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REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO PROCESSUAL - RBDPro


Diretores
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Fernando Rossi

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Conselho Internacional
Alvaro Pérez Ragone (Chile) Miguel Teixeira de Sousa (Portugal) Juan Montero Aroca (Espanha)
Edoardo Ricci (Itália) Paula Costa e Silva (Portugal)

R454 Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. ano 15,


n. 59, jul./set. 2007. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

Trimestral
ISSN 0100-2589

Publicada do n. 1, jan./mar. 1975 ao n. 14, abr./jun.1978
pela Vitória Artes Gráfica, Uberaba/MG.
Publicada do n. 15, jul./set. 1978 ao n. 58, abr./ jun. 1988
pela Editora Forense, Rio de Janeiro/RJ.
Publicação interrompida em 1988 e retomada pela
Editora Fórum em 2007.

1. Direito processual. I. Fórum.

CDD: 347.8 CDU: 347.9

© 2011 Editora Fórum Ltda.


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são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

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Sumário

Editorial..............................................................................................................................7

DOUTRINA

Artigos

O devido processo legal em Platão


Alice Ribeiro de Sousa...................................................................................................11
1 Platão, a Filosofia e a Política....................................................................................11
1.1 Introdução................................................................................................................11
1.2 A essência da filosofia política de Platão....................................................................12
1.3 O problema do império do governante versus o império da lei. A releitura de
Platão por Santo Tomás de Aquino...........................................................................14
2 As leis de Platão........................................................................................................16
2.1 Considerações gerais.................................................................................................16
2.2 As leis e a organização política do Estado.................................................................17
2.3 As leis e a codificação...............................................................................................19
2.4 As leis, a economia e a sociedade.............................................................................19
2.5 Resumo da sociedade imaginada por Platão..............................................................20
3 As leis e o devido processo legal...............................................................................22
3.1 Considerações iniciais...............................................................................................22
3.2 História do devido processo legal..............................................................................22
3.3 Atual significado do devido processo legal no Direito brasileiro.................................26
3.4 A filosofia de Platão e o devido processo legal...........................................................27
Conclusão.................................................................................................................31
Referências...............................................................................................................34

Dos embargos infringentes e a reforma do Código de Processo Penal


(PL nº 156/09) – A “tirania” da urgência e a importância do voto divergente
para o processo penal justo
Antonio Pedro Melchior................................................................................................37
Introdução: a reforma processual penal e a “tirania” da urgência..............................37
1 Do conteúdo histórico dos embargos infringentes ao perigo de subversão do
processo penal (o interesse ideológico na unificação com o processo civil).................40
2 O Projeto de Lei nº 156/09 e as alterações na disciplina dos embargos infringentes
(ou do que seria da liberdade contemplada pelo voto divergente?)............................42
3 O foco no “placar” e a exigência de sentença absolutória na origem.........................44
Conclusão.................................................................................................................47
Referências ..............................................................................................................49

A metodologia na cognição judicial


Daniela Santos Bomfim.................................................................................................51
Introdução................................................................................................................51
1 A cognição judicial como um ato de pesquisa...........................................................52
2 O componente lógico da cognição: a relação entre o método dedutivo e a
estrutura do fenômeno jurídico.................................................................................57
3 O processo do compreender. A relação estrutural entre o fato e a norma
no círculo hermenêutico...........................................................................................61

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3.1 A norma no processo do compreender.....................................................................61
3.2 O fato no processo do compreender.........................................................................64
3.3 A relação fato e norma no processo do compreender: o círculo hermenêutico...........66
4 A crítica efetiva como método que legitima a atividade cognitiva judicial...................72
Conclusão.................................................................................................................75
Referências...............................................................................................................76

A petição inicial e suas dimensões ensináveis para estudantes de direito


Fernanda Favre, Luzia Bueno........................................................................................79
Introdução................................................................................................................79
1 A petição inicial como gênero textual........................................................................81
2 A petição e a composição de um processo................................................................82
3 A importância do pedido dentro da petição inicial....................................................83
4 O Interacionismo Sociodiscursivo (ISD)......................................................................84
4.1 Modelo de análise de gêneros no ISD........................................................................85
5 Modelo didático do gênero “petição inicial”..............................................................86
5.1 Metodologia empregada..........................................................................................86
5.2 A situação de produção............................................................................................87
5.3 Aspectos discursivos (ou organização textual)...........................................................88
5.4 Aspectos linguístico-discursivos (ou a linguagem)......................................................88
6 Considerações finais..................................................................................................89
Referências...............................................................................................................90
Anexo I...................................................................................................................91
Anexo II..................................................................................................................93

A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de


um modelo de organização do processo para o Estado Democrático de Direito
e o seu reflexo no projeto do CPC
Igor Raatz.......................................................................................................................97
1 Considerações iniciais...............................................................................................97
2 O Estado Liberal Clássico e o Processo Civil................................................................99
2.1 Os elementos informadores do Estado Liberal Clássico..............................................99
2.2 A liberdade das partes frente ao juiz (passivo) e o controle político do juiz
(boca da lei) como marcas do processo civil no Estado Liberal Clássico....................104
3 O Estado Social e o Processo Civil............................................................................107
3.1 Os elementos informadores do Estado Social..........................................................107
3.2 Publicização e socialização do processo no Estado Social.........................................109
4 O Estado Democrático de Direito e o Processo Civil.................................................117
4.1 Os elementos informadores do Estado Democrático de Direito................................117
4.2 O processo civil no Estado Democrático de Direito: a colaboração como modelo
de organização do processo....................................................................................119
Considerações finais................................................................................................125
Referências.............................................................................................................126

Atos judiciais passíveis de mandado de segurança e devido processo legal:


estudo segundo a jurisprudência dos tribunais superiores
Leonardo Gonçalves Juzinskas, Marcelo Abelha Rodrigues....................................133
1 Introdução. A originalidade brasileira e as dificuldades daí decorrentes para
se formatar um regime seguro de cabimento de mandado de segurança contra
decisões judiciais....................................................................................................133
2 Mandado de segurança como meio para impugnação de atos judiciais:
análise crítica em face da praxe forense dos tribunais de cúpula..............................136

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3 Conclusão...............................................................................................................148
Referências.............................................................................................................151

O Processo Administrativo e sua relevância perante o Processo Judicial


Marcos André Couto Santos.......................................................................................153
Introdução..............................................................................................................153
1 A Administração Pública e a Processualidade – O Processo Administrativo...............154
2 As lides judiciais e a Administração Pública – O Sistema Unificado Brasileiro............156
3 A utilização do Processo Administrativo como instrumento decisório dos
Magistrados – Breve enfoque jurisprudencial...........................................................159
4 A relevância do Processo Administrativo perante o Processo Judicial –
Complementariedades............................................................................................164
Conclusão...............................................................................................................167
Referências.............................................................................................................167

Ne bis in idem: eficácia negativa da decisão independente de coisa julgada


Sérgio Gilberto Porto, Mauricio Matte......................................................................169
Introdução..............................................................................................................169
1 Coisa julgada..........................................................................................................170
1.1 Como garantia constitucional.................................................................................171
1.2 Coisa julgada formal e material...............................................................................171
1.3 Autoridade e eficácia..............................................................................................172
1.4 Limites objetivos e subjetivos...................................................................................173
1.5 A função positiva e a negativa................................................................................175
2 Ne bis in idem........................................................................................................176
2.1 Breves considerações históricas...............................................................................176
2.2 Princípio autônomo: a eficácia negativa da decisão.................................................178
2.3 O princípio como garantia constitucional implícita..................................................181
3 Breve cotejo do sistema brasileiro e de outros países...............................................183
3.1 Brasil......................................................................................................................183
3.2 Argentina...............................................................................................................184
3.3 Colômbia................................................................................................................185
3.4 Estados Unidos.......................................................................................................185
3.5 Espanha.................................................................................................................186
3.6 Peru........................................................................................................................187
3.7 União Europeia.......................................................................................................188
Considerações finais................................................................................................188
Referências.............................................................................................................189

Pareceres

Confissão. Impossibilidade de invalidação por incapacidade do confitente.


Eficácia probatória do depoimento pessoal prestado por incapaz. Vedação
ao venire contra factum proprium no sistema de invalidades processuais
Fredie Didier Jr., Talita Romeu....................................................................................197
1 Síntese dos fatos.....................................................................................................197
2 Ausência de prova do vício de consentimento no momento da confissão.
Inexistência de distorção da realidade fática: a omissão de fatos pela confitente
não configura confissão..........................................................................................198
3 Impossibilidade de invalidação da confissão por incapacidade do confitente.
Eficácia probatória do depoimento pessoal prestado por incapaz............................201
4 Necessária propositura de ação anulatória para pleitear invalidação da confissão.....204

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5 A vedação ao venire contra factum proprium no sistema de invalidades
processuais. Impossibilidade de invalidação da confissão em decorrência de
comportamento contraditório no processo.............................................................205

Modalidade de liquidação disforme à anunciada no acórdão e oferta de


impugnação ao cumprimento de sentença antes da penhora
Lúcio Delfino................................................................................................................209
1 A consulta..............................................................................................................209
2 O parecer...............................................................................................................212
2.1 A desnecessidade de instauração de liquidação de sentença na modalidade
anunciada no acórdão............................................................................................212
2.2 A natureza da resposta apresentada pela devedora.................................................215
2.3 O suposto excesso na execução...............................................................................219
3 Respostas aos quesitos............................................................................................221

NOTAS E COMENTÁRIOS

O direito associativo no ordenamento jurídico brasileiro


Luciano Marinho de Barros e Souza Filho.................................................................225

RESENHAS

VANNUCCI, Rodolpho. Execução de alimentos do Direito de Família.


Sapucaia do Sul: Notadez/Datadez, 2011.
Denis Donoso...............................................................................................................231

DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito


processual civil português. Coimbra: Coimbra Ed., 2010.
Fabiano Carvalho.........................................................................................................233

BUENO, Cássio Scarpinella. ‘Amicus curiae’ no processo civil brasileiro:


um terceiro enigmático. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
Fernando Gama de Miranda Netto............................................................................239

Índice............................................................................................................................247

Instruções de publicação para os autores................................................................253

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Editorial

Iniciamos este editorial chamando a atenção para o fenômeno da


segurança jurídica. É preciso debater qual segurança pretendemos através
do Direito, em tempos em que os direitos fundamentais têm consolidada
sua eficácia imediata — tanto de modo vertical, como horizontal — e os
princípios têm funções interpretativas e normativas concorrentes.1
Essa discussão está na ordem do dia. O Plenário do STF, recentemente
(2.6.2011), decidiu, por votação majoritária, conceder a um cidadão o
direito de voltar a pleitear de seu suposto pai a realização de exame de
DNA, mesmo após o trânsito em julgado de outra demanda que teve o
objetivo de investigar a paternidade. No julgamento (RE nº 363.889),
prevaleceu o entendimento de que, nesse caso, a coisa julgada poderia
ser afastada.
É claro que esse tema, diferentemente dessa simplória abordagem
editorial, seria mais apropriado se discorrido em uma tese de doutorado.
Pensamos dessa forma, pois, apesar de estar sob as vestes de um dogma, a
segurança jurídica merece uma revisitação consistente para contextualizá-la.
Muitos pensadores creem que o Direito tem, diante de suas
múltiplas finalidades, a segurança. Nessa concepção, o homem necessita
de previsão para conviver. A incerteza das relações traria a falência da
sociedade. Segundo o mestre Cunha Campos, “a norma jurídica surge
como instrumento de previsibilidade da conduta humana”.2
Por outro lado, a clássica segurança jurídica poderia ceder espaço a
uma do tipo dinâmica. Nas palavras bem postas por Júlio César Bebber, o
“Direito não lida com fenômenos que se ordenam independentemente da
atuação do sujeito e das mutações da sociedade”.3 Essa percepção vem ao
encontro do termo devir, que, na filosofia, representa o “vir a ser”, ante a
fluência e a incessante transformação do mundo.
Com efeito, argumentam outros doutrinadores que a segurança
jurídica não estaria no direito substantivo e, sim, no direito processual. Ela
seria a garantia constitucional do contraditório. A segurança pretendida

1
DELGADO, Mauricio Godinho. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2010.
p. 21.
2
CAMPOS, Ronaldo Cunha. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1979. v. 1, t. I,
p. 16.
3
BEBBER, Júlio César. Processo do trabalho: adaptação à contemporaneidade. São Paulo: LTr, 2011. p. 123.

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8 Editorial

pelo homem, então, deveria lhe ser assegurada pelo respeito ao devido
processo, sem preocupar-se em prever o argumento vencedor. Logo, a
segurança jurídica, antes nas regras, hoje, no devido processo.
Habermas apresenta-nos tal perspectiva, enfatizando que os
“direitos processuais garantem a cada sujeito de direito a pretensão a
um processo equitativo, ou seja, uma clarificação discursiva das respectivas
questões de direito e de fato; desse modo, os atingidos podem ter a
segurança de que, no processo, serão decisivos para a sentença judicial
argumentos relevantes e não arbitrários. Se considerarmos o direito
vigente como um sistema de normas idealmente coerentes, então essa
segurança, dependente do procedimento, pode preencher a expectativa
de uma comunidade jurídica interessada em sua integridade e orientada
por princípios, de tal modo que a cada um se garantem os direitos que lhe
são próprios”4 (g.n.).
A busca da certeza é um ideal que impomos ao mundo, sem que ela
exista. A busca por uma certeza não faz sentido, pois o conhecimento não
é uma verdade absoluta e indubitável.
Nosso desejo é que estas breves linhas cumpram sua função de
instigar o pensamento, motivado, certamente, pelas ótimas ideias dos
notáveis trabalhos científicos que os esperam nesta edição.
As dúvidas nascem com o viver; felizes os que as têm, pois o desafio
motivador da vida é solvê-las. Aí está um “grande ciclo virtuoso”!
Um forte abraço,

Os Diretores

4
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2003. v. 1, p. 274.

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DOUTRINA
Artigos

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O devido processo legal em Platão
Alice Ribeiro de Sousa
Advogada. Especialista em Direito Processual Civil e mestranda em Direito Público pela Universi-
dade Federal de Uberlândia.

Resumo: É incontestável que o Direito, como um dos instrumentos que


tornaram possível a convivência social, surgiu em tempos imemoriais.
Deste modo, a afirmação de que os primeiros filósofos debruçaram sobre os
principais problemas jurídicos não surpreende. O notável filósofo Platão não
representa exceção a esta regra. Em seus trabalhos, especialmente os últimos,
observa-se claramente a sua preocupação com a aplicação das leis, como um
meio de se assegurar a higidez da sociedade. Neste trabalho procurou-se
acompanhar o raciocínio jurídico de Platão, levando em consideração as
circunstâncias culturais da época em que viveu. Inicialmente, foi realizado
um breve apanhado do pensamento filosófico platônico, como introdução ao
estudo de seus apontamentos jurídicos. Em seguida, passou-se a considerar
a visão jurídica do pensador. Enfim, aprofundou-se o estudo, focalizando
o modo como o filósofo tratou os aspectos processuais da ciência jurídica,
traçando um paralelo entre tais conhecimentos e os princípios modernos que
norteiam o devido processo legal. Em conclusão, reconheceu-se que, embora
não houvesse menção expressa ao referido corolário, o pensamento platônico
contém traços nítidos do que hoje se chama de devido processo legal.

Palavras-chave: Devido processo legal. Filosofia. Princípios.


Sumário: 1 Platão, a Filosofia e a Política – 1.1 Introdução – 1.2 A essência da
filosofia política de Platão – 1.3 O problema do império do governante versus
o império da lei. A releitura de Platão por Santo Tomás de Aquino – 2 As leis
de Platão – 2.1 Considerações gerais – 2.2 As leis e a organização política do
Estado – 2.3 As leis e a codificação – 2.4 As leis, a economia e a sociedade – 2.5
Resumo da sociedade imaginada por Platão – 3 As leis e o devido processo
legal – 3.1 Considerações iniciais – 3.2 História do devido processo legal –
3.3 Atual significado do devido processo legal no Direito brasileiro – 3.4 A
filosofia de Platão e o devido processo legal – Conclusão – Referências

1 Platão, a Filosofia e a Política


Após breve introdução e, ainda, com caráter propedêutico, faz-se,
nessa seção, sucinto levantamento sobre a essência da filosofia política de
Platão.

1.1 Introdução
É comum atribuir-se à Filosofia a qualidade de “mãe de todas as
ciências”, porque foram os filósofos os primeiros a perceber que o conhe-
cimento, para ser produzido, demanda a organização do pensamento, a

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12 Alice Ribeiro de Sousa

realização de experiências no intuito de provar a veracidade de um enun-


ciado, a descoberta e o uso de instrumentos e métodos.
A importância da Filosofia para a formação do pensamento e do
conhecimento humanos é inegável, uma vez que aparece como forma de
busca racional para as questões que a própria ciência se julga impotente
para responder. Sem sombra de dúvida, com a Filosofia a racionalidade
humana galga a condição de liberdade intelectual, podendo alcançar
grande esclarecimento.1
O Direito e a Filosofia, desde os tempos mais remotos, vêm cami-
nhando juntos. Afinal, só a Filosofia é capaz de dizer, à vista de cada situa­
ção abstrata ou concreta, qual a razão do Direito.
É com base na ligação estreita entre o Direito e a Filosofia que o
presente trabalho procura investigar, nos textos de Platão, as origens
do princípio do devido processo legal, que modernamente constituiu a
expressão maior das garantias processuais fundamentais do cidadão, na
forma explicitada pela Constituição de 1988.2

1.2 A essência da filosofia política de Platão


Seguindo os ensinamentos de seu mestre Sócrates, Platão entendia
que a cidade-estado politicamente perfeita deveria ser regida por um
soberano com rígida formação filosófica, pois somente ele poderia
aplicar o verdadeiro conhecimento em detrimento dos seus interesses
pessoais, ou daqueles compartilhados pela aristocracia ou uma pequena
parte da população.
O pensamento político de Platão é profundamente afetado pela
condenação de Sócrates à morte.3 Foi esse acontecimento que o levou a
decidir-se pela necessidade de formação filosófica do soberano, e também
o influenciou a desistir da vida política para dedicar-se à Filosofia. De fato,
doze anos depois, o filósofo fundou a Academia de Atenas, encarregando-se
de sua administração, que só interrompeu na tentativa de formar, em
Siracusa, um governo liderado por um filósofo.
Em sua obra A república, Platão deixa entrever que abriu mão do
sonho de reger uma cidade-estado com base na Filosofia pura, para
aceitar “o império da Lei e uma constituição mista (...) não por ser o ideal,

1
BITTAR; ALMEIDA. Curso de filosofia do direito, p. 29.
2
ARAÚJO. Teoria geral do processo penal, p. 198.
3
ARAÚJO. Platão e a administração. Administradores.com.br.

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O devido processo legal em Platão 13

mas por ser o único (regime) viável naquele instante, o que poderia ser
alcançado e estabelecido”.4 Deste modo, Platão chega à conclusão de que,
se não é possível formar um soberano com o conhecimento filosófico, para
que ele já não precise das leis, então será melhor que ele seja subjugado à
obediência de leis formuladas sob princípios filosóficos.
Esta tendência filosófica, entretanto, não surge repentinamente; é
possível captar traços dela em obras mais antigas, como Política, na qual o
filósofo reconhece a impossibilidade prática de se encontrar o governante
ideal, devendo-se, neste caso, recorrer ao império das fórmulas escritas.5
O principal motivo que levou Platão a rever seu pensamento foi a
tentativa, por três vezes frustrada, de conduzir ao poder de Siracusa um
filósofo, em vez de um tirano. Segundo Gilda Naécia Maciel de Barros,
Platão dedicou boa parte de sua vida a esta empreitada — dos 40 aos 68
anos —, apenas para descobrir, ao final, que o tirano (no caso, Dionísio
II), “brinca com a Filosofia e articula um pérfido jogo com ele e com seu
amigo Díon”.6 Platão é preso, seu amigo é proibido de deixar Siracusa e
só por meio dos esforços diplomáticos de um outro filósofo é que Platão
consegue voltar a Atenas.
Para Platão, era essencial a tentativa de colocar suas ideias em prática
em Siracusa, efetivamente para que elas não fossem consideradas ape-
nas teorias utópicas. E o filósofo atribuiu a falha da experiência à inca-
pacidade de o tirano transcender das palavras escritas ao conhecimento
aplicável. Para Platão, a Filosofia escrita “guarda apenas uma presunção
de sabedoria”.7 É por isso que o formato de suas obras em diálogos é tão
importante no processo de formação do conhecimento. Só o diálogo é
capaz de despertar a sabedoria adormecida na alma, de dentro para fora.
É assim que, em Platão, o legislador assume o lugar do soberano
na aplicação do bem e da justiça. Nas palavras de Bruno Amaro Lacerda,
para Platão, legislar “é um trabalho preventivo, que, quando bem execu-
tado, aperfeiçoa os cidadãos, colocando-os no caminho da justiça e, con-
sequentemente, em direção a uma vida feliz”.8 Isto posiciona o legislador
entre os produtores, ou artífices, inspirados por uma espécie de arte em
direção ao alcance da justiça.

4
ARAÚJO. Platão e a administração. Administradores.com.br.
5
ARAÚJO. Platão e a administração. Administradores.com.br.
6
BARROS. Platão em Siracusa: a conversão do tirano. Revista Internacional d’Humanitats, p. 34.
7
BARROS. Platão em Siracusa: a conversão do tirano. Revista Internacional d’Humanitats, p. 37.
8
LACERDA. Direito natural em Platão: as origens gregas da teoria jusnaturalista, p. 159.

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14 Alice Ribeiro de Sousa

Deste modo, as três obras principais de Platão — sempre organizadas


em forma de diálogo, obedecendo à técnica filosófica de seu mestre
Sócrates, segundo o qual o professor deve procurar instilar no aluno
o surgimento do conhecimento, ensinando-o a pensar por si só, e não
oferecê-lo pronto — foram A república, O político e As leis. Em A república,
Platão discorre sobre os problemas da vida política e moral e sobre o
pensamento humano, concluindo pela necessidade de completa reforma
das instituições sociais, para a aplicação de um sistema comunista regido
por um governante inspirado unicamente pelos enunciados filosóficos.9
Em O político, Platão divide o conhecimento político em teoria e prá-
tica, atribuindo à primeira delas a condição de ciência. A Ciência Política,
por sua vez, divide-se em crítica e imperativa: a crítica restringe-se ao
estudo da Política pura, enquanto conhecimento; a imperativa diz res-
peito à avaliação das ações do soberano. Também a Ciência Política
imperativa sofre subdivisões, podendo ser suprema e subordinada.
Somente o estadista se faz dotado do poder político supremo; as demais
autoridades da polis, apesar de, também, deterem poder político, estão
subordinadas ao soberano.
O diálogo As leis tem em seu âmago, enfim, a força que deverá ser
conferida à norma, assim como a sua inspiração necessariamente filosófica.
Mas Platão vai além, desejando, verdadeiramente, iniciar a formulação de
um código civil, com vistas a organizar as condutas sociais humanas.
Nas palavras de Zildo Poswar de Araújo, em As leis é possível encontrar
a primeira tentativa de se preparar um código baseado nos princípios
fundamentais da conduta social, um verdadeiro estudo científico. Platão,
ao longo do texto, se interessa pelo direito processual e estabelece regras a
serem seguidas pelos tribunais. É uma contribuição séria à jurisprudência,
permeada pelo senso legal, aprofundando-se em pormenores.10

1.3 O problema do império do governante versus o império da lei.


A releitura de Platão por Santo Tomás de Aquino
A preferência da adoção de um regramento jurídico completo
em lugar do reconhecimento de poder sem limites a um soberano foi,
9
Para Tereza Dóro, a organização social idealizada por Platão não pode, de nenhuma maneira, ser considerada
uma antecipação do comunismo aplicado na prática durante o século XX, porque o seu fundamento era
político e moral, não econômico. O comunismo platônico visava reduzir o trabalho de mais pessoas, enquanto o
comunismo moderno tem por pressuposto o trabalho de todas as classes sociais (O direito processual brasileiro
e as leis de Platão, p. 121).
10
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O devido processo legal em Platão 15

como visto, uma necessidade reconhecida paulatinamente na obra de


Platão. Decepcionado por sua experiência em Siracusa, o filósofo pareceu
entender a dificuldade de um ser humano preferir o bem comum ao
atendimento de suas vontades pessoais.
O sentimento que dominou Platão é compreensível e, nos dias que
correm, por demais atual. Afinal de contas, um conjunto de regras jurídi-
cas não tem vontade ou necessidades próprias, a não ser aquelas nas quais
foi inspirado. Portanto, se o conjunto de regras é regido pelo interesse
público, torna-se uma opção melhor do que o império de um soberano,
qualquer que seja ele.
Este arcabouço de ideias foi retomado, mais tarde, pela filosofia de
Santo Tomás de Aquino, que se debruçou detidamente sobre o tema da
justiça. Repudiando uma posição que entendia como passional — qual
seja, a entrega do poder aos homens —, Santo Tomás de Aquino encam-
pou o mesmo posicionamento de Platão, no tocante à preferência de um
regime das leis a um regime de homens.
O filósofo fez questão de enumerar os motivos pelos quais esta
preferência é justificável. Em primeiro lugar, é muito difícil que sociedades
maiores sejam regidas individualmente, por homens, e é bem mais fácil
encontrar bons legisladores, em menor número, do que bons e numerosos
juízes. Em segundo lugar, o legislador, ao criar a norma jurídica, procura
prever os eventos em que poderá ser aplicada, o que permite a sua
flexibilidade, facilitando a atuação do juiz que se subordine apenas à
lei. Enfim, o estabelecimento de um arcabouço normativo e a criação de
sanções para quem não se submeter a ele elimina a hipótese de o juiz
julgar com base em suas convicções pessoais, em suas paixões, excluindo
até mesmo a possibilidade de seu envolvimento pessoal no caso — o que
caracteriza o caráter abstrato da norma e a impossibilidade de os traços
emotivos do fato em concreto influenciarem a necessidade de aplicação
de justiça à ocasião.11
O reconhecimento da necessidade de prevalência do império das
leis, fundamentadas no bem comum, em detrimento do império de um
soberano constitui, à luz do pensamento de Santo Tomás de Aquino, mais
uma evidência da atualidade da filosofia platônica. Sobre tais bases, torna-se
possível passar à análise do texto de As leis, propriamente dito, o que se
fará na seção seguinte.
11
BITTAR; ALMEIDA. Curso de filosofia do direito, p. 209.

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16 Alice Ribeiro de Sousa

2 As leis de Platão
Depois de tecer algumas considerações gerais sobre o texto de As leis,
de Platão, procura-se, a partir desse enfoque, detalhar um pouco sobre a
organização política do Estado, a codificação, a economia e a sociedade, após
o que procura-se traçar um resumo da sociedade imaginada pelo filósofo.

2.1 Considerações gerais


Conforme visto anteriormente, o ponto central do diálogo platônico
As leis é evidenciar a necessidade da aplicação da Filosofia na Política.
Uma vez reconhecendo a dificuldade de se formar um soberano nesta
ciência, Platão encontra uma alternativa: a elaboração das leis com base
nos preceitos filosóficos.
Também se observou que Platão procura exemplificar o estabeleci-
mento de tais leis, fazendo ele próprio seus enunciados. Entretanto, quando
o faz, não se preocupa em seguir qualquer orientação jurídica previamente
fixada. Ao contrário, procura fugir delas. Tal constatação é evidente a ponto
de Zildo Poswar de Araújo afirmar que “um advogado poderia dizer que
muito do que o filósofo propõe não constitui matéria jurídica”.12
Pode-se dizer que a postura adotada pelo filósofo é premeditada.
O seu objetivo é unir o que é legal, ou jurídico, com o que é moral. Deste
modo, as normas inventadas por Platão não procuram desviar de critérios
de teologia e moralidade; ao contrário, vão ao seu encontro. Isto se baseia
no fato de que Platão não entende ser possível realizar a administração da
Justiça sem, ao mesmo tempo, educar os jurisdicionados.
Esta ideia se vê nitidamente na observação das disposições de Platão
sobre o crime. Para o filósofo, o criminoso não age voluntariamente; é
levado a tanto em função de uma enfermidade que lhe afeta, na medida
em que ele promove a escolha do mal — uma opção que ninguém faz
voluntariamente, porque leva à infelicidade, e a ninguém é dado escolher
ser infeliz. Conclui-se então que a lei deve tratar o crime como se
involuntário fosse, o que atualmente não ocorre.
Ao que tudo indica, Platão acreditava que a sociedade não estava
preparada para adotar essa concepção sobre o crime; porém, considerava
que um dia ela seria possível. Isto se torna palpável quando se analisam as
normas criminais formuladas pelo filósofo. Elas admitem, por exemplo,

12
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O devido processo legal em Platão 17

o delito praticado voluntariamente, e assentam-se na existência de


diferenças entre o crime voluntário e o involuntário.
Platão também não acreditava no caráter retributivo da pena. Em
suas palavras, o que foi feito não pode ser desfeito; assim, pouco importa
o que se faça com o criminoso, isto não será capaz de retornar as coisas
ao estado anterior ao seu ato. O verdadeiro objetivo da norma deve ser a
recuperação social do réu.13
Para Bruno Amaro Lacerda, Platão não buscou vincular a disposição
das leis à vontade do legislador e, sim, procurou evidenciar que as
normas legais devem vincular-se à “imitação de um modelo celeste, com
a consciência clara de que ele só existe plenamente no ‘céu das ideias’”.14
Assim, o filósofo reconheceu a existência de um direito anterior àquele
praticado no Estado, ou seja, um direito natural.
O mesmo autor reúne as melhores palavras para sustentar que Platão
foi o primeiro defensor do jusnaturalismo, defendendo que a teoria do
direito natural procura não somente revelar a existência ontológica do
direito natural, mas também, mostrar que esse princípio de ordem pode
ser inserido, ao menos em alguma medida, na sociedade humana, pelo
esforço filosófico dos que deverão fazer as leis em consonância com ele.15
Entretanto, como se viu, trata-se de hipótese contestada, pois,
para outros, Platão procurou apenas comprovar, em seu último diálogo
importante, que o soberano filósofo — anteriormente defendido —
deveria ser substituído pelas leis inspiradas na Filosofia.16

2.2 As leis e a organização política do Estado


Em As leis, Platão também se encarrega de estabelecer qual a forma
de governo necessária para um bom exercício do poder. Para o filósofo,
somente a democracia e a monarquia são capazes de conferir um bom
governo. O objetivo é combinar liberdade, amizade e sabedoria.
Especialmente quando se refere à democracia, Platão entende
como essenciais a participação popular na escolha dos governantes, bem
como a adoção de um sistema educacional verdadeiramente inclusivo e

13
ARAÚJO. Platão e a administração. Administradores.com.br.
14
LACERDA. Direito natural em Platão: as origens gregas da teoria jusnaturalista, p. 203.
15
LACERDA. Direito natural em Platão: as origens gregas da teoria jusnaturalista, p. 203-204.
16
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esclarecedor. Do contrário, fica-se diante de uma farsa de democracia, ou


demagogia; tem-se um governo ditatorial, ou um partido único.17
Firme em sua intenção de substituir o soberano pelo império da boa
lei, Platão ensina que o legislador deve regulamentar todas as relações
sociais dos cidadãos, desde o nascimento até a morte, passando inclusive
pela administração do dinheiro.18
Quanto à organização do Estado, Platão propõe sua divisão em
uma Assembleia Popular, um Conselho, 37 Guardiães das Leis e o Poder
Judiciário. Todos eles estariam jungidos às determinações externadas
pela lei.
A principal função da Assembleia Popular, composta por todos os
cidadãos do país e dividida em quatro, segundo suas classes, seria a de
eleger os membros do Conselho.19 Também estava encarregada de aprovar
mudanças na lei, porém, sem o poder de deliberar ou inovar.
O Conselho era formado por 360 membros, divididos em 90 inte-
grantes de cada classe social. Deveria encarregar-se da execução das leis,
dividindo-se em 12 grupos, cada um deles governando o Estado por um
mês a cada ano. Enfim, cabia ao Conselho a convocação de reuniões ordi-
nárias ou extraordinárias da Assembleia Popular.
Os Guardiães das Leis eram eleitos pela Assembleia Popular, dentre
aqueles com idade entre 50 e 70 anos e “que portam armas como inte-
grantes da cavalaria ou infantaria ou aqueles que serviram na guerra se
sua idade e capacidade o permitirem”.20 A votação era feita em três escru-
tínios; no primeiro, selecionavam-se 300 candidatos; no segundo, 100; e
no terceiro, os 37 melhor votados seriam proclamados magistrados. Como
se vê, a sua função era a de julgar a aplicação das leis nos casos concretos,
porém de forma selecionada, assemelhando-se a uma Corte Suprema.
O Poder Judiciário seria dividido em três tribunais principais: o
tribunal da vizinhança, o tribunal da tribo (sendo que o país dividia-se
em 12 tribos) e o tribunal superior, organizados de maneira hierárquica
quanto a suas decisões. Os julgamentos deveriam ser públicos e as decisões
deveriam ser amplamente divulgadas.21

17
PORTO. Platão: amor ou condenação à democracia ateniense?. Archai – Revista de Estudos sobre as Origens
do Pensamento Ocidental, p. 152.
18
PLATÃO. As leis: incluindo Epinomis, p. 75-77.
19
Platão enunciou que as classes sociais deveriam ser quatro, mas não lhes deu nomes.
20
PLATÃO. As leis: incluindo Epinomis, p. 231.
21
PLATÃO. As leis: incluindo Epinomis, p. 231.

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O devido processo legal em Platão 19

2.3 As leis e a codificação


Entre os livros IX e XI deste diálogo, Platão ocupou-se de delinear,
inclusive detalhadamente, um Código Penal e um Código Civil para o
Estado.
Consoante já visto, o Código Penal pautou-se pela necessidade
de reintegrar o criminoso à sociedade, em vez de retribuir a sua ação
negativa; e pela necessidade de educar, ao mesmo tempo que se aplica a
lei. Paradoxalmente, Platão estabelece a previsão de pena de morte para
alguns crimes, tornando saliente a noção de que o seu Código não adotou
por completo os princípios delineados para o Estado por ele idealizado.
Os delineamentos atinentes a um possível Código Civil foram
bastante pormenorizados, merecendo uma análise específica nos itens a
seguir.

2.4 As leis, a economia e a sociedade


Platão continuou a adotar a ideia de uma religião oficial, contra a
qual não se poderia opor nem por ações, nem por palavras.
Há curiosidades na fixação do local do Estado, como por exemplo, o
fato de que não poderia estar situar-se muito próximo ao mar, considerado
como “um vizinho salgado e amargo”, impróprio ao exercício da virtude.
Não obstante, deveria contar com bons portos.22
O número de habitantes nunca deveria superar 5.040. Também este
deveria ser o número de lotes e de casas. Reconhecia-se a propriedade
privada da terra, mas ela era inalienável — devendo ser transmitida ape-
nas por herança — e os seus frutos deveriam ser divididos entre todos os
habitantes.
O comércio era proibido, assim como a concentração de riqueza. O
limite da pobreza seria o valor do lote, inalienável por si. O limite da riqueza
seria fixado por lei, e quem o ultrapassasse, deveria doar o excedente aos
deuses. Se não o fizesse, poderia ser denunciado, sujeitando-se a multa.
Platão não esconde a relação que deve existir entre a interpretação
das leis e a educação; ao contrário, confere a este último elemento do
Estado uma importância primordial. Assim, ressalta que “à falta de
educação suficiente e bem orientada, (o homem) é a mais selvagem de
todas (as criaturas) sobre a Terra”; e que, por isso, “é imperioso que o
legislador não permita que a educação infantil seja encarada como matéria
22
PLATÃO. As leis: incluindo Epinomis, p. 174.

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de importância secundária ou inessencial”.23 Por tal razão, a educação no


Estado deve ser dirigida por uma pessoa de capacidade notória. É assim
que Platão determina ser necessário escolher tal pessoa entre um dos
Guardiães das Leis, casado, pai de filhos legítimos de ambos os sexos. O
filósofo também reconhece ser essa a magistratura mais importante do
Estado. Deste modo, na visão de Renato José de Oliveira, Platão desvia
sua atenção do governante para os governados; afinal, depois que se
ensina a boa formação para o exercício da vida cívica aos cidadãos, já não
interessa muito quem é melhor educado para governar.24
No tocante ao casamento e à família, Itamar de Souza ressalta que,
se antes, ao escrever A república, Platão entendia que algumas classes
sociais não poderiam constituí-la, dado o seu elevado altruísmo, agora
o filósofo os defende.25 Mas não o faz em interesse dos nubentes, senão
do próprio Estado. Assim é que o casamento deve ocorrer depois dos 25
anos de idade e antes dos 35, para o homem; e ele não deve escolher
uma companheira de classe social muito diversa. Entretanto, no tocante
aos temperamentos, Platão aconselha que cada um busque o seu oposto.
Mesmo assim, o filósofo reconhece que se trata de regramento de caráter
meramente consultivo, não podendo ser matéria de lei; pois as pessoas não
são capazes de perceber o efeito positivo da mistura de temperamentos,
que resulta em uma prole mais equilibrada.26
O casamento seria uma obrigação junto ao Estado, ou seja, os
solteiros para além da idade de 35 anos deveriam pagar multa anual,
provavelmente em razão da necessidade de manter a existência do
Estado por meio da descendência. Entretanto, admite-se o divórcio para
os casais “briguentos”, mas não antes de uma tentativa de reconciliação
acompanhada por magistrados. Para Platão, o divórcio surgiria da união
entre duas pessoas de gênios difíceis. Assim, os magistrados devem se
esforçar para unir pessoas de temperamento mais dócil.27

2.5 Resumo da sociedade imaginada por Platão


Os textos de Platão foram escritos na Antiguidade. Portanto, é
evidente que refletem a mentalidade vigente naquele tempo, como se não

23
PLATÃO. As leis: incluindo Epinomis, p. 248.
24
OLIVEIRA. Platão e a filosofia da educação.
25
SOUZA. Platão: sua última utopia política. Revista FARN, p. 236.
26
PLATÃO. As leis: incluindo Epinomis, p. 256-257.
27
PLATÃO. As leis: incluindo Epinomis, p. 459-460.

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O devido processo legal em Platão 21

tivesse sido possível ao filósofo apreciar os benefícios do fim de certas


instituições vistas naturalmente naquele tempo — e que hoje, se não são
ultrapassadas, soam brutais.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy ensaia uma tentativa de des-
construção do suposto brilhantismo de Platão, indicando que as posições
do filósofo relativas à Política e ao Direito se mostraram equivocadas com
a experiência histórica acumulada nos dois mil anos seguintes.
De fato, para o citado autor, o filósofo grego confiava na mediocri­
dade, na especialização, no isolacionismo. Admitiu a existência de dita-
duras, o controle da vida privada, a eugenia e outras depurações sociais.
Postou-se contra viagens e comércio. Preconizou a reserva de cargos públi­
cos para a elite. Prescreveu comportamentos castrenses e militarizados.
Defendeu intransigentemente a censura, as penas violentas e a escravidão.
Combateu o divórcio. Quis isolar loucos e doentes. Em suma, passou o filó-
sofo bem longe da divinização que lhe é rendida pela tradição ocidental.28
Se, por um lado, Platão admite a existência de instituições hoje
vistas como absolutamente ultrapassadas, como a escravidão e o fim do
comércio (e, para alguns, até mesmo o comunismo), por outro, não se
pode deixar de ter em vista que o filósofo adaptou suas ideias à realidade
vivenciada na época. Assim, por exemplo, observou-se que, apesar de
acreditar que a lei penal deve ter caráter pedagógico, o filósofo admitiu
a aplicação da pena de morte. Para escapar à evidente contradição, a
única explicação plausível seria a de que Platão não escreveu sua utopia
completa, procurando apenas adaptar seu pensamento à realidade social
da época — com vistas a privilegiar sua aplicabilidade.
Outrossim, é indisfarçável que Platão não teve oportunidade de
conhecer os benefícios de uma sociedade livre da escravidão e em que
grassasse a liberdade de imprensa, ou em que o acesso à educação não
dependia da classe social em que nascia a pessoa. Da mesma maneira,
em uma época em que se desconhecia a igualdade genética ou mesmo o
conceito moderno da espécie humana, a eugenia ocupava naturalmente o
espaço deixado pela inexistência da isonomia.
Verdade é que, mesmo com tantas adaptações à ideologia vigente
no tempo dos antigos, o Estado descrito por Platão não passava de uma
utopia, que não chegou a ser instalada. Por essas razões, o fato de Platão
haver conferido o seu beneplácito a procedimentos corriqueiros da
28
GODOY. O direito em Platão. Jus Navigandi.

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22 Alice Ribeiro de Sousa

Antiguidade, que hoje parecem absurdos, não subtrai o brilhantismo do


filósofo. Este brilhantismo, aliás, torna-se claro quando se tem em vista
que o notável filósofo adiantou-se aos seus pares, debruçando-se sobre os
problemas políticos e sociais enfrentados pelo Estado e sugerindo-lhes a
solução. É por isso que, até hoje, sua obra merece admiração e estudo.

3 As leis e o devido processo legal


Abre-se, também, esta seção com algumas considerações iniciais,
após o que delineia-se, em breves traços, a história do devido processo
legal, para, em seguida, proceder a uma investigação sobre o atual signi-
ficado do devido processo legal no Direito brasileiro com o fim de cotejar
tais análises com o que a filosofia de Platão lega à posteridade sobre o
devido processo legal.

3.1 Considerações iniciais


Platão não cunhou a expressão “devido processo legal”. Em sua obra,
não há menção direta ao conceito; como se verá a seguir, dito conceito
só foi formulado durante a Idade Média. Assim, ao pesquisador só resta
empregar a analogia para investigar a existência de traços indicadores da
consideração, por parte do filósofo, de um sistema de dinâmica processual
semelhante ao que hoje se conhece como devido processo legal.
Para seguir tal procedimento investigativo, é necessário iniciar ana-
lisando o que é o devido processo legal, o seu desenvolvimento histórico
e, dentro dos limites investigativos propostos por este trabalho, o seu
método atual de aplicação. Somente depois é que será possível efetuar o
cotejo com a obra deixada por Platão.
É na perspectiva desta orientação que os presentes estudos terão seu
prosseguimento.

3.2 História do devido processo legal


O problema da compatibilização da liberdade do indivíduo com
a manutenção da ordem significando a não invasão do perímetro de
direitos destinado a cada um não é novo. A principal obra de Jean-
Jacques Rousseau, O contrato social, procurou justamente explicar este
problema: o homem precisa abrir mão de parte de sua liberdade, em
prol da manutenção da ordem e de sua tranquilidade. Ele confia esta

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O devido processo legal em Platão 23

liberdade ao Estado, que em contrapartida tem a obrigação de conferir-


lhe a desejada proteção.29
Ocorre que o indivíduo não pode confiar ao Estado toda a sua
liberdade, sob pena de resignar-se à infelicidade. A perfeita medida da
liberdade a ser fornecida ao Estado sem comprometer a felicidade das
pessoas e, ao mesmo tempo, sem excluir a eficiência da manutenção da
ordem, nunca foi encontrada.
A primeira menção à expressão “devido processo legal” deu-se,
exatamente, em um contexto de protesto em face do abuso das prerrogativas
do Estado, do exagero das liberdades subtraídas dos comuns.
João Sem-Terra assumiu o governo da Inglaterra após a morte de
seu irmão, Ricardo Coração de Leão, em 1199. Seu governo foi marcado
pela tirania, pela imposição de tributos pesados e por decisões políticas
desastrosas. A falta de autonomia fez com que os barões se insurgissem
contra o rei. Em 15 de junho de 1215, João Sem-Terra foi obrigado a
assinar uma carta em que reconhecia um mínimo de liberdades essenciais
— entre eles o due process of law, instituído no §39:

Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus direitos
ou seus bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou reduzido em seu status de
qualquer outra forma, nem procederemos nem mandaremos proceder contra
ele senão mediante um julgamento legal pelos pares ou pelo costume da terra.30

Paulo Fernando Silveira resume o espírito infundido nos cidadãos


autores do dispositivo assinalando que a luta pela conquista do devido
processo legal revela a própria natureza da humanidade, no sentido de que o
homem nasceu para ser livre, com direito incontestável à busca da felicidade
individual, não havendo poder na Terra que possa obstar esse fato.31
Nota-se que a expressão due process of law não se fazia presente na
Magna Carta. Ela só apareceu em leis que promoviam a sua interpretação,
pelo menos a partir de 1354. Segundo Silveira, a partir do fim do século XIV,
as expressões law of the land (lei ou costume da terra, textualmente presente
na Magna Carta) e due process of law eram empregadas indistintamente.32
Para Danielle Anne Pamplona, “sob o reinado de Eduardo, em 1534, a
expressão ‘lei da terra’ foi substituída pela conhecida expressão due process
29
SILVEIRA. Devido processo legal, p. 13.
30
Conforme reproduzido em SILVEIRA. Devido processo legal, p. 18.
31
SILVEIRA. Devido processo legal, p. 18.
32
SILVEIRA. Devido processo legal, p. 19.

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24 Alice Ribeiro de Sousa

of law”, sem que houvesse mudança relevante no significado ou no uso.33


A autora também indica que a lei de onde a expressão surgiu não tem
legislador conhecido, e assim se reproduzia:

Ninguém será condenado sem julgamento. Também, nenhum homem, de qual-


quer estado ou condição que seja, será exilado, nem será preso ou encarcerado,
nem deserdado, nem condenado à morte sem que seja trazido (a julgamento)
para ser responsabilizado de acordo com o procedimento adequado ao direito
(due process of law).34

Inicialmente, o devido processo legal prestava-se a servir apenas os


membros das classes nobres — até porque a linguagem em que o princípio
foi formulado era inacessível aos desprovidos de posses. Neste sentido,
é necessário frisar que o objetivo primordial era assegurar que fosse
aplicada a vontade da lei, e não que se promovessem questionamentos ao
Parlamento ou às instituições legislativas. Contudo, ao longo da história,
as premissas contidas na Magna Carta, especialmente aquela que se referia
à necessidade de um julgamento prévio e justo antes da aplicação da pena
de prisão ou outro procedimento coercitivo, sofreram reinterpretações
necessárias à sua aplicação em todo o mundo. Entretanto, permanece a
noção de que o due process of law tornou-se um marco mínimo das liberdades
individuais a serem preservadas pelo Estado, antes que se determine a
aplicação de uma lei ou uma decisão administrativa.
Assim é que o devido processo legal, muito embora encampado
textualmente apenas pela Emenda nº 5 à Constituição de 1787, já era
aplicado desde o primeiro aporte dos colonos americanos na Virgínia,
posto que seu conjunto legal derivava diretamente do Direito inglês.35
Também, em função da liberdade que defendia, foi pressuposto da
Revolução Francesa de 1789.
Levando-se em conta que o devido processo legal existe desde 1215,
é espantoso verificar que foi reconhecido expressamente pela legislação
brasileira apenas com a Constituição de 1988, nos incisos LIV e LV do
seu art. 5º. Antes disso, o devido processo legal tinha aplicação limitada e
acidental, nos procedimentos criminais; derivava da aplicação de outras
normas que a ele não faziam menção direta.

33
PAMPLONA. Devido processo legal: aspecto material, p. 39.
34
PAMPLONA. Devido processo legal: aspecto material, p. 39, n. 33.
35
As Emendas de 1 a 10 à Constituição americana foram incorporadas a partir de 1791.

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O devido processo legal em Platão 25

De fato, ao se apreciar o acompanhamento histórico constitucional


promovido por Paulo Fernando Silveira,36 vislumbra-se que as normas
aplicadas no Brasil procuravam, desde as Ordenações Afonsinas,
promover algum tipo de julgamento quando verificada a prática de
conduta criminal. Todavia, dado o servilismo existente entre qualquer
autoridade e a Metrópole — ou o Imperador, depois da Independência —,
não era possível apontar a existência de verdadeiro direito individual ao
devido processo legal.
Se o devido processo legal não era assegurado em sua plenitude
nas lides penais, que tratam do bem mais importante do ser humano — a
liberdade —, o que dizer da sua incidência nos procedimentos cíveis? As
Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, que regularam o Direito
civil até 1850; o Código Comercial e o Regulamento 737, que as substituí-
ram para este fim no mesmo ano e mesmo o Código Civil de 1916 sequer
fazem menção a este corolário.
No que toca especificamente ao processo civil, o Brasil ganhou duas
codificações, uma em 1939 e outra em 1973, esta última em vigor até hoje.
Regras processuais, portanto, havia. Entretanto, para Paulo Fernando
Silveira, a falta de regulamentação do direito ao devido processo legal em
seara hierarquicamente superior — qual seja pela falta de uma Constituição
verdadeiramente vinculada aos anseios populares — impedia a verifica-
ção desse princípio na prática. De fato, o autor assinala que “somente as
constituições de 1946 e 1988 podem ser consideradas como democráticas,
elaboradas com a participação do povo”.37 E, apesar da contribuição dada
à democracia brasileira pela Carta de 1946, ela ainda falha ao não mencio-
nar textualmente o devido processo legal.
Na realidade, difícil deixar de conferir razão ao estudioso. Desde o
descobrimento até os dias atuais, o Brasil realmente conheceu períodos
curtíssimos de democracia, talvez menos de 50 anos interpolados. Levando-se
em consideração que até 1889 a vontade do rei ou do imperador era a
lei; que a Constituição de 1891 foi resultado de um golpe militar sem a
participação do povo; que com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder
não foi muito diferente; e que o golpe se repetiu em 1964, dando azo
a uma Constituição supostamente revolucionária, mas que na verdade

36
SILVEIRA. Devido processo legal, p. 23-31.
37
SILVEIRA. Devido processo legal, p. 28.

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encarregou-se de promover o totalitarismo até 1988, a vigência histórica


do devido processo legal é dificilmente reconhecida.
Imperioso ressaltar, portanto, que o Brasil não tem uma tradição
democrática, e que pode encontrar dificuldades na difícil tarefa de fixar
um limite entre a liberdade anárquica e o totalitarismo. Trata-se de algo
que a Constituição de 1988 tenta fazer; entretanto, as quase 70 emendas
que o texto original já sofreu nestes 22 anos de vigência provam que
esta tentativa está longe de ser perfeita. Daí a necessidade de promover
estudos que visem a discutir a aplicação de direitos fundamentais em
nosso país, como o é o devido processo legal. Assim, espera-se que possa
haver a constante aplicabilidade do princípio, tendo em vista que a
disseminação de seu conteúdo, notadamente junto à sociedade em geral,
poderá contribuir para uma perene vigilância quanto ao seu acatamento.

3.3 Atual significado do devido processo legal no Direito brasileiro


Embora a previsão expressa do devido processo legal na Constituição
brasileira seja muito recente, a doutrina e os jurisdicionados mostraram-
se sedentos por sua aplicação desde o advento da nova Carta. Destarte,
o âmbito de aplicação do referido princípio foi prontamente divisado
pelos estudiosos, a ponto de ser possível fixar-se uma doutrina sólida
acerca do tema.
A primeira característica da aplicação da referida garantia é a
sua abrangência. O devido processo legal embasa a fundamentação de
vários outros princípios constitucionais e processuais de importância
reconhecida. Entre eles, pode-se citar o contraditório, a ampla defesa, a
isonomia, a paridade das armas processuais empregadas pelas partes, a
motivação das decisões, a duração razoável do processo, cujo estudo em
específico vai além dos objetivos do presente trabalho.
Em razão de seu vasto espectro de aplicação, o devido processo legal
mereceu ser dividido em dois aspectos distintos: o substantivo ou material
(substantive due process), que pretende a proteção do direito material e
representa a sua aplicação durante o processo legislativo, impedindo
que o Estado crie leis imoderadas ou abusivas; e o formal ou processual
(procedural due process), responsável por assegurar que os meios processuais
adotados pelo Estado realmente atingirão os fins que inspiraram a criação
da norma.38
38
CASTRO. O princípio do devido processo legal e a instrumentalidade do processo. Âmbito Jurídico.

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O devido processo legal em Platão 27

Assim é que o devido processo legal em seu sentido formal é o


empre­gado na defesa de um sujeito do processo durante a lide. Sua apli-
cação, portanto, tem um sentido mais restrito do que aquele conferido
ao substantive due process, que pode estender-se mesmo até antes da exis-
tência da norma processual, como um corolário da existência do Estado
Democrático de Direito.
Maria Rosynete Oliveira Lima aponta que doutrina e jurisprudência
têm reconhecido no devido processo legal material um instrumento válido
para aplicar as noções de razoabilidade e proporcionalidade, quando da
produção e interpretação do direito material.39 A autora indica decisões
do Supremo Tribunal Federal e outros artigos de doutrina que apontam
a identidade entre razoabilidade e proporcionalidade, reconhecendo-as
com o devido processo legal substantivo.
Observa-se, pois, que a jurisprudência admitiu amplamente a apli-
cação do devido processo legal em nosso país, da maneira mais abran-
gente possível. Tal realidade justifica plenamente a análise do espectro
dessa aplicação, inclusive à luz de trabalhos filosóficos de importância
reconhecida.

3.4 A filosofia de Platão e o devido processo legal


Viu-se que, essencialmente, o devido processo legal constitui a proi-
bição de se aplicar sanções materiais ou processuais a uma determi­nada
pessoa, sem que as regras que conduzem o respectivo processo sejam
devi­damente obedecidas. Deste modo, é possível concluir-se que o devido
processo legal é um princípio que demanda, necessariamente, a existên-
cia de um ordenamento jurídico. E mais, que este ordenamento jurídico
seja respeitado.
A existência de um Estado constituído por leis a que se deve obedi-
ência aproxima-se da definição do Estado de Direito. Segundo Danielle
Anne Pamplona, a expressão surgiu com o advento da Revolução Francesa,
para fazer referência a um Estado essencialmente comprometido com
a liberdade dos cidadãos, e cuja existência serviria apenas para garan-
tir o exercício dos seus direitos. Assim, “falar em Estado de Direito im-
plicava reconhecimento de direitos dos indivíduos em face do Estado.

39
LIMA. Devido processo legal, p. 274.

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Conquistou-se uma situação em que o Estado não interferia nas relações


dos particulares, atuando como mero espectador”.40
Entretanto, essa era a definição dada pelos liberais da Revolução
Francesa. A própria autora reconhece que, dada a amplitude da expressão
“Estado de Direito”, é possível defini-la como sendo um Estado em que
haja respeito às normas postas — desde que a constituição dessas normas
tenha, ela própria, obedecido às regras formais e materiais relativas
à criação das leis. A este Estado, se não houver meios de controle do
conteúdo dos atos legislativos, a autora também confere o nome de Estado
Legislativo ou Estado de Direito formal — mas aí, não se estará realmente
diante de um Estado de Direito.
Viu-se, nas seções anteriores, que Platão preocupava-se não apenas
com as nuanças jurídicas do Estado por ele idealizado, mas, principal-
mente, com seus aspectos morais. Por tal motivo, foi afirmado que a maior
preocupação do filósofo era com a educação dos membros da sociedade;
posto que, caso eles se encontrassem devidamente instruídos para a vida
social, a sanção advinda do descumprimento das respectivas regras seria
absolutamente dispensável.
Ora, a preocupação com os aspectos morais de uma norma — com
os seus efeitos no corpo social, portanto — equivale a uma espécie de
controle do conteúdo da regra jurídica. Foi por esta razão que Platão
concluiu pela necessidade de o legislador ser versado em Filosofia — para
que pudesse adotar as regras mais adequadas à convivência social da sua
comunidade.
E é, também por isso, possível dizer que o Estado almejado por
Platão, muito embora tivesse suas deficiências, poderia muito bem ser
reconhecido como um Estado de Direito. Afinal de contas, as principais
características desse Estado — um governo democrático, regido com base
na obediência às leis — fazem-se presentes.
Com respeito ao devido processo legal, também foi possível verificar,
neste trabalho, que é seu pressuposto a existência do respeito a normas
jurídicas, a leis, escritas ou estabelecidas pelo costume (como assim o era
na época em que a Magna Carta foi selada por João Sem-Terra). É que,
sem tais leis para fixar o modo de funcionamento do processo, não há
processo legal a se respeitar.

40
PAMPLONA. Devido processo legal: aspecto material, p. 28.

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O devido processo legal em Platão 29

Assim, se o Estado ideal imaginado por Platão era um Estado de


Direito, certamente continha regras atinentes ao processamento de lití-
gios judiciais. É certo que o referido Estado, pormenorizado em As leis, era
dotado de um Poder Judiciário e de intérpretes avançados da lei, à seme­
lhança das Supremas Cortes Constitucionais atuais. Haja ou não Platão
fixado em detalhes o funcionamento do processo dentro desses juízos, é
absolutamente provável que eles precisariam de regras precisas para seu
bom andamento — e elas seriam criadas logo após a fundação do Estado,
sob pena de o sistema judicial sucumbir aos efeitos nefastos da anarquia.
Se Platão não adota expressamente a locução “devido processo
legal”, ou se não chega a enunciar o seu conceito, a sua obra contém
evidências claras dos subprincípios que o compõem. No item 2.2 do pre-
sente trabalho, foi indicado que Platão preocupou-se em estabelecer que
os julgamentos deveriam ser realizados em público. E ainda, apontou-se
a preocupação de Platão em assegurar a existência de uma hierarquia
entre os tribunais da vizinhança, da tribo e superior, de modo a garantir
o que muitos anos mais tarde viria a ser conhecido como duplo grau de
jurisdição — pelo menos no que respeita às ações de natureza pública.41
Outrossim, o filósofo entende que nenhum juiz poderá ser considerado
acima da lei; se houver decisões injustificadamente contrárias ao seu teor,
o juiz deverá ser punido. Assim, mesmo na Antiguidade, Platão consegue
vislumbrar a necessidade da existência de um controle da atividade juris-
dicional, realizado com base na lei. Adicione-se, enfim, que Platão indica
um procedimento formal para a escolha de juízes, vedando-se a qualquer
outro o exercício da jurisdição — e a isto hoje se conhece pelo nome de
juiz natural.
Platão foi além. Especificou que cada parte só deveria falar uma vez
(isonomia), primeiro, o acusador e, depois, o réu (ampla defesa). Depois
dessa manifestação, o juiz passaria a inquiri-los (verdade real), seguindo a
ordem decrescente de idade (hierarquia). O que for essencial ao desate da
lide seria posto por escrito (celeridade e economia processual). Depois de
ouvidos todos os testemunhos, os juízes eram obrigados a comprometer-se

41
“Platão propõe um sistema judicial com três cortes, mas sua ideia é que as causas, sobretudo as de menor
relevância social, sejam decididas apenas na primeira instância, sendo as demais cortes reservadas aos recursos
nas causas mais relevantes” (AMARAL. O dever de coibição do abuso de direito no processo do trabalho. Revista
do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, p. 128).

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com a verdade e a justiça ao decidir (imparcialidade). Enfim, os doze livros


que compõem As leis estão cheios de regras dessa natureza.42
Outro tema avançado que Platão discutiu foi o abuso do direito pro-
cessual. Como aponta Jane Dias do Amaral, dito conceito, de considerável
complexidade, já estava presente na mente do filósofo, que se preocupou
com a fixação de pena de multa ao litigante de má-fé.43 Segundo Tereza
Dóro, diz Platão que, caso o dono de um escravo simulasse um estrata­
gema deste último para lhe tomar dinheiro, e fosse essa sua argumentação
para se furtar ao pagamento de indenização por ilícito realmente come­
tido pelo escravo, o dono do escravo seria condenado a indenizar em
valor equivalente a três vezes o do dano.44
Todas essas características refletem a existência, não apenas de um
Estado de Direito em sentido formal e material — porque assegura a apli-
cação da lei e tem o cuidado de observar o seu conteúdo —, mas também
da observância de regras processuais definidas em lei. De acordo com
Danielle Anne Pamplona, se um Estado consegue reunir tais caracterís-
ticas, então não é necessário que sua Constituição contenha afirmação
expressa no sentido de adotar o devido processo legal: o princípio já se
fará presente, bastando que se verifique a existência de seus subprincí-
pios, ou corolários.45
Enfim, como vislumbrado no presente trabalho, Platão traçou regras
que atendem ao devido processo legal, séculos antes de sua formulação
literal. Mas será que isto basta para afirmar-se categoricamente que o
Estado de Platão realmente pautava-se pela observância do referido
princípio?
Neste ponto, é necessário ter em conta outra importante colocação
feita por Danielle Anne Pamplona. Segundo a autora, não é possível ava-
liar se um Estado de Direito vem ou não dotado da cláusula do devido
processo legal, senão depois de instalado. É que ele pode, na prática,
simplesmente admitir normas incompatíveis com o ensinamento do bem
preconizado por Platão — ou, em suma, com a moral. Noutras palavras,
pode não haver um controle de conteúdo das regras passíveis de exis-
tência nesse Estado; e ele configurar-se-ia como um Estado meramente

42
DÓRO. O direito processual brasileiro e as leis de Platão, p. 134-135.
43
AMARAL. O dever de coibição do abuso de direito no processo do trabalho. Revista do Tribunal Regional do
Trabalho da 3ª Região, p. 127-136.
44
DÓRO. O direito processual brasileiro e as leis de Platão, p. 131.
45
PAMPLONA. Devido processo legal: aspecto material, p. 33.

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O devido processo legal em Platão 31

formal. Somente a existência de uma Constituição válida, com conteúdo


efetivamente dotado de força normativa, seria capaz de sanar dúvida a
esse respeito.46
Assim, com vistas a adotar a cautela indicada pela autora, é preciso
conferir um ar de condicionalidade à afirmação de que o Estado sonhado
por Platão é efetivamente um Estado de Direito, onde vigore o devido
processo legal. Contudo, a resposta positiva a essa afirmação é absoluta-
mente possível e até desejável da parte do filósofo, pois ele mesmo mani-
festou a vontade de submeter a criação das leis — e, portanto, o controle
de seu conteúdo — a uma mente prudente e sábia, versada nos conheci-
mentos filosóficos. De modo que seria altamente questionável a compati-
bilidade entre um Estado de Direito meramente formal e todo o conjunto
de premissas lançadas por Platão.
Ainda a esse propósito, deve ser ponderado que, nas palavras de
Tereza Dóro, Platão procurou esboçar uma Constituição com seu diálogo
As leis. Tanto é assim que admitiu, literalmente, a hipótese de uma legisla-
ção infraconstitucional cuidar de questões mais específicas, seja na seara
processual, seja na material. A grande dificuldade do filósofo foi, entre-
tanto, divisar os limites do que deveria ser constitucional e do que deveria
ser matéria de lei ordinária.47 Quando se leva em conta que Platão não
desejava estipular barreiras entre o que é jurídico e o que é justo, todavia,
tal dificuldade torna-se absolutamente compreensível.
É possível entender, portanto, que os elementos fornecidos pela obra
de Platão são suficientes para ser nela encontrado o desejo de se estabele-
cer um Estado de Direito jungido ao devido processo legal. Especialmente
quando se leva em consideração a diferença de instituições justificada
pelos 2.400 anos de distância histórica que separa a atualidade e o tempo
em que viveu o admirável filósofo.

Conclusão
O estudo do diálogo platônico As leis torna claro como o pensamento
do filósofo foi avançado para o seu tempo. A toda evidência, o pensador
criou um conjunto de regras de conduta de considerável atualidade,
ressalvados apenas alguns elementos superados ao longo da história, tal
como a escravidão.

46
PAMPLONA. Devido processo legal: aspecto material, p. 31.
47
DÓRO. O direito processual brasileiro e as leis de Platão, p. 134.

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Há, é verdade, quem, em uma análise literal da obra de Platão, veja


o filósofo como uma pessoa preconceituosa, parcial em seus julgamentos e
partidária de penas cruéis.48 Esta visão, justamente por ser literal, subtrai
a análise da obra do contexto em que ela foi produzida — a Antiguidade,
em que a ausência de tecnologia, de ciência e de leis avançadas tornava a
crueldade algo cotidiano. É bem mais provável que o pensador não tenha
considerado a adoção de um ordenamento mais humano, próximo aos
modernos, por simplesmente não haver pensado em alternativa relevante.
Pode Platão ter sido vítima de sua própria filosofia, deixando-se orientar
pelas sombras das ideias legislativas — aquelas que se apresentavam aos
olhos com maior evidência — em vez de enumerar as ideias perfeitas
como devem ser. Ou ainda, quando seu pensamento se libertou totalmente
das amarras oferecidas pelas sombras, Platão imaginou uma sociedade
utópica, que demandava uma perfeição incapaz de ser alcançada por seus
cidadãos e que, portanto, nunca poderia ser vista em prática.
Parece essencial que o leitor de textos tão antigos tome algumas pre-
cauções antes de emitir juízos de valor acerca deles. Todavia, sem muito
esforço é possível depreender que o verdadeiro objetivo de Platão seria
criar uma sociedade em que todos obedecessem às regras apresentadas,
sem que fosse necessário efetuar cobranças e punições. Esta sociedade
seria guiada apenas pela vontade em se fazer o bem, sem submeter as
pessoas a interesses egoísticos ou sufocá-las com o poder.
Mas Platão viu ao fim de sua vida que este sonho tratava-se de mera
utopia. Nesta cidade, só poderiam conviver os deuses, incapazes de come-
ter erros. Talvez nem isso, pois a mitologia grega é repleta de exemplos
em que os deuses agem sem consideração com os seus pares ou com os
homens.
A resposta de Platão a essa realidade foi confiar o poder e a autoridade
próprios do Estado não a um governante — que dele poderia abusar —,
mas a um conjunto de regras de caráter jurídico, e também moral, re-
gularmente criado dentro do Estado, por pessoas de saber admirável.
Passava-se então da tirania do soberano ao império da lei, que subjugava
mesmo a pessoa mais poderosa do Estado.
Também neste ponto o pensamento de Platão mostra-se de notável
avanço. Ainda hoje, os Estados que se consideram menos rígidos — e,

48
Trata-se do pensamento de GODOY. O direito em Platão. Jus Navigandi.

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O devido processo legal em Platão 33

portanto, com um maior grau de respeito à liberdade dos seus cidadãos


— são aqueles em que viceja o império da lei sobre qualquer outro poder.
O devido processo legal, enquanto princípio constitucional agrega-
dor de diversas outras garantias, não passa de um instrumento com vistas
a assegurar a prevalência da vontade da lei sobre a vontade particular.
Neste sentido, logo a princípio, não há porque não atestar a sua compati-
bilidade com a sociedade de As leis.
Esta impressão inicial vai-se tornando mais forte à medida que se
aprofunda no diálogo de Platão. Ali se acha enumerada grande parte das
garantias que se reportam ao devido processo legal, conforme apontado
na seção 3 do presente trabalho. Na mesma ocasião, foi também indicada
a lição doutrinária segundo a qual, se todas as partes responsáveis por
compor um todo estão presentes, não é necessário que se dê nome ao
todo para atestar a sua existência. Assim, não foi necessário a Platão
dizer expressamente que seu Estado deveria assegurar o devido processo
legal. Ele estaria presente, bastando que se assegurasse a aplicação dos
princípios que o compõem indicados por Platão.
Viu-se, também, que não há evidências da aplicação do conjunto de
regras criadas por Platão com o intuito de formar um Estado. Portanto,
não é possível afirmar categoricamente se, na prática, haveria alguma
colisão de regras que tornasse inviável a aplicação do devido processo
legal. Entretanto, mesmo sem tal experiência, é razoável supor que um
Estado não se inspiraria devidamente nas regras de As leis se não fosse
capaz de assegurar o conjunto jurídico relativo ao devido processo legal. É
que as regras componentes deste princípio estão tão evidentes e arraigadas
no Estado platônico que a sua não aplicação só poderia ser explicada pela
deturpação das vontades do pensador.
Sendo assim, à guisa de conclusão, e como em tantos outros estudos,
é possível pugnar pela surpreendente atualidade do pensamento desen-
volvido por Platão. Séculos antes de sua formulação, conforme é hoje co-
nhecido, o filósofo grego já defendia o devido processo legal como um dos
pilares do Estado — e com as nuanças que o caracterizam como um dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito tal como hoje se apresenta.

Abstract: The science of Law, as one of the instruments that made possible
the social acquaintanceship, appeared in a dateless time. Considering this,
the statement that the first philosophers took into account the main legal
problems does not surprise. The noticeable philosopher Plato is not an

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exception to this rule. In his work, especially the last ones, it is possible to
observe a clear concern related to the Law application, as a mean to secure
society healthiness. In this study, it is sought to follow Plato’s legal thinking,
taking into consideration the cultural circumstances of the time in which
he lived. For a start, a brief summary of the platonic philosophical thought
was made, as an introduction to the study of his legal considerations. Next,
the judicial vision is taken into account. Ultimately, the study is deepened,
focusing the way the philosopher treated the processual aspects of the legal
science, drawing a parallel between this knowledge and the modern principles
that guide the due process of law. As a conclusion, it is acknowledged that,
although there is no clear mention to the referred corollary, the platonic
thought contains sharp traces of what is today called due process of law.
Key words: Due process of law. Philosophy. Principles.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):
SOUSA, Alice Ribeiro de. O devido processo legal em Platão. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 75, p. 11-35, jul./set. 2011.

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Dos embargos infringentes e a reforma
do Código de Processo Penal (PL nº
156/09) – A “tirania” da urgência e a
importância do voto divergente para o
processo penal justo
Antonio Pedro Melchior
Graduado em Direito pela PUC-Rio, mestrando da UNESA, pesquisador bolsista do CNPq em
Matrizes autoritárias do processo penal para além da influência do Código Rocco (Faculdade
Nacional de Direito). Professor de Processo Penal. Formação introdutória na Escola Lacaniana de
Psicanálise. Advogado criminalista.

Resumo: O PL nº 156/09 que altera o Processo Penal modifica substancial-


mente a disciplina dos embargos infringentes. A impossibilidade de manejar o
recurso quando o réu tiver sido condenado em primeira instância e a sentença
tiver sido mantida pelo Tribunal por maioria foca o processo no “placar” e
esquece a vocação democrática dos embargos infringentes. A análise de deze­
nas de acórdãos produz uma fratura nos preceitos da reforma, trazendo-a
para a incômoda posição de saber que a sua proposta de modificação teria
mutilado inúmeras vidas.
Palavras-chave: Reforma do Código de Processo Penal. Embargos infringen-
tes. Vocação democrática. Sentença absolutória da origem.
Sumário: Introdução: a reforma processual penal e a “tirania” da urgência –
1 Do conteúdo histórico dos embargos infringentes ao perigo de subversão
do processo penal (o interesse ideológico na unificação com o processo civil)
– 2 O Projeto de Lei nº 156/09 e as alterações na disciplina dos embargos
infringentes (ou do que seria da liberdade contemplada pelo voto divergen-
te?) – 3 O foco no “placar” e a exigência de sentença absolutória na origem
– Conclusão – Referências

Introdução: a reforma processual penal e a “tirania” da urgência

Na reforma das leis processuais, cujos projetos em vias de encaminhamento


à consideração do Congresso Nacional, cuida-se, por isso, de modo todo
especial, em conferir aos órgãos jurisdicionais os meios de que necessitam
para a prestação da justiça se efetue com a presteza indispensável à eficaz
atuação do direito. Cogita-se de racionalizar o procedimento, assim na
ordem civil como na penal, simplificando-lhes os termos de tal sorte que
os trâmites processuais levem à prestação da sentença com economia de
tempo e despesas para os litigantes.1
(Terceiro General-Presidente Emílio Garrastazu Médici –
1969/1974)

Diário do Congresso Nacional, ano XXXVII, n. 1, p. 5 apud SANTOS, Diogo Caneda dos. Embargos infringentes: um
1

recurso desnecessário. Revista da AJURIS: Doutrina e Jurisprudência, Porto Alegre, ano 26, n. 82, t. I, p. 313, jun. 2001.

