e extraprocessuais.

80 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015
O FENÔMENO PROCESSUAL DE ACORDO COM OS PLANOS MATERIAL, PRÉ-PROCESSUAL E PROCESSUAL DO DIREITO: BREVES...

da mesma lei, a ação material de locupletamento sem causa, de igual sumariedade


da ação executiva prescrita, uma vez que a causa do título não poderá ser discutida,
ação esta que poderá ser processualizável tanto pela via do remédio processual
especifico monitório (enunciado nº 299 da Súmula do STJ) como pela via do remédio
processual comum, ordinário ou sumário a depender do caso, tendo-se, portanto, no
plano pré-processual direito a tais remédios.
Nesse último exemplo, destaca-se outro dado importante dos remédios pro­
cessuais. É possível que, no plano pré-processual, haja concorrência de direitos aos
remédios processuais, de modo que o titular deles pode fazer a escolha do meio que
melhor entender. Nesse caso, há, sem dúvida, no plano jurídico em análise, além
de tudo acima dito, direito potestativo à escolha do direito ao remédio processual
em concorrência. Para isso, obviamente, o procedimento especial deve ser de uso
facultativo. Do contrário, sendo o procedimento de uso obrigatório, como ocorre com o
procedimento especial das ações de usucapião de terras particulares (arts. 942-945
do CPC), das ações de demarcação de terras particulares (arts. 950-966 do CPC), da
ação divisória (art. 967-981 do CPC), dentre tantos outros, não há concorrência de
direitos, não havendo falar em direito potestativo à escolha.

5.3 A ação processual


Por fim, faz-se necessário tratar da ação processual, outro instituto inerente
ao plano processual. Conforme ensinamento de Pedro Henrique Nogueira, a ação
processual exsurge quando o sujeito de direito vai a juízo valendo-se de um remédio
jurídico processual a que tem direito para alegar que uma pretensão foi violada.
Dessa forma, pode-se entender como ação processual o instrumento, fornecido pelo
ordenamento jurídico, para exercício do direito à jurisdição.71 Equipara-se, com isso,
a ação processual ao remédio jurídico processual.
Discorda-se, todavia, de tal entendimento. Há nítida e importante diferença
entre a ação processual e o remédio jurídico processual.
Consoante visto acima, remédio jurídico processual é meio dado para a obtenção
da tutela jurisdicional, servindo a demanda, seu primeiro ato, para o exercício de
situações jurídicas pré-processuais e, conforme o caso, materiais das mais diversas.
Pelo fato de, ao fim ao cabo, servir para o exercício de situações jurídicas relevantes
para o direito, configura-se como um fato jurídico, mais especificamente um ato
jurídico, já que a vontade é elemento central de seu suporte fático.
Já a ação processual, a ser pormenorizada em seguida, é afirmação (comunica­
ção de fato) que preenche o conteúdo do remédio jurídico processual.

71
NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa, op. cit., p. 151.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015 81
ROBERTO P. CAMPOS GOUVEIA FILHO, GABRIELA EXPÓSITO MIRANDA

O conteúdo da demanda é, acima de tudo, formado pela declaração de vontade


do autor de levar um problema seu à solução jurisdicional, pela comunicação de
vontade de ver tal problema resolvido e por afirmações das mais diversas acerca
da existência de situações jurídicas materiais contra o réu.72 Dentre estas, tem-se a
ação processual. Nesse sentido, entre remédio jurídico processual e ação processual,
temos uma distinção de continente para conteúdo.
Dito isso, passe-se à definição e à estruturação da ação processual.
De logo, afirma-se: para a existência dela, não é necessária a ação material,
pois que desta constitui simples afirmação.
Não se pode confundir a noção de ação processual com a noção de ação mate­
rial, como se tal dicotomia fosse irrelevante,73 de modo que a primeira estivesse
embutida na segunda. Há, como explanado, uma diferença substancial entre as duas.
Basicamente, se, por acaso, a ação de direito material estivesse inserida na ação
processual, todas as demandas seriam julgadas procedentes.
Ação processual74 é, desse modo, afirmação: alegação, acima de tudo, da
existência da titularidade de uma ação material. Assim, no processo, não há ação
material, nem pretensão e nem direito subjetivo, não eles em seu estado puro;75 há,
sim, uma ação processualizada,76 ou seja, afirmada processualmente.
Na demanda judicial temos de distinguir dois atos: o de afirmação e o de
exercício. O primeiro, desde que a parte afirme ao Estado-juiz ter algo contra o réu,
sempre existe; o segundo é vinculado à existência da situação jurídica material, esta
que vem a ser exercida processualmente. Em rigor, a afirmação é do exercício, por
intermédio da demanda, da ação material.

72
Nesse sentido, ver PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. 2.
ed. T. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 63.
73
É o caso de OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Direito Material, Processo e Tutela Jurisdicional. In: AMARAL,
Guiherme Rizzo; MACHADO, Fábio Cardoso (orgs.). Polêmica sobre a Ação, op. cit., p. 285 e segs.
74
Pontes de Miranda, autor a quem muitos, com razão, tributam o papel de distinguir a ação material da ação
processual, não tem uma definição muito fixa da expressão ação processual. Muitas vezes, ele a utiliza entre
aspas, tratando-a como sinônima de remédio jurídico processual. Segue uma passagem: “A ‘ação’, no sentido
de direito processual, ou remédio jurídico processual, é meio instrumental que o direito formal põe a serviço
de pessoas que estejam em determinadas situações, para que, com o uso dêle, possam suscitar a decisão”.
(PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Remédio Jurídico Processual. In: SANTOS, J. M. Carvalho (org.).
Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, s.a., p. 155). Logo, a ideia do autor em
comento difere da defendida neste artigo. Todavia, em outra passagem, de outra obra, o citado jurista, a partir
de explicação paralela ao texto corrido (ligação de expressões com setas de orientação), embora continue a
dar à “ação” o sentido de remédio jurídico processual ao ligá-la ao exercício da pretensão à tutela jurídica, traz
uma noção que se aproxima da ora defendida, porquanto afirme que o exercício da ação material no processo
corresponde à relação jurídica deduzida (res in iudicium deducta). Nesse sentido, ver, PONTES DE MIRANDA,
Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 2. ed. T. 25. Rio de Janeiro: Borsoi, 1959. p. 197.
75
Nesse sentido, ver SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição, Direito Material e Processo. Rio de Janeiro, Forense,
2008. p. 63.
76
Rigorosamente, o termo ação processualizada é mais adequado para definir o instituto em análise do que ação
processual. A utilização, todavia, desta última expressão é importante do ponto de vista retórico-pragmático,
pois se trata de expressão largamente utilizada na doutrina e na praxe forense. Assim, utilizá-lo é importante
do ponto de vista de uma retórica estratégica. Sobre a retórica estratégica, ver ADEODATO, João Maurício. Uma
Teoria Retórica da Norma Jurídica e do Direito Subjetivo. São Paulo: Noeses, 2011. p. 20-21, dentre outras.

82 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015
O FENÔMENO PROCESSUAL DE ACORDO COM OS PLANOS MATERIAL, PRÉ-PROCESSUAL E PROCESSUAL DO DIREITO: BREVES...

Tanto é possível demandar judicialmente, afirmando-se ter, no plano material,


ação contra o réu (e de fato tê-la), de modo que, além de afirmá-la no processo, se
tem seu exercício processual de uma situação jurídica material. Pois como é possível
afirmar-se na petição inicial ter algo sem, na verdade, titularizá-lo no plano material?
Não é por outro motivo que se diz não ter razão o autor.
A ação processual é, desse modo, apenas a afirmação da ação material em juízo.
O real exercício desta última é algo estranho à ação processual, sendo, além disso,
contingencial. Toda demanda judicial, pela necessidade de ter um objeto, tem ação
processual; nem todas elas, entretanto, contêm o exercício de uma ação material.
Eis, portanto, a razão das expressões ação procedente e ação improcedente.
A crítica, feita por muitos, à expressão julgou procedente (ou, conforme o caso,
improcedente) que a ação deve ser rechaçada, pois o termo ação posto na oração
não significa a ação material em si, muito menos a pretensão à tutela jurídica (“direito
de ação”), mas, sim, a afirmação da ação, ou seja, a ação processual. Dizer, por
exem­plo, ser improcedente a ação é dizer que a afirmação da parte não tem lastro no
plano material, de modo que se afirmou no plano processual algo que, no entender
do Estado-juiz, não se titulariza no plano material.
A ação processual é, pois, o cerne da res in iudicium deducta, ou seja, do objeto
do julgamento.77 Pode-se denominá-la de direito litigioso ou, mais tecnicamente,
situa­ção jurídica litigiosa.
Nesse caso, a importância de entendê-la como uma categoria distinta da ação
material ganha relevo, pois, estando uma causa pendente de decisão, qualquer ato
de disposição (alienação ou oneração) das situações jurídicas processualizadas
(direito, pretensão e, acima de tudo, ação) não as terá por objeto em sua pureza
mate­rial, mas, sim, seu estado processualizado.78 É ponto referente à conhecida alie­
nação do direito litigioso do art. 42 do CPC.
Equiparada, portanto, a noção de ação processual à de situação jurídica liti­
giosa, pode-se dizer que a primeira tem sua duração limitada à pendência de uma
relação jurídica processual. Prolatada a sentença definitiva (entendendo-se, aqui,
aquela transitada em julgado), a ação processual deixa de existir, passando a haver

77
A expressão objeto do julgamento posta acima serve para designar aquilo que alguns autores chamam de obje-
to litigioso do processo (ver, por todos, SANCHES, Sydney. Objeto do Processo e Objeto Litigioso do Processo.
In: Revista de Processo. São Paulo: RT, 1979, n. 13, p. 44-45; DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual
Civil. 13. ed. v. 1. Salvador: JusPodivm, 2011. p. 313-314). Para tais autores, objeto litigioso do processo é
a parcela do objeto do processo sobre a qual deve recair o julgamento. Prefere-se o uso da expres­são objeto
do julgamento em vez de objeto litigioso, pois tudo que é posto à análise judicial ganha litigio­sidade, inclusive
matérias estranhas ao julgamento (igual à declaração judicial), como a propriedade na ação rei­vindicatória.
Assim, usa-se a expressão objeto do julgamento para designar aquilo que será objeto da declaração judicial, e
a expressão objeto da análise judicial para se referir a toda a qualquer questão que possa vir a ser objeto de
cognição judicial. A segunda expressão, como cediço, engloba a primeira, correspondendo ao sentido de objeto
do processo na classificação consagrada.
78
Sobre a autonomia do direito litigioso, ver OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Alienação da Coisa Litigiosa. 2.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 59 e segs.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015 83
ROBERTO P. CAMPOS GOUVEIA FILHO, GABRIELA EXPÓSITO MIRANDA

a certificação da existência ou não da ação material afirmada, ou seja, o estado


de incer­teza, de simples afirmação se esvai: a res in iudicium deducta torna-se res
judicata.
Ação processual não é, assim, a ação material, nem a pretensão à tutela jurídica,
nem o remédio jurídico processual, nem qualquer eficácia da relação processual.79
Trata-se de categoria jurídica distinta, correspondendo a uma afirmação feita pro­
cessualmente da existência ou inexistência de situações jurídicas materiais, em
especial a ação. Tem sua vida restrita ao tempo de pendência da relação processual.
Em rigor, as expressões autor e réu servem para designar os sujeitos da ação
processual. Autor é aquele que afirma ter algo (situações jurídicas, como direito,
pretensão e ação) contra outrem, dito réu, no plano material. É autor, pois, da
afirmação da ação material em juízo,80 afirmação esta que se faz contra o réu, e não
em face dele.81
Além disso, vários institutos da processualística, como causa de pedir, litispen­
dência, conexão e outros, têm por base a noção de ação processual.
Em rigor, dizer que há litispendência entre ações, por exemplo, não é propria­
mente dizer que há duplicidade ou multiplicidade de ações materiais, até porque,
levando-se em conta seu locus, o plano material, só há uma; duplicidade ou multipli­
cidade, em verdade, de ação processual, pois se afirmou mais de uma vez a mesma
ação material. Ressalte-se que a análise da conexão e da identidade de ações deve
ser feita antes do deslinde processual, ou seja, enquanto pendente a ação processual.
Do mesmo modo ocorre com a causa de pedir. O estudo desta centra-se na
análise das afirmações feitas pelo autor na petição inicial. Afirmações dos fatos
jurí­dicos (causa remota) e da relação jurídica (causa próxima) que ensejam o pedido.
O cerne de tais afirmações, já no âmbito da causa de pedir próxima, é a ação pro­
cessual. Não se deve, assim, dizer que a causa de pedir próxima é a ação material,

79
A ação processual não é eficácia da relação processual. Não é nenhum direito ou pretensão que se tenha
contra o Estado-juiz em virtude do processo, como o direito à sentença de mérito. No entanto, uma das efi­
cácias da relação processual é fazer processualizada a afirmação feita pelo autor na demanda, ou seja, dar
ensejo ao estado processual da ação. Não se tem ação processual contra o Estado-juiz, embora se tenha,
no mínimo, contra ele pretensão à análise dela. Ação processual se tem contra o réu, pelo simples fato de
afirmar-se ter algo contra ele. Rigorosamente, as expressões autor e réu servem para designar os sujeitos da
ação processual: alguém é autor da afirmação que, no processo, se faz contra outrem, ou seja, o réu.
80
Quando o réu alega no processo, por exemplo, exceções substanciais, ele passa a processualizar outra
situação jurídica ativa, de modo que a res in iudicium deducta é ampliada. Em verdade, o réu é autor de tal
afirmação, que é feita contra o autor da afirmação que lhe foi oposta. O réu, quando alega, por exemplo,
exceção de prescrição, diz que, embora tenha o autor pretensão contra ele, tem ele contra o autor o poder de
neutralizá-la, a dita exceção. Nesse caso, deve ser dado ao réu tratamento de autor, a ponto de sua afirmação
também dever ser julgada procedente ou improcedente.
81
Quando alguém vai a juízo, pede algo ao Estado-juiz. Para tanto, em face (ou perante) do Estado-juiz, afirma
ter contra outrem, o réu, algo no plano material. Ação é poder de impor algo a alguém, poder, portanto, que
se tem contra este alguém. É, pois, totalmente impróprio dizer que o autor tem ação em face do réu. Tem
(ou melhor, diz ter, já que se trata, em si, de simples afirmação) ação contra ele. A ação processual se faz
perante o Estado-juiz, mas sempre contra o réu. Sobre o tema, com muito proveito, SILVA, Ovídio Baptista da.
Execução em face do Executado: Da Sentença Liminar à Nulidade da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
p. 139-158.

84 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015
O FENÔMENO PROCESSUAL DE ACORDO COM OS PLANOS MATERIAL, PRÉ-PROCESSUAL E PROCESSUAL DO DIREITO: BREVES...

pois esta pode não existir ou, conforme o caso, embora existente, ser tida por
inexistente. É no plano da linguagem (dictum) onde reside a causa de pedir, seja a
remota, seja a próxima, esta última, para os fins deste trabalho, em especial.

6 Conclusão
O trabalho que ora se finda teve por objetivo lançar as bases para uma forma
pouco comum na análise do fenômeno processual: o estudo dele a partir dos planos
material, pré-processual e processual do direito positivo.
A base teórica para tanto foi a obra de Pontes de Miranda, tanto a parte jurídico-
processual como, e principalmente, a parte teórico-jurídica. Não se pretendeu, todavia,
explicá-la, mas, sim, dar-lhe uma interpretação própria. Daí a expressão “para além”
utilizada no título.
Várias noções foram estabelecidas ao longo do texto, como ação material,
pretensão à tutela jurídica, direito ao remédio jurídico processual, o próprio remédio
jurídico processual e ação processual. Para nenhuma delas, contudo, ousou-se a
tentar esgotar o estudo. Pretendeu-se lançar as bases para que tais institutos sejam
reanalisados, a partir de uma premissa teórica, acima exposta, que se entende como
a mais adequada.
É um trabalho, pois, com pretensão de provocar os operadores do processo
para a observação dos pontos por ele abordados, a fim de que, se possível, novos
estudos sobre os diversos temas referidos ao longo do texto venham a surgir. Essa
é a função do presente artigo.

Referências
ABREU, Leonardo Santana de Abreu. Direito, Ação e Tutela Jurisdicional. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011.
ADEODATO, João Maurício. Uma Teoria Retórica da Norma Jurídica e do Direito Subjetivo. São Paulo:
Noeses, 2011.
AMARAL, Guilherme Rizzo; MACHADO, Fabio Cardoso (orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
ASCENÇÃO, José de Oliveira. Introdução à ciência do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
ASSIS, Araken de. Cumulação de Ações. 4. ed. São Paulo: RT, 2002.
BETTI, Emílio. Teoria General del Negocio Jurídico. Trad. A. Martin Perez. 2. ed. Madri: Editorial Revista
de Derecho Privado, 1959.
BONNECASE, Julien. Introducción al Estudio del Derecho. Trad. Jorge Guerrero. 2. ed. Bogotá: Editorial
Temis, 2000.
CARNELUTTI, Francesco. Teoria Geral do Direito. Trad. A. Rodrigues Queiró e Artur Anselmo de Castro.
Rio de Janeiro: Âmbito Cultural Edições, 2006.
CASTRO, Torquato. Teoria da Situação Jurídica em Direito Privado Nacional: estrutura, causa e título
legitimário do sujeito. São Paulo: Saraiva, 1985.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015 85
ROBERTO P. CAMPOS GOUVEIA FILHO, GABRIELA EXPÓSITO MIRANDA

CASTRO JR., Torquato. A Pragmática das Nulidades e a Teoria do Ato Jurídico Inexistente. São Paulo:
Noeses, 2009.
CHIOVENDA, Giuseppe. La Acción en el Sistema de los Derechos: Ensayos de Derecho Procesal Civil.
T. 1. Trad. Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: E.J.E.A, 1949.
COSTA, Eduardo José da Fonseca. Teoria Trinária vs Teoria Quinária: crônica de um diálogo de surdos.
In: COSTA, Eduardo José da Fonseca; MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro; NOGUEIRA, Pedro Henrique
Pedrosa (coords.). Teoria Quinária da Ação, op. cit., p. 195-204.
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil. 3. ed. Buenos Aires: Depalma, 1976.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 13. ed. v. 1. Salvador: JusPodivm, 2011.
______. Teoria das exceções: a exceção e as exceções. In: Revista de Processo. São Paulo: RT, 2004.
ENNECCERUS, Ludwig; NIPPERDEY, Hans Carl. Tratado de Derecho Civil: parte general. v. 1. T. 1.
Trad. Blas Pérez González e José Alguer. Barcelona: Bosch, 1953.
GRECO, Leonardo. A Teoria da Ação no Processo Civil. São Paulo: Dialética, 2003.
GRECO, Leonardo. Jurisdição Voluntária Moderna. São Paulo: Dialética, 2003.
GOLDSCHIMDT, James. Teoría General del Proceso. Barcelona: Labor, 1936.
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978.
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992.
GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos; PEREIRA, Mateus Costa. Ação Material e Tutela Cautelar. In:
COSTA, Eduardo José da Fonseca; MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa
(coords.). Teoria Quinária da Ação. Salvador: JusPodivm, 2010.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. 3. ed. v. 1. Trad. Cândido Rangel Dinamarco.
São Paulo: Malheiros, 2005.
MELLO, Marcos Bernardes de. Da Ação como Objeto Litigioso no Processo Civil. In: COSTA, Eduardo
José da Fonseca; MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (coords.). Teoria
Quinária da Ação. Salvador: JusPodivm, 2010.
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da eficácia. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2011.
______. Teoria do Fato Jurídico: plano da existência. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil. São Paulo: RT, 2009. p. 144-145.
______. Polêmica sobre a Teoria Dualista da Ação: Ação de Direito Material: “Ação” Processual: uma
resposta a Guilherme Rizzo Amaral. In: Polêmica sobre a Ação.
MUTHER, Theodor. Sobre La Doctrina de la Actio Romana, del Derecho de Accionar Actual, de la
Litiscontestatio y de la Sucesión Singular en las Obligaciones: Polemica sobre la “Actio”. Trad. Tomás
A. Banzhaf. Buenos Aires: E.J.E.A., 1974.
NEVES, Marcelo. Teoria da Inconstitucionalidade das Leis. São Paulo: Saraiva, 1988.
NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria da Ação de Direito Material. Salvador: JusPodivm, 2008.
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Alienação da Coisa Litigiosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
PASSOS, José Joaquim Calmon de. A Ação no Direito Processual Civil Brasileiro. Salvador: Impressa
Oficial, 1960.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. T. 1.
Rio de Janeiro: Forense, 1958.

86 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015
O FENÔMENO PROCESSUAL DE ACORDO COM OS PLANOS MATERIAL, PRÉ-PROCESSUAL E PROCESSUAL DO DIREITO: BREVES...

______. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. T. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
______. Comentários ao Código de Processo Civil. T. 16. Rio de Janeiro: Forense, 1977.
______. Relação Jurídica Processual. In: SANTOS, J. M. Carvalho (org.). Repertório Enciclopédico do
Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, s.a.
______. Remédio Jurídico Processual. In: SANTOS, J. M. Carvalho (org.). Repertório Enciclopédico do
Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, s.a.
______. Tratado das Ações. T. 1. São Paulo: RT, 1970.
______. Tratado das Ações. T. 2. São Paulo: RT, 1970.
______. Tratado de Direito Privado. T. 1. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954.
______. Tratado de Direito Privado. 3. ed. T. 1. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970.
______. Tratado de Direito Privado. 2. ed. T. 5. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955,
______. Tratado de direito privado: parte geral. 3. ed. T. 6. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970.
______. Tratado de direito privado. 2. ed. T. 22. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958.
______. Tratado de Direito Privado. 2. ed. T. 25. Rio de Janeiro: Borsoi, 1959.
RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. 2. ed. v. 2. t. 2. São Paulo: Resenha Universitária, 1978.
SANCHES, Sydney. Objeto do Processo e Objeto Litigioso do Processo. In: Revista de Processo. São
Paulo: RT, 1979, n. 13. p. 44-45.
SATTA, Salvatore. Direito Processual Civil. T. 1. Trad. Luiz Autuori. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970.
SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de Processo Civil. 8. ed. v. 1. t. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Direito Subjetivo, Pretensão de Direito Material e Ação. In: MACHADO,
Fábio Cardoso; AMARAL, Guilherme Rizzo (orgs.). Polêmica sobre a Ação. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006.
SILVA, Ovídio Baptista da. Execução em face do Executado: Da Sentença Liminar à Nulidade da
Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
______. Jurisdição, Direito Material e Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
SILVA, Ovídio Baptista da; GOMES, Fábio Luiz. Teoria Geral do Processo Civil. 3. ed. São Paulo: RT,
2002.
WACH, Adolf. La Pretención de Declaración. Trad. Juan M. Semon. Buenos Aires: E.J.E.A, s.a.
WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER, Theodor. Polemica sobre la “Actio”. Trad. Tomás A. Banzhaf.
Buenos Aires: E.J.E.A., 1974. passim.
VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4. ed. São Paulo: RT, 2000.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

GOUVEIA FILHO, Roberto P Campos; MIRANDA, Gabriela Expósito. O fenômeno


processual de acordo com os planos material, pré-processual e processual do
direito: breves considerações do tema a partir (e além) do pensamento de Pontes
de Miranda. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano
23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 65-87, jan./mar. 2015 87
Jurisdição ambiental e teoria da decisão:
uma leitura a partir de Ovídio Baptista e
John Rawls

Jeferson Dytz Marin


Professor do Programa de Mestrado em Direito da UCS-BRA. Doutor em Direito – UNISINOS-
BRA. Mestre em Direito – UNISC-BRA. Advogado. Pesquisador CNPQ da UCS. Autor dos livros
“Jurisdição e Processo: efetividade e realização das pretensões materiais” (Juruá, 2008),
“Jurisdição e Processo II: racionalismo, ordinarização e reformas processuais” (Juruá, 2009),
“Jurisdição e Processo III: estudos em homenagem ao Prof. Ovídio Baptista da Silva” (2009).
Coordenador do Grupo de Pesquisa ALFAJUS, na UCS. Membro do IEM – Instituto de Estudos
Municipais. E-mail: <jdmarin@ucs.br>.

Mateus Lopes da Silva


Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Pelotas. Especialista em Direito
Processual Civil, com habilitação para magistério superior. Mestrando em Direito Ambiental
na Universidade de Caxias do Sul. Foi secretário municipal de qualidade ambiental da
Prefeitura Municipal de Pelotas. Atualmente é professor de Direito Processual Civil, Direito
Civil e Prática Jurídica na Universidade Federal de Pelotas, bolsista CAPES e advogado.

Resumo: Através de uma análise histórica e filosófica do pensamento jurídico moderno e pós-moderno,
serão abordadas questões que confrontam a degradação ambiental atual com o projeto político liberal.
Partindo-se da filosofia cartesiana e da lógica racionalista formal decorrente, procura-se demonstrar a
perniciosa influência nas concepções atuais da teoria do direito. Nessa esteira, arquiteta-se dura crítica
às teorias meramente normativas a fim de demonstrar que as questões socioambientais reclamam uma
postura questionadora da ciência jurídica, voltada para uma decidibilidade verdadeiramente democrática.
Palavras-chave: Pensamento jurídico. Degradação ambiental. Justiça administrativa ambiental. Decidi­
bilidade. Teoria da decisão.

Sumário: 1 Considerações iniciais – 2 O direito no Estado liberal – 3 Incerteza e verossimilhança – 4


Justiça administrativa no Brasil – 5 Conclusões – Referências

1 Considerações iniciais
Vinte anos depois da realização da primeira conferência sobre meio ambiente
realizada no Brasil, o país sediará a RIO+20 com o objetivo de renovar o compro­
metimento dos países com o desenvolvimento sustentável, avaliar os progressos
feitos até o presente e as lacunas e defecções ambientais. O evento terá como foco
a economia verde como forma de erradicar a pobreza com sustentabilidade e avaliar
as instituições envolvidas no desenvolvimento sustentável.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015 89
JEFERSON DYTZ MARIN, MATEUS LOPES DA SILVA

Mesmo antes do evento, já é possível avaliar que, após as conferências sobre


meio ambiente já realizadas, a ação humana continua causando séria degradação
ambiental e criando graves riscos para a vida no planeta Terra. Na tentativa de
com­bater a degradação ambiental, a Organização das Nações Unidas promoveu a
conferência Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro, em 1992, propiciando debates da
comu­nidade internacional visando à mudança de comportamento e preservação da
vida na Terra, momento em que foram editados vinte e sete princípios, dentre eles,
o de número onze, que determina: “Os países devem promover a adoção de leis
ambientais”.
Em obediência a tal princípio, a República Federativa do Brasil, forte no seu
artigo 225, manteve e editou algumas leis ambientais nacionais, por exemplo, a
Lei nº 6.938/1981, que introduz a Política Nacional de Meio Ambiente, a Lei nº.
9433/1997, conhecida como Lei das Águas, a Lei nº 9.795/1999 para inserção
da Política Nacional de Educação Ambiental, a Lei nº 11.445/2007, denominada
de Política Nacional de Saneamento Básico, e a Lei nº 12.305/2010, que propõe a
Política Nacional de Resíduos Sólidos.
Diante do quadro legislativo exposto, é imperioso reconhecer que o ordena­
mento brasileiro possui uma dimensão ecológica consolidada, voltada à proteção do
direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo deveres
e tarefas ambientais aos órgãos públicos e coletividade, visando à concretização de
um Estado socioambiental. Esse projeto político procura agregar as conquistas das
propostas liberais e sociais iniciadas através da concretização de direitos econô­micos,
sociais e culturais, sem esquecer-se da variável ambiental, haja vista que não existe
direito fundamental a ser concretizado num território degradado ambientalmente.
Com segurança, é possível afirmar que a degradação ambiental e as desigual­
dades sociais existentes hoje decorrem do crescimento do Estado Liberal, que
promoveu abismos sociais e desigualdades materiais gritantes. De posse dessa
cons­tatação, este artigo visa examinar as principais contribuições negativas do pen­
samento jurídico liberal, que apostou na justiça da lei a ser encontrada no direito
legalista, matemático e exegético, construído para manutenção da riqueza de poucos
e perpetuação do status quo estabelecido.

2 O direito do Estado liberal


O projeto político liberal transformou o homem comunitário num indivíduo livre e
autônomo, que não depende mais da proteção dos laços sociais. Ao mesmo tempo,
esta sociedade deixa-o frequentemente livre; porém, desamparado e lançado num
mundo indiferente e cheio de riscos, onde o indivíduo não pode esperar proteção da
comunidade, porque ela dissolveu-se em vários indivíduos. Tudo isso faz com que
o homem pós-moderno esteja constantemente angustiado e busque a segurança,
porque ela lhe parece vital.

90 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015
Jurisdição ambiental e teoria da decisão: uma leitura a partir de Ovídio Baptista e John Rawls

A modernidade perseguiu a segurança através da ciência, que estava encar­


regada de demonstrar as verdades absolutas do mundo. Influenciados por Descartes,
filósofos transferiram o direito para o campo das ciências experimentais a fim de
matematizarem o direito mediante aplicação de uma lógica determinista.

A conseqüência mais óbvia dessa transferência, que significou a


“cientifização” do Direito, fora a ânsia por segurança, buscada através
de “verdades claras e distintas”; através do Direito, foi a proscrição dos
juízos de verossimilhança, cuja utilização – nas ciências (!) – não foi
permitida por Descartes.

Ainda hoje, o direito administrativo continua influenciado pelos positivistas


da escola clássica, que não reconhecem espaço para realização de escolhas pelos
agentes públicos, porque, em nome da segurança e legalidade, negam espaço para
a interpretação e controvérsia. Isso representa resquício do pensamento jurídico libe­
ral, ainda predominante, que acreditava na verdade absoluta defendida na filosofia
de Platão, que existia pronta e devia ser encontrada no texto da norma.
A busca pela unidade de sentido da letra da lei e consequente existência de uma
resposta certa a ser encontrada no direito, ainda hoje, tem influenciado a produção
de teorias como a de Ronald Dworkin.

Entretanto, ao contrário do que se tornou padrão epistemológico im­


posto pelo Racionalismo, Aristóteles afirmava que o Direito não tratava
de verdades necessárias, operando, ao contrário, com verdades contin­
gentes, com juízos de razoabilidade, que jamais atingem a pretendida
certeza das verdades científicas; e que, além disso, estarão sempre
permeadas de alguma parcela de “juízos de valor”.

Para Ovídio Baptista, seguindo Aristóteles, as verdades não são absolutas, mas
sempre relativas, porque possíveis e incertas, a depender da apreciação do mundo
concreto e da interpretação, mais ou menos variável, de cada um. É que até mesmo
na seara das ciências experimentais, como a física e a matemática, se admite um
grau de subjetividade do sujeito observador, haja vista que a neutralidade absoluta é
um mito. Esta compreensão é importante porque relativiza as teorias racionalistas,
próprias das ciências exatas, que foram introduzidas no pensamento jurídico pelo
movimento positivista de inspiração liberal.
A pragmática revela que autoridade que opera com o direito, quando decide, não
encontra, nem faz a verdade, mas tenta resolver conflitos ou implementar direitos
razoavelmente presentes na lei, devendo ter em mente que sempre existirão outras
decisões e interpretações plausíveis. A verdade científica existe, por conseguinte,
apenas para o sujeito que nela crê – hermeticamente fechada em si – sendo impossível
ser demonstrada como uma verdade pura e integral.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015 91
JEFERSON DYTZ MARIN, MATEUS LOPES DA SILVA

O pensamento jurídico moderno foi influenciado pela teoria Kantiana, que


concebia o mundo real separado em dois mundos, quais sejam: “mundo do ser e do
dever ser”, que não se comunicavam jamais. Esta concepção do mundo influenciou
a ciência jurídica, que passou a utilizar-se do normativismo, que consistia em abs­
tratamente prever situações fáticas hipotéticas a priori e consequentes soluções.
Assim, o pensamento jurídico separava o fato do direito, haja vista que o direito e a
solução jurídica já estavam previstos antes, e separados da ocorrência do fato. Por
isso, o normativismo jurídico operava mediante uma lógica determinista e inflexível
fazendo a “justiça da lei”, ou seja, a solução existente estava prevista na norma
(dever ser) e não sofria influência dos fatos e suas circunstâncias.

Esta separação entre “norma” e “fato”, que torna o caso concreto um


simples exemplar de uma seriação de fatos “idênticos”, portanto capa­zes
de serem inseridos na “norma”, através de um processo de “fungibilização”
do fático, que o identifica (troca) por outros da mesma série, é a idéia
que preside o feroz normativismo a que estamos submetidos.

Esse pensamento jurídico trabalha a ideia de que o Estado possa emitir deci­
sões objetivamente iguais para fatos iguais, numa seriação infinita. Com isso, o
Estado retira todo o conteúdo humano da decisão e despreza a complexidade do meio
onde o fato, igualmente complexo, ocorre. A administração pública, influenciada pelo
pensamento jurídico liberal, crê que toda decisão pode ser assinada por qualquer
outro servidor com mesma atribuição, haja vista que todos somente poderão escolher
a mesma resposta certa. Isso provoca um deslocamento de finalidade do direito,
deixando de ser a justiça para ser a segurança. Assim, o ato jurídico decisório váli­do
e aceitável não precisa ser justo, desde que obedeça ao procedimento que o torna
previsivelmente seguro, tornando o ato jurídico um mero exemplar de atos admi­
nistrativos passados pretensamente idênticos.
Essas constatações decorrem de operadores do direito inseguros, que vivem à
espera de soluções jurídicas uníssonas, caracterizadas pela verdade e pelas certezas,
esquecendo que toda a decisão pública é apenas um julgamento humano que deve ser
plausível e razoável, mas que pode conter defecções próprias da natureza humana.
Conforme ensina Aulis Aarnio, a “verdade jurídica” é aquela afirmação racional do
produto da interpretação razoável da dogmática, feita pela maioria da comunidade
jurídica, ou seja, o que existe é uma aproximação da verdade aceita pela maioria.
Nesse mesmo sentido, é a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello quando
examina os atos jurídicos praticados pela administração pública:

Assim como a dúvida pode se instaurar procedentemente, em inúmeras


situações, quando, então, haverá espaço para um juízo subjetivo pes­
soal, do administrador [...] haverá sempre uma zona de certeza positiva,
na qual ninguém duvidará [...] uma zona circundante onde justamente

92 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015
Jurisdição ambiental e teoria da decisão: uma leitura a partir de Ovídio Baptista e John Rawls

proliferarão incertezas que não podem ser eliminadas objetivamente, e,


finalmente, uma zona de certeza negativa.

A lição de Aarnio demonstra que, na seara jurídica, a verdade dever ser entendida
como validade, ou seja, tanto será “mais” verdadeiro quanto mais reconhecidamente
válido o argumento para uma dada comunidade de juristas, segundo um juízo de
razoabilidade, e não de certeza absoluta. Esse entendimento aproxima-se da racio­
nalidade baseada na complexidade, porque insere a dúvida e desacredita nas inter­
pretações universalmente certas para qualquer direito e, sobretudo, para o ambiental.
Na mesma esteira, Celso de Mello demonstra que a dúvida e as incertezas estão
presentes nos atos administrativos, reconhecendo, por conseguinte, a necessidade
de juízos de verossimilhança também no direito administrativo. A verdade científica
produzida pela ciência jurídica é não exata e variável no tempo, a depender do con­
texto histórico.
Essa compreensão das verdades científicas é extremamente pertinente para
buscar as respostas nas questões ambientais, que reclamam, a todo o momento,
a conjugação do risco com a precaução. O meio ambiente é sabidamente um meio
incerto, porque sua harmonia decorre de infinitas reações, interligações e depen­
dências jamais passíveis de serem conhecidas completamente pelo homem.
De posse desse entendimento, Edgar Morin, tratando da dupla e antagônica
necessidade do risco e da compreensão, assevera que esse antagonismo “nos
leva a pensar sobre a relação complexa entre o risco e precaução. Para toda ação
empreendida num meio incerto, há antagonismo entre o princípio do risco e o prin­
cí­
pio da precaução; ambos sendo necessários”, devemos avançar lentamente,
cons­cientes de que jamais teremos certeza absoluta de nada neste universo, por
con­seguinte, possíveis, mas de resultados incertos, haja vista que ocorrem num meio
natural e social incerto, inseridos na ecologia da ação.
Conforme os professores Carlos Alberto Lunelli e Jeferson Marin, a dúvida
está presente no meio a exigir “um pensar complexo que consiste em dizer que a
incerteza não deve ser expulsa, mas integrada, que a dúvida não é desvalorizada,
mas tomada em consideração”.
A realidade, ou seja, o mundo dos fatos muda e mudará constantemente; por
conseguinte, o direito deve ser buscado a partir do fato, e não o inverso. Assim, toda
teorização da ciência jurídica deve ser pensada a partir dos fatos, porque são eles
que constroem a realidade e o mundo perceptível. Esta primeira constatação rejeita
a premissa da teoria de Ronald Dworkin, a qual afirma ser possível teorizar o direito
desconsiderando os fatos. Para ele, os fatos são irrelevantes para bem aplicar o
direito, que é uma entidade capaz de produzir a “resposta certa”. Dessa forma, as
pretensões resistidas pelas partes e as controvérsias decorrentes não seriam nada
mais do que exemplares de casos iguais que ocorrem na sociedade, merecendo a
solução aplicada aos casos “idênticos”, já uniformizados pela norma.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015 93
JEFERSON DYTZ MARIN, MATEUS LOPES DA SILVA

Criticando a teoria proposta por Ronald Dworkin, veja-se o ensinamento de


Ovídio Baptista:

A sentença nada poderia ter de subjetividade do julgador. Ela poderia


ser subscrita por qualquer juiz integrante do mesmo grupo profissional.
Expulsa-se das decisões judiciais qualquer resquício de subjetividade,
que naturalmente, não se deve confundir com “arbitrariedade”. A parcela
subjetiva que está imanente no ato de julgamento é uma subjetividade
que decorre dos valores dominantes na comunidade social, interpretados
pelo julgador.

Acreditando-se que a solução correta esteja presente na norma, a autoridade


deveria, apenas e tão somente, declará-la. A declaração dispensa qualquer exercício
hermenêutico e discricionariedade do julgador porque, havendo “a” resposta certa,
esta pode e deve ser encontrada por todos os julgadores que conheçam e apliquem
normas, ou seja, o direito e a justiça estariam postas pelo legislador. Esse pensa­
mento jurídico liberal contribui para a manutenção do status quo socioambiental e foi
o mantenedor de miséria social e degradação ambiental porque impediu que o direito
fosse interpretado de forma a permitir mudanças socioambientais, haja vista que os
operadores do direito ficam “presos” ao texto da norma elaborado por legisladores,
muitas vezes comprometidos com a manutenção do poder vigente; nesse sentido, o
direito para ser instrumento da manutenção de interesses políticos.
Não bastasse isso, o pensamento jurídico liberal que inspirou o positivismo
ortodoxo alicerçou seus fundamentos na separação entre direito e moral, excluindo
todo juízo de valor, ou seja, colocou, de um lado, o direito, e do outro, a ética, tra­
di­ção, cultura e a moral. O conhecimento jurídico que desconhece a ética gerou
graves consequências para possibilitar a manutenção de injustiças legais. Nesse
sen­tido, reconhecendo a necessidade dos juízos de valor para a correta elaboração
do raciocínio jurídico, já mencionamos em trabalho precedente:

É de extrema necessidade a incorporação de juízos de valor na construção


do raciocínio jurídico, rendendo-se ao fato de que o labor jurisdicional
representa ato de inteligência, não de mera reprodução da letra morta da
lei, derrocando a ideologia anacrônica do racionalismo exacerbado, que
alicerça o processo, fulminando com sua efetividade.

Também rechaçando as teorias desumanizadas que apostam na justiça legal,


pontua Ovídio Baptista da Silva:

Também não aceito a doutrina sustentada por Dworkin quando ele exige
que o julgador, ao decidir uma causa, seja capaz de estabelecer uma
solução “certa”; em outras palavras, ele não admite que o sistema jurí­
dico conceda ao juiz a menor dose de poder discricionário. Sua con­clusão
está intimamente ligada à premissa de que a sentença deva conter
apenas uma resposta “correta”, que seria a resposta “certa”.

94 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015
Jurisdição ambiental e teoria da decisão: uma leitura a partir de Ovídio Baptista e John Rawls

O pensamento jurídico proposto por Dworkin, que acredita na possibilidade de


uma decisão com única resposta certa, demonstra sua preocupação com o texto da
lei, assim como foi o pensamento jurídico verificado logo após a Revolução Francesa
e a promulgação dos códigos napoleônicos, reduzindo toda a juridicidade ao texto.
Cabe referir que tal corrente de pensamento ficou ultrapassada nas primeiras décadas
posteriores, assim como a Escola de Exegese e pensamento de Savigny.
As questões ambientais enfrentadas hodiernamente servem de exemplo para
demonstrar o quanto esse pensamento jurídico se mostra inapropriado. É que há
muito se reconhece que o direito não é completo e que suas normas não contêm
todas as respostas. Basta pensarmos como poderia um parlamento legislar inte­
gralmente sobre a biologia molecular e os riscos envolvidos, que são desconhecidos
até mesmo pela comunidade científica da área. Diante de uma realidade pautada
pela complexidade, onde sequer os riscos são plenamente conhecidos, a resposta
certa, se houvesse, estaria na resposta multidisciplinar, muito além do direito, que
envolvesse todo conhecimento produzido e, mesmo assim, estaria incompleta.
“Dessa forma, ergue-se contra os muros das disciplinaridades para propor um conhe­
cimento multidisciplinar e, no limite, transdisciplinar, afirmando que nossos prin­cípios
de conhecimento ocultam o que é mais vital de conhecer.”
A discricionariedade não pode ser confundida com o arbítrio. Este é fruto do
normativismo exagerado que suplantou o positivismo. Arbitrária é a decisão da auto­
ridade não fundamentada ou fundamentada ilegitimamente, assim como é arbitrária
a decisão que “apenas” declara a letra da lei, sem fazer o cotejo dos detalhes fáticos
à previsão normativa, que envolve a interpretação de todo o ordenamento jurídico
(e não apenas a letra da lei).

Mas além da constatação indesmentível de que as sentenças arbitrárias


são frutos da ausência de fundamentação, ainda existe um poderoso
testemunho representado por eminentíssimos juristas e filósofos do
direito que, não sendo positivistas, sustentam, com vigor, a existência
de discricionariedade em todas as decisões jurisdicionais.

Conforme a doutrina de Marçal Justen Filho, a discricionariedade está presente


em muitos atos administrativos como meio para adequação do caso concreto com
o direito vigente com o fim de melhor atingir o interesse público, por conseguinte,
sempre a depender da análise do caso concreto. Consoante o autor:

Mais precisamente, o direito adota uma disciplina discricionária como


meio intencional destinado a assegurar a realização mais satisfatória
e adequada da atividade administrativa. Por isso, a discricionariedade
não pode ser identificada como uma liberdade, nem como um direito
subjetivo de natureza privada.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015 95
JEFERSON DYTZ MARIN, MATEUS LOPES DA SILVA

Assim, pode-se afirmar que a discricionariedade é fenômeno imanente ao direito,


presente em todos os seus ramos, porque ela se liga à interpretação dos fatos, que,
por sua vez, são a razão de existir do direito. Os fatos jurídicos lato sensu ocorrem
na sociedade, que é a semente do direito. Na seara ambiental, todo o agente público
deve praticar atos administrativos satisfazendo os deveres de proteção ecológica,
porque esta é uma das tarefas da administração pública brasileira. Por isso, a apli­
cação de qualquer norma depende da ponderação de interesses, incluindo, sobretudo,
o ambiental, que se faz através do exercício da discricionariedade e da interpretação
dos fatos e seus riscos subjacentes.

A história, como o Direito, são ciências hermenêuticas, ciências da


com­­pre­­ensão, que envolvem, necessariamente, a figura do intérprete,
envol­­
vido em seu condicionalismo histórico. Daí porque será sempre
equivocado procurar “verdades” ou buscar, na atividade judicante, o
“certo” e o “errado”.

De posse desses argumentos, é possível concluir que a aplicação da técnica de


subsunção linear que despreza as características e circunstâncias do fato a fim de
encaixá-lo (à força) na norma sob argumento idêntico aos anteriormente subsumidos,
além de antidemocrático, gera enormes arbitrariedades, justamente por impedir o
hermeneuta de usar de sua discricionariedade. Permitida a discricionariedade na
análise dos fatos, as decisões “tornar-se-ão um reflexo da constelação de valores
váli­dos para as circunstâncias históricas que os produziram”, aptas a concretizarem
o Estado socioambiental de direito previsto como meta da constituição presente.

3 Incerteza e verossimilhança
O racionalismo jurídico radicalizado por Spinoza e Leibniz perseguia a segurança
e, para tanto, introduziu a lógica matemática no direito, banindo os juízos de veros­
similhança, haja vista que somente a verdade era o objetivo das ciências, inclusive
da ciência jurídica, que precisava provar a validade dos conhecimentos por ela pro­
duzidos dentro de uma lógica formal. Lógica que era depositária da crença de pro­
duzir um conhecimento seguro porque, somente, racional. A verossimilhança da
vida prática fora negada na teoria cartesiana. Descartes separa absolutamente a
teoria da prática, por conseguinte, separa verdade e verossimilhança; entretanto,
reconhecendo o constante estado de dúvida, é forçado a reconhecer que a razão
humana se utiliza da verossimilhança para fazer escolhas necessárias à existência
real. As oportunidades reais da vida não esperam o tempo necessário para que a
mente humana faça cognições exaurientes e acabe com as incertezas.
Vencido pelas leis universais, Descartes reconhecia a existência e importância
da verossimilhança diante da necessidade de decidir e, por isso, reconhecia ser

96 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015
Jurisdição ambiental e teoria da decisão: uma leitura a partir de Ovídio Baptista e John Rawls

necessária uma decisão baseada numa cognição sumária fundamentada na veros­


similhança, se a vida real assim reclamasse. A par disso, é possível concluir que a
ciência jurídica admitida por ele permitia escolhas decorrentes da discricio­nariedade.
Porém, outras matrizes teóricas derivadas de sua obra reduziram ainda mais o
racionalismo cartesiano, postulando que toda a ciência deveria ser comprovada
experimentalmente.
Avaliando esse pensamento jurídico, Ovídio Baptista argumenta:

A Ciência e a Lei, depositárias da confiança da modernidade na constru­


ção de um mundo seguro, transformaram-se nos grandes promotores
da inse­gurança, que nos atormenta. É a vingança da natureza contra
utó­pica e irres­ponsável soberba daqueles que, por ambição ou vaidade,
joga­ram o Homem contra ela. Estamos pagando o preço dessa inédita e
irresponsável experiência política.

Baseado nos estudos de Ulrich Beck, verifica-se que a tecnociência desenvolveu-


se muito na modernidade a ponto de formar uma sociedade de riscos criados pelo
homem. A aproximação da tecnologia com a ciência, impulsionada pela economia do
liberalismo, produziu a tecnociência. Essa evolução técnica trouxe alguns benefícios,
mas também gerou uma crise socioambiental sem precedentes. É que a autonomia
da ciência moderna desconsiderou valores éticos e tudo o que não fosse “verificável”;
assim, o cientista pôde conhecer tudo sem nenhum limite, não imposto pela lei. Todos
os desenvolvimentos e todas as transformações históricas das nossas sociedades
contam, entre as suas causas e efeitos, os desenvolvimentos da tecnociência. Nesse
sentindo, veja-se a crítica de Ovídio:

Basta recordar a poderosa agressão ao meio ambiente e os justificados


temores originários da indústria – pacífica ou bélica – atômica, sem men­
cionar as angústias e sobressaltos em nossas vidas pessoais, ante a
incerteza de um futuro incapaz de ser sequer ser previsível, quanto mais
sujeito a controles.

Nessa esteira, constata Edgar Morin:

A ciência, aventura desinteressada, cai nas malhas dos interesses eco­


nômicos; a ciência, aventura apolítica, torna-se refém das forças políticas,
em primeiro lugar pelo Estado. Os cientistas não controlam os poderes
que emanam dos seus laboratórios. Esses poderes estão concentrados
nas mãos das empresas e das potências estatais.

Como se pode notar, o pensamento jurídico racionalista trouxe maiores inse­


guranças e catástrofes do que aquelas que pretendia eliminar, porque propôs uma
racio­nalidade excludente e formalista, o que produziu uma ciência idealizada, total­
mente distanciada da realidade. Por isso, surgiram movimentos contrários a este

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015 97
JEFERSON DYTZ MARIN, MATEUS LOPES DA SILVA

pensamento jurídico, que propunha unidade epistemológica e uniformidade dos


saberes em busca da segurança. Novas correntes se opuseram às concepções errôn­
eas da teoria racionalista, propondo um olhar mais profundo sobre a realidade:

O paradigma que está agora retrocedendo dominou nossa cultura por


várias centenas de anos, durante as quais modelou nossa moderna
sociedade ocidental e influenciou significativamente o restante do mundo.
[...] idéias e valores entrincheirados, entre os quais a visão do uni­verso
como um sistema mecânico composto de blocos de construção ele­
mentares, a visão do corpo humano como uma máquina, a visão da vida
em sociedade como uma luta competitiva pela existência, a crença no
progresso material ilimitado, a ser obtido por intermédio de crescimento
econômico e tecnológico, [...].

O conhecimento decorrente da descoberta ou da compreensão é produzido a


partir de um meio incerto, de possibilidades infinitas e, por conseguinte, também
incerto. O conhecimento produzido traz consigo as características do seu meio. Para
Edgar Morin, a “consciência da aposta é, ao mesmo tempo, a consciência da incer­
teza, da decisão e a da necessidade de uma estratégia. Essas três consciências
inter­ligam-se e alimentam-se”. A partir dessas constatações, é possível afirmar que
as “decisões plausíveis são escolhas” possíveis e possivelmente certas (ou erradas)
a depender da realidade experimentada. Assim, o sujeito deverá sempre interpretar
a rea­lidade fática e escolher o mérito decisório, bem como apostar na sua correção.
Qualquer conhecimento que decorra da análise dos fatos deve ter presente a
ideia de que a compreensão do fato sempre ocorre atrelado aos valores do indivíduo.
Como ensina Johann Gottfried Von Herder: “Fato e valor constituem uma unidade”.
Nesse sentido, o operador do direito deve comportar-se como um hermeneuta dotado
de sensibilidade artística e discernimento histórico a fim de produzir uma interpre­
tação científica livre, sem estar condicionado ao normativismo apriorístico, que o
impende de enxergar o universo com toda sua complexidade.
A ciência jurídica deve perceber que o direito não é uma entidade fechada na
lei dada, mas, sim, o resultado de um processo influenciado por inúmeros fatores
relacionados com a razão e com o espírito. Direito não é razão, é mais. O direito
não está somente nas normas, mas está nas ruas, nas pessoas, nos animais e no
mundo natural, e o hermeneuta deve estar aberto para perceber o texto e o contexto
a fim de produzir o direito.
Procurando a natureza íntima do direito, Ovídio investiga “o que é o direito” a
partir das contribuições teóricas de Arthur Kaufmann, “segundo as quais, o direito
não é uma coisa, como o pensamento moderno o concebe e o trata. O direito é uma
relação”, afirmando que o direito é mais do que um conjunto de artigos de lei com
características elaboradas a priori (dos fatos que irá regular), aptas a constituírem uma
justiça abstrata, devendo ser uma relação pautada pela analogia, capaz de conciliar

98 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015
Jurisdição ambiental e teoria da decisão: uma leitura a partir de Ovídio Baptista e John Rawls

identidades e diferenças através da aplicação de juízos de adequação, aproximando


o direito aos fatos concretos em busca de uma justiça concreta. O referido autor
observa em Radbruch uma compreensão semelhante, destacando que a “justiça” só
pode ser encontrada em relações entre pessoas.
Consoante Jhering:

La ley escrita, por ejemplo, sobre La cual nuestra ciência jurídica posi­
tiva pretende hoy edificar todo El sistema, no puede ser tenida por outra
cosa que uma información muy limitada Del Derecho, resultante de um
conjunto de disposiciones consagradas por um órgano superior, al efecto
de establecer, sin oposicion, algunas regras que han parecido sus­cepti­
bles de uma fórmula clara o prácticamente indispensables.

A partir dessas exposições, é possível concluir que o direito é mais do que uma
série de artigos de lei elaborados previamente por um legislador, como pretendia a
teoria da coerência e da completude do ordenamento jurídico. Ela possui métodos
inter­pretativos que vão além da interpretação mecanicista, onde prevalece o decla­
rativo sobre o produtivo e constitutivo do direito, bem como que deve existir para
alcançar a justiça, haja vista que o jurista não é uma máquina de repetição a partir da
subsunção. Nessa esteira, todo o direito deve ter, por fim, a concretização material
da justiça ideal, que jamais estará encerrada dentro de um objeto (direito normativo),
mas nas relações existentes entre homens plurais que vivem fatos históricos reais.

4 Justiça administrativa no Brasil


A justiça no pensamento positivista clássico transformou-se num proceder
técnico-legalista, vazio e sem conteúdo semântico determinado. O direito legal, objeto
da modernidade, tornou-se instrumento dos poderes político e econômico, servindo
como instrumento para concretização de qualquer finalidade, inclusive a dominação
de “recursos” ambientais pelas minorias que detêm poder. Essa visão de justiça
ainda predomina no espaço administrativo brasileiro, provocando decisões públicas
equivocadas porque fundada no formalismo normativista.
A ideia de justiça administrativa capaz de concretizar o estado socioambien­
tal precisa ser concebida como algo diferente daquela “conformidade” com a norma
posi­tivada. Justiça não é formalismo jurídico, porque ela é ideia norteadora e final
que o jurí­dico deve alcançar e, por isso, (a justiça) está fora do direito. Justiça é meta
e valor de toda a atividade executivo-administrativa, pois é ela que deve dar sentido
às práticas burocráticas do Estado de direito.
Uma das atribuições constitucionais específicas dos órgãos públicos executivos
de suma importância para a concretização do Estado socioambiental está na tarefa
pública de controlar a produção, construção de obra ou desenvolvimento de atividades

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015 99
JEFERSON DYTZ MARIN, MATEUS LOPES DA SILVA

potencialmente poluidoras. Essa tarefa é desenvolvida através do processamento de


pedidos, realizados por entidades públicas ou privadas, de outorgas ambientais, que
são emitidas por atos administrativos expedidos na forma de alvarás de licenças ou
autorizações. Importante compreender que os atos administrativos, por força cons­
titucional, devem decorrer de um devido processo ambiental com procedimento que
assegure todas as garantias constitucionais processuais.
Veja-se a garantia processual prescrita no artigo 5º da Constituição Federal:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios
e recursos a ela inerentes.

Essa garantia processual constitucional deve ser aplicada, inclusive, aos pro­
cessos administrativos ambientais, em todos os procedimentos, com toda força e
extensão de seu núcleo normativo, porque os envolvidos e interessados comportam-
se como verdadeiros litigantes, resistindo às pretensões mutuamente, envolvendo a
participação de associações ambientais, Ministério Público e outros interessados,
diretos e indiretos.
Diante da tensão existente entre direitos fundamentais ambientais e direitos
fundamentais de livre iniciativa, os processos administrativos de outorga ambiental
são verdadeiras lides, que, na maioria das vezes, envolvem maior complexidade do
que as lides jurisdicionais.
A tutela administrativa ambiental no Brasil ainda se dá sob a estreita via do
princípio da legalidade, que é definido pela doutrina jurídico-administrativa brasileira
majoritária como sendo a base da configuração da burocracia. Para essa corrente, o
princípio da legalidade é consequência do Estado de direito, que visa estabilizar as
relações sociais e dar previsibilidade à ação estatal. Tal entendimento consagra a
ideia de que a administração pública só pode ser exercida em conformidade com a
lei, ou seja, toda a sua atividade é sublegal ou infralegal. Este entendimento merece
crítica, porque é a justiça que estabiliza as relações sociais, e não a mera confor­
midade às leis, muitas vezes maiores produtoras de injustiça.
Em verdade, a crença de que o princípio da legalidade é a tradução de um pro­
pósito político liberal, que, em dois tempos: visa manter a separação dos poderes
através da submissão dos agentes públicos do Poder Executivo a um quadro legal
elaborado pelo Poder Legislativo, que evite favoritismos, desmandos, perseguições,
abusos de poder e o absolutismo do executivo; mas também negativamente mantém
um quadro político que impede a administração pública seja uma agente modificadora

100 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015
Jurisdição ambiental e teoria da decisão: uma leitura a partir de Ovídio Baptista e John Rawls

socioambiental ativa para a concretização da constituição federal, haja vista que fica
com as mãos amarradas pela lei.
A tradição doutrinária legalista brasileira crê e declara, com toda a intensidade
possível, que a função executivo-administrativa deve cumprir e dar concreção à lei,
sendo-lhe terminantemente vedada atuar praetar legem, sendo permitido apenas agir
secundum legem, porque a administração só pode fazer aquilo que a lei antecipa­
damente autoriza porque a administração é a longa manus do legislador e, por isso,
a atividade administrativa deve ser de subsunção dos fatos da vida real às categorias
legais, obediente a uma lógica determinista de repetição em série daquilo que foi
previamente programado na lei.
Veja-se o posicionamento de Hely Lopes Meirelles:

A legalidade significa que o administrador público está, em toda a


sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei [...] não se
pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se
a res­ponsabilidade disciplinar, civil e criminal conforme o caso. Na
admi­nistração pública não há liberdade nem vontade pessoal [...] na
Administração pública só é permitido fazer o que a lei autoriza [...] para o
admi­nistrador público significa deve fazer assim.

Pode-se afirmar que a administração pública do Brasil aplica a justiça formal


da lei nos moldes preconizados pelo iluminismo, modelo ultrapassado há mais de um
século, em que o julgador presta uma jurisdição administrativa meramente decla­ra­
tória e arbitrária, impondo a lei ao arrepio das particularidades de cada caso concreto
e totalmente alheio à realidade histórica.
Veja-se a crítica de John Rawls à justiça da lei: “É mister a justiça substantiva:
o caráter inevitavelmente vago da lei e o vasto âmbito da respectiva interpretação
encorajam uma arbitrariedade na decisão que só a fidelidade à justiça pode impedir”.
Sua teoria da justiça propõe que as sociedades liberais, por suas instituições,
devam conduzir-se através de normas justas elaboradas numa situação de equi­dade.
Nela, a justiça possui conteúdo moral, econômico e político, por conseguinte, não
apenas jurídica, e depende da obediência ao acordo firmado na posição inicial de
equidade. Esta igualdade inicial na escolha dos princípios somada à liberdade para
aderir ao acordo demonstra que Rawls propõe um novo contratualismo, diferente
do anterior na medida em que não está focado no indivíduo, mas nas instituições
sociais estabelecidas.
Assim, reconhecendo o pluralismo natural das sociedades liberais, sua teoria
não se propõe a categorizar as escolhas como “certas” ou “erradas”, porque a socie­
dade é plural e, por isso, caracterizada pela indefinição, haja vista que cada indivíduo
teria algumas posições plausíveis. Sua proposta de procedimentalismo (quase) puro
visa categorizar o “justo” ou “injusto” para as instituições públicas, propondo que

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015 101
JEFERSON DYTZ MARIN, MATEUS LOPES DA SILVA

o agir destas instituições é que concretizará a justiça para todos. É que o agir das
instituições beneficia ou prejudica toda a comunidade de forma geral.

4.1 Proposta de justiça administrativa ambiental


A partir da contribuição da obra Uma Teoria da Justiça, de John Rawls, propõe-
se que o processo das decisões administrativas ambientais seja um instrumento
produtor de atos administrativos justos na medida em que devem ser produzidos
pautados pela igualdade, liberdade e cooperação nas relações entre os órgãos
públi­cos e pessoas sujeitas às suas decisões. A proposta de justiça institucional
dá suporte a processos decisórios isonômicos na medida em que a administração
republicana e democrática está, durante o processo, no mesmo grau hierárquico
que qualquer participante no processo. Tal modelo processual está em consonância
com o pacto constitucional, que é modelo inicial para qualquer atuação estatal, haja
vista que fora acordado, sob véu da ignorância, que a regra para atuação da buro­
cracia estatal seria a democracia republicana para concretização de uma sociedade
justa e solidária.
Isso não impede, contudo, que a administração exerça assimetricamente (em
desigualdade) seu papel decisor, atuando como concretizadora da ordem constitucio­
nal quando no momento de exarar a decisão pública legitimamente fundamentada a
fim de concretizar direitos fundamentais na satisfação do interesse público ambiental.
A administração pública, para ser justa no exercício da função executiva, deve
agir pautada pela equidade, na medida em que só pode certificar direitos a partir
de um processo decisório aderente aos princípios morais e políticos presentes na
constituição. Fora desta ideia, até poderá proferir decisões válidas e legais, porém
injustas. É que a justiça não decorre do formalismo normativo legalista, porque ela
não está no direito, ou seja, justiça não é jurídica; pois ela é um fim a que o direito se
propõe a atingir. Justiça e direito são conceitos diferentes que podem andar juntos,
mas não se confundem.
À semelhança das proposições de John Rawls, os órgãos administrativos am­
bientais distribuem benefícios e oportunidades reconhecidas, de ordem econômica
e política, através de suas outorgas ambientais. Por isso, as instituições ambientais
devem aproximar-se de práticas justas a fim de garantirem sua permanência estável
no quadro institucional do país. Isso depende da aderência do processo decisório ao
pacto inicial, haja vista que o Estado e a coletividade são unanimemente favoráveis
a que se cumpram os princípios de justiça previstos na constituição. A unanimidade
decorre do fato de que a constituição representa um modelo de pacto social inicial,
onde os legisladores originários atuam como representantes de pessoas plurais as
quais eles desconheciam a condição, bem como, suas aptidões, projetos, interesses
e condições pessoais.

102 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015
Jurisdição ambiental e teoria da decisão: uma leitura a partir de Ovídio Baptista e John Rawls

Logo, a justiça institucional depende da ação segundo o pacto que foi elaborado
numa posição inicial hipotética sob o véu da ignorância, onde os legisladores cons­
cientes, livres e voluntários que estavam em condição de equidade no momento da
escolha de direitos e deveres elaboraram princípios para as instituições do Estado e
sociedade brasileira. Contudo, o pacto não se faz de uma vez só, é ele um processo
reiterado que deve ser concretizado todos os dias em todas as ações administrativas
de todas as instituições ambientais. A estabilidade da constituição e dos seus órgãos
públicos depende da renovação constante da adesão inicial, que, por certo, se mostra
pela atuação das instituições.
No tocante à renovação da aderência inicial, pode-se entender que é necessária
a reafirmação dos princípios pactuados no passado, assim como a constante recur­
são sobre eles, a fim de manter a eficácia e aplicabilidade deles na busca da justiça.
Sobre a ideia de recursão, veja-se a lição de Edgar Morin: “A autoanálise, a autocrítica
e a ginástica psíquica coincidem na prática recursiva que consiste em avaliar as
nossas avaliações, julgar os nossos julgamentos, criticar as nossas críticas”.

