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Revista VIII CONGRESSO DE

Científica
Virtual ATUALIZAÇÃO
Edição 42 JURÍDICA DA OAB
Ano 2023
DE BAURU
Organizadora
Taís Nader Marta
DIRETORIA OAB SP (GESTÃO 2022/2024)

Conselho Secional
PRESIDENTE

MARIA PATRICIA VANZOLINI FIGUEIREDO

VICE-PRESIDENTE

LEONARDO SICA

SECRETÁRIA-GERAL

DANIELA MARCHI MAGALHÃES

SECRETÁRIA-GERAL ADJUNTA

DIONE ALMEIDA SANTOS

TESOUREIRO

ALEXANDRE DE SÁ DOMINGUES
MEMBROS EFETIVOS Mizael Conrado de Oliveira Juliana Abrusio Florencio
Mônica Aparecida Gonçalves Julianelli Caldeira Esteves Stelutte
Alessandra Christine Bittencourt Ambrogi Natália de Vincenzo Soares Martins Laurilia Ruiz de Toledo Veiga Hansen
de Moura Nercina Andrade Costa Leandro Affonso Tomazi
Alexandre Luis Mendonça Rollo Nilma de Castro Abe Leisa Boreli Prizon
Ana Cláudia Silva Scalquette Otavio Pinto e Silva Leopoldo Luis Lima Oliveira
Ana Luisa Porto Borges Priscila Akemi Beltrame Luciana Monteiro Cossermelli Tornovsky
Antonio Baptista Gonçalves Rebeca de Macedo Salmazio Lucimara Ferreira de Sousa
Antonio lvo Aidar Ricardo Rui Giuntini Luís Henrique Neris de Souza
Carlos Alberto Maluf Sanseverino Ricardo Vita Porto Luiz Eduardo de Moura
Carlos Cesar Simões Roberta Guitarrari Azzone Colucci Luiza Alexandrina Vasconcelos Oliver
Carlos Eduardo Dantas Costa Rodrigo Lemos Arteiro Marco Antonio Pinto Soares Junior
Carlos Figueiredo Mourão Rosa Ramos Marcus Vinicius Lourenço Gomes
Carmen Dora de Freitas Ferreira Sarah Hakim Maria Adelaide da Silva
Célia Regina Zapparolli Rodrigues de Thaís Proençaa Cremasco Maria do Carmo Roldan Gonçalves
Freitas Vianei Aparecida Titoneli Principato Marilza Nagasawa
Claudia Maria Soncini Bernasconi Yeda Costa Fernandes da Silva Marina Priscila Romuchge
Claudio Cardoso de Oliveira Mauricio Baptistella Bunazar
Coriolano Aurelio de Almeida Camargo MEMBROS SUPLENTES Max Fernando Pavanello
Santos Natália Sukita Barboza dos Santos
Cristiano Joukhadar Ademar Pinheiro Sanches Nathália Carmo Silva Santos
Daniela da Cunha Santos Afonso Pacileo Neto Neilton Correia Neves
Débora de Paula Alcenilda Alves Pessoa Nelci da Silva Rodrigues
Eduardo Ferrari Geraldes Aleksander Mendes Zakimi Nelson Massaki Kobayashi Junior
Eginaldo Marcos Honorio Alexandre Soares Louzada Néria Lucio Buzatto
Fernanda Matias Ramos Alexandrina Rosa Dias Ricardo Ferrari Nogueira
Fernando Peixoto de Araujo Neto Ana Carolina Lourenço Santos das Dores Rosana Rufino
Flavia Filhorini Lepique Ana Laura Teixeira Martelli Roseli da Silva Santos
Flavia Mariana Mendes Ortolani Ana Paula de Almeida Santos Sandra Andrade de Paula Amorim
Flavio Murilo Tartuce Silva Ana Paula Menezes Faustino Sara Lúcia de Freitas Osorio Bononi
Flavio Paschoa Junior André Aparecido Barbosa Silvio Henrique Mariotto Barboza
Francisco Jorge Andreotti Neto Andreia Capucci Simone das Merces Sapienza
Gisela da Silva Freire Arão dos Santos Silva Tania Karina Liberman
Guilherme Hansen Cirilo Awdrey Frederico Kokol Tatiana Giorgini Fusco Cammarosano
Guilherme Magri de Carvalho Bruna Fernanda dos Santos Umberto Thalita Fernanda da Cruz Barreto Costa
Gustavo Granadeiro Guimaraes Carla Cristiane Hallgren Silva Vanessa Rafael de Freitas
Haroldo Francisco Paranhos Cardella Cesar Amendolara Wanderson Martins Rocha
Helcio Honda Charlene Aparecida Francisco da Silva
lrapua Santana do Nascimento da Silva Claudia Duarte e Trinca MEMBROS HONORÁRIOS VITALÍCIOS
lsabela Castro de Castro Daliana Cristina Dias Leite
João Vinícius Manssur Daniel Amorim Assumpção Neves Antonio Claudio Mariz de Oliveira
José Chiachiri Neto Daniel da Silva Castelo Oliveira Caio Augusto Silva dos Santos
Juliana Fernandes de Marco Diego Tavares Carlos Miguel Castex Aidar
Katia Maria Louro Cação Araujo Élida de Souza Silva João Roberto Egydio Piza Fontes
Kelly Greice Moreira Erazê Sutti José Roberto Batochio
Leandro Godines do Amaral Erick Anselmo Barbosa Luiz Flávio Borges D’Urso
Ligia Maura Fernandes Garcia da Costa Eudécio Teixeira Ramos Marcos da Costa
Lívio Enescu Ezequias Alves da Silva
Luciana Barcellos Slosbergas Fabiano Reis de Carvalho
Fabio Paulo Reis de Santana MEMBROS EFETIVOS PAULISTAS NO
Luiz Alberto Bussab
Fábio Rodrigues Goulart CONSELHO FEDERAL
Luiz Fernando Sá Souza Pacheco
Manoel Alcides Nogueira de Sousa Fernando Jorge Neves Figueiredo
Flávia de Oliveira Santos do Nascimento Alberto Zacharias Toron
Manuela Tavares
Flávio Marques Alves Carlos Jose Santos da Silva
Marcela Carinhato Almeida Prado de
Glaudecir José Passador Silvia Virginia Silva de Souza
Castro Valente
Marcelo Luis Roland Zovico Gonçalo Batista Menezes Filho
Marcia Rocha Heloisa Helena Cidrin Gama Alves
MEMBROS SUPLENTES PAULISTAS NO
Marcio Cezar Janjacomo Marcio Jesualdo Eduardo de Almeida Junior
CONSELHO FEDERAL
Gonçalves João Carlos Rizolli
Maria Cecilia Pereira de Mello Jocelino Pereira da Silva
Daniela Campos Liborio
Mariana Arteiro Gargiulo José Fabiano de Queiroz Wagner
Helio Rubens Batista Ribeiro Costa
Marília Constantino Vaccari Polverel José Umberto Franco
Alessandra Benedito
Miriam Saeta Francischini Josué Justino do Rio
DIRETORIA ESA OAB SP (GESTÃO 2022/2024)

Conselho Curador
DIRETOR ESA OAB SP

FLÁVIO MURILO TARTUCE SILVA

VICE-DIRETORA ESA OAB SP

SARAH HAKIM

COORDENADOR CIENTÍFICO

CARLOS EDUARDO NICOLETTI CAMILLO

COORDENADOR PEDAGÓGICO

ANTÔNIO RODRIGUES DE FREITAS JÚNIOR

COORDENADOR GERAL DAS ÁREAS GEOGRÁFICAS

SÉRGIO CARVALHO DE AGUIAR VALLIM FILHO


ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA Advocacia Corporativa Direito do Trabalho
NÚCLEOS TEMÁTICOS Ana Carolina Lourenço Ricardo Pereira de Freitas Guimarães

Direito e Relações Interdisciplinares Dogmática do Direito Penal Direito, Diversidade e Gênero


Aguida Arruda Barbosa João Paulo Orsini Martinelli Tainá Góis

Direito Eleitoral Direito Tributário Direito da Pessoa Com Deficiência


Alexandre Luís Mendonça Rollo Fulvia Helena de Gioia Roberto Bolonhini Júnior

Direito de Seguro e Resseguro Direito Educacional Direito Processual


Angelica Lucia Carlini José Moisés Ribeiro Penal Thamara Duarte Cunha Medeiros

Direito Constitucional Direito Digital Direito Previdenciário


André Ramos Tavares Juliana Abrusio Florêncio Theodoro Vicente Agostinho

Violência Doméstica e Gênero Direito Desportivo Filosofia e Sociologia do Direito


Bruna Soares Angotti Batista de Andrade Leonardo Andreotti Paulo de Oliveira Viviane Vidigal Castro

Direito Imobiliário Direito Administrativo Contencioso Estratégico


Cesar Calo Peghini Lilian Regina Gabriel Moreira Pires William Santos Ferreira

Direito e Regulação Direito de Família COORDENAÇÃO GESTÃO 2022-24


Camila Ferrara Padin Claudia Stein Vieira

Direito Processual Civil Compliance Coordenador Cientifico


Daniel Amorim Assumpção Neves Mariângela Tomé Lopes Carlos Eduardo Nicoletti Camillo

Direitos Humanos Direito Notarial E Registral Coordenador Geral das Áreas


Carmela Dell Isola Ellison Andrade Geográficas
Sérgio Carvalho de Aguiar Vallim Filho
Direito do Consumidor Direito Médico e da Saúde
Fabrício Bolzan Rosana Chiavassa Coordenador Pedagógico
Antonio Rodrigues de Freitas Jr.
Mediação Direito Agrário
Celia Regina Zapparolli Rodrigues de Maurício Baptistella Bunazar CONSELHO CURADOR: Gestão
Freitas 2022/2024
Direito Processual do Trabalho
Direito Concorrencial Olívia de Quintana Figueiredo Pasqualeto PRESIDENTE
Gabriel de Orleans e Bragança Oscar Vilhena Vieira
Ciências Criminais
Arbitragem Mauricio Schaun Jali VICE-PRESIDENTE
Daniela Monteiro Gabbay Maria Garcia
Direito Comercial
Direito Internacional Paula Andrea Forgioni CONSELHEIROS
Gustavo Ferraz de Campos Mônaco
Teoria Geral do Direito Ana Cláudia Torezan Andreucci
Direito Civil Nehemias Domingos de Melo Felipe Chiarello de Souza Pinto
Marcelo Truzzi Otero Giselda Maria Fernandes Novaes
Direito do Terceiro Setor
Hironaka
Direito Ambiental Paula Raccanello Storto
José Fernando Simão
Humberto Adami Santos Júnior
Direito da Infância e da Juventude Ivete Senise Ferreira
Prevenção e Solução Extrajudicial De Oswaldo Peregrina Rodrigues Márcio Vicente Faria Cozatti
Litígios
Fernanda Tartuce Silva Biodireito e Bioética
Renata Rocha
Direito da Diversidade Racial e
Antirracista Advocacia Pública
Irapuã Santana do Nascimento da Silva Ricardo Ferrari Nogueira

Direito Internacional do Trabalho e Direito Coletivo Do Trabalho


Desportivo Ana Cecília de Martino
Flávia de Almeida de Oliveira Zanini
Privacidade e Proteção de Dados
Recuperação Judicial e Falência Ricardo Freitas Silveira
Ivan Lorena Vitale Junior
Responsabilidade Civil
Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade
Nery
Apresentação 10
11 47
01. CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIAS 05. Agricultura de subsistência - uma
E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE alternativa plurima para remição de
DIREITO pena

Bruno Florentino Matos Ingrid Adriana Bezerra de Sá


Letícia Gibelle

60
19 06. OS DIREITOS AUTORAIS DA
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E SEUS
02. Os Direitos Sociais Fundamentais e
a Judicialização das Políticas Públicas REFLEXOS NO DIREITO COMPARADO
no Estado Democrático de Direito
Iriana Maira Munhoz Salzedas
Denise Carvalho Klaus

70
24 07. A O FORNECIMENTO DE DADOS DE
USUÁRIO DE IP PELOS PROVEDORES
03. Escola Clássica e o paradigma da
indiferenciação/discernimento dos DE SERVIÇOS DE CONEXÃO À
menores em conflito com a lei INTERNET E O DEVIDO PROCESSO
LEGAL
Diego Marques da Silva
João Guilherme de Oliveira

35
04. COMO É DETERMINADA A BASE DE CÁLCULO DO IMPOSTO SOBRE
TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS – ITBI NOS CASOS DE INTEGRALIZAÇÃO
DE BENS IMÓVEIS NO CAPITAL SOCIAL DE HOLDINGS E SOCIEDADES
EMPRESÁRIAS À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES?

Felipe Gonsales
Júlia Herrera Firetti
77
08. A EDUCAÇÃO CÍVICA E POLÍTICA COMO FERRAMENTA PARA FOMENTAR A
PARTICIPAÇÃO ATIVA DA SOCIEDADE, NA BUSCA DO ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO IDEAL

Katia Cristina Gonçalves

90
09. ABUSO SEXUAL INFANTIL INTRAFAMILIAR: Um problema intrínseco em
nossa sociedade

Leandro Galvão

98
10. SISTEMA PENITENCIÁRIO NO BRASIL

Mariana Cristina Arnez

105
11. A LEI MARIA DA PENHA E AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Marta Adriana Gonçalves Silva Buchignani


Taís Nader Marta

119
12. A Revisão da Vida Toda: Breve análise sobre a Decadência e a Igualdade de
Direitos

Mayara Mihoko Kodima Cury

125
13. O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO CÍVEL NO ÂMBITO DO PROCESSO
ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

Nilo Kazan de Oliveira


Gabriela da Silveira
132
14. INCONSTITUCIONALIDADE DAS ALÍQUOTAS
PROGRESSIVAS DOS REGIMES PRÓPRIOS
DE PREVIDÊNCIA SOCIAL DAS CARREIRAS
NACIONAIS

Ramon Leandro Freitas Arnoni


Edição 42
146 Ano 2023

15. OS REFLEXOS DA PANDEMIA COVID-19 NO


DIREITO DE FAMILIA
ESCOLA SUPERIOR DE
Thais Fernanda da Silva Teodoro ADVOCACIA
São Paulo, OAB SP - 2023

153 COORDENAÇÃO TÉCNICA


COORDENADOR GERAL
16. A OBRIGATORIEDADE DOS ESTADOS
Adriano de Assis Ferreira
OBSERVAREM AS CONVENÇÕES
INTERNACIONAIS INTERNALIZADAS E AS COORDENADOR ACADÊMICO
NORMAS GERAIS DA UNIÃO PARA GARANTIR A Erik Chiconelli Gomes
INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
COORDENADOR AUDIOVISUAL
Tiago Augusto Pereira De Oliveira Ruy Dutra

PROJETO GRÁFICO

162 Rubia Duarte

Fale Conosco
17. CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIAS E O ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO Largo da Pólvora, 141- Sobreloja
- São Paulo/ SP
Vinicius de Carvalho Carreira Tel. .55 11.3346.6800
Marianne Ramos Feijó
Pubicação Trimestral

171 ISSN - 2175-4462

Direitos - Periódicos.
18. AS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E
Ordem dos Advogados do
FAMILIAR CONTRA A MULHER PREVISTAS NA
LEI 11.340/2006 Brasil

Wallas Richerd Trovelli


Apresentação
É com grande honra que lhe damos as boas-vindas à mais recente edição da Revista Jurídica da Es-
cola Superior de Advocacia, que apresentamos um conjunto abrangente de artigos, cuidadosamente
selecionados, apresentados no VIII Congresso de Atualização Jurídica da OAB de Bauru, nos dias 09 a
11 de agosto de 2023.

A OAB Bauru é Presidida pela Doutora Marcia Regina Negrisoli Fernandez Polettini, em seu segundo
mandato de 2022/2024, tem 100 Comissões temáticas que se envolveram, direta e indiretamente, na
organização desse Congresso. Ele recebeu mais de 1.300 participantes, aproximando advogados e
advogadas de todas as idades e da região Centro este paulista e contou com palestrantes magníficos
que nos brindaram com apresentações memoráveis.

Apresentamos artigos científicos em que os autores compartilham suas análises e oferecem soluções
para os desafios complexos que a sociedade enfrenta hoje, usando a lei como ferramenta fundamen-
tal para a construção de um mundo mais justo e equitativo numa visão aprofundada de várias ques-
tões legais relevantes da atualidade; abordam tópicos que abrangem uma ampla gama de áreas do
direito com uma variedade de temas fundamentais e emergentes do direito e da justiça.

Esperamos que esta edição seja uma fonte de informações para pesquisas e que os auxiliem a com-
preender e enfrentar alguns desafios legais e sociais de nossa sociedade e os inspire na reflexão crí-
tica no mundo jurídico contemporâneo.

Taís Nader Marta

Coordenadora da ESA-Bauru
Coordenadora Científica do VIII Congresso de Atualização Jurídica da OAB de Bauru

10
01
CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIAS E O ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO
Este artigo científico tem a finalidade de explanar sobre a Contribuição de Melhoria e o por seguinte
o Estado Democrático de Direito, estudo que percorre a área do direito tributário brasileiro. Para a
criação desse texto jurídico científico foram realizadas pesquisas em livros, sites, doutrinas e juris-
prudências, a fim de contribuir com informações para aqueles que buscam conteúdo e aprendiza-
gem. Portanto, será mencionado citações de grandes autores no ramo do direito, leis e peculiari-
dades sobre o tema, razão em que expressa imensa honra em participar e buscar pela submissão
do artigo científico e posterior sua publicação na Revista Científica Virtual da Escola Superior da
Advocacia da OAB/SP.
Palavras-chave
Direito Tributário - Estado Democrático de Direito - Contribuição de Melhorias
Bruno Florentino Matos
Advogado, pós-graduado em MBA em Gestão da Produção, Pós-Graduando em Direito Negocial e
Imobiliário pelo EBRADI (Escola Brasileira de Direito), e Pós-graduando em MBA em Agronegócio
pela USP (Universidade de São Paulo), atualmente Presidente da Comissão de Estágio da OAB –
Bauru e membro da Comissão Seccional Exame de Ordem OAB -SP (matos.bruno@adv.oabsp.org.
br)
Letícia Gibelle
Acadêmica do 8º período do curso de Bacharel em Direito pela Faculdade Nove de Julho de Bauru,
pós-graduada em Direito Empresarial e Gestão Tributária pela Faculdade Focus, cursou Técnico em
Serviços Jurídicos na ETEC Ernesto Monte Bauru, Tecnólogo em Gestão Pública pela Universidade
Paulista e bacharel em Administração pela FACEP, secretária da Comissão de Estágios OAB - Bauru
(2023) (leticiagibelle@hotmail.com).

11
DESENVOLVIMENTO DO ARTIGO imóveis adjacentes, uma valorização (ou
melhoria) de suas propriedades. Melho-
1.2. Da tributação e a contribuição de melho- rias (melhora ou melhoramento) expressa
rias. a elevação de algo para um estado ou con-
dição superior. É antônimo de pioria (piora
À princípio, compreende-se que o tributo é uma ou pioramento). O vocábulo “melhoria” não
contribuição monetária cobrada pelo Estado aos se refere (salvo em linguagem metonímica)
contribuintes (pessoas físicas e pessoas jurídi- 2 obra em si; esta é a causa: aquela, a con-
cas), financiando as atividades governamentais sequência: a melhoria. A vista do engate
e consequentemente possibilitando a manuten- necessário entre melhoria e valorização,
ção na máquina estatal. onde esta inexistir, descabe, a nosso ver, a
contribuição. O tributo não se legitima pela
De acordo com o entendimento Amaro (2006, simples realização da obra. Também não
p.25): “[...] Tributo é a prestação pecuniária não se trata de um tributo que se atrele apenas
sancionaria de ato ilícito, instituída em lei e devi- ao patrimônio ou à plus-valia patrimonial;
da ao Estado ou a entidades não estatais de fins é preciso que haja mais-valia, agregada ao
de interesse público[...]”. patrimônio do contribuinte, mas, além dis-
so, requer-se que essa mais-valia decorra
Adiante o Código Tributário em seu artigo 3º de obra pública (uma avenida, por exem-
consolida que: “[...] Tributo é toda prestação plo), para que se justifique a cobrança”.
pecuniária compulsória, em moeda ou cujo va-
Para tanto, o surgimento do princípio do special
lor nela se possa exprimir, que não constitua
assessment ou betterment tax, concedia o en-
sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada
tendimento que o proprietário do imóvel era be-
mediante atividade administrativa plenamente
neficiário e pagador do tributo, posteriormente
vinculada [...]”.
revertida em obra pública.
Em conformidade com a Constituição Federal
Segundo Ricardo Alexandre (2023, p.82):
Brasileira de 1.988 em seu artigo 145, III designa a
União, Estados, Distrito Federal e aos Municípios “Em 1605, na Inglaterra, a coroa inglesa
a instituir e cobrar (ius imperii) o tributo de con- realizou uma obra de grande porte e com
tribuição de melhoria (tributo vinculado). enorme dispêndio de dinheiro para reti-
ficar e sanear as margens do Rio Tâmisa,
A contribuição de melhoria é definida com uma tornando-o mais navegável e estimulan-
espécie de tributo, ao passo que decorre à um do o incremento da atividade econômica
serviço de melhoria que valoriza ou desvaloriza nas áreas ribeirinhas. Os proprietários dos
o imóvel de propriedade do contribuinte. imóveis localizados nessas áreas foram
muito beneficiados, pois passaram a ter
Por um lado, a obra pública pode beneficiar o suas terras, antes sujeitas a frequentes
proprietário e a sociedade regional, em entendi- alagamentos, bastante valorizadas. Visan-
mento contrário, poderá prejudicar quando ina- do a sanar o enriquecimento sem causa,
cabada ou contendo vícios. foi criado, por lei, um tributo (betterment
tax), a ser pago pelos beneficiários, limi-
Elucida Amaro (2006,p.46) sobre a definição de tado ao montante da valorização individu-
contribuição de melhoria: al. Nascia a contribuição de melhoria, até
hoje responsável pelo financiamento de
“Esse tributo, a exemplo das taxas conec-
obras de grande vulto”.
ta-se com determinada atuação estatal,
qual seja, a realização de uma obra pública No Brasil, sucedeu a evolução na contribuição
de que decorra, para os proprietários de de melhorias, vejamos o quadro abaixo onde são

12
observadas as transformações legais: pública de infraestrutura, prestando-se a fazer
frente ao custo dessa obra e não podendo ultra-
passar a valorização gerada[...]”.

Na interpretação de Ricardo Alexandre (2017,


p.77):

“O fato gerador da contribuição de melho-


ria não é a realização da obra, mas sim sua
consequência, a valorização imobiliária. A
melhoria exigida pela Constituição é, se-
gundo o STF, o acréscimo de valor à pro-
priedade imobiliária dos contribuintes, de
forma que a base de cálculo do tributo será
exatamente o valor acrescido, ou seja, a
diferença entre os valores inicial e final do
imóvel beneficiado. Assim, para efeito de
cobrança da exação, há de se considerar
Ou seja, a contribuição de melhoria é uma ar- melhoria como sinônimo de valorização”.
recadação com o objetivo construir, agregando
valor aos imóveis de proprietário, sendo cus- Ressalta que a realização de obra pública tem
teado proporcionalmente aos proprietários da previsão no Artigo 2º do Decreto de nº. 195/67,
comunidade, como exemplo de obras como: qualquer obra não indicada nesse dispositivo,
passagem de gás natural, serviços de fibra ótica, não terá a cobrança do tributo, consideramos:
pavimentação asfáltica, entre outras.
“Art 2º Será devida a Contribuição de Me-
Nas palavras do autor Luciano Amaro (2023, lhoria, no caso de valorização de imóveis
de propriedade privada, em virtude de
p.28), conceitua:
qualquer das seguintes obras públicas:
“A contribuição de melhoria liga-se a uma
I - abertura, alargamento, pavimentação,
atuação estatal que por reflexo se rela-
iluminação, arborização, esgotos pluviais
ciona com o indivíduo (valorização de sua
e outros melhoramentos de praças e vias
propriedade). Esse reflexo é eventual, já
públicas;
que da obra nem sempre resulta aquela
valorização; por vezes ocorre o contrário: II - construção e ampliação de parques,
a obra desvaloriza o imóvel, ensejando pe- campos de desportos, pontes, túneis e via-
dido de reparação do indivíduo contra o dutos;
Estado, com o mesmo fundamento lógico
que embasa a contribuição de melhoria: III - construção ou ampliação de sistemas
se a coletividade não deve financiar a obra de trânsito rápido inclusive tôdas as obras
que enriquece um grupo de indivíduos, e edificações necessárias ao funciona-
também não se pode empobrecer esse mento do sistema;
grupo, para financiar uma obra que inte-
ressa à coletividade”. IV - serviços e obras de abastecimento
de água potável, esgotos, instalações de
No pensamento do jurista Leandro Paulsen redes elétricas, telefônicas, transportes e
(2023, p.83): “[...]As contribuições de melhoria comunicações em geral ou de suprimento
constituem tributos cobrados de quem obteve de gás, funiculares, ascensores e instala-
valorização imobiliária decorrente de uma obra ções de comodidade pública;

13
V - proteção contra secas, inundações, da sentença e ao acolhimento da irresig-
erosão, ressacas, e de saneamento de dre- nação recursal fazendária, de modo que a
nagem em geral, diques, cais, desobstru- sentença recorrida deve ser mantida em
ção de barras, portos e canais, retificação sua integralidade. Nega-se provimento ao
e regularização de cursos d’água e irriga- recurso fazendário, nos termos do acór-
ção; dão.

VI - construção de estradas de ferro e (...)


construção, pavimentação e melhora-
mento de estradas de rodagem; Portanto, para que a contribuição de me-
lhoria possa ser exigida pelo Poder Públi-
VII - construção de aeródromos e aeropor- co, além da necessidade de lei específica,
tos e seus acessos; é imperativo que seja comprovada tam-
bém a valorização do imóvel decorren-
VIII - aterros e realizações de embeleza- te da realização da obra, de modo que a
mento em geral, inclusive desapropria- base de cálculo resultará da diferença en-
ções em desenvolvimento de plano de as- tre os valores do imóvel individualmente
pecto paisagístico”. considerado antes do início e depois da
conclusão da obra.”
Não obstante, é válido salientar que há exce-
ções, como paradigma a cobrança indevida de (TJSP; Apelação Cível 0001312-
recapeamento asfáltico, tendo em vista se tra- 52.2006.8.26.0082; Relator (a): Beatriz
tar de manutenção. Braga; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Di-
reito Público; Foro de Boituva - Setor de
Logo, a jurisprudência atenta ao tema dispõe de Execuções Fiscais; Data do Julgamento:
seus precedentes quanto a execução fiscal: 27/06/2023; Data de Registro: 27/06/2023).

1 – Processo de execução fiscal em face dos su- Grifo nosso.


cessores do autor falecido:
2 – Processo referente ao exemplo
“Ementa: Apelação cível. Execução fis- mencionado anteriormente sobre a pavi-
cal. Débitos de IPTU, taxas inominadas e mentação asfáltica:
contribuição de melhoria do exercício de
2005. A sentença extinguiu a execução “AGRAVO DE INSTRUMENTO – Execução
ao reconhecer a ilegitimidade passiva do Fiscal – Município de Monguaguá - Con-
executado e a nulidade do título executivo tribuição de Melhoria “Pavimentação As-
e deve ser mantida. A decisão proferida fáltica”. I - Exceção de Pré-Executividade
está em consonância com o entendimen- parcialmente acolhida para afastar so-
to jurisprudencial do STJ no sentido de mente a cobrança da Taxa de Expedien-
ser inadmissível o redirecionamento da te. II – Recurso do executado-excipiente
execução para o espólio ou sucessores, – Matéria que extrapola a mera existência
quando o executado falecer antes de ser de defeitos no título executivo e demanda
validamente citado nos autos do proces- dilação probatória, devendo ser discutida
so executivo. No mais, o título executivo é por meio de embargos à execução - Ina-
flagrantemente nulo por não apresentar o dequação da via eleita - Precedentes des-
fundamento legal de nenhum dos débitos te Egrégio Tribunal de Justiça, em casos
principais e realizar o destaque do valor análogos. III – Mantida a decisão que rejei-
relacionado a cada uma das exações. Não tou parcialmente a exceção de pré-execu-
há, portanto, sob qualquer ângulo que se tividade - Prosseguimento da execução -
analise a controvérsia, ensejo à reforma Recurso não provido.

14
(...) e o posterior à obra pública, vale dizer, o
quantum da valorização imobiliária.
Como se sabe, a instituição da contri-
buição de melhoria decorre obrigatoria- (RE 114.069, rel. min. Carlos Velloso, j. 15-4-
mente de lei específica para cada obra, 1994, 2ª T, DJ de 30-9-1994)
não bastando basear-se em disposições
acerca do referido tributo de forma ge- Sem valorização imobiliária decorrente de
ral, conforme disposto no artigo 150, in- obra pública não há contribuição de me-
ciso I, da Constituição Federal e artigos lhoria, porque a hipótese de incidência
81 e 82 do Código Tributário Nacional. desta é a valorização e sua base de cálculo
é a diferença entre os dois momentos: o
(TJSP; Agravo de Instrumento 2100006- anterior e o posterior à obra pública, vale
78.2023.8.26.0000; Relator (a): Adriana dizer o quantum da valorização imobiliá-
Carvalho; Órgão Julgador: 14ª Câmara de ria.
Direito Público; Foro de Mongaguá - SEF -
Setor de Execuções Fiscais; Data do Jul- (STF, 2ª. T. RE 114.069-1/SP, Rel. Min. Carlos
gamento: 15/06/2023; Data de Registro: Velloso.j. 30.09.1994, p. 26.171)
19/06/2023)”.
“Contribuição de melhoria. Recapeamento
Grifo nosso. de via pública já asfaltada, sem configurar
a valorização do imóvel, que continua a ser
No entendimento do Supremo Tribunal Federal, requisito ínsito para a instituição do tribu-
cabe repisar: to, mesmo sob a égide da redação dada,
pela Emenda nº 23, ao art. 18, II, da Cons-
“Esta Corte consolidou o entendimento no tituição de l967. Recurso extraordinário
sentido de que a contribuição de melho- provido, para restabelecer a sentença que
ria incide sobre o quantum da valorização julgara inconstitucional a exigência.
imobiliária.
(RE 116.148, Rel. Min. Octavio Gallotti, Pri-
(AI 694.836 AgR, rel. min. Ellen Gracie, j. 24- meira Turma, DJ de 21/5/1993).”
11-2009, 2ª T, DJE de 18-12-2009)
Destarte, há previsão legal e requisitos para co-
(...) Tributo que tem por fato gerador bene- brança da contribuição de melhorias disposto no
fício resultante de obra pública, próprio de artigo 81 e 82 do Código Tributário Nacional a se-
contribuição de melhoria, e não a utiliza- rem observados, bem como o Decreto nº. 195/67
ção, pelo contribuinte, de serviço público
mencionada inicialmente, dispõe sob normas
específico e divisível, prestado ao contri-
gerais da contribuição de melhoria.
buinte ou posto a sua disposição. Impossi-
bilidade de sua cobrança como contribui- Nesse sentido, a contribuição de melhoria é im-
ção, por inobservância das formalidades portante devido a distribuição de despesas de
legais que constituem o pressuposto do
obra pública do Estado com a comunidade, tan-
lançamento dessa espécie tributária.
to aos cidadãos que recebem uma obra pública
(RE 140.779, rel. min. Ilmar Galvão, j. 2-8- seja ela pavimentação, iluminação, vias públi-
1995, P, DJ de 8-9-1995) cas, pontes, parques entre outros, assim como
ao proprietário que tem seu imóvel valorizado
Sem valorização imobiliária, decorrente tanto para venda, aluguel ou comercial.
de obra pública, não há contribuição de
melhoria, porque a hipótese de incidên- Notoriamente, insta salientar que não cabe ao
cia desta é a valorização e a sua base é a
diferença entre dois momentos: o anterior

15
proprietário que não gozou da valorização do Trata-se de um princípio pela qual admite va-
imóvel, a cobrança da contribuição de melhoria. lores constitucionais, bem como representa um
conjunto de liberdade, cidadania, igualdade, so-
1.2. A originalidade do Estado Democrático lidariedade, dentre outras que refletem nos há-
de Direito e a tributação. bitos éticos para o bom convívio social, limitando
conflitos de relações que expressam violação à
Conforme o preâmbulo da Constituição
vida digna e segurança dos indivíduos.
Federal em seu artigo 1º, manifesta-se em seu
texto que a República é constituída pelo Estado E mais, assegura a aplicabilidade do Estado De-
Democrático de Direito e tem como fundamen- mocrático de Direito, que tem por finalidade de
to: a soberania, a cidadania, a dignidade da pes- inibir todos os tipos de abusos que ferem os di-
soa humana, os valores sociais do trabalho e livre reitos humanos, objetivamente identificado nos
iniciativa e o pluralismo político. primeiros artigos da Constituição Federal, mas
principalmente em seu artigo 5º, que discorre
Nas palavras de Sacha Calmon Navarro
a afirmação de uma igualdade nos direitos de
Coêlho (2020,p.102) esclarece quanto o dever da
qualquer natureza.
ordem jurídica:

“Em primeiro lugar, verifica-se que várias Em um pensamento mais profundo, a existência
são as pessoas políticas exercentes do do princípio é garantir para aqueles que são fra-
poder de tributar e, pois, titulares de com- gilizados em seus direitos, a mesma possibilida-
petências impositivas: a União, os Esta- de de dignidade atingida por outros.
dos-Membros, o Distrito Federal e os Muni-
cípios. Entre eles será repartido o poder de Assim, a concepção sobre os temas expõe
tributar. Todos recebem diretamente da que o Estado Democrático de Direito é mecanis-
Constituição, expressão da vontade geral, mo utilizado em busca do justo cumprimento
as suas respectivas parcelas de compe- dos direitos fundamentais (já que representa o
tência e, exercendo-as, obtêm as receitas povo), principalmente ao que se refere a tributa-
necessárias à consecução dos fins institu- ção.
cionais em função dos quais existem (dis-
criminação de rendas tributárias). O poder A sociedade necessita da ordem estatal
de tributar originariamente uno por von- para democracia seja concedida, basta perce-
tade do povo (Estado Democrático de Di- ber que houve evolução da contribuição de me-
reito) é dividido entre as pessoas políticas lhorias na história do ordenamento jurídico bra-
que formam a Federação”. sileira, admitiu que os tributos sejam essenciais
para os cidadãos.
Outrossim, a intenção do Estado Demo-
crático de Direito é a igualdade e a lei como fer- Não obstante, a contribuição de melhoria é re-
ramenta de transformação da sociedade, desse sultado do poder de tributar garantido na Cons-
ponto o entendimento do pagamento do tributo tituição Federal, que consequentemente, sofre
em favor da garantia de concretizar os direitos interferência sócio-econômica tanto para o
sociais e individuais, resultando no bem comum. proprietário como ao setor público, sem deixar
de mencionar aqueles que usufruem da obra
Por razão, o bem comum é rodeado pelo pública direta e indiretamente.
princípio da dignidade da pessoa humana que
está presente em diversas doutrinas com a sua Eventualmente, ao notar que efetiva obra públi-
popularidade de “princípio base” na legislação ca foi findada, hipoteticamente um parque em
brasileira. meio a um loteamento novo, todos os proprie-
tários terão seu imóvel valorizado (não somente

16
será usuário do espaço público), em contrapar- CONSIDERAÇÕES FINAIS.
tida colabora com a cultura, lazer, um espaço de
socialização da comunidade e seus moradores, Constatado a importância da contribuição de
referência turística ao município. melhoria e a atuação do Estado, permite obser-
var que o tributo busca financiar e consequen-
Segundo o autor Oswaldo Othon de Pontes Sa- temente diminuir o custeio das obras públicas,
raiva Filho (2021, p.193-197) esclarece: que ficaram dispostos aos cidadãos.
“o Estado brasileiro é constituído pela le- Outra reflexão importante é o destino do recolhi-
galidade, por meio de princípios constitu- mento da contribuição, uma vez que, a fiscaliza-
cionais, aberto a valores que asseguram ção das obras públicas assegura a aplicação de
direitos fundamentais, fortalecimento da dinheiro público gasto com eficiência.
jurisdição e limitação ao poder de tributar.
Isto porque, ao contribuinte cabe a obrigação tri-
(...)
butária, bem como ao Estado a administrar a co-
O princípio da legalidade é essencial ao brança devida dos tributos e a máxima preven-
Estado Democrático de Direito em termos ção diante da corrupção, sendo indispensáveis a
de imposição tributária, e na elaboração
legislativa, que deve guardar absoluta coe-
rência com os preceitos válidos e eficazes,
em obediência aos princípios constitucio-
nais, hierarquicamente superiores, numa
compatibilização entre a lei e a Constitui-
ção.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ensina que o


princípio da legalidade: juntamente com o
controle da Administração pelo Poder Ju-
diciário, nasceu com o Estado de Direito e
constitui uma das principais garantias de
respeito aos direitos Individuais. Isto por-
que a lei, ao mesmo tempo em que os de-
fine, estabelece também os limites da atu-
ação administrativa que tenha por objeto a
restrição ao exercício de tais direitos e be-
nefício da coletividade. É aqui que melhor
se enquadra aquela ideia de que, na rela-
ção administrativa, a vontade da Adminis-
tração Pública é a que decorre da lei”.

Em análise, é possível identificar que o direito


de propriedade (do bem imóvel valorizado), está
acompanhado dos direitos coletivos e sociais,
quando Maria Sylvia menciona sobre o princípio
da legalidade e o controle estatal, a reflexão que
se define é a contribuição de melhorias atribuído
ao desenvolvimento regional.

17
punição aos atos ilícitos e o cumprimento das garantias constitucionais empregados pelo Estado
Democrático de Direito.

AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786553628113.
Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553628113/. Acesso em: 06
jul. 2023.

Senado. Contribuição de Melhoria: o desuso de um tributo justo para os municípios. Acesso


em 06/07/2023 disponível: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/489/r142-20.PD-
F?sequence=4&isAllowed=y#:~:text=As%20primeiras%20not%C3%ADcias%20da%20contribui%-
C3%A7%C3%A3o,da%20realiza%C3%A7%C3%A3o%20de%20tais%20obras.

Eltz, Magnum K., F. et al. Constituição e tributação. Disponível em: Minha Biblioteca, Grupo A,
2018. Página 36.

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LOPES, Paulo Danilo Reis ; GUIMARÃES JUNIOR, José Leite. Sistema tributário como instru-
mento de afirmação e aferição do Estado de direito democrático. Revista Jus Navigandi, ISSN
1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6153, 6 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80792.
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MORELO, Ludimila CB. Conteúdo Jurídico. Contribuição de melhoria e princípio da referibbi-


lidade. Acesso em 06/07/23: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39301/contribui-
cao-de-melhoria-e-o-principio-da-referibilidade#:~:text=Visando%20a%20sanar%20o%20en-
riquecimento,de%20obras%20de%20grande%20vulto.

PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. Editora Saraiva, 2023.


E-book. ISBN 9786553627185. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/
books/9786553627185/. Acesso em: 06 jul. 2023.

Ranieri, Nina. Teoria do Estado: Do Estado de Direito ao Estado Democrático de Direito. Dispo-
nível em: Minha Biblioteca, (3rd edição). Grupo Almedina (Portugal), 2023.Página 383.

SOUZA, Rafael Amaral. A Contribuição de melhorias e os limites para sua instituição e cobrança.
Jusbrasil. 2016. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-contribuicao-de-melho-
ria-e-os-limites-para-sua-instituicao-e-cobranca/351813713 . Acesso em: 13 de julho de 2023.

18
02
OS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS E A JUDICIALIZAÇÃO
DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO
O presente artigo aborda a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, conforme o estabele-
cido no art. 5°, § 1° da Constituição Federal, bem como a obrigação do Estado em garantir os direitos
sociais fundamentais. A judicialização das políticas públicas é discutida como meio de responsa-
bilizar o Estado por sua omissão na implementação desses direitos. O princípio da dignidade da
pessoa humana e seus reflexos na construção de uma sociedade justa e solidária são destacados,
assim como a necessidade de evolução do Estado de acordo com os direitos humanos.
Palavras-chave
Políticas Públicas - Judicialização - Direitos Fundamentais - Estado Democrático de Direito
Denise Carvalho Klaus
Bacharel em Direito pela Faculdade Anhanguera de Bauru - Advogada comprometida e dedicada
com uma sólida formação jurídica e experiência em diversos campos do Direito.

19
1. INTRODUÇÃO O objetivo desse texto é, portanto, analisar a re-
lação entre os Direitos Sociais Fundamentais e
No contexto do Estado Democrático de Direito, a judicialização das políticas públicas no Estado
os Direitos Sociais Fundamentais têm se mos- Democrático de Direito, destacando os desafios
trado um elemento crucial para a concretiza- e as possibilidades dessa abordagem na efeti-
ção da justiça social e da dignidade humana. vação dos direitos sociais. Serão examinados
Fundamentados em princípios de igualdade e casos e exemplos que evidenciam a relevância
solidariedade, esses direitos representam uma do Poder Judiciário nesse processo, principal-
evolução no campo dos direitos fundamentais, mente no tocante a necessidade da atuação do
estabelecendo obrigações do Estado em prover advogado, bem como as potenciais consequên-
condições mínimas para uma vida digna a todos cias de uma atuação judicial excessivamente in-
os cidadãos. tervencionista. Além disso, buscar-se-á propor
reflexões sobre alternativas e mecanismos que
Nessa perspectiva, a judicialização das políticas possam contribuir para uma atuação mais efi-
públicas tem se apresentado como uma impor- ciente dos poderes públicos na garantia dos Di-
tante ferramenta para a efetivação dos Direitos reitos Sociais, de forma a consolidar um Estado
Sociais. A judicialização consiste na utilização Democrático de Direito cada vez mais inclusivo
do Poder Judiciário como uma via para garantir e justo.
o cumprimento das políticas públicas, quando
estas não são implementadas de maneira ade- 2. DIREITOS FUNDAMENTAIS:
quada ou quando há omissão dos órgãos es- APLICABILIDADE, OMISSÃO
tatais. Essa abordagem tem ganhado cada vez
ESTATAL E JUDICIALIZAÇAO
mais espaço diante dos desafios enfrentados na
efetivação de políticas públicas eficazes e aces-
síveis a todos os cidadãos. A Aplicabilidade dos Direitos Fundamentais e a
Omissão Estatal são temas intrínsecos no estu-
Contudo, é importante destacar que a judicia- do da Judicialização das Políticas Públicas no
lização das políticas públicas também suscita campo do Direito Constitucional.
debates acerca do equilíbrio entre os poderes
e a independência das esferas institucionais. A Segundo ensina George Marmelstein1, direitos
atuação do Poder Judiciário na implementação fundamentais “são normas jurídicas, intima-
de políticas pode ser vista por alguns como uma mente ligadas à ideia de dignidade da pessoa
interferência indevida no campo de atuação dos humana e de limitação do poder, positivadas no
poderes Executivo e Legislativo, o que levanta plano constitucional de determinado Estado De-
questões sobre o respeito ao princípio da sepa- mocrático de Direito, que, por sua importância
ração dos poderes. axiológica, fundamentam e legitimam todo o or-
denamento jurídico”, esses direitos, aliados aos
Nesse contexto, é fundamental analisar os limi- princípios constitucionais estabelecem a base
tes e o papel do Poder Judiciário no contexto das da organização do Estado Democrático de Direi-
políticas públicas, considerando a necessidade to e garantem a proteção dos indivíduos contra
de resguardar a autonomia dos demais poderes eventuais abusos do poder estatal, bem como de
e, ao mesmo tempo, garantir a proteção dos di- outros particulares.
reitos sociais assegurados pela Constituição. A
interpretação judicial deve ser cuidadosa, bus- Dentre vários princípios merece destaque o
cando um equilíbrio que evite tanto a inefetivi- Princípio da Dignidade da Pessoa Humana que
dade dos direitos quanto o excesso de interven-
1 MARMELS TEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 6.
ção judicial no campo político-administrativo.
ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016, p. 18

20
é um dos pilares fundamentais do ordenamento dade e inclusão.
jurídico moderno, presente em diversas Consti-
tuições e tratados internacionais. Ele reconhece Contudo, em oposição aos direitos estabelecidos
que cada ser humano possui um valor intrínse- na carta constitucional, cotidianamente, ocorre
co e inalienável, independentemente de suas um processo infindável de relegação, através do
características individuais, status social, eco- qual sujeitos (coletivos ou individuais), em fun-
nômico, religião, raça ou nacionalidade. Essa ção de suas características, são empurrados e
concepção implica que toda pessoa merece mantidos em posições marginais ou em con-
respeito, proteção e o pleno exercício de seus dições obscuras e inferiores, e nesse mote diz
direitos fundamentais. respeito à inércia do poder público em garantir e
proteger os direitos fundamentais dos cidadãos.
A República Federativa do Brasil, adota a ideia A inércia ocorre quando o Estado deixa de agir
consagrada da separação de poderes segundo ou não cumpre com suas obrigações constitu-
Montesquieu, em que o executivo é responsável cionais de forma adequada, seja por falta de re-
pela ação da administração pública, e o legisla- gulamentação, recursos ou efetividade das polí-
tivo, deve formular normas que sejam coeren- ticas públicas.
tes e respeitem os princípios gerais de direito,
e todos os poderes devem exercer suas funções A respeito de políticas públicas Vieira3 leciona,
na formulação de políticas públicas adequadas “Quase sempre não se concretizam, apenas se
à garantia dos direitos sociais, para efetivá-los transformam em programas e diretrizes para
corretamente. serem exibidos à sociedade, sem intervenção
nela, porque não tem função de intervir.” ou seja,
Nesse sentido, a construção de um verdadeiro não há vontade de intervenção para que se pro-
Estado democrático de direito leva, sem dúvida, mova as mudanças necessárias e essa inércia, o
à formulação e elaboração de políticas públicas não fazer, também é considerado parte da polí-
que garantam o mínimo existencial por intermé- tica pública, conforme bem explicitado por Dye4.
dio dos direitos fundamentais. Portanto, mani-
festo que a abordagem dos direitos humanos A omissão estatal pode gerar sérias consequ-
não pode apenas contemplar as políticas públi- ências para os cidadãos, prejudicando o pleno
cas que os tratam diretamente, como também exercício de seus direitos e limitando o alcance
deve estar integrada a todas as demais políticas das garantias constitucionais. Nesse contexto,
públicas do Estado o papel do Poder Judiciário ganha relevância,
pois cabe a ele, muitas vezes, suprir a omissão
No contexto da aplicabilidade dos Direitos Fun- dos poderes Legislativo e Executivo, garantindo
damentais, é importante mencionar a definição a aplicabilidade necessária dos direitos funda-
trazida por José Afonso da Silva2 que aplicabi- mentais, e nessa seara a atuação do advogado,
lidade refere-se à aptidão, à potencialidade da protegendo o interesse dos mais vulneráveis,
norma de produzir os efeitos jurídicos nela pre- resgatando-os novamente como sujeitos de di-
vistos, o Estado ideal deve garantir a igualdade reitos.
de tratamento e oportunidades para todos, in-
dependentemente de sua origem étnica, orien- Como muito acertadamente elenca Marcelo
tação sexual, gênero, religião ou qualquer ou- Novelino5, “o advogado desempenha um papel
tra característica pessoal. Isso requer a adoção 3 VIEIRA, Evaldo. Os direitos e a política social. 2. ed. São
Paulo: Cortez, 2007.
de políticas públicas eficaz, ações afirmativas,
4 DYE, Thomas D. Understanding Public Policy. Englewood
combate à discriminação e o incentivo à diversi-
Cliffs, N.J.: PrenticeHall. 1984

2 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas 5 NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 12. ed.
constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 13 rev., ampl. e atual. Salvador: Jus Podivm, 2017, p. 799

21
fundamental dentro do Estado constitucional deve ser preenchida, de maneira a não deixar o
democrático, exercendo uma função constitu- cidadão, parte mais vulnerável, desassistido.
cionalmente privilegiada, na medida em que
é indispensável à administração da justiça” ou Conforme análise de jurisprudências do Supre-
seja, o papel do advogado é fundamental, com- mo Tribunal Federal, verificou-se que o enten-
plexo e crucial para assegurar o respeito aos dimento dominante no Tribunal é que o Poder
direitos fundamentais dos cidadãos, aprimorar Judiciário, em situações excepcionais, pode de-
a qualidade das políticas implementadas e pro- terminar que o Estado adote as medidas neces-
mover a equidade social. sárias a fim de efetivar direitos constitucional-
mente reconhecidos como essenciais, sem que
O advogado atuante, combatente, funciona configure contrariedade ao princípio da separa-
como um motor propulsor, provocando o judici- ção dos poderes.
ário a fim de obter a tutela desejada, para que os
tribunais possam desempenhar sua função in- Mais especificamente, no julgamento do ARE
terpretando a Constituição e as leis, muitas ve- 639337 AgR, do Supremo Tribunal Federal, com
zes reconhecendo omissões inconstitucionais e relatoria do Ministro Celso de Mello6, o “descum-
determinando que o Estado adote medidas para primento de políticas públicas definidas em sede
proteger os direitos fundamentais dos cidadãos. constitucional gera hipótese legitimadora de in-
Esse fenômeno, conhecido como “jurisdição tervenção jurisdicional.” Denotando que “a inter-
constitucional”, é uma das principais formas de venção do Poder Judiciário, objetiva neutralizar
assegurar a efetividade dos direitos fundamen- os efeitos lesivos e perversos, provocados pela
tais frente à omissão estatal. omissão estatal”, o Ministro supracitado entende
que não há qualquer transgressão a esse con-
Nesse contexto, concebe-se a judicialização das ceito, uma vez que a necessidade de se manter
políticas públicas, que é um fenômeno complexo a primazia da Constituição Federal justifica o
e controverso, alusivo à crescente intervenção comportamento afirmativo do Poder Judiciário.
do Poder Judiciário na resolução de questões
relacionadas à implementação, execução e ava- A maior corrente crítica sobre a jurisdição cons-
liação de políticas públicas. A judicialização das titucional, aponta para o ativismo judicial, ale-
políticas públicas pode ocorrer nos mais dife- gando judicialização excessiva e interferência
rentes contextos e envolver uma gama de temas, ativa do judiciário nas políticas governamentais,
tais como saúde, educação, meio ambiente, di- de forma que os tribunais ultrapassem seu papel
reitos sociais, entre outros. de interpretação da lei e interfiram ativamen-
te de maneira a criá-las. Contudo, não haveria
Essa tendência tem se manifestado em diversos necessidade de intervenções judiciais, se hou-
países, levantando discussões importantes so- vesse a efetiva consolidação dos direitos funda-
bre o papel do Judiciário, a separação de pode- mentais exposto na carta constitucional.
res e o sistema democrático como um todo. Esse
processo resulta de uma série de fatores sociais, Evidente que, a aplicabilidade dos direitos fun-
políticos e jurídicos que convergem e ultimam damentais e a omissão estatal jazem interliga-
em uma maior ingerência do Judiciário na for- dos e são os fios condutores da judicialização,
mulação e implementação de políticas públicas. portanto, garantir que os direitos fundamentais
sejam plenamente respeitados e efetivamente
É importante destacar que a intervenção do Po- aplicados é fundamental para a consolidação de
der Judiciário em questões políticas pode ge- um Estado Democrático de Direito, no qual os ci-
rar debates sobre a legitimidade dessa atuação,
contudo, havendo omissão estatal, essa lacuna 6 BRASIL. STF, ARE 639.337 AgR/SP. 2ª Turma. Rel. Min, Celso
de Mello, DJe 15/09/2011.

22
dadãos possam viver com dignidade, liberdade e ário, através da suscitação do Advogado, o dever
igualdade. de determinar que tais políticas sejam concreti-
zadas, pois é assim que prevê o texto que irradia
Diante dessas questões, é essencial encontrar a todo o nosso ordenamento jurídico.
um equilíbrio entre a atuação do Judiciário e dos
demais poderes, de modo a garantir a efetivida- É essencial que o Estado evolua de acordo com
de das políticas públicas sem comprometer a o desenvolvimento dos direitos humanos, adap-
legitimidade democrática e a separação de po- tando-se às necessidades e demandas da so-
deres. Para tanto, é basilar promover um debate ciedade, aprimorando a legislação e as políticas
amplo e aprofundado sobre o tema, buscando públicas, de modo a combater as desigualdades
soluções que respeitem os princípios democrá- sociais e promover o bem-estar da população.
ticos e o Estado de Direito. Além disso, é impor-
tante investir na prevenção de conflitos por meio Assim, a efetividade das políticas públicas tor-
do diálogo e da busca por consensos políticos, na-se imprescindível para garantir que os direi-
evitando que questões relevantes cheguem aos tos fundamentais sejam concretizados, propor-
tribunais como última instância. cionando um ambiente mais justo e igualitário
para todos os cidadãos.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Portanto, a aplicação plena dos direitos funda-
mentais e sociais é um imperativo para que a
Em suma, diante do contexto exposto, é inegável sociedade possa alcançar seus objetivos de jus-
que o todo Estado que se pronuncie como De- tiça e solidariedade. Som ente por meio da ob-
mocrático de Direito tem o dever de assegurar a servância desses princípios é que o Estado De-
aplicabilidade imediata dos direitos fundamen- mocrático de Direito poderá garantir a proteção
tais, pois os direitos fundamentais positivados e a realização dos direitos de todos os cidadãos,
pela Constituição de 1988 constituem cláusulas assegurando uma sociedade mais equitativa e
pétreas, não podendo ser abolidos ou alterados. inclusiva onde a dignidade da pessoa humana é
Tais direitos não são meros objetivos, declarados valorizada e respeitada em sua plenitude. Cabe,
como metas a serem alcançadas a longo prazo. portanto, aos órgãos estatais, em conjunto com
Ao contrário, nasceram dotados de eficácia ple- a sociedade, zelar pela plena efetivação desses
na e o Estado tem obrigação de desenvolver po- direitos, como pilares essenciais de uma ordem
líticas públicas em prol da proteção da dignida- jurídica justa e humanitária.
de da pessoa humana e da construção de uma
sociedade justa e solidária.

A judicialização das políticas públicas, embora


controversa em alguns pontos, surge como uma
importante ferramenta para responsabilizar o
Estado por sua omissão na efetivação desses
direitos, garantindo que os cidadãos possam
exigir seus direitos e a devida prestação dos ser-
viços públicos essenciais, pois é através da atu-
ação do Poder Judiciário que cidadãos e grupos
vulneráveis podem buscar efetividade em suas
demandas e reivindicações por políticas públi-
cas mais adequadas.

Não agindo os demais poderes, surge ao Judici-

23
03
ESCOLA CLÁSSICA E O PARADIGMA DA INDIFERENCIAÇÃO/
DISCERNIMENTO DOS MENORES EM CONFLITO COM A LEI
O presente artigo situa-se no âmbito da história da criminologia. Partindo do compromisso do ilu-
minismo perante o conhecimento e dos princípios atinentes ao contrato social e ao utilitarismo clás-
sico, aborda as principais ideias da escola clássica da criminologia no que diz respeito à reforma do
sistema penal e à explicação do crime. Para o efeito, recorre sobretudo aos autores mais relevantes
daquela escola, Cesare Beccaria, Francesco Carrara, dentre outros. Tem-se como objetivo compre-
ender de que modo as crianças e adolescentes eram responsabilizados quando praticavam delitos
durante a vigência dessa escola. Para isto, a pesquisa observou aspectos relacionados a evolução
histórica de normas que tratam sobre a temática da criança e ao adolescente com suporte da cri-
minologia crítica.
Palavras-chave
Escola Clássica - Livre Arbítrio - Contrato Social - Delito - Iluminismo
Diego Marques da Silva
Advogado. Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Email: die-
go.2016230173@unicap.br.

24
1. INTRODUÇÃO diferenciação/ discernimento) ocorrido do séc.
XVIII ao final do séc. XIX. A temática desta pes-
A Escola Penal Clássica tem suas origens em quisa se justifica pela contribuição de um estudo
doutrinas da antiga filosofia grega, a qual sus- do Direito Penal não apenas por compreender as
tentava ser o delito afirmação da justiça, desen- leis da época em questão, mas sim interpretá-
volvendo-se no século XVIII como uma corrente -las criticamente dentro de seu contexto histó-
de pensamento que reage contra as arbitrarie- rico, político e social. Para a realização do
dades do ancien regime para garantir os direitos trabalho, adotaram-se os pressupostos teóricos
do indivíduo (VIANA, 2018, p. 40). da metodologia da pesquisa bibliográfica, pro-
Por volta do final do século XVIII, as escolas pe- cedendo à coleta, análise e interpretação dos
nais lutavam para melhor conceituar sobre o cri- dados à luz do método histórico, investigando os
me e o criminoso. reflexos do Direito penal da época.

Nesta época que começaram a surgir as escolas Por fim, busca-se com a pesquisa compreender
criminológicas, nas quais lutavam para encon- de que modo eram responsabilizados os meno-
trar respostas sobre a origem do crime, a manei- res em conflito com as leis, durante o período da
ra de combatê-lo e de preveni-lo. escola clássica de Direito Penal, sendo este ob-
jeto desta pesquisa.
As Escolas usaram a interdisciplinaridade de
várias áreas do saber tais como: Biologia, Psico- 2. O ILUMINISMO E O
logia, Sociologia, Antropologia, Psiquiatria, entre CONTRATO SOCIAL
outras, em que serviram de base de análises cri-
minológicas, sendo fundamental o auxílio de es-
tatísticas e observações, para definir o método As teorias contratualistas têm como ponto cen-
de pesquisa para cada período. tral a análise do homem em sociedade e enten-
de- se após as pesquisas realizadas por seus
A primeira Escola Sociológica do Crime foi a Es- pensadores que, independentemente da razão,
cola Clássica, onde seu surgimento se deu atra- o homem não teria a capacidade/competência
vés do Iluminismo italiano do século XVIII, que se de construir uma comunidade sem que houves-
apoiava em determinados princípios, entre eles se um poder hierarquicamente mais alto e forte
estão: O delito é um ente jurídico; A ciência do do que os outros para conduzir a sociedade para
Direito Penal é uma ordem de razões emana- seus fins comuns.
das da lei moral e jurídica; A tutela jurídica é o
fundamento legítimo de repressão e seu fim; A Desse modo, afirma (BITTAR, 2012, p. 296-297).
qualidade e quantidade de pena, que é repres- O contrato social é, portanto, um pacto, ou
siva, devem ser proporcionadas ao dano que seja, uma deliberação conjunta no sen-
se ocasionou com o delito ou perigo ao direito; tido da formação da sociedade civil e do
A responsabilidade criminal se baseia na impu- Estado. Trata-se de uma troca entre a li-
tabilidade moral, desde que não exista agressão berdade natural x utilidade comum. O ho-
ao direito, livre arbítrio não se discute. mem poderia escolher entre continuar em
sua situação inicial, ou seja, no estado de
Cabe destacar ainda que neste período não exis- natureza, ou, então, por meio de uma con-
tiam leis e penas específicas para as crianças e venção, fundar uma associação tendente
adolescentes infratores, que eram tratados da à realização de seu estado social. Em pou-
mesma forma que os adultos, caso já tivessem cas palavras, a partir da união de muitos
alcançado a idade mínima para serem conside- em torno de um objetivo comum, o que há
rados culpados por seus atos (paradigma da in- é a formação de um corpo maior e diver-

25
sos dos corpos individuais dos membros Como reação a esse período surge a Escola Penal
que o compõem. Clássica, também conhecida como idealista que
predominou entre o final do século XVIII e a me-
Assim, o Estado contratualista possui como pri- tade do século XIX, surgindo como uma espécie
meiras características um governo absolutista, de reação ao totalitarismo do Estado Absolutista
cujo rei detinha todos os poderes concentrados da época e carregando influência do movimento
em si, e, desse modo, usufruía da capacidade Iluminista. Essa corrente doutrinária desenvolve
de governar os subordinados sem se preocupar a visão de que a pena é algo imposto a um indiví-
com a atividade legislativa positivada que justi- duo que cometeu, voluntária e conscientemente,
ficava suas ações. ato grave (crime) e, portanto, merece um “casti-
go”.
A Revolução Francesa apresenta-se como força
contrária ao Império Absolutista, que se man- Sobre isso afirma (BARATTA, 2014)
teve reivindicando a abolição da monarquia e a Assim é reconhecida a Escola Clássica da
construção e promulgação de leis positivadas, Criminologia, também intitulada de Escola
sendo o Código de Napoleão de 18041 uma mis- Liberal, cuja emergência data de meados
tura de ideais liberais e tradicionais. Junta- do século XVIII na Europa. Pautada nos
mente com a positivação dos códigos, encontra- ideais iluministas, a Escola Clássica foi for-
-se na Revolução Francesa o surgimento de um jada em meio a um ambiente de contes-
novo tipo de pensamento, o qual retira o centro tações às ideias e práticas penais vigen-
das pesquisas da religiosidade e o coloca na ra- tes ao longo de toda a Idade Média. Surge,
cionalidade, isto é, o Iluminismo, que apresen- portanto, em um nítido fluxo de transfor-
ta respostas fundamentadas na racionalidade, mações políticas, econômicas e ideológi-
afastando a religião de discussões científicas. cas pelas quais passava a Europa e seus
sistemas punitivos
O Iluminismo é concebido como ideologia de
contracultura àquela que se manifestava no Es- Faz-se necessário salientar que a intitulação da
tado absolutista, cujos Estado e Igreja estavam Escola Clássica foi forjada por Ferri, represen-
reunidos. A secularização do Estado trouxe a tante fervoroso da escola positiva. Salvo melhor
independência das normas religiosas e o foco juízo, em contramão ao que parte da doutrina
em questões científicas, entendendo-se, des- mundial declara, quando Ferri assim a intitulou,
se modo, que o Iluminismo retirou a população através de uma exposição oral acerca dos novos
francesa da idade das trevas2. caminhos do direito e do processo penal, de fato,
não parece tê-la feito de forma depreciativa.
Durante os regimes absolutistas das Idades Mé- Disse ele expressamente:
dia e Moderna, através de uma conduta infratora
(...) por isso a Escola Clássica, em seguida
o indivíduo ofendia a soberania e o poder abso-
à Revolução Francesa, teve uma orienta-
luto do monarca, que então empenhava uma se-
ção político-social em pleno acordo com
vera reação punitiva como meio de vingança e as reivindicações dos ‘direitos do homem’.
justiça. Mas o estudo da justiça penal não pode
deixar de refletir, outrossim, as correntes
1 O Código Civil Francês foi o código civil francês outorgado filosóficas e especialmente as filosófico-
por Napoleão Bonaparte e que entrou em vigor 21 de março de
1804. O Código Napoleônico propriamente dito aborda somente -jurídicas predominantes em cada perí-
questões de direito civil, como as pessoas, os bens e a aquisição odo histórico: pelo que a Escola Clássica
de propriedade. Criminal, como sistematização filosófi-
2 Foi o termo adotado pelos humanistas do século XVII, aonde co-jurídica, foi inspirada pela doutrina do
generalizaram toda a civilização da Europa do século IV ao
século XV como um tempo de ruína e flagelo. ‘direito natural’, que foi um dos confluen-

26
tes ideais da Revolução Francesa e valeu- Detentora do poderio econômico, a classe bur-
-se do método dedutivo, então imperante guesa vislumbrou no Direito Penal um potente
sem contrate nas ciências morais e so- dispositivo de ascensão ao poder político, for-
ciais (FERRI, 1999, p. 57). mulando, para tanto, uma nova racionalidade
punitiva capaz de proteger seus próprios inte-
Assim, consideradas como cruéis e desumanas,
resses e, simultaneamente, contrapor as tradi-
as penas vigentes no chamado Ancien Régime3
cionais práticas penais absolutista. (RUSCHE;
passaram a ser duramente criticadas em virtu-
KIRCHHEIMER, 2004). A Escola Clássica tam-
de de seus excessos baseadas em parâmetros
bém conhecida como período pré-científico da
considerados subjetivos para dosimetria dos
criminologia, contou com a colaboração teórica
castigos aplicados. Considerando os ordena-
de diversos intelectuais, dentre os quais pode-
mentos jurídicos vigentes até então, pode-se
-se destacar como o personagem mais impor-
falar que o Código de Hamurabi4 e a Lei de Ta-
tante Cesare Beccaria, aristocrata italiano, con-
lião5 figuram entre os dispositivos penais mais
siderado o maior expoente do iluminismo penal
conhecidos deste período histórico. A lógica do
europeu. Foi um Jurista, filósofo e economista,
“olho por olho, dente por dente” naturalizava e
é de sua autoria a famosa obra Dos delitos e das
positivava a execução de uma gama de suplí-
penas, publicada originalmente em 1764 e ava-
cios como torturas, enforcamento, decapitação,
liada, ainda hoje, como uma das bases do Direito
morte por inanição, esquartejamentos, encar-
Penal moderno, nesta obra, discorre minuciosa-
ceramento por tempo indeterminado e outras
mente por assuntos que caracterizariam poste-
penas (FOUCAULT, 2000):
riormente o pensamento penal clássico, como a
[...] os dolorosos gemidos do fraco, sacri- função da pena, a natureza do ato criminoso e o
ficado à ignorância cruel e aos opulentos impacto da estrutura jurídica penal sobre a so-
covardes; os tormentos atrozes que a bar- ciedade. Além dele, pode-se destacar também
bárie inflige por crimes sem provas, ou por autores estudiosos como Jeremy Bentham6 (In-
delitos quiméricos; o aspecto abominável glaterra), Francesco Carrara7 (Itália), Alselm von
dos xadrezes e das masmorras, cujo hor- Feuerbach 8(Alemanha) pertencentes a essa Es-
ror é ainda aumentado pelo suplício mais cola.
insuportável para os infelizes, a incerte-
za; tantos métodos odiosos, espalhados Dos Delitos e das Penas pode ser considerado um
por toda parte, deveriam ter despertado tratado filosófico, cujo conteúdo foi amplamente
a atenção dos filósofos, essa espécie de incorporado pela legislação penal dos principais
magistrados que dirigem as opiniões hu- países europeus. Trata-se de uma publicação
manas (BECCARIA, 1764, p. 8). de confronto aos modelos penais vigentes até
A mudança penal anteriormente citada não então, refutando a tradição jurídica e invocando
pode ser compreendida sem vincularmos tal novos elementos como a razão e a consciên-
processo aos ideários e interesses burgueses. cia pública contra as atrocidades dos sistemas
punitivos. Forja-se, pela primeira vez na seara
3 Refere-se originalmente ao sistema social e político
aristocrático que foi estabelecido na França.
penal, a fronteira entre a justiça dos homens e
4 Foi o primeiro código de leis da história e vigorou na 6 Foi filósofo, jurista e um dos últimos iluministas a propor a
Mesopotâmia, quando Hamurabi governou o primeiro império construção de um sistema de filosofia moral, não apenas formal
babilônico, entre 1792 e 1750 a.C. Esse código se baseava na e especulativa, mas com a preocupação radical de alcançar
Lei do Talião, que punia um criminoso de forma semelhante ao uma solução a prática exercida pela sociedade de sua época.
crime cometido, ou seja, “olho por olho, dente por dente”. 7 Foi um jurista e político liberal italiano. Ele foi um dos
5 A lei de talião, também dita pena de talião, consiste na principais estudiosos do direito penal e defendia a abolição da
rigorosa reciprocidade do crime e da pena — apropriadamente pena de morte na Europa do século XIX.
chamada retaliação. Na perspectiva da lei de talião, a pessoa 8 Foi um jurista alemão. Foi o fundador da moderna doutrina
que fere outra deve ser penalizada em grau semelhante, e a do direito penal da Alemanha, com a teoria da dissuasão
punição deve ser aplicada pela parte lesada. psicológica; foi o autor do Código Penal da Baviera de 1813.