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38 Antonio Pedro Melchior

Os embargos infringentes, existentes no ordenamento jurídico brasi-


leiro desde as ordenações lusitanas, chegaram a ser abolidos em 1832 sob a
justificativa de supostamente ensejar “uma morosidade processual que não
se coadunava com o dinamismo que seria desejável tivesse o processo”.2
O discurso da urgência vem sendo tão manipulado que simples-
mente não dá para saber se quem o sustenta é um indivíduo do séc. XIX,
um ícone do regime militar ou um Senador da atual República Federativa
do Brasil. “Intrusão: O passado não reconhece o seu lugar, está sempre
presente”, melhor resumiria a poesia de Mario Quintana.3
Realmente, a linguagem autoritária tem muito a nos revelar. A última
tentativa de extirpar os embargos infringentes da face da terra — literal-
mente — ocorreu com a Proposta de Emenda nº 15, apresentada pelo
Senador Pedro Simon ao PL nº 156/09 que trata de reforma ao Código
de Processo Penal. A finalidade era suprimir o inciso III do art. 455 e o
Capítulo IV do Título V do Livro II do Substitutivo, que trata dos embar-
gos infringentes.
Argumenta o Senador do PMDB/RS que esse tipo de recurso “con-
traria o princípio da celeridade processual, mostrando-se perfeitamente
dispensável, sem prejuízo para a ampla defesa”.4
Felizmente, a emenda proposta pelo Senador Pedro Simon não
logrou êxito. Assim se manifestou o relator:

Com relação à Emenda nº 15, que suprime os embargos infringentes, não


concordamos com a tese de que esse recurso seja “perfeitamente dispensável,
sem prejuízo para ampla defesa”, como argumenta o autor. Note-se que, de
acordo com o art. 489, caput, do Substitutivo, os embargos infringentes somente
serão admitidos para atacar acórdão não unânime que, em grau de apelação,
reforme a sentença em prejuízo do réu. Ora, parece-nos evidente, nesse caso, o
2
CUNHA, Gisele Heloísa. Embargos infringentes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 15. Segundo a autora,
o diploma normativo responsável por abolir os embargos foi o Decreto nº 24, de 16.05.1832. Ressalta-se
que o Decreto de 21.05.1841 restabeleceu-os, não obstante as críticas de que “o mesmo era utilizado para
procrastinar sobremaneira as ações” (Idem, p. 12).
3
QUINTANA, Mario. Caderno H. 2. ed. São Paulo: Globo, 2006. p. 174.
4
Vale a pena transcrever a justificação da proposta de emenda, apresentada por Pedro Simon: “Um dos princípios
constitucionais que deve nortear o processo é o da Celeridade, contemplado no Inciso LXXVIII do art. 5º da
Carta Maior, pelo qual a jurisdição deve ser prestada no menor tempo possível, sob pena de não se promover a
justiça. A reforma do Código de Processo Penal busca adequar-se àqueles preceitos já identificados por ocasião
da promulgação da Emenda 45/04, que promoveu a Reforma do Judiciário, quando a celeridade passou a
integrar o rol dos direitos e garantias fundamentais em nosso País.

É nesse sentido que a presente emenda busca emprestar contribuição ao texto do novo Código de Processo
Penal, ao propor a supressão dos Embargos Infringentes, um recurso que entendemos contrariar o princípio
supramencionado, mostrando-se perfeitamente dispensável. Temos ainda que a supressão dos Embargos
Infringentes não desestabiliza o sistema recursal nem, sequer, causaria prejuízo à ampla defesa, de vez que
não se presta a hostilizar decisão monocrática e sim decisão pela maioria de Órgão Colegiado” (ver <http://
www.conamp.org.br/Lists/Legislativo/DispForm.aspx?ID=428>. Acesso em: 15 ago. 2010).

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Dos embargos infringentes e a reforma do Código de Processo Penal (PL nº 156/09) ... 39

direito de o acusado manejar os infringentes, posto que a sentença que lhe era
favorável foi reformada, não de forma unânime, mas por maioria. Tratando-se
de processo que pode levá-lo à privação de liberdade, nada mais justo do que
disponibilizar essa modalidade de recurso ao réu.

Com efeito, na medida em que o projeto de reforma do Código de


Processo Penal não pretende, portanto, suprimir os embargos infringentes
— mas reduzir drasticamente sua incidência —, deve-se fixar como ponto
de partida uma análise crítica sobre aquilo que a informa axiologicamente,
qual seja o espírito de urgência.
Nesse sentido, chega-se à preocupante constatação de que a argu-
mentação pela rapidez do processo ressurge atualmente com toda a sua
tentadora retórica, seduzindo pela facilidade com que confunde eficiência
e efetividade e pela funcionalidade com que inverte o eixo lógico do pro-
cesso e viola as garantias em nome da velocidade. Alexandre Morais da
Rosa não deixa esquecer:

Confundindo efetividade (fins) com eficiência (meios), grudando falsamente os


significantes como sinônimos, na ânsia de melhorar a realidade, muitos atores
jurídicos caem na armadilha do discurso neoliberal, ao preço da exclusão
(sempre existem vítimas, ecoa Dussel) e da Democracia, por se vilipendiar,
necessariamente, os “direitos e garantias” Constitucionais, rumo ao que se
chama de Direito Penal Máximo.5

A hiperaceleração conduz a um risco extremo, principalmente quando


não há a compreensão de que existe um tempo do direito que está comple-
tamente desvinculado do tempo da sociedade.6 Quando isto ocorre, o que
sobra? Uma compulsão por eficiência que transforma o cidadão em consumi-
dor de processo, no mais genuíno exemplo de um “fast food jurisdicional”.7

5
ROSA, op. cit., p. 214. Loïc Wacquant, afirmaria que “a ‘mão invisível’ do mercado de trabalho precarizado
encontra o seu complemento institucional no punho de ferro do Estado que se reorganiza de maneira a
estrangular as desordens geradas pela difusão da insegurança social” que ele mesmo promove. Assim, assistimos
a um desmonte das redes de proteção social — transformados em instrumentos panópticos —, um Estado
de profilaxia punitiva em matéria penal e de esvaziamento das garantias processuais (ver WACQUANT, Loïc.
Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003).
6
LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 2. ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 27.
7
Em termos de processo penal — termômetro dos elementos autoritários de um Estado (Goldschmidt) —, a
tirania da urgência cumpre papel inegavelmente mais perigoso. Afinal, sendo o ramo mais ideologizado do
direito, a eficiência na condenação quase sempre apresenta a “cultura dos direitos e garantias fundamentais
como causa de entrave ao funcionamento eficiente do sistema”, para usar das lições de Fauzi Hassan Choukr
[CHOUKR, Fauzi Hassan. Bases para a compreensão e crítica do direito emergencial. In: SHECAIRA, Sérgio
Salomão (Org.). Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva. São Paulo: Método, 2001. p. 150].

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40 Antonio Pedro Melchior

1 Do conteúdo histórico dos embargos infringentes ao perigo de


subversão do processo penal (o interesse ideológico na unificação
com o processo civil)
Se o “desafio da complexidade” de que nos fala Edgar Morin8 supera
a fragmentação do saber e impõe um verdadeiro diálogo transdisciplinar,
certamente haveria de aproximar os próprios “microssistemas” que gra-
vitam dentro da ciência jurídica. Isso não significa, porém, distanciar o
processo penal de sua especificidade, facilmente perceptível em sua pecu-
liar razão de ser — o que deve incluir a própria dimensão dos embargos
infringentes.
Aproximar sistemas não significa fundi-los e não há contorcionismo
linguístico que possa equivaler conexão teórica e confusão dogmático-
ideológica.
Pois bem, o atual projeto de reforma ao Código de Processo Penal (PL
nº 156/09) incorpora de forma acrítica o modelo de embargos infringentes
típico do processo civil, fazendo pouco caso do abismo paradigmático que
separa a essência deste recurso em um e em outro.
Afinal, no processo penal, a existência dos embargos infringentes é
responsável por expor uma fissura democrática no Tribunal, constituindo
um verdadeiro ato político. Se no processo civil a finalidade dos embargos
é “tão só, a de ensejar o aprimoramento do julgado, com o novo reexame
da causa”,9 no processo penal, os embargos infringentes produzem novo
espaço de respiração à liberdade.
Nunca é demais repetir: Se o objeto do “jogo” é a privação da vida
livre — e a “expiação do pecado” está próxima — o voto contra majoritário
passa a ser o jeito de lembrar ao Poder que a visão divergente pode
amadurecer a decisão e, principalmente, conferir maior legitimidade à
imposição da dor pelo direito penal.

8
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. Explica Edgar Morin
que a superespecialização produziu um enclausuramento pernicioso do saber, isolando as disciplinas e,
portanto, fundando um pensamento simplificador próprio de uma alternativa mutilante do conhecimento. A
complexidade, pelo contrário, reintroduz o observador na observação e constrói uma visão poliocular, em que
todas as dimensões — tudo que é humano — deixam de ser incomunicáveis. A complexidade, portanto, inverte
o paradigma cartesiano, numa compreensão holística da realidade. A “teia da vida” — para usar da expressão
de Fritjof Capra — insere tudo e todos numa rede de interconexões, produzindo um novo paradigma social em
que os sistemas só podem ser compreendidos como totalidades integradas (cf. CAPRA, Fritjof. A teia da vida:
uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 2006). E o que é o processo penal
que não um sistema de dispositivos interconectados? Investigação, cautelares, prova — memória, “verdade”
(?) —, recursos, etc., etc., tudo em constante diálogo entre si, tudo em efusiva conversa com o sistema penal,
com o sistema jurídico, com todo complexo de saber — sujeitado ou não.
9
ALMEIDA, Jorge Luiz de. Dos embargos infringentes no anteprojeto do Código Processual Penal. Justitia, São
Paulo, v. 84, ano XXXVI, p. 159, 1. trim. 1974.

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Dos embargos infringentes e a reforma do Código de Processo Penal (PL nº 156/09) ... 41

O caminho trilhado pelos embargos infringentes desde a sua origem


em matéria processual civil girou em quatro eixos, apontados por Barbosa
Moreira: “a decisão impugnada, a ocorrência de dissídio no julgamento, a
conformidade ou desconformidade dele com a decisão anterior e o valor
da causa”.10
Adianta-se que, para fins de análise crítica do PL nº 156/09, importará
justamente aferir se há, ou não, qualquer importância para a legitimidade
da decisão penal, a relação de conformidade entre o resultado do acórdão
e aquele apontado na sentença. Tudo porque a história deste recurso em
matéria penal, embora não seja menos tormentosa que aquela enfrentada
no processo civil, possui uma singular razão de ser.
Daí o questionamento central deste ensaio: para o processo penal
justo, a inexistência de uma sentença condenatória na origem, confir­
mada por maioria, pode ser erigida como óbice à interposição de embar-
gos infringentes? Simplificando ao máximo: interessa o foco no “placar”?
Interessa saber se foi 3 a 1 para a condenação?
O recurso dos embargos infringentes foi introduzido no Código de
Processo Penal pela Lei nº 1.720-B de 1952, instituindo a redação do art.
609, parágrafo único, nos mesmos moldes em que se encontra no atual
CPP de 1941 (diverso do proposto pelo PL nº 156). Desde a promulgação
da Lei nº 1.720-B, portanto, ainda na década de 50, alguns anteprojetos
de reforma ao Código de Processo Penal foram produzidos, entre os
quais chama especial atenção o anteprojeto de autoria do professor José
Frederico Marques.
Curiosamente, adotando caminho que sequer chegou a ser cogitado
pelo PL nº 156/2009, o anteprojeto de Frederico Marques propunha

10
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Novas vicissitudes dos embargos infringentes. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro,
v. 1, n. 1, p. 181, 1998. Lembra-se que os embargos infringentes foram concebidos tecnicamente apenas
em solo luso-brasileiro e — na origem — somente em matéria processual civil. (Instituídos em terra brasileira
desde as ordenações, os embargos infringentes foram retirados em Portugal com a reforma do código de
processo civil de 1939). Por ora, interessa a sinuosa trajetória dos embargos infringentes após a Constituição
Federal de 1934, oportunidade em que a União passou a ter competência exclusiva para legislar sobre direito
processual. Aponta Barbosa Moreira que inicialmente a competência legislativa exercida pela União se deu de
forma bastante fragmentada, haja vista que o Código de Processo Civil foi editado apenas em 1939. Até lá,
foram promulgadas leis específicas, entre as quais é relevante aqui a Lei nº 319, de 1936 (Ibidem, p. 180). Nesse
contexto pós 1934, a Lei nº 319/36 — responsável por disciplinar os recursos cabíveis contra as decisões finais das
chamadas Cortes de Apelação e suas Câmaras — assume vital importância. As hipóteses de cabimento previstas
na Lei nº 319/36 previam a necessidade de: a) tratar-se de acórdão proferido em julgamento de apelação ou
agravo; b) existência de julgamento não unânime; c) Haver o acórdão reformado a decisão recorrida; d) ainda
quando ausentes os requisitos b e c, ter a causa valor superior a 20 contos de réis. Com o tempo, a disciplina
normativa dos embargos infringentes foi sofrendo inúmeras alterações, sem desnaturar aqueles quatro eixos
fundamentais — descritos pelo Professor Barbosa Moreira. Citam-se, exemplificadamente, o Dec. nº 8.570 de
08.01.1946 e, após, o próprio Código de Processo Civil de 1973.

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42 Antonio Pedro Melchior

inverter um aspecto fundamental nos embargos infringentes, conferindo


ao Ministério Público (ou ao querelante) o direito de interpor o recurso
caso o acórdão da apelação tivesse reformado sentença condenatória para
absolver o réu ou diminuir a pena.11
O que há de importante, porém, na análise histórica dos embargos
infringentes em matéria penal, não é a possibilidade — até certo ponto
esdrúxula — de permitir ao Ministério Público interpor esta espécie
recursal. É a relação de conformidade ou não entre o conteúdo decisório
da sentença e o resultado do acórdão que interessa primordialmente à
investigação, haja vista que o art. 489 do atual PL nº 156/09 restringe
o manejo dos embargos infringentes pela Defesa somente aos casos de
reforma — por maioria — de sentença absolutória.12

2 O Projeto de Lei nº 156/09 e as alterações na disciplina dos embargos


infringentes (ou do que seria da liberdade contemplada pelo voto
divergente?)
O atual projeto de reforma do Código de Processo Penal — PL nº
156/09 — altera substancialmente a disciplina recursal dos embargos
infringentes.13 Vejamos o atual art. 489 do PL nº 156 em confronto direto
com o art. 609, parágrafo único —, ora objeto de proposta de modificação.

11
O anteprojeto em questão dispunha: “Art. 616 – Cabe recurso de embargos infringentes contra acórdão não
unânime proferido em apelação. Parágrafo único – O Ministério Público, ou o querelante, somente pode
interpor embargos infringentes, quando o acórdão da apelação houver reformado sentença condenatória,
para absolver o réu ou diminuir a pena”.

A proposta de Frederico Marques seguia a linha do pensamento textualmente assumido na Exposição de
Motivos, no sentido de “reforçar a posição do Ministério Público, armando-o com poderes bem amplos” (item
32). Por incrível que pareça, porém, a proposta de extensão do recurso à acusação desagradou não apenas
àqueles que entendiam ser este recurso — pela lógica principiológica da ciência criminal — exclusivo da Defesa.
Jorge Luiz de Almeida, por exemplo, chega a sustentar que, embora “concedendo os embargos à acusação o
anteprojeto inovou com timidez, ao condicionar o recurso à existência de sentença condenatória em primeiro
grau” (ALMEIDA, op. cit., p. 161). Acrescenta ainda o autor, em texto publicado em 1974 pela Procuradoria
de Justiça em convênio com a associação paulista do Ministério Público, que a proposta de Frederico Marques
desatenderia o princípio da unidade processual e, consequentemente, violaria o equilíbrio das partes na
relação jurídico processual. Inversamente ao posicionamento defendido pelos membros do Ministério Público,
colocava-se o desembargador Barbosa Pereira para quem haveria de prevalecer o princípio do in dubio pro
reo em oposição à solução preconizada pelo anteprojeto de Frederico Marques. Explica o próprio Jorge Luiz
de Almeida (op. cit., p. 160) que o “eminente desembargador, calculando o número de votos favoráveis e
contrários ao réu encartados na hipótese do parágrafo único do artigo 616 do anteprojeto, notando haver
empate no resultado das manifestações, desaconselha a solução dos embargos, por ser tradição de nosso
direito resolver-se o empate em benefício do réu”.
12
Naquela metáfora já utilizada, é como se o PL nº 156/09 restringisse a interposição dos embargos pela Defesa
aos casos de empate no placar, oportunidade em que começando o “jogo processual” com 1 a 0 para a
absolvição, o Tribunal por maioria reformasse a sentença, conduzindo à igualdade pelo placar de 2 a 2.
13
Importante observar que não há entre o antigo art. 478, do PL nº 156 — que dispunha sobre o cabimento
dos embargos infringentes —. e o atual art. 489, do mesmo PL nº 156, qualquer modificação textual, motivo
pelo qual, neste ponto, apenas será reproduzido este último dispositivo.

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Dos embargos infringentes e a reforma do Código de Processo Penal (PL nº 156/09) ... 43

Atual Código de Processo Penal – 1941 PL nº 156/09 (última alteração)


Art. 609. (...) Art. 489.
Parágrafo único. Quando não for unânime a Do acórdão condenatório não unânime
decisão de segunda instância, desfavorável que, em grau de apelação, houver
ao réu, admitem-se embargos infringentes e reformado sentença de mérito, em prejuízo
de nulidade, que poderão ser opostos dentro do réu, cabem embargos infringentes a
de 10 (dez) dias, a contar da publicação de serem opostos pela defesa, no prazo de
acórdão, na forma do art. 613. Se o desacordo 10 (dez) dias, limitados à matéria objeto
for parcial, os embargos serão restritos à da divergência no tribunal.
matéria objeto de divergência.

Pois bem, antes de enfrentar o ponto nevrálgico da proposta de


reforma em matéria de embargos infringentes — restrição na hipótese
de cabimento pela exigência de sentença absolutória na origem —, cabe
apontar algumas considerações relevantes.
A primeira delas se refere ao fato de ter sido excluída da redação do
art. 489 (PL nº 156) a menção aos embargos de nulidade.14 Neste ponto,
passa a ser sintomático deparar-se com o seguinte questionamento: A
exclusão no texto da referência à nulidade teria rompido a estrutura e o
conteúdo dos embargos infringentes, restringindo a matéria impugnável?
A professora Teresa Arruda Alvim responderia que “o sistema não
pode e não deve evoluir de molde a que sejam esquecidos os porquês das
regras”.15 Neste contexto, muito embora os embargos infringentes sejam
restritos, não se pode olvidar que esta restrição deve se referir ao objeto
da divergência e não ao seu conteúdo.16
Isto não é tudo. O art. 489 do PL nº 156/2009 modifica a redação do
art. 609, parágrafo único, que falava em “decisão desfavorável ao réu”, para
estabelecer que os embargos infringentes só serão cabíveis em face de
“decisão que houver reformado a sentença”. Estaria, portanto, reafirmando
a diferença entre decisão que reforma e decisão que anula a sentença? Mais
uma vez: em hipótese alguma se pode aceitar que se retire dos embargos

14
Importante citar que, historicamente, toda a celeuma envolvendo este ponto girava em torno da conjunção
“ou” em vez de “e” no que diz respeito à previsão dos embargos de nulidade. Explica Barbosa Moreira que o
Código de Processo Civil de 1939 já misturava a redação, ora apontando como recurso cabível os embargos
infringentes ou de nulidade (art. 808, II, do CPC 39), ora falando em embargos infringentes e de nulidade. O
art. 609, parágrafo único, do Código de Processo Penal de 1941, adotou a conjunção “e” para correlacionar
as “espécies” de conteúdo dos embargos, mas ao que parece a preferência por uma ou outra conjunção não
traduziu — na história dos embargos infringentes — qualquer significação especial.
15
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Hipótese de cabimento dos embargos infringentes: a falta de clareza do
sistema não pode prejudicar as partes. Revista de Processo, São Paulo, ano 34, n. 171, p. 26, maio 2009.
16
Ainda quanto ao conteúdo, salienta-se — na linha do que descreve Barbosa Moreira — que “a divergência na
votação se apura pela conclusão do pronunciamento judicial, não pelas razões que invoque para fundamentá-lo;
de que basta que algum membro do colegiado emita voto diferente (pelo prisma qualitativo ou quantitativo)
dos outros, não sendo exigível que vote no sentido oposto” (MOREIRA, op. cit., p. 184).

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44 Antonio Pedro Melchior

infringentes a possibilidade de impugnar a matéria da forma mais ampla


possível, o que inclui — necessária e evidentemente — as questões pro-
cessuais (de nulidade).
A alternativa mutilante proposta pelo PL nº 156/2009 na essência
dos embargos infringentes, infelizmente, pretende ir mais além. Veja a
alteração da frase “não for unânime decisão de segunda instância” — art.
609, parágrafo único — para “não for unânime em grau de apelação” —
art. 489 do PL nº 156/09, retirando as hipóteses de Recurso em Sentido
Estrito (agora, Agravo) da incidência dos embargos infringentes.
A modificação é perigosa demais.
Imagine todos os embargos infringentes interpostos em Recurso em
Sentido Estrito em face de uma decisão de pronúncia, por exemplo. Qual
destino teria dado o atual projeto de reforma àquelas pessoas não sub-
metidas ao Júri? Pessoas acusadas de homicídio em excesso punitivo, sem
lastro mínimo, teriam sido entregues à roleta russa do Tribunal popular?
A decisão de pronúncia, agora sujeita a agravo (art. 470, VI, do PL nº
156/09), assim como outras várias decisões extremamente agressivas aos
direitos fundamentais passam a não contar mais com o “último milagre”
de sabedoria, presente no voto divergente.17
Os problemas do PL nº 156, em matéria de embargos infringentes, não
param por aí. Cheguemos, portanto, ao ponto central: a impossibilidade
de manejar este recurso quando o réu tiver sido condenado em primeira
instância e a sentença tiver sido mantida pelo Tribunal por maioria.

3 O foco no “placar” e a exigência de sentença absolutória na origem


Este ponto exige bem menos descrição teórica. Aqui, o argumento é
pragmático, direto e demonstra claramente o perigo presente na proposta
de modificação dos embargos infringentes pelo PL nº 156/2009.
Neste contexto, serão colacionadas abaixo duas pesquisas, uma
centrada no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de janeiro, outra no
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.
Em ambos os casos, investiga-se a existência de dezenas de embargos
infringentes, total ou parcialmente providos, tendo como origem uma

A exclusão da possibilidade de se interpor embargos infringentes em face de acórdão proferido em agravo é


17

combatida mesmo no processo civil. Exemplo é a brilhante professora Teresa Arruda Alvim para quem “nada
impede que se entendam cabíveis embargos infringentes do julgamento do agravo” (de instrumento, refere-se).
“Aliás, é o que a ‘lógica’ do sistema recomenda” (ver Hipótese de cabimento dos embargos infringentes: a falta
de clareza do sistema não pode prejudicar as partes, p. 26).

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Dos embargos infringentes e a reforma do Código de Processo Penal (PL nº 156/09) ... 45

sentença condenatória, o que mostra, per se, o impropério conduzido pela


proposta de reforma (inúmeras vidas foram salvas da prisão pela utilização
dos embargos infringentes na hipótese que se pretende restringir).
O lapso temporal do primeiro caso — TJRJ — restringe-se ao ano
de 2009, enquanto que no segundo — Tribunal de Justiça do Estado do
Paraná —, o lapso compreende o ano de 2009 a agosto de 2010.18
1 Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ):

Câmara Criminal Total de acórdãos (EI) Embargos Infringentes Embargos


encontrados no Tribunal de providos tendo como Infringentes
Justiça do Estado do Rio de origem uma sentença desprovidos
Janeiro condenatória
(jan./nov. 2009)19
Primeira Trinta e um Dez Onze
Segunda Trinta e dois Cinco Dezenove
Terceira Trinta Nove20 Dezessete
Quarta Vinte e quatro Dois Quatorze
Quinta Trinta e três Dezenove21 Quatro
Sexta Vinte e um Quatro Nove
Sétima Quarenta Treze Oito
Oitava Quarenta e um Seis22 Vinte e sete23

2 Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR):


(Continua)
Câmara Criminal Total de acórdãos (EI) Embargos Infringentes Embargos
de Composição encontrados no Tribunal de providos tendo como Infringentes
Integral Justiça do Estado do Paraná origem uma sentença desprovidos
(2009 a 2010) condenatória
Primeira Onze24 Um Cinco
Segunda Nove25 Cinco26 Um

18
Reafirma-se que, embora se trate de pesquisa por amostragem, as conclusões extraídas são fantásticas e, uma
vez que fosse estendida a um período temporal ainda maior, certamente os dados apenas robusteceriam a
posição aqui defendida. Acrescenta-se que o suporte metodológico desta investigação possui como padrão
de pesquisa as expressões “embargos e infringentes”, utilizando-se como objeto as decisões veiculadas através
do site do respectivo Tribunal de Justiça
19
Observa-se que do total de acórdãos encontrados, alguns não se referem ao padrão utilizado na pesquisa —
“embargos e infringentes”. Nesse sentido, excluiu-se, por exemplo, os embargos de declaração com efeitos
infringentes.
20
2 (dois) acórdãos não possuem origem em sentença condenatória, mas em decisão proferida em agravo em
execução.
21
4 (quatro) destes acórdãos foram proferidos em Agravo de Execução.
22
2 (dois) acórdãos não possuem origem em sentença condenatória, mas em decisão proferida em agravo em
execução.
23
Uma das decisões pelo desprovimento dos embargos infringentes possui como origem uma sentença absolutória,
reformada por maioria em acórdão condenatório.
24
1 (um) Embargos infringentes não conhecido por decorrência de prescrição retroativa; 1 (um) Embargos de
Declaração em Embargos Infringentes – rejeitado; 1 (um) Embargos Infringentes não conhecido entender-se
inadmissível o recurso contra decisão proferida em agravo regimental; 1 (um) Embargos de Declaração; 1 (um)
Embargos Infringentes julgado procedente, mas com sentença absolutória na origem.

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46 Antonio Pedro Melchior

(Conclusão)
Câmara Criminal Total de acórdãos (EI) Embargos Infringentes Embargos
de Composição encontrados no Tribunal de providos tendo como Infringentes
Integral Justiça do Estado do Paraná origem uma sentença desprovidos
(2009 a 2010) condenatória
Terceira Oito27 Zero Quatro
Quarta Três28 Zero Um
Quinta Sete29 Três Três

O confronto entre os resultados colhidos no Tribunal de Justiça


do Rio de Janeiro e do Tribunal de Justiça do Paraná mostra realidades
distintas e duplamente importantes para fins de análise crítica do Projeto
de Lei nº 156/2009.
Em primeiro lugar, saltam aos olhos a pequena quantidade de
embargos infringentes julgados pelo Tribunal de Justiça do Estado do
Paraná em quase um ano e meio (principalmente se comparado com
aquele obtido no Rio de Janeiro só no ano de 2009 — até novembro).
Por que as Câmaras do Tribunal de Justiça paranaense divergem
tão pouco? Esta homogeneidade sugere uma uniformização ideológica
dos desembargadores do TJPR? Questões importantes a se pensar em
qualquer sociedade que se quer plural e materialmente democrática.
De qualquer forma, importa observar que, mesmo um Tribunal
“artificialmente homogêneo” pode reverter graves quadros condenatórios
em embargos infringentes.
No Estado do Rio de Janeiro, muito provavelmente devido ao
sistema inicialmente itinerante do desembargador, as Câmaras Criminais
divergem mais, o que parece positivo ao amadurecimento legítimo da
decisão penal.
Neste contexto, interessante perceber que mesmo a 8ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça — de um total de quarenta e um —
proveu seis embargos infringentes (quatro com fundamento em sentença
condenatória na origem), o que já sugere a sua vital e imprescindível
importância à consolidação de um processo penal equitativo e justo.

25
2 (dois) Embargos de Declaração em Embargos Infringentes.
26
2 (dois) Embargos Infringentes providos em SER (decisão de pronúncia).
27
1 (um) Embargos de Declaração; 1 (um) Embargos Infringentes não conhecido; 2 (dois) Embargos Infringentes
providos, mas com conteúdo diverso do objeto da pesquisa: — condenação do Estado em pagamento de
honorários em sentença criminal; — Exclusão da fixação de indenização na sentença;
28
1 (um) Embargos Infringentes julgado procedente, mas — na origem — com sentença que desclassifica o
crime; 1 (um) Embargos Infringentes julgado prejudicado no mérito por reconhecimento de causa extintiva
da punibilidade.
29
1 (um) Embargos Infringentes julgado procedente, mas com sentença absolutória na origem.

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Dos embargos infringentes e a reforma do Código de Processo Penal (PL nº 156/09) ... 47

Nota-se, pois, que o aqui denominado “foco no placar” — responsável


por restringir a hipótese de incidência dos embargos infringentes — não
cumpre a vocação acusatória do processo penal e, portanto, o afasta de
sua única missão, qual seja a de servir como instrumento de um projeto
político essencialmente democrático. Dessa forma, é preciso compreender
— nos termos apontados pelo jurista e professor Geraldo Prado30 — que:

os embargos infringentes partem do pressuposto de que o acusado é inocente


até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e uma das expressões
processuais disso está em que seja beneficiado pela dúvida, a qual, em um
julgamento colegiado, toma corpo na dissidência (no voto divergente).
(...)
A dúvida não é mais ou menos importante quando apoiada em uma solução
do juiz de primeiro grau favorável à defesa! Dúvida é “estado de incerteza”. E
quando a dúvida se revela em um processo tendente a tolher exercício de direitos
fundamentais, com mais razão há de se “tolerar” o prolongamento do processo
para que outro órgão jurisdicional reveja a matéria e, se for o caso, corrija o erro.

Afinal, quando o processo penal concede uma sobrevida à oxigenação


da liberdade, “não se trata mais de uma questão matemática!”, trata-se de
reivindicar definitivamente uma cultura democrática em nossas terras.31

Conclusão
A análise de dezenas de acórdãos que julgaram total ou parcial-
mente providos os embargos infringentes — com origem em sentença
condenatória — dá conta de que há algo aparentemente equivocado (ou
dissimulado) nas proposições do PL nº 156/2009.
A conclusão extraída da pesquisa acima produz uma fratura exposta
nos preceitos da reforma, trazendo-a para a incômoda posição de saber
que a sua proposta de modificação dos embargos infringentes teria encar-
cerado dezenas de pessoas, mutilando inúmeras vidas.
Não por outro motivo, a restrição na incidência deste recurso implica-
ria inegável retrocesso na busca pelo aperfeiçoamento da instrumentalidade
garantista do processo e, por conseguinte, no cumprimento dos princípios
mais elementares de justiça.

30
PRADO, Geraldo. Os embargos infringentes no PL156/2009. Boletim IBCCRIM, n. 214. Disponível em: <http://
www.ibccrim.org.br/site/boletim/exibir_artigos.php?id=4168>. Acesso em: 03 nov. 2010.
31
Ibid.

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48 Antonio Pedro Melchior

É necessário, portanto, promover uma contra marcha na carga


ideológica da reforma — urgência desmesurada e restrição no âmbito de incidência
do recurso —, conferindo aos embargos infringentes a possibilidade de
cumprir o seu fundamental escopo: servir-se como dispositivo à ampliação
da legitimidade do poder presente na decisão criminal.
Em rumo proporcionalmente inverso ao que tem sido proposto,
argumenta-se que as hipóteses de interposição de embargos infringentes
devem ser estendidas, inclusive, para alcançar os acórdãos proferidos em
sede de agravo — também disciplinado pelo PL nº 156/09.
Até porque — é preciso lembrar — a retórica do assoberbamento de
trabalho nos Tribunais tem escancarado uma hipnótica tendência de
alguns magistrados em “seguir o relator”. Nestes tempos de “preguiça
inquisitiva”, é preciso exaltar a coragem democrática do voto divergente.
Assim, jamais perderemos de vista que, ao contrário da legislação processual
civil, o processo e o direito penal são construídos fundamentalmente sob
a “transpiração da dor” e que, por este motivo, a banalização da urgência
que atropela a vida e restringe o recurso cria um risco endógeno muito
maior ao sistema e à tutela das liberdades.
Nesta hora, nos dizem muito as palavras de Walt Whitman (afinal,
eles são, em todas as eras, os mais dignos desta ideia grandiosa).32

Grande as depressões e dores de parto e triunfos e fracassos da democracia,


Grande os reformistas com seus deslizes e gritos,
Grande o espírito de desafio e aventura dos marinheiros em novas explorações
(...)
Que a nova regra governe como a alma governa, como governam o amor e a
Justiça e a igualdade que existem na regra da alma.33

Abstract: The PL nº 156/09 amending the Criminal Procedure substantially


changes the subject of infringing embargoes. The inability to handle the
appeal if the defendant has been convicted at first instance and the sentence
has been upheld by the Court majority focused on the process to “score” and
forget the democratic vocation of embargoes infringers. The analysis of dozens
of judgments produces a fracture in the precepts of the reform, bringing it
to the uncomfortable position of knowing that their proposed change would
have maimed countless lives.
Key words: Reform of the Criminal Procedure Code. Embargoes infringe-
ment. Democratic vocation. Acquittal of origin.

32
A atitude dos grandes poetas é capaz de dar coragem aos escravos e horrorizar os déspotas.
33
WHITMAN, Walt. Grandes são os mitos. In: WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. São Paulo: Iluminuras, 2008.
p. 205.

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Dos embargos infringentes e a reforma do Código de Processo Penal (PL nº 156/09) ... 49

Referências

ALMEIDA, Jorge Luiz de. Dos embargos infringentes no anteprojeto do Código Processual
Penal. Justitia, São Paulo, v. 84, ano XXXVI, 1. trim. 1974.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São
Paulo: Cultrix, 2006.
CHOUKR, Fauzi Hassan. Bases para a compreensão e crítica do direito emergencial. In:
SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.). Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva.
São Paulo: Método, 2001.
CUNHA, Gisele Heloísa. Embargos infringentes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.
FAYE, Jean-Pierre. Introdução às linguagens totalitárias: teoria e transformação do relato. São
Paulo: Perspectiva, 2009.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan:
ICC, 2006.
LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade
garantista. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Novas vicissitudes dos embargos infringentes. Revista da
EMERJ, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, 1998.
PRADO, Geraldo. Os embargos infringentes no PL 156/2009. Boletim IBCCRIM, n. 214.
Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/site/boletim/exibir_artigos.php?id=4168>.
Acesso em: 03 nov. 2010.
PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais
penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006.
TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1977. v. 1.
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de
Janeiro: Revan, 2003.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Hipótese de cabimento dos embargos infringentes: a
falta de clareza do sistema não pode prejudicar as partes. Revista de Processo, São Paulo,
ano 34, n. 171, maio 2009.
WHITMAN, Walt. Folhas de relva. São Paulo: Iluminuras, 2008.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

MELCHIOR, Antonio Pedro. Dos embargos infringentes e a reforma do Código de Processo


Penal (PL nº 156/09): a “tirania” da urgência e a importância do voto divergente para o
processo penal justo. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
ano 19, n. 75, p. 37-49, jul./set. 2011.

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A metodologia na cognição judicial
Daniela Santos Bomfim
Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo Instituto JusPodivm. Mestranda em Direito Público
do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora
da Faculdade Baiana de Direito.

Resumo: A cognição judicial é uma atividade de pesquisa e de conhecimento,


na qual o método dedutivo é utilizado para que se estruture, no mundo do
pensamento, o fenômeno jurídico. Esta estrutura, entretanto, tem como
substância a relação recíproca entre o fato e a norma no círculo hermenêutico.
A objetividade da atividade judicial não está na impossível neutralidade do
juiz, mas na crítica efetiva que caracteriza o processo.
Palavras-chave: Cognição judicial. Pesquisa. Lógica dedutiva. Estrutura do
fenômeno jurídico. Círculo hermenêutico. Crítica efetiva. Contraditório.
Sumário: Introdução – 1 A cognição judicial como um ato de pesquisa – 2
O componente lógico da cognição: a relação entre o método dedutivo e a
estrutura do fenômeno jurídico – 3 O processo do compreender. A relação
estrutural entre o fato e a norma no círculo hermenêutico – 3.1 A norma no
processo do compreender – 3.2 O fato no processo do compreender – 3.3 A
relação fato e norma no processo do compreender: o círculo hermenêutico
– 4 A crítica efetiva como método que legitima a atividade cognitiva judicial
– Conclusão – Referências

Introdução
O conceito de cognição está relacionado ao de pesquisa, quer no que
concerne às questões incidentais, quer quanto à questão principal, todas
submetidas ao órgão jurisdicional. Por isso, no presente trabalho, buscar-
se-á compatibilizar o método da lógica dedutiva com a noção do círculo
hermenêutico, bem assim com a ideia de reciprocidade estrutural entre
fato e norma, sujeito e objeto. Isso porque, nada obstante a ideia de uma
verdade absoluta preexistente não mais possa prevalecer, a lógica dedutiva
não pode ser descartada na atividade de pesquisa do órgão jurisdicional,
eis que se trata da estrutura do fenômeno jurídico substancial no mundo
do pensamento.
De outra parte, esta estrutura não é vazia, e a atividade do magistrado
não é de mera subsunção em sentido estrito. A atividade cognitiva, tal
como a atenção, é criativa; não se trata de mera descoberta. Deve-se, pois,
identificar o conteúdo/a substância que preenche a estrutura da lógica
dedutiva na atividade da pesquisa judicial. É o que se propõe.

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52 Daniela Santos Bomfim

Por fim, considerando que a objetividade do conhecimento judicial


não se encontra na pretensão de neutralidade do magistrado, que não
pode ser despido de sua história e de pré compreensões, buscar-se-á
identificar o método da crítica efetiva, proposto por Karl Popper, como
aquele que objetiva e legitima o resultado da pesquisa judicial.

1 A cognição judicial como um ato de pesquisa


A pesquisa é a busca sistemática de solução para um dado problema.
Nas palavras de Antonio Carlos Gil: “Pode-se definir pesquisa como o
procedimento racional e sistemático que tem como objetivo proporcionar
respostas aos problemas que são propostos”.1
A pesquisa pressupõe, então, a existência de um problema. Nas
palavras de Antônio Carlos Gil, problema é toda “questão não solvida e
que é objeto de discussão, em qualquer domínio do conhecimento”.2
Problema e conhecimento se relacionam. Não há problema sem
conhecimento, assim como não há conhecimento sem problema. O pro-
blema surge do conhecimento e é, a partir do problema, que se tem o
conhecimento. É o que ensina Karl Popper:

(...) o conhecimento não começa de percepções ou observações ou de coleção de


fatos ou números, porém, começa, mais propriamente, de problemas. Poder-se-ia
dizer: não há nenhum conhecimento sem problemas; mas, também, não há
nenhum problema sem conhecimento. Mas isto significa que o conhecimento
começa da tensão entre conhecimento e ignorância. Portanto, poderíamos
dizer que, não há nenhum problema sem conhecimento; mas, também, não há
nenhum problema sem ignorância. Pois cada problema surge da descoberta de
que algo não está em ordem com nosso suposto conhecimento.3

É nessa perspectiva que problema, conhecimento e ignorância estão


estruturalmente relacionados. Não se pode imaginar qualquer um sem
os dois outros. É porque se conhece que se desconhece. E é porque se
conhece e se desconhece que se busca conhecer, solucionar. Pesquisar é
buscar conhecer. O conhecimento é o produto da pesquisa; o problema,
o seu pressuposto.
Antonio Carlos Gil refere-se à ideia de hipótese como a solução
possível ao problema, que, ao longo da pesquisa, será submetida à crítica

1
GIL. Como elaborar projetos de pesquisa, p. 17.
2
GIL. Como elaborar projetos de pesquisa, p. 23.
3
POPPER. Lógica das ciências sociais, p. 14.

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A metodologia na cognição judicial 53

para ser tida como verdadeira ou falsa.4 Esta noção aproxima-se àquela
referida por Karl Popper, em que a solução deve ser submetida à crítica
efetiva; é esta crítica que legitima e traduz a objetividade do conhecimento.5
Karl Larenz, ao se referir à compreensão das expressões linguísticas,
afirma que “interpretar é uma atividade de mediação pela qual o
intérprete compreende o sentido de um texto, que se lhe tinha deparado
como problemático”.6 O problema, no caso, envolve o sentido de dada
expressão linguística (que é signo de linguagem). Afirma, ainda, que, no
processo do compreender, “existe, por regra, uma conjectura inicial de
sentido, mesmo que por vezes ainda vaga”.7
A conjectura inicial de sentido é a hipótese do problema, a solução
possível de sentido, que, no processo do compreender, pode ser refutada
ou confirmada. Ainda que seja confirmada, o intérprete não retorna ao
ponto de partida, pois aí já não mais se tratará de hipótese, mas, sim, de
conhecimento.8
Nesse contexto, pode-se afirmar que, em toda pesquisa, a hipótese
é a conjectura inicial de resposta, que é possível justamente em face da
pré-compreensão do pesquisador, do fato de ser o problema decorrente
da tensão com um conhecimento prévio. O problema não surge do nada.
Ele surge do próprio conhecimento, que permite, pois, a formulação de
hipóteses.9 Cuida-se de solução possível, experimental, que deverá ser
submetida à crítica efetiva para que seja refutada. Apenas a crítica efetiva
legitima o conhecimento decorrente da pesquisa.
No âmbito da atividade jurisdicional, também se pode falar em
pesquisa, problema e hipótese.
Com efeito, a cognição judicial é um ato de inteligência, que,
segundo Kazuo Watanabe, consiste “em considerar, analisar e valorar
as alegações e as provas produzidas pelas partes, vale dizer, as questões
de fato e de direito que são deduzidas no processo e cujo resultado é o
alicerce, o fundamento do judicium”.10 A cognição é a atividade que tem
como resultado o conhecimento, vale dizer, a resposta do magistrado ao

4
GIL. Como elaborar projetos de pesquisa, p. 31.
5
POPPER. Lógica das ciências sociais, p. 21-22.
6
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 282-283.
7
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 288.
8
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 286-287.
9
POPPER. Lógica das ciências sociais, p. 16.
10
WATANABE. Da cognição no processo civil, p. 41.

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54 Daniela Santos Bomfim

que foi pedido. A cognição é, pois, a pesquisa da solução aos problemas


submetidos à apreciação do magistrado. Estes problemas são as questões.
Como ensina Fredie Didier Junior, na dogmática processual, o termo
“questão” assume dois significados:
a) questão como todo ponto de fato ou de direito controvertido, em
relação ao qual deve o magistrado pronunciar-se; e
b) questão como o próprio thema decidendum, questão principal a ser
decidida pelo magistrado.11
Em qualquer destas acepções, questão é problema, que deve ser
solucionado pelo órgão jurisdicional, que titulariza o dever de decidir,
correspectivo ao direito de ação da parte.
É nesse sentido que se distinguem as questões que devem ser resolvidas
incidenter tantum daquelas que devem ser resolvidas principaliter tantum.
A resolução das primeiras será posta como fundamento para a solução
de outras,12 assemelhando-se à cadeia dedutiva do método cartesiano. Em
relação a essa espécie de questões, há cognição e há resolução, mas não há
decisão, não há julgamento, de forma que a sua solução não ficará imune
em razão da coisa julgada.13 São também problemas a serem solucionados
na atividade cognitiva de pesquisa do magistrado, mas a solução não
comporá o fato jurídico da coisa julgada material. Uma vez resolvidas,
serão conhecimento definitivo apenas naquela relação jurídica material.
“Há questões, no entanto, que devem ser decididas, não somente
conhecidas.”14 Cuida-se das questões principais, que compõem o objeto
litigioso do processo. Veja-se: todas as questões compõem o objeto do
processo, mas apenas aquelas que devem ser decididas compõem o seu
objeto litigioso do processo. Com relação a elas, haverá decisão, que é
pressuposto fático da coisa julgada material. Com relação a todas, há
cognição, há pesquisa e há conhecimento.
A questão principal, que é submetida ao órgão jurisdicional, é a de
saber se a situação jurídica afirmada na demanda (como sua causa de pedir
próxima) existe ou não existe. É este o problema principal da atividade de
pesquisa do magistrado. Todos os demais problemas (questões incidentais)
serão solucionados para que sirvam de fundamento na busca de solução
da questão principal.
11
DIDIER JUNIOR. Curso de direito processual civil, v. 1, p. 293-294.
12
DIDIER JUNIOR. Curso de direito processual civil, v. 1, p. 294.
13
DIDIER JUNIOR. Curso de direito processual civil, v. 1, p. 294.
14
DIDIER JUNIOR. Curso de direito processual civil, v. 1, p. 294.

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A metodologia na cognição judicial 55

A ideia, aqui, assemelha-se àquela da cadeia dedutiva referida por


René Descartes. O método dedutivo é justamente a enumeração de coisas
em que “se deduz diretamente algumas verdades de outras”.15 O conceito
de verdade, entretanto, aqui, não pode ser aquele tido pelo autor, como ver-
dade absoluta revelada na pesquisa, mas, sim, como solução construída pro-
cessualmente, que será atingida pela preclusão (ainda que apenas formal).
O problema principal é, portanto, a existência ou não da situação
jurídica afirmada; problema, em regra, decorrente da tensão existente
entre as partes acerca da sua existência (o que caracteriza o interesse de
agir). Pode-se afirmar que, por meio da demanda, o autor traz ao Poder
Judiciário um problema a ser solucionado, ao longo do processo. Demais
disso, ele afirma uma solução que considera a melhor ao caso (a sua
hipótese). A hipótese do autor será submetida à crítica efetiva da parte
contrária, cujo escopo é justamente refutá-la. Ao final, cabe ao órgão
juris­dicional refutá-la ou certificar a sua existência, tal como afirmado na
hipó­tese do autor. Note-se que, nesse caso, a solução perde o seu caráter
de conjectura inicial — de mera afirmação — para que, na lógica juris-
dicional, seja conhecimento, que comporá, inclusive, o suporte fático da
coisa julgada material, já que se terá havido, além de cognição, decisão.
Nesse sentido, Henri Motulsky afirma que “réaliser le Droit, c’est
donc rechercher si le fait social à examiner donne ou non lieu à un droit
subjectif, s’intègre ou non dans une règle de Droit”.16
Portanto, realizar o direito seria, em suas palavras, “pesquisar” se o
fato social corresponde ou não ao pressuposto da norma, para, assim, criar
a situação jurídica (consequência jurídica). Dessa forma, ainda que a res-
posta seja negativa, estar-se-ia realizando o direito.17 Nas palavras do autor:

Et c’est ainsi que nous pouvons donner une définition de la réalisation du Droit:
c’est la tentative de penser un cas particulier comme contenu dans une règle de
Droit, et la constatation du résultat, positif ou négatif, de la recherche.18

Continua ressaltando que “a constatação do resultado da pesquisa”


pode assumir variadas formas. Para o juiz, por exemplo, a conclusão está
15
DESCARTES. Discurso do método e regras para a direção do espírito, p. 86.
16
MOTULSKY. Principes d’une réalisation méthodique du droit privé: la théorie des éléments générateurs des
drois subjectifs, p. 45.
17
MOTULSKY. Principes d’une réalisation méthodique du droit privé: la théorie des éléments générateurs des
drois subjectifs, p. 45.
18
MOTULSKY. Principes d’une réalisation méthodique du droit privé: la théorie des éléments générateurs des
drois subjectifs, p. 45.

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56 Daniela Santos Bomfim

na decisão. Um advogado consultado, por exemplo, sobre a viabilidade


de uma causa, emite sua opinião.19
Como se vê, para o autor, a realização do direito seria a pesquisa acerca
da sua existência, a partir da verificação dos seus elementos criadores,
vale dizer, dos seus pressupostos fáticos. O resultado da pesquisa pode ser
positivo ou negativo. A realização do direito pelo órgão jurisdicional é a
pesquisa acerca do direito afirmado pelo autor.
A demonstração da existência de um direito subjetivo — afirma,
ainda, Henri Motulsky — só poderia ocorrer, no espírito, sob a forma
do silogismo da determinação da consequência jurídica.20 A pesquisa dos
termos do silogismo ocorreria por meio da seleção dos fatos juridicamente
relevantes, do magma de fatos, e da norma aplicável.

Le juriste chargé de la réalisation du Droit se trouve devant un “cas particulier”,


qui se présent à lui sous la forme d’un “magma” de faits. (...) il faut, de l’ensemble
de l’ordre juridique positif, détacher une règle paraissant correspondre au cas
dont il s’agit; il faut, d’un autre côté, dégager du magma de faits les circonstances
juridiquement importantes: el il faut essayer de construire, avec ces mattérieux,
un syllogisme juridique.21

Os direitos são consequências jurídicas irradiadas apenas dos fatos


jurídicos — fatos ou conjunto de fatos que se inserem no mundo jurídico
por força da incidência normativa. São os elementos que compõem o fato
jurídico, que são chamados por Henri Motulsky como fatos criadores do
direito, que são destacados do magma de fatos.
Cabe ao autor/demandante afirmar a irradiação do direito por meio
da formação do fato jurídico. Cabe ao órgão jurisdicional, em sua pesquisa,
verificar a formação do fato jurídico e a irradiação da consequência
jurídica. Em ambos os casos, tem-se o fenômeno jurídico substancial no
mundo dos pensamentos, mas assumindo vestes diversas: no primeiro, é
afirmação; é hipótese; é solução possível. No segundo, é conhecimento; é
produto da pesquisa.
A pesquisa do magistrado ocorre, no espírito, sob a forma de um
silogismo, o silogismo da determinação da consequência jurídica. Este é

19
MOTULSKY. Principes d’une réalisation méthodique du droit privé: la théorie des éléments générateurs des
drois subjectifs, p. 46.
20
MOTULSKY. Principes d’une réalisation méthodique du droit privé: la théorie des éléments générateurs des
drois subjectifs, p. 47.
21
MOTULSKY. Principes d’une réalisation méthodique du droit privé: la théorie des éléments générateurs des
drois subjectifs, p. 50.

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A metodologia na cognição judicial 57

o seu componente lógico que a estrutura. Como afirma Kazuo Watanabe:


“procura-se reduzir a atividade do juiz, didaticamente, ao esquema de um
silogismo, no qual a regra jurídica abstrata constituiria a premissa maior,
os fatos representariam a premissa menor e o provimento do juiz seria a
conclusão”.22 Esta é a sua estrutura lógica, o seu elemento lógico.
Mas não é o único. A estrutura da pesquisa judicial não é um vazio,
não é oca. A atividade do magistrado não é de descoberta, mas, sim, de
constituição. Há valoração nos fenômenos da formação do fato jurídico
e da irradiação da consequência jurídica. É por meio da relação dos
seus elementos valorativos e do seu elemento lógico que a pesquisa do
magistrado se revela como um processo do compreender, por meio do
círculo hermenêutico. É o que se verá.

2 O componente lógico da cognição: a relação entre o método


dedutivo e a estrutura do fenômeno jurídico
René Descartes propõe a aplicação do método das ciências exatas
às ciências sociais. Afirma que seria necessário buscar um método
compreendendo as vantagens da lógica, da geometria e da álgebra, mas
isento de defeitos.23 São seus quatro preceitos fundamentais:
a) não se aceitar como verdadeira nenhuma coisa que não se
conhecesse evidentemente como tal;
b) dividir as dificuldades examinadas em tantas partes quanto
possível e necessário;
c) conduzir por ordem o pensamento, iniciando-se dos mais simples
e prévios para, gradativamente, os compostos e decorrentes;
d) fazer, para cada caso, enumerações completas e revisões gerais.24
No contexto do surgimento do paradigma da ciência moderna,
em que se buscava a racionalização da noção de verdade, para retirar-
lhe qualquer caráter místico ou teológico, afirmava que só haveria uma
verdade para cada coisa.25 Assim, o ato de pesquisa seria uma descoberta
da verdade escondida (e não uma criação).
A verdade seria o escopo da pesquisa. A sua primeira regra para o
espírito foi a seguinte: “Os estudos devem ter por finalidade a orientação

22
WATANABE. Da cognição no processo civil, p. 42.
23
DESCARTES. Discurso do método e regras para a direção do espírito, p. 31.
24
DESCARTES. Discurso do método e regras para a direção do espírito, p. 31-32.
25
DESCARTES. Discurso do método e regras para a direção do espírito, p. 33.

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58 Daniela Santos Bomfim

do espírito, para que possamos formular juízos firmes e verdadeiros sobre


todas as coisas que se lhe apresentam”.26
A ciência, como conhecimento certo e evidente, em que se
rejeitam conhecimentos apenas prováveis,27 valer-se-ia do método como
instrumento necessário para a procura da verdade.28 Conceitua método
como “regras certas e fáceis, graças às quais o que as observa exatamente
não tomará nunca o falso por verdadeiro e chegará, sem gastar esforço
inutilmente, ao conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que seja capaz”.29
O método proposto consistia “na ordem e disposição das coisas,
para as quais é necessário dirigir a agudeza do espírito para descobrir a
verdade”.30 Segundo o autor, “observaremos isto fielmente, se reduzirmos
gradualmente as proposições complicadas e obscuras e obscuras a outras
mais simples, e se depois, partindo da intuição das mais simples, tentar
nos elevar pelos mesmos graus ao conhecimento de todas as outras”.31
O método dedutivo seria a formulação de uma série de coisas em
que se deduz diretamente algumas verdades de outras.32 Cuidar-se-ia de
uma cadeia de silogismo (enumeração) “em um movimento contínuo e
jamais interrompido”.33
No que concerne à relação do método dedutivo com a dialética,
afirma René Descartes:

Imitamos os dialéticos apenas nisto: como eles, na exposição das formas dos
silogismos, supõem conhecidos os seus termos ou a matéria, assim também
supomos que a questão é perfeitamente compreendida. Não distinguimos,
porém, como eles, dois extremos e o meio. Consideramos o assunto desta forma:
primeiramente é necessário que em toda questão haja algo desconhecido, pois,
do contrário, a investigação seria vã; em segundo lugar, esse incógnito deve ser
designado de alguma maneira, pois do contrário não estaríamos determinados
a investigar isso melhor que qualquer outro objeto; em terceiro lugar, só pode
ser designado mediante algo que já seja conhecido.34

O método dedutivo é caracterizado pela enumeração, pela série,


pela cadeia de silogismos. Nas lições de René Descartes, o método
revelaria uma verdade preexistente.
26
DESCARTES. Discurso do método e regras para a direção do espírito, p. 73.
27
DESCARTES. Discurso do método e regras para a direção do espírito, p. 75.
28
DESCARTES. Discurso do método e regras para a direção do espírito, p. 80.
29
DESCARTES. Discurso do método e regras para a direção do espírito, p. 81.
30
DESCARTES. Discurso do método e regras para a direção do espírito, p. 83.
31
DESCARTES. Discurso do método e regras para a direção do espírito, p. 83.
32
DESCARTES. Discurso do método e regras para a direção do espírito, p. 86.
33
DESCARTES. Discurso do método e regras para a direção do espírito, p. 90.
34
DESCARTES. Discurso do método e regras para a direção do espírito, p. 177.

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A metodologia na cognição judicial 59

A estrutura do método dedutivo aproxima-se da estrutura do elemento


lógico da cognição judicial. Cuida-se do silogismo da determinação da con-
sequência jurídica, em que a premissa maior seria a norma jurí­dica — em
que se enlaçariam a hipótese fática abstrata e a consequência jurídica — e
a premissa menor, a afirmação de que os fatos da vida são equivalentes à
previsão hipotética da norma.
A estrutura do silogismo da determinação da consequência jurídica
— frise-se, faz-se referência à estrutura — aproxima-se daquela do mé-
todo proposto por René Descartes. Na linha do pensamento do mencio-
nado autor, poder-se-ia dizer que o silogismo seria o meio para que se
formulasse um juízo verdadeiro acerca da questão da existência ou não de
dada situação jurídica, questão submetida ao Poder Judiciário por meio
da postulação da parte. Nesse contexto, a atividade do magistrado não
seria criativa; caber-lhe-ia tão somente realização a subsunção do fato à
norma, revelando uma verdade preexistente, qual seja, a irradiação ou
não da consequência jurídica.
Nesse contexto, Merleau Ponty afirma que, para os empiristas, a
atenção seria como “um projetor que ilumina objetos preexistentes na
sombra. O ato de atenção então não cria nada, e é um milagre natural”.35
Esta concepção, de outra parte, aproxima-se da ideia de Pontes
de Miranda de que a incidência da norma seria automática e infalível.
Consoante a sua teoria do fato jurídico, deve-se distinguir o mundo dos
fatos (ou simplesmente mundo) do mundo jurídico. O mundo jurídico é
formado pelos fatos jurídicos, que são os fatos da vida qualificados (como
jurídicos), por forca da incidência da norma jurídica. Nesse sentido, é
célebre a metáfora por ele utilizada: “para que os fatos da vida sejam
jurídicos, é preciso que regras jurídicas — isto é, normas abstratas —
incidam sobre eles, desçam e encontrem os fatos, colorindo-os, fazendo-os
‘jurídicos’”.36
Dos fatos jurídicos decorrem efeitos jurídicos, situações jurídicas
em sentido lato (dentre as quais, as relações jurídicas). E apenas deles.
É incorreto afirmar que as relações jurídicas (bem assim os direitos e
deveres, posições jurídicas ativas e passivas) têm como fontes os fatos (da
vida) ou as normas. Os direitos subjetivos, compondo o conteúdo eficacial
das relações jurídicas, apenas decorrem de fatos jurídicos, resultado da

35
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 53.
36
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. I, p. 6.

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incidência da norma no suporte fático concreto.37 Mais do que apenas


fatos. Mais do que apenas norma.
Ocorre que, para Pontes de Miranda, uma vez verificado no mundo
o suporte fático concreto, haveria a incidência automática (e infalível) da
regra jurídica, qualificando o fato como jurídico (plano da existência do
fato jurídico).38 Sobre a incidência “infalível” da norma, afirma:

A incidência das regras jurídicas nada tem com o seu atendimento: é fato do
mundo dos pensamentos. O atendimento é em maior número, e melhor, na
medida do grau de civilização. A falta no atendimento é que provoca a não
coincidência entre incidência e atendimento (= auto-aplicação) e a necessidade
de aplicação pelo Estado, uma vez que não se tem mais, na quase totalidade dos
casos, a aplicação pelo outro interessado (justiça própria, ou de mão própria).39

Como se vê, para o autor, a incidência ocorreria automaticamente


independentemente de qualquer “dizer” do direito, quer pela parte inte-
ressada, quer pelo Estado. Estar-se-ia, então, no âmbito do atendimento
voluntário ou, se assim não ocorresse, no âmbito da aplicação pelo magis-
trado, já que se veda, em regra, a autotutela. Demais disso, em sua concep-
ção, não se poderia falar em interpretação dos fatos; os fatos apreendidos
pela norma seriam os fatos brutos, e não o enunciado fático decorrente de
sua interpretação.
Ocorre que, assim como a ideia de verdade absoluta e preexistente
do método cartesiano, a noção de infalibilidade da incidência normativa
não mais se sustenta. Como visto, cuida-se de noções relacionadas: a
ideia de infalibilidade da incidência normativa reflete uma concepção
positivista da atividade magistrado, que seria reveladora de um direito
preexistente, em nada criativa. Este paradigma, quer no que concerne ao
método de pesquisa científico, quer no que concerne à atividade do órgão
jurisdicional, já foi superado.
Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos relata acerca da crise
do paradigma da ciência moderna e acerca da emergência de um novo
37
Nas lições de Pontes de Miranda: “Não há direito subjetivo sem regra jurídica (direito objetivo), que incida
sobre suporte fático tido por ela mesma como suficiente. Portanto, é erro dizer-se que os direitos subjetivos
existiram antes do direito objetivo; e ainda o é afirmar-se que foram simultâneos. A regra jurídica é prius, ainda
que tenha nascido no momento de se formar o primeiro direito subjetivo” (Tratado de direito privado, t. V,
p. 271). Em idêntico sentido, Lourival Vilanova: “inexiste direito subjetivo sem norma incidente sobre fato do
homem” (Causalidade e relação no direito, p. 219).
38
“A incidência da lei, pois que se passa no mundo dos pensamentos e nele tem de ser atendida, opera-se no
lugar, tempo e outros ‘pontos’ do mundo, em que tenha de ocorrer, segundo as regras jurídicas. É, portanto,
infalível” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. I, p. 62).
39
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. I, p. 63.

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A metodologia na cognição judicial 61

paradigma, no qual carece de sentido a dicotomia entre ciências naturais


e ciências sociais, bem assim outras dicotomias como natureza/cultura,
mente/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, dentre outras.40
É nesse sentido, em que não cabem mais as dualidades, que se
apresenta a relação estrutural entre o fato e a norma. Não são os fatos
brutos que são apreendidos pela norma; nem é o texto normativo que
os apreende. No silogismo da determinação da consequência jurídica,
é o enunciado fático — decorrente da interpretação dos fatos — que é
apreendido; é a norma reconstruída, a partir da interpretação do texto
normativo ou de outros signos de linguagem que apreende. A atividade
de pesquisa do magistrado é uma atividade criativa, e não de descoberta.
A estrutura da lógica dedutiva não deve ser, de todo, afastada.
Ela é o componente lógico da cognição judicial. O método dedutivo é
também utilizado na pesquisa judicial, mas ele é compatibilizado com a
ideia de relação estrutural entre sujeito e objeto, entre fato e norma. É
o que se manifesta por meio do círculo hermenêutico no silogismo da
determinação da consequência jurídica.

3 O processo do compreender. A relação estrutural entre o fato e a


norma no círculo hermenêutico
3.1 A norma no processo do compreender
A vida é uma sucessão causal e contínua de fatos, mas nem todos
são relevantes para as relações inter-humanas a ponto de justificar a
interferência estatal. A comunidade jurídica, assim, regula os fatos e as
relações reputadas relevantes, para atribuir-lhes efeitos que repercutam
na convivência social.
Daí por que Henri Motulsky afirma que elaborar o direito “c’est
dégager de la matière brute des relations de la vie le principe normatif
qui, une fois cristallisé, devra régir, dans le futur, ces mêmes relations”.41
A regra de direito (tecnicamente mais correto: a norma jurídica) decorre
da multiplicidade das manifestações sociais. A realização da norma, logo,
como bem acentua M. Motulsky, na reintegração da norma à realidade
social de onde ela saiu.42
40
Cf. SANTOS. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados,
p. 46-71.
41
MOTULSKY. Principes d’une réalisation méthodique du droit privé: la théorie des éléments générateurs des
drois subjectifs, p. 16.
42
MOTULSKY. Principes d’une réalisation méthodique du droit privé: la théorie des éléments générateurs des
drois subjectifs, p. 17.

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A norma jurídica é estruturalmente composta pelo pressuposto (pré-


supposition, Voraussetzung) e pelo efeito jurídico (l’effet juridique, Rechtsfolge).
Esta é a fórmula de Stammler difundida na França por Henri Motulsky.43
No mesmo sentido, para Karl Larenz, a regra do direito tem a forma
linguística de uma proposição, a proposição jurídica, por ele assim definida:

A proposição jurídica enlaça, como qualquer proposição, uma coisa com a outra.
Associa à situação de facto circunscrita de modo geral, à “previsão normativa”,
uma conseqüência jurídica, também ela circunscrita de modo geral. O sentido
desta associação é que, sempre que se verifique a situação de facto indicada
na previsão normativa, entra em cena a conseqüência jurídica, quer dizer, vale
para o caso concreto.44

A norma jurídica teria a estrutura, portanto, de uma proposição,


por meio do qual se ligaria o pressuposto fático à consequência jurídica.
Acentua Karl Larenz que se deve, todavia, distinguir a consequência jurí-
dica da eficácia fática da norma.45
A consequência jurídica situa-se, sempre, no mundo do pensamento,
no mundo jurídico. Daí por que não se equivale à efetividade social da
norma. Demais disso, nem toda norma jurídica expressa um comando,
uma permissão ou uma proibição. Toda norma jurídica contém, isso
sim, uma ordenação de vigência. O seu sentido é colocar em vigência a
consequência jurídica prevista sempre que um fato concreto corresponder
à previsão fática abstrata que lhe for correspondente. E esta é a crítica
que Karl Larenz faz à teoria imperativista.46 A consequência jurídica é
modificação no mundo juridicamente vigente: é criação, modificação ou
extinção de situações jurídicas (em sentido lato), e não apenas de direitos
ou deveres a uma prestação.
O conceito estrutural da norma jurídica é também ressaltado por
Pontes de Miranda e por Marcos Bernardes de Mello (Pontes de Miranda
refere-se, normalmente a regra jurídica). Marcos Bernardes de Mello
define a norma como proposição em que há o enlace entre dois elementos:
a descrição de um suporte fático (abstrato) e os efeitos (abstratamente
previstos) que serão irradiados do fato jurídico respectivo.

43
MOTULSKY. Principes d’une réalisation méthodique du droit privé: la théorie des éléments générateurs des
drois subjectifs, p. 18.
44
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 351.
45
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 352.
46
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 358.

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A metodologia na cognição judicial 63

Desse modo, a norma jurídica constitui uma proposição através da qual se


estabelece que, ocorrendo determinado fato ou conjunto de fatos (=suporte
fático) a ele devem ser atribuídas certas consequências no plano do
relacionamento intersubjetivo (=efeitos jurídicos).47

A noção de suporte fático abstrato da teoria de Pontes de Miranda


equivale à de préssuposition/Voraussetzung de Henri Motulsky/Stammler
e à de pressuposto de Karl Larenz. De igual modo, na estrutura de
proposição, ao pressuposto fático abstrato ligam-se determinados efeitos
jurídicos para que sejam irradiados, uma vez se verificando, no mundo, o
suporte fático abstratamente previsto.
A norma jurídica não se confunde com o texto normativo. A estru­tura
lógica à qual nos referimos é da norma jurídica, e não do texto, do dispo-
sitivo normativo. Nesse sentido, Henri Motulsky: “cette structure logi­que
de la règle de Droit est tout à fait indepéndante de la rédaction”.48 Cabe
ao intérprete reconstituir, a partir do texto normativo, a regra (norma)
de direito que se depreende da vida.49 Na concepção de Henri Motulsky,
como se vê, a regra é resultado da relação recíproca do texto normativo e
dos fatos da vida. Se os fatos sociais são donnés para o legislador; o texto
normativo e os fatos particulares são donnés para o intérprete na recons-
trução da norma.

A chacun son travail donc. Le législateur peut se borner à traduire en contours


fermes les “arêts vives” des fluctuations du milieu social. Pour le technicien du
Droit, la loi est un “donné”; il lui appartient d’organizar lui même, pour les
besoins de son activité, la matière brute dont il dispose.50

Riccardo Guastini bem acentua a diferença entre texto e norma,


ao entender a interpretação jurídica como “a atribuição de sentido
(ou significado) a um texto normativo”.51 Na fórmula dos enunciados
interpretativos, em que “T significa S”, a variável T é a disposição, o texto,
que é objeto da interpretação: S está para a norma, que é o resultado da
interpretação.52
47
MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 20.
48
MOTULSKY. Principes d’une réalisation méthodique du droit privé: la théorie des éléments générateurs des
drois subjectifs, p. 19.
49
MOTULSKY. Principes d’une réalisation méthodique du droit privé: la théorie des éléments générateurs des
drois subjectifs, p. 19.
50
MOTULSKY. Principes d’une réalisation méthodique du droit privé: la théorie des éléments générateurs des
drois subjectifs, p. 20.
51
GUASTINI. Das fontes às normas, p. 23.
52
GUASTINI. Das fontes às normas, p. 26.

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No mesmo sentido, ensina Humberto Ávila: “Normas não são


textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da
interpretação sistemática de textos normativos”.53 Na verdade, como bem
observa o autor, trata-se de uma reconstrução de sentido — o sentido
semântico inicial inerente ao texto.
Uma norma pode ser decorrente da interpretação de vários
dispositivos, assim como há norma sem texto (o princípio da cooperação,
por exemplo), como texto sem norma (o preâmbulo da Constituição).
Podemos pensar, ainda, na norma jurisprudencial, construída a partir
dos precedentes (que são fatos da vida). A súmula é um texto normativo
de cuja interpretação decorre a norma jurídica. A interpretação da súmu-
la deve ser realizada a partir dos precedentes que lhe deram origem. Há
norma jurídica jurisprudencial mesmo quando inexiste texto sumulado. Os
precedentes funcionam, então, como sinais de cuja interpretação conjunta
decorre a norma jurídica, como uma exteriorização tácita de vontade.
Portanto, deve-se evidenciar que é a norma jurídica estruturada como
proposição, independente da estrutura do texto (signo de linguagem)
ou dos sinais (circunstâncias fáticas) dos quais ela é decorrente. Estes
funcionam como ponto de partida da interpretação cujo sentido inicial
a eles atribuído pode, inclusive, ser revisto no decorrer do processo do
compreender.

3.2 O fato no processo do compreender


De outra parte, também os fatos são objeto de interpretação. O fato
(da vida) em si não existe (ou, ao menos, careceria de utilidade tentar
imaginá-lo). Existem interpretações, apreensões, compreensões sobre o
fato. A realidade é linguagem. Carece de sentido pensar em algo que seja
pré-linguístico.
Nesse contexto, em que se considera que os fatos são também objeto
da interpretação, relaciona-se a noção da relação sujeito-objeto proposta
pela fenomenologia de Merleau-Ponty e Martin Heidegger.
Na concepção fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty, o objeto
é tal como ele é percebido pelo sujeito. É pedra angular da fenomenologia
a relação entre o objeto e o sujeito. O objeto é reconstruído, e não
descoberto. Nesse sentido, até mesmo o ato de atenção seria constitutivo.

53
ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 30.

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A metodologia na cognição judicial 65

O ato de atenção seria a mudança da estrutura da consciência. Nesse


sentido, afirma o autor:

Prestar atenção como uma mudança da estrutura da consciência. “Prestar atenção


não é apenas iluminar mais dados preexistentes, é realizar neles uma articulação
nova considerando-os como figuras. Eles só estão pré-formados enquanto
horizontes; verdadeiramente, eles constituem novas regiões do mundo total. É
precisamente a estrutura original que eles trazem que manifesta a identidade
do objeto antes e depois da atenção.54

A atenção seria constitutiva na medida em que representa a configu-


ração dos dados tidos no horizonte; cuida-se da passagem do indetermi-
nado ao determinado; a retomada, a cada instante, de um novo sentido.55

O milagre da consciência é fazer aparecer pela atenção fenômenos que


estabelecem a unidade do objeto em uma dimensão nova, no momento em que
eles a destroem. Assim, a atenção não é nem uma associação de imagens, nem
o retorno a si de um pensamento já senhor de seus objetos, mas a constituição
ativa de um objeto novo que explicita e tematiza aquilo que até então só se
oferece como horizonte indeterminado.56

Existem tantas verdades como existem tantas percepções (interpre-


tações) do objeto. Não se pode pretender uma noção de verdade absoluta
e anterior, tal como acreditava René Descartes. Daí por que não se pode
falar de objeto sem sujeito. Sabe-se que são dois elementos distintos, mas
um não existe sem o outro, tal como o fato e a norma.
No texto Sobre a essência da verdade, Martin Heidegger afirma que o
verdadeiro, seja o ente, seja o enunciado/enunciação/proposição, é aquilo
que está de acordo, está em conformidade. Afirma: “Ser verdadeiro e
verdade significam aqui: estar de acordo, e isto de duas maneiras: de
um lado, a concordância entre uma coisa e o que dela previamente se
presume, e, de outro lado, a conformidade entre o que é significado pela
enunciação e a coisa”.57
Como se vê, o autor identifica a essência da verdade na relação
circular entre o ente e o conhecimento sobre o ente (que é o enunciado).
O ente é tido como verdadeiro na medida em que há sobre ele um juízo
54
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 58.
55
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 59.
56
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 59.
57
HEIDEGGER. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento; Sobre a essência da verdade; O que é metafísica?,
p. 331.