5 Conclusão
A “justiça da lei” é incapaz de resolver a crise ambiental contemporânea,
sobretudo porque este modelo foi um dos causadores da degradação ambiental,
visto que se baseia no mito da completude do direito, além de validar atos mera­
mente formais descurados dos contextos de onde a decisão pública decorreu e irá
se concretizar. Nesse sentido, evidencia-se o erro do pensamento positivista orto­
doxo que busca na lei a solução regrada, negando a possibilidade de interpretação
ao aplicador.
Diante da realidade sempre contingente e facilmente perceptível a partir da prag­
mática, Ovídio Baptista evidencia que todo o pensamento jurídico deve internalizar
a existência de escolhas, reconhecendo que a lógica formal não se presta para a
ciência jurídica, porque valida seus conhecimentos pela compreensão. Diante disso,
afirma que a discricionariedade está presente em toda a decisão; por conseguinte,
conclui que não existe verdade, nem respostas certas, mas plausíveis e verossímeis.
A assunção da incerteza no pensamento jurídico reclamará uma lógica orientada
pela complexidade, capaz de conjugar todas as lógicas simultaneamente, com fôlego
para realizar uma justiça material ambiental pautada pela precaução e prevenção
do contingente.
O pensamento jurídico próprio das ciências culturais, sensível à complexidade
do universo, possibilita ao hermeneuta reconhecer um círculo virtuoso entre a Cons­
tituição Federal e conhecimentos pertinentes não legais, possibilitando-lhe soluções
legítimas e dinâmicas capazes de responder aos novos desafios revelados pela
sociedade contemporânea.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015 103
JEFERSON DYTZ MARIN, MATEUS LOPES DA SILVA

Nessa esteira, consubstanciado nas teorias de Morin, Capra e Rawls, a


Administração pública deve sepultar o pensamento jurídico legalista de ordem ilumi­
nista, abandonando o direito submisso à lei, para inaugurar uma ordem burocrá­
tica substantiva justa, que seja capaz de tutelar o meio ambiente baseado nos
princípios da precaução, prevenção, democrático e republicano, a fim de produzir
uma decisão formalmente justa e materialmente adequada à concretização do Estado
socioambiental.

Environmental Jurisdiction and the Theory of Decision: a Reading from Ovid Baptist and John Rawls
Abstract: Through a historical and philosophical analisys of the modern legal thought and postmodern, are
addressed issues that confronting the current environmental degradation with the liberal political project.
Based on the Cartesian philosophy and in the rationalist formal logic that results from it, attempting to
demonstrate the pernicious influence on current conceptions of legal theory. On this way, are done some
harsh criticism at the merely normative theories, in order to demonstrate that the environmental issues
demands a questioning stance by the Juridical Science,searching for a truly democratic decidability.

Keywords: Legal thinking. Environmental degradation. Environmental administrative justice. Decidability.


Theory of decision.

Referências
ABBAGNAMO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ANDREAS J. Krell et al. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Estado socioambiental e direitos fundamentais.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 1996.
CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. São Paulo: Ed. Servanda, 2010.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005.
KANT, Imannuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Ed. Calouste GulbeKian, 1985.
LUNELLI, Carlos Alberto; MARIN, Jeferson. Educação e cidadania na ciência jurídica: Os contributos
da teoria da complexidade para a alfabetização ecológica. In: Direito, ambiente e políticas públicas.
Curitiba: Juruá, 2010.
MARIN, Jeferson Dytz (Coord.). Jurisdição e processo. v. III. Curitiba: Juruá, 2009.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 29. ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2004.
MORIN, Edgar. O método 6: Ética. Porto Alegre: Sulina, 2005.

104 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015
Jurisdição ambiental e teoria da decisão: uma leitura a partir de Ovídio Baptista e John Rawls

OLIVEIRA, Ivan S. Ciência hoje. v. 47. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.
PLATÃO. A república. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2004.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Epistemologia das ciências culturais. Porto Alegre: Verbo Jurídico,
2009.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

MARIN, Jeferson Dytz; SILVA, Mateus Lopes da. Jurisdição ambiental e teoria da
decisão: uma leitura a partir de Ovídio Baptista e John Rawls. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105,
jan./mar. 2015.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 89-105, jan./mar. 2015 105
O direito à distinção no sistema
processual civil brasileiro: perspectivas
à luz do projeto de novo Código de
Processo Civil

Lorena Miranda Santos Barreiros


Doutoranda e Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em
Direito Processual Civil pelas Faculdades Jorge Amado (UNIJORGE) em parceria com o curso
JusPodivm. Procuradora do Estado da Bahia. Advogada.

Resumo: O objetivo central do presente artigo reside na análise e definição dos contornos do direito à
distinção no sistema processual brasileiro. Examina-se, assim, a influência de determinados aspectos
culturais na construção de uma teoria nacional dos precedentes para, depois, perquirir sobre a conformação
atual desse direito, com indicação de seus fundamentos constitucionais, sujeitos, objeto e conteúdo
mínimo. O trabalho propõe, ainda, soluções práticas para viabilizar a realização do direito à distinção,
independentemente de previsão legal expressa. Por fim, ao realizar o cotejo de dispositivos do Projeto
de Novo Código de Processo Civil, descortina as perspectivas de lege ferenda para o direito em estudo,
evidenciando a sua importância no contexto da estruturação de um sistema brasileiro de precedentes
judiciais.
Palavras-chave: Precedentes. Deveres judiciais. Direito à distinção.

Sumário: 1 Introdução – 2 Precedentes judiciais no Brasil: aspectos culturais que interferem na construção
de uma teoria dos precedentes para o direito brasileiro – 3 O direito à distinção – 4 De lege ferenda: o
direito à distinção no Projeto de Novo Código de Processo Civil (PNCPC) – 5 Conclusão – Referências.

1 Introdução
O presente artigo objetiva fazer um delineamento do conteúdo mínimo essen­
cial do direito à distinção no sistema jurídico processual brasileiro. Para tanto, será,
inicialmente, realizada a análise de alguns aspectos culturais que têm dificultado
uma adequada construção da teoria dos precedentes no país.
Nesse sentido, serão abordados os reflexos do modo de formação do raciocínio
jurídico do jurista brasileiro no trato com os precedentes judiciais, provocando des­
virtuamentos, tais como a invocação de rationes decidendi apenas com a citação
de ementas de julgados, e a excessiva abstrativização de enunciados da súmula
vinculante, equiparando-os, acriteriosamente, a textos de lei.
Também serão enfrentadas as questões relativas ao fenômeno da massificação
de demandas e seus desdobramentos, dos quais sobrelevam o culto desmedido à
igualdade e à celeridade processual (decisão justa como decisão rápida).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015 107
Lorena Miranda Santos Barreiros

Em seguida, tratar-se-á da análise do direito à distinção de lege lata, apresen­


tando-se, inicialmente, a visão clássica do distinguishing para, empós, serem des­
tacados os fundamentos constitucionais que estribam a conclusão da existência
atual de um direito à distinção no ordenamento jurídico brasileiro.
Os pontos precedentes conduzem ao descortinamento do conteúdo jurídico do
direito pesquisado com a explicitação de sua categorização, dos seus sujeitos ativo
e passivo, dos deveres impostos ao órgão jurisdicional como decorrência de seu
reconhecimento e, ainda, dos procedimentos para a sua realização prática.
Por fim, à vista da conformação apresentada atualmente pelo instituto, serão
apontados regramentos que poderão ser introduzidos, de lege ferenda, com a futura
entrada em vigor do Projeto de Novo Código de Processo Civil (PNCPC), já aprovado
pelo Senado e atualmente em fase de consolidação de redação para encaminha­
mento à sanção presidencial.
Intenta-se com o presente trabalho, em última análise, contribuir para o desen­
volvimento do direito à distinção no ordenamento jurídico pátrio e, pois, para o ama­
durecimento de um sistema de precedentes brasileiro capaz de responder, de modo
técnico e condizente com os princípios e regras constitucionais, aos reclamos por
justiça do jurisdicionado pátrio.

2 Precedentes judiciais no Brasil: aspectos culturais que


interferem na construção de uma teoria dos precedentes para
o direito brasileiro
A dissociação entre texto normativo e norma, esta vista como produto da inter­
pretação daquele, contribuiu substancialmente para a ampliação da eficácia confe­
rida aos precedentes judiciais no âmbito do sistema jurídico brasileiro.
A superação da premissa de que o juiz não atua senão aplicando a norma
preexistente ao caso concreto e, por conseguinte, a conclusão que lhe seguiu (de ser
o julgador, em certa medida, criador do direito) promoveu uma alteração importante
nos padrões de certeza jurídica e de previsibilidade do direito em tal sistema.
O texto da lei já não mais é capaz de prover a segurança vindicada pelo orde­
namento; em algumas circunstâncias, ao se valer de técnicas legislativas abertas
(uso de conceitos jurídicos indeterminados e formulação de cláusulas gerais), o
próprio legislador sinaliza claramente a intenção de conferir ao órgão jurisdicional
uma função ainda mais explícita e ampla de criação do direito. Diante desse quadro,
a decisão judicial ganha novos sentido e importância na medida em que não pode
mais negar-lhe a condição de fonte formal do direito.
Essa mudança paradigmática do que se convencionou adotar como padrão de
certeza e de previsibilidade jurídicas (antes, apenas a lei; agora, também a decisão
judicial) implica a necessidade de estruturar a utilização dos precedentes judiciais

108 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015
O DIREITO À DISTINÇÃO NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO: PERSPECTIVAS À LUZ DO PROJETO DE NOVO CÓDIGO...

no direito brasileiro, sendo premente a consolidação de uma teoria dos precedentes


adaptada à realidade do país.
Dentro desse contexto e abstraindo-se outros aspectos igualmente relevantes
para a teoria dos precedentes (definição de precedente, eficácia a ele conferida,
termo inicial da produção de efeitos etc.), hão de ser estabelecidas e aperfeiçoadas
técnicas concernentes à definição da sua ratio decidendi, à confrontação entre tal
ratio e o caso a ser julgado, e à superação de precedentes.
Além disso, deve-se observar, na própria elaboração da decisão judicial que
servirá como precedente, um cuidado especial com a sua fundamentação, cujo dis­
curso atingirá não apenas as partes do processo, mas, potencialmente, os jurisdicio­
nados de um modo geral. A interpretação do precedente é ponto que igualmente
merece destaque na composição de uma teoria do instituto.
Essa construção da teoria dos precedentes brasileira sofre, no entanto e como
não poderia deixar de ser, forte influência de aspectos culturais que culminam por
dificultar tal tarefa, além de conduzir a uma aplicação por vezes desvirtuada de pre­
cedentes judiciais na prática forense pátria.
Um evidente sinal da deformidade encontrável na utilização dos precedentes
no Brasil é a sua invocação em um caso concreto apenas pela transcrição de sua
ementa. Não raro, decisões judiciais indicam aplicar um dado precedente, de cujo
teor apenas refere à ementa, sem a preocupação de fazer o cotejo fático necessário
a aferir se o caso a ser julgado está ou não inserido na linha argumentativa da ratio
decidendi do precedente utilizado. Casos distintos são, assim, inseridos em uma
“vala comum”, como se iguais fossem.
Ainda mais comum é a utilização de enunciado de súmula vinculante (que constitui
texto normativo que contempla a especificação da ratio decidendi de precedentes
reiterados em matéria constitucional) como se texto de lei fosse, olvidando-se que
a sua criação não se faz dissociada de casos concretos, detentores de substratos
fáticos que hão de ser considerados na aplicação do enunciado sumular.1
A “ementocracia” e a excessiva abstrativização da súmula vinculante são indícios
de desvirtuamento da utilização dos precedentes, impulsionado pela configuração
teórico-dedutiva e racional do pensamento do jurista brasileiro (e, de uma forma geral,
dos juristas de países associados à tradição da civil law).2 3

1
Lênio Streck enfatiza o equívoco de compreensão e aplicação do enunciado de súmula vinculante consistente
em sua autonomização em relação à faticidade da qual se originou. Aponta ser descabida a análise da
proposição jurídica contida na súmula com abstração da questão de fato que lhe deu origem. (STRECK, Lênio
Luiz. Súmulas, vaguezas e ambigüidades: necessitamos de uma “teoria geral dos precedentes”?. In: Direito
Fundamentais & Justiça, n. 5, out./dez. 2008, p. 173).
2
Na civil law, prevalecem o racionalismo, o dogmatismo, o pensamento teórico, o raciocínio dedutivo e o aprio­
rismo. Na common law, predominam o empirismo, o anti-dogmatismo, o pensamento pragmático, o racio­cínio
indutivo e a valorização da experiência histórica. (D´AMICO, Pietro. Common law. Torino/Italia: G. Giappichelli
Editore, 2005. p. 222).
3
Há quem defenda que o sistema jurídico brasileiro integraria uma tradição peculiar, híbrida, irredutível à
romano-germânica ou à common law. Nesse sentido: DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015 109
Lorena Miranda Santos Barreiros

Por outro lado, especialmente no que diz respeito às demandas de massa


(a exemplo das demandas consumeristas e daquelas propostas em face de entes
públicos, tais como direitos de servidores públicos, discussões acerca da validade
de atos administrativos, responsabilização civil do Estado, exigências de prestações
positivas de serviços essenciais, como educação e saúde, dentre outras), a realidade
judicial brasileira tem evidenciado um culto desmesurado à igualdade, podendo-se
falar (quase) em uma automação de julgamentos. É posta em segundo plano, no mais
das vezes, a necessidade de conferência, por exemplo, acerca da efetiva inserção
do caso sub judice no bojo das demandas de massa já julgadas.
Em suma: a confrontação entre o feito a ser julgado e o precedente é etapa
quase sempre olvidada pelo órgão julgador, que presume a similitude entre os casos
e, desprezando as medidas necessárias à sua comprovação, limita-se a aplicar o
precedente (ou, pior, a ementa do julgado) à demanda em julgamento.
Por certo que o respeito aos precedentes há de ser levado a efeito de modo
racional e crítico. Um precedente não pode ser tomado em total abstração e disso­
nância, pois, com as particularidades do caso no qual se pretende aplicá-lo.
Não por outra razão, países integrantes da tradição da common law valem-se
da técnica do distinguishing, fazendo a confrontação entre a base fática do caso
concreto e os fatos de relevo que conduziram à criação do precedente, de modo que
este somente será aplicável ao feito sub judice se evidenciada similitude entre os
fatos do caso e os do precedente. Torna-se possível, assim, a realização da isonomia
substancial sem prejuízo do respeito aos precedentes judiciais.4
Há, ainda, o culto desmedido à celeridade processual, visão distorcida cujos
reflexos se têm demonstrado na prática com o solapamento de direitos processuais
fundamentais (a exemplo do direito à distinção, tratado neste artigo), a aplicação
acri­teriosa de precedentes, a realização indiscriminada de julgamentos em massa,
dentre outras posturas incondizentes com a busca de uma estruturação séria de um
sistema de precedentes no país.
À vista de tais fatores culturais e das dificuldades que impõem à construção do
propalado sistema de precedentes judiciais brasileiro, exsurge ainda mais impor­tante
a necessidade de se estruturar um direito à distinção oponível ao órgão julgador,
impondo limites à sua atuação desregrada. O direito à distinção cumpre esse papel
na exata medida em que a sua efetivação pressupõe o adimplemento, pelo Judiciário,
de deveres a ele imputados.
Cabe, desse modo, explicitar em que consiste o direito à distinção, tarefa que
será desenvolvida no tópico subsequente deste artigo, partindo-se da visão clássica

14. ed. v. 1. Salvador: Juspodivm, 2012. p. 41-43; ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo constitucional: o mode­
lo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 17.
4
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 195-196.

110 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015
O DIREITO À DISTINÇÃO NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO: PERSPECTIVAS À LUZ DO PROJETO DE NOVO CÓDIGO...

conferida ao distinguishing para, em seguida, serem delineados os fundamentos e


conteúdos jurídicos do direito à distinção.

3 O direito à distinção
O distinguish (ou distinguishing) é tradicionalmente concebido como uma téc­
nica processual por intermédio da qual os suportes fáticos relevantes hauridos do
caso concreto e do julgado tomado como precedente são confrontados para fins de
aferição da similitude entre eles. Referida semelhança é premissa indispensável para
a aplicação da ratio decidendi do precedente ao feito em julgamento.
A partir da comparação realizada, o magistrado poderá concluir pela efetiva
seme­lhança entre os casos cotejados, justificadora da aplicação do precedente ao
caso concreto. Poderá, ainda, descartar tal aplicação por haver identificado, no caso
sub judice, alguma especificidade fática reputada relevante e capaz de afastar a
incidência da norma jurídica geral do caso concreto extraída do aresto precedente.
Estar-se-á, nesta segunda situação, diante do que se convencionou chamar de
restrictive distinguishing.
Por fim, há a possibilidade de o juiz, a despeito de identificada a diversidade de
base fática entre o caso sob julgamento e o que conduziu à formação do prece­­dente,
conferir uma interpretação extensiva à ratio do segundo, aplicando-a ao caso em
apreciação. Nesta hipótese, fala-se em ampliative distinguishing.
Ou seja, por distinguishing (distinção) se entende, tradicionalmente, não apenas
o método de confronto entre o precedente e o caso concreto, como, também, o resul­
tado desse confronto (distinguishing-resultado)5 quando constatada diferença entre
os elementos comparados (ampliative distinguishinge restrictive distinguishing).6
Bustamante assevera que, na técnica da distinção (distinguishing), ao contrário
do que ocorre na superação (overruling), não há o abandono ao precedente, mas,
tão somente, sua não aplicação a um determinado caso concreto, sem prejuízo à
validade da norma constante do precedente. O afastamento pode decorrer: a) do
esta­belecimento de exceção antes não aventada, a despeito da subsunção potencial
do fato debatido em juízo (na demanda a ser julgada) na moldura fática do prece­
dente (redução teleológica); ou, b) da interpretação restritiva conferida ao prece­dente,
excluindo o suporte fático da causa da moldura posta no precedente (argumento a
contrario).7

5
DIDIER JUNIOR, Fredie et al. Curso de direito processual civil. 7. ed. v. 2. Salvador: Juspodivm, 2012. p. 403.
6
Distinguishing between cases is first and foremost a matter of demonstrating factual differences between
the earlier and the instant case – of showing that the ratio of a precedent does not satisfactorily apply to the
case at hand. (DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press,
2008. p. 113).
7
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras juris­
prudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. p. 470-473.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015 111
Lorena Miranda Santos Barreiros

Mais do que a visão do distinguishing como técnica processual, no entanto,


faz-se mister seja enfatizada e desenvolvida a figura do direito subjetivo à distinção,
de cunho prestacional, titularizado pela parte e tendo por sujeito passivo o órgão
julgador, cujo conteúdo essencial carece, ainda, de uma mais precisa definição.

3.1 Direito à distinção: fundamentos constitucionais no


sistema brasileiro
No ordenamento jurídico brasileiro em vigor, não há referência expressa ao
distinguishing. É possível, todavia, defender a existência desse direito, de lege lata, à
vista de fundamentos constitucionais que dão suporte a tal conclusão.

3.1.1 Devido processo legal


De plano, o direito à distinção pode ser extraído do princípio do devido processo
legal (art. 5º, LIV, da CF/88), ou, como prefere intitulá-lo J. J. Calmon de Passos,
devido processo constitucional de produção do direito.8
Na medida em que o ordenamento jurídico pátrio tem conferido crescentes
eficácia e importância aos precedentes judiciais,9 a cláusula geral do devido processo
legal deve ser concretizada também com a finalidade de viabilizar a adequada apli­
cação de rationes decidendi a casos concretos, atividade que integra o processo de
construção da norma jurídica geral da demanda a ser julgada. Sendo indispensável
a essa aplicação a correta utilização da técnica do distinguishing, conclui-se que
tanto o respeito ao procedimento do distinguishing quanto o alcance de um resultado
adequado após o manejo de tal técnica processual são conteúdo de um direito da
parte: o direito à distinção.

3.1.2 Igualdade
Outro fundamento constitucional do direito à distinção reside no princípio da
isonomia (art. 5º, caput e inciso I, da CF/88). A igualdade é o valor central tutelado

8
Ao tratar do princípio do devido processo legal, Calmon de Passos prefere a ele fazer referência intitulando-o de
devido processo constitucional de produção do direito. Com tal expressão, Calmon faz referência não apenas
ao processo legislativo de que resultam os textos normativos, base para a extração de normas jurídicas, mas,
também, à própria produção judicial da norma jurídica, sem excluir, obviamente, os processos de produção
privada do direito (ex.: contratos) e a atuação administrativa (ex.: atos e decisões administrativas), uma vez
que o direito é, e somente o é, enquanto produzido e aplicado socialmente (PASSOS, J. J. Calmon de. Direito,
poder, justiça e processo: julgando o que nos julgam. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 68-69).
9
Dentre tais manifestações de fortalecimento dos precedentes judiciais, podem ser referidos, exemplificativa-
mente: a) a súmula vinculante (art. 103-A da CF/88); b) os precedentes com poder obstativo da apreciação de
recursos ou de remessa necessária (arts. 475, §3º; 518, §1º; 544, §4º; e 557 do CPC/73) e; c) precedentes
com carga persuasiva, tais como aqueles que justificam a improcedência prima facie. (art. 285-A do CPC/73).

112 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015
O DIREITO À DISTINÇÃO NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO: PERSPECTIVAS À LUZ DO PROJETO DE NOVO CÓDIGO...

pelo sistema de precedentes, e sua realização prática pressupõe, dentre outros


aspectos, a atenção às diferenças e às peculiaridades do caso concreto.10
Luiz Guilherme Marinoni alude à relação inexorável existente entre precedente
e igualdade.11 Destaca que o Judiciário brasileiro, na qualidade de órgão exercente
de poder no âmbito de um Estado Democrático de Direito, também sofre a incidência
do princípio da igualdade.
No entanto, o que se denomina de igualdade perante a jurisdição não é com­
preendido em sua inteireza por aquela função estatal na medida em que, não obstante
sejam, em geral, respeitadas a igualdade das partes no processo (tratamento igua­
litário, paridade de armas, dentre outros aspectos) e a igualdade ao processo (igual­
dade de acesso à jurisdição – de que é exemplo a assistência judiciária para os que
dela dependam –, igualdade procedimental e igualdade de técnicas processuais),
pouca importância é dada à igualdade perante as decisões judiciais.12
Marinoni salienta que o exercício da jurisdição é legitimado pelo conteúdo da
de­ci­são, no sentido de que deve haver, dentro do possível, uma linearidade nas
deci­­sões judiciais, tratando-se igualmente os casos similares (treat like cases alike)
e res­peitando-se os posicionamentos precedentes e aqueles emanados de cortes
superiores.13
Note-se, ainda, que a correlação entre precedente e isonomia, tomando-se o
princípio da igualdade como um dos que fundamentam um sistema de respeito aos
precedentes, conduz a uma tendência de uniformidade do ordenamento jurídico. A
igualdade é um vetor de uniformização das decisões judiciais. Em sua essência, no
entanto, está inserido o direito à diferença, o respeito à diversidade.
Desse modo, ao mesmo tempo em que o valor igualdade pressupõe igual trata­
mento a situações similares, nele se insere o direito de ser tratado de modo diferente
quando se estiver diante de uma peculiaridade que diferencie a situação vivenciada
por alguém daquela tomada por paradigma.

3.1.3 Contraditório
A perspectiva de que o distinguishing corporifica, em um sistema de preceden­
tes, atividade precípua para a construção da norma jurídica geral do caso concreto

10
O valor constitucional tutelado pelo sistema de precedentes não é a unidade do direito, antigo mito atrás
do qual se esconderam instâncias autoritárias dos mais variados gêneros, porém a igualdade, realizada
empiricamente mediante a vinculação dos tribunais e juízes ao “direito” delineado pela Corte Suprema, depen­
dente da evolução da vida social, aberto ao dinamismo de um sistema voltado à atuação de princípios funda­
mentais munidos de inesgotável carga axiológica e atento à devida percepção das diferenças. (MARINONI, Luiz
Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da corte suprema.
São Paulo: RT, 2013. p. 165).
11
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 140-166.
12
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 141-144.
13
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 148-149.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015 113
Lorena Miranda Santos Barreiros

coaduna-se, ainda, com o ideal de participação propugnado pelo princípio do contra­


ditório em sua formatação atual. O juiz é tido como sujeito do contraditório,14 e as
partes possuem o direito de que lhe sejam conferidos instrumentos efetivos, capazes
de permitir que contribuam para a formação da decisão judicial, influenciando – ou
tendo a potencialidade de influenciar – o convencimento do magistrado.15
Vista a distinção como direito da parte, decorrente, dentre outros fundamentos,
do princípio do contraditório, podem ser estruturados deveres a serem observados
pelo Poder Judiciário, com o escopo de que a atividade inerente ao distinguishing
seja realizada com plena participação das partes envolvidas, não podendo, sob
nenhum aspecto, ser decorrente de atuação isolada do juiz, dissociada da participação
(ou da concessão de oportunidade de participação) dos litigantes.

3.1.4 Fundamentação das decisões judiciais


Muito embora seja inegável a possibilidade de se extrair a fundamentação
constitucional do direito à distinção pautando-se nos princípios do devido processo
legal, da igualdade e do contraditório, é a regra da motivação o fundamento mais
útil à formulação do conteúdo jurídico do direito à distinção. A motivação judicial é
o instrumento que testifica a correta realização desse direito e o adimplemento de
boa parte dos deveres judiciais a ele associados. Sendo a fundamentação uma
garantia contra a atuação arbitrária dos juízes, não se revelará adequada a motiva­
ção que envolva a aplicação/exclusão de um precedente a um caso concreto quando
não contiver a demonstração lógica do confronto realizado entre ambos.
Presente o lastro constitucional para que se repute existente, no direito brasi­
leiro, um direito à distinção, há de se registrar, ainda, que a conformação prática para
aplicação desse direito no país pauta-se, na atualidade, na ideia de adaptabilidade
do procedimento.
Provavelmente, muitas dificuldades hoje possivelmente soerguidas para reco­
nhe­cimento e concretização do direito à distinção serão superadas com a entrada

14
Visão moderna e adequada de contraditório, portanto, considera essencial para sua efetividade a participação
ativa também do órgão jurisdicional. Tanto quanto as partes, tem o juiz interesse em que sua função atinja
determinados objetivos, consistentes nos escopos da jurisdição. Os valores determinantes do modo de ser
do juiz na condução da relação processual não são os mesmos vigentes no início do século. A crescente com­
plexidade das situações regidas pelo direito substancial, a enorme disparidade econômica entre os sujeitos
do direito, a integração cada vez maior de culturas jurídicas diferentes, determinada pelo que se convencionou
chamar de globalização, tudo isso exige maior preocupação do representante estatal com o resultado do
processo. Vem daí a ideia do juiz participativo. (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Os elementos objetivos
da demanda examinados à luz do contraditório. In: BEDAQUE, José Roberto dos Santos; TUCCI, José Rogério
Cruz e (coord.). Causa de pedir e pedido no processo civil. São Paulo: RT, 2002. p. 21).
15
Trata-se [o contraditório] de postulado destinado a proporcionar ampla participação dos sujeitos da relação
processual nos atos preparatórios do provimento final. Sua observância constitui fator de legitimidade do ato
estatal, pois representa a possibilidade que as pessoas diretamente envolvidas com o processo têm de influir
em seu resultado. (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Os elementos objetivos da demanda examinados à luz
do contraditório. In: BEDAQUE, José Roberto dos Santos; TUCCI, José Rogério Cruz e (coord.). Causa de pedir
e pedido no processo civil. São Paulo: RT, 2002. p. 20).

114 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015
O DIREITO À DISTINÇÃO NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO: PERSPECTIVAS À LUZ DO PROJETO DE NOVO CÓDIGO...

em vigor do PNCPC, cujo regramento servirá para a construção dogmática mais


segura do conteúdo jurídico do direito estudado. No entanto, a não conclusão, até
o presente momento, desse processo legislativo não impede que se identifique e
estru­ture, doutrinariamente, o conteúdo jurídico do direito à distinção, tarefa que será
desenvolvida no tópico subsequente deste trabalho.

3.2 Conteúdo jurídico do direito à distinção


3.2.1 Sujeitos ativo e passivo do direito à distinção
Na classificação dos direitos subjetivos em sentido amplo, divisam-se os
cha­­mados direitos pres­ tacionais e direitos potestativos. Por direito prestacional,
de­no­mina-se o poder jurídico conferido a alguém com o fito de exigir de outrem o cum­­­
pri­mento de uma pres­tação de dar (dinheiro ou coisa dele distinta), fazer ou não fazer.
O direito potestativo consiste em um poder jurídico atribuído a alguém de criar, alterar
ou extinguir situações jurídicas que abrangem outro sujeito, a quem somente cabe
submeter-se ao poder do titular do direito. Na esfera dos direitos prestacionais, esta­
belecem-se relações de direito/dever; no âmbito dos direitos potestativos, as relações
estão representadas pelo binômio poder/sujeição.16
O direito à distinção enquadra-se na categoria dos direitos prestacionais na
medida em que, lastreando-se no direito de respeito à diferença, inerente ao princípio
da igualdade, bem como na regra de motivação das decisões judiciais, estriba uma
relação entre jurisdicionado e órgão julgador, conferindo ao primeiro o poder jurí­dico
de exigir do segundo o cumprimento de prestações de fazer e de não fazer correla­
cionadas à necessidade de se aplicar corretamente o método do distinguishing para
alcance final de um resultado justo.
Analisando-se o direito à distinção sob o ponto de vista subjetivo, tem-se que
a situação jurídica ativa (titular do direito) está afetada, em um primeiro plano, às
partes do processo. São elas que detêm o poder jurídico de exigir do órgão julgador o
cumprimento dos deveres relacionados ao distinguishing.
Diz-se em um primeiro plano na medida em que a atividade de distinção é
precipuamente relevante na formação da norma jurídica geral do caso concreto vei­
culada na fundamentação do julgado a ser proferido. Diante dessa constatação e à
vista do fato de que a decisão judicial veicula um duplo discurso (aquele voltado às
partes e aquel’outro destinado ao jurisdicionado de um modo geral), decerto que o
interesse jurídico relacionado ao respeito ao direito à distinção transborda dos limites
subjetivos da demanda, podendo alcançar sujeitos outros que não os integrantes
da relação jurídica processual.

16
DIDIER JUNIOR, Fredie et al. Curso de direito processual civil. 5. ed. v. 5. Salvador: JusPodivm, 2012. p. 25-26.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015 115
Lorena Miranda Santos Barreiros

Assim sendo, a partir da defesa, exempli gratia, do redimensionamento do


princípio do contraditório,17 pode-se sustentar a ideia de que o debate quanto à for­
mação do precedente é fundamento capaz de conferir interesse recursal a terceiros
que não as partes da demanda, a exemplo do amicus curiae, a quem também se
atribuiria o direito à distinção.18
Tome-se, por exemplo, o julgamento de recurso repetitivo destacado como para­
digma no âmbito do Supremo Tribunal Federal após reconhecimento da repercussão
geral do tema nele versado. Malgrado a resistência encontrada na jurisprudência
pátria atual quanto à possibilidade de interposição de recurso pelo amigo da corte,
o PNCPC, em seu art. 138, §§1º e 3º (versão aprovada pelo Senado e submetida à
revisão para posterior encaminhamento à sanção presidencial), reconhece o inte­resse
recursal do amicus curiae para opor embargos de declaração ao julgado proferido
em processo de que tenha participado, bem como para recorrer da decisão que julgar
o incidente de resolução de demandas repetitivas.
Em ambos os casos, o amicus curiae poderá sustentar, como fundamento do
seu recurso, a não observância de um precedente aplicável ao caso ou, ainda, a
incorreta realização do distinguishing, tendo sido submetidas à mesma conclusão de
direito premissas fáticas cujas particularidades não comportam tal solução.
Seria o caso, por exemplo, de o STF ter reconhecido indistintamente o direito à
incorporação do percentual de 11,98% a título de retificação da conversão feita pelos
entes públicos dos vencimentos de seus servidores na transição de Cruzeiro Real
para URV tanto para servidores do Judiciário, do Ministério Púbico, da Defensoria
Pública e do Legislativo quanto para servidores do Executivo, desconsiderando que
o texto normativo do art. 168 da CF/88 não se aplica a estes últimos, cuja data de
efetivo pagamento pode ser distinta dos servidores de outros Poderes.19
Não se reconhecer o direito de um ente estatal que funcione no processo para­
digma como amicus curiae de questionar a formação desse precedente, com fulcro
em um direito à distinção autônomo, por si titularizado e independente daquele outor­
gado às partes do processo, significa menosprezar a tarefa do Judiciário de ela­
boração de regras gerais, dirigidas aos jurisdicionados e de cuja criação eles têm o
direito de participar.

17
Tal redimensionamento perpassa, por exemplo, pela reformulação do que se deva entender por interesse
recursal no que tange à formação do precedente, desvinculando-o na noção de sucumbência para reconhecer
que ele também abrange a possibilidade de discussão da fundamentação do julgado, mesmo por quem tenha
se sagrado vitorioso na demanda.
18
Fredie Didier Junior, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira defendem a possibilidade e utilidade de se pensar
a intervenção de terceiro como forma de contribuir para a formação de um precedente, reconhecendo-se ao
terceiro um interesse jurídico reflexo nessa criação. (DIDIER JUNIOR, Fredie et al. Curso de direito processual
civil. 7. ed. v. 2. Salvador: JusPodivm, 2012. p. 399).
19
O acórdão do RE 561836-RN, publicado em fevereiro/2014, que versou sobre a demanda destacada como
paradigma sobre o tema da URV não contempla essa hipotética situação aventada no trabalho.

116 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015
O DIREITO À DISTINÇÃO NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO: PERSPECTIVAS À LUZ DO PROJETO DE NOVO CÓDIGO...

A situação jurídica passiva do direito à distinção é atribuída ao órgão julgador.


O plexo de deveres extraíveis desse direito volve-se ao Poder Judiciário, que os deve
adimplir. A ideia de atribuição de deveres prestacionais ao órgão judiciário como
decor­rência de sua inserção no debate travado nos autos, passando de observador a
sujeito do contraditório, não é exclusiva do direito à distinção. Veja-se, por exemplo,
os chamados deveres de cooperação (deveres de auxílio, esclarecimento, consulta
e prevenção),20 também relacionados com essa nova perspectiva assumida pelo
princípio do contraditório.
Muito embora os deveres decorrentes do direito à distinção surjam, necessa­
riamente, no bojo de uma demanda judicial, a exigibilidade das prestações a eles
correspondentes pode ser invocada por quem não seja parte no processo, conforme
já aludido anteriormente. Essa situação está diretamente relacionada ao papel juris­
dicional de criação do direito, de estruturação de normas gerais aplicáveis a outros
casos, ao sistema de precedentes, pois.

3.2.2 Explicitação de um conteúdo jurídico mínimo do direito à


distinção (deveres do magistrado) e procedimentos para
a sua realização prática
O objeto do direito à distinção corresponde, em primeiro lugar, ao poder jurídico
atribuído ao seu titular de exigir do órgão julgador que confronte o caso concreto
com precedentes potencialmente a ele aplicáveis. Em segundo lugar, compreende o
poder jurídico de exigir que o juiz respeite e faça respeitar a técnica do distinguishing,
inclusive com a adaptação, se necessário, do procedimento legalmente previsto para
permitir a sua correta realização, estendendo-se o debate travado nos autos para
abranger a incidência ou não da ratio decidendi selecionada ao caso concreto. Em
terceiro lugar, o direito à distinção lastreia, ainda, uma série de prestações de fazer
e de não fazer a ele correlacionadas.
O primeiro dever atribuído ao magistrado como sujeito passivo do direito pres­
tacional à distinção é o de reconhecer a existência de precedente potencialmente
aplicável ao caso concreto. Esta atividade, porém, não pode decorrer de atuação
singular do órgão julgador, sendo não apenas conveniente como necessário que o
magistrado consulte as partes antes de definir qual o precedente deve ser confrontado
com o caso concreto. As delimitações da ratio decidendi, dos fatos relevantes à

20
Sobre o princípio da cooperação e seus deveres, por todos, ver: DIDIER JUNIOR, Fredie. Fundamentos do
prin­c­ípio da cooperação no direito processual civil português. Coimbra: Coimbra, 2010; MITIDIERO, Daniel.
Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: RT, 2009; SOUSA, Miguel
Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2. ed. Lisboa: Lex, 1997; BARREIROS, Lorena Miranda
Santos. Fundamentos constitucionais do princípio da cooperação processual. Salvador: JusPodivm, 2013.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015 117
Lorena Miranda Santos Barreiros

fixação desta e, ainda, dos fatos aos quais se deve conferir importância no feito em
julgamento devem ser realizadas de forma compartilhada e debatida com as partes,
com a incidência do dever de consulta, inerente ao princípio da cooperação.
Do mesmo modo que o órgão julgador deve instar as partes a definir os pontos
controvertidos da demanda que serão objeto da atividade probatória, também deverá
ele conferir aos contendores a oportunidade de indicarem precedentes potencial­
mente aplicáveis ao caso ou de se manifestarem sobre o precedente que o juiz entenda
adequado para solucionar o feito. Tal atividade, por suas peculiaridades (necessidade
de realização de pesquisa prévia, estudo do caso paradigma e confronto com o caso
a ser julgado), pressupõe a concessão de prazo razoável para manifestação das
partes nos autos, de regra aplicando-se o quinquídio previsto no art. 185 do CPC/73
(art. 218, §3º, do PNCPC).
O momento adequado para a concessão desse prazo será, como regra, aquele
posterior ao encerramento da fase instrutória, quando houver produção de prova
pericial ou oral nos autos ou, ainda, por ocasião do anúncio do julgamento antecipado
do mérito, nas hipóteses em que não existir necessidade de dilação probatória.
Assim, por exemplo, no despacho que anunciar o julgamento antecipado do
mérito, o magistrado indicará o precedente que pretende confrontar com o caso con­
creto ou instará as partes a fazê-lo. Essa solução pode ser adotada, como ante­
riormente afirmado, com lastro no princípio da adequação procedimental sob a
vertente do princípio da adaptabilidade,21 sendo desnecessária a existência de previ­
são legal expressa que contemple tal procedimento.
O respeito à técnica do distinguishing é obrigação judicial cuja demonstração
está associada umbilicalmente ao dever de fundamentação das decisões judiciais.
O juiz haverá de motivar a escolha do precedente e a sua aplicação (ou não) ao caso
concreto, indicando, expressamente, na fundamentação de seu julgado, quais fatos
foram considerados relevantes no julgado paradigma e no caso concreto, fazendo-se
a devida confrontação entre eles e indicando-se a aplicabilidade ou não do prece­dente
ao caso sub judice. O distinguishing há sempre de ser motivado tanto na hipótese
em que se conclua pelo afastamento do precedente quanto na situação em que se
resolva aplicar a ratio decidendi ao feito analisado, procedendo-se à interpretação
extensiva daquela.
Quando instadas as partes a se manifestarem acerca da aplicabilidade ou não
de um precedente ao caso concreto, poderão elas, no intuito de melhor munir o juiz
de elementos à sua decisão (potencializando a influência a ser exercida no instante

21
Sobre o tema da possibilidade de adaptação procedimental pelo juiz à luz do caso concreto, como desdobra­
mento lógico do princípio da adequação no plano judicial, ver DIDIER JUNIOR, Fredie. Sobre dois importantes
(e esquecidos) princípios do processo: adequação e adaptabilidade do procedimento. In: Gênesis: revista de
direito processual civil, Curitiba, n. 21, p. 530-541, jul./set. 2001.

118 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015
O DIREITO À DISTINÇÃO NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO: PERSPECTIVAS À LUZ DO PROJETO DE NOVO CÓDIGO...

do julgamento), tomar como parâmetro para confrontação o regramento previsto para


demonstração da similitude fática entre aresto paradigma e aresto recorrido nos
recursos especiais que se fundam em divergência jurisprudencial (arts. 105, III, “c”,
da CF/88; 541, parágrafo único, do CPC/73;22 e 255 do Regimento Interno do STJ).
O descumprimento do dever de realizar o distinguishing implica o proferimento,
pelo juiz, de decisão defeituosa ou injusta. No primeiro caso, a sanção imputada
ao defeito (verdadeiro error in procedendo) consiste na decretação de nulidade do
julgado, seja por vício de fundamentação, seja por violação aos direitos fundamentais
ao contraditório e ao devido processo legal.
Ao contrário, no segundo caso (decisão injusta), a incorreta realização do
distinguishing (aplicando-se ao feito um precedente a ele inaplicável; promovendo-
se o restrictive distinguishing a caso em que o uso do precedente seria adequado;
selecionando-se incorretamente a ratio decidendi ou os fatos relevantes do prece­
dente, dentre outras possibilidades) configura error in judicando, que conduz à neces­
sidade de reforma do julgado proferido, pretensão a ser deduzida pelas vias recursais
cabíveis. Os deveres de decretar a nulidade do julgado, no primeiro caso, e de reformá-
lo, no segundo, são prestações judiciais correlacionadas ao direito à distinção.

4 De lege ferenda: o direito à distinção no Projeto de Novo


Código de Processo Civil (PNCPC)
O Projeto de Novo Código de Processo Civil (PNCPC) prevê uma regulamentação
mais específica do direito à distinção, mencionando-o em uma série de dispositivos
legais, alguns dos quais serão abordados nesta oportunidade. Para Fredie Didier
Junior, a consagração, em sede legislativa, de um direito à distinção configura-se
como “um dos pontos altos do projeto e uma de suas mais importantes inovações”.23
De se notar que a tônica do regramento do NCPC está em relacionar o direito à
distinção, precipuamente, ao dever de fundamentação das decisões judiciais.
A princípio, registre-se que o art. 10 do PNCPC preconiza que, “em qualquer
grau de jurisdição, o órgão jurisdicional não pode decidir com base em fundamento a
respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes, ainda que se
trate de matéria apreciável de ofício”, o que reforça a necessidade de que a técnica
do distinguishing seja inteiramente aplicada com a participação das partes em todas
as suas etapas (seleção do precedente, escolha dos suportes fáticos relevantes no
precedente e no caso sub judice e confrontação). Esse dispositivo também explicita
o dever jurisdicional de consulta às partes, decorrente do princípio da cooperação.

Art. 1.042, §1º, do PNCPC.


22

23
DIDIER JUNIOR, Fredie. Principais mudanças do projeto de novo CPC: um novo Código e não um Código refor­
mado. Disponível em: <http://www.frediedidier.com.br/editorial/editorial-156/>. Acesso em: 29 jan. 2013.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015 119
Lorena Miranda Santos Barreiros

Em seguida, o PNCPC, em seu art. 499, caput e §1º, V e VI, após indicar os
elementos essenciais da sentença (lato sensu), quais sejam, o relatório, os funda­
mentos e o dispositivo, reputa não fundamentada a decisão judicial que se limite
a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos
deter­minantes ou sem fazer a confrontação com o caso sob julgamento, olvidando-se,
pois, da técnica do distinguishing. Da mesma forma, carece de motivação o decisum
que deixe de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado
pela parte, sem demonstrar a sua inaplicabilidade ao caso concreto (restrictive
distinguishing) ou a superação do entendimento (overruling).
O art. 521, caput e §5º, do PNCPC, com o escopo de dar efetividade ao artigo
antecedente (art. 520), que estabelece o dever de os tribunais uniformizarem a sua
jurisprudência e mantê-la estável (premissa irrenunciável no contexto de um sistema
que pretende conferir grande carga eficacial aos seus precedentes), bem como com o
objetivo de resguardar os princípios da legalidade, da segurança jurídica, da duração
razoável do processo, da confiança e da isonomia, confere eficácia obrigatória a alguns
precedentes nele relacionados, somente permitindo o afastamento da incidência de
suas rationes decidendi no caso concreto se o órgão judicial distinguir o caso sob
julgamento, demonstrando, fundamentadamente, que se trata de situação específica
(peculiaridade fática ou questão jurídica não examinada no precedente).
A distinção também é tratada no artigo 990 do PNCPC, que regulamenta o
incidente de resolução de demandas repetitivas. A admissão do incidente em refe­
rência implica a suspensão dos processos pendentes, individuais ou coletivos, que
tramitem no estado ou na região, conforme o caso (art. 990, §1º, I, do PNCPC). Vindo
a ser indevidamente suspenso processo não enquadrável nos limites do incidente
instaurado ou, de outro modo, deixando de ser suspenso o curso processual de um
feito que se amolda à questão tratada no incidente, o interessado poderá, com base
no direito à distinção, conforme o caso, requerer o prosseguimento ou a suspensão
do curso processual, e a decisão que indeferir a sua pretensão será impugnável por
agravo de instrumento (art. 990, §4º, do PNCPC).
Embora sem previsão no dispositivo, não há, ao que parece, motivo razoável
para se excluir o cabimento do agravo de instrumento também nas situações em que
deferida a pretensão, uma vez que dita decisão pode conter, por exemplo um error in
iudicando no acatamento da tese do requerente.
O direito à distinção também encontra tratamento no âmbito dos dispositivos
legais atinentes à disciplina dos recursos. Assim, o art. 1.028, XVI, do PNCPC prevê
o cabimento de agravo de instrumento contra decisão interlocutória que decidir o
requerimento de distinção na hipótese de indevido sobrestamento, em primeiro grau
de jurisdição, de processo cuja questão não se amolde à do recurso especial ou
extraordinário repetitivo afetado.

120 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015
O DIREITO À DISTINÇÃO NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO: PERSPECTIVAS À LUZ DO PROJETO DE NOVO CÓDIGO...

Por seu turno, o art. 1.042, §2º, do PNCPC veda ao órgão julgador que inad­
mita recurso especial fundado em dissídio jurisprudencial com base no genérico
fundamento de que as circunstâncias fáticas relevantes nos arestos paradigma e
recorrido são diferentes, sem demonstrar, efetivamente, a existência da distinção. A
mesma vedação está prevista para o recurso de embargos de divergência (art. 1.056,
§5º, do PNCPC).
O art. 1.050, I, do PNCPC, ao regrar os recursos especial e extraordinário repe­
titivos, prevê a necessidade de o julgador, ao proferir a decisão de afetação dos
re­cursos selecionados, identificar com precisão a questão a ser submetida a julga­
mento, o que, obviamente, implica a indicação também precisa do substrato fático
relevante do seu deslinde. Esse parâmetro será utilizado para suspender o proces­
samento de todos os feitos em tramitação que versem sobre ela e tramitem no
território nacional (art. 1.050, II, do PNCPC). Valendo-se, no entanto, do direito à
distinção, a parte poderá exigir o prosseguimento de sua demanda (art. 1.050, §9º
a 13, do PNCPC).
Observe-se que, uma vez publicado o acórdão paradigma, o órgão que proferiu o
julgado recorrido somente pode manter o seu posicionamento caso demonstre a exis­
tência de superação do entendimento esposado no acórdão paradigma (overruling)
ou de distinção entre o caso concreto e o precedente (art. 1.053, §1º, do PNCPC).
O art. 1.055 do PNCPC disciplina o recurso intitulado agravo extraordinário,
cabível, substancialmente, contra decisões de presidente ou de vice-presidente de
tribunal que deixem de observar o direito à distinção da parte, incorrendo em error in
iudicando ao: a) indeferir pedido de inadmissão de recurso especial ou extraordinário
intempestivo (distinção do caso concreto pela intempestividade do recurso mane­
jado, descabendo, assim, o seu sobrestamento para aguardar a decisão de recurso
repetitivo afetado como paradigma); b) inadmitir recurso especial ou extraordinário
sob o fundamento de que o acórdão recorrido coincide com a orientação do tribu­
nal superior, quando tal não for ocaso, e; c) inadmitir recurso extraordinário sob o
fundamento de que o STF teria reconhecido a inexistência de repercussão geral da
questão constitucional debatida.
Os fundamentos primordiais do recurso extraordinário consistirão na distinção
do caso concreto em relação ao paradigma ou na superação do entendimento firmado
no precedente.
Embora o regramento inserido no PNCPC não tenha criado o direito à distinção,
o qual já pode ser extraído, de lege lata, do ordenamento jurídico-constitucional
bra­sileiro, conforme demonstrado, revela-se inegável o mérito do texto legislativo
projetado, qual seja, o de conferir maiores dignidade, visibilidade, importância e orga­
nização ao direito à distinção hoje existente.
O Projeto de Novo Código de Processo Civil, a despeito de não apresentar
uma disciplina exauriente do direito à distinção – até porque não é essa a função

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015 121
Lorena Miranda Santos Barreiros

atribuída aos códigos na atualidade, estando superado o mito dos “códigos totais”,24
supostamente capazes de regular toda a complexa realidade social –, confere expres­
siva contribuição ao delineamento desse direito, além de evidenciar a sua importância
no contexto da estruturação de um sistema de precedentes no Brasil.

5 Conclusão
O estudo empreendido permite que se chegue às seguintes conclusões:
1. O padrão de certeza e de previsibilidade do ordenamento jurídico brasileiro
não está mais centrado estritamente na lei, tendo assumido posição de relevo as
decisões judiciais, sobretudo à vista da constatação de que estas também produzem
direito. Por conseguinte, há de se estruturar uma teoria dos precedentes no âmbito
do sistema jurídico brasileiro;
2. Essa construção da teoria dos precedentes sofre inúmeros condicionamentos
culturais, alguns dos quais obstativos do seu próprio desenvolvimento, tratando-se
de aspectos da cultura judiciária que necessitam ser minorados ou, tanto quanto
possível, neutralizados, uma vez que conduzem a uma aplicação acriteriosa e, pois,
inadequada de precedentes judiciais no Brasil;
3. A formação acadêmica dos profissionais do direito no país ainda se revela
muito condicionada pelo modo racionalista e teórico-dedutivo de desenvolvimento
do raciocínio jurídico próprio da tradição de civil law, o que produz inconvenientes
no modo de interpretação e aplicação dos precedentes judiciais, a exemplo de sua
invocação apenas pela transcrição de sua ementa (sem prévio confronto entre caso
a ser julgado e substrato fático do precedente) ou de excessiva abstrativização da
súmula vinculante;
4. Outro problema verificado, efeito direto da expansão da sociedade de con­
su­mo, consiste no crescimento numérico expressivo das demandas repetitivas
(de­mandas de massa). Como consequência, dissemina-se o culto desmesurado à
igual­dade e à celeridade processual como sinônimo de justiça, com prejuízo ao direito
à diferença e ao respeito às eventuais peculiaridades do caso concreto. A tentativa
de minorar esses efeitos deletérios perpassa pelo reconhecimento e pela concreta
defi­nição do que se deva entender por direito à distinção no sistema jurídico pátrio;
5. O distinguishing (distinção) é classicamente entendido como um método de
confronto e aplicação de precedentes, que pressupõe a definição da ratio decidendi
da decisão tomada como precedente e a confrontação do seu substrato fático com
o do caso a ser julgado. Denomina-se distinguishing, ainda, o resultado dessa

24
A alcunha é apresentada por MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um “sistema em construção”:
as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. Revista de informação legislativa. Brasília: Senado, n.
139, jul./set. 1998. p. 6.

122 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015
O DIREITO À DISTINÇÃO NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO: PERSPECTIVAS À LUZ DO PROJETO DE NOVO CÓDIGO...

confrontação, quando constatada divergência entre os substratos fáticos, que pode


(restrictive distinguishing) ou não (ampliative distinguishing) afastar a incidência do
precedente no caso a ser julgado;
6. Pode-se afirmar a existência, no âmbito do processo atual brasileiro, de um
verdadeiro direito subjetivo à distinção, de cunho prestacional, titularizado, prima
facie, pela parte e tendo por sujeito passivo o órgão julgador, cujo conteúdo essencial
carece, ainda, de uma mais precisa definição. O direito à distinção não possui regu­
lamentação legal expressa de lege lata; de lege ferenda, o Projeto de Novo CPC a
ele faz menção em inúmeros dispositivos, sendo a sua previsão, no futuro texto nor­
mativo, uma das grandes inovações consagradas no aludido Projeto;
7. O fundamento constitucional para o direito à distinção no ordenamento
jurídico-processual pátrio pode ser extraído a partir dos princípios constitucionais do
devido processo legal (devido processo constitucional de produção da decisão judi­
cial), da igualdade e do contraditório, bem como da regra constitucional da motiva­
ção das decisões judiciais. Já a sua conformação prática pode ser efetivada a partir
do princípio da adequação, na modalidade adaptabilidade;
8. O direito à distinção tem cunho prestacional e seu sujeito ativo é a parte. Não
se pode descartar, a priori, no entanto, a possibilidade de esse direito ser titulari­
zado por outros sujeitos não integrantes da relação jurídica processual, a exemplo do
amicus curiae. Já a situação jurídica passiva é atribuída ao órgão julgador, a quem
se imputam deveres a serem cumpridos para a realização do direito em tela;
9. O conteúdo jurídico do direito subjetivo ao distinguishing contempla a impo­
sição de deveres ao magistrado, dentre eles, podendo-se destacar: a) o dever de
consulta às partes antes de se definir o precedente a ser utilizado em um dado caso
concreto, possibilitando-lhes, à semelhança com o tratamento atualmente dado à
fixação dos pontos controvertidos no processo civil pátrio, a discussão quanto aos
fatos relevantes ao julgamento da causa e ao precedente escolhido; b) a necessi­
dade de fundamentação quanto à escolha do precedente e à sua aplicação ao caso
concreto; c) a necessidade de fundamentação quanto à exclusão da aplicação do
pre­cedente no caso concreto;
10. A não observância de dever inerente ao direito à distinção, pelo magistrado,
implica no proferimento de decisão defeituosa (acaso não realizado o distinguishing
ou não observado corretamente o procedimento predisposto à sua efetivação) ou
injusta (na hipótese, por exemplo, de se aplicar um precedente inaplicável ao caso
ou de se promover o restrictive distinguishing em situação na qual o precedente seria
adequado). No primeiro caso, existindo prejuízo ao titular do direito à distinção, terá
de ser decretada a nulidade da decisão judicial prolatada, por haver ela incorrido
em error in procedendo; no segundo, constatado o error in judicando da decisão
judi­cial, poderá o titular do direito à distinção vindicar a sua reforma pelas vias pro­
cessuais próprias;

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015 123
Lorena Miranda Santos Barreiros

11. O Projeto de Novo Código de Processo Civil alberga uma série de dispositivos
que fazem expressa referência à distinção (arts. 10; 499, §1º, V e VI; 521, caput e
§5º; 990, §4º), inclusive no âmbito recursal (arts. 1.028, XVI; 1.042, §2º; 1.050, I e
§§9º a 13; 1.055 e 1.056, §5º), reforçando a interpretação de que se configura ele
verdadeiro direito processual, estritamente relacionado ao dever de fundamentação
das decisões judiciais.
12. Em suma, o Projeto de Novo Código de Processo Civil confere posição de
relevo ao direito à distinção, corroborando a sua importância no contexto da cons­
trução de um sistema de precedentes no direito brasileiro.

Abstract: The main objective of this study lies in the analysis and definition of the contours of right to
distinction in Brazilian procedural system. Thus, it examines the influence of certain cultural aspects in
building a national theory of precedents. Then, it asserts about the current conformation of this right, with
indication of its constitutional basis, its subject, object and minimum content. The paper also proposes
practical solutions to enable the realization of the right to distinction, even without express legal provision.
Finally, when performing the analysis about the Project of New Civil Procedure Code, the paper opens up
prospects for a de lege ferenda study of the right to distinction, highlighting its importance in the context of
structuring a Brazilian judicial system of precedents.
Keywords: Precedents. Judicial duties. Right to distinction.

Referências
BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Fundamentos constitucionais do princípio da cooperação
processual. Salvador: JusPodivm, 2013.
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras
jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012.
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Os elementos objetivos da demanda examinados à luz do
contraditório. In: BEDAQUE, José Roberto dos Santos; TUCCI, José Rogério Cruz e (coord.). Causa de
pedir e pedido no processo civil. São Paulo: RT, 2002. p. 13-52.
D´AMICO, Pietro. Common law. Torino/Italia: G. Giappichelli Editore, 2005.
DIDIER JUNIOR, Fredie. Sobre dois importantes (e esquecidos) princípios do processo: adequação e
adaptabilidade do procedimento. In: Gênesis: Revista de direito processual civil, Curitiba, n. 21, p.
530-541, jul./set. 2001.
______. Curso de direito processual civil. 14. ed. v. 1. Salvador: JusPodivm, 2012.
______ et al. Curso de direito processual civil. 7. ed. v. 2. Salvador: JusPodivm, 2012.
______ et al. Curso de direito processual civil. 5. ed. v. 5. Salvador: JusPodivm, 2012.
______. Principais mudanças do projeto de novo CPC: um novo Código e não um Código reformado.
Disponível em: <http://www.frediedidier.com.br/editorial/editorial-156/>. Acesso em: 29 jan. 2013.
______. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português. Coimbra:
Coimbra, 2010.

124 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015
O DIREITO À DISTINÇÃO NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO: PERSPECTIVAS À LUZ DO PROJETO DE NOVO CÓDIGO...

DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: RT, 2011.
______. O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da corte
suprema. São Paulo: RT, 2013.
MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um “sistema em construção”: as cláusulas gerais
no Projeto do Código Civil brasileiro. Revista de informação legislativa. Brasília: Senado, n. 139, p.
05-22, jul./set. 1998.
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo:
RT, 2009.
PASSOS, J. J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo: julgando o que nos julgam. Rio de Janeiro:
Forense, 2000.
SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2. ed. Lisboa: Lex, 1997.
STRECK, Lênio Luiz. Súmulas, vaguezas e ambigüidades: necessitamos de uma “teoria geral dos
precedentes”?. Direito Fundamentais & Justiça, n. 5, p. 162-185, out./dez. 2008.
WAMBAUGH, Eugene. The study of cases: a course of instruction. 2. ed. Boston: Little, Brown, and
Company, 1894.
ZANETI JUNIOR, Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

BARREIROS, Lorena Miranda Santos. O direito à distinção no sistema processual


civil brasileiro: perspectivas à luz do projeto de novo Código de Processo Civil.
Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n. 89,
p. 107-125, jan./mar. 2015.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 107-125, jan./mar. 2015 125
Assunção de competência (artigo 555,
§1º, do Código de Processo Civil, e
artigo 959 do NCPCP)

Luciana da Silva Paggiatto Camacho


Advogada associada do escritório Sette Câmara, Côrrea e Bastos Advogados Associados.
Atua na área de direito do consumidor, ações indenizatórias e contratos bancários. Mestranda
em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
Bolsista CAPES.

Resumo: O trabalho em questão trata do instituto da assunção de competência. O referido instituto está
previsto no artigo 555, §1º, do Código de Processo Civil; e, de lege ferenda, no artigo 959 do Código de
Processo Civil Projetado. A assunção de competência visa à organização judiciária e tem por finalidade
assegurar uniformidade nas decisões proferidas pelos Tribunais e, por consequência, proporcionar maior
celeridade processual. Sobre o instituto em tela, seguem considerações, pesquisas e tendências trazidas
pelo Código de Processo Civil Projetado, com o propósito de trazer luzes sobre tema, sem a intenção,
impossível, de esgotá-lo.
Palavras-chave: Assunção de competência. Uniformidade de jurisprudência. Celeridade processual.

Sumário: 1 Introdução – 2 Da nomenclatura “incidente de assunção de competência”– 3 Do cabimento


– 4 Da iniciativa para propositura do incidente de assunção de competência – 5 Matérias que ensejam a
pulverização de demandas no Poder Judiciário – 6 Assunção de competência no Código de Processo Civil
Projetado – 7 Conclusão – Referências

1 Introdução
Não há dúvidas e é de senso comum, mesmo aos leigos, que casos rigorosa­
mente iguais devem ser decididos de forma idêntica. Diversas reformas processuais
buscam, além da celeridade processual, mecanismos para proporcionar maior orga­
nização judiciária e julgamentos com uniformidade, evitando-se que casos idênticos
tenham decisões completamente diferentes.

O permanente intuito de estimular a uniformalização de jurisprudência,


tornando previsível o desfecho das causas repetitivas no âmbito dos
tribunais, de tempos em tempos, gera providências tendentes a atingir
tal quimérico objetivo.1

1
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 344.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23,


22, n. 89,
88, p. 127-138,
107-125, jan./mar.
out./dez. 2014
2015 127
Luciana da Silva Paggiatto Camacho

Nos dizeres de Barbosa Moreira, a Lei 10.352, consagrada no §1º que introduziu
no Código de Processo Civil, contempla incidente destinado a prevenir ou compor
divergência entre câmaras ou turmas do Tribunal sobre relevante questão de direito,
que seja preciso resolver no julgamento em curso.2
Pertinente elucidar que o incidente de assunção de competência já é utilizado
no Supremo Tribunal Federal (artigo 6º, II, b, combinado com os artigos 11 e 343 do
RISTF) e no Superior Tribunal de Justiça (artigos 12 e 14 do RISTJ) para fins de buscar
a eliminação das divergências existentes entre os julgados destas cortes.

A norma criou para os demais tribunais, o que já vem ocorrendo no


STF e no STJ. O Pleno do STF é competente para julgar as causas da
competência das Turmas (1ª e 2ª), que por elas lhe sejam enviadas
(RISTF 6º, II, b) nos casos enumerados no regimento interno (RISTF 11 e
343). As Seções do STJ (Direito Público [1ª], Direito Privado [2ª] e Criminal
[3ª]) são competentes para julgar as causas de competência das Turmas
(1ª à 6ª) que por elas lhes sejam enviadas (RISTJ, 12, parágrafo único, II)
nos casos enumerados no regimento interno (RISTJ, 14).3

Assim, assunção de competência é um instituto criado para esta finalidade,


qual seja, uniformizar a jurisprudência dos Tribunais, buscando ainda uma solução
ligada à organização judiciária e que, ainda por via oblíqua, além de proporcionar
uniformidade, também se direciona para propiciar maior celeridade processual em
abono ao princípio da razoável duração do processo previsto no artigo 5º, inciso
LXXVIII, bem como do artigo 8º, I, do Pacto de San José da Costa Rica – Convenção
Americana de Direitos Humanos.

O direito processual brasileiro utilizou, ao longo do tempo, inúmeros


institutos tendentes a eliminar, ou no mínimo a diluir a nível tolerável, a
desarmonia dos julgados.4

De contrapartida, hodiernamente, existe uma pulverização de demandas idên­


ticas, que, por vezes, trazem uma aparente individualização, que não é real, mas
que gera decisões discrepantes em todo o território nos diversos tribunais do país,
inclusive dentro de um mesmo tribunal.
O instituto, que, infelizmente, não é muito usado, seria um mecanismo para
propiciar a uniformalização de jurisprudência dos tribunais da federação.
A assunção de competência está disciplinada no Código de Processo Civil, no
Livro I, Título X, Capítulo VII – Da ordem dos processos no Tribunal, artigo 555, §1º.

2
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2010. p. 675.
3
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extra­
vagante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 998.
4
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 321.