27
a de Deus, delineando claramente o hiato entre quer pessoa que tenha sentido do estilo, tem de
crimes e pecados. A referida obra estabelece compreender que não é meu.”. Além disso, Pietro
as leis como parâmetros únicos para regulação redigiu monção, em 1796, sugerindo que fosse
das relações e suplícios e, corajosamente para o erguido um monumento de reconhecimento ao
período histórico, declara a inutilidade da pena Marquês, que já havia falecido.
de morte. Ele acreditava que a privação de liber- Percebe-se, portanto, que não há que se
dade gerava um efeito muito mais relevante so- falar em originalidade quanto às ideais de Bec-
cialmente do que a própria pena de morte, uma caria, já que o Marquês apenas reproduziu aqui-
vez que a uma pessoa privada de sua liberdade lo que aprendeu com os irmãos Verri durante a
faria com que a sociedade lembrasse todos os sua passagem pela Accademia dei Pugni. Toda-
dias da conduta do transgressor e, portanto, te- via, é impossível negar que o modo como Bec-
ria um caráter inibitório muito mais eficaz. caria apresentou os princípios criminológicos
em questão foi cuidadosamente primoroso, fato
É possível dizer, sobretudo, que as obras escri- este que levou a obra à ascensão.
tas por Beccaria muito provavelmente não exis- Ainda que as ideias reproduzidas por Beccaria
tiriam sem a Accademia dei Pugni9. Grande parte em “Dos Delitos e das Penas” fossem pouco ori-
do conteúdo de “Dos Delitos e Das Penas”, assim ginais, suas palavras foram cirúrgicas contra o
como o estímulo para escrevê-lo, vieram dos ir- sistema penal vigente à época, já que influen-
mãos Verri. Apesar da longa parceria existente ciaram diretamente diversas reformais penais,
entre Beccaria e os irmãos Verri10, o rompimento como, por exemplo, a abolição da tortura em
entre eles aconteceu após a viagem do Marquês diversos Estados: Rússia, em 1766, com a refor-
para Paris, onde o mesmo foi reconhecimento ma penal empreendida por Catarina II; Áustria,
por toda a ilustração francesa. A partir de então, em 1776, por ordem da imperatriz Maria Teresa;
Alessandro e Pietro passaram a atacar Beccaria França, em 1780, por ordem de Luís XVI; etc.
em suas correspondências, sempre com ácidas Salienta-se, por fim, que embora seja inegável a
críticas a sua obra e a sua pessoa. Impressiona o influência de Beccaria e de seus companheiros
teor das críticas feitas pelos irmãos Verri, relata- ideológicos nas reformas penais supracitadas,
das por Calamandrei, que as define como “trinta não se pode esquecer que os iluministas não
anos de maledicentes correspondências”. Perce- foram teóricos herméticos, alheios ao que se
be-se que a verdadeira razão do rompimento é o passava a seu redor; muito pelo contrário, eram
êxito de “Dos Delitos e das Penas”. constantemente perseguidos pela dura realida-
Em razão da ruptura supracitada, muito de social. O ambiente era propício para o surgi-
se discutiu acerca da autenticidade de “Dos Deli- mento de tais ideias, de modo que tais reformas
tos e das Penas”, tendo alguns doutrinadores, in- penais não eram fatos isolados, tampouco me-
clusive, afirmado que os verdadeiros autores da ramente decorrentes de obras iluministas. Ha-
obra seriam os irmãos Verri. Entretanto, não há via uma tendência generalizada, uma convicção
o que se questionar quanto à autenticidade do europeia predominante.
livro, já que o próprio Pietro admitiu que Becca-
ria teria sido o autor: “O livro o fez Beccaria; qual- À vista disso, é possível inferir que, tanto os ir-
mãos Verri, como o Beccaria, foram alguns dos
9 Academia dos Punhos, cujo objetivo era combater as ideias principais responsáveis por difundir novas con-
conservadoras da época. Nos encontros intelectuais da
Academia, Beccaria conheceu a crueldade do sistema penal
cepções de matriz iluminista no direito penal,
vigente da época, graças aos relatos de Alessandro, que exercia estando seus pensamentos, críticas e proposi-
o cargo de protetor dos encarcerados. ções concentrados didaticamente em “Dos De-
10 Apesar de a obra de Beccaria ter sido influenciada pelos
irmãos Verri, houve o rompimento entre eles. Além dos irmãos
litos e das Penas”. Além de ter tido uma enorme
Verri, destacadamente Pietro, Beccaria foi influenciado pelas repercussão à época de sua publicação, tal obra
ideias de Montesquieu e Rosseau.

28
influenciou, ainda, pensadores subsequentes, Assim, para a Escola Clássica o homem é um
inclusive até a contemporaneidade. ser livre e, portanto, dotado de condições ple-
nas para escolher entre o bem e o mal (livre ar-
Em sentido comum ao pensamento de Beccaria, bítrio). Segundo este entendimento, se o homem
em 1859, outra obra de sólida referência liberal comete um crime, o fato deve-se única e exclu-
foi publicada. Trata-se do Programma del Cor- sivamente a uma escolha pessoal, não cabendo
so de Diritto Criminale, de autoria de Francesco explicações outras (BARATTA, 2014). Esta linha
Carrara (1907), um dos principais ícones históri- de pensamento utilizava um método raciona-
cos do direito penal italiano e cujo pensamento lista, partindo da observação geral para um fato
exerceu influência direta sobre a formulação do específico, de forma que o ato-crime foi mais
II Código Criminal Italiano, publicado em 1889. evidenciado do que o criminoso em si.
Um progresso importante realizado nesse perí-
O legado de Carrara obteve projeção e reper- odo foi a valorização da defesa do indivíduo con-
cussão internacional, notadamente no tocante tra as arbitrariedades do Estado, pois através da
à concepção de crime como um ente exclusiva- lei os indivíduos (as) sabiam o que podia fazer e
mente jurídico e suas inúmeras manifestações o que não podia fazer, tendo segurança jurídica,
e publicações contrárias à pena capital. S o b r e pois, agora, crime é aquela conduta prevista em
isso afirma o autor: a lei.

Definido o crime como entidade jurídica, Segundo (BECCARIA, 2003, p. 27) “as leis são as
estabeleceu-se de vez o limite perpétuo condições em que os homens isolados e inde-
da proibição; não poder reconhecer um pendentes se uniram em sociedade, cansados
crime, exceto naquelas ações que ofen- de viver em um contínuo estado de guerra e de
dem ou ameaçam os direitos dos associa- gozar de uma liberdade que não tinham certeza
dos. E como a lei não pode ser atacada se- da utilidade de conservá-la”. Assim, o cri-
não por atos externos procedentes de uma
minoso é um cidadão normal, dotado de livre ar-
vontade livre e inteligente, esta primeira
bítrio e que, ao delinquir, rompe o contrato social
Passagens. o conceito veio estabelecer a
necessidade constante em todo crime de autorizador do seu convívio coletivo, afrontando,
suas duas forças essenciais: inteligência assim, todo o corpo social que o circunda, do
e livre arbítrio; fato externo lesivo ao direi- qual deve ser reparado. Sua traição requer uma
to, ou perigoso ao mesmo (CARRARA, 1907, resposta do Estado defensor da sociedade, o
p. 12). qual deve lhe infringir um sofrimento que o faça
“pagar” pelo mal cometido (natureza retributiva),
A noção de pena como repressão ao dano cau- evitando a reincidência e servindo de exemplo
sado está fundamentada em dois pilares teó- para que os demais não busquem o mesmo ca-
ricos do universo jurídico: o jusnaturalismo e o minho (caráter intimidador). No temor do casti-
contratualismo. O primeiro toma por pressu- go se assentava a esperança de inibir ações re-
posto o direito como algo natural, imutável e uni- fratárias ao pacto de convivência.
versal. Além disso, concebe o homem como ser
natural (indivíduo), a-histórico, desembaraçado A teoria do Contrato do Contrato Social pressu-
de atravessamentos sociais e, portanto, autô- põe a igualdade absoluta entre todos os homens.
nomo. O segundo, compreende o Estado como Sob a concepção de que o delinquente rompeu
fruto de um grande pacto firmado tacitamente o pacto social, cujos termos supõe-se que tenha
entre os cidadãos que, em prol de sua seguran- aceito, considera-se que se converteu em inimi-
ça coletiva, cederiam parcelas de sua liberdade go da sociedade.
individual.

29
Assim, o contratualismo11 fundamenta-se em é uma violação do direito, a defesa contra este
três pressupostos básicos: 1) postula um con- crime deverá se encontrar no seu próprio seio.
senso entre os homens racionais acerca da mo- A pena não pode ser arbitrária, desproporcional;
ralidade e da imutabilidade da atual distribuição deverá ser do tamanho exato do dano causado,
de bens; 2) todo comportamento ilegal produzi- deve se também retributiva, porém a figura do
do em uma sociedade é patológico e irracional: delinquente não é importante.
comportamento típico de pessoas que, por seus
defeitos pessoais, não podem celebrar contratos Conclui-se sobre as ideias da Escola Penal Clás-
(daí, a ideia da pena como sanção para reabilitar sica que o crime é uma violação do Direito, de
o delinquente); 3) os teóricos do contrato social forma que a defesa contra este ato provém do
tinham um conhecimento especial dos critérios próprio ordenamento jurídico. A pena como
para determinar a racionalidade ou irracionali- meio de tutela jurídica deve ser retributiva e não
dade de um ato. Esses critérios seriam defini- pode ser arbitrária ou desproporcional. Por fim,
dos através de um conceito de utilidade. o criminoso não se mostra como objeto primor-
Nas palavras de Bittencourt, dial de estudo, tendo em vista que realiza o ato
conscientemente utilizando o livre-arbítrio.
A teoria do Contrato Social representou
um marco ideológico adequado para a 3. PARADIGMA DA
proteção da burguesia nascente, insis- INDIFERENCIAÇÃO/
tindo, acima de tudo, em recompensar a
DISCERNIMENTO DE MENORES
atividade proveitosa e a castigar a preju-
dicial. Em outras palavras, não fez mais EM CONFLITO COM A LEI
do que legitimar as formas modernas de
tirania (2008, p. 33). Cabe destacar ainda que neste período não exis-
tiam leis e penas específicas para as crianças e
O contrato social, amparado da ideologia do li- adolescentes infratores, que eram tratados da
beralismo, era tido como expressão da absoluta mesma forma que os adultos, caso já tivessem
liberdade humana. Conforme explica, (Rosa Del alcançado a idade mínima para serem conside-
Olmo, 2004) dentro desse esquema, “o indivíduo radas culpados por seus atos.
que recusa a ordem social é um indivíduo que
recusa ser livre e, portanto, é perverso. A per- No antigo Direito Romano12, no Direito Canôni-
versão pode ter causas distintas, mas dá direito co13, no Direito Inglês14 do século XVI (ESCAN-
a obrigar o indivíduo a ser livre e em caso de re- DÓN, 2006) e nas Ordenações Filipinas15, vi-
beldia a tratá-lo como um animal irracional. gentes no Brasil de 1603 a 1830 (SARAIVA, 2009),
Assim, para Carrara crime é uma ofen- essa maioridade penal, ou idade da razão, cor-
sa a lei decorrente do mal uso do livre arbítrio. respondia aos sete anos de idade. Acima des-
Sendo a pena um conteúdo necessário do di-
reito. É o mal que a autoridade pública inflige a 12 É o nome que se dá ao conjunto de princípios, preceitos e
leis utilizados na antiguidade pela sociedade de Roma e seus
um culpado por causa de seu delito. A pena é
domínios.
meio de tutela jurídica, desta forma, se o crime 13 É o conjunto de leis que rege a estrutura institucional da
Igreja Católica Apostólica Romana. Ele regulamenta todos os
11 É um modelo teórico criado para explicar o surgimento da
segmentos da vida eclesiástica; sua organização, governo,
sociedade. Esta teoria é baseada na ideia de que os seres
ensino, culto, disciplina e práticas processuais.
humanos viviam em um estado pré-social, chamado de
14 É o sistema jurídico da Inglaterra e Gales e é a base da
estado de natureza e abandonaram-no para firmar um pacto,
common law, um sistema legal.
o contrato social. As teorias do contratualismo surgem da
15 As Ordenações Filipinas, ou Código Filipino, é uma
necessidade de explicar o fato dos seres humanos terem se
compilação jurídica que resultou da reforma do código
organizado em torno de sociedades regidas por leis criadas
manuelino, por Filipe II de Espanha, durante o domínio
pelo Estado.
castelhano. Ao fim da União Ibérica, o Código Filipino foi
confirmado para continuar vigendo em Portugal por D. João IV.

30
ta idade, a criança já podia ser punida. Abaixo pedir, excluir, suprimir; [...] elas estão ligadas a
não, pois nesses anos iniciais se supunha que toda uma série de efeitos positivos e úteis que
o sujeito não dispusesse de plena capacidade elas têm por encargo sustentar [...]” (FOUCAULT,
de discernimento e autodeterminação perante 2000, p. 27).
seus atos.
As condutas classificadas como O encarceramento, no período colonial, não se
crimes, pelas ordenações, coincidiam, segundo configurava como uma forma de pena. Exis-
(SILVA, 2011), com os comportamentos conside- tiam cadeias, mas estas eram utilizadas apenas
rados pecaminosos pela Igreja. Tal homologia, como espaços de custódia9, nos quais, os pre-
de acordo o mesmo autor, deveria ser encarada sos ficavam à disposição da justiça, aguardando
como uma das formas de expressão jurídica da o término do julgamento ou a execução da puni-
superposição dos poderes secular e religioso. ção. (AGUIRRE, 2009).
A apenação, segundo o Capítulo V [...] as cadeias não eram instituições de-
das Ordenações Filipinas, iniciava-se aos sete masiadamente importantes dentro dos
anos de idade. Até os dezessete, os menores es- esquemas punitivos implementados pe-
tavam livres da pena de morte, entre essa idade las autoridades coloniais. Na maioria dos
e os vinte e um anos, eles deveriam ser subme- casos, tratava-se de meros lugares de de-
tidos ao sistema de “jovem adulto”. Neste havia tenção para suspeitos que estavam sen-
a possibilidade de condenação a pena capital, do julgados ou para delinquentes já con-
ou, a depender das circunstâncias, a redução da denados que aguardavam a execução da
pena. (ARRUDA, 2011; SARAIVA, 2009). sentença. Os mecanismos coloniais de
castigo e controle social não incluíam as
De acordo com Irene (RIZZINI, 2009), apesar da prisões como um de seus principais ele-
menoridade ter atuado como um atenuante, as mentos. [...] Localizadas em lugares féti-
crianças foram severamente punidas, no decor- dos e inseguros, a maioria das cadeias co-
rer do período colonial. loniais não mantinha sequer um registro
dos detentos, das datas de entrada e saída,
O objetivo das penas, na opinião de Antônio Luiz da categoria dos delitos e sentenças. [...]
Paixão (1987 apud SILVA, 2011), era o de “intimi- o encarceramento de delinquentes duran-
dar pelo terror”, motivo, pelo qual, as penas cru- te o período colonial foi uma prática social
éis (inclusive a morte8) estariam associadas à [...] destinada simplesmente a armazenar
uma série de títulos da lei. Entretanto, este ob- detentos, sem que se tenha implementa-
jetivo, para outros autores, seria apenas o mais do um regime punitivo institucional que
buscasse a reforma dos delinquentes.
evidente. Muito mais do que a “intimidação pelo
(AGUIRRE, 2009, p.38-39).
terror”, a rigidez punitiva visava a legitimação
do sistema de dominação. (SILVA, 2011) Dito de Não obstante, é importante ressaltar que havia
outra maneira, a previsão das penas cruéis, em outro aspecto, presente na maioria dos códigos
vários títulos, expressava a função política que penais retribucionistas do século XIX: a impu-
elas desempenhavam e que transcendia o eixo tabilidade relativa. Tratava-se de um intervalo
punitivo-intimidador. etário, no qual caberia ao juiz decidir, intuiti-
vamente, sobre o discernimento do réu. Desse
A manutenção do sistema de dominação era o
modo, tem-se que o magistrado decidia sobre
resultado positivo das práticas punitivas que
a condenação ou a absolvição. No Brasil, o Có-
não se limitavam a castigar ou “intimidar pelo
digo Penal do Império16, de 1830, estabelecia
terror”. Como afirmou Michael Foucault, “as me-
didas punitivas não são simplesmente meca- 16 O Código Criminal do Império do Brasil foi sancionado
nismos ‘negativos’ que permitem reprimir, im- pela lei de 16 de dezembro de 1830, substituindo o livro V das
Ordenações Filipinas (1603), codificação penal portuguesa que

31
esse intervalo entre os sete e os quatorze anos; e pelos senhores de terras, mais também, como
o Código Penal da República, de 1890, entre nove esclarece Mary Del Priori (1999), foram utilizados
e quatorze. Uma vez sentenciada à prisão, a pelo patriarca, no espaço privado da casa. No
criança se misturava, indistintamente, com os ambiente familiar, os castigos físicos eram prá-
adultos do cárcere (GOMES, 2009). ticas habituais, sendo administrados na educa-
ção dos filhos. “As ‘disciplinas’, os bolos e belis-
Na aplicação das penas, levava-se em conta o cões revezavam-se com as risadas e mimos.”
fato de as pessoas serem formalmente desi- (DEL PRIORI, 1999, p. 98).
guais. A sociedade colonial era organizada hie-
rarquicamente e isso implicava em tratamentos O castigo físico em crianças não era ne-
distintos para cada categoria social. Os infrato- nhuma novidade no cotidiano colonial.
res de posições elevadas eram imunes a penas Introduzido, no século XVI, pelos padres
corporais, sendo castigados, em geral, com pe- jesuítas, para horror dos indígenas que
nas leves, já os de categoria social inferior eram desconheciam o ato de bater em crianças,
a correção era vista como uma forma de
submetidos a penas pesadas e humilhantes. A
amor. O “muito amor” devia ser repudia-
posição social ocupada influía, na verdade, des-
do. Fazia mal aos filhos. [...] O amor de pai
de o início do processo judicial, na medida em
devia inspirar-se naquele divino no qual
que um crime poderia não ser avaliado como tal, Deus ensinava que amar “é castigar e dar
a depender de quem o tivesse cometido. (SILVA, trabalhos nesta vida”. Vícios e pecados,
2011). mesmo cometidos por pequeninos, de-
viam ser combatidos com “açoites e casti-
[...] a noção de crime implicava a ruptura
gos”. (DEL PRIORI, 1999, p. 97).
das normas reais e dos princípios cristãos,
entretanto, ressaltamos que essa conduta Na segunda metade do século XVIII, com o esta-
tenderia a ser interpretada de modo tão belecimento das chamadas Aulas Régias, à pal-
mais ofensivo quanto menor fosse a ca-
matória passou a ser utilizada pelos professores
tegoria social do infrator. Enfim, no direito
como instrumento no processo educativo. (DEL
pré-moderno, a conduta inimiga que de-
safiava o poder soberano sujeitava o seu PRIORI, 1999).
autor a punições cruéis que se intensifi-
cariam na proporção da desqualificação 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
social do criminoso e que se atenuariam
segundo as qualidades do infrator. (SILVA, Conforme foi abordado, não existiu propria-
2011, p.25). mente uma Escola Clássica, que foi assim de-
As medidas punitivas privadas, tais como as nominada por Ferri, um positivista). Os, assim
previstas pelas Ordenações, visavam castigar, denominados, Clássicos, partiram de duas teo-
intimidar, mas, sobretudo, permitir a manuten- rias distintas: o jusnaturalismo, baseava-se no
ção do sistema de dominação vigente. Além direito natural, que decorria da natureza eterna
dos objetivos comuns, elas compartilhavam de e imutável do ser humano, e o contratualismo
um mesmo espaço de atuação, o corpo, “obje- (contrato social ou utilitarismo, de Rousseau), em
to” tangível, sobre o qual se aplicavam uma boa que o Estado surge a partir de um grande pacto
parte das punições. entre os homens, no qual estes cedem parcela
Os castigos físicos parecem mesmo ter feito de sua liberdade e direitos em prol da segurança
parte do ethos da sociedade colonial. Esses não coletiva.
foram empregados apenas pelo poder colonial Cabe destacar ainda que a burguesia em as-
continuou em vigor depois da Independência (1822), seguindo censão procurava afastar o arbítrio e a opressão
determinação da Assembleia Nacional Constituinte de 1823.

32
do poder soberano com a manifestação desses turava, indistintamente, com os adultos do cár-
seus representantes através da junção das duas cere. O período da indiferenciação perdura até
teorias, que, embora distintas, igualavam-se no o final do século XIX, embora há bastante tempo
fundamental, isto é, a existência de um sistema se verifiquem incipientes exemplos de atenua-
de normas anterior e superior ao Estado, em ção penal, em decorrência da branda idade do
oposição à tirania e violência reinantes. réu.

Está-se diante de um Direito Penal que procla- Espera-se que o objeto de estudo desenvolvido
ma a construção de uma sociedade justa, não e as conclusões a que chegou à pesquisa opor-
apenas punindo o agente do delito, mas tam- tunizem ao estudioso do Direito Penal uma for-
bém evitando a prática de crimes, pois uma so- mação crítico-humanística, despertando novos
ciedade justa e fraterna não é aquela que pune estudos acerca dos princípios que regem o or-
os criminosos, mas, sobretudo, aquela que evita denamento jurídico-penal brasileiro.
que os crimes sejam praticados.

Tal “escola” situa-se na chamada fase pré-cien-


tífica da Criminologia, pois vale-se do método
abstrato, dedutivo e formal. A etapa pré-cientí-
fica da criminologia foi marcada por uma abor-
dagem acidental e superficial do delito, e tinha
duas formas de abordagens: a de caráter filosó-
fico, ideológico ou político e as de natureza em-
pírica.

A escola clássica tem por objeto de estudo o


delito, visto como fato individual, isolado, mera
infração à lei. A aplicação da pena surge como
consequência lógica do descumprimento ao
ordenamento jurídico e tem como tração mar-
cante a ideia de livre arbítrio. O homem é visto
como um ser racional e livre, e a teoria do pacto
social é tida como fundamento da sociedade e
do poder.

Os clássicos não se interessam pelos os motivos


que levam à criminalidade, não se preocupan-
do com a etiologia do fenômeno criminoso sen-
do incapazes de fornecer aos poderes públicos
as informações necessárias para um programa
político-criminal de prevenção e luta contra o
crime. Ainda neste período, não existiam leis e
penas específicas para as crianças e adoles-
centes infratores, que eram tratados da mesma
forma que os adultos, caso já tivessem alcan-
çado a idade mínima para serem considerados
culpados por seus atos.

Uma vez sentenciada à prisão, a criança se mis-

33
AGUIRRE, Carlos. Cárcere e sociedade na América Latina, 1800-1940. In: BRETAS, Marcos Luiz.
et al. Histórias das Prisões Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. p. 35-75.
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VIANA, Eduardo. Criminologia. 6. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.

34
04
COMO É DETERMINADA A BASE DE CÁLCULO DO IMPOSTO
SOBRE TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS – ITBI NOS CASOS
DE INTEGRALIZAÇÃO DE BENS IMÓVEIS NO CAPITAL SOCIAL
DE HOLDINGS E SOCIEDADES EMPRESÁRIAS À LUZ DA
JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES?
O presente estudo traz à discussão a incidência do ITBI nos casos de integralização de bens imó-
veis no capital social de sociedades empresárias e Holding, assunto que é objeto de controvérsia
nos municípios brasileiros, principalmente em relação à sua base de cálculo e ao momento do pa-
gamento. As Holdings revelam-se como estrutura cada vez mais presente na sociedade contem-
porânea, especialmente por facilitar a governança corporativa, gestão patrimonial e organização
sucessória, impactando diretamente o direito público e privado.

Palavras-chave
Integralização de bens imóveis no capital social de sociedades empresárias e Holdings - Imposto
sobre Transmissão de Bens Imóveis – ITBI - Imunidade - Jurisprudência do Supremo Tribunal Fe-
deral – STF - Superior Tribunal de Justiça - STJ.
Felipe Gonsales
Advogado tributarista em projetos de consultoria planejamento tributário, e advocacia contenciosa
administrativa e judicial voltada para implantação de teses visando a redução da carga tributária, e
administração de passivo tributário.
Júlia Herrera Firetti
Advogada formada em Direito pela Universidade Paulista - UNIP, em 2015. Concluiu a Pós-Gradua-
ção em Processo Civil pela Escola Superior de Advocacia - ESA em 2018. Coordenadora do Departa-
mento Societário de empresa de Consultoria Empresarial.

35
1. INTRODUÇÃO ou não. Essa questão merece uma análise mais
detalhada para compreendermos os contornos
A Holdings se estrutura de maneira concisa se- dessa tributação e suas implicações no âmbito
guindo as seguintes etapas: (i) criação de uma das operações imobiliárias e societárias2.
sociedade empresarial, geralmente de respon-
sabilidade limitada, composta por membros de 2. DESENVOLVIMENTO
um núcleo familiar; (ii) incorporação de ativos,
tangíveis e/ou intangíveis, como bens móveis e/ O Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis
ou imóveis, ao patrimônio da Holdings; (iii) es- – ITBI é um tributo que gera bastante controvér-
tabelecimento de uma governança societária sia no cenário das políticas fiscais estabelecidas
para garantir o controle patrimonial e político a pelos municípios brasileiros.
um sócio específico, conforme as necessidades
do caso concreto; e (iv) transferência ao longo São vários os fatores que turvam a inteligência
do tempo, ou de forma imediata, das cotas dos dos aspectos das regras de incidência tributária
sócios a outros membros da família (geralmente do imposto, fomentando acirrados embates en-
dos ascendentes para os descendentes/herdei- tre os contribuintes e os Fiscos municipais, que
ros legais), de modo a transmitir também o patri- se iniciam nas esferas administrativas, e, inva-
mônio contido na Holdings1. riavelmente, são solucionadas pelo Poder Judi-
ciário.
Nesse contexto, ao desenvolver o planejamento
(fases “ii” e “iv”), pode surgir a incidência de dois As discussões envolvem, principalmente, os as-
tributos: o Imposto sobre Transmissão de Bens pectos temporais (quando o imposto deve ser
Imóveis (ITBI) e o Imposto sobre Transmissão recolhido?) e quantitativo (qual a base de cál-
Causa Mortis e Doação (ITCMD ou ITCD). culo a ser utilizada?) da hipótese de incidência
tributária, e, frequentemente, desbordam para
O Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), questões registrais (em qual momento o impos-
em linhas gerais, incide quando há a transferên- to deve ser recolhido? Na lavratura da escritura
cia “onerosa” de um bem imóvel de uma pessoa pública? No momento do registro na matrícula?).
para o patrimônio de outra. No contexto de uma
Holdings, essa incidência pode ocorrer quando Dadas as múltiplas controvérsias que orbitam o
um indivíduo transmite um bem imóvel para a assunto, buscaremos, por meio do presente arti-
empresa - como parte da integralização de ca- go, trazer à tona a discussão sobre qual a efetiva
pital. base de cálculo do ITBI nos casos de integrali-
zação de bem imóvel no capital social de socie-
Já o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis dades empresárias e Holdings à luz da jurispru-
e Doação (ITCMD ou ITCD) incide quando há a dência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do
transmissão de um bem, seja ele móvel ou imó- Superior Tribunal de Justiça (STJ).
vel, por meio de doação ou herança, para outra
pessoa. No cenário da Holdings, o ITCMD incide O Imposto sobre a Transmissão de Bens Imó-
quando um dos sócios realiza a doação total ou veis e de Direitos a ele Relativos - ITBI é imposto
parcial de suas cotas para outro sócio. de competência municipal, que incide sobre a
transmissão de bens “inter vivos”, a qualquer tí-
Todavia, o foco central deste artigo recai sobre o tulo, por ato oneroso, da propriedade ou domínio
ITBI e sua complexidade quanto à sua incidência
2 MIGALHAS. Holding e ITBI: a consolidação de um novo
1 CONJUR. Ana Paula Babbulin: Planejamento sucessório entendimento. Migalhas, São Paulo, 1 set. 2021. Disponível em:
e holding familiar. Disponível em: https://www.conjur. https://www.migalhas.com.br/depeso/387535/holding-e-itbi-
com.br/2022-mar-20/ana-paula-babbulin-planejamento- a-consolidacao-de-um-novo-entendimento. Acesso em: 29
sucessorio-holding-familiar. Acesso em: 29 jul.2023. jul. 2023.

36
útil de bens imóveis e de direitos a eles relativos, I - quando efetuada para sua incorporação
consoante infere-se do art. 156, II da Constitui- ao patrimônio de pessoa jurídica em pa-
ção Federal. gamento de capital nela subscrito;

Nesta linha, o § 2º, inciso I do artigo 156 da Cons- Art. 37. O disposto no artigo anterior não se
tituição Federal, dispõe que não incide o referido aplica quando a pessoa jurídica adquiren-
te tenha como atividade preponderante a
imposto de competência municipal, quando da
venda ou locação de propriedade imobili-
integralização de bens imóveis no capital social
ária ou a cessão de direitos relativos à sua
de pessoa jurídica (transmissão de bens e/ou di-
aquisição.
reitos):
§ 1º Considera-se caracterizada a ativi-
“Art. 156. Compete aos Municípios instituir dade preponderante referida neste artigo
impostos sobre: quando mais de 50% (cinqüenta por cento)
(...) da receita operacional da pessoa jurídica
adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e
II - transmissão “inter vivos”, a qualquer tí- nos 2 (dois) anos subseqüentes à aquisi-
tulo, por ato oneroso, de bens imóveis, por ção, decorrer de transações mencionadas
natureza ou acessão física, e de direitos neste artigo.
reais sobre imóveis, exceto os de garantia,
bem como cessão de direitos a sua aqui- § 2º Se a pessoa jurídica adquirente ini-
sição; ciar suas atividades após a aquisição, ou
menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-
(...) -se-á a preponderância referida no pará-
grafo anterior levando em conta os 3 (três)
§ 2º O imposto previsto no inciso II: primeiros anos seguintes à data da aqui-
sição.
I - não incide sobre a transmissão de bens
ou direitos incorporados ao patrimônio de § 3º Verificada a preponderância referida
pessoa jurídica em realização de capital, neste artigo, tornar-se-á devido o imposto,
nem sobre a transmissão de bens ou di- nos termos da lei vigente à data da aquisi-
reitos decorrente de fusão, incorporação, ção, sobre o valor do bem ou direito nessa
cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo data.
se, nesses casos, a atividade preponde-
rante do adquirente for a compra e venda § 4º O disposto neste artigo não se aplica
desses bens ou direitos, locação de bens à transmissão de bens ou direitos, quando
imóveis ou arrendamento mercantil;”3 realizada em conjunto com a da totalidade
do patrimônio da pessoa jurídica alienan-
Regulamentando o dispositivo constitucional, o te.”
Código Tributário Nacional – CTN estabelece, em
seus artigos 36, inciso I e 37, § 1º, os requisitos ne- É de praxe observarmos que os argumentos
cessários para afastar a incidência do imposto utilizados pelos municípios para cobrança do
nos casos em que os bens imóveis forem desti- imposto são basicamente dois: (i) que a pessoa
nados à integralização do capital social: jurídica a quem se está transferindo determina-
do bem imóvel tenha atividade preponderante-
“Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo mente imobiliária, pelo simples fato de constar
seguinte, o imposto não incide sobre a o objeto social da mesma o Código Nacional de
transmissão dos bens ou direitos referidos Atividade Econômica - CNAE de natureza imo-
no artigo anterior: biliária, utilizando-se da parte final do inciso I,
3 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ § 2º, do artigo 156, da Constituição Federal; e (ii)
constituicao.htm: acesso em 29/09/2023, às 11h48.

37
que ”a imunidade em relação ao Imposto sobre considerando o valor do bem ou direito nessa
Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), prevista no data.
inciso I do § 2º do artigo 156 da Constituição Fe-
deral, não alcança o valor dos bens que exceder Apesar disso os municípios, muitas vezes, consi-
o limite do capital social a ser integralizado”, em deram que apenas pelo fato de constar no objeto
razão do julgado de agosto de 2020 pelo Supre- social da sociedade ou Holdings, ou no Compro-
mo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário vante de Inscrição e de Situação Cadastral da
nº 796.376 (Tema 796), com repercussão geral. Receita Federal algum Código Nacional de Ativi-
dade Econômica - CNAE relacionado à atividade
Na primeira circunstância apresentada, a aná- imobiliária, há a incidência do ITBI na hipótese
lise correta a ser feita pelo município deverá, no de integralização de bem imóvel no capital so-
entendimento dos Autores deste artigo, seguir o cial, utilizando-se como fundamento para sua
disposto no artigo 37 do Código Tributário Na- cobrança a parte final do Inciso I do § 2º, do arti-
cional (CTN), que estabelece os critérios para go 156, da Constituição Federal.
aferir a preponderância de atividades imobiliá-
rias para aferir a incidência ou não do Imposto Apesar disso, não se pode perder de vistas o
sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) quan- voto do Ministro Alexandre de Moraes, do Supre-
do a pessoa jurídica possui receita operacional mo Tribunal Federal, por meio do julgamento do
decorrente de atividades imobiliárias, como a RE nº 796.376, que resultou na fixação do Tema
comercialização ou aluguel de propriedades 796. Em sua ratio decidendi posicionou-se, no
imobiliárias ou a transferência de direitos rela- sentido de que, para fins de incidência do ITBI,
cionados a elas, embora concordemos que seja a preponderância das atividades imobiliárias
possível a discussão judicial pelos motivos a se- diz respeito apenas às figuras de incorporação,
guir expostos. cisão ou fusão, aplicando-se de forma irrestrita
a imunidade nos casos de integralização do ca-
Ou seja, em linhas gerais, para determinar a pital social, ainda que a empresa possua como
preponderância de receitas operacionais de atividade econômica preponderante as ativida-
natureza imobiliária, existem dois critérios que des de natureza imobiliária, conforme é possível
consideram o tempo de atividade da sociedade observar:
empresarial ou Holdings:
“É dizer, a incorporação de bens ao patri-
(i) A atividade imobiliária será considerada pre- mônio da pessoa jurídica em realização
ponderante quando mais de 50% (cinquenta por de capital, que está na primeira parte do
cento) da receita operacional da pessoa jurídica inciso I do § 2º, do art. 156 da CF/88, não
adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 se confunde com as figuras jurídicas so-
cietárias da incorporação, fusão, cisão ou
(dois) anos subsequentes à aquisição, provenha
extinção de pessoas jurídicas referidas na
de transações relacionadas à venda, locação ou
segunda parte do referido inciso I.
cessão de direitos sobre propriedades imobiliá-
rias; e (ii) Se a pessoa jurídica adquirente iniciar Nesses últimos casos, há, da mesma for-
suas atividades após a aquisição, ou menos de ma, incorporação de bens, mas que de-
2 (dois) anos antes dela, a preponderância será corre da ‘incorporação que é uma opera-
avaliada considerando os 3 (três) primeiros anos ção pela qual uma ou mais sociedades são
após a data da aquisição. absorvidas por outra, que lhes sucede em
todos os direitos e obrigações’ (art. 227 da
Caso a preponderância mencionada seja cons- Lei 6.404/1976 – Lei de Sociedades Anôni-
tatada, o imposto devido será calculado com mas); cisão – operação pela qual uma so-
base na legislação vigente à data da aquisição, ciedade transfere parte de seu patrimônio

38
para uma ou mais empresas (art. 229 da imóveis integralizados superasse o valor do ca-
Lei das S.A); ou fusão – operação pela qual pital a ser subscrito, razão pela qual não vincu-
se unem duas ou mais sociedades para lou a orientação dos Tribunais sobre o assunto,
formar uma nova sociedade que lhe su- apesar de sinalizar o entendimento preponde-
cederá em todos os direitos e obrigações rante na Suprema Corte.
(art. 228 da Lei das S.A.).
Dessa forma, entendemos ser possível questio-
E, todas essas hipóteses, há incorporação
nar a incidência do ITBI nos casos de integrali-
do patrimônio imobiliário de uma socieda-
zação de bens imóveis no capital social de em-
de para outra, mas sem qualquer relação
com incorporação (integralização) referida presas ou Holdings, ainda que possua atividade
na primeira parte do citado inciso I, do § 2º, preponderantemente imobiliária.
do art. 156 da CF, que alude à transferência
Em prosseguimento, é possível notar que os ór-
de bens para integralização do capital.
gãos municipais quando não se beneficiam ao
Em outras palavras, a segunda oração exigir o pagamento integral do ITBI com base no
contida no inciso I – ‘nem sobre a trans- valor total do imóvel a ser transferido, optam por
missão de bens ou direitos decorrente de cobrar o ITBI sobre a diferença entre o valor de-
fusão, incorporação, cisão ou extinção de clarado do imóvel, geralmente associado ao va-
pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a lor nominal (valor contábil para fins de Imposto
atividade preponderante do adquirente for de Renda), e seu valor venal.
a compra e venda desses bens ou direitos,
locação de bens imóveis ou arrendamento Nesse sentido é o entendimento das Câmaras
mercantil’ – revela uma imunidade condi- especializadas em tributos municipais do Esta-
cionada à não exploração, pela adquiren- do de São Paulo:
te, de forma preponderante, da atividade
de compra e venda de imóveis, de locação APELAÇÃO – MANDADO DE SEGURANÇA
de imóveis ou de arrendamento mercan- – ITBI – IMUNIDADE - Integralização de
til. Isso fica muito claro quando se observa imóvel ao capital social – Holding familiar
que a expressão ‘nesses casos’ não alcan- – Administração dos bens próprios e par-
ça o ‘outro caso’ referido na primeira ora- ticipação no capital de outras sociedades
ção do inciso I do § 2º, do art. 156 da CF.” - Impossibilidade de aferição da atividade
preponderante – Ônus probatório que in-
cumbe ao Fisco, após o decurso do perí-
O voto foi acompanhado pelos Ministros Gilmar odo balizador – CTN, art. 37, parágrafos 1º,
Mendes, Luiz Fux, Rosa Weber, Dias Toffoli, Ro- 2º e 3º - Abuso de direito não evidenciado
berto Barroso e Celso de Mello, deixando claro - Implementação da holding para o plane-
que a hipótese de imunidade tributária relativa jamento tributário da sociedade - Inexis-
à integralização de bem imóvel no capital social, tência proibição – Presunção descabida
independe da atividade econômica desenvolvi- – Imunidade Reconhecida - Sentença re-
da pela empresa; fator este a ser levado em con- formada. Recurso provido, com possibili-
sideração apenas nas operações de incorpora- dade de verificação posterior para efeito
ção de imóveis aos patrimônios de sociedades do artigo 37, parágrafos 1º, 2º e 3º, do CTN.
sem aumento de capital, isto é, apenas nos ca- (TJ-SP - AC: 10013510520188260246 SP
1001351-05.2018.8.26.0246, Relator: Oc-
sos de fusão, cisão ou incorporação.
tavio Machado de Barros, Data de Julga-
Apesar disso, o objeto central do RE 796.376 foi mento: 25/11/2021, 14ª Câmara de Direito
dimensionar a extensão da imunidade em inte- Público, Data de Publicação: 26/11/2021)
gralização de capital social no qual o valor dos “Tributário Apelação Ação Anulatória ITBI

39
Município de Arujá. Insurgência contra a São Sebastião - 1a Vara Cível; Data do Jul-
r. sentença que julgou procedente a ação. gamento: 19/05/2020; Data de Registro:
Apelo do Município. Integralização de 19/05/2020)”
imóveis ao capital social - Imunidade nos
termos do artigo 156, § 2º, I da Constituição Muito se discute a respeito da amplitude da imu-
da Republica. Pretensão de reconheci- nidade conferida pela Constituição Federal nos
mento da imunidade do ITBI de sociedade casos de integralização de bem imóvel no capi-
recém- constituída Aplicabilidade do art. tal social de pessoa jurídica, e o principal ponto
37, § 2º, do Código Tributário Nacional Inci- de controvérsia reside justamente em sua base
dência do tributo sujeita a condição tem- de cálculo. Dispõe o art. 38 do Código Tributário
poral Precedentes desta C. Câmara Possi- Nacional:
bilidade de lançamento complementar ao
fim do período de três anos da aquisição “Art. 38. A base de cálculo do imposto é o
dos imóveis Necessidade, contudo, de valor venal dos bens ou direitos transmi-
comprovação contábil da preponderân- tidos.”
cia da atividade imobiliária. No caso dos
autos, o contrato social da empresa, com a De plano, é preciso diferenciar o valor venal para
descrição dos imóveis a serem adquiridos fins da incidência do IPTU, do valor venal para
para a integralização de capital, foi regis- fins da incidência do ITBI. O art. 33 do Código
trado em 03/02/2017 na Junta Comercial, Tributário Nacional define a base de cálculo do
que é a data inicial do prazo trienal a ser IPTU, como sendo o valor venal:
observado antes do lançamento do ITBI
Inexigibilidade do tributo reconhecida “Art. 33. A base do cálculo do imposto é o
Precedentes desse E. Tribunal de Justiça. valor venal do imóvel.”
Honorários recursais [...] Sentença man-
tida Recurso desprovido”. (TJSP; Apelação A partir de uma análise superficial, é fácil incor-
Cível 1002280-59.2018.8.26.0045; Relator rer na equivocada interpretação de que a base
(a): Eurípedes Faim; Órgão Julgador: 15a de cálculo para ambos os impostos é a mesma.
Câmara de Direito Público; Foro de Arujá Apesar disso, o Ministro Gurgel de Faria, do Su-
- 1a Vara; Data do Julgamento: 12/02/2021; perior Tribunal de Justiça, em seu voto no julga-
Data de Registro: 12/02/2021) mento do Recurso Especial nº 1.937.821/SP4, de
forma bastante didática, trouxe a distinção nos
“Apelação Cível - Mandado de termos seguintes:
Segurança - ITBI - Município de São Se-
bastião - Integralização de imóvel a capi- “a) a base de cálculo do ITBI está vincu-
tal social - Pretendida não incidência do lada à do IPTU?
tributo municipal, nos termos do art. 156, §
2º, inciso I, da Constituição Federal - Pro- A resposta é negativa.
cedência - Impossibilidade de se aferir a
atividade preponderante da empresa im- Não obstante a lei se refira como base de
petrante, conquanto seu objeto social te- cálculo do IPTU (Imposto Predial e Territo-
nha incluído a compra/venda e o aluguel rial Urbano) e do ITBI o ‘valor venal’, a apu-
de imóveis próprios - Inteligência do art. ração desse elemento quantitativo difere
37, § 2º, do Código Tributário Nacional - 4 STJ. Recurso Especial no 1.937.821-SP. Primeira
Sentença reformada - Ordem concedida Seção. Rel. Min. Gurgel de Faria. Julgado em 24 de
- Recurso provido”. (TJSP; Apelação Cível fevereiro de 2022. https://processo.stj.jus.br/processo/
1003336-19.2019.8.26.0587; Relator (a): Sil- julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_
tipo=91&documento_sequencial=144784493&registro_
vana Malandrino Mollo; Órgão Julgador: numero=202000120791&peticao_numero=&publicacao_
14a Câmara de Direito Público; Foro de data=20220303&formato=PDF. Acesso em: 29/07/2023, às
13h10.

40
em relação aos dois impostos, notada- Em suma, para fins de IPTU, o valor venal é o
mente diante da distinção existente entre resultado da estimativa realizada pela Fazenda
os fatos geradores e a modalidade de lan- Municipal, com base em elementos objetivos e
çamento de cada um deles. concretos existentes em seus cadastros acerca
No IPTU, tributa-se a propriedade, lançan-
de pesquisas no local, levando em consideração
do-se de ofício o imposto tendo por base imóveis com as mesmas características do imó-
de cálculo a Planta Genérica de Valores vel em discussão, desprezando as característi-
aprovada pelo Poder Legislativo local, que cas subjetivas do negócio.
considera aspectos mais amplos e objeti-
vos como, por exemplo, a localização e a Em contrapartida, para fins de ITBI, o valor venal
metragem do imóvel. é necessariamente o valor do negócio realizado,
onde até os fatores subjetivos podem interferir
Já no ITBI, a base de cálculo deve consi- na fixação do preço, como, por exemplo, a exis-
derar o valor de mercado do imóvel indi- tência de benfeitorias, estado de conservação
vidualmente considerado, que, como vis- dos interesses pessoais do vendedor (necessi-
to, resulta de uma gama maior de fatores, dade da venda para despesas urgentes, mudan-
motivo pelo qual o lançamento desse im- ça de investimentos, etc.) e do comprador (es-
posto se dá, originalmente e via de regra, cassez do imóvel na região, proximidade com o
por declaração do contribuinte, ressalva-
trabalho e/ou com familiares, etc).
do o direito da fiscalização tributária de
revisar o quantum declarado, por meio de Na mesma esteira, é frequente observar que os
regular instauração de processo adminis- municípios consideram como base de cálculo o
trativo. valor venal de referência, que consiste em valor
Em face disso, tem-se a impossibilidade previamente fixado pelo fisco municipal como
de vinculação da base de cálculo do ITBI à parâmetro para a fixação de base de cálculo do
estipulada para o IPTU, nem mesmo como ITBI. Apesar disso, o Ministro Gurgel de Faria, em
piso de tributação, pois, repita-se, o valor seu voto, igualmente concluiu pela ilegalida-
adotado para fins de IPTU considera, ape- de, trazendo as seguintes ponderações em seu
nas, os critérios fixados na Planta Gené- voto:
rica de Valores, que ‘são padrões de ava-
liação de imóveis em consonância com a “b) É legítima a adoção de valor venal de
metragem e com outros fatores, tais como referência previamente estipulado pelo
localização, acabamento e antiguidade, fisco municipal como parâmetro para a
ou seja, consistem em presunções relati- fixação da base de cálculo do ITBI?
vas, no contexto da praticabilidade tribu-
Essa resposta também é negativa.
tária, que auxiliam na fixação da base de
cálculo desse imposto’ (STF, ARE 1245097 De início, cabe refutar a alegação da mu-
RG, relator: MINISTRO PRESIDENTE, Tri- nicipalidade recorrente de que a prévia
bunal Pleno, julgado em 09/04/2020, PRO- adoção do valor venal de referência não
CESSO ELETRÔNICO DJe-102 DIVULG 27- modifica a modalidade de lançamento do
04-2020 PUBLIC 28-04-2020). imposto, que, segundo a edilidade, conti-
nuaria sendo por homologação.
Tais padrões são gerais e, por isso, embora
facilitem a arrecadação, desconsideram a Como dito antes, o lançamento do ITBI se
realidade de cada operação de transmis- dá por declaração ou por homologação.
são da propriedade imobiliária efetiva-
mente realizada, não refletindo, portanto, No caso, diversamente do afirmado pelo
o real valor de mercado da coisa.” município recorrente, a sua tributação do

41
ITBI não se dá por homologação, visto que imóvel transmitido em condições normais
não há pagamento antecipado do imposto de mercado, não estando vinculada à base
sem prévio exame do fisco, mas, ao con- de cálculo do IPTU, que nem sequer pode
trário disso, a Administração impõe ao ser utilizada como piso de tributação;
contribuinte o valor do crédito a ser reco-
lhido. b) o valor da transação declarado pelo
contribuinte goza da presunção de que é
Em verdade, ao fixar a base de cálculo condizente com o valor de mercado, que
com lastro em valor de referência previa- somente poder ser afastada pelo fisco
mente estabelecido, o fisco busca, de fato, mediante a regular instauração do pro-
realizar o lançamento de ofício do impos- cesso administrativo próprio (art. 148 do
to, o qual, todavia, está indevidamente CTN);
amparado em critérios que foram por ele
escolhidos unilateralmente e que apenas c) o Município não pode arbitrar previa-
revelariam um valor médio de mercado, mente a base de cálculo do ITBI com res-
de cunho meramente estimativo, visto que paldo em valor de referência por ele esta-
despreza as peculiaridades do imóvel e da belecido unilateralmente.”
transação que foram quantificadas na de-
claração prestada pelo contribuinte, que,
Assim, para fins de definição da base de cálculo
como cediço, presume-se de boa-fé. do ITBI, nos casos de operação de transmissão
de bens inter vivos, não pode a Fazenda Munici-
Além disso, a adoção desse valor de re- pal lançar de ofício o imposto sobre a diferença
ferência como primeiro parâmetro para entre o valor negociado entre as partes, e o valor
fixação da base de cálculo do ITBI, com a venal para fins de IPTU, ou valor venal de refe-
inversão do ônus da prova ao contribuin- rência, na medida em que a declaração do valor
te para demonstrar o contrário, subverte o negociado pelas partes goza de presunção de
procedimento instituído no art. 148 do CTN, boa-fé.
pois, a toda evidência, resulta em arbitra-
mento da base de cálculo sem prévio juízo A Fazenda Municipal, caso verifique que o pre-
quanto à fidedignidade da declaração do ço pago pelo adquirente do imóvel não reflita as
sujeito passivo. condições normais de mercado, ou que existem
Esse denominado valor venal de referên- indícios de simulação do preço no negócio ju-
cia, ou equivalente, quando muito, pode- rídico, pode, motivadamente, instaurar proce-
rá justificar a ação fiscal para apurar a dimento administrativo fiscal para apurar a real
veracidade da declaração prestada, mas, base de cálculo do imposto para então arbitrar
em hipótese alguma, pode servir para an- o valor do imposto devido, assegurando ao con-
tecipar tal juízo, porquanto, além de não tribuinte o contraditório e a ampla defesa, con-
abranger todas as áleas definidoras do va- forme prescreve o art. 148 do Código Tributário
lor de mercado daquele específico imóvel, Nacional:
acaba por subtrair a garantida do contra-
ditório assegurada ao contribuinte, cujo Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha
exercício pressupõe a prévia instauração por base, ou tome em consideração, o va-
de regular processo administrativo.” lor ou o preço de bens, direitos, serviços
ou atos jurídicos, a autoridade lançado-
Ao fim do julgamento, o Superior Tribunal de ra, mediante processo regular, arbitrará
Justiça fixou a seguinte tese, por meio do Tema aquele valor ou preço, sempre que sejam
1.113: omissos ou não mereçam fé as declara-
ções ou os esclarecimentos prestados,
“a) a base de cálculo do ITBI é o valor do ou os documentos expedidos pelo sujeito

42
passivo ou pelo terceiro legalmente obri- No caso concreto, a empresa contribuinte pre-
gado, ressalvada, em caso de contestação, tendia integralizar um capital social de R$
avaliação contraditória, administrativa ou 24.000,00 e, para tanto, utilizou um total de 17
judicial. imóveis, no valor de R$ 802.724,00. Requereu à
Prefeitura Municipal a emissão de guia de Im-
Feita essa análise a despeito da base de cálculo
posto de Transmissão de Bens imóveis (ITBI),
do ITBI, é preciso tecer algumas considerações.
com imunidade integral na transferência dos
O precedente firmado pelo Superior Tribunal de
bens.
Justiça (STJ) por meio do Recurso Especial nº
1.937.821/SP, que resultou no Tema 1.113, trouxe A tese sustentada pelo Contribuinte foi a de que
como pano de fundo uma operação de compra e a imunidade alcançaria o valor da subscrição do
venda entre particulares. O que os Autores pro- capital social (R$ 24.000,00), e também o exce-
põem por meio do apresente artigo é a extensão dente que formaria a reserva de capital.
dessa interpretação, por meio da analogia, aos
casos de integralização dos bens imóveis ao ca- O Ministro Marco Aurélio, relator do caso, con-
pital social de sociedades empresárias e Holdin- cluiu que a finalidade da imunidade prevista no
gs, conciliando-o ao entendimento firmado pelo art. 156, § 2º, inciso I da Constituição Federal, é
Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamen- facilitar o trânsito jurídico de bens considerado
to do Recurso Extraordinário nº 796.376 (Tema o ganho social decorrente do desenvolvimento
796). nacional, reconhecendo a imunidade integral
sobre a integralização, ainda que excedesse o
Portanto, chegamos ao seguinte questionamen- valor do capital social:
to: e nos casos de integralização de bem imó-
vel no capital social de sociedade empresária e “As ressalvas seriam duas: imunidade na
Holdings? Deve ser considerado o valor contábil incorporação ao capital de sociedades e
(informado na Declaração de Imposto de Renda dedução, do ITBI, do valor devido a título
Pessoa Física – DIRPF, ou Declaração de Impos- de Imposto sobre a Renda, benefício esse
to de Renda Pessoa Jurídica – DIRPJ), ou o valor não mantido na Carta de 1988.
venal do imóvel? A razão de ser da imunidade – e nada sur-
ge sem causa, princípio lógico e racional
E mais: sendo o imóvel integralizado por seu va-
do determinismo – é facilitar o trânsito ju-
lor contábil no capital social da sociedade em- rídico de bens, considerado o ganho social
presária, pode a Fazenda Municipal constituir o decorrente do desenvolvimento nacional,
crédito de ITBI sobre a diferença deste valor e do objetivo fundamental da República – arti-
valor venal, ou ainda do valor venal de referên- go 3º, inciso III, da Lei Maior.
cia?
Embora, ordinariamente, a contrapartida
O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do jul- dos sócios se exprima na figura do capital
gamento do Recurso Extraordinário com Reper- social, nem sempre isso ocorre, seja em
cussão Geral nº 796.376, por meio do voto ven- razão da vontade, seja em consequência
cedor do Ministro Alexandre de Moraes, fixou o de fatores econômicos. Nesses casos, o
Tema 796, no seguinte sentido: ágio alimentará outra conta do patrimônio
líquido, chamada reserva de capital.
“Tema 796. A imunidade em relação ao
ITBI, prevista no inciso do § 2º do art. 156 (...)
da Constituição Federal, não alcança o va-
O ágio na subscrição de cotas ou ações
lor dos bens que exceder o limite do capi-
representa investimento direto em socie-
tal social a ser integralizado.”
dade empresária, tanto quanto a integra-

43
lização de capital pura e simples, devendo Portanto, a tese que prevaleceu, fixada por meio
receber idêntico tratamento. É consagra- do Tema 796, foi a de que “A imunidade em re-
da a noção: onde houver o mesmo funda- lação ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156
mento, aplica-se o mesmo direito. da Constituição Federal, não alcança o valor dos
E nem se diga ter o constituinte, ao lan-
bens que exceder o limite do capital social a ser
çar a expressão ‘em realização de capital’, integralizado.”
afastando a interpretação teleológica ora
Observe-se que, no contexto do julgamento do
proposta. Mediante a previsão, buscou-se
RE nº 796.376, em momento algum discutiu-se
manter a incidência do ITBI em outras for-
mas de aquisição da propriedade, como a a questão da base de cálculo do ITBI: se o valor
dação em pagamento e a compra e venda contábil (admitido pela legislação do Imposto de
– situações nas quais os bens se incorpo- Renda), ou se o valor venal ou de referência. A
ram ao patrimônio da pessoa jurídica, au- discussão restringiu-se a delimitar a abrangên-
sente realização de capital.” cia da imunidade do imposto nas hipóteses de
integralização do capital em que ocorre a subs-
crição de ações ou cotas com ágio. Isto é, o valor
Ao fim, propôs a seguinte tese: “Revela-se imu-
dos bens imóveis incorporados supera o valor
ne, sob o ângulo tributário, a incorporação de
nominal nas cotas a serem subscritas, e, o exce-
imóvel ao patrimônio de pessoa jurídica, ainda
dente, é destinado à reserva de capital.
que o valor total exceda o limite do capital social a
ser integralizado”. Conforme discorrem Daniel Zugman, Frederico
Bastos e Beatriz Ghilardi, em artigo intitulado
No entanto, o Ministro Alexandre de Morais abriu
divergência para não conferir interpretação ex- “O STF, o ITBI e a integralização de imóveis ao
tensiva à imunidade, limitando-a ao valor a ser capital social”, muitos municípios vem susten-
subscrito no capital social, no que foi acompa- tando que independentemente da existência de
nhado pela maioria dos Ministros: ágio na subscrição, sempre que o valor venal, ou
o valor venal de referência for superior ao valor
“Ainda que o preceito constitucional em
contábil atribuído ao imóvel para fins de inte-
apreço tenha por finalidade incentivar a
gralização, a diferença estará sujeita à incidên-
livre iniciativa, estimular o empreendedo-
cia do ITBI.
rismo, promover a capitalização e o de-
senvolvimento das empresas, não chega Apesar disso, essa posição não se sustenta.
ao ponto de imunizar imóvel cuja destina-
Entendemos que a correta interpretação sobre
ção escapa da finalidade da norma.
o alcance da norma de imunidade deve ser in-
No caso concreto, a diferença entre o valor terpretada à luz da jurisprudência consolida-
do capital social e os imóveis incorpora- da pelo Supremo Tribunal Federal, por meio do
dos é de R$ 778.724,00. É de indagar-se a Tema 796, e pelo Superior Tribunal de Justiça,
razão pela qual uma empresa, cujo capital por meio do Tema 1.113.
social é de R$ 24.000,00, pretende consti-
tuir uma reserva de capital em montante O Supremo Tribunal Federal, por meio do Tema
tão superior ao seu capital, e, sobretudo, 796, limitou-se a declarar que a imunidade do
livre do pagamento de imposto. ITBI alcança apenas o valor a ser subscrito no
capital social. Portanto, a título de ilustração, se
Assim, não cabe conferir interpretação o que se pretende é subscrever um capital so-
extensiva à imunidade do ITBI, de modo a
cial de R$ 100.000,00, e, para tanto, o contribuin-
alcançar o excesso entre o valor do imóvel
te utiliza um imóvel cujo valor contábil seja de
incorporado e o limite do capital social a
R$ 100.000,00, haverá imunidade integral sobre
ser integralizado.”

44
a integralização. Caso o valor venal, ou o valor
venal de referência do imóvel para o município
seja de R$ 150.000,00, a Fazenda Municipal não
está autorizada a exigir o ITBI sobre essa dife-
rença de R$ 50.000,00, sob penal de violar o art.
148 do Código Tributário Nacional.

Nessa linha, deve-se conciliar à hipótese con-


creta o Tema 1.113 do Superior Tribunal de Jus-
tiça, que assegura que a declaração do valor do
imóvel pelas partes goza de presunção de bo-
a-fé. Sendo assim, caso a Fazenda municipal
entenda que o valor declarado para o imóvel
não reflita as condições normais de mercado,
ou que existem indícios de simulação do preço
no negócio jurídico, pode, motivadamente, ins-
taurar procedimento administrativo fiscal ten-
dente a apurar a real base de cálculo do imposto
para então arbitrar o valor do imposto devido,
assegurando ao contribuinte o contraditório e a
ampla defesa, conforme prescreve o art. 148 do
Código Tributário Nacional.

Em conclusão, não pode o Fisco municipal se


recusar a reconhecer a imunidade sobre a ope-
ração de integralização de bem imóvel ao capi-
tal social de sociedade empresária ou de Holdin-
gs sob o fundamento de que o valor declarado
não está condizente com o valor venal, valor ve-
nal de referência, ou valor de mercado, e exigir
o prévio recolhimento do imposto sobre essa
diferença. Deverá sim reconhecer a imunida-
de sobre a operação, e, posteriormente, poderá
instaurar procedimento fiscal na forma do art.
148 do Código Tributário Nacional, assegurando
o contraditório e ampla defesa, para então arbi-
trar o imposto que entender devido.

45
CONJUR. Ana Paula Babbulin: Planejamento sucessório e holding familiar. Disponível em: ht-
tps://www.conjur.com.br/2022-mar-20/ana-paula-babbulin-planejamento-sucessorio-holdin-
g-familiar. Acesso em: 29 jul.2023.

MIGALHAS. Holding e ITBI: a consolidação de um novo entendimento. Migalhas, São Paulo, 1


set. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/387535/holding-e-itbi-a-con-
solidacao-de-um-novo-entendimento. Acesso em: 29 jul. 2023.

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm: acesso em 29/09/2023, às


11h48.

STJ. Recurso Especial nº 1.937.821-SP. Primeira Seção. Rel. Min. Gurgel de Faria. Julgado em
24 de fevereiro de 2022. https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/docu-
mento/mediado/?documento_tipo=91&documento_sequencial=144784493&registro_nume-
ro=202000120791&peticao_numero=&publicacao_data=20220303&formato=PDF. Acesso em:
29/07/2023, às 13h10.

https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4529914. Acesso e, 30/07/2023, às


2H01.

https://www.conjur.com.br/2021-abr-27/opiniao-stf-itbi-integralizacao-imoveis-capital-so-
cial#:~:text=A%20tese%20estabelecida%20pelo%20STF,destinada%20%C3%A0%20reserva%20
de%20%C3%A1gio. Acesso em 30/07/2023, às 13h24.

46
05
AGRICULTURA DE SUBSISTÊNCIA - UMA ALTERNATIVA PLURIMA
PARA REMIÇÃO DE PENA
Este trabalho, tem como escopo analisar como a remição de pena está embricada às demandas de
ressocialização e bem estar do apenado, sobretudo, analisando como essa estrutura complexa pode
ser transformada por meio da horticultura, aplicando um modelo de agricultura de subsistência às
penitenciárias, trazendo benefícios de modo a aprender e desenvolver uma nova função de trabalho,
auxiliando no bem estar nutricional e psicológico do encarcerado, não obstante, influenciando no
ambiente interno, pois novas demandas e engrenagens de ocupação surgirão, reverberando no ce-
nário socioeconômico do Estado brasileiro, uma vez que, com a agricultura de subsistência, os ape-
nados poderão consumir, ao menos, alimentos base, substituindo o modelo atual, por um modelo
mais humanizado, com o propósito de tornarem-se os responsáveis pela alimentação da peniten-
ciária que estão encarcerados (via de mão dupla). Deste modo, os gastos fixos com a alimentação
dos encarcerados tende a diminuir, encolhendo os gastos públicos, tal qual a mão de obra que será
realizada pelos apenados utilizando-se do instituto da remissão de pena, artigo 126, parágrafo 1º, da
Lei de Execução Penal.
Palavras-chave
Remissão de Pena - Agricultura de Subsistência - Penitenciária - Ressocialização
Ingrid Adriana Bezerra de Sá

Graduada em Direito pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru.


Graduada em Alta Gastronomia pelo Instituto Gastronômico das Américas, IGA/Bauru.
Formada na especialização de “Direitos Humanos, Políticas Educacionais e Legislação” da PUC/SP.
Formada em “Educação em Direitos Humanos pela Escola de Inverno” da UFMG.
Participação ativa nas Comissões de Direito do Consumidor, Mulher Advogada, Jovem advocacia e
OAB Vai à Escola da OAB Bauru.

47
INTRODUÇÃO tigo 1º (primeiro) e do artigo 25 (vinte e cinto) da
Declaração Universal dos Direitos Humanos:
O presente texto foi confeccionado inicialmente
Artigo 1
como trabalho para a o VIII Congresso de Atua-
lização Jurídica de Bauru e Região. O objeto de Todos os seres humanos nascem livres e
pesquisa se destaca ao associar como a alimen- iguais em dignidade e direitos. São dota-
tação influencia o ser humano em sua integrali- dos de razão e consciência e devem agir
dade, relacionado ao trabalho com efeito de re- em relação uns aos outros com espírito de
mição de pena, com o propósito de analisar os fraternidade.
custos atuais em contraponto à um modelo de
Artigo 25
agricultura de subsistência para suprir as ne-
cessidades alimentares dos condenados. 1. Todo ser humano tem direito a um pa-
drão de vida capaz de assegurar a si e à
Pretende-se jogar luz sobre a complexidade da
sua família saúde, bem-estar, inclusive ali-
alimentação, bem como observar a engrenagem mentação, vestuário, habitação, cuidados
que se desenvolverá no ambiente prisional, res- médicos e os serviços sociais indispen-
ponsabilizando e ressocializando os reeducan- sáveis e direito à segurança em caso de
dos que manusearão o alimento em seu ciclo desemprego, doença invalidez, viuvez, ve-
completo, isto é, desde o plantio, até a colheita lhice ou outros casos de perda dos meios
para o consumo final, isto, sendo feito dentro das de subsistência em circunstâncias fora de
penitenciarias, reverberará no interior e no exte- seu controle.1
rior do apenado.
No que se refere ao ambiente prisional, assim
Destarte, uma análise acerca dos custos referen- como os demais cidadãos, os reeducandos pos-
tes à alimentação dos reeducandos é primordial, suem direitos assegurados, a Constituição Fe-
haja vista ser um tópico de suma importância, deral de 1988 em seu 5º, inciso XLIX dispõe:
que reflete diretamente na sociedade, sobretudo
no que diz respeito à economia e à ressocializa- Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garan-
ção dos condenados.
tindo-se aos brasileiros e aos estrangei-
O texto está dividido em cinco partes, ros residentes no País a inviolabilidade
inicialmente expõe-se o papel dos Direitos Hu- do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos
manos na sociedade contemporânea, posterior-
seguintes:
mente dispõe sobre o instituto da remição de
pena, seguido de tópicos referentes ao modelo XLIX - o preso tem direito à identificação
de agricultura de subsistência no ambiente pri- dos responsáveis por sua prisão ou por
sional, demonstrando seus benefícios multidis- seu interrogatório policial;2
ciplinares no tópico seguinte, com uma análise
de custos no tocante a alimentação, para, enfim, Além dos direitos assegurados na Carta Magna,
apresentar as conclusões. o artigo 41 da Lei de Execução Penal (LEP) tratou
de elencar outros direitos da população prisio-
OS DIREITOS HUMANOS NA SOCIE- nal igualmente importantes, quais sejam:
DADE CONTEMPORÂNEA
Os direitos humanos discorrem sobre a efetiva- 1 Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-
universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em 13 jun. 2023.
ção da proteção dos direitos básicos dos seres 2 Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
humanos, isto posto, faz-se valer a leitura do ar- constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 27 jul.
2023.

48
Art. 41 - Constituem direitos do preso: Parágrafo único. Os direitos previstos nos
incisos V, X e XV poderão ser suspensos ou
I - alimentação suficiente e vestuário; restringidos mediante ato motivado do di-
retor do estabelecimento.
II - atribuição de trabalho e sua remune-
ração;

III - Previdência Social; Ademais, a Constituição Federal dispõe sobre


os Direitos Sociais, especialmente em seu artigo
IV - constituição de pecúlio; 6º, que se refere, além de outros direitos, sobre a
alimentação e o trabalho, vejamos:
V - proporcionalidade na distribuição do
tempo para o trabalho, o descanso e a re- Art. 6º São direitos sociais a educação, a
creação; saúde, a alimentação, o trabalho, a mo-
radia, o transporte, o lazer, a segurança,
VI - exercício das atividades profissionais,
a previdência social, a proteção à ma-
intelectuais, artísticas e desportivas ante-
ternidade e à infância, a assistência aos
riores, desde que compatíveis com a exe-
desamparados, na forma desta Constitui-
cução da pena;
ção.4
VII - assistência material, à saúde, jurídica,
No que tange ao aspecto social, o instituto da
educacional, social e religiosa;
ressocialização dos apenados é intrínseco. Isto
VIII - proteção contra qualquer forma de porquê, o Estado e a sociedade desempenham
sensacionalismo; papel de suma importância na recuperação do
condenado, com objetivo de recuperá-lo e rein-
IX - entrevista pessoal e reservada com o seri-lo na sociedade.
advogado;
Contudo, a ressocialização têm sido falha (sem
X - visita do cônjuge, da companheira, de
a pretensão de esgotar o assunto, em especial
parentes e amigos em dias determinados;
sobre os elementos sociais e estatais) sobretudo
XI - chamamento nominal; porque o indivíduo que comete crimes, princi-
palmente crimes contra o patrimônio, e não dis-
XII - igualdade de tratamento salvo quanto põe de uma profissão, possui altas chances de
às exigências da individualização da pena; obter a sua liberdade mas manter-se na mesma
XIII - audiência especial com o diretor do
atividade criminosa, tendo em vista que a socie-
estabelecimento; dade recrimina e rejeita os ex-presidiários, difi-
cultando a sua reinserção na sociedade.
XIV - representação e petição a qualquer
autoridade, em defesa de direito; Sem juízo de valor no que se refere ao compor-
tamento da maioria da sociedade quanto aos
XV - contato com o mundo exterior por ex-presidiários, mas ao passo que a sociedade
meio de correspondência escrita, da lei- rejeita um ex-condenado, em especial aqueles
tura e de outros meios de informação que que não possuem formação ou profissão, o cur-
não comprometam a moral e os bons cos- so natural é de que eles se mantenham nas mes-
tumes.
mas atividades criminosas e aperfeiçoem-se
XVI – atestado de pena a cumprir, emitido em suas funções, e, como consequência lógica,
anualmente, sob pena da responsabilida- l7210.htm>. Acesso em 13 de jun. 2023.
de da autoridade judiciária competente.3 4 Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 27 jul.
3 Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ 2023.

49
tornem-se cada vez mais perigosos. agricultura de subsistência nas penitenciárias,
em síntese, é de prover uma melhor dignidade
Analisemos um trecho do vigésimo artigo, in- alimentar aos reeducandos, bem como lhes
titulado “evolução histórica da pena e a resso- ensinar um novo ofício, enquanto se beneficiam
cialização”, dos autores Francisco Clayton Brito da remição de pena, observando o propósito da
Junior, Lia Mara Silva Alves e Lya Maria de Loiola ressocialização.
Melo para o I Encontro Virtual do Conpedi:

A ressocialização promovida pelos esta- REMIÇÃO DE PENA


belecimentos penitenciários visa recupe-
rar o indivíduo para que este possa voltar à
sociedade sem, no entanto, cometer novos Remição de pena “consiste na redução de um
crimes, sem praticar novos delitos. O ape- dia de pena por três dias trabalhados, pelo con-
nado deve sair da prisão, após o cumpri- denado que cumpre pena em regime fechado
mento da pena, reabilitado, apto ao con- ou semiaberto”, trecho extraído do glossário do
vívio harmônico em sociedade. Essa é a Conselho Nacional do Ministério Público.
função ressocializadora.
A fim de complementação, o artigo 126 da
A sociedade e o Estado, por meio do sis- Lei de Execução Penal, conceitua remição de
tema penitenciário brasileiro, desempe- pena:
nham um importante papel no processo
de ressocialização do preso. Entretanto, a Art. 126. O condenado que cumpre a pena
rejeição social do apenado é um fator que em regime fechado ou semiaberto poderá
contribui para sua reincidência, uma vez remir, por trabalho ou por estudo, parte do
que, não encontrando o amparo na socie- tempo de execução da pena.
dade, em regra, volta a delinquir.
§ 1o A contagem de tempo referida no
O processo de ressocialização do apenado caput será feita à razão de:
deve ser resultado de um trabalho conjun-
to do sistema penitenciário, que irá con- I - 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) ho-
tribuir prestando a assistência necessária ras de frequência escolar - atividade de
dentro e fora dos estabelecimentos penais, ensino fundamental, médio, inclusive pro-
e da sociedade, no momento em que aco- fissionalizante, ou superior, ou ainda de
lhe o apenado, proporcionando meios ne- requalificação profissional - divididas, no
cessários para a sua readaptação.5 mínimo, em 3 (três) dias;

O sistema penitenciário brasileiro apre- II - 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de
senta-se como um instrumento impor- trabalho.
tante no processo de ressocialização do
§ 2o As atividades de estudo a que se re-
apenado. Porém, ele vem demonstrando
fere o § 1o deste artigo poderão ser desen-
uma série de problemas que tem dificulta-
volvidas de forma presencial ou por me-
do a recuperação do preso. (I ENCONTRO
todologia de ensino a distância e deverão
VIRTUAL DO CONPEDI - DIREITO PENAL,
ser certificadas pelas autoridades educa-
PROCESSO PENAL E CONSTITUIÇÃO I, p.
cionais competentes dos cursos frequen-
301, 2020).
tados.
A finalidade de implementar um modelo de § 3o Para fins de cumulação dos casos de
remição, as horas diárias de trabalho e de
5 Disponível em: < http://site.conpedi.org.br/publicacoes/
estudo serão definidas de forma a se com-
olpbq8u9/36824706/2R6iL63wSVhSWFmI.pdf>. Acesso em 14
de jul. 2023. patibilizarem.