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66 Daniela Santos Bomfim

de concordância com a pré-compreensão sobre ele. De outro modo, o


resultado deste juízo valorativo (que é interpretação) também vai ser
valorado como verdadeiro ou não verdadeiro.
A relação entre o ente e o enunciado aproxima-se da relação entre
o fato e o enunciado fático no círculo hermenêutico proposto por Karl
Larenz. Na premissa menor do silogismo de determinação da consequência
jurídica (S é um caso de P), “S” não é a situação de fato em bruto, mas,
sim, o enunciado fático, resultado da interpretação da situação de fato. S
é um enunciado fático, e não a situação de fato em bruto. Cuida-se, aqui,
do processo de conformação da situação de fato.58

3.3 A relação fato e norma no processo do compreender: o círculo


hermenêutico
O fato, para o Direito, assim só o é quando considerado em relação
há norma. Fato e norma são, ao mesmo tempo, separáveis e inseparáveis;
distintos e não distintos. Cuida-se de uma relação de implicação de um na
concepção do outro; uma associação estrutural recíproca.59
Certamente, esta implicação estrutural recíproca ocorre no mundo
do pensamento (la pensée juridique); é uma operação intelectual, à qual
Maan Bou Saber, em sua tese de doutorado na Universidade de Paris II
– Assas denominou de Moyen.60 O Moyen proceder-se-ia por meio de duas
formas essenciais que estão no fundo de toda forma de conhecimento: (a)
abstração e (b) síntese.
A abstração seria a dissociação (procedimento do espírito) realizada
em dados brutos da experiência que pressupõe uma condição negativa e
uma positiva. A negativa consiste no fato de que, no todo complexo, só se
pode compreender que uma parte dele, uma qualidade ou um aspecto.
A apreensão do todo não nos é impossível. A positiva consiste no estado
de “reforçamento” daquilo que se abstrai (para aquele contexto) e, logo,
de enfraquecimento do que não se abstrai. Assim, a real característica da
abstração seria o crescimento parcial (condição negativa) de intensidade
(condição positiva).61
Vale frisar: ainda que se suponha uma operação eliminatória, cuida-se
de um procedimento positivo do espírito. Os elementos omitidos não
58
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 389.
59
BOU SABER. Le moyen: essai d’une théorie générale. Le lien entre le substantiel et le processuel, p. 55.
60
BOU SABER. Le moyen: essai d’une théorie générale. Le lien entre le substantiel et le processuel, p. 52 et seq.
61
BOU SABER. Le moyen: essai d’une théorie générale. Le lien entre le substantiel et le processuel, p. 52.

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A metodologia na cognição judicial 67

comportam necessariamente uma supressão. Eles não são selecionados


por, naquele contexto, não serem convenientes ou relevantes.62
A síntese, por sua vez, é a unidade do diverso. Não se cuida de
“distinguir sem separar” (abstração), mas de “unir distinguindo”. “Au lieu
de voir deux où il y a un, nous devons voir un là où il y a deux.”63 A síntese
ou unificação relaciona-se, pois, à ligação (relação, vínculo) necessária.
Fato e norma são elementos diversos, mas se deve pensar o fato
quando se pensa a norma (e vice-versa). Os dois termos (fato e norma)
são, então, tidos como, ao mesmo tempo, separáveis e inseparáveis. Para
que estejam ligados, os dois elementos devem ser diferentes sem o serem.64
Não há fato (para o direito) se não há norma, assim como não há
norma se não há fato. Daí por que M. Bou Saber fala em “impossibilité
de concevoir l’un distinctement de l’autre”.65 E continua: “Le moyen est
associaniste, une structure associative à l’interieur de laquelle un élément,
le Fait, se trouve lié à un autre élément, la Norme”.66 Tem-se a ideia de
vínculo estrutural, servindo de vetor a um tipo de ação causal.
O fato, bem como a norma, nesta operação do pensamento, não
é objeto de um “conhecimento completo” — o conhecimento só seria
completo se o objeto é concebido como “algo completo” sem a necessidade
de outro elemento para que o seja ou que todo outro elemento possa
ser-lhe negado. Assim não se verifica na relação fato e norma. Os dois
elementos, aqui, não podem ser concebidos independentemente, mas,
apenas, um em relação ao outro.67
Simone Goyard-Fabre utiliza a expressão “interpenetração do fato
e do direito” para caracterizar a constante conexão que revela a descrição
da realidade jurídica. Afirma: “Du fait au droit, du droit aux faits, c’est
donc un “incessant échange” un passage pérpetuel” qui s’opère”.68 E mais
adiante: “C’est donc impossible d’établir entre le droit et les faits une
ligne de démarcation au tracé net, et il nous semble beaucoup plus exact
de parler de “l’interpénétration du fait et du droit”.69
Esta ideia de relação recíproca entre o fato e a norma é característica
do círculo hermenêutico proposto por Karl Larenz. Larenz distingue as
62
BOU SABER. Le moyen: essai d’une théorie générale. Le lien entre le substantiel et le processuel, p. 53.
63
BOU SABER. Le moyen: essai d’une théorie générale. Le lien entre le substantiel et le processuel, p. 54.
64
BOU SABER. Le moyen: essai d’une théorie générale. Le lien entre le substantiel et le processuel, p. 54.
65
BOU SABER. Le moyen: essai d’une théorie générale. Le lien entre le substantiel et le processuel, p. 55.
66
BOU SABER. Le moyen: essai d’une théorie générale. Le lien entre le substantiel et le processuel, p. 55.
67
BOU SABER. Le moyen: essai d’une théorie générale. Le lien entre le substantiel et le processuel, p. 55.
68
GOYARD-FABRE. Essai de critique phénoménologique du droit, p. 56.
69
GOYARD-FABRE. Essai de critique phénoménologique du droit, p. 56.

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68 Daniela Santos Bomfim

noções de “situação de fato em bruto” e “situação de fato definitiva”. A


“situação de fato em bruto” também ela não seria o fato bruto em si,
mas já uma interpretação daquele que a relata e a percepciona. O
intérprete parte da “situação de fato em bruto” para, dela, selecionar as
circunstâncias fáticas juridicamente relevantes e atribuir-lhes significado
(interpretá-las) a partir das normas possivelmente aplicáveis. A “situação
de fato definitiva” é o resultado desta operação e irá constituir a premissa
menor do silogismo da determinação da consequência jurídica.70
Na premissa menor do silogismo da determinação da consequência
jurídica (“S é um caso de P”), “S” não seria a situação de fato bruto (e
note-se, mais uma vez, que também esta seria resultado de alguma
interpretação), mas, sim, um enunciado fático construído pelo intérprete,
a partir das possíveis proposições jurídicas aplicáveis no caso.71
Da situação de fato em bruto, o julgador seleciona e interpreta
(abstração no sentido de M. Bou Saber) as circunstâncias fáticas relevantes
a partir das proposições jurídicas potencialmente aplicáveis. Ocorre que
estas também serão escolhidas (mais uma vez, a ideia de abstração proposta
por M. Bou Saber) e reconstruídas a partir da situação de fato em apreço.
Portanto, a construção do enunciado fático (a partir da situação de fato em
bruto) e a construção do enunciado normativo (a partir do texto) seriam
operações que se inter-relacionam em sua própria estrutura interna.
Esta é a ideia do círculo hermenêutico, do ir e vir na perspectiva.
Nas palavras de Karl Larenz:

O “ir e vir da perspectiva” entre a situação de facto e a proposição jurídica não


deve conceber-se como se o observador mudasse apenas a direcção do seu olhar,
mas trata-se antes de um processo de pensamento em cujo decurso a “situação
de facto em bruto” será conformada enquanto situação de facto acabada (como
enunciado) e o texto da norma (como que a norma em estado bruto), na norma
suficientemente concretizada para a apreciação desta situação de facto. Este
processo está de tal modo condicionado pela colocação da questão de direito,
que encontra o seu termo com a resposta definitiva — em sentido afirmativo
ou negativo — a esta questão.72

A concretização da norma e a apreensão (ou qualificação jurídica)


dos fatos são, pois, duas operações concomitantes e sinalagmáticas. Vale

70
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 391 et seq.
71
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 391 et seq.
72
LARENZ. Metodologia da ciência do direito, p. 395.

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dizer: entre elas há uma relação da causalidade recíproca, segundo M.


Bou Saber.73
Na verdade, é mais. É uma relação de interdependência estrutural.
A concretização da norma pressupõe a (re)construção da norma, a partir
da situação fática. A qualificação jurídica do fato pressupõe a construção
do enunciado fático (que figura na premissa menor do silogismo da
determinação da consequência jurídica), a partir das normas juridicamente
aplicáveis. Se não há norma (reconstruída), não há qualificação jurídica
do fato. Se não há fato (selecionado), não se concretiza a norma.
Por isso, Simone Goyard-Fabre afirma que a qualificação jurídica
dos fatos não é uma questão de vocabulário, nem tampouco uma operação
superficial de atribuir às condutas humanas um vocábulo jurídico (não
é uma operação de denominação).74 A qualificação do fato pelo direito
não é um fenômeno linguístico, mas, sim, uma operação do fenômeno
jurídico. A qualificação jurídica dos fatos é uma valoração dos fatos. É a
sua interpretação conforme o direito positivo.75
Além de conceituar a qualificação jurídica como um fenômeno de
intelligibilisation des faits, como já referido, a autora o caracteriza como
phénoméne d’idéation, referindo-se à relação recíproca constante entre o
fato e o Direito. Afirma que a união, na normatividade jurídica, do fato e
do Direito apresenta-se mediante dois aspectos complementares e inse-
paráveis: o preenchimento do direito pelo fato e a indissociável apreen-
são do fato pelo direito.76
É nesta interpenetração do fato e da norma, por meio da relação
recíproca entre a apreensão jurídica do fato e a concretização da norma,
que se tem a formação do fato jurídico. O fato jurídico é o resultado das
operações concomitantes e indissociáveis que são a incidência normativa
(concretização normativa) e apreensão do fato. A juridicização do fato
é a unidade das duas operações, que são duas e são uma. E esta é a
ambiguidade da lógica jurídica. Qualificar um fato como jurídico não é,
certamente, uma operação linguística, é um fenômeno da lógica jurídica.
Cuida-se de operações do espírito, que se verificam no mundo do
pensamento. Pressupõem ambas valoração. A incidência e/ou a apreensão
não podem ser automáticas ou “infalíveis”, já que a norma que irá incidir
73
BOU SABER. Le moyen: essai d’une théorie générale. Le lien entre le substantiel et le processuel, p. 63.
74
GOYARD-FABRE. Essai de critique phénoménologique du droit, p. 68.
75
GOYARD-FABRE. Essai de critique phénoménologique du droit, p. 69.
76
GOYARD-FABRE. Essai de critique phénoménologique du droit, p. 70.

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70 Daniela Santos Bomfim

não existe previamente, assim como o fato bruto não é o suporte fático
concreto do fato jurídico.
O processo do compreender, como se vê, é caracterizado pelo
rompimento da dualidade sujeito/objeto, quer no que concerne aos textos
normativos ou demais sinais de linguagem, quer no que concerne aos fatos.
Nesse contexto, ressalta-se o emergente paradigma científico, ao qual
se refere Boaventura de Sousa Santos, em que carece de sentido a dicotomia
ciências naturais e ciências sociais, bem assim outras dicotomias. Neste
novo paradigma, não se tem um conhecimento dualista, considerando,
inclusive, a relação estrutural recíproca entre o que antes era tido em faces
opostas. Por exemplo, o conceito de natureza depende daquele de cultura;
não há natureza sem cultura nem cultura sem natureza. São dois; é um.
Daí a noção de ambiguidade. No âmbito do Direito, por exemplo, é o que
ocorre com a superada dicotomia interesse público/interesse privado. É o
que ocorre com as noções de sujeito e objeto.77

O conhecimento do paradigma emergente tende assim a ser um conhecimento


não-dualista, um conhecimento que se funda na superação das distinções tão
familiares e óbvias que até há pouco considerávamos insubstituíveis, tais como
natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/
observado, subjetivo/objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa. Este relativo
colapso das distinções dicotômicas repercute-se nas disciplinas científicas que
sobre elas se fundaram.78

Neste paradigma pós-moderno, o conhecimento constitui-se a


partir de uma pluralidade metodológica transdisciplinar. Nesse método
transdisciplinar, não mais existe a dicotomia sujeito/objeto, tal como
foram superadas as demais. Sujeito e objeto, tal como o fato e norma,
relacionam-se reciprocamente em sua estrutura. Por isso, afirma o autor
que o objeto é continuação do sujeito, e todo conhecimento científico
seria autoconhecimento. O conhecimento científico não seria descoberto,
mas, sim, criado, por meio de um ato criativo protagonizado pelo sujeito.
Afirma o autor:

(...) podemos afirmar hoje que o objeto é a continuação do sujeito por outros
meios. Por isso, todo o conhecimento científico é autoconhecimento. A ciência
não descobre, cria, e o ato criativo protagonizado por cada cientista e pela

SANTOS. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, passim.
77

SANTOS. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, passim.
78

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A metodologia na cognição judicial 71

comunidade científica no seu conjunto tem de se conhecer intimamente antes


que conheça o que com ele se conhece do real.79

Jean-Paul Sartre, já sob a ótica do método existencialista, é tido


como um revolucionário justamente por tirar a pretensão de verdade da
ciência. O método, no existencialismo, não estaria em busca da verdade,
mas propõe a interação entre subjetivo e objetivo, que é construída.80
O referido autor refere-se ao indivíduo e aos objetos como signifi-
cantes. Nesse sentido, na relação fato e norma, a linguagem está sempre
presente.81 Os fatos são significantes em dado jogo de linguagem. De outra
parte, o Direito é linguagem. A norma é o significado reconstruído dos
seus significantes (signos, como os textos normativos, ou sinais, como pre-
cedentes jurisprudenciais).
De outra parte, Jean-Paul Sartre propõe a superação da visão clássica
marxista da dialética para propor o método progressivo-regressivo, carac-
terizado pela ideia de ambiguidade, inclusive na interação construída en-
tre objetivo e subjetivo.82 Esta ideia de ambiguidade é, como visto, também
característica na relação fato e norma. Só há fato (para o Direito) quando
há norma; só há norma quando há fato. São distintos, mas não o são.
Esta noção de ambiguidade também é característica na relação entre
o ente e o nada referida por Martin Heidegger. Ao referir-se à angústia, o
autor distingue-a do temor. Teme-se algo determinado. Tem-se angústia
pelo indeterminado. A angústia manifesta o nada.83
É na fuga para o nada, enquanto suspensos na angústia, que o ente,
inclusive o ente cognoscente, se delineia, que ele “estar aí” (Dasein).

Suspendendo-se dentro do nada o ser-aí já sempre está além do ente em sua


totalidade. Este estar além do ente designamos a transcendência. Se o ser-aí, nas
raízes de sua essência, não exercesse o ato de transcender, e isto expressamos
agora dizendo: se o ser-aí não estivesse suspenso previamente dentro do nada,
ele jamais poderia entrar em relação com o ente e, portanto, também não
consigo mesmo. (...)
O nada é a possibilitação da revelação do ente enquanto tal para o ser-aí humano.
O nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente à
essência mesma (do ser).84

79
SANTOS. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, passim.
80
SARTRE. O existencialismo é um humanismo; A imaginação; Questão de método, passim.
81
SARTRE. O existencialismo é um humanismo; A imaginação; Questão de método, passim.
82
SARTRE. O existencialismo é um humanismo; A imaginação; Questão de método, passim.
83
HEIDEGGER. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento; Sobre a essência da verdade; O que é metafísica?, p. 236.
84
HEIDEGGER. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento; Sobre a essência da verdade; O que é metafísica?, p. 239.

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72 Daniela Santos Bomfim

Não há o nada sem o ente; não há o ente sem o nada. Aqui também
relação estrutural recíproca. Aqui também há ambiguidade.
Em síntese, a estrutura lógica do silogismo dedutivo é preenchida
pelo círculo do compreender, em que a atividade de pesquisa do
magistrado certamente não será isenta de valoração. Não se trata de
descoberta de uma verdade preexistente acerca da incidência normativa
e da irradiação da consequência jurídica. Cuida-se de atividade criativa.
A objetividade do conhecimento judicial (do resultado da pesquisa)
não está na pretensa neutralidade do julgador, hoje já tida como ideal
impossível. O julgador não pode ser desgarrado da sua carga histórica, de
suas pré-compreensões. A objetividade da atividade cognitiva do órgão
jurisdicional está justamente na crítica efetiva que antecede o resultado da
pesquisa. É o processo que legitima a decisão jurisdicional.

4 A crítica efetiva como método que legitima a atividade cognitiva


judicial
Nesse contexto de identidade estrutural recíproca entre sujeito e
objeto, não se pode pretender a neutralidade do cientista e do julgador
para que se revele uma verdade preexistente no ato de pesquisa científica
ou judicial.
Afirma Karl Popper que “é um erro admitir que a objetividade de
uma ciência dependa da objetividade do cientista. E é um erro acreditar
que a atitude do cientista natural é mais objetiva do que a do cientista
social”.85 Não se pode eliminar do sujeito os seus valores, científicos ou
não científicos. Para Karl Popper, “é claramente impossível eliminar tais
interesses extra-científicos e evitar sua influência no curso da pesquisa
científica”,86 notadamente considerando que a própria pretensão de
isenção de valores é, em si, um valor.

(...) não podemos roubar o partidarismo de um cientista sem também roubá-lo


de sua humanidade, e não podemos suprimir ou destruir seus juízos de valores
sem destruí-lo como ser humano e como cientista. Nossos motivos e até nossos
ideais puramente científicos, inclusive o ideal de uma desinteressada busca da
verdade, estão profundamente enraizados em valorações extra-científicas e,
em parte, religiosas. Portanto, o cientista “objetivo” ou “isento de valores” é,
dificilmente, o cientista ideal. Sem paixão não se consegue nada — certamente
não em ciência pura. A frase “a paixão pela verdade” não é uma mera metáfora.

85
POPPER. Lógica das ciências sociais, p. 22.
86
POPPER. Lógica das ciências sociais, p. 25.

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A metodologia na cognição judicial 73

(...) a objetividade e a liberdade em relação a tais dependências, são valores


em si mesmos. E, desde que, a liberdade de valores é, ela própria, um valor, a
exigência incondicional de liberdade em relação a qualquer ligação a valores
é paradoxal.87

A objetividade do conhecimento científico, na visão do autor, não está


na neutralidade do sujeito cognoscente, mas, sim, na crítica efetiva e perma-
nente que caracteriza o método da pesquisa à qual está submetido o conhe­
cimento, sempre provisório. O autor não nega o papel da lógica dedutiva
na atividade do conhecimento; ao contrário, busca compatibilizá-la com a
impossibilidade de neutralidade destacada. É nesse sentido que a função
mais importante da lógica dedutiva seria o de um sistema de crítica.88
Para o autor, o método científico “consiste em tentativas experimen-
tais para resolver nossos problemas por conjecturas que são controladas
por severa crítica. É um desenvolvimento crítico consciente do método de
‘ensaio e erro’”.89 Não se trata apenas de crítica formal. A crítica há de ser
efetiva; a solução experimental deve ser criticada para que seja refutada.
Não se poderia criticá-la apenas para confirmá-la. Todo conhecimento
seria, assim, provisório, já que submetido constantemente à crítica efetiva.
A objetividade da ciência não estaria, pois, na suposta liberdade
do cientista individual com relação aos valores, mas, sim, no instrumento
principal da crítica lógica (a contradição lógica). A objetividade estaria
na crítica que torna possível a superação dos dogmas. O que torna o
conhecimento legítimo (vale ressaltar que seria apenas uma conjectura)
seria a crítica recíproca, o resultado da divisão hostil-amistosa entre os
cientistas (de cooperação e competição) que o antecedeu.90
De outra parte, Karl Popper elucida a ideia de explicação ou, mais
precisamente, de explicação causal, como a solução tentada de um pro-
blema científico. Como visto, em seu pensamento, nenhum conhecimento
seria definitivo, sendo decorrente de problemas aos quais são atribuídas
soluções experimentais sujeitas à crítica. É a crítica recíproca que daria
objetividade ao conhecimento.91
A explicação seria, assim, uma teoria, um sistema dedutivo, uma
conjectura. O que se pretende explicar é o explicandum. O sistema dedu-
tivo que é a explicação relaciona o explicandum (consequência na lógica
87
POPPER. Lógica das ciências sociais, p. 25.
88
POPPER. Lógica das ciências sociais, p. 26.
89
POPPER. Lógica das ciências sociais, p. 21.
90
POPPER. Lógica das ciências sociais, p. 26.
91
POPPER. Lógica das ciências sociais, p. 28-29.

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dedutiva) a outros fatos, chamados condições iniciais. A explicação consiste


em demonstrar que o explicandum decorre/deriva (relação de derivação
lógica) da teoria reforçada pelas condições iniciais.92
Assim, logicamente, a explicação poderia ser estruturada por meio
de uma inferência dedutiva entre as premissas (teoria e condições iniciais),
tendo como conclusão o explicandum.93
O sistema dedutivo da explicação proposto por Karl Popper muito
se aproxima do silogismo da determinação da consequência jurídica
referido por Karl Larenz, tendo como primeira premissa proposição
jurídica e como segunda a verificação, por meio do círculo hermenêutico,
de que o enunciado fático corresponde à hipótese normativa.
Assemelha-se, também neste contexto, à estrutura do fenômeno
da irradiação da consequência jurídica na teoria de Pontes de Miranda.
É nesse sentido também que Henri Motulsky afirma que, como visto, a
demonstração da existência de um direito só poderia ocorrer, no espírito,
sob a forma do silogismo da determinação da consequência jurídica.94
O fenômeno jurídico substancial é estruturado por meio da lógica
dedutiva e daí a importância do método dedutivo na atividade cognitiva
de pesquisa. Ocorre que, em sendo uma atividade também valorativa,
esta estrutura tem como substância o círculo hermenêutico, em que fato
e norma se relacionam estruturalmente para formar o fato jurídico e
irradiar a consequência jurídica.
O fenômeno jurídico é certeza (conhecimento) quando compõe a
lógica judicial e é estruturado por meio do sistema dedutivo da explicação
proposto por Karl Popper. O produto da atividade cognitiva (no que
concerne à questão principal) do órgão jurisdicional de certificação de um
direito é estruturado por meio de uma conclusão (o explicandum) a partir
da constatação da existência de seus pressupostos fáticos.
A objetividade e a legitimidade deste conhecimento não estão
na já superada pretensão de neutralidade do magistrado, mas, sim, na
crítica recíproca que lhe antecede, vale dizer, no diálogo processual,
do qual participam partes e órgão jurisdicional. É o contraditório que
legitima a decisão judicial. E não se trata apenas de um contraditório
formal, mas também um contraditório substancial, como efetivo poder
92
POPPER. Lógica das ciências sociais, p. 28-29.
93
POPPER. Lógica das ciências sociais, p. 28-29.
94
MOTULSKY. Principes d’une réalisation méthodique du droit privé: la théorie des éléments générateurs des
drois subjectifs, p. 47.

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A metodologia na cognição judicial 75

de influência. Fazendo alusão aos ensinamentos de Karl Popper, não se


pode criticar buscando confirmar a solução criticada, mas, sim, buscando
efetivamente refutá-la.
Vale frisar que o processo é o método, o meio, de legitimar uma
decisão (o que seria, na concepção de Karl Popper, a solução) por meio
da participação em contraditório daqueles que podem ser por elas
influenciados. É o processo (em sentido amplo, não apenas o processo
judicial) que legitima a decisão.
No diálogo processual, as manifestações das partes também são
estruturadas por meio da inferência dedutiva da explicação. Cuida-se
do fenômeno jurídico substancial como causa de pedir (em afirmação)
e como objeto do contraditório. Aquele que postula afirma ser titular de
uma situação jurídica ativa (direito subjetivo) — que seria o explicandum
— decorrente dos pressupostos fáticos afirmados (seriam as condições
iniciais). A causa de pedir é, assim, composta pela afirmação do direito
(causa de pedir próxima) e do fato jurídico (causa de pedir remota).
A tarefa da parte demandada é, então, tentar desconstruir o sistema
dedutivo, a teoria, a explicação afirmada pela parte autora. Deve eviden-
ciar que a solução proposta pelo autor não subsiste à crítica que lhe é feita.
O exercício do contraditório, evidencia-se, mais uma vez, é o exercício da
crítica visando refutar a solução proposta.
Por fim, deve-se ressaltar que, no que concerne às lições de Karl
Popper, a ideia de conhecimento permanentemente provisório não se aplica
ao produto da atividade de pesquisa do magistrado, em face do instituto
da preclusão, inclusive da coisa julgada material, em decorrência do prin-
cípio da segurança jurídica e da relação do processo com o formalismo.

Conclusão
São as conclusões deste trabalho:
1 A cognição é a pesquisa da solução aos problemas submetidos à
apreciação do magistrado. Estes problemas são as questões, incidentais e
principais.
2 A pesquisa do magistrado ocorre, no espírito, sob a forma de
um silogismo, o silogismo da determinação da consequência jurídica. O
método dedutivo é também utilizado na pesquisa judicial, mas ele é com-
patibilizado com a ideia de relação estrutural entre sujeito e objeto, entre
fato e norma.

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76 Daniela Santos Bomfim

3 A estrutura lógica do silogismo dedutivo é preenchida pelo círculo


do compreender, em que a atividade de pesquisa do magistrado certa-
mente não será isenta de valoração. Não se trata de descoberta de uma
verdade pré-existente acerca da incidência normativa e da irradiação da
consequência jurídica. Cuida-se de atividade criativa.
4 A objetividade e a legitimidade do conhecimento judicial não estão
na já superada pretensão de neutralidade do magistrado, mas, sim, na crí­
tica recíproca e efetiva que lhe antecede, vale dizer, no diálogo processual,
do qual participam partes e órgão jurisdicional. É o contraditório que legi-
tima a decisão judicial.

Résumé: L’activité du juge est une activité de recherche et de connaissance,


où la méthode de dedution est utilizée comme structure, dans le monde de
la pensée, du phénomène juridique. Cette structure, cependant, a comme
contenu la relation réciproque entre le fait et la norme dans le cercle de la
compréhension. L’objectivité de l’activité du juge n’est pas dans la neutralité
du juge, qui n’est pas possible, mais dans la critique qui caracterize le process.
Les mots-clés: L’activité du juge. Recherche. Méthode de dedution. Structure
du phénomène juridique. Cercle de la compréhension. Critique.

Referências

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
10. ed. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009.
BOU SABER, Maan. Le moyen: essai d’une théorie générale. Le lien entre le substantiel et
le processuel. Thése de Doctorat apresentée à l’Université de Paris II – Assas, 2009.
DESCARTES, René. Discurso do método e regras para a direção do espírito. Tradução de Pietro
Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001.
DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil. 11. ed. rev. ampl. e atual. Salvador:
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A metodologia na cognição judicial 77

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Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 75, p. 51-77, jul./set. 2011.

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A petição inicial e suas dimensões
ensináveis para estudantes de direito
Fernanda Favre
Advogada. Professora especialista em Direito de Família e Sucessões. Mestranda em Educação
(USF – Universidade São Francisco).

Luzia Bueno
Professora do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação (USF – Universidade São Francisco).

Resumo: O Direito trabalha com diversas peças processuais. Entre todas elas,
destacamos a petição inicial, que é um gênero que se faz muito importante,
por iniciar o processo. Visando entender melhor este gênero textual para
depois poder ensiná-los a estudantes de direito, este artigo tem como objetivo
mostrar ao leitor os resultados de uma análise de petições iniciais, expondo
os passos mais importantes para, através dela e do pedido nela contido, se
invocar a tutela jurisdicional e se obter êxito em uma demanda judicial, bem
como discutir e apontar os elementos que irão compor a relação jurídica, ou
seja, o fato jurídico (causa de pedir), o pedido (objeto da demanda) e as partes
(sujeitos da ação), mas expondo também as características linguísticas desse
gênero. A concepção adotada para a análise é a enunciativo-discursiva da
linguagem pautada na teoria de Bakhtin/Voloshinov (1997). Fundamentamo-
nos no modelo de análise de textos do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD),
conforme Bronckart (1997, 1999 e 2004), sobretudo em suas discussões sobre
os níveis de análise de um texto. A nossa análise permitiu-nos perceber que
a petição vai além do que apresentam os manuais tão centrados na estrutura
textual; uma petição tem elementos no nível da situação de produção, dos
aspectos discursivos e dos linguístico-discursivos que precisam ser trabalhados
com os alunos para que eles possam elaborar melhor os textos desse gênero.
Palavras-chave: Petição inicial. Gênero textual. Interacionismo Sociodiscursivo.
Dimensões ensináveis.
Sumário: Introdução – 1 A petição inicial como gênero textual – 2 A petição
e a composição de um processo – 3 A importância do pedido dentro da
petição inicial – 4 O Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) – 4.1 Modelo de
análise de gêneros no ISD – 5 Modelo didático do gênero “petição inicial”
– 5.1 Metodologia empregada – 5.2 A situação de produção – 5.3 Aspectos
discursivos (ou organização textual) – 5.4 Aspectos linguístico-discursivos (ou
a linguagem) – 6 Considerações finais – Referências – ANEXO I – ANEXO II

Introdução
Como docente do ensino superior há cinco anos, iniciamos o estudo
aprofundado dos vários gêneros textuais presentes no processo brasileiro

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com os alunos de primeiro ano de graduação do curso de Direito em uma


universidade particular do interior de São Paulo, na cidade de Jundiaí, na
disciplina de Interpretação e Produção de Textos, sendo que desde então
nota-se a dificuldade do aluno em contar logicamente ao magistrado
todos os fatos ocorridos; em expor a causa de pedir, ou seja, narrar o fato
jurídico e deste decorrer o direito material aplicável ao caso concreto para
se chegar ao pedido, que é o efeito jurídico pretendido.
A autora do texto, professora na UNIP – campus Jundiaí, advogada
desde 2000, especialista de Direito de Família e Sucessões pelo CEU
(Centro de Extensão Universitária/SP), eleita secretária geral adjunta da
33ª Subsecção da OAB pelo triênio 2010-2012, além de ter tido grande
participação há mais de seis anos nas atividades da Ordem dos Advogados
do Brasil na subsecção desta mesma cidade, hoje como Mestranda em
Educação, analisa bem de perto a dificuldade dos alunos em lidar com os
termos e formalidades do mundo jurídico. Pensando nisso, nasceu este
artigo em conjunto com sua professora orientadora do Mestrado.
Esta dificuldade dos alunos vem demonstrada também nos altos
índices de reprovação dos exames da OAB (Ordem dos Advogados do
Brasil). Pesquisando acerca do último exame nacional aplicado neste ano
de 2010, agora já unificado no Brasil, temos que São Paulo, onde está
a maior seccional do Brasil, de 23.349 inscritos, somente 3.197 foram
aprovados. Ou seja, somente 13,69% dos bacharéis obtiveram sucesso
no exame. A OAB Federal publicou recentemente dados estatísticos dos
desempenhos das instituições de ensino superior que tiveram seus egressos
matriculados no exame de ordem nº 3.2009. Tais dados demonstram que
os estudantes de Direito não estão com o conhecimento mínimo necessário
para a prática da advocacia, infelizmente.1
Frente a essa realidade, decidimos investigar um dos gêneros textuais
mais importantes de um processo, a petição inicial, a fim de ajudarmos os
estudantes de direito a compreender e produzir melhor esse texto. Para
isso, buscamos apoio na área de Educação e nas Ciências da Linguagem
a fim de explorarmos esse gênero textual em todas as suas dimensões
ensináveis para futuramente podermos repensar como fazermos nossas
intervenções didáticas.

1
Fonte: <www.portalexamedeordem.com.br/...exame-de-ordem-3-2009-a-maior reprovação-da-história-do-
exame-unificado/>. Acesso em: 15 set. 2010.

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Este artigo apresenta uma primeira análise que fizemos de algumas


petições iniciais no início de uma pesquisa de mestrado em Educação a fim
de detectarmos as dimensões ensináveis do gênero textual petição inicial.
Para apresentar e fundamentar a nossa análise, organizamos o nosso artigo
em seis seções. Na primeira, expomos por que vemos a petição como um
gênero; na segunda, mostramos a importância da petição no interior de
um processo; na terceira, discutimos sobre o valor do pedido na petição;
na quarta, revisitamos o quadro teórico que embasou a nossa análise;
na quinta, apresentamos a metodologia empregada e os resultados da
análise, e na sexta, fazemos as nossas considerações finais.

1 A petição inicial como gênero textual


Logo de início, denominamos petição inicial como um gênero tex-
tual. Mas por que ela vem a ser um gênero textual? Explicaremos nesta
seção do texto, utilizando ideias do autor Marcuschi (apud DIONÍSIO;
MACHADO; BEZERRA, 2007) acerca do tema, onde temos que

Os gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida


cultural e social. Como fruto de um trabalho coletivo, eles contribuem para orde-
nar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia. Importante dizer que
embora os gêneros textuais não se caracterizem, nem se definam por aspectos
formais, não podemos desprezar sua forma. Isto porque quando dominamos
um gênero textual, não dominamos uma forma lingüística e sim uma forma de
realizar linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares.

Como bem afirmou Bronckart (1999, p.103), “a apropriação dos


gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prá-
tica nas atividades comunicativas humanas”, o que permite dizer que os
gêneros textuais operam, em certos contextos, como forma de legitimação
discursiva, já que se situam numa relação sócio-histórica em fontes de
produção que lhes dão sustentação muito além da justificativa individual.
Para Bakhtin (1979), os gêneros textuais são concebidos a partir de
uma concepção enunciativo-discursiva da linguagem e podem ser com-
preendidos a partir de três aspectos, ou seja, estilo verbal, construção
composicional e conteúdo temático.
O estilo verbal está relacionado à construção composicional e diz
respeito às marcas linguísticas que podem ser notadas nas sequências tex-
tuais que compõem os gêneros. Certamente, na petição inicial, o autor, ao

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se dirigir ao magistrado, irá requerer diversas providências processuais


pertinentes até se chegar à decisão final de mérito, passando pelo pedido
de citação do réu, para junto dele compor a triangulação processual.
Referente à construção composicional, ela está atrelada à estruturação
geral do gênero, demonstrando-se os elementos propriamente marcados
desse gênero, que vão desde a formatação do texto até a organização
da sequência textual predominante, que aqui será narrativa e também
argumentativa.
Quanto ao conteúdo temático da petição, ele irá apresentar os temas
pertinentes ao caso relatado e permitirá ao enunciador selecionar os
pontos mais relevantes para que consiga obter êxito no final do processo.
Pelo que foi acima explanado, torna-se evidente que a petição inicial
é um gênero textual, até pela vinculação cultural e social que possui com
as ciências jurídicas, em se buscar, através do Poder Judiciário a obtenção,
declaração ou constituição de um Direito pleiteado pelo autor em face de
determinado réu.

2 A petição e a composição de um processo


Entendamos agora o papel da petição inicial dentro de um processo,
já que é ela que irá iniciá-lo; irá ser a responsável para que o Estado seja
acionado para resolver um problema, uma pretensão resistida. Desta peti-
ção inicial, o réu, uma vez citado, irá apresentar sua Contestação, a fim de
se defender de todos os fatos alegados pelo autor. Em seguida, estes dois
documentos, com todas as provas anexadas, formam um processo, que irão
para as mãos do Juiz que decidirá o caso, favorável ao autor da petição ini-
cial ou ao réu, quem contestou o pedido inicialmente formulado.
Esta decisão virá a partir de uma sentença de mérito, proferida
pelo magistrado. A sentença, como um terceiro gênero textual na ordem
processual dará fim ao caso.

Deve-se mencionar que o juiz está limitado, na sua decisão, pelos fatos jurídicos
e pelo pedido formulados. Importantes são os fatos que o juiz deve conhecer
como narrados pelo autor na petição inicial, cumprindo-lhe proceder, mediante
atividade probatória processualmente admissível, à verificação dos mesmos,
para tê-los ou não como verídicos.

Com o propósito de apresentar um estudo acerca do gênero petição


inicial, levaremos em consideração, inicialmente, o estudo do pedido que

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nela deverá conter, uma vez que é preocupação constante dos advogados
que o pedido da ação seja julgado procedente.
Deverão, então, ser observados no pedido da inicial se: a) o objeto da
ação é lícito (lícito é o objeto não proibido por lei); b) se há possibilidade
jurídica (é previsto e tutelado em lei); c) se o pedido faz ou não parte do
objeto de outra ação; e, ainda, d) se há eventual prescrição.

3 A importância do pedido dentro da petição inicial


Com relação ao pedido, destaquemos que toda petição inicial deve
conter ao menos um pedido. Trata-se de requisito elementar do instru-
mento da demanda, pois não se pode falar, no plano lógico, de petição sem
pedido. Petição sem pedido é petição inepta, a ensejar o seu indeferimento.
O pedido é o que se pede, não o fundamento ou a razão de pedir. É o
objeto imediato e mediato do processo. É aí que está o motivo da discórdia,
que o juiz vai desfazer, declarando quem está com a verdade. Como um
dos elementos objetivos da demanda (junto com a causa de pedir), adquire
o pedido importância fundamental na atividade processual.
Pela importância do pedido, contido na petição inicial, o juiz deverá
acolher ou rejeitar como foi ele formulado pelo autor, sem que se lhe
permita ir além, ficar aquém ou fora do mesmo, ainda quando lhe seja
permitido apenas referi-lo parcialmente.
A petição inicial deve ser redigida de maneira lógica e compreen-
sível, de modo que o réu possa entender o pedido e defender-se. Inepta
será a petição inicial que não expõe com clareza os fatos, os fundamentos
jurídicos do pedido e suas especificações. Todavia, não será considerada
inepta quando, apesar de não ser um modelo de técnica, permite a prepa-
ração da defesa sem dificuldade para o réu. Eis aqui a importância da boa
argumentação na narração dos fatos. Isto porque os argumentos são ele-
mentos linguísticos que visam à persuasão. Argumentos não são verdadeiros
ou falsos, mas fortes ou fracos, conforme o seu poder de convencimento. No
Direito não prevalece a lógica formal, mas a lógica argumentativa, aquela
em que não existe propriamente uma verdade universal, não existe uma
tese aceita por todos em qualquer circunstância, como a física, por exem-
plo. A verdade formal, sobretudo no processo civil, sobrepõe-se à verdade
real: o que não está nos autos, não está no mundo.
Como resultado desta importante análise do pedido a ser feito,
teremos o tipo de ação que vai ser proposta, ou seja, o pedido nas ações

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declaratórias deverá ser meramente declaratório, precisando que o objeto


é a simples declaração, já que esta basta para assegurar o bem de vida
pretendido pelo autor. Nas ações constitutivas, deve-se formular o pedido
de forma precisa: que visa ou pretenda a modificação, criação ou extinção
de uma relação jurídica ou de um estado, dizendo o bem da vida que
deseja alcançar, como por exemplo, a separação judicial, a anulação de
um contrato, etc. Por último, nas ações condenatórias, deve-se formular
o pedido de forma que não haja qualquer dúvida e seja uma prestação
certa por parte do réu; seja ela uma obrigação de dar, de fazer ou não
fazer qualquer coisa, devendo sempre tornar certo e determinado o bem
da vida que pretende.
Concluindo acerca do pedido contido no gênero petição inicial, deve-
se ressaltar que é ela que vai estabelecer os limites da própria sentença,
posto que tanto o advogado do autor, como o do réu devem verificar cons-
tantemente se a sentença exarada está em conformidade com o pedido.
A importância da petição na composição de um processo e o valor
do pedido são tratados nos manuais que buscam apresentar modelos
dos gêneros textuais empregados no direito; no entanto, notamos que
ao levarmos para a sala de aula os modelos dos manuais acabamos por
tratar parcialmente deste gênero, já que não o abordamos, de verdade,
como um gênero, mas sim como uma estrutura que pode ser preenchida
igualmente em qualquer situação. A fim de estudarmos a petição em sua
complexidade, buscamos apoio em um quadro teórico interdisciplinar,
que une a psicologia, a sociologia, as ciências linguísticas e a educação: o
Interacionismo Sociodiscursivo (doravante ISD).

4 O Interacionismo Sociodiscursivo (ISD)


Nesta seção, apresentaremos o Interacionismo Sociodiscursivo
(ISD), visto que ele nos fornece bases para entender e refletir sobre o
agir humano por meio de textos pertencentes aos diferentes gêneros tex-
tuais. Baseando-se nos trabalhos de Vigotski, Bakhtin/Voloshinov, Marx,
Habermas, entre outros, Bronckart (1999, 2004), pesquisador que iniciou
o ISD, afirma que, durante o processo de desenvolvimento, os homens
foram travando relações entre si e, com isso, propiciando o surgimento da
linguagem. No início, esta linguagem estava apenas aliada à sobrevivên-
cia, contudo, com o passar do tempo, começou a regular as atividades e
interações humanas, assegurando-lhes grande desenvolvimento.

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A corrente do interacionismo social, o interacionismo sociodiscursivo


(ISD) tem como uma de suas preocupações centrais estudar o papel funda-
mental da atividade discursiva no desenvolvimento humano (BRONCKART,
2004). Parte do programa de estudo do ISD concentra-se na elaboração de
um modelo coerente que explique a organização interna dos textos. Este
modelo foi desenvolvido por Bronckart a partir de trabalhos de linguística
e análise dos discursos coerentes com a visão do ISD.

4.1 Modelo de análise de gêneros no ISD


O modelo de análise de textos proposto por Bronckart (1999, 2008)
não foi formulado para que se fizessem aplicações didáticas; contudo,
tal modelo foi retomado por pesquisadores de didática de línguas como
Schneuwly e Dolz (2004), Machado (2009), Bueno e Mendes (2010), entre
outros, que perceberam nele um importante instrumento para se elaborar
intervenções didáticas.
Para Bronckart (1999, 2004), os textos podem ser analisados a
partir da compreensão de sua situação de produção e de sua arquitetura
interna. No trabalho didático, esses dois aspectos foram retomados e
reorganizados em três níveis de análise. O primeiro nível diz respeito
à situação de produção de um texto que envolve as representações que
o produtor tem de si mesmo e dos outros, pois, enquanto enunciador
de um texto, o produtor assume um papel social, com um determinado
objetivo, frente a um destinatário, que também assume um papel social e
em um dado lugar social. Os dois níveis seguintes abordam elementos da
arquitetura interna dos textos.
O segundo nível trata dos aspectos discursivos, que estão ligados
ao conteúdo temático e sua forma. O conteúdo temático diz respeito ao
conjunto de assuntos que um gênero irá tratar. O formato do texto trata da
análise dos aspectos discursivos; podemos citar entre eles questões como
a implicação do autor, se o texto está em primeira pessoa e se tem marcas
que remetem à situação de produção. Também podemos analisar quais
as sequências textuais que o compõem, ou seja, uma sequência narrativa,
descritiva, argumentativa, descritiva de ações, injuntiva, instrucional,
dialogal ou até nenhuma destas.
O terceiro nível centra-se nos aspectos linguísticos discursivos, que
são relativos à sua linguagem. Sobre a língua, neste caso, analisaremos as
questões relativas aos mecanismos de textualização (coesão e conexão) e aos

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mecanismos enunciativos (vozes e modalizações). A coesão é responsável no


texto pela unidade de sentido. Há duas formas diferentes de estabelecê-la:
a coesão nominal e a coesão verbal, responsáveis pela relação entre os
nomes, verbos e os outros termos presentes no enunciado. A conexão diz
respeito à ligação entre as partes do texto. As vozes presentes em um texto
revelam informações sobre o autor, os personagens, as pessoas citadas, etc. e
as modalizações são avaliações que podem ser notadas no interior do texto.
Esses três níveis estão totalmente interligados, já que o produtor,
dependendo da situação de produção, fará as escolhas do gênero, do con-
teúdo temático, da forma e da linguagem. Portanto, no ensino de gêne-
ros, será muito importante mostrar aos alunos a ligação entre esses três
níveis para estes possam efetivamente agir por meio dos textos, indo além
de uma mera reprodução de uma estrutura sem condições de atingir as
suas finalidades.
Contudo, para que possamos fazer um bom trabalho em sala de
aula com gêneros, devemos antes elaborar um modelo didático, ou seja,
um levantamento de suas características nos três níveis de análise já apre-
sentados.
O procedimento de construção do modelo didático de um gênero
compreende a consulta às ciências do discurso, às teorias de desenvolvi-
mento de línguas, às teorias sobre o gênero em questão; à observação e
à análise de exemplares do gênero, e também consulta aos depoimentos
de especialistas no gênero. Ao se fazer isso, poderemos chegar então às
características ensináveis de um gênero nos níveis de análise conforme
exposto por Bronckart, ou seja, a situação de produção, os aspectos dis-
cursivos e os aspectos linguístico-discursivos.
Ao trabalharmos com estas diferentes dimensões ensináveis, pode-
remos desenvolver em nossos alunos diferentes capacidades de lingua-
gem, que podem levá-los a saber agir por meio da linguagem: escolhendo
o melhor gênero para cada situação; sabendo organizar a forma/ a estru­
tura de seu texto e selecionado as marcas linguísticas adequadas para atin-
gir o seu objetivo.

5 Modelo didático do gênero “petição inicial”


5.1 Metodologia empregada
A pesquisa foi desenvolvida a partir da análise de duas petições
iniciais elaboradas por advogados da cidade de Jundiaí-SP, sendo a

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primeira delas uma Ação ordinária de cobrança e a segunda uma Ação de


Investigação de Paternidade cumulada com (c.c) pedido de Alimentos (os
nomes das partes aqui foram preservados apenas com suas iniciais, pelo
fato do processo tramitar em segredo de Justiça).
Em geral, a análise foi feita levando em consideração os procedi-
mentos estabelecidos pelo quadro teórico metodológico do ISD. Desse
modo, é importante analisar: a situação de produção, os aspectos discur-
sivos, ou seja, a organização-estrutura textual (plano global do conteúdo
temático, implicações do autor e tipos de sequência (narrativa, argumen-
tativa, explicativa, descritiva, dialogal, etc.) e os aspectos linguístico-dis-
cursivos, ou seja, linguagem (mecanismos de textualização e mecanismos
enunciativos).
De acordo com o levantamento de dados realizado nas petições pes-
quisadas, pudemos notar muitas características comuns nos textos, sendo
que algumas destas características são até obrigatórias, por expressa previ-
são legal. Vamos iniciar a apresentação dos resultados da análise conforme
o modelo desenvolvido por Bronckart (1999) e suas três dimensões ensi-
náveis: a situação de produção, os aspectos discursivos e os aspectos lin-
guístico-discursivos.

5.2 A situação de produção


O contexto social das duas petições analisadas é bastante semelhante.
O destinatário, em ambos os casos, são os juízes da comarca de Jundiaí,
sendo que na ação de cobrança, é um juiz de uma das varas cíveis, enquanto
que na ação de investigação de paternidade é o juiz de uma das varas de
família e sucessões. O enunciador é sempre o autor da ação, quem plei-
teia do réu algum direito, por meio de um advogado. O lugar social é o
processo, que, nestes casos, tramitará no fórum da comarca de Jundiaí. O
objetivo, na ação de cobrança, é pedir a condenação do réu para que efetue
o pagamento da dívida realizada; na ação de investigação de paternidade
cumulada com o pedido de alimentos, o objetivo é que o réu reconheça a
paternidade do menor e colabore com sua parte no sustento deste, através
do pagamento dos alimentos.
Esta situação de produção interferirá nas escolhas que serão feitas
no nível dos aspectos discursivos e no nível dos linguístico-discursivos.

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5.3 Aspectos discursivos (ou organização textual)


No nível dos aspectos discursivos, visando atingir os objetivos já
apresentados na seção sobre a situação de produção, encontramos as
características descritas a seguir.
A estrutura da petição é composta por:
- endereçamento ao juiz competente a cada caso;
- qualificação das partes (autor que vem propor determinada ação
em face do réu) por meio de uma descrição com os dados necessá-
rios para o processo;
- a narração dos fatos ocorridos, durante a qual se procura mostrar
que há uma situação-problema, cuja solução só o juiz pode dar, já
que as partes esgotaram o seu poder de ação;
- o direito aplicável ao caso em análise: parte em que se procura
mostrar que leis fundamentam o pedido;
- os pedidos feitos ao juiz: parte em que se expressa explicitamente e
de modo objetivo o que se espera do juiz frente à situação descrita,
- e a assinatura do advogado, que é aquele que representa o autor,
com seu respectivo número de inscrição nos quadros da ordem dos
Advogados do Brasil no fim da petição.
A petição é escrita sem implicação da primeira pessoa e com verbos
nos tempos do pretérito do indicativo, mantendo-se, assim, uma impessoa-
lidade que gera também uma objetividade maior ao texto. De forma geral,
nas petições há o apagamento de marcas dos participantes na interação
verbal; não há uma pessoa específica que se comunica ou dialoga direta-
mente com o leitor, há apenas uma narração dos fatos que contribui para
a construção de uma argumentação que sustentará o pedido feito ao juiz.

5.4 Aspectos linguístico-discursivos (ou a linguagem)


Contribuindo para reforçar a estrutura apresentada anteriormente
para se atingir o objetivo apresentado na situação de produção, encontra-
mos as seguintes características no nível dos aspectos linguístico-discursivos:
- coesão nominal: seleção de palavras para designar os envolvidos
(autora/genitora/réu/devedora) e qualificar as suas ações (compra/
paternidade) de modo a deixar claro de quem se está tratando em
cada momento e a que fatos se faz referência;
- coesão verbal: os verbos aparecem no pretérito na fase de narração
dos fatos, já que estes já ocorreram; mas no tempo presente ao se

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A petição inicial e suas dimensões ensináveis para estudantes de direito 89

fazer o pedido, uma vez que é a partir deste momento, com a


petição, que se espera uma ação do juiz.
- conexão: a ligação entre os termos das frases nas petições iniciais é
feita, geralmente, por conjunções ou locuções conjuntivas (embora,
já que, etc.); há ainda uma grande presença de verbos e advérbios
de tempo a fim de situar o receptor da petição acerca da sequência
lógica dos fatos ocorridos (principalmente na ação de investigação
de paternidade, os dados temporais são indicadores decisivos para
a propositura de uma ação lógica e bem fundamentada).
- modalizadores: nota-se a escolha de certos pronomes indefinidos
(vários, diversos, nenhum, toda, etc.), alguns adjetivos (inerte,
sozinha, procedente, etc.) e determinados advérbios (totalmente,
somente, etc.) que contribuem para que se avalie o fato ou a
ação do autor ou ainda do réu a fim de enfatizar a gravidade do
problema, como se pode ver na frase da petição 2 “Sozinha então,
somente contando com a ajuda de seus próprios pais, a genitora
teve que criar, com suas modestas condições e visíveis dificuldades,
seu filho até hoje.” A insistência no uso do “não” ao designar as
ações não realizadas pelo “pai” na petição sobre a paternidade
também contribuem para caracterizar o réu como efetivamente
culpado. Logo, notamos que a modalização também é um item
muito importante ao se construir uma petição.
- voz: a voz que aparece nas petições iniciais é a do advogado, que
tem poderes para representar o autor da ação ao relatar algo, bem
como pedir ao juiz. (...vem, com todo acatamento, por seu advo-
gado, consoante comprova o incluso instrumento de mandato, à
presença de V. Exa., propor...), mas também notamos à recorrên-
cia à voz das leis, como quando se cita o Código do Processo Civil.
- intertextualidade: pode ocorrer em algumas petições iniciais exem-
plos de ligação do caso apresentado com outros bem semelhantes,
para facilitar o convencimento do juiz ao proferir sua deci­são. A isso,
damos o nome de jurisprudência (decisões reiteradas de Tribunais,
citadas a casos semelhantes). Todavia, nos dois exemplos de peti-
ções aqui trazidas e analisadas, não temos jurisprudência citada.

6 Considerações finais
Em disciplinas relativas à leitura e produção de textos no curso de
direito geralmente se enfatiza a importância da estrutura das petições

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90 Fernanda Favre, Luzia Bueno

iniciais, levando muito estudantes a acreditarem que bastará adotar um


bom manual e colar-se ao modelo ali oferecido para que se possa construir
um texto adequado a um processo.
Todavia, nossa análise de apenas duas petições já nos mostra que,
além de uma estrutura formal, a petição contém vários elementos nos
níveis da situação de produção, dos aspectos discursivos e dos aspectos
linguísticos-discursivos que são importantes para que ela atinja o seu
objetivo frente ao juiz.
Dessa forma, se queremos melhorar a formação de nossos futuros
advogados, caberia rever como lhes ensinamos a produzir os seus textos,
expondo-lhes que usar a língua, é agir por meio dela; logo, é preciso
dominar as relações que se faz entre as escolhas linguísticas e os efeitos
de sentido que se pode construir por meio de um texto. Para o cidadão
comum, isso é muito importante; mas para o advogado, isso é essencial, já
que sua ação textual poderá gerar “lucros” ou “perdas” aos seus clientes.

Abstract: The law includes several procedural documents. Among all


these, we highlight the application that is a genre that is very important for
initiating the process. Aiming to better understand this genre after which
you can teach them to law students, This article aims to show readers the
results of an analysis of initial petitions, giving the most important steps
through it and the request contained therein, if invoke judicial review and if
it succeeds in a lawsuit and to discuss and point out the elements that make
up the legal relationship, ie, the legal fact (the cause of action), the request
object (of demand) and the parts (subject of the action), but also exposing the
linguistic characteristics of this genre. The design adopted for the analysis
is the enunciation-discursive language based on the theory of Bakhtin/
Voloshinov (1997). We based ourselves in the model text of Interactionism
Sociodiscursivo (ISD) as Bronckart (1997, 1999 and 2004), especially in his
discussions of levels of analysis of a text. Our analysis allowed us to realize
that the petition goes beyond what the manuals that have focused on text
structure, a petition has elements of the situation at the level of production,
and discursive aspects of linguistic-discourse that needs work with students
to they can better prepare the texts of this genre.
Key words: Application. Genre. Sociodiscursivo interactionism. Dimensions
teachable.

Referências

BAKTHIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.


BARBOSA, J. Do professor suposto pelos PCNs ao professor real de Língua Portuguesa:
são os PCNs aplicáveis?. In: Rojo, R. A prática de linguagem em sala de aula: praticando os
PCNs. Campinas: Mercado das Letras, 2000.

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A petição inicial e suas dimensões ensináveis para estudantes de direito 91

BRASIL. Código de Processo Civil. In: NEGRÃO, Theotonio; GOUVEIA, José Roberto
Ferreira (Org.). Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 41. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009.
BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, texto e discurso: por um interacionismo
sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 1999.
BUENO, L.; MENDES, M. H. P. O desenvolvimento de capacidades de linguagem e o modelo
didático do gênero comunicado de empresa. Revista de Estudos sobre Práticas Discursivas e
Textuais, ano 3, n. 2, p. 3-21, nov. 2010.
CASELLA, José Erasmo. Manual de prática forense. São Paulo: Saraiva, 1998.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO,
Angela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (Org.). Gêneros
textuais e ensino. 5. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.
SCHEUWLY, Bernad et al. Gêneros orais e escritos na escola. São Paulo: Mercado das Letras,
2004.

ANEXO I

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA


____ ª VARA CÍVEL DA COMARCA DE JUNDIAÍ/SP.

Proc. nº ______________

SANTOS & SILVA CIA. LTDA., sociedade comercial estabelecida


no ramo de confecção e vendas a atacado e varejo de vestuário feminino,
sob o nome de fantasia “A Baronesa da Moda”, com contrato social arqui­
vado na JUCESP sob nº 98.325.200, com sede na cidade de Campinas-SP
(doc. 1), na Avenida dos Pinhais, nº 600, regularmente inscrita no CNPJ
sob nº 50.000.777/0001-40, neste ato, representada pela sócia-gerente Irene
Mathias da Silva, brasileira, casada, comerciante, portadora da CI/RG nº
22.799.011 - SSP SP, inscrita no CPF sob nº 015.033.888-59, residente e
domiciliada em Campinas - SP, na rua Prestes Maia, nº 130, vem, com todo
acatamento, por seu advogado, consoante comprova o incluso instrumento
de mandato (doc. 2), à presença de V. Exa., propor a presente

AÇÃO ORDINÁRIA DE COBRANÇA


Em face de JOSEFA CAMARGO, brasileira, casada, do lar, portadora
da CI/RG nº 19.312.216 - SSP/SP, inscrita no CPF sob nº 211.033.875-
12, residente e domiciliada à rua Inglaterra, nº 3930, Jundiaí - SP, pelas
seguintes razões de fato e de direito articuladamente expostas:

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92 Fernanda Favre, Luzia Bueno

DOS FATOS:
A autora, no dia 09 de dezembro de 2007, procurada pela ré em
sua loja, vendeu-lhe diversas peças de roupas, em perfeito estado, que
lhe foram entregues de imediato, totalizando uma compra de cem (100)
peças, numa quantia de R$ 7.600,00 (sete mil e seiscentos reais). Dentre
as roupas escolhidas, que foram assim discriminadas (doc. 3), estavam:

DISCRIMINAÇÃO VALOR UNITÁRIO TOTAL:


10 calças jeans R$ 60,00 R$ 600,00
40 camisas de seda R$ 50,00 R$ 2.000,00
50 casacos de lã R$ 100,00 R$ 5.000,00
R$ 7.600,00
A ré, que faz vendas por conta própria, isto é, sem ter qualquer
vínculo com a loja autora, levou as peças escolhidas e prometeu quitar a
dívida em trinta (30) dias.
A transação foi documentada em ficha cadastral já existente em
nome da cliente, na qual consta o total deste débito; a data do pagamento,
que estava prevista para os trinta (30) dias após a compra e a rubrica da
devedora, concordando com a mesma (doc. 4).
Não foi emitido qualquer título, pois a ré já havia feito várias
compras antes na loja e quitado todas dentro de seus prazos combinados.
Embora por várias vezes cobrada, a ré ficou inerte aos fatos, que
podem ser comprovados por quatro testemunhas, sendo duas delas
funcionárias da loja e outras duas clientes freqüentes do local, que
presenciaram a venda. Todas elas são residentes e domiciliadas em
Campinas-SP, cujos nomes e qualificações serão ofertados oportunamente.

DO DIREITO:
Sem dar a ré nenhuma satisfação quanto ao cumprimento da obri-
gação, a autora se viu compelida a ingressar em juízo para receber aquilo
que lhe é devido, pois vencido e ultrapassado o prazo de trinta (30) dias
para o adimplemento da obrigação, embora insistentemente cobrada por
telefonemas, cartas da loja (doc. 5), avisos pelo correio (doc. 6) e até por
notificação extrajudicial (doc. 7), a devedora não efetuou o pagamento
prometido.
À vista do exposto, requer V. Exa. se digne determinar a citação da
ré pelo artigo 221, inciso II, inclusive com o permissivo do artigo 172,

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A petição inicial e suas dimensões ensináveis para estudantes de direito 93

§2º, ambos do Código de Processo Civil, para responder aos termos da


presente Ação Ordinária e, apresentar a defesa que tiver, no prazo de
quinze (15) dias, tudo sob pena de revelia.

DO PEDIDO:
Isto posto, requer a autora que seja julgada totalmente procedente a
presente ação, condenando a ré a pagar a importância de R$ 7.600,00 (sete
mil e seiscentos reais), acrescidos nos juros da mora, correção monetária,
custas e honorários na base de 20%.
Protesta-se o autor, por todo o gênero de provas em direito
admitidas, inclusive depoimento pessoal, oitiva de testemunhas, juntada
de novos documentos, exame pericial, etc.
Nestas condições, dá-se a presente o valor de R$ 7.600,00 (sete mil
e seiscentos reais).

Termos em que, D., R. e A. esta com os inclusos documentos,

P. Deferimento.

Jundiaí, 05 de abril de 2011.

EDIO HENTZ LEITÃO


Advogado - OAB/SP nº 184.323

ANEXO II

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA


__ª VARA CÍVEL DA COMARCA DE JUNDIAÍ/SP.

Proc. nº __________

M. C., brasileiro, solteiro, menor púbere, portador da CI/RG nº


42.470.400-4 - SSP/SP, neste ato assistido por sua genitora R. A. C.,
brasileira, solteira, faxineira, portadora da CI/RG nº 29.110.009-4-
SSP/SP, ambos residentes e domiciliados à rua Paraná, nº 1.299, Vl.
Popular, Jundiaí, vêm com todo acatamento, por sua advogada, con-
forme demonstra a inclusa nomeação em anexo, à presença de V.Exa.,
propor a presente

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94 Fernanda Favre, Luzia Bueno

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C.C. ALIMENTOS


Com fundamento no artigo 363 do Código Civil, c.c. Lei nº 8560/92,
em face de A. J., qualificação ignorada, residente e domiciliado à rua José
Onorato, nº 5.183, Vl. Ipê, Jundiaí, pelos fatos e fundamentos a seguir
expostos:
A genitora do autor e o réu conheceram-se em um parque, nesta
cidade, no final do ano de 1981, iniciando, a partir de então, um relacio-
namento, que dias depois transformara-se em namoro. Durante o envol-
vimento do casal, que durou cerca de um ano e meio aproximadamente,
manteve, exclusivamente com o réu, relações sexuais, sem o uso de qual-
quer método anticoncepcional, o que acabou por resultar a gravidez e o
nascimento do autor em 04 de fevereiro de 1983, conforme demonstra a
inclusa Certidão de Nascimento.
Ao saber da gravidez, cerca de um ano após o início do namoro, a
genitora do autor comunicou tal fato ao réu. Este, após receber a notícia,
negou-se ao reconhecimento do filho e desapareceu.
Quando o autor já estava com dois anos, o réu reapareceu e viu seu
filho, pela primeira vez. Neste momento, foi indagado se iria registrá-lo,
mas, mais uma vez, esquivou-se do compromisso, até com a desculpa que
já havia constituído uma nova família.
Ao completar quatro anos de idade, a genitora do menor, passando
por inúmeras dificuldades para criar seu filho sozinha, foi procurar o réu,
a fim de pedir ajuda para o sustento do mesmo. Não obtendo êxito, resol-
veu propor uma ação contra este, para que seu filho tivesse a paternidade
reconhecida. Tal processo tramitou no fórum desta cidade, sob nº 1045/88,
mas teve que ser arquivado, visto que o réu, após várias tentativas, não fora
encontrado.
Sozinha então, somente contando com a ajuda de seus próprios
pais, a genitora teve que criar, com suas modestas condições e visíveis
dificuldades, seu filho até hoje.
Ocorre que de uns dois anos para cá, o réu reapareceu e, de tempos
em tempos, tem visitado o autor. Este, por sua vez, o interrogou, na última
vez que o viu, mais precisamente no dia 1º de janeiro p.p., quando iria
registrá-lo. Desta vez, a desculpa foi que estava sem dinheiro e precisava
esperar mais um pouco, pois a situação financeira não era boa.
Desde esta data, o réu não mais apareceu. O autor então, tendo
completado seus 18 anos, já se vê, agora mais do que nunca, na necessidade

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A petição inicial e suas dimensões ensináveis para estudantes de direito 95

de ter um convívio maior com seu pai, assumindo-o como tal, bem como
ter o seu nome em seu Registro de Nascimento. O réu, por sua vez, insiste
em conviver com ele, apenas como um “bom amigo”, mas sem reconhecê-lo
como legítimo filho que é.
A comprovação da paternidade faz-se evidente, uma vez que durante
o período em que namoraram, a genitora do menor sempre foi fiel ao
réu, mesmo porque estavam pensando em casar-se, segundo promessas
que vinham sendo feitas já há algum tempo. Maiores provas poderão ser
feitas, até por testemunhas, no decorrer da instrução processual.
Evidenciada a paternidade, jus faz o autor, além da declaração do
“status familiae”, ao recebimento da pensão alimentícia, “ex vi” do artigo
397 do Código Civil, já que sua hipossuficiência é presumida, além de que
vêm passando, o autor e sua genitora, por uma difícil situação financeira,
face aos problemas de saúde que ela enfrenta, pela deficiência na audição.
Ambos encontram-se desempregados, realizando apenas pequenos
serviços quando aparecem e ademais, o autor, frente à necessidade de sua
família, teve que abandonar os seus estudos para ajudar na manutenção
do lar.
O réu, de acordo com informações obtidas, está atualmente traba-
lhando na empresa Sadia S.A., no setor de “congelados” e, como ficará
devidamente comprovado, este terá o dever de ajudar seu filho, que muito
necessita, até para, se possível, retornar aos seus estudos.
Diante de todo o exposto, requer, pois, digne-se V. Exa.:
a) receber a presente ação, para declarar o estado de filiação entre
autor e réu, determinando, conseqüentemente, a expedição de
mandado averbartório ao Cartório de Registro Civil onde se pro-
cessou o assento de nascimento do menor, para que se façam as
devidas anotações;
b) comprovada e reconhecida a paternidade, seja o réu condenado a
pagar alimentos, no equivalente a 30 % (trinta por cento) de seus
rendimentos líquidos, descontados diretamente de sua folha de
pagamento, quando estiver laborando com vínculo empregatício
ou a 1 (um) salário mínimo, no caso de laborar sem vínculo, a
serem depositados em conta corrente da genitora, que será opor-
tunamente aberta;
c) seja o réu citado, na forma do artigo 172 e parágrafos do Código
de Processo Civil, e intimado para que responda à presente ação,
sob pena de revelia;

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96 Fernanda Favre, Luzia Bueno

d) seja dada vista ao DD. representante do Ministério Público, para


que acompanhe o andamento desta ação;
e) finalmente, seja a ação julgada totalmente procedente, conde-
nando o réu ao pagamento das custas processuais, honorários
advocatícios e demais cominações legais.
Requer provar o alegado por todos os meios de provas admitidos,
especialmente por prova pericial, testemunhal, depoimentos pessoais e
juntada de novos documentos.
Dá-se à causa o valor de R$ 1.000,00 (hum mil reais), para fins
e efeitos fiscais, pleiteando os benefícios da Justiça Gratuita, por ser o
autor pobre na acepção jurídica do termo, de acordo com a declaração de
pobreza anexada aos autos.

Termos em que,

P. Deferimento.

Jundiaí, 19 de abril de 2011.

MARIA INÊS CASSOLATO


Advogada – OAB/SP nº 150.225

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

FAVRE, Fernanda; BUENO, Luzia. A petição inicial e suas dimensões ensináveis para estu-
dantes de direito. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19,
n. 75, p. 79-96, jul./set. 2011.

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A organização do processo civil pela ótica
da teoria do Estado: a construção de um
modelo de organização do processo para
o Estado Democrático de Direito e o seu
reflexo no projeto do CPC
Igor Raatz
Mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Especialista em
Direito Processual Civil pela Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC). Assessor de
Desembargador no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Resumo: O presente ensaio visa a analisar os reflexos da teoria do Estado


na organização do processo civil, a partir de três modelos: o Estado Liberal,
o Estado Social e o Estado Democrático de Direito. Busca-se, com isso,
perquirir os modelos de organização do processo nas diversas configurações
do Estado, de modo a definir as matrizes histórico-culturais para um modelo
de organização do processo civil no Estado Democrático de Direito e o seu
impacto no Projeto do CPC.
Palavras-chave: Processo civil. Teoria do Estado. Organização do processo.
Colaboração.
Sumário: 1 Considerações iniciais – 2 O Estado Liberal Clássico e o Processo
Civil – 2.1 Os elementos informadores do Estado Liberal Clássico – 2.2 A
liberdade das partes frente ao juiz (passivo) e o controle político do juiz
(boca da lei) como marcas do processo civil no Estado Liberal Clássico – 3
O Estado Social e o Processo Civil – 3.1 Os elementos informadores do
Estado Social – 3.2 Publicização e socialização do processo no Estado Social
– 4 O Estado Democrático de Direito e o Processo Civil – 4.1 Os elementos
informadores do Estado Democrático de Direito – 4.2 O processo civil no
Estado Democrático de Direito: a colaboração como modelo de organização
do processo – Considerações finais – Referências

1 Considerações iniciais
Toda reflexão sobre o processo civil é condicionada, ainda que
indiretamente, por aspectos culturais. Isso porque, sendo um fenômeno
cultural, o processo civil reflete diversos elementos próprios da cultura,
como os princípios éticos, os hábitos sociais e os caracteres políticos que
marcam a sociedade.1 As relações entre processo e cultura, no entanto, são
de recíproca implicação: o processo civil representa uma parte da cultura

1
LACERDA, Galeno. Processo e cultura. Revista de Direito Processual Civil, n. 3, p. 75, 1962.

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98 Igor Raatz

jurídica e, portanto, também uma parte da cultura geral.2 Não há, pois,
como dissociá-los.
O termo cultura é utilizado em uma variedade de significados, sendo
bastante difícil reconduzi-lo a uma unidade.3 Na perspectiva da antropo-
logia social, por exemplo, costuma-se explicá-la a partir de uma rede de
significados4 ou como um conjunto dos processos sociais de significação.5
Conforme Falzea, a partir de uma rigorosa simplificação é possível fixar os
componentes substanciais de toda a cultura nos “produtos da consciência
social enquanto assuntos da sociedade na organização da própria vida” e
nos “comportamentos sugeridos pela consciência social, empírica e racio-
nal, para atuar em concreto, da melhor maneira possível, o tipo de vida da
sociedade”.6 Como quer que seja, a cultura pode ser considerada “como
o conjunto de vivências de ordem espiritual e material, que singularizam
determinada época de uma sociedade”.7 Nessa senda, toda a cultura é
histórica, havendo uma coimplicação dialética entre cultura e história.8
Afinal, a cultura constitui “o que resta da constante filtragem e refiltragem
daquilo que, emergindo da mera temporalidade, se fez história”.9
As relações entre o Estado, indivíduo e a sociedade, por sua vez,
estão compreendidas no todo cultural do qual faz parte o Direito. O pro-
cesso civil, na medida em que espelha a cultura, é um reflexo também das
concepções dominantes sobre o papel do Estado.10 A teoria do Estado,
para o processo, pode ser vista como um existencial,11 na medida em que
2
TARUFFO, Michele. Cultura e processo. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, v. 63, n. 1, p. 90,
mar. 2009.
3
TARUFFO, Michele. Cultura e processo. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, v. 63, n. 1, p. 64,
mar. 2009.
4
GEERTZ, Clifford. La interpretación de las culturas. Barcelona: Gedisa, 1999. p. 20-51.
5
CANCLINI, Nestor Garcia. Diferentes, desiguales y desconectados: mapas de la inter-culturalidad. Barcelona:
Gedisa, 2006. p. 34.
6
FALZEA, Angelo. Sistema culturale e sistema giuridico. Rivista di Diritto Civile, Padova, parte I, p. 5, 1988.
7
LACERDA, Galeno. Processo e cultura. Revista de Direito Processual Civil, n. 3, p. 75, 1962.
8
MARTINS-COSTA, Judith. Direito e cultura: entre as veredas da existência e da história. Revista do Advogado,
n. 61, p. 73, nov. 2000.
9
REALE, Miguel. Cultura e história. In: REALE, Miguel. Paradigmas da cultura contemporânea. Saraiva: São Paulo,
1996. p. 24.
10
DAMASKA, Mirjan. I volti della giustizia e del potere: analisi comparatistica del processo. Trad. Andrea Giussani
(capitoli III, IV e V) e Fabio Rota (capitoli I, II e VI). Bologna: Società Editrice il Mulino, 2002. p. 41. Edizione
originale: The Faces of Justice and State Authority; MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil.
2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 17.
11
A noção de Estado Democrático de Direito perpassa todos os espaços de produção e desenvolvimento do
Direito, condicionando, pois, a compreensão do processo civil. Nesse sentido, Lenio Streck traz uma importante
contribuição acerca do tema: “para utilizar uma linguagem hermenêutica, é possível dizer que a noção de Estado
Democrático de Direito que a tradição nos legou é um existencial. Qualquer problematização que se pretenda
elaborar acerca da democracia e do agir dos agentes sociais se dará neste espaço, onde ocorre o sentido do
Direito e da democracia. O Estado Democrático de Direito é, assim, um “desde-já-sempre”, condicionando nosso
agir-no-mundo, porque faz parte de nosso modo de-ser-no-mundo. O Estado Democrático de Direito não é
algo separado de nós. Como ente disponível, é alcançado pré-ontologicamente. Ele se dá como um acontecer.

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A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo... 99

toda a compreensão do processo civil já traz consigo um sentido cultural


a respeito do Estado.12
Nessa perspectiva, o presente ensaio visa a analisar algumas questões
inerentes ao formalismo processual13 a partir das diferentes configurações
do Estado tomadas no curso da história, dando-se ênfase às três principais
configurações do Estado Moderno: Liberal, Social e Democrático de
Direito. A perspectiva de abordagem da teoria estatal vai centrada, dessa
forma, nas relações entre governantes e governados,14 sem descuidar, no
entanto, de outros elementos que se fazem presentes na caracterização
das referidas formas de Estado. A partir daí, busca-se aquilatar de que
modo a organização do processo no Projeto do CPC encontra-se afeita ao
Estado Democrático de Direito.