128 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 127-138, jan./mar. 2015
Assunção de competência (artigo 555, §1º, do Código de Processo Civil, e artigo 959 do NCPCP)

Art. 555. No julgamento de apelação ou de agravo, a decisão será tomada,


na câmara ou turma, pelo voto de 3 (três) juízes. (Redação dada pela Lei
nº 10.352, de 26.12.2001).
§1º Ocorrendo relevante questão de direito, que faça conveniente prevenir
ou compor divergência entre câmaras ou turmas do tribunal, poderá o
relator propor seja o recurso julgado pelo órgão colegiado que o regimento
indicar; reconhecendo o interesse público na assunção de competência,
esse órgão colegiado julgará o recurso.

2 Da nomenclatura “incidente de assunção de competência”


Além do termo encampado pela doutrina, o instituto também pode ser conhecido
como, por exemplo, prevenção, composição de divergência e afetação do julgamento.5
Todavia, o instituto tem sido mais conhecido em nosso ordenamento jurídico
como “assunção de competência”.

3 Do cabimento
A assunção de competência tem cabimento no julgamento de apelação e agravo
nos casos de relevante questão de direito, existindo divergência entre câmaras ou
turmas do Tribunal.
Parte da doutrina tem entendimento de que o instituto deveria ter uma aplicação
mais elástica, e não nos exatos dizeres do artigo 555, §1º, do Código de Processo
Civil.
Em que pese o tratamento legislativo restritivo do manuseio do incidente, apenas
para os recursos de apelação e agravo se entende que a divergência pode ter origem
em outros julgamentos, como, por exemplo, em sede de embargos infringentes ou,
ainda, em ações originárias, devendo o instituto aqui tratado também ser manuseado
nestas ocasiões.
Logo, entende-se que “a localização do art. 555, §1º, sugere que a medida se
limita à apelação e ao agravo. No entanto, divergência da estatura preconizada na
regra pode se verificar, e frequentemente ocorre, em outros recursos, a exemplo dos
embargos infringentes e de causas de competência originária do Tribunal”.6
Diante da relevância social e da estabilidade do sistema, firmo-me que, havendo
divergência interna no tribunal, esta deve ser sanada, independentemente de sua
origem – oriunda da ação originária ou julgamento de recursos visando à criação
de precedentes e uniformalização dos julgados para maior estabilidade de todo o
sistema jurídico.

5
Idem; 343.
6
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2005; p. 658.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 127-138, jan./mar. 2015 129
Luciana da Silva Paggiatto Camacho

Sua colocação sugere que o incidente só terá cabimento quanto se estiver


julgando apelação ou agravo. Iguais razões, contudo, militam, em favor da
respectiva utilização no julgamento de outros recursos, ou de causa obri­
gatoriamente sujeita ao duplo grau de jurisdição. Não é apenas quando
se julga apelação ou agravo que surge questão de direito e relevante,
a cujo respeito seja conveniente prevenir ou compor divergência entre
órgão fracionários de um tribunal.7

Outro pressuposto para o manuseio do incidente em questão é que o julga­


mento esteja em curso, ou seja, ainda não tenha sido encerrado,8 bem como tratar
de solução de questão de direito.
Doravante, também se faz necessária que a divergência em questão seja aquela
presente interna corporis entre julgados do mesmo tribunal – existente entre suas
turmas julgadoras e câmaras.

É necessária, ainda, a presença de dissídio na interpretação de deter­


minada quaestio juris, apurado através de julgados contraditórios no
tribunal, caracterizando a chamada divergência intestina, ou seja, lavrar
dúvida dentro do mesmo tribunal entre julgados das câmaras ou das
turmas entre si ou destas com grupo ou seção cível.9

Um Tribunal com decisões uniformes, que decide de forma igual processos


que tratam de casos idênticos, de certo modo, também contribui para a celeridade
processual, uma vez que a parte sucumbente se sente desestimulada a interpor
determinado recurso, pois sabe previamente que suas chances de modificação do
julgado são remotas e que tal ato implicaria mais custos processuais, sem alteração
do resultado propriamente dito.
Decisões equânimes não implicariam em um obstáculo ao acesso à Justiça,
muito pelo contrário, se traduzem num mecanismo também psicológico de desestí­
mulo, uma vez que o Tribunal possui entendimentos sedimentados e consolidados
para orientar seus jurisdicionados.
Nesse sentido, pode-se depreender que “o acesso à Justiça pode, portanto,
ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos
– de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas
proclamar direitos de todos”.10
O instituto em questão busca diminuir as divergências internas das decisões
dos tribunais e pode assegurar maior unicidade dos julgados, consolidando o enten­
dimento do Tribunal local sobre determinada matéria em consonância até mesmo

7
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários ao CPC (de 1973). T. VIII. p. 220.
8
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2010. p. 675.
9
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 345.
10
CAPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2002. p. 12.

130 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 127-138, jan./mar. 2015
Assunção de competência (artigo 555, §1º, do Código de Processo Civil, e artigo 959 do NCPCP)

com teses firmadas nos Tribunais Superiores, e, assim, construir a estabilidade de


todo o sistema jurídico.
A assunção de competência tem o objetivo principal de dar maior unidade ao
direito, como dito, conferindo tratamento igual a casos idênticos analisados pelo
Poder Judiciário e eliminando divergências internas eventualmente existentes nos
Tribunais locais.

Toda uniformalização de jurisprudência é bem-vinda, já que proporciona


previsibilidade, bem como o pleno respeito ao princípio constitucional da
igualdade.11

A assunção de competência é um incidente que visa à uniformalização de juris­


prudência; todavia, em comparação com o incidente previsto no artigo 476, do Código
de Processo Civil, aquele é mais simplificado do que o instituto aqui tratado, pois o
artigo 476 do Código de Processo Civil apenas fixa a tese jurídica, cabendo ao órgão
fracionário o julgamento do recurso aplicando a tese jurídica definida.
No incidente previsto no artigo 555, §1º, o órgão competente para dirimir a diver­
gência já julga o recurso, subsumindo a tese ao caso concreto levado a julgamento
em um único ato.

O artigo 555, §1º, parece ter criado outro incidente de uniformalização


de jurisprudência, porém de modo mais simplificado. A assunção de com­
petência é proposta nas hipóteses de julgamento de grande relevância,
tendo como objetivo a prevenção da controvérsia sobre determinada
matéria.12

No mesmo sentido, preleciona dizeres de Barbosa Moreira:

(...) se trata de mais um expediente ordenado à uniformalização da


jurisprudência, que naturalmente se espera seja mais eficiente do que o
regulado nos arts. 476 e ss. do CPC. Pode-se até supor que ele venha
a ser preferido na prática judicial, substituindo ao outro instituto parcela
de sua importância já diminuta. Uma vantagem prática decerto se mani­
festa aqui. O órgão a que se remete a matéria não se limita a enunciar a
solução da quaestio juris, mas procede ao julgamento que competia ao
outro. Com ressalva que oportunamente se fará, não há a devolução ao
órgão de origem: tudo se resolve naquele que recebe o recurso. Evita-se
assim, o vaivém, causa de maior demora.13

11
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial: Noções introdutórias: Tensão entre estabilidade e
evolução: O que cabe a lei? O que cabe a jurisprudência?: Ambientes decisionais. São Paulo: RT, 2012. p. 13.
12
ALVIM, Arruda; ASSIS, Araken de; ALVIM, Eduardo Arruda. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de
Janeiro: AZ, 2012. p. 967.
13
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 5. Rio de Janeiro: Forense,
2003. p. 653

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 127-138, jan./mar. 2015 131
Luciana da Silva Paggiatto Camacho

Nesta busca de unidade por meio de uniformidade da jurisprudência, “insere-


se um conjunto de medidas que claramente ocupa-se de valorizar a jurisprudência
pacificada pelos tribunais, estimulando o prestígio aos precedentes judiciais, em suas
diversas formas de expressão e formação”.
Essa valorização não é refletida apenas no conteúdo da decisão judicial, ora
vinculada à jurisprudência uniformizada, ora meramente influenciada por ela.

Seus reflexos também são sentidos no procedimento que, influenciado


pelas precedentes jurisprudenciais, pode ser encurtado ou abreviado
pela supressão de um incidente ou atividade processual, sempre que o
objetivo dessa atividade for discutir algo já apreciado e consolidado pelo
Poder Judiciário.14

A busca por uniformizar a jurisprudência pode ser facilmente notada com as


recentes reformas atinentes à matéria de processo civil, com o advento de insti­
tutos como o tratado aqui, a criação de súmulas vinculantes, julgamento de recursos
repe­titivos, os poderes dados ao Relator para julgamento monocrático, entre outras
medi­­das; tudo na tentativa de valorizar precedentes, uniformizar a jurisprudência e
per­quirir a celeridade processual.

4 Da iniciativa para propositura do incidente de assunção


de competência
A parte final do §1º do artigo 555 do Código de Processo Civil designa a legi­
timidade para iniciativa do incidente ao relator.

(...) poderá o relator propor seja o recurso julgado pelo órgão colegiado
que o regimento indicar; reconhecendo o interesse público na assunção
de competência, esse órgão colegiado julgará o recurso.

Todavia, como dito, existente divergência interna corporis, em consonância


com o objetivo principal do instituto, seria um poder-dever, e não uma faculdade do
relator intentar o incidente, pois, havendo divergência interna, o interesse público é
presumido, devendo a questão divergente ser resolvida para fins de estabilização da
jurisprudência daquele tribunal.
E ainda no que concerne a iniciativa de intentar o incidente, o melhor entendimento
consistiria em conceber que este poderia ser suscitado por qualquer das partes, por
outros membros da câmara ou da turma julgadora ou, ainda, pelo Ministério Público,
sendo este parte ou fiscal da lei.

14
MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. A jurisprudência uniformizada como estratégia de aceleração do proce­
dimento. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2012. p. 343.

132 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 127-138, jan./mar. 2015
Assunção de competência (artigo 555, §1º, do Código de Processo Civil, e artigo 959 do NCPCP)

A lei atribui ao relator a iniciativa do incidente, embora não se deva excluir


a possibilidade de que a sugestão parta de qualquer dos litigantes, em
requerimento dirigido àquele, do Ministério Público, em parecer que
emita na qualidade de custos legis, ou de outro membro do órgão, e seja
encampada pelo relator.15

5 Matérias que ensejam uma pulverização de demandas no


Poder Judiciário
Vários fatores sociais e econômicos, e fenômenos legislativos produzem uma
pulverização de demandas envolvendo lides individuais idênticas.

A economia em escala, a documentação informática e a comunicação


eletrônica produziram no Judiciário o resultado da geração de números
elevados de recursos relativos a lides individuais idênticas. A individua­
lização, entretanto, é mais aparente do que real. Integram elas, em ver­
dade, a mesma macrolide socioeconômica. É o que se dá nas ações
envolvendo entes jurídicos de intensa prática negocial repetitiva, geral­
mente, no âmbito privado, instrumentalizadas por contratos de adesão e,
no âmbito público, pelo relacionamento jurídico decorrente de situações
administrativas e tributárias que produzam consequências relativamente
à pluralidade de sujeitos.16

A individualidade de cada ação é meramente aparente, pois tais processos,


em suas essências, são idênticos, merecendo o mesmo tratamento pelo Poder Judi­
ciário, como, por exemplo, ações envolvendo discussão de exigibilidade de impostos,
contratos relacionados ao consumidor, e instituições financeiras (tarifas, juros e
encargos), consórcios, incorporações imobiliárias, convênios médicos, estabe­ leci­
mentos de ensino, etc.

Nos casos judiciais resultantes dessas atividades não se tem, propria­


mente, a lide individual clássica, mas, sim, fenômeno diverso: a macrolide,
a desdobrar-se em ações e processos individuais. A composição das
lides é apenas ilusoriamente individual. Contornos principais dos casos
individuais transmigram entre os autos dos processos; argumentos
expos­tos individualmente espraiam-se a todos os processos e, ao final,
fun­­damentos das pretensões e motivos dos julgados mesclam-se, mor­
mente ante o fenômeno moderno da reprodução em massa de papéis
– via copiadoras, impressoras e o envio por Internet – e, entre nós, da
ânsia das partes de prequestionar desde a inicial – para haver acesso
aos Tribunais Superiores – e os julgadores para o possível atalhe à
interposição de Embargos de Declaração.17

15
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2010. p. 675.
16
BENETI, Sidnei Agostinho. Assunção de competência e fast-track recursal. Revista de Processo. São Paulo:
Revista dos Tribunais, v. 171, p. 9, mai. 2009.
17
BENETI, Sidnei Agostinho. Assunção de competência e fast-track recursal. Revista de Processo. São Paulo:
Revista dos Tribunais, v. 171, p. 9, mai. 2009.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 127-138, jan./mar. 2015 133
Luciana da Silva Paggiatto Camacho

Nesses casos, há uma mesma matéria fática que se subsome à mesma


matéria de direito, ocasionando, assim, a mesma solução jurídica, e até mesmo
pela celeridade processual, se superada determinada divergência interna do Tribunal
e, com isso, prevalecendo determinado entendimento sobre a matéria levada para
julgamento. Ora, decisões equânimes geram maior segurança jurídica, à medida
que, em longo prazo, desestimulariam a interposição de recurso diante da posição
consolidada firmada e remotas chances de mudança de entendimento sobre aquela
matéria já decidida.
O instituto “assunção de competência” é de grande valor, logo, diminuindo o
problema gerado por decisões oscilantes, que, além de causar insegurança, faz com
que o inconformismo da parte a impulsione a recorrer diante de mera expectativa de
ver sua ação julgada de forma diferente, justamente porque, internamente, naquele
Tribunal, existe divergência sobre a matéria que versa sua ação.

6 Assunção de competência no Novo Código de Processo Civil


Projetado
Como exposto acima e por ser a assunção de competência um excelente inci­
dente para uniformalização da jurisprudência dos tribunais, este instituto está pre­
visto expressamente no Código de Processo Civil projetado, localizando-se no Livro
III – Dos Processos nos Tribunais e Dos meios de impugnação das decisões judiciais,
Título 1 – Da Ordem dos Processos e dos Processos de Competência Originária dos
Tribunais, Capítulo 1 – Da ordem dos processos nos Tribunais, Artigo 959 do CPCP,
merecendo algumas considerações pontuadas.
Segue a nova redação do instituto:

Art. 959. Ocorrendo relevante questão de direito, que enseje conveniente


prevenção ou composição de divergência entre órgãos fracionários do
tribunal, deverá o relator, de ofício ou a requerimento das partes ou do
Ministério Público, propor que seja o recurso julgado pelo órgão colegiado
que o regimento interno dispuser como competente para uniformização
de jurisprudência; reconhecendo interesse público na assunção de com­
petência, esse órgão colegiado dará conhecimento ao Presidente do Tri­
bunal e julgará o recurso.
§1º Cientificado da assunção da competência, o presidente do tribunal
dar-lhe-á ampla publicidade e determinará a suspensão dos demais
recursos que versem sobre a mesma questão.
§2º A decisão proferida com base neste artigo vinculará todos os órgãos
colegiados, salvo revisão de tese, na forma prevista no regimento interno
do tribunal.

O instituto traz diversos progressos se comparado com o previsto no atual


Código de Processo Civil, pois se aperfeiçoou em consonância com os ensinamentos
da doutrina moderna.

134 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 127-138, jan./mar. 2015
Assunção de competência (artigo 555, §1º, do Código de Processo Civil, e artigo 959 do NCPCP)

Há diversos dispositivos no Código de Processo Civil Projetado que traz o único


e exclusivo objetivo de propiciar, por meio do incidente de assunção de competência,
integração e unidade das decisões judiciais, uniformizando os precedentes, e dando
maior segurança jurídica e certeza quanto à posição do Tribunal sobre as matérias
levadas a julgamento.
As previsões no Novo Código de Processo Civil referentes à assunção de com­
petência são propositalmente entrelaçadas em um diálogo de fontes com outros insti-
tutos de processo, como a improcedência prima facie, as possibilidades de decisões
mo­no­cráticas pelo relator, dentre outros mecanismos, na tentativa de fomentar suas
aplicações para atingir a sua finalidade de criação, que é dirimir, supe­rar e sanar não
só as divergências internas nos julgados dos tribunais, mas do orde­namento como
um todo.
A primeira alteração no dispositivo, em comparação com o atual Código de
Processo Civil, diz respeito à legitimidade para suscitar o incidente, que deixa de
ser restrita ao relator, antes prevista no artigo 555, §1º, do Código de Processo Civil
e que passará a ter como legitimados, além do relator de ofício, as partes e o
Ministério Público.
Outro ponto importante para evitar a formação de divergência é a previsão
no Novo Código de Processo Civil Projetado da composição de um colegiado espe­
cializado para julgamento de matérias específicas e com uma seleção prévia de
recursos, desde a distribuição, por profissionais habilitados para facilitar a resolução
de eventuais divergências.
O julgamento do resultado do incidente de assunção de competência passará
vincular todos os órgãos fracionários, valorizando o precedente firmado no seu jul­
gamento, salvo revisão da tese, na forma prevista no Regimento Interno do Tribunal,
nos termos do artigo 900 do Código de Processo Civil Projetado.
O Código de Processo Civil Projetado institui sistemática diferente do atual
julgamento prima facie previsto no artigo 285-A do CPC/73, em que o precedente a
ser adotado poderia ser o mesmo juízo que proferisse a decisão de improcedência;
além disso, prevê a possibilidade de o juiz julgar liminarmente improcedente o pedido,
independentemente da citação do réu com base em julgamento de tese consolidada
em sede de incidente de assunção de competência.
Assim, a rejeição liminar da demanda será cabível quando: a matéria for
exclusivamente de direito; o pedido contrariar súmula do Supremo Tribunal Federal
ou do Superior Tribunal de Justiça, ou acórdão proferido pelo Supremo Tribunal
Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
ou, ainda, contrariar entendimento firmado em incidente de resolução de demandas
repetitivas ou de assunção de competência – nos termos do artigo 333, III, do Código
de Processo Civil Projetado.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 127-138, jan./mar. 2015 135
Luciana da Silva Paggiatto Camacho

A reforma encampou o entendimento já amplamente difundido pela doutrina


de que a improcedência prima facie prevista no artigo 285-A do atual CPC/1973
não deveria se nortear apenas por precedentes do juízo, mas, sim, em sentenças
lastreadas pelos precedentes firmados pelos Tribunais – Tribunais de Justiça, Supe­
rior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal.

Não nos parece que o dispositivo em questão deva ser aplicado nas
hipóteses em que o entendimento do juízo revela-se contrário, à posição
do tribunal local e, como muito mais razão, quando essa incompatibilidade
se der, com a orientação dos tribunais superiores.18

Outro ponto que merece algumas considerações concerne à possibilidade de


os relatores decidirem recursos monocraticamente, que ficou restrita a hipóteses
objetivas.
Pelo projeto, a atuação unipessoal somente poderá ocorrer quando a decisão
se apoiar em súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça
ou do próprio Tribunal; ou em acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou
pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de casos repetitivos; ou, ainda, em
entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou, por
fim, em incidente de assunção de competência – nos termos do artigo 945 do NCPC.
A reclamação passa a ser prevista expressamente no Novo Código, e suas
hipóteses de cabimento serão ampliadas para preservar a competência do Tribunal;
garantir a autoridade das decisões do Tribunal; preservar a observância de súmula
vinculante; assegurar a observância da tese firmada em incidente de resolução de
demandas repetitivas; e confirmar a observância da tese firmada em incidente de
assunção de competência, nos termos do art. 942 a 947, e artigo 1.001, inciso III,
do Código de Processo Civil Projetado.
A remessa necessária poderá ser afastada em hipóteses expressamente
previstas em lei; assim, a não incidência da regra prevista no artigo 507 do Código
de Processo Civil Projetado, que trata da remessa necessária, ocorrerá nos casos
em que a sentença se fundar em súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Supe­rior
Tribunal de Justiça; acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Supe­rior
Tribunal de Justiça em julgamento de casos repetitivos; entendimento firmado em
incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
com­ preensão coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito adminis­
trativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula
administrativa.

18
ALVIM, Arruda; ASSIS, Araken de; ALVIM, Eduardo Arruda. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de
Janeiro: AZ, 2012. p. 450.

136 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 127-138, jan./mar. 2015
Assunção de competência (artigo 555, §1º, do Código de Processo Civil, e artigo 959 do NCPCP)

Julgamentos de conflito de competência poderão ser julgados de plano pelo


relator quando fundado em tese firmada no julgamento do incidente de assunção de
competência – art. 967, parágrafo único, inciso II, do NCPCP.
A hipótese de cabimento dos embargos de declaração foi também ampliada
na medida em que instituiu que se presumirão omissas as decisões que não se
manifestem sobre tese firmada em incidente de assunção de competência, nos termos
do artigo 1.035, parágrafo único, inciso I, do Código de Processo Civil Projetado.

7 Conclusão
Assim, por todas as considerações tecidas, depreende-se que o instituto aqui
tratado é uma potente arma para dirimir divergências existentes internamente nos
Tribunais, pois decisões uniformes se traduzem em segurança jurídica para todos –
jurisdicionados, advogados, magistrados e membros do Poder Judiciário.
Conclui-se, por outro lado, que a oscilação de entendimento e as divergências
internas dos Tribunais fomentam a interposição de recursos, pois a parte sucumbente
se norteia por dois fatores: seu inconformismo e possibilidade de alteração do jul­
gado, mesmo que mínima, mas presente e baseada justamente na divergência, e
obstando, assim, qualquer medida para a celeridade processual.
As decisões uniformes e em consonância com a Constituição, bem como
fun­dadas nas legislações atinentes à matéria e, principalmente, corroboradas nos
prin­cípios gerais de direito, geram maior segurança jurídica e certeza, logo, não há
que se perder de vista que o instituto em tela vem a colaborar para formação de
deci­sões uniformes e criação de precedentes que norteiem o julgamento de casos
futuros, propiciando, assim, uma homogeneidade do sistema, bem como tratamento
isonômico.
Por fim, o Novo Código de Processo Civil aperfeiçoou a assunção de competência
em muito, fomentando sua aplicação na medida em que o insere dentro de outros
institutos de Processo Civil, como exposto, e ampliando a legitimidade para suscitar
o incidente.
Assim, não há de se perder de vista que o Novo Código de Processo Civil atendeu
os anseios da doutrina, em especial no que se refere à “assunção de competência”,
ampliação da legitimidade para suscitar o incidente, bem como sua aplicação em
conjunto com outros institutos.

Abstract: The work in question comes from the Institute of assumption of jurisdiction. That institute is laid
down in Article 555, §1 of the Code of Civil Procedure; and de lege ferenda, Article 959 of the New Code of
Civil Procedure designed. The assumption of jurisdiction seeks a judicial organization and aims to ensure
uniformity in the decisions of the courts have been entered, and therefore provide greater celerity. About
the institute on screen following some considerations and research institute.
Keyword: Assumption of competency. Uniformity of jurisprudence. Celerity.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 127-138, jan./mar. 2015 137
Luciana da Silva Paggiatto Camacho

Referências
ALVIM, Arruda; ASSIS, Araken de; ALVIM, Eduardo Arruda. Comentários ao Código de Processo Civil.
Rio de Janeiro: AZ, 2012. p. 967.
ASSIS, Araken de. Manual dos recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2010.
______. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005.
______. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 5. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
BENETI, Sidnei Agostinho. Assunção de competência e fast-track recursal. Revista de Processo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, v. 171, p. 9, mai. 2009.
CAPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor;
2002. p.12.
MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. A jurisprudência uniformizada como estratégia de aceleração do
procedimento. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2012. p. 343.
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação
extravagante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários ao CPC (de 1973). T. VIII.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial: Noções introdutórias: Tensão entre estabilidade
e evolução: O que cabe a lei? O que cabe a jurisprudência?: ambientes decisionais. São Paulo: RT,
2012. p. 13.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

CAMACHO, Luciana da Silva Paggiatto. Assunção de competência: artigo 555, §1º,


do Código de Processo Civil, e artigo 959 do NCPCP. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 127-138, jan./mar. 2015.

138 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 127-138, jan./mar. 2015
Memória, prova testemunhal e
reconhecimento pessoal no processo
penal

Marcio Muniz Nascimento


Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Especialista em Direito Penal e Processual Penal
pela Faculdade IDC. Membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados
do Brasil – Seção RS. Pesquisador voluntário junto ao Instituto de Bioética da PUCRS e à
Sociedade Riograndense de Bioética – SORBI, com ênfase em estudos de temas relacionados
à Bioética e ao Direito Penal Médico. Advogado Criminal.

Yuri Felix
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela
Universidade de Coimbra/IBCCrim. Pós-graduado em Ciências Penais. Presidente da
Comissão de Direito Penal e Direito Processual Penal da 40ª Subseção da OAB/SP. Ex-
coordenador do PRONASCI/MJ. Professor e palestrante com artigos publicados em revistas
especializadas. Advogado criminal em São Paulo. E-mail: <advyuri@gmail.com>.

Resumo: Nas próximas páginas, seguirão algumas reflexões a respeito do uso da memória no processo
penal, sobretudo a que ingressa no jogo do processo como material probatório. Ainda, serão analisadas
algumas características das falsas memórias por meio de alguns cases e suas consequências no momento
em que se utilizou do depoimento de indivíduos que sofreram algum tipo influência em suas lembranças,
acarretando graves impactos no processo. Por fim, será colocada uma perspectiva de processo penal e a
imperiosa necessidade de respeito às regras do jogo.
Palavras-chave: Processo penal. Memória. Testemunha. Reconhecimento pessoal. Falsas memórias.

Sumário: 1 Introdução – 2 Breve contexto histórico sobre o estudo do fenômeno das falsas memórias
– 3 Taxonomia e teorias explicativas das falsas memórias – 4 Problemáticas das falsas memórias no
processo penal: a prova testemunhal e o reconhecimento de pessoas – 5 Formas de redução de danos –
6 Considerações finais – Referências

1 Introdução
No presente artigo, pretende-se discorrer acerca da memória humana, além
de alguns aspectos controvertidos de sua utilização nos processos judiciais, mais
especificamente quando utilizada com a finalidade de produção de provas: a prova
testemunhal e o reconhecimento pessoal. O desenvolvimento dos estudos sobre o
processo de armazenamento de informações (memória) tem suscitado cada vez mais

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015 139
MARCIO MUNIZ NASCIMENTO, YURI FELIX

indagações sobre o funcionamento do cérebro e eventuais interferências internas e


externas. Estas põem em xeque a confiabilidade de uma fonte tradicional de prova no
processo penal brasileiro: a testemunha.
Há muito se tem levantado questionamentos envolvendo o valor probatório da
prova testemunhal, assim como o reconhecimento pessoal. Isso porque as provas
daí produzidas são judicializadas a partir de uma fonte especialmente suscetível a
influências de natureza interna e externa: a mente humana. Compreende-se que igno­
rar os desafios de entender o funcionamento da mente humana seria uma forma
irresponsável de lidar com o processo penal, onde a produção de provas pode
determinar uma interferência incomensurável do Estado sobre as vidas dos indivíduos.
Ciente dos desafios do tema, elabora-se este breve ensaio como forma de
elucidar alguns pontos que devem se fazer presentes para o jurista que busca uma
excelência na produção de provas processuais. Para tanto, faz-se imprescindível –
aos atores do Direito – um debruçar sobre os estudos da psicologia. Somente desta
forma, através de estudos interdisciplinares, será possível compreender o tema,
evitando, assim, uma produção inadequada de provas, propondo alternativas para
um processo penal constitucionalmente mais orientado.

2 Breve contexto histórico sobre o estudo do fenômeno


das falsas memórias
Primeiramente, é imperioso destacar que as falsas memórias (FM) não devem
ser confundidas com mentiras ou fantasias pessoais. Em sua base cognitiva e neuro­
fisiológica, são semelhantes às memórias verdadeiras (MV), diferenciando-se destas
por serem compostas – total ou parcialmente – por lembranças de informações ou
eventos irreais; porém, são “frutos do funcionamento normal, não patológico, de
nossa memória”.1
A memória humana não deve ser interpretada como um processo ilustrativo,
dada a sua incapacidade de armazenamento de informações específicas ao longo da
vida. Neurocientistas, como Antônio Damásio, e psicólogos, como Elizabeth Loftus,
são, hoje em dia, referências para que se possa compreender o funcionamento da
memória humana e enfrentar alguns problemas sobre o tema. Conscientes da indis­
sociável ligação entre a razão e a emoção, e das limitações cerebrais no tocante ao
arma­zenamento de informações, os indivíduos estão obrigados a enfrentar alguns
desafios, como as falsas memórias.
Desde o final do século XIX, o estudo sobre as FM tem atraído os olhares da
comunidade científica. Um marco foi o caso de um francês, Louis, o qual se recordava

1
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010. p. 22.

140 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015
Memória, prova testemunhal e reconhecimento pessoal no processo penal

de fatos que nunca aconteceram de verdade, tornando-se um desafio para psicólogos


e psiquiatras. Theodule Ribot, em 1881, com base nos estudos da época, utilizou,
pela primeira vez, a expressão falsas lembranças. No início do século XX, Freud
também se debruçou sobre o tema, o que, de certa forma, o obrigou a revisar a sua
teoria da repressão.2 Porém, são creditados a Albert Binet, em 1900, os primeiros
estudos específicos sobre as FM, onde foi evidenciada a sugestionabilidade da
memória, a saber: a incorporação e a recordação de informações falsas – de origem
interna ou externa –, as quais o indivíduo lembra como se verdadeiras fossem. Outro
importante contributo deste pesquisador foi a categorização do processo de sugestão
sobre a memória. Esta poderia ser autossugerida ou deliberadamente sugerida. Mais
tarde, as distorções mnemônicas desses processos ganharam a denominação de
FM espontâneas ou FM sugeridas.3
Os avanços de Binet foram utilizados para as pesquisas de Stern, na Alemanha,
em 1910 – utilizando participantes com idades entre 7 a 18 anos –, onde a tese
daquele restou corroborada a partir de dados empíricos. Ficou comprovado um menor
grau de sugestionabilidade quando as recordações eram acessadas de forma livre;
de outro lado, perguntas com sugestões falsas produziam mais erros. Barlett, na
Inglaterra, em 1932, foi o primeiro a estudar as FM – desta vez, com adultos – com
a utilização de materiais com maior grau de complexidade para memorização. Aqui,
tem-se um marco importante para a Teoria dos Esquemas, onde Barlett apontava
“a recordação como sendo um processo reconstrutivo, baseado em esquemas men­
tais e no conhecimento geral prévio da pessoa, salientando o papel da compreensão
e a influência da cultura nas lembranças”.4
Em 1959, Deese contribui para a compreensão das FM propondo uma série
de listas com palavras semanticamente associadas à outra palavra não incluída
no material de estudo. Aqui, o objetivo era verificar se a “associação entre palavras
estu­dadas produzia efeitos diferentes na sua recuperação e em possíveis intru­
sões”, ou seja, “recordar informações novas que não estavam nas listas originais”.5

2
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010. p. 23. A autora explica que a teoria da repressão, em Freud, apontava que as “memórias de
eventos traumáticos da infância seriam esquecidas (isto é, reprimidas), podendo emergir em algum momento
da vida adulta, através de sonhos ou sintomas psicopatológicos”. A revisão desta teoria é fundamentada
através da descoberta de falsas recordações, oriundas de desejos reprimidos ou de uma fantasia da infância.
3
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010, p. 23.
4
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010. p. 24. Barlett realiza uma interessante experiência através da lenda The War of the Ghosts, dos
índios norte-americanos. Ele apresenta a lenda a um grupo de estudantes universitários ingleses e, após, em
períodos de horas, dias, meses e até anos, solicitava que os alunos reproduzissem a lenda. Verificou-se que
houve uma “reconstrução” – com a inclusão e informações nunca reproduzidas – conforme a cultura vivenciada
pelos depoentes: o trecho “dois jovens foram caçar focas” passou a ser reproduzido como “dois jovens tinham
ido pescar”, expressão mais adequada àquele contexto histórico-cultural.
5
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015 141
MARCIO MUNIZ NASCIMENTO, YURI FELIX

Posteriormente, já nos idos de 1995, Roediger e McDemott retomaram o trabalho


de Deese, elaborando 24 listas de palavras para a verificação das FM, procedimento
que ficou conhecido como paradigma DRM.6 Já na década de 70, Elizabeth Loftus,
a partir das experiências de Binet, introduziu um novo procedimento para o estudo
das FM em adultos – uma adaptação do clássico Paradigma da Interferência de Müller
e Shumann, 1894; e Underwood, 1957 –, o qual denominou de Procedimento de
Sugestão de Falsa Informação ou Sugestão.7
Os avanços científicos entre as décadas de 70 e 90 foram consideráveis dadas
as contribuições – num curto espaço de tempo – para o entendimento das bases de
diferenciação das FM e suas teorias explicativas. De posse dessa breve contex­tua­
lização histórica, segue-se com o estudo de sua taxonomia e suas teorias explicativas.

3 Taxonomia e teorias explicativas das falsas memórias


O estudo da taxonomia das FM é essencial para que se possa detalhar suas
origens, bem como os agentes que as compõem ou influenciam na sua formação.
Pode-se afirmar que as FM, quanto à sua origem, podem ser classificadas em FM
espon­tâneas e FM sugeridas. A primeira origina-se a partir de circunstâncias internas,
ou seja, distorções endógenas, igualmente denominadas distorções autossuge­ridas.
Estas ocorrem quando a lembrança é modificada internamente, fonte do funcionamento
natural da memória e sem interferências externa. Dessa forma, o sujeito incorpora,
espontânea e naturalmente, informações ao processo de reconstrução da memória.
Estas informações seriam aglutinadas a um evento, quando, na realidade, refere-se
a outro.8 Quanto à segunda classificação, as FM têm origem na incorporação de
informações de uma fonte exógena ao sujeito, ou seja, fatores externos influenciam
como fonte de elementos na reconstrução da memória. E esta influência externa
ainda pode ser analisada como acidental – sem qualquer previsão de finalidade –,
ou, ainda, deliberada­­ – causada de forma objetiva. Estes fenômenos de sugestões da
memória são denominados modernamente de efeito da sugestão de falsa informação.
Mais especificamente, a FM – tanto espontânea quanto sugerida – é um “fenômeno

Alegre: Artmed, 2010. p. 24. Na pesquisa, palavras como descanso, cama, acordar e sonho influenciaram na
recordação da palavra dormir, que não constava na tal lista.0
6
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010. p. 24. O nome se deve à junção das iniciais dos nomes dos pesquisadores: Deese, Roediger
e McDermott.
7
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto
Alegre: Artmed, 2010. p. 24-25. Nessa adaptação experimental, verificou-se um processo de indução/suges­
tão mediante a interferência proposital do entrevistador, o qual, após mostrar uma cena de um acidente,
convenceu os participantes que a causa do evento foi a não observância da placa “dê a preferência”, quando,
na realidade a placa tratava-se de “parada obrigatória”.
8
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010. p. 25-26.

142 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015
Memória, prova testemunhal e reconhecimento pessoal no processo penal

de base mnemônica, ou seja, uma lembrança, e não de base social, como uma
mentira ou simulação por pressão social”.9
Passa-se agora às teorias explicativas das falsas memórias, onde a comunidade
científica criou hipóteses a fim de elucidar o processo de constituição das FM. Basi­
camente, três teorias se destacam: o paradigma construtivista, a teoria do monito­
ramento da fonte e a teoria do traço difuso.10
O paradigma construtivista é elaborado a partir dos seguintes pressupostos:
1) um único sistema de memória; 2) a memória seria construída com base no sig­
nif­icado; 3) as FM têm origem no processo de interpretação das informações recebi­
das. Esse paradigma dá origem, então, às outras duas teorias, que são a teoria
construtivista e a teoria dos esquemas.
A primeira é calcada num único sistema de construção, onde o indivíduo incorpora
na memória a sua compreensão das informações obtidas. Nessa tentativa cons­tante
de compreender o que é sentido, ocorrem contínuas reconstruções do significado
de suas experiências, assim como sujeições às interferências. A segunda teoria
também possui a “base construtivista”; porém, afirma que a memória é construída
com base em esquemas mentais, que seriam organizados conforme os (pré)conceitos
gerais que cada um possui sobre determinada situação. Assim, cada informação
recebida seria classificada e organizada conforme esses esquemas previamente
criados, reduzindo a complexidade do mundo, fazendo com que “saibamos o que
espe­rar de diferentes ambientes e situações”.11 Assim, as FM seriam causadas no
pro­­cesso de contínua interpretação das informações, e sua categorização à luz dos
esquemas mentais previamente elaborados.
Ambas as teorias são criticadas por adotarem um modelo único de memória –
baseada na experiência do indivíduo, numa concepção unitária – quando a comunidade
científica revelara que cada um cria mais de um modelo de memória. Evidenciou-se
que se podem armazenar informações conforme as características destas, ou seja,
cada pessoa cria modelos de memórias tanto para dados genéricos quanto para
específicos.12
Para a teoria do monitoramento da fonte, as FM são criadas desde uma atribui­
ção errônea sobre a fonte, ou seja, ocorre um erro de julgamento na sua origem, e não
uma distorção da memória propriamente dita. Dessa forma, atribui-se às informações
algumas fontes as quais são determinadas a partir de um erro no monitoramento

9
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010. p. 27.
10
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010. p. 27.
11
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010. p. 29.
12
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010. p. 29.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015 143
MARCIO MUNIZ NASCIMENTO, YURI FELIX

destas. Esse erro seria explicado por uma semelhança entre um evento e outro, e,
ainda, pelo grau de cautela que é demandado para o monitoramento da fonte. Assim,
o indivíduo, ao ser pressionado a determinar a fonte com celeridade e restando
a sua atenção voltada a outros aspectos da tarefa, pode cometer um erro neste
moni­toramento. As críticas sobre essa teoria se baseiam numa descrença de que a
“memória é e permanece inalterada, podendo o indivíduo apenas cometer um erro no
moni­toramento da fonte”. Questiona-se, ainda, se a memória é, de fato, dependente
dessas fontes, e é apontada uma aproximação com o paradigma construtivista dada
a sua concepção num sistema único de memória.13
A teoria do traço difuso (TTD) pretende fornecer algumas respostas às falhas
apontadas das teorias anteriores. A memória seria composta de múltiplos traços,
com informações verdadeiras e falsas, ambas codificadas em paralelo e armazenadas
separadamente, contrastando com as visões formalistas (pensamento computacio­
nal) e logicistas (operações lógicas) do funcionamento cognitivo. Os pesquisadores
Brainard e Reyna trazem um novo elemento para o estudo das FM: a intuição. O
intui­cionismo seria uma forma de busca de caminhos que facilitem e agilizem a
compreensão para que cada um possa trabalhar com o essencial da experiência, o
signi­ficado por trás do fato, “ao invés de ter de processar informações específicas
e deta­lhadas”. Assim, a base do raciocínio seria o intuitivo, o não delimitado, o não
lógico, o difuso.14
Os adeptos da TTD concebem a memória composta por dois sistemas: a
memória de essência e a memória literal. Esta seria responsável pelo armazenamento
de informações literais e específicas, enquanto que, para aquela, caberia o registro
do significado da experiência. Ao conceber esses dois traços, percebem-se diferentes
taxas de esquecimento: em geral, as lembranças contidas na memória de essência
são muito mais estáveis ao longo do tempo. As FM seriam, então, interferências – no
armazenamento e recuperação – em um dos tipos de memória, substituindo algumas
informações ali contidas.15 Apesar da durabilidade dos traços de essência, algu­mas
situações evidenciam uma durabilidade maior de informações literais. Na literatura
sobre as FM, essas situações incomuns são explicadas através da heuristica da
distintividade, que é a tendência dos indivíduos em recordar de detalhes inespe­rados
em situações comuns.

13
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010. p. 32.
14
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010. p. 33.
15
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010, p. 35. A autora ainda expõe cinco princípios da teoria dos traços difusos: 1. o armazenamento
paralelo das informações; 2. a recuperação independente do que foi armazenado; 3. o julgamento das infor­
mações quando expostos à tarefa de recordação ou reconhecimento; 4. diferença na durabilidade entre os
traços literais e os traços de essência; 5. a habilidade dos indivíduos na recuperação dos traços de memórias.

144 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015
Memória, prova testemunhal e reconhecimento pessoal no processo penal

Independentemente da teoria que se adote, é oportuno ratificar que as FM não


são indicadoras de uma patologia, e, sim, fazem parte do funcionamento regular da
memória. Mais importante, porém, é ter consciência das suas limitações, pois, por
mais que se tenha certeza absoluta da veracidade da memória, ela não é infalível
e, por vezes, pode-se estar sob a influência das FM – em algum nível. Dessa forma,
o que se lembra pode não ter acontecido exatamente da forma que se recorda. É
uma situação digna de bastante atenção quando se aplica esses conhecimentos
no âmbito do processo penal. Principalmente quando lidamos com situações onde
provas são produzidas a partir do uso da memória humana, como é o caso da prova
testemunhal e do reconhecimento de pessoas.

4 Problemáticas das falsas memórias no processo penal:


a prova testemunhal e o reconhecimento de pessoas
Após uma breve contextualização das FM enquanto objeto da psicologia, pode-
se vislumbrar alguns desafios que a ciência jurídica tem enfrentado no tocante à
produção de provas. A situação ganha contornos ainda mais dramáticos quando se
trata de matéria criminal, onde se encontra a forma mais contundente de interferência
do Estado sobre a liberdade e a vida dos indivíduos.
Desse modo, cai a lanço esclarecer que se parte de uma perspectiva pós-
iluminista, numa compreensão de um Direito Penal de ultima ratio, adequado para
a proteção de bens jurídicos com dignidade compatível e dentro de uma concepção
material do delito, onde a aferição do desvalor sobre o bem é a pedra angular para
a determinação do ilícito-típico.16 Daí explica-se a preocupação sobre os limites que
a instrumentalização da dogmática do direito penal – o processo – exerce sobre o
indivíduo.

4.1 Prova testemunhal


Apesar do intenso debate sobre a validade da prova testemunhal, com a vigo­
rosa posição de Lopes Jr., a sua utilização no processo penal é uma (perigosa) rotina,
dado o grau de manipulação e confiabilidade.17 Diferente da visão ingênua adotada
por alguns, as informações que se consegue reter na memória não são perenes. As
memórias que se armazenam não podem ser equiparadas a fotografias ou cópias,
pois isto causaria uma sobrecarga da própria capacidade cerebral e geraria um
colapso mental dado o grande acúmulo de experiências ao longo da vida. Ainda,
se assim fosse – um “armazenamento fotográfico” –, restaria prejudicado o acesso

16
D´AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em Direito Penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens
jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.
17
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 670-671.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015 145
MARCIO MUNIZ NASCIMENTO, YURI FELIX

a essas informações. Dessa forma, Antônio Damásio, relembrando o trabalho de


Barlett, afirma que a memória seria – antes de uma reprodução – uma interpretação
de determinadas informações.18
Esse processo de interpretação abre uma brecha para que a prova testemu­
nhal seja maculada pelas FM.19 Os casos mais emblemáticos referem-se aos crimes
sexuais. E aqui cabe salientar a grande contribuição dos estudos da psicóloga ame­
ricana Elizabeth Loftus, que, desde as décadas de 80 e 90, trabalhava como assis­
tente de defesa na análise de testemunhas oculares. Em 1990, ela foi contratada
pelo advogado Dough Horngrad, responsável pela defesa de um caso de abuso sexual,
onde a suposta vítima havia se lembrado de ter sido estuprada pelo pai, o qual
também teria assassinado a sua melhor amiga. Essas lembranças teriam emergido
de sua memória 20 anos após a ocorrência dos fatos. Porém, no meio científico,
não havia estudos atestando a confiabilidade das “memórias reprimidas”. Apesar
de seu intenso trabalho na tentativa de demonstrar que a memória poderia sofrer
interferências, o réu foi considerado culpado, e sua sentença foi baseada quase
exclusivamente no testemunho pessoal da vítima, visto que não foram encontrados
dados que pudessem atestar os fatos. A partir daí, ocorreram mudanças legislativas
em alguns estados americanos, alterando o início da contagem do prazo de prescrição
para crimes de natureza sexual: de três anos a partir da data do fato para três anos
a partir da lembrança dos fatos. Isso gerou uma avalanche de processos criminais.20
A autora ainda menciona o caso de Nadean Cool, auxiliar de enfermagem
que, em 1986, após consultas com um psiquiatra a fim de iniciar tratamento de um
trauma em decorrência de um acidente sofrido por sua filha, passou então a “recordar”
que havia sido usada, na infância, em rituais satânicos. O impressionante também
era a riqueza de detalhes que a mulher relatava: sofrera abusos sexuais contínuos
– inclusive com o uso de animais –, fora obrigada a assistir ao assassinato de um
amigo de 8 anos e ainda foi convencida que possuía mais de 120 personalidades
em decorrência. Restou provado que as informações haviam sido sugeridas pelo
psiquiatra, que também a havia submetido a sessões de exorcismos. A indenização
para a paciente girou em torno de 2,4 milhões de dólares, em 1997.21

18
DAMÁSIO, Antônio. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 2. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996. p. 127-128. Na obra, o autor faz referência à contribuição de Barlett, mencionado no item
1 deste artigo, e a quem credita-se um dos marcos da teoria dos esquemas: a concepção (re)contrutivista da
memória, baseada em esquemas mentais, e ainda com a influência de aspectos culturais do indivíduo.
19
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 671. O autor faz um alerta sobre
a periculosidade maior das FM quando comparadas com as mentiras, visto que estas podem ser identificadas
com mais facilidade, enquanto que aquelas são construídas pelo imaginário do depoente – seja de forma
espontânea ou sugerida – e por ele julgadas como se verdadeiras fossem. Arriscamos afirmar que as técnicas
de detecção de mentira seriam ineficientes nestes casos!
20
ARAÚJO, Rodolfo. Elizabeth Loftus e o homem que não estava lá. Disponível em: <http://acertodecontas.blog.
br/artigos/experimentos-em-psicologia-elizabeth-loftus-e-o-homem-que-no-estava-l/>. Acesso em: 25 set. 2013.
21
LOFTUS, Elizabeth. Creating False Memories. In: Scientific American, 1997, v. 277, n. 3, p. 70-75. Disponível
em: <http://faculty.washington.edu/eloftus/Articles/sciam.htm>. Acesso em: 25 set. 2013.

146 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015
Memória, prova testemunhal e reconhecimento pessoal no processo penal

Outro caso que ganhou destaque foi o de Beth Rutherford, que, após ser
aconselhada por um conselheiro membro da igreja, começou a recordar de abusos
sexuais por parte de seu pai, um clérigo que abdicou do cargo quando as acusações
ganharam publicidade. Rutherford estava convicta de que sofrera constantes abusos
dos 7 aos 14 anos, detalhando que seu pai ainda contava com a ajuda de sua mãe
– esposa –, que havia engravidado duas vezes e forçado o aborto com o uso de um
cabide. Mais tarde, através de exames médicos, restou comprovado que ela, então
com 22 anos, ainda era virgem e que nunca havia engravidado. Mais uma indeniza­
ção milionária, na cifra de um milhão de dólares, em 1996.22 Esses casos são
alertas para o poder de influência que os profissionais da saúde mental – psicólogos,
psiquiatras, analistas, terapeutas e outros – detêm sobre seus pacientes, podendo
induzir a criação de FM sobre eventos traumáticos.23
No Brasil, um caso que se tornou um paradigma nos estudos das FM no âmbito
do processo criminal foi o da Escola Base, onde se abriu um debate sobre: a conduta
ética dos meios midiáticos; o despreparo da polícia judiciária ao trabalhar com o
tema; bem como a mercantilização da violência e do medo.24 Nos idos de 1994,
em São Paulo, duas mães denunciaram que seus filhos haviam sido submetidos a
sessões de orgias sexuais promovidas pelos donos da escola. Conforme depoimento
de uma das mães, seu filho de quatro anos disse que uma mulher adulta teria deitado
nua sobre ele e dado um beijo na sua boca. A notícia foi amplamente retransmitida
de forma precipitada – e irresponsável – pela mídia.25 Posteriormente, constatou-se
situações de “indução” nos depoimentos das crianças, as quais foram submetidas
a perguntas fechadas, com respostas monossilábicas do tipo “sim” ou “não”, ou
ainda respostas como meras repetições das perguntas ali efetuadas. O inquérito
policial foi arquivado, após o afastamento do delegado, em 1996.26
Sobre a produção de provas através do depoimento de crianças, algumas
questões são levantadas por Di Gesu, como: 1) a falta de costume de fornecer narra­
tivas sobre suas experiências; 2) a passagem do tempo, dificultando a recorda­ção
de eventos; 3) a intimidação de se reportar a eventos que causem vergonha ou
estresse; 4) a dificuldade em assumir que não sabe, mudando as versões a fim de
agradar ao adulto entrevistador.27 Dessa forma, o momento da entrevista é de crucial
importância para a qualidade do testemunho infantil.28

22
LOFTUS, Elizabeth. Creating False Memories. In: Scientific American, 1997, v. 277, n. 3, p. 70-75. Disponível
em: <http://faculty.washington.edu/eloftus/Articles/sciam.htm>. Acesso em: 25 set. 2013.
23
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 673.
24
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 674.
25
RIBEIRO, Alex. Os abusos da imprensa: caso Escola Base. Editora Ática, 1995. Disponível em: <books.google.
com.br/books?id=qu4uAAAAYAAJ>. Acesso em: 25 set. 2013. No livro, o autor aborda questões éticas na
atividade da imprensa, esmiuçando eventos que gravitaram sobre o caso.
26
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 675.
27
DI GESU, Cristina apud LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 677.
28
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto
Alegre: Artmed, 2010. p. 168 e ss. Neste capítulo, o fenômeno também é analisado tanto através de fatores

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015 147
MARCIO MUNIZ NASCIMENTO, YURI FELIX

De uma forma geral, o testemunho deve ser realizado com alguns cuidados
com intuito de elevar o seu grau de confiabilidade como prova no processo penal. Di
Gesu sugere algumas medidas redutoras de danos,29 as quais serão mencionadas
mais adiante.

4.2 Reconhecimento pessoal


O reconhecimento de pessoas e coisas está previsto nos artigos 226 e ss. do
CPP, podendo ocorrer tanto na fase pré-processual quanto na fase processual. Diz o
artigo:

Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de


pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descre­
ver a pessoa que deva ser reconhecida;
II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se pos­
sível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convi­
dando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhe­
cimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade
em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará
para que esta não veja aquela;
IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito
pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento
e por duas testemunhas presenciais.
Parágrafo único. O disposto no III deste artigo não terá aplicação na fase
da instrução criminal ou em plenário de julgamento.

Lopes Jr. observa que a forma da produção deste tipo de prova está estritamente
definida. Ainda, observa que, em matéria processual penal, forma é garantia, não
havendo, portanto, espaço para informalidades judiciais.30
O ato do reconhecimento de pessoas e coisas deve ser estritamente formal e
observando regras que evitem o induzimento. Lopes Jr. ainda observa que, na prática
processual penal, podem ocorrer situações onde o reconhecimento é realizado infor­
malmente, sem qualquer atenção aos avanços científicos da psicologia. O autor
lembra uma cena muito comum das audiências: o juiz ordena que a vítima se vire e
pergunta se ela reconhece o réu ali presente. Questiona-se se tal procedimento, em
nome do livre convencimento do juiz, constituiria uma prova ilícita, pois:

desenvolvimentais – aspectos da fase de desenvolvimento da criança – quanto de fatores individuais –


aspectos subjetivos, referentes às características de uma criança em particular.
29
DI GESU, Cristina apud LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 680.
Ainda, segundo a autora, a prova testemunhal seria o fator humanizante do processo, devendo a ciência
jurídica estar atenta à inserção de novas tecnologias a fim de “reduzir os danos decorrentes da baixa qualidade
da prova produzida atualmente”.
30
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 681.

148 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015
Memória, prova testemunhal e reconhecimento pessoal no processo penal

Viola o sistema acusatório (gestão da prova nas mãos das partes); b)


quebra a igualdade de tratamento, oportunidades e fulmina a imparcia­
lidade; constitui flagrante nulidade do ato, na medida em que praticado
em desconformidade com o modelo legal previsto; e por fim, nega eficácia
ao direito de silêncio e de não fazer prova contra si mesmo.31

O artigo 226 do CPP é omisso no tocante a algumas peculiaridades do ato do


reconhecimento. O referido autor apresenta, então, algumas informações da jurispru­
dência internacional: a) número de pessoas apresentadas para reconhecimento não
deve ser inferior a cinco; e b) devem possuir características físicas e forma de vestir
semelhantes.32
Pode-se afirmar que o reconhecimento pessoal pode estar maculado tanto pela
mentira quanto pelas falsas memórias. Dessa forma, atentos aos trabalhos rea­li­
zados na comunidade científica da área da psicologia aplicada ao direito, mencionam-
se algumas problematizações.33 Há de se verificar alguns elementos que modulam a
qualidade da identificação: tempo de contato entre a vítima e o agressor, a gravi­dade
do fato, o intervalo de tempo entre o fato e o reconhecimento (ver as taxas de esque­
cimento da TTD no item 2), as características marcantes do agressor (ver heu­rística
da distintividade, no item 2), as condições psíquicas da vítima, a natureza do delito,
etc.34
Além desses modulares, Lopes Jr ainda faz importante referência a dois pontos:
o efeito foco na arma e o efeito compromisso.35 O efeito foco na arma é entendido
como um “aprisionamento” dos sentidos sobre um símbolo o qual vincula uma rela­ção
de submissão e agressão. Dessa forma, nos casos dos crimes com violência sobre a
pessoa, a vítima tende a focar a sua atenção sobre o símbolo que ali se impõe sobre
sua existência: a arma. Importante lembrar os ensinamentos de Damásio,36 onde se
explica a indissolubilidade entre razão e emoção e a incapacidade de a memória ser

31
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 682. O autor ainda expõe o
que consideramos uma chaga do processo penal: a exposição do réu algemado. Consideramos, conforme
leitura científica até aqui realizada, um fator de indução de uma falsa memória. Essa indução poderia, ao
nosso entender, ser explicada tanto pela teoria do traço difuso (TTD) quanto pela teoria do monitoramento da
fonte (TMF). O fato de apresentar à vítima uma pessoa algemada pode preencher informações ora esquecidas
na memória (TTD), e ratificadas a partir de uma equivalência da fonte (TMF), visto que a algema pode ser
interpretada como símbolo de “alguma culpa”.
32
REAL MARTINEZ, FARIÑA RIVERA, ARCE FERNANDEZ e HUERTAS MARTINS apud LOPES JR., Aury. Direito Pro­
cessual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 682-683. São contribuições que o autor traz da literatura
e doutrina espanholas.
33
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 686 e ss.
34
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010. A obra aborda diversos aspectos relevantes para a aferição da qualidade da memória, tanto
questões técnicas envolvendo a minimização das FM (capítulo 10, parte III, p. 209 e ss) quanto a análise
destas enquanto “síndrome” (capítulo 12, parte III, p. 240 e ss).
35
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 687-689.
36
DAMÁSIO, Antônio. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 2. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015 149
MARCIO MUNIZ NASCIMENTO, YURI FELIX

exatamente ilustrativa. Desta forma, a memória é um processo de reconstrução tanto


no plano racional quanto no plano emocional. Nos casos de violência com o uso de
armas, há de se verificar qual o grau de confiabilidade sobre o depoimento da vítima/
testemunha ante a sua influência sob o efeito foco na arma. Inequívoca a possível
interferência da experiência emocional sobre a verificação racional dos fatos.
O efeito compromisso é ratificação de um reconhecimento equivocado, de
forma a confirmar a confiabilidade da memória. É bastante verificado quando a tes­
temu­nha identifica previamente um suspeito (por fotografia, por exemplo) e, após,
mantém a sua decisão num reconhecimento pessoal.37
Lopes Jr. ainda faz um interessante comentário à relação entre testemunha
(ou vítima) e autoridade policial, onde àquela, dependendo de seu nível sociocultural
e sua autonomia psíquica frente ao entrevistador, pode não descolar-se do desejo
inconsciente de atender a pretensão da autoridade (pai-censor).38 Neste ponto, faz-
se referência às FM sugeridas, que podem ser produzidas quando o entrevistador
não observa algumas características internas do entrevistado e, por isso, não avalia
qual o seu grau de sugestionabilidade. Os escritos de Stein atestam esta possibili­
dade, a qual ganha proporções ainda maiores quando se lida com o testemunho
de crianças. Ou seja, a relação estabelecida entre os sujeitos da entrevista pode
elevar o grau de dependência psíquica e, consequentemente, a sugestionabilidade
e a confiabilidade do testemunho.39

5 Formas de redução de danos


Autores que têm se debruçado sobre as problematizações abordadas – da prova
testemunhal e do reconhecimento pessoal – propõem uma série de alternativas que
visam aumentar a confiabilidade na produção da prova no processo penal.
Em relação à prova testemunhal, Di Gesu sugere uma lista de redução de
danos.40 A saber:
1. A colheita de provas num prazo razoável, minimizando as contaminações (FM)
e o esquecimento;
2. Uso correto de técnicas de interrogatório e a entrevista cognitiva;
3. As perguntas devem ser elaboradas de forma a não assumirem uma natureza
restritiva ou tendenciosa/sugestiva;

37
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 688.
38
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 688.
39
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010. p. 26 (fundamentos científicos), p. 157-181 (capítulo 8 – falsas memórias, sugestionabilidade
e testemunho infantil).
40
DI GESU, Cristina apud LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 679.
Imperioso ressaltar que utilizamos a mesma expressão para nomear este item do artigo, pois entendemos que
serve para os fins didáticos aqui propostos.

150 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015
Memória, prova testemunhal e reconhecimento pessoal no processo penal

4. As entrevistas da fase pré-processual devem ser efetuadas por profissional


competentes (psicólogo ou assistente social). Além disto, seriam gravadas para uma
futura análise do próprio entrevistador;41
5. A abordagem da entrevista deve ser ampla, de forma a não ficar restrita à
versão acusatória.
De outro lado, Lopes Jr., referindo-se ao trabalho de Williams, elenca uma série
de cuidados a serem tomados no momento do reconhecimento pessoal.42
Primeiramente, o reconhecimento deveria ser sequencial, ou seja, os suspeitos
deveriam ser observados um de cada vez. Segundo estudos da psicologia judi­cial,
uma análise simultânea de todos os indivíduos faz com que a testemunha realize
um julgamento relativo no processo de tomada de decisão, comparando os suspeitos
entre si. De outra forma, o reconhecimento pessoal sequencial obriga a teste­mu­
nha a rea­lizar uma análise absoluta, julgando se aquele é ou não é o sujeito a ser
identificado.
Uma interessante proposta a fim de validar o reconhecimento pessoal seria
apresentação de grupos de indivíduos para identificação: os primeiros sem o
suspeito. Caso a testemunha apontasse o suspeito em meio aos primeiros grupos,
já poderia ser descartada, visto a fragilidade de sua memória.43Ainda, deve-se coibir
a indução causada pela excessiva exposição midiática, onde a utilização constante
da imagem do suspeito pode sugestionar eventuais testemunhos, fomentando as FM
e os consequentes danos processuais.
Outro aspecto que merece destaque é a entrevista cognitiva (EC). Conforme
Pergher e Stein, “trata-se uma ferramenta forense que busca maximizar a quanti­
dade e a qualidade das informações obtidas em depoimentos testemunhais”. A EC
está fundamentada em teorias e pesquisas acerca da memória e da cognição em
geral. Além disso, conjuga conhecimentos sobre a dinâmica social e comunicação
interpessoal,44 sendo constituída das seguintes etapas:
1ª etapa: contato entre o entrevistador e o entrevistado, com o intuito de redução
do estresse e ansiedade, elevando o grau de empatia. A criação desse vínculo é de
extrema importância para uma abertura dialogal;
2ª etapa: importante o esclarecimento sobre a natureza da entrevista. Aqui, o
entrevistador deve esclarecer a importância das informações sem alimentar o “efeito

41
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 678. O autor menciona a impor­
tância da gravação dos depoimentos – e, consequentemente, da entrevista. Tal procedimento visa avaliar o
entrevistador e a técnica adotada.
42
WILLIAMS, Anna Virginia apud LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2012.
p. 689.
43
WILLIAMS, Anna Virginia apud LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
p. 690.
44
PERGHER, Giovanni K.; STEIN, Lilian. Entrevista Cognitiva e a terapia cognitivo-comportamental: do âmbito
forense à clínica. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 2005, v. 1, n. 2, p. 11-19.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015 151
MARCIO MUNIZ NASCIMENTO, YURI FELIX

entrevistador”, onde se cria uma relação de subordinação no entrevistado, levando-o


a “tentar acertar” as respostas;
3ª etapa: é o início propriamente da entrevista, onde o entrevistado deve ser
estimulado a, naturalmente, recriar o ambiente no qual ocorreu o evento em questão
e relatar tudo o que puder. Aqui, deve-se fomentar a “recriação do contexto”, que
poderá servir de aferidor da quantidade e da qualidade das informações da memória.
4ª etapa: é a fase de análise pormenorizada das informações coletadas através
de questionamentos acerca de detalhes;
5ª etapa: é a tentativa de retomada de algumas informações através do acesso
a dados já obtidos. Importante salientar a delicadeza deste momento, haja vista que
o entrevistador, por descuido ou má-fé, pode potencializar as FM com a importação
de elementos alheios ao depoimento prestado pelo entrevistado;
6ª etapa: o entrevistador expõe um resumo da entrevista numa tentativa de que
o próprio entrevistado (re)avalie criticamente a qualidade de sua memória, bem como
as conexões realizadas;
7ª etapa: é a etapa do encerramento da entrevista e deve ser realizada de forma
a deixar uma imagem positiva, ressalvando a importância do papel ativo do entre­
vistado. Esta fase é ainda mais importante se houver a necessidade de uma nova
entrevista em outro momento.
Seguindo essas etapas e com base nas informações, o entrevistador poderá
avaliar o que foi coletado e verificar a sua coerência. Obviamente não se trata de um
processo infalível. Mas conferirá maior confiabilidade à prova testemunhal e reduzirá
danos no âmbito processual penal.

6 Considerações finais
Diante deste breve estudo sobre os desafios que a memória impõe à produção
de provas no processo penal, é imperioso o estudo interdisciplinar entre a ciência
jurídico-criminal e a psicologia. O homem, principalmente nos últimos vinte anos, vive
um período em que o conhecimento se renova em uma velocidade jamais vista na
história da humanidade. As verdades são contestadas a todo tempo, e uma abertura
epistemológica, objetivando a superação e o aperfeiçoamento dos conhecimentos
que aí estão, é o que se faz necessário ao pensador do direito que deseja estar
voltado para as complexas questões do mundo contemporâneo.
Assim, cabe aos estudiosos do direito, primeiramente, cientificarem-se das limi­
tações e da incompletude de sua formação, e dos conhecimentos humanos que se
encontram em constante mutação no mundo do devir. Com efeito, aproximando do
tema aqui tratado, é imperioso observar algumas peculiaridades do funcionamento
da memória humana tanto no armazenamento de informações quanto no processo
de (re)criação. Imaginar – e ainda fatalmente acreditar – que o homem é capaz de

152 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015
Memória, prova testemunhal e reconhecimento pessoal no processo penal

separar razão e emoção, numa alusão ao “erro de Descartes”,45 além de ser uma
visão ingênua, é colocar-se alheio aos desafios da sociedade complexa e, por óbvio,
descuidar de inúmeros pontos descritos neste artigo. De outro lado, quando se está
consciente de que são dois polos indissociáveis e ao se utilizar as ferramentas
corretas que a psicologia tem proporcionado, pode-se utilizar corretamente e de forma
equilibrada e parcimoniosa, no processo penal, tanto a testemunha pessoal quanto
o reconhecimento de pessoas.
Resta, por fim, mesmo que em breve via ora apresentada, frisar, de maneira
direta e insofismável, a necessidade de promover atitudes visando à redução de
danos, sempre prezando pelos direitos e garantias inerentes ao processo penal em
um Estado de Direito Democrático, onde a regra do jogo deve ser observada e, prin­
cipalmente, seguida.