50
§ 4o O preso impossibilitado, por acidente, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no AgRg
de prosseguir no trabalho ou nos estudos no HC n. 671.172/RS, Supremo Tribunal de Jus-
continuará a beneficiar-se com a remição. tiça, em decidiu a respeito de remição de pena,
no que tange a trabalho artesanal:
§ 5o O tempo a remir em função das ho-
ras de estudo será acrescido de 1/3 (um AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS COR-
terço) no caso de conclusão do ensino PUS. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
fundamental, médio ou superior durante ESTADUAL. EXECUÇÃO PENAL. REMIÇÃO
o cumprimento da pena, desde que certi- DA PENA. TRABALHO ARTESANAL EM AM-
ficada pelo órgão competente do sistema BIENTE PRISIONAL. POSSIBILIDADE. OR-
de educação. DEM CONCEDIDA DE OFÍCIO NESTE STJ.
AGRAVO DESPROVIDO. I – Assente nesta
§ 6o O condenado que cumpre pena em re-
Corte que “os sentenciados que cumprem
gime aberto ou semiaberto e o que usufrui
pena no regime semiaberto ou fechado
liberdade condicional poderão remir, pela
têm direito à remição da pena pelo traba-
frequência a curso de ensino regular ou de
lho, consoante a previsão legal do art. 126
educação profissional, parte do tempo de
da Lei de Execução Penal. Precedentes”
execução da pena ou do período de pro-
(AgRg no REsp 1.505.182/RS, Quinta Turma,
va, observado o disposto no inciso I do § 1o
Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe de 11/5/2018).
deste artigo.
II – No caso em apreço, observa-se que o
§ 7o O disposto neste artigo aplica-se às reeducando efetivamente exerceu o tra-
hipóteses de prisão cautelar. balho artesanal, tendo sido essa tarefa
devidamente atestada pela administra-
§ 8o A remição será declarada pelo juiz da ção carcerária. Por tal motivo, esta Quin-
execução, ouvidos o Ministério Público e a ta Turma entende que “descabe ao intér-
defesa.6 prete opor empecilhos praeter legem à
remição pela atividade laboral, prevista
O nobre professor Mirabete, em sua obra pelo citado art. 126 da Lei de Execução
Execução Penal, assim define remição “pode-se Penal, uma vez que a finalidade primor-
definir a remição, nos termos da lei brasileira, dial da pena, em fase de execução penal,
como um direito do condenado em reduzir pelo é a ressocialização do reeducando” (AgRg
trabalho prisional ou pelo estudo o tempo de du- no REsp 1.720.785/RO, Quinta Turma, Rel.
ração da pena privativa de liberdade. Trata-se Min. Ribeiro Dantas, DJe de 11/5/2018). III
de um meio de abreviar ou extinguir parte da – Embora as memoráveis considerações
pena”. (2014, p. 559).7 tecidas pelo d. agravante, o entendimento
já consagrado pela jurisprudência desta
Neste sentido, tendo o estudo e o trabalho eg. Corte impõe a manutenção do deci-
como formas de remição de pena, uma verten- sum agravado, por seus próprios funda-
te oriunda do trabalho é a horticultura, que pode mentos. Agravo regimental desprovido.
ser feito em espaços com terra fértil, por qual- (AgRg no HC n. 671.172/RS, relator Ministro
quer pessoa, estando apta para ser realizada em Jesuíno Rissato (Desembargador Convo-
cado do TJDFT), Quinta Turma, julgado em
presídios, sobretudo porque demanda de pouca
25/10/2022, DJe de 4/11/2022.)8
estrutura, sobretudo prisional.
Destarte, o modelo de remição de pena por tra-
Nesta linha de raciocínio, a Quinta Turma
balho possui previsão legal (art. 126, LEP), sendo
6 Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ assim, o trabalho artesanal é mais uma espécie
l7210.htm>. Acesso em 13 de jun. 2023. de trabalho, com decisões à respeito, observan-
7 MIRABETE, Júlio Fabbrini. São Paulo. Execução Penal. 2014.
8 Disponível em <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/
P. 599.
stj/1714347384.> Acesso em 4 de jul. 2023.

51
do que a finalidade da pena, é a ressocialização natural o estímulo da agricultura familiar
do reeducando. e da economia local, favorecendo assim
formas solidárias de viver e produzir e
Ademais, no que se refere à atividade laboral contribuindo para promover a biodiversi-
de horticultura, o contato com a terra e o ato de dade e para reduzir o impacto ambiental
plantar, cultivar, desenvolver e colher o alimen- da produção e distribuição dos alimentos.
to, faz com que o reeducando esteja presente (GUIA ALIMENTAR PARA A POPULAÇÃO
em todas as etapas do processo, do plantio até à BRASILEIRA, p. 32, 2016).10
mesa, e sinta-se responsável por isso.
À vista disso, é possível observar que os alimen-
Não obstante, a horticultura trabalha com ele- tos supracitados são totalmente viáveis de se-
mentos repletos de vida, isto é, dependem de rem plantados e, posteriormente, colhidos com
uma mão de obra para de desenvolverem, isto o propósito de alimentar a população carcerá-
quando o plantio é realizado com objetivo defi- ria, e, consequentemente, nutr-los melhor.
nido de colheita.
Uma gênero desse modelo está sendo desen-
volvido no Estabelecimento Penal de Regime
MODELO ANÁLOGO DE Semiaberto, Aberto e Assistência ao Albergado
AGRICULTURA DE SUBSISTÊNCIA de Corumbá (EPRSAAAC), a iniciativa está sendo
NO AMBIENTE PRISIONAL tão positiva que hortaliças oriundas deste plan-
tio estão sendo doadas para reforçar a alimen-
Preliminarmente, é justo conceituar agricultura tação (e consequente nutrição) de famílias de
de subsistência, vejamos: baixa renda.11
A agricultura de subsistência é uma mo- Um projeto de ressocialização das pessoas pri-
dalidade que tem como principal objetivo vadas de liberdade no município de Remígio,
a produção de alimentos para garantir a localizado no Agreste paraibano trabalha com o
sobrevivência do agricultor, da sua família plantio e cultivo de vários tipos de pimenta, sen-
e da comunidade em que está inserido, ou do possível trabalhar com o insumo e transfor-
seja, ela visa suprir as necessidades ali-
má-los em produtos, como geléias e molhos de
mentares das famílias rurais.9
pimenta, a fim de serem comercializados.12
Nesse sentido, a implementação de um mode-
O objetivo é de que, inicialmente, uma variedade
lo análogo ao de agricultura de subsistência no
de agricultura de subsistência seja implemen-
ambiente prisional é possível e repleto de bene-
tada e desenvolvida nas penitenciárias, a ponto
fícios. Especialmente porquê, as penitenciárias
de alimentar todos os reeducandos em suas re-
são uma comunidade de reeducandos que pos-
feições diárias, com o que for colhido das plan-
suem necessidades alimentares passíveis de
tações.
serem supridas com o modelo em estudo.

Não obstante, o Guia Alimentar para a População 10 Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/


saude-brasil/publicacoes-para-promocao-a-saude/guia_
Brasileira, desenvolvido pelo Conselho Nacional alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf/view>. Acesso em 10
de Justiça, dispõe que: de jul. 2023.
11 Disponível em: <https://www.agepen.ms.gov.br/hortalicas-
O consumo de arroz, feijão, milho, man- cultivadas-no-semiaberto-de-corumba-sao-doadas-a-
dioca, batata e vários tipos de legumes, instituicoes-filantropicas/>. Acesso em 4 de jul. 2023.
12 Disponível em <https://paraiba.pb.gov.br/diretas/
verduras e frutas tem como consequência secretaria-de-administracao-penitenciaria/noticias/o-
9 Disponível em: <https://mundoeducacao.uol.com.br/ plantio-de-pimenta-e-projeto-de-ressocializacao-de-
geografia/agricultura-subsistencia.htm>. Acesso em 11 de jul. pessoas-privadas-de-liberdade-na-comarca-de-remigio>.
2023. Acesso em 4 de jul. 2023.

52
Posteriormente, caso a implementação seja um MENTAR PARA A POPULAÇÃO BRASILEIRA, p. 31,
sucesso e supra as necessidades alimentares 2016).14
dos reeducandos, havendo excedentes da pro-
dução, sejam os sobressalentes encaminhados Nesse sentido, objetivando a assertividade, es-
para as respectivas famílias dos apenados, ou pecialmente no que se refere as características
para instituições de caridade da comarca da da população brasileira, análises da Pesquisa de
penitenciária. orçamentos Familiares (PoF), realizada pelo ins-
tituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
AÇÃO MULTIDISCIPLINAR entre maio de 2008 e maio de 2009, demonstra-
rão tais características:

A alimentação não se resume a ingestão dos ali- A PoF 2008-2009 mostra que alimentos
mentos simplesmente, há uma complexa gama in natura ou minimamente processados
de etapas que vão do solo à mesa, e posterior- e preparações culinárias feitas com es-
mente, refletem de maneira a dissipar todas as ses alimentos ainda correspondem, em
suas propriedades e respectivos nutrientes no termos do total de calorias consumidas,
corpo humano. a quase dois terços da alimentação dos
brasileiros.
Isto posto:
Arroz e feijão correspondem a quase um
Alimentos in natura ou minimamente pro- quarto da alimentação, a seguir, apare-
cessados, em grande variedade e pre- cem carnes de gado ou de porco (carnes
dominantemente de origem vegetal, são vermelhas), carne de frango, leite, raízes e
a base para uma alimentação nutricio- tubérculos (em especial, mandioca e ba-
nalmente balanceada, saborosa, cultu- tata), frutas, peixes, legumes e verduras e
ralmente apropriada e promotora de um ovos. (GUIA ALIMENTAR PARA A POPULA-
sistema alimentar socialmente e ambien- ÇÃO BRASILEIRA, p. 55, 2016).
talmente sustentável. (GUIA ALIMENTAR
PARA A POPULAÇÃO BRASILEIRA, p. 50, A PoF 2008-2009 revela também que um
2016).13 quinto da população brasileira (cerca de
40 milhões de pessoas, se considerarmos
todas as idades) ainda baseia sua alimen-
tação largamente em alimentos in natu-
A tarefa de cuidar e desenvolver os alimentos a
ra ou minimamente processados. esses
partir do solo, tendo como responsáveis os re-
alimentos e suas preparações culinárias
educandos, os aproximará do alimento, confe-
correspondem a 85% ou mais do total das
rindo-lhes intimidade com a plantação e os in- calorias que consomem no dia. Análises
sumos, e, simultaneamente, aprenderá um novo da mesma pesquisa evidenciam que a
ofício, podendo o trabalho ser objeto de remição alimentação desses brasileiros se apro-
de pena e ressocialização. xima das recomendações internacionais
da organização mundial da saúde para o
Ainda, a colheita dos alimentos, oriundos deste consumo de proteína, de gorduras (vários
trabalho, irá gerar alimentos vegetais que “cos- tipos), de açúcar e de fibras e que o seu
tumam ser boas fontes de fibras e de vários nu- teor em vitaminas e minerais é, na maior
trientes e geralmente têm menos calorias por parte das vezes, bastante superior ao teor
grama do que os de origem animal”. (GUIA ALI- médio observado no Brasil.

13 Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/ 14 Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/


saude-brasil/publicacoes-para-promocao-a-saude/guia_ saude-brasil/publicacoes-para-promocao-a-saude/guia_
alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf/view>. Acesso em 10 alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf/view>. Acesso em 10
de jul. 2023. de jul. 2023.

53
Pequenas mudanças no consumo desses
brasileiros que baseiam sua alimentação No ambiente prisional, os efeitos que implicam
em alimentos in natura ou minimamente em menor fator de estresse, oriundos de uma
processados, incluindo o aumento na in- alimentação in natura, são interessantes, tendo
gestão de legumes e verduras e a redução em vista que os ânimos neste ambiente ficam
no consumo de carnes vermelhas, torna- naturalmente mais exaltados.
riam o perfil nutricional de sua alimen-
tação praticamente ideal. A alimentação Destarte, os benefícios de um modelo de agri-
desses brasileiros, que são encontrados cultura familiar nas penitenciárias são múlti-
em todas as regiões do País e em todas as plos, como aprender um novo ofício, remir parte
classes de renda. (GUIA ALIMENTAR PARA da pena com o trabalho na horticultura, resso-
A POPULAÇÃO BRASILEIRA, p. 56, 2016).15 cialização.
Desse modo, é possível observar que aproxi- Bem como efeitos nutricionais no organismo
madamente 2/3 (dois terços) das calorias totais do reeducando, uma melhora psíquica e con-
consumidas são de alimentos in natura ou mi- sequente diminuição no estresse do ambiente
nimamente processados, ou seja, abrangem as prisional, tal como uma inevitável alteração e di-
necessidades alimentares dos reeducandos. No minuição dos gastos com compra de alimentos
mais, é totalmente possível a implementação de ou “marmitas”, entre outros. A implementação
um modelo de agricultura de subsistência que de um modelo de agricultura de subsistência no
abasteça a penitenciária e alimente igualmente ambiente prisional é fundamental.
os apenados.

Ademais, os reflexos da implementação deste


ANÁLISE DE CUSTOS NO
modelo de agricultura de subsistência nas peni- TOCANTE À ALIMENTAÇÃO
tenciárias serão internos e externos. Isto porquê DOS REEDUCANDOS
internamente os efeitos serão dos benefícios da
alimentação no organismo dos reeducandos, A presente análise será realizada de maneira
além da aprendizagem de um novo ofício, com genérica acerca dos gastos atuais com os re-
a possibilidade de remir a pena e ressocializar. educandos no que se refere à alimentação, em
Externamente, além da alteração no quadro fi- contraponto ao valor despendido em um mode-
nanceiro, outros prefeitos permeiam a ativida- lo de agricultura de subsistência implementado
de, vejamos: nas penitenciárias.

A opção por vários tipos de alimentos de Um relatório de 2021 nomeado “Calculando Cus-
origem vegetal e pelo limitado consumo tos Prisionais: Panorama Nacional e Avanços
de alimentos de origem animal implica Necessários”, integra a série Fazendo Justiça,
indiretamente a opção por um sistema desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça
alimentar socialmente mais justo e menos (CNJ), junto com o Ministério da Justiça e Segu-
estressante para o ambiente físico, para rança Pública (MJSP) e o Programa das Nações
os animais e para a biodiversidade em ge- Unidas para o Desenvolvimento (PNUD BRASIL)
ral. (GUIA ALIMENTAR PARA A POPULAÇÃO
faz uma comparação entre os gastos mensais
BRASILEIRA, p. 32, 2016).16
com alimentação per capita no sistema prisio-
15 Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/ nal com o valor da cesta básica estimado pelo
uploads/2021/11/calculando-custos-prisionais-panorama-
nacional-e-avancos-necessarios.pdf>. Acesso em 10 de jul.
Departamento Intersindical de Estatística e Es-
2023. tudos Socioeconômicos – o DIEESE –, por meio
16 Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/ da Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Ali-
saude-brasil/publicacoes-para-promocao-a-saude/guia_
alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf/view>. Acesso em 10 de jul. 2023.

54
mentos (PNCBA)13.17 dos gastos é possível através da análise de
planilha fornecida pelo Depen, a qual traz
São Paulo é o estado que observa-se a maior as despesas realizadas no mês de setem-
discrepância entre esses valores: há uma di- bro de 2020 desagregadas por uma série
ferença de R$ 343 entre o valor da cesta básica de indicadores, conforme a resolução no6
no estado (R$ 520) e o valor gasto por mês com do CNPCP. No gráfico a seguir é possível
alimentação por pessoa privada de liberdade observar que, as- sim como visto nos sis-
(R$177). temas estaduais, a maior parte dos gastos
do Sistema Penitenciário Federal (82%) é
destinada ao pagamento de salários dos
servidores. Do restante do gasto, a maior
despesa é com o transporte de presos
sob custódia – equivalente em média a R$
2.034 mensais por preso – e alimentação –
R$ 1.028. (CALCULANDO CUSTOS PRISIO-
NAIS: PANORAMA NACIONAL E AVANÇOS
NECESSÁRIOS, p. 29, 2021).18
Custo mensal da alimentação dos presos vs. preço da cesta básica
na UF.
Fonte: Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 2021.

Não obstante, com dados provenientes do


relatório supracitado, “em resposta à solicitação
de acesso à informação, o Departamento
Penitenciário Nacional forneceu os dados mais
recentes disponíveis acerca dos gastos no SPF”,
isto é, no Sistema Penitenciário Federal. Gráfico de gastos do Sistema Penitenciário.
O cálculo do custo mensal do preso é re- Fonte: Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 2021.
sultante do total de despesas realizadas
no mês de referência dividido pela popu- Com o objetivo de complementar a análise, fo-
lação carcerária do mesmo mês. Desta
ram solicitados documentos às Coordenadorias
forma, o custo mensal do preso não é um
Regionais e ao Serviço de Informações ao Cida-
valor fixo, variando de acordo com os gas-
tos efetivados no mês analisado e com a
dão – SIC, do Governo do Estado de São Paulo,
variação do quantitativo total da popula- com informações referentes aos gastos públi-
ção carcerária. Assim, visando informar cos com a alimentação dos reeducandos, bem
um valor mais próximo do real, foi infor- como uma listagem dos produtos alimentares
mada a média dos levantamentos realiza- fornecidos nas penitenciárias.
dos ao longo do ano de 2020: R$35.215,60.
Como se pode observar, a diferença é No que tange ao estado de São Paulo, a popula-
tamanha chega a ser 16 vezes maior que ção carcerária no mês de junho de 2023 chegou
a média nacional dos sistemas peniten- a 195.789 (cento e noventa e cinco mil setecen-
ciários estaduais. tos e oitenta e nove) reeducandos, com um gasto
de R$ 50.415.492,00 (cinquenta milhões, quatro-
Resta saber como esse gasto mensal por centos e quinze mil, quatrocentos e noventa e
preso é alocado no SPF. A decomposição dois reais).
17 Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/ 18 Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/
uploads/2021/11/calculando-custos-prisionais-panorama- uploads/2021/11/calculando-custos-prisionais-panorama-
nacional-e-avancos-necessarios.pdf>. Acesso em 10 de jul. nacional-e-avancos-necessarios.pdf>. Acesso em 10 de jul.
2023. 2023.

55
É possível observar no Anexo I que a alimentação
dos reeducandos é dividida em 4 refeições ao
longo do dia, baseadas em arroz e feijão nas re-
feições principais, acompanhados de verduras,
Valores referentes à alimentação no sistema prisional do estado de
São Paulo no ano de 2023. legumes e proteínas de origem animal, com so-
bremesa inclusa e refresco, podendo ser algum
Fonte: Serviço de Informações ao Cidadão – SIC, 2023.
tipo de doce ou frutas, bem como nas refeições
de café da manhã e ceia sendo pães ou bolachas
Isto significa que o valor per capta mensal para com bebidas variando entre café e leite.
alimentação dos reeducandos é de R$ 257,50
(duzentos e cinquenta e sete reais e cinquenta Deste modo, mais da metade do cardápio da pe-
centavos). Aplicando tais valores às penitenci- nitenciária pode ser plantado, isto porquê, pro-
árias utilizadas como paradigma, ou seja, Bal- teínas de origem animal, produtos industrializa-
binos I e II, com população carcerária de 2.300 dos ou lácteos (bolacha, pães, pó de café, farofa
(dois mil e trezentos) detentos, o valor é de R$ pronta, macarrão, óleo de cozinha, temperos se-
592.250,00 (quinhentos e noventa e dois mil du- cos, margarina, leite, entre outros), podem conti-
zentos e cinquenta reais) por mês. nuar a serem comprados.

Por conseguinte, o valor total gasto por semestre Contudo, ainda assim, é possível que os pães, o
(referente ao 1º semestre de 2023) com a alimen- macarrão, a farofa e derivados, possam ser pro-
tação dos apenados das penitenciárias supra- duzidos na penitenciária pelos próprios reedu-
mencionadas, é de R$ 49.794.352,50 (quarenta e candos, havendo espaço de cozinha, em razão
nove milhões, setecentos e noventa e quatro mil, de que os ingredientes são mínimos (base de
trezentos e cinquenta e dois reais e cinquenta farinha diversas e ovos) e a complexidade é bai-
centavos). xa. As frutas e os temperos podem ser planta-
dos em consórcio, sendo adicionados às demais
Conjuntamente aos dados referentes aos valores culturas.
gastos com a alimentação dos reeducandos do
estado de São Paulo, foi disponibilizado o cardá- Ademais, os ovos podem ser oriundos de uma
pio padrão das unidades prisionais, que são di- criação de galinha, ambos servindo de alimen-
vididos por semana, contudo, seguem o mesmo to para os apenados. A manutenção e os custos
molde. Os demais anexos, referentes às outras 3 para este modelo de criação são baixos, poden-
(três) semanas estarão no anexo do artigo. do diminuir a quantidade de compras destes

Anexo I - Ofício circular cardápio padrão das unidades prisionais


Fonte: Serviço de Informações ao Cidadão – SIC, 2023.

56
produtos, ou, até mesmo, vir a suprir a necessi- de Balbinos I e Balbinos II, que contam com 1.040
dade da penitenciária. (mil e quarenta) e 1.263 (mil duzentos e sessenta
e três) reeducandos respectivamente, segundo
Analisando sob a ótica da implementação de um a Secretaria de Administração Penitenciária do
modelo de agricultura de subsistência no am- Governo do Estado de São Paulo, seriam neces-
biente prisional, e utilizando-se de técnicas de sárias as quantidades dispostas na tabela de
consórcio para o cultivo, é possível plantar di- alimentos base (sem verduras, frutas, lácteos,
versos grãos, tubérculos e vegetais que suprem industrializados e proteínas de origem animal,
as necessidades alimentares dos cidadãos, so- acompanhados do valor de venda.
bretudo dos apenados.
Produto Volume de Valor de Venda Data de
Alimentos como arroz, feijão, abóbora, mandio-
Produção Referência
ca, batata, quiabo, cenoura, tomate, alface, es-
Anual
pinafre, rúcula, couve, entre outras, são aptas
Arroz 8 ton/ha R$ 13.969,60 28/07/2023
para o plantio em ambiente prisional. Não há a Agulhinha
necessidade de que cada uma das culturas ocu-
Feijão 6 ton/ha R$ 20.000,00 31/07/2023
pe um hectare, de maneira a otimizar o espaço,
Mandioca 25 ton/ha R$ 14,444,25 21/07/2023
bem como o uso da força braçal dos reeducan-
Batata 30 ton/ha R$ 120.000,00 31/07/2023
dos.
Asterix

De acordo com José Roberto da Silva Junior, bi- Abóbora 12 ton/ha R$ 22.560,00 31/07/2023
ólogo-agroecólogo, agricultor e educador social, Cenoura 30 ton/ha R$ 75.000,00 27/07/2023
“em apenas 4 (quatro) hectares é possível extrair Quiabo 22 ton/ha R$ 99.000,00 31/07/2023
a produção máxima de cada uma das seguintes Tomate 60 ton/ha R$ 120.000,00 28/07/2023
culturas (feijão, arroz, abóbora, mandioca, bata- Italiano
ta e quiabo). Em termos práticos, a produção de
Total Anual R$ 484.973,85
1 (um) hectare supre a necessidade alimentar de
de Venda
cerca de 30 (trinta) pessoas”.19
Tabela anual de alimentos plantados em área total de 5 hecta-
No que se refere a horticultura na relação “con-
res. Fontes: CEPEA, CEASA, HF BRASIL e AGROLINK.
sumo x produção”, se expressa de maneira mui-
to mais proveitosa, ao passo que apenas 10m² Contudo, a cultura na prática pode ser desenvol-
(dez metros quadrados) sejam suficientes pra vida em consórcio, isto é, variação de vegetais
subsistência de uma pessoa por ano, segundo o plantadas em conjunto, aproximadamente 30%
biólogo-agroecólogo. (trinta por cento) de cada produção, consorcian-
do até 5 variedades.
Considerando 4 (quatro) horas de trabalho por
dia com aplicação de força para obter tais re- Para que a plantação seja desenvolvida na pe-
nitenciária, serão necessários insumos, ferra-
sultados, é possível pensar em escalas de reve-
mentas de trabalho, mão de obra (reeducandos)
zamento do trabalho a fim de suprir toda a de- e um planejamento personalizado para a imple-
manda produtiva sem explorar a mão de obra, mentação do modelo de agricultura de subsis-
seguindo o modelo de remição de pena por tra- tência, desenvolvido por um profissional da área
balho, conforme previsto no art. 126 da LEP. como um biólogo-agroecólogo.

Para uma população carcerária de 2.300 ape- No que se refere à plantação, é possível verificar
nas tabelas exemplificavas a seguir quais insu-
nados, tendo como exemplo as Penitenciárias mos e ferramentas são necessárias para o seu
desenvolvimento, bem como seus valores cor-
19 José Roberto da Silva Junior, biólogo-agroecólogo, agricul-
respondentes.
tor e educador social.

57
Tabela com informações de itens para o desenvolvimento da cultura.

Tipo Especificidade Quantidade Valor

Insumos Mudas 1.100 R$ 500,00


Insumos Sementes 500g R$ 20.00,00
Cerca Arame 115 rolos R$ 2.300,00
Cerca Mourão bambu 161 R$ 3.220,00
Cerca Estaca Bambu 460 R$ 9.200,00
Cerca Tela de galinheiro 2.300m R$ 18.400,00
Ferramentas Carrinho de mão 25 R$ 3.750,00
Ferramentas Cavadeira 92 R$ 5.520,00
Ferramentas Enxada 161 R$ 5.635,00
Ferramentas Enxadão 115 R$ 4.600,00
Ferramentas Martelo 15 R$ 450,00
Ferramentas Pá 115 R$ 7.475,00
Ferramentas Peneira 70 R$ 700,00
Ferramentas Serrote 15 R$ 450,00
Ferramentas Tonéis 200L 115 R$ 16.000,00
Irrigação Aspersores 345 R$ 10.350,00
Irrigação Mangueira 100m 23.000m R$ 1.840,00
Outros Calcário 1.150kg R$ 1.150,00
Outros Fertilizante NPK 1.150kg R$ 46.000,00

Fontes: José Roberto da Silva Junior, Biólogo-Agroecólogo, Agricultor e Educador Social e Google Shopping.

Os itens e valores supramencionados na tabela investimento da implementação do modelo de


são finais, ou seja, referem-se ao custo de inves- agricultura no ambiente prisional, somado com
timento e desenvolvimento da implementação valores da alimentação anual dos reeducandos,
de um modelo de agricultura de subsistência isto é, para suprir os reeducandos por 12 (doze)
na penitenciária, tendo como base o número de meses, dividindo, posteriormente, pelo número
2.300 reeducandos. total de apenados, isto é, 2.300 (dois mil e tre-
zentos), tendo como referência a população
A durabilidade dos materiais citados são prati- carcerária das penitenciárias de Balbinos I e
camente ad eaternum, necessitando de baixíssi- Balbinos II, o resultado seria de R$ 5,70 (cinco e
ma manutenção, além disso, é possível substituir setenta) por mês per capta.
alguns itens por outros de maior quantidade e
praticidade, como por exemplo, substituir os to- O valor é altamente expressivo, pois, teorica-
néis por caixas d’água ou investir autocultivado- mente, é possível observar uma economia de
res (valores em torno de R$ 3.500,00 cada), diri- 97,78%. Contudo, devemos considerar que, não
mindo ainda mais os custos. haverá a necessidade de compras recorrentes
dos materiais para a implementação das cultu-
Com exceção das mudas, sementes, adubos, ras, serão raras as ocasiões.
calcário e fertilizantes, os grandes responsáveis
pela vida e rotatividade de ingredientes nas cul- Os pilares dos gastos mensais serão, primor-
turas, não há outras preocupações com outros dialmente, de sementes, mudas, adubos (não
investimentos para o desenvolvimento da agri- incluso na tabela por sua diversidade), calcário e
cultura de subsistência no ambiente prisional. fertilizantes. No mais, é possível que as culturas
abranjam outras necessidades, como o plantio
Ademais, os valores descritos, são referentes ao

58
de árvores frutíferas e temperos, bem como a das colheitas, com reflexos nutricionais posi-
criação de galinhas e a produção de bolos, pães, tivos para os reeducandos e para o ambiente
massas e derivados no ambiente prisional, ofe- como um todo.
recendo maior liberdade alimentar e diminuin-
do os gastos públicos neste aspecto. Logo, o apenado será mais útil para si e para a
sociedade, de modo que diminuirão os gastos
Baseando-se nesta ótica, multiplicando o valor públicos com a alimentação, reverberando de
per capta de R$ 5,70 (cinco e setenta) por mês, maneira positiva no cenário econômico e tribu-
de maneira geral, pelas demais necessidades tário.
(árvores frutíferas, plantio de temperos, criação
de aves e produção in loco de massas e deriva- CONCLUSÃO
dos), ou seja, por 5 (cinco), seria de R$ 28,50 (vin-
te e oito e cinquenta), arredondando para cima,
R$ 30,00 (trinta reais), isto é, ainda assim, pode- Os direitos humanos enfrentam cenários difí-
-se observar uma economia de 88,32%. ceis em seu caminho, não seria diferente no que
se refere ao ambiente prisional. Ter o direito a
Para obter números ainda mais realísticos, de dignidade efetivado é um trabalho árduo, sobre-
acordo com o que é possível implementar em tudo dentro das penitenciárias em todo país.
cada penitenciária, é necessário analisar o que
pode ser plantado e não mais comprado, visan- A ressocialização do apenado é um conjunto
do atingir o objetivo final, isto é, de se limitar a complexo de ações que competem ao Estado e
comprar itens como proteínas de origem animal, a sociedade, com o objetivo de recuperar o re-
com exceção dos ovos, que podem ser oriundos educando e reinseri-lo na sociedade, de modo
da criação de galinhas; além dos industrializa- que este indivíduo não reincida em seus crimes,
dos e dos lácteos, para que a expressiva porcen- contudo, esta não costuma ser a realidade.
tagem de 88,32 seja possível de aproximar-se.
A remição da pena para o condenado é um ins-
Deste modo, é indispensável o olhar de um pro- tituto que o benefício em amplo modo, além de
fissional técnico habilitado nesta área para de- remir a sua pena, seguindo as regras dispostas
senvolver o modelo ideal de agricultura de sub- no artigo 126 da Lei de Execução Penal, o ree-
sistência nos moldes do que foi observado no ducando tem a oportunidade de melhorar como
presente trabalho, bem como um profissional pessoa/cidadão aprendendo um novo ofício e
técnico para responsabilizar-se pela parte fi- ganhando conhecimento por meio do trabalho e
nanceira no que diz respeito aos efeitos positi- do estudo.
vos nos cofres públicos.
A remição da pena por trabalho artesanal permi-
À título de conhecimento, é sabido a respeito te que o reeducando tenha a sua pena diminuída
da periculosidade de algumas ferramentas de com este trabalho e ainda tenha benefícios em
trabalho, contudo, um procedimento similar ao seu estado psicológico. Isto posto, é viável unir
adotado em cozinhas e demais espaços de tra- o trabalho artesanal, com a remição de pena e
balho que contam com ferramentas e materiais com um modelo de agricultura de subsistência.
que podem se tornar armas brancas, deve ser
O propósito do trabalho dos condenados é de
adotado neste caso, ou seja, deve-se catalogar
desenvolver a plantação, e colher desta ativida-
todas as ferramentas e inspecionar no início e
de laboral alimentos para suprir a necessidade
ao final do trabalho.
carcerária, com diminuição expressiva dos gas-
À vista disso, é possível observar que, ao imple- tos públicos no que se refere a alimentação, bem
mentar um modelo de agricultura de subsis- como a ressocialização do condenado.
tência no ambiente prisional, involuntariamen-
Consequentemente, haverá uma diminuição
te cria-se uma engrenagem onde, ao trabalhar
com os gastos relativos a alimentação dos re-
com o objetivo de remir parte de sua pena, o re-
educandos, possibilitando uma atenuação nos
educando pode ocupar-se das culturas, ao pas-
cofres públicos, inclusive com melhora no cam-
so que remirá sua pena, mas também ganhará
po tributário.
um novo ofício e ressocializará, alimentando-se

59
06
OS DIREITOS AUTORAIS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E SEUS
REFLEXOS NO DIREITO COMPARADO
Diante do constante desenvolvimento tecnológico, nos deparamos recentemente com a criação dos
NFTs (non-fungible tokens ou tokens não fungíveis), com base na tecnologia Blockchain. O NFTS vem
sendo adotado por diversos segmentos de mercado, principalmente no das artes, onde seu uso está
cada vez mais consolidado. Devido a sua recente criação e rápida expansão, o presente trabalho
tem por intuito tratar de algumas implicações jurídicas advindas do setor artísticos, que ainda estão
em pauta de discussão uma vez que ainda não é possível vislumbrar todos os impactos gerados.
Palavras-chave
Inteligência Artificial - Direitos Autorais - Impactos no Direito Comparado
Iriana Maira Munhoz Salzedas
Procuradora Jurídica. Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Marechal Rondon. Professo-
ra nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Procuradora Jurídica. Mestre em Direito
Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Processo Civil e Direito Civil pela
Instituição Toledo de Ensino. Doutoranda na Universidade de Buenos Aires – UBA. Doutoranda da
Universidade Nove de Julho – UNINOVE.

60
INTRODUÇÃO obra literária.
A propriedade intelectual é o conjunto de obras Nessa esteira, a pergunta que não se cala: Quem
literárias, científicas, artísticas, programas de é o autor da obra? O programador ou profissional
computador, dentre outras criações, como dis- que criou a máquina, ou a própria máquina, que
põe o caput do art. 7º da Lei 9610/98, logo as através de sua base de dados autonomamente
obras intelectuais são criações do espírito. criou o livro?
Tudo que se cria pode ser copiado, logo se faz Estamos diante de um tema desafiador e refle-
necessário uma legislação que garanta os direi- xivo, à medida que esses acontecimentos não
tos dos inventores, para que estes sejam incen- são respostas que se espera do futuro, mas sim
tivados a criar. No Brasil, a lei que regulamenta acontecimentos atuais, que estão questionan-
a propriedade industrial é a Lei 9.279/96, sendo do o espaço em branco das legislações ao redor
o órgão responsável pela concessão dos direitos do mundo, o que inclusive, pode gerar prejuízos
de propriedade intelectual, o Instituto Nacional econômicos, pois empresas que investem em
da Propriedade Industrial – INPI. tais tecnologias não terão segurança jurídica,
em razão das inteligências artificiais não pos-
O Brasil é signatário desde 1994 do Trips - Trade
suírem regramento em face das suas possíveis
Related Aspects of Intellectual Property Rights
criações, podendo ocorrer reproduções não au-
(Acordo sobre Aspectos do Direito de Proprie-
torizadas, que não serão penalizadas por falta de
dade Intelectual Relacionados ao Comércio),
regulação.
o acordo foi criado pela Organização Mundial
do Comércio (OMC) e estabelece um padrão de
proteção mínima à propriedade intelectual. Os
1. BREVES CONSIDERAÇÕES
países signatários deste acordo obrigaram-se a SOBRE A PROPRIEDADE
revisar suas leis nacionais de modo a adaptá-las INTELECTUAL
a esse modelo.
A propriedade intelectual passou a ser definida
Interessante é que o sistema de propriedade in- pela Convenção da Organização Mundial da Pro-
telectual não apenas protege a criatividade pro- priedade Intelectual como “a proteção aos direi-
priamente dita, como também os investimentos tos relacionados às criações artísticas, literárias,
realizados para inserir essas invenções ao mer- científicas e invenções, marcas, desenhos in-
cado. dustriais, softwares e muitos outros1”.
A propriedade intelectual é protegida no mun- A proteção é direcionada aos bens incorpóreos,
do inteiro por leis específicas contra o uso não ou seja, bens que não podem ser tocados fisi-
autorizado de criações humanas, ou seja, essas camente, uma vez que são criações da mente
legislações se referem apenas a proteção das humana. Essas invenções geralmente possuem
invenções de origem humana, não se estendo a valor econômico, por isso devem ser protegidas
criações advindas de uma inteligência artificial evitando reproduções não autorizadas.
(IA).
Conforme, o art. 7º da Lei nº 9.610/98 são obras
Esta ausência de proteção intelectual em face intelectuais e devem ser protegidas: a) os textos
das inteligências artificiais, atualmente é o de- de obras literárias, artísticas ou científicas; b) as
safio do direito contemporâneo, pois a possibili- conferências, alocuções, sermões e outras obras
dade de uma máquina possuir algo semelhante
1 DUARTE, Melissa de F; BRAGA, Prestes C. Propriedade
a um “estado de consciência”, através das infor- intelectual. p.07
mações recebidas, pode por exemplo, criar uma

61
da mesma natureza; c) as obras dramáticas e científicos, por exemplo. Já os direitos conexos
dramático-musicais; d) as obras coreográficas e são os direitos dos artistas, intérpretes ou exe-
pantomímicas, cuja execução cênica se fixe por cutantes, produtores fotográficos e empresas de
escrito ou por outra qualquer forma; e) as com- radiodifusão, como, por exemplo, os de filmes,
posições musicais, tenham ou não letra; f) as shows, novelas, programas de rádio e televisão2.
obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusi-
ve as cinematográficas; g) as obras fotográficas A Lei 9.610/98, desdobra o direito autoral em
e as produzidas por qualquer processo análogo duas espécies: direito autoral patrimonial e di-
ao da fotografia; h) as obras de desenho, pintura, reito autoral moral. O primeiro assegura ao au-
gravura, escultura, litografia e arte cinética; i) as tor os lucros oriundos da sua obra, podendo in-
ilustrações, cartas geográficas e outras obras da clusive ser cedido para editoras ou gravadoras,
mesma natureza; j) os projetos, esboços e obras enquanto o segundo vincula o autor em relação
plásticas concernentes à geografia, engenharia, a obra, sendo este direito inalienável e irrenunci-
topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia ável, o art. 24 da lei acima mencionada elenca os
e ciência; l) as adaptações, traduções e outras direitos morais do autor.
transformações de obras originais, apresenta-
A propriedade industrial é disciplinada pela Lei
das como criação intelectual nova; m) os progra-
9.279/06 e abrange: a) concessão de patentes de
mas de computador; n) as coletâneas ou com-
invenção e de modelo de utilidade; b) concessão
pilações, antologias, enciclopédias, dicionários,
de registro de desenho industrial; c) concessão
bases de dados e outras obras, que, por sua se-
de registro de marca; d) repressão às falsas indi-
leção, organização ou disposição de seu conte-
cações geográficas; e) repressão à concorrência
údo, constituam uma criação intelectual.
desleal. Diferentemente do direito autoral, que a
Para melhor compreensão do tema, se faz ne- depender do tipo da obra, o órgão competente
cessário compreender que a propriedade inte- para registro varia, O registro da propriedade in-
lectual é gênero, tendo três espécies: direitos dustrial é feito exclusivamente no Instituto Na-
autorais, propriedade industrial e proteção sui cional da Propriedade Industrial.
generis.
E por último temos a proteção sui generis, que é
Os direitos autorais são obras intelectuais que o ramo da topografia de circuitos integrados e de
protegem as criações do espírito, expressas por cultivares, assim como de conhecimentos tra-
qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, dicionais e de exploração genética. Nela, cada
tangível ou intangível, conhecido ou que se in- direito depende de proteção regulamentada por
vente no futuro, conforme dispõe a Lei 9.610/98. legislação específica, necessitando ainda de re-
Esses direitos podem não ser registrados, po- gistro em órgão competente, sendo que o prazo
rém seu registro evita problemas futuros. O ór- de validade varia de acordo com cada espécie.
gão competente para registro depende da obra, Aqui o objeto de projeção é a configuração tri-
por exemplo, se obra for literária ou cientifica dimensional das camadas sobre uma peça de
deve ser registrada na Biblioteca Nacional, já os material semicondutor que visa realizar funções
desenhos, pinturas, etc. são registradas na Es- eletrônicas em equipamentos3.
cola de Belas Artes do Rio de Janeiro.
O desenvolvimento da tecnologia perante a glo-
O direito autoral ainda se divide em duas partes: balização e a concorrência entre empresas na-
o direito do autor e o direito conexo. O direito do cionais e transacionais, impõe aos países a re-
autor se relaciona com criações literárias, ar- gulamentação das criações e invenções, pois
tísticas e científicas, tendo por requisito a cria- estamos diante de circulação de riquezas, a qual
ção do espírito humano, ou seja, livros e artigos 2 Idem, p. 12
3 Idem, p.14

62
constantemente gera conflitos, dessa forma ne- Na sequência temos as leis ordinárias atinentes
cessitamos de legislações atuais para a preven- a propriedade intelectual. A Lei 9610/98, trata dos
ção e solução destes embates na seara da pro- direitos autorais em face das obras artísticas e
priedade intelectual. culturais, bem como seus autores e intérpretes.

1.1. Normas que disciplinam a propriedade in- No que tange a propriedade industrial, temos a
telectual no Brasil Lei 9.279/96, disciplinando as patentes e marcas.
A Lei 9.456/97, que assegura os direitos relativos
A última rodada do Acordo Geral sobre Tarifas e à propriedade intelectual no desenvolvimento de
Comércio (GATT), encerrada em 1994, a qual criou novos cultivares e efetua mediante a concessão
a Organização Mundial do Comércio (OMC) e fir- de Certificado de Proteção de Cultivar.
mou o Acordo sobre os aspectos dos Direitos de
Propriedade Intelectual relacionados com o Co- A Lei 10.973/04, conhecida como Lei da Inova-
mércio (ADPIC) na tentativa de se criar normas ção, trouxe importantes elementos acerca do
mais rígidas em face da propriedade intelectual. incentivo à pesquisa científica e tecnológica.

O ADPIC é um conjunto de normas que assegu- O Brasil, concede proteções distintas mediantes
ram o funcionamento dos direitos de proprie- as leis citadas, com escopo de abarcar de forma
dade intelectual em escala mundial. Embora ampla as manifestações dos autores, sendo que
alguns Estados permaneçam fora do sistema o conceito de autor, conforme a lei 9.610/98 em
OMC, isto representa uma parcela insignificante seu artigo 11 é pessoa física, logo as leis acima
em termos negociais. De forma que está consti- mencionadas são aplicáveis as criações oriunda
tuído um ordenamento jurídico de propriedade de seres humanos.
especial, que por sua vez se insere no sistema
1.2. Normas internacionais que permeiam a
mais amplo do comércio4.
Propriedade Intelectual
Com a instituição da Organização Mundial do
Comércio na Rodada Uruguai do Gatt, foi impos- Prof. Melissa de Freitas, faz um apanhado no
to aos países membros, dentre eles o Brasil um âmbito internacional em relação as normas que
novo formato em relação aos objetos passíveis tratam da propriedade intelectual, dando desta-
de apropriação intelectual, a partir de então, o que a Convenção de Paris, iniciada em meados
Brasil disciplinou um conjunto de normas refe- de 1880, tendo como principal tema a proteção
rentes a propriedade intelectual, logo, os países dos direitos de propriedade industrial. A Con-
que não possuírem normas de propriedade in- venção de Berna, em 1886, tratou da proteção de
telectual eficazes e seguras serão afastados dos direitos relativos a obras artísticas e culturais. O
investimentos internacionais, o que consequen- Tratado de Haia de 1925 foi importante na tenta-
temente atrasará o desenvolvimento intelectual tiva de proteção aos desenhos industriais. Já a
daquele país. Convenção de Roma de Direitos Conexos, de 1961,
protegeu principalmente as produções musi-
A estrutura da legislação da propriedade inte- cais, sejam as pessoas que as interpretam, exe-
lectual no Brasil está na Constituição Federal de cutam, compõem ou transmitem. Ainda sobre a
1988 em seu art. 5º, incisos XXVII, XXVIII e XXIX, os legislação internacional, o Acordo de Madrid de
quais tratam diretamente o direito de autor. 1981 se coloca como instituidor de uma legisla-
ção internacional sobre o registro de marcas5.
4 PIMENTEL, Luiz Otávio. O ACORDO SOBRE OS ASPECTOS DOS
DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL RELACIONADOS
COM O COMÉRCIO. acessado em 24/10/22, SITE: O ACORDO Ainda em âmbito internacional temos o Tratado
SOBRE OS ASPECTOS DOS DIREITOS DE... https://periodicos. da Organização Mundial da Propriedade Intelec-
ufsc.br/link:file:///C:/Users/Win%2010/Downloads/15338-
Texto%20do%20Artigo-47210-1-10-20100928%20(1).pdf 5 Idem, p.18

63
tual sobre Copyrigh, responsável pela sistema- há uma única resposta, pois, a tecnologia está
tização da propriedade intelectual nos últimos em todas as áreas, e em cada uma delas neste
anos. O Tratado de Cooperação em Patentes momento tem algo de inovador para melhorar a
de 1978, o qual veio para ser um facilitador dos vida do ser humano, como por ex, um remédio
procedimentos de solicitação, busca e exame de para uma determinada enfermidade, uma nova
patentes. Finalizando a exemplificação de nor- técnica cirúrgica através de aparelhos de uma
mas internacionais, a Rodada Uruguai de 1986, última geração, um programa de computador
que figurou como um momento de discussão que inova a área da educação, enfim não há li-
sobre o comércio internacional6. marcas7. mites para a tecnologia e a ciência.

Ainda em âmbito internacional temos o Tratado Este estudo irá analisar o avanço da tecnologia
da Organização Mundial da Propriedade Intelec- em face das inteligências artificiais e seus im-
tual sobre Copyrigh, responsável pela sistema- pactos na propriedade intelectual, para isso va-
tização da propriedade intelectual nos últimos mos entender o que é a inteligência artificial (IA).
anos. O Tratado de Cooperação em Patentes
de 1978, o qual veio para ser um facilitador dos O professor de ciência da computação de Stan-
procedimentos de solicitação, busca e exame de dford, John McCarthy, conceituou a IA como a
patentes. Finalizando a exemplificação de nor- ciência e a engenharia de construir máquinas
mas internacionais, a Rodada Uruguai de 1986, inteligentes9 E o que seriam máquinas inteli-
que figurou como um momento de discussão gentes? Máquinas que possam pensar e agir
sobre o comércio internacional8. como ser humano, porém o grande desafio é
que essas máquinas são limitadas em termos
2. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL de inteligência emocional; ela só pode detec-
tar os estados emocionais humanos básicos,
Não é de agora que estamos vivenciando uma como raiva, alegria, tristeza, medo, dor, estresse
revolução tecnológica, a qual se faz presente e neutralidade. A inteligência emocional é uma
em todas as áreas da sociedade. Iniciamos nos- das fronteiras de níveis mais elevados de perso-
so aprendizado frente as novas tecnologias aos nalização10.
poucos, vamos citar alguns momentos de tran-
sição relativamente recentes para que todos re- Logo, quanto mais a IA se assemelhar a conduta
flitam, que os desafios do passado, hoje são in- humana, mais próxima estará de ser considera-
dispensáveis para nossas vidas. da uma inteligência forte.

A chegada dos caixas eletrônicos facilitou muito Nesse sentido, as tecnologias de IA atualmente
a vida da sociedade, que deixou de enfrentar fi- disponíveis se enquadram na categorização do
las demoradas para pagar contas, mas o melhor que chamamos de “Inteligência Artificial Fraca”
ainda estava por vir, os aplicativos dos bancos ou “Narrow AI”. Isso porque as aplicações de IA
em nossos aparelhos celulares, os quais passou hoje existentes simulam um comportamento
a nos proporcionar a comodidade de pagar con- como se fossem inteligentes sem raciocínio ou
tas sem fila e sem sair de casa. Esses exemplos vontade própria11.
foi uma pequena ilustração de como a tecnolo-
gia modifica nosso modo de viver. Por outro lado, a “Inteligência Artificial Forte” ou
“General AI” é um campo de estudos que traz a
E o que a tecnologia vem preparando para im-
9 Alencar, Ana Catarina de. Inteligência Artificial, Ética e
pactar nossas vidas? Para essa pergunta não
Direito, p. 05
10 Santos, Marcelo Henrique dos. Introdução à Inteligência
6 Idem, p. 19
Artificial, p. 13
7 Idem, p.18
11 Alencar, Ana Catarina de. Inteligência Artificial, Ética e
8 Idem, p. 19
Direito, p. 03

64
hipótese de máquinas que realizem todas as CGPI/PEE-INPI/PGF/AGU13 da Procuradoria Fe-
ações desempenhadas por seres humanos, ex- deral Especializada junto ao Instituto Nacional
perimentando sensibilidade e autoconsciência. da Propriedade Industrial, a qual recebeu uma
Entretanto, em nossos dias, a “Inteligência Ar- consulta encaminhada pela Diretoria de Paten-
tificial Forte” é vista como uma hipótese de es- tes Programas de Computador e Topografias de
tudo, e não como uma tecnologia disponível e Circuitos Integrados – DIRPA, em que se ques-
existente no mercado12. tiona sobre a possibilidade de indicação e no-
meação de inteligência artificial como inventora
Estaremos no campo de análise da “IA Fraca”, em um pedido de patente apresentado no Brasil.
pois as máquinas disponibilizadas no mercado
simulam ações humanas, para as quais foram O requerente protocolou o pedido de patente em
programadas. escritórios de propriedade industrial ao redor
do mundo, indicando como inventor a IA deno-
Nessa esteira, recentemente em outubro de minada de “DABUS”.
2021, o jornal El País noticiou que uma empresa
russa realizou 150 demissões, através do crivo O procurador federal, que concedeu o parecer
de uma IA. O CEO da empresa, manifestou que Dr. Marcos da Silva Couto, aduz que a discussão
não concorda plenamente com a decisão da IA, deste pedido se fundamenta na seguinte ques-
todavia, a empresa está à mercê de outras pres- tão: “a quem” ou “o que” realizou a descoberta, em
sões de natureza econômica que podem ser detrimento do resultado obtido14”.
atendidas por meio da IA.
Dessa forma, o Dr. Marcos da Silva Couto, apon-
A notícia acima, apenas vem reafirmar que não ta a necessidade de que seja elaborada e edita-
há possibilidade de voltarmos ao status a quo, da legislação específica que discipline a inven-
retirando a tecnologia da sociedade, apesar das tividade desenvolvida por máquinas dotadas de
variáveis e riscos que ela nos proporciona, pois, inteligência artificial, o que provavelmente deve
os benefícios são maiores que os riscos apre- ser antecedido pela celebração de tratados inter-
sentados. nacionais específicos destinados a uniformizar
os princípios para a proteção nos ordenamentos
2.1. Posicionamento no ordenamento jurídi- nacionais. E afirma que a disciplina normativa
co brasileiro sobre os direitos autorais em do tema impacta na necessária preservação de
face da IA. investimentos em pesquisa e desenvolvimento
de novas tecnologias, evitando o desestímulo no
O Brasil como já salientamos dispõe de diversas
segmento ao garantir o devido reconhecimento
leis especificas que disciplinam a propriedade
de direitos de propriedade industrial gerados por
intelectual e nenhuma delas assegura a IA direi-
agentes diversos da pessoa humana15.
tos autorais. A fundamentação desta proibição
está implícita no art. 11 da Lei 9.610/98, que aduz A conclusão do parecer foi enfática em afirmar
que autor é a pessoa física criadora de obra lite- que as IA não possuem direitos autorais16:
rária, artística ou científica.
Diante de todo exposto, a vista da consulta
Portanto, se autor é pessoa física, não podemos formulada, a Procuradoria, em estrito juízo
considerar que uma máquina criada e alimen-
tada pelo seu inventor possa ter assegurado di- 13 Site: gov.br, acessado 24/10/22 link: https://www.gov.br/inpi/
pt-br/central-de-conteudo/noticias/inteligencia-artificial-
reitos autorais. nao-pode-ser-indicada-como-inventora-em-pedido-de-
patente
Foi neste sentido o Parecer nº 00024/2022/ 14 Idem, p.o4
15 Idem, p.04
12 Idem, p. 04 16 Idem, p. 05

65
de legalidade, manifesta-se no sentido da projetos de lei, a solução levantada é a da au-
impossibilidade de indicação ou de nome- toria ser dada às pessoas físicas ou jurídicas
ação de inteligência artificial como inven- que tenham utilizado a IA, se tornando titulares
tora em um pedido de patente apresenta- da obra feita e mantendo um ambiente jurídico
da no Brasil, ex vi do contido no art. 6º da confiável e seguro20.
Lei 9.279/96 e do disposto na Convenção
da União de paris (CUP) e no Acordo Trips.
2. POSICIONAMENTOS SOBRE
OS DIREITOS AUTORAIS DA IA
Sobre o tema o Brasil possui alguns projetos de NO DIREITO COMPARADO
lei em andamento, como o PL 21/20 de autoria
do deputado Eduardo Bismark em tramitação Atualmente, não existe uma legislação
na Câmara dos Deputados, qual prevê o uso da internacional projetada, especificamente, para
Inteligência Artificial (IA) pelo poder público, por regulamentar o uso de IA. Os sistemas de IA são
empresas, entidades diversas e pessoas físicas, “regulados” de forma transversal por inúmeras
estabelecendo princípios, direitos, deveres e iniciativas legislativas esparsas em vários países.
instrumentos de governança para a IA17. Isso inclui, por exemplo, leis sobre privacidade
Também tramita pela Câmara dos Deputados o e proteção de dados, leis sobre relações com
PL 1473/23 de autoria do deputado Auro Ribeiro, consumidores, leis de defesa da concorrência,
o qual obriga empresas que operam sistemas leis sobre serviços financeiros, entre outras21.
de inteligência artificial (IA) a disponibilizar fer- Em 2020, foi lançada a “Parceria Global em In-
ramentas que garantam aos autores de conteú- teligência Artificial” para o desenvolvimento de
do na internet a possibilidade de restringir o uso abordagens democráticas e com base nos di-
de seus materiais pelos algoritmos, o objetivo é reitos humanos para a IA seguindo a recomen-
preservar os direitos autorais18. dação do Conselho de Inteligência Artificial da
OCDE sobre o tema22.
Por fim, o Senado Federal vai analisar o projeto
de lei apresentado pelo senador Rodrigo Pache- Os países participantes desta parceria são: Aus-
co, o PL 2.338/2023, que tem como escopo regu- trália, Canadá, União Europeia, França, Alema-
lamentar os sistemas de inteligência artificial no nha, Índia, Itália, Japão, República da Coréia,
Brasil. O projeto é resultado do trabalho de uma México, Nova Zelândia, Cingapura, Eslovênia,
comissão de juristas que analisou, ao longo de EUA e Reino Unido.
2022, outras propostas relacionadas ao assunto, Atualmente, a União Europeia vem desempe-
além da legislação já existente em outros paí- nhando papel pioneiro referente a regulação
ses19. da Inteligência Artificial no mundo. No ano de
Enquanto, o Brasil aguarda o trâmite desses 2019, a UE publicou sua “Estratégia Europeia de
Inteligência Artificial”, estabelecendo diretrizes
17 Site Câmara dos Deputados. Link: https://www.camara.leg. éticas com o escopo de apresentar uma “Inteli-
br/noticias/641927-projeto-cria-marco-legal-para-uso-de-
inteligencia-artificial-no-brasil/ , acessado em 03/08/2023. 20 Wachowicz. Marcos; Michelotto. Giulia. Entre a máquina
18 Idem, Link: https://www.camara.leg.br/noticias/976585- e o homem: de quem são os Direitos Autorais das obras
projeto-obriga-empresas-de-inteligencia-artificial- produzidas por Inteligência Artificial. Jan. 06, 2022. Artigos
a-oferecer-ferramenta-para-proteger-direito- / 1 Comentários. Link: https://ioda.org.br/entre-a-maquina-
autoral/#:~:text=O%20Projeto%20de%20Lei%20 e-o-homem-de-quem-sao-os-direitos-autorais-das-
1473,%C3%A9%20preservar%20os%20direitos%20autorais, obras-produzidas-por-inteligencia-artificial/ acessado em
cessado 03/08/2023. 03/08/2023.
19 Site Senado Notícias. Link: https://www12.senado.leg. 21 Alencar, Ana Catarina de Inteligência Artificial, Ética e
br/noticias/materias/2023/05/12/senado-analisa-projeto- Direito [recurso eletrônico] : Guia prático para entender o
que-regulamenta-a-inteligencia-artificial, acessado em novo mundo.- São Paulo : Expressa, 2022
03/08/2023 22 Idem.

66
gência Artificial Confiável23”. Convém, ressaltar que nos EUA várias cidades
e estados possuem legislações próprias, des-
Nos Estados Unidos, a partir de 2018, foi institu- sa forma Estados ou cidades podem disciplinar
ída uma Comissão de Segurança Nacional so- legislação própria sobre a aplicação da Inteli-
bre a temática e, em 2019, foi publicado o “Plano gência Artificial. Como exemplo, podemos citar
Estratégico Nacional de Pesquisa e Desenvol- estado de
vimento para Inteligência Artificial”. Adicional-
mente, tramita no Poder Legislativo Federal es- Illinois que aprovou uma lei intitulada “Artifi-
tadunidense o projeto de lei intitulado “Artificial cial Intelligence Video Interview Act”. A lei prevê
Intelligence Initiative Act24”. regras para a notificação, o consentimento e a
transparência sobre o uso da IA na análise de ví-
Em 2019, a Casa Branca divulgou um projeto deos em entrevistas de emprego.
de Orientação para Regulamentação de Apli-
cações de Inteligência Artificial, que inclui dez O posicionamento de Portugal sobre a autoria
princípios para as agências dos Estados Unidos das produções advindas de IA, devem ser man-
ao decidirem como regular a IA. O documento tidas em Domínio Público, o que nos parece coe-
traz uma estrutura a partir da qual futuras re- rente, tendo em vista que as Inteligências Artifi-
gulamentações podem ser construídas em uma ciais não se beneficiam diretamente dos valores
abordagem setorial e descentralizada. Assim, o arrecadados em razão da criação.
relatório da Casa Branca estimula os regulado-
res setoriais a formularem regras para as apli- No mundo oriental, as estratégias de regulação
cações de IA dentro de suas competências25. de países como a China têm recebido inúmeras
críticas. A proposta de regulação chinesa pro-
O FDA (Food and Drug Administration) emitiu moveria a vigilância excessiva do governo sobre
um plano de ação para a IA utilizada em dispo- a liberdade de escolha de usuários e imporia
sitivos médicos. Cinco reguladores financeiros, ônus excessivos à iniciativa privada, infringindo
incluindo o Federal Reserve e o Controller of the regras de confidencialidade, segredo de negó-
Currency, realizaram uma ampla consulta ao se- cio e propriedade intelectual das empresas28.
tor em março de 2021. Os reguladores são infor-
mados de que devem evitar ações regulatórias O regulador de segurança cibernética da China
que dificultem desnecessariamente a inovação divulgou a proposta de regulação da inteligência
e o crescimento da IA26. artificial do país em agosto de 2021. A proposta
tem como objetivo regular o uso dos chamados
Nesse sentido a autora Ana Catarina Alencar, algoritmos de recomendação, ou seja, dos algo-
afirma que nos Estados Unidos vige uma certa ritmos que sugerem ou tomam decisões sobre
tendência na qual a regulação é vista como um usuários da aplicação29.
possível obstáculo para o mercado e somente
deve ser implementada se realmente necessá- Como vimos o impacto das criações advindas
rio. A abordagem estadunidense sobre o assun- das IA é algo extremamente complexo, que de-
to indica que a verdadeira tarefa dos regulado- verá caminhar de forma conjunta entre os pa-
res de IA é criar uma estrutura formal de regras íses, haja vista que muitos estão à frente nas
que proteja o público e promova a inovação do pesquisas sobre os impactos e a responsabili-
setor27. dade dessas criações.

23 Idem
Estamos engatinhando sobre o tema, apesar de
24 Idem. alguns juristas serem enfáticos, como o Desem-
25 Idem.
26 Idem 28 Idem
27 Idem. 29 Idem.

67
bargador Erickson Gravazza, ao afirmar que
qualquer criação advinda de IA é apócrifa, pois
não há embasamento jurídico que possa confe-
rir qualquer direito autoral a uma máquina.

CONCLUSÃO
Como vimos estamos diante de um tema desa-
fiador e reflexivo, à medida que muitas são as
propostas e pesquisas desenvolvidas, porém
nada sedimentado sobre os possíveis direitos
das criações advindas das IA.

Apesar das Lei 9610/98, que trata dos direitos


autorais em face das obras artísticas e cultu-
rais, bem como seus autores e intérpretes; a Lei
9.279/96, disciplinando as patentes e marcas e a
Lei 9.456/97, que assegura os direitos relativos à
propriedade intelectual no desenvolvimento de
novos cultivares e efetua mediante a concessão
de Certificado de Proteção de Cultivar, nenhuma
delas servem para solucionarem os novos desa-
fios que as IA estão causando no ordenamento
jurídico brasileiro e no mundo.

O Brasil, possui alguns projetos de leis em trâmi-


te na Câmara dos Deputados, como o PL 21/20
(autoria do deputado Eduardo Bismark); o PL
1473/23 (autoria do deputado Auro Ribeiro), am-
bos tramitando na Câmara dos Deputados e por
fim, o projeto de lei apresentado pelo senador
Rodrigo Pacheco, o PL 2.338/2023, que aguarda
análise do Senado Federal.

Mas, não temos nada sedimentado a respeito do


tema, logo ainda nos encontramos à deriva so-
bre essas criações artificiais, o que nos causa
insegurança, pois uma IA tanto pode criar algo
positivo como negativo para sociedade, e quem
irá se responsabilizar pelas consequências?

Este estudo teve como objetivo despertar no lei-


tor uma reflexão sobre o momento que estamos
vivenciando, pois, o mundo digital ou artificial
não tem retrocesso, por isso a sociedade deve
ter consciência dos impactos deste novo mun-
do, que inocentemente acreditamos ser os me-
lhores do mundo!

68
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-analisa-projeto-que-regulamenta-a-inteligencia-artificial, acessado em 03/08/2023

n 69
07
A O FORNECIMENTO DE DADOS DE USUÁRIO DE IP PELOS
PROVEDORES DE SERVIÇOS DE CONEXÃO À INTERNET E O
DEVIDO PROCESSO LEGAL

Palavras-chave
Internet Protocol – Dados Pessoais – Requisição de Dados – Provedor de Internet

João Guilherme de Oliveira


Advogado, professor universitário (FMR/UNINOVE), pós-graduado em direito processual civil e mes-
trando em sistema constitucional de garantias de direitos (CEUB-ITE), sob orientação do Professor
Livre-Docente Walter Claudius Rothemburg

70
1. INTRODUÇÃO O SCI, em verdade, é um serviço de valor adicio-
nado (SVA), serviço este que é prestado através
O presente escrito pretende enfrentar o tema do de um serviço de comunicação multimídia (SCM),
devido processo legal no fornecimento de dados mas que com este não se confunde, conforme
de usuários de endereço de IP (Internet Protocol), expressamente definido pelo art. 613 da Lei 9.472
especialmente das requisições feitas sem que de 16 de julho de 1997, mais conhecida como Lei
seja observado o devido processo legal e que Geral das Telecomunicações (LGT).
têm vulnerabilizado, de maneira desnecessária
e ilegal, uma grande quantidade de dados pes- Na verdade, para melhor compreender o SCI é
soais. imprescindível um breve resgate histórico, em
especial para o ano de 1994, quando a comitiva
Para tanto, passaremos por uma breve exposi- de técnicos e cientistas vinculados à Fundação
ção sobre a atividade de provimento de conexão de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
à internet, passando pelo funcionamento (e pro- (FAPESP) foi até os Estados Unidos e conseguiu,
blemas) dos protocolos atuais para então indicar junto a Internet Assigned Numbers Autority (IANA),
quais as hipóteses em que a legislação permite o primeiro bloco que IP para o Brasil, permitindo,
e quais as condições para que sejam fornecidos assim, que fosse possível o provimento de aces-
os dados de usuários. so à internet ao cidadão comum4.

Nosso intento é o de levantar alguma informa- Os blocos de IP são combinações numéricas ou


ção e, especialmente, tentar descortinar esse alfanuméricas utilizadas pelo protocolo denomi-
emaranhado de procedimentos, protocolos e nado TCP/IP5, que, por sua vez, pode ser defini-
processos que envolvem o fornecimento de da- do como um conjunto de regras que governam e
dos pessoais de usuários de IP. viabilizam esta navegação, é um dos elementos
essenciais a esta prestação6.
2. DO SERVIÇO DE
Com a chegada dos endereços de IP a atividade
CONEXÃO À INTERNET
provimento de conexão a internet começou a se
difundir, sendo que o ano de 1995 ficou marcado
Em linhas gerais, a internet pode ser conceitua- como o ano de surgimento de diversos provedo-
da como um ambiente pelo qual se interconec-
tam equipamentos e, através desses, pessoas. 3 Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que
Ocorre que para esta interconexão acontecer acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá
suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades
são necessários alguns elementos, como o meio relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação,
físico, a mensagem, o equipamento emissor, movimentação ou recuperação de informações.
o equipamento receptor e o protocolo, estan- § 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de
do esta organização à cargo dos Provedores de telecomunicações, classificando-se seu provedor como
usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte,
Serviço de Conexão à Internet (PSCI)1. com os direitos e deveres inerentes a essa condição.

Embora muitas pessoas acreditem que o servi- § 2° É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços
de telecomunicações para prestação de serviços de valor
ço de conexão à internet (SCI) seja um dos ser- adicionado, cabendo à Agência, para assegurar esse direito,
viços de telecomunicações, estabelecendo-se, regular os condicionamentos, assim como o relacionamento
até mesmo uma relação de sinonímia entre os entre aqueles e as prestadoras de serviço de telecomunicações.
4 GETSCHKO, Demi. Em 95, o ambiente estava pronto para o
mesmos, isso não procede2 crescimento que viria. O Estado de São Paulo, São Paulo, 04 de
mai. de 2015. Economia, p. B11.
1 TEIXEIRA, Tarcisio. Internet: conceito da atividade empresarial 5 Acrônimo para o termo em inglês: Transmission Control
de provimento de acesso para fins tributários. Revista Tributária Protocol/Internet Protocol Suit
e de Finanças Públicas, vol. 71/2016, p. 119 – 146, nov./dez. 2016 6 COMER, Douglas Earl. Computer networks and internets. 6.
2 TEIXEIRA, Tarcisio. op cit. ed. London: Pearson Education, 2015.