2 O Estado Liberal Clássico e o Processo Civil


2.1 Os elementos informadores do Estado Liberal Clássico
O Estado moderno tem seu nascedouro na ruptura com a multipli-
cidade de instâncias de poder própria da Idade Média,15 na qual inexistia

Nesse sentido, é possível dizer que o agir jurídico-político dos atores sociais encarregados institucionalmente
de efetivar políticas públicas (lato sensu) acontece nessa manifestação prévia, onde já existe um processo de
compreensão” (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 106).
12
Conforme Miguel Reale, “desde o mais elementar ato de percepção, o percebido já surge como algo objetivo
e transpessoal, de tal modo que jamais lograríamos compreender o significado do homem desvinculado do
complexo variegado daquilo que ele exterioriza, como projeção e dimensão imediata de sua consciência
intencional. É a razão pela qual costumo afirmar que a cultura é o sistema aberto das ‘intencionalidades
objetivadas’, de tal sorte que o homem só pode ser integralmente compreendido levando-se em conta o que
ele é como indivíduo ‘a se’ e o que ele é como sócio, isto é, enquanto partícipe consciente ou não do complexo
de imagens, símbolos, fórmulas, leis, instituições, etc., ou seja, de todas as formas que, no decurso do tempo,
vão assinalando a incessante incidência de valores sobre o já dado ou positivado na história” (REALE, Miguel.
O homem e seus horizontes. 2. ed. São Paulo: Topbooks, 1997. p. 25).
13
O formalismo processual concerne à totalidade formal do processo “compreendendo não só a forma, ou as
formalidades, mas especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais,
coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e organização do processo, com vistas a que sejam
atingidas suas finalidades primordiais” (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 6). O formalismo, pois, diz respeito, portanto, à organização do processo e
a distribuição das atividades e posições dos sujeitos processuais. Sobre o tema, ver também SATTA, Salvatore.
Il formalismo nel processo. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1958.
14
PIZZORUSSO, Alessandro. Lecciones de derecho constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,
1984. p. 21.
15
Toma-se, aqui, como marco para o nascimento do Estado a estruturação que vai permear o Estado Absolutista
até os dias atuais, qual seja, a unidade de uma instância de poder e de direito. Ainda assim, alguns autores
costumam referir a existência de outras formas pré-estatais com o nome de Estado. Nesse sentido, Del
Vecchio considera como sendo os principais tipos históricos de Estado os seguintes: “o antigo Estado oriental
(teocrático ou absoluto, com limites religiosos mas não jurídicos); o Estado grego ou Estado-cidade (no qual a
liberdade dos cidadãos — excluídos, é claro, os escravos — consistia, mais do que num sistema de garantias,
na participação efetiva nas funções públicas); o Estado romano (que, tendo nascido como Estado-cidade, se
desenvolveu posteriormente em ordenamento muito mais amplo, no qual obteve forte relevo, juntamente com
a soberania do Estado, a personalidade jurídica individual nas relações privadas e públicas); o Estado medieval
e, mais especialmente, feudal (no qual se manifestou uma pluralidade de poderes, que deu origem a várias
figuras e a complexas relações hierárquicas, sem unidade solidamente constituída); o Estado moderno (nome

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100 Igor Raatz

um poder público fincado na figura do Estado: o príncipe encontrava-se


num plano de igualdade com os senhores feudais e o seu poder era limi-
tado por elementos de natureza ético-religiosas e sociais, verificados nos
estamentos eclesiástico e nobiliárquico.16 Estava, portanto, vinculado ao
complexo entrelaçado de direitos e deveres que caracterizava a socie­dade
medieval.17 O Estado moderno, dessa forma, foi o resultado das lutas
políticas entre os diversos poderes medievais e da formação das comu-
nidades nacionais, assentadas firmemente sobre porções específicas do
território europeu, especialmente Espanha, França e Inglaterra.18 Esse
processo de superação da atomização medieval foi conduzido primor-
dialmente pelos reis, o que explica a monarquia como forma fundamen-
tal do Estado moderno.19
O Estado moderno, ao romper com as estruturas medievais de poder,
engendrou os traços característicos que informam a ideia de Estado até os
dias atuais, ou seja, a existência de uma unidade de poder concentrada no
Estado sobrepondo-se a todas as demais instâncias.20 Enquanto no medievo
o senhor feudal era proprietário dos meios administrativos, cobrando
tributos, aplicando sua própria justiça e tendo o seu próprio exército,
no Estado moderno esses meios administrativos deixam de compor o
com que se pretende designar o Estado dotado de ordenamento unitário próprio, isento de toda e qualquer
sujeição à Igreja e ao Império, mas limitado em seus poderes por sua própria constituição, com um sistema de
garantias dos direitos individuais)” (DEL VECCHIO, Giorgio. Teoria do Estado. Tradução portuguesa de Antònio
Pinto de Carvalho. São Paulo: Saraiva, 1957).
16
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006.
p. 34.
17
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006. p. 34;
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Mestre Jou, 1968. p. 231. Havia, na época, uma concorrência
entre o direito comum aplicado independente do lugar que o autor da violação ocupasse na hierarquia feudal,
e o direito particular ou, melhor, os vários direitos particulares, consistentes em leis locais, leis aplicadas a
tipos particulares de pessoas (nobres, mercadores, servos, clero, católicos, etc.) ou ainda a particulares tipos
de bens e relações. Nesse sentido, ver: TARELLO, Giovani. Storia della cultura giuridica moderna: assolutismo e
codificazione del diritto. Bologna: Società Editrice il Mulino, 1976. p. 28-34; GROSSI, Paolo. L’ordine giuridico
medievale. Roma-Bari: Editori Laterza, 2002. p. 223-226.
18
CUEVA, Mario de la. La ideia del Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 45.
19
CUEVA, Mario de la. La ideia del Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 48.
20
Conforme Giovani Tarello, as origens do absolutismo remontam à ruptura do equilíbrio jurídico, no interior de
alguns Estados territoriais, a favor de um poder central e supremo em desfavor de todas as outras instituições
do universo jurídico medieval, como as classes, as cidades, a igreja, as corporações. O aspecto mais notado
dessa ruptura de equilíbrio a favor de um poder central consiste na solução radical, dentro do Estado, dos
conflitos religiosos, ocorrido primeiramente na França e na Espanha (TARELLO. Storia della cultura giuridica
moderna: assolutismo e codificazione del diritto, p. 48). Em sentido análogo, dando as linhas mestras do Estado
Absolutista, Pizzorusso afirma que “a característica fundamental deste estado foi a concentração de todo poder
na pessoa do rei, que ostentou sobre o território títulos quase privados e sobre os súditos uma autoridade
praticamente ilimitada, integrando em si todas as funções estatais sem prejuízo de sua possível delegação
em certos ministros, juízes ou governadores. Os únicos limites à ação do rei (e nem sempre com virtualidades
práticas) derivavam do direito divino e natural, ao que teoricamente estava submetido, e da superveniência
de certos institutos do Direito feudal (como os que fundamentavam as prerrogativas dos parlamentos quanto
às contribuições públicas) (PIZZORUSSO, Alessandro. Lecciones de derecho constitucional. Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1984. p. 21).

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A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo... 101

patrimônio de figuras particulares.21 Toda a administração da sociedade


era centrada na figura do Estado e espelhada no soberano, titular de um
poder direto, imediato e ilimitado, capaz de concentrar todas as funções
que hoje são chamadas de legislações, administração e jurisdição.22
Embora em um primeiro momento o Estado Absolutista tenha
sido fundamental para os propósitos da burguesia nascente, mormente
na área econômica, veio a afastá-la do poder político,23 que permanecia
ilimitado nas mãos do soberano.24 A ausência de limites ao Estado, no
entanto, deu margem a uma reação da burguesia, que buscava erguer uma
barreira às arbitrariedades do Poder, ou, pelo menos, domesticar uma
administração cujas providências concretas, individuais e potencialmente
discriminatórias, não se coadunavam com a calculabilidade, a liberdade
e a igualdade de oportunidades dos agentes econômicos, essenciais para
o desenvolvimento das bases econômicas burguesas.25 O Estado era visto
como um inimigo, que chancelava desigualdades de direitos em favor do
clero e da nobreza, os quais não pagavam qualquer tipo de impostos,26 ao
mesmo tempo que tinha total ingerência sobre a economia e a autonomia
21
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do Estado. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2010. p. 28. Este novo regime, segundo Juan Beneyto “supõe o desenvolvimento da burocracia,
cujos titulares são designados pelo rei e dele dependem; a valoração do poder político no legislativo e no judicial;
a tendência unificadora da lei; a formação de exércitos nacionais permanentes; a submissão das confissões
religiosas; a transformação da nobreza, substituindo a aristocracia feudal pela classe titulada; e, em fim, a
aceitação da maior importância atribuída à riqueza móvel, que conduz a um novo sistema fazendário pelo
que pode prescindir-se da solicitação de “pedidos” ou impostos, estabelecendo como normal o procedimento
da aquisição de fundos por meio de empréstimos” (BENEYTO, Juan. Historia de las doctrinas políticas. Spain:
Aguilar, 1964. p. 305).
22
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do Estado. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2010. p. 50. O início do despotismo, conforme Juan Beneyto, “pode fixar-se em 1661, quando
Luis XIV anuncia que nada se fará sem ordem sua, que toda autoridade se concentra em suas mãos. Se nunca
pronunciou a famosa frase L’Etat c’est moi, dificilmente se encontrará outra que melhor reflita sua política”
(BENEYTO, Juan. Historia de las doctrinas políticas. Spain: Aguilar, 1964. p. 305).
23
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do Estado. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2010. p. 44-45.
24
Segundo Carlos S. Fayt, no Estado Absolutista, “os valores vinculados a ordem e a segurança eram considerados
mais importantes que a liberdade. A burguesia reclamava estabilidade de proteção para realizar suas atividades.
A ordem somente poderia lograr-se mediante a concentração do poder nas mãos do rei ou do parlamento,
porém esses poderes deveriam ser, por natureza, ilimitados. Sem autoridade ilimitada o governante estava
impedido de impor a paz e assegurar a ordem. Os valores supremos são, assim, a paz, a segurança, a ordem.
Os desvalores, por conseguinte, a guerra, a anarquia, a desordem (FAYT, Carlos S. El absolutismo. Buenos Aires:
Bibliografica Omeba, 1967. p. 21).
25
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006.
p. 40.
26
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do Estado. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2010. p. 45. Este foi um dos fatores determinantes para se ter na igualdade um dos pilares da
Revolução Francesa, a qual, no entanto, visou apenas a estabelecer uma igualdade formal, uma igualdade de
direitos, sem preocupar-se com as desigualdades reais entre as pessoas. Nesse sentido, José Maria Rodriguez
Paniagua, afirma que “antes da revolução, os franceses eram muito mais desiguais em direito que na realidade,
enquanto que com a revolução se suprime a desigualdade em direitos, porém não na realidade” (RODRIGUEZ
PANIAGUA, José María. Historia del pensamiento jurídico. 8. ed. Madrid: Universidad Complutense, 1996. v. 1,
p. 304. De Heráclito a la Revolución Francesa).

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dos cidadãos. Fazia-se necessário, portanto, contrapor à onipotência do


rei um sistema infalível de garantias.27 Nesse contexto histórico, nasceu o
Estado Liberal Clássico.
Dessa forma, à justificação patrimonial ou religiosa do poder traduzida
no governo da vontade discricionária do Príncipe, era oposto o governo da
razão, da soberania da vontade geral expressa no Parlamento, por meio de
normas gerais e abstratas e de direitos fundamentais.28 Entre as ideias políti-
cas que norteavam a noção de Estado, tinha destaque a afirmação de que o
governo deveria ser limitado: as instituições políticas de uma sociedade
somente poderiam ser justificadas se fossem suficientemente permissivas
para que todos pudessem viver suas vidas por si mesmos.29 A outra face dessa
concepção política era a ideia dos direitos fundamentais como barreira à
interferência estatal, limitando, assim, o Estado.30
É importante notar que as concepções liberais do Estado confundiam-
se, em certa medida, com o contexto histórico de nascedouro do Estado de
Direito, o qual era visto pela burguesia precipuamente como um conceito
de luta política dirigida contra a imprevisibilidade do Estado Absolutista
e, simultaneamente, frente às barreiras sociais legadas pela sociedade
estamental.31 O Estado Liberal, portanto, acabou moldando os contornos
do Estado de Direito — entendido a partir da proteção da liberdade e
de direitos fundamentais32 — aos valores burgueses, notadamente a
iniciativa privada, a segurança da propriedade, a liberdade individual, a

27
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 45.
28
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006.
p. 44.
29
ROSENKRANTZ, Carlos F. Introducción a la edición en castellano. In: ACKERMAN, Bruce. La justicia social
en el Estado liberal. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p. 11. Conforme Franz Neumann
“segundo esta ideologia, o Estado deve funcionar de modo imperceptível e tem que ser realmente negativo.
Sem embargo, quem identificasse “negação” com “debilidade” resultaria vítima de uma falácia histórica. O
Estado Liberal mostrou sempre a fortaleza que lhe exigiram as situações políticas e sociais e os interesses da
sociedade. (...) Foi um Estado forte precisamente naquelas esferas de ação em que devia e quis sê-lo. Este
Estado, no qual haviam de governar as leis e os homens (...) se baseia na força e no direito, na soberania e
na liberdade” (NEUMANN, Franz. El Estado democrático y el Estado autoritario; ensayos sobre teoría política
y legal. Buenos Aires: Paidos, 1968. p. 30).
30
ROSENKRANTZ, Carlos F. Introducción a la edición en castellano. In: ACKERMAN, Bruce. La justicia social en el
Estado liberal. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p. 12.
31
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006.
p. 73.
32
Tal a concepção de Estado de Direito idealizada por Jorge Reis Novais. Acerca da evolução histórica do conceito
de Estado de Direito, ver COSTA, Pietro. Lo stato di diritto: un’introduzione storica. In: ZOLO, Danilo; COSTA,
Pietro (Ed.). Lo stato di diritto: storia, teoria, critica. Collaborazione di Emilio Santoro. Milano: Gingiacomo
Feltrinelli Editore, 2003. p. 89-170.

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A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo... 103

igualdade formal33 e as exigências de calculabilidade próprias do sistema


capitalista.34
A adjetivação liberal do Estado de Direito trouxe consigo o pressu-
posto teórico das três separações: a separação entre a política e a econo-
mia, a separação entre o Estado e a Moral e a separação entre o Estado
e a sociedade civil.35 A partir daí estruturava-se o Estado Liberal pelos
direitos fundamentais, concebidos como esferas de autonomia a preservar
os cidadãos da intervenção do Estado,36 e pela divisão de poderes, que
assegurava o predomínio do corpo legislativo (pelo império da lei e pelo
princípio da legalidade) e da força social que o hegemoniza, ou seja, a
burguesia.37 Nesse sentido, o direito era identificado pela lei e sua titulari-
dade era exclusiva do legislador, o qual aparecia como único protagonista
da juridicidade com preterição e quase total sacrifício do juiz,38 que nada
mais era do que a boca da lei.39
Em síntese, pode-se dizer que o Estado Liberal Clássico era calcado
na limitação do Estado, como forma de assegurar o desenvolvimento da
burguesia e do então incipiente modelo econômico capitalista, a partir da
configuração de direitos fundamentais, vistos como garantias da autono-
mia individual contra as invasões do soberano,40 da divisão de poderes,

33
Acerca da igualdade formal no Estado Liberal e a evolução do conceito até o Estado Democrático de Direito,
ver SANTOS, Igor Raatz. Processo, igualdade e colaboração: os deveres de esclarecimento, prevenção, consulta
e auxílio como meio de redução das desigualdades no processo civil. Revista de Processo, ano 36, n. 192,
fev. 2011.
34
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006.
p. 73.
35
Conforme Jorge Reis Novais, a ideologia das três separações pode ser visualizada nos seguintes termos: “a)
a separação entre política e economia, segundo a qual o Estado se deve limitar a garantir a segurança e a
propriedade dos cidadãos, deixando a vida econômica entregue a uma dinâmica de auto-regulação pelo
mercado; b) a separação entre o Estado e a Moral, segundo a qual a moralidade não é assunto que possa ser
resolvido pela coacção externa ou assumido pelo Estado, mas apenas pela consciência autónoma dos indivíduos;
c) a separação entre o Estado e a sociedade civil, segundo a qual esta última é o local em que coexistem as
esferas morais e económicas dos indivíduos, relativamente às quais o Estado é mera referência comum tendo
como única tarefa a garantia de uma paz social que permita o desenvolvimento da sociedade civil de acordo
com as suas próprias regras” (NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição.
Coimbra: Almedina, 2006. p. 59).
36
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006.
p. 78.
37
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006.
p. 89.
38
CASTANHEIRA NEVES, António. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz” ou entre “sistema”, “função” e
“problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito. Separata de: Boletim
da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v. LXXIV, 1998. p. 19.
39
Conforme Montesquieu, “Nos governos republicanos é da natureza da constituição que os juízes observem
literalmente a lei. (...) Os juízes de uma nação não são, como dissemos, mais que a boca que pronuncia as
sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor” [MONTESQUIEU,
Barão de. Do espírito das leis. São Paulo: Nova Cultura, 1997. p. 116, 208. (Os pensadores)].
40
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006.
p. 78.

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com a ênfase no Poder Legislativo, e de uma total subordinação do Poder


Judiciário à lei, que espelhava os valores burgueses. Toda essa configu-
ração do Estado iria refletir diretamente na concepção do processo civil
próprio daquela época.

2.2 A liberdade das partes frente ao juiz (passivo) e o controle político


do juiz (boca da lei) como marcas do processo civil no Estado
Liberal Clássico
Tendo em vista as implicações recíprocas entre o processo civil e a
cultura, importa agora verificar em que medida as concepções políticas,
econômicas e morais41 próprias do ambiente cultural do Estado Liberal
Clássico influenciaram as ideias acerca do processo civil. A ideologia pre-
dominante na época era a do processo como ambiente no qual se mani-
festava a autonomia e a liberdade das partes privadas, as quais deveriam
ter a ingerência sobre todos os instrumentos processuais suficientes para
desenvolver, por iniciativa própria, uma competição individual que se dava
frente ao juiz, o qual fazia o papel de um verdadeiro árbitro, cuja função
era somente a de assegurar o respeito às regras do embate.42
Essa caracterização do processo como verdadeiro duelo privado43
é comum a todas as legislações processuais liberais, as quais enfeixam,
por assim dizer, uma série de princípios que dão lugar a um modelo

41
Trabalha-se, nesse sentido, com a conjugação e aproximação de duas ideias: uma, já lançada no presente
ensaio, de que o Estado Liberal estava assentado pela ideologia das três separações, vale dizer, da separação do
Estado, a moral e a sociedade civil; outra, de que essa separação se deu apesar da existência de três núcleos, no
interior do liberalismo, que davam sustentação a essa separação. São eles: o núcleo moral, calcado na ideia de
liberdade; o núcleo político-jurídico, caracterizado pelo consentimento individual, pela representação legislativa,
pelo constitucionalismo e pela soberania popular; e o núcleo econômico, cujos pilares são a propriedade privada
e uma economia capitalista de mercado livre de controles estatais. Sobre os três núcleos do liberalismo, ver,
MACRIDIS, Roy. Ideologias políticas contemporâneas. Brasília: UnB, 1982; STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José
Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 50-53.
42
TARUFFO, Michele. Cultura e processo. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, v. 63, n. 1,
p. 72, mar. 2009.
43
Interessante notar, nesse sentido, a percuciente análise feita por Sergio Chiarloni acerca das ideologias
processuais no âmbito da iniciativa probatória do juiz. O autor refere, em diversos momentos, que as críticas
feitas contra o exercício do poder de assumir as provas de ofício, que remontam à ideologias do duelo judiciário,
da concepção do processo como um jogo, onde o juiz não deve interferir sob pena de acabar favorecendo
a vitória de um dos jogadores, coisa escandalosa como seria a interferência do árbitro em uma partida de
futebol (CHIARLONI, Sergio. Riflessioni microcomparative suideologie processuali e accertamento della verità.
Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, anno LXIII, p. 107, dic. 2009. Supplemento al n. 4). Conforme
Damaksa, no modelo ideal de um Estado reativo, dentro do qual pode ser acomodado o Estado Liberal Clássico,
quanto mais limitada a possibilidade de o juiz intervir, mais evidente é o modelo de “combate”, ficando claro
que as versões extremas da ideologia reativa propugnam um esquema extremo do conflito. A indiferença do
Estado incluiria, nessa senda, uma interferência mínima no modo com o qual as partes gestionam o combate
forense [DAMASKA, Mirjan. I volti della giustizia e del potere: analisi comparatistica del processo. Trad. Andrea
Giussani (capitoli III, IV e V) e Fabio Rota (capitoli I, II e VI). Bologna: Società Editrice il Mulino, 2002. p. 145-
146. Edizione originale: The Faces of Justice and State Authority].

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A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo... 105

processual típico.44 Tais princípios foram encampados pelas duas principais


legislações processuais puramente liberais dos oitocentos: o Código
napoleônico de 1806 e o Código italiano de 1865. Nestes, quase não
existiam procedimentos especiais e, ainda, casos de jurisdição voluntária,
os quais, por sua vez, eram disciplinados como procedimentos de caráter
nitidamente administrativo. A admissão da ação não estava subordinada a
nenhuma aprovação do juiz, uma vez que se tratava de serviço necessário
do Estado e estava no domínio absoluto dos particulares. A regra da
demanda, ademais, era entendida no seu sentido mais rigoroso, de modo
que as partes não obtinham nenhuma colaboração do juiz na fixação da
prova. Ainda nesse sentido, era confiada às partes a disposição do processo
e o controle do tempo. Salvo a audiência de discussão oral, o processo
se desenvolvia na forma escrita,45 inclusive na fase instrutória, que era
remetida integralmente à disponibilidade das partes, as quais podiam
prolongá-la indefinidamente.46
Nessa senda, pode-se constatar que a configuração de um processo
fincado integralmente na autônoma iniciativa individual dos particulares,
no qual a intervenção do juiz era reduzida ao mínimo, respondia bem
às ideologias burgo-liberais.47 O processo civil forjava-se, de um lado,
pelo dogma da liberdade das partes privadas no processo e, de outro,
pelo dogma da mais completa tutela dos direitos processuais das partes.48
É fácil verificar que o domínio das partes sobre a gestão do processo

44
TARELLO, Giovani. Il problema della riforma processuale in Italia nel primo quarto del secolo. Per uno studio
della genesi dottrinale e ideologica del vigente codice italiano di procedura. In: GUASTINI, R.; REBUFFA, G.
Dottrine del processo civil: studi storici sulla formazione del diritto processuale civile. Bologna: Il Mulino, 1989.
p. 15.
45
TARELLO, Giovani. Il problema della riforma processuale in Italia nel primo quarto del secolo. Per uno studio
della genesi dottrinale e ideologica del vigente codice italiano di procedura. In: GUASTINI, R.; REBUFFA, G.
Dottrine del processo civil: studi storici sulla formazione del diritto processuale civile. Bologna: Il Mulino, 1989.
p. 15-16.
46
TARUFFO, Michele. La giustizia civile in Italia dal’700 a oggi. Bologna: Soc. Editrice il Mulino, 1980. p. 115-116.
47
TARUFFO, Michele. La giustizia civile in Italia dal’700 a oggi. Bologna: Soc. Editrice il Mulino, 1980. p. 67-68.
Nesse sentido, como adverte Roger Perrot, o Código napoleônico de 1806, sob o plano jurídico, era o reflexo
de um certo liberalismo reinante no século XIX e no início do século XX (PERROT, Roger. Il nuovo futuro codice
di procedura civile francese. Rivista di Diritto Processuale, n. 2, p. 239, 1975). No entanto, cabe lembrar a
advertência feita por Taruffo. O autor, na obra e página citadas, afirma relativamente ao Code de procédure
civile que, certamente, “a configuração de um processo integralmente remetido à autônoma iniciativa individual
dos particulares, e no qual a intervenção do juiz como longa manus do Estado é reduzida ao mínimo, responde
à concepção burguesa e proto-liberal das relações jurídicas, e pode de qualquer modo considerar-se próprio
como a consagração da ideologia liberal-burguesa do processo civil”. Posteriormente, refere que “o código
é mais uma recepção racionalizada do ordenamento pré-revolucionário, que um instrumento projetado
conscientemente sobre o futuro para a tutela dos interesses da burguesia emergente (...) o interesse que
vem integralmente tutelado é, ao contrário, outro, e é ainda outra vez — como na secular tradição do direito
comum — aquele da profissão forense, que mantém o efetivo controle sobre os tempos e sobre os custos da
justiça civil”.
48
TARUFFO, Michele. La giustizia civile in Italia dal’700 a oggi. Bologna: Soc. Editrice il Mulino, 1980. p. 143.

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106 Igor Raatz

transferia o ideal da autonomia pessoal da esfera da ideologia política à


administração da justiça.49 O processo civil foi, desta feita, reconduzido a
um ideal individualista, enquanto controvérsia de duas partes autônomas
frente a uma Corte passiva, pensado, ainda, como uma mera continuação
de outros meios de relações privadas50 instituídas sob os auspícios da
cultura da época.
Resta claro, portanto, que o Estado Liberal Clássico construiu um
modelo de juiz passivo, acorde com a concepção liberal, segundo a qual
o Estado deveria evitar qualquer intervenção na gestão dos afazeres
privados.51 Ao mesmo tempo, moldou os contornos do processo civil a
partir de um forte controle estatal sobre o juiz no momento de decidir,
uniformizando rigorosamente o comportamento dos juízes às orientações
políticas do governo, usando todos os instrumentos lícitos ou ainda ilícitos,
como pressões de arrecadações e sanções burocráticas ou disciplinares
sobre aqueles que ousassem se comportar de modo independente.52
Obtinha-se, dessa forma, um amplo controle sobre as decisões tomadas
pelos juízes, de modo a garantir a supremacia da legislação sob os
auspícios das orientações teoréticas do direito: o positivismo exegético
e o positivismo científico ou conceitual.53 Nesse viés não era dado nem
49
DAMASKA, Mirjan. I volti della giustizia e del potere: analisi comparatistica del processo. Trad. Andrea Giussani
(capitoli III, IV e V) e Fabio Rota (capitoli I, II e VI). Bologna: Società Editrice il Mulino, 2002. p. 168. Edizione
originale: The Faces of Justice and State Authority.
50
DAMASKA, Mirjan. I volti della giustizia e del potere: analisi comparatistica del processo. Trad. Andrea Giussani
(capitoli III, IV e V) e Fabio Rota (capitoli I, II e VI). Bologna: Società Editrice il Mulino, 2002. p. 343. Edizione
originale: The Faces of Justice and State Authority. Basta pensar, nesse sentido, a concepção dominante na
época da ação como elemento do direito substancial (TARUFFO, Michele. La giustizia civile in Italia dal’700 a
oggi. Bologna: Soc. Editrice il Mulino, 1980. p. 143).
51
TARUFFO, Michele. La giustizia civile in Italia dal’700 a oggi. Bologna: Soc. Editrice il Mulino, 1980. p. 144.
52
TARUFFO, Michele. La giustizia civile in Italia dal’700 a oggi. Bologna: Soc. Editrice il Mulino, 1980. p. 139.
53
Conforme Castanheira Neves, os dois positivismos inserem-se nas concepções teoréticas do direito, que são
“caracterizadas (a) por um direito pertencente à esfera intelectual (lógico-teorética) calcada na intenção
científica de verdade, (b) por um direito subsistente em um mundo objetivo de significações pressupostas,
suscetíveis de serem consideradas em termos absolutos ou desligados da realidade e da história, (c) por um
pensamento jurídico de uma estrutura apriorística, dedutiva e sistemático-formalizante (more geométrico),
(d) pela realização histórico-concreta do direito reduzida a uma mera aplicação analítico-dedutiva, (e) pela
objetividade jurídica identificada com a objetividade teorética, ou seja, o direito é um objeto de conhecimento
e o jurista é o que conhece o direito e, por fim, pela ordem como definidora do direito” (NEVES, António
Castanheira. Curso de introdução ao estudo do direito. Coimbra: J. Abrantes, 1971-72. p. 411). Nesse sentido,
“a lei é aquela que o legislador diz que é, e os juízes são apenas os seus porta vozes, autómatos, através dos
quais a lei é expressa, isto é, através dos quais o Legislador fala. Em todas as sentenças, o Juiz é obrigado a
referir o artigo do Código ou da lei, ou do decreto real, sob o qual é fundamento a sentença: ele é somente a
bouche de la loi. Esta foi a atitude dos revolucionários franceses, que temiam que os tribunais conservadores
pudessem fazer o que os velhos Parlamentos tinham feito, coarctar o poder dos políticos que controlavam as
assembléias representativas e em particular a Convenção (convention), que era uma combinação do parlamento
e do governo. O único poder histórico que se sobrepôs ao conservadorismo do Banco de Magistrados foi o
legislador. Daqui decorre o clube dos Nomophiles na Paris revolucionária e o seu recurso para restringir o poder
dos juízes, e transformá-los em “buches de la loi” mecânicos: daqui também decorre o édito de Napoleão
contra os comentários aos seus Códigos. Esta atitude revolucionária e Napoleônica foi, como bem conhecemos,
continuada pelos professores do século XIX da Ecole de l’exégese (Escola da Exegese) que não ensinavam a lei

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A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo... 107

ao juiz e nem às partes contribuir para a compreensão do sentido do


direito.54 O perfil do processo no Estado Liberal Clássico, portanto, pode
ser resumido no seguinte binômio: “total liberdade das partes privadas
frente ao juiz; forte controle político sobre o juiz por parte do governo”.55

3 O Estado Social e o Processo Civil


3.1 Os elementos informadores do Estado Social
Não tendo o individualismo e a neutralidade do Estado liberal
conseguido satisfazer as reais exigências de liberdade e de igualdade
dos setores mais oprimidos social e economicamente, eclodiu, no final
da segunda metade do século XIX, uma série de conflitos de classe que
veio a desvelar a insuficiência do marco de liberdades burguesas quando
inibido o reconhecimento da justiça social.56 Sobreleva, nesse marco, o
progressivo estabelecimento por parte do Estado de medidas para frear
os excessos mais chocantes do capitalismo, especialmente nos domínios
dos horários de trabalho e do trabalho infantil e feminino.57 Isso tudo
implicou uma alteração radical na forma de conceber as relações do Estado
com a sociedade, a partir de um novo ethos político calcado na concepção
da sociedade não mais como um dado, mas como um objeto suscetível e
carente de uma estruturação a ser perseguida pelo Estado para realização
da justiça social.58 O ideal que predominava e alicerçava a concepção do

mas os Códigos” (CAENEGEM, R. C. Van. Oráculos da Lei ou Bouche de la Loi: considerações históricas sobre
o papel dos juízes. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL O PERFIL DO JUIZ NA TRADIÇÃO OCIDENTAL. Lisboa:
Almedina, 2007. p. 40. Seminário Internacional). Para uma adequada compreensão do positivismo-exegético,
que imperou no Estado Liberal, e do positivismo-semântico-normativista, que se desenvolveu no século XX e
ainda hoje figura como um fantasma que domina o pensamento de diversas doutrinas do processo civil, ver
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. da possibilidade à
necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009; STRECK, Lenio Luiz.
Aplicar a “letra da lei” é uma atitude positivista?. Novos Estudos Jurídicos, v. 15, n. 1, 2010. Disponível em:
<http://www6.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/2308>. Acesso em: 10 set. 2010.
54
Essa forma de ver o direito é própria do modelo normativista-legalista de juridicidade, que marca o Estado
Liberal Clássico. A respeito, ver CASTANHEIRA NEVES, António. Entre o “legislador”, a “sociedade” e o “juiz”
ou entre “sistema”, “função” e “problema”: os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional
do direito. Separata de: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v. LXXIV, 1998.
55
TARUFFO, Michele. La giustizia civile in Italia dal’700 a oggi. Bologna: Soc. Editrice il Mulino, 1980. p. 149.
56
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución. 5. ed. Madrid: Tecnos,
1995. p. 223.
57
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006.
p. 180.
58
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006. p. 183.
Conforme o mesmo autor, “no fundo, o novo ethos político que resultava da superação da concepção liberal
da separação da sociedade e Estado traduzia-se, a partir da constatação da mútua perda de capacidade
de auto-regulação, num projecto global de estruturação da sociedade, ou seja, de uma regulação da vida
social a partir do impulso e da conformação provenientes do Estado; por sua vez, esta direcção tinha como
contrapartida a pressão, exercida individual e colectivamente, da sociedade sobre o Estado, num esforço de
apropriação ou inflexação das decisões estaduais que se manifestava, não só nas referidas exigências ou nos
direitos a prestações sociais, mas também na acção permanente e estruturada dos partidos, grupos de interesses

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108 Igor Raatz

Estado social era o de um sistema político que desse a todos os cidadãos


um digno padrão de vida, com possibilidade efetiva para se realizarem
como homens.59
O Estado, portanto, passou a desempenhar um comportamento
ativo na realização da justiça social,60 rompendo com aqueles padrões
próprios da atuação estatal mínima que permeava o modelo puramente
liberal. A previsão de uma linha de conduta para o Estado, no sentido de
regular os fenômenos sociais, significava, então, a superação da até então
mística divisão entre o Estado e a sociedade.61 Nesse quadro, mostra-se
adequado caracterizar o Estado pela sua finalidade, que é a realização
da igualdade a partir de mínimos materiais em favor de grupos sociais.62
A adjetivação pelo social pretendia, assim, a correção do individualismo
liberal clássico pela reunião do capitalismo com a busca do bem-estar
social.63 Com a consagração de direitos inéditos até então, de cunho
eminentemente social, passava-se a exigir uma maior e mais qualificada
intervenção, deslocando-se o foco das atenções da esfera legislativa para
o ambiente da sua atividade executiva.64
Essa nova postura do Estado, que redundava na diminuição da ati-
vidade livre do indivíduo,65 careceu de um perfil democrático, no entanto.
Vale dizer, ainda que rompida a separação entre o Estado e a sociedade,
os indivíduos permanecem sem força para atuar democraticamente na
determinação dos direitos dos fins do Estado.66 Não se pode dizer, por
e organizações sociais sobre a esfera política” (NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de
direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006. p. 187).
59
SANTOS, Ângelo dos. O Estado social: análise à luz da história. Lisboa: Editorial Minerva, 1970. p. 15. Numa
perspectiva crítica é interessante notar, no entanto, que o Estado Social acaba servindo como forma de assegurar
a continuidade do projeto liberal. Nesse sentido, “da propriedade privada dos meios de produção passou a
viger a função social da propriedade, e da liberdade contratual passou-se ao dirigismo contratual. Contudo, o
primado básico do Estado Liberal se mantém, a despeito de o Estado ter-se transformado em Intervencionista,
qual seja: a separação entre os trabalhadores e os meios de produção, gerando mais-valia, de apropriação
privada pelos detentores do capital” (STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria
geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 65).
60
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 47.
61
COSSIO DÍAZ, José Ramon. Estado social y derechos de prestación. Madrid: Centro de estudios constitucionales,
1989. p. 32.
62
Idem, ibidem, p. 33.
63
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do Estado. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2010. p. 88.
64
MORAIS, José Luis Bolzan de. A atualidade dos direitos sociais e a sua realização estatal em um contexto
complexo e em transformação. In: STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, J. L. Bolzan de. Constituição, sistemas sociais
e hermenêutica: Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado, Porto Alegre,
2010. p. 107.
65
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do Estado. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2010. p. 55.
66
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006.
p. 191.

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A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo... 109

exemplo, que o Estado Social — ao menos na sua configuração interven-


cionista, porém alicerçada em bases liberais — cumpriu um papel efeti-
vamente socializante. Antes disso, caracterizava-se muito mais como um
Estado assistencial, no qual os direitos não passavam de concessões.67 De
qualquer forma, o que deve ficar enfatizado é a forma de atuação ativa
do Estado Social, seja no sentido de delimitar os fins da sociedade, seja
no sentido de conferir, aos cidadãos direitos fundamentais de caráter
positivo e assumir a tarefa de realizá-los, notadamente, pela atuação do
Poder Executivo.

3.2 Publicização e socialização do processo no Estado Social


Se a concepção do processo civil como “coisa das partes” respondia
bem aos anseios do Estado Liberal Clássico, as mutações no papel do
Estado que começaram a ser teorizadas no final do século XIX vão cobrar
uma nova forma de pensar o processo civil. Essas imbricações entre as
mudanças do papel do Estado e o processo civil acabaram por conferir
as linhas mestras daquilo que Enrico Allorio chamou de história ideal do
direito processual civil: a história da sua publicização.68
Paralelamente, o direito e o processo civil começaram a sofrer os
influxos dessa mudança estatal, com reformas legislativas justificadas
como rejeição ao individualismo, que era associado aos princípios do
liberalismo clássico.69 O processo, até então concebido como algo privado,
passou a representar o exercício de uma função pública e soberana.70
Deixava de ser visto como “coisa das partes”, para espelhar um lugar
no qual se exprimia a autoridade do Estado, com o escopo não somente
67
Vale mencionar o alerta feito por José Luis Bolzan de Morais a respeito do tratamento das promessas incumpridas
nos países em defasagem no tratamento da questão social e onde “uma percepção liberal-individualista-
egoística dos direitos sociais ainda parece predominar, muitas vezes em “perfeita” harmonia com estratégias
políticas de “clientelização fidelizada” da cidadania, oriundos de uma tradição patrimonialista e autoritária,
onde a “concessão” de direitos vai de encontro a um projeto de construção de cidadania, muito em voga
na história política latino-americana, na qual um “falso” Estado Social — na prática um Estado Assistencial
— foram “doados” pelos “donos” do poder político-econômico a indivíduos “bestializados”, acostumados
a “assistirem” transições conservadoras” (MORAIS, José Luis Bolzan de. A atualidade dos direitos sociais e a
sua realização estatal em um contexto complexo e em transformação. In: STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, J. L.
Bolzan de. Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS:
mestrado e doutorado, Porto Alegre, 2010. p. 103).
68
ALLORIO, Enrico. Significato della storia nello studio del diritto processuale. Rivista di Diritto Processuale Civile,
v. XV, parte I, anno 1938 – XVI-XVII, p. 189. Para uma crítica dessa concepção, ver SATTA, Salvatore. Soliloqui
e colloqui di un giurista. Padova: Cedam, 1968.
69
DAMASKA, Mirjan. I volti della giustizia e del potere: analisi comparatistica del processo. Trad. Andrea Giussani
(capitoli III, IV e V) e Fabio Rota (capitoli I, II e VI). Bologna: Società editrice il Mulino, 2002. p. 346. Edizione
originale: The Faces of Justice and State Authority.
70
LIEBMANN, Enrico Tullio. Storiografia giuridica “manipolata”. Rivista di Diritto Processuale, v. 29, parte I, p.
108, 1974.

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110 Igor Raatz

de tutelar os interesses privados, mas, também, de realizar o interesse


público da administração da justiça.71 Em síntese, o processo assumia a
forma de instrumento que o Estado colocava à disposição dos privados
para a atuação da lei.72
Importa salientar que o papel passivo desempenhado pelo juiz no
Estado Liberal Clássico dava margem à lentidão e ao abuso, uma vez que
as partes e seus defensores tornavam-se árbitros praticamente absolutos.73
Além disso, o processo civil restava infenso a valores, refletindo a neutra-
lidade do Estado, sendo concebido como um “dispositivo técnico capaz
de servir a todas as possíveis ideologias e, em virtude da tolerância que
uma tal concepção pressupunha, abrigar em seu seio as mais variadas e
contraditórias correntes de opinião”.74 Dessa forma, a doutrina processual
presente naquele momento histórico de transição cuidou de repensar o
processo apostando, principalmente, em maiores poderes ao juiz, o que
refletia o novo papel que o Estado vinha a assumir. Não se tratava, por-
tanto, de pensar o processo a partir de um modelo autoritário de Estado,
mas, sim, de pensá-lo como um instrumento de justiça social, mais rápido
e eficaz. Nesse sentido, as modificações ocorridas no processo civil naquele
dado momento foram importantes para que o papel do juiz e das partes
começasse a ser rediscutido, abandonando-se a ideia de um processo domi-
nado pelas partes em contraposição a um juiz passivo e inoperante.
Nesse contexto, o incremento dos poderes do juiz se deu a partir
de dois vetores em certa medida conexos: a publicização do processo —
consequência direta do agigantamento do papel do Estado — e a socialização
do processo — o qual não ficava de fora, portanto, das preocupações
com o problema da justiça social. É importante notar que a gênese dessa
movimentação no estudo do processo civil centrou-se, principalmente,
na obra de dois autores: Franz Klein e Giuseppe Chiovenda, os quais
propuseram um fortalecimento do papel do juiz. As raízes dessa forma
de pensar o processo e o direito assentaram-se no chamado socialismo
jurídico, notadamente na obra de Anton Menger.75

71
TARUFFO, Michele. La giustizia civile in Italia dal’700 a oggi. Bologna: Soc. Editrice il Mulino, 1980. p. 188.
72
TARUFFO, Michele. La giustizia civile in Italia dal’700 a oggi. Bologna: Soc. Editrice il Mulino, 1980. p. 188.
73
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 41.
74
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1997. p. 111.
75
Sobre a corrente de pensamento de Anton Menger, ver a edição especial dos “Quaderni Fiorentini”, intitulada
Il socialismo giuridico: ipotesi e letture. Quaderni Fiorentini: Per La Storia Del Pensiero Giuridico Moderno,
Milano, v. 3/4, 1974-75. 2. t.

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A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo... 111

Anton Menger nasceu na Hungria, no dia 12 de setembro de 1841,


e veio a morrer na cidade de Roma, em sete de fevereiro de 1906. Cerca
de um mês depois, Chiovenda apresentava, ao círculo jurídico de Napoli,
a conferência “as reformas processuais e as correntes do pensamento
moderno”, na qual enaltecia a reforma social do processo, fazendo
expressa referência a Menger e a Klein. A obra de Menger tem uma forte
preocupação com os problemas sociais, propugnando a materialização
das reivindicações proletárias mediante a reforma gradual da legislação,76
a qual adquire um caráter social e vai endereçada à proteção dos mais
débeis contra os mais fortes, assegurando àqueles uma parte mínima dos
bens necessários para viver, pois não existiria desigualdade maior que
tratar aos desiguais de modo igual.77 Com base nessas premissas, Menger
propõe a intervenção espontânea do juiz na justiça civil, combatendo
veementemente a legislação processual vigente na maioria dos Estados
civilizados daquela época, na qual o Tribunal, ainda depois de iniciado o
litígio, atuaria como o mecanismo de um relógio que é preciso impulsionar
para que se mova. Tais condições jurídicas seriam cômodas e benéficas
para as classes ricas, as quais teriam condições de tomar iniciativa, ao
contrário dos pobres, que, para defender seu direito, tropeçariam frente
a um mecanismo tão complicado, sem conselho e mal representadas,
encontrando na passividade judicial gravíssimos prejuízos.78 A solução
proposta por Menger é a de obrigar o juiz a instruir gratuitamente todo
cidadão, especialmente o mais pobre, acerca do Direito vigente. Assim,
evitar-se-ia, em certa medida, a inferioridade jurídica das classes pobres.79
As ideias de Menger influenciaram diretamente o pensamento de
Franz Klein,80 responsável pelo projeto de reforma da legislação processual
austríaca, elaborado em 1895, em vigor a partir de 1898.81 Tratava-se de
um código efetivamente novo e original, que mudou o panorama das
instituições europeias continentais,82 a ponto de a sua influência para as
76
LAMAS, Diego. Prologo. In: MENGER, Antonio. El derecho civil y los pobres. Buenos Aires: Atalaia, 1947.
p. 10-11.
77
MENGER, Antonio. El derecho civil y los pobres. Buenos Aires: Atalaia, 1947. p. 64.
78
MENGER, Antonio. El derecho civil y los pobres. Buenos Aires: Atalaia, 1947. p. 65-66.
79
MENGER, Antonio. El derecho civil y los pobres. Buenos Aires: Atalaia, 1947. p. 68.
80
TARELLO, Giovani. Il problema della riforma processuale in Italia nel primo quarto del secolo. Per uno studio
della genesi dottrinale e ideologica del vigente codice italiano di procedura. In: GUASTINI, R.; REBUFFA, G.
Dottrine del processo civil: studi storici sulla formazione del diritto processuale civile. Bologna: Il Mulino, 1989.
p. 19.
81
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 49-50.
82
TARELLO, Giovani. Il problema della riforma processuale in Italia nel primo quarto del secolo. Per uno studio della
genesi dottrinale e ideologica del vigente codice italiano di procedura. In: GUASTINI, R.; REBUFFA, G. Dottrine
del processo civil: studi storici sulla formazione del diritto processuale civile. Bologna: Il Mulino, 1989. p. 19.

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112 Igor Raatz

reformas processuais ser comparada com aquela exercida por Napoleão


sobre a codificação em geral.83 Para Klein, somente a teoria da sociedade
poderia ser o princípio válido e construtivo de um regulamento processual,
rompendo, assim, com a teoria do indivíduo prevalente no processo civil
do Estado Liberal.84 O processo, como instituto de direito público, deveria
satisfazer, ao lado dos interesses privados, também os valores sociais mais
elevados, de modo que o juiz, “timoneiro do Estado”, figuraria como
representante profissional do interesse geral.85 Daí que, a partir de uma
concepção do processo como instituição para o bem-estar social, aumenta-
se a atividade do órgão judicial, o qual é munido de suficientes poderes
para a direção material do processo, capazes de garantir a sua marcha
rápida e regular.86 Nesse sentido, o §432 da ZPO austríaca, sob notável
influência do pensamento de Menger, estabelecia a possibilidade de o juiz
instruir as partes ignorantes do direito ou não representadas por advogado
e aconselhá-las sobre as consequências jurídicas de seus atos ou omissões.87
Na Itália, a fortuna da reforma austríaca é identificada com a obra
de Chiovenda,88 o qual, a partir da ideia reformista do modo político de
considerar o processo, ia dizer que, sendo a administração da justiça uma
função da soberania, o juiz, como órgão do Estado, não deveria assistir
passivamente à lide, mas deveria nela participar com força viva e ativa.
Vale dizer, o Estado seria interessado não no objeto da lide, mas no modo
em que esta se desenvolveria.89 O maior entre os problemas processuais
giraria em torno de um ponto fundamental para Chiovenda: a relação
entre a iniciativa do juiz e a iniciativa das partes. A lide poderia se tornar
mais ou menos acessível ao homem débil e inculto, conforme o juiz tivesse
meios maiores ou menores de vir em sua ajuda, de iluminá-lo sobre o que
fazer para a sua defesa, de corrigir os seus erros. A extensão dos poderes
83
GUILLÉN, Víctor Fairén. El proyecto de la Ordenanza Procesal Civil Austriaca visto por Franz Klein. In: Studios
de derecho procesal. Madrid: Derecho Privado, 1955. p. 319.
84
SPRUNG, Rainer. Os fundamentos do direito processual civil austríaco. Revista de Processo, São Paulo, 1980.
v. 17, p. 147.
85
SPRUNG, Rainer. Os fundamentos do direito processual civil austríaco. Revista de Processo, São Paulo, 1980.
v. 17, p. 147.
86
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 50.
87
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 50.
88
TARELLO, Giovani. Il problema della riforma processuale in Italia nel primo quarto del secolo. Per uno studio
della genesi dottrinale e ideologica del vigente codice italiano di procedura. In: GUASTINI, R.; REBUFFA, G.
Dottrine del processo civil: studi storici sulla formazione del diritto processuale civile. Bologna: Il Mulino, 1989.
p. 23; GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. Los protagonistas del derecho procesal: desde Chiovenda a nuestros días.
Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2005. p. 37.
89
CHIOVENDA, Giuseppe. Le riforme processuali e le correnti del pensiero moderno. In: CHIOVENDA, Giuseppe.
Saagi di diritto processuale civile (1900-1930). Roma: Società Editrice Foro Italiano, 1930. Volume primo,
p. 385.

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A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo... 113

do juiz seria a chave das reformas processuais, o segredo da adaptação


do processo às necessidades sociais.90 Nessa senda, o processo consistiria
no desenvolvimento de uma relação entre o Estado e o cidadão,91 razão
pela qual, cabendo ao juiz a responsabilidade de pronunciar a sentença,
não poderia ser indiferente ao Estado o modo no qual se desenvolve a
atividade preparatória do juízo.92
O aumento dos poderes do juiz, para Chiovenda, estaria estritamente
conectado com os princípios da oralidade e da concentração.93 O interesse
do Estado em administrar solicitamente a justiça deveria armar o juiz
dos meios idôneos para tal escopo, como poderes para fixação da
audiência, rejeição de demandas tardiamente propostas, a execução de
ofício das provas admitidas, a citação de ofício das testemunhas indicadas,
dentre outras.94 Chiovenda, nessa linha, mostrava-se aberto às correntes
reformadoras baseadas na obra de Menger, compartilhando com seus
princípios inspiradores, no quadro de uma visão do processo no qual o
reforço dos poderes do juiz tinha, no entanto, outros pressupostos, distintos
daqueles de inspiração social. Tratava-se de, a partir dos princípios
processuais que se reuniam sob o nome de oralidade, obter um melhor
funcionamento do processo, dado o seu caráter público, enxergando-se
no reforço dos poderes do juiz o meio para resguardar do escopo público
da justiça a intemperança e os egoísmos dos litigantes.95 A proposta de

90
CHIOVENDA, Giuseppe. Le riforme processuali e le correnti del pensiero moderno. In: CHIOVENDA, Giuseppe.
Saagi di diritto processuale civile (1900-1930). Roma: Società Editrice Foro Italiano, 1930. Volume primo, p. 391.
91
CHIOVENDA, Giuseppe. Le riforme processuali e le correnti del pensiero moderno. In: CHIOVENDA, Giuseppe.
Saagi di diritto processuale civile (1900-1930). Roma: Società Editrice Foro Italiano, 1930. Volume primo, p. 393.
92
LIEBMANN, Enrico Tullio. Storiografia giuridica “manipolata”. Rivista di Diritto Processuale, v. 29, parte I, p. 108,
1974. Conforme Osvaldo Alfredo Gozaíni, influenciado pela obra de Klein, verifica-se em Chiovenda a tendência
de que o juiz era de condução e não de simples julgamento. O autor adverte ainda que “em Chiovenda, a ideia
do processo, como tal, gira ao redor do juiz sem convertê-lo em um déspota nem em inquisidor. Sua tarefa
é de condução em um desenvolvimento do tipo oral. As sequências do processo se elaboram com etapas
bem estabelecidas, onde se aplica o princípio da preclusão” (GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. Los protagonistas del
derecho procesal: desde Chiovenda a nuestros días. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2005. p. 37).
93
CHIOVENDA, Giuseppe. Lo stato attuale de processo civile in Italia e il progetto Orlando di riforme processuali.
In: CHIOVENDA, Giuseppe. Saagi di diritto processuale civile (1900-1930). Roma: Società Editrice Foro Italiano,
1930. Volume primo, p. 423. Conforme Liebman, comentando a obra de Chiovenda, “os motivos técnicos e
políticos conspiravam em exigir, para um processo oral e concentrado, maiores poderes do juiz, tanto para
regular e mover o procedimento, quanto para recolher e assumir a prova” (LIEBMANN, Enrico Tullio. Storiografia
giuridica “manipolata”. Rivista di Diritto Processuale, v. 29, parte I, p. 108, 1974).
94
CHIOVENDA, Giuseppe. Lo stato attuale de processo civile in Italia e il progetto Orlando di riforme processuali.
In: CHIOVENDA, Giuseppe. Saagi di diritto processuale civile (1900-1930). Roma: Società Editrice Foro Italiano,
1930. Volume primo, p. 424-425.
95
DENTI, Vittorio. Processo civile e giustizia sociale. Milano: Comunita, 1971. p. 14. Como exemplo da forte
concepção publicista do processo, pode-se verificar a forma como Calamandrei visualizou os provimentos
cautelares: “as medidas cautelares são predispostas, mais que no interesse dos particulares, no interesse da
administração da justiça, da qual garantem o bom funcionamento e ainda, se poderia dizer, o bom nome
(...) este caráter eminentemente publicístico dos provimentos cautelares se revela, ainda em matéria civil, na
maior energia com a qual a jurisdição se exercita, quando é dirigida a escopos cautelares: não somente na

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114 Igor Raatz

Chiovenda era, portanto, a de um processo melhor, mais eficiente e mais


rápido,96 em contraste com aquele então vigente na Europa, calcado na
visão individualista da sociedade e do direito.97
Todavia, os problemas levantados por Chiovenda em 1906 perma-
neceram sem seguimento na ciência processual posterior e na sua própria
produção científica. O fascínio pelas grandes construções conceituais aca-
bou impedindo o desenvolvimento do rico trabalho ideológico das cor-
rentes de inspiração social.98 Durante toda a primeira metade do século
XX, a ideologia jurídica que dominou a ciência do processo encontrou
esteio nas grandes obras sistemáticas, com a elaboração de princípios e
categorias dotadas de intrínseca validade conceitual, como a jurisdição, a
ação, a coisa julgada, dentre outras. Tais construções conceituais gozavam
de uma aparente neutralidade, pois, na verdade, correspondiam plena-
mente à ideologia conservadora dentro da qual a ciência jurídica tinha
fundado seus princípios informadores.99 A época entre as duas grandes
guerras foi, portanto, marcada por um substancial fechamento cultural e
ideológico aos problemas sociais da justiça, caracterizando-se uma invo-
lução no progresso social e civil, da qual os juristas carregam não pouca
responsabilidade.100
A retomada das preocupações com relação à realidade social por
parte dos juristas ocorreu somente após a Segunda Guerra Mundial, em
obras como as de Ascarelli,101 Cappelletti,102 Denti103 e Trocker.104 Ocorria
uma modificação na raiz ideológica e na concepção global do processo.105
aceleração do processo e na sumariedade da cognição, mas igualmente no crescimento dos poderes de iniciativa
do juiz (...) as medidas cautelares atendem, mais que à tutela dos direitos subjetivos, à polícia do processo”
(CALAMANDREI, Piero. Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari. Padova: Cedam, 1936.
p. 144-145). No mesmo sentido, CHIOVENDA, Giuseppe. Instituciones de derecho procesal civil (istituzioni di
diritto processuale civile). Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1936-1940. p. 215.
96
LIEBMANN, Enrico Tullio. Storiografia giuridica “manipolata”. Rivista di Diritto Processuale, v. 29, parte I,
p. 104, 1974.
97
LIEBMANN, Enrico Tullio. Storiografia giuridica “manipolata”. Rivista di Diritto Processuale, v. 29, parte I,
p. 104, 108, 1974. Em sentido contrário, Giovanni Tarello vê na obra de Chiovenda fortes elementos de
um processo civil autoritário (TARELLO, Giovanni. L’opera di Giuseppe Chiovenda nel crepusculo dello stato
liberale. In: GUASTINI, R.; REBUFFA, G. Dottrine del processo civil: studi storici sulla formazione del diritto
processuale civile. Bologna: Il Mulino, 1989).
98
DENTI, Vittorio. Processo civile e giustizia sociale. Milano: Comunita, 1971. p. 15.
99
DENTI, Vittorio. Processo civile e giustizia sociale. Milano: Comunita, 1971. p. 17. Trata-se da fase metodológica
do processo denominada processualismo. A respeito, ver MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil:
pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
100
DENTI, Vittorio. Processo civile e giustizia sociale. Milano: Comunita, 1971. p. 28-29.
101
ASCARELLI, Tullio. Litigiosità e ricchezza. In: SCRITTI giuridici in memoria di piero calamandrei. Padova: Cedam,
1958. v. 1, p. 57-72.
102
CAPPELLETTI, Mauro. Proceso, ideologías, sociedad. Buenos Aires: E.J.E.A., 1974.
103
DENTI, Vittorio. Processo civile e giustizia sociale. Milano: Comunita, 1971.
104
TROCKER, Nicolò. Processo civile e costituzione: problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: Giuffrè, 1974.
105
TARUFFO, Michele. La giustizia civile in Italia dal’700 a oggi. Bologna: Soc. Editrice il Mulino, 1980. p. 312.

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A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo... 115

A garantia de acesso à tutela jurisdicional passou a significar não somente


a eliminação de obstáculos e de limites formais ao exercício da ação, mas
também a eliminação de condicionamentos e discriminações sociais e
econômicas capazes de limitar e excluir de fato o acesso à justiça.106 Novas
técnicas internas do processo começaram a ser alçadas à consecução da
justiça social, dentre elas, a simplificação das formas procedimentais, a
presença de juízes leigos nos órgãos judiciais e o aumento dos poderes
do juiz, sobretudo no campo da prova.107 No Brasil,108 as obras de Ada
106
TARUFFO, Michele. La giustizia civile in Italia dal’700 a oggi. Bologna: Soc. Editrice il Mulino, 1980. p. 313.
107
DENTI, Vittorio. Processo civile e giustizia sociale. Milano: Comunita, 1971. p. 56.
108
O desenvolvimento do tema no Brasil é bastante curioso. O Código do Processo Civil do Brasil de 1939, como
se pode verificar em algumas passagens da exposição de motivos elaborada pelo Ministro Francisco Campos,
encampa, claramente, a cultura processual presente na Europa no início do século XX, mormente o código
austríaco de 1895, o projeto Chiovenda de 1919 e o código português de 1926 (LIEBMANN, Enrico Tullio. Il
nuovo “Código de Processo Civil” brasiliano. In: LIEBMANN, Enrico Tullio. Problemi del processo civile. Milano:
Morano, 1962. p. 484). O Código espelhava um processo eminentemente popular, colocando a verdade
processual não mais apenas a cargo das partes, mas confiando numa certa medida ao juiz a liberdade de
indagar dela. Ao mesmo tempo, visava à defesa dos fracos, a quem a luta judiciária nos quadros do processo
anterior singularmente desfavorecia. Somente a intervenção ativa do Estado no processo poderia remover
as causas de injustiça recorrentes nas lides judiciárias. O direito processual acompanhava uma mudança na
concepção do Estado, que caminhava para o povo, no sentido de garantir-lhe o gozo dos bens materiais e
espirituais previstos na Constituição, reforçando, assim, a sua autoridade para intervir de maneira eficaz nos
domínios de caráter público. Alinhava-se o discurso processual ao papel mais social desempenhado pelo
Estado, promovendo-se uma mudança paradigmática na função atribuída ao juiz, ao qual caberia a condução
do processo. Prevalecia-se o Código, pois, da concepção publicística do processo, fazendo alusão expressa ao
nome de Giuseppe Chiovenda, mas enfatizando que a autoridade conferida ao juiz não estaria ligada ao caráter
mais ou menos autoritário dos regimes políticos, afinal, esta seria a situação pleiteada por aqueles que tinham
interesse na reforma processual. Também nesse sentido o Código se valia da oralidade, da concentração dos
atos processuais e da identidade do juiz, adequando o processo no sentido de torná-lo adequado aos seus fins,
infundindo na máquina da justiça o espírito público, sem descuidar, no entanto, do seu caráter instrumental
em relação aos direitos outorgados pela União, razão pela qual deveria ser apto a tornar o direito substantivo
realmente efetivo (CAMPOS, Francisco de. Código do Processo Civil do Brasil: Decreto-Lei nº 1.608 de 18 de
Setembro de 1939. São Paulo: Saraiva, 1939. p. 8-36). Verificava-se na doutrina processual civil brasileira a
preocupação com o crescimento do papel do juiz e do caráter público do processo de todo estranho ao que
se viu no processualismo europeu da mesma época. Tanto é assim que Cândido Naves, em 1949, afirmava: “se
o Juiz bonifrate não serve às necessidades atuais da justiça, porque a finalidade desta não pode ficar à mercê
das partes, e deve, ao contrário, ser alcançada em determinadas condições de modo e de tempo que só ao
Estado cabe estabelecer e assegurar, por via do processo; se a ampliação dos poderes do Juiz é uma exigência
lógica da moderna concepção publicística do processo, — caminhemos nesse rumo” (NAVES, Candido. Belo
Horizonte: Santa Maria S.A, 1949, p. 68). Este era mote da doutrina portuguesa que inspirou o CPC de 1939,
que procurava contrapor ao “juiz manequim ou o juiz fantoche” próprio de um “conceito individualista de
processo” um juiz ativo, tendo em vista que o Estado teria, no desenvolvimento do processo, “um interesse a
defender e uma função a desempenhar: assegurar a realização do direito objectivo, fazer triunfar a justiça”,
cumprindo-lhe, portanto, “tornar tão pronta, tão completa e tão perfeita quanto possível a acção dos órgãos
judiciários; para isso há que assinar ao juiz um papel activo, uma intervenção directa e eficaz na instrução
da causa e na marcha do processo” (REIS, José Alberto da. Breve estudo sobre a reforma do processo civil e
comercial. 2. ed. actualizada. Coimbra: Coimbra Ed., 1929. p. 208). O Código de Processo Civil de 1973, apesar
de não abandonar completamente as concepções publicísticas e sociais do processo — era um Código pautado
na busca pela conciliação entre inovação e conservação — inseriu o processo civil brasileiro no processualismo,
concebendo-o como um “instrumento jurídico eminentemente técnico, preordenado a assegurar a observância
da lei”. Diversamente de outros ramos da ciência jurídica, que traduziriam a índole do povo através de longa
tradição, o processo civil deveria ser dotado exclusivamente de meios racionais, tendentes a obter a atuação
do direito, notadamente a rapidez e a justiça. Seria um resultado da técnica, que transcenderia as fronteiras
do país, com validade, pois, para muitas nações (BUZAID, Alfredo. Exposição de motivos do anteprojeto de
Código de Processo Civil. Revista Forense, Rio de Janeiro, 1964. v. 207, p. 7-28). Pode-se dizer que no Brasil
conseguiu-se “adiar a invasão francesa para 1973”, uma vez que, com o Código Buzaid, os valores liberais
são inseridos de forma acentuada no processo civil brasileiro (MITIDIERO, Daniel. Processo e cultura: praxismo,

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Pellegrini Grinover109 e Barbosa Moreira110 marcaram essa renovação nos


estudos do processo civil,111 merecendo destaque ainda o ensaio seminal de
Galeno Lacerda “o código como sistema legal de adequação do processo
civil”, no qual o referido jurista cuidou de ressaltar o caráter instrumental
do processo civil.112 Nessa onda de rupturas e mudanças, o processo vai
gradativamente deixando de ser compreendido como aquele instrumento
neutro e indiferente ao direito material e aos problemas sociais. O aumento
dos poderes do juiz, no entanto, estava ligado à necessidade de redução
das desigualdades em relação ao litigante socialmente mais fraco.113
Pode-se dizer que a doutrina publicística e social do processo teve
um inegável mérito de superar a concepção puramente liberal. Todavia,
esse discurso merece ser atualizado pelo Estado Democrático de Direito.
Afinal, se é necessário retirar o órgão julgador da passividade em que
se encontrava no Estado Liberal, isso não pode significar sua colocação
na posição de protagonista do processo, transformando as partes em
mero recipiente da vontade estatal, alijando-se a participação dessas na
formação dos provimentos judiciais. O Estado Democrático de Direito
cobra a organização do processo em conformidade com a própria noção
de democracia.114 Mostra-se imprescindível buscar um equilíbrio dos
processualismo e formalismo em direito processual civil. Gênesis Revista de Direito Processual Civil, Curitiba,
n. 33, p. 496, jul./set. 2004).
109
GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantias constitucionais do direito de ação. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1973.
110
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1977; BARBOSA MOREIRA,
José Carlos. Temas de direito processual: (segunda série). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988; BARBOSA MOREIRA,
José Carlos. Temas de direito processual: (terceira série). São Paulo: Saraiva, 1984; BARBOSA MOREIRA, José
Carlos. Temas de direito processual: (quarta série). São Paulo: Saraiva, 1989.
111
Acerca do tema, com ampla análise doutrinária e histórica do tema, ver, LEMOS, Jonathan Iovane de. A
organização do processo civil do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito: fundamentação histórica.
2011. 157f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, PUCRS, Porto Alegre, 2011. f. 103-111.
Texto no prelo gentilmente cedido pelo autor.
112
LACERDA, Galeno. O código como um sistema de adequação do processo civil. Revista do Instituto Dos
Advogados do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1976. Comemorativa do Cinqüentenário.
113
Nessa linha, Dentti visualiza o aumento dos poderes do juiz sob três perspectivas: a intervenção do juiz no
sentido de solicitar o andamento do processo, a fim de obter rapidez na atuação da justiça, o que consistiria
em um bem muito mais precioso ao litigante pobre que ao rico; a intervenção do juiz tendente a provocar o
esclarecimento das questões de fato e de direito que servem de fundamento à respectiva pretensão, de modo
a suprir as deficiências da defesa do litigante mais pobre; e o crescimento dos poderes do juiz relativamente à
disponibilidade da prova (DENTI, Vittorio. Processo civile e giustizia sociale. Milano: Comunita, 1971. p. 63-64).
114
Conforme Dierle Nunes: “Todavia, como já foi dito, uma parte dos defensores do ideal de um processo social
e sem neutralidade normativa crê que o juiz possa operar como um verdadeiro canal de comunicação entre
o peso axiológico atual da sociedade em que se vive e os textos normativos, sendo o intérprete dotado de
sensibilidade na pesquisa solitária dos bens comuns. E a tal concepção permite a utilização de conteúdos
não colocados ao crivo do contraditório, permitindo assim ao juiz de valer-se de argumentações axiológicas
pessoais (quem sabe ocultando dentro desses razões políticas ou econômicas) que somente serão examinadas
pelas partes na leitura final das decisões (decisões de terza via — Überraschungsentscheidungen). E os sistemas
processuais que seguem as perspectivas da socialização e adotam um perfil funcional (na medida em que
permitem ao magistrado a utilização de prévias compreensões pessoais sem o exercício dos controles) limitando
uma das principais funções do processo, ou seja aquela de servir de estrutura normativa cardeal na formação

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A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo... 117

poderes do juiz e das partes no processo: nem um juiz inoperante e passivo


nos moldes do Estado Liberal,115 nem um reforço dos poderes do juiz em
detrimento da atuação das partes no processo.116 Cumpre verificar, pois,
de que forma o formalismo processual pode ser compreendido a partir
das bases do Estado Democrático de Direito.117

4 O Estado Democrático de Direito e o Processo Civil


4.1 Os elementos informadores do Estado Democrático de Direito
Tanto no modelo liberal, quanto no modelo social, o fim ultimado
pelo Estado é o de adaptação à ordem estabelecida,118 mantendo-se, por
conseguinte, a já mencionada separação entre o Estado e a sociedade.
Quanto mais profunda essa separação, mais a relação de cidadania se
converte numa relação paternalista de clientela, ou seja, reservando
ao cidadão um papel apático e periférico.119 Desse modo, a crescente
socialização do Estado passa a exigir não somente o reconhecimento da
do provimento” (NUNES, Dierle José Coelho. Processo civile liberale, sociale e democratico. Disponível em:
<http://www. diritto.it>. Acesso em: 27 set. 2010).
115
Nesse sentido, ver as constantes críticas ao “neoprivatismo processual” elaboradas por Barbosa Moreira nos
seguintes ensaios: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O neoprivatismo no processo civil. Revista Síntese de Direito
Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 6, n. 34, p. 5-16, mar./abr. 2005; BARBOSA MOREIRA, José Carlos.
Correntes e contracorrentes no processo civil contemporâneo. Revista de Processo, São Paulo, v. 29, n. 116,
p. 313-323, jul./ago. 2004. Na mesma linha, ver, na doutrina italiana, TARUFFO, Michele. Poteri probatori delle
parti e del giudice in Europa. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, v. 60, n. 2, p. 451-482,
giugno 2006; DENTI, Vittorio. Processo civile e giustizia sociale. Milano: Comunita, 1971; VERDE, Giovanni. Le
ideologie del processo in un recente saggio. Rivista di Diritto Processuale, ano LVII, n. 3, luglio/set. 2002; VERDE,
Giovanni. Il processo civile sociale (postilla). Rivista di Diritto Processuale, ano LIX, n. 2, apr./giugno 2004.
116
É interessante notar que em 1972, Fritz Baur já alertava para a necessidade de uma atualização do pensamento
de Franz Klein, no sentido de que também o papel das partes e a tutela dos seus direitos deve ser reforçado, sem
que isso signifique um amesquinhamento do papel do juiz: “o pensamento de Franz Klein acerca da atividade
do órgão judicial no processo não é hoje de algum modo superado, mas acima de tudo vai reformulado sob a
base de um necessário e contemporâneo reforço dos direitos das partes” (BAUR, Fritz. Il processo e le correnti
culturali contemporanee. Rivista di Diritto Processuale, v. 27, p. 258, 1972).
117
Empreitada levada a efeito com relevante aprofundamento teórico na obra, ainda no prelo, A organização
do processo civil do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito: fundamentação histórica, de autoria de
Jonathan Lemos.
118
Nesse sentido, referem Lenio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Morais: “Como liberal, o Estado de Direito
sustenta juridicamente o conteúdo próprio do liberalismo, referendando a limitação da ação estatal e tendo a
lei como ordem geral e abstrata. Por outro lado, a efetividade da normatividade é garantida, genericamente,
através da imposição de uma sanção diante da desconformidade do ato praticado com a hipótese normativa.
Transmutado em social, o Estado de Direito acrescenta à juridicidade liberal um conteúdo social, conectando
aquela restrição à atividade estatal a prestações implementadas pelo Estado. A lei passa a ser, privilegiadamente,
um instrumento de ação concreta do Estado, tendo como método assecuratório de sua efetividade a promoção
de determinadas ações pretendidas pela ordem jurídica. Em ambas as situações, todavia, o fim ultimado é a
adaptação à ordem estabelecida” (STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral
do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 91).
119
A propósito, afirma Daniel Sarmento: “Na medida em que se aprofunda a distância entre governados e
governantes, e declina a importância das instituições representativas na estrutura estatal, a relação de cidadania
se converte numa relação paternalista de clientela. Cada vez menos os atos do Estado podem ser imputados à
vontade majoritária do seu povo, em razão da autonomização da tecnocracia, e da apatia política que contamina
uma sociedade que se interessa apenas pelo consumo. É eloqüente o fato de que, na linguagem política, a
figura do cidadão venha sendo substituída pela do consumidor” (SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais
e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 23).

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118 Igor Raatz

intervenção dos grupos de interesse e organizações sociais na tomada das


decisões políticas centrais, mas, efetivamente, a recondução institucional
dessas decisões à vontade democraticamente expressada pelo conjunto da
sociedade.120 Vale dizer, o cidadão deve ser visto como participante, e não
mero recipiente da intervenção social do Estado.121 O povo passa a ser
compreendido em todo e qualquer indivíduo, o qual, agora, figura como
novo partícipe na realização concreta da seara política.122 A democracia
deixa de ser apenas representativa e passa a ser participativa.
A autodeterminação democrática da sociedade se inscreve, por
sua vez, nos limites demarcados por uma vinculação material carimbada
pela autonomia individual e pelos direitos fundamentais.123 Esse caráter
democrático implica uma constante mutação e ampliação dos conteúdos
do Estado e do direito,124 não bastando a limitação ou a promoção da
atuação estatal: objetiva-se, nessa senda, a transformação do status quo.125
Tem-se, assim, a incorporação efetiva da questão da igualdade como um
conteúdo próprio a ser buscado, garantindo juridicamente as condições
mínimas de vida ao cidadão e à comunidade.126
Nessa linha, o Estado Democrático de Direito está indissociavelmente
ligado à realização dos direitos fundamentais.127 O Estado Democrático
pode ser visto assentado em dois pilares: a democracia e os direitos
fundamentais, havendo uma “co-pertença entre ambos”.128 Com efeito, ao
120
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006.
p. 191.
121
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006.
p. 191.
122
RIBEIRO, Darci Guimarães; SCALABRIN, Felipe. O papel do processo na construção da democracia: para uma
nova definição de democracia participativa. Revista da Ajuris, v. 36, n. 114, jun. 2009. p. 94-95. Conforme
Canotilho, o “princípio democrático implica democracia participativa, isto é, a estruturação de processos que
ofereçam aos cidadãos efectivas possibilidades de aprender a democracia, participar nos processos de decisão,
exercer controlo crítico na divergência de opiniões, produzir inputs políticos democráticos” (CANOTILHO, José
Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 280).
123
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito. Reedição. Coimbra: Almedina, 2006.
p. 212-213.
124
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do Estado. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2010. p. 95.
125
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do Estado. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2010. p. 91.
126
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do Estado. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2010. p. 94.
127
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(em) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito.
6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 39. Conforme Ingo Sarlet “os direitos fundamentais
integram, portanto, ao lado da definição da forma de Estado, do sistema de governo e da organização do
poder, a essência do Estado constitucional, constituindo, neste sentido, não apenas parte da Constituição
formal, mas também elemento nuclear da Constituição material” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos
direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev.
atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 59-60).
128
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2002. p. 104.