Abstract: In the next pages follow some reflections about the memory usage in criminal proceedings,
especially that this process enters the game as the evidential material. Still, analyze some characteristics
of false memories, presenting some cases, and their consequences at the time it was used the testimony
of individuals who have suffered some type influence in his memories, causing serious impacts in the
process. Finally, you put the prospect of criminal proceedings and the urgent need to respect the rules of
the game.
Keywords: Criminal Procedure. Memory. Witness. Personal Recognition. False Memories.

Referências
ARAÚJO, Rodolfo. Elizabeth Loftus e o homem que não estava lá. Disponível em: <http://acertode
contas.blog.br/artigos/experimentos-em-psicologia-elizabeth-loftus-e-o-homem-que-no-estava-l/>.
Acesso em: 25 set. 2013.
DAMÁSIO, Antônio. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
LOFTUS, Elizabeth. Creating False Memories. In: Scientific American, 1997, v. 277, n. 3, p. 70-75.
Disponível em: <http://faculty.washington.edu/eloftus/Articles/sciam.htm>. Acesso em: 25.09.2013.
______. Our changeable memories: legal and practical implications. In: Nature Reviews Neuroscience,
2003, n. 4, p. 231-234. Disponível em: <http://www.nature.com/nrn/journal/v4/n3/abs/nrn1054.
html>. Acesso em: 25.09.2013.
______. THOMAS, Ayanna K. Creating bizarre false memories through imagination. In: Memory &
Cognition, 2002, 30 (3), 423-431. Disponível em: <http://link.springer.com/article/10.3758/
BF03194942>. Acesso em: 26.09.2013.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

45
DAMÁSIO, Antônio. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 2. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015 153
MARCIO MUNIZ NASCIMENTO, YURI FELIX

PERGHER, Giovanni K.; STEIN, Lilian. Entrevista Cognitiva e a terapia cognitivo-comportamental: do


âmbito forense à clínica. In: Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 2005, v. 1, n. 2, p. 11-19.
STEIN, Lilian M. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas.
Porto Alegre: Artmed, 2010.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

NASCIMENTO, Marcio Muniz; FELIX, Yuri. Memória, prova testemunhal e


reconhecimento pessoal no processo penal. Revista Brasileira de Direito Processual
– RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015.

154 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 139-154, jan./mar. 2015
Intervenção de terceiro negociada:
possibilidade aberta pelo Novo Código
de Processo Civil

Marina França Santos


Procuradora do Município de Belo Horizonte. Professora Assistente na Escola Superior Dom
Helder Câmara. Doutoranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Mestra e Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em
Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático em parceria com a
Universidade de Coimbra. E-mail: <marinafrancasantos@gmail.com>.

Resumo: O presente artigo se propõe a discutir a cláusula aberta do negócio processual, uma das grandes
novidades trazidas pelo projeto de novo Código de Processo Civil brasileiro, por meio da qual se propõe
o aprofundamento da participação das partes no processo, que passam a não apenas participar dos
atos com vistas a influenciar a cognição judicial, como, também, a poder elaborar os próprios atos de
que participam. Discutem-se as possibilidades abertas pelo instituto no processo civil brasileiro, mais
especificamente a intervenção de terceiros negociada.
Palavras-chave: Processo Civil. Reforma. Participação. Negócio Processual. Intervenção de terceiros.

Sumário: 1 Introdução – 2 A intervenção de terceiros no Novo Código de Processo Civil – 3 O negócio


processual no novo CPC – 4 A intervenção de terceiros negociada – 5 Conclusão – Referências

1 Introdução
No paradigma processual civil brasileiro, são excepcionais e restritas à autori­
zação legal as hipóteses em que é possível às partes disporem sobre o procedimento
que as rege no curso de um processo. Trata-se de premissa que encontra respaldo
em uma visão de processo ainda não inteiramente confortável com a radicalização
do postulado democrático da participação e nitidamente autocentrada em uma ideia
de causalidade necessária entre a existência de regras heterônomas e a segurança
jurídica, o que não se coaduna mais com a conformação do direito no século XXI.
De fato, constitui circunstância verdadeiramente intolerável que, em um Estado
democrático de direito, possa ser o cidadão considerado incapaz de atuar e de in­
fluenciar o processo de discussão para determinação do direito que passará a incidir,
de forma imperativa, sobre a sua esfera jurídica. A democracia, como bem sinte­tizou
Guillermo O’Donnell, pressupõe a concepção do ser humano como um agente que
adquiriu historicamente o seu reconhecimento como portador de direitos à cidadania

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 155-167, jan./mar. 2015 155
Marina França Santos

política, civil, social e cultural,1 e será sempre uma aposta institucionalizada,


universalista e inclusiva.2 A atuação jurisdicional democrática segue a mesma lógica,3
devendo reconhecer que as partes são agentes, cidadãos dotados de autonomia,
conhecimento e capacidade de tomar decisões, e apostar, decididamente, na sua
participação,4 ainda que dela advenham maiores custos ou, até mesmo, incertezas.
Nesse sentido é que se valoriza, como uma das grandes novidades trazidas
pelo projeto de novo Código de Processo Civil brasileiro, a cláusula aberta do negó­
cio processual ou do acordo de procedimentos, proposta legal de aprofundamento
da participação das partes no processo, que passam a não apenas participar dos
atos com vistas a influenciar a cognição judicial, como, também, a poder elaborar os
próprios atos de que participam.
A cláusula aberta do negócio processual abrirá, com a mudança da lei processual,
uma série de possibilidades antes impensadas e, até mesmo, repudiadas5 no pro­
cesso civil brasileiro, dentre elas, a intervenção de terceiros negociada, hipótese cuja
reflexão se pretende trazer com este artigo.

2 A intervenção de terceiros no Novo Código de Processo Civil


A admissão da intervenção de terceiros foi uma solução legal criada para ga­ran­
tir a participação, em determinado processo, de indivíduos que, não tendo sido a ele
levados na condição de autores ou de réus, ainda assim, por razões diversas, possam
ter sua esfera jurídica indiretamente atingida pelos efeitos da decisão judicial. Trata-
se de uma resposta do direito processual à complexidade da vida em sociedade e à
interdependência dos indivíduos e de suas relações sociais, garantindo, assim, uma
intensificação do contraditório e da participação da sociedade nos procedimentos
estatais de solução de conflitos.

1
O’DONNELL, Guillermo. Democracia, agência e estado: Teoria com intenção comparativa. São Paulo: Paz e
Terra, 2011. p.7.
2
O’DONNELL, Guillermo, op. cit., p. 37.
3
Como colocou Cândido Rangel Dinamarco: “Como instrumento a serviço da ordem constitucional, o processo
precisa refletir as bases do regime democrático, nela proclamados; ele é, por assim dizer, o microcosmos
democrático do Estado-de-direito, com as conotações de legalidade e responsabilidade”. (DINAMARCO,
Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 27).
4
Sobre a centralidade da participação das partes para a formação do provimento jurisidicional, ver: NUNES,
Dierle José Coelho; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no
direito brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade
processual. In: Revista de Processo, São Paulo, v. 34, n. 168, p. 107-141, fev. 2009.
5
A lembrar o repúdio do próprio Dinamarco: “É forte a doutrina, na negativa da existência de negócios jurídicos
processuais. Incluir-se-iam nessa categoria os acordos quanto à competência, os direcionados à modificação
da distribuição do ônus da prova (CPC, art. 333) ou mesmo a convenção arbitral (LA, art. 3º e art. 19)? Deve
prevalecer a resposta negativa, porque o processo em si mesmo não é um contrato ou negócio jurídico (supra,
nº 387) e em seu âmbito inexiste o primado da autonomia da vontade: a lei permite a alteração de certos
comandos jurídicos por ato voluntário das partes, mas não lhes deixa margem para o auto-regramento que é
inerente aos negócios jurídicos. A escolha voluntária não vai além de se direcionar em um sentido ou em outro,
sem liberdade para construir o conteúdo específico de cada um dos atos realizados”. (DINAMARCO, Cândido
Rangel, op. cit., p. 484).

156 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 155-167, jan./mar. 2015
Intervenção de terceiro negociada: possibilidade aberta pelo Novo Código de Processo Civil

O Código de Processo Civil anterior, de 1939, já previa três modalidades de


intervenção: a oposição, a nomeação à autoria e o chamamento à autoria, denomi­
nada de chamamento ao processo pelo Código de 1973, que acresceu a essas uma
quarta modalidade, a denunciação da lide.6 O projeto de novo Código manteve, em
grande parte, as modalidades previstas em 1973, apresentando, porém, algumas
novi­dades tanto no regramento das figuras conhecidas quanto na própria admissão
de novas modalidades de intervenção.
A assistência, não incluída pelos dois Códigos anteriores como uma modali­dade
de intervenção de terceiros, mas assim considerada pela maior parte da doutrina,
passa a figurar ao lado das demais hipóteses, com algumas pequenas alterações e
outras medidas a título de esclarecimento.
Quanto às mudanças, ampliou-se o prazo para impugnação do assistente de
cinco para quinze dias e excluiu-se a necessidade de desentranhamento da petição
e autuação em apartado. Já para tornar a disciplina processual mais clara e técnica,
firmaram-se entendimentos já admitidos pela doutrina e jurisprudência: o poder do
juiz de negar a intervenção independentemente do pedido das partes, a possibilidade
de impugnação da decisão do incidente por meio do recurso de agravo de instrumento
e a atuação do colegitimado processual na qualidade de assistente litisconsorcial.
Nesse ponto, vale a anotação da crítica de Leonardo Carneiro da Cunha, ao observar
que “o dispositivo mantém as deficiências redacionais do art. 54 do CPC/1973, por
dispor que o interveniente deve ser considerado ‘como se fora’ um litisconsorte,
naturalmente sem ser, pois nele há referência à ‘parte principal’, dando a entender
que o interveniente seria parte secundária”.7 A nova lei perde, assim, a oportunidade
de reconhecer claramente que o assistente litisconsorcial se torna parte, um litis­
consorte unitário facultativo ulterior.
O projeto foi feliz, no entanto, ao corrigir a posição do assistente em caso de
revelia ou de omissão do assistido, deixando de qualificar a sua atuação como gestor
de negócios, figura estranha ao processo, e passando a reconhecer expressamente
a figura da substituição processual. Por fim, em mais um esclarecimento, previu
exclu­sivamente na seção relativa à assistência simples o efeito da impossibilidade
de dis­cussão da justiça da decisão, deixando claro não se aplicar à assistência
litisconsorcial.8

6
Além delas, a doutrina divergia, desde a elaboração do projeto de 1939, quanto a outras modalidades: os
embargos de terceiro, o recurso de terceiro prejudicado e o concurso de credores (MILHOMENS, Jônatas, op.
cit., p. 13-14).
7
CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Assistência no Projeto do Novo Código Processo Civil Brasileiro: Novas Ten­
dências do Processo Civil: Estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. v. IV. Salvador: Editora
JusPodivm, 2014. Texto publicado nesta obra.
8
Como elucida Leonardo Carneiro da Cunha, “com isso, elimina-se o entendimento segundo o qual aquele
enun­ciado normativo estaria a se referir às duas classes de intervenção. Desse modo, fica estabelecido que
o assistente simples há de sofrer apenas influência da sentença, sujeitando-se ao efeito da intervenção, mas

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 155-167, jan./mar. 2015 157
Marina França Santos

Seguindo a sequência estabelecida pelo projeto de novo Código (que alterou


a ordem de apresentação das modalidades em relação ao Código de 1973), passa-
se à denunciação da lide, que, finalmente, abandona o caráter de obrigatoriedade
enunciado no caput do artigo 70 do CPC. A disposição vai ao encontro da jurisprudência
hoje dominante no Superior Tribunal de Justiça,9 eliminando a condição de ônus da
modalidade interventiva, cuja grave consequência negativa consistiria na perda do
direito de regresso por ação autônoma (o que o Novo Código cuidou de expressa­mente
afastar, como firmado no Enunciado nº 120 do Fórum Permanente de Processua­listas
Civis – FPPC: “A ausência de denunciação da lide gera apenas a preclusão do direito
de a parte promovê-la, sendo possível ação autônoma de regresso”).
Ainda em relação à denunciação, merece nota a limitação da denunciação suces­
siva a uma única possibilidade e a admissibilidade do cumprimento de sentença
por parte do autor diretamente contra o denunciado.10
O texto também resolve alguns problemas técnicos do Código vigente, escla­
recendo as posições admitidas ao denunciante em caso de revelia ou confissão do
denunciado, questões lacunosas e duvidosas no texto de 1973,11 e deixando de
prever, isoladamente, a denunciação ao proprietário ou ao possuidor indireto, hipó­
tese que já se encontra incluída na denunciação do obrigado a indenizar em ação
regressiva.12
Por fim, encerrando as modalidades de intervenção de terceiros mantidas pelo
Novo Código em relação ao vigente, o regramento do chamamento ao processo não
sofreu maiores alterações, tendo sido apenas ampliado o prazo para a citação do
chamado, que passou de dez para trinta dias quando residente na mesma comarca,
e, se residir em outra comarca, seção ou subseção judiciária, ou em lugar incerto,
de trinta para sessenta dias.
Desaparecem, das hipóteses de intervenção hoje conhecidas, a oposição e a
nomeação à autoria. Àquele que pretender a coisa ou o direito sobre que controvertem
autor e réu passa a ser facultada a propositura de ação autônoma, prevista agora

não à coisa julgada. Por sua vez, ao assistente litisconsorcial não se aplica o efeito da intervenção, mas sim o
regime da coisa julgada, já que este é um litisconsorte unitário do assistido”. (CUNHA, Leonardo Carneiro da. A
Assistência no Projeto do Novo Código Processo Civil Brasileiro: Novas Tendências do Processo Civil: Estudos
sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. v. IV. Salvador: Editora JusPodivm, 2014. Texto publicado
nesta obra).
9
Vide, entre vários: AgRg no AREsp 26.064/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em
11.02.2014, DJe 17.02.2014; AgRg no REsp 1406741/RJ, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda
Turma, julgado em 26.11.2013, DJe 04.12.2013; AgRg nos EDcl no RMS 37.989/DF, Rel. Ministro Sidnei
Beneti, Terceira Turma, julgado em 28.05.2013, DJe 17.06.2013; REsp 528.551/SP, Rel. Ministro Carlos
Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, julgado em 09.12.2003, DJ 29.03.2004.
10
O cumprimento da sentença diretamente contra o denunciado é admissível em qualquer hipótese de denunciação
da lide fundada no inciso II do art. 125. (Enunciado nº 121 do Fórum Permanente de Processualistas Civis
– FPPC).
11
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 417.
12
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Líber Juris,
1974. p. 85.

158 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 155-167, jan./mar. 2015
Intervenção de terceiro negociada: possibilidade aberta pelo Novo Código de Processo Civil

no título dos procedimentos especiais, o que, de fato, não altera substancialmente


a disciplina, tendo em vista a manutenção da distribuição por dependência, o apen­
samento aos autos da ação originária e o julgamento pela mesma sentença, com a
resolução da oposição em primeiro lugar.
Já ao que foi indevidamente levado ao polo passivo de um processo, foi esta­
belecido o poder-dever de indicar, na preliminar da contestação, o verdadeiro sujeito
passivo da relação discutida, que poderá ser, então, acionado pelo autor, subs­
tituindo o réu inicial ou apenas lhe acrescendo litisconsorte passivo. A solução tem
a vantagem de ampliar as hipóteses de correção do polo passivo previstas pelo insti­
tuto da nomeação à autoria e de simplificar o procedimento visando à economia
processual e à efetividade do processo.
Nova modalidade de intervenção de terceiro, o incidente de desconsideração
da personalidade jurídica vem resolver dúvidas eventualmente suscitadas quanto
à forma de acesso aos bens dos sócios ou da própria pessoa jurídica no caso da
desconsideração inversa, com vistas a se evitar a fraude, o abuso de direito e a con­
fusão patrimonial, que impedem a concretização do direito dos credores. A inclusão
da desconsideração da personalidade jurídica como modalidade interventiva dis­
pensa, portanto, definitivamente, a necessidade de ajuizamento de ação autônoma
para esse fim, sem, no entanto, recusar o pleno direito ao contraditório e à ampla
defesa por parte dos terceiros, resolvendo, assim, de modo satisfatório, e também
no sentido da jurisprudência pátria, a ponderação entre o direito dos credores e a
autonomia das pessoas jurídicas.
Por último – e certamente a maior inovação na matéria –, está a previsão
do amicus curiae como modalidade de intervenção de terceiros,13 passando a ser
admitido genericamente nos processos judiciais, em mais um passo importante no
sentido da democratização do processo e do reconhecimento de que a interpre­ta­ção
é um processo aberto14 e criativo (nesse sentido, vale anotar o Enunciado nº 128
do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC, que revela a importância
da alteração legislativa: “No processo em que há intervenção do amicus curiae, a
decisão deve enfrentar as alegações por ele apresentadas, nos termos do inciso IV
do §1º do art. 499”).
O surgimento do amicus curiae no direito brasileiro tem inspiração estaduni­
dense, e seu marco inicial pode ser considerado a previsão, feita pela Lei nº
6.385/76, de atuação da Comissão de Valores Mobiliários em processos de seu

13
Alguns autores já consideravam o amicus curiae como espécie de intervenção de terceiros. Vide CABRAL,
Antônio do Passo. Pelas Asas de Hermes: a intervenção ­do amicus curiae, um terceiro especial: Uma análise
dos institutos interventivos similares: O amicus e o Vertreter dês offenlichen Interesses. Revista de Processo,
117, ano 29, set./out. 2004, p. 9-41, p. 17.
14
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Consti­
tuição para e Procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris editor, 1997. p. 30-31.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 155-167, jan./mar. 2015 159
Marina França Santos

interesse, admitindo-se dela a contribuição por meio de pareceres ou prestando


esclarecimentos. Em seguida, a Lei nº 8.884/94 trouxe previsão semelhante para
processos que envolviam o direito de concorrência, admitindo o Conselho Adminis­
trativo de Defesa Econômica em posição análoga. Em 1999, com a regulamentação
do controle concentrado de constitucionalidade pelas Leis nº 9.868 e 9.882, ocorre
uma expansão da figura do amicus curiae, que passa a não ser previamente restrito
a determinado órgão e a não depender de prévia provocação do juízo,15 16 alteração
que. foi acolhida pelas demais hipóteses sucessivamente admitidas no processo
brasileiro,17 sempre, contudo, em órgãos colegiados.
O reconhecimento do amicus curiae como intervenção de terceiro no projeto do
Novo Código de Processo Civil significa uma opção pela expansão da possibilidade
de atuação de terceiros no processo civil brasileiro, por se admitir expressamente
a manifestação de pessoa natural ou jurídica por requerimento das partes, determi­
nação judicial ou espontaneamente, em qualquer processo individual ou coletivo e
em qualquer instância, solução que vai claramente ao encontro de uma mitigação do
“déficit democrático da atuação do Judiciário brasileiro”.18 O Novo Código limitou a
participação do amicus curiae; porém, a processos que discutam matéria relevante,
possuam tema específico ou gerem repercussão social, desautorizando a interposi­
ção de recursos19 e reduzindo seus poderes àqueles definidos pelo juiz ou relator na
decisão que o solicitar ou admitir.
Todas essas alterações, ampliações e limitações no instituto da intervenção
de terceiros ganham, no entanto, com o Novo Código, faceta mais ampla, abertura
conferida pelo instituto do negócio processual, cujo potencial inovador, conquanto
ainda sujeito ao teste da experiência prática, está justamente na intensificação da
participação dos sujeitos no processo judicial de solução de controvérsia.

15
Assim dispôs o texto legal: “Art. 7º Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de
inconstitucionalidade. (...) §2º O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos
postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a
manifestação de outros órgãos ou entidades”.
16
Como analisou Fredie Didier Júnior (2008, p. 380): “Com a edição das leis que regulamentam os processos
de controle concentrado de constitucionalidade, a intervenção do amicus curiae aprimorou-se: não mais se
identifica previamente quem deva ser o auxiliar (que pode ser qualquer um, pessoa física ou jurídica, desde que
tenha representatividade e possa contribuir para a solução da causa) e se permite a intervenção espontânea
do amicus curiae – até então a intervenção era sempre provocada”.
17
Como o art. 543-A, §6º, incluído no CPC, de 1973, pela Lei nº 11.418, de 2006, quanto à análise da reper­
cussão geral em recurso extraordinário, o art. 543-C, §4º, incluído no CPC pela Lei nº 11.672, de 2008,
relativo à análise de recurso especial repetitivo, e a Lei nº 11.417/06 para o procedimento de edição, revisão
ou cancelamento de enunciado da súmula vinculante.
18
BUENO, Cássio Scarpinella. Quatro perguntas e quatro respostas sobre o amicus curiae. Revista Nacional da
Magistratura. Ano II, n. 5. Brasília: Escola Nacional da Magistratura/Associação dos Magistrados Brasileiros,
mai. 2008, p. 137.
19
Ressalvados os embargos de declaração (art. 138, §1º, NCPC) e o recurso da decisão que julgar o incidente
de resolução de demandas repetitivas (art. 138, §3º, NCPC).

160 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 155-167, jan./mar. 2015
Intervenção de terceiro negociada: possibilidade aberta pelo Novo Código de Processo Civil

3 O negócio processual no novo CPC


O Código de Processo Civil vigente autoriza às partes a convencionar sobre o
procedimento em hipóteses específicas, como a suspensão do processo por até seis
meses (art. 265, II e §3º), a redução ou prorrogação de prazos dilatórios (art. 181),
a eleição de foro (art. 111), a desistência da ação após o prazo de resposta do réu
(art. 267, §4º), a distribuição do ônus da prova (art. 333, parágrafo único), o adia­
mento de audiência de instrução e julgamento (art. 453, I), o prazo para cada litis­
consorte nas alegações finais orais (art. 454, §1º) e a realização de liquidação por
arbitramento (art. 475-C, I).
A novidade trazida pelo projeto do novo Código é que essa previsão deixa de
ser exclusivamente enumerada.20 A nova lei, em seu artigo 191, autoriza às partes
plenamente capazes a modificar, amplamente, regras do procedimento, ônus, pode­
res, faculdades e deveres processuais nos processos em que fizerem parte. Inaugura-
se, aí, no processo civil brasileiro, uma verdadeira cláusula aberta de negócio
pro­ces­sual, admitindo-se a convenção sobre a melhor maneira de resolver o seu
litígio no Judiciário, tendo em vista a especificidade de sua causa, suas expectativas
e possibilidades.
Trata-se, pois, de medida de aprofundamento da autonomia dos sujeitos no
processo judicial, cuja liberdade de atuação, hoje, além das específicas hipóteses
acima elencadas, diz respeito apenas ao exercício do contraditório e da ampla defesa,
isto é, à participação “simetricamente igual dos destinatários do ato de caráter
imperativo que esgota o procedimento”.21
O instituto se apresenta, por meio da flexibilização da técnica, como um
meio de adequação subjetiva, objetiva e teleológica do processo, reforçando a ideia
de que a solução do conflito pode ser mais eficiente e mais eficazmente alcan­çada
se for possível ao instrumento se dobrar às específicas condições das partes e da
demanda. Reconhece-se, assim, a partir da multiplicidade e da peculiaridade das
expe­riências humanas, a vantagem de se trazer cada vez mais as vantagens dos
meca­nismos alternativos de solução de controvérsia à Jurisdição, dentre as quais
se encontra a faculdade de as partes optarem, com uma maior margem, pelo melhor
modo de conduzir a solução de seus problemas. Como bem colocou Júlio Guilherme
Muller em volume anterior desta mesma obra:

20
O Novo CPC também trará, a exemplo do CPC de 1973, hipóteses de negócios processuais admitidas especi­
ficadamente, como o negócio que tenha por objeto a suspensão do processo por até seis meses (art. 314,
II, §3º, NCPC), a eleição de foro competente (art. 63, NCPC), a redução de prazos peremptórios (art. 222,
§1º, NCPC), a distribuição do ônus da prova (art. 380, §3º, NCPC), o adiamento de audiência de instrução e
julgamento (art. 369, I, NCPC), a liquidação por arbitramento (art. 523, I, NCPC), entre outros.
21
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: AIDE, 1992. p. 96.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 155-167, jan./mar. 2015 161
Marina França Santos

De fato são as partes que detêm, ou deveriam deter, maior conhecimento


a respeito de sua causa. São elas quem podem, também hipoteticamente,
reunir condições melhores de tempo (em audiência e principalmente fora
dela) e de conhecimento para convencionar, juntamente com o juiz, a
respeito das mudanças necessárias para ajustar e gerir o procedimento
às especificidades da causa.22

Com a cláusula aberta do negócio processual, a participação das partes


passa a abranger a conformação do próprio procedimento que as rege com o
obje­­tivo de encontrar e concretizar a justiça no caso concreto. Nesses termos, a
noção de pro­cesso, definida a partir do reconhecimento de que “é imprescindível
abrir aos inte­ressados a opor­tunidade à participação, direito que decorre da própria
noção de democracia, ou melhor, de legitimação do poder mediante a participação
democrática”,23 está prestes a ganhar um novo contorno – não imune a conforma­
ções, limites e condicionamentos devidos ao interesse público, resguardado pelo
Estado, em uma prestação jurisdicional justa, efetiva e eficiente –, mas que, decerto,
abre espaço para novas possibilidades a serem investigadas na confluência do pro­
cesso entre natureza pública e segurança jurídica, autonomia privada e efetividade.

4 A intervenção de terceiros negociada


O reconhecimento às partes, não apenas da condição de coautoras da decisão
que recairá sobre a sua esfera jurídica, mas, também e de forma direta, do papel
de coautoria dos atos processuais que conformarão o modo pelo qual esta decisão
será tomada, é, portanto, um novo espaço a ser explorado na sistemática processual
civil a partir da regra aberta do negócio processual, e dentre as suas aplicações
possíveis, está a intervenção de terceiros negociada.
Vislumbram-se, nesse campo, a princípio, duas modalidades: a negociação
de inter­venções atípicas e a negociação das regras previstas para as intervenções
típicas.24 O primeiro âmbito é um campo aberto, cujo conhecimento somente a riqueza
da prá­tica e da experiência nos permitirão acessar. Em relação ao segundo, porém, já
é possível antever algumas hipóteses, como a aceitação da manifestação do assis­
tente em relação a atos pretéritos à sua intervenção, não recebendo o processo no

22
MULLER, Júlio Guilherme. Acordo Processual e Gestão Compartilhada do Procedimento. In: Novas Tendências
do Processo Civil: Estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. Salvador: Editora JusPodivm, v.
III, 2014, p. 147-160, p. 153.
23
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil: Teoria Geral do Processo. v. 1. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010. p. 270.
24
Leonardo Carneiro da Cunha chama de intervenções atípicas ou negociadas todas aquelas que se diferenciam,
em pelo menos um dos seus regramentos, da previsão legal (CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Assistência no
Projeto do Novo Código Processo Civil Brasileiro: Novas Tendências do Processo Civil: Estudos sobre o projeto
do novo Código de Processo Civil. v. IV. Salvador: Editora JusPodivm, 2014. Texto publicado nesta obra).

162 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 155-167, jan./mar. 2015
Intervenção de terceiro negociada: possibilidade aberta pelo Novo Código de Processo Civil

Estado em que se encontra (parágrafo único do art. 119, NCPC, e parágrafo único
do art. 50 do CPC de 1973), ou a admissão de assistente com interesse puramente
econômico (art. 119 e 50, caput, respectivamente). Possível também se pensar na
convenção para a denunciação da lide sucessiva por mais de uma vez e para a
admissão da denunciação per saltum, ambas vedadas pelo Novo Código (§2º do art.
125, NCPC) ou, ainda, para a denunciação após o prazo estabelecido legalmente
(art. 126 do projeto, e art. 71 no CPC vigente).
Nos casos citados, é razoável supor o possível interesse de ambas as partes
na presença e na ampliação da participação dos terceiros, seja no caso do assistente
para o reforço de suas respectivas teses ou esclarecimento fático das condições da
lide, seja no caso da denunciação da lide para garantir a concretização da sentença,
especialmente em se considerando a nova regra trazida pelo projeto da possibili­
dade de cumprimento de sentença diretamente em face do denunciado, nos limites
da condenação deste na ação regressiva (art. 128, IV, NCPC).
Outra possibilidade é a extensão, por convenção das partes, dos poderes do
amicus curiae.25 Imagina-se que, por sua já comentada importância no processo,
pode ser interessante às partes, engajadas na melhor solução possível para o caso
concreto, a ampliação da atuação desses terceiros em determinadas situações,26
admitindo, por exemplo, a sustentação oral, a postulação de perícia e a oitiva de
testemunhas.
Reconhecidas, afinal, hipóteses em que, em tese, poderá haver interesse prático
na intervenção de terceiros negociada, dúvidas talvez sejam suscitadas quanto à vali­
dade jurídica desse acordo, especificamente no que concerne à constitucionalidade
da previsão legal da cláusula aberta do negócio processual em face das garantias
constitucionais do processo. Tal questionamento, no entanto, mostra-se superável.
O substrato constitucional do processo não exclui a liberdade das partes de
conformação do procedimento, cingindo-se a limitar qualquer forma a ser estabe­
lecida aos postulados mínimos estabelecidos pela Constituição de 1988, como o
contraditório e a ampla defesa, a fundamentação das decisões, a duração razoável do
processo, a publicidade e a imparcialidade dos julgamentos e a licitude das provas.
As garantias constitucionais do devido processo legal conjugam-se, pois, para
transformar o processo em estrutura de colaboração, cooperação das partes no

25
Entende-se que tal negócio processual não se encontra vedado pela previsão, no projeto de novo Código,
de que “caberá ao juiz ou relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do
amicus curiae” (art. 138, §2º), uma vez que convenção diversa no sentido de ampliar os poderes do terceiro
interveniente não ofenderá nenhum interesse público resguardado pela Jurisdição.
26
Vale lembrar, com Fredie Didier Júnior, que o amicus curiae não se confunde com a figura do perito, centrando-
se a atuação do amigo da Corte não na produção de prova para a convicção do juízo, mas ao auxílio na
tarefa hermenêutica do magistrado e, diferentemente daquele, não recebendo honorários pelas informações
prestadas. (DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direto Processual Civil: Teoria geral do processo e processo de
conhecimento. v. 1. Salvador: Editora JusPodivm, 2010. p. 406).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 155-167, jan./mar. 2015 163
Marina França Santos

exercício da Jurisdição,27 transformando a atuação dos sujeitos processuais em uma


dialética necessária à boa qualidade da prestação jurisdicional e ao atingimento da
justiça.28 Eis porque o objetivo fundamental do processo, que é a efetividade do
acesso à justiça, não colide com a possibilidade de as partes participarem também
da conformação do próprio instrumento, abertura que, na verdade, contribui com a
busca por meios de tutela mais adequados ao objeto da demanda, por condições
mais favoráveis à reconstituição dos fatos tidos por relevantes e pela melhor forma
de se garantir a eficácia da decisão a quem tem direito.29
A possibilidade de negociação do procedimento é, dessa forma, instrumento
de concreção do princípio da adequação do procedimento, o qual, por sua vez, é
corolário do acesso à justiça e do devido processo legal, já que ambos somente se
legitimam se o processo devido e a tutela jurisdicional acessível forem adequados
à realidade de direito material.30 O processo deve ser plenamente adaptado à reali­
dade em que atua, tanto no que concerne aos sujeitos envolvidos, considerando
suas condições sociais, financeiras e técnicas, com o fim de promover o acesso e o
equilíbrio da participação, quanto no que diz respeito ao objeto da lide, promovendo
o acautelamento ou a antecipação do direito quando necessário, e garantindo a
utilidade do provimento devido à parte vitoriosa.31 Nesse sentido é que a forma, não
dispensado o seu necessário papel de garantir a isonomia e a previsibilidade do
processo, deve ser sempre colocada a serviço do processo, e não o contrário.
O que se introduz com o negócio processual é o aprofundamento do abandono do
mero procedimentalismo técnico em prol da perseguição da finalidade do processo32
por meio da busca pela efetividade e da abertura à possibilidade de conformação
de procedimentos mais idôneos ao cumprimento das finalidades constitucionais. A
participação das partes nesse quesito visa permitir a escolha do meio mais apto a
garantir que a tutela jurisdicional se aproxime, o quanto possa, da atuação espon­
tânea da regra de direito material.33 Os limites à adequação ou adaptabilidade34

27
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais.
Curitiba: Juruá, 2008. p. 208-212.
28
GRINOVER, Ada Pelegrini. O processo constitucional em marcha: contraditório e ampla defesa em cem julgados
do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. São Paulo: Max Limonad, 1985. p. 8.
29
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O futuro da Justiça: alguns mitos. Temas de direito processual: oitava série.
São Paulo: Saraiva, 2004. p. 17-18.
30
DIDIER JR., Fredie. op. cit., p. 51.
31
Desenvolvemos mais aprofundadamente essa ideia em: SANTOS, Marina França. A garantia do duplo grau de
jurisdição. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2012. p. 32.
32
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do Processo e Técnica Processual. São Paulo: Malheiros,
2007. p. 33.
33
Il processo deve dare per quanto è possibile praticamente a chi ha um diritto tutto quello e proprio quello
ch’égli ha diritto conseguire. (CHIOVENDA, Giuseppe. Sagli di Diritto Processuale Civile. v. 1. Roma: Foro
Italiano, 1930. p. 110).
34
Conforme BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: Influência do direito material sobre o
processo. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. p. 60; e DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual
Civil. Salvador: JusPodivm, 2008. p. 51.

164 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 155-167, jan./mar. 2015
Intervenção de terceiro negociada: possibilidade aberta pelo Novo Código de Processo Civil

obviamente existem e já partem dos princípios delineados pela própria Constituição,


não ignorando a existência de interesse público no processo, afinal, a permeabili­dade
à participação das partes não exclui a sua condição de instrumento de exercício de
uma função do Estado.35 36
Analisando, especificamente, a possibilidade jurídica da intervenção negociada
a partir do que dispõe o texto do Novo Código, obstáculo também não parece existir.
É de se notar que o dispositivo que prevê o negócio processual é aberto ao estabelecer
o seu objeto, facultando às partes plenamente capazes, antes ou durante o processo,
a efetivação de alterações “no procedimento para ajustá-lo às especificidades da
causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais”
(art. 191, caput, NCPC).
O objeto do negócio, em suma, é o próprio processo, já que “não há ‘distinção’
entre ‘norma processual’ e ‘norma procedimental’ ou entre ‘processo’ e ‘procedi­
mento’. ‘Procedimento’ é gênero, ‘processo’ é espécie. Como se insistiu, a marca ou
sinal específico está no ‘contraditório’ e a relação é de ‘inclusão’”.37 A intervenção de
terceiros apresenta-se, pois, amplamente negociável pelas partes, às quais se ofe­
rece a possibilidade de adaptar o procedimento às peculiaridades da demanda desde
que não se reduzam direitos e garantias dos terceiros intervenientes no processo.38

5 Conclusão
A autonomia dos sujeitos em sociedade, em seu sentido radical – dar a si
próprio as suas regras (autos-nomos) –, é elemento a ser incentivado, especialmente
no que diz respeito à composição de controvérsias, espaço em que o envolvimento
dos sujeitos por meio do diálogo, propondo e elaborando acordos sobre as questões
materiais e procedimentais envolvidas, é movimento tendente ao amadurecimento
cívico de uma sociedade pacífica e de iguais.

35
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini Grinover; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 296.
36
Logo, evidentemente merecerá interpretação constitucional o §4º do art. 191 do projeto, que dispõe sobre
o controle judicial dos negócios da seguinte maneira: “De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a
validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade
ou inserção abusiva em contrato de adesão ou no qual qualquer parte se encontre em manifesta situação de
vulnerabilidade”. Nesse sentido, vale anotar os enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis
– FPPC que já sistematizam os primeiros limites relevantes à validade dos negócios processuais para além
da restrição prevista no texto do Novo Código: “Além dos defeitos processuais, os vícios da vontade e os
vícios sociais podem dar ensejo à invalidação dos negócios jurídicos atípicos do art. 191”. (Enunciado nº 121
do Fórum Permanente de Processualistas Civis –FPPC) e “o negócio jurídico processual não pode afastar os
deveres inerentes à boa-fé e à cooperação”. (Enunciado nº 6 do Fórum Permanente de Processualistas Civis
– FPPC).
37
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: AIDE, 1992. p. 57.
38
Tal análise preliminar não ignora o surgimento de outras questões a serem investigadas, principalmente a
partir da aplicação prática do dispositivo, com vistas ao aprofundamento da interpretação deste novo substrato
legal, em um esforço para se concretizar, da melhor maneira possível, um processo civil mais justo, efetivo e
eficiente e, por conseguinte, legitimado perante os jurisdicionados.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 155-167, jan./mar. 2015 165
Marina França Santos

O desafio da autonomia são os desafios próprios da liberdade: a responsabili­


dade, a capacidade de diálogo, a ética. No processo, os desafios se intensificam
pela existência do litígio,39 o que, no entanto, não deve impedir a atuação dos procu­
radores das partes, cingidos que são aos deveres éticos estabelecidos pelo direito,
no sentido de buscar o procedimento mais adequado para a melhor solução da lide
por eles patrocinada.
A efetividade do processo é direito, mas também dever dos sujeitos processuais,
e o que se almeja com ela é uma jurisdição compromissada com a melhor composi­ção
do litígio, que atinja decisões justas e demonstre o potencial de atuar, concretamente,
no plano dos fatos.40 A escolha dos melhores passos a atingi-la é de interesse direto
das partes e de seus advogados, os primeiros colaboradores e os primeiros inte­
ressados no processo efetivo.

Abstract: This article aims to discuss the open clause of procedural agreement, one of the major innovations
introduced by the new Brazilian Code of Civil Procedure Project, through which it is proposed a participation
deepening of the parties which shall not only participate in the acts in order to influence the judicial
cognition, but also in order to formulate the acts themselves. The discussion focuses on the possibilities
offered by the institute in the Brazilian civil procedure, specifically the intervention by third parties.
Keywords: Civil Procedure. Reform. Participation. Procedural agreement. Intervention by third parties.

Referências
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: Influência do direito material sobre o processo.
São Paulo: Malheiros Editores, 2003.
______. Efetividade do Processo e Técnica Processual. São Paulo: Malheiros, 2007.
BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no Processo Civil Brasileiro: Um Terceiro Enigmático. São
Paulo: Saraiva, 2006.
______. Quatro perguntas e quatro respostas sobre o amicus curiae. Revista Nacional da Magistratura.
Ano II, n. 5. Brasília: Escola Nacional da Magistratura/Associação dos Magistrados Brasileiros, mai.
2008, p. 137.
CABRAL, Antônio do Passo. Pelas Asas de Hermes: a intervenção d ­ o amicus curiae, um terceiro
especial. Uma análise dos institutos interventivos similares: O amicus e o Vertreter dês offenlichen
Interesses. Revista de Processo, 117, ano 29, set./out., São Paulo: Ed. RT, 2004, p. 9-41.
CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de Terceiros. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini Grinover; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2006.
CHIOVENDA, Giuseppe. Sagli di Diritto Processuale Civile. v. 1. Roma: Foro Italiano, 1930.

39
Que não se configura elemento essencial do processo, mas que é seu elemento preponderante.
40
ZAVASCKY, Teori Albino. Antecipação de Tutela. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 64.

166 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 155-167, jan./mar. 2015
Intervenção de terceiro negociada: possibilidade aberta pelo Novo Código de Processo Civil

CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Assistência no Projeto do Novo Código Processo Civil Brasileiro:
Novas Tendências do Processo Civil: Estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. v.
IV. Salvador: JusPodivm, 2014.
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: JusPodivm, 2008.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2009.
______. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2009.
______. Intervenção de Terceiros. São Paulo: Malheiros, 1997.
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: AIDE, 1992.
GRINOVER, Ada Pelegrini. O processo constitucional em marcha: contraditório e ampla defesa em cem
julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. São Paulo: Max Limonad, 1985.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição:
Constituição para e Procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris editor, 1997.
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil: Teoria Geral do Processo. v. 1. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010.
MILHOMENS, Jônatas. Da intervenção de terceiros. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Líber
Juris, 1974.
______. O futuro da Justiça: alguns mitos. Temas de direito processual: oitava série. São Paulo:
Saraiva, 2004.
MULLER, Júlio Guilherme. Acordo Processual e Gestão Compartilhada do Procedimento. In: Novas
Tendências do Processo Civil: Estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. v. III. Salvador:
JusPodivm, 2014. p. 147-160.
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas
processuais. Curitiba: Juruá, 2008.
______. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito
brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade
processual. Revista de Processo, São Paulo, v. 34, n. 168, p. 107-141, fev. 2009.
O’DONNELL, Guillermo. Democracia, agência e estado: Teoria com intenção comparativa. São Paulo:
Paz e Terra, 2011.
SANTOS, Marina França. A garantia do duplo grau de jurisdição. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2012.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

SANTOS, Marina França. Intervenção de terceiro negociada: possibilidade aberta pelo


Novo Código de Processo Civil. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro,
Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 155-167, jan./mar. 2015.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 155-167, jan./mar. 2015 167
A ação civil pública e o estudo de alguns
temas relevantes

Maurício Antonio Tamer


Assessor do Ministério Público Federal. Mestrando em Direito Processual Civil pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Graduado em Direito pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie.

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo estudar a ação civil pública e temas relacionados a esse
importante mecanismo de proteção dos direitos transindividuais. Para tanto, na tentativa de estabelecer
uma melhor compreensão, serão estudados o histórico do instituto, o objeto da ação, a competência
para seu processamento, a legitimidade, os fenômenos da litispendência e coisa julgada, a liquidação
e execução, e, por fim, alguns exemplos de como as ações coletivas estão inseridas nos ordenamentos
jurídicos estrangeiros.
Palavras-chave: Ação civil pública. Temas relevantes. Direito Estrangeiro.

Sumário: 1 Introdução – 2 Histórico – 3 Objeto – 4 Competência – 5 Legitimidade – 6 Litispendência e coisa


julgada – 7 Liquidação e execução – 8 Direito estrangeiro – 9 Conclusão – Referências

1 Introdução
O presente trabalho tem como objetivo estudar a ação civil pública, que se
caracteriza como um dos mais fundamentais mecanismos de tutela dos direitos trans­
individuais. Para tanto, o estudo será focado nas principais características desse
instituto, notadamente em temas que têm demandado maiores questionamentos
doutrinário e jurisprudencial.
Assim, inicialmente, será feito um breve histórico da ação civil pública no Brasil,
desde os projetos que deram início às primeiras discussões sobre o tema até a
evolução que a Lei de Ação Civil Pública sofreu desde sua promulgação.
Em um segundo momento, serão estudadas propriamente as características
do instituto da ação civil pública, como seu objeto, a competência para seu proces­
samento, a legitimidade para propositura, os fenômenos da litispendência e da coisa
julgada, a liquidação e a execução, bem como as questões mais controvertidas
atinentes a cada um desses tópicos.
Posteriormente, superada a tarefa de tentar caracterizar o instituto da ação
civil pública, serão mencionados mecanismos semelhantes e presentes no direito
estrangeiro e que ajudam na compreensão do fenômeno das ações coletivas e,
principalmente, da ação civil pública.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 8, p. 169-195, jan./mar. 2015 169
Maurício Antonio Tamer

2 Histórico
O primeiro anteprojeto dedicado à defesa dos direitos transindividuais foi
elaborado pelo grupo ligado à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
composto por Ada Pellegrini, Cândido Dinamarco, Kazuo Watanabe, entre outros
doutrinadores.
Por ocasião do I Congresso Nacional de Direito Processual, realizado em 1983,
em Porto Alegre, o relator da tese José Carlos Barbosa Moreira emitiu parecer favo­
rável. Já com as contribuições formuladas na ocasião, o projeto foi apresentado à
Câmara dos Deputados pelo Deputado Federl Flávio Bierrenbach, sendo apelidado
na sequência como Projeto Bierrenbach.
Após, os promotores de justiça Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Édis
Milaré e Nelson Nery Junior, durante o XI Seminário Jurídico dos Grupos de Estudo do
Ministério Público do Estado de São Paulo, debateram aquele primeiro anteprojeto
e apresentaram o trabalho denominado Ação Civil Pública, com alterações e acrés­
cimos. O anteprojeto foi então encaminhado ao Ministério da Justiça e, depois,
à Câmara dos Depu­­tados pelo presidente João Figueiredo como projeto de lei do
Executivo.
De forma mais célere, essa segunda proposta foi aprovada e sancionada com
restrições, originando a Lei nº 7.347, de 1985, conhecida como Lei da Ação Civil
Pública.
Originalmente, a Lei nº 7.347/1985 foi promulgada determinando a disciplina
da ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente,
ao consumidor e a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico. O detalhe é que, quando da sanção presidencial, foram vetadas todas
as referências à tutela de qualquer outro interesse difuso, com a aparente intenção
de limitar o manejamento da nova ação.
Três anos mais tarde, foi promulgada a Constituição Federal de 1988, reco­
nhecendo a importância dos mecanismos coletivos de resolução de conflitos,
ampliando o rol de legitimados das ações coletivas bem como seus objetos. Como
exemplo, podem ser destacadas a permissão de que as associações, quando devi­
damente autorizadas, pudessem representar a seus associados; a possibilidade da
impetração de mandado de segurança coletivo por partidos políticos, organizações
sindicais, entidades de classe e associações constituídas há mais de um ano; a
ampliação do objeto das ações populares; a legitimação do Ministério Público para
propositura das ações civis públicas; e a legitimidade dos índios e comunidades
indígenas para atuar na defesa dos interesses de seus membros.
Além disso, o artigo 48 dos Atos de Disposições Constitucionais Transitórias
determinou que o Congresso Nacional, no prazo de 120 dias, elaboraria o Código de
Defesa do Consumidor – CDC. Conquanto tal documento só tenha sido promulgado

170 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015
A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes

como lei em 1990, ele representou as alterações mais significativas na Lei da Ação
Civil Pública – ACP.
Como modelo estrutural das ações coletivas no Brasil, o Código de Defesa
do Consumidor estabeleceu uma série de mudanças na Lei nº 7.347, de 1985. A
primeira delas, e talvez uma das mais significativas, foi a inclusão do inciso IV junto
ao artigo 1º, restabelecendo o que fora anteriormente vetado, ou seja, o cabimento
de ação civil pública para qualquer outro direito difuso ou coletivo. Ampliou-se, assim,
o objeto da ação.
Além disso, o Código também permitiu a inclusão dos §§5º e 6º ao art. 5º,
admitindo o litisconsórcio facultativo entre os Ministérios Públicos da União, dos
Estados e do Distrito Federal na defesa dos interesses difusos e coletivos, bem
como o estabelecimento do compromisso de ajustamento de conduta, com eficácia
de título executivo extrajudicial.
No mais, o Código inseriu o art. 21 na Lei da Ação Civil Pública, determinando
verdadeira relação de natureza complementar entre as leis, de modo que às ações
civis públicas, na tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos,
seriam aplicadas em conjunto as regras determinadas no Código. Em razão disso,
muitos dos temas tratados adiante neste estudo deverão ser trabalhados entre os
dois diplomas normativos.
Também merecem especial destaque as Leis nº 11.448, de 2007, e 12.529,
de 2011. A primeira foi responsável pela reformulação do rol de legitimados à pro­
positura das ações, notadamente, acrescentando a possibilidade de manejo da ação
por entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem
personalidade jurídica, além do interesse dos consumidores, bem como estabelecendo
a legitimidade da Defensoria Pública, cuja posição era alvo de discussão na doutrina
e na jurisprudência. A segunda, por sua vez, responsável pela estruturação do sistema
de concorrência, alterou o caput do art. 1º da Lei da ACP acrescentando as ações de
responsabilidade por dano moral e em defesa da ordem econômica no seu inciso V.
Podem ser citadas ainda: a Lei nº 7.853, de 1989, prevendo a possibilidade
da ação civil pública na defesa dos interesses das pessoas com deficiência; a Lei
nº 7.913, de 1989, possibilitando o manejo da ação em caso de responsabilidade
por dano ocorrido junto ao mercado de valores mobiliários; a Lei nº 8.069, de 1990
– Estatuto da Criança e do Adolescente –, prevendo o manejo da ação civil de forma
subsidiária em caso de violação dos interesses coletivos ali protegidos; a Lei nº
9.494, de 1997, que dispôs sobre a limitação da coisa julgada; Lei nº 10.257, de
2001 – Estatuto da Cidade –, a qual incluiu como objeto de ação civil pública a ordem
urbanística; a Medida Provisória nº 2.180-35, de 2001, que restringiu o alcance das
ações, impedindo o manejo da ação civil pública em caso de pretensões tributárias,
de contribuições e do FGTS, cujos indivíduos possam ser determinados; e a Lei nº
10.741, de 2003 – Estatuto do Idoso.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015 171
Maurício Antonio Tamer

3 Objeto
Em linhas gerais, a ação civil pública tem por objeto a tutela dos interesses
transindividuais ou coletivos lato sensu, os quais podem ser definidos na doutrina
de Hugo Nigro Mazzilli, influenciado por Mauro Cappelletti, como:

Situados numa posição intermediária entre o interesse público e o


interesse privado, existem os interesses transindividuais (também cha­
mados de interesses coletivos, em sentido lato), os quais são com­
par­­­
tilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas [...]. São
interesses que excedem o âmbito estritamente individual, mas não
chegam propriamente a constituir interesse público. Sob o aspecto pro­
ces­sual, o que caracteriza os interesses transindividuais, ou de grupo,
não é apenas o fato de serem compartilhados por diversos titulares indi­
viduais reunidos na mesma relação jurídica ou fática. Mais do que isso,
é a circunstância de que a ordem jurídica reconhece a necessidade de
que o acesso individual dos lesados à Justiça seja substituído por um
acesso coletivo, de modo que a solução obtida no processo coletivo não
apenas deve ser apta a evitar decisões contraditórias como, ainda, deve
conduzir a uma solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo
é exercido em proveito de todo o grupo lesado.1

Como exemplos de interesses transindividuais cujas tutelas podem ser plei­


teadas pela ação civil pública, podem ser citadas as proteções ao meio ambiente,
consumidor, patrimônio cultural e patrimônio público, além da defesa de pessoas
com deficiência, da criança e do adolescente, da ordem urbanística, entre outros.
Posto isso, os interesses transindividuais compreendem os interesses difusos,
coletivos e individuais homogêneos.
Os interesses difusos, na definição do Código de Defesa do Consumidor (art. 81,
parágrafo único, inciso I), são os direitos transindividuais de natureza indivisível, de
que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. Os
interesses coletivos (art. 81, parágrafo único, inc. II) são os direitos transindividuais
de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas
ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica. Por fim,
os direitos individuais homogêneos (art. 81, parágrafo único, inc. III) são aqueles
decorrentes de origem comum.
Assim, na melhor doutrina, os direitos difusos são aqueles cuja titularidade
pertence a pessoas indeterminadas ou indetermináveis, bem como têm um objeto
de natureza indivisível, ou seja, não passível de quantificação ou divisão entre os

1
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio
cultural, patrimônio público e outros interesses. 26. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 50-51.

No mesmo sentido, é a referência de Mauro Cappelletti no trabalho Formazioni sociali e interessi di gruppo
davanti Allá giustizia civile, em Rivista di Diritto Processuale, 30:367, 1975.

172 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015
A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes

membros da coletividade afetada, ligados por uma situação de fato (exemplo: o direito
ao meio ambiente preservado ou o produto de eventual indenização por degrada­ção
ambiental). Os direitos coletivos também possuem objeto de natureza indivisível;
porém, a titularidade pode ser delimitada com a atribuição do direito a determinado
grupo de pessoas determinadas ou, ao menos, determináveis, unidas por uma mesma
relação jurídica (ex.: nulidade de cláusula de contrato de adesão, beneficiando todo
o grupo de contratantes, sem poder, contudo, delimitar ou quantificar um bem a cada
um deles).
Por outro lado, os interesses individuais homogêneos possuem uma caracte­
rística essencial que os diferenciam das outras duas modalidades: a divisibilidade
do objeto. É possível, assim, o fracionamento do objeto, podendo ser definido o
direito de cada um dos indivíduos (ex.: vários consumidores compram um carro com
um defeito de série; o que une essas pessoas não é uma relação jurídica, mas uma
origem e fato comum).2 Essa classe de direitos, na palavra de Aluisio Gonçalves de
Castro Mendes, é composta por “interesses ou direitos essencialmente individuais
e acidentalmente coletivos”.3
Assim, em razão da divisibilidade do objeto, é possível que cada pessoa afe­
tada pudesse propor uma ação de forma individual; no entanto, em razão da origem
comum dos direitos e da pluralidade de pessoas, bem como em prestígio à isonomia,
à economia processual e ao acesso à Justiça, é legitimada a tutela coletiva de tais
direitos. Para tanto, a doutrina estabeleceu que deve existir prevalência entre as
questões de fato e direito comuns sobre as individuais, de modo que a sentença da
ação coletiva possa ser mais eficaz.
Nesse sentido, a tutela coletiva de direitos individuais pode se justificar, por
exemplo, caso o valor do benefício individual, em si considerado, seja tão baixo que
desestimule a promoção de ações individuais; porém, a tutela dos bens atingindo
tem relevância se observados como um todo.
A respeito dos interesses individuais homogêneos, poderia cogitar-se, ainda,
que eles não seriam objeto da ação civil pública, conforme a impressão inicial que
se tira do artigo 1º da Lei nº 7.347, de 1985. Todavia, como já foi colocado, a Lei
da Ação Civil Pública trabalha em integração e harmonia com o Código de Defesa
do Consumidor na defesa de todas as espécies de direitos transindividuais.
Estabelecidas essas premissas, cabe elencar alguns temas específicos rela­
tivos ao que pode ser tutelado pela ação civil pública.
O primeiro deles diz respeito à discussão quanto à possibilidade ou não da
propositura de ação civil pública para responsabilização de danos decorrentes de

2
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio
cultural, patrimônio público e outros interesses. 26. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 57.
3
MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito
comparado e nacional. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012. p. 220.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015 173
Maurício Antonio Tamer

improbidade administrativa. Em linhas gerais, a preservação da lisura, honestidade


e moralidade dos atos administrativos tem sido caracterizada como um bem de toda
coletividade, cuja inobservância e os danos dela decorrentes atingem o patrimônio
público. Por essa razão, a melhor doutrina e o Superior Tribunal de Justiça admitem
a promoção da ação civil pública.
Nesse sentido, vale citar a seguinte decisão da referida Corte:

ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO


RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRA­
TIVA. POSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA. APLICAÇÃO DO ART. 2º DA LEI
7.347/85. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. É firme a jurisprudência do Supe­
rior Tribunal de Justiça quanto ao cabimento de propositura de ação
civil pública para apuração de improbidade administrativa, aplicando-se,
para apuração da competência territorial, a regra prevista no art. 2º da
Lei 7.347/85, que dispõe que a ação deverá ser proposta no foro do
local onde ocorrer o dano. 2. “Há legitimidade e interesse jurídico do
Ministério Público para ajuizar ações civis públicas por ato de improbi­
dade administrativa em qualquer de suas modalidades –enriquecimento
ilí­
cito, dano ao erário ou atentado aos princípios da Administração
Pública –, e não apenas quando tenha havido dano ao erário, bem como
também é pacífico o entendimento pela possibilidade de ajuizamento
de ação civil pública que vise aplicar as sanções da Lei de Improbidade
Administrativa, não havendo qualquer equívoco em face da existência de
pedidos cumulados”. (STJ, REsp 944.295/SP, Rel. Min. CASTRO MEIRA,
Segunda Turma, DJ 18.9.07). 3. Agravo regimental não provido. (STJ,
AgRg no AgRg no REsp 1334872/RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES
LIMA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06.08.2013, DJe 14.08.2013).

Outra questão que cabe referência é a possibilidade de declaração de inconsti­


tucionalidade de lei ou ato normativo por meio da ação civil pública. Isso somente
será possível se o controle de constitucionalidade for exercido de forma incidental ou
difuso, ou seja, se a inconstitucionalidade da norma, de forma muito clara, constituir
a causa de pedir da ação, e não o pedido. A ação civil pública não pode ser manejada
como se fosse ação direta de inconstitucionalidade.
Para Gilmar Mendes, a ação civil pública é um instrumento inidôneo a questionar
a constitucionalidade de lei ou ato normativo, justamente porque instauraria inde­
vidamente um controle direto e abstrato no plano da jurisdição de primeiro grau,
usurpando a competência do Supremo Tribunal Federal, e porque, necessariamente,
a decisão teria eficácia transcendente das partes:

É que, como já foi enunciado, a ação civil pública aproxima-se muito de


um típico processo sem partes ou de um processo objetivo, no qual a
parte autora atua não na defesa de situações subjetivas, agindo, funda­
mentalmente, com escopo de garantir a tutela do interesse público. Não
foi por outra razão que o legislador, ao disciplinar a eficácia da decisão

174 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015
A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes

proferida na ação civil, viu-se compelido a estabelecer que “a sentença


civil fará coisa julgada erga omnes”. Isso significa que, se utilizada com o
propósito de proceder ao controle de constitucionalidade, a decisão que,
em ação civil pública afastar a incidência de dada norma por eventual
incompatibilidade com a ordem constitucional, acabará por ter eficácia
semelhante à das ações diretas de inconstitucionalidade, isto é, eficácia
geral e irrestrita [...] admitida a utilização da ação civil pública como
instrumento adequado de controle de constitucionalidade, tem-se ipso
jure a outorga à jurisdição ordinária de primeiro grau de poderes que
a Constituição não assegura sequer ao Supremo Tribunal Federal. É
que, como visto, a decisão sobre a constitucionalidade de lei proferida
pela Excelsa Corte no caso concreto tem, necessária e inevitavelmente,
eficácia inter partes, dependendo a sua extensão de atuação do Senado
Federal [...]. Nessas condições, para que se não chegue a um resultado
que subverta todo o sistema de controle de constitucionalidade adotado
no Brasil, tem-se de admitir a completa inidoneidade da ação civil pública
como instrumento de controle de constitucionalidade, seja porque ela
acabaria por instaurar um controle direto e abstrato no plano da jurisdição
de primeiro grau, seja porque a decisão haveria de ter, necessariamente,
eficácia transcendente das partes formais.4

A posição dos Tribunais Superiores, por sua vez, tem sido admitir o controle de
constitucionalidade apenas de forma incidental, sendo a eventual inconstitucionali­
dade a causa de pedir, e não o pedido:5

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTROLE DE CONS­TI­


TUCIONALIDADE. OCUPAÇÃO DE LOGRADOUROS PÚBLICOS NO DISTRITO
FEDERAL. PEDIDO DE INCONSTITUCIONALIDADE INCIDENTER TANTUM DA
LEI 754/1994 DO DISTRITO FEDERAL. QUESTÃO DE ORDEM. RECURSO
DO DISTRITO FEDERAL DESPROVIDO. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
DO DISTRITO FEDERAL PREJUDICADO. Ação civil pública ajuizada pelo
Ministério Público do Distrito Federal com pedidos múltiplos, dentre
eles, o pedido de declaração de inconstitucionalidade incidenter tantum
da Lei Distrital 754/1994, que disciplina a ocupação de logradouros
públicos no Distrito Federal. Resolvida questão de ordem suscitada
pelo relator no sentido de que a declaração de inconstitucionalidade
da lei 754/1994 pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal não torna
prejudicado, por perda de objeto, o recurso extraordinário. A jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal tem reconhecido que se pode pleitear a
inconstitucionalidade de determinado ato normativo na ação civil pública,
desde que incidenter tantum. Veda-se, no entanto, o uso da ação civil
pública para alcançar a declaração de inconstitucionalidade com efeitos
erga omnes. No caso, o pedido de declaração de inconstitucionalidade da
Lei 754/1994 é meramente incidental, constituindo-se verdadeira causa

4
MENDES, Gilmar. Ação civil pública e controle de constitucionalidade. In: MILARÉ, Édis [coord.]. A ação civil
pública após 20 anos: efetividade e desafios. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005. p. 202.
5
No mesmo sentido, STF: RE 227159/GO, RE 645508 AgR, Rcl 6449 AgR; STJ: REsp 1222049/RJ, REsp
760034/DF, MC 20.298/MG e REsp 871.473/DF.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015 175
Maurício Antonio Tamer

de pedir. Negado provimento ao recurso extraordinário do Distrito Federal


e julgado prejudicado o recurso extraordinário ajuizado pelo Ministério
Público do Distrito Federal. (STF, RE: 424993/DF, Relator: Min. JOAQUIM
BARBOSA, Data de Julgamento: 12.09.2007, Tribunal Pleno, Data de
Publicação: DJe 18.10.2007).

Também, com relação ao objeto da ação em estudo, cabe mencionar a veda­


ção disposta no art. 1º, parágrafo único, da Lei da Ação Civil Pública, segundo o
qual “não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam
tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
– FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser
individualmente determinados”. A doutrina se divide sobre a constitucionalidade ou
não dessa restrição.
Hugo Nigro Mazzilli, por exemplo, entende, de forma acertada, que tal medida
fere a garantia de inafastabilidade do controle jurisdicional e a sistemática constitucio­
nal em prol da tutela coletiva de conflitos.6 Este trabalho coaduna com essa posição.
José dos Santos Carvalho Filho, por sua vez, entende por legítima a restrição. Para
ele: “como a obrigação de contribuir e o valor da contribuição têm que ser fixados em
lei, por força do princípio da reserva legal tributária (art. 150, I, CF), a ação civil pública
exigiria frequentemente a discussão, incidenter tantum, da constitucionalidade da
lei. Ora, se a sentença tem eficácia oponível erga omnes, como registra o art. 16 da
Lei nº 7.347/85, o acolhimento da pretensão implicará, fatalmente, na declaração
de inconstitucionalidade com aquele mesmo efeito, fato que ofenderia o sistema
adotado para controle direto ou principal da constitucionalidade”.7
A questão da inconstitucionalidade em si ainda não foi enfrentada diretamente
pelo Supremo Tribunal Federal. O que se verifica é a tese de não incidência do refe­
rido parágrafo único, quando se entende que a ação civil pública pleiteia a tutela de
matéria não tributária, por exemplo, quando impugna atos administrativos ou direitos
metaindividuais ligados à proteção do patrimônio público, ou, ainda, quando a incons­
titucionalidade estaria na causa de pedir:8

EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE ATIVA. MINISTÉRIO PÚBLI­


CO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. TERMO DE ACORDO DE
REGIME ESPECIAL - TARE. POSSÍVEL LESÃO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO.
LIMITAÇÃO À ATUAÇÃO DO PARQUET. INADMISSIBILIDADE. AFRONTA AO
ART. 129, III, DA CF. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. RECURSO
EXTRA­ORDINÁRIO PROVIDO. I - O TARE não diz respeito apenas a

6
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cul­
tural, patrimônio público e outros interesses. 26 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 793-794.
7
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública: Comentários por artigo. 6. ed. rev. ampl. e atual. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 36-37.
8
STJ: REsp 701913/DF, REsp 890249/DF, REsp 903189/DF e REsp 760034/DF.