71
res no Brasil e, por consequência, algumas pro- Este conceito foi muito questionado e objeto de
vidências e regulamentações foram adotadas muita discussão, notadamente no bojo do direi-
pelo poder público7. to tributário, haja vista a contraposição dos in-
teresses das fazendas públicas estaduais, que
A Portaria Interministerial nº 147 de 31 de maio de pretendiam cobrar o Imposto sobre Circulação
1995, criou o Comitê Gestor da Internet no Brasil de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre o preço
(CGI.br) e definiu, dentre as suas atribuições, a cobrado pelos provedores, com os interesses
de “acompanhar a disponibilização de serviços dos empresários do setor, que se agarraram nas
Internet no país” (art. 1º) disposições e conceitos da norma nº 004/95
para afastar a não insciência.
Naquele mesmo dia, foi baixada a Portaria In-
terministerial nº 148, que aprovou a “Norma nº As discussões chegaram até os tribunais e, mais
004/95 – uso de meios de rede pública de tele- tarde, foram apreciadas pelo Superior Tribunal
comunicações para acesso à internet”, com âm- de Justiça (STJ) que, prestigiando a tese defen-
bito de aplicação aos provedores e usuários de dida pelos contribuintes, editou a súmula com o
serviços de conexão à internet. seguinte teor: “O ICMS não incide no serviço dos
provedores de acesso à Internet.” (Súmula STJ nº
A Norma nº 004/95, define os conceitos de ser-
334).
viço de valor adicionado, de serviço de conexão
à internet e de provedor de serviço de conexão à Em virtude deste contexto e, especialmente pela
internet e de nos seguintes termos: relevância econômica, as discussões sobre o
“b) Serviço de Valor Adicionado: serviço tema continuam até hoje.
que acrescenta a uma rede preexisten-
Mais recentemente, em 09 de junho de 2022, foi
te de um serviço de telecomunicações,
iniciada, pela Agência Nacional de Telecomuni-
meios ou recursos que criam novas uti-
lidades específicas, ou novas atividades
cações (ANATEL), uma consulta pública na qual
produtivas, relacionadas com o acesso, se pretendeu debater sobre a simplificação da
armazenamento , movimentação e recu- regulamentação dos serviços de telecomunica-
peração de informações; ções e, neste contexto, a área técnica daquela
entidade concluiu que a melhor alternativa, ao
c) Serviço de Conexão à Internet (SCI): sopesar vantagens e desvantagens, seria a revo-
nome genérico que designa Serviço de gação da Norma nº 004/95, eliminando, assim, a
Valor Adicionado, que possibilita o acesso figura do provedor de serviço de conexão à in-
à Internet a Usuários e Provedores de Ser- ternet9.
viços de Informações;
No entanto, após um acalorado debate, a con-
d) Provedor de Serviço de Conexão à Inter-
sulta pública foi encerrada e, malgrado a reco-
net (PSCI): entidade que presta o Serviço
mendação da área técnica da ANATEL, a norma
de Conexão à Internet;”
004/95 foi mantida em vigor, sendo que o Comi-
Assim, pelo conceito normativo, o provedor de tê Gestor da Internet CGI.br chegou divulgar uma
serviço de conexão à internet tem como objeto
9 SOUZA FILHO, Agostinho Linhares de; et. all. Análise de
de atuação a prestação do serviço que possibi- impacto regulatório: simplificação da regulamentação
lita a seus assinantes o acesso à internet, sen- de serviços de telecomunicações. mar. 2021. Brasília, DF,
do que este serviço, como dito, não se confunde SEI. Disponível em: < https://sei.anatel.gov.br/sei/modulos/
pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?eEP-
com um serviço de telecomunicações8. wqk1skrd8hSlk5Z3rN4EVg9uLJqrLYJw_9INcO6LD46D9roX-
8dTxYDKXZ5KgzykuR2sLKA0UxLcoc-u1WWG8-WaFcUuoGC
7 GETSCHKO, Demi. op. cit. LEO9eb0DWpfjKqZUUvKdnRGhAhmA9>. Acesso em: 09 jun.
8 TEIXEIRA, Tarcisio. op cit. 2023.

72
nota pública10 em apoio a decisão do Conselho menor quantidade de endereços, e o IPV6, mais
Diretor da Anatel em não propor a revisão da atual e com mais blocos de endereço que possi-
Norma 004/95. bilitam um número de conexões mais adequado
para a demanda hodierna13.
Portanto, o provimento de serviço de conexão à
internet continua, para o ordenamento jurídico Como no Brasil, a migração para o IPV6 não se
brasileiro, sendo um serviço de valor adiciona- completou totalmente e, diante do esgotamen-
do diverso dos serviços de telecomunicação e, to dos blocos de IPV4, muitos provedores de in-
inclusive, sendo um serviço não regulado pela ternet são obrigados a adotar uma técnica cha-
ANATEL. mada Carrier Grade Network Addres Transation
– CGNAT o que, inclusive, foi expressamente au-
3. ENDEREÇO IP COMO torizado pelas autoridades brasileiras da inter-
INSTRUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO net14.

O CGNAT é um protocolo que viabiliza a conexão


Conforme já explicado linhas acimas, são os dos usuários através do compartilhamento de
números de IP que viabilizam a conexão com a um mesmo endereço de IP entre vários termi-
internet, sendo que a gestão dos blocos de nu- nais, ou seja, faz com que àquele conceito pelo
meração é feita, mundialmente, pelo Internet qual um IP identifica um terminal também não
Assigned Numbers Authority (IANA), e, no Brasil, possa mais ser aplicado haja vista que um mes-
pelo Núcleo de Informação e Coordenação do mo endereço pode estar sendo utilizado de for-
Ponto BR (NIC.BR). ma simultânea por inúmeros terminais15.
Por meio do protocolo TCP/IP todo equipamento Assim, embora o IP seja, de fato, um elemento de
conectado à internet recebe um código identifi- identificação na rede, a individualização de um
cador, um “endereço” único, que ficará visível e usuário não é tão simples, tampouco automática
poderá ser registrado, como uma credencial em ou decorre logicamente dos dados em posse do
todas as atividades na rede11. provedor de internet.
Vale esclarecer que o endereço de IP é conferido Não é demais ressaltar que o provedor detém
ao terminal e, portanto, identifica apenas o equi- apenas os dados cadastrais de seus assinantes,
pamento e não o usuário, assim, se duas ou mais ou seja, os dados dos tomadores de serviço que,
pessoas estiverem simultaneamente com seus não necessariamente, se confundem com os
computadores conectados à uma rede local usuários do serviço.
que esteja conectada à internet por um mesmo
terminal, elas navegarão pela rede mundial sob O Marco Civil da Internet estabelece, dentre as
o mesmo endereço de IP, haja vista que ele foi garantias dos usuários, que estes tem assegura-
atribuído ao terminal e não aos seus respectivos do o direito ao não fornecimento de seus dados
computadores12. pessoais, inclusive registros de conexão salvo
nas hipóteses previstas em lei, assegurada ain-
Atualmente existem duas versões de IP que são da o sigilo e a inviolabilidade no fluxo de suas co-
utilizadas no Brasil, o IPV4, mais antigo e com 13 MARTINS, Patricia Helena Marta; KILMAR, Sofia Gavião.
A identificação de usuários na internet e a controversa
10 A nota circulou por e-mail em 09 de setembro de questão da coleta, guarda e fornecimento do dado de porta
2022 e uma cópia esta disponível para consulta em < lógica de origem. Revista de Direito e as Novas Tecnologias.
https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index. vol. 12. ano 4. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2021.
jsp?data=01/06/1995&jornal=1&pagina=31&totalArquivos=44>. 14 MARTINS, Patricia Helena Marta; KILMAR, Sofia Gavião. op.
Acesso 09 jun. 2023. cit.
11 COMER, Douglas Earl. op. cit. 15 MARTINS, Patricia Helena Marta; KILMAR, Sofia Gavião. op.
12 COMER, Douglas Earl. op. cit. cit.

73
municações. Nada mais.

O mesmo diploma destaca ainda que os registros Assim, caso autoridade tenha obtido apenas um
de conexão, de forma autônoma ou associados a endereço de IP e requerido, sem autorização ju-
dados pessoais ou outras informações que pos- dicial, que os provedores forneçam os dados dos
sam identificar o terminal somente podem ser usuários daquele endereço de IP no dia e horá-
fornecidas mediante ordem judicial (art. 10 §1º) rio a que mencionam, este provedor não poderá
e ressalva que poderão ser informados dados e não deverá fornecer tais dados.
cadastrais que informem qualificação pessoal,
filiação e endereço, na forma da lei, pelas auto- Mas diante deste cenário, resta a dúvida: Se a
ridades administrativas que detenham compe- autoridade já tem o nome do investigado seria
tência legal para a sua requisição (art. 10 §3º). eficiente a requisição? O provedor de serviços
de conexão a internet poderia – ou deveria – en-
Perceba-se que a legislação é clara ao estabe- caminhar os dados dos usuários mesmo que
lecer que as autoridades prescindem de autori- não estejam presentes todos os requisitos para
zação judicial apenas para ter acesso aos dados o pedido?
cadastrais e não aos registros de conexão.
A situação se complica ainda mais quando se
No entanto, o Regulamento do Marco Civil da In- está diante de uma conexão que foi originada
ternet – RMCI (Decreto nº 8.771/2016), disciplina por um endereço de IPV4, que tenha comparti-
que as referidas autoridades administrativas, lhado pelo protocolo CGNAT, como acima expos-
deverão, além de indicar o fundamento legal que to e, portanto, seja utilizado de forma simultânea
lhes autoriza a requer os dados, também a expor por diversos usuários.
a motivação para o pedido de acesso aos dados
cadastrais e especificar os indivíduos cujos da- Nestas hipóteses, pode ser que os dados cadas-
dos estão sendo requeridos, bem como detalhar trais de trinta ou cinquenta usuários sejam ex-
as informações desejadas, vedando-se expres- postos para a autoridade policial sem que estas
samente, pedidos coletivos, genéricos ou ines- tenham qualquer relação com qualquer condu-
pecíficos ta ou sequer tenham a ideia de que o IP de sua
conexão está sendo compartilhada por uma de-
Desta forma, não basta para a autoridade ad- ficiência na infraestrutura de internet em nosso
ministrativa apenas endereçar uma correspon- país.
dência ou ofício contendo a solicitação, mas sim,
é indispensável que de tal requisição conste ex- Ainda mais grave é o fato de que os provedores,
pressamente os fundamentos legais autorizado- seja por desconhecimento ou por temor, sequer
res da requisição e, especialmente, a motivação hesitam em exibir todos estes dados, franque-
do ato e especificação do objeto. ando quase que prontamente as informações
mesmo diante de pedidos infundados e que não
Além do mais, conforme se depreende do §2º do observam os requisitos exigidos pela legislação.
art. 11 do RMCI, a norma traz ainda uma definição
sobre o que são “dados cadastrais” para fins da Desta forma, cumpre-se esclarecer que é pos-
solicitação administrativa. sível o fornecimento de dados dos terminais
desde que mediante autorização judicial e sen-
Portanto, diante de uma requisição administra- do obedecido o art. 22 da Lei 12965/14 ou, sem a
tiva, o provedor de serviço de conexão à internet ordem judicial, ou seja, por mera requisição de
deverá informar: a filiação, o endereço, e a qua- autoridade, se for indicado o indivíduo (art. 11 §3º
lificação pessoal, entendida esta como nome, do Decreto 8771/2016) ou ainda nas hipóteses de
prenome, estado civil e profissão do usuário. crime de lavagem de ativos (art. 17-B lei 9613/98),

74
crime organizado (art. 15 da lei 12.850/2013) e
crime de tráfico interno ou internacional de pes-
soas (art. 13-A do CPP).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
PO endereço de IP é uma importante ferramenta
que pode auxiliar as autoridades brasileiras em
suas investigações, no entanto, os provedores
de internet precisam se certificar de que todos
os requisitos da Lei 12.965/2014 (e seu regula-
mento) foram devidamente preenchidos e aten-
didos, devendo fazê-lo antes de fornecer os da-
dos de seus usuários.

Ademais, os provedores de internet têm a obri-


gação legal de zelar pelo sigilo dos dados de co-
nexão e privacidade das informações de seus
usuários e para que forneçam os dados de co-
nexão ou de usuário para autoridades policiais é
regra a prévia autorização judicial e, exceção, a
mera requisição.

Desta forma, mesmo que relevantes as razões


para o pedido, nenhuma autoridade policial
poderá ter acesso aos dados dos usuários sem
cumprir com todos os requisitos legais.

75
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76
08
A EDUCAÇÃO CÍVICA E POLÍTICA COMO FERRAMENTA PARA
FOMENTAR A PARTICIPAÇÃO ATIVA DA SOCIEDADE, NA BUSCA
DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO IDEAL
O presente artigo tem como objetivo investigar que a falta da educação cívica, política e jurídica, tem
como principal consequência a falta de participação ativa na vida política e social pelo cidadão.

Sem acesso a esse tipo de educação, o cidadão não tem a plena compreensão de seus direitos e
deveres, deixando de exercer sua cidadania de forma efetiva, como por exemplo: votar, participar de
movimentos sociais e fiscalizar e exigir a transparência de prestação de contas pelo poder público.

É imperativo promover além da educação cívica e jurídica, o acesso às informações claras e acessí-
veis sobre os princípios e valores do Estado Democrático de Direito, a fim de fortalecer a participa-
ção da sociedade, a justiça e a igualdade entre todos.
Palavras-chave
Estado Democrático de Direito - Participação ativa - Educação cívica e política

Katia Cristina Gonçalves


Graduação em Administração pela Uni Sant’Anna; MBA em Gestão Pública; Graduanda no curso de
Direito pela Faculdades Integradas de Bauru – FIB, atualmente servidor pública na Fundação de
Previdência dos Servidores Públicos Municipais Efetivos de Bauru

77
1. INTRODUÇÃO oligarquia. Quanto mais os costumes são
bons, mais o governo também o é. Estas
Esse tema tem a intenção de demonstrar a im- três formas podem degenerar: a monar-
portância da educação focada na ciência social, quia em tirania; a aristocracia em oligar-
quia; a república em democracia. A tirania
cívica e jurídica, a fim de conscientizar o cidadão
não é, de fato, senão a monarquia voltada
da importância de sua participação na vida pú-
para a utilidade do monarca; a oligarquia,
blica não apenas através do voto, mas também
para a utilidade dos ricos; a democracia,
através de sua participação partidária, interesse para a utilidade dos pobres. Nenhuma das
nos debates sociais e políticos e na apresenta- três se ocupa do interesse público. Pode-
ção de planos de governo pelos candidatos. mos dizer ainda, de um modo um pouco
diferente, que a tirania é o governo despó-
O conceito, os tipos e os elementos fundamen-
tico exercido por um homem sobre o Esta-
tais do Estado são amplamente debatidos e do, que a oligarquia representa o governo
conceituados pelos filósofos desde a Antiguida- dos ricos e a democracia o dos pobres ou
de. Por exemplo: para Platão, o Estado ideal, de- das pessoas pouco favorecidas.”3
fende em sua obra “A República”1, a ideia de que
cada classe social deveria ter função específica Outro pensador, Jean-Jacques Rousseau, em
na sociedade, trabalhando em harmonia para sua principal obra “O Contrato Social”4, acredi-
garantia da justiça a todos os cidadãos; já Ma- tavam que a democracia era a melhor forma de
quiavel, com sua obra “O Príncipe”2, adotou uma governo, por ser a única que garantia a liberdade
abordagem mais realista em que o Estado é uma e a igualdade dos cidadãos:
entidade política baseada no poder e na autori-
“Quem faz a lei sabe melhor que ninguém
dade, buscando a estabilidade e a preservação
como deve ser ela executada e interpre-
do governo dirigido por um príncipe forte e efi-
tada. Parece, pois, que não se poderia
caz, capaz de tomar decisões difíceis em prol do ter melhor constituição que essa em que
bem do Estado. o poder executivo está unido ao legislati-
vo; mas é justamente isso que torna esse
Igualmente a Democracia foi amplamente dis-
governo sob certos aspectos insuficiente,
cutida, para Aristóteles, em suas análises das
uma vez que as coisas que deveriam ser
diversas Cidades-Estados gregas, observou três diferenciadas não o são, e o príncipe e o
formas de governo fundamentais, consideran- soberano, sendo a mesma pessoa, não for-
do o número de governantes: a) Monarquia cujo mam, por assim dizer, senão um governo
governo é dirigido por apenas 01 (um) governan- sem governo.”
te; b) Oligarquia no qual o governo é dirigido por
uma elite e c) Democracia onde o governo é ge- E no que se diz em relação ao Direito, esses
rido pela maioria, no entanto nenhuma dessas mesmos filósofos traziam a luz suas ideias de
formas são perfeitas: como as leis contribuíam para a manutenção de
Estado ideal. Sócrates, pensador grego que não
“Cada Estado tem costumes que lhe são expressou suas opiniões através de obras pró-
próprios, de que dependem sua conserva- prias, porém teve seus pensamentos difundidos
ção e até sua instituição. São os costumes por seus discípulos. Em “Criton”5, Platão expõe
democráticos que fazem a democracia
e os costumes oligárquicos que fazem a 3 Aristóteles. “Política” – Coleção a obra-prima de cada autor –
Martin Claret
1 Platão. “A República” - Organização: Daniel Alves Machado – 4 Rousseau, Jean-Jacques – “O Contrato Social” – tradução:
Brasília: Editora Kiron, 2012. Antonio de Pádua Danesi – 3ª edição – Editora Martins Fontes,
2 Maquiavel, Nicolau. “O Príncipe” – tradução de Maurício 1996
Santana Dias, prefácio de Fernando Henrique Cardoso, 2010 – 5 Platão. “Critão (Criton) ou o DEVER” – extraído do livro Diálogos,
Penguin Companhia da Coleção Classicos Cultrix - tradução Jaime Bruna

78
um desses pensamentos: que seja o mais comum, que não se con-
vença no momento, proposto um exemplo,
“Sócrates - Bem, reflete no seguinte. Se, de que, mediante fundamentos empíricos
no momento em que eu estivesse para me do querer, podemos certamente aconse-
evadir daqui, ou como quer que se diga, lhar-lhe a que siga as suas seduções, mas
chegassem as Leis e a Cidade, assomas- nunca se pode exigir dele que obedeça a
sem perguntado: “Dize-nos, Sócrates: que outra coisa que não seja a lei pura prática
pretendes fazer? Que outra coisa meditas, da razão.”
com a façanha que intentas, senão des-
truir-nos a nós, as Leis e toda a Cidade, na Mas afinal o que tem haver Educação com con-
medida de tuas forças? Acaso imaginas ceitos de Estado, Democracia e Direito? Esses
que ainda possa subsistir e não esteja mesmos autores acreditavam que a Educação
destruída uma cidade onde nenhuma é essencial na construção de um Estado ideal.
força tenham as sentenças proferidas, Para Platão a educação era vista como essencial
tornadas inoperantes e aniquiladas por na construção de um estado ideal. Ele enfatizava
obra de simples particulares?” – Que res- que a educação deveria concentrar-se no culti-
ponder, Critão, a essas e semelhantes per-
vo das virtudes, como sabedoria, justiça, cora-
guntas? Muitos argumentos poderiam ser
gem e temperança:
aduzidos, sobretudo por um orador, em
defesa da lei por nós violada que estabele- “Assim, os indivíduos que não têm a expe-
ce a autoridade das sentenças proferidas. riência da sabedoria e da virtude, que es-
Acaso responderei que a Cidade me agra- tão sempre nas festas e nos prazeres afins,
vou, não me julgou, conforme a justiça? Di- são, ao que me parece, transportados para
rei isso? Direi o quê?” (grifo nosso) a região baixa, depois de novo para a mé-
dia, e erram assim durante toda a vida. Não
Para Immanuel Kant, na “Crítica da Razão Práti-
sobem mais alto; nunca viram as verdadei-
ca”6, alega que o Direito é baseado na razão e que ras alturas, nunca para lá foram transpor-
é universal, isto significa, pois é necessário para tados, nunca foram realmente cheios do
a paz e a ordem social, garantindo a liberdade e Ser e não experimentaram prazer sólido e
a igualdade dos indivíduos. puro. A semelhança dos animais, de olhos
sempre voltados para baixo, de cabeça in-
“A heterogeneidade dos fundamentos de
clinada para a terra e para a mesa, pastam
determinação (empírico e racional), dá-lhe
na pastagem gorda e acasalam-se; e, para
a conhecer essa resistência de uma razão
satisfazerem ainda mais seus apetites, es-
praticamente legisladora contra toda a in-
coicinham, batem-se com seus chifres e
clinação que se imiscua, por meio de um
matam-se uns aos outros no furor do seu
modo de sensação peculiar a isso, a qual,
apetite insaciável, porque não encheram
todavia, não procede à legislação da razão
de coisas reais a parte real e estanque de
prática, mas é efetuada de melhor forma
si mesmos.”7
só por esta mesma e na verdade como
uma coação que é o sentimento de um O filósofo do século XIX, Herbert Spencer, de-
respeito que nenhum homem tem para fende a educação para a cidadania ajudando os
com as inclinações, sejam da classe que cidadãos a serem produtivos e a contribuírem
forem, mas sim para com a lei. Esta dife-
para o bem-estar da sociedade:
rença ressalta de um modo tão claro e evi-
dente que não há nenhum intelecto, ainda “[...]. Nem a educação dos tempos passa-
6 Kant, Immanuel – “Crítica da Razão Prática” - Tradução e dos, nem a da época atual, permitiram que
Prefácio: Afonso Bertagnoli - Edições e Publicações Brasil
Editora S.A., São Paulo, 1959
7 Platão. “A República” - Organização: Daniel Alves Machado –
Brasília: Editora Kiron, 2012.

79
muita gente formasse uma ideia cientifi- sica proferida por Abraham Lincoln: “Demo-
ca da sociedade, que lhes é apresentada cracia é o governo do povo, pelo povo e para o
como uma estrutura natural - estrutura povo.”, em seu discurso de Gettysburg, em 19 de
que, em certo sentido, é orgânica - donde novembro de 1863.
todas as instituições: governamentais, re-
ligiosas, industriais, comerciais, etc., estão A Democracia é um sistema de governo em que
em dependência reciproca – [...].8 o poder é exercido pelo povo ou por seus re-
presentantes eleitos, buscando a igualdade de
O objetivo geral desse artigo é trazer através de
direitos e oportunidades para todos, além da
conceitos e elementos fundamentais; de análi-
proteção das liberdades individuais e coletivas,
se inferencial a partir de uma pesquisa online, e
e, a promoção da justiça social. Neste sistema,
seus resultados sobre a educação social, política
as decisões são tomadas por meio de processos
e cidadã, e por fim, os desafios a serem supera-
transparentes, como eleições, debates públicos,
dos.
consultas populares e negociações entre dife-
rentes grupos de interesses.
2. DESENVOLVIMENTO
Já a conceituação de Direito, pelo Dicionário
Se o foco deste artigo é a educação sobre o Es- Michaelis10, é: “a ciência das leis tribunais supe-
tado Democrático de Direito, nada mais correto riores, adaptando as normas às relações dos ho-
do que conceituar esses termos, primeiramente mens em sociedade.”; “complexo de leis vigentes
de forma singular, a fim de entender seu signi- em um país.”; e, conjunto de normas jurídicas
ficado primário, a seguir de forma combinada, que funcionam como referencial de justiça.”
para entender como esses termos movem a so-
Dessa forma podemos dizer que Direito é um
ciedade, e, por fim o conceito final do objeto des-
campo de conhecimento, na qual regras e nor-
ta matéria.
mas estabelecidas regulam a convivência entre
Começando pelo Estado, segundo o dicionário as pessoas em uma sociedade, buscando esta-
Houaiss9, temos 04 (quatro) definições: “país so- belecer e manter a justiça, a ordem e a equidade
berano, com estrutura própria e politicamente nas relações humanas definindo e protegendo
organizado”; “conjunto das instituições (governo, os direitos e deveres dos indivíduos, bem como
forças armadas, funcionalismo público etc.) que estabelecer as consequências legais para o des-
controlam e administram uma nação”; “forma cumprimento dessas normas.
de governo, regime político”; e, por fim “divisão
Para entender como esses termos movem a so-
territorial de determinados países”, donde con-
ciedade, deveremos estudá-los de forma com-
cluímos que o que importa é a abrangência onde
binada, começando pelo Estado Democrático,
o Estado irá atuar e a população nela contida,
que é uma forma de organização política em que
sendo administrada por um sistema de governo
o poder é exercido pelo povo, o governo é base-
que possui instituições que exercem poder e au-
ado na vontade da maioria e em princípios de
toridade para tomada de decisões e estabeleci-
igualdade, liberdade, justiça, e direitos e liberda-
mento de leis dentro desse território.
des garantidos, a participação dos cidadãos está
Democrático é um adjetivo, cuja definição clás- presente na tomada de decisões, como eleições
periódicas, referendos e consultas populares.
8 Spencer, Herbert – “O indivíduo conta o Estado – texto retirado
do site: https://filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/268.txt
O Estado de Direito é um princípio fundamen-
(acesso em 29/07/2023)
9 https://houaiss.uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/v6-1/ tal do sistema jurídico que estabelece que todas
html/index.php#1 (acesso em 04/07/2023).
10 https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/
portugues-brasileiro/direito/ (acesso em 04/07/2023)

80
as pessoas, estão sujeitas às mesmas leis, apli- “Art. 2º São Poderes da União, indepen-
cadas de forma justa e imparcial, garantindo a dentes e harmônicos entre si, o Legislati-
igualdade e que ninguém está acima delas. As vo, o Executivo e o Judiciário.”
decisões e ações do governo devem ser toma-
De maneira simplista, a Constituição Federal
das dentro dos limites estabelecidos pela lei.
seria como um “contrato”, no qual os cidadãos
Dessa forma, o Estado Democrático de Direito transferem ao Estado o poder de geri-los em
é um conceito que representa um sistema polí- prol do bem comum, e, em contrapartida o Es-
tico e jurídico em que os poderes do Estado são tado compromete-se a atender e satisfazer as
exercidos dentro dos limites estabelecidos pela necessidades de seus cidadãos, respeitando
Constituição Federal, e, asseguram a proteção ambos os lados os limites impostos por este
dos direitos fundamentais dos cidadãos. É um “contrato”.
modelo de organização estatal que busca con-
Além disso, o Estado Democrático de Direito
ciliar a democracia, com a participação popular
tem como finalidade a garantia de igualdade de
na tomada de decisões, e o respeito ao Estado
todos as pessoas, independentemente de sua
de Direito, que garante a supremacia da lei e a
raça, gênero, religião, posição social ou qual-
proteção dos direitos individuais.
quer outra característica pessoal, e que todos
O Brasil tem assegurado o Estado Democrático têm os mesmos direitos e obrigações legais e
de Direito, através da Constituição Federal de devem se submeter ao mesmo conjunto de leis,
1988 em seu artigo 1º: ou seja, significa que ninguém está acima da lei
e que todos devem ser tratados de maneira justa
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, e imparcial pelo sistema jurídico, em nosso or-
formada pela união indissolúvel dos Es- denamento esses direitos estão no artigo 5º da
tados e Municípios e do Distrito Federal, Constituição Federal de 1988:
constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantin-
I - a soberania; do-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do
II - a cidadania;
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
III - a dignidade da pessoa humana; segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
IV - os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa; [...]”

V - o pluralismo político. Em suma, o Estado Democrático de Direito é um


sistema que combina os princípios da democra-
Parágrafo único. Todo o poder emana do cia com o Estado de Direito, e busca estabelecer
povo, que o exerce por meio de represen- o equilíbrio entre a vontade popular e a proteção
tantes eleitos ou diretamente, nos termos dos direitos individuais, assegurando a justa go-
desta Constituição.”
vernança, transparente e responsável.
Outro fator importante no Estado Democráti-
A seguir, serão apresentados apenas alguns
co de Direito, é a independência e a interde-
elementos fundamentais, sem a pretensão de
pendência dos poderes Executivo, Legislativo e
exaurir um assunto tão amplo e controverso,
Judiciário, atuando como freios e contrapesos
pois esses elementos podem variar de acordo
para evitar o abuso de poder, sendo previsto no
com perspectivas, contextos e continuar evo-
artigo 2º da CF/1988:
luindo e se adaptando às necessidades e desa-

81
fios, sistemas políticos e contextos históricos. seja conforme a Constituição.”12

Além dos elementos anteriormente desenvolvi- No Brasil, existem diferentes formas de controle
dos como a democracia, os direitos fundamen- de constitucionalidade, sendo as principais: (a)
tais e a separação de poderes, pode-se elencar controle difuso: qualquer juiz ou tribunal pode
da mesma forma: analisar a constitucionalidade de uma lei em um
caso concreto, se declarada a inconstitucionali-
i. Supremacia da Constituição: Para Hans Kel- dade da norma ela será limitada ao caso em aná-
sen em “Teoria Pura do Direito”11, “A produção lise, sem efeito vinculante a outros processos.; (b)
das normas jurídicas gerais, isto é, o processo controle concentrado: realizado pelo Supremo
legislativo, é regulado pela Constituição, e as leis Tribunal Federal (STF), através de ferramentas
formais ou processuais, por seu turno, tomam a como: Ações Diretas de Inconstitucionalidade
sua conta regular a aplicação das leis materiais (ADIs), Ações Declaratórias de Constitucionali-
pelos tribunais e autoridades administrativas.”. dade (ADCs), Arguições de Descumprimento de
No Estado Democrático de Direito, a Constitui- Preceito Fundamental (ADPFs), na qual a cons-
ção é considerada a norma suprema, e todas titucionalidade de uma lei é analisada de forma
as leis e atos normativos devem estar em con- abstrata, ou seja, sem um caso concreto. SE o
formidade com seus preceitos e nenhum órgão STF declarar a inconstitucionalidade de uma lei
ou autoridade pública pode agir em desacor- a tornará inválida em todo o território nacional,
do com o que está estabelecido nela, caso isso ou seja, com efeito “erga omnes” (para todos).
ocorra, ela pode ser considerada como um ato
inconstitucional. Cabe ressaltar que o Brasil adota o sistema de
jurisdição constitucional concentrada, isso sig-
ii. Controle de Constitucionalidade: É exercido nifica, que o STF é o principal órgão responsá-
pelos órgãos jurisdicionais, os quais têm o po- vel pelo controle de constitucionalidade no país,
der de declarar a inconstitucionalidade de uma tendo a palavra final em muitos casos.
norma e, consequentemente, excluí-la do orde-
namento jurídico, com o intuito de assegurar a iii. Participação popular: é valorizada a partici-
harmonia e a coerência do sistema jurídico bra- pação ativa, direta ou indireta, dos cidadãos na
sileiro com os princípios e valores estabelecidos vida política e nas decisões que afetam a socie-
na Constituição Federal. Ainda parafraseando dade como um todo. Isso assegura que as vozes
Hans Kelsen: das pessoas sejam ouvidas e que elas tenham
influência sobre as políticas e leis que impactam
“Se a Constituição nada preceitua sobre a suas vidas.
questão de saber quem há de fiscalizar a
constitucionalidade das leis, os órgãos a Existem várias formas de participação popular
quem a Constituição confere poder para na democracia, entre elas: referendos, plebis-
aplicar as leis, especialmente os tribunais, citos; iniciativas populares; audiências públicas
portanto, são por isso mesmo, tornados e consultas públicas, além dessas formas mais
competentes para efetuar esse controle. tradicionais, a participação popular também
Visto que os tribunais sido competentes
pode ser promovida por meios digitais, como
para aplicar as leis, eles têm de verificar se
sites governamentais interativos, plataformas
algo cujo sentido subjetivo é o de ser uma
lei também objetivamente tem este senti- de consulta online e redes sociais. Mas são as
do. E só terá esse sentido objetivo quando eleições onde o cidadão exerce plenamente
seus direitos políticos, como o direito de votar
11 KELSEN, Hans, 1881-1973. “Teoria Pura do Direito” – tradução: 12 KELSEN, Hans, 1881-1973. “Teoria Pura do Direito” – tradução:
João Baptista Machado — 6* ed. — São Paulo: Martins Fontes, João Baptista Machado — 6* ed. — São Paulo: Martins Fontes,
1998. — (Ensino Superior) página 80 1998. — (Ensino Superior) página 276

82
e de serem eleitos. Eleições livres, justas e pe- irregularidades.
riódicas são fundamentais para a expressão da
vontade popular e a renovação democrática, na Em resumo, um governo transparente e respon-
conceituação de Dallari:13 sável traz uma série de benefícios, como promo-
ver a confiança entre governantes e cidadãos,
“É preciso reconhecer que a participa- fortalecer a democracia e contribuir para um
ção do povo tem limitações, não podendo ambiente político mais ético e íntegro.
abranger todas as decisões dos governos,
mas, ao mesmo tempo, é evidente que a iv. Pluralismo político: é um dos fundamentos
participação popular é benéfica para a previstos no artigo 1º, inciso V, da CF/88, cujo
sociedade, sendo mais uma forma de de- conceito é a existência de diferentes corren-
mocracia direta, que pode orientar os go- tes ideológicas e partidos políticos, permitindo
vernos e os próprios representantes elei- a diversidade de opiniões e a livre competição
tos quanto ao pensamento do povo sobre política. O pluralismo político é essencial para
questões de interesse comum. a expressão da vontade dos cidadãos e para o
Uma forma de participação popular que funcionamento do sistema democrático.
já era praticada por alguns Estados e que
“[...] pluralismo político em fundamento da
teve expressiva ampliação foi a iniciativa
República Federativa do Brasil, implican-
popular de projetos de lei.”
do que nossa sociedade deve reconhecer
e garantir a inclusão, nos processos de
Outro benefício da participação popular é a
formação da vontade geral, das diversas
promoção da transparência, da prestação de
correntes de pensamento e grupos repre-
contas. Os órgãos governamentais operam de
sentantes de interesses existentes no seio
forma aberta, honesta e responsável perante do corpo comunitário.”14 (PAULO, Vicente)
seus cidadãos, disponibilizando informações
relevantes de forma clara e acessível sobre suas v. Estado de bem-estar econômico ou bem-
ações, gastos públicos e tomada de decisões. -estar social: Além do Estado de bem-estar
social mencionado anteriormente, o Estado De-
Os governantes devem ser éticos, agir de acordo mocrático de Direito também busca promover
com as leis, ouvir as demandas dos cidadãos e o bem-estar econômico e social dos cidadãos.
responder a eles de maneira justa e adequada, Isso envolve a criação de condições favoráveis
sendo obrigados a prestar contas de suas ações para o desenvolvimento econômico, a proteção
e decisões, bem como garantir que os recursos dos direitos dos trabalhadores, a regulação do
públicos sejam utilizados de maneira eficiente mercado, a promoção da igualdade de oportu-
e para o benefício da sociedade como um todo, nidades econômicas, proteção dos direitos so-
respondendo perante ao público e aos órgãos de ciais, igualdade de oportunidades, estabilidade
controle. social: entre outros aspectos.
A “accountability” são os mecanismos de con- vi. Proteção dos direitos humanos: O respeito
trole, como auditorias, investigações e puni- e a proteção dos direitos humanos são pilares
ções, que visam garantir a integridade e a ética fundamentais do Estado Democrático de Di-
na administração pública, e está relacionada à reito. Isso envolve a garantia dos direitos civis
responsabilização dos agentes públicos pelos e políticos, como a liberdade de expressão e de
seus atos e decisões, e responsabilizados por reunião, bem como os direitos sociais, econômi-
eventuais abusos de poder, corrupção ou outras
14 PAULO, Vicente, 1968- “Direito Constitucional descomplicado
13 DALLARI, Dalmo de Abreu – “Elementos de Teoria Geral do
I” - Vicente Paulo, Marcelo Alexandrino. - 16. ed. rev., atual. e
Estado” – 30ª edição – 2011 – Editora Saraiva
ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.
página 90

83
cos e culturais, como o direito à saúde, à mora- esses grupos contra discriminação, marginali-
dia e à educação. zação, exclusão social e violência. Trata-se de
criar ambientes e sociedades que valorizem
vii. Autonomia e independência do Poder Ju- e respeitem a pluralidade de características e
diciário: O Poder Judiciário desempenha um identidades das pessoas, proporcionando igual-
papel fundamental no Estado Democrático de dade de oportunidades e acesso a todos e de-
Direito, ele assegura a imparcialidade e a apli- senvolver ações como por exemplo: promover a
cação conforme as leis, para isso, são necessá- conscientização sobre a importância da diver-
rias a garantia de sua autonomia e imunidade sidade e da inclusão, destacando os benefícios
frente às interferências externas. Nas palavras que ela traz para indivíduos e organizações, im-
de Konrad Hesse a respeito da função do Poder plementar políticas e práticas inclusivas, treina-
Judiciário, no sentido de que: mentos e capacitações para os colaboradores e
“a peculiaridade dessa função básica não membros da comunidade, criação de espaços
se deixa, como isso muitas vezes já foi seguros nos quais as pessoas se sintam à von-
tentado caracterizar pelo característico tade para serem autênticas, expressarem suas
geral da aplicação do direito a fatos con- opiniões e compartilharem suas experiências
cretos. Porque esta é assunto de todos sem medo de discriminação ou preconceito,
os órgãos estatais que, em conformidade garantir a representação diversificada em todos
com a densidade diferente de sua vincu- os níveis e setores da sociedade, implementar
lação jurídica, têm de concretizar direito, medidas para identificar, denunciar e comba-
especialmente administração. Também o ter atitudes discriminatórias e preconceituosas,
característico da decisão do conflito não criando canais de denúncia e adotando políticas
possibilita determinação suficiente da de tolerância zero, entre outras para combater a
peculiaridade da jurisdição, já porque ela discriminação e promover a igualdade de opor-
não compreende a tarefa da justiça cri-
tunidades.
minal, que não decide litígios. Jurisdição
é, antes, caracterizada em sua psicologia ix. Proteção da privacidade e dos dados pes-
dos tipos fundamentais pela tarefa de de- soais: A privacidade refere-se ao direito de
cisão autoritária e, com isso, obrigatória, cada pessoa controlar o acesso e o uso de suas
independentizada, em casos de direito
informações pessoais e busca evitar que essas
contestado ou violado, em um procedi-
informações sejam coletadas, utilizadas ou di-
mento especial; ela serve exclusivamente
à conservação e, com essa, à concretiza-
vulgadas sem o consentimento do titular dos
ção e aperfeiçoamento do direito”15 dados e é garantida por meio de leis e regula-
mentações específicas, como o Regulamento
viii. Direitos das minorias e a promoção da Geral de Proteção de Dados (GDPR, na sigla em
diversidade e da inclusão: Um Estado Demo- inglês), aplicado na União Europeia, e a Lei Geral
crático de Direito valoriza a proteção dos direi- de Proteção de Dados (LGPD), em vigor no Brasil
tos das minorias, que podem incluir minorias desde setembro de 2020 essa necessidade de-
étnicas, religiosas, linguísticas, de gênero, sexu- ve-se ao avanço da tecnologia, cada vez mais
ais, pessoas com deficiência, entre outros, ga- dados pessoais são coletados, armazenados e
rantindo que todos os indivíduos tenham aces- utilizados por empresas, organizações e gover-
so igual aos direitos humanos básicos e sejam nos
tratados de forma igualitária, a fim de proteger
x. Liberdade de imprensa: Ela é essencial para
15 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da
República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. 20 ed. a garantia da pluralidade de ideias, transparên-
Porto Alegre: Sergio Fabris, 1998, p. 411. cia governamental e para o exercício da cidada-
nia e desempenha um papel crucial ao informar

84
a população sobre questões de interesse públi- tituições, levando a polarização política extre-
co, fiscalizar o poder público, denunciar abusos ma, divisão ideológica fomentada por debates
e promover o debate democrático. Ao assegu- políticos em confrontos acirrados entre diferen-
rar a liberdade de expressão e de imprensa, um tes grupos, tornando mais complicado alcançar
Estado democrático garante que os cidadãos consensos e promover diálogo construtivo.
tenham acesso a informações diversas, possibi-
litando que formem opiniões informadas e par- A influência desproporcional de interesses eco-
ticipem ativamente da vida política. Além disso, nômicos e corporativos na política pode minar a
a liberdade de imprensa contribui para a accou- integridade e a imparcialidade das instituições e
ntability (responsabilização) dos agentes públi- pode levar o Estado à falta de prestação de con-
cos, pois a imprensa tem o poder de investigar tas e ao enfraquecimento dos mecanismos de
e expor irregularidades, corrupção e abusos de controle oportunizando a corrupção, que preju-
poder. Essa função de vigilância da imprensa é dica a confiança dos cidadãos nas instituições
crucial para a manutenção da transparência e públicas, através dos constantes dos desvios de
do controle sobre os atos do governo. recursos públicos que deveriam ser utilizados
para o bem comum, propiciando a desigualdade
xi. Desenvolvimento sustentável e proteção socioeconômica que compromete a equidade e
do meio ambiente: busca promover a harmonia a justiça dentro da sociedade.
entre o desenvolvimento econômico, a proteção
ambiental e o respeito aos direitos humanos, Essas disparidades de renda, limita o acesso
para garantir um futuro melhor para as gerações social às oportunidades e recursos, forçando
presentes e futuras. O desenvolvimento susten- a migração e deslocamento populacional e fa-
tável refere-se a um modelo de crescimento vorecendo a criminalidade e violência e a falta
econômico que leva em consideração os limi- de segurança pode minar a confiança dos ci-
tes ecológicos do planeta, visando atender às dadãos nas instituições e dificultar a efetivação
necessidades das pessoas sem comprometer a dos direitos fundamentais.
capacidade das futuras gerações de suprir suas
Outras dificuldades a serem superadas são os
próprias demandas. A proteção do meio am-
desafios tecnológicos para que possam garantir
biente reconhece o direito fundamental e uma
a proteção dos direitos individuais e coletivos no
responsabilidade coletiva. Isso envolve a adoção
mundo digital, tais como privacidade, seguran-
de políticas de preservação, a regulação de ati-
ça cibernética, regulação das redes sociais e a
vidades que possam causar danos ambientais.
inteligência artificial, sem esquecer o combate
xii. Educação e cultura: O Estado Democráti- à desinformação, aos “Fake News” e a manipu-
co de Direito reconhece a importância da edu- lação da opinião pública por meio das redes so-
cação e da cultura na formação dos cidadãos e ciais
na construção de uma sociedade democrática.
Outro obstáculo é a proteção dos direitos huma-
Garantir o acesso à educação de qualidade, pro-
nos e das minorias, são desafios relacionados
mover a liberdade acadêmica, valorizar a diver-
à discriminação, violência e exclusão social de
sidade cultural e proteger o patrimônio cultural
certos grupos, mas sem incentivar os movimen-
são elementos fundamentais nesse contexto.
tos extremistas e populistas, que se fundamen-
Quando esses elementos fundamentais são vio- tam em discursos polarizados, desrespeitando
lados ou preteridos, causa uma gama de desa- os direitos humanos e a diversidade e amea-
fios a serem vencidos, tais como: a interferência çando os princípios como igualdade, a tolerân-
de um poder sobre o outro, podendo compro- cia e a liberdade de expressão.
meter a imparcialidade e efetividade destas ins-
Esses desafios por si só, já são suficientemente

85
graves, e a falta de educação política e cívica dos quada é essencial para cultivar uma cultura de
cidadãos favorece o enfraquecimento do Estado cidadania ativa e responsável. A falta de educa-
Democrático de Direito. ção cívica pode levar à desvalorização da cida-
dania, diminuindo a compreensão e o respeito
A alienação, o desinteresse na participação polí- pelos direitos e deveres cívicos, e prejudicando
tica pelo cidadão, faz com que haja baixa taxa de a construção de uma sociedade participativa e
participação nas eleições, falta de engajamento comprometida.
cívico e menor fiscalização das ações dos go-
vernantes, tornando essa população suscetível A fim de determinar se há necessidade, e, se é
à manipulação de políticos populistas ou dema- importante da educação política e cidadã para
gogos, pois sem a capacidade de discernimento a manutenção do Estado Democrático de Direi-
de informações confiáveis e sem compreender to, buscamos a opinião, através de uma peque-
os mecanismos políticos, esses indivíduos po- na pesquisa online, entre alguns seguidores nas
dem ser seduzidos por discursos simplistas, de- redes sociais. Foram coletadas respostas de 51
magógicos e de promessas vazias. O baixo nível participantes, sendo um conjunto de 54,9% (cin-
de qualidade do debate público contribui para a quenta e quatro e noventa por cento) de mulhe-
ausência de conhecimento sobre questões po- res e 45,1% (quarenta e cinco e dez por cento de
líticas, sociais e econômicas podendo resultar homens.
em discussões superficiais, polarizadas e base-
adas em emoções em vez de fatos e argumentos Em um universo onde a maioria (27,5%) perten-
fundamentados. cem a faixa de 18 a 23 anos, seguida da faixa
acima de 55 anos (23,5%), sendo 37,3% (trinta e
Os cidadãos que não entendem plenamente sete, e trinta por cento) possuem ensino supe-
seus direitos e responsabilidades, têm menos rior incompleto, 27,5% (vinte e sete e meio por
probabilidade de denunciar atos de corrupção cento) possuem Pós Graduação completa, 19,6%
ou de exigir prestação de contas dos políticos. (dezenove e sessenta por cento) já tem o Ensino
Limitando a capacidade dos cidadãos em ava- Superior completo, 9,8% (nove e oitenta por cen-
liar e analisar informações políticas de forma to) tem o ensino médio completo e aproximada-
crítica, abre-se espaço para a dificuldade dos mente 5,8% (cinco e oitenta por cento) possuem
cidadãos em distinguir informações falsas das curso técnico e Pós Doutorado.
verdadeiras, o que pode afetar negativamente o
debate público, a formação de opiniões e a to- Verificamos que todos já ouviram o termo “Esta-
mada de decisões informadas, prejudicando a do Democrático de Direito” e 88,2% (oitenta e oito
qualidade e desvalorizando da democracia. e vinte por cento) acredita que a educação polí-
tica e cidadã atua de forma positiva no combate
Pode ainda causar o aumento da intolerância, a desinformação, a polarização política e a apa-
discriminação e preconceito, a falta de compre- tia eleitoral, inclusive acreditam que esse tipo de
ensão e empatia em relação a diferentes identi- educação contribui para o empoderamento dos
dades, culturas e perspectivas pode resultar em cidadãos, estimulando-os a participar de forma
divisões sociais, conflitos e violações dos direi- ativa e responsável no processo político (98%).
tos humanos, e com esses elementos é impos-
sível construir uma cultura democrática sólida, Dentro desta amostragem, foi questionada se
baseada no respeito pelos direitos e liberdades deveria ser ministrada nas escolas a educação
fundamentais, na tolerância, no diálogo e na política e cidadã e quais metodologias deveriam
participação cidadã. ser usadas. Apenas 1% se mostrou contrário a
esse tipo de educação nas escolas, 1% não tem
Resumindo, a educação política e cívica ade- opinião a respeito.

86
Dentre as várias opções metodológicas, que poderiam ser escolhidas de forma unitária ou combina-
das, 58,8% (cinquenta e oito e oitenta por cento) acham que a educação política e cidadã nas escolas
deveriam ser ministradas através de aulas teóricas regulares, 51% (cinquenta e um por cento) acre-
ditam que as aulas práticas seriam uma grande aliada, 25,5% (vinte e cinco e cinquenta por cento)
escolheram o clube de debates e 19,6% (dezenove e sessenta por cento) optaram pelas palestras, como
podemos verificar no gráfico abaixo:

Atualmente, 62,7% (sessenta e dois e setenta por cento) dos entrevistados se consideram bem informa-
dos sobre as propostas e plataformas políticas dos candidatos e fazem a escolha dos seus candidatos
principalmente através dos quesitos: integridade e ética (66,7%) e seu posicionamento quanto a ques-
tões importantes (62,7%).

Baseado nas respostas apresentadas, verificamos que a população acredita ser crucial o investimento
na educação política dos cidadãos, promovendo o acesso a informações confiáveis, o desenvolvimen-
to de habilidades de pensamento crítico e a participação ativa na vida política. Isso pode ser feito por
meio de programas educacionais, currículos escolares, debates públicos, mídia responsável e outras

87
iniciativas que visem a capacitar os cidadãos CONSIDERAÇÕES FINAIS
a compreender, questionar e influenciar o am-
E assim chegamos ao que fazer para atingirmos
biente político em que vivem.
ao Estado Democrático de Direito ideal e man-
A educação desempenha um papel fundamen- tê-lo?
tal na promoção e fortalecimento do Estado
A participação cívica é a chave. Um aspecto
Democrático de Direito. Ela contribui para o
fundamental de uma sociedade democrática,
desenvolvimento de cidadãos conscientes, in-
pois permite que os cidadãos exerçam seus di-
formados e engajados, capazes de exercer seus
reitos e influenciem as decisões políticas e so-
direitos e cumprir suas responsabilidades den-
ciais. A participação cívica vai além do ato de
tro de uma sociedade democrática. Aqui estão
votar, mas também se envolver em atividades cí-
algumas maneiras pelas quais a educação pode
vicas, como protestos pacíficos, petições, traba-
ser uma solução para enfrentar os desafios do
lho voluntário e engajamento em organizações
Estado Democrático de Direito: a) Conhecimen-
da sociedade civil. Essas atividades permitem
to dos direitos e deveres; b) consciência cívica;
que os cidadãos expressem suas preocupa-
pensamento crítico; tolerância e respeito à di-
ções, influenciem a agenda política e trabalhem
versidade; participação cidadã e ética e respon-
coletivamente para promover mudanças.
sabilidade
No entanto, o desconhecimento sobre o Estado
É importante destacar que a educação para o
Democrático de Direito pode limitar essa parti-
Estado Democrático de Direito deve ser abran-
cipação e levar à falta de envolvimento ativo na
gente e contínua, começando desde a infância
vida política e social.
e continuando ao longo da vida. Além disso, ela
deve ser acessível a todos, independentemente Quando os cidadãos não compreendem plena-
de sua origem socioeconômica ou contexto cul- mente seus direitos e deveres, eles podem não
tural. perceber a importância de exercer sua cidada-
nia de forma efetiva. Isso inclui a participação
Além das soluções mencionadas anteriormente,
em eleições, onde cada voto conta para a esco-
a educação também traz outros benefícios para
lha de representantes e governantes. A falta de
enfrentar os desafios do Estado Democrático de
participação eleitoral pode resultar em uma re-
Direito. Aqui estão alguns exemplos: empodera-
presentação política deficiente e na ausência de
mento dos cidadãos; redução da desigualdade;
vozes diversas na tomada de decisões.
prevenção da violência e do extremismo; desen-
volvimento econômico; participação informada; Portanto, é essencial promover a educação cívi-
proteção dos direitos humanos e sustentabili- ca e o acesso à informação para garantir que os
dade ambiental. cidadãos compreendam plenamente seus direi-
tos e deveres no Estado Democrático de Direito.
Esses são apenas alguns dos benefícios da edu-
Isso pode envolver a inclusão desse tema nos
cação na promoção e no fortalecimento do Es-
currículos escolares, a realização de campa-
tado Democrático de Direito. Através de uma
nhas de conscientização e a disponibilização de
abordagem abrangente e investimentos ade-
informações claras e acessíveis sobre o funcio-
quados, a educação pode contribuir significa-
namento do sistema político e dos direitos civis.
tivamente para superar os desafios e construir
Dessa forma, os cidadãos estarão mais aptos a
sociedades mais democráticas e justas.
exercer sua cidadania de forma efetiva e parti-
cipar ativamente na vida política e social.

88
Platão. “A República” - Organização: Daniel Alves Machado – Brasília: Editora Kiron, 2012.
Maquiavel, Nicolau. “O Príncipe” – tradução de Maurício Santana Dias, prefácio de Fernando
Henrique Cardoso, 2010 – Penguin Companhia
Aristóteles. “Política” – Coleção a obra-prima de cada autor – Martin Claret
Rousseau, Jean-Jacques – “O Contrato Social” – tradução: Antonio de Pádua Danesi – 3ª edição
– Editora Martins Fontes, 1996
Platão. “Critão (Criton) ou o DEVER” – extraído do livro Diálogos, da Coleção Classicos Cultrix -
tradução Jaime Bruna
Kant, Immanuel – “Crítica da Razão Prática” - Tradução e Prefácio: Afonso Bertagnoli - Edições
e Publicações Brasil Editora S.A., São Paulo, 1959
Platão. “A República” - Organização: Daniel Alves Machado – Brasília: Editora Kiron, 2012.

Spencer, Herbert – “O indivíduo conta o Estado – texto retirado do site: https://filosofia.com.br/


figuras/livros_inteiros/268.txt (acesso em 29/07/2023)
https://houaiss.uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/v6-1/html/index.php#1 (acesso em
04/07/2023).

KELSEN, Hans, 1881-1973. “Teoria Pura do Direito” – tradução: João Baptista Machado — 6* ed.
— São Paulo: Martins Fontes, 1998. — (Ensino Superior) página 80
KELSEN, Hans, 1881-1973. “Teoria Pura do Direito” – tradução: João Baptista Machado — 6* ed.
— São Paulo: Martins Fontes, 1998. — (Ensino Superior) página 276
DALLARI, Dalmo de Abreu – “Elementos de Teoria Geral do Estado” – 30ª edição – 2011 – Editora
Saraiva
PAULO, Vicente, 1968- “Direito Constitucional descomplicado I” - Vicente Paulo, Marcelo Ale-
xandrino. - 16. ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017. página
90
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha.
Trad. Luís Afonso Heck. 20 ed. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1998, p. 411.

n 89
09
ABUSO SEXUAL INFANTIL INTRAFAMILIAR: UM PROBLEMA
INTRÍNSECO EM NOSSA SOCIEDADE
O presente artigo trás uma explicação do que se trata o abuso sexual cometido dentro do ambiente
familiar, entendido como abuso sexual intrafamiliar, o porque isso ocorre com tanta facilidade. Ex-
plicações sobre a responsabilidade e omissão dos responsáveis que são garantidores das crianças
e adolescentes. E meios aptos para que possa haver uma prevenção e a erradicação do abuso se-
xual infantil intrafamiliar.
Palavras-chave
Abuso Sexual - Família - Estupro de Vulnerável Intrafamiliar - Violência Sexual

Leandro Galvão
Graduado em Direito 2013 pela antiga FSP - Faculdade Sudoeste Paulista e atualmente UNISP – Uni-
versidade Sudoeste Paulista na cidade de Avaré/SP, Advogado atuando desde de 2013 nas áreas
do Direito Cível, Direito Criminal, Direito Tributário, Direito Empresarial, Pós Graduado em Direito
Imobiliário e Direito Público pela Faculdade Legale, Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos
da Criança e Adolescente 2023/2024 - Subseção Avaré/SP, Vice Presidente da Comissão da Jovem
Advocacia 2022/2024 - Subseção Avaré/SP e Membro Efetivo da Comissão de Ética - Subseção Ava-
ré/SP.

90
1. INTRODUÇÃO cados e cuidados sem o uso de castigos físicos
ou de tratamento cruel ou degradante.
Vivenciamos tempos assombrosos em nossa
sociedade, sabemos que falar sobre abuso sexu- Mas evidente que antigamente não era assim,
al infantil é um tema muito delicado e complexo havia o tão famoso código de Hamurabi (1700-
para as familias, e se torna mais dificil quando 1600 a.C) que permitia práticas que atualmente
o assunto é referente ao abuso intrafamilia, ou são considerados crimes. O filho que batesse
seja, dentro da própria familia que tem o dever no pai sua mão seria cortada, o filho que falasse
de cuidar e proteger. algo que não era apropriado sua lingua seria cor-
tada. Já na data de 449 a.C mais precisamente
É um fenômeno sombrio que ocorre dentro das em Roma era permitido que o pai matasse seu
paredes de uma casa onde crianças são vítimas filho se o mesmo nascia com algum problema de
de abuso por parte de seus próprios familiares. saúde ou fisico, isso tendo como base que seu
Este grave problema tem consequências devas- filho era sua propriedade e tinha o poder na vida
tadoras e requer atenção urgente e ação coletiva ou morte, isso também ocorreu na Grécia antiga,
para combater esta forma de violência. ou seja, as crianças não tinham direito algum.

Este artigo busca explicar o contexto do abuso Podemos começar a pensar em distinção so-
sexual infantil dentro da familia, o porque esse mente no século XVIII, onde se constatou que a
fenômeno ocorre sendo que este deveria ser um infância seria uma fase diferente da fase adulta,
ambiente de segurança para a criança ou ado- mas mesmo assim as punições e castigos ainda
lescente. existiam com paus, ferros, espancamentos.

Porém somente em meados de 1871 com a fun-


2. TRAJETÓRIA HISTÓRICA
dação em Nova York da Sociedade para Preven-
COM RELAÇÃO A CRIANÇA
ção da Crueldade contra Crianças a história co-
E ADOLESCENTE meçou a tomar um rumo diferente, mas após o
caso da menina Mary Ellen que sofreu diversos
É nitido que a proteção da criança e adolescente maus-tratos na familia substituta, já que sua fa-
é recente, temos uma Constituição de 1988 que milia havia a abandonado.
trouxe a proteção integral da criança e adoles-
cente e uma Lei de 1990 – Estatuto da Criança e Mas temos que destacar que em nosso Brasil
Adolescente. E também não foi tão diferente assim, a relatos
históricos que crianças que estavam presentes
Aos poucos com os acontecimentos há a inser- em embarcações eram submetidas a desejos
ção em nosso ordenamento jurídico de novas leis sexuais dos marujos, além de trabalhos escra-
como; LEI Nº 14.344/2022 denominada Lei HEN- vos, e também eram lançadas ao mar já que não
RY BOREL que cria mecanismos para a preven- serviam mais e havia necessidade de controle
ção e o enfrentamento da violência doméstica e da população a bordo.
familiar contra a criança e o adolescente, Lei da
escuta especializada 13.431/2017 que estabelece Interessante a abordagem de Maria Berenice
o sistema de garantia de direitos da criança e do Dias;
adolescente vítima ou testemunha de violência,
Apesar de toda a consolidação dos direitos
Lei Menino BERNARDO 13.010/2014 que altera a
humanos, o homem continua sendo consi-
Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da
derado proprietário do corpo e da vontade
Criança e do Adolescente), para estabelecer o di- da mulher e dos filhos. A sociedade pro-
reito da criança e do adolescente de serem edu- tege a agressividade masculina, respeita

91
sua virilidade, construindo a crença da sua da sociedade em geral e do poder públi-
superioridade. Afetividade e sensibilidade co assegurar, com absoluta prioridade, a
não são expressões que combinam com efetivação dos direitos referentes à vida, à
a idealizada imagem masculina. Desde o saúde, à alimentação, à educação, ao es-
nascimento, o homem é encorajado a ser porte, ao lazer, à profissionalização, à cul-
forte, não chorar, não levar desaforo para tura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
casa, não ser „mulherzinha”. Precisa ser à convivência familiar e comunitária.
um super-homem, pois não lhe é permi-
tido ser apenas humano. Essa errônea Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente
consciência de poder é que assegura, ao será objeto de qualquer forma de negli-
varão, o suposto direito de fazer uso de sua gência, discriminação, exploração, violên-
força física e superioridade corporal sobre cia, crueldade e opressão, punido na for-
todos os membros da família. Venderam ma da lei qualquer atentado, por ação ou
para a mulher a ideia de que ela é frágil e omissão, aos seus direitos fundamentais.
necessita de proteção, tendo sido delega-
Art. 18. É dever de todos velar pela digni-
do ao homem o papel de protetor, de pro-
dade da criança e do adolescente, pondo-
vedor. Daí à dominação, do sentimento de
-os a salvo de qualquer tratamento desu-
superioridade à agressão, é um passo.
mano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor
3. PROTEÇÃO EM NOSSO
ORDENAMENTO JURÍDICO O Estatuto da Criança e Adolescente deixa bem
claro em sua redação que é obrigação e dever
Estabelece em nossa Constituição Federal em da familia o cuidado, proteção, educação, res-
seu artigo 227 que é dever da familia assegurar peito, dignidade.
a proteção da criança e adolescente, também é
Outra lei que abrange nosso artigo é a Lei nº.
estendido para a sociedade e estado.
14.431/2017, que estabelece o sistema de garantia
Art. 227. É dever da família, da socieda- de direitos da criança e do adolescente vítima,
de e do Estado assegurar à criança e ao ou testemunha de violência explícita às formas
adolescente, com absoluta prioridade, o de violência, dividindo-as em física, psicológica,
direito à vida, à saúde, à alimentação, à sexual e institucional. Com esta lei precisamos
educação, ao lazer, à profissionalização, à entender o que é abuso sexual e exploração se-
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberda- xual, ambas consideradas violencias sexuais.
de e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma O abuso sexual tem com premissa básica sen-
de negligência, discriminação, explora- do uma pessoa forçada ou coagida a participar
ção, violência, crueldade e opressão. de atividades sexuais sem o seu consentimento.
Isso pode ocorrer em diversas situações, como
Importante destacar que quando a familia não em relações familiares, entre conhecidos ou em
tem a capacidade de cuidar ou que esteja omis- contextos de trabalho. Geralmente, o abusador é
sa quando há evidencias de crime cabe a socie- alguém que a vítima conhece ou em quem con-
dade ou o estado esse papel, trazendo para am- fia.
bos o dever de cuidar.
Já a exploração sexual se difere sendo quando
Também temos na Lei 8.068/1990 – Estatuto da uma pessoa é coagida ou forçada a se envol-
Criança e Adolescente artigos relacionados ao ver em atividades sexuais em troca de dinheiro,
tema em especifico; bens ou serviços. Isso pode incluir a prostitui-
Art. 4º É dever da família, da comunidade, ção, a pornografia infantil e o tráfico humano

92
para fins sexuais. Na exploração sexual, o agres- xual intrafamiliar é a conduta do responsável,
sor é geralmente um explorador que se beneficia que muitas vezes sabe o que está acontecendo,
financeiramente da exploração da vítima. mas acaba encobertado o abusador/agressor.

Deste modo, é visivel que há uma preocupação Um dos fatores mais chocantes que leva a omis-
maior com relação as crianças e adolescentes são é o fato do abusador ser a única pessoa res-
em nosso ordenamento jurídico, temos como ponsável pela parte financeira da residência,
base nossa constituição federal, além de leis que único trabalhador.
operam a favor das crianças e adolescentes.
Temos que ter em mente que a omissão também
Mas tudo isso precisa ser colocado em pratica, é crime, tão aterrorizante quanto ao próprio abu-
não basta as leis sem o seu devido cumprimento so, em muitos casos constatados a omissão a
e efetividade. Temos que ter em nossos pensa- penalização para o omissor é a mesma tipifica-
mentos que a proteção da criança e adolescente ção do crime cometido. Exemplo: Se houve um
depende de uma engrenagem que envolve, fa- abuso sexual e estaáprovado que houve o crime
mília, sociedade e estado. de estupro de vulnerável o omissor é condenado
também pelo crime de estupro de vulnerável.
4. DEFINIÇÃO DE ABUSO SEXUAL
Isto é entendido desta forma tendo como parâ-
INFANTIL INTRAFAMILIAR
metros que o responsável pela criança ou ado-
E OMISSÃO DE QUEM TEM
lescente tinha e tem o dever de cuidados e prote-
O DEVER DE CUIDAR
ção, mas não o faz, e pior, deixou algo acontecer
sabendo que poderia tere protegido.
O abuso sexual infantil doméstico refere-se ao
abuso sexual de crianças ou adolescentes na Nesse ponto destaco os julgados do Rio Grande
família por parentes próximos, como pais/mães, do Sul e Distrito Federal que destaca o ponto ci-
padrastos/madrastas, irmãos/irmãs, tios/tias tado;
ou avôs/avós. Essa forma de abuso pode assu-
APELAÇÃO. DELITO CONTRA A DIGNIDADE
mir várias formas, como toques inapropriados.
SEXUAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL PRA-
divulgação de conteúdo sexual e obsessão para
TICADO MEDIANTE OMISSÃO PENALMEN-
praticar atos sexuais ou coerção mental. TE RELEVANTE. FATO-CRIME. (...) Todavia,
na espécie, em que atribuída à ré conduta
O abuso sexual infantil por parte de familiares,
omissiva imprópria (no qual a agente não
sob qualquer forma, é uma violação inaceitável
causou diretamente o resultado, mas per-
dos direitos humanos e uma tragédia que traz
mitiu que ele ocorresse, abstendo-se de
consequências profundos e irreversíveis para a agir quando deveria e poderia para evitar
vida de suas vítimas. a sua ocorrência), tal circunstância (as-
cendência) caracteriza-se na própria
Por muitas vezes o abuso sexual é continuo, não
elementar do tipo penal (estupro de vul-
se trata de algo que acontece uma única vez e nerável), justamente pela posição de ga-
ponto final, acontece por anos, há relatos que rante da agente, que tinha a obrigação
os abusos começaram aos 2 anos e terminaram legal de cuidado, proteção e vigilância
aos 15 anos, ou seja, começou quando era crian- para com a vítima, sua filha. Assim, de
ça e se estendeu até a adolescência, inaceitável ofício, vai afastada a causa de aumento
sabermos que isso ocorre em nossa sociedade, para evitar indesejado bis in idem entre a
e dentro das próprias residências. consideração concomitante da... elemen-
tar do tipo penal e a majorante da ascen-
O que mais chama atenção dentro do abuso se- dência. Precedentes.(...)(TJ-RS - ACR:

93
70079617783 RS, Relator: Vanderlei Teresi- nificativo período em que ocorreram os
nha Tremeia Kubiak, Data de Julgamento: abusos - três anos - o aumento deve ser
30/05/2019, Sexta Câmara Criminal, Data na fração de 2/3. 7 - Cometido crime in-
de Publicação: Diário da Justiça do dia compatível com o cargo público que ocupa
04/06/2019). - agente penitenciário - e a condenação é
em pena privativa de liberdade superior a
Estupro de vulnerável no âmbito doméstico 4 anos, decreta-se a perda de cargo pú-
e familiar. Omissão imprópria. Nulidade. blico como efeito da condenação (art. 92,
Provas. Pena. Individualização: agravante, I, b, do CP). 8 - Havendo pedido expres-
fração e causa de aumento. Continuidade so na denúncia, admite-se, na sentença
delitiva. Perda do cargo. Dano moral. Va- condenatória criminal, fixar indenização
lor. 1 - Compete ao juiz, como destinatário mínima a título de dano moral, indepen-
final da prova, valendo-se de sua discri- dentemente de instrução probatória (STJ,
cionariedade regrada, avaliar quais provas REsp 1.643.051/MS). 9 - Inexistem parâ-
são pertinentes e úteis ao deslinde da cau- metros rígidos e apriorísticos para se fixar
sa. Se a carta que a defesa pretendia pe- indenização por dano moral, devendo ser
riciar não era relevante para a elucidação levados em conta critérios de proporcio-
dos fatos, não se declara nula a sentença nalidade e razoabilidade, atendidas as
por cerceamento de defesa. 2 - As decla- condições do ofensor, do ofendido e do
rações firmes e coesas da vítima - criança bem jurídico lesado. Fixada em valor ra-
à época dos fatos - de que o réu cometeu zoável, deve ser mantida a indenização. 10
abusos sexuais contra ela durante três - Apelações dos réus providas em parte.
anos, corroboradas pelo depoimento de Não provida a do assistente de acusação.
testemunhas e a confissão parcial do réu, (TJ-DF 00150830420168070009 - Segredo
são provas suficientes para condenação. de Justiça 0015083-04.2016.8.07.0009,
3 - A mãe que, sabendo que a filha, en- Relator: JAIR SOARES, Data de Julgamen-
tão criança, estava sendo abusada sexu- to: 22/10/2020, 2ª Turma Criminal, Data de
almente pelo padrasto, omite seu dever Publicação: Publicado no DJE : 27/10/2020
de cuidado, proteção e vigilância, nada . Pág.: Sem Página Cadastrada.)
fazendo para evitar os abusos, chegan-
do a recusar fazer ocorrência policial e Esclarece os doutrinadores Albuquerque e Osó-
a dissuadir a filha a revelar os abusos, rio (2017, p. 03) o que são crimes omissivos im-
comete crime sexual na forma omissiva próprios,
imprópria. 4 - Se a imputação do crime à
ré - por omissão imprópria - decorreu do Os crimes omissivos impróprios são ca-
fato de ser ela mãe da vítima, considerar racterizados por uma omisssão dolosa ou
novamente a condição de mãe para au- imprudente de evitar um resultado previs-
mentar a pena na terceira fase caracteriza to como crime (morte, lesão corporal, etc.),
bis in idem, que impede a causa de au- que somente pode ser atribuída ao agente
mento do art. 226, II do CP. 5 - Predomina que detinha a especial responsabilidade
no e. STJ e no Tribunal o entendimento de de evitar o resultado, ou seja, a pessoa que
que o aumento para cada agravante deve ocupa a posição de garantidor.
ser de 1/6. Aumento em fração superior
exige fundamentação concreta. 6 - Há É de extrema importância destacar que a omis-
continuidade delitiva entre os crimes de são é um descumprimento de cuidados e prote-
estupro e estupro de vulnerável, da mes- ção da criança e adolescente e será responsabi-
ma espécie, cometidos contra a mesma lizada criminalmente.
vítima, nas mesmas condições de tempo,
lugar e modo de execução. Devido ao sig- O Código Penal regulou expressamente as hi-
póteses em que o agente assume a condição de

94
garantidor. Uma cultura de silêncio e tabus: O assédio se-
xual é frequentemente cercado por uma cultura
Art. 13 - O resultado, de que depende a de silêncio. As vítimas sentem vergonha, culpa e
existência do crime, somente é imputável
medo de falar sobre o que aconteceu. Estamos
a quem lhe deu causa. Considera-se cau-
vivenciando tempos em que o abusador se tor-
sa a ação ou omissão sem a qual o resul-
tado não teria ocorrido.
na a vitima e a vitima se torna o abusador, uma
inversão de papeis.
[...]
Temos como bas inúmeros mitos que nossa so-
§ 2º - A omissão é penalmente relevante ciedade insere no dia a dia;
quando o omitente devia e podia agir para
evitar o resultado. O dever de agir incum- - As crianças consentem e gostam do abuso.
be a quem:
- As crianças só revelam se tiverem sido fisica-
a) tenha por lei obrigação de cuidado, pro- mente agredidas.
teção ou vigilância
- As crianças mentem e inventam.
b) de outra forma, assumiu a responsabili-
dade de impedir o resultado - É melhor não falar sobre abuso sexual.

c) com seu comportamento anterior, criou - Não se deve perguntar sobre abuso. A criança
o risco da ocorrência do resultado. esquecerá.