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A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo... 119

lado da imprescindível participação do povo na configuração e definição


dos contornos dos direitos fundamentais, o Estado Democrático de Direito
tem uma preocupação premente com o cumprimento da Constituição e
com a satisfação dos direitos nela encampados. Pode-se dizer que o Estado
organizado e uma Constituição só têm sentido para que se cumpra a
Constituição e se viabilize a dignidade humana.129 O Estado deixa de ser
um inimigo da sociedade, e passa a desempenhar um papel primordial de
transformação das estruturas sociais a partir da concretização dos direitos
fundamentais, tudo em um ambiente democrático.130

4.2 O processo civil no Estado Democrático de Direito: a colaboração


como modelo de organização do processo
Na medida em que o Estado Democrático carrega consigo esse cará-
ter transformador, não é possível concebê-lo como um Estado passivo. Ao
mesmo tempo, a tônica fundada em uma autodeterminação democrática
enfatiza que os cidadãos deixam de ser apenas alvo da atuação do Estado.
Essa relação entre a sociedade e o Estado vai refletir a concepção do pro-
cesso civil que marca o Estado Democrático de Direito. Afinal, é “do equi-
líbrio de forças entre o juiz e os litigantes que transparece a verdadeira
concepção que o legislador tem da justiça”.131
No Estado Liberal o juiz exercia um papel passivo e desinteressado,132
atuando como um árbitro, sendo impossível concebê-lo no mesmo nível
que os demais sujeitos processuais.133 Com o advento do Estado Social, o

129
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2002. p. 667.
130
Conforme Lenio Streck, “o Estado deixa de ser ordenador (modelo liberal) e promovedor (social) para assumir
a feição de transformar as estruturas sociais. Não é por nada que a Constituição estabelece que o Brasil é
uma República e que tem os objetivos de erradicar a pobreza, promover justiça social, colocando a idéia de
Welfare State como núcleo essencial da Constituição (art. 3º), além dos dispositivos que tratam da intervenção
do Estado na economia, no papel do Estado na promoção de políticas públicas, etc. Este é o ponto: em um
país como o Brasil, em que o intervencionismo estatal até hoje somente serviu para a acumulação das elites, a
Constituição altera esse quadro, apontando as baterias do Estado para o resgate das promessas cumpridas da
modernidade. D’onde é possível dizer que não será a iniciativa privada que fará a redistribuição de renda e a
promoção da redução das desigualdades, mas, sim, o Estado, no seu modelo alcunhado de Democrático de
Direito, plus normativo em relação aos modelos que o antecederam. Deixemos de lado, pois, tanta desconfiança
com o Estado. O Estado, hoje, pode — e deve — ser amigo dos direitos fundamentais. E esta é uma questão
paradigmática” (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas da
possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 143).
131
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O problema da ‘divisão do trabalho’ entre juiz e partes: aspectos
terminológicos. Revista de Processo, v. 9, n. 41, 1985. Conforme Roger Perrot é “do equilíbrio de forças entre
o juiz e os litigantes transparece a verdadeira concepção que o legislador tem da justiça” (PERROT, Roger. Il
nuovo futuro codice di procedura civile francese. Rivista di Diritto Processuale, n. 2, p. 239, 1975).
132
PINTO, Junior Alexandre Moreira. O regime processual experimental português. Revista de Processo, São Paulo,
v. 32, n. 148, p. 172, jun. 2007.
133
GRASSO, Eduardo. La collaborazione nel processo civile. Rivista di Diritto Processuale, v. 21, p. 595, 1966.

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120 Igor Raatz

incremento dos poderes do juiz ocorre como um reflexo da mudança no


próprio perfil do Estado, de modo que, na qualidade de representante da
vontade estatal, e imbuído na busca pela justiça social, o órgão julgador
passa a assumir uma posição central na condução do processo. No Estado
Democrático de Direito, busca-se conciliar características do processo
liberal e do processo social134 a partir de um modelo de organização
processual no qual o juiz desenvolva o diálogo no mesmo nível das
partes,135 com acento, pois, na democracia participativa.136
Pela ótica da teoria do Estado, pode-se falar em três modelos de
organização do processo no que tange ao papel do órgão julgador: o juiz
passivo do Estado Liberal, o juiz ativo do Estado Social e o juiz colabora-
tivo do Estado Democrático de Direito. A colaboração, como modelo de
organização do processo própria do Estado Democrático de Direito, enfa-
tiza uma forma de trabalho em conjunto (comunidade de trabalho) entre
o juiz e as partes,137 uma vez que “cooperar ou colaborar implica agir em
conjunto para determinado fim específico”.138 Por isso, é acertado dizer
que as partes não colaboram entre si.139 A novidade reside essencialmente
na existência de deveres de colaboração do tribunal para com as partes.140
134
Conforme adverte Dierle José Nunes Coelho, “conciliar as características de um processo social e de um
processo ‘privatista’ pode provocar resultados sociais e constitucionalmente aceitáveis, no sentido de uma
justa legitimação das decisões judiciárias, sem reduzir a participação ativa do juiz e a contribuição das partes,
isto é, a função do processo de assegurar e garantir o contraditório” (NUNES, Dierle José Coelho. Processo
civile liberale, sociale e democratico. Disponível em: <http://www. diritto.it>. Acesso em: 27 set. 2010).
135
GRASSO, Eduardo. La collaborazione nel processo civile. Rivista di Diritto Processuale, v. 21, p. 609, 1966.
136
Segundo Dierle Nunes, “A almejada e defendida publicização do processo deve permitir a utilização do espaço
criado por essa para discutir todos os temas dos interessados no resultado dos provimentos. Não um mero
instrumento de falsa pacificação social conseguida por critérios pessoais do juiz. O espaço púbico criado pelo
processo deve permitir a ampla participação das partes e do juiz, com uma discussão bem estruturada, ainda
que limitada pela inevitável imperfeição dos mecanismos processuais e pela congruência com as matérias
discutidas (...) Quando não se assegura a todos os participantes o exercício de uma efetiva influência na
formação dos provimentos, a decisão da lide é conseguida pelas mãos (solitárias) do juiz sem que se haja a
preocupação com a ‘colaboração’ das partes e dos seus advogados” (NUNES, Dierle José Coelho. Processo
civile liberale, sociale e democratico. Disponível em: <http://www. diritto.it>. Acesso em: 27 set. 2010).
137
FREITAS, José Lebre. Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed.,
2006. p. 168. A expressão já era utilizada na obra de Leo Rosenberg Lehrbuch des deutschen Zivilprozessrechts.
A respeito, ver, no original, ROSENBERG, Leo. Lehrbuch des deutschen Zivilprozessrechts. 5. ed. München:
Beck, 1951, ou, ainda, em língua espanhola, ROSENBERG, Leo. Tratado de derecho procesal civil. Buenos Aires:
E.J.E.A., 1955.
138
MATOS, José Igreja. Um modelo de juiz para o processo civil actual. Coimbra: Coimbra Ed., 2010. p. 78;
CABRAL, Antônio do Passo. Nulidades no processo moderno: contraditório, proteção da confiança e validade
prima facie dos atos processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 217.
139
Como bem esclarecem Daniel Mitidiero e Luiz Guilherme Marinoni: “a colaboração no processo civil devida no
Estado Constitucional não é uma colaboração entre as partes. É uma colaboração do juiz para com as partes.
Pode ocorrer de uma das partes ter de cooperar com o juízo a fim de que este colabore com a outra. Isto
de modo nenhum autoriza, contudo, que se diga que há colaboração entre as partes. É a própria estrutura
adversarial ínsita ao processo contencioso que repele a ideia de colaboração entre as partes (MARINONI,
Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: críticas e propostas. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2010. p. 73). Sobre o tema, com maior profundidade, ver MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil:
pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
140
MATOS, José Igreja. Um modelo de juiz para o processo civil actual. Coimbra: Coimbra Ed., 2010. p. 79;
FREITAS, José Lebre. Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed.,
2006. p. 163-164.

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A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo... 121

A colaboração, assim, passa a constituir a trave mestra do processo civil,141


impondo ao órgão julgador deveres de esclarecimento, de prevenção, de
consulta e de auxílio.
Nessa senda, o dever de esclarecimento consiste no dever do julgador
em se esclarecer, junto às partes, quanto às dúvidas que tenha sobre as
suas alegações, pedidos ou posições em juízo, evitando que sua decisão
tenha por base a falta de informação e não a verdade apurada.142 Em
face do dever de prevenção, o julgador se vê incumbido de prevenir as
partes sobre eventuais deficiências ou insuficiências das suas alegações ou
pedidos.143 O juiz tem o dever de auxiliar as partes na superação de eventuais
dificuldades que impeçam direitos ou faculdades, ou o cumprimento de
deveres ou ônus processuais. Assim, sempre que alguma das partes alegue
justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação
que condicione o eficaz exercício de uma faculdade, ou o cumprimento
de um ônus ou dever processual, o juiz deve sempre que possível,
providenciar pela remoção do obstáculo.144 Por fim, o órgão julgador tem
o dever de consultar as partes sempre que pretenda conhecer de matéria de
fato ou de direito sobre a qual elas não tenham tido a possibilidade de se
pronunciarem, seja porque enquadra juridicamente a situação de forma
diferente daquela que é a perspectiva das partes, seja porque pretende
conhecer de ofício certo fato relevante para a decisão da causa.145 O artigo
141
FREITAS, José Lebre. Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed.,
2006. p. 168.
142
SOUSA, Miguel Teixeira de. Aspectos do novo processo civil português. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 338,
p. 151, 1997. A matéria a ser esclarecida pode dizer respeito tanto aos fatos da causa, quanto às questões
jurídicas, estando situado nesses dois planos. No primeiro, diz respeito a qualquer esclarecimento que o julgador
pretenda obter sobre a alegação dos fatos da causa, de modo a ter a perfeita compreensão do seu conteúdo.
No segundo, às partes pode ser pedido que esclareçam a sua posição quanto aos fundamentos de direito do
pedido e das exceções (FREITAS, José Lebre. Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. 2. ed.
Coimbra: Coimbra Ed., 2006. p. 165). Nessa linha, sorte, não deve o magistrado indeferir a petição inicial,
tendo em vista a obscuridade do pedido ou da causa de pedir, sem antes pedir esclarecimentos ao demandante
(DIDIER JÚNIOR, Fredie. O princípio da cooperação: uma apresentação. Revista de Processo, São Paulo, n. 127,
p. 77, set, 2005).
143
SOUSA, Miguel Teixeira de. Aspectos do novo processo civil português. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 338,
p. 151, 1997. Nessa linha, o juiz tem o dever de sugerir a especificação de um pedido indeterminado, de
solicitar a individualização das parcelas de um montante que só é globalmente indicado, de referir as lacunas
na descrição de um fato, de se esclarecer sobre se a parte desistiu do depoimento de uma testemunha indicada
ou apenas se esqueceu dela e de convidar a parte a provocar a intervenção de um terceiro (GOUVEIA, Lucio
Grassi de. Cognição processual civil: atividade dialética e cooperação intersubjetiva na busca da verdade real.
Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 6, p. 52, 2003).
144
SOUSA, Miguel Teixeira de. Aspectos do novo processo civil português. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 338,
p. 151, 1997. José Lebre de Freitas afirma que, “se, falecida uma parte, o autor invocar dificuldade séria em
identificar os seus herdeiros ou em provar a qualidade destes, deve o juiz notificar o co-réu ou um terceiro
familiar do falecido para que preste as informações necessárias à observância do ónus de requerer a habilitação
para poder, seguidamente, prosseguir a causa” (FREITAS, José Lebre. Introdução ao processo civil: conceito e
princípios gerais. 2. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2006. p. 167).
145
SOUSA, Miguel Teixeira de. Aspectos do novo processo civil português. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 338,
p. 151, 1997.

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122 Igor Raatz

10 do Projeto do CPC evidencia, de forma eloquente, a adoção de um


modelo colaborativo de organização do processo, na medida em que veda
a tomada de decisões com base em fundamento a respeito do qual não se
tenha dado às partes a oportunidade de se manifestar ainda que se trate
de matéria sobre a qual tenha que decidir de ofício.146
Impende ressaltar que o dever de consulta tem como contrapartida
o direito de participação das partes,147 conferindo um ponto de equilíbrio
entre essas e o julgador na organização do processo. Impõe-se então um
fortalecimento dos poderes das partes, mediante a sua participação mais
ativa e leal no processo de formação da decisão.148 Tal é a previsão do
artigo 5º do Projeto do CPC, segundo o qual as partes têm o direito de
participar ativamente do processo.
Como corolário da própria noção de democracia participativa, o
direito de participação configura um direito de incidir sobre o desenvol-
vimento e sobre o êxito da controvérsia.149 O contraditório, nessa vereda,
torna-se o núcleo essencial da participação,150 que não pode ser somente
aparente e fictícia, razão pela qual ao direito da parte de pronunciar-se
em juízo corresponde o dever do juiz de escutá-la.151 O polo metodoló-
gico do direito processual é deslocado da jurisdição ao processo, que vai
146
Sobre os deveres de colaboração, com uma análise mais detida, inclusive relacionando-os com o direito
fundamental à igualdade e com o necessário rompimento com o distanciamento entre direito material e
processos, ver SANTOS, Igor Raatz. Processo, igualdade e colaboração: os deveres de esclarecimento, prevenção,
consulta e auxílio como meio de redução das desigualdades no processo civil. Revista de Processo, ano 36,
n. 192, fev. 2011.
147
Conforme Giuseppe Tarzia, “a participação no ‘diálogo’ não reclama somente que tenha havido aviso da
audiência e conhecimento dos pronunciamentos emitidos pelo juiz, e, portanto, a sua comunicação, quando
não tenham sido proferidos na audiência. A extensão ao juiz do princípio do contraditório, pelo menos na
sua versão mais moderna, comporta a ideia de obrigação em relação ao próprio juiz — e, para aquilo que nos
concerne, especificamente para o juiz da execução — de submeter à discussão prévia das partes as questões
releváveis de ofício, sobre as quais crê necessário dever pronunciar-se (por exemplo, as questões relativas a
competência, a jurisdição, e outras das quais se falou acima), atuando dessa forma, a “tuteladas partes contra
o perigo das surpresas”, que parece ser essência num processo efetivamente dominado pelo princípio que
agora se está examinando” (TARZIA, Giuseppe. O contraditório no processo executivo. Revista de Processo,
São Paulo, v. 7, n. 28, p. 74-75, out./dez. 1982). Nesse sentido, também, MONTESANO, Luigi. La garanzia
costituzionale del contraddittorio e i giudizi civili di “terza via”. Rivista di Diritto Processuale, Padova, v. 55,
n. 4, p. 931, out. 2000.
148
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Poderes del juez y visión cooperativa del proceso. Cadernos do Programa
de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, n. 2, p. 139, set.
2004.
149
TROCKER, Nicolò. Processo civile e costituzione: problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: Giuffrè, 1974.
p. 170.
150
TROCKER, Nicolò. Processo civile e costituzione: problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: Giuffrè, 1974.
p. 377; CAPPELLETTI, Mauro. Spunti in tema di contradditorio. In: STUDI in memoria di Salvatore Satta.
Padova: Cedam, 1982. Volume primo, p. 210.
151
TROCKER, Nicolò. Processo civile e costituzione: problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: Giuffrè, 1974.
p. 371. Sobre o contraditório como direito de influência, ver, COMOGLIO, Luigi Paolo. Il giusto processo civile
in Italia e in Europa. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 116, p. 132, ago. 2004; TARZIA,
Giuseppe. Il contraddittorio nel processo esecutivo. In: Esecuzione forzata e procedure concorsuali. Milano:
Cedam, 1994. p. 60; CABRAL, Antônio do Passo. Il Principio del contraddittorio come diritto d’influenza e
dovere di dibattito. Rivista di Diritto Processuale, v. 60, p. 458, apr./giugno 2005.

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A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo... 123

encarado como um procedimento em contraditório.152 A nota essencial é,


pois, a participação dos destinatários dos seus efeitos, em contraditória e em
simétrica paridade de condições, de modo que eles possam realizar atividades
que deverão ser levadas em conta pelo autor do ato (órgão julgador), que
não poderá ignorá-las.153 A condução do processo pelo juiz se dá, portan-
to, “de maneira dialogal, colhendo a impressão das partes a respeito dos
eventuais rumos a serem tomados no processo, possibilitando que essas
dele participem, influenciando-o a respeito de suas possíveis decisões”.154
O equilíbrio da posição das partes e do juiz decorrente do modelo
colaborativo de organização do processo faz, por sua vez, que a participação
das partes no processo seja pautada pela boa-fé objetiva.155 O fato de as
partes serem parciais e interessadas no resultado da causa não significa
que estejam isentas de agir com lealdade e boa-fé. Elas têm o dever de
colaborar com o juízo na solução da causa. A segunda parte do artigo
5º do Projeto do CPC é bastante clara nesse sentido, na medida em que
prevê o dever das partes cooperarem com o juiz da causa fornecendo-lhe
subsídios para que profira decisões, realize atos executivos ou determine
a prática de medidas de urgência. Também o artigo 8º do Projeto prevê
o dever das partes colaborarem com o juiz para a identificação das
questões de fato e de direito, bem como abster-se de provocar incidentes
desnecessários e procrastinatórios.
Nessa senda, a boa-fé objetiva, ao balizar a conduta das partes,
poderá representar deveres, obrigações ou ônus processuais.156 Nesse

152
No âmbito do processo civil, deve-se à obra de Elio Fazzalari o desenvolvimento da teoria processo como
procedimento em contraditório com vistas à superação do “gasto e inadequado clichê da relação jurídica
processual” (FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. Padova: Cedam, 1975. p. 24). A ideia do processo
como procedimento em contraditório tem origem, no entanto, no direito administrativo, especificamente, a
Aldo Sandulli (SANDULLI, Aldo. Il procedimento amministrativo. Milano: Giuffrè, 1940).
153
FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. Padova: Cedam, 1975. p. 30.
154
MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009. p. 73; GELSI BIDART, Adolfo. La humanización del proceso. Revista de Processo, São Paulo,
v. 9, p. 115, 1978.
155
A ideia de que a boa-fé impõe deveres aos sujeitos processuais, estabelecendo verdadeiras regras de conduta,
não é nova no direito brasileiro. Já em 1961, Jonatas Milhomens retratava o estado da doutrina pátria a
respeito do tema, asseverando que, no direito processual “a) devem os sujeitos do processo comportar-se
honestamente; b) presume-se que tenham agido de boa-fé; c) pune-se a transgressão do dever de lealdade”
(MILHOMENS, Jônatas de Mattos. Da presunção de boa-fé no processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 1961.
p. 54). Hodiernamente, o Código de Processo Civil brasileiro prevê diversos deveres a todos aqueles que de
qualquer forma participam do processo (art. 14 e seguintes, do CPC), encampando, no âmbito processual o
princípio da boa-fé objetiva. É de relevo notar que a construção do tema do direito processual parte do amplo
material doutrinário elaborado no direito civil. A propósito, ver COSTA, Judith Hofmeister Martins. A boa-fé no
direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999; SILVA, Clovis
Veríssimo do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2007; CORDEIRO, Antonio Manuel
da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1984; FERREIRA RUBIO, Delia Matilde. La
buena fe: el principio general en el derecho civil. Madrid: Montecorvo, 1984.
156
RIBEIRO, Darci Guimarães. O sobreprincípio da boa-fé processual como decorrência do comportamento da
parte em juízo. In: RIBEIRO, Darci Guimarães. Da tutela jurisdicional às formas de tutela. Porto Alegre: Livraria

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124 Igor Raatz

sentido, por exemplo, tem-se o dever do executado de indicar ao juiz quais


são e onde estão os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores, sob
pena de incorrer em ato atentatório à dignidade da justiça, hipótese na
qual incidirá multa em valor não superior a 20% do valor da execução,
conforme o art. 733, parágrafo único, do Projeto do CPC, o ônus do réu
contestar, sob pena de se reputarem verdadeiros os fatos afirmados pelo
autor, consoante o art. 331, do Projeto do CPC, e a obrigação de indenizar
a parte contrária em decorrência dos prejuízos sofridos pela atuação
desleal do litigante de má-fé, nos termos do art. 84, do Projeto do CPC.
Em outra frente, dada a imprescindível importância atribuída à
concretização dos direitos no marco do Estado Democrático de Direito,
cobra-se igualmente um aumento dos poderes do juiz, de modo que o pro-
cesso seja capaz de atingir a sua precípua missão de concretizar direitos.157
Afinal, ter direito significa ter direito à tutela do direito.158 Sobreleva, nessa
senda, um incremento de técnicas processuais e a disposição de formas de
tutela jurisdicional, para que esta seja efetiva, tempestiva e adequada ao
direito material.159 Pode-se dizer que, pela ótica da teoria do Estado, o juiz
assume uma posição ativa no processo, garantindo-se assim uma tutela
jurisdicional voltada a realização do direito material e atenta à posição
das partes no processo. No entanto, pelo prisma da colaboração, as partes
não têm seu papel diminuído, havendo, pois, um necessário equilíbrio de
posições entre os sujeitos processuais,160 de modo que quando se afirma

do Advogado, 2010. p. 134. A respeito dos deveres, obrigações e ônus processuais das partes no processo,
ver, também, EISNER, Isidoro. La prueba en el proceso civil. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1964. p. 51 et seq.
157
Nunca é demais lembrar que uma das grandes bandeiras do pensamento de Ovídio Baptista da Silva era
justamente a falta de poderes atribuídos ao juiz dos países de tradição do civil law. Nesse sentido, reputava
“indispensável ter em conta que, tanto o sistema jurídico da Europa continental quanto a common law são
de certa forma descendentes do direito romano e, não obstante, apenas o primeiro conservou a estrutura
elementar do procedimento da actio, diretamente ligada aos juízes privados, quanto o direito inglês preservou
a porção mais nobre da função judicial romana, reservada apenas ao pretor, não ao juiz privado” (SILVA, Ovídio
Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1997. p. 102). Ainda, para o autor, “a prática de uma democracia verdadeiramente participativa não pode
prescindir de um Poder Judiciário forte, responsável o politicamente legitimado” (SILVA, Ovídio Araújo Baptista
da. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 2).
158
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: críticas e propostas. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010. p. 26.
159
Acerca do tema, com ampla análise do direito comparado, ver RIBEIRO, Darci Guimarães. A concretização
da tutela específica no direito comparado. In: RIBEIRO, Darci Guimarães. Da tutela jurisdicional às formas de
tutela. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 187-205.
160
Trata-se de perspectiva que, a partir de outra matriz teórica (teoria do Estado), chega ao mote da colaboração
como modelo de organização do processo, empreitada que, de forma seminal no direito processual civil
brasileiro, e sob outra perspectiva teórica, vai enxergar o juiz assumindo uma dupla posição no formalismo
processual: “mostra-se paritário na condução do processo, no diálogo processual, sendo, contudo, assimétrico
no quando da decisão da causa” (MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais,
lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 102). Pode-se dizer, portanto, que a proposta do
presente ensaio pretende corroborar, por um caminho diverso, o pensamento que propugna pela colaboração
como modelo para o processo civil contemporâneo.

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A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção de um modelo... 125

que é necessário munir o juiz com poderes para que o processo seja efetivo
isso não quer significar a defesa de um protagonismo judicial ou de um
“estado de natureza hermenêutico”.161 Muito pelo contrário, além dessa
perspectiva mais democrática de organização do processo, o direito ao
processo justo vai cobrar, em seu aspecto procedimental, um controle
demo­crático sobre os poderes do juiz, a partir de série de direitos funda-
mentais162 alçados justamente para permitir, juntamente com a partici-
pação das partes na formação das decisões, um amplo controle sobre os
poderes do juiz.

Considerações finais
Tomando-se como matriz a teoria do Estado, notadamente pela
perspectiva das relações entre governantes e governados, a colaboração
apresenta-se como o modelo de organização do processo civil que melhor
se afeiçoa às características do Estado Democrático de Direito, distribuindo
o papel do juiz e das partes de forma democrática e comprometida com
a tutela dos direitos. Iniludivelmente, a colaboração é uma decorrência
dos elementos histórico-culturais que marcam a atual conformação do
Estado e, pois, está na base da compreensão democrática do processo
civil. O Projeto do CPC reflete, em diversos pontos, tal forma de conceber

161
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas da possibilidade à
necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 341. Ao cunhar essa
expressão, Lenio está preocupado com a necessidade de controlar o poder hermenêutico do juiz, uma vez que
“nesta quadra da história, o direito assume um caráter hermenêutico, tendo como consequência um efetivo
crescimento no grau de deslocamento do polo de tensão entre os poderes do Estado em direção à jurisdição
(constitucional), pela impossibilidade de o legislativo (a lei) poder antever todas as hipóteses de aplicação. Na
medida em que aumentam as demandas por direitos fundamentais e na medida em que o constitucionalismo, a
partir de preceitos e princípios, invade cada vez mais o espaço reservado à regulamentação legislativa (liberdade
de conformação do legislador), cresce a necessidade de controlar limites ao “poder hermenêutico” do juiz”
(Idem, ibidem, p. 1-2). Esse aumento do caráter hermenêutico do direito, próprio do constitucionalismo
contemporâneo além da (necessária) concretização dos direitos fundamentais não quer significar, todavia, uma
queda de irracionalidade ou uma delegação em favor de decisionismos (Idem, ibidem, p. 217), sendo, pois,
tarefa básica de qualquer teoria jurídica na atualidade: concretizar direitos e evitar arbitrariedades, decisionismos,
discricionariedades (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas.
da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 12).
Sobre o tema, com lente aguçada e perspicaz em direção ao processo civil, ver MOTTA, Francisco José Borges.
Levando o direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. Florianópolis: Conceito Editorial,
2010.
162
O devido processo vai então visualizado em sua dupla dimensão (processual e material) como direito de
defesa e, simultaneamente, como direito a ações positivas, de modo particular como direito fundamental à
organização e procedimento. Com essa mudança paradigmática ocorrida na compreensão do devido processo,
é bastante profícua a denominação processo justo, que visa justamente a demarcar essa ruptura. O direito
fundamental ao processo justo vem, nessa quadra, a estruturar o processo a partir de uma série de direitos
fundamentais coordenados e necessários para conferir um perfil democrático ao processo. Sobre o tema, o
nosso ensaio ainda no prelo: O Dogma da apreciação prévia dos pressupostos processuais e o artigo 475 do
projeto do novo Código de Processo Civil.

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126 Igor Raatz

a organização do processo civil, estando, pois, afinado com os elementos


basilares do Estado Democrático de Direito.

Riassunto: Questo saggio si propone di analizzare li riflessi della teoria dello


Stato nell’organizzazione del processo civile, da tre modelli: lo Stato liberale,
lo Stato sociale e lo Stato democratico. L’obiettivo è quindi trovare i modelli di
organizzazione del processo in diversi ambienti dello Stato al fine di definire
le matrici storiche e culturali per um modello di organizzazione del processo
civile nello Stato democratico di Diritto e il suo impatto sul progetto del CPC.
Parole chiave: Processo civile. Teoria dello Stato. Organizzazione del
processo. Collaborazione.

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RAATZ, Igor. A organização do processo civil pela ótica da teoria do Estado: a construção
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reflexo no projeto do CPC. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte,
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Atos judiciais passíveis de mandado
de segurança e devido processo legal:
estudo segundo a jurisprudência dos
tribunais superiores
Leonardo Gonçalves Juzinskas
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestrando em Direito
Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Procurador da Fazenda
Nacional (PFN).

Marcelo Abelha Rodrigues


Doutor e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor
de graduação e pós-graduação do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES). Membro do IBDP e do Conselho Editorial das revistas de processo e de direito
ambiental da RT. Vice-presidente da Sociedade Capixaba de Direito Processual. Autor de diversas
obras em direito processual civil e direito ambiental. Advogado.

Resumo: Procurou-se inicialmente relacionar a natureza eminentemente


genuína do mandado de segurança brasileiro, tributando ao poder criativo
da jurisprudência a sua utilização como sucedâneo recursal. Em sequência,
em análise da evolução da jurisprudência sobre o cabimento de mandado
de segurança contra decisões judiciais, buscou-se encontrar alguns padrões
para a sua utilização, descrevendo, caso a caso, algumas decisões de tribunais
superiores, as quais aparentemente fugiriam da regra geral. Por fim, intentou-
se resumir a razão fática da vulgarização do seu uso.
Palavras-chave: Mandado de segurança. Direito líquido e certo. Ato judicial.
Recurso. Dano imediato e de difícil reparação. Duplo grau de jurisdição.
Sumário: 1 Introdução. A originalidade brasileira e as dificuldades daí
decorrentes para se formatar um regime seguro de cabimento de mandado
de segurança contra decisões judiciais – 2 Mandado de segurança como meio
para impugnação de atos judiciais: análise crítica em face da praxe forense
dos tribunais de cúpula – 3 Conclusão – Referências

1 Introdução. A originalidade brasileira e as dificuldades daí


decorrentes para se formatar um regime seguro de cabimento de
mandado de segurança contra decisões judiciais
Tal como dimensionado e atualmente formatado, o mandado de segu-
rança é ferramenta genuinamente brasileira. Diversos ordenamentos jurídi-
cos, em países de raiz cultural ocidentalizada e assemelhada à brasileira, se
prestaram a conceber institutos visando frear e inibir a indevida ingerência
estatal na esfera jurídica dos cidadãos, sobretudo após a guinada liberal e o
nascimento do Estado Constitucional pós-Revolução Francesa.

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134 Leonardo Gonçalves Juzinskas, Marcelo Abelha Rodrigues

Ante a precedência cronológica em relação ao Brasil, cujo regime


monárquico estendido impedia, no mais das vezes, a elaboração de
maiores surtos de resistência às ordens incompatíveis com a legalidade,
diversos ordenamentos, na sua origem, foram adotados como paradigma
na elaboração de um instrumento com o desiderato de conter os des-
mandos do Estado.
Celso Agrícola Barbi, em sua obra clássica sobre o tema, historiza a
evolução desses sistemas, cotejando-os em relação ao objeto e à magnitude
da função que atingiu a proteção mandamental na realidade brasileira.
Na França, por exemplo, os atos típicos de administração são com-
batidos por um órgão administrativo típico e exclusivo, o Conselho de
Estado, em caráter definitivo. A Itália apresenta um sistema híbrido, com
a dualidade de jurisdição (Lei nº 20/1865), sendo certo que, na justiça
comum, no entanto, o ordenamento impõe limitações à cognição dos juí-
zes, cabendo apenas ações declaratórias em face da Administração, visando
reconhecer a ilegitimidade do ato, e condená-la a pagar indenização pelo
prejuízo experimentado pelo particular.
O ordenamento mexicano trouxe, já em meados do séc. XIX, o
amparo, que atualmente é remédio constitucional cabível em face de
diversas violações de direito, como cita Ricardo Arnaldo Malheiros Fiúza,
porque pode hostilizar lei em tese, pode se prestar a controlar a consti-
tucionalidade de leis, pode ser utilizado por pessoas de direito público
mesmo contra particulares, entre outras distinções que o tornam bas­
tante diverso, no seu atual estágio, do mandado de segurança.1
O direito norte-americano municiou, desde o séc. 19, o indivíduo
com nominados “remédios judiciais extraordinários”, os quais garantiam
proteção efetiva específica, e não apenas ressarcitória.
É cediço que, no Brasil, o mandado de segurança tem sua gênese
mais imediata na utilização do habeas corpus e na doutrina da posse dos
direitos pessoais. Em 1926 reforma constitucional alterou a definição do
cabimento do habeas corpus, suprimindo a expressão genérica contida no
seu “objeto” e autorizando o cabimento apenas para proteção da liberdade
ambulatorial.

1
FIUZA, Ricardo Arnaldo Malheiros. Mandado de Segurança: notícia histórica: suas raízes lusitanas e sua
evolução no Brasil. Revista do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, Minas Gerais, p. 15-37, 2010. Número
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Percebeu-se imenso vácuo nesse período e os trabalhos constituintes


pré-CF/34 determinaram a criação do chamado mandado de segurança
para proteção de direito “incontestável e certo, ameaçado ou violado por
ato manifestamente ilegal do poder executivo”.
As Constituições que se seguiram previram a via peregrina, assim
como houve a sua regulamentação pelas Leis nºs 191/36, 1.533/51 e
12.016/09, tendo os dois últimos regulamentado o cabimento em face dos
atos típicos judiciais, não sem serenar a divergente doutrina e a vacilante
jurisprudência que se formaram ao longo dos mais de setenta anos de
existência da medida derradeira. O colendo STF, na década de 60,2 e
o Eg. STJ, nos anos 90,3 também já editaram súmulas sobre o assunto,
sendo certo que toda análise, por mais breve, delas não pode se descurar.
J. M. Othon Sidou é irrespondível ao comentar as afinidades entre
a ferramenta brasileira e as soluções alienígenas:

O mandado de segurança, que teve no amparo do México a evocação exempli-


ficativa para a sua implantação, não é, a nosso ver, nem amparo nem qualquer
dos outros institutos europeus similares. E o mais que, em cogitação comparativa,
se pode dizer, é que ele concentra, para as nossas aspirações, os mais desejáveis
princípios abrigados nas diversas garantias dos direitos individuais. Ele, o man-
dado de segurança, é ao mesmo tempo mandamus, o recurso típico para fazer-se
alguma coisa, legalmente justa e do que se é impedido; injunction, o oposto, para
não fazer; certiorari, o meio unificador da jurisprudência no interesse do indi-
víduo; error, recurso típico para atalhar a inconstitucionalidade; quo warranto,
contra o abuso de poder político; e prohibition, contra o excesso de poder. Ele
é também o ubíquo verfassungsbeschwerde alemão; é o mais restrito similar
recurso constitucional suíço; é o velho Verwaltungsgerichtshof austríado. Ele
é, finalmente, pelos muitos subsídios recebidos, o juicio de amparo mexicano,
menos na sua condição de amparo-liberdade, porque para esse fim nós outros
temos o habeas corpus.4

Enfim, desse breve passeio percebe-se que o mandado de segurança


brasileiro, embora inspirado em soluções alvitradas por ordenamentos
alienígenas, não encontra similitude genética em nenhum deles, e tam-
pouco fomos capazes — doutrina e jurisprudência — de encontrar padrões
razoavelmente seguros para sua aplicação.

2
Súm. nº 267: Não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição.

Súmula nº 268: Não cabe mandado de segurança contra decisão judicial com trânsito em julgado.
3
A impetração de segurança por terceiro, contra ato judicial, não se condiciona à interposição de recurso.
4
SIDOU, J. M. Othon. Mandado de segurança: meio século de aplicação. Disponível em: <http://www.
bibliojuridica.org/libros/2/643/34.pdf>. Acesso em: 06 ago. 2010. p. 2270.

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A partir da análise da jurisprudência, entretanto, preclaros profes-


sores ousaram pintar as matizes, à luz do devido processo legal e da teoria
geral do processo, de utilização da via peregrina em face de atos jurisdi-
cionais. Passemos a bosquejar as lições dos insignes mestre para, então,
avaliar a errática jurisprudência dos tribunais superiores, sobretudo no
que toca às hipóteses de cabimento; à distinção entre cabimento e mérito
e às justificações argumentativas descritas nas ementas.

2 Mandado de segurança como meio para impugnação de atos


judiciais: análise crítica em face da praxe forense dos tribunais de
cúpula
Os Tribunais, em um primeiro período após a criação da Segurança,
divergiam claramente quanto ao cabimento e, se positivo, à extensão desse
cabimento contra decisões judiciais.
E assim o faziam em razão da originalidade do instrumento e da au-
sência de correspondência exata com outros instrumentos do direito alie-
nígena. Portanto, à falta de paradigmas seguros e à falta de “terra firme”
no direito positivo. Em tempos em que o direito de princípios era, antes,
mais retórico do que interpretativo e aplicativo, à falta de legislação, a juris-
prudência teve notável relevo na elaboração e na criação de balizas seguras
para se compreender, com algum nível de abstração, como tal se faria.
Importa lembrar, num primeiro momento, o caso das rendas de
Minas Gerais, em 1936, já sob a égide da CF/34 e da Lei nº 191/36, quando
houve a impetração de mandado de segurança para obstar a penhora de
rendas do Estado de Minas Gerais. Os votos vencedores, a despeito de reco-
nhecerem o não cabimento da garantia naquele caso, concederam-no, de ofício
e, dessa forma, sem maiores preocupações quanto à técnica processual,
tendo em vista a relevância e gravidade do caso (MS nº 319, Rel. Min.
Bento de Farias). Haure-se, já aí, uma intuitiva percepção de que também
as decisões judiciais deveriam, em alguma medida, se sujeitar ao controle
jurisdicional da via heroica.
Celso Agrícola Barbi afirma que, a partir da CF/34, que cunhou a
expressão “de qualquer autoridade”, dizendo respeito ao sujeito passivo da
impetração, começaram as tentativas de se fazer prestar o writ para repelir
decisões judiciais injustas, eis que “qualquer” serviria para acomodar tanto
autoridades administrativas quanto judiciárias e legislativas.

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A jurisprudência corria ao sabor do vento, seja porque não era nítido


se os pressupostos para seu cabimento deveriam veicular ilegalidade
“flagrante”, seja porque a natureza jurídica podia fazer crer que coubesse
mandado de segurança a latere de outras ações judiciais, e até a seu
despeito e em conjunto, eis que, na condição de remédio, se aproximaria
de uma imploratio officii iudicis e, portanto, acometeria ao órgão judicante
notável poder moderador.
A Lei nº 1.533/51 trouxe nova regulamentação ao procedimento do
mandado de segurança, disciplinando, pela primeira vez, o cabimento de
mandado de segurança contra atos judiciais, ao prever, a contrario sensu,
o descabimento contra despacho ou decisão judicial de que não coubesse
recurso previsto em lei (art. 5º, II).
Em meados da década de 60, a Corte Suprema lançou dois verbetes
sintetizando o entendimento, àquela altura, do tema em exame:

Súmula 267: Não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de
recurso ou correição.
Súmula 268: Não cabe mandado de segurança contra decisão judicial com
trânsito em julgado.

A peremptoriedade das súmulas cedeu vez, em definitivo, a partir


do julgamento do RE nº 76.909-DF (Rel. Min. Xavier de Albuquerque),
em 1973, no qual teriam ficado assentadas as condições para utilização
da via peregrina contra ato judicial: a) a não suspensividade dos efeitos
da decisão recorrida pela simples apresentação do recurso cabível; b)
irreparabilidade do dano real, caracterizada pela impossibilidade objetiva
da reparação futura.
Tais premissas levam a crer que o mandado de segurança apenas
se comprometeria com o empréstimo de efeito suspensivo aos recursos
desprovidos de efeito suspensivo ope legis.
A rigor, o exemplo mais notório se dava na interposição de agravo
de instrumento, o qual, antes da Lei nº 9.139/95, não detinha efeito
suspensivo, seja por força de lei seja porque não era dado ao relator do
recurso fazê-lo.
Nesse eito, por exemplo, parece andar Lúcia Valle Figueiredo, com
apoio em Seabra Fagundes, ao registrar que a CF/46 suprimiu a expressão
“manifesta ilegalidade”, o que alargou o campo de incidência do mandado
de segurança, porquanto não seria somente a teratologia judicial passível

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de ser corrigida pela via heroica, mas todo e qualquer ato eivado de abusi-
vidade ou nulidade, sendo certo que o reconhecimento desses predicados
seria o mérito da impetração — e não pressuposto de admissibilidade.
Remata a autora dizendo que o mandado de segurança contra ato
judicial é — e sempre foi — cabível e terá a natureza acautelatória (do
direito vindicado na ação originária) enquanto não se tem decisão de
mérito. Os monografistas Hely Lopes e Cássio Scarpinella, por exemplo,
silenciam no pormenor.
Celso Agrícola, outro renomado monografista do tema, afirma que,
primitivamente, fora contra o uso. Porém, assistindo a gama de situações
em que havia atos causadores de danos irreparáveis e não sujeitos a
recurso ou que não comportassem recurso dotado de efeito suspensivo,
alterou seu pensamento.
É o caso das decisões interinas ao processo trabalhista, em que vige
a irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias, por força do art.
893, p. 1º, CLT (§1º Os incidentes do processo são resolvidos pelo próprio
Juízo ou Tribunal, admitindo-se a apreciação do merecimento das decisões
interlocutórias somente em recursos da decisão definitiva) e Enunciado
nº 214 do TST (Na Justiça do Trabalho, nos termos do art. 893, §1º, da
CLT, as decisões interlocutórias não ensejam recurso imediato). Ora, uma
decisão interlocutória não pode representar violação de direito líquido e
certo do agravado, insuscetível de reparo caso seja imperativo o desfecho
do processo para reavaliá-la? Evidente que sim.
Outro exemplo significativo é a conversão do agravo de instrumento
em agravo retido pelo relator, em decisão irrecorrível por força de lei, a
teor do art. 527, do CPC, podendo acarretar dano grave e irremediável.
A jurisprudência atual do C. STJ prestigia a adequação do mandamus para
casos como tais à míngua de recurso previsto em lei (RMS nº 22.847/MT).
Importante hipótese de cabimento de mandado de segurança no
âmbito de juizados especiais se dá em face de decisões interlocutórias
acompanhadas de risco de dano grave e de incerta reparação (STJ, REsp
nº 164.326), haja vista a vedação de recursos intermediários, incumbindo
sua competência à Turma Recursal (Súmula nº 376 do STJ).
Celso Agrícola critica a submissão do cabimento do remédio para
emprestar efeito suspensivo à efetiva interposição do recurso cabível;
critica também conferir-lhe natureza meramente acautelatória (ao revés,
entre outros, de Lúcia Valle Figueiredo, para quem deterá sempre natureza

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incidental e instrumental em função do processo de que se originou), já


que o seu pressuposto de cabimento é a ilegalidade do ato e, sob esse
prisma, goza de natureza satisfativa.
De todo modo, sentimos que a apresentação de Segurança quando
já escoado o prazo para o recurso legalmente previsto representará irrele-
vável e incensurável fraude ao instituto da preclusão.
Extremado o pensamento, a preclusão de qualquer decisão judicial
adviria, em tese, apenas após transposto o prazo decadencial da impetração.
O relaxamento com o condicionamento da interposição do mandado
de segurança à interposição de recurso cabível não é regra absoluta, mas
deve ser excepcional e justificado.
Como exemplo dessa excepcionalidade: mandado de segurança
contra decisão que determina o arquivamento dos autos, por força de
preclusão temporal, após escoado prazo para interposição de recurso,
quando tal tenha se dado mediante intimação irregular (p. ex. intimação
por publicação quando a parte detinha prerrogativa de ser intimada pes-
soalmente). Não há de se exigir recurso contra tal decisão: a uma, porque
não cabível, eis que se trata de mero despacho; a duas e, principalmente,
porque eventual recurso teria como objeto a reforma da decisão que jul-
gou preclusa a via recursal e, portanto, não se voltaria a reformar ou empres-
tar efeito suspensivo à decisão recorrida que trate sobre o mérito da demanda
e possa vir acarretar prejuízo irremediável à parte. Possível recurso seria inútil
e despido de objeto.
A lei atual da Segurança (art. 5º da Lei nº 12.016/09), cujo obje­
tivo manifesto e explícito era positivar entendimentos jurisprudenciais já
razoavelmente amadurecidos na práxis forense, veio abonar o entendi-
mento firmado em meados da década de 70, ao dispor não caber man-
dado de segurança para hostilizar “decisão judicial da qual caiba recurso
com efeito suspensivo.”
Pode-se, então, extrair uma regra invulgar que, longe de pretender
abranger a totalidade dos pontos sensíveis existentes na legislação e
aqueles suscetíveis de ocorrer na prática, bem equaciona o alcance de
proteção do mandado de segurança (“violação de direito líquido e certo”)
em face de reprimenda a decisões judiciais.
Lapidar é o escólio de Cássio Scarpinella Bueno, que pode ser
tomado, às escâncaras, como norte interpretativo:

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(...) toda vez que se puder evitar a consumação da lesão ou da ameaça pelo
próprio sistema recursal, isto é, interpretando-o de uma tal forma que ele,
por si próprio, independentemente de qualquer outra medida judicial, tenha
aptidão para evitar a consumação de dano irreparável ou de difícil reparação
para o recorrente, e pela dinâmica do efeito suspensivo dos recurso, forte no
que dispõem o caput e o parágrafo único do art. 558 do Código de Processo
Civil, descabe mandado de segurança contra ato judicial à míngua de interesse
jurídico na impetração. Inversamente, toda vez que o sistema recursal não tiver
aptidão para evitar a consumação de lesão ou ameaça na esfera jurídica do
recorrente, toda vez que não se aceitar uma interpretação ampla o suficiente
das regras processuais para evitar uma dada situação de ameaça ou de lesão ao
recorrente, o mandado de segurança contra ato judicial tem pleno cabimento.
Cabe, a bem da verdade, para salvaguardar o direito do recorrente e como forma
de colmatar eventual lacuna decorrente da ineficiência do sistema.5

O preclaro Kazuo Watanabe, citado por Cássio Scarpinella Bueno


na mesma obra, remata com precisão, linhas após, em obra datada da
década de 80, que não pode o mandado de segurança contra atos judiciais
ser tido por “...remédio alternativo à livre opção do interessado, e sim
como instrumento que completa o sistema de remédios organizados pelo
legislador processual, cobrando as falhas neste existentes no que diz com
a tutela de direitos líquidos e certos”.
Destarte, com inteiro acerto, mais uma vez, Scarpinella Bueno, ao
reportar que o alcance da Súmula nº 267 deve se prestigiar induvidoso
apenas na circunstância de coexistir recurso — e, acrescemos aqui, outro
meio de impugnação autônomo previsto no direito positivo — capaz de
tutelar eficaz e prontamente o direito do recorrente.6
Nesse pormenor, entendemos desacertada a posição de Sergio Ferraz,
que entende amplíssimo o cabimento de mandado de segurança em face
de atos judiciais, erigindo como prioritária a sua tessitura constitucional e
o seu papel de garantidor de direitos e garantias fundamentais.
O mandado de segurança é uma das vias de acesso ao judiciário
dentre tantas outras (embora deva deter, por promessa constitucional,
eficácia plena e in natura).
Sua utilização deve obediência ao sistema de princípios e regras que
informam o devido processo legal, de modo que não se enxerga qualquer

5
BUENO, Cássio Scarpinella. Mandado de segurança: comentários às Leis n. 1.533/51, 4.348/64 e 5.021/66. 4. ed.
São Paulo: Saraiva, 2007. p. 62.
6
MS nº 25.340-DF, STF, Rel. Min. Marco Aurélio “A admissão do mandado de segurança contra decisão judicial
pressupõe não caber recurso, visando afastá-la, e ter-se como a integrar o patrimônio do impetrante o direito
líquido e certo ao que pretendido.”

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agressão ao direito de acesso à tutela jurisdicional justa a subserviência


da disciplina do cabimento do mandado de segurança às caras regras da
teoria geral do processo, tributário, por força também de outros prin-
cípios de estatura constitucional, do instituto da preclusão, do respeito
aos procedimentos previstos em lei pelo legislador, da boa-fé processual,
entre outros.
Subverter essa lógica é privilegiar o arbítrio judicial, a ampla
autonomia das vontades das partes em matéria insubmissa ao voluntarismo,
qual seja, escolha de procedimento e formas jurídicas cogentes.
Devem ser vistos, também sob tal prisma, os temperamentos dados
à Súmula nº 268 do STJ. Celso Agrícola Barbi cita expressamente a auto­
ridade de Kazuo Watanabe e Teresa Arruda Wambier como defensores
do cabimento de mandado de segurança contra sentença irrecorrível.
Pois bem.
Um dos primeiros argumentos lançados é da aptidão de escolha do
mandado de segurança em face de decisões transitadas em julgado pelo
caráter cautelar, expedito e pela natureza mandamental da sentença.
Ora, com o advento do art. 273 do CPC, combinado com o poder
geral de cautela e com a fungibilidade das cautelares, qualquer ação —
inclusive a ação rescisória — pode conter, no seu bojo, pedido de ante-
cipação dos efeitos da tutela final, qual seja, obstar o cumprimento da
decisão a que se visa rescindir. E o caráter mandamental não é exclusivo
de certas e determinadas ações, mas é bitolado pelo pedido formulado,
não se enxergando qualquer empecilho no pedido de sustação manda-
mental intestino à ação rescisória ou à ação declaratória de inexistência
de sentença — querela.
No entanto, ainda existe algum campo propício à utilização do
writ em face de sentenças irrecorríveis. Todavia, não pense o leitor que a
adequação da ação constitucional se despe, aqui, da lógica extraída pela
praxe forense e acima encetada.
Cabível será quando não houve recurso — e, leia-se aqui igualmente:
a ação autônoma de impugnação ou incidente processual (p. ex., suspensão de
tutela antecipada) previsto em lei — dotado de possível atribuição de efeito
suspensivo apta a tolher dano irremediável.
Vejamos o terreno em que ainda transita o writ contra ato judicial
transitado em julgado. Dissertam Teresa Arruda Alvim e José Garcia
Medida que a jurisprudência tem afastado a incidência dos rigores da

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Súmula nº 268 do STJ especialmente nos casos em que a sentença é ine-


xistente por ausência de citação de litisconsorte passivo necessário7 ou
citação irregular ou inexistente.8
Teresa Arruda Alvim Wambier entende-o cabível também como
sucedâneo da ação rescisória no âmbito dos juizados especiais, tendo em
vista a restrição do art. 59, da Lei nº 9.099/95, o que implicaria — a nosso
sentir e pelas mesmas razões — também admiti-lo como sucedâneo da querela
nullitatis insabilis ajuizada com fulcro no art. 4º do CPC, quando fosse o caso.
Vejamos. No primeiro desses específicos casos de temperamento
da Súmula nº 268 do STJ, apresenta-se claramente um diálogo entre a
querella nullitatis e o mandado de segurança — fungibilidade, o que, a
princípio, não se comprazeria com aquilo que ora se defende.
No entanto, salienta-se que, nessa hipótese específica, não se tem
ilustrada qualquer aberração simplesmente porque o mandado de segu-
rança se sujeita a requisitos muito mais severos do que a ação declaratória
prevista no art. 4º, do CPC, e oportunamente adequada à espécie.
Afinal, a despeito de existirem instrumentos aptos a fulminar a
coisa julgada na espécie, a instrumentalidade do processual e o respeito
à vontade do interessado — que denominou sua ação declaratória de mandado
de segurança — justificam a aceitação de instrumento diverso. Ora, a ação
declaratória tramitaria sob o rito ordinário, cujas delongas, em tese, lhe
são adversas, e lhe facultaria a produção de provas mais robustas do que
aquelas encetadas na Segurança.

7
Recurso ordinário em mandado de segurança – Decisão transitada em julgado – Terceiro supostamente
prejudicado – Mitigação do enunciado sumular n. 268 do STF – Impetração de mandado de segurança como
substituto de embargos de terceiro – Impossibilidade – Recurso não provido.
- O enunciado da Súmula nº 268 do Excelso Pretório merece temperamentos, quando a hipótese versar sobre
terceiro interessado ou prejudicado, que não integrou a lide, de que adveio a decisão transitada em julgado.
Precedente. – Visualizado, porém, competir ao impetrante a ação de embargos de terceiro, não se concebe
a impetração de mandado de segurança, tendo em vista que naquele instituto seria perfeitamente possível a
ampla discussão das matérias de conteúdo fático-probatório e, também, a concessão liminar, caso presentes
os pressupostos legais. Aliás, assentou essa Corte Superior que “o mandado de segurança não tem cabimento
para desconstituir decisão judicial não teratológica contra a qual o Código de Processo Civil oferece os embargos
de terceiro como remédio adequado, nos quais é permitida a discussão ampla das matérias de fato e de prova
e com possibilidade de proteção liminar” (RMS nº 10.096-BA, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ,
04 out. 1999).
- Recurso ordinário não provido (RMS nº 19579/RJ, Rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa, Quarta Turma, julgado
em 04.10.2007, DJ, p. 275, 22 out. 2007).
8
Processual Civil. RMS. Citação. Nulidade. Uso do Mandado de Segurança. Admissibilidade.

1 - O reconhecimento pelo Tribunal de origem do vício de nulidade da citação (querela nullitatis insanabilis),
impedindo — assim — o trânsito em julgado da sentença, viabiliza a utilização do mandado de segurança
para obstacular os efeitos decorrentes do comando de reintegração de posse.

2 - Recurso provido (RMS nº 14359/MG, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em
03.04.2003, DJ, p. 202, 28 abr. 2003).

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Renunciou-se a esse direito, ou as provas haverão de estar todas


encar­tadas nos autos — e, portanto, o rito adequado será o rito célere, pri-
vilegiando-se o princípio constitucional da razoável duração do processo
sem prejuízo à ampla defesa — ou o juiz, apercebendo-se dessa inaptidão
procedimental, denegará a Segurança sem julgar o mérito. E o risco de
perecimento de direito, por parte do impetrante, caso seja reconhecida a
inadequação da via eleita ao final, é exatamente o mesmo risco a que se
aventura o impetrante em qualquer caso específico, já que, por optar pelo
mandado de segurança, logicamente dispensou o recurso à ação ordinária
em face do poder público com pedido de antecipação de tutela.
Há, nisso e em todo o direito processual, uma certa margem de
liberdade de escolhas procedimentais, por razões de custo-benefício, em
esfera que não pode ser tolhida pelo legislador ordinário. Toda escolha
implica uma renúncia e toda escolha é movida por avaliação, em estado
de asserção, dos riscos e das vantagens.
No segundo desses dois exemplos dados, a regra de “interesse pro-
cessual”, somada à inexistência de recurso previsto em lei para reforma da
decisão, e tomando-se por empréstimo a plena legitimidade da ação res-
cisória no ordenamento jurídico, modelam um conjunto de fatores que —
longe de excepcionar a regra — confirmam a construção pretoriana ini-
ciada no RE nº 76.909-DF e aperfeiçoada pelo rt. 5º da Lei nº 12.016/09.
Se não há ação rescisória e se não cabe querela nullitatis, cujo objeto
de cabimento é, no atual estágio da dogmática jurídica, extremamente vaci­
lante, caberá mandado de segurança fazendo as vezes de ação rescisória.
Toda vez que o legislador pretende restringir ou limitar um direito
ou uma faculdade os consorciados jurídicos buscam soluções em inter-
pretação extensiva e na analogia, o que, longe de representar arbítrio,
rendem homenagens ao secular princípio da isonomia e à equidade.
Uma advertência, no entanto, se faz precisa. Sergio Ferraz, ao repor-
tar a precedência do mandado de segurança em detrimento da ação resci-
sória e dos recursos — porque esses não teriam assento constitucional no
rol de direitos e garantias fundamentais, ao revés daquele — não nos parece
tomar o melhor caminho.
A uma, porque a Constituição Federal, em diversos dispositivos
externos à enunciação dos direitos e garantias fundamentais, cita a ação
rescisória; a duas, porquanto ambas representam salvaguardas de direi-
tos fundamentais e, portanto, serão garantias: o mandado de segurança

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opõe-se ao arbítrio estatal em face de direitos e garantias do indivíduo e a


ação rescisória ao julgamento manifestamente iníquo, cuja imutabilidade
traria evidente strepitus à ordem social, a justificar a predileção do julga-
dor pelo valor justiça em detrimento do valor estabilidade das relações, ao
menos pelo período bienal.
Tem-se ilustrado, mais uma vez, o caráter substitutivo e subsidiário
do mandado de segurança contra decisões judiciais, seja no aspecto
formal (concorrência de instrumentos no direito positivo), seja no aspecto
substancial (grau de eficácia equivalente).
Portanto, tirantes as hipóteses de incidência da instrumentalidade
das formas — a atrair o princípio da fungibilidade em relação a outras vias
rescisórias — e exceto quando não vilipendie outros princípios e garantias
relevantes, a utilização do mandado de segurança contra atos judiciais
deve obedecer ao estritamente necessário para proteger direito líquido
e certo, que se convencionou, segundo larga evolução jurisprudencial,
agora positivada na Lei nº 12.016/09, em autorizar a impetração quando
não existir recurso (ou outro meio autônomo de impugnação) cabível em
face de decisão ou quando o recurso legalmente cabível não for dotado de
efeito suspensivo.
Diz parte da doutrina, com apoio em decisões judiciais, que se tolera
a impetração de mandados de segurança em face de decisões judiciais
ditas teratológicas ou aberrantemente ilegais.
Dentro da ordem da ideia ora exposta, o caso da penhora de rendas
de Minas Gerais, na infância da via augusta, se amoldaria perfeitamente a
essa hipótese de cabimento. Todavia, não se pode mais se contentar com
o insólito exemplo com o fito de tentar abordar, de alguma forma, o tema,
sobretudo porque a Corte Suprema, naquela ocasião, conheceu da ação
mandamental de ofício, fato que não se compadece, em tempos atuais,
com a inércia da jurisdição civil.
Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina citam
acórdãos paradigmas do Egrégio STJ nos quais houve o reconhecimento
da idoneidade da via escolhida para atacar atos de tal estirpe.
Citam os autores o AgRg no MS nº 10.436/DF, Corte Especial, julgado
em 07.06.2006, cuja ementa traz o seguinte excerto: “A jurisprudência
desta Corte tem afastado, em hipóteses excepcionais, a aplicação da
Súmula nº 267/STF, em casos de decisões judiciais teratológicas ou
flagrantemente ilegais que, à toda evidência, não restaram demonstradas
no presente writ.”

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Atos judiciais passíveis de mandado de segurança e devido processo legal: estudo segundo... 145

O Recurso em Mandado de Segurança nº 18.384/RJ, 3ª Turma,


julgado em 12.05.2005, cita que “O uso do writ para combater ato
judicial, admitido excepcionalmente pela jurisprudência, pressupõe que o
ato se revista de características teratológicas, sendo, pois, manifestamente
ilegal, e, ainda, possa acarretar danos graves e irreparáveis ou de difícil
ou improvável reparação, circunstâncias a que não se ajusta a hipótese dos
autos. Recurso a que se nega provimento.”
Em ambos acórdãos, o STJ cingiu-se a reportar cabível a Segurança,
em tese, contra atos judiciais teratológicos, não os tachando assim na
espécie, abstendo-se de elaborar maiores comentários sobre a ilação
condicional que projetou (cabimento, em tese, embora não se reconhecia
a teratologia por razões de mérito), o que é absolutamente insuficiente
para tentativa de edição de qualquer estudo mais sistematizado.
Passagem importante do voto do Min. Humberto Martins no RSM
nº 22.806 parece ilustrar o entendimento do douto Ministro quanto à
excepcionalidade, porém utilidade, da via heroica na hipótese: “As
circunstâncias presentes neste fascículo impressionaram-me pela sucessão
de teratologias. É dever do Superior Tribunal de Justiça, como derradeiro
cenáculo de esperança do cidadão com a adequada hermenêutica do
direito federal, corrigir esses desvios jurisdicionais e nada melhor para
esse fim que a via constitucional e nobilíssima do mandado de segurança.”
Porém, anteriormente, redigiu Sua Excelência nesse mesmo voto:
“Para afastar de vez qualquer argumento contrário ao direito líquido e
certo do recorrente, basta verificar que existe patente irregularidade for-
mal no ato coator, uma vez que o impetrante em nenhum momento foi
citado para participar de procedimento judicial algum, sendo relevante
ainda destacar que a petição do ilustre causídico foi protocolada nos autos
de processo onde a sentença, que homologou o acordo, já tinha transitado
em julgado há 5 (cinco) meses.”
Então, o mote do conhecimento do mandado de segurança foi, evi-
dentemente, não a teratologia em si da decisão, mas sim o fato de sequer
ter participado do processo a parte prejudicada.
Precedente importante que se colaciona é o julgamento do AgRg no
RMS nº 15.870/GO (1ª turma, julgado em 16.11.2004), no qual houve o
reconhecimento da teratologia suficiente, nas palavras do voto condutor,
para o conhecimento e o provimento da ação heroica.
Do voto do relator, Exmo. Min. José Delgado, extraem-se os seguin-
tes trechos:

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Não se perca de vista que o acórdão desta Turma concedeu a segurança por
entender ser teratológica a decisão que invadiu o patrimônio da Petrobrás e
dela retirou R$22.853.622,10 em benefício de uma empresa, por via de tutela
antecipada.
(...)
“É de conhecimento amplo deste Superior Tribunal de Justiça que a Agravante,
principalmente em 2001, suportou o cumprimento de diversas liminares
retirando de suas contas quantias exorbitantes. É cediço também, a habitual
posição em que a Agravante se encontrava, qual seja, enquanto haviam
liminares ou antecipações de tutelas para a realização de procedimentos que
possibilitariam a sangria de mais de 1 bilhão de reais dos seus cofres, os autos
estavam ou com carga aos advogados dos autores (beneficiários) ou retornavam
à conclusão, como de fato ocorrera in casu.
Assim, como poderia a Agravante se insurgir contra a liminar concedida se
os autos não estavam a si disponíveis? E mais, como agravar se a Impetrante
sequer é parte do processo?
Denota-se apenas que, embora não tenha sido indicado como parte no processo,
seria ela quem suportaria todos os efeitos da liminar concedida”.

Do exposto, parece-nos que a situação ocorrida é a seguinte: em


ação judicial entre duas empresas, deferiu-se tutela antecipada visando
subtrair dos cofres da Petrobras vultosa quantia por conta de relação de
direito tributário em que essa empresa figurava como substituta tributá-
ria, não se facultando à Petrobras interpor o competente recurso tendente
a obstar, com a urgência demandada, a decisão objurgada, seja porque os
advogados da parte beneficiária retinham os autos, seja porque o próprio
juiz prolator da decisão os mantinha conclusos.
A nosso ver, esses dois últimos casos se serviram da expressão
“decisão teratológica” como supedâneo para conceder — e não admitir
— por razões de retórica.
O cabimento da Segurança, nesses casos, perdura se afinando com
tudo aquilo já exposto, qual seja, a de que inexistia recurso — não só for-
malmente, mas substancialmente — apto a debelar o dano iminente a que
se sujeitavam os impetrantes, sofrendo as consequências de decisão judi-
cial contra a qual não puderam a contento manejar o competente recurso.
Some-se a isso o entendimento cristalizado na Súmula nº 202 do STJ
(a impetração de segurança por terceiro, contra ato judicial, não se condi-
ciona à interposição de recurso), no sentido de que ao terceiro prejudicado,
além de legitimidade para aviar o competente recurso (art. 499 do CPC), é
facultada a oposição à decisão judicial pela via do mandado de segu­rança,
independentemente de cumprir o ônus recursal no prazo certo.

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Atos judiciais passíveis de mandado de segurança e devido processo legal: estudo segundo... 147

Tal verbete tem uma razão de ser empírica irrefreável: a de que


terceiros prejudicados dificilmente têm ciência das decisões que lhes pre-
judicam em tempo hábil para impugná-las dentro do processo de origem,
portanto, não se submetendo aos limites subjetivos da decisão contra a
qual guerreiam.
Podem, logo, se valer da ferramenta mandamental, sem que, com
isso, se atropele o devido processo legal e sem que se quebre a dinâmica
construída pela práxis de cabimento restrito do mandado de segurança
contra decisões judiciais naquelas hipóteses excepcionais.
Torna-se a repetir: parece-nos, à míngua de melhores exemplos
extraídos da praxe forense, que partam das premissas de que “direito
líquido e certo” liga-se à adequação da via eleita e que a natureza jurídica
do mandado de segurança seja de ação mandamental, que o cabimento
de mandado de segurança em face de decisão teratológica não é, como
objeto que por si só lastreie a impetração, sustentável.
A teratologia da decisão vincula-se apenas e tão somente à quali­
dade juridicamente insustentável do conteúdo da decisão que se pretende
acoimar de ilegal ou abusiva e, portanto, vincula-se ao mérito.
O cabimento, a seu turno, é questão preliminar, afeiçoada à avaliação
da adequação procedimental da via eleita.
Logo, à falta de um instrumento previsto no direito positivo para
impugnar de forma eficaz decisão judicial que lhe cause dano irremediável
premente, haverá de ser cabível o mandado de segurança.
Caso presente em lei instrumento idôneo, independentemente do
grau de teratologia que venha a revelar a decisão que se queira impugnar,
ressentir-se-á de interesse de agir o impetrante. Nesse eito, será incabível
mandado de segurança em face de decisão judicial que turba ou molesta
a posse de terceiro, contra a qual caberá a ação de embargos de terceiro
com pedido de liminar.
Por essas razões, o pressuposto de cabimento nesses dois últimos
casos não é a teratologia da decisão. O que há é reconhecimento da
legitimidade da impetração de mandado de segurança por terceiro
(questão preliminar atinente à adequação da via eleita) e, em um segundo
momento, houve o acolhimento da pretensão aduzida em juízo, donde se
atribuiu a pecha de teratológica à decisão cassada (mérito da impetração).
Em suma, pensamos, os Tribunais chancelam o cabimento de man-
dados de segurança contra atos judiciais, sob o pretexto da teratologia,

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148 Leonardo Gonçalves Juzinskas, Marcelo Abelha Rodrigues

quando, na verdade, estão admitindo a sua impetração segundo os crité-


rios objetivos susoexpostos que, se não absolutamente seguros, podem ser
lidos e extraídos da sistemática do CPC, da lei do mandado de segurança
e, sobretudo, da praxe pretoriana.

3 Conclusão
À luz das balizas lançadas pela legislação e pelo vasto plexo de deci-
sões judiciais que, nesses mais de setenta anos de vida da via heroica, ava-
liaram a adequação do mandado de segurança contra decisões judiciais,
a não ser que surjam situações de ordem prática absolutamente inovado-
ras e destoantes daquilo já avaliado, inclusive de forma pontual, tem-se
razoa­velmente bem ilustrada e bem definida a largueza e a amplitude das
suas hipóteses autorizativas.
E, de qualquer forma, situações excepcionais podem ser explicadas
não se intentando expandir a equação preparada para admissão, mas bus-
cando fundamentos pontuais e específicos que, a rigor, hão de justificar,
senão a priori, ao menos a posteriori a admissão. E, para tais casos, maio-
res preocupações de sistematização estão fadadas ao insucesso, como em
qualquer campo da vida.
Singra, nessas feitas, o intérprete por mares perigosos: arrisca-se
a, fechando-se a fórmula, admitir-se a eclosão de uma série de exceções
que, pontualmente, desacreditem a regra, bem como se edifiquem sobre
argumentos metajurídicos.
Tal risco, no entanto, é inerente a toda e qualquer sistematização
que se pretenda fazer em direito, porquanto o nível de diálogo de toda
regra com as suas exceções não há de ser infinito, o que criaria situação de
indesejável insegurança jurídica e imprevisibilidade.
Qualquer exceção à regra para o cabimento do mandado de segu-
rança contra atos judiciais — e o breve estudo pinçou algumas hipóteses
provindas do STJ e outras sedimentadas no tempo — cumprirá, para se
legitimar, como para qualquer exceção que se pretenda impor-se à regra,
o ônus da motivação racional e precisa, divisando-se argumentos essen-
cialmente jurídicos, sob pena de arbítrio.
O mandado de segurança contra decisão judicial, quando cabível, é
instrumento de garantia do direito fundamental da parte de obter nova
decisão sobre a questão; serve-lhe para acalmar o espírito insurgente,
ainda que a segunda decisão não lhe seja favorável.

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Atos judiciais passíveis de mandado de segurança e devido processo legal: estudo segundo... 149

Em tempos em que se privilegia, a todo custo, a duração razoável


do processo, o legislador periga a se aventurar na fabricação de uma
“duração açodada do processo”, subtraindo-se das partes as ferramentas
de controle interno das decisões judiciais, as quais, entre outras razões,
servem para a entrega de uma prestação jurisdicional mais completa — a
despeito de não necessariamente melhor — porquanto mais refletida.
Lúcidas as advertências de Calmon de Passos:

(...) a existência, no mínimo, de controles internos ao próprio judiciário se


mostra como indeclinável, sob pena de se desnaturar uma característica básica
do Estado de Direito, privilegiando-se, no seu bojo, agentes públicos que pairam
acima de qualquer espécie de fiscalização ou disciplina quanto a atos concretos
de exercício de poder por eles praticados.9

Ada Pellegrini Grinover, com a autoridade que lhe é peculiar, percebe


ainda outra forma de violação constitucional na limitação irrazoável do
direito de impugnar decisões judiciais, desaguando em incremento no
volume de mandados de segurança atípicos (expressão de Lúcia Valle
Figueiredo), verbis:

Todos aqueles que ingressam em juízo devem ter, em igualdade de condições, a


possibilidade de pleitear a revisão da sentença, por um tribunal hierarquicamente
superior àquele que proferiu a decisão. Se tal possibilidade for reservada apenas
a alguns, com privilégio, enquanto a outros estará vedado esse direito, podendo
recorrer ou recorrendo ao próprio órgão de que emanou a sentença, estará,
de qualquer maneira, desrespeitando o princípio constitucional da isonomia.10

Dessa forma, dentro do contexto atual brasileiro de redução de


recursos, de prazos e de ferramentas processuais para proporcionar
desfecho mais rápido dos processos, esquecendo-se de combater as
malsinadas etapas mortas, citadas por Alcazà-Zamora, antevemos que o
mandado de segurança contra ato judicial tende a encontrar terreno fértil
porquanto, ao fim e ao cabo, ainda é viva e nítida a sua utilidade.
Toda vez que o legislador buscar enxugar do direito positivo meios de
impugnar decisões judiciais, transitadas ou não em julgado, fatalmente a
garantia constitucional insuprimível do mandado de segurança se prestará

9
PASSOS, J. J. Calmon de. O devido processo legal e o duplo grau de jurisdição. Revista Forense, São Paulo,
v. 277, ano 78, p. 7, 2005.
10
GRINOVER, Ada Pelegrini apud PASSOS, J. J. Calmon de. O devido processo legal e o duplo grau de jurisdição.
Revista Forense, São Paulo, v. 277, ano 78, p. 4, 2005.

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a socorrer o agravado de modo adequado, sem que isso implique qualquer


arbítrio judicial, eis que candente a hipótese de incidência cunhada no
paradigmático e monumental julgado pelo STF no nº RE 76.909.
E não se venha culpar as partes litigantes, em seu afã de irresignar-se
contra toda e qualquer decisão que lhes seja contrária, o que, muito
rotineiramente, é tido por um dos motivos de índole cultural para o
assoberbamento dos Tribunais.
O notável Moniz de Aragão, em artigo lúcido publicado na Revista de
Processo n. 136/2006, faz crítico estudo sobre a tendência de supressão de
recursos em vistas da celeridade, suas consequências de ordem jurídica e
prática — dentre elas o recrudescimento de vias anômalas para impugnar
decisões judiciais — e, dentre outras conclusões, afirma que o propalado
florescimento desses meios autônomos se faz em absoluta consonância
com a Constituição Federal.
Colhemos, por absolutamente oportuno, o seguinte trecho:

Em suma: enquanto houver “juízes de Berlim”, acontecerá entre nós o que se


viu ao longo do Século XX, como procurei retratar acima: os litigantes tentarão,
sempre e inevitavelmente, arrombar as portas que lhes forem indevidamente
cerradas e conseguirão abri-las com a compreensão dos próprios juízes, cuja
sensibilidade nunca lhes permitiu deixar ao desamparo as “legiões de moleiros
Sans Souci, que diariamente lhes batem às portas.”11

Ao legislador ordinário se impõem obstáculos irrefreáveis (e, tam-


bém, aos juízes que aplicam o texto frio da lei ao que se vinculam). Um
deles é o pleno acesso à jurisdição, de forma eficaz e breve. Cada vez
que o legislador aportar mudanças na legislação ordinária de que tragam
limi­tações irrazoáveis ao due process, a sensibilidade dos juízes, o espírito
inconformista dos jurisdicionados e a dogmática em peso consentirá com
a utilização de meios alternativos. A reforma de uma ordem de coisas não
se faz à custa do sacrifício de ocasionais direitos subjetivos violados: fiat
justitia, pereat mundus.

Abstract: An attempt was made initially to describe the genuine Injunction


Brazilian, set by the creative power of judges to be used as a substitute
appellate. In a sequential analysis of the evolution of jurisprudence on the
pertinence of injunction against judgments, we attempted to find out some
patterns for its use and comparing to decisions run throughout the Superior
Courts, which apparently disobeyed the general rule. Finally, we brought
to summarize the factual grounds of its popularization nowadays and ever.

ARAGÃO, E. D. Moniz de. Demasiados recursos?. Revista de Processo, São Paulo, v. 31, n. 136, p. 22 jun. 2006.
11

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Atos judiciais passíveis de mandado de segurança e devido processo legal: estudo segundo... 151

Key words: Writ of mandamus. Law and equity one. Judicial act. Appeal.
Immediate damage and difficult repair. Double degree of jurisdiction.