176 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015
A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes

interesses individuais, mas alcança interesses metaindividuais, pois o


ajuste pode, em tese, ser lesivo ao patrimônio público. II - A Constituição
Federal estabeleceu, no art. 129, III, que é função institucional do Minis­
tério Público, dentre outras, “promover o inquérito e a ação civil pública,
para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de
outros interesses difusos e coletivos”. Precedentes. III - O Parquet tem
legitimidade para propor ação civil pública com o objetivo de anular Termo
de Acordo de Regime Especial - TARE, em face da legitimação ad causam
que o texto constitucional lhe confere para defender o erário. IV - Não
se aplica à hipótese o parágrafo único do artigo 1º da Lei 7.347/1985.
V - Recurso extraordinário provido para que o TJ/DF decida a questão
de fundo proposta na ação civil pública conforme entender. (STF, RE
576155/DF, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno,
julgado em 12.08.2010, DJe 24.11.2010).

Cabe menção também à possibilidade de manejo da ação civil pública por res­
ponsabilidade por dano moral. Originalmente, a Lei nº 7.347, de 1985, restringia
o cabimento da ação a tão somente os danos de ordem patrimonial. Após, sofreu
a já mencionada alteração pela Lei nº 12.529, de 2011, a qual passou a admitir
também a responsabilização pelo chamado dano moral coletivo. O Superior Tribunal
de Justiça tem admitido, salvo algumas decisões contrárias isoladas, a condenação
por dano moral coletivo, caracterizado este como fato grave o suficiente para produzir
verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem
extrapatrimonial coletiva:9

RECURSO ESPECIAL - DANO MORAL COLETIVO - CABIMENTO - ARTIGO


6º, VI, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - REQUISITOS - RA­
ZOÁVEL SIGNIFICÂNCIA E REPULSA SOCIAL - OCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE
- CONSUMIDORES COM DIFICULDADE DE LOCOMOÇÃO - EXIGÊNCIA
DE SUBIR LANCES DE ESCADAS PARA ATENDIMENTO - MEDIDA
DES­ PROPORCIONAL E DESGASTANTE - INDENIZAÇÃO - FIXAÇÃO
PRO­­POR­­CIONAL - DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL - AUSÊNCIA DE DE­
MONS­­TRAÇÃO - RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. I - A dicção do artigo 6º,
VI, do Código de Defesa do Consumidor é clara ao possibilitar o cabi­mento
de indenização por danos morais aos consumidores, tanto de ordem
individual quanto coletivamente. II - Todavia, não é qualquer atentado aos
interesses dos consumidores que pode acarretar dano moral difuso. É
preciso que o fato transgressor seja de razoável significância e desborde
os limites da tolerabilidade. Ele deve ser grave o suficiente para produzir
verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes
na ordem extrapatrimonial coletiva. Ocorrência, na espécie. III - Não é
razoável submeter aqueles que já possuem dificuldades de locomoção,
seja pela idade, seja por deficiência física, ou por causa transitória, à
situação desgastante de subir lances de escadas, exatos 23 degraus, em
agência bancária que possui plena capacidade e condições de propiciar
melhor forma de atendimento a tais consumidores. IV - Indenização

9
STJ: REsp 1269494/MG, REsp 1367923/RJ e REsp 1003126/PB.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015 177
Maurício Antonio Tamer

moral coletiva fixada de forma proporcional e razoável ao dano, no


importe de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). V - Impõe-se reconhe­
cer que não se admite recurso especial pela alínea “c” quando ausente
a demonstração, pelo recorrente, das circunstâncias que identifiquem
os casos confrontados. VI - Recurso especial improvido. (STJ, REsp
1221756/RJ, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado
em 02.02.2012, DJe 10.02.2012).

No mais, é importante frisar que são perfeitamente possíveis as tutelas de


urgência em defesa dos interesses transindividuais, conforme é expressamente
admitido pelo art. 4º da Lei da Ação Civil Pública. Esse dispositivo, conquanto utilize
o termo cautelar, apresenta verdadeira possibilidade de antecipação de tutela para
evitar o dano.
Uma das principais diferenças levantadas pela doutrina é que a tutela cautelar
se dedica a evitar um risco para o processo; já o pedido de tutela antecipada tem
como escopo evitar um risco no próprio plano do direito material. É esse o caso do
art. 4º, cuja finalidade é justamente evitar que a sentença da ação civil pública seja
tardia, ou seja, após o dano ao direito transindividual.
Do mesmo modo, a tutela cível dos interesses transindividuais não se restringe
a pedidos condenatórios reparatórios ou indenizatórios. Por força dos artigos 21,
da Lei da Ação Civil Pública, e 83, do Código de Defesa do Consumidor, é possível a
adoção de todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva
tutela. Em razão disso, adotada a classificação trinária, podem ser consideradas
também as ações declaratórias e constitutivas. Um exemplo apresentado pela dou­
trina de ação meramente declaratória é a previsão do art. 51, §4º, do referido Código,
o qual possibilita a ação para que seja declarada a nulidade de cláusula contratual
que desrespeite os direitos do consumidor.

4 Competência
Com relação à competência para a propositura da ação civil pública, segue-se
a regra estampada no art. 2º da Lei da Ação Civil Pública, segundo o qual “as ações
previstas nesta Lei serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo
terá competência funcional para processar e julgar a causa”.
Há, assim, a junção de dois critérios em uma mesma regra. O critério territorial
estabelece que o foro competente seja o do local do dano, portanto, aquele que, em
tese, melhor exerceria a função jurisdicional por conta da maior proximidade com
os fatos. E o critério funcional, atrelado a razões de ordem pública, à função do órgão
jurisdicional.10

10
ALVIM, Eduardo Arruda. Direito processual civil. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2011. p. 91-92.

178 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015
A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes

O primeiro questionamento se dá em saber qual a natureza da competência,


justamente pela adoção simultânea desses dois critérios. A competência territorial
tem natureza relativa; a funcional, por sua vez, absoluta. Diante disso, a doutrina
e os Tribunais se debruçaram sobre o tema, chegando ao entendimento de que a
competência para a propositura da ação no local do dano é de natureza absoluta.
A principal razão para essa conclusão é que o foro do local do dano será o mais
habilitado para exercer a função jurisdicional.11 Isso seria indevidamente relegado a
um segundo plano se prevalecesse a natureza relativa do critério territorial e todas
as suas consequências, normalmente atreladas aos interesses das partes.
A propósito, o texto da exposição de motivos da Lei da Ação Civil Pública já
havia considerado a natureza absoluta da competência: “as causas serão aforadas
no lugar onde o dano se verificou ou onde deverá verificar-se. Deu-se à competência
a natureza absoluta, já que funcional, a fim de não permitir a eleição de foro ou a
sua derrogação pela não apresentação de exceção declinatória. Esse critério convém
ao interesse público existente naquelas causas”.12 Há, assim, uma integração dos
dois critérios a partir de uma premissa de que o processo tem de ser o melhor instru­
mento possível para a tutela do direito material.
Quanto à natureza absoluta da competência, cabe apresentar a seguinte
decisão, que ilustra o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO NEGATIVO DE


COM­PETÊNCIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESOCUPAÇÃO DE ÁREA LOCALI­
ZADA NO AEROPORTO INTERNACIONAL DO GALEÃO. LOCAL DO DANO.
ART. 2º DA LEI 7.347/85. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL DO RIO
DE JANEIRO. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Hipótese de ação civil pública
ajuizada na Seção Judiciária do Rio de Janeiro, na qual o MINISTÉRIO
PÚBLICO FEDERAL propôs contra a empresa AATA DROGARIA LTDA, com
o objetivo de ver desocupada a área situada no Aeroporto Internacional
do Galeão. 2. O art. 2º da Lei 7.347/85, que disciplina a Ação Civil
Pública, estabelece que ações da norma elencada “serão propostas no
foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional
para processar e julgar a causa”. 3. No caso em exame, verifica-se que
o objeto da demanda é a desocupação de área irregularmente ocupada
pela ora agravante, em razão de extinção de contrato de concessão de
uso firmado com a INFRAERO, localizada no Aeroporto Internacional do
Galeão, na cidade do Rio de Janeiro. 4. Na hipótese de ação civil pública,

11
Nesse sentido, discorre Rodolfo de Camargo Mancuso: “É plenamente justificável que assim seja, dado ser
intuitivo que é o juízo ‘do local onde ocorrer o dano o mais indicado, mais habilitado na espécie, pela proximidade
física com o evento’. Demais disso, a ação é de índole reparatória, condenatória; o objeto prevalecente é o
dano produzido, e busca-se a recondução das coisas ao statu quo ante”. (MANCUSO, Rodolfo de Camargo.
Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores: Lei 7.347/1985
e legislação complementar. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009. p. 71.
12
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos
consumidores: Lei 7.347/1985 e legislação complementar. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2009. p. 71.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015 179
Maurício Antonio Tamer

a competência se dá em função do local onde ocorreu o dano. Trata-se


de competência absoluta, devendo ser afastada a conexão com outras
demandas. 5. Não prospera o argumento formulado pela agravante de
que existe um contrato por ela celebrado com a INFRAERO, contendo
cláusula estabelecendo o foro de Brasília - DF como foro de eleição “para
dirimir controvérsias acerca do instrumento pactuado”. Isso porque
na presente demanda não está a se discutir o contrato de concessão
de uso comercial nº 2.98.61.081-7, mas sim a irregular ocupação da
área pública pela agravante. 6. Conflito de competência conhecido para
declarar competente o Juízo Federal da 23ª Vara da SJ/RJ, ora suscitado.
7. Agravo regimental não provido. (STJ, AgRg nos EDcl no CC 113.788/
DF, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em
14.11.2012, DJe 23.11.2012).

Seguindo o raciocínio dedicado à natureza da competência para propositura da


ação civil pública, cabe tecer alguns comentários sobre os conflitos de competên­
cia entre a Justiça Estadual e Federal. Essa dificuldade surgiu justamente porque o
referido art. 2º não ressalvou a Justiça Federal, entendendo vários Tribunais que a
competência seria da Justiça Estadual.
Pois bem. Inicialmente, o Superior Tribunal de Justiça, na tentativa de unifor­mizar
a questão e pela prevalência do local do dano, editou a Súmula 183, estabelecendo
que “compete ao Juiz Estadual, nas comarcas que não sejam sede de vara da Jus­tiça
Federal, processar e julgar ação civil pública, ainda que a União figure no processo”.
Posteriormente, no julgamento do RE 228.955, o Supremo Tribunal Federal entendeu
que:

EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA PROMOVIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO


FEDERAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ART. 109, I E §3º, DA
CONSTITUIÇÃO. ART. 2º DA LEI Nº 7.347/85. O dispositivo contido na
parte final do §3º do art. 109 da Constituição é dirigido ao legislador
ordinário, autorizando-o a atribuir competência (rectius jurisdição) ao
Juízo Estadual do foro do domicílio da outra parte ou do lugar do ato ou
fato que deu origem à demanda, desde que não seja sede de Varas da
Justiça Federal, para causas específicas dentre as previstas no inciso I
do referido artigo 109. No caso em tela, a permissão não foi utilizada
pelo legislador que, ao revés, se limitou, no art. 2º da Lei nº 7.347/85,
a estabelecer que as ações nele previstas “serão propostas no foro do
local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para
processar e julgar a causa”. Considerando que o Juiz Federal também
tem competência territorial e funcional sobre o local de qualquer dano,
impõe-se a conclusão de que o afastamento da jurisdição federal, no
caso, somente poderia dar-se por meio de referência expressa à Justiça
Estadual, como a que fez o constituinte na primeira parte do mencionado
§3º em relação às causas de natureza previdenciária, o que no caso não
ocorreu. Recurso conhecido e provido. (STF, RE 228955/RS, Relator(a):
Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 10.02.2000, DJ
24.03.2001).

180 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015
A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes

Entendeu-se, assim, que o legislador infraconstitucional, no caso da ação civil


pública, não aplicou a regra de exceção do art. 109, §3º, da Constituição, ou seja,
não estabeleceu que a Justiça Estadual seria competente. Diante disso, a Súmula
183 do Superior Tribunal de Justiça foi cancelada, remanescendo a competência
da Justiça Federal, ainda que, no local do dano, não haja seção judiciária, mas tão
somente vara da Justiça Estadual. Assim, o conflito se resolve pela presença ou não
dos interesses consubstanciados nos incisos do art. 109 da CF, de modo que, se
eles forem caracterizados, o foro competente será da Seção Judiciária Federal que
tiver jurisdição sobre o local do dano.
Além disso, caso o dano seja regional, será competente o foro da capital dos
Estados ou do Distrito Federal (art. 93, II, do Código de Defesa do Consumidor); se o
dano for nacional, haverá concorrência entre os foros das referidas capitais. Ressal­
tando que, em qualquer dos casos, haverá a necessidade de avaliar a competência
da Justiça Federal.
Há, porém, uma possibilidade intermediária de o dano não atingir âmbito
regional ou nacional, mas compreender áreas de comarcas distintas; neste caso,
tem se adotado o critério da prevenção.
Cabe, ainda, transcorrer a respeito dos fenômenos da conexão e continência,
os quais, na qualidade de meios de modificação de competência, são perfeitamente
possíveis no âmbito das ações civis públicas. Para tanto, deverão ser analisadas
as causas de pedir e os pedidos das ações em comparação. Caso as causas de
pedir ou os objetos sejam comuns, as ações serão conexas. A reunião dos feitos
se justifica no prestígio à economia processual e na necessidade de evitar decisões
conflitantes; todavia, a eficácia de tal medida deve ser analisada no caso concreto.
Porém, existindo identidade de partes e de causa de pedir, se um pedido de uma
ação for mais abrangente que da outra, será o caso de continência.
Quanto à identidade de partes nas ações civis públicas, há uma peculiaridade
que as diferem das demais. Em uma primeira leitura do tema, poderia se cogitar a
inexistência de identidade de parte entre ações distintas propostas por legitimados
ativos diferentes (ex.: Ministério Público e Associação Civil). Ocorre, porém, que
ambos atuam em nome da mesma parte, ou seja, da coletividade lesada. O tema
será mais bem analisado no tópico seguinte.
No mais, ressalta-se que não será possível a conexão se uma das ações já foi
sentenciada (Súmula 235 do Superior Tribunal de Justiça), como também descabe
se a reunião dos feitos implicar em desconsideração da competência absoluta:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL COLETIVO. AÇÃO CIVIL


PÚBLICA AJUIZADA EM FACE DE ONZE INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS.
EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. JUSTIÇA FEDERAL. JURISDIÇÃO ABSOLUTA.
REGRAS PREVISTAS DIRETAMENTE NA CONSTITUIÇÃO. LITISCONSÓRCIO
FACULTATIVO COMUM. LITISCONSORTES QUE NÃO POSSUEM FORO NA

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015 181
Maurício Antonio Tamer

JUSTIÇA FEDERAL. IMPOSSIBILIDADE. CUMULAÇÃO DE DEMANDAS E DE


PEDIDOS. JUÍZO INCOMPETENTE PARA CONHECER DE TODOS ELES (ART.
292, §1º, INCISO II, CPC E ART. 109 DA CF/1988). ADEMAIS, EVENTUAL
CONEXÃO (NO CASO INEXISTENTE) NÃO ALTERA COMPETÊNCIA ABSOLUTA
E NÃO REÚNE AS AÇÕES QUANDO JÁ HOUVER SENTENÇA PROFERIDA.
1. A interpretação legal não pode conduzir ao estabelecimento de com­
pe­tência originária da Justiça Federal se isso constituir providência
desar­mônica com a Constituição Federal. 2. Portanto, pela só razão de
haver, nas ações civis públicas, espécie de competência territorial abso­
luta - marcada pelo local e extensão do dano -, isso não altera, por si,
a competência (rectius, jurisdição) da Justiça Federal por via de dispo­
sição infraconstitucional genérica (art. 2º da Lei n. 7.347/1985). É o
próprio art. 93 do Código de Defesa do Consumidor que excepciona a
competência da Justiça Federal. [...] 5. Ademais, a conexão (no caso
inexistente) não determina a reunião de causas quando implicar alteração
de competência absoluta e “não determina a reunião dos processos, se
um deles já foi julgado”. (Súmula n. 235/STJ). 6. Recurso especial não
provido. (STJ, REsp 1120169/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
QUARTA TURMA, julgado em 20.08.2013, DJe 15.10.2013).

5 Legitimidade
O sistema de legitimidade do Código de Processo Civil foi desenvolvido com a
finalidade de solucionar conflitos individuais. Nesse sentido, são os conceitos de legi­
timidade ordinária (em que o pretenso titular de um direito promove a ação em nome
próprio) e legitimidade extraordinária (em que alguém, em nome próprio, postula ou
defende direito alheio). Qualquer transposição desses conceitos para o âmbito das
ações coletivas deve levar em conta as diferenças entre os conflitos.13
Posto isso, a Lei da Ação Civil Pública, alterada pela Lei nº 11.448, de 2007,
prevê em seu artigo 5º que são legitimados: I – Ministério Público; II – Defensoria
Pública (acréscimo recente pela referida alteração); III – a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios; IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade
de economia mista; V – a associação que, concomitantemente, esteja constituída
há pelo menos um ano e inclua entre suas finalidades institucionais a proteção ao
interesse transindividual.
Pois bem. Pela dificuldade mencionada, surge o questionamento em saber
qual a natureza jurídica de tal legitimidade. A doutrina apresenta várias posições.

13
Nesse sentido, discorre o professor Eduardo Arruda Alvim: “No regime do Código de Processo Civil, por exemplo,
a possibilidade de a sentença atingir aqueles que não tenham sido parte no processo é absolutamente
excepcional. A possibilidade de alguém ir a juízo em nome próprio pleitear afirmação de direito alheio depende
de autorização legal expressa (art. 6º do CPC). As noções de legitimidade ordinária e extraordinária envolvem
conceitos sedimentados no plano do processo civil individual, que não podem, pura e simplesmente, ser
transpostos para o processo coletivo”. (ALVIM, Eduardo Arruda. Direito processual civil. 3. ed. rev. atual. e
ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011. p. 167).

182 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015
A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes

Para Hugo Nigro Mazzilli, a legitimidade é extraordinária por meio da substituição


processual.14 Já Rodolfo Mancuso adota o entendimento de que a legitimidade é
extraordinária (substituição da coletividade), autônoma (é dispensável a presença do
legitimado ordinário ainda quando identificado) e exclusiva (o contraditório se forma
somente com a presença do legitimado ativo).15 Nelson Nery Júnior, por sua vez,
adota a concepção alemã de legitimação autônoma para a condução do processo, já
que a lei legitimou várias entidades para a defesa em juízo dos interesses difusos;16
esta ideia tem fundamento, sobretudo, nas diferentes consequências da legitima­ção
extraordinária das ações individuais e nas ações coletivas. Há parcela da doutrina,
ainda, que entende pela legitimação ordinária, como, por exemplo, no caso do Minis­
tério Público, que defende interesse lhe conferido institucionalmente.
Em que pesem essas divergências, ponto comum na doutrina é o entendimento
de que a legitimidade apresentada no art. 5º da Lei da ACP é concorrente e disjun­tiva,
ou seja, é concorrente porque qualquer um dos legitimados pode interpor a ação, e
é disjuntiva porque qualquer legitimado pode propor ação sem que necessariamente
se forme o litisconsórcio.
O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça já enfrentaram o
tema adotando o entendimento de que a legitimação no regime da ação civil pública
é extraordinária, caracterizando-se como substituição processual:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA


PARA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO PÚBLICO. ART. 129, III, DA CF.
Legitimação extraordinária conferida ao órgão pelo dispositivo consti­
tucional em referência, hipótese em que age como substituto processual
de toda a coletividade e, conseqüentemente, na defesa de autêntico
interesse difuso, habilitação que, de resto, não impede a iniciativa do
próprio ente público na defesa de seu patrimônio, caso em que o Minis­
tério Público intervirá como fiscal da lei, pena de nulidade da ação (art.
17, §4º, da Lei nº 8.429/92). Recurso não conhecido. (RE 208790,
Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 27.09.2000,
DJ 15.12.2000).

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL.


AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SERVIÇO PÚBLICO DE TELECOMUNICAÇÕES. LITIS­
CONSÓRCIO ATIVO. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL E ESTADUAL. IMPOS­
SIBILIDADE. DISTINÇÃO ENTRE COMPETÊNCIA E LEGITIMAÇÃO ATIVA.

14
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio
cultural, patrimônio público e outros interesses. 26 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 64.
15
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos
consumidores: Lei 7.347/1985 e legislação complementar. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2009. p. 111 e 114.
16
ALVIM, Eduardo Arruda. Direito processual civil. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2011. p. 168.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015 183
Maurício Antonio Tamer

[...] 2. É que “Na ação civil pública, a legitimação ativa é em regime de


substituição processual. Versando sobre direitos transindividuais, com
titulares indeterminados, não é possível, em regra, verificar a identidade
dos substituídos. [...] 3. In casu, a ação civil pública objetiva a tutela
da prestação de serviço público de telecomunicações, que está inserido
na esfera federal, segundo a dicção do inciso XI do art. 21 da Constitui­
ção Federal, evidenciado-se, dessa forma, o envolvimento de interesses
niti­da­mente federais e, consequentemente, legitimando a atuação do
Minis­tério Público Federal na causa. 4. Agravo regimental não provido.
(STJ, AgRg no REsp 976.896/RS, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES,
PRIMEIRA TURMA, julgado em 06.10.2009, DJe 15.10.2009).

No mais, é importante mencionar a teoria da representatividade adequada. Sua


origem remonta às ações previstas no sistema norte-americano, denominadas class
actions, e apresenta a ideia de ser necessária uma especial qualidade para que as
entidades adquiram a legitimidade, consistente na aptidão para a defesa eficiente,
na esfera judicial, dos interesses transindividuais em sintonia com as expectativas
da coletividade.17
No sistema class actions, a doutrina da representatividade adequada é baseada
na atuação justa e adequada das partes na proteção dos interesses da classe. Tais
critérios são avaliados incidentalmente pelo órgão judiciário que deve fiscalizar e
zelar a observância de tal requisito.18
No Brasil, a adoção de tal doutrina se deu de forma tímida pela Lei da Ação
Civil Pública e pelas alterações realizadas posteriormente. No Projeto Bierrenbach,
de 1984, por exemplo, existia a previsão de que a legitimidade das associações
seria verificada no caso concreto a critério do juiz, o qual poderia entender como indi­
cadores a constituição, há pelo menos seis meses, da entidade, e que o interesse
transindividual a ser defendido estivesse entre as finalidades de instituição.
A lei promulgada, por sua vez, suprimiu qualquer verificação em concreto pelo
magistrado, estabelecendo critérios objetivos para determinar a representativi­dade
adequada, quais sejam a pré-constituição e a pertinência temática (art. 5º, V, a e
b, da Lei da Ação Civil Pública): constituição, há pelo menos um ano, nos termos
da lei civil, e inclusão, entre as finalidades institucionais, da proteção do interesse
transindividual.

17
MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública em defesa do meio ambiente: a representatividade adequada dos
entes intermediários legitimados para a causa. In: MILARÉ, Édis [coord.]. A ação civil pública após 20 anos:
efetividade e desafios. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005. p. 44.
18
Nesse sentido, ensina Aluisio Gonçalves de Castro Mendes que “a possibilidade de representação conferida
pela lei só se justifica e se valida na medida em que for exercida devida e adequadamente. Consequentemente,
estabeleceu o Estado, enquanto legislador, para os órgãos judiciais, o dever de fiscalizar e zelar, a todo
momento, pela observância da denominada representação adequada (adequacy of representation)”. (MENDES,
Aluisio Gonçalves de Castro. Coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito comparado e
nacional. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012. p. 79).

184 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015
A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes

6 Litispendência e coisa julgada


6.1 Generalidades
Exposta a temática atinente à legitimidade, passa-se ao estudo de dois fenô­
menos que possuem características peculiares no âmbito das ações civis públicas:
a litispendência e a coisa julgada. Ambas se configuram com a verificação da tríplice
identidade de ações, ou seja, observam-se as mesmas partes, as mesmas causas
de pedir e os mesmos pedidos. A distinção básica entre os institutos, por sua vez,
se dá por uma avaliação cronológica. A litispendência é verificada com as ações em
curso; já a coisa julgada se dá quando pelo menos uma das ações já foi julgada,
não cabendo mais recurso algum.19
Conforme exposto no item precedente, a legitimidade exercida na ação civil
pública possui natureza diferenciada, sendo várias as concepções que a doutrina
apresenta. No entanto, para delimitar o estudo e sem negar diferenças essenciais
entre os conflitos individuais e coletivos, adota-se aqui a ideia de que a legitimidade
na ação civil pública é extraordinária na modalidade substituição processual, ainda
que as consequências nas ações coletivas se operem de modo diferente do regime
de substituição processual das ações individuais.
Seguindo o raciocínio, ressalta-se que há litispendência ou coisa julgada quando
verificada a identidade cumulada dos três elementos da ação, dependendo, cada
uma delas, do momento cronológico da análise. Pois bem, com relação ao polo ativo
da demanda, se o mesmo legitimado ativo propuser duas ações idênticas, não haverá
dificuldade em verificar a litispendência ou a coisa julgada. A dúvida pode surgir se
as causas de pedir forem as mesmas, os pedidos idênticos, e, no polo ativo, dois
le­gi­timados diferentes. Poderia, então, se cogitar na ausência de litispendência ou
coisa julgada; no entanto, como ambos os legitimados substituem processualmente
a coletividade, os fenômenos serão verificados.20 Por exemplo, haverá litispendência
diante de uma ação proposta pelo Ministério Público e outra por uma associação civil,
ambas pleiteando a condenação de uma fábrica (pedido) em razão da poluição de um
rio adjacente (causa de pedir).
Além do apontamento relativo às partes que promovem a ação, surgem questões
relativas ao possível conflito entre uma ação civil pública e outras ações coletivas,
bem como entre uma ação civil pública e ações individuais.

19
ALVIM, Eduardo Arruda. Direito processual civil. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2011. p. 184.
20
O instituto da litispendência só será útil ao processo coletivo se a análise comparativa levar em conta não
apenas a parte formalmente presente no processo, mas, sim, quem sejam os titulares do direito material
deduzido no processo. Portanto, ao lado do pedido e causa de pedir, bastaria que se estivesse na causa
coletiva, para ser considerada como idêntica, defendendo os interesses dos mesmos substituídos. (MENDES,
Aluisio Gonçalves de Castro. Coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito comparado e
nacional. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012. p. 260-261).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015 185
Maurício Antonio Tamer

No primeiro caso, é plenamente possível a verificação de litispendência e coisa


julgada entre uma ação civil pública e outras ações coletivas se for verificada a trí­pli­
ce identidade, observadas as peculiaridades relativas à legitimidade ativa. Caso não
haja identidade, e se as ações tiverem em curso, são possíveis ainda a conexão e a
continência.
No caso de conflito entre uma ação civil pública e ações individuais, são duas
as situações possíveis para análise da litispendência: ação civil pública em defesa
de interesses difusos ou coletivos e ações individuais; ação civil pública em defesa
de interesses individuais homogêneos e ações individuais.
Na primeira situação, a qual, inclusive, é vedada pelo art. 104 do Código de
Defesa do Consumidor, não estaria configurado propriamente um conflito, pois
indivíduos, não legitimados legalmente, não poderiam propor ações individuais em
defesa de interesses difusos ou coletivos. Aliás, não poderia ser diferente, já que
tais direitos, como visto no início do trabalho, se revestem de indivisibilidade. A
maior dificuldade está na segunda situação, onde a conclusão pela existência ou
não de litispendência passa pela análise do objeto da ação civil pública e da ação
indi­vidual em comparação. Parte da doutrina, inclusive, defende a impossibilidade de
litispendência, pois, em tese, o objeto da ação civil pública seria, se não diferente,
pelo menos mais amplo que o da ação individual.

6.2 A coisa julgada e os efeitos decorrentes de tal qualidade


Já com relação ao quadro da coisa julgada, é preciso ressaltar, antes de tudo,
que não se trata de um efeito da sentença, mas como ensina Eduardo Arruda Alvim:

Um status de que passa a gozar determinada sentença (rectius, parte


dispositiva da sentença), e que decorre do fato de não ser mais possí­
vel, no caso concreto a revisão do julgado [...] a parte dispositiva torna-
se imutável e não poderá ser revista nem no próprio processo em que
proferida a decisão nem em qualquer outro.21

Posto isso, passa-se ao estudo dos efeitos decorrentes do julgamento e da


formação da coisa julgada na ação civil pública.
Para tanto, o legislador, no processo de integração entre a Lei da Ação Civil
Pública e o Código de Defesa do Consumidor, adotou dois critérios para delimitar
os efeitos de julgamento e do trânsito em julgado da sentença da ação civil pública
(efeitos secundum eventum litis): a natureza do interesse transindividual tutelado e
o teor de procedência ou improcedência da sentença. Assim, os efeitos e, sobretudo,

21
ALVIM, Eduardo Arruda. Direito processual civil. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2011. p. 635.

186 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015
A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes

a ampliação subjetiva da coisa julgada operam de acordo com a aplicação conjunta


desses dois critérios (art. 103 do Código de Defesa do Consumidor), conforme será
mais bem detalhado.
Caso a ação civil pública verse sobre interesses difusos e a sentença de pro­
cedência ou improcedência por qualquer motivo diferente da falta de provas, os
efeitos serão erga omnes, ou seja, atingirá a todos indistintamente, ideia atrelada,
sobretudo, na indivisibilidade do objeto. Se a sentença for de improcedência por falta
de provas, não se atribuem os efeitos erga omnes, podendo qualquer legitimado
repropor a ação.
Caso a ação civil pública verse sobre interesses coletivos strictu sensu e a
sentença de procedência ou improcedência por qualquer motivo diferente da falta
de provas, os efeitos serão ultra partes, ou seja, além das partes processuais;
porém, não a todos indistintamente (não erga omnes), mas, sim, limitados ao grupo,
categoria ou classe. Se a sentença for de improcedência por falta de provas, não se
atribuem os efeitos ultra partes, podendo qualquer legitimado repropor a ação.
Caso a ação civil pública verse sobre interesses individuais homogêneos, e a
sentença seja somente de procedência, os efeitos serão erga omnes; nesse caso,
não beneficiará a todos indistintamente, mas aos lesados e seus eventuais suces­
sores. Em razão disso, parte da doutrina entende que o termo é impróprio. Se a
sentença julgar improcedente a demanda, independentemente da razão, não se
atribuem tais efeitos.
Ressalta-se que o fundamento de improcedência das ações civis públicas só
tem relevância quando da possível propositura de nova ação coletiva. Os indivíduos
lesados não serão prejudicados pelo julgamento de improcedência, salvo se o lesado
tiver intervindo no processo coletivo, nos termos do art. 103, §2º, do Código de
Defesa do Consumidor, hipótese em que estarão vinculados à decisão.
Além disso, há a chamada extensão in utilibus, isto é, o aproveitamento por
indivíduos do julgamento de procedência na ação civil pública nas ações em tutela
dos interesses coletivos e individuais homogêneos. Para tanto, os indivíduos que
propuseram ações individuais antes da ação civil pública devem requerer a suspen­
são daquelas no prazo de trinta dias, contados da ciência da propositura desta.

6.3 A limitação territorial do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública


Prevê o artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública que: “A sentença civil fará coisa
julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto
se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em qual­
quer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se
de nova prova”. A redação atual desse dispositivo, como já foi dito no início deste
estudo, foi dada pela Lei nº 9.494, de 1997.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015 187
Maurício Antonio Tamer

A limitação territorial apresentada por essa nova redação tem suscitado muita
controvérsia, sendo diferentes as posições doutrinárias encontradas.
Doutrinadores de referência, como Antonio Gonçalves de Castro Mendes, por
exemplo, entendem que tal regra é manifestamente inconstitucional por infringir o
direito constitucional de ação, o poder de jurisdição dos juízes, a razoabilidade e o
devido processo legal.22
Destaca-se, aqui, a posição de Nelson Nery Junior, Rosa Nery e Hugo Nigro
Mazzilli, para os quais, a regra do art. 16 é ineficaz, vez que o art. 103 do Código
de Defesa do Consumidor exauriu a matéria atinente à coisa julgada nas ações
coletivas, revogando tacitamente o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, notadamente
pela determinação da integração dos dois sistemas legais. E mais, para tais auto­
res, o legislador realizou uma confusão entre os conceitos de limites subjetivos da
coisa julgada (as pessoas atingidas pela qualidade de imutabilidade da sentença) e
jurisdição e competência territorial.23 24 Nelson Nery e Rosa Nery, ainda, exemplificam
muito bem tal confusão dizendo que a solução proposta pelo art. 16 seria, do mesmo
modo, dizer que a sentença de divórcio proferida por juiz de São Paulo não pudesse
valer no Rio de Janeiro e, nesta comarca, o casal continuasse casado.
Outros, porém, entendem que, com a referida revogação tácita, a redação da
Lei nº 9.494, de 1997, não poderia ser considerada, pois é vedado no ordenamento
brasileiro o efeito repristinatório que a norma propôs.
Há, ainda, juristas que entendem pela plena aplicação da regra do artigo 16,
sendo aplicável para qualquer interesse ou direito transindividual.
Além da doutrina, o Superior Tribunal de Justiça também ainda não definiu
o alcance de aplicação da regra de limitação territorial; porém, o que se percebe,
sobretudo do cotejo de julgados mais recentes, é o gradual abandono da tese de
aplicabilidade de tal restrição25 em prol da não limitação territorial da eficácia da
coisa julgada. Notadamente, isso é apontado após o julgamento do REsp 1243887
em 2011, como representativo da controvérsia:

DIREITO PROCESSUAL. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA


(ART. 543-C, CPC). DIREITOS METAINDIVIDUAIS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
APADECO X BANESTADO. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. EXECUÇÃO/
LIQUIDAÇÃO INDIVIDUAL. FORO COMPETENTE. ALCANCE OBJETIVO E
SUB­JETIVO DOS EFEITOS DA SENTENÇA COLETIVA. LIMITAÇÃO TERRI­
TORIAL. IMPROPRIEDADE. REVISÃO JURISPRUDENCIAL. LIMITAÇÃO
AOS ASSO­CIADOS. INVIABILIDADE. OFENSA À COISA JULGADA. 1. Para

22
MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito compa­
rado e nacional. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012. p. 265.
23
ALVIM, Eduardo Arruda. Direito processual civil. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2011. p. 676.
24
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cul­
tural, patrimônio público e outros interesses. 26. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 625-626.
25
Nesse sentido, pela aplicação da regra: STJ EREsp 293407/SP e AgRg no EREsp 253589/SP.

188 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015
A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes

efeitos do art. 543-C do CPC: 1.1. A liquidação e a execução individual


de sen­tença genérica proferida em ação civil coletiva pode ser ajuizada
no foro do domicílio do beneficiário, porquanto os efeitos e a eficácia da
sen­tença não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites
objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para
tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses metain­
dividuais postos em juízo (arts. 468, 472 e 474, CPC e 93 e 103, CDC).
1.2. A sentença genérica proferida na ação civil coletiva ajuizada pela
Apadeco, que condenou o Banestado ao pagamento dos chamados
expurgos inflacionários sobre cadernetas de poupança, dispôs que
seus efeitos alcançariam todos os poupadores da instituição financeira
do Estado do Paraná. Por isso descabe a alteração do seu alcance em
sede de liquidação/execução individual, sob pena de vulneração da coisa
julgada. Assim, não se aplica ao caso a limitação contida no art. 2º-A,
caput, da Lei n. 9.494/97.2. Ressalva de fundamentação do Ministro
Teori Albino Zavascki. 3. Recurso especial parcialmente conhecido e não
provido. (STJ, REsp 1243887/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
CORTE ESPECIAL, julgado em 19.10.2011, DJe 12.12.2011).

PROCESSO CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO COLETIVA AJUI­


ZADA POR ASSOCIAÇÃO CIVIL EM DEFESA DE DIREITOS INDIVIDUAIS
HOMOGÊNEOS. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS DEVIDOS EM CADERNETA
DE POUPANÇA EM JANEIRO DE 1989. DISTINÇÃO ENTRE EFICÁCIA DA
SENTENÇA E COISA JULGADA. EFICÁCIA NACIONAL DA DECISÃO. - A Lei
da Ação Civil Pública, originariamente, foi criada para regular a defesa
em juízo de direitos difusos e coletivos. A figura dos direitos individuais
homogêneos surgiu a partir do Código de Defesa do Consumidor, como
uma terceira categoria equiparada aos primeiros, porém ontologicamente
diversa. - Distinguem-se os conceitos de eficácia e de coisa julgada. A
coisa julgada é meramente a imutabilidade dos efeitos da sentença. O
art. 16 da LAP, ao impor limitação territorial à coisa julgada, não alcança
os efeitos que propriamente emanam da sentença. - Os efeitos da senten­
ça produzem-se “erga omnes”, para além dos limites da competência
territorial do órgão julgador. Recurso Especial improvido. (STJ, REsp
399.357/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado
em 17.03.2009, DJe 20.04.2009).

PROCESSO CIVIL E DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. AGRAVO


REGIMENTAL. CONTRATOS DE SEGURO DE VIDA. APLICAÇÃO DO CDC.
SÚMULA 83 DO STJ. ALCANCE OBJETIVO E SUBJETIVO DOS EFEITOS
DA SENTENÇA COLETIVA. LIMITAÇÃO TERRITORIAL. IMPROPRIEDADE.
MATÉ­RIA PACIFICADA EM SEDE DE RECURSO REPRESENTATIVO DA
CONTROVÉRSIA. 1. Aplicabilidade do CDC a contrato de seguro de saúde
em grupo. Incidência da Súmula 83 do STJ: “Não se conhece do recur­
so especial pela divergência quando a orientação do Tribunal se firmou
no mesmo sentido da decisão recorrida.” 2. A sentença proferida em
ação civil pública versando direitos individuais homogêneos em relação

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015 189
Maurício Antonio Tamer

consumerista faz coisa julgada erga omnes, beneficiando todas as vítimas


e seus sucessores, uma vez que “os efeitos e a eficácia da sentença
não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e
subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para tanto, sempre
a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais
postos em juízo (arts. 468, 472 e 474, CPC e 93 e 103, CDC).” (REsp
1243887/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado
sob a sistemática prevista no art. 543-C do CPC, em 19.10.2011, DJe
12.12.2011) 3. Agravos regimentais não providos. (STJ, AgRg no REsp
1094116/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA,
julgado em 21.05.2013, DJe 27.05.2013).

7 Liquidação e execução
Em continuidade ao estudo das ações civis públicas, passa-se a uma breve
análise a respeito de alguns pontos sobre a liquidação e o cumprimento das sentenças
proferidas em tais ações coletivas.
Pois bem, a Lei da Ação Civil Pública é omissa com relação à liquidação, e o
Código de Defesa do Consumidor apenas faz menção quando a sentença versa sobre
interesses individuais homogêneos (artigos 97 e 100); porém, analogicamente, a
liquidação também será possível em relação aos direitos difusos e coletivos. Além
disso, aplicam-se supletivamente as regras do Código de Processo Civil, de modo
que, demonstrada a necessidade, será cabível a liquidação da sentença. Notada­
mente, nos casos de ações civis públicas, por exemplo, é muito comum o julgamento
de procedência por meio das chamadas sentenças genéricas, que, muitas vezes, se
limitam a termos como “condeno o réu pelos danos causados”.
Em regra, qualquer um dos legitimados ativos poderá promover a liquidação
coletiva. No caso de interesses difusos, essa regra é aplicada. No caso de direitos
individuais homogêneos e coletivos, por analogia, além dos legitimados legais, cada
indivíduo vinculado à decisão ou seu sucessor poderá promover individualmente a
liquidação da parte que lhe cabe (artigos 97 e 98 do Código de Defesa do Consumidor).
Com relação ao cumprimento de sentença, serão aplicadas as regras do
Códi­go de Processo Civil, respeitada a natureza do direito transindividual tutelado.
Assim, tratando-se de direito difuso, a sentença de procedência é a favor de todos
os colegitimados que poderiam propor a ação civil pública, podendo cada um deles
promover o cumprimento. Já com relação a direitos coletivos e individuais homogêneos,
os indivíduos lesados, vinculados à decisão, e seus eventuais sucessores, bem como
os colegitimados legalmente, poderão promover o cumprimento.
Cabe observar que os indivíduos interessados podem aderir ao feito na fase de
conhecimento, na fase de liquidação ou, ainda, na fase de cumprimento, desde que
demonstrada sua relação com a causa de pedir da ação civil pública.

190 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015
A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes

8 Direito estrangeiro
Feitos os estudos pertinentes à ação civil pública no ordenamento jurídico
brasileiro, serão apontadas algumas considerações sobre os mecanismos processuais
de tutela dos interesses transindividuais em outros países que se assemelham, em
certa medida, com a ação objeto deste estudo.

8.1 Inglaterra
A Inglaterra, para alguns autores, se caracteriza como origem do processa­mento
das ações coletivas. O desenvolvimento das chamadas ações de grupo é dividido
pela doutrina em três períodos: medieval (do século XII ao século XV); primitivo-
moderno (séculos XVI e XVII); e moderno (século XVIII). Nesse sentido, há relatos de
ações promovidas por algumas pessoas em prol de toda uma coletividade durante
todo esse período.26
Bem mais recente, ganham notoriedade dois casos precedentes. Em 1976,
um indivíduo de nome Cobbold, em nome de todos os assinantes da revista Time,
ajuizou uma ação em face da TIME Canadá Ltd., sendo admitido seu processamento
coletivo. Em 1979, por sua vez, o caso Prudential Assurance Co. Ltd. v. Newman
Industries Ltd. apresentou, pela primeira vez, o processamento das ações coletivas
em suas fases: uma primeira, de natureza declaratória da obrigação de indenizar, e
uma segunda, em que os indivíduos buscariam as condenações específicas.
Vinte anos depois, é estabelecido no Código de Processo Civil da Inglaterra e
do País de Gales, com a possibilidade que algumas questões de fato ou de direito
fossem processadas coletivamente. Em que pese a essa previsão, as chamadas
repre­sentative actions já eram dispostas desde 1965, as quais seriam possíveis se
fosse grande o número de litigantes e se fosse verificado o interesse comum (same
interest).
Similar à ação civil pública brasileira, pode ser citada a relator action, a qual
pode ser proposta pelo procurador-geral (attorney general) como representante do inte­
resse público. Seu cabimento se dá principalmente na defesa de interesses difu­sos,
vedada, no mesmo procedimento, a formulação de pedidos de indenização individuais.

8.2 Estados Unidos


Os Estados Unidos se destacam em matéria de tutela coletiva em razão da
previsão das chamadas class actions, cuja primeira norma escrita remonta ao
ano de 1842, quando a Suprema Corte editou a Equity Rule 48, possibilitando o

26
MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito
comparado e nacional. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012. p. 47.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015 191
Maurício Antonio Tamer

processamento coletivo no caso de grande número de litigantes, não vinculando,


todavia, os direitos individuais. Desde então, o tema foi trabalhado pela referida
Corte, que, em 1912, revogou a Rule 48 e editou a Rule 38, restringindo a aplicação
do processamento coletivo aos casos de equidade e suprimindo a última parte
referente ao efeito não vinculativo.
Essa nova disposição gerou muita controvérsia, até que, em 1938, surgem as
Federal Rules of Civil Procedure, nas quais a Rule 23 foi dedicada às ações de classe.
Tal regra sofreu várias alterações, sendo as atuais características das class actions
norte-americanas descritas brevemente a seguir.
A primeira delas diz respeito aos pressupostos processuais e às condições da
ação para admissibilidade da defesa coletiva em juízo. Em síntese, são os seguintes
requisitos: a parte representante deve integrar a classe defendida; a numerosidade
da classe, aferida pela impraticável reunião de todos os membros, de modo que se
o litisconsórcio for possível não cabe a class action; existência de fundamentos de
fato ou de direitos comuns (commonality); a identidade de pretensões e defesas; e
a representação adequada, a qual, como já dito neste estudo, será aferida pelo juízo
no caso em concreto.
Além desses requisitos, podem ser identificadas quatro espécies de class
actions: as chamadas incompatible standards class actions, as quais têm a preocu­
pação de evitar a incompatibilidade das decisões judiciais, notadamente, com relação
ao comportamento determinado ao condenado; aproximam-se, assim, muito das ações
brasileiras em tutela dos interesses difusos e coletivos em razão da indivisibilidade
do direito; as class actions, que consideram os riscos de julgamentos proferidos em
benefícios de indivíduos membros de uma classe, que, na prática, estariam dispondo
dos interesses de outros integrantes da classe, que não são partes no processo; as
class actions possíveis quando a parte que seria demandada individualmente pra­
ticou ato ou se omitiu em razão de fundamento relacionado a toda classe; e as class
actions admitidas pelo entendimento de que os fundamentos de fato ou de direito
comuns aos componentes da classe predominam sobre os fundamentos individuais.

8.3 Itália
Na Itália, destaca-se, sobretudo, o papel de sua doutrina. Com relação à tutela
processual de direitos transindividuais, tiveram grande influência os ensinamentos de
Mauro Cappelletti, sobretudo em razão de seu artigo Appunti sulla tutela giurisdizionale
di interessi collettivi o difusi, publicado em 1976, bem como Vicenzo Vigoriti, cuja
obra Interessi collettivi e processo: la legitimazione ad agire também é referência.
Com relação à evolução histórica dos mecanismos processuais de tutela
coletiva, em 1970, permitiu-se às associações sindicais pleitear em juízo a cessação
de condutas antissindicais. Em 1986, quanto ao tema do meio ambiente, previu-se

192 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015
A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes

a possibilidade de associações intervirem em processo que busca a indenização por


danos ambientais.
Destaca-se, também, o Código de Consumo Italiano, de 2005, o qual possibilitou
a defesa em juízo dos direitos coletivos dos consumidores. Notadamente, a partir de
2010, o Código passou a prever a azione di classe em defesa dos direitos individuais
homogêneos e coletivos, podendo ser proposta por qualquer membro de classe e por
associação. Adota-se, ainda, o sistema de opt-in, pelo qual os indivíduos, para se
beneficiarem da tutela coletiva, aderem à ação, o que implica na renúncia de propor
futuramente a ação individual.

8.4 Alemanha
Na Alemanha, a tutela dos interesses transindividuais se dá por meio das ações
associativas (Verbandsklagen), previstas em diplomas legais diversos.27
Tais ações destacam-se nos sistemas legais contra a concorrência desleal
e de cláusulas gerais dos negócios jurídicos (UWG e AGBG). Em 1965, a Lei contra
Concorrência Desleal foi alterada, possibilitando às associações de consumidores a
defesa dos interesses de tal classe diante de uma situação prejudicial originária da
falta de concorrência. Em 1976, foi editada a referida Lei de Cláusulas Gerais, ado­
tando sistemática semelhante e possibilitando a impugnação coletiva por meio da
tutela inibitória.
Além das ações associativas, o ordenamento alemão passou a prever, a partir
de 1991, uma espécie de instrumento de resolução coletiva de conflitos a partir do
processamento e julgamento de ações-modelo (Musterverfahren). Esse mecanismo
tem aplicabilidade, sobretudo, em demandas ligadas à jurisdição administrativa alemã,
questões atinentes à previdência e assistência social, e mercados de capitais. Nas
áreas administrativa e social, por exemplo, propostas mais de vinte ações indivi­duais,
o órgão judicial poderá eleger uma delas, que seguirá como processo paradigma para
o julgamento das demais, que ficarão suspensas. Nas ações-modelo na área de
mercado de capitais, por sua vez, a decisão do processo paradigma vincula todos os
órgãos judiciais e as partes das ações individuais suspensas.

8.5 Outros países


Além dos quatro países já referidos, é oportuna a breve citação de como alguns
outros países tratam a tutela coletiva.
Em Portugal, o grande mecanismo que sustenta a tutela coletiva em juízo é
a ação popular, a qual é cabível para a defesa dos interesses difusos (os quais,

27
MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no direito
comparado e nacional. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012. p. 114.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015 193
Maurício Antonio Tamer

na acepção, englobam os interesses difusos e coletivos definidos no Brasil) e os


interesses individuais homogêneos.
Na Espanha, o primeiro grande documento a tutelar os direitos metaindivi­duais
foi a Ley General de La Defesa de lós Consumidores y Usuários, de 1984. No ano
seguinte, a Lei Orgânica do Poder Judiciário espanhol previu, de forma ampla, a
defesa dos interesses coletivos ao lado dos individuais por associações e grupos
de consumidores. Além delas, a Ley de Enjuiciamiento Civil conferiu legitimidade
também a grupos de usuários afetados por eventos danosos para defender coletiva­
mente em juízo os direitos metaindividuais.
No Canadá, os mecanismos das ações coletivas estão previstos tanto em
regras de âmbito federal quanto nos regulamentos provinciais, com destaque para os
Estados de Ontário e British Columbia, onde a concentração populacional é maior. A
estruturação regulamentar é muito similar às class actions norte-americanas; porém,
os requisitos de admissão são menos rígidos.
Na Argentina, por sua vez, desde o início da década de 1990, a defesa de
interesses da coletividade passou a ser tratada em algumas legislações provin­ciais.
Em âmbito federal, destaca-se o art. 43 da Constituição Nacional, inserido no ano
de 1994, denominado amparo coletivo, considerado pela doutrina como principal ins­
trumento de defesa dos interesses transindividuais.

9 Conclusão
Concluindo o presente estudo, chega-se à percepção de que o instituto da ação
civil pública é fruto da preocupação quanto à necessidade da tutela dos direitos
transindividuais ou coletivos lato sensu. A Lei da Ação Civil Pública, nesse sentido,
ganhou importância ao longo do tempo e sofreu várias alterações, ampliando seu
campo de atuação.
Com relação ao objeto da referida ação, conclui-se que ela pode ser mane­jada
na proteção de qualquer direito transindividual, seja difuso, coletivo ou individual
homogêneo. Inclusive, é possível, por meio dela, a sustentação de inconstitucionali­
dade da lei como causa de pedir, a responsabilização por danos decorrentes de atos
de improbidade, pelos chamados danos morais coletivos, entre outros.
Quanto à competência para o processamento da ação, foi verificado que ela
deve ser proposta no foro do local onde ocorreu o dano, possuindo natureza absoluta
justamente em razão da melhor função jurisdicional que poderá ser prestada. Já em
relação à legitimidade, são várias as posições doutrinárias sobre o tema; no entanto,
os Tribunais Superiores têm entendido que se trata se legitimação extraordinária
na modalidade de substituição processual de toda coletividade atingida.
Foram estudados também os fenômenos da litispendência e da coisa julgada,
notadamente a atribuição de efeitos diferentes de acordo com a natureza do direito

194 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015
A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes

transindividual tutelado e o resultado do julgamento da ação, bem como a confusão


feita pelo legislador ao limitar impropriamente os efeitos à competência territorial do
órgão jurisdicional prolator.
Por fim, foram elencados alguns mecanismos de tutela coletiva presentes em
ordenamentos jurídicos estrangeiros, dando ênfase aos reconhecidos pela doutrina
como mais relevantes, oportunidade na qual foi possível aferir semelhanças com a
ação civil pública prevista no direito brasileiro.

The civil public action and the study of some relevant topics
Abstract: The present article intends to study the civil public action and its relevant topics. Therefore, to
establish a better understanding, will study the historic about this action, its object, the jurisdiction, the
legitimacy, the state of lawsuit pending and the estoppel per rem judicatam, the execution, and, lastly,
some examples about how the collective actions are provided in foreign legal systems.

Keywords: Civil public action. Relevant topics. Foreign legal systems.

Referências
ALVIM, Eduardo Arruda. Direito processual civil. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2011.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública: comentários por artigo. 6. ed. rev. ampl. e
atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio
cultural e dos consumidores: Lei 7.347/1985 e legislação complementar. 11. ed. rev. e atual. São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor,
patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 26 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2013.
MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas e meios de resolução coletiva de conflitos no
direito comparado e nacional. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012.
MILARÉ, Édis [coord.]. A ação civil pública após 20 anos: efetividade e desafios. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 2005.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

TAMER, Maurício Antonio. A ação civil pública e o estudo de alguns temas relevantes.
Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n. 89,
p. 169-195, jan./mar. 2015.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 169-195, jan./mar. 2015 195
Artigo 41-A da Lei nº 9.504/97: a
possibilidade de concessão de efeito
suspensivo aos recursos contrários à
sentença que cassa mandato eletivo

Olívia Guimarães Ribeiro


Mestranda em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia-MG. Graduada e Pós-
graduada em Direito Empresarial pela Universidade de Rio Verde-GO. Professora de Direito Pro­­­
ces­sual Civil na Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: <oliviagribeiro@yahoo.com.br>.

Renato de Almeida Paes Leme


Pós-graduando em Direito Público. Pós-graduado em Direito do Trabalho pela UNICAM e em
Direito Eleitoral pela PUC Minas. Graduado pela Universidade do Triângulo. Professor de
Direito Processual Civil na UNIFASC. E-mail: <r.paesleme@yahoo.com.br>.

Resumo: No âmbito do Direito Eleitoral, os recursos não possuem, em regra, efeito suspensivo, consoante
o disposto no artigo 257 do respectivo código. Assim sendo, as decisões proferidas no processo eleitoral
são imediatamente executáveis, independendo de seu trânsito em julgado para realização do comando
nelas contido. A Lei Complementar 64/90, que trata das inelegibilidades, traz exceção a essa regra,
permitindo que o candidato exerça o mandato eletivo enquanto o recurso interposto contra a decisão de
cassação do diploma não for definitivamente julgado. No entanto, a captação ilícita de sufrágio, forma
pela qual o candidato promete ao eleitor vantagem pessoal em troca de seu voto, não é considerada caso
de inelegibilidade, mas, sim, hipótese de perda da condição de candidato. Desse modo, a decisão que
cassa mandato eletivo com fundamento na captação ilícita de sufrágio, nos termos do artigo 41-A da Lei
9.504/97, não possui efeito suspensivo, permitindo o imediato afastamento do candidato mesmo quando
a decisão judicial ainda não está acobertada pelo manto da coisa julgada, o que interfere na vontade
popular, gerando instabilidade política e consequentes prejuízos à população e ao candidato. Por tais
razões, doutrina e jurisprudência vêm se inclinando no sentido de admitir a concessão de efeito suspensivo
à decisão que cassa mandato eletivo em virtude de captação ilícita de sufrágio através do uso de medida
cautelar, com vistas a permitir a manutenção do candidato no exercício do mandato até que a decisão
transite em julgado, preservando, deste modo, o resultado das eleições e resguardando o candidato de
eventuais danos.
Palavras-chave: Processo eleitoral. Sufrágio. Captação ilícita. Sentença. Efeito suspensivo.

Sumário: 1 Introdução – 2 Direito eleitoral, democracia e cidadania – 3 Princípios fundamentais do direito


eleitoral – 4 Da ilicitude na captação de sufrágio – 5 Recursos eleitorais e o efeito suspensivo – 6 Ação
cautelar como instrumento de concessão excepcional de efeito suspensivo aos recursos na justiça eleitoral
– 7 Os efeitos jurídicos da ação de captação ilícita de sufrágio com o advento da nova alínea “j” da Lei
Complementar 64/1990 – 8 A atribuição do efeito suspensivo aos recursos previstos no artigo 41-A da Lei
9.504/97 na visão da jurisprudência brasileira – 9 Considerações finais – Referências

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 197
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

1 Introdução
A característica fundamental do Estado Democrático de Direito é a participação
dos cidadãos nas decisões que atingem a vida da sociedade. Silva leciona em sua
obra que:

A democracia repousa sobre dois princípios fundamentais, ou primários,


que lhe dão a essência conceitual: a) o da soberania popular, segundo
o qual o povo é a única fonte de poder, que se exprime pela regra de
que todo poder emana do povo; b) a participação, direta ou indireta, do
povo no poder, para que este seja efetiva expressão da vontade popular.
(SILVA, 2003, p. 119).

No exercício dessa soberania popular, característica do Estado Democrático,


distinguem-se o sufrágio, que é o direito subjetivo que possui o cidadão de participar
nas decisões políticas relativas ao Estado, e o voto, que é o instrumento pelo qual
esta participação de concretiza.
A realização dessa vontade popular se manifesta através do processo eleitoral,
no qual os candidatos habilitados buscam captar o voto dos eleitores com o objetivo
de representarem os anseios populares através dos respectivos mandatos políticos.
Referida captação de votos deve, contudo, observar os preceitos legais, autando-
se na igualdade da disputa, tudo com o fito de evitar condutas capazes de viciar a
vontade dos eleitores.
Foi nesse contexto que a Lei 9.840/99, fruto de iniciativa popular, foi editada,
acrescentando à Lei 9.504/97 o artigo 41-A, que dispõe sobre as formas de captação
ilícita de sufrágio, cominando, como sanção, multa pecuniária e cassação do registro
ou diploma.
A aludida cassação do registro em virtude de captação ilícita de sufrágio vem
sendo interpretada pelo Tribunal Superior Eleitoral como hipótese de perda da condi­
ção de candidato, e não de inelegibilidade, o que afasta a incidência do artigo 15 da
Lei Complementar 64/90, que impõe o trânsito em julgado da decisão quando a nega­
tiva ou cancelamento do registro se der em virtude de declaração de inelegibilidade.
Referida interpretação evidencia um contrassenso na medida em que não exige
decisão definitiva para a supressão da candidatura na hipótese de captação ilícita de
sufrágio; porém, requer trânsito em julgado nos casos de negativa ou cancelamento
por declaração de inelegibilidade do candidato, quando, em ambas as situações,
evidencia-se a possibilidade de dano irreparável.
O imediato afastamento do agente político do cargo ocupado, em virtude de
decisão judicial ainda não acobertada pelo manto da coisa julgada, não apenas afronta
a prevalência da vontade popular como, também, implica danos irreparáveis não só ao
ocupante do cargo em questão, mas, da mesma forma, à própria estabilidade política.

198 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

Por essa razão, a prática tem buscado a obtenção da concessão de efeito


suspensivo à decisão através de medida cautelar, fundamentada na possibilidade de
prejuízo irreparável, com o fito de se impedir a imediata execução do julgado.
O tema objeto da presente pesquisa encontra correntes divergentes, contro­
vertendo a jurisprudência acerca da possibilidade ou não de atribuição de efeito
suspensivo ao recurso interposto contra a decisão que determina o imediato afas­
tamento do cargo eletivo, com o fito de preservar o mandato eletivo até o trânsito em
julgado.
A questão é tormentosa e palpitante, eis que relevantes às consequências
advindas da decisão tomada em cada caso. A presente pesquisa busca analisar os
caminhos trilhados pela jurisprudência, e as soluções que vem sendo efetivamente
adotadas na prática.

2 Direito eleitoral, democracia e cidadania


Antes de adentrar a questão que se pretende abordar no presente trabalho,
qual seja, a necessidade de atribuição de efeito suspensivo à decisão que cassa man­
dato eletivo em virtude de captação ilícita de sufrágio, bem como as consequências
decorrentes da não atribuição deste efeito, mister se faz, inicialmente, traçar algumas
considerações introdutórias ao Direito Eleitoral.
O jurista Ramayana ensina que:

O Direito Eleitoral é um conjunto de normas jurídicas que regulam o pro­


cesso de alistamento, filiação partidária, convenções partidárias, registro
de candidaturas, propaganda política eleitoral, votação, apuração, procla­
mação dos eleitos, prestação de contas de campanhas eleitorais e diplo­
mação, bem como as formas de acesso aos mandatos eletivos através
dos sistemas eleitorais (RAMAYANA, 2009, P. 23).

Possuindo como fonte principal o texto constitucional, do qual se extraem os


princípios que o regem, o Direito Eleitoral tem por função precípua garantir a soberania
popular através do voto, com todo o aparato e procedimento que envolve o processo
eleitoral.
Essa soberania popular caracteriza a democracia, regime político no qual o povo
exerce influência no governo de um Estado, participando, efetivamente, das decisões
políticas que possam repercutir na sociedade.
O exercício da democracia encontra-se intimamente ligado ao conceito de
cidadania, pois é necessário que o povo conheça as regras cívicas, os direitos e
deve­res delas decorrentes, bem como as prestações passíveis de serem exigidas
do Poder Público a fim de que possa efetivamente participar das decisões políticas
do Estado.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 199
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

Em sua obra, Ramayana (2009, p. 26) menciona que:

A democracia, em síntese conceitual, exprime-se como um governo do


povo, sendo um regime político que se finca substancialmente na sobe­
rania popular, compreendendo-se os direitos e garantias eleitorais, as
con­dições de elegibilidade, as causas de inelegibilidade e os mecanis­­mos
de proteção disciplinados em lei para impedir as candidaturas viciadas e
que atentem contra a moralidade pública eleitoral, exercendo-se a divisão
de funções e dos poderes com aceitação dos partidos políticos, dentro
de critérios legais preestabelecidos, com ampla valorização das igual­
dades e liberdades públicas.

Verifica-se que o Direito Eleitoral viabiliza, pois, o exercício da democracia na


me­dida em que possibilita a interferência do povo nas principais decisões políticas do
Estado, caracterizando a realização plena da soberania popular assegurada no texto
constitucional.
Dentre os diversos mecanismos destinados ao gradativo e constante aprimo­
ramento da legislação, com vistas a garantir a lisura do pleito eleitoral, a introdução
do artigo 41-A da Lei 9.504/97 no ordenamento jurídico brasileiro, dispositivo legal
objeto de detalhada análise no presente trabalho, constitui, sem dúvida, importante
meio de combate à corrupção.