Neste caso em especifico em que tenha por lei - As seqüelas não existem.
obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; do
dever de cuidar dos pais em relação aos filhos. A - As adolescentes provocam o abuso.
mãe que deixa de proteger a filha, que, por con-
- As adolescentes seduzem o abusador.
ta da sua negligência, acaba sendo estuprada.
Essa mãe deverá responder pelo resultado ge- - As adolescentes inventam.
rado, qual seja, estupro. Se, de outro lado, a mãe
desejou sabia do que estava acontecendo e não - Rivalidade mãe- filha.
fez nada ou assumiu o risco de produzi-lo, res-
- As adolescentes gostam do abuso.
ponderá pelo crime de estupro.
- As roupas usadas são para provocar o abusador
Dessa maneira, os crimes cometidos por meio
de omissão sempre geraram dúvidas quanto - O abuso sexual se deve ao álcool.
a sua responsabilidade dos envolvidos, pois, a
conduta criminosa é quase sempre associada - Abusadores sexuais foram abusados na infân-
à ideia de ação, mas se pode pensar desta for- cia.
ma, como foi explanado, o não-agir, o deixar de
fazer, a conduta negativa, a omissão também - Os homens são seres hipersexuais.
pode se enquadrar em tipos penais. - Os abusadores são incapazes de se controlar.

5. FATORES INTRASSOCIAIS - Os abusadores não têm vida sexual adultas.

- O abusador é um homem “tarado” fácil de iden-


O abuso sexual de crianças em casa é um reflexo
tificar.
de muitos fatores inerentes à nossa sociedade.
Alguns desses fatores incluem: - O abusador é um estranho ou um doente mental.

95
- O abusador é somente o homem. Um sinal que todos devemos estar sempre aten-
tos é o comportamento sexual inapropriado para
Além disso, o tabu sobre a sexualidade muitas a idade, como tocar as partes íntimas em públi-
vezes dificulta a discussão aberta sobre o as- co, fazer referências sexuais, imitar comporta-
sunto. mentos sexuais de adultos, entre outros, temos
que ter em mente que criança não namora, se
Evidente que em muitos casos, o abuso sexual
há um comportamento sexual aflorado algo de
ocorre em famílias disfuncionais, familias de-
errado esta acontencendo.
sestruturadas onde há problemas de violência
doméstica, abuso de substâncias, desemprego Um sinal que muitas vezes é entendido de outra
ou pobreza extrema. Esses fatores aumentam o forma é a apresentação de medo ou resistência
risco de violações e dificultam o acesso aos re- em relação a certas pessoas ou situações, como
cursos de suporte. recusar-se a ficar sozinha com um determinado
adulto, ou demonstrar medo em relação a de-
O abuso sexual infantil dentro da família é mui-
terminado ambiente ou atividade, não se força
tas vezes motivado pelo desejo de exercer poder
nenhuma criança ou adolescente a beijar, sen-
e controle sobre as vítimas. Abusadores podem
tar no colo, ficar sozinha com qualquer adulta
usar sua posição familiar para explorar e mani-
quando ela não deseja.
pular crianças, tirando proveito de sua vulnera-
bilidade e confiança. Destaco a importância que esses sinais não são
conclusivos e que a presença de um ou mais
As consequências do abuso sexual infantil in-
deles não significa necessariamente que hou-
trafamiliar são profundas e duradouras. Essas
ve abuso sexual. Cada caso deve ser avaliado
crianças enfrentam um grande impacto físico,
individualmente por profissionais capacitados.
psicológico e social, incluindo, trauma emocio-
Caso haja suspeita de abuso sexual, é funda-
nal com pensamentos suicidas, dificuldade em
mental buscar ajuda especializada e denunciar
relacionamentos, problemas de intimidade, iso-
o caso às autoridades competentes.
lamento social e dificuldades de interação.

6. SINAIS DE ALERTA PODEM 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS


SER A SALVAÇÃO
O abuso sexual infantil intrafamiliar é uma ques-
tão intrínseca e profundamente preocupante
Temos inúmeros sinais que as crianças ou
em nossa sociedade, muitas vezes tida como
adolescentes levam, o que temos que enten-
uma vergonha para familia e que isso nçao deve
der também que não há uma idade especifica
ser denunciado. Para proteger nossas crianças
para o abuso começar sendo assim apesar que
e adolescentes, devemos enfrentar o silêncio e o
algumas crianças ainda estão em processo de
tabu através de programas de prevenção, edu-
desenvolvimento e não falam o seu corpo fala, a
cação sexual, fortalecimento do vínculo familiar,
vítima pode apresentar lesões ou dores físicas
criação de politicas públicas, fornecer apoio às
inexplicáveis, como lesões nos órgãos genitais,
vítimas e responsabilizar os perpetradores. So-
hematomas, arranhões, dores ao urinar ou de-
mente através de um esforço coletivo, que en-
fecar, entre outros.
volva a sociedade como um todo, poderemos
Mudanças repentinas no comportamento, como criar um ambiente seguro e saudável para nos-
ansiedade, agressividade, tristeza, isolamen- sas crianças e adolescentes, onde o abuso sexu-
to, dificuldade de concentração, alterações no al intrafamiliar seja erradicado.
sono e no apetite, entre outros.

96
ALBUQUERQUE, Laura Gigante; OSÓRIO, Fernanda Corrêa. A responsabilização das mães em
casos de violência sexual contra menores de idade: o instituto da omissão imprópria e cul-
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n 97
10
SISTEMA PENITENCIÁRIO NO BRASIL
O presente artigo pretende trazer à baila a atual situação do Sistema Penitenciário Brasileiro, ana-
lisando-o desde a fase histórica e sua evolução nos períodos atuais, bem como traçar as principais
crises enfrentadas pelo País no sistema carcerário. No primeiro momento da pesquisa, buscar-se-
-á identificar a evolução das penas e a sua função social. Enquanto na segunda parte do trabalho,
aborda a falência do sistema penitenciário e as causas que levam os presídios a se tornarem um
verdadeiros depósito de humanos, acrescentando a importância do trabalho como motivo de in-
centivar o preso a resgatar a sua dignidade e reinserção na sociedade. A seguir, será abordado o
princípio da Dignidade da Pessoa Humana o qual está previsto da Constituição da República Fede-
rativa do Brasil de 1988, como princípio fundamental ao homem e o respeito a sua integridade física
e moral. Por fim, na terceira e última parte da pesquisa, tratar-se-á de uma das funções da pena,
qual seja, a ressocialização do detento, como forma de reeduca-lo a fim de que este volte a ser inse-
rido na sociedade de modo que atenue reincidência. Após a pesquisa, chega-se ao entendimento
de que o Sistema Carcerário Brasileiro não cumpre a sua função, que é a ressocialização do detento
demonstrando sua ineficácia diante da precariedade do sistema carcerário brasileiro.
Palavras-chave
Sistema Prisional - Detentos - Ressocialização - Direito Humanos

Mariana Cristina Arnez


Bacharela em Direito pela Faculdade Sudoeste Paulista de Avaré/SP. Advogada. Pós-Graduada em
Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá. Cursando especialização em Do-
cência do Ensino Básico e Superior pela Faculdade Estratego

98
1. INTRODUÇÃO identificar as causas da falência do sistema car-
cerário brasileiro que o torna ineficaz, bem como
Esse artigo trata do estudo específico do sis- o reflexo desta crise na sociedade, e, por fim, a
tema carcerário do Brasil, tendo como objetivo aplicação do Princípio da Dignidade da Pessoa
geral a análise da função da pena, verificando o Humana, uma vez que a dignidade é atributo
seu desenvolvimento histórico, o conceito legal, essencial ao ser humano, e a ressocialização do
e identificar o principal objetivo do Sistema Pe- detento como forma de reintegra-lo no convívio
nitenciário diante da ressocialização do detento social e abrandar o número de reincidência no
e tendo como fato relevante e de grande impor- País.
tância, o princípio da dignidade da pessoa hu-
mana. Por fim, diante da temática abordada, há uma
necessidade de um sistema que funcione, edu-
Neste diapasão, a reintegração de um ex. pre- que e reintegre, tendo em vista que o programa
sidiário à sociedade recebeu diversas contradi- vigente não cumpre sua proposta, pois a socie-
ções fazendo com que o preso se encontrasse dade precisa olhar com olhos humanos a pro-
desamparado, vez que o Estado tem o seu sis- blemática que é os presídios do país e refletir
tema penitenciário em desordem, fazendo com que sua melhoria só resultará em uma melhor
que o problema perpetue no tempo, visto que o segurança para os seus.
número de presos só aumento e a ressocializa-
ção de fato não acontece. Constitui-se objeto de estudo desta investigação
a área da Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210/84)
Assim como, a ressocialização é disponibilizar (2023), os princípios previstos na Constituição
ao preso ou ao internado ações que forneçam Federal de 1988 (2023) excepcionalmente a dig-
dignidade, tratamento humanizado, preservan- nidade da pessoa humana a fim de abordar a
do a honra e a autoestima, de forma que isso função social da aplicação da pena, destacan-
seja uma assistência para o processo evolutivo do-se a sua importância tanto para os condena-
de reabilitação, de tal modo, que possa resgatar dos como também para a sociedade, que fica à
os valores humanos, visando sua reinserção a mercê destes.
sociedade, incentivando-o a não reiterar as prá-
ticas delituosas, fornecendo assim a assistência Esse artigo possui como objetivo contribuir com
material, à saúde, assistência jurídica, educa- a reflexão sobre a realidade do sistema peniten-
cional, social e religiosa, encaminhando-o para ciário do país e a dificuldade em ressocializar os
acompanhamentos psicológicos, projetos de apenados, além da problemática da superlota-
profissionalização, incentivos ao apenado para ção nas unidades prisionais em todo país.
um futuro além da vida em cárcere. Sendo assim, o presente artigo está dividido em
Neste passo, a nossa legislação, especialmente Introdução, que apresenta a definição do tema,
os dispostos na Lei de Execução Penal, (Lei n° a justificativa e objetivos; em seguida o desen-
7.210/84) (2023), disciplina o cumprimento das volvimento é destinado a descrever o contexto
penas no Brasil, em tais artigos como o Art.1°, histórico do sistema carcerário e sua função na
Art. 10 e Art. 11, dissertam a respeito da maneira sociedade até os dias atuais e a importância da
e o dever de ressocialização no Brasil, além do ressocialização do detento. Posteriormente, são
que, deve-se propiciar a efetivação da sentença apresentadas as conclusões e finalizando o tra-
e proporcionar condições para interação social balho, o último item é reservado às referências
dos condenados e internos. utilizadas.

No desenvolvimento da pesquisa, busca-se

99
2. HISTÓRICO: A EVOLUÇÃO DO com o intuito de obter “justiça” para ambas as
DIREITO PENAL BRASILEIRO partes. (MARINHO, 2009, p.372).
E FUNÇÃO DA PENA
Segundo Estefan e Gonçalves (2012) surge a vin-
gança divina, onde as penas aplicadas aos in-
De acordo com Greco (2011) o Direito Penal bra-
divíduos eram voltadas à religião, no qual o ho-
sileiro passou por inúmeras evoluções ao longo
mem atribuía os acontecimentos como castigo
dos anos, onde as práticas punitivas eram mais
imposto pelos Deuses, e tudo que acontecia na
severas e cruéis e o crime era confundido com o
sociedade era em nome de Deus e com o passar
pecado e ofensa moral, sendo que a morte era a
dos anos, a Igreja foi aos poucos perdendo a sua
punição mais usada na época.
força devido a uma maior organização social,
Deste modo, segundo o mesmo autor acima iniciando então o pensamento político, momen-
(2011), a evolução do Direito Penal se fez impor- to em que o Estado passou a intervir na socie-
tante na história da humanidade, pois diante de dade, instituindo a vingança pública, sendo que
tamanhas mudanças repentinas, as penas se este ficou responsável pela integridade daque-
tornaram mais humanitárias e com uma aplica- les que praticavam algum crime, representando
ção mais proporcional ao condenado. os interesses da comunidade em geral.

De outro modo, assevera Marinho (2009) que a Ainda assim, com relação aos mesmo autores
primeira fase da pena foi a chamada vingança acima (2012) esclarecem que o Direito Penal na
privada, que fazia com que o homem fizesse idade média foi caracterizado pela crueldade,
justiça pelas próprias mãos em razão do direi- tortura e intolerância para com os seres huma-
to violado, com tamanha brutalidade, violência nos, sendo que este período era formado pelo
e sem haver proporcionalidade entre a punição Direito Germânico, Romano e Canônico, tendo
que iria ser aplicada e a conduta do indivíduo. este último proclamado pela igualdade entre os
homens, possibilitando ser a pena mais huma-
ESTEFAM e GONÇALVEZ explicam: na e coerente, no qual introduziu a pena priva-
tiva de liberdade que foi substituída pela pena
As penas impostas eram a “perda da paz”
de morte, possibilitando ao condenado cumprir
(imposta contra um membro do próprio
grupo) e a “vingança de sangue” (aplicada
pena em penitenciária, a fim de conservar a vida
a integrante de grupo rival). Com a “perda do mesmo.
da paz”, o sujeito era banido do convívio
Foi com relação as influências de Cesare Bec-
com seus pares, ficando à própria sorte e
caria, que se posicionava contrário à tortura,
à mercê dos inimigos. A “vingança de sa-
gue” dava início a uma verdadeira guerra
defendendo a ideia de injustiça e ineficácia da
entre os agrupamentos sociais. A reação mesma, sob a ótica de que todos os homens são
era desordenada e, por vezes, gerava um iguais e livres perante as leis, este exerceu influ-
infindável ciclo, em que a resposta era re- ência decisiva na reformulação da legislação vi-
plicada, ainda com mais sangue e rancor. gente na época, as quais se sucederam inclusive
(STEFAM e GONÇALVEZ, 2012, p.67). na Constituição Federal de 1988, que passou a
condenar esta prática, fundamentada na digni-
dade da pessoa humana e nos direitos humanos
Assim, surge então a lei de Talião que foi um
(ESTEFAN E GONÇALVES, 2012, p.73).
grande marco para o Direito Penal nos tempos
remotos, sendo que este visava equilibrar a pena Deste modo, ressalta Greco (2011) que após inú-
aplicada ao indivíduo e o crime por ele pratica- meras mudanças e transformações, o Direito
do, evitando o excesso entre o crime e o castigo, Penal brasileiro iniciou sua trajetória para a hu-

100
manização, no qual veio a ser regido pelo Código condenados apenados por reclusão em regime
Penal, que depois de ser alvo de muitas críticas fechado, inteligência do artigo 87 da Lei de Exe-
é utilizado até hoje. cução Penal (Lei n° 7.210/84) (2023) e artigo 33,
§ 1º, a”” do Código Penal (Lei nº 2.848/40) (2023).
Assim, o surgimento do Código Penal Brasileiro,
que delimita sanções a serem aplicadas ao indi- As colônias agrícolas, industriais ou similares
víduo que praticou um delito, assume um papel são destinadas ao cumprimento da pena em
importantíssimo na sociedade, pois deixou de regime semiaberto prevista no artigo 91 da Lei
aplicar punições corporais, visando então a hu- de Execução Penal (Lei n° 7.210/84) (2023) e ar-
manização da mesma, dando poder ao Estado tigo 33, § 1º, “b” do Código Penal (Lei nº 2.848/40)
para punir o infrator e lhe dar como consequên- (2023).
cia a pena, que tem como finalidade a reeduca-
ção do mesmo, a fim de reparar o dano causado, Já as casas de albergado são destinadas ao
e prevenir o cometimento de outra infração (BI- condenado que cumpre pena em regime aberto,
TENCOURT, 2011,p.106). previsto no artigo 93 Lei de Execução Penal (Lei
n° 7.210/84) (2023) e artigo 33, § 1º “c” do Código
Logo, é de se observar que, no mundo do crime, Penal (Lei 2.848/1940) (2023).
aquele que cometeu algum ilícito, ou seja, algo
que está tipificado como crime em nossa legis- Vale ressaltar que a intenção do legislador ao
lação, passará a ser privado do seu direito para criar regimes diferenciados para o cumprimen-
que seja reeducado e futuramente retorne ao to da pena tem como razão maior a observância
convívio social, prevenindo assim, a reincidência dos fatos objetivos e subjetivos que ocorreram na
na prática de outros delitos, ressaltando-se que prática criminosa, devendo ainda ser executada
a pena deve servir como reeducação do deten- de modo a permitir que o condenado progressi-
to e prevenção de futuros delitos, tendo seu ca- vamente alcance a liberdade, conforme o tempo
ráter pedagógico e sendo aplicada de maneira de pena cumprido e o mérito que apresente du-
harmoniosa. rante o cumprimento de sua reprimenda.

3. DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 4. DA CRISE DO SISTEMA


BRASILEIRO PRISIONAL BRASILEIRO

De acordo com os ensinamentos de Greco (2011), Alves (2001) em sua obra aponta que o primei-
diante de uma sentença penal condenatória, na ro problema que assola o sistema carcerário é
hipótese do apenado ser condenado a uma pena a superlotação nas unidades prisionais do país.
de reclusão ou detenção, o nosso ordenamento Essa realidade não é devidamente considerada
jurídico, prevê três regimes a serem cumpridos pelos governos. O Estado ignora tal realidade que
quando cometido algum ilícito, os quais depen- perdura há anos, representada por um amonto-
dem da gravidade do mesmo, sendo que, em amento de pessoas humanas, jogada nas pri-
qualquer que seja esse regime estará sujeito às sões como se fossem lixo humano que, além da
progressões e regressões, quais sejam: regime privação da liberdade, sofrem a tortura moral de
fechado, regime semiaberto e regime aberto. uma condição de vida subumana, assim trans-
cendendo todas as expectativas de uma futura
Deste modo, a Lei de Execução Penal (Lei n° reintegração social.
7.210/84) (2023) preconiza para cada regime um
tipo de estabelecimento prisional. Quais sejam: O grande número de condenados em todo o país,
e a precariedade observação nas condições ge-
As Penitenciárias são as casas que abrigam os rais de nossas penitenciárias, tais como a falta

101
de espaço físico para abrigar dignamente esses rio Brasileiro, ou seja, a prisão é o local onde o
apenados, sem contar ainda com a inexistência condenado cumpre a pena imposta pela Lei e
de um programa de saúde para o preso, a insa- aplicada pelo Juiz e, é sabido que este é alvo de
lubridade verificada nesses estabelecimentos, grandes discussões, críticas e muitos proble-
não deixa dúvidas da incapacidade do Estado mas, devido as superlotações, a higiene e saúde,
na recuperação dos presos. as rebeliões, a não aplicabilidade do princípio da
dignidade da pessoa humana, os quais impossi-
Segundo Nucci (2010) ensina que as regras do bilitam a ressocialização do detento ao convívio
regime fechado são previstas não somente no social, tendo em vista o descaso e a situação em
Código Penal (Lei nº 2.848/40) (2023), mas tam- que os mesmos estão submetidos dentro das
bém na Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210/84) prisões.
(2023). Devendo o condenado, ao ingressar no
estabelecimento penitenciário, ser submetido a Deste modo, há uma dificuldade da ressociali-
exame criminológico de classificação para in- zação, a qual se dá por inúmeros motivos, tanto
dividualização da execução nos termos dos ar- pela má infraestrutura que é disponibilizada pelo
tigos 5º e 6º, da Lei de Execução Penal (Lei nº Estado e pelo o sistema penitenciário em ferir
7.210/84) (2023). Fica sujeito a trabalho durante gravemente os direitos humanos dos detentos,
o período diurno, preenchendo o tempo e cul- como a dificuldade de a sociedade reintegrar
tivando positivas atividades laborativas, a per- estes ao convívio comum, visto que, diariamen-
mitir a reeducação e o (re)aprendizado de uma te presos tem a necessidade de revezarem col-
profissão, bem como está sujeito a isolamento chões e banheiros para que todos tenham aces-
no período noturno, evitando-se a permissivida- so, as celas que já são saturadas, têm péssima
de e promiscuidade, típicas das celas abarrota- infraestrutura e os detentos não têm acesso a
das de presos. um acompanhamento médico continuo e nem
a uma alimentação de qualidade. Como as con-
Sendo assim, vedam-se, com isso, inclusive, as dições são degradantes, muitos dos presos (as)
associações indevidas e as conversações a res- adquirem doenças durante o período prisional
peito da prática de crimes. (FAGUNDES, TEIXEIRA, CARNEIRO, p.232, 2017).
Ainda com relação ao mesmo autor (2010), o tra- Além disso, não existe segurança dentro das
balho será exercido conforme as aptidões do penitenciárias do país, facções criminosas co-
sentenciado, em atividades comuns, admitindo- mandam as instituições e torna o ambiente um
-se excepcionalmente, o trabalho externo, desde local de terror e violência, onde o tráfico de dro-
que em serviços e obras públicas, sob vigilância. gas ainda se faz vigente, além de uma constante
Em caráter eventual, pode-se admitir o trabalho ameaça de rebeliões. Visto que muitas vezes os
em entidades privadas, com o consentimento funcionários carcerários não têm um preparo
expresso do preso, nos termos do artigo 36, § 3º, devido, nem uma formação específica.
da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) (2023),
bem como o local específico para o cumprimen- Diante da situação vigente, observa-se que o
to da pena do condenado em regime fechado Estado através das penitenciárias materializa
deve ser cela individual, contendo dormitório, o direito de punir todos aqueles que praticam
aparelho sanitário e lavatório, com salubridade um crime, porém, o sistema prisional não obtém
e área mínima de seis metros quadrados. No êxito satisfatório no emprego de suas sanções,
entanto, essas normas, de modo geral, não são em virtude da falta de estrutura carcerária ofer-
cumpridas pelo Estado. tada aos condenados, que na maioria das vezes
são amontoados nas celas que não têm capaci-
Segundo Rabelo (2011) O Sistema Penitenciá- dade de suportar uma grande quantidade des-

102
tes (RABELO, 2011). sistema penitenciário advém das condições su-
bumanas em que os presos se encontram dentro
É neste sentido que se passa a observar que o dos presídios, como a falta de estrutura oferta-
preso quando condenado e encaminhado ao da, precárias condições à saúde e alimentação,
encarceramento, é privado da sua saúde físi- rebeliões, as quais são oriundas das revoltas dos
ca, mental e alimentação, que não condiz com presidiários em razão do descaso do governo
aquela que um ser humano necessita ter (ESTE- em proporcionar aos mesmos um local harmo-
FAN E GONÇALVES, 2012, p.100) nioso ao cumprimento da pena, como forma de
reeduca-los, uma vez que são pessoas de direi-
Em uma publicação da revista “The Economist”
tos, embora estejam em situação de cárcere em
(de 22.09.12), transcrita por LUÍS FLÁVIO GOMES,
razão do mal cometido, sendo-lhes garantida a
a mesma traz a seguinte crítica:
dignidade humana, direito fundamental que as-
Os prisioneiros não só são submetidos a segura à pessoa e deve caminhar com ela por
tratamentos brutais frequentes em condi- toda a sua existência.
ções de miséria e superlotação extraordi-
nária, e muitas cadeias são administradas
por grupos criminosos, diz a publicação.

Ante o exposto, conforme nos remete o título do


presente estudo, o sistema carcerário brasileiro,
ou seja, os presídios não estão preparados para
produzir efeitos positivos no preso, pelo contrá-
rio, eles pioram o encarceramento, sendo assim
dessocializadores, por culpa do Estado e da so-
ciedade, que são omissos e ineficazes em assu-
mir suas responsabilidades.

5. CONCLUSÃO

O presente artigo buscou apresentar a realidade


do sistema prisional brasileira ante a desordem
do Estado em viger as legislações na busca de
uma melhor solução para a reintegração do pre-
so à sociedade.

Demonstrando assim, a necessidade de novas


políticas públicas para que as condições míni-
mas de existência sejam atendidas e um inves-
timento cada vez maior nos projetos ressociali-
zadores para que esses possam ser realmente
efetivados e assim a sociedade possa sentir a
eficácia do sistema carcerário brasileiro como
um órgão ressocializador e reintegrador dos ex-
cluídos da sociedade.

Assim, conforme hipótese proposta na proble-


mática restou comprovada que a deficiência do

103
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FAGUNDES, C. M.; TEIXEIRA, M. R. T. ; CARNEIRO, R. A. A INEFICÁCIA DO SISTEMA CARCERÁRIO


BRASILEIRO COMO ORGÃO RESSOCIALIZADOR. Revista Jurídica Direito, Sociedade e Justiça/
RJDSJ Curso de Direito, UEMS – Dourados/MS- 2017.

GRECO, R. Direitos humanos, sistema prisional e alternativas à privação de liberdade. São Pau-
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NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
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104
11
A LEI MARIA DA PENHA E AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA
A MULHER
A violência, seja qual for a forma como ela se manifeste, é sempre uma derrota.
Jean-Paul Sartre, J.

Marta Adriana Gonçalves Silva Buchignani


Advogada, professora, tradutora e palestrante. Graduada em Letras pela Universidade do Sagrado
Coração (USC-Unisagrado) e Direito pela ITE (Instituição Toledo de Ensino). Ex Procuradora do Esta-
do de São Paulo. Idealizadora do Projeto Jasmim junto ao Comitê de Combate à Violência Contra a
Mulher – Bauru do Grupo Mulheres do Brasil.
Taís Nader Marta
Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito – Sistema Cons-
titucional de Garantia de Direitos – pela ITE (Instituição Toledo de Ensino) de Bauru/SP. Advogada.
Coordenadora da Escola Superior da Advocacia (ESA) de Bauru/SP. Professora. Diretora da ABMCJ
(Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas) de São Paulo. Líder (COLEGIADO) do Gru-
po Mulheres do Brasil de Bauru/SP.

105
1. INTRODUÇÃO Civil de 1916 que determinava que mulheres ca-
sadas eram consideradas relativamente inca-
A prática de violência não tem uma motivação pazes (art. 6o, II); que as mulheres precisavam
simples e pontual. Ao contrário, é decorrente de pedir autorização dos maridos para trabalhar
todo um sistema complexo e que exige esforços (art. 233, IV e art. 242, VII) ou para aceitar ou re-
em várias frentes para ser coibida. pudiar herança (art. 242, IV); que somente po-
diam administrar os bens do casal na hipótese
É consenso indiscutível que todas as normas ju- do marido estar em lugar remoto ou não sabido,
rídicas devem conformar-se com a Constituição em cárcere privado por mais de dois anos ou se
Federal vigente, dito de outra forma, todas as leis, declarado judicialmente interdito (art. 251, I, II e
decretos, atos normativos devem submeter-se III); que somente poderiam ingressar com ações
ao comando constitucional sob pena de ver sua judicias com a permissão do marido (art. 242, VI)
extinção decretada por meio de decisão judicial e que o homem é o chefe da família (art. 380).
exarada pelo Supremo Tribunal Federal1.
Os direitos humanos são garantias universais
O Brasil Colonial era regido pelas Ordenações do de todos os indivíduos. A Declaração Universal
Reino (Ordenações Filipinas), um código de leis dos Direitos Humanos surgiu após a 2ª Guerra
extremamente discriminatório, que se aplicava Mundial quando diferentes países se agruparam
a Portugal e seus territórios, já que assegurava para formar a Organização das Nações Unidas.
ao marido o direito de matar a mulher em caso
de adultério ou até mesmo quando houvesse Os direitos das mulheres passaram a ser incor-
simples suspeita. porados a essa agenda de direitos humanos
em especial após a Conferência de Viena, uma
Tal hierarquia masculina foi conservada no Có- conferência sobre direitos humanos ocorrida no
digo Penal de 1890 que isentava de condenação ano de 1993, que aprovou a resolução de que os
quem matava em estado de completa privação direitos das mulheres e das meninas são par-
de sentidos e continuou com o Código Penal de te integrante e indivisível dos direitos humanos
1940, o qual estabelece como causa atenuante/ universais e explicitou que a violência contra as
diminuição de pena, agir sob o domínio de vio- mulheres constitui violação dos direitos huma-
lenta emoção. Tal privilégio, que naturaliza a nos. De acordo com a Declaração de Viena:
violência contra a mulher, ainda é sustentado
nos dias de hoje em casos de feminicídio, ressal- 18. Os direitos humanos das mulheres e
tando-se que apenas recentemente o Supremo das meninas são inalienáveis e constituem
Tribunal Federal firmou entendimento de que a parte integral e indivisível dos direitos hu-
tese da legítima defesa da honra é inconstitu- manos universais. A plena participação
das mulheres, em condições de igualdade,
cional, por violar os princípios constitucionais
na vida política, civil, econômica, social e
da dignidade da pessoa humana, da proteção à
cultural nos níveis nacional, regional e in-
vida e da igualdade de gênero em processo rela-
ternacional e a erradicação de todas as
cionado à ADPF 779.2 formas de discriminação, com base no
sexo, são objetivos prioritários da comuni-
Leis patriarcais e sexistas também foram fo-
dade internacional.
mentadas no Brasil por intermédio do Código
1 Quando no ordenamento jurídico há uma lei contrária à A violência e todas as formas de abuso e
Constituição Federal, esta deve ser banida do ordenamento exploração sexual, incluindo o preconceito
jurídico por meio de Ação Direita de Inconstitucionalidade.
cultural e o tráfico internacional de pesso-
2 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF proíbe uso da tese de
legítima defesa da honra em crimes de feminicídio. Disponível as, são incompatíveis com a dignidade e
em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe. valor da pessoa humana e devem ser eli-
asp?idConteudo=462336&ori=1. Acesso em: 05.07. 2022.

106
minadas. Pode-se conseguir isso por meio Na esfera interna, é um dos princípios mais im-
de medidas legislativas, ações nacionais portantes do ordenamento jurídico brasileiro, a
e cooperação internacional nas áreas do ponto de ser elevado ao patamar de fundamento
desenvolvimento econômico e social, da primário da República e do Estado Democrático
educação, da maternidade segura e assis- de Direito, encontrando-se cristalizado no artigo
tência à saúde e apoio social. 1º da Constituição Federal de 1988, no inciso III,
Os direitos humanos das mulheres devem nos seguintes termos:
ser parte integrante das atividades das
Art. 1º A República Federativa do Brasil,
Nações Unidas na área dos direitos huma-
formada pela união indissolúvel dos Es-
nos, que devem incluir a promoção de to-
tados e Municípios e do Distrito Federal,
dos os instrumentos de direitos humanos
constitui-se em Estado Democrático de
relacionados à mulher.
Direito e tem como fundamentos:
Ao se fazer qualquer referência ao tratamento I – a soberania;
jurídico dispensado às mulheres quando vitima-
das por atos de violência, é necessário, antes de II – a cidadania;
qualquer consideração ter-se em mente a con-
cepção de dignidade da pessoa humana, pois é III – a dignidade da pessoa humana;
no conceito deste princípio fundamental que re- IV – os valores sociais do trabalho e da livre
side todo o arcabouço legal que sustenta as me- iniciativa;
didas jurídicas capazes de proteger e amparar
mulheres vítimas de quadros dessa natureza. V – o pluralismo político.

Sobressai-se daí, que temas como a violência de Nesse sentido, a Lei nº 11.340, de 7 de agosto
gênero ganham relevo e paralelamente ficam à de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha,
mercê do intérprete a aplicabilidade da puni- tornou mais rigorosa a reprimenda para arre-
ção aos que violam a dignidade das vítimas, sob metidas contra a mulher, ocorridas no âmbito
o aspecto de pessoa, de gente, de ser humano, doméstico e familiar. Consta expressamente no
simplesmente pelo seu sexo, que por si só impõe art. 2º. da referida lei que toda mulher, indepen-
a ocupação de um lugar marginalizado, diferen- dentemente de classe, raça, etnia, orientação
ciado, na sociedade. sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e
religião, goza dos direitos fundamentais ineren-
O princípio da dignidade da pessoa humana é tes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as
uma concepção filosófica e abstrata que in- oportunidades e facilidades para viver sem vio-
forma o valor da moralidade, espiritualidade e lência, preservar sua saúde física e mental e seu
honra de todo indivíduo. Trata-se de um valor aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
fundamental que norteia toda a harmonia social
e sem o qual a convivência coletiva se tornaria O apelido da Lei 11.304/2006, foi originado em
impossível. homenagem à Maria da Penha Maia. Em 1983,
Maria da penha foi vítima de dupla tentativa de
A expressão dignidade da pessoa humana al- feminicídio, por parte do marido, primeiro, ele
berga uma infinidade de sentidos, razão pela deu um tiro em suas costas enquanto ela dormia,
qual seu conceito é considerado indeterminado, tendo por isso ficado paraplégica, tendo perma-
divorciando-se de qualquer precisão. Apesar necido no hospital, se submetido a duas cirurgias
disso, a ideia de dignidade foi forjada pelo pen- e tratamentos, quatro meses após retornar para
samento iluministas e influenciou os teóricos e casa, quando Maria da Penha teria retornado
intelectuais do século XVII e XVIII. para casa, foi mantida em cárcere privado por 15

107
dias, tendo Antonio Heredia Viveros tentado ele- Referida lei cria então mecanismos para coibir a
trocutá-la durante o banho, considerando que o violência doméstica e familiar contra a mulher,
julgamento do então ex-marido de Maria da Pe- nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição
nha demorou 8 anos e embora tendo a pena de Federal, da Convenção sobre a Eliminação de
15 anos de prisão, saiu do fórum em liberdade, no Todas as Formas de Discriminação contra as
seu segundo julgamento ocorrido em 1996, o seu Mulheres e da Convenção Interamericana para
ex-marido foi condenado a 10 anos e 6 meses de Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
prisão, mas devido à alegação de irregularida- Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
des processuais por parte dos advogados de de- Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher;
fesa, mais uma vez a sentença não foi cumpri- altera o Código de Processo Penal, o Código Pe-
da, até que em 1998 o caso ganhou repercussão nal e a Lei de Execução Penal; e dá outras provi-
internacional, vez que a vítima, Maria da Penha, dências.
o Centro para a Justiça e o Direito Internacional
(CEJIL) e o Comitê Latino-americano e do Caribe Antes da promulgação da Lei 11.340/06, a vio-
para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) lência doméstica contra as mulheres era con-
denunciaram o caso para a Comissão Interame- siderada crime de menor potencial ofensivo e
ricana dos Direitos Humanos da Organização era reconhecida, na grande maioria dos casos,
dos Estados Americanos (CIDH/OEA). como agressão física, ficando as suas demais
formas relegadas à interpretação de que o re-
Mesmo diante de um litígio internacional, o Bra- lacionamento de casais tinha caráter privado
sil não se pronunciou nenhuma vez no processo, e, como tal, os desentendimentos decorrentes
razão pela qual, em 2001, após receber quatro desse relacionamento deveriam ser resolvidos
ofícios do CIDH/OEA (de 1998 a 2001) o Estado entre quatro paredes. Para coibir a escalada da
brasileiro foi responsabilizado por negligência, agressão física em âmbito doméstico, a propó-
omissão e tolerância em relação à violência do- sito, a Lei 10.886/04 acresceu ao artigo 129 Có-
méstica praticada contra mulheres brasileiras, digo Penal, os parágrafos 9º e 10, tipificando a
conhecido como marco histórico deu azo ao tra- lesão corporal em casos de violência familiar e
tamento do tema, violência contra a mulher, em aumentando as penas no caso de agressão con-
razão do seu gênero, isto significa que o fato de tra familiares ou ocorrida por força de relações
ser mulher reforça a ocorrência da prática como domésticas.
acentua a impunidade dos agressores.
Até o ano de 2006, portanto, o artigo 226, § 8º da
Assim, em 07 de agosto de 2006, o então pre- Constituição Federal, norma constitucional de
sidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, eficácia limitada e programática, não encontra-
sancionou a Lei 11.340/2006, oriundo do Projeto ra a regulamentação necessária para produzir
de Lei 4.559/2004, de iniciativa da Câmara dos seus efeitos.
Deputados, aprovado por unanimidade em am-
bas as Casas do Congresso Nacional. Nesse compasso, a redação do parágrafo 8º, a
qual prescreve que “o Estado assegurará a as-
Em decorrência, dentre as recomendações ad- sistência à família na pessoa de cada um dos
vindas da CIDH, a de reparação à Maria da Pe- que a integram, criando mecanismos para coibir
nha, tanto material quanto simbolicamente, o a violência no âmbito de suas relações”, não ha-
Estado do Ceará pagou a ela uma indenização e via ainda sido regulamentado quanto à proteção
o Governo Federal batizou a lei, com o seu nome, da mulher.
como reconhecimento pela luta contra as viola-
ções dos direitos humanos das mulheres. É de ser notado que a Lei 11.340/06 apenas in-
corporou ao ordenamento interno o reconheci-

108
mento ao direito das mulheres e à necessidade la legal e por meio de interpretação teleológica,
de sua proteção, o que já era previsto desde há estendeu o alcance da lei às mulheres trans, re-
muito em dispositivos internacionais de direitos alizando uma equiparação entre sexo e gênero.
humanos, como, por exemplo, a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos (1948); a Convenção Saliente-se, ainda, que violência praticada con-
das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas tra homens, crianças, adolescentes, idosos, en-
Formas de Discriminação contra a Mulher (1979); fermos e outras classes de pessoas não abrangi-
a Convenção Interamericana para Prevenir, Pu- das pela lei Maria da Penha, encontram proteção
nir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994) por outros meios ou por outras leis específicas,
e; especialmente o relatório da Comissão Inte- como o Estatuto do Idoso, Estatuto da Criança e
ramericana de Direitos Humanos de n.º 54/01, do Adolescente, Código Penal, medidas cautela-
da Organização dos Estados Americanos (OEA), res previstas no Código de Processo Penal e Lei
o qual tratou do caso Maria da Penha Maia Fer- de Execução Penal.
nandes versus República Federativa do Brasil.
Apenas para exemplificar, sem alongar, o artigo
Desse modo, a Lei 11.340/06 constituiu-se em 313 do Código de Processo Penal admite a de-
um grande passo no enfrentamento à violência cretação de prisão preventiva em seu inciso III
doméstica e familiar contra a mulher, uma vez quando o crime envolver violência doméstica
que, além de ampliar o conceito de violência, e familiar contra mulher, criança, adolescente,
descrevendo suas várias formas, criou mecanis- idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para
mos para sua prevenção e repressão. garantir a execução das medidas protetivas de
urgência.
Antes de se adentrar à análise das formas de
violência tratadas pela Lei 11.340/06, é neces- Realizados tais esclarecimentos, necessários à
sário ressaltar que o objeto de proteção da Lei, compreensão da problemática da violência do-
conhecida como lei Maria da Penha, é a mulher, méstica e familiar, assim descritas no artigo 5º
conforme prescreve o seu artigo 1º, ao expressa- da lei como; a primeira, “o espaço de convívio
mente declarar que os mecanismos ali descri- permanente de pessoas com ou sem vínculos
tos prestam-se a “coibir e prevenir a violência familiar, inclusive as ocasionalmente agrega-
doméstica e familiar contra a mulher”. O artigo das”; e a segunda, “ a comunidade formada por
2º, por sua vez, explicita que todas as mulheres, indivíduos que são ou se consideram aparenta-
sem exceção, devem ser igualmente protegidas dos, unidos por laços naturais, por afinidade ou
e amparadas, “independentemente de classe, vontade expressa”, além das relações íntimas de
raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, ní- afeto, que não necessitam de coabitação, pas-
vel educacional, idade e religião. sa-se a analisar as formas de violência contra a
mulher.
Assim, violência praticada contra mulher que
mantém relação afetiva de natureza homosse- 2. DESENVOLVIMENTO
xual é protegida pela Lei 13.340/06.

Nesse sentido ainda, por meio do REsp n.º Verifica-se, com o passar dos tempos, que a vio-
1977124/SP, o Superior Tribunal de Justiça, ao lência contra a mulher sempre esteve presente,
julgar ação de violência doméstica praticada por vindo a mulher a ser submetida às mais diversas
pai contra filha trans, firmou o entendimento de formas de violência, iniciando por meio de obje-
que mulher transgênero deve ser protegida pela tificação de seus corpos e estigmatizada duran-
Lei Maria da Penha, afastando, com isso o crité- te muito tempo como ser irracional. 3
rio exclusivamente biológico do alcance da tute- 3 FORTUNATO, Tammy. Feminicídio – aspectos e
responsabilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023, p. 11-12.

109
A Lei Maria da Penha é fruto da mobilização his- trimonial, importante salientar que o texto legal
tórica de mulheres organizadas nos movimentos remete expressamente ao sexo feminino, cons-
feministas, que atuam e zelam por sua efetivida- tando nos 5 incisos do art. 7º. as espécies de
de até hoje. Considerada pela ONU como uma violência doméstica e familiar contra a mulher,
das leis contra violência doméstica mais com- sendo elas: física, psicológica, sexual, patrimo-
pletas do mundo, cria mecanismos para prevenir nial e moral.
e punir a violência doméstica e familiar contra a
mulher, alinhada com a Constituição Federal e Como já explicado anteriormente, o conceito de
com compromissos internacionais dos quais o violência doméstica foi se alterando com o tem-
Brasil é signatário. po, passando de agressão física para um leque
variado de suas modalidades arroladas no artigo
Ela deriva do amadurecimento de demandas 7º da Lei 13.340/06, tendo caráter exemplificati-
de movimentos de mulheres e de tratados in- vo, graças à expressão “entre outras”, constante
ternacionais ratificados pelo Brasil4. A lei possui do caput. Isso significa que eventual forma de
disposições relacionadas às políticas de pre- violência não elencada no dispositivo pode ser
venção, às medidas de proteção imediata, bem também punida. Encontrava guarida na lei, por
como mecanismos destinados a elevar a res- exemplo, a violação da intimidade da mulher,
ponsabilização do agressor, já que a impunida- entendida como forma de violência psicológica,
de sistêmica seria vista como aspecto relevante a qual não se encontrava expressamente descri-
na invisibilidade política desta violência5. ta no mencionado diploma. Hoje, com a redação
dada pela Lei 13.772/18, que alterou o inciso II da
A Lei Maria da Penha parte da premissa que a Lei, a hipótese foi expressamente contemplada.
violência contra as mulheres é fomentada por
um sistema estrutural de discriminação nas di- Assim, passa-se a analisar as formas de violên-
versas esferas da vida (art. 3º) que cria “papéis cia contra a mulher previstas pelo artigo 7º da
estereotipados” entre homens e mulheres que lei.
legitimam a violência (art. 8º, inciso III), sendo
que “em razão da situação de fragilidade emo- Primeiramente existe a previsão da violência
cional e até mesmo física em que se encontra a física, entendida como qualquer conduta que
mulher, a hipossuficiência faz com que o silên- ofenda sua integridade ou saúde corporal. O in-
cio seja o maior dos cúmplices dos episódios de ciso I aponta a forma mais conhecida e comum
violência”.6 de violência, que é a violência corporal e que
abrange, além da lesão corporal nas modalida-
Observa-se, de acordo com o art. 5º. da referida des leve, grave e gravíssima, as hipóteses des-
lei, que a violência doméstica e familiar contra a critas na lei de contravenções penais como vias
mulher é qualquer ação ou omissão baseada no de fato. Considera-se violência física portan-
gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento to, além de lesões, ferimentos provocados por
físico, sexual ou psicológico e dano moral ou pa- instrumentos contundentes, perfurocortantes e
cortantes, espancamentos e arremessos de ob-
4 SILVA, Salete Maria da et al. ‘Fala Maria porque é de lei’: a jeto, por exemplo, safanões, empurrões, puxões
percepção das mulheres sobre a implementação da lei de cabelo e apertões, modalidades mais brandas
Maria da Penha em Salvador/BA. Revista Feminismos, v. 4, v.1,
p. 156- 167, 2016. previstas na Lei de Contravenção Penal.
5 PASINATO, Wânia. Oito anos de Lei Maria da Penha: entre
avanços, obstáculos e desafios. Estudos Feministas, v. 23, n. Um parêntese deve ser feito aqui, consideran-
2, p. 533-545, 2015. do a necessidade de representação prevista na
6 DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha. A efetividade da
Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar Lei de Contravenções Penais, quando as vias de
contra a mulher. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, fato se derem no contexto de violência domésti-
p. 190.

110
ca. Nesses casos, entende a jurisprudência que aquelas tipificadas no Código Penal como ame-
a ação penal é pública incondicionada, uma vez aça, constrangimento ilegal, cárcere privado,
que a Lei 9.099/95 não se aplica às infrações dentre outras, além de condutas que anterior-
penais instauradas no âmbito da Lei Maria da mente eram tratadas como assuntos privados
Penha mesmo entendimento se dá no tocante à de relação familiar.
lesão corporal leve.
Até 2021, portanto, a violência psicológica des-
No Brasil os dados estatísticos sobre lesão cor- crita no inciso II da Lei encontrava embasamen-
poral praticados contra mulheres são alarman- to para tipificação na Lei Penal, devendo, a des-
tes. No ano de 2021 houve o registro de 230.861 crição do fato encontrar adequação nos mais
casos de agressões por violência doméstica. 7 diversos tipos penais como explicado acima.

O inciso II faz a previsão da violência psicológica, A Lei 14.188/21, entretanto, alterou a sistemática
entendida como qualquer conduta que lhe cause da Lei 13.340/06, criando um subsistema de ti-
dano emocional e diminuição de autoestima ou pificação específico para a violência doméstica
que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvol- descrita na lei Maria da Penha relacionado à vio-
vimento ou que vise degradar ou controlar suas lência psicológica, a qual passou a receber re-
ações, comportamentos, crenças e decisões, gulamentação diferenciada em relação aos de-
mediante ameaça, constrangimento, manipula- mais incisos do artigo 7º, por meio da inclusão
ção, isolamento, vigilância constante, persegui- do tipo “dano emocional”, de conduta comissiva
ção contumaz, insulto, chantagem, ridiculariza- representada pelo verbo “causar”, previsto no ar-
ção, exploração e limitação do direito de ir e vir tigo 147-B, com a seguinte redação:
ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à
saúde psicológica e à autodeterminação. 147-B – Causar dano emocional à mulher
que a prejudique e perturbe seu pleno de-
Muitas vezes ignorada pela vítima que não reco- senvolvimento ou que vise a degradar ou
nhece a ausência de agressão física como uma a controlar suas ações, comportamentos,
forma de violência8 a agressão de caráter emo- crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipula-
cional é tão ou até mesmo mais prejudicial do
ção, isolamento, chantagem, ridiculariza-
que a violência física, uma vez que muitas vezes
ção, limitação do direito e ir e vir ou qual-
é o início de outras violências que serão poste-
quer outro meio que cause prejuízo à sua
riormente praticadas deixa cicatrizes na alma, saúde psicológica e à autodeterminação:
ou seja, sequelas de caráter psicoemocionais,
podendo levar a vítima a sentimentos profundos Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 2 (dois)
e duradouros de rejeição, discriminação e de- anos, e multa, se a conduta não constitui
preciação, dentre outros. crime mais grave.

Importante lembrar que uma forma de violência


não anula outra e os casos de violência psicoló- Trata-se, como se vê, de tipo subsidiário, con-
gica não raro vêm acompanhados de violência siderando a expressão final, “se a conduta não
física e vice-versa. constitui crime mais grave.”

As condutas apresentadas no inciso II eram Como exemplo de violência psicológica pode-se


citar constantes xingamentos dirigidos contra a
7 FBSP. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. São
Paulo: FBSP, 2022. Disponível em: https://forumseguranca.
mulher no âmbito familiar. Outro exemplo, são
org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022-v03.pdf. ameaças, ainda que veladas, as quais podem
Acesso em: 5. jul. 2023. causar o dano emocional mencionado no art.
8 MELO, Mônica; TELES, Maria Amélia de Almeida. O que é
violência contra a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2017.
147-B do Código Penal.

111
A jurisprudência vem entendendo que para a Esta visão embora ultrapassada, ainda continua
prova de tal dano basta a palavra da vítima, des- presente na cultura do matrimônio e das uniões
de que harmônica e em consonância com outras civis e afetivas, levando à prática de violência
evidências, ainda que a ameaça ou o constran- sexual por seus pares a partir de conceitos ar-
gimento não tenha sido presenciado por teste- raigados na sociedade brasileira.
munhas. Considerando o caráter de clandesti-
nidade que tais condutas se revestem, na maior Entende-se por violência sexual, atos de cunho
parte dos casos, o reconhecimento do “fumus sexual praticados sem o consentimento da víti-
boni juris” e “periculum in mora” podem se dar a ma. Nesse sentido, e levando-se em considera-
partir do depoimento da mulher, ainda que não ção a igualdade de direitos e deveres entre os
ratificado por prova testemunhal. cônjuges, conviventes e parceiros em relações
íntimas de afeto, a prática de ato sexual sem o
A lei prevê ainda, em seu inciso III, a violência consentimento do parceiro ou parceira é trata-
sexual, entendida como qualquer conduta que a do como ato sexual de natureza violenta e como
constranja a presenciar, a manter ou participar tal deve ser punido.
de relação sexual não desejada, mediante inti-
midação, ameaça, coação ou uso da força; que Sobre os tipos penais previstos no capítulo vol-
a induza a comercializar ou utilizar, de qualquer tado aos crimes contra a liberdade e dignidade
modo, sua sexualidade, que a impeça de usar sexual, são arrolados o estupro, a importunação
qualquer método contraceptivo ou que a force sexual, a violação sexual mediante fraude, o re-
ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à pros- gistro não autorizado de intimidade sexual, a
tituição, mediante coação, chantagem, suborno divulgação não autorizada de imagens íntimas,
ou manipulação; ou que limite ou anule o exercí- o estupro de vulnerável, o estupro corretivo e o
cio de seus direitos sexuais e reprodutivos. assédio sexual.

A violência doméstica de caráter sexual foi in- A questão da violência sexual contra a mulher
troduzida como forma de violência pela Lei toma proporções alarmantes quando se anali-
13.340/06 e vem tipificada penalmente no capí- sa o atlas da violência, divulgado pelo IPEA em
tulo de crimes contra a liberdade e a dignidade 2022, cuja estimativa de estupros ocorridos no
sexual do Código Penal Brasileiro. Brasil por ano é de 822 mil, sendo mulheres 80%
das vítimas. Dentro deste contexto, estima-se
Dentro da temática voltada às relações domés- que a cada 8 minutos, um estupro seja cometido
ticas e familiares cujo objeto de proteção é a no país.9 Segundo o anuário do Fórum Brasilei-
mulher, a violência sexual teve sua interpreta- ro de Segurança Pública, o Brasil teve o maior
ção alterada com o passar do tempo. Assim, o número de casos de estupro registrados em sua
Código Civil de 1916 tratava a relação familiar e história no ano de 2022: 74.930 casos.10
entre cônjuges com a visão voltada ao pater fa-
mílias e ao dever de pagamento de débito con- A proteção trazida pela Lei Maria da Penha so-
jugal chamado de “remédio à concupiscência”. bre violência sexual, como se vê, portanto, é de
O Código Civil de 2002, em seu artigo 1511, tratou boa técnica legislativa e está em sintonia com a
da relação familiar e conjugal de forma isonô- igualdade de direitos entre homens e mulheres
mica, prestigiando com isso, o artigo 226, § 5º, em uma relação afetiva nos tempos atuais, ten-
da Constituição Federal. Sob esse aspecto, o do sido reconhecida, inclusive, pela Convenção
dispositivo estabelece a igualdade de direitos e Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
deveres entre os cônjuges, afastando a figura do 9 Disponível em: 5632-3765-anais-forum-cesec-ipea-311-324.
pater famílias, até então prevalente na relação pdf. Acesso em: 30.06.2023.
matrimonial. 10 Disponível em: visiveleinvisivel-2023-relatorio.pdf
(forumseguranca.org.br). Acesso em: 30.06.2023.

112
a Violência Doméstica. O artigo 24 da lei apresenta as medidas repara-
tórias para as violações de caráter patrimonial,
Importa lembrar ainda, que até mesmo o crime constituindo-se as mesmas em restituição de
de assédio sexual, ligado à existência de rela- bens indevidamente subtraídos pelo agressor à
ção de trabalho pode estar ligado à violência ofendida; proibição temporária para celebração
doméstica no caso de a mulher trabalhar para de atos e contratos de compra, venda e locação
o agressor e formar com ele vínculo afetivo de de propriedade em comum, a não ser que haja
natureza familiar. autorização judicial; suspensão de procurações
outorgadas pela ofendida ao agressor e pres-
Julgado recente entendeu aplicável a Lei
tação de caução provisória, mediante depósito
13.340/06 à ameaça e assédio sexual ocorridos
judicial, por perdas e danos materiais decorren-
em ambiente de trabalho, considerando envol-
tes da prática de violência doméstica e familiar
vimento amoroso entre o suposto agressor e a
contra a ofendida. Tais medidas são de natureza
vítima. Ficou ali demonstrada a violência de gê-
exemplificativa, podendo o magistrado adotar
nero e o abuso da condição de vulnerabilidade
outras que se fizerem necessárias, consideran-
da vítima, afastando-se a necessidade de coabi-
do o termo “entre outras”, constante do caput do
tação entre agressor e vítima. A Câmara Espe-
artigo 24.
cial do Tribunal de Justiça de São Paulo julgou
procedente conflito de competência e declarou Discussão relevante é a que se faz acerca das
competente o juízo de direito da vara de violên- imunidades absolutas e relativas previstas nos
cia doméstica e familiar da comarca de Campi- artigos 181 e 182 do Código Penal referentes aos
nas.11 crimes contra o patrimônio praticados sem em-
prego de violência. Tais condutas, se pratica-
O inciso III tutela, ainda, o exercício dos direitos
das contra cônjuge na constância da sociedade
sexuais de caráter reprodutivo, assegurando à
conjugal ou em prejuízo de ascendente ou des-
mulher, no artigo 9º, §3º, acesso a serviços de
cendente, seja o parentesco legítimo ou ilegíti-
contracepção de emergência e a procedimen-
mo, civil ou natural são consideradas imunida-
tos médicos a fim de se evitar doenças sexual-
des absolutas ou escusas absolutórias. Caso as
mente transmissíveis ou necessários e cabíveis
condutas sejam praticadas contra cônjuge judi-
nos casos de violência sexual.
cialmente separado; irmão legítimo ou ilegítimo;
Existe a previsão, também, da violência patri- tio ou sobrinho, com quem o agente coabita, há
monial, entendida como qualquer conduta que necessidade de representação da vítima ao Mi-
configure retenção, subtração, destruição par- nistério Público e as hipóteses são considera-
cial ou total de seus objetos, instrumentos de das, portanto, imunidades relativas.
trabalho, documentos pessoais, bens, valores e
Tais imunidades não se aplicam a crimes come-
direitos ou recursos econômicos, incluindo os
tidos com violência ou grave ameaça. O Estatuto
destinados a satisfazer suas necessidades.
do Idoso (Lei 10.741/2003) incluiu nova hipótese
Configura violência patrimonial, por exemplo, de afastamento de tal imunidade, por meio da
atos de subtração, como furto, apropriação e inclusão do inciso III ao artigo 183, o qual pres-
dano, entendido este último pelo termo “des- creve sobre a inaplicabilidade da escusa absolu-
truição parcial ou total de objetos, instrumentos tória em questão, se o crime for praticado contra
e documentos”, dentre outros. pessoa com idade igual ou superior a 60 anos.

Um exemplo prático muito frequente é a des- Com relação à Lei Maria da Penha, o diploma
truição de objetos no calor de uma discussão. nada tratou expressamente com relação ao
afastamento das imunidades, mas tão somente
11 0022358-56.2023.8.26.0000

113
previu medidas reparatórias de cunho patrimo- feito de maneira expressa como o fez no caso
nial em benefício da mulher. do Estatuto do Idoso. E citando o promotor de
Justiça e doutrinador Rogério Sanchez, apon-
Ao tratar da questão, Caroline Cavalcante Espí- tam que “não permitir a imunidade para o ma-
nola preleciona que: rido que furta a mulher, mas permiti-la quando
[...] a doutrina jurídica acenou que as a mulher furta o marido, é ferir de morte, o prin-
imunidades e prerrogativas previstas nos cípio constitucional da isonomia”. Desse modo
artigos 181 e 182 do Código Penal não te- e explicando o posicionamento do autor, infor-
riam sido recepcionadas pelo novel di- mam, as articulistas, que somente uma declara-
ploma. É esse o pensamento de Maria ção expressa em lei teria o condão de revogar os
Berenice Dias ao salientar que, a partir da dispositivos do Código Penal.
vigência da Lei Maria da Penha, “não há
mais como admitir o injustificável afasta- A jurisprudência vem acatando a tese de que a
mento da pena ao infrator que pratica um Lei Maria da Penha não revogou implicitamente
crime contra sua esposa ou companheira, os artigos 181 e 182 do Código Penal, inclusive, já
ou, ainda, alguma parente do sexo femini- tendo o Superior Tribunal de Justiça se posicio-
no” ou seja, “perpetrados contra a mulher, nado a respeito, como se lê do RHC 42.918/RS14,
dentro de um contexto de ordem familiar, no qual se analisava o caso de cônjuge do sexo
o crime não desaparece e nem fica sujei- masculino que praticou estelionato contra a es-
to à representação”. Ademais, não mais posa. Por meio da decisão, a qual reconheceu a
chancelado o furto nas relações afetivas, existência da escusa absolutória, ficou patente
cabe o processo e a condenação do in- o entendimento que a Lei 13.340/06 apresenta
frator, sujeitando-se ao agravamento da
medidas cautelares específicas para a proteção
pena nos termos do artigo 61, II, f do Código
do patrimônio da mulher.
Penal12.
O Tribunal de Justiça de São Paulo também se
Todavia, a questão ainda não se pacificou, cons- posiciona no mesmo sentido, conforme se de-
tituindo-se em aparente conflito de normas, preende de jurisprudência recentíssima, ao ab-
conforme explicam Fernanda Moretzsohn e Pa- solver acusados de crimes contra o patrimônio
trícia Burin, em artigo publicado na Revista Con- praticados na constância do casamento, até
sultor Jurídico.13 mesmo em situações de separação de fato ou
de corpos.15
Para as mesmas articulistas, e fazendo um cote-
jo com o Estatuto do Idoso, não existe disposição Todavia, não pode ser esquecido que o tema foi
similar relacionada às mulheres em contexto de tratado pela Convenção Interamericana para
violência doméstica e familiar. Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher, denominada “Convenção de Belém do
Entendem, as autoras, que se a intenção do le- Pará”.
gislador fosse afastar a aplicabilidade das imu-
nidades absolutas também aos crimes pratica- O artigo 7, inserto no Capítulo III, que trata dos
dos em âmbito doméstico e familiar, ele o teria “deveres dos estados”, determina que os estados
partes devem adotar, por todos meios apropria-
12 ESPÍNOLA, Caroline Cavalcante. Dos Direitos humanos das
mulheres à efetividade da Lei Maria da Penha. 1. ed. Curitiba: dos e sem demora, políticas destinadas a preve-
Appris, 2018, p.104, nir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-
13 MORETZSOHN, Fernanda; BURIN, Patrícia. Violência -se em, dentre várias ações, a,
Patrimonial contra as mulheres e escusas absolutórias.
Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur. 14 RHC 42.918/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA,
com.br/2021-set-24/questao-genero-violencia-patrimonial- julgado em 05/08/2014, DJe 14/08/2014.
mulheres-escusas-absolutorias. Acesso em: 23. jun. 2023. 15 1513298-14.2022.8.26.0228 e 2236518-05.2022.8.26.0000.

114
e). tomar todas as medidas adequadas, Esta é a posição que mais se coaduna com os
inclusive legislativas, para modificar ou preceitos supralegais presentes no ordenamen-
abolir leis e regulamentos vigentes ou mo- to jurídico nacional e constitucionais insertos na
dificar práticas jurídicas ou consuetudi- Constituição Federal de 1988.
nárias que respaldem a persistência e a
tolerância da violência contra a mulher. Finalmente, encontram-se em tramitação
na Câmara dos Deputados os projetos de lei
Ao ser ratificada sem ressalvas, o Estado Brasi- 3764/2004 e 1000/2023, os quais tratam das es-
leiro, tomou para si a incumbência de eliminar cusas absolutórias previstas nos artigos 181 e 182
do ordenamento jurídico práticas que se desvir- do Código Penal.
tuem dessa linha adotada na Convenção. Desse
modo, é defensável a tese de que os artigos 181 e O PL 3764/04, da autoria do dep. Coronel Alves,
182 tenham tido sua eficácia suspensa pela nor- do PL/AP, apresentado em 09/06/04, altera o ar-
ma supralegal apontada. tigo 182, prevendo ação penal pública condicio-
nada quando o crime for cometido pelo cônjuge,
Isso porque já ficou reconhecido pelo Supremo ascendentes, descendentes e parentes e revoga
Tribunal Federal, por meio do HC 87.585/TO a na- o artigo 181 do Código Penal. Tal PL, após ter a
tureza supralegal dos tratados internacionais de tramitação alterada para regime de urgência, foi
direitos humanos ratificados pelo Brasil, e em encaminhado para a mesa diretora, onde se en-
decorrência disso, a consequência da paralisa- contra desde 09/03/2022.18
ção de sua eficácia, denominada “efeito parali-
sante” da norma. O PL 1000/23, de autoria do deputado Guilher-
me Uchoa (PSB/PE) apresentado em 08/03/23,
Dessa forma, Veras e Araújo, em seu artigo Con- por sua vez, trata da revogação do artigo 181 e da
trole da Convencionalidade dos artigos 181 e 182 alteração dos artigos 182 e 183 do Código Penal
do Código Penal (escusas absolutórias) nos cri- Brasileiro, “para dispor sobre a inaplicabilidade
mes patrimoniais de violência doméstica e fa- de escusas absolutórias aos crimes cometidos
miliar contra a mulher, pontuam que a prática no âmbito da violência doméstica e familiar, co-
forense, ao aplicar as escusas absolutórias, des- metidos contra mulher grávida, contra pessoa
toa dos preceitos normativos e finalidade da Lei com deficiência mental e contra pessoa com
11.340/06, bem como dos tratados internacionais deficiência visual ou auditiva.” 19
em que o Brasil ratificou, especialmente a Con-
venção de Belém do Pará, que se prontificou em Por fim existe a previsão da violência moral, en-
punir todas as formas de violência doméstica e tendida como qualquer conduta que configure
familiar contra a mulher.16 calúnia, difamação ou injúria.

Por outro lado, considerando que, segundo elas A violência moral é definida na Lei Maria da Pe-
o ‘Supremo Tribunal Federal firmou entendi- nha por atos que configurem os tipos penais de
mento majoritário e vinculante no sentido de calúnia, injúria ou difamação. São crimes que
reconhecer os tratados internacionais ratifica- atentam contra a honra objetiva ou subjetiva da
dos pelo Brasil como norma supralegal”, o efeito vítima e no caso da lei, devem ser praticados em
paralisante deve ser reconhecido com relação a situação de violência doméstica ou familiar. A
estes dispositivos, incompatíveis com o tratado. violência moral é na maioria das vezes verbal,
17 também podendo se dar por escrito, por meio
de cartas, bilhetes ou outros meios escritos.
16 VERAS, Érica Verícia Canuto de e ARAUJO, Gabriela Nivoliers
Soares de Sousa. Revista Eletrônica Jurídico-Institucional, 18 Disponível em: camara.leg.br. Acesso em: 23.08.2023.
ano 8 n12, jan/dez 2018, p. 8. 19 Disponível em: https://www.camara.leg.br/. Acesso em:
17 Op cit, p.8 23.08.2023.

115
Calúnia é a imputação falsa de fato que se cons- Caso encontrado na jurisprudência foi o de ex-
titui crime contra alguém e atenta contra a hon- -cônjuge, que não se conformando com a sepa-
ra objetiva, ou seja, contra a imagem que a víti- ração, foi até o local de trabalho da vítima e pe-
ma goza perante a sociedade. Desse modo, para dindo para conversar a sós com ela, agrediu-a
que a calúnia se consume, é necessário que ter- verbalmente por meio de adjetivos desonrosos.
ceiros tomem conhecimento da imputação falsa
do crime. A violência moral, na maioria das vezes está
atrelada à violência psicológica, como ocorre,
Segundo Nucci, por exemplo, com injúria e ameaça, mas as duas
formas de violência são independentes, assim
[...] considera-se o delito consumado como todas e cada uma delas.
quando a imputação falsa chega ao co-
nhecimento de terceiro. Se a atribuição Analisadas as formas de violência descritas pela
falsa de fato criminoso dirigir-se direta Lei 13.340/06, cabem alguns esclarecimentos fi-
e exclusivamente à vítima, configura-se nais.
injúria, pois ofendeu-se somente a honra
subjetiva.20 O Código Penal, em seu artigo 61, II, f, ao tratar
das circunstâncias agravantes dos tipos penais,
É o caso, por exemplo, do parceiro que imputa
descreve tal ocorrência quando o crime for co-
à companheira desvio de valores de conta con-
metido com abuso de autoridade ou prevalecen-
junta para fins escusos, divulgando tal imputa-
do-se de relações domésticas, de coabitação ou
ção em grupo de amigos, rede social ou de men-
hospitalidade, ou com violência contra a mulher,
sagens.
na forma da lei específica. A parte final da alínea
Difamação é a imputação a alguém de fato ofen- f foi introduzida pela Lei 13.340/06.
sivo à sua reputação. Do mesmo modo como
Desse modo, a pena de crimes praticados em si-
ocorre com a calúnia, a difamação também
tuação de violência doméstica e familiar come-
atenta contra a honra objetiva da vítima, sendo
tida contra a mulher é agravada, nos termos do
necessário, portanto, que o fato desonroso im-
dispositivo analisado.
putado chegue ao conhecimento de terceiros.
Não se trata de fato tipificado como crime, mas Deve ser lembrado, ainda, que a prática de vio-
que causa descrédito à vítima perante a socie- lência, nas suas modalidades, comporta indeni-
dade. zação por danos materiais e morais, nos termos
da lei civil.
No âmbito da Lei 13.340/06, um exemplo de di-
famação é o do companheiro que atribui à par- Como visto, portanto, muito se caminhou no
ceira, dona de casa, o costume de passar o dia Brasil desde o tempo quando a visão da vio-
dormindo e não fazer as tarefas domésticas que lência contra as mulheres se limitava a atos de
lhe cabem. agressão física e era punida de forma acanhada
até os dias de hoje, quando tal fenômeno se di-
Injúria é a ofensa à dignidade ou ao decoro da
versifica em variadas formas e encontra medi-
vítima. Neste caso, não se trata de imputação
das de caráter preventivo e repressivo para sua
de fato, mas de qualidade negativa à vítima, por
eliminação.
meio de adjetivos desonrosos. A injúria atinge a
honra subjetiva da vítima e dessa forma, basta Nesse sentido, entendimento recentíssimo com
que ela tome conhecimento da ofensa para que maioria de votos no STF é aquele que afasta o
o crime se consume. que se denomina vitimização secundária, ao
20 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 18. proibir juízes de exigirem da mulher, vítima de
ed. São Paulo: Forense, 2017, p. 866.

116
violência doméstica, a comparecer em audiên- rias frentes para ser coibido.
cia para exercício de retratação, nos casos de
ação penal pública condicionada a representa- Mesmo com a sanção da Lei nº 11.340/06, tam-
bém conhecida como Lei Maria da Penha, os ín-
ção, a qual ocorre nos casos de lesão corporal
dices de violência continuam elevados22. Os mo-
leve e culposa, conforme prescreve o artigo 16 da tivos são diversos: má aplicação da lei, falta de
Lei Maria da Penha. Firmou-se, assim, a partir estrutura física para um atendimento adequado,
do voto do Min. Edson Facchin, o entendimen- despreparo dos operadores do direito em lidar
to para reconhecer a ‘inconstitucionalidade da com o caso e ausência de políticas públicas ca-
designação, de ofício, de tal audiência por parte pazes de combater esse quadro.
do juiz, além de afastar a interpretação segundo
É indiscutível a evolução legal do tema nos dias
a qual o não comparecimento da vítima de vio-
de hoje23. Inegável admitir-se, por outro lado,
lência doméstica implica renúncia ao direito de que a violência contra as mulheres continue
representação’.21 sendo um grave problema social, demarcado
por inúmeras implicações a permearem as re-
Falta ainda caminhar para um ponto onde a Lei lações hierárquicas de desigualdade entre os
Maria da Penha seja apenas uma referência his- gêneros as quais, de acordo com a Organização
tórica de uma época em que se faziam necessá- Mundial de Saúde – OMS, é um problema de saú-
rias todas essas medidas. Isso só será possível de global, de proporções epidêmicas.
por meio de uma mudança de mentalidade atin-
gida através da educação e da conscientização Dentro deste contexto, a Lei Maria da Penha é
um instrumento fundamental na promoção dos
de que somos todos iguais e de que podemos
direitos das mulheres e na busca pela igualda-
ser melhores e de que uma sociedade pacífica é de de gênero no país, além de ser uma poderosa
uma sociedade de seres livres. ferramenta de prevenção e proteção, já que ob-
jetiva garantir justiça efetiva para todas as víti-
CONSIDERAÇÕES FINAIS mas de violência doméstica, assegurando-lhe,
de um lado, o direito à reparação, e, de outro,
A violência contra a mulher é um problema his- prevendo políticas públicas a serem desenvol-
tórico que acompanhou a humanidade, cons- vidas pelo Estado para a tutela de tais direitos.
tituindo um dos maiores problemas de ordem
social e penal enfrentados pelo Brasil, e conti- Assim, o comportamento do Estado em relação
nua seguindo firme em todas as classes sociais à promoção da dignidade da pessoa humana
indistintamente. Inúmeras normas jurídicas de implica numa necessária efetivação de políti-
caráter nacionais e internacionais destacam o cas públicas para proteção das mulheres com
quanto é urgente para o avanço da sociedade, investimentos que resultem no efetivo enfrenta-
que se combata esse fenômeno, mesmo assim, mento à violência de gênero para a superação
as estatísticas apontam para o aumento triste- desse problema histórico, com um programa de
mente espantoso de casos dessa natureza. ações governamentais politicamente determi-
nadas que visem à realização desse objetivo tão
A prática de violência não tem uma motivação relevante socialmente.
simples e pontual, mas é decorrente de todo um
22 No Brasil temos alarmantes dados estatísticos de violências
sistema complexo e que exige esforços em vá- praticadas contra mulheres. No ano de 2013 passou para a
5ª posição com uma taxa de 4,8 homicídios de mulheres a
21 ConJur. STF tem maioria sobre presença da vítima em cada 100 mil. Isso representa um aumento de 9% no número
audiência de retratação. Disponível em: https://www. de assassinatos registrados. Em 2010, o Brasil ocupava a 7ª
conjur.com.br/2023-ago-21/audiencia-maria-penha- posição no ranking com uma taxa de 4,4, segundo dados do
nao-obrigatoria-maioria-stf#:~:text=Livre%20vontade- Mapa de Violência. Apenas entre março de 2020 e dezembro
,Presen%C3%A7a%20da%20v%C3%ADtima%20em%20 de 2021 foram 2.451 feminicídios e 100.398 casos e estupro de
audi%C3%AAncia%20de,opcional%2C%20diz%20maioria%20 vulnerável de vítimas do gênero feminino de acordo com o
do%20STF&text=A%20garantia%20da%20liberdade%20 fórum brasileiro de segurança pública de 2021.
s%C3%B3,da%20Lei%20Maria%20da%20Penha. Acesso em: 23 Podemos, à título de exemplo, mencionar as recentes leis
21. agost. 2023 14.538/2023, 14.540/2023, 14.541/2023 e 14.542/2023.