Referências

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CAMARGO, Luis Henrique Volpe. Não cabimento de honorários advocatícios em mandado
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LOPES, Mauro Luís Rocha. Mandado de segurança: doutrina, jurisprudência, legislação. 2. ed.
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MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recursos e ações autônomas
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MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança: ação popular, ação civil pública, mandado
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PASSOS, J. J Calmon de. O devido processo legal e o duplo grau de jurisdição. Revista
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TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo et al. (Coord.). Mandado de segurança e de injunção. São
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WALD, Arnold. A nova lei do mandado de segurança. Revista dos Tribunais, São Paulo, v.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

JUZINSKAS, Leonardo Gonçalves; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Atos judiciais passíveis


de mandado de segurança e devido processo legal: estudo segundo a jurisprudência dos
tribunais superiores. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19,
n. 75, p. 133-151, jul./set. 2011.

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O Processo Administrativo e sua
relevância perante o Processo Judicial
Marcos André Couto Santos
Mestre em Direito Público pela UFPE. Professor Universitário do Curso de Direito da FBV e de
Cursos de Pós-Graduação em Direito – ESMATRA 6ª Região e FBV. Procurador do Estado de
Pernambuco e Advogado.

Resumo: No presente trabalho, objetiva-se demonstrar a relação entre os


Processos Administrativos e os Processos Judiciários, delineando a necessidade
de valorização da processualidade no âmbito administrativo, como forma de
redução da litigiosidade judicial em face do Poder Público.
Palavras-chave: Processualidade. Processo Administrativo. Processo Judicial.
Litigiosidade. Administração Pública.
Sumário: Introdução – 1 A Administração Pública e a Processualidade – O
Processo Administrativo – 2 As lides judiciais e a Administração Pública – O
Sistema Unificado Brasileiro – 3 A utilização do Processo Administrativo
como instrumento decisório dos Magistrados – Breve enfoque jurisprudencial
– 4 A relevância do Processo Administrativo perante o Processo Judicial –
Complementariedades – Conclusão – Referências

Introdução
No Brasil, existe o entendimento doutrinário e jurisprudencial con-
solidado da existência do princípio da independência das instâncias legis-
lativa, executiva e judiciária, quando da solução de conflitos e aplicação
de penalidades.
A independência das instâncias é reflexo do clássico princípio da
separação dos poderes, como meio de evitar concentração de poderes nas
mãos de apenas uma pessoa ou grupo.
Em decorrência destes princípios, a relação entre poderes constituídos
(Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário) foi por muito tempo estanque,
cada qual desempenhando apenas suas funções constitucionais clássicas,
quais sejam: o Poder Legislativo criava apenas as leis, o Poder Executivo
aplicava apenas as leis na implementação de políticas públicas e o Poder
Judiciário aplicava apenas as leis na solução de conflitos de interesse.
Este entendimento, entretanto, vem sendo superado nos últi-
mos tempos, no sentido de que os Poderes constituídos não são estan-
ques e isolados,1 devendo atuar de forma conjunta na implementação da
1
Atualmente, entende-se haver separação de funções: AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional.
5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 122-123.

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154 Marcos André Couto Santos

Constituição, com a garantia dos direitos fundamentais, efetivação da


cidadania e respeito à dignidade da pessoa humana.2
Com base neste contexto, busca-se mostrar no presente trabalho a
relação íntima e necessária que deve haver entre o Processo Administrativo
e o Processo Judicial, na busca da resolução de conflitos e na redução da
litigiosidade, com a valorização das normas e princípios constitucionais.
Para tanto, inicia-se tratando do que seja a processualidade e o
Processo Administrativo no âmbito da Administração Pública/Poder
Público.3 Na sequência, é destacada a presença dos entes públicos nos
Processos Judiciais. Depois, resta demonstrada como os magistrados atual­
mente se utilizam dos Processos Administrativos, para fins de exarar
suas decisões judiciais. Por último, defende-se a relevância do Processo
Administrativo perante o Processo Judicial, dentro de uma relação de
complementariedade.
Ao final, espera-se demonstrar que a superação clássica da separação
dos Processos Administrativos e dos Processos Judiciais poderá conduzir a
uma redução da litigiosidade, com uma maior efetividade da Constituição.

1 A Administração Pública e a Processualidade – O Processo


Administrativo
A processualidade4 é o meio atual pelo qual se justificam os atos
decisórios do Poder Público nas esferas legislativa, administrativa e judi-
ciária.
Neste sentido, resta relevante atentar ao fato de que o Direito
Processual não existe apenas no âmbito do Poder Judiciário — Direito
Processual Judiciário, havendo, também, o Direito Processual Legislativo
e o Direito Processual Administrativo.
A processualidade significa que os atos públicos são produzidos
dentro de critérios previamente estabelecidos, seguindo determinados
ritos/procedimentos, para fins de efetivar os objetivos determinados nas
Leis e na Constituição.

2
Sobre dignidade da pessoa humana: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos
fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
3
No presente trabalho, Poder Público se refere à Administração Pública em geral (Poder Executivo) dos entes
federativos brasileiros (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios).
4
Sobre a processualidade em geral: DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003. Sobre processualidade administrativa: MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito
administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.

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O Processo Administrativo e sua relevância perante o Processo Judicial 155

Atualmente, a processualidade está bastante associada, principal-


mente, à garantia dos direitos fundamentais, à proteção da cidadania e
ao exercício dos poderes/competências/funções do Poder Público, tendo
como elementos básicos: 1) a previsibilidade de sucessão encadeada de
atos, para atingir determinada finalidade; 2) a produção de resultado uni-
tário, com base dialógica fortalecida e 3) o disciplinamento do exercício
do poder.
Por meio da processualidade, os entes públicos, no exercício das
funções legislativas, executivas ou judiciárias, adotam procedimentos
revestidos de segurança, estabelecendo parâmetros de aplicação das
normas de cunho material (leis e a Constituição), para fins de garantia da
proteção de direitos e bens jurídicos.
Agora, o Processo Administrativo teve especificamente uma série de
significações: 1) O Processo Administrativo cuidaria dos papéis e documen-
tos organizados no âmbito da Administração Pública sobre determinado
assunto (visão primária); 2) O Processo Administrativo seria utilizado como
instrumento para apurar infrações dos servidores ou agentes públicos (visão
clássica); 3) O Processo Administrativo seria um conjunto de atos coordena-
dos para solução de controvérsias no âmbito administrativo (visão atual mais
restrita); e 4) O Processo Administrativo seria todos os atos concatenados que
sirvam para uma decisão final da Administração Pública sobre algum assunto/
tema (visão atual e mais ampla).
No nosso entender, o Direito Processual Administrativo é o ramo do
direito que estabelece a forma de atuar e os procedimentos do Poder Público
em face da sociedade, a fim de exarar com segurança, previsibilidade e
justiça seus atos e decisões de forma adequada e fundamentada; restando,
assim, por meio dos Processos Administrativos, justificados os atos
administrativos e as políticas públicas adotadas pelos entes políticos.
O objeto central do Processo Administrativo é regular a forma como
se dará a atuação do Poder Público, especialmente na sua relação com a
sociedade.5
A efetivação de um Processo Administrativo, como instrumento de
justificação dos atos administrativos e das políticas públicas em geral,
acaba por gerar principalmente: 1) diminuição dos abusos do poder
executivo, aumentando o controle da legalidade e da legitimidade dos

5
Cf. GUEDES, Demian. Processo administrativo e democracia: uma reavaliação da presunção de veracidade.
Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 49.

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atos administrativos antes de sua aplicação, até mesmo em relação aos


atos discricionários; 2) sistematização e regulação adequada das ações
administrativas; 3) maior legitimidade no exercício do poder pelos entes
públicos; 4) garantia do reconhecimento e da efetivação dos direitos
fundamentais no âmbito da Administração Pública; 5) promoção e
desenvolvimento da cidadania, com uma participação mais ativa da
sociedade em geral perante o Poder Público, gerando racionalidade,
previsibilidade e democratização dos procedimentos e decisões admi­
nistrativas exaradas, com a criação de uma maior base dialógica entre
Poder Público e sociedade; e 6) redução dos processos judiciais que
questionam atos do Poder Público, tornando mais firmes as defesas dos
entes públicos na esfera judicial.6
Enfim, a promoção de um processualidade no âmbito administra­tivo,
através de um adequado e constitucionalizado Processo Administrativo, con-
duz a um aumento de legalidade e legitimidade dos atos da Administração
Pública, servindo para justificar o exercício do poder e as decisões adminis-
trativas tomadas, com lastro especialmente na Constituição.

2 As lides judiciais e a Administração Pública – O Sistema Unificado


Brasileiro
Na ordem jurídica brasileira, adotou-se o Sistema de Jurisdição
Una, por meio do qual os atos dos entes particulares (iniciativa privada)
e os atos dos entes públicos (Poder Público) são apreciados por um Poder
Judiciário Uno, que apenas se divide quanto às suas competências nos
termos delineados na Carta Constitucional.
Assim, de forma diversa de países como a França, a Espanha e a
Itália, o Brasil não tem um Contencioso Administrativo com poderes
7

jurisdicionais em separado do Contencioso Judicial.


Frise-se, novamente, que, na nossa ordem constitucional posta, as
lides que envolvam o Poder Público8 são apreciados com base na mesma
legislação processual que as lides de direito privado.

6
Sobre as consequências da implementação adequada de Processos Administrativos regulares: MEDAUAR, Odete;
SCHIRATO, Vitor Rhein (Coord.). Atuais rumos do processo administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2010.
7
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo federal: comentários à Lei nº 9.784 de 29.01.1999.
4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 8-16; MIRANDA NETTO, Fernando Gama de. Ônus da prova no
direito processual público: contencioso judicial administrativo entre o direito ao ônus da prova justo e a
presunção de legitimidade dos atos da Administração Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 9-38.
8
Sobre o Direito Processual Público: SUNDFELD, Carlos Ari; BUENO, Cassio Scarpinella (Org.). Direito processual
público: a Fazenda Pública em juízo. São Paulo: Malheiros, 2003.

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O Processo Administrativo e sua relevância perante o Processo Judicial 157

As lides judiciais, que têm como parte a Administração Pública, são


muito variadas, havendo a participação do Poder Público como réu/
demandado/executado ou autor/demandante/exequente, dependendo do
tipo de ação e do rito processual. Além disto, é possível ter o Poder Público
como terceiro interessado em lides que envolvam interesses de caráter
público, coletivo ou difusos.
De forma breve e apenas a título exemplificativo, podemos listar
algumas das principais Ações Judiciais propostas em face do Poder Público
em geral: 1) Ações Judiciais Previdenciárias e Assistenciais, por meio das
quais os cidadãos pleiteiam a concessão de benefícios de caráter previden-
ciário e assistenciais, que restaram indeferidos pela Administração Pública;
2) Ações Judiciais propostas por servidores públicos ou por empregados
públicos, questionando atos da Administração Pública que afetam sua vida
funcional, com pleito de concessão e garantia de direitos, especialmente
de caráter remuneratório; 3) Ações Judiciais propostas por cidadãos, para
fins de ter acesso a direitos fundamentais, sociais, coletivos ou econômi-
cos, estabelecidos no altiplano constitucional (por exemplo: ações judiciais
pleiteando medicamentos, ações judiciais de responsabilização civil do
Poder Público por atos administrativos que afrontaram direitos fundamen-
tais dos cidadãos, ações judiciais contra planos econômicos, com pleito
de pagamento de correções monetárias expurgadas, ações de indenização
por erro judiciário, mandados de segurança, habeas corpus e habeas data); 4)
Ações Judiciais contra concessionárias de serviço público (empresas públi-
cas prestadoras de serviços de água, luz, transporte urbano, por exemplo);
5) Ações Judiciais propostas visando à desconstituição de atos adminis-
trativos de aplicação de multas de trânsito; 6) Ações Judiciais propostas
com objetivo de desconstituir cobrança de crédito tributário; e 7) Ações
Judiciais propostas visando a declaração da inconstitucionalidade de leis.
Além disto, há as ações em que o Poder Público aparece como autor/
demandante/exequente, quais sejam, a título meramente exemplifica­
tivo: 1) Ações Judiciais de execução fiscal para cobrança de créditos
tributários não adimplidos por empresas e/ou pessoas físicas; 2) Ações
Judiciais de Desapropriação; 3) Ações Judiciais de Cobrança de créditos
de caráter não tributário, devidos em favor da Administração Pública; 4)
Ações Declaratórias de Constitucionalidade e 5) Ações de Improbidade
Administrativa contra servidores e agentes públicos.

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Como fica evidenciado, é imensa a quantidade de lides no âmbito


do Poder Judiciário que envolvem a Administração Pública; sendo atual­
mente o Poder Público, em suas diversas esferas, o principal litigante
perante o Poder Judiciário.
Tal excesso de litigiosidade em face do Poder Público deve-se prin-
cipalmente ao fato de que, a partir da Constituição de 1988, conhecida
como Carta Cidadã, passou o Poder Público a ser obrigado de forma mais
incisiva a justificar seus atos, tendo que garantir aos cidadãos brasileiros a
efetividade dos direitos fundamentais.9
Neste sentido, atos de abuso e de agressão a direitos por parte do
Poder Público não passaram mais a ser tolerados, recorrendo permanente-
mente os cidadãos ao Poder Judiciário, para que este suste atos arbitrários
dos entes públicos, e até mesmo obrigue o Poder Público a adotar medidas
de superação de omissões na implementação dos direitos fundamentais.
A grande litigiosidade em face do Poder Público passou a chamar a
atenção dos doutrinadores, sendo produzidas obras10 acerca da “Fazenda
Pública em Juízo”, do “Direito Processual Administrativo”, do “Direito
Público Processual”, que enfocam as prerrogativas processuais, os recursos
específicos e a dinâmica de atuação dos entes públicos em juízo.
Interessante observar que a doutrina pouco fala da redução da liti-
giosidade em face do Poder Público, procurando, no mais das vezes, deta­
lhar aspectos procedimentais que explicam a posição dos entes públicos
nas lides como partes processuais.
Atualmente, esta litigiosidade excessiva em face do Poder Público
vem causando morosidade no âmbito do Poder Judiciário, que, juntamente
com juristas e a população, clamam por reformas no Código de Processo
Civil e na legislação aplicável, para fins de reduzir as prerrogativas dos
entes públicos em juízo e dar maior celeridade/efetividade aos processos
que tenham como parte a Fazenda Pública.11
Entretanto, em sede destas discussões, não resta evidenciada uma
preocupação em desenvolver estudos acerca do Processo Administrativo,

9
Para os fins do presente trabalho, entende-se que os direitos fundamentais são aqueles contidos ou não nas
Cartas Constitucionais (materialmente constitucionais), quer sejam individuais, coletivos, difusos, políticos,
sociais, econômicos ou culturais.
10
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. São Paulo: Dialética, 2003; BUENO, Cassio
Scarpinella. O Poder Público em juízo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003; PEREIRA, Hélio do Valle. Manual da
Fazenda Pública em juízo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
11
Neste sentido, têm-se algumas das alterações sugeridas pela Comissão de Juristas encarregada de elaborar
Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, instituída pelo Ato nº 379, de 2009, do Presidente do Senado
Federal. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/>. Acesso: 1º abr. 2011.

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O Processo Administrativo e sua relevância perante o Processo Judicial 159

que venham a reduzir a litigiosidade judicial contra os entes públicos. Há


doutrinadores que acreditam que alterações legislativas poderão diminuir
as lides contra o Poder Publico, apenas com a redução de procedimentos
e simplificações processuais.

3 A utilização do Processo Administrativo como instrumento decisório


dos Magistrados – Breve enfoque jurisprudencial
Como acima deveras destacado, o Poder Público brasileiro tem
contra si propostos milhares de Processos Judiciais em curso.12
Estes Processos Judiciais acabam tendo como objeto litigioso
mediato o questionamento de atos administrativos exarados pelos entes
públicos, através de seus agentes, e tomados em sede de Processos
Administrativos, que acabaram por afetar os interesses de pessoas físicas
e/ou jurídicas. Citam-se, apenas a título exemplificativo, alguns destes atos
administrativos decorrentes de Processos Administrativos que chegam a
ser frequentemente questionados no âmbito judicial: Ato Administrativo
de aplicação de multa de trânsito (Processo Administrativo de infração de
trânsito), Ato Administrativo de demissão de servidor público (Processo
Administrativo Disciplinar), Ato Administrativo indeferindo a concessão
de uma gratificação a servidor público (Processo Administrativo com
pedidos de vantagens a servidor público), Ato Administrativo indeferindo
a concessão de pensão ou aposentadoria (Processo Administrativo Previ­
denciário), Ato Administrativo de cobrança de tributo (Processo Admi­
nistrativo Tributário).
No mais das vezes, no âmbito judicial, os Processos Administrativos
acabam sendo requisitados pelos Magistrados, para que seja avaliada a
adequação ou não da atuação do Poder Público.
Tais determinações de juntada aos autos judiciais destes Processos
Administrativos é algo extremamente relevante, para que o magistrado
possa avaliar a adequação ou não do ato administrativo inquinado
judicialmente.
Ainda, alguns magistrados, além de determinar que se junte aos
autos judiciais o Processo Administrativo gerador do ato administrativo
questionado, acabam, ao final do curso da ação, decidindo de modo formal,

12
Acerca de estatísticas sobre a participação do Poder Público em processos judiciais, atentar para relatórios
do Conselho Nacional da Justiça Federal – “Justiça em Números”. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br>.
Acesso: 1º abr. 2011.

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160 Marcos André Couto Santos

aplicando a teoria da presunção de legitimidade dos atos administrativos


e da separação dos poderes. Tais decisões são formais porque não
adentram ao âmago da discussão do fundo do direito alegado como
agredido, destacando apenas que o Ato Administrativo deve ser mantido
quando exarado com base em um Processo Administrativo, no qual haja
sido respeitado o devido processo legal formal (estrita legalidade, com
garantia formal da ampla defesa e do contraditório). Vejam-se acórdãos
neste sentido:

Ementa Processual civil e tributário – Embargos à execução fiscal – Presunção


juris tantum de legitimidade dos atos administrativos e de liquidez e certeza da
certidão de dívida ativa – Ônus da prova. (...) 2. Os atos administrativos gozam
de presunção juris tantum de legitimidade (atributos do ato administrativo), o
mesmo ocorrendo em relação à liquidez e certeza da Certidão de Dívida Ativa
– CDA, a qual somente pode ser afastada por prova em contrário a cargo do
administrado. 3. Inversão indevida do ônus da prova pelas instâncias de origem.
4. Processo anulado desde a sentença, inclusive. 5. Recurso especial provido.
(RESP nº 527.634, STJ, relatora Min. Eliana Calmon, DJ, 19 set. 2005, p. 00254)

Ementa Administrativo – Ato administrativo – Demissão – Delegado de polícia


federal – Procedimento disciplinar – Presunção de legalidade – Exame de mérito
– Impossibilidade pela via judicial – Embargos não providos. 1. Não cabe ao
Poder Judiciário examinar a conveniência da prática de ato administrativo, cuja
atuação se limita aos aspectos da sua legalidade. 2. Comprovado nos autos que
o processo administrativo disciplinar, que culminou na aplicação da pena de
demissão ao autor, obedeceu às formalidades legais e teve como supedâneo a
prova colhida em inquérito administrativo válido e regular, ela goza da presunção
de legitimidade, que só pode ser infirmada com prova inequívoca em contrário,
de cujo mister o autor não se desincumbiu. 3. Embargos Infringentes não
providos. 4. Autos recebidos para lavratura do acórdão aos 12/09/2000. Peças
liberadas pelo Relator para publicação do acórdão aos 12/09/2000. (EIAC nº
9501089525, TRF1, relator Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral,
DJ, 02 out. 2000, p. 02)

Ao nosso sentir, este entendimento não deve prevalecer. O Processo


Administrativo não pode de forma unilateral servir como único esteio
argumentativo para que o juiz exare sua decisão judicial. Resta necessário
que o magistrado aprecie os argumentos de ambas as partes litigantes e
fundamente sua decisão nas normas, nos princípios legais e constitucio-
nais aplicáveis, a partir da análise dos fatos litigiosos postos. Novamente,
o Processo Administrativo deve servir como mais um elemento a ser apre-
ciado pelo julgador, a fim de que forme seu convencimento de forma

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O Processo Administrativo e sua relevância perante o Processo Judicial 161

fundamentada e detalhada – art. 93, IX, da CF/88, com alterações da EC


nº 45/2004.
Note-se, ainda, que, muitas vezes, a ausência de Processo Administrativo
regular acaba por culminar na nulidade do Ato Administrativo, em
decorrência da afronta ao devido processo legal. Vejam-se entendimentos
neste sentido:

Ementa Constitucional. Administrativo. Servidor público. Revisão da aposen-


tadoria. Poder-dever da administração. Prévio processo administrativo. Neces­
sidade. Garantia do devido processo legal. – A Administração Pública tem o
poder-dever de anular, ou revogar, os próprios atos, quando maculados por
irregularidades ou ilegalidades flagrantes, consoante o entendimento consa­
grado no verbete da Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal. – Em respeito
às garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, a jurisprudência
desta Corte vem proclamando o entendimento de que a desconstituição de
qualquer ato administrativo que repercuta na esfera individual dos servidores
ou administrados deve ser precedida de processo administrativo que garanta a
ampla defesa e o contraditório. – Recurso ordinário provido. Segurança conce-
dida. (ROMS nº 12726, STJ, relator Min. Vicente Leal, DJ, 24 mar. 2003, p. 281)

Ementa Recurso ordinário – Mandado de segurança – Servidor público – Exercício


de cargo em comissão na Faculdade de Direito de Jacarezinho, estado do Paraná
– Incorporação da gratificação de representação de gabinete nos proventos de
aposentadoria – Posterior subtração – Necessidade de procedimento em que se
assegure ao servidor o contraditório e a ampla defesa – Recurso parcialmente
provido. 1. Ainda que indevida a gratificação de representação de gabinete
ao Recorrente, nos termos do art. 143, III, da Lei nº 6.174/70, do Estado do
Paraná, sua subtração, após ter sido concedida e incorporada aos proventos de
aposentadoria, depende de prévio procedimento administrativo, em que se
assegure ao servidor o contraditório e ampla defesa. Precedentes. 2. Recurso
parcialmente provido. (ROMS nº 14777 – STJ, relator Min. Paulo Medina, DJ,
02 maio 2005, p. 417)

Com a necessária cautela, acredita-se que a ausência por si só de


um Processo Administrativo não deveria conduzir à nulidade dos atos
administrativos exarados pelo Poder Público, ainda mais quando há vários
atos administrativos de mero expediente ou de mera aplicação da lei, que
não geram a necessidade de garantia da ampla defesa e do contraditório.
Inclusive, o Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades,
entendeu ser juridicamente possível a edição de Ato Administrativo de
redução de gratificações e/ou de não pagamento de valores a servidor
público ou aposentado sem a necessidade de instauração de Processo

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162 Marcos André Couto Santos

Administrativo regular, especialmente considerando a caracterização de


uma flagrante ilegalidade existente nos pagamentos efetuados. Vejam-se
os seguintes acórdãos:

Ementa: Servidor Público. Proventos de aposentadoria. Ato administrativo


eivado de nulidade. Poder de autotutela da Administração Pública. Possibilidade.
Precedente. Pode a Administração Pública, segundo o poder de autotutela a ela
conferido, retificar ato eivado de vício que o torne ilegal, prescindindo, portanto,
de instauração de processo administrativo (Súmula 473, 1ª parte - STF). RE
185.255, DJ 19/09/1997. RE conhecido e provido. (RE nº 247399, STF, relatora
Min. Ellen Gracie, DJ, 24 maio 02 PP-00066 Ement Vol-02070-04 PP-00692)

Ementa: Direito constitucional, administrativo e processual civil. Retificação de


ato de aposentação. Redução de proventos, com base no princípio da legalidade
(art. 37, caput, da C.F.). Desnecessidade de procedimento administrativo, com
observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo
legal e da irredutibilidade de vencimentos. (...) 2. O ato municipal, retificando
o ato de aposentação do impetrante, ora recorrente, reduziu seus proventos aos
limites legais, cumprindo, assim, o princípio constitucional da legalidade (art. 37,
caput, da C.F.). 3. Mantendo-o, o acórdão recorrido não ofendeu os princípios
constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal,
até porque tal retificação prescinde de procedimento administrativo (Súmulas
346 e 473, 1ª parte). 4. Nem afrontou o princípio da irredutibilidade de
vencimentos e proventos, pois só seriam irredutíveis os vencimentos e proventos
constitucionais e legais. Não os ilegais. 5. Para a retificação, o Prefeito valeu-se
da legislação municipal, que considerou aplicável ao caso do impetrante. 6.
E esta Corte, em R.E., não interpreta direito municipal (Súmula 280). 7. Não
ofendidos os princípios constitucionais focalizados no R.E., este é conhecido
pela letra “c”, mas improvido. 8. Decisão unânime: 1ª Turma do S.T.F. (RE nº
185255, STF, relator Min. Sydney Sanches, DJ, 19 set. 1997 PP-45548 Ement
Vol-01883-05 PP-00863)

Neste sentido, como se observa dos acórdãos ora destacados, o devido


processo legal não deve servir como apanágio para obstar a superação
imediata de afrontas literais e evidentes da ordem jurídica posta; havendo,
assim, mesmo de forma excepcional e com base nos princípios da propor-
cionalidade e razoabilidade, a possibilidade de nulificação de atos admi-
nistrativos com atingimento de situações jurídicas subjetivas constituídas
de modo flagrantemente ilegal e inconstitucional, mesmo sem a instau­
ração de prévio Processo Administrativo.
Ainda, cabe destacar que muitos magistrados respeitam, por demais,
a separação das instâncias administrativas e judiciais, quando exaram

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O Processo Administrativo e sua relevância perante o Processo Judicial 163

decisões judiciais que conduziriam especialmente à nulificação de atos


administrativos, ainda mais os de caráter discricionário. Atente-se aos
seguintes acórdãos:

Ementa: Resp – Processual civil – Administrativo – Ato administrativo


– Discricionariedade – Os modernos princípios de acesso ao judiciário
recomendam aplicação do princípio da fungibilidade dos recursos. O
ato aspecto formal não deve ser aplicado de modo intransigente. O ato
administrativo, quanto ao mérito, e insusceptível de reexame do judiciário,
em decorrência da separação dos poderes. A discricionariedade do ato não
se confunde com ilegalidade. (RESP nº 69735, STJ, relator Min. Luiz Vicente
Cernicchiaro, DJ, 15 abr. 1996, p. 11559)

Ementa: Processual civil e administrativo – Medida cautelar incidental


objetivando garantir a eficácia e utilidade da sentença concessiva da
ordem – Inabilitação em processo de licitação – Mandado de segurança
preventivo – Sentença proferida após o encerramento do procedimento
licitatório – Pedido de liminar indeferido. – Não se afigura razoável, pelos
elementos colacionados aos autos, que o Poder Judiciário suspenda, nesta
atual conjuntura, a execução das obras e serviços que visam o prosseguimento
da construção da Ferrovia Norte-Sul. Tratando-se de obra de prioridade
nacional, deve-se prestigiar, nesta sede processual, o princípio da supremacia
do interesse público sobre o privado. (...) – Agravo regimental improvido.
(AGRMC nº 637, TRF2, relatora Desembargadora Federal Vera Lúcia Lima,
DJU, 26 jun. 2002, p. 285)

Entretanto, já há outros magistrados, amparados na Teoria da


Motivação dos Atos Administrativos, que entendem ser possível a nulifi-
cação judicial de Processos Administrativos e atos administrativos até dis-
cricionários que não estejam adequados ao interesse público, nem devi­
damente justificados com base nos princípios e valores constitucionais,
tais como os da impessoalidade e da moralidade administrativas. Vejam-
se acórdãos apoiando tal tese:

Ementa: Administrativo. Agravo regimental em agravo de instrumento. Art. 557


do CPC. Aplicabilidade. Alegada ofensa ao art. 2º da CF. Ato administrativo
discricionário. Ilegalidade. Controle judicial. Possibilidade. Apreciação de fatos e
provas. Súmula STF 279. 1. Matéria pacificada nesta Corte possibilita ao relator
julgá-la monocraticamente, nos termos do art. 557 do Código de Processo Civil
e da jurisprudência iterativa do Supremo Tribunal Federal. 2. A apreciação pelo
Poder Judiciário do ato administrativo discricionário tido por ilegal e abusivo
não ofende o Princípio da Separação dos Poderes. Precedentes. 3. É incabível o
Recurso Extraordinário nos casos em que se impõe o reexame do quadro fático-
probatório para apreciar a apontada ofensa à Constituição Federal. Incidência

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da Súmula STF 279. 4. Agravo regimental improvido. (AI-AgR nº 777502, STF,


relatora Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, 28.09.2010)

Ementa: Recurso especial – Mandado de segurança – Transferência de servidor


público – Ato discricionário – Necessidade de motivação – Recurso provido.
(...) 2. Consoante a jurisprudência de vanguarda e a doutrina, praticamente,
uníssona, nesse sentido, todos os atos administrativos, mormente os classificados
como discricionários, dependem de motivação, como requisito indispensável de
validade. 3. O Recorrente não só possui direito líquido e certo de saber o porquê
da sua transferência “ex officio”, para outra localidade, como a motivação, neste
caso, também é matéria de ordem pública, relacionada à própria submissão a
controle do ato administrativo pelo Poder Judiciário. 4. Recurso provido. (ROMS
nº 15459, STJ, relator Min. Paulo Medina, DJ, 16 maio 2005 p. 417)

No nosso entender, os magistrados têm o poder de nulificar Pro­


cessos Administrativos, mesmo os que geram atos administrativos dis­
cricionários, baseados na proteção ao Erário Público e na defesa dos
valores, dos princípios e da ordem constitucional material posta, mas esta
atuação dos magistrados deve ser vista como excepcional e baseada em
juízo de ponderação e adequação diante de cada caso concreto e de forma
fundamentada e justificada, sob pena de haver uma afronta e desequilíbrio
entre os poderes.
Por último, em respeito aos princípios da utilidade das formas e do
aproveitamento dos atos administrativos em geral, resta relevante aten-
tar ao fato de que a determinação judicial de nulificação de um Processo
Administrativo e/ou de um Ato Administrativo dele decorrente deve ser
devidamente delimitada pelo julgador, viabilizando até mesmo a possibi-
lidade de instauração de um outro Processo Administrativo, para apura-
ção de supostas irregularidades, desde que respeitados os lapsos de pres-
crição/decadência.
Neste ponto, tencionou-se mostrar que os magistrados brasileiros se
utilizam muito da apreciação dos Processos Administrativos para avaliar a
adequação, a legalidade e a constitucionalidade dos atos administrativos
exarados pelo Poder Público; havendo, assim, uma aproximação entre o
Processo Judicial e o Processo Administrativo.

4 A relevância do Processo Administrativo perante o Processo Judicial –


Complementariedades
A interação do Processo Administrativo com o Processo Judicial é
deveras evidente, podendo, inclusive, ser ampliada a partir da melhoria e
do redimensionamento do Processo Administrativo.

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O Processo Administrativo e sua relevância perante o Processo Judicial 165

Há muitas semelhanças entre os Processos Administrativo e Judicial,


quais sejam principalmente: A) No Processo Administrativo e no Processo
Judicial, objetiva-se aplicar a lei, a Constituição, garantindo os princípios
e os valores fundamentais; B) No Processo Administrativo e no Processo
Judicial, pode ou não haver controvérsia/lide. Lembre-se da existência
de vários processos judiciais de jurisdição voluntária (por exemplo:
Processo de Alvará Judicial, Processo de Justificação Judicial); C) O
Processo Administrativo e o Processo Judicial estão inclusos no âmbito da
processualidade, delineando o atuar dos poderes estatais; e D) O Processo
Administrativo e o Processo Judicial devem respeitar o devido processo
legal – art. 5º, LV, da CF/88.
Há também diferenças entre os destacados Processos Administrativo
e Judicial: A) No Processo Administrativo, a Administração Pública é
parte interessada. Já no Processo Judicial há litigantes, sendo o Juiz um
terceiro imparcial e não interessado e B) No Processo Administrativo, há
interessados e admite-se a revisão dos seus atos. Já no Processo Judicial
tem-se partes litigantes e somente é admissível a revisão até o trânsito em
julgado da sentença/acórdão.
Mesmo considerando as diferenças, defendemos que os Processos
Judiciais e Administrativos têm relações claras de complementariedade,
no âmbito do Estado Democrático de Direito.
Caso o Processo Administrativo seja conduzido e efetivado de forma
adequada, com respeito às normas legais e constitucionais aplicáveis, o
ato administrativo gerado não padecerá de nenhum tipo de ilegalidade,
permanecendo hígido e plenamente válido na ordem jurídica posta.
Inclusive, a valorização do Processo Administrativo e a compreensão
da necessidade de sua efetivação com base na Constituição, especialmente
com a garantia da busca da verdade material, da viabilização de uma
adequada dilação probatória e do respeito ao devido processo legal em
sentido material,13 lastreado em decisões administrativas fundamentadas,
detalhadas e justificadas no plano normativo e fático, faz com que os
Atos Administrativos decorrentes destes Processos Administrativos sejam
mantidos em qualquer esfera judicial.

13
Sobre o devido processo legal no aspecto material em sede dos Processos Administrativos: MOREIRA, Egon
Bockmann. Processo administrativo: princípios constitucionais e Lei 9.784/1999. 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2007. p. 211-365; OLIVEIRA, Robson Mattos de; GRUNWALD, Astried Brettas. O devido processo legal como
princípio constitucional do processo administrativo. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/5118>.
Acesso em: 30 mar. 2011.

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166 Marcos André Couto Santos

Frise-se, ainda, que, para adequação e efetividade dos Processos


Administrativos, não há necessidade de alterações legislativas, bastando
que sejam implementados na realidade administrativa brasileira os prin-
cípios e ditames já previstos na Constituição Federal (por exemplo: os
arts. 5º e 37, da CF/88) e na Legislação ordinária existente (por exemplo:
a Lei Federal nº 9.784/99, que regula o Processo Administrativo no âmbito
da Administração Pública Federal).
Ainda, mesmo sem a necessidade específica de alterações legislati-
vas, para efetivação deste Processo Administrativo adequado e justo, resta
necessário o seguinte: 1) formação e educação dos servidores públicos,
dos gestores públicos e dos cidadãos, acerca da importância de Processos
Administrativos justificadores dos atos administrativos, das políticas públi­
cas e das decisões administrativas, fundamentadas na legislação e na
Constituição; 2) conscientização dos papéis e das funções do Estado e da
sociedade no ambiente jurídico constitucional, com a busca por todos da
garantia e da implementação dos direitos fundamentais e da dignidade da
pessoa humana; 3) previsão de aplicação de punições/penalidades para os
maus gestores da coisa pública, que não seguem os procedimentos previstos
na legislação aplicável, não respeitam a Constituição e não tem compromisso
com a efetivação dos direitos fundamentais; 4) não tornar no Processo
Administrativo prevalentes os interesses de qualquer tipo de facção e/ou
grupo econômico/político, em detrimento dos lídimos interesses públicos
de toda a sociedade e do Estado e 5) conscientização e difusão perante o
Poder Judiciário e seus membros acerca da importância e da relevância do
Processo Administrativo para efetivação dos direitos dos cidadãos.
No nosso entendimento, o Processo Administrativo, lastreado em
normas, princípios e valores constitucionais, e implementado com base
em uma hermenêutica constitucional14 comprometida com a garantia dos
direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, gerará um novo
patamar relacional e dialógico entre a Administração Pública, o Poder
Judiciário e a sociedade, servindo, até mesmo, para reduzir o grau de
litigiosidade existente no Brasil contra atos do Poder Público.
O fortalecimento e a valorização do Processo Administrativo poderá
ajudar a reduzir o número de Processos Judiciais contra o Poder Público,

14
Em relação à hermenêutica constitucional contemporânea: BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional.
11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 398-480; LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos
humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 123-162.

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O Processo Administrativo e sua relevância perante o Processo Judicial 167

promovendo a cidadania e a democracia brasileiras na relação Estado-


sociedade/cidadãos.

Conclusão
Através do presente trabalho, espera-se ter contribuído para mostrar
a necessidade do aprofundamento dos estudos, reflexões críticas e divul­
gação da relação entre o Processo Administrativo e o Processo Judicial,
especialmente para fins de garantia de um melhor relacionamento entre
o Poder Público e a sociedade, com a redução da litigiosidade atualmente
ainda existente.

Recife, 26 de abril de 2011.

Administrative Process and its Relevance to the Judicial System


Abstract: The aim of this pape ris to demonstrate the relationship between the
Administrative Process and Judicial Process, showing some judicial decisions
upon this subject. Finally, intends to demonstrate that Administrative Process
and Procedures can reduce the litigation envolving Public Administration in
the Judicial System.
Key words: Administrative process. Judicial process. Litigation. Public
administration.

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168 Marcos André Couto Santos

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

SANTOS, Marcos André Couto. O Processo Administrativo e sua relevância perante o Processo
Judicial. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 75,
p. 153-168, jul./set. 2011.

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Ne bis in idem: eficácia negativa da
decisão independente de coisa julgada1
Sérgio Gilberto Porto
Professor titular de Direito Processual Civil da PUCRS. Doutor e Mestre em Direito pela PUCRS.
Especialista em Direito Processual Civil. Advogado e consultor jurídico.

Mauricio Matte
Especialista em Direito Processual Civil e mestrando em Direito pela PUCRS. MBA em Direito da
Economia e da Empresa. Advogado em Porto Alegre.

Resumo: Este artigo aborda o princípio do ne bis in idem. Fenômeno do


ordenamento jurídico processual, peculiar às decisões, com carga negativa
e acento constitucional implícito, que se revela, ao lado da coisa julgada,
como garantia institucional à concretização da estabilidade social, evitando a
repetição de atividades estatais sobre o mesmo objeto. Ao final do estudo são
feitas breves considerações sobre o sistema doutrinário e legal de outros países.
Palavras-chave: Ne bis in idem. Non bis in idem. Coisa julgada. Res judicata.
Função negativa. Direitos e garantias fundamentais.
Sumário: Introdução – 1 Coisa julgada – 1.1 Como garantia constitucional –
1.2 Coisa julgada formal e material – 1.3 Autoridade e eficácia – 1.4 Limites
objetivos e subjetivos – 1.5 A função positiva e a negativa – 2 Ne bis in idem
– 2.1 Breves considerações históricas – 2.2 Princípio autônomo: a eficácia
negativa da decisão – 2.3 O princípio como garantia constitucional implícita
– 3 Breve cotejo do sistema brasileiro e de outros países – 3.1 Brasil – 3.2
Argentina – 3.3 Colômbia – 3.4 Estados Unidos – 3.5 Espanha – 3.6 Peru –
3.7 União Europeia – Considerações finais – Referências

Introdução
Este trabalho analisa o princípio ne bis in idem ou, como também é
conhecido, non bis in idem (não duas vezes pelo mesmo, em latim); autrefois
acquit (já perdoado, em francês) ou double jeopardy (duplo perigo, em inglês)
— fenômeno que se apresenta como uma forma de defesa em procedi-
mentos processuais e como garantia à realização da estabilidade social,
das garantias constitucionais, elidindo atividades processuais idênticas —
com brevíssimo cotejo de sistemas de outros países.
Contudo, para ser possível sua compreensão, é necessária a análise
das particularidades do instituto da coisa julgada que, embora seja “a
virtude própria de certas sentenças judiciais, que as faz imunes às futuras
1
Ensaio desenvolvido na cadeira de Processo Civil Constitucional do Prof. Sérgio G. Porto no Curso de Mestrado
da PUCRS.

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170 Sérgio Gilberto Porto, Mauricio Matte

controvérsias impedindo que se modifique, ou discuta, num processo


subsequente, aquilo que o juiz tiver declarado como sendo a ‘lei do caso
concreto”,2 aproximando-se da função negativa da coisa julgada, com esse
fenômeno não pode ser confundido.
Assim, faremos uma breve síntese da coisa julgada antes de analisar
o princípio ne bis in idem, quando será dado o merecido destaque a esse
fenômeno, presente em nosso ordenamento jurídico como garantia
constitucional implícita.

1 Coisa julgada3
A doutrina de Liebman, dominante entre nós, diz que a (autoridade
da) coisa julgada é a qualidade que torna imutável o comando emergente
de uma sentença.4 Lembra Tesheiner que não são os efeitos da sentença,
mas tão somente o comando, pois ao renunciar ao direito declarado na sen-
tença, os efeitos são afastados sem, contudo, ser alterado o seu conteúdo.5 A
sentença transita em julgado, assim, torna definitivo o novo estado jurí­
dico decorrente da decisão jurisdicional de mérito.
Sem maiores divergências na doutrina, o instituto da coisa julgada
serve para estabilizar as relações sociais, por meio da segurança jurídica
conferida ao caso onde foi prestada a tutela jurisdicional, independente-
mente de ter sido justa (em sentido estrito)6 a decisão, como resultado de
repulsa à eternização das demandas, desde que atendidos os propósitos
processuais e constitucionais.
Ao que parece, inexiste fórmula conceitual única a todas as esferas
processuais, mormente em face das novas necessidades que os direitos
de terceira dimensão (direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais
homogêneos) fizeram infiltrar na sistemática individualista (que ainda
resiste).

2
SILVA, Ovídio A. Baptista. Curso de processo civil. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1987. v. 1, p. 416.
3
O instituto da coisa julgada encontra sua previsão infraconstitucional no art. 467 do CPC – “Denomina-se coisa
julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário
ou extraordinário.”
4
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. 3. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1984. p. 54.
5
TESHEINER, José Maria Rosa. Elementos para uma teoria geral do processo. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 177.
6
Como exemplificam Lazari e Amaro de Souza – “Assim, às vezes, diante de um deslize do litigante em sua
empreitada na busca pela verdade, como a ausência de um documento ou a perda de um prazo, o Estado-Juiz
profere decisão que não reflete o real direito daquele, mas mesmo assim esta decisão terá sido justa, vez que
um pronunciamento final deve estar isento de benevolências ou malevolências quanto à falha que o ensejou.
Caso contrário, estar-se-ia manchando a imparcialidade do órgão julgador” (LAZARI, Rafael José Nadim de;
SOUZA, Gelson Amaro de. Exegese sobre a “relativização” da coisa julgada: o que há por trás desta tendência?.
Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 57, n. 386, p. 35, dez. 2009).

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Ne bis in idem: eficácia negativa da decisão independente de coisa julgada 171

Cumpre alertar que a análise feita da coisa julgada é periférica,


servindo apenas para levar ao leitor os elementos necessários ao propósito
do estudo, o que passamos a fazer.

1.1 Como garantia constitucional


A garantia constitucional da coisa julgada é caracterizada pelo fato de
que quando um jurisdicionado vai a juízo em busca da tutela jurisdicional,
não o faz desamparado, já que “o Estado lhe outorga certas garantias”
conhecidas como “constitucional-processuais” ou também chamadas de
“princípios constitucional-processuais, consagrando uma ideia clara de
cidadania processual”.7
Esculpido no art. 5º, XXXVI, da Carta Política, portanto, temos a
coisa julgada erigida à garantia constitucional, previsão que tem por escopo
a obtenção da estabilidade das relações jurídico-sociais. Sua inobservância
resulta em vício de inconstitucionalidade, já que a Constituição é fonte
originária de direito no nosso sistema,8 inclusive com parte da doutrina
defendendo, para esses casos, a decretação da nulidade da decisão9 por
meio de uma cláusula geral de revisão.
A previsão constitucional não serve apenas de limitação ao legis-
lador infraconstitucional para que não suprima a coisa julgada formada
(irretroatividade das leis), não podendo, portanto, desrespeitá-la, mas
igualmente como garantia individual (estabilidade à tutela jurisdicional
obtida pelo jurisdicionado) e como garantia institucional objetiva (posto
que “prestigia a eficiência e a racionalidade da atuação estatal, que desa-
conselham, em regra, a repetição de atividade sobre um mesmo objeto).10
Lembra Humberto Theodoro Júnior, contudo, que a “definitividade,
a intangibilidade da sentença passada em julgado nunca chegou ao grau do
absoluto, visto que sempre se ressalvaram casos excepcionais de rescisão”.11

1.2 Coisa julgada formal e material


A coisa julgada formal é caracterizada pela impossibilidade de a
decisão sofrer interposição de recurso, de ser impugnada, denominada
pela doutrina hodierna de preclusão máxima.
7
PORTO, Sérgio Gilberto. Cidadania processual e relativização da coisa julgada. Revista Síntese de Direito Civil
e Processual Civil, São Paulo, v. 4, p. 5-13, 2003.
8
PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 57.
9
Ver, por exemplo, a posição de NASCIMENTO, C. V. (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. 3. ed. Rio de
Janeiro: América Jurídica, 2004.
10
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 51, 52.
11
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Redimensionamento da coisa julgada. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 57,
n. 377, p. 11, mar. 2009.

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172 Sérgio Gilberto Porto, Mauricio Matte

Quando se esgota a possibilidade de instância imediatamente supe-


rior (v.g., Tribunais Estaduais) ou mesmo extraordinariamente às Cortes
Superiores (v.g., Supremo Tribunal Federal), se manifestarem sobre a
decisão proferida, face à não provocação da parte insatisfeita (quer por
preclusão, quer por renúncia da faculdade recursal) ou por já restar
deci­dida a demanda em última instância (com trânsito em julgado), está
presente a coisa julgada formal.
Tal é própria de todas as sentenças, caracterizada por ficar restrita à
demanda que a originou, produzindo, portanto, efeitos endoprocessuais.
Já a coisa julgada material, ao contrário, produz efeitos externos,
podendo, portanto, se impor perante demandas diversas daquela em que
foi originada.
Caracteriza a coisa julgada material o conteúdo substancial da sen-
tença de cognição plena de mérito (que conheceu o rectius, o objeto da
demanda), transitada em julgado, que adquirirá imutabilidade e indis-
cutibilidade, a partir da ocorrência da coisa julgada formal (sem a qual
ainda poderá sofrer alterações).
Assim, por exemplo, atos judiciais executivos, decisões interlocutó-
rias, sentença de extinção da demanda sem julgamento de mérito, as que
encerram processo executivo, não produzem o fenômeno da coisa julgada
material, pois não julgam mérito.
Para Tesheiner, a coisa julgada material é a “imutabilidade do con-
teúdo da sentença no mesmo ou em outro processo”. Salienta que toda
sentença produz coisa julgada formal, embora somente as sentenças que
produzam conteúdo que não “possa ser desprezado ou modificado mesmo
em outro processo, em outra ação (exceto a rescisória)” fazem coisa julgada
material.12

1.3 Autoridade e eficácia


Segundo Liebman, a autoridade da coisa julgada não se confunde
com a eficácia da sentença, tampouco é efeito desta. Para ele não “se
pode, pois, duvidar de que a eficácia jurídica da sentença se possa e deva
distinguir da autoridade da coisa julgada”13 e arremata que a autoridade
da coisa julgada “não é efeito da sentença, como postula a doutrina
unânime, mas, sim, modo de manifestar-se e produzir dos efeitos da

12
TESHEINER, op. cit., p. 177.
13
LIEBMAN, op. cit., p. 39.

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Ne bis in idem: eficácia negativa da decisão independente de coisa julgada 173

própria sentença, algo que a esses efeitos se ajunta para qualificá-los e


reforçá-los em sentido bem determinado.”14
Ainda que a eficácia imperativa da sentença produza efeitos imedia-
tos, suscetíveis eventualmente a recursos, somente por meio do carimbo
da imutabilidade da autoridade da coisa julgada é que os efeitos da deci-
são terão oponibilidade, via de regra, erga omnes.
Assim, temos que a autoridade da coisa julgada, em regra, é a capa­
cidade de impor a sentença que produziu resultados eficazes, a todos.

1.4 Limites objetivos e subjetivos


Antes de esclarecer o que vem a ser o limite objetivo, importante
ressaltar que não se deve confundi-lo com o fenômeno “material” da coisa
julgada.
Quando se busca identificar o que adquire autoridade de coisa jul-
gada, se está diante dos limites objetivos da coisa julgada, enquanto o
fenô­meno da coisa julgada material diz respeito ao que a projeta para
além dos limites do processo em que a mesma foi proferida.15
Para compreensão dos limites objetivos e subjetivos da coisa julgada,
necessário se faz abordar a teoria tria eadem (ou tríplice identidade), adotada
pelo nosso ordenamento (art. 301 do CPC), trazida por Chiovenda, que
tem como criador o comendador Matteo Pescatore (Itália, 1864).16
Para a teoria referida, duas demandas são idênticas quando possuem
três elementos exatamente iguais: partes, causa de pedir e pedido.
O pedido é divido pela doutrina em imediato e mediato. Aquele é a
tutela processual visada (provimento jurisdicional), enquanto este é o bem
da vida que se almeja (ex. o reparo do veículo, na ação de indenização de
danos materiais).
A causa de pedir é o fundamento. No nosso sistema, que vigora a
teoria da substanciação,17 a causa petendi é integrada “(i) pela descrição dos
fatos que servem de fundamento ao pedido e (ii) pela correlação lógico-
jurídica entre os fatos descritos e a conseqüência jurídica pleiteada. Essas

14
LIEBMAN, op. cit., p. 40.
15
PORTO, op. cit., p. 64, 65.
16
ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz. Conexão e ‘tríplice identidade’. Revista Ajuris, Porto Alegre, v. 10, n. 28, p. 72.
17
“A teoria da individualização sustenta ser bastante — para que se tenha a demanda como adequadamente
fundamentada — a afirmação da relação jurídica sobre a qual se estriba a pretensão, constituindo-se, pois a
causa petendi na relação jurídica ou no estado jurídico afirmado pelo autor em arrimo a sua pretensão (...) a
teoria da substanciação exige que o autor substancie – fundamente! – a demanda através de um fato ou de
um conjunto de fatos aptos a suportarem a sua pretensão (...) identificando, assim, a causa de pedir como a
relação jurídica posta à análise como suporte da pretensão” (PORTO, op. cit., p. 34).

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174 Sérgio Gilberto Porto, Mauricio Matte

são, respectivamente, a causa fática (ou remota) e a causa jurídica (ou


próxima).”18
Os limites objetivos19 estão postos justamente quando há identidade
de pedido e causa de pedir. Havendo relação de prejudicialidadade entre
os pedidos imediatos (v.g., na primeira demanda condenação e, na segunda,
declaração), bem como esteja o pedido mediato da segunda demanda con-
tido no da primeira (v.g., pedido de condenação de 1000 improcedente e
novo pedido de condenação de 200),20 há violação dos limites objetivos.
A coisa julgada material, somente para fechar raciocínio, está nos
limites do pedido e da causa de pedir da demanda apreciada pela sen-
tença sem, contudo, para o bom investigador, prevalecer confusão exis-
tente entre os dois institutos.
Os limites subjetivos da coisa julgada determinam quem está sujeito
à autoridade da coisa julgada que, na visão clássica, diz respeito à deter-
minação de pessoas sujeitas a imutabilidade e indiscutibilidade da sentença
que caracterizam a eficácia de coisa julgada material entre as partes às
quais é dada, em princípio, não beneficiando nem prejudicando terceiros
(regra geral), estando restrita, portanto, às partes.21
Quanto à nova realidade dos limites subjetivos da coisa julgada,
há, entretanto, uma vinculação à natureza do direito posto em causa,
conforme anteriormente já exposto, in verbis:

a) em sendo o direito posto à análise de natureza individual heterogênea, apenas


as partes, por regra, serão atingidas pela autoridade da coisa julgada e, por
exceção, o cessionário, o sucessor e o substituído processualmente; b) sendo
o direito individual homogêneo, a autoridade da coisa julgada, nos casos de
procedência da demanda, será erga omnes; c) sendo coletivo, salvo a hipótese de
improcedência por ausência de provas, a autoridade da coisa julgada será ultra
partes; e d) tendo o direito posto em causa natureza difusa, também salvo nos
casos de improcedência por ausência de provas, a autoridade da coisa julgada
projetar-se-á erga omnes.22

18
TALAMINI, op. cit., p. 72.
19
“Nas ações individuais, a coisa julgada é restrita ao pedido, não se estendendo à motivação da sentença, nem
à apreciação de questão prejudicial (CPC, art. 469). (...) Nas ações coletivas, a eficácia erga omnes ou ultra
partes vincula-se a uma questão de fato ou de direito, que constitui premissa necessária da conclusão, que é
coberta pela autoridade de coisa julgada, como efeito anexo da sentença” (TESHEINER, op. cit., p. 187-188).
20
TALAMINI, op. cit., p. 68, 69.
21
“A autoridade da coisa julgada, porém, é, de regra, restrita às partes (incluído ai o substituto processual, parte
em sentido material) e aos seus sucessores” (TESHEINER, op. cit., p. 187).
22
PORTO, op. cit., p. 75.

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Ne bis in idem: eficácia negativa da decisão independente de coisa julgada 175

1.5 A função positiva e a negativa


Lembra Gastal que a coisa julgada encontra raízes no direito romano.
Na Alemanha e na Itália do século XIX, prevalecia a ideia de que a coisa
julgada funcionava como uma imposição, “a qualquer futuro juiz que fosse
chamado a pronunciar-se sobre a lide, no sentido de pronunciar-se de
modo conforme com o julgado (...)”.23 Revelando o que posteriormente
ficou conhecido como função positiva.
Na origem romanista da coisa julgada a “impossibilidade de nova-
mente propor a mesma ação era a conseqüência natural da consumação
processual”,24 que mais tarde veio a ser visualizada com a função negativa
da coisa julgada.
A doutrina, sem embargo às discordâncias, é um tanto quanto pací-
fica em relação à existência de duas “funções” distintas da coisa julgada.
Após a obra de Keller a doutrina passou a visualizar a função positiva
e a negativa da coisa julgada. Foi a partir daí que se tornou possível
sustentar na doutrina a sua dupla função, arrematando que “(...) parece
irrebatível, modernamente, que ela (coisa julgada) efetivamente possui a
virtualidade de impedir um novo julgamento e que essa capacidade se
define como sendo sua função negativa (...)”25 (comentamos).
A função positiva diz respeito ao fato de que uma decisão futura
estará vinculada à outra já proferida. Portanto, o juízo estará obrigado a
reconhecer o conteúdo do primeiro julgamento para decidir futuramente.
A função negativa é a que mais interessa ao nosso trabalho e diz
respeito ao fato de que uma segunda demanda estará impedida em face
da coisa julgada. Ou seja, a função negativa da coisa julgada impedirá que
seja restabelecida a discussão da mesma controvérsia, por meio da rei
judicatae.26
Manoel A. de Gusmão nos idos de 1914 pontificava na primeira
versão de sua monografia, cujo trabalho foi republicado em 1922, sobre a
força negativa da coisa julgada:

c) – Outorgar a ambas as partes, autor e réo, o direito à exceptio rei judicata, meio
impediente e força negativa de segunda demanda, ou de novo julgado a respeito

23
GASTAL, Alexandre Fernandes. A coisa julgada: sua natureza e suas funções. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto
Álvaro de (Org.). Eficácia e coisa julgada. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 196.
24
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. 3. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1984. p. 3.
25
PORTO, op. cit., p. 68.
26
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 489.

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de uma relação de direito já definitivamente decidida, instituto jurídico que tem


por fim obstar que, uma vez extincto o litígio por uma sentença transitada em
julgada, possa elle ser reproduzido e submetido a novo exame e nova decisão
da justiça
A excepção de coisa julgada compete tanto ao autor, como ao réo, tanto ao
vencedor, como ao vencido na demanda anterior.27 (sublinhamos)

Celso Neves tratou igualmente essa possibilidade ao referir que


caberia “a qualquer dos litigantes a exceptio rei judicatae, para excluir novo
debate sobre a relação jurídica decidida.”28 Ambos estavam parcialmente
corretos, já que na atualidade a coisa julgada pode ser declarada de ofício.
Em 1930 Böticcher sustentou “que a regra do ne bis in idem dizia
sim respeito ao julgado e que, mais que isso, era por si só suficiente para
explicar todos os efeitos do julgado e a única explicação do julgado que
se mostrava coerente com a teoria processual”,29 revisitando as origens
romanas, retomando a discussão sobre a coisa julgada, que havia sofrido
certo declínio.
Nesse ponto, parece que a doutrina não caminhou bem ao atrelar
o princípio do ne bis in idem que, em sua essência repelia a repetição de
atos de império, com a função negativa da coisa julgada que decorre da
atividade estatal, pressupondo jurisdição estatal e mais, pressupondo
coisa julgada.
Os elementos tratados até aqui serviram para possibilitar o reco-
nhecimento das similitudes entre os institutos da coisa julgada e do ne bis
in idem para dentro de um paralelo a ser desenvolvido, viabilizar a iden-
tificação de suas autonomias dentro do ordenamento jurídico-processual.

2 Ne bis in idem
2.1 Breves considerações históricas
O princípio do ne bis in idem é comumente encontrado na doutrina
e jurisprudência penal, embora a origem do instituto seja comum e uni-
versalizada via de regra nos diversos sistemas jurídicos.
As fontes indicam que na Grécia o princípio era aplicado inclusive
nas questões com origem civilista. Em 355 a.C., por exemplo, Demóstenes

27
GUSMÃO, Manoel Aureliano de. Coisa julgada no cível, no crime e no direito internacional. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 1922. p. 34. Na mesma obra, sustenta o autor, há a possibilidade de a rei judicata ser conhecida de
ofício pelo julgador (já que se trata de uma garantia da ordem social. p. 12, 13).
28
NEVES, op. cit., p. 489.
29
GASTAL, op. cit., p. 196.

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Ne bis in idem: eficácia negativa da decisão independente de coisa julgada 177

já preconizava que as leis proibiam um homem de ser julgado duas vezes


sobre o mesmo assunto, ainda que fosse uma ação civil.
No Corpus Juris Civilis de Justiano essa máxima foi codificada,
embora restrita a crimes — “o governador não deve permitir que a mesma
pessoa possa ser novamente acusada de crime pelo qual foi absolvido”.
Esse princípio sobreviveu à deterioração das tradições jurídicas
Greco-Romanas em face do Direito Canônico, que proclamava que Deus
não castiga duas vezes pelo mesmo crime e que as pessoas julgadas pelo
direito canônico não poderiam ser julgadas pelos Tribunais do Rei.30
Conhecido também como non bis in idem, que em tradução livre
representa “não duas vezes pelo mesmo”, ou em francês autrefois acquit
(já perdoado) ou ainda, em inglês, double jeopardy (duplo perigo) é uma
forma de defesa em procedimentos legais; geralmente utilizada na esfera
criminal.31 32
Em muitos países33 possui status constitucional, por construção dou­
trinária, dogmática, interpretação constitucional sistemática, previsão
legal e por ratificação a tratados internacionais. Ainda hoje é um princípio

30
Texto original: While the precise origin of the protection against double jeopardy is unclear, it is certain that
the notion is very old. The Greeks apparently treated the concept as part of a primitive form of res judicata. In
355 B.C., Demosthenes stated, ‘the laws forbid the same man to be tried twice on the same issue, be it a civil
action, a scrutiny, a contested claim, or anything else of the sort.’ 1 Demosthenes 589 (Vance trans. 1962).
Justinian’s Corpus Juris Civilis recognized the special applicability of the principle to criminal proceedings through
the maxim that ‘the governor should not permit the same person to be again accused of crime of which he has
been acquitted.’ 11 Scott, The Civil Law 17 (1932). Similarly, canon law early declared that ‘there shall not rise
up a double affliction,’ a precept which was apparently based on the notion that God does not punish twice
for the same offense. Bartkus v. Illinois, 359 U.S. 121, 152 n. 4, 79 S.Ct. 676, 3 L.Ed.2d 684 (1959) (Black, J.,
dissenting). The related principle that clerics could not be punished in the king’s courts after having been tried
under canon law was a major source of the dispute between Becket and Henry II; Becket ultimately prevailed,
albeit posthumously. 1 Pollock and Maitland, A History of English Law 448-49 (2d ed.1899). In the thirteenth
century, as Bracton reports, the bar against multiple prosecutions assumed a rather grim urgency. Since many
criminal offenses were tried by battle between the wronged party and the alleged offender, it was evident
that a series of prosecutions would ultimately produce a ‘conviction’ against all but the hardiest combatants,
if enough ‘appealors’ were willing to try their hands at the case. Once the defendant had endured one such
trial for ‘one deed and one wound,’ Bracton wrote, ‘he will depart quit against all, also as regards the king’s
suit, because he thereby proves his innocence against all, as though he had put himself on the country and it
had exonerated him completely.’ 2 Bracton, On the Laws and Customs of England 391 (Thorne trans. 1968).
Extraído do caso: Estados Unidos da América (apelante) x Ronald S. JENKINS (apelado). in The Federal Reporter,
v. 490, 2. ed., Dec. 1973 – January 1974. Disponível em: <http://ftp. resource.org/courts.gov/c/F2/490/> (caso
490F.2d.868 ou link direto: <http://ftp. resource.org/courts.gov/c/F2/490/490.F2d.868.73-1572.79.html>).
Acesso em: 09 out. 2010.
31
Por exemplo, um réu poderia alegar-se inocente ou culpado, por meio do autrefois acquit (já absolvido/
desculpado) ou autrefois convict (já condenado), evitando nova demanda. Disponível em: <http://pt.wikilingue.
com/es/Non_bis_in_idem>. Acesso em: 25 set. 2010.
32
Na Inglaterra e no País de Gales o princípio foi relativizado em 2005, abandonando uma tradição de
aproximadamente 800 anos. A partir do caso Julie Hogg o Tribunal de Recurso poderá anular absolvição,
ordenando novo julgamento. Tal somente será possível, contudo, com base em novas e fortes provas (v.g.,
DNA positivo), testemunhas ou confissão. Double jeopardy law ushered out. Disponível em: <http://news.
bbc.co.uk/2/hi/uk_news/4406129.stm>. Acesso em: 25 set. 2010.
33
Estados Unidos, Canadá, Austrália, Índia, Peru, entre outros.

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muito aplicado, especialmente às questões da esfera penal, embora seja


aplicado até mesmo nos processos administrativos.

2.2 Princípio autônomo: a eficácia negativa da decisão


A doutrina até os dias atuais sempre vinculou o princípio do ne bis
in idem (a não repetição da mesma coisa) com a função negativa da coisa
julgada (que impede o reestabelecimento de uma demanda, ou seja, o
estabelecimento de uma demanda, pela segunda vez).
É compreensível que a doutrina tenha identificado na função
negativa da coisa julgada o princípio do ne bis in idem, pois como visto, há
uma aproximação pelo fato de que ambos os institutos operam de forma a
repelir o reestabelecimento de algo que já ocorreu. Todavia, não é correto
confundir os institutos.
O nosso Código de Processo Civil adotou a doutrina de Pescatore,
como dito, quanto aos elementos identificadores da ação, da tríplice identi-
dade (tria eadem). Matéria que igualmente é utilizada por ambos os institu-
tos, facilitando ainda mais a confusão. Por essa doutrina, uma ação é igual à
outra quando houver identidade de partes, pedido e causa de pedir. Neste
caso, quando uma demanda for proposta e houver identidade tríplice, nós
teremos, de fato, uma mesma ação sendo novamente proposta em outro
momento. A função negativa da coisa julgada poderá ser oposta, como
expli­cado, ao restabelecimento dessa demanda, por exceção ou de ofício.
Contudo, para que seja possível atuar a função negativa, obviamente,
por antecedente lógico, há necessidade de coisa julgada, e aqui reside a
diferença entre os institutos.
Pois bem, o ne bis in idem é um fenômeno que autoriza o Estado a
impedir a repetição de atividades sobre o mesmo objeto, ou seja, tendo o
Estado se pronunciado concreta e plenamente, o princípio incidirá como
garantia institucional34 evitando a eternização de pronunciamentos e,
portanto, conduzindo à estabilidade social.
Essa identificação entre os fenômenos, aliás, de essência, como
garantidores da estabilidade social e institucional, fez com que a doutrina
atrelasse a função negativa da coisa julgada ao princípio do ne bis in idem.

34
Como lembra Ingo Sarlet, a garantia institucional se apresente como diversidade de conteúdo do catálogo
de direitos fundamentais (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral
dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009. p. 71).

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Ne bis in idem: eficácia negativa da decisão independente de coisa julgada 179

Como é possível perceber, diversamente da função negativa, o prin-


cípio do ne bis in idem não depende da coisa julgada, tampouco da presta-
ção jurisdicional e, portanto, aquece o debate quanto à indiscutibilidade
de o que foi decidido ser apenas decorrente da coisa julgada; a depender
de cognição exauriente com análise de mérito.
O debate floresce ao tomarmos como exemplo a ação cautelar. Com
base na doutrina dominante, legislação e jurisprudência, as ações cautela-
res, em regra, não fazem coisa julgada material e, portanto, logicamente
não estará presente a função negativa.35
As questões prementes que surgem são: independente de poder rea­
preciar um pedido, em sede de cautelar, seria possível ao julgador extin-
guir a ação sob o fundamento de que o tema de fundo já houvera sido
apreciado anteriormente? E se positiva a resposta, seria possível alegar
que tal extinção seria com base na função negativa da coisa julgada, já que
coisa julgada nas ações cautelares não existe? Parece que a resposta é sim
ao primeiro questionamento, embora não ao segundo.
Apesar de não estar configurada ofensa formal à coisa julgada mate-
rial, posto que inexistente na espécie, o julgador está autorizado a extin-
guir a ação cautelar que tenha a mesma matéria de fundo, quer por já ter
se pronunciado, quer pelo fato de que o ordenamento jurídico ampara a
medida. Aliás, em respeito ao princípio da utilidade do processo, o julga-
dor até mesmo deve extingui-la.
No plano infraconstitucional é possível localizá-lo, v.g., no art. 268,
parágrafo único, que prevê a impossibilidade do autor intentar nova ação
se por três vezes o feito for extinto por falta de impulso; por não ter
promovido os atos e diligências necessárias, abandonando a causa por
mais de trinta dias. Ora, se não há apreciação de mérito, tendo sido
julgado extinto, não há no que falar em função negativa de coisa julgada.
Contudo, como pode ser observado, o Estado repele a nova proposição
35
“Igualmente responde à função do processo cautelar o fato de que a cautelar não seja imutável como a coisa
julgada (...)” (CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil. São Paulo: Classic Book, 2000. v. 1,
p. 207). O Código de Processo Civil determina em seu Livro III, “do processo cautelar”, art. 796 e seguintes,
que sempre há dependência desse ao principal e, portanto, não fazem coisa julgada material. Nesse sentido
a jurisprudência do STJ: “(...) 4. A sentença proferida no processo cautelar, porquanto não definitiva de
litígio, haja vista sua natureza acessória e provisória, não se reveste da imutabilidade característica da coisa
julgada material, salvo se se verificar que não haverá processo principal tutelável em razão da decadência ou
da prescrição. Isto porque a tutela cautelar representa uma prestação da justiça de cunho eminentemente
processual, no afã do resguardo das outras duas espécies — cognitiva e de execução —, com a singularidade
de que seu objeto é a defesa da jurisdição, cuja titularidade pertence ao Estado-soberano que, por isso, pode
atuar de ofício no exercício do dever correspectivo ao direito de ação constitucionalizado. (Precedentes: REsp
nº 846767/PB, DJ, 14 maio 2007; REsp nº 883887/DF, DJ, 16 ago. 2007) (...) REsp nº 724710/RJ. Ministro
Luiz Fux. Primeira Turma. Dt. Julg. 20.11.2007, DJ, p. 265, 03 dez. 2007.

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180 Sérgio Gilberto Porto, Mauricio Matte

da ação que fora abandonada por três vezes e cujos atos, do Estado,
foram concreta e plenamente realizados até aquele momento. Porém,
no exemplo, pode ser suscitada a questão legal que, todavia, poderia ser
alegada como exceção à regra da coisa julgada.
Por outro ângulo, parece que a extinção de ação cautelar por já ter
sido apreciada, havendo identidade tríplice, como sói ocorrer,36 37 calcada
no art. 267, IV, do CPC, afasta a previsão legal e a aparente fragilidade
do exemplo. Neste caso, submeter à apreciação uma mesma ação cautelar,
indica falta de interesse de agir e desafia a extinção pela aplicação do
princípio ne bis in idem.
As colocações lançadas até agora rompem com uma discussão para-
digmática e secular, de que apenas a coisa julgada, por meio de sua função
negativa, seria capaz de impedir a reapreciação da demanda (onde segundo
a doutrina está vinculada ao princípio ne bis in idem — não identificado
como instituto próprio, como aqui se propõe, mas como derivado daquele).
Ora, se não há coisa julgada na ação cautelar e podendo ser ela
extinta por já ter sido apreciada em oportunidade diversa, parece, com
respeito às divergências doutrinárias, que o princípio do ne bis in idem não
está imbricado em face da coisa julgada.
O ne bis in idem, diante do que foi trabalhado, possivelmente está no
plano da eficácia da sentença, não guardando relação, como dito, com a
autoridade da coisa julgada. Seria a eficácia negativa da decisão e não da
coisa julgada.
Diz-se decisão, aliás, pelo fato de que o princípio, ao contrário da
coisa julgada, pode se manifestar na esfera administrativa.

36
Ação cautelar de produção antecipada de provas. Carência de ação. Art. 267, VI, do CPC. Mostra-se o autor
carecedor de ação por falta de interesse de agir, base no princípio ne bis in idem quando propõe ação com o
mesmo objeto de outras, anteriormente ajuizadas. Caso em que há comando judicial precluso com determinação
para que o demandante se abstivesse de tomar qualquer medida que vá de encontro ao já decidido pelo
respectivo juízo, sob pena de fixação de multa diária na hipótese de descumprimento. Apelação Improvida
(Apelação Cível nº 70018329201, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elaine
Harzheim Macedo, Julgado em 05.04.2007).
37
Ação anulatória de débito exeqüendo. Título executivo judicial. Tema já discutido e decidido em decisões
anteriores. Princípio do ne bis in idem. Falta de interesse de agir. Ficando evidenciado nos autos que a
apelante ressuscita tema de fundo já decidido anteriormente, seja em sede de ação cautelar de exibição
de documentos, processada em duplo grau de jurisdição, seja em agravo de instrumento, ainda que não
configurada formalmente ofensa à coisa julgada, resta caracterizada ofensa ao princípio do ne bis in idem,
que encontra sustentação no ordenamento jurídico e no princípio da utilidade do processo, a fazer incidir a
falta de interesse de agir e o disposto no art. 267, inc. VI, do CPC. Eventual excesso de execução, outrossim,
não sustenta a pretensão anulatória. Sentença de extinção confirmada. Apelo desprovido (Apelação Cível nº
70011008190, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elaine Harzheim Macedo,
Julgado em 29.03.2005).

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Ne bis in idem: eficácia negativa da decisão independente de coisa julgada 181

Assim, existem dois fenômenos processuais que impedem a


repetição da mesma ação (ou atividade estatal). Para as ações que fazem
coisa julgada, existe a função negativa da coisa julgada. Para as ações que
não fazem coisa julgada, a eficácia negativa da sentença (ou decisão), o ne
bis in idem.

2.3 O princípio como garantia constitucional implícita


Quando o Brasil retornou ao Estado Democrático de Direito, com
a chegada da Constituição de 1988, foi possível observar que o legislador
constituinte fez clara opção por uma linha ideológica-legislativa onde,
entre as inúmeras garantias que lá estão positivadas, encontramos a da
coisa julgada.
O instituto que já ocupava a doutrina processual no plano infra-
constitucional, de tradição secular, foi erigida ao plano constitucional.
Agora, positivado como garantia constitucional, leva aos indivíduos no
plano judicial, por sua própria essência, uma previsibilidade mínima de
segurança, de clareza política e de direito.
Como já referido várias vezes durante esse estudo, a coisa julgada,
assim como o ne bis in idem, se apresenta como instituto de estabilidade
social, de garantia institucional e de segurança jurídica. Aliás, de garantia
à liberdade dos indivíduos.
Ambos, portanto, podemos afirmar, são institutos basilares do
Estado Democrático de Direito, da democracia.
É neste estado, de participação ativa da sociedade, emanado do
primeiro comando da Carta, de polimorfismo e difusionismo sociais, de
opção político-ideológica, que o Estado deve assegurar os direitos fun-
damentais em seus aspectos formal, enquanto insertos no ordenamento
Magno, e material, enquanto reflexo de valores socialmente relevantes;
que são exigências de realização social.
O Estado Democrático de Direito, ou melhor, o atual Estado Cons­
titucional de Direito, é organização jurídica do poder; poder que emana
do povo e como tal deve estar assentado em princípios basilares. Por isso,
a pouco, falamos que a coisa julgada é um dos seus pilares.
Contudo, a coisa julgada, instituto, revela o princípio a que se atrela,
da segurança jurídica, que é um dentre outros que está explicitamente
contido no texto constitucional.