3 Princípios fundamentais do direito eleitoral


Princípios são normas jurídicas que servem de diretrizes gerais na interpre­tação
do ordenamento. Explica Silva (2010, p. 50) que “princípios são mandamentos de
otimização, ou seja, normas que exigem que algo seja realizado na maior medida
possível diante das condições fáticas e jurídicas existentes”.
No âmbito do Direito Eleitoral, destacam-se os seguintes princípios:
Inicialmente, o Princípio da Lisura das Eleições, pelo qual se assegura que os
votos sejam preservados e que haja igualdade entre os candidatos, de modo a se
coibir fraudes e abusos.
Correlato ao Princípio da Lisura das Eleições está o Princípio do Aproveita­mento
do Voto, pelo qual se busca evitar a decretação de nulidade de atos que não causem
prejuízo, preservando-se, assim, a soberania popular, a apuração dos votos e a diplo­
mação dos eleitos.
O Princípio da Celeridade retrata a imediatidade das decisões eleitorais, que
não podem ser postergadas para além da diplomação, salvo raras exceções.
Pelo Princípio da Devolutividade dos Recursos, temos a regra de que os recur­
sos eleitorais possuem, em geral, efeito apenas devolutivo, conforme se vê do artigo
257 do Código Eleitoral: “Os recursos eleitorais não terão efeito suspensivo”.
(BRASIL, 1965).
Este princípio, em particular, encontra-se intimamente ligado ao tema em
deba­te, eis que a não suspensividade dos recursos eleitorais, determinada pelo

200 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

supracitado artigo 257 do Código Eleitoral, confronta diretamente o artigo 216 do


mesmo diploma, que diz: “Enquanto o Tribunal Superior não decidir o recurso inter­
posto contra a expedição do diploma, poderá o diplomado exercer o mandato em toda
a sua plenitude”. (BRASIL, 1965).
Ao contrário da regra geral estabelecida pelo artigo 257, o artigo 216 do Código
Eleitoral permite que seja atribuído efeito suspensivo ao recurso interposto contra a
expedição do diploma, o que vem gerando decisões divergentes neste tocante, tema
que será aprofundado mais adiante, em momento oportuno.
Correlato ao Princípio da Celeridade está o Princípio da Preclusão Instantânea,
pelo qual, consumado determinado ato, não mais se admite sua impugnação, a
exemplo do disposto nos artigos 147, §1º, e 149 do Código Eleitoral, a seguir trans­
critos, respectivamente:
“A impugnação à identidade do eleitor, formulada pelos membros da mesa,
fiscais, delegados, candidatos ou qualquer eleitor, será apresentada verbalmente ou
por escrito, antes de ser o mesmo admitido a votar”. (BRASIL, 1965).
“Não será admitido recurso contra a votação, se não tiver havido impugnação
perante a mesa receptora, no ato da votação, contra as nulidades argüidas”. (BRASIL,
1965).
O Princípio da Anualidade possui expressa previsão constitucional no artigo 16
– “A Lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publica­
ção, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência”
(CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988) – e estabelece que toda lei que alterar o processo
eleitoral será publicada um ano antes da data da eleição. Ressalte-se que referido
dispositivo não abrange as resoluções eleitorais decorrentes do poder normativo do
Tribunal Superior Eleitoral, as quais podem ser expedidas até o dia 5 de março do
ano da eleição, conforme artigos 1º, parágrafo único, e 23, IX, do Código Eleitoral.
Outro importante princípio eleitoral é o da Responsabilidade Solidária entre
candidatos e partidos políticos, expressamente previsto no artigo 241 do Código Elei­
toral: “Toda propaganda eleitoral será realizada sob a responsabilidade dos partidos
ou de seus candidatos, e por eles paga, imputando-lhes solidariedade nos excessos
praticados pelos seus candidatos e adeptos”.
Denota-se deste princípio que a pessoa física do candidato e a pessoa jurídica
de direito privado partido político são corresponsáveis pelos excessos e abusos
praticados.
O artigo 281 do Código Eleitoral dispõe acerca do Princípio da Irrecorribilidade
das decisões do Tribunal Superior Eleitoral, preconizando que, com exceção das deci­
sões que declarem a invalidade de lei ou ato contrário à Constituição Federal, bem
como as denegatórias de habeas corpus ou mandado de segurança, são irrecorríveis
todas as demais decisões emanadas do TSE.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 201
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

Eis uma breve síntese dos principais princípios que norteiam o Direito Eleitoral,
embasando todas as decisões em seu âmbito proferidas.

4 Da ilicitude na captação de sufrágio


4.1 Distinção entre abuso do poder econômico e captação
ilícita de sufrágio
Antes de tratar especificamente da captação ilícita de sufrágio, mister se faz
atentar para a distinção existente entre esta e o chamado abuso de poder econômico.
Inicialmente, é possível distinguir os dois institutos com relação à repercussão
dos respectivos fatos ilícitos.
Na captação ilícita de sufrágio, o candidato negocia com o eleitor, prometendo-
lhe alguma vantagem pessoal em troca de seu voto.
Já no abuso de poder econômico, as vantagens proporcionadas são impessoais,
destinadas a beneficiários indeterminados e, de tal proporção, que seria capaz de
alterar o resultado do pleito, o que não se exige na captação ilícita de sufrágio.
Assim, para que haja abuso do poder econômico, é necessário que o ato seja
capaz de influenciar o resultado das eleições, ao passo que, na captação ilícita, é
suficiente um único fato com o objetivo de compra do voto para que o ilícito esteja
caracterizado.
Veja-se, neste sentido, o seguinte julgado:

RECURSO ELEITORAL – INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL – INELEGIBI­


LIDADE E MULTA – ABUSO DE PODER ECONÔMICO E POLÍTICO– INOCOR­
RÊNCIA – CAPTAÇÃO ILEGAL DE SUFRÁGIO – PRECEDENTES DO TSE E
DO TRE – CONHECIMENTO – PROVIMENTO PARCIAL – EXCLUSÃO DA INE­
LEGIBILIDADE – MANUTENÇÃO DA PENA DE MULTA – O abuso de poder
econômico somente se caracteriza se o ato abusivo praticado tiver a
potencialidade para influir no resultado do pleito. Para a caracterização
da ilicitude prevista no artigo 41-A, da Lei nº 9.504/97, basta apenas a
compra de um voto. Provimento parcial. (MARANHÃO, Tribunal Regional
Eleitoral. 2276 – (4736) – Rel. Juiz Nivaldo Costa Guimarães – DJMA
06.09.2002).

Outra relevante distinção é que, no âmbito do abuso do poder econômico, tutela-


se a regularidade do pleito, enquanto que, na captação ilícita de sufrágio, o bem
protegido é a liberdade de voto do eleitor.
A distinção entre abuso de poder econômico e captação ilícita de sufrágio
também traz consequências distintas.
No caso do abuso, o candidato é punido com a perda do mandato e do registro
(artigo 22, XIV, da Lei Complementar 64/90) e com a declaração de inelegibilidade,

202 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

não só para a eleição em que ocorreu o ilícito, como, também, para as eleições que
ocorram nos três anos seguintes (Lei Complementar 64/90, artigo 1º, I, “d”).
Tratando-se de captação ilícita, a punição do candidato se dá com a cassação
do seu registro ou diploma.
Afirma Castro (2008, p. 260) que:

Quando se está diante de abuso de poder econômico e, portanto, de


causa de inelegibilidade, necessária a demonstração de que o abuso
influi na normalidade e legitimidade das eleições, pois que é este o bem
jurídico de que cuidam as inelegibilidades (art. 14, §9º, da CF/88). Como
a captação de sufrágio (art. 41-A) não é nova espécie de inelegibilidade,
mas mera infração administrativa eleitoral, não se está a proteger a
normalidade e legitimidade das eleições, e sim a liberdade de escolha
do eleitor, que deve ser a todo custo respeitada.
Por conseguinte, para efeito de aplicação das sanções previstas no art.
41-A (multa e cassação do registro ou diploma), não será necessária a
demonstração de que o agente deu, ofereceu, prometeu ou entregou a
um número expressivo de eleitores bem ou vantagem pessoal de qual­
quer natureza. Na verdade, bastará a prova de que um único eleitor foi
corrompido para que se tenha caracterizada a violação do art. 41-A.

Como dito, no que tange ao abuso do poder econômico, a vantagem é ofertada


a um número indeterminado de pessoas, sendo, pois, de caráter coletivo. Já na cap­
tação ilícita, a vantagem ofertada é pessoal, destinada a um determinado eleitor.
Contudo, apesar da exigência de individualização do eleitor para configurar a
conduta descrita no artigo 41-A, o Tribunal Superior Eleitoral flexibilizou a extensão
da norma para dispensar a identificação do eleitor conforme o caso concreto, como
se afere do seguinte julgado, onde a identificação dos nomes dos eleitores corrom­
pidos foi julgada desnecessária diante da comprovada captação ilícita do sufrágio.
Veja:

Representação – Art. 41-A da Lei 9.504/97 – Multa – Inelegibilidade


– Art. 22 da LC N. 64/90. Não identificação dos nomes dos eleito­res
corrompidos – Desnecessidade. 1. Estando comprovada a prática de
cap­tação ilegal de votos, não é imprescindível que sejam identificados
os elei­tores que receberam benesses em troca de voto. (TRIBUNAL
SUPERIOR ELEITORAL. Resp n. 21.022/CE, de 07.02.2003).

No que perquire ao procedimento a ser adotado em cada uma das hipóteses,


no abuso do poder econômico, o rito a ser observado é o disposto no art. 3º da Lei
Complementar 64/90.
Tratando-se de captação ilícita de sufrágio, deve ser seguido o rito indicado no
artigo 22 da Lei Complementar 64/90, como se verá.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 203
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

4.2 Aspectos históricos da captação ilícita de sufrágio


Para melhor compreensão do instituto da captação ilícita de sufrágio, faz-se
necessário tecer uma breve análise acerca de seus aspectos históricos.
Uma primeira alteração relevante ao processo eleitoral no Brasil foi trazida pela
Constituição Republicana de 1891, que, contrariando o disposto na Carta Imperial
de 1824, extinguiu o voto censitário e indireto, embora ainda não possibilitasse o
voto feminino e secreto.
Contudo, a chamada “Política dos Governadores”, instituída pela denominada
República Oligárquica, foi marcada pela manipulação dos votos pelos coronéis, aca­
bando por deturpar o sufrágio, segundo citação de Victor Nunes Leal feita por Barroso:

Por esta via, incorporou-se à cidadania ativa um volumoso contingente


de eleitores incapacitados para o consciente desempenho de sua missão
política, vinculando-se os detentores do poder público, em larga medida,
aos condutores daquele “rebanho eleitoral”. (BARROSO, 2006).

Como o voto não era secreto, os coronéis costumavam valer-se, a princípio, da


força e da violência como instrumentos de captação de votos. Posteriormente, com o
advento do Código Eleitoral de 1932 e a consequente instituição do voto secreto, a
barganha de bens e outras vantagens passou a constituir meio mais eficaz.
Tem-se, pois, que o nascedouro da captação ilícita de sufrágio no Brasil está
associado a essa conduta dos coronéis, o que resultou na edição do artigo 299 do
Código Eleitoral, disciplinando expressamente a captação ilícita de sufrágio, norma,
contudo, de pouca efetividade na prática.
Por essa razão, veio a ser introduzido, após iniciativa popular, o artigo 41-A da
Lei 9.504/97, com redação dada pela Lei 9.840/99, com o objetivo de combater a
corrupção nas eleições.

4.3 Captação ilícita de sufrágio e o artigo 41-A da Lei 9.504/97


O direito de sufrágio compreende o direito de escolher um candidato e de con­
correr aos cargos eletivos. A captação lícita do sufrágio é inerente à própria disputa
eleitoral, estando intimamente ligada à propaganda política eleitoral. Nas palavras
de Costa (2004):

O chamado macro-processo eleitoral é o procedimento pelo qual os


candidatos habilitados pela Justiça Eleitoral buscam captar os votos
dos eleitores, com a finalidade de serem eleitos para os mandatos ele­
tivos em disputa. Os candidatos, entendidos tais aqueles que estejam
registrados perante a Justiça Eleitoral, devem buscar captar o voto
dos eleitores através de propaganda eleitoral, comícios, debates nos
meios de comunicação social, exposição de suas idéias e ideologia

204 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

etc. O convencimento dos eleitores é, em uma última análise, o fim da


campanha eleitoral.

A captação ilícita do sufrágio, em contrapartida, deve ser repreendida, conforme


se vê dos ensinamentos do mesmo jurista:

Porém, o convencimento dos eleitores não pode ser feito de qualquer


modo, por meio de técnicas e formas que quebrem o equilíbrio da dis­
puta entre os candidatos e que viciem a vontade livre e soberana dos
cidadãos votantes. Assim, são repelidos pelo ordenamento jurídico o uso
abusivo do poder econômico ou político, o uso indevido dos meios de
comunicação social, além de outras condutas que a legislação atribui
à pecha de ilícitas e, para inibi-las, impõe a sanção de inelegibilidade.

Zilio (2010, p. 484) explica em sua obra que: “O Tribunal Superior Eleitoral
en­tende que a captação ilícita de sufrágio caracteriza-se quando presentes três ele­
mentos: a) a prática de uma conduta (doar, prometer, etc.); b) a existência de uma
pessoa física (o eleitor); c) o resultado a que se propõe o agente (o fim de obter
voto)”.
Meras promessas de melhoria, desprovidas de artimanha destinada à obtenção
de voto mediante concessão de vantagem pessoal, não caracterizam captação ilícita
de sufrágio, que deve ser dirigida a eleitor determinado ou, ao menos, determinável.
Ressalta Zilio (2010) que, “quando a conduta é direcionada à pessoa deter­
minada e é condicionada a uma vantagem, em uma negociação personalizada em
troca do voto, caracteriza-se a captação ilícita de sufrágio”.
Não é exigência legal que haja pedido explícito de voto, bastando a intenção de
“compra” de voto mediante oferta de vantagem pessoal de qualquer natureza. Não
se exige sequer a efetiva obtenção da vantagem pessoal pelo eleitor, tampouco que
este a aceite, bastando para a configuração do ilícito a oferta pelo candidato.
Veja, nesse sentido, os dizeres de Costa (2004, p. 3):

Para que o ilícito ocorra, não há a necessidade de que o eleitor obtenha,


de fato, vantagem pessoal ou algum bem do candidato. À incidência da
norma, basta a promessa ou o oferecimento de vantagem de qualquer
natureza. A entrega ou a consumação do benefício prometido apenas qua­
lifica o fato ilícito, vez que a prova da sua ocorrência fica mais facilitada.
Todavia, o simples aliciamento da vontade do eleitor através de promessa
de futura vantagem, em troca do seu voto, já é ato ilícito punível. Des­
tarte, enquanto o abuso de poder econômico ou político tem de ser pro­
vado, com a demonstração de sua repercussão para desequilibrar o
processo eleitoral (relação de causalidade), à captação ilícita de sufrágio
basta a prova do oferecimento ou da promessa de vantagem pessoal de
qualquer natureza para que ao candidato venha a ser aplicada a sanção
de cancelamento do seu registro de candidatura. Noutro giro, o candidato
pode até não consumar o seu intento de conspurcar a vontade do eleitor;

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 205
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

pode, inclusive, sequer ser beneficiado pelo aliciamento que venha a


fazer: pouco importa, ele terá mondado o seu registro. Assim, não há
pos­si­bilidade de tentativa na realização do tipo legal: havida a promessa
de vantagem, a norma infalivelmente incide, juridicizando a conduta do
candidato como ilícita e deflagrando os efeitos nela previstos.

Saliente também que não é exigido que a conduta efetivamente afete ou com­
prometa a eleição, bastando a prática do ato destinado à obtenção irregular do voto
para caracterização do ilícito. Veja, nesse sentido, o seguinte julgado:

[...]
IV – Prática de conduta vedada pelo art. 41-A da Lei n. 9.504/97, acres­
centado pelo art. 1º da Lei n. 9.840/99: compra de votos. Há nos autos,
depoimentos de eleitoras, prestados em juízo, que atestam a compra de
votos.
V – Para a configuração do ilícito inscrito no art. 41-A da Lei n. 9.504/97,
acrescentado pela Lei n. 9.840/99, não é necessária a aferição da poten­
cialidade de o fato desequilibrar a disputa eleitoral. (TRIBUNAL SUPERIOR
ELEITORAL – Respe n. 21.264 – DJ 11.06.2004, p. 94).

No que perquire a legitimidade na ação de cassação de mandato eletivo por


captação ilícita de sufrágio, possuem legitimidade ativa para ajuizar a representação
qualquer partido político, coligação, candidato e, também, o Ministério Público Elei­
toral, nos termos do artigo 127 da Constituição Federal, como se vê:

Assim, embora não haja referência expressa ao Ministério Público


Elei­­­­toral na Constituição Federal de 1988, a previsão que concede le­
giti­mi­dade plena ao órgão ministerial em matéria eleitoral resta consubs-
tanciada no próprio caput do artigo 127 da Carta Maior. (ZILIO, 2010,
p. 40)

No polo passivo, figura como legitimado o candidato, predominando o enten­


dimento de que o artigo 41-A não abrange o terceiro, que, em nome deste, oferece
vantagem pessoal em troca do voto, a menos que o candidato tenha anuído à prática
do ato ilícito, conforme explica Zilio (2010, p. 489), citando Adriano Soares da Costa
e Joel José Cândido:

Neste diapasão é o ensinamento de ADRIANO SOARES DA COSTA:


“QUEM PODE COMETER O ATO ILÍCITO É O CANDIDATO, E APENAS ELE.
Se alguém, em nome dele, promete, doa, oferece ou entrega ao eleitor
algum bem ou vantagem pessoal, com a finalidade de obter-lhe o voto,
comete abuso de poder econômico ou corrupção, mas não a captação
de sufrágio” e de JOEL JOSÉ CÂNDIDO que observa que a Lei 9.840/99
“reduziu o alcance do combate ao ilícito, com grave prejuízo à ordem
jurídica, posto que só puniu o corruptor”.

206 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

O artigo 41-A da Lei 9.504/97 assim estabelece:

Art.41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui


captação ilícita de sufrágio o candidato doar, oferecer, prometer, ou
entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pes­
soal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde
o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de
multa de mil a cinqüenta mil Ufirs, e cassação do registro ou do diploma,
observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64
de 18 de maio de 1990.

O referido dispositivo legal (artigo 22 da Lei Complementar 64, de 18 de maio


de 1990) trata das inelegibilidades decorrentes do abuso do poder econômico e
político, assim dispondo em seu inciso XIV:

Art. 22. (...)


XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação
dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de
quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção
de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos
subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro
ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do
poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos
meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério
Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso,
e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie
comportar.

A possibilidade de execução imediata da decisão de cassação do registro do


candidato, com fulcro neste dispositivo, em confronto com a decisão de cassação
do mandato eletivo em virtude da captação ilícita de sufrágio constitui o cerne do
presente trabalho e será aprofundado no decorrer deste estudo.
Isso porque os dispositivos em questão revelam situações controvertidas na
medida em que permitem a imediata supressão da candidatura no caso de captação
ilícita de sufrágio, exigindo, ao revés, trânsito em julgado da decisão nas hipóteses
de inelegibilidade quando, em ambos os casos, persiste o mesmo risco de prejuízo
irreparável ao candidato a ser evitado, consubstanciado no prematuro afastamento
do mandato eletivo.

5 Recursos eleitorais e o efeito suspensivo


Os recursos eleitorais encontram-se disciplinados no próprio texto constitucio­
nal, no artigo 121, §§3º e 4º, e nos artigos 257 a 282 do Código Eleitoral, sem
pre­juízo da possibilidade de criação de outros mecanismos recursais específicos
pelas leis disciplinadoras das eleições, tendo em vista o poder normativo atribuído

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 207
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

ao Tribunal Superior Eleitoral, admitindo-se, ainda, a aplicação subsidiária do Código


de Processo Civil e do Código de Processo Penal, conforme se vê do artigo 364 do
Código Eleitoral e da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral a seguir transcritos:

Art. 364 No processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns


que lhe forem conexos, assim como nos recursos e na execução que lhes
digam respeito, aplicar-se-á, como lei subsidiária ou supletiva, o Código
de Processo Penal.

Agravo regimental. Agravo de instrumento. Formação. Cópias. Valor. Reco­


lhi­mento. Intimação. Desnecessidade. Deserção. Art. 3º, §2º, da Res.-
TSE nº 21.477/2003.1. A aplicação das regras do Código de Processo
Civil ocorre de maneira subsidiária quando ausente disciplina própria para
a matéria no processo eleitoral. 2. O agravante está obrigado a recolher,
no prazo de dois dias contados do ajuizamento do agravo, o valor relativo
à extração das peças indicadas para formação do instrumento, sob pena
de deserção. Agravo regimental a que se nega provimento. (TRIBUNAL
SUPERIOR ELEITORAL. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº
6.809/SP. Relator: Ministro Caputo Bastos. Publicado em: 12.05.2006).

O prazo comum para interposição dos recursos eleitorais é de três dias, devendo
o recurso ser interposto com as respectivas razões, e correndo o prazo em sábados,
domingos e feriados durante o período eleitoral, conforme preconizam os artigos 258
do Código Eleitoral e 16 da Lei Complementar 64/90.
No que tange aos efeitos, é sabido que os recursos podem ter, a princípio, os
seguintes efeitos: o devolutivo, pelo qual se reabre a possibilidade de apreciação e
julgamento da questão já decidida, e suspensivo, pelo qual se obsta que a decisão
impugnada produza seus efeitos antes do julgamento do recurso, com consequente
trânsito em julgado da decisão.
Em sua obra sobre os recursos, Montenegro Filho (2006) preconiza que:

O efeito suspensivo não diz respeito ao recurso em si, da sua efetiva


utilização, mas ao efeito da decisão, que só pode ser executada na hipó­
tese de não ser atacada pelo recurso próprio, até lá permanecendo em
condição suspensiva. Assim é que todas as decisões admitem a sua
sus­pensão, pelo só fato de existir recurso apropriado para combatê-las.
Este efeito não incide quando o recurso não for apresentado, ou quando
a lei (CPC ou legislação esparsa) afastar a sua aplicação nos casos que
disciplinar, todos eles marcados por uma situação de urgência ou de
quase certeza da retidão do pronunciamento judicial.

Nessa mesma linha de raciocínio, explica Theodoro Júnior (2006, p. 623) que:

De maneira geral, os atos de execução só devem ocorrer depois que


a decisão se tornar firme (coisa julgada ou preclusão pro iudicato), por
exi­gência mesma do princípio do devido processo legal. Enquanto não
se esgotam os meios de debate e defesa, enquanto não se exaure o

208 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

contraditório, não está o Poder Judiciário autorizado a invadir o patrimônio


da parte (CF, art. 5º, LIV e LV). Há casos excepcionais, contudo, em que
a boa realização da Justiça exige efetivação, de imediato, das medidas
deliberadas em juízo. É para tanto que a lei abre exceção ao natural
efeito suspensivo e dispõe que alguns recursos, em algumas situações,
não devem ser recebidos nos dois efeitos, mas apenas no devolutivo.

Os recursos eleitorais são, em regra, desprovidos de efeito suspensivo, sendo


imediatamente executáveis, ao teor do disposto no artigo 257 do Código Eleitoral.
O intuito dessa regra é conferir maior efetividade às decisões proferidas no âmbito
da Justiça Eleitoral.
Essa regra geral, contudo, é excepcionada pelo artigo 216 do mesmo diploma,
que estabelece que: “Enquanto o Tribunal Superior não decidir o recurso interposto
contra a expedição do diploma, poderá o diplomado exercer o mandato em toda a sua
plenitude”. O artigo 15 da Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar 64/90) com­
plementa o tema, dispondo que:

Art. 15. Transitada em julgado ou publicada a decisão proferida por órgão


colegiado que declarar a inelegibilidade do candidato, ser-lhe-á negado
registro, ou cancelado, se já tiver sido feito, ou declarado nulo o diploma,
se já expedido.
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput, independentemente
da apresentação de recurso, deverá ser comunicada, de imediato, ao
Ministério Público Eleitoral e ao órgão da Justiça Eleitoral competente
para o registro de candidatura e expedição de diploma do réu.

No caso de decisão proferida em virtude de captação ilícita de sufrágio, nos


moldes do artigo 41-A da Lei Eleitoral, no entanto, não há previsão de suspensividade,
pois não se cuida, como se verá, de decisão que condene à inelegibilidade.

5.1 Ponderações sobre o artigo 257 do Código Eleitoral


Da análise do artigo 41-A da Lei 9.504/97, resultam interpretações diver­­
gentes quanto à possibilidade ou não de atribuição de efeito suspensivo ao recurso
interposto contra decisão que cassa mandato eletivo em virtude de captação ilícita
de sufrágio.
O Tribunal Superior Eleitoral consolidou o entendimento de que o referido dispo­
sitivo legal não constitui hipótese de inelegibilidade, nos termos da Lei Complementar
64/90.
Nesses termos, a captação ilícita de sufrágio, referida no supracitado artigo
41-A, constitui situação específica relativa à compra de votos, não compreendida
dentre as hipóteses de inelegibilidade contempladas pela Lei de Inelegibilidades.
Nesse sentido, leciona Ramayana (2009, p. 425):

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 209
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

As inelegibilidades decorrentes do abuso do poder econômico e político


recebem um tratamento especial da Lei Complementar nº 64, de 18 de
maio de 1990, quando no art. 22, os incisos XIV e XV fomentam uma
superposição de ações em consonância ao momento em que é satisfeita
a prestação jurisdicional do eleitor. Na verdade, o abuso do poder em
matéria eleitoral conduz ao nexo causal da inelegibilidade, mas a ação
de captação ilícita de sufrágio foi especialmente criada para a defesa da
pura compra de votos, sem que desta ação decorresse a hipótese abu­
siva. Não há nesta premissa, nenhuma contradição evidente, mas apenas
efeitos diversos decorrentes da hipótese fática de incidência. Por exemplo,
se um determinado candidato comprou votos sem potencialidade lesiva
na análise factual daquela eleição, deverá responder pelas sanções do
art. 41-A, sem nenhuma incidência da Lei das Inelegibilidades.

Zilio (2010, p. 492) explica que a intenção do legislador ao estabelecer a apli­


cação do procedimento do artigo 22 da Lei de Inelegibilidades à captação ilícita de
sufrágio preconizado no artigo 41-A da Lei 9.504/97 é meramente processual e
adjetiva, inexistindo qualquer vínculo material:

Com efeito, o desiderato do legislador foi evitar a aplicação das graves


sanções previstas na captação ilícita de sufrágio a partir de um proce­
dimento sumaríssimo (art. 96 da Lei 9.504/97), para as representações
por descumprimento à Lei das Eleições. Portanto, embora a captação
ilícita de sufrágio consista em representação por descumprimento à Lei
nº 9.504/97, por expressa opção legislativa, o rito aplicável é o sumário,
previsto na LC nº 64/90.

Dessa forma, a captação ilícita de sufrágio definida pelo artigo 41-A da Lei
9.504/97 deve observar o procedimento do artigo 22 da Lei Complementar nº 64/90,
contudo, nos termos dos incisos I a XII, não se aplicando os incisos XIV e XV, que
implicam em declaração de inelegibilidade. Veja a explicação de Ramayana (2009,
p. 433):

É certo que a captação de sufrágio, definida pelo art.41-A, da Lei nº


9.504/97, deverá ser apurada de acordo com o procedimento da ação
de investigação judicial eleitoral, previsto no art. 22 da LC nº 64/90, o
qual dispõe, em seus incisos XIV e XV, o seguinte: (...)
Tais incisos, no entanto, não se aplicam ao procedimento da repre­
sen­tação para apuração da conduta descrita no art. 41-A da Lei nº
9.504/97, como já decidiu o Tribunal Superior Eleitoral (Ac nº 19.587,
de 21.3.2002, Rel. Min. Fernando Neves; Ag nº 3042, de 19.3.2002,
Rel. Min. Sepúlveda Pertence).
O procedimento do art. 22, a ser observado na aplicação do art. 41-A, é
aquele previsto nos incisos I a XIII. Isso porque, diferentemente da ação
de investigação judicial eleitoral, a representação para a apuração da
captação de sufrágio não implica a declaração de inelegibilidade, mas
apenas a cassação do registro ou do diploma.

210 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

Nesse sentido, ensina Zilio (2010, p. 492) que:

A observância do procedimento previsto no art. 22 da LC nº 64/90,


contudo, não significa que, em havendo o julgamento da representa­
ção por captação ilícita de sufrágio após a eleição, deve ser manuseada
outra ação eleitoral – seja AIME, seja RCD –, com o fim de afastar o
repre­sentado do mandato eletivo. Com efeito, cumpre consignar que os
incisos XIV e XV do art. 22 da LC nº 64/90 (que estabelecem as dife­
renças entre a representação de investigação judicial eleitoral ser julgada
antes ou após a eleição) vinculam-se com a eficácia da sentença, e não
guardam pertinência com o procedimento a ser adotado. Tanto que o
art. 22 da LC nº 64/90 faz previsão da declaração de inelegibilidade –
sanção inaplicável na captação ilícita de sufrágio –, ao passo que o art.
41-A da Lei nº 9.504/97 prevê a possibilidade de cassação do diploma,
o que – pela conjugação dos incisos XIV e XV do art. 22 – é vedado na
investigação judicial eleitoral.

Doutrina e jurisprudência dispõem no mesmo sentido. Veja:

O Tribunal Superior Eleitoral vem decidindo, em diversos julgados, no


sentido que a cassação do registro por captação ilícita de sufrágio não
induz a inelegibilidade, mas apenas a perda da condição de candidato.
Como não gera inelegibilidade, não haveria a incidência do art. 15 da
Lei Complementar nº 64/90, que prescreve que “transitada em julgado
a decisão que declara a inelegibilidade do candidato, ser-lhe-á negado o
registro, ou cancelado, se já tiver sido feito, ou declarado nulo o diploma,
se já expedido”. (Captação de sufrágio e inelegibilidade: análise crítica
do art. 41-A da Lei nº 9.504/97. Adriano Soares da Costa in <http://
jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2909&p=2>).

Na mesma linha de pensamento, o Ministro Maurício Corrêa, sobre o artigo


41-A da Lei 9.504/97, em comunhão com o entendimento prevalecente no Tribu­nal
Superior Eleitoral, fez a seguinte observação: “Trata-se de um tipo definido, bem
expli­citado, que constitui o motivo da cassação do registro, posterior, inclusive, à
candidatura, e que não é caso específico de inelegibilidade” (TRIBUNAL SUPERIOR
ELEITORAL, Acórdão nº 970, de 1º.3.2001, rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ 27.4.2001,
in: Informativo TSE – Ano III – nº 12, de 23 a 29 de abril de 2001, p. 8).
A consequência prática da aplicação dessa interpretação é que a decisão de
cassação de registro ou diploma do candidato em virtude de captação ilícita de
sufrágio, com fundamento no artigo 41-A da Lei 9.504/97, teria eficácia imediata,
não se aplicando o disposto no artigo 15 da Lei das Inelegibilidades, que exige o trân­
sito em julgado da decisão para que seja declarada a inelegibilidade do candidato,
mas, sim, a regra geral do artigo 257 do Código Eleitoral, segundo o qual os recursos
eleitorais não possuem efeito suspensivo.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 211
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

No aresto citado, o Ministro Fernando Neves afirma ainda que:

Se não há declaração de inelegibilidade, a eficácia da decisão proferida pela


Justiça Eleitoral não está condicionada ao seu trânsito em julgado. Incide
a regra geral de que “os recursos eleitorais não têm efeito suspensivo
(Código Eleitoral, art. 257)”. E mais adiante assevera: “No registro de
candidatura, como dito, o fim perseguido é a demonstração da presença
das condições de elegibilidade e a ausência das inelegibilidades, para
que se dê o candidato como apto a participar do pleito. Nessa situação,
o legislador expressamente determinou que se aguarde a existência de
decisão definitiva, o que se justifica para evitar dano irreparável e dar
prevalência à vontade popular até que haja pronunciamento definitivo
do Poder Judiciário sobre a elegibilidade ou não do candidato (...)”.
E prossegue: “A representação com base no art. 41-A, no entanto, tem,
como objeto, não mais a aferição das condições para o deferimento
do registro, mas apurar condutas ilegais praticadas pelo já candidato
durante sua campanha eleitoral. O fato de que, na apuração do delito,
seja observado o previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de
1990, não altera o meu entendimento, pois o que deve ser seguido é
apenas o procedimento, não as punições lá previstas, entre as quais
se encontra a inelegibilidade por três anos. Aliás, as penas próprias
do art. 41-A nele estão perfeitamente definidas: multa de mil a 50 mil
Ufirs e cassação do registro ou do diploma”. E em conclusão assevera:
“Observo que as alterações da Lei nº 9.504/97, entre as quais consta
a introdução do art. 41-A, vieram ao encontro da vontade da sociedade
de ver rapidamente apurados e punidos os ilícitos eleitorais, razão pela
qual a corrupção, que constitui crime previsto no art. 299 do CE, passou
a ser também causa da perda do registro da candidatura ou do diploma,
sem que o legislador condicionasse os efeitos da decisão proferida na
representação ao seu trânsito em julgado.

Desta feita, não constituindo hipótese de inelegibilidade, a decisão proferida


com fulcro no artigo 41-A da Lei 9.504/97 autorizaria a execução imediata do julgado,
trazendo prejuízos irreparáveis ao candidato representado.
Nesse tocante, alerta Costa (2004, p. 14) que:

Parece-nos contraditória, com a devida vênia, a afirmação segundo a qual,


no processo de registro de candidatura, se deva aguardar “a existência
de decisão definitiva, o que se justifica para evitar dano irreparável e dar
prevalência à vontade popular até que haja pronunciamento definitivo do
Poder Judiciário sobre a elegibilidade ou não do candidato”, e o mesmo
não deva ocorrer com a sanção do art. 41-A da Lei nº 9.504/97, que
tem o mesmo efeito prático: retirar do candidato a sua candidatura.
Dano irreparável ocorreria em ambas as hipóteses, porque as situações
materiais e práticas são idênticas.

A questão, contudo, é controvertida, e há quem entenda em sentido contrário,


conforme se vê do comentário de Barbosa (2008):

212 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

Com a devida licença das cortes eleitorais que têm adotado essa
interpretação, dentre elas o próprio TSE, somos em que, não se pode,
em hipótese alguma, conceder medida cautelar para emprestar efeito
suspensivo a recurso eleitoral contra tal decisão, pois, além de a con­
cessão de tais medidas serem vedadas expressamente pelo Código
Eleitoral, as liminares suspensivas ofendem aos motivos determinantes
de decisão proferida pelo STF, na ADIn n.º 3592-4/DF, de observância
“erga omnes”.

Para Barbosa (2008, p. 17):

Assim sendo, o Supremo Tribunal Federal tem enfatizado que a reclamação


reveste-se de idoneidade jurídico-processual, se utilizada com o objetivo
de fazer prevalecer a autoridade decisória dos julgamentos emanados
daquela corte, notadamente quando impregnados de eficácia vinculante,
o que também deve ocorrer em relação à ADIn n.º 3.592/DF, na qual o
STF fixou o entendimento de que a decisão condenatória adotada com
base no art. 41-A da Lei das Eleições tem eficácia imediata. Ou seja,
qualquer decisão da Justiça Eleitoral – inclusive do TSE – que suspender
a eficácia da decisão, de qualquer grau, que cassa o registro ou diploma
do candidato, nos termos do dispositivo anticorrupção eleitoral, desafia
a autoridade da decisão adotada pelo STF, na ADIn n.º 3.592/DF, sendo,
portanto, passível de reprimenda pela excelsa corte, através do instituto
da Reclamação Constitucional.

5.2 O entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca da


possibilidade de aplicação de efeito suspensivo à decisão
proferida nos moldes do artigo 41-A da Lei 9.504/97
Como visto, a regra genérica quanto aos efeitos dos recursos eleitorais, contida
no artigo 257 do Código Eleitoral, é de que estes não possuem efeito suspensivo.
Há, contudo, algumas exceções reconhecidas. No caso da ação de impugnação
ao requerimento de registro de candidato, por exemplo, este poderá fazer campa­
nha e, inclusive, exercer o mandato eletivo até que transite em julgado a questão
acerca do registro. Também na decisão que declara a inelegibilidade por abuso de
poder com fulcro no artigo 1º, d, da Lei Complementar 64/90, exige-se o trânsito
em julgado da decisão. Outra exceção em que será admitido o efeito suspensivo diz
respeito à apelação criminal eleitoral interposta contra decisão penal condenatória
ou absolutória.
Leciona Ramayana (2009, p. 38):

No processo eleitoral, como já visto, a regra é o efeito ser apenas devo­


lutivo, mas é necessário esclarecer que existem as exceções apontadas
a seguir, a saber:
1 – O recurso é recebido no efeito suspensivo, quando nega, cancela ou
anula o diploma com base em sentença prolatada nos autos da ação de

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 213
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

impugnação ao requerimento de registro de candidatos ou ação de registro


de candidatos, aplicando-se a regra do art. 15 da Lei Complementar
nº 64, de 18 de maio de 1990, pois, enquanto não transitar em julgado
a questão registral, poderá o candidato provisório ou sub judice fazer
campanha, ter o seu nome inseminado na urna eletrônica ou constar
seu nome em cédulas confeccionadas, inclusive é possível, em razão do
momento do julgamento desta ação, o exercício do mandato eletivo.
2 – No caso da sentença declarar a inelegibilidade por abuso do poder
econômico ou político (art. 22, incisos XIV e XV, da LC nº 64/90, e Súmula
nº 19 do TSE), com base na aplicação da regra do art. 1º, d, da Lei
Complementar nº 64/90, in expressi verbis: (...)
Neste caso, percebe-se que a inelegibilidade exige o trânsito em julgado
da decisão.
3 – A decisão penal condenatória ou absolutória, que desafia o recurso
inominado ou também chamado de apelação criminal eleitoral, previsto
no art. 362 do Código Eleitoral: “Das decisões finais de condenação ou
absolvição cabe recurso para o Tribunal Regional, a ser interposto no
prazo de 10 (dez) dias”.
Aqui, portanto, se fazem presentes as principais exceções ao efeito devo­
lutivo como regra geral dos recursos eleitorais.

No que perquire especificamente a decisão de cassação de mandato eletivo


em virtude de captação ilícita de sufrágio, porém, a doutrina e a jurisprudência são
divergentes como já explicitado. Zilio (2010, p. 499) elucida que:

Buscando afastar tais incongruências, o Ministro Fernando Neves, na


Resolução nº 21.051/02 do TSE, em sede de questão de ordem, traçou
distinção entre eficácia (ou execução) imediata da decisão e caráter defi­
nitivo da decisão: há a possibilidade de o candidato, mediante recurso,
prosseguir, por sua conta e risco, na campanha, mesmo que tenha sido
cassado o registro, hipótese que, segundo aventado, não afeta a eficácia
imediata da decisão.
Em verdade, o TSE objetivou temperar a aplicação do art. 257 do Código
Eleitoral para as hipóteses de captação ilícita de sufrágio, evitando atos
irreversíveis no decorrer do processo eleitoral, com base em decisões
sujeitas, ainda, à apreciação judicial, trazendo sempre a possibilidade
de o candidato, ainda que cassado o registro, permanecer nos atos de
campanha por sua conta e risco. Da mesma sorte, a implementação da
eficácia imediata, com a cassação do diploma, implica, quando se trata
de candidato Chefe do Poder Executivo, em sucessivas alterações na
admi­nistração, com inevitável prejuízo a continuidade dos serviços públi­
cos, circunstância que permite a concessão de efeito suspensivo ao re­
curso aforado. (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL – Agravo Regimental em
medida Cautelar nº 1.702 – Rel. Caputo Bastos – j. 22.09.2005).

O Tribunal Superior Eleitoral vem consolidando o entendimento de que, através


de uma ação cautelar, é plausível conceder o efeito suspensivo à decisão que
determina o imediato afastamento do agente político do cargo eletivo ocupado em

214 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

virtude de captação ilícita de sufrágio com o objetivo de evitar dano irreparável ao


agente político e aos próprios eleitores:

FUMUS BONI JURIS. PERICULUM IN MORA. SÚMULAS Nº 7/STJ E


279/STF. NÃO CONTRARIEDADE. NÃO PROVIMENTO. 1. A análise da
plausibilidade das alegações do recurso especial, a partir da moldura
fática do acórdão recorrido, para fins de concessão de efeito suspensivo,
não contraria os enunciados das Súmulas nº 7/STJ e 279/STF. No caso,
ficou assentado na decisão agravada que, a partir da leitura do v. acórdão
regional, poder-se-ia verificar, em princípio, a possibilidade de êxito do
recurso, pelo fato de, da moldura fática do v. acórdão recorrido, extrair-se
que a participação do candidato beneficiário ou sua anuência na suposta
prática violadora do art. 41-A da Lei 9.504/97 não foi bem delineada,
demandando análise de sua compatibilidade com a jurisprudência desta
c. Corte. Por outro lado, em análise preliminar, não pode ser desconside­
rado o fato de que a controvérsia foi decidida com voto de desempate
do e. Desembargador Presidente. 2. Em regra, os recursos eleitorais são
recebidos tão somente no efeito devolutivo. Admite-se o recebimento do
recurso no duplo efeito apenas excepcionalmente, desde que pleiteado
mediante ação cautelar na qual fique evidenciada a presença de fumus
boni juris e periculum in mora. Precedentes: AgR-AI nº 10.157/SC, DJE
de 20.2.2009; AgR-AC nº 3.000/MT, DJE de 15.12.2008, ambos de
minha relatoria. Na hipótese dos autos, a plausibilidade das alegações
consubstancia-se nas dúvidas existentes sobre a robustez da prova dos
autos delineada na moldura fática do v. acórdão regional. Já o perigo da
demora consistiria na possibilidade de realização de novas eleições em
curto espaço de tempo. 3. Agravo regimental não provido. (TRIBUNAL
SUPERIOR ELEITORAL, AgR-AC nº. 3346, Relator Min. FELIX FISCHER,
12.11.2009).

No mesmo sentido:

Ação de impugnação de mandato eletivo. Art. 41-A da Lei nº 9.504/97.


Sentença. Condenação. Recurso. Tribunal Regional Eleitoral. Medida
cautelar. Deferimento. Liminar. Efeito suspensivo. Apelo. Plausibilidade.
Necessidade. Evitar. Sucessiva. Alternância. Exercício. Mandato eletivo.
Recurso especial. Não-cabimento. Decisão não definitiva. Agravo
regimental que não infirma os fundamentos da decisão agravada.
1. A atribuição de efeito suspensivo a recurso encontra respaldo na
iterativa jurisprudência desta Casa. Nesse sentido: Acórdão nº 21.316,
Embargos de Declaração no Recurso Especial nº 21.316, de minha
relatoria, de 18.11.2004; Acórdão nº 1.277, Agravo Regimental na
Medida Cautelar nº 1.277, rel. Ministro Fernando Neves, de 24.6.2003.
2. No julgamento do Recurso Especial nº 25.125, rel. Ministro Peçanha
Martins, esta Corte Superior decidiu que “(...) não cabe a análise de
recurso especial interposto contra decisão interlocutória, devendo ele
ficar retido nos autos e somente ser processado se o reiterar a parte no
prazo para interposição do recurso contra a decisão final, salvo casos
excepcionais”. 3. Este Tribunal Superior tem ponderado ser conveniente

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 215
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

evitar sucessivas alterações no exercício dos mandatos eletivos, em


especial da chefia do Poder Executivo. Nesse sentido: Acórdão nº 3.345,
Agravo Regimental no Mandado de Segurança nº 3.345, rel. Ministro
Humberto Gomes de Barros, de 19.5.2005. Agravo regimental a que
se nega provimento. (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, AMC nº. 1702,
Relator Min. CARLOS EDUARDO CAPUTO BASTOS, 14.10.2005).

O Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, no mesmo norte, comunga deste


posicionamento:

Medida Cautelar. Pretensão de conferir efeito suspensivo ao recurso


interposto em sede de representação. Cassação do registro de candi­
datura da requerente. Art. 41-A da Lei nº 9.504/97. Liminar indeferida.
Presentes os requisitos do art. 798 do CPC. Perigo da demora. Fundado
receio de lesão grave e de difícil reparação. Imediata diplomação. Proce­
dência. (MINAS GERAIS, Tribunal Regional Eleitoral, Acórdão 78, Relator
ANTÔNIO LUCAS PEREIRA, 11.05.2005).

Como visto, a doutrina e a jurisprudência acerca do tema caminham no sentido


de admitir a possibilidade de atribuição de efeito suspensivo ao recurso interposto
contra a decisão que cassa mandato eletivo em virtude da captação ilícita de sufrágio,
impedindo o comando imediato da sentença. Veja os dizeres de Zilio (2010, p. 499)
nesse tocante:

Na mesma senda, em rumoroso caso de captação ilícita de sufrágio,


envolvendo Senador da República, o TSE (Recurso Especial Eleitoral
nº 21.264 – Rel. Carlos Velloso – j. 27.04.2004), por maioria, determi­
nou a cassação do diploma do beneficiado, com eficácia imediata.
Posteriormente, o STF concedeu efeito suspensivo, acolhendo a argu­
mentação de que existia controvérsia acerca da exigência do trânsito
em julgado para a execução da medida, para, ao depois, a mesma
Corte Suprema concluir pela cassação da liminar e eficácia imediata da
deci­são, independentemente da publicação do respectivo acórdão. Em
síntese, a decisão de captação ilícita de sufrágio tem execução imediata,
ressalvada a possibilidade de o julgador, utilizando-se do poder geral de
cautela e presentes os requisitos legais, conceder liminar dando efeito
suspensivo à irresignação aforada.

No julgamento do Agravo Regimental interposto na Reclamação 112/RJ, acórdão


112/RJ, publicado no DJ de 09.06.2001, p. 111, o Relator Ministro Fernando Neves
assim dispôs:

(...) A legislação eleitoral, ao assegurar a diplomação do eleito (e o


exercício do mandato), sem qualquer referência à necessidade de
decisão definitiva sobre o registro, atribuiu maior importância à vontade
do eleitor, que deve prevalecer até que ocorra o trânsito em julgado da

216 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

decisão que declarar a inelegibilidade do candidato. (...) Esse é o ponto


ao qual atribuo maior significado. Se ainda não existe uma decisão final
do Poder Judiciário sobre a elegibilidade de algum candidato, deve ser
preservada a vontade manifestada, de modo livre e soberano, pela maioria
dos eleitores. (...) Portanto, até que ocorra o julgamento definitivo, creio
ser de todo conveniente que prevaleça o resultado das urnas.

O posicionamento do Tribunal Superior Eleitoral nesse tocante tem sido pela


presunção de elegibilidade do candidato e pela preservação da soberania popular,
de modo que, apenas por decisão transitada em julgado, seria possível executar a
decisão que decreta a inelegibilidade de candidato ou a cassação de seu mandato
eletivo, com o consequente cancelamento do registro de candidatura ou seu diploma.

5.3 Observância aos ditames e princípios constitucionais


Parte da doutrina leciona que, ao apreciar a constitucionalidade do artigo 41-A
da Lei 9.504/97, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela executividade imediata
da decisão que cassa mandato eletivo por captação ilícita, razão pela qual não seria
dado às instâncias inferiores a atribuição de tal efeito em sede de ação cautelar
como se tem verificado em alguns julgados.
No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.592, o Supremo Tri­
bunal Federal reconheceu que: a) as sanções que cassam o registro ou o diploma
do candidato com fundamento no artigo 41-A da Lei 9.504/97 não constituem
novas hipóteses de inelegibilidade; b) a ilicitude na captação de sufrágio é verificada
atra­vés de representação, que se processa conforme o art. 22, incisos I a XIII, da
Lei Complementar 64/90, e não se confunde com a ação de investigação judicial
eleitoral, nem com a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, vez que não se trata
de declaração de inelegibilidade, mas, sim, de cassação do registro ou do diploma;
c) a decisão com fundamento no artigo 41-A da Lei 9.504/97 tem eficácia imediata e
não incide, neste caso, o disposto no art. 15 da Lei Complementar 64/90, que exige
o trânsito em julgado da decisão para a declaração de inelegibilidade do candidato;
d) os recursos interpostos contra estas decisões observam a regra geral insculpida
no art. 257 do Código Eleitoral, pela qual os recursos eleitorais não têm efeito
suspensivo.
Leia a ementa:

Ação Direta de Inconstitucionalidade. Art. 41-A da Lei n. 9.504/97.


Cap­tação de Sufrágio. 2. As sanções de cassação do registro ou do
diploma, previsto no Art. 41-A da Lei 9.504/97 não constituem novas
hipóteses de inelegibilidades. 3. A captação ilícita de sufrágio é apurada
por meio de representação processada de acordo com o Art. 22, Incisos
I a XIII, da Lei Complementar n. 64/90, que não se confunde com a
Ação de Investigação Judicial Eleitoral, nem com a Ação de Impugnação

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 217
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

de Mandato Eletivo, pois não implica a declaração de inelegibilidade,


mas apenas a cassação do registro ou do diploma. 4. A representação
para apurar a conduta prevista no Art. 41-A, da Lei 9.504/97 tem o
objetivo de resguardar um bem jurídico específico: a vontade do eleitor.
5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente (SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL – ADI n. 3.592-4/DF, de 26.10.2006 – unânime –
Relator Ministro Gilmar Mendes – DJ 02.02.2007).

É sabido que o controle concentrado de constitucionalidade é exercido, no


Brasil, com exclusividade pelo Supremo Tribunal Federal, sendo o único capaz de, em
análise a uma ação direta de inconstitucionalidade, retirar a norma questionada do
ordenamento jurídico ou, ao revés, ratificar sua validade e eficácia.
O caráter vinculante das decisões emanadas do Supremo Tribunal Federal em
sede controle concentrado de constitucionalidade impõe sua observância tanto pelos
órgãos do Poder Judiciário como, também, à administração pública (direta ou indireta,
no âmbito federal, estadual ou municipal).
Saliente que, tratando-se de decisão do Supremo Tribunal Federal no âmbito
do controle concentrado, não somente o dispositivo do acórdão, como os próprios
motivos determinantes da decisão, possuem efeitos vinculantes, ao que se chama
de “transcendência dos motivos determinantes”.
Nessa esteira, a decisão emanada da Justiça Eleitoral que confere efeito sus­
pensivo à decisão proferida nos moldes do artigo 41-A da Lei 9.504/97, desafia
a autoridade da decisão emanada do Supremo Tribunal Federal no julgamento da
supracitada Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.592, do Distrito Federal, sendo
passível de ataque via Reclamação Constitucional.
No entanto, a pretensão de combater a concessão de medidas judiciais que
obstem a eficácia imediata da decisão fundada no artigo 41-A da Lei Eleitoral não
se apresenta como a melhor alternativa a ser adotada, eis que a questão é muito
mais abrangente, atingindo outros direitos e princípios igualmente constitucionais, a
citar a ampla defesa, o contraditório, o devido processo legal, a presunção de ino­
cência e a segurança jurídica, como, também, a própria soberania popular.

5.4 Possíveis consequências resultantes da não concessão do


efeito suspensivo à decisão proferida nos termos do artigo
41-A da Lei 9.504/97
Como visto, a jurisprudência ainda não se firmou no sentido da possibilidade
da atribuição de efeito suspensivo à decisão que cassa mandato eletivo em razão
da captação ilícita de sufrágio.
Nos termos do artigo 41-A da Lei 9.504/97, a referida decisão produz eficácia
imediata; contudo, várias consequências negativas podem advir, o que faz com o que
o tema mereça, por parte dos julgadores, uma maior reflexão.

218 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

Inicialmente, vale ressaltar que o imediato afastamento do agente político do


cargo eletivo ocupado, em virtude de captação ilícita de sufrágio, macula sua imagem
frente aos eleitores, ferindo, dentre outros, o princípio constitucional da presunção
de inocência.
Além disso, a supressão imediata do exercício do mandato eletivo ocasiona
instabilidade política em razão da sucessiva alternância de comando, principalmente
na chefia do Poder Executivo.
Desta feita, a não atribuição de efeito suspensivo à decisão prejudica não
somente a pessoa do candidato que tem contra si uma decisão de cassação do man­
dato eleitoral, como, também, produz impactos negativos na sociedade em virtude
da alternância e instabilidade de governo.
Da análise dessas consequências, extrai-se que é mais plausível e aconselhá­
vel atribuir-se efeito suspensivo à decisão, dando-se prevalência à vontade popular e
assegurando ao candidato o exercício dos direitos constitucionais da ampla defesa
e do contraditório, de modo a permitir a manutenção de suas atividades eleitorais
até que haja julgamento definitivo do recurso, como se vê do seguinte ensinamento
jurisprudencial:

Medida cautelar. Pedido liminar. Atribuição. Efeito suspensivo. Recurso


especial. Acórdão. Tribunal Regional Eleitoral. Recurso contra expedição
de diploma. Cassação. Prefeito. Efeitos. Decisão. Incidência. Art. 216
do Código Eleitoral. Afastamento. Cargo. Não-cabimento. 1. Hipótese em
que está caracterizado o fumus boni iuris na medida em que, mesmo
em se tratando de captação ilícita de sufrágio, existe norma específica
disciplinando o recurso contra expedição de diploma e estabelecendo
que o diplomado poderá exercer o mandato em toda a sua plenitude
enquanto esta Corte não decidir esse apelo (art. 216 do Código Eleitoral).
2. Essa norma afasta, de modo excepcional, a execução imediata do
julgado fundado no art. 41-A da Lei nº 9.504/97. Precedente: Acórdão nº
4.025, Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 4.025, rel. Min.
Ellen Gracie, de 25.3.2003. 3. A aplicabilidade restrita do art. 216 do
Código Eleitoral ao recurso contra expedição de diploma também restou
assentada por este Tribunal Superior em outros julgados (Acórdão nº
1.049, Medida Cautelar nº 1.049, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, rel.
designado Min. Fernando Neves, de 21.5.2002; Acórdão nº 1.320, Medida
Cautelar nº 1.320, rel. Min. Peçanha Martins, red. designado Min. Luiz
Carlos Lopes Madeira, de 19.2.2004). 4. Além disso, resta evidenciado
o periculum in mora, uma vez que, na espécie, o afastamento do cargo
trará prejuízo irreparável ou de difícil reparação, não sendo devida a
interrupção do termo do mandato do prefeito. Medida cautelar deferida.
(TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Ac. nº 1.394, de 2.9.2004, rel. Min.
Humberto Gomes de Barros, red. designado Min. Caputo Bastos).

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 219
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

6 Ação cautelar como instrumento de concessão excepcional de


efeito suspensivo aos recursos na justiça eleitoral
Como visto, a sentença proferida em sede de cassação de mandato eletivo com
fulcro no artigo 41-A da Lei 9.504/97 produz efeitos imediatos, eis que o recurso
contra ela interposto é recebido somente no efeito devolutivo.
Contudo, a jurisprudência vem evoluindo no sentido de permitir a manutenção
do candidato impugnado no cargo através da concessão de efeito suspensivo por
meio de ação cautelar.
Ação cautelar é aquela por meio do qual o interessado busca assegurar a efi­
cácia do processo principal de cognição e execução para que seja atingido, com êxito,
o fim colimado. Theodoro Júnior (2006, p. 350) leciona em sua obra que:

Se os órgãos jurisdicionais não contassem com um meio pronto e eficaz


para assegurar a permanência ou conservação do estado das pessoas,
coisas e provas, enquanto não atingido o estágio último da prestação
jurisdicional, esta correria o risco de cair no vazio, ou de transformar-se
em provimento inócuo e inútil.
Surge, então, o processo cautelar como uma nova face da jurisdição e
como um tertium genus, contendo a um só tempo as funções do processo
de conhecimento e de execução, e tendo por elemento específico a
prevenção.

Através do processo cautelar, busca-se, pois, conferir uma situação provisória


de segurança para os litigantes até que a lide seja definitivamente julgada.
O deferimento de uma providência cautelar requer o preenchimento de dois
requisitos: o fumus boni iurus, que é a plausibilidade do direito invocado, e o periculum
in mora, qual seja o risco de ineficácia do provimento jurisdicional, com consequente
dano irreparável ou de difícil reparação aos interesses do litigante.
No que tange ao tema em comento, qual seja a cassação de mandato eletivo
com fulcro na captação ilícita de sufrágio, a ação cautelar é um instrumento eficaz para
tentativa de obtenção de efeito suspensivo com o fim de evitar a imediata execução
da medida, o que poderia resultar em danos irreparáveis não somente ao candidato
afastado, como, principalmente, à população, que seria vítima da instabilidade e
alternância de mandatos.
Trata-se de ação cautelar atípica, eis que não definida e regulada de forma
expressa pelo legislador. Segundo ensinamentos de Theodoro Júnior (2006, p. 365):

Há medidas que o próprio legislador define e regula suas condições


de aplicação, e há também medidas que são criadas e deferidas pelo
próprio juiz, diante de situações de perigo não previstas ou não reguladas
expressamente pela lei.

220 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

Alguns operadores do Direito tentam se valer do mandado de segurança como


forma de obter o efeito suspensivo nas decisões proferidas nos termos do artigo 41-A
da Lei 9.504/97, contudo, sem lograr êxito.
Consagrado no artigo 5º, inciso LXIX, da Constituição Federal, o mandado de
segurança destina-se a proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas
corpus ou habeas data, de ilegalidade ou abuso de poder praticado por autoridade
pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
Segundo Ary Florêncio Guimarães, citado por Moraes (2003, p. 163):

O mandado de segurança é conferido aos indivíduos para que eles se


defendam de atos ilegais ou praticados com abuso de poder, constituindo-
se verdadeiro instrumento de liberdade civil e liberdade política.

A concessão do mandado de segurança pressupõe a existência de um direito


líquido e certo, qual seja aquele que pode ser comprovado de imediato, por prova
ine­quívoca, independentemente de realização probatória.
Por essa razão, a jurisprudência tem entendido que o mandado de segurança
não é a via apropriada para a discussão dessa questão. Nesse sentido, observam-se
os ensinamentos do Ministro Felix Fischer, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE):

Com efeito, o cabimento do mandado de segurança fica condicionado a


pressuposto específico, qual seja, a verificação, de plano, da existência
de teratologia na decisão atacada.
A jurisprudência do e. TSE tem compreendido que a excepcionalidade deste
remédio constitucional contra ato judicial exige, para a admissibilidade de
seu prosseguimento, situação de grave atentado contra direito líquido e
certo do impetrante, demonstrado, de modo inequívoco, na petição inicial.
Confira-se:
Agravo regimental. Recurso em mandado de segurança. Decisão regional.
Alegação. Teratologia. Não-configuração.
1. É cabível mandado de segurança somente contra ato judicial, desde que
evidenciado situação teratológica, não se prestando o mandamus como
sucedâneo recursal. (…) Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgR-RMS nº 526/AM, Rel. Min. Caputo Bastos, DJ de 12.2.2008).
Todavia, não vislumbro, em princípio, teratologia no fato de o e. Tribunal
a quo ter determinado a execução imediata do julgado, considerando que
se trata de representação com fulcro no art. 41-A da Lei nº 9.504/97.
Não há óbice, contudo, para que a Corte regional defira pedido liminar, no
âmbito de ação cautelar, e confira efeito suspensivo a recurso eleitoral. A
respeito, destaco recente julgado desta c. Corte:
AGRAVO REGIMENTAL. MANDADO DE SEGURANÇA. NEGATIVA DE SEGUI­
MENTO. REPRESENTAÇÃO POR CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. SEN­
TENÇA DE PROCEDÊNCIA. AÇÃO CAUTELAR. EFEITO SUSPENSIVO AO
RE­CURSO ELEITORAL. DEFERIDA A LIMINAR. DIREITO LÍQUIDO E CERTO.
AUSÊNCIA.
1. Os argumentos trazidos no recurso não são suficientes a ensejar a
modificação do decisum agravado.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 221
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

2. As decisões fundadas no artigo 41-A da Lei 9.504/97 merecem execu­


ção imediata. Entretanto, nada impede que a Corte Regional, usando do
seu poder geral de cautela, defira liminar em cautelar e conceda efeito
suspensivo ao recurso eleitoral.
3. O mandado de segurança não é via adequada para conferir a suspensão
dos efeitos de acórdão de tribunal regional, sujeito a recurso para este
Tribunal Superior.
4. Desprovimento. (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. AgR-MS nº 4.191/
SE, Rel. Min. Marcelo Ribeiro, DJE de 20.5.2009).

A jurisprudência tem se firmado, pois, no sentido de que a via processual


adequada para se pleitear a atribuição de efeito suspensivo à decisão que cassa
mandato eletivo nos moldes do artigo 9.504/97 é a ação cautelar, e não o mandado
de segurança, cujas características e requisitos são incompatíveis com a medida
pleiteada.
Como visto, a utilização do mandado de segurança pressupõe a viabilidade de
imediata constatação do direito do impetrante, o que não se amolda ao caso, eis
que não lhe é assegurado o direito líquido e certo de obter a concessão do efeito
sus­­pensivo. Tal direito somente poderá ser assegurado caso restem demonstrados
o risco de prejuízo irreparável decorrente da imediata executividade da decisão, bem
como a plau­sibilidade das razões expostas, requisitos estes possíveis de serem de­
mons­trados em sede de ação cautelar, que requer a observância do fumus boni juris
(fumaça do bom Direito) e o periculum in mora (perigo na demora), fazendo, assim, o
meio processual mais adequado para pleitear a concessão do efeito suspensivo ao
recurso que cassa mandato eletivo em virtude de captação ilícita de sufrágio.

7 Os efeitos jurídicos da ação de captação ilícita de sufrágio


com o advento da nova alínea “j” da Lei Complementar
64/1990
A ação de captação ilícita de sufrágio teve seus efeitos jurídicos profunda­
mente alterados pelo advento da chamada “Lei da Ficha Limpa” (Lei Complementar
135/2010), a qual introduziu novas hipóteses de inelegibilidade na Lei Comple­
mentar 64/90, modificando os efeitos da decisão que julga procedente a ação com
fundamento no artigo 41-A da Lei 9.504/97.
Estabelece o artigo 1º, inciso I, j, da Lei Complementar 64/90, com sua nova
redação dada pela Lei Complementar 135/2010, que:

Art. 1º. São inelegíveis:


I – para qualquer cargo:
[...]
j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou profe­
rida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por

222 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de


recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em
campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma,
pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição

Verifica-se que, com o advento da Lei Complementar 135/2010, a inelegibilidade


passou a ter efeito secundário da ação de captação ilícita de sufrágio. Júnior (2010,
p. 8) explica que:

A inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, “j”, da LC 64/90 somente


produzirá efeitos após as seguintes hipóteses:
a) decisão do Juízo de primeiro grau referenda por órgão colegiado da
Justiça Eleitoral;
b) decisão proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral;
c) trânsito em julgado da decisão.

Ressalta-se que a cassação do mandato eletivo do candidato com fundamento


na captação ilícita de sufrágio não impõe sua inelegibilidade, sendo apenas agregado
o impedimento da alínea “j”, como explica Júnior (2010, p. 12):

A partir da entrada em vigor da Lei Complementar nº 135/2010, a figura


da captação ilícita de votos prevista no art. 41-A, punida com a cassação
do registro ou diploma do candidato, e multa, passa a implicar, também,
inelegibilidade pelo prazo de 8 (oito) anos.
Assim, a figura da captação ilícita, ao punir com a cassação do registro
ou diploma o candidato que pratica a corrupção eleitoral, não está a
impor qualquer inelegibilidade, uma vez que plenamente possível cogitar
da incidência de sanção sem reconhecer a existência de impedimento.
Com a edição da nova lei, contudo, às sanções previstas no art. 41-A, as
quais, no entendimento dos juristas e responsáveis pela iniciativa popular
da lei da ficha limpa (CASTRO, 2010, p. 213), não podem ser cindidas,
é agregado o impedimento da alínea “j”.

8 A atribuição do efeito suspensivo aos recursos previstos


no artigo 41-A da Lei 9.504/97 na visão da jurisprudência
brasileira
Ilustrando todo o exposto neste trabalho, seguem alguns julgados demons­
trando a controvérsia ainda existente acerca da possibilidade ou não de atribuição,
em caráter, excepcional, de efeito suspensivo ao recurso proferido nos termos do
artigo 41-A da Lei 9.504/97.