117
DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha. A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à vio-
lência doméstica e familiar contra a mulher. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

ESPÍNOLA, Caroline Cavalcante. Dos Direitos humanos das mulheres à efetividade da Lei Ma-
ria da Penha. 1. ed. Curitiba, Appris, 2018.

FBSP. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. São Paulo: FBSP, 2022. Disponível em:
https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022-v03.pdf. Acesso
em: 5. jul. 2023.

FORTUNATO, Tammy. Feminicídio – aspectos e responsabilidades. Rio de Janeiro: Lumen Ju-


ris, 2023.

MELO, Mônica; TELES, Maria Amélia de Almeida. O que é violência contra a mulher. São Paulo:
Brasiliense, 2017.

MORETZSOHN, Fernanda; BURIN, Patrícia. Violência Patrimonial contra as mulheres e escu-


sas absolutórias. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-set-24/
questao-genero-violencia-patrimonial-mulheres-escusas-absolutorias. Acesso em: 23. jun.
2023.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 18. ed. São Paulo: Forense, 2017.

PASINATO, Wânia. Oito anos de Lei Maria da Penha: entre avanços, obstáculos e desafios.
Estudos Feministas, v. 23, n. 2, p. 533-545, 2015.

SILVA, Salete Maria da et al. ‘Fala Maria porque é de lei’: a percepção das mulheres sobre a
implementação da lei Maria da Penha em Salvador/BA. Revista Feminismos, v. 4, v.1, p. 156- 167,
2016.

VERAS, Érica Verícia Canuto de e ARAUJO, Gabriela Nivoliers Soares de Sousa. Revista Eletrôni-
ca Jurídico-Institucional, ano 8 n12, jan/dez 2018.

118
12
A REVISÃO DA VIDA TODA: BREVE ANÁLISE SOBRE A
DECADÊNCIA E A IGUALDADE DE DIREITOS

Palavras-chave
Revisão da Vida Toda - Prazo Decadencial - Termo Inicial - Justiça Social

Mayara Mihoko Kodima Cury


Advogada, formação acadêmica pela Faculdades Integradas de Bauru – FIB, pós-graduanda em
Direito Previdenciário – RGPS Nova Previdência pelo IEPREV

119
1. INTRODUÇÃO Constituição Mexicana de 1917 e pela Constitui-
ção de Weimar de 1919, adotou a dignidade da
Em 13/04/2023 foi publicado o acórdão pelo STF pessoa humana como fundamento e consagrou
relativo ao Tema 1.102, popularmente conhecido os chamados direitos e garantias fundamentais.
como Revisão da Vida Toda.
Buscando dar efetividades a esses direitos bási-
Em suma, a revisão da vida toda se insurge con- cos, foram instituídos, ainda, os direitos sociais,
tra a limitação imposta pela Lei 9.876/99 ao uni- dos quais faz parte expressa a previdência so-
verso contributivo a ser considerado no cálculo cial.
do salário de benefício do segurado.
Os direitos econômicos, sociais e culturais
Assim, buscou-se a aplicação da norma previs- são associados ao direito à igualdade em
ta no inciso I do art. 29 da Lei 8.213/91, quando sua dimensão material com base no prin-
esta for mais vantajosa, a fim de que fosse con- cípio da isonomia, segundo o qual se deve
tratar igualmente os iguais e desigualmen-
siderado no cálculo do benefício todo o período
te os desiguais, na medida de suas desi-
contributivo do segurado, e não apenas a partir
gualdades. Ou seja: o conteúdo enunciado
de julho de 1994.
no princípio esclarece que a garantia de
Contudo, apenas uma parcela minoritária da po- igualdade perante a lei é insuficiente para
assegurar que, na prática, todos os indiví-
pulação realmente será beneficiada com a mu-
duos tenham igual acesso a bens e direi-
dança. E parte dessa minoria já teria perdido o
tos, sendo necessário, desta forma, que
direito a revisão se aplicado o prazo decadencial
o Estado tome medidas para reduzir as
tal como encartado no art. 103 da Lei nº 8.213/91. desigualdades, sendo insuficiente a mera
previsão da igualdade formal. (ZAPATER,
Dessa forma, o presente trabalho tem por princi-
2018, p. 1119)
pal objetivo realizar uma reflexão acerca da efe-
tividade da justiça social promovida pela decisão
favorável à revisão da vida toda, e a possibilidade Ou seja, apenas garantir a igualdade perante a lei
do afastamento da decadência para os segura- não é suficiente para garantir que todos tenham
dos efetivamente beneficiários da revisão. acesso igualitário a bens e direitos na prática.
De igual forma, e já visitando o tema da revisão
Não se espera com este estudo pôr fim à dis-
da vida toda, garantir o direito à revisão e aplicar
cussão. Pelo contrário. Busca-se examinar e
a decadência é limitar o acesso igualitário aos
ponderar, à luz da doutrina, artigos e periódicos,
possuidores do direito.
algumas considerações pontuais sobre o papel
dos direitos sociais e a sua efetividade no cená- Assim, é necessário não somente “dar” o direito,
rio atual, a fim de fomentar o debate. mas garantir que todos tenham condições justas
e equitativas de acessá-lo, buscando uma igual-
2. DA PREVIDÊNCIA SOCIAL dade mais real e efetiva.
COMO DIREITO SOCIAL
3. DO TERMO INICIAL PARA O
Antes de adentrarmos ao cerne do instituto da CÔMPUTO DA DECADÊNCIA
decadência, e por sua vez, da revisão da vida NAS AÇÕES RELATIVAS À
toda, é preciso recorrer às bases fundamentais REVISÃO DA VIDA TODA
da previdência social, e sua natureza.

A Constituição Federal de 1988, influenciada pela O instituto da decadência é a limitação do exer-


cício do direito por certo período de tempo, com

120
vista a não se eternizar as demandas judiciais, APOSENTADORIA POR TEMPO DE CON-
atrair segurança aos negócios jurídicos e a paz TRIBUIÇÃO. REVISÃO. “VIDA TODA”. DECA-
social, fazendo-se perecer o direito do titular. DÊNCIA. TERMO A QUO DO PRAZO.

Nas palavras do doutrinador Fábio Zambitte Uma vez que busca modificar o ato con-
Ibrahim (2019): cessório, o pedido de revisão de benefí-
cio previdenciário pela inclusão de salá-
[...] A decadência faz perecer o direito rios-de-contribuição anteriores a julho
pelo transcurso de certo lapso temporal de 1994 também se sujeita à incidência
previsto em lei. A decadência fulmina o di- do prazo decadencial do art. 103 da Lei
reito potestativo, que é aquele a ser exer- 8.213/1991, devendo-se observar o princí-
cido exclusivamente pelo seu titular, ao pio da actio nata na sua contagem. (TRF4
qual não corresponde obrigação alguma, - PROCESSO: 5047019-16.2020.4.04.7000
como, por exemplo, o direito potestativo do - LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO -
empregador em encerrar um contrato de Data da publicação: 18/04/2023)
trabalho. (IBRAHIM, F. Z. Curso de direito
previdenciário. 24 ed. p. 393) Tal entendimento reduz significativamente o nú-
mero de segurados que, tendo o direito, poderão
Nesse sentido, se estabeleceu para as deman- socorrer-se ao poder judiciário e se beneficiar
das previdenciárias o disposto no art. 103 da Lei com essa conquista.
nº 8.213/91, limitando a 10 anos o prazo para revi-
são do ato de concessão de benefício: Paralelamente a este entendimento, em um pri-
meiro momento, precisamos entender o funda-
Art. 103. O prazo de decadência do direi- mento, ou base legal, para a revisão da vida toda.
to ou da ação do segurado ou beneficiário
para a revisão do ato de concessão, inde- A Lei nº 8.213 de 1991 disciplinava que o salário
ferimento, cancelamento ou cessação de de benefício seria calculado pela média aritmé-
benefício e do ato de deferimento, inde- tica dos 36 últimos salários de contribuição, em
ferimento ou não concessão de revisão de um universo máximo de 48 meses, com a inci-
benefício é de 10 (dez) anos, contado: dência de um determinado percentual, segundo
a natureza do benefício.
I - do dia primeiro do mês subsequente
ao do recebimento da primeira prestação Por sua vez, com a publicação da Lei nº. 9.876 de
ou da data em que a prestação deveria ter 1999 alterou-se a fórmula do cálculo, que pas-
sido paga com o valor revisto; ou
sou a consistir na média aritmética simples dos
II - do dia em que o segurado tomar co- maiores salários de contribuição corresponden-
nhecimento da decisão de indeferimento, tes a oitenta por cento de todo o período contri-
cancelamento ou cessação do seu pedido butivo desde a competência julho de 1994.
de benefício ou da decisão de deferimento
ou indeferimento de revisão de benefício, O ponto focal da revisão da vida toda, portanto,
no âmbito administrativo. é a limitação imposta ao universo contributivo
trazido pela nova regra que não se encontra na
Os Tribunais Superiores têm entendido que a re- Lei nº 8.213/91.
visão da vida toda se trata de defeito no ato de
concessão do benefício, e aplicado o prazo do Dessa forma, no julgamento do Tema 1.102, o STF
artigo acima transcrito nos seus julgamentos. fixou a seguinte tese:
Vejamos, por exemplo, a ementa abaixo:
O segurado que implementou as condi-
AGRAVO INTERNO. PREVIDENCIÁRIO. ções para o benefício previdenciário após

121
a vigência da Lei 9.876, de 26/11/1999, e an- Para essa minoria, o direito à revisão nasceu e se
tes da vigência das novas regras constitu- consolidou com o Tema 1.102 do STF, visto que,
cionais, introduzidas pela EC em 103 /2019, antes do julgamento do repetitivo não havia o
que tornou a regra transitória definitiva, direito reclamado, já que cabia ao INSS a apli-
tem o direito de optar pela regra definitiva, cação da lei e não a sua interpretação, tal como
acaso esta lhe seja mais favorável. firmada pela jurisprudência.
Dessa forma, ao contrário do que vem sendo ad- Assim, se o direito nasceu para os 33.915 segura-
mitido pelos Tribunais, podemos considerar que dos na mesma data, e se a decadência é a per-
no caso da revisão da vida toda, não se trata de da de um direito existente, o termo a quo para
revisão do ato de concessão. A questão debati- os segurados exercerem o direito da revisão da
da se refere a correta interpretação da lei a ser vida toda deveria ser o trânsito em julgado do
aplicada ao caso concreto: se deve ser aplica- acórdão que garantiu esse direito.
da a norma prevista no inciso I do art. 29 da Lei
8.213/91 ou a regra de transição prevista no arti- Limitar a revisão da vida toda pela decadência
go 3.º, caput e §2º, da Lei 9.876/99. prevista no art. 103 da Lei nº 8.213/91, é, no mí-
nimo, clara ofensa ao princípio da igualdade, já
Veja-se, portanto, que embora impacte direta- que todos os potenciais beneficiários adquiri-
mente no cálculo do benefício, a correta inter- ram o direito na mesma data.
pretação da lei se trata de elemento externo ao
cálculo do benefício, uma vez que a Administra- O mesmo raciocínio foi utilizado pelo STJ no jul-
ção Pública está vinculada ao Princípio da Lega- gamento do Tema Repetitivo 1.117, o qual definiu
lidade Estrita, que a impede de interpretar a Lei que:
e utilizar a jurisprudência.
o marco inicial da fluência do prazo de-
Dessa forma, por falta de disposição legal, e ain- cadencial, previsto no caput do art. 103 da
da, por observância do princípio da legalidade, Lei n. 8.213/1991, quando houver pedido de
não houve erro, falha ou vício na análise do ato revisão da renda mensal inicial (RMI) para
de concessão pelo INSS aos benefícios con- incluir verbas remuneratórias recebidas
cedidos até a entrada em vigor da EC 103/2019, em ação trabalhista nos salários de contri-
não havendo que se falar em limite decadencial buição que integraram o período básico de
cálculo (PBC) do benefício, deve ser o trân-
neste caso, pois não se trata de revisão do ato de
sito em julgado da sentença na respectiva
concessão estabelecido no art. 103 supramen-
reclamatória.
cionado, mas sim de revisão da interpretação da
lei e da sua aplicação. Conforme se verifica no acórdão, restou decidi-
do que há a integralização do direito material ao
Ademais, analisando por uma outra perspectiva,
segurado somente a partir do trânsito em julga-
mas culminando em uma mesma solução, con-
do da ação trabalhista, devendo, portanto, este
sideramos a assertiva de que a decadência está
ser o marco inicial da decadência.
diretamente ligada ao possuidor de um direito,
conforme vimos acima. De igual forma, o direito à relativização do uni-
verso contributivo – revisão da vida toda - so-
Ora, de acordo com os próprios dados utilizados
mente foi integralizado ao segurado quando do
pelo INSS, de 108.396 pessoas que poderiam ter
julgamento pelo STF do Tema 1.102.
direito a revisão, apenas para 33.915 a revisão
seria realmente vantajosa (Nota Técnica SEI nº Assim, nesta linha de raciocínio, pode-se con-
4.921/2020). cluir que a data do trânsito em julgado do acór-
dão proferido pelo STF deveria ser o marco ini-

122
cial do prazo decadencial. pio da igualdade para todos os segurados que,
tendo o seu benefício concedido pela regra tran-
Portanto, a fim de se preservar os princípios sitória, tiveram prejuízo se comparado com a re-
constitucionais e como forma de dar efetividade gra definitiva.
ao direito social ora reclamado, o termo a quo da
decadência para a revisão da vida toda deverá No mais, o presente estudo nasceu da neces-
ser contado a partir do reconhecimento do direi- sidade de se elaborar uma tese para afastar a
to pela Repercussão Geral. decadência em casos reais, aos quais muitos
beneficiários se viram frustrados ao ter o direi-
Admitir o inverso é dar suporte a ineficiência do to reconhecido mas não poder exercê-lo, nem
direito, e favorecer a instauração da injustiça usufruí-lo.
social, já que o direito conquistado não poderá
ser exercido pela grande maioria da pequena Em suma, reconhecemos que se trata de uma
parcela de segurados que seriam os seus reais questão profunda e de grande impacto social,
beneficiários. e que ainda levantará muitos debates sobre o
tema. Ao final, contudo, esperamos que aos be-
CONSIDERAÇÕES FINAIS neficiários seja garantido o exercício pleno e o
gozo de seus direitos reconhecidos.
No decorrer deste estudo, revisitamos a cons-
trução histórica da previdência social através do
enfoque dos direitos sociais, e a sua importância
na efetividade das garantias fundamentais.

A partir daí, se abordou a questão da decadência


no âmbito das demandas previdenciárias, bem
como o seu impacto quando aplicada às ações
relacionadas à revisão da vida toda.

Como forma de buscar afastar a sua incidência,


considerou-se que a relativização do universo
contributivo não se trata de uma revisão do ato
de concessão de benefício, mas sim da correta
interpretação da lei a ser aplicada aos benefícios
concedidos na vigência da Lei nº 9.876/99, bem
como, que referido direito somente foi integra-
lizados aos segurados com o julgamento pelo
STF do tema 1.102, em analogia ao entendimento
exarado pelo STJ no Tema 1.117.

Partindo de tais premissas, foi possível concluir


que o prazo decadencial para a revisão da vida
toda deveria ser contado a partir do trânsito em
julgado do acórdão proferido pelo STF, pois é
somente a partir desse momento que o direito é
integralizado ao segurado.

A adoção deste entendimento implicaria, no


âmbito dos direitos sociais, fazer valer o princí-

123
Badari, João. O milagre contábil apresentado pelo INSS na revisão da vida toda. Disponível em:
<https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-milagre-contabil-apresentado-pelo-inss-na-revisao-
-da-vida-toda/1483865661> Acesso em: 21/07/2023.

BRASIL. Lei Nº 8.213, De 24 De Julho De 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdên-
cia Social e dá outras providências. Brasília, em 24 de julho de 1991.

BRASIL. Lei No 9.876, De 26 De Novembro De 1999. Dispõe sobre a contribuição previdenciá-


ria do contribuinte individual, o cálculo do benefício, altera dispositivos das Leis nos 8.212 e 8.213,
ambas de 24 de julho de 1991, e dá outras providências. Brasília, 26 de novembro de 1999.

Ferraresi, Camilo Stangherlim. Cury, Mayara Mihoko Kodima. O PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RE-
TROCESSO SOCIAL E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA: ANÁLISE DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE
DOS BENEFÍCIOS DAS APOSENTADORIAS VOLUNTÁRIAS E SUSTENTABILIDADE FINANCEIRA.
Revista JurisFIB, Volume XI | Ano XI, 2020.

Ribeiro, Pâmela Francine. Não aplicação da decadência na Revisão da Vida Toda. Disponível
em: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/nao-aplicacao-da-decadencia-na-revisao-da-vida-
-toda/1199073578> Acesso em: 21/07/2023.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). REsp nº 1947534. Julgamento em 30 de agosto de 2022.


Relator: Ministro Gurgel de Faria. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/pesqui-
sa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202100463814>. Acesso em: 21/07/2023.

124
13
O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO CÍVEL NO ÂMBITO DO
PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR
O acordo de não persecução cível é uma ferramenta jurídica que tem sido amplamente debatida e
adotada em diversos sistemas legais ao redor do mundo. No Brasil, foi introduzido na Lei 8.429/1992
(Lei de Improbidade Administrativa - LIA), através da Lei 13.964/2019 (pacote anticrime). Trata-se de
um instrumento que permite a resolução consensual de casos civis, mais precisamente que envol-
vam atos de improbidade administrativa.

Nessa esteira, surgiu-se a ideologia de se aplicar o acordo de não persecução cível no processo
administrativo disciplinar, mais precisamente nos casos em que envolvam atos de improbidade
administrativa, passiveis de demissão e cassação da aposentadoria. Neste artigo, analisaremos o
conceito do acordo de não persecução cível sua logística e a hermenêutica de aplicação para o pro-
cesso administrativo disciplinar.
Nilo Kazan de Oliveira
Doutor pela UNESP-FMB, campus Botucatu - SP (2022). Maestría de Derecho Administrativo y Ges-
tión Pública, impartido en la Escuela de Posgrado de la Facultad de Derecho UdelaR (2021). Pós Gra-
duado em Direitro Público Aplicado pela Escola Brasileira de Direito (2020-2021);
Gabriela da Silveira
Advogada, bacharel em Direito pela Libertas Faculdades Integradas (2014 - 2018); pós graduada em
Direito Aplicado aos Serviços de Saúde pela Estácio (2023); pós-graduanda em Direito Médico e
LGPD pela Legale. Tem experiência no Direito Médico e da Saúde e Direito Público.
Palavras-chave
Acordo de Não Persecução Cível - Processo Administrativo Disciplinar - Atos de Improbidade - Pa-
cote Anticrime
125
1. INTRODUÇÃO II - de aprovação, no prazo de até 60 (ses-
senta) dias, pelo órgão do Ministério Públi-
O acordo de não persecução cível é uma moda- co competente para apreciar as promo-
lidade de negociação entre o Ministério Público ções de arquivamento de inquéritos civis,
se anterior ao ajuizamento da ação;
ou pelo Ente Público que sofreu prejuízo, com
o suposto infrator, com o objetivo de resolver III - de homologação judicial, independen-
questões de cunho civil, sem a necessidade de temente de o acordo ocorrer antes ou de-
discussão judicial sobre os supostos atos de im- pois do ajuizamento da ação de improbi-
probidade praticados. dade administrativa.

Nessa esteira, é importante retornarmos às ori- § 2º Em qualquer caso, a celebração do


gens sobre a viabilidade de negociação e acordo acordo a que se refere o caput deste artigo
com supostos infratores. Temos como o grande considerará a personalidade do agente, a
marco o acordo de não persecução penal, trazi- natureza, as circunstâncias, a gravidade e
do pela Lei nº 13.964 de 20191, que atualmente é a repercussão social do ato de improbida-
bastante difundido na seara criminal. de, bem como as vantagens, para o inte-
resse público, da rápida solução do caso.
Em linhas gerais, houve um diálogo de fontes,
§ 3º Para fins de apuração do valor do dano
entre o direito penal e processual penal, com o
a ser ressarcido, deverá ser realizada a oi-
direito civil, a qual se enquadram os atos de im-
tiva do Tribunal de Contas competente,
probidade, a fim de viabilizar o acordo de não que se manifestará, com indicação dos
persecução civil. parâmetros utilizados, no prazo de 90 (no-
venta) dias.
A partir de então foram implementadas mudan-
ças substanciais na Lei nº 8.429/92 (LIA), através § 4º O acordo a que se refere o caput deste
da Lei nº 14.230/21, inserindo o art. 17-B, que as- artigo poderá ser celebrado no curso da in-
sim dispõe: vestigação de apuração do ilícito, no curso
da ação de improbidade ou no momento
“Art. 17-B. O Ministério Público poderá, da execução da sentença condenatória.
conforme as circunstâncias do caso con-
creto, celebrar acordo de não persecução § 5º As negociações para a celebração do
civil, desde que dele advenham, ao menos, acordo a que se refere o caput deste arti-
os seguintes resultados: go ocorrerão entre o Ministério Público, de
um lado, e, de outro, o investigado ou de-
I - o integral ressarcimento do dano; mandado e o seu defensor.
II - a reversão à pessoa jurídica lesada § 6º O acordo a que se refere o caput des-
da vantagem indevida obtida, ainda que te artigo poderá contemplar a adoção de
oriunda de agentes privados. mecanismos e procedimentos internos de
integridade, de auditoria e de incentivo à
§ 1º A celebração do acordo a que se refere
denúncia de irregularidades e a aplicação
o caput deste artigo dependerá, cumulati-
efetiva de códigos de ética e de conduta
vamente:
no âmbito da pessoa jurídica, se for o caso,
I - da oitiva do ente federativo lesado, em bem como de outras medidas em favor do
momento anterior ou posterior à proposi- interesse público e de boas práticas admi-
tura da ação; nistrativas.

§ 7º Em caso de descumprimento do acor-


1 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/
do a que se refere o caput deste artigo, o
lei/l13964.htm

126
investigado ou o demandado ficará impe- dos de não persecução cível na instância
dido de celebrar novo acordo pelo prazo de recursal.
5 (cinco) anos, contado do conhecimento
pelo Ministério Público do efetivo descum- Ele explicou que essa posição da jurispru-
primento.” dência decorre das mudanças trazidas
pela Lei 13.964/2019 – o chamado Pacote
Notem, que a legislação, adequando-se aos pa- Anticrime –, que alterou o parágrafo 1º do
râmetros contemporâneos sobre a sistemática artigo 17 da Lei 8.429/1992. A nova lei tam-
cooperativa, negocial e conciliatória, emanou bém introduziu o parágrafo 10-A ao artigo
texto expresso sobre a viabilidade de realização 17 da Lei de Improbidade Administrativa,
do acordo de não persecução cível em infrações para estabelecer que, “havendo a possi-
bilidade de solução consensual”, as partes
civis.
poderão requerer ao juiz a interrupção do
Após o advento da referida alteração legislativa, prazo para a contestação, por não mais do
questionou-se também sobre a viabilidade do que 90 dias.
ente público lesado em propor o acordo de não O ministro ressaltou que a Lei 14.230/2021,
persecução cível, sendo que a matéria foi paci- “que alterou significativamente o regra-
ficada pelo r. Supremo Tribunal Federal, através mento da improbidade administrativa”,
da ADI 7042/DF: incluiu o artigo 17-B à Lei 8.429/1992, tra-
zendo previsão explícita quanto à possi-
Os entes públicos que sofreram prejuízos
bilidade do acordo de não persecução cí-
em razão de atos de improbidade também
vel até mesmo no momento da execução
estão autorizados, de forma concorrente
da sentença.
com o Ministério Público, a propor ação e
a celebrar acordos de não persecução civil Segundo o relator, a empresa condenada
em relação a esses atos. por ato ímprobo foi punida com a impo-
sição do ressarcimento do dano ao erá-
STF. Plenário. ADI 7042/DF e ADI 7043/DF,
rio e com a proibição de contratar com o
Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgados em
poder público pelo período de cinco anos,
31/8/2022 (Info 1066)
mas, no acordo celebrado com o Ministé-
Essa decisão possui extrema relevância para o rio Público, foi fixada multa civil de R$ 2,5
milhões em substituição à proibição de
objeto do presente artigo, pois se a Pessoa Ju-
contratar.
rídica de Direito Público lesada não estivesse le-
gitimada à propositura ou realização do acordo Ao homologar o acordo, a Primeira Se-
de não persecução cível, fatalmente o comando ção extinguiu o processo com resolução
hermenêutico seria no sentido da inviabilidade do mérito e julgou prejudicados os embar-
de sua realização no âmbito do processo admi- gos de divergência que haviam sido inter-
nistrativo disciplinar. postos pela empresa de coleta de lixo. 2

Lado outro, o Superior Tribunal de Justiça paci- Assim foram colmatadas as lacunas deixadas
ficou o entendimento no sentido de que é viável pela Lei n. 13.964/2019, garantindo a efetividade
do acordo de não persecução cível, sempre que
a realização do acordo de não persecução cível haja prevalência do interesse público. Em suma
até em grau de recurso: o dano ao erário deve ser estancado e compen-
sado, viabilizando-se a realização da referida
O relator, ministro Gurgel de Faria, afirmou negociação.
que a Primeira Turma, diante de recentes
2 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/
alterações legislativas, tem reconhecido a Noticias/20042022-Primeira-Secao-homologa-acordo-de-
possibilidade de homologação dos acor- nao-persecucao-civel-em-acao-de-improbidade-na-fase-
recursal.aspx

127
2. APLICANDO-SE O ACORDO Público, Defensoria Pública, União, Estados,
DE NÃO PERSECUÇÃO CÍVEL Municípios, autarquias, dentre outros.
NO ÂMBITO DO PROCESSO
ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR • Princípio da Isonomia: Visa garantir a igual-
dade entre as partes envolvidas no processo,
permitindo que tanto o autor da ação (enti-
Feitas as considerações iniciais, é importa res-
dade legitimada) quanto o réu tenham o di-
saltar que o debate e normatização sobre o
reito de se manifestar e apresentar provas.
acordo de não persecução passou da esfera pe-
nal para a esfera civil, restando à mingua de re- • Princípio da Publicidade: Os processos co-
gulamentação no âmbito administrativo. letivos devem ser públicos, permitindo que
qualquer pessoa tenha acesso às informa-
Notem que apesar das esferas penal, civil e ad-
ções e aos atos processuais.
ministrativa serem independentes3, quando es-
tamos a tratar de atos de improbidade adminis- • Princípio da Efetividade: Busca garantir a
trativa, devemos ter em conta o microssistema efetividade das decisões judiciais, para que
processual coletivo, que garante uma integração as ações coletivas tenham resultados con-
entre várias normas e institutos que atuam em cretos e não fiquem apenas no plano teórico.
normas de âmbito coletivo.
• Princípio do Interesse Público Primário: Os
O microssistema processual coletivo é um con- processos coletivos visam proteger interes-
junto de normas e princípios que regulam os pro- ses que têm relevância pública e social, sen-
cessos judiciais e extrajudiciais voltados para a do distintos dos interesses individuais.
tutela de direitos coletivos, difusos e individuais
homogêneos. Esse conjunto de normas forma • Princípio da Reparação Integral: Caso seja
um sistema específico dentro do ordenamento comprovado o dano, as decisões judiciais
jurídico, destinado a proteger interesses e direi- devem garantir a reparação integral dos pre-
tos que transcendem o âmbito individual e têm juízos causados aos direitos coletivos afeta-
repercussão sobre um grupo maior de pessoas. dos.

No Brasil, o microssistema processual coletivo • Princípio da Coisa Julgada Erga Omnes: A


está principalmente previsto na Constituição decisão proferida em ação coletiva possui
Federal de 1988 e em leis específicas que tratam eficácia para todas as pessoas integrantes
da tutela dos direitos coletivos. Além disso, a ju- do grupo ou categoria afetada, não sendo
risprudência dos tribunais também é relevante restrita apenas às partes envolvidas na ação.
na construção desse sistema.
Dentre as leis que compõem esse microssis-
Os principais pilares desse microssistema são: tema, destacam-se a Lei da Ação Civil Pública
(Lei nº 7.347/1985), a Lei da Ação Popular (Lei
nº 4.717/1965), o Código de Defesa do Consumi-
• Princípio da Ação Coletiva (Legitimação ex- dor (Lei nº 8.078/1990) e o Estatuto da Criança e
traordinária): As entidades e órgãos previstos do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), entre outras
em lei têm a possibilidade de ajuizar ações normas específicas para a proteção de direitos
em nome próprio para a proteção de direi- coletivos.
tos e interesses coletivos, como o Ministério
O objetivo desse microssistema é assegurar a
3 MS 34.420-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de
tutela dos interesses coletivos e difusos, bem
19/05/2017; RMS 26951-AgR, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux,
Dje de 18/11/2015; e ARE 841.612-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. como a correta aplicação dos princípios e regras
Cármen Lúcia, DJe de 28/11/2014.

128
processuais para que a justiça seja alcançada Em linhas gerais, o acordo de não persecução
de forma mais abrangente, considerando a di- cível agrada a ambas as partes do processo
mensão social e a relevância desses direitos. administrativo disciplinar. O Estado estará re-
parando o erário, e além disso sancionando pe-
Assim, quando estamos falando de atos de im- cuniariamente o infrator. Em contrapartida, o
probidade, estamos a nos direcionar a questões funcionário que supostamente teria infringido
que demandam atuação direta do microssiste- a lei, terá a oportunidade de transacionar com o
ma processual de tutela coletiva. Estado, evitando-se a aplicação de uma penali-
dade drástica como uma demissão ou cassação
Pois bem, fazendo essa integração, e também
de aposentadoria.
com a articulação sistemática dos institutos
legais existentes, a teor do art. 15 do Código de O fato de inviabilizar a aplicação do acordo de
Processo Civil, temos que a aplicação do acordo não persecução cível no âmbito do processo
de não persecução civel no âmbito do processo administrativo disciplinar seria um tanto quan-
administrativo disciplinar é perfeitamente har- to ilógico, vez que na própria sanção cível, por
mônico com os parâmetros constitucionais e ato de improbidade, essa medida já seria viável.
legais. Assim, com muito mais razão, seguindo uma or-
Art. 15. Na ausência de normas que regu- dem simétrica, no âmbito administrativo deve-
lem processos eleitorais, trabalhistas ou -se viabilizar a sua realização.
administrativos, as disposições deste
Por mais que exista independência de instân-
Código lhes serão aplicadas supletiva e
subsidiariamente. g.n.4
cias de aplicação de penalidade - penal, cível e
administrativa, fato é que em muitos casos as
Pela próxima sistemática integrativa do orde- questões penais preponderam, seguidas das
namento jurídico pátrio, temos que a aplicação questões civis e administrativas. Assim, se-
do acordo de não persecução cível no âmbito do guindo uma hermenêutica sistemática e lógica,
processo administrativo disciplinar é compatí- quando da existência apenas do acordo de não
vel com todas as premissas legais existentes e, persecução penal, já seria viável a sua aplicação
malgrado ainda inexista previsão legal expressa no âmbito administrativo, mais precisamente
para sua efetivação, o microssistema legal que no processo administrativo disciplinar que se
tutela o interesse público primário e aspectos da amolda nos atos de improbidade.
coletividade garantem ao indiciado a efetivação
da referida transação. A título exemplificativo, notem que a própria Lei
n. 8.112/90, em seu art. 132, IV, especifica que
Nos dizeres de Claudia Lima Marques, que con- uma das causas de demissão é a improbidade
duziu a tese do diálogo das fontes (Erik Jayme)5, administrativa.
a antinomia existente, por não haver norma re-
Art. 132. A demissão será aplicada nos se-
gulamentar expressa para aplicação do acordo
guintes casos:
de não persecução cível no âmbito administra-
tivo, deve ser colmatada pelo microssistema co- (...)
letivo.
IV - improbidade administrativa;

4 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/ (...)
lei/l13105.htm
5 https://www.emagis.com.br/area-gratuita/voce-sabia/ A Lei do Estado de São Paulo n. 10.261/68 tam-
teoria-dos-dialogos-das-fontes-base-teorica-e- bém possui disposição semelhantes:
aplicacoes/#:~:text=A%20tese%20da%20Teoria%20do,se%20
excluem%2C%20mas%20se%20complementam.

129
Artigo 257 - Será aplicada a pena de de- nítido abuso de autoridade.
missão a bem do serviço público ao fun-
cionário que: Por fim, o indeferimento de realização do acordo
de não persecução cível no âmbito administra-
(...) tivo, mais precisamente no âmbito do processo
administrativo disciplinar que envolva atos de
XIII - praticar ato definido em improbidade, deve ser combatido via recurso
lei como de improbidade. (NR) hierárquico, independentemente de previsão
- Inciso XIII acrescentado pela Lei Comple- legal expressa, sendo ele inerente à sistemáti-
mentar nº 942, de 06/06/2003. ca do contraditório e ampla defesa, inerente ao
processo administrativo em geral.
(...)
Em não havendo reforma da decisão, diante de
Desta feita, de rigor que, em havendo atos de im- toda a sistemática processual e material, o en-
probidade, por conseguinte deve ser viabilizado tendimento plausível é que seja viabilizado o
o acordo de não persecução cível ao funcionário direito subjetivo do indiciado, através dos remé-
público, desde que respeitados os parâmetros dios constitucionais existentes em nosso orde-
legais e haja vantajosidade aos cofres públicos. namento jurídico (mandado de segurança, ha-
beas data, entre outros).
A título exemplificativo, se um funcionário públi-
co recebeu indevidamente R$ 25.000,00 (vinte 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
e cinco mil reais), ainda que de boa-fé, e agora
está sendo indiciado em um processo adminis-
trativo disciplinar, com viabilidade de demissão, O acordo de não persecução cível é uma impor-
nada obsta que seja feito um acordo, com devo- tante ferramenta para a resolução de questões
lução desses valores atualizados, além de multa civis de forma consensual e eficiente. Ao pos-
incidente, estancando assim o processo admi- sibilitar a reparação do dano ou a correção de
nistrativo disciplinar. irregularidades sem a necessidade de da judi-
cialização do caso, contribui para a celeridade
A modelagem do acordo de não persecução cí- e a economia processual, além de oferecer um
vel vem de encontro com harmonização entre o direito subjetivo ao suposto infrator.
direito sancionador e a proteção do patrimônio e
interesses públicos primários - da coletividade. Por via de consequência, malgrado inexista re-
Assim, inexiste objeção entre o interesse público gulamentação expressa de aplicação do regra-
de resguardo e a realização de acordo. mento do acordo de não persecução cível junto
ao processo administrativo, mais precisamen-
Lado outro, é importante ressaltar ainda que o te ao processo administrativo disciplinar, nada
pacto negocial é vertical, que apesar de entender obsta a sua aplicação imediata, em conformida-
ser um direito subjetivo do indiciado, deve pau- de com o microssistema processual e material
tar-se em critérios objetivos e hígidos emanados coletivo, além das normas regulamentadoras
única e exclusivamente do Estado. Haverá aqui, do acordo de não persecução penal e acordo de
verdadeira submissão do funcionário público não persecução cível angariado pelo pacote an-
aos termos do acordo imposto pelo Estado.
ticrime e lei de improbidade administrativa, res-
Por via de consequência, é importante ressaltar pectivamente.
ainda que o acordo não perde a sua bilateralida-
de, pois existe a viabilidade de aceitação ou não Em não havendo aceitação da aplicação do re-
por parte do funcionário público indiciado. ferido instituto ao servidor público indiciado em
processo administrativo disciplinar, este deve se
O acordo também deve ser pautado em funda- socorrer ao recurso hierárquico, na via adminis-
dos indícios de materialidade e autoria, vez que trativa e, em não havendo reforma da decisão,
a administração pública estaria calcada na tipi- deve se socorrer ao Poder Judiciário, a fim de
cidade da infração disciplinar para a propositu- que se viabilizar o acordo de não persecução cí-
ra do acordo. Em não havendo indícios mínimos vel.
sobre a materialidade da ilegalidade, inviável a
sua celebração, sob pena de se agir o gestor com

130
BEVILAQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. 7ª ed. Rio: Livraria Francisco Alves, 1955.

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n 131
14
INCONSTITUCIONALIDADE DAS ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS
DOS REGIMES PRÓPRIOS DE PREVIDÊNCIA SOCIAL DAS
CARREIRAS NACIONAIS

Palavras-chave
Contribuições Previdenciárias. Progressividade. Capacidade contributiva. Isonomia.

RAMON LEANDRO FREITAS ARNONI


Mestrando em Direito Tributário pelo IBET- Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Especialista
em Direito Tributário pelo IBET- Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Especialista em Gestão
Pública - Universidade Federal de São Carlos. Especialista em Direito Público, Direito da Segurida-
de Social, Direito Empresarial, Direito do Consumidor, Ciências Criminais, Prevenção e Combate à
Corrupção. Auditor Fiscal da Receita Estadual de São Paulo. Juiz titular do Tribunal de Impostos e
Taxas/SP.

e-mail: ramon.arnoni@bol.com

132
INTRODUÇÃO pressamente à União, a competência para ins-
tituírem contribuições para custeio de regime
A Reforma da Previdência Social consuma-
próprio de previdência social.
da com a edição da Emenda Constitucional nº
103/2019 alterou em todos os aspectos os direi- Esta Emenda Constitucional adotou a técnica
tos previdenciários dos segurados dos regimes
de constitucionalizar, levando para o texto per-
geral e próprios de previdência.
manente ou da própria emenda, aspectos da
Atuou aumentando as alíquotas de contribuição, Regra Matriz de Incidência Tributária. O modelo
dificultando o acesso aos benefícios com regras escolhido, diante das rígidas regras de alteração
mais rígidas de tempo de contribuição, idade constitucional (embora a Constituição vigente já
mínima e carência e diminuiu o valor dos benefí- tenha sido emendada em mais de 120 oportuni-
cios concedidos com regras mais severas sobre dades) torna dificultosa a revisão da alteração
período base de cálculo dos valores dos benefí- perpetrada pela reforma de 2019, seja pelo as-
cios, valores menores para benefícios de pensão pecto legislativo, submetido ao rito do art. 60 da
por morte ou incapacidade e regras de acumu-
Constituição Federal, seja pelo aspecto do Poder
lação de benefícios com redução significativa de
Judiciário, que demanda a obediência aos re-
valores.
quisitos das ações constitucionais próprias.
Dentre as mudanças perpetradas pela reforma
de 2019, chama atenção a que criou o regime Portanto, a despeito da existência de leis fe-
de progressividade de alíquotas sobre bases de derais (Leis nº 10.887/04, 9.717/98), a Emenda
cálculos para os regimes próprios de previdên- Constitucional nº 103 de 2019 conferiu densi-
cia social dos servidores públicos (Art. 149, § 1º da dade normativa suficiente para a cobrança das
CF/88). contribuições para custeio do regime próprio
Sob o argumento de atender à capacidade con- de previdência social dos servidores da União,
tributiva dos servidores públicos, alguns esta- até que lei venha a regulamentar aquelas alte-
dos, ao instituírem as alíquotas progressivas no rações, as quais, ressalte-se, estarão vinculadas
exercício de suas competências, escalonaram aos ditames constitucionalizados pela reforma.
suas alíquotas de forma diferente do que fez a
União. A Constituição Federal, no mesmo art. 149, § 1º
atribuiu também aos Estados, Distrito Federal
Neste ponto, considerando as decisões do Su- e Municípios a competência para instituição de
premo Tribunal Federal nas ADIs 3.854 e 6.257, leis próprias para cobrança das contribuições
que reconheceram o caráter nacional das car- para custeio do regime próprio de previdência
reiras da magistratura e da docência em uni- social de seus servidores.
versidades, a progressividade das alíquotas
ofendem importante princípio constitucional, da Os Estados passaram a editar suas legislações,
isonomia (Art. 150, II da CF/88), que veda expres- cujos debates, discussões e as oportunidades de
samente qualquer distinção tributária em razão apresentação de propostas foram demasiada-
de ocupação profissional ou função. mente prejudicados pelo contexto da Pandemia
da Covid-19, que eclodiu em 11 de março de 2020.
1. ESTRUTURA NORMATIVA
DAS CONTRIBUIÇÕES Nesse difícil contexto, os limites constitucionais
PREVIDENCIÁRIAS AOS REGIMES para cobrança das contribuições para custeio
PRÓPRIOS DE PREVIDÊNCIA do regime próprio de previdência social dos en-
tes ocupou pouco espaço no debate, pois o con-
A Constituição Federal de 1988 atribuiu aos Es- texto voltou a atenção de todo a população para
tados, Distrito Federal e Municípios e, após a aspectos da saúde, cujos serviços demandariam
Emenda Constitucional nº 103/2019, também ex- ainda mais recursos dos poderes públicos de to-

133
dos os entes, reforçando o caráter arrecadató- Tributária de um tributo, é, nas lições de Paulo
rio da contribuição, em detrimento de princípios de Barros Carvalho, o núcleo que o legislador
constitucionais tributários já consagrados. irá condicionar, o comportamento humano, que
será formado, invariavelmente, por um verbo,
Nessa linha, Paulo Ayres Barreto alerta para uma seguido de seu complemento; “é comportamen-
especificidade das contribuições, notadamen-
to de uma pessoa (de dar, fazer ou ser), que deflui
te as destinadas à seguridade social, qual seja,
de um processo de abstração da própria fórmu-
além de analisar a compatibilidade entre a regra
matriz de incidência das contribuições com as la hipotética.2
normas de competência e os limites constitu- No caso das contribuições sociais para custeio
cionais, é imperiosa a análise quanto à finalida-
dos regimes próprios de previdência social dos
de da instituição ou de seu aumento1.
entres federados, estas receberam tratamen-
Ou seja, a instituição das contribuições previ- to diferenciado pelo constituinte. O art. 149 da
denciárias ao regime próprio dos servidores, Constituição, ao contrário do que fez com ou-
nos termos do art. 149 da CF/88, pressupõe a tros tributos da espécie tributária impostos, não
efetiva “prestação de uma atividade” vinculada elencou as hipóteses materiais de incidência
à previdência entregue pelo ente tributante ao das contribuições sociais, de intervenção no do-
contribuinte, assim como o efetivo controle da mínio econômico e de interesse das categorias
destinação destes recursos àquela finalidade. profissionais ou econômicas, mas o fez detida-
Cumpre rememorar que além do conturbado mente quanto à competência para instituição de
contexto em que se inseriu todo o processo le- contribuições destinadas à seguridade social.
gislativo da Emenda Constitucional nº 103/19 e as
aprovações das leis estaduais e municipais em O art. 195 elencou as possíveis fontes de custeio
período de pandemia mundial, os cálculos que de forma taxativa e criou critérios específicos
fundamentaram a reforma da previdência social quanto à criação de novas fontes.3
dos regimes geral e próprios foram submetidos
2 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e
a sigilo de cem anos com amparo em exceção método. 7. ed. rev. São Paulo: Noeses, 2018. p. 482/484.
da Lei de Acesso à informação, o que prejudicou 3 Art. 195. A seguridade social será financiada por toda
e ainda prejudica a análise de atendimento aos a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei,
pressupostos desta emenda constitucional. mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes
A seguir, passa-se à análise da Regra Matriz de contribuições sociais.
Incidência Tributária das contribuições para II - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada
custeio do regime próprio de previdência. na forma da lei, incidentes sobre: (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 20, de 1998)
2. REGRA MATRIZ DE a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos
ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste
INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DAS serviço, mesmo sem vínculo empregatício; (Incluído pela
CONTRIBUIÇÕES PARA CUSTEIO Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
DOS REGIMES PRÓPRIOS DE b) a receita ou o faturamento; (Incluído pela Emenda
PREVIDÊNCIA SOCIAL Constitucional nº 20, de 1998)
c) o lucro; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
2.1 Critério material do antecedente na nor-
II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência
ma. social, podendo ser adotadas alíquotas progressivas de
acordo com o valor do salário de contribuição, não incidindo
Critério material da Regra Matriz de Incidência contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo
Regime Geral de Previdência Social; (Redação dada pela
1 BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: Regime Jurídico,
Emenda Constitucional nº 103, de 2019)
Destinação e Controle. 3.ed. rev. atual. São Paulo: Noeses,
2020. p. 150. III - sobre a receita de concursos de prognósticos.
IV - do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem

134
Das hipóteses elencadas pelo constituinte, inte- pelo constituinte,
ressa-nos para o presente estudo aquela previs-
ta no inciso II, qual seja, a contribuição do traba- o critério temporal, em obediência à impres-
lhador e dos demais segurados da previdência cindível identificação do átimo temporal em
social, dentre eles os servidores públicos. que se dará a ocorrência do fato descrito no
antecedente normativo, não poderá ser outro
Portanto, de acordo com a lição de Paulo de Bar- que não o momento do recebimento da remu-
ros Carvalho, o critériomaterial é “receber remu- neração pelo servidor.
neração pelo trabalho”.4
Não por outra razão, na quase totalidade dos
2.2 Critério espacial ou territorial do antece- casos de que temos conhecimento, as contri-
dente da norma buições previdenciárias ao RPPS são des-
contadas diretamente na folha de pagamento
O critério espacial da Regra Matriz de Incidência do servidor público, salvo em raras hipóteses
Tributária, nas precisas lições de Paulo de Bar- permitidas pela legislação administrativa de
ros Carvalho, “é o plexo de indicações, mesmo pessoal, de afastamentos sem a respectiva
tácitas e latentes, que cumprem o objetivo de remuneração em que os servidores podem
assinalar o lugar preciso em que a ação há de optar por continuarem a contribuir para o
acontecer.”5 RPPS.
Considerando a competência concorrente atri- 2.4 Critério quantitativo do consequente
buída à União, aos Estados, ao Distrito Fede- da norma: base de cálculo e alíquota
ral e aos Municípios, nos termos do art. 149, §
1º da CF/88, o critério espacial será o território Já no consequente da Regra Matriz de Incidên-
do ente federativo instituidor da contribuição e cia Tributária, passa-se a análise do critério
prevista na lei instituidora, obedecido, por ób- quantitativo, composto pela Base de Cálculo e
vio, o necessário vínculo jurídico administrativo pela Alíquota.
entre o servidor e o respectivo ente federativo,
ao passo que os servidores federais e estaduais, Chama atenção, mais uma vez, a opção do cons-
certamente exercerão suas atribuições em de- tituinte reformador em constitucionalizar esse
terminado município, bem como servidores mu- critério de forma bastante detalhada, ao contrá-
nicipais e estaduais poderão estar alocados em rio do que ocorre com outros tributos da espécie
municípios ou estados diferentes daqueles com impostos ou mesmo de outras contribuições, o
os quais mantenham vínculo jurídico, cabendo a que, como ressaltado anteriormente, dificulta
estes a retenção e recolhimento das contribui- eventual alteração pela via legislativa ou judicial
ções ao seu RPPS. destes parâmetros.

2.3 Critério temporal do antecedente da nor- Ficou evidente a intenção do governo da época
ma em dificultar a alteração de pontos da reforma
que prejudicaram o segurado, servidor público
O critério temporal, também de acordo com ou não, levando para o texto permanente ou da
Paulo de Barros Carvalho, “oferece elementos própria Emenda Constitucional estes pontos, ao
para saber, com exatidão, em que preciso ins- mesmo tempo em que se desconstitucionalizou,
tante ocorre o fato descrito.”6 Considerando o remetendo a leis ordinárias, temas que favore-
critério material “receber remuneração” eleito ciam ou que consolidavam direitos dos segura-
a lei a ele equiparar. (grifamos) dos, facilitando eventual alteração pela via legis-
4 Idem 2. p. 825 lativa ordinária.
5 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário:
6 Ibidem

135
É neste sentido o alerta de João Batista Lazza- Para os servidores ativos da União, a base de
ri e Carlos Alberto Pereira de Castro, para quem cálculo está prevista no na Lei nº 10.887/2004,
essa prática somada ao histórico de três im- art. 4º, inciso I e § 1º como sendo o vencimento
portantes alterações nos últimos 21 anos (E.Cs. do cargo acrescido das vantagens pecuniárias
20/1998, 41/2003 e 103/2019) enfraquece a noção permanentes estabelecidas em lei, os adicionais
de segurança jurídica que havia quanto às re- de caráter individual ou quaisquer outras vanta-
gras de aposentadoria e pensão anteriormente gens.
aplicadas aos servidores em Regimes Próprios,
o que gerará imprevisibilidade dos critérios para O mesmo dispositivo previu exclusões desta
aquisição dos direitos bem como do cálculo dos base, em rol exemplificativo, prevalecendo o cri-
proventos.7 tério não salarial, ou seja, o caráter indenizatório
das verbas excluídas.
Quanto à Base de Cálculo, a própria Constituição
Federal, no art. 40, § 18, na redação dada pela E.C. Por conseguinte, pode-se concluir que a base
41/2003, estabeleceu que a contribuição incidirá de cálculo das contribuições previdenciárias
sobre os proventos de aposentadorias e pensões ao RPPS dos servidores ativos da União será o
concedidas pelo regime de que trata este artigo vencimento do cargo acrescido das vantagens
que superem o limite máximo estabelecido para pecuniárias permanentes, excetuadas as verbas
os benefícios do regime geral de previdência so- indenizatórias previstas nas leis dos entes fede-
cial de que trata o art. 201, com percentual igual rativos instituidores.
ao estabelecido para os servidores titulares de
Estas disposições são aplicadas pela quase to-
cargos efetivos.
talidade dos estados e municípios, havendo va-
Por sua vez, a Reforma perpetrada pela riações quanto a verbas excluídas da incidência
E.C.103/2019 incluiu o dispositivo do art. 149, § desta contribuição.
1º-A que permite que a contribuição sobre os
Quanto ao critério quantitativo da alíquota, este
proventos de aposentadoria e pensões incida
sofreu sensíveis mudanças na reforma previ-
sobre o valor dos proventos de aposentadoria e
denciária de 2019.
de pensões que supere o salário-mínimo pre-
vendo ainda a criação de uma contribuição ex- Criou-se a progressividade das alíquotas das
traordinária.8 contribuições para custeio de regime próprio de
7 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. previdência social, cobradas dos servidores ati-
Manual de Direito Previdenciário. Rio de Janeiro: Forense, vos, dos aposentados e dos pensionistas com a
2020. p. 899.
8 Art. 149 ... § 1º-A. Quando houver déficit atuarial, a alteração da redação do art. 149, § 1º da C.F./88.
contribuição ordinária dos aposentados e pensionistas poderá
incidir sobre o valor dos proventos de aposentadoria e de A progressividade destas alíquotas compõe
pensões que supere o salário-mínimo. (Incluído pela Emenda tema central do presente trabalho, motivo pelo
Constitucional nº 103, de 2019)
qual merecerá capítulo específico adiante.
§ 1º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
instituirão, por meio de lei, contribuições para custeio de regime Para o momento, cumpre mencionar que a
próprio de previdência social, cobradas dos servidores ativos,
dos aposentados e dos pensionistas, que poderão ter alíquotas União ficou vinculada pelas alíquotas trazidas
progressivas de acordo com o valor da base de contribuição ou pelo art. 11 da E.C. 103/2019, até que entrasse em
dos proventos de aposentadoria e de pensões. (Redação dada vigor lei federal que instituísse as alíquotas, par-
pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019) (grifamos)
tindo de uma alíquota base de 14% com reduções
§ 1º-B. Demonstrada a insuficiência da medida prevista no §
1º-A para equacionar o déficit atuarial, é facultada a instituição
e acréscimos por faixa de remuneração.9
de contribuição extraordinária, no âmbito da União, dos 9 Art. 11. Até que entre em vigor lei que altere a alíquota da
servidores públicos ativos, dos aposentados e dos pensionistas. contribuição previdenciária de que tratam os arts. 4º, 5º e 6º da
(Incluído pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019) (grifamos) Lei nº 10.887, de 18 de junho de 2004, esta será de 14 (quatorze

136
A emenda previu que as bases sobre as quais base imponível.
incidem as alíquotas serão reajustadas com o
mesmo índice em que se der o reajuste dos be- Ocorre que com a edição da E.C. 103/2019, muitos
nefícios do Regime Geral de Previdência Social estados estabeleceram, com amparo no permis-
(art. 11, § 3º). sivo constitucional, além da progressividade das
alíquotas, também alíquotas superiores, ainda
A previsão constitucional anterior à reforma (art. que adotassem menos faixas de incidência. É o
149, § 1º com a redação da E.C. 41/2003) continha caso do Estado de São Paulo, que adotou 4 faixas
a vedação de que as contribuições dos demais de incidência, mas com alíquotas maiores, cul-
entes não seria inferior à da contribuição dos minando em alíquota média efetiva superior à
servidores titulares de cargos efetivos da União. da União com consequente cobrança maior em
valores absolutos, quando comparados com os
Esta vedação não constou expressamente da cobrados pela União.
nova redação dada pela E.C. 103/2019, mas cons-
ta art. 9º, § 4º da própria E.C. 103/2019, que criou 2.5 Critério pessoal do consequente da nor-
uma exceção à regra antes não prevista.10 ma: sujeitos ativo e passivo

Alguns estados e municípios já adotavam alíquo- Sujeito ativo da obrigação, nos termos do Código
tas superiores às da União, porém, sem a previ- Tributário Nacional (art. 119), é a pessoa jurídica
são da progressividade destas alíquotas sobre a de direito público, titular da competência para
exigir o seu cumprimento.
por cento).
§ 1º A alíquota prevista no caput será reduzida ou majorada, A competência para instituição das contribui-
considerado o valor da base de contribuição ou do benefício ções para custeio de regime próprio de previ-
recebido, de acordo com os seguintes parâmetros:
dência social, cobradas dos servidores ativos,
- até 1 (um) salário-mínimo, redução de seis inteiros e cinco
dos aposentados e dos pensionistas foi atribuída
décimos pontos percentuais;
à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
- acima de 1 (um) salário-mínimo até R$ 2.000,00 (dois mil
reais), redução de cinco pontos percentuais; Municípios, conforme art. 149, § 1º da Constitui-
ção Federal.11
- de R$ 2.000,01 (dois mil reais e um centavo) até R$ 3.000,00
(três mil reais), redução de dois pontos percentuais;
Já o sujeito passivo contribuinte, nos termos
- de R$ 3.000,01 (três mil reais e um centavo) até R$ 5.839,45
(cinco mil, oitocentos e trinta e nove reais e quarenta e cinco
do art. 121, parágrafo único, inciso I do CTN, tido
centavos), sem redução ou acréscimo; como aquele que tenha relação pessoal e di-
- de R$ 5.839,46 (cinco mil, oitocentos e trinta e nove reais e reta com a situação que constitua o respectivo
quarenta e seis centavos) até R$ 10.000,00 (dez mil reais), fato gerador, não pode deixar de ser aquele que
acréscimo de meio ponto percentual; externaliza o signo presuntivo de riqueza elei-
- de R$ 10.000,01 (dez mil reais e um centavo) até R$ 20.000,00 to pelo constituinte de 1988, no caso, o servidor
(vinte mil reais), acréscimo de dois inteiros e cinco décimos
pontos percentuais;
público vinculado ao ente federativo que possua
regime próprio de previdência social e que per-
- de R$ 20.000,01 (vinte mil reais e um centavo) até R$ 39.000,00
(trinta e nove mil reais), acréscimo de cinco pontos percentuais; ceba remuneração deste ente federado.
e
- acima de R$ 39.000,00 (trinta e nove mil reais), acréscimo de
oito pontos percentuais. (grifamos)
10 Art. 9o ... § 4o Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios 11 Art. 149. § 1º A União, os Estados, o Distrito Federal e os
não poderão estabelecer alíquota inferior à da contribuição dos Municípios instituirão, por meio de lei, contribuições para
servidores da União, exceto se demonstrado que o respectivo custeio de regime próprio de previdência social, cobradas dos
regime próprio de previdência social não possui déficit atuarial servidores ativos, dos aposentados e dos pensionistas, que
a ser equacionado, hipótese em que a alíquota não poderá ser poderão ter alíquotas progressivas de acordo com o valor da
inferior às alíquotas aplicáveis ao Regime Geral de Previdência base de contribuição ou dos proventos de aposentadoria e de
Social.(grifamos) pensões.

137
3. CONTRIBUIÇÕES A doutrina tributária diverge sobre a incidên-
PREVIDENCIÁRIAS AO REGIME cia do princípio da capacidade contributiva às
PRÓPRIO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL contribuições, ao passo que a previsão cons-
E CAPACIDADE CONTRIBUTIVA titucional menciona expressamente apenas a
espécie tributária “impostos”:14
Superada a análise da Regra Matriz de Incidên-
A divergência não decorre apenas da omissão
cia Tributária das contribuições para custeio de
constitucional, mas também de uma ineren-
regime próprio de previdência social dos entes
te vantagem ou benefício como característica
federativos, passamos a estudar a aplicação dos
das contribuições, o que atrai para esta espé-
princípios da capacidade contributiva a estas
cie tributária a referibilidade entre este even-
contribuições, tema que divide a doutrina, nota-
tual benefício ou vantagem e a contribuição,
damente em razão do caráter contraprestacio-
afastando ou mitigando a aplicação da capa-
nal ou vinculado, e, no caso das contribuições
cidade contributiva. Ou seja, o eventual bene-
previdenciárias, também do explícito princípio
fício auferido seria o parâmetro primeiro para
da solidariedade entre os segurados.
a exata medida da contribuição e não a capa-
O princípio da capacidade contribuitiva está cidade contributiva sob seu aspecto subjetivo.
previsto no art. 145, § 1º da CF/88, de onde par-
É neste sentido a lição de Paulo Ayres Barre-
tem os doutrinadores para conceituá-lo.
to, que citando a doutrina de Hamilton Dias
Regina Helena Costa o conceitua como “aptidão, de Souza e Wagner Balera, enxerga a eventu-
da pessoa colocada na posição de destinatário al vantagem ou benefício como característica
legal tributário, para suportar a carga tributária, primeira das contribuições.15
sem o perecimento da riqueza lastreadora da
No caso das contribuições da seguridade so-
tributação.”12
cial, os benefícios ao contribuinte são aqueles
Paulo de Barros Carvalho, por sua vez, aponta benefícios previdenciários previstos na pró-
para os dois momentos distintos em que incide pria Constituição, quais sejam, as espécies de
a capacidade contributiva: um pré-jurídico, que aposentadorias, as pensões, os auxílios e os
se dirige à autoridade competente para institui- benefícios por incapacidade.
ção do tributo, quando esta deve eleger como
Nada obstante, quanto às contribuições para
critérios materiais fatos que ostentem signos
custeio de regime próprio de previdência so-
presuntivos de riqueza (capacidade contributiva
cial, há princípio específico que estabelece a
absoluta ou objetiva); outro momento, quando
equidade entre na forma de participação no
da aplicação do princípio se chegue “à repar-
custeio (art. 40, da CF/88).16
tição da percussão tributária, de tal modo que
os participantes do acontecimento contribuam 14 Art. 145...§ 1º Sempre que possível, os impostos terão
de acordo com o tamanho econômico do even- caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade
econômica do contribuinte, facultado à administração
to”, chamada por Paulo de Barros Carvalho como
tributária, especialmente para conferir efetividade a esses
capacidade contributiva em acepção relativa ou objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos
subjetiva, guardando esta última, íntima relação termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades
econômicas do contribuinte. (grifamos)
com o princípio da igualdade (art. 5º, caput e art.
15 BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: Regime Jurídico,
150, II da CF/88).13 Destinação e Controle. 3.ed. rev. atual. São Paulo: Noeses,
2020. p. 117
16 Art. 40. O regime próprio de previdência social dos
12 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade servidores titulares de cargos efetivos terá caráter
Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 101. contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo
13 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 31. ente federativo, de servidores ativos, de aposentados e de
ed. São Paulo: Noeses, 2021. p. 132. pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio

138
Insta pontuar que é este caráter solidário, que Marco Aurélio Greco, citado por Paulo Ayres Bar-
passou a constar expressamente do art. 40, para reto, por sua vez, entende que nas contribuições
os regimes próprios, somado aos alegados dé- há um fundamento solidarístico do grupo social
ficits dos Regimes Próprios de Previdência dos ao qual está relacionada a finalidade constitu-
Servidores Públicos, é fundamento recorrente cionalmente qualificada, não se aplicando o
das propostas de reformas que visam a preju- princípio da capacidade contributiva, exceto nas
dicar os direitos previdenciários dos segurados, hipóteses em que a própria Constituição assim
notadamente a reforma de 2019. previsse.19

Bruno Sá Freire Martins, conceitua o princípio No mesmo sentido é a lição de Ricardo Lobo
da solidariedade dos regimes próprios, como a Torres, para quem as contribuições se subordi-
nam ao princípio do benefício do grupo, não se
“transferência de meios de uma fração para ou-
aplicando os princípios decorrente da ideia de
tra, dentro de um conjunto de pessoas situadas
justiça.20
com recursos nivelados ou não”.17
Paulo Ayres Barreto, arremata seu posiciona-
Há razão na adoção do princípio, ao passo que
mento, alinhado ao de Regina Helena Costa, para
somente por meio da solidariedade de todos os
quem as contribuições, dentre elas as previden-
contribuintes participantes do regime é que se
ciárias, não se submetem, necessariamente ao
conseguirá financiar os chamados benefícios
princípio da capacidade contributiva, prevale-
de risco, quais sejam, benefício por incapaci-
cendo, nestas, critérios que buscam partilhar
dade permanente, benefício por incapacidade
temporária e pensão por morte, que não exigem os fundos necessários ao custeio da atividade
longo período de contribuição condizente com o estatal, admitindo que, nas hipóteses em que a
seu respectivo custeio. materialidade da contribuição seja típica de im-
posto, a divisão do encargo pode ser feita a par-
Foi o princípio da solidariedade que fundamen- tir de escolha de base de cálculo que atenda à
tou decisão do STF sobre ampliação da base de capacidade contributiva e a partilha necessária
cálculo das contribuições aqui tratadas para dé- ao serviço prestado.21
cimo terceiro salário, terço constitucional de fé-
rias, horas extras e outros pagamentos de cará- No presente trabalho, nos filiamos ao posicio-
ter transitório, julgado em RE 593.068, ministro namento de Regina Helena Costa e Paulo Ayres
relator Joaquim Barbosa. Barreto e condizente com este posicionamento,
nota-se que a materialidade das contribuições
Resta saber se solidariedade pretendida é apta
para custeio de regime próprio de previdência
a afastar a aplicação do princípio da capacida-
de contributiva às contribuições para custeio de social, incidente sobre as remunerações dos
regime próprio de previdência social. servidores, permite a aplicação do princípio da
capacidade contributiva a estas contribuições,
Regina Helena Costa defende que o princípio notadamente sob o aspecto objetivo ou pré-le-
se aplica às contribuições sociais, dentre elas gislativo, sem prejuízo da análise sob o enfoque
as previdenciárias, quando a materialidade de subjetivo.
suas hipóteses de incidência assumirem a fei-
ção daqueles tributos.18
financeiro e atuarial. (grifamos) 17 MARTINS, Bruno Sá Freire.
Direito constitucional previdenciário do servidor público. 2.ed.
São Paulo: LTR, 2014. p. 48. 19 BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: Regime Jurídico,
17 MARTINS, Bruno Sá Freire. Direito constitucional Destinação e Controle. 3.ed. rev. atual. São Paulo: Noeses,
previdenciário do servidor público. 2.ed. São Paulo: LTR, 2014. 2020. p. 136.
p. 48. 20 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e
18 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Tributário. 12. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 420.
Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 102. 21 Ibidem 19

139
4. PROGRESSIVIDADE E de São Paulo, com menos faixas de alíquotas,
CAPACIDADE CONTRIBUTIVA porém, incidentes sobre bases maiores.