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Pois bem, ao contrário da coisa julgada, cuja disposição do art. 5º,


inciso XXX, da Carta a consagra, o princípio ne bis in idem, assim como
outros princípios, não está expressamente previsto na Constituição. São
os denominados princípios implícitos do texto constitucional, v.g., duplo
grau de jurisdição e a imparcialidade do juiz.
É princípio secular, de origem cultural, arraigado desde as civiliza-
ções mais antigas, como tivemos a oportunidade de observar — no Direito
Grego e no Direito Romano — que garantia a manutenção das liberdades
das pessoas e preservava a ordem e estabilidade de convívio. Liberdade
que atualmente é um dos princípios mais consagrados em ordenamentos
democráticos.
Portanto, não há como compreender uma ordem jurídica demo-
crática, de um Estado Constitucional, brasileira ou de outros Estados de
idêntica opção ideológica, política e jurídica, onde há previsão dessas
garantias constitucionais, tendo o Estado ou mesmo o réu que se sujei-
tar, indefinidamente, a repetição de atos com identidade tríplice e que
tenham sido apreciados.
A ideia de segurança jurídica, de estabilidade social, não está atrelada
apenas à coisa julgada, mas também ao ato jurídico perfeito, donde se
extrai que ao ato praticado pelo Estado incide a possibilidade de repelir
repetição por meio da aplicação do princípio do ne bis in idem, que está
intimamente ligado ao princípio (da segurança jurídica, de estabilidade
social e todos os demais valores que norteiam o Estado Constitucional de
Direito), e não apenas ao instituto constitucionalmente previsto da coisa
julgada, tampouco a limitar uma de suas funções.
Lembra Ingo Sarlet que “o conceito materialmente aberto de direitos
fundamentais consagrado pelo art. 5º, §2º, da CF, aponta para a existência
de direitos fundamentais positivados em outras partes do texto constitu-
cional e até mesmo em tratados internacionais, bem assim para a previsão
expressa da possibilidade de se reconhecer direitos fundamentais não escri-
tos, implícitos nas normas do catálogo, bem como decorrentes do regime e
dos princípios da Constituição”.38
Tanto no nosso ordenamento, quanto em outros, cuja opção ideoló-
gica se assemelha, o princípio se apresenta como garantia constitucional

38
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 71.

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Ne bis in idem: eficácia negativa da decisão independente de coisa julgada 183

implícita, construção doutrinária e jurisprudencial, como passamos a


demonstrar.

3 Breve cotejo do sistema brasileiro e de outros países


3.1 Brasil
A doutrina penal noticia que o princípio não encontra previsão
direta no ordenamento pátrio sendo, pois, construção doutrinária a partir
de diversos dispositivos que sofrem sua influência, especialmente tratados
internacionais.
No Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre
Direitos Humanos), cujo Brasil é signatário, há referência ao princípio no
art. 8º, item 4º — “O acusado absolvido por sentença passada em julgado
não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.”
Na Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria
Penal,39 no art. 9º, há igualmente referência ao princípio — “Recusa de
assistência. O Estado requerido poderá recusar a assistência quando,
em sua opinião: a) o pedido de assistência for usado com o objetivo
de julgar uma pessoa por um delito pelo qual essa pessoa já tiver sido
previamente condenada ou absolvida num processo no Estado requerente
ou requerido.”
Serve de exemplo, também, o art. 20, do Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional,40 introduzido em nosso ordenamento por
meio da promulgação do Decreto nº 4.388/2002.41
Embora não previsto expressamente na Constituição, é clara a posi-
ção do Supremo quanto à interpretação sistemática, levando à conclusão
de que o princípio do ne bis in idem integra o rol dos direitos e garantias
individuais42 aplicável, portanto, a todo o ordenamento.
39
Firmada pelo Brasil em 1º.07.1994.
40
Art. 20. Ne bis in idem. 1. Salvo disposição contrária do presente Estatuto, nenhuma pessoa poderá ser
julgada pelo Tribunal por atos constitutivos de crimes pelos quais este já a tenha condenado ou absolvido. 2.
Nenhuma pessoa poderá ser julgada por outro tribunal por um crime mencionado no art. 5º, relativamente
ao qual já tenha sido condenada ou absolvida pelo Tribunal. 3. O Tribunal não poderá julgar uma pessoa que
já tenha sido julgada por outro tribunal, por atos também punidos pelos arts. 6º, 7º ou 8º, a menos que o
processo nesse outro tribunal: a) Tenha tido por objetivo subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal por
crimes da competência do Tribunal; ou b) Não tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em
conformidade com as garantias de um processo eqüitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha
sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter
a pessoa à ação da justiça.
41
JAPIASSU, Carlos Eduardo Adriano. O princípio do ne bis in idem no direito penal internacional. Revista da
Faculdade de Direito de Campos, ano 4/5, n. 4/5, 2003/2004. Disponível em: <http://www.fdc.br/Arquivos/
Mestrado/Revistas/Revista04e05/Docente/07.pdf>. Acesso em: 25 set. 2010.
42
“A incorporação do princípio do ne bis in idem ao ordenamento jurídico pátrio, ainda que sem o caráter de
preceito constitucional, vem, na realidade, complementar o rol dos direitos e garantias individuais já previstos

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184 Sérgio Gilberto Porto, Mauricio Matte

O princípio, quanto à punição de servidor público, foi sumulado pelo


STF, posição disseminada na jurisprudência.43 “Súmula 19. É inadmissível
segunda punição de servidor público, baseada no mesmo processo em
que se fundou a primeira.”
Embora pobre ou confusa em relação à questão doutrinária aqui
apontada — de equivocadamente atrelar a função negativa da coisa jul-
gada com a eficácia negativa da decisão — a jurisprudência possui prece-
dentes quanto à aplicação do princípio ne bis in idem.

3.2 Argentina
Pela pesquisa realizada44 não há expressa mensão ao princípio do ne
bis in idem na Constituição Nacional da Argentina. Como em outros casos,
a interpretação e construção são feitas com base em outras disposições e
princípios constitucionais ou de tratados. No caso argentino, o arranjo é
feito pelo art. 33, que prevê o respeito a “(...) otros derechos y garantías
no enumerados; que nacen del principio de la soberanía del pueblo y de
la forma republicana de gobierno”45 e do Estado Democrático de Direito.
Os tratados ratificados pela Argentina, recepcionados pelo ordena-
mento segundo o art. 75, inciso 22, da Constituição Nacional Argentina,46
tornam-nos superiores a lei infraconstitucional, de hierarquia constitucional.

pela Constituição Federal, cuja interpretação sistemática leva à conclusão de que a Lei Maior impõe a prevalência
do direito à liberdade em detrimento do dever de acusar. Nesse contexto, princípios como o do devido processo
legal e o do juízo natural somente podem ser invocados em favor do réu e nunca em seu prejuízo” (STF, HC
nº 80.263/SP).
43
“Servidor público: punição administrativa: ne bis in idem (Súm. 19): inocorrência. Não obstante as sanções
de suspensão e demissão tenham sido sucessivamente aplicadas ao mesmo fato, não há bis in idem, vedado
pela Súmula 19, se, para aplicar a demissão, o Presidente da República anulou previamente a suspensão, por
incompetência da autoridade inferior que a impusera” (STF, MS nº 23.146/MS).
44
Constituição Nacional da Argentina. Disponível em: <http://www.senado.gov.ar/web/interes/constitucion/
capitulo1.php>. Acesso em: 25 set. 2010.
45
“Art. 33.- Las declaraciones, derechos y garantías que enumera la Constitución, no serán entendidos como
negación de otros derechos y garantías no enumerados; pero que nacen del principio de la soberanía del
pueblo y de la forma republicana de gobierno.”
46
“22. Aprobar o desechar tratados concluidos con las demás naciones y con las organizaciones internacionales
y los concordatos con la Santa Sede. Los tratados y concordatos tienen jerarquía superior a las leyes. La
Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre; la Declaración Universal de Derechos Humanos;
la Convención Americana sobre Derechos Humanos; el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y
Culturales; el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos y su Protocolo Facultativo; la Convención sobre
la Prevención y la Sanción del Delito de Genocidio; la Convención Internacional sobre la Eliminación de todas
las Formas de Discriminación Racial; la Convención sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación
contra la Mujer; la Convención contra la Tortura y otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes; la
Convención sobre los Derechos del Niño; en las condiciones de su vigencia, tienen jerarquía constitucional,
no derogan artículo alguno de la primera parte de esta Constitución y deben entenderse complementarios de
los derechos y garantías por ella reconocidos. Sólo podrán ser denunciados, en su caso, por el Poder Ejecutivo
nacional, previa aprobación de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara. Los
demás tratados y convenciones sobre derechos humanos, luego de ser aprobados por el Congreso, requerirán
del voto de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara para gozar de la jerarquía
constitucional.”

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Ne bis in idem: eficácia negativa da decisão independente de coisa julgada 185

Entre eles está a Convenção Americana sobre Direitos Humanos


(Pacto de San José de Costa Rica), de forma similar ao que ocorre no Brasil.

3.3 Colômbia
A Constituição da República da Colômbia, no art. 29, que está
inserido como direito fundamental (Título II, Capítulo I da Carta) prevê
o princípio ne bis in idem — “(...) a impugnar la sentencia condenatoria, y
a no ser juzgado dos veces por el mismo hecho”, entre outras garantias.
No mesmo artigo há previsão de que tal princípio é extensível a
questões judiciais e administrativas.47
A jurisprudência da Corte Constitucional da Colômbia é pacífica
no sentido de que o princípio é aplicável, além das questões judiciais,
especialmente penais, às questões administrativas e a todos os demais
onde o Estado possua a faculdade de impor sanções.
Portanto, é possível verificar que a Corte Constitucional da Colômbia
tem avaliado a aplicação do princípio non bis in idem (ne bis in idem) inclusive
quando é possível sanção em um regime diverso do penal, v.g., por pecu­
lato, onde o servidor público é responsável tanto na esfera penal, quanto na
esfera administrativa. Neste caso, contudo, e a nosso sentir corretamente,
há entendimento de que, sendo o objeto do processo administrativo diverso
ao do processo criminal, não é aplicável o referido princípio.48

3.4 Estados Unidos


O termo double jeopardy tem origem na quinta emenda da Constituição
Estadounidense: “(…) nor shall any person be subject for the same offence
to be twice put in jeopardy of life or limb (…)”.

47
Neste sentido ver decisão da Corte Constitucional da Colômbia, Sentencia T-152/09, de onde se extrai: “Como
puede advertirse, entonces, la aplicación de las garantías consagradas en el artículo 29 de la Constitución para
el proceso penal será igualmente aplicables al derecho administrativo sancionador, en cuanto sean compatibles
con la naturaleza de la sanción administrativa y correccional” (Disponível em: <http://www.corteconstitucional.
gov.co/relatoria/2009/t-152-09.htm>. Acesso em: 26 set. 2010).
48
Neste sentido – Sentencia T-161/09, de 16/03/09. “4.3. Para esta Sala es claro que la rama judicial y la autoridad
disciplinaria pueden conocer de manera autónoma respecto de una misma conducta, sin que por tal razón
se vulnere el principio non bis in ídem. En este orden de ideas, cuando se adelanta un proceso disciplinario
y uno penal contra una misma persona, por unos mismos hechos, no se puede afirmar válidamente que
exista identidad de objeto ni identidad de causa, pues la finalidad de cada uno de tales procesos es distinta,
los bienes jurídicamente tutelados también son diferentes, al igual que el interés jurídico que se protege. En
efecto, en cada uno de esos procesos se evalúa la conducta del implicado frente a unas normas de contenido
y alcance propios. En el proceso disciplinario contra servidores estatales se juzga el comportamiento de éstos
frente a normas administrativas de carácter ético destinadas a proteger la eficiencia, eficacia y moralidad de la
administración pública; en el proceso penal las normas buscan preservar otros bienes sociales trascendentes
que no necesariamente coinciden con aquellas.” Há decisão paradigma sobre os requisitos para aplicação do
princípio ne bis in idem – ver Sentencia T-162/98, de 30.04.1998.

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186 Sérgio Gilberto Porto, Mauricio Matte

U.S. Constitution: Fifth Amendment


Fifth Amendment - Rights of Persons

No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime,


unless on a presentment or indictment of a Grand Jury, except in cases arising
in the land or naval forces, or in the Militia, when in actual service in time of
War or public danger; nor shall any person be subject for the same offence to
be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal
case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property,
without due process of law; nor shall private property be taken for public use,
without just compensation.49

3.5 Espanha50
No sistema espanhol, o princípio do non bis in idem está previsto no
art. 222, da Ley de Enjuiciamiento Civil (Código de Processo Civil Espanhol),
e na Constituição no art. 24.1, CE,51 não diretamente, mas por se conectar
dogmaticamente aos princípios da legalidade e segurança.52
Pode ser inferido do trecho abaixo, de decisão do Tribunal Supremo
Espanhol, o sistema espanhol adota o mesmo entendimento para o prin­
cípio, que encontra suas bases na vertente já trabalhada alhures (da qual
divergimos), ou seja, na função negativa da coisa julgada:

Dado el planteamiento del motivo conviene recordar que el art. 222 de la LEC,
se refiere a la denominada cosa juzgada material, que puede contemplarse
desde distintas vertientes: una, negativa, plasmada en el principio jurídico ‘non bis
in idem’, que no permite que una contienda judicial ya dilucidada por sentencia
firme, pueda volver a plantearse; y la otra vertiente, positiva, es la derivada de
la obligación que tiene el juzgador de seguir absolutamente lo declarado en
otro proceso anterior, cuando el objeto del segundo proceso sea parcialmente
coincidente con el del primero, versando ambos, en esa medida, sobre la misma
controversia judicial. Por todo lo cual, aparte de los elementos subjetivos y

49
<http://caselaw.lp. findlaw.com/data/constitution/amendment05/>. Acesso em: 26 set. 2010.
50
Sobre o “objeto virtual” da coisa julgada no direito espanhol, que deriva de uma preclusão ampla, alcançando
não somente o objeto atual do processo, “definido pela causa petendi, indo além, afetando todos os fatos
e fundamentos que poderiam ter sido invocados para sustentara demanda, mesmo que configurem outra
causa petendi” (Ley de Enjuiciamiento Civil – CPC Espanhol - art. 400, 1), ver THEODORO JÚNIOR, Humberto.
Redimensionamento da coisa julgada. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 57, n. 377, p. 11, mar. 2009.
51
Constituição Española de 1978. Disponível em: <http://translate.googleusercontent.com/translate_c?hl=pt-
BR&langpair=en%7Cpt&u=http://es.wikisource.org/wiki/Constituci%25C3%25B3n_espa%25C3%25B1ola_
de_1978&rurl=translate.google.com.br&usg=ALkJrhhSZzVhv7VBK9hZkKHCnxywPT4mdQ>. Acesso em: 27
set. 2010.
52
HERNÁNDEZ, José Ignacio San Román. Ley de Enjuiciamiento Civil. Colaboración Almudena Sánchez Mata.
España: Wolters Kluwer, 2005. p. 182. (comentários ao art. 222 da LEC). Disponível em: <http://books.
google.com.br/books?id=Qf4zcmvJ06MC&pg=PA182&lpg=PA182&dq=Ley+Enjuiciamiento+Civil+art
+222+LEC+espa%C3%B1a&source=bl&ots=Cq4ZpH4JCI&sig=kTQTr9_ccICOOfvSyD3rhZxeQd4&hl=pt-
BR&ei=4ySgTMmtDoG78gaC-ZjQDw&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=3&ved=0CCEQ6AEwAg
#v=onepage&q&f=false>. Acesso em: 27 set. 2010.

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Ne bis in idem: eficácia negativa da decisão independente de coisa julgada 187

objetivos, que deben ser los mismos en ambos procesos sucesivos, para que se
dé la figura de la cosa juzgada material es preciso que las pretensiones que se
ejerciten en los mismos tengan los mismos ‘petitum’ y ‘causa petendi’ (SSTS
3-4-90, 1-10-91, 31-3-92, 27-11-93, 20-9-96 y 16-6-98 , entre otras). Asimismo, es
doctrina de esta Sala que el art. 222 LEC , exige para que se de la excepción de
cosa juzgada la triple identidad de personas, cosas y causa de pedir. Esto es, se ha
de dar identidad de personas y de la posición que ocupan en el procedimiento,
identidad en la causa de pedir e identidad en las acciones ejercitadas.
La aplicación de tal doctrina determina la imposibilidad de apreciar la cosa
juzgada material alegada por el recurrente, en tanto basta examinar los distintos
procedimientos en juego, a la luz de la Sentencia recurrida, para comprobar, tal
y como en la misma se contempla, que lo decidido por la Sentencia de Primera
Instancia y confirmado por la recurrida no modifica lo decidido en anteriores
resoluciones judiciales ni en su parte dispositiva ni en lo que se refiere a las
circunstancias fácticas incumplidas de cada parte que quedan perfectamente
reflejadas en cuanto al tiempo y entidad de sus respectivos incumplimientos y
por lo que a su carácter esencial o secundario se refiere así como respecto del
momento de cada uno de los incumplimientos, circunstancias todas ellas que no
pueden considerarse de ningún modo nuevamente valoradas ya que quedaron
perfectamente conformadas en su dimensión y circunstancias en las anteriores
resoluciones en cada caso así como el sentido de sus respectivas reclamaciones
y las consecuencias que habrían de tener los respectivos incumplimientos en
función de las circunstancias fácticas concurrentes. (Tribunal Supremo Espanhol.
Sala de lo Civil. Madrid. Sección 1. Recurso 842/2009. Fecha 06/07/2010. ATS
8998/2010, grifamos)53

3.6 Peru

Na Constituição Política Peruana, no Capítulo VIII, do Poder


Judicial, o princípio non bis in idem está contido implicitamente no art.
139, inciso 13, que prescreve:

Artículo 139º. Son principios y derechos de la función jurisdiccional:


(...)
13. La prohibición de revivir procesos fenecidos con resolución ejecutoriada. La amnistía, el
indulto, el sobreseimiento definitivo y la prescripción producen los efectos de cosa juzgada.54

Expressamente na Ley del Procedimiento Administrativo General,


Ley 27.444/2001, no Capítulo II – Procedimiento Sancionador, Subcapítulo
I – De la Potestad Sancionadora, no art. 230, inciso 10, que dispõe:

53
Disponível em: <http://www.poderjudicial.es/search/index.jsp>. Acesso em: 27 set. 2010.
54
Constitución Política del Perú. Disponível em: <http://www.tc.gob.pe/legconperu/constitucion. html>. Acesso
em: 27 set. 2010.

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188 Sérgio Gilberto Porto, Mauricio Matte

Artículo 230.- Principios de la potestad sancionadora administrativa


La potestad sancionadora de todas las entidades está regida adicionalmente
por los siguientes principios especiales:
(...)
10. Non bis in idem.- No se podrá imponer sucesiva o simultáneamente una pena
y una sanción administrativa por el mismo hecho en los casos que se aprecie la
identidad del sujeto, hecho y fundamento.55

3.7 União Europeia


O princípio ne bis in idem pode ser encontrado na Declaração dos
Direitos Fundamentais da União Europeia, em seu artigo 50:

Charter of Fundamental Rights of the European Union

Article 50

Right not to be tried or punished twice in criminal proceedings for the same
criminal offence. No one shall be liable to be tried or punished again in criminal
proceedings for an offence for which he or she has already been finally acquitted
or convicted within the Union in accordance with the law.

Considerações finais
Portanto, como já referido, é possível perceber que a doutrina
caminhou em terreno movediço, pois, embora semelhantes, os institutos
da coisa julgada e do ne bis in idem não se confundem.
Por outro lado, ainda que sejam distintos, estão lado a lado como
princípios constitucionais, aquele explícito e esse implícito, que visam à
manutenção da ordem jurídica, da estabilidade social, da paz, da garantia
da liberdade e de outros valores fundamentais, constitucionalmente
assegurados.
Afinal, como dito alhures, não é crível que no atual Estado
Constitucional de Direito não estejam presentes os referidos institutos de
garantia institucional, de respeito a essas garantias fundamentais multi-
facetadas, de valores e direitos aos quais o Estado também está atrelado.

Abstract: This article discusses the principle of ne bis in idem. Phenomenon


of legal procedure, peculiar to the decisions, with negative charge and
implicit constitutional accent, which is revealed, along with the res judicata,
as institutional guarantee the achievement of social stability, avoiding the

55
<http://www.pcm.gob.pe/InformacionGral/sgp/2005/Ley_27444_Procedimiento_Administrativo.pdf>.

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Ne bis in idem: eficácia negativa da decisão independente de coisa julgada 189

repetition of state activities with the same object. At the end of the study are
made brief remarks about the doctrinal and legal system of other countries.
Key words: Ne bis in idem. Non bis in idem. Double jeopardy. Res judicata. Claim
preclusion. Negative function of res judicata. Rights of persons.

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190 Sérgio Gilberto Porto, Mauricio Matte

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Ne bis in idem: eficácia negativa da decisão independente de coisa julgada 191

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Ne bis in idem: eficácia negativa da decisão independente de coisa julgada 193

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

PORTO, Sérgio Gilberto; MATTE, Mauricio. Ne bis in idem: eficácia negativa da decisão
independente de coisa julgada. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo
Horizonte, ano 19, n. 75, p. 169-194, jul./set. 2011.

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Confissão. Impossibilidade de
invalidação por incapacidade do
confitente. Eficácia probatória do
depoimento pessoal prestado por
incapaz. Vedação ao venire contra factum
proprium no sistema de invalidades
processuais
Fredie Didier Jr.*
Professor-adjunto de Direito Processual Civil da Universidade Federal da Bahia. Mestre (UFBA),
Doutor (PUC-SP) e Pós-doutor (Universidade de Lisboa). Advogado e consultor jurídico.

Talita Romeu
Mestranda em Direito (UFBA). Professora da Faculdade Baiana de Direito. Advogada.

Palavras-chave: Sistema de invalidades processuais. Invalidação da confissão.


Ausência de prova do vício.
Sumário: 1 Síntese dos fatos – 2 Ausência de prova do vício de consentimento
no momento da confissão. Inexistência de distorção da realidade fática: a
omissão de fatos pela confitente não configura confissão – 3 Impossibilidade
de invalidação da confissão por incapacidade do confitente. Eficácia
probatória do depoimento pessoal prestado por incapaz – 4 Necessária
propositura de ação anulatória para pleitear invalidação da confissão –
5 A vedação ao venire contra factum proprium no sistema de invalidades
processuais. Impossibilidade de invalidação da confissão em decorrência de
comportamento contraditório no processo

1 Síntese dos fatos


O espólio de DRC ajuizou ação reivindicatória em face de JFS, tom­
bada sob nº XXXXXXXXXXXXX, em trâmite na Vara dos Feitos de Relações
de Consumo Cíveis e Comerciais da Comarca de Seabra/BA. Alegou, em
síntese, que o demandado estaria indevidamente na posse do imóvel objeto
da lide, o qual comporia o patrimônio do espólio demandante.
Além de defender-se nos autos da ação reivindicatória, sob o
argumento de que adquiriu a propriedade da área litigiosa em 1975, JFS,
em litisconsórcio com MGS, ajuizou ação de usucapião em face do espólio

* <www.frediedidier.com.br>.

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de DRC, requerendo fossem declarados proprietários do referido imóvel


em razão do exercício de posse mansa e pacífica por mais de 35 anos.
Esta demanda foi distribuída por dependência à ação reivindicatória,
sob nº XXXXXXXXXXXXXXXXX.
Ao que consta, os autores da ação de usucapião utilizaram, como meio
de prova de suas alegações, o depoimento prestado pela representante do
espólio nos autos da ação reivindicatória, porquanto ela havia confessado
a ausência de oposição à posse exercida por eles sobre o imóvel — ou
seja, a posse mansa e pacífica que fundamenta o pedido de declaração do
domínio na ação de usucapião.
Em seguida, nos autos da ação reivindicatória, a parte demandante
requereu a “nulidade do depoimento da Sra. NC” (sic), argumentando
que a depoente, então inventariante e representante do espólio, estaria
“sofrendo de demência e senilidade” (sic), razão por que seria “completa-
mente inapta para depor em Juízo” (sic). Para comprovar tais alegações,
anexou relatório médico segundo o qual a Sra. NRSC apresentaria “défi-
cit de memória moderado” há aproximadamente cinco anos.
Consulta-nos JFS, assim, acerca do pedido de invalidação da
confissão realizada pela representante do espólio de DRC nos autos da
ação reivindicatória, meio de prova que fundamenta a pretensão por ele
formulada nos autos da ação de usucapião.
É o que se passa a analisar.

2 Ausência de prova do vício de consentimento no momento da


confissão. Inexistência de distorção da realidade fática: a omissão de
fatos pela confitente não configura confissão
Ocorre a confissão quando a parte reconhece a existência de um
fato contrário ao seu interesse e favorável ao do seu adversário, conforme
definição expressa no art. 348, do Código de Processo Civil. Trata-se de
meio de prova, portanto, formado pelos seguintes elementos: a) sujeito
declarante (elemento subjetivo); b) vontade para declarar um fato (ele-
mento intencional); c) fato contrário ao confitente (elemento objetivo).
A confissão pode ser produzida em juízo ou fora dele. Sendo judi-
cial a confissão, poderá ser espontânea, quando resultar da iniciativa do
confitente, ou provocada, na medida em que extraída do depoimento pes-
soal prestado pela parte durante a fase instrutória.

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Confissão. Impossibilidade de invalidação por incapacidade do confitente... 199

É importante notar que, embora a confissão decorra da manifestação


voluntária da parte que declara a ciência sobre uma situação de fato, sua
eficácia independe da vontade do confitente. Os efeitos jurídicos da con-
fissão estão previstos em lei, destacando-se a liberação da parte adversária
do ônus de provar o fato confessado (art. 334, II, CPC). Logo, a confissão
é ato jurídico em sentido estrito, ou seja, ato voluntário de efeitos necessá-
rios, porquanto a sua eficácia jurídica não se submete à vontade de quem
o pratica, embora dependa dela; seus efeitos decorrem diretamente da
lei. A vontade na confissão dirige-se à declaração de ciência do fato e não à
produção de algum efeito jurídico. Trata-se de uma declaração voluntária de
ciência de fato; não se trata de declaração de vontade para a produção de
determinado efeito jurídico (não é, pois, um ato negocial).
O objeto da presente consulta situa-se no plano da validade deste
ato jurídico em sentido estrito, pois o espólio autor da ação reivindicatória
requereu a invalidação da confissão realizada por sua representante legal
ao prestar depoimento pessoal em juízo. Quando declarou a ausência de
oposição à posse exercida sobre o bem litigioso, a confitente reconheceu
uma situação de fato contrária ao interesse do espólio que estava repre-
sentando e favorável ao interesse da parte adversária. Como já mencio-
nado, a existência de posse mansa e pacífica é causa de pedir da ação de
usucapião movida em face do espólio, distribuída por dependência à ação
reivindicatória na qual ocorreu a confissão.
O vício alegado como fundamento para invalidar a confissão da
repre­sentante legal do espólio refere-se ao já citado elemento intencional,
pois a discussão gira em torno da capacidade da depoente para manifes-
tar sua vontade de declarar ciência sobre fato contrário ao seu interesse e
favo­rável ao da parte adversária. Conforme se alega nos autos da ação rei-
vindicatória, a confitente estaria “sofrendo de demência e senilidade” (sic),
razão por que seria “completamente inapta para depor em Juízo” (sic).
O relatório médico apresentado como fonte de prova da alegada
incapacidade da confitente, acostado aos autos da ação reivindicatória,
apresenta as seguintes informações: “Paciente NRSC, 75 anos, há + 5 anos
fez uma isquemia transitória e ficou com déficit de memória moderado
com período de ausência (esquecimento) [...], estando sem condições de
gerir seus próprios negócios” (sic).
Inicialmente, importa ressaltar que um juízo de validade apenas
deve considerar o momento em que foi realizado o ato jurídico: não existe
invalidade decorrente de vício superveniente à prática do ato jurídico.

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Em se tratando da confissão, somente se comprovada a existência de vícios no


instante em que foi prestado o depoimento pessoal da parte, poderá se cogitar a
sua invalidação.
No caso concreto, percebe-se que o relatório médico, no qual se
fundamenta o pedido de invalidação da confissão, não é apto para com-
provar que a representante do espólio estaria transtornada ao prestar seu
depoimento pessoal; mais especificamente, não há prova de que, ao con-
fessar a existência de posse mansa e pacífica da parte adversária sobre o
bem imóvel litigioso, possuía a confitente algum transtorno mental.
Tal documento apenas informa que a confitente, há aproximada-
mente cinco anos, sofre de “déficit de memória moderado com período
de ausência (esquecimento)”, diagnóstico insuficiente para levar à conclu-
são de que a confitente seria incapaz de prestar depoimento pessoal em
juízo e, ainda, de que ela não saberia o que estava fazendo no momento
da confissão.
Além da falta de prova quanto à existência do vício no momento
em que foi realizada a confissão, o próprio argumento apresentado não
sustentaria a invalidação pretendida.
Fala-se apenas em omissões da confitente, que, em razão de suposto
estado de senilidade, “deixou de relatar fatos relevantes à composição da
lide”. Ou seja: o suposto transtorno mental teria causado o esquecimento de
fatos relevantes.
Não se expôs qualquer nexo causal entre o suposto transtorno e o
depoimento confessório. O nexo afirmado foi entre o suposto déficit mental
e o esquecimento.
Tanto as razões expostas para a invalidação da confissão quanto
o relatório médico apresentado são específicos no tocante ao problema
psíquico que acometeria a confitente: ausência de memória eventual.
É importante notar que não foi aludida qualquer doença ou estado
psicológico capaz de gerar, no momento da confissão, a distorção da rea-
lidade de fato pela confitente; mencionam-se apenas lapsos de memória
e a incapacidade de gestão dos próprios negócios. Segundo se infere da
petição por meio da qual foi requerida a invalidação, haveria prejuízo
exclusivamente em razão da omissão da representante legal do espólio
quanto a fatos considerados relevantes para a solução do litígio, que sequer
foram especificados.

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Confissão. Impossibilidade de invalidação por incapacidade do confitente... 201

O motivo apresentado como causa de pedir para invalidar a con-


fissão, em verdade, não gerou os prejuízos alegados nos autos da ação
reivindicatória, de modo que não justificaria o sacrifício do referido ato
jurídico. Observe-se que a confissão em si, enquanto conduta comissiva
que representa, não foi indicada como reflexo da “senilidade” ou da “de-
mência” que acometeria a confitente.
Portanto, inexistindo nexo de causalidade entre o estado psicológico
alegado e as afirmações realizadas pela representante legal do espólio,
não há razão para invalidar a confissão. Eventual invalidação deveria
pressupor um prejuízo decorrente da efetiva distorção da realidade de fato
pela confitente — comprovadamente causada por seu estado psicológico
durante o depoimento o pessoal —, não de mera omissão ou de ausência
de informações.
O confitente, ao declarar ciência sobre um fato, realiza comporta­
mento ativo. A omissão da parte não configura confissão; no máximo,
poderia implicar a confissão ficta se, intimada, não comparecesse para
prestar depoimento pessoal ou, comparecendo à audiência, se recusasse
a depor (art. 343, §1º, CPC). No caso sob análise, a conduta omissiva da
depoente — porque “deixou de relatar fatos relevantes à composição da
lide” — não corresponderia a qualquer espécie de confissão. A omissão é,
no caso, um ato-fato processual e, nessa qualidade, não passa pelo plano
de validade dos atos jurídicos.1
Deve ser rejeitado o pedido de invalidação da confissão.
As alegações e o documento acostado aos autos não demonstram a
existência do vício de consentimento no momento em que foi realizada,
tampouco a distorção da realidade fática pela representante legal do
espólio, ressaltando-se que o comportamento omissivo alegado sequer
poderia ser qualificado como confissão.

3 Impossibilidade de invalidação da confissão por incapacidade do


confitente. Eficácia probatória do depoimento pessoal prestado por
incapaz
Conforme mencionado no tópico anterior, o objeto desta consulta
situa-se no plano da validade da confissão. Após o expresso reconhecimento
da posse mansa e pacífica sobre o bem litigioso, o espólio, autor da ação

1
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1983. t. IV, p. 4.

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reivindicatória e réu da ação de usucapião, requereu a invalidação do


ato jurídico — confissão — praticado por sua representante legal, sob o
argumento de que lhe faltaria capacidade para depor em juízo.
Todavia, ainda que houvesse a demonstração do vício alegado e de
sua relação de causalidade com as afirmações feitas pela confitente em
seu depoimento pessoal, a consequência jurídica não seria a invalidação
da confissão.
Explica-se.
As hipóteses que autorizam a invalidação da confissão estão previstas
no art. 214, do Código Civil, segundo o qual “a confissão é irrevogável,
mas pode ser anulada se decorreu de erro de fato ou de coação”.
A invalidação deste ato jurídico apenas se justifica, portanto, em
razão de erro de fato, que torna falsa a declaração emitida, e de coação, que
provoca uma declaração manipulada pela grave ameaça feita ao confitente.
Observe-se que só se invalida a confissão se houver dúvida quanto à vera-
cidade do fato afirmado.
De acordo com o dispositivo citado, a incapacidade não figura entre
as causas aptas a invalidar a confissão. No caso concreto, a demência e a
senilidade somente teriam relevância jurídica, para fins de invalidação, se
gerassem para a confitente uma falsa percepção da realidade, levando-a a
cometer erro de fato.
Como se ressaltou, porém, não foi afirmada qualquer doença ou
estado psicológico capaz de gerar, no momento da confissão, a distorção dos
fatos afirmados pela confitente, pois o vício de invalidade alegado corres-
ponderia à omissão quanto a fatos considerados relevantes para a solução
do litígio.
A disciplina aplicável à confissão realizada por incapaz está prevista no
art. 213, do Código Civil, cuja norma, apesar de não determinar a inva­
lidação do ato jurídico, retira-lhe a eficácia: “Não tem eficácia a confissão
se provém de quem não é capaz de dispor do direito a que se referem os
fatos confessados.”
A incapacidade não gera, como consequência jurídica, a invalidade
da declaração; apenas afasta os efeitos de confissão da declaração de fato
feita pelo incapaz. A questão sob análise, portanto, não diz respeito à
validade, mas à eficácia da manifestação sobre uma realidade de fato. O
depoimento judicial prestado por pessoa incapaz não recebe a eficácia de
confissão; não será, porém, invalidado.

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É importante frisar que a lei, exatamente por não se referir à validade


da confissão, apenas impede que a declaração de ciência do fato adquira
o status de confissão, com os efeitos legais dela decorrentes (arts. 334, II, e
350, ambos do CPC). Não se invalida a confissão por incapacidade; só se
retira desta declaração a eficácia da confissão.
Ainda que se demonstre a ausência de capacidade plena no momento
em que foi realizada, a declaração do incapaz continua sendo válida e
apta a atestar a ocorrência de uma situação de fato controvertida. A efi-
cácia jurí­dica que lhe é subtraída em razão da incapacidade diz respeito
somente aos efeitos típicos da confissão, sobretudo à dispensa de prova
quanto ao fato reconhecido em favor da parte adversária. Na prática, o
depoimento pessoal do incapaz, sem os efeitos da confissão, equivaleria ao
depoimento de uma testemunha, compondo o material probatório pro-
duzido nos autos. Enfim, como observa Pontes de Miranda: “Se a parte
não pode confessar sobre o fato, o que ela disse pode ser apreciado como
comunicação de conhecimento sem se poder cogitar de confissão.”2
A declaração realizada por meio do depoimento pessoal do incapaz,
embora não possa assumir a natureza confessória, deve ser valorada pelo
magistrado na formação do seu livre convencimento.
A manifestação de ciência sobre o fato não produzirá os efeitos da
confissão exclusivamente em razão de um impedimento legal, restrito ao
plano de eficácia do ato jurídico — o qual, repita-se, é válido e deve ser
considerado como componente do conjunto probatório posto à aprecia-
ção do juiz.
Sobre o tema, escreve Humberto Theodoro Júnior: “Não se deve
negar todo e qualquer efeito ao reconhecimento dos fatos, pela parte,
em causas relativas a direitos indisponíveis. (...) Assim, o juiz apreciará
a declaração da parte dentro do contexto geral da instrução probatória,
dando-lhe valor relativo (e não absoluto), conforme lhe permite o sistema
da livre apreciação da prova e da persuasão racional imotivada”.3
Aplicando essas premissas ao caso concreto, conclui-se pela impossibi-
lidade de invalidação do depoimento prestado pela representante legal do
espólio, pois o fundamento exposto como causa de pedir — incapacidade
da confitente — não poderia gerar a consequência jurídica pretendida.

2
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1996. t. IV, p. 318.
3
THEODORO JR., Humberto. Comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. 3, t. II, p. 418.

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Ainda que se considere provada a existência do vício de vontade e sua


relação de causalidade com a declaração realizada em juízo, não há como
falar em invalidação da declaração de ciência de fato.
O reconhecimento da posse mansa e pacífica sobre o bem imóvel
liti­gioso, portanto, em qualquer hipótese, consiste em declaração exis-
tente e válida de ciência sobre fato. Poderá, contudo, se reconhecida a
incapacidade da representante legal do espólio no momento em que pres-
tou seu depoimento pessoal, perder a natureza jurídica de confissão e os
efeitos dela decorrentes.
Finalmente, mesmo perdendo a eficácia típica da confissão, o de-
poimento pessoal prestado pela representante legal do espólio, em que se
afirmou a posse mansa e pacífica do Sr. JFS sobre o bem imóvel litigioso,
perma­nece como elemento probatório válido e eficaz a ser utilizado na
formação do convencimento judicial. Perder-se-ia somente a natureza de
confissão, sem que fosse descartada a prova produzida.

4 Necessária propositura de ação anulatória para pleitear invalidação


da confissão
No tópico precedente, concluiu-se que a controvérsia analisada diz
respeito ao plano de eficácia da confissão. Todavia, caso a incapacidade do
sujeito fosse hipótese de invalidação deste ato jurídico, cumpre registrar a
inadequação do meio utilizado no caso concreto objeto da consulta.
Os meios para invalidar a confissão estão previstos no Código de
Processo Civil e dependem do ajuizamento de ações autônomas, com a
formação de coisa julgada, quais sejam: a) ação anulatória (art. 486, CPC),
se estiver pendente o processo no qual foi realizada a confissão; b) ação
rescisória (art. 485, CPC), se já houver transitado em julgado a decisão
fundamentada nos fatos confessados.
O pedido de invalidação da confissão, portanto, deve ser formu-
lado por meio de nova ação judicial, rescisória ou anulatória, não sendo
autorizada a discussão quanto ao vício de consentimento no mesmo pro-
cesso em que a confissão foi feita. Neste sentido, corretamente, Humberto
Theodoro Jr.: “O pleito anulatório reclama a instauração de uma nova
ação. Não pode o interessado provocar o exame do vício de consentimento
em argüição avulsa dentro do processo em que a confissão se deu.”4

4
THEODORO JR., Humberto. Comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. 3, t. II, p. 429.

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Confissão. Impossibilidade de invalidação por incapacidade do confitente... 205

Conclui-se, assim, pela impossibilidade de se requerer a invalidação


por meio de simples petição apresentada nos autos do processo em que a
confissão foi realizada. Especificamente, no caso analisado, a via processual
correta seria a ação anulatória, porquanto a controvérsia sobre a validade
da confissão decorre de lide ainda pendente. Proposta a referida ação
anulatória, em virtude do seu caráter prejudicial, recomendar-se-ia a
suspensão dos processos a ela relacionados (art. 265, IV, CPC).

5 A vedação ao venire contra factum proprium no sistema de


invalidades processuais. Impossibilidade de invalidação da confissão
em decorrência de comportamento contraditório no processo
Conforme mencionado, o espólio autor da ação reivindicatória e
réu da ação de usucapião alegou a incapacidade de sua representante
legal a fim de fundamentar o pedido de invalidação da confissão por ela
realizada, ao reconhecer a posse mansa e pacífica da parte adversária sobre
o bem imóvel litigioso. Como prova da incapacidade arguida, apresentou-
se relatório médico segundo o qual a confitente sofreria de “déficit de
memória moderado” há aproximadamente cinco anos.
Ao que parece, tenta-se comprovar que o suposto quadro de senili-
dade da confitente já estaria sendo acompanhado, durante longo período,
pelo médico que elaborou o relatório apresentado na ação reivindicatória.
De acordo com este documento e com as afirmações constantes dos autos,
os sintomas psíquicos que causariam a incapacidade da representante legal
do espólio teriam sido revelados anos antes da data em que ela prestou
depoimento pessoal.
Embora o alegado estado de senilidade fosse conhecido há quase
cinco anos, somente após o depoimento prestado pela representante legal
do espólio — por meio do qual reconheceu a posse mansa e pacífica que
fundamenta a ação de usucapião proposta pela parte adversária —, foi
requerida sua remoção como inventariante, bem assim a invalidação da
confissão por ela realizada.
Os demais herdeiros sabiam da condição psíquica da inventariante,
mas a deixaram depor para, apenas em seguida, verificada a confissão,
alegarem sua invalidade. Submeteram-na ao interrogatório judicial ape-
sar de conhecerem o aludido estado de demência; jamais requereram sua
interdição ou sua substituição enquanto representante legal do espólio,
providência que se tornou conveniente — e necessária — devido ao reco-
nhecimento de uma situação de fato favorável à parte contrária.

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206 Fredie Didier Jr., Talita Romeu

Note-se que a argumentação desenvolvida para fundamentar o


pedido de invalidade esvaziaria qualquer confissão provocada — ou seja,
a confissão extraída por meio do depoimento pessoal prestado pela parte.
Nesse sentido, destaca-se a seguinte passagem: “ninguém que goze de
sua plena capacidade mental aceitaria a perda progressiva de seus bens,
permanecendo inerte, acarretando assim um enorme prejuízo para si
próprio e todos os seus filhos, a não ser em razão de demência” (sic).
É importante ressalvar, contudo, que a declaração emitida pela repre­
sentante legal do espólio, quanto à posse mansa e pacífica sobre o bem
imóvel litigioso, apenas comprova a existência de um requisito para a aqui-
sição da propriedade pela usucapião. Provavelmente, a confitente atestou a
situação de fato sem conhecer a consequência jurídica que lhe seria aplicá-
vel, não demonstrando qualquer atitude de desapego — a ponto de carac-
terizar um estado de demência — em relação ao patrimônio de sua família.
A pretensão de invalidar a referida confissão, em verdade, configura
nítido comportamento contraditório. Intenta-se demonstrar a incapaci-
dade da confitente, atribuindo a razão do reconhecimento de fatos favo-
ráveis à parte adversária ao seu estado psíquico, embora ela jamais tenha
sido considerada senil para a prática dos atos processuais nos últimos cinco
anos. Ainda que o vício de vontade fosse efetivamente comprovado, por
se tratar de conduta desleal e contrária ao princípio da boa-fé, impõe-se
rejeitar o pedido de invalidação — ou, conforme a melhor técnica, de
ineficácia — da confissão realizada.
Explica-se.
A boa-fé objetiva, associada aos princípios do contraditório e da
cooperação, funda-se na cláusula do devido processo legal, imprimindo
conteúdo ético ao processo civil, ao reprimir o exercício inadmissível de
poderes processuais, representado por atos contraditórios e desleais. À
luz do princípio da boa-fé, não se admite que um sujeito surpreenda os
demais com condutas que, embora formalmente fundamentadas, sejam
contrárias aos princípios de proteção da confiança e de lealdade que
devem informar a relação jurídica processual.
O princípio da cooperação está intimamente ligado à boa-fé
objetiva, na medida em que se contrapõe a um debate processual obscuro,
contrário ao dever de lealdade entre os sujeitos do processo e, por
conseguinte, ao devido processo legal. Processo devido é processo sem
surpresas, sem “cartas na manga”, informado por uma relação jurídica

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Confissão. Impossibilidade de invalidação por incapacidade do confitente... 207

clara, que proporciona a ampla defesa e a efetiva possibilidade de as


partes influenciarem nas decisões judiciais, bem como evita a decretação
de nulidades processuais.
A proteção da boa-fé objetiva nas relações jurídicas proíbe o
comportamento contraditório e desleal, não admitindo que a conduta
anterior de um sujeito, que despertou confiança e justa expectativa na
contraparte, seja contrariada em seu prejuízo. Trata-se da vedação ao
venire contra factum proprium, que pressupõe duas condutas praticadas pelo
mesmo agente, lícitas em si e diferidas no tempo, sendo que a primeira —
o factum proprium — é contrariada pela segunda.
A vedação ao venire contra factum proprium é regra que rege o sistema
de invalidades processuais, impedindo, com fundamento na boa-fé
objetiva, a impugnação de atos jurídicos defeituosos. Assim, o princípio
da boa-fé tempera o formalismo excessivo, obstando a invalidação do ato
processual quando o reconhecimento do vício resulte de comportamento
desleal e contraditório.5
A invalidação (nulidade ou anulabilidade) é sanção aplicável ao ato
jurídico defeituoso. Não se pode confundir o defeito do ato com a sanção.
Invalidação é a sanção e não o defeito que lhe dá causa. A incapacidade
é o vício, a invalidação, a sanção. Não se pode baralhar ato defeituoso
com ato inválido; o ato inválido decorre do reconhecimento do defeito
pelo magistrado, com a consequente destruição do ato. Nem todo ato
defeituoso é inválido (dependerá do vício), embora todo ato inválido seja
defeituoso. A sanção da invalidade não pode incidir automaticamente
sobre o ato defeituoso: sempre resulta de um juízo valorativo — deve-se
percorrer um itinerário axiológico entre o reconhecimento deste defeito
e a invalidação do ato processual.
No caso concreto, mesmo considerando que estaria formalmente
amparado — porque se alega vício de vontade no momento em que
foi realizada a confissão —, o pedido de invalidação revela-se como
comportamento contraditório e contrário ao princípio da boa-fé.
Tal pretensão fere a expectativa legítima criada no consulente, autor
da ação de usucapião, pelo espólio, autor da ação reivindicatória e réu da
ação de usucapião. Essa expectativa consiste na crença legítima de que o
espólio não buscaria a invalidação do ato processual, em razão da suposta

5
Ao dispor que a decretação de nulidade não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa, o Código de
Processo Civil positivou a vedação ao venire contra factum proprium no art. 243.

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208 Fredie Didier Jr., Talita Romeu

incapacidade de sua representante legal, sobretudo por ter atuado,


durante longo período, embora já conhecido o suposto quadro clínico de
“déficit de memória moderado”, como se a representação exercida fosse
perfeitamente regular.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

DIDIER JR, Fredie; ROMEU, Talita. Confissão: impossibilidade de invalidação por incapacidade
do confitente: eficácia probatória do depoimento pessoal prestado por incapaz: vedação ao
venire contra factum proprium no sistema de invalidades processuais. Revista Brasileira de
Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 75, p. 197-208, jul./set. 2011. Parecer.

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Modalidade de liquidação disforme
à anunciada no acórdão e oferta de
impugnação ao cumprimento de
sentença antes da penhora*
Lúcio Delfino
Advogado. Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPRo. Doutor em Direito Processual
Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito
Processual. Membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Membro do Instituto dos
Advogados de Minas Gerais.

Sumário: 1 A consulta – 2 O parecer – 2.1 A desnecessidade de instauração


de liquidação de sentença na modalidade anunciada no acórdão – 2.2 A
natureza da resposta apresentada pela devedora – 2.3 O suposto excesso na
execução – 3 Respostas aos quesitos

EMENTA: Possibilidade de se adotar modalidade


liquidatória diversa daquela anunciada pelo título
executivo judicial (Súmula nº 344 do STJ). Admissão
de impugnação ao cumprimento de sentença ofertada
antes de seguro o juízo.

1 A consulta
JLP e LMB são credores de JFR LTDA. Detêm, nessa qualidade,
título executivo judicial proveniente de condenação obtida em sede judicial.
Instauraram, depois do trânsito em julgado, a competente execução,
segundo os moldes procedimentais previstos nos arts. 475-J e seguintes
do Código de Processo Civil. Em sua peça inaugural, apontam a reforma
parcial da sentença pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ou seja,
ressaltam que a Corte mineira determinou a necessidade de se considerar
um valor já pago pela devedora (Autos nº 31.546/33) como forma de
calcular o crédito exequendo. Segundo o acórdão, o crédito exequendo
seria apurado mediante liquidação por artigos.
Tem-se, a seguir, trecho do voto proferido pelo Relator, Desembar­
gador Afrânio Vilela:

Isso posto, rejeito a primeira preliminar, (...) e dou parcial provimento ao recurso
para determinar tão somente o abatimento do valor efetivamente pago ao Banco
do Brasil S/A em decorrência de composição havida nos autos da execução

* Este texto faz parte da seguinte obra: DELFINO, Lúcio. Direito processual civil (artigos e pareceres). Belo
Horizonte: Fórum, 2011. No prelo.

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210 Lúcio Delfino

31.546/33, a ser apurado em liquidação por artigos, mantendo inalterada a


sentença quanto às demais matérias devolvidas. (fls. 628)

Elucidaram os credores (JLP e LMB), ademais, o provimento do


recurso especial, manejado pela devedora contra o aludido acórdão, para
o fim único e exclusivo de determinar a incidência dos juros de mora a
partir da citação.
Este o excerto, recortado do referido aresto, da lavra do Superior
Tribunal de Justiça:

Forte em tais razões, com fundamento no art. 557, §1º-A, do CPC, dou pro-
vimento ao recurso especial, para determinar que os juros de mora incidam a
partir da citação. Mantêm-se os ônus de sucumbência já fixados, pois mínima
a alteração procedida. (fls. 808)

Pela petição inaugural, além disso, verifica-se que o abatimento men-


cionado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais se refere à importância
efetivamente paga pela devedora ao Banco do Brasil S.A., conforme se cons-
tata pelo voto de autoria do ilustre Desembargador Afrânio Vilela. E mais:
não obstante a Corte mineira explicitar que o crédito exequendo seria obtido
por intermédio do incidente de liquidação por artigos, os credores destaca-
ram o despropósito de instaurá-lo. Quando se proferiu o acórdão, afinal,
não havia ainda nos autos um recibo — o qual se encontrava incorporado
noutro caderno processual (autos nº 701.97.001.141-0) —, cuja cópia só
foi devidamente apresentada no momento da instauração do cumprimento
de sentença. Apresentado esse documento novo — recibo comprobatório da
importância a ser abatida para se atingir o valor exequendo —, desnecessá-
ria se mostrou a instauração do procedimento liquidatório, porque viável a
liquidação por meio de simples cálculo aritmético.
Examinada a petição de ingresso, entendeu o Juiz a quo presentes os
requisitos autorizadores da via executiva. Determinou, por conseguinte, a
intimação da devedora, na pessoa de seus advogados, para que cumprisse,
no prazo de 15 (quinze) dias, a obrigação, sob pena de incidir em multa
de 10% (dez por cento), calculada sobre o valor integral em execução
(CPC, art. 475-J). Enfim, ordenou tivesse início a fase executiva, segundo
a lógica do incidente de cumprimento de sentença.
De sua vez, a devedora, antes de realizada a penhora e a avaliação,
ofertou resposta e, por meio dela, defendeu como questão principal

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Modalidade de liquidação disforme à anunciada no acórdão e oferta de impugnação ao cumprimento... 211

a iliquidez da obrigação em execução, porque, segundo seu ângulo de


visão, necessária era a prévia liquidação por artigos, em concordância à já
anunciada determinação proveniente do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais. Buscou, desse modo, demonstrar a inexigibilidade do título pela
ausência de liquidez da obrigação nele entabulada. Secundariamente,
arguiu: i) a inadmissibilidade do cálculo apresentado pelos credores, visto
que elaborado unilateralmente; e ii) o excesso na execução, pois incorreto
o valor que resultou dos cálculos assinalados na planilha, sem, contudo,
desenvolver as justificativas de sua insurreição nem apontar o valor que
entendia correto.
Os argumentos suscitados pela devedora foram afastados por bem
lançada decisão interlocutória. Este o seu teor:

Diante do colacionado, consigno que a liquidez da sentença fora abalada apenas


pela ausência de prova do montante pago ao Banco do Brasil por ocasião do
julgamento dos recursos interpostos.
Baixados os autos e iniciada a fase de cumprimento, trouxe a parte credora
a documentação comprovando o valor efetivamente pago ao Banco do Brasil
S/A em decorrência da composição havida nos autos da execução 31.546/3 (fls.
819/826), peças estas não impugnadas pela devedora.
Assim, estando presentes nos autos todos os elementos necessários para o
cálculo da dívida, conforme determinado no r. acórdão, mostra-se desnecessária
a liquidação por artigos inicialmente imposta, dando lugar à célere apuração
por simples cálculos aritméticos.
Ademais, a liquidação por forma diversa da estabelecida no julgado não ofende
a coisa julgada (Súmula nº 344, do STJ), sendo plenamente cabível, in casu.
Por fim, não há se falar em unilateralidade na elaboração dos cálculos que
instruem o pedido de cumprimento de sentença, dispondo o art. 475-B, do
CPC, de forma expressa, que o credor requererá o cumprimento da sentença,
na forma do art. 475-J, instruindo o pedido com a memória discriminada e
atualizada do cálculo.
Outrossim, competia à devedora demonstrar eventual excesso de execução em
sede impugnatória, diligência da qual não se desincumbiu, ferindo o disposto
no art. 475-L, §2º, do CPC.
Isto posto, rejeito por completo a impugnação de fls. 839/848, condenando
a devedora ao pagamento de verba honorária que fixo em R$10.000,00, nos
termos do art. 20, §4º, do CPC.
Para prosseguimento, indique bens passíveis de constrição.
A fim de facilitar o manuseio dos autos, promova-se a abertura de um novo
volume.
Intimem-se.

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212 Lúcio Delfino

Rebelando-se contra o conteúdo da decisão acima transcrita, a deve-


dora interpôs agravo por instrumento, através do qual basicamente renovou
com uma ou outra novidade os argumentos antes suscitados em sua resposta.
Sustentou, em síntese: i) a iliquidez da obrigação registrada no título exe-
cutivo judicial, porque indispensável a prévia liquidação por artigos — à
evidência, repita-se, seu propósito é defender a inexigibilidade do título
escorado na tese de que a obrigação é ilíquida; ii) a inexistência de impug-
nação ao cumprimento de sentença, pois teria se limitado a apresentar “sim-
ples petição”, cujo objetivo era o de “chamar o feito à ordem” — segundo
crê, somente é crível se falar em “impugnação” depois de concretizada a
penhora; iii) a inadmissibilidade do cálculo apresentado pelos credores,
porquanto elaborados unilateralmente; e iv) o excesso na execução, uma
vez que incorreto o valor resultante dos cálculos assinalados na planilha
elaborada pelos credores.
Os credores, diante de todo esse contexto fático e jurídico, formula-
ram os seguintes quesitos:
1. É necessária a instauração do incidente de liquidação por artigos na
espécie?
2. Para a apresentação de impugnação se requer a prévia segurança
do juízo?
3. Qual a natureza da resposta ofertada aos autos pela devedora?
4. Há algum excesso nos cálculos elaborados?
Bem examinados a consulta e os documentos que me foram
disponibilizados, sinto-me seguro em apresentar solução aos quesitos, e o
faço por intermédio do seguinte parecer.

2 O parecer
2.1 A desnecessidade de instauração de liquidação de sentença na
modalidade anunciada no acórdão
São variadas as questões suscitadas por intermédio do recurso de
agravo interposto pela devedora. A principal delas, todavia, é aquela
que indaga sobre a necessidade da instauração, no caso concreto, do
procedimento de liquidação de sentença, na modalidade por artigos.
A devedora limita-se a advogar a imprescindibilidade do incidente
de liquidação por artigos, porque se apega (com demasiado exagero) à
determinação constante no acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de
Minas Gerais. Sustenta inadequada a alternativa escolhida pelos credores

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Modalidade de liquidação disforme à anunciada no acórdão e oferta de impugnação ao cumprimento... 213

(liquidação por cálculo aritmético), que apresentaram, juntamente com a


petição que inaugurou o cumprimento de sentença, recibo (assinado pelo
Banco do Brasil S.A.) comprobatório do valor que haveria de ser subtraído
para a obtenção do quantum debeatur — documento sequer impugnado
pela devedora.
A verdade, de todo modo, é que as razões apresentadas pela deve­
dora encontram-se destituídas de força jurídica, considerando sobretudo
o disposto pela Súmula nº 344 do Superior Tribunal de Justiça:

Súmula 344. A liquidação por forma diversa da estabelecida na sentença não


ofende a coisa julgada.

Daí já se vê inexistir, em absoluto, a inflexibilidade defendida pela


devedora, e isso ainda que uma dada modalidade de liquidação (por
cálculo do credor, arbitramento ou por artigos) se encontre literalmente
apregoada na sentença (ou acórdão), indicativa, por conseguinte, do
procedimento segundo o qual a quantidade de uma obrigação há de ser
revelada. Lado outro, e mesmo que nada tenha sido questionado a tal
respeito, inaceitável, igualmente, afirmar ofensa à coisa julgada quando
a parte opta — ou o juiz determina oficiosamente — por procedimento
liquidatório diverso daquele apontado originalmente pela sentença
(ou acórdão). Trata-se, afinal, daquilo que a Ministra Nancy Andrighi
já rotulou de princípio da fungibilidade das formas de liquidação, vale dizer,
a fixação do quantum debeatur deve processar-se pela via adequada,
independentemente do preceito expresso no título exequendo.1
É o formalismo exacerbado, portanto, o pecado da tese defendida
pela devedora.
Mas como se não bastasse o já afirmado até aqui, seria suficiente,
para assim concluir, verificar a finalidade da liquidação por artigos.
Diferentemente do que insiste em apregoar a devedora, esse procedimento
não está atrelado necessariamente a uma prova pericial — é a liquidação
por arbitramento que sempre a exige. Seu escopo é bem outro, isto é, ende­
reça-se àqueles casos em que é imperativo alegar e provar “fato novo”.2
Ou segundo a lição de Luiz Rodrigues Wambier, “a liquidação por artigos
1
Superior Tribunal de Justiça, REsp nº 657.476/MS, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado
em 18.05.2006. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 1º ago. 2010.
2
Leciona Luiz Rodrigues Wambier que “fato novo” é “todo acontecimento do mundo real que tenha alguma
relevância para o fenômeno jurídico, na medida em que dele possam derivar consequências jurídicas de
qualquer espécie” (WAMBIER, Luiz Rodrigues. Liquidação da sentença civil: individual e coletiva. 4. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 112).

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214 Lúcio Delfino

será indispensável quando, para se determinar o valor da condenação,


houver necessidade da prova de fato que tenha ocorrido depois da sen-
tença, e que possua relação direta com a determinação da extensão da
obrigação nela constituída; ou de fato que, mesmo não sendo a ela super-
veniente, não tenha sido objeto de alegação e prova no bojo do anterior
procedimento cognitivo, embora se trate de fato vinculado à obrigação
resultante da sentença”.3
Ora, as características do caso em tela evidenciam a desnecessidade
da liquidação por artigos, notadamente tendo em vista que a finalidade à
qual se destinaria já se encontra concluída, isto é, tem-se por demonstrado
— prova direta (documental), inclusive — o fato novo que se pretendia
atingir com o tal incidente procedimental. Ou dito de maneira diversa:
o fato novo é aquele comprovado por um documento não considerado na
instrução da fase de conhecimento, vale dizer, representa fato constitutivo
não avaliado em sede cognitiva, porém integrante do contexto gerador
da obrigação, o qual, caso fosse considerado pela sentença (ou acórdão),
permitiria, desde logo, a indicação do quantum debeatur.4
O que fizeram os credores, então, foi simplesmente diligenciar a apre-
sentação do documento (que prova o “fato novo”) e instaurar, com alicerce
nele e no próprio título executivo, o módulo de cumprimento de sentença. Por
isso que promover a liquidação por artigos seria medida exageradamente for-
mal, despropositada e até atentatória ao direito fundamental à tutela jurisdicio-
nal adequada. Primaram os credores, de tal sorte, pela economia processual,
celeridade e efetividade, alicerçando sua postura numa “justiça de resulta-
dos”, em repúdio aberto ao fetichismo de fórmulas e ritos.5
Acertada, portanto, a decisão ao afastar o argumento da indispensa-
bilidade do incidente de liquidação por artigos, pois acompanhou a petição
instauradora do cumprimento de sentença recibo que deu margem à prática

3
WAMBIER, Luiz Rodrigues. Liquidação da sentença civil: individual e coletiva. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009. p. 112.
4
DINAMARCO, Cândido Rangel. As três figuras da liquidação de sentença. In: WAMBIER, Tereza Arruda Alvim
(Coord.). Liquidação de sentença: repertório de jurisprudência e doutrina. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1997. p. 13 et seq.
5
Sobre o assunto, a jurisprudência é pacífica: “Instauração da liquidação por cálculos, em que pese a determinação
da liquidação por artigos prevista no r. aresto transitado em julgado. Ausência de ofensa à coisa julgada (Súmula
nº 344 do STJ). Ponderação judicial dos princípios constitucionais. Prevalência da efetividade, celeridade e
instrumentalidade do processo, em detrimento da segurança jurídica (coisa julgada), que não obstam, na
hipótese, o exercício da ampla defesa e do contraditório – Agravo provido” (Tribunal de Justiça de São Paulo,
Agravo de Instrumento nº 1138304001, Relator Desembargador Antonio Benedito Ribeiro Pinto, julgado em
31.07.2008).

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Modalidade de liquidação disforme à anunciada no acórdão e oferta de impugnação ao cumprimento... 215

da liquidação por mero cálculo, em sintonia com o que reza a Súmula nº 344
do Superior Tribunal de Justiça.

2.2 A natureza da resposta apresentada pela devedora


Consoante afirmado, os credores instauraram o pleito executivo
sem a necessidade de se socorrerem do procedimento de liquidação por
artigos, pois a liquidez da obrigação se tornou possível mediante cálculo
aritmético, depois de obtido (e juntado aos autos) recibo assinado pelo
Banco do Brasil S.A. Protocolada a petição de ingresso, entendeu o ilustre
Juiz a quo presentes os requisitos que davam acesso à via executiva, razão
pela qual determinou a intimação da devedora, nas pessoas de seus advo-
gados, para pagar, no prazo de 15 (quinze) dias, sob pena de incidir em
multa de 10% (dez por cento) (CPC, art. 475-J).
Então, a devedora, antes de realizada a penhora, apresentou a res-
posta de fls. 838-848, atenta ao disposto no art. 475-L do CPC. Ali regis-
trou seus inconformismos e defendeu: i) a inexigibilidade do título por
sua iliquidez; ii) a inadmissibilidade do cálculo apresentado pelos credo-
res, pois elaborados unilateralmente; e iii) o excesso na execução. O Juiz
singular, contudo, rejeitou por completo seus argumentos e a condenou,
no mesmo ato, aos ônus sucumbenciais, nos termos do que dispõe o art.
20, §4º, do Código de Processo Civil.
Insurge-se, agora, a devedora através da interposição de agravo por
instrumento, dizendo incoerente a tal decisão por afastar as razões que sus-
citara, porque, consoante acredita, sequer teria ainda apresentado impug-
nação ao cumprimento de sentença, mas tão somente “petição chamando o
feito à ordem” e cujo propósito era o de “colocar o processo nos trilhos”.
Defende, com veemência, que a prévia segurança do juízo é condição de processabi-
lidade da impugnação, o que provaria que sua peça processual não possui tal essên-
cia. Aduz, ademais, que o Juiz a quo lhe ceifou os direitos à ampla defesa e
ao contraditório e a impediu de apresentar, em momento oportuno (após
a garantia do juízo), a resposta (impugnação) que a lei processual lhe faculta.
Estranhíssima a alegação de que a substanciosa petição de fls. 838-
848 tinha a finalidade de “chamar o feito à ordem”, para “colocar o
processo nos trilhos”. Afinal, quem chama o “feito à ordem” é o juiz e não
os advogados (ou as partes). Não há, em todo ordenamento processual,
uma figura assim, que permita ao advogado (ou as partes) agir como se
magistrado fosse. Não bastasse, esquece a devedora que a fase de execução

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216 Lúcio Delfino

de sentença já havia sido instaurada pelos credores e admitida pelo Juiz


a quo. E nesse ambiente não há espaço para apresentar petição destinada
a “chamar o feito à ordem” (seja lá o que isso signifique), mas apenas
para suscitar exceções e objeções voltadas a atacar as matérias de ordem
pública, o título (e a obrigação por ele abrigada) e também os próprios
atos executivos.
Por óbvio, de outro turno, que a peça de fls. 838-848 apresentada
pela devedora tem, sim, natureza de impugnação (CPC, arts. 475-J e 475-L).
Suficiente, para assim concluir, perceber duas das matérias de defesa ali
arguidas: i) a iliquidez do título (e, por conseguinte, a inexigibilidade
da obrigação); e ii) o excesso de execução. Perceba-se, nessa linha de
raciocínio, que o art. 475-L do CPC reza, literalmente, que a impugnação
somente poderá versar sobre: i) falta ou nulidade da citação, se o processo
correu à revelia; ii) inexigibilidade do título; iii) penhora incorreta ou
avaliação errônea; iv) ilegitimidade das partes; v) excesso de execução; e
vi) qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação,
como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde
que superveniente à sentença. Constata-se, de tal sorte, que duas das
matérias, cuja arguição se admite em sede impugnatória, foram suscitadas
na petição de fls. 838-848, justamente àquela que a devedora insiste em
atribuir caráter de mera peça endereçada “a chamar o feito à ordem”.
Se errou o Juiz singular, o fez por excesso de zelo. Cumprir-lhe-ia,
por rigor à técnica, rejeitar liminarmente a impugnação, uma vez que
a devedora, embora tenha alegado excesso de execução, olvidou-se de
declarar o valor que entendia correto, sujeitando-se à penalidade disposta
no art. 475-L, §2º, do Código de Processo Civil. Desatendeu requisito
de admissibilidade da impugnação, cuja sanção, como constatado, é a sua
rejeição liminar.
Não intimida, noutro rumo, o argumento segundo o qual a penhora
seria requisito de admissibilidade da impugnação, como se a ausência
daquela implicasse o não conhecimento desta. É lícita a apresentação de
impugnação antes da penhora simplesmente porque não há vedação legal para
assim agir.
Bem verdade que o art. 475-J, §1º, do Código de Processo Civil
impõe que, do auto de penhora e avaliação, seja intimado o executado,
podendo oferecer impugnação no prazo de 15 (quinze) dias. Mas esse dis-
positivo estabelece apenas que a impugnação pode ser apresentada até 15 (quinze)

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dias depois de intimado o executado do auto de penhora e avaliação, algo bem


diferente de afirmar que o executado estaria impedido de ofertar impugnação antes
da penhora e da avaliação.
E mais: a lei não indica a prévia garantia do juízo como pressuposto
de admissibilidade da impugnação, porque essa exigência seria injustifi-
cada. Afinal, diferentemente do revogado regime dos embargos, o recebimento da
impugnação não implica a automática suspensão da atividade executiva, motivo
pelo qual não há mais necessidade de garantia do juízo para assegurar ao credor o
futuro cumprimento da obrigação na hipótese de improcedência da impugnação.6
A garantia do juízo apenas faria sentido, como pressuposto de admissi-
bilidade da impugnação, caso o seu recebimento implicasse, obrigatoria-
mente, a suspensão da execução e a consequente necessidade de assegu-
rar, por tempo indeterminado, o direito do credor. Como a regra hoje é o
recebimento da impugnação sem a concessão do efeito suspensivo, não há nenhuma
racionalidade em atrelar seu conhecimento à prévia realização da penhora. Daí
se concluir que a penhora é indispensável somente quando o executado
formula pedido suspensivo da execução, nunca se configurando requisito
de admissibilidade para a própria apreciação da impugnação.
Sobre o tema lecionam, com a costumeira precisão, os prestigiados
processualistas Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart:

A existência de prazo não impede que, antes do seu curso ter início, o
executado apresente a impugnação. Poderá fazê-lo, desde que respeitados
os outros requisitos para a admissibilidade da impugnação. (...). Para a
apresentação de impugnação não se requer a prévia segurança do juízo. Não
há regra específica sobre a questão e o art. 475-J, §1º, poderia insinuar outra
resposta, já que diz que a intimação para o executado impugnar se dá depois
de realizada a penhora. O art. 736 expressamente permite o oferecimento
de embargos à execução de título extrajudicial independentemente da
prévia garantia do juízo. Observando-se o sistema executivo, nota-se que,
diante da regra da não-suspensividade da impugnação (art. 475-M e dos
embargos à execução de título extrajudicial – art. 739-A), a prévia realização
de penhora não é mais imprescindível para tornar o juízo seguro enquanto
são processados a impugnação e os embargos. Antigamente, como os
embargos tinham efeito suspensivo — podendo paralisar por anos a
execução —, era preciso deixar o exequente seguro de que o seu direito seria
satisfeito no caso de improcedência dos embargos. Hoje, como a penhora
pode ser feita no curso da impugnação e o seu eventual efeito suspensivo,
obviamente, não pode impedir a sua realização, já que a penhora, além de

6
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Agravo de instrumento nº 2008.002.14340, Relator Desembargador
André Andrade, julgado em 27.05.2008. Disponível em: <www.tjrj.jus.br>.

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218 Lúcio Delfino

necessária para segurar o juízo, não pode causar “grave dano de difícil ou
incerta reparação”, a prévia segurança do juízo não constitui requisito de
admissibilidade da impugnação.7

Mesmo que por alguma razão se entenda que a peça de fls. 835-
845 não se configure propriamente em impugnação, impossível negar a
ela caráter de defesa. Desimportante se a devedora (por má-fé ou não)
deixou de atribuir à sua petição algum designativo, pois a verdade é que
ali se verifica a arguição de questões as quais, caso acatadas, levariam à
extinção do cumprimento de sentença. Ainda que não se lhe atribua natureza
de impugnação, o que se aceita para argumentar, no mínimo tratar-se-á de
objeção de não executividade (ou objeção de pré-executividade), porque, no seu
bojo, foram suscitadas matérias passíveis de apreciação até oficiosamente
em qualquer momento e grau de jurisdição.
Para complementar a análise, tem-se a lição do conceituadíssimo
Cândido Rangel Dinamarco:

Na realidade, o que venho dizendo vai além da proposta de Liebman,


segundo o qual somente os pressupostos de cada ato da execução forçada

7
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de execução. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007. p. 290-291. (Curso de processo civil, v. 3). No mesmo rumo, a melhor orientação jurisprudencial, ilustrada
a seguir mediante recentes julgados: “Apelação cível. Cumprimento de sentença. Impugnação. Nulidade.
Cerceamento. Penhora. Desnecessidade. Honorários. Compensação. Assistência judiciária. Admissibilidade.
Não há cerceamento de defesa quando se rejeita embargos de declaração sob o fundamento de ausência
de vício na decisão a ensejar sua declaração. Não é nula a decisão que recebe impugnação sem a garantia
do Juízo. O Código de Processo Civil não condiciona a apresentação de impugnação à garantia do juízo. A
compensação dos honorários advocatícios deve ser realizada ainda que a parte esteja litigando sob o pálio
da assistência judiciária. Precedentes do STJ em aplicação da Súmula nº 306, e do art. 21, do Código de
Processo Civil” (Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Apelação Cível nº 1.0352.01.000264-5/001, Relator
Desembargador Marcelo Rodrigues, julgado em 23.04.2009. Disponível em: <www.tjmg.jus.br>). “Agravo de
instrumento. Pluralidade de advogados. Pedido expresso de publicação em nome de determinado causídico.
Inobservância. Republicação da decisão. Correta determinação. Cumprimento de sentença. Impugnação de
matérias que podem ser conhecidas de ofício. Ilegitimidade. Partes. Exceção de pré-executividade. Princípio
da instrumentalidade. Desnecessidade de garantia do juízo. Se há pedido para que as publicações sejam feitas
em nome de apenas um dos advogados que representam a parte, e se é tal pleito deferido pelo Magistrado ‘a
quo’, a intimação realizada de modo diverso caracteriza nulidade. Se a matéria alegada pelo agravante na peça
de impugnação à execução é matéria de ordem pública, qual seja, alegação de ilegitimidade passiva, devendo
ser reconhecida de ofício, se for o caso, não seria prudente exigir-se a segurança do juízo para a análise da
impugnação. Reconhece-se a legitimidade do HSBC Bank Brasil S/A — Banco Múltiplo para, como sucessor,
responder pelas obrigações assumidas pelo Banco Bamerindus do Brasil S/A. Recurso não provido” (Tribunal
de Justiça de Minas Gerais, Apelação Cível nº 1.0701.98.009712-8/001, Relator Desembargador Cabral da
Silva, julgado em 31.03.2009. Disponível em: <www.tjmg.jus.br>). “Agravo de instrumento. Cumprimento
de sentença. Impugnação. Excesso de execução. Erro na elaboração de memória de cálculo. Matéria de ordem
pública. Garantia do juízo. Desnecessidade. A impugnação ao cumprimento de sentença pressupõe a garantia
do juízo apenas para que se conheça da escolha do bem penhorado e sua avaliação, já que as demais matérias
argüíveis podem ser alegadas a qualquer tempo e por meio de simples petição, por envolverem questões
de ordem pública. O excesso de execução deve ser conhecido somente quando decorrer de erro cometido
na elaboração da memória do cálculo, isto é, erro que não demande alta indagação e seja perceptível a
olho nu, independentemente de dilação probatória” (Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Apelação Cível nº
1.0024.07.500634-6/001, Relator Desembargador Fabio Maia Viani, julgado em 27.01.2009. Disponível em:
<www.tjmg.jus.br>).