8.1 Julgamentos contrários à atribuição do efeito suspensivo


O posicionamento tradicional acolhe a letra fria da lei, preconizando a execução
imediata da decisão nos moldes do artigo 41-A, conforme se vê:

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 223
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

Ação cautelar. Pedido. Atribuição. Efeito suspensivo. Recurso ordinário.


Condenação. Captação ilícita de sufrágio e abuso do poder econômico.
1. A regra geral na Justiça Eleitoral é a de que os recursos não possuem
efeito suspensivo, regra que não se altera quando se trata de recurso
ordinário e nem desrespeita o princípio do duplo grau de jurisdição. 2.
Ausente a plausibilidade das questões suscitadas pelo autor da cautelar
no que tange ao recurso ordinário interposto contra decisão regional que
decretou a cassação de seu diploma por infração ao art. 41-A da Lei nº
9.504/97, a sanção imposta deve ser executada imediatamente, nos
termos da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral. [...]. (TRIBUNAL
SUPERIOR ELEITORAL. Ac. de 2.9.2008 no AC nº 2.729, rel. Min. Arnaldo
Versiani).

[...]. 1. A pretensão de ser concedido efeito suspensivo a recurso


especial só prospera quando demonstrado quantum satis a existência
de periculum in mora e manifestado evidente bom direito. 2. Dirigentes
políticos que, por aplicação do art. 41-A, da Lei nº 9.504/97, tiveram os
seus mandatos cassados. 3. Recurso especial que se encontra, desde
15.3.2006, na Procuradoria-Geral Eleitoral para parecer. 4. Acórdão do
Tribunal a quo que está, salvo demonstração em contrário, sustentado
em prova. 5. Manutenção da decisão monocrática que negou seguimento
à medida cautelar. 6. Pretensão de, por meio da presente cautelar,
determinar-se, no caso de não se conceder efeito suspensivo ao REspe,
novas eleições. Ausência de amparo jurídico. [...]. (TRIBUNAL SUPERIOR
ELEITORAL. Ac. de 1º.8.2006 no AMC nº 1.784, rel. Min. José Delgado).

Recurso especial. Efeitos. O recurso especial tem efeito simplesmente


devolutivo e, quando admissível, o de evitar o trânsito em julgado do
acórdão impugnado. O empréstimo da eficácia suspensiva há de ser
reservado a situações excepcionais, o que não ocorre quando, imple­
mentado, vir a desaguar em alternância na chefia do Poder Executivo
Muni­cipal. NE: No caso deste processo, em que se tem como pano de
fundo a captação ilícita de sufrágio – art. 41-A da Lei nº 9.504/97, já
houve o afas­tamento do autor da titularidade da chefia do Poder Executivo.
Então, tudo recomenda se aguarde o crivo do Plenário no julgamento do
recurso especial, já iniciado, evitando-se, com isso, nefasta alternância
na chefia do Executivo Municipal. (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Ac.
de 27.4.2006 no AAMC nº 1.733, rel. Min. Marco Aurélio).

Agravo regimental. Medida cautelar. Pedido de liminar. Indeferimento. O


fumus boni iuris que enseja a concessão de liminar em medida cautelar
para dar efeito suspensivo a recurso especial, diz com a viabilidade
deste. São inconvenientes para os munícipes e para a Justiça Eleitoral as
substituições nos cargos, que geram instabilidade. [...]. NE: Considerada
a jurisprudência que determina efeito executório imediato às decisões
sobre o art. 41-A da Lei nº 9.504/97, tem-se por incongruente a
suspensividade delas. (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Ac. nº 1.688,
de 23.8.2005, rel. Min. Luiz Carlos Madeira).

Medida cautelar. Pedido de liminar. Efeito suspensivo a recurso espe­


cial. Eleições municipais. Indeferimento da liminar e da própria cautelar.

224 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

Agravo regimental. Ausência dos pressupostos autorizadores da medida


excepcional. Não-provimento. NE: Ao contrário do que defendido pelo
requerente a inconveniência das substituições intermitentes da chefia
do Poder Executivo dos municípios, está assentada pela Corte. Não se
justifica que a Justiça Eleitoral concorra com a idéia de instabilidade
e inse­ gurança dos munícipes, a contar de constantes alterações de
chefias. (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Ac. nº 1.678, de 18.8.2005,
rel. Min. Luiz Carlos Madeira)

Medida cautelar. Pedido. Concessão. Efeito suspensivo. Recurso especial.


Decisão regional. Condenação. Prefeito. Captação ilícita de sufrágio. Art.
41-A da Lei nº 9.504/97. Abuso do poder econômico e de autoridade.
Configuração. Cassação. Execução imediata do julgado. Possibilidade.
Art. 257 do Código Eleitoral. Incidência. Requisitos. Fumus boni iuris e
periculum in mora. Ausência. 1. Tratando-se de decisão fundada no art.
41-A da Lei nº 9.504/97, a jurisprudência deste Tribunal Superior é pacífica
quanto à possibilidade de execução imediata do julgado. Precedentes.
2. A regra do art. 257 do Código Eleitoral estabelece que os recursos
eleitorais não terão efeito suspensivo, o que, excepcionalmente, pode
ser concedido desde que presentes circunstâncias que o justifiquem.
Pre­cedentes. 3. Esta Corte Superior tem reiteradamente assentado a
con­veniência de se evitarem sucessivas alterações no comando da admi­
nistração. Precedentes. Medida cautelar indeferida. (TRIBUNAL SUPERIOR
ELEITORAL. Ac. nº 1.385, de 26.8.2004, rel. Min. Caputo Bastos).

Agravo regimental. Medida cautelar. Acórdão regional com expressa


alusão à prática de captação ilícita de sufrágios (art. 41-A da Lei nº
9.504/97). Ausência do fumus boni iuris, haja vista o recurso assentar-
se em entendimento contrário à jurisprudência do TSE. Agravo regimental
desprovido. NE: Foi negado seguimento à medida cautelar, julgando
prejudicado o pedido de concessão de liminar, visando a emprestar
efeito suspensivo a recurso especial. [...] imposição, ao requerente, de
se afastar de plano de seu respectivo cargo, in casu, porquanto eviden­
ciada a prática vedada do referido dispositivo de lei, é consonante com a
assentada jurisprudência desta Corte, pela qual ‘os efeitos da decisão que
cassa diploma com base no art. 41-A [...] permitem execução imediata’
[...] (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Ac. nº 1.313, de 18.12.2003, rel.
Min. Barros Monteiro).

Embargos de declaração. Tempestividade. Recebimento. Agravo regimental.


Medida cautelar. Sentenças e acórdãos assentados na ocorrência de
captação ilegal de sufrágio. Ausência de plausibilidade jurídica dos
recursos especiais. Pedido de efeito suspensivo. Indeferimento. Agravo
regimental desprovido. [...] Assentadas as sentenças e os acórdãos na
ocorrência de captação ilegal de sufrágio, não há falar na evidência de
plausibilidade jurídica dos recursos especiais, a subsidiar a concessão
de medida liminar para lhes emprestar efeito suspensivo. Precedentes
do TSE. Agravo regimental a que se nega provimento.

(TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Ac. nº 1.262, de 3.6.2003, rel. Min.


Barros Monteiro.)

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 225
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

Medida cautelar incidental. Pedido de liminar para emprestar efeito sus­


pensivo a recurso especial. Representação com base nos arts. 41-A e
73 da Lei nº 9.504/97. [...] O efeito imediato das decisões com base
no art. 41-A da Lei das Eleições inibe, em princípio, emprestar efeitos
suspensivos a recurso especial eleitoral. Medida cautelar julgada impro­
cedente. (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Ac. nº 1.252, de 12.12.2002,
rel. Min. Luiz Carlos Madeira; no mesmo sentido o Ac. nº 1.264, da lavra
do mesmo relator).

Medida cautelar. Representação com base no art. 41-A da Lei nº


9.504/97. Mandado de segurança. Agravo regimental. Liminar. Conces­
são. Cassação da sentença na parte que aplicava o art. 15 da LC nº
64/90. Recurso especial. Efeito suspensivo. Sentença. Efeito imediato.
Art. 15 da LC nº 64/ 90. Art. 216 do Código Eleitoral. Não-aplicação.
Medi­da cautelar indeferida. NE: Quanto à alegação de que o parágrafo
único do art. 257 do Código Eleitoral se refere a acórdão e não a sentença
e de que deve ser aplicada ao caso, por analogia, a regra do art. 216 do
Código Eleitoral, não vejo nestes argumentos a plausibilidade sugerida
pelos requerentes, tendo em vista que a jurisprudência da Corte é no
sentido de que proferida a decisão, em qualquer instância, esta deve ter
cumprimento imediato. (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Ac. nº 1.181,
de 2.10.2002, rel. Min. Fernando Neves).

8.2 Decisões favoráveis à concessão do efeito suspensivo


Como demonstrado no decorrer do presente trabalho, desponta na jurisprudên­
cia uma nova tendência no sentido de permitir a concessão de efeito suspensivo à
decisão que cassa mandato eletivo em virtude de captação ilícita de sufrágio, apesar
da imediata executividade estabelecida pelo artigo 41-A, quando, através de medida
cautelar, puder se demonstrar a possibilidade de dano irreparável tanto ao candidato
como à população. Veja:

Medida cautelar. Pedido liminar. Atribuição. Efeito suspensivo. Recurso


especial. Acórdão. Tribunal Regional Eleitoral. Recurso contra expedição
de diploma. Cassação. Prefeito. Efeitos. Decisão. Incidência. Art. 216
do Código Eleitoral. Afastamento. Cargo. Não-cabimento. 1. Hipótese em
que está caracterizado o fumus boni iuris na medida em que, mesmo
em se tratando de captação ilícita de sufrágio, existe norma específica
disciplinando o recurso contra expedição de diploma e estabelecendo
que o diplomado poderá exercer o mandato em toda a sua plenitude
enquanto esta Corte não decidir esse apelo (art. 216 do Código Eleitoral).
2. Essa norma afasta, de modo excepcional, a execução imediata do
julgado fundado no art. 41-A da Lei nº 9.504/97. Precedente: Acórdão
nº 4.025, Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 4.025, rel.
Min. Ellen Gracie, de 25.3.2003. 3. A aplicabilidade restrita do art. 216
do Código Eleitoral ao recurso contra expedição de diploma também
restou assentada por este Tribunal Superior em outros julgados (Acórdão
nº 1.049, Medida Cautelar nº 1.049, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, rel.

226 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

designado Min. Fernando Neves, de 21.5.2002; Acórdão nº 1.320, Medida


Cautelar nº 1.320, rel. Min. Peçanha Martins, red. designado Min. Luiz
Carlos Lopes Madeira, de 19.2.2004). 4. Além disso, resta evidenciado
o periculum in mora, uma vez que, na espécie, o afastamento do cargo
trará prejuízo irreparável ou de difícil reparação, não sendo devida a
interrupção do termo do mandato do prefeito. Medida cautelar deferida.
(TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Ac. nº 1.394, de 2.9.2004, rel. Min.
Humberto Gomes de Barros, red. designado Min. Caputo Bastos).

Direitos Eleitoral e Processual. Agravo interno. Cautelar. Efeito suspensivo.


Recurso especial. Art. 22 da LC nº 64/90. Art. 41-A da Lei nº 9.504/97.
Cassação de registro ou diploma. Candidato autor da captação de
sufrágio. Similitude com o art. 299, CE. Presentes os pressupostos. Limi­
nar mantida. Comportamento da parte. Agravo desprovido. NE: Quan­do
se aplica o art. 41-A, o recurso não tem efeito suspensivo. Mas nada
impede que, verificando a presença dos dois pressupostos – dano irrepa­
rável e o sinal do bom direito – o Tribunal dê efeito suspensivo ao recurso
por meio de cautelar. (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Ac. nº 1.000, de
26.6.2001, rel. Min. Sálvio de Figueiredo.)
MEDIDA CAUTELAR PARA DAR EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO
ESPECIAL ELEITORAL. CABIMENTO. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO
ELETIVO. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS.
RECURSO ESPECIAL RECEBIDO. NÃO-INCIDÊNCIA DOS ARTS. 224 E 216
DO CÓDIGO ELEITORAL. PRECEDENTES. É cabível a medida cautelar para
dar efeito suspensivo a recurso especial eleitoral, já recebido no Tribunal
Regional. Precedentes: Ac. nº 1.235/PR, rel. Min. Sepúlveda Pertence,
publicado em sessão de 23.10.2002; Ac. nº 1.059/DF, rel. Min. Barros
Monteiro, DJ 25.4.2003; Ac. nº 1.052/DF, relª. Min. Ellen Gracie, DJ
23.8.2002; Ac. nº 987/PB, rel. Min. Costa Porto, DJ 20.4.2001; MC nº
966-MG, rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ 1º.2.2001; Ac. nº 469/PA, rel.
Min. Eduardo Alckmin, publicado em sessão de 2.10.98; MC nº 959/
AL, rel. Min. Costa Porto, DJ 10.11.2000, despacho do Min. Fernando
Neves concedendo a liminar; Ac. nº 320/BA, rel. Min. Maurício Corrêa,
DJ 12.2.99; Ac. nº 420/MA, rel. Min. Edson Vidigal, DJ 18.12.98; MC
nº 1.005/MS, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 9.8.2001 (despacho
monocrático); Ac. nº 1.182-MG, relª. Min. Ellen Gracie, publicado em
sessão de 1º.10.2002; Ac. nº 1.273/GO, Min. Luiz Carlos Madeira,
DJ 1º.8.2003. Não incide o art. 224 do Código Eleitoral em ação de
impugnação de mandato eletivo. Essa ação é dirigida contra o mandato,
não tendo por objeto a nulidade do pleito. Precedentes: Ac. nº 21.176/
AL, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 15.8.2003, página 124; Ac. nº 1.277/SP,
rel. Min. Fernando Neves, DJ 12.9.2003, página 121; Ac. nº 15.891/BA,
rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 17.12.99, página 171; Ac. nº 3.030/PB,
rel. Min. Luiz Carlos Madeira, DJ 6.9.2002, página 206; Ac. nº 3.032/
PB, rel. Min. Luiz Carlos Madeira, DJ 22.11.2002.
O art. 216 do Código Eleitoral tem seu âmbito de incidência restrito às
hipóteses de recurso contra expedição de diploma. Não se aplica aos
casos de ação de impugnação de mandato eletivo. Precedentes: Ac. nº
1.277/SP, rel. Min. Fernando Neves, DJ 12.9.2003; Ac. nº 1.049/PB,
rel. desig. Min. Fernando Neves, DJ 6.9.2002; Ac. nº 19.895/SC, rel.
Min. Nelson Jobim, DJ 28.2.2003.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 227
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

Procedente a ação no juízo eleitoral e no Tribunal Regional, caracterizado


o periculum in mora e o fumus boni iuris, defere-se o pedido liminar,
determinando-se o afastamento dos requeridos dos cargos de prefeito e
vice-prefeito e a diplomação e posse dos segundos colocados.
O Tribunal, por maioria, deferiu o pedido liminar na medida cautelar, nos
termos do voto do Ministro Luiz Carlos Madeira, que redigirá o acórdão.
Vencido o Ministro Relator. Votou o Presidente. (TRIBUNAL SUPERIOR
ELEITORAL. Ac. nº 1320, de 19.02.2004, rel. Min. Francisco Peçanha
Martins).

Esse novo posicionamento reveste-se de admirável prudência na medida em


que permite ao julgador avaliar, em cada caso concreto, a possibilidade de conces­
são do efeito suspensivo em sede cautelar, com vistas a evitar que o prematuro
afastamento do candidato do mandato eletivo possa causar prejuízos de maiores
proporções.

9 Considerações finais
Com o advento da Lei 9.840/99, que acrescentou o artigo 41-A à Lei nº
9.504/97, iniciou-se entre os juristas um questionamento acerca da necessidade
de se aguardar o trânsito em julgado das decisões fundadas neste dispositivo para,
somente então, promover sua execução, ou se, ao contrário, seria possível a sua
execução provisória e, portanto, imediata.
Os primeiros julgados do Tribunal Superior Eleitoral acerca do tema se posicio­
naram no sentido de consolidar a eficácia imediata das decisões condenatórias, com
fulcro no artigo 41-A da Lei Eleitoral.
Contudo, o próprio Tribunal Superior Eleitoral abandonou a tese inicial de efi­
cácia imediata da referida decisão, passando a conceder a suspensão dos seus
efeitos com o objetivo de evitar sucessivas alterações nos cargos eletivos.
A questão, porém, não se encontra consolidada e vem sendo analisada de
formas diferentes, conforme cada caso concreto.
Alguns juristas, conforme restou demonstrado, entendem que não cabe
a nenhuma instância judicial suspender a decisão que aplica o artigo 41-A da Lei
9.504/97, vez que o tema foi objeto de discussão em ação de controle de consti­
tucionalidade da referida lei (ADI 3.592/DF), evidenciando a eficácia imediata das
decisões judiciais que cassam o registro ou o diploma do corruptor eleitoral como
um dos motivos determinantes do julgado do Supremo Tribunal Federal, a possuir,
portanto, efeitos transcendentes.
O fato é que a questão é ainda tormentosa e palpitante, desdobrando-se em
posicionamentos divergentes em nossos Tribunais, que ora optam por conferir, ora
por negar efeito suspensivo à decisão que cassa mandato eletivo em virtude de
captação ilícita de sufrágio.

228 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

Cumpre asseverar que, na análise do caso concreto, deve o julgador atentar-


se, além do preenchimento dos requisitos processuais e materiais necessários ao
deferimento da medida, se esta preserva não só a pessoa do candidato, como,
principalmente, os eleitores, de eventuais danos irreparáveis que possam advir da
imediata execução da decisão.

Abstract: In the Field of Electoral Laws the appeals don´t have, in terms of the rule, suspensive effect,
according to what is written in the article 257 in the respective Code. Thus, the decisions taken in the
electoral process are immediately executable, independent from its res judicata being judged for achievement
of the command which is in contained in it. The Complementary Law 64/90, which is about the ineligibility,
presents an exception related to this rule, allowing the candidate exert its elective mandate while the
appeal against the decision of diploma isn´t definitively judged. The illicit capture of suffrage, however, a
way the candidate promises the elector personal advantage in exchange of his vote, isn´t considered a case
of ineligibility but is a possible hypothesis for loss of work condition. This way, the decision that unseats
the elective mandate which has its fundament in the illicit capture of suffrage, in terms of the article 41-A
law 9504/07 doesn´t have a suspensive effect, allowing the immediate removal of the candidate even if
when the judicial decision isn´t covered by the sphere of the judged thing, what interferes in the popular
wish, generating political instability and consequent prejudices to the population and candidate. Because
of such reasons, doctrine and jurisprudence have been suffering some changes in the sense of admitting
the concession of the suspensive effect to the decision which unseats the elective mandate due to illicit
capture of suffrage, through the use of injunctive relief in order to allow the maintenance of the candidate
in its charge until the decision became final preserving, this way, the result of the elections and protecting
the candidate from occasional damages.
Keywords: Electoral process. Suffrage. Illicit Capture. Verdict. Suspensive Effect.

Referências
BARBOSA, Edmilson. As liminares suspensivas das decisões com base no art. 41-A da Lei Eleitoral
e o instituto da reclamação constitucional para o STF. Disponível em: <http://www.sandrosilva.com.
br/visualiza_artigos.php?id_artigo=171>. Acesso em: 01 set. 2008.
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades
da Constituição brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 158.
BESTER, Gisela Maria. Cadernos de Direito Constitucional: parte I: Teoria Constitucional. Porto Alegre:
Síntese, 1999. 174 p.
BESTER, Gisela Maria. Cadernos de Direito Constitucional: parte II: Direito Positivo Constitucional.
Porto Alegre: Síntese, 1999. 124 p.
BRASIL. Lei 4.737, de 15 de julho de 1965. Institui o Código Eleitoral. Diário Oficial da União, Brasília,
19 jul. 1965.
BRASIL. Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Diário Oficial
da União, Brasília, 01 out. 1997.
BRASIL. Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990. Estabelece, de acordo com o art. 14, §9º da
Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação, e determina outras providências.
Diário Oficial da União, Brasília, 25 mai. 1990.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 229
OLÍVIA GUIMARÃES RIBEIRO, RENATO DE ALMEIDA PAES LEME

BRASIL. Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010. Altera a Lei Complementar nº 64, de 18
de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o §9º do art. 14 da Constituição Federal, casos
de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de
inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.
Diário Oficial da União, Brasília, 07 jun. 2010.
CASTRO, Edson de Resende. Teoria e prática do direito eleitoral. 4. ed. rev. atual. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2008. 640 p.
CONEGLIAN, Olivar. Propaganda Eleitoral. 10. ed. Curitiba: Juruá, 2010. 422 p.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. In: Vade Mecum Saraiva, São Paulo:
Saraiva, 2010. 1.846 p.
COSTA, Adriano Soares da. Captação de sufrágio e inelegibilidade: análise crítica do art. 41-a da Lei
nº 9.504/97. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: <http://jus.uol.
com.br/revista/texto/2909>. Acesso em: 20 jan. 2011.
JUNIOR, Antônio Edson Correa da Fonseca. Representação por Captação Ilícita de Sufrágio. Disponível
em: <http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=3549>. Acesso em: 11 mar. 2011.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 11. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Método,
2007. 816 p.
MARANHÃO, Tribunal Regional Eleitoral. 2276, (4736), Relator Juiz Nivaldo Costa Guimarães, DJMA
06.09.2002.
MINAS GERAIS, Tribunal Regional Eleitoral, Acórdão 78, Relator Antônio Lucas Pereira, 11 mai. 2005.
MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil. 2 ed. v. II. São Paulo: Atlas, 2006.
632 p.
MICHELS, Vera Maria Nunes. Direito Eleitoral. 6. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008. 250 p.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. 836 p.
MULLER, Mary Stela. Normas e padrões para teses, dissertações e monografias. 4 ed. Atual. Londrina:
UEL, 2001. 135 p.
NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Manual da monografia jurídica. 4. ed. Ver. ampl. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2002. 234 p.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS. Pró-Reitoria de Graduação. Sistema de
Bibliotecas. Padrão PUC Minas de normalização: normas da ABNT para apresentação de artigos de
periódicos científicos. Belo Horizonte, 2008. Disponível em <http://www.pucminas.br/biblioteca/>.
Acesso em: 03 jul. 2010.
RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 9. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. 875 p.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22 ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros,
2003. 878 p.
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São
Paulo: Malheiros, 2009. 279 p.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI n. 3.592-4/DF, de 26.10.2006, unânime, Relator Ministro Gilmar
Mendes, DJ 02.02.2007.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 44. ed. v. I. Rio de Janeiro: Forense,
2006. 815 p.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 37. ed. v. II. Rio de Janeiro: Forense,
2005. 684 p.

230 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015
ARTIGO 41-A DA LEI Nº 9.504/97: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS CONTRÁRIOS...

TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. AgRg Recl. 112/RJ, acórdão 112/RJ, Relator Ministro Fernando
Neves, publicado no DJ de 09.06.2001, p. 111.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, Acórdão nº 970, de 1º.3.2001, rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ
27.4.2001, in: Informativo TSE, Ano III , n. 12, de 23 a 29 de abril de 2001, p. 8
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Resp n. 21.022/CE, de 07.02.2003.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Resp n. 21.264, DJ 11.06.2004, p. 94.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, AMC n. 1702, Relator Min. Carlos Eduardo Caputo Bastos,
14.10.2005.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 6.809/SP. Relator:
Ministro Caputo Bastos. Publicado em: 12.05.2006.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, AgR-AC nº. 3346, Relator Min. Felix Fischer, 12.11.2009.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. AgR-MS nº 4.191/SE, Rel. Min. Marcelo Ribeiro, DJE de 20.5.2009.
ZILIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral: noções preliminares, elegibilidade e inelegibilidade, processo
eleitoral (da convenção à prestação de contas), ações eleitorais. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010.
637 p.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

RIBEIRO, Olívia Guimarães; LEME, Renato de Almeida Paes. Artigo 41-A da Lei
nº 9.504/97: a possibilidade de concessão de efeito suspensivo aos recursos
contrários à sentença que cassa mandato eletivo. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 197-231, jan./mar. 2015 231
Súmulas vinculantes e súmulas
impeditivas de recursos: mecanismos
para concretizar o princípio da razoável
duração do processo

Tatiana Alvim Pufal


Especialista em Processo Civil pela UFRGS. Advogada.

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a figura da súmula vinculante e da súmula
impeditiva de recursos como mecanismos de concretização do princípio da razoável duração do processo.
Para tanto, inicialmente, analisa-se o princípio em questão, com sua inserção no ordenamento jurídico
brasileiro através da Emenda Constitucional 45/2004, bem como o contexto jurídico e as razões que
levaram o legislador a promulgar a referida emenda. Logo após, será abordada a figura da efetividade,
especificamente a virtuosa. Em seguimento, passar-se-á a abordar a figura das súmulas vinculantes e
das súmulas impeditivas de recursos, individualmente, relacionando estes dois institutos ao princípio da
razoável duração do processo, demonstrando serem mecanismos de concretização do referido princípio
constitucional.
Palavras-chave: Princípio da razoável duração do processo. Efetividade processual. Súmula vinculante.
Súmula impeditiva de recursos.

Sumário: 1 Introdução – 2 Direito fundamental à razoável duração do processo – 3 Súmulas vinculantes e


súmulas impeditivas de recursos – 4 Considerações finais – Referências

1 Introdução
A tônica deste trabalho é perquirir uma análise do instituto da súmula vincu­lante
e da súmula impeditiva de recursos como mecanismos de concretização do prin­cípio
da razoável duração do processo.
Verifica-se, cada vez mais, um abarrotamento do Poder Judiciário com a multi­
plicidade cada vez maior de processos, com os magistrados e serventuários da justiça
não conseguindo dar vazão à quantidade de demandas que são ajuizadas e precisam
de julgamento, culminando na espera, muitas vezes de anos, até o julgamento da
lide. A consequência é um verdadeiro sucateamento do Poder Judiciário, combinado
com verdadeira descrença da população na jurisdição.
Nesse contexto, o legislador brasileiro se viu obrigado a fazer reformas na legis­
lação a fim de conferir maior efetividade à prestação jurisdicional. Diversas foram as
medidas tomadas, dentre estas, a promulgação da Emenda Constitucional 45/2004.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015 233
Tatiana Alvim Pufal

A referida emenda, além de outras mudanças, inseriu no ordenamento jurídico


brasileiro o direito à razoável duração do processo ao rol de direitos fundamentais,
previsto no inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal.
O princípio constitucional da razoável duração do processo representa uma
garantia de que o jurisdicionado que ingresse no Poder Judiciário tenha seu processo
julgado em razoável período de tempo. Com a expressa previsão do princípio em
questão, buscou o legislador assegurar maior efetividade à prestação jurisdicional.
A efetividade que o legislador buscou inserir no ordenamento jurídico brasileiro
deve ser entendida como a efetividade virtuosa, ou seja, a efetividade que assegura
o princípio da razoável duração do processo, mas que não se descuida dos demais
princípios constitucionalmente assegurados, dentre estes, o devido processo legal,
isonomia, contraditório, ampla defesa e juiz natural e, principalmente, do valor justiça.
A Emenda Constitucional 45/2004 inseriu ainda no ordenamento jurídico
brasileiro a figura das súmulas vinculantes, através do artigo 103-A da Constituição
Federal. De acordo com o dispositivo citado, as decisões reiteradas do Supremo Tribu­
nal Federal podem ser aprovadas por enunciado sumular, tendo efeitos vinculantes
sobre as decisões de todos os demais órgãos do Poder Judiciário. As súmulas vin­
culantes surgiram como uma forma de racionalizar a prestação jurisdicional, dimi­
nuindo o número de recursos e a consequente duração do processo, além de conferir
maior segurança jurídica, evitando decisões conflitantes entre os diferentes órgãos
do Poder Judiciário.
Ainda dentro das reformas, visando conferir maior efetividade ao processo, a
Lei 11.276, de 2006, inseriu o artigo 518, §1º, ao Código de Processo Civil e dispôs
acerca da possibilidade de o juiz de primeiro grau não receber a apelação quando a
sentença prolatada estiver de acordo com o entendimento consolidado dos Tribunais
Superiores. Tal medida visa, ao fim e ao cabo, evitar recurso de matéria sobre a qual
o entendimento do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça já
é consolidado.
A súmula vinculante e a súmula impeditiva de recursos devem ser vistas como
mecanismos de concretização do princípio constitucional da razoável duração do
processo, o que se demonstrará ao longo do presente estudo.
No primeiro capítulo, será analisado o princípio da razoável duração do pro­
cesso, sua constitucionalização na Carta Magna e independência com relação aos
demais princípios do ordenamento jurídico. Analisar-se-á, ainda, as principais causas
de intempestividade do processo, bem como técnicas para se alcançar maior efeti­
vidade. Ainda no primeiro capítulo, será analisada a figura da efetividade.
No segundo capítulo, primeiramente serão assentadas as características pri­
mordiais da figura da súmula impeditiva, relacionando-a ao princípio da razoável
duração do processo. Após, analisar-se-ão as principais características do instituto
da súmula impeditiva de recursos, demonstrando ser este também um mecanismo
de concretização do referido princípio.

234 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015
SÚMULAS VINCULANTES E SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS: MECANISMOS PARA CONCRETIZAR O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL...

2 Direito fundamental à razoável duração do processo


Neste capítulo, será abordado o princípio da razoável duração do processo, desde
sua constitucionalização, principais características e peculiaridades, diferenciação,
até a independência dos demais princípios.
Após, serão abordadas as dimensões da efetividade.

2.1 Princípio constitucional da razoável duração do processo


O direito à razoável duração do processo foi elevado à garantia constitucional
através da Emenda Constitucional 45/2004, que inseriu o artigo art. 5º, inciso LXXVIII
ao título II (dos Direitos e Garantias Fundamentais) da Carta Magna:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...] LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados
a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de
sua tramitação.

O Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 8º, já trazia o referido prin­
cípio em seu texto.1 Por essa razão, parte da doutrina entende que, pelo fato de o
Brasil ser signatário do já mencionado Pacto de São José da Costa Rica, tendo sido
este posteriormente promulgado e incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro,
o princípio da razoável duração do processo já era tido como garantia fundamental
por força do parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal, que acolhe os direitos
fundamentais consagrados em tratados internacionais.2
Parte da doutrina entende ainda que o princípio da razoável duração do pro­cesso
estava intrinsecamente assentado no princípio do devido processo legal, previsto no
artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal.3 No entanto, entende-se que, com a
Emenda Constitucional 45/2004 e a positivação do referido princípio, esse enten­
dimento deixou de ter espaço, visto que o agora princípio constitucional da razoável
duração do processo exige vida própria, “não se coadunando com a fase atual de
desenvolvimento teórico a ilação secundária com demais princípios processuais”.4

1
Pacto de São José da Costa Rica – Artigo 8º: “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias
e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido
anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se
determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.
2
NICOLITT, André Luiz. A duração razoável do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 19.
3
ABREU, Gabrielle Cristina Machado. A duração razoável do processo como elemento constitutivo do acesso à
justiça. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. p. 83.
4
JOBIM, Marco Félix. O direito à duração razoável do processo: responsabilidade civil do Estado em decorrência
da intempestividade processual. 2. ed. Porto Alegre: 2012. p. 78.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015 235
Tatiana Alvim Pufal

Ainda, alguns doutrinadores entendem ser o princípio da razoável duração do


processo uma categoria do princípio da segurança jurídica.5 Todavia, um princípio
não se confunde com o outro. Enquanto o princípio da razoável duração do processo
preocupa-se com uma decisão tempestiva, o princípio da segurança jurídica defende
uma cognição plena para se alcançar uma decisão, não podendo ser confundidos.
Em outra linha de pensar, doutrinadores entendem estar o princípio da razoável
duração do processo inserido dentro do princípio do acesso ao Poder Judiciário,
previsto no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal.6 Não obstante, esse argumento,
ao nosso entender, também é facilmente rebatido, visto que o princípio da razoável
duração refere-se ao processo judicial e, também, ao administrativo, em contrapartida
com o princípio do acesso ao judiciário.
Seja qual for o entendimento, importante reconhecer que se está, desde a pro­
mul­gação da Emenda Constitucional 45/2004, “vivendo uma mudança constitucional
processual para que o jurisdicionado tenha mais garantias quanto ao tempo de seu
processo que no âmbito jurídico ou administrativo”.7
Como parte dessa mudança, o Conselho Nacional de Justiça aprovou o Código
de Ética da Magistratura, que, em seu artigo 20,8 assim dispôs:

Art. 20 Cumpre ao magistrado zelar para que os atos processuais se


celebrem com máxima pontualidade para que os processos a seu cargo
sejam solucionados em um prazo razoável, reprimindo toda e qualquer
iniciativa dilatória ou atentatória à boa-fé processual.

No entanto, a principal reforma nesse sentido trazida pela EC 45/20004 foi


a inserção no texto da Constituição Federal do princípio da razoável duração do pro­
cesso. Para o doutrinador Marco Félix Jobim,9 o conceito de razoável duração do
processo pode ser assim definido:

A duração razoável do processo tem por finalidade a garantia ao


jurisdicionado que ingressa no Poder Judiciário de que, em determinado
tempo, e que este seja razoável, o seu processo tenha sido efetivado, ou
pelo menos tenha sua sentença transitado em julgado.

5
WELSCH, Gisele Mazzoni. A razoável duração do processo como garantia constitucional. In: MOLINARO, Carlos
Alberto; MILHORANZA, Mariângela Ribeiro; PORTO, Sérgio Gilberto. p. 363.
6
WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à
nova sistemática processual civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 27.
7
JOBIM, Marco Félix. O direito à duração razoável do processo: responsabilidade civil do Estado em decorrência
da intempestividade processual. 2. ed. Porto Alegre: 2012. p. 80.
8
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Código de Ética da Magistratura Nacional. Diário da Justiça da
República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 18 set. 2008. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/codigo-de-
etica-da-magistratura>. Acesso em: 24 mar. 2014.
9
JOBIM, Marco Félix. O direito à duração razoável do processo: responsabilidade civil do Estado em decorrência
da intempestividade processual. 2. ed. Porto Alegre: 2012. p. 119.

236 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015
SÚMULAS VINCULANTES E SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS: MECANISMOS PARA CONCRETIZAR O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL...

Cumpre-nos ainda fazer uma distinção entre o princípio da razoável duração do


processo e o princípio da celeridade processual. O primeiro, como dito acima, tem
por finalidade a garantia ao jurisdicionado de que, em um tempo razoável, seu pro­
cesso será julgado. Em contrapartida, a celeridade processual corresponde à “garantia
ao jurisdicionado de que os atos processuais sejam realizados no menor espaço
de tempo possível, numa linha mais de economia processual”.10
No ponto, elucidativo o ensinamento do doutrinador José Afonso da Silva:11

Celeridade é signo de velocidade no seu mais alto grau; processo célere


seria aquele que tramitasse com maior velocidade possível; mais do que
isso, só um processo celérrimo. Processo com razoável duração já não
significa, necessariamente, um processo veloz, mas um processo que
deve andar com certa rapidez, de modo a que as partes tenham uma
prestação jurisdicional em tempo hábil.

Esse entendimento não é consolidado, visto que parte da doutrina entende que o
princípio da razoável duração do processo nada mais é do que o princípio da celeridade
processual, porém revestido de caráter constitucional, cita-se exemplificativamente
os doutrinadores Ruy Portanova,12 Guiherme Rizzo Amaral13 e Marcelo Zenkner.14
Quanto ao destinatário do princípio da razoável duração do processo, entende-
se que “qualquer pessoa que ingresse no Poder Judiciário, quer como autora ou ré,
ou ainda apenas como interveniente, tem o direito de, em tempo razoável, ver seu
conflito finalizado”.15 Isso, pois, o princípio da razoável duração do processo é des­
tinado a todas as pessoas físicas e jurídicas, nacionais ou estrangeiras, ao próprio
Estado e seus órgãos de funcionamento interno e externo (por si mesmos ou repre­
sentados nos termos do artigo 12 do Código de Processo Civil).
Em contrapartida, os coobrigados ao direito da razoável duração do processo
são todos aqueles que, de alguma forma, auxiliam no feito e participam do deslinde
processual. Dentre esses, têm-se não só autor, réu e juiz, mas, também, agentes,
auxi­liares do juízo, peritos, serventuário e todos aqueles que participaram ou partici­
pam de algum momento na vida do processo. A colaboração para a efetividade do
princípio é de todos.16

10
JOBIM, Marco Félix. O direito à duração razoável do processo: responsabilidade civil do Estado em decorrência
da intempestividade processual. 2. ed. Porto Alegre: 2012. p. 119.
11
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: 2007. p. 176
12
PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
13
AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro: multa do artigo 461 do CPC e outras.
Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2004.
14
ZENKNER, Marcelo. A instrumentalidade da tutela ao direito fundamental de tempestividade na prestação
jurisdicional. In: FREIRE e SILVA, Bruno; MAZZEI, Rodrigo. Reforma do judiciário: análise interdisciplinar e
estrutural do primeiro ano de vigência. Curitiba: Juruá, 2008. p. 503-519.
15
JOBIM, Marco Félix. O direito à duração razoável do processo: responsabilidade civil do Estado em decorrência
da intempestividade processual. 2. ed. Porto Alegre: 2012. p. 84.
16
JOBIM, Marco Félix. O direito à duração razoável do processo: responsabilidade civil do Estado em decorrência
da intempestividade processual. 2. ed. Porto Alegre: 2012. p. 89.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015 237
Tatiana Alvim Pufal

Quanto ao tempo do processo, valioso o entendimento do doutrinador Galeno


Larcerda, que entende que todo processo possui um passivo material, consubstanciado
no custo da lide e no tempo despendido em cada processo, e um passivo moral, que
corresponde às energias gastas, esperanças depositadas, riscos aos quais ambas
as partes são submetidas em um processo judicial. O doutrinador defende que dimi­
nuir esse passivo – tanto moral quanto material – seria tender ao ideal da justiça.17
Para o doutrinador Nelson Nery Junior, o princípio da razoável duração do pro­
cesso “tem dupla função”:18 de um lado, deve ser considerado o tempo do processo
em si, compreendido pelo período em que se inicia o processo, com a propositura
da demanda, até o trânsito em julgado; de outro, leva em conta a adoção de meios
alternativos de solução de conflitos, que vêm para aliviar a sobrecarga da justiça
ordinária e contribuem para abreviar a duração média do processo.
Importante ressaltar que todo processo judicial demandará um tempo de matu­
ração necessário, pois compreenderá prazo para que as partes se manifestem, apre­
sentem pedidos, impugnações, possam se insurgir contra decisões que lhes sejam
desfavoráveis, tempo para o magistrado apreender o conflito de interesses e para
habilitar-se a bem fundamentar as decisões.19 O que se pretende com o princípio do
devido processo legal é a diminuição desse passivo como forma de evitar que este
tempo do processo torne-se demasiadamente excessivo.20
Para a verificação se a duração razoável do processo foi aferida concretamente,
deve-se analisar caso a caso se o processo extrapolou o respectivo limite de duração
ou não,21 visto que não se afigura possível o tratamento dogmático apriorístico da
matéria.22
Para o doutrinador Nelson Nery, deve-se fazer essa verificação através de
critérios objetivos, tais como a natureza do processo e a complexidade da causa, o
comportamento das partes e de seus procuradores, a atividade e o comportamento
das autoridades judiciárias e administrativas competentes, e a fixação legal de prazos
para a prática de atos processuais que assegurem efetivamente o direito ao con­tra­
ditório e à ampla defesa.
Para a Corte Europeia dos Direitos do Homem, alguns critérios devem ser
leva­dos em conta para essa verificação; dentre estes, a complexidade da causa,

17
LACERDA, Galeno. Despacho saneador. 3. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1995. p. 5
18
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo.
9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 315.
19
CARNEIRO, Athos Gusmão. Da antecipação de tutela. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
20
JOBIM, Marco Félix. O direito à duração razoável do processo: responsabilidade civil do Estado em decorrência
da intempestividade processual. 2. ed. Porto Alegre: 2012. p. 112.
21
MATTOS, Sérgio Luís Wetzel de. Devido processo legal e proteção de direitos. Porto Alegre: Livraria do Advo­
gado, 2009. p. 248.
22
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo.
9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 315.

238 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015
SÚMULAS VINCULANTES E SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS: MECANISMOS PARA CONCRETIZAR O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL...

o comportamento das partes e dos respectivos advogados, e a atuação do juiz


da causa.23
No ponto, cumpre-nos fazer uma diferenciação dos conceitos de morosidade
processual e intempestividade. O processo pode passar por diversas fases morosas
e continuar sendo tempestivo, assim como pode ser considerado intempestivo
sem nunca ter sido moroso. Isso, pois, a intempestividade está relacionada com o
momento em que há o término do processo, enquanto a morosidade está ligada a
vagar, vagaroso, processo lento. Pode ocorrer de a própria essência do processo ser
morosa ou as diligências necessárias para aquele processo serem morosas, este
último é o que ocorre no processo de usucapião, também quando há necessidade
de expedição de carta rogatória e precatória, o próprio ato de citação quando se tem
dificuldade na localização do demandado. Nestes casos, necessita-se de custo tem­
poral para os atos serem perfectibilizados; mas somente quando essa morosidade
“extrapolar o limite temporal” é que se pode falar em intempestividade processual.
Como causas à intempestividade processual, tem-se a própria burocracia do
Poder Judiciário, fulminando em excessiva demora da atividade dos cartórios e dos
gabinetes. Ainda, a doutrina cita a qualidade do ensino jurídico no país, pois, “ao
colocar no mercado de trabalho um profissional não competente, este trará sérios
pro­blemas, que irão desde o atendimento inicial à parte até a efetivação de seu
direito”.24 Além desses, fator intimamente ligado à intempestividade processual é
o com­portamento das partes e dos advogados. Por fim, cita-se a multiplicidade de
litígios, intensificada ainda mais nos últimos anos.
Dito isso, tem-se que “o reconhecimento de um direito subjetivo a um processo
célere – ou com duração razoável – impõe ao poder púbico, em geral, ao Poder
Judiciário, em particular, a adição de medidas destinadas a realizar esse objetivo”.25
Para o doutrinador Sérgio Mattos, a intempestividade da tutela jurisdicional pode
ser combatida através do emprego de mecanismos endoprocessuais de repressão
à chicana, de aceleração do processo e de controle externo da lentidão.
O primeiro mecanismo pode ser exemplificado através das sanções por ato
atentatório ao exercício da jurisdição (art. 14, incisos I a IV, parágrafo único, do
CPC), litigância de má-fé (arts. 17 e 18 do CPC), embargos de declaração manifes­
tamente protelatórios (art. 538, parágrafo único, do CPC), ato atentatório à dignidade
da justiça (arts. 600 e 601 do CPC) e embargos à execução manifestamente prote­
latórios (art. 740, parágrafo único, do CPC).

23
TUCCI, José Rogério Cruz. Duração razoável do processo: art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal. In: MARTINS,
Ives Gandra da Silva; JOBIM, Eduardo. O processo na constituição. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 322.
24
JOBIM, Marco Félix. O direito à duração razoável do processo: responsabilidade civil do Estado em decorrência
da intempestividade processual. 2. ed. Porto Alegre: 2012. p. 116.
25
MENDES, Gilmar Ferreira. A proteção da dignidade da pessoa humana no contexto do processo judicial. In:
MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques. Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. 2. ed. São
Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2009. p. 131.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015 239
Tatiana Alvim Pufal

Como exemplos de mecanismos de aceleração do processo, têm-se a ante­


cipação da tutela (art. 273, §6º, do CPC), o processo coletivo (arts. 5º, LXX e LXXIII,
e 129, III, da CF; Leis 4.717/65, 7.347/85 e 8.078/90), o caráter ininterrupto da
atividade jurisdicional, com o funcionamento ininterrupto da atividade jurisdicional
(art. 93, XII, da CF), a distribuição imediata do processo em todos os graus de juris­
dição (art. 93, XV, da CF), a possibilidade de julgamento pelo relator (art. 557 do
CPC) e a desnecessidade de autenticação das peças processuais. Quanto à figura da
antecipação de tutela, esta deve ser entendida como “uma técnica processual que
possibilita o julgamento definitivo da parcela incontroversa da demanda por força da
eficácia irradiante do direito fundamental a um processo sem dilações indevidas”.26
Quanto ao mecanismo de controle externo da lentidão, consubstancia-se, na
possibilidade do prejudicado pela demora excessiva do processo, buscar guarida no
judiciário e obter ressarcimento pelos danos sofridos (art. 5º, VX, da CF). Além disso,
há também a representação por excesso injustificado de prazo contra magistrado,
que pode ser formulado diretamente ao CNJ – Conselho Nacional de Justiça (arts.
198 e 199 do CPC, art. 80 do regimento interno do CNJ, e art. 103-B da CF).
Além desses, cumpre-nos salientar que as súmulas vinculantes e as súmulas
impeditivas de recursos, que serão estudadas no capítulo seguinte, surgiram no
orde­namento jurídico brasileiro como formas de se racionalizar a atividade judiciária,
visando à diminuição do grandioso número de recursos e diminuindo a espera pela
justiça.
Tem-se, portanto, que, atualmente, um dos combates à morosidade na entrega
da prestação jurisdicional exige, em verdade, uma mudança de mentalidade de
todos aqueles que participam do devido processo legal, especialmente os juízes,
“seja na percepção do problema a eles lançado, seja na aplicação do direito ao
caso concreto”.27
Ainda, para o doutrinador Luiz Guilherme Marinoni:

Tem-se que um dos grandes desafios – talvez o maior – da processualística


moderna seja conciliar o direito à tempestividade da tutela jurisdicional
com o tempo necessário aos debates entre os litigantes, à investigação
probatória e ao amadurecimento da convicção judicial.28

26
MITIDIERO, Daniel. Direito fundamental ao julgamento definitivo da parcela incontroversa: Uma proposta de
compreensão do Art. 273, §6º, do CPC, na perspectiva do direito fundamental a um processo sem dilações
indevidas (art. 5º, LXXVIII, da CF/1988). Disponível em: <http://www.academia.edu/3223781/Direito_fun­
damental_ao_julgamento_definitivo_da_parcela_incontroversa_-_Revista_de_Processo_149>. Acesso em: 08
jun. 2014.
27
MATTOS, Sérgio Luís Wetzel de. Devido processo legal e proteção de direitos. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009. p. 251.
28
MARINONI, Luiz Guilherme. Abuso de defesa e parte incontroversa da demanda. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007. p. 11.

240 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015
SÚMULAS VINCULANTES E SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS: MECANISMOS PARA CONCRETIZAR O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL...

Por fim, José Rogério Cruz e Tucci entende que:

O resultado de um processo não apenas deve outorgar uma satisfação


jurídica às partes, como também, para que essa resposta seja a mais
plena possível, a decisão final deve ser pronunciada em um lapso de
tempo compatível com a natureza do objeto litigioso, visto que – caso
contrário – se tornaria utópica a tutela jurisdicional de qualquer direito.29

Por essas razões, entende-se que somente com alterações drásticas no orde­
namento jurídico brasileiro poder-se-á alcançar maior efetividade processual, dimi­
nuindo a espera excessiva por solução do litígio, respeitando, assim, o direito
cons­ti­tucional da razoável duração do processo.
Cumpre-nos salientar que a efetividade ora referida deve ser a chamada efe­
tividade virtuosa, tema do item 2.2 que segue.

2.2 Dimensões da efetividade


Para o doutrinador Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, há de se fazer uma dis­
tinção entre a efetividade propriamente dita e a efetividade chamada de virtuosa.
O doutrinador questiona a “eficiência como fim, sem temperamentos, como meta
absoluta, desatenta a outros valores e princípios normativos”,30 defendendo que “a
efetividade só se revela virtuosa se não colocar no limbo outros valores importantes
do processo, a começar pelo da justiça”.31
Para Carlos Alberto Alvaro de Oliveira e Daniel Mitidiero:32

A justa preocupação com a celeridade não pode acarretar drástica perda


de qualidade, a constituir igualmente denegação de justiça. A efetivi­
dade virtuosa não pode ser substituída por uma efetividade perniciosa,
símbolo de uma mentalidade tecnoburocrática, preocupada mais com a
performance, com a estatística, do com que os valores fundamentais do
processo.

A intensificação dos litígios, com a demora cada vez mais excessiva do pro­
cesso, juntamente com as dificuldades de ordem econômica, política e social pelas
quais passam a nação colaboram para um descrédito da jurisdição, “fazendo com que

29
TUCCI, José Rogério Cruz. Duração razoável do processo: art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal. In: MARTINS,
Ives Gandra da Silva; JOBIM, Eduardo. O processo na constituição. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 322.
30
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Efetividade e processo de conhecimento. Disponível em <http://www.ufrgs.
br/ppgd/doutrina/oliveir2.htm>. Acesso em: 17 mar. 2014.
31
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Efetividade e processo de conhecimento. Disponível em: <http://www.ufrgs.
br/ppgd/doutrina/oliveir2.htm>. Acesso em: 17 mar. 2014.
32
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. v. 1. São Paulo: Atlas, 2010.
p. 31.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015 241
Tatiana Alvim Pufal

se forme um caldo de cultura propício a que, no limite, se tenda a ver a efetividade


não como um meio, mas como um fim em si mesmo”.33 Efetividade esta que se
resume muitas vezes na solução rápida, expedita e fulminante do processo, ferindo
até mesmo o valor justiça.
Para Araken de Assis, “nem sempre o processo rápido traduz o processo justo.
Impõe-se abreviá-lo para melhorá-lo, e não para piorá-lo, sonegando tantos outros
direitos fundamentais a uma das partes ou a ambas”.34
Questiona Carlos Alberto Alvaro de Oliveira se realmente se mostra desejável
esse tipo de efetividade, que se mostra indiferente até mesmo à justiça.
O referido doutrinador afirma que:35

A justiça no processo significa exercício da função jurisdicional de confor­


idade com os valores e princípios normativos conformadores do processo
justo em determinada sociedade (imparcialidade e independência do
órgão judicial, contraditório, ampla defesa, igualdade formal e material
das partes, juiz natural, motivação, publicidade das audiências, término
do processo em prazo razoável, direito à prova).

Mas entende Carlos Alberto Alvaro de Oliveira que o acesso à justiça deve com­
preender uma proteção juridicamente eficaz e temporalmente adequada.
Como formas de alcançar a efetividade virtuosa, o doutrinador destaca os
seguintes aspectos: necessidade de maior informalismo e acentuação do princípio
da coo­peração entre o órgão judicial e as partes.
Quanto ao maior informalismo, tem-se que é necessária uma maior flexibiliza­
ção do rigorismo formal, coordenando-o com o princípio da economia processual com
o objetivo de conferir maior agilidade ao processo na busca pela boa efetividade,
a efetividade virtuosa. Como alternativa, refere Carlos Alberto Alvaro de Oliveira,36
por exemplo, o afastamento tanto do pedido quanto da indicação da causa petendi.
Isso, pois, essa flexibilização evitaria possível decretação futura, depois de anos
de marcha processual, do reconhecimento, por exemplo, de incorreta formulação
do pedido inicial ou deficiência na fixação do fato jurídico fundamental por requisito
meramente formal. Assim, no entender do referido autor, essa parece ser uma
solução entre os direitos processual e material.
Ainda quanto ao formalismo excessivo, tem-se o sistema atual de admissão
dos recursos, no qual, em razão da falta de um documento, o recurso interposto

33
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Efetividade e processo de conhecimento. Disponível em: <http://www.ufrgs.
br/ppgd/doutrina/oliveir2.htm>. Acesso em: 17 mar. 2014.
34
ASSIS, Araken de. Duração razoável do processo e reformas da lei processual civil. p. 196.
35
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Efetividade e processo de conhecimento. Disponível em: <http://www.ufrgs.
br/ppgd/doutrina/oliveir2.htm>. Acesso em: 17 mar. 2014.
36
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Efetividade e processo de conhecimento. Disponível em: <http://www.ufrgs.
br/ppgd/doutrina/oliveir2.htm>. Acesso em: 17 mar. 2014.

242 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015
SÚMULAS VINCULANTES E SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS: MECANISMOS PARA CONCRETIZAR O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL...

não é admitido, não sendo facultada ao advogado sequer a possibilidade de suprir a


falta, gize-se, meramente formal. Para Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, “a efetividade
que sustenta essa maneira de ver o problema é a efetividade ruim, preocupada tão
somente com a performance”,37 há que se considerar que “o processo não foi feito
para punir desatenções, e sim para fazer justiça”,38 de modo que o simples defeito
formal não pode representar impedimento da parte do aceso à justiça.
Quanto à necessária cooperação entre o magistrado e as partes, tem-se a
necessidade de adotar-se o princípio da cooperação. Há que ser retomado o diálogo
judicial, consubstanciado na cooperação entre as partes, entre partes e juiz, e deste
com as partes. Além disso, há que se ter uma participação mais ativa e leal das
partes e do magistrado no processo de formação da decisão, partindo-se sempre
da ideia de “divisão do trabalho entre o órgão judicial e as partes”.39 É necessário
adotar-se o princípio da cooperação como pedra angular e exponencial do processo
civil. Inexistirá verdadeira efetividade sem a efetiva colaboração das partes com o
órgão judicial, e deste com as partes.
Assim, tem-se que há que se diferenciar a efetividade da efetividade virtuosa.
Enquanto a primeira busca, ao fim e ao cabo, uma solução rápida, expedita, fulminante,
ferindo, muitas vezes, o próprio valor justiça, a segunda busca também uma solução
célere ao processo, mas sem se descuidar dos princípios constitucionalmente asse­
gurados, dentre eles, o valor justiça.
Também para o doutrinador Nelson Nery Junior, tem-se que não se deve buscar
“uma justiça fulminante” a qualquer custo, desrespeitando os demais valores cons­
titucionais. Deve-se, sim, buscar uma razoável duração do processo, preservando-
se também o devido processo legal, isonomia, contraditório, ampla defesa e juiz
natural.40

3 Súmulas vinculantes e súmulas impeditivas de recursos


No presente capítulo, será abordada, primeiramente, a figura da súmula vincu­
lante, suas principais características e peculiaridades, demonstrando sua relação
com o princípio da razoável duração do processo.
Após, será analisada a figura da súmula impeditiva de recursos, demonstrando-
se ser um meio de concretização do princípio da razoável duração do processo.

37
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Efetividade e processo de conhecimento. Disponível em: <http://www.ufrgs.
br/ppgd/doutrina/oliveir2.htm>. Acesso em: 17 mar. 2014.
38
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Efetividade e processo de conhecimento. Disponível em: <http://www.ufrgs.
br/ppgd/doutrina/oliveir2.htm>. Acesso em: 17 mar. 2014.
39
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Efetividade e processo de conhecimento. Disponível em: <http://www.ufrgs.
br/ppgd/doutrina/oliveir2.htm>. Acesso em: 17 mar. 2014.
40
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo.
9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 318.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015 243
Tatiana Alvim Pufal

3.1 Súmula vinculante e a razoável duração do processo


Como visto no capítulo anterior, a crise do Poder Judiciário (consubstanciada
na multiplicação dos processos), a morosidade dos atos processuais, a intempestivi­
dade dos processos e a consequente descrença da população levaram o legislador a
criar diversos institutos visando assegurar uma prestação jurisdicional mais efetiva,
em consonância com os princípios constitucionais, especialmente a razoável duração
do processo e a celeridade processual.
Dentre esses institutos, está o objeto do presente trabalho, qual seja a figura das
súmulas vinculantes, inserida no ordenamento jurídico brasileiro através da Emenda
Constitucional 45/2004, que inseriu o artigo 103-A à Constituição Federal, in verbi:

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provoca­


ção, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas
decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de
sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos
demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e
indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à
sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia
de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre
órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete
grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre
questão idêntica.
§2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação,
revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles
que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula
aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo
Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo
ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja
proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

De acordo com o dispositivo em questão, as decisões reiteradas do Supremo


Tribunal Federal poderão ser aprovadas por enunciado sumular, que terão efeitos
vinculantes sobre as decisões de todos os demais órgãos do Poder Judiciário.
Além da previsão constitucional, a Lei 11.417/2006 regulamentou o art. 103-A
da Constituição Federal e disciplinou acerca da edição, da revisão e do cancelamento
dos enunciados de súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal.
O conceito de súmula vinculante parece-nos bem elucidado pelo doutrinador
Luiz Guilherme Marinoni, que entende que “a súmula vinculante é a inscrição de um
enunciado a partir da ratio decidendi de precedentes – ou, excepcionalmente, de
precedente – que versaram sobre uma mesma questão constitucional”,41 sendo a
ratio decidindi o fundamento determinante ou motivo essencial da decisão.

41
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 492.

244 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015
SÚMULAS VINCULANTES E SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS: MECANISMOS PARA CONCRETIZAR O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL...

A principal característica dos enunciados sumulares é justamente seu efeito


vinculante tanto em relação ao próprio Supremo Tribunal Federal como a todos os
demais órgãos judiciais e, também, à administração pública direta e indireta, nas
esferas federal, estadual e municipal.
No ponto, cumpre-nos destacar posicionamento do doutrinador Luiz Guilherme
Marinoni, que defende que “não há distinção, em essência, entre súmula e súmula
vinculante”.42 Isso, pois, diante da função da nossa Corte Constitucional, não há como
entender que suas decisões, proferidas em sede de controle difuso, não tenham
eficácia vinculante e obrigatória, visto que “não há como ter unidade de direito, por
meio da Constituição, quando as decisões da Suprema Corte podem ser desrespei­
tadas pelos demais tribunais”.43 Ainda nos dizeres do referido doutrinador:44

A verdade é que ordenamento jurídico não precisa dizer que as súmulas


do Supremo Tribunal Federal têm eficácia vinculante. Elas têm esta efi­
cácia pela simples razão de enunciarem o entendimento derivado de um
conjunto de precedentes da Corte cuja missão é dar sentido único ao
direito mediante a afirmação da Constituição.

Ainda quanto ao efeito vinculante, de acordo com a previsão constitucional,


este se opera de imediato a partir da publicação do enunciado no Diário da Justiça
e no Diário Oficial da União, o que ocorre dentro de 10 dias após a sessão em que
for aprovado, nos termos do artigo 2º, parágrafo quarto, da Lei 11.417/2006. No
entanto, pode o Supremo “modelar os efeitos do enunciado sumular, postergando
sua eficácia vinculativa para o futuro”;45 para tanto, é necessária decisão de 2/3
(dois terços) dos seus membros por razões de segurança jurídica ou de excepcional
interesse público.
Quanto à edição das súmulas vinculantes, importante ressaltar que só é possível
se a matéria for constitucional, a teor do caput do artigo 103-A da Constituição Fede­
ral e do artigo 2º, caput, da Lei 11.417/2006.46 Além disso, só é possível edição
de enunciado sumular com eficácia vinculante que tenha por objeto a interpretação,
verificação da validade ou da eficácia de norma, sobre a qual já tem “controvérsia
que atua entre os órgãos judiciários, ou entre estes e a administração pública, que

42
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 489.
43
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 489.
44
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 489.
45
DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVERIA, Rafael. Curso de direito processual civil. 4. ed. v. 2. Bahia:
2009. p. 398.
46
Art. 2º. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, após reiteradas decisões sobre ma­
téria constitucional, editar enunciado de súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito
vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas
esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma prevista
nesta Lei. (BRASIL. Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11417.htm>. Acesso em: 31 mar. 2014.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015 245
Tatiana Alvim Pufal

acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre


questão idêntica”,47 ex vi parágrafo primeiro do artigo 103-A da Constituição Federal
acima citado e artigo 2º, parágrafo primeiro, da Lei 11.417/2006.48
A teor do parágrafo segundo do dispositivo constitucional e do artigo 3º da
lei supracitada, a edição, revisão ou cancelamento das súmulas vinculantes pode
ocorrer de ofício pelo próprio Supremo Tribunal Federal, ou pode ser provocada por
aqueles que têm legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade.
Assim, tem legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade e, por
consequência, propor a edição, revisão ou cancelamento das súmulas vinculantes:
o presidente da república, a mesa do Senado Federal, a mesa da Câmara dos Depu­
tados, o procurador-geral da república, o conselho federal da Ordem dos Advogados
do Brasil, o defensor público-geral da União, partido político com representação no
Congresso Nacional, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacio­
nal, a mesa da Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal,
o governador do Estado ou do Distrito Federal, os Tribunais Superiores, os Tribunais
de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e Territórios, os Tribunais Regionais
Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os
Tribunais Militares.
Para o doutrinador Leonardo Vizeu Figueiredo,49 os legitimados a propor a edição,
cancelamento ou revisão dos verbetes sumulares podem ser assim classificados:

a) legitimado universais ou neutros: todos aqueles que atuam na defesa


geral dos interesses da Nação, que não precisam demonstrar relação de
pertinência objetiva na fixação obrigatória do entendimento jurispruden­
cial do Pretório Excelso. Esta categoria, no ato de propositura, deverá, tão-
somente, ater-se a demonstração de existência dos requisitos previstos
no art. 2º, §1º, para conhecimento do pedido de edição, revisão ou can­
celamento, a saber, dano potencial ou efetivo à segurança jurídica e à
celeridade processual. São estes o Presidente da República; a Mesa do
Senado Federal; a Mesa da Câmara dos Deputados; o Procurador-Geral
da República; o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; o
Defensor Público-Geral da União; e partido político com representação no
Congresso Nacional;

47
DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVERIA, Rafael. Curso de direito processual civil. 4. ed. v. 2. Bahia:
2009. p. 399.
48
Art. 2º, §1º. O enunciado da súmula terá por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas
determinadas, acerca das quais haja, entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública,
controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre
idêntica questão. (BRASIL. Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11417.htm>. Acesso em: 31 mar. 2014.
49
FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Súmula vinculante e a Lei nº 11.417/2006: apontamentos para compreensão
do tema. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/27223/sumula-vinculante-analise-critica/4>. Acesso em:
31 mar. 2014.

246 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015
SÚMULAS VINCULANTES E SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS: MECANISMOS PARA CONCRETIZAR O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL...

b) legitimados especiais ou sectários: todos aqueles que atuam na defesa


específica de interesses inerentes à determinada categoria ou população
restrita à determinada base territorial, necessitando demonstrar, além
dos requisitos do art. 2º, §1º, relação de pertinência objetiva na fixação
obrigatória do entendimento súmulado do Pretório Excelso. São estes a
confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional; a Mesa
de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; o
Governador de Estado ou do Distrito Federal; e os Tribunais Superiores,
os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e Territórios,
os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os
Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares.