Ocorre que a tentativa de estabelecimento de


A conclusão a que chegamos no capítulo ante-
alíquotas progressivas para as contribuições
rior, atrai para as contribuições todo o regra-
para custeio dos regimes de previdência dos
mento e os instrumentos para aplicação da ca-
servidores não é novidade da E.C. 103/2019. As
pacidade contributiva a estes tributos.
tentativas anteriores foram levadas ao STF, que
Dentre estes instrumentos, a tributação pro- reconheceu a inconstitucionalidade da progres-
gressiva é entendida por alguns doutrinadores sividade destas alíquotas progressivas por ofen-
como como a que melhor obedece ao princípio sa ao princípio da vedação à utilização de qual-
da capacidade contributiva, justamente porque quer tributo com efeito de confisco (Art. 150,IV
visa igualar o sacrifício dos contribuintes obten- da C.F/88).25
do a equidade vertical.22
25 RE 414.915, rel. Min. Ellen Gracie: “ I. O Plenário deste
Supremo Tribunal, no julgamento da ADI 2.010-MC, rel. Min.
Regina Helena Costa aponta que às alíquotas Celso de Mello, por maioria no ponto em questão, consignou
deve-se atribuir a progressividade, que melhor que a instituição de alíquotas progressivas para a contribuição
atende à capacidade contributiva, ao passo que previdenciária dos servidores públicos ofende o princípio
da vedação à utilização de qualquer tributo com efeito de
desiguala sujeitos que se encontram em situ- confisco (art. 150, IV, da Constituição). No caso, estava em jogo
ações distintas, prestigiando a igualdade ma- a norma prevista no art. 20, parágrafo único, da Lei 9.783/99,
terial, redistribuindo a riqueza, apontando, em que acresceu à alíquota de contribuição excepcional de 9% ou
de 14%, por faixa de remuneração dos funcionários públicos
conclusão, que a capacidade contributiva é li- federais.
mite da progressividade das alíquotas, visando
2. Tal entendimento estende-se aos Estados e Municípios,
à não- confiscatoriedade do tributo.23 conforme decidido na ADI 2.188-1VfC, rel. Min. Néri da Silveira,
Plenário, unânime, DJ de e na ADI 2.158-MC, rel. Min.
É neste instrumental que se baseou o legislador Sepúlveda Pertence, Plenário, unânime, DJ de 10.09.2000,
constituinte reformador quando estabeleceu a entre outros julgados. por encontrar-se o acórdão recorrido
progressividade das contribuições dos servido- em conformidade com a jurisprudência desta Corte, nego
seguimento aos recursos (art. 557, caput. do CPC). “
res públicos, expressamente, no art. 149, § 1º na
redação dada pela E.C. 103/2019. 24 AG. REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 346.197, relator, min.
Dias Toffoli: Agravo regimental no recurso extraordinário.
Previdenciário. Servidor público. Contribuição previdenciária.
Na União, as alíquotas progressivas foram esta- Alíquota progressiva. Impossibilidade. Precedentes. 1. Esta
belecidas de início pela E.C. 103/2019, com sete Corte já decidiu que a instituição de alíquotas progressivas
faixas de alíquotas, entre 7,5% e 22%. para a contribuição previdenciária dos servidores públicos
ofende o princípio da vedação à utilização de qualquer tributo
com efeito de confisco (art. 150, inciso IV, da Constituição
Outros estados, com amparo no permissivo Federal).
constitucional, estabeleceram suas contribui-
ADI nº 2.010/DF–MC, relator o Ministro Celso de Mello:
ções progressivas, por vezes, como no Estado ‘CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL - SERVIDORES EM
ATIVIDADE - ESTRUTURA PROGRESSIVA DAS ALÍQUOTAS:
22 CATARINO, João Ricardo. Redistribuição Tributária- Estado
A PROGRESSIVIDADE EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA SUPÕE
Social e Escolha Individual. Lisboa: Almedina, 2008. p. 395.
EXPRESSA AUTORIZAÇÃO CONSTITUCIONAL. RELEVO
23 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva.
JURÍDICO DA TESE. - Relevo jurídico da tese segundo
São Paulo: Malheiros, 1993. p. 103.
24 Art. 149... § 1º A União, os Estados, o Distrito Federal e os a qual o legislador comum, fora das hipóteses taxativamente
Municípios instituirão, por meio de lei, contribuições para indicadas no texto da Carta Política, não pode valer- se da
custeio de regime próprio de previdência social, cobradas dos progressividade na definição das alíquotas pertinentes à
servidores ativos, dos aposentados e dos pensionistas, que contribuição de seguridade social devida por servidores
poderão ter alíquotas progressivas de acordo com o valor da públicos em atividade. Tratando-se de matéria sujeita a estrita
base de contribuição ou dos proventos de aposentadoria e de previsão constitucional - CF, art. 153,
pensões. (grifamos)
§ 2º, I; art. 153, § 4º; art. 156, § 1º; art. 182, § 4º, II; art. 195, § 9º
(contribuição social devida pelo empregador)

140
Observa-se das decisões que analisaram a pro- de um princípio mais geral que é da igualdade.27
gressividade das alíquotas de contribuição aos
Celso Antonio Bandeira de Mello, em sua célebre
regimes próprios se fundaram em duas premis-
obra sobre o conteúdo jurídico do princípio da
sas: a) a inexistência de norma constitucional
igualdade, estabelece as hipóteses em que pos-
autorizadora da progressividade (ADI nº 2.010);
síveis as discriminações, cujas conclusões são
b) ofensa ao princípio do não confisco.
plenamente aplicáveis à igualdade tributária.
Ao que parece, a instituição de progressividade
Para o autor “as discriminações são admissí-
das alíquotas das contribuições previdenciária
veis quando se verifique uma correlação lógica
dos servidores públicos por meio de Emenda
entre o fator de discrímen e a desequiparação
Constitucional nº 103/2019 superou o primeiro
procedida e que esta seja conforme os interes-
óbice.
ses prestigiados pela Constituição” e estabelece
Quanto ao não confisco, embora não seja o en- 4 critérios:
foque do presente trabalho, podemos concluir
a) a discriminação não pode atingir um só indi-
que se à época do julgamento das ações no
víduo; b) o fator de diferenciação deve consistir
STF a alíquota de 14% foi considerada ofensiva
num traço diferencial das pessoas; c) deve haver
ao princípio, é possível considerar as atuais alí-
nexo lógico entre o fator de discrímen e a dis-
quotas de 22% igualmente ofensivas ao princí-
criminação legal; d) o fator de discrímen deve
pio, considerando ainda a carga total somada
atender aos valores constitucionalmente prote-
ao imposto de renda incidente também sobre
gidos.28
os vencimentos dos servidores.
Ressaltamos a parte final do inciso II do art. 150,
5. ISONOMIA E CAPACIDADE que proíbe qualquer distinção em razão de ocu-
TRIBUTÁRIA pação profissional ou função por eles exercida
na instituição de tributos pela União, Estados,
Ainda no campo das premissas doutrinárias e Distrito Federal e Municípios.
jurisprudenciais, passamos à análise do prin-
Nesse ponto, questiona-se: A discriminação tri-
cípio da isonomia tributária previsto no art. 150,
butária pelas alíquotas progressivas diferentes
inciso II da Constituição Federal, igualmente
entre os entes federativos (medida de capacida-
aplicável às contribuições e fundamento da ca-
de contributiva) atende ao princípio da igualda-
pacidade contributiva anteriormente analisa-
de?
da.26
Para responder a esta questão, cabe estabe-
Regina Helena Costa advoga que a capacidade
lecer os parâmetros de comparação entre os
contributiva é um subprincípio, uma derivação
indivíduos, o que faremos no próximo capítulo
– inexiste espaço de liberdade decisória para o Congresso analisando precedentes do Supremo Tribunal
Nacional, em tema de progressividade tributária, instituir
alíquotas progressivas em situações não autorizadas pelo
Federal.
texto da Constituição. Inaplicabilidade, aos servidores estatais,
da norma inscrita no art. 195, § 9º, da Constituição, introduzida
pela EC nº 20/98.
26 Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao
contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal
e aos Municípios: ...II - instituir tratamento desigual entre
contribuintes que se encontrem em situação equivalente,
proibida qualquer distinção em razão de ocupação 27 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade
profissional ou função por eles exercida, independentemente Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 39.
da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos; 28 MELLO, Celso Antonio Bandeira. O conteúdo jurídico do
(grifamos) princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 37.

141
6. CARREIRAS DE ESTADO ração salarial.30
DE CARÁTER NACIONAL
E O PRINCÍPIO DA É digno de nota o fato de que embora o STF te-
IGUALDADE TRIBUTÁRIA nha se pronunciado apenas quanto às carrei-
ras da magistratura de da docência, há outras
O Supremo Tribunal Federal foi chamado a pro- carreiras do serviço público organizadas em
nunciar-se em pelo menos duas oportunidades caráter nacional, dentre as quais pode-se citar
em que carreiras de servidores estaduais bus- o Ministério Público (Art. 127 da C.F./88; Lei nº
caram equiparação salarial com servidores que 8.625/93) e Administração Fazendária (Art. 37,
exerciam as mesmas funções no âmbito federal,
XVIII; Art. 237, Art. 146, IV da C.F./88).
cujo teto remuneratório constitucionalmente
previsto era maior. Pois bem, diante do reconhecimento pelo Su-
Foi o caso da ADI nº 3.854, relator min. Gilmar premo Tribunal Federal da equiparação entre as
Mendes, proposta pela Associação Dos Magis- carreiras da magistratura estadual e federal e da
trados Brasileiros – AMB. Nesta ADI nº 3.854, o docência do ensino superior estadual e federal,
STF decidiu que a instituição de subteto remu- para fins remuneratórios (art. 37, XI), questiona-
neratório para magistratura estadual inferior ao -se se para fins tributários (Art. 150, II), especifi-
da magistratura federal ofendia a Constituição camente quanto às contribuições para custeio
diante do caráter nacional da estrutura judiciá-
dos regimes de previdência, caberia alguma
ria brasileira.29
discriminação apta a justificar alíquotas pro-
Mais recentemente, na ADI nº 6.257, ministro gressivas que representem alíquotas efetivas
relator Gilmar Mendes, o Partido Social Demo- diferentes entre a União e os Estados?
crático – PSD, pugnou pela equiparação salarial
entre professores universitários estaduais e fe- Antes mesmo do reconhecimento da equipa-
derais ao passo que, sob os mesmos fundamen- ração salarial para as carreiras da magistratu-
tos da ADI nº 3.854, estas carreiras são organi- ra e da docência do ensino superior, o próprio
zadas em caráter nacional. Supremo Tribunal Federal, manifestou-se sobre
Em julgamento de medida cautelar, o minis- a inconstitucionalidade da progressividade das
tro Dias Toffoli, que substituía o ministro Gilmar
Mendes naquela oportunidade, deferiu medida 30 Partindo do pressuposto de que a Carta da República
concebeu um projeto de política nacional de educação,
cautelar para conceder a questionada equipa- não vislumbro razão para compreender como adequada
29 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. 2. SUBTETO a existência de uma diferenciação remuneratória entre
REMUNERATÓRIO PARA A MAGISTRATURA ESTADUAL. 3. docentes e pesquisadores que exercem as mesmas funções
ARTIGO 37, XI, DA CF. ARTIGO 2º DA RESOLUÇÃO 13 E ARTIGO 1º, em instituições de ensino superior de entidades federativas
PARÁGRAFO ÚNICO, DA RESOLUÇÃO 14, AMBAS DO CONSELHO distintas....
NACIONAL DE JUSTIÇA. 4. INSTITUIÇÃO DE SUBTETO Deve-se interpretar o art. 37, XI, da Constituição Federal de 1988
REMUNERATÓRIO PARA MAGISTRATURA ESTADUAL INFERIOR a partir da totalidade dos comandos constitucionais, não sendo
AO DA MAGISTRATURA FEDERAL. IMPOSSIBILIDADE. CARÁTER possível conferir tratamento discriminatório sem observância
NACIONAL DA ESTRUTURA JUDICIÁRIA BRASILEIRA. ARTIGO do princípio da igualdade.
93, V, DA CF. 5. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA PELO PLENÁRIO.
6. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE, CONFIRMANDO OS TERMOS Ante o quadro revelado, defiro a medida cautelar pleiteada,
DA MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA, PARA DAR interpretação ad referendum do Plenário, para dar interpretação conforme
conforme à Constituição ao artigo 37, XI (com redação dada ao inciso XI do art. 37, da Constituição Federal, no tópico em
pela EC 41/2003) e § 12 (com redação dada pela EC 47/2005), da que a norma estabelece subteto, para suspender qualquer
Constituição Federal, e DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE interpretação e aplicação do subteto aos professores e
do artigo 2º da Resolução13/2006 e artigo 1º, parágrafo único, pesquisadores das universidades estaduais, prevalecendo,
da Resolução 14, ambas do Conselho Nacional de Justiça. assim, como teto único das universidades no país, os subsídios
(grifamos) dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

142
Tabela Comparativa de Contribuições Previdenciárias Entre Estado de São Paulo e União - Teto Remune-
ratório do STF (R$ 41.650,92)

Base de Cálculo Aliquota - Estadual Contrib. Estadua l(R$) Alíquota Federal Contrib. Federal (R$)

R$ 1.302,00 (Sm) 11% 143,22 7,5% 97,65

R$ 1.302,01 12% 290,46 9% A 12% 114,23 + 138,15 = 252,38


Até R$ 3.722,56
R$ 3.722,57 14% 529,88 12%, 14% 16,12 + 511,07 = 527,19
Até R$ 7.507,49

Acima De R$ 7.507,49 16% 5.462,94 14,5%; 775,61 + 2.121,32 + 302,22 =


16,5%; 19% 3.199,15
22% Não Aplicável

Total R$ 6.426,50 R$ 4.076,37

bases de cálculo, instituída pela E.C. 41/2003 Observa-se que os fundamentos constitucio-
em sede de duas ações diretas de inconstitu- nais para declaração da inconstitucionalidade
cionalidade, (ADI 3.105/DF e ADI 3.188/BA), e que daquela progressividade foram os princípios da
diferenciava as contribuições dos servidores capacidade contributiva arts. 145, §1º, e isono-
mia tributária 150, II.
ativos e inativos.31
31 ADI 3.105/DF. Min. Relator Cezar Peluso: Como dito anteriormente, alguns entes federa-
Inconstitucionalidade. Ação direta. Emenda Constitucional tivos, no exercício de suas competências, ins-
(EC no 41/2003, art. 40, § único, I e II). Servidor público.
Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões.
tituíram alíquotas progressivas diferentes das
Sujeição à incidência de contribuição previdenciária. previstas na E.C. 103/2019 para a União. Foi o
Bases de cálculo diferenciadas. Arbitrariedade. Tratamento caso do Estado de São Paulo, cuja comparação
discriminatório entre servidores e pensionistas da União, de
um lado, e servidores e pensionistas dos Estados, do Distrito
com a União ficará mais clara através da tabela
Federal e dos Municípios, de outro. Ofensa ao princípio acima32 33.
constitucional da isonomia tributária, que é particularização
do princípio fundamental da igualdade. Ação julgada Observa-se sensível diferença nas contribui-
procedente para declarar inconstitucionais as expressões
ções dos dois entes em valores absolutos.
“cinquenta por cento do” e “sessenta por cento do” do art. 40,
§ único, I e II, da EC no 41/2003. Aplicação dos arts. 145, §1º
(capacidade contributiva), e 150, II (isonomia tributária), cc. art. Argumentar-se-á que esta discriminação é
5º, caput e § 1º, e 60, § 4º, IV, da CF, com restabelecimento do possível em razão da diversidade de destino das
caráter geral da regra do art. 40, § 18. (grifamos) contribuições, para o RPPS da União ou para o
ADI 3.188/BA, ministro relator Carlos Ayres Brito RPPS dos estados, sendo incomunicáveis.
A lei estadual sob censura encontra o seu fundamento de
seguridade social do Estado recai sobre os titulares de cargos
validade na Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro
provimento efetivo da Administração Direta, Autárquica da
de 2003, que autorizou a cobrança da contribuição
os Fundacional, tanto quanto sobre as pensões mortis causa
previdenciária sobre os proventos de aposentadoria e os
e proventos da aposentadoria que detenham o mesmo cará
valores das pensões post mortem. E o fato é que a validade
ter estatutários; b) reconhecer a inconstitucionalidade da
constitucional da mencionada exação foi reconhecida por
expressão cinquenta por cento do’ contida no inciso I do § 2º do
esta Casa de Justiça no julgamento das ADIS 3.105 e 3.128,
artigo 50 da Lei nº 7.249/98, do Estado da Bahia, com a redação
Relator p/ o Acórdão Min. Cezar Peluso.
que lhe foi dada pela Lei nº9.003, de 30 de _janeiro de 2004.
Ação direta julgada parcialmente procedente para o fim de: a) (grifamos)
imprimir “interpretação conforme a Constituição” ao inciso I 32 Fonte: https://sindireceita.org.br/noticias/sindicato/.
do art. 32 da Lei baiana n 27.249/98, com a redação que lhe foi 33 Fonte:https://portal.fazenda.sp.gov.br/servicos/folha/
dada pela Lei n Q 9.003/04, em ordem a assentar que o custeio Paginas/Contribuicao_Previdenciaria_Servidores_Ativos.aspx

143
Porém, a argumentação cai por terra, pois a Considerando que alguns estados instituíram
própria E.C. 103/2019, entendeu por limitar os alíquotas progressivas das contribuições previ-
valores dos benefícios dos servidores quando denciárias de seus servidores para custeio dos
perceberem acumuladamente benefícios de respectivos regimes próprios que superam em
dois ou mais regimes, demonstrando haver esta alíquota efetiva e em valores absolutos as alí-
comunicação entre estes regimes para fins de quotas previstas na E.C. 103/2019.
pagamento (Art. 24 da E.C. 103/2019).
Concluímos que é possível o estabelecimento,
Pois bem, apresentadas todas as premissas le- pela via constitucional da progressividade de
gislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, pas- alíquotas das contribuições sociais pelos esta-
samos à conclusão, respondendo a seguinte dos para custeio dos respectivos regimes pró-
questão: A discriminação tributária pelas alí- prios de previdência, desde que não superem
quotas progressivas diferentes entre os entes a alíquota efetiva estipulada pela E.C. 103/2019,
federativos (medida de capacidade contributi- nem, tampouco o montante das contribuições
va) atende ao princípio da igualdade? em valores absolutos, sob pena de ofensa direta
ao art. 150, inciso II, in fine e art. 145, § 1º, ambos
CONCLUSÃO da Constituição Federal

Considerando que o STF reconheceu expressa-


mente o caráter nacional e equiparou as fun-
ções da magistratura e docência federais e es-
taduais.

Considerando que a Emenda Constitucional nº


103/2019, que reformou profundamente os re-
gimes próprios de previdência dos servidores
públicos superou óbice constitucional reconhe-
cido pelo STF na ADI 2.010, ao constitucionalizar
a aplicação de alíquotas progressivas por faixas
salariais das contribuições para custeio dos re-
gimes próprios de previdência.

Considerando que a doutrina reconhece a apli-


cabilidade da capacidade contributiva às con-
tribuições sociais quando estas revistam ma-
terialidades de impostos, o que ocorre com as
contribuições previdenciárias dos servidores
públicos.

Considerando que a capacidade contributiva


é subprincípio do princípio da isonomia bem
como limite da própria progressividade que a
instrumentaliza.

Considerando que o princípio da isonomia tribu-


tária veda expressamente o discrímen tributário
em razão de ocupação profissional ou função
exercida pelos contribuintes.

144
BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: Regime Jurídico, Destinação e Controle. 3.ed. ver. atual.
São Paulo: Noeses, 2020.

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 7. ed. rev. São Paulo: Noe-
ses, 2018.

_ Curso de Direito Tributário. 31. ed. São Paulo: Noeses, 2021.

CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. Rio
de Janeiro: Forense, 2020.

CATARINO, João Ricardo. Redistribuição Tributária- Estado Social e Escolha Individual. Lisboa:
Almedina, 2008.

COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993.

MARTINS, Bruno Sá Freire. Direito constitucional previdenciário do servidor público. 2.ed. São
Paulo: LTR, 2014.

MELLO, Celso Antonio Bandeira. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2014.

TORRE, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 12. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2005.

n 145
15
OS REFLEXOS DA PANDEMIA COVID-19 NO DIREITO DE FAMILIA
O cenário vivenciado nos últimos tempos tem sido algo inesperado tendo em vista o surgimento da
pandemia Covid-19. Tal período necessitou de certas medidas inerentes ao convívio social, diver-
gentes daquelas positivadas no ordenamento jurídico.

Ficou visível novas medidas adotadas a fim de diminuir o contagio da doença, com escopo principal
o bem da coletividade e da família.

Desta forma, foi necessário mudanças que refletiu em várias áreas, inclusive o Direito de Família. A
família se reinventou em certas práticas nos tempos quarentenais.

Através desta obra, apresentará tese com a contribuição doutrinária, sendo referencia do encontro
do Direito com as novas questões refletidas
Palavras-chave
Pandemia - Família - Mudanças

Thais Fernanda da Silva Teodoro


Bacharel em Direito, Pós-Graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Instituição Toledo
de Ensino.

146
1. INTRODUÇÃO vulneráveis.

Com o surgimento da pandemia da Covid-19 as O direito de família é um ramo do direito civil pri-
pessoas vivenciaram um novo normal de forma vado, mas as normas basilares são de ordem pú-
inesperada. blica, pois união familiar é de interesse público:
proteger, alicerçar estruturar e preservar.
Várias práticas positivas no nosso ordenamento
jurídico que eram seguidas tiveram que ser mo- Outrossim, também se caracteriza o direito de
dificadas e adaptadas, causando reflexo inclusi- família é sua natureza personalíssima , tendo em
vamente no Direito de Família. Alterações foram vista exemplo um pai não poder transferir seu
realizadas nos aspectos como: guarda, pensão dever como pai, assim demandar o reconheci-
alimentícia e também houve mudanças na con- mento de filiação ou um filho ceder de pleitear
vivência familiar. alimentos.

Vale salientar que as medidas adotas visam a É fato que alguns doutrinadores acreditam que
disseminação do vírus e tem como objetivo a o Direito de família deve ser incluso no Direito
proteção da coletividade. Público. Também, outros defendem como um
direito social ou sui generis. Assim vejamos:
Após reflexão, a resposta foi detectada através
“o direito de família contemporâneo apre-
deste trabalho de curso.
senta-se mais privado do que nunca, pas-
sando de instituição que se revelava como
2. DA FAMÍLIA instrumento que atendia a interesses ex-
trínsecos, como a Igreja e o Estado, para
A Constituição familiar atualmente se funda- um grupo íntimo caracterizado por uma
menta pelo afeto, valendo-se de toda a comple- “concepção eudemonista, voltada para
xidade que unem as pessoas. seu interior em busca da reali­zação mú-
tua e pessoal. Na família atual, seus mem-
Vale salientar que conforme artigo 226 da Consti- bros são solidários, corresponsabilizando
tuição Federal a família é protegida e vista como uns pelos outros quando existe algum tipo
base de uma sociedade. de vulnerabilidade, e buscam a felicidade
através da formação da personalidade de
Anteriormente se entendia como família apenas cada um, que possui ampla liberdade para
constituída por pai, mãe e filhos, de forma tradi- construir-se segundo suas próprias con-
cional, contudo os anos se passaram e foi ama- cepções individuais, em um ambiente de
durecida a ideia de família sendo elas diversos igualdade e democrático entre os cônju-
tipos de agregados. ges ou companheiros.” (CARVALHO, 2020,
p.60).
Desta forma, entende-se que a família é com-
preendida pela união dos indivíduos por laços A família é parte do direito privado, que segue
afetivos ou de parentesco (consanguinidade). normas de ordem pública com ingerência do
Logo, os adultos são responsáveis pelas crian- Estado, afim de proteger os mais vulneráveis
ças e adolescentes. como: idosos, pessoas com deficiências, crian-
ças e adolescentes.
2.1 Natureza Jurídica do Direito de Família
2.2 Função Social da Família e seu Conceito
A família possui proteção do Estado, conforme Moderno
dispõe art. 226 da Constituição Federal, com
escopo principal: proteção dos membros mais O conceito histórico de família significava con-

147
junto de pessoas que moravam na mesma casa, cida como comunidade de afeto, bastando cada
que tinham o homem líder e esta família se cons- membro querer reconhecer o outro como ente
tituía através do casamento. familiar de fato e de forma reciproca.

No cristianismo até o século XIX, a família tinha Podendo ser como exemplo uma mãe, como
de tal modo respeitabilidade de forma patriarcal chefe de família, e outras formas de constituição
e hierarquizada. diversas, obtendo uma pluralidade familiar.

Após este período o Estado começou impor re- 3 DA GUARDA


gras contidas no Código Civil de 1916, conceitu-
ando a formação da família apenas através do A separação matrimonial (casamento) ou de uma
casamento. união estável, por opção, buscando a felicidade
afetiva dos integrantes da relação, vem deixando
Desta forma, anos depois, a Constituição Fede- de ser postergada em nome da prole . Fator co-
ral positivou sobre o principio da liberdade fami- mum às gerações que nos antecederam, sendo
liar e também o pluralismo das entidades, não por imposição social, ou pela indissolubilidade
contendo hierarquia, podendo ser constituída do matrimônio ter sido permitida apenas nos
com pluralidade, para aclarar conceito, vejamos anos 70, visavam o bem maior, inclusive, aos fi-
doutrina: lhos.
“[...] alargou o conceito de família, que não Em de decorrência da separação, os pais em re-
ocorre mais apenas no modelo jurídico do gra tentam procurar situação de respeito para
casamento, que se constitui previamente que os filhos não sofram com a separação do re-
pela celebração, ou na filiação biológica. lacionamento.
Também se constitui pela situação de fato,
consistente na convivência socioafetiva, A partir do momento da separação em regra se
no querer recíproco de seus membros nu- define com quem a criança vai morar, levando
cleares em ser família, de desenvolver um em consideração o melhor escolha para o tute-
projeto de vida em comum, independente-
lado e interesse da criança e ou adolescente.
mente de qualquer ato formal de constitui-
ção. A guarda pode ser designada a qualquer parente
da criança ou adolescente, ou a qualquer pes-
A família atual mantém sua importância
como célula mater da sociedade e tem es- soa, com um dos pressupostos ser o ambiente
pecial proteção do Estado (art. 226 da CF), familiar apropriado e que o guardião não apre-
entretanto, o elemento agregador deixa de sente qualquer incompatibilidade, conforme po-
ser exclusivamente o jurídico, assumindo sitivado nos arts. 28 e 29 da Lei nº 8.069/1990:
maior importância a comunhão de afetos.
Art. 28. A colocação em família substituta
A compreensão da família torna-se um
far-se-á mediante guarda, tutela ou ado-
fato cultural, em razão da construção da
ção, independentemente da situação ju-
afetividade na convivência, sem interes-
rídica da criança ou adolescente, nos ter-
ses materiais, envolta em um ambiente de
mos desta Lei.
solidariedade e responsabilidade, privile-
giando a realização pessoal e o desenvol- Art. 29. Não se deferirá colocação em fa-
vimento de cada membro que a integra. A mília substituta a pessoa que revele, por
família verdadeira é a afetiva, antes de ser qualquer modo, incompatibilidade com a
jurídica2” (CARVALHO, 2020, p.66) natureza da medida ou não ofereça am-
biente familiar adequado.
Em suma, a família moderna passa ser reconhe-

148
Vale salientar que alguns doutrinadores defen- substitua’’.
dem que no poder familiar, a guarda em questão,
presente no artigo 1.634, II do Código Civil, possui Esta modalidade de guarda ocorre quando é di-
objetivo de prestar assistência e proteção ao tu- ficultoso o convívio da criança ou adolescente
telado criança ou adolescente: com ambos os genitores. O juiz determina le-
vando em consideração a inviabilidade da guar-
“Douglas Phillips Freitas apresenta o se- da compartilhada, pois os pais não entram em
guinte conceito de guarda: O novo conceito determinado acordo inerente quem ficará res-
de Guarda consiste na condição de direito ponsável pela guarda.
de uma ou mais pessoas, por determina-
ção legal ou judicial em manter um menor Desta forma, é atribuída visando sempre melhor
de 18 (dezoito) anos sob sua dependência conveniência e bem estar do menor, ou seja, será
sociojurídica, devendo ser, de regra, com- atribuída à aquele que possui melhor aptidão em
partilhada quando houver ambos os pais, exercer segurança, afeto e outras características
mesmo que separados.” (CARVALHO, 2020, benéficas a criança ou adolescente.
p.1057)’’
3.2 Da Guarda Compartilhada
Assim verifica-se que a funcionalidade da guar-
da é a vigilância, proteção e cuidado, sendo de- A ruptura conjugal ou de união estável, ocorrem
ver dos pais cuidar proteger seus filhos, desta por várias questões além da questão financeira.
forma vejamos se seguir as distinções e concei-
tuações dos tipos de guarda, para aclarar as in- Desta forma, vale lembrar que além das dificul-
formações. dades de uma dissolução, as vezes ocorre o fruto
daquele relacionamento: filhos.
3.1 Da Guarda Unilateral
A guarda compartilhada positivada no artigo
Em princípio, se compreende por guarda unila- 1.583 e seguintes do Código Civil, é a solução
teral aquela que é atribuída para um dos genito- mais viável., pois possui como escopo principal
res ou para alguma pessoa que seja seu repre- convivência assegurada pela família (artigo 19 do
sentante legal. Estatuto da criança e do Adolescente).

A mesma se entende por ser exclusiva para ape- Eduardo Oliveira Leite comenta sobre a guarda
nas um dos genitores, levando em consideração compartilhada (2008, p.78):
o bem no menor ou tutelado, regulada no § 5º do
art. 1.583 do Código Civil e, especialmente, no O tempo de convívio com os filhos deve ser
dividido de forma equilibrada com a mãe e
art. 33, § 1º e caput, da Lei n. 8.069/1990 (Estatuto
com o pai, sempre tendo em vista as con-
da Criança e do Adolescente).
dições fáticas e os interesses dos filhos
Salientar-se que ocorre na maioria dos casos, [...].
quando o pai ou mãe abre mão da guarda, onde Destarte, a guarda compartilhada ocorre pela
se isenta de exercer seu papel no poder familiar. responsabilização conjunta dos genitores, tendo
Vejamos o que aclara Roberto Carlos Gonçalves: sido regra na maioria dos processos judiciais de
divórcio. Além disso, é necessários que os ge-
Compreende-se por guarda unilateral se- nitores regulamentem as visitas e também os
gundo dispõe o parágrafo 1º do art. 1583 alimentos.
do código Civil, com redação dada pela
Lei n.11.698, de junho de 2008, ‘’a atribuída Vale salientar que parte da Jurisprudência acre-
a um só dos genitores ou a alguém que o dita que a guarda compartilha possui alguns

149
pontos negativos. Pois, verificam que a mudan- nuir o contágio do vírus Covid-19: distanciamen-
ça no ambiente familiar pode desordenar ativi- to e isolamento social.
dades cotidianas do menor, causando abalo psi-
cológico e podendo surgir crises de ansiedade, Assim, a convivência no exercício da guarda
pelas mudanças no ambiente, assim vejamos compartilhada foi afetada, tendo em vista as im-
Jurisprudência: posições diante da pandemia.

FAMÍLIA – PEDIDO DE “GUARDA COMPAR- No Direito de Família várias questões foram re-
TILHADA” – ALTERN NCIA DE PERÍODOS solvidas a partir da jurisprudência. Pois, enten-
EXCLUSIVOS DE GUARDA ENTRE OS GE- de-se que o direito de guarda compartilhada
NITORES – VERDADEIRA “GUARDA ALTER- visa interesse da criança ou adolescente, sobre
NADA” – INCONVENIÊNCIA – PRINCÍPIO DO tudo, no efetivo comprometimento da saúde dos
MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA – INE- mesmos.
XISTÊNCIA DE CONVIVÊNCIA HARMONIO-
SA E AMISTOSA ENTRE OS GENITORES. – A O confinamento fez surgir uma nova forma de
guarda em que os pais alternam períodos parentalidade, de forma forçada, em alguns ca-
exclusivos de poder parental sobre o filho, sos a guarda foi alterada por períodos mais lon-
por tempo preestabelecido, mediante, in- gos como quinzenal ou mensal.
clusive, revezamento de lares, sem qual-
quer cooperação ou corresponsabilidade, Alguns casos, houve a postergação da visitação
consiste, em verdade, em “guarda alter- e no compartilhamento do período da guarda,
nada”, indesejável e inconveniente, à luz tendo em vista a atividade remunerada exercida
do Princípio do Melhor Interesse da Crian- pelo genitor- em presidente Prudente, o magis-
ça. – Ademais, a “guarda compartilhada” é trado Eduardo Gesse, pertencente a 2ª Vara de
incabível quando não houver uma relação Família e Sucessões decidiu que as visitas do pai
amistosa e harmoniosa entre os genito- fossem adiadas, pelo fato de ser piloto de avião-
res, sob pena de se inviabilizar o exercí-
assim poderia ver a filha após a realização da
cio compartilhado do poder parental, por
quarentena (quinze dias).
meio da condução conjunta da educação
e desenvolvimento da criança. (Processo Nesta circunstâncias, escreve José Fernando
nº 1.0145.07.378729-6/001. Relator: Des. Simão:
EDUARDO ANDRADE- Data do Julgamen-
to: 03/08/2010. São escolhas trágicas de um mundo pan-
dêmico e de confinamento. A COVID-19 é
A guarda compartilhada tem gerado discussão cruel, pois, em sua democracia tanatológi-
sobre o melhor ambiente ao tutelado, pelo danos ca, é transmitida, muitas vezes, por quem
que podem ser gerados, tendo em vista a que- mais amamos, por meio dos gestos de afe-
bra da continuidade das relações e vivencias ro- to e de carinho: beijos, abrações, toques.
tineiras.
Porém, com o interesse de proteger a saúde da
4. DA CONVIVÊNCIA IMPACTADA criança e do adolescente foram adotadas me-
PELA PANDEMIA COVID-19 didas temporárias, até o controle da pandemia,
como necessidade de suspensão da convivên-
Com o surgimento da pandemia covid-19 em cia familiar em relação a guarda.
âmbito global, tal fato influenciou no dia a dia
das pessoas. O impacto nas tarefas cotidianas 4.1 Do Exercício da Convivencia Familiar
afetou as relações familiares .
O convívio familiar se torna necessário para os
Certas práticas foram adotadas a fim de dimi- membros familiares, pois através do convívio

150
entre os entes familiares, cria-se uma maior I Jurisprudência do Tribunal de Justiça de São
afetividade, melhorando os laços de uma família Paulo, referente entendimento em questão de
constituída de diversas formas. guarda no período pandêmico.

Embora dois são os tipos de família, o primeiro 5 CONCLUSÃO


sendo os que são tios, avós, primos, amigos que
não moram no mesmo lar. Segundo os familia- A condição e urgência do período da pandemia,
res que convivem na mesma residência. ocasionou meios extrajudiciais de mediação,
para de forma célere e eficaz ocorra acordos
Esta vivencia passou a ser distinta com o perío- entre os pais ou representante legal inerente a
do da pandemia do Covid-19, pois foi necessário guarda do menor.
contribuir com as regras sanitárias a fim de evi-
tar contagio do vírus SARS-CoV-2. Evidenciando a segurança e saúde dos mesmos
caberá suspensão da visitação em alguns casos
Assim, reuniões familiares a fim de comemora- como supracitado. Ou a extensão do período de
ções ou até mesmo um simples almoço foram convivência familiar em período quinzenal ou
adiados. mensal.
Desta forma, o convívio familiar tomou rumo di- Vale salientar, a fim de promover contato seguro
ferente daquele de costume, surgindo alternati- dos menores com os seus genitores poderá uti-
va pelos meios virtuais, como: videochamadas, lizar-se das redes de computadores/celulares
áudio, reuniões virtuais e outros tipos. por meio de seus aplicativos de vídeo chama-
da, conectando-se para não perder os laços de
Em suma, no direito de família em relação a
convivência familiar.
guarda, certas práticas foram adotadas para fle-
xibilizar a convivência da criança e do adoles- Conclui-se que as práticas adaptadas de forma
centes com os pais, tais práticas pensadas para transitórias do regime de convivência familiar
segurança e melhor modo para tutelado. não podem criar obstáculos para o exercício da
guarda compartilhada.
4.2 Reflexos no mbito Familiar no Período
Pandêmico

O período pandêmico aflingiu a vivencia das


pessoas, de modo que foram ‘’forçadas’’ realizar
mudanças no meio familiar, a qual não estavam
preparadas.

Outrossim, adaptações foram criadas em rela-


ção a guarda do menor por exemplo que neste
período de pandemia, mudou atividades de ro-
tinas.

Algumas das alternativas vistas em decisões


dos tribunais foram a guarda de forma quinze-
nal ou até mesmo mensal, sempre com escopo
principal a saúde da criança e do adolescente.

A fim de comprovar e firmar pesquisa realiza-


da através de artigo cientifico, segue no ANEXO

151
MARX NETO, Edgard Audomar; BRITO, Laura Souza Lima e. A confirmação do testamento par-
ticular durante a crise da Covid-19. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mai-09/
direito-civil- atual-confirmacao-testamento-particular-crise-covid-19?imprimir=1>. Acesso em
23 jun. 2020.

CASA CIVIL. Constituição Federal. Disponibilizado em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/


constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 23/06/2021.

LEITE, Eduardo Oliveira. Comentários à Lei 13.058, de 22.12.2014 – Dita, Nova Lei da Guarda Com-
partilhada, p. 78.

LOBO, Paulo. Famílias. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2020, Edição Kindle, cap. XVI, item 16.1.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Sucessões. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 6: direito de família. São Paulo: Sarai-
va, 2017 (livro digital, e-pub).

MADALENO, Rolf. Direito de Família, 7a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017ª.

SIMÃO, José Fernando. Direito de família em tempos de pandemia: hora de escolhas trágicas.
Uma reflexão de 7 de abril de 2020. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/artigos/1405/Direito+-
de+fam%C3%ADlia+e+tempos+de+pandemia%3A+hora+de+escolhas+tr%C3%A1gicas.+ma+refle-
x%C3%A3o+de+7+de+abril+de+2020. Acesso em 29 de junho de 2020.

GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil, 11ª ed. Saraiva, 2021.

MADALENO, Rolf. Direito de Família, 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense,2017ª.

SANTOS, Francisco Cláudio de Almeida. A Arbitragem no Direito de Família. in.: Anais do IX Con-
gresso Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM. Belo Horizonte, 2014. p. 361-369.

TARTUCE, Flavio. Da extrajudicialização do Direito de Família e das Sucessões. Disponível em


http://www.flaviotartuce.adv.br/assets/u ploads/artigos/4d7ea-extrajudicia_outras.docx. Acesso
em: 06 de julho de 2020.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro- Volume 6 – Direito de Família. 14ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2017.

152
16
A OBRIGATORIEDADE DOS ESTADOS OBSERVAREM AS
CONVENÇÕES INTERNACIONAIS INTERNALIZADAS E AS
NORMAS GERAIS DA UNIÃO PARA GARANTIR A INCLUSÃO DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Palavras-chave
Pessoa com deficiência – Inconstitucionalidade – Tratados Internacionais Sobre Direitos Humanos
- Competência Legislativa – Educação Inclusiva

Tiago Augusto Pereira De Oliveira


Advogado Graduado em Direito pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru (ITE). Especialista em
direito empresarial pelo Instituto Hermes (FGV/SP - Bauru) e especialista em Direito Tributário pelo
Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET-Bauru).

153
INTRODUÇÃO Mesmo com todas as garantias do ordenamen-
to, não é difícil encontrar atualmente situações
A proteção aos direitos e garantias da pessoa
onde tais regramentos são desrespeitados, seja
com deficiência previstas no ordenamento jurí-
por particulares, ou pelos próprios responsáveis
dico pátrio, se tornaram uma importante ferra-
em implementar e aplicação das políticas de in-
menta de inclusão social e redução das barrei-
clusão da pessoa com deficiência.
ras.
Assim, através de materiais bibliográficos, pes-
Segundo dados do terceiro trimestre de 2022,
quisa e análise jurisprudencial, o presente tra-
divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos
balho objetiva verificar se as políticas de educa-
e da Cidadania em conjunto com o IBGE1, a po-
ção inclusiva da pessoa com deficiência sofrem
pulação com deficiência (acima de dois anos) no
algum tipo de ataque ou sabotagem, intencional
Brasil está estimada em 18,6 Milhões de pessoas,
ou não, no momento da sua implementação,
ou seja, cerca de 8.9% da população.
bem como a discussão sobre a reação dos ór-
A presente temática ganha ainda mais impor- gãos responsáveis por assegurar tais direitos.
tância, visto que se refere a uma significativa
parcela da população que encontra inúmeros 1. A IMPORTÂNCIA DA
obstáculos sociais de integração, sejam eles de DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE
estrutura, suporte ou mesmo de desenvolvimen- PESSOA COM DEFICIÊNCIA
to educacional.
Como ponto de partida é importante saber o que
Não devemos esquecer que as evoluções da le-
a legislação brasileira entende por “pessoa com
gislação, da consciência social e da tecnologia,
deficiência”, pois é através dessa delimitação
permitiram significativos avanços que possi-
que poderemos fazer as interpretações e deter-
bilitaram a adequação dos locais mais básicos
minar o alcance mais adequado da norma (re-
de convivência coletiva, assim como o acesso
sultado da interpretação) e a correção de even-
e integração social da pessoa com deficiência.
tuais equívocos.
Entre esses avanços, o direto à educação, pre-
visto na Constituição Federal como um direito de De início, é necessário fazer um breve aponta-
todos e dever do Estado, se mostrou um impor- mento sobre o que se entende por “conceito” e
tante fator de inclusão. Por isso a Lei Maior pre- “definição”, que nas palavras da Professora Au-
vê que é dever do Estado garantir o atendimento rora Tomazini de Carvalho2:
educacional especializado e a integração das
pessoas com deficiência, através das políticas “Muitas vezes temos a ideia do termo, ou
de educação inclusiva. seja, das suas possibilidades de uso num
discurso, mas não somos capazes de
A competência para legislar sobre o tema e tam- apontar, por meio de outras palavras, as
bém para garantir a implementação das políti- características que fazem com que algo
cas de inclusão pode gerar conflitos entre os En- seja nominado por aquele termo, isto é,
tes envolvidos. que fazem com que possa ele ser utiliza-
do em certos contextos. Para ser fixada, a
ideia do termo precisa ser demarcada lin-
1 https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/ guisticamente, ou melhor, constituída em
julho/brasil-tem-18-6-milhoes-de-pessoas-com- linguagem, pois, como pressupomos, só
deficiencia-indica-pesquisa-divulgada-pelo-ibge-e- assim ela se torna articulável intelectual-
mdhc#:~:text=PESSOAS%20COM%20DEFICI%C3%8ANCIA-
,Brasil%20tem%2018%2C6%20milh%C3%B5es%20 2 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral de
de%20pessoas%20com%20defici%C3%AAncia%2C%20 direito: o constructivismo lógico-semântico. 6ª ed. Ver. e
indica,divulgada%20pelo%20IBGE%20e%20MDHC atual. São Paulo : Noeses, 2019, pg. 70.

154
mente. É por meio da definição que rea- Por sua vez, o Artigo 1º do Decreto nº. 6.949/2009
lizamos tal demarcação. Definir, assim, é (Decreto Legislativo nº. 186/2008), que promul-
explicar o conceito, pô-lo em palavras, é gou a Convenção internacional sobre os direi-
identificar a forma de uso do termo. tos das pessoas com deficiência, traz o seguinte
Não é demasiado reforçar que o conceito
conteúdo:
de um vocábulo não depende da relação “Pessoas com deficiência são aquelas
com a coisa, mas do vínculo que mantém que têm impedimentos de longo prazo
com outros vocábulos. Nestas condições, de natureza física, mental, intelectual ou
definir não é fixar a essência de algo, mas sensorial, os quais, em interação com di-
sim eleger critérios que apontem deter- versas barreiras, podem obstruir sua par-
minada forma de uso da palavra, a fim de ticipação plena e efetiva na sociedade em
introduzi-la ou identificá-la num contexto igualdades de condições com as demais
comunicacional. Não definimos coisas, pessoas.”
definimos termos.”
Aqui é importante destacar, que em razão da
Diante de tais esclarecimento, devemos desta- previsão contida no §3º do art. 5º da Constitui-
car também que tanto no texto constitucional ção Federal3, o Decreto nº. 6.949/2009 possui
quanto na legislação infraconstitucional, encon- status constitucional, conforme destacou o Mi-
traremos várias terminologias voltadas a se re- nistro Ricardo Lewandowski no julgamento do
ferir aos indivíduos que possuam algum tipo de Tema 1097 da Repercussão Geral (Recurso Ex-
deficiência (pessoas portadoras de deficiência, traordinário 1.237.867, Plenário, Sessão Virtual de
pessoas com necessidade especiais; e pessoas 9.12.2022 a 16.12.20224):
com deficiência, e etc.). Para fins do presente
trabalho, utilizaremos a terminologia “Pessoa “Como é do conhecimento de todos, o re-
com Deficiência”, adotada na Convenção das ferido documento foi incorporado ao or-
Nações Unidas sobre o Direito das Pessoas com denamento jurídico brasileiro por meio do
Deficiência (Assembleia Geral da ONU de 13 de Decreto Legislativo 186/2008 e promulgado
dezembro de 2006), ratificado pelo Decreto Le- por meio do Decreto Federal 6.949/2009.
gislativo nº. 186/2008 (promulgado pelo Decreto Ademais, tendo a referida Convenção sido
nº. 6.949/2009) e pela Lei nº. 13.146/2015 (Estatu- aprovada de acordo com os ritos previs-
tos no art. 5°, § 3° da Constituição Fede-
to da Pessoa Com Deficiência).
ral de 1988, suas regras são equivalentes à
No que se refere as definições de pessoas com emendas constitucionais, o que reforça o
deficiência existentes no ordenamento jurídico compromisso internacional assumido pelo
Brasil na defesa dos direitos e garantias
brasileiro, o Decreto nº. 3.956/2001, que promul-
das pessoas com deficiência.”
gou a Convenção Interamericana para a Elimi-
nação de Todas as Formas de Discriminação Com o advento da Lei nº. 13.146/2015 que insti-
contra as pessoas portadoras de deficiência, em tuiu o Estatuto da Pessoa Com Deficiência, ob-
seu artigo I estabelece que: servamos que o caput do art. 2º, praticamente
“O termo ‘deficiência’ significa uma restri- reproduziu a definição prevista no Decreto cita-
ção física, mental ou sensorial, de nature- 3 Art. 5º [...]
za permanente ou transitória, que limita a § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos
capacidade de exercer uma ou mais ativi- humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso
dades essenciais da vida diária, causada Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos
ou agravada pelo ambiente econômico e respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais.
social.” 4 https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.
asp?incidente=5785185

155
do acima, conforme segue: políticas e leis voltadas a integração das pessoas
com deficiência.

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiên- A Constituição Federal de 88 estabeleceu em seu


cia aquela que tem impedimento de longo art. 23, a competência comum da União, dos Es-
prazo de natureza física, mental, intelectu- tados, do Distrito Federal e dos Municípios, para
al ou sensorial, o qual, em interação com cuidar da assistência e garantias das pessoas
uma ou mais barreiras, pode obstruir sua com deficiência (art. 23, II). No referido artigo,
participação plena e efetiva na sociedade conforme ensina o Professor Pedro Lenza5, o le-
em igualdade de condições com as de- gislador regulou a competência não legislativa,
mais pessoas. ou seja, aquela em que todos os Entes podem
§ 1º A avaliação da deficiência, quando ne- atuar.
cessária, será biopsicossocial, realizada
Já no que tange a competência legislativa con-
por equipe multiprofissional e interdisci-
plinar e considerará: corrente, entre a União, Estados e Distrito Fede-
ral para tratar da proteção e integração social
I - os impedimentos nas funções e nas es- das pessoas com deficiência, prevista no inciso
truturas do corpo; XIV, do art. 24 da CF, ensina o referido professor6,
que a União deve se limitar a estabelecer normas
II - os fatores socioambientais, psicológi-
gerais, de modo que aos Estados compete a ela-
cos e pessoais;
boração de normas específicas e aos municípios
III - a limitação no desempenho de ativida- a competência suplementar a legislação federal
des; e e estadual no que couber (art. 30, II da CF).

IV - a restrição de participação. Sobre o tema da competência concorrente, o


Supremo Tribunal Federal vem decidindo da se-
§ 2º O Poder Executivo criará instrumentos guinte forma:
para avaliação da deficiência.
CONSTITUCIONAL. CONTROLE DE CONS-
Observa-se que a definição trazida pelo Decreto TITUCIONALIDADE. ALEGAÇÃO DE IN-
e pelo Estatuto passou a considerar pessoa com CONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MA-
deficiência o indivíduo que tenha algum impe- TERIAL DE PARTE DO §1º DO ARTIGO 3°,
dimento físico, mental, intelectual ou sensorial, BEM COMO DOS INCISOS I E II DO ARTIGO
que obstrua a sua participação social. 4º DA LEI Nº 14.715, DE 04 DE FEVEREIRO
DE 2004, DO ESTADO DE GOIÁS POR VIO-
Por isso, os indivíduos que apresentem qualquer LAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE, DA
uma (ou mais) das características previstas nos DIGNIDADE HUMANA E DO QUANTO DIS-
dispositivos citados acima, poderão ser consi- POSTO NOS ARTS. 7º, XXXI; 23, II; 24, XIV; 37,
deradas pessoas com deficiência. VIII; 203, IV; e 227, II, DA CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA. INCONSTITUCIONALIDADES
2. COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR FORMAL E MATERIAL RECONHECIDAS.
PROCEDÊNCIA.
SOBRE OS DIREITOS DAS
PESSOAS COM DEFICIÊNCIA 1. A legislação sobre a proteção e a inte-
gração social das pessoas portadoras de
Para melhor compreensão do tema, necessário
se faz trazer uma breve passagem sobre a estru- 5 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª
Edição. São Paulo: Saraiva, 2009, pg. 303.
tura brasileira de implementação e criação de 6 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª
Edição. São Paulo: Saraiva, 2009, pg. 304.

156
deficiência é prevista constitucionalmen- te (art. 24 da CF), competirá à União estabelecer
te como de competência concorrente pelo normas gerais sobre a proteção e integração so-
artigo 24, XIV, da Constituição da Repúbli- cial das pessoas com deficiência, que deverão
ca. Ao Estado é permitido o exercício da ser observadas pelos demais Entes da Federa-
competência plena apenas na ausência ção.
de legislação federal que fixe as normas
gerais (§ 3º). Existência, ao tempo da vi-
gência da lei estadual impugnada, de lei
3. DO ACESSO E DIREITO A
federal acerca da proteção e da integra- EDUCAÇÃO INCLUSIVA DA
ção social das pessoas portadoras de PESSOA COM DEFICIÊNCIA
deficiência. Legislação estadual com
normas que contrastam com a norma- A inciso III, do art. 1º da Constituição Federal de
tiva geral nacionalmente estabelecida. 88, fixou a Dignidade da pessoa humana com
Inconstitucionalidade formal verificada. sendo um de seus fundamentos e como um de
2. A lei impugnada fragiliza o princípio seus objetivos, a construção de uma sociedade
constitucional da igualdade e a proteção livre, justa e solidária (inciso I do art. 3º).
à dignidade humana. Inconstituciona-
Diante desse contexto, o art. 205 da Constituição
lidade material por apresentar infun-
dados limites à sistemática de inclusão Federal estabeleceu que a educação é um direi-
almejada e delineada pela Constituição to de todos, conforme segue:
da República. 3. Pedido da ação direta de
Art. 205. A educação, direito de todos e
inconstitucionalidade julgado procedente.
dever do Estado e da família, será promo-
(ADI 4388, Relator(a): Rosa Weber, Tribunal vida e incentivada com a colaboração da
Pleno, julgado em 03/03/2020, processo sociedade, visando ao pleno desenvolvi-
eletrônico dje-053 divulg 11-03-2020 pu- mento da pessoa, seu preparo para o exer-
blic 12-03-20207) cício da cidadania e sua qualificação para
o trabalho.
Assim, no exercício da competência concorren-
te, a lei estadual deve observar a lei federal de Atribuiu à União a competência privativa para
aplicação nacional, que estabeleceu normas ge- legislar sobre as diretrizes e bases da educação
rais. nacional (inciso XXIV do artigo 22), bem como
a competência concorrente entre a União, os
Aqui, é importante destacar que o legislador fe- Estados e Distrito Federal para legislar sobre
deral editou a Lei nº. 10.098/2000 (Normas Ge- educação (inciso IX do art. 24). Também fixou a
rais de promoção da acessibilidade) e o Estatuto competência comum entre a União, os Estados,
da Pessoa com Deficiência (Lei nº. 13.146/2015), Distrito Federal e municípios para proporcionar
que devem ser observados pelos demais Entes, os meios de acesso à educação (inciso V do art.
quando estes forem exercer suas competências 23). Ainda no inciso VI, do art. 30, o constituinte
concorrente ou suplementares. estabeleceu que compete ao Município manter
(apoiado financeiramente pela União e Estado)
Portanto, ainda que seja de competência co- os programas de educação infantil e de ensino
mum (não legislativa) da União, Estados, Distrito fundamental.
Federal e Municípios a assistência e garantia das
pessoas com deficiência (art. 23 da CF), quando No que se refere a educação da pessoa com de-
se tratar de competência legislativa concorren- ficiência, o inciso III do art. 208 da Constituição
Federal (regido pela Lei nº. 10.845/2004), garante
7 https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur420474/ também o atendimento especializado ao indiví-
false

157
duo, conforme segue: ticipação de entidades não governamen-
tais, mediante políticas específicas e obe-
Art. 208. O dever do Estado com a educa- decendo aos seguintes preceitos:
ção será efetivado mediante a garantia de:
[...]
[...]
II - criação de programas de prevenção e
III - atendimento educacional especializa- atendimento especializado para as pes-
do aos portadores de deficiência, prefe- soas portadoras de deficiência física, sen-
rencialmente na rede regular de ensino; sorial ou mental, bem como de integração
social do adolescente e do jovem portador
O Decreto nº. 6.949/2009 (que promulgou a Con- de deficiência, mediante o treinamento
venção Internacional das Pessoas com Defici- para o trabalho e a convivência, e a faci-
ência), em seu art. 248 reconhece o direito das litação do acesso aos bens e serviços co-
pessoas com deficiência à educação, com base letivos, com a eliminação de obstáculos
na igualdade de oportunidades, bem como de- arquitetônicos e de todas as formas de
termina que o Estado assegure um sistema edu- discriminação.
cacional inclusivo. Como já mencionado nos tó-
picos anteriores, o referido decreto possui status É o que também restou previsto no artigo 8º
constitucional em razão do disposto no §3º do do Estatuto da Pessoa Com Deficiência (Lei nº
art. 5º da Constituição Federal. 13.146/2015), in verbis:

Não obstante, o inciso II (redação dada pela Art. 8º É dever do Estado, da sociedade e
da família assegurar à pessoa com defi-
Emenda nº. 65/2010), do §1º, do art. 227 da Cons-
ciência, com prioridade, a efetivação dos
tituição Federal, determina que o Estado promo-
direitos referentes à vida, à saúde, à sexu-
verá a criação de programas e atendimento es-
alidade, à paternidade e à maternidade,
pecializado para pessoas com deficiência, a sua à alimentação, à habitação, à educação,
integração e a facilitação de acesso aos bens e à profissionalização, ao trabalho, à pre-
serviços: vidência social, à habilitação e à reabili-
tação, ao transporte, à acessibilidade, à
Art. 227. É dever da família, da sociedade e
cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à
do Estado assegurar à criança, ao adoles-
informação, à comunicação, aos avanços
cente e ao jovem, com absoluta prioridade,
científicos e tecnológicos, à dignidade, ao
o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
respeito, à liberdade, à convivência fami-
educação, ao lazer, à profissionalização, à
liar e comunitária, entre outros decorren-
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberda-
tes da Constituição Federal, da Convenção
de e à convivência familiar e comunitária,
sobre os Direitos das Pessoas com Defi-
além de colocá-los a salvo de toda forma
ciência e seu Protocolo Facultativo e das
de negligência, discriminação, explora-
leis e de outras normas que garantam seu
ção, violência, crueldade e opressão.
bem-estar pessoal, social e econômico.
§ 1º O Estado promoverá programas de as-
Portanto, o direito à educação, além de ser um
sistência integral à saúde da criança, do
adolescente e do jovem, admitida a par- direito de todos, suas diretrizes são fixadas pela
8 1.Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas
União, de modo que quando se tratar de pessoa
com deficiência à educação. Para efetivar esse direito sem com deficiência, deverá ser assegurada a efeti-
discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os vação da referida garantia, observando também
Estados Partes assegurarão sistema educacional inclusivo em
todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a
o bem estar pessoal, social e econômico do in-
vida, com os seguintes objetivos: divíduo.
[...]

158
Sendo assim, os dispositivos Constitucionais e Art. 2º Nos estabelecimentos de ensino
legais citados acima, garantem à pessoa com cujo ingresso dependa de teste seletivo,
deficiência o pleno acesso à educação inclusiva, ficarão os abrangidos por esta Lei isentos
que observe também o seu bem estar pessoal, de realização do referido teste.
social e econômico, assegurando a sua integra- Art. 3º Ficam excluídos da prioridade de
ção e oportunidade de desenvolvimento. que o art. 1º os estabelecimentos de ensino
que não possuam as condições necessá-
4. ENTENDIMENTO DO STF rias para educação de portadores de defi-
SOBRE A COMPETÊNCIA PARA ciência mental e sensorial.
DEFINIÇÃO DE PESSOA COM
Aparentemente a lei buscou priorizar o acesso
DEFICIÊNCIA ADI 7.028/AP
da pessoa com deficiência a escola pública mais
próxima de sua residência. O problema está ve-
Mesmo nos dias atuais, após a criação de inú- lado no restante da lei.
meras leis visando proteger e garantir a inclusão
social da pessoa com deficiência, ainda é preci- Ao analisarmos o conceito previsto no §4º do ar-
so que as instituições fiquem atentas para que tigo supra, observamos que não consta ali a in-
tais direitos não sejam violados, e em alguns ca- dicação da pessoa com deficiência intelectual,
sos, pelo próprio Estado. como sujeito da garantia de vaga em escola pú-
blica mais próxima. Assim, o referido dispositivo
No ano de 2017, o Estado do Amapá editou a Lei restringiu a definição de pessoa com deficiência
nº. 2.151/2017, que apresentou uma definição de prevista no Decreto nº. 6.949/2009 e na Lei nº.
pessoa com deficiência (art. 1º, §4º), diferente 13.146/2015.
daquela trazida pela pelo Decreto nº. 6.949/2009
(incorporou a Convenção Internacional sobre os Da mesma forma, o art. 3º da Lei Estadual ao ex-
Direito das Pessoas com Deficiência) e pela Lei cluir a prioridade dos estabelecimentos que não
nº 13.146/2015, conforme segue: possuam as condições necessárias, esbarra na
previsão do inciso III do art. 208 da Constituição
Art. 1º Fica assegurada à pessoa com de-
Federal, que exige a implementação da educa-
ficiência física, mental ou sensorial a prio-
ção inclusiva.
ridade de vaga em escola pública, que
esteja localizada mais próxima de sua re- Diante de tal cenário, o Procurador Geral da Re-
sidência. pública propôs Ação Direita de Inconstituciona-
[...] lidade (ADI) nº. 7.028/AP, contra o caput do art. 1º
§§ 4º e5º e art. 3º da Lei nº. 2.151/2017 do Estado
§ 4º Consideram-se deficiências, para do Amapá/AP.
efeitos desta Lei, todas aquelas classifi-
cadas pela Organização Mundial da Saúde Em sua manifestação, o Estado do Amapá de-
e que necessitam de assistência especial, fendeu que a deficiência intelectual estaria
decorrentes de problemas visuais, audi- abrangida pela expressão “todas aquelas classi-
tivos, mentais, motores, ou má formação ficadas pela Organização Mundial da Saúde [...]”
congênita. inserida no §4º.
§ 5º As deficiências dos estudantes bene- O Supremo Tribunal Federal ao analisar a ação,
ficiados serão comprovadas por meio de declarou inconstitucional os dispositivos da Lei
laudo médico fornecido por instituições Estadual, nos seguintes termos:
médico-hospitalares públicas e compe-
tentes para prestar tal comprovação.

159
EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. (CF/1988, art. 208, III) e legal (Lei federal nº
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALI- 13.146/2015, art. 28) priorizam a educação
DADE. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PARA inclusiva como fator de promoção à igual-
DEFINIÇÃO LEGAL DE PESSOA COM DE- dade. Precedentes. Em sentido diverso, a
FICIÊNCIA E QUESTÕES AFETAS. PROCE- lei estadual promove desincentivo à adap-
DÊNCIA. tação e perpetua a inércia estatal na in-
clusão das pessoas com deficiência.
1. Ação direta de inconstitucionalidade
contra o art. 1º, caput e §§ 4º e 5º, e art. 3º 6. Pedidos julgados procedentes, com a
da Lei nº 2.151/2017, do Estado do Amapá, declaração de inconstitucionalidade dos
que estabelece prioridade em escolas pú- dispositivos impugnados. Tese: “É in-
blicas para determinados grupos de pes- constitucional lei estadual que (a) reduza
soas com deficiência. o conceito de pessoas com deficiência
previsto na Constituição, na Convenção
2. Os conceitos estabelecidos no art. 1º, Internacional sobre os Direitos das Pes-
caput, e § 4º, da Lei estadual nº 2.151/2017 soas com Deficiência, de estatura consti-
divergem da definição nacional de pes- tucional, e na lei federal de normas gerais;
soa com deficiência, constante de tratado (b) desconsidere, para a aferição da defi-
internacional de direitos humanos (De- ciência, a avaliação biopsicossocial por
creto nº 6.949/2009) e da Lei federal nº equipe multiprofissional e interdisciplinar
13.146/2015, e acabam por excluir os alunos prevista pela lei federal; ou (c) exclua o de-
com deficiência intelectual do rol de des- ver de adaptação de unidade escolar para
tinatários da política pública. o ensino inclusivo”.
3. A pretexto de legislar sobre direitos de (ADI 7028, Rel: Roberto Barroso, Tribunal
pessoas com deficiência, a lei estadual Pleno, julgado em 19/06/2023, processo
não pode se desviar da definição fixada eletrônico DJe-s/n DIVULG 22-06-2023
em convenção internacional, incorpora- PUBLIC 23-06-20239).
da ao direito interno como norma cons-
titucional (CF/1988, art. 5º, § 3º). Também
não se afigura legítimo usar da compe- A Suprema Corte entendeu que a Lei Estadu-
tência legislativa suplementar para re- al buscou restringir a definição de pessoa com
duzir conceito presente em lei federal, deficiência prevista no Decreto nº. 6.949/2009
de caráter geral, em prejuízo de grupo
(Convenção Internacional sobre os Direitos das
socialmente vulnerável.
Pessoas com Deficiência) e na Lei nº. 13.146/2015,
4. O art. 1º, § 5º, da Lei estadual nº 2.151/2017 violando assim o §3º do art. 5º da Constituição
limita a avaliação da deficiência ao exame Federal, bem como o §1º do art. 24, uma vez que
médico-hospitalar, desconsiderando a o Estado não pode legislar contrariando con-
previsão de lei federal que exige avaliação venção internacional de estatura constitucional
biopsicossocial, a ser realizada por equipe e norma geral fixada pela União.
multiprofissional e interdisciplinar (Lei nº
13.146/2015, art. 2º, § 1º). Afastamento de Assim, acertada a decisão do Supremo Tribunal
norma geral sem peculiaridade que o jus- Federal, que ao nosso ver garantiu a observância
tifique. das garantias de acesso a um ensino inclusivo
para todas as pessoas com deficiência e impe-
5. Exclusão da incidência da lei às esco-
diu que a distinção, ainda que pequena, impli-
las sem estrutura para receber as pes-
casse em disparidade de tratamento.
soas com deficiência (art. 3º, da Lei nº
2.151/2017). Os regimes constitucional 9 https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.
asp?incidente=6304183

160
CONSIDERAÇÕES FINAIS lei estadual fazer qualquer restrição ou alterar
a definição de pessoa com deficiência previsto
O tema abordado no trabalho torna-se de fun-
em tratado internacional (§3º do art. 5º da CF) ou
damental importância para a formação de uma
previsto em lei que estabeleça norma geral, sob
sociedade igualitária, visando promover a inte-
pena de invasão de competência e consequente
gração das pessoas com deficiência através da
inconstitucionalidade do texto.
implementação de políticas e direitos de educa-
ção inclusiva. Observamos na análise da ADI nº. 7028/AP que
as instituições de proteção às pessoas com de-
A necessidade de definição de pessoa com de-
ficiência funcionaram. O Ministério Público es-
ficiência pelo ordenamento jurídico, serve para
tava atento aos melindres da lei estadual, razão
assegurar a inclusão do indivíduo, independen-
pela qual ingressou com a ação competente, fa-
temente do tipo de deficiência que possua, sen-
zendo com que o Poder Judiciário assegurasse
do extremamente necessária para evitar distor-
que todas as pessoas com deficiência do Estado
ções como aquela que poderia ser gerada pela
do Amapá, tenham acesso ao ensino próximo da
Lei do Estado do Amapá.
sua residência, independentemente do tipo de
O desenvolvimento das políticas de inclusão deficiência que o indivíduo possua.
praticadas pela União, Estados, Distrito Federal
No entanto, é preciso chamar a atenção para o
e Municípios, cada um na sua respectiva com-
comportamento do Estado do Amapá, que uma
petência, deve observar os Tratados internacio-
vez ciente do equívoco legislativo, por ser um
nais, bem como a própria legislação e políticas
dos responsáveis pela implementação das polí-
internas, na busca da efetivação dos direitos da
ticas de inclusão, ao invés de regularizar a situ-
pessoa com deficiência.
ação, optou por defender a sua Lei.
O Decreto nº. 6.949/2009 que promulgou a Con-
Vemos assim, que mesmo com todo o aparato
venção Internacional de Direito das Pessoas com
Estatal voltado a implementação das políticas
Deficiência, observou o procedimento previsto
de concretização do ensino inclusivo, bem como
no §3º do art. 5º da Constituição Federal, como
todas as garantias constitucionais e previsões
consequência, possui status constitucional, ra-
legais buscando a interação das pessoas com
zão pela qual a definição de pessoa com defici-
deficiência, ainda assim, encontramos situa-
ência ali prevista, deve ser seguida por todos os
ções onde se busca restringir o direito previsto
Entes, sob pena de inconstitucionalidade.
em norma geral ou na Constituição. A preocu-
Da mesma forma, quando a União estabelecer pação se torna ainda maior quando as tentati-
normas gerais sobre os temas elencados no art. vas de restrição aos direitos da pessoa com de-
24 da Constituição Federal, o Estado que emitir ficiência, são praticadas por aqueles que, pela
posteriormente lei sobre o mesmo assunto, po- lei, deveriam assegurar a implementação das
rém em contrariedade com o que foi fixado pela políticas de inclusão.
União, deverá ter a referida norma declarada in-
Desta forma, em que pese algumas tentativas de
constitucional.
restrição de direito das pessoas com deficiên-
O direito a educação inclusiva da pessoa com cia, das mais variadas formas, principalmente
deficiência também está garantido pela Cons- no que se refere ao acesso à educação inclusiva,
tituição Federal, assim como pelo Decreto nº. há de se reconhecer o avanço da legislação e a
6.949/2009 e pela Lei nº. 13.146/2015, razão pela efetivação das políticas de inclusão, ainda que
qual deve ser assegurado por todos os Entes da para isso tenha que se socorrer do judiciário.
Federação. Vale destacar que não compete a

161
17
CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIAS E O ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO
A mediação de conflitos foi introduzida formalmente no sistema judiciário brasileiro em 2010, sendo
posteriormente objeto de lei específica em 2015. O material oficial disponível ao público e aos me-
diadores em formação enfatiza as técnicas do instituto; todavia, há carência de explicitação de suas
bases teóricas e epistemológicas. Neste contexto, foi elaborado o presente trabalho, de natureza
descritiva, com a finalidade de levantar e descrever, embora de maneira superficial, as principais
teorias que fundamentam a mediação de conflitos. Foram descritas a teoria geral dos sistemas de
Bertalanffy, a cibernética de primeira e segunda ordens, a autopoiese de Maturana e Varela – com
breves aportes da teoria de Niklas Luhmann – e o paradigma sistêmico novoparadigmático de Maria
José Esteves de Vasconcellos e de Marilene Grandesso, com destaque para o pensamento complexo
de Edgar Morin.
Palavras-chave
Mediação - Teoria Sistêmica
Vinicius de Carvalho Carreira
Advogado formado pela Faculdade de Direito de Bauru; Psicólogo formado pela UNESP – Bauru;
mediador certificado pela ESA – SP; especialista em Direito de Família e Sucessões e em Direi-
to Processual Civil; mestre e doutorando em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem pela
UNESP – Bauru.
Marianne Ramos Feijó
Professora Assistente Doutora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências da UNESP
– Bauru; Psicóloga formada pela Universidade Paulista; Especialista em Terapia de Casal e de Famí-
lia pela PUC – SP; Mestra e Doutora em Psicologia Clínica pela PUC – SP; Pós-doutora em Psicobio-
logia pela Universidade Federal de São Paulo.

162
1. INTRODUÇÃO Mediação também não cumpriu.

A mediação de conflitos foi introduzida formal- Tal diferenciação se encontra, dentro dos docu-
mente no Direito brasileiro pela Resolução n.º 125 mentos editados pelo Poder Público, no Manu-
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)1. Referida al de Mediação Judicial, atualmente em sua 6ª
norma não contempla uma definição para o ins- edição4. Todavia, embora supra a referida lacuna
tituto, a qual foi contemplada através do Marco normativa, o texto se limita a apresentar o his-
Legal da Mediação – Lei Federal n.º 13.140/152: tórico da mediação judicial, não contemplando
suas bases epistemológicas.
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a mediação
como meio de solução de controvérsias Neste contexto, o presente trabalho se propõe a
entre particulares e sobre a autocomposi- apresentar as origens do instituto da mediação
ção de conflitos no âmbito da administra- de conflitos.
ção pública.
2. MÉTODO
Parágrafo único. Considera-se mediação
a atividade técnica exercida por terceiro
imparcial sem poder decisório, que, es- Este artigo é de natureza descritiva, elaborado
colhido ou aceito pelas partes, as auxilia e a partir de consulta à bibliografiaconsagrada da
estimula a identificar ou desenvolver solu- área, documentos editados pelo Poder Público
ções consensuais paraa controvérsia. e publicações em periódicos. O trabalho não se
propõe a esgotar o tema, mas sim a servir como
No mesmo ano, foi publicado o Código de Pro- introdução ao tema a partir de conteúdos pouco
cesso Civil, o qual prevê em seuart. 334 a reali- ou não contemplados pelo material oficial.
zação de audiência de conciliação ou mediação
como etapa obrigatória no procedimento co- 3. HISTÓRICO
mum3. O referido Codex, em seu art. 165, também
determinou a criação de centros judiciários de
solução consensual de conflitos e estabeleceu A recente normatização da mediação de confli-
contextos para atuação de conciliadores ou de tos não faz jus à sua idade, umavez que a práti-
mediadores. ca já era realizada, ainda que sem a formalidade
moderna, por povos da antiguidade5. A exemplo,
Salvo pela diferenciação das hipóteses de atu-
entre os judeus, chineses e japoneses, a
ação, a Lei Processual Civil utilizaas expressões
mediação faz parte da cultura, dos usos e
“conciliação” e “mediação” sempre em conjunto,
costumes, muitas vezes integrando os ri-
quase como sinônimos – o que também se veri- tuais religiosos. A figura do mediador pode
fica na Resolução n.º 125 do CNJ. Nenhuma das ser institucional, decorrente de uma hie-
normas se ocupou em pontuar as diferenças en- rarquia na organização da vida comuni-
tre os institutos, tarefa esta que o Marco Legal da tária, ou como poder delegado, ou natural,
1 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução n.º 125, de como expressão do exercício da cidada-
29 de novembro de 2010. Dispõe sobre a Política Judiciária nia, permitindo exaltar as personalidades
Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses
do grupo social mais afeitas à comunica-
no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Diário
de Justiça Eletrônico do Conselho Nacional de Justiça: n.º ção humana, o que constitui o poder do
219/2010, p. 2-14, 1 dez. 2010. mediador6.
2 2 BRASIL. Lei n.º 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe
sobre a mediação entre particulares como meio de solução 4 AZEVEDO, A. G. (Org.). Manual de Mediação Judicial. 6. ed.
de controvérsias[...]. Brasília, DF: Presidência da República, Brasília: CNJ, 2016.
[2023]. 5 GABBAY, D. M.; FALECK, D.; TARTUCE, F. Meios alternativos
3 BRASIL. Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015. Código de de solução de conflitos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2023] 6 BARBOSA, A. A. Mediação familiar interdisciplinar. São

163
A ideia de delegar a uma terceira pessoa o papel 4.1 Teoria geral dos sistemas de Bertalanffy
de facilitar a solução de conflitos ainda é bas-
tante difundida na cultura oriental. É o caso do Em 1969, o biólogo Ludwig von Bertalanffy pu-
Japão, onde persiste uma prática milenar de- blicou a obra Teoria Geral dos Sistemas, na qual
nominada chotei – em que um ou um grupo de propõe a necessidade de superar o modelo re-
conciliadores, todos com mais de 40 anos de ida- ducionista de ciênciaque, para ele, encapsula as
de, atua junto com o magistrado paraalcançar a áreas de estudo em seus universos individuais
resolução7. e enfoca os processos elementares dos compo-
nentes – o que faz perder de vista as caracterís-
A mediação judicial moderna começou na dé- ticas que emergem da interação dinâmica das
cada de 19708, com pioneirismo britânico e norte partes15. O autor propõe a necessidade de ter
americano9. O instituto se espalhou para países em mente a ideia de sistema, que, segundo ele, é
como Canadá e França nas décadas seguintes10, o que se verificaquando existem diferentes ele-
até alcançar o Brasil por volta de 1990.11 mentos interagindo entre si16.