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Modalidade de liquidação disforme à anunciada no acórdão e oferta de impugnação ao cumprimento... 219

podem ser objeto de exame e decisão no processo executivo — e não também


os pressupostos processuais e condições da ação. A jurisprudência dos
tempos presentes abriu portas escancaradas para a (mal) chamada objeção
de pré-executividade, plenamente admissível quando traz em si a alegação
de inexistência de título para executar, ou de iliquidez da obrigação, excesso
de execução ou alguma outra que diga respeito à própria existência da ação
executiva ou ao valor apoiado pelo título, sem grandes necessidades de
realizar uma instrução completa e exauriente.8

Rotulada de impugnação ou de objeção de não executividade (ambas


espécies do gênero defesa) a petição de fls. 835-845, nada muda. Ou seja,
certeira a decisão agravada por afastar as matérias que lá foram arguidas.
Optou a devedora por apresentar resposta previamente à segurança
do juízo, o que indiscutivelmente não lhe subtrai o direito de discutir, em
momento posterior, questões novas, surgidas no curso do procedimento
executivo, depois de realizada a penhora (excesso de penhora e erro de
avaliação, por exemplo). Exerceu (e continuará a exercer), sem dúvida,
seus direitos fundamentais ao contraditório e à ampla defesa, nos limites
admitidos em um ambiente no qual as partes (exequente e executado)
apresentam posições jurídicas diversas.
Superadas as razões ofertadas na defesa, a fase executiva deve seguir
curso, e a penhora há de ser realizada, devidamente acompanhada de
atos expropriatórios necessários à satisfação do crédito em execução.

2.3 O suposto excesso na execução


Beira ao absurdo o protesto de que o cálculo apresentado é unilate-
ral e, logo, não mereceria a acolhida do Judiciário. O cálculo é unilateral
porque foi realizado através de liquidação por cálculos. A decisão agravada,
outra vez, foi certeira ao apontar a fragilidade do argumento. Esclareceu
que o art. 475-B, do CPC, de maneira expressa, dispõe que o credor reque­
rerá o cumprimento da sentença, na forma do art. 475-J, instruindo o pedido
com a memória discriminada e atualizada do cálculo. Em complemento,
elucidou competir à devedora demonstrar eventual excesso de execução
em sede impugnatória, diligência da qual não se desincumbiu, ferindo o
disposto no art. 475-L, §2º, do CPC (fl. 858).
Portanto, os cálculos foram mesmo praticados unilateralmente, segundo pre-
visão expressa da lei processual. Caso a devedora discordasse do valor atingido,
8
DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
v. 1, p. 56.

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220 Lúcio Delfino

haveria de suscitar sua indignação em sede de impugnação e ali, além de justificar


o possível erro, deveria indicar o valor que entendia correto. Não fez, todavia,
nem uma coisa nem outra e também não impugnou o documento novo
juntado, consoante bem percebeu o Juiz singular. Arguiu a devedora, em
síntese, suposto excesso de execução, porém sem impugnar o documento
(recibo assinado pelo Banco do Brasil S.A.) — ou seu conteúdo — que
possibilitou a realização da memória de cálculo, além de nem se ter dado
ao trabalho de indicar o valor que entendia devido e tampouco de justi-
ficar os motivos pelos quais entendia equivocado o cálculo apresentado
pelos credores, numa afronta patente a pressuposto de admissibilidade da
impugnação (CPC, art. 475-L, §2º).
Em seu recurso, no entanto, inova ao afirmar, de modo absoluta­
mente vago, que o valor de fato devido gira em torno de R$563.000,00
(quinhentos e sessenta e três mil reais). Há, destarte, obstáculo que impede
o Tribunal de Justiça de examinar essa questão (eventual excesso de exe-
cução), porque a indicação do valor que a devedora entende devido no
agravo recentemente intentado não supre sua ausência na impugnação já
ofertada. E mesmo que suprisse, o que se aceita por amor ao debate, evidente
que o legislador, ao exigir que o executado aponte o valor que entende cor-
reto, obriga-o também a argumentar e a justificar o erro em que incidiu o
exequente, algo que a devedora desatendeu.9
De toda sorte e ainda que se pense de modo diverso, o que se vê no bojo
dos autos é mesmo a absoluta ausência de prova sobre o alegado “excesso de
execução”. A devedora, insista-se nisso, não impugnou o recibo (assinado pelo
Banco do Brasil S.A.), tampouco o valor nele representado, o que possibili-
tou a imediata realização da memória de cálculo. Daí por que o Juiz singu-
lar acentuou, com precisão cirúrgica, que competia à devedora demonstrar
eventual excesso em sede impugnatória, diligência da qual não se desincum-
biu, ferindo o disposto no art. 475-L, §2º, do CPC.10

9
Mais uma vez, confira-se o entendimento de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart: “Porém, o
executado, ao afirmar que o credor pleiteia quantia superior à resultante da sentença, deverá declinar, de
imediato, o valor que entende correto, sob pena de rejeição liminar da impugnação (art. 475-L, §2º). Na
verdade, mais do que simplesmente alegar que o valor executado está errado e afirmar aquele que entende
correto, deverá o executado apresentar a respectiva memória de cálculo, realizando argumentação capaz de
demonstrar o erro do exequente” [MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de execução.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 297. (Curso de processo civil, v. 3)].
10
Não se pode olvidar, até em reforço àquilo já defendido anteriormente, que a alegação de “excesso de execução”
evidencia, sem dúvida, que a petição de fls. 835-844, apresentada pela devedora depois da instauração do
cumprimento de sentença, detém mesmo natureza de impugnação. Sublinhe-se, uma vez mais, o que estabelece
o art. 475-L, V, do Código de Processo Civil.

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3 Respostas aos quesitos


1 É necessária a instauração do incidente de liquidação por artigos na
espécie?
Resposta: Não. Diante da apresentação do recibo, que deu margem à rea-
lização da liquidação por mero cálculo, despropositada a instauração do pro-
cedimento liquidatório na modalidade por artigos. É clarividente a Súmula
nº 344 do Superior Tribunal de Justiça ao apontar que o melhor caminho
é aquele segundo o qual a fixação do quantum debeatur deve processar-se
pela via adequada, independentemente do que se encontra anunciado na
sentença (ou acórdão) que lastreia a atividade jurisdicional executiva.

2 Para a apresentação de impugnação se requer a prévia segurança do


juízo?
Resposta: A lei processual não exige a prévia garantia do juízo como con-
dição de admissibilidade da impugnação. Bastaria essa constatação para
se inferir que o Judiciário, por isso mesmo, não pode negar o conhe-
cimento de impugnação eventualmente apresentada antes da penhora.
Pode-se dizer, em reforço, que a lei não exige a prévia garantia do juízo
como pressuposto de admissibilidade da impugnação por inexistir justi-
ficativa para tal exigência. A garantia do juízo apenas faria sentido, como
pressuposto de admissibilidade da impugnação, caso o recebimento desta
implicasse, obrigatoriamente, a suspensão da execução e a consequente
necessidade de assegurar, por tempo indeterminado, o direito do credor.
Como a regra hoje é o recebimento da impugnação sem a concessão do efeito sus-
pensivo, não há sentido em vincular seu conhecimento à prévia realização da
penhora. Daí se concluir que a penhora é indispensável somente quando
o executado formula pedido suspensivo da execução em sua impugnação,
jamais se configurando condição para o próprio conhecimento dela.

3 Qual a natureza da resposta ofertada aos autos pela devedora?


Resposta: A resposta apresentada pela devedora detém natureza de
impugnação (CPC, art. 475-J, §1º c/c art. 475-L). Assim se deduz pelas
matérias de defesa ali arguidas: i) a iliquidez do título (e, por conseguinte,
a inexigibilidade da obrigação) e ii) o excesso de execução. Esclareça-se
que ambas as matérias encontram-se insertas no rol do art. 475-L do CPC,
justamente o dispositivo que estabelece aquilo que pode ser suscitado em
sede de impugnação.

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222 Lúcio Delfino

4 Há algum excesso nos cálculos elaborados?


Resposta: Não, a memória de cálculo elaborada pelos credores ajusta-se
aos parâmetros legais, além de alicerçada em documento novo (recibo
assinado pelo Banco do Brasil S.A.), apresentado aos autos pelos credores
e sequer impugnado pela devedora.
Salvo melhor juízo, este o parecer.

Agosto de 2010.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

DELFINO, Lúcio. Modalidade de liquidação disforme à anunciada no acórdão e oferta de


impugnação ao cumprimento de sentença antes da penhora. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 75, p. 209-222, jul./set. 2011. Parecer.

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NOTAS E COMENTÁRIOS

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O direito associativo no ordenamento
jurídico brasileiro
Luciano Marinho de Barros e Souza Filho
Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Graduado e Pós-Graduado lato
sensu em Direito pela UFPE. Procurador Federal da Advocacia-Geral da União (AGU). Professor
da Esmatra VI e das Faculdades Integradas Barros Melo (FIBAM).

Palavras-chave: Convenção nº 87 da OIT. Direito associativo. Direitos de


liberdade. Direitos políticos. Direitos sociais.

A evolução de direitos do homem se plasma sobre uma estrutura


bipolar e historicamente sucessiva: um pilar inicial de reconhecimento de
direitos e outro de respectiva concretização.
De acordo com Norberto Bobbio,1 o desenvolvimento dos direitos
do homem seguiu pelo menos três fases. Houve a afirmação dos direi-
tos de liberdade, ou seja, direitos que objetivavam restringir o poder do
Estado, reservando para os indivíduos e para os grupos particulares uma
zona de liberdade em relação a ele. Depois, seguiram os direitos políticos,
com um papel mais ativo e não apenas de índole negativa ou de impe-
dimento. A autonomia participativa com envolvimento amplo, genérico,
frequente passou a ser garantida aos integrantes de uma comunidade,
visando a sua participação no poder político (ou liberdade no Estado). Ao
final, surgiram os direitos sociais, que expressam o desenvolvimento de
novas perspectivas e valores como os do bem-estar (individual e social),
o da igualdade formal e material, o que se denomina liberdade através ou
por meio do Estado. Como evolução civilizatória há ainda direitos, diga-
mos, mais sofisticados: solidariedade, desenvolvimento, meio ambiente,
patrimônio comum da humanidade, autodeterminação dos povos, infor-
mação, pluralismo etc.
No caso específico dos direitos de ordem social, podemos destacar:
o direito ao trabalho, o direito de associação, de formar sindicatos, de
liberdade sindical, o direito de greve etc. Podemos dizer que o homem-
unitário como ser biopsicossocial arraiga-se a elementos de sociabilidade
inafastáveis: família, amigos, companheiros de trabalho, comunidade. São
entes gregários que forjam o ser humano saudável nas suas diversas esferas
de atuação. Aliás, foi, também, através do agrupamento que, histórica e
1
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 33.

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226 Luciano Marinho de Barros e Souza Filho

recentemente, o homem, em parte, libertou-se de opressões decorrentes


do sistema produtivo capitalista industrial, quando da intensificação ou
radicalização do Estado Liberal, na medida em que a coletivização, através
da luta de classes, permitiu reações do proletário sufocado, através dos
sindicatos e associações na busca de concretização de direitos existenciais.
A distinção entre direito individual, social e humano é quase conceito
didático, gradativo e de feição que pode abranger o homem enquanto ser
natural e/ou institucional.
Na sociedade brasileira e nas ocidentais como um todo, podemos
afirmar que é o outro alicerce, qual seja, o de consubstanciação prática dos
direitos que se encontra atrofiado. A discussão prática gravita em torno da
responsabilidade estatal e social — aqui considerados todos (co)partícipes:
pessoas físicas, jurídicas, conglomerados econômicos, ONGs etc. — para
com cada indivíduo sozinho, integrante desse conjunto — e os indissociá­
veis aspectos de caráter econômico limitativos: busca-se, deste modo, a
compatibilização evolutiva, partindo-se do “mínimo existencial” em con-
fronto à “reserva do possível”.
Em termos jurídico-normativos internos, podemos citar, entre
outros, sobretudo a CR/88, respectivamente nos artigos 1º, inciso V; 5º,
incisos IV e XVII e, ainda, o artigo 8º, caput e inciso I, que, categoricamente,
exterioriza sua preocupação no desenvolvimento e progresso dos seus
cidadãos e mesmo dos povos do mundo, imiscuído, em consequência,
nesses valores normatizados, o direito à associação. Elementos de respeito
ao pluralismo e à diversidade, à livre manifestação de pensamento, à
associação profissional ou sindical são marcas indubitáveis. Direitos
que enaltecem a dignidade humana e equiparam tratados de direitos
humanos a normas constitucionais também são marcas incontestes. Então,
indagações doutrinárias e jurisprudenciais ressurgem no sentido de se
definir: qual o grau de aplicabilidade (limite e alcance) desses dispositivos
principiológicos? Possuem densidade normativa e autoaplicabilidade?
Carecem de instrumentos específicos para sua concretização? Afinal,
existem ou não normas no ordenamento jurídico que conformam
subsistema que enfeixam os direitos de associação, garantindo-os
concretamente?
Por outro lado e paralelamente, em termos de Direito Internacional
do Trabalho, no âmbito da OIT, a partir da Declaração da Filadélfia,
dúvida não existe. Alçado a princípio fundamental, tem-se que: “a
liberdade de expressão e de associação é condição indispensável a um

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O direito associativo no ordenamento jurídico brasileiro 227

progresso ininterrupto”. A Convenção nº 87 da OIT sinaliza também no


sentido de impedir interferência estatal em todo tipo de associação, ainda
que a pretexto de conferir legitimidade quanto a sua existência ou de
representação.
A eficácia horizontal de direitos parece servir-se como nova concep-
ção paradigmática a dirigir o redimensionamento à concretização de direi-
tos humanos, unindo o complexo normativo vigente, tanto constitucional
quanto internacional, e convergindo na esperada viabilização real ou con-
creta. Isso significa que aplicação das normas constitucionais que prote-
gem a pessoa humana abrange relações tanto entre Estado e particulares
(eficácia vertical), quanto particulares entre si (eficácia horizontal), seja de
forma mediata ou imediata. Neste caso, a ligação se faz pela imposição
normativa direta do ditame constitucional à hipótese de incidência, como,
por exemplo, a nulidade de um contrato de trabalho por impedir a asso-
ciação entre os funcionários em colidente ofensa à CR/88, art. 8º, caput. Já
a eficácia horizontal mediata ocorre por meio de uma ponte infraconstitu-
cional, como na situação de preenchimento de “cláusulas gerais” deixadas
pelo legislador para colmatação do aplicador do direito, caso a caso.
Também despiciente dizer que os “princípios normativos constitu-
cionais” mais que as “normas-dispositivos” repercutem objetiva e subjeti-
vamente — e possuem aplicação direta, imediata, independentemente de
regulamentação subsequente. Rompe-se, desta feita, com a praxe da mera
dirigibilidade e programação principiológicas para impor soluções con-
cretas que promovam o progresso individual e coletivo. Indiscutivelmente,
nesse diapasão, direitos passam a ser mais e mais concretizados, ainda que
como efeito da judiciarização, porque, agora, novas ópticas de cargas efi-
caciais restam juridicamente configuradas.
Desta maneira, além de instrumentos constitucionais padrões à
consecução de direitos, isto é, a ação direta de inconstitucionalidade por
omissão ou o mandado de injunção, o ordenamento jurídico nacional
confere outra dimensão, mais ampla, de aplicabilidade e concretização
da Carta Magna que, por conseguinte, extrapola os denominados ins-
trumentos clássicos de aplicação de direitos. Não se trata propriamente
de falta de norma, a clamar pela interpretação extensiva, pela analogia,
pelos costumes ou mesmo pelos princípios gerais de direito. Mas há, sim,
irradiação direta e independente, que se origina de normas constitucio-
nais de caráter social, gerando efeitos aos jurisdicionados. Essa força nor-
mativa é inclusive mais concentrada nos princípios constitucionais e no

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228 Luciano Marinho de Barros e Souza Filho

paradigma da eficácia vertical e horizontal de direitos, que, como ins-


trumentos sobrepostos, mostram-se-nos aptos à concretização de direitos,
todos, naturalmente, submetidos à ponderação meritória de interesses ou
prevalência e, dentre eles, destaca-se o direito à associação, em todas as
vertentes: religiosas, profissionais, científicas etc.
Deste modo, age com legitimidade e até com excessivo comedimento,
o Poder Judiciário quando, nos dias de hoje, apenas fixa analogicamente
regulamentação concreta ao “direito de greve” dos servidores públicos.
Entendemos discreta postura do judiciário porque o ordenamento jurídico,
mormente nos paradigmas aqui propostos, garante aos jurisdicionados,
seja servidor ou membro da população em geral, a concretização e o
exercício pleno de direitos constitucionais sociais positivados. E que a
mera ausência crônica (e intencional?) de lei complementadora não pode
perenizar a inviabilização dos seus exercícios. Como sua concretização,
no caso da greve, parte, na prática, de um comportamento sociológico
resistivo e desafiador, cabe ao Judiciário julgar as lides que lhe são postas,
mormente de natureza pública e, em outro polo, como não se trata a greve
de um direito absoluto, carecerá de regulação para o caso concreto, ainda
que por meio da casuística, fundada na ordem posta e se realizando por
meio dos arquétipos apresentados. Assim é o que esperamos, ademais,
para todo e qualquer direito associativo contemplado na Constituição.
A pergunta que resta, entretanto, é se a não ratificação da Convenção nº
87 da OIT é um ato discricionário de soberania do Estado Brasileiro ou
reflete, na verdade, um mecanismo político, de certo modo escuso, de não
concretizar a própria constituição?

Referências

ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de. A organização internacional do trabalho e a proteção aos


direitos humanos do trabalhador. Revista LTr, São Paulo, ano 71, n. 5, p. 604, maio 2007.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
SANTOS, Enoque Ribeiro dos. O papel dos direitos humanos na valorização do direito
coletivo do trabalho. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 157, 10 dez. 2003. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/4609>. Acesso em: 03 maio 2011.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

SOUZA FILHO, Luciano Marinho de Barros e. O direito associativo no ordenamento jurídico


brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 75,
p. 225-228, jul./set. 2011.

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RESENHAS

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VANNUCCI, Rodolpho. Execução de alimentos do direito de família. Sapucaia
do Sul: Notadez/Datadez, 2011.

Brinda-nos a editora Notadez/Datadez, de Sapucaia do Sul, com a


publicação da obra Execução de alimentos do direito de família, de autoria
de Rodolpho Vannucci, fruto de sua dissertação de mestrado defendida
com brilhantismo na PUC-SP, perante banca examinadora composta
pelos Professores Arlete Inês Aurelli, sua orientadora, Sergio Shimura e
Gilberto Gomes Bruschi.
Com a segurança e autoridade de quem leu e releu a obra, posso
atestar publicamente sua qualidade, decorrente de incontáveis razões,
todas decerto resultantes da competência de seu autor, aluno brilhante —
é o mínimo que dele posso dizer — do curso de mestrado da PUC-SP, com
quem tive a rara oportunidade não apenas de conviver, mas especialmente
de discutir “o processo”, sempre no mais elevado nível.
Rodolpho começa seu estudo analisando o direito material aos
alimentos, num interessante e minucioso exame das respectivas regras,
trazendo ao leitor um necessário suporte para os capítulos vindouros.
Tratando-se de livro dedicado ao estudo das normas do Direito de Família,
é neste que se concentra a abordagem.
Em seguida, passa-se à abordagem da execução, não apenas do
seu ângulo funcional, assim como sob o enfoque de sua “ação” e de seu
“processo”, novamente estabelecendo premissas para o tema principal de
seu escrito. Impressionou-me positivamente a desenvoltura do autor, que
fez do “complicado” o “mais simples do mundo”.
Finalmente, passa-se à abordagem da execução dos alimentos do
Direito de Família, com ênfase nas técnicas processuais disponíveis, a
exemplo da prisão, desconto em folha e penhora de bens; posteriormente,
centra-se o autor nas chamadas “técnicas supletivas”, no que busca a
compatibilização das regras atuais da execução em geral, pautadas nas
reformas das Leis nºs 11.232/2005 e 11.382/2006, com a realidade do
direito material subjacente.
Em capítulo à parte, Rodolpho cuidou de estudar a execução dos
alimentos quando decorrentes de uma tutela de urgência, a exemplo da
antecipação de tutela e cautelares, o que foi precedido de uma breve — e
competente — análise das tutelas de urgência em si, atendendo a uma
carência científica desde muito tempo reclamada.

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232 Denis Donoso

Por último — e eu arriscaria dizer, com o perdão da expressão,


que esta é a “cereja do bolo” —, são apreciadas as questões atuais sobre
alimentos e sua execução, oportunidade em que Rodolpho avança em
temas pouco ou nada explorados, como os alimentos e sua execução
no Estatuto do Idoso, na Lei Maria da Penha, em escritura pública e os
decorrentes de gestação (gravídicos).
Todas as polêmicas, clássicas e inovadoras, são enfrentadas
corajosamente pelo autor, que em momento algum foge ou se isenta, o
que revela seu amor e compromisso com a ciência.
De mais a mais, a obra tem o mérito de propor uma abordagem
multidisciplinar. Não se trata de um livro sobre alimentos ou sobre
execução, apenas. Bem pelo contrário, é sobre tudo isso ao mesmo tempo,
realçando o caráter instrumental do processo e sua interdependência com
o direito material, o que ainda é raríssimo entre nós.
Sem prejuízo, a linguagem utilizada pelo autor é de facilíssima
compreensão. Sem distanciar-se da técnica, sua leitura é fluída, daí por
que será útil não apenas aos que querem estudar o processo conforme a
sua proposta, mas também àqueles que militam na prática do foro.
Eis, em curtas linhas, minha impressão positiva sobre a obra de
Rodolpho Vannucci. Agradeço e parabenizo seu editor pela iniciativa de
divulgá-la, posto que com isso ganhamos todos nós, estudiosos do Direito,
que temos em mãos uma segura fonte sobre um assunto tão relevante.

Denis Donoso
Mestre e especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Membro efetivo do Instituto
Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Professor de Direito Civil e Direito Processual Civil no curso
de graduação da Faculdade de Direito de Itu, nos cursos preparatórios para Magistratura e
Ministério Público no Curso Robortella (São Paulo). Coordenador do curso de pós-graduação
lato sensu de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito de Itu. Membro do corpo docente
da Escola Superior da Advocacia de São Paulo (ESA/SP) e da Escola Paulista de Direito (EPD).
Autor de inúmeros artigos e livros na área jurídica. Advogado e consultor jurídico em São Paulo
(<www.denisdonoso.com.br>).

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

VANNUCCI, Rodolpho. Execução de alimentos do direito de família. Sapucaia do Sul:


Notadez/Datadez, 2011. Resenha de: DONOSO, Denis. Revista Brasileira de Direito Proces-
sual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 75, p. 231-232, jul./set. 2011.

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DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito proces-
sual civil português. Coimbra: Coimbra Ed., 2010.

Segundo os dicionaristas, cooperar significa “atuar, juntamente com


outros, para um mesmo fim; contribuir com trabalho, esforços, auxílio;
colaborar”.
A cooperação deve conceber uma unidade subjetiva para consecução
de um determinado objetivo comum.
No campo processual, a unidade subjetiva decorre da participação
de todos os sujeitos do processo, que, de acordo com o princípio da
cooperação, interligam-se com o propósito de alcançar a prestação
jurisdicional qualificada a proporcionar os melhores resultados.
O princípio da cooperação dá origem à denominada “comunidade
de trabalho” (Arbeitsgemeinschaft – comunione del lavoro – communion de
travail) dos sujeitos com o objeto do processo.
A obra de Fredie Didier Jr., ora resenhada e fruto de relatório de
pós-doutoramento realizado na conceituada Universidade de Lisboa, sob
a supervisão da competente Professora Paula Costa e Silva, é um estudo
desenvolvido com profundidade sobre o princípio da colaboração no
direito processual civil português.
Apesar de o título da obra fazer expressa referência ao direito lusitano,
o trabalho tem íntimo contato com a legislação e doutrina brasileiras.
Além disso, as lições alinhavadas nesse completo trabalho são muito
proveitosas para os estudiosos brasileiros preocupados em aproximar
sistema processual dos valores expressos no texto constitucional. Nas
palavras do professor da Universidade Federal da Bahia, “O modelo de
processo cooperativo é um novo modelo de processo equitativo (processo
justo, processo devido)” (p. 49). E conclui: “o CPC português avançou,
sendo para os brasileiros a principal referência de direito estrangeiro
sobre o assunto” (p. 55).
O trabalho parte das seguintes e importantes premissas:
a) o artigo 266º, 1, do CPC português (“Na condução e intervenção
no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as
próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com
brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”) consagrou um
novo modelo de direito processual civil, para redefinir o “modelo
equitativo”;

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234 Fabiano Carvalho

b) do referido texto normativo, extrai-se um princípio que possui


eficácia direta, independentemente de outras regras;
c) tem natureza de “cláusula geral”, de natureza processual;
d) decorre do princípio da boa-fé processual; e
e) “sua sistematização não pode prescindir de tudo quanto já se
construiu dogmaticamente sobre a cooperação obrigacional”.
Embora em Portugal não exista obra monográfica a respeito do
tema do princípio da cooperação, por intermédio de estudos de obras
sistematizadas ou trabalhos que cuidaram desse tema de forma incidental,
Fredie Didier Jr. conseguiu sumariar o pensamento da melhor doutrina
processual lusitana (Miguel Teixeira de Souza, Paula Costa e Silva, José
Lebre de Freitas, Mariana França Gouveia e Luis Correia de Mendonça).
O ponto central da obra é o capítulo 3, no qual Fredie Didier Jr.
apresenta significativa contribuição para compreender o princípio da
cooperação.
É inegável da obra ao posicionar a cooperação como um princípio.
Princípio é norma que indica um fim a ser atingido. No âmbito processual,
“o processo cooperativo, dialógico, legal” (p. 50).
Na correta visão de Fredie Didier Jr., o princípio da cooperação
é o mais adequado para o Estado Democrático de Direito, pois coloca
o processo no plano participativo, dimensionando o contraditório, para
colocá-lo no plano efetivo de garantia fundamental, com a participação
de todos os sujeitos do processo, inclusive o órgão judicial.
Nesse ponto, o órgão judicial passa a ser sujeito ativo do diálogo
processual, de forma paritária na condução do processo, de tal sorte a
qualificar o exercício da atividade de jurisdição, e, consequentemente,
valoriza e legitima a prestação jurisdicional.
E esse exercício ativo do magistrado no processo pode ser
enquadrado na fórmula “ativismo judicial”. Entre suas várias acepções,
é possível afirmar que o ativismo judicial é decorrência de interpretação
extensiva da norma para se alcançar os valores pressagiados no texto
constitucional.
No entanto, como bem ressalta o autor da obra resenhada, não
existe paridade no momento da decisão, pois decidir é função exclusiva
do órgão jurisdicional. Assim, “pode-se dizer que a decisão judicial é
fruto da atividade processual em cooperação, é resultado das discussões
travadas ao longo de todo o arco do procedimento; a atividade cognitiva

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Resenha 235

é compartilhada, mas a decisão é manifestação do poder, que é exclusivo


do órgão jurisdicional, e não pode ser minimizado” (p. 48-49).
O princípio da cooperação parece ter alcance amplo para englobar,
além dos sujeitos processuais (juiz e partes), aqueles que de alguma forma
participam do processo. Essa questão foi percebida pela obra de Fredie
Didier Jr. (p. 88), com respaldo da jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal (RE nº 464.963).
A jurisprudência portuguesa aplica o princípio da cooperação
para além dos sujeitos processuais, para alcançar terceiros que não são
sujeitos processuais. Em recente acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça
considerou que seria “legítima a pretensão da autora de requerer, para
prova de factos quesitados nos autos, a notificação de um terceiro, para
juntar aos autos cópia de um relatório de auditoria (que identifica),
sujeitando o referido terceiro ao dever de cooperação para a descoberta da verdade,
independentemente de o ónus da prova de tais factos caber, não a si, mas
à parte contrária, uma vez que tendo tais factos sido incluídos na base
instrutória é de admitir que tenham interesse para a decisão da causa
segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito” (Revista nº
2.053/05.6TBAMT-F.P1.S1).
No caso do Brasil, as normas que autorizam a participação de
terceiro para colaborar com o Poder Judiciário (amicus curiae) manifestam
o princípio da cooperação. De outro lado, de certa forma, pode-se dizer
que a norma do art. 14, V, do CPC reflete o princípio da cooperação, uma
vez que exige-se determinados comportamentos (São deveres das partes e de
todos aqueles que de qualquer forma participam do processo cumprir com exatidão
os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos
judiciais, de natureza antecipatória ou final).
A obra do professor da Universidade Federal da Bahia relata que
prevalece na doutrina portuguesa o entendimento segundo o qual a eficácia
do princípio da cooperação dependeria de concretização legislativa. Isso
significa que esse princípio atuaria somente mediante regras que definam
expressamente as posições jurídicas dos sujeitos processuais (p. 50-51).
Esse posicionamento doutrinário parece que é seguido por parte da
jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que decidiu: “Sempre que
o exequente justificadamente alegue sérias dificuldades na identificação
ou localização de bens penhoráveis pertencentes ao executado, o
juiz, de acordo com o disposto no nº 2 do art. 837º-A do CPC, deve

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determinar que o executado preste tais informações, sob cominação de


ser considerado litigante de má fé”. Na espécie, o Tribunal aplicou o
princípio da cooperação por existir regra definidora da posição processual
do executado.
Esse pensamento não é aderido por Fredie Didier Jr., para quem
“a eficácia do princípio da cooperação não depende de intermediação de
outras regras jurídicas, espalhadas topicamente na legislação”, porquanto
“ao integrar o sistema jurídico, o princípio da cooperação garante o meio
(imputação de uma situação jurídica passiva) necessário à obtenção do fim
almejado (o processo cooperativo)” (p. 52).
De fato, a norma do art. 266º, 1, do CPC português não pode ser
compreendido como “promessa” de processo que será informado pelo
princípio da cooperação.
Há manifestações na jurisprudência portuguesa que aparentemente
adotam a tese da obra de Fredie Didier Jr. no sentido de ser desnecessária
regra integrativa para ser aplicado o princípio da cooperação, a exemplo
do que decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra segundo o qual, na
colisão entre o princípio da cooperação e o princípio do dever de sigilo,
prevalece aquele em detrimento deste (cf. Acórdão nº 120-C/2000.C1).1
Fredie Didier Jr. conclui que a norma do art. 266º, 1, do CPC
português é exemplo de cláusula geral, de natureza processual, que
“reforça o poder criativo da atividade jurisdicional” (p. 59-72). Para nós,
a frase transcrita anteriormente está interligada com o ativismo judicial,
ganhando destaque no seguinte trecho: “para que se perceba que as
consequências normativas para o desrespeito ao princípio da cooperação
não precisam ser típicas: pode-se construir o efeito jurídico mais adequado
ao caso concreto. A infração ao princípio da cooperação pode gerar
invalidade do ato processual, preclusão de um poder processual (talvez até
mesmo uma supressio), dever de indenizar (se a infração vier acompanhada
de um dano), direito a tutela inibitória, sanção disciplinar etc.” (p. 71).
A obra resenhada procura enquadrar o princípio da cooperação —
define o modelo equitativo — no texto da Constituição portuguesa, mais
especificamente no nº 4 do art. 20: “Todos têm direito a que uma causa

1
“Verificando-se um conflito entre dever de sigilo que impende sobre as instituições de crédito e financeiras e
o de cooperação para a realização da justiça, que visa satisfazer interesses bem mais relevantes, mesmo no
âmbito do processo civil, deverá o mesmo ser dirimido no sentido da quebra ou levantamento de tal segredo”.

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Resenha 237

em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante


processo equitativo” (p. 73-79).
Nessas circunstâncias, o princípio da cooperação mostra-se como
uma etapa para a concretização do devido processo legal (p. 79).
O trabalho que acaba de ser resenhado é inegavelmente importante,
comprometido, moderno, e, sobretudo, transformador. Mas essa efetiva
transformação somente ocorrerá se a cultura do formalismo tacanha, e
que impregna a inteligência de muitos que participam do processo, for
definitivamente escamoteada, para abrir espaço aos valores introduzidos
pela teoria da “constitucionalização” do direito. Fredie Didier Jr. deu sua
contribuição.

Fabiano Carvalho
Doutor e mestre pela PUC-SP. Professor da Pós-Graduação da PUC-SP. Professor adjunto da
Graduação e Pós-Graduação da Fundação Armando Álvares Penteado. Professor do Mestrado da
Escola Paulista de Direito. Advogado e consultor jurídico.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil por-
tuguês. Coimbra: Coimbra Ed., 2010. Resenha de: CARVALHO, Fabiano. Revista Brasileira
de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 75, p. 233-237, jul./set. 2011.

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BUENO, Cássio Scarpinella. ‘Amicus curiae’ no processo civil brasileiro: um
terceiro enigmático. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.1

Faltava na literatura processual pátria uma obra que se ocupasse


especificamente do tema do amicus curiae. Apresentada para a obtenção do
Título de Livre-Docência em Direito Processual Civil da PUC de São Paulo
em 2005, o autor — doutor e docente pela mesma instituição — supriu
esta lacuna em obra de fôlego, que conta com pouco mais de 700 páginas.
A obra ora resenhada alcança a sua segunda edição. Estruturalmente,
divide-se em 8 capítulos, que são examinados a seguir.
Nos dois primeiros capítulos, o autor apresenta o estado da arte da
hermenêutica no Direito Processual Civil. Constata, em primeiro lugar,
a abertura do sistema jurídico e que a postura do juiz frente ao fenômeno
jurídico alterou-se completamente. A atividade deste não se resume ao
uso da técnica da subsunção a partir do conhecimento passivo dos fatos
jurídicos, mas exige que o ato de julgar seja conscientemente criador
e valorativo. Para o autor, o grande desafio para o exercício legítimo
da jurisdição é saber como capturar os valores, ideais e angústias que
estão dispersos na sociedade (p. 13). Consciente da crise do positivismo
legalista, a obra ressalta a importância da interpretação e a concretização
de normas jurídicas, especialmente as que contêm conceitos vagos e
indeterminados. Assim, palavras equívocas podem permitir uma maior
abertura do direito para a realidade social (p. 19-24). O julgador não deve
agir discricionariamente, mas precisa saber compreender os fatos que
autorizam a aplicação da consequência jurídica prevista. Nesta linha de
raciocínio, o amicus curiae — portador de diversas vozes caracterizadoras
da sociedade brasileira — pode auxiliar o juízo ao trazer informações
inacessíveis ao magistrado e, ao mesmo tempo, legitimar a produção da
decisão jurisdicional (p. 35-36).
O autor apresenta, no segundo capítulo, uma segunda outra cons-
tatação: a constitucionalização do processo civil. Isto quer dizer ser impossível
pensar o sistema processual civil sem que se tenha como ponto de partida a
Constituição. Após considerar o modelo constitucional de processo, lem-
bra — apoiado no princípio do contraditório — que a participação das par-
tes para influir na decisão judicial não está na esfera de disponibilidade
1
Colaboraram na revisão do texto Mário Henrique de Araújo Ciraudo (Monitor de Direito Processual
Constitucional) e Samuel Gerchenzon (Monitor de Direito Processual Civil), ambos da Faculdade de Direito
da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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das partes (p. 54). Entretanto, o autor está atento para o fato de que as
partes, por serem sujeitos parciais na relação processual, não têm tal como
o juiz imparcial, iguais interesses refletidos no contraditório. Isto não eli-
de a existência de um interesse comum capaz de provocar a cooperação e
diálogo dos sujeitos do processo: resolver a questão pendente (p. 55-56).
Neste sentido, após repudiar a distinção entre “verdade formal” e “ver-
dade material”, considera que o amicus curiae pode cooperar com o juízo
na busca de elementos de convicção do magistrado (p. 59-60). Embora a
intervenção do amicus curiae acarrete inevitavelmente um prolongamento
da marcha processual, o autor sustenta haver plena compatibilidade com
a garantia da efetividade do processo, se essa garantia significar “bem
decidir, mesmo que de forma menos rápida” (p. 73). Em outro giro, o
autor chama a atenção para a necessidade de se pensar a processualidade
também no âmbito do Legislativo e do Executivo, a partir de uma teoria
geral do processo estatal (p. 74-75). Exemplificativamente, o autor sustenta
a existência do amicus curiae no processo administrativo (Lei nº 9.784/99,
arts. 31-33). Ao encerrar o capítulo, o autor conclui que o amicus curiae é
uma imposição ou consequência necessária do princípio do contraditório.
É no terceiro capítulo que o autor estuda o amicus curiae à luz do
direito comparado. O autor traz a controvérsia sobre a origem do instituto.
Teria o amicus curiae origem no direito inglês medieval ou derivado da
figura do consilliarius do direito romano? Ao examinar diversos países da
common law, o autor observa que a transposição do amicus curiae do direito
inglês para o norte-americano determina a perda de uma das suas mais
importantes qualidades: a neutralidade. Neste sentido, o amicus assume
a posição de ente interessado na causa (p. 99-100). Daí haver a distinção
entre amicus curiae privado ou litigante — que defende os próprios
interesses — e amicus curiae governamental. Este sim agiria em nome
da coletividade. O autor ainda faz referência ao direito francês, italiano,
argentino, examinando, ainda a regulação do instituto no Transnational
Civil Procedure Code e no âmbito dos Tribunais Supranacionais.
O quarto capítulo é iniciado com uma definição de amicus curiae:
“sempre foi e continua sendo um terceiro que intervém no processo por
convocação judicial ou livre iniciativa para fornecer ao juízo elementos
reputados como importantes, úteis, quiçá indispensáveis, para o julga­
mento da causa” (p. 125). Ao examinar o instituto no direito brasileiro, o
autor revela que a expressão aparece em apenas um único ato normativo

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Resenha 241

(art. 23, §1º, da Resolução nº 390, de 17 de setembro de 2004, do


Conselho da Justiça Federal). Isto não impede, entretanto, que a figura
seja identificada em outros diplomas legais, como é o caso da Lei nº 9.868
de 1999, que se refere em seu art. 7º, §2º, à manifestação de “outros
órgãos e entidades”. O autor comenta, a propósito, os requisitos de
intervenção do amicus curiae em sede de controle de constitucionalidade.
Em primeiro lugar, exige-se a relevância da matéria, critério objetivo, de
que há necessidade de que outros elementos de convicção sejam trazidos
aos autos (p. 140). O segundo requisito refere-se à representatividade do
postulante. Para o autor, o legitimado para a propositura das ações
diretas de inconstitucionalidade pode intervir em processo de controle
de constitucionalidade não como assistente litisconsorcial (porque
não postula direito próprio), mas como amicus curiae, não se podendo
esquecer que certas entidades precisam apresentar pertinência temática
(p. 144-145). O autor prefere substituir a noção de interesse jurídico —
próprio do instituto da assistência no processo civil — pela expressão
interesse institucional. Assim, precisa-se verificar se o que está sendo
discutido em juízo guarda alguma relação com a finalidade institucional
da pessoa de direito público ou privado (p. 146-147). Perfilhando o
entendimento da doutrina majoritária, o autor entende que a intervenção
do amicus curiae é equiparável a um ato de instrução (p. 159). Defende que
o prazo para a intervenção não se confunde com o prazo de trinta dias para
que os réus prestem informações (art. 6º, Lei nº 9.868/99) e que o termo
final é fixado pela inserção do processo em pauta para julgamento (p.
161). Já o prazo para manifestação do amicus curiae só tem sentido, se fixado
um dies a quo — que deve ser identificado com a sua admissão expressa
nos autos (p. 166). O juízo pode limitar a quantidade de intervenções
para evitar o chamado “amicus curiae multitudinário” por aplicação
analógica do parágrafo único do art. 46 do Código de Processo Civil (p.
169). Sustenta o autor que apenas a decisão que indefere a intervenção do
amicus afigura-se recorrível por meio de agravo interno. Acrescenta que o
amicus tem legitimidade para recorrer das decisões liminares e finais em
sede de controle de constitucionalidade. (p. 171-173). As considerações
sobre a participação do amicus em sede de ADI valem tanto para a ADC
(p. 176-180) como para a ADPF (p. 180-191), apesar do silêncio legal.
Ainda em sede de jurisdição constitucional, o autor denuncia a convocação
de “audiências públicas” como forma de controlar os sujeitos processuais
que acessam o Supremo Tribunal Federal, inibindo a voluntariedade da
intervenção (p. 186-187).

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242 Fernando Gama de Miranda Netto

O quarto capítulo ainda apresenta a figura do amicus nos incidentes:


a) de inconstitucionalidade (§§1º, 2º e 3º, do art. 482, CPC); b) de
uniformização de jurisprudência perante os Juizados Especiais (§7º, do
art. 14, da Lei nº 10.259/2001). Neste último diploma, o autor comenta
a polêmica manifestação do STJ, prevista no §4º do art. 14, que tem a
sua constitucionalidade questionada (p. 203-207). O autor oferece, ainda,
valiosas observações sobre a intervenção a título de amicus curiae: a) das
pessoas jurídicas de direito público (art. 5º, da Lei nº 9.469/97); b) da
Comissão de Valores Mobiliários – CVM (art. 31, da Lei nº 6.385/76); c) do
Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI (arts. 57, 118 e 175,
da Lei nº 9.279/96); d) do Conselho Administrativo de Defesa Econômica
– CADE (art. 89, da Lei nº 8.884/94); e) da Ordem dos Advogados do
Brasil (art. 49, da Lei nº 8.906/94).
Examinar o amicus curiae à luz de outros institutos similares constitui
a proposta do quinto capítulo. O autor aproxima, inicialmente, a figura do
perito com a da testemunha, porque possuem informações não jurídicas
relevantes para o julgamento da causa. Embora seja exigido de ambas
um relato dos fatos, a cobrança de informações do perito sofre maior
rigor, porque a informação precisa ser acompanhada necessariamente de
critérios científicos (p. 370-374). Assim como o perito e a testemunha,
o amicus curiae é portador de informações que não estão ao alcance do
magistrado (p. 405). Isto, no entanto, não faz do amicus curiae perito
ou testemunha. O autor, aliás, critica aqueles que apontam diferenças
marginais para diferenciar o agir do amicus curiae da função que exerce
o Ministério Público na qualidade de custos legis, como a intervenção
obrigatória e a indisponibilidade do direito (p. 407). Nesta ordem de
raciocínio, o autor busca aproximar os regimes jurídicos de alguns sujeitos
processuais sem, todavia, igualá-los, preparando o leitor para buscar os
elementos essenciais caracterizadores do amicus curiae no sexto capítulo.
Entre os sujeitos processuais, acomoda o autor o instituto do
amicus curiae entre os terceiros, e não entre as partes. O autor separa dois
modelos de intervenção do amicus curiae como: a) fiscal da lei; b) sujeito
qualificado de prova (p. 435-437). Insiste que, em ambos os casos, o
móvel da intervenção desse terceiro se funda em um interesse institucional.
Para o primeiro caso, traz como exemplo o INPI, esclarecendo que é
de seu interesse zelar pela aplicação correta e adequada do direito da
propriedade industrial (p. 432). No segundo caso, sustenta que o amicus

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Resenha 243

curiae prestará informações meta ou extrajurídicas para a formação de


convencimento do magistrado (p. 436). No que concerne ao instituto
da assistência, simples ou litisconsorcial, aduz que o assistente atua de
modo egoísta, em prol do assistido, mas buscando beneficiar interesse
próprio, enquanto o amicus curiae age de forma altruísta, sem destinatário
individualizado, porque defende interesse institucional (p. 442-443). De tal
arte, a intervenção no processo do amicus curiae ocorre em conformidade
com determinada finalidade institucional para que o direito objetivo seja
corretamente aplicado e o eventual benefício do autor ou do réu será
consequência de sua atuação, e nunca a causa (p. 444). Prefere o autor
evitar — o que classifica de “deformação indesejada” — a figura norte-
americana do litigant amicus curiae (terceiro interveniente que pretende
exercer os mesmo poderes das partes com o objetivo de obter um resultado
que lhe seja favorável) para que não haja confusão com o instituto da
assistência litisconsorcial (p. 445).
No sétimo capítulo, o autor propõe classificar o amicus curiae quanto
à: a) natureza jurídica (público ou privado); b) intervenção (provocada
e espontânea); c) tipicidade da intervenção (vinculada, procedimental e
atípica). Importa registrar que o autor admite a intervenção não só de
pessoa jurídica, mas também de indivíduo como amicus curiae (p. 520). No
que tange à tipicidade, talvez fosse melhor rotular a intervenção vinculada
de “intervenção típica com sujeito determinado” (ex.: lei estabelece a
intervenção da OAB, INPI, CADE e CVM) e a intervenção procedimental
de “intervenção típica sem sujeito determinado” (ex.: procedimento das
ações do controle abstrato de constitucionalidade). Diga-se, aliás, que o
autor defende a tese de que os entes legitimados à propositura das ações
diretas de inconstitucionalidade (art. 103) podem intervir na qualidade de
amicus curiae, e não como assistentes litisconsorciais (p. 524-525). No que
diz respeito ao regime jurídico do amicus curiae, o autor lembra que a lei
não estabelece qualquer tipo de prazo para a sua intervenção e recomenda
a aplicação subsidiária da disciplina da assistência simples e litisconsorcial
do CPC (p. 534-535). Insiste o autor que a intervenção do amicus curiae
pressupõe a imparcialidade, podendo ser aplicado o regramento da sus­
peição e impedimento, nos termos dos arts. 134 e 135 do CPC (p. 537-
541). O momento da intervenção deve ocorrer após a manifestação das
partes, por aplicação analógica do art. 31, §1º, da Lei nº 6.358/76, que
prevê a intimação da CVM (p. 545). Para o autor a presença de advogado

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244 Fernando Gama de Miranda Netto

só é dispensável nas hipóteses de intervenção provocada, porque não há


atos postulatórios (p. 554). Na dinâmica processual, o amicus curiae aparece
como sujeito processual auxiliar do juízo, mas a ele devem ser assegurados
certos poderes de atuação (apresentar memoriais e informações de fato e
de direito, interpor recursos e oferecer sustentação oral). Não pode, no
entanto, oferecer exceção de incompetência. A coisa julgada não lhe atinge,
porque não deduz direito seu em juízo. Como não é parte, nenhum ônus
financeiro lhe pode ser atribuído. Para o autor, quando a intervenção for
provocada, o sucumbente deverá se responsabilizar por eventuais gastos
do amicus curiae, inclusive pelos honorários advocatícios (p. 602).
No último capítulo, sobre “o presente e futuro do amicus curiae no
processo civil brasileiro”, o autor assevera que o Ministério Público “talvez
seja o nosso maior e mais tradicional exemplo de amicus curiae” (p. 624).
Como se pode perceber, o livro de Cássio Scarpinella Bueno é um
verdadeiro tratado sobre o tema do amicus curiae. Entre os vários aspec-
tos abordados, dois merecem especial atenção. O primeiro diz respeito a
certas hipóteses de intervenção atípica (procedimento monitório, processo
cautelar e Juizados Especiais). Neste ponto, não estamos convencidos,
pelas próprias limitações procedimentais relativas ao regime probatório,
da necessidade de se estabelecer a figura do amicus curiae. Mesmo a atua­
ção como custos legis não parece estar justificada por conta da brevidade
procedimental.
O segundo se refere ao requisito da imparcialidade para a diferencia-
ção do amicus curiae de outros institutos. Essa imparcialidade acaba por
esta­belecer, no entanto, um limitador desnecessário do contraditório e
quiçá da qualidade da informação, pois isso significa excluir diversos
sujeitos processuais que representam adequadamente grupos sociais.
Assim, por exemplo, não haveria, no âmbito da jurisdição constitucional,
representantes religiosos para os temas relativos às pesquisas com células-
tronco ou aborto, simplesmente porque já sabemos de que lado suas opi-
niões estarão. Nesta linha de raciocínio, associações de defesa do consu-
midor não poderiam participar de processos que envolvessem relações
de consumo. Também teríamos de excluir o Instituto Nacional de Câncer
(INCA) e a Aliança de Controle do Tabagismo para causas referentes ao
fumo. Caso este requisito seja realmente positivado,2 aqueles atores com

2
O requisito da imparcialidade não aparece no anteprojeto do Código de Processo Civil apresentado pela
Comissão de Juristas instituída pelo ato do Presidente do Senado Federal nº 379, de 2009: “art. 320.

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Resenha 245

reconhecido grau de representatividade ficariam de fora do jogo demo-


crático e isto seria um retrocesso. Em doutrina, há até quem diga, com ra-
zão, que a o amicus curiae não precisa demonstrar interesse jurídico, posto
que sua intervenção é de natureza política e seu interesse é ideológico.3
A vingar o requisito da imparcialidade, chegaríamos a uma situação
esdrúxula. Mesmo sendo a OAB dotada de legitimidade para a ação direta
de inconstitucionalidade, ela não poderia intervir na qualidade de amicus
curiae em processo que se questiona a constitucionalidade da dispensa do
advogado em determinado procedimento, caso outro legitimado houvesse
proposto a ação. Isto, por certo, iria contrariar a própria posição do autor
do livro, que admite que os legitimados para a propositura da ADI e ADC
também tenham legitimidade para intervir como amicus curiae.
Diga-se, aliás, ser, na perspectiva do autor, o altruísmo, o desejo de
“ajudar ao próximo”, que motiva a intervenção do amicus curiae (p. 219).
E aqui estamos plenamente de acordo. E embora isto possa caracterizar
uma visão um tanto romântica do instituto (porque pretender ajudar ao
próximo não significa querer ajudar necessariamente quem tem razão),
fato é que esses entes, por defenderem interesses parciais (e por que
não institucionais?), podem deter informações mais qualificadas, o que
justifica a intervenção a título de amicus curiae.4
Independentemente das considerações aqui apresentadas, o livro
fornece argumentos sólidos capazes de provocar a reflexão de todos os
interessados pelo assunto. É definitivamente um clássico que merece leitura.

O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a


repercussão social da lide, poderá, por despacho irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes, solicitar
ou admitir a manifestação de pessoa natural, órgão ou entidade especializada, no prazo de dez dias da sua
intimação”.
3
CABRAL, Antonio do Passo. Pelas Asas de Hermes: a intervenção do amicus curiae, um terceiro especial: uma
análise dos institutos interventivos similares: o amicus e o Vertreter des öffentlichen Interesses. Revista de
Processo, São Paulo, v. 29, n. 117, set./out. 2004. Nesta linha, CARDOSO, Oscar Valente. O amicus curiae nos
juizados especiais federais. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 60, p. 107, mar. 2008, concebe
o amicus curiae como um “amicus partis”; MEDINA, Damares. No Brasil, Amicus curiae só é amigo da parte.
Consultor Jurídico, 7 set. 2010. Entrevista concedida a Rodrigo Haidar. Disponível em: <http://www.conjur.
com.br/2010-set-07/entrevista-damares-medina-advogada-constitucionalista>.
4
Neste sentido, NOGUEIRA, Gustavo Santana. Do amicus curiae. Revista de Direito do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro, n. 63, p. 21, abr./jun. 2005, exclui o requisito da imparcialidade ao lembrar
que “na ADI 2937/DF os clubes de futebol que requereram o ingresso na qualidade de amicus, ainda que
intempestivamente, na ação que visa a declaração de inconstitucionalidade da lei conhecida como Estatuto
do Torcedor, o fizeram defendendo a tese da inconstitucionalidade, porque esta lei impõe aos clubes a adoção
de uma série de medidas, que protegem o torcedor, que atingem diretamente os clubes, e como estes não
possuem legitimidade para a ADI, podem requerer seu ingresso como terceiro para defender a tese que lhes
interessa, principalmente por força do efeito vinculante das decisões nessas ações. Trata-se da defesa dos
interesses da instituição”.

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246 Fernando Gama de Miranda Netto

Fernando Gama de Miranda Netto


Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho. Prof. Adjunto de Direito Processual da Uni­
versidade Federal Fluminense.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira


de Normas Técnicas (ABNT):

BUENO, Cássio Scarpinella. ‘Amicus curiae’ no processo civil brasileiro: um terceiro


enigmático. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. Resenha de: MIRANDA NETTO, Fernando
Gama de. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 75,
p. 239-246, jul./set. 2011.

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Índice

Doutrina, Notas e
Comentários e Resenha página página

Autor

BOMFIM, Daniela Santos MATTE, Mauricio


- Artigo: A metodologia na cognição - Artigo: Ne bis in idem: eficácia negativa
judicial.................................................. 51 da decisão independente de coisa
julgada................................................... 169
BUENO, Luzia
- Artigo: A petição inicial e suas dimensões MELCHIOR, Antonio Pedro
ensináveis para estudantes de direito....79 - Artigo: Dos embargos infringentes e a
reforma do Código de Processo Penal
CARVALHO, Fabiano (PL nº 156/09) – A “tirania” da urgência
- Resenha: DIDIER JR., Fredie. Fundamen- e a importância do voto divergente para
tos do princípio da cooperação no direito pro- o processo penal justo........................... 37
cessual civil português. Coimbra: Coimbra
Ed., 2010............................................. 233 MIRANDA NETTO, Fernando Gama de
- Resenha: BUENO, Cássio Scarpinella.
DELFINO, Lúcio ‘Amicus curiae’ no processo civil brasileiro:
- Parecer: Modalidade de liquidação dis­ um terceiro enigmático. 2. ed. São Paulo:
forme à anunciada no acórdão e oferta Saraiva, 2008....................................... 239
de impugnação ao cumprimento de
sentença antes da penhora................. 209 PORTO, Sérgio Gilberto
- Artigo: Ne bis in idem: eficácia negativa
da decisão independente de coisa
DIDIER JR., Fredie
julgada................................................ 169
- Parecer: Confissão. Impossibilidade de
invalidação por incapacidade do confi-
RAATZ, Igor
tente. Eficácia probatória do depoimento
- Artigo: A organização do processo civil
pessoal prestado por incapaz. Vedação ao pela ótica da teoria do Estado: a cons-
venire contra factum proprium no sistema trução de um modelo de organização
de invalidades processuais.................. 197 do processo para o Estado Democrático
de Direito e o seu reflexo no projeto do
DONOSO, Denis CPC....................................................... 97
- Resenha: VANNUCCI, Rodolpho. Exe-
cução de alimentos do Direito de Família. RODRIGUES, Marcelo Abelha
Sapucaia do Sul: Notadez/Datadez, - Artigo: Atos judiciais passíveis de mandado
2011.................................................... 231 de segurança e devido processo legal:
estudo segundo a jurisprudência dos
FAVRE, Fernanda tribunais superiores............................ 133
- Artigo: A petição inicial e suas dimensões
ensináveis para estudantes de direito....79 ROMEU, Talita
- Parecer: Confissão. Impossibilidade de
JUZINSKAS, Leonardo Gonçalves invalidação por incapacidade do confi-
- Artigo: Atos judiciais passíveis de mandado tente. Eficácia probatória do depoimento
de segurança e devido processo legal: pessoal prestado por incapaz. Vedação ao
estudo segundo a jurisprudência dos venire contra factum proprium no sistema
tribunais superiores............................ 133 de invalidades processuais.................. 197

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248 Índice

página página

SANTOS, Marcos André Couto EMBARGOS infringentes e a reforma do


- Artigo: O Processo Administrativo e Código de Processo Penal (PL nº 156/09)
sua relevância perante o Processo – A “tirania” da urgência e a importância
Judicial................................................ 153 do voto divergente para o processo penal
justo, Dos
SOUSA, Alice Ribeiro de - Artigo de: Antonio Pedro Melchior........ 37
- Artigo: O devido processo legal em
Platão.................................................... 11 METODOLOGIA na cognição judicial, A
- Artigo de: Daniela Santos Bomfim......... 51
SOUZA FILHO, Luciano Marinho de
Barros e MODALIDADE de liquidação disforme à
- Notas e comentários: O direito associativo anunciada no acórdão e oferta de impug-
no ordenamento jurídico brasileiro.... 225 nação ao cumprimento de sentença antes
da penhora
Título - Parecer de: Lúcio Delfino..................... 209

ATOS judiciais passíveis de mandado de NE BIS IN IDEM: eficácia negativa da


segurança e devido processo legal: estudo decisão independente de coisa julgada
segundo a jurisprudência dos tribunais - Artigo de: Sérgio Gilberto Porto, Mauricio
superiores Matte................................................... 169
- Artigo de: Leonardo Gonçalves Juzinskas,
Marcelo Abelha Rodrigues................. 133 ORGANIZAÇÃO do processo civil pela
ótica da teoria do Estado: a construção de
BUENO, Cássio Scarpinella. ‘Amicus curiae’ um modelo de organização do processo
no processo civil brasileiro: um terceiro enig- para o Estado Democrático de Direito e o
mático. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. seu reflexo no projeto do CPC, A
- Resenha de: Fernando Gama de Miranda - Artigo de: Igor Raatz.............................. 97
Netto................................................... 239
PETIÇÃO inicial e suas dimensões ensiná-
CONFISSÃO. Impossibilidade de inva- veis para estudantes de direito, A
lidação por incapacidade do confitente. - Artigo de: Fernanda Favre, Luzia
Eficácia probatória do depoimento pessoal Bueno.................................................... 79
prestado por incapaz. Vedação ao venire
contra factum proprium no sistema de invali- PROCESSO Administrativo e sua
dades processuais relevância perante o Processo Judicial, O
- Parecer de: Fredie Didier Jr., Talita - Artigo de: Marcos André Couto
Romeu................................................. 197 Santos.................................................. 153

DEVIDO processo legal em Platão, O VANNUCCI, Rodolpho. Execução de


- Artigo de: Alice Ribeiro de Sousa........... 11 alimentos do Direito de Família. Sapucaia do
Sul: Notadez/Datadez, 2011.
DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do prin- - Resenha de: Denis Donoso................... 231
cípio da cooperação no direito processual civil
português. Coimbra: Coimbra Ed., 2010. Assunto
- Resenha de: Fabiano Carvalho.............. 233
A
DIREITO associativo no ordenamento ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
jurídico brasileiro, O - Ver: O processo Administrativo e sua rele-
- Notas e comentários de: Luciano Marinho vância perante o Processo Judicial. Artigo
de Barros e Souza Filho...................... 225 de: Marcos André Couto Santos.......... 153

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Índice 249

página página

ATO JUDICIAL CUMPRIMENTO DE SENTENÇA


- Ver: Atos judiciais passíveis de mandado - Ver: Modalidade de liquidação disforme à
de segurança e devido processo legal: anunciada no acórdão e oferta de impug-
estudo segundo a jurisprudência dos nação ao cumprimento de sentença
tribunais superiores. Artigo de: Leonardo antes da penhora. Parecer de: Lúcio
Gonçalves Juzinskas, Marcelo Abelha Delfino................................................ 209
Rodrigues............................................ 133
D
AUSÊNCIA DE PROVA DO VÍCIO DANO IMEDIATO E DE DIFÍCIL REPA-
- Ver: Confissão. Impossibilidade de inva- RAÇÃO
lidação por incapacidade do confitente. - Ver: Atos judiciais passíveis de mandado
Eficácia probatória do depoimento de segurança e devido processo legal:
estudo segundo a jurisprudência dos
pessoal prestado por incapaz. Vedação ao
tribunais superiores. Artigo de: Leonardo
venire contra factum proprium no sistema
Gonçalves Juzinskas, Marcelo Abelha
de invalidades processuais. Parecer de:
Rodrigues............................................ 133
Fredie Didier Jr., Talita Romeu........... 197
DEVIDO PROCESSO LEGAL
C - Ver: O devido processo legal em Platão.
CÍRCULO HERMENÊUTICO Artigo de: Alice Ribeiro de Sousa........... 11
- Ver: A metodologia na cognição judicial.
Artigo de: Daniela Santos Bomfim......... 51 DIMENSÕES ENSINÁVEIS
- Ver: A petição inicial e suas dimensões
COGNIÇÃO JUDICIAL ensináveis para estudantes de direito.
- Ver: A metodologia na cognição judicial. Artigo de: Fernanda Favre, Luzia
Artigo de: Daniela Santos Bomfim......... 51 Bueno.................................................... 79

COISA JULGADA DIREITO LÍQUIDO E CERTO


- Ver: Ne bis in idem: eficácia negativa da - Ver: Atos judiciais passíveis de mandado
decisão independente de coisa julgada. de segurança e devido processo legal:
Artigo de: Sérgio Gilberto Porto, Mauricio estudo segundo a jurisprudência dos
Matte................................................... 169 tribunais superiores. Artigo de: Leonardo
Gonçalves Juzinskas, Marcelo Abelha
COLABORAÇÃO Rodrigues............................................ 133
- Ver: A organização do processo civil pela
ótica da teoria do Estado: a construção DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMEN-
de um modelo de organização do processo TAIS
para o Estado Democrático de Direito e - Ver: Ne bis in idem: eficácia negativa da
o seu reflexo no projeto do CPC. Artigo decisão independente de coisa julgada.
de: Igor Raatz........................................ 97 Artigo de: Sérgio Gilberto Porto, Mauricio
Matte................................................... 169
CONTRADITÓRIO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
- Ver: A metodologia na cognição judicial.
- Ver: Atos judiciais passíveis de mandado
Artigo de: Daniela Santos Bomfim......... 51
de segurança e devido processo legal:
estudo segundo a jurisprudência dos
CRÍTICA EFETIVA tribunais superiores. Artigo de: Leonardo
- Ver: A metodologia na cognição judicial. Gonçalves Juzinskas, Marcelo Abelha
Artigo de: Daniela Santos Bomfim......... 51 Rodrigues............................................ 133

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250 Índice

página página

E LÓGICA DEDUTIVA
EMBARGOS INFRINGENTES - Ver: A metodologia na cognição judicial.
- Ver: Dos embargos infringentes e a Artigo de: Daniela Santos Bomfim......... 51
reforma do Código de Processo Penal
(PL nº 156/09) – A “tirania” da urgência M
e a importância do voto divergente para MANDADO DE SEGURANÇA
o processo penal justo. Artigo de: Antonio - Ver: Atos judiciais passíveis de mandado
Pedro Melchior..................................... 37 de segurança e devido processo legal:
estudo segundo a jurisprudência dos
ESTRUTURA DO FENÔMENO JURÍ- tribunais superiores. Artigo de: Leonardo
DICO Gonçalves Juzinskas, Marcelo Abelha
- Ver: A metodologia na cognição judicial. Rodrigues............................................ 133
Artigo de: Daniela Santos Bomfim......... 51
MODALIDADE DE LIQUIDAÇÃO
F - Ver: Modalidade de liquidação disforme à
FILOSOFIA anunciada no acórdão e oferta de impug-
- Ver: O devido processo legal em Platão. nação ao cumprimento de sentença antes
Artigo de: Alice Ribeiro de Sousa........... 11 da penhora. Parecer de: Lúcio
Delfino................................................ 209
FUNÇÃO NEGATIVA
- Ver: Ne bis in idem: eficácia negativa da N
decisão independente de coisa julgada. NE BIS IN IDEM
Artigo de: Sérgio Gilberto Porto, Mauricio - Ver: Ne bis in idem: eficácia negativa da
Matte................................................... 169 decisão independente de coisa julgada.
Artigo de: Sérgio Gilberto Porto, Mauricio
G
Matte................................................... 169
GÊNERO TEXTUAL
- Ver: A petição inicial e suas dimensões
NON BIS IN IDEM
ensináveis para estudantes de direito.
- Ver: Ne bis in idem: eficácia negativa da
Artigo de: Fernanda Favre, Luzia Bueno.79
decisão independente de coisa julgada.
Artigo de: Sérgio Gilberto Porto, Mauricio
I
Matte................................................... 169
INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO
- Ver: A petição inicial e suas dimensões
ensináveis para estudantes de direito. O
Artigo de: Fernanda Favre, Luzia ORGANIZAÇÃO DO PROCESSO
Bueno.................................................... 79 - Ver: A organização do processo civil pela
ótica da teoria do Estado: a construção
INVALIDAÇÃO DA CONFISSÃO de um modelo de organização do processo
- Ver: Confissão. Impossibilidade de inva- para o Estado Democrático de Direito e
lidação por incapacidade do confitente. o seu reflexo no projeto do CPC. Artigo
Eficácia probatória do depoimento de: Igor Raatz........................................ 97
pessoal prestado por incapaz. Vedação ao
venire contra factum proprium no sistema P
de invalidades processuais. Parecer de: PESQUISA
Fredie Didier Jr., Talita Romeu........... 197 - Ver: A metodologia na cognição judicial.
Artigo de: Daniela Santos Bomfim......... 51
L
LITIGIOSIDADE PETIÇÃO INICIAL
- Ver: O processo Administrativo e sua rele- - Ver: A petição inicial e suas dimensões en-
vância perante o Processo Judicial. Artigo sináveis para estudantes de direito. Artigo
de: Marcos André Couto Santos.......... 153 de: Fernanda Favre, Luzia Bueno...........79

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Índice 251

página página

PRINCÍPIOS RES JUDICATA


- Ver: O devido processo legal em Platão. - Ver: Ne bis in idem: eficácia negativa da
Artigo de: Alice Ribeiro de Sousa........... 11 decisão independente de coisa julgada.
Artigo de: Sérgio Gilberto Porto, Mauricio
PROCESSO ADMINISTRATIVO Matte................................................... 169
- Ver: O processo Administrativo e sua rele-
vância perante o Processo Judicial. Artigo S
de: Marcos André Couto Santos.......... 153 SENTENÇA ABSOLUTÓRIA DA ORI-
GEM
PROCESSO CIVIL - Ver: Dos embargos infringentes e a re-
- Ver: A organização do processo civil pela forma do Código de Processo Penal (PL
ótica da teoria do Estado: a construção nº 156/09) – A “tirania” da urgência e a
de um modelo de organização do processo importância do voto divergente para o
para o Estado Democrático de Direito e processo penal justo. Artigo de: Antonio
o seu reflexo no projeto do CPC. Artigo Pedro Melchior..................................... 37
de: Igor Raatz........................................ 97
SISTEMA DE INVALIDADES PROCES-
PROCESSO JUDICIAL SUAIS
- Ver: O processo Administrativo e sua rele- - Ver: Confissão. Impossibilidade de inva-
vância perante o Processo Judicial. Artigo lidação por incapacidade do confitente.
de: Marcos André Couto Santos.......... 153 Eficácia probatória do depoimento
pessoal prestado por incapaz. Vedação ao
PROCESSUALIDADE venire contra factum proprium no siste-
- Ver: O processo Administrativo e sua rele- ma de invalidades processuais. Parecer
vância perante o Processo Judicial. Artigo de: Fredie Didier Jr., Talita Romeu.... 197
de: Marcos André Couto Santos.......... 153
T
R TEORIA DO ESTADO
RECURSO - Ver: A organização do processo civil pela
- Ver: Atos judiciais passíveis de mandado ótica da teoria do Estado: a construção
de segurança e devido processo legal: de um modelo de organização do proces-
estudo segundo a jurisprudência dos so para o Estado Democrático de Direito
tribunais superiores. Artigo de: Leonardo e o seu reflexo no projeto do CPC. Artigo
Gonçalves Juzinskas, Marcelo Abelha de: Igor Raatz........................................ 97
Rodrigues............................................ 133
V
REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO VOCAÇÃO DEMOCRÁTICA
PENAL - Ver: Dos embargos infringentes e a re-
- Ver: Dos embargos infringentes e a re- forma do Código de Processo Penal (PL
forma do Código de Processo Penal (PL nº 156/09) – A “tirania” da urgência e a
nº 156/09) – A “tirania” da urgência e a importância do voto divergente para o
importância do voto divergente para o processo penal justo. Artigo de: Antonio
processo penal justo. Artigo de: Antonio Pedro Melchior..................................... 37
Pedro Melchior..................................... 37

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 75, p. 247-251, jul./set. 2011

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Instruções de publicação para os autores

Os trabalhos para publicação na Revista Brasileira de Direito


Processual – RBDPro, ISSN 0100-2589, editada pela Editora Fórum e com
periodicidade trimestral, deverão ser encaminhados, no formato eletrô-
nico, para o seguinte e-mail: <editorial@rbdpro.com.br>.
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New Roman, tamanho 12, espaçamento entre linhas de 1,5. Os parágrafos
devem ser justificados. O tamanho do papel deve ser A4 e as margens
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ainda, estar acompanhados dos seguintes dados: nome do autor, sua
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adequada a uma publicação editorial científica. A escrita deve obedecer
às novas regras ortográficas em vigor desde a promulgação do ACORDO
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de 2009. As citações de textos anteriores ao ACORDO devem respeitar a
ortografia original.
Os originais dos artigos devem ser apresentados de forma completa,
contendo: título do artigo (na língua do texto e em inglês), nome do autor,
filiação institucional, qualificação (mestrado, doutorado, cargos etc.),
resumo do artigo, de até 250 palavras (na língua do texto e em inglês –
Abstract), palavras-chave, no máximo 5 (na língua do texto e em inglês –
Key words), sumário do artigo, epígrafe (se houver), texto do artigo,
referências. O Autor deverá fazer constar, no final do artigo, a data e o
local em que foi escrito o trabalho de sua autoria.

R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 75, p. 249-250, jul./set. 2011

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254 Instruções de publicação para os autores

Recomenda-se que todo destaque que se queira dar ao texto seja


feito com o uso de itálico e não por meio do negrito e do sublinhado.
As citações (palavras, expressões, períodos) deverão ser cuidadosamente
conferidas pelos autores e/ou tradutores; as citações textuais longas (mais
de três linhas) devem constituir um parágrafo independente, com recuo
esquerdo de 2cm (alinhamento justificado), utilizando-se espaçamento
entre linhas simples e tamanho da fonte 10; as citações textuais
curtas (de até três linhas) devem ser inseridas no texto, entre aspas e
sem itálico. As expressões em língua estrangeira deverão ser padronizadas
e destacadas em itálico. O uso do op. cit., ibidem e do idem nas notas
bibliográficas deve ser evitado, substituindo-o pelo nome da obra por
extenso.
Os trabalhos serão selecionados pelos Diretores e pelo Conselho
Editorial da Revista, que entrarão em contato com os respectivos autores
para confir­mar o recebimento dos textos. Os originais recebidos e não
publicados não serão devolvidos. Não serão devidos direitos autorais
ou qualquer outra remune­ração pela publicação dos trabalhos. O autor
receberá gratuitamente dois exemplares da revista sempre que o seu texto
for publicado.
As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva
responsabilidade.
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no tamanho natural que será utilizado, em alta resolução (300 dpi), em
arquivos de extensão .jpg, .tif, .eps, ou arquivos do Photoshop (.psd),
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Eventuais dúvidas poderão ser aclaradas pelo telefone (31) 2121-4913
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R. bras. Dir. Proc. - RBDPro, Belo Horizonte, ano 19, n. 75, p. 249-250, jul./set. 2011

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Esta obra foi composta em fontes New
Baskerville e Humnst 777, corpo 9/12 e
impressa em papel Offset 75g (miolo) e
Supremo 250g (capa) pela Gráfica e Editora
O LUTADOR. Belo Horizonte/MG, agosto
de 2011.

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