Ainda, de acordo com o parágrafo primeiro do artigo terceiro da Lei 11.417/2006,50


o município pode propor a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de
súmula vinculante incidentalmente no curso de processo em que seja parte, o que
não autoriza a suspensão do processo. A diferença do município para os outros legi­
timados está na necessidade de ser parte no processo. Além disso, a edição, revisão
ou cancelamento deve ocorrer de forma conjunta no curso do processo, sem que o
processo principal seja suspenso; apenas excepcionalmente, se for para evitar danos
irreparáveis ou de difícil reparação, é admitida a suspensão.51
Quanto à possibilidade de revisão e de cancelamento das súmulas vinculantes,
justificam-se na medida em que as súmulas vinculantes não têm a pretensão de viger
eternamente. Por essa razão, é prevista a possibilidade de o próprio Supremo Tribu­
nal Federal realizar o chamado overruling (superação ou cancelamento) e o overriding
(revisão ou revogação parcial). Para a revisão ou cancelamento de súmula vinculante,
também é necessário quórum da decisão de 2/3 dos membros do Supremo, em
sessão plenária, nos termos do artigo 103-A, caput, da Constituição Federal e do
artigo 2º, parágrafo 3º, da Lei 11.417/2006. A revisão ou cancelamento de súmula
vinculante pode ser de ofício pelo próprio Supremo Tribunal Federal, ou por provoca­
ção de qualquer dos legitimados a propor ação direta de inconstitucionalidade, nos
termos do artigo 3º da Lei 11.417/2006, conforme acima exposto. O procedimento
para edição, revisão ou cancelamento de súmulas vinculantes está regulamentado
nas Resoluções 381 e 388, ambas do Supremo Tribunal Federal. Por fim, cumpre
salientar que somente é possível o cancelamento de verbete sumular de forma
expressa, não se admitindo superação implícita de súmula vinculante.52

50
Art. 3º, §1º. O Município poderá propor, incidentalmente ao curso de processo em que seja parte, a edição, a
revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante, o que não autoriza a suspensão do processo.
(BRASIL. Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2004-2006/2006/lei/l11417.htm>. Acesso em: 31 mar. 2014).
51
LOBO, Arthur Mendes. Breves comentários sobre a regulamentação da súmula vinculante. Disponível em:
<https://www.unifafibe.com.br/revistasonline/arquivos/revistajuridicafafibe/sumario/8/16042010161145.
pdf>. Acesso em: 31 mar. 2014.
52
DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVERIA, Rafael. Curso de direito processual civil. 4. ed. v. 2. Bahia:
2009. p. 400.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015 247
Tatiana Alvim Pufal

A competência para editar enunciados com força vinculante é exclusiva do


Supremo Tribunal Federal. O que pode ocorrer, como visto acima, é a proposta de
procedimento de edição ser feita por outros Tribunais, mas quem poderá, ao fim,
editar o verbete com efeito vinculante será somente o Supremo. No ponto, importante
destacar ainda que “os enunciados editados por cada um dos Tribunais têm efeito
vinculante em relação ao próprio Tribunal”.53
Por fim, cumpre salientar ainda que cabe reclamação ao Supremo Tribunal
Federal contra ato administrativo ou decisão judicial que venha a contrariar súmula
vinculante ou que indevidamente a aplique, sem prejuízo de outros recursos ou meios
admissíveis de impugnação, nos termo do artigo 103-A, parágrafo 3º, da Constitui­ção
Federal, e artigo 7º da Lei 11.417/2006.
Feitas as principais considerações acerca do instituto da súmula vinculante,
cumpre-nos relacioná-la ao princípio da razoável duração do processo.
Como visto, o instituto em questão impede decisões conflitantes sobre cuja
matéria o Supremo Tribunal Federal já tenha consolidado entendimento pela edição
de súmulas vinculantes, impedindo, desta forma, decisões conflitantes entre os
diferentes órgãos do Poder Judiciário. Assim, tem-se que o legislador, ao instituir a
figura das súmulas vinculantes no ordenamento jurídico, buscou conferir maior agi­li­
dade aos julgamentos e inibir a interposição de recursos, vez que, se aplicado o enten­
dimento da súmula vinculante da decisão proferida pelo julgador a quo, se “saberá,
de antemão, a parte sucumbente que os Tribunais não poderão reformá-la, sob pena
de seu acórdão ser objeto de reclamação perante o Supremo Tribunal Federal”.
No ponto, destacamos o elucidativo posicionamento do doutrinador Arthur
Mendes Lobo:

Entendemos que a súmula vinculante representa mais uma forma de


controle de constitucionalidade, à semelhança do que ocorre com as
de­ci­
sões na Ação Direta de Inconstitucionalidade, na Ação Direta de
Cons­ti­­tucionalidade e na Argüição de Descumprimento de Preceito Funda­
mental, pois seu comando não pode ser ignorado por nenhum órgão
judiciário ou da administração pública, sob pena de ser decretada, em
sede de reclamação, a cassação a decisão judicial ou a anulação o ato
administrativo.

Para o doutrinador Rodolfo de Camargo Mancuso, a adoção das súmulas


vinculantes agiliza as decisões, “na medida em que a súmula já significa o extrato
do entendimento predominante no tribunal competente, acerca da matéria, pressu­
pondo, assim, a superação dos possíveis argumentos em sentido contrário ao
seu enunciado”; também “atua eficazmente na desobstrução do serviço judiciário,

53
DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVERIA, Rafael. Curso de direito processual civil. 4. ed. v. 2. Bahia:
2009. p. 339.

248 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015
SÚMULAS VINCULANTES E SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS: MECANISMOS PARA CONCRETIZAR O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL...

diminuindo em muito o tempo incorrido entre as fases postulatória e decisória no


primeiro grau e entre a fase recursal e o trânsito em julgado” e ainda, quanto ao
sistema de recursos, “simplifica e agiliza sua interposição, o juízo de admissibilidade,
e mesmo a apreciação de seu mérito, sobretudo nos Tribunais Superiores”. Conclui
o referido autor:54

Por aí se vê que, dentre os motivos determinantes do implemento da


súmula vinculante, encontra-se a inadiável adoção de medida idônea
a conter a caótica dispersão de ações judiciais sobre um mesmo tema,
prática que proteja efeitos perversos, tanto para o Estado-juiz, que se vê
assoberbado com a sobrecarga do serviço, quanto para o jurisdicionado,
que recebe uma resposta tardia e de conteúdo imprevisível.

Além da efetividade jurisdicional propiciada pelas súmulas vinculantes, não


podemos deixar de referir outra grande vantagem do referido instituto: a segurança
jurídica. Se os verbetes sumulares vinculam os demais órgãos do Poder Judiciário
a decidirem conforme o entendimento do Supremo, evitando posicionamentos dis­
crepantes entre um julgador e outro, indiscutível que conferem segurança jurídica
àquele que procura guarida no Poder Judiciário.
Nesse sentido, elucidativo posicionamento do doutrinador Rodolfo de Camargo
Mancuso:55

Outro argumento relevante que se enuncia em prol da súmula vinculante


é a segurança jurídica que esta proporcionaria aos jurisdicionados, já que,
com a edição de enunciados de súmula vinculante, haveria vinculação
do Poder Judiciário a tais enunciados no que se refere às matérias de
direito, pelo que o cidadão já saberia de antemão como se posicionam os
tribunais. Dessa forma, os enunciados de súmula evitariam a insegurança
jurídica proporcionada por interpretações diversas oriundas dos órgãos
judiciários sobre o mesmo dispositivo de lei, vez que interpretações diver­
sas, geram respostas diversas, e, por conseguinte, insegurança jurídica.

Assim, a inserção da figura da súmula vinculante no ordenamento jurídico


brasileiro faz parte de um conjunto de reformas feitas pelo legislador, com o objetivo
de “dotar o judiciário nacional de mais eficiência e mais previsibilidade”,56 reduzindo-
se consideravelmente o número de recursos dos Tribunais e o tempo de duração
dos processos, mormente no que se refere aos processos sobre questões idênticas,

54
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante. 2. Ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2001.
55
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante. 2. Ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2001.
56
JOBIM, Eduardo; BENETTI TIMM. A súmula vinculante no direito brasileiro. Estudo comparativo com o direito
inglês. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; JOBIM, Eduardo. O processo na constituição. São Paulo: Quartier
Latin, 2008. p. 915.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015 249
Tatiana Alvim Pufal

que perfazem a maioria dos julgados. Os verbetes sumulares pretendem eliminar


assim o grande contingente de recursos sobre questões idênticas, dinamizando a
prestação jurisdicional.57

3.2 Súmula impeditiva de recursos e a razoável duração do


processo
A súmula impeditiva de recursos foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro
pela Lei 11.276, de 08 de fevereiro de 2006, que inseriu ao Código de Processo Civil
o art. 518, §1º, que assim dispõe:

Art. 518. Interposta a apelação, o juiz, declarando os efeitos em que a


recebe, mandará dar vista ao apelado para responder.
§1º O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver
em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do
Supremo Tribunal Federal.

De acordo com o art. 518, §1º, o juiz de primeiro grau, verificando que a sen­
tença proferida está de acordo com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do
Supremo Tribunal Federal, não receberá o recurso de apelação interposto por qual­
quer das partes.
A exposição de motivos do Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, que
acompanhou a proposta de alteração do art. 518 do CPC, assim justificou a reforma
do referido artigo:

Nota-se, pois, que o não recebimento da apelação contra sentença em


consonância com súmula dos Tribunais Superiores representa, a nosso
sentir, uma medida condizente com a adoção da súmula vinculante. Ou
seja, se optamos pela súmula vinculante, não há sentido em permitir o
processamento de recurso contrário ao entendimento fixado por aquela.
Ainda que assim não o fosse, tal conduta do magistrado apenas ante­
ciparia o provimento que fatalmente viria a ser tomado pelo relator do
recurso, o qual, com base no art. 557 do CPC já está autorizado a negar
seguimento a recurso em confronto com súmula ou jurisprudência domi­
nante do respectivo tribunal, do STF ou de Tribunal Superior.58

Elucidativo posicionamento do doutrinador Humberto Theodoro Junior a respeito


da justificativa para as súmulas impeditivas de recursos:

57
RAMADAN, Daiana. Súmula Vinculante Como Instrumento De Implementação Do Princípio Da Razoável Dura­
ção Do Processo Civil E A Efetividade Da Prestação Jurisdicional. Disponível em: <file:///D:/Users/User/
Documents/Downloads/DaianaRamadanRevistaFebre4edicao.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2014.
58
BASTOS, Márcio Thomaz. Exposição de motivos da alteração da Lei 11276. Disponível em: <http://www.
bmfbovespa.com.br/pdf/Entrevista210907_02.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2014.

250 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015
SÚMULAS VINCULANTES E SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS: MECANISMOS PARA CONCRETIZAR O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL...

Se cabe ao STF e ao STJ a função uniformizadora da interpretação


da lei federal, respectivamente, no âmbito da ordem constitucional e
infraconstitucional, apresentar-se-ia como perda de tempo e gasto pro­
cessual sujeitar-se a recurso uma sentença que, afinal, viria a prevalecer
quando a apelação chegasse à instância superior.59

Desde a época da tramitação da Emenda Constitucional nº 45/2004, pretendia-


se criar a figura das súmulas vinculantes e também da súmula impeditiva de recursos.
A súmula vinculante foi aprovada quando da Emenda Constitucional citada, conforme
abordado no capítulo 3.1. Porém, a súmula impeditiva de recursos não foi aprovada
na ocasião da emenda, acabando por ser introduzida no ordenamento jurídico brasi­
leiro por meio de lei ordinária.60
Ocorre que “a introdução, por lei ordinária, de mecanismo restritivo do direito de
recorrer causou enorme celeuma entre os doutrinadores”,61 fazendo com que alguns
sustentassem, inclusive, sua inconstitucionalidade por vício de origem.62
Já existia no ordenamento jurídico a possibilidade de negar seguimento a recur­
so que confrontasse súmula dos tribunais superiores; porém, era permitido somente
ao relator do recurso e quando este verificasse que se tratava de recurso mani­
festamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou contrário à súmula do próprio
tribunal ou de tribunal superior, segundo art. 557 do Código de Processo Civil.63
A figura da súmula impeditiva de recursos inovou na medida em que conferiu
esse mesmo poder, anteriormente concedido somente ao relator, também ao juízo
de primeiro grau. Assim, o novo dispositivo autoriza o órgão a quo a não receber o
recurso de apelação quando a sentença por ele mesmo proferida estiver de acordo
com súmula dos tribunais superiores. Caberá ao juiz de primeiro grau “cotejar a
fundamentação da sentença e a motivação do recurso” para verificar se, a respeito
daquela matéria, há súmula dos Tribunais Superiores.
Para aplicação da figura da súmula impeditiva de recursos, somente são
considerados os verbetes das súmulas dos Tribunais Superiores, “pouco importam
os verbetes da súmula do tribunal para o qual o recorrente endereça a apelação”.64
Assim, tem-se que “só seria cabível recurso versando sobre matéria sumulada se a

59
THEODORO JUNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
p. 11.
60
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
p. 490.
61
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
p. 490.
62
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
p. 490.
63
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006. p. 748.
64
ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 198.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015 251
Tatiana Alvim Pufal

decisão monocrática estivesse em contradição com a súmula. Caso ela esposasse


o entendimento sumulado, não seria cabível qualquer recurso”.65
A sentença recorrida pode examinar diversas questões, de fato e de direito,
mas somente a questão de direito que tiver súmula a respeito poderá ser obstada
pela súmula impeditiva de recurso. Nesse sentido, o doutrinador Araken de Assis
entende que a regra do art. 518, §1º, tem aplicação restrita, vez que “somente na
hipótese de o objeto litigioso se resumir totalmente à questão de direito objeto da
súmula, continuará passível de apelação, não se lhe aplicando o art. 518, §1º”,66
sendo que o máximo que pode acontecer é o não recebimento do apelo somente
quanto à parte em conformidade com a súmula.
Para Daniel Ustárroz e Sérgio Gilberto Porto, “a aplicação do dispositivo requer
exata simetria entre o decidido e o enunciado”.67 Se não observada a correspondência
entre a decisão recorrida e a súmula aplicável ao caso, deve a apelação ser recebida
normalmente, “pois a utilização da súmula, por analogia, para outros casos que os
não expressamente previstos quando de sua elaboração, não deve impedir o reexame
da decisão”.68
Para os doutrinadores Daniel Mitidiero e Luiz Guilherme Marinoni, a súmula
invocada para o não recebimento do apelo pelo juiz deve outorgar solução total ao
problema jurídico apresentado:

Vale dizer: a Súmula deve constituir fundamento suficiente e determi­


nante da decisão. Deve, por si só, dar sustentação à sentença. Se a
súmula é apenas um dos argumentos utilizados na decisão, não se
refe­rindo ao cerne da controvérsia, não se está propriamente diante de
sentença em conformidade com Súmula, como exigido pelo art. 518,
§1º, CPC.69

Quando for caso de admissão parcial do apelo, “eventuais partes protegidas


pela incidência da súmula tornam-se preclusas na via recursal, caso não atacadas
pelo apelante. As demais, ao contrário, são abrangidas pelo efeito devolutivo, poden­
do ser revistas”.70
Para alguns doutrinadores, a causa para inadmissibilidade do recurso no
caso de aplicação do art. 518, §1º, do CPC seria a falta de interesse, “medida

65
AZAVEDO, Marco Antonio Duarte. Súmula Vinculante: o precedente como fonte do direito. São Paulo: Centro
de estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 2009. p. 157.
66
ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 198.
67
USTÁRROZ, Daniel; PORTO, Sérgio Gilberto. Manual dos recursos cíveis. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011. p. 130.
68
USTÁRROZ, Daniel; PORTO, Sérgio Gilberto. Manual dos recursos cíveis. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011. p. 130.
69
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado artigo por artigo. 2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 535.
70
USTÁRROZ, Daniel; PORTO, Sérgio Gilberto. Manual dos recursos cíveis. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011. p. 132.

252 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015
SÚMULAS VINCULANTES E SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS: MECANISMOS PARA CONCRETIZAR O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL...

justamente pela ausência de utilidade na impugnação, pois o resultado insatisfatório


é antevisto”.71
Quanto à caracterização ou não da súmula impeditiva de recursos como requi­
sito de admissibilidade do recurso de apelação, há diversas divergência doutrinárias.
Para Marcus Vinicius Rio Gonçalves, a verificação de inexistência de súmula impeditiva
de recurso pelo juiz passou a ser, sim, requisito de admissibilidade do recurso. “O
juiz terá de ler o recurso, para verificar se a sua finalidade é rediscutir aquele ponto
da sentença objeto da súmula.”72
Para a eminente Ministra Nancy Andrighi, a figura da súmula impeditiva de
recursos amplia o trabalho do juiz singular, “introduzindo-se uma profunda modificação
do modo de o juiz fazer o juízo de admissibilidade prévio da apelação interposta”.73
Caberá ao juiz analisar os pressupostos intrínsecos (cabimento, legitimidade e
interesse) e extrínsecos (tempestividade, preparo e regularidade formal) de admissi­
bilidade, exercendo, assim, “verdadeiro juízo de mérito para concluir se a sentença
que proferiu ou foi proferida por outro colega está ou não em conformidade com
súmula do STJ ou do STF”.74
A posição do doutrinador Araken de Assis parece-nos bem aplicável para
solucionar a controvérsia:

A distinção entre juízo de admissibilidade e de mérito, em geral nítida,


fica turvada perante a regra do art. 518, §1º. É verdade que, consoante
o art. 557, caput e §1º-A, o relator negará seguimento ao recurso em
confronto com súmula ou com jurisprudência dominante, ou proverá o
recurso em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante, ou
proverá o recurso se for o pronunciamento impugnado que estiver “em
manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante” do
STF “ou de Tribunal Superior”; porém, nesses casos, ultrapassa o juízo
de admissibilidade e julga o mérito do recurso. Ao invés, na hipótese do
art. 518, §1º, o juiz não admitirá a apelação, trancando o acesso à via
superior – efeito primacial do juízo negativo de admissibilidade.75

Embora a previsão legal da súmula impeditiva de recursos seja referente somente


ao recurso de apelação, diversos doutrinadores entendem ser possível fazer uma

71
USTÁRROZ, Daniel; PORTO, Sérgio Gilberto. Manual dos recursos cíveis. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011. p. 131.
72
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
p. 490.
73
ANDRIGHI, Fátima Nancy. Lei 11.276/06: Inadmissibilidade da apelação contra sentença que se conforma
com súmula do STJ ou do STF. Disponível em: <http://www.researchgate.net/publication/28767483_
LEI_11.27606_-_Inadmissibilidade_da_Apelao_contra_Sentena_que_se_Conforma_com_Smula_do_STJ_ou_
STF>. Acesso em: 31 mar. 2014.
74
ANDRIGHI, Fátima Nancy. Lei 11.276/06: Inadmissibilidade da apelação contra sentença que se conforma
com súmula do STJ ou do STF. Disponível em: <http://www.researchgate.net/publication/28767483_
LEI_11.27606_-_Inadmissibilidade_da_Apelao_contra_Sentena_que_se_Conforma_com_Smula_do_STJ_ou_
STF>. Acesso em: 31 mar. 2014.
75
ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 198.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015 253
Tatiana Alvim Pufal

interpretação extensiva e aplicá-la também a outros recursos cujas decisões estejam


de acordo com o entendimento do STF ou do STJ (neste sentido, posicionamento
de Marcus Vinicius Rios Gonçalves).76 Em corrente doutrinária contrária, tem-se o
posicionamento do doutrinador Araken de Assis77 e de Antonio Dall”Agnol,78 que
enten­dem que o dispositivo não comporta qualquer interpretação extensiva.
Uma das críticas feitas pela doutrina para o disposto em comento é quanto à
vinculação obrigatória do juiz de primeiro grau às decisões das Cortes Superiores.
Para o doutrinador Maurício Barbosa dos Santos,79 “fica à mercê dos Ministros do
STJ e STF a modificação dos entendimentos, ficando os juízes de instâncias inferio­res
limitados a eles”. Ainda segundo o referido autor, a figura da súmula impeditiva de
recursos estaria ferindo o princípio de livre convencimento do juiz, do devido pro­cesso
legal e do duplo grau de jurisdição.
Para o doutrinador Marco Antônio Duarte de Azevedo:

A adoção da súmula restritiva de recursos, para muitos mais palatável,


não soluciona o problema, traduzindo apego quase atávico à ideia de que
a certeza na exegese da norma deve vir a posterior, em grau de recurso,
nunca como norteadora da própria decisão.80

A decisão do juiz a quo, que não recebe o recurso de apelação por estar este em
consonância com súmula dos tribunais superiores, é recorrível por meio de agravo de
instrumento, nos termos do art. 522 do CPC.
Salienta-se, porém, que o agravante nesses casos pode valer-se somente de
dois fundamentos: inaplicabilidade da súmula ao caso concreto ou desconformi­dade
da sentença com o entendimento sumulado pelo STJ e pelo STF.81 Se o Tribunal, no
julgamento do agravo, entender pela inaplicabilidade da súmula àquele caso, o pro­
cedimento a ser observado será o usual, será determinada a “remessa dos autos
principais para o exame do mérito da apelação pelo Tribunal”.82 Se o entendimento
do Tribunal for de desconformidade da sentença com a súmula, a eminente Ministra

76
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
p. 490.
77
ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 198.
78
AGNOL JUNIOR, A. J. D. Admissão do recurso de apelação e súmulas: exegese do artigo 518, parágrafo 1º do
CPC. São Paulo: Revista do Advogado, 2006. p. 69.
79
SANTOS, Maurício Barbosa. Comentários às alterações do Código de Processo Civil. São Paulo: Cultura
Jurídica. 2006. p. 123.
80
AZAVEDO, Marco Antonio Duarte. Súmula Vinculante: o precedente como fonte do direito. São Paulo: Centro
de estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 2009. p. 157.
81
ANDRIGHI, Fátima Nancy. Lei 11.276/06: Inadmissibilidade da apelação contra sentença que se conforma
com súmula do STJ ou do STF. Disponível em: <http://www.researchgate.net/publication/28767483_
LEI_11.27606_-_Inadmissibilidade_da_Apelao_contra_Sentena_que_se_Conforma_com_Smula_do_STJ_ou_
STF>. Acesso em: 31 mar. 2014.
82
ANDRIGHI, Fátima Nancy. Lei 11.276/06: Inadmissibilidade da apelação contra sentença que se conforma
com súmula do STJ ou do STF. Disponível em: <http://www.researchgate.net/publication/28767483_
LEI_11.27606_-_Inadmissibilidade_da_Apelao_contra_Sentena_que_se_Conforma_com_Smula_do_STJ_ou_
STF>. Acesso em: 31 mar. 2014.

254 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015
SÚMULAS VINCULANTES E SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS: MECANISMOS PARA CONCRETIZAR O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL...

Nancy Andrighi entende que pode o Tribunal, no julgamento do agravo, apreciar a


própria apelação e lhe dar ou não provimento, pois se trata de matéria relacionada
com o próprio mérito da apelação.83
Em posicionamento diverso, os doutrinadores Daniel Ustárroz e Sérgio Gilberto
Porto entendem que, se o Tribunal entender que há desconformidade da sentença
com a súmula, não é possível o julgamento da apelação, visto que se estaria ferindo
o ideal constitucional de isonomia, pois, ao receber a apelação e proceder ao exame
de admissibilidade do recurso, o juiz deixa de admiti-la antes mesmo de intimar a
outra parte para apresentar contrarrazões; por tratar-se de agravo de instrumento,
que admite a apreciação monocrática, geraria novo risco de ofensa ao contradi­tó­rio,
trazendo prejuízo até mesmo ao recorrente, que perderia o direito à sustentação
oral.84 Assim, entendem os doutrinadores supracitados que “o provimento do agravo
deve determinar o processamento regular do apelo, salvo quando o próprio agravo é
tratado como apelação, e as garantias das partes referentes a este último recurso
são respeitadas”.
O doutrinador Ovídio Baptista85 possui elucidativo posicionamento quanto à
recorribilidade das decisões dos juízes de primeiro grau que não admitirem apelação
com base no art. 518, §1º, do CPC. Para ele, essas decisões seriam recorríveis por
meio de agravo de instrumento; porém, com o provimento ou desprovimento do agravo,
a parte prejudicada provavelmente irá interpor Recurso Especial ou Extraordiná­rio,
fazendo com que o processo invariavelmente chegue aos Tribunais Superiores. Ou
seja, a súmula impeditiva de recursos, que visa justamente impedir que processos
com matéria sobre a qual os Tribunais Superiores já têm posicionamento consoli­
dado, é recorrível por meio de um recurso que acabará por chegar ao STF ou STJ da
mesma forma, só que por outra via, a do agravo de instrumento.
Por todo o exposto, tem-se que a súmula impeditiva de recursos representa um
mecanismo para concretizar o princípio constitucional da razoável duração do pro­
cesso, tolhendo a multiplicação de recursos, na maioria das vezes repetitivos, “que
se multiplicam como cogumelos, aos milhares”,86 visando desafogar o judiciário e
possibilitar uma prestação jurisdicional mais célere.

83
ANDRIGHI, Fátima Nancy. Lei 11.276/06: Inadmissibilidade da apelação contra sentença que se conforma
com súmula do STJ ou do STF. Disponível em: <http://www.researchgate.net/publication/28767483_
LEI_11.27606_-_Inadmissibilidade_da_Apelao_contra_Sentena_que_se_Conforma_com_Smula_do_STJ_ou_
STF>. Acesso em: 31 mar. 2014
84
USTÁRROZ, Daniel; PORTO, Sérgio Gilberto. Manual dos recursos cíveis. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011. p. 132.
85
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Das alterações no procedimento dos recursos e da ação rescisória: Lei
nº 11.276/06 e nova redação dos arts. 489 e 555, dada pela Lei nº 11.280/06. In: Cadernos do Centro de
Estudos do Tribunal de Justiça do RS. v. I. Porto Alegre: 2006. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/export/
poder_judiciario/tribunal_de_justica/centro_de_estudos/publicacoes/doc/1_Ciclo_Estudos_As_Recentes_
Reformas_Processuais.pdf>.
86
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Das alterações no procedimento dos recursos e da ação rescisória: Lei
nº 11.276/06 e nova redação dos arts. 489 e 555, dada pela Lei nº 11.280/06. In: Cadernos do Centro de

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015 255
Tatiana Alvim Pufal

No ponto, cumpre-nos transcrever elucidativo entendimento do Ministro da


Justiça Márcio Thomaz Bastos na exposição de motivos que acompanhou o projeto
de Lei 11.276/2006:

[...]
2. Sob a perspectiva das diretrizes estabelecidas para a reforma da
Justiça, faz-se necessária a alteração do sistema processual brasileiro
com o escopo de conferir racionalidade e celeridade ao serviço de pres­
tação jurisdicional, sem, contudo, ferir o direito ao contraditório e à ampla
defesa.
3. De há muito surgem propostas e sugestões, nos mais variados âmbi­
tos e setores, de reforma do processo civil. Manifestações de entidades
repre­sentativas, como o Instituto Brasileiro de Direito Processual, a Asso­
ciação dos Magistrados Brasileiros, a Associação dos Juízes Federais do
Brasil, de órgãos do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do próprio
Poder Executivo são acordes em afirmar a necessidade de alteração de
dis­po­sitivos do Código de Processo Civil e da lei de juizados especiais,
para conferir eficiência à tramitação de feitos e evitar a morosidade que
atualmente caracteriza a atividade em questão.
[...]
6. Trata-se, portanto, de uma adequação salutar que contribuirá para a
redução do número excessivo de impugnações sem possibilidades de
êxito.

Também nesse sentido, posicionamento do doutrinador Daniel Mitidiero:87

Assim como o art. 518, §1º, do CPC, o objetivo da norma está em racio­
nalizar a atividade judiciária, patrocinando a economia de atos pro­ces­
suais, e em prestigiar o precedente. Desse modo, fundada a decisão
recor­­rida em precedente, o relator pode julgá-lo sem submetê-lo ao cole­
giado, simplificando-se o procedimento recursal e diminuindo o trabalho
do colegiado.

Também nesse sentido, o doutrinador Fredie Didier entende que as súmulas


impeditivas de recursos acabam “concretizando a instrumentalidade do processo e,
de igual modo, o chamado processo civil de resultados, que se destina à obtenção de
uma solução mais rápida, eficaz e ágil”.88
Assim, as súmulas impeditivas de recursos despontam como “remédio alter­
nativo, viável e eficaz para a minimização do problema do abarrotamento das causas


Estudos do Tribunal de Justiça do RS. v. I. Porto Alegre: 2006. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/export/
poder_judiciario/tribunal_de_justica/centro_de_estudos/publicacoes/doc/1_Ciclo_Estudos_As_Recentes_
Reformas_Processuais.pdf>.
87
MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à interpretação da jurisprudência ao
precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 112.
88
DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVERIA, Rafael. Curso de direito processual civil. 4. ed. v. 3. Bahia:
2009. p. 132.

256 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015
SÚMULAS VINCULANTES E SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS: MECANISMOS PARA CONCRETIZAR O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL...

repetitivas nos tribunais”,89 atendendo, assim, o espírito das reformas no judiciário e


garantindo o direito constitucional a um processo com duração razoável.90

4 Considerações finais
Buscou-se no presente trabalho analisar a figura da súmula vinculante e da
súmula impeditiva de recursos como formas de concretizar o princípio constitucional
da razoável duração do processo.
As súmulas vinculantes e as súmulas impeditivas de recursos fazem parte de
um conjunto de reformas feitas pelo legislador visando assegurar a tramitação do
processo dentro de um tempo razoável, racionalizando a atividade judiciária.
Os verbetes sumulares concretizam o princípio da razoável duração do processo
na medida em que impedem que decisões proferidas pelas instâncias inferiores
este­jam em dissonância com as súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal,
evitando que o processo tramite durante anos e movimente toda a máquina judiciária,
para que, quando bater à porta da Corte Constitucional, tenha seu resultado antevisto.
A súmula impeditiva de recursos, da mesma forma, concretiza o princípio da
razoável duração do processo na medida em que possibilita ao julgador de primeiro
grau o não recebimento do recurso de apelação quando a decisão proferida estiver
em consonância com decisões das Cortes Superiores.
Para fins de racionalização cada vez maior do judiciário, novas medidas visando
maior efetividade ao processo devem ser criadas e seguidas pelos órgãos da justiça,
como forma de desafogar o judiciário, diminuir o número de demandas e o tempo do
processo, concretizando, assim, o princípio da razoável duração do processo.

Abstract: This study aims to analyze the figure of binding precedent and precedent precluding resources
as mechanisms to implement the principle of reasonable duration of the process. For this purpose, initially
analyzes the principle in question, with its insertion in the Brazilian legal system through Constitutional
Amendment 45/2004 as well as the legal context and the reasons that prompted the legislature to
enact such amendment. Right after, the figure will be addressed effectiveness, specifically the virtuous
effectiveness. Then, we will analyze the figure of binding precedents and impeding overviews of resources
individually, relating these two institutes to the principle of reasonable duration of the process, showing that
they are mechanisms that concretize this constitutional principle.
Keywords: Principle of reasonable duration of the process. Procedural Effectiveness. Binding Precedent.
Precedent Precluding Resources.

89
LUZ, Vanessa Lilian. Súmula Vinculante: análise crítica. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/27223/
sumula-vinculante-analise-critica/4>. Acesso em: 31 mar. 2014.
90
DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVERIA, Rafael. Curso de direito processual civil. 4. ed. v. 3. Bahia:
2009. p. 132.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015 257
Tatiana Alvim Pufal

Referências
ABREU, Gabrielle Cristina Machado. A duração razoável do processo como elemento constitutivo do
acesso à justiça. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008.
AGNOL JUNIOR, A. J. D. Admissão do recurso de apelação e súmulas: exegese do artigo 518, parágrafo
1º, do CPC. São Paulo: Revista do Advogado, 2006.
AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro: multa do artigo 461 do CPC e
outras. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
ANDRIGHI, Fátima Nancy. Lei 11.276/06: Inadmissibilidade da apelação contra sentença que
se conforma com súmula do STJ ou do STF. Disponível em: <http://www.researchgate.net/
publication/28767483_LEI_11.27606_-_Inadmissibilidade_da_Apelao_contra_Sentena_que_se_
Conforma_com_Smula_do_STJ_ou_STF>. Acesso em: 31 mar. 2014.
ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
AZEVEDO, Marco Antonio Duarte. Súmula Vinculante: o precedente como fonte do direito. São Paulo:
Centro de estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 2009.
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Das alterações no procedimento dos recursos e da ação rescisória:
Lei nº 11.276/06 e nova redação dos arts. 489 e 555, dada pela Lei nº 11.280/06. In: Cadernos
do Centro de Estudos do Tribunal de Justiça do RS. v. I. Porto Alegre: 2006. Disponível em: <http://
www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/tribunal_de_justica/centro_de_estudos/publicacoes/doc/1_
Ciclo_Estudos_As_Recentes_Reformas_Processuais.pdf>.
BASTOS, Márcio Thomaz. Exposição de motivos da alteração da Lei 11276. Disponível em: <http://
www.bmfbovespa.com.br/pdf/Entrevista210907_02.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2014.
CARNEIRO, Athos Gusmão. Da antecipação de tutela. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Código de Ética da Magistratura Nacional. Diário da Justiça
da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 18 set. 2008. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/
codigo-de-etica-da-magistratura>. Acesso em: 24 mar. 2014.
DALL’AGNOL, Antonio. Sanção das nulidades pelo Tribunal e inadmissibilidade da apelação contra
sentença que se conforma com súmula do STJ ou STF. In: Cadernos do Centro de Estudos do TJRS. v. 1.
DIDIER, Fredie Jr. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento.
11. ed. v. 1. Salvador: JusPodivm, 2009.
DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVERIA, Rafael. Curso de direito processual civil. 4. ed. v.
2. Bahia: 2009. p. 398.
DIDIER, Fredie Jr.; BRAGA, Paula Sarno; OLIVERIA, Rafael. Curso de direito processual civil. 4. ed. v.
3. Bahia: 2009.
Exposição de motivos da alteração da Lei 11276, de relatoria do ministro da justiça Márcio Thomaz
Bastos. Disponível em: <http://www.bmfbovespa.com.br/pdf/Entrevista210907_02.pdf>.
FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Súmula vinculante e a Lei nº 11.417/2006: apontamentos para
compreensão do tema. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/27223/súmula-vinculante-analise-
critica/4>. Acesso em: 31 mar. 2014.
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo Curso de Direito Processual Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2007.
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2012.

258 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015
SÚMULAS VINCULANTES E SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS: MECANISMOS PARA CONCRETIZAR O PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL...

JOBIM, Marco Félix. O direito à duração razoável do processo: responsabilidade civil do Estado em
decorrência da intempestividade processual. 2. ed. Porto Alegre: 2012.
JOBIM, Eduardo; BENETTI TIMM. A súmula vinculante no direito brasileiro. Estudo comparativo com o
direito inglês. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; JOBIM, Eduardo. O processo na constituição. São
Paulo: Quartier Latin, 2008.
LACERDA, Galeno. Despacho saneador. 3. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1995.
LOBO, Arthur Mendes. Breves comentários sobre a regulamentação da súmula vinculante. Dis­po­
nível em: <https://www.unifafibe.com.br/revistasonline/arquivos/revistajuridicafafibe/sumario
/8/16042010161145.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2014.
LUZ, Vanessa Lilian. Súmula Vinculante: análise crítica. Disponível em: <http://jus.com.br/
artigos/27223/súmula-vinculante-analise-critica/4>. Acesso em: 31 mar. 2014.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001.
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado artigo por artigo.
2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
MARINONI, Luiz Guilherme. Ações repetitivas e julgamento liminar. Disponível em: <http://www.
professormarinoni.com.br/admin/users/35.pdf>. Acesso em: 08 jun. 2014.
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
MARINONI, Luiz Guilherme. Abuso de defesa e parte incontroversa da demanda. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007.
MATTOS, Sérgio Luís Wetzel de. Devido processo legal e proteção de direitos. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2009.
MENDES, Gilmar Ferreira. A proteção da dignidade da pessoa humana no contexto do processo judicial.
In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques. Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana.
2. ed. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2009.
MITIDIERO, DANIEL. Comentários ao Código de Processo Civil. T. 3. Editora Memória Jurídica, 2006.
MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à interpretação da jurisprudência
ao precedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
MITIDIERO. Daniel. Direito fundamental ao julgamento definitivo da parcela incontroversa: Uma
proposta de compreensão do Art. 273, §6º, do CPC, na perspectiva do direito fundamental a um
processo sem dilações indevidas: art. 5º, LXXVIII, da CF/1988. Disponível em: <http://www.academia.
edu/3223781/Direito_fundamental_ao_julgamento_definitivo_da_parcela_incontroversa_-_Revista_
de_Processo_149>. Acesso em: 08 jun. 2014.
NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE, Rosa Maria. Breves comentários à Nova Sistemática Processual
Civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e
administrativo. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
NICOLITT, André Luiz. A duração razoável do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Efetividade e processo de conhecimento. Disponível em: <http://
www.ufrgs.br/ppgd/doutrina/oliveir2.htm>. Acesso em: 17 mar. 2014.
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. v. 1. São Paulo: Atlas,
2010. p. 31.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015 259
TATIANA ALVIM PUFAL

PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
RAMADAN, Daiana. Súmula vinculante como instrumento de implementação do princípio da razoável
duração do processo civil e a efetividade da prestação jurisdicional. Disponível em: <file:///D:/Users/
User/Documents/Downloads/DaianaRamadanRevistaFebre4edicao.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2014.
SANTOS, Maurício Barbosa. Comentários às alterações do Código de Processo Civil. São Paulo:
Cultura Jurídica, 2006.
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: 2007.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro:
Forense, 2007.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual
civil e processo de conhecimento. 49. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
TUCCI, José Rogério Cruz. Duração razoável do processo: art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal.
In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; JOBIM, Eduardo. O processo na constituição. São Paulo: Quartier
Latin, 2008.
USTÁRROZ, Daniel; PORTO, Sérgio Gilberto. Manual dos recursos cíveis. 3. ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2011.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves
comentários à nova sistemática processual civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
WELSCH, Gisele Mazzoni. A razoável duração do processo como garantia constitucional. In: MOLINARO,
Carlos Alberto; MILHORANZA, Mariângela Ribeiro; PORTO, Sérgio Gilberto.
ZENKNER, Marcelo. A instrumentalidade da tutela ao direito fundamental de tempestividade na
prestação jurisdicional. In: FREIRE e SILVA, Bruno; MAZZEI, Rodrigo. Reforma do judiciário: análise
interdisciplinar e estrutural do primeiro ano de vigência. Curitiba: Juruá, 2008. p. 503-519.
Legislação
BRASIL. Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11417.htm>. Acesso em: 31 mar. 2014.
BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11417.htm>. Acesso em: 31 mar. 2014.
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 5.869 de 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/l5869.htm>. Acesso em: 31 mar. 2014.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

PUFAL, Tatiana Alvim. Súmulas vinculantes e súmulas impeditivas de recursos:


mecanismos para concretizar o princípio da razoável duração do processo.
Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n. 89,
p. 233-260, jan./mar. 2015.

260 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 233-260, jan./mar. 2015
RESENHAS
CALMON DE PASSOS, J. J. A ação
no direito processual civil brasileiro.
Salvador: Editora JusPodivm, 2014.

José Joaquim Calmon de Passos, falecido no ano de 2008, foi professor emérito
da Universidade Federal da Bahia, tendo exercido a advocacia e a carreia de membro
do Ministério Público do Estado da Bahia, inclusive chefiando a instituição. A obra
que aqui se trata foi sua tese apresentada à Faculdade de Direito da Universidade
Federal da Bahia para concorrer à cátedra de Direito Judiciário Civil em 1960. É, pois,
uma grandiosa obra, que, para sorte dos processualistas, está sendo reeditada pela
Editora JusPodivm.
A obra é dividida em 5 (cinco) capítulos: Introdução, Inadmissibilidade, Impro­
cedência, Procedência e Conclusões. É um livro com a marca e a personalidade do
autor. Um livro com a objetividade e a profundidade de quem sabe como tratar os
temas. Como se sabe, em uma época que as teses apresentadas na academia
não apresentam grandes novidades para o cenário jurídico, este livro é uma árdua
defesa de uma posição teórica, distinta da vigente na época, pelo saudoso Calmon
de Passos e, portanto, pode e merece ser chamada de tese.
Logo na introdução da obra, Calmon de Passos faz questão de problematizar o
tema da ação. Passa, então, pela discussão do próprio conceito de ação. Come­çando
pela abordagem da ação como necessária imanência ao direito material, o autor
aborda, ainda, os conceitos de ação como pretensão jurídica autônoma do direito
material exercida em frente ao Estado para quem lesado em seu direito material,
conforme a célebre crítica de Muther para as ideias de Windscheid. Aborda, também,
o conceito de ação como direito subjetivo público do cidadão contra o Estado, teoria
feita por Degenkolb e Plosz nos idos do século XVIII. Conforme diz o autor, há um
regresso ao ponto de partida, da imanência da ação, com a ideia de Pekelis que a
própria ação é o único e verdadeiro direito.
No capítulo de inadmissibilidade, Calmon de Passos inicia seu estudo com o
exemplo da sentença que indefere liminarmente a demanda, seja por inépcia da
petição inicial ou por ilegitimidade da parte. Para Liebman, as demandas em que o
juiz não analisa propriamente o mérito não há que se falar em ação e em exercício
da jurisdição, já que o próprio conceito de jurisdição está umbilicalmente ligado ao de
ação. Liebman diz, então, que há carência de ação. O processualista baiano rechaça

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 263-265, jan./mar. 2015 263
DIOGO BACHA E SILVA

veementemente a opção teórica de Liebman ao se expressar no sentido de, nas


hipóteses de em que o juiz não analisa o mérito, há verdadeira relação processual
e, portanto, atividade jurisdicional. Toda atividade que se dirige para o provimento
final, ainda que não examine o mérito, é atividade jurisdicional. A própria ideia de
se conceber condições da ação é criticada por Calmon de Passos. Para o autor, não
se pode falar de condições da ação; há apenas pressupostos de existência, assim
como de qualquer outro ato jurídico, e condições de admissibilidade do julgamento
do mérito.
No outro capítulo, Calmon de Passos observa a sentença de improcedência. A
questão problemática é teorizar acerca da sentença de improcedência nas hipóteses
em que o réu se faz ausente. Na ação à revelia, o autor exerceu seu direito à ação
que corresponde à obrigação jurisdicional do Estado. Há outra relação que se forma
entre o Estado-juiz e o demandado, em que o poder do Estado assujeita o demandado.
A atuação do réu no processo é apenas admissível, não sendo indispensável. O
direito de defesa é, portanto, uma possibilidade conferida pelo ordenamento jurídico.
Diferentemente do que pensam os concretistas, as ações declaratórias de negação
da relação jurídica que, ocorrendo em revelia, são julgadas improcedentes demons­
tram bem que o próprio conceito de ação não depende do exercício da exceção por
parte do réu. A ação não pode ser pensada apenas no intuito da tutela dos interesses
subjetivos; é também, para Calmon de Passos, a tutela de um interesse ou o direito
de ver examinada em juízo as pretensões, seja para reconhecer ou para desfazer
a incerteza. É uma atividade de pacificação social.
No último capítulo de sua tese, Calmon de Passos analisa a procedência da
ação. Em múltiplos aspectos, a ação de procedência se torna problemática para
definição do próprio conceito de ação. É que muitos autores, a partir da definição
de ine­ xistência de direito subjetivo, ligam a procedência da ação com o próprio
direito subjetivo material. Vale dizer, há um retorno na noção de que a ação se torna
um aspecto do direito subjetivo material. Defendendo a noção de que há direitos
subjetivos definidos pela ordem jurídica como possibilidade de agir, seja exercendo
um poder, uma pretensão ou uma liberdade, Calmon de Passos defende que a ação
é um direito subjetivo exercido contra o Estado de por em movimento a atividade
jurisdicional, seja para obter deste a impossibilidade de análise do mérito, seja para
obter o pronunciamento da res in iudicio deducta. Ao mesmo tempo em que discorda
parcialmente de Liebman da sua noção de ação, concorda e defende que há uma
distinção substancial entre o direito subjetivo material e o direito subjetivo processual
(ação) que Liebman advoga.
Enfim, a leitura da obra de Calmon de Passos é indispensável. A nova geração
de processualistas não pode olvidar a contribuição do professor baiano para a ciência
processual como um todo. Em verdade, é uma tese que consegue conectar de modo
original a dogmática do processo civil e teoria e filosofia do direito.

264 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 263-265, jan./mar. 2015
CALMON DE PASSOS, J. J. A ação no direito processual civil brasileiro. Salvador: Editora JusPodivm, 2014.

A reedição da obra de Calmon de Passos pela editora JusPodivm deve ser


comemorada, e nada melhor do que comemorar tal publicação do que com sua leitura.

Diogo Bacha e Silva


Mestre em Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas
– FDSM. Coordenador e Professor do Curso de Direito da Faculdade de São Lourenço.
Advogado, associado ao Instituto de Hermenêutica Jurídica – IHJ e autor da obra Ativismo
no controle de constitucionalidade: transcendência dos motivos determinantes e a ilegítima
apropriação do discurso de justificação pelo STF. E-mail: <diogobacha@ig.com.br>.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

CALMON DE PASSOS, J. J. A ação no direito processual civil brasileiro. Salvador:


Editora JusPodivm, 2014. Resenha de: SILVA, Diogo Bacha e. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 263-265, jan./
mar. 2015.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 263-265, jan./mar. 2015 265
TARTUCE, Fernanda. Igualdade e
Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de
Janeiro: Forense, 2012.

A obra de Fernanda Tartuce, Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil, é


produto de sua tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Univer­
sidade de São Paulo (USP), aprovada perante banca composta pelos prestigia­
dos juristas Rodolfo de Camargo Mancuso (orientador), Maria Fernandes Moraes
Hinoraka, Sidnei Amendoeira Junior, Antonio Cláudio da Costa Machado e William
Santos Ferreira, professores, que, assim como a autora, dispensam apresentações.
A obra em comento se destaca por abordar com maestria tema tão atual
quanto tormentoso. A aspereza do tema remonta, de plano, à própria conceituação
de igualdade, mas sem dúvidas, a obra, nos limites propostos pela autora, exaure
o tema.
A abordagem densa e profunda da igualdade, e de como e por que conferir
tratamento isonômico àqueles que estão em condições díspares, sempre foram
temas infaustos, relegados a grandes juristas, como de fato é a autora.
Segundo registra, o tema foi escolhido pela verificação pragmática de que o
êxito (ou não) em demandas judiciais está muito ligado à condição mais ou menos
favorecida dos jurisdicionados (vulnerabilidade), quando não há, no caso concreto,
a devida desequiparação dos litigantes em distintas condições, comprometendo a
isonomia.
Consigna que o ordenamento jurídico já oferece mecanismos de contrapeso
às desigualdades no processo, ex vi a inversão do ônus da prova e a gratuidade de
justiça ao hipossuficiente financeiro. Mas registra que as ferramentas previstas não
suprem todas as desigualdades, aflorando, nesse contexto, o papel do juiz (ativo) na
correção, em bases concretas, de eventual vulnerabilidade do ligante.
Nesse contexto, a obra confere particular atenção aos poderes do juiz e ao
papel da técnica com vistas a assegurar concretamente, no processo civil, o direito
fundamental à igualdade.
Afastando-se de uma concepção liberal-privatista, a obra ruma para o hori­
zonte do processo civil (contemporâneo) pautado pela cooperação entre os atores

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 267-269, jan./mar. 2015 267
IGOR PINHEIRO DE SANT’ANNA

processuais, registrando a importância da releitura de seus principais institutos para


que o processo possa atingir seus escopos, dentre os quais, o de entregar uma
decisão justa, o que passa, inexoravelmente, pela observância pontual de eventual
vulnerabilidade das partes.
No capítulo inaugural da obra, a autora aborda a “igualdade no pensamento
humano e desigualdade como constatação histórica no Brasil”. Registrando a conexão
entre igualdade e justiça, nos remete a uma viagem histórica sobre a isonomia desde
os gregos, passando pela Idade Média, até a atualidade.
Para uma melhor compreensão do tema proposto, apresenta a realidade das
desigualdades na América Latina e no Brasil. Pelo panorama traçado, a autora des­
taca ser importante o fortalecimento do Poder Judiciário, tendo em vista sua quali­
dade de ente estatal responsável por assegurar os direitos e garantias encartados
na Constituição.
Em seguida, tratando da “igualdade como valor jurídico na perspectiva cons­
titucional”, a autora traz o prisma constitucional do tema, e a isonomia é abordada
como princípio, direito fundamental e garantia. O preceito também é relacionado a
outras garantias fundamentais, como o devido processo legal, o contraditório e a
segu­rança jurídica, ponderando, inclusive, eventual confrontação entre elas.
A obra muito bem preceitua que a ciência processual contemporânea, assim
como os outros ramos do direito, deve ser concebida sob o influxo do Direito Cons­
titucional, e, nesse contexto, o juiz, enquanto agente estatal, deve conduzir o processo
de forma a assegurar (dentre outras) a promessa constitucional da isonomia.
No terceiro capítulo, sob o título “processo civil: objeto, função e atuação do juiz
à luz da igualdade”, a autora propõe que os institutos processuais sejam (re)vistos
à luz da isonomia, ou seja, considerando, concretamente, a comum disparidade
existente entre os litigantes.
Defende que, avocado esse compromisso, haverá expressiva diferenciação do
modo de ver o processo, sobretudo no que tange à conduta do juiz diante da dispa­
ridade entre os litigantes. Remete-nos, assim, à visão contemporânea do processo
enquanto “comunidade de trabalho”, de estrutura cooperatória.
No capítulo seguinte, a autora aborda a noção de vulnerabilidade. Trata das
acepções do vocábulo e de seu reconhecimento na seara material, como nas leis
trabalhista, consumerista, de proteção do idoso, dentre outras.
De outro giro, apesar de destacar a importância do reconhecimento legislativo
da vulnerabilidade de determinados grupos de pessoas (idosos, consumidores, tra­­ba­
lhadores, etc.), ressalta que não há, na legislação processual, regramento específico
para o reconhecimento da vulnerabilidade do litigante em razão de sua condição
pessoal.
A tese propõe, então, a aplicação da isonomia para garantir, no caso concreto, a
igual oportunidade no processo daquele litigante que, em razão de limitação pessoal
involuntária, tem dificultada ou impedida a prática de ato processual.

268 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 267-269, jan./mar. 2015
TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

Apresenta, assim, o que denominou de vulnerabilidade processual, identificando-a


como legítimo fator de discrimen, apta a embasar tratamento diferenciado aos liti­
gantes (que estão em condições díspares), com o objetivo de promover a igualdade
substancial.
No quinto capítulo, a autora identifica que, “ao longo do tempo, o legislador
criou mecanismos para compensar desequilíbrios verificados no processo em razão
de dificuldades experimentadas por certos litigantes”. Depois de identificar alguns
tratamentos diferenciados, analisa quais deles tiveram como fundamento a vulne­
rabilidade, e quais foram estabelecidos por outros motivos.
Por fim, no derradeiro capítulo, retomando a “vulnerabilidade como critério
legítimo de desequiparação no processo civil”, a autora traz uma “proposta de
aplicação” da tese nos principais momentos do processo, como na petição inicial,
na citação, na conciliação, na instrução, na concessão de tutelas de urgência,
etc., sempre destacando que a tese propõe uma releitura dos principais institutos
processuais para possibilitar a efetiva participação do litigante vulnerável, cabendo
ao juiz – do modelo cooperativo de processo – atuar para impedir que o obstáculo
socioeconômico inviabilize a proteção estatal pelo judiciário.
Em arremate, diante da clara e firme posição da autora, não há dúvida que
a obra de Fernanda Tartuce chega para ser referência no tema, além, é claro, de
ensejar intensa reflexão aos processualistas preocupados com o atingimento dos
fins constitucionais do processo, e, sobretudo, para ser uma bússola ao intérprete
no cotidiano forense.
Vitória/ES, dezembro de 2014.

Igor Pinheiro de Sant’Anna


Mestrando em Direito Processual Civil (UFES). Especialista em Direito Civil e Processual Civil
(ESA/OAB-ES). Advogado.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro:


Forense, 2012. Resenha de: SANT’ANNA, Igor Pinheiro de. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 267-269,
jan./mar. 2015.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 267--269, jan./mar. 2015 269
PEREIRA, Paula Pessoa. Legitimidade
dos precedentes: universabilidades das
decisões do STJ. São Paulo: RT, 2014.

Um dos grandes temas no atual momento do processo civil brasileiro é a teoria


dos precedentes. Por mais que a legislação caminhe há alguns anos no sentido da
valorização dos precedentes na dinâmica jurídica, não faz muito tempo que começa­
ram a surgir obras específicas sobre a temática. A interessante obra de Paula Pessoa
Pereira está inserida em um momento de valorização dos precedentes, seja pela
doutrina, seja pela legislação, com forte destaque para o novo CPC, recentemente
aprovado. Ao contrário da maioria dos estudos lançados recentemente, a autora não
faz uma análise ampla da teoria dos precedentes, optando, por outro lado, por um
aspecto específico do tema, qual seja, o seu modelo de fundamentação.
O primeiro capítulo da obra se propõe a estabelecer a base teórica do trabalho,
dialogando com a atual situação da teoria argumentativa do direito e a sua relação
para com o novo papel dos juízes. Como é evidente que texto e norma não mais
se confundem, a função criativa dos juízes passa a ser um aspecto relevante na
construção das normas jurídicas a serem aplicadas aos sujeitos de direito. Todos os
poderes passam a ter forte participação na densificação da segurança jurídica, não
sendo mais possível entender que a tarefa de produzir o direito pertença apenas ao
Poder Legislativo. Este cria o texto, mas quem o interpreta de forma imperativa é o
Poder Judiciário.
Destaca-se no capítulo a relação da imparcialidade e a forma de argumentação
do Poder Judiciário ao afirmar que haveria exercício parcial da atividade judicante
pelos juízes, que, ao decidirem casos concretos semelhantes, usem razões distintas
e alcancem, assim, resultados normativos diversos.
No segundo capítulo, a autora passa a abordar os modelos de justificação das
decisões judiciais, tratando do debate existente entre a função da universalidade e
da particularidade.
O modelo do particularismo, por ser dependente da moralidade e da experiên­
cia dos juízes, e não no aspecto normativo do direito, não é capaz de se adequar
ao atual Estado democrático de direito. Ao ter como objetivo o foco em todas as

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 271-273, jan./mar. 2015 271
Igor Pinheiro de Sant’Anna

particularidades do caso concreto, iria ignorar a moldagem da atuação jurisdicional,


que deve se basear nas normas jurídicas, permitindo que casos semelhantes sejam
decididos de forma também semelhante. Segundo a autora, o papel do modelo
particular operaria apenas no exame das questões de fato, em que haveria maior
liberdade ao magistrado, e a análise dos fatos deveria, de fato, ser particularizada.
O universalismo, por outro lado, seria um modelo de decisão que se preocupa
com a necessidade de que a decisão seja detentora de um raciocínio capaz de ser
aplicado aos demais casos com situação fática semelhante, promovendo a igual­
dade. Naturalmente, a exigência do universalismo não importa na impossibilidade
do surgimento de fatos específicos que demandem, também, soluções específicas.
É o que se denomina de derrotabilidade das regras, que é a criação de exceções
implícitas, muito embora isso não signifique a adoção do particularismo. Há de se
perceber que, mesmo sob o prisma da derrotabilidade, a decisão precisa ter aptidão
para resolver casos semelhantes, que possuam a mesma situação fática particular.
Outra vantagem do universalismo é na esfera recursal, pois, estando a decisão
baseada em aspectos normativos, o debate recursal torna-se possível, ao contrário
do particularismo, que se dirige a impressões pessoais do magistrado acerca do
caso concreto.
O terceiro capítulo objetiva aplicar o raciocínio desenvolvido anteriormente para
analisar qual a função do Superior Tribunal de Justiça e se ele deve operar como uma
Corte de precedentes.
Inicia a autora debatendo uma questão interessante acerca da dificuldade em
se determinar uma resposta correta, o que impõe que a sua definição tenha de ser
realizada pela Corte suprema, pelo prisma da autoridade, sob pena de se conviver
com diversas respostas diversas para casos semelhantes. Trata-se de uma forma
de pressupor a existência de uma resposta correta pela posição de vértice da Corte,
que passa a atuar como reguladora da atividade interpretativa dos demais tribunais.
Posteriormente, analisa a diferente função que as Cortes Supremas exercem,
quais sejam, a finalidade pública e a privada. A finalidade privada objetiva tão
somente resolver o caso concreto, não possuindo grande importância à sua função
para­digmática de servir de orientação para os casos semelhantes. Por outro lado, o
exer­cício da finalidade pública leva em conta a função de orientação do Tribunal, mol­
dando inclusive a forma de argumentação para que possa efetivamente ter aptidão
para gerar confiança nos jurisdicionados nas suas condutas juridicamente relevantes.
Muito embora geralmente as duas finalidades das Cortes tendam a conviver
em relação a um mesmo caso, a valorização da finalidade pública é uma tendência
em vários países. Dentre outros fatores, destaca a autora que essa função pública
fica evidenciada quando: “a) o acesso à corte suprema é subordinado a uma seleção
de casos; b) a atividade da corte é orientada principalmente a produzir e administrar
precedentes”. (p. 146).

272 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 271-273, jan./mar. 2015
PEREIRA, Paula Pessoa. Legitimidade dos precedentes: universabilidades das decisões do STJ. São Paulo: RT, 2014.

A valorização da função pública impõe que as decisões das Cortes supremas


atuem como norma positiva a ser considerada nos casos posteriores, restringindo
o âmbito de interpretação. Destaca-se no ponto a diferenciação da autora entre o
argumento por analogia e o argumento por precedente (p. 151-152). Enquanto o
pri­meiro envolveria a seleção de uma fonte análoga, atuando como elemento de per­
suasão de não correção de justificação, o segundo atuaria como uma “verdadeira
res­trição na justificação, que a configura como correta e imparcial”.
No Brasil, a autora foca a análise do STJ como uma efetiva Corte de preceden­
tes acerca dos textos normativos infraconstitucionais, indicando, ainda, que é impor­
tante a realização de reformas para reforçar ainda mais esse papel do STJ.
O livro de Paula Pessoa Pereira tem grandes qualidades. Mostra a autora
profundo conhecimento de teoria do direito, imprescindível para o estudo da teoria
dos precedentes. A questão da universabilidade no raciocínio das Cortes brasileiras
é im­pre­scindível para que se possa haver a instituição de precedentes obrigatórios
que efetivamente funcionem e sirvam de parâmetro para a conduta dos jurisdicio­
nados. Para além dessa característica, a obra possui uma leitura fluida e com apro­
fundada pesquisa bibliográfica. Por isso, merecem os parabéns tanto a autora, pela
produção do texto, como a editora Revista dos Tribunais, pela publicação da obra.

Ravi Peixoto
Mestrando em Direito pela UFPE. Membro efetivo da ANNEP. Procurador do Município de
João Pessoa.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

PEREIRA, Paula Pessoa. Legitimidade dos precedentes: universabilidades das


decisões do STJ. São Paulo: RT, 2014. Resenha de: PEIXOTO, Ravi. Revista
Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n. 89,
p. 271-273, jan./mar. 2015.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 271-273, jan./mar. 2015 273
Instruções para os autores

Os trabalhos para publicação na Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro,


ISSN 0100-2589, editada pela Editora Fórum e com periodicidade trimestral, de­verão ser
encaminhados, no formato eletrônico, para o seguinte e-mail: <editorial@rbdpro.com.br>.
Os textos para publicação na RBDPro deverão ser inéditos e para publicação
exclusiva. Uma vez publicados nesta revista, também poderão sê-lo em livros e coletâneas,
desde que citada a publicação original. Roga-se aos autores o com­promisso de não publicá-
los em outras revistas e periódicos.
A RBDPro reserva-se o direito de aceitar ou vetar qualquer original rece­bido, de
acordo com as recomendações do seu corpo editorial, como também o direito de propor
eventuais alterações.
Os trabalhos deverão ser redigidos em formato Word, fonte Times New Roman,
tamanho 12, espaçamento entre linhas de 1,5. Os parágrafos devem ser justificados. O
tamanho do papel deve ser A4 e as margens utilizadas idênticas de 3cm. Número médio
de 15/40 laudas. Deverão, ainda, estar acompanhados dos seguintes dados: nome do
autor, sua qualificação acadêmica e profissional, endereço, telefone e e-mail.
Os textos devem ser revisados, além de terem sua linguagem adequada a uma
publicação editorial científica. A escrita deve obedecer às novas regras orto­ gráficas
em vigor desde a promulgação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, a partir de
1º de janeiro de 2009. As citações de textos anteriores ao acordo devem respeitar a
ortografia original.
Os originais dos artigos devem ser apresentados de forma completa, contendo:
título do artigo (na língua do texto e em inglês), nome do autor, filia­­ção institucional,
qualificação (mestrado, doutorado, cargos etc.), resumo do artigo, de até 250 palavras
(na língua do texto e em inglês – Abstract), palavras-chave, no máximo 5 (na língua do
texto e em inglês – Key words), sumário do artigo, epí­grafe (se houver), texto do artigo,
referências. O autor deverá fazer constar, no final do artigo, a data e o local em que foi
escrito o trabalho de sua autoria.
Recomenda-se que todo destaque que se queira dar ao texto seja feito com o
uso de itálico e não por meio do negrito e do sublinhado. As citações (palavras, expres­
sões, períodos) deverão ser cuidadosamente conferidas pelos autores e/ou tra­­dutores;
as citações textuais longas (mais de três linhas) devem constituir um pará­grafo inde­pen­
dente, com recuo esquerdo de 2cm (alinhamento justificado), utilizando-se espaçamento
entrelinhas simples e tamanho da fonte 10; as citações textuais curtas (de até três
linhas) devem ser inseridas no texto, entre aspas e sem itálico. As expressões em língua
estrangeira deverão ser padronizadas e destacadas em itálico. O uso de op. cit., ibidem
e idem nas notas bibliográficas deve ser evitado, substituindo-o pelo nome da obra
por extenso.
Os trabalhos serão selecionados pelos Diretores e pelo Conselho Editorial da revista,
que entrarão em contato com os respectivos autores para confir­mar o recebimento dos
textos. Os originais recebidos e não publicados não serão devolvidos. Não serão devidos
direitos autorais ou qualquer outra remune­ração pela publi­cação dos trabalhos. O autor
receberá gratuitamente um exemplar da revista sempre que o seu texto for publicado.
As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsa­bilidade.

R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23,


22, n. 89,
88, p. 275-276,
271-275-276,
jan./mar.
out./dez.
20152014 275
INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES

Caso a publicação tenha imagens, enviar em arquivo separado, no tamanho natural


que será utilizado, em alta resolução (300 dpi), em arquivos de extensão .jpg, .tif, .eps, ou
arquivos do Photoshop (.psd), formato vetorial CorelDRAW (.cdr) ou Adobe Illustrator (.ai).
Eventuais dúvidas poderão ser aclaradas pelo telefone (31) 2121.4913 ou pelo
e-mail: <conselhorevistas@editoraforum.com.br>.

Esta obra foi composta na fonte Frankfurt, corpo 10


e impressa em papel Offset 75g (miolo) e Supremo
250g (capa) pela Laser Plus Gráfica,
em Belo Horizonte/MG.

276 R. bras. Dir. Proc. – RBDPro | Belo Horizonte, ano 23, n. 89, p. 275-276, jan./mar. 2015

Você também pode gostar