Embora seja relativamente recente no contexto Apesar da obra em comento ter sido publicada
judiciário, as bases epistemológicas da media- no final da década de 1960, os estudos de Ber-
ção de conflitos remontam ao início do século talanffy começaram por volta de 193017, numa
XX12. época em que muitas ciências tradicionais –
como a biologia, a física e a psicologia – busca-
4. BASES TEÓRICAS DA vam a superação do modelo tradicional, deno-
MEDIAÇÃO DE CONFLITOS minado mecanicista. Como explica Fritjof Capra,

na concepção mecanicista do mundo


A mediação de conflitos não é uma prática iso- por Descartes, toda a natureza funciona
lada e baseada em si mesma, mas possui exten- de acordo com leis mecânicas, e tudo no
sos pressupostos teóricos que a fundamentam, mundo material pode ser explicado em
os quais rompem a concepção clássica de ci- função dos arranjos e movimentos de suas
ência13. Destacam-se, entre estas, as bases da partes. Isso implica que se poderia ser ca-
teoria geral dos sistemas, das cibernéticas, da paz de compreender todos os aspectos de
autopoiese e do pensamento sistêmico novopa- estruturas complexas – plantas, animais
radigmático14. ou o corpo humano – reduzindo-as às
Paulo: Atlas, 2015, p. 121.
menores partes que as constituem. Essa
7 MIKLOS, J.; MIKLOS, S. Mediação de conflitos. São Paulo: posição filosófica é conhecida como re-
Érica, 2021. Edição do Kindle. ducionismo cartesiano.
8 ZEVEDO, A. G. (Org.). Manual de Mediação Judicial. 6. ed.
Brasília: CNJ, 2016. A falácia da visão reducionista reside no
9 ROSA, C. P. Desatando nós e criando laços: os novos
fato de que, embora não haja nada de er-
desafios da mediação familiar. Belo Horizonte: DelRey, 2012.
10 BARBOSA, A. A. Mediação familiar interdisciplinar. São rado ao se dizer que as estruturas de to-
Paulo: Atlas, 2015. dos os organismos vivos são compostas
11 MUSZKAT, M. E. (org). Mediação de conflitos: pacificando de partes menores, e, em última análise,
e prevenindo a violência. 3 ed. SãoPaulo: Summus, 2003.
de moléculas, isso não implica que suas
12 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo
paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018. Edição
do Kindle. 15 BERTALANFFY, L. General system theory: foundations,
13 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma development, applications. 18. ed. rev. New York: George
concepção unificada e suas implicações filosóficas, Braziller, 2015. Edição do Kindle.
políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014. 16 ESTEVES-VASCONCELLOS, M. A nova teoria geral dos
Edição do Kindle. sistemas: dos sistemas autopoiéticos aos sistemas
14 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo sociais. São Paulo: Vortobooks, 2013. Edição do Kindle.
paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018. Edição 17 PINEDA, C. M. R. Ideas básicas del pensamiento
do Kindle. sistémico. Visión Contable, n. 5, p. 71-107, jan- dez 2017.

164
propriedades possam ser explicadas ex- puta como um sistema aberto21
clusivamente por meio de moléculas18
A Teoria Geral dos Sistemas de Bertalan-
Bertalanffy pontua que a visão tradicional de ci- ffy não foi a primeira a empregar o con-
ência não está excluída de sua teoria, mas está ceito de sistemas, mas foi a partir dela
contemplada no que ele define como sistema que novos conceitos foram estruturados,
fechado, ou seja, aquele que está isolado de seu servindo de marco inicial de um novo
ambiente. A proposta do autor, contudo, é con- movimento científico, o qual foi apoiado
siderar também os sistemas abertos, tais como por outros movimentos, como será visto
organismos vivos – exemplo este que fez com adiante22.
que essa visão de mundo tenha sido denomina-
da como organicista – cujos elementos estão em 4.2 Teorias cibernéticas
constante interação entre si19.
Durante a segunda guerra mundial, o matemá-
Identificando a interação como o proble- tico Norbert Wiener trabalhou junto ao governo
ma central em todos os campos da ciên- dos Estados Unidos para desenvolver artilharia
cia, o conceito fundamental da investiga- antiaérea, a qual exigia a predição da posição do
ção científica seria o de “sistema” e essa míssil a ser abatido – devendo a máquina, por-
teoria interdisciplinar seria uma “teoria tanto, se adaptar a qualquer mudança de tra-
geral para os sistemas”. O objeto proposto jetória do alvo, adaptação esta denominada de
para essa teoria foi a formulação de prin- feedback, ou retroação23. A partir desse concei-
cípios válidos para os sistemas em geral, to, em 1947, o autor batizou a ciência cibernética,
independentemente das entidades que
que pretendia
os constituam. Portanto, aqui não se fa-
laria mais de entidades físicas, químicas, abarcar todo o campo da teoria do co-
ou outras, passando-se a falar das tota- mando, controle e transmissão de infor-
lidades que essas entidades constituem, mações, quer seja em máquinas ou em
da organização desses sistemas. Assim, a seres vivos. Fica claro, por meio da análise
Teoria Geral dos Sistemas se propõe como histórico-documental que, para Wiener o
uma ciência da totalidade, ou como uma foco da cibernética não estaria restrito a
disciplina lógico-matemática aplicável a eletrotécnica, mas sim à informação, seja
todas as ciências que tratam de “todos or- ela transmitida por meios elétricos, mecâ-
ganizados”20 nicos ou nervosos.”24.

A noção de elementos em interação é essen- Embora a cibernética tenha se originado em má-


cial para a mediação de conflitos, uma vez que quinas mecânicas, com estudosiniciais que não
a conduta de uma das partes envolvidas afeta a romperam com a visão mecanicista25, é equi-
maneira de se portar da outra, e vice-versa, su- 21 VASCONCELOS, C. M. Mediação de conflitos e práticas
cessivamente. Isto posto, mostra-se necessário restaurativas: modelos, processos, ética e aplicações. São
superar a ideia de adversariedade em busca da Paulo: Método, 2008.
22 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma
cooperatividade, enxergando o contexto da dis- concepção unificada e suas implicações filosóficas,
18 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014.
concepção unificada e suas implicações filosóficas, Edição do Kindle.
políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014, p. 23 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo
81-82. Edição do Kindle. paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018, p. 283.
19 BERTALANFFY, L. General system theory: foundations, Edição do Kindle.
development, applications. 18. ed. rev. New York: George 24 CHAVES, V. H. C.; BERNARDO, C. H. C. Norbert Wiener:
Braziller, 2015. Edição do Kindle. história, ética e teoria. História (São Paulo), v. 39, 2020, p. 3.
20 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo 25 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo
paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018, p. 283. paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018, p. 283.
Edição do Kindle. Edição do Kindle.

165
vocada a ideia de que ela se limita ao contexto pois permitem que, a partir da narrativa do outro,
tecnológico. Os ciberneticistas, em verdade, “ti- sejam desestabilizadas as histórias individuais
nham a intenção de criar uma ciência exata da em função da criação de uma história conjunta
mente”26. que contemple a solução da disputa29.

O trabalho de Wiener e seus contemporâneos 4.3 Autopoiese


teve grande ênfase na retroação negativa, tam-
bém denominada como de homeostase, que é Embora a retroação seja característica dos sis-
caracterizado quando o sistema, ao identificar temas vivos, seu funcionamento não pode ser
que o resultado até então alcançado diverge do explicado, apenas, pela autorregulação ciberné-
objetivo estabelecido, tende a se corrigir para tica; para além, são capazes de auto-organiza-
retornar ao estado anterior e aproximar-se do ção30. Edificando sobre essa noção, Humberto
resultado pretendido. Posteriormente, após a Maturana e Francisco Varela desenvolveram, na
publicação de um artigo do antropólogoMagoroh década de 1970, o conceito de autopoiese31. Se-
Maruyama em 1963, o trabalho de Wiener passou gundo Capra,
a ser considerado como primeira cibernética – uma unidade autopoiética é a organiza-
sendo que os processos de retroação positiva, ção mais elementar do organismo. Ela
ou morfogenéticos, se incluem no escopo da se- pode ser definida como um sistema capaz
gunda cibernética27. de se sustentar em virtude de uma rede
de reações que, continuamente, regene-
A Primeira Cibernética trata dos proces-
sos morfostáticos (manutenção da mesma ram os componentes – e isso de dentro
forma), resultantes de retroação negati- de uma fronteira de “fabricação própria”.
va ou retroação autorreguladora, a qual Podemos dizer, em outras palavras, que o
conduz o sistema de volta a seu estado de produto de um sistema autopoiético é sua
equilíbrio homeostático, otimizando a ob- própria auto- organização32.
tenção da meta. A Primeira Cibernética
trata, pois, da capacidade de autoestabili- A autopoiese, como definida pelos autores, é a
zação, ou de automanutenção do sistema.
A Segunda Cibernética trata dos proces- característica inerente aos seres vivos de orga-
nizarem a si mesmos, continuamente . Essa
33
sos morfogenéticos (gênese de novas for-
mas), resultantes de retroação positiva ou organização acontece no plano interno, sendo
retroação amplificadora de desvios, am- referente à estrutura do sujeito; e, embora o am-
plificação que pode – caso não produza a
destruição do sistema, e se a estrutura do
biente possa deflagrar alterações no estado do
sistema permitir – promover sua transfor- 29 VASCONCELOS, C. M. Mediação de conflitos e práticas
mação, levando- o a um novo regime de restaurativas: modelos, processos, ética e aplicações. São
funcionamento. A Segunda Cibernética Paulo: Método, 2008.
trata então da capacidade de automudan- 30 BERTALANFFY, L. General system theory: foundations,
development, applications. 18. ed. rev. New York: George
ça do sistema.28 Braziller, 2015. Edição do Kindle.
31 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma
A noção de retroação, tanto positiva quanto ne- concepção unificada e suas implicações filosóficas,
gativa, é essencial para a mediação de conflitos, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014.
Edição do Kindle.
26 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma 32 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma
concepção unificada e suas implicações filosóficas, concepção unificada e suas implicações filosóficas,
políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014, p. políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014, p.
171. Edição do Kindle. 252. Edição do Kindle.
27 27VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o 33 MOREIRA, M. A. A epistemologia de Maturana. Ciência
novo paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018. e educação, v. 10, n. 3, p. 597-606, 2004. 34 KASPER, H. O
Edição do Kindle. processo de pensamento sistêmico: um estudo das principais
28 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo abordagens a partir de um quadro de referência proposto.
paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018, p. 327. 2000. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção) –
Edição do Kindle. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000.

166
organismo, é a própria estrutura que determina Grandesso aponta a importância da adoção de
quais alterações serão realizadas34. práticas colaborativas que levem em conta esse
histórico39.
O contato do organismo com o meio se dá por
meio do denominado acoplamento estrutural, o Na esfera do Direito, os fenômenos sociais fo-
qual se desenvolve ao longo da história de inte- ram analisados à luz da autopoiese por Niklas
rações do indivíduo com seu ambiente35. Quando Luhmann. O autor,
dois ou mais sistemas autopoiéticos interagem
entre si, e enquanto essa interação se mantiver À medida que se mantém interagindo com
seu ambiente, um organismo vivo passará
coerente, ambos os sujeitos estarão adaptados e
por uma sequência de mudanças estrutu-
ajustarão sua estrutura conforme se desenvolve
rais, e com o tempo formará o seu próprio
a relação, mas semprede acordo com seus res- caminho individual de acoplamento estru-
pectivos acoplamentos estruturais36. tural. Em qualquer ponto desse caminho,
a estrutura do organismo é um registro
À medida que se mantém interagindo com
de mudanças estruturais prévias e, desse
seu ambiente, um organismo vivo passará
por uma sequência de mudanças estrutu- modo, de interações prévias. Em outras
palavras, todos os seres vivos têm uma
rais, e com o tempo formará o seu próprio
história. A estrutura viva é sempre um re-
caminho individual de acoplamento estru-
gistro de desenvolvimentos anteriores40.
tural. Em qualquer ponto desse caminho,
a estrutura do organismo é um registro
Portanto, sempre que interagir com um novo sis-
de mudanças estruturais prévias e, desse
tema – seja com a outra parte em disputa, seja
modo, de interações prévias. Em outras
com o próprio mediador – cada indivíduo rea-
palavras, todos os seres vivos têm uma
história. A estrutura viva é sempre um re- girá de maneira diferente, embora influenciada,
gistro de desenvolvimentos anteriores37. pelos contextos anteriores. Essa intersubjetivi-
dade, como referem Vasconcelos41 e Grandesso42
No processo de mediação de conflitos, é ne- deve ser considerada por ocasião da mediação.
cessário levar em conta a história das pessoas
envolvidas, a história de sua interação e a his- 4.4 Pensamento sistêmico novoparadigmá-
tória do próprio conflito, que em muitos casos tico
se transforma em disputa38. Nesse contexto,
A visão sistêmica parte do pressuposto de que
a redução do fenômeno aos seus elementos im-
34 KASPER, H. O processo de pensamento sistêmico: um
estudo das principais abordagens a partir de um quadro plica na perda das propriedades emergentes da
de referência proposto. 2000. Dissertação (Mestrado em relação entre esses elementos – de tal maneira
Engenharia de Produção) – Universidade Federal do Rio Grande que o todo se apresenta com propriedades que
do Sul, Porto Alegre, 2000.
35 35 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: 39 GRANDESSO, M. A. (org). Práticas colaborativas e
uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, dialógicas em distintos contextos e populações: um
políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014. diálogo entre teoria e práticas. Curitiba: CRV, 2017.
Edição do Kindle. 40 STUMPF, M. A relação entre direito e psicologia a partir
36 KASPER, H. O processo de pensamento sistêmico: um da autopoiese de Maturana: uma observação sobre a
estudo das principais abordagens a partir de um quadro existência de um conteúdo psicológico cognitivo no
de referência proposto. 2000. Dissertação (Mestrado em sistema do direito em Luhmann. 2010, p. 68. Dissertação
Engenharia de Produção) – Universidade Federal do Rio Grande (Mestrado em Direito) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
do Sul, Porto Alegre, 2000. São Leopoldo, 2010.
37 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma 41 VASCONCELOS, C. M. Mediação de conflitos e práticas
concepção unificada e suas implicações filosóficas, restaurativas: modelos, processos, ética e aplicações. São
políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014, p. Paulo: Método, 2008.
255. Edição do Kindle. 42 GRANDESSO, M. A. Sobre a reconstrução dos
38 SUARÉS, M. Mediación. Conducción de disputas, significados: uma análise epistemológica e hermenêutica
comunicación y técnicas. Barcelona: Paidós, 1996. da prática clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

167
superam a simples soma das partes. A apreen- suficiente para perturbar o organismo e, possi-
são dos fenômenos sob tal prisma exige uma vi- velmente, disparar uma resposta autorregula-
são diferente, um novo paradigma da ciência: o dora50.
pensamento sistêmico novoparadigmático43.
Com isso, ficam excluídas as ideias de
Essa nova epistemologia, estudada por Maria neutralidade e de uma objetividade sem
José Esteves de Vasconcellos e por Marilene
Grandesso, pressupõe três dimensões a serem aspas. Pois o observador exerce, mesmo
consideradas: a complexidade, a intersubjetivi- inconscientemente, uma intervenção per-
dade e a instabilidade44. turbadora sobre aquilo que quer conhecer.
Em lugar daquela objetividade clássica,
A complexidade tem como grande expoente Ed- temos uma intersubjetividade51.
gar Morin45. Para ele, o pensamento complexo é
aquele que “articule as diferentes dimensões de A adoção do novo paradigma é uma realidade
um problema”46. em países como Canadá e França e se mostra
essencial para a prática da mediação e outras
Uma das consequências desse pensa- práticas colaborativas, dado seu potencial de
mento complexo é que, em vez de pen- alcançar todas as facetas do conflito52. Todavia,
sar a compartimentação estrita do saber, como adverte Tania Almeida, a prática ainda exi-
passa-se a focalizar as possíveis e neces- ge validação de grupos sociais maiores para que
sárias relações entre as disciplinas e a possa se instalar definitivamente53.
efetivação de contribuições entre elas, ca-
racterizando-se uma interdisciplinarida-
de. Aliás, o próprio Morin (1983) afirma que 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
o problema da epistemologia complexa é
fazer comunicar as instâncias separadas A mediação de conflitos se mostra em eviden-
do conhecimento47. te difusão no cenário jurídico brasileiro, nota-
damente a partir da década de 2010. Todavia, o
Por sua vez, a dimensão da instabilidade, tam-
material oficialdisponibilizado, seja por meio de
bém chamada de desordem ou de caos, é re-
textos normativos ou outros materiais de apoio
ceptiva à premissa de que determinados fe-
– como o Manual de Mediação Judicial – apre-
nômenos são imprevisíveis ou incontroláveis.
sentam evidente lacuna no que tange às bases
Esses processos, outrora tidos como empecilho
teóricas do instituto.
a ser removido pelo paradigma mecanicista, se
revelam como condição para a autorregulação48. Tal lacuna se revela como um problema a ser su-
perado, uma vez que o conhecimento das referi-
Por fim, a ideia de intersubjetividade está as-
das bases é essencial para a compreensão dos
sociada com a noção de autopoiese49, uma vez
princípios e adequada execução das técnicas de
que a presença do observador de um sistema é
mediação.
43 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo
paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018. Edição
do Kindle.
44 VASCONCELOS, C. M. Mediação de conflitos e práticas
restaurativas: modelos, processos, ética e aplicações. São
Paulo: Método, 2008.
45 MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. 5. ed. 50 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma
Porto Alegre: Sulina, 2015. concepção unificada e suas implicações filosóficas,
46 MORIN, E.; ANDRADE, J. M. T. Iniciação ao pensamento políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014.
complexo. 2015, p. 14/15. Edição do Kindle Edição do Kindle.
47 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo 51 VASCONCELOS, C. M. Mediação de conflitos e práticas
paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018, p. 158. restaurativas: modelos, processos, ética e aplicações. São
Edição do Kindle. Paulo: Método, 2008, p. 33.
48 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo 52 VASCONCELOS, C. M. Mediação de conflitos e práticas
paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018. Edição restaurativas: modelos, processos, ética e aplicações. São
do Kindle. Paulo: Método, 2008.
49 ESTEVES-VASCONCELLOS, M. A nova teoria geral dos 53 ALMEIDA, T. Caixa de ferramentas em mediação:
sistemas: dos sistemas autopoiéticos aos sistemas aportes práticos e teóricos. São Paulo: Dash, 2014. Edição do
sociais. São Paulo: Vortobooks, 2013. Edição do Kindle. Kindle.

168
ALMEIDA, T. Caixa de ferramentas em mediação: aportes práticos e teóricos. São Paulo: Dash,
2014. Edição do Kindle.

AZEVEDO, A. G. (Org.). Manual de Mediação Judicial. 6. ed. Brasília: CNJ, 2016. BARBOSA, A. A.
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meio de solução de controvérsias[...]. Brasília, DF: Presidência da República, [2023].

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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução n.º 125, de 29 de novembro de 2010. Dispõe so-
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SUARÉS, M. Mediación. Conducción de disputas, comunicación y técnicas. Barcelona: Paidós,


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VASCONCELOS, C. M. Mediação de conflitos e práticas restaurativas: modelos, processos, ética


e aplicações. São Paulo: Método, 2008.

170
18
AS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A
MULHER PREVISTAS NA LEI 11.340/2006

Palavras-chave
Lei n° 11.340 - Violência - Mulher

Wallas Richerd Trovelli


Pós-Graduando em Direito Constitucional – Instituto Damásio de Direito da Faculdade IBMEC/SP.
Pós-Graduado em Direito das Mulheres – UNIDOMBOSCO. Graduado em Direito - Centro Universitá-
rio de Bauru mantido pela Instituição Toledo de Ensino. Atualmente, é membro da Comissão “OAB
VAI À ESCOLA” da OAB/BAURU, assim como representante suplente da OAB/BAURU no Fórum Muni-
cipal de Educação de Bauru/SP. Advogado.

171
1. INTRODUÇÃO duos, ou seja, no local em que convivem de forma
permanente. Por outro lado, a violência familiar
No Brasil, após muitos anos de luta por uma pro- se dá entre sujeitos que são parentes consan-
teção maior às mulheres, surgiu a Lei 11.340/2006 guíneos ou por afinidade. Ademais, no caso de
denominada Lei Maria da Penha que represen- violência decorrente de relação íntima de afeto,
tou um verdadeiro avanço na legislação pátria a Lei Maria da Penha também deve ser aplicada
no que atine ao enfrentamento à violência contra ainda que a vítima e o autor não estejam residin-
mulher. Inclusive, o mencionado diploma legal do na mesma casa.
foi considerado pela Organização das Nações
Unidas como sendo o terceiro mais avançado Em seguida, ressalta-se que o artigo 7º da Lei
sobre o tema no mundo. Entretanto, de acordo 11.340/20063 prevê cinco formas de violência,
com dados apresentados pelo Fórum Brasileiro quais sejam: física, psicológica, sexual, patrimo-
de Segurança Pública entre 2016 e 2021, houve nial e moral. Porém não se trata de um rol taxa-
um aumento nos casos de feminicídio no Brasil, tivo de ações e omissões, é meramente exem-
ou seja, a violência de gênero continua ceifando plificativo, tendo em vista que pode haver outras
a vida de milhares de mulheres1. formas de violência, tais como a obstétrica, po-
lítica, institucional e religiosa. É importante se
O objetivo da pesquisa é explicar o que é a vio- debruçar sobre o estudo dos tipos de violência
lência doméstica e familiar, as suas formas pre- para se alcançar uma maior compreensão das
vistas em lei e principais características, haja condutas que podem caracterizá-las e identifi-
vista que a mulher somente consegue pedir aju- car se determinada mulher se encontra ou não
da para romper o relacionamento abusivo quan- na posição de vítima em dada situação.
do compreende que se encontra em situação de
violência e que está presa num ciclo perverso. Ao cabo, com a finalidade de se ter em mente
as peculiaridades e complexidades da violência
Dessa forma, na presente pesquisa, cuja abor- doméstica e familiar, busca-se esclarecer o ci-
dagem metodológica consiste na Revisão Biblio- clo de violência, o qual é composto pela fase da
gráfica dos temas, a qual também é classificada tensão, da explosão e da “lua de mel”. Além disso,
como Referencial Teórico ou de Revisão de Lite- assevera-se que quanto mais vezes esse ciclo
ratura (SANTOS e CANDELORO, 2006)2, busca-se se completa, mais risco a vítima está correndo,
apresentar com muito esmero as importantes pois, a intensidade da violência aumenta e, em
contribuições científicas de determinados au- muitos casos, culmina na ocorrência do crime
tores e pesquisadores sobre as diversas formas de feminicídio.
de violência que podem ser praticadas contra a
mulher.

Procura-se esclarecer que a violência domésti-


ca é aquela que ocorre na residência dos indiví-
3 BRASIL. Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria
1 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Medidas mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
protetivas de urgência e o princípio da vedação à proteção contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição
insuficiente: uma questão de eficácia dos direitos fundamentais Federal, da Convenção sobrea Eliminação de Todas as
da mulher. In: Fórum brasileiro de Segurança Pública. Anuário Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
Brasileiro de Segurança Pública 2022. São Paulo: FBSP, 2022. Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
p. 156. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp- contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5>. Acesso em: Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código
02 nov. 2022. de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução
2 SANTOS, Vanice dos; CANDELORO, Rosana J. Trabalhos Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://
acadêmicos: uma orientação para pesquisa e normas www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.
técnicas. Porto Alegre: RS AGE, 2006. htm>. Acesso em: 29 out. 2022.

172
2. BREVE HISTÓRICO DA mulheres, assim como haver o mandamento
LEI Nº 11.340/2006 constitucional disposto no artigo 226, § 8º, da
Constituição Federal, a Lei 11.340/2006 somen-
De proêmio, a origem da Lei nº 11.340/2006 não te surgiu no ano de 2006, ante a recomendação
se restringe ao comando constitucional contido da Organização dos Estados Americanos decor-
no artigo 226, § 8º, da Constituição Federal, mas rente de condenação imposta ao Brasil no caso
guarda íntima relação com uma pluralidade de envolvendo a farmacêutica Maria da Penha Maia
tratados internacionais ratificados pela Repúbli- Fernandes (LIMA, 2019)8.
ca Federativa do Brasil (LIMA, 2019)4.
É nítido que o Brasil demorou demasiadamente
Em 1975, na cidade do México, a Organização para produzir um sistema jurídico voltado para
das Nações Unidas promoveu a I Conferência o enfrentamento da violência de gênero, sendo
Mundial sobre a Mulher, a qual resultou na Con- o 18º país da América Latina a criar uma lei de
venção sobre a Eliminação de Todas as Formas proteção integral à mulher (BIANCHINI; BAZZO;
de Discriminação contra as Mulheres. Ademais, CHAKIAN, 2022)9.
no ano de 1980, em Copenhague, foi realizada a II
No Brasil, houve um acontecimento que foi cru-
Conferência Mundial sobre a Mulher. Outrossim,
cial para a criação da Lei 11.340/2006. O profes-
em 1985, na cidade de Nairóbi, a III Conferência
sor universitário Marco Antônio Heredia Viveros
Mundial sobre a Mulher. Após alguns anos, em
praticou diversas formas de violência doméstica
1993, a violência contra a mulher foi reconhe-
e familiar contra a sua ex-esposa Maria da Pe-
cida como uma forma de violação aos direitos
nha. Inclusive, em 1983, tentou ceifar de forma
humanos, em razão da Conferência de Direitos
cruel a sua vida em mais de uma oportunidade.
Humanos das Nações Unidas, realizada em Vie-
Na primeira vez, atirou contra as costas de Ma-
na (LIMA, 2019)5.
ria da Penha, que ficou paraplégica. Em ocasião
Por sua vez, no âmbito regional, em 1994, a As- posterior, tentou matá-la mediante eletrocus-
sembleia Geral da Organização dos Estados são. Sobre isso, veja-se a narrativa desvelada
Americanos adotou a Convenção Interamerica- por Dias10:
na para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Mas não foi somente a referência presi-
Doméstica (BIANCHINI; BAZZO; CHAKIAN, 2022)6,
dencial que justifica ser ela assim cha-
que passou a compor o ordenamento jurídico mada. A menção tem origem na dolorosa
brasileiro mediante o Decreto n° 1.973/96, com história de Maria da Penha Maia Fernan-
status supralegal. Nesse contexto, a violência des, uma farmacêutica casada com um
contra a mulher começou a ser percebida como professor universitário e economista. Eles
um grave problema de saúde pública (LIMA, viviam em Fortaleza – CE, e tiveram três fi-
2019)7. lhas. Além das inúmeras agressões de que
foi vítima, em duas oportunidades o mari-
Malgrado existir no Sistema Internacional de do tentou matá-la. Na primeira vez, em 29
Direitos Humanos diversas Convenções In- de maio de 1983, simulou um assalto, fa-
ternacionais tratando acerca dos direitos das zendo uso de uma espingarda. Resultado,
4 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial deixou-a paraplégica. Poucos dias depois
comentada. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1475.
5 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial 8 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial
comentada. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1476. comentada. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1476.
6 BIANCHINI, Alice; BAZZO, Mariana; CHAKIAN, Silvia. Crimes 9 BIANCHINI, Alice; BAZZO, Mariana; CHAKIAN, Silvia. Crimes
contra mulheres: Lei Maria da Penha, Crimes Sexuais e contra mulheres: Lei Maria da Penha, Crimes Sexuais e
Feminicídio. 4. ed. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 29. Feminicídio. 4. ed. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 31.
7 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial 10 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8.
comentada. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1476. ed. Salvador: Juspodivm, 2022. p. 17.

173
de ter retornado do hospital, na nova ten- investigações acerca do caso Maria da Penha na
tativa, buscou eletrocutá-la por meio de justiça brasileira (CAMPOS, 2007)13.
uma descarga elétrica enquanto ela toma-
va banho (DIAS, 2022, p. 17). Nesse sentido, a Organização dos Estados Ame-
ricanos enviou quatro ofícios para o Brasil re-
Maria da Penha logrou êxito em sair do relacio- querendo uma explicação sobre a demasiada
namento abusivo, porém passou a ser vítima da demora na conclusão da ação penal movida
violência institucional, vez que o 1º julgamen- contra o agressor de Maria da Penha. Entretan-
to do autor da agressão ocorreu somente após to, nenhum desses ofícios foram respondidos
8 anos da data dos fatos, no dia 4 de maio de (CUNHA; PINTO, 2022)14.
1991, ocasião na qual o algoz foi condenado pelo
Egrégio Tribunal do Júri a oito anos de prisão. Assim, em 2001, a Organização dos Estados
Todavia, o julgamento foi anulado, já que o re- Americanos elaborou o relatório nº 54, no qual
curso interposto pela defesa do agressor foi aco- o Brasil foi condenado internacionalmente pela
lhido. Ademais, no ano de 1996, foi submetido a negligência em punir efetivamente os autores
novo júri, no qual lhe foi imposta uma pena de de violência doméstica, assim como emitiram
dez anos e seis meses de reclusão. Entretanto, algumas recomendações (DIAS, 2022)15. Neste
mais uma vez, recorreu e lhe foi concedido o di- ponto, cumpre destacar que foi recomendada
reito de aguardar em liberdade o julgamento da a conclusão célere e efetiva do processo penal
apelação. Em 2002, após dezenove anos e seis movido contra Marco Antônio Heredia Viveros,
meses da data dos fatos, foi preso. Contudo, não bem como a mudança das leis brasileiras, vi-
cumpriu sequer 1/3 (um terço) da pena em re- sando a proteção das mulheres em situação de
gime fechado, pois conseguiu ser beneficiado violência.
com a progressão de regime prisional (CUNHA;
PINTO, 2022)11. No dia 7 de agosto de 2006, observando as reco-
mendações da Organização dos Estados Ameri-
Importante apontar que ante o latente descaso canos, foi sancionada pelo presidente Luiz Iná-
da justiça brasileira com o caso de violência do- cio Lula da Silva a Lei nº 11.340/2006, batizada
méstica que envolveu Maria da Penha, o Centro com o nome Maria da Penha. O mencionado di-
pela Justiça e o Direito Internacional juntamen- ploma legal foi denominado dessa forma porque,
te com o Comitê Latino-Americano e do Caribe de acordo com a recomendação nº 316, o Esta-
para a Defesa dos Direitos da Mulher formali- do deveria proporcionar à Maria da Penha uma
zaram denúncia à Comissão Interamericana de reparação simbólica pelas violações de direitos
Direitos Humanos da Organização dos Estados sofridas durante quase vinte anos.
Americanos (DIAS, 2022)12.
A Lei n° 11.340/2006 representa um verdadeiro
É importante ressaltar que em observância ao marco no enfrentamento à violência contra a
estabelecido na Convenção Interamericana para 13 CAMPOS, Roberta Toledo. Aspectos constitucionais e penais
Prevenir e Erradicar a Violência contra a Mulher significativos da Lei Maria da Penha. De jure, Revista Jurídica
do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Belo
(Convenção de Belém do Pará), a Organização Horizonte: Ministério Público do Estado de Minas Gerais, n. 8, p.
dos Estados Americanos acatou de forma iné- 271-286, jan.-jun. 2007.
dita uma denúncia relacionada à prática de vio- 14 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Lei Maria
da Penha comentada artigo por artigo. 12. ed. São Paulo:
lência contra a mulher, bem como iniciou várias JUSPODIVM, 2022, p. 27.
15 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8.
11 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Lei Maria ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 18.
da Penha comentada artigo por artigo. 12. ed. São Paulo: 16 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS.
JUSPODIVM, 2022, p. 24. CASO 12.051, Relatório Nº 54/01, (Maria da Penha Maia
12 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. Fernandes) (BRASIL). Disponível em <https://cidh.oas.org/
ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 18. annualrep/2001port/capitulo3c.htm>. Acesso em: 01 nov. 2022.

174
mulher no Brasil, inclusive foi considerada um porém fáceis de serem curados. Depois de um
dos exemplos de legislação mais avançada so- tempo se tornarão visíveis, mas já não se haverá
bre violência doméstica pelo Fundo de Desen- mais o que fazer, pois a doença terá consumi-
volvimento das Nações Unidas para a Mulher do todo o fôlego de vida outrora existente. Nesse
no Relatório Progresso das Mulheres no Mundo esteio, é oportuno destacar a lição de Maquiá-
2008/200917. vel19:

Contudo, apesar de a Lei Maria da Penha repre- Quem atalha os males com bastante an-
sentar um verdadeiro avanço legislativo na pro- tecedência pode, sem grande esforço,
teção das mulheres, de acordo com dados apre- dar-lhes remédios. Quem espera, porém,
sentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança que eles se aproximem, debalde tentará
Pública, entre 2016 e 2021, houve um aumento de debelá-los; a doença tornou-se incurável.
E ocorre com esta o que os médicos dizem
44,3% nos casos de feminicídio no Brasil18, o que
a respeito da tuberculose; isto é, ser ela no
demonstra que há muito trabalho a ser realizado
princípio fácil de curar e difícil de perce-
no enfrentamento à violência contra a mulher.
ber, mas, se não foi percebida e tratada no
Dessa forma, é possível verificar que, ao longo início, torna-se, com o andar do tempo, fá-
cil de perceber e difícil de curar. O mesmo
dos anos, as mulheres receberam maior visibi-
se dá com os negócios do estado. Quando
lidade e lograram êxito em alcançar uma prote-
(e isto só é concedido a um homem pru-
ção maior tanto no âmbito internacional quanto
dente) se consegue distinguir os males
nacional, porém o enfrentamento à violência do- apenas começam a surgir, fácil é destruí-
méstica e familiar deve continuar, porque ainda -los; quando, porém, tendo passado des-
são muitos os casos de feminicídio no Brasil. percebidos, se desenvolvem até o ponto
de serem visíveis de todos, já não há como
3. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E combatê-los (MAQUIÁVEL, 2019, p. 28)
FAMILIAR CONTRA A MULHER
Deve se ter em mente a brilhante lição do filó-
sofo, citado alhures, ao olhar para violência do-
É notório que uma pessoa somente consegue
méstica contra a mulher, vez que no começo
realizar um tratamento médico eficaz para en-
essa sequer percebe que está ocupando o lugar
frentar determinada doença a partir do momen-
de vítima numa situação de violência. Todavia,
to em que a patologia é devidamente diagnos-
às vezes, quando a mulher consegue enxergar
ticada, vez que enquanto o indivíduo não tem
o que está acontecendo acaba tendo a sua vida
conhecimento sobre a sua condição de doente,
ceifada pelo algoz.
e, apesar de estar correndo um sério risco de
morte, segue a sua vida como se nada estives- A mulher em situação de violência doméstica
se acontecendo. Ademais, há alguns males que e familiar precisa, em um primeiro momento,
a princípio são difíceis de serem percebidos, enxergar que está sofrendo alguma das formas
de violências insculpidas no artigo 7º da Lei
17 ONU MULHERES. Progresso das mulheres no mundo
2008/2009. Disponível em <http://www.onumulheres.org.br/ 11.340/2006, para ter condições de pedir ajuda e
wp-content/uploads/2019/11/Portuguese-POWW-2008-indd. conseguir romper o ciclo de violência.
pdf> Acesso em: 02 nov. 2022.
18 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Medidas Com efeito, o feminicídio é a ponta do iceberg,
protetivas de urgência e o princípio da vedação à proteção
insuficiente: uma questão de eficácia dos direitos fundamentais isto é, o cume do ciclo da violência, vez que antes
da mulher. In: Fórum brasileiro de Segurança Pública. Anuário
Brasileiro de Segurança Pública 2022. São Paulo: FBSP, 19 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe / Maquiavel; com notas
2022. p. 156. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/ de Napoleão Bonaparte e Cristina da Suécia. Tradução:
wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5>. Acesso Mário e Celestino da Silva. Brasília: Senado Federal, Conselho
em: 02 nov. 2022. Editorial, 2019, p. 28.

175
do mencionado crime ocorrer, o autor da violên- sexual, psicológica e patrimonial da vítima e são
cia, normalmente, já praticou contra a vítima ou- praticadas com o escopo de causar seu sofri-
tras formas de violências, tais como, psicológica, mento.
moral, patrimonial, sexual, as quais não são tão
perceptíveis. Nesse sentido, para uma melhor compreensão
sobre o que é violência doméstica e familiar
A esse respeito, cumpre consignar que a Con- contra a mulher, o legislador infraconstitucio-
venção Interamericana para Prevenir, Punir e nal pátrio desenvolveu com muito esmero uma
Erradicar a Violência Contra a Mulher, desem- definição, a qual se encontra abrigada na norma
penhou um papel de extrema relevância ao dis- contida no artigo 5º da Lei Maria da Penha (BRA-
correr sobre o conceito de violência contra a SIL, 2006)22.
mulher (COMISSÃO, 1994)20: “[...] entender-se-á
por violência contra a mulher qualquer ato ou Segundo o mencionado dispositivo legal, a vio-
conduta baseada no gênero, que cause morte, lência doméstica é aquela que ocorre no espaço
dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico em que determinadas pessoas convivem de for-
à mulher, tanto na esfera pública como na esfera ma permanente, sendo desnecessária a existên-
privada”. cia de vínculo familiar, assim como compreende
também aqueles indivíduos esporadicamente
Como se vê, em que pese muitos terem uma agregados. Por sua vez, a violência familiar é a
ideia mitigada sobre o que é violência, vez que a verificada entre sujeitos que são parentes con-
reduzem apenas à violação da integridade física sanguíneos ou por afinidade. Ademais, o legis-
de outrem, há diversas formas de violência que lador estendeu o âmbito de aplicação da Lei
podem ser praticadas contra a mulher em razão 11.340/2006 para os casos de violência decorren-
do gênero. Nessa toada, se faz salutar destacar tes de relação íntima de afeto, ainda que a vítima
as palavras de Alemany21: e o autor não estejam residindo na mesma casa.

As violências praticadas contra as mulhe- Não se pode olvidar que também deve ser apli-
res devido ao seu sexo assumem múltiplas cada a Lei Maria da Penha, caso seja verificada
formas. Elas englobam todos os atos que, a prática de alguma das formas de violência do-
por meio de ameaça, coação ou força, lhes méstica e familiar contra vítima lésbica, travesti
infligem, na vida privada ou pública, so- ou transexual (CUNHA; PINTO, 2022)23.
frimentos físicos, sexuais ou psicológicos
com a finalidade de intimidá-las, puni-las, Outrossim, de acordo com o artigo 6º da Lei nº
humilhá-las, atingi-las na sua integridade 11.340/2006, a violência doméstica e familiar
física e na sua subjetividade (ALEMANY, contra a mulher representa uma forma específi-
2009, p. 271). ca de violação de direitos humanos. No dizer de
Por tudo isso, como foi destacado acima, per- 22 BRASIL. Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
cebe-se que o conceito de violência é amplo, contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição
pois engloba uma pluralidade de condutas com Federal, da Convenção sobrea Eliminação de Todas as
o condão de violar a integridade física, moral, Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
20 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código
Erradicar a Violência Contra a Mulher, Convenção de Belém de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução
do Pará. Disponível em < http://www.cidh.oas.org/basicos/ Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://
portugues/m.Belem.do.Para.htm>. Acesso em: 01 nov. 2022. www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.
21 ALEMANY, Carme. Violências. In: HIRATA, Helena; LABORIE, htm>. Acesso em: 29 out. 2022.
Francoise; DOARÉ, Hélène Le; SENOTIER, Danièle (Orgs.). 23 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Lei
Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: UNESP, p. 271-276, Maria da Penha comentada artigo por artigo. 12. ed. São
2009. Paulo: JUSPODIVM, 2022, p. 84.

176
Delgado24: derá-la como algo natural.

A violência doméstica e familiar contra a 3.1 Formas de violência doméstica e familiar


mulher caracteriza forma específica de contra a mulher
violação dos direitos humanos. Essa vio-
lação é representada por qualquer ação O legislador infraconstitucional no Capítulo II, do
ou omissão baseada no gênero que cause Título II, da Lei nº 11.340/200626, trouxe à baila al-
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou gumas formas de violência que podem ser pra-
psicológico e dano moral ou patrimonial e ticadas contra a mulher no âmbito doméstico ou
tenha sido praticada no âmbito da unidade familiar. Todavia, se faz imprescindível destacar
doméstica, no âmbito da família ou no âm- que não se trata de um rol taxativo de ações e
bito de qualquer relação íntima de afeto, omissões, posto que no diploma legal está pre-
na qual o agressor conviva ou tenha convi-
visto de forma expressa que pode haver outras
vido com a ofendida, independentemente
formas de violência.
de coabitação (DELGADO, 2015, p. 101).
Não se pode olvidar que o dispositivo legal cita-
De fato, é possível compreender a gravidade da
do buscou elucidar as cinco formas de violência
violência doméstica e familiar contra a mulher
que podem ser praticadas contra à mulher no
dado que, como já destacado alhures, repre-
âmbito de incidência da Lei 11.340/2006, quais
senta verdadeira violação de direitos humanos.
sejam, física, psicológica, sexual, patrimonial e
Outrossim, a fim de corroborar essa afirmação,
moral. Contudo, cumpre salientar que existem
é importante destacar a lição de Dias25, a saber:
outras formas, tais como, a violência obstétrica,
[...] a violência doméstica é o gérmen da política, institucional e religiosa27.
violência que está assustando a todos,
mundo afora. Quem vivencia a violência – A primeira forma de violência prevista na Lei
muitas vezes até antes de nascer e duran- 11.340/2006 é a física, essa ocorre quando o au-
te toda a infância – só pode achar natural tor da violência mediante o uso da força causa
o uso da força física. Quando o agressor lesão à integridade corporal da mulher. Nes-
foi vítima de abuso ou de violência na in- se caso, a sua conduta pode se enquadrar, por
fância, tem medo e, para sentir-se seguro, exemplo, naquelas tipificadas como crime de
precisa ter o controle da situação. A forma lesão corporal, homicídio e vias de fato. Nesse
que encontra é desprezar, insultar, agre- ponto, importante destacar a lição de Lima28:
dir. Também a impotência da vítima – que
não consegue denunciar o agressor – gera,
nos filhos, a consciência de que a violência
é um fato natural. (DIAS, 2022, p. 31). 26 BRASIL. Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
Destarte, sem embargo, pode-se declinar que a contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição
violência doméstica é a gênese de outras for- Federal, da Convenção sobrea Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
mas de violências, haja vista que as pessoas que Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
crescem e se desenvolvem como seres huma- contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
nos no âmago de um lar marcado pela violência Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código
de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução
de gênero, a normalizam, pois, começam consi- Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.
24 DELGADO, Mário Luiz. A violência patrimonial contra htm>. Acesso em: 29 out. 2022.
a mulher nos litígios de família. Disponível em: <https:// 27 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Lei Maria
ibdfam.org.br/assets/upload/anais/237.pdf>. Acesso em: 03 da Penha comentada artigo por artigo. 12. ed. São Paulo:
nov. 2022. JUSPODIVM, 2022, p. 109.
25 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. 28 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial
ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 31. comentada. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1.490.

177
Como se percebe, violência física (vis cor- A segunda forma de violência mencionada na
poralis) é o emprego de força física sobre Lei n° 11.340/2006 é a psicológica, que apesar
o corpo da vítima, visando causar lesão de causar danos gravíssimos à vítima, ocorre
à integridade ou à saúde corporal da ví- sorrateiramente e, por isso, em alguns casos, a
tima. São exemplos de violência física, mulher não consegue sequer percebê-la. Nas
ofensivas à integridade, as fraturas, fissu- palavras de Dias32:
ras, escoriações, queimaduras, luxações,
equimoses e hematomas. A ofensa à saú- A violência psicológica encontra forte ali-
de corporal, por sua vez, compreende as cerce nas relações desiguais de poder en-
perturbações fisiológicas (desarranjo no tre os sexos. É a violência mais frequente
funcionamento de algum órgão do corpo e, certamente, seja a menos denunciada.
humano) ou mentais (alteração prejudicial A vítima, muitas vezes, nem se dá conta
da atividade cerebral). Como exemplos de de que agressões verbais, ameaças, silên-
crimes praticados com violência física, cios prolongados, tensões, manipulações
podemos citar as diversas espécies de le- de atos e desejos configuram violência e
são corporal (CP, art. 129), o homicídio (CP, devem ser denunciadas. A ausência de
art. 121) e até mesmo a contravenção penal vestígios físicos não torna a violência in-
de vias de fato (Dec.-Lei nº 3.688/41, art. visível ou inexistente. Especialmente nes-
21). (LIMA, 2019, p. 1.490). sas hipóteses, a palavra da vítima dispõe
de significativa força probante.
Ao que se verifica, Lima (2019), além de explicar
a violência física, apresentou alguns exemplos A violência psicológica consiste na agres-
como as fraturas, queimaduras e hematomas. são emocional, que é tão ou mais grave
Ademais, não se pode deixar de registrar que que a violência física. [...] (DIAS, 2022, p.
Cunha e Pinto (2022, p. 71)29 também menciona- 88).
ram o emprego de socos, tapas, pontapés, em-
Tem-se, então, que segundo o que foi destacado
purrões e o arremesso de objetos, como meios
pela autora citada, ainda que a violência psico-
de se praticar essa forma de violência.
lógica seja a mais frequente, é a menos denun-
Outrossim, cumpre salientar que malgrado a ciada, dado que como não deixa vestígios ma-
ação cabível no crime de lesão corporal leve teriais, a vítima não a percebe. Ademais, apesar
ser a pública condicionada à representação, de de ser invisível é tão nociva quanto a violência
acordo com o artigo 88 da Lei 9.099/9530, nos física, vez que essas agressões produzem feri-
casos em que tal crime for praticado no âmbito das na alma. Sobre isso, vale transcrever a lição
de incidência da Lei Maria da Penha, a ação será de SAFFIOTI33:
pública incondicionada, pois segundo o artigo 41
[...] Os resultados destas agressões não
da Lei 11.340/2006 não é admitida a aplicação da
são feridas no corpo, mas na alma. Vale
Lei dos Juizados Especiais nos crimes de vio- dizer feridas de difícil cura. Nas cerca
lência doméstica e familiar contra a mulher31.
29 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Lei Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Maria da Penha comentada artigo por artigo. 12. ed. São contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Paulo: JUSPODIVM, 2022, p. 71. Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código
30 BRASIL. Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução
sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.
ccivil_03/leis/l9099.htm>. Acesso em: 02 nov. 2022. htm>. Acesso em: 29 out. 2022.
31 BRASIL. Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria 32 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8.
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 88.
contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição 33 SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado,
Federal, da Convenção sobrea Eliminação de Todas as violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, Fundação
Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Perseu Abramo, 2015, p. 66-67.

178
de 300 entrevistas feitas com vítimas na também podem configurar violência psicológi-
pesquisa Violência doméstica: questão ca apesar de não estarem expressamente pre-
de polícia e da sociedade foi frequente as vistas no diploma legal.
mulheres se pronunciarem a respeito da
maior facilidade de superar uma violência No ano de 2021, entraram em vigor duas leis
física, como empurrões, tapas, pontapés, muito importantes especificamente no enfren-
do que humilhações. De acordo com elas, tamento à violência psicológica contra a mulher.
a humilhação provoca uma dor muito pro- A primeira delas foi a Lei nº 14.13236, a qual tipifi-
funda. [...] (SAFFIOTI, 2015, p. 66-67). cou como crime a conduta de perseguir alguém,
nos termos do artigo 147-A do Código Penal37,
O processo de cura da violência psicológica é
bem como previu no inciso II, do § 1º, do referido
mais árduo em razão da sua profundidade. Ora,
dispositivo legal, uma causa de aumento que o
para se tratar de um corte ou de uma queima-
magistrado deve aplicar quando a infração pe-
dura, basta a vítima se valer do uso de alguns
nal for praticada contra mulher por razões da
medicamentos. Contudo, para conseguir su-
condição de sexo feminino.
perar uma situação humilhante, às vezes, são
necessários anos de terapia, assim como de Além disso, também entrou em vigor a Lei n°
intervenção psiquiátrica, pois a ferida encon- 14.188 de 202138, que foi a responsável por criar o
tra-se localizada na zona abissal do ser huma- crime de violência psicológica contra a mulher
no em situação de violência. Tal entendimento previsto no artigo 147-B do Código Penal39.
é compartilhado por Dias (2022)34, a qual desta-
cou que as feridas visíveis, depois de determi- Malgrado o legislador já ter discorrido sobre a
nado tempo, acabam desaparecendo. Todavia, violência psicológica no artigo 7º da Lei Maria
os traumas psicológicos, tais como, a perda da da Penha, verificou-se a necessidade de criar
autoestima, o sentimento de menos valia e a de- o crime do artigo 147-B do Código Penal visan-
pressão, não se cicatrizam, ou seja, reverberam do assegurar uma proteção mais eficaz e am-
pelo resto da vida da mulher vítima de violência.
36 BRASIL. Lei 14.132, de 31 de março de 2021. Acrescenta o
Como consequência da gravidade dessa forma art. 147-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940
de violência, a Convenção Interamericana para (Código Penal), para prever o crime de perseguição; e revoga o
art. 65 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Domésti- Contravenções Penais). Disponível em: <https://www.planalto.
ca, batizada como Convenção de Belém do Pará, gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14132.htm#art2>.
desempenhou um papel de extrema relevância Acesso em: 02 nov. 2022.
37 BRASIL. Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível
na proteção da mulher em diversos aspectos, em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/
inclusive foi a responsável por incluir a violência del2848compilado.htm>. Acesso em: 27 out. 2022.
psicológica como espécie de violência contra a 38 BRASIL. Lei 14.188, de 28 de julho de 2021. Define o
programa de cooperação Sinal Vermelho contra a Violência
mulher (DIAS, 2022)35. Doméstica como uma das medidas de enfrentamento da
violência doméstica e familiar contra a mulher previstas na
Ademais, é válido ressaltar que o legislador in- Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), e
fraconstitucional foi zeloso ao mencionar algu- no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código
Penal), em todo o território nacional; e altera o Decreto-Lei
mas condutas que caracterizam esse tipo de nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para
violência, quais sejam, ridicularizar, manipular, modificar a modalidade da pena da lesão corporal simples
humilhar, ameaçar, constranger, isolar, chan- cometida contra a mulher por razões da condição do sexo
feminino e para criar o tipo penal de violência psicológica
tagear, perseguir, insultar; porém outras ações contra a mulher. Disponível em:<https://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_Ato20192022/2021/Lei/L14188.htm#art4>. Acesso
34 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. em: 02 nov. 2022.
ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 88-89. 39 BRASIL. Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
35 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 89. lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 27 out. 2022.

179
pla às mulheres, posto que o citado tipo penal cada, inferiorizada, insegura, culpada por to-
não se restringe apenas às relações domésticas dos os problemas da relação, ou seja, a coloca
e familiares albergadas na Lei nº 11.340/2006. numa posição de extrema vulnerabilidade (DIAS,
Sobre o alargamento da abrangência protetiva 2022)41.
da mulher vítima de violência psicológica, des-
taca-se a desvelada lição de BIANCHINI, BAZZO É importante ressaltar que as vítimas de vio-
e CHAKIAN40: lência psicológica não precisam apresentar um
laudo técnico ou realizar alguma perícia para fa-
O crime de violência psicológica inova ao zer o registro do Boletim de Ocorrência a fim de
prever como sujeito passivo, exclusiva-
submeter o autor da violência aos cuidados do
mente a vítima mulher, expandindo seu al-
Estado (DIAS, 2022)42.
cance protetivo para além do contexto da
Lei Maria da Penha (ambiente doméstico, Outra forma de violência prevista na Lei Maria
familiar ou das relações íntimas de afeto). da Penha é a sexual. Essa resta caracterizada
Isso porque o novo crime abrange todas as
quando o agente obriga a vítima a presenciar,
demais situações de violência psicológica
a manter ou a participar de relação sexual não
contra a mulher, praticadas no âmbito pú-
blico ou privado, desde que, evidentemen-
consentida, mediante intimidação, ameaça, co-
te, tenha lhe causado dano emocional, nos ação ou uso da força. Ademais, a violência ora
termos descritos pelo legislador. Pode, examinada também se evidencia quando o al-
portanto, abranger situações de violência goz induz a mulher a comercializar ou a utilizar,
que ocorrem no ambiente de trabalho, nos de qualquer modo, a sua sexualidade. Ainda,
estabelecimentos de ensino, espaços de a conduta consistente em impedir a vítima de
cultos religiosos e até consultórios e hos- usar qualquer método contraceptivo ou que a
pitais, por exemplo nos casos de violência force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
obstétrica que acarreta danos emocio- prostituição, mediante coação, chantagem, su-
nais para a paciente. (BIANCHINI, BAZZO e borno ou manipulação, bem como que limite ou
CHAKIAN, 2022, p. 148). anule o exercício de seus direitos sexuais e re-
produtivos, configura essa espécie de violência.
Destarte, a partir da leitura da citação cola-
cionada alhures, constata-se que o legislador Sobre o tema, na presente oportunidade, faz-se
infraconstitucional ao tipificar como crime a salutar destacar a diligente lição de Alemany
violência psicológica no artigo 147-B do Código (2009)43, que ressalta a falta de consentimento
Penal buscou resguardar a mulher em diversos como pressuposto do crime de estupro:
âmbitos, vez que não restringiu a incidência do
dispositivo legal apenas às condutas praticadas As feministas americanas foram as pri-
no contexto doméstico e familiar. meiras que, desde o início dos anos 70, de-
nunciaram a violência sexual. Destacando
Outrossim, entre as diversas ações que podem que o estupro particularmente supõe o
caracterizar a violência psicológica, nesse pon- não consentimento da vítima, elas desen-
to, vale destacar um tipo de abuso psicológico volvem análises teóricas distinguindo-se
denominado gaslighting, que se evidencia nas dos estudos criminológicos que, com seus
situações em que o autor, visando manter a mu-
41 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8.
lher sob a sua dominação, vale-se da utilização ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 91.
de uma forma de manipulação muito intensa, 42 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8.
fazendo com que a vítima se sinta desqualifi- ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 92.
43 ALEMANY, Carme. Violências. In: HIRATA, Helena; LABORIE,
40 BIANCHINI, Alice; BAZZO, Mariana; CHAKIAN, Silvia. Crimes Francoise; DOARÉ, Hélène Le; SENOTIER, Danièle (Orgs.).
contra mulheres: Lei Maria da Penha, Crimes Sexuais e Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: UNESP, p. 271-276,
Feminicídio. 4. ed. São Paulo: Juspodivm, 2022. 2009.

180
preconceitos androcêntricos, privilegiam tima, assim como quando causa danos à coisa
as teorias vitimológicas (ou interacionis- de propriedade da mulher. Exemplificando, há
ta), que fazem da relação entre a vítima e o violência patrimonial no caso em que o agressor
autor um elemento explicativo fundamen- mata o animal de estimação da vítima. Ademais,
tal. Esses estudos tiveram grande eco em também há essa forma de violência na hipó-
outros países anglo-saxões e depois na tese em que o alimentante deixa de cumprir a
França (ALEMANY, 2009, p. 272).
obrigação de pagar alimentos, conforme dispõe
Ademais, não se pode olvidar que há vários cri- o Enunciado 20 do IBDFAM. Nesse sentido, é
mes no ordenamento jurídico brasileiro, tais oportuno destacar a lição de Delgado45:
como, estupro, violação sexual mediante fraude, Outra conduta que pode configurar a vio-
importunação sexual, assédio sexual, que tipifi- lência patrimonial, mediante a retenção
cam condutas caracterizadoras de violência se- de recursos econômicos, consiste em fur-
xual. Nas palavras de Lima44: tar-se ao pagamento de pensão alimen-
tícia arbitrada em benefício da mulher,
Esta espécie de violência é concretizada
especialmente por se tratar de valor desti-
através de diversos crimes previstos no
nado a satisfazer necessidades vitais. Ora,
Código Penal, tais como o estupro (CP, art.
o devedor de alimentos que, condenado
213), estupro de vulnerável (CP, art. 217-A),
ao pagamento de verba alimentar indis-
satisfação de lascívia mediante presença
pensável à subsistência da mulher, deixa,
de criança ou adolescente (CP, art. 218-B),
dolosamente, de cumprir com a sua obri-
entre outros previstos no Título VI da Parte
gação, não estaria se apropriando indevi-
Especial do Código Penal, que versa so-
damente de valores que pertenceriam à
bre os Crimes contra a dignidade sexual.
mulher credora dos alimentos?
(LIMA, 2019, p. 1491).
Ainda, é conveniente sublinhar que o legisla-
É importante salientar que nada justifica a prá-
dor infraconstitucional no artigo 244 do Código
tica sexual sem o consentimento de ambas as
Penal tipificou o crime de abandono material, o
partes. Exemplificando, o fato de a mulher es-
qual resta configurado quando o devedor de ali-
tar em uma festa, bebendo, dançando e usando
mentos deixa de cumprir a sua obrigação sem
uma roupa mais curta, não outorga ao homem
justa causa (DELGADO, 2015)46.
o direito de praticar atos sexuais com ela sem o
seu expresso consentimento. Outrossim, quando o indivíduo descumprir me-
dida protetiva consistente no pagamento de ali-
Além disso, é importante esclarecer que não há
mentos aplicada pelo Juízo da Vara de Família
que se falar em “débito conjugal”, vez que a mu-
ou o do Juizado de Violência Doméstica e Fa-
lher casada não tem a obrigação de satisfazer os
miliar Contra a Mulher incorrerá na prática do
desejos sexuais do seu esposo. Caso essa seja
crime previsto no artigo 24-A da Lei 11.340/2006
forçada a praticar atos sexuais com o seu côn-
(DIAS, 2022)47.
juge restará caracterizado o crime de estupro
marital.
45 DELGADO, Mário Luiz. A violência patrimonial contra
No que atine à violência patrimonial, a sua de- a mulher nos litígios de família. Disponível em: <https://
finição tem como núcleo três verbos, quais se- ibdfam.org.br/assets/upload/anais/237.pdf>. Acesso em: 03
nov. 2022, p. 109.
jam: subtrair, reter e destruir. Assim, ocorre 46 DELGADO, Mário Luiz. A violência patrimonial contra
esse tipo de violência quando o algoz subtrai ou a mulher nos litígios de família. Disponível em: <https://
se apropria indevidamente de algum bem da ví- ibdfam.org.br/assets/upload/anais/237.pdf>. Acesso em: 03
nov. 2022.
44 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial 47 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8.
comentada. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1491. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 100.

181
A última forma de violência insculpida no artigo de menor potencial ofensivo, fixar-se-á a
7º da Lei n° 11.340/2006 é a moral, que consiste competência do Juizado de Violência Do-
na prática dos crimes de calúnia, difamação ou méstica e Familiar contra a Mulher (LIMA,
injúria, contra a mulher no âmbito doméstico ou 2019, p. 1493).
familiar (CUNHA; PINTO, 2022)48.
Além disso, é oportuno asseverar que segundo
Outro ponto sobre essa espécie de violência que Cunha e Pinto (2022)50, o legislador foi justo ao
merece destaque consiste no fato de que os afastar no artigo 41 da Lei 11.340/2006 a possibi-
crimes contra a honra, em regra, são conside- lidade de aplicação da Lei 9.099/95 aos crimes
rados de menor potencial ofensivo e a Lei Ma- praticados contra a mulher no âmbito domésti-
ria da Penha veda expressamente a aplicação co, familiar, ou em relação íntima de afeto, já que
da Lei 9.099/95 às infrações penais praticadas admiti-la significaria banalizar essa forma de
com violência doméstica e familiar contra a mu- violação a direitos humanos. Ainda, ressalta-se
lher. Portanto, a competência para julgar esses que o Supremo Tribunal Federal na ADIn 4.424/
processos não será dos Juizados Especiais Cri- DF e na ADC 19/DF considerou constitucional tal
minais, assim como não há que se falar na pos- vedação.
sibilidade de aplicação dos institutos despena-
Neste ponto, vê-se que ao realizar a leitura aten-
lizadores previstos na Lei dos Juizados. Nesse
ta do artigo 7º da Lei 11.340/200651 é possível en-
prisma, destaca Lima49:
xergar com mais nitidez como se dá a violência
Como os três crimes acima apontados física, psicológica, sexual, patrimonial e moral,
têm, em regra, pena máxima comida posto que o legislador infraconstitucional se
igual ou inferior a 2 (dois) anos, poder-se- empenhou em apresentar algumas condutas
-ia concluir que a competência para seu que as caracterizam.
processo e julgamento seria dos Juizados
Especiais Criminais, por se tratar de infra- 4. O CICLO DA VIOLÊNCIA
ção de menor potencial ofensivo. Todavia,
como o art. 41 da Lei Maria da Penha é ex- A violência doméstica, familiar, ou aquela praticada
presso no sentido de vedar a aplicação da
no contexto de uma relação íntima de afeto, acon-
Lei nº 9.099/95 aos crimes praticados com
tece de um modo muito peculiar, vez que é cíclica,
violência doméstica e familiar contra a
ou seja, composta por fases que se repetem. Sobre
mulher, independentemente da pena pre-
vista, é certo concluir que, presente uma essa característica, faz-se salutar trazer à baila as
das hipóteses do art. 5º da Lei 11.340/2006, palavras de SAFFIOTI52.:
não se admite a aplicação dos institutos 50 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Lei
despenalizadores da Lei dos Juizados, Maria da Penha comentada artigo por artigo. 12. ed. São
recaindo sobre o Juizado de Violência Paulo: JUSPODIVM, 2022, p. 352-355.
Doméstica e Familiar contra a Mulher a 51 BRASIL. Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
competência para o processo e julgamen- contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição
to de tais delitos. Portanto, caracterizada Federal, da Convenção sobrea Eliminação de Todas as
hipótese de violência moral contra a mu- Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
lher no âmbito de uma relação doméstica, Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
familiar ou íntima de afeto, mesmo que a Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código
infração penal praticada seja considerada de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução
Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://
48 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Lei www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.
Maria da Penha comentada artigo por artigo. 12. ed. São htm>. Acesso em: 29 out. 2022.
Paulo: JUSPODIVM, 2022, p. 109. 52 SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado,
49 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, Fundação
comentada. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1493. Perseu Abramo, 2015, p. 84.

182
1. A violência doméstica ocorre numa re- ser seu cotidiano. Questiona o que fez de
lação afetiva, cuja ruptura demanda, via errado, sem se dar conta de que para o
de regra, intervenção externa. Raramente agressor não existe nada certo. Não há
uma mulher consegue desvincular-se de como satisfazer o que nada mais é do que
um homem violento sem auxílio externo.
Até que este ocorra, descreve uma traje- desejo de dominação, de mando fruto de
tória oscilante, com movimentos de saí- um comportamento controlador.
da da relação e de retorno a ela. Este é o
chamado ciclo da violência, cuja realidade [...]
é meramente descritiva. Mesmo quando
permanecem na relação por décadas, as Depois de um episódio de violência, vem o
mulheres reagem à violência, variando arrependimento, pedidos de perdão, cho-
muito as estratégias (SAFFIOTI, 2015, p. ro, flores, promessas etc. Cenas de ciú-
84). mes são justificadas como prova de amor
e a vítima fica lisonjeada. O clima familiar
Na citada lição é possível verificar que a auto- melhora e casal vive uma nova lua de mel.
ra salienta a característica cíclica da violência Ela sente-se protegida, amada, querida e
doméstica, familiar, ou praticada numa relação acredita que ele vai mudar.
íntima de afeto, assim como aduz que a mulher,
Tudo fica bom até a próxima cobrança,
em regra, precisa de ajuda para conseguir rom-
ameaça, grito, tapa...
per esse ciclo cruel.
Forma-se um ciclo em espiral ascenden-
O ciclo de violência se inicia com a fase de for- te que não tem mais limite. (DIAS, 2022, p.
mação da tensão, na qual o agente xinga, se 28-30).
exalta e ameaça a mulher. A segunda fase é de-
nominada explosão e ocorre quando esse agride Como se vê, Dias (2022)54 explica de forma minu-
fisicamente a vítima. Ao cabo, há a terceira fase ciosa cada fase do ciclo da violência, inclusive
desse ciclo perverso, conhecida como “lua de ressalta que se trata de um espiral ascendente,
mel”, quando o agressor roga por perdão e afir- na medida que o intervalo de tempo entre as fa-
ma que mudará. Contudo, depois de um tempo, ses diminui e a intensidade da violência aumen-
tudo volta a acontecer. Neste ponto, cumpre re- ta. Sob essa perspectiva:
memorar a desvelada narrativa apresentada por Há um escalonamento da intensidade e da
Dias53: frequência das agressões, que depende
das circunstâncias da vida do casal. Não
Primeiro vem o silêncio seguido da indi- obstante as variáveis (circunstâncias da
ferença. Depois surgem reclamações, re- vida do casal), já se constatou que a repe-
primendas, reprovações. Em seguida co- tição cíclica das etapas tende a fazer com
meçam castigos e punições. A violência que a agressão seja cada vez mais grave e
psicológica transforma-se em violência habitual (BIANCHINI; BAZZO; CHAKIAN, p.
física. [...] 117)55.
Está constantemente assustada, pois não Com efeito, verifica-se que quanto mais vezes
sabe quando será a próxima explosão, e o ciclo se completa, mais risco a vida da vítima
tenta não fazer nada errado. Torna-se in- está correndo, porque a intensidade da violên-
segura e, para não incomodar o compa- cia só aumenta com o tempo e, em muitos ca-
nheiro, começa a perguntar a ele o quê e sos, culmina na prática do crime de feminicídio,
como fazer, tornando-se sua dependente. previsto no artigo 121, § 2º, inciso VI, do Código
Anula a si própria, seus desejos, seus so- Penal.
nhos de realização pessoal e seus objeti-
vos de vida. Nesse momento, a mulher vira 54 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8.
alvo fácil. A angústia do fracasso passa a ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 30.
55 BIANCHINI, Alice; BAZZO, Mariana; CHAKIAN, Silvia. Crimes
53 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. contra mulheres: Lei Maria da Penha, Crimes Sexuais e
ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 28-30. Feminicídio. 4. ed. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 117.

183
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da complexidade que envolve a temá-


tica da violência doméstica e familiar contra a
mulher, o presente trabalho buscou esclarecer o
seu conceito, as suas formas, assim como des-
tacar as suas características e peculiaridades,
dado que somente quando a vítima entender
que se encontra em situação de violência, terá
condições de pedir ajuda para romper o ciclo.
O entendimento sobre a violência de gêne-
ro praticada no âmbito de incidência da Lei
11.340/2006 precisa ser ampliado e visualizado
na sua integralidade, vez que a mulher em si-
tuação de violência doméstica e familiar, mui-
tas vezes, não sabe exatamente quais condutas
podem caracterizar violência física, psicológica,
patrimonial, sexual e moral.
Outrossim, outra dificuldade que a mulher em
situação de violência enfrenta é o fato de não
entender que está presa no ciclo da violência,
pois na fase da “lua de mel” acredita que o al-
goz realmente se arrependeu e tem a esperança
de que as coisas melhorarão. Contudo, a vítima
não sabe que depois de um tempo as violências
acontecerão novamente e com mais intensida-
de.
É cediço que o feminicídio corresponde apenas
à parte visível do problema, isto é, a ponta do
iceberg, vez que antes de alcançar a consuma-
ção da referida infração penal, o agressor, nor-
malmente, já praticou contra a vítima todas as
outras formas de violência.
Destarte, conquanto a Lei 11.340/2006 significar
um avanço na legislação protetiva das mulheres
no Brasil, o enfrentamento a essa forma de vio-
lência deve continuar, pois conforme dados do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública56, entre
os anos de 2016 e 2021, houve um aumento de
44,3% nos casos de feminicídio no país.

56 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Medidas


protetivas de urgência e o princípio da vedação à proteção
insuficiente: uma questão de eficácia dos direitos fundamentais
da mulher. In: Fórum brasileiro de Segurança Pública. Anuário
Brasileiro de Segurança Pública 2022. São Paulo: FBSP,
2022. p. 156. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/
wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5>. Acesso
em: 02 nov. 2022.

184
Leia
Revista
Científica
Virtual
https://esaoabsp.edu.br/Revistas
https://issuu.com/esa_oabsp
Edição 42
Ano 2023